revista informação legislativa

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Brasília • ano 40 • nº 158

abril/junho – 2003

Revista deInformaçãoLegislativa

Subsecretaria de Edições Técnicas do Senado Federal

Page 3: Revista Informação Legislativa

Revista deInformaçãoLegislativa

FUNDADORES

Senador Auro Moura Andrade

Presidente do Senado Federal – 1961-1967

Isaac Brown

Secretário-Geral da Presidência – 1946-1967

Leyla Castello Branco Rangel

Diretora – 1964-1988

ISSN 0034-835x

Publicação trimestral da

Subsecretaria de Edições Técnicas

Senado Federal, Via N-2, Unidade de Apoio III, Praça dos Três Poderes

CEP: 70.165-900 – Brasília, DF. Telefones: (61) 311-3575, 311-3576 e 311-3579

Fax: (61) 311-4258. E-Mail: [email protected]

DIRETOR: Raimundo Pontes Cunha Neto

REVISÃO DE ORIGINAIS: Angelina Almeida Silva, Cláudia Moema de Medeiros Lemos

REVISÃO DE REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: Yuri G. B. Batista

REVISÃO DE PROVAS: Maria de Jesus Pimentel, Larissa dos Santos Aguiar, ClaudaneAlmeida Gonçalves, Alessandra Araújo Vieira

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA: Saulo Santos Briseno

CAPA: Renzo Viggiano

IMPRESSÃO: Secretaria Especial de Editoração e Publicações

Revista de Informação Legislativa / Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas. -- Ano 1, n. 1 ( mar. 1964 ) – . - - Brasília: Senado Federal, Subsecretariade Edições Técnicas, 1964– .v.

Trimestral.

Ano 1-3, nº 1-10, publ. pelo Serviço de Informação Legislativa; ano 3-9, nº11-33, publ. pela Diretoria de Informação Legislativa; ano 9- , nº 34- , publ. pelaSubsecretaria de Edições Técnicas.

1. Direito — Periódico. I. Brasil. Congresso. Senado Federal, Subsecretariade Edições Técnicas.

CDD 340.05

CDU 34(05)

© Todos os direitos reservados. A reprodução ou tradução de qualquer partedesta publicação será permitida com a prévia permissão escrita do Editor.

Solicita-se permuta.

Pídese canje.

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Si richiede lo scambio.

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Wir bitten um Austausch.

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Revista deInformaçãoLegislativaBrasília · ano 40 · nº 158 · abril/junho · 2003

A recepção legislativa e os sistemas constitucionais 7

Poder Judiciário no Brasil: aspectos de sua reforma 23

A norma no pragmatismo jurídico e a lógica do razoável:um paralelo da filosofia jurídica de Oliver WendellHolmes e de Luis Recaséns Siches 71

Evolução do controle de constitucionalidade de tipofrancês 97

A aplicação do Direito Internacional Humanitário nos“conflitos novos”: conflitos desestruturados e conflitos“de identidade” ou étnicos 127

Os alimentos geneticamente modificados e o direito doconsumidor à informação: uma questão de cidadania 143

A proteção e regulamentação da concorrência: análise docaso brasileiro 163

Regulação, concorrência e o setor bancário: reflexões 171

Considerações sobre a globalização e seus efeitos sobreo trabalho infantil 195

O poder constituinte originário e o poder constituintereformador 203

Principais alterações do novo Código Civil referentes aoDireito das Coisas 209

A gestão pública moderna e a credibilidade nas políticaspúblicas 219

A pessoa jurídica pobre na forma da lei e sua proteçãoconstitucional de acesso à Justiça 227

Constituição, artigo 52, inciso X: reversibilidade? 233

Os militares e a ordem constitucional republicanabrasileira: de 1898 a 1964 241

Ivo Dantas

Edgard Lincoln de Proença Rosa

Márcia Ferreira Cunha Farias

Joaquim B. Barbosa Gomes

Roberto de Almeida Luquini

Roberto Freitas Filho

Melissa Ferreira Gasparini

Leandro Novais e Silva

Bernardo Leôncio Moura Coelho

José Elaeres Marques Teixeira

Demóstenes Tres Albuquerque

João Batista Marques

Ronaldo Pinheiro de Queiroz

Sérgio Resende de Barros

Romeu Costa Ribeiro Bastos eMaria Elizabeth Guimarães TeixeiraRocha

Page 5: Revista Informação Legislativa

OS CONCEITOS EMITIDOS EM ARTIGOS DE COLABORAÇÃO SÃO DE RESPONSABILIDADE DE SEUS AUTORES.

Marcos Mendes Desenvolvimento e eqüidade social: o Brasil visto deTaiwan 335

Resenha Legislativa

(artigos de contribuição da Consultoria Legislativa do Senado Federal)

Eitel Santiago de Brito Pereira

Marília Lourido dos Santos

Nadja Aparecida Silva de Araujo

Manoel Moacir Costa Macêdo eLevon Yeganiantz

Roberto Moreira de Almeida

Hugo Sarubbi Cysneiros deOliveira

Adriana de Andrade Roza

A política enquanto Ciência e a necessidade de seuensino para o exercício eficiente da cidadania 257

Políticas públicas (econômicas) e controle 265

Atuação do Poder Executivo no controle de constitucio-nalidade. Notas de uma interpretação sistemática doDireito Positivo brasileiro 279

Sociologia no direito: a convergência entre a legalidade,a legitimidade e a ética 299

Sesmarias e terras devolutas 309

Da aplicabilidade do mandado de segurança – extensãoàs autoridades de empresas estatais em casos deprocedimentos licitatórios decorrentes do exercício daconcessão de serviços públicos 319

Tortura: um estudo crítico de sua digressão histórica 327

(artigos de contribuição da Consultoria de Orçamentos,Fiscalização e Controle do Senado Federal)

Fernando Veiga Barros e Silva Nota técnica nº 47/03 (Projeto de Lei das DiretrizesOrçamentárias para 2004; comentários sobre os efeitos dosrestos a pagar sobre o resultado primário) 355

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Ivo Dantas

1. Relembrando algumas noçõesepistemológicas

No capítulo II do livro Direito constitucio-nal comparado: introdução teoria e metodologia,escrevemos que “em verdade, impossívelserá negar-se que uma das característicasdo mundo contemporâneo é a difusão desoluções jurídicas cada vez mais aproxima-das pelos diversos Estados, ao mesmo tem-po em que vale insistir na inviabilidade deque seja possível transportar-se um institu-to jurídico de uma sociedade para outra, semse levar em conta os condicionamentos a queestão sujeitos todos os modelos jurídicos”(2000, p. 64 et seq.).

A análise dessa troca de influências deum sistema jurídico sobre outro é um dosmais importantes objetivos ou finalidadesdo Direito Comparado, muito embora sejacorreta e oportuna a observação feita porOtávio YAZEB (2001, p. 540) ao escrever que,

“a despeito da crescente imposição atodo o mundo de modelos jurídicos enegociais uniformizados provenien-tes dos países centrais, a compreen-

A recepção legislativa e os sistemasconstitucionais

Ivo Dantas é Professor Titular da Faculda-de de Direito do Recife – UFPE. Doutor em Di-reito Constitucional – UFMG. Livre Docenteem Direito Constitucional – UERJ. Livre Do-cente em Teoria do Estado – UFPE. Juiz Fede-ral do Trabalho – (aposentado). Advogado.Parecerista.

Sumário

1. Relembrando algumas noções epistemo-lógicas. 2. O fenômeno da recepção legislativae a circulação de modelos. 3. Espécies e proce-dimentos de Recepção. 4. Os ciclos constitucio-nais. 5. Síntese conclusiva.

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são dos processos de circulação de taismodelos vem sendo quase que sistema-ticamente deixada de lado. A importân-cia de seu estudo, porém, é de há muitoreconhecida, estando as experiênciasde transferência jurídica no cerne dosprocessos históricos de formação doscampos jurídicos nacionais”.

Esse fato faz com que já não se veja osistema jurídico como algo estático em rela-ção aos modelos estrangeiros, mas sim di-nâmico, sempre passível de receber influênciasexternas, tal como notado por Paolo GALLO(1997, p. 5 et seq.) em seu livro Grandi sistemigiuridici1, que chega a se referir ao caráteruniversalista da medicina, da economia ouda física.

Essa pouca atenção dispensada peladoutrina em geral não nos permite ignorarque o fenômeno da Recepção Legislativa, en-quanto voltado para o plano do direito inter-no, sobretudo, quando se trata das relaçõesentre a nova Constituição e as Leis que lhe sãoanteriores2, é bastante difundido. Contudo,não é essa a perspectiva que interessa aoDireito Comparado, mas sim aquela outraque representa a aproximação dos diversosmodelos jurídicos existentes no plano internacio-nal3, também entendida como TransferênciaJurídica, definida por Otávio YAZEB (apudGRAU; GUERRA FILHO, p. 543) como sen-do “a adoção, por uma dada população, deregras, práticas ou concepções jurídicas pró-prias de outro povo. Essa transferência podedecorrer de imposição, de livre iniciativa dasociedade recipiente ou de outras formas decontato ou intercâmbio, como, por exemplo, amigração de contingentes populacionais” 4.

Nessa perspectiva, e diante dessa reali-dade, é que cresce a importância do DireitoComparado e, em especial, o estudo da Re-cepção Legislativa ou Circulação de Modelos(expressão preferida por alguns autores),razão pela qual neste capítulo nossa preo-cupação será, precisamente, desenvolveralgumas questões levantadas no referidocapítulo II do livro mencionado, até chegar-mos à análise dos denominados ciclos cons-

titucionais, entendidos como aqueles momen-tos em que determinado modelo parcial outotal irradia-se sobre o(s) outro(s) modelo(s)(que agrupados formam as famílias jurídi-cas), o que dá margem a que alguns autoresfalem em Direito Comparado Descritivo e Di-reito Comparado Aplicado, respectivamente.

Analisando as expressões Direito Com-parado Descritivo e Direito Comparado Aplica-do, escreve H. C. GUTTERIDGE (1954, p. 19):“Esta distinción ha merecido una aceptaci-ón general y es útil en cuanto pone de relie-ve el hecho que el Derecho comparado com-prende mucho más que una simple descrip-ción del Derecho de un país extranjero”.

E prossegue:“Derecho comparado descriptivo: Es

una denominación que, muchas ve-ces, se emplea en sentido amplio ycomprende varios tipos de investiga-ción comparativa, no todos del mis-mo valor, puesto que existe una mar-cada tendencia a considerar aplica-ble esta denominación a cualquier in-vestigación sobre el Derecho extranje-ro; pero esto es injustificable. Por ejem-plo, no se hace Derecho comparadodescritivo cuando uno se limita a re-copilar datos referentes a un solo sis-tema de Derecho, ya que, en tales cir-cunstancias, no existe comparaciónalguna. Tampoco puede aplicarse estadenominación cuando aquella reco-pilación adopta la forma de un para-lelismo o una relación clasificada dedatos, coordinando varios sistemas,dejando que el lector descubra por símismo las diferencias existentes. Encambio, puede considerarse admisi-ble dentro de esta categoria cualquierindicación de las diferencias entre doso más sistemas, aunque parezcan muysomeras y no sean una verdadera in-vestigación jurídica” (p. 19).

Adiante, tratando da segunda espéciereferida, afirma o mesmo autor que “en lamayor parte de los casos, el Derecho compa-rado aplicado persigue una finalidad prácti-

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ca: la reforma del Derecho o la unificaciónde sistemas distintos y ésta es la modalidadde investigación comparativa que es másextendida y fértil en resultados” (p. 21)5.

2. O fenômeno da recepçãolegislativa e a circulação de modelos

Em livro intitulado Introdução ao direitocomparado6 Rodolfo SACCO (2001, p. 168),faz uma afirmativa que merece ser de logotrazida à colação, ao observar que

“o nascimento de um modelo originalé um fenômeno mais raro do que aimitação. Em especial, nenhum códi-go civil pode ser plenamente original.O poder político, ou uma comissão adhoc, pode improvisar ex novo fórmu-las breves, mas não pode imaginarobras complexas, ricas de milhares deartigos coerentes e exaustivos. Umcódigo é devedor de si próprio, aomenos à doutrina nacional. Contudo,quase sempre é devedor de um outrocódigo. Entre as centenas de códigoscivis promulgados a partir de 1804,são originais em relação aos outroscódigos (mas não necessariamente arespeito de modelos doutrinários) oCode Napoleón, o ABGB, o Códigomontenegrino de 1888, e o BGB. Pos-suem uma originalidade parcial duascodificações hoje ameaçadas, isto é, oOsnovy soviético de 1961 e o obc.zák(checoslovaco) de 1964. Quanto a to-dos os outros, imitam um outro códi-go ou codificam acréscimos de exten-são bem definida, criados pela práti-ca ou pela interpretação.

Um discurso análogo pode ser fei-to para as constituições, para as nor-mas processuais, para as regras ad-ministrativas etc (cf. TAVARES, 1991,p. 71-108).

Portanto, é necessário ter presenteque dentre mil mutações jurídicas des-tinadas a criar raízes, talvez uma sejaoriginal. E a originalidade não é sem-

pre acompanhada da ressonância quesuscita em torno de si. Um pesquisa-dor disposto a um trabalho inútil po-deria reunir numa antologia do gro-tesco as exaltações da originalidade edo ineditismo de todo modelo jurídi-co copiado ou imitado.

O jurista tende a ver a mutação ju-rídica como um evento que se consu-ma de modo instantâneo” – concluiSACCO (2001).

Adiante, afirma ainda o mencionadoautor:

“A doutrina tem dado maior aten-ção à circulação do que à criação ori-ginária dos modelos. Efetivamente, acirculação permite observações maisdifusas e variadas, mesmo porque oscasos de circulação são mais numero-sos. Também as línguas possuemmuitos sinônimos para o vocábulocirculação. Em francês encontramosdiffusion, emprunt, imitation, migration,propagation, réception, transfert, transpo-sition. Em inglês são usados borrowing,spread, transmission, transplant” (p.169-170).

Escrevendo sobre As migrações de siste-mas jurídicos, Eric AGOSTINI (19- -?, p. 251-252), depois de mencionar a célebre afirma-tiva de Montesquieu, segundo a qual “elas(as leis) devem ser de tal modo próprias parao povo a quem são destinadas, que é umacaso se as duma nação podem convir a umoutro”, doutrina que

“a realidade jurídica mundial é com-pletamente diferente. Verifica-se, naverdade, em todas as latitudes e todasas longitudes a universalidade de ins-tituições particulares como a letra decâmbio. Igualmente corpos inteiros delegislação emigraram de qualquerparte. Assim o Código de Napoleãoconheceu um destino planetário e foilevado tanto para a efervescência daconquista como para o esplendor dopensamento. Ou ainda, o sistema deCommon Law é hoje aceite por nume-

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rosos estados. Além disso, inumerá-veis foram os empréstimos pontuaispelos quais tal ou tal ordem jurídicase inspirou em exemplos introduzin-do instituições ou regras trazidas doestrangeiro. Não se pode contudo con-fundir recepção parcial e recepçãoglobal. Assim sendo, para realizar ple-namente a ruptura espacio-temporalligada à codificação dos estados so-beranos fizeram passar a moderniza-ção, a actualização ou a criação dassuas leis, por reproduções sistemáti-cas ou selectivas de sistemas pré-exis-tentes demonstrando assim que ´cadapovo pode assimilar o direito dos ou-tros, fazendo-o seu por adaptaçõessuvessivas oportunas. Isso, porque odireito não é somente um fenómeno na-cional, mas também e sobretudo um fe-nómeno humano’. Certamente hoje nãopode estar em questão sonhar com umdireito mundial unificado; a Conferên-cia de Haia tem já suficientes dificul-dades para harmonizar somente as re-gras do direito internacional privado.Mas é inegável que o observador podeverificar migrações de sistemas jurídicosque se manifestam cumulativamentepor exportações e importações” 7.

Diante das observações feitas por Rodol-fo SACCO e Eric AGOSTINI, cremos que doispontos devem ser, de logo, destacados: oprimeiro já foi referido nas páginas anterio-res, ou seja, não é possível transportar-seum instituto jurídico de uma sociedade paraoutra sem se levar em conta os condiciona-mentos a que estão sujeitos todos os mode-los jurídicos; o segundo é quanto à antigüi-dade e atualidade que envolvem a recepção le-gislativa, a ponto de Chryssapho TSOUCA(1998, p. 9) escrever que “le processus de laréception de droits étrangers est d´une anci-enneté considerable et d´une actualité tou-jours croissante”.

Quanto ao primeiro aspecto, apesar danecessária nacionalização dos sistemas (=ordenamentos) jurídicos, imperioso é reco-

nhecer que existem laços comuns entre aque-les que formam a mesma família, motivopelo qual Luis Moisset de ESPANÉS (1994,p. 15-16), em livro intitulado Codificación ci-vil y derecho comparado8, ao estudar o CambioSocial y cambio legislativo, doutrina que

“el Derecho Comparado es una disci-plina que muchas veces ha sido ta-chada de inútil, cuando no de imprac-ticable o imposible: lo primero porquienes, enrolados en la corriente po-sitivista, afirman que lo único que in-teresa al jurista es el conocimiento desu propia legislación, el estudio de lasnormas positivas que rigen en su país;lo segundo es la consecuencia de pen-sar que los sistemas jurídicos no tie-nen puntos en común, desconocien-do que en todos los ordenamientosjurídicos pertenecientes a pueblos deuna misma civilización subyace unabase filosófica similar.

El jurista debe acudir a esta herra-mienta tan valiosa que es la compara-ción, para extraer de ella frutos quecontribuyan al mejor conocimiento delsistema nacional. Pero la finalidad dela comparación no se agota en el ´me-jor conocimiento´ del derecho próprio;la tarea del comparatista le permitealcanzar una más cabal comprensióndel Derecho – tanto del nacional comodel extranjero – y esto traerá comoconsecuencia el progreso en materiade interpretación y aplicación de lasnormas jurídicas”.

Analisando Modelos, circulaciones, recep-ciones, Lucio PEGORARO e Angello RINE-LLA escrevem que

“uno de los problemas metodológicosque la ciencia del derecho constituci-onal comparado encuentra afecta,como ya se ha dicho, a la exigencia deponer orden entre ordenamientos einstitutos pertenecientes a ordenami-entos aparentemente similares, lo quesignifica proceder a la clasificación delos objetos de análisis a fin de recon-

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ducir los mismos al ámbito de un sis-tema lógico articulado sobre construc-ciones teóricas comunes, esto es, so-bre modelos. En líneas generales, sehabla de modelos constitucionales paraindicar, a propósito de la teoria de losciclos constitucionales, las constitucio-nes leader, esto es, aquellas más difu-samente tomadas como modelos aimitar (MORBIDELLI) o que por elcontrario están en condiciones de con-dicionar el desarrollo de las diversasexperiencias constitucionales (VER-GOTTINI). Parece por tanto que el usodel término modelo sirva para enten-der el sentido de la representación sin-tética de fenómenos de la realidadpolítico-constitucional, combinadacon la idea de forma ejemplar y por tan-to a imitar”.

Mais adiante, desenvolvendo o raciocí-nio exposto, prosseguem:

“La existencia de modelos que seconfiguran como formas ejemplarespostula de por sí la circulación de losmodelos mismos. Las constitucionesmodelo son consideradas así propia-mente imitadas. Quien presta atenci-ón a las mutaciones jurídicas de losordenamientos no tendría dificultaden revelar que aquellas son debidaspor la casi imitación-recepción demodelos jurídicos del exterior, siendocuanto menos raro el nacimiento deun modelo original (WATSON; SAC-CO) [itálicos nossos] (PEGORARO;RINGELLA, 2000, P. 44-45)..

(...) Si se observasen con ojos aten-tos los problemas del método del de-recho comparado, resultaría fácil re-conocer que la circulación de los mo-delos jurídicos y su recepción presu-pone una obra de análisis compara-da de la materia por parte de los órga-nos del país – por así decirlo – impor-tador” (p. 45).

Nessa perspectiva (recepção externa), ofenômeno é conceituado por Ana Lúcia de

Lyra TAVARES (1987, p. 2)9, como sendo “aintrodução, em um sistema jurídico, de nor-mas ou institutos de outro sistema”, enquan-to, em trabalho mais recente, escreve: “Aexpressão recepção de direitos indica a ado-ção, por um sistema jurídico, em sentidoamplo ou restrito, de institutos, regras e prin-cípios oriundos de outro(s) sistema(s)”(1999, p. 94). E prossegue:

“Modernamente, esses estudostêm sido divulgados sob a designa-ção de circulação de modelos jurídicos.Pensamos, entretanto, que entre asduas expressões há distinções a se-rem consideradas. Se no conceito derecepção está implícito um movimen-to de direção única de influências ju-rídicas, do sistema exportador para oreceptor, no de circulação dos mode-los jurídicos pressupõe-se que haja,como dissemos em outra ocasião, umretorno, com elementos novos, às fontesoriginais de inspiração” [itálicos no ori-ginal]10.

No Dicionário enciclopédico de teoria e socio-logia do direito coordenado por André-JeanARNAUD (RECEPÇÃO, 1999, p. 674), lê-seque “dentre as diferentes formas através dasquais um sistema de direito é influenciadopor outro, a recepção é uma das mais pene-trantes. Ao invés de formarmos nosso pró-prio direito, ele é tomado emprestado a umoutro sistema jurídico. Recepção opõe-se aformação autônoma”, após o que afirma:

“no sentido estrito, o termo recepçãonão visa nem à imposição de um di-reito por uma metrópole a suas colô-nias (BURMAN; HARREL-BOND,1979), nem à implementação de trata-dos internacionais, nem tampouco àsubstituição ao direito nacional de umdireito supracional (isto é, por exem-plo, discutido a respeito da C.E.E). Aose associar todos esses fenômenos,corre-se o risco de enfraquecer os tra-ços distintivos do conceito. O termodesigna o empréstimo de um conjun-to de direito bastante importante,

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como uma codificação, dentro de umasituação histórica específica”.

Peter HÄBERLE (1996, p. 151), preocu-pado com a freqüente presença do fenôme-no no mundo contemporâneo, advoga a ne-cessidade de ser formulado um modelo teóri-co acerca do mesmo, como se verifica de suaspróprias palavras: “La actual interdepen-dencia efectiva entre las Constituciones, es-pecialmente en cuanto al sinnúmero de re-cepciones que en estos momentos se estánproduciendo nos induce a la búsqueda deun modelo teórico general”.

Tratando da Teoría de la Constitución comociencia de la cultura. La cultura como factor con-figurador de recepciones. El contexto cultural,escreve HÄBERLE (1996, p. 153) que

“las ciencias jurídicas ostentan, engeneral, notorios ejemplos de recepci-ones: la recepción del Derecho Roma-no en Europa al comenzo de la mo-dernidad, la victoria del federalismonorteamericano de 1787 en causas defederalismo de la vieja Europa (Suiza:1848, La Alemania de la Paulskircheen 1849), anteriormente la historiogra-fía de los éxitos históricos de catálo-gos positivados de derechos humanosde 1776, 1789 y 1831 (en Bélgica), has-ta incluso las que se dan en nuestrosdías, como la recepción del Derechoalemán en Japón y Corea. La capaci-dad de irradiación de los Códigos Ci-vil y Penal franceses es de sobra cono-cida y hoy el éxito de la jurisdicciónconstitucional es algo que ya se apre-cia incluso a simple vista y casi a ni-vel planetario”.

Mais adiante, prossegue HÄBERLE (p.156):

“A esto hay que añadir que el ac-tual mundo uniformado cada vez sehace más pequeño gracias a las inten-sas posibilidades de comunicación,por un lado, y también gracias, porotro, a que los problemas globales exis-tentes son similares para todos, como,por ejemplo, los derivados del medio

ambiente y de la tecnología. He aquila razón última de la necesidad de verlo que hace ´el vecino´ para aprove-char los logros ya alcanzados por éste,y ello no sólo por la notoria escasezde recursos, sino también por puro ysimple ahorro de tiempo y trabajo. Deahí la primera toma de contactos ´conlo foráneo´; léase ´con las primerasrecepciones´. Es posible que en elloactúe como factor sugestivo la propia´efectividad´ del ejemplo ajeno, aña-diendose posteriormente las corrien-tes propias del denominado ´espíritude la época´ e incluso las propias ´mo-das´. Desde un punto de vista histori-co, podríamos decir que dicho mo-mento bien podría llamarse ´la horade las recepciones´, si bien hay quetener en cuenta que no siempre se danen igual medida las condiciones ade-cuadas para que las reformas se efectú-en siguiendo los modelos extranjeros”.

3. Espécies e procedimentos deRecepção

Um dos autores que mais tem-se preocu-pado com o fenômeno da Recepção Legislati-va, sem dúvida, é Roberto MOLINA PAS-QUEL, cujas análises se encontram, prin-cipalmente, em dois artigos intitulados En-sayo sobre el metodo para la interpretación yrecepción de instituciones de derecho extranjero( 1951, p. 49-53) e Reglas sobre recepción deinstituciones jurídicas extranjeras (1965, p. 677-681), sendo que no primeiro deles observaque, “con la disciplina jurídica, con los es-tudios del Derecho comparado, coexiste elintercambio material de las naciones, inten-sificado y acelerado por el progreso en losmedios de comunicación” (p. 47).

Por outro lado, no segundo dos artigosmencionados, MOLINA PASQUEL (p. 678),embora faça referências em relação ao siste-ma do Common Law, oferece regras que se deveseguir e regras que não se deve seguir no estu-do comparado de qualquer outro sistema.

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Assim, quanto às regras que se deve seguir,aponta as seguintes:

“a) – Conocer el idioma del paísde common law cuya institución se es-tudie, a saber: el inglés y especialmen-te la terminología jurídica.

b) – Conocer, aunque no sea endetalle, la historia, la tradición y laidiosincrasia del pueblo de cuyo siste-ma jurídico se estudie la institución.

c) – Conocer, por lo menos en susprincípios rectores, el sistema jurídi-co del país de que se trate, y especial-mente sus más importantes instituci-ones”.

Em relação às regras que não se deve se-guir, aponta MOLINA PASQUEL nada me-nos que 5 (cinco), a saber:

“1º – No traducir literalmente lostérminos o vocablos del idioma extran-jero, sin una comprobada certeza. Esnecesario buscar términos semejantesque identifiquen o, por lo menos, igua-len el concepto expresado en aquelidioma 11.

2º – Verificar cuidadosamente latraducción al español de ciertas ex-presiones latinas que tienen un signi-ficado próprio en inglés, diverso dellatino y distinto, sobre todo, de su sig-nificado en el Derecho nacional.

3º – No guiarse por las definicio-nes de la doctrina ni menos selecio-nar una entre las varias que general-mente hay.

4º – Debe estudiarse el funciona-miento dentro de su sistema de la ins-titución de que se trate, analizando losderechos y obligaciones de los suje-tos, la situación jurídica de los bienesy las acciones y recursos que se den acada uno de ellos, así como los efectosfinales de su ejercício. No debe dejar-se llevar el investigador por el nom-bre del recurso, sin analizar debida-mente, antes de traducirlo al idiomanacional, cúal es su alcance y cuálesson sus efectos 12.

5º – Solamente debe traducirse li-teralmente el nombre de las accionesy recursos ejercitables ante los tribu-nales que produzcan efectos semejan-tes” (1965, p. 678-679).

Depois de oferecer essas regras, afirmaMOLINA PASQUEL (1965, p. 680-681): “Lasreglas anteriores merecen algunos comen-tarios, que pueden ayudar al investigadoren su tarefa”, apontando 11 (onze) comentá-rios [itálicos nossos]:

“A) – Debe tenerse en cuenta que elsistema jurídico extranjero es un todo con-gruente, razonable y lógico, de acuerdocon los presupuestos arriba explicados. Lalógica jurídica rige tanto en los siste-mas nacionales como en los extranje-ros, y cuando alguma idea aparezcaincongruente, lo más probable es queno esté bien captada.

B) – El investigador debe procurar tra-ducir la idea y no las palabras.

C) – La institución que haya de reci-birse debe estudiarse dentro de su sistemajurídico, así como su historia y sus ante-cedentes aborígenes y romanos. Es un er-ror hacer una traducción y atribuir alos sujetos de la institución en el siste-ma extranjero, los derechos y accio-nes que se den en el sistema nacionala los sujetos de la institución cuyonombre se utilice en la traducción.

D) – Cuando no exista identidad en-tre los conceptos o ideas del idioma ex-tranjero y el nacional, deberá declararseasí. Si se va a conocer el nombre pró-prio del idioma extranjero, habrá deredactarse una nota explicativa acer-ca de la naturaleza y funcionamentode la institución, y conservar aquél. Sise opta por traducir el vocablo medi-ante una palabra del idioma nacionalque no tenga exactamente la mismadenotación y connotación, deberá deaclararse así desde el primer momen-to en que se use.

E) – Abstenerse de consignar consecu-encias derivadas de los derechos obligaci-

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ones que origine la palabra traducida, cu-ando no tenga una correspondencia exac-ta en el sistema jurídico extranjero.

F) – Es más importante explicar el fun-cionamiento de una institución extranje-ra, usando la terminología nacional, quehacer una simple traducción de las pala-bras que describen sus elementos.

G) – Es preferible crear un neologis-mo a usar un término de significación tra-dicional, cuando la institución que hayade recibirse no tenga correspondencia exac-ta en ambos sistemas jurídicos.

H) – Es recomendable que el legisla-dor del país recipiendario declare la re-cepción de la institución, a efecto de orien-tar al jurista nacional hacia una interpre-tación auténtica de la institución y de susmodalidades.

I) – La institución habrá de ser recibi-da tal como es y tal como funcione en elpaís de su origen, y si así no convinierepor cualquier razón, deberá explicar-se detalladamente la diversa regula-ción nacional, así como sus diferenci-as y las razones que la apoyen.

J) – Deben buscarse recepciones seme-jantes a las que se hubieran efectuado enotros sistemas del grupo del recipienda-rio, analizando los problemas quehubiere creado aquélla, para buscarsu correción si fuere posible. Respec-to a instituciones anglosajonas en sis-temas romanísticos, es convenientetener en cuenta los casos de Escocia,de la provincia de Quebec y del Esta-do de Lusiana, donde rigen sistemasde Derecho codificado.

K) – Estudiar los antecedentes ro-manistas y los aborígenes de la insti-tución para conocer su contenido hu-mano, su uso general, y hacer posiblesu adaptación en el medio jurídiconacional”.

Apesar de todas as dificuldades bemexpressas no texto de MOLINA PASQUEL,o desenvolvimento que têm alcançado osestudos sobre o tema de que estamos tratan-

do já permite que se fale, como o faz MarcANCEL (1980, p. 74 et seq.), em Aproximaçãodos sistemas no direito positivo, oportunidadeem que observa que “mais importante queesta aproximação de caráter interno é a apro-ximação entre sistemas diferentes”, prosse-guindo: “De maneira sempre espontânea ounecessária, ela se realiza por dois processosespeciais” (p. 75).

Em seguida, afirma Marc ANCEL (p. 78):“mais importante, entretanto, que osempréstimos legislativos é o fenôme-no da recepção de direitos, que consti-tui, na hora atual, a expressão maiscompleta da aproximação voluntáriaou deliberada. Já se teve a ocasião desinalar que houve, na história, casosde recepção, dignos de nota, realiza-da de maneira progressiva e, em gran-de parte, espontânea. Tal foi o caso,como vimos, da recepção do direitoromano na Europa Continental naépoca do Renascimento. Essa recep-ção, embora geral, não teve em toda aparte a mesma significação compara-tiva. A França e os Países Baixos, porexemplo, encontraram, sobretudo, norenascimento do direito romano, umarazão escrita, que lhes permitiu domi-nar e ordenar a diversidade dos cos-tumes. O direito romano surge, então,como uma espécie de denominadorcomum jurídico, e, no século XVII,Grotius e Domat preconizaram-nocomo uma expressão do direito natu-ral, isto é, tanto como guia quantocomo ideal a atingir. No Santo Impé-rio, ao revés, ele foi recebido como di-reito aplicável, e a importância da re-cepção do direito romano, na Alema-nha, foi freqüentemente sinalada. É,aliás, essa recepção generalizada,embora diversa, que definitivamentefundou o sistema romanista e cons-truiu o direito comum (gemeines Recht)europeu uniforme do século XVIII.

Depois da segunda metade do sé-culo XIX, e sobretudo no século XX, a

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recepção dos direitos assumiu umoutro aspecto. Daí em diante, ela édeliberadamente desejada ou aceita,por países estranhos aos sistemas quea aceitam, e deles, geograficamente,distantes”.

Ana Lúcia de Lyra TAVARES, no verbe-te RECEPÇÃO DE DIREITOS (1986, p.1033), nos fala em espécies de Recepção Legis-lativa, chegando a apontar nada menos de 5(cinco) formas, por ela definidas nos seguin-tes termos [itálicos nossos]:

“a) – Recepção voluntária, i.e, a quedecorre da adoção livre e conscientedo direito estrangeiro, ou de regrasdesse direito. Exemplo clássico é a re-cepção do Código Civil suíço pelaTurquia em 1926, afastando-se de suatradição jurídica muçulmana.

b) – Recepção imposta, fruto de mo-vimentos colonizadores ou de anexa-ção de territórios, como foi o caso darecepção do sistema do common law naÍndia, ou da imposição do Código Ci-vil napoleônico na Bélgica ou na Itá-lia no período em que aqueles paísesse viram anexados à França.

Alguns autores identificam umaforma de recepção inconsciente, exem-plificando-a com a recepção do direi-to romano pela Alemanha, nos sécs.XV e XVI, embora essa ilustração sejadiscutível, se se têm em mente os tra-balhos preparatórios dos glosadorese dos pós-glosadores para a reintro-dução daquele direito na Europa (verCONSTANTINESCO, 1974, p. 363;KOSCHAKER, 1955).

c) – Recepção global, resultante daadoção integral de um código, comono caso da recepção do Código Civilnapoleônico, introduzido, na íntegra,em certos países da família romano-germânica no séc. XIX, ou ainda nodo exemplo turco já referido.

d) – Recepção parcial, em que se ve-rifica apenas a importação de leis, ins-titutos, ou disposições legais prove-

nientes de um mesmo sistema jurídi-co, sendo a sua noção assimilada pormuitos comparatistas à dos emprésti-mos legislativos. Podem constituirexemplo desse tipo de recepção deter-minados dispositivos da nova lei bra-sileira sobre as sociedades por ações(Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de1976), inspirados na lei alemã de 1965sobre a matéria.

e) – Recepção eclética, decorrente dorecurso a diferentes ordens jurídicaspara a elaboração de um dispositivolegal, de uma lei e até mesmo de todoum código. Esse tipo de recepção é omais comum, sendo facilmente expli-cável pela Lei de Imigração de G. Tar-de aplicada à aproximação dos siste-mas de direito e à penetração, nessessistemas, das correntes doutrináriase legislativas de maior repercussão nomundo jurídico nesses sistemas (verp. 11-20)”.

Concluindo, e destacando os condicio-namentos a que fizemos referência linhasacima, observa Ana Lúcia: “Os fenômenosde recepção exigem exame cuidadoso dosfatores que os determinaram (políticos, cul-turais, sócio-econômicos), dos efeitos poreles produzidos quando do emprego dosdispositivos ou dos códigos importados, edo processo de aculturação jurídica que elesfatalmente provocam (ver LÉVY-BRUHL;PAPACHRISTOS, p. 1033).

Lucio PEGORARO e Angello RINELLA(2000, p. 45), depois de afirmarem que “cu-ando se mira a los modelos constituciona-les extranjeros, dificilmente se hace con elintento de mero transplante, sino de repro-dución de aquel modelo en el ordenamientoconstitucional imitante”, estabelecem fun-damentais diferenças entre imposición, recep-ción, trasplante e asimilación, lecionando:

“Sobre el plano de las manifesta-ciones del fenómeno, se dan en la ex-periencia: imitaciones legales, cuandoel legislador imita directamente elmodelo producido por otro legislador

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(ejemplo típico es la difusa imitaciónde la codificación francesa y germá-nica); imitaciones doctrinales, las cua-les operan sobre el plano teórico.Nada de raro, por otra parte, es queestas dos formas de imitación se com-binen en el mismo ordenamiento; enlos países romanistas, en los diversosperíodos, es posible el encuentro demodelos legales franceses y de mode-los doctrinales alemanes. Finalmen-te, aunque menos difuso que los fenó-menos citados se encuentran, las imi-taciones judiciales directas o mas me-dio intermediarias como las jurisdic-ciones supranacionales o la doctrina(GORLA; GREMENTIEI). Natural-mente, las imitaciones de un modelopueden ser globales o parciales: lasconstituciones, como se há notado, tie-nen más de un modelo de referencia ycombinan los aspectos más interesan-tes. Aun, las imitaciones de los mode-los juridicos en general pueden ser con-secuencia de una conquista (imposici-ón), de una acción voluntaria (recepci-ón) o bien de la inmigración de un pue-blo a otro territorio (trasplante). Aquellapuede determinar, como efecto, un fe-nómeno de aculturación, si la sociedadimitante pierde su identidad, o vice-versa de mera asimilación (SACCO)”.

Para GARDNER, citado por Otávio YA-ZEB (2001, p. 543-548), diversas são as clas-sificações de transferências jurídicas, as quaisreúne nos seguintes grupos:

1) diretas ou indiretas;2) convidadas ou impostas;3) transferências por infusão e4) transferências por interação.As transferências diretas “são aquelas que

têm por objeto normas ou institutos jurídi-cos”, enquanto as indiretas “são aquelaspelas quais são adotados os valores, con-ceitos ou modelos que restam como pano defundo da atividade jurídica, devendo-seconsiderar aqui, inclusive, os instrumentosde produção do saber jurídico” [itálico nosso].

As Transferências convidadas “são aque-las em que a iniciativa e a tomada de provi-dências para o processo de transferênciapartem da cultura que receberá os novosinstitutos ou modelos”. Nos casos de Trans-ferências impostas, por sua vez, inverte-se oquadro, ou seja, “a iniciativa e os esforçospara a transferência originam-se no grupoou sociedade que está ´exportando´ seusinstitutos ou modelos jurídicos”.

Finalmente, na concepção de GARD-NER, “as Transferências por infusão não ocor-rem por iniciativa da sociedade receptado-ra (não são, portanto, ´concidadas´), nãodecorrendo, por outro lado, de imposiçãoestrangeira. Com efeito, essa nova categoriadiz respeito às transferências cuja iniciati-va e esforços partem da sociedade transmi-tente ou de alguns de seus setores, ocorren-do, porém, nesse processo de transferência,uma ativa participação de setores da socie-dade receptora”.

As Transferências por meio de interação, porsua vez, têm caráter menos premeditado,ocorrendo em meio a processos que envol-vem um certo intercâmbio cultural e intelec-tual.

Ao estudar as causas e procedimentosda Recepção, Peter HÄBERLE (1996, p. 161),já citado, escreve que são

“los siguientes cauces y procedimen-tos de recepción a través de los que seasume lo creado en otros Estado:

1) – Por vía de la revisión total dela Constitución (Suiza, por ejemplo).

2) – Por vía de la revisión parcialde la Constitución.

3) – Por vía legislativa.4) – Por vía de la jurisprudencia

constitucional, incluyendo el Tribu-nal Europeo de Derechos Humanos yla Corte Constitucional europea.

5) – Por vía de la Teoria de la Cons-titución.

6) – Por vía de la ´práxis jurídica´(por ejemplo, la relativa a acuerdos delos länder con la Federación)”13.

Para concluir, vale ainda mencionar-se

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HÄBERLE (p. 157) quando, depois de afir-mar que existem dois tipos de recepção –a total e a parcial –, observa que “toda re-cepción es únicamente ´parcial´, lo queconstriñe a su vez al logro de reproduccio-nes creativas”.

Em livro intitulado Introduction histori-que au droit, Norbert ROULAND (1998, p.249-545), ao tratar dos Naissances et migrati-ons des mroits européens, dedica o Título 2 àsTransferências dos direitos europeus, sendo queno capítulo 1 realiza uma verdadeira teoriada Transferência, analisando-a sob três as-pectos, a saber: os agentes, os tipos e os efei-tos. Quanto aos primeiros, com base na li-ção de J. Vanderlinder, classifica os agentescomo voyageur sans bagage, voyageur profes-sionnel non juriste e voyageur juriste, tecendosobre cada um destes interessantes comen-tários, o mesmo fazendo em relação a L´objetdu transfer e aos Styles de transfer, oportuni-dade em que discute a questão consideran-do a passagem da contrainte à la réception.

Finalmente, quanto aos efeitos, aponta oautor a accpetation e a résistance, além da adap-tation.

Sobre Les Styles de transfer: de la contrainteà la réception, inicia ROULAND (p. 427) afir-mando que

“stricto sensu, il convient de distinguerentre la contrainte et la récepcion com-me modalités d´introduction de droitétrangers dans un système juridiquedonné. La réception suppose une in-tention volontaire de la part du paysrécepteur, qui n´existe pas en casd´annexion ou de colonisation, mêmesi par la suite un droit à l´origine étran-ger peut se transformer en droit auto-chtone au fil du temps: ainsi du droitromain en Gaule, ou du droit musal-man dans les États d´Afrique sub-sahéliens”.

No tocante às Transferências por Impo-sição, aponta o autor os casos de anexaçãoe de colonização, sendo que nas Transfe-rências por Recepção aceita a proposta deA. C. Papachristos, a saber: a ressurreição

de um direito antigo, a transplantação de umdireito, a importação de um direito estrangei-ro atual (p. 440 et seq.).

4. Os ciclos constitucionais

Giuseppe de VERGOTTINI (1999, p.263), ao estudar I cicli costituzionali, doutri-na que “consistono in raggruppamenti dicostituzioni rapportabili ad alcuni tipi con-dizionanti lo sviluppo delle diverse esperi-enze costituzionali”.

Paolo Biscaretti di RUFFIA (1999, p. 91),por sua vez, após analisar diversas premis-sas metodológicas referentes ao DireitoComparado, doutrina que

“Ahora bien, las distintas Consti-tuciones expedidas en los países másdiversos a partir de 1787 pueden serdistribuídas con facilidad en una sé-rie concatenada de ciclos constituciona-les14 sucesivos, aun cuando es necesa-rio resaltar que las Constitucionescontemporáneas que tienen su origenen los primeros de los ciclos mencio-nados han sufrido posteriormentenumerosas modificaciones (formalesy no formales), de manera que en laactualidad se caracterizan por linea-mientos propios de otras Constitucio-nes surgidas en épocas más proximasa nosotros...

En consecuencia, puede demons-trarse que la etapa del constitucionalis-mo clásico se desarrolló en el mundomoderno entre 1787 y el fin de la pri-mera Guerra Mundial de acuerdo concinco ciclos sucesivos, por medio de unaserie de conceptos y de realizacionesque se perciben fácilmente en su pro-gresividad lineal, incluyendo las si-guintes Constituciones: revolucionari-as del siglo XVIII (1789-1799), napoleô-nicas (1799-1815), de la Restauración(1815-1830), liberales (1830-1848) ydemocráticas (1848-1918), entre ellasvarias de carácter federal (1848-1874);pero a partir de entonces las Consti-

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tuciones se han orientado en direcci-ones diversas y contrastantes.

Así, al lado de las Constituciones dela democracia racionalizada posterioresa la primera Guerra Mundial (1919-1937) y de la democracia social de lasegunda posguerra (de 1946 a la ac-tualidad) – todas ellas en el ámbito dela mencionada forma de Estado de lademocracia clásica u occidental –, a par-tir de 1918 han surgido las Constituci-ones de la democracia marxista o socialis-ta, típicas de los países de la Europacentro-oriental y de algunos Estadosde Asia, África o América; en tanto quelas Constituciones autoritarias presen-tan en la actualidad un valor másbien histórico, ya que habiendosedesarrollado en Europa en el períodoque transcurre entre las dos guerrasmundiales, sobreviven actualmentesólo en algunos países del TercerMundo, bajo formas bastante diversasy privadas de toda influencia ideoló-gica seria.

A las anteriores – prossegue RUFFIA– puede agregarse un conjunto de re-cientes Constituciones adoptadas por lospaíses en vías de desarrollo, las que sehan inspirado en su mayoría en elconstitucionalismo clásico (de acuer-do con el modelo británico, francés onorteamericano), aunque no les faltanaspectos derivados de las Constituci-ones socialistas, en un intento de re-correr con mayor rapidez, por esta vía,el largo camino que sobre el plano eco-nómico y social espera todavía demanera inevitable a estos países – quecon frecuencia sólo han alcanzado suindependencia recientemente –, si loscomparamos con los más evoluciona-dos del mundo occidental o socialistaeuropeo.

La cuádruple división que se hamencionado (...) supera en la actuali-dad las clasificaciones formales deter-minadas todavía por el diverso origen

histórico de los textos constituciona-les respectivos, ya que describe unasitucacion contemporánea que no esposible pasar por alto. Los estudiososdel derecho constitucional compara-do no puede dejar de tener en cuentalas doctrinas político-económicas quehan conducido a estas distinciones,las que determinan con frecuencia laadopción de concepciones totalmen-te antitéticas acerca de la naturalezay de los fines del Estado.

También se podrá hablarse, segúnla preferencia de los diversos autores,ya sea de formas de Estado, de regíme-nes políticos o de formas de organizaciónsocioeconómica, pero debe considerar-se que la contraposición sustancial deprincípios, estructuras y condicionesambientales admite con dificultad lacomparación fructífera de normas einstituciones efectuadas en relacióncon los ordenamientos estatales de lospaíses pertenecientes a las cuatro ca-tegorías mencionadas.

Por el contrario, es posible reali-zar dentro de cada una de las mencio-nadas formas de Estado una serie desubdistinciones ulteriores, utilizandocriterios diversos, como el de formasde gobierno, que no se encuentrandeterminadas, como en el caso prece-dente, por las diferencias sustancialesde conceptos y estructuras”.

E finaliza RUFFIA (p. 93-94): “La certe-za de las afirmaciones mencionadas se de-muestra también por el hecho de que, condiferencias parciales y algunos matices, hansido acogidas hoy en día por los compara-tistas más actualizados de los países delámbito socialista”15.

Entre nós, Pinto FERREIRA (1983, p. 55-67), ao estudar as Origens das Constituições,descreve os Ciclos Constitucionais inglês, nor-te-americano, francês, alemão e soviéticopara, em seguida, referindo-se às Tendênciasdo novo constitucionalismo após a guerra mun-dial de 1939-1945, fazer uma verdadeira sín-

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tese do conteúdo das Constituições contem-porâneas 16:

“A guerra internacional, que de-flagrou no mundo moderno, que-brou a rigidez capitalista e burgue-sa do constitucionalismo, com a dis-seminação das idéias igualitáriasdo socialismo, que dominaram ou,ao menos, se infiltraram profunda-mente na organização do Estadocontemporâneo.

O novo regime constitucional eu-ropeu e asiático, cristalizado com osocialismo democrático inglês vitorio-so em 1945, com a Constituição fran-cesa de 28-9-1946, submetida a refe-rendum em 13 de outubro do mesmoano, atualmente revogada e substituí-da pela nova Constituição de 1968,com a Constituição japonesa de 3-11-1946, em vigor desde 3 de maio do anoseguinte, e afinal com a Constituiçãoda república italiana de 1948, revelou-se com uma tendência nitidamentesocial e humana.

Doutro lado, a vitória da URSS,contra o nazismo alemão, atrelou aocarro bolchevista inúmeras nações daEuropa central, que passaram a gra-vitar como satélite em derredor de umcentro solar, numa marcha progressi-va para o socialismo.

Os frutos previsíveis desse consti-tucionalismo moderno permitem aesperança alvissareira de um socialis-mo parlamentar, que deverá ser a gran-de obra política, social e jurídica doEstado moderno, na segunda metadedo século XX”.

A ressalva que se fez na nota acima nãoretira a oportunidade da citação, sobretudoporque nos mostrou como, de há muito, ne-nhum modelo constitucional foi gerado deforma isolada, mas sim sofrendo as influên-cias de transferências que, ao serem recepcio-nadas, evidentemente, passaram por umaaclimatação ou aculturação em relação aoEstado que as recebeu.

5. Síntese conclusiva

Depois de tudo o que foi dito, podemosapresentar algumas conclusões:

1) o estudo da Recepção Legislativa, para aqual são utilizadas outras denominações, étema central no estudo do Direito Comparado;

2) sua concretização se dá por meio devários processos, sendo que, na análise docaso concreto, nenhum deles, isoladamen-te, será suficiente para explicar a realidadede um determinado sistema jurídico, razãopela qual alguns autores utilizam o concei-to de campo jurídico;

3) ao se falar em recepção, não se poderáolvidar que esta poderá ocorrer não só pelavia legislativa, mas, igualmente, pela pro-dução jurídica, vale dizer, pelo ensino e pelaprodução doutrinária;

4) ao serem recepcionados, as instituiçõesou modelos terão de sofrer uma aclimataçãoou aculturação a fim de que possam ter eficá-cia em seu novo habitat. Para tal, de sumaimportância será a consideração dos valo-res sociais expressos na Ideologia Constitucio-nal de cada Estado.

Notas

1 Ver, sobretudo, p. 12-14, onde o autor tratasobre Gli scopi della comparazione.

2 Como exemplo, mencione-se o verbete RECEP-ÇÃO (19- -?) escrito por Manoel Gonçalves FerreiraFilho na Enciclopédia Saraiva de direito.

3 Alemão: Rezeption; Inglês: Reception; Espanhol:Recepción; Francês: Réception; Italiano: Ricezione. Éimpressionante a omissão existente quanto ao temanos Dicionários Jurídicos que foram por nós consul-tados, muitos dos quais só se referem à recepção nosentido de solenidades, formas de protocolo social.

4 Em razão da amplidão que dá ao fenômenoda Transferência, o autor chega a analisar os Proces-sos de Transferência e campos jurídicos nacionais, opor-tunidade em que afirma: “De todo o acima referi-do, fica claro que as transferências jurídicas nãorestam adstritas unicamente aos ordenamentos ju-rídicos, às instituições. Ao contrário, embora porvezes sejam transferidas apenas normas ou con-junto de normas, é bastante comum a adoção dementalidades, ideologias ou, mesmo, formas deensino provenientes de outros povos.

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Desta forma, é recomendável para a análisede tais fenômenos a adoção de um conceito maisabrangente que o de sistema jurídico, de forte con-teúdo positivista. O conceito de campo jurídico,criado por Pierre Bourdieu, talvez seja mais ade-quado para permitir uma maior compreensão dadinâmica das transferências jurídicas” [Itálico nos-so] (p. 553).

E prossegue: “Um campo é um espaço sim-bólico cujos protagonistas encontram-se distribuí-dos em uma série de posições, conforme hierarquiae regras internas, passíveis de transformação com otempo e a partir da relação com outros campos”(p. 553).

Vale ressaltar que, para Yves DEZALAY eDavid M. TRUBEK, (1996, p. 31), “chamamos de´campo jurídico´ à articulação de instituições e prá-ticas através das quais a lei é produzida, interpre-tada e incorporada às tomadas de decisões na soci-edade. Portanto, o campo jurídico inclui profissio-nais da Justiça, juízes e as faculdades de direito.Nosso método identificará os efeitos das forças glo-bais e transnacionais, examinando primeiro os seusefeitos nos campos nacionais”.

5 Sobre finalidades ou funções do Direito Compara-do, veja-se Ivo DANTAS (2000, p. 60 et seq.).

6 Itálicos no texto. Ver na edição italiana, Intro-duzione al diritto comparato. 2. ed. Torino: G. Giappi-chelli, 1980. p. 116 et seq.

7 Mantida a grafia do original. O autor dedicaos capítulos seguintes à Exportação do Direito (Cap.I, p. 253-317) e à Importação do Direito (Cap. II, p.319-334), temas que serão analisados adiante.

8 O mencionado livro é uma importante leitura,sobretudo, para os que se dedicam ao Direito Civil,em cujo campo o autor faz interessantes análises.

9 Veja-se o interessante artigo de Raul MarquezROMERO (1999), intitulado Breve reseña de las revis-tas del Instituto de Investigaciones Jurídicas de la UNAMy su Relación com la Unificación del Derecho.

10 A referência que a autora faz a “outra oca-sião” é o verbete RECEPÇÃO DE DIREITOS por elaescrito para o Dicionário de ciências sociais (1986, p.1032-1033).

11 Vale insistir que o autor tem suas preocupa-ções voltadas para o common law, o que não signifi-ca que suas observações não sejam válidas paraqualquer sistema. Ademais, temos insistido na ne-cessidade do uso de um Dicionário Jurídico referenteà língua com a qual o estudioso estará trabalhan-do. Igualmente útil – quanto à Doutrina – é consul-tar alguma tradução para uma língua em que opesquisador melhor domine, a fim de comparar oseu texto com aquele que se consulta na línguaoriginal.

12 Nesse sentido, vale o exemplo das Leis Com-plementares do sistema constitucional brasileiro que,em outros modelos, equivalem às Leis Orgânicas.

13 O texto de HÄBERLE merece ser lido em suaintegridade, sobretudo em razão do raciocínio e dasinformações que fornece ao estudioso da matéria.

14 Vale recordar que, entre nós, Pinto FERREIRA(1983, p. 55-67) refere-se a diversos Ciclos Constitu-cionais, afirmando: “A doutrina dos ciclos constitu-cionais tem profunda importância para o direitopúblico, melhor esclarecendo a sua essência e ten-dências evolutivas. O ciclo constitucional define-sepelo seu traço de originalidade e pela sua expansãono mundo das formas políticas, a exemplo dos ci-clos constitucionais inglês, norte-americano, fran-cês, alemão e soviético, como Constituições-tipos,que têm servido de figurino ou modelos a outrasnações” (p. 66).

15 Vale aqui mencionarmos, a título de informa-ção, dois estudos publicados entre nós na décadade 80, mas que, apesar das modificações sofridasno mundo atual, continuam sendo de leitura opor-tuna: PINTO FERREIRA (1984), Contribuições aoconstitucionalismo contemporâneo e Antônio CarlosWOLKMER (1986, p. 43-53), Para um paradigma doconstitucionalismo ocidental.

16 O texto transcrito, ao ser lido, deverá conside-rar as modificações sofridas pelo Direito Constitu-cional na década de 90, sobretudo, a partir dosfenômenos da Queda do Muro de Berlim e da Globali-zação.

Nesse sentido, consulte-se nosso livro Direitoconstitucional econômico brasileiro (1999), e o artigoconstitucionalismo e globalização: aspectos teóricos: bre-ve análise exploratória (1999).

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Edgard Lincoln de Proença Rosa

Poder Judiciário no Brasil: aspectos de suareforma

Edgard Lincoln de Proença Rosa é advoga-do, com especialização em Direito Tributário emestrado em Direito Público e Estado, atualProcurador da Fazenda Nacional, ex-Procura-dor-Geral da Fazenda Nacional, ex-Diretor daConsultoria do Senado Federal, ex-Conselhei-ro do Conselho Administrativo de Defesa Eco-nômica – CADE, atualmente afastado do Ma-gistério Superior, em que tem lecionado, emnível de graduação, Direito Tributário, Finan-ceiro, além de Filosofia do Direito, e, em pós-graduação, Direito Constitucional e TeoriaGeral do Direito.

Sumário

Explicações iniciais. I – Introdução. II –Marco conceitual. 2.1. Estrutura organizacio-nal do Poder Judiciário no Brasil. 2.1.1. Fun-damento constitucional. Características e es-truturação básicas. 2.1.2. Competências. 2.1.3.Composição. 2.l.4. Formas de ingresso na ede acesso à Magistratura. 2.1.5. Prerrogati-va fundamental da Magistratura. 2.1.6. Ga-rantias consti tucionais da Magistratura.2.1.7. Princípios constitucionais relativos àMagistratura. 2.1.8. O princípio da autono-mia administrativa e financeira. 2.2. Funçõesessenciais à Justiça. 2.2.l. Conceito. 2.2.2.Agentes que exercem as funções essenciais àJustiça. 2.2.2.l. O Ministério Público. 2.2.2.2.A Advocacia do Estado. 2.2.2.3. A Advocaciae a Defensoria Pública. III – Análise da situ-ação atual. 3.l. Considerações iniciais. 3.2.Aspectos da “crise do Judiciário”. 3.3. A “re-forma do Judiciário”. 3.3.1. Reforma estru-tural e reforma operativa. 3.3.2. Visão geralda reforma estrutural. 3.3.2.1. Propostas le-gislativas de reforma constitucional referen-te ao Poder Judiciário. 3.3.2.2. Anteprojetospara reforma do judiciário. 3.3.2.3. Outrassugestões e contribuições. 3.3.2.4. Projetosde lei relativos à reforma do Judiciário.3.3.3. Visão geral da reforma operativa: aArbitragem e os Juizados Especiais. 3.3.4. Osresultados da experiência dos Juizados Es-peciais. IV – Análise das alternativas de so-luções. 4.1. Esclarecimento prévio. 4.2. Umaestratégia para apoio ao fortalecimento ime-diato do Poder Judiciário no Brasil. 4.2.l. Noâmbito do Super ior Tribunal de Justiça eda Justiça Federal. 4.2.2. No âmbito da Justi-ça Estadual. V – Conclusões. VI – Recomen-dações.

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Explicações iniciais

Este texto consiste no trabalho de con-sultoria prestada ao Banco Interamericanode Desenvolvimento – BID, por ele contrata-da com o autor aqui nomeado.

Trata-se da versão original, concluída emfins de agosto de 1997. Por convicção pes-soal e por escrúpulo, já que no respectivocontrato não há cláusula reguladora de re-serva de direitos de autoria e/ou de publi-cação em favor do contratante, o consultoraguardou o decurso de 5 anos, desde a con-clusão do trabalho, para lhe dar publicida-de. Evidentemente, tal publicidade não terácunho, ou finalidade, comercial, caso em queseria possível pensar em, no mínimo, inicia-tiva antiética. Dado que, porém, o assuntoversado é, ao menos, de interesse técnicopara agregar-se ao conjunto da documenta-ção utilizada nos longos e demorados estu-dos e debates, ainda em curso, relativos à“Reforma do Judiciário”, vislumbra-se, semqualquer dúvida, um interesse público na-cional maior por sua divulgação e conse-qüente disponibilização aos interessadosno âmbito nacional, do que permanecerabandonado, totalmente desconhecido,não-publicado e – muito pior – sem memó-ria gravada ou arquivada naquele organis-mo internacional.

Diz-se isso, aqui e agora, sem nenhumtemor de equívoco, porque, quando da en-trega do texto ao setor competente para re-cebê-lo, no BID, foram deixados 30 (trinta)exemplares, impressos e encapados no refe-rido setor. Passados dois meses, tendo o con-sultor retornado ao local para tratar de as-sunto ligado ao trabalho, viu todos aquelesexemplares jogados de qualquer maneira emdepósito impróprio, certamente às vésperasde ir para o lixo.

Naturalmente, nem todo trabalho de con-sultoria para o Banco tem o destino que sesupõe que este tenha tido. Tudo depende dointeresse que se lhe atribuam dentro da ins-tituição. Tal interesse não se verifica pormeio de uma avaliação técnica, mas por de-

cisão política, ou melhor, por definição em-basada em critérios de política interna dainstituição.

No caso presente, o trabalho foi contra-tado pelo motivo descrito no item 1.1 do tex-to a seguir, constante de sua Introdução.

Alguns indicativos de sua pouca impor-tância para o Banco já eram perceptíveis aoconsultor desde então. O primeiro motivodiz respeito à língua em que ele seria versa-do: o português. Quando de antemão umtrabalho não precise ser redigido em inglês,espanhol ou francês, fatalmente é sinal debaixo interesse, embora – é verdade – o Ban-co disponha de tradutores para as línguasem que, oficialmente, determinado textodeva ser veiculado. Ainda que o uso da lín-gua nativa do consultor lhe proporcionetodo o conforto do “pensar já escrevendo”,uma precondição de versão original em in-glês, por exemplo, já denotaria interessemaior. É isso que se está pretendendo escla-recer sobre este ponto. Então, caberia per-guntar: se o interesse era pequeno, por quecontrataram a consultoria? Isso não foi ex-plicado ao consultor, embora ele suponhaque tenha sido pelo fato de o tema despertara curiosidade (não o real interesse) de o Ban-co conhecer o funcionamento do Poder Ju-diciário no Brasil. Ainda mais que aquelemomento coincidia ser com o de grandesdiscussões, no País, sobre a necessidade dareforma do Judiciário.

Por outro lado, mas ainda dentro dessaquestão da língua, saliente-se que, na visãodeste consultor, há um desprestígio do bra-sileiro, no que tange à sua – digamos – con-sistência intelectual, dentro do Banco, quese reflete na desconsideração da língua por-tuguesa ser, tanto falada, quanto escrita, em-bora seja ela um dos idiomas oficiais da ins-tituição. Não deveria ser assim, porque oBrasil é (ou, pelo menos, era na época), opaís que ostenta(va) a segunda maior parti-cipação nas cotas de contribuição financei-ra nacional à formação do fundo constituti-vo-rotativo do BID, ficando (bem) atrás, ape-nas, dos EUA. Em face dessa posição, seu

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próprio prestígio político lá deveria ser bemmaior do que é (ou era). Revela-se, por exem-plo, essa espécie de capitis diminutio pelo fatode a ocupação (quantitativa) de posições naburocracia do Banco, por brasileiros, serabaixo daquilo que, proporcionalmenteàquela participação financeira, deveria serdestinado ao Brasil. A origem de não tãoalta estima talvez se deva, de alguma ma-neira, à (de)formação da consciência críti-co-histórico-político-econômico-cultural damaioria dos brasileiros no BID, em relaçãoao nível de igual consciência de seus cole-gas estrangeiros de trabalho. Isso é tão-so-mente uma opinião pessoal sobre a aparên-cia das coisas, sem que haja qualquer avalia-ção de mérito ou juízo de valor a respeito. Ocerto é que, a olho nu, os brasileiros, ali den-tro, são estrangeiros mesmo. Em grande par-te, a culpa por esse estranhamento é dospróprios brasileiros que, lá fora, em geral, secomportam como estrangeiros entre si. Mas,sobretudo no BID, são como uma pequenailha dentro de um vasto arquipélago hispa-no-norte-americano. Duas das conseqüên-cias disso? O português é solenemente ig-norado como idioma e o brasileiro não é olha-do como gente amiga. Não há o menor exa-gero nessa visão. É preciso viver e conviverlá dentro para verificar (se alguém quiser, cla-ro) a existência de uma forma de apartheidsócio-cultural naquela(s) comunidade(s),marginalizando brasileiro.

Um segundo motivo para a antevisão dapouca importância que atribuíam ao presen-te trabalho refere-se a que o BID, como qual-quer organismo internacional de crédito efomento, é também um “ditador” (no senti-do de ditar formulações e regras) de receituá-rios para novas estratégias (inter) continen-tais de políticas sociais econômicas e admi-nistrativas, para governos dos seus países-membros.

No caso específico do tema “Reforma doPoder Judiciário”, o BID já avançara em ex-periências, então em andamento, em algunspaíses da América do Sul. Não houve tem-po de este consultor ter acesso aos respecti-

vos documentos comprobatórios, mas é se-guro que ouviu comentários no BID sobre,por exemplo, projetos envolvendo a elabo-ração de anteprojeto de um novo código ci-vil paraguaio, que teria sido encomendadopelo então governo do Paraguai, a ser ela-borado dentro de um paradigma “receita-do” pelo Banco, bem assim de projetos vol-tados a implementar um receituário de “ter-ceirização” da “administração judiciária”,supostamente em fase de execução, ou depré-execução, tanto no Chile, quanto na Ar-gentina. Em que consistiriam, exatamente,esses projetos? Este consultor desconhece.

O que ele sabe – como todos também - éque naquela ocasião vivia-se ainda sob oimpacto do receituário das políticas de de-sestatização. O “estado mínimo” era a solu-ção para os males econômicos e sociais cau-sados por décadas de vigência do “estadomáximo”. O processo de desestatização im-plicava, por óbvio, a privatização de tudoaquilo que não fosse, essencial e arbitraria-mente conceituado pelo “ditador”, da órbi-ta estatal. Restava ainda, porém, um territó-rio residual de atividades, tanto públicas,quanto privadas, sujeitas a uma possívelsubcontratação de terceiros administrado-res. Era o que se convencionou chamar de“terceirização”. Tal expressão é uma corrup-tela eufemística de privatização (até porquenão se sabe de ninguém que tenha “terceiri-zado” alguma atividade a órgão ou agentepúblico; imagina-se, no caso, terceirizaçãopromovida por particular, o que é comunís-simo).

Quando este consultor foi contratadopelo próprio BID, inicialmente para elabo-rar estudo sobre a cobrança judicial de cré-ditos tributários no Brasil, uma das primei-ras idéias que lhe deram se referia à terceiri-zação dessa cobrança. Entendia-se, na ins-tituição, a priori, que a melhor solução parase reduzir o déficit de tais créditos não pa-gos seria entregar a respectiva cobrança aescritórios particulares. Era a “receita”. Esteconsultor, não tendo “vestido a camisa doBanco”, resistiu e, expressamente, como

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consta do referido trabalho, rejeitou comple-tamente a idéia. Em certa ocasião, quandode mais acalorada discussão, em face doargumento deles segundo o qual as Procu-radorias de Fazenda no Brasil não funcio-navam e de que a resistência oposta peloconsultor revelava uma solidariedade, ouuma atitude corporativa (argumento estemuito comum na ocasião: ah, fulano temuma visão “corporativa”, como se o corpo-rativismo em todo o mundo, principalmen-te nesses organismos multilaterais, não exis-tisse; claro que existe, sobretudo de partedaqueles que querem lutar por sua perma-nência no staff de seu empregador interna-cional, para os que “vestem a camisa deste”e desvestem a do país que estariam ou deve-riam estar a representar), o consultor, que éProcurador da Fazenda Nacional, redar-guiu: “ora, se vamos terceirizar a cobrançajudicial do crédito tributário, porque, noentendimento da Divisão Fiscal do BID, aProcuradoria não funciona, deveremos pen-sar em solução idêntica para vários outrossetores da atividade pública no Brasil, caso,segundo se propaga, da própria receita fe-deral ou das receitas estaduais, que não lo-gram cobrar os créditos não pagos esponta-neamente pelos contribuintes, daí que elessaem de sua órbita para a do órgão que de-tém a representação judicial da Fazenda;caso das polícias em geral; caso, até, do Po-der Judiciário, atingido maciçamente pelapecha de ineficiente. Ora, como e por queterceirizar o que é público por natureza? Sócabem aí as soluções reformuladoras ou re-formistas. Terceirizar é sinônimo de muitascoisas, menos de ser uma solução saneado-ra, uma solução moralizadora ou uma solu-ção eficiente e eficaz. A posição do consul-tor causou mal-estar interno e um grandedesconforto para ele nas relações interpes-soais, no referido setor do BID, durante todoo tempo restante de execução do trabalho.

O fato é que o receituário do Banco, parao setor público em geral, dava preferência aquaisquer soluções que objetivassem a pri-vatização, nesta incluída a idéia, mais ame-

na, de terceirização. Por isso que orbitavampor lá, com receptividade de governos dealguns países-membros da instituição, pro-jetos de terceirização da administração ju-diciária, ou melhor, dos serviços de secreta-ria e de apoio, em geral, da atividade juris-dicional típica.

Voltando ao ponto de três parágrafosatrás, ao menos sobre a organização e o fun-cionamento do Poder Judiciário daqueles trêspaíses da América do Sul, o Banco detinhainformações bastante completas, enquanto,sobre o Judiciário brasileiro, pouco ou quasenada sabiam. Isso, em abril de 1997.

Daí que propuseram ao consultor a rea-lização de trabalho que contivesse um diag-nóstico e uma análise prospectiva da situa-ção do Poder Judiciário em nosso País. Pen-sava-se, naquele momento, segundo infor-mações transmitidas ao consultor, em umprojeto de modernização de áreas carentesde financiamento para sua implementação.Para tanto, seria necessário um amplo tra-balho de pesquisa, a ser feito no próprio país,colhendo-se material, participando-se deaudiências, encontros e entrevistas.

Isso foi feito, de 1º de maio a 31 de julhode 1997, tendo o consultor, em Missão ofi-cial do Banco, recolhido e examinado umvolume gigantesco de documentos, partici-pado de encontros técnicos, entrevistado di-versos Magistrados das Justiças Federal eEstadual, inclusive Ministros de TribunaisSuperiores, autoridades e dirigentes em ge-ral de diferentes órgãos do Judiciário e via-jado para alguns Estados das Regiões Nor-deste, Sudeste e Sul, além de permanecermais centralizado no Distrito Federal.

No seu retorno à sede do BID, em Wa-shington, D.C., foi comunicado ao consul-tor que ele teria apenas mais um mês de con-trato para concluir o texto. Sem explicaçõesmaiores, a não ser que o assunto “reformado Judiciário” saíra da pauta de projetospreferenciais do governo brasileiro para fi-nanciamento externo, que tal reforma seriafeita com recursos orçamentários e que, emseu lugar, teria sido encaixado um projeto

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de modernização, ou coisa equivalente, doPRODASEN, no âmbito do Senado Federal,para o que o BID estaria, naquela oportuni-dade, empregando seus esforços maiores,dali por diante, como de fato ocorreu.

Portanto, com tão pouco tempo – ummês – para desenvolver em amplitude e pro-fundidade tudo o que o assunto exigia – eexige –, nada além do que foi realizado po-deria ter sido feito.

Hoje, início do ano de 2003, mais de cin-co anos depois, quando aquela pretendidareforma ainda não avançou tanto, em rela-ção ao estado em que se encontravam as dis-cussões pertinentes, o autor daquele modes-to estudo resolve publicá-lo e disponibili-zá-lo aos interessados, na forma como o con-cluiu em 1997.

A decisão de publicá-lo na versão origi-nal leva em conta: 1) que, não obstante osnúmeros nele utilizados estejam desatuali-zados, o conteúdo das idéias a que eles sereferem é plenamente atual; 2) que o contex-to normativo constitucional, infraconstitu-cional e o processual legislativo de quandose elaborou o referido trabalho sofreu modi-ficações, mas não a ponto de desnaturar oudesfocar os tópicos centrais do que ali sepropôs; 3) que alguns magistrados com tra-balhos aqui mencionados já tiveram suasposições mudadas na hierarquia da judica-tura nacional – caso, por exemplo, de entãoDesembargadores que se tornaram Minis-tros de Tribunais Superiores, ou de entãopresidentes de Tribunais, sucedidos poroutros, ou de ex-Magistrados alcançadospela aposentadoria compulsória etc., o quenão deslustra as ilustres pessoas citadas,sabendo-se, porém, que o autor está a pardessas alterações de posições funcionais; 4)que, atualmente, existem os Juizados Espe-ciais Federais, quando, na época, só se co-nheciam esses Juizados no âmbito dos Es-tados Federados, o que de certa forma, reforçaa posição inteiramente favorável a essa solu-ção doméstica de parte dos problemas de es-trangulamento das atividades judicantes,como defendida pelo autor no trabalho, etc.

Enfim, nada disso justificaria atualizá-lo antes da publicação da versão original.Ao contrário, convém dar conhecimentopúblico da forma e das circunstâncias his-tóricas em que o trabalho foi realizado, para,em momento seguinte, havendo interesse ouconveniência, o autor adaptá-lo ao momen-to naquilo que for necessário.

Por último, essas explicações iniciaisdevem conter a advertência para a lingua-gem utilizada em todo o trabalho, semprepropositalmente didática e pormenorizada-mente esclarecedora para estrangeiros (nessecaso o público-alvo, a clientela), de noções einformações básicas de nosso sistema jurí-dico e judiciário, rogando-se a indispensá-vel compreensão e a redobrada paciênciado leitor nacional, que já as domina.

I - Introdução

1.1. A idéia de realização de um traba-lho, para o Banco, relacionado à “crise” e à“reforma” do Poder Judiciário no Brasilocorreu quando da finalização de trabalhoprecedente, para o qual este consultor tam-bém foi contratado, sobre o tema e sob o títu-lo “A Função das Procuradorias de Fazen-da no Brasil: problemas e soluções”, em quesão abordadas, muito circunstancial e su-cintamente, algumas questões relativas àsdeficiências atuais da atividade judicial noPaís, que repercutem negativamente no de-sempenho das funções daquelas Procura-dorias, entre outras conseqüências.

1.2. O tema do trabalho atual versa as-suntos muito técnicos, que exigem análisedetida e detalhada. A proposta inicial erade levar a fundo todos os principais pontosque interessam ao conhecimento completodos assuntos pertinentes. Para isso, teriasido necessário um contrato de prazo com-patível com empreitada de tamanha com-plexidade, amplitude e importância (tantopara o Banco, quanto para o Poder Judiciá-rio brasileiro). Em razão do curtíssimo pra-zo, não será possível ir além de uma abor-dagem praticamente introdutória dos pon-

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tos essenciais ligados ao tema principal dotrabalho.

1.3. Assim, no Marco Conceitual, exami-namos a estrutura organizacional do PoderJudiciário no Brasil. Nesse tópico, ainda quede forma um tanto ligeira, tivemos de nosdeter, mais amplamente, no capítulo dacomposição da Magistratura (em que anali-samos questões como a do déficit de Juízes eo da prestação jurisdicional, aí incluído oproblema do estoque de processos sem jul-gamento). Também nos detivemos no exa-me do princípio constitucional da autono-mia administrativa e financeira do Judiciá-rio, um ponto que consideramos relevante.Ainda aí, vimos as Funções Essenciais àJustiça e os Agentes que a exercem, paraentendermos a mecânica integral do funcio-namento do Judiciário.

1.4. Na parte relativa à Análise da Situa-ção Atual, abordamos os principais aspec-tos do que se costuma chamar de “crise doJudiciário”, com o que pudemos formular adistinção entre o que denominamos, nestetrabalho, “reforma estrutural” e “reformaoperativa” do Judiciário.

Com referência à “reforma estrutural”,fixamo-nos mais em descrever as principaisPropostas de Emenda Constitucional sobreo assunto, em tramitação no Congresso Na-cional.

1.4.1. Quanto à “reforma operativa”, da-mos uma visão geral dos dois mais recentessistemas judicantes introduzidos no orde-namento brasileiro, ambos num contexto(digamos assim) reformista: a Arbitragem eos Juizados Especiais. Enfatizamos a análi-se dos resultados da experiência desses Jui-zados.

1.4.2. No que se refere a Alternativas deSolução, numa perspectiva absolutamentepragmática de antever quais as medidasobjetivas que se podem tomar, no curto emédio prazos, são apresentadas aquelasque, no âmbito e por decisão dos órgãos dopróprio Poder Judiciário, já estão programa-das ou mesmo sendo executadas. Falamos,então, dos Projetos do Superior Tribunal de

Justiça, para a Justiça Federal, e dos Juiza-dos Especiais, no caso da Justiça Estadual.

1.5. Esses são os dois campos em que oBanco pode, efetivamente, prestar seuapoio, hoje, a projetos que visem à moder-nização e ao fortalecimento do Poder Ju-diciário do Brasil.

E este é o trabalho1 que, consubstancian-do um diagnóstico preliminar dos proble-mas existentes nesse campo, entrega-se ago-ra à Gerência da Região l, abrangente dosprogramas e projetos de interesse do Brasil,e à Chefia da respectiva Divisão l.

II - Marco conceitual

2.1. Estrutura organizacional do PoderJudiciário no Brasil

2.1.1. Fundamento constitucional.Características e estruturação básicas

São os seguintes os dispositivos daConstituição da República Federativa doBrasil que estabelecem (a) o fundamento daMagistratura (nacional) como um Poder (Ju-diciário) estatal e (b) a base da respectivaestrutura organizacional:

“Art. 2º - São Poderes da União, in-dependentes e harmônicos entre si, oLegislativo, o Executivo e o Judiciário”.

“Art. 92 - São órgãos do Poder Ju-diciário:

I - o Supremo Tribunal Federal;II - o Superior Tribunal de Justiça;III - os Tribunais Regionais Federais

e os Juízes Federais;IV - os Tribunais e Juízes do Tra-

balho;V - os Tribunais e Juízes Eleitorais;VI - os Tribunais e Juízes Milita-

res;VII - os Tribunais e Juízes dos Es-

tados e do Distrito Federal e dos Terri-tórios.”

Uma análise superficial dos dispositivostranscritos permite apontar as seguintescaracterísticas básicas do modelo de estru-

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turação política e organizacional do PoderJudiciário brasileiro: 1) trata-se, efetivamen-te, de um Poder que, com independência dos de-mais Poderes, exerce atividade estatal de ca-ráter monopolístico, consistente no exercí-cio da função jurisdicional, que é, por sua vez,a prerrogativa, politicamente incontrastável,de dizer, em definitivo, o direito aplicável aoscasos e situações concretas de litígio ou depretensões a direitos, em geral, a ele subme-tidos; 2) trata-se de um Poder, rigorosamen-te, não-federativo, por ser o único que nãofaz parte da organização política de todasas unidades da Federação brasileira (nãoexiste um Poder Judiciário dos Municípios,embora ele aí esteja funcionalmente presen-te, porque a jurisdição da Justiça Estadual,bem assim da Federal, está territorialmenteespalhada por diversas seções judiciárias e“comarcas”, isto é, pelas cidades, ou muni-cípios, onde o Poder Judiciário está instala-do em cada “Vara”, palavra que designa adivisão organizacional unitária básica dajurisdição de 1ª Instância, ou 1º grau, daJustiça Federal e Estadual no Brasil). Nessesentido, ele é um Poder nacional (embora oart. 2º acima reproduzido especifique queos Poderes são da União e as diferentes Cons-tituições Estaduais incluam o Judiciário nasua organização, exatamente porque o art.92, VII, menciona que são órgãos do PoderJudiciário os Tribunais e Juízes dos Esta-dos); 3) trata-se de uma estrutura organiza-cional verticalizada e hierarquizada em que,na sua base, se encontram os Juízes de Di-reito (órgãos judiciais singulares), acimados quais estão os Tribunais e, sobre estes eaqueles, o Superior Tribunal de Justiça e oSupremo Tribunal Federal (sendo todos es-ses Tribunais órgãos judiciais coletivos oucolegiados).

Em resumo, o Poder Judiciário brasileirocompreende:

– dois principais Tribunais Superiores(sendo que, essencialmente, o Supremo Tri-bunal Federal – STF exerce a jurisdição má-xima em litígios ou pretensões que envol-vam matéria constitucional e o Superior Tri-

bunal de Justiça – STJ exerce a jurisdiçãomáxima em litígios que envolvam matériarelacionada a legislação federal, ambos comjurisdição abrangendo todo o território na-cional);

– uma Justiça Federal, com dois graus dejurisdição, integrada por Juízes Federais (1ºgrau) e 5 (cinco) Tribunais Regionais Fe-derais (2º grau);

– uma Justiça Estadual, com dois grausde jurisdição, integrada por Juízes de Direi-to (Estaduais) (1º grau), Tribunais de Justi-ça e, em alguns Estados, dependendo decritérios previstos nas leis de organizaçãojudiciária de cada Estado, levando-se emconta o valor da causa, os Tribunais de Al-çada (ambos constituem o 2º grau de juris-dição estadual);

– três Justiças especiais, com a respecti-va jurisdição circunscrita a matérias espe-cializadas:

1) a Justiça do Trabalho (competente paraconciliar e julgar dissídios, individuais ecoletivos, entre empregados e empregado-res, assim como quaisquer controvérsiasdecorrentes das relações de trabalho), comdois graus de jurisdição, integrada pelasJuntas de Conciliação e Julgamento (1ºgrau), pelos Tribunais Regionais do Traba-lho e pelo Tribunal Superior do Trabalho –TST (ambos de 2º grau);

2) a Justiça Eleitoral (com competênciaexclusiva em matéria eleitoral, definida emlei complementar), integrada por Juntas eJuízes Eleitorais (ambos de 1º grau e, aque-las, com funções tipicamente administrati-vas), Tribunais Regionais Eleitorais e Tri-bunal Superior Eleitoral (ambos de 2º grau);

3) a Justiça Militar (para processar e jul-gar crimes militares definidos em lei), inte-grada pelos Juízes Militares (1ºgrau), Tri-bunais Militares e Superior Tribunal Mili-tar (ambos de 2º grau).

2.1.2. Competências

As competências (vale dizer, os limitesda jurisdição ou, por outras palavras, a de-limitação do campo da atividade jurisdicio-

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nal de cada um dos órgãos do Poder Judiciá-rio) estão definidas, mencionadas ou refe-renciadas na própria Constituição Federal.

Como a estreitíssima limitação de tempopara a elaboração deste trabalho não per-mite aprofundar vários dos principais te-mas ligados à questão do Poder Judiciário,é preciso eliminar ao máximo quaisquer in-formações ou discussões que se possam con-siderar paralelas, excessivamente técnicasou não-essenciais ao objetivo básico destepaper. Assim é que o tema das competênciastem grande importância para entender-se ofuncionamento interativo de todos os órgãosdessa estrutura organizacional, mas deveser, para os fins deste trabalho, considera-do excessivamente técnico.

Por isso, cabe tão-somente mencionar osdispositivos da Constituição Federal queestabelecem ou referenciam tais competên-cias. São eles: arts. 102, 105, 108, 109, 114,121, 124 e Parágrafo único, e §1º do art. 125.

2.1.3. Composição

A Constituição Federal define a compo-sição (máxima e mínima) dos Tribunais Su-periores e dos Regionais Federais, autorizaa legislação infraconstitucional (federal eestadual) a definir a mesma composição dosdemais órgãos do Poder Judiciário e estabele-ce a designação dos cargos da Magistratura.

2.1.3.1. Desse modo, os membros de to-dos os Tribunais Superiores são denomina-dos Ministros.

O Supremo Tribunal Federal – STF écomposto de 11 (onze) Ministros (art. 101CF). O Superior Tribunal de Justiça – STJcompõe-se de, no mínimo, 33 (trinta e três)Ministros (art. 104, CF), sendo, efetivamen-te, essa sua composição numérica atual. OTribunal Superior do Trabalho – TST é inte-grado por 27 (vinte e sete) Ministros (art. III,§ 1º, CF). O Tribunal Superior Eleitoral –TSE é composto, no mínimo, por 7 (sete)Ministros, sendo essa, efetivamente, suacomposição numérica atual (art. 119, CF). OSuperior Tribunal Militar – STM compõe-sede 15 (quinze) Ministros (art. 123, CF).

2.1.3.2. Os membros dos Tribunais Regi-onais Federais são denominados Juízes (des-ses Tribunais).

A Constituição Federal prevê a compo-sição numérica de, no mínimo, 7 (sete) Juí-zes para cada um desses Tribunais (art. 107,CF). Todavia, sua composição efetiva atualé bem superior a esse limite mínimo.

Há 5 (cinco) Tribunais Regionais Fede-rais, distribuídos nas cinco Regiões em quefoi dividida a jurisdição federal no País.Quer dizer, a jurisdição federal é de âmbitofederativo, porém regionalizada2, a saber:

1ª Região, com sede em Brasília, DF,abrangendo as Seções Judiciárias do pró-prio Distrito Federal e dos Estados do Acre,Amapá, Amazonas, Bahia, Goiás, Mara-nhão, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará,Piauí, Rondônia, Roraima e Tocantins. OTRF dessa Região é composto, hoje, de 18(dezoito) Juízes;

2ª Região, com sede no Rio de Janeiro, RJ,abrangendo as Seções Judiciárias do pró-prio Estado do Rio de Janeiro e do Estadodo Espírito Santo. O TRF dessa Região temuma composição prevista em lei de 23 (vin-te e três) cargos de Juízes, mas está, atual-mente, com apenas 17 (dezessete) cargospreenchidos3;

3ª Região, com sede em São Paulo, SP,abrangendo as Seções Judiciárias do pró-prio Estado de São Paulo e do Estado doMato Grosso do Sul. O TRF dessa Regiãotem 27 (vinte e sete) cargos previstos em leie, hoje, 26 (vinte e seis) cargos providos4;

4ª Região, com sede em Porto Alegre, RS,abrangendo as Seções Judiciárias do pró-prio Estado do Rio Grande do Sul e dos Es-tados do Paraná e de Santa Catarina. O TRFdessa Região tem 23 (vinte e três) cargos pre-vistos em lei e igual número de Juízes atual-mente em exercício;

5ª Região, com sede em Recife, PE, abran-gendo as Secções Judiciárias do próprio Es-tado de Pernambuco e dos Estados de Ala-goas, Ceará, Paraíba, Rio Grande do Norte eSergipe. O TRF dessa Região tem uma com-posição de 10 (dez) cargos de Juízes previs-

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ta em lei, que se encontram totalmente pro-vidos nesta data.

2.1.3.3. A composição numérica dos de-mais órgãos do Poder Judiciário não é fixa-da na Constituição Federal, mas esta con-tém uma norma de competência para que oSupremo Tribunal Federal, os demais Tri-bunais Superiores e os Tribunais de Justiçaproponham ao Poder Legislativo respecti-vo, entre outras medidas, a criação e a extin-ção de cargos e a fixação de vencimentos deseus membros, dos juízes, inclusive dos Tri-bunais inferiores, onde houver, dos servi-ços auxiliares e os dos juízos que lhes foremvinculados (cf. art.96, II, “b”, CF).

Nesse sentido, o número de Juízes Fede-rais (assim chamados os magistrados do 1ºgrau da Justiça Federal), o de Juízes dos Tri-bunais Regionais do Trabalho (Tribunaisesses que estão instalados em todos os Esta-dos da Federação e no DF), o dos Juízes doTrabalho e dos Juízes Classistas, esses últi-mos representantes, paritariamente, um dosempregados e outro dos empregadores (ostrês, sempre em conjunto, formam as Juntasde Conciliação e Julgamento), o de Desem-bargadores (assim chamados os membrosdos Tribunais de Justiça, ou seja, os Tribu-nais de 2º grau de jurisdição dos Estados) edos Juízes de Direito (assim denominadosos Juízes Estaduais), repetindo, o númerototal de cargos desses magistrados é fixadopor lei federal ou estadual, dependendo docaso, e não pela Constituição.

2.1.3.4. Tem-se trabalhado muito comcertos números que vêm sendo bastante di-vulgados ultimamente. Considerando-seque o ingresso na via judicial se dá, na gran-de maioria dos casos, pela 1ª instância daJustiça Estadual (também chamada de Jus-tiça Comum, porque é essa a jurisdição queconhece – vale dizer, processa e julga – ascausas que dizem respeito a litígios entre aspessoas, físicas ou jurídicas, no âmbito dodireito privado, que são as causas relativasa direitos de família, dos contratos e obriga-ções negociais, patrimonial e de bens emgeral, de herança, etc., bem assim os delitos

praticados em face do direito criminal co-mum, e outras causas), tais números se refe-rem a essa “porta de entrada” do Poder Ju-diciário, para, entre outras finalidades, me-dir a relação Juiz/número de habitantes.

Desse modo, com dados referentes a ou-tubro/96, o Brasil tem, hoje, 5.895 JuízesEstaduais para um total de 7.779 cargos pre-vistos em lei, estando a ocorrer uma vacân-cia de 24,22%5. Logo, há praticamente ¼ decargos vagos na Magistratura Estadual.

Dividindo-se o número total de cargosprovidos pelo número de habitantes do País(estimado, pela fonte, em 155.822.200 pes-soas), tem-se o elevadíssimo percentual de ljuiz para cada segmento de 26,4 mil habi-tantes6 (elevadíssimo do ponto de vistaquantitativo, conquanto de baixíssimagrandeza numérica – seria possível uma(des)grandeza aritmética (?), mas pequenís-sima como expressão utilitária). Compara-tivamente, teríamos diferentes números paraessa mesma relação em outros países: naAlemanha, l juiz para um universo de 3.500pessoas; na França, 1/5.600; nos EstadosUnidos da América, 1/9.000; na Argentina,1/17.0007.

Tais números, quanto ao caso brasileiro,à primeira vista, podem impressionar ne-gativamente. Para este consultor, entretan-to, esses números são menos significativosdo que aparentam. É que, se analisarmosessa mesma relação juiz/habitante (ou, tec-nicamente falando, juiz/jurisdicionado) emface, não do potencial de demandantes ju-diciais, mas do volume efetivo de deman-das, a situação de outros países, reveladanaqueles números, seria (se os números sãocorretos), proporcionalmente, até um poucopior. É o caso dos Estados Unidos, onde opotencial de demanda é muito elevado e orespectivo volume, efetivamente, também oé. Afinal de contas, nos EUA, todo e qual-quer tipo de problema controverso do dia-a-dia se resolve na “Corte”. Ora, se isso que sepassa aqui nos EUA é um dado positivo emvários sentidos (mostra que há uma cons-ciência plena de cidadania, uma confiança

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popular na eficiência judicial do país, mos-tra que o acesso à Justiça é mais democrati-zado, ou, ao menos, mais freqüente, etc.), arelação l juiz/9.000 habitantes deve ser tãoou mais preocupante que a nossa, quase trêsvezes maior. Aliás, não dispomos agora deinformação sobre a existência de claros noscargos da magistratura norte-americana.Mas, se considerarmos a possibilidade deocupação plena de todos os cargos atual-mente previstos para a Magistratura Esta-dual brasileira, aquela relação cairia para ljuiz/20.031 habitantes (o que passaria a re-presentar pouco além do dobro da norte-americana). Não queremos desmerecer aimportância de um dado que, afinal, revela,no caso brasileiro, quão distante a JustiçaComum está da grande massa de jurisdicio-nados. Trata-se de uma relação que mostrauma realidade perversa, tanto para a massade jurisdicionados, quanto para os Juízes, que,potencialmente, têm essa quantidade brutalde demandantes sob sua responsabilidade.

É nesse ponto (em que são convergentes osdois maiores déficits relacionados à atividadejudicial no Brasil - O DE RECEBER E O DE DAR A

PRESTAÇÃO JURISDICIONAL com rapidez e eficiên-cia) que reside grande parte da crise do Judiciá-rio e da necessidade de sua reforma.

Insistindo um pouco mais no aspectoreferente à menor importância que este con-sultor atribui ao dado da relação juiz/nú-mero de habitantes acima mencionado, valesalientar que aquela média nacional (de 1/26,4 mil) se encontra entre dois extremos:no Estado do Maranhão, a relação é de 1/42 mil e, no Estado do Amapá, é de 1/9,3mil. Nesse último caso, a relação é pratica-mente a mesma que a norte-americana, masnem por isso poderíamos considerar a Jus-tiça Estadual do Amapá tão eficiente quan-to à dos Estados Unidos da América.

Por outro lado, insista-se em que, embo-ra aqui se o considere um dado menos rele-vante, tal relação juiz/número de habitan-tes não deixa de ser significativa para mos-trar uma situação realmente preocupante,tendo em vista que a população e a quanti-

dade de processos crescem em proporçãomuito superior ao aumento do número deJuízes. Esse quadro de crise só “não é catas-trófico porque apenas 33% das pessoas en-volvidas em algum tipo de conflito dirigem-se ao Judiciário em busca de uma soluçãopara os seus problemas”8 .

Esse último dado representa um forteindicador da crise do Judiciário, vista sobdois aspectos fundamentais; 1º) crise quantoao acesso à Justiça no Brasil; 2º) crise quantoà confiança na eficiência do Judiciário.

Quanto ao primeiro aspecto, o dado es-taria a revelar que 2/3 das pessoas já envol-vidas em algum tipo de conflito interpesso-al deixam de procurar o Judiciário. De fato,é uma quantidade muito grande de pessoasque se abstêm de exercer o direito de pedir acomposição judicial de controvérsias. Issose deve a diferentes possíveis fatores, entreos quais o custo financeiro de uma deman-da judicial (insuportável para a grandemaioria, incluindo, principalmente, as des-pesas com advogado) e o tempo decorridoentre o início e o término definitivo da de-manda (normalmente muito longo). São doisfatores que inibem ou, efetivamente, restrin-gem o acesso à Justiça. Nesse caso, os fato-res restritivos ao acesso à Justiça fazem res-saltar as indesejáveis conseqüências sociaisproduzidas por uma máquina judiciária len-ta, cara e, por isso mesmo, distante da (ouinacessível à) grande maioria dos cidadãos.

Quanto ao segundo aspecto, o dado es-taria a revelar que aquele mesmo percen-tual de pessoas naquelas condições nãoconfiam na eficiência do Judiciário, daí porque não o procuram como estrutura e meca-nismo usual e tradicional para solução decontrovérsias. Essa realidade, como não po-deria deixar de ser, determinou o surgimen-to de vias alternativas (auxiliares ou substi-tutivas) para solução de conflitos. Aparece-ram, assim, em 1995, os Juizados Especiaise, em 1996, o sistema de Arbitragem. O pri-meiro, objetivando viabilizar o acesso ge-neralizado à Justiça Comum. O segundo, ten-dendo a ser a autoridade que as pessoas ricas

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e as empresas venham a preferir para dar so-lução a litígios que a lei autorize que possamser dirimidos por esse tipo de autoridade9.

Esses dois temas (Juizados Especiais eArbitragem, especialmente o primeiro) vol-tarão a ser abordados neste texto. É bom res-saltar que essas duas vias alternativas, re-centemente criadas e em processo de expe-rimentação no Brasil, representam, de umlado, uma quebra do monopólio da jurisdi-ção pelo Poder Judiciário (caso da Arbitra-gem) e, de outro, uma ruptura da concepçãode justiça tradicional, essencialmente cor-retiva/condenatória, para a de uma justiçamais moderna, de cunho, primordialmente,conciliatório (caso dos Juizados Especiais).

Entretanto, “a tendência dominante namagistratura é a de recusar a difusão de viasparalelas ao aparelho judicial. O padrão derejeição a esta proposição sugere que a ex-pansão da malha institucional do Poder Ju-diciário constitui a melhor garantia para oefetivo exercício dos direitos democráticos”10.

Exatamente com base nessa percepção éque uma corrente expressivamente repre-sentativa da Magistratura brasileira enten-de que, qualquer que venha a ser o caminhoescolhido para se efetuarem mudanças naestrutura do Poder Judiciário, um dos pri-meiros passos será o de promover uma ne-cessária ampliação nos seus quadros.

Essa é uma avaliação correta desse as-pecto do problema, vale dizer, na perspecti-va do fortalecimento institucional do PoderJudiciário. E aqui voltamos àquela relaçãojuiz/número de habitantes para insistir emque, se isso é um dado que serve para “de-nunciar” os pontos já ressaltados da crisedo Judiciário, não serve, todavia, como mar-co referencial à quantificação, ou ao dimen-sionamento, de um novo tamanho da Ma-gistratura brasileira. Por isso, este consul-tor lhe atribui menor relevância do que ou-tros analistas o fazem. O que parece ser real-mente um dado útil para aquele fim é a rela-ção juiz/quantidade de processos, que po-derá fornecer melhores elementos para ava-liação daquele dimensionamento, no nível

ideal compatível com o movimento proces-sual efetivo do 1º grau das Justiças Federale Estadual, em que se localizam os princi-pais pontos de estrangulamento da ativida-de judiciária.

2.1.3.4.1. Vejam-se, em primeiro lugar,alguns dados relativos à situação na JustiçaEstadual de 1ª instância (1º grau).

Começando pelo número de juízes (e re-petindo dados já apresentados acima), paraum total de 7.779 cargos previstos em lei,temos 5.895 juízes Estaduais em todo oPaís, havendo, portanto, cerca de ¼ decargos vagos.

No período 1990-199611, deram entra-da na Justiça Estadual de 1ª instância28.500.845 processos. Tomando-se por baseaquele quantitativo de cargos ocupados econsiderando-se, hipoteticamente, que todosos Juízes estivessem no exercício da judica-tura, que a distribuição dos processos fosseigual por Juiz, por Estado, pela natureza dacausa, etc., cada um deles teria recebido umacarga de 4.834 processos em 7 anos.

Por outro lado, foram julgados, no mes-mo período, 20.621.163 processos, o que sig-nifica, dentro do mesmo parâmetro hipoté-tico, que cada Juiz teria decidido 3.498 pro-cessos. A quantidade de processos julgadosequivale a 72,3% dos que deram entrada.

O total de processos não julgados é,pois, de 7.879.682, com a média anual de1.125.669 processos sem julgamento. Essesnúmeros traduzem o déficit da prestação juris-dicional no âmbito da 1ª instância da JustiçaEstadual. Se todos esses processos tivessemnatureza contenciosa (na verdade, o núme-ro de processos não-contenciosos é muitopequeno, quase insignificante, perto dessemontante do estoque) e se fizéssemos cor-responder um processo a cada jurisdicio-nado (pessoa física ou jurídica), aquele to-tal equivaleria ao mesmo número de inte-ressados (autores) que aguardam decisãojudicial para suas causas. Ou seja, algo emtorno de 27,6% de jurisdicionados que procu-ram a Justiça Estadual estão com suas causassem decisão judicial terminativa, por algum

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motivo. Calculados em relação ao referen-cial da população estimada (de 155.822.200habitantes), esses 27,6% correspondem aexatos 5% dessa população.

Esses números já permitem concluir deantemão que a quantidade de Juízes em exer-cício na Justiça Estadual deve ser aumenta-da, no mínimo, em proporção equivalenteàquela taxa de jurisdicionados cujos pro-cessos se encontram sem decisão. Como omontante de cargos não preenchidos, emface do quantitativo de cargos previstos emlei, corresponde a 24,22% (praticamente 1/4) e em números absolutos é de 1.884 car-gos, para chegarmos aos 27,6% teríamos deacrescentar a esse montante mais 355 car-gos, perfazendo um total de 8.135 cargos deJuiz de Direito (estadual). Isso seria o míni-mo necessário para reduzir e, progressiva-mente, eliminar o estoque de processos nãojulgados. As condições básicas, porém, sãoas de que todos os cargos estejam preenchi-dos e de que todos os Juízes estejam no exer-cício efetivo da judicatura.

Evidentemente, essa projeção do tama-nho ideal da Magistratura estadual, paraatender suficientemente à demanda proces-sual que se tem hoje, está baseada em cálcu-los muito elementares e sem o aprofunda-mento que o assunto requer. Mas serve aomenos para dar uma ligeira idéia, em ter-mos numéricos, do que se deve objetivarquando se pensa no aumento dos quadrosda Magistratura.

Os dados atuais revelam que cada JuizEstadual, com a média de 4.834 processosrecebidos em 7 anos, tem uma carga de 690processos/ano. Dessa carga anual, ele jul-ga, em média, 499,2 processos/ano, fican-do sem julgamento 190,8 processos/ano.Note-se que esse déficit anual tem sido acu-mulativo, gerando hoje o estoque históricode 1.336 processos não julgados, por Juiz,no período considerado.

Com o novo tamanho da Magistraturaestadual aqui projetado (8.135 Juízes efeti-vos), considerando-se constante a massa deprocessos entrados, da ordem de 4.071.549

processos/ano, cada Juiz passaria a ter umacarga anual média de 500.4 processos, o queviabilizaria a eliminação total do déficitapontado (repare-se que, com o quantitati-vo atual da Magistratura, um Juiz julga 499,2processos/ano, conforme demonstrado noparágrafo anterior). Considerando-se que aMagistratura brasileira de 1º grau trabalhaentre 200 e 220 dias por ano (excluídos docalendário de dia úteis os fins-de-semana,os feriados normais, períodos de recesso fo-rense e de férias), isso implicaria uma agen-da de julgamentos de 2.27 a 2.50 processos/dia.Em princípio, essa não parece ser uma car-ga excessiva. Todavia, é preciso considerarque o julgamento de uma causa não é umato mecânico e automático. Muito ao con-trário, ele consiste numa atividade intelec-tual complexa, pois o julgamento, enquantoato judicial formal, envolve a realização deuma sessão (audiência pública) específica,obriga ao exame prévio e acurado de todasas peças processuais (autos do processo) eexige, na grande maioria dos casos, a elabo-ração de sentença escrita. Nesse conjuntode atividades adjacentes e voltadas a cadajulgamento, ainda aí não se esgota o traba-lho diário do magistrado. Além disso, elepreside todas as audiências de instruçãoprocessual (especialmente aquelas em quehá tomada de depoimentos das partes e dastestemunhas), ele produz despachos ordi-natórios em dezenas, às vezes centenas, deprocessos diariamente, etc. Portanto, aque-la projetada agenda de julgamentos/dia (vi-sando à eliminação de grandes déficits daprestação jurisdicional) pode parecer supor-tável, mas ainda assim poderá ser conside-rada, realisticamente, inviável. Essa avalia-ção caberá às autoridades competentes dos Tri-bunais encarregadas de dimensionar o novo ta-manho da Magistratura estadual. É precisosalientar que o quantitativo, aqui projetado,do que seria a nova composição da JustiçaEstadual de 1º grau (8.135 Juízes), represen-ta um número-limite. Na realidade, a Justiçanão pode trabalhar com uma “roupa aper-tada” dessas. É preciso levar em conta algu-

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mas variáveis que determinarão um dimen-sionamento mais elástico para que se che-gue ao tamanho verdadeiramente ideal des-sa Magistratura. Está-se pensando aqui nasinúmeras hipóteses em que se dão casosconcretos de afastamento temporário doexercício da judicatura, casos de aposenta-doria, etc. Essas situações (não pouco fre-qüentes) implicam sempre uma sobrecargade trabalho para o contingente de Juízes quese mantêm na atividade, eventualmente acu-mulando outra jurisdição com a sua. Para tudoisso deverá haver o máximo de atenção nahora de se estimar o quantitativo ideal.

É óbvio que as coisas não se resolvemassim, de forma tão aritmeticamente sim-ples. Não se pode esquecer que os proble-mas que afetam a Magistratura estadual de1ª instância têm a dimensão territorial daFederação e, ao mesmo tempo, refletem asgrandes discrepâncias inter-regionais dedesenvolvimento. Isso significa advertirpara o fato de que uma reforma da estruturafuncional da Magistratura das unidadesfederadas, certamente, pode ser feita comindependência umas das outras, em obser-vância ao princípio da autonomia federati-va. Mas, para que seja dotada do grau deracionalidade desejável, com vistas a umasolução equilibrada e correta dos problemasidentificados em nível nacional, ela deve serrealizada sob coordenação de uma entida-de que, legitimamente, congregue e repre-sente os interesses do Poder Judiciário decada uma dessas unidades federadas. Talentidade poderia ser (a título de sugestão, desdejá) o Colégio Permanente dos Presidentes dosTribunais de Justiça.

2.1.3.4.2. Agora, veja-se o que ocorre na Jus-tiça Federal de 1º grau, com o mesmo enfoqueda situação existente no plano estadual12.

Temos aí (dados de 1996), para um totalde 733 cargos de Juiz Federal previstos emlei, 479 cargos ocupados, correspondendoestes a 65,3% daquele montante. Já no pri-meiro trimestre de 1997, o número de cargosprovidos elevou-se a 505, passando a equi-valer a 68,8% do total. Aqui, cabe observar

uma primeira distinção com o que ocorre naJustiça Estadual. Enquanto, nesta, o númerode cargos vagos se situa um pouco abaixo de ¼do total de cargos previstos em lei, na JustiçaFederal o referido número se eleva a mais de 1/3.

No período 1989-1996, foram 4.164.820processos entrados naquela Justiça. Se essemontante tivesse sido distribuído, equani-mente, pelos 479 Juízes Federais (quantita-tivo referente ao ano de 1996), ele teria cor-respondido à média de 8.694 processos dis-tribuídos a cada Juiz, no período considera-do (8 anos). Isso significa a incidência deuma carga média anual de 1.086 processospor Juiz. Comparativamente ao que se pas-sa na Justiça Estadual, essa carga de pro-cessos do Juiz Federal é, em média, 36,5%superior à do Juiz de Direito (estadual).

De outra parte, no período considerado(89/96), foram julgados 2.458.781 proces-sos, o que corresponde a 59% da quantidadede processos entrados no referido período.Observa-se aí que o percentual de proces-sos julgados, em relação à quantidade deprocessos entrados, é mais baixo do que overificado na Justiça Estadual. Isso signifi-ca, ainda, que a média anual de processosjulgados, por Juiz Federal, é da ordem de641 feitos (palavra sinônima do vocábulo“processos”). Em comparação com a perfor-mance verificada na Justiça Estadual, em quecada Juiz julga, em média, por ano (confor-me visto), 72,3% dos processos a ele distri-buídos, na Justiça Federal essa performancenão seria tão eficiente, desse ponto de vistameramente quantitativo, ou estatístico. Hárazões que podem explicar essa diferençatão grande (mais de 22%) de produção ju-risdicional, ou judicante, digamos assim, daJustiça Estadual para a Federal. Tais razões,porém, não cabem ser mencionadas nos es-treitos limites de um trabalho, que deveriacorresponder a um amplo e profundo diag-nóstico dos problemas que afetam atualmen-te o Poder Judiciário no Brasil, mas que, emfunção das restrições de prazo impostas, tevede ser reduzido a um texto quase simples-mente introdutório, ou de caráter preliminar.

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Então, se cada Juiz Federal recebeu, emmédia, 1.086 processos/ano, no período1989/1996, e julgou 641 processos/ano, odéficit, por Juiz, é de 445 processos/ano, queacumulados no período considerado (8anos) somam um total de 3.560 processos.Esse é o número que corresponde, na média, aoatual estoque histórico de processos sem julga-mento, por Juiz Federal. O déficit da prestaçãojurisdicional é, pois, da ordem de 41%.

Todos os critérios de cálculo e os argu-mentos, há pouco utilizados para a quanti-ficação do novo tamanho da Magistraturados Estados, aplicam-se à situação da Justi-ça Federal.

Ora, se hoje temos 733 cargos previstosem lei e o número (com que estamos traba-lhando) de cargos preenchidos (479) equi-vale a 65,3%, isso quer dizer que já existe amargem de 34,7% para ser ocupada, faltan-do acrescentar o equivalente a 6,3% para quese alcancem os 41% mínimos necessários.Passaríamos a ter um quadro efetivo de 779Juízes Federais. Mantido o atual volume deprocessos entrados por ano na Justiça Fede-ral, cada Juiz passaria a ter 668 processos/ano e, assim, conseguir-se-ia reduzir signi-ficativamente o apontado déficit da presta-ção jurisdicional. Se quantificássemos a ne-cessidade de ampliação da MagistraturaFederal até o equivalente a mais 15,3% daquantidade de cargos previstos atualmen-te, chegaríamos a 845 cargos, quando a car-ga anual de processos cairia para 616 pro-cessos por Juiz. Se considerarmos constan-te a média atual de processos julgados/ano(de 641 por Juiz), teríamos assegurada a re-versão total da tendência de déficit acumu-lado da prestação jurisdicional na JustiçaFederal.

Enfim, todos esses são exercícios dequantificação cujo único objetivo é o de mos-trar a necessidade de um redimensionamen-to dos quadros da carreira de Juiz Federal,assim como se fez antes em relação à Magis-tratura estadual, de modo a reduzir ou via-bilizar a extinção dos déficits acumuladosda prestação jurisdicional.

2.1.4. Formas de ingresso na e deacesso à Magistratura

2.1.4.1. O ingresso na carreira de Juiz sedá por meio de concurso público de provase títulos, conforme determina a Constitui-ção Federal, no seu art. 93, inciso I.

2.1.4.2. O acesso dos Magistrados de 1ºgrau aos Tribunais de 2º grau far-se-á peloscritérios de antigüidade e de merecimento,alternadamente, de acordo com o dispostono art. 93, inciso II, letras c e d, bem assim noinciso III do referido artigo.

2.1.4.3. Um quinto (1/5) dos lugares dosTribunais Regionais Federais e dos Tribu-nais de Justiça dos Estados e do Distrito Fe-deral será composto de membros do Minis-tério Público e de Advogados, indicados emlista aprovada pelos órgãos de representa-ção das respectivas classes. A lista dos in-dicados (com 6 nomes) é encaminhada aoTribunal correspondente, que, aprovando 3deles, forma lista tríplice, assim submetidaao Chefe do Poder Executivo pertinente, oqual, dentro dos vinte dias subseqüentes,escolhe um dos indicados e o nomeia. Essaé a forma de ingresso na Magistratura de 2ºgrau de pessoas que não são, originariamen-te, provenientes da carreira de Juiz, confor-me definido no art. 94 e seu Parágrafo únicoda Constituição Federal.

2.1.4.4. A Justiça do Trabalho (cuja com-petência fundamental é a de conciliar e jul-gar litígios entre empregados e empregado-res e outras controvérsias decorrentes darelação de trabalho), em todas as instâncias,é peculiarmente integrada de Juízes do Tra-balho e de Juízes Classistas temporários (re-presentantes paritários dos empregadose empregadores). Esses representantes clas-sistas, com mandato de 3 anos, são indica-dos em listas tríplices pelas diretorias dasfederações e dos sindicatos com base terri-torial na região correspondente, nomeadosna forma prevista na Constituição Federal(art. 116, Parágrafo único).

No âmbito dos Tribunais Regionais doTrabalho, bem como no do Tribunal Superior

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do Trabalho, além da participação dos re-presentantes classistas, também os integran-tes membros do Ministério Público do Tra-balho e Advogados, indicados na forma doart. 94, referida no item 2.l.4.3 acima.

2.1.4.5. A Justiça Eleitoral (incumbida dedirimir controvérsias sobre matéria dessanatureza) é um setor especializado do Po-der Judiciário brasileiro, mas não é integra-da de membros com carreira própria. Amaioria de seus integrantes provém dos qua-dros da própria Magistratura, servindo tem-porariamente a essa Justiça (por 2 anos e,excepcionalmente, nunca por mais de 2biênios consecutivos). Os Tribunais Re-gionais Eleitorais e o Tribunal SuperiorEleitoral são integrados também, respec-tivamente, por 2 Juízes e 2 Ministros tem-porários, nomeados pelo Presidente daRepública entre 6 Advogados de notávelsaber jurídico e idoneidade moral, indi-cados pelo Tribunal de Justiça (no casodos Regionais) e pelo Supremo TribunalFederal (no caso do TSE).

2.1.4.6. A Justiça Militar, a exemplo daJustiça do Trabalho, é especializada e per-manente. A Constituição Federal apenasdefine a forma de ingresso no Superior Tri-bunal Militar, deixando à lei infraconstitu-cional a competência para dispor sobre aorganização e o funcionamento dessa Justi-ça. O STM é integrado por 15 Ministros, sen-do 3 dentre Oficiais-Generais da Marinha,4 entre Oficiais-Generais do Exército, 3 en-tre Oficiais-Generais da Aeronáutica e 5entre civis. Destes, 3 entre Advogados e 2entre Juízes-Auditores e membros do Minis-tério Público da Justiça Militar. É o que esta-belece o art. 123 da Constituição Federal.

2.1.5. Prerrogativa Fundamentalda Magistratura

A prerrogativa fundamental da Magis-tratura é a plena independência do Juiz noexercício de suas funções.

Essa prerrogativa é o que assegura a apli-cação imparcial, isenta, corajosamente cor-retiva e sabiamente justa do Direito.

Sem essa independência, não existiria aprópria jurisdição.

2.1.6. Garantias Constitucionaisda Magistratura

Para que ela (a independência do Juiz)se efetive concretamente e não venha a ser,política, econômica ou juridicamente, ame-açada por nada e por ninguém, a Constitui-ção Federal estabelece que a Magistraturagoza de certas garantias.

Tais garantias estão definidas de modopositivo (sob a forma de direitos básicos daMagistratura) e de modo negativo (sob a for-ma de proibições), de acordo com o dispos-to no art. 95 e seu Parágrafo único da Cons-tituição Federal.

As garantias positivas (direitos) são asseguintes:

vitaliciedade, que consiste no exercíciopermanente do cargo (até a morte ou apo-sentadoria), insuscetível a perda por qual-quer forma, salvo por sentença transitadaem julgado (sentença definitiva, da qual nãomais cabe recurso);

inamovilibilidade, que consiste na impos-sibilidade de o Juiz ser removido de sua ju-risdição sem o seu consentimento, ou sercolocado em disponibilidade (isto é, com-pulsoriamente afastado do exercício damagistratura ainda que sem a perda do car-go), ou ser aposentado involuntariamente.Entretanto, a remoção, a disponibilidade oua aposentadoria compulsórias do Juiz podemocorrer, por interesse público, desde que fun-dadas em decisão do correspondente Tribu-nal, pelo voto de 2/3 de seus membros, asse-gurada ampla defesa ao Magistrado;

irredutibilidade de vencimentos, que con-siste na proteção da remuneração do Ma-gistrado contra reduções impostas a qual-quer título, que resultem na fragilização daprópria independência do Juiz.

As garantias negativas (proibições) sãoas seguintes:

de exercer outro cargo ou função, ainda queem disponibilidade, salvo um cargo ou umafunção de professor;

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de receber, a qualquer título ou pretexto, cus-tas ou participação em processo (a vedação, nocaso, é de o Juiz receber dinheiro, a qual-quer título, que provenha de ou se justifiquecomo pagamento de despesas processuais,bem assim que envolva algum tipo de paga-mento relacionado a honorários devidos emrazão do processo);

de dedicar-se a atividade político-partidária(vedação que se refere à impossibilidade deo Magistrado ter filiação partidária, ou deser militante político-partidário). Compre-ende-se a vedação, tendo em vista que, noBrasil, não há nada mais vulnerável à inde-pendência do Juiz do que sua vinculação aalguma corrente político-partidária.

2.1.7. Princípios constitucionaisrelativos à Magistratura

Além das prerrogativas e das garantiasconstitucionais, a Magistratura obedece aprincípios funcionais, também asseguradosna Constituição Federal (art.93). Esses prin-cípios formam a base do Estatuto da Magis-tratura, que é uma lei, prevista naquele dis-positivo constitucional (art. 93), de iniciati-va do Supremo Tribunal Federal. Em verda-de, tal lei ainda é um projeto (Projeto de LeiComplementar nº 144, de 1992), que está tra-mitando na Câmara dos Deputados há 5anos portanto, sem qualquer previsão deprazo para sua aprovação. Este consultorestá informado de que a tramitação do refe-rido Projeto de Lei se encontra paralisada,porque o Deputado-Relator da matéria es-taria na expectativa de uma definição dosrumos da reforma do Judiciário, para que oEstatuto não viesse a ser aprovado anterior-mente a tal reforma e, nesse caso, em even-tual desarmonia com aqueles rumos. Tudoindica que, na ausência de uma concretamanifestação de interesse do Supremo Tri-bunal Federal para uma tramitação rápidada matéria, o Projeto de Lei continuará na-quele compasso de espera ainda por bas-tante tempo.

Entre esses princípios (os quais incluemo de ingresso na carreira mediante concur-

so público, já referido acima, quando tra-tou-se do tema do ingresso na Magistratu-ra), devem ser mencionados os seguintes:

preparação e aperfeiçoamento de magistra-dos, por meio de cursos oficiais, como requisitopara ingresso e promoção na carreira (art. 93,inciso IV). Trata-se de um princípio consti-tucional que tende a induzir a uma cíclicaatualização técnica e metodológica dosMagistrados. Sua implementação far-se-ápela já existente, ampla e bem sucedida redede Escolas de Magistratura, em nível da Jus-tiça Estadual e Federal. A propósito, veja-seo programa de aperfeiçoamento de recursoshumanos, especificamente o Projeto Sistemade Ensino Judicial, dentro dos Projetos doSuperior Tribunal de Justiça para a JustiçaFederal, apresentado no item 4.2.l.2 abaixo;

os vencimentos dos magistrados serão fixa-dos com diferença não superior a 10% de umapara outra das categorias da carreira. O limite éo valor dos vencimentos de Ministro do Su-premo Tribunal Federal (art. 93, inciso V);

a aposentadoria do Magistrado é com pro-ventos integrais, sendo sempre compulsória,por invalidez ou aos 70 anos de idade, efacultativa, aos 30 anos de serviço, após 5anos de exercício efetivo na judicatura(art.93, inciso VI);

todos os julgamentos dos órgãos do PoderJudiciário serão públicos e fundamentadas todasas decisões, sob pena de sua nulidade. Em cir-cunstâncias excepcionais, a lei pode limitara presença, em alguns atos judiciais, exclu-sivamente às partes e seus advogados, ousomente a estes, quando para isso houverinteresse público exigível.

2.1.8. O Princípio da autonomiaadministrativa e financeira

Os princípios acima elencados referem-se à Magistratura, considerada, porém, naperspectiva de sua menor unidade orgâni-ca, que é o Juiz. Por outras palavras, são prin-cípios inerentes à carreira e à própria ativi-dade judicante.

Todavia, o princípio mais importante,que informa não a carreira em si, mas o pró-

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prio Poder Judiciário brasileiro hoje, enquan-to Poder Estatal, e toda a sua estrutura orga-nizacional (e que se trata de uma novidadesurgida com a Constituição de 1988) é o daautonomia administrativa e financeira, assegu-rada no art. 99 do texto constitucional.

Essa forma de autonomia, enquanto prin-cípio constitucional, foi uma conquista ob-tida na atual Constituição, tanto para o Po-der Judiciário, quanto para o Poder Legisla-tivo. É que, sob a ordem constitucional ante-rior, esses dois Poderes só dispunham deum certo grau de autonomia administrati-va. Em matéria financeira, eles eram total-mente dependentes do Poder Executivo. In-clusive, quando da elaboração e envio daspropostas orçamentárias anuais, o Gover-no podia (ou fazia) confinar as dotaçõespara aqueles Poderes ao limite resultante dadedução dos cortes que decidisse efetuar.

Hoje, para a Câmara dos Deputados epara o Senado Federal (Casas Legislativasque, quando funcionam reunidas, formamo Congresso Nacional), há normas consti-tucionais asseguradoras da autonomia ad-ministrativa e financeira de ambas e, por-tanto, do Poder Legislativo da União. Sãoelas as disposições constantes dos arts. 51,inciso IV, e 52, inciso XIII, da ConstituiçãoFederal, ambas de igual teor normativo, nosseguintes termos:

“Compete privativamente... (à Câmarados Deputados e ao Senado Federal)... dis-por sobre sua organização, funcionamento,polícia, criação, transformação ou extinçãodos cargos, empregos e funções de seus ser-viços e fixação da respectiva remuneração,observados os parâmetros estabelecidos nalei de diretrizes orçamentárias”.

Nada mais correto, lógico e justo que oPoder incumbido de fazer e aprovar as leispossa dispor (palavra que significa, nessecontexto, a competência para estabelecernormas jurídicas) sobre toda a matéria pre-vista no dispositivo acima transcrito, de in-teresse interno do próprio Poder Legislati-vo. A “lei”, no caso, não é uma lei ordinária(expressão essa que designa a modalidade

mais comum, típica e abrangente de elabo-ração de norma jurídica do processo legis-lativo brasileiro), mas uma resolução ou umdecreto legislativo, dependendo do assuntodisciplinado. O que se quer chamar a aten-ção aqui é o fato de que, sob a égide da or-dem constitucional anterior, a maior parteda matéria, agora de competência privativadas Casas do Congresso Nacional, era re-servada à iniciativa exclusiva do Presiden-te da República. Isso significava que o Go-verno de então dispunha da prerrogativade tomar a iniciativa, quando quisesse, e aoCongresso só cabia discutir e aprovar amatéria, que era – e continua sendo hoje –de seu próprio interesse institucional e fun-cional. Por exemplo, a fixação da remunera-ção dos cargos, empregos e funções de seuspróprios serviços era matéria totalmentealheia à sua competência, na época, de ini-ciar e concluir, internamente, o respectivo pro-cesso legislativo, como ocorre atualmente.

No caso do Poder Judiciário, o princípioda autonomia administrativa e financeiraestá previsto de forma muito diferente e apre-senta características distintas.

O mencionado art. 99 da ConstituiçãoFederal estabelece, tão-somente, que “aoPoder Judiciário é assegurada autonomia admi-nistrativa e financeira”. Ponto e pronto, nãodiz mais nada.

É necessário extrair o verdadeiro conteú-do jurídico dessa norma. Por outras pala-vras, a redação do dispositivo não permiteque se conheça, de sua simples leitura, oslimites dessa autonomia e do seu legítimo epossível exercício. Do ponto de vista emi-nentemente técnico, seguramente esse é umdos temas mais fascinantes e desafiadoresao intérprete da Constituição de 1988. E nãose trata de elucubração de interesse apenasteórico. Há um enorme interesse prático nadescoberta e na fixação do entendimentocorreto dessa norma. Interesse prático, porexemplo, de saber qual a verdadeira dimen-são da autonomia do Poder Judiciário nointer-relacionamento com os demais Pode-res e nas relações diretas que ele estabelece,

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ou pode vir a estabelecer, com instituições,órgãos e entidades nacionais, estrangeiras,ou internacionais, públicas ou privadas.

2.1.8.1. O princípio da autonomia adminis-trativa e financeira do Poder Judiciário deveser concebido como algo que realça a prerro-gativa de independência desse Poder.

O Ministro José Néri da SILVEIRA, mem-bro do Supremo Tribunal Federal, é um dosjuristas que mais – e melhor – se tem mani-festado sobre o assunto. No I Fórum Nacio-nal de Debates sobre o Poder Judiciário, rea-lizado de 11 a 13 de junho de 1997, em Bra-sília, promovido pelo Superior Tribunal deJustiça e pelo Conselho da Justiça Federal13,o citado Ministro, tendo participado de umdos painéis, salientou que a autonomia ad-ministrativa não significa, apenas, o exercí-cio de um conjunto de atribuições tipica-mente administrativas. Ela significa, bemalém disso, a outorga constitucional, ao Po-der Judiciário, da competência para plane-jar e dispor a respeito de seus serviços, desua organização e de seus interesses pró-prios. Disse mais, S. Exa., que essa autono-mia não é dada a cada um e a todos os Tri-bunais do País, atomisticamente considera-dos. Ela é dada ao Poder Judiciário nacio-nalmente integrado num sistema orgânico14.

Esse eminente jurista e Ministro da maisAlta Corte de Justiça no Brasil, ao lembrarque o Supremo Tribunal Federal, em recen-tes decisões, conceituou o princípio da au-tonomia como sendo uma regra de autogo-verno do Poder Judiciário, entende que tal prin-cípio tem abrangência conceitual aindamaior. Diz ele:

“Cumprindo ao Judiciário, en-quanto Poder Político do Estado, comexclusividade, a execução do serviçopúblico de administração da Justiça,importa entender que a Constituição,ao lhe conferir autonomia administra-tiva e financeira, quis assegurar-lhecompetência não só para pensar e pla-nejar as estruturas mais convenientes,quais meios, à execução do fim, mas,também, para propor, quando a tanto

necessário, aos outros Poderes, as pro-vidências que considere indispensá-veis, em ordem a dar-se prestação ju-risdicional, de maneira mais eficientee pronta, assegurando o acesso de to-dos à Justiça. Distintos os planos daatividade jurisdicional e da atividadeadministrativa, no âmbito do Judiciá-rio, é certo que a hierarquia dos grausda atividade jurisdicional ‘nada maistraduz do que uma competência dederrogação e nunca uma competên-cia de mando da instância superiorsobre a inferior’, na lição dos proces-sualistas, resguardando-se, dessemodo, a independência jurídica e fun-cional dos magistrados e tribunaisentre si. Não menos exato é, entretan-to, que a atividade administrativa, noâmbito do Poder Judiciário, na medi-da em que se manifesta como atos deadministração, há de conceber-senuma perspectiva diferente, tornandoviável, inclusive, um amplo plano deaperfeiçoamento do Poder Judiciáriobrasileiro, em suas dimensões nacio-nal e estadual. É neste ponto que aunidade do Poder Judiciário há dediscutir-se, para que os mecanismosde sua atuação a proclamem, de ma-neira afirmativa, evitando-se que apluralidade das autonomias o torneirreconhecível, sem uma fisionomianacional, que o revele e o projete noconcerto das instituições básicas daNação. Essa unidade pressupõe umespírito comum, na Justiça da União edos Estados, a informar a ação do Po-der Judiciário, como um todo, mode-lada em valores marcantes de seu agir,que o identifiquem, perante a socie-dade, em todos os recantos do imensoterritório nacional.” 15 .

A linguagem elegante, polida e cautelo-sa do Ministro não esconde a mensagemobjetiva de seu entendimento sobre o signi-ficado daquele princípio e de como o pró-prio Judiciário deve colocá-lo em prática. Os

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pontos essenciais de seu entendimento se-riam os seguintes: l) que só ao Judiciário cabepensar, planejar, executar e propor, aos ou-tros Poderes (“quando a tanto necessário”),medidas que impliquem “prestação jurisdi-cional mais eficiente e pronta, assegurandoo acesso de todos à Justiça”, ou seja, medidasque se inserem no âmbito do fortalecimento ins-titucional e da modernização operacional do Ju-diciário, vale dizer, daquilo que atenderia aosobjetivos primordiais de uma reforma dessePoder; 2) que a atividade administrativa noJudiciário deve ser vista, não apenas comoa prática constante e permanente de atos deadministração, mas, sobretudo, como projetode aperfeiçoamento desse Poder, nos planos na-cional e estadual; 3) que “a pluralidade dasautonomias” ceda lugar à unidade do Po-der Judiciário, de modo a prevalecer, no con-texto das medidas reformistas ou reforma-doras, “UM ESPÍRITO COMUM NA JUSTIÇA DA UNIÃO

E DOS ESTADOS”, modelando uma fisionomia na-cional desse Poder.

No texto mais recente16, o Ministro Nérida SILVEIRA é tachativo quanto ao (seu)entendimento do qual resulta maior ampli-tude exegética do princípio da autonomia,agora claramente inter-relacionado à pro-blemática da reforma do Judiciário: “Naconcepção de projetos que mais convenhamà administração da justiça ao povo, mani-festa-se, por igual, essa autonomia, insus-cetível de ser substituída por critérios ouplanos outros do Poder Executivo. O que édo peculiar interesse do Poder Judiciário, di-lo-á, ele próprio, por intermédio de seus ór-gãos competentes, colimando as iniciativasindispensáveis junto aos outros Poderes”.

Igualmente nesse mesmo texto mais atua-lizado, o Ministro esclarece sobre o que se-ria um possível melhor caminho para che-gar-se à necessária unidade institucional doJudiciário na “pluralidade de autonomias”.Diz ele: “Situado como instância de super-posição, em relação a todas as jurisdiçõesdo País, em escala maior ou menor, no queconcerne à atividade jurisdicional, justifi-ca-se, também, participe (o Supremo Tribu-

nal Federal), de maneira valiosa, no debatedos problemas administrativos que respei-tam à realidade judiciária da Nação e em-preste seu concurso no encaminhamento,perante os fóruns mais altos dos outros Po-deres, das soluções devidas, como órgão decúpula do Judiciário. Essa participação doSupremo Tribunal Federal há de fazer-semais efetiva, no exame conjunto com os de-mais órgãos do Poder Judiciário das ques-tões que lhe forem pertinentes, ao ensejo dofuncionamento do Conselho Nacional de Ad-ministração da Justiça, cuja criação está pro-posta no Projeto do Estatuto da Magistratu-ra Nacional, em tramitação no CongressoNacional, e elaborado com a contribuiçãodos Tribunais do País, onde terão voz e votorepresentantes de todos os ramos do PoderJudiciário”17 (sobre o Estatuto da Magistra-tura e sua tramitação no Congresso Nacio-nal, ver o item 2. l .7 acima).

2.1.8.2. Ressaltando a interpretação doSupremo Tribunal Federal dada ao art. 99, §2º, inciso I, da Constituição Federal, numadecisão proferida em sessão administrativade 2 de agosto de 1989, o Ministro Antoniode Pádua RIBEIRO, do Superior Tribunalde Justiça, observa que, com tal decisão, “... aSuprema Corte sepultou embaraços opos-tos por órgãos do Executivo, encarregadosda elaboração do projeto de lei orçamentá-ria, que pretendiam interferir nas propostasencaminhadas pelos Tribunais competen-tes ao Presidente da República”. Dentro des-sa linha de interpretação extensiva e maxi-mamente ampliada do princípio da auto-nomia do Judiciário, o Professor da Uni-versidade Federal de Minas Gerais e Juiz Fe-deral aposentado, Sacha Calmon NavarroCOELHO, quando examina o teor do § 2ºdo art. 99 da Constituição Federal, que tratada elaboração das propostas orçamentárias,dentro dos limites da Lei de Diretrizes Or-çamentárias, afirma: “É meu entendimentoque a proposta orçamentária do Judiciário,obedecida a LDO, não pode ser diminuídapelo Legislativo nem se submete à sançãoou veto do Presidente da República; caso

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contrário inexistirá autonomia financeira,e, em corolário, autonomia administrativa epolítica. Se o Legislativo ou o Executivo pu-derem regrar as finanças do Judiciário nãohá falar em Autonomia nem em Indepen-dência”18.

2.1.8.3. Há vozes mais realistas (ou pes-simistas), como, por exemplo, a do entãoDesembargador do Tribunal de Justiça doEstado do Rio de Janeiro, hoje Ministro doSuperior Tribunal de Justiça, Carlos Alber-to Menezes DIREITO, que assim se manifes-ta: “Para que a autonomia do Poder Judiciá-rio passe do discurso à realidade o únicocaminho possível, no quadro da prática bra-sileira da relação entre os poderes do esta-do, é a reserva constitucional de um percen-tual mínimo da receita, assegurando o mes-mo percentual para os créditos suplemen-tares e especiais. Com essa garantia cons-titucional da autonomia financeira, seráfactível pensar institucionalmente em inves-timentos maciços para a melhoria das condi-ções materiais de funcionamento da justiça”19.

Com igual entendimento (manifestadopor escrito ou não, antes ou após a publica-ção do texto acima transcrito), há um gran-de número de Magistrados incrédulos coma possibilidade de aplicação, digamos, maisautônoma ou independente, do princípio daautonomia do Judiciário pelo próprio Po-der Judiciário.

2.1.8.4. Acontece que só ao Judiciário cabeimpor a aplicabilidade da norma constitu-cional que assegura a autonomia. Esperarque os demais Poderes a reconheçam, es-pontaneamente, na extensão interpretativacorreta, corresponderia a auto-recuo dema-siado da linha demarcatória da independên-cia do Judiciário no espaço estatal entre osPoderes. Não vindo a prevalecer a opinião ea forma de conduta institucional propug-nada pelo Ministro Néri da Silveira, que,então, um dos tópicos da reforma do Judiciá-rio seja uma alteração constitucional queexplicite de forma inequívoca o verdadeiroalcance do princípio da autonomia admi-nistrativa e financeira. Porque, sem uma

autonomia que ampla e plenamente asse-gure a real independência do Judiciáriocomo um dos poderes políticos do Estado,não haverá reforma capaz de fortalecer emodernizar a atividade judicial no Brasil,de modo a torná-la mais eficiente, como emgeral se reclama.

2.2. Funções essenciais à Justiça

Para que se compreenda melhor o funcio-namento do Poder Judiciário no Brasil e opróprio fenômeno estatal do judiciarismo, énecessário saber em que consistem as Fun-ções Essenciais à Justiça e os agentes que asexecutam.

Neste trabalho far-se-á uma pequenaabordagem do assunto que, entretanto, estábem mais desenvolvido em outro texto des-te consultor para o BID20 .

A propósito, parece-nos conveniente re-produzir alguns poucos trechos do traba-lho deste consultor, acima referido, intitula-do “A Função das Procuradorias de Fazen-da no Brasil: problemas e soluções”.

2.2.1. Conceito

“... a Constituição de 1988, além de es-tabelecer as atribuições privativas do Po-der Judiciário, prevê, ainda,... Funções Es-senciais à Justiça (arts. 127 a 135), que nãosão desempenhadas pelo Poder Judiciário.

“Como se sabe, esse Poder não exerce a ju-risdição por iniciativa própria. Ele age por pro-vocação dos interessados. Estes são as pessoasfísicas e jurídicas, em geral, que submetemseus direitos e interesses ao pronunciamen-to judicial. A decisão dos juízes é dada noslimites do que pedem as partes. Portanto, oconflito de interesses – que é um dos requi-sitos para a existência de um processo judi-cial (relação jurídica processual) – se mani-festa no conteúdo do que as partes, formal-mente, expõem e pedem (em suas petições),contradizendo uma a outra, e que será re-solvido pela decisão do Juiz, dizendo qualo direito aplicável ao caso concreto e qualdas partes (autor ou réu) deve ter sua pre-tensão julgada procedente. Pode-se compre-

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ender, então, que as Funções Essenciais à Justiça– como as denomina a Constituição... – se resu-mem àquele conjunto de atribuições, cuja prática(ou exercício, melhor dizendo aqui) e respon-sabilidade é dos interessados em geral e que con-sistem, principalmente, em atos processuais eforenses, objetivando PEDIR (ou, tecnicamente fa-lando, POSTULAR) que o Poder Judiciário exerçasua função jurisdicional em face de uma concre-ta situação que envolva conflito de interesses, ouque envolva interesses, individuais e coletivos,que devem ser protegidos.

“Todavia, as partes não exercem essasatribuições de forma direta. A lei exige queelas (as partes) sejam representadas perantea Justiça, porque são atribuições técnicas,que precisam ser desempenhadas por pro-fissionais habilitados e autorizados a isso.E quem tem habilitação e autorização pro-fissionais é o advogado. Numa palavra, aadvocacia, em sentido amplo, é a atividade pro-fissional de postulação e defesa de direitos alheios,mediante representação.

“Dentro dessa perspectiva conceitual, aadvocacia pode ser privada ou pública. Pri-vada, quando a relação profissional entre oadvogado e seu representado é estritamenteparticular e de natureza contratual. Já a ad-vocacia pública consiste numa relação pro-fissional estatal e de natureza legal, valedizer: o Poder Público remunera o advoga-do que integra os seus quadros de servido-res, de forma permanente, para que ele exer-ça a representação judicial dos direitos pú-blicos e dos interesses do próprio PoderPúblico”21 (grifos no original).

2.2.2. Agentes que exercem as funçõesessenciais à Justiça

Convém prosseguir na transcrição deexcertos do trabalho referido nas notas bi-bliográficas 20 e 21 acima.

“Nos termos da Constituição Federal,tais Funções Essenciais à Justiça são exerci-das por 4 (quatro) grandes setores, a saber:O Ministério Público, a Advocacia-Geral daUnião, a Defensoria Pública e a Advocacia. Ostrês primeiros setores (agentes) constituem for-

mas institucionalizadas (publicamente or-ganizadas) de advocacia pública. O outro, con-siste na advocacia de caráter privado.

É bom frisar que as disposições da Cons-tituição Federal relativas às mencionadasFunções se referem, precipuamente, ao âmbito decompetência da União”22 (grifos no original).

Em resumo, eis o perfil básico e o que faz,essencialmente, cada um desses agentes:

2.2.2.1. O Ministério Público

“Trata-se de instituição definida, cons-titucionalmente, como sendo essencial à fun-ção jurisdicional do Estado. Isso significa queo Poder Judiciário, único responsável peloexercício dessa função estatal (de dizer odireito aplicável no caso concreto, confor-me já visto), não prescinde da participaçãodo Ministério Público, como coadjuvante es-sencial no desempenho dessa função, sempre quea matéria subjudice, nos termos definidos emlei, assim o exigir.

As atribuições fundamentais do Minis-tério Público consistem na defesa da ordemjurídica (quando, para isso, ele funciona nosprocessos judiciais como fiscal da lei) e na defe-sa dos interesses sociais e individuais indispo-níveis (quando, para isso, ele age em nome ecomo representante da sociedade perante o pró-prio Estado)”23 (grifos no original).

Essas atribuições fundamentais se des-dobram no exercício das funções institucio-nais (essenciais à Justiça) do Ministério Pú-blico, que a própria Constituição estabele-ce, entre as quais vale destacar que é de suacompetência privativa promover a ação pe-nal pública.

2.2.2.2. A Advocacia do Estado

No âmbito da União, a advocacia do es-tado é desempenhada pela Advocacia-Ge-ral da União (AGU).

Cabe à AGU representar a União, ju-dicial e extrajudicialmente, bem assim pres-tar consultoria e assessoramento jurídicosao Poder Executivo Federal. Isso significa,portanto, que à AGU cabe exercer a defesajudicial da União, como autora ou ré, pe-

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rante Juízes e Tribunais (representação ju-dicial), ou praticar e atuar (em) atos não-judiciais, em nome da União (representaçãoextrajudicial).

No exercício dessa representação, prin-cipalmente a judicial, consiste a Função Es-sencial à Justiça, desempenhada pelaAGU”.

2.2.2.3. A Advocacia e aDefensoria Pública

Vamos tratar aqui, em conjunto, dessesdois outros agentes que exercem FunçõesEssenciais à Justiça, exatamente como o fi-zemos no já referido texto “A Função dasProcuradorias de Fazenda no Brasil: pro-blemas e soluções”, porque parece que aexposição, como lá se encontra, fica maisclara para os que não conhecem muito bemo sistema brasileiro de representação judi-cial, sobretudo se profissionais de áreas es-tranhas ao Direito. Igualmente, vamos re-produzir trechos daquele paper, como o fi-zemos acima.

“A Função Essencial à Justiça, desem-penhada pelos advogados, de acordo com aConstituição, é a de serem eles indispensá-veis à administração da justiça. Quer isto sig-nificar que a prestação jurisdicional (peloPoder Judiciário) não ocorre sem a presençaprocessual de advogado, que, legítima e in-dispensavelmente, postula o direito de quemele representa. Por outras palavras, a Advo-cacia é essencial à legitimidade e à validade doprocesso judicial, que é (o processo) o veículopelo qual se manifesta a prestação jurisdicio-nal e é o instrumento com o qual se admi-nistra (isto é: ministra) a justiça.

“A advocacia no sentido acima expostose exerce como atividade, embora indispen-sável e necessária, tipicamente privada. As-sim, se é certo que qualquer pessoa, ao in-gressar em Juízo para postular direitos, deveestar representada por advogado, também écerto que essa mesma pessoa tem toda a li-berdade de escolher o seu advogado e con-tratar seus serviços numa relação contra-tual eminentemente privada.

“Quando os que necessitarem de presta-ção jurisdicional comprovarem insuficiên-cia de recursos para contratar advogado, aConstituição assegura (art. 5º, inciso LXXIV)que o Estado (Poder Público) prestará assis-tência jurídica integral e gratuita a eles. Isto sedeve, precisamente, ao imperativo constitu-cional vigente, segundo o qual a Advocacia(em sentido amplo, representação e postu-lação de direitos) é indispensável à admi-nistração da Justiça.

“Só que, no caso da advocacia gratuitaoferecida pelo Estado, chama-se ela Defen-soria Pública, definida pela Constituiçãocomo sendo uma ‘instituição essencial à fun-ção jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe aorientação e a defesa, em todos os graus, dos ne-cessitados’ (art. 134). Trata-se, portanto, daadvocacia como atividade pública organizada,exclusivamente, para esse fim”24 (grifos nooriginal).

2.2.2.4 Para maiores informações sobrea organização, o funcionamento e as com-petências desses agentes, consulte-se, entreoutras fontes, o já tantas vezes referido pa-per deste consultor sobre as Procuradoriasde Fazenda no Brasil.

III – Análise da situação atual

3.1. Considerações iniciais

A título destas considerações iniciais,vamos transcrever, ainda uma vez, parte doque se encontra naquele outro (antes referi-do) paper do consultor, feito para a DivisãoFiscal do Banco.

“No Brasil de hoje, após a Constituiçãode 1988 (chamada, na solenidade de suapromulgação, pelo Presidente da Assem-bléia Nacional Constituinte, de ‘Constitui-ção Cidadã’), fortaleceu-se o processo insti-tucional de formação da consciência dos‘direitos da cidadania’. Tais direitos abran-gem um conjunto de prerrogativas jurídicase respectivos instrumentos processuais deque as pessoas em geral podem desfrutar,pelo fato de estarem inseridas no contexto

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das inúmeras relações de ordem social, eco-nômica, de trabalho, de consumo, etc. Deoutra parte, a duradoura experiência de au-toritarismo político no País motivou o atualaperfeiçoamento dos mecanismos institucio-nais e processuais de controle da constitu-cionalidade das normas jurídicas, bem as-sim da legalidade dos atos administrativos.Essa nova realidade contribuiu para o sur-gimento do hábito da intensa procura aoJudiciário e fez aumentar, enormemente, otrabalho dos Juízes e dos Tribunais.

Não apenas isso, mas, igualmente, o lon-go período de instabilidade econômica,acompanhado da conseqüente instabilida-de jurídico-normativa, a qual determinouuma verdadeira corrida por demanda dedireitos, várias vezes desrespeitados nesseperíodo. Desrespeitados, porque o PoderExecutivo legislava em profusão, nem sem-pre com a necessária cautela de observar oslimites constitucionais relativos aos direi-tos e garantias individuais e coletivos. Re-sultado: constantemente violava tais direi-tos e garantias, ensejando que os prejudica-dos recorressem ao pronunciamento dosJuízes e Tribunais. Recorde-se que, nos últi-mos 10 anos, inúmeros planos econômicosforam adotados pelos sucessivos governos,caracterizando-se uma situação de conjun-tura econômica extremamente curta, quan-do a legislação era constantemente altera-da, gerando não raros conflitos entre nor-mas legais e entre estas e a Constituição.Tudo isso desabou sobre o Judiciário. Parase ter uma idéia parcial, mas sintomática,desse volume de demandas, eis um dado:em recente pesquisa realizada junto a 600(seiscentos) empresários no Brasil, 72%responderam que recorrem regularmente aserviços de advocacia litigiosa (cf. BolívarLAMOUNIER, As empresas e o Judiciário, 30out. 1996, p. A-3). Esse nível de demanda devereferir-se apenas a ações judiciais contra atosnormativos do(s) Governo(s) que tenha(m),eventualmente, prejudicado direitos dessasempresas. Portanto, aí não deve estar sendoconsiderado o nível de demanda em razão

de inadimplências contratuais, no âmbitoestrito das relações de direito privado”25 (gri-fos no texto original deste consultor).

A realidade é que o Poder Judiciário nãoestá adequadamente estruturado para aten-der ao crescimento, nesse nível gigantesco,da demanda por pronunciamento judicialem todos os seus graus. Vejam-se, a propó-sito, os números apresentados nos itens2.1.3.4, 2.1.3.4.1 e 2.1.3.4.2 acima.

Com base naqueles números, pudemosverificar a ocorrência de um significativodéficit acumulado na prestação jurisdicio-nal, em relação ao que formulamos um exer-cício aritmético em busca de ilustrar umaidéia para a solução do problema, pela viaexclusiva da ocupação dos claros hoje exis-tentes nos quadros da Magistratura de 1ºgrau (Federal e Estadual), além de termosprojetado, de forma muito elementar, umaexpansão desses mesmos quadros até umlimite mínimo que permita a eliminaçãodaquele déficit.

Mas, as deficiências organizacionais doJudiciário não se localizam só – e principal-mente – na insuficiência quantitativa de suasuperestrutura, senão que, em grande par-te, na infra-estrutura burocrática dos servi-ços judiciários em geral, também extrema-mente carentes em todo o sentido, bem as-sim na desatualização dos recursos tecno-lógicos utilizados.

A situação atual desses serviços de apoioà atividade judicial – serviços esses que in-tegram, no seu conjunto, a AdministraçãoJudiciária – deve constituir um capitulo àparte num amplo diagnóstico que venha aser realizado sobre o assunto e está a mere-cer um estudo aprofundado dentro dos te-mas ligados à reforma do Judiciário. Outravez é de lamentar-se o prazo exíguo de rea-lização deste trabalho, quando essa ques-tão poderia ser exaustivamente examinada.

No que concerne a esses dois problemas –insuficiências e deficiências, em geral, nosquadros de cargos da Magistratura e naAdministração Judiciária –, cabe dizer queeles têm sido vistos como uma primeira cau-

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sa do déficit da prestação jurisdicional e da len-tidão no andamento do processo judicial.

“Uma segunda causa que costuma serapontada... refere-se ao sistema processualbrasileiro, o qual abrangeria ritos e procedi-mentos que propiciariam mais os decursosextensivos do processo do que os sumários(ou rápidos). Na verdade, o sistema proces-sual brasileiro tem virtudes e defeitos comoqualquer outro. Em termos de processo ci-vil, nosso Código contempla dois tipos deprocedimentos básicos: o ordinário (maislento) e o sumaríssimo (mais rápido). Alémdisso, prevê a existência de tipos de proces-sos especiais, como é o caso do processo deexecução (de curso rápido) e do processocautelar (onde se tem a possibilidade damedida provisória, que consiste numa pro-vidência adotada pelo Juiz, de caráter limi-nar e urgente, antes do julgamento da cau-sa, quando houver o risco de grave lesão aodireito de quem a requerer). Logo, o nossolegislador processual procurou, teoricamen-te, abranger as situações que recomendammaior ou menor rapidez na discussão judi-cial da matéria, prevendo para os respecti-vos casos as variáveis processuais cabíveis.Na realidade, uma lei processual não é feitapara atender à conveniência de rapidez quea parte nela (rapidez) interessada deseja.Uma lei processual é feita para que as par-tes litigantes tenham todas as oportunida-des de alegar e provar suas versões da ver-dade e para que o julgador possa formar oseu juízo decisório com a segurança neces-sária de estar realizando o máximo de justi-ça de que seja capaz. Portanto, o sistemaprocessual, em si e em princípio, não é acausa da lentidão do/no andamento do pro-cesso. No máximo, ele poderia ser encaradocomo uma espécie de concausa, quanto adois aspectos, dentre alguns outros possí-veis: um deles seria o esquema de recursoshoje adotado, que propicia reiterar o reexa-me de decisões na mesma instância, sobre-tudo nos Tribunais; o outro aspecto diriarespeito à necessidade de maior limitaçãodas hipóteses em que um processo pode

chegar até o Supremo Tribunal Federal porconta de a demanda envolver matéria cons-titucional. Logo, o nosso sistema precisa seraperfeiçoado naquilo que interessa à obtenção depossível maior agilidade no processo...

“Alguns apontam os advogados, queconseguem, habilmente, extenuar a relaçãoprocessual, como os responsáveis por essalentidão. É outra idéia equivocada. Os ad-vogados não são culpados, porque estãocumprindo o seu papel de esgotar todos osrecursos judiciais cabíveis na defesa dosinteresses dos seus clientes.

“Também o próprio Executivo é algumasvezes apresentado como um dos principaisresponsáveis pela crise do Poder Judiciário.Na edição de 3-12-96, o jornal O Estado deSão Paulo revelou que ‘dos 154.176 proces-sos distribuídos no Supremo Tribunal Fe-deral (STF) entre janeiro de 1990 e novem-bro deste ano, 90,2% são resultado de recur-sos extraordinários e agravos apresentadospela União e pelo Instituto Nacional de Se-guro (sic) Social – INSS. ‘Maior cliente’ doSupremo, o Executivo pode ser consideradoum dos maiores responsáveis pela crise doJudiciário, segundo o presidente do STF...Tais processos chegam ao Supremo paraatender a táticas protelatórias, afirma’”26

(grifos no original deste consultor).Essa crítica teria sido feita pelo então Pre-

sidente do STF, Ministro Sepúlveda Pertence,que, com sua reconhecida competência pro-fissional e sólida formação intelectual, no-tabilizou sua gestão naquele órgão por ini-ciativas e esforços voltados ao fortaleci-mento do Poder Judiciário. No caso especí-fico dessa crítica, pode até ocorrer que asprovidências protelatórias sejam uma das‘táticas’ adotadas pelos advogados incumbi-dos da defesa da União. Entretanto, a legisla-ção obriga que essa defesa esgote todos osmeios e recursos processuais, sob o princípiode que o interesse público é indisponível, valedizer: o advogado do Estado não pode, porseu exclusivo arbítrio, deixar de recorrer sem-pre que possível. Logo, o que se teria a mudaré a lei que estabelece essa obrigatoriedade.

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Essas considerações iniciais têm o obje-tivo de mostrar, enfim, que são várias aspossíveis causas do atual quadro de pro-blemas que o Judiciário enfrenta. A rigor,todas elas, em alguma medida, têm sua par-cela de responsabilidade nesse quadro.

3.2. Aspectos da “crise do Judiciário”

3.2.l. O que tem sido chamado de “crisedo Judiciário” corresponde a um quadro deproblemas, os quais poderiam ser divididosem algumas partes, todas “críticas”: crisede eficiência, crise de operatividade, crisepolítico-institucional-e-interinstitucional,crise de identidade, etc.

Os sintomas principais dessa crise po-dem ser sinalizados nos pontos hoje consi-derados mais negativos da atividade judi-ciária, já mencionados antes. São eles: a len-tidão no andamento do processo judicial; odéficit cumulativo da prestação jurisdicio-nal em todos os níveis, principalmente no1º grau; o acesso à Justiça mais restrito, maisdesmotivado e mais desinteressado, por di-ferentes circunstâncias.

Quanto à lentidão no andamento do pro-cesso judicial, as razões costumeiramenteapontadas estão relacionadas ao excessivoinstrumental processualístico disponível,ao formalismo das práticas processuais eforenses, bem assim aos entraves inerentesà burocracia (administração) judiciária, àcarência ou insuficiência de recursos huma-nos na atividade-fim (judicatura) e na ativi-dade-meio (serviços judiciários).

Quanto ao déficit cumulativo da presta-ção jurisdicional, suas causas são atribuí-das, basicamente, à crescente insuficiênciado número de Juízes diante do crescentevolume da demanda judicial. Os númerosantes apresentados e as situações a que elescorrespondem (já analisadas também nestetexto) são suficientemente ilustrativos des-se déficit.

Quanto aos problemas de acesso à Justi-ça, eles se ligam à atual incapacidade doPoder Judiciário de dar respostas rápidasàs controvérsias surgidas em todos os seg-

mentos da sociedade. Na medida em que a jus-tiça se torna um “bem” cada vez mais oneroso e,portanto, inacessível para grande parte da po-pulação, mais e mais a “questão do judiciário”se vai transformando também em “problema so-cial”. Na medida em que ela igualmente setorne um “bem” cuja entrega é a perder de vis-ta, gera um enorme desinteresse por partedos que podem arcar com seu custo finan-ceiro, mas não conseguem suportar o custode sua demora. Nesse caso, não se trata dasconseqüências de um problema social, po-rém de perda de credibilidade.

Tudo isso significa que a crise do PoderJudiciário no Brasil, hoje, se manifesta nosinúmeros problemas que classificaríamoscomo sendo de ordem estrutural-institucio-nal, estrutural-organizacional, operacional(incluindo recursos tecnológico-computaci-onais e recursos materiais em geral) e de re-cursos humanos.

Na absoluta insuficiência de tempo paraum exame em profundidade de todos essesproblemas, nas suas diferentes dimensões,vamos ao menos salientar aqui alguns en-foques crítico-analíticos, com o objetivo prag-mático de apenas insinuar as grandes dire-ções desses enfoques, que de qualquer ma-neira precisariam ser, eles próprios, tambémanalisados e avaliados criticamente.

Vislumbramos e registramos – para finsdeste paper – três principais direções dosenfoques crítico-analíticos. Dois desses en-foques têm origem interna corporis, sendo umdeles bem menos autocrítico e mais compro-metido com interesses da corporação judi-cante do que o outro. Nesse segundo enfo-que crítico, também se enquadram os mem-bros da Magistratura brasileira que estãoatualmente agrupados em duas associaçõesrepresentativas de tendências heterodoxas,uma delas a Associação dos Juízes do RioGrande do Sul, com a marca registrada deseu “direito alternativo”, e a Associação Juí-zes para a Democracia, surgida em São Pau-lo, em 199127. A terceira direção de enfoquecrítico a ser aqui registrada é de origem ex-terna à magistratura, caracterizando-se, so-

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bretudo e obviamente, por uma posição dis-tanciada dos interesses da respectivacorporação.

3.2.2. Já citado em outra passagem destetrabalho, o atual Ministro do Superior Tri-bunal de Justiça, Carlos Alberto de Mene-zes DIREITO, após assinalar que, particu-larmente na Justiça Estadual, ninguém hojedesconhece o atraso tecnológico da Justiça,em que se opera com uso limitado da infor-mática, em instalações físicas precárias e in-calculáveis deficiências de ordem material,situação essa que torna “pouco eficiente ofuncionamento...” e “... impede a dignidadedo processo judiciário, gerando uma pro-miscuidade insalubre, propícia a toda sortede fatores, pela indigência da austeridade,que se impõe aos que têm de dirimir confli-tos de interesses, sob o fogo cruzado dasmais acesas controvérsias... ”, afirma:

“O Judiciário não será melhor senão for melhor a organização nacio-nal como um todo. A eficácia da pres-tação jurisdicional está ligada direta-mente ao melhor padrão dos serviçosessenciais ao bem estar da pessoahumana, assim o de polícia, o de edu-cação, o de saúde, o de alimentação, ode habitação, e assim por diante. E,por sua vez, esse padrão mais qualifi-cado só será alcançado pela reformada organização nacional”28.

3.2.3. O “Projeto de Auto-Análise do Po-der Judiciário”29 que consubstancia pesqui-sa pioneira no Brasil, realizado, sob os aus-pícios do Tribunal de Justiça do Estado doRio de Janeiro, com o objetivo principal deinvestigar “... a duração real dos processosjudiciais, as proporções do fato de que exis-tem processos demorados, as possíveis áre-as de retardamento, suas manifestações esuas causas...”30, chegou às seguintes con-clusões mais relevantes31:

1) “que os processos demoram, em geral,muito menos do que aponta a voz corrente. Nãoque eles tenham sido completados com arapidez desejável e até prevista nas leis. Dequalquer maneira, porém, o fato de que cer-

ca de 72% dos feitos sumaríssimos e 67%dos feitos ordinários receberam sentença emmenos de um ano é indicativo desse fato”;

2) “no que tange à duração total dos feitos naJustiça estadual, constata-se que a maioria delesficou no prazo de dois anos (61,1%) para os su-maríssimos e (63,5%) para os ordinários. O to-tal apurado também parece apontar umarapidez maior do que aquela geralmente afir-mada, mas o de dois anos é seguramentelongo para o normal processamento damaioria das ações. E curioso notar que o tem-po médio da duração total dos processossumaríssimos foi apenas 10% menor que odos ordinários (705 contra 757 dias). A cons-tatação acentua a observação de que o pro-cedimento sumaríssimo foi ineficaz, nascondições em que foi aplicado, para acele-rar o julgamento das ações”;

3) “das deficiências materiais e de recursoshumanos do Judiciário do Estado resulta, cer-tamente, como principal fator, o retardamentodos feitos judiciais”;

4) “os dados levantados apontam... pra-xis tradicionais como causa da lentidão dealguns atos. Essas... práticas não estão pre-vistas na lei processual, vilão habitual dasdeclarações de observadores com poucodomínio da realidade. Na pesquisa, em verda-de, não se verificou influência negativa das nor-mas do Código de Processo Civil quanto à de-mora dos processos”;

5) “a ‘cobrança de preparos’... ” – esclare-ça-se que a palavra preparos, aí empregada,significa pagamentos a título de custas ju-diciais – “... antecipada em várias dessasoportunidades, além de irregular, é causadorada lentidão (essa é uma das práxis... )”;

6) entre os “pontos de estrangulamento”, asconclusões indicam, em primeiro lugar, a “...excessiva demora no cumprimento do mandatocitatório em mais de metade dos procedimentosordinários e quase metade dos procedimentossumaríssimos... ‘. Em segundo lugar, o muitolongo prazo na apresentação dos laudos perici-ais. A leitura dos dados levantados apontaoutros desses ‘estrangulamentos’, como oadiamento de audiências de instrução e jul-

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gamento (em 166 ou 19,8% dos procedimen-tos sumaríssimos e 54 ou 11,9% para os or-dinários). Uma grande parte desses adia-mentos decorre de pedido das partes ou deseus advogados, ou ainda, da falta de cita-ções e intimações. Os pedidos de adiamen-to, aliás, são freqüentemente tentativas deacordo, mascarando uma causa de lentidãonão imputável ao aparelho judicial. Aliás,coisa parecida ocorre no momento da cita-ção, quando o autor da ação susta, muitasdas vezes, a diligência. Isso mostra que para achamada morosidade da Justiça contribui, emgrande parte, a inércia das partes ou seus advo-gados ou interesses dos próprios litigantes que,amiúde, não desejam celeridade” [todos os gri-fos são deste texto].

3.2.4. A Associação dos Juízes Federais –AJUFE manifestou-se, recentemente, em edi-torial de seu Boletim Informativo32, sobrevárias questões que envolvem o atual mo-mento de crise do Judiciário. Eis alguns tre-chos do editorial:

“O Judiciário tem sofrido críticas,algumas infundadas, com o único in-tuito de desprestigiá-lo, assim comoao complexo universo do serviço pú-blico, e outras, corretas, a apontar assuas deficiências, sobejamente reco-nhecidas e que merecem a atenção ecolaboração do Governo, da socieda-de civil e do próprio Judiciário para asanação das mesmas, com vistas àimplementação de uma célere e eficien-te prestação jurisdicional”.

“... aspecto importante a afetar, ne-gativamente, a nossa Justiça é o fato deque as verbas destinadas ao Judiciário vêmsendo reduzidas, consideravelmente”.

“... na fixação das despesas noOrçamento Geral da União, de 1995,à Câmara dos Deputados foi reserva-do 0,1585% e ao Senado Federal0,2081%, o que totalizou 0,3666%.Entretanto, à Justiça Federal, de todoo Brasil, foi destinado 0,2899%, por-tanto menos recursos do que ao Con-gresso Nacional (sic). O Poder Judiciá-

rio brasileiro, como um todo, recebeudestinação de verba da ordem de 1%”.

3.2.5. Em trabalho recém-publicado, emque examina quatro dos principais pontosdos debates atuais sobre a reforma do Judi-ciário (a independência judicial, o controledo Judiciário, a legitimação da jurisdição, apolitização e responsabilidade do juiz), LuizFlávio GOMES, Juiz de Direito no Estado deSão Paulo33, entre as conclusões que apre-senta, formula as duas últimas nos seguin-tes termos34:

“...A Magistratura brasileira, técnico-burocrática, distancia-se do sistema consti-tucional e democrático contemporâneo nasua forma positivista-legalista de atuação(simples bouche de la loi), na inexistência deum órgão nacional de controle, assim comono não-enfrentamento definitivo de suasmazelas tradicionais (morosidade, corpora-tivismo, falta de transparência interna e ex-terna, focos de nepotismo, dificuldade deacesso à jurisdição, composição do STF, etc.)ou novas (ineficácia dos mecanismos decontrole das ‘lacunas’ legislativas, falta deestímulo ao aprimoramento técnico-cultu-ral do juiz, etc.);

... A Magistratura brasileira, caso o Pro-jeto de Reforma do Judiciário em curso naCâmara dos Deputados venha a ser apro-vado como está, experimentará o maior re-trocesso de sua História, desconsiderando-se os eclipses autoritários, porque nele secontempla o controle ‘externo’ do Judiciá-rio, as súmulas vinculantes, a avocatória e oincidente de constitucionalidade per saltam(ou by pass). Como se tudo isso representassepouco, ainda se relativiza a vitaliciedade,transformando-a em mera estabilidade“.

3.2.6. O Ministro Celso de MELLO, doSupremo Tribunal Federal, atualmente noexercício da Presidência dessa Corte Supre-ma, tem externado suas opiniões sobre to-das as questões que hoje envolvem o Judiciá-rio brasileiro, propugnando por uma am-pla discussão dessas questões, com submis-são ao crivo de um intrachoque decorrentedo livre exercício da autocrítica no âmbito

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da judicatura nacional, e sempre por umadiscussão aberta às críticas. Muitas dessasopiniões do Ministro Celso de MELLO po-dem ser consideradas como estando na con-tramão da corrente de pensamento hoje pre-valecente na Magistratura do País. Na aber-tura do já mencionado I Fórum de Debatesdo Poder Judiciário, realizado em junho des-te ano, em Brasília, no Superior Tribunal deJustiça, por exemplo, o Presidente do STFteve ocasião de manifestar-se sobre váriostemas polêmicos e assim o fez quanto a doisdeles (à questão do controle externo e à da sú-mula vinculante)35 , aqui destacados:

“... a Magistratura não pode anular-secomo poder político e nem deixar-se subju-gar pelos que pretendem impor-lhe o vín-culo da dominação institucional... Impõe-se, portanto, discutir a questão da fiscaliza-ção externa. Ainda que para rejeitá-la, comfundamento em suposta transgressão àscláusulas pétreas. Ou, então, para aperfei-çoá-la. O que não tem sentido é excluir, porantecipação, o exame dessa proposta, comose a Magistratura fosse uma instância depoder imune a críticas, infensa a erros ouinsuscetível de desvios ou abusos...

“Dentro desse contexto, torna-se neces-sário discutir a questão da súmula vincu-lante. Trata-se de proposta formulada como justo objetivo de superar a crise de funcio-nalidade que afeta, de maneira irracional, oaparelho judiciário, congestionado pelamultiplicidade de ações e de decisões judi-ciais divergentes.

“Entendo, no entanto – e sempre com omáximo respeito à posição dignamente sus-tentada por aqueles que pensam em sentidooposto –, que a reforma do Poder Judiciário,embora essencial e indispensável, não podeconduzir à criação de mecanismos que bus-quem, a partir de formulações interpretati-vas subordinantes, fixadas por órgãos quese situam na cúpula da estrutura judiciária,imobilizar o poder inovador da jurisprudên-cia, gerando, a partir de verdadeira herme-nêutica de submissão, uma grave interdi-ção ao direito de o magistrado refletir de

maneira crítica e de decidir em regime deliberdade segundo convicções fundadas emexegese criteriosa do sistema normativo ecom observância responsável dos limites fi-xados pelo ordenamento positivo...

“Entendo que a súmula – enquanto mé-todo de trabalho e instrumento veiculadorde mera proposição jurídica, destituída decaráter prescritivo e normativo – deve servalorizada processualmente, para que, dela,possam ser extraídas diversas conseqüên-cias de ordem formal, sem, contudo, jamaisinibir a livre atividade jurisdicional dos de-mais juízes e tribunais... ”

3.2.7. Cármem Lúcia Antunes ROCHA,Professora Titular de Direito Constitucionalda PUC/MG e Membro da Comissão de Es-tudos Constitucionais do Conselho Federalda Ordem dos Advogados do Brasil, vê as-sim a questão da “súmula vinculante” nocontexto da problemática do Judiciário bra-sileiro: “A ‘crise do Poder Judiciário’ temmuito pouco de atual. E a ninguém é dadopensar que ela começa e termina no ‘excessode serviço judicial’, conquanto esse seja umponto de inegável problema para a eficienteprestação da jurisdição.

“A adoção de ‘súmula vinculante’ rom-pe a tradição constitucional republicanabrasileira, princípios constitucionais atuaisbrasileiros, tolhe direitos dos cidadãos, com-promete o princípio da legitimidade demo-crática e o princípio da separação de pode-res, segundo o modelo adotado na Lei Fun-damental da República, afronta o princípioda independência do juiz, sem o qual o di-reito fundamental à jurisdição vê-se restrin-gido e não é dado como certo para a corre-ção de rumos na eficiente e tempestiva pres-tação jurisdicional que é buscada”36.

3.2.8. Um destacado sociólogo do direitoe jusfilósofo brasileiro da atualidade, o Pro-fessor José Eduardo FARIA37, tem amiúdemanifestado sua opinião sobre os grandesproblemas que afetam o Judiciário. Seu pen-samento se caracteriza por um elevado ri-gor científico e, evidentemente, por um totaldistanciamento da visão interna corporis da-

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queles problemas. Vamos destacar passa-gens de dois diferentes textos, dos mais re-centes, do referido Professor.

‘’Entre o paradigma normativista... e asestruturas organizacionais do Judiciário,há... uma interação sistêmica. Como é pos-sível mudar de paradigma sem uma altera-ção paralela nas anacrônicas engrenagensburocrático-administrativas dos tribunais?De modo inverso, como é possível moderni-zar tais engrenagens sem, ao mesmo tempo,reformar-se radicalmente a mentalidade damagistratura o que pressupõe um novo pa-radigma jurídico? A verdade é que, de umponto de vista estritamente sociológico, tan-to o paradigma normativista quanto a orga-nização judicial por ele influenciada já tive-ram sua época; ou seja eles se constituíramem resposta aos problemas e desafios típi-cos do Estado liberal e das sociedades esta-bilizadas, dotadas de uma efetiva unidadecultural... e, por conseguinte, de concepçõesrelativamente depuradas de direito, justiçae eqüidade. Nelas, o mercado competitivofunciona como mecanismo de integração, oscontratos são a forma institucional básicade formalização das relações sociais, a pro-dução legislativa do estado se expressa es-sencialmente sob a forma de normas de con-duta e, graças a um efetivo equilíbrio dospoderes, o Judiciário pode agir como umainstituição neutra, imparcial e acima de tudoreativa, ou seja, apenas quando devidamenteprovocado, levado – como tertius super par-tes – a dirimir litígios concretos entre partesclaramente definidas e com objetos muitobem delimitados (uma obrigação contratual,uma separação, um crime etc). No entanto,serão esse paradigma e essa organizaçãojudicial eficazes em sociedades fracamenteintegradas, com enormes desníveis cultu-rais, estigmatizadas pelos mais diversos‘dualismos estruturais’ e sujeitas a regimesde participação fortemente discriminativos?Sociedades que não podem ser vistas, inter-pretadas ou explicitadas como uma simplessoma de indivíduos, portanto regulávelcomo uma soma de contratos?”38.

Em outro texto, (O Judiciário após a globa-lização)39 o referido Professor da Universi-dade de São Paulo faz algumas importan-tes ponderações que, se, por um lado, po-dem causar perplexidades ante a perspecti-va absolutamente inusitada e pouco pensá-vel pelos que se têm debruçado sobre o as-sunto, por outro, são indiscutivelmente ins-tigantes em face de algumas nítidas percep-ções da realidade dos dias atuais. Eis aspassagens que selecionamos, com a preo-cupação de manter um fio condutor lógicodo contexto das ponderações ali feitas:

“... Por causa das pressões centrífugas dadesterritorialização da produção e da trans-nacionalização dos mercados, o Judiciário,ao menos sob a forma de uma estrutura for-temente hierarquizada, operativamente fe-chada, orientada por uma lógica legal-racional e obrigada a uma rígida e linearsubmissão à lei, tornou-se um poder com osdias contados...

... Quanto maior a velocidade desse pro-cesso – de globalização – mais o Judiciáriopassa a ser atravessado pelas justiças ine-rentes quer aos espaços infra-estatais (oslocais, por exemplo) quer aos espaços su-pra-estatais. Os espaços infra-estatais estãosendo crescentemente polarizados por for-mas ‘inoficiais’ ou não-oficiais de resolu-ção dos conflitos (como usos, costumes, di-ferentes estratégias, arbitragens privadas oumesmo guetos inexpugnáveis controladospelo crime organizado). Já os espaços su-pra-estatais têm sido polarizados pelos maisdiversos organismos multilaterais (BancoMundial, Fundo Monetário Internacional,Organização Mundial do Comércio etc.), porconglomerados empresariais e por organi-zações não-governamentais...

... O tempo do processo judicial é o tem-po diferido. O tempo da economia globali-zada é real, isto é, o tempo da simultaneida-de ... Não é por acaso que as corporaçõesempresariais e financeiras transnacionaisfogem deliberadamente dos burocratizadose ineptos tribunais e do direito positivo poreles aplicado. Uma fuga em três dimensões

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complementares: primeiramente, tendem aacatar seletivamente as distintas legislaçõesnacionais, optando por concentrar seus in-vestimentos apenas nos países onde elaslhes são mais favoráveis; em segundo lugartendem a se valer de instâncias alternativasespecializadas, seja no âmbito governamen-tal, sob a forma de autoridades administra-tivas independentes com poder de decisão,com prerrogativas de regulação, controlee fiscalização e com capacidade técnicatanto para apreciar litígios quanto paraaplicar sanções, seja no âmbito privado,por meio de mediações e arbitragens; e,por fim, tendem a acabar criando, elaspróprias, as regras de que necessitam e aestabelecer mecanismos de auto-resolu-ção dos conflitos...

... O monopólio adjudicatório do Judiciá-rio hoje é desafiado pela expansão de direi-tos paralelos ao oficial. São direitos autôno-mos, com regras e procedimentos próprios,entreabrindo a coexistência – por vezes sin-crônica, por vezes conflitante – de diferen-tes normatividades; mais precisamente, deum pluralismo jurídico de natureza infra-estatal ou supra-estatal...

... Atualmente, a resolução de mais de80% dos conflitos mercantis no âmbito daeconomia globalizada é feita por mediaçõese arbitragens privadas. Nos Estados Uni-dos, a American Arbitration Association, umaentidade privada, conta com 57 mil árbitrosinscritos em 35 filiais. Sediada na França, aChambre International du Commerce, igual-mente privada, coordena mais de 750 arbi-tragens em 30 diferentes países, envolven-do partes de 90 nacionalidades.

Diante da crescente autonomia dos dife-rentes setores da vida social propiciada pelofenômeno da globalização, com suas racio-nalidades específicas e muitas vezes incom-patíveis entre si levando à ampliação dossistemas auto-organizados e auto-regula-dos, o Judiciário foi levado a uma crise deidentidade. Por um lado, o Estado do qualfaz parte, ao promulgar leis, cada vez maistem de levar em conta o contexto internacio-

nal para saber o que pode realmente regulare quais de suas normas serão efetivamenterespeitadas. Por outro lado, o Judiciário e osdemais poderes do estado também já nãopodem mais almejar disciplinar sociedadescomplexas por meio de seus instrumentos,categorias e procedimentos jurídicos tradi-cionais. Daí as polêmicas estratégias de des-legalização e desconstitucionalização hojeadotadas no mundo inteiro, paralelamenteaos programas de privatização dos mono-pólios públicos e à substituição dos meca-nismos estatais de seguridade social porseguros privados, ampliando o pluralismode ordens normativas...

... A desregulamentação ao nível do Es-tado significa, desta maneira, a reregulamen-tação e a relegalização ao nível da socieda-de – mais precisamente, ao nível das orga-nizações privadas capazes de oferecer em-pregos, impor comportamentos etc.

Contribuindo assim para acelerar a cri-se de identidade do Judiciário, o direito po-sitivo que ele aplica encontra-se com suaestrutura lógico-formal quase inteiramenteerodida... , o que provoca a ruptura da uni-dade conceitual da cultura legal (com ins-piração eminentemente privatística) da ma-gistratura...

... Esse cenário conduz ao desapareci-mento do Judiciário? Obviamente que não...,tendo (o Poder Judiciário) pela frente trêsimportantes áreas de atuação. A primeiradelas diz respeito às conseqüências da glo-balização. Como ela é um fenômeno perver-so, aprofundando a exclusão social à medi-da que os ganhos de produtividade são ob-tidos às custas da degradação salarial, dainformatização da produção e do subse-qüente fechamento de postos de trabalho, asimbiose entre marginalidade econômica emarginalidade social torna o Estado respon-sável pela preservação da ordem, da segu-rança e da disciplina. Com a globalização,em outras palavras, os ‘excluídos’ do siste-ma econômico perdem progressivamente ascondições materiais para exercer seus direi-tos fundamentais, mas nem por isso são dis-

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pensados das obrigações e deveres estabe-lecidos pela legislação. Com suas prescri-ções normativas, o Estado os integra ao sis-tema jurídico basicamente em suas feiçõesmarginais – isto é, como devedores, invaso-res, transgressores, réus, condenados etc.Diante da ampliação da desigualdade, dosbolsões de miséria, da criminalidade e dapropensão à desobediência coletiva, cabeassim ao Estado – e, dentro dele, ao Judiciá-rio – funções eminentemente punitivo-re-pressivas... Uma segunda área diz respeitoàs conseqüências do desequilíbrio dos po-deres provocado inicialmente pela expan-são do Estado intervencionista e, mais tar-de, pela relativização de sua soberania, como advento da globalização... Seja por causado conflito de competências entre os pode-res, seja por causa da resistência de deter-minados setores da sociedade à revogaçãodos direitos fundamentais e sociais pelosprocessos de deslegalização e desconstitu-cionalização, o fato é que, quanto mais cam-biante é esse cenário, mais o Judiciário é le-vado ao centro das discussões políticas emais tem de assumir papéis inéditos de ges-tor de conflitos – fenômeno esse hoje conhe-cido como ‘tribunalização da política’ e con-siderado altamente disfuncional na econo-mia globalizada, em cujo âmbito os prota-gonistas concentram decisões de investi-mento em países sem tribunais congestio-nados, com ritos processuais simples e bai-xo potencial de intervenção... A terceira áreade atuação diz respeito aos problemas tra-dicionais de justiça ‘corretiva’ ou ‘retributi-va’. Foi para manter sua jurisdição sobre elesque, nos últimos tempos, o Judiciário op-tou por se transformar organizacionalmen-te, procurando informatizar-se e ‘desofi-cializar-se’ por meio de juizados de ne-gociação e conciliação para os litígios demassa, abundantes e rotineiros, com peque-no valor material e já suficientemente ‘juris-prudencializados’. Embora tenham a apa-rência de uma justiça de 2ª classe para cida-dãos de 2ª classe, não se pode, é evidente,subestimar a contribuição desses juizados

para viabilizar o acesso de contingentes ex-pressivos da população aos tribunais...

... Acionado pelos ‘excluídos’ para diri-mir conflitos que afetam o processo de apro-priação das riquezas e dos benefícios sociais,mas desprezado e ignorado pelos setores‘incluídos’ na economia transnacionaliza-da, que têm suas próprias normas, ritos ejustiças, o Judiciário, desde o advento daglobalização, vive um dilema de feições pi-randellianas: é um poder em busca não deum autor, mas de espaços mais nítidos deatuação, de uma identidade funcional e demaior legitimidade política... A... grandedúvida é saber se a corporação terá humil-dade e sensibilidade para extrair lições... ,optando por reciclar, modernizar e adaptarà nova realidade uma cultura técnico-pro-fissional assentada em princípios e postu-lados tornados anacrônicos pelo fenômenoda globalização”40.

3.3. A “reforma do Judiciário”

3.3.1. Reforma estrutural ereforma operativa

Assim como a expressão “crise do Judi-ciário” foi empregada anteriormente entreaspas, neste texto, aquilo que se vem cha-mando de “reforma do Judiciário” tambémestá sendo aqui grafado assim (entre aspas),em ambos os casos por idêntico motivo, istoé, pelo fato de ser necessário, sobre uma coi-sa ou outra, saber de que crise ou de quereforma se está falando.

Conforme foi visto acima, a crise do Ju-diciário brasileiro pode ser considerada devários ângulos. Igualmente, sobre o que seconvencionou chamar de “Reforma do Ju-diciário”, há que saber em qual “reforma”se está pensando, porque ela passa, neces-sariamente, por alteração de normas consti-tucionais sobre organização e competênciados órgãos do Poder Judiciário; por modifi-cações da legislação infraconstitucional so-bre matéria processual, de organização ju-diciária, de administração judiciária, etc.;passa também, simplesmente, por decisões

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administrativas, em todos os setores, emba-sadas na legislação já existente; e passa porum contínuo processo de mudanças na cul-tura funcional e organizacional de todo oaparelho judiciário.

Portanto, uma reforma dessa natureza,com um espectro tão grande de temas e pro-vidências, não pode consistir num “paco-te” fechado e amarrado de medidas. Ao con-trário, ela deve ser encarada como ação con-tinuada e permanente, voltada às necessá-rias adaptações conjunturais que a mutan-te realidade sócio-econômico-político-cultu-ral exige, em velocidade cada vez maior.

Vista dessa maneira, pode-se dizer queparte da reforma do Judiciário brasileiro(considerada muito importante) já vem sen-do realizada, há algum tempo. Apresentam-se como exemplo mudanças na legislaçãoprocessual, várias já aprovadas e adota-das41, visando à maior racionalização, cele-ridade e eficiência da atividade judicialcomo um todo.

Mas, evidentemente, há muito ainda porfazer, inclusive aquilo que se tem por maisimportante, que é uma Reforma do Judiciá-rio no plano constitucional.

Pode-se pensar, então, grosso modo enuma visão meramente esquemática, emdois tipos de reforma. Uma reforma estrutu-ral do Judiciário, que se funda em mudan-ças no desenho institucional e atributivodesse Poder, dependente, portanto, de alte-ração constitucional, e outra, que chamaría-mos de reforma operativa do Judiciário, des-tinada a implementar avanços, não depen-dentes de qualquer mudança de ordem cons-titucional, já concretizados na legislação, al-guns já adotados na experiência judiciáriabrasileira recente e outros cuja adoção estásendo projetada para dentro em breve.

A reforma estrutural é uma reforma téc-nica, do ponto de vista constitucional, masé, essencialmente, uma reforma política doponto de vista institucional. Os atores quenela interferem são membros do próprioPoder Judiciário e dos demais Poderes, so-bretudo do Legislativo, pois este é o que de-

tém a competência e a legitimidade paraproceder à reforma da Constituição (o cha-mado poder constituinte derivado). Logo,essa reforma é totalmente imune à atuaçãode agentes externos e só interessará, enquan-to dado fático, quando definitivamente apro-vada, promulgada e em vigor. Por ora, é so-mente uma idéia em construção.

Diga-se, de passagem, que o Poder Judi-ciário brasileiro, embora se ressinta hoje deaperfeiçoamento institucional, é reconheci-do como de estrutura modelar. Eis como aele se refere o Professor argentino EugênioRaul ZAFFARONI: “... em comparação comos demais modelos judiciários latino-ame-ricanos, a estrutura brasileira aparece comoa mais avançada de toda a região e pratica-mente a única que não corresponde ao mo-delo empírico-primitivo do resto. Trata-se daverdadeira estrutura tecnoburocrática danossa região”42.

A reforma operativa, esta sim, como ex-periência palpável de avanços concretiza-dos ou em vias de concretização, apresentainteresse imediato de apoio ao seu fortaleci-mento e à sua consolidação.

3.3.2. Visão geral da reformaestrutural

3.3.2.1. Propostas legislativas dereforma constitucional referente ao

Poder Judiciário

A reforma acima chamada de estrutural,conquanto ainda esteja sendo debatida, con-ceitualmente, nos diferentes fóruns que porela sejam responsáveis ou que por ela se in-teressam, é objeto de várias propostas deemenda constitucional43 em tramitação (an-damento do processo legislativo) no Congres-so Nacional.

É preciso mencionar as principais dessaspropostas, ainda que seja impossível anali-sá-las neste texto, em virtude da reiterada-mente falada escassez de tempo. Diga-se,num parêntese, que todas as propostas des-sa natureza são de iniciativa de Parlamen-tares (Deputados ou Senadores).

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3.3.2.1.1. A primeira e mais ampla delasé a Proposta de Emenda Constitucional(PEC) nº 96, apresentada em 30 de abril de1992. Tal Proposta “introduz modificaçõesna estrutura do Poder Judiciário”, pratica-mente alterando todo o capítulo da Consti-tuição Federal que trata desse Poder.

A essa Proposta foi apensada (anexada)a PEC nº 112, apresentada em 31 de maio de1995. Esta “institui o sistema de controle doPoder Judiciário”.

Essas duas Propostas de Emenda Cons-titucional estão tramitando apensadas, por-que ambas dispõem sobre uma questão ex-tremamente delicada, que é a do chamado“controle externo” do Judiciário, ou seja,propõem a criação de um sistema de contro-le da atividade judicial por pessoas que nãoa exercem, vale dizer, estranhas aos quadrosda Magistratura. Somente sobre esse tema(controle externo) já se avolumam muitasopiniões publicadas, de Juízes ou não, umascontrárias, outras favoráveis.

O Relator dessas duas Propostas, na Co-missão Especial sobre Reforma do Judiciá-rio da Câmara dos Deputados, é o Deputa-do Jairo Carneiro, que em 8-8-96 deu pare-cer favorável a elas, na forma de Substituti-vo (texto normativo do Relator, que substi-tui o texto normativo original do(s) autor(es)da(s) Proposta(s)). Isso significa que, daí pordiante, o que se discutir e votar sobre a ma-téria será em relação a esse Substitutivo (quese tornou conhecido como Substitutivo Jai-ro Carneiro).

3.3.2.1.2. Além dessas duas, que são asmais destacadas de todas, há dezenas deoutras PECs sobre o Poder Judiciário em tra-mitação no Congresso Nacional, que toda-via tratam de pontos muito específicos. Fei-ta uma seleção das que se pode considerarmais importantes, eis a sua relação na or-dem numérica que corresponde à seqüên-cia das mais antigas para as mais recentes,abrangendo o período 1995-1997:

– PEC nº 0054, de 1995 (origem no Sena-do Federal), que propõe nova redação ao §2º do art. 102 da Constituição Federal, de-

terminando que “as decisões definitivas demérito, proferidas pelo Supremo TribunalFederal, após sumuladas, produzirão eficá-cia contra todos e efeito vinculante relativa-mente aos demais órgãos do Poder Judiciá-rio e ao Poder Executivo” (grifado nestatranscrição). Trata-se de proposta legislati-va exclusiva sobre o chamado “efeito vin-culante”, que foi aprovada recentemente noSenado Federal e seguirá agora para aprecia-ção pela Câmara dos Deputados;

– PEC nº 0092, de 1995 (origem na Câma-ra dos Deputados), que “dá nova redação aoart. 101 da Constituição Federal”. Essa PECpropõe um novo sistema de escolha dos mem-bros do Supremo Tribunal Federal;

– PEC nº 0127, de 1995 (origem na Câ-mara dos Deputados), que “dá nova reda-ção ao inciso VI do artigo 93 da Constitui-ção Federal”, propondo a elevação da ida-de limite para aposentadoria compulsóriados Magistrados, de 70 para 75 anos. A essaPEC foi anexada a de nº 215, de 1995 (tam-bém de origem na Câmara dos Deputados),que, igualmente, “dá nova redação ao inci-so VI do artigo 93 da Constituição Federal”,propondo, entretanto, não a elevação da talidade limite, mas que se reduza, em 5 anos,o limite atual da aposentadoria facultativa(de 30 anos) para o magistrado, se mulher,acompanhando, assim, distinção semelhan-te existente nos regimes do servidor públicoe dos empregados em geral;

– PEC nº 0131, de 1995 (origem na Câ-mara dos Deputados), que altera a redaçãode vários dispositivos do capítulo referenteao Poder Judiciário. Trata-se de uma Pro-posta bastante ampla à qual foi apensada ade nº 0393, de 1996 (também de origem naCâmara dos Deputados), que acrescenta doisincisos ao artigo 93 da Constituição, nessecaso estabelecendo penalidade de perda docargo para o Magistrado que tiver mais de5% de suas sentenças proferidas em um anocivil reformadas por instância superior, porinteresse público, aplicando-se tal penali-dade aos Tribunais, quando o Relator nãotiver seu voto acolhido pelo colegiado ou

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órgão superior. Essas duas PECs foram apre-ciadas pelo Relator na Comissão de Consti-tuição e Justiça, que opinou por sua inad-missibilidade. Esclareça-se que o processolegislativo brasileiro, que é estabelecido pelaprópria Constituição Federal e pelos Regi-mentos Internos das duas Casas do Congres-so ou pelo Regimento Comum (abrangendoambas as Casas Legislativas, quando se tratade matéria de competência do CongressoNacional), prevê que uma PEC, antes de serapreciada no mérito, seja julgada pela obser-vância dos pressupostos constitucionais queela deve cumprir, para ser admitida como vá-lida e apta a prosseguir na tramitação legis-lativa normal. Nesses dois casos, o Relatoropinou pela inadmissibilidade de ambas.Todavia, este consultor não tem notícia de quetal parecer do Relator já tenha sido votado e,conseqüentemente, aprovado ou rejeitadopela Comissão de Constituição e Justiça daCâmara dos Deputados. Por isso, as duasPECs estão sendo aqui mencionadas.

Mas, a PEC nº 0188, de 1995 (origem naCâmara dos Deputados), que propõe a alte-ração de vários dispositivos do capítulo re-lativo ao Poder Judiciário, também apensa-da à PEC nº 131/95, teve sua admissibili-dade aceita pelo mesmo Relator.

– PEC nº 0200, de 1995 (origem na Câ-mara dos Deputados), que “acrescenta alí-nea ao inciso I do artigo 105 da Constitui-ção Federal e parágrafos ao mesmo artigo”.Essa Proposta amplia a competência doSuperior Tribunal de Justiça, prevendo acriação da ação direta de ilegalidade e atonormativo do Poder Executivo, a ser proces-sada e julgada pelo STJ.

– PEC nº 0204, de 1995 (origem na Câ-mara dos Deputados), que altera quatro ar-tigos do capítulo da Constituição dedicadoao Poder Judiciário, propondo substanciaismodificações na estrutura e organização daJustiça Eleitoral, especializando-a instituci-onalmente.

A PEC nº 0224, de 1995 (origem na Câ-mara dos Deputados), propõe algo muitosemelhante ao pretendido com a PEC ante-

rior (0204/95). Ambas as Propostas se en-contram em fase muito inicial de tramitaçãoe – talvez por isso – ainda não foi requeridoo apensamento desta àquela. Mas, outraPEC, a de nº 0439, de 1996, que trata de pro-posição relativa à Justiça Eleitoral, visandoa alterar sua composição, assim como, nomesmo sentido, a PEC nº 0448, de 1997, am-bas já se encontram tramitando apensadasà PEC nº 0224/95. Com idêntico objetivo dealterar composição e critérios de escolha deMagistrados da Justiça Eleitoral, a PEC nº0468, de 1997, ainda não está, todavia, apen-sada à PEC nº 0224/95.

– PEC nº 0293, de 1995 (origem na Câ-mara dos Deputados), que altera a redaçãode artigos da Constituição “... para excluir arepresentação classista nos Tribunais doTrabalho”. Sobre a representação classistana Justiça do Trabalho, ver as consideraçõesconstantes do item 2. l .4.4 acima.

– PEC nº 0332, de 1996 (origem na Câ-mara dos Deputados), que “altera a reda-ção do artigo 124 da Constituição Federal”,estabelecendo que, “em tempo de paz, a Jus-tiça Militar será competente apenas parajulgar e processar os integrantes das ForçasArmadas e assemelhados que praticarem cri-mes militares definidos em lei”. Sobre a Justi-ça Militar, no Brasil, ver o item 2.1.4.6 acima.

– PEC nº 0346, de 1996 (origem na Câ-mara dos Deputados), que modifica váriosartigos da Constituição, visando a dar novaorganização à Justiça do Trabalho, sem pre-ver, entretanto, a eliminação da representa-ção classista.

A PEC nº 0410, de 1996 (origem na Câ-mara dos Deputados), propõe também umareformulação constitucional ampla da Jus-tiça do Trabalho, sem tampouco eliminar arepresentação classista. Essa PEC está tra-mitando já apensada à PEC nº 0346/96,acima referida.

– PEC nº 0335, de 1996 (origem na Câ-mara dos Deputados), que “inclui inciso noartigo 93 e revoga o § 2º do artigo 120 daConstituição Federal”. A Proposta objetivadeterminar a participação dos juízes de 1º

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grau na escolha dos titulares dos cargos dedireção dos Tribunais de 2º grau.

A PEC nº 0356, de 1996 (origem na Câ-mara dos Deputados), também dispõe so-bre eleição dos Presidentes dos Tribunaisde Justiça dos Estados pelo voto direto esecreto dos Magistrados. Por envolver, emparte, matéria objeto da PEC anterior, deve-rão ambas tramitar em conjunto, quando viera ser aprovado requerimento nesse sentido.

– PEC nº 0358, de 1996 (origem na Câma-ra dos Deputados), que “suprime o inciso IIIdo parágrafo único do artigo 95 da Constitui-ção Federal, permitindo aos magistrados de-dicação à atividade político-partidária”. So-bre a atual vedação constitucional para o exer-cício de tal atividade pelos Magistrados, vero último parágrafo do item 2.1.6 acima.

3.3.2.2. Anteprojetos para reformado Judiciário

Vários são os fóruns em que se debate,atualmente, a Reforma do Judiciário. Há,digamos assim, os fóruns oficiais, que sãoaqueles em que as decisões sobre a matériaestão sendo tomadas, e há os fóruns que re-presentam os segmentos da sociedade civilorganizada mais interessados no assunto.

Nesse caso, está, por exemplo, a Ordemdos Advogados do Brasil, entidade repre-sentativa dessa categoria profissional. Porintermédio do seu Conselho Federal, a OABencaminhou, muito recentemente, ao Con-gresso Nacional texto elaborado por Comis-são de Conselheiros, a título de sugestão econtribuição, contendo o esboço de uma pro-posta de emenda constitucional relativa aocapítulo sobre o Poder Judiciário44.

Eventual e teoricamente, outras entida-des poderiam também apresentar suas su-gestões, mas não é do nosso conhecimentoatual que o tenham feito.

3.3.2.3. Outras sugestões econtribuições

Alguns juristas, Magistrados ou não,têm oferecido sua contribuição, algumasdelas publicadas.

É o caso do conhecido Advogado SauloRamos, que já foi Ministro de Estado da Jus-tiça. Ele esboça diretrizes gerais para umaReforma do Poder Judiciário, sem apresen-tar, porém, um texto articulado do ponto devista normativo.

Também é o caso de José Renato Nalini,Juiz do Tribunal de Alçada Criminal de SãoPaulo. Sua proposta está articulada, norma-tivamente, e comentada45.

3.3.2.4. Projetos de lei relativos àreforma do Poder Judiciário

Além das mudanças realizadas na legis-lação processual (já em vigor), conforme re-feridas no item 3.3.1 acima (ver também nota41 de rodapé) e que fazem parte do conjuntode medidas que se inserem no conceito am-plo de Reforma (estrutural) do Judiciário, háoutras iniciativas no plano normativo comas quais se pretende implementar aperfei-çoamentos nos sistemas processual e judi-ciário. Vamos citar duas das mais impor-tantes que se encontram em tramitação noCongresso Nacional.

3.3.2.4.1. Em primeiro lugar, o Projeto deLei Complementar nº 144, de 1992, que “dis-põe sobre o Estatuto da Magistratura Nacional”.A Constituição Federal de 1988, no art. 93,caput, já a prevê, como sendo de iniciativado Supremo Tribunal Federal. Após 4 anosdessa previsão constitucional, foi apresen-tado o referido Projeto na Câmara dos De-putados (Casa do Congresso Nacional poronde se inicia o processo legislativo de ini-ciativa da própria Câmara ou de iniciativanão-congressual). Hoje, decorridos 5 anosde sua apresentação (ao todo são quase10 anos de demora para que se atenda aomandamento constitucional), o Projetoestá paralisado na Câmara dos Deputa-dos (ver, a propósito, comentários no item2.1.7 e no último parágrafo do item 2.1.8.1,ambos deste texto). Pelo visto, ainda seterá muito que esperar por essa lei, cujoconteúdo apresenta significação atualpara alguns rumos da Reforma do Judiciá-rio e que deveria ser analisada com certa

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profundidade neste trabalho, não fora opercalço do curto prazo .

3.3.2.4.2. O segundo texto normativo im-portante, em tramitação no Congresso Na-cional, é o Projeto de Lei nº 2.960, de 1997,de iniciativa do Poder Executivo, “que dis-põe sobre o processo e julgamento da açãodireta de inconstitucionalidade e da açãodeclaratória de constitucionalidade peran-te o Supremo Tribunal Federal”. Essa pro-posição legislativa é muito recente, mas, sehouver interesse do Poder Executivo na ur-gência de sua tramitação, esta terá curso rá-pido. A matéria é relevante, do ponto de vis-ta processual relativo àqueles dois tipos deação no âmbito de competência do Supre-mo Tribunal Federal. Como no caso anterior,o assunto mereceria um aprofundamentoanalítico aqui, que lamentavelmente nãopode ser feito.

3.3.3. Visão geral da reformaoperativa: a Arbitragem e os

Juizados Especiais

3.3.3.1. Adotado o conceito daquilo quedenominamos neste texto “reforma operati-va”, chegamos agora a questões mais objeti-vas relacionadas à Reforma do Judiciário,que se referem a providências ou medidasinovadoras, as quais já se encontram pron-tas ou, ao menos, iniciadas.

Antes de tudo, cabe ressaltar que o Po-der Judiciário, no Brasil, detém o monopó-lio da função jurisdicional, exercida combase na concepção, digamos, corretivo-con-denatória das clássicas dimensões de justi-ça comutativa/contributiva/distributiva.Esse monopólio, num certo sentido, foi que-brado e/ou atenuado, recentemente, com aadoção de dois sistemas de resolução de con-flitos não-tradicionais, vale dizer, não-judici-ários: a Arbitragem e os Juizados Especiais.

3.3.3.2. Arbitragem

Instituída pela Lei nº 9.307, de 23 de se-tembro de 1996, o sistema de arbitragem noBrasil é um mecanismo de resolução de con-flitos facultado a todas as “pessoas capa-

zes de contratar”, restrito aos “litígios rela-tivos a direitos patrimoniais disponíveis”(conforme o art. 1º da referida Lei).

Característica desse sistema é que aspartes interessadas escolhem livremente sea arbitragem será baseada em normas jurí-dicas ou em princípios de eqüidade. Se na-quelas, as partes ainda podem escolher asque venham a ser aplicadas. Se naqueles, aspartes podem convencionar que a arbitra-gem adote princípios gerais de direito, usose costumes e/ou regras internacionais decomércio (cf. art. 2º da referida Lei). Note-seque essa liberdade plena de as partes esco-lherem a fonte jurídica aplicável à solução doconflito (o que equivaleria a alguém dizer aojuiz de direito qual o sistema normativo queele deseja que se aplique ao seu caso) é algototalmente onírico na tradição do pensamen-to jurídico e do ordenamento processual bra-sileiros. Por isso mesmo, tem havido a resis-tência mencionada no item 2.1.3.4 acima, re-ferenciada à respectiva nota de rodapé nº 10.

Na impossibilidade de se analisar deta-lhadamente a Lei nº 9.307/96, convém, to-davia, chamar a atenção para dois outrosaspectos do sistema de arbitragem brasilei-ro, que se relacionam diretamente a ques-tões fundamentais da reforma do Judiciá-rio. O primeiro ponto refere-se à natureza ea características da decisão arbitral, que é,nomeadamente, de acordo com a citada Lei,uma sentença. Esta “será proferida no prazoestipulado pelas partes”, o qual, na falta deestipulação, será de 6 meses, prorrogável decomum acordo entre as partes e os árbi-tros (cf. art. 23. e seu Parágrafo único daLei nº 9.307/96). Ora, se essa limitação tem-poral pudesse existir na praxis judiciária,alguns problemas ligados à morosidade pro-cessual seriam, ou poderiam ser, minimiza-dos. Mas esse tipo de estipulação é impen-sável no sistema jurídico tradicional.

O segundo ponto prende-se aos efeitosda sentença arbitral. Dispõe o art. 31 da re-ferida Lei que “a sentença arbitral produz,entre as partes e seus sucessores, os mes-mos efeitos da sentença proferida pelos ór-

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gãos do Poder Judiciário e, sendo condena-tória, constitui título executivo”. Aí está umdos pontos dessa Lei que melhor demons-tram a afirmação que fizemos antes sobrequebra de grande parte do monopólio doexercício da função judicial pelo Poder Ju-diciário, com a adoção da arbitragem.

Esse conjunto de normas completamen-te heterodoxas no contexto do tradicionalordenamento jurídico brasileiro permite quese entenda melhor algumas observações doProfessor José Eduardo FARIA, no últimoperíodo da transcrição feita acima, referen-ciada à nota de rodapé nº 40.

3.3.3.3. Os Juizados Especiais

O art. 98, inciso I, da Constituição Fe-deral dispõe:

“A União, no Distrito Federal e nosTerritórios, e os Estados criarão:

I - juizados especiais, providos porjuízes togados, ou togados e leigos,competentes para a conciliação, o jul-gamento e a execução de causas cí-veis de menor complexidade e infra-ções penais de menor potencial ofen-sivo, mediante os procedimentosoral e sumaríssimo, permitidos, nashipóteses previstas em lei, a transa-ção e o julgamento de recursos porturmas de juízes de primeiro grau”.

Nos termos desse dispositivo constitu-cional, observe-se, de início, que os Juiza-dos Especiais não estão previstos para atua-rem no âmbito da Justiça Federal.

Também é de observar-se que tais órgãossão integrados por juízes togados (de carrei-ra) e juízes leigos (advogados não integran-tes da magistratura togada), o que constituiuma novidade na Justiça Comum de 1º grau,embora no sistema judicial brasileiro já seencontre o exemplo da Justiça do Trabalhoque é de composição mista desde o 1º grau.

Outra observação é que os Juizados Es-peciais são órgãos judicantes cuja missão(ou objetivo) primordial é conciliar, isto é,acatar e homologar o acordo entre as partes,e não julgar, no sentido de exclusiva aplica-

ção da lei ao caso concreto submetido à ju-risdição (tradicional).

3.3.3.4. Assim, surgiu a Lei nº 9.099, de26 de setembro de 1995, que “dispõe sobre osJuizados Especiais Cíveis e Criminais... ”.

Não será possível aqui, por absoluta fal-ta de tempo, analisar esta Lei, mas é precisoresumir as linhas gerais da estrutura dessesJuizados, a fim de descrever suas característi-cas principais, sendo que o que importa, funda-mentalmente, sobre o assunto, neste trabalho, éapresentar os resultados obtidos com a experiênciados Juizados que já estejam funcionando, em nívelfederativo, nesse período de aproximadamente umano e meio de sua implantação nos Estados.

3.3.3.4.1. A característica básica do pro-cesso no âmbito dos Juizados Especiais é ade que ele se orienta pelos “critérios da ora-lidade, simplicidade, informalidade, econo-mia processual e celeridade... ”, buscando,sempre que possível, a conciliação ou a transa-ção (art. 2º, no caso dos Juizados EspeciaisCíveis), ou, ainda, objetivando, sempre quepossível, a reparação dos danos sofridos pelavítima e a aplicação de pena não privativa deliberdade (art. 62, para os Juizados EspeciaisCriminais). Destaque-se que, desses critérios,os mais peculiares ao processo nos Juiza-dos são os da informalidade (isso significa anão-formalidade, atípica no processo judi-cial comum) e o da celeridade.

A título de disposições finais comuns, aLei nº 9.099/95 determina que os Estadosestabelecerão o Sistema de Juizados Especi-ais Cíveis e Criminais, sua organização, com-posição e competência (art. 93) e que criarão einstalarão os referidos Juizados no prazo de 6meses a contar do início da vigência da citada Lei.

Os serviços de cartório (isto é, de secreta-ria dos Juizados) poderão ser prestados e asaudiências (sessões públicas) realizadasfora da sede da Comarca (nome que se dá aoslimites territoriais de cada jurisdição) em bair-ros ou cidades que pertençam à Comarca, ocu-pando instalações de prédios públicos, de acordocom avisos previamente feitos (art. 94).

Chama a atenção, aqui, o caráter de ur-gência com que a Lei determinou a criação e

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a instalação dos Juizados Especiais, parafuncionarem, de qualquer forma, mesmo eminstalações de prédios públicos estranhosaos do Poder Judiciário.

3.3.3.4.2. Os Juizados Especiais Cíveis apre-sentam as seguintes características essenciais:

– são competentes para a conciliação,processo e julgamento de causas cíveis demenor complexidade assim consideradas, en-tre outras, aquelas cujo valor não exceda a40 vezes o valor do salário mínimo (art. 3º,I), excluídas as causas de natureza alimen-tar, falimentar, fiscal e de interesse da Fa-zenda Pública, as relativas a acidentes detrabalho e outras (art. 3º, § 3º);

– os Juizados Especiais Cíveis são inte-grados de Juízes togados, Conciliadores eJuízes leigos (ver item 3.3.3.3 acima), sendoque os Conciliadores são recrutados, prefe-rentemente, entre os advogados e os leigos,sempre entre advogados com mais de 5 anosde experiência (art. 7º);

– nas causas de valor até 20 salários míni-mos, as partes não precisam ser assistidas (acom-panhadas profissionalmente) por advogado.Acima desse valor, a assistência advocatí-cia é obrigatória (art. 9º). Não havendo ne-cessidade de acompanhamento profissionalpor advogado, o custo do serviço judiciárioprestado se reduz significativamente, poden-do ser nenhum nos casos permitidos;

– os atos processuais serão públicos epoderão realizar-se em horário noturno (art.12). Apenas os atos considerados essenci-ais serão registrados, resumidamente, emnotas manuscritas, datilografadas, etc., po-dendo os demais atos ser gravados em fitamagnética ou equivalente, que será inutili-zada após a decisão tornada definitiva (art.13, § 3º). O processo instaurar-se-á com aapresentação do pedido, escrito ou oral, à Se-cretaria do Juizado (art. 14, caput). No proces-so civil tradicional não se admite, em regra, aformulação oral do pedido que o instaura;

– todos os meios de prova moralmentelegítimos, ainda que não previstos em lei,podem ser utilizados para provar a veracida-de dos fatos alegados pelas partes (art. 32);

– da sentença, salvo a homologatória deconciliação ou laudo arbitral, caberá recur-so para o próprio Juizado (art. 41, caput);

– o acesso ao Juizado Especial não de-pende, em 1º grau de jurisdição, do pagamen-to de custas, taxas ou despesas (art. 54, caput).A sentença de 1º grau não condenará o ven-cido em custas e honorários de advogado,exceto nos casos em que a demanda tenhasido instaurada por má-fé (art. 55, caput);

– a conciliação, que é, como visto, umafase indispensável e preliminar do proces-so nos Juizados, poderá ser estendida a ou-tras causas não abrangidas por essa Lei,conforme o estabelecido pelas normas deorganização judiciária local (estadual) (art.58). Isso revela a importância que o legisla-dor passou a imprimir à fase de concilia-ção, no processo judicial, certamente bus-cando introduzir um novo mecanismo quecontribua para o desafogo da atividade ju-dicial típica. Aliás, na legislação processualbrasileira “... o instituto da conciliação não seconstitui em novidade, tendo em vista o seudisciplinamento nos arts. 447 e seguintes doCódigo de Processo Civil, porém foi inovadoquanto ao momento processual em que deveser proposta a conciliação - art. 331 do CPC ...A nova redação dada ao art. 331 do CPC temo sentido de valorizar a conciliação, incenti-vando-se, paulatinamente, a adoção de no-vas formas de solução dos conflitos... ”46.

3.3.3.4.3. Os Juizados Especiais Criminaisapresentam as seguintes características essenciais:

– são competentes para conciliar e jul-gar as infrações penais de menor potencial ofen-sivo (art. 60), assim consideradas as contra-venções penais (que são infrações penaisdistintas dos crimes ou delitos por algunsaspectos diferenciais que a lei estabelece,entre eles o da natureza da pena privativade liberdade, que, no caso das contraven-ções, jamais é de detenção ou de reclusão) eos crimes aos quais seja prevista pena má-xima de l ano (art. 61);

– os Juizados Especiais Criminais sãoprovidos de Juízes togados, ou togados eleigos (art. 60);

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– o termo de ocorrência é feito pela autori-dade policial que dela tiver conhecimento, aqual o encaminhará imediatamente ao Juiza-do competente, juntamente com o autor dofato e a vítima, providenciando-se perícia, senecessário (art.69, caput). Ao autor do fato in-fracional quando comparecer imediatamen-te ao Juizado, após a feitura do termo de ocor-rência, não se imporá prisão em flagrante, nem seexigirá fiança (art. 69, parágrafo único);

– na audiência preliminar, presentesautor e vítima, acompanhados por seus ad-vogados, e o representante do MinistérioPúblico, o Juiz “esclarecerá sobre a possibi-lidade da composição dos danos e da acei-tação da proposta de aplicação imediata depena não privativa de liberdade” (art. 72).

3.3.4. Os resultados da experiênciados Juizados Especiais

Há inúmeros dados e gráficos sobre aexperiência dos Juizados que precisariamser apresentados e analisados no corpo des-te trabalho. Outra vez, é de referir-se à ques-tão do prazo muito exíguo, impeditivo doaprofundamento analítico. Utilizamoscomo fonte documento do Colégio Perma-nente de Presidentes de Tribunais de Justi-ça, produzido no âmbito do Tribunal de Jus-tiça do Estado de Minas Gerais, por sua Se-cretaria de Planejamento e Coordenação eseu Departamento de Estatística, entregue,pessoalmente, ao consultor pelo eminentePresidente do referido Colégio Permanente,Desembargador José Fernandes Filho, mem-bro do mencionado Tribunal de Justiça.

3.3.4.1. Desses dados, alguns dos maisexpressivos dizem respeito à comparaçãoentre a Justiça Comum e os Juizados, em ter-mos do movimento de ações ajuizadas, porEstado47.

Considerando-se o período de janeiro aoutubro de 1996, verifica-se, por exemplo,que no Estado do Amazonas o volume deações ingressadas nos Juizados Especiaisatinge o percentual de 51%, enquanto no RioGrande do Sul chega a 40%, em Sergipe 35%,no Paraná 33%, e assim por diante. Confor-

me se pode verificar nas séries estatísticasdisponíveis, a média nacional daquele volumeé de 25%. Ou seja: em aproximadamente umano e meio de funcionamento, os JuizadosEspeciais já absorvem 1/4 do movimentoforense. Se considerarmos que esse sistemajudicial tem caráter eminentemente social,no sentido de viabilizar o acesso à Justiçadaqueles que, de outra forma, não teriam mei-os de demandar judicialmente, esse dado de-monstra que a experiência é muito positiva,no que se refere tanto a produzir resultadosacima do esperado no curto prazo de existên-cia do Juizados, quanto à aceitação dos juris-dicionados e, sobretudo, em relação ao plenoêxito de um mecanismo que se vem mostran-do eficaz no conjunto de medidas já adota-das com vistas à Reforma do Judiciário.

3.3.4.2. Alguns outros dados vão reve-lando aspectos interessantes, como os se-guintes:

– no período de janeiro a outubro de1996, foram ajuizadas 488.386 ações nos Juiza-dos Especiais Cíveis, nas 24 das 27 unidadesda Federação que responderam às informa-ções solicitadas pelo Colégio Permanentedos Presidentes de Tribunais de Justiça;

– daquele total de ações ajuizadas, 97.102,ou seja, o correspondente à média de 20% des-sas ações, referem-se a matéria de trânsito48.

– daquele mesmo total, 361.926 açõesforam decididas49, o que equivale a 74,1%das ajuizadas. Isso quer dizer que aproxi-madamente 3/4 do volume total das açõesingressadas, no período considerado, foramdecididos. Esses percentuais são ligeiramen-te mais favoráveis aos Juizados do que osconstantes do item 2.1.3.4.1 acima o são, comreferência à Justiça Comum. Pode ser quenaqueles números apresentados no citadoitem anterior já estejam computados os re-sultados relativos aos Juizados. Isso preci-saria ser verificado com maior profundida-de e mais tempo, porque a fonte informativanão traz maiores esclarecimentos;

– considerando-se o mesmo período(jan/out/96), o total de ações ajuizadas naJustiça Comum foi de 2.969.123, enquanto

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nos Juizados Especiais foi de 909.269. Emnúmeros proporcionais, isso significa que,de todo o movimento forense atual, 76% per-tencem à Justiça Comum e 24% aos Juiza-dos Especiais50.

3.3.4.3. Haveria necessidade de umaanálise mais detalhada e comparativa dosdados por unidade federada, a fim de iden-tificarmos os focos de maior ineficiência e/ou carência dos Juizados Especiais em cadaEstado brasileiro.

Na impossibilidade, valemo-nos das se-guintes conclusões formuladas no docu-mento do mencionado Colégio Permanente:

“Os números apresentados de-monstram que é grande o volume deserviços no Poder Judiciário. A Lei nº9.099, de 1995, oferece instrumentosprocessuais para agilização dos pro-cessos e celeridade das decisões. Entre-tanto, há indícios de acúmulo tendo em vis-ta que, à época da coleta dos dados, sete Es-tados já registravam audiências para 1997.

Pode-se inferir, também, que os Jui-zados Especiais procuraram atingir aparcela da população que estava à mar-gem da prestação jurisdicional. Este fatoocorreu em Minas Gerais, onde asações ingressadas na Justiça Comumnão diminuíram com o advento da Leinº 9.099/95.

Em síntese, para que alcance os seuspropósitos, os Juizados Especiais necessi-tam de maior investimento em pessoal,instalações e equipamentos. A boa avalia-ção dos resultados pode oferecer sub-sídios para implementar estas medi-das” (grifos nesta transcrição)51.

IV- Análise das alternativasde soluções

4.1. Esclarecimento prévio

Este capítulo deveria ser o mais exausti-vo possível, em termos analíticos. Aqui, pre-cisaríamos examinar, tanto no plano do quedenominamos “reforma estrutural”, quan-

to no de “reforma operativa”, as proposi-ções que já existem, as que se encontram emcurso de discussão ou elaboração e, final-mente, aquilo que já deixou de ser propostapara se tornar realidade, apresentando eexaminando, aí sim, o amplo espectro dassoluções indicadas para os problemas queafetam o Poder Judiciário brasileiro. Gran-de parte dessas propostas está aqui mencio-nada, mas não devidamente analisada pe-las razões apontadas no item l.2 da Intro-dução deste trabalho.

Vamos, então, nos limitar aos pontos quepodem ser considerados factíveis dentro dosprogramas de apoio a sua solução.

É tratar, portanto, daqueles pontos rela-cionados a uma reforma operativa possíveldo Judiciário, correspondentes, no curto pra-zo, a medidas que apóiem sua realização econsolidação.

4.2. Uma estratégia para apoio aofortalecimento imediato do Poder

Judiciário no Brasil

4.2.1. No âmbito do Superior Tribunalde Justiça e da Justiça Federal

4.2.1.1. Na Missão ao Brasil (junho/julho/97), este consultor foi recebido, entre outrosilustres Magistrados, pelo atual Vice-Presi-dente do Superior Tribunal de Justiça, Minis-tro Pádua Ribeiro, que descreveu, verbalmen-te, alguns dos projetos de interesse daqueleSuperior Tribunal e da Justiça Federal, paraserem realizados durante a atual gestão e,provavelmente, no curso das que imediata-mente se seguirem a esta, naquele Tribunal.

Um desses projetos consistiria na inter-ligação dos sistemas e bases de dados doSTJ e da Justiça Federal com os do PoderExecutivo, especialmente da Receita Fede-ral e da Procuradoria-Geral da FazendaNacional, com a finalidade de aumentar aeficácia na recuperação de créditos fazen-dários em cobrança judicial. Coincidentemen-te, no trabalho que fizemos para a Divisão Fiscaldo Banco, o problema da falta de acesso, daPGFN, a sistemas e bases de dados externos foi

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por nós classificado ali como um problema deordem operacional e que afeta significativamen-te o resultado da cobrança executiva da dívidaativa (da União, no caso)52. O projeto mencio-nado pelo Ministro Pádua Ribeiro vem aoencontro de uma solução que, reciproca-mente, interessa ao Poder Judiciário e aoExecutivo, vale dizer, à União.

4.2.l.2. Nessa sintonia e estando, coinci-dentemente, de passagem não-oficial pelasede do Banco na época em que este Con-sultor trabalhava na produção do presenteestudo, outro Magistrado do mesmo Supe-rior Tribunal de Justiça, o Ministro EdsonVidigal, fez, como convidado, uma exposi-ção no âmbito da Divisão de Estado e Socie-dade Civil do Banco, quando apresentou aslinhas gerais do Esboço de Plano de Traba-lho, chamado de “Modernização da JustiçaFederal brasileira e do Conselho da JustiçaFederal”.

O item 4 desse documento traz um resu-mo dos “Projetos para Modernização daJustiça Federal”, que são os seguintes, aquiapresentados ainda mais resumidamente:

– Especialização de Varas Federais – A ên-fase desse Projeto é na disseminação, paratodo o País, das Varas Especializadas emExecução Fiscal, a exemplo do que já ocorrenos Estados do Rio de Janeiro, de São Pauloe do Rio Grande do Sul. Alega-se, no docu-mento, que a especialização de Varas Fede-rais para o julgamento das execuções fis-cais certamente irá aumentar o montante daarrecadação da União53 (este assunto é damaior importância para o êxito dos Programasde Fortalecimento e Modernização da Adminis-tração Tributária, em nível federal e estadual, noBrasil, na linha programática que se consubs-tancia no Projeto BR-0171, aprovado pelo Ban-co em dezembro de 1996 e em fase de execução,Projeto esse realizado pela Divisão Fiscal doBanco, ao qual se vinculou o referido trabalhosobre as Procuradorias de Fazenda no Brasil).Além dessas, propõe-se a especialização dasVaras em matérias como Crimes contra osDireitos Humanos, Crimes Ambientais,Ações Previdenciárias e Ações Agrárias.

– Aperfeiçoamento da Infra-Estrutura de In-formática da Justiça Federal – Dentro do PlanoDiretor de Informática da Justiça Federalpara o período 1997/2000, há os seguintesProjetos:

– Implementação da Rede da Justiça Fede-ral: o Projeto, no caso, é voltado para imple-mentar a infra-estrutura da rede INTRANETda Justiça Federal.

– Tratamento Eletrônico de Documentos:“Visa implementar o tratamento eletrônico dosdocumentos dos processos judiciais nos Tri-bunais e Seções Judiciárias, em substituiçãoaos métodos convencionais de tramitação earquivamento em papel”. Esse Projeto repre-senta um passo muito avançado na moder-nização do processamento do processo judi-cial. Avaliamos que ele mereceria toda a aten-ção para um eventual apoio do Banco.

– Projeto de Implementação dos CadastrosGerais de Partes e de Bens e Penhora da JustiçaFederal: com o primeiro deles, pretende-seaperfeiçoar os mecanismos de localizaçãode processos em qualquer órgão da JustiçaFederal, relativos a um determinado autorou réu, objetivando, especialmente, facilitaro trabalho das autoridades policiais “... naformação de processo contra, por exemplo,um traficante de drogas”. O segundo (Ca-dastro Geral de Bens e Penhoras) “... auxilia-rá na identificação de bens e penhoras quejá foram objeto de ação judicial e que, even-tualmente, possam estar sendo oferecidosem pagamento em outra ação”. Esse últimoProjeto é, particularmente, fundamentalcomo ferramenta auxiliar dos órgãos da Fa-zenda Nacional (sobretudo da Procurado-ria-Geral da Fazenda Nacional) na imple-mentação da eficácia da cobrança do crédi-to fazendário, conforme já alertáramos notrabalho realizado para a Divisão Fiscal,chamando a atenção para a necessidade deurgente medida nesse sentido54. Considera-mos que o Banco poderia avaliar a possibi-lidade de vir a apoiar essa iniciativa do Su-perior Tribunal de Justiça.

– Sistema de Informações Gerenciais: objeti-va permitir aos magistrados e aos adminis-

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tradores da Justiça Federal o acesso a infor-mações gerenciais e estratégicas, relativasao processo decisório.

– Projeto de Infra-Estrutura Básica de Infor-mática: destinado a substituir os equipamen-tos existentes, com vistas a apoiar a imple-mentação dos Projetos anteriores.

– Aperfeiçoamento de Recursos Humanos –Trata-se de Programa a que se prendem doisProjetos específicos, a saber:

– Projeto Sistema de Ensino Judicial: volta-do ao aperfeiçoamento dos Juízes Federais,a ser implementado pelo Centro de EstudosJudiciários do Conselho da Justiça Federalem colaboração e parceria com os TribunaisRegionais Federais, abrangendo programasnas áreas de formação inicial, de especiali-zação e de administração judiciária.

– Programa Permanente de Capacitação dosServidores da Justiça Federal: o objetivo é acapacitação de servidores da Justiça Fede-ral, com programas permanentes de treina-mento, estágio e de especialização. Tambémaqui, temos uma área em que o Banco pode-ria prestar um apoio decisivo na fase de im-plantação desse Programa.

– Programa de Estudos e Pesquisas – EssePrograma se desdobra nas duas iniciativasseguintes:

– Programa de Intercâmbio Científico comInstituições de Ensino. Pesquisas e InformaçãoEstrangeiras: o objetivo é o estabelecimentodas bases para o desenvolvimento das rela-ções de cooperação técnicas, científicas e deassistência mútua, visando ao intercâmbio etroca de experiência entre países, nas áreasde ensino, pesquisa e informação. Esse é ou-tro Projeto que o Banco poderia vir a apoiar.

– Programa de Fomento à Pesquisa e ApoioEditorial: a finalidade do Programa é o apoioà realização e divulgação de pesquisas cien-tíficas, de interesse prioritário para a Justi-ça Federal, possibilitando a publicação e adifusão da produção intelectual na área.

– Projeto Arquivo Histórico da Justiça Fede-ral: o objetivo é a criação do Arquivo, a fimde permitir a preservação da memória daJustiça Federal.

4.2.1.3. Afora os projetos, digamos, “ofi-ciais” do STJ para a Justiça Federal, existemalgumas idéias e propostas isoladas, que sesomam ao conjunto de medidas voltadas auma “reforma operativa” do Judiciário,como é o caso da que foi apresentada pelaJuíza Ellen Gracie Northfleet, do TribunalRegional Federal da 4ª Região, em particu-lar quanto à possível adoção, pela JustiçaFederal, da experiência de AdministraçãoJudiciária norte-americana55.

4.2.2. No âmbito da Justiça Estadual

4.2.2.l. O eminente Ministro SepúlvedaPertence, do Supremo Tribunal Federal,quando, ainda Presidente daquela Corte,proferiu o discurso de abertura do Encontrode Brasília do Colégio Permanente de Presi-dentes dos Tribunais de Justiça, sobre o temarelativo aos Juizados Especiais, em 4 de abrilde 1997, disse que sempre lhe pareceu que ocongestionamento das instâncias ordinárias(comuns) da Justiça somente poderia ser ali-viado com a implementação dos Juizados(que, segundo esse respeitado Magistrado,representam praticamente a única inovaçãoda Constituição de 1988, relativamente àbase do aparelho judiciário) Cíveis e Crimi-nais, estes “... para aliviar as instâncias for-mais da Justiça criminal do imenso percentu-al da criminalidade de bagatela...”. Conti-nuou, Sua Excelência, seu discurso: “Tenhoassentado, ante a cobrança justa da socieda-de da freqüente impunidade de crimes gra-víssimos – e quando falo crimes gravíssimosnão estou demasiadamente preocupado comos roubos de rua, mas com a impressionantecriminalidade de ‘colarinho branco’ destePaís –, no entanto preciso reconhecer que estacobrança é não só injusta como inútil, quan-do dirigida a juízes criminais que têm, mui-tas vezes, 5 mil, 7 mil processos em seu juízoe que hão de misturar a condução de um pro-cesso sobre estouro financeiro com a imensademanda de acidentes de trânsito, de brigasde rua, de porte de maconha”. Prosseguiu SuaExcelência : “...Vim participar da vitória daMagistratura dos Estados... que, pensando

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no Brasil, ... estão fazendo uma Justiça nova,uma Justiça que busca resgatar para os exclu-ídos – e a expressão é do notável Capelletti –‘o mais fundamental dos direitos humanosque é o acesso à Justiça’, porque instrumento,porque via de conquista de todos os demaisdireitos”. Concluiu ele: “Muito está feito e épreciso prosseguir. Antes de tudo, porém, épreciso cuidar para que não se frustrem asvitórias obtidas. O número de processos queingressam nos Juizados Especiais é alvissa-reiro, mas, confessemo-lo, é preocupante: ouse investe na ampliação e na consolidação do queestá feito, ou os Juizados poderão ser uma novafrustração... ” (grifos nossos).

4.2.2.2. O ilustre Desembargador JoséFernandes Filho, Presidente do Colégio Per-manente dos Presidentes de Tribunais deJustiça, em seu discurso naquele referidoEncontro de Brasília, afirmou que “... essaexperiência (a dos Juizados Especiais)... érealmente o ponto alto da reforma do PoderJudiciário até agora... ”.

4.2.2.3. De fato, para uma experiência depouquíssimo tempo, os Juizados Especiaisjá apresentam os resultados excepcionaismostrados, em números muito ligeiros, noitem 3.3.4 acima.

A esperança é que se mantenha essa per-formance, com a consolidação da nova expe-riência.

Para tanto, são necessárias ações volta-das à modernização tecnológica, à capaci-tação para a respectiva utilização e à conso-lidação da organização da AdministraçãoJudiciária própria dos Juizados Especiais,em todos os Estados brasileiros.

Foi o Presidente do citado Colégio Per-manente, eminente Desembargador José Fer-nandes Filho, com a autoridade de quem viveo problema no dia-a-dia, quem transmitiu,pessoalmente, a este consultor as seguintessugestões, relacionadas a medidas a seremtomadas naqueles campos de ação:

– criação de infra-estrutura de informá-tica específica para os Juizados, inclusivecom implantação de rede;

– treinamento do pessoal de informática;

– treinamento de pessoal de apoio dosJuizados Especiais;

– estímulo à profissionalização do pes-soal da Administração dos Juizados;

– simplificação das rotinas dos JuizadosEspeciais.

Além dessas medidas, o DesembargadorFernandes Filho sugere a realização de es-tudos para que se crie uma Fundação (dedireito privado), que seria co-responsável nagestão (em sentido amplo) dos Juizados Es-peciais, fazendo assim, também, com que asociedade se transforme em agente fiscali-zador desses órgãos.

V - Conclusões

5.1. Na edição do mês de agosto corrente,a Revista Exame trouxe matéria assinada porAdriano Silva, sob o título “Para Onde Va-mos”, onde o articulista traça o perfil daqueleque seria o mais desejável Presidente da Re-pública (“para a consolidação do Brasil mo-derno”), a vencer as eleições de 1998. O perfildesse Presidente ideal inclui que ele esteja“decidido... a reconfigurar o sistema jurídicobrasileiro, de modo a fazer da Justiça um con-trapeso rigoroso e ágil em relação às forças demercado e aos conflitos que são lugar-comumem uma sociedade aberta’’ (sic).

Independentemente de se concordar ounão com o perfil ali traçado, independente-mente do possível equívoco conceitual doarticulista quando se refere a sistema jurídi-co, pensando e argumentando como se setratasse do sistema judicial ou judiciário, averdade é que todos reconhecem a necessi-dade urgente da mais ampla e profunda re-forma do Poder Judiciário no Brasil, pelasrazões já fartamente apontadas neste traba-lho. Basicamente, é aquilo mesmo que o ar-ticulista da Exame expressou.

Mais do que isso, o articulista atribui àvontade e à decisão do Presidente da Repú-blica, vale dizer do Governo, a iniciativa dareforma (do “reconfigurar o sistema”, segun-do sua expressão). E tal tarefa, que reconhe-cidamente não foi feita pelo Governo atual,

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deve fazer parte dos compromissos políti-cos do próximo futuro Presidente ideal.

Na realidade, qual o papel do Governonessa reforma do Judiciário? Não necessa-riamente o de elaborar e encaminhar proje-tos de lei específicos ao Congresso. Isso podeser feito pelo Supremo Tribunal Federal e/ou pelos Tribunais Superiores, que são osórgãos do Poder Judiciário que têm compe-tência constitucional para a iniciativa de leisordinárias (art. 61, caput, da Constituição Fe-deral). A iniciativa presidencial das leis tema vantagem de poder ser acompanhada depedido de urgência para sua apreciação, oque implica que a Câmara dos Deputados eo Senado Federal votem a matéria em 45 dias,sucessivamente (§§ 1º e 2º do art. 64 da CF).O que o Presidente da República (isto é, oGoverno) simplesmente precisaria fazer éapoiar, com vontade política e dotações or-çamentárias, as medidas relacionadas à re-forma que já tenham sido concretizadas, ouque já o possam ser, como é o caso dos Jui-zados Especiais e dos Projetos em andamen-to no Superior Tribunal de Justiça. E esseapoio é o que vem sendo reclamado pelopróprio Judiciário.

5.2. O Banco já se encontra, indiretamen-te, envolvido com a Reforma do Poder Judi-ciário brasileiro, na medida em que está sen-do ultimado, no âmbito da Divisão de Esta-do e Sociedade Civil, Projeto de CooperaçãoTécnica Regional, sob o título “Globalizationand Urban Justice in the Americas”. Trata-sede operação, da ordem de US$ 137,000, quevisa ao financiamento de um “Workshop”no Tribunal de Justiça do Estado do Rio deJaneiro sobre “Urban Justice”.

O objetivo principal do Projeto é exami-nar metodologias, ferramentas e sistemasempregados por diferentes sistemas judiciá-rios do hemisfério, a fim de desenvolvermodelos e planos de ação que incorporemas melhores experiências e práticas relacio-nadas à superação dos desafios que essessistemas vêm enfrentando.

Entre os benefícios decorrentes da ope-ração proposta (conforme o item 2.10 do res-

pectivo Perfil – assim chamada uma faseprospectiva intermediária do diagnósticofeito pelo BID), imagina-se que ela produzi-rá impacto na reforma da Justiça na Améri-ca Latina e no Caribe, na medida em que ossistemas judiciários da Região façam usodos modelos e planos de ação formuladossob a égide da referida operação. O propósi-to do Tribunal de Justiça do Estado do Riode Janeiro, com esse “workshop”, seria o deinvestir recursos de contrapartida (US$37,000) na tentativa de receber feedback comrelação ao seu projeto de modernização ecomo uma fonte de novas idéias para au-mentar o nível de eficácia, de eqüidade e deacessibilidade do seu sistema judicial.

O background do Perfil desse Projeto mos-tra claramente (item 1.5) que a grande inova-ção do sistema judicial do Estado do Rio de Ja-neiro consiste, precisamente, na experiência dosJuizados Especiais. Nesse particular, a mes-ma experiência em outros Estados brasilei-ros se encontra tão ou mais desenvolvidaquanto naquele, como é o caso dos Estadosdo Rio grande do Sul, do Paraná e de MinasGerais, por exemplo.

Evidentemente, esse Projeto de Coopera-ção Técnica com o Tribunal de Justiça doEstado do Rio de Janeiro poderá servir comoum grande laboratório, de cujos resultadoso Banco poderá valer-se para ter uma realamostragem da situação do Poder Judiciá-rio estadual, no Brasil, e de outros sistemasregionais.

Mas, especificamente no caso brasileiro,com os resultados dessa operação, que serárealizada dentro em breve, o Banco pode-rá avaliar bem sua participação no apoioa uma efetiva reforma do Poder Judiciáriono Brasil.

Essa é a principal conclusão do (pré)diagnóstico realizado neste trabalho e quese articula com a recomendação a seguir.

VI - Recomendações

6.l. Tendo em vista que as medidas a se-rem adotadas no âmbito do Superior Tribu-

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nal de Justiça e da Justiça Federal (conformeos itens 4.2.1.1 e 4.2.1.2 acima) e aquelas emfase de implementação no âmbito da JustiçaEstadual, particularmente com os JuizadosEspeciais (conforme os itens 3.3.4.1 e 3.3.4.2acima) significam a perspectiva concreta deum novo Judiciário no Brasil (do ponto devista estritamente operacional ou operati-vo), a recomendação que cabe fazer no mo-mento – e que resumiria quaisquer outrasque pudessem ser apresentadas agora – éno sentido de que o Banco se mantenha in-teiramente aberto a uma possível iniciativaformal que órgãos do Poder Judiciário bra-sileiro venham a tomar proximamente, comvistas a solicitar apoio a programas de for-talecimento e modernização dos respectivossistemas judiciais.

Nesse sentido, o “Workshop” no Rio deJaneiro poderá ser muito positivo, ao sinali-zar para o Banco critérios e diretrizes a se-rem adotados e seguidos em futuras Mis-sões relacionadas a uma ampla reforma nosistema judicial brasileiro.

Especificamente, podemos destacar asações que merecem avaliação por parte doBanco.

6.2.1. No caso da Justiça Federal

– o Projeto de Tratamento Eletrônico deDocumentos;

– o Projeto de Implementação dos Cadas-tros Gerais de Partes e de Bens e Penhora daJustiça Federal;

– o Programa Permanente de Capacita-ção dos Servidores da Justiça Federal;

– o Programa de Intercâmbio Científicocom Instituições de Ensino, Pesquisas e In-formação Estrangeiras.

Todos esses Projetos e Programas estãoapresentados no item 4.2.1.2 acima.

Além desses, ainda no âmbito da JustiçaFederal, o Banco poderia avaliar sua even-tual participação em ações relacionadas aProgramas de Aperfeiçoamento da Infra-Estrutura de Informática, que estão sendoestruturados no Superior Tribunal de Justi-ça (conforme item 4.2.1.2 acima).

6.2.2. No caso da Justiça Estadual

Antes de tudo, é bom salientar que a Jus-tiça Estadual não pode ser vista, nem trata-da, de forma integrada, como ocorre com aJustiça Federal, em razão da autonomia dosEstados Federados. Portanto, cada sistemaestadual de justiça, no Brasil, tem suas pe-culiaridades de organização e de culturainstitucional. Somente uma pesquisa muitoampla, in loco, permitiria mapear as defici-ências e necessidades dos órgãos pertencen-tes à órbita de cada Tribunal de Justiça (es-tadual) no Brasil.

Por isso, no caso dos Juizados Especiais,o consultor optou por concentrar suas pes-quisas num órgão que congregasse a repre-sentação da direção superior de todos os Tri-bunais de Justiça. Esse órgão é o ColégioPermanente dos Presidentes dos Tribunaisde Justiça.

Evidentemente que cada um dessesTribunais enfrenta problemas nos cam-pos da informatização, da administraçãojudiciária, do aperfeiçoamento e treina-mento de recursos humanos, etc. Nessecaso, também o referido Colégio Perma-nente é a entidade em que deveríamosconcentrar a maioria dos trabalhos queimplique coleta de dados e informações, epesquisa. Também quando o assunto im-plique uma certa sintonia ou uniformida-de decisória, tal Colégio deveria ser o ór-gão preferencial para a concentração dostrabalhos.

Como os Juizados Especiais constituemhoje uma saída eficaz para uma parte sig-nificativa dos problemas que afetam asJustiças Estaduais, eles constituem o cam-po reconhecidamente fértil para açõesimediatas que visem a consolidar a expe-riência, que é federativa e, praticamente,de âmbito nacional.

Seria conveniente e possível, então, aoBanco avaliar seu apoio a programas queobjetivem:

– criar infra-estrutura de sistemas e ba-ses de dados específica para os Juizados;

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– capacitação de pessoal para a área deinformática e de apoio administrativo, am-bas específicas dos Juizados;

– estímulo à profissionalização e treina-mento de pessoal da Administração dos Jui-zados.

Tudo isso de acordo com sugestões dopróprio atual Presidente do referido Colé-gio Permanente (cf. item 4.2.2.3 acima).

Washington, D.C., 29 de Agosto de 1997.

Notas

1 Aproveita-se a oportunidade para esclarecerque a entrega do trabalho será acompanhada dedocumentos, usados como fonte informativa, osquais serão entregues aos cuidados da Chefia daDivisão l, vinculada à Região l, do Banco, a títulode Anexos do presente trabalho, para os fins que areferida Chefia entender devidos.

2 A propósito, ver A função das Procuradorias deFazenda no Brasil: problemas e soluções (ROSA, 1997,p. 8), trabalho deste consultor, realizado para aFiscal Division (FIS/INT) do BID, texto ainda nãopublicado, mas ali disponível.

3 Números relativos a dezembro/96, de acordocom Relatório de Julho/97 da Assessoria Judiciá-ria do Supremo Tribunal Federal, extraído do Ban-co Nacional de Dados do Poder Judiciário - BNDPJdo STF, p. 49.

4 Id.5 Id. citado na nota 2 acima (ROSA, 1997, p. 29).6 Id.7 Ver nosso A função das Procuradorias... (ROSA,

1997, p. 71).8 Cf. CASTILHO, Ela Wiecko V. de. A garantia

dos direitos humanos pela justiça na América Latina.Primeira parte: A independência da justiça e do juiz (p.4 de um texto avulso, digitado, sem qualquer ou-tra referência a eventual publicação, obtido por meiode fotocópia). O dado se baseia no Relatório PAR-TICIPAÇÃO Político-Social (1990, v. 1), que já deveestar desatualizado, mas que não invalida a utili-dade do dado.

9 Cf. A garantia dos direitos humanos... (CASTI-LHO, p. 20).

10 Ibid., p. 21.11 Os dados são extraídos do Banco Nacional

de Dados do Poder Judiciário - BNDPJ, referido nanota 3 acima.

12 Utilizar-se-ão os dados extraídos da fontemencionada nas notas 3 e 11 acima.

13 Este consultor compareceu a esse Fórum,durante Missão do Banco. A propósito da referên-

cia ao Conselho da Justiça Federal, este não é umórgão jurisdicional do Poder Judiciário, mas funci-ona junto ao Superior Tribunal de Justiça, caben-do-lhe exercer a supervisão administrativa e orça-mentária da Justiça Federal de 1º e 2º graus, con-forme o disposto no parágrafo único do art. 105 daConstituição Federal.

14 Conferir anotações pessoais deste consultor,feitas durante a exposição oral do Ministro. Poste-riormente, cópia do texto completo dessa exposi-ção, revisada e rubricada pelo expositor, foi entre-gue ao consultor. O titulo da palestra é “O Judiciá-rio como Poder: legitimidade e controle”. O tópico6 do respectivo sumário, onde é abordado o temada “autonomia administrativa e unidade do PoderJudiciário”, encontra-se desenvolvido nas págs. 10a 18 da cópia digitada.

Os argumentos com que o Ministro José Nérida SILVEIRA sustenta sua opinião sobre a questãoda autonomia do Poder Judiciário estão repetidosem vários outros trabalhos desse eminente Magis-trado brasileiro, um dos quais intitulado Aspectosinstitucionais da independência do Poder Judiciário (1993,p. 8-16).

15 Conferir Aspectos institucionais... (SILVEIRA,1993, p. 22).

16 O judiciário como poder... citado na nota 14acima, p. 22.

17 Ibid., p. 23 (conferir nota 15).18 Antônio de Pádua RIBEIRO (1991, p. 224);

Sacha Calmon Navarro COELHO (1993, p. 41).19 Carlos Alberto de Menezes DIREITO (1992,

p. 271).20 Conferir o nosso A função das procuradorias...

(ROSA, 1997, p. 8-17).21 Ibid., p. 9.22 Id.23 Ibid., p. 10.24 Ibid., p. 11-12.25 Ibid., p. 70-71.26 Ibid., p. 71-73.27 A propósito, ver DALLARI (1996), especial-

mente sobre o assunto p. 77-79.28 Conferir Carlos Alberto de Menezes DIREITO

(1992, p. 272 et seq.).29 Trata-se do assim denominado Relatório pro-

duzido no âmbito do Poder Judiciário do Estadodo Rio de Janeiro, trabalho que consistiu num “di-agnóstico do aparelho judicial do Estado”, “cen-trado no tempo de duração real de processos deritos ordinário e sumaríssimo”. É um trabalho inte-ressantíssimo e indispensável ao exame crítico dasituação da Justiça Estadual no Brasil. A íntegrado Projeto se encontra no volume intitulado Justiça:promessa e realidade: o acesso à justiça em paísesibero-americanos (ASSOCIAÇÃO DOS MAGIS-TRADOS BRASILEIROS, 1996, p. 379-402). O vo-lume reúne os textos das exposições feitas no Semi-

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nário Ibero-Americano: o magistrado, o Poder Judici-ário e o acesso à justiça, no Rio de Janeiro. O “Pro-jeto de Auto-Análise do Poder Judiciário” se en-contra nas págs. 379 a 402 do citado volume.

30 Ibid., p., 381-382.31 Ibid., p., 400-402.32 AJUFE (Associação dos Juízes Federais). In-

formativo nº 15, maio/97, editorial sob o título “Amobilização nacional dos Juízes do Brasil pela .ci-dadania e justiça”.

33 Luiz Flávio GOMES (1997).34 Ibid., p. 255.35 Conferir matéria publicada no jornal Correio

Braziliense, de 30-06-97, no caderno Direito & Jus-tiça, sob o título Reforma do Judiciário (MELLO, 1997,p. 1) (trechos da conferência proferida na aberturado Fórum Nacional dos Debates do Poder Judiciá-rio...).

36 Cármem Lúcia Antunes ROCHA (1996, p. 45).37 José Eduardo Faria é Professor do Departa-

mento de Filosofia e Teoria Geral do Direito daUniversidade de São Paulo; pesquisador do Centrode Estudos Direito e Sociedade (CEDISO) da USP;autor de várias obras publicadas.

38 Conferir FARIA (1995. p. 32-33). A leitura,na íntegra, dessa monografia, de 88 páginas, é ex-tremamente recomendável para o estudioso dos pro-blemas que hoje afetam o Judiciário brasileiro.

39 José Eduardo FARIA (1996, p. 162-168). Oconsultor considera esse texto como sendo de lei-tura obrigatória a todos os operadores (expressãohorrorosa, mas de uso atual corrente no Brasil) doDireito.

40 Ibid., p. 162 et seq.41 Ver, dentre inúmeros livros e artigos sobre o

tema, DINAMARCO (1996).42 Conferir Eugênio Raul ZAFFARONI (1995,

p. 125).43 Chama-se “proposta de emenda constitucio-

nal” a modalidade do processo legislativo brasilei-ro destinada, especificamente, a alterar a Consti-tuição.

44 O texto foi publicado em separata e encami-nhado ao Congresso Nacional em junho de 1997.

45 O texto do Juiz José Renato Nalini está publi-cado na Revista dos Tribunais, ano 85, v. 724, fev.1996, p. 115-162.

46 Conferir Fátima Nancy ANDRIGHI (1996,p. 23).

47 Ibid., p. 19, tabela 17.48 Ibid., p. 4, tabela 2.49 Ibid., p. 6, tabela 4.50 Ibid., p. 20, tabela 18, figura 10.51 Ibid., p. 24.52 Ver, a propósito, o nosso A função das procura-

dorias... (ROSA, 1997, p. 61-62, subitem 3.3.4.3.2).53 A propósito, ver comentários que fizemos

sobre o tema em nosso A função das procuradorias...

(ROSA, 1996, p. 77-78, subitem 3.3.4.4.5, p. 89,subitem 3.3.4.6.5).

54 A função das procuradorias... (ROSA, 1996, p.62-63, subitem 3.3.4.3.3, p. 85, subitem 3.3.4.5.6).

55 A proposta foi tema de palestra no mencio-nado I Fórum Nacional de Debates sobre o PoderJudiciário, realizado pelo Superior Tribunal de Justi-ça em Brasília (junho/97), cujo respectivo texto nãoconsta que tenha sido publicado até o momento.

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Márcia Ferreira Cunha Farias

Introdução

Peter HÄBERLE, professor titular de Di-reito Público e de Filosofia do Direito daUniversidade de Augsburg, na Alemanha,afirma que o Juiz não é o único intérprete daConstituição, pois os cidadãos e todos aque-

A norma no pragmatismo jurídico e a lógicado razoávelUm paralelo da filosofia jurídica de Oliver WendellHolmes e de Luis Recaséns Siches

Márcia Ferreira Cunha Farias é Procura-dora-Geral do Ministério Público junto ao Tri-bunal de Contas do Distrito Federal. Mestran-da em Direito Público pela UFPE.

Sumário

Introdução. 1. Segurança jurídica, decisãojudicial e o pragmatismo na tópica de Viehweg;1.1. Direito e arbitrariedade. 1.2. A função prag-mática das decisões judiciais e a necessária cons-trução de uma lógica judicial argumentativa econcreta. 2. Recaséns Siches e a lógica do razoá-vel. 2.1. Recaséns Siches e a filosofia do Direi-to. 2.2. Recaséns Siches e a lógica do razoávelcomo mecanismo de segurança jurídica. 3. Di-mensões da lógica do razoável. 3.1. Aspectohistórico e fático da lógica do razoável. 3.2.Aspecto valorativo da lógica do razoável. 3.3.Aspecto concreto da lógica do razoável. 3.4. As-pecto teleológico e cultural da lógica do razoá-vel. 3.5. Aspecto proporcional da lógica do ra-zoável. 4. O pragmatismo norte-americano. 4.1.O pragmatismo como teoria do significado navisão de seu fundador. 4.2. O aspecto moral dopragmatismo na visão de William James. 4.3.O aspecto jurídico do pragmatismo na visão deHolmes. 5. A lógica do razoável e a visão prag-mática do Direito como métodos hermenêuti-cos de condução à segurança jurídica. 5.1. A ló-gica formal e a lógica do razoável. 5.2. A lógicaformal e a lógica jurídica de Holmes. 5.3. Alógica jurídica de Holmes e a lógica do razoá-vel como métodos hermenêuticos de condu-ção à segurança jurídica.

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les que participam da sociedade, indivíduose grupos, a opinião pública, são forças vigo-rosas de interpretação, partindo do pressu-posto de que não existe norma jurídica, se-não norma jurídica interpretada (1997).

A decisão judicial não decorre da puraaplicação da lei considerando um determi-nado caso concreto. Ao contrário, a decisãojudicial é, essencialmente, uma decisão hu-mana. O Juiz não apenas aplica o Direito,mas o constrói.

O Juiz, ao proferir a sentença, ponto fi-nal do processo decisório, faz uma adequa-ção da norma, genérica e abstrata, a umarealidade concreta, transformando em Di-reito aplicado um Direito posto.

O ponto relevante da obra de RecasénsSICHES consiste em que, independentemen-te da vontade da lei ou da vontade do legis-lador, o processo de individualização dasleis nas decisões judiciais refere-se, maisespecificamente, à sua concretude e à suatemporalidade. Assim, o juiz, como afirmaMargarida Lacombe CAMARGO, ao privi-legiar os efeitos concretos do Direito na so-ciedade, “muitas vezes depara-se com a ne-cessidade de uma releitura da lei para fazerjustiça, ou, ao menos, evitar injustiça. Mas,para escapar de qualquer tipo de crítica ouacusação em virtude de terem agido arbitrá-ria ou negligentemente, ameaçando a ordeme a estabilidade social, precisam os juízeselaborar uma justificativa que apresente umaaparência lógica e que seja, portanto, con-vincente. O que Recaséns SICHES almeja éque os juízes possam agir sem culpa; fazerjustiça sem culpa, ‘sob a luz do meio-dia’”(1999, p. 167).

Em relação a Oliver Wendell HOLMES,a pedra angular de sua filosofia jurídica é aidéia de que o Direito é experiência, e nãoprocedimento lógico1. HOLMES pregavaque o magistrado, ao julgar, deveria obser-var, sempre, as circunstâncias do caso con-creto e sua inserção na sociedade. Assimtambém a lei desenvolver-se-ia na mesmamedida das mudanças sociais. O conceitode razoável, embora não explícito em HOL-

MES, expressa-se na adequação da norma àrealidade social; novamente, contudo, o ra-zoável não pode ser um conceito egocêntri-co: HOLMES adotou a doutrina do judicialrestraint, segundo a qual o juiz não deveriadeixar que suas opiniões sociais dominas-sem a fundamentação de suas decisões.

É nesse contexto de estabilidade dinâ-mica que surge o postulado da segurançajurídica. Assim, a segurança jurídica podeser vista como um valor transcendente aoordenamento jurídico, no sentido de que asua investigação não se confina ao sistemajurídico positivo, mas, antes, inspira os no-mos que, no âmbito do Direito, atribuem-lheefetividade. É preciso dar a cada cidadão acerteza de que, ao pleitear um direito juntoao Poder Judiciário, não será surpreendidocom mudanças absurdas na aplicação dalei ou em sua interpretação; no entanto, de-verá, também, ser garantida a adequação danorma às circunstâncias fáticas do caso.

O presente trabalho tem por objetivo de-monstrar que a lógica do razoável de Reca-séns SICHES e a visão da norma no prag-matismo de Oliver Wendell HOLMES cons-tituem métodos hermenêuticos que se coa-dunam com a Tópica e a Argumentação.Além disso, podem conduzir à segurançajurídica, posto que razoável não é simples-mente o que cada juiz entende por “razoá-vel” – necessária se faz a busca do razoávelnos limites impostos pela lei e que tendem aconduzir a uma uniformidade mínima, emrespeito a essa segurança jurídica.

1. Segurança jurídica, decisão judicial eo pragmatismo na tópica de Viehweg

1.1. Direito e arbitrariedade

Conforme ensina Recaséns SI-CHES:

“La arbitrariedad consiste, pues,en que el poder público, con un meroacto de fuerza, salte por encima de loque es norma o criterio válido y vigen-te en un caso concreto y singular, sin

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responder a ninguna norma o crite-rio, o principio de carácter general, ysin crear una nueva regla que anulela anterior y la sustituya. Podemosdecir metafóricamente del mandatoarbitrario que no tiene padres ni en-gendra hijos; es decir, que no se basaen un criterio, principio o norma ge-neral, y que a su vez no engendra nin-guna nueva norma. El mandato arbi-trario es el que simplemente respondea un mero porque sí, porque me da lagana, porque así es me antoja; en suma,el que corresponde a un capricho queno dimana de un criterio general. Encambio, el mandato jurídico es el fun-dado en normas, criterios o principiosobjetivos, de una manera regular y quetiene validez para todos los casos aná-logos que se presenten.

Es precisamente característicaesencial de la norma jurídica el ligarde modo necesario al mismo poder que ladictó – se entiende, mientras ese poderno la derrogue con carácter general,en ejercicio de una competencia deigual rango que la que teria la autori-dad que había creado la norma ante-rior”(1979, p. 108).

A arbitrariedade para Recaséns SICHESé uma afronta direta ao ordenamento jurídi-co. É a indevida unificação entre a ativida-de legislativa e a atividade judicial de umaforma absoluta. É o desrespeito, por ato in-justificado por regras ou princípios, ao con-junto de normas estabelecidas previamentepara regular a relação social; é a busca dasolução do problema fora do sistema jurídi-co; é a incerteza do jurisdicionado do desti-no a ser dado à sua lide.

Nos termos das colocações de Margari-da CAMARGO:

“O pensamento jurídico moderno,ou as várias correntes filosóficas quepensaram o direito no século XIX, de-tiveram suas preocupações em tornodos valores que servem de essência aopróprio Direito. Seriam eles: a justiça,

a certeza e a segurança. Entendemosque toda condição ética e moral con-centra-se no âmbito da justiça, assimcomo a ordem se refere à certeza e àsegurança. É repassarmos a históriado mundo moderno para percebermosque, mesmo antes da questão da ‘jus-tiça’, impõe-se a necessidade da ‘se-gurança’”(1999, p. 57).

A segurança e a ordem são os valorestípicos do mundo moderno. Com eles deu-se a criação do Estado de Direito, cujo obje-tivo foi o de estabelecer previsões e evitar oarbítrio.

Sobre o Estado de Direito, rica é a coloca-ção de SICHES:

“El poder público está ligado porlas normas formalmente válidas, in-cluso por las mismas que él haya dic-tado; y obra jurídicamente sólo en lamedida em que se acomode a ellas, ydentro de las facultades, que las mis-mas le concedam”(1979, p. 109).

Conforme sintetiza José Afonso da SIL-VA (1995, p. 113-122), as características doEstado de Direito, ou do Estado Liberal deDireito, eram:

(a) submissão ao império da lei;(b) divisão de poderes;(c) enunciado e garantia dos direitos in-

dividuais.O individualismo e o neutralismo do

Estado liberal conduziram a graves injusti-ças, e a necessidade de justiça social trouxea concepção do Estado Social de Direito, como perfil de compatibilização entre o capita-lismo e o assistencialismo.

Na verdade, a igualdade, na concepçãoclássica do Estado de Direito, tinha por fun-damento a generalidade das leis, elementopuramente formal e abstrato. No cotidianoda sociedade, não havia como efetivar essaigualdade.

Mais recentemente, as Constituições dosEstados buscam efetivar o Estado Democrá-tico de Direito, que tem por fim a organiza-ção social institucionalizada e a garantiaeficaz dos direitos por meio de princípios,

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da hierarquia de normas, da democracia,dos direitos fundamentais, da justiça sociale da divisão de poderes (SILVA, 1995, p. 122-123).

Por outro lado, na pós-modernidade, asegurança e a ordem não são vistas comovalores absolutos garantidos pelo formalis-mo do racionalismo jurídico-matemáticoque caracterizou a Escola da Exegese2.

Abre-se espaço para o valor da justiça,garantido pela razoabilidade referente acada caso concreto.

Nesse aspecto, não se pode confundir oato arbitrário com o poder judicial criador.No arbítrio, ocorre um mero capricho, comojá transcrito de Siches (porque sí, porque meda la gana). A decisão arbitrária não se vin-cula a nenhum elemento do ordenamentojurídico, seja ele princípio ou regra.

No Estado Democrático de Direito, a es-fera na qual os Tribunais atuam não é umespaço privado, mas, sim, um espaço públi-co, na medida em que suas decisões produ-zem reflexos na sociedade, no Estado que sequer democrático e na vida dos cidadãos.Isso porque, enquanto os Poderes Legislati-vo e Executivo buscam no voto popular sualegitimidade, o Poder Judiciário há de al-cançá-la no exercício pleno das atribuiçõesque lhe são conferidas pela soberania po-pular, somente podendo ser fiscalizada econtrolada a correção desse exercício pormeio da publicidade dos meios de tomadade decisões, que definam a maneira com quese fez uma opção entre as existentes (HA-BERMAS, 1997, p. 17).

A importância da função de justificaçãoda decisão posta pelo Poder Judiciário reve-la-se em preceito constitucional, na medidaem que a fundamentação das decisões judi-ciais está expressamente prevista no art. 93,inciso IX, verbis:

“IX - todos os julgamentos dos ór-gãos do Poder Judiciário serão públi-cos, e fundamentadas todas as decisões,sob pena de nulidade, podendo a lei, seo interesse público o exigir, limitar apresença, em determinados atos, às

próprias partes e seus advogados, ousomente a estes” (grifo nosso).

1.2. A função pragmática das decisõesjudiciais e a necessária construção de umalógica judicial argumentativa e concreta

A argumentação jurídica figura, também,como expressão da racionalidade da dog-mática jurídica. No entanto, interessa nãoapenas ao jurista ou ao filósofo do Direito,como também ao cidadão participante dasquestões relativas à coisa pública. Portanto,a função pragmática do Direito interessa nãosó ao caráter científico da ciência do Direi-to, mas, principalmente, à segurança dasdecisões judiciais.

1.2.1. Relevância do pragmatismo nodiscurso jurídico

A validade do pensamento pode estarcomprometida numa forma lingüística de-feituosa ou pouco transparente. Daí a pos-sibilidade de uma abordagem pragmáticapara as ciências sociais, uma vez que, nessaárea do conhecimento, afiguram-se clarasas deficiências semânticas da linguagem.Eis por que a lógica moderna deve ter umraio de abrangência muito maior que a clás-sica, justificando-se, pois, a criação de umalógica própria para o trato das ciências so-ciais que ressalte o acentuado conteúdopragmático da linguagem jurídica; logo, tor-na-se fundamental afirmar que, diante detextos normativos denotativamente impre-cisos (vagos), como o texto constitucional,faz-se necessário o recurso à argumentação,como raciocínio que visa à aplicação dasnormas jurídicas aos casos concretos3.

Nesse sentido, o processo argumentati-vo não tem como ponto de partida evidências(juízo de realidade), mas sim juízos de va-lor, que são resgatados por meio das nor-mas jurídicas. A argumentação no Direitopressupõe a articulação de um discursocom o fim de persuadir o órgão responsávelpela decisão ou, ainda, por eventual revi-são da decisão a aderir à interpretação quese quer ter como vinculante para o caso con-

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creto (conflito social que exige decisão jurí-dica), ou, no caso da Suprema Corte, o con-vencimento de que a sua decisão (até porser definitiva) é a mais acertada.

Segundo Aristóteles, há argumentaçõesrigorosas, lógicas, estabelecidas a partir deprincípios indubitáveis, evidentes, e há ar-gumentações dialéticas, imprecisas, elabo-radas a partir de meras opiniões e princí-pios dubitativos.

Se, no primeiro caso, fica fácil obter oconvencimento dos destinatários da comu-nicação, o mesmo não ocorre com o último,que necessita de artifícios e estratagemaspara se impor. É aí que ressalta a importân-cia da retórica, como arte de persuadir e con-vencer os ouvintes. Para Santo Isidoro deSevilha, a retórica é a ciência do bem falarnos assuntos civis, para persuadir o ouvin-te de coisas justas e boas, com abundânciade eloqüência.

Ora, o Direito, em toda a sua complexarealidade, consiste justamente numa tarefade convencer e persuadir a respeito de cer-tas situações, o que o torna eminentementeargumentativo e hermenêutico.

Tal tarefa, no âmbito do Supremo Tribu-nal Federal, mostra-se fundamental, tendoem vista até a impossibilidade de reformade seus pronunciamentos, que só poderãoser objeto de crítica da opinião pública.

Há que ressaltar os aspectos pragmáti-cos da linguagem jurídica nesse particular,em virtude de que os discursos que inten-tam fazer prevalecer uma determinada in-terpretação das normas jurídicas possuemapenas um uso ou função informativos (en-quanto meras descrições das normas jurídi-cas), mas surgem como explicitamente dire-tos e expressivos, porquanto destinados ainfluir na decisão a ser tomada pelo órgãocompetente, e também porque envolvem nãoapenas aspectos racionais, mas tambémemotivos, em face da carga emocional dostermos e expressões invocados em susten-tação a uma determinada interpretação.

A retórica assume, nesse contexto, papelprimordial enquanto processo argumenta-

tivo que, ao articular discursivamente valo-res, tem por objetivo a persuasão dos desti-natários da decisão jurídica quanto à razoa-bilidade da interpretação prevalecente4.

A fundamentação das decisões judiciaisexpressa-se por meio de discursos retóricos,como processos argumentativos que, ao ar-ticular valores, visam a persuadir as partese os órgãos responsáveis por eventual revi-são dessa decisão da razoabilidade da in-terpretação esposada pelo órgão prolator damesma. Põe-se em relevância, desse modo,que, além das peças e das sustentações oraisproduzidas pelas partes do processo, tam-bém os atos decisórios do Poder Judiciárioapresentam, nesse contexto, um conteúdoeminentemente retórico.

Nesse sentido, Learned Hand (CARTER,1985, p. 258), Juiz da Suprema Corte norte-americana, ilustra que “um juiz deve pen-sar em si mesmo como um artista... que em-bora conheça os manuais, nunca deveriaconfiar neles para guia; em última instân-cia, deve confiar no sentido instintivo acer-ca de onde reside a separação entre a pala-vra e os propósitos que subjazem atrás dela;deve atuar de forma a ser correto com am-bos”. Assim, o autor prega a necessidadeda busca dos valores na norma jurídica, osquais são objeto precípuo da lógica do razoá-vel e da visão de norma no pragmatismojurídico de Holmes.

1.2.2. O conteúdo pragmático do Direitoe o pensamento tópico

Em seu livro Tópica e jurisprudência, The-odor VIEHWEG (1979) analisa o pensamen-to dogmático que tem predominado no di-reito através dos séculos e procura demons-trar o caráter do discurso de que se utilizamos juristas, notadamente nas práticas judi-ciais, ressaltando o caráter aporético da ju-risprudência (conflito entre opiniões).

Desde logo, cumpre observar que, dife-rentemente dos sistematizadores dos quaisKelsen é o exemplo mais típico, Viehweg nãocriou nem propôs um novo tipo de discursopara o direito, mas vislumbrou-o ao anali-

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sar as produções jurídicas em que tal dis-curso se encontrava latente ou implícito. Ométodo tópico-retórico não foi, pois, criadopor Viehweg, mas reencontrado e difundi-do pelo pensador alemão.

A tópica é muito antiga e teve opositorescomo Sócrates e Platão, que a consideravamcomo uma condenável arte de disputar per-tencente ao domínio dos retóricos e sofistas.Aristóteles, que lhe deu nome de “Topika”,reservou para a filosofia o discurso apodíti-co e para a tópica, o discurso dialético, sig-nificando com isso que aquela se ocupa doverdadeiro, enquanto esta, do meramenteopinável. O pensador grego chegou a proje-tar um catálogo de tópicos universais paratodos os problemas pensáveis e Cícero utili-zou conscientemente o discurso tópico-re-tórico.

Sinteticamente, a tópica constitui técni-ca de pensamento que se orienta a partir doproblema que se quer solucionar. Opõe-seao pensamento sistemático, que se orienta apartir de um paradigma geral. Segundo opensamento tópico, o que releva é a soluçãodo problema, não importando a qual ou aquais sistemas tenha-se de recorrer para isso– é uma busca de caminhos para eliminaruma aporia. Segundo o pensamento siste-mático, o que importa é a fidelidade ao sis-tema: se determinado problema não encon-tra solução dentro do sistema utilizado, éporque se trata de um problema insolúvel.Para o pensamento tópico, pelo contrário,não existe problema insolúvel.

A técnica do pensamento problemático,portanto, não parte do ponto de vista geralpara resolver o caso particular; pelo contrá-rio, põe o problema particular no primeiroplano de atenção e, sem jamais perdê-lo devista, faz incursões nos diversos sistemasexistentes em busca de pontos de vista quelhe sejam pertinentes. Esses pontos de vistasão os topoi ou tópicos, lugares-comunsrevelados pela experiência bem sucedida.Isolados, não têm os tópicos nenhuma rela-ção entre si. O que os relaciona e atrai sãoos dados do problema e o que os elege ou

rejeita é a solução que se pretenda dar aoproblema.

Segundo VIEHWEG (1979), existem tó-picos universais e tópicos somente aplicá-veis a determinado ramo do saber.

A verdade é que os tópicos encontram-se em todos os ramos do conhecimento, nãoapenas nas chamadas ciências humanas,mas até mesmo em algumas das ditas ciên-cias exatas. O próprio legislador por vezesos recolhe, dando-lhes status de lei. Os tópi-cos nada mais são que opiniões acredita-das que, por seu poder retórico, dispensamverificação ou demonstração. Eles nada têmcom a verdade (tomada essa palavra comseu usual sentido absoluto), mas sim com averossimilhança. As conclusões que se ob-têm, quando tópicos são tidos como premis-sas, não são lógicas, mas dialéticas. Portan-to, a tópica é uma prática de argumentação.

Com base na leitura da obra de VIEHWEGe na de Aristóteles, identificam-se, pois, cincopassos a serem seguidos pelo operador jurí-dico com a finalidade de convencer sua pla-téia (aspecto pragmático da linguagem) e,conseqüentemente, comunicar-se:

1º passo: a determinação do problema,ou seja, a identificação e delimitação do casocom todas as suas circunstâncias;

2º passo: o inventário dos tópicos perti-nentes ao caso;

3º passo: a seleção dos tópicos pró e con-tra, agrupando-os segundo as soluções pos-síveis para o caso;

4º passo: a montagem da argumentação,exaltando os tópicos pró e desqualificando(refutando ou omitindo) os tópicos contraem relação à solução eleita pelo intérprete;

5º passo: a síntese da conclusão julgadajusta.

Observa-se que, subjacente ao raciocíniode Viehweg, encontra-se a noção da impor-tância do fato concreto para a resolução doproblema jurídico, conforme ressaltado porRecaséns Siches na análise da realidade fá-tica que se constitui em uma das caracterís-ticas del logos de lo razonable; do mesmomodo, parte Holmes da experiência, da re-

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petição de casos concretos, para apresentara lógica jurídica5.

2. Recaséns Siches e alógica do razoável

2.1. Recaséns Siches e a filosofia do Direito

Luís Recaséns Siches, Professor catedrá-tico da Universidade de Madrid e professoremérito da Universidade Nacional do Mé-xico, filósofo, advogado e historiador, foidíscipulo de Ortega Y Gasset e buscava in-tegrar o valor histórico da existência huma-na como pressuposto para elaboração deuma teoria de valores.

Na visão de REALE, sobre filósofos jurí-dicos relacionados à teoria tridimensionaldo direito, “lugar à parte ocupa Luís Reca-séns Siches, o qual, através de uma originalconcepção inspirada nos princípios do ‘ra-ciovitalismo’ de Ortega y Gasset, elaborou,inicialmente, um tridimensionalismo pers-pectivístico, que exerceu larga influência nomundo jurídico latino-americano, para, afi-nal, acolher a solução por mim proposta,em termos de ‘tridimensionalidade especí-fica’”(2001, p. 41).

Recaséns SICHES tinha, como Reale,uma visão tridimensional do Direito em va-lor, norma e fato:

“Nessa concepção conservam-seas três dimensões de que tenho trata-do – valor, norma e fato –, porém in-dissoluvelmente unidas entre si emrelações de essencial implicação. Odireito não é um valor puro, nem émera norma com certos característicosespeciais, nem é um simples fato soci-al com notas particulares. O Direito éuma obra humana social (fato) de for-ma normativa destinada à realizaçãode valores”(1975, p. 159).

Portanto, é relevante a contribuição deRecaséns Siches à teoria tridimensional, noestudo da conceituação do direito e no daconcreção do fenômeno normativo, visto sero direito um produto de cultura, e, por con-

seguinte, histórico, cujas três dimensões nãose dão como três objetos justapostos, massão, ao contrário, três aspectos essencial-mente entrelaçados, de modo indissolúvel erecíproco.

Nesse aspecto, ressalta REALE :“Em outro ponto a doutrina de

Recaséns coincide com a que venhoexpondo, embora por outros funda-mentos: é quanto à historicidade es-sencial da experiência jurídica, quenão exclui mas antes implica o reco-nhecimento das que denomino inva-riantes axiológicas, condicionadorasdas situações sociais históricas parti-culares. O pensamento de Recasénssitua-se nos quadros de uma amplacompreensão do direito como expe-riência que se desenvolve segundoexigências da ‘razão vital’ e da razãohistórica, não segundo relações lógi-co-matemáticas do logos da razão abs-trata, mas sim em consonância com ologos concreto do razoável, que encon-tra nos motivos existenciais a sua fon-te constitutiva”(2000, p. 42).

Margarida Lacombe CAMARGO, poroutro lado, coloca a contribuição de Reca-séns Siches no âmbito do que ela chama depós-positivismo:

“Luis Recaséns Siches escreve a‘Nova Filosofia da Interpretação doDireito’ sob o impacto da crise vividapelo direito nos anos que se seguiramà Segunda Guerra Mundial, e que deuorigem ao que podemos chamar ago-ra de pós-positivismo. Entendemoscomo pós-positivismo o pensamentojusfilosófico que enfrenta mais de per-to as insuficiências do modelo lógico-formal para o tratamento das questõesjurídicas.

Recaséns Siches fala em crise, ba-seando-se no fato de que os valoresda sociedade de sua época não cor-respondiam mais aos valores consa-grados anteriormente. A certeza e aobjetividade trazidas pelo cientificis-

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mo e pelo formalismo não se adequa-vam mais ao clamor da verdadeirajustiça, encontrada na sociedade.Caem os sistemas formais e a filosofiado direito tem que dar conta de umanova fundamentação e método queentão se impunham”(1999, p. 157).

Dirceu GALDINO ressalta a contribuiçãode Recaséns Siches na lógica do razoável:

“A lógica do razoável quebra a ló-gica formal (tradicional), porque reco-nhece que a norma jurídica é um pro-duto da vida humana, e, especifica-mente, é vida humana objetivada. Emsua estrutura, a norma, imposta peloEstado, incorpora um tipo de açãohumana, que se torna uma condutapara ação, um critério ou um plano.Contudo, esses elementos não podemser captados inteiramente pela lógicaformal, insensível às suas caracterís-ticas específicas. Para apreender-lhesa essência, tornam-se imprescindíveismétodos adequados que se afeiçoemà natureza do objeto – a vida humana– e que também decorram da razão.

Frente à vida humana há que seradotada uma atitude finalística, valo-rativa. Daí não se captar a norma jurí-dica, em sua essencialidade, senãocom métodos tomados da lógica, masde uma lógica especial, a lógica dorazonable. Essa lógica tem por pressu-posto experiências humanas, realida-des e juízos de valor. Alicerçando-senesses elementos, aprecia-se e revive-se uma norma jurídica, em cada caso;de maneira que a solução por ela apre-sentada para um caso determinadonão terá a generalidade que a lógicatradicional apregoa, porém estará im-pregnada de particularidade valora-tiva, de especificidade”(1990).

2.2. Recaséns Siches e a lógica do razoávelcomo mecanismo de segurança jurídica

Ao constatar que a filosofia jurídica aca-dêmica do século XX não vinha desempe-

nhando papel suficientemente importanteno desenvolvimento do Direito de nossaépoca, Recaséns Siches buscou, para alar-gar os horizontes de juízes e advogados,idéias que servem como fonte de inspiraçãopara o aperfeiçoamento do Direito positivo.

Entre suas contribuições, a que mais sedestaca no âmbito deste estudo é a propostaarticulada de uma nova filosofia da inter-pretação do Direito que propõe uma revisãodas concepções tradicionais da função ju-dicial e dos métodos interpretativos, mas,também e sobretudo, procura definir as ba-ses teóricas de uma lógica material do Direi-to, a ser utilizada em substituição à lógicatradicional: trata-se da lógica do razoável.

Em sua obra sobre uma nova filosofia deinterpretação, em contraponto à logica for-mal, afirma Recaséns SICHES:

“El Derecho es seguridad; pero,seguridad en que? Seguridad en aque-llo que se considera justo y que a lasociedade de una época le importafundamentalmente garantizar, por es-timarlo ineludible para sus fines. (...) Loque el derecho debe proporcionar esprecisamente seguridad en lo justo.

(...) Lo que el Derecho puede ofre-cernos es sólo un relativo grado decerteza y seguridad, un mínimum in-dispensable de certeza y seguridadpara la vida social”(1986, p. 15).

Conforme assinala Margarida CA-MARGO, na época em que RecásensSiches desenvolve sua teoria da lógi-ca do razoável, “o aparelho judicialdo Estado é chamado a dar efetivida-de aos direitos sociais consagradosem lei após muito esforço e muita luta”(1999, p. 159).

Trata-se da visão de justiça distributivaque se impõe, retirando a exclusividade dosvalores relativos à segurança da ordem so-cial, sob a ênfase do individual. A crise quese verifica corresponde, na realidade, à ten-são existente, por um lado, entre as exigên-cias de certeza e segurança e os novos valo-res relativos à justiça; e, de outro, à necessi-

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dade natural de ordem e estabilidade soci-ais, diante dos anseios, também naturais,por novas transformações que acompanhemo progresso.

Para defesa de uma nova filosofia, Reca-séns Siches estabelece, em seu trabalho, nostermos de Margarida CAMARGO:

“uma distinção entre filosofia jurí-dica acadêmica e filosofia jurídica não-acadêmica. A primeira correspondeàquela ensinada nas universidadessob o título de Teoria Geral do Direito,cuja preocupação é divulgar concei-tos de ordem geral cabíveis em todo equalquer ordenamento jurídico comoinstrumento facilitador para o trata-mento científico de questões específi-cas de direito. Seriam, basicamente, osconceitos de sujeito de direito, objetojurídico, fato jurídico, relação jurídi-ca, a distinção entre direito e moral,os ramos do direito etc. Diferente é afilosofia jurídica não-acadêmica, quese mostra mais preocupada com osproblemas oriundos da prática jurí-dica, independentes de conceitos deordem geral. O aplicador do direitomuitas vezes se depara com proble-mas que dificultam a escolha da nor-ma certa para o caso certo, bem comoa escolha do conteúdo certo para aque-le caso”(1999, p. 159-160).

Assim, a filosofia não-acadêmica almejaresolver questões pertinentes à interpreta-ção e à aplicação do Direito. Notando a im-portância do valor jurídico certeza, sem sedescuidar da justiça, Recaséns Siches pro-cura um método, uma lógica própria paraas questões humanas.

Não sendo arbitrário, o agir humanopossui uma razão própria, distinta das quemovem os fenômenos da natureza. As obrashumanas são dotadas de sentido, de finali-dade, de objetivo. Assim, meios e fins se re-lacionam, também, no contexto da referên-cia histórica.

Nas palavras do próprio Recaséns SI-CHES:

“El análisis de la humana existen-cia y, sobre todo, de la acción humanadescobre los siguientes pontos:

A) Que el hombre actúa u operasiempre en un mundo concreto, enuna circunstancia real, limitada y ca-racterizada por rasgos y condicionesparticulares.

B) Que ese mundo concreto es li-mitado, es decir, que ofrece algunasposibilidades, pero que carece de otrasposibilidades.

C) Que en la búsqueda, mediantela imaginación, de lo que es posibleproducir en ese mundo limitado y con-creto para resolver el problema de unanecesidad, intervienen múltiplas va-loraciones: Primero, sobre la adecua-ción de la finalidad o meta para satis-facer la necesidad en cuestión; segun-do, sobre la justificación de ese findesde varios puntos de vista estimati-vos: utilitario, moral, de justicia, dedecencia, etcétera; tercero, sobre la cor-rección ética de los medios; y cuarto,sobre la eficacia de los medios.

D) Que en todas las operacionespara establecer el fin y para encontrarlos medios, los hombres se guían nosólo por las luces de sus mentes per-sonales, sino también por las en-señanzas derivadas de sus propiasexperiencias y de las experiencias aje-nas”(1979, p. 257).

Toda obra humana não é valor puro,mas ação humana, ou produto desta ação.Nesse aspecto, a norma jurídica como umproduto histórico intencionalmente referi-do a valores deve levar em conta a lógica dorazoável.

Siches pode ser visto como autor que pre-ga a importância do problema, do fato soci-al para o Direito, da mesma maneira prag-mática de Viehweg:

“Com a idéia inicial de lógica ma-terial, Recaséns Siches se posicionajunto a autores como Viehweg e Perel-man, que tratam o direito de forma

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assistemática. Recaséns Siches nãoenfrenta propriamente a questão me-tódica proposta pela tópica aristotéli-ca, resgatada por Viehweg, e nem aretórica, retomada por Perelman, queadotam como base de raciocínio opi-niões ‘lugar comum’. Essas bases deverossimilhança, e não de verdades,levam à formulação de um raciocínioopinativo que guarda força apenas emseus argumentos; ao contrário do ra-ciocínio matemático, que se apóia nacerteza das inferências retiradas daspremissas e que levam a uma soluçãocorreta. Não obstante a possibilidadede se estabelecer um raciocínio não-sistemático, à medida que se privilegiao problema – o fragmento, em lugar dotodo –, e também poder, com o auxílioda tópica, iluminar o problema sob osseus diversos ângulos, são ambas aspossibilidades aproveitadas por Reca-séns Siches. Na realidade, seria esta agrande contribuição de Recaséns Si-ches: buscar, a partir do problema, aaxiologia do direito”(CAMARGO,1999, p. 166-167).

HOLMES, num mesmo sentido, ressaltaque o Direito está aberto a novas interpreta-ções diante de mudanças nos hábitos soci-ais; e as decisões judiciais espelham as cir-cunstâncias temporais e geográficas em quesão proferidas:

“Such matters really are battlegrounds where the means do not existfor determinations that shall be goodfor all time, and where the decision cando no more than embody the preferen-ce of a given body in a given time andplace. We do not realize how large a part ofour law is open to reconsideration upon aslight change in the habit of the pulicmind”(apud MARKE, 1955, p. 70).

Essa afirmativa de Holmes serve a de-monstrar, também – principalmente hoje,em que os meios de comunicação de massa,ou a mídia, são amplos e velozes –, como aopinião pública influi na decisão judicial.

A consciência social e o momento histórico,em Holmes, são de extremo peso nas pon-derações da fundamentação da decisão.

3. Dimensões da lógica do razoável

Para Recaséns SICHES (1979, p. 258-259), há sete características basilares da ló-gica do razoável, a saber:

••••• ser limitada pela realidade concreta domundo em que opera – aspecto histórico dalógica do razoável;

• ser impregnada de valores – aspectovalorativo da lógica do razoável;

• seus valores são concretos, vinculadosa uma determinada situação humana – as-pecto concreto da lógica do razoável;

• busca objetivos e finalidades no agirhumano – aspecto teleológico da lógica dorazoável;

• as finalidades e os objetivos condicio-nam-se à realidade humana – aspecto cul-tural da lógica do razoável;

• rege-se por razões de congruência eadequação – aspecto proporcional da lógi-ca do razoável;

• vincula-se aos ensinamentos extraídosda experiência humana e histórica – aspec-to fático da lógica do razoável.

Em face da semelhança ou correlação dealgumas dessas características, vamos agru-pá-las em cinco categorias, que serão deta-lhadas a seguir:

• aspecto histórico e fático da lógica dorazoável

• aspecto valorativo da lógica do razoável• aspecto concreto da lógica do razoável• aspecto teleológico e cultural da lógica

do razoável• aspecto proporcional da lógica do ra-

zoável

3.1. Aspecto histórico e fáticoda lógica do razoável

Conforme ensina Recásens SICHES:“A la vista de este esbozo de análi-

sis de la acción humana, resulta posi-ble darse cuenta de que la lógica de la

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acción humana o lógica de lo razona-ble, presenta, entre otras, las siguien-tes características:

Primero, está limitada o circuns-crita, está condicionada y está influi-da, por la realidad concreta del mun-do en el que opera – en el Derecho,está circunscrita, condicionada e in-fluida por la realidad de un mundosocial e histórico particular, en el cual,con el cual y para el cual son produci-das las normas jurídicas, lo mismo lasgenerales (leyes), que las individuali-zadas (sentencias judiciales y resolu-ciones administrativas ).

(...)Séptimo, la lógica de lo razonable

está orientada por las enseñanzas ex-traídas de la experiência de la vidahumana y de la experiência histórica,esto es, de la experiencia individual yde la experiencia social – presente ypasada –, y se desenvuelve instruidapor esa experiencia”(1979, p. 258-259).

A dimensão histórica e fática da lógicado razoável ratifica a afirmação de que alógica do razoável é a lógica da ação huma-na no mundo em que se encontra, datada eposicionada no espaço.

A norma jurídica surge em um determi-nado tempo e espaço e deve ser aplicada emoutro tempo e espaço. Esses elementos tem-porais e espaciais são importantíssimospara a conformação da norma com a suarealidade.

Nesse sentido, importantíssima a colo-cação de Miguel REALE a respeito de a nor-ma jurídica estar situada no tempo e no es-paço e da necessidade de o intérprete ade-quá-la às necessidades sociais:

“Mas acontece que a norma jurídi-ca está imersa no mundo da vida, ouseja, na nossa vivência cotidiana, nonosso ordinário modo de ver e de apre-ciar as coisas. Ora, o mundo da vidamuda. Então acontece uma coisa queé muito importante e surpreendente:uma norma jurídica, sem sofrer qual-

quer mudança gráfica, uma norma doCódigo Civil ou do Código Comerci-al, sem ter alteração alguma de umavírgula, passa a significar outra coi-sa. Querem um exemplo? Há um arti-go do Código Civil, o de número 924,segundo o qual pode o Juiz reduzir amulta convencionada no contrato pro-porcionalmente ao adimplemento daavença. Pois bem, na época de indivi-dualismo que se seguiu ao CódigoCivil de 1916 até a década de 30, quefaziam os advogados? Os advogadossão uns seres muito espertos, dotadosde esperteza da técnica que é funda-mental. Os advogados punham nocontrato: a multa será sempre devidapor inteiro, qualquer que seja o tempode adimplemento do contrato. De ma-neira que aconteceu um caso muitodoloroso em São Paulo, quando umapobre costureira, que havia cumpridoo contrato até o 20º mês, na compra deuma máquina de costura, não conse-guiu pagar as duas últimas prestações.O credor exigia, além da devolução damáquina, mais a multa por inteiro.Ora, pela primeira vez na história doDireito brasileiro o Tribunal de Justi-ça de São Paulo declarou: ‘Alto lá! Ocontrato não pode prevalecer sobre alei, sendo a ressalva contratual nulade pleno direito’. Até então não haviasido posta em dúvida a cláusula con-tratual, por entender-se que o artigodo Código Civil era apenas dispositi-vo. O Tribunal de São Paulo, ao con-trário, entendeu, e entendeu bem, queessa norma legal era de ordem públi-ca, dirigida ao juiz para um juízo deeqüidade. Além disso, determinou queo bem fosse avaliado, cabendo à costu-reira parte do valor apurado, o que a leiveio depois consagrar”(2000, p. 125).

3.2. Aspecto valorativo dalógica do razoável

Conforme ensina Recásens SICHES:

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“A la vista de este esbozo de análi-sis de la acción humana, resulta posi-ble darse cuenta de que la lógica de laacción humana o lógica de lo razona-ble, presenta, entre otras, las siguien-tes características:

(...)Segundo, está impregnada de va-

loraciones, esto es, de criterios estima-tivos o axiológicos. Adviértase que esadimensión valoradora es por comple-to ajena a la lógica formal, o a cual-quier teoríá de la inferencia. Ese estarimpregnada de valoraciones es uno delos rasgos que decisivamente diferen-cia la lógica de lo razonable frente a lalógica de lo racional”(1979, p. 258).

A dimensão valorativa da lógica do ra-zoável destaca a diferença entre a lógica for-mal e a lógica do razoável.

Em que medida se pode falar de uma “ló-gica jurídica”? Certamente não se trata damera aplicação da lógica tradicional ao Di-reito; afinal, como bem aponta PERELMAN,não há mais sentido em falar de “lógica ju-rídica” quando nos referimos à aplicaçãoda lógica geral aos fins específicos do Direi-to; assim como falarmos em “lógica bioquí-mica” ou “lógica zoológica” ao utilizarmosas leis da lógica geral aplicadas à bioquími-ca ou à física (1988, p. 13).

Excluída essa concepção, encontramosno pensamento jurídico duas tendênciasbásicas sobre o conceito de lógica jurídica:para alguns, a lógica jurídica é parte de umadisciplina mais abrangente, a lógica deôn-tica, que se ocupa de todos os campos doconhecimento que lidam com normas. Paraessa corrente, a lógica jurídica é uma lógicaque se ocupa da formalização da linguagemjurídica e tem por objetivo examinar as es-truturas formais do Direito6.

Outra vertente doutrinária, na qual seincluem Recaséns Siches e Miguel Reale,constatou que a experiência jurídica temdemonstrado que, na prática cotidiana, osaplicadores do Direito se utilizam de umasérie de técnicas intelectuais peculiares ao

seu campo, técnicas estas que, considera-das em conjunto, configuram inegavelmen-te uma espécie diferente de saber. Essa ou-tra lógica, assim definida, chamada por al-guns de lógica material do Direito (em oposi-ção à lógica formal tradicional), é denomina-da por Recaséns SICHES lógica do razoável.

A expressão “lógica do razoável” deno-ta a convicção de que esse saber a que nosreferimos é um saber que atua dentro docampo da razão, mas ao mesmo tempo trans-cende as categorias da lógica formal. Trata-se de uma forma de conhecimento que, nãoobstante seja distinta da lógica formal, aindareivindica para si o status da racionalidade.

3.3. Aspecto concreto dalógica do razoável

Conforme ensina Recásens SICHES:“A la vista de este esbozo de análi-

sis de la acción humana, resulta posi-ble darse cuenta de que la lógica de laacción humana o lógica de lo razona-ble, presenta, entre otras, las siguien-tes características:

(...)Tercero, tales valoraciones son

concretar, es decir, están referidas auna determinada situación humanareal, a una cierta constelación social y,en consecuencia, deben tomar en cuen-ta todas las posibilidades y todas laslimitaciones reales”(1979, p. 258).

A dimensão concreta da lógica do razoá-vel destaca a necessidade de utilização doselementos do caso particular, a dimensãoda eqüidade da norma, da justiça do casoconcreto.

Nesse aspecto, pode estar, inclusive, aescolha do método interpretativo mais efi-caz para determinada situação fática sujei-ta à Ciência Jurídica.

Assim, tratando dos métodos hermenêu-ticos e da lógica do razoável em Siches, Gus-tavo PACHECO afirma:

“em cada caso o juiz deve interpretar a leisegundo o método que leve à solução maisjusta entre todas as possíveis, inclusive

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quando o legislador impertinente-mente tiver ordenado um determina-do método de interpretação (...) O or-denamento jurídico positivo, e portan-to o legislador, se propõe, através dasnormas que emite, obter o maior graude realização da justiça, e dos valorespor ela implicados, em uma determi-nada sociedade. Tal é, ao menos emprincípio, a intenção de todo sistemade Direito positivo, independentemen-te de qual seja o grau, maior ou me-nor, em que tenha conseguido reali-zar com êxito este intuito. Assim, o le-gislador se propõe com suas leis a re-alizar da melhor maneira possível asexigências da justiça. Portanto, se ojuiz trata de interpretar essas leis demodo que o resultado de aplicá-las aoscasos singulares traga a realização domaior grau de justiça, não faz outracoisa senão servir exatamente ao mes-mo fim a que se propôs o legislador. Ojuiz é muito mais fiel à vontade do le-gislador, e à finalidade a que este sepropôs, quando interpreta as leis pre-cisamente de tal maneira que sua apli-cação aos casos singulares resulte omais próximo possível da justiça, doque quando as interpreta de uma ma-neira literal, ou reconstruindo imagi-nativamente a vontade autêntica dolegislador, se esses métodos aplicadosao caso aventado produzem uma so-lução menos justa” [grifo nosso](1994,p. 122).

Observe-se, por outro lado, que RecasénsSiches não defende o abandono do dogmada submissão do juiz ao Direito positivo,considerado por ele como garantia básicade justiça e do pleno funcionamento do or-denamento jurídico.

3.4. Aspecto teleológico e cultural dalógica do razoável

Conforme ensina Recásens SICHES:“A la vista de este esbozo de análi-

sis de la acción humana, resulta posi-

ble darse cuenta de que la lógica de laacción humana o lógica de lo razona-ble, presenta, entre otras, las siguien-tes características:

Cuarto, las valoraciones consti-tuyen la base o apoyo para la formu-lación de los objetivos, esto es, para elestablecimiento de las finalidades.Tales objetivos o finalidades impreg-nan la lógica de lo humano o de lorazonable; y dan a ésta su caracterís-tica estructura especial.

(...)Quinto, pero la formulación de ob-

jetivos o establecimiento de fines nosólo se apoya sobre valoraciones, sinoque además está condicionado por lasposibilidades que le ofrezca la reali-dad humana social concreta. El seña-lamiento de los fines u objetivos es elresultado de la combinación del co-nocimiento sobre una realidad huma-na social particular con unas valora-ciones concebidas como pertinentesrespecto de lo que se debe hacer conesa realidad”(1979, p. 258).

A dimensão teleológica e cultural da ló-gica do razoável destaca que a conduta hu-mana é finalística.

Admite-se que toda conduta humanadeve ser voluntária, isto é, que sem vontadenão há conduta. A vontade implica sempreuma finalidade, porque não se concebe quehaja vontade de nada ou vontade para nada;a vontade sempre é vontade de algo, isto é, avontade sempre tem um conteúdo, que é umafinalidade. Assim, afirma SICHES:

“La estructura del hacer humanoconsiste en que se quiere hacer lo quese hace, por algo (por un motivo, quederiva de una urgencia, de una necesi-dad, de un afán) y para algo (con unafinalidad), todo lo cual está dotado desentido o significación”(1979, p. 18).

Nesse diapasão, colaciona-se o pensa-mento de REALE:

“Toda pessoa é única e nela já ha-bita o todo universal. Deve, assim, ser

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vista como centelha que condiciona achama e a mantém viva, e na chama atodo instante crepita, renovando-acriadoramente, sem reduzir-se uma àoutra. Embora precária a imagem, o queimporta é tornar claro que dizer pessoaé dizer singularidade, intencionalidade,liberdade, inovação, transcendência, o quese torna impossível em qualquer concepçãotranspersonalista”(2000, p. 135).

3.5. Aspecto proporcional dalógica do razoável

Conforme ensina Recaséns SICHES:“A la vista de este esbozo de análi-

sis de la acción humana, resulta posi-ble darse cuenta de que la lógica de laacción humana o lógica de lo razona-ble, presenta, entre otras, las siguien-tes características:

(...)Sexto, consiguientemente la lógi-

ca de lo razonable está regida porrazones de congruencia o de adecu-ación:

A) Entre la realidad social y losvalores, es decir: cuáles sean los valo-res apropiados para la ordenación deuna determinada realidad social.

B) Entre los valores y los fines uobjetivos, esto es, cuáles sean los obje-tivos valiosos.

C) Entre los objetivos y la realidadsocial concreta, esto es: cuáles sean lospropósitos de posible y convenienterealización.

D) Entre los fines u objetivos y losmedios, en cuanto a la adecuación delos medios para los fines.

E) Entre los fines y los medios res-pecto de la corrección ética de los me-diar. Se trata de evitar la caída abis-mal en la perversa máxima de que elfin justifica los medios; máxima deintrínseca maldad, porque cuando setrata de servir un fin bueno con medi-os malos el fin pierde la bondad, con-tagiándose de los medios.

F) Entre los fines y los medios, enlo que se refiere a la eficacia de losmedios”(1979, p. 258-259).

A dimensão proporcional ou da razoa-bilidade da lógica do razoável destaca umaspecto muito em voga na hermenêuticaconstitucional, o de que as leis devem seradequadas às suas finalidades.

A idéia de razoabilidade permeou gran-de parte da produção intelectual de Reca-séns SICHES, que enfatiza que toda a pro-dução do Direito (que se inicia com o traba-lho legislativo e culmina com a aplicaçãoconcreta às situações individuais) deve es-tar inspirada pela noção do razoável, cujaanálise não se restringe aos elementos obje-tivos, mas inclui as circunstâncias espaço-temporais que limitam, influem e condicio-nam o homem, como ente possuidor de va-lores (1971, p. 533).

Gilmar Ferreira MENDES utiliza propor-cionalidade e razoabilidade como expres-sões intercambiáveis e contidas na cláusu-la do devido processo legal do artigo 5º, LIV,da Constituição Federal. Essa conclusão foiobtida após a análise de decisões proferidaspelo Supremo Tribunal Federal, especialmen-te quanto ao julgamento da Ação Direta deInconstitucionalidade n. 958-3-RJ, acerca daconstitucionalidade do artigo 5º, seus pará-grafos e incisos, da Lei n. 8.713, de 30 desetembro de 1993:

“Portanto, o Supremo TribunalFederal considerou que, ainda que olegislador pudesse estabelecer restri-ções ao direito dos partidos políticosde participar do processo eleitoral, aadoção de critério relacionado comfatos passados para limitar a atuaçãofutura desses partidos parecia mani-festamente inadequada e, por conse-guinte, desarrazoada.

Essa decisão consolida o desenvol-vimento do princípio da proporciona-lidade ou da razoabilidade como pos-tulado constitucional autônomo quetem sua sedes materiae na disposiçãoconstitucional que disciplina o devi-

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do processo legal (art. 5º, inciso LIV).Por outro lado, afirma-se de maneirainequívoca a possibilidade de decla-rar a inconstitucionalidade da lei emcaso de sua dispensabilidade (inexi-gibilidade), inadequação (falta de uti-lidade para o fim perseguido) ou deausência de razoabilidade em senti-do estrito (desproporção entre o obje-tivo perseguido e o ônus imposto aoatingido”(1994, p. 469-475).

4. O pragmatismo norte-americano

“Consider what effects, that mightconceivably have pratical bearings,we conceive the object of our concep-tion to have. Then, our conceptions ofthese effects is the whole of our con-ception of the object”.

Charles S. Peirce7

Segundo ABBAGNANO, “o pragmatis-mo é a forma que foi assumida, na filosofiacontemporânea, pela tradição clássica doempirismo inglês”. Para Locke, como paraHume, pode-se considerar válido qualquerproduto da atividade humana, desde queseja possível encontrar na experiência oselementos de que resulta e desde que essessejam relacionados entre si do mesmo modoque na experiência (2000, p. 7).

Para Peirce, fundador do Pragmatismo,esse é “um método de tornar claras as idéi-as, relacionando-as com seus efeitos 8.

Assim, na longa discussão entre o empi-rismo e o idealismo, o pragmatismo aproxi-ma-se do empirismo, conforme destaca Peir-ce, em seu artigo “How to make our ideasclear” 9.

Tratando da investigação científica, Peir-ce destaca que há diferentes modos paraestudar a velocidade da luz. Entretanto, to-dos eles convergem para um determinadonúcleo comum. Assim, diferentes concepçõesfluem para a verdade, que é a realidade10.

O Pragmatismo surge na Universidadede Harvard nos EUA, no final do século XIXe início do século XX. Devem-se ressaltar

para sua compreensão os seus três autoresclássicos: Charles Peirce, William James eJohn Dewey.

No âmbito deste trabalho que se volta àsegurança jurídica das decisões judiciais,analisaremos somente os dois primeirosautores acima citados, pois que fundamen-tais à compreensão da filosofia pragmáticado Justice HOLMES.

4.1. O pragmatismo como teoria dosignificado na visão de seu fundador

Charles Peirce, autor com vasta biblio-grafia em temas que hoje seriam chamadosde “filosofia da ciência”, a partir dos qua-renta e oito anos de idade, consagrou-se àfilosofia. Foi, também, bastante conhecidopelo desenvolvimento da lógica simbólica eda semiótica, a teoria dos signos e símbolos.

Nunca escreveu um livro. Viveu e traba-lhou na obscuridade. Foi seu amigo Willi-am James, que tornou o pragmatismo ame-ricano conhecido mundo afora (cf. KURTZ,1969, p. 45).

Para Peirce, o conhecimento não é umfato impessoal; adquire-se conhecimentocomo participante e não como mero espec-tador. Nesse diapasão, ABBAGNANOsintetiza:

“A tese filosófica fundamental dePeirce é que o único fim de toda a in-dagação ou forma de proceder racio-nal é o estabelecimento de uma cren-ça, entendendo-se por crença um há-bito ou uma regra de acção que, mes-mo que não conduza imediatamentea um acto, torna possível um dadocomportamento quando a ocasião seapresenta” (2000, p. 9).

Nada é definitivo no nosso conhecimen-to. ABBAGNANO, citando Peirce, afirmaque uma proposição verdadeira é uma proposi-ção acreditada que não conduzirá a qualquer de-cepção enquanto não for compreendida de formadiferente daquela como foi inicialmente entendi-da (2000, p. 10).

Peirce influenciou os trabalhos de Willi-am James e John Dewey, não obstante cada

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um deles tivesse preocupações diversas comtemas distintos. Assim, de acordo comBryan MAGEE:

“Quando os Estados Unidos se fir-maram como uma nação independen-te perto do final do século XVIII, issodeu novo ímpeto ao desenvolvimentode uma cultura e de uma abordagemdas idéias especificamente norte-ame-ricanas. Mas foi preciso quase outroséculo para que a filosofia norte-americana se desenvolvesse a ponto deatrair a atenção internacional; e veioentão uma época, no final do séculoXIX e começo do XX, em que o departa-mento de filosofia de Harvard foi con-siderado por muitas opiniões abaliza-das como o melhor do mundo. Três ex-traordinários filósofos norte-america-nos dessa época adquiriram desde en-tão status de clássicos e ficaram conhe-cidos como ‘os pragmatistas america-nos’. Destes, o mais original foi Char-les Sanders Peirce; o mais agradável deler, William James; e o de projeção maisampla, John Dewey” (2000, p. 186).

No âmbito da mutabilidade das verda-des, a influência de Peirce em Dewey é enor-me. Conforme destaca Martyn OLIVER:

“Em The Quest for Certainty (ABusca da Certeza), Dewey afirma quea investigação filosófica tradicional,que busca descobrir verdades perma-nentes baseadas em um conhecimen-to seguro e imutável do mundo, é umaatividade inútil, pois ela está sempreem mutação. O critério da verdade nãoé fornecido por estruturas permanen-tes da realidade, mas sim pela expe-riência. Por isso, a filosofia quase nun-ca tem conseqüências práticas, já queprocura encontrar um ponto de obje-tividade arquimediano além da expe-riência e, portanto, além da práti-ca”(1998, p. 138).

O significado de uma idéia deve ser des-coberto com base nos seus efeitos práticos.Em How to make our ideas clear? (1878), afir-

ma Peirce que idéia clara é aquela que nãose confunde com nenhuma outra. Nesse as-pecto, MAGEE assinala:

“Talvez a tese central de Peirce sejaa de que o conhecimento é uma ativi-dade. Somos levados a inquirir, a que-rer saber, por alguma necessidade,carência ou dúvida. Isso nos leva aavaliar nossa situação-problema, atentar ver nessa situação o que estáerrado, ou faltando, e os modos comopode ser corrigido.(...) O primeiro arti-go importante de Peirce se chamava‘Como tornar claras nossas idéias’(1878), e ali se sustenta que para en-tender um termo claramente devemosperguntar a nós mesmos que diferen-ça faria a sua aplicação à nossa avalia-ção de nossa situação-problema, oude uma solução proposta para ela.Essa diferença constitui o significadodo termo” (2000, p. 186).

Nesse artigo, Peirce defende a tese cen-tral de que o “conhecimento é uma ativida-de prática”. Somos levados a indagar poralguma necessidade ou dúvida (KURTZ,1969, p. 66).

No mesmo sentido, William James afir-ma que “a filosofia não é uma ciência estan-que, é algo para ser vivido integralmente” 11.

Peirce exemplifica que, no cotidiano, ohomem deve fazer opções e avaliar a situa-ção-problema apresentada. Em indagaçõessimples, tal qual, como pagar o cocheiro quenos transportou? com um nickel ou com cin-co moedas de um centavo?, a resposta deve-ria ser: pagar com a(s) primeira(s) moeda(s)que aparecer (em) (cf. KURTZ, 1969, p. 65-66).

O conceito de uma idéia vincula-se aosefeitos daquela idéia. Assim, o conceito deser “duro” (hard) vincula-se a não ser facil-mente arranhado por outras substâncias. Oconceito de “duro” vincula-se, portanto, aosefeitos de ser duro. Algo pode ser duro emuma determinada circunstância (compara-tiva) e mole em outra. O que demonstra queo conhecimento não é absoluto e imutável(KURTZ, 1969, p. 70).

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Também, por meio de Peirce desenvol-ve-se a semiótica, sendo o pragmatismo ométodo para determinar os significados dostermos.

4.2. O aspecto moral do pragmatismo navisão de William James

William James, médico que ensinou su-cessivamente fisiologia, filosofia e psicologiaem Harvard, foi o autor que tornou o pragma-tismo mundialmente conhecido, tendo sidoconferencista em universidades européias.

Em Philosophical conceptions and practicalresults, afirmou James que Peirce foi o funda-dor do Pragmatismo (cf. KURTZ, 1969, p. 105).

Enquanto Peirce propunha que o prag-matismo fosse uma teoria do significado (se-miótica), com uma preocupação com a ciên-cia, James tratou-o como uma teoria da ver-dade no campo da moral e da religião.

Para James, o pragmatismo é uma teoriada verdade que permite para um determi-nado indivíduo testar uma determinadaidéia em uma determinada circunstância12.

Para ele, verdadeiro é qualquer coisa queresponda, satisfatoriamente, às indagaçõeshumanas. Exemplifica com a crença religio-sa, que auxilia uma mãe que perdeu seu fi-lho, na medida em que extrai conforto aoacreditar que seu filho está no céu (cf. MA-GEE, 2000, p. 189).

Nesse sentido, ABBAGNANO afirma:“O método pragmático foi enxertado no

tronco da filosofia tradicional e utilizadopara uma defesa do espiritualismo por Wi-lliam James (...) Segundo este ponto de vista,tornam-se ‘verdadeiras’ as crenças que sãoúteis para a acção”(2000, p. 11-12).

Para James, as questões morais necessi-tam de resposta como as questões do mun-do visível. Na obra The will to belief, afirmaque “um organismo social de qualquer tipo,grande ou pequeno, é o que é porque cadamembro segue a sua consciência moral coma confiança que os outros farão o mesmo”(KURTZ, 1969, p. 138).

Destacando esse aspecto, ABBAGNANOafirma:

“A tese fundamental de ‘A vonta-de de crer’ consiste em que, sendo afunção do pensamento servir a acção,o pensamento não tem o direito de ini-bir ou bloquear crenças úteis ou ne-cessárias para uma acção eficaz nomundo.(...) A simpatia, o amor, con-quistam-se com a fé na sua possibili-dade. E qualquer organismo social,por pequeno ou grande que seja, serege pela confiança em que cada umfará o que deve, e é, assim, uma conse-qüência desta confiança” (2000, p. 13).

James influenciou a Psicologia moder-na, na obra The principles of psychology (1890)– clássico da psicologia até hoje. Sua teoriapsicológica tem raízes em Darwin (que in-fluenciará, também, Holmes) e contribuiupara o crescimento da psicologia do compor-tamento (behaviorismo) – consciência comouma função e não como um ser (coisa) 13.

A psicologia do comportamento vincu-la-se intimamente à importância da reali-dade que permeia toda a filosofia pragma-tista. O comportamento dos seres humanose dos animais é visto igualmente em termosde respostas condicionadas aos estímulosambientais.

Na concepção do radical empirism, Jamesexpressa que a filosofia só deve tratar deobjetos vinculados à experiência, pois o pen-samento, por distinto que possa ser da ma-téria, é essencialmente um espelho da realidadeexterna. Nesse aspecto, James dará ênfase àanálise do concreto em oposição à análiseracional-idealista do todo.

Nessa afirmação, James influenciará Ri-chard Rorty, pragmático americano contem-porâneo, que, na obra A filosofia e o espelhoda natureza, afirma que os argumentos cons-truídos pelos filósofos para suas filosofiasdo conhecimento e da verdade são aciden-tais, e não mais ou menos objetivos.

William James assinala no artigo A worldof pure experience que:

“Para ser radical, o empirismo nãodeve admitir na sua estrutura qualquerelemento que não é fruto da experiên-

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cia e nem excluir qualquer elemento queseja fruto desta”(KURTZ, 1969, p. 152).

Explica Will DURANT que o pragmatis-mo americano volta-se ao resultado dos atoshumanos, não a suas origens:

“Em vez de perguntar onde sur-giu a idéia, ou quais são as suas pre-missas, o pragmatismo examina osseus resultados; ele ‘desloca a ênfasee olha para frente’; ele é a ‘atitude dedesviar o olhar das primeiras coisas,dos princípios, das categorias, dassupostas necessidades, para as coisasfinais, os frutos, as conseqüências, osfatos’. A escolástica perguntava: ‘Oque é a coisa?’ – e perdeu-se em qüidi-dades; o darwinismo perguntava:‘Qual é a sua origem?’ – e perdeu-seem nebulosas; o pragmatismo pergun-ta: ‘Quais as conseqüências?’ – e vol-ta o rosto do pensamento para a açãoe o futuro”(2000, p. 464-465).

Nesse aspecto das conseqüências e do agirconcreto é que o pragmatismo irá influenciaro direito no realismo jurídico de Oliver Wen-dell Holmes.

4.3. O aspecto jurídico do pragmatismona visão de Holmes

Oliver Wendell Holmes Jr. (1841-1935)foi contemporâneo de William James (1842-1941). Nomeado juiz da Corte Suprema em1902, pelo Presidente Theodore Roosevelt,ocupou o cargo por trinta anos.

Holmes Jr. nasceu em Boston, Massachu-setts, primeiro de três filhos de uma famíliade classe média. Seu pai era médico e littéra-teur. A habilidade verbal do pai estava pre-sente no filho, que tinha um estilo levemen-te combativo. De sua mãe, Holmes herdouforte sentido de dever puritano e um ceticis-mo por tudo que não fosse evidente.

Na juventude, Holmes foi influenciadopor Ruskin, Carlyle e Emerson, a quem co-nheceu pessoalmente, pois freqüentavam, ostrês, ocasionalmente, a casa de seus pais.Emerson, especialmente, instigou em Hol-mes a investigação filosófica.

Como seus contemporâneos, Emersonbuscava uma espécie de substituto científi-co para a religião. Entendia ele que a ciên-cia, particularmente a ciência da evolução,explicaria e justificaria as instituições hu-manas; por isso, buscava na ciência da evo-lução a justificação do dever.

Outra grande influência em sua juven-tude foi o renascer, na Grã-Bretanha e nosEstados Unidos, dos princípios do cavalei-rismo (chivalry).

No entender de Holmes, os juízes pri-meiro decidiam as causas para, após, justi-ficar suas decisões. Desde 1872, e até o finalde sua vida, Holmes expressava a idéia deque a lei refletia não a opinião da maioria,mas os interesses de uma classe dominante.Consciente ou inconscientemente, os juízesexpressavam os desejos da classe da qualadvinham.

A conclusão principal de The common law,sua grande obra, é a seguinte: se a lei é ape-nas um instrumento para atingir determi-nados objetivos de ordem material, segue-se que a lei deveria ocupar-se apenas docomportamento exterior; seu conteúdo me-ramente moral ou subjetivo deveria ser-lheretirado por meio do processo de evolução.Holmes sustentava poder distinguir no di-reito em desenvolvimento uma tendência aapoiar-se em “padrões externos” de com-portamento, em vez de estados subjetivosda mente ou culpabilidade pessoal.

Sendo assim, Holmes voltava sua aten-ção às conseqüências objetivas e materiaisda lei. Aqui insere-se sua teoria de que, paraentender a lei, deve-se partir do ponto devista de um homem mau, que não tem com-promisso com a moralidade (“a bad manwho does not care for morality”) (apudMARKE, 1955).

Para Holmes, deve-se entender a lei demaneira prática, vendo-a dissociada da mo-ralidade. Um homem mau tem tantos moti-vos quanto um homem bom para evitarconfrontos com a força pública, emboranão se importe com regras éticas da socie-dade na qual vive. O que ele quer a todo

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custo evitar é a multa, a pena de reclusão,ou seja, a sanção.

A norma, para Holmes, não se confun-de com a moral, embora seja por ela limi-tada. Mas, o que constitui a norma? Lem-bra Holmes que alguns doutrinadoresensinam que a norma é distinta da juris-prudência, das decisões das cortes judi-ciais; que é um sistema de pensamento,uma dedução de princípios de ética ou dedados axiomas ou qualquer outra coisa,que pode ou não coincidir com as deci-sões judiciais. Se lembrarmo-nos do “ho-mem mau”, contudo, veremos que, paraele, não interessam axiomas ou soluções;para ele, o que importa são as decisõesdas cortes. A promessa de sanção e suaconcretização são, exatamente, aquilo queconstitui a norma14.

Para Holmes, as idéias dominantes eramidentificadas com classes dominantes ougrupos raciais. O triunfo das idéias refleti-ria a vitória do grupo. Sendo assim, a leiseria esse reflexo, ou seja, a garantia de so-brevivência desse grupo.

Embora, hoje, essas idéias não pareçamcientíficas, é preciso lembrar que, quandoHolmes escrevia sua obra The common law,as leis da genética ainda não haviam sidoestabelecidas, e grande parte do que hojeconsideramos “cultura” acreditava-se serherdado. Era comum à época, por exemplo,referir-se à classe dos trabalhadores comouma “raça” distinta daquela de seus em-pregadores.

O pensamento de Holmes, nesse ponto,faz eco ao darwinismo social, idéia formu-lada na década de 1850 pelo filósofo e soció-logo inglês Herbert Spencer, cujas declara-ções iniciais antecederam Da origem das es-pécies de Darwin. Para Spencer, o progressohumano é uma questão de competição bem-sucedida que resulta na sobrevivência domais forte; os mais fortes e superiores sobre-vivem, ao passo que os mais fracos perecemou são dominados por aqueles, processoque conduz ao aperfeiçoamento contínuodas sociedades.

O darwinismo social foi postura comumno final do século XIX e início do século XX,atraindo sobretudo a atenção dos conserva-dores, pois justificava o status quo. Era mui-to empregado para explicar a expansão im-perialista e a estratificação social, as dispa-ridades econômicas e a desigualdade soci-al como naturais e inevitáveis: o domínio deuma nação, classe ou raça sobre outra sim-plesmente demonstrava que esta era maisapta a governar. Entre os pensadores spen-cerianos de maior destaque na época estãoo teórico político inglês Walter Bagehot, cujolivro Física e política, de 1872, correlaciona-va as ciências naturais e sociais, e o sociólo-go americano William Graham Summer, queafirmava que o imperativo evolucionista tor-na as reformas sociais ineficazes e desne-cessárias.

É de destacar ainda a eugenia, vinculadaao darwinismo social e, em parte, por eleinspirada. Segundo essa teoria, seria possí-vel aprimorar a genética humana por meiode procriação seletiva. Inspirado na idéiade que certos indivíduos e grupos étnicossão geneticamente superiores aos outros, oseugenistas afirmavam que os traços desejá-veis, como inteligência e moral, podem au-mentar na população pela promoção da pro-criação entre os “mais aptos” (o que geral-mente era sinônimo de anglo-saxões) e pelodesestímulo ou pela prevenção da procria-ção dos “não-aptos”. O movimento tevegrande repercussão nos Estados Unidos, naGrã-Bretanha e na Alemanha nos anos pre-cedentes às guerras mundiais. Foi respon-sável pelas leis americanas que restringiama imigração do Sul e do Leste europeus, proi-biam a miscigenação e exigiam a esteriliza-ção de criminosos e de deficientes mentais(ROHMANN, 2000, p. 93-94).

Hoje, com o anúncio recente de que oscientistas iniciarão a clonagem de seres hu-manos, a eugenia estará sendo repensada.Daí por que esse assunto, a clonagem depessoas, já cientificamente possível, vemsendo calorosamente debatido pelos juris-tas. Podem ser clonados criminosos ou defi-

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cientes? Ou apenas indivíduos considera-dos “mais aptos”, ou advindos de determi-nada classe ou raça? 15

Holmes, entretanto, adicionou suas pró-prias idéias ao evolucionismo. Os juristastinham grande dificuldade de entendercomo as várias normas eram interpretadase aplicadas pelos tribunais. O proprietário,por exemplo, tinha um dever para com seushóspedes, mas não em relação aos invaso-res. As companhias férreas tinham deverescomplexos em relação a seus passageiros eaos proprietários das cargas que levavam etraziam, e outros deveres em relação a pe-destres que cruzassem suas linhas. Holmes,também, de início lutava com essas ques-tões. Em 1880, contudo, concebeu um novoconceito. A questão, sempre, caso a caso,envolveria a imposição, ou não, de sanções.Importava examinar não as regras, em si,mas as circunstâncias sob as quais a infra-ção à regra seria punida. Ao observar essascircunstâncias ignorando a racionalizaçãosobre dever e regras de conduta, a Holmesfoi possível formular conceitos sobre a nor-ma e sua relação com a sociedade. Seu prin-cípio organizatório era o seguinte: uma san-ção seria imposta por danos que uma pessoa co-mum poderia ter previsto.

Com esse princípio, Holmes unificavatodos os ramos do Direito, permitindo amaior liberdade pessoal possível e, ao mes-mo tempo, evitando danos aos outros. A dis-cussão na obra The common law sugere queos juízes gradualmente traduzissem esseprincípio geral em regras específicas de con-duta. Essa teoria de Holmes teve grande in-fluência na análise econômica da lei, embo-ra Holmes não estivesse preocupado comas conseqüências econômicas da norma. Eleentendia que a norma tinha raízes mais pro-fundas. Em The common law, ele argumentaque a norma evoluiu de origens mais primi-tivas até o “padrão externo” da sanção,como forma de substituição da regra pacífi-ca pelo antigo regime de violência. Nesseprocesso, tornou-se um instrumento paraservir a fins sociais.

5. A lógica do razoável e a visãopragmática do Direito como métodos

hermenêuticos de condução àsegurança jurídica

5.1. A lógica formal e a lógica do razoável

Ressaltando a busca de uma nova lógi-ca de interpretação distinta da lógica for-mal dedutiva, que considerava o Direitocomo um sistema estanque, Recaséns SI-CHES faz menção à obra de Viehweg e Pe-relman para condenar o pensamento jurídi-co sistêmico e dedutivo:

“El profesor alemán Theodor Vi-ehweg, reivindicando la tópica, la re-tórica y la dialéctica de Aristóteles,Cicerón y los jurisconsultos romanos,muestra que el pensamiento jurídicono puede ser jamás sistemático, ni deduc-tivo, sino que debe ser pensamientosobre problemas, en torno a proble-mas, que considere todos los compo-nentes de tales problemas, lo mismolos hechos humanos sociales que losintegran, como también los criteriosvaloradores adecuados: debe ser loque se llama pensamiento aporético, esdecir, pensamiento que parte o arran-ca de la consideración pormenoriza-da y profunda de un problema huma-no, al revés de lo que sucede com elpensamiento sistemático que pre-tende extraer racionalmente conse-cuencias de premisas supuestamen-te axiomáticas.

Por una línea similar a la de Theo-dor Viehweg, el profesor belga ChaimPerelman, inspirándose también en ladialéctica y en la retórica de la Anti-güedad Clásica, condena definitiva-mente el pensamiento silogístico ymatematizante en campo del Derecho;y propugna una forma de. razonami-ento más elevado, que es la deliberaci-ón sobre las argumentaciones presenta-das en los casos jurídicos; y desen-vuelve toda una doctrina sobre la ar-

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gumentación y la deliberación, lascuales nos llevan a la evidencia decarácter absoluto, pero conducen alhallazgo de la solucin más justa y másadecuada para decidir los problemasjurídicos prácticos. Perelman elaborauna nueva retórica, com, una nuevadoctrina sobre el diálogo y la delibe-ración, y sobre la confrontación entreargumentos diferentes”(1979, p. 228).

Recaséns SICHES destaca, pois, a impor-tância de centralizar a atividade hermenêu-tica no problema, conforme é dada ênfasepela Tópica e pela Retórica-argumentativa,como meios de alcançar a decisão judicialprudente para a questão.

Como afirma Paulo Roberto SoaresMENDONÇA,

“Recaséns Siches inverte o eixo daoperação interpretativa, a qual passaa estar centrada no caso e não na nor-ma e, com isso, faz com que a normaaplicável seja aquela realmente ade-quada ao fato existente e não apenasuma mera adaptação de uma lei gené-rica. A decisão passa então a apresen-tar um caráter construtivo, uma vezque atualiza o sentido da norma acada causa julgada, com o que a ‘lite-ralidade do texto legal torna desne-cessário um esforço hermenêutico, nosentido de obter uma explicação ‘ra-cional’, para uma decisão que consi-dera de antemão como ‘justa’. A deci-são originada pela aplicação da ‘lógi-ca do razoável’ pode ser melhor clas-sificada como ‘correta’, porque funda-da em valores socialmente relevantes”(1997, p. 56-57).

Por fim, evitando a babel dos métodoshermenêuticos tradicionais, SICHES pro-pugna a existência de um único método, ellogos de lo razonable:

“Conviene insistir sobre el puntode que debemos desechar de una vezy para siempre el referirnos a una plu-ralidad de diversos métodos de inter-pretación. Ya expuse que el método

de interpretación es uno solo; este solométodo es el del logos de lo razona-ble, o, si se prefiere llamarlo así, el dela equidad”(1979, p. 246).

As limitações da aplicação da lógica tra-dicional ao Direito são demarcadas comprecisão por Recaséns SICHES:

“Reconocer que la lógica de lo ra-cional es impertinente, inútil y mu-chas veces perjudicial en el campo dela jurisprudencia; y que, para la juris-prudencia, la lógica que viene en cu-estión es la de lo razonable” (1979, p.248).

Assim, Siches demonstra que a lógicatradicional no campo do Direito não deveser empregada com exclusividade, pena decriar insegurança – o resultado do processode decisão pode não ser adequado à reali-dade. O que Recaséns Siches pretende de-mostrar é que tal lógica tem um campo deaplicação bastante limitado na esfera jurí-dica, e que querer transcender esse campoleva inevitavelmente à possibilidade de quesejam proferidas sentenças que, ainda queestejam de acordo com os requisitos da lógi-ca tradicional, são notoriamente injustas.

Durante muito tempo, juristas conscien-tes buscaram evitar as decisões injustas pormeio de malabarismos técnicos que procu-ravam demonstrar que a solução justa esta-va de acordo com a lógica tradicional. Mos-trando as verdadeiras razões que funda-mentam as soluções justas que repelem alógica tradicional, Recaséns Siches se pro-põe a mostrar a esses juristas que o seu pro-cedimento era e é correto, eliminando-se,assim, o “complexo de culpa” decorrente danão aplicação da lógica tradicional.

Como funciona a lógica do razoável?Recaséns Siches responde a essa perguntaanalisando detalhadamente um caso con-creto, já aventado anteriormente por outrosjuristas. Em uma estação ferroviária da Po-lônia, havia uma placa transcrevendo umartigo do regulamento da ferrovia, que proi-bia a presença de cachorros na plataforma.Certa vez, uma pessoa tentou entrar acom-

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panhada por um urso, e o empregado en-carregado da vigilância lhe barrou a passa-gem. A pessoa protestou, alegando que oartigo do regulamento proibia apenas a pre-sença de cachorros, e não de outros animais.Surgiu, portanto, um conflito em torno dainterpretação daquele artigo.

Recaséns Siches mostra, a partir daí,como a aplicação estrita da lógica tradicio-nal a esse caso levaria forçosamente à con-clusão de que a pessoa que trazia o ursotinha direito a entrar com ele na plataforma.Não há maneira de se atribuir à norma emquestão outro sentido; o autor do regulamen-to não usou uma designação ampla, tal como“animais perigosos”, “animais de grandeporte”, nem sequer simplesmente “ani-mais”, usou a palavra “cachorros”, de sig-nificado absolutamente unívoco.

É claro que até mesmo um leigo percebe-ria que a conclusão a que chegou o passagei-ro era absurda, mesmo sendo a única corretado ponto de vista da lógica tradicional.

Assim, nesse didático exemplo de Siches,fica caracterizada a inadequação da lógicatradicional à resolução de problemas jurí-dicos. Observa-se, por outro lado, que o em-pregado da estação utilizou-se, intuitiva-mente, da lógica do razoável, obtendo solu-ção mais adequada e segura ao problema.

Recaséns Siches mostra que o raciocíniodo empregado para chegar à interpretaçãoadequada passou pela análise de valores sub-jacentes à norma jurídica (dimensão valorati-va), aos fins dessa norma (dimensão teleoló-gica) e à relação entre meios e fins da norma(dimensão proporcional) para a sua aplica-ção no caso concreto (dimensão concreta).

Portanto, as dimensões estudadas naseção anterior constituem princípios direti-vos a serem aplicados na hermenêutica debusca da solução jurídica segura para apacificação social.

Em lapidar artigo, ressalta o Ministro doSuperior Tribunal de Justiça Carlos AlbertoMenezes DIREITO:

“O Juiz tem, nos dias de hoje, umamplo campo do agir interpretativo.

De modo geral, as teorias de interpre-tação procuram justificar esse papelconstrutivo do Juiz, como fundamen-to para a realização da justiça, para adistribuição pelo Estado da prestaçãojurisdicional ancorada na idéia dajustiça para todos. A lei, por isso, pas-sa a ser apenas uma referência, deladevendo o Juiz extrair a interpretaçãoque melhor se ajuste ao caso concreto,com a preocupação única de distribuira justiça, ainda que, para tanto, tenhade construir sobre a lei, mesmo que aproposição esteja com claridade sufi-ciente para o caso sob julgamento”(1999, p. 45).

A hermenêutica ganha hoje sempre maisvigor diante da rapidez com que a realida-de social se transforma; nesse aspecto, a ló-gica do razoável, com suas dimensões jáestudadas, contribui, enormemente, para acriação judicial, sem que se perca a segu-rança jurídica.

É indispensável assinalar, como desta-ca Siches, o aspecto concreto da lógica dorazoável: es decir, están referidas a una deter-minada situación humana real.

A rápida transformação social e a ade-quação da lei a casos concretos os mais di-versos não devem impedir o Juiz de buscar,a cada passo, distribuir justiça, e de o fazercom uniformidade, com coerência, de formaque o cidadão não seja surpreendido porinterpretações díspares.

A decisão judicial deve inserir-se nosmandamentos da lei, mas com a temperan-ça do razoável e do atual, pois o Juiz “é umagente do Estado, é sempre bom repetir, queconcretiza o trabalho do legislador. A lei sóestá concretizada quando interpretada eaplicada ao caso concreto. E esse trabalhonão é de todo simples, como pode parecer.Aí o grave risco de transformar-se a ativida-de judicante em uma rotina de produzir sen-tenças. É claro que em um país como o nos-so, com uma enorme carga de processos, compoucos juízes e muitos processos, a tenta-ção é grande em deixar-se levar pelo desâ-

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nimo. O Juiz deve considerar o ato de julgarcomo um trabalho que exige não apenas oseu conhecimento, mas, também, discipli-na. A disciplina é para subordinar-se aocomando da lei, sem perder a capacidadede construir para fazer justiça ao caso queestá sob a sua responsabilidade; disciplinapara não transformar o seu julgamento nodesaguadouro das suas insatisfações e cren-ças pessoais; disciplina para meditar sobreo processo” (DIREITO, 1999, p. 49).

O trabalho de interpretação, por maioramplitude que possa ter, não tem legitimi-dade para ultrapassar os largos limites doordenamento jurídico. Entretanto, como res-salta Siches, os limites do ordenamento po-dem ser flexibilizados à luz do problemapara adequação da norma à realidade con-creta, com fundamentação sólida, que per-mita que os juízes decidam “à luz do meio-dia e sem culpa”.

5.2. A lógica formal e alógica jurídica de Holmes

Em sua palestra The Path of the Law, pro-ferida na Faculdade de Direito da Universi-dade de Boston, HOLMES (1897) esclareceseu conceito de Direito. O Direito não é ummistério, algo místico e pouco objetivo. Aocontrário, é uma profissão, ou, mais, a ala-vanca que será necessariamente acionadapara que o Estado ponha em prática a deci-são judicial. Assim, as pessoas precisam seradvertidas e aconselhadas sobre como agirpara que não infrinjam a lei: essa é a tarefados advogados, dos operadores do Direito.

A lei, por sua vez, deve conter um enun-ciado geral, e, a partir de uma série de deci-sões judiciais, é possível ao cidadão enten-der como deve agir para que não infrinja alei; ou, ao contrário, o que ocorrerá se a infrin-gir. A norma passa, então, a constituir umaprofecia, à qual dá-se o nome de sentença 16.

Holmes descreve a decisão judicial, por-tanto, como um acontecimento futuro certo,absolutamente predizível17. Essa predicta-bilidade confere ao litigante segurança jurí-dica, dá-lhe todos os instrumentos para en-

tender como será julgado, nesta ou naquelacircunstância.

Essas previsões, contudo, não são infini-tas, difíceis, portanto, de dar-se a conhecer.Devem ser generalizadas e reduzidas a umsistema jurídico do qual possa o magistra-do dispor (cf. MARK, 1955, p. 60). Constitu-em, para Holmes, a essência do Direito: Theprophecies of what the courts will do in fact, andnothing more pretentious, is what I mean by thelaw (p. 63).

Para Holmes, a idéia de que a lógica for-mal é a única força presente na decisão ju-dicial e no Direito é falaciosa.

Admite o jurista que o Direito é desen-volvido pela lógica, em sentido lato. Contu-do, é inadmissível afirmar que um sistemajurídico possa ser operado de forma mate-mática, obtendo-se, de certas causas, deter-minados efeitos.

Refere-se Holmes a um colega magistra-do que lhe teria dito jamais proferir umadecisão até ter certeza de que estava correta.Embora a decisão judicial utilize-se da lógi-ca, a certeza, para Holmes, é uma ilusão, e atranqüilidade que dela advém não faz partedo destino da humanidade.

É possível dar forma lógica a qualquerconclusão, mas a ela chega-se não pela lógi-ca, exclusivamente, mas, acima de tudo, poruma valoração do juiz, freqüentemente inar-ticulada e inconsciente. Essa é a raiz e onascedouro de todo o procedimento decisó-rio (cf. MARK, 1955, p. 69).

Nesse ponto, aproximam-se Holmes eRecaséns Siches. Ambos admitem a impor-tância da lógica formal no procedimentodecisório, mas não o reduzem a apenas isso.Ressalta Alípio SILVEIRA, a comentar a ló-gica do razoável de Siches: as duas lógicas – aclássica e a do razoável – entram na estrutura dadecisão, mas não com idêntico caráter funcional.A lógica do razoável ora pode ser reforçada pelaprimeira, ora pode predominar sobre ela. O quenão se pode admitir é que a lógica clássica tenhaprimazia. Sempre predominará a lógica do ra-zoável, não passando a lógica clássica de um ins-trumento dela, de um dos elementos de que se

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vale a lógica do razoável para chegar à soluçãomais justa possível, em face do sistema de valo-res que informam cada caso concreto”([19- -?],p. 201-202).

5.3. A lógica jurídica de Holmes e a lógicado razoável como métodos hermenêuticos de

condução à segurança jurídica

A obra de Oliver Wendell Holmes e deLuis Recaséns Siches têm pontos de conta-to: a solução do caso concreto partindo-seda situação-problema, e não da norma; anegativa de que a lógica formal é suficiente– ou até mesmo prevalente – à fundamenta-ção da decisão judicial; o reconhecimentoda idéia de que o juiz, ao julgar, influencia-se por conceitos próprios, embora não pos-sa arbitrariamente decidir; a compreensãodo direito como experiência desenvolvida apartir da razão histórica e de uma raciona-lidade humana, a que REALE se refere como“razão vital” (2000, p. 42).

É preciso ter em mente, contudo, queHolmes nasceu em 1841 e, em 1902, foi no-meado Juiz da Suprema Corte norte-ameri-cana, onde serviu até quatro anos antes desua morte, em 1935. Recaséns Siches, poroutro lado, escreveu boa parte de sua exten-sa bibliografia após a Segunda Grande Guer-ra, embora seu manual sobre a Filosofia doDireito no século XX date de 192918. A pas-sagem da história e a evolução do pensamen-to jurídico-fisolófico encarregaram-se de aper-feiçoar e expandir em Siches algumas dasidéias já presentes em Holmes. Demais disso,Recaséns Siches era cosmopolita: foi profes-sor-visitante em dezenas de universidades,situadas na Europa e na América (inclusiveem Brasília); escreveu nos idiomas espanhol,inglês, italiano, português, francês e alemão,e traduziu obras alheias do alemão, do italia-no e do inglês para o espanhol (aí incluídasobras de Kelsen, Fischer, Radbruch, Weber,Del Vecchio e Kunz). Holmes manteve-se noeixo Inglaterra – Nova Inglaterra.

Os paralelos traçados no presente estu-do, contudo, servem ao propósito de de-monstrar que, ao mesmo passo que os juí-

zes devem submeter a norma ao caso con-creto – e não o contrário –, utilizando-se demétodo hermenêutico que privilegie a lógi-ca jurídica sobre a lógica formal, não po-dem distanciar-se da norma, julgando demaneira arbitrária. As conseqüências dainfração à norma devem ser sempre as mes-mas, guardadas as similaridades e diferen-ças dos casos concretos, para que o homemcomum – o cidadão – ou o homem mau, naspalavras de Holmes, possa ter convicção deque sua causa será julgada neste ou naquelesentido. A essa relativa certeza – pois, comoafirma Holmes, não há certeza absoluta noDireito – dá-se o nome de segurança jurídica.

A segurança jurídica tem raízes no prin-cípio jurídico da igualdade, que consiste emigualar os iguais e desigualar os desiguais,no clássico ensinamento de Aristóteles.

É preciso que o litigante sinta-se segurode que à sua causa será dada a mesma deci-são final que à causa de outro litigante, emsituação idêntica. E, por situação idêntica,deve-se entender não apenas caso concretoidêntico, mas, ainda, ocorrido no mesmotempo e no mesmo espaço; enfim, sob asmesmas circunstâncias.

A segurança jurídica, assim, não diz res-peito apenas a pessoas iguais ou em situa-ção igual, mas a casos concretos idênticossubmetidos à mesma norma; ou, mais preci-samente, à mesma norma submetida a ca-sos concretos idênticos19.

Notas

1 “The life of the law has not been logic; it hasbeen experience. The felt necessities of the time, theprevalent moral and political theories, intuitions ofpublic policy, avowed or unconsciors, even the pre-judices which judges share with their fellow-men,have had a good deal more to do than the syllogismin determining the roles by which men should begoverned” (1991, p. 1).

2 Segundo Tércio Sampaio Ferraz Júnior, “onúcleo constituinte dessa teoria já aparece esboça-do ao final do século XVIII. O jusnaturalismo jáhavia cunhado para o direito o conceito de sistema,que se resumia, em poucas palavras, na noção de

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conjunto de elementos estruturados pelas regrasde dedução. No campo jurídico, falava-se em sis-tema da ordem da razão ou sistema das normasconforme a razão, entendendo-se com isto a unida-de das normas a partir de princípios dos quais tudoo mais era deduzido. Interpretar significava, então,inserir a norma em discussão na totalidade do sis-tema. O relacionamento, porém, entre sistema etotalidade acabou por colocar a questão geral dosentido da unidade do todo” (1991, p. 240).

3 Conforme assinala José Carlos Moreira AL-VES, no discurso inaugural da Assembléia Nacio-nal Constituinte de 1987, um dos argumentos her-dados do Estado liberal e hoje ainda fluente nosdebates quanto à extensão do texto constitucionalse baseia na afirmação de que a Carta sintética, deprincípios elevados e transcendentes, tem o méritode permitir que as mudanças sociais se realizemsem que se alterem os mecanismos do processopolítico (1988, p. 10).

4 A primazia da retórica para o raciocínio jurí-dico é assinalada por CHAIM PERELMAN em suaobra La Lógica jurídica y la nueva retórica (1988).

5 Para Holmes, a norma jurídica desvela umatrama em que todo o passado da humanidade édetalhado. Belíssima é sua parábola, inserta no dis-curso feito à Associação de Advogados de Suffolk,em jantar por esta oferecido, em 5.2.1885:

“When I think thus of the law, I see a princess migh-tier than she who once wrought at Bayeux, eternallyweaving into her web dim figures of the ever-lengthe-ning past, – figures too dim to be noticed by the idle, toosymbolic to be interpreted except by her pupils, but tothe discerning eye disclosing every painful step and everyworld-shaking contest by which mankind has workedand fought its way from savage isolation to organicsocial life” (MARKE, 1955, p. 92).

6 Para maiores informações a respeito da lógicadeôntica, vide Lourival VILANOVA (1997).

7 “Para desenvolver o significado de uma coisa,devemos simplesmente determinar quais os hábi-tos que ela produz, pois aquilo que uma determi-nada coisa significa consiste precisamente nos há-bitos a que dá origem”. Essa máxima foi propostapor PEIRCE no Popular Science Monthly em Janeirode 1878, p. 287 (apud KURTZ, 1969, p. 79).

8 “The meaning of an idea is to be discovered byreference to its conceivable practical bearings”(KURTZ, 1969, p. 46).

9 “Thus we may define the real as that whosecharacters are independent of what anybody maythink them to be” (KURTZ, 1969, p. 75).

10 “The opinion which is fated to be ultimatelyagreed to by all who investigate is what we mean bythe truth, and the object represented in this opinionis the real” (KURTZ, 1969, p. 75).

11 “To James, philosophy was not a cloisteredaffair; it was to be lived and acted upon. James, a

liberal in his political and social sentiments, was acivil service reformer, a pacifist, and an anti-impe-rialist, and he was sympathetic to some sort of ‘so-cialistic equilibrium’” (KURTZ, 1969, p. 102).

12 “A theory of truth, which allowed for particu-lar individual and subjective consequences as thetest of an idea, thus making room for religious andmoral ideas”. “True ideas are those that we canvalidate, corroborate and verify. False ideas are tho-se that we can not” (KURTZ, 1969, p. 120).

13 “James’s influence on psychology was consi-derable, and he is frequently credited, with havingestablished the first psychological laboratory inAmerica. His great work, The Principles of Psycho-logy (1890), which took fourteen years to complete,is still considered a classic. Under the influence ofDarwin, James developed a biological and functio-nal psychology. His view that counsciousness wasa ‘function’, not an ‘entity’ or ‘stuff’, contributed tothe growth of behaviorism” (KURTZ, 1969, p. 104).

14 The prophecies of what the courts will do in fact,and nothing more pretentious, are what I mean by thelaw (HOLMES, 1897).

15 Quem assistiu ao filme The Boys from Brazil,inspirado na obra homônima de Ira Levin, terá vivaimagem de como a clonagem de seres humanos dehá muito habita o imaginário humano e de comoverdadeiras aberrações podem ser produzidas.

16 “It is to make the prophecies easier to be re-membered and to be understood that the teachingsof the decisions of the past are put into generalpropositions and gathered into text-books, or thatstatutes are passed in a general form. The primaryrights and duties with which jurisprudence busiesitself again are nothing but prophecies. (...) But, asI shall try to show, a legal duty so called is nothingbut a prediction that if a man does or omits certainthings he will be made to suffer in this or that wayby judgment of the court; and so of a legal right”(MARKE, 1955, p. 60).

17 “The object of our study, then, is prediction,the prediction of the incidence of the public forcethrough the instrumentality of the courts” (MA-RKE, 1955, p. 59).

18 Direcciones contemporáneas del pensamiento jurí-dico. La Filosofia del Derecho en el siglo XX. (Manual n.198 da Colección Labor, Barcelona).

19 A respeito do conteúdo jurídico do princípioda igualdade, cumpre reverenciar a obra de mesmonome de Celso Antônio Bandeira de Mello (1994).

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Joaquim B. Barbosa Gomes

Introdução. 1. Das características do contro-le e dos seus atores principais. 1.1. Da legitima-ção. 1.2. A ampliação da legitimação para exer-cício do controle. 1.3. A emergência do bloc deconstitutionnalité. 1.4. O surgimento na QuintaRepública de um verdadeiro sistema de alter-nância. 2. Do órgão controlador e das normasobjeto do controle. 2.1. Qualificação técnica. 2.2.Modernidade. 3. Das atribuições do ConselhoConstitucional e dos atos suscetíveis de con-trole. 3.1. Das atribuições extrajurisdicionais esemijurisdicionais. 3.2. Das competências tipi-camente jurisdicionais. 3.3. Dos atos normati-vos imunes ao controle. 3.4. Controle de cons-titucionalidade da lei já promulgada. 4. Do pro-cedimento e das decisões. 4.1. Da legitimação.4.2. Dos prazos. 4.3. Dos requisitos de proposi-tura da ação e da sua evolução procedimental.4.4. Das regras procedimentais. 4.5. Das deci-sões. 5. Síntese da obra jurisprudencial do Con-selho Constitucional. 6. Críticas, controvérsiase propostas de alteração do sistema de contro-le de tipo francês. 6.1. Conselho Constitucio-nal: órgão jurisdicional ou órgão político? 6.2.As propostas de reforma do Conselho.

Introdução

A França, como boa parte das democra-cias da Europa Ocidental, só veio a instituirum sistema de justiça constitucional após asegunda guerra mundial. Por força da suaespecificidade histórica e das idiossincrasi-as institucionais dela decorrentes, a escolhado modelo de justiça constitucional naquele

Evolução do controle deconstitucionalidade de tipo francês

Joaquim B. Barbosa Gomes é Professor daFaculdade de Direito da UERJ. Doutor em Di-reito Público pela Universidade de Paris-II (Pan-théon-Assas). Visiting Scholar na Columbia LawSchool, NY. Membro do Ministério PúblicoFederal.

Sumário

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país se fez em acentuado contraste com osparadigmas até então existentes na matéria –o modelo norte-americano de controle de cons-titucionalidade a posteriori, difuso e verifica-do no caso concreto e o modelo kelseniano,de tipo concentrado e abstrato. Os constituin-tes franceses de 1958 optaram pelo sistemaconcentrado e abstrato, porém preventivo.

Tendo o sistema francês evoluído signi-ficativamente nos últimos quarenta anos esendo bastante escassa a bibliografia emvernáculo sobre o assunto, pareceu-nosoportuno abordar o tema, ainda que sem aprofundidade desejável.

Assim, trataremos num primeiro momen-to das características gerais do sistema decontrole e dos seus atores principais, comespecial ênfase para as suas singularida-des, as suas virtudes e deficiências em com-paração com o modelo dito norte-america-no. Especial atenção será consagrada aoestudo do órgão titular do controle, da suaorganização e especial modo de renovaçãoda respectiva composição, bem como dasnormas objeto do controle.

Num segundo momento, abordaremosde forma sucinta alguns dos aspectos maissalientes da jurisprudência produzida pelajurisdição constitucional francesa nessesúltimos quarenta anos.

A título de conclusão, tentaremos fazerum balanço das críticas, controvérsias e pro-postas de reforma do sistema que vêm sen-do feitas nos últimos anos, impulsionadasem grande parte pela progressiva facilita-ção dos estudos comparativos que a revolu-ção das comunicações tem propiciado.

1. Das características do controle(ver VIEIRA, 1989) e dos seus

atores principais

Objetivamente, pode-se dizer que o con-trole de constitucionalidade de tipo preven-tivo se notabiliza por algumas virtudes e poralgumas deficiências.

A principal característica desse sistema,como se sabe, reside no fato de que a verifi-

cação da constitucionalidade se opera an-tes da promulgação da lei, embora, comodemonstraremos mais adiante, isso não sejainteiramente verdadeiro no caso francês. Paraalguns, a primeira e grande virtude do siste-ma de controle preventivo (ver FERREIRAFILHO, 2000) consiste em que, nessa moda-lidade de controle, aborta-se a inconstitucio-nalidade no nascedouro, impedindo que alei inconstitucional produza seus efeitosdeletérios antes de a jurisdição constitucio-nal poder retirar-lhe a eficácia.

O controle preventivo tem, por outro lado,um inegável efeito dissuasivo e um impactopolítico talvez mais importante do que ocontrole a posteriori, especialmente em paí-ses que adotam o sistema parlamentar degoverno, em que a troca de Gabinete e decoloração política da Administração ocorrecom freqüência. Em geral, nesse sistema degoverno, a alternância entre equipes gover-namentais significa às vezes alteração radi-cal na agenda política da nação. E nada émais embaraçoso politicamente para umanova equipe governamental, ungida e legi-timada pelo voto popular, do que ver suaplataforma de campanha cair por terraabruptamente por força de decisões emana-das de autoridades não legitimadas pelosufrágio popular. Nessas situações, podesoçobrar, da noite para o dia, uma medidaadministrativa de impacto que simbolizatodo um processo de alternância política,todo o conteúdo programático de um parti-do político importante que por longo tempoesteve à espera de sua vez para alçar-se aopoder, enfim, toda a entente ideológica entreum determinado líder político e parcela sig-nificativa do eleitorado. Sem dúvida, o con-trole de constitucionalidade preventivo, comseus prazos exíguos e peremptórios, com acaracterística de bloqueio político insuplan-tável que lhe é às vezes peculiar, com a in-cômoda proximidade temporal entre os de-bates político e jurídico, tem não raro umimpacto político muito maior do que o docontrole a posteriori, que ocorre quase sem-pre muito tempo após a entrada em vigên-

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cia das normas questionadas, incidindo nãoraro sobre situações já consumadas e irre-versíveis na prática1.

Por fim, o controle preventivo, caso exer-cido com rigor e acompanhado de vigilân-cia cotidiana por partes dos legitimados, tema inegável vantagem de não permitir a ins-tauração da incerteza e da insegurança ju-rídicas, eis que corta na raiz o experimenta-lismo e as oscilações típicas do controle di-fuso e a posteriori.

Mas as insuficiências e os inconvenien-tes do sistema preventivo de tipo francês sãotambém largamente conhecidos. Em primei-ro lugar, questiona-se a própria eficácia dosistema preventivo em si. Isso porque, es-tando o acionamento da justiça constitucio-nal nesse sistema condicionado à observân-cia de prazos e dependente de iniciativasde autoridades políticas, é grande o risco deleis importantes e constitucionalmente du-vidosas serem promulgadas sem que umdos titulares do direito de ação tome a inicia-tiva de questioná-las perante o ConselhoConstitucional. A hipótese não é de serdescartada, embora ela seja de ocorrência rara,dada a acirrada clivagem político-ideológicaque caracteriza o sistema político da França2.

Por outro lado, mesmo aquelas leis quepassam pelo crivo da jurisdição constitucio-nal podem no futuro vir a apresentar sinto-mas de inconstitucionalidade, seja por setratar de inconstitucionalidade que era me-ramente virtual ao tempo da verificação abs-trata da constitucionalidade e se concreti-zou no momento da aplicação concreta dalei, seja por força do fenômeno da mutaçãoconstitucional. Por outro lado, a inconstitu-cionalidade pode advir de modificação ul-terior do próprio texto da constituição.

Outro sério defeito do sistema de jurisdi-ção constitucional de tipo francês diz res-peito à não-participação do cidadão ou dasociedade civil organizada no processo decontrole. Com efeito, no sistema de controleimplantado pela Constituição francesa de1958, não há espaço para a arguição da in-constitucionalidade da lei por parte de um

indivíduo que se sinta atingido por um dosseus dispositivos, seja no caso concreto sejaem abstrato. Em outras palavras, uma vezpromulgada a lei, tendo ela passado ou nãosob o crivo da jurisdição constitucional,aquele que se sentir prejudicado pela inci-dência de suas normas não tem meios decombatê-la em sede jurisdicional. Em pri-meiro lugar, porque os órgãos jurisdicionaisordinários, mesmo os de cúpula como aCorte de Cassação e o Conselho de Estado,não têm o exame da constitucionalidade dasleis entre as suas atribuições jurisdicionais.Noutras palavras, ao julgarem um litígioentre particulares ou entre estes e uma enti-dade estatal, os juízes ordinários francesesnão têm poder de afastar a aplicação de umalei ao caso do concreto por considerá-la in-constitucional. Tal vedação é decorrênciados dogmas herdados da Revolução (verMERRYMAN, 1996), especialmente o dasacralização da lei e o da proibição aos juí-zes de proferir decisões de caráter normati-vo (arrêt de reglement). Em segundo lugar,porque sendo o controle de tipo preventivo,uma vez declarada a compatibilidade da leicom o texto constitucional ou mesmo ultra-passado in albis o prazo para se desencade-ar o processo de controle, a lei torna-se atolegislativo irreversível, ou seja, nasce a im-possibilidade jurídica da declaração, no bojode um processo entre partes, da sua irrecon-ciliabilidade com a lei maior.

Em suma, o cidadão é inteiramente ex-cluído do sistema de controle da constitucio-nalidade das leis, para o qual se prevê umalegitimação de natureza oficialesca.

1.1. Da legitimação

Com efeito, somente os atores políticosde alta envergadura institucional têm legi-timidade para participar do processo decontrole da constitucionalidade das leis naFrança. Na versão original da Constituiçãode 1958, apenas o Presidente da República,o Primeiro-Ministro e os presidentes da As-sembléia Nacional e do Senado podiam sus-citar o exame da constitucionalidade de

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uma lei perante o Conselho Constitucional.Era evidente a ineficácia do sistema naque-les primeiros anos de vigência da constitui-ção, eis que naquela época o sistema políti-co era relativamente monolítico, com o par-tido gaullista dominando inteiramente acena política: seus líderes ocupavam a Pre-sidência da República, a chefia de Governoe a presidência da Assembléia, só restandoo Senado, que era e ainda é dominado poruma coalização de partidos centristas rela-tivamente independentes dos gaullistas,mas necessariamente adversários dos parti-dários da esquerda. Era natural, portanto, emum quadro institucional como esse, que a ju-risdição constitucional fosse uma mera facha-da, com pouco ou quase nenhum desafio ju-rídico às normas postas em vigência sob ainspiração de uma maioria parlamentar avas-saladora e de um Governo dela emanado.

Três fatores, no entanto, vieram modifi-car radicalmente os dados da questão nasdécadas seguintes aos anos 60, dois de na-tureza essencialmente jurídica e um de cu-nho político-institucional.

1.2. A ampliação da legitimação para oexercício do controle

De fato, em 1974, o Presidente Giscardd’Estaing submeteu ao Parlamento um pro-jeto de emenda constitucional que estendeua 60 deputados ou a 60 senadores a legiti-mação para suscitar o controle da constitu-cionalidade das leis perante o ConselhoConstitucional. Essa alteração teve o efeitode multiplicar o número de ações de incons-titucionalidade3, fazendo surgir a partir deentão dois fenômenos por nós também co-nhecidos desde os primeiros anos de vigên-cia da Constituição de 1988: a judicializa-ção da política e a politização do Direito.Com efeito, a oposição de esquerda, que atéentão se mantivera à margem do processopolítico, passou a enxergar no controle deconstitucionalidade um formidável instru-mento de pressão política e de veiculaçãodo seu descontentamento com a situaçãogeral do país. Apoderou-se do controle de

constitucionalidade, passando a questionarperante o Conselho inúmeros atos normati-vos da Situação. Com isso, a participaçãono processo de controle de constitucionali-dade passou a constituir o que muitos auto-res franceses consideram um verdadeiro“estatuto da oposição” ao poder político le-gitimamente investido. Noutras palavras,um instrumento de defesa e de expressãoda minoria parlamentar.

1.3. A emergência do bloc deconstitutionnalité

Outro fator que contribuiu imensamen-te para o aprimoramento do sistema foi adecisão proferida pelo Conselho Constitu-cional em 1971, em um caso envolvendo odireito constitucional de associação.

Até então, o Conselho usava como parâ-metro do controle única e exclusivamenteos 92 artigos da sintética Constituição pro-mulgada em 1958. Nem mesmo o seu preâm-bulo, rico sob o prisma principiológico, eratido como dotado de densidade normativasuficiente para servir de base ao controle denormas. Mas, a partir da mencionada deci-são de 1971, o controle passou a ser efetua-do não mais apenas em face do texto daConstituição, mas tendo como parâmetro oque a doutrina passou a qualificar como blocde constitutionnalité, isto é, um catálogo denormas constitucionais e supraconstitucio-nais composto não apenas pelos 92 artigosda Constituição, mas igualmente pelo seuPreâmbulo, que por sua vez remete direta-mente à Declaração Universal dos Direitosdo Homem e do Cidadão de 1789 e ao Preâm-bulo da Constituição de 1946, fonte de qua-se todos os direitos sociais fundamentais dopaís. O Conselho passou também a consi-derar como integrante do bloc de constitutio-nnalité os “princípios constitucionais reco-nhecidos pelas leis da República”, isto é,todo um catálogo de normas e princípiosliberalizantes que o país adotou a partir de1875, ou seja, desde quando se desvinculoudefinitivamente do sistema monárquico.Nos anos 80, incorporou uma nova catego-

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ria normativa como norma de referência docontrole, os chamados “princípios sociais,políticos e econômicos particularmente ne-cessários ao nosso tempo”, os quais permi-tem uma constante atualização e compati-bilização das vetustas concepções de 1789com as idéias prevalecentes no tempo pre-sente. Portanto, a criação do bloc ampliousensivelmente as possibilidades do contro-le, na medida em que a obra ordinária doParlamento passou a ser confrontada comnormas supraconstitucionais de ambição eaceitação universais, muitas delas já fazen-do parte da consciência político-filosóficade boa parte do mundo.

1.4. O surgimento na QuintaRepública de um verdadeiro sistema

de alternância política

Por fim, com a subida da esquerda aopoder em 1981 e com a consagração de umverdadeiro sistema de alternância política,o controle jurisdicional de normas, que aprincípio era repudiado por setores impor-tantes do espectro político, especialmentepelos partidos de esquerda, adquiriu defi-nitivamente as suas lettres de noblesse, pas-sando a ser utilizado e aceito alternada eindistintamente por todos as vertentes polí-ticas do país. Em suma, cresceu não só emintensidade, mas igualmente em credibili-dade e visibilidade.

2. Do órgão controlador e das normasobjeto do controle

Dando curso a uma tradição multisse-cular, a Constituição da Quinta Repúblicadeu ao órgão titular da jurisdição constitu-cional a denominação de Conselho Consti-tucional, deixando de lado denominaçõesmais adaptadas à função jurisdicional taiscomo Corte ou Tribunal4.

O Conselho Constitucional5 é compostopor duas categorias de membros: os mem-bros vitalícios (membres de droit) e os mem-bros nomeados para um mandato de noveanos (membres nommés). Têm a qualidade de

membros vitalícios os ex-presidentes daRepública, aos quais a Constituição e a leiorgânica do Conselho Constitucional dão oprivilégio de ter assento efetivo no Conse-lho, desde que observem um dever comum atodos os magistrados do país: o dever dereserva quanto às questões decididas na viajurisdicional. Noutras palavras, não lhes épermitido politizar nem publicizar o pro-cesso decisório e deliberativo do órgão, oque é extremamente difícil para políticosprofissionais. Talvez por esse motivo, ne-nhum ex-presidente da Quinta Repúblicafez até hoje uso da faculdade constitucionalde ter assento no Conselho Constitucional6.Ou seja, trata-se de previsão constitucionalque caiu em desuso, não sendo raros os dou-trinadores que pedem a sua abolição pura esimples.

Os membros nomeados são os que exer-cem na sua plenitude a função jurisdicio-nal no seio do Conselho. Compõem um co-legiado de nove membros, sendo três desig-nados pelo Presidente da República, trêspelo Presidente da Assembléia Nacional etrês pelo Presidente do Senado. O mandatotem a duração de nove anos, não permitidaa recondução. A cada três anos são feitastrês nomeações, uma por cada autoridadetitular do direito de nomeação. A exemplodo que ocorre em outros sistemas de jurisdi-ção constitucional, cabe ao Chefe de Estadonomear o Presidente do Conselho, respei-tando, é claro, o prazo de duração dos res-pectivos mandatos. Assim, sempre que ocor-rer a vacância do cargo de Presidente docolegiado, o Presidente da República teráduas opções: ou bem ele nomeia para o car-go um dos membros já em exercício, que exer-cerá a presidência até o fim do seu própriomandato de nove anos, ou ele designa parao cargo de Presidente o novo membro a quetrienalmente ele tem direito de nomear, vin-do este a ter o direito de dirigir o Conselhopor todo o período de duração do seu man-dato. Vale dizer, a prerrogativa que tem ochefe de Estado de nomear o presidente doConselho Constitucional não o habilita a

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substituir um presidente que esteja no exer-cício do cargo.

2.1. Qualificação técnica

A exemplo do que ocorre com diversosórgãos de cúpula da jurisdição constitucio-nal, a começar pela Corte Suprema dos EUA,não se exige o diploma de bacharel em Di-reito para os membros do Conselho Consti-tucional. Isso talvez se explique pelo fato deque o Conselho foi concebido inicialmentecomo um órgão político de contenção doParlamento, ramo todo-poderoso do podertanto na Terceira (1875-1940) quanto naQuarta República (1946-1958). Pouquíssi-mos juristas contestam essa falta de exigên-cia de qualificação jurídica, talvez conforta-dos pelo fato de que o exame comparativodas cortes supremas e constitucionais mos-tra que pessoas de formação exclusivamen-te jurídica e com prática profissional restri-ta a essa área do conhecimento não são vo-cacionadas a exercer o monopólio sobre essetipo de função constitucional, em razão dodogmatismo cego e da estreiteza de visão aque a exclusividade no exercício da profis-são jurídica não raro conduz. A composi-ção ideal das cortes constitucionais é, semdúvida alguma, aquela que reúne um razoá-vel número de profissionais experimenta-dos oriundos do Poder Judiciário ou do Mi-nistério Público, de professores universitá-rios de primeira linha e de preferência ver-sados em questões constitucionais e, por fim,de pessoas egressas da vida política, mascom sólidos conhecimentos na área admi-nistrativa, social, econômica e jurídica, masnão necessariamente ex-advogados militan-tes, pois o que conta aqui são a largueur devue e a visão diferenciada em questões deEstado, que a vida política proporciona.

De qualquer sorte, a realidade mostra quea evolução político-constitucional da Fran-ça nos últimos quarenta anos mudou com-pletamente os dados da questão: o Conse-lho Constitucional não é mais um mero ór-gão de contenção dos arroubos e exorbitân-cias políticas do Legislativo, causa maior

da instabilidade política que marcou asduas Repúblicas precedentes. Sua funçãoprimordial hoje é muito mais a de protetordos direitos fundamentais. Essa mudançacrucial na natureza das funções do Conse-lho fez-se acompanhar de uma perceptívelalteração, tanto nos métodos de atuação doórgão, quanto no tipo de pessoas que pas-saram a nele ter assento ao longo do tempo.Assim, se é certo que nas primeiras compo-sições do Conselho a predominância era demembros oriundos da classe política, umbalanço geral do quadro de ex-membros doórgão mostrará que por ele passaram figu-ras exponenciais do mundo jurídico fran-cês, tais como René Cassin, jurista mundial-mente conhecido, figura-chave na recons-trução da paisagem jurídica internacionalno pós Segunda Guerra, com passagens porfunções-chave como a de vice-presidente doConselho de Estado (a mais elevada autori-dade jurisdicional do país na área do con-tencioso administrativo) e de membro daCorte Européia de Direitos Humanos; R.Lécourt, outro ex-membro da Corte Euro-péia de Direitos Humanos; Marcel Walinee Georges Vedel, dois grandes expoentes dodireito público europeu na segunda metadedo século XX; Bernard Chénot, também ex-vice-presidente do Conselho de Estado;François Luchaire, Robert Badinter e Jac-ques Robert, publicistas eminentes, além deinúmeros outros respeitados profissionaisdo Direito.

Por outro lado, em sintonia com o pro-cesso evolutivo que transformou o Conse-lho Constitucional de órgão político em ór-gão jurisdicional, os profissionais do Direi-to paulatinamente também foram assumin-do as rédeas da Instituição, ainda que semexclusividade. Com efeito, segundo levan-tamento recente (ver FAVOREU et al, 2000,p. 306), dos 57 membros nomeados entre1959 e 2000, cerca de 90% eram titulares dediplomas que dão acesso às carreiras demagistrado da justiça comum ou da justiçaadministrativa; 40% eram doutores em Di-reito e 20% professores efetivos das facul-

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dades de Direito. Outro dado importante:quase um terço dos nomeados no menciona-do período participaram de uma maneira oude outra à elaboração da Constituição de 1958.

2.2. Modernidade

Num outro registro, mas bem ilustrativode sua adaptação aos novos tempos e aoexemplo de outras cortes similares, o Con-selho Constitucional, no ano de 2000, teveocasião de ostentar uma façanha raríssima,qual seja, a presença em sua composiçãoefetiva de 3 mulheres ao mesmo tempo: aConselheira Noelle Lenoir, a primeira mu-lher a ter assento no órgão, nomeada em1992; Simone Veil, ex-magistrada e ex-mi-nistra de Estado, nomeada em 1998; e Mo-nique Pelletier, nomeada em 2000. Ou seja,um terço da composição do órgão.

3. Das Atribuições do ConselhoConstitucional e dos atossuscetíveis de controle

3.1. Das atribuições extrajurisdicionais esemijurisdicionais

Detentor exclusivo da jurisdição consti-tucional na França, o Conselho Constitucio-nal, a exemplo de outras cortes constitucio-nais, é titular de algumas atribuições cons-titucionais que vão além da missão pura-mente jurisdicional. Cabe-lhe, por exemplo,velar pela regularidade jurídica das opera-ções do referendum, instituto de longa sedi-mentação na vida institucional francesa,pelo qual o povo é chamado a participardiretamente da produção normativa dopaís, aprovando leis de natureza constitu-cional (emendas) e infraconstitucional.Noutras palavras, no exercício dessa missãoconstitucional, cumpre-lhe exercer o papel de“autenticador da expressão da vontade na-cional” (FAVOREU, 2000, p. 311).

Ao Conselho Constitucional cabe aindauma atividade bastante similar à que é exer-cida entre nós pela Justiça Eleitoral. Comefeito, figura entre as suas atribuições cons-

titucionais o controle da regularidade daseleições presidenciais e das eleições parla-mentares, missão que, vista do ponto de vis-ta do direito comparado, ele cumpre combastante zelo, haja vista que não é incomumvê-lo decretar a perda de mandato parla-mentar por vício no processo eleitoral, abu-so do poder econômico ou ocorrência de in-compatibilidade. Aliás, entre as suas atri-buições, essa é a mais expressiva do pontode vista quantitativo7 e é a que apresentacaracterísticas típicas de uma jurisdiçãocomum, com regras procedimentais rígidas,contraditório estrito etc.

Por fim, o Conselho exerce, a par das ati-vidades tipicamente jurisdicionais do con-trole de constitucionalidade, duas atribui-ções da mais alta relevância, reveladoras doseu status constitucional elevado. Em primei-ro lugar, nas situações de crise constitucio-nal, o Chefe de Estado deve necessariamen-te consultá-lo antes de fazer uso dos pode-res excepcionais que lhe são conferidos pelofamoso artigo 16 da Constituição de 1958.Em segundo, a ele é dada a prerrogativa dedeclarar pelo voto da maioria absoluta deseus membros a vacância do cargo de Presi-dente da República, em casos de impedi-mento, doença, incompatibilidade etc.

3.2. Das competências tipicamentejurisdicionais

No que diz respeito às competências ti-picamente jurisdicionais, as atribuições doórgão são de ordem variada, umas de cará-ter preventivo e obrigatório, outras de cará-ter preventivo e facultativo e umas poucasoutras de caráter facultativo e a posteriori.

A mais importante entre essas atribui-ções, o controle de constitucionalidade dasleis, é a prevista nos artigos 54 e 61 da Cons-tituição. De acordo com o artigo 61, cabe aoConselho, em primeiro lugar, exercer o con-trole da conformidade constitucional dasleis orgânicas (similares às nossas leis com-plementares) e dos regulamentos internosdas Assembléias parlamentares. Trata-se deum controle preventivo e obrigatório, sem o

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qual nenhuma dessas modalidades norma-tivas adquire eficácia. Quanto às leis orgâ-nicas, a explicação para essa obrigatorieda-de do controle reveste-se de grande razoabi-lidade: por ser a constituição francesa bas-tante sucinta, o funcionamento efetivo deinúmeras instituições reguladas em termosgenéricos no texto constitucional condicio-na-se à sua disciplina de forma mais deta-lhada em nível de lei complementar. Já aobrigatoriedade do controle preventivo dosregulamentos das assembléias parlamenta-res encontra explicação na história consti-tucional da Terceira e da Quarta Repúbli-cas: era exatamente por meio de manobrasregimentais duvidosas e de chicanas proce-dimentais que as Assembléias francesasconseguiam bloquear o funcionamento re-gular de instituições políticas vitais em re-gime parlamentar, tais como a moção de cen-sura e a dissolução do Parlamento. Com isso,impunham de forma prepotente a sua von-tade ao Executivo, criando instabilidadegovernamental e desequilíbrio institucional,quase operando, assim, a conversão do re-gime parlamentar em “regime de assem-bléia”8. Assim, para evitar que o funciona-mento regular das instituições continuassea ser deturpado pelas manobras e chicanasconduzidas pelas lideranças parlamenta-res, a Constituição de 1958 instituiu o cha-mado “parlamentarismo racionalizado”(ver CRUZ, 1999), isto é, um regime parla-mentar disciplinado por regras rígidas derelacionamento entre o Executivo e o Legis-lativo. Entre essas regras rígidas, especialatenção passou a ser dedicada aos regimen-tos do Senado e da Assembléia Nacional,pois era por meio da manipulação de suasnormas que o Legislativo conseguia chan-tagear e impor a sua vontade ao Executivo.Daí a obrigatoriedade, instituída pela Cons-tituição de 1958, do exame obrigatório e pre-ventivo dos regimentos antes da sua entra-da em vigor.

Por outro lado, com base nos artigos 54 e61, alínea 1, o Conselho examina, medianteação de iniciativa de uma das autoridades

constitucionais legitimadas, a compatibili-dade com a Constituição de dois tipos dis-tintos de atos normativos: a lei ordináriavotada pelo Parlamento e os tratados inter-nacionais. No caso da lei ordinária, apóssua votação regular pelas duas Casas doParlamento, mas antes da promulgação, oConselho verifica, mediante provocação, asua compatibilidade com a Constituição.Constatada a inconstitucionalidade, nasceum empecilho instransponível à promulga-ção e, por via de conseqüência, à entradaem vigor da lei. Ao Parlamento só restaráalterar a lei, escoimando-a dos dispositivosincompatíveis com o texto constitucional, ousimplesmente desistir da sua aprovação. Jáno que diz respeito aos tratados internacio-nais, toda vez que o Conselho Constitucio-nal constata, no curso da sua atividade decontrole da constitucionalidade, que umdeterminado tratado negociado pelo Gover-no traz em seu bojo uma cláusula que sechoca com algum dispositivo constitucio-nal, a ratificação do instrumento normativointernacional fica suspensa até que se pro-mova a alteração constitucional necessáriaà compatibilização entre as duas categoriasnormativas.

Essas são as duas modalidades de con-trole constitucional mais freqüentes, as quecompõem nos dias atuais o essencial dasatividades jurisdicionais do Conselho, ex-cetuada a atividade de controle jurisdicio-nal do processo eleitoral de escolha do Presi-dente da República e dos membros do Par-lamento. Mas o controle de constitucionali-dade francês não se esgota aí. Contrariamen-te ao que se pensa, o Conselho Constitucio-nal exerce ainda um outro tipo de atividadejurisdicional bem específico, fruto das ino-vações estruturais que a Constituição daQuinta República ousou implantar.

Com efeito, entre as novidades institucio-nais da Quinta República francesa, figurauma inovação que à época foi vista comouma verdadeira “revolução jurídica”: a se-paração rígida entre o que é do “domínio dalei” e o que é do “domínio do regulamento”.

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Segundo esse esquema de separação decompetências normativas previsto na Cons-tituição, o Parlamento tem competênciapara legislar somente sobre as matérias ex-plicitamente elencadas no artigo 34 da Cons-tituição9. Tudo o que sobejar à enumeraçãodo artigo 34 pertence à esfera, ao “domí-nio”, do Regulamento, ou seja, inclui-se naalçada normativa do Executivo. Em reali-dade, muitas dessas “inovações” foram ins-tituídas com o objetivo único de levar a caboo apoucamento do poder Legislativo e defortalecimento do Executivo. Em virtudedessa separação dos domínios legislativo eregulamentar, cabe ao Conselho Constitu-cional intervir para dizer o que é da alçadado Legislativo e o que é da alçada do Execu-tivo, cumprindo assim uma das missõesclássicas da justiça constitucional – o des-linde de conflitos de competência entre ór-gãos constitucionais soberanos.

O Conselho Constitucional desincumbe-se dessa missão específica em duas situa-ções distintas: a priori, em caráter preventi-vo, e a posteriori, isto é, após a entrada emvigor da lei. A intervenção a priori se dá nocurso do processo legislativo. Com efeito, seao longo da discussão e deliberação de umprojeto de lei de iniciativa parlamentar ficarconstatado que a respectiva proposta legis-lativa não é do domínio da lei ou incidesobre matéria objeto de uma delegação le-gislativa outorgada pelo Parlamento ao Exe-cutivo, este pode opor-se à aprovação doprojeto por meio de uma moção de irreceva-bilité, isto é, uma moção impeditiva da deli-beração do projeto. Acolhida a moção pelarespectiva Casa Legislativa, o projeto sai dapauta de deliberação. Mas, se o presidenteda Assembléia interessada se opuser à mo-ção, estará caracterizado o litígio constitu-cional para cujo deslinde o Conselho Cons-titucional será chamado a intervir por qual-quer um dos dois litigantes (o Legislativoou o Executivo), devendo tomar sua decisãonum prazo de oito dias.

A “revolução jurídica” de 1958 deu mar-gem, como era de se esperar, a questões cons-

titucionais complexas, para cujo deslindeera indispensável a existência de um órgãocompetente para o exercício da jurisdiçãotipicamente constitucional. Por exemplo: emque categoria normativa passariam a se en-quadrar após 1958 as leis votadas pelo Par-lamento anteriormente à vigência da Cons-tituição, tratando de matérias que após essadata passaram a integrar o domínio regula-mentar? Como proceder à alteração dessasleis a partir de 1958?

Aí é que entra a outra variante do con-trole de constitucionalidade francês, de tipoespecialíssimo e exercida a posteriori. É oprocedimento de “delegalização”, previstono artigo 37, alínea 2, da Constituição. Comefeito, a Constituição estabelece (art. 37) queas matérias não incluídas explicitamente nodomínio da lei passariam a ter natureza re-gulamentar após a vigência da Constitui-ção. Assim, se uma determinada matéria foidisciplinada antes de 1958 por via legislati-va e após 1958 essa matéria passou para odomínio regulamentar, sua alteração pordecreto do Executivo passou a ser constitu-cionalmente viável após a vigência da Cons-tituição. Mas, após 1958, se o Parlamentodecidir disciplinar uma matéria agora in-cluída no âmbito da competência regula-mentar, o Executivo pode alterar o respecti-vo ato normativo por decreto, desde que oConselho Constitucional declare que aque-la norma tem, em realidade, um caráter emi-nentemente regulamentar. Em outras pala-vras, por meio do procedimento de “delega-lização”, o Conselho decide, em caráter de-finitivo, se uma determinada norma legaltem natureza de lei em sentido material oude lei em sentido formal. Decidindo-se pelaúltima hipótese, o Conselho chancela a mo-dificação da norma pelo Executivo por meiode decreto.

Em resumo, a ação jurisdicional do Con-selho Constitucional se exerce sobre atosnormativos específicos, expressamente elen-cados na Constituição. Trata-se de contro-lar a compatibilidade vertical com a Consti-tuição de atos de conteúdo normativo di-

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verso. Em primeiro lugar, da lei propriamen-te dita, expressão da vontade nacional comojá dizia Rousseau. Em se tratando de lei or-dinária, o controle é facultativo, isto é, de-pende da iniciativa das autoridades consti-tucionalmente legitimadas, tanto no que dizrespeito ao controle propriamente dito quan-to no que pertine à chamada delegalisation.Cogitou-se num certo momento de se modi-ficar a Constituição para permitir ao Conse-lho a possibilidade de decretar a sua auto-saisine, isto é, o poder de iniciar ele próprio,de ofício, o procedimento de controle. Talproposta, porém, não foi adiante. Em segun-do lugar, o controle se exerce de forma obri-gatória e automática sobre as leis orgânicase sobre os regulamentos internos das as-sembléias parlamentares. Por fim, existe ain-da o controle (mediante iniciativa de um doslegitimados) dos tratados internacionais,podendo esse controle ter como objeto tantoo texto do tratado em si quanto a lei do Par-lamento que o ratifica.

3.3. Dos atos normativos imunes aocontrole

Algumas modalidades normativas esca-pam, contudo, ao controle de normas exer-cido pelo Conselho Constitucional. Esse é ocaso, por exemplo, das leis oriundas da von-tade popular – as chamadas “leis referen-dárias”. Adotando uma interpretação estri-ta do texto constitucional, e pretendendocom isso veicular a mensagem de que so-mente os atos do Parlamento, isto é, do po-der constituído, seriam suscetíveis de mo-dificar de forma nociva a estrutura e o equi-líbrio entre os poderes, o Conselho já deci-diu, por duas vezes, que a lei aprovada porreferendo não se enquadra no conceito de“lei” a que se refere a Constituição paraefeito de controle de constitucionalidade.Noutras palavras, as modificações trazi-das ao ordenamento jurídico pela mani-festação do povo soberano não podem sercoarctadas por autoridades jurisdicio-nais. Trata-se, pois, de atos imunes ao con-trole jurisdicional.

São também imunes à jurisdição consti-tucional os atos normativos (ordonnances)editados pelo Executivo em razão de dele-gação legislativa outorgada pelo Parlamen-to. Tecnicamente, essa imunidade ao con-trole de constitucionalidade se explica pelofato de que, na França, antes de sua convali-dação pelo Legislativo, a norma objeto dedelegação tem hierarquia idêntica à do re-gulamento. Por via de conseqüência, é umanorma que se submete ao controle da juris-dição administrativa, tanto pelas vias ordi-nárias quanto pela via especial do recourspour excès de pouvoir. Ao Conselho de Estado,órgão de cúpula do contencioso adminis-trativo, cabe, com efeito, o controle em últi-ma instância da compatibilidade entre oregulamento e a lei (controle de legalidade),ao Conselho Constitucional restando a in-cumbência exclusiva de verificar a com-patibilidade entre a lei e a constituição (con-trole de constitucionalidade). Somente nomomento de sua aprovação por lei pelo Par-lamento é que tais ordonnances, convertidasem lei material, podem ser objeto de contro-le de constitucionalidade10.

São também imunes ao controle do Con-selho Constitucional as emendas constitu-cionais. O Conselho já se manifestou nessesentido por duas vezes. Uma delas ocorreupor ocasião da ratificação do Tratado cons-titutivo da União Européia (Tratado de Ma-astricht, posteriormente alterado pelo Tra-tado de Amsterdam). Acionado por um gru-po de mais de sessenta Senadores que im-pugnavam o Tratado por considerá-lo aten-tatório à soberania nacional, o ConselhoConstitucional decidiu que o referido trata-do era, efetivamente, contrário à Constitui-ção. Em razão dessa decisão, foi dado inícioao procedimento constitucional de emendaà Constituição, para harmonizá-la com asnovas disposições contidas no tratado.Aprovada a emenda à Constituição, foi estapor sua vez impugnada perante o ConselhoConstitucional, que no entanto rechaçou aação, no entendimento de que o poder cons-tituinte é soberano, exceto no que diz res-

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peito às limitações temporais, formais emateriais à reforma da Constituição. Emsuma, inexiste na França, como de resto namaior parte das grandes democracias oci-dentais, controle de constitucionalidade deemendas constitucionais.

3.4. Controle de constitucionalidadeda lei já promulgada

Em princípio, como já vimos, a lei pro-mulgada não pode mais ser objeto do con-trole de constitucionalidade. Entretanto,duas decisões do Conselho Constitucional,uma de 1985 e outra de 1999, vieram abriruma brecha nesse edifício teórico erguidoem torno do princípio segundo o qual so-mente as leis aprovadas pelo Parlamentomas ainda não sancionadas pelo Presiden-te da República podem ser objeto do contro-le. Com efeito, nessas duas decisões oConselho declarou ser possível o reexa-me da constitucionalidade de uma lei jápromulgada, por ocasião do controle deuma lei posterior que a modifica. Tal con-trole a posteriori já foi levado a efeito quatrovezes desde 1985 e isso pode ser visto comoindicativo de uma tendência evolutiva docontrole de tipo francês. Dessa evoluçãodeflui necessariamente uma conclusão ló-gica que, no entanto, não se acha explicita-da no texto constitucional: a de que a juris-prudência do Conselho Constitucional seimpõe a todos os poderes públicos, exce-to a ele mesmo. Isso, naturalmente, viabi-liza a evolução da jurisprudência, permi-tindo a sua adaptação à rápida e cons-tante evolução da sociedade.

4. Do procedimento e das decisões

Tratar do procedimento observado pe-rante o Conselho Constitucional implicanecessariamente dissertar sobre a legitima-ção para agir, sobre os prazos, sobre osrequisitos indispensáveis à formalizaçãoe ao desenvolvimento da ação, bem comosobre alguns aspectos das decisões pro-priamente ditas.

4.1. Da legitimação

Cerca de quatorze categorias diferentesde autoridades e pessoas têm legitimaçãopara acionar o Conselho Constitucionalpara fins de exercício de uma das suas múl-tiplas atribuições constitucionais. Esses le-gitimados vão desde o Presidente da Repú-blica, Primeiro-Ministro, Deputados e Se-nadores até os candidatos a cargos eletivos,o eleitor, o Ministério Público, o Préfet11, asmesas e os presidentes das assembléias. Alegitimação se justifica em função do tipode manifestação que se pede ao Conselho.No que diz respeito ao controle de constitu-cionalidade propriamente dito, como já dis-semos, são legitimados o Presidente, o Pri-meiro-ministro, os presidentes do Senado eda Assembléia Nacional e, desde 1974, ses-senta deputados ou sessenta senadores.

4.2. Dos prazos

Como já dissemos, o modelo de jurisdi-ção constitucional adotado pela Constitui-ção francesa de 1958 reúne formas diversasde intervenção do órgão titular da jurisdi-ção constitucional. Variam, por conseguin-te, os prazos para as diversas modalidadesde controle. Pode-se falar basicamente emdois tipos de prazos: a) prazos para sub-missão do ato normativo ao controle doConselho, ou seja, prazos para o desenca-deamento do processo de controle; b) prazodentro do qual deve ser proferida a decisãode constitucionalidade ou inconstituciona-lidade. Há situações, porém, em que não háqualquer exigência de prazo.

Vejamos inicialmente as hipóteses decontrole de constitucionalidade obrigatório,isto é, o controle das leis orgânicas e o dosregimentos internos das assembléias parla-mentares. Cumpre saber inicialmente emque momento o ato normativo deve ser sub-metido ao crivo do Conselho. Em se tratan-do de leis orgânicas, o prazo para proposi-tura da ação constitucional é de 15 dias, acontar da data de aprovação final do proje-to de lei pelo Parlamento e sempre antes da

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sua promulgação pelo chefe de Estado.Quanto ao prazo para proferir a decisão, emprincípio, nessa modalidade de controle, oConselho tem 30 dias para deliberar e deci-dir, mas esse prazo pode ser encurtado para8 dias, caso o Primeiro Ministro manifesteexpressamente um pedido de urgência. Es-sas regras de prazo para julgamento tam-bém se aplicam ao controle obrigatório dosregimentos internos das assembléias parla-mentares. Já quanto ao prazo de propositu-ra da ação constitucional no caso dos regi-mentos, as soluções são menos evidentes.De fato, como os regimentos internos dasassembléias não se submetem à sanção doExecutivo, e como não é nada incomum quehaja incerteza quanto à data exata de entra-da em vigor de um ato normativo dessa na-tureza, dúvidas podem ocorrer quanto aosmomentos inicial e final do prazo de propo-situra dessa modalidade específica de açãode inconstitucionalidade. Um regimentointerno pode ser aprovado numa legislatu-ra para entrar em vigor somente na seguinteou numa outra data qualquer. O certo, po-rém, é que cabe ao presidente da Assembléiacomunicar ao Conselho Constitucional aaprovação de um novo regimento, trans-mitindo-lhe o texto respectivo. Feita essacomunicação, começa a correr o prazopara o exame do ato normativo, exameesse que é condição inafastável de eficá-cia do regimento.

Quanto às leis ordinárias, também é dequinze dias o prazo para que os legitima-dos possam fazer uso da faculdade consti-tucional de acionar o Conselho. Nesse caso,a exemplo do que ocorre no controle das leisorgânicas, votada uma lei pelo Parlamentoe uma vez ajuizada a ação impugnando-apor incompatibilidade com a Constituição,surge o efeito jurídico imediato da proposi-tura da ação constitucional: a suspensão doprazo de promulgação da lei, que é de quin-ze dias (art. 10)12. O prazo para o Conselhoproferir sua decisão é de trinta dias, tam-bém com possibilidade de redução para oitodias, em caso de urgência.

No que concerne aos tratados internacio-nais, o prazo de propositura da ação de in-constitucionalidade é fruto de construçãojurisdicional, já que a Constituição e a leiorgânica relativa à organização e ao funcio-namento do Conselho Constitucional sãosilentes a esse respeito. Com efeito, por meiode um julgado proferido em 199213, o Con-selho Constitucional decidiu que o desen-cadeamento do procedimento de controle daconstitucionalidade de um instrumento nor-mativo internacional pode se dar assim queo ato tenha sido assinado “em nome da Re-pública francesa”. Decidiu também que oexercício do direito de ação constitucionalnesse caso deve necessariamente precederà internalização do texto objeto da negocia-ção internacional no ordenamento jurídicodo país. Na prática, isso quer dizer que aação constitucional pode ser proposta tan-to antes quanto no curso do procedimentolegislativo de ratificação do tratado. O pra-zo para o Conselho decidir é o mesmo pre-visto para o controle das leis ordinárias.

Por fim, em razão da sua própria especi-ficidade, o tratamento dos prazos é diversono que diz respeito à hipótese de controlede constitucionalidade a posteriori. De fato,no que pertine à hipótese de controle parafins da chamada “delegalização”, a coloca-ção em marcha da jurisdição constitucionalnão se submete a prazos explícitos. Com efei-to, se o Executivo decidir alterar por decretouma lei que cuida de matéria que, segundo aConstituição, insere-se no domínio do regu-lamento, a alteração somente poderá efeti-var-se se o Conselho Constitucional decidirque aquele tema, de fato, pertence ao domínioregulamentar e não ao domínio da lei. Nessecaso, o ajuizamento da ação pelo Primeiro-ministro deve ocorrer necessariamente antesda alteração da norma, mas não há prazo es-pecífico para tanto. Na prática, o ConselhoConstitucional pode ser chamado a qualquertempo para dizer se um texto legislativo per-tence materialmente ao domínio da lei ou doregulamento, mesmo depois de passadosmuitos anos da promulgação da lei.

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4.3. Dos requisitos de propositura daação e da sua evolução procedimental

O exercício do direito de ação perante oConselho Constitucional é bastante simplifi-cado, apresentando algumas discrepânciasem relação às exigências previstas nas ju-risdições administrativa e comum. Total-mente gratuita14, a jurisdição constitucionalfrancesa isenta os legitimados do pagamen-to de qualquer tipo de despesa processual,bem como da representação por advogado,o que é bastante salutar nessa modalidadede jurisdição. As petições dos legitimadospodem tomar a forma de simples carta-ofí-cio, tanto no formato individual quanto nocoletivo. Assim, em se tratando de ação deautoria parlamentar, instaura-se a jurisdi-ção por intermédio de uma única carta-ofí-cio contendo as sessenta assinaturas exigi-das, ou por meio de sessenta cartas indivi-dualizadas. Em razão da dispensa do mi-nistério de advogado, a motivação da peti-ção é facultativa: basta indicar os dispositi-vos considerados contrários à Constitui-ção15. O Conselho Constitucional, por seuturno, não restringe o seu exame nem àmotivação eventualmente feita pelos auto-res nem aos dispositivos por eles aponta-dos como contrários à Constituição. Comefeito, pode ocorrer de os requerentes indi-carem um determinado dispositivo da leicomo contrário à Constituição e o Conselhoproclamar a constitucionalidade do dispo-sitivo apontado, e ao mesmo tempo decla-rar a inconstitucionalidade de outros dis-positivos da lei não apontados pelos reque-rentes. Ou seja, mesmo que a impugnaçãofeita pela autoridade legitimada incida so-bre uma parte da lei, a decisão do Conselhopoderá incidir sobre a integralidade do tex-to. Da mesma forma, podem os requerentesindicar como parâmetro do controle um de-terminado componente do bloc de constituti-onnalité e o Conselho declarar a inconstitu-cionalidade da norma por incompatibilida-de com um outro princípio ou dispositivonão apontado na petição.

Proposta a ação constitucional por umdos legitimados ou comunicada a aprova-ção pelo Parlamento de um ato normativosubmetido ao controle obrigatório de cons-titucionalidade, a arguição passa por umexame prévio de admissibilidade em se tra-tando de hipótese de controle facultativo.Declarada a inadmissibilidade de uma açãopor qualquer motivo, essa decisão é defini-tiva, eis que as decisões do Conselho Cons-titucional são irrecorríveis e não suscetíveisde exame por qualquer outro órgão jurisdi-cional. Declarada admissível, cabe ao Pre-sidente do Conselho Constitucional desig-nar um relator para o caso. Aqui, a exemplodo que ocorre em outras Cortes Constitucio-nais ou Supremas, a começar pela CorteSuprema dos EUA, tem-se um exemplo dopoder extraordinário que detém o presiden-te do colegiado, consistente na prerrogati-va discricionária (costumeira, eis que nãoprevista nos textos) de poder escolher o re-lator, contrariamente, por exemplo, ao siste-ma vigente no Brasil – em que o relator éescolhido de forma aleatória, por sorteio.Embora quase não o faça, o Presidente podeaté mesmo autodesignar-se relator. Em re-gra geral, as indicações para relatoria sãofeitas em função das especialidades técni-cas de cada membro do Conselho16. Indica-do o relator para um determinado caso, seunome, porém, não é tornado público. Essapraxe da confidencialidade do nome do re-lator tem como objetivo caracterizar a natu-reza coletiva e impessoal da decisão, bemcomo subtrair o relator de eventuais pres-sões – econômicas, políticas, religiosas etc.

4.4. Das regras procedimentais

Como já dissemos, o procedimento ob-servado perante o Conselho Constitucionalreveste-se de uma certa informalidade. Noque diz respeito, por exemplo, ao controledas leis orgânicas e dos regimentos das as-sembléias, não há qualquer exigência deobservância do princípio do contraditório.Talvez isso se explique pelo fato de tratar-sede um controle objetivo, automático, obriga-

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tório, inteiramente desvinculado de confli-tos de interesses intersubjetivos17. Tampou-co há contraditório no procedimento de “de-legalização” previsto no artigo 37.2 da Cons-tituição, que também tem natureza objetivae pertine à divisão de competências entreLegislativo e Executivo.

Já no que diz respeito ao controle facul-tativo das leis ordinárias, consolidou-se naprática do Conselho um arremedo de con-traditório que pode ser assim resumido: pro-posta a ação de inconstitucionalidade e ul-trapassada a fase de admissibilidade, é fei-ta uma notificação da sua propositura àsdemais autoridades detentoras da legitimi-dade para desencadear o contencioso cons-titucional (Presidente da República, Primei-ro-ministro e Presidentes das Assembléiasparlamentares). Por seu turno, os Presiden-tes das assembléias dão ciência da proposi-tura da ação aos respectivos membros. Anotificação do Presidente da República seexplica pelo fato de que a admissibilidadeda ação implica suspensão automática doprazo de promulgação da lei. Já a informa-ção da propositura ao Primeiro-Ministrotem várias explicações: em primeiro lugar,por ser ele o chefe do Governo, que tem imen-sa e cotidiana interferência no processo par-lamentar; em segundo, porque é dele a inici-ativa da maioria esmagadora de todas asleis aprovadas pelo Parlamento; e, por últi-mo, por encontrar-se sob as suas ordens umaautoridade-chave de todo o esquema de po-der na França: o secretário-geral do Gover-no, uma espécie de correia de transmissãoentre a Presidência da República, o Gabine-te e o Parlamento. Na prática, é o Secretário-geral do Governo18 quem faz a “defesa” dalei impugnada por inconstitucionalidade –um costume constitucional bastante critica-do nos dias atuais (ver JAN, 2001, p. 473).

O certo é que a não-previsão nos textosde um procedimento contraditório mais rí-gido e estruturado é fruto da circunstânciade que não há, de fato, direitos subjetivosenvolvidos nesse tipo de controle de nor-mas. O que passou a ocorrer, especialmente

a partir da emenda de 1974, foi um maiorinteresse político na declaração de incons-titucionalidade dessa ou daquela medidagovernamental ou parlamentar concretiza-da em lei. Em razão dessa “judicializaçãodo processo político” e da correspondente“politização do Direito”, cresceu em impor-tância o problema da observância do con-traditório. Sinal evidente disso pode ser cons-tatado nos arrazoados que acompanham aspetições, que ganharam em volume e sofis-ticação.

Feita a defesa do ato normativo por quemde direito (na maioria dos casos, o Secretá-rio-Geral do Governo, em nome deste, mastambém os presidentes das assembléias par-lamentares em se tratando de lei de iniciati-va parlamentar), não é incomum que os au-tores da ação façam uso do direito de répli-ca (mémoire ampliatif de la saisine), a fim decombater os argumentos alinhados na defe-sa do ato. Tudo isso, claro, tem caráter bas-tante informal, já que é facultativa a apre-sentação de peças jurídicas, seja na funda-mentação da ação seja na defesa do ato nor-mativo. A seguir, o Conselho Constitucio-nal publica no Diário oficial a íntegra da lei,acompanhada dos arrazoados jurídicos quedão sustentação tanto à ação de inconstitu-cionalidade quanto à defesa do ato norma-tivo impugnado. Tal publicação, incomumna prática jurisdicional comparada pela suaextensão, abrangendo a totalidade das pe-ças do debate contraditório, reduz sensivel-mente, para alguns, a força e a credibilida-de de uma crítica que era freqüentementefeita à práxis jurisdicional do ConselhoConstitucional: a de ser um órgão jurisdicio-nal envolto em segredo!

O Relator, cujo poder de instrução é denatureza inquisitorial, ao proceder à instru-ção do feito, toma às vezes a iniciativa deouvir os dirigentes dos órgãos destinatáriosda norma questionada ou pessoas que dealguma forma estiveram envolvidas na suaelaboração. Não raramente são tambémouvidos pelo Relator os argumentos técni-cos dos representantes dos órgãos envolvi-

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dos. Ele pode também convocar e interrogaras autoridades cuja atuação funcional te-nha pertinência com o texto impugnado,colher a opinião de experts na matéria trata-da pela lei. Mas todas essas consultas sãoinformais, elas não estão previstas nas nor-mas constitucionais e legais do contenciosoconstitucional. Em suma, são costumes cons-titucionais que se desenvolveram ao longodos últimos quarenta anos.

Se a informalidade é um dado inegávelno que diz respeito às regras procedimen-tais, o Conselho consagra um rigor todo es-pecial à constituição daquilo que se conven-cionou chamar de dossier de travail do pro-cesso constitucional, isto é, a documenta-ção anexa preparada pelo secretariado doConselho e que serve de apoio às delibera-ções do órgão jurisdicional. Esse dossier detravail compreende uma enorme variedadede documentos, incluindo desde os respec-tivos projetos de leis e as atas dos debatesparlamentares até a jurisprudência de Cor-tes estrangeiras, da Corte Européia de Di-reitos Humanos, da Corte de Justiça dasComunidades Européias, das jurisdiçõesadministrativa e comum sobre o assunto emdiscussão. Embora não haja previsão legalda figura do amicus curiae, são incluídas nodossier de travail as observações favoráveis econtrárias à lei formuladas por pessoas físi-cas e jurídicas, por associações e outras ins-tituições que se interessem pela questãoconstitucional em debate.

Assim, concluída a instrução e elabora-do o relatório, o Relator leva o caso ao Ple-nário para deliberação com os demais mem-bros do Conselho, que decidem secretamen-te, sem a presença de quem quer que seja.

4.5. Das decisões

As decisões do Conselho Constitucionaltêm efeito erga omnes, pois nos termos doart. 62 da Constituição elas “se impõem aospoderes públicos”. Se é certo que nos pri-meiros anos da Quinta República houvedúvidas sobre a eficácia desse dispositivoconstitucional em razão de o Conselho Cons-

titucional ser um órgão externo às duas ou-tras ordens de jurisdição e por isso mesmonão dispor de meios processuais de imporsuas decisões, hoje essas dúvidas desapa-receram completamente, e tanto a Corte deCassação quanto o Conselho de Estado ob-servam fielmente as decisões do Conselho.

No seu aspecto formal, as decisões doConselho são bastante semelhantes às dasoutras jurisdições do país. Ao contrário datradição do nosso STF e da Corte Supremados EUA, em que as decisões tomam a for-ma dissertativa, na França elas são redigi-das e motivadas sob a forma de “conside-randa”, “visto que”, “atendendo a que”,para só então concluir-se com o dispositivoda decisão. Os “consideranda” e “vistos”integram o conteúdo da decisão. Esse méto-do, para quem não é com ele familiarizado,dificulta sensivelmente a compreensão doconteúdo da decisão.

Num primeiro momento, as decisões doConselho eram bastante sucintas, seguindoaliás a tradição jurisdicional do país. NaFrança, é comum dizer-se que, em matériajurisdicional, “la concision est la règle d’or”.Mas, nas últimas duas décadas, as decisõesdo Conselho Constitucional tornaram-sebastante longas, algumas com cerca de cem“consideranda”.

A exemplo das demais cortes constituci-onais européias, bem como do nosso STF, oConselho Constitucional utiliza com bas-tante freqüência a técnica da interpretaçãoconforme (décision de conformité sous reserved’interprétation)19. Por meio dessa técnica, oórgão jurisdicional emite uma decisão deconformidade da lei com a Constituição,desde que aplicada única e exclusivamenteno sentido estipulado no julgado. São deci-sões que, no dizer do Professor FAVOREU,têm conteúdo “construtivo, neutralizante oudiretivo”, por elas são emitidos comandosinterpretativos precisos em direção ao in-térprete ou aplicador da lei, que assim so-mente poderá aplicá-la em conformidadecom as diretrizes interpretativas fixadas nadecisão jurisdicional.

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Não é incomum encontrar nas decisõesdo Conselho toda uma gama de conceitos eprincípios desenvolvidos ao longo de déca-das pela jurisdição administrativa, taiscomo o princípio da proporcionalidade ouda razoabilidade, as teorias do desvio e doexcesso de poder, do erro manifesto de apre-ciação, do custo e benefício, e a dos princí-pios gerais do direito.

5. Síntese da obra jurisprudencial doConselho Constitucional

A Constituição da Quinta República fran-cesa foi promulgada em um momento deprofunda crise política, em meio a uma guer-ra colonial (Guerra da Argélia). Esse fato,somado às concepções políticas do líderpolítico incontestável que inspirou e coman-dou todo o processo de sua elaboração(General Charles de Gaulle), fez com que otexto constitucional aprovado em 1958 trou-xesse em seu bojo diversas inovações cons-titucionais de natureza autoritária e poten-cialmente liberticidas, como é o caso da se-paração entre os domínios da lei e do regu-lamento, do aviltamento do papel do Parla-mento e a existência do famoso art. 16, quepermite ao Chefe de Estado, em tempo decrise institucional grave, a absorção decompetências específicas dos três Pode-res estatais.

Boa parte do prestígio e da credibilidadede que goza hoje o Conselho Constitucionalvem do fato de que ao longo do tempo a suajurisprudência teve o efeito de mitigar, e emalguns casos de eliminar, a aspereza de cer-tas inovações trazidas pela Constituição.

De fato, até 1958 era consenso constitu-cional inquestionável o entendimento deque em matéria de direitos fundamentais oParlamento é senhor absoluto. Ou seja, deacordo com essa antiga visão, a obra de cria-ção e proteção aos direitos fundamentaisseria tarefa da alçada do Legislativo. O Con-selho Constitucional, paulatinamente, fezver aos franceses que não raro a própria lei“pode ser liberticida”. Por essa razão, deve

ser exercida sobre ela uma vigilância cerra-da, de modo a impedir que o legislador, su-posto protetor das liberdades fundamentais,exceda-se e finde por violá-las. Mas o para-doxo da obra do Conselho Constitucionalnesse domínio reside no fato de que, ao mes-mo tempo em que ele exerceu essa constantevigilância sobre o Parlamento, desautorizan-do-o e tolhendo-lhe as ações, soube também“reforçar” o papel institucional do Legisla-tivo, alargando-lhe as competências, retiran-do-o do confinamento institucional aviltanteno qual os constituintes de 1958 quiseramsituá-lo. Soube, sobretudo, erguer-se à con-dição de protetor das liberdades fundamen-tais, interpondo-se e contendo os arroubosda maioria parlamentar.

O primeiro passo dado pelo Conselhorumo a essa sua nova função protetora dosdireitos fundamentais foi dado em 1971 (verFAVOREU; PHILLIP, 1997, p. 249; TURPIN,1997, p. 33), com a célebre decisão Libertéd’assocociation, pela qual ele instituiu o cha-mado Bloc de constitutionnalité, afirmandoexpressamente que a lei, por ser expressãode uma determinada maioria política, ema-nando na maioria das vezes do próprio Exe-cutivo (ver TURPIN, 1998, p. 1837), como érotineiro em regime parlamentar, pode seratentatória aos direitos do cidadão. Incoe-rente, portanto (ver TURPIN, 1998, p. 1837),era a concepção até então predominante deque à lei e ao Parlamento incumbiria a pro-teção das liberdades do cidadão. Diantedessa incongruência fundamental, o Con-selho concebeu a idéia de um bloco de cons-titucionalidade20, ou seja, um conjunto denormas e princípios de gênese e origem di-versas, aos quais ele passou a conferir sta-tus idêntico ao das normas constitucionais,impondo ao legislador a observância estri-ta desse bloc. Em suma, impôs ao Legisla-dor, à míngua de textos explícitos nesse sen-tido, uma verdadeira Charte jurisprudentiel-le des libertés, suprindo assim a lacuna veri-ficada no texto original da Constituição que,como já dissemos, foi negligente quanto aesse aspecto, talvez em decorrência das cir-

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cunstâncias excepcionais em que se deu asua elaboração.

Destaca-se, nesse movimento de afirma-ção institucional iniciado em 1971, a cons-titucionalização dos chamados “princípiosfundamentais extraídos das leis da Repú-blica”. Tratou-se, nesse caso específico, dapromoção ao status de norma constitucionalde toda uma gama de direitos fundamen-tais instituídos pelo legislador infraconsti-tucional durante o período considerado “aidade de ouro das liberdades públicas” (a3a República, 1875-1940). Tais direitos, ja-mais inseridos em uma norma constitucio-nal formal naquele período, embora já hálongo tempo inteiramente consolidados naprática social, correriam o risco de altera-ção ou de revogação súbita por parte dopoder constituído, se o Conselho Constitu-cional não os tivesse alçado a um patamarnormativo superior, conferindo-lhes umaproteção reforçada. Noutras palavras, oConselho converteu em cláusula pétrea, in-suscetível de modificação pelo legisladorinfra-constitucional, todo o repertório legis-lativo21 promulgado entre o fim do séculoXIX e as quatro primeiras décadas do sécu-lo XX, normas essas que em última análisesimbolizaram a conversão do país em umaplena democracia.

Na esteira dessa nova postura jurispru-dencial de monitoramento constante do le-gislador infraconstitucional, o Conselhopromoveu ao longo dos anos a conciliaçãoentre princípios e direitos constitucionais apriori antagônicos tais como o direito degreve e o princípio da continuidade do ser-viço público; entre o princípio do pluralis-mo e da liberdade de imprensa; entre a pre-servação da ordem pública e o exercício dasliberdades individuais.

Por outro lado, por meio da jurisprudên-cia denominada cliquet anti-retour (ou “proi-bição de retrocesso”), o Conselho decidiuque, em matéria de direitos fundamentais, olegislador só pode intervir com o objetivo detorná-los mais efetivos, jamais para supri-mi-los ou diminuir-lhes o alcance22.

Em suma, numa ruptura brusca com asidéias de Rousseau e de outros pensadoresiluministas que forjaram as bases filosóficasda grande revolução de final do século XVIIIe do constitucionalismo que se seguiu, o Con-selho Constitucional findou por “dessacrali-zar” a lei, reconhecendo que a lei, embora sen-do a “expressão da vontade nacional”, podemuitas vezes ser fonte de injustiça.

O Direito francês, que até os anos 70 ain-da se revelava conservador, insular e extre-mamente apegado às tradições, vem se ajus-tando aceleradamente à evolução do tempoe das mentalidades, graças à própria evolu-ção da sociedade civil e do sistema políticocomo um todo, mas também sob o influxoda jurisdição constitucional. É notável ocaráter progressista de certas decisões pro-feridas pelo Conselho, especialmente nodomínio das liberdades fundamentais vin-culadas às chamadas questions de société. Éo caso, por exemplo, da decisão de 1975 queconsiderou constitucional a prática do abor-to, reconhecendo o princípio do respeito detodo ser humano desde o começo da vida (oque não se aplica aos embriões, considera-dos “simples pessoas humanas em poten-cial”) e ao mesmo tempo autorizando asmulheres, en situation de détresse, a exercer odireito de aborto, ficando os médicos livrespara atender ou não o pedido, segundo suaspróprias convicções, mas proibida a recusaaos hospitais. É o caso, também, da decisãoque validou a lei que instituiu o Pacto Civilde Solidariedade (PACS), uma denomina-ção eufemística para caracterizar a prote-ção da lei à união livre entre pessoas, inclu-sive do mesmo sexo, que gozam agora deproteção reforçada tanto no plano fiscalquanto no que diz respeito à fruição dos di-reitos sociais, sem contar o direito estendi-do ao companheiro do mesmo sexo de per-manecer no imóvel alugado após a mortedo outro companheiro.

A jurisprudência do Conselho Constitu-cional é responsável pelo surgimento de umfenômeno notável em todos os países dota-dos de jurisdição constitucional e particu-

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larmente expressivo entre nós: a constituci-onalização da ordem jurídica. Até o adven-to da Constituição de 1958, os operadoresdo Direito franceses não eram habituados ainterpretar e a aplicar diretamente a Consti-tuição aos casos concretos. A lei era sobera-na nesse domínio. Aliás, não apenas na Fran-ça, mas também em vários outros paíseseuropeus continentais, até boa parte doséculo XX a Constituição era vista muitomais como um documento político, umpacto governativo, do que como um reper-tório de normas jurídicas diretamenteaplicáveis. Hoje, graças à jurisdição cons-titucional, ninguém mais contesta a nor-matividade da Constituição. Na França,não obstante umas poucas críticas a umsuposto “hyperconstitutionnalisme”ou“panconstitutionnalisme”, a realidade é queas duas ordens de jurisdição buscam cadavez mais fundamentar suas decisões dire-tamente na Constituição tal como interpre-tada pela jurisdição constitucional e nãomais apenas na lei (FAVOREU, 1997, p. 355).

6. Críticas, controvérsias epropostas de alteração do sistema

de controle de tipo francês

Devido à sua própria singularidade noseio das demais democracias européias, osistema de controle de constitucionalidadevigente na França foi por longo tempo obje-to de debates e controvérsias, algumas de-las já quase inteiramente pacificadas nadoutrina. No campo das controvérsias, fi-guram em primeiro plano a questão de sa-ber se a missão levada a efeito pelo Conse-lho Constitucional é ou não de caráter juris-dicional e, logo a seguir, o problema relati-vo ao caráter preventivo do controle. A exem-plo do que ocorre em outros países dotadosde jurisdição constitucional, também sequestiona o modo de designação dos mem-bros do órgão incumbido do controle. Maisrecentemente, duas novas questões, ou su-gestões, afloraram nos meios jurídicos fran-ceses: uma, atinente a um possível desloca-

mento para o âmbito da jurisdição constitu-cional do chamado “controle da convencio-nalidade” das leis, isto é, o exame da com-patibilidade entre as leis e os tratados e con-venções internacionais; outra, referente auma possível introdução de uma práticajurisdicional inteiramente estranha às ins-tituições jurisdicionais francesas: a possi-bilidade de se tornarem públicos os votosdissidentes.

6.1. Conselho Constitucional: órgãojurisdicional ou órgão político?

Em si, essa é uma questão desprovida dequalquer interesse prático atualmente. Denatureza política ou jurisdicional, o essen-cial para um órgão incumbido da fiscaliza-ção das normas infraconstitucionais é o ri-gor com que ele exerce a missão que lhe foiconfiada pela Constituição, especialmenteno que diz respeito à proteção dos direitosfundamentais. Também crucial é a confian-ça e a credibilidade que dele deve emanar,em direção aos atores do mundo político emgeral, às forças econômicas e sociais da na-ção e aos cidadãos em geral. O direito com-parado nos mostra que, mesmo passadosmais de duzentos anos desde que a primei-ra Corte de Justiça ousou declarar-se com-petente para pronunciar a invalidade daobra dos detentores da soberania popular,essa delicada atribuição constitucional ain-da é vista em certos cantos com reservas porcausa do seu caráter antimajoritário, suaaceitação definitiva só ocorrendo por forçada superior nobreza de sua missão, que é apreservação da supremacia da constituiçãoe a proteção aos direitos fundamentais docidadão. Mesmo no caso francês, esse deba-te já está superado há muito tempo. O Con-selho Constitucional é, sem sombra de dú-vida, uma jurisdição. Aliás, membro da Con-ferência das Cortes Constitucionais desde osanos 80, o próprio Conselho se considera umajurisdição e não um órgão político23.

A polêmica serve, contudo, para sanarcertas dúvidas: o que caracterizaria uma “ju-risdição”, especialmente uma jurisdição in-

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cumbida do controle da constitucionalida-de das leis? Que elementos essenciais seri-am aptos a caracterizar o exercício da fun-ção jurisdicional? O exercício da fiscaliza-ção abstrata da constitucionalidade da leiantes da sua promulgação retira ao órgãofiscalizador a sua possível natureza juris-dicional? A não observância de um ou ou-tro aspecto do procedimento contraditório tí-pico dos litígios interindividuais é suficientepara caracterizar como “política” a missãoconstitucional confiada ao órgão? O modo dedesignação dos membros tem importânciadecisiva na caracterização da atividade doórgão como política ou jurisdicional?

Pascal JAN (1999; 2001, p. 531) e BrunoGENEVOIS (1988; 2002, p. 516), indubita-velmente dois entre os mais autorizados es-pecialistas na obra do Conselho Constitucio-nal nos dias atuais, são taxativos quandoafirmam que o Conselho Constitucional exer-ce uma função jurisdicional. E o fazem por-que, no seu entender, a instituição sediadana ala Montpensier du Palais-Royal apre-senta os signes caractéristiques d’une juridicti-on, isto é: decide à luz de critérios jurídicos,com total independência, sobre uma ques-tão também jurídica que lhe é submetida. Adecisão que profere tem a força de coisa jul-gada, eis que, nos termos da Constituição,os seus julgados não ensejam qualquer tipode recurso e “se impôem aos Poderes públi-cos e a todas as autoridades administrati-vas e jurisdicionais” (art. 62.2). Ora, o po-der de impor suas decisões com força decoisa julgada aos particulares e aos pode-res públicos em geral é, como bem assinalaJAN, o que efetivamente caracteriza o poderjurisdicional.

Por outro lado, o caráter preventivo docontrole exercido pelo Conselho Constitu-cional não lhe retira a natureza jurisdicio-nal, pois o que é decisivo é a natureza daatividade do órgão e não o momento em queela se dá. Ou seja, relevante é o fato de aConstituição francesa outorgar ao Conselhoo formidável poder de, baseando-se em con-siderações e critérios de ordem jurídica, im-

pedir que uma lei contrária à Constituiçãoentre em vigor (art. 62.1 da Constituição:“uma disposição declarada inconstitucio-nal não pode ser promulgada nem posta emaplicação”). É irrelevante, para efeito de sa-ber se se trata ou não de uma decisão decunho jurisdicional, se esse ato de conten-ção do poder político, característico de che-cks-and-balances, ocorre antes ou depois dalei promulgada.

Argumentos vinculados à questão pro-cedimental também são avançados pelospouquíssimos juristas que ainda conside-ram o Conselho Constitucional um órgãopolítico. Alegam, em essência, que o proce-dimento observado pelo Conselho no julga-mento dos casos que lhe são submetidos nãoé inteiramente contraditório. De fato, comojá tivemos oportunidade de assinalar, o Con-selho Constitucional foi concebido em 1958para ser, na feliz expressão de DominiqueCHAGNOLAUD (2002?, p. 511), um “cãode guarda do executivo” (chien de garde del’exécutif), em detrimento do poder Legisla-tivo. Sua criação se deu em uma época emque ainda eram acesas e potentes as obje-ções ideológicas, históricas e políticas con-tra qualquer tipo de controle de constitucio-nalidade. Em tais circunstâncias, é naturalque não se tenha pensado em estabelecernormas procedimentais rígidas, a exemplodas que regem o procedimento perante asdemais esferas da Justiça. Tanto os consti-tuintes de 1958 quanto o legislador que apro-vou a lei orgânica do Conselho tinham dú-vidas acerca da natureza jurídica do novoórgão e, por isso mesmo, deixaram a ques-tão em aberto. Como já dissemos, as regrasprocedimentais do Conselho são relativa-mente informais, fruto muito mais da expe-riência e da evolução e consolidação do pró-prio órgão do que resultado de regulamen-tação normativa formal, ou seja, são costu-meiras. Nelas não há muito espaço para ele-mentos clássicos do processo, tais como asustentação oral, a contradição e a repre-sentação acentuada das partes. Mas essessão traços encontráveis também em diver-

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sos outros modelos de controle abstrato denormas existentes em direito comparado. Ofato é que, para mitigar tais inconvenientes,o Conselho veio paulatinamente absorvendo,pela via do costume, alguns dos elementosda prática jurisdicional contenciosa, como játivemos oportunidade de mostrar.

O modo de designação dos seus mem-bros, bastante diferenciado em relação à for-ma de composição das duas outras ordensde jurisdição, também não constitui a nossosentir um elemento apto a caracterizá-locomo um órgão político. Com efeito, os mem-bros do Conselho Constitucional são nomea-dos pelo Presidente da República, pelo Pre-sidente do Senado e pelo Presidente da As-sembléia Nacional, para um mandato fixode 9 anos. Terminado o mandato, eles retor-nam às suas atividades normais. E aí resi-de, sem dúvida alguma, uma grande dife-rença em relação aos magistrados das duasoutras ordens de jurisdição, que são deten-tores de cargos efetivos e seguem ao longode suas vidas uma carreira estável no servi-ço público. Note-se, porém, quanto ao as-pecto relativo aos titulares do direito de no-meação, que na maioria esmagadora dasCortes supremas ou constitucionais o po-der de nomear os respectivos membros re-cai sobre as autoridades políticas. Assim oé o nos EUA, na Alemanha, na Espanha, noBrasil e em vários outros países. Aliás, seriauma excrescência institucional, suscetívelde dar margem ao mais insuportável corpo-rativismo, a idéia de se conceder a um órgãonão depositário da legitimidade popular opoder da autocomposição pura e simples.Os excessos, a arrogância e as derrapagensde certos setores do poder Judiciário brasi-leiro nos anos recentes são um forte estímu-lo a que se evite esse tipo de nomeação porcooptação, que é absolutamente contráriaaos princípios democráticos.

De qualquer forma, talvez por força dapressão existente nos meios jurídicos há al-gum tempo para que se institua modalida-de de controle a posteriori, muitas propostasvêm sendo feitas no sentido de se alterar o

modo de designação dos membros do Con-selho, para fins de adaptá-lo a uma prová-vel futura nova realidade.

Entre as várias propostas doutrináriasde mudança do modo de nomeação dosmembros da jurisdição constitucional fran-cesa, chama a atenção a que sugere a ado-ção do sistema de listas tríplices, bem co-nhecido da prática constitucional brasilei-ra. Só que nesse caso a proposição é no sen-tido de que as três atuais autoridades cons-titucionais detentoras do direito de nomea-ção fiquem incumbidas de elaborar uma lis-ta de três nomes para cada nomeação, masesses nomes teriam que angariar uma apro-vação de no mínimo dois terços dos votosdos senadores e dos deputados. O mais vo-tado seria o nomeado. Um tal sistema, refor-çado pela exigência de uma aprovação porvoto qualificado, teria sem dúvida algumaa virtude de conferir maior densidade e le-gitimidade ao processo de designação, de-sencorajando a nomeação, ou a tentativade nomeação, de pessoas despreparadas,desequilibradas, inadaptadas à função,excessivamente motivadas no plano ideo-lógico ou até mesmo desprovidas da indis-pensável reputação ilibada.

O atual sistema de nomeação francês, nonosso modo de entender, apresenta segura-mente algumas vantagens. Entre elas, a cons-tante mudança no perfil dos membros e adiversidade de pessoas escolhidas que o sis-tema de nomeação propicia. Nosso mestre,professor Jacques ROBERT, com a autori-dade de quem teve assento no Conselho de1989 a 1998, expõe com grande proprieda-de os aspectos positivos do sistema rotati-vo de nomeação. Certamente levando emconta a especificidade do sistema políticofrancês, em que às vezes as três autoridadesdetentoras do poder de nomeação são polí-ticos oriundos de três correntes ideológicasdistintas, Robert vislumbra nesse fato a sa-lutar vantagem de se poder nomear pessoasde horizontes diversos, de origens diversas,de etnias e crenças diversas, de idades di-versas e, por que não dizer, de formação pro-

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fissional diversa. Sobre esse último pontoassim se manifesta ROBERT, com a autori-dade insuspeita de quem é um dos maisrespeitados publicistas franceses:

“Il n’y a donc point que des hommesde loi ou de droit. Certes rares sont ceuxqui n’ont fait aucune étude de droit. Maisles juristes professionnels sont largemen-te minoritaires. Et – à notre avis – il en estbien ainsi car plus les expériences de cha-cun sont multiples, plus les activités desuns et des autres ont été variés...moins leConseil saisi des questions les plus com-plexes et les plus larges a de risques de setromper à l’heure de la décision car tousprofitent à plein du bagage de chacun”24.

ROBERT vê também como altamentepositivo nesse sistema “a rápida renovaçãodos homens”. No seu modo de ver, esse sis-tema permite constante renovação da com-posição do órgão, facilitada pelo fato de quea cada três anos três novos membros e tal-vez três novas mentalidades diferenciadaspassam a compor o Colegiado. Essa rotati-vidade é saudável, na medida em que per-mite ao órgão jurisdicional estar constante-mente em sintonia com a sociedade, com aevolução das mentalidades e dos costumes.Diz ROBERT a respeito desse aspecto especí-fico, com a franqueza que lhe é característica:

“Rien ne serait pire que le maintienau sein d’une institution d’hommes qui –les annés passant – se perpétueraient en sefigeant, cesseraient à la longue – leur re-traite professionnelle aidant – d’être enprise directe avec les événements et lesévolutions, de plus en plus rapides, de nossociétés, s’installeraient dans le conserva-tisme d’habitudes ancrées et de jurispru-dences intouchables. Les États-Unis – àcertaines époques de leur histoire –, onttragiquemente touché du doigt les incon-vénients majeurs d’une chambre rétrogra-de qui bloquait toute reforme sociale”25.

Esse sistema impede, por outro lado, aocorrência do espetáculo constrangedor evexatório, verificado em certas cortes supre-mas, em que os membros se eternizam nos

cargos, e muitas vezes neles permanecemúnica e exclusivamente para impedir que opoder político momentaneamente detentor daprerrogativa de preencher a vaga possa fazeruso dessa prerrogativa. Mais uma vez, osEUA são um exemplo eloqüente desses des-vios propiciados pelas nomeações vitalícias26.

O sistema de nomeação rotativa, com-binado com as áleas do regime parlamen-tar, tem também a vantagem de desenco-rajar o carreirismo. A esse respeito, JacquesROBERT oferece apreciações judiciosascom a autoridade de um insider:

“A cada três anos, um terço dacomposição do Conselho se vê modi-ficado, sem que disso resulte umamudança brusca (que poderia ser pe-rigosa), pois os seis que ficam e conti-nuam seus mandatos asseguram umanecessária continuidade e temperamas mudanças brutais. Como não sesabe jamais exatamente, a cada reno-vação trienal, quem será o próximodetentor do poder de decisão (as elei-ções, as exonerações e as dissoluçõestornando incerta qualquer previsão),todo plano de carreira, toda ‘campa-nha’ se revela difícil. Nomes circulam.Jamais são os corretos. A surpresa étotal. O leque das fontes (de talentos,ndt) e dos talentos se alarga a cadaoportunidade. Tanto melhor”27.

Para Jacques ROBERT, o atual modo dedesignação com renovação parcial da com-posição a cada três anos também é propícioa assegurar maior independência aos no-meados. Diz ele:

“Enfatizar-se-á – além do mais – aindependência que o modo de desig-nação atual dos membros do Conse-lho Constitucional lhes confere aolongo dos anos de presença na rua deMontpensier (sede do Conselho, ndt).Cada um de nós deve sua designaçãoà escolha de um só homem, que mui-tos aliás não conheciam pessoalmen-te. Freqüentemente, ele só tomou co-nhecimento da sua designação no úl-

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timo minuto, pois ninguém jamais écandidato. Azar daqueles que o são!Mesmo se todos não eram por nature-za dotados das mesmas condições,de uma consciência a toda prova e deum total desinteresse, a quem deve-riam agradar para poder prosseguir,ao sair do Conselho, uma nova car-reira? Qual? Não é incomum que aolongo do mandato a autoridade que onomeou mude de função ou deixe apolítica ou...morra. E quando vocêconclui os seus noves anos (ninguémpode ser reconduzido!), há muitotempo terá chegado, para a quasetotalidade dos membros que tiveramassento no Conselho, a idade da apo-sentadoria!” (Jacques ROBERT).

O certo é que é quase impossível contor-nar os aspectos políticos das nomeaçõespara os órgãos de jurisdição constitucional,pois é essencialmente política a missão cons-titucional de exercer a fiscalização da com-patibilidade entre as normas constitucionaise infraconstitucionais. Em suma, como jádisse Bruno GENEVOIS (2002), “il n’existepas de bonne procédure de nomination, il y a,avant tout, de bons choix”28.

Circulam também outras propostasdoutrinárias no sentido do aumento do nú-mero de membros, passando dos nove atuaispara quinze, especialmente na eventualida-de de vir mesmo a ser instituída a alteraçãotendente a criar o modelo de controle após apromulgação da lei, mudança constitucio-nal que a atual estrutura enxuta do Conse-lho não conseguiria suportar. Fala-se tam-bém, na eventualidade de vir a ser imple-mentada essa modificação constitucional,na possível introdução das exigências deespecialização jurídica e de idade.

6.2. As propostas de reforma do Conselho

“Le Conseil constitutionnel a réussi, c’estpourquoi il faut le changer”. Aparentementecontraditória, essa frase de DominiqueROUSSEAU resume à perfeição a visão quese tem nos meios jurídicos franceses a res-

peito da evolução ocorrida no sistema decontrole de constitucionalidade nos últimosquarenta anos: o Conselho Constitucional,concebido muito mais como um instrumen-to de contenção e vilipendiamento do poderLegislativo do que como órgão de vigilân-cia contra as intromissões indevidas nodomínio dos direitos fundamentais do ci-dadão, findou por assumir essa última pos-tura. Noutras palavras, concebido com fi-nalidades eminentemente políticas e compouca ou quase nenhuma preocupaçãocom a preservação da supremacia da cons-tituição e proteção das liberdades funda-mentais, o Conselho tornou-se um sucessoprecisamente no exercício dessa última atri-buição. E, por ter-se tornado um sucesso, épreciso mudá-lo, já que, como disse o pro-fessor ROUSSEAU, “il est à bout de soufle”,isto é, está à beira do esgotamento, tamanhaé a incompatibilidade entre a estrutura sin-gela que lhe foi conferida inicialmente e opeso político-institucional que ele passou ater ao longo do tempo29.

De fato, nos seus primeiros anos de fun-cionamento, o Conselho Constitucional seapresentava como um órgão constitucionalque não causava incômodo algum ao poderpolítico estabelecido: ele afirmava que a suacompetência jurisdicional não era geral, mas“de atribuição”, ou seja, compreendia estri-tamente aquilo que constava da letra fria daConstituição; recusava-se a exercer o con-trole da lei referendária; passou paulatina-mente a reconhecer ao Parlamento o direitode legislar sobre questões não incluídas norol das matérias pertencentes ao “domíniolegislativo”. Seu crescimento em importân-cia só veio a ocorrer a partir do início dosanos 70, quando ele procedeu à “constituci-onalização” da Declaração Universal de1789 e do Preâmbulo da Constituição de1946, criando, assim, o chamado Bloc deConstitutionnalité. E, por fim, sua consagra-ção definitiva veio com a reforma de 1974,que alargou o leque dos legitimados, permi-tindo que sessenta deputados ou sessentasenadores possam propor a ação de incons-

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titucionalidade. Essa mudança lançou oConselho no centro da cena político-midiá-tica do país, sem que para tanto sua estrutu-ra original tenha sofrido as necessáriasadaptações. Daí as sugestões de mudanças.

As sugestões de alteração vão desde asmais moderadas e realistas até outras maisousadas e sem qualquer perspectiva de con-cretização a médio prazo. Entre as primei-ras, figura a proposta de introdução de me-canismo de controle a posteriori das leis pro-mulgadas pelo Parlamento, abrindo ao pró-prio jurisdicionado a possibilidade de ar-güir a inconstitucionalidade da lei por oca-sião do julgamento de um litígio em quefigure como parte. Essa modificação visa-ria a sanar as deficiências do atual sistemade controle meramente preventivo, que tementre os seus principais defeitos, como jáapontamos, o risco de que uma lei impor-tante, atentatória aos direitos fundamentais,passe em branco, sem que qualquer dos le-gitimados para a ação constitucional a im-pugnem perante o Conselho. Outro defeitodesse sistema reside na exigüidade do tem-po ocorrido entre a votação da lei pelo Par-lamento e a fiscalização da sua compatibili-dade com a Constituição. Exíguo para umexame mais aprofundado da lei, o prazoestipulado para a verificação da constitucio-nalidade, incidindo entre a votação e a pro-mulgação, traz o inconveniente adicional denão permitir uma avaliação de todas as im-plicações e virtualidades da norma, algo quesó o tempo e a sua aplicação concreta pro-piciam. Daí a razão por que a Academia ju-rídica francesa clama pela introdução daexception d’inconstitutionnalité.

Proposta formalmente pelo presidenteFrançois Mitterrand mediante projeto deemenda constitucional formalizado em1989, a alteração não foi adiante por obra egraça do Senado, que por meio de diversaschicanas findou por enterrar o projeto. Maspara alguns juristas mais realistas, naquelemomento os “espíritos ainda não estavamsuficientemente maduros” para admitir umamudança de tamanha envergadura, que sub-

verteria inteiramente as tradições políticas ea prática institucional daquela velha nação.

Mas cumpre indagar: estariam os espíri-tos agora suficientemente maduros paraaceitar, como propõem não poucos analis-tas da vida jurídica e política do país, umaalteração ainda mais radical do que aquela– a transformação pura e simples do Conse-lho Constitucional em uma verdadeira Cor-te Constitucional? É muito pouco provável30.As velhas nações não se submetem a mu-danças bruscas, salvo em casos de movimen-tos revolucionários como os de 1789. O maisplausível é que a médio prazo venha a seradotada a alteração consistente em introdu-zir o controle a posteriori.

Outra proposta de reforma, de menorimpacto mas não sem importância, vem sen-do avançada nos últimos tempos. Com efei-to, nitidamente influenciados pelos estudosde direito comparado tão comuns na Fran-ça, alguns juristas vêm se pronunciandofavoravelmente a que o Conselho Constitu-cional passe a divulgar os votos dissiden-tes31. Uma tal mudança quebraria uma ve-lha tradição não apenas francesa, mas tam-bém de alguns outros países europeus con-tinentais: a do sigilo das deliberações dosórgãos jurisdicionais colegiados. Nessespaíses, tais decisões, especialmente as dascortes superiores, são concebidas como obracoletiva. Não são identificados os autores dovoto condutor, tampouco os dos eventuaisvotos minoritários. Na França, o sigilo dojulgamento se estende também à jurisdiçãoadministrativa e à Justiça Comum32.

Um dos principais argumentos a favorda divulgação dos votos dissidentes é semdúvida o de que ela propicia uma mais rápi-da evolução da jurisprudência, impedindoque decisões proferidas em bloco, com fun-damentação explicitada de maneira quasemecânica e sucinta, torne-se a regra. O votodissidente também opera em prol de umamaior transparência e de um maior apuro nafundamentação das decisões, provocada ne-cessariamente pela perspectiva de confrontoentre as posições majoritária e minoritária.

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Mas, não sem uma certa razão, os oposi-tores dessa idéia lembram que o sigilo dasdeliberações dos órgãos jurisdicionais, naFrança, constitui um princípio geral do di-reito, destinado, segundo a jurisprudênciado Conselho de Estado, a assegurar a inde-pendência dos magistrados e a autoridademoral das suas decisões33.

Para Bruno GENEVOIS, esse princípiogeral do Direito cresce ainda mais em im-portância em se tratando da jurisprudênciado Conselho Constitucional, pois, contrari-amente às Cortes Constitucionais européias,cujas decisões são proferidas muitos anosapós a aprovação da lei pelo Parlamento,no caso do Conselho Constitucional há ape-nas alguns dias a separar a votação da leino Parlamento e a tomada da decisão doórgão jurisdicional. Num tal contexto, emque as paixões políticas ainda se encontrammuito vivas, a exteriorização do voto dissi-dente serviria indubitavelmente para enfra-quecer a legitimidade e a autoridade da de-cisão do Colegiado, expondo-lhe as fragili-dades e contradições internas.

Notas

1 Tome-se como exemplo desse implacável im-pacto político do controle a priori as decisões profe-ridas pelo Conselho Constitucional em 1982 a res-peito das leis de nacionalização. Previstas de longadata no programa do candidato da esquerda àseleições presidenciais de 1981, François Mitterrand,as nacionalizações consistiam num vasto progra-ma de transferência ao setor público de nacos subs-tanciosos do setor produtivo privado do país, com-preendendo grandes bancos, gigantescos conglome-rados industriais etc. Impugnada perante o Conse-lho Constitucional por parlamentares da direita queperdera as eleições, a lei de nacionalizações foi, numprimeiro momento, declarada inconstitucional eremetida de volta ao Parlamento, cuja maioria par-lamentar governista se viu forçada a emendá-la e aabrandar-lhe significativamente os dispositivos re-ferentes às indenizações a que tinham direito osexpropriados. Só após essas alterações pôde elavir a ser convalidada pela jurisdição constitucio-nal, numa segunda deliberação. A pergunta que seimpõe é: caso o controle de constitucionalidade na

França fosse a posteriori, com todas as suas delon-gas que têm o efeito de serenar as paixões momen-tâneas, teria o Conselho Constitucional tido a ou-sadia e a coragem de anular uma lei dessa nature-za, aprovada por um Parlamento avassaladora-mente dominado por uma corrente de pensamentorecém-saída vencedora nas urnas? Mais: seria fac-tível na prática uma decisão de anulação, após odecurso de vários anos desde a incorporação dasempresas ao patrimônio público?

2 A singular organização do Estado francês,especialmente de suas instituições jurídicas, tam-bém contribui para a improbabilidade de normasflagrantemente inconstitucionais serem postas emaplicação sem qualquer tipo de controle. É que naFrança tanto as normas legais quanto as regula-mentares passam na sua fase de elaboração porum controle rigoroso, efetivado por pessoas damais alta qualificação, que são os membros doConseil d’Etat, que, como se sabe, é ao mesmo tem-po o mais categorizado órgão de consultoria jurídi-ca do Governo e órgão de cúpula da jurisdição ad-ministrativa. O Conselho de Estado tem duas for-mações distintas, uma consultiva e uma contencio-sa (Conseil d’Etat statuant au contentieux). Os juris-tas integrantes do Conselho podem atuar ora numaora noutra formação, jamais concomitantementenas duas. A excelência dessa instituição e o peso desua tradição contribuem muito para o aprimora-mento da ordem jurídica do país. Aliás, vários sãoos juristas que o qualificam como o “pedagogo daAdministração”.

3 Desde a introdução da emenda de 1974, asações de inconstitucionalidade propostas por par-lamentares constituem de longe o maior contingen-te. Elas correspondem hoje a cerca de 93% de todoo contencioso constitucional francês. Por outro lado,as ações de inconstitucionalidade de origem parla-mentar fornecem um outro dado importante: 97%de todas as decisões do contencioso constitucionalfrancês foram proferidas após a promulgação daemenda que introduziu a legitimação parlamentarpara o controle (JAN, 2001, p. 447).

4 Na tradição jurídico-político-administrativafrancesa, “Conselho” designa invariavelmente ór-gão colegiado de hierarquia superior, tanto na esfe-ra do executivo quanto na do judiciário. No ancienrégime já existiam o Conseil d’en Haut e o Conseil d’enBas, antecedentes longínquos da estrutura colegia-da que veio mais tarde a se constituir no Executivomoderno, encabeçado por um Chefe, seja ele umrei, um imperador, um presidente ou um primeiro-ministro. Após a Revolução, a tradição se mantevee estendeu-se também ao domínio da função juris-dicional: assim nasceram os Conseils de Préfecture,antecedentes dos tribunais de primeira instânciada justiça administrativa, e o Conseil d’Etat, órgãomáximo desse ramo da Justiça e ao mesmo tempo

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órgão de assessoramento superior do governo. Ostermos “tribunal” e “cour” eram historicamente de-signações características da jurisdição comum, masforam adaptados à jurisdição administrativa apartir das duas grandes reformas por que passou ocontencioso administrativo na segunda metade doséculo XX (em 1953, quando foram criados os tri-bunaux administratifs, órgãos jurisdicionais de pri-meira instância, em substituição aos conseil de pré-fecture; e em 1987, quando foram criadas as coursadministratives d’appel, órgãos jurisdicionais de ape-lação). Assim, nos dias atuais, tanto na esfera dajustiça comum como na da justiça administrativa,podem ser feitas as seguintes distinções em relaçãoaos termos “tribunal” e “cour”: “tribunal” indicaórgão jurisdicional de primeira instância, que naFrança são em regra de natureza colegiada (ex: najustiça comum, “tribunal de grande instance” é oórgão jurisdicional de primeira instância; na justiçaadministrativa, o primeiro grau de jurisdição sãoos tribunaux administratifs, também de estruturacolegiada). “Cour” é designativo de órgãos juris-dicionais de segunda e última instância da justiçacomum: assim, existem as Cours d’appel, correspon-dentes aos nossos tribunais de justiça, e a Cour deCassation, órgão de cúpula da Justiça Comum. NaJustiça administrativa, existem as Cours adminis-tratives d’appel, órgão jurisdicional de segundo grau,e o Conseil d’Etat, que encabeça todo o sistema docontencioso administrativo. A escolha da designa-ção Conseil Constitutionnel para o órgão da jurisdiçãoconstitucional é tributária de toda essa tradição.

5 Louis FAVOREU e Loic PHILIP (1997);“Pouvoirs” numero 13: “Le conseil constitution-nel”; François LUCHAIRE (19- -?); Bruno GENE-VOIS (1988); Dominique TURPIN (1986); LouisFAVOREU(19- -?); Guillaume DRAGO (19- -?); AlecSTONE (1992); John BELL (1992).

6 Contrariamente aos ex-presidentes da QuintaRepública, que não quiseram (De Gaulle, ValéryGiscard D’Estaing e François Mitterrand) ou nãopuderam usufruir (Georges Pompidou, em razãode falecimento no exercício da Presidência) da fa-culdade constitucional de ter assento no ConselhoConstitucional, os dois ex-presidentes da QuartaRepública (1946-1958), René Coty e Vincent Auriol,ocuparam efetivamente os cargos de membros vi-talícios do Conselho Constitucional, ainda que porcurto espaço de tempo.

7 Entre 1959 e 2000, o Conselho julgou mais de2000 processos de natureza eleitoral.

8 “Regime de Assembléia” é a denominação quese dá à situação institucional na qual ocorre umadesvirtuação do regime parlamentar clássico, umdesequilíbrio institucional incontrolável em que ascâmaras legislativas passam a ter preponderânciapolítica total sobre o Executivo, que delas se tornaquase que um refém.

9 Segundo o art. 34 da Constituição francesa,cabe ao Parlamento dispor, entre outras, sobrematérias relativas aos direitos cívicos e garantiasfundamentais do cidadão; nacionalidade, estado ecapacidade das pessoas, regimes matrimoniais,sucessões, doações; direito penal e processual pe-nal; estatuto dos magistrados; direito tributário,moeda; garantias dos funcionários públicos; nacio-nalizações etc.

10 A menção a essas duas jurisdições remete-nos a um fenômeno já perceptível nos meios jurídi-cos franceses desde meados dos anos 80: a jurisdi-ção administrativa, construção intelectual e jurídi-ca que emergiu da constituição napoleônica doAno VIII, sempre foi historicamente o grand fleurondo Direito francês. Dela ou de suas redondezas(acadêmicos especializados, comentaristas, arretis-tes) sempre saíram as mais fulgurantes estrelas ju-rídicas francesas, tais como Aucoc, Laferrière,Duguit, Jèze, Hauriou, Braibant e outros. Nela fo-ram inspirados os métodos da jurisdição constitu-cional criada em 1958, bem como dela saiu partesignificativa das primeiras composições do Conse-lho Constitucional. Pois bem. Com o advento dajurisdição constitucional e com o paulatino e cons-tante crescimento da importância do Conselho Cons-titucional na vida político-institucional do país, ajurisdição administrativa, embora continuando ex-tremamente prestigiosa e poderosa, vem sutilmen-te passando a um plano secundário. Noutras pala-vras, vem-se “banalizando”, como disse o profes-sor FAVOREU há alguns anos, para perplexidadede muitos.

11 O “Préfet” é a mais elevada autoridade go-vernamental em nível local e regional. Representa oGoverno central no âmbito das Regiões e dos De-partamentos, com vastos poderes, dado o caráterunitário do Estado francês. Não se confunde com oPrefeito (“maire”), que é eleito.

12 Note-se, porém, que a Constituição de 1958 ea Lei Orgânica relativa ao funcionamento do Con-selho Constitucional não são taxativas com relaçãoa certos aspectos do prazo de argüição da inconsti-tucionalidade. Por exemplo, não há nesses textosnenhum dispositivo que indique expressamente osmomentos inicial e final do prazo dentro do qual oslegitimados devem propor a ação. Diz-se unica-mente que isso deve ocorrer entre a aprovação finaldo texto pelo Parlamento e a promulgação peloPresidente da República. Ora, o prazo de promul-gação é de quinze dias, contados a partir da apro-vação final do texto no Parlamento. Um costumeconstitucional (a convention of the constitution, comodiriam os autores britânicos) se estabeleceu no sen-tido de que o Chefe de Estado aguarde a fluênciado prazo de quatorze dias, para só então procederà promulgação das leis no décimo quinto dia. Nes-se período, os serviços governamentais verificam se

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haverá ou não impugnação da lei por inconstitu-cionalidade. Mas sempre há um risco de um presi-dente da República politicamente motivado e hos-til à maioria parlamentar vir a quebrar esse “acor-do de cavalheiros” que vem funcionando bem hámais de 40 anos. De fato, desde 1958 o fato sóocorreu uma única vez, em 1997, justamente emperíodo de “coabitação” entre um Presidente daRepública de direita (Jacques Chirac) e um Gabine-te que gozava da confiança de uma maioria parla-mentar de esquerda: aprovada uma lei que modifi-cava o serviço militar obrigatório, sessenta parla-mentares impugnaram-na perante o Conselho Cons-titucional no oitavo dia após sua adoção definitivapelo Parlamento. Acontece que o presidente JacquesChirac se antecipou aos requerentes, sancionando alei antes do ajuizamento da ação constitucional,que ficou naturalmente preclusa. Trata-se de casoúnico, mas que ilustra a fragilidade da sistemáticade prazos atualmente vigente. Na prática, paracontornar tais inconvenientes, especialmente quan-do está em jogo algum texto legislativo de caráterpolêmico, os parlamentares se colocam de pronti-dão durante a deliberação do Parlamento, colhen-do antecipadamente as assinaturas para poderemingressar com a ação logo no início da contagem doprazo. Não lhes é permitido, porém, ajuizar a açãoantes de definitivamente encerrado o processo le-gislativo, pois o Conselho Constitucional já indefe-riu ações propostas nessas condições, sob a alega-ção de falta de aperfeiçoamento do ato normativo.Mas em outros aspectos o Conselho Constitucio-nal muitas vezes adota uma postura liberal, ad-mitindo como válidas, por exemplo, o que se con-vencionou qualificar como saisines blanches, isto é,uma mera petição na qual os requerentes manifes-tam a intenção de impugnar a lei, deixando parajuntar posteriormente uma nova petição contendoos argumentos jurídicos em que se baseia a ação(ver JAN, 2001).

13 Decisão nº 92-312 DC, de 2-9-92.14 Neste ponto, a Jurisdição constitucional insti-

tuída em 1958 inspirou-se largamente na experiên-cia da Jurisdição administrativa, que historicamentesempre foi gratuita, até que uma lei de 1993 veioinstituir uma taxa simbólica e de valor fixo (100francos) para algumas modalidades de ação docontencioso administrativo. No âmbito da Justiçaadministrativa, sempre se entendeu que a cobrançade custas e a exigência de representação obrigató-ria por advogados constituem limitação ao acessoà justiça, especialmente nos procedimentos desti-nados a oferecer ao cidadão um meio de se insurgircontra os atos abusivos do Estado, como é o caso do“recours pour excès de pouvoir”, que sempre foi e con-tinua sendo totalmente gratuito, sendo também fa-cultativa a representação por advogado. Seguindo,pois, essa mesma trilha, a jurisdição constitucional,

pela via da construção jurisprudencial, findou porconsagrar o entendimento da inexigibilidade doministério de advogado.

15 Um balanço da jurisdição constitucional fran-cesa mostra que, na prática, os legitimados indivi-duais (Presidente da República, Primeiro Ministroe Presidentes das Assembléias) raramente fazemacompanhar as suas petições de arrazoados jurídi-cos. Já os parlamentares o fazem constantemente,não raro utilizando a expertise de grandes nomes daciência jurídica, os quais funcionam nos autos comouma espécie de expert witness, como acontece nodireito norte-americano.

16 Uma das vantagens desse sistema de nomea-ção do relator pelo Presidente revelou-se decisivano caso das nacionalizações. Apesar do segredooficial em torno das decisões do Conselho, sabe-seà boca pequena nos círculos jurídicos parisiensesque o relator desse caso foi Georges Vedel. Pergun-ta-se: que teor teria tomado a decisão sobre as na-cionalizações de 1982 e qual teria sido o desfechodesse imenso “imbróglio” jurídico-político se o Pre-sidente do Conselho Constitucional à época nãotivesse tido a prudência de designar para a relato-ria do caso um publicista da envergadura do doyenGeorges Vedel? Mas, por outro lado, esse sistematambém se presta ao desenvolvimento de práticaspersonalistas. Nos EUA, onde ele é também adota-do, não é incomum o presidente da Corte Supremaautodesignar-se para a relatoria de um caso, espe-cialmente os envoltos em grande controvérsia juntoà população e, por isso mesmo, revestidos de gran-de apelo midiático.

17 Note-se, porém, que o Conselho Constitucio-nal obedece fielmente às regras do contraditórioquando atua no contencioso eleitoral, que é de lon-ge o mais expressivo quantitativamente.

18 Note-se, porém, que o Secretário-Geral doGoverno, não obstante a importância das atribui-ções que exerce, é em geral um servidor públicocategorizado, profissional, apolítico. Essa caracte-rística pode ser bem ilustrada pelo fato de que, nahistória administrativa recente da França, já houveexemplo de agente estatal que permaneceu por maisde 15 anos nesse cargo, exercendo de maneira neu-tra as suas atribuições, indiferente às mudançassucessivas na chefia do Governo, da Administra-ção e do Estado.

19 Ver sobre o assunto o exaustivo estudo deThierry DI MANNO (1997).

20 O Bloc de constitutionnalité inclui o Preâmbuloda Constituição de 1946, carta constitucional pro-gressista elaborada logo após o fim da 2a GuerraMundial, e que contém o essencial dos direitos fun-damentais hoje vigentes na França, especialmenteos de natureza social; por sua vez, o Preâmbulo de1946 faz remissão à Declaração Universal dos Di-reitos do Homem e do Cidadão de 1789, aos

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“Princípios Fundamentais reconhecidos pelas leis daRepública”, isto é, o elenco de princípios contidosnas leis liberais votadas entre o fim do Segundo Im-pério (1870) e a Segunda Guerra; e, por fim, a umacategoria normativa aparentemente obscura mas queem realidade possibilita uma constante renovação eabertura à evolução do pensamento, os chamados“princípios políticos, econômicos e sociais particu-larmente necessários ao nosso tempo”.

21 Essas leis foram as que regulamentaram, en-tre outras, a liberdade de associação, liberdade deensino e de consciência, liberdade individual, liber-dade de comércio e de indústria, ie, liberdade deempreendimento.

22 Decisões de 10-11 de outubro de 1984 e nr.86-210, de 29 de julho de 1986.

23 O Conselho Constitucional já se pronunciou arespeito do caráter “jurisdicional” de suas ativida-des em diversas ocasiões. V., por exemplo, as deci-sões nº 88-244 DC de 20 de julho de 1988 (sobreo controle de constitucionalidade propriamentedito); AN Seine, de 5 de maio de 1959, 53a Cir-cunscrição (sobre o contencioso relativo às elei-ções de deputados e senadores); Hauchemaille,de 25 de julho de 2000 (relativa às operações dereferendo); Hauchemaille, de 14 de março de 2001(relativa às eleições presidenciais).

24 Em tradução livre: “Não há (no Conselho,ndt) apenas homens da lei ou do Direito. Certo,raros são os que não fizeram algum estudo de di-reito. Mas os juristas profissionais são largamenteminoritários. E – no nosso entender – é bom queseja assim, pois quanto mais multifacetárias sãoas experiências de cada um, mais as atividades deuns e de outros terão sido variadas... e menos oConselho, acionado por questões as mais comple-xas e as mais diversas, correrá o risco de errar nomomento da decisão, uma vez que todos aprovei-tam da bagagem de cada um”.

25 Em vernáculo: “Nada seria pior do que amanutenção no seio de uma instituição de homensque – com a passagem dos anos – se perpetuariamtornando-se impermeáveis a mudanças, cessariamcom o tempo – com a ajuda da aposentadoria pro-fissional – de estar em sintonia com os eventos ecom a evolução cada vez mais rápida de nossassociedades, se instalariam num conservadorismode hábitos estabelecidos e de jurisprudências into-cáveis. Os Estados Unidos – em certas épocas desua história – experimentaram tragicamente osgrandes inconvenientes de uma câmara retrógradaque bloqueava qualquer reforma social”.

26 O momento em que arrematamos esse pe-queno estudo (novembro de 2002) retrata a perfei-ção o que diz o professor Jacques Robert em relaçãoà Corte Suprema dos Estados Unidos. Compostaatualmente por 2 juízes nomeados por presidentes

democratas (Ruth Bader Ginsburg e Stephen Breyer,nomeados por Bill Clinton) e por 7 juízes nomea-dos por presidentes republicanos, alguns deles comassento há mais de 20, 25, 30 anos, a Corte ameri-cana passa por um período de reacionarismo galo-pante e de pouca credibilidade, sobretudo após aescandalosamente partidária decisão que entregoua presidência a George W. Bush em dezembro de2000 (ver DERSHOWITZ, 2001). E o pior: a médioprazo essa tendência tende a se agravar, eis que nomomento atual o Partido Republicano detém o con-trole de todas as instituições políticas essenciaisdos EUA, isto é, a Casa Branca, a Câmara dosRepresentantes e o Senado. Não será, pois, nenhu-ma surpresa se, aproveitando o momento políticofavorável, um ou alguns desses juízes mais conser-vadores e mais politicamente motivados maliciosa-mente resolver se aposentar, dando assim a GeorgeBush a oportunidade de nomear juízes conserva-dores e mais jovens, que bloquearão de vez osavanços da sociedade americana por mais umageração. Sobre esse último ponto ver GOMES (2001).

27 No original: “Tous les trois ans, le tiers de lacomposition du Conseil se trouve modifié, sans qu’il enrésulte pour autant un bouleversement (qui pourrait êtredangereux) puisque les six qui restent et continuent leurmandat assurent une nécessaire continuité et tempèrentles changements trop brutaux. Comme l’on ne sait ja-mais très exactement, à chaque renouvellement triennal,qui seront les ‘décideurs’ du prochain (les élections, lesdémissions ou les dissolutions déjouant toute prévisi-on...) tout plan de carrière, toute ‘campagne’ s’avère di-fficile. Des noms circulent. Ce ne sont jamais les bons. Lasurprise est totale. L’éventail des milieux et des talentss’elargit à chaque fois. Tant mieux”.

28 “Não existe bom sistema de nomeação, o queexiste, acima de tudo, são boas escolhas” (2002, p.519).

29 Além dos nove conselheiros, o Conselho Cons-titucional tem um quadro de servidores exíguo, comcerca de 40 a 50 funcionários, incluindo três asses-sores altamente especializados, membros da justi-ça administrativa e da justiça comum, recrutadospara funções de assessoramento na elaboração dasdecisões. Nada comparável, portanto, à estruturamastodôntica de alguns dos nossos tribunais, comtodos os seus penduricalhos e práticas nepotísticasetc. Para se ter uma idéia da defasagem entre anatureza da missão constitucional exercida e dosmeios materiais utilizados no seu desempenho,basta dizer que todo o corpo técnico do ConselhoConstitucional francês é inferior à estrutura de...dois gabinetes de juízes de alguns dos nossos tri-bunais de jurisdição ordinária! Coisa de país rico,no nosso caso!!! Note-se que, apesar dessa estrutu-ra enxuta, o Conselho Constitucional goza de umestatuto de independência similar ao das cortes

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constitucionais européias. Com efeito, ele tem au-tonomia administrativa e financeira. Cumpre-lheelaborar sua própria proposta de orçamento, queem geral é votada e aprovada pelo Parlamento semdiscussão. Tem quadro próprio de servidores, comojá dito. Por outro lado, tem um formidável poderde autodepuração: cabe-lhe pronunciar (por maio-ria simples) a exoneração exofficio de seus própriosmembros cujos atos e comportamento comprome-tam a imagem, a credibilidade e o exercício normaldas suas atribuições constitucionais. Tal situaçãoextrema ainda não se verificou na prática. Mas jáesteve perto disso: em 2000, o então presidente doConselho, Roland Dumas, envolvido em um gran-de escândalo e investigado por prática de corrup-ção supostamente praticada ao tempo em que eraMinistro das Relações Exteriores, viu-se forçado arenunciar à condição de membro do Conselho, nãoapenas por força da pressão dos meios políticos emidiáticos, mas também por haver pressentido apossibilidade de os seus próprios pares, visivel-mente incomodados com a situação, decidirem pelapronúncia de sua démission d’office.

30 O presidente Charles de Gaulle, “pai” daConstituição de 1958, indagado nos anos 60 sobrea possibilidade de se instituir na França uma cortesuprema à luz do modelo americano e das cortesconstitucionais européias àquela época ainda en-gatinhando, respondeu com uma frase que traduzà perfeição o sentimento de reserva então existenteem relação ao controle de constitucionalidade: “Laseule Cour Suprême en France, c’est le peuple”.

31 Ver Cahiers du conseil constitutionnel, n. 8.32 Note-se que também nos EUA existe um cer-

to sigilo nas deliberações da Corte Suprema, maisprecisamente na fase de deliberação, que ocorreapós as sustentações orais dos advogados das partes(oral arguments). Ultrapassada essa fase, os Justicesse recolhem e decidem solitariamente sem a presen-ça de quem quer que seja.

33 Ver decisão Légillon do Conselho de Estado,de 17 novembro de 1922.

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Roberto de Almeida Luquini

1. O Direito InternacionalHumanitário

Conceito e generalidades

Durante séculos, a guerra foi admitidacomo meio de solução de conflitos entre osEstados, constituindo um mecanismo desanção das normas internacionais própriode uma sociedade como a comunidade in-ternacional, carente de mecanismos de coer-ção característicos dos ordenamentos inter-

A aplicação do Direito InternacionalHumanitário nos “conflitos novos”Conflitos desestruturados e conflitos “de identidade” ouétnicos

Roberto de Almeida Luquini é Professordo Departamento de Direito da UniversidadeFederal de Viçosa (MG), Doutorando em Di-reito Internacional Público na Universidad deValencia (Valencia – Espanha) e Bolsista daCAPES – Centro de Aperfeiçoamento de Pes-soal de Nível Superior.

Sumário

1. O Direito Internacional Humanitário.Conceito e generalidades. 2. Conflitos arma-dos internos. 2.1. Distintos tipos de conflitosarmados. 2.2. A desintegração das estruturasestatais. 2.3. Os “conflitos novos”: desestrutu-rados e “de identidade”, ou étnicos. 2.4. As víti-mas dos “novos conflitos”: população civil.Deslocados internos e refugiados. 3. O DireitoInternacional Humanitário e os “conflitos no-vos”. 3.1. Normas aplicáveis aos “conflitos no-vos”. 3.2. A assistência humanitária. A – Prin-cípios básicos da ação humanitária. B – A assis-tência humanitária nos conflitos internos. 4. Di-reito Internacional Humanitário e Direito Inter-nacional dos Direitos Humanos. 4.1. O DireitoInternacional dos Direitos Humanos. Generali-dades e conceito. 4.2. O Direito Internacional dosDireitos Humanos e o Direito InternacionalHumanitário. 4.3. A convergência entre o Direi-to Internacional dos Direitos Humanos e o Di-reito Internacional Humanitário. 5. Conclusões.

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nos estatais. O recurso à guerra se baseavafundamentalmente na questão moral, porparte dos Estados. O Direito da guerra (jusin bello) compreendia as normas regulado-ras da conduta dos Estados beligerantes(leis e costumes de guerra).

No século atual, a guerra foi formalmen-te proscrita pelo Tratado de Paris de 27 deagosto de 1928, também conhecido comoPacto Briand-Kellog, e pelo artigo 2.4 da Car-ta das Nações Unidas, que proíbe a ameaçaou o uso da força contra outros Estados.Desde 1945, depois da Segunda GuerraMundial, a guerra já não constitui uma ma-neira aceitável de resolver as controvérsiasentre os Estados na órbita internacional.

Apesar disso, a sociedade internacionalpermanece mergulhada nas convulsões daguerra. Infelizmente o banimento da guerrapelo ordenamento jurído não foi suficientepara provocar seu real desaparecimento. Poresse motivo, tornou-se necessário o estabe-lecimento de normas reguladoras da con-dução das hostilidades, impondo às partesem conflito um padrão mínimo humanitárioe impedindo o uso descontrolado da força.

A partir dessa necessidade, nasceu o Di-reito Internacional Humanitário, que segun-do o Professor Antonio Remiro BROTÓNS é“el conjunto de normas internacionales, deorigen convencional o consuetudinario, querestringen por razones humanitarias el dere-cho de las partes en un conflicto armado, in-ternacional o no, a utilizar medios de guerray protegen a las personas y bienes (que podrí-an ser) afectados por el mismo” (1997, p. 985).

O Direito Internacional Humanitário é,portanto, o corpo de normas internacionaisespecificamente destinado a ser aplicadonos conflitos armados, internacionais ounão, e que limita, por razões humanitárias,o direito das partes em conflito de eleger li-vremente os métodos e os meios utilizadosna guerra, protegendo as pessoas e os bensafetados pelo conflito. É um direito realistaem que devem ser consideradas não só asexigencias de índole humanitária, mas tam-bém as de necessidade militar.

A doutrina, geralmente, costuma classi-ficar o Direito Internacional Humanitárioem dois ramos: o Direito de Haia e o Direitode Genebra. O primeiro, também denomi-nado Direito dos Conflitos Armados, regu-la a condução das hostilidades e a imposi-ção de limites aos meios de fazer a guerra.Suas normas se vinculam às idéias de ne-cessidade, interesse militar e conservaçãodo Estado. O segundo, também conhecidopor Direito Humanitário Bélico – que nosinteressa mais de perto no presente traba-lho –, centra sua atenção nas vítimas dosconflitos armados e se baseia no homem enos princípios de humanidade.

Passemos a uma rápida análise do con-teúdo dos quatro Convênios de Genebra, de12 de agosto de 1949, e seus Protocolos Adi-cionais, de 8 de junho de 1977. O ConvênioI protege os feridos e os enfermos das forçasarmadas em campanha; o Convênio II pro-tege os feridos, enfermos e náufragos dasforças armadas no mar; o Convênio III estárelacionado ao trato dispensado aos prisio-neiros de guerra; o Convênio IV trata da pro-teção das pessoas civis em tempos de guer-ra. O Protocolo I regula a proteção das víti-mas dos conflitos armados internacionais eo Protocolo II trata da proteção das vítimasdos conflitos armados não internacionais.Na verdade, os dois protocolos são verda-deiros tratados, pois se trata de textos ex-tensos que atualizam as normas relativasaos conflitos armados, com a intenção nãode substituir, mas sim de ampliar o conteú-do dos Convênios de 1949.

Os Convênios de Genebra são um lega-do da Segunda Guerra Mundial. A partirda trágica realidade desse conflito, reforça-se proteção jurídica das vítimas da guerra,especialmente dos civis em poder do inimi-go. Hoje, praticamente todos os Estados sãoPartes nos Convênios de Genebra de 1949,que foram aceitos pela comunidade de na-ções e adquiriram um caráter universal.

O Direito Internacional Humanitáriosurge nas relações entre Estados como umaresposta da comunidade internacional aos

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horrores da guerra. Raúl Emilio VINUESAafirma que

“el Derecho Internacional Humanita-rio nace y se desarrolla como un movi-miento no politizado, tomando distan-cia de las corrientes del pensamientopolítico en general. La necesidad de li-mitar los sufrimientos innecesarios delos combatientes heridos y enfermos enel campo de batalla fue el eslabón inici-al de una cadena de protecciones aco-tadas a categorías específicas de indi-viduos afectados por los conflictos ar-mados. La incorporación de nuevascategorías de víctimas de los conflictosimplicó una evolución constante encuanto a la ampliación del ámbito deaplicación personal del Derecho Inter-nacional Humanitario” (1998).

O Direito Internacional Humanitário seconverteu em um complexo conjunto de nor-mas relativas a uma grande variedade deproblemas. Sem sombra de dúvida, os seistratados principais – os quatro Convêniosde Genebra e seus dois Protocolos Adicio-nais – e o denso entramado de normas con-suetudinárias restringem o recurso à violên-cia em tempos de guerra. O conjunto dessestextos legais contém algumas normas decomportamento de singular importância,aplicáveis a todos os conflitos armados. Se-guindo a orientação de Jean-Philippe LA-VOYER (1995), passamos a enumerá-las:

1. As pessoas que não participam, ou quetenham deixado de participar, das hostili-dades devem ser respeitadas, protegidas etratadas com humanidade. Devem recebera assistência apropriada sem nenhuma dis-criminação.

2. As pessoas civis devem ser tratadascom humanidade. Ficam proibidos os aten-tados contra a vida, qualquer tipo de maustratos e de tortura, a tomada de reféns, ascondenações sem prévio julgamento eqüi-tativo.

3. Cabe às forças armadas distinguir en-tre as pessoas civis, por uma parte, e os com-batentes e os objetivos militares, por outra.

Proíbe-se o ataque às pessoas e aos bens ci-vis e devem ser tomadas as medidas neces-sárias à proteção da população civil.

4. Proíbe-se o ataque ou a destruição dosbens indispensáveis para a sobrevivênciada população civil (alimentos, criações degado, instalações e reservas de água potá-vel, etc.). Proíbe-se o uso da fome como mé-todo de guerra.

5. A assistência aos feridos e enfermos éobrigatória. Os hospitais, as ambulâncias eo pessoal sanitário e religioso serão respei-tados e protegidos. O emblema da Cruz Ver-melha ou da Meia Lua Vermelha será res-peitado em qualquer circunstância e todoabuso a esta norma será sancionado.

6. As partes en conflito têm o dever deaceitar as operações de socorro de índolehumanitária, imparcial e não discriminató-ria em favor da população civil. O pessoaldos organismos de socorro será respeitadoe protegido.

Esses princípios correspondem a consi-derações elementares de humanidade, ouprincípios gerais de Direito Humanitário.Constituem o fundamento da proteção queo Direito confere às vítimas da guerra. Sãode cumprimento obrigatório em qualquercircunstância e nenhuma derrogação podeser autorizada.

Finalmente devemos assinalar que asnormas do Direito Internacional se aplicama todos os conflitos armados, independen-temente de suas origens ou suas causas. Taisnormas devem ser respeitadas em qualquercircunstância, não sendo cabível nenhumtipo de discriminação às pessoas que sãoprotegidas por elas.

Não obstante a aplicação indiscutíveldos princípios gerais supramencionados atodo e qualquer tipo de conflito armado, exis-tem dois grupos de normas específicas queregem, por uma parte, os conflitos armadosinternacionais, e, por outra, os conflitos ar-mados não internacionais. O último grupoé o que nos interessa mais de perto no presen-te trabalho, e que estudaremos mais adiante.São eles o artigo 3º, comum aos quatro Con-

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vênios de Genebra de 1949 e o ProtocoloAdicional II de 1977.

2. Conflitos Armados Internos

2.1. Distintos tipos de conflitos armados

Os conflitos armados se classificam eminternacionais e em não internacionais (ou in-ternos).

Os conflitos armados internacionais sãoaqueles cujas partes beligerantes são Esta-dos independentes. Os quatro primeirosConvênios de Genebra de 1949 e seu Proto-colo Adicional I de 1977 tratam exaustiva-mente das questões humanitárias relacio-nadas a esse tipo de conflito. O conjunto denormas relativas aos prisioneiros de guer-ra, seu estatuto e o tratamento que se lhesdeve dispensar se baseia na guerra entreEstados (III Convênio). O IV Convênio enun-cia os direitos e as obrigações de uma Po-tência ocupante, ou seja, do Estado cujasforças armadas controlam, parcial ou total-mente, o território de outro Estado. O Proto-colo I trata apenas dos conflitos armadosinternacionais.

Entretanto, atualmente, os conflitos en-tre Estados deixaram de ser a regra assu-mindo o papel de exceção. A maioria dosconflitos armados se desenvolve no territó-rio de um único Estado, caracterizando osconflitos de caráter não internacional.

As normas essenciais do Direito Huma-nitário aplicáveis aos conflitos armados nãointernacionais são muito mais simples e es-cassas que as aplicáveis aos conflitos inter-nacionais. Sua fonte principal é o artigo 3ºcomum aos Convênios de Genebra e o Pro-tocolo Adicional II.

O artigo 1º do Protocolo II estabelece comcritérios objetivos qual é o alcance materialdos conflitos armados não internacionais,dizendo que são aqueles não cobertos peloartigo 1º do Protocolo I e que se desenvol-vem no território de um Estado, entre suasforças armadas e forças armadas dissiden-tes ou grupos armados organizados que, sob

a direção de um comando responsável, exer-çam sobre uma parte de dito território um con-trole tal que lhes permita realizar operaçõesmilitares sustentáveis e organizadas, viabili-zando, assim, a aplicação deste Protocolo.

2.2. A desintegração dasestruturas estatais

A desintegração das estruturas estataisocorre quando o Estado perde seu terceiroelemento constitutivo: um governo que pos-sa garantir um controle efetivo do seu terri-tório. Isso pode ocorrer em diferentes grausde intensidade, afetando diversas partes doterritório.

É um fenômeno cujas raízes são bem maisprofundas que as de uma rebelião ou de umgolpe de Estado. É uma situação caracteri-zada pela implosão da estrutura, da autori-dade, do Direito e da ordem política do Es-tado. Ocorre o desmoronamento do conjun-to de valores nos quais se baseia a legitimi-dade do Estado, cuja conseqüência costu-ma ser o retrocesso a um nacionalismo étni-co ou religioso como identidade residual eviável. Em geral, a manutenção da ordem edo poder passam a ser tema debatido pordiversas facções. Ainda que o Estado nãochegue a desaparecer fisicamente, perde acapacidade de desempenhar suas funçõesnormais de governo.

O grau de intensidade e a extensão geo-gráfica da desintegração estatal são variá-veis. Pode ocorrer que o governo siga de-sempenhando algumas funções, exercendoum escasso controle quanto à população eao território. Em um nível de desintegraçãomais elevado, certas estruturas fundamen-tais mantêm um funcionamento formal e oEstado continua estando legitimamente re-presentado na órbita internacional, mas sedecompõe internamente em várias facçõesrivais. O último grau do processo de deses-truturação do Estado implica uma situaçãode implosão total das estruturas governa-mentais, de modo que o Estado já não apre-senta representação legítima perante a co-munidade internacional. Há uma generali-

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zação do caos e da criminalidade, sem queas facções possam exercer qualquer contro-le sobre seus membros, não havendo ordemhierárquica claramente estabelecida. As or-ganizações humanitárias já não encontraminterlocutores válidos e a situação de inse-gurança é alarmante.

Diante de um quadro como esse, os con-flitos surgidos são classificados como deses-truturados.

2.3. Os “conflitos novos”: desestruturados e“de identidade”, ou étnicos

A expressão “conflitos novos” abarca,efetivamente, dois tipos de conflitos distin-tos: os conflitos desestruturados e os confli-tos étnicos.

Os conflitos desestruturados, segura-mente conseqüência do fim da Guerra Fria,têm como características o debilitamento oua desaparição total ou parcial das estrutu-ras estatais. Nessas situações, os gruposarmados aproveitam o vazio político insta-lado para tentar tomar o poder. A caracte-rística principal desse tipo de conflito é, so-bretudo, o debilitamento ou mesmo a desa-parição da cadeia de mando dentro dos pró-prios grupos armados. São conflitos resul-tantes de situacões de violência descontro-lada que impedem o funcionamento normaldas autoridades regularmente constituídas.

Entre suas características principais,destacam-se as seguintes:

1. Desintegração dos órgãos do governocentral, que já não é capaz de exercer seusdireitos e obrigações sobre seu território esua população.

2. Presença de inumeráveis facções ar-madas.

3. Controle fragmentado, ou nenhumcontrole, do território estatal.

4. Desintegração da ordem hierárquicanas diferentes facções e suas milícias.

Existe uma relação estreita entre essascaracterísticas, que são essenciais e cumu-lativas. Não obstante, só se reúnem, qualifi-cando o conflito, em uma determinada fasedas hostilidades.

Comentando o tema, Marie -José DOMES-TICI-MET afirma que,

”después de las guerras civiles políti-cas, después de las guerras ‘periféri-cas’, más o menos ideológicas perosiempre apadrinadas por los ‘supergrandes’, aparecieron las guerras ci-viles de la tercera generación, amplia-mente endógenas, en las que se rompela estructura de los Estados y sistemáti-camente se toma como blanco a las pobla-ciones. Perseguidas por pertenecer a unaetnia - no se insistirá en ese fenómenobastante conocido -, pueden ser tam-bién un objetivo simplemente porquerepresentan un envite” [grifos nossos](1999).

Em suas considerações, Domestici-Metnão só confirma que a maioria dos conflitosarmados atuais ocorre dentro dos territóri-os dos Estados, rompendo sua estrutura,mas também aponta as causas mais comunsdesses conflitos: a intolerência e a persegui-ção étnica. O objetivo dos conflitos “de iden-tidade” ou étnicos é excluir o outro grupomediante a prática de “limpeza étnica”, queconsiste em provocar, forçosamente, o des-locamento territorial da população perten-cente a determinada etnia, ou mesmo emprovocar seu extermínio. Nesse tipo de con-flito, em virtude de uma espiral de propa-ganda de medo, de ódio e de violência, desen-volve-se uma dinâmica tendente a consoli-dar a noção de grupo, em detrimento da iden-tidade nacional existente, que termina portornar absolutamente inviável qualquer pos-sibilidade de coabitação com outros grupos.

O certo é que a deterioração da autorida-de e da legitimidade de numerosos Estadostraz consigo a fragmentação dos poderes, odesmoronamento dos poderes públicos e,muitas vezes, situações a tal ponto caóticasque ninguém pode ser responsabilizado. Eo pior é que tampouco é possível encontraralguém capacitado para restaurar um míni-mo de ordem. Segundo Jean-Daniel TAU-XE, existe uma tendência de agravamentodessa situação

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“pues cada vez surgen más Estadosen el escenario internacional. En 1963,el número de Estados miembros de lasNaciones Unidas era de 108, en 1983de 144 y en 1998 de 189. Muchos deestos Estados son débiles e inestables.Por otra parte, el derecho de los pue-blos a la libre determinación derivahacia tendencias perversas: cada ‘et-nia’, cada ‘pueblo’ sueña de maneramás o menos confusa en erigirse enEstado-Nación, basándose esencial-mente en su identidad, y este procesoparece no tener fin” (1999).

Os conflitos já não são mais a expressãode uma confrontação global entre superpo-tências. Até 1989, muitos enfrentamentoseram classificados como conflitos internosinternacionalizados, pois, ainda que suas cau-sas fossem locais, eram estimulados – ideo-lógica, financeira e militarmente – pelos blo-cos comunista, liderado pela extinta URSS,e capitalista, liderado pelos EUA. Ao me-nos parcialmente, os conflitos se estrutura-vam desde o exterior e isso permitia um cer-to controle sobre os mesmos.

Hoje, no mundo globalizado, sob as re-gras da nova ordem internacional, ocorrejustamente o contrário, pois nas guerras ci-vis predominam os fatores locais e a inter-venção política externa é aparentemente ine-xistente. É uma aparência enganosa poisnão raramente existe uma grande influên-cia de fatores externos, que determinam orumo dos conflitos. Como exemplo se po-dem citar os casos de Angola, da antiga Iu-goslávia, da Colômbia, da região dos Gran-des Lagos na África, Serra Leoa e Libéria,onde predomina a influência de aspectoseconômicos e de identidade.

2.4. As vítimas dos “novos conflitos”:população civil. Deslocados internos e

refugiados

A grande maioria dos conflitos contem-porâneos contradiz os fundamentos do Di-reito Internacional Humanitário. Em umesquema clássico, um exército combate com

outro para obter um ganho político ou terri-torial e os civis sofrem apenas o que os mili-tares e o direito dos conflitos armados de-nominam danos colaterais, que muitas ve-zes são consideráveis. Nos conflitos atuais,sobretudo nos conflitos “de identidade”,nos quais os civis são o alvo principal dosbeligerantes, a situação é muito diferente. Aprática de uma política de “limpeza étnica”não tem como objetivo colocar fora de com-bate o grupo inimigo, mas sim matar, violar,queimar suas casas, aterrorizando-o e obri-gando-o a abandonar as regiões por ele ocu-padas. Dentro dessa lógica, as vítimas ideaissão aquelas que deveriam ser melhor prote-gidas pelo Direito Humanitário, pois são asmais vulneráveis e as mais incapazes de sedefender. Em tais conflitos, ataca-se prefe-rencialmente as mulheres e as crianças. Amatança selvagem ocorre por ódio e não pordesconhecimento do Direito e dos princípioselementares de humanidade.

Ainda que não constituam a causa ex-clusiva, seguramente os conflitos armadosinternos são a causa principal do apareci-mento da grande onda de deslocados internose de refugiados, resultado da fuga de gruposde pessoas vítimas dos horrores da guerracivil.

É importante diferenciar os dois termos.O deslocado interno, como indica o próprionome, abandona sua casa, o lugar onde sem-pre viveu, mas permanece dentro dos limi-tes do Estado onde reside. Já o refugiado éaquele que não só abandona sua casa, masque também se vê forçado a deixar o territó-rio do Estado onde reside.

É imprescindível identificar as princi-pais causas dos deslocamentos de popula-ção para encontrar soluções para o proble-ma. Sabe-se que a partir do momento em queas operações militares não se limitam às fren-tes de combate, podem originar movimen-tos de população. O Comitê Internacionalda Cruz Vermelha, todavia, pôde compro-var que as violações às normas do DireitoInternacional Humanitário provocam ou aomenos acentuam ditos deslocamentos.

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Os civis fogem das zonas de combate emfunção do ataque indiscriminado dos beli-gerantes. Outro caso é o daqueles que sãotomados como reféns pelos grupos belige-rantes e que tentam escapar do abuso depoder de que são objeto. Quando se deslo-cam, perdem o acesso às fontes habituais deabastecimento e essa perda pode ser em simesma uma causa essencial da fome, ou estasurge porque as partes em conflito não sepreocupam em tomar as medidas necessá-rias para distribuir as ajudas recebidas emfavor da população civil. Quando os belige-rantes impedem deliberadamente a distri-buição da ajuda, seu comportamento violaas normas do Direito Internacional Huma-nitário, em particular a proibição do uso dafome como método de combate (Protocolo I,art. 54, e Protocolo II, art. 14). Impedir a dis-tribuição da ajuda pode, sem dúvida, pro-vocar novos deslocamentos de população.

Ao analisar as causas dos deslocamentosde população durante um conflito armado,não se pode deixar de considerar o uso in-discriminado de minas terrestres, cujas prin-cipais vítimas são mulheres, crianças e cam-poneses. Segundo Anita PARLOW (1995),existe um número exorbitante de minas quecontinuam enterradas nos campos de váriospaíses. Para que se possa ter uma idéia dagravidade do problema, basta considerar queem condições ideais, quando se conhece a lo-calização dos campos de minas, quando exis-tem mapas dos mesmos, é necessário dedicarcem vezes mais tempo para retirá-las que paracolocá-las. E como na maioria das vezes essacondição ideal inexiste, é possível imaginar aimensa dificuldade de efetuar a desativaçãodas mencionadas minas terrestres. Uma vezque isolam os camponeses de seus camposde cultivo, as minas os obrigam a abandonarseu povoado, aumentando o número de pes-soas deslocadas por causa da guerra.

É também Anita PARLOW quem infor-ma que, segundo o Departamento de Esta-do dos Estados Unidos Hiddem Killers,

“hay por retirar unos 65 a 110 millo-nes de minas antipersonal esparcidas

como semillas de muerte en 56 paísesen todo el mundo. Incluso después deque se ha concertado la paz, como enCamboya, El Salvador y Mozambique,sigue habiendo un promedio semanalde 500 civiles que mueren o quedanmutilados por la explosión de minasterrestres” (1995).

Para que possamos ter idéia dos efeitosde um conflito armado interno sobre a po-pulação civil, recorremos a dados veicula-dos recentemente no jornal espanhol El País,relacionados ao mais longo conflito arma-do do continente africano, em Angola, con-tando com treze anos de combate contra acolonização portuguesa e aproximadamentevinte e sete anos de enfrentamentos civis. Otrágico resultado desse longo período debeligerância deixa o país à beira da catás-trofe: mais de um milhão de mortos, quatromilhões de deslocados internos (dos quaismais de dois milhões precisam receber ali-mentos para sobreviver) e mais de cem milpessoas mutiladas por minas terrestres(GARCIA, 2002, p. 6).

É preciso esclarecer, todavia, que as au-toridades que se vêem confrontadas com umconflito armado interno podem decidir des-locar um grupo de civis de um lugar a outrodo território nacional com a finalidade degarantir sua segurança ou por razões mili-tares imperiosas. Nesses casos, para que adecisão esteja de acordo com o Direito Hu-manitário, devem ser tomadas todas as me-didas possíveis “para que a população civil sejaacolhida em condições satisfatórias de alojamento,salubridade, higiene, segurança e alimentação”(Artigo 17, parágrafo 1, do Protocolo Adicio-nal II aos Convênios de Genebra de 1949).

As violações do Direito InternacionalHumanitário podem, portanto, ser causa dedeslocamentos massivos de populações eindício da vontade deliberada das autori-dades de provocá-los. De qualquer manei-ra, uma política de deslocamentos massi-vos de grupos de população, como a quecaracteriza a “purificação étnica”, é abso-lutamente inconciliável com o respeito ao

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Direito Humanitário. Com respeito a essetema, convém recordar que o artigo 3º co-mum aos Convênios de Genebra proíbe àspartes em conflito o trato discriminatóriobaseado em critérios de raça, cor, religião,crença, sexo, nascimento, fortuna ou qual-quer outro critério análogo.

3. O Direito InternacionalHumanitário e os “conflitos novos”

3.1. Normas aplicáveis aos“conflitos novos”

O princípio de distinção e de proteçãoda população civil é fundamental em todaregulamentação de conflitos armados quan-do se pretende evitar, até onde seja possível,os efeitos da guerra para as pessoas civis. Essaé uma questão que continua sendo preocu-pante, principalmente quando considera-mos o destino, freqüentemente trágico, dapopulação civil vítima de conflitos internos,convertida em próprio objetivo do conflito.Contrariando as disposições do Direito In-ternacional Humanitário, as partes belige-rantes recorrem a atos ou ameaças cuja fi-nalidade é semear o terror contra essa po-pulação. Por outro lado, muitas vezes pes-soas civis têm participação direta, ainda quetemporária, nas hostilidades, por vontadeprópria ou por coação, perdendo a proteçãodo Direito Internacional e dificultando, oumesmo impossibilitando, a identificação dosbeligerantes e dos não beligerantes. Diantedesse quadro, e para garantir um mínimode proteção à população civil, prevalece apresunção de que toda pessoa é um civil.Simplesmente o respeito às normas de Di-reito Internacional Humanitário para a pro-teção das pessoas civis poderia evitar mui-tos dos sofrimentos que lhes são infligidos,especialmente no caso das crianças, mulhe-res, refugiados e deslocados internos.

A eficácia dessas normas depende, prin-cipalmente, da boa-fé das partes em conflitoe de seu desejo de respeitar as exigências dehumanidade. Ainda que seja necessário

estabelecer uma regulamentação mais deta-lhada dos conflitos internos, o problema estárelacionado mais à aplicação do Direito exis-tente do que à aprovação de novas normas.

Araceli Mangas MARTÍN sustenta que“el art. 3º común a los Convenios de Gine-bra de 1949 es la norma mínima aplicable ala generalidad de los conflictos armadosinternos”(1992, p. 67).

Esse artigo, um verdadeiro convênio emminiatura, é breve mas contém princípiosessenciais. Determina que as pessoas que nãoparticipam diretamente das hostilidades se-rão, em qualquer circunstância, tratadas comhumanidade e proíbe a prática de atentadoscontra a vida e a integridade corporal (espe-cialmente homicídio em todas as suas formas,tortura, mutilações e tratos cruéis), a tomadade reféns, os atentados contra a dignidadepessoal (especialmente tratos humilhantes edegradantes), assim como as condenações eexecuções sem prévio julgamento por um tri-bunal legitimamente constituído, com as ga-rantias judiciais fundamentais. Por outraparte, determina que os enfermos e os feridosdevem ser recolhidos e cuidados.

Essas garantias fundamentais são reite-radas no Protocolo Adicional II aos quatroConvênios de Genebra de 1949. Nesse Pro-tocolo, proíbem-se os castigos coletivos, osatos de terrorismo e o roubo; os atentadoscontra a dignidade pessoal, incluindo ex-pressamente a violação, a prostituição for-çada e qualquer forma de atentado ao pu-dor. As pessoas privadas de liberdade sebeneficiam de garantias suplementárias (ar-tigo 5). O artigo 6 enuncia as garantias judi-ciais. Os artigos 7 a 12 garantem o respeito ea proteção aos feridos e aos enfermos e oartigo 4, parágrafo 3, estipula uma proteçãoespecial para as mulheres e as crianças.

O Protocolo II protege a população civilcontra os efeitos das hostilidades relacio-nados aos perigos oriundos de operaçõesmilitares (artigo 13). Proíbe que a popula-ção seja objeto de ataque e de atos ou amea-ças de violência cuja finalidade seja aterro-rizá-la.

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O artigo 14 proíbe a utilização da fomeentre a população civil como método de com-bate. Também são proibidos o ataque, a des-truição, a subtração ou inutilização dos bensindispensáveis à sobrevivência da popula-ção civil. As obras e instalações que contêmforças perigosas – as represas, os diques, ascentrais de energia elétrica – não podem serobjeto de ataques se há o risco de causarperdas importantes para a população civil(artigo 15). O artigo 16 protege os bens cul-turais e os lugares de culto.

O mencionado Protocolo também proíbeos deslocamentos forçados da populaçãocivil, salvo quando o objetivo seja garantirsua segurança ou quando existam razõesmilitares imperiosas. Nesses casos, serãotomadas todas as medidas possíveis paraque a população seja acolhida em condiçõessatisfatórias de alojamento, salubridade,higiene, segurança e alimentação (artigo 17).

Finalmente, se a população civil se vêprivada dos bens essenciais para sua so-brevivência (víveres e provisões sanitárias,por exemplo), serão empreendidas, com oconsentimento do Estado, ações de socorrode caráter exclusivamente humanitário eimparcial, e realizadas sem distinção algu-ma de caráter desfavorável.

O simples cumprimento das normas doProtocolo pode, sem dúvida alguma, melho-rar muito as condições da população civil,minimizando os efeitos desastrosos dos con-flitos internos.

Entretanto, esse Protocolo tem seu âmbi-to de aplicação limitado pelo parágrafo 2 deseu artigo 1º, que não considera conflitosarmados as situações de tensões internas ede distúrbios interiores, como os motins, osatos esporádicos e isolados de violência.Para merecer a proteção do Direito Huma-nitário, os enfrentamentos devem ser de altaintensidade, configurando um conflito ar-mado interno. Portanto, se um conflito in-terno não assume grandes proporções, apopulação civil fica desamparada. Essa éuma lacuna do Direito Internacional Huma-nitário, pois, mesmo em situações que não

podem ser caracterizadas como conflito ar-mado interno, é flagrante a violação dosmais básicos direitos humanos.

E isso nos confirma Díez De VELASCO,ao afirmar que

“la protección que se establece paralas víctimas de los conflictos armadossin carácter internacional es menoscompleta y detallada que la concedi-da en el caso de los conflictos arma-dos internacionales. El Protocolo II esmás breve y sucinto que el Protocolo Iy carece de normas sobre los métodosy medios de combate (...) La protecci-ón de la población civil se contemplade un modo muy sintético, si se com-paran sus disposiciones con las delProtocolo I, consagrando a la normafundamental de que la población y laspersonas civiles no serán objeto de ata-que, y prohibiendo ‘los actos o amena-zas de violencia cuya finalidad princi-pal sea aterrorizar a la población civil’(art. 13,3)” (1994, p. 930).

3.2. A assistência humanitária

A – Princípios básicos da ação humani-tária

Abordando a questão da necessidade dese encontrar meios de minimizar os efeitosda guerra sobre a população civil, MarionHARROFF-TAVEL sustenta que

“el objetivo de la promoción del Dere-cho Internacional Humanitario y delos principios de la acción humanita-ria es lograr el respeto de ese derechoy el acceso a las víctimas a las queprotege. Dicho de otro modo, la pro-moción del derecho es uno de los ins-trumentos que permite incluir en lasactitudes y en los comportamientos dequienes están o podrían estar habili-tados para contribuir a que, en situa-ciones de violencia armada, los medi-os de combate no sean ilimitados, lasvíctimas sean tratadas con humani-dad y la labor humanitaria pueda re-alizarse en favor de ellas” (1998).

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Independentemente do contexto em quetenha de estar presente, a ação humanitáriaem tempo de conflito armado continua pos-suindo uma natureza, um objetivo e carac-terísticas específicas. Como descrevem osConvênios de Genebra e seus ProtocolosAdicionais, a ação humanitária está basea-da nos princípios de humanidade e de im-parcialidade.

O Direito Internacional Humanitário sebaseia no princípio de humanidade, queconsagra direitos e obrigações a todos osafetados por um conflito armado. Entre ossujeitos alcançados pelas normas desse Di-reito, podemos enumerar as partes em con-flito, as vítimas, os Estados terceiros e asorganizações intergovernamentais e nãogovernamentais. É mister ressaltar o direitodas vítimas de receber uma assistência hu-manitária, sendo dever do Estado em cujoterritório se desenvolve o conflito, ou daparte que controla um território, garantir asnecessidades essenciais da população, con-sentindo que se preste uma ação de socorro,humanitária e imparcial. Todavia, essasações estão condicionadas ao consentimen-to dos Estados ou das partes corresponden-tes, e não há previsão de medidas coerciti-vas em caso de denegação abusiva. Sendoassim, as organizações humanitárias cos-tumam requerer o acordo explícito, implíci-to ou pelo menos tácito dos beligerantes paraque possam, o mais rápido possível, identi-ficar e tentar derrubar os obstáculos à pres-tação da assistência humanitária, principal-mente com relação à segurança do pessoalhumanitário. Recorrer à força, contra a von-tade das partes em conflito, ainda que porrazões de índole humanitária, transforma-ria a ação humanitária, no sentido estritodo Direito Internacional Humanitário, emuma verdadeira operação militar.

A imparcialidade, corolário do princípiode humanidade, pode ser definida como aausência de toda discriminação por motivode religião, nacionalidade, raça, opiniãopolítica, ou qualquer outro critério seme-lhante, dando prioridade às vítimas que te-

nham necessidades mais urgentes. Sem im-parcialidade, é grande o risco da perda deconfiança e pode resultar difícil continuarcontando com uma cooperação das partesem conflito.

O princípio de neutralidade significa anão participação nas hostilidades e a nãointervenção nas controvérsias de índolepolítica, religiosa ou ideológica que tenhamprovocado o conflito armado. Também é fun-damental a abstenção de qualquer ingerên-cia direta ou indireta nas operações milita-res em curso. Não obstante, a neutralidadenão significa a aceitação de práticas queatentem contra os princípios elementares doDireito Humanitário, como por exemplo, aprática de “limpeza étnica”. A neutralida-de não é um fim em si mesma, é o meio in-dispensável para captar a confiança daspartes em conflito para conseguir livre aces-so a todas as vítimas. Mais adiante, demons-traremos que a ação humanitária neutra éde difícil compreensão e aceitação nos con-flitos que têm por finalidade o extermíniode grupos e que ocorrem nos Estados deses-truturados pela violência.

Finalmente se deve considerar o princí-pio de independência que expressa a auto-nomia que devem ter as organizações hu-manitárias para que possam atuar confor-me os princípios mencionados anteriormen-te, sem estar submetidas a considerações denatureza política.

A ação humanitária requer a observân-cia de todos esses princípios e seu fiel res-peito para garantir um mínimo de proteçãoàs vítimas e a quem as assiste. Caso contrá-rio, torna-se muito difícil a aceitação da as-sistência humanitária, principalmentequando se discute se ela pode ou não serconsiderada um fator de ingerência ou deintervenção, colocando em risco a soberaniado Estado. Com respeito ao tema, afirma-nos Mario BETTATI que

“todavía se mantiene la tensión entrelas exigencias de la soberanía y las dela acción humanitaria transfronteri-za, benéfica y desinteresada. La legíti-

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ma protección de los intereses del Estadose opone a menudo a la legítima pro-tección de la supervivencia de las vícti-mas que podrían recibir asistencia delexterior. Para conciliar estas dos ten-dencias contradictorias, se han elabo-rado una serie de principios que he-mos propuesto a la comunidad deEstados y que se han ido consagran-do progresivamente primero por me-dio de resoluciones de la AsambleaGeneral de Naciones Unidas, luegopor el Consejo de Seguridad en casosconcretos de naturaleza bélica. Se hadenominado a esta doctrina ‘derechode injerencia humanitaria’. Sin recha-zar esta expresión, debemos emplear-la con prudencia en la medida en quees susceptible de generar mal enten-didos y equívocos que pueden susci-tar objeciones por parte de los Esta-dos. (...) Preferimos hablar de ‘derechode asistencia humanitaria’, que es unadenominación peor acogida por losmedios de comunicación, pero mejorpor los juristas y diplomáticos. Porotra parte, se observa que los gobiernosaceptan más fácilmente estos nuevos prin-cipios cuando no tienen dudas, en cuantoa la soberanía, sobre la intención, inter-pretaciones y aplicación de quienes hanpropuesto y promovido la idea” [grifosnossos] (1994, p. 5-6).

B – A assistência humanitária nos con-flitos internos

Como afirmamos anteriormente, hojepredominam os conflitos armados internos,causadores de grandes contingentes de des-locados internos e de refugiados. Muitosdesses conflitos foram provocados – ou for-temente influenciados – pelo fim da ordemmundial bipolar, sendo que outros são con-seqüência de ciclos históricos de rivalidadesou de problemas políticos jamais resolvidos.

Esses conflitos ocorrem em contextos ni-tidamente mais desestruturados que antes,quando as organizações humanitárias erammenos numerosas e tinham pontos de refe-

rência relativamente claros. De um lado, asforças armadas regulares, submetidas aocontrole do poder político estabelecido e, dooutro, com uma hierarquia de mando estru-turada e reivindicando uma ideologia bemdefinida.

Na maioria dos casos, ditas estruturaspermitiam às organizações humanitáriasestabelecer os contatos necessários para arealização de sua ação a todos os níveis dahierarquia política e militar. A proteção dopessoal humanitário dependia essencial-mente da responsabilidade das partes emconflito, mediante um sistema de salvo-con-duto e de autorizações que funcionava rela-tivamente bem, pois estava baseado em umaclara hierarquia de mando.

Infelizmente, nos conflitos internosatuais, a realidade é bem outra, o que difi-culta tremendamente, quando não inviabi-liza, a atuação dos agentes humanitários. Osistema tradicional de “apadrinhamento”bipolar das partes em conflito foi substituí-do pelo caos absoluto. Nos Estados deses-truturados, não existe hierarquia definida,não se sabe quem manda e mesmo as partesenvolvidas no conflito se encontram frag-mentadas.

Assim, os agentes se encontram expos-tos aos riscos de uma crescente delinqüên-cia, cuja finalidade específica, muitas vezes,é a subtração dos bens administrados poreles administrados. A presença de tais benspode, inclusive, aumentar a intensidade dosconflitos se alguma das partes beligerantesconsegue apropriar-se dos mesmos.

A assistência humanitária se converte emuma questão muito delicada e às vezes peri-gosa para o pessoal humanitário, quandose trata de conflitos étnicos, cujo objetivo,como já sabemos, é a exclusão e a elimina-ção do suposto adversário. Para chegar aopoder, um grupo deve destruir, eliminar ooutro, situação que muitas vezes caracteri-za um caso de genocídio.

Em situações assim, a assistência huma-nitária é considerada um obstáculo paraalcançar os objetivos das partes em conflito.

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Tudo aquilo que se opõe à estratégia de eli-minação, de marginalização ou de desloca-mento de pessoas civis se entende comoameaça contra a consolidação do direito aopoder, inclusive para sua existência. Tor-na-se difícil distinguir os combatentes dosnão combatentes e passa a ser comum iden-tificar os agentes humanitários como inimi-gos pois, afinal, “quem ajuda meu inimigo émeu inimigo também”. O perigo para osagentes humanitários é enorme e tambémse deve considerar que sua presença na re-gião do conflito faz com que assumam a con-dição de testemunhas oculares perigosas depráticas brutais contra a parte adversária ede graves violações dos princípios de Direi-tos Humanos e de Direito InternacionalHumanitário, que, reveladas diante de umTribunal Penal Internacional, poderiam le-var à condenação de seus autores. Essa cir-cunstância fragiliza ainda mais a condiçãodo pessoal humanitário, dificultando sobre-maneira a prestação de uma efetiva assis-tência humanitária.

4. Direito InternacionalHumanitário e Direito Internacional

dos Direitos Humanos

4.1. O Direito Internacional dos DireitosHumanos. Generalidades e conceito

Segundo Héctor Gros ESPIELL“por derechos humanos se entiende,cualquiera que sea la teoría o el siste-ma filosófico, político, o jurídico quesirva de explicación o de base, aque-llas facultades, atribuciones o exigen-cias fundamentales que el ser huma-no posee, declaradas, reconocidas oatribuidas por el orden jurídico, y que,derivadas de la dignidad eminenteque todo hombre tiene, constituyenhoy el presupuesto indispensable ynecesario de cualquier organizacióno sistema político nacional y de lamisma Comunidad Internacional”(1984, p. 701).

O conceito atual dos direitos humanosse compõe dos clássicos direitos civis e po-líticos, ou seja, das liberdades públicas, dosdireitos econômicos, sociais e culturais queobrigam o Estado a tomar medidas positi-vas para a satisfação das necessidades hu-manas no âmbito econômico, social e cultu-ral e dos novos direitos que surgiram diantedas demandas do mundo atual. Existe umainterdependência entre esses direitos, poiscada um deles e cada uma de suas categoriasdemanda para sua existência o reconheci-mento e a vigência dos demais.

A existência efetiva dos direitos de cadapessoa, limitados em seu exercício pelascontingências da vida em sociedade, estácondicionada à vigência de uma ordem ju-rídica que seja o resultado da lei editada emfunção do interesse geral, sem qualquer tipode discriminação.

Em princípio, a declaração, proteção epromoção dos direitos humanos é compe-tência do Direito interno de cada Estado.Cabe ao ordenamento jurídico interno regu-lar e garantir tais direitos. Entretando, emalguns casos as violações dos direitos hu-manos são resultado da própria atividadedo Estado, o que faz com que seja necessá-rio recorrer ao Direito Internacional, quetambém garante e promove a vigência e orespeito aos direitos do homem. Portanto,os direitos humanos deixaram de ser maté-ria exclusiva da jurisdição interna dos Es-tados, devendo ser regulados concomitan-temente pelo Direito interno e pelo DireitoInternacional.

O conjunto de princípios e normas inter-nacionais reguladoras dos direitos huma-nos se denomina Direito Internacional dosDireitos Humanos e segundo Gros ESPIELL

“sus fuentes se encuentran en la Car-ta de Naciones Unidas, en la Declara-ción Universal de Derechos Humanos,en los dos Pactos Internacionales deDerechos Humanos, en el ProtocoloFacultativo al Pacto de Derechos Ci-viles y Políticos y en una larga seriade instrumentos, convencionales o no,

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elaborados en el ámbito de las Nacio-nes Unidas y de algunos de sus orga-nismos especializados, particular-mente de la OIT y de la UNESCO. Peroa todos estos textos de carácter uni-versal se suman los documentos in-ternacionales de tipo regional, comola Convención Europea de Salvaguar-dia de los Derechos del Hombre y delas Libertades Fundamentales, la Car-ta Social Europea, la DeclaraciónAmericana de Derechos y Deberes delHombre, la Convención Americana deDerechos Humanos y, entre otros, lostextos nacidos de la liga de Estadosárabes y de la Organización de Uni-dad Africana” (1984, p. 702-703).

Em uma análise mais abrangente, podemser consideradas como parte do Direito In-ternacional dos Direitos Humanos todas asnormas e princípios internacionais que pro-tegem e garantem direitos dos indivíduos,independentemente de sua situação jurídi-ca em qualquer momento, no território deseu Estado de origem ou em um Estado es-trangeiro.

4.2. O Direito Internacional dos DireitosHumanos e o Direito Internacional

Humanitário

É fundamental reconhecer que a prote-ção dos direitos humanos em geral, resul-tante dos instrumentos universais ou regio-nais vigentes sobre a matéria, e a proteçãodas pessoas amparadas pelo Direito Inter-nacional Humanitário são partes específi-cas de um sistema internacional geral, de fun-damento basicamente humanitário, que visaà proteção do homem na forma mais ampla ecompreensiva, compatível com a existênciada ordem jurídica e dos direitos legítimos doEstado e da comunidade internacional.

O Direito Internacional Humanitário e oDireito Internacional dos Direitos Humanostêm aplicabilidade em situações fáticas dis-tintas. Os direitos humanos são exigíveis emtempo de paz, suas normas são plenamenteoperativas em circunstâncias normais, den-

tro de um esquema institucionalizado depoderes em que o Estado de Direito é a re-gra. O Direito Internacional Humanitário,ao contrário, aplica-se durante conflitos ar-mados, tanto de caráter interno como de ca-ráter internacional. É essencialmente umDireito de exceção.

O Direito Internacional dos DireitosHumanos goza de maior generalidade, poistrata da existência de direitos cujos titula-res são todos os homens, em todas as situa-ções. O Direito Internacional Humanitário,por outro lado, aplica-se apenas em situa-ções específicas, quais sejam, conflitos ar-mados internacionais ou internos, e suasnormas alcançam única e exclusivamenteàs pessoas protegidas como conseqüênciade tais situações nos casos previstos pelosConvênios de Genebra de 1949 e pelos Pro-tocolos Adicionais de 1977. Conclui-se que,embora exista uma zona comum entre o Di-reito Internacional dos Direitos Humanos eo Direito Internacional Humanitário, existetambém um campo de aplicação material epessoal que não coincide plenamente, o quedetermina a necessidade de utilizar meca-nismos de aplicação e de controle distintospara ambos ramos do Direito Internacional.

Entretanto, diante de tudo o que se co-mentou até agora, chega-se à conclusão deque o Direito Internacional Humanitário e oDireito Internacional dos Direitos Humanosnão são dois troncos incomunicáveis. Aocontrário, sua convergência e complemen-taridade se concentram em um interessecompartido, mediante suas normativas es-pecíficas, relativas, em última instância, àproteção do indivíduo em qualquer circuns-tância, pois, ainda que o Direito Internacio-nal dos Direitos Humanos seja aplicado,regra geral, em situações de paz, suas nor-mas não são suspensas em períodos de con-flitos armados. Muito pelo contrário, poisem tempos de guerra é quando sua obser-vância se faz mais necessária. É exatamentenesse momento que entra em cena o DireitoInternacional Humanitário com seu carátercomplementário, regulamentando a atuação

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dos grupos beligerantes, no intuito de res-guardar minimamente a defesa dos direitoshumanos.

Ao abordar a importância da convergên-cia entre os dois troncos do Direito Interna-cional supramencionados, Antônio Augus-to Cançado TRINDADE esclarece que

“ponto central da convergência entreo direito internacional humanitário ea proteção internacional dos direitoshumanos reside no reconhecimentodo caráter especial dos tratados deproteção dos direitos da pessoa hu-mana. A especificidade do direito deproteção do ser humano, tanto emtempo de paz como de conflito arma-do, é inquestionável, e acarreta conse-qüências importantes, que se refletemna interpretação e aplicação dos trata-dos humanitários (direito internacio-nal humanitário e proteção internacio-nal dos direitos humanos)” (1996).

4.3. A convergência entre o DireitoInternacional dos Direitos Humanos e o

Direito Internacional Humanitário

Não existe nenhum tipo de incompatibi-lidade entre a aplicação das normas de Di-reito Internacional Humanitário e as de Di-reito Internacional dos Direitos Humanos.É importante considerar, a respeito, a liçãode Eric DAVID, que nos afirma que

“le droit des conflits armés comprenddes règles propres dont l’aplicationdépend de la réalisation du fait-con-dition qu’est la guerre. Cependant, sile déclenchement d’une guerre entrai-ne l’application de règles particuliè-res, cela n’implique pas la suspension detoute autre règle juridique. Plus parti-culièrement, les règles relatives aux re-lations amicales et aux droits de la per-sonne en général peuvent continuer às’appliquer” [grifos nossos] (1999, p. 64).

A relação do Direito Internacional Hu-manitário com o Direito Internacional dosDireitos Humanos e o reconhecimento deque ambos se nutrem dos mesmos princípios

gerais dirigidos à proteção da pessoa huma-na são ponto pacífico na doutrina atual.

Araceli Mangas MARTIN afirma que“ciertamente hay una aproximaciónentre el Derecho Internacional de losDerechos Humanos y el Derecho In-ternacional Humanitario, especialmen-te en el caso de conflicto armado interno,que debe ser contemplada con esperan-za. No puede haber recelos en la super-posición de normas jurídicas, porquetodo exceso de garantía y condiciones so-bre la vida y dignidad de la persona hu-mana nunca podrá ser inútil. La regla-mentación de los conflictos armadosinternos y los convenios sobre dere-chos humanos tienen un mismo fun-damento y propósito: el ser humano.No puede haber riesgo para uno u otrosector del Derecho internacional, puesaunque confluyen en una parte de sucontenido, su ámbito temporal y ma-terial es distinto. Cuando la situaciónde conflicto armado interno no per-mite invocar los convenios sobre de-rechos humanos o se restringe su ám-bito de aplicación, el Derecho Inter-nacional Humanitario suple esas ca-rencias: en tiempos de guerra, sinderogaciones y sin connotaciones po-líticas” [grifos nossos] (1992, p. 171).

Em casos de conflito armado, interno ouinternacional, dá-se a aplicação concomitan-te das normas do Direito Internacional Hu-manitário e do Direito Internacional dos Di-reitos Humanos. O indivíduo goza da prote-ção de ambos sistemas jurídicos. É de funda-mental importância destacar que em toda equalquer circunstância, mesmo em tempo deguerra, é dever incondicional de todo Estadorespeitar os direitos fundamentais e inderro-gáveis, como por exemplo: o direito à vida, denão sofrer torturas, penas ou tratamentos cru-éis, desumanos ou degradantes, de não per-mitir a escravidão ou a servidão e de reco-nhecer a todo ser humano sua personalidadejurídica. Esses direitos constituem o núcleoessencial do respeito aos direitos humanos.

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A convergência entre os dois ramos doDireito Internacional é notória, como ocor-re, por exemplo, com o artigo 3º comum àsquatro Convenções de Genebra, que consa-gra direitos humanos básicos, aplicáveistanto em tempo de conflitos armados comoem tempo de paz. Os dois Protocolos Adicio-nais de 1977 também contêm garantias fun-damentais da pessoa humana (Protocolo I,art. 75, e Protocolo II, arts. 4, 5 e 6). A conver-gência não é mera casualidade, pois os ins-trumentos internacionais de direitos huma-nos exerceram influência no processo deelaboração de ambos Protocolos.

No caso dos conflitos armados internosatuais, que têm como características a de-sestruturação dos Estados e o conteúdo ét-nico, a combinação das normas do DireitoInternacional Humanitário com as do Di-reito Internacional dos Direitos Humanos éum caminho fundamental a ser tomado,principalmente quando se trata de conflitosinternos de baixa ou média intensidade, nosquais não são aplicáveis as normas de Di-reito Humanitário. Vale lembrar, uma vezmais, que na raiz do grande número de des-locados internos e de refugiados está a vio-lação de direitos humanos e, por isso, tam-bém nesse caso é imprescindível a conjuga-ção dos dois ramos do Direito Internacional.

Richard PERRUCHOUD propõe a cons-trução de uma nova ordem humanitária in-ternacional, afirmando que

“l’ordre en question devrait recouvrirnon seulement le droit applicable encas de conflits armés, mais encore ledroit du temps de paix. En effet, réfé-rence est faite à la necesité d’adopterun ensemble de régles communes tantà la protection des victimes de conflitsarmés qu’à celle des refugiés, des per-sonnes deplacées, des victimes de ca-tastrophes naturelles ou de l’oppresion;s’y ajoutent la sauvegarde des droitsde l’homme, la protection des victimesde la famine, de la pauvreté, du sous-développement, du terrorisme et del’analphabétisme, voire les règles re-

latives à l’interdiction du recours à laforce, au désarmement, au droit audéveloppement et à la protection del’environnement” (1984, p. 500).

5. Conclusões

Ao que tudo indica, as normas de Direi-to Internacional Humanitário aplicáveis aosconflitos armados internos não são suficien-tes para resguardar a população civil, evi-tar os deslocamentos internos e as ondas derefugiados nos conflitos desestruturados eétnicos, quando se trata de conflitos de mé-dia ou baixa intensidade, nos quais não éaplicável o Protocolo Adicional II.

Antônio Augusto Cançado TRINDADE(1996) afirma que faz alguns anos que a co-munidade internacional pensa em elaborarum instrumento internacional, por exemplo,um outro protocolo, que possa garantir aproteção das vítimas em situações de con-flitos (distúrbios e tensões) internos. A idéiade uma declaração acerca do tema, alenta-da desde 1983 pelo CICV, sugere a consa-gração de um instrumento declaratório deum catálogo mais amplo de direitos inder-rogáveis aplicável em casos de conflitos in-ternos, mesmo naqueles de baixa intensida-de. A declaração teria por base principal asnormas de Direito Internacional Humani-tário, proibindo, por exemplo, a prática dos“desaparecimentos”, e as normas do Direi-to Internacional dos Direitos Humanos.

Por meio da constante e cada vez maisestreita aproximação dos dois ramos do Di-reito Internacional, será possível encontrarsoluções eficazes para os problemas contem-porâneos a respeito da proteção internacio-nal da pessoa humana, como é o caso dosdeslocados internos e dos refugiados.

O Alto Comissariado de Nações Unidaspara os Refugiados (ACNUR) adotou umanova estratégia, buscando não apenas aproteção, mas também a prevenção e a solu-ção (duradoura ou permanente) do proble-ma dos deslocados internos e dos refugia-dos destacando a importância do respeito

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aos direitos humanos como sendo o melhormeio de prevenção desses movimentos depopulações vítimas de conflitos internos.

A declaração final da Conferência dasNações Unidas sobre Direitos Humanos,realizada no ano de 1993 em Viena, convo-ca os Estados a promover uma coordenaçãode esforços para garantir a observância dosdireitos humanos durante os conflitos ar-mados. Raúl Emilio VINUESA (1998) res-salta a necessidade de coordenar os avan-ços e desenvolvimentos logrados tanto nosistema de Direitos Humanos como no deDireito Humanitário, viabilizando a mútuae imediata recepção desses avanços em am-bos ramos do Direito Internacional.

Compartimos a opinião de VINUESA,entendendo que a solução dos problemasque abordamos anteriormente – ou pelomenos a tentativa de “humanização” dosconflitos armados internos – passa pela con-vergência entre o Direito Internacional Hu-manitário e o Direito Internacional dos Di-reitos Humanos. É fundamental que se pro-ceda à criação de mecanismos que funcio-nem como vasos comunicantes entre os doissistemas, permitindo a recíproca extensão epenetração de ambos esquemas jurídicos. Sóassim será possível consolidar a devida pro-teção de todo indivíduo afetado pelo uso daforça armada, independentemente do grauou da intensidade dessa força, ou de umaeventual definição de uma situação parti-cular como conflito armado.

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Roberto Freitas Filho

1. Introdução

O presente trabalho tem por objetivo ex-por questões relativas ao direito do consu-midor à informação no contexto do desen-volvimento e fornecimento no mercado de

Os alimentos geneticamente modificados eo direito do consumidor à informaçãoUma questão de cidadania

Roberto Freitas Filho é Mestre em Filoso-fia e Teoria Geral do Direito pela Universida-de de São Paulo – USP, Professor de Direito doConsumidor do UniCEUB – Brasília, ex-Dire-tor do Departamento de Proteção e Defesa doConsumidor do Ministério da Justiça e Advo-gado.

Sumário

1. Introdução. 2. Breves considerações so-bre o Direito do Consumidor. 3. O Direito doConsumidor e a Constituição Federal. 3.1. Re-ferências constitucionais ao Direito do Consu-midor. 3.2. A natureza constitucional materialdo Direito do Consumidor. 4. O direito à infor-mação no plano normativo internacional e in-terno. 4.1. A Resolução ONU 39/248. 4.2. O Pac-to de São José da Costa Rica. 4.3. O Código deDefesa do Consumidor. 4.4. A Lei 8.137 de 27de dezembro de 1990. 5. Informação e liberda-de de escolha. 5.1. Momento do fornecimentoda informação. 5.2. O princípio da boa-fé obje-tiva. 6. A extensão do direito à informação e ocaso dos alimentos transgênicos. 6.1. Os limi-tes do artigo 31 do CDC. 6.2. Os alimentostransgênicos e a percepção dos consumidores.7. A questão no âmbito do Governo Federal.7.1. Histórico dos trabalhos que resultaram napublicação do Decreto 3.871/2001. 7.2. Aspec-tos da confecção da norma. 7.3. A questão nor-mativa no cenário internacional. 7.4. Questõescontrovertidas relativas à rotulagem dos trans-gênicos. 7.5. Considerações acerca das alega-das dificuldades apontadas para a informaçãoaos consumidores. 8. Os avanços tecnológicose a questão do risco. 9. Direito do consumidorà informação e a ética de responsabilidade. 10.Considerações finais.

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consumo de alimentos geneticamente mo-dificados, os vulgarmente chamados alimen-tos transgênicos1.

Como nova tecnologia que é, a manipu-lação genética de organismos vivos e auto-replicantes nos descortina uma série de re-flexões nas diversas áreas do conhecimentohumano. No que toca aos aspectos valorati-vos da conduta do indivíduo, é notadamen-te nos campos da Ética, da Filosofia e doDireito que tais questões estão sendo maisamplamente debatidas. Assim, teceremosconsiderações sobre a dogmática jurídica ea questão da informação ao consumidor emface do fornecimento no mercado de consu-mo de transgênicos, bem como trataremosde elaborar uma proposta de pauta ética deação para o enfrentamento da questão dotrato do direito do consumidor à informa-ção, tanto por parte dos órgãos públicosquanto da sociedade.

Nossa pretensão não é a de exaurir ostemas tratados, mas sim problematizar aquestão dos transgênicos em face de umagarantia instrumental para o exercício dacidadania, qual seja, a do direito do consu-midor de ser tratado com transparência e deter acesso de forma adequada a todas as in-formações que lhe sejam devidas.

2. Breves considerações sobre oDireito do Consumidor

Para a compreensão da lógica operativadas normas de proteção do consumidor, sãonecessários alguns esclarecimentos prévios.

O Direito do Consumidor é um subsis-tema do Direito composto de um conjuntode normas e princípios que disciplinam aschamadas relações de consumo. As relaçõesde consumo são assim definidas em razãode um aspecto qualitativo das partes envol-vidas em um determinado negócio jurídico.Assim, da perspectiva do Direito do Consu-midor, haverá uma relação de consumo sem-pre que houver de um lado a figura de umconsumidor e de outro, a de um fornecedorde produtos ou serviços.

Definir consumidor e fornecedor signifi-ca definir a própria existência daquela quevai ser a chamada relação de consumo. Des-sa forma, uma locação, por exemplo, poderáser ou não realizada por meio de uma relaçãode consumo, dependendo da qualificaçãodaqueles envolvidos no negócio. O mesmo sedá com um contrato de compra e venda, deseguro, de prestação de serviços etc.

Consumidor é, segundo a definição le-gal do artigo 2º da Lei 8.078, de 11 de setem-bro de 1990 – o Código de Defesa do Consu-midor (CDC) –, “...toda pessoa física ou ju-rídica que adquire ou utiliza produto ouserviço como destinatário final”. Esse é o nú-cleo da definição de consumidor, havendomais três variantes conceituais constantes doCDC: a) por equiparação, a coletividade quehaja intervindo nas relações de consumo (pa-rágrafo único do art. 2º); b) todas as vítimasde um evento danoso oriundo de defeito noproduto ou serviço fornecido (art. 17); c) porequiparação, todas as pessoas determináveisou não, expostas a práticas comerciais pre-vistas no Capítulo V do Código (art. 29).

A definição legal de fornecedor, dispos-ta no artigo 3º, compreende “... toda pessoafísica ou jurídica, pública ou privada, nacio-nal ou estrangeira, bem como os entes des-personalizados, que desenvolvem ativida-de de produção, montagem, criação, cons-trução, transformação, importação, expor-tação, distribuição ou comercialização deprodutos ou prestação de serviços”.

O Direito do Consumidor é compostofundamentalmente de normas de proteção.São normas que buscam proteger uma daspartes da relação de consumo, que é consi-derada pela própria lei como vulnerável di-ante da outra. Assim, em havendo uma re-lação de consumo, ocorre conseqüentemen-te a aplicação de uma série de normas espe-cíficas que vão proteger o consumidor emface da natural posição de supremacia depoder do fornecedor, este detentor das in-formações sobre o produto ou serviço queoferta e, em geral, detentor de maior poderioeconômico do que o consumidor.

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Dessa forma, quando falarmos em Direi-to do Consumidor, estaremos expressandoa idéia de um sistema de normas de prote-ção de uma das partes de uma relação jurí-dica no qual há um desequilíbrio estrutu-ral. O consumidor é vulnerável em relaçãoao fornecedor.

3. O Direito do Consumidor e aConstituição Federal

Em nosso ordenamento jurídico, o Direi-to do Consumidor possui status constitucio-nal. Está previsto no mais alto grau do pla-no hierárquico normativo existente, preva-lecendo sobre as demais normas de nature-za inferior, na hipótese da existência de umconflito entre elas.

3.1. Referências constitucionais aoDireito do Consumidor

A proteção do consumidor está previstano artigo 5º, XXXII, da Constituição Federalque dispõe que “o Estado promoverá, naforma da lei, a defesa do consumidor”. Esseé o comando fundamental, havendo outrosque também mencionam o direito do consu-midor, a saber: artigo 48 do Ato das Dispo-sições Constitucionais Transitórias, quedeterminava à época da promulgação daConstituição que o Congresso Nacional ela-boraria, em 120 dias, um Código de Defesado Consumidor; e o artigo 170, V, que prevêcomo um dos princípios da Ordem Econô-mica a defesa do consumidor.

3.2. A natureza constitucional material doDireito do Consumidor

O Direito do Consumidor está previstona Constituição Federal em seu artigo 5º,que trata “Dos Direitos e Deveres Individu-ais e Coletivos”. A inserção da previsãoconstitucional nesse artigo não se deu poracaso e revela o reconhecimento de sua im-portância.

O artigo 5º está no rol daqueles que com-põem o núcleo valorativo da ConstituiçãoFederal. A doutrina classifica as matérias

constantes da Constituição como formal-mente constitucionais e materialmente cons-titucionais2. De forma sucinta, podemosidentificar as primeiras como sendo aque-las matérias nas quais há uma alta relevân-cia social, de tal ordem que importa à socie-dade que esteja presente na Carta Magna,com o objetivo de enrijecimento da possibi-lidade de uma tentativa de alteração. Porsua vez, já os conteúdos materialmente cons-titucionais são aqueles que fazem parte donúcleo doador de sentido à constituição fá-tica da sociedade brasileira. São matériasque fazem parte daquilo que de mais preci-oso e importante possui a sociedade em ter-mos de valores.

Exemplos de valores constitucionais quese identificam com o conteúdo da constitui-ção material de nossa sociedade são: o res-peito à vida e à dignidade da pessoa huma-na, a garantia de existência digna, a preser-vação da intimidade, o direito à imagem, aslimitações à atuação persecutória do Esta-do (com a garantia do devido processo le-gal), entre outros.

Tal conteúdo não está na Constituiçãosomente em razão da sua grande importân-cia, mas mais do que isso, é consideradofundamental à particular conformação dasociedade brasileira.

Tanto assim que são chamados cláusulasconstitucionais pétreas, que são aquelas emrelação às quais não se admite iniciativa le-gislativa tendente a aboli-las, na forma doque dispõe o artigo 60, § 4º, da ConstituiçãoFederal3. CANOTILHO (1996, p. 880-881),sobre a questão dos limites à revisão consti-tucional, assim entende:

“A constituição garante a sua es-tabilidade e conservação contra alte-rações aniquiladoras do seu núcleoessencial através de cláusulas de irre-visibilidade e de um processo ‘agra-vado’ das leis de revisão. Não se tratade defender, através destes mecanis-mos, o sentido e características fun-damentais da constituição contraadaptações e mudanças necessárias,

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mas contra a aniquilação, ruptura eeliminação do próprio ordenamentoconstitucional, substancialmente ca-racterizado”.

NERY JÚNIOR (2001, p. 554-555), dis-correndo sobre a natureza constitucional dadefesa do consumidor, esclarece:

“Nosso sistema constitucional res-salta o princípio federativo, o voto di-reto, secreto, universal e periódico, aseparação dos Poderes, os direitos egarantias individuais, o que é resguar-dado pelo art. 60, § 4º, da Constitui-ção Federal, ao proibir emenda ten-dente a abolir esses direitos e garanti-as individuais, constituindo-se verda-deira cláusula pétrea, o que impedeas modificações constitucionais quealterem esses princípios e garantias res-guardados essencialmente no art. 5º”.

O Direito do Consumidor, estando no roldos Direitos e Deveres Individuais e Coleti-vos constantes do artigo 5º da Constituição,é, portanto, cláusula constitucional pétrea epossui natureza constitucional material.

4. O direito à informação no planonormativo internacional e interno

Além da previsão da tutela específica doconsumidor na Constituição Federal, queserá realizada por meio do Código de Defe-sa do Consumidor, o direito à informação,como direito básico e ao mesmo tempo ins-trumento de proteção e defesa do consumi-dor, possui suas raízes em diplomas nor-mativos de natureza internacional.

4.1. A Resolução ONU 39/248

O direito à informação possui sua previ-são normativa, no plano internacional, naResolução ONU 39/248, de 16 de abril de1985, que trata da proteção do consumidor.Tal direito está reconhecido no Capítulo II,Princípios Gerais, número 3, letra c, em que seprevê o “acesso dos consumidores à infor-mação adequada que lhes capacite a fazerescolhas conscientes de acordo com seus

desejos e necessidades individuais...” (tra-dução livre do inglês)4.

4.2. O Pacto de São José da Costa Rica

Ainda no plano internacional, a Conven-ção Americana de Direitos Humanos de1969, conhecida como o Pacto de São Joséda Costa Rica, que dispõe sobre a tutela dosdireitos humanos, já previa garantia da im-plementação dos direitos econômicos de for-ma efetiva pelos Estados signatários. Na-quela Convenção já se encontrava expressaa preocupação dos Estados com a efetiva-ção dos chamados Direitos Econômicos,Sociais e Culturais. O artigo 265, CapítuloIII, determina que os Estados-partes adotemprovidências no sentido de efetivar os direi-tos que decorrem das normas econômicas,sociais, sobre educação, ciência e cultura,constantes da Carta da Organização dosEstados Americanos. Esta, em seu artigo 39,“b”, “i”, tratando do desenvolvimento eco-nômico e social, determina aos Estadosmembros que envidem esforços no sentidode realizar, entre outras ações, “...medidasdestinadas a promover a expansão de mer-cados e a obter receitas seguras para os pro-dutores, fornecimentos adequados e segu-ros para os consumidores, e preços estáveisque sejam ao mesmo tempo recompensado-res para os produtores e eqüitativos para osconsumidores”.

Embora as normas de tratados interna-cionais não vinculem os Estados signatáriosde forma absoluta, até mesmo em razão depossuírem natureza principiológica – o quesignifica que são um objetivo a ser realiza-do –, a importância delas está no fato de querefletem um consenso global sobre a rele-vância de alguns temas para a humanida-de, entre eles estando previstos os direitosdos consumidores e, conseqüentemente, odireito à informação.

4.3. O Código de Defesa do Consumidor

No plano interno, o direito do consumi-dor à informação foi consagrado no Códigode Defesa do Consumidor, promulgado em

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quinze de setembro de 1990, estando a pre-visão presente no artigo sexto, que dispõesobre os direitos básicos do consumidor, emseu inciso III6.

Além dessa previsão genérica do CDC, ainformação é tratada em vários artigos, sen-do que há uma previsão específica relativaà informação no momento da oferta de de-terminado produto ou serviço ao consumi-dor, constante do artigo 317, que prevê requi-sitos de forma e de conteúdo informativos.

O CDC prevê, ainda, condutas crimina-lizadas relativas à ausência de informaçãopara o consumidor. Os artigos 63 e 64 pre-vêem punições tanto para a hipótese deomissão de dizeres ou sinais ostensivos dealerta sobre a nocividade ou periculosida-de de produtos, quanto no caso da omissãode informações sobre periculosidade ounocividade de produtos que o fornecedorvenha a ter conhecimento depois que osmesmos tenham entrado no mercado deconsumo.

Ainda no campo penal, o artigo 66 punea informação falsa, enganosa ou a omissãosobre característica relevante do produto ouserviço no que tange à sua natureza, carac-terísticas, qualidade, quantidade, seguran-ça, desempenho, durabilidade, preço ougarantia. A questão da informação, portan-to, foi tratada no CDC de forma enfática,merecendo previsão normativa inclusive denatureza criminal.

4.4. A Lei 8.137 de 27 dedezembro de 1990

A questão do fornecimento da informa-ção é também tratada na Lei 8.137, de 22 dedezembro de 1990, que “define crimes con-tra a ordem tributária, econômica e contraas relações de consumo, e dá outras provi-dências”. O inciso VII do artigo 7º trata dainformação falsa ou enganosa sobre a natu-reza ou qualidade de bem ou serviço queinduz o consumidor a erro8.

Resta evidente, portanto, após a exposi-ção das normas atinentes ao direito do con-sumidor à informação, que o legislador pro-

tegeu o legítimo interesse dos cidadãos con-sumidores de verem preservada a possibili-dade de escolher de forma consciente. Aimportância do direito à informação se cons-tata não somente pela quantidade de nor-mas que prevêem sua proteção, mas tam-bém pela sua natureza: normas que garan-tem o direito material, normas de caráterdisciplinador da conduta dos fornecedorese normas de natureza criminal.

5. Informação e liberdade de escolha

Um dos princípios fundamentais sobreos quais se sustenta um Estado democráti-co é o da liberdade individual. Para o exer-cício dessa liberdade, é necessário que aque-le que vai tomar a decisão sobre como agirpossa orientar sua ação de forma conscien-te. Somente se chega a uma plena consciên-cia sobre todas as circunstâncias relevantesque envolverão os fatos sobre os quais seterá de decidir por meio da informação.Qualquer avaliação crítica sobre as possibi-lidades do agir será, portanto, necessaria-mente precedida da informação sobre as cir-cunstâncias condicionantes do contexto noqual a ação se dará.

5.1. Momento do fornecimentoda informação

O ato decisório sobre consumir ou dei-xar de consumir é sempre uma deliberaçãoprévia à realização do negócio. O CDC esta-belece que a informação tem de ser prestadanão somente após a realização do ato deconsumo, mas também e principalmente nomomento anterior à celebração do contrato.Somente dessa maneira o consumidor po-derá decidir de forma livre e consciente. So-bre o tema, BENJAMIN (2001, p. 125) se pro-nuncia no seguinte sentido:

“A informação, no mercado deconsumo, é oferecida em dois momen-tos principais. Há, em primeiro lugar,uma informação que precede (publi-cidade, por exemplo) ou acompanha(embalagem, por exemplo) o bem de

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consumo. Em segundo lugar, existe ainformação passada no momento daformalização do ato de consumo, istoé, no instante da contratação”.

Em argumento conseqüente, segue odoutrinador:

“Ambos têm o mesmo objetivo, ouseja, preparar o consumidor para umato de consumo verdadeiramente consen-tido, livre, porque fundamentado em in-formações adequadas”. [grifo nosso]

A decisão do consumidor é tomada nafase pré-contratual e é nesse momento, por-tanto, que devem estar disponíveis para omesmo toda a gama de dados que lhe serãoúteis para a escolha.

O artigo 31 detalha, como visto, aquiloque é previsto genericamente no artigo 6ºdo CDC como direitos básicos do consumi-dor. FILOMENO (2001, p. 125) faz referên-cia ao preceito da seguinte forma:

“Em verdade, aqui se trata do de-talhamento do inc. II do art. 6º ora co-mentado, pois que se fala expressa-mente sobre especificações corretas dequantidade, características, composi-ção, qualidade e preço, bem como so-bre os riscos que apresentem, obriga-ção específica dos fornecedores deprodutos e serviços.

Trata-se, repita-se, do dever de in-formar bem o público consumidor so-bre todas as características importan-tes de produtos e serviços, para queaquele possa adquirir produtos, ou con-tratar serviços, sabendo exatamente oque poderá esperar deles”.

5.2. O princípio da boa-fé objetiva

O CDC é considerado um microssistemade direito e, dessa forma, possui uma exege-se própria, fundamentada em princípios queinformam a interpretação e a aplicação desuas normas. O código prevê, como princí-pios exegéticos específicos, entre outros, oda boa-fé objetiva nas relações de consumo.A boa-fé se traduz no dever de transparên-cia, de lealdade, de clareza, de limpidez, de

sinceridade na relação de consumo. Nosdizeres de MARQUES (1999, p. 107):

“Boa-fé objetiva significa, portan-to, uma atuação ‘refletida’, uma atua-ção refletindo, pensando no outro, noparceiro contratual, respeitando-o,respeitando seus interesses legítimos,suas expectativas razoáveis, seus di-reitos, agindo com lealdade, sem abu-so, sem obstrução, sem causar lesãoou desvantagem excessiva, cooperan-do para atingir o bom fim das obriga-ções: o cumprimento do objetivo con-tratual e a realização dos interessesdas partes”.

O fornecedor deve, por esse princípio,dar todas as informações relevantes sobre oproduto ou serviço colocados no mercadode consumo, para que o consumidor possadecidir e agir da forma que melhor lhe apr-ouver. Tais informações compreendem tan-to os aspectos positivos quanto os eventual-mente negativos, não sendo lícito ao forne-cedor deixar de prestá-las.

6. A extensão do direito à informaçãoe o caso dos alimentos transgênicos

O artigo 31 do CDC é uma norma de na-tureza aberta, determinando a forma e o con-teúdo das informações que devem necessa-riamente ser ofertadas ao consumidor pelofornecedor. A norma não trata, entretanto,dos limites do conteúdo do direito à infor-mação. Assim, faz-se necessário o esclareci-mento dos critérios que devem ser seguidospara a dação das informações em cada atode fornecimento.

6.1. Os limites do artigo 31 do CDC

O artigo 31 do CDC determina, confor-me visto, que a oferta e a apresentação deprodutos ou serviços devem assegurar in-formações corretas, claras, precisas, osten-sivas e em língua portuguesa sobre suascaracterísticas, qualidades, quantidade,composição, preço, garantia, prazos de va-lidade e origem, entre outros dados, bem

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como sobre os riscos que apresentam à saú-de e segurança dos consumidores.

Quanto à forma de fornecimento da in-formação, podemos dizer que ela tem depermitir ao consumidor se apropriar, pelasvias cognitivas naturais, de todos os elemen-tos relevantes ao ato de escolha. Dessa for-ma, dispõe o Código que as informaçõesdeverão ser corretas e precisas, quanto aosdados qualificativos e quantificativos dosprodutos e serviços. Determina ainda queas informações sejam dadas de forma clara,ostensiva e em língua portuguesa, fazendodo veículo informativo, ou seja, a linguagem,um instrumento de comunicação eficaz paraque o conteúdo da mensagem chegue aoconsumidor de forma íntegra.

Quanto ao conteúdo da informação a serprestada, o artigo 31 determina expressa-mente que ela mencione as características,qualidades, quantidade, composição, pre-ço, garantia, prazos de validade e origem. Orol não é exaustivo, devendo o fornecedorinformar sobre outros aspectos do produtoou serviço se tais informações forem impor-tantes para a deliberação do consumidor noato decisório.

Para nosso breve estudo, restringiremosa análise do artigo 31 em seus aspectos rela-cionados às características, qualidades e com-posição de produtos. É necessário que esta-beleçamos um critério para o fornecimentoda informação, já que o CDC não apontaexpressamente quais características, quali-dades, aspectos da composição deverão serinformados.

A regra geral para o fornecimento da in-formação é a de que devem ser prestadastodas aquelas necessárias a que o consumi-dor possa exercer de forma plena o seu di-reito de escolha. O critério de relevância dasinformações será sempre aferido a partir dapercepção do consumidor sobre quais ca-racterísticas, qualidades e aspectos da com-posição dos produtos colocados no merca-do deverão ser informados. O consumidor éo legítimo destinatário da informação pres-tada pelo fornecedor e é ele quem determi-

nará, em cada caso, os dados informativosnecessários para que possa exercer sua liber-dade de escolha. Portanto, as informações aserem prestadas ao consumidor serão todasaquelas relevantes para o seu ato decisório.

Essa regra geral entreabre a questão doestabelecimento dos mecanismos de verifi-cação da percepção do consumidor.

O CDC previu, em seus artigos 105 e 106,a existência de um Sistema Nacional deDefesa do Consumidor, composto pelos ór-gãos federais, estaduais, municipais e doDistrito Federal, bem como pelas entidadesprivadas de defesa do consumidor. Esse Sis-tema conta atualmente com aproximada-mente 720 órgãos oficiais e outras 70 enti-dades privadas de defesa do consumidor(BRASIL, 2002). O SNDC é veículo legítimode expressão do consumidor.

O Ministério Público, como instituiçãoque exerce a defesa dos interesses da socie-dade, e por conseguinte dos consumidores,é outra instância de verificação das necessi-dades dos consumidores.

Além dessas duas vias de verificação desuas necessidades e desejos, o consumidortem também se expressado de forma direta.Existem vários institutos de pesquisa, noBrasil e no exterior, que trabalham com aidentificação de sua percepção sobre assun-tos de seu interesse.

De forma igualmente legítima, mas me-nos representativa, posto que não atuamespecificamente com a questão da defesa doconsumidor, os representantes legislativostambém veiculam os desejos e as necessida-des dos consumidores. A Câmara dos De-putados, por exemplo, vem realizando, pormeio de sua Comissão de Defesa do Consu-midor, Meio Ambiente e Minorias, audiên-cias públicas para a discussão das questõesrelativas à rotulagem dos alimentos trans-gênicos desde o ano de 1999.

A identificação das necessidades e dapercepção dos consumidores pode-se darpelas vias ora elencadas, o que não excluioutras que sejam igualmente legítimas e queaqui não se tenha mencionado.

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Dessa forma, caberá ao aplicador do Di-reito verificar, atendendo ao objetivo da nor-ma e a sua natureza aberta, a percepção dosconsumidores em relação às suas necessi-dades para a tomada de decisões.

6.2. Os alimentos transgênicos e apercepção dos consumidores

No caso dos alimentos transgênicos, tem-se evidenciado inequivocamente a percep-ção dos consumidores e da sociedade emgeral de que a informação sobre a naturezado alimento é relevante para o exercício daliberdade de escolha. Tanto assim que nãosomente os consumidores, mas também osfornecedores, ainda que por motivos diver-sos, têm-se mobilizado no sentido da obten-ção e dação da informação sobre a qualida-de transgênica dos alimentos. Grandes for-necedores como, por exemplo, Carrefour,McDonald’s, Unilever e a rede de super-mercados Tesco da Inglaterra já anuncia-ram que não vão colocar no mercado deconsumo alimentos transgênicos (NERYJÚNIOR, 19- -?, p. 29-30).

Os consumidores foram indagados empesquisas de opinião e os resultados sãoclaros ao apontarem o desejo da obtençãodas informações sobre os alimentos trans-gênicos9. No plano internacional 81% dosconsumidores norte-americanos acham queo Governo daquele país deverá determinara rotulagem dos transgênicos. Mais de 80%dos norte-americanos concordam com o di-reito da União Européia e do Japão de re-querer a rotulagem dos produtos transgêni-cos americanos. No Canadá, de 83% a 95%(dependendo de como a questão é indaga-da) dos entrevistados querem que os alimen-tos produzidos por meio da biotecnologiasejam rotulados. Na Inglaterra 78% dos en-trevistados querem que os alimentos geneti-camente modificados sejam claramente ro-tulados.

Os valores percentuais de consumido-res que desejam que os produtos transgêni-cos ou geneticamente modificados sejamrotulados são bastante significativos e indi-

cam claramente a percepção do consumi-dor internacional.

NERY JÚNIOR (2001, p. 567) aponta ofato de que, “atenta para a grande repercus-são em torno do assunto ‘transgênicos’ esensível à preocupação dos consumidoresquanto aos efeitos desconhecidos para suasaúde e para o meio ambiente, a indústriaalimentícia, no mundo inteiro, começa aadotar uma posição de manifesta rejeiçãoaos alimentos transgênicos”.

No Brasil as entidades integrantes doSistema Nacional de Defesa do Consumi-dor já firmaram posicionamento no sentidoda informação sobre os alimentos transgê-nicos. O Fórum Nacional das Entidades Ci-vis de Defesa do Consumidor – FNECDC seposicionou defendendo a rotulagem com ainformação plena. Assim também o IDEC seposicionou (LAZZARINI, 2001).

Vários PROCON já se pronunciaram cla-ramente no sentido da necessidade da rotu-lagem com o fornecimento da informaçãode forma plena. A Fundação Procon de SãoPaulo expediu comunicado público após apublicação do Decreto 3.871, de 18 de julhode 2001, que “disciplina a rotulagem de ali-mentos embalados que contenham ou sejamproduzidos com organismos geneticamen-te modificados, e dá outras providências”,criticando a norma e pugnando pela infor-mação plena dos consumidores no tocanteaos alimentos transgênicos.

Notícia datada de 29/07/2001 do Ca-derno Ciência do Jornal O Globo trouxecomo título “MINISTÉRIO Público comba-terá transgênicos” (2001), referindo-se aoentendimento do Ministério Público Fede-ral de que o Decreto 3.871/2001 não estariaem sintonia com o que determina o artigo 31do CDC.

É possível se afirmar, pelos dados e in-dicadores recolhidos na própria sociedade,que a percepção do consumidor é a de que ainformação sobre a característica específicade alimentos serem transgênicos é funda-mental para o exercício da liberdade de es-colha.

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7. A questão no âmbito doGoverno Federal

A questão das informações sobre os ali-mentos transgênicos vem sendo tratada noâmbito do Governo Federal, havendo con-senso dos envolvidos no sentido de que de-verá ser adotada a rotulagem dos produtosa serem colocados no mercado de consumo.Para tanto, houve um processo de elabora-ção de uma norma de regulamentação doassunto que resultou na publicação do De-creto 3.871, de 18 de julho de 2001.

A rotulagem dos produtos transgêni-cos é tema fundamental da agenda de defe-sa do consumidor, espraiando suas conse-qüências para outras áreas de interesse bra-sileiro, como por exemplo o comércio inter-nacional, a agricultura de pequena escala ea defesa da livre concorrência. O tema temcausado intensas discussões nos diversossegmentos envolvidos.

7.1. Histórico dos trabalhos que resultaramna publicação do Decreto 3.871/2001

Em 10 de junho de 1999 foi publicada aPortaria MJ nº 268/99, criando uma Comis-são Especial para desenvolver estudos e ela-borar um projeto de regulamento sobre ro-tulagem de produtos geneticamente modifi-cados. Essa Comissão foi integrada pelosMinistérios da Agricultura e do Abasteci-mento, da Saúde, da Ciência e Tecnologia,bem como o da Justiça, sob a presidênciadeste último, por meio de seu Departamen-to de Proteção e Defesa do Consumidor, sen-do que em novembro de 1999 encerrou-se oprazo inicialmente estabelecido para a con-clusão dos trabalhos.

A proposta de Regulamento Técnico paraa Rotulagem de Alimentos e IngredientesGeneticamente Modificados foi submetidaà consulta pública (Consulta Pública nº 02/99) em 1º de dezembro de 1999, pelo prazode 90 dias. No interregno de dezembro de1999 a março de 2000, foram recebidas 178proposições. Foram apresentadas diversassugestões de alteração ao texto colocado em

consulta pública vindas das mais variadasorigens, como órgãos e entidades civis dedefesa do consumidor, associações de for-necedores e governos de outros países.

Em 17 de junho de 2000 foi publicada aPortaria nº 595 assinada pelo Ministro daJustiça, constituindo Comissão Especial paraproceder à retomada e conclusão dos traba-lhos iniciados pela Comissão precedente.

7.2. Aspectos da confecção da norma

No âmbito da Comissão, foi estabeleci-da a utilização da terminologia relativa àdiferença conceitual entre “geneticamentemodificado” e “transgênico”. A norma bra-sileira utilizou o conceito de “geneticamen-te modificado”, englobando de uma manei-ra mais ampla todas as modificações gené-ticas, independentemente de se referirem amodificações de genes de uma determinadaespécie ou à introdução em uma espécie degenes de outras. O conceito “transgênico”,nesse modelo, refere-se exclusivamenteàquelas modificações resultantes da intro-dução, em uma determinada espécie, de ge-nes de outras.

A Comissão, no início da execução dosseus trabalhos, definiu que a proposta denorma se aplicaria apenas aos alimentosgeneticamente modificados e aos que conte-nham ingredientes geneticamente modifica-dos, bem como aos ingredientes genetica-mente modificados e àqueles que contenhamsubstâncias resultantes de modificação gené-tica, destinados ao consumo humano. Defi-niu, ainda, que em alguns casos haveria adispensa do dever de informar, quais fossem:

– os alimentos e ingredientes nos quaistanto proteínas como o ADN (DNA) e even-tuais fragmentos de ADN (DNA), resultan-tes de modificação genética, tivessem sidodestruídos ou eliminados nas diferentes fa-ses da elaboração ou do processamento, nãosendo detectáveis por métodos cientifica-mente validados;

– os alimentos e ingredientes nos quaisa presença não intencional de organismosgeneticamente modificados, em cada ingre-

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diente, estivesse abaixo dos níveis de tole-rância estabelecidos.

Segundo o modelo normativo adotado,não se admitiria a possibilidade de misturade produtos geneticamente modificados comprodutos naturais. A ratio era que a normadefinisse um nível de tolerância como sen-do o limite para a presença não intencionalde ingrediente geneticamente modificado,percentualmente em peso ou volume, emuma partida de um mesmo ingrediente obti-do por técnicas convencionais.

A proposta de norma considerava ain-da que os níveis de tolerância estabelecidosseriam os valores máximos para cada in-grediente, considerados em qualquer fase doprocesso produtivo, a partir dos quais seriaobrigatório o fornecimento, no rótulo, da in-formação relativa à condição de geneticamen-te modificado. Complementava definindoque, para alimentos constituídos de mais deum ingrediente, os níveis de tolerância esta-belecidos seriam aplicados para cada um dosingredientes, considerados separadamentena composição do alimento. Portanto, se umalimento fosse composto por vários ingredi-entes e se verificasse que um deles continhaOrganismo Geneticamente Modificado –OGM, ainda que tal ingrediente representas-se um percentual pequeno na composiçãototal do alimento e que tivesse sido adiciona-do de forma não intencional em percentualsuperior ao nível de tolerância estabelecido,deveria ser o alimento rotulado com a indica-ção do ingrediente que contém OGM.

7.3. A questão normativa no cenáriointernacional

No âmbito internacional, o assunto refe-rente aos alimentos e ingredientes genetica-mente modificados e à necessidade de in-formação aos consumidores vem sendo tra-tado no programa conjunto da FAO/OMSdenominado Codex Alimentarius (CODEX,2002). De forma sucinta, pode-se dizer queo programa tem como objetivo a elaboraçãode uma codificação relativa a todos os as-pectos que envolvem ou permeiam a produ-

ção e comercialização de alimentos no mun-do e conta com a colaboração de especialis-tas enviados pelos países participantes.

Até o momento presente, não se chegoua nenhum consenso no âmbito do CodexAlimentarius sobre a questão da rotulagemde alimentos geneticamente modificados.

Há países que propuseram que a rotula-gem fosse voluntária e outros que fosse obri-gatória, mas a questão ainda permanece emdiscussão. O Japão e a Comunidade Euro-péia, por exemplo, adotaram a rotulagemobrigatória. A divergência internacionalsobre a necessidade de rotulagem ou não dealimentos geneticamente modificados pos-sui base fundamentalmente comercial. Asposições são tomadas de acordo com inte-resses relativos à comercialização de alimen-tos geneticamente modificados. Assim, porexemplo, os Estados Unidos, a Argentina ea Austrália defendem um posicionamentoliberal quanto à necessidade de fornecimen-to da informação sobre alimentos transgê-nicos, já que são países produtores de grãosgeneticamente modificados que hoje já es-tão sendo comercializados. Esses paísesdefendem a tese da dispensa de informaçãojustificada na equivalência substancial, quedispõe, grosso modo, que se o organismonão difere do tradicional em suas caracte-rísticas fundamentais não haveria motivorelevante para que se informasse aos con-sumidores sobre o processo de produção pormeio de modificação genética.

É importante mencionar que a maiorparte da produção de soja desses países étransgênica e, havendo rejeição ao consu-mo desses alimentos, eles certamente per-deriam mercado. Assim, a posição adotadapelos produtores de transgênicos é muitomais uma defesa de mercado do que a preo-cupação com a precaução e a defesa dos in-teresses dos consumidores.

A posição do Brasil tem sido a da defesada necessidade da informação ao consumi-dor sobre todas as características dos pro-dutos colocados no mercado de consumo, nãosendo diferente no caso dos transgênicos.

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7.4. Questões controvertidas relativas àrotulagem dos transgênicos

De acordo com manifestações de técni-cos e entidades interessadas no assunto,haveria dificuldades relacionadas à imple-mentação da rotulagem obrigatória dos ali-mentos transgênicos. São elas:

a. Quanto à rastreabilidade– Seria impraticável a rastreabilidade

dos alimentos transgênicos, pois ela deter-minaria a necessária segregação da cadeiaprodutiva, o que determinaria por sua vez oaumento dos custos de produção nas váriasetapas do processo produtivo.

b. Quanto à plenitude de informações– Seria praticamente inviável a rotula-

gem de alimentos não embalados, alimen-tos in natura e de alimentos comercializadosem estabelecimentos como restaurantes, ba-res, lanchonetes e similares.

c. Quanto às formas de detecção– A necessidade de detecção da quali-

dade transgênica do alimento demandariaa realização de testes, o que elevaria os cus-tos, com a necessidade de existência de la-boratórios que os realizassem, bem comohaveria que se estabelecer um consenso so-bre a metodologia de detecção.

– Haveria que se realizar o controle e afiscalização da comercialização dos alimen-tos transgênicos, o que traria custos opera-cionais significativos.

d. Quanto ao comércio internacional– Haveria a necessidade da existência

de consenso sobre as regras de rotulagemdos alimentos transgênicos no plano inter-nacional, o que ainda não é uma realidade.

O Brasil ainda não possui produção dealimentos e ingredientes geneticamentemodificados autorizados oficialmente, sen-do que até o presente momento a ComissãoTécnica Nacional de Biossegurança – CTN-Bio10 autorizou, para consumo humano,apenas a soja geneticamente modificada. Talautorização, até a finalização deste texto,não havia produzido seus efeitos em razãoda batalha judicial travada entre o Ministé-

rio Público Federal e o IDEC11, de um lado, ea União, de outro. As questões discutidasem juízo dizem respeito à ausência de regu-lamentação sobre a rotulagem de Organis-mos Geneticamente Modificados – OGM nopaís, bem como sobre a avaliação de impac-to ambiental da produção de plantas trans-gênicas. Assim, tomando como exemplo orumoroso caso da soja geneticamente modi-ficada Round Up Ready da empresa Mon-santo, na hipótese de uma decisão judicialfavorável à liberação de cultivo de tais vege-tais e se autorizados pelos órgãos compe-tentes, em especial o Ministério da Saúde, oMinistério da Agricultura, Pecuária e Abas-tecimento e o Ministério do Meio Ambiente,essa soja poderá ser plantada e comerci-alizada no País.

No tocante ao comércio internacional, éimportante ressaltar que países como osEstados Unidos da América e a Argentina,por exemplo, produzem e exportam produ-tos geneticamente modificados como a sojae o milho, informando somente os casos emque ocorreram mudanças substanciais noproduto geneticamente modificado. Por ou-tro lado, conforme visto, cresce no mundo ademanda por maiores informações sobre osalimentos geneticamente modificados. Ain-da com relação ao comércio internacional,muitas têm sido as referências aos acordosinternacionais que, sob a ótica de alguns, li-mitariam a regulamentação sobre a rotulagemdos produtos geneticamente modificadoscomo, por exemplo, o Acordo Sobre BarreirasTécnicas ao Comércio (TBT), da OrganizaçãoMundial do Comércio – OMC, que prevê aobrigação de proceder à notificação de todosos regulamentos técnicos que estiverem paraser adotados por qualquer país, a fim de queos demais países membros possam conhecere se pronunciar sobre a futura norma.

7.5. Considerações acerca das alegadasdificuldades apontadas para a informação

aos consumidores

As dificuldades para a adoção de umsistema de rotulagem plena que esteja de

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acordo com o que preconiza o Código deDefesa do Consumidor são, todas elas, su-peráveis. Entendemos que somente o for-necimento da informação aos consumidoresde forma plena será suficiente para se ade-quar tal procedimento ao mandamento legal.

É preciso ressaltar o fato de que as ra-zões comerciais que envolvem os custos queo setor produtivo terá para dar as informa-ções necessárias aos consumidores não po-dem suplantar o efetivo exercício do direitoconstitucional de liberdade de escolha dosconsumidores. É certo que haverá custospara a produção e é certo também que osalimentos transgênicos serão produzidos ecomercializados com o objetivo de lucro.

Entre os custos de produção, os fornece-dores deverão contabilizar aqueles advin-dos dos procedimentos de fornecimento dasinformações aos consumidores. Se a alega-ção de que os alimentos transgênicos sãomais benéficos realmente vier a se compro-var, os consumidores certamente tende-rão a consumi-los. Não é essa a percep-ção atual e é dever legal dos fornecedoresprestar as informações sobre tal caracte-rística do produto.

A informação sobre a origem do produ-to, do tipo made in Brazil, soluciona a alega-da dificuldade relativa ao caso dos produ-tos transgênicos em que o elemento que per-mite a detecção, como uma proteína, porexemplo, tenha sido eliminado em qualquermomento da fase produtiva. Assim como osprodutos feitos em determinado local sãoassim identificáveis, os alimentos transgê-nicos poderão ser ofertados com uma infor-mação do tipo alimento geneticamente modifi-cado ou alimento transgênico, levando-se emconta, para tanto, o seu modo de produção.

Outra dificuldade alegada é relaciona-da ao estabelecimento de uma margem detolerância para a chamada presença nãointencional de produto transgênico em pro-duto não transgênico. Pensamos que talmargem de tolerância deverá ser a menorpossível, considerando-se as possibilidadestecnológicas de detecção.

Segundo as informações que obtivemosdos técnicos dos Ministérios da Fazenda eda Agricultura, Pecuária e Abastecimento,no âmbito dos trabalhos da Comissão quepreparou o texto que serviu de base ao De-creto 3.871, de 18 de julho de 2001, já hátecnologia disponível para a detecção depresença de alimentos transgênicos em nãotransgênico com precisão de 0,1% de umdeterminado valor total e, dessa forma, en-tendemos que esse deva ser o máximo per-mitido de presença não intencional. O ar-gumento do aumento do custo de detecçãoà medida que diminui o percentual de tole-rância de presença não intencional fere alógica, já que o procedimento que deverá serrealizado para a detecção da presença detransgênicos em uma determinada quanti-dade de produto independe do percentualde tolerância de sua ocorrência, o que fazcom que os custos sejam os mesmos, inde-pendentemente do percentual tolerado.

No que tange à rastreabilidade dos ali-mentos transgênicos, essa é uma imposiçãolegal advinda do CDC, já que a responsabi-lidade do fornecedor é solidária e comparti-lhada por toda a cadeia produtiva. Assim, oprodutor deverá informar o beneficiador, quedeverá informar o atacadista e assim pordiante. A informação sobre a característicado produto nesse caso é imposição legal que,além de garantia do consumidor, é tambémgarantia do fornecedor, que poderá identifi-car as eventuais falhas de informação ocor-ridas na cadeia produtiva.

A questão dos produtos vendidos in na-tura e processados é também de fácil solu-ção, bastando ao fornecedor imediato, ou seja,o comerciante, informar a característica doproduto que está colocando no mercado.

Finalmente, quanto à possibilidade dealegação de barreiras ao comércio interna-cional originadas da determinação do for-necimento da informação aos consumido-res sobre a característica dos alimentos se-rem transgênicos, tal não possui fundamen-to. A Resolução ONU 39/248 previu o di-reito à informação como um dos direitos

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básicos dos consumidores e a mesma Reso-lução, no item 6912 do título IV (CooperaçãoInternacional), esclarece o dever dos gover-nos de implementar políticas de defesa doconsumidor não conflitantes com o livrecomércio. Ora, sendo o direito à informaçãoreconhecido internacionalmente como umdireito básico do consumidor, não há que sefalar em qualquer espécie de barreira à re-gular atividade comercial.

8. Os avanços tecnológicos e aquestão do risco13

Na parte inicial do presente estudo, pu-demos localizar a questão do direito dosconsumidores à informação especificamen-te no tocante aos alimentos transgênicos epudemos também expor alguns aspectosfáticos dessa questão no país. Colocado oproblema, trataremos agora de traçar, deuma perspectiva centrada na Ética, um qua-dro teórico com vistas ao enfrentamento daquestão da oferta de produtos oriundos dasnovas tecnologias no mercado de consumocotejada à temática do risco.

Vivemos uma realidade na qual o con-sumidor é o destinatário de vários produtose serviços novos e as noções de segurança erisco se colocam de forma nova, mais com-plexa e, ao mesmo tempo, instigante.

O mundo moderno há muito vem sendomoldado sob a influência da ciência e dasdescobertas tecnológicas e científicas, tantopela descoberta de novas tecnologias, quantopelas novas interpretações que ela propor-ciona nos vários campos, sejam eles dasciências naturais, sociais ou matemáticas.Entretanto, nos dias atuais, sentimos que asdescobertas científicas e os avanços tecno-lógicos estão muito mais próximos de nos-so quotidiano. Estamos cada vez mais emcontato regular e rotineiro com essas pe-culiaridades da descoberta e da invençãocientíficas.

Cada vez mais o ritmo das inovações seacelera e, por conta disso, cada vez maissentimos e experimentamos a sensação de

que não há alguém que nos possa dizer, comcerteza, que tais descobertas científicas sãoseguras, ou quais são os exatos limites dosriscos que corremos quando fazemos usodas mesmas. Vivemos todos na fronteira damoderna tecnologia. Vivemos na chamadasociedade de risco. Sociedade de risco é aque-la onde cada vez mais se vive numa frontei-ra tecnológica que ninguém compreendeinteiramente e que gera uma diversidade defuturos possíveis. Estudiosos no campo dasciências sociais têm-se ocupado do tema, oque demonstra a preocupação crescente comessa nova forma de risco, típica das socie-dades que estão a viver a era pós-revoluçãotecnocientífica.

A sociedade de risco se origina em duastransformações fundamentais que afetamnossas vidas atualmente. Ambas estão liga-das à crescente influência da ciência e datecnologia, embora não sejam totalmentedeterminadas por elas. A primeira é o fim danatureza e a segunda, o fim da tradição.

O fim da natureza não significa um mun-do onde o meio natural tenha desapareci-do. Significa que atualmente são cada vezmais raros os aspectos do mundo físico quenão sofreram intervenção humana. A mãohumana é onipresente, já que mesmo as por-ções da realidade não modificadas direta-mente acabam por sofrer as influências da-quelas que o são. A natureza é um todo inte-grado e a intervenção em qualquer de suaspartes tem implicações sobre esse todo. Ofim da natureza é um fenômeno relativamen-te recente. Data dos últimos quarenta ou cin-qüenta anos e resulta sobretudo da intensi-ficação das descobertas científicas e dasmudanças tecnológicas observadas.

O risco que até então era um risco natu-ral – um terremoto ou um vendaval, porexemplo – surge agora como um risco ad-vindo do fato de que nós modificamos anatureza sem conhecer todas as conseqüên-cias dessa modificação.

O poder de dar explicações e propor so-luções aos fenômenos sempre foi de pou-cos, o que não mudou com o avanço da ci-

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ência, não porque a informação seja poucodisseminada, como no passado, mas devi-do à complexidade dos fenômenos. Na atua-lidade, quem está apto a explicar os fenôme-nos são apenas aqueles responsáveis por eles.

Vivemos também numa sociedade emque a tradição perdeu sua força orientado-ra. Não somos mais homens e mulheres comdestinos a serem cumpridos. A idéia damulher dona-de-casa e do homem que tra-balhava para ao final da vida se aposentarnão persiste mais, como se dava há quaren-ta ou cinqüenta anos. Homens e mulheresnão mais possuem caminhos de vida traça-dos de forma rígida, mas constroem seusdestinos a partir de comportamentos commaior grau de autonomia.

Assim, podemos distinguir o chamadorisco fabricado (ou risco externo) do risco tradi-cional. O risco tradicional é aquele risco esti-mável, previsível e que permite, por exem-plo, calcular tabelas atuariais e, com basenelas, decidir como oferecer garantias secu-ritárias às pessoas. Esse tipo de risco nos édado pela natureza e pela tradição. Ou omundo apresenta esse risco ou ele provém,por exemplo, de Deus. E o chamado riscofabricado é aquele criado pelo próprio pro-gresso do desenvolvimento humano, espe-cialmente pelo progresso da ciência e da tec-nologia. Risco fabricado refere-se a novosambientes de risco para os quais a histórianão possui experiência prévia. O problemados riscos fabricados é que não sabemosexatamente quais são e muito menos comoestimá-los com precisão ou em termos pro-babilísticos. Com o risco fabricado, o futurofica mais incerto e opaco.

Um exemplo que ilustra a noção de riscofabricado são os alimentos transgênicos.Pouco sabemos, na verdade, sobre as reaisconseqüências para os consumidores doconsumo a longo prazo de quantidades cres-centes de alimentos transgênicos. No pre-sente momento, o que podemos assegurar éque são submetidos aos crivos científicosdisponíveis atualmente quanto à seguran-ça sobre sua utilização e consumo e, segun-

do tais técnicas e métodos, os resultadossugerem que são seguros.

Por outro lado, devemos também reco-nhecer que o que fazemos ao dizer que sãoseguros é lidar com a previsão de resulta-dos futuros de forma aproximativa, que po-dem ou não se confirmar, tentando contro-lar o risco e reduzir a imprevisibilidade quequeremos evitar. No caso dos alimentostransgênicos, estamos diante de um tipo derisco que é tão novo que até mesmo a suaexistência pode ser contestada.

Essa é uma breve visão da sociedade atualno que tange ao tipo de risco criado pela tec-nologia e que se faz presente ao consumidor ecom o qual tanto ele quanto os órgãos e enti-dades que atuam na sua defesa têm de lidar.Mas qual o papel de tais órgãos e entidadesao tratar de tais questões? Qual a possívelpostura a se adotar, levando-se em conta ocenário com o qual nos deparamos?

Na sociedade de risco, a defesa do con-sumidor, assim como a discussão políticaem geral, ganha um novo ambiente moral,marcado por um jogo constante de acusa-ção de alarmismo, por um lado, e de dissi-mulação, por outro. Hoje, em grande parte,as decisões que temos de tomar dizem res-peito à administração dos riscos. Entretan-to, quando alguém – funcionário do gover-no, cientista ou leigo – considera que deter-minado risco é grave, deve anunciá-lo. Cum-pre divulgá-lo amplamente, para que as pes-soas se convençam de que esse risco é real.Entretanto, pode acontecer que nunca se re-alizem as conseqüências danosas do riscoentão propalado. E se após uma divulgaçãointensa se verificar que o risco nunca exis-tiu ou que suas conseqüências nefastas sãomínimas? Os envolvidos serão certamenteacusados de alarmismo e poderão ser exe-crados publicamente por isso, ou mesmosofrerem ações judiciais.

Por outro lado, pensemos na possibili-dade de que os órgãos responsáveis por talmonitoramento do risco decidam que o mes-mo não é muito grande e que, portanto, osconsumidores podem-se sentir tranqüilos e,

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meses ou anos depois dessa comunicação,constate-se que o risco era de fato maior doque se pensava. Tais órgãos serão acusadosde inoperância, ou pior, de terem dissimu-lado a realidade.

Se por um lado o cenário futuro e incertosugere perigo, não é menos verdadeiro quea incerteza entreabre possibilidades novas.No caso dos alimentos transgênicos, pode-mos pensar em benefícios para a humani-dade, tanto no que tange aos custos dos ali-mentos, contribuindo com a melhoria doacesso à alimentação, quanto propiciandoo desenvolvimento da utilização medicinaldos mesmos.

9. Direito do consumidor àinformação e a ética de

responsabilidade

Uma importante questão que se coloca apartir da descrição do cenário social em quevivemos é relativa à ação fundada em parâ-metros éticos, ante os riscos que ora se apre-sentam e que nos deixam perplexos e, aomesmo tempo, revelam-nos possibilidadesfuturas. Talvez seja possível sugerir umaproposta nos remetendo às consideraçõesde WEBER (1982, p. 97-153) sobre a Ética.

Nenhum risco pode ser sequer descritosem que se faça referência a algum valor.Seja, por exemplo, em relação à preservaçãoda vida humana, à Justiça, à segurança jurí-dica, sempre haverá juízos a serem proferi-dos, quando estivermos tratando de risco.

Um dos temas fundamentais do pensa-mento de WEBER é a oposição entre os jul-gamentos de valor e a relação com os valo-res. As sociedades, nesse sentido, são confi-guradas a partir de contradições fundamen-tais; contradições como a do posicionamen-to valorativo exclusivamente individual ouo sacrifício da crença pessoal em favor dacoletiva.

A antinomia fundamental da ação, se-gundo WEBER, é a da ética de responsabilida-de e da ética de convicção. A ética da respon-sabilidade é aquela que o homem de ação

não pode deixar de adotar. Ela ordena a sesituar numa questão, a prever as conseqüên-cias das suas possíveis decisões e a procu-rar introduzir na trama dos acontecimentosum fato que determinará a possibilidade dese atingir certos resultados ou determinaráo acontecimento de certas conseqüênciasdesejadas. A ética de responsabilidade é, deforma simples, a que se preocupa com a efi-cácia e se define pela escolha dos meios ajus-tados ao fim que se pretende.

A ética de convicção é aquela que impli-ca agir de acordo com nossos sentimentos,sem referência, explícita ou implícita, àsconseqüências. É, por exemplo, a ética dopacifista absoluto.

Enquanto na ética de responsabilidadea preocupação com o resultado demonstraum caráter de objetividade, na ética de con-vicção, tem-se a presença da subjetividadedo agente a pautar sua ação.

A ética de responsabilidade nunca é to-talmente dissociada da ética de convicção.Há sempre limites para a utilização de cer-tos meios, dirá WEBER.

O que nos importa perceber em tal dis-tinção é que, ao lidarmos com questões derisco como a exemplificada, as posições ex-tremadas conduzem ao descompromissocom o resultado. Pode-se discordar de queos alimentos transgênicos sejam bons ouseguros, mas o fato é que eles fazem e farãoparte do nosso presente e de nosso futuro,quando as conseqüências das ações que to-marmos agora serão sentidas.

O panorama descrito é o de que já convi-vemos com o risco fabricado. Parece-nos quesomente é possível aos órgãos e entidadesde defesa do consumidor, assim como aosdemais atores sociais responsáveis e forma-dores de opinião, a adoção de uma ética deresponsabilidade que faça jungir a ação aosresultados desejados, considerando a esco-lha dos meios uma preocupação constante,com o objetivo da maior eficácia na prote-ção e defesa dos consumidores, atendendoao que determina o Código de Defesa doConsumidor.

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O esforço dos órgãos e entidades de de-fesa do consumidor, portanto, se tivermosem perspectiva a preocupação finalísticacom os resultados de nossas ações em te-mas polêmicos e que evidenciam riscos iné-ditos para os consumidores e que ao mesmotempo são e serão parte de nossas vidas, teráde ser no sentido da administração dos cus-tos e benefícios de tais ações.

Formas de articulação pública dos temasrelativos à defesa dos consumidores e osalimentos transgênicos, por via do SistemaNacional de Defesa do Consumidor, da so-ciedade civil organizada e da inserção dasdiscussões sobre tal temática nos diversoscontextos pedagógicos, levando em consi-deração os cuidados relativos ao aspectoideológico que permeia o assunto, são alta-mente desejáveis. O diálogo constante, nocontexto em que vivemos, é fundamental.Quando alguém, hoje, decide se vai ingeriralimentos transgênicos ou não, essa pessoatoma uma decisão num contexto de infor-mações científicas e tecnológicas conflitan-tes e mutáveis.

É inadmissível que qualquer ator socialarrogue a si com exclusividade a prerroga-tiva das decisões no campo dos alimentostransgênicos. Essa é uma pretensão ilegíti-ma e deve ser evitada. Dadas as característi-cas da questão dos alimentos transgênicos,somente uma ampla discussão com a parti-cipação da sociedade e ouvidos os princi-pais interessados, que são os consumido-res, poderá produzir algum tipo de consen-so sobre a forma mais adequada de lidar-mos com essa nova tecnologia.

10. Considerações finais

Tendo em vista a caracterização da cha-mada sociedade de risco, na qual vivemos,é necessário que o consumidor tenha ins-trumentos para o pleno exercício da cidada-nia consumerista. A cidadania consumeristase realiza, numa de suas dimensões, pormeio da efetiva participação do consumidorna relação de consumo de forma consciente e

autônoma, expressando ampla e livremen-te a sua capacidade individual de escolha erealizando a satisfação de suas necessida-des e desejos.

O instrumento fundamental para a rea-lização da cidadania consumerista é o aces-so à informação. O consumidor informadoé aquele que detém as condições necessáriaspara realizar a opção negocial que melhorlhe aprouver, segundo suas possibilidades,anseios, necessidades e desejos.

A liberdade de escolha caracteriza umarelação entre um agente e uma série de pos-sibilidades de ações. Dessa forma, a infor-mação dá ao consumidor a consciência so-bre essa gama de possibilidades de ações esuas condicionantes. Se alguém possui ainformação sobre um produto X e sobre suascaracterísticas A, B e C , a deliberação a res-peito de adquiri-lo ou não e sobre a formada aquisição levará em conta tais informa-ções. Sem as informações, não terá elemen-tos imprescindíveis para o exercício da li-berdade de escolha.

A determinação legal de que o consumi-dor esteja sempre e da melhor forma infor-mado tem amparo no valor fundamental daliberdade, valor esse consagrado constitu-cionalmente, mencionado em vários mo-mentos na Carta Magna, notadamente emseu preâmbulo e nos artigos 3º e 5º, os quais,pela importância simbólica, transcrevemos:

“Preâmbulo – Nós, representantesdo povo brasileiro, reunidos em As-sembléia Nacional Constituinte parainstituir um Estado democrático,destinado a assegurar o exercício dosdireitos sociais e individuais, a liberda-de, a segurança, o bem-estar, o desen-volvimento, a igualdade e a justiçacomo valores supremos de uma socie-dade fraterna, pluralista e sem precon-ceitos, fundada na harmonia social ecomprometida, na ordem interna e in-ternacional, com a solução pacífica dascontrovérsias, promulgamos, sob a pro-teção de Deus, a seguinte Constituiçãoda República Federativa do Brasil.

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(...)Art. 3º Constituem objetivos fun-

damentais da República Federativado Brasil:

I – construir uma sociedade livre,justa e solidária;

Art. 5º Todos são iguais perante alei, sem distinção de qualquer nature-za, garantindo-se aos brasileiros e aosestrangeiros residentes no País a in-violabilidade do direito à vida, à liber-dade, à igualdade, à segurança e à pro-priedade, nos termos seguintes: (...)”[grifo nosso]

A obrigatoriedade do fornecimento deinformações adequadas e completas aosconsumidores objetiva garantir a efetivida-de do exercício dos direitos básicos do con-sumidor, além de ser instrumental em rela-ção ao exercício do direito à liberdade deescolha, não excluídas outras exigênciasespecíficas de normas aplicáveis, como porexemplo, referentes à vigilância sanitária.

A Comissão Especial, que trabalhou paraproduzir o texto que posteriormente redun-dou no Decreto 3.871, de 18 de julho de 2001,tinha como objetivo garantir ao consumidora plena informação. A despeito desse fato,não houve consenso possível sobre o limitemáximo de presença não intencional detransgênicos em alimentos colocados nomercado de consumo aquém do qual se per-mitiria a dispensa da informação. O Depar-tamento de Proteção e Defesa do Consumi-dor, na oportunidade, pugnou por um índi-ce que permitisse, na forma da experiênciainternacional, a mais ampla informaçãopossível, enquanto representantes de outrasáreas governamentais entendiam que umíndice maior causaria menor impacto eco-nômico no setor produtivo e, dessa forma,dever-se-ia permitir tal flexibilização do for-necimento da informação.Entendemos serpossível a plena informação ao consumidor,sendo que a verificação de tais informaçõespoderá ser feita por meio da declaração dométodo de produção ou por exames que ve-nham a detectar a presença de organismos

transgênicos. A dispensa da informação naforma como está prevista no Decreto 3.871, de18 de julho de 2001, não atende ao que deter-mina o Código de Defesa do Consumidor.

É necessário que os Órgãos de Governoenvolvidos na questão atentem para o fatode que o consumidor brasileiro necessita dainformação plena sobre os alimentos trans-gênicos e, pautando suas decisões e açõespor uma ética de responsabilidade, aten-dam ao legítimo interesse e direito dos con-sumidores.

Nenhum órgão ou instância governa-mental está legitimado a agir à revelia daopinião dos consumidores, que são os des-tinatários das normas de proteção. Nenhu-ma comissão, departamento, secretaria, mi-nistério e nem mesmo o presidente da Re-pública pode substituir o indivíduo em suadecisão. A informação deve ser fornecidapara o consumidor de forma plena, permi-tindo que o mesmo exerça suas opções.

Providência necessária para o aperfei-çoamento das discussões sobre temas dacomplexidade do presente é a constituiçãode espaços de discussão pública em que setenha a participação da sociedade organi-zada e dos órgãos e entidades representati-vos dos interesses dos consumidores. Talparticipação não pode-se reduzir apenas auma previsão formal e minoritária de repre-sentantes dos consumidores sem poder ex-pressivo de voto, mas deve-se dar em condi-ção de representatividade efetiva e com realpossibilidade decisória.

Como forma de propiciar o constanteaperfeiçoamento da defesa do consumidorem face da realidade que se nos apresenta,será o papel fundamental dos atores sociaisenvolvidos com a questão dos alimentostransgênicos e da defesa do consumidor,tanto governamentais como não governa-mentais, construir as condições de diálogoentre consumidores e fornecedores, bemcomo com demais agentes do mercado, comvistas à redução das possibilidades de ra-dicalizações e buscando, dessa forma, atin-gir sempre a melhor condição possível para

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que se preserve, em cada circunstância, odireito do consumidor a estar plenamenteinformado a fim de que possa tomar suasdecisões de forma consciente, informada eesclarecida.

Notas

1 Neste trabalho farei uso dos termos “Transgê-nico” e “Geneticamente Modificado” de forma in-distinta, não primando pelo rigor científico, já queo primeiro termo assumiu um significado muitoclaro no senso comum, identificado com a idéia demodificação genética ou engenharia genética.

2 Nesse sentido, ver José Joaquim Gomes CA-NOTILHO (1996, p. 65 e segs.); José Afonso daSILVA, (2000, p. 37 e segs.); Celso Ribeiro BASTOS(1990, p. 273 e segs.).

3 O artigo 60, § 4º, da Constituição Federal dis-põe que:

“Art. 60. A Constituição poderá ser emendadamediante proposta:

...§ 4 º Não será objeto de deliberação a proposta

de emenda tendente a abolir:...IV – os direitos e garantias individuais.”4 “(c) Access of consumers to adequate infor-

mation to enable them to make informed choicesaccording to individual wishes and needs...”

5 “Artigo 26 – Desenvolvimento progressivoOs Estados-partes comprometem-se a adotar

as providências, tanto no âmbito interno, comomediante cooperação internacional, especialmenteeconômica e técnica, a fim de conseguir progressi-vamente a plena efetividade dos direitos que decorremdas normas econômicas, sociais e sobre educação, ciên-cia e cultura, constantes da Carta da Organizaçãodos Estados Americanos, reformada pelo Protoco-lo de Buenos Aires, na medida dos recursos dispo-níveis, por via legislativa ou por outros meios apro-priados” [grifo nosso].

6 “Art. 6º – São direitos básicos do consumidor:III. A informação adequada e clara sobre os

diferentes produtos e serviços, com especificaçãocorreta de quantidade, características, composição,qualidade e preço, bem como sobre os riscos queapresentam”.

7 “Art. 31 – A oferta e a apresentação de produ-tos ou serviços devem assegurar informações cor-retas, claras, precisas, ostensivas e em língua por-tuguesa sobre suas características, qualidades,quantidade, composição, preço, garantia, prazosde validade e origem, entre outros dados, bem comosobre os riscos que apresentam à saúde e seguran-ça dos consumidores.”

8 “Art. 7º Constitui crime contra as relações deconsumo:

...VII – induzir o consumidor ou usuário a erro,

por via de indicação ou afirmação falsa ou engano-sa sobre a natureza, qualidade de bem ou serviço,utilizando-se de qualquer meio, inclusive a veicu-lação ou divulgação publicitária;

Pena – detenção de 2 (dois) a 5 (cinco) anos oum u l t a

Parágrafo único. Nas hipóteses dos incisos II,III e IX, pune-se a modalidade culposa, reduzindo-se a pena e a detenção de 1/3 (um terço) ou a demulta à quinta parte.”

9 Os resultados dessa lista foram compilados edivulgados por The Center for Food Safety, organiza-ção sediada em Washington, Estados Unidos, emjaneiro de 2000.

10 Comissão criada pela Lei nº 8.974, de 5 dejaneiro de 1995, alterada pela Medida Provisória2.191-9, de 23 de agosto de 2001. É vinculada aoMinistério da Ciência e Tecnologia e, entre outrasatribuições, é responsável por emitir parecer técni-co prévio conclusivo sobre registro, uso, transporte,armazenamento, comercialização, consumo, libe-ração e descarte de produto contendo OGM ou de-rivados encaminhando-o ao órgão de fiscalizaçãocompetente (CNTBio, 2002).

11 Processo nº 1998.34.00.027681-8 (ação cau-telar inominada) Processo nº 1998.34.00.027682-0(ação civil pública) Autores: IDEC -Instituto Brasi-leiro de Defesa do Consumidor e Outros; Réus:União Federal e outros; 6ª Vara Federal do DistritoFederal.

12 “69. Governments should work to ensure thatpolicies and measures for consumer protection areimplemented with due regard to their not becomingbarriers to international trade, and that they areconsistent with international trade obligations.”

13 O argumento aqui apresentado, especialmentesobre a questão do risco, e da sociedade de risco éamplamente apoiado nas idéias presentes em: An-thony GIDDENS (2000a) e Anthony GIDDENS echistopher PIERSON (2000b).

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Melissa Ferreira Gasparini

1. A reforma do Estado

O Estado, na sua forma atual, é o resul-tado de uma série de mudanças sofridas aolongo do tempo e, para que se o compreen-da, torna-se necessária uma análise de suatrajetória evolutiva, pesquisando como seportava a Administração Pública do libera-lismo, do intervencionismo e quais são aspropostas do neoliberalismo. O Estado Re-novado não deve e nem pode ser estudadoisoladamente, posto que ele é fruto de lon-gas transformações.

Tem-se como principal pressuposto datransformação estatal a crise desencadeada,fundamentalmente, pelo fenômeno da globa-lização, que exige a abertura e integração dosmercados nacionais, evolução da tecnologia(automoção, robotização) e dos mecanismosde informação, o que levou a adoção de algu-mas medidas como as privatizações, as des-regulamentações e as terceirizações.

Note-se que toda reforma do aparelhoestatal foi precedida de uma crise estrutu-ral, como se pode verificar na passagem doEstado liberal para o Estado intervencionis-ta e deste para o modelo estatal do qual sur-ge o Estado Renovado.

A proteção e regulamentação daconcorrênciaAnálise do caso brasileiro

Melissa Ferreira Gasparini é Mestra emDireito pela UNESP/Franca. Servidora públi-ca federal junto ao TRF/3ª Região.

Sumário

1. A reforma do Estado. 1.1. O papel do Es-tado. 2. Da livre concorrência. 2.1. Tipos de con-corrência. 2.2. Proteção e regulamentação daconcorrência.

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Para melhor vislumbrar tais aconteci-mentos, analisar-se-á, de forma sucinta, oliberalismo econômico e a evolução econô-mico-política do Estado até o presente.

O liberalismo surge em meados do sécu-lo XVIII como fruto das revoluções inglesa,norte-americana e francesa, caracterizando-se pela reivindicação da liberdade em todasas suas formas de expressão, ou seja, o lais-sez-faire, tão proclamado pela revoluçãofrancesa. A doutrina liberal defende, basi-camente, a liberdade individual, a democra-cia representativa, a separação e indepen-dência dos poderes (executivo, legislativo ejudiciário), o direito à propriedade, à livreiniciativa e livre concorrência. O Estado deveater-se somente às suas atividades típicas,preocupando-se em manter e garantir as li-berdades individuais – o Estado de direito.O processo econômico funciona livrementede acordo com as leis da economia. Enten-de-se que o funcionamento da mão invisíveldo mercado é capaz de gerar o máximo debenefício para a coletividade; desde AdamSMITH (1776), no seu livro A riqueza das na-ções, já estava presente a contraposição en-tre um funcionamento desejável dos merca-dos, na qual se geram resultados que sãodecorrência não intencional da conduta deseus agentes, e os riscos de que as empre-sas possam controlar os desdobramentosdas suas interações, determinando-os, in-tencionalmente, com vistas a incrementarseus lucros.

Com o crescente desenvolvimento da eco-nomia capitalista e a formação dos monopó-lios, devido ao acúmulo de dinheiro e con-centração do poder econômico, o liberalismoentra em contradição com a nova realidadeeconômica, social e política, resultando, des-se modo, no nascimento do Estado Providên-cia, de caráter manifestamente keynesiano.

O Estado passa, assim, a participar dire-tamente da esfera econômica, por meio dasempresas públicas por ele dirigidas, e ain-da atua de forma maciça na área social, vis-to que chamou para si a obrigação de pro-porcionar para seus cidadãos os denomi-

nados serviços sociais, com o fim específicode lhes garantir condições essenciais de exis-tência. Esse Estado Assistencial entra emcolapso, no final da década de setenta, prin-cipalmente devido ao seu elevado custo demanutenção, deflagrando-se em crises fis-cais, recessão econômica e desemprego ge-neralizado.

São esses acontecimentos que levam,mais uma vez, à necessidade da revisão dopapel do Estado, que se inicia nos anos oi-tenta e perdura até os dias atuais, visto quea nova ordem econômica ainda não estácompletamente delineada. Inicialmente fo-ram adotadas medidas de redução do ta-manho do Estado, o que levou a crer queseria perfilhada uma política típica doneoliberalismo – doutrina que representatentativa de adaptar os princípios do libe-ralismo clássico às condições do capitalis-mo moderno.

Desse modo, os neoliberais acreditaramque alcançariam seu objetivo de transformaro Estado em um Estado mínimo, porém,constatou-se, nos anos noventa, a inviabili-dade de tal proposta, destacando-se a ne-cessidade de uma reforma estatal no senti-do de reconstruir o Estado, para que estepudesse realizar, além de suas tarefas clás-sicas, como garantir a propriedade e os con-tratos, a garantia dos direitos sociais e pro-moção da competitividade no seu país (PE-REIRA, 1997, p. 12).

É justamente nesse ponto que se apre-senta uma grande celeuma ideológica nadoutrina específica, posto que existem al-guns autores que defendem a idéia de que oEstado contemporâneo é indubitavelmenteneoliberal1 e outros que acolhem a tese deque estamos diante de um Estado híbrido,ou seja, de um Estado inovador no que serefere a sua maneira de atuação política,econômica e social.

O Estado Renovado combina sua pró-pria atuação com a do mercado, não seguin-do padrões pré-estabelecidos, chegando aum caminho mediano em que há uma “for-ma sem formas e um modelo sem modelos”.

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A Pós-Modernidade desenvolve-se nos ter-ritórios econômicos do capitalismo e ideo-lógicos do neoliberalismo. O capitalismoprecisa de liberdade extrema de movimen-tar os seus capitais, de trocar e de competir.A filosofia neoliberal retoma os seus temasclássicos, afirma que o valor supremo domercado lhe corresponde como visão domundo e como arauto. Essa combinaçãoentre mercado e Estado caracteriza a so-ciedade atual, que não absolutiza meiosde coordenação e controle, mas sim é ma-leável nas suas formas de combinação(ZAIDSNAJDER, 1998, p. 21-35)2.

Delineiam-se, assim, as característicasprimordiais do Estado Renovado.

Não será, provavelmente, o Estado-Social, porque foi esse modelo de Estado queentrou em crise. Não será também o EstadoNeoliberal, porque não existe apoio políticonem racionalidade econômica para a voltaa um tipo de Estado que prevaleceu no sé-culo dezenove. Prevê-se que o Estado do sé-culo XXI será um Estado Social Liberal: so-cial porque continuará a proteger os direi-tos sociais e a promover o desenvolvimentoeconômico; liberal porque o fará usandomais os controles de mercado e menos oscontroles administrativos, porque realizaráseus serviços sociais e científicos, princi-palmente, através de organizações públi-cas não estatais; competitivo porque tor-nará os mercados de trabalho mais flexí-veis e promoverá a capacitação dos seusrecursos humanos e de suas empresaspara a inovação e a competição internacio-nal (PEREIRA, 1997, p. 18).

Cumpre ressaltar que, independente-mente do modelo estatal que será adotadona era Pós-Moderna, o regime democráticoperdurará, pois conta como uma das maio-res conquistas sociais da história da huma-nidade (FERREIRA FILHO, 1979, p. 29)3.

1.1. O papel do Estado

O Estado é apontado pelo artigo 174 daConstituição Federal como agente normati-vo e regulador da atividade econômica, in-

cumbindo-lhe, na forma da lei, o exercíciodas funções de fiscalização, incentivo e pla-nejamento voltado para reprimir o abuso dopoder econômico que vise a dominação dosmercados, à eliminação da concorrência eao aumento arbitrário dos lucros (§ 4º doartigo 173 da CF).

A exploração direta da atividade econô-mica recebe o tratamento de exceção, distin-guindo-se da prestação dos serviços públi-cos. A primeira será permitida somente quan-do necessária aos imperativos da seguran-ça nacional ou relevante interesse coletivo,definida em lei ou nas hipóteses consti-tucionalmente ressalvadas, e a segunda serátratada como inafastável dever do Estado,diretamente, ou sob regime de concessãoou permissão.

Dessa forma, a exploração direta daatividade econômica passa a ser atribui-ção da iniciativa privada como regra ge-ral, deixando ao Estado os casos de ex-cepcionalidade (suprir falhas de estrutu-ra ou impor um desempenho consentâneocom metas de política econômica), subme-tendo-se ambos, poder público e iniciati-va privada, ao cumprimento das finali-dades constitucionais.

O Estado exerce, então, funções de fisca-lização, incentivo e planejamento, sendo,este, determinante para o setor público e in-dicativo para o setor privado. Fiscaliza ocumprimento das disposições normativasincidentes sobre as atividades dos agenteseconômicos, podendo ainda atuar no fomen-to a determinados setores da atividade eco-nômica. O planejamento, contido pelos pa-râmetros constitucionais, deverá ser relati-vizado, de forma a evitar os rigores de umaracionalização da economia estritamentevinculante, que vem a contrapor-se ao siste-ma econômico fundado na regulação pelasleis de mercado.

Nosso modelo de Estado, pela opçãoconstitucional, é o Estado Democrático deDireito, de regime capitalista, que tem na li-vre iniciativa um princípio fundamental,complementado por um dos princípios ge-

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rais da atividade econômica, o da livre con-corrência, que

“só encontra condições de adequadaaplicação à medida que se asseguraaos agentes econômicos um mercadoprotegido de ações abusivas da partede grupos econômicos poderosos, ummercado que garante opções ao con-sumidor” (CARVALHO, 1994).

É pela livre concorrência que se melho-ram as condições de competitividade dasempresas, impelindo-as a um constanteaperfeiçoamento que ensejará maiores op-ções de bens ou serviços, com melhor quali-dade e a preços mais justos, beneficiando oconsumidor. A prevalecerem condiçõesmonopolísticas, o privilégio desloca-se parao produtor em detrimento da coletividade.

Sinteticamente, o Estado atua para asse-gurar um mercado saudável e propício àregulação pelas forças naturais, reprimin-do as práticas abusivas, preservando e esti-mulando o meio ambiente de forma a torná-lo mais competitivo, utilizando-se dos ins-trumentos que lhe são disponíveis, uma vezque as realidades econômicas, por sua pró-pria dinâmica, tendem sempre a produzirdistorções que obstam o livre confronto en-tre os seus agentes.

Nesse contexto, faz-se extremamente ne-cessária a atuação do Estado no sentido deregular e fiscalizar as atividades econômi-cas, como já aludido exaustivamente, emprol não só do próprio mercado e de seusagentes, que precisam de segurança paraatuar, mas também do consumidor que sebeneficiará com preços mais competitivos.

Assim, pode-se dizer que a livre concor-rência é aquela que espontaneamente se criano mercado, porém derivada de um conjun-to de normas de política econômica, ou seja,o regime normativo da defesa da concorrên-cia, voltado ao restabelecimento das condi-ções do mercado livre. O princípio constitu-cional autoriza essa sorte de intervençãoativa no mercado, sem falar na negativa con-sistente na eliminação das disfunções e im-perfeições.

O nosso regime normativo da defesa daconcorrência é informado pelos princípiosgerais da atividade econômica (que visamassegurar a todos existência digna e social-mente justa), não permitindo ao seu aplica-dor desconsiderar o conteúdo econômico eos elementos de política econômica na suaaplicação.

Temos que a concreção dos princípiosconstitucionais não é só garantida pelasnormas legais de repressão ao abuso dopoder econômico, coibindo condutas quevisem à dominação de mercados, à elimina-ção da concorrência e ao aumento arbitrá-rio dos lucros (art. 173, § 4º, da Constitui-ção Federal), mas também pela atuação pró-ativa dos órgãos governamentais competen-tes, buscando prevenir distorções nas estru-turas de mercado e harmonizar as políticasantitruste com as demais.

Segundo Vieira de CARVALHO, “a prá-tica abusiva do poder econômico, o seu usoanti-social, é o que a Constituição condena,e, ao assim fazer, considera tal prática comocausa justificadora da atuação interventivaindireta do Estado na economia, uma atua-ção que se dará – enfatize-se – em favor dalivre concorrência, da não dominação dosmercados. Esses, como integrantes do patri-mônio nacional serão incentivados de modoa viabilizar o desenvolvimento cultural esócio-econômico, o bem-estar da populaçãoe a autonomia tecnológica do País, nos ter-mos da Lei Federal”.

As políticas de defesa da livre concor-rência realizam-se mediante um conjunto denormas e de instituições, que facultam aoPoder Público a repressão das condutasabusivas dos agentes econômicos no mer-cado e o controle prévio das estruturas demercado, embora neles não se esgotem.

Assim, a repressão ao abuso do podereconômico, instrumento de proteção aosprincípios da livre iniciativa e da livre con-corrência, tem como fonte direta a Lei nº8.884, de 11 de junho de 1994, que dispõesobre a prevenção e a repressão às infraçõescontra a ordem econômica, transforma o

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Conselho Administrativo de Defesa Econô-mica em Autarquia e revoga as Leis nº4.137/62 , nº 8.158/91 e nº 8002/90.

2. Da livre concorrência

Antes de mais nada, cumpre ressaltar oque seja concorrência e quais as suas prin-cipais classificações.

Assim, concorrência é a situação do re-gime de iniciativa privada em que as em-presas competem entre si, sem que nenhu-ma delas goze de supremacia em virtude deprivilégios jurídicos, força econômica ouposse exclusiva de certos recursos. Nessascondições, os preços de mercado formam-seperfeitamente, segundo a correção entre ofer-ta e procura, sem interferência predominantede compradores ou vendedores isolados. Oscapitais podem, então, circular livrementeentre os vários ramos e setores, transferin-do-se dos menos rentáveis para os mais ren-táveis em cada conjuntura econômica. Deacordo com a doutrina econômica liberal,propugnada por Adam SMITH (1776), a li-vre concorrência entre capitalistas consti-tui a situação ideal para a distribuição maiseficaz dos bens entre as empresas e consu-midores. Com o surgimento de monopóliose oligopólios, a livre concorrência desapa-rece, substituída pela concorrência contro-lada e imperfeita.

A livre concorrência está prevista na le-gislação brasileira, no artigo 170, IV, daConstituição Federal de 1988, como um dosprincípios da ordem econômica, e para suagarantia a lei reprimirá o abuso do podereconômico que vise a dominação dos mer-cados, a eliminação da concorrência e o au-mento arbitrário dos lucros.

A concorrência é o mecanismo por meiodo qual os excedentes gerados são apro-priados e a valorização dos ativos de capi-tal realizada, gerando ganhadores e perde-dores, e tendo portanto natureza conflitual;o seu objetivo e resultado – ainda que nemsempre garantido e por vezes temporário –são a intensificação das posições de poder e

a criação de situações monopolísticas, e nãoa volta a um suposto estado de equilíbrio e àharmonia de interesses.

A livre concorrência é o resultado da so-matória dos efeitos das condutas dos agen-tes detentores de poder econômico que con-tribuem para a manutenção e o incrementodas pressões competitivas na economia. Alei aproveita assim o sentido “natural” dadinâmica capitalista, embora nela separan-do de maneira artificial – para fins de valo-ração e aplicação – os seus dois momentosconstitutivos, a saber, a diminuição e o au-mento estratégicos das pressões competiti-vas, de cuja inter-relação depende a realiza-ção efetiva da finalidade definida normati-vamente.

2.1. Tipos de concorrência

Entre os vários tipos de concorrênciaencontrados na doutrina específica, des-tacam-se:

Concorrência perfeita – número elevadode empresas produtoras e compradorasagindo independentemente de tal formaque, pela pequena importância de cadauma, nenhuma possa reunir condições efe-tivas ou poder suficiente para modificar ospadrões e níveis da oferta e da procura e,conseqüentemente, o preço de equilíbrio pre-valecente juntamente com a inexistência dediferenças entre os produtos ofertados, nãoexistindo, pois, barreiras à entrada de no-vas empresas.

Concorrência imperfeita – situação demercado entre a concorrência perfeita e omonopólio absoluto. É o que, na prática,corresponde à grande maioria das situaçõesreais. Caracteriza-se sobretudo pela possi-bilidade de os vendedores influenciarem ademanda e os preços por vários meios (dife-renciação de produtos, publicidade, dum-ping, etc.) (DICIONÁRIO..., 1987, p. 81).

Concorrência praticável – ou workablecompetition defendida pela doutrina norte-americana. Como visto acima, a concorrên-cia perfeita não existe, sendo tão-somenteum modelo teórico, idealizado, especialmen-

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te no esteio do liberalismo. Assim, a concor-rência praticável é aquela possível ou deseja-da. “Seria aquela que proporcionasse maiorganho social (e não só econômico), ainda queefetivamente isto representasse a existênciade pouca ou nenhuma concorrência em de-terminado mercado” (BRUNA, 1997, p. 71).

Concorrência monopolística – estruturade mercado em que há grande número deempresas concorrentes e em que as condi-ções de ingresso são relativamente fáceis,todavia, cada uma das empresas concorren-tes possui sua própria patente, ou então écapaz de diferenciar o seu produto de talforma que passa a criar um segmento pró-prio de mercado que dominará, ou procu-rará manter.

2.2. Proteção e regulamentação daconcorrência

A abertura econômica, além de expor al-guns cartéis, monopólios e oligopólios àcompetição internacional, e com isso aumen-tar a concorrência no mercado doméstico,evidenciou a necessidade de uma ação re-guladora do Estado em defesa da concor-rência nos mercados de bens e serviços.Assim, o fortalecimento das instituiçõesligadas à defesa da concorrência é frutoda preocupação de que uma economia glo-balizada não pode prescindir de uma le-gislação eficaz e de uma atuação eficientede seus órgãos.

O objetivo da regulação de setores espe-cíficos na economia tem sido normalmenteo de corrigir as chamadas falhas de merca-do. Cabe ressaltar que a falta da regulaçãopró-concorrencial pode inviabilizar a con-corrência em determinados setores, em quea estrutura que emergia da ação do livremercado seria desnecessariamente concen-trada ou, por qualquer outro motivo, anti-competitiva. Nesse sentido, a existência deuma regulação adequada se torna condiçãonecessária para viabilizar um ambiente con-correncial em setores específicos.

A intervenção do Estado na organiza-ção da economia, em doses diferentes de

acordo com as situações concretas, operou-se a partir do momento em que as grandesconcentrações passaram a ser um perigopara a organização do mercado, e princi-palmente em perspectiva de dano potencialpara as demais empresas. Os processosde concorrência e concentração econômi-ca não são absolutamente antinômicos,pode-se afirmar assim que não há concen-tração sem concorrência. Concentrar é res-tringir o espaço do mercado. A concentra-ção pode não viabilizar a concorrência, mascom certeza, muda o patamar de competi-ção, sobrepondo à questão dos mercadosrelevantes também a questão do avanço tec-nológico com vantagens competitivas e van-tagens para o consumidor.

A regra do mercado não é a da concen-tração, mas sim a da concorrência. Devido aessa concorrência, as empresas buscam pa-drões cada vez mais qualificados para bense serviços destinados aos consumidores.Entretanto, essa busca de melhoria visa,mesmo que indiretamente, a restrição daspossibilidades dos concorrentes.

Podemos tomar como exemplo o queocorre com as privatizações. Empresas quepor muitos anos detiveram grande controledo mercado são entregues nas mãos do ca-pital privado, livre para dominar e manipu-lar os preços e eliminar a concorrência.

O remédio para essa situação veio pormeio da legislação antitruste, que procurapreservar e garantir a concorrência.

A política antitruste tem por finalidadecoibir, mediante ameaças e punição, as con-dutas empresariais com intuito de restrin-gir ou eliminar a atuação de empresa con-corrente. Essas condutas são basicamentedivididas em práticas restritivas horizon-tais, que reduzem a intensidade da concor-rência afetando as interações entre as em-presas ofertantes de um mesmo mercado, epráticas restritivas verticais, que abrangemampla variedade de condutas e reações con-tratuais entre compradores e vendedores. Demodo geral, a política antitruste consisteem limitações impostas pelo fabricante aos

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produtos ou serviços entre as ações dos agen-tes econômicos, nas etapas anteriores ou pos-teriores à sua, na cadeia de produção.

O Estado, no desenvolvimento de suaatividade antitruste, objetiva, essencialmen-te, a preservação da livre concorrência e, porconseguinte, a livre iniciativa. Não se trata,pois, de restringir a liberdade daquele queabusa de seu poder econômico, já que nin-guém tem liberdade para abusar. Em casode abuso, a atividade do sujeito econômicoterá extrapolado os limites de suas liberda-des. Vê-se que não há restrição de liberda-de, mas sim restauração da liberdade dosdemais agentes do mercado, violada pelosatos abusivos (BRUNA, 1997, p. 137).

Caberia ao CADE – mais do que contro-lar e autorizar as concentrações econômi-cas, até porque as concentrações não neces-sariamente ensejam o abuso do poder eco-nômico, ao contrário, não raramente propor-cionam eficiências econômicas oferecendoao consumidor produtos mais baratos e demelhor qualidade – estabelecer, preventiva-mente, regras e condições de mercados quemotivem essas eficiências nos atos de concentração econômica e evitem o abusodo poder de mercado. Há que se verificar asnuanças entre o que seja a defesa da concor-rência e a defesa da livre iniciativa, ambasmatérias relevantes, alvo inclusive de dis-positivos constitucionais.

A administração gerenciada do Estadoestá submetida a um ordenamento jurídicoque tutela a livre iniciativa e a defesa da con-corrência visando à plenitude econômica, eesta só será atingida com o respeito e a ade-quada atribuição de competências dessasnormas reguladoras.

Notas

1 Pensamento reforçado após o Consenso deWashington (Seminário Econômico realizado em1990) que pregava a necessidade de efetivação demedidas econômicas de caráter neoliberal voltadaspara a reforma e estabilização das economias emer-gentes, notadamente as latino-americanas.

2 Na opinião de FARIA (1998, p. 11-12), o Esta-do Renovado sofre uma crise de identidade, con-forme se depreende de suas palavras: “Incapazesde assegurar uma efetiva regulação social, no âm-bito de uma economia globalizada, desprepara-dos para administrar conflitos coletivos pluridimen-sionais por meio de sua engenharia jurídico-positi-va concebida para lidar basicamente com conflitosunidimensionais e inter-individuais, impotentesdiante da multiplicação das fontes materiais dedireito e sem condições de deter a diluição de suaordem normativa gerada pelo advento de um efeti-vo pluralismo jurídico, os Estados nacionais en-contram-se, assim, em crise de identidade”.

3 Diz o autor que “a opção pela Democracia afim de estruturar um Estado que procure a liberda-de com o bem-estar não é arbitrária. Nem apriorís-tica. Procede da idéia de que essa forma de governoé a mais capaz de realizar os objetivos fundamen-tais do Estado contemporâneo”.

Bibliografia

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Leandro Novais e Silva

1. Introdução

A polêmica discussão travada e que ain-da perdura entre o CADE – Conselho Ad-ministrativo de Defesa Econômica e BancoCentral do Brasil1 para a definição da auto-ridade competente para analisar e julgar osatos de concentração no setor bancário dei-xa evidenciar um dos mais interessantesdebates acadêmicos pontuados pelo Direi-to Econômico, especialmente naquilo queenvolve o direito da regulação e o direito daconcorrência.

É indispensável fazer-se um estudo dascaracterísticas inerentes e especiais do mer-cado bancário, a fim de se investigar quão

Regulação, concorrência e o setor bancárioReflexões

Leandro Novais e Silva é Procurador doBanco Central do Brasil e mestrando em Direi-to Econômico pela UFMG.

Sumário

1. Introdução. 2. Regulação de mercados deacesso e permanência controlados (Calixto Sa-lomão Filho). 2.1. Regulação prudencial: bar-reiras de entrada e de exercício. 2.1.1. Condi-ções de acesso. 2.1.2. Condições de exercício. 3.Necessidade de regulação sistêmica (externali-dades negativas): passagem pelas idéias de Ste-phen Breyer. 3.1. Assimetria de informações;3.2. Risco sistêmico (vulnerabilidade a corri-das bancárias). 4. Outra falha de mercado (abu-so do poder de mercado). Necessidade da apli-cação das regras antitruste. 5. Pequena reflexãosobre o cenário do setor bancário brasileiro. 6.Crítica do embate entre o CADE e o BancoCentral para julgar os atos de concentraçãobancária. 7. Conclusão: um modelo de intera-ção possível.

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diferente é assim esse setor dos demais seto-res da economia, as regras próprias que re-gulam o mercado, as idéias e necessidadesda regulação sistêmica e a possível intera-ção do setor com as regras de concorrência.Ou seja, é perguntar-se se é possível uma “re-gulação concorrencial” no setor bancário.

Importante o estudo porque ultrapassaum debate meramente técnico e positivo,embora relevante, situado tão-somente noeventual conflito de disposições entre a Leinº 4.595/64 e a Lei nº 8.884/94, açodadoainda pelas disposições da Lei nº 9.447/97.Ora, o conflito legislativo pode até existir,exigindo, assim, uma definição abalizada,com boa hermenêutica, das disposições le-gais. No entanto, parece-me ainda mais re-levante estudar-se o pano de fundo do su-posto conflito, é dizer, o real alcance das re-gras de regulação emitidas pelo ConselhoMonetário Nacional e pelo Banco Centraldo Brasil e sua possível interação com asregras concorrenciais, debatendo as peculi-aridades do setor bancário e a importanteatuação do CADE.

É ilustrativo e de enorme relevância quetanto a União Européia e seus Estados-Mem-bros e os Estados Unidos, para ficar nas re-ferências mais significativas, adotem umainteração entre o órgão ou os órgãos regula-dores e a autoridade antitruste, via de regrade característica complementar, salientan-do, portanto, a inexistência de imunidadeconcorrencial do setor bancário, e a necessi-dade da banca de se submeter ao crivo dasregras de competição, ainda que dentro dedeterminados limites.

Assim, propõe-se este pequeno estudo àanálise da interação entre regulação e con-corrência no setor bancário, deslindando-se para um possível modelo de atuação com-plementar do CADE ante as atribuições re-gulatórias do Banco Central do Brasil. Far-se-á, desse modo, no tópico 2, a elaboraçãoteórica de que o setor bancário está sujeito auma regulação de mercado de acesso e per-manência controlados, na lição de CalixtoSalomão FILHO (1998; 2001; 2002). Ainda

no tópico 2, desenvolver-se-á um pequenoesboço da regulação prudencial do merca-do bancário, naquilo que envolve as condi-ções de acesso (barreiras de entrada) e deexercício.

No tópico seguinte, a razão predominan-te da regulação bancária, é dizer, a necessi-dade de controle sobre o risco sistêmico, es-treitamente vinculado ao processo de que-bra das instituições financeiras, causamaior da externalidade negativa (custo so-cial da falência). Nesse tópico, é significati-vo conjugar a necessidade de regulação emrazão das externalidades negativas com asidéias de Stephen BREYER (1982). O tópicoé ainda subdividido em duas justificativasde regulação decorrentes de falhas do mer-cado: a assimetria de informações entre osclientes bancários e as instituições financei-ras e a vulnerabilidade do setor a corridasbancárias.

O tópico 4 exige a discussão de outra fa-lha do mercado, o abuso do poder de merca-do. Nesse item, a justificativa teórica para apossibilidade de interação entre o aparatoregulatório e as regras antitruste. Ou seja, oraciocínio para a submissão das instituiçõesbancárias às regras de concorrência, empre-gando-se na análise as teorias norte-ameri-canas do State action doctrine (teoria da açãopolítica) e do Pervasive power (teoria do po-der amplo) para sustentar-se que, emborasujeito a forte regulação, é possível a aplica-ção das regras antitruste ao setor bancário.

A justificação teórica é também acompa-nhada de uma reflexão fática, dada a in-dispensabilidade de adequação do suportefático (cenário bancário brasileiro) ao esque-ma teórico que se formula. Desse modo, pon-tuar-se-á o tópico 5 por uma sucinta abor-dagem do panorama bancário brasileiro,naquilo que pertine à concorrência, em es-pecial depois do advento das privatizaçõese da reestruturação bancária iniciada com oPlano Real, em 1994.

Possível será assim, no tópico 6, fazer-seuma abordagem crítica do embate entre oCADE e o Banco Central para julgar os atos

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de concentração bancária, nos argumentosque me revelam a concepção mais ultrapas-sada na aproximação teórica dos consectá-rios concorrência/regulação.

Por fim, no último tópico, a exposição deum modelo possível de interação entre asautoridades de regulação e de concorrên-cia, levando em consideração os elementosanalisados nos itens anteriores.

2. Regulação de mercados deacesso e permanência controlados

(Calixto Salomão Filho)

O Estado reconhece que em determina-dos setores é indispensável uma soluçãoregulatória mais forte, mais freqüente, quegaranta higidez (bom estado de saúde eco-nômica), segurança e estabilidade. Quandoo setor é a base da economia, por meio dacaptação e intermediação do crédito, comoé o setor bancário, e quando uma falha podeocasionar um custo social enorme, decor-rendo um prejuízo de inúmeros credoresbancários e com possíveis efeitos negativosalastrados pela cadeia produtiva, torna-seindispensável uma regulação mais severa.

Ao exemplo do setor bancário junta-seoutro setor sujeito também a uma regulaçãoespecial, é o caso do setor aéreo. Ora, umafalha em uma aeronave, que decorra de ma-nutenção inadequada, de omissão na fisca-lização, de afrouxamento de uma exigência(regulação) de segurança, invariavelmenteleva à morte toda a tripulação e passagei-ros. Por isso a necessidade de uma regula-ção específica e controlada. Em especial nosetor aéreo, naquilo que pertine à seguran-ça e à manutenção das aeronaves, o que levaa afetação direta dos custos e, portanto, doestabelecimento dos preços. Mas ainda aquinão se poderá falar da inviabilidade da in-teração regulação/concorrência,2 quandoassumida dentro de critérios compatíveiscom as peculiaridades do setor, tal como severá adiante no caso do mercado bancário.

Na expressão utilizada por Calixto SA-LOMÃO FILHO (2001, p. 46), compreende-

se que esses setores, em especial o bancário,objeto deste estudo, sujeitam-se a uma regu-lação de mercados de acesso e permanênciacontrolados. Equivale a dizer, no âmbito dosetor bancário, que a entrada no setor é re-gulada, com o estabelecimento de regras rí-gidas de acesso, com a definição exata decapital para funcionamento, bem como háuma regulação igualmente severa no que dizrespeito ao exercício das instituições, comadequação e direcionamento de capital.

O que ocorre, todavia, é que o aparatoregulatório desenvolvido para o setor, talcomo estabelecido pelo Banco Central,3 sobo objetivo salutar de segurança bancária,pode atingir a potencialidade de concorrên-cia entre as instituições, permitindo, even-tualmente, o abuso de posição dominanteou de práticas colusivas4.

Ora, admitindo-se, como se verá, a ine-xistência de imunidade do setor bancário,sendo possível e mesmo indispensável ainteração das regras regulatórias com umaprática concorrencial, no que diz respeito aestrutura e comportamento, o mercado, ain-da que sujeito a uma regulação de acesso epermanência controlados, deve-se subme-ter às regras antitruste. Além do que, somen-te com uma revisão da regulação, com amanutenção tão-só das regras que realmen-te são imprescindíveis ao estabelecimentode higidez e segurança ao setor bancário,pode-se modificar a estrutura atual do mer-cado, favorável às práticas concertadas eabusos, e impedir, no controle de condutas,o comportamento estratégico colusivo.

2.1. Regulação prudencial: barreirasde entrada e de exercício

A regulação prudencial5 pode ser cir-cunscrita às regras condizentes com as con-dições de acesso ao mercado e com as con-dições de exercício da atividade bancária.Conforme observa Machado CORTEZ (apudCAMPILONGO et al., 2002, p. 325):

“A justificativa econômica da re-gulação prudencial é a incapacidadedos depositantes de avaliarem e su-

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pervisionarem a evolução patrimonialdos bancos. Diante desta situação, oEstado cria uma série de normas a se-rem observadas pelos bancos nassuas operações diárias, que visamgarantir a sua higidez ao impor exi-gências de capital mínimo, bem comolimites à contratação de risco e à ex-posição a grupos ou a setores especí-ficos da economia. Apesar de objeti-var a proteção do consumidor, a regu-lação prudencial acaba beneficiandotambém a estabilidade sistêmica aocriar bancos mais sólidos”.

Nesse sentido, tem como escopo primor-dial a proteção do consumidor bancário emprimeiro plano, tendo em vista ainda a assi-metria (desigualdade) de informações a queestão sujeitos os clientes na avaliação dosistema bancário e do seu banco em parti-cular (ponto que ainda será melhor salien-tado), no que se refere à solidez da institui-ção, a garantia do seu depósito/investimen-to, ou seja, aquilo que é mais caro ao sistemafinanceiro, confiança e credibilidade.

Assim, é indispensável uma pequenaabordagem sobre as regras prudenciais queestipulam as condições de acesso e de exer-cício no mercado bancário.

2.1.1. Condições de acesso

O primeiro aspecto como condição deacesso diz respeito ao capital inicial para aabertura de uma instituição financeira.

Antes de esclarecer o âmbito prático detal regulação bancária, é necessário fazer-se a seguinte ponderação: o capital neces-sário para abrir uma instituição bancária,embora seja entendido como uma barreirade entrada, e assim o é pela doutrina, deveser contextualizado. Ora, essa noção de bar-reira de entrada vincula-se com o próprioconceito de poder econômico, sem aindapredizer um poder de mercado. É indispen-sável que aquele que tem intenção de entrarno mercado bancário tenha capital condi-zente com a atividade que irá desenvolver(a intermediação do crédito). Ou seja, é a

manifestação primeira de poder econômico,associado ao espírito capitalista que nos rege,que se torna imprescindível ainda mais quan-do se fala do setor bancário. Nesse primeiroaspecto, não se confunde o poder econômicocomo manifestação anticoncorrencial, pelocontrário, é a exigência primeira para que omercado tenha agentes e funcione concorren-cialmente. Assim, pode-se falar num primei-ro aspecto que o capital inicial exigido cons-titui-se uma barreira econômica natural,6

embora imposto por meio de regulação7.No âmbito do Banco Central, as disposi-

ções mais relevantes sobre as exigências docapital mínimo para a abertura estão naResolução CMN nº 2.099/94 (modificadapelas Resoluções CMN nºs 2.212/95, 2.301/96 e 2.399/97), inteiramente adaptada àsregras prudenciais oriundas do Comitê deBasiléia8. Assim, para abertura de institui-ção financeira autorizada a funcionar peloBanco Central é exigido, por exemplo, R$7.000.000,00 (sete milhões de reais) parabanco comercial ou carteira comercial debanco múltiplo, R$ 6.000.000,00 (seis mi-lhões de reais) para banco de investimento,banco de desenvolvimento e sociedade decrédito imobiliário, R$ 3.000.000,00 (três mi-lhões de reais) para sociedades de crédito, fi-nanciamento e investimento e sociedade dearrendamento mercantil e R$ 600.000,00(seiscentos mil reais) para sociedade corre-tora de títulos e valores mobiliários e socie-dade distribuidora de títulos e valores mo-biliários que administrem fundos de inves-timentos nas modalidades regulamentadaspelo Banco Central.

Outro aspecto que diz respeito ao acessoé quanto à estrutura do capital, é dizer, aqualidade do investimento inicial e tambéma honorabilidade e experiência necessáriasdos administradores que irão exercer asfunções de direção da instituição financei-ra. Embora não exista mais hoje a famigera-da carta-patente, extinta nos anos 80,9 deforma a exigir um exame puramente subjeti-vo do novo agente econômico, que por maisdas vezes descambava para o privilégio e

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para a troca de favores, inadmissíveis comocritérios para admissão no mercado finan-ceiro, é ainda indispensável fazer-se umaanálise da qualidade do capital e da credi-bilidade no mercado dos novos agentes.Assim, pode-se ilustrar tal aspecto por meioda Resolução CMN nº 2.212/95, que esta-beleceu a necessidade de comprovação pe-los controladores de situação compatívelcom o empreendimento financeiro sujeito àaprovação, determinando que a situaçãoeconômico-financeira dos controladores devecorresponder a, pelo menos, 120% (cento evinte por cento) do empreendimento, autori-zando algumas exceções a essa exigência.

2.1.2. Condições de exercício

Nas condições de exercício, é significati-vo descrever de pronto a determinação damanutenção do capital mínimo exigido paraa abertura da instituição financeira. Ora,pode-se até adotar a terminologia de fun-dos próprios, tal como faz Baptista LOBO(2001, p. 72), que se insere na expressão daResolução nº 2.099/94 do Banco Central,incluindo no seu âmbito outras realidadeseconômicas, mas o que é importante enten-der é que a instituição financeira deverápermanecer pelo menos com o capital equi-valente ao de sua abertura. Ademais, se umainstituição cresce com o tempo, o mínimoque se pode exigir é que aquela garantia desolvência estipulada anteriormente parasua abertura se mantenha. Na verdade, se ainstituição cresce, o desejável é que o seucapital de segurança também cresça na mes-ma proporção. Mais risco pelo crescimentodas operações, proporcionalmente mais se-gurança se exige.

Pode-se falar também no controle da es-trutura do capital. Ou seja, esse critério éimportante para a abertura da instituição, etambém para o seu exercício. Assim, se aque-le detentor de 25% do capital da instituição,com direito a voto, passará a deter 40%, re-sultado de uma alteração contratual, comcompra de ações dos demais sócios-admi-nistradores, indispensável que tal operação

seja notificada ao Banco Central, de forma atomar conhecimento da nova estrutura docapital, que de certa forma irá influenciar osnovos rumos da instituição financeira. Aregra é importante em razão da especialida-de da profissão bancária e da necessidadede confiança que a instituição e seus sócios-administradores devem transparecer10.

Há também que se referir como condiçãode exercício aos limites para detenção departicipação da instituição financeira emoutras instituições financeiras e a partici-pação destas em outras organizações comer-ciais e industriais, ou seja, em outras áreasda economia11. Aqui o que deve imperar é aidéia de restrição para a criação de grandesconglomerados, atuando em diferentes áre-as da economia, que possam ser afetados deforma sistêmica desencadeando um proces-so de quebra generalizada (teoria grandedemais para falir “too big to fail” adaptada àformação de conglomerados financeiros queramificam sua atuação). De qualquer forma,é importante salientar, tal como fez BaptistaLOBO (2001, p. 77-78), que a interação entreo setor bancário e o setor industrial é estra-tegicamente muito relevante. Um sistemabancário bem estruturado proporciona cré-dito e financiamento para o setor produtivode forma menos custosa e burocrática, ala-vancando a expansão e solidez do setor,além de novas formas de cooperação. Exem-plos de uma interação mais forte, em que sedetecta uma integração elevadíssima, são osmodelos japonês e germânico, sendo prati-camente impossível distinguir-se onde co-meça o grupo industrial e termina o grupofinanceiro. No caso japonês, idealizou-se aconstituição do conglomerado denominado“keiretsu”, grupos econômicos informaisassemelhando-se a “teias de aranha”, comos principais bancos japoneses no centro.Convém registrar também, como contrapon-to, especialmente no que toca ao modelo ja-ponês, a crise econômica que atingiu o paísna década de 90, que até hoje provoca efei-tos nefastos, alastrando-se do setor indus-trial ao setor financeiro.

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Por fim, é significativo salientar a cons-tituição de um seguro de depósitos para oscorrentistas, que no âmbito do Banco Cen-tral está regulado pela Resolução CMN nº2.211/95 (já alterada pela Resolução CMNnº 2.249/96) e pela Circular nº 2.657 (Fun-do Garantidor de Créditos – FGC), garan-tindo até o limite de R$ 20.000,00 os seguin-tes créditos: depósitos à vista ou sacáveismediante aviso prévio, depósitos de pou-pança, depósitos a prazo, com ou sem emis-são de certificado, letras de câmbio, letrasimobiliárias e letras hipotecárias. O FGC,portanto, não protege investimentos finan-ceiros que são justificados e formulados pelaexistência de risco, como ocorre com os fun-dos de investimentos e aplicação no merca-do de capitais, de renda variável. A idéia éproporcionar uma garantia mínima para opequeno investidor, protegendo seu direitode crédito (no valor estipulado) em face daatuação desastrada ou criminosa dos agen-tes controladores da instituição financeiraque a levem ao estado de insolvência. A crí-tica que se faz a essa regra prudencial é a deque, embora tenha um viés protetivo do pe-queno correntista/poupador, o FGC acabaautorizando a instituição financeira a cor-rer maiores riscos em sua atuação no mer-cado, contando a banca com a garantia mí-nima de pagamento aos clientes bancários.É o que a doutrina norte-americana deno-mina de moral hazard12. Mais garantia, maisriscos. O sistema financeiro americano tam-bém possui um seguro de depósitos. Noentanto, dando ensejo à teoria apresenta-da acima, o valor de cobertura nos Esta-dos Unidos é de US$ 100.000,00 (cem mildólares). De qualquer forma, compatívelcom a grandeza do mercado bancário nor-te-americano.

3. Necessidade de regulação sistêmica(externalidades negativas): passagem

pelas idéias de Stephen Breyer

As idéias de Stephen BREYER (1982) sãoconhecidas pelos pesquisadores do direito

econômico. No seu livro Regulation and itsReform, BREYER nos apresenta uma “teoriada regulação”, descrevendo as justificaçõestípicas para a regulação. As razões clássi-cas são: o controle do poder de monopólio,o controle do excesso de lucros, a compen-sação por externalidades negativas, a regu-lação em face das informações inadequadase a competição excessiva. No entanto,BREYER é extremamente crítico quanto àeficiência da regulação, criticando-a sob osmais diversos argumentos, como os altoscustos do aparato de regulação; ineficiên-cia das regras que impõe (baixo custo bene-fício da regulação em face da falha de mer-cado); injusta, complexa e freqüentementeatrasada; irresponsável em face do controledemocrático, e a inerente imprevisibilidadedo resultado final13. Somente reconhece aalternativa do modelo de regulação quandoeste realmente se torna imprescindível aocontrole de determinado setor, ou seja, quan-do se constata que a regulação, mesmo nãotão eficiente, traz mais benefícios do que aliberação completa do mercado, sujeita auma falha que acarreta inúmeros prejuízos.Portanto, o custo social seria altíssimo semqualquer espécie de regulação. É o que ocor-re em alguns casos, na compensação de ex-ternalidades negativas14 e na regulação emface da assimetria de informações15.

Adequando-se as idéias de StephenBREYER ao setor bancário, no devido con-texto de regulação, ver-se-á que é impres-cindível ao sistema financeiro um aparatoregulatório de natureza sistêmica, de formaa controlar e prevenir que uma instabilida-de localizada não seja a desencadeadora deuma crise bancária generalizada. Isso ocor-re de inúmeras maneiras como, por exem-plo, na falência de uma instituição finan-ceira ou por boatos que gerem uma corridabancária. Assim, o contexto regulatório éindispensável ao setor bancário. Emboracustoso e ineficiente em algumas situações,o benefício da regulação supera os custossociais de uma falha sistêmica em um mer-cado bancário totalmente desregulado.

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No entanto, ainda que se faça tal contro-le regulatório em razão da assimetria de in-formações e do risco sistêmico (idealizadocomo uma externalidade negativa), é impor-tante que o conceito de crise sistêmica nãoseja traduzido como a panacéia do setorbancário, tal como se vê algumas vezes.Ocorre que, como se verá adiante, ao ladoda regulação pode coexistir a concorrência,sendo o ambiente concorrencial soluçãopara muitos dos males do sistema financei-ro, inclusive no que respeita ao spread ban-cário16.

Só para finalizar esse ponto, uma vez quetal aspecto será retomado adiante, a grita dealgumas instituições financeiras pela imu-nidade do setor bancário às regras de con-corrência, amparando-se na panacéia dorisco sistêmico, é resultado, certamente, dasituação cômoda do setor, desvinculado daidéia de uma competição mais efetiva, qua-se que levando à captura do Banco Central(teoria da captura)17, de forma que o órgãoregulador, ao desempenhar seu papel deregulação e fiscalização, o faça para estabe-lecer e perpetuar a situação favorável em quese encontram as instituições que fazem par-te do sistema18.

3.1. Assimetria de informações

Os bancos evidentemente estão sujeitosa inúmeros riscos. Risco de crédito, quandosua carteira de crédito sofre uma deteriora-ção, com alta inadimplência; risco de mer-cado, esse entendido de forma macroeconô-mica, isto é, movimentos adversos do mer-cado financeiro, com grandes oscilações nosjuros e taxas de câmbio; risco legal, com anefasta burocracia e lentidão do sistema le-gal; riscos de fraude e tecnológicos.

Na interessante concepção de LuisTROSTER (apud, CAMPILONGO et al.,2002), os riscos aumentam e amplificam apossibilidade de insolvência de uma insti-tuição financeira por três motivos essen-ciais: vulnerabilidade a corridas, tópico queserá desenvolvido a seguir, as falhas infor-macionais e os mercados incompletos.

Como se pode compreender o efeito daassimetria de informações? Os consumido-res bancários não possuem informaçõesdetalhadas da instituição financeira da qualsão clientes, não sabem o nível de sua ala-vancagem, a adequação de seu capital, asolidez da sua carteira de crédito, os balan-ços não informam toda a situação contábil eeconômica da instituição. Além disso, mes-mo que tivessem como obter informaçõesmais detalhadas, muitos não saberiamcomo analisar e aferir as condições da insti-tuição. O perigo dessa falha informacional,quase inerente ao mercado bancário, é apossibilidade de que a instituição financei-ra seja testada pelos depositantes (como setestassem a saúde financeira da instituição),de forma a sacar o dinheiro depositado eassim por diante. Ou seja, o cliente bancárioacaba funcionando por sinais. Se há um si-nal ou mesmo um boato sobre a situaçãofinanceira de determinada instituição, issopode ser o estopim para o início de uma cor-rida bancária19.

O efeito entre a falha informacional evulnerabilidade a corridas bancárias não édesencadeado por uma lógica rígida. Assim,pode-se ter origem com uma falência bancá-ria comprovada, embora isolada. Corre-se omedo do risco sistêmico e a assimetria deinformações atua como seu próprio alimen-tador. Pode ocorrer, no entanto, uma falhainformacional sem qualquer ligação com umestado de insolvência comprovado. É o tes-te puro e simples decorrente de um boato oumesmo um sinal macroeconômico, como aalteração de política monetária ou da taxade câmbio20. Pronto. Mesmo uma assimetriade informações dissociada da saúde finan-ceira de instituição pode levar à falênciauma banca em boas condições, em condi-ções de solvência.

Assim, torna-se indispensável a atuaçãopreventiva e pontual do Banco Central, le-vando à consideração dos agentes do mer-cado, e por efeito multiplicador a todos osinvestidores e poupadores, as informaçõesadequadas e fidedignas das instituições fi-

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nanceiras. Não que o Banco Central atuenecessariamente impedindo a falência dedeterminada instituição ou que divulguedados sigilosos da entidade. Pelo contrário,no que respeita ao último argumento, tem odever de não divulgar os dados sigilosos(artigos 37 e 38 da Lei nº 4.595/64). Atua oBanco Central, no entanto, como um apaga-dor de incêndios, divulgando informaçõessobre a saúde financeira do próprio sistema,impedindo que uma situação localizada te-nha seu efeito de contaminação alastrado.

É importante ainda fazer-se referência aoúltimo aspecto sugerido por Luis TROSTERcomo significativo para incremento da in-solvência bancária: os mercados incomple-tos (missing markets). Quando há uma corri-da bancária, se a instituição financeira con-seguisse vender parte de seus ativos em ummercado secundário, com pequenas perdas,seria possível quase que praticamente im-pedir o efeito perverso das corridas. No en-tanto, inexiste um mercado secundário de-senvolvido, razão da falta de liquidez dosativos dos bancos. Como explica Luis TROS-TER (apud CAMPILONGO et al., 2002, p.290), esta é a própria razão da existênciados bancos, ou seja, realizar o papel de in-termediação financeira, contando necessa-riamente com créditos que não são facilmen-te negociáveis. A banca faz justamente opapel de análise de informação das empre-sas, sua credibilidade e confiança, para oprocesso de empréstimo de capital. As em-presas têm custos altos se quiserem captar odinheiro diretamente no mercado, sem a aju-da do papel especializado de intermedia-ção da banca. Assim, os créditos do banco,seus ativos, são de difícil negociação, tendopouca liquidez, razão pela qual não se for-ma um mercado secundário forte, e a bancanão tem como fazer frente a todos os crédi-tos numa corrida bancária.

3.2. Risco sistêmico (vulnerabilidadea corridas bancárias)

Quando se afirma que o risco sistêmicocompreende uma externalidade negativa do

setor bancário, compreende-se que há aquiuma aproximação de idéias. Ora, uma ex-ternalidade ocorre quando as possibilida-des de bem-estar de um consumidor ou aspossibilidades de produção de uma firmasão diretamente afetadas pelas ações de umoutro agente da economia21. No entanto, oconsumidor ou a firma afetada não possu-em controle sobre as transações econômi-cas e as ações do agente econômico que ge-ram a externalidade. Via de regra, a exter-nalidade é negativa, isto é, produz um efei-to prejudicial (decréscimo do bem-estar ouaumento dos custos de produção), razãopela qual torna-se importante a existênciada regulação, de forma a evitar o efeito pre-judicial.

A associação de idéias justifica-se nosentido acima colocado. O risco sistêmicoaproxima-se da idéia de um efeito prejudi-cial de descrédito e desconfiança no merca-do financeiro, decorrente, com freqüência,de um abalo econômico de uma de suas ins-tituições, que se alastra atingindo os demaisagentes do mercado, solventes, sem relaçãodireta com as ações da instituição que ge-rou o efeito prejudicial. É um efeito negativo(externalidade), o mais devastador do mer-cado bancário, que tem origem dentro dopróprio setor.

O economista Luis TROSTER (apudCAMPILONGO et al., 2002, p. 288) traça oseguinte panorama da vulnerabilidade dosbancos a corridas bancárias, indicando aidéia do efeito sistêmico:

“Os bancos são vulneráveis a cor-ridas. Uma corrida a banco é um fenô-meno muito conhecido: cada deposi-tante busca retirar seus depósitos an-tes que os demais o façam. No caso deuma corrida por liquidez a um banco,este é obrigado a atender a todas asdemandas. Na falta de liquidez e nafalta de um emprestador de últimainstância [Banco Central] a institui-ção deve vender ativos rapidamentepara atender ao aumento inesperadode demanda. Essas vendas rápidas

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implicam pesadas perdas de capitalque levam muitas instituições à insol-vência, apesar de solventes sem a ocor-rência da corrida”.

O risco sistêmico se traduz exatamenteno efeito multiplicador da vulnerabilidadedas corridas bancárias. A crise sistêmica sóse evidencia porque as instituições estãosujeitas aos mesmos riscos e vulnerabilida-des. Nesse sentido, a regulação sistêmica doBanco Central, de atuação quase repressi-va, vinculada aos empréstimos de últimainstância (embora tal função do BC estejaultimamente em ampla discussão, tendo emvista o novo sistema de pagamentos brasi-leiro - SPB que entrou em vigor no primeirosemestre) e à gerência dos processos de li-quidação extrajudicial (aspecto que tambémvem sendo rediscutido), associada às regrasde caráter prudencial, tem o objetivo deimpedir o custo social enorme de uma fa-lência generalizada no sistema. Equivalea dizer, de acordo com as idéias de StephenBREYER (1982), que a regulação do BancoCentral tem efetivo lugar. O custo/benefícioé extremamente favorável para a regulação.Na verdade, como se trata de um mercadode acesso e permanência controlados, e devital importância para a expansão econô-mica de qualquer país, a justificação políti-co-econômica exige o aparato regulatório.

Retornando-se ao debate suscitado emtópico anterior, é indispensável que se te-nha rígido controle prudencial (em especi-al) e sistêmico quanto ao mercado bancário.Todavia, o risco sistêmico não pode ser apre-goado de forma indiscriminada, em situa-ções de normalidade econômica, a fim dejustificar toda a atividade regulatória doBanco Central. Como se salientou acima, opróprio órgão regulador vem estudando eincentivando uma reforma da regulaçãobancária em tópicos intimamente ligados aorisco sistêmico, tais como o novo SPB – mi-nimizando sua atuação como emprestadorde última instância22 –, deixando o merca-do interbancário atuar, e uma reforma dosistema de liquidação extrajudicial, aven-

tando-se a possibilidade de retirar da esferado Banco Central a competência para con-duzir o processo liquitadório, repassan-do-o ao judiciário, tal como ocorre na fa-lência das empresas dos demais ramoseconômicos23.

Ora, se essas questões tão delicadas es-tão sendo reavaliadas pelo órgão regulador,não se vê porque não se possa imaginar aadoção do respeito às regras de concorrên-cia no setor, ainda que se faça de forma re-gulada, com um modelo específico. Umanova estrutura bancária, de atuação maisefetiva do próprio mercado, não pode seridealizada sem a vinculação estrita às re-gras antitruste. A doutrina jurídico-econô-mica é majoritária nesse entendimento. Etodos os mercados bancários mais avança-dos, dos Estados Unidos à União Européia,afirmam a inexistência de imunidade dosetor bancário em relação às regras de con-corrência, estabelecendo um modelo de in-teração entre o órgão regulador e o órgão deconcorrência. Algumas observações jurídi-co-econômicas serão salientadas nos tópi-cos seguintes.

4. Outra falha do mercado (abuso dopoder de mercado)24. Necessidade da

aplicação das regras antitruste

As falhas descritas nos tópicos acimajustificavam uma ampla estrutura regulató-ria. No entanto, dado o funcionamento dosetor bancário com rígida regulação, é de-tectável ainda outra falha de mercado, que éo abuso de poder pelas instituições finan-ceiras, muitas vezes resultante da “cômo-da” situação regulatória, inexistindo no se-tor a possibilidade de aplicação das regrasanticoncorrenciais. O abuso de poder dasinstituições pode-se configurar em práticasconcertadas para fixação das taxas de ju-ros, de venda casada de produtos, de cria-ção de barreiras artificiais para entrada denovas instituições, manipulando o arsenalregulatório do Banco Central, etc. O interes-sante é abordar-se a possibilidade de imer-

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são do setor bancário ao ambiente competi-tivo. Mais do que isso: é afirmar-se a possi-bilidade de aplicação das regras antitrusteao setor. É a alternativa da regulação con-correncial.

POSNER (2000, p. 332) estabelece a se-guinte crítica quanto à acomodação dasempresas na regulação do monopólio natu-ral, concepção aplicável à regulação do se-tor bancário: “En la medida en que alcancesu objetivo formal de colocar los precios dela empresa de servicio público sobre unabase de costos más un beneficio, reducirá elincentivo de la empresa para minimizar suscostos”. Ou seja, o efeito da regulação semqualquer competição ou sem temor às regrasconcorrenciais (nos setores em que é possí-vel a existência da competição) é ineficiên-cia e acomodação do setor. No caso do setorbancário, o que mais se vê é a ineficiênciadistributiva.

Ora, as indagações que se fazem, talcomo defenderia POSNER, são as seguin-tes: embora o setor bancário seja sujeito àsevera regulação, é possível a existência decompetição entre as instituições financeiras?É possível a aplicação das regras de concor-rência ao setor? Há ou não há a substitui-ção completa e integral da competição pe-las regras regulatórias? Ou seja, é a idéiade o Estado regular integralmente o setorfinanceiro, de forma tão profunda e ex-tensa, a afastar totalmente o potencial deconcorrência?

Neste ponto, para respostas às indaga-ções formuladas, é indispensável o retornoàs idéias de SALOMÃO FILHO e o entendi-mento contextualizado das teorias norte-americanas do State action doctrine (teoria daação política) e do Pervasive power (teoria dopoder amplo).

A teoria da ação política vincula-se àprópria estrutura do federalismo norte-ame-ricano. Diante da autonomia dos estados dafederação, com a autoridade da expediçãode regulamentos sobre as diversas áreas daeconomia, evidencia-se um conflito dos re-gulamentos locais com as regras anticon-

correnciais de competência federal. Assim,nos casos de regulação pelo Estado de de-terminado setor da economia, estaria essesetor imune à aplicação das regras antitrus-te ou não? O caso clássico para solução doproblema posto, citado por SALOMÃO FI-LHO (2002, p. 131), sempre registrado noscasos posteriores, é o “California Retail LiquorDealers Association vs. Midcal Alumminum Inc.(Midcal)”25.

O mencionado autor estabelece assimque duas são as premissas básicas para sa-ber se existe ou não imunidade do setor re-gulador para a teoria da ação política. É in-dispensável que haja uma clara idéia desubstituição da competição pela regulação,expressando as regras estaduais uma inten-ção explícita de desaplicação das leis anti-truste, inclusive fixando preço e quantida-de produzida. Além disso, faz-se necessá-rio uma supervisão ativa para o cumprimen-to das regras expedidas pela regulação. Vê-se, assim, que o jogo de mercado e a fixaçãodos preços e das quantidades de produção(requisitos básicos para o funcionamento dolivre mercado) são dirigidos para ação doEstado, impedindo a idéia de competiçãonaquele mercado regulado. É a regulaçãototal.

Paralelamente, surge uma segunda ten-dência que se consubstancia na teoria dopoder amplo. Segundo SALOMÃO FILHO(2002, p. 132), é a teoria anterior do poderpolítico reforçada por outros elementos, nãotendo em conta propriamente a aplicaçãoda lei antitruste federal a uma regulaçãoimposta pelo Estado, mas o estudo da ex-tensão e da profundidade da regulação im-posta por qualquer agência desautorizan-do a aplicação das regras antitruste.

Assim, o primeiro requisito se consubs-tancia na extensão do poder conferido a umaagência reguladora norte-americana. Ouseja, sendo o poder extenso o suficiente paraabarcar toda a atividade desenvolvida poraquele setor econômico, inclusive no que serefere à concorrência, ocorre aqui o mesmoefeito da teoria anterior, com a plena substi-

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tuição da competição pela regulação. Aoórgão regulador é destinada ampla compe-tência, imunizando aquele setor quanto àaplicação das regras antitruste26.

O segundo requisito envolve-se não coma extensão do poder conferido à agência re-guladora, mas sim com a idéia de profundi-dade do poder. Admita-se que em determi-nado setor da economia não houvesse umaatribuição de regulação completa ao órgãoregulador, de forma a substituir a competi-ção pela regulação. No entanto, o poder con-ferido ao órgão de regulação é tão profun-do, inclusive dotado de instrumental teóri-co e técnico para aplicação das regras anti-concorrenciais, que o setor não é propria-mente imune à concorrência, mas esta é apli-cada pela própria agência reguladora, le-vando em consideração as questões concor-rências quando da elaboração e da imple-mentação das regras de regulação.

Conclui SALOMÃO FILHO (2002, p. 133),conjugando as noções das duas teorias:

“A conclusão que se pode tirar éno sentido de que, tratando-se de agên-cia de regulamentação federal inde-pendente, a questão de aplicação dodireito antitruste se resolve em umadiscussão de competência dos órgãosenvolvidos. A falta de competênciagovernamental responsável por deter-minado mercado não exclui a aplica-ção do direito concorrencial, mas ape-nas caracteriza a ilegalidade da regu-lamentação que desconsidera a tutelaantitruste (por não ser este poder ex-tenso o suficiente). Da mesma manei-ra, a existência de competência mas afalta de seu pleno exercício, sem levarem conta os aspectos concorrenciaisde uma situação, torna a regulação ile-gal. Isto porque o poder não foi exerci-do. Portanto, não é profundo o sufi-ciente. Por esse motivo, a casuísticaexistente a respeito resolve a questãoda ilegalidade concorrencial de umadeterminada regulação, respectiva-mente, em termos de excesso no exer-

cício da competência regulatória ou,então, de desvio de finalidade”.

Como decorrência lógica das teoriasapresentadas, adaptando-se tais idéias aocontexto do setor bancário brasileiro, ten-do-se em conta, ademais, que a regulaçãoprudencial e a sistêmica não cuidam do as-pecto concorrencial, e que é possível detec-tar-se falhas de mercado que poderiam serenfrentadas com o direito concorrencial, éindispensável pensar-se num modelo ade-quado de interação regulação/concorrênciapara o sistema financeiro.

É importante salientar um aspecto: nãoé só uma resolução da organização das com-petências da entidade reguladora (BancoCentral) e do órgão de concorrência (CADE),mas também se afirmar a essencialidade doemprego do direito concorrencial no âmbitodo setor bancário.

No que respeita à primeira questão,numa articulação com as idéias apresenta-das, ver-se-á, e nesse sentido eu avanço noentendimento esposado por SALOMÃO FI-LHO, que a regulação concorrencial confe-rida em dispositivos ao Banco Central (arts.10, X, letra “c”, e 18, § 2º, da Lei nº 4.595/64) não é extensa o suficiente e nunca foiprofunda, decorrendo a idéia natural de quenão é a intenção do Estado substituir total-mente a competição pela regulação, aindaque se tratando do setor bancário.

Não é extensa porque os dispositivosautorizadores de análise concorrencial peloBanco Central não trazem, e nem poderiamfazê-lo nos idos de 1964, o arsenal teórico einstrumental das regras de concorrência.Ora, não é necessário que as regras de con-corrência sejam extensas em número de nor-mas (veja-se o modelo americano do Sher-man Act), mas é indispensável que tragam adisciplina mínima do direito da concorrên-cia. A Lei nº 4.595/64 não traz essa disci-plina mínima.

E, o mais importante, nunca as regrasforam profundas. Em razão mesmo da pou-ca extensão da disciplina, tal como se afir-mou. Ora, o Banco Central, em quase 40 anos

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de aplicação da Lei nº 4.595/64 (recepcio-nada como Lei Complementar), nunca teveem vista nos processos estruturais de fusãoe incorporação a interação com as regras deconcorrência. Nem com relação ao controlede condutas, o Banco Central tem ou tevequalquer preocupação específica no quetoca à concorrência, quando da atividaderegulatória. Esse histórico é inquestionável.Assim, vê-se que os modelos teóricos cap-turados da doutrina norte-americana ser-vem de referência quando se analisa osetor bancário brasileiro, evidenciando ainexistência de imunidade do setor, e aindispensabilidade de aplicação das re-gras antitruste27.

Cumpre tão-só, no fim deste tópico, rea-lizar-se uma sucinta reflexão histórica. Porque será que nunca se questionou antes essainteração regulação/concorrência no setorbancário? Antes mesmo da Constituição de1988 e da Lei nº 8.884/94.

A resposta está na edição da Lei nº4.137/62. Ora, a antiga Lei de concorrênciabrasileira não estipulava qualquer tratamen-to ou controle preventivo em âmbito concor-rencial. Ou seja, não se fazia controle de es-trutura. Tal controle só surgiu com a Lei nº8.884/94, com o novo panorama concorren-cial que se descortinou com o processo dedesregulamentação e privatização inaugu-rado no início da década de 90. Pode-se fa-lar também da quase inexistência de umamplo cenário concorrencial nas estruturasde mercado no Brasil. O que se dirá do setorbancário. O período que estendeu da déca-da de 60 até meados da década de 80 foi derasgada intervenção estatal, de forma cen-tralizada, com políticas macroeconômicasde intensa regulamentação do mercado,evidenciada pelos PND´s – Planos Nacio-nais de Desenvolvimento, o que deixavapouco campo para o funcionamento “li-vre” do mercado. Por fim, associando-sea esse cenário, a própria Lei nº 4.137/62vigeu praticamente sem aplicação ou compouca efetividade, deixando incólume osetor bancário.

5. Pequena reflexão sobre o cenáriodo setor bancário brasileiro

Neste ponto, o trabalho terá como refe-rência básica a Nota Técnica (EVOLUÇÃOda concentração bancária no Brasil, 2001)produzida por Sampaio ROCHA, econo-mista do Banco Central do Brasil, e o estudo“As concentrações bancárias no Brasil de-vem ser controladas pelos órgãos antitrus-te?” (apud CAMPILONGO et al., 2002, p.277-287), de Paulo CORREA.

O fim da inflação crônica com a implan-tação do Plano Real (1994) operou uma sig-nificativa reestruturação bancária no país.Sem os lucros advindos do float dos recur-sos, o setor bancário encontrou uma novarealidade a partir de 1995. Com a rentabili-dade desmascarada pelo fim da corrida in-flacionária, as instituições financeiras tive-ram que adotar providências de diversasordens: aumento das tarifas bancárias, pro-cesso crescente de fusão e aquisições, for-mação de grupos bancários na tentativa deredução de custos de operação, com econo-mias de escala e escopo (bancos múltiplos/bancos especializados). Paralelamente, oBanco Central se viu impelido a adotar me-didas de salvaguarda do sistema: regula-ção prudencial mais rígida, abertura a ban-cos estrangeiros e privatizações. E ainda sepodia sentir uma reestruturação bancáriaglobal, com um amplo movimento de libera-lização e de desregulamentação.

Sampaio ROCHA separa tais providên-cias, medidas e inovações no setor bancárioem argumentos de ordem macroeconômicae de ordem microeconômica.

Um dos fatores macroeconômicos maisimportantes a refletir no setor bancário foi aestabilização monetária, com a drástica re-dução da inflação. Segundo dados do IBGE/Andima (1997), a receita inflacionária quechegou a responder a 4% do PIB no período1990-1993 reduziu-se a 2% em 1994, caindoa zero em 1995. A perda ultrapassou US$ 8bilhões anuais. As pequenas instituições fi-nanceiras foram as que mais sentiram os

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efeitos do fim da espiral inflacionária, gran-de parte desaparecendo nos primeiros anosde estabilização monetária. Segundo o men-cionado autor, o fim da inflação fez surgirinúmeros problemas de ordem microeconô-mica. A junção dos problemas acarretou adiminuição drástica do número de bancas(as dimensões do mercado estavam maio-res do que podia suportar o novo ambienteconcorrencial), levando naturalmente aoaumento da concentração.

Associado à estabilização monetária, osetor bancário sofreu um abalo sistêmico(pelo menos em potência)28, atingindo tam-bém as instituições financeiras de maiorvulto, como os Bancos Econômico, Nacio-nal e Bamerindus (todos sofreram proces-sos de intervenção). Segundo SampaioROCHA (apud CAMPILONGO et al . ,2001, p. 12), no caso dos três grandes ban-cos privados citados, não houve uma fugade depósitos clássica. Os problemas de li-quidez se relacionavam com saques dedepositantes qualificados (outros bancose grandes empresas), que dispunham deinformações reais sobre o estado financei-ro das instituições (vide o item de assime-tria de informações). Esse processo de insu-ficiência patrimonial é chamado de “corri-da silenciosa”.

Dessa forma, inúmeras medidas foramtomadas pelo governo, a fim de impedir o

desencadeamento da crise para as demaisinstituições saudáveis do sistema. A cria-ção do PROER – Programa de Estímulo àReestruturação e ao Fortalecimento do Sis-tema Financeiro Nacional, o incentivo a F&A(incorporação de bancos insolventes), a cria-ção do FGC (já citado), com efeito retroativoao início do Plano Real, o aumento de capi-tal mínimo para abertura de novos bancos,desestimulando tal prática (vide item con-dições de acesso – barreiras de entrada), sãoos exemplos mais significativos. Inúmerosbancos (104), mesmo os de maior expressão,passaram em algum momento por um pro-cesso de reestruturação, o que mostra a vali-dade da teoria “grande demais para falir(too big to fail)”. Ora, quando o abalo sistê-mico chegou às grandes instituições, o go-verno teve que agir prontamente, impedin-do uma quebra generalizada. Enquanto acrise era sentida pelas pequenas institui-ções, não se viu uma atuação interventiva ereguladora do Estado. E aqui o paradoxo:ao mesmo tempo em que não se poderia dei-xar uma grande instituição falir (alto custosocial e de risco sistêmico), adotando-se umamescla de financiamentos públicos com umasolução de mercado, o governo incentivou oprocesso de fusão e aquisições, aumentan-do o grau de concentração bancária. A tabe-la abaixo mostra tal processo com o incenti-vo do PROER:

Tabela 1 – F&A bancárias com incentivos do PROER

Instituição Comprador Publicação no D.O.U

Banco NacionalBanco EconômicoBanco MercantilBanco BanorteBanco MartinelliBanco UnitedBanco Bamerindusdo Brasil

UnibancoBanco ExcelBanco RuralBanco BandeirantesBanco PontualBanco Antônio QueirozHSBC

18.11.199530.4.199531.5.199617.6.199623.8.199630.8.19962.4.1997

Fonte: Bacen (1999)

Ainda como medida de caráter macroe-conômico, é importante citar a abertura para

o ingresso de bancos estrangeiros e as pri-vatizações. O governo brasileiro aprovei-

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tou-se, no que diz respeito à entrada debancos estrangeiros, de uma brecha legalexistente no parágrafo único do art. 52 doADCT, de forma a contornar o impedi-mento do caput do artigo citado para aexpansão de capital estrangeiro no setorbancário, que só cairia com a regulamenta-ção do art. 192 da Constituição Federal. As-sim, todas as autorizações para entrada oupara expansão do capital externo no setorbancário utilizaram-se da saída legal: asmedidas foram tomadas no “interesse doGoverno brasileiro”.

O processo de abertura ao capital estran-geiro não trouxe evidentemente um aumen-to da concentração bancária, já que a maiorparte dos bancos externos não atuava nopaís, sendo os exemplos mais significativosos bancos espanhóis, Banco Santander Cen-tral Hispano (BSCH) e Banco Bilbao Viscaya(BBV). Essa medida teve o cunho de aumen-tar a competitividade no setor, embora ti-vesse larga utilização na privatização, ouseja, permitindo a aquisição de bancos na-

Com relação aos argumentos microeco-nômicos, é indispensável a referência ao for-talecimento da regulação prudencial.

Visando aumentar a solidez e a seguran-ça do mercado bancário, após o período crí-

cionais pelos estrangeiros (todos os editaistinham a previsão dessa possibilidade).

O processo de privatização do setor ban-cário ocorreu basicamente no âmbito doPROES – Programa de Incentivo à Reduçãodo Setor Público Estadual na Atividade Ban-cária, ou seja, inserido no programa de rees-truturação e venda das instituições públi-cas estaduais. Aqui houve uma reação de-fensiva dos bancos nacionais (o mercadobancário em tese tornou-se mais contestá-vel), tal como expõe Sampaio ROCHA (p.17), adquirindo boa parte dos bancos esta-duais, num processo de fortalecimento dasinstituições (como são os casos de Bradescoe Itaú), e num contraponto à forte presençadas bancas externas. Tal estímulo à redu-ção da presença dos governos estaduais nosetor bancário, medida de inegável impor-tância e muito salutar, resultou tambémnum processo de aumento da concentraçãobancária.

Veja-se a tabela abaixo, que relaciona aprivatização dos bancos públicos após 1994:

Tabela 2 – Privatização de bancos públicos

Data Instituição Comprador Valor(R$ milhões)

Ágio (%)

26.6.19977.8.19974.12.199714.9.199817.11.199822.6.199917.10.200020.11.200011.200112.200101.2002N / D

BanerjCredirealMeridionalBemgeBandepeBanepBanestadoBanespaParaibanBEGBEAMeridional

ItaúBCNBozano, SimonsenItaúABN AmroBradescoItaúSantanderABN AmroItaúBradescoBozana, Simonsen

31112126658318326016257050----

0,40,055,085,70,03,2303,2281,1----

Fonte: Bacen/Depep/GCI, 25.10.2000

tico de 1995-1996, o Banco Central orientousua ação para higidez do sistema, não le-vando em consideração as regras de con-corrência (inocorrência, portanto, da perva-sive power). As normas do “Acordo de Basi-

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léia”, além da incorporação na Resoluçãonº 2.099/94, como antes referido, sofreramum novo dimensionamento, com a elevaçãoda exigência de capital mínimo para funcio-namento, que passou de 8% em 1994 para11% em 1997 (Resolução nº 2.784). Houvetambém um aumento do capital inicial parafuncionamento das instituições (Resolução nº2.212/95). Tal tendência fortalece o processode concentração, com o aumento das barrei-ras de entrada. Sugere Sampaio ROCHA (p.16) que a própria reforma do sistema de pa-gamentos, embora desloque o risco públicopara a iniciativa privada, ou seja, para solu-ções de mercado, pode acarretar um aumentoda concentração bancária, dado que o novosistema exigirá maior quantidade de ga-rantias dos bancos. Assim, aquelas institui-ções que não estiverem dispostas a operar comtais garantias podem-se retirar do mercadoou se transformarem em outro tipo de insti-tuição financeira, de natureza não-bancária.

Significativo também é o processo de ino-vação tecnológica e de surgimento de novosprodutos. Esse processo de inovação tecno-lógica, diante da necessidade de pesadosinvestimentos, tende a ser acelerado pelosgrupos bancários, com eventuais economiasde escala e escopo. De qualquer forma, osurgimento de novos produtos, com especi-alização, pode incentivar a entrada de no-vas instituições, estimulando a concorrên-cia. Nesse aspecto, é importante saber se umaeventual economia de escala ou de escopopode ser repassada ao consumidor bancá-rio, com uma melhor eficiência distributiva.

Esse é um painel ilustrativo do novo pa-norama bancário brasileiro. É o cenário daprivatização e da reestruturação bancáriaapós 1994. Não é objetivo do trabalho ques-tionar o programa de reestruturação bancá-ria, com a participação regulatória do Ban-co Central, e se houve ou não uma superes-timação do risco sistêmico. O balanço eco-nômico da atuação do BC e do governo cer-tamente é favorável.

No entanto, passado o período crítico dereestruturação, é indispensável a observân-

cia das regras antitruste. Tal como se de-monstrou com o novo panorama bancário,quase todas as causas, macro ou microeco-nômicas, levaram ao aumento da concen-tração bancária. É essa também a conclusãode Sampaio ROCHA (p. 31):

“Como era esperado, a tendênciade concentração foi mais acentuadaquando foram considerados os gru-pos bancários, principalmente no se-tor privado, onde a reestruturação foimais intensa, com o IHH mais quedobrando em algumas séries, além deapresentar comportamento distintodas séries que desconsideram os efei-tos das F&A”.

Ainda que o próprio autor considere quenosso mercado não tenha níveis de concen-tração elevados em comparação internacio-nal, é visível que o processo concentracio-nista pode continuar, tal como sugere Pau-lo CORREA (apud CAMPILONGO et al.)29

exigindo o emprego das regras de concor-rência para o controle de estrutura e de con-dutas. Mais do isso: é certo que não há imu-nidade antitruste para o setor bancário (arts.15 e 54 da Lei nº 8.884/94), portanto, a pos-sibilidade de interação regulação/concor-rência não deve ser só um modelo teórico. Ocenário bancário atual só vem corroborarfactualmente a necessidade da efetiva apli-cação do direito concorrencial.

6. Crítica do embate entre o CADEe o Banco Central para julgar os

atos de concentração bancária

Este item apresenta uma pequena críticaao conflito de competências entre o CADE eo Banco Central, visualizando quão ultra-passada é uma discussão pontuada tão-so-mente em dispositivos legais.

Em verdade, toda a discussão entabula-da deve ter propósito maior: pensar-se nonovo modelo de Estado que se instaurou como processo de liberalização econômica, des-regulamentação, privatização e re-regula-ção. É mais do que uma discussão localiza-

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da num setor econômico, por mais impor-tante que possa ser o mercado bancário, epontuada como se fosse uma disputa depoder. É o debate sobre uma nova realidadedo Estado, e a necessidade de um novo de-senho institucional entre os agentes estatais.

Assim, vale retomar o argumento já ex-posto (item 4): o Banco Central nunca levouefetivamente em consideração aspectos con-correnciais quando da análise dos proces-sos de concentração e também quando daatuação regulatória. Por quê? Pelos motivosjá apresentados. A realidade macroeconô-mica era outra, de incentivo e consolidaçãodo processo concentracionista, e não se exi-gia do Banco Central nem da autoridadeantitruste tal análise. Se o setor bancário atépassou, durante um processo de alteraçãoregulatória, por surtos de crescimento donúmero de instituições (com a criação dosBancos Múltiplos – Resolução nº 1.524/98,o número de instituições cresceu de 107 para248 entre 1988 e 1994), é certo que tal modi-ficação do cenário bancário não teve comoobjetivo primordial o aumento da competi-tividade no setor.

A Lei nº 4.595/64, por outro lado, é ana-crônica, quando da análise de processos deconcentração30. É dizer, mais do que ana-crônica. Não há qualquer dispositivo especí-fico que possua o caráter dogmático do direi-to concorrencial. As eventuais sanções dis-postas no art. 44 da Lei nº 4.595/64 parecemse relacionar com um possível controle decondutas e não com o controle de estrutura.Ainda assim, é uma estrutura sancionatóriadirigida para as falhas de administração egestão da entidade bancária em face da regu-lação prudencial e sistêmica, distante de qual-quer idéia de conduta anticoncorrencial.

A Lei nº 8.884/94 traz todo o arsenal téc-nico, diferenciado para o controle de estru-turas e de condutas, e toda a tipologia jurí-dico-dogmática do direito concorrencial.Ora, qual a razão, então, do próprio BancoCentral em se apegar em dois dispositivoslocalizados distraidamente na Lei nº 4.595/64 (arts. 10, X, letra “c”, e 18, § 2º), numa ten-

tativa exagerada de reinterpretar os disposi-tivos e encerrá-los na nova sistemática con-correncial, a fim de atualizá-los a fórceps? Aresposta só pode ser uma disputa de poderespúria, supostamente calcada no risco sistê-mico (debate salutar), mas que distorce a dis-cussão quando levada para o campo estritodo suposto conflito de interpretação de leis.

No que se relaciona com o risco sistêmi-co, argumento esse que deve ser debatido eestudado, e naquilo que pode servir de mo-delo para uma interação regulação/concor-rência, é indispensável a referência a estapassagem do aditamento do voto vista doConselheiro Celso CAMPILONGO no jul-gamento do caso Finasa:

“(...) a distribuição dos riscos do sistemafinanceiro não pode ser adequadamenteexaminada de forma hierárquica, como se oBanco Central, à moda de uma economiaplanificada, pudesse gerenciar, com exclu-sividade, todos os riscos do mercado. Mas,como diz Luhmann, esta é apenas uma ten-tativa de reação a riscos que são inevitáveis.Nessas condições, o envolvimento de outrasesferas decisórias, com o beneplácito e a co-responsabilidade advindas, apresenta-secomo uma das principais estratégias de tra-tamento dos riscos. Um modelo hierárqui-co, sem que ninguém assuma a pretensãode gestor do sistema global, com a fragmen-tação da decisão numa pluralidade seqüen-cial de decisões que considerem as posiçõesanteriores, parece ser a melhor modelagempara a regulação de setor tão importante.

Na verdade, a distinção entre ‘risco sis-têmico’ e ‘outros riscos’ desdobra, com efei-tos perversos e como se fossem binômios ri-gidamente desconectados, as diferençasentre hierarquias e mercados; planejamen-to e concorrência; unidade de comando ecompetição controlada. Um sistema bancá-rio moderno, competitivo e eficiente nãopode sobreviver nem extrair sua unidade deuma só fonte deliberante e que ocupe o vér-tice de uma estratificação hierárquica. Ocomportamento burocrático é extremamen-te avesso aos riscos e às surpresas. Os mer-

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cados competitivos, ao contrário, conviveme dependem de duas coisas. Mais uma ra-zão para se afastar qualquer conflito entreregulação concorrencial e adjudicação con-correncial” (BRASIL. CADE. Ato de Concen-tração nº 08012.006762/2000-09. Voto vistado Conselheiro Celso Campilongo).

7. Conclusão: um modelo deinteração possível

De tudo exposto, conclui-se inevitavel-mente pela concepção de um modelo de inte-ração com competências complementares.Ainda que se pudesse fazer uma análise eco-nômica, ou seja, um balanço econômico entrea competência de um só órgão para análiseou de dois órgãos, distribuindo-se a matériaregulatória e a matéria concorrencial para asatribuições de cada entidade, ver-se-ia que omodelo de competências complementares écompensador, tal como bem estabeleceu oConselheiro Celso CAMPILONGO (2002).

Naquilo que pertine ao exagerado custoburocrático da competência complementardo CADE, supostamente centrado na faltade preparo de seus Conselheiros e de seustaff de técnicos, a questão se resume emdotar a autarquia de melhores quadros, eincentivar estudos direcionados para o se-tor bancário. Certamente com a experiênciaantitruste que o CADE já possui, um nívelótimo de eficiência na atividade de aplica-ção das regras de concorrência ao setor ban-cário (tendo em vista as peculiaridades dosetor, levando em consideração a regulaçãoprudencial e sistêmica) será alcançado rapi-damente, a ponto de se desconsiderar o custoburocrático de despreparo da autarquia.

Por outro lado, no que se relaciona à ne-cessidade de rapidez e sigilo nas análisesde concentração, é possível a edição de Re-solução do CADE (art. 7º, XIX, da Lei nº8.884/94) criando um processo específicopara a concentração bancária, dotando-o demecanismos que o tornem mais célere e sigi-loso. Nesse aspecto, de índole interinstitu-cional, o passo seria tão-só de uma efetiva

cooperação entre o Banco Central e o CADE,sem disputas menores, a fim de otimizar oprocesso de análise, tal como tão bem ocorrena interação entre as entidades reguladoras(OCC, FED e FDIC) e a Antitrust Division doDepartament of Justice dos Estados Unidos.

A princípio, o modelo mais adequadopara o nosso contexto e para a nossa reali-dade bancária seria, tal como ocorre com aANATEL, a instrução do ato concentraçãopelo Banco Central, com toda a análise decaráter prudencial, emitindo um parecer,com o julgamento destinado ao CADE, quedeverá levar em consideração a análise re-gulatória do Banco Central, num mecanis-mo de interação sugerido acima, inclusivecom troca de informações entre os técnicosdas duas autarquias. No caso notório deanormalidade (definido pelo Banco Cen-tral), ou seja, no caso de quebra de uma ins-tituição financeira, com o perigo de risco sis-têmico, o processo poderia ter sua instruçãoainda no Banco Central, com a elaboraçãode um parecer de caráter vinculatório sobrea necessidade de venda da instituição, dei-xando, no entanto, para a competência doCADE, que, de toda forma deve ser feita deforma integrada com o BC, as consideraçõesde caráter concorrencial, de maneira a ava-liar, se possível for, a melhor solução de mer-cado para a venda (fusão ou incorporação)da instituição financeira em situação de li-quidação ou falência.

São essas as considerações mais perti-nentes que deveriam ser aduzidas no mo-mento para este trabalho. É evidente que opróprio modelo proposto sofrerá críticas emuitas outras idéias mereceriam um desen-volvimento próprio, tal a importância e aamplitude do tema. É o que se espera fazercom o aprofundamento da discussão e comnovas contribuições.

Notas

1 No âmbito decisório do CADE, destacam-seos seguintes casos em ordem de julgamento: caso

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cia, voltadas à garantia de poupança ou segurançados cidadãos, levam a regulamentação a privilegi-ar as empresas sólidas e de grande dimensão (...)Desse modo, a disciplina regulatória nesses setoresenfrenta um problema bastante sério, que consisteexatamente na dificuldade em conciliar dois objeti-vos: higidez e concorrência. Essa conciliação é possíveldesde que se entenda que, na verdade, para proteger osconsumidores e a própria higidez do mercado não é pos-sível abrir mão da garantia da existência da concorrência.Existente uma pluralidade de agentes, e não ummercado monopolizado ou oligopolizado, nenhu-ma quebra poderá pôr em risco o sistema. Da mes-ma forma, a concorrência predatória, ainda que te-mida e combatida, também não será uma ameaçaiminente ao sistema”.

5 “Para mitigar a possibilidade de quebras nosistema bancário, o Estado lança mão de dois ins-trumentos básicos: regulação prudencial e regula-ção sistêmica. Apesar de a distinção entre regula-ção prudencial e sistêmica ser bastante utilizadana literatura, pode-se dizer que o seu papel maior éo de limitar o âmbito de utilização da segunda, namedida em que existe uma relação de complemen-taridade entre ambas. Assim, enquanto a regula-ção prudencial tem como objetivo primordial a pro-teção do depositante, buscando preservar a solvên-cia e a higidez de cada instituição isoladamenteconsiderada, a regulação sistêmica visa proteger osistema bancário como um todo, protegendo o de-positante apenas indiretamente” (CORTEZ apudCAMPILONGO et al., 2002, p. 324).

6 Depois de constituída uma instituição finan-ceira, sujeitando-se aos riscos e às dificuldades paraentrada no mercado, vê-se que o setor bancário des-ponta-se como não suscetível ao free rider, ou seja,ao agente que quer entrar no mercado por um curtoperíodo, quase sem custos, obtendo enorme vanta-gem dessa atuação pontual. Não é um mercadoefetivamente de alta contestabilidade o bancário,também por outros fatores, além do poder econô-mico. Um de cunho psicológico, vez que é impres-cindível a fidelização do cliente bancário, ou seja,ganhar a confiança e a credibilidade do correntista,requisitos indispensáveis para o estabelecimento daintermediação financeira. Essa confiança só se ad-quire com o tempo, impedindo a rápida entrada esaída do mercado. Há outro aspecto, de cunho eco-nômico, mas que se refere às barreiras de saída domercado, conhecido como “sunk costs”, ou seja, oscustos irrecuperáveis, vinculados com a venda deequipamentos usados e com a própria base de da-dos da banca, praticamente inegociáveis diante deuma liquidação.

7 O que não é razoável é estipular-se um capitalacima das exigências normais da regulação pru-dencial, tendo em vista ainda o parâmetro interna-cional de exigência. Aqui sim a regulação é despro-

Banco Francês e Brasileiro (2000); Caso Daimler-Chrysler Administradora de Consórcios (2000),ambos julgados pelo Conselheiro João Bosco Leo-poldino da Fonseca; caso Banco Credibanco (2000);caso Patagon (2001); e, por fim, o paradigmáticocaso da Finasa Seguradora (2001).

2 É naturalmente razoável assumir-se a possi-bilidade da concorrência fixada em bases aceitá-veis para o setor. Realmente são poucas as empre-sas que atuam no setor aéreo, dado os altíssimoscustos financeiros para entrada no mercado, alémda dificuldade de permanência com eficiência eco-nômica (é um setor em eterna crise, crise mundial),mas ainda assim não se pode admitir que as em-presas cartelizem os preços, como conduta anti-concorrencial freqüente no setor. Pode-se dizer queo setor aéreo brasileiro caminha entre o paralelismode conduta (consciente) e o cartel expresso na fixa-ção de preços, tal como se pode ver do ParecerSEAE nº 363/2001/MF/SEAE/COGDC-DF, 11 desetembro de 2001 (disponível em: <http://www.fazenda.gov.br/seae>), analisando uma situ-ação de cartel entre a VARIG, VASP, TRANSBRA-SIL e TAM nos preços da ponte aérea RIO/SÃOPAULO. Mesmo com a entrada da GOL, que decerta forma trouxe uma nova proposta de empresaaérea, com custos mais baixos, o mercado dá sinaisde uma atuação paralela, reconhecendo as empre-sas que a guerra de preços pode ser lesiva a todos.

3 Aqui já se avizinha uma crítica à atuação doBanco Central, que em tópico posterior será maiselaborada. Ora, será que a regulação tão-só desvin-culada dos interesses da autarquia e da própriaorientação de governo para o setor incentiva a es-trutura do mercado bancário atual? Desconside-rando a transição a que se submeteu o setor bancá-rio, em especial com a edição do Plano Real (1994),que mais tarde será debatida, parece-me evidenteexistir uma espécie de “captura” (tal como ideali-zado pela teoria norte-americana) do órgão regula-dor pelos agentes de mercado. Daí um pouco aojeriza das instituições financeiras pela atuação doCADE nos processos de concentração bancária. Osistema tal como posto é ideal e cômodo. Por isso,certamente parte da regulação fixada pelo BancoCentral, sob o pretexto da segurança bancária (queé necessária, mas com adequação), proporciona ummercado cativo e desamparado de concorrência efe-tiva para os agentes participantes. Para utilizar umaterminologia econômica, a captura nesse caso re-sulta num sobrepreço da regulação.

4 Como expõe Calixto SALOMÃO (2001, p. 47):“Essa regulamentação visa a garantir a higidez esegurança do mercado. O problema é que essa garan-tia de segurança cria normalmente, por si só, condiçõespropícias à formação de posições dominantes. Limitadoo acesso, protegido estará o setor da concorrênciaexterna. Por outro lado, as condições de permanên-

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porcional, criando uma barreira injustificável e com-prometendo a concorrência em potencial.

8 As regras estabelecidas pelo Comitê de Basi-léia em 1988 constituem-se o melhor parâmetro dedisposições prudenciais que devem nortear a atua-ção bancária e dos órgãos de supervisão e fiscaliza-ção. Não se exige a adoção integral das disposi-ções, mesmo porque não há sanção para o descum-primento. No entanto, a adaptação do mercadobancário interno às regras do Comitê sinaliza a pre-ocupação de fortalecimento e de segurança do sis-tema bancário, tendo em vista, ademais, o merca-do estrangeiro e global, de vez que o consenso deBasiléia tem efetivado na prática uma harmoniza-ção das regras prudenciais em quase todos os Es-tados desenvolvidos. Recentemente aprovou-se umarevisão das regras do Comitê, intitulando-se agoracomo “Novo Acordo de Capital de Basiléia (2001)”,com regras a serem implementadas pelos Estados,de forma gradativa, até 2004. Texto do novo acor-do (versão em espanhol) está disponível em:<www.bis.org>.

A Resolução nº 1.524/88 estabeleceu a possi-bilidade da abertura de bancos múltiplos, englo-bando as diversas áreas da atuação bancária, per-mitindo a formação de conglomerados financeiros,distanciando-se da idéia vigente nas décadas de 70e 80 de “especialização” e iniciando um processode “concentração”. A criação do banco múltiplopôs fim à carta-patente, exigindo tão-só a préviaautorização do Banco Central para funcionar, noscritérios idealizados pelo acordo de Basiléia. O art.192 da Constituição Federal de 1988 reafirmou ofim da carta-patente para concessão e negociaçãode autorização para funcionamento de instituiçõesfinanceiras, estabelecimentos de seguro, resseguro,previdência e capitalização, além de permitir atransmissão do controle da pessoa jurídica titular,sem ônus, para outra pessoa jurídica cujos direto-res tenham capacidade técnica e reputação ilibada,e comprove capacidade econômica compatível como empreendimento.

10 Dispõe o art. 10, inciso X, letra “g”, da Lei nº4.595/64 que compete privativamente ao BancoCentral conceder autorização às instituições finan-ceiras, a fim de que possam alienar ou, por qual-quer outra forma, transferir seu controle acionário.

11 Assim estipula o art. 30 da Lei nº 4595/64:“As instituições financeiras de direito privado, exce-to as de investimento, só poderão participar de ca-pital de quaisquer sociedades com prévia autori-zação do Banco Central do Brasil, solicitada justifi-cadamente e concedida expressamente, ressalva-dos os casos de garantia de subscrição, nas condi-ções que forem estabelecidas, em caráter geral, peloConselho Monetário Nacional”.

12 Observações interessantes do excelente artigode Viera ORSI (1999, p. 55): “Mas a freqüência da

intervenção dos bancos centrais deve levar em con-ta a potencial criação de uma álea de moralidade(moral hazard), que encoraja a assunção de riscosimportantes, ou de modo irresponsável, pelos agen-tes econômicos. A esse respeito, os bancos centraise os governos procuram aplicar a doutrina da ‘am-bigüidade construtiva’ (constructive ambiguity), cri-ando um clima de incerteza quanto a suas inter-venções; eles não devem se comprometer, em prin-cípio, a adotar medidas específicas se sobrevier umacrise bancária”.

13 Estas eram as reflexões de BREYER (p. 4) em1982: “The criticisms – high cost; ineffectivennesand waste, procedural unfairness, complexity, anddelay; unresponsiveness to democratic control, andthe inerent unpredictability of the end result – donot apply to every regulatory program nor to everyinstance of regulation. They vary in their applicabi-lity from one time, place, and program to another.Moreover, defenders of particular programs and ofregulation in general can respond by pointing toachievements of individual programs or by clai-ming that in the absence of regulation, matterswould be far worse. Yet it seems fair to say thatcriticism of regulation has grown apace with regu-lation itself. There is a perceived public demand forreform, and the reform issue now occupies a placeof importance on the nation’s political agenda.”

14 “In sum, a spillover rationale must be phra-sed in terms of a particular product; it must assu-me that obstacles to bargaining lead to significantlygreater use of a product (or production process)than would be the case if costless bargaining werepossible; and it must assume that the result of in-tervention (taking into account the cost of interven-tion) will better approximate the bargained-for-so-lution. If these assumptions are correct, then inter-vention will reduce allocative inefficiency” (BREYER,1982, p. 26).

15 “In sum, there is little querrel with govern-mental efforts to help consumers obtain necessaryinformation when the information is in fact neededand the intervention lowers the cost of providing it.Critics of intervention tend in particular cases toquarrel with the claim that regulation will lowercosts of its provision” (BREYER, 1982, p. 28).

16 Cf. JUROS e spread bancário no Brasil (1999).Esse trabalho do Banco Central traça um panora-ma dos inúmeros fatores que contribuem para ele-vado spread bancário no Brasil, como juros básicosaltos, crônica inadimplência, custo burocrático elegal , despesas administrat ivas, cunha fiscal ,elevada rentabilidade das instituições financei-ras. A competição sadia certamente é uma efici-ente barreira contra as taxas de juros elevadas.Tal discussão, no entanto, pela importância ecomplexidade que envolve, merece ser tratadaem trabalho autônomo.

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17 George J. STIGLER (1971), prêmio Nobel deeconomia em 1982, reconhecido por seus trabalhosnas áreas de teoria econômica da informação e dosoligopólios e da análise econômica da regulaçãogovernamental e do setor público, escreveu um se-minal artigo sobre a “teoria da captura”, semprecitado, no qual destaca as tarefas principais dateoria da regulação: “The central tasks of theory ofeconomic regulation are to explain who will receivethe benefits or burdens of regulation, what formregulation will take, and the effects of regulationupon the allocation of resources”.

18 É ilustrativa esta crítica de POSNER (1998, p.346: “... es posible que la regulación sea un produc-to, muy semejante a otros productos provistos porel gobierno, demandados por grupos políticos efi-caces e provistos a ellos. Según esta concepción, nose puede presumir que la regulación trate siemprede proteger el interés del consumidor general en elabasto eficiente de los servicos regulados. Ciertoscosumidores podrán demandar una estructura detarifas que, siendo ineficiente en general, les otor-gue beneficios mayores que los costos que les im-pone a ellos en común con otros consumidores. Losmiembros de una industria competitiva puedenbeneficiarse de la imposición de controles a las em-presas de servicios públicos porque la regulaciónde una tarifa mínima provee mayor seguridad enlos precios eficaces de un cartel que el acuerdo pri-vado (al mismo tiempo que coloca al cartel fueradel alcance de las leyes antimonopólicas), y el con-trol regulador de la entrada puede eliminar una delas principales amenazaz para el éxito de un cartel:la entrada de nuevos vendedores atraídos por laesperanza de obtner beneficios monopólicos. Lascoaliciones entre grupos de consumidores de inte-reses especiales (como los embarcadores de ciertosproductos) y miembros de una industria puedenser especialmente eficaces en la manipulación del proce-so regulador”.

19 “O importante para explicar as corridas é ofato de existirem informações incompletas. A idéiapor trás da corrida é que ou uma mancha solar é oestopim da crise, ou os investidores recebem sinaisruidosos (“noisy signals”), indicando a insolvênciado banco, precipitando, dessa forma, a corrida. Naprática, a informação sem custos inexiste, comotambém os indivíduos não têm a capacidade deavaliar rapidamente a saúde dos bancos” (TROS-TER apud CAMPILONGO et al., 2002, p. 289).

20 Um sinal macroeconômico (risco Brasil), as-sociado às modificações das regras de regulaçãodos fundos de investimento, tal como se deu agoraem maio de 2002, em decisão conjunta do BancoCentral e da CVM, por meio da Instrução nº 365,impulsionou o alto volume de retirada dos depósi-tos dos fundos DI e de renda fixa. É certo que nãose tratou de um teste tão-só, uma vez que, com as

mudanças das regras, exigindo-se a marcação amercado da rentabilidade dos fundos, houve per-da do investimento. No entanto, o alto volume deretirada não pode ser creditado somente à efetivaperda. O combustível maior é a assimetria de infor-mações, e mesmo a dificuldade de se fazer umaboa análise das informações que se possui. A des-confiança na gerência dos fundos, que omitiam arentabilidade real do investimento, e no próprioEstado brasileiro em honrar o pagamento dos seustítulos acarretou o efeito generalizado de retirada.

21 Conceito extraído da página da Secretaria deAcompanhamento Econômico do Ministério daFazenda (GLOSSÁRIO, [2001?]).

22 Confira estas interessantes considerações doBanco Central sobre o novo SPB: “O SPB permitirá,ainda, que o BC abrande algumas normas pruden-ciais hoje aplicadas ao sistema bancário. Isso por-que os riscos na liquidação das transações será re-duzido significativamente, como antes demonstra-do, permitindo que seja reduzida a exigência decapital dos bancos. Vale dizer, crescerá a capacida-de de alavancagem do sistema financeiro nacionale, em conseqüência, a capacidade de geração decrédito, o que vem ao encontro dos anseios ao leitormencionado no artigo. (...) Por fim, cabe registrarque, através de seus vários projetos (por exemplo,a redução do spread bancário e reformulação dasupervisão bancária), dentre os quais se inclui o doSPB, o BC tem procurado remover os obstáculosque fazem com que o percentual de crédito aplica-do à produção seja baixo no Brasil” (NASSIF, 2001).

23 Sabe-se, ademais, que o projeto de mudançada legislação falimentar é muito mais amplo, numenfoque de reformulação que privilegia “soluçõesde mercado”, com a incorporação e fusão dasempresas, diminuindo-se o custo social das que-bras. No que toca ao aspecto concorrencial e aosetor bancário, certamente é uma questão a ser ana-lisada e sopesada pelo CADE, nos moldes de umaanálise econômica da falência (custos e benefíciosde um ato de fusão diante de tal situação). Peloaspecto inovador e no que se refere às idéias deuma regulação da falência, veja-se a opinião deUlhoa COELHO: “A recuperação judicial não podesignificar, como visto, a substituição da iniciativaprivada pelo juiz, na busca de soluções para a criseda empresa. Se a sobrevivência de determinada or-ganização empresarial em estado crítico não des-perta o interesse de nenhum agente econômico pri-vado (empreendedores ou investidores), então, emprincípio, as suas perspectivas de rentabilidade nãosão atraentes, quando comparadas com as demaisalternativas de investimento. Ora, se assim é, nin-guém vai perder dinheiro, investindo naquele negó-cio. Contudo, pode ocorrer de a solução de merca-do não se viabilizar por alguma disfunção do siste-ma econômico, como no exemplo do valor idiossin-

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crático. Nesse caso, e com o objetivo de garantir oregular funcionamento das estruturas do livre mer-cado, pode e deve o juiz atuar. Note-se, a soluçãoda crise não é dele, sequer deve ser aprovada porele; o papel do estado-juiz deve ser apenas o deafastar os obstáculos ao regular funcionamento do merca-do” (COELHO, 2002).

24 Muito significativa é esta reflexão de CelsoCAMPILONGO no julgamento do caso Finasa: “Aeconomia pode ser considerada uma enorme zonade transferência de riscos: riscos de investimento,riscos de crédito, riscos de prejuízo. E, talvez porisso, o risco da perda de mercado seja, freqüente-mente, uma conseqüência quase certa da aversãoaos riscos. O mercado bancário redistribui riscosem diferentes esferas: o Banco Central regula al-guns desses riscos; o mercado interbancário outros;e os bancos comerciais, nas relações com seus clien-tes, gerem ainda outros tipos de riscos. Mas os peri-gos do sistema bancário não residem apenas nasquestões de solvibilidade. Os riscos também sãoenormes no campo dos abusos de poder econômico– notadamente se considerada a posição central queos bancos ocupam no interior do sistema capitalista.Qual seria a razão, jurídica ou econômica, para, em nomedo ‘risco sistêmico’, franquear espaços aos riscos de abusodo poder econômico? Nem a Constituição nem o mercadoautorizam esse cálculo pouco prudencial, para usar a lin-guagem da regulação bancária, e nada razoável, para men-cionar a racionalidade antitruste” (BRASIL. CADE. Atode Concentração nº 08012.006762/2000-09).

25 SALOMÃO FILHO, com propriedade, traçao resumo do leading case: “Trata-se do questiona-mento de uma política de preços de vinho vigenteno Estado da Califórnia. Os produtores e atacadis-tas de vinho deveriam registrar fair trade contractsou tabelas de preços perante o Estado, que cuidavade aplicá-las, cominando multas e até cancelar alicença dos infratores. Na decisão (447 US 97(1980)), a Corte Suprema Americana (SupremeCourt) alegou que, embora o Estado da Califórniaautorizasse o estabelecimento de preços, ele nãoestabelecia preços, revisava tabelas ou regulava ostermos do fair trade contracts. O Estado parecia nãose preocupar com as condições de mercado, com adefesa da concorrência e dos consumidores, e, porisso, as leis antitruste eram aplicáveis a este caso”.

26 O caso emblemático da teoria do poder am-plo decidido pela Suprema Corte é “United Statesvs. National Association of Securities Dealers, Inc.”(422 US 694 (1975)).

27 No direito norte-americano, o caso paradig-mático de discussão da não imunidade do setorbancário à aplicação das regras de concorrência éUnited States v. Philadelphia National Bank (374 U.S.321) (1963). Pode se citar também como casos refe-renciais: United States v. First City Nat. Bank (386U.S. 361) (1967) e United States v. Thrid Nat. Bank

(390 U.S. 171) (1968). No âmbito do direito daUnião Européia, o caso modelar é Gerhard Züchner(172/80). Decisão da Comissão de 14 de julho de1981.

28 A análise de Sampaio ROCHA: “O conjuntode medidas preventivas foi bem sucedido em evi-tar o contágio de instituições saudáveis e impedir adeflagração da crise sistêmica, permitindo que areestruturação ocorresse de forma praticamenteindolor para os depositantes e com custo fiscalreduzido para o governo, se comparado com aexperiência internacional de crises bancárias. Naspalavras de Carvalho: ‘o que poderia ter sidouma crise sistêmica parece ter se tornado ape-nas uma situação de distress , ainda que severa(1998: 323)’” (EVOLUÇÃO da ConcentraçãoBancária no Brasil, 2001, p. 13).

29 “Vários elementos sugerem que a tendênciade aquisição de bancos médios regionais com pre-sença no varejo por grandes instituições nacionaisdeverá persistir a médio prazo. O aumento do in-vestimento estrangeiro, seja por meio de entrada deinstituições estrangeiras ou do aumento do capitalinvestido em empresas locais, deverá precipitar areação das instituições nacionais. O aprimoramen-to da regulação prudencial aumentou as diversasexigências quanto ao volume de capital requerido.Novos produtos e tecnologias aumentam a escalamínima viável das operações, enquanto a conver-gência para bancos universais estimula a fusão dasinstituições bancárias com atuação complementar.Por fim, a eventual redução dos juros, à medidaque diminua o lucro unitário das operações de cré-dito, deverá naturalmente eliminar bancos inefici-entes, diminuindo o número de instituições finan-ceiras (...) Este efeito [de aquisições] poderá ser maisacentuado em áreas específicas e poderá ocorrer tanto naforma de elevação de tarifas dos serviços para pessoasfísicas ou na retração de crédito para micros e pequenasempresas” (CAMPILONGO et al., 2002, p. 285).

30 Neste texto, já se referiu algumas vezes semdistinção ao controle de estruturas e ao controle decondutas. É certo que os processos analisados peloCADE, em especial o caso Finasa, debateram o con-trole de estrutura, ou seja, a competência para ojulgamento dos atos de concentração. Daí a razãopara modelagem institucional no que se refere aocontrole estrutural, tal como ocorre com as demaisagências reguladoras. No entanto, como se vê, otexto almeja conferir amplitude ao tema, introdu-zindo também a discussão do controle de condu-tas. No que toca ao controle repressivo (condutas),pode parecer inexistir qualquer razão de conflito,uma vez que as disposições da Lei nº 4.595/64referem-se aos processos de fusão e incorporação.Ledo engano. Embora o controle das estruturas sejaessencial, é a apreciação de condutas que poderátrazer os debates mais acalorados, em especial no

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que se relaciona com o estabelecimento das taxasde juros. Pergunto: até que ponto poderá o CADEapreciar uma concertação para a fixação das taxasde juros? É possível um cartel das instituições fi-nanceiras? Até onde vai a regulação prudencial doBC e a atuação livre das instituições financeirassujeitas ao controle concorrencial? Somente a tí-tulo i lustrativo, confira o paradigmático casoVan Eycke julgado pela Comissão Européia (Pro-cesso 267/86) e notícia publicada no Jornal doBrasil de 05.08.2002: “Banco na mira por for-mação de cartel”.

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Bernardo Leôncio Moura Coelho

1. Introdução

Este trabalho pretende, de forma simples,abordar a questão da globalização, de seusreflexos nas relações trabalhistas e de comoo seu desenvolvimento, agregado a outrosvalores e procedimentos, favorece a utiliza-ção do trabalho infantil.

Os seus efeitos mais perversos são en-contrados nos países subdesenvolvidos,onde há uma imensa massa de trabalhado-res expulsos da rede produtiva, conseqüen-temente de toda rede de proteção, e onde énecessária a participação de todos os mem-bros da família na busca de fontes de sus-tento.

O Brasil, apesar de pertencer a um blocode países que orbitam entre o desenvolvi-mento e o subdesenvolvimento e possuiruma legislação avançada de proteção à cri-ança, também sofre os efeitos da globaliza-ção e da conseqüente precarização dos di-reitos, também resultado da ruptura do con-ceito de Estado-Nação, como será observa-do no decorrer do trabalho.

Segundo os dados do último PNAD –Programa Nacional de Amostragem porDomicílio, verificamos no Brasil um decrés-cimo na utilização das crianças no traba-

Considerações sobre a globalização e seusefeitos sobre o trabalho infantil

Bernardo Leôncio Moura Coelho é Procu-rador do Trabalho da 15ª Região – MPT, Mestreem Direito Constitucional pela Faculdade deDireito da Universidade Federal de Minas Ge-rais, Membro da Coordenação Colegiada doFórum Paulista de Prevenção e Erradicação doTrabalho Infantil.

Sumário

1. Introdução. 2. A globalização e as rela-ções trabalhistas. 3. A questão do trabalho in-fantil e os efeitos decorrentes da globalização.

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lho, mas ainda ostentamos a marca de maisde seis milhões de crianças trabalhando, deforma contínua ou não. Contudo, esse pro-cesso de decréscimo encontra-se estabiliza-do, sendo que a maior parte da redução ocor-reu nos primeiros anos da última década.

A pobreza ainda é a causa principal dotrabalho infantil, sendo necessária a imple-mentação de políticas públicas que possi-bilitem o acesso das famílias a programas ge-radores de renda para que o ciclo perverso dapobreza não se eternize. Sabemos que umacriança que não teve acesso ao ensino formaltende a repetir o ciclo de vida de sua família.

Algumas iniciativas vêm sendo toma-das, mas é necessário um trabalho conjuntopara que os efeitos da globalização não em-purrem essas crianças para o trabalho.

2. A globalização e as relaçõestrabalhistas

Poderíamos conceituar a globalizaçãocomo o processo pelo qual o espaço mundi-al adquire unidade (MAGNOLI, 1997, p. 7).Todavia, esse fenômeno não é novo; pode-se marcar seu início com as grandes nave-gações, por meio das quais os grandes paí-ses buscavam a unidade do comando polí-tico. O que chama a atenção é sua acelera-ção, que segue o mesmo ritmo de toda a evo-lução da ciência e da tecnologia.

No início da Revolução Industrial, naInglaterra, como reação à perda de postosde trabalho pela introdução das máquinasnas linhas de produção, aconteceu o Movi-mento Ludita, que consistia na destruição,na madrugada, das máquinas utilizadas,pretendendo, com isso, a manutenção deempregos e modo de vida.

A reação dos trabalhadores acontecenovamente, com diferentes proporções, aoprocesso de globalização e flexibilização daeconomia.

Os postos de trabalho fechados não es-tão sendo recriados após o ciclo econômicode estagnação e, quando criados, não aten-dem ao movimento crescente da população,

tendo Ives Gandra MARTINS (1996, p. 591)acentuado suas causas:

“Entendo que há um desempregoestrutural decorrente de três causasprincipais, a saber: globalização daeconomia, falência do Estado e obso-lescência do Direito. E há, no Brasil,um desemprego conjuntural decorren-te do Plano Real, que implica perdada competitividade nacional peranteo concorrente estrangeiro, por força dadefasagem cambial, carga tributáriaexcessiva e juros mais elevados queno mercado mundial.

O desemprego estrutural é eviden-te. A globalização da economia, nomomento irreversível, leva a uma com-petitividade selvagem, em que a má-quina afasta o homem e a tecnologiasubstitutiva cresce em proporção geo-métrica contra a progressão aritméticade criação de empregos, mesmo em ha-vendo desenvolvimento econômico”.

Neste ponto, é necessário que façamos adistinção entre desemprego estrutural e de-semprego conjuntural.

O desemprego estrutural consiste no ali-jamento de massas da população do merca-do de trabalho por períodos longos, ao passoque o desemprego conjuntural é provocadopelas fases de recessão do ciclo econômico.

Os jovens são particularmente atingidospelo desemprego estrutural, que elimina asportas de acesso às grandes corporações ecria uma descontinuidade entre o aprendi-zado profissional e o ingresso na carreira(MAGNOLI, 1997, p. 65).

Quanto aos efeitos da globalização nasrelações de trabalho, Ermida URIARTE (apudBELTRAN, 1997, p. 492-493) avalia que po-dem ser sistematizados em três grandes gru-pos: efeitos supostamente positivos, efeitosnegativos e efeitos imponderáveis a priori.

Os efeitos negativos são os primeiros aserem sentidos, como o desemprego. Outraspráticas também serão sentidas, destacan-do-se que “outro efeito social negativo da in-tegração, prevê-se, é o risco do dumping social.

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Algumas empresas serão tentadas a procu-rar competitividade às custas das condiçõesde trabalho, e o que é pior, com a tolerânciae, quiçá, o incentivo de alguns governos”(URIARTE apud BELTRAN, 1997, p. 492).

Como nos fala Octávio IANNI (1997), “aglobalização do mundo expressa um novociclo de expansão do capitalismo, comomodo de produção e processo civilizatóriode alcance mundial. Um processo de am-plas proporções envolvendo nações e na-cionalidades, regimes políticos e projetosnacionais, grupos e classes sociais, econo-mias e sociedades, culturas e civilizações”.

Essa recriação do capitalismo implica acompreensão de novas tecnologias, novosprodutos, numa reagrupação das forças pro-dutivas: capital, tecnologia, força de traba-lho e divisão do trabalho.

O antigo processo de organização do tra-balho e da produção, baseado no fordismo,passa a ser flexibilizado para um padrãomais sensível às novas exigências do mer-cado mundial, combinando produtividade,inovação e competitividade, desterriatoria-lizando coisas, gentes e idéias.

Ao mesmo tempo em que ocorrem mu-danças no capital, que perde suas frontei-ras, ele traz consigo a criação e reproduçãode desigualdades, carências, inquietações,tensões e antagonismos.

A globalização conspira contra o desen-volvimento, na medida em que os países ri-cos sempre dominarão as relações globali-zadas, utilizando-se dos países subdesen-volvidos para a produção de seus projetos.

As normas não têm a capacidade de trans-formar a realidade social. Elas cristalizamrelações sociais em determinados momentos.Se existir uma distância entre a norma e arealidade social, a aplicação da norma podedeixar às claras a realidade social nua e crua.

3. A questão do trabalho infantil e osefeitos decorrentes da globalização

As conseqüências da globalização de-pendem, em grande parte, da estruturação

da sociedade. Quanto pior a distribuição derenda, maior os malefícios, tendendo a au-mentar o fosso das desigualdades.

São poucas as formas de vida e trabalho,de ser e imaginar, que permanecem incó-lumes diante da atividade predatória domercado, empresas, forças produtoras ecapital.

É importante ressaltarmos que a globali-zação que está em emergência não é apenasa econômica. Ela é, com certeza, a âncora detodo o processo, mas seus efeitos espraiamo mero fato econômico para influenciar ou-tros ramos, que geram efeitos que atingem otrabalho infantil.

A globalização jurídico-política, “consis-tente no deslocamento da capacidade deformulação, de definição e de execução depolíticas públicas, antes radicada no Esta-do-Nação, para arenas transnacionais ousupranacionais” (FREITAS JÚNIOR, 1997,p. 210), decorre da globalização econômicae seus efeitos alcançam o poder soberanodos Estados Nacionais.

Esse deslocamento da formulação, defi-nição e execução de políticas públicas paraa transnational corporation resulta no fenô-meno da soberania relativa, na qual o Esta-do-Nação entra em crise pela superação dassuas fronteiras. Com a soberania relativa,vinda com a globalização, o Estado-Naçãoperde seu poder de autogoverno, sua auto-gerência termina, sendo seu papel exercidopela transnational corporation.

Essa nova reorganização do mercadotraz mudanças na concepção de trabalhoinfantil.

O trabalho é um instrumento de realiza-ção da pessoa humana. Entretanto, com re-lação à criança e ao adolescente, subordi-na-se a outros valores mais fundamentais,tais como: o direito de ser criança, direito àeducação, ao convívio familiar, à saúde, aolazer, à fantasia.

Esses são valores que não podem ser sa-crificados em hipótese alguma, sob pena dedanos irreparáveis ao desenvolvimento fí-sico e psicossocial da criança e do adoles-

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cente, e que exigem políticas públicas e açõesde todos os segmentos da sociedade.

Após a promulgação da Emenda Cons-titucional nº 20, alterou-se a idade mínimapara admissão ao trabalho. O início do tra-balho será apenas aos 16 anos, podendoocorrer um contrato de aprendizagem a par-tir dos 14 anos, sob severa regulamentação.

Seria muita ingenuidade supor que ape-nas a fiscalização por parte dos órgãos pú-blicos e entidades civis seria capaz de resol-ver o problema do trabalho infantil, poiscomportamentos e mitos profundamenteenraizados na cultura da sociedade não seeliminam apenas com a ação fiscalizatória.

Há relatos de crianças que querem tra-balhar e fazem manifestações contra as proi-bições. Mas não é porque querem é que podem,pois nem elas nem os adultos sabem dosriscos do trabalho infantil.

As crianças são mais suscetíveis paralesões, prejuízos, ferimentos e doenças rela-cionadas ao trabalho, realizando as mesmastarefas do adulto. Segundo GRUNSPUN(2000), “enfrentam perigos ou são corajososnão porque são heróis, mas porque são men-talmente imaturos”.

Todo ambiente de trabalho, em maior oumenor grau, apresenta riscos específicospara a saúde e integridade física do traba-lhador. Esses riscos são mais evidentes paraa criança, por seu organismo ser mais vul-nerável.

Ao contrário do que se imagina, a pro-porção de crianças que participam na ativi-dade econômica é muito maior nas áreasrurais do que nos centros urbanos.

A agricultura é um dos setores que ofere-cem maiores riscos para a saúde e integri-dade física do trabalhador precoce, decor-rentes especialmente do seguinte: ferramen-tas manuais (foice, enxada, facão , etc.), veí-culos e implementos agrícolas (tratores, co-lhedeiras, carretas, etc.), animais, máquinase instalações (motores, eletricidade), con-tato com agrotóxicos, esforços físicos qua-se constantes, exposição prolongada aocalor, ao sol, ao vento, a poeiras e a inse-

tos, exposição a enfermidades endêmicas eparasitárias.

Segundo dados da Organização Interna-cional do Trabalho, em algumas localida-des, a morte produzida por envenenamen-to, decorrente do uso de pesticidas, é supe-rior a outras mortes por doenças.

A indústria de um modo geral tambémapresenta sérios riscos ocupacionais para oadolescente: ambientes de trabalho fecha-dos, com calor excessivo ou mal ilumina-dos, sem ventilação, mobiliário inadequa-do, posturas incorretas, ruído excessivo,presença de contaminantes atmosféricos(gases, vapores, poeiras), máquinas semproteção, jornada de trabalho excessiva esem descanso, levantamento de peso exces-sivo, instalações sanitárias inadequadas esem higiene, tarefas monótonas e repetiti-vas, má organização do trabalho (ritmo ace-lerado, ganho por produção, horas extras,etc.).

O comércio e a prestação de serviços ofe-recem menores riscos que a agricultura e aindústria, mas também podem causar sériosdanos à saúde e à integridade física do ado-lescente, como: tarefas repetitivas, excessode jornada de trabalho, mobiliário inade-quado, trabalho noturno, risco de atropela-mento pelo exercício de atividades em viasde trânsito de veículos.

O próprio trabalho em escritórios, apa-rentemente inofensivo, oferece uma série deriscos decorrentes do chamado “prédio do-ente”, como, por exemplo, bronquite, pneu-monia, rinite e faringite decorrentes do ar-condicionado sem manutenção.

O trabalho precoce, além dos perigos fí-sicos, apresenta repercussões no psiquismoda criança.

Estudos têm indicado que condições edeterminados modos de organização do tra-balho podem estruturar determinados mo-dos de sofrimento psicológico. A vivênciada obrigatoriedade do trabalho quando oindivíduo mal ultrapassou a fase de socia-lização primária; a vivência da escolariza-ção e do trabalho, ou apenas este último,

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quando a criança deveria estar se preparan-do formalmente para oferecer uma mão-de-obra mais qualificada.

A criança assume responsabilidadescom a própria sobrevivência ou a do grupo,num momento em que estrutura sua identi-dade e autoconfiança.

Mas como a globalização atinge o traba-lho infantil?

Com a globalização e o aumento da con-corrência internacional, as empresas empre-gam mão-de-obra de ilegais, com baixo sa-lário. A maioria dos baixos salários é paraas mulheres. Entretanto, em diversos paí-ses, as empresas internacionais empregamcrianças que executam trabalhos como ex-ploração para baixar os preços dos produ-tos e ganhar da concorrência. Nesses paí-ses, as crianças não são obrigadas a ir paraa escola e se especializam em tarefas queinteressam às empresas globalizadas. Sãoexemplos dessa exploração a fabricação detênis e bolas de futebol, amplamente divul-gados pelos meios de imprensa em todo omundo.

Essa exploração ocorre também nos cha-mados sweatshops, onde crianças fazem oacabamento em casa de roupas, calçados,bolsas, cintos, de produtos das fábricas ondeos pais trabalham ou recolhidos em outrasfábricas ou oficinas. Com a terceirização, ospais são contratados para executar o traba-lho em casa e o executam com o auxílio dosfilhos ou os trabalhos são executados emgrande parte por crianças.

Essa situação perdurou por muito tem-po no setor calçadista da cidade de Franca-SP, onde os pais, retirados da proteção la-boral pelos efeitos da terceirização desen-freada que atingiu a produção, foram força-dos a prestar serviços em suas casas, porpreços muito inferiores aos que receberiamcaso fossem contratados. Para que o susten-to da família seja conseguido, todos devemser engajados na produção, não se excluin-do os próprios filhos.

A pobreza ainda é a causa principal dotrabalho infantil, mas a demanda para essa

mão-de-obra constitui um dos importantesfatores que impulsionam as crianças ao tra-balho precoce. Os empregadores recorrem àmão-de-obra infantil por diversas razões,seja por seu menor custo, ou seja, reduçãode despesas para poder colocar o produtono mercado pelo menor preço, seja por ou-tras razões não econômicas, como por suadestreza no desenvolvimento de certos tra-balhos (“dedos ágeis”).

“Entre las muchas razones no pe-cuniarias se cuenta sobre todo el he-cho de que los niños desconocem mássus derechos, son menos rebeldes yestán más dispuestos a acatar las ór-denes y a hacer un trabajo monótonosin quejarse [...] son más dignos deconfianza y menos proclives a robar;y es menos probable que se ausentendel trabajo. La proporción menor deabsentismo de los niños es especial-mente interesante para los empleado-res del sector no estructurado, en elcual se trabaja por jornadas y en for-ma ocasional, por lo que hay que en-contrar cada día a todos los trabaja-dores necesario” (ORGANIZAÇÃOINTERNACIONAL DO TRABALHO,1996, p. 22).

O setor citrícola paulista, utilizando-sedo mesmo discurso, empregava crianças nacolheita de laranjas, havendo dados da uti-lização delas mesmo por cooperativas detrabalho nas fazendas das grandes produ-toras.

A utilização de cooperativas, na reali-dade falsas cooperativas na maioria doscasos, buscava apenas a redução de custosna contratação de mão-de-obra sempre em-pregada para colheita dos produtos, parapossibilitar a entrada dos produtos com pre-ços mais baixos no mercado internacionalglobalizado.

Esses problemas geraram repercussõesnão só dentro de nossa sociedade, com açõesdesenvolvidas pela sociedade civil e pelosórgãos responsáveis pela fiscalização e con-trole, mas também no exterior.

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Para especialistas, a mudança na idademínima, com a adoção de dezesseis anos, édistante da realidade, tornando-se combus-tível para campanhas internacionais con-tra produtos brasileiros. O país condena otrabalho de menores de 16 anos, mas nãoconsegue coibi-lo e ainda fatura divisas coma exportação de produtos que embutem amão-de-obra infantil. Logo, torna-se alvo deretaliações.

Nesse sentido, pelo menos quinze seto-res responsáveis por um quarto das expor-tações brasileiras poderiam ser atingidospor algum tipo de represália.

Recentemente, congressistas estaduni-denses manifestaram-se sobre o tema, al-guns defendendo medidas retaliatórias aoBrasil por manter práticas imorais e injus-tas, referindo-se ao trabalho infantil.

É preciso atentar para o fato de que essesdiscursos também se encontram embutidosde condutas que buscam justificar medidasprotetivas para os produtos produzidos nopaís, como ocorre hoje com a produção deaços planos. Esse alerta foi dado pelo entãoMinistro das Relações Exteriores Luiz Feli-pe LAMPREIA (2000) ao enunciar que “[oBrasil] não pode aceitar que legítima preo-cupação da sociedade civil seja transforma-da em novas formas de protecionismo”. To-davia, apresentam um importante elementode alerta para os exportadores.

“Os consumidores nos países desenvol-vidos eram alertados para o fato de, semsaber, estarem comprando artigos fabrica-dos por empresas inescrupulosas, cujascondições de trabalho estavam abaixo dospadrões geralmente aceitos, e, por isso, po-deriam estar contribuindo para a explora-ção de seres humanos” (USP/OIT, p. 8).

Como resultado dessas pressões, foramcriados selos sociais para certificar a nãoocorrência de trabalho infantil na cadeiaprodutiva dos produtos de determinadoramo econômico.

No Estado de São Paulo, temos o selo“Empresa Amiga da Criança”, da Funda-ção Abrinq pelos Direitos da Criança, e o

“Selo Pró-Criança”, do Instituto Pró-Crian-ça de Franca.

O selo “Empresa Amiga da Criança”, daFundação Abrinq pelos Direitos da Crian-ça, foi criado em 1995 com a finalidade deconferir selo social a empresas que se com-prometessem a não empregar crianças eadolescentes em idade abaixo da permiti-da, a divulgar a legislação sobre o empregode crianças e adolescentes e a operar ou fi-nanciar ações em benefício de crianças.Apesar da certificação concedida, não hámonitoramento da existência de trabalhoinfantil nas empresas certificadas, funcio-nando mais com papel de mobilização dasociedade. “Este é um dos aspectos maiscontroversos, e, para muitos, a falha princi-pal do Programa” (USP/OIT, p. 43).

O selo “Pró-Criança”, do Instituto Pró-Criança de Franca, foi criado em 1996, res-trito à indústria calçadista, após as denún-cias de trabalho infantil na confecção decalçados naquela cidade. Para ingresso noprograma, a empresa deve firmar um com-promisso de que não emprega crianças e nãocontratará de terceiros que o fazem, especi-almente das “bancas”.

A globalização é um processo irreversí-vel e do qual nenhum país conseguirá esca-par. Mas é necessário frisarmos que o capita-lismo global favorece muito mais os paísesindustrializados, que detêm o capital neces-sário para funcionar a engrenagem do comér-cio mundial, do que os países em desenvolvi-mento, que necessitam de capital para cres-cerem. Somente quando houver igualdadeentre os países será possível avaliarmos asconseqüências do processo que nos assola;mas, como essa situação é idílica, sempre es-taremos correndo atrás da nossa sombra, como ser humano a serviço da economia.

Bibliografia

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José Elaeres Marques Teixeira

1. Introdução

O poder constituinte é um dos temas cen-trais do constitucionalismo moderno, sem-pre presente em qualquer estudo a respeitodas origens da Constituição, daí a relevân-cia da investigação científica sobre a con-cepção que dele se tem. Com essa idéia, pro-curar-se-á explicitar, neste texto, as funções,a natureza e os limites do poder constituin-te originário e reformador. Tratar-se-á comespecial destaque dos limites materiais dopoder constituinte reformador, um dos pro-blemas mais difíceis na temática constitu-cional e sobre o qual há sérias divergênciasentre os publicistas. Ao final, um breve re-sumo dos pontos abordados e das posiçõesdoutrinárias identificadas envolvendo otema.

O poder constituinte originário e o poderconstituinte reformador

José Elaeres Marques Teixeira é Procura-dor Regional da República em Brasília e Mes-trando em Direito, Estado e Sociedade pelaUniversidade Federal de Santa Catarina –UFSC.

Sumário

1. Introdução. 2. Poder constituinte ori-ginário: função. 2.1. Natureza. 2.2. Limites.3. Poder constituinte reformador: função. 3.1.Natureza. 3.2. Limites temporais. 3.3. Limi-tes circunstanciais. 3.4. Limites materiais.3.4.1. Correntes doutrinárias sobre limitesmateriais de revisão. 3.4.2. Limites materiaisexplícitos e implícitos. 4. Conseqüências dainobservância dos limites do poder consti-tuinte originário e reformador. 5. Conside-rações finais.

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2. Poder constituinteoriginário: função

No período da revolução francesa, SI-EYÈS (1988, p. 114-115), um dos princi-pais teóricos do poder constituinte, escre-veu que há três momentos na formaçãodas sociedades políticas. No primeiro mo-mento, um número considerável de indi-víduos manifesta intenção de agrupar-se:aí já surge a nação e os direitos própriosdela. O poder tem origem nesse momento,em razão do jogo de vontades individuais.No segundo momento, surge a vontade co-mum, que é a de dar consistência à associ-ação. Para isso, tais indivíduos escolhementre eles alguns para atuarem como umcorpo de delegados, porquanto, por seremnumerosos e geograficamente dispersos,não detêm condições de implementar avontade comum. A esse corpo de delegados éconferida porção necessária do poder to-tal da nação para que estabeleçam meca-nismos necessários à manutenção da boaordem. O terceiro momento é caracteriza-do pela manifestação da vontade comumrepresentativa, a qual não é exercida, por-tanto, por direito próprio, mas como di-reito de outrem.

No segundo momento desse processo éque nasce a Constituição, como obra do po-der constituinte originário, cuja principalfunção é positivar a vontade comum da na-ção. Nessa tarefa, cabe-lhe adotar as deci-sões fundamentais sobre o modo e a formade existência política da sociedade e, nassociedades democráticas, estabelecer a se-paração de poderes, a forma de sua aquisi-ção e de seu exercício, bem como os direitosfundamentais.

2.1. Natureza

Como expressão da vontade política dasociedade, o poder constituinte origináriotem a natureza de poder político, porque exer-cido não com base em norma jurídica, masfundamentado apenas na intenção naturalda comunidade.

2.2. Limites

SIEYÈS (1988, p. 117), no seu texto de1789, não é suficientemente claro sobre aexistência de limites ao poder constituinteoriginário. Porém, nas entrelinhas, dá a en-tender que estaria ele limitado pelo Direitonatural. Com efeito, ao mesmo tempo em queassevera que a “nação existe antes de tudo,ela é a origem de tudo”, e que a sua vontadeé a própria lei, também admite que antes e“acima dela só existe o direito natural”.

Desse pensamento compartilha JorgeMIRANDA (1988, p. 87), quando afirma ca-tegoricamente que o poder constituinte estásujeito a limitações. Para ele, o poder consti-tuinte não é um poder soberano, absoluto,no sentido de atribuir à Constituição todo equalquer conteúdo, sem observar quaisquerprincípios, valores ou condições. Ao con-trário, está sujeito a limites transcendentes,provenientes “de imperativos de Direitonatural, de valores éticos superiores, de umaconsciência jurídica colectiva”, que não po-dem ser ultrapassados. Aponta os direitosfundamentais como parte desses limites esustenta que não se poderia admitir comoválido e legítimo “decretar normas consti-tucionais que gravemente os ofendessem”.

Carl SCHMITT (1996, p. 78) já não é des-se entendimento. Segundo ele, o poder cons-tituinte originário é soberano. E, no exercí-cio dessa soberania, não está sujeito a limi-tes outros que não aqueles estabelecidos porele próprio. Assim, pode adotar todas asdecisões que entender necessárias para omomento, como o faria uma ditadura. A pro-pósito, atribui ele à assembléia constituintea característica de uma “ditadura sobera-na”, na medida em que substitui todas asanteriores leis constitucionais por outras.Mas ressalva que, como não é soberanapor si mesma, porque comissionada pelopovo, pode a todo momento, por uma açãopolítica, ser desautorizada a prosseguirseu trabalho.

Identifica-se, na doutrina brasileira,como partidário dessa última posição, Pau-

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lo BONAVIDES (2001, p. 179), para quem opoder constituinte originário é dotado de“competência ilimitada e soberana”.

3. Poder constituintereformador: função

Porque a sociedade está em constantemutação, não se pode pretender umaConstituição imutável, não sujeita a alte-rações após a sua promulgação pela as-sembléia constituinte. É certo que tal idéia– a da imutabilidade da Constituição –foi defendida por alguns iluministas doséculo XVIII, que ingenuamente imagina-ram possível uma Carta de princípios de-baixo da qual a sociedade viveria parasempre. Mas, se a Constituição é resulta-do da vontade comum de um determinadogrupo social, em havendo redireciona-mento dessa vontade, há necessidade dereforma do seu texto. Do contrário, o ca-minho que restaria para os momentos decrise seria o da força e da violência.

Nessa perspectiva, o poder de reformada Constituição tem caráter instrumental,no sentido de que a ele incumbe a defesada Constituição, proporcionando os acer-tos e as acomodações necessárias em ra-zão das crises políticas que invariavel-mente ocorrem.

3.1. Natureza

Como poder que tem origem na própriaConstituição, o poder de reforma é um po-der derivado, jurídico e limitado. Derivadoporque decorre do poder constituinte origi-nário; jurídico porque está contido na Cons-tituição; e limitado porque um “corpo sub-metido a formas constitutivas só pode deci-dir algumas coisas segundo a Constituição”(SIEYÈS, 1988, p. 124).

Na doutrina, praticamente não há diver-gências sobre ser o poder de reforma umpoder derivado e jurídico. O debate está emtorno dos limites da reforma constitucional,especialmente dos limites materiais, comomais adiante se verá.

3.2. Limites temporais

Via de regra, a reforma da Constituiçãopode ocorrer a todo tempo, bastando paraisso apenas ambiente político favorável. Éassim na maioria dos países. Porém, há ca-sos em que a Constituição só admite altera-ção após certo tempo da sua promulgação,ou de tempos em tempos. Exemplos maismarcantes são os da Constituição francesade 1791, que proibiu reforma no período dasduas primeiras legislaturas que se seguiramà sua promulgação, e Constituição norte-ame-ricana, que no seu Artigo V estabeleceu: “(...)Nenhuma emenda poderá, antes do ano de1808, afetar de qualquer forma as cláusulasprimeira e quarta da Seção 9, do Artigo I (...)”.

A razão desse tipo de limitação, segun-do Paulo BONAVIDES (2001, p. 176), é pro-porcionar a consolidação da “ordem jurídi-ca e política recém-estabelecida, cujas insti-tuições, ainda expostas à contestação, care-cem de raiz na tradição ou de base no as-sentimento dos governados”.

3.3. Limites circunstanciais

Os limites circunstanciais existem paravetar qualquer reforma em situações de cri-se institucional, que se caracterizam comoexcepcionais. Em razão do ambiente que seinstaura nesses momentos, impróprios parao debate não tendencioso, fica impedida aalteração da Constituição. No caso brasilei-ro, a Constituição de 1988 estabelece nãoser possível a sua emenda na vigência deintervenção federal, estado de defesa ou es-tado de sítio (art. 60, § 1º).

3.4. Limites materiais

Os limites materiais têm que ver com oobjeto da reforma. Certas matérias que estãona Constituição se tornam imutáveis, nãopodendo sofrer alteração. Assim, ficam osórgãos com competência para a reformaimpedidos de sobre elas deliberar.

Noticia Jorge MIRANDA (1988, p. 152)que a primeira Constituição moderna a fi-xar limitações materiais ao poder de refor-

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ma foi a norte-americana, a qual estabeleceque nenhum Estado poderá ser privado, semo seu consentimento, do direito de igualda-de de voto no Senado, considerando os de-mais Estados ali representados (Artigo V), eque é garantida em cada Estado que com-põe a União a forma republicana de gover-no (Artigo IV, Seção 4).

No Brasil, desde a Constituição de 1891,têm sido estabelecidas limitações materiaisao poder de reforma. Com efeito, verifica-sedo seu art. 90, § 4º, que não poderiam “seradmitidos como objeto de deliberação, noCongresso, projetos tendentes a abolir a for-ma republicano-federativa, ou a igualdadeda representação dos Estados no Senado”.Limitações materiais da atual Constituiçãoestão no art. 60, § 4º, segundo o qual nãopoderá ser objeto de deliberação a propostade emenda tendente a abolir a forma federa-tiva de Estado, o voto direto, secreto, univer-sal e periódico, a separação dos Poderes eos direitos e garantias individuais.

3.4.1. Correntes doutrinárias sobrelimites materiais de revisão

Sobre os limites materiais de revisão,existem, basicamente, três correntes doutri-nárias, a saber: 1a) considera imprescindí-vel o estabelecimento de limites materiaisde revisão; 2a) não admite limites materiaisde revisão; 3a) admite cláusulas de limitesmateriais, mas as considera suscetíveis deremoção, por meio da dupla revisão.

Para aqueles que se filiam à primeiracorrente, o poder de revisão, porque poderconstituído, não pode ir contra aquilo que opoder constituinte originário estabeleceucomo fundamental, devendo “respeitar ospreceitos que, explicitando uma proibição,denotam a consciência da idéia de Direito,do projecto ou do regime em que se corpori-za” (MIRANDA, 1988, p. 166).

Para os adeptos da segunda corrente,não há diferença entre poder constituinte epoder de revisão. Ambos são a expressãoda soberania do Estado e exercidos por re-presentantes do povo. Também não há dife-

rença entre normas constitucionais originá-rias e supervenientes, porque o importanteé que compõem a Constituição formal. As-sim, vale a regra geral da revogabilidade dasnormas anteriores pelas posteriores.

Os que seguem a terceira corrente enten-dem que as normas de limites materiais derevisão podem ser modificadas e até mesmorevogadas. Com isso, estaria aberto o cami-nho para, após esse primeiro passo, “seremremovidos os próprios princípios corres-pondentes aos limites” (MIRANDA, 1988,p. 168). Para estes, as cláusulas de limitesmateriais, enquanto estiverem em vigor, sãode observância obrigatória; porém, tais comoas demais normas constitucionais, podemser objeto de revisão.

Sem admitir explicitamente que se filia àterceira corrente, Jorge MIRANDA (p. 173),porém, não atribui valor absoluto às cláu-sulas de limites explícitos, afirmando quetais cláusulas devem ter uma interpretaçãoobjetiva e atual, nada impedindo “que o pro-cesso de revisão – não a revisão – seja utili-zado para uma transição constitucional”.Para sustentar sua posição, diz que há dife-rentes categorias de limites: umas que in-cluem princípios fundamentais; outras que,embora abrangidas pelos limites materiais,não se identificam com a essência da Cons-tituição material (p. 176). Como por trás dopoder de revisão está latente o poder consti-tuinte originário, aquele pode converter-seneste e ser reconhecido como tal (p. 195-196).

Em sentido diverso é o entendimento dePaulo BONAVIDES (2001, p. 179), que sus-tenta não ter o poder revisor competência“para modificar o próprio sistema de revi-são”. Segundo ele, somente o poder consti-tuinte originário pode alterar o procedimentode reforma da Constituição. Essa é a posi-ção seguida pela maioria dos publicistas,entre os quais Carl SCHMITT (1996, p. 114).

3.4.2. Limites materiais explícitos eimplícitos

Os limites materiais explícitos são aque-les contidos em cláusulas da Constituição

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que limitam a competência do poder revi-sor. Essas cláusulas, quanto ao alcance,podem ser gerais ou individualizadoras decertos princípios; e, quanto ao objeto, podemabranger toda e qualquer matéria constitu-cional. Jorge MIRANDA (1988, p. 155-156)inclui uma terceira classificação, atinente ànatureza das cláusulas de limites, afirman-do que elas podem ser específicas da revi-são constitucional ou do próprio poder cons-tituinte originário, na medida em que estetambém tem suas limitações.

Os limites materiais implícitos são aque-les contidos e identificados ao longo do textoconstitucional, decorrentes dos princípios, doregime e da forma de governo adotados. ParaPaulo BONAVIDES (2001, p. 178), tais limi-tações “são basicamente aquelas que se re-ferem à extensão da reforma, à modificaçãodo processo mesmo de revisão e a uma even-tual substituição do poder constituinte de-rivado pelo poder constituinte originá-rio”. Assim, não é possível, por exemplo, arevisão total da Constituição, embora nãohaja cláusula a respeito, ou a remoção de umsimples artigo que, não obstante, abale os ali-cerces de todo o sistema constitucional. Emhipóteses como essas, configura-se o que seconvencionou chamar de “fraude à Consti-tuição”, porque, apesar de a forma ser obser-vada, “altera-se o fundo ou a base dos valo-res professados” (BONAVIDES, 2001, p. 179).

4. Conseqüências da inobservânciados limites do poder constituinte

originário e reformador

Para aqueles que adotam entendimento deque o poder constituinte originário está sujeitotambém a limites, a preterição destes equivale auma revolução. No que se refere ao poder re-visor, uma lei de revisão que estabeleça nor-mas contrárias a princípios constitucionaisabrangidos pelos limites materiais, explíci-tos ou implícitos, ou que insira no texto cons-titucional, como limites materiais expressos, prin-cípios que se choquem com os princípios funda-mentais é materialmente inconstitucional.

5. Considerações finais

O poder constituinte, tal como o conce-bemos hoje, tem como titular a nação, de-vendo ser a expressão da vontade comum,positivada na Constituição. Quando origi-nário, tem natureza política; quando deri-vado, sua natureza é jurídica.

Há divergências na doutrina sobre os li-mites do poder constituinte originário. En-quanto alguns defendem que ele é sobera-no, sujeito apenas a limitações por ele pró-prio estabelecidas, outros sustentam queencontra limites no Direito natural.

No que toca ao poder constituinte deriva-do, identificam-se três tipos de limitações,quais sejam: limitações temporais, limitaçõescircunstanciais e limitações materiais. O focodas divergências existentes se situa nessasúltimas, havendo, nos extremos, aqueles queas defendem com fervor, não admitindo quesejam desrespeitadas em nenhuma hipótese,e aqueles outros que sustentam não ser possí-vel a existência de normas insuscetíveis derevisão. Numa posição intermediária, estãoos que toleram as limitações materiais, masapregoam a possibilidade de serem removi-das, por meio da dupla revisão. Ao lado daslimitações materiais expressas, admite-se aexistência de limites implícitos.

A revolução é apontada como equivalen-te ao desrespeito aos limites do poder cons-tituinte originário e a inconstitucionalida-de material, o resultado de uma norma quenão atente para os limites do poder revisor.

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Demóstenes Tres Albuquerque

1. Introdução

O presente trabalho tem por objetivo fa-zer uma singela comparação entre o novoCódigo Civil e a legislação codificada ante-rior, na parte que trata do Direito das Coi-sas. O estudo não tem por escopo uma aná-lise vertical, aprofundada, das questões no-vas colocadas pelo legislador, mas fazeruma investigação exploratória do novo Di-ploma em caráter horizontal e sem nenhumjuízo de valor acerca das modificações. Nãose trata de trabalho crítico, mas meramentedescritivo.

A entrada em vigor da Lei nº 10.406/2002, que institui o novo Código Civil Bra-sileiro, trará algumas modificações eminstitutos já consagrados do direito pri-vado, notadamente em relação ao direitodas coisas.

Assim, buscou a Norma tomar partidoem controvérsia doutrinária a respeito danatureza da posse, se direito ou mera situa-ção de fato. Para a maioria dos autores, aposse é um direito real, ainda que não pre-visto como tal pelo antigo Código Civil.Outros, como Sílvio Rodrigues, ancorado na

Principais alterações do novo Código Civilreferentes ao Direito das Coisas

Demóstenes Tres Albuquerque é chefe deGabinete do Ministro Benjamin Zymler do Tri-bunal de contas da União.

Sumário

1. Introdução. 2. Posse. 3. Propriedade. 4.Dos demais direitos reais. 5. Dos direitos reaisde garantia. 5.1. Penhor. 5.2. Hipoteca. 5.3. An-ticrese. 6. Conclusão.

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lição de Ihering, entendiam-na como merasituação de fato, cujos efeitos eram regula-dos pelo Direito.

Ao regulamentar o instituto em títulopróprio, dentro do Livro que versa sobreDireito das Coisas, diferente do título quetrata dos direitos reais, parece que a inten-ção da norma foi deixar evidente a opçãolegislativa de não incluir a posse como di-reito real, regulando apenas os efeitos deladecorrentes.

Novos institutos foram incorporados aoCódigo Civil, na parte que trata do Direitodas Coisas. Foi concebido como direito realo direito de superfície. O direito decorrenteda promessa de compra e venda foi expres-samente incluído no rol dos direitos reais,acolhendo a orientação doutrinária e juris-prudencial a respeito da natureza deste ins-tituto.

Ao mesmo tempo, determinados direi-tos classificados como reais pelo antigoCódigo não foram recepcionados pelonovo Diploma, tais como a enfiteuse e asrendas expressamente constituídas sobreimóveis. Isso não significa o desapareci-mento desses institutos do ordenamentojurídico, tendo em vista que normas ou-tras podem dispor a respeito. Apenas dei-xou o Código de regulamentar tais ques-tões. Nesse ponto, cumpre destacar a exis-tência de leis disciplinando o uso doschamados terrenos de marinha, utilizan-do-se da enfiteuse para regular situaçõesfáticas que se apresentam.

Foram incorporados, ainda, ao Códigoregras que se encontravam esparsas em le-gislação extravagante acerca de determina-das matérias, sem que tenha havido revoga-ção expressa dessas normas, cuja vigênciadeverá ser verificada caso a caso. É o exem-plo do condomínio edilício, da já citada pro-messa de compra e venda, da alienação fi-duciária.

Determinadas matérias foram retiradasdo Código Civil, por entender o legisladorque já estavam suficientemente regulamen-tadas em leis específicas, tais como alguns

dispositivos relativos às ações possessórias,ao registro de imóveis etc.

Além disso, regras diversas de institu-tos mantidos pelo Código Civil, na parte quetrata do Direito das Coisas, foram alteradas,consoante se observará a seguir.

2. Posse

O parágrafo único do art. 1.198 estabele-ce hipótese de presunção legal, segundo aqual quem apresente comportamento inicialem relação a determinado bem conservan-do a posse em nome de outrem e em cumpri-mento de ordens suas deve ser tido comodetentor, até prova em contrário.

O art. 1.201, ao explicitar o que se consi-dera como possuidor de boa-fé, apenas men-cionou a ignorância a respeito do vício ouobstáculo que impede a aquisição da coisa,não mais mencionando o direito, que pode-ria ser objeto de posse, como fazia o art. 494,parte final. Nesse mesmo contexto, tambémnão foi prevista forma de perda da possedos direitos.

Não mais prevê, como forma de aquisi-ção da posse, o constituto possessório, aten-dendo parte considerável da doutrina queentende que, por meio do referido instituto,não há perda da posse direta do bem, ape-nas da indireta, razão pela qual não há fa-lar em aquisição.

O § 2º do art. 1.210, repetindo o queestabelece a parte inicial do art. 505, man-teve a regra que não impede a manuten-ção ou reintegração na posse a alegaçãode propriedade, ou de outro direito sobrea coisa. Entretanto, não mais trouxe a re-gra inscrita na parte final do mencionadoart. 505, segundo a qual não se deveriajulgar a posse em favor daquele a quemevidentemente não pertencer o domínio.Buscou-se, dessa forma, sepultar as diver-sas questões doutrinárias que exsurgiramcom a redação do dispositivo, aparente-mente dúbia, culminando na edição daSúmula nº 487 do Supremo Tribunal Fe-deral, que, contudo, não espancou todas

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as dúvidas acerca da correta interpreta-ção do dispositivo supra.

Ao tratar da perda da posse, o novo Di-ploma procurou solução diversa do antigo,ao estabelecer regra geral, sem listar hipóte-ses concretas de extinção da posse.

Não falou a respeito da indenização poreventuais prejuízos sofridos pelo possuidormanutenido ou reintegrado, sem que issosignifique, contudo, que não haverá essaobrigação por parte do esbulhador ou tur-bador. Apenas, deixou tal questão para serregulamentada na parte específica do Códi-go que trata das obrigações por atos ilícitos.

Também não foi repetida regra que per-mitia a reintegração de posse inaudita alterapars, deixando a questão para ser abordadapelas normas processuais. Nessa mesmaseara, não foram tratadas as chamadasações de posse nova e velha.

Outra norma referente à posse que nãoencontrou guarida no novo Código Civil dizrespeito à possibilidade de o antigo possui-dor cuja posse foi perdida ou furtada, decoisa móvel ou de título ao portador, reavê-la da pessoa que as detiver.

3. Propriedade

A nova legislação não mais traz defini-ção de propriedade plena, não repetindo aregra contida no art. 525 do Código antigo.

Como já colocado, o novo Código Civilincluiu dois novos institutos no rol dos cha-mados direitos reais: a superfície e a pro-messa de compra e venda de imóvel (art.1.225, II e VII).

O art. 1.228, por meio de seus parágra-fos, traz ao Código Civil questão de há mui-to debatida e defendida pela doutrina e, in-variavelmente, acompanhada pelos tribu-nais, no sentido de que o titular do direitode propriedade não pode abusar desse di-reito, devendo exercê-lo nos limites de suanecessidade, atendendo aos fins sociais damesma.

O art. 1.230 esclarece que a propriedadedo solo não abrange as jazidas, minas e de-

mais recursos minerais, os potenciais deenergia hidráulica, os monumentos arqueo-lógicos e outros bens referidos por leis espe-ciais, conformando a legislação infracons-titucional aos comandos exarados do Diplo-ma Básico.

Esclarece, ainda, o parágrafo único domesmo dispositivo que o proprietário dosolo tem o direito de explorar os recursosminerais de imediato uso na construção ci-vil, desde que não submetidos a transfor-mação industrial.

A seção II do Capítulo I do Título III doLivro que trata do Direito das Coisas apre-senta modificação apenas formal, ao alterara denominação da invenção para descober-ta. Nesse mesmo contexto, o parágrafo úni-co do art. 1.234 fixa parâmetros para se che-gar ao valor da recompensa devida ao des-cobridor de coisa perdida. Estabelece, ain-da, o dever de a autoridade dar publicidadea respeito da descoberta (art. 1.236) e permi-te ao Município, nos casos em que o bemdescoberto for de diminuto valor, abando-nar a coisa em favor do descobridor (art. 1.237,parágrafo único), regras que não existiam noCódigo antigo. Não repetiu, por outro lado, oart. 610, segundo o qual não se consideravatesoiro o depósito achado, caso alguém mos-trasse que o achado lhe pertence.

Ao estabelecer normas sobre a aquisiçãoda propriedade imóvel, o novo Diploma trou-xe importantes inovações em relação ao usu-capião. Reduziu o prazo do usucapião ex-traordinário de 20 para 15 anos (art. 1.238).Criou nova espécie de usucapião, que podeser denominado de usucapião especial so-cial, ao estabelecer a redução do prazo dousucapião extraordinário para 10 anos nashipóteses em que o possuidor houver estabe-lecido no imóvel a sua moradia habitual ounele tiver realizado obras ou serviços de cará-ter produtivo (art. 1.238, parágrafo único).

Os arts. 1.239 e 1.240 incluem na seçãoque ora se examina o chamado usucapiãoespecial constitucional urbano e rural (arts.183 e 191 da CF). Explicita, ainda, o art. 1.241que é facultado ao possuidor requerer ao juiz

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que seja declarada judicialmente a aquisi-ção, via usucapião, da propriedade imóvel,que constituirá título hábil para registro nocartório respectivo.

O art. 1.242, ao regulamentar o chamadousucapião ordinário, reduz o prazo paraaquisição da propriedade para 10 anos, emqualquer hipótese, não mais diferenciandoas hipóteses de ausência.

O parágrafo único do mencionado arti-go institui nova modalidade de usucapião,ao permitir que o possuidor obtenha a pro-priedade do imóvel que tiver adquirido, one-rosamente, com base em registro constantedo respectivo cartório e for posteriormentecancelada, desde que tenha estabelecidomorada habitual ou realizado investimentode interesse social e econômico por prazode cinco anos, contínuo e ininterrupto.

Outra alteração produzida pela nova le-gislação nas formas de aquisição de proprie-dade diz respeito à normatização das ilhas.Estabelece o art. 1.249 que as ilhas que seformarem em correntes comuns ou particu-lares pertencem aos proprietários ribeiri-nhos fronteiriços, enquanto, na redação an-tiga, previam-se as mesmas disposiçõesquanto à distribuição das terras, todaviafalava-se em ilhas formadas em rios nãonavegáveis.

Na parte que trata das construções eplantações, foram previstas importantes ino-vações. Nos termos do art. 1.255, parágrafoúnico, se a construção ou plantação que forrealizada em terreno alheio exceder consi-deravelmente o terreno, aquele que obrou deboa-fé adquirirá a propriedade do solo, me-diante o pagamento da indenização fixadajudicialmente, se não houver acordo.

Em hipótese semelhante, dispõe o art.1.258 que, se a invasão do solo alheio nãolhe superar a vigésima parte, o construtorde boa-fé adquire a propriedade da parte dosolo invadido, caso o valor da construçãoexceda o deste, respondendo por indeni-zação que deve abranger o valor da áreaperdida e a desvalorização da área rema-nescente.

Quando o invasor estiver de má-fé, nassituações acima indicadas, poderá adquirira propriedade da parte invadida, desde quepague o décuplo das perdas e danos fixa-das na forma supra.

Segundo o art. 1.259, no caso de a áreainvadida superar a vigésima parte e o cons-trutor estiver de boa-fé, poderá adquirir apropriedade da mesma, desde que pagueindenização, a qual deve abranger o valorque a invasão acrescer à construção, mais oda área perdida e o da desvalorização daárea remanescente. Estando de má-fé, ficaobrigado a demolir o que construiu no soloinvadido, pagando as perdas e danos apu-rados, que serão devidos em dobro.

Não trouxe a nova legislação regra a res-peito da aquisição de solo descoberto de-corrente da retração de águas dormentes, aexemplo do que fazia o art. 539 do Códigoantigo. Também não tratou da avulsão decoisa não suscetível de aderência natural,como regulamentado pelo art. 543.

Quando falou sobre a aquisição da pro-priedade de bem móvel, a legislação recentenão repetiu regra contida na anterior quedeterminava que tais bens, quando aban-donados pelo dono com intenção de renun-ciá-las, voltariam a ser res nulius. A propósi-to, cumpre destacar que a nova legislaçãonão mais versou a respeito do rol das coisassem dono, sujeitas a apropriação.

Afastou-se, também, da regulamentaçãodos direitos de caça e pesca, deixando taismatérias para as legislações específicas.

Ao regular a perda da propriedade, onovo Código reduziu de 10 para 3 anos oprazo para que o imóvel urbano abandona-do pelo proprietário com a intenção de nãomais o conservar em seu patrimônio e quenão se encontre na posse de outrem possaser arrecadado como bem vago e passe àpropriedade do Município ou do DistritoFederal, consoante o art. 1.276.

O § 1º do mesmo artigo estabeleceu que,se o imóvel abandonado for rural, o bem,após ser considerado vago, poderá passar àpropriedade da União e não mais aos Esta-

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dos. O § 2º cria uma presunção legal, jure etde juris, de abandono, nas hipóteses em que,cessados os atos de posse, o proprietáriodeixar de arcar com os ônus fiscais.

Não repetiu a regra insculpida no art.590 do Código antigo que estabelece a desa-propriação por necessidade ou utilidadepública, pois foi incluída a desapropriação,em geral, como um dos meios de se perder apropriedade (art. 1.279, V).

Também não mais foi tratada a hipótesede ocupação da propriedade por parte doPoder Público em hipóteses de perigo imi-nente (art. 591), deixando para as normasde direito administrativo a regulamentaçãoda questão.

Ainda dentro do direito de propriedade,o Capítulo V dispõe acerca dos direitos devizinhança. A Seção I, refletindo o modernoestágio de evolução do direito, regula o usoda propriedade, limitando-o, a fim de evitarabusos e prejuízos aos direitos alheios. Oparágrafo único do art. 1.277 limita as inter-ferências na propriedade de outrem, confor-me a natureza da utilização, a localizaçãodo prédio e os limites ordinários de tolerân-cia dos moradores da vizinhança.

Outra restrição ao direito de interferên-cia na propriedade alheia é estabelecida emnome do interesse público, hipótese em queé assegurado ao vizinho que deve suportara interferência indesejada indenização peloprejuízo que sofrer.

Ao regular a passagem forçada, o novoCódigo inovou ao dispor acerca do referidodireito prevendo hipóteses em que houvermais de um imóvel que possa suportar apassagem e nos casos de alienação dos pré-dios respectivos. Nesse mesmo contexto, nãoforam repetidas as normas contidas nos arts.561 e 562 da antiga legislação que tratavamda perda do direito de trânsito pelo proprie-tário, por culpa sua, e das passagens e atra-vessadouros particulares que não se diri-gissem a fontes ou lugares públicos, respec-tivamente.

A Seção IV do Capítulo sob comento criounovo tipo de direito de vizinhança, ao tratar

da passagem de cabos e tubulações, estabe-lecendo obrigação ao proprietário de supor-tar a passagem de cabos, tubulações e ou-tros dutos subterrâneos de serviços de utili-dade pública. Previu-se pagamento de in-denizações que deverão atender, inclusive,a desvalorização das áreas remanescentes.Na verdade, não se trata propriamente dedireito de vizinhança, mas de servidão ad-ministrativa, pois estabelece obrigação desuportar que se faça algo em propriedadeindividual, em vista do bem geral da coleti-vidade.

A Seção V do Capítulo sob comento re-gulamentou o uso de águas. O art. 1.291 ino-vou ao vedar o possuidor de imóvel superiorde poluir as águas indispensáveis às pri-meiras necessidades da vida dos possuido-res de imóvel inferior. Não sendo indispen-sáveis as águas, deverá o possuidor polui-dor recuperar as águas, ressarcindo os da-nos sofridos pelos possuidores do imóvelinferior.

O art. 1.292 permitiu ao proprietário cons-truir barragens, açudes ou outras obras decontenção de águas, ressalvando o dever deindenizar, caso essas águas represadas in-vadam prédio alheio.

Repetiu-se a permissão de construção decanais, por meio de prédios alheios, pararecebimento de água. Todavia, foi expressa-mente permitido ao proprietário prejudica-do que exija a canalização subterrânea.

Não mais tratou a nova legislação dapossibilidade de utilização das águas plu-viais que correm por lugares públicos, comofazia o art. 566, deixando a regulação damatéria inteiramente para as leis específi-cas, notadamente as que tratam de águas,como o Código de Águas.

Ao disciplinar os limites entre prédios eo direito de tapagem, o § 2º do art. 1.293criou a regra de que as plantas que servemde marco divisório somente podem ser cor-tadas ou arrancadas se houver acordo entreos respectivos proprietários. Não trouxenormas a respeito da necessidade de quedeterminados tipos de construção obedeçam

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aos regulamentos municipais e de higiene(arts. 578 e 582). Nada obsta, todavia, quetais regras sejam estabelecidas pelos códi-gos municipais de postura.

Ainda dentro desta Seção, foi estabeleci-do que qualquer dos confinantes pode au-mentar a parede divisória, arcando com to-das as despesas, inclusive as de conserva-ção, salvo se o vizinho adquirir metade daparte alterada (art. 1.307).

O art. 1.311 explicitou princípio consoli-dado na jurisprudência, no sentido de que évedada a execução de obra ou serviço quepossa provocar dano em propriedadealheia, a menos se efetuadas obras acaute-ladoras, hipótese que não elide a responsa-bilidade do executor em caso de prejuízo aovizinho.

Dentro do Título que versa a respeito dapropriedade, o Capítulo VI estabelece regrassobre os condomínios. A grande inovação,neste ponto, foi trazer para o Código nor-mas dispondo sobre condomínios edilíciosque, anteriormente, estavam insculpidas naLei nº 4.591/64. Isso, contudo, não signifi-ca que o referido normativo extravagante foirevogado, visto que não houve abrogaçãoexpressa, razão pela qual deverá ser verifi-cada caso a caso a vigência ou não dos dis-positivos da citada Norma.

Além dessa inovação, houve outras mo-dificações também em relação aos condo-mínios em geral. Nesse sentido, há permis-são expressa ao condômino de não pagardespesas e dívidas, renunciando à parteideal. Nessa hipótese, o condômino quepagá-las poderá adquirir a parte ideal res-pectiva. Se ninguém quitá-las, a coisa co-mum será dividida (art. 1.316 e §§), razãopela qual não foram repetidas as disposi-ções contidas nos parágrafos únicos dos arts.624 e 625.

Importante supressão foi a referente aoart. 631 que estabelecia que a divisão entrecondôminos era meramente declaratória enão atributiva da propriedade, o que podeimplicar mudança na natureza da divisão,se constitutiva ou não de direito. Também

não foi repetida a regra que permitia queum condômino pudesse defender sua pos-se contra outrem. Isso, contudo, não impedeque o condômino que tiver sua posse ataca-da utilize dos meios legais na sua defesa,pois a matéria restou devidamente regula-mentada na parte que trata da posse.

Consoante dispõe o § 3º do art. 1.320,pode o juiz determinar a divisão da coisacomum antes do prazo máximo permitidopor lei para que a coisa comum permaneçaindivisa.

Nas hipóteses de coisa indivisível, o art.1.322, repetindo a regra prevista no Códigoantigo, estabelece que o bem será vendido erepartido o apurado, criando preferênciasaos condôminos ante a estranhos e, entreestes, ao que tiver na coisa benfeitorias maisvaliosas ou, não as havendo, ao de maiorquinhão. O parágrafo único traz inovaçãoao regulamentar a questão nas hipóteses emque não houver benfeitorias e ninguém comquinhão maior. Dispõe que haverá licitaçãoentre os estranhos e, posteriormente, licita-ção entre os condôminos, devendo a coisa seradjudicada a quem ofertar o maior lance, pre-ferindo-se estes àqueles, em condições iguais.

Não traz o novo Código regras específi-cas a respeito do compáscuo, conforme eratratado no art. 646 da legislação anterior.

O Capítulo IX do Título que ora se exa-mina não apresenta grande inovação den-tro do ordenamento jurídico, porém buscaconsolidar no Código regras a respeito daalienação fiduciária, a despeito dos dispo-sitivos constantes do Decreto-lei nº 911/69que versa sobre a matéria.

4. Dos demais direitos reais

O presente Código não trouxe, em dis-positivo próprio, a regra anterior contida noart. 677 que determinava que os direitos re-ais passavam, com o imóvel, para o domí-nio do adquirente. Entretanto, essa é decor-rência natural da qualidade dos direitos re-ais, razão pela qual parece desnecessária aedição de regra positiva a respeito.

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O Título IV do Livro em exame criounovo instituto, chamado de direito de su-perfície, inexistente na legislação antiga, re-gulamentado pelos arts. 1.369 a 1.377, pormeio do qual é facultado ao proprietárioconceder, gratuita ou onerosamente, a ou-trem o direito de construir ou plantar em seuterreno, por tempo determinado, medianteescritura pública devidamente registrada.

O Título V trata das servidões, sem tra-zer grandes alterações, ressaltando-se duas.A primeira diz respeito à unificação do pra-zo de posse incontestada e contínua de ser-vidão aparente para fins de registro em nomedo serviente, em 10 anos, independentemen-te de se tratar de ausente ou não (art. 1.379).A segunda versa sobre o dever de o proprie-tário do prédio dominante custear as obrasdevidas, caso se recuse a receber a proprie-dade do serviente.

Entretanto, algumas regras importantesem relação às servidões foram suprimidaspela atual legislação, tais como a extinçãoda norma que dispunha que a servidão nãose presume (art. 696).

O Título VI dispõe acerca do usufruto,trazendo algumas alterações e inovações emrelação ao regime disciplinado pelo Códigoantigo. Frise-se que, acompanhando a ten-dência verificada em todo o Código novo,foi suprimida a definição dada pelo art. 713ao usufruto, o que deve ser louvado, pois aconceituação de institutos jurídicos ficamelhor colocada em obras doutrinárias e nãona legislação.

Não disciplinou a nova lei a questão dousufruto sobre apólices da dívida públicaou títulos semelhantes e sua alienação,restando a indagação acerca da possibili-dade de se instituir o usufruto sobre eles e,se possível for, sobre sua alienabilidade.

Diferentemente da regra anterior, agoratambém o usufruto decorrente do direito defamília deve ser registrado, mantendo-se aexceção apenas àquele decorrente do usu-capião (art. 1.391).

Na disciplina anterior, era permitido aousufrutuário alienar o usufruto ao proprie-

tário. Agora, contudo, o art. 1.393, ao vedá-la, não faz ressalva à alienação ao proprie-tário, permitindo apenas a cessão do seuexercício, a título gratuito ou oneroso.

Faculta-se, ainda, o usufruto do prédiomediante arrendamento, porém veda-se amudança da destinação econômica do bemobjeto do usufruto sem a anuência expressado proprietário, nos termos do art. 1.399.

Outras modificações em relação aos di-reitos e deveres do usufrutuário foram esta-belecidas, tais como a possibilidade de exi-gir-se do dono o pagamento de despesasrealizadas para conservação da coisa (art.1.404, § 2º), a obrigação do usufrutuário dedar ciência ao dono de lesão contra a posseou seus direitos.

Estabelece, ainda, hipótese não previstaanteriormente de extinção do usufruto, qualseja o não uso ou fruição da coisa, atenden-do ao princípio constitucional da funçãosocial da propriedade.

Em relação aos direitos de uso e habita-ção, não foram efetuadas grandes modifica-ções no regime anterior.

Já quanto ao direito do promitente com-prador, pode-se afirmar que houve inova-ção ao estabelecer tal forma de contrato comodireito real, acolhendo posicionamento uni-forme da doutrina e jurisprudência a res-peito, e trazendo ao Código tais normas.

5. Dos direitos reais de garantia

Não trouxe o novo Código título com amesma denominação do antigo a respeitoda matéria, preferindo criar diversos títulosdistintos consoante a similitude da matériaregulada. No caso presente, criou-se um tí-tulo específico para tratar dos direitos reaisde garantia, quais sejam: penhor, hipoteca eanticrese.

5.1. Penhor

No primeiro Capítulo deste Título, bus-cou o legislador traçar regras gerais, aplicá-veis aos três institutos, trazendo, inclusive,algumas inovações, tais como a possibili-

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dade de o devedor dar a coisa em pagamentoda dívida, após o seu vencimento, mantendoa vedação para a dação antes do vencimento.

O segundo Capítulo versa a respeito dopenhor. Trouxe diversas alterações e inova-ções em relação às regras anteriores que tra-tavam dessa espécie de garantia real. O art.1.432 dispõe sobre a obrigatoriedade de selevar o instrumento do penhor a registro norespectivo cartório.

Não se repetiu a regra do art. 770, segun-do a qual o instrumento do penhor conven-cional deverá determinar precisamente ovalor do débito e o objeto empenhado.

Importante alteração nas regras do pe-nhor diz respeito aos direitos do credor pig-noratício, tais como a possibilidade de sepromover a execução judicial, ou a vendaamigável (desde que permitida pelo deve-dor) do bem penhorado, de apropriar-se dosfrutos da coisa empenhada e de realizar avenda antecipada, mediante prévia autori-zação judicial.

Também foram estabelecidas novas obri-gações ao credor, como: a) a defesa da posseda coisa empenhada; b) a dar ciência, aodono, das circunstâncias que ensejem o usodas ações possessórias; c) a imputar o valordos frutos apropriados nas despesas deguarda e conservação, nos juros e no capi-tal da obrigação garantida.

A extinção do penhor somente produzefeito após averbado o cancelamento do re-gistro, nos termos do art. 1.437.

Importantes modificações fazem-se no-tar, também, em relação ao penhor rural. Oart. 1.438, parágrafo único, estabelece a pos-sibilidade de o devedor emitir, em favor docredor, cédula rural pignoratícia.

O art. 1.439, § 1º, dispõe que a garantiapermanece válida enquanto subsistirem osbens que a constituírem, apesar de venci-dos os prazos do penhor rural, devendo asprorrogações serem averbadas no registrorespectivo, mediante requerimento do cre-dor e do devedor.

Possibilita o novo Código a constituiçãode penhor rural sobre bem hipotecado, in-

dependentemente da anuência do credor hi-potecário, sem que isso prejudique seu direi-to real de garantia, na forma do art. 1.440.

Faculta o artigo seguinte ao credor o di-reito de verificar o estado da coisa empe-nhada.

Inova, ainda, a legislação recente ao es-tabelecer a regulamentação do penhor so-bre colheitas pendentes e frustradas (art.1.443), inexistente na legislação anterior.

Permitiu expressamente o art. 1.444 quea penhora recaia sobre animais que inte-gram a atividade pastoril, agrícola ou delaticínios.

Ainda em relação ao penhor rural, nãofoi repetida a norma contida no parágrafoúnico do art. 796 que estabelecia que a trans-crição do penhor agrícola continuaria va-lendo contra terceiros enquanto não fossecancelada.

Dentro do penhor, foram trazidas aoCódigo regras que não constavam da Nor-ma antiga a respeito do penhor industrial emercantil, nos arts. 1.447 a 1.450.

Estabeleceu-se, também, a possibilidadede se penhorar direitos suscetíveis de ces-são sobre coisas móveis, trazendo regula-mentação anteriormente inexistente, confor-me a Seção VII do presente Capítulo (arts.1.451 a 1.458).

Ainda com relação ao penhor, cabe res-saltar a previsão expressa de penhor sobreveículos empregados em qualquer espéciede transporte ou condução (arts. 1.461 a1.466).

Segundo o art. 1.471, não se exige mais,para homologação judicial do penhor, asanotações referentes a tabela de preços e arelação dos objetos detidos, dando apenascomprovante dos bens de que se apossaram.

Permite, ainda, o art. 1.472 que o locatá-rio frustre a constituição do penhor, median-te caução idônea.

Não repetiu o novo Código as disposi-ções da legislação anterior que equiparavama caução de títulos nominativos de dívidada União, dos Estados ou dos Municípios ede crédito pessoal ao penhor.

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Também não se prevê, como o fazia anorma anterior, como forma de extinção dopenhor, a adjudicação judicial, a remiçãoou a venda amigável do penhor, mesmo sepermitida expressamente pelo credor ouautorizada pelo devedor.

5.2. Hipoteca

Também em relação à hipoteca foram efe-tuadas diversas modificações pelo novoCódigo em comparação com o anterior. Aprimeira delas foi não mais estabelecer anatureza das normas que regem a hipoteca.Prevê, ademais, expressamente que as ae-ronaves devem ser objeto de hipoteca, ape-sar de serem bens móveis, devendo regerem-se, a exemplo dos navios, por leis especiais.

Determina a nulidade da cláusula con-tratual que proíba a venda do bem imóvelhipotecado, permitindo, todavia, que seajuste que a garantia se vencerá antecipa-damente caso o bem hipotecado seja aliena-do, nos termos do art. 1.475.

Criou-se, expressamente, a possibilida-de de o adquirente do imóvel hipotecado, senão se obrigar pessoalmente, exonerar-se dahipoteca, abandonando o bem, hipótese emque deverá notificar o vendedor e os credo-res, deferindo-lhes, em conjunto, a posse doimóvel, ou depositando-o em juízo (arts.1.479 e 1.480).

Os §§ 1º e 2º do art. 1.481 permitiram aremição do imóvel pelo preço adquirido ouproposto pelo adquirente caso o credor nãoimpugne o valor. Deixando o adquirente deremir o imóvel, fica obrigado a ressarcir oscredores de eventuais danos sofridos.

Nos termos do art. 1.482, o executadopode remir o imóvel hipotecado pelo preçoda averbação se não tiver licitante ou, ha-vendo, pelo maior lance ofertado.

Mediante simples averbação, a hipotecapode ser prorrogada, porém por prazo infe-rior ao anteriormente previsto, que era de 30anos, passando, agora, para 20 anos da datado contrato, consoante o art. 1.485.

A exemplo do que ocorreu com o penhor,também pode ser emitida cédula hipotecá-

ria, desde que no ato constitutivo da ga-rantia seja autorizada pelo credor e pelodevedor.

Outra inovação relevante diz respeito àpossibilidade de se instituir hipoteca paragarantir dívida futura ou condicionada,desde que seja determinado o valor máximodo crédito (art. 1.487).

Também se previram, de forma inéditano Código Civil, regras para regulamentara situação em que o imóvel hipotecado sejaloteado (art. 1.488).

O art. 1.489, inciso V, criou nova espéciede hipoteca legal, qual seja a concedida aocredor sobre o imóvel arrematado para ga-rantia do pagamento do restante do preçoda arrematação, ao mesmo tempo em quesuprimiu três espécies previstas na legisla-ção anterior, quais sejam: a) da mulher ca-sada, em relação aos imóveis do marido,para garantia do dote e dos outros bens par-ticulares dela, sujeitos à administração ma-rital; b) dos descendentes sobre os imóveisdo ascendente que lhes administra os bens;e c) das pessoas que não tenham a adminis-tração de seus bens, sobre os imóveis de seustutores ou curadores.

Suprimiu-se, também, a regra do art. 828que estabelecia que as hipotecas legais so-mente valeriam contra terceiros caso estives-sem inscritas e especializadas nos cartóriosrespectivos.

Não foram, ademais, repetidas as nor-mas que tratam da inscrição e especializa-ção de hipoteca dos bens da mulher casada,dos representantes dos incapazes (arts. 839a 842).

Permitiu-se, ainda, a substituição da hi-poteca legal por caução de títulos da dívidapública federal ou estadual, consoante o art.1.491.

5.3. Anticrese

Em relação à anticrese, não houve gran-des alterações com o novo Código, poden-do-se destacar a possibilidade facultada aoadquirente dos bens dados em anticrese deremi-los, antes do vencimento da dívida,

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pagando sua totalidade à data do pedidode remição, imitindo-se, se o caso, na suaposse, nos termos do art. 1.510.

6. Conclusão

A principal virtude do novo Código Ci-vil, na parte que trata do Direito das Coisas,não diz respeito a nenhuma alteração subs-tancial nos institutos já conhecidos pelosaplicadores do Direito, mas à consolidaçãode determinadas regras que existiam emnormas esparsas e à positivação de inúme-

ros entendimentos doutrinários e jurispru-denciais a respeito de questões já sedimen-tadas no ordenamento jurídico, porém quenão estavam regradas pela legislação civilcodificada.

Afora algumas inovações no tratamentojurídico dado à matéria, manteve, em linhasgerais, o novo Código as linhas mestras con-sagradas em nosso sistema jurídico a res-peito do regramento das questões referentesàs relações jurídicas concernentes aos bensmateriais ou imateriais suscetíveis de apro-priação pelo homem.

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João Batista Marques

1. Introdução

À guisa de introdução, quero apresentareste modesto trabalho ao profícuo reflexio-nar dos estudiosos do tema que, seguramen-te, terão maior clarividência e poderãoacrescentar significativas idéias e opiniõesmais abalizadas a respeito da prática daGestão da Coisa Pública. Não é objetivo destesenão a tentativa de clarificar alguns con-ceitos, tornar mais acessíveis as noções fun-damentais do atuar dos agentes políticos nagestação e gestão dos dinheiros que o povo,conscientemente, delega ao Estado para queeste o administre da forma a mais eficaz eeficiente possível. Também, consoante a fi-nalidade deste, é aceitável oferecer subsídiosque possam instrumentalizar a consecuçãode políticas públicas confiáveis e factíveisde avaliação e que possam revigorar e forta-lecer o Estado Democrático de Direito noqual estamos inseridos.

A gestão pública moderna tem comosubstrato a imprescindibilidade de um con-teúdo ético, moral e legal por parte dos ato-res que a informam. É igualmente um com-ponente dela a existência de um conteúdo

A gestão pública moderna e a credibilidadenas políticas públicas

João Batista Marques é Advogado, Mestreem Estudos Políticos Aplicados pela FundaciónInternacional y para Iberoamérica de Admi-nistración y Políticas Públicas, Madrid, Espa-nha, 2001.

Sumário

1. Introdução. 2. A gestão pública. 3. A mo-derna gestão pública. 4. A credibilidade naspolíticas públicas. 5. Conclusão.

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pleno de elementos tecnológicos que facul-tem a utilização dos mesmos para submi-nistrar à atuação dos intervenientes o po-tencial de eficácia e eficiência que se esperada Administração dos bens públicos.

A crença no resultado positivo da políti-ca pública a ser implementada encontra-seem relação de interdependência com a cre-dibilidade de que goza a AdministraçãoPública por intermédio dos seus gestiona-dores.

2. A gestão pública

As organizações, inobstante o fato deserem públicas ou privadas, são entidadespor intermédio das quais se relacionampessoas em busca de metas não só indivi-duais, como também metas coletivas, alme-jando com tal propósito atingi-las de ma-neira a alcançar a máxima utilidade e bene-fício a um custo mínimo.

O que diferencia, basicamente, a organi-zação do setor público daquela que promo-ve o setor privado para as empresas podeser vislumbrado por intermédio do poderde coação que tem o Estado em razão doparticular. Não se pode ver como traço dis-tintivo entre as duas formas de organizaçãoa problemática da estrutura hierárquica,pois tanto uma como a outra utilizam omodelo de mando.

A gestão que promove o Estado paraprestar os serviços que lhe são acometidostem caráter singular. Pois, ao mesmo tempoem que as empresas prestam um serviço aopúblico, pondo ao seu dispor produtos eserviços úteis, possuem esses entes como fimúltimo de sua existência a obtenção de lu-cros a maior quantidade possível. Já com oEstado acontece algo bem diferente com aprestação de seus serviços. E para que umEstado possa bem cumprir com os seus fins,possa funcionar corretamente, os gestorespúblicos têm que ter primeiro em conta osinteresses gerais da sociedade e, por outrolado, devem estar respaldados pela legiti-midade democrática em seu maior grau, bem

como dispor dos meios de informação sufi-cientes para gerar com eficiência a gestãoque levam a cabo; e para que tudo isso sejapossível e mais eficaz, é necessário que hajauma estrutura administrativa interna capazde apresentar as soluções adequadas paraos problemas com que se enfrentam os po-deres públicos na hora de implantar umapolítica pública.

Para que o setor público esteja apto a aten-der as demandas sociais, para que, objeti-vamente, possa funcionar, algumas condi-ções hão que ser postas em evidência, ouseja, a gestão há que ter como prioridadeabsoluta os interesses da sociedade; que oEstado-gestor tenha informações suficien-tes que possibilitem o exercício pleno de seupoder-dever e, ao mesmo tempo, não se tor-ne demasiado paquidérmico; deve estar oEstado amparado por uma organizaçãointerna preparada, e deve ser movimen-tada por uma coordenação adequada, bemcomo dotada de mecanismos motivado-res e incentivadores em relação ao seuaparato humano.

A gestão do setor público, por sua vez,significa o resultado da dedicação ao contí-nuo estudo da organização interna do go-verno, tendo em vista o seu próprio funcio-namento jurídico-político que, em ultima ra-tio, consubstancia a gerência da adminis-tração do interesse comum. Note-se que esteestudo deve ter como horizonte os princípiosabstraídos da análise teórico-prática resul-tante da ótica da economicidade.

3. A moderna gestão pública

Ao falar sobre a modificação da lei defuncionamento do Tribunal de Contas daEspanha, seu presidente pediu a introdu-ção de elementos de gestão moderna: “unselementos que se poderiam incluir é a cria-ção de um registro de maus gestores”, prele-cionava. O tribunal não só tem que pôr demanifesto que houve má gestão, mas tam-bém deve determinar umas responsabilida-des. Isso não pode ser feito apenas pelos

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controles internos de cada órgão da Admi-nistração do Estado, que depende do gover-no, mas por intermédio do Tribunal de Con-tas, que depende do parlamento.

Cabe, então, refletir sobre o que vem a sera gestão moderna.

As modernas práticas de gestão, comosuplicado pelo Presidente do Tribunal deContas Espanhol, são também conhecidaspela expressão inglesa “value for money” econstituem um conjunto de medidas prag-máticas, levadas a efeito pela Administra-ção Pública, que se fundamentam em umalógica econômica a ser empregada nos va-lores dos serviços públicos. Caracterizam-se por interpretação valorativa, do ponto devista econômico, do serviço que presta oEstado ao cidadão e tem como traço distin-tivo a gestão por objetivos, avaliados, pois,por medidas de realização; são utilizadascomo parâmetro as regras de mercado comtodos os seus mecanismos; dá-se primaziaà competitividade como forma de dinami-zar a relação custo-benefício dos serviçospúblicos; e, por fim, promove a eleição deum novo sistema de autoridade, de respon-sabilidades e de contabilidade.

Segundo Juan ANTONIO GARDE (2001),“a nova Gestão Pública trata de reno-var e inovar o funcionamento da Ad-ministração, incorporando técnicasdo setor privado, adaptadas as suascaracterísticas próprias, assim comodesenvolver novas iniciativas para ologro da eficiência econômica e a efi-cácia social, subjaz nela a filosofia deque a administração pública ofereceoportunidades singulares, para me-lhorar as condições econômicas e so-ciais dos povos”.

A novel gestão se baseia na informação,cuja essência assume o caráter do conteúdoda ação de ter que ser transmitida, depoisde analisada e armazenada, bem como serliberada, para que possa servir para as fu-turas tomadas de decisões, para novo con-trole e para a subseqüente avaliação. De acor-do com METCALFE y RICHARDS (1987),

“a gestão pode definir-se em termosde processamento de informação, di-vidido entre reunir informação, trans-miti-la, analisá-la, armazená-la, libe-rá-la e finalmente empregá-la na to-mada de decisões,no controle e naavaliação” (tradução livre).

Um dos pilares essenciais sobre a eficiên-cia no gestionar da coisa pública pode, even-tualmente, ter o seu foco de análise visto sobo ângulo do que significa o Controle para agestão.

A efetividade de um controle da gestãovai depender do conhecimento das finali-dades, dos meios e dos resultados das polí-ticas públicas que se implantam; depende,por outro lado, do valor que se dá à infor-mação obtida com a implantação; e tambémda correção dos eventuais equívocos queintervenham no desenho da política.

O controle deve ser de modo tão amploque possibilite um feedback completo da ati-vidade proposta na política pública. Deveter como traço característico um espectroamplo que permita a análise desde o pontode vista da legalidade do gasto, que possater uma resposta baseada na prontidão,para permitir que a avaliação constitua fer-ramenta motivadora de conseqüências po-líticas para os gestores e, forçosamente, devecentrar-se na eficiência do gasto, pois nãose admite um gasto do dinheiro públicoque não seja bem feito, em todos os seusaspectos.

Naturalmente, a medida proposta peloinsigne Presidente do Tribunal de Contasde Espanha encontra respaldo nas mais re-centes teorias que justificam a moderniza-ção da gestão pública.

Também se podem ouvir ecos do acimaenunciado no Informe NOLAN (1999) pu-blicado na Grã-Bretanha em 1995 com o tí-tulo Standards in public life e que constituium documento de valor inestimável de con-sulta e estudo dos comportamentos éticosdos funcionários públicos e dos agentespolíticos. Traz o documento importantesrecomendações, inclusive com o estabeleci-

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mento de códigos de condutas éticas paraaqueles que trabalham na vida pública. Odocumento, ainda, aporta relevantes aspec-tos para o tema do Controle, corroboradopelas sábias palavras de Sir David Cooke-sey, Presidente da Comissão de Auditoriadaquele país

“Cremos que sempre que se gastao dinheiro público em quantidadessignificativas, se deveria aplicar osprincípios da auditoria pública. Comos princípios da auditoria públicaqueremos dizer, que se deveria nomearauditores externos que deveriam serindependentes dos organismos aosquais se pratica a auditoria; que a au-ditoria deveria consistir em não so-mente uma auditoria de probidadeque comprove que o dinheiro se gastade forma honesta e correta, mas tam-bém que deveria comprovar que segaste o dinheiro bem ...; para concluir:os auditores deveriam poder publicarinformes no interesse público sempreque creiam que é importante que opúblico saiba onde houve malversa-ção ou mal uso dos dinheiros públicos.Estes informes no interesse público fun-cionam como uma espécie de freio eequilíbrio muito importantes para as-segurar que se mantenham os altos ní-veis de conduta na vida pública”.

No documento formulado pela ORGA-NIZAÇÃO PARA COOPERAÇÃO E DE-SENVOLVIMENTO ECONÔMICO – OCDE,está pontualizado que um controle efetivoterá que ter publicação com

“informes e contas anuais, incluídainformação acerca do papel e compe-tência do órgão, os planos a longoprazo e a estratégia; os membros doórgão, os resultados comparados comos objetivos-chave, objetivo para o anovindouro, o compromisso com umaadministração aberta e métodos paraconsegui-la; e onde se pode obter in-formação adicional (incluído como sepode inspecionar o registro de inte-

resses dos membros de cada órgão ecomo apresentar reclamações)”.

Portanto, fica justificado que a medidaproposta pelo ilustre presidente do Tribu-nal Espanhol de Contas tem boas condiçõespara possibilitar um maior controle sobreas contas públicas.

Provavelmente, os custos com a supervi-são seriam diminuídos, pois ficaria, na prá-tica, muito mais difícil haver desvio nos gas-tos realizados pelos agentes públicos. Pos-sibilitada estaria uma maior qualidade dagestão, pois a ninguém ocorreria estar dis-posto a assumir o risco político, nem pôr emrisco a carreira na administração pública, oque significa uma melhora considerável nadisposição de eficiência dos gastos.

Por outro lado, a questão não resulta defácil aplicação nas administrações públicas,em geral, inclusive por uma razão culturalem países de pouca tradição democrática,pelo que comprometeria politicamente mui-tos setores que fazem da atividade públicauma forma de aquisição de recursos para opróprio patrimônio ou para o patrimôniode outrem.

Ademais, imagino que existem, e sem-pre haverá, pessoas que não estão compro-metidas com os legítimos interesses da socie-dade, por seus comportamentos que deno-tam um desapreço pelo cumprimento dasnormas estatuídas no estado democráticode direito. Sem embargo, isso não deve sig-nificar o impedimento para se pôr em marcha uma cruzada contra os desonestos, osmalversadores dos bens públicos, dos quese utilizam da função pública em benefíciopróprio.

A título de resumo, a administração dacoisa pública deve estar resguardada de to-dos os tipos de ilicitudes e irregularidadesque possam provocar manchas na gestãodos dinheiros públicos, e, para tanto, há queser dotada de um conjunto de instrumentosrelacionados com a gestão desses fundos,que sejam utilizados para definir responsa-bilidades e também expectativas entre aspartes interessadas, para que se possa con-

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seguir os resultados que foram coletivamentepactuados.

4. A credibilidade nas políticaspúblicas

Discutir o papel da credibilidade comodeterminante dos custos de transação do in-tercâmbio político parece estar umbilical-mente ligado ao tema da gestão públicamoderna, cujo desafio maior é ser capaz deapresentar um desenvolvimento sustentá-vel, eficaz e eficiente.

No mesmo documento formulado pelaOCDE, acima referido, está assentada a preo-cupação de muitos de seus membros, que éo sentimento de um “declive manifesto daconfiança na administração pública”. Os ci-dadãos parecem estar perdendo a confiançanos responsáveis pela tomada de decisões,com as correspondentes repercussões nega-tivas sobre a legitimidade do governo e dasinstituições estatais. O denominado “défi-cit de confiança” vem alimentado por es-cândalos divulgados pelos meios de comu-nicação, que abarcam desde atos indevidosdos funcionários até casos de autêntica cor-rupção. Poucos ou nenhum dos países mem-bros daquela organização hão se livrado doescândalo ou da realidade dos fatos. O mes-mo documento conclui que “há uma maiortendência a apoiar-se na promoção de valo-res e o aumento da transparência medianteprocedimentos de denúncia e mecanismosde declaração prévia de interesses”.

Sir Robert Douglas, ex-ministro de Eco-nomia da Nova Zelândia e impulsor da re-forma gerencialista iniciada por aquele paísem 1984, entende que, por melhor que pu-desse estar intencionada a implantação deuma política pública, de nada adiantaria secercar de todas garantias de aplicação senão estivesse presente o pressuposto da con-fiança que o cidadão deposita nos seus ges-tores governamentais, e nesse particularprelecionava:

“A batalha pela coerência e a cre-dibilidade – centrais em toda decisão

política submetida à coordenação dogoverno – é perpétua; nunca se ganhade uma vez por todas. Recuperar acredibilidade pode levar muito maistempo que ganhá-la pela primeira vez.Se a confiança é quebrada, haveria quedar a seguinte alavancada na refor-ma, e fazê-lo já ( ... ) As pessoas resis-tem às mudanças quando o governocarece de credibilidade, até que o con-traste entre seu comportamento ante-rior e os imperativos das novas medi-das imponham sobre a economia cus-tos importantes que haveriam sidoperfeitamente evitáveis”.

O problema da credibilidade das políti-cas públicas de um governo está imbricadoprimacialmente, e de maneira quase inexo-rável, com os seguintes e importantes aspec-tos, a saber: em primeiro lugar, com o con-ceito de estabilidade de suas instituições;em segundo plano, com a configuração en-tre aquilo que é público e aquilo que é priva-do, pois se encontra refletida pela Adminis-tração Pública, cuja síntese constitui o pa-pel de intermediação entre os objetivos últi-mos do Setor Público e os interesses da socie-dade civil; em terceiro lugar, com a consti-tuição de uma espécie de necessidade per-manente de mudança que, ao final e ao cabo,diz respeito ao alcance e à dimensão mes-ma das políticas públicas a serem objeto daintervenção; e, por fim, com os mecanismossociais plasmados pela pluralidade de ato-res, pela crescente iniciativa dos particula-res e pelo dinamismo dos mercados, nota-damente em um contexto de globalização eem face do crescente desenvolvimento dosdiversos segmentos do terceiro setor.

A gestão da res publica segundo JuanANTONIO GARDE (1996):

“hoje mais do que nunca gestionarorganizações públicas é administrarrecursos, informação e decisões atra-vés de mecanismos de integração. Aintegração de recursos, de equipamen-tos, de objetivos, de departamentos, deníveis de governo, de interesses, de

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fórmulas de regulação, aparece comofator relevante e, tudo isso, alinhadocom um permanente processo de ne-gociação. A adaptação, como respos-ta necessária às mudanças não pre-vistas do entorno e a sua complexida-de, necessita de altas quotas de flexi-bilidade, iniciativa e capacidade deintegração para responder aos impre-vistos com eficácia. Os paradoxos eos conflitos não são situações excep-cionais, são a cotidianidade em nos-sas decisões organizativas”.

E de tudo isso se pode falar em outra carac-terística que resulta ser indispensável paraa consecução de uma gestão eficiente e de-sejada pelas pessoas que é a necessidadede, ao implementar determinada ação go-vernamental, esta ser, pois, crível, já que opolítico deve sempre ter em conta os proble-mas que afligem os cidadãos, para que sepossam vislumbrar a opinião e as razõesdos mesmos. Faz-se necessário, portanto,que se defina conjuntamente o problemapelo gestor público e pelos clientes usuários,para que seja implantada uma política de-sejável e adequada, resultado do proces-so de gestão democrático.

A credibilidade na gestão pública, natu-ralmente, há de resultar como fator determi-nante para o logro da política pública quese pretenda pôr em curso, pois esta necessi-ta ser fiável diante dos exigentes olhos dousuário contribuinte que já não está mais tãodespreocupado com a gestão de seus interes-ses confiados aos agentes gestores. Segundo,ainda, Juan ANTONIO GARDE (2001),

“A gestão pública neste contextointerdependente aparece como instru-mento ativo da tomada de decisõespolíticas ao incorporar valores sociais,avaliar incidências das decisões eoperar como marco organizado deconsenso social, integrando e promo-vendo a participação da sociedadecivil nas decisões públicas”.

O povo cada vez mais exige gestores go-vernamentais conscientes de seu papel. E a

expectativa geral é que as políticas públicasoriginadas no seio do setor público sejamdestinadas a dar soluções adequadas, e nãosimplesmente gastos desnecessários ao erá-rio. É importante ressaltar que o cidadão nãoé apenas um consumidor inerte dos servi-ços que presta o Estado; é mais, é uma espé-cie de acionista de uma grande empresadenominada Setor Público. É seu desejo, porconseguinte, estar protegido por normas derevelação e responsabilidade no trato deseus interesses, bens e serviços.

O insigne professor Francisco Cabrillo,da Universidade Complutense de Madrid,expõe interessante colocação em torno dotema da credibilidade da gestão pública efundamenta suas explicações no que deno-mina “Teoria das expectativas razoáveis”,que consiste em termos gerais no que se se-gue: para que uma política pública funcio-ne adequadamente e tenha bom êxito, é ne-cessário e imprescindível que as pessoascreiam que o governo a cumprirá em suaconcepção, execução e que o resultado seja,ao mesmo tempo, a um custo mínimo e como máximo de benefício possível. É o mesmoque dizer que o governo cumpra com o queficou delineado, programado para a políti-ca pública, pois, se assim não agir, as pes-soas descontam a expectativa de que a me-dida vai até o seu termo final.

As políticas públicas que pretendamimplantar-se têm que ter o respaldo da con-fiança que as pessoas depositam na admi-nistração pública, para que não haja desne-cessário desperdício dos recursos públicoscom um programa que, não contando com acrença que dá a legitimidade, redundará emassombroso fracasso.

Exemplo ilustrativo do que se afirma emtorno da credibilidade da política de gestãoda coisa pública, e que teve êxito, pode serverificado no âmbito da macroeconomia bra-sileira recente, em que o governo, com o ob-jetivo de promover o equilíbrio orçamentá-rio, visando, acima de tudo, reduzir os gas-tos no setor público, introduziu uma políti-ca, que se fez por demais crível para a socie-

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dade, de contenção dos gastos com saláriosdo funcionalismo público federal, impon-do-lhes um congelamento de salários pormais de sete anos. Outro importante progra-ma que pôs de manifesto a expectativa decredibilidade do povo brasileiro em seusgestores foi o programa de privatização le-vado a efeito nos últimos anos. Deve ser res-saltado que, em princípio, não se acredita-va ser possível, haja vista a posição gover-namental débil, mas que, com o passar dosanos, pode-se confirmar que a intenção eraválida e que tinha o mérito de ser verdadeira.

5. Conclusão

Neste mundo globalizado de final deséculo e início de um novo milênio, o Esta-do, como invenção humana recente, nadamais deve significar que aquela instituiçãopersonificada em seus agentes políticos eem seus agentes gestores, aquele ente ins-trumental de que se vale a sociedade parapromover a mediação dos interesses da co-letividade, objetivando fomentar o seu in-trínseco desenvolvimento.

A Administração Pública se move nessecontexto pela delegação, pelo assentimentoque depositou a sociedade em seus agentes,para que esses realizem da melhor formapossível o ministério de que todos necessita-mos, uma vez que ao particular não é dada afaculdade nem o dever de realizar o bem co-mum, mas ao Estado, que a este se substituiu.

A gestão pública, portanto, e consideran-do o princípio econômico da escassez, emque as demandas sociais são ilimitadas e osrecursos financeiros para satisfazê-las sãoescassos, deve primar pelo gestionamentoadequado, eficaz e eficiente de tudo aquiloque for gerado no seio social, sempre tendoem vista o interesse do coletivo.

O gestor da coisa pública é, por conse-guinte, um vocacionado para o servir aosocial, antes mesmo de qualquer interesseparticular; aquele que, alçado à condição demandatário dos anseios e necessidades dasociedade, deve procurar estar propenso aoatendimento das condições necessárias esuficientes para a consecução do bem-estardo povo. Deve, pois, ser capaz de vislum-brar o entorno, analisá-lo profundamente epropor as modificações que se façam indis-pensáveis, balizando-se pela economicida-de, pela ética, pela moral, pelos bons costu-mes e pelas regras jurídicas imanentes à fun-ção pública.

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Ronaldo Pinheiro de Queiroz

1. Introdução

O objetivo do presente estudo é a análiseda garantia do acesso à justiça às pessoasjurídicas quando alçadas à condição de ne-cessitadas ou, como comumente se fala paraas pessoas naturais, pobres na forma da lei.

O monopólio da jurisdição pelo Estadotrouxe para esse a incumbência de propor-cionar a mais ampla, efetiva, adequada etempestiva prestação jurisdicional paraaqueles que necessitam deduzir pretensãoem juízo.

Assim, o primeiro passo no debate doacesso à justiça não é propriamente o seuconteúdo material (eficácia, efetividade ouadequação para o direito material), mas apossibilidade de se proporcionar a todos aoportunidade de ingressar na jurisdição, comouma espécie de pré-requisito para se discu-tir o direito pleiteado.

Por vezes, a situação econômica da pes-soa traz dificuldades para esse ingresso,principalmente pelas despesas do processo

A pessoa jurídica pobre na forma da lei esua proteção constitucional de acesso àJustiça

Ronaldo Pinheiro de Queiroz é DefensorPúblico da União no Estado do Rio Grande doNorte.

Sumário

1. Introdução. 2. Dos direitos e garantiasfundamentais e seus destinatários. 3. Do acessoà justiça. 4. Da pessoa jurídica pobre na formada lei. 4.1 Da pessoa jurídica como sujeito dedireitos e obrigações. 4.2 Da pessoa jurídicapobre na forma da Lei nº 1.060/50. 5. Da con-clusão.

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e honorários de advogado, tolhendo anteci-padamente a discussão de um interesse ju-ridicamente protegido.

O assunto envolve, portanto, inúmerasrepercussões jurídicas que são retiradas doseu contexto, tais como a função do Estadoem garantir o acesso de todos à justiça, osfundamentos legais e constitucionais dessedireito, os seus destinatários, as questõespráticas decorrentes de situações concretase, por fim, a possibilidade de a pessoa jurí-dica fazer uso da garantia da assistênciajurídica.

Diante disso, é imperioso fazer uma abor-dagem da situação da pessoa jurídica ne-cessitada, dentro da atual visão constitucio-nal de acesso à justiça.

2. Dos direitos e garantiasfundamentais e seus destinatários

No Brasil, a Constituição Federal de 1988(CF) trouxe em seu Título II os direitos e ga-rantias fundamentais, subdividindo-os emcinco capítulos: direitos individuais e coleti-vos; direitos sociais; nacionalidade; direitos po-líticos e partidos políticos. Assim, pode-se di-zer que o legislador constituinte estabele-ceu cinco espécies ao gênero direitos e ga-rantias fundamentais.

A primeira análise que deve ser feita nes-se Título, antes mesmo de se adentrar emqualquer conteúdo normativo, reside emsaber o alcance dos destinatários dos direi-tos e garantias fundamentais estabelecidos.

Só podem ser auferidos por pessoas físi-cas ou as pessoas jurídicas também seriambeneficiárias?

Pontes de MIRANDA (1970, p. 296) en-tendia que a garantia se destinava somenteàs pessoas físicas, ao indivíduo, e não àspessoas jurídicas.

Contudo, o entendimento que prevalecena doutrina é que os direitos e garantias fun-damentais têm como destinatários tanto aspessoas físicas, como as pessoas jurídicas.Esse é o magistério de constitucionalistasdo tomo de Manoel Gonçalves FERREIRA

FILHO (1990, p. 26), José Afonso da SILVA(1997, p. 189) e Alexandre de MORAES(2002, p. 63).

A propósito, José Afonso da SILVA (1997,p. 189) comenta o tema da seguinte forma:

“O princípio é o mencionado aci-ma, mas a pesquisa no texto constitu-cional mostra que vários dos direitosarrolados nos incisos do art. 5º se es-tendem às pessoas jurídicas, tais comoo princípio da isonomia, o princípioda legalidade, o direito de resposta, odireito de propriedade, o sigilo da cor-respondência e das comunicações emgeral, a inviolabilidade, a garantia aodireito adquirido, ao ato jurídico per-feito e a coisa julgada, assim como aproteção jurisdicional e o direito deimpetrar mandado de segurança. Háaté direito que é próprio da pessoa ju-rídica, como o direito à propriedadedas marcas, aos nomes de empresas eoutros signos distintivos (logotipos,fantasias, p. ex.) (...)”.

Dessarte, não há dúvida de que os direi-tos e garantias fundamentais têm tambémcomo destinatários as pessoas jurídicas, asquais podem deles fazer uso sempre que fo-rem compatíveis com sua existência e razãode ser.

Partindo dessa premissa, cumpre anali-sar o direito constitucional de acesso à jus-tiça e seus corolários lógicos auferidos pelapessoa jurídica.

3. Do acesso à justiça

O Estado, ao proibir a autotutela, assu-miu o monopólio da jurisdição. Em decor-rência disso, não se pode mais realizar uminteresse pela própria força (ação de direitomaterial), mas sim por intermédio da tutelajurisdicional, exercida pelo direito de ação.

Como conseqüência desse monopólio, aoEstado incumbe garantir a todos, pessoasfísicas ou jurídicas, o amplo acesso à justi-ça. A Constituição da República disciplinaesse direito-garantia no seu art. 5º, XXXV,

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dizendo que: “a lei não excluirá da aprecia-ção do Poder Judiciário lesão ou ameaça adireito”. Esse é o fundamento constitucio-nal do princípio da inafastabilidade do con-trole jurisdicional (também conhecido comoprincípio do direito de ação).

Embora, à primeira vista, o comandodessa norma se destine ao legislador, o cer-to é que a ninguém, indistintamente, é dadoo direito de impedir que o jurisdicionado váa juízo deduzir pretensão.

Não basta, contudo, que se garanta osimples acesso à justiça. É indispensávelque desse acesso advenha uma prestaçãojurisdicional eficaz e efetiva, com presteza epacificação social com justiça – principaisescopos do processo moderno (cf. CAPPEL-LETTI; GARTH, 1978, p. 70).

Assim, para que se atinjam esses esco-pos é essencial que a Jurisdição esteja res-guardada de inúmeras garantias, para queninguém dela se distancie, como é o caso daassistência jurídica gratuita e integral aosque dela necessitarem.

Nesse contexto, esclarecedoras são aspalavras do processualista Nelson NERYJUNIOR (1997, p. 94), ao comentar o princí-pio da inafastabilidade do controle jurisdi-cional, afirmando que:

“Esse princípio tem, ainda, comodecorrência a atribuição de assistên-cia jurídica gratuita e integral aos ne-cessitados (art. 5º, n. LXXIV). Diferen-temente da assistência judiciária pre-vista na constituição anterior, a assis-tência jurídica tem conceito maisabrangente e abarca a consultoria eatividade jurídica extrajudicial emgeral. Agora, portanto, o Estado pro-moverá a assistência aos necessitadosno que pertine a aspectos legais, pres-tando informações sobre comporta-mentos a serem seguidos diante deproblemas jurídicos, e, ainda, propon-do ações e defendendo o necessitadonas ações em face dele propostas.”

Nessa linha de raciocínio, fácil é perce-ber que a garantia de assistência jurídica

integral e gratuita prestada pelo Estado aosque comprovarem insuficiência de recursos(CF, art. 5º, LXXIV) nada mais é do que umcorolário lógico de se efetivar a todos, indis-tintamente, o amplo acesso à justiça, inclu-sive às pessoas jurídicas que não dispo-nham de recursos para movimentar a gran-de máquina do judiciário.

4. Da pessoa jurídica pobre naforma da lei

4.1. Da pessoa jurídica como sujeitode direitos e obrigações

Antes de adentrarmos o tema propria-mente dito, devemos-se fazer um breve escor-ço acerca do fenômeno da pessoa jurídica.

O indivíduo muitas vezes se vê impossi-bilitado de, por si só, alcançar determina-dos objetivos, vez que ultrapassam suas for-ças e limites de atuação individual.

Assim, para consecução desses fins, háa necessidade de se agrupar com outroshomens, formando, então, verdadeiros en-tes, dotados de estrutura autônoma e perso-nalidade jurídica própria, sendo que somen-te nesse amparo logram realizar os fins coli-mados, superando, pois, a debilidade desuas forças e brevidade de suas vidas.

Eis que, dessa forma, surgem as chama-das pessoas jurídicas, conceituadas na dou-trina de Maria Helena DINIZ (1997, p. 142)da seguinte forma: “Assim, a pessoa jurídicaé a unidade de pessoas naturais ou de pa-trimônios, que visa à consecução de certosfins, reconhecida pela ordem jurídica comosujeito de direito e obrigações.”

O professor Washington de BarrosMONTEIRO (1995, p. 101) vem a resumir osprincípios fundamentais e caracterizadoresda pessoa jurídica:

“A teoria da personalidade jurídi-ca é dominada por alguns princípiosfundamentais: a) – a pessoa jurídicatem personalidade distinta da de seusmembros universitas distat a singulis(...); b) – a pessoa jurídica tem patri-

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mônio distinto. Essa autonomia patri-monial é caracterizada por dois precei-tos: quod debet universitas non debent sin-guli e quod debent singuli non debet uni-versitas; c) – a pessoa jurídica tem vidaprópria, distinta da de seus membros.”

Da mencionada lição dessume-se que,quando as pessoas jurídicas adquirem per-sonalidade própria1, passam a ter existên-cia distinta da dos seus membros2, ou seja,tornam-se entidades autônomas, inteira-mente diversas das pessoas que a compõem,figurando, pois, como verdadeiros sujeitosde direitos e obrigações, tanto no campoconstitucional, como no legal.

Com isso, a situação econômica da pes-soa jurídica deve ser aferida em relação aoseu patrimônio próprio, dentro, é claro, dasdevidas proporções, a fim de se evitar frau-de ou abuso de direito.

4.2. Da pessoa jurídica pobre na formada Lei nº 1.060/50

Como visto acima, a nossa Carta Políti-ca garante, em norma de eficácia plena (CF,art. 5º, §1º), que o Estado prestará assistên-cia jurídica integral e gratuita aos que com-provarem insuficiência de recursos (CF, art.5º, LXXIV), seja pessoa física, seja pessoajurídica.

Assim, a Lei nº 1.060, de 5 de fevereirode 1950, que estabelece normas para a con-cessão de assistência jurídica aos necessi-tados, deve ser interpretada em consonân-cia com as normas e princípios constitucio-nais acima delineados.

Dispõe o seu artigo 1º a incumbência dospoderes públicos federal e estadual em pres-tar assistência judiciária a quem dela ne-cessitar, nos termos da lei.

Um dos termos que a lei condiciona éque a pessoa seja necessitada, conforme sedepreende do seu art. 2º, verbis:

Art. 2º Gozarão dos benefícios des-ta Lei os nacionais ou estrangeirosresidentes no país, que necessitarem re-correr à Justiça penal, civil, militar oudo trabalho.

Parágrafo único. Considera-se ne-cessitado, para os fins legais, todo aque-le cuja situação econômica não lhe permitapagar as custas do processo e os honoráriosde advogado, sem prejuízo do sustento pró-prio OU da família [grifos nossos].

A assistência jurídica aos hipossuficien-tes deve ser proporcionada pelo Estado deforma integral, ou seja, a dificuldade de pa-gamento das custas e despesas do processodeve ser contornada com a isenção das ta-xas judiciárias e a questão dos honoráriosadvocatícios deve ser suprida com a repre-sentação judicial por meio da DefensoriaPública da União (para as justiças comumfederal, do trabalho, eleitoral e militar) ouda Defensoria Pública dos Estados (para ajustiça comum estadual)3.

Da redação do texto, verifica-se a totalcompatibilidade de suas disposições alber-garem também as pessoas jurídicas, tendoem vista que situações existem em que umapessoa jurídica esteja numa situação eco-nômica que não seja possível pagar as cus-tas do processo e os honorários de advoga-do sem prejuízo do sustento próprio.

Note-se que o texto traz a partículadisjuntiva “ou”, asseverando que a situa-ção caracterizadora da necessidade possaderivar ou do prejuízo para o sustento pró-prio (pessoas físicas ou jurídicas) ou da fa-mília (pessoa física). Nada obsta também aexistência de prejuízo concernente à pessoafísica que colha as duas situações (sustentopróprio e da família), mas, quanto à pessoajurídica, somente a primeira se coaduna comsua razão de ser.

Não é difícil descrever exemplos de pes-soas jurídicas necessitadas, como é o casode uma empresa falida, em estado de insol-vência (passivo superando o ativo) e neces-sitando requerer em juízo sua autofalência;ou de um sindicato que visa atender aos in-teresses dos agricultores de uma pequenacidade e não dispõe de recursos financeirospara arcar com as custas processuais e ho-norários de advogado; quem sabe uma fun-dação que se destina ao amparo de pessoas

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deficientes ou idosas e necessita comprovarem juízo sua isenção tributária, isso porqueo fisco insiste em não reconhecê-la; ou deuma associação de moradores de um bairropobre que pretende discutir em juízo umadívida que entende ser indevida, mas que,pelo seu valor, as custas do processo serãodeveras representativas.

Enfim, os exemplos são vários e a cadadia mais pessoas jurídicas necessitam doauxílio do Estado na busca de garantir osseus direitos fundamentais. Essa é uma reali-dade que a ordem jurídica não pode negar.

Diante disso, importante é entender eaceitar que a pessoa jurídica pode ser consi-derada pobre na forma da lei (necessitada),sempre que se deparar em contingênciaseconômicas aferidas no caso concreto, in-dependentemente de seu porte ou grau deorganização, porquanto o que importa é areal necessidade do acesso à justiça e a im-possibilidade de custeá-lo.

Frise-se, ademais, que a ConstituiçãoRepublicana, ao disciplinar a Ordem Eco-nômica e Financeira (Título VII), traz comoprincípio a ser observado o tratamento favo-recido para as empresas de pequeno porte consti-tuídas sob as leis brasileiras e que tenham suasede e administração no País (CF, art. 170, IX).

Isso porque a pessoa jurídica tem, alémda função econômica, uma função social,que se traduz na criação de novos empre-gos, no fomento da livre iniciativa e na con-secução da sociedade civil organizada.

O Estado deve proporcionar, portanto,todos os meios indispensáveis para que segarantam os direitos fundamentais de todos.

5. Da conclusão

Foi vista neste trabalho a importânciadada ao tema do acesso à justiça garantidoàs pessoas jurídicas carentes.

Constatou-se que o entendimento predo-minante na doutrina é o de que os direitos egarantias fundamentais têm como destina-tários tanto as pessoas físicas, como as pes-soas jurídicas.

Foi abordado que não basta que se ga-ranta o simples acesso à justiça a todos, pes-soas físicas ou jurídicas, é preciso que eleseja eficaz e efetivo, com presteza e pacifica-ção social com justiça.

Daí é que surge a necessidade de se ga-rantir na Constituição, como corolários ló-gicos, instrumentos processuais profícuose assistência jurídica gratuita e integral aosque dela necessitarem, motivo pelo qual aLei nº 1.060/50 deve ser interpretada emconsonância com as normas e princípiosconstitucionais.

O conteúdo normativo dessa lei se com-patibiliza com a pessoa jurídica, tendo emvista que situações existem em que esta es-teja numa situação econômica em que nãoseja possível pagar as custas do processo eos honorários de advogado sem prejuízo dosustento próprio.

Dentro dessas assertivas, conclui-se quea inafastabilidade do controle jurisdicionalpode ser vista por diversos matizes, sempredentro da nova perspectiva da instrumen-talidade material do processo, em que secobra do Estado o cumprimento dos seusdeveres constitucionais, entre eles a possi-bilidade de se proporcionar a todos a opor-tunidade de ingressar na Justiça, como umaespécie de pré-requisito para se discutir oconteúdo do direito pleiteado, a fim de nãofulminá-lo de véspera.

Notas

1 A aquisição de personalidade da pessoa jurídi-ca é disciplinada no artigo 18 do Código Civil Brasi-leiro, nos seguintes termos: “Art. 18. Começa a exis-tência legal das pessoas jurídicas de direito privadocom a inscrição dos seus contratos, atos constituti-vos, estatutos ou compromissos no seu registro pe-culiar, regulado por lei especial, ou com a autoriza-ção ou aprovação do Governo, quando precisa.”

2 Art. 20 do Código Civil Brasileiro.3 Destaque-se, por oportuno, que a instituição

da Defensoria Pública Estadual não é uma realida-de em alguns Estados da Federação. Alguns Esta-dos não disponibilizam nenhuma forma de ampa-ro aos necessitados no campo da assistência jurídi-

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ca; outros, embora sem a instituição de uma De-fensoria Pública de carreira, prestam assistênciajurídica por meio da Procuradoria do Estado, comosão exemplos os Estados de São Paulo e o do RioGrande do Norte.

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Sérgio Resende de Barros

É uma peculiaridade do sistema brasi-leiro de controle da constitucionalidade aintervenção do Senado mediante uma espé-cie normativa, a resolução, para suspender aexecução, no todo ou em parte, de lei declaradainconstitucional por decisão definitiva do Su-premo Tribunal Federal, conforme autoriza oinciso X do artigo 52 da Constituição de1988. Essa suspensão é reversível? Muito setem discutido se o poder de editá-la é discri-cionário ou não. Mas quase nada se cogitada reversibilidade da resolução que a edita.Talvez por seu ineditismo, essa competên-cia do Senado Federal, apesar de fecunda,tem sido minimizada pela doutrina, quechega a reduzi-la a um automatismo inex-pressivo, incongruente com as funções demoderação e representação que o colégio desenadores exerce no concerto da federação.Esse detrimento não pode persistir. Para su-perá-lo, é imprescindível entender bem a ori-gem e a lógica dessa competência peculiar,que resultou de uma variação inevitável natransplantação para o Brasil do modo nor-te-americano de controlar a conformidadedas leis com a Constituição.

No Brasil, diferentemente dos EstadosUnidos, o poder de rever soberanamente aconstitucionalidade das leis, próprio do tri-bunal maior da federação, não nasceu deatribuição jurisprudencial, mas de prescri-ção constitucional. Teve por berço a Consti-tuição de 1891, cujo texto gerou o controlede constitucionalidade no contexto político

Constituição, artigo 52, inciso X:reversibilidade?

Sérgio Resende de Barros é mestre, doutore livre-docente em Direito do Estado pela Fa-culdade de Direito da Universidade de São Pau-lo, na qual leciona nos cursos de bacharelado ede pós-graduação. É secretário do Instituto “Pi-menta Bueno” – Associação Brasileira dos Cons-titucionalistas.

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que incrementou, deixando sob a guarda doSupremo Tribunal Federal a evolução doconstitucionalismo republicano. Contudo,ao concentrar nessa corte a competência ter-minante do questionamento da constitucio-nalidade, a Constituição geratriz da repú-blica federativa brasileira também deixouclara a competência difusa pelo restante Po-der Judiciário de julgar a constitucionalida-de das leis, ainda que não terminantemen-te. Qualquer juiz poderia sentenciar a in-constitucionalidade, mesmo se apoiado es-tritamente na sua livre convicção. É o quelhe facultava a república, cujo alento demo-crático revolucionava o Brasil. Dessa ma-neira veio da primeira Constituição repu-blicana uma distribuição democrática do po-der judicial de controlar o ajuste constitucio-nal dos atos jurídicos, sobretudo das leis.Essa distribuição não continha nenhumprivilégio. A reserva de competência dos tri-bunais era efeito da hierarquização naturala todo o poder, inclusive o judicial. Por isso,também diversamente dos Estados Unidos,não prosperou no Brasil o stare decisis, quese define por uma rígida vinculação dos ju-ízes à jurisprudência superior.

Essa forma jurisprudencial é nativa dodireito baseado antes nos precedentes judi-ciais do que nas regras postas pelo legisla-dor. Na matriz inglesa, como na sua prole,inclusive nos Estados Unidos, é dever maiordos juízes stare decisis et non quieta movere. Asentença há de estar com as coisas decididas enão mover as quietas. Não deve mexer no queestá pacífico. Sob esse princípio de jurispru-dência se acomoda a justiça constitucionalnorte-americana, dando estabilidade aocontrole difuso. Já um direito de feitio roma-nístico, como o brasileiro, mais valoriza alivre convicção do juiz na sua prudente apli-cação da lei. Não condiz espontaneamentecom a rigidez jurisprudencial, mesmo notopo constitucional. Esse fator impediu ostare decisis entre nós. Desse modo, a distri-buição democrática do poder de controlar,feita pela própria Constituição federativa,confluiu com outros fatores para inibir na

federação brasileira o despontar de uma ju-risprudência constitucional tão vinculantecomo a norte-americana.

A essa inibição corroborada pelo feitioromanístico acresceu a necessidade de pre-servar a separação de poderes. No fim, to-dos esses fatores, somando-se, levaram aafastar da corte constitucional brasileira opoder de generalizar erga omnes a inconsti-tucionalidade verificada inter partes. Essepoder veio a ser outorgado ao Senado Fede-ral pela Constituição de 1934, que lhe atri-buiu competência para suspender a execução,no todo ou em parte, de qualquer lei ou ato, deli-beração ou regulamento, quando hajam sido de-clarados inconstitucionais pelo Poder Judiciá-rio, como consta do inciso IV do artigo 91.

Nessa regra – é bom esclarecer desde logo– execução significa eficácia e não existência.O Senado suspende para todos a eficáciaque o Supremo já suspendera entre partes.Mas nenhum dos dois toca na existência dalei. O que condiz com a lógica do sistemadifuso, cuja raiz está no princípio da sepa-ração de poderes, de sorte que uma lei sópode deixar de existir se for revogada poroutra lei editada pelo poder legislativo. Peloque, após as intervenções do Supremo e doSenado no controle difuso, a lei continuaexistindo, ainda que ineficaz. De início, éineficaz só nos casos julgados pelo Supre-mo. Após a generalização decidida pelo Se-nado, torna-se ineficaz em todo e qualquercaso. Esse é o conceito segundo o qual agiuo Constituinte de 1891, valendo-se do termoexecução para atender à distinção entre exis-tência e eficácia da lei, curial em todo o di-reito. Não continue, pois, esse termo a cau-sar a espécie que tem causado, pois ele foibem engendrado pelos constituintes brasi-leiros.

Nos termos do controle difuso brasilei-ro, portanto, o Supremo Tribunal Federal ésenhor da constitucionalidade e o SenadoFederal é senhor da generalidade. Sublinhe-se: no controle difuso. No controle concen-trado, ambas – a constitucionalidade e ageneralidade – estão nas mãos do Supremo,

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sendo necessariamente erga omnes o acór-dão que decide as ações diretas.

O Senado tem uma função moderadoraradicada na prudência de seus membros,derivada de sua maior experiência de vida.Daí que a Constituição do Império exigiu aidade mínima de quarenta anos para sersenador, requisito de elegibilidade que aRepública, servindo ao modelo norte-ame-ricano, baixou para trinta e cinco anos. Mas,desde sua origem romana, o senado é umórgão de temperança, como o diz o seu pró-prio nome, com a raiz “sen”, também vistanoutras palavras, sempre indicando idadeavançada e, ora também, a sabedoria daíresultante. Um bom exemplo é o nome dosdois sábios, pai e filho, aos quais os roma-nos chamaram Sêneca. O Senado é um ór-gão moderador, quer nas federações, quernos estados unitários. Essa função inata nãolhe pode ser negada, sobretudo nos atos queexpressamente configuram sua competên-cia constitucional, como o de generalizar ainconstitucionalidade no epílogo do contro-le difuso. Ora, não há moderação onde nãohá discrição, mas apenas vinculação. Senhorda generalidade, como o Senado cuidarádela, agindo como fator de temperança, senão tiver para isso a necessária discriciona-riedade? É óbvio que, reduzido a autômato,de nada cuidará efetivamente, a não ser decumprir ordens de outro órgão.

Ademais, em federações como a norte-americana e a brasileira, o Senado acumulacom a moderação a representação dos esta-dos-membros. Essa é outra função que nãolhe pode ser negada em nenhum ato de suacompetência constitucional, sob pena dedegenerar a concepção federativa que o en-forma. Tanto que, na Constituição dos Esta-dos Unidos, a única cláusula de restriçãomaterial similar às cláusulas pétreas é a queproíbe emenda constitucional que prive al-gum estado-membro, sem seu consentimen-to, de sua igualdade de sufrágio no Senado.A voz dos senadores é a voz dos estados-membros, os quais – mesmo sem soberania– são dotados de autonomia. Ora, não há

autonomia onde não há discrição, mas ape-nas vinculação. Senhor da generalidade,como o Senado cuidará dela, agindo comorepresentante de estados autônomos, se nãotiver para isso a necessária discricionarieda-de? Óbvio, que nenhum cuidado proverá, senenhuma discrição tiver, em virtude da sone-gação da autonomia que lhe é inerente.

Desse modo, já que suas funções de mo-deração e representação não podem ser ne-gadas, nem exercidas sem discrição, a com-petência dada ao Senado pelo inciso X doartigo 52 da Constituição é discricionária. Ainstituição do Senado não compadece umavinculação rígida, como a que pretende sub-metê-lo totalmente ao Supremo TribunalFederal. Sem dúvida, a declaração de in-constitucionalidade vinda do Supremo vin-cula o Senado. Porém, não como causa, masapenas como condição do exercício de suacompetência constitucional. A condiçãopermite à causa produzir o seu efeito, masnão o produz. O exemplo clássico que oslógicos dão é o seguinte: abrir a janela podeser condição que permita ao sol iluminar ointerior da sala, mas não é a causa da ilumi-nação. A causa é o sol, em razão de sua pró-pria constituição, determinada por leis físi-cas. A janela é a condição que, sendo aberta,permite ou, sendo fechada, impede a açãoda causa para produzir o efeito, a ação dosol para iluminar a sala.

Semelhantemente se passa com o ato doSupremo em relação ao ato do Senado. Ainconstitucionalidade decidida por aqueleé condição e não causa da generalidade de-cidida por este. A causa da resolução sena-torial está na própria constituição do Sena-do, determinada não por leis físicas, maspor normas jurídicas, que o dotam de von-tade própria, isto é, apropriada ao exercíciode suas funções de moderação e de repre-sentação. Assim o quer a Constituição. Que-rê-lo diferente é querer inconstitucionalmen-te. Em suma, a inconstitucionalidade deci-dida pelo Supremo é condição cuja existên-cia permite ou cuja ausência impede a reso-lução do Senado. Permitir não é impor.

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Quando o Supremo solicita, ele permite enão impõe o ato do Senado. Ao contrário,impedir é impor uma proibição. Assim,quando a condição se torna impeditiva, sen-do ausente originariamente ou retirado pos-teriormente o pressuposto de inconstitucio-nalidade dado pelo Supremo, fica impedi-da a resolução do Senado, o qual não podeeditá-la ou, se já a editou, deve revogá-la.Na edição da resolução, há discricionarie-dade. No retorno, na revogação da resolu-ção, há vinculação.

Foi para obter um contrapeso de mode-ração no âmbito da federação que a Consti-tuição outorgou ao Senado, e não à corteconstitucional, a função de suspender a exe-cução da lei. Por isso, a Constituição fez doSenado o senhor da generalidade e não ummero servo da corte constitucional. Mesmoque esta julgue definitiva a inconstitucio-nalidade da lei, após negar-lhe aplicaçãoem reiterados casos inter partes, e por issopeça a extensão erga omnes, o Senado nãoestá obrigado a generalizar, pois pode mui-to bem achar oportuno e conveniente que ainconstitucionalidade continue a ser decre-tada apenas inter partes. Está aí a sua fun-ção moderadora, exercida em nome dos es-tados-membros.

No exercício dessa função, o Senado nãoconvalida a inconstitucionalidade, masapenas entende que ela deva ser mantidano âmbito particular dos casos concretos. OSenado não entra no mérito da inconstitucio-nalidade, para reapreciá-la. Não invadecompetência alheia. Não rejeita a decisãodo Supremo Tribunal Federal. Não desdiz ainconstitucionalidade dita pela corte cons-titucional. Apenas não considera oportunoe conveniente estendê-la erga omnes. Nadamais faz do que uma limitação política doâmbito e do modo de aplicação da inconsti-tucionalidade. Esse poder discricionárionão lhe pode ser negado.

Lúcio BITTENCOURT (1949) é elogiávelpelo pioneirismo. Mas em sua obra, O con-trole jurisdicional da constitucionalidade dasleis, precipitou um entendimento prejudicial

à competência constitucional do Senado.Disse ele que o ato do Senado não é optativo,acrescendo que o objetivo da Constituição éapenas tornar pública a decisão do Tribunal, le-vando-a ao conhecimento de todos os cidadãos.Mas se esqueceu de que a decisão de qual-quer tribunal, sobretudo do Supremo, já épública por sua própria natureza. Com isso,deu início a um entendimento que atrofia acompetência do Senado. Já é hora de sanaressa atrofia.

A intervenção do Senado no controle di-fuso é um engenhoso meio jurídico-políticode atender ao princípio da separação depoderes, entre cujos corolários está o de quesó lei pode revogar lei. Esse princípio temde ser mantido no controle difuso, pois fazparte de sua lógica. A lógica do controle con-centrado é outra: admite a corte constitucio-nal como legislador negativo, o que é ina-ceitável no controle difuso. Cada modo decontrole deve manter sua lógica para convi-verem em harmonia. Se não, o misto se tornaconfuso. Exatamente para manter a lógica docontrole difuso, coerente com a separação depoderes, é que se teoriza que o Senado subtraiexeqüibilidade à lei, porém não a revoga. Masisso coloca uma questão: se a lei não é revoga-da, pode ser restaurada sua exeqüibilidade,após editada a resolução do Senado?

Como a lei continua existindo, um talretorno é possível. A Constituição não oveda. Ao contrário, se a lei continua existin-do para todos e, também, para o Supremo eo Senado, estes têm o dever constitucionalde restaurar-lhe a execução, quando for ocaso. E o caso pode ocorrer, como o compro-va a doutrina.

Ada Pellegrini GRINOVER (2000, p. 3-6),em recente livro, A marcha do processo, apon-ta para a possibilidade de existirem tais ca-sos. Diz ela, referindo-se à matéria tributá-ria, que tem acontecido de o Supremo TribunalFederal, pela via do Recurso Extraordinário,declarar, ’incidenter tantum’, a constitucionali-dade do tributo, em casos concretos distintos da-queles em que se deu a coisa julgada favorável aocontribuinte. Acrescenta: Outra hipótese tam-

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bém tem ocorrido: após a coisa julgada, acober-tando sentenças que afirmaram a inconstitucio-nalidade do tributo, o Supremo declarou sua cons-titucionalidade, pela ação declaratória introdu-zida no ordenamento brasileiro pela Emenda nº 3,de 17 de março de 1993.

Paulo BROSSARD (1976, p. 63) – em seuartigo sobre O Senado e as leis inconstitucio-nais, relata um caso concreto que comprovaa necessidade de restaurar a execução, ain-da que não sustente essa possibilidade.

Certa feita, o Tribunal de Justiçado Rio Grande do Sul declarou in-constitucional o art. 160 da Constitui-ção estadual de 1947... e, no mesmosentido, foi a decisão do Supremo Tri-bunal Federal (RE n. 22.241). Em fun-ção desse acórdão, o Senado suspen-deu a execução do artigo menciona-do, Resolução n. 48, de 14 de setem-bro de 1961. Não passou muito tem-po, contudo, e o Tribunal sul-rio-gran-dense, aprofundando a sua análise, apartir de voto vencido, pôde verificarque o preceito fulminado, e já entãosuspenso, seria “válido, subsistente,se endereçado aos delitos de respon-sabilidade de cunho político”, querdizer, aos crimes que não são crimes.(...) Não tivesse havido a suspensãoda norma referida e o Tribunal do RioGrande do Sul, longe de concluir pelainconstitucionalidade do art. 160, te-ria lhe dado a exata exegese e a corre-ta aplicação, circunscrevendo-o aos“crimes de responsabilidade” que nãosão ilícitos penais.

Esse exemplo sugere acrescer que a res-tauração da eficácia pode ser necessária nãosó porque o Tribunal deixou de fazer a exataexegese e a correta aplicação, mas até mesmoporque cometeu descuido procedimental. Sóo Tribunal pode e deve rever decisões suas,portadoras de falha, até de mero vício for-mal. O Senado não pode corrigir os atos doSupremo. Andou certo BROSSARD, na mes-ma passagem, quando – em contrário aoMinistro Pedro Chaves e a Celso Bastos –

negou aos senadores um tal poder de inspe-ção formal, aclarando que o Senado não é fis-cal da Corte Suprema, nem tem por ofício cuidarda observância das regras de julgamento. Àspartes, não ao Senado, é reservada essa vigilân-cia. Mas a vigilância das partes e a do pró-prio Tribunal podem impor a reconsidera-ção da inconstitucionalidade, mesmo de-pois da resolução do Senado, e exatamentepor isso não se pode negar a possibilidadede revogar essa resolução.

Gilmar Ferreira MENDES (19- -?), firmena doutrina alemã, em sua conhecida obraJurisdição constitucional: o controle abstrato denormas no Brasil e na Alemanha, defende serinadmissível reapreciar inconstitucionali-dade de lei já declarada. Mas faz duas res-salvas. A saber: ressalvadas as hipóteses de sig-nificativa mudança das circunstâncias fáticas oude relevante alteração das concepções jurídicasdominantes. Realmente, são possíveis casosenquadrados nessas hipóteses que levam areapreciar a inconstitucionalidade. Mascumpre acrescentar: até mesmo após a reso-lução do Senado.

Na mesma passagem, Gilmar FerreiraMENDES considera plenamente legítimo quese argua, perante o Supremo Tribunal Federal, ainconstitucionalidade de norma anteriormentedeclarada constitucional em ação direta de cons-titucionalidade. O contrário também nãopode ser negado: é legítima a proposição daação declaratória de constitucionalidadepara argüir a constitucionalidade de umanorma já anteriormente declarada inconsti-tucional. Essa legitimidade não é tolhidapelo fato de já ter sido editada a resoluçãosuspensiva, pois em qualquer hipótese é ri-goroso o dever de reverter uma inconstitucio-nalidade que se tornou insustentável, dadoque a norma constitucional tem de viger ple-namente, sob pena de fraudar o Estado deDireito.

Esse emprego para reverter inconstitucio-nalidade insustentável daria especial utili-dade à ação declaratória de constituciona-lidade, cuja valia causou tanta polêmica,quando de sua criação pela Emenda nº 3 de

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1993. De fato, é particularmente interessan-te a hipótese de sobrevir à resolução do Se-nado uma ação declaratória de constitucio-nalidade, buscando reconsiderar a incons-titucionalidade com base em novos fatos ouargumentos inéditos, os quais imponhamreverter o decidido. Nada impede – mas tudoaconselha e até impõe – que, em face demutações históricas do fato ou do direito,qualquer um dos legitimados pelo § 4º doart. 103 proponha a ação declaratória deconstitucionalidade de uma lei, mesmo apóshaver o Senado suspenso sua execução. Nodesfecho, se o Supremo Tribunal Federalreverter a inconstitucionalidade, a decisãoda ação declaratória de constitucionalida-de terá eficácia contra todos e efeito vinculanterelativamente aos demais órgãos do Poder Judi-ciário e ao Poder Executivo, como estabelece aConstituição no artigo 102, § 2º, e isso tor-nará não só conveniente, mas realmenteobrigatória a edição pelo Senado de umaresolução revogando a anterior.

Para tanto, uma indagação tem de serrespondida: o inciso X do artigo 52 da Cons-tituição fala que o Senado atenderá a decisãodefinitiva do Supremo. Em 1891 não haviaessa exigência. Mas hoje ela existe. O queleva a indagar se, com uma decisão definiti-va, não estaria o Supremo fechando as por-tas atrás de si, impossibilitando o regresso,ou seja, tornando impossível a revogaçãoda resolução do Senado.

A resposta é: o termo definitivo aí signifi-ca conclusivo. Como lembra Ada PellegriniGRINOVER (2000, p. 3-6), na passagem ci-tada, esse termo aponta para a conclusãode uma série de decisões próprias do con-trole difuso. Decisões que o finalizam. Aídefinitivo não significa irreversível, mas so-mente que algo está findo e definido naspresentes condições históricas. Contudo,essas condições podem mudar. Até mesmoporque a decisão definitiva pode padecerde erro formal ou material que obrigue o Tri-bunal a revê-la, mesmo depois de estar emvigor a resolução do Senado. Sob pena de pôrem risco ou em ruína o Estado de Direito.

Já há muito tempo Hans KELSEN (1981,p. 303) firmou a perene reversibilidade dasdecisões sobre constitucionalidade. Em suaobra sobre a justiça constitucional reafirmouo que já fora dito pela Suprema Corte em1873, no caso Morgan County. A saber: asquestões constitucionais são sempre abertas anovo exame. São assim sempre abertas, porserem sempre questões de natureza políti-ca, que tocam de perto na expressão da von-tade geral em si mesma considerada (con-trole abstrato) ou considerada em sua corre-lação com as vontades particulares (contro-le concreto). Daí, com Manoel GonçalvesFerreira Filho, a doutrina confirma que ocontrole de constitucionalidade ora é políti-co-jurídico, ora é jurídico-político, mas, oramais, ora menos, é sempre político. Nin-guém mais duvida da politicidade do con-trole de constitucionalidade. Daí que podehaver necessidade político-jurídica ou jurí-dico-política de revogar a resolução do Se-nado para restaurar a plenitude da lei. Umtal retorno pode até parecer absurdo, pois aprática nunca o exercitou. Mas, em vez deabsurdo, é absolutamente lógico em sua coe-rência com o sistema difuso, permitindo co-lher bons frutos de uma intervenção do Se-nado que constitui um verdadeiro check andbalance de moderação, engenhosamente cria-do pelo constitucionalismo brasileiro.

Ademais, a congruência entre os atosjurídicos impõe outra conclusão: do mesmomodo que se pode retirar, também se poderestaurar um poder ou uma condição depoder, exceto se houver expressa proibiçãolegal. Assim, o vigor da lei se restabelece nasmesmas condições em que foi retirado. Nostare decisis, a jurisprudência pode por simesma reavivar a executoriedade que amor-tecera. Similarmente, no caso brasileiro, oSenado pode dar ou tirar o efeito erga omnes.Nos dois sentidos, o trâmite é complexo:compete ao Supremo julgar da inconstituci-onalidade e ao Senado, cuidar da generali-dade. Mas há uma diferença significativa:se para editar a resolução a competência doSenado é discricionária, para revogá-la é

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vinculada, pois, se o Supremo reconsiderar ainconstitucionalidade e, mesmo assim, oSenado mantiver a resolução, este estaráusurpando a competência daquele e, tam-bém, a do Congresso Nacional, uma vez quea lei feita pelo Legislativo e consideradaconstitucional pelo Judiciário tem de ter vi-gência plena e ser plenamente aplicável.Portanto, o retorno não é só possível, maspode vir a ser necessário, e não há por quenegá-lo.

Enfim, ainda é de notar que a interven-ção do Senado, embora aprimore o sistemadifuso, não consiste no julgamento de ne-nhum caso concreto, em que a decisão, senão recuar ex tunc, até à origem do ato ques-tionado em concreto, pode prejudicar umaparte em benefício da outra. Ao contrário, oato do Senado é erga omnes e, por isso mes-mo, se recuar ao passado, atingirá outraspartes, cujos direitos e obrigações não fo-ram questionados nos casos concretos, aofim dos quais o Supremo solicitou ao Sena-do a suspensão da lei. Aqui, o recuo ao pas-sado causaria sublevação automática e ime-diata das relações jurídicas que estavampacíficas, causando uma guerra generaliza-da entre incontáveis partes. O que, além deinjusto para os atingidos, seria inconvenien-te para a paz social, escopo maior da admi-nistração da Justiça pelo Estado.

Por esses motivos, a ampliação erga om-nes resolvida pelo Senado somente pode terefeito ex nunc, ou seja, a partir da publicaçãoda resolução. Ada Pellegrini GRINOVER(2000, p. 11) reforça essa tese, esclarecendoque, nesse caso, a decisão judicial não se re-veste da autoridade da coisa julgada, de modoque, se sobrevier a suspensão da execuçãoda lei, sua ineficácia, decorrente exclusivamen-te da resolução do Senado, terá efeitos ‘ex nunc’.A despeito de haver doutrina a sustentar ocontrário, a tese está correta: a resolução se-natorial somente pode ter efeito ex nunc. Nãopode ter efeito ex tunc.

Realmente, a intervenção do Senadoconstitui uma intersecção do sistema difusocom o concentrado, que os aproxima entre

si. Mas não os assimila, nem os identifica,nem muito menos confunde um com o ou-tro. De um lado, nessa intersecção não setem o efeito ex tunc próprio do sistema difu-so, porque aí não se está julgando um casoconcreto. De outro lado, porque o Senado aínão age como legislador negativo (ademais,ele é uma das câmaras do Legislativo, masnão é o Legislativo), não há possibilidadede modular no tempo – ex tunc, ex nunc oupro futuro – o vigor da decisão de inconstitu-cionalidade vinda do Supremo, ao qual oSenado não pode substituir. O Senado ape-nas suspende a execução da lei. O que – evi-dentemente – ele só pode fazer do momentode sua resolução para diante, ou seja, exnunc. Sob pena de ultrapassar a sua compe-tência constitucional.

Ao final, cumpre sintetizar uma conclu-são geral. A saber: sendo assim bem com-preendida – como discricionária em sua de-cisão, eficaz só desde sua publicação e rever-sível quando necessário – a resolução doSenado no arremate do controle difuso, emvez de corresponder a uma função exígua,torna-se fértil pela possibilidade que abrede freios e contrapesos entre os poderes doestado federal, em prol da correta prática doEstado Democrático de Direito na Repúbli-ca Federativa do Brasil.

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Romeu Costa Ribeiro Bastos e MariaElizabeth Guimarães Teixeira Rocha

A análise das intervenções castrenses aolongo da história republicana brasileira de-manda, a priori, uma avaliação sobre o pa-pel dos militares no Estado, na política esua interação com a sociedade civil.

O conceito de profissionalização nasForças Armadas surgiu como resposta ànecessidade de contextualizar sua atuaçãoa partir de um referencial sociológico que assituasse comparativamente diante de outrosgrupos funcionais no interior do sistemasocial. Com base nessa formulação, tornou-se possível definir a competência profissio-nal militar perante o Estado e a socieda-de, a despeito da dificuldade em compa-tibilizar a oposição teórica entre ação mi-litar e política.

De fato, o relacionamento do Estado comas Forças Armadas não se reduz à mera re-lação profissional-cliente, mas a uma efeti-va relação de poder, uma vez que as ForçasArmadas não atuam apenas como profissio-

Os militares e a ordem constitucionalrepublicana brasileiraDe 1898 a 1964

“La constitución es una cosa; los militaressomos otra1” (LOWENTAL, 1976, p. 3).

Romeu Costa Ribeiro Bastos é ProfessorUniversitário. Mestre em Engenharia de Siste-mas pelo Instituto Militar de Engenharia. Dou-tor em Aplicações, Planejamento e EstudosMilitares pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército.

Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rochaé Professora Universitária e Procuradora Fe-deral. Mestra em Ciências Jurídico-Políticaspela Universidade Católica Portuguesa. Dou-tora em Direito Constitucional pela Universi-dade Federal de Minas Gerais.

Sumário

As intervenções militares e a República. 1.Raízes das crises. 2. As crises constitucionais. a)O período de 1920 a 1930. b) O período de 1930a 1945. c) O período de 1945 a 1950. d) O períodode 1950 a 1964. O regime militar de 1964. Con-clusão.

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nais, detentoras que são de autoridade quelhes foi constitucionalmente outorgada.

Tal competência encontra-se intrinseca-mente vinculada ao papel dos militares eseu inter-relacionamento com a sociedadecivil, cujo aspecto fundamental traduz-se natensão potencial da necessidade de os go-vernantes manterem, por um lado, uma for-ça armada como instrumento da política eda ordem interna e garantirem, por outro,que ela não usurpe os aparelhos do Estado(STEPAN, 1975, p. 46).

Nessa linha teórica, quatro modelos ex-plicativos sistematizados por JANOWITZ(1977, p. 187 et seq.) são apontados comodefinidores da relação civil-militar: o aris-tocrático, o democrático, o totalitário e o pro-fissional.

O modelo aristocrático corresponde àestrutura das elites. Sua essência reside nofato de que os valores sociais e os interessesmateriais das elites militares e políticasnuma sociedade aristocrática são natural-mente convergentes. A base do recrutamen-to da oficialidade, que se define como aris-tocrata e não castrense, provém da casta ci-vil, assegurando, dessa forma, a estabilida-de do sistema político.

O modelo democrático, caracterizadopela diferenciação entre as elites civil, polí-tica e militar, impõe o afastamento delibera-do das Forças Armadas da esfera públicadecisória, em face do reconhecimento de que,ao menos no plano ideal, o oficial é um pro-fissional apolítico, a serviço do Estado esubordinado às regras e normas legais.

Quanto aos modelos totalitário e profis-sional, atribuem alto valor à força militar e àespecialização. No primeiro, o controle ci-vil é assegurado por meio da seleção políti-ca dos chefes militares e reforçado pela in-filtração de membros do partido único e pelaação da polícia secreta, em razão da impos-sibilidade da coincidência social das elites.No segundo, efetiva-se o controle, não pormeio da convergência de interesses, maspela tolerância dos civis para com o desen-volvimento autônomo da influência militar.

Huntington, seu principal teórico, sustentaque a busca de objetivos militares profissio-nais tende a manter as Forças Armadas den-tro de sua esfera de atuação.

Outros sistemas podem, ainda, ser cita-dos, como o ditatorial e o moderador, esteúltimo especialmente relevante, por nele seencontrar a formulação teórico-explicativapara a atuação das Forças Armadas no mo-vimento irrompido em 1964, à semelhançado ocorrido durante a monarquia, quandoo Imperador detinha poderes “constitucio-nais especiais” para intervir nas crises po-líticas em épocas de impasse.

Descrito e sistematizado por Alfred STE-PAN (1975, p. 32 et seq.), os axiomas analí-ticos do modelo moderador ou de arbitra-gem podem ser assim relacionados:

• Todos os principais protagonistaspolíticos procuram cooptar os militares,admitindo-se como regra a politizaçãodas Forças Armadas.

• Os militares são politicamente he-terogêneos, mas procuram manter umgrau de unidade institucional.

• A cúpula política garante legitimi-dade aos militares, sob certas circuns-tâncias, para atuarem como moderado-res do processo institucional, controlan-do o Poder Executivo, ou mesmo evitan-do a ruptura do sistema, quando envol-ve uma mobilização maciça de novosgrupos anteriormente excluídos.

• A sustentação dos militares poli-ticamente heterogêneos pelas elitescivis facilita a formação de uma coa-lizão golpista vencedora. Inversamen-te, a ausência de tal apoio impede suaconsolidação.

• A formalização de um “pacto” tá-cito entre civis e militares legitima a in-tervenção armada no processo políti-co nacional e o controle temporário doEstado, por um período determinado.

Ora, tomado genericamente, esse valor-congruência resulta na socialização civil-militar, exemplarmente ilustrada pela dou-trina desenvolvimentista, em sintonia com

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o projeto de grupos parlamentares. A con-descendência social e intelectual dosoficiais militares em relação aos civis pos-sibilita a cooptação e a contínua liderançacivil, que visa restabelecer o equilíbrio polí-tico e “corrigir” a autoridade de direito e arepresentação nacional quando essas en-tram em coalizão com as forças reais ouas autoridades de fato.

É o chamado “intervencionismo patoló-gico”, por meio do qual os civis confiam aosmilitares o desempenho de um papel mode-rador, em determinados momentos históri-cos, para “recompor” a vida política nacio-nal2 (STEPAN, 1975, p. 51).

As intervenções militares e aRepública

1. Raízes das crises

A intervenção das Forças Armadas em1964 assumiu, efetivamente, a função ideo-lógica de arbitragem ao proteger a burgue-sia e conter o avanço dos movimentos po-pulares diante da crise institucional. O mo-delo moderador, porém, se romperia com aimplantação de um regime militar gestadoao longo das várias décadas do período re-publicano3.

A história noticia a intervenção políticadas Forças Armadas a partir da Proclama-ção da República. Retrocedendo ao períodoimperial, a vitória brasileira na Guerra daTríplice Aliança faria o Exército emergircomo uma força capaz de mudar os rumospolíticos da Nação, recrudescendo o idealrepublicano.

A geração de Caxias e Osório, forjada noscampos de batalha do Paraguai, seria suce-dida por oficiais que não guardavam senti-mento de lealdade para com o monarca.Some-se a isso a visão patriarcal da época,temente à possibilidade de o sucessor do tro-no ser uma mulher, casada com um estran-geiro, que sobre ela exercia grande influên-cia (O EXÉRCITO na história do Brasil, 1998,

p. 12). Conturbava, ademais, o cenário polí-tico nacional a agitação provocada nos quar-téis pelas idéias de Benjamin Constant e ateoria positivista do soldado-cidadão ou ci-dadãos-uniformizados, segundo a qual osmilitares estavam destinados a serem os ci-vilizadores da sociedade brasileira.

O terreno estava propício à primeiragrande intervenção castrense no Brasil e asForças Armadas tornar-se-iam, efetivamen-te, as fundadoras da novel República, res-tando claro a lacuna deixada pela socieda-de civil, despreparada para conduzir e de-fender o Estado Democrático.4 As forças he-terogêneas que apoiaram o movimento re-publicano incluíam desde os republicanosautênticos aos monarquistas escravagistasantagonizados com o regime após a aboli-ção. É certo, contudo, ter faltado igualmenteaos militares um projeto de governo, imbuí-dos que estavam apenas do ideário salva-cionista. A Proclamação da República cons-cientizara o Exército de sua importância ins-titucional – num processo que se iniciou apartir da Guerra do Paraguai – corroboran-do a crença da superioridade moral militarsobre a civil. A conseqüência imediata foi apolitização das Forças Armadas, constata-da pelos vários oficiais nomeados governa-dores de Estado e eleitos para o Parlamento.A parcela de gastos militares aumentou,mas as violentas lutas internas havidas nes-se período exporiam a organização à atua-ção dos grupos externos, minando a tentati-va de implantação de um projeto endógeno.

Após o segundo governo militar conse-cutivo, os civis alçaram ao poder buscandoimplantar uma Nova Ordem Civilista5. Aestratégia adotada por Prudente de Moraisfoi enfraquecer o poderio das Forças Arma-das realizando cortes no orçamento, o queacarretaria a falta de materiais e equipamen-tos, atingindo de modo contundente a for-mação profissional dos oficiais. A consecu-ção de tal objetivo explica o fracasso retum-bante das expedições de Canudos e põe àmostra a estagnação provocada pela dou-trina do soldado-cidadão que impediu a

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modernização da Instituição e o florescimen-to de um pensamento militar autóctone.

Um fato, no entanto, abalaria essa estru-tura estamental. Durante a presidência doMarechal Hermes da Fonseca, um grupo dejovens oficiais enviados para estagiar juntoao Exército Alemão havia retornado ao Bra-sil com novas idéias e desencadearia umacampanha pelo aperfeiçoamento profissio-nal da Arma. Eram os chamados JovensTurcos6, que propugnavam só poder o Exér-cito desempenhar sua missão de defesa ex-terna com uma força efetivamente profissio-nal e apolítica.

A idéia da despolitização agradou asclasses políticas, ciosas de uma oportuni-dade para afastar os militares do poder de-cisório estatal, mas, a despeito da ênfase noprofissionalismo, o sentimento de interven-ção armada não fora sepultado. A necessi-dade de substituir o sistema de governo cor-rupto – articulada desde de 1880 – reviveriaem 1920 quando os tenentes, rebelando-secontra Arthur Bernardes, iniciaram o ciclodas intervenções militares que só termina-ria em 1964.

2. As crises constitucionais

a. O período de 1920 a 1930

A década de 20 seria marcada por umclima de turbulência e insatisfação social,bem como por transformações significativasna Ordem Internacional.

O Primeiro Conflito Mundial, ao revisaro conceito tradicional de guerra, atingiriadiretamente as Forças Armadas, conscien-tizando-as do obsoletismo bélico e tecnoló-gico nacional.

Impunha-se a modernização. O ExércitoFrancês vitorioso seria a força bélica esco-lhida para conduzir o processo. Atuandoinicialmente nas Escolas de Formação, aMissão Francesa enfatizava a necessidadede se conhecer profundamente os problemasnacionais, e o Exército, reflexo da Nação,corpo uno integrado pelo povo e pela ban-

deira, apresentava-se como a instituição re-publicana restauradora dos males tradicio-nais do regime7.

Internamente, a Primeira República ago-nizava. A campanha presidencial de 1922,palco de um novo incidente envolvendo osmilitares – uma carta falsa atribuída a Ar-thur Bernardes, candidato governista, ofen-dendo o Exército –, constituiria-se no marcoinicial de um ciclo de rebeliões, prenúnciode uma revolta maior, que sacudiram o paísao longo dos anos vinte, historicamente de-nominado de Movimento Tenentista8.

Combatido pelo próprio Exército comoforça legalista e anti-revolucionária, o tenen-tismo canalizou as aspirações de mudançasdos segmentos sociais descontentes, enfren-tando os setores autoritários conservadores einfluenciando a esquerda revolucionária.

Desafiadores, os “tenentes” protagoni-zariam em 1924 seu mais glorioso feito: aColuna Prestes, que, durante dois anos, ado-tando a tática da guerra de guerrilha, per-correu cerca de 25 mil quilômetros e atra-vessou 14 estados da Federação fazendopropaganda da revolução. Pretendiam osrevolucionários a derrocada do regime e aimplementação de reformas sociais.

A Coluna se dissolveria em 1927 comseus principais líderes exilando-se na Bolí-via e Paraguai; não obstante, a RepúblicaVelha chegava aos seus estertores.

O episódio final desenrolar-se-ia na cam-panha eleitoral de 1929 com Getúlio Var-gas, opositor do paulista Júlio Prestes, ten-do sido derrotado em eleições fraudadas,fato que fez eclodir uma revolta no Rio Gran-de do Sul.

Era o fim da “política dos governado-res” e o início da era Vargas.

b. O período de 1930 a 1945

A deposição de Washington Luiz pelosComandantes das Forças Armadas e a ins-tauração do governo provisório chefiado porGetúlio Vargas encerram a Primeira Repú-blica com a renovação dos dirigentes doEstado.

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No quadro convulso vivenciado pelaNação, o Exército, confuso e dividido, umavez que a maioria dos oficiais superiores nãohaviam participado da Revolução, cindiu-se em dois grupos ideologicamente diver-gentes: os reformistas, defensores da idéiade que países periféricos como o Brasil de-veriam ser tutelados pela corporação, e osapolíticos, de postura menos intervencionis-ta, mas propugnadores do salvacionismomilitar como solução para resgatar o Esta-do das ambições pessoais que o ameaçavam.

Impunha-se estabelecer a unidade nointerior da Força e Vargas, com sua notávelhabilidade, cooptaria os tenentes, dando-lhes promoções rápidas e cargos importan-tes no início do governo9. A participaçãodos tenentes na Revolução Constituciona-lista de 1932 lutando ao lado do GovernoFederal revela a importância daqueles ato-res nos primórdios da Segunda República10.

Mas a “guerra paulista” aceleraria oprocesso de constitucionalização – aexemplo das eleições de 1933 para a As-sembléia Nacional Constituinte – recom-pondo antigas alianças com os gruposoligárquicos regionais descontentes, oque acabou por provocar o alijamento dostenentes do poder.

A compreensão da atuação dos milita-res na década de 30 passa, obrigatoriamen-te, pelo General Pedro Aurélio de GóesMONTEIRO (1937), personagem proemi-nente da historiografia brasileira, cujas crí-ticas e sugestões a propósito da reorganiza-ção do Exército durante a Revolta Constitu-cionalista mereceram a atenção de Vargas,que o convidou para Ministro da Guerra.

Sua visão sobre as Forças Armadas eradicotômica. De um lado, o Exército se lheafigurava uma instituição desorganizada eineficaz, que necessitava de profissionali-zação, recrutamento e um sistema de pro-moções. De outro, considerava a corpora-ção militar como a única instituição verda-deiramente nacional, de importância vitalpara a unidade do país. Concernente à are-na política, defendia um governo forte e cen-

tralizador e a defesa da segurança internapelos militares. Para ele, o Exército consti-tuía-se num órgão fundamentalmente polí-tico cuja responsabilidade era forjar umaconsciência coletivista “de políticos do Exér-cito e não de políticos dentro do Exército”(1937, p. 181)11. O individualismo deveriaser suprimido de forma a assegurar a orga-nização econômica e o progresso. Igualmen-te, deveriam ser asseguradas a justiça e aliberdade, valores compatíveis com a segu-rança nacional. As idéias de Góes MON-TEIRO eram, pois, consoantes com o coope-rativismo do Estado Novo varguista12.

Por fim, a II Guerra Mundial aceleraria oprocesso de desenvolvimento brasileiro.Vargas e sua política pendular entre o Eixoe os Aliados acabou por escolher o lado cer-to, na hora certa. Sob o compromisso norte-americano de construir a Usina de VoltaRedonda, o Brasil cedeu uma base aérea noNordeste, estreitando as relações entre osdois Exércitos. A decisão de ingressar noconflito em 1942 fortaleceu ainda mais oslaços de amizade e interesses entre as For-ças Armadas, dos dois Estados. A ForçaExpedicionária Brasileira (FEB), única gran-de unidade militar latino-americana a lutarna Europa, gerou reflexos e conseqüênciasintensas internamente. Os febianos, com aexperiência adquirida junto aos americanos,puderam avaliar o atraso, sobretudo políti-co, da Nação. Pressionado, Vargas prometeeleições, mas em outubro de 1945 acabariasendo deposto pelas Forças Armadas, que,uma vez mais, seguindo o modelo modera-dor, devolveram o governo aos civis. Con-vocado novo pleito eleitoral, o General Du-tra, candidato apoiado por Vargas, sai vito-rioso, tendo como opositor o BrigadeiroEduardo Gomes. A escolha de dois candi-datos militares quis significar serem elesmais confiáveis do que os civis para condu-zir o processo de transição13.

c. O período de 1945 a 1950

A vitória da democracia na II GrandeGuerra evidenciou a necessidade de o Bra-

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sil realinhar-se à nova conjuntura políticamundial.

O período que compreende os anos de1945 a 1950 caracterizou a transição do Es-tado Novo para a Terceira República. Elei-ções em 1945 deram a vitória a Dutra, apoia-do por Vargas. Foi uma administração tran-qüila, respaldada pela sociedade civil, soba égide da qual promulgou-se a Constitui-ção de 1946 de cunho liberalizante.

No Exército, a corporação dividia-se en-tre os nacionalistas ligados ao PTB e PSD eos internacionalistas que se identificavamcom a UDN, integrando este último grupoos participantes da Força ExpedicionáriaBrasileira, que, visando alcançar uma posi-ção de destaque no interior das Forças Ar-madas, criaram a Escola Superior de Guer-ra – ESG14.

A doutrina da ESG associava os méto-dos de raciocínio cartesiano ensinados pelaMissão Francesa com as técnicas de plane-jamento aprendidas com os americanosdurante a guerra. Seu projeto inicial consis-tia em analisar os problemas brasileirosdentro de um contexto global, priorizandoa segurança nacional. Propunha, outrossim,a interação de grupos civis com os oficiaisdas Forças Armadas, modelo que seria de-cisivo para explicar a congruência de valo-res dos setores conservadores da sociedadee a intelligentzia militar na articulação e vi-tória do Golpe de 1964.

d. O período de 1950 a 1964

A candidatura de Vargas à presidênciaem 1950 teve como sustentáculo o trabalhis-mo e o nacionalismo. No seio das ForçasArmadas, os oficiais internacionalistas en-cararam-na com desconfiança, mas a alanacionalista liderada pelo General EstillacLeal, Presidente do Clube Militar e mais tar-de Ministro da Guerra, apoiava-a.

Ao reverso do ocorrido no período dita-torial, Vargas acreditou não possuírem osmilitares condições efetivas para influíremna vida nacional. Com isso, o orçamento dasForças Armadas foi reduzido e Vargas vol-

tou-se praticamente para o proletariado ur-bano. A primeira grande crise do segun-do governo varguista eclodiria quandoos militares lançaram o Manifesto dosCoronéis contra João Goulart, seu Minis-tro do Trabalho.

A infiltração de oficiais comunistas naala nacionalista deu pretexto para que hou-vesse um expurgo no dispositivo militar,incluindo a exoneração de oficiais-generaisde importantes comissões. Tais aconteci-mentos acabaram de inviabilizar a frágilsustentação política de Vargas pelas ForçasArmadas.

Em 1954, seguida a forte campanhapela renúncia, Vargas suicida-se, assu-mindo o governo o Vice-Presidente Café Fi-lho. Nas eleições que se seguiram, JuscelinoKubitschek e João Goulart foram lançadospelo PSD e pelo PTB candidatos a Presiden-te e a Vice-Presidente, respectivamente, e ti-veram como principal opositor um antigotenente, Juarez Távora, indicado pela UDNe apoiado pela corrente neoliberal do ClubeMilitar. Os políticos udenistas, antigos opo-sitores de Vargas, faziam apelos para queos militares interviessem no processo polí-tico, mas a maioria dos oficiais defendia apostura legalista.

Vitorioso nas urnas, Kubitschek teria seumandato ameaçado pela oposição udenis-ta, que sustentava a tese golpista de os can-didatos não haverem obtido maioria abso-luta dos votos. Julgado improcedente o pe-dido pelo Tribunal Superior Eleitoral, seto-res conservadores procuraram obstaculizara posse dos eleitos.

Um grupo de oficiais liderados pelo pró-prio Ministro da Guerra, General HenriqueDuflles Teixeira Lott, planejou, então, umcontragolpe para garantir a legalidade eassegurar o “Retorno aos Quadros Consti-tucionais Vigentes”. Na noite de 11 de no-vembro de 1955, Lott não só deporia o Presi-dente em exercício Carlos Luz, como impe-diria o regresso de Café Filho – que se en-contrava hospitalizado – entregando a che-fia do Poder Executivo Federal ao Presiden-

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te do Senado, Nereu Ramos, que empossouKubitscheck e Goulart.

O tempo que seguiu foi de grande turbu-lência nas Forças Armadas, com pequenasrevoltas lideradas por oficiais da Aeronáu-tica. A cisão se acirrou com a campanhapresidencial de 1960. Logo após a vitóriade Jânio Quadros, candidato oposicionista,o novo Ministro da Guerra iniciou umacampanha de pacificação, transferindo osoficiais de esquerda para guarnições dis-tantes do Rio de Janeiro, pondo fim à agita-ção no Clube Militar.

Com sua política contraditória, JânioQuadros causava constrangimento nosmeios militares. O golpe teatral da renúnciaem 1961 revelar-se-ia uma impostura malo-grada que visava o recrudescimento do re-gime e a recondução do Presidente com po-deres ditatoriais15.

O vice, João Goulart, em viagem à China,havia feito pronunciamento contra os mili-tares revelando a intenção de estabelecer noBrasil uma República Sindicalista na quala força de trabalho urbano substituiria a for-ça militar como principal elemento de apoioao governo16.

Os ministros militares opuseram-se àsua posse, fato que daria ensejo à primeiragrande ruptura nas Forças Armadas com ainsubordinação do III Exército no Sul do paíse a ameaça de uma guerra civil.

O regime parlamentarista traduziu-senum rearranjo institucional para dar possea João Goulart, que, ao assumir a Chefia doPoder Executivo, envidaria todos os esfor-ços para restaurar seus poderes presidenci-ais17. Inspirando-se no modelo varguista,governaria com o apoio do proletariado ur-bano e controlaria os militares com nomea-ções políticas. Promoveu e colocou em posi-ções de destaque os chamados “generais dopovo”, política que causaria sérios proble-mas ao seu governo, nomeadamente a que-bra da hierarquia, bem ilustrada pelas Re-voltas dos Sargentos e dos Marinheiros.

Ora, a hierarquia é o principal pilar desustentação da estrutura militar e os movi-

mentos dos sargentos e marinheiros rompe-ram com a estrutura de comando. Eles pas-saram a agir como uma categoria social dis-tinta, com interesses cooperativistas e polí-ticos próprios, o que colocava em questão,pela a primeira vez na história brasileira, apossibilidade de uma mudança no estatutode classe da burocracia militar (SILVA,1984, p. 29).

Os clubes militares fizeram manifestoscontra a situação e oficiais legalistas nãotinham mais argumentos para evitar a que-da do Presidente. Apoiados por um forteesquema que reuniu os políticos, a igreja, asociedade conservadora e a elite detentorados meios de produção e financeira, em 31de março de 1964, as Forças Armadas assu-miriam o controle do Estado.

A compreensão do papel das Forças Ar-madas no período que permeia os anos de1945 a 1964 passa, obrigatoriamente, pelaConstituição de 1946, que, em seu artigo 177,dispunha sobre as funções da instituiçãomilitar na estrutura jurídico-política do Es-tado.

À semelhança do artigo 162 da CartaConstitucional de 1934, a Lei Fundamentalde 1946 estabelecia, verbis:

“Art. 177 – Destinam-se as ForçasArmadas a defender a Pátria e a ga-rantir os poderes constitucionais, a leie a ordem”.

Referida preceituação atribuía claramen-te às Forças Armadas a função de árbitro –legal ou supralegal – entre os segmentoseconômico-sociais, sócio-políticos e políti-cos, erigindo a cânon constitucional os in-teresses capitalistas e a ordem burguesa.

Da função moderadora decorria a fun-ção de intérprete da norma jurídica, cujapretensão exegética consistia em determinarquem poderia exercer o poder e ter acessoao aparelho de Estado. Dita regulação afe-tou profundamente a dinâmica política, so-bretudo no que concernia aos partidos, vezque suas relações não estavam demarcadaspor uma estrutura burocrática definida. Osmecanismos seletivos passaram a ser atri-

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buição da instituição mantenedora da or-dem: as Forças Armadas (WRIGHT, 1984)18.Nesse sentido, detinham os militares o po-der de caracterizar comportamentos, perso-nalidades e soluções ameaçadoras ao regi-me, cabendo-lhes a última palavra sobre si-tuações específicas. A ilegalidade do Parti-do Comunista em 1946 e as limitações sofri-das pelo PTB exemplificam a distorção es-trutural do sistema.

Essa situação anômala trouxe no seu bojoo germe da crise política ao longo de toda atransição do governo, constituindo um enor-me incentivo para que as facções em luta pelopoder transbordassem os limites constitucio-nais e apelassem para o Golpe de Estado.

Concomitantemente, o cenário mundialda Guerra Fria alteraria profundamente opapel das Forças Armadas na conjunturainterna brasileira. Isso porque a concepçãode guerra sofreu uma total revisão após1945, gerando o afastamento dos países sub-desenvolvidos de um eventual conflito ex-terno. Ora, tal afastamento surtiu um efeitovital sobre as Forças Armadas. Era a perdade sua função precípua. Criadas para umaguerra externa, a História mostra e a insti-tuição pressentia que um organismo resi-dual pode durar, mas dura pouco e acabadescartado. Não tendo mais essência, nãoteria mais função. Daí a providência de ter-se atribuído às Forças Armadas a manuten-ção da ordem interna, a fim de legitimar suaexistência19.

A doutrina de segurança nacional, frutoda divisão do mundo em zonas de influên-cia, estabelecida pelos Tratados de Yalta ePostdam, viria como resposta a um tipo dejustificação: o avanço do comunismo sovié-tico e a submissão do mundo à Rússia deStalin.

A perpetuação do contexto bélico globalincitou uma inversão perversa da fórmulade Clausewitz ao reduzir a política à conti-nuação da guerra por outros meios. A guer-ra não mais se revestia do seu processo con-vencional, ela era “fria”, “ideológica”,processava-se em todos os campos, a todas

as horas, a exigir vigilância constante e per-manente; sobretudo porque, no seu concei-to moderno, tinha lugar no interior do pró-prio Estado. Ela era “total”20 e haveria deser combatida com os mecanismos de defe-sa interna firmados pela doutrina da segu-rança nacional.

As conseqüências da doutrina da segu-rança foram nefastas. Ela perpetrou a alte-ração da política tradicional e o aniquila-mento de dissensões ao suprimir a diferen-ça entre os meios de pressão violentos e nãoviolentos, permitindo-se obter a segurançapor ambas as formas ou, pior ainda, destru-indo as barreiras das garantias constitucio-nais; isso, no âmbito interno. No plano ex-terno, significou a extinção da fronteira en-tre a guerra e a diplomacia. Ademais, essadoutrina desfez a distinção entre políticaexterna e política interna. O inimigo estavaao mesmo tempo dentro e fora do país. O Exér-cito passou a atuar como força “policiales-ca”, à medida que a “guerra” ganhava unici-dade. E, finalmente, a segurança nacionaligualou a violência preventiva à repressiva.

Essa estratégia dissolvente, cujo objeti-vo a longo prazo foi a desmoralização dasinstituições liberais e o afastamento popu-lar do processo de organização do poder,reforçou a intervenção militar, a conduçãodo Estado pelas classes dominantes e aunião multinacional21.

O Ato Institucional de 9 de abril de 1964selaria juridicamente o fim da Terceira Re-pública que, sob o aspecto político, já foraderrubada de fato dez dias antes pelo movi-mento armado de 31 de março22, coroando oinício de governo despótico, fadado a durarvinte anos.

Sua edição mudou o cenário históriconacional. A implicação era evidente: a polí-tica de compromisso tinha sido desacredi-tada pelo jogo “ultrademocrático” de Gou-lart. A intervenção do Exército era um retor-no à mensagem autocrática apregoada porJânio Quadros responsabilizando os “po-líticos” pela condução do Brasil ao caos(SKIDMORE, 1976, p. 373).

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Profundamente descaracterizada, a Car-ta de 1946 teria uma sobrevida formal que sedilatou até a promulgação da Constituiçãode 24 de janeiro de 1967. Mas, a partir do pri-meiro Ato Institucional, ela não passaria deuma sombra ou fantasma de Constituição.

O regime militar de 1964

O golpe de Estado perpetrado em 1964resultou mais de uma conexão existente en-tre a sorbonne brasileira, haurida na EscolaSuperior de Guerra, com o empresariadoclientelista, a tecnoburocracia, os grandesproprietários rurais e urbanos, os cartéismultinacionais e a classe média tradicionalque tinha a grande imprensa como porta-voz do que, propriamente, de um movimen-to conspiratório militar-corporativista, semqualquer ligação com a sociedade civil23.

Isso se vê claro em agosto de 1961, quan-do os ministros militares, na tentativa deimpedir a posse do vice-presidente eleitoJoão Goulart, agindo pro domo suae, à inteirarevelia das forças populares e mesmo dasclasses conservadoras, colheram um rotun-do fracasso político-militar, dado o isola-mento do putsch circunscrito, unicamente,ao estamento.

Colocando no patamar devido a partici-pação dos militares nos eventos de 1964 eos desdobramentos inevitáveis que se lheseguiram no chamado ciclo dos militares nopoder, deve-se considerar a conjugação deinteresses entre a facção militar das ForçasArmadas Brasileiras ligadas à ESG – nãonecessariamente majoritária, mas plena-mente atuante e articulada – e os setores or-ganizados do capital e da tecnoburocraciacivil, que viam no avanço populista de Gou-lart um obstáculo aos projetos de segurançanacional a que se julgavam avalistas.

Surpreende a inexistência de um planoúnico de conspiração visando a tomada dopoder. Enquanto o General Carlos LuizGuedes atribuía às forças militares sedia-das em Minas Gerais a responsabilidadepelo início da sublevação, Armando Falcão,

Ministro da Justiça no Governo Geisel, res-saltava o general Humberto Castelo Brancocomo figura central que coordenou a açãono alto comando contra o governo deposto.

De igual modo, adesões de última horaao movimento, como as dos Generais Costae Silva, Justino Alves Bastos, Amaury Kruel,Floriano Machado e outros, são considera-das ora importantes e decisivas, ora irrele-vantes e puramente oportunistas, segundoas preferências e o ângulo de observação doshistoriadores e analistas.

O certo é que a vitória de 1964 revelou aausência de um projeto de poder militar,como de resto não vislumbraram os gruposmilitares esquerdistas-nacionalistas quegravitam em torno de João Goulart qualquerestratégia articulada de governo.

Evidente, pois, no processo histórico bra-sileiro – ao reverso do ocorrido na AméricaLatina –, a incapacidade das Forças Arma-das de moldar uma institucionalidade ex-clusivamente militarista. E isso por uma ra-zão elementar, o Exército, Marinha e Aero-náutica do Brasil, compostos pelos maisvariados estratos sociais, não constituíamuma classe social propriamente dita. Per-tencendo seus integrantes às várias cama-das da população, tornavam-se permeáveisàs motivações ideológicas de natureza declasse ou política, em confronto com os prin-cípios da hierarquia e da disciplina, baseda organização castrense.

Como instituição permanente, qualquertentativa de aliciamento da tropa e daoficialidade com objetivos políticos esbar-rava na formação espartana, que é o sentidode sua profissionalização. Mas, como parteintegrante do povo, não estava imune àssuas lutas e aspirações.

Dito axioma prova que, a despeito de te-rem tido papel saliente em 1964, não foramos militares os únicos e exclusivos respon-sáveis pelo establishment que se criou. Con-quanto decisiva sua participação, tiverampapel coadjuvante, quiçá secundário, semembargo de mantenedores da ordem auto-crática.

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Dessa maneira, o sonho tenentista deuma modernização conservadora executa-da por um Estado despolitizado somenteiria perdurar até esgotar-se a junção de inte-resses da elite orgânica e das Forças Arma-das. Passado esse momento, os militares –fiadores da ordem autoritária – foram ex-cluídos da dinâmica política, por terem setornado aliados incômodos de uma elite járeforçada em seu poder hegemônico.

Conclusão

Muito se discute porque somente em1964 os militares, após realizarem diver-sas intervenções na ordem constitucionalbrasileira, resolveram perpetuarem-se nopoder, abandonando a antiga posição dedevolvê-lo à classe política.

Em geral, os governos necessitam esta-belecer planos dirigentes. O projeto esboça-do na ESG que nunca chegou a definir-se,tampouco concretizar-se, consistia na supe-ração da heterogeneidade e na obtenção dahomogeneidade. Para tanto, o desenvolvi-mento econômico impunha-se como fatorfundamental, ressalvadas as condições desegurança essenciais para sua implemen-tação (HAYES, 1991, p. 224). Tendo comosuporte estratégico-ideológico a doutrina desegurança nacional, as Forças Armadas ten-taram empregar os princípios organizativosda instituição militar no reordenamento doEstado Brasileiro24.

Ocorreu, contudo, que essa idéia, cujaprincipal meta consistia na implantação demudanças significativas na sociedade bra-sileira, sequer foi discutida, posto que leva-ria as diversas correntes de pensamentoexistentes nas Forças Armadas a entraremem conflito.

Os temas que no período de 1963 a 1964uniram os militares e permitiram alcançarum alto grau de coesão foram o anticomu-nismo, o combate à corrupção e a idéia deque a organização militar estaria ameaçadapela República Sindicalista de Goulart. Logoapós 31 março de 1964, muitos oficiais te-

miam o debate sobre temas nacionais, re-ceosos de eventuais cisões dentro do movi-mento. Na confusão que se seguiu aos pri-meiros dias do golpe, os chefes militares ecivis voltar-se-iam para o único grupo quetinha idéias para governar o país: CasteloBranco e os oficiais da ESG. Pairava no seiodas Forças Armadas um elevado clima deexpectativa de serem seus integrantes osmais preparados para o exercício do gover-no; idéia reforçada por segmentos civis dasociedade que partilhavam os mesmos pon-tos de vista dos militares.

Mas o regime implantado em 1964 des-cortinaria problemas idênticos aos dos re-gimes civis. Embora tenha ocorrido um con-siderável desenvolvimento social e econô-mico, os desequilíbrios regionais, a pobre-za, o analfabetismo e a corrupção evidenci-ariam a falácia da mística militar e o fracas-so de uma utopia que não se concretizou.

Notas

1 Frase atribuída a um oficial da RepúblicaDominicana.

2 Neste ponto, cumpre abordar as várias teoriasacerca da intervenção dos militares na política, ade-quando-as ao contexto nacional, a fim de que suatransculturação não provoque distorções ou inter-pretações equivocadas, posto a maior parte delasterem sido formuladas utilizando conceitos e noçõesparadigmáticas aplicáveis ao Hemisfério Norte.

José NUM (1970), ao examinar o tema, concen-tra sua investigação na hipótese de a intervençãodas Forças Armadas resultar dos valores e origemsocial dos militares. Isso porque, os Exércitos sul-americanos, recrutando seus oficiais no seio da clas-se média, os constituiriam em defensores dos inte-resses daquela classe, a sua classe. Mais seria aprópria classe média que instigaria os militares aintervirem no processo político a exemplo das gran-des mobilizações anteriores ao golpe de 1964.

Criticando a posição de serem as classes médiasheterogêneas e divididas, Alfred STEPAN (1975)questiona a viabilidade das Forças Armadas emrepresentá-las politicamente. Stepan observa, aoanalisar o golpe de 1964, que os acontecimentossubseqüentes, vg: a extinção dos partidos políti-cos, a intervenção nas Universidades, as restriçõesàs liberdades civis, entre outras violações à ordemdemocrática, atacaram frontalmente as instituições

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representativas daquele segmento social, daí suaviolenta oposição ao governo militar.

Samuel HUNTINGTON (1957), por seu turno,sustenta que a verdadeira causa das intervençõesnão é militar, mas política; elas não refletem ascaracterísticas sociais e organizacionais do esta-blishment militar, mas a estrutura política-institu-cional da sociedade. Segundo ele, o processo demodernização cria novos atores políticos – classemédia, trabalhadores e camponeses – que exercempressões e demandas sobre o sistema político. Quan-do tais demandas e pressões tornam-se superioresà capacidade de absorção do Estado, inviabilizam-se as soluções para dirimir os conflitos. A troca defases no processo de modernização cria, portanto,uma desordem institucional, e os militares sãochamados a intervir para restabelecer o status quodominante. Por outras palavras, eles serviriam deescudo protetor ao regime, potencialmente amea-çado pelas classes subalternas.

Na interpretação de Samuel FINER (1982), aintervenção militar é concebida como resultado davontade política da sociedade que a motivou, comotambém pelo desejo implícito das Forças Armadasem defender a soberania nacional.

Por fim, Guilhermo O’DONNELL (1972) de-senvolveu a interessante teoria da transição do go-verno populista para o burocrático-autoritário combase em justificativas econômicas. Três tipos desistemas políticos são identificados: o oligárquico,o populista e o burocrático-autoritário. No oligár-quico, a competição política é limitada; a elite dosetor de exportação de produtos primários contro-la o Estado. No populista, há uma coligação entreas elites industriais e o setor popular urbano. Aprincipal meta do sistema é expandir os meios deprodução e encorajar as massas a consumi-los. Noburocrático-autoritário, os atores políticos são ostecnocratas civis e militares. A participação popu-lar é eliminada em nome de uma industrializaçãoavançada. A passagem de um sistema para outroobedece a uma seqüência histórica, resultado doprocesso de industrialização e da mudança na es-trutura social, só se fazendo possível por força deuma intervenção militar.

3 O positivismo retirou o caráter profissionali-zante da corporação e envolveu os militares nasquestões sociais e políticas que agitaram o BrasilImperial. Seus ideais eram a abolição do regimeescravagista, a laicização do poder temporal daautoridade espiritual, a República, entre reivindi-cações outras. A propósito de tais discussões, Tei-xeira MENDES (apud FREIRE, 1983, p. 354-355),num folheto intitulado Abolicionismo e clericalismo,escreveria no ano de 1888:

“A respeito do Sr. D. Pedro II observaremosque é bem triste defesa para um chefe de Estado odizer-se que o amor do poder o fez co-participar no

suplício dos seus concidadãos. Nunca fizemos denenhum dos ministros de sua majestade um gran-de homem. Até hoje só conhecemos um verdadeiroestadista na nossa pátria, e foi o velho José Bonifá-cio, cuja influência a Monarquia inutilizou. E nemadmira que aconteça; porque apoiado em uma cons-tituição, que lhe permitia transformar-se legalmen-te em um ditador digno e firmado sobretudo nosnossos antecedentes históricos que lhe assegura-vam o ascendente do poder central, o Sr. D. PedroII só soube tornar-se o chefe da oligarquia escravis-ta, ou o que é o mesmo, dos nossos partidos cons-titucionais”.

Ao cabo, tratava-se de uma verdadeira doutri-na antimilitarista que sugeria como solução paraos problemas das Forças Armadas nacionais o li-cenciamento geral das tropas e sua substituiçãopela gendarmeria. Nas palavras de Oliveira TOR-RES (1943, p. 272-273), “um militar positivista te-ria de se envergonhar da farda como BenjamimConstant (...), ou então ser um mau positivista epassar o dia inteiro a trair os postulados de sua fé.Ficaram todos diante de um dilema terrível: ou serum mau soldado ou ser mau positivista. Acaba-ram muitas vezes por serem maus soldados, tor-nando-se naquela estranha e contraditória concep-ção do cidadão fardado”.

4 Joaquim NABUCO (apud HAYES, 1991, p.77) descreveria o início da República com as se-guintes palavras: “No dia em que se proclamou aRepública, podia-se perceber que a nação queriaum governo militar para manter a unidade, porqueo espírito militar prevalecia de um canto a outro doPaís, vale dizer, tinha amplitude nacional”.

Nas disposições transitórias da Constituiçãode 1891, previu-se a eleição indireta para o primei-ro Presidente da República, pois o povo não estavapreparado para o voto livre (O EXÉRCITO..., 1998,p. 12).

5 O liberalismo político oligárquico, discrimina-tório, excludente e antimilitarista, teria na Campa-nha Civilista sua maior expressão.

A Campanha de 1910, conduzida por Ruy Bar-bosa, trazia como programa de governo as idéias eprincípios do“liberalismo adaptado” pela oligar-quia hegemônica.

“As oligarquias souberam compreender que astendências nacionalistas e putschistas dos militarespoderiam ser postas a serviço de uma política anti-oligárquica. Tal sentimento era compartilhado des-de a Proclamação da República e exprimia o medode que as intervenções militares no processo políti-co nacional acabassem por escapar do controle dasclasses oligárquicas. Em outras palavras, elas pres-sentiam que o grupo militar poderia, futuramente,intervir em prol das aspirações políticas voltadaspara a industrialização. Isto explica o fato de asoligarquias, ao longo de toda a Primeira República,

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terem se constituído em porta-vozes do “civilis-mo”, propugnando a permanência dos soldadosna caserna” (ROCHA, 1999, p. 115).

6 Ficaram assim conhecidos por analogia à in-fluência que os instrutores alemães exerceram so-bre os oficiais da Turquia (O EXÉRCITO..., 1998,p. 74).

Para exprimir suas idéias, os Jovens Turcosfundaram a Revista A Defesa Nacional, cujo primei-ro número, publicado em 1913, destacava ser oExército um poderoso instrumento para a modifi-cação de uma sociedade atrasada, defendendo amanutenção de uma atitude apolítica por parte dosmilitares (HAYES, 1991, p. 118). O grupo ameaçouposições estabelecidas no interior das Forças Ar-madas e foi por isso bastante hostilizado.

7 A doutrina militar francesa recrudesceria ain-da mais a mística militar. Um estudo pormenori-zado sobre a Missão Francesa pode ser encontradoem: MAGALHÃES (1956, p. 349-360).

Inexistia, entretanto, hegemonia no interior doExército. Três grupos ideologicamente distintos di-vidiam a oficialidade: os jovens turcos, seguidoresda corrente profissional e apolítica; o grupo dosoficiais do alto escalão inspirados em Caxias e, ogrupo mais atuante, o dos jovens tenentes, defen-sores da superioridade institucional do Exércitodentro do Estado.

8 Poppe de FIGUEIREDO (apud HINSON JÚ-NIOR, 1978, p. 8), um dos generais de 1964, aofalar sobre a revolta de 1922, afirmou: “aquela noi-te marcou o começo do ciclo revolucionário dostenentes, que somente alcançou a vitória final em1964”.

9 Líderes tenentistas como Juarez Távora, JoãoAlberto e Juraci Magalhães, entre outros nomes,ocupariam cargos de relevo na Administração fe-deral e estadual. Nesse sentido, José Murilo deCARVALHO (1982, p. 221) afirma que a crise na-cional de 1930 eliminou a coalizão dos maiores es-tados da federação, fato que propiciou a estabili-dade política e social, abrindo espaço para ummaior desempenho das Forças Armadas no campopolítico.

10 “O projeto tenentista defendia medidas comoa centralização do sistema tributário, o fortaleci-mento das Forças Armadas, a federalização dasmilícias estaduais, a criação de uma legislação tra-balhista e a modernização da infra-estrutura dopaís. Do ponto de vista político, os “tenentes” apro-vavam a centralização do poder nas mãos de Var-gas e desconfiavam da representação partidáriavista como palco para a atuação de grupos volta-dos apenas para os seus interesses privados. Issosignificava defender a manutenção de um governode caráter revolucionário e ditatorial e o adiamentodo processo de constitucionalização. No entanto,

naquele momento, a introdução de um regime debase constitucional era a principal reivindicação dosgrupos oligárquicos, que se sentiam cada vez maispreteridos pelo governo e temiam o fortalecimentopolítico dos “tenentes” (A ERA Vargas: 1º Tempo:dos anos 20 a 1945, 19- -).

11 Era conhecida a crítica de Góes MONTEIRO àinfluência positivista no Exército, para ele um fatorde corrosão do espírito castrense.

Aluno brilhante da Missão Francesa, seu trei-namento reforçou o caráter profissionalizante dasForças Armadas e, na década de 30, por meio desua ação, acabaria sendo implantado a idéia doprofissionalismo militar a serviço da intervençãopolítica.

12 Fato decisivo que contribuiria para que osGenerais Góes Monteiro e Eurico Gaspar Dutra as-sumissem efetivamente o controle do Exército seriao fracasso da Intentona Comunista, organizada porLuiz Carlos Prestes em 1935, e o temor causadonos setores conservadores da sociedade. Houve umgrande expurgo dentro dos quartéis e os dois gene-rais, aproveitando-se da farsa de um suposto gol-pe integralista, deram apoio a Vargas para instau-rar um regime de arbítrio – o Estado Novo – com opropósito de implementar no recém-regime a polí-tica do Exército.

O Estado Novo era essencialmente um regimemilitar e, como tal, teve nas Forças Armadas seuprincipal sustentáculo. Segundo Edmundo Cam-pos COELHO (1976, p. 54), nesse período iniciou-se a institucionalização do Exército. Os tenentesforam cooptados e os extremistas expurgados apósa Intentona de 1935 e o Golpe Integralista de 1938.Na Constituição de 1937, no capítulo referente àsForças Armadas, não constava a expressão “den-tro dos limites da Lei”, ampliando-se a sua atua-ção no processo político decisório.

13 Quanto ao golpe de 1945, esclareça-se que ainiciativa foi estimulada, mais uma vez, por gru-pos civis. Editoriais de jornais conclamavam osmilitares a exercer sua responsabilidade constitucio-nal no restabelecimento da ordem jurídica e da le-galidade, comprometidas com a continuação dopresidente ditador.

14 O comandante da Artilharia da FEB, GeneralOswaldo Cordeiro de Faria, diria em entrevista aAlfred STEPAN (1975, p. 178): “O impacto da FEBfoi de tal natureza que, ao regressarmos ao Brasil,procuramos modelos de governo que funcionas-sem – ordem, planejamento, financiamento racio-nal. Não encontramos este modelo no Brasil nesteestágio, mas decidimos procurar meios de encon-trar o caminho a longo prazo. A ESG era um meiopara isto e ela medrou da FEB”.

15 Segundo Ricardo MARANHÃO (1981, p.167), Jânio tinha basicamente três objetivos: pri-

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meiro, que os políticos, particularmente os da UDN,concedessem-lhe poderes excepcionais; segundo,que as massas que lhe haviam dado mais de cincomilhões de votos saíssem em sua defesa e, por últi-mo, que os militares o apoiassem com receio dafigura “subversiva” de Goulart na Presidência, comoseu substituto legal.

16 Uma República Sindicalista não significavaobrigatoriamente um regime comunista, contudo,o fato de os comunistas ocuparem cargos impor-tantes no governo inspirava o temor de que JoãoGoulart realmente desejava implantar um regimede inspiração soviética.

17 O lapso temporal entre a renúncia de Jânio e aposse de João Goulart revelaria a divisão do poderestatal entre os militares e o Partido Social Demo-crático – PSD. Nesse período ocorreu um desloca-mento do centro decisório para a cúpula militar.Em contrapartida, restou evidente faltar aos mili-tares um consenso para que, já em 1961, impuses-sem uma solução política impopular. Na verdadeestava armado o cenário para uma crise que alcan-çaria seu desfecho em 1964.

18 Ver, ainda, OFFE (1984, p. 140-177).19 Sobre a militarização da América Latina e do

Brasil em específico, consultar: LAMOUNIER(1974); JANOWITZ (1960); LIMA JÚNIOR (1971).

20 Decorrem da interpretação de “guerra total”os conceitos de guerra generalizada, guerra fria,guerra revolucionária e guerra ideológica.

1) A guerra generalizada parte do conceito ex-tremamente ambíguo da Junta dos Chefes do Esta-do-Maior dos Estados Unidos, que a definia como:“o conflito armado entre grandes potências, na qualos recursos totais dos beligerantes são postos emação, e na qual a sobrevivência de uma delas repre-senta um perigo” (COMBLIN, 1978, p. 33). Justa-pondo tal definição à teoria de LUDENDORFF(1992, p. 1), segundo a qual a guerra é supremaexpressão da vontade de viver de uma raça, a idéiade guerra total deve ser encarada como uma guerrapela sobrevivência.

A guerra contra o comunismo era, pois, neces-sariamente, uma guerra pela sobrevivência, pelasobrevivência do Ocidente; é uma guerra absoluta,a demandar engajamento de todo o povo, absor-vendo a política e fazendo-a desaparecer.

2) A guerra fria foi a grande inovação. Suas for-mas eram novas, daí ser preciso combatê-la comuma estratégia adequada. Tratava-se de uma guer-ra permanente, travada em todos os planos – mili-tar, político, econômico, psicológico – mas que evi-ta o confronto armado.

O ponto de partida para sua interpretação foidado após a Segunda Guerra Mundial, pela Dou-trina Truman, enunciada em 1947, segundo a qual ocomunismo repete o nazismo. Assim, a segurançados Estados Unidos se encontrava ameaçada em

qualquer lugar onde o comunismo ameaçasse seimpor aos povos livres.

A Doutrina Truman visava diretamente à defe-sa da Europa contra uma real ou imaginária agres-são russa e, no contexto do pós-guerra, atribuíram-lhe, rapidamente, certo valor de universalidade. Masseria sob a Presidência de Eisenhower que essa dou-trina ganharia plena formulação com os pactos desegurança coletiva, unindo 50 países da Ásia, Eu-ropa e América. Os Estados Unidos envolveriam,dessa forma, o mundo comunista num cordão sa-nitário, criando uma “psicose de encarceramento”,na expressão de Joseph COMBLIN (1978).

3) Por fim, da idéia de guerra fria extraiu-se aguerra revolucionária, cujo principal veículo de ma-nobra era a guerra psicológica. Por esse veio, e con-tando com o auxílio exterior, ela visava à conquistado poder pelo controle progressivo da Nação, utili-zando formas de subversão e violência para impora concepção marxista-leninista de Estado. Sobre aextensão de tais conceitos no Brasil, vide : MA-NUAL Básico da Escola Superior de Guerra (1977-1978,p. 237-255); BRIGAGÃO (1984); GURGEL (1975).

21 Numa análise mais apurada, observa-se quea “Doutrina da Segurança Nacional” contém umaidentificação espantosa com a “Doutrina Positivis-ta” tal qual fora concebida no Brasil. Como ocorreuna República Velha, repetindo-se em 1964, a linhade interpretação e construção ideológica de ambasas doutrinas visaram respaldar uma distinção declasses.

A necessidade de uma “República ditadorial”em 1890, ou de um “Estado autoritário” em 1964,revelava-se como condição para se efetivar a “or-dem e progresso” ou a “segurança e o desenvolvi-mento”, sem perturbações sociais. Afinal, segundoComte, “o progresso é o desenvolvimento da or-dem, assim a ordem é a consolidação do progres-so”, o que significa que não se podem romper, su-bitamente, os laços com o passado e que toda re-forma, para frutificar, deve tirar seus elementos daprópria situação vigente a ser modificada (LINS,1964, p. 337).

22 Na interpretação de SKIDMORE (1976, p. 373),“este Ato do Supremo Comando Revolucionárioera uma resposta nova à crise de autoridade políti-ca que se evidenciava no Brasil desde os meados dadécada de 50. Quadros tinha se queixado de quelhe faltavam poderes adequados para lidar com oCongresso. Goulart repetira a queixa, chegara apropor um Estado de Sítio em outubro de 1963 e,em princípios de 1964, apresentara diversas pro-postas específicas para fortalecer o braço do Exe-cutivo. O Ato Institucional era, pois, nova e decisi-va resposta à manifesta incapacidade do Executi-vo Brasileiro de exercer a necessária autoridade (...)”.

23 Mesmo o movimento de retrocesso políticoocorrido em 1937 não passou de mera projeção

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militar, resultado de articulações políticas da socie-dade conservadora interessada na preservação dostatus quo, do que a tentativa de afirmação e estabe-lecimento de um Estado militarista.

Nesse sentido, consultar DREIFUSS (1981);STARLING (1986) e ROCHA (1999).

24 Havia uma nítida ligação entre o projeto mi-litar pós-64 e o Estado Novo. Basta ver que o Pri-meiro Ato Institucional foi preparado por Francis-co Campos, mentor da Constituição de 1937. Asidéias de Góes MONTEIRO (1937) seriam revivi-das. “Ajustavam-se às circunstâncias o conceitode que o Exército era um órgão essencialmente políti-co, ao qual interessavam todos os aspectos da verda-deira política nacional e a idéia de que “um exércitobem organizado é o instrumento mais poderoso deque dispõe um governo para a educação do povo,para a consolidação do espírito nacional e para aneutralização das tendências dispersivas” [grifosno original] (HAYES, 1991, p. 225).

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Eitel Santiago de Brito Pereira

1. Introdução

Ao organizar o Estado, a Constituiçãoatual consagrou a forma republicana e o re-gime democrático de governo, assentadosna soberania popular e no pluralismo par-tidário1.

O Presidente da República, os Governa-dores, os Prefeitos, os Senadores, os Depu-tados Federais e Estaduais e os Vereadoressão eleitos pelo povo, mediante o sufrágiouniversal e pelo voto direto e secreto, comvalor igual para todos. Apesar disso, criti-cam-se bastante os agentes políticos. Mui-tos deles não estariam à altura das aspira-ções do corpo eleitoral.

Por que isso acontece? O que seria neces-sário fazer para melhorar a representação?

Pretendo, neste trabalho, responder a taisindagações. Com tal propósito, discorrereisobre a Política enquanto Ciência, apontan-do a instituição de seu ensino nas escolas,a partir do ensino médio, como solução

A Política enquanto Ciência e anecessidade de seu ensino para o exercícioeficiente da cidadania

Eitel Santiago de Brito Pereira é Subprocura-dor-Geral da República e Professor de CiênciaPolítica da Universidade Federal da Paraíba.

Sumário

1. Introdução. 2. O conhecimento científicosobre Política. As técnicas e métodos emprega-dos por politólogos. 3. Objeto e noção da Ciên-cia Política. 4. Denominações e conteúdo pro-gramático da Política. 5. Objetivos da Política esuas relações com outras matérias. 6. A obriga-toriedade do ensino da Política como soluçãoadequada ao exercício eficiente da cidadania.

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adequada para o exercício eficiente da ci-dadania .

2. O conhecimento científico sobrePolítica. As técnicas e métodos

empregados por politólogos

Sensível aos fenômenos do cosmo e ca-paz de pensar, o homem sente o imperiosoimpulso de entender a realidade que o cir-cunda. O conhecimento científico procededessa curiosidade. Curiosidade que atendeao seu instinto de sobrevivência e à sua as-piração de progresso. Curiosidade que ilu-mina sua compreensão existencial e lhe per-mite antever, com relativa confiança, algunseventos futuros.

Num primeiro momento, observa osacontecimentos, vivencia experiências e sen-te emoções. Em seguida, forma em sua cons-ciência um conjunto de crenças sobre os fa-tos, adquirindo casualmente o conhecimen-to vulgar. Somente numa terceira etapa,analisa e reflete, distingue e classifica, con-ceitua e sistematiza as descobertas, por meiode experimentos e verificações, construindopelo raciocínio o conhecimento científico.

O sentimento e a razão são os principaisutensílios empregados no processo intelec-tual de representação científica da realida-de. Mas não esgotam os instrumentos deaprendizado do sujeito cognoscente, quedesfruta igualmente de resultados alcança-dos por suas percepções extra-sensoriais.Essas fontes, ainda pouco estudadas, rela-cionam-se com fenômenos paranormais ouparapsicológicos e explicam, em muitos ca-sos, a excepcional intuição de alguns gê-nios do saber.

A Ciência tem sido conceituada como o“conjunto de conhecimentos relativos a cer-tas categorias de fatos ou de fenômenos”(NASCENTES, 1981, p. 373). Porém, MiguelREALE (1975, p. 50) adverte que a naturezacientífica da experiência só aparece se a in-vestigação “obedece a um processo ordena-tório da razão, garantindo-nos certa mar-gem de segurança quanto aos resultados, a

coerência unitária de seus juízos e a suaadequação ao real”.

É possível o conhecimento científico so-bre a Política e, no seu labor, o politólogoadota as mesmas técnicas de pesquisa deoutras ciências sociais. Numa perspectivahistórica, investiga acontecimentos do pas-sado para revelar a realidade atual. No pla-no comparativo, coteja instituições de dife-rentes Estados com o propósito de apontaro que existe de comum entre elas. Além dis-so, faz manipulações estatísticas, fornecen-do descrições quantitativas da sociedade, eformula classificações, construindo tipos,modelos e estruturas.

A Política não prescinde dos métodosclássicos de organização do pensamento.Algumas vezes, o cientista político parte deafirmações gerais para chegar à conclusãoparticular (dedução). Noutras, sai do regis-tro de fatos específicos para atingir a propo-sição mais genérica (indução). Na maiorparte dos casos, aproveita os dois procedi-mentos e também o método hipotético-de-dutivo.

O politólogo, preleciona Dalmo de AbreuDALLARI (2000, p. 7-8), sempre integra osresultados obtidos em suas pesquisas“numa síntese, podendo perfeitamente ocor-rer que de uma lei geral, obtida por indução,tirem-se deduções que irão explicar outrosfenômenos, havendo, portanto, uma associa-ção permanente de métodos, assim como ospróprios fenômenos estão sujeitos a umainteração causal, uma vez que a vida socialestá sempre submetida a um processo dia-lético, o que faz da realidade social umapermanente criação”.

Recordo, por oportuno, o sábio Jean-Jacques ROSSEAU (1996). Em sua famosaobra, ele lançou algumas premissas gerais.Disse, por exemplo, que no estado da natu-reza o homem era livre, mas perdeu parte desua liberdade natural com o desenvolvimen-to da vida em sociedade e a conseqüente ins-titucionalização do poder. Afirmou, por ou-tro lado, que o poder não se assenta na forçae sim no Direito. Assim, empregando um

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raciocínio dedutivo, inferiu que o dever deobediência dos súditos à(s) pessoa(s) ouórgão(s) encarregado(s) de exercer o podersomente pode ser fruto de um acordo firma-do por homens livres.

Como evidência da utilização do pensa-mento indutivo, lembro que MONTESQUIEU(2000) concluiu que a divisão dos poderes éindispensável para assegurar a liberdadepolítica com esteio nos registros de algunsfatos específicos: a) o respeito à liberdadena Inglaterra, onde os três poderes (de fazeras leis, de executar as resoluções públicas ede julgar os crimes e as demandas dos par-ticulares) estavam separados e eram exerci-dos por pessoas ou corpo de magistradosdistintos; b) a moderação dos governos namaior parte dos reinos europeus, nos quaiso Príncipe, embora reunindo as funções le-gislativas e executivas, deixava aos súditosa tarefa de julgar; e c) o despotismo atroz daTurquia, onde todos os poderes eram exer-cidos pelo Sultão.

3. Objeto e noção da Ciência Política

O conhecimento desenvolve-se em áreasbem distintas. Mister se faz, portanto, deli-mitar o objeto das reflexões dos politólogosnos caminhos que percorrem para fundar aCiência Política.

Segundo Miguel REALE (1975, p. 8),“Conhecer é trazer para nossa

consciência algo que sabemos ou quesupomos fora de nós. O conhecimen-to é uma conquista, uma apreensãoespiritual de algo. Conhecer é abran-ger algo tornando-nos senhores de umou de algum de seus aspectos. Todavez que falamos em conhecimento,envolvemos dois termos: o sujeito, queconhece, e algo de que se tem ou deque se quer ter ciência. Algo, enquan-to passível de conhecimento, chama-se objeto, que é assim, o resultado pos-sível de nossa atividade cognitiva...”.(...) “... Conhecer é trazer para o sujei-to algo que se põe como objeto: – não

toda a realidade em si mesma, mas asua representação ou imagem, talcomo o sujeito a constrói, e na medidadas formas de apreensão do sujeitocorrespondentes às peculiaridadesobjetivas...”.

A Política é o objeto da atenção dos poli-tólogos, que costumam decifrar o significa-do desse lexema antes de fornecer sua no-ção. A palavra tem diversas acepções, em-bora sempre exprima uma idéia referente àrealidade estatal. Provém do idioma grego(“politiké”) (NASCENTES, 1981, p. 1305),sendo derivada de “polis”, termo emprega-do para designar a Cidade.

Todavia, entre os helênicos, a Cidadeenglobava o Estado, consoante se colhe dalição de ARISTÓTELES (1977, p. 13):

“Vemos que toda cidade é uma es-pécie de comunidade, e toda comuni-dade se forma com vistas a algum bem,pois todas as ações de todos os homenssão praticadas com vistas ao que lhesparece um bem; se todas as comunida-des visam a algum bem, é evidente quea mais importante de todas elas e queinclui todas as outras tem mais que to-das este objetivo e visa ao mais impor-tante de todos os bens; ela se chamacidade e é a comunidade política...”.

No tempo do sábio macedônio2, a polis jáse consolidara como fortaleza, edificadapelas tribos sedentárias para a realização deseus cultos e o exercício de suas lidas, para agarantia de sobrevivência do grupo e a segu-rança dos homens livres, que viviam, moure-javam e deambulavam nos seus arredores.

O vocábulo permanece estremando cer-to setor da experiência humana: a realidadedo Estado (JUSTO LÓPES, 1987, p. 31)3.

Assim, ao assestar o Estado como objetoda investigação da Política, imagino-o en-redando, em sua teia de relações, todas asatividades destinadas a construir e conser-var a organização da sociedade. Vejo-o inti-mamente relacionado com outras institui-ções do mundo atual, as quais preciso estu-dar se me disponho a fazer Ciência.

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Tenho uma compreensão assemelhadaà do jurista argentino Mario JUSTO LÓPEZ(1937, p. 34)4, que aponta outras acepçõesdo referido termo, mas demarca assim seuespecial significado científico.

Por conta da amplitude de seu campo deinvestigação, penso a Política como um con-junto sistematizado de conhecimentos so-bre o Estado, os grupos de pressão, os parti-dos, os sistemas políticos, os organismos eas relações internacionais.

4. Denominações e conteúdoprogramático da Política

Não consigo discriminar a Política, en-quanto Ciência, da Teoria Geral do Estado,que, no dizer de DALLARI (1989, p. 6), estu-da a comunidade estatal “sob todos os as-pectos, incluindo a origem, a organização,o funcionamento e as finalidades, compre-endendo-se no seu âmbito tudo o que se con-sidere existindo no Estado e influindo so-bre ele”. Permito-me, igualmente, encará-lacomo disciplina integrada ao Direito Cons-titucional.

Entretanto, há quem distinga as matérias.Entre nós, Wilson ACIOLY (1985, p. 47)

faz a diferenciação. Para ele, a Política, istoé, a Teoria Geral do Estado “estuda o Esta-do em geral, no tempo e no espaço, perqui-rindo as suas origens, a sua evolução, assuas finalidades”, enquanto o Direito Cons-titucional “estuda um Estado em particu-lar, de preferência um Estado contemporâ-neo, analisando a sua estrutura e o seu me-canismo de poder”.

A separação é frágil. Não exibe maior ri-gor científico. O conteúdo da Teoria Geraldo Estado envolve a estrutura teórica doDireito Constitucional. Não se conhece bema Lei Maior sem analisar as teorias de poli-tólogos recepcionadas em seu texto.

Por tudo isso, reputo correta a opiniãode quem, como Sahid MALUF (1986, p. 27),sustenta que a Política, ou Teoria Geral doEstado, corresponde à parte geral do Direi-to Constitucional, não sendo “uma ramifi-

cação, mas o próprio tronco desse ramoeminente do direito público”.

Aliás, o professor portenho Carlos S.FAYT (1988, p. 53) é outro que revela talnuança, ensinando:

“... 1) O que deve entender-se porPolítico determina o objeto e conteú-do da matéria, sendo a origem das li-mitações da doutrina tradicional.

“2) O Político pode ser interpreta-do como o referente ao Estado, a seusfins e funções. O Direito Político, nestaperspectiva, seria o Direito do Estado,quer dizer, a Teoria do Estado. Confun-dir-se-ia com o Direito Constitucional.

“3) O Político pode interpretar-secomo tudo o que se relaciona ao po-der. Deste ponto de vista o Direito Polí-tico seria uma Teoria do Poder e seuobjeto e conteúdo equivale ao da Ciên-cia Política.

“4) Por último, o Político pode sereferir à organização Política e ao Di-reito Político, compreendendo umaTeoria da Organização Política. Comoum sistema de relacões estruturais daorganização Política. Este critério dásubstância ao Direito Político...”5.

Há diferentes perspectivas para conhe-cer a realidade estatal. DALLARI (2000,p. 5) lembra a lição de Alexandre Groppali,para quem o conhecimento científico sobrea comunidade política

“... compreende três doutrinas que seintegram compondo a Doutrina doEstado e que são as seguintes: a) dou-trina sociológica, que estuda a gênesedo Estado e sua evolução; b) doutrinajurídica, que se ocupa da organizaçãoe personificação do Estado; c) doutri-na justificativa, que cuida dos funda-mentos e dos fins do Estado...”.

Quando esquadrinho a Constituiçãopara comentar suas regras, ocupo-me dasteses de politólogos que informam seu textoe não se dissociam da Ciência Constitucio-nal, pois dão suporte à ampla especulaçãosobre o Estado.

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Grande parte da doutrina assegura queo Direito Constitucional não se resume àdogmática extraída da observação e exege-se dos textos legais. Engloba, da mesma for-ma, a descoberta, no ordenamento observa-do, do “espírito, ou seja, o comum e o essen-cial a todos os Estados” (PAUPÉRIO, 1985,p. 16), o que se faz mediante consultas a es-tudos antecipatórios da Política.

A ordem normativa e a realidade, em suadimensão histórica, precisam ser vistas peloestudioso num inseparável contexto de in-teração e condicionamento recíprocos. Aocomentar as normas fundamentais de umadeterminada comunidade, assumo o com-promisso de averiguar a eventual ineficáciade algumas delas em face das relações depoder e dos valores consagrados no meiosocial. Não investigo com eficiência qual-quer Constituição, desprezando as experiên-cias hauridas nas teorias elaboradas porgrandes pensadores.

A distinção, entre a Política enquantoCiência e o Direito Constitucional, só atendeaos interesses de alguns positivistas, ávidospara purificar o saber jurídico dos elementosinformadores de outros ramos do conheci-mento humano. Enfrentando dificuldadespara explicar, com base apenas no exame dasregras constitucionais, o exercício e a parti-lha do poder em muitos Estados, eles trans-formaram a dicotomia na válvula de que pre-cisavam para evitar a explosão de suas cons-truções doutrinárias, levantadas com base naafirmativa de que “existe apenas um concei-to jurídico de Estado: o Estado como ordemjurídica, centralizada” (HANS, 1990, p. 190).

Georges BURDEAU (1995, p. 39) já ad-vertiu que o funcionamento do Estado nãose pode compreender como resultado da sim-ples aplicação das regras do Direito Positivo,havendo inúmeras situações em que a repar-tição real do poder se verifica de modo dife-rente do previsto nas normas constitucionais6.

O notável professor francês registra in-clusive que os programas de estudo da Ciên-cia do Estado foram modificados naquelePaís, acrescentando-se ao título dos cursos,

ao lado da expressão Direito Constitucio-nal, a nomenclatura Ciência Política ou Ins-tituições Políticas (p. 39)7.

Ao estudar o ordenamento constitucio-nal vigente num determinado Estado, façopesquisa de Política, ingressando na arenado Direito Constitucional Positivo. Ao cote-jar as leis fundamentais de diversos países,elaboro estudo de Política, entrando no cam-po de discussão do Direito ConstitucionalComparado. Finalmente, ao investigar a rea-lidade multifacetada do Estado, produzo co-nhecimento de Política, penetrando no am-plo palco do Direito Constitucional Geral.

5. Objetivos da Política e suasrelações com outras matérias

No mundo da cultura, em que José Flósco-lo da NÓBREGA (1987, p. 6-7) situa a Ciên-cia Jurídica8, nenhum jurisconsulto, dignodesse nome, contenta-se ao atingir seu obje-tivo teórico de descobrir a verdade. Depoisde obter o conhecimento, aflora em seu espí-rito outra aspiração de natureza prática: ade contribuir para melhorar a realidade in-vestigada, tornando mais leve o fardo dahumanidade em sua aventura terrena.

Assim, além do nobre objetivo teórico deatender ao desejo ardente que o ser humanocarrega de conhecer, compreender e desven-dar os fatos e fenômenos do cosmo, a Ciênciatem, por igual, uma finalidade prática: o aper-feiçoamento das condições de vida na terra.

Ao observar o Estado, o politólogo ela-bora conceitos, classifica fatos, faz compa-rações, arrisca prognósticos, emite juízos etermina também aconselhando os rumosque deverão ser seguidos para o aprimora-mento da comunidade política.

A finalidade teórica de Política é o co-nhecimento por meio da exposição, aindaque sumária, das descobertas reveladas pe-los grandes pensadores sobre os diversosaspectos da comunidade estatal.

E o seu objetivo prático é o aperfeiçoa-mento do Estado porque se propõe a pres-crever as formas mais adequadas de orga-

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nização do Estado, os melhores sistemas deexercício e de controle do poder, as maneirasmais eficientes para se conter o arbítrio e pro-teger os direitos fundamentais dos homens.

Para cumprir suas finalidades, a Políti-ca, enquanto Ciência, recolhe ensinamen-tos da Sociologia, da Economia, da Psicolo-gia, da História, da Geografia e de muitosoutros ramos do conhecimento humano.

DALLARI (2000, p. 2) realça esse aspec-to. Ao seu sentir, trata-se de disciplina “desíntese, que sistematiza conhecimentos ju-rídicos, filosóficos, sociológicos, políticos,históricos, antropológicos, econômicos, psi-cológicos, valendo-se de tais conhecimen-tos para buscar o aperfeiçoamento do Esta-do, concebendo-o, ao mesmo tempo, comoum fato social e uma ordem, que procuraatingir os seus fins com eficácia e justiça”.

6. A obrigatoriedade do ensino daPolítica como solução adequada ao

exercício eficiente da cidadania

A Constituição, se faculta aos brasilei-ros o direito de se alistar e votar a partir dos16 anos9, também impõe ao Estado o deverde promover e incentivar a educação visan-do o preparo da pessoa para o exercício dacidadania10.

Não é possível exercer de modo eficientea cidadania sem conhecimentos básicos dePolítica. Enquanto o corpo eleitoral estiveralheio aos problemas do Estado e ao funcio-namento de seus órgãos, não conseguirámelhorar sua representação nem aprimoraras instituições democráticas.

Creio, portanto, que o aperfeiçoamentodo regime passa necessariamente pelo ensi-no da Política, que precisa, enquanto Ciên-cia, integrar como disciplina obrigatória oscurrículos das escolas de ensino médio daRepública Federativa do Brasil.

Sobre o tema, Darcy AZAMBUJA (1987,p. 12-13, 15-16) assinala que os estudos des-sa matéria concorrem “decisivamentepara a educação cívica em sentido am-plo”. E adverte:

“... Não basta, para ser bom cidadão,votar e ser votado; é preciso conhecer,dispor de informação científica sobreos segredos e as realidades da vidapolítica. Uma visão exata das insti-tuições e regimes políticos, com o beme mal que eles contêm, traz a possibi-lidade de agir conscientemente parao seu aperfeiçoamento”.

Notas

1 Art. 1º, I, II e V, e parágrafo único, combinadocom o art. 14 da CF.

2 Aristóteles era natural de Stágiros, na Mace-dônia.

3 “La palabra política, como ocurre con lamayoría de las palabras, tiene diversos significados.Sin embargo, a través de la mayor parte de ellossirve para calificar y, así, caracterizar y distinguirun cierto sector de realidad humana, razón por lacual es lo mismo decir política que decir realidadpolítica”.

4 “...la actividad y la relación que constituyen larealidad política están referidas al Estado, el sistemapolítico mayor de nuestro tiempo, y a los sistemaspolíticos, mayores a él, actualmente en gestación.De acuerdo con ese marco de referencia, son políticasla actividad y la relación estatales, y lo sonigualmente aquellas otras actividades y relacionesque converjan sobre ellas. Asi, además de laactividad de un determinado órgano estatal, serátambién política la actividad de un partido políticoque procure el acesso a la ocupación de aquelórgano o la de un grupo de presión que busqueinfluir sobre la acción del mismo...”.

5 “1) Lo que deba entenderse por políticodetermina el objeto y contenido de la materia, siendoel origen de las limitaciones de la doctrinatradicional. 2) Lo político puede ser interpretadocomo lo referido al Estado, a sus fines y funciones.El Derecho Político, desde esta perspectiva, seriaDerecho del Estado, es decir, Teoria del Estado. Seconfundiría con el Derecho Constitucional. 3) Lopolítico puede interpretarse como todo lo relativoal Poder. Desde este punto de vista el DerechoPolítico sería una Teoría del Poder y su objeto ycontenido equivalente al de la Ciencia Política. 4)Por último, lo político pode ser referido a laorganización política y el Derecho Políticocomprenderse como una teoria de la organizaciónpolí t ica. Como un sistema de relacionesestructurales de la organización polí t ica. Este

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criterio proporciona sustantividad al DerechoPolítico”.

6 “... le fonctionnement réel du povoir politiquene peut se comprendre comme le résultad d’unesimple application de règles de droit et qu’il y a dessituations, de plus en plus nombreuses au XIXesiècle, où celui que le droit désigne comme le principaldétenteur du Pouvoir, le monarque, n’est plus enmesure de l’exercer que partiellement ou plus dutout. Il faut alors chercher d’abord à décrire larépartition réele du pouvoir, puis à l’expliquer et onne peut naturellement le faire qu’en mettant enévidence les rapports sociaux. Il se constitue donc,à côté d’une discipline proprement juridique, le droitconstitutionnel que étudie les règles, une disciplinesociologique, la science politique attachée à decrirela réalité”.

7 “On a donc admis à cette époque que, puisquela science du droit constitutionnel ne donnait pasaccès à une connaissance de la politique, il fallaitcompléter l’exposer des règles par la description dufonctionnement réel. C’est ainsi que les programmesdes études de droit on été modifiés pour faire figurerdans le titre des cours, à côté de l’expression ‘droitconstitutionnel’, celle de ‘science politique’ oud’institutions politiques”.

8 “... o direito não tem sede nem na natureza,nem no mundo dos valores, mas participa a um sótempo de um e de outro: da natureza, porque tembase na vida humana, nas relações sociais, e dosvalores, pela significação que imprime a essas rela-ções, orientando-as para a satisfação dos interes-ses comuns. É, portanto, natureza valorada, mol-dada pelo valor e valor objetivado através de da-dos naturais. O que significa que o direito é fatocultural e se situa no mundo da cultura”.

9 Art. 14, § 1º, II, c, da CF.10 Art. 205 da CF.

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A disciplina legal acerca da ordem eco-nômica constitui tema relativamente re-cente na seara jurídica, de modo que im-porta, particularmente, observar questõespreliminares que o tema sugere, tais quaiso que se entende por ordem econômica ou,melhor ainda, o que se concebe como po-lítica econômica, quais os instrumentoslegais para seu controle jurídico, a quemincumbe a realização de tal controle, en-tre outras. Com isso, imprescindível semostra o exame, ainda que superficial, dealgumas noções prévias, que figuramcomo pressupostos lógicos e finalísticosdo estudo. Desta feita, o presente esboço,dentro de seus estreitos limites, afigura-se de cunho meramente introdutório, atémesmo para que possa servir de base paraeventuais aprofundamentos futuros.

Políticas públicas (econômicas) e controle

Marília Lourido dos Santos

Marília Lourido dos Santos é Mestranda emDireito pela UFPa e Juíza de Direito no Estadodo Pará.

Sumário

Noções preliminares. 1. Intervenção econô-mica, modelo de Estado e modelo de Consti-tuição. 2. Políticas públicas. 3. Intervenção eco-nômica, formas e disciplina legal – contextogeral. 4. Dificuldades iniciais acerca do contro-le das políticas públicas. 5. Correntes acerca daimportância do controle judicial das políticaspúblicas. 6. Vantagens, desvantagens e funçõesdo incremento do controle Judiciário median-te a análise das políticas públicas. 7. Papel doJudiciário – dificuldades no exercício do con-trole.

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1. Intervenção econômica, modelo deEstado e modelo de Constituição

Não são raros os autores que ainda rela-cionam a existência de um controle legal dasrelações econômicas ao fenômeno do Welfa-re State. A partir dessas concepções, costu-mou-se conceber a intervenção econômicacomo fato indissociável do chamado Diri-gismo Estatal, pelo qual o Estado passou aestabelecer mecanismos legais capazes dedirecionar as relações econômicas no senti-do de atender certas finalidades de cunhosocial legalmente eleitas. Mais recentemen-te, porém, tem-se observado que a interven-ção do Estado na economia não era estra-nha ao discurso neoliberal.

Isso porque a neutralidade política nãoé, na realidade, o que os grupos econômicose políticos dominantes esperam do exercí-cio do Poder Público, mas sim a concessãode vantagens, em detrimento de outros gru-pos. Não é interessante, porém, que tais fa-vorecimentos permaneçam totalmente forade regulamentação, uma vez que esta sem-pre figura como instância de segurança e amanutenção da ordem ou mesmo o controlede suas mudanças é sempre interessante aosque dela se beneficiam. Assim sendo, exis-tiu e existe, no modelo liberal de Estado, afigura da intervenção econômica, que se dá,em regra, em prejuízo da livre concorrênciae da democracia, valores que pelo discursoliberal são primordiais.

Mostra-se, por conseguinte, o viés ideo-lógico, no sentido que descreveu Marx, detal discurso. Isso demonstra que o (neo) li-beralismo não deixa de ser um processo to-talitário, que procura abater qualquer even-tual contestação ou mesmo não a admite.Note-se que os grupos econômicos liberaishistoricamente obtiveram vantagens com aintervenção estatal, como a própria manu-tenção do sistema capitalista, embora ate-nuado. Também se observa que o custo dainfra-estrutura básica necessária para o de-senvolvimento do capital acabou divididopor toda a sociedade, por ter sido arcado

pelo Estado. Houve, ademais, o benefício daconcessão de obras e serviços que garantiuser o Estado um “comprador” certo e lucra-tivo.

Dessa maneira, como observa FernandoSCAFF, o que difere nos modelos de Estadosão os graus de intervenção e não a existên-cia desta. Graus esses que vão desde: a) oIntervencionismo, caracterizado pela adoçãode medidas esporádicas de controle econô-mico, para fins específicos; b) o Dirigismo,tido como modelo em que o controle econô-mico compreende uma atuação mais siste-mática e com objetivos determinados; e, c) aPlanificação, que importa em uma análiseglobal desse controle, no mais amplo alcan-ce em relação aos demais (1990).

Percebe-se, destarte, que o controle ime-diato da atividade econômica é exercido peloPoder Executivo. No entanto, a elaboraçãode programas e planos que estabeleçam acorrelação entre os instrumentos jurídicosde controle e as finalidades a serem atingi-das incumbe ao Poder Legislativo, uma vezque a este cabe a elaboração das leis em sen-tido formal. Fechando o círculo de controle,figura o Poder Executivo como instânciaúltima encarregada de assegurar a legali-dade do exercício do controle no âmbito dosdemais Poderes.

Verifica-se, portanto, a existência de ní-veis internos e externos de controle da atua-ção reguladora do Estado na economia. Ocontrole exercido por quem também exerceo poder regulador não importa aqui, massim o controle externo, que é exercido noâmbito Judicial e social, controle esse quetem por objeto, conseqüentemente, tanto atosisolados como as políticas públicas.

Logo, nota-se que o sentido da inclusãode normas sobre a ordem econômica naConstituição mostra ser o oferecimento deinstrumentos para o efetivo exercício dessecontrole. Tal porque submete os atos e polí-ticas governamentais ao controle de consti-tucionalidade, com a peculiaridade de con-ferir aos fins a serem pelos mesmos perse-guidos o caráter de cláusula pétrea. No en-

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tanto, grande porção das normas constitu-cionais que regula a ordem econômica é denatureza programática, o que implica eficácialimitada. De tal sorte, essa inclusão finda porperder a função, salvo se se considerar queas normas programáticas também vincu-lam, segundo a idéia de Constituição Diri-gente, inicialmente defendida por JoaquimJosé Gomes Canotilho. Este, no entanto, atu-almente, dada a nova conjuntura política eeconômica mundial, vem revendo certas po-sições, inclusive algumas ligadas à noçãode Constituição Dirigente.

De acordo com Eros Roberto GRAU, achamada Constituição Econômica pressu-põe um modelo de Constituição Dirigente,pois se a Constituição não for dirigente, nãoconterá diretrizes axiológicas acerca da or-dem econômica, será apenas uma Consti-tuição Econômica Estatutária. Esta, preten-samente despida de ideologias acerca desistemas econômicos. Portanto, sem preten-sões conformadoras das relações econômi-cas, com vistas a dirigi-las para a realiza-ção de fins sociais (1998, p. 58-60).

Por isso, ante a superação do modelo deConstituição dirigente, declara GRAU:

“Somos arrastados à conclusão deque a teorização da Constituição Eco-nômica morreu” (p. 67).

Assim sendo, esse conceito perde a utili-dade, assim como a expressão ordem jurídi-ca constitucional, que passa a servir ape-nas para indicar o local onde as normasacerca da política econômica estão contidas.Falar-se em ordem econômica só faz senti-do, para Grau, se se referir à ordem econô-mica constitucional, pois assim os seus finsserão vinculantes para os poderes públicos.A regulação da economia, nesse sentido,parece mudar de eixo, da Constituição paraos programas, projetos e políticas públicas.

Nessa linha de raciocínio, assim como aexistência da intervenção econômica inde-pende do modelo de Estado, também inde-pende do modelo de Constituição. As dife-renças estarão nos graus e sentidos que aessa intervenção forem conferidos. Por con-

seguinte, o controle dessa regulamentaçãotambém deve deslocar-se, ou antes, alargar-se, pois, se os fins e objetivos a se assegurar,regrados por normas programáticas e prin-cípios, realizam-se por políticas públicas,devem estas se submeter ao controle jurídi-co. Para a compreensão dessa afirmação, im-porta definir-se políticas públicas.

2. Políticas públicas

As políticas públicas tornaram-se umacategoria de interesse para o direito há apro-ximadamente vinte anos, havendo poucoacúmulo teórico a respeito, o que desacon-selha a busca de conclusões acabadas. Ade-mais, não é um tema ontologicamente jurí-dico, mas é originário da ciência política,em que sobressai o caráter eminentementedinâmico e funcional, que contrasta com aestabilidade e generalidade jurídicas. A no-ção de políticas públicas emergiu comotema de interesse para o direito com a confi-guração prestacional do Estado.

Novamente deu-se uma relação entre omodelo estatal e a evolução histórica do es-tudo das políticas públicas. Quando a fun-ção estatal de controle resumia-se, digamosassim, no poder de polícia, no sentido omissi-vo de limitação do poder estatal, pode-sedizer que não havia políticas públicas deinteresse jurídico. Quando o Estado passoua assumir o encargo dos serviços públicos, asituação mudou um pouco, sendo que, quan-do no pós 2ª Guerra, por questões de empre-go, seguridade e habitação, o Estado pas-sou a propriamente intervir no domínio eco-nômico, o estudo das políticas públicas re-velou-se de interesse para o direito.

A adoção de políticas públicas denotaum modo de agir do Estado nas funções decoordenação e fiscalização dos agentes públi-cos e privados para a realização de certosfins. Fins esses ligados aos chamados direi-tos sociais, nos quais se inclui os econômicos.Desta feita, o estudo das políticas econômi-cas não pode ser dissociado do das políti-cas sociais. Melhor dizendo, estudar as po-

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líticas publicas de um modo geral significaestudar as políticas econômicas, porque oviés econômico permeia a quase totalidadedas políticas de governo, em última análise.

O surgimento e, em conseqüência, o in-teresse para o estudo jurídico das políticaspúblicas justifica-se, didaticamente, porque:

a) estão ligadas ao resguardo dos direi-tos sociais e políticos, pois estes demandamdo Estado prestações positivas e significam oalargamento do leque de direitos fundamen-tais;

b) o desenvolvimento de certos setores eatividades do mercado significou a geraçãode novas demandas, como os direitos dosconsumidores, que transitam entre as ativi-dades econômicas e a regulação estatal;

c) o planejamento inerente à noção de po-líticas públicas tornou-se necessário paragarantir maior eficiência da gestão públicae da própria tutela legal. Importa elevar onível de racionalidade das decisões, evitan-do processos econômicos, sociais e políti-cos de cunho cumulativo e não reversíveis,em direções indesejadas.

COMPARATO, sempre em sintonia comseu tempo, observa uma tendência geral emtodos os países, no sentido do “alargamen-to da competência normativa do governo,não só na instância central, através de de-cretos-leis ou medidas provisórias, mas tam-bém no plano inferior” (1997, p. 19). Em notade rodapé, observa que “houve apenas asubstituição da lei pela política pública,mantendo-se a mesma separação entre adeclaração, a execução e o controle (no sen-tido de um juízo de revisão)” (p. 17). Destar-te, parece haver uma paulatina substituiçãoda função das leis (sentido omissivo), pelafunção das políticas (comissivo).

Do que foi dito, nota-se que a noção depolíticas públicas centra-se em três elemen-tos: a) a busca por metas, objetivos ou fins;b) a utilização de meios ou instrumentos le-gais; e c) a temporalidade, ou seja, o prolon-gamento no tempo. Esses elementos formamuma noção dinâmica de atividade, pela qualse definem políticas públicas como a “coor-

denação dos meios à disposição do Estado,harmonizando as atividades estatais e pri-vadas para a realização de objetivos social-mente (ou economicamente) relevantes epoliticamente determinados” (BUCCI, 1997,p. 91) ou simplesmente como o conjunto or-ganizado de normas e atos tendentes à realiza-ção de um objetivo determinado.

3. Intervenção econômica, formas edisciplina legal – contexto geral

Como dito, a intervenção não é estranhaao neoliberalismo, porque os grupos econô-micos esperam do Estado intervenção emseu favor. Logo, a adoção de políticas eco-nômicas significa intervenção, que não dei-xa de existir, apenas sofre alteração nos seusmeios e mesmo em seus fins. Políticas Eco-nômicas significam as políticas públicas quese referem a matérias econômicas, constitu-em o meio pelo qual um governo busca regularou modificar os negócios econômicos de umanação.

A adoção de políticas econômicas visa aregulação macroeconômica, ou seja, a raci-onalização gradual da economia para queos agentes econômicos (públicos e privados)atuem em favor do interesse social, mas em“harmonia” com seus interesses privados,isto é, sem alteração legal do sistema de apro-priação de riquezas. Nesse sentido, usa-seo termo intervenção, para significar “atuaçãoem área de outrem – isto é, naquela esfera doprivado” (1998, p. 156). Intervenção essaque, para ser ampla, precisa ser diferencia-da. Há, portanto, diferentes formas de inter-venção, elencadas em diversas classifica-ções doutrinárias, das quais a mais funcio-nal para o momento parece ser a do próprioEros Grau, que usa a expressão domínio eco-nômico para indicar atuação estatal no campoda atividade econômica em sentido estrito, daqual se exclui a noção de serviço público.

Segundo tal classificação, a intervençãoestatal dá-se (1998, p. 156-157):

a) No Domínio Econômico, quando o Es-tado atua na condição de agente econômi-

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co, como sujeito que realiza diretamente aatividade econômica. Essa forma de inter-venção divide-se em: absorção, quando ocor-re em regime de monopólio; e participação,quando se dá concorrentemente com a ini-ciativa privada.

b) Sobre o Domínio Econômico, interven-ção essa pela qual o Estado atua apenascomo regulador da atividade econômica.Essa forma, igualmente, subdivide-se emduas outras – direção, nas hipóteses em queo Estado utiliza normas de comportamentocompulsório, e indução, quando lança mãode normas que não possuem caráter com-pulsório, apenas incentivador.

A forma de intervenção sobre o domínioeconômico prepondera, porque incide tam-bém sobre a própria atuação de intervençãono domínio econômico. Assim, esta não apre-senta maior interesse para este estudo, ape-nas aquela, a qual se efetiva mediante con-junto de ações e projetos que configuram aspolíticas econômicas. Estas lançam mão deinstrumentos de planejamento, como os pla-nos e programas. Estes, enquanto instru-mentos jurídicos, capazes de permitir a ins-titucionalização de diretrizes e metas, poiso planejamento configura pressuposto detoda ação política, econômica ou social.

Entretanto, importa frisar que a políticapública é noção mais ampla que a de umsimples plano ou programa, porque envol-ve um processo de escolha de meios para arealização dos objetivos do governo. Assim,compreende também uma certa margem deopção entre tais objetivos, ou seja, compre-ende a hierarquização dos mesmos, cuja efe-tivação deverá dar-se com a participação dosagentes públicos e privados. A adoção decerta política pública representa o processo po-lítico de escolha de prioridades para o governo,por meio de programas de ação para a reali-zação de objetivos determinados num espa-ço de tempo determinado ou não.

Historicamente, os primeiros planos ju-ridicamente relevantes foram os de contabi-lidade pública, depois os urbanísticos. Atu-almente, todas as áreas de incidência das

políticas públicas apresentam significânciajurídica. Isso porque as normas jurídicasservem tanto de instrumento de efetivação,quanto de parâmetro de controle de tais op-ções políticas. Por serem opções, importamem uma margem de discricionariedade,ou melhor, de flexibilidade de atuação, oque não significa ausência de controle le-gal, mas sim incidência de controle dife-renciado, finalístico.

Para que essa margem de liberdade deatuação não gere arbítrio, sua gradativa re-dução passou a ser uma meta a se atingir,tanto para os operadores do direito, quantopara os legisladores. Inicialmente, pensou-se que seria necessário assegurar um míni-mo ético, para usar expressão da seara pe-nal, que representasse um núcleo rígido, apautar a ação estatal e fornecer-lhe limiteintransponível. Essa preocupação resultouna inclusão de diversas normas de controlena Constituição Federal, a fim de torná-lascláusulas pétreas, por significarem garan-tia dos direitos fundamentais.

Com isso a Constituição passou a regu-lar inúmeras áreas, especialmente por nor-mas programáticas, que tornaram matériaformalmente constitucional quase todas asquestões legalmente relevantes. Isso se deude forma detalhada, gerando uma rigidezao sistema jurídico, não raro, incompatívelcom a dinâmica das modificações atuais.Assim, surgiu uma tendência oposta, queentende ser necessário retirar muitas áreasde disciplina constitucional – desconstituci-onalizar –, especialmente as ligadas ao con-trole formal da Administração Pública. Issopara dar a esta maior agilidade e eficiência,que, aliás, tornou-se palavra de ordem.

Entretanto, a legitimidade dessa tendên-cia não é indene de dúvidas, pois, do mes-mo modo como a necessidade de controleda atuação estatal não se resolve apenas pelaconstitucionalização dos temas, igualmente,a necessidade de conferir agilidade e efici-ência à atuação estatal não se resolve tão-somente pela desconstitucionalização. Mesmoporque tais tendências constituem extremos

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que atentam contra a clássica visão aristo-télica de que a virtude está no meio-termo.Ademais, cada movimento jurídico cumpriuou cumpre uma função histórica e negá-lapode resultar em desconhecimento do cu-nho ideológico da doutrina jurídica e faltade senso crítico, perniciosos para qualqueroperador do direito.

Com efeito, não é a situação topológica dasnormas legais que define o maior ou menorgrau de controle jurídico da atividade esta-tal, mas a hierarquia das normas tem umafunção a exercer, a qual não é interessantesubestimar ou supervalorizar. É importan-te saber a quem compete formular as nor-mas que compõem esse sistema de controlelegal, para adaptar cada nível a sua devidafunção, sob pena de se verificar o que atual-mente ocorre: o legislador ordinário tornou-se constituinte por via transversa de emen-das constitucionais. A trivialização da alte-ração de matéria constitucional atinge a fun-dação do edifício jurídico positivo, em pre-juízo de sua unidade e legitimidade.

Naturalmente, as normas constitucio-nais, o ordenamento infralegal e o poder re-gulamentar exercem função de controle le-gal das atividades estatais, tanto no sentidoformal, quanto no material. Porém, cada qualdentro dos limites de seu âmbito de atua-ção, pois as normas regulamentares não po-dem-se contrapor às leis, tampouco à Cons-tituição. Do contrário, as diretrizes e metassociais, econômicas e políticas definidaspelo ordenamento acabam não sendo im-plementadas pelo “governante de plantão”,utilizando a emblemática expressão deFernando Scaff, pelo que se tornam merasgarantias formais. Funcionam apenas comoum anteparo às reivindicações sociais, pois nãosão implementadas pelo Executivo, ao qualnão pode-se substituir o Judiciário, pois cabea este apenas o julgamento e não execuçãodas leis.

Há uma reorientação dos níveis legaisde disciplina da atividade do Estado, sain-do do eixo constitucional para o infralegale, perigosamente, para o âmbito do poder

regulamentar (veja-se a enxurrada de Medi-das Provisórias). Em conseqüência, precisahaver uma correspondente reorientação nasfunções de controle exercidas pelos Pode-res de Estado. No modelo de democraciacontratualista de Rousseau, a lei e a vontadehumana se aproximam, pois esta se expres-sa naquela e aquela define o âmbito de liber-dade desta. Logo, ao Legislativo cabe o papelcentral de definir as políticas públicas.

Portanto, atos de definição deveriam ca-ber ao Legislativo, porque composto pelosrepresentantes do povo, por uma questãodemocrática e de separação de poderes. Nodiscurso liberal, o Legislativo é o poder “su-premo”, pois é encarregado de dar expres-são à soberania popular. Mas quando a li-berdade formal da lei deixa de legitimar opoder, essa legitimidade passa a se fundarna realização de finalidades coletivas con-cretizadas programaticamente, isto é, naadoção de políticas públicas, pelo que o Exe-cutivo passa a ter mais destaque, a ser opoder “supremo”.

4. Dificuldades iniciais acerca docontrole das políticas públicas

Quando o poder regulamentar deixa deapenas conferir concreção e adequação dasdiretrizes legais à realidade social, o Execu-tivo passa a exercer função normativa comprejuízo do Legislativo. Eros GRAU chamaesse fenômeno de capacidade normativa deconjuntura (1998, p. 69), como sendo aquelaque visa ao desempenho de uma atividadede ordenação pelo Estado sobre os agenteseconômicos. A importância desse poder deregulação seria tanta que Fernando SCAFFentende importante a criação de um Conse-lho Consultivo, com funções opinativas(2000). Essa proposta é oportuna, pois que,com a substituição da função da lei pelaspolíticas públicas, dificulta-se o controle so-cial e mesmo o controle legal; dificuldadeessa que se deve a diferentes razões, quepodem ser apresentadas esquematicamen-te da seguinte forma:

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4.1. passa a haver uma demanda desme-dida por legislação, a fim de aprovar pla-nos e mais planos, bem como a regulamen-tação desses planos, o que nos Estados Uni-dos é conhecido como overload, em que oLegislativo acaba por abdicar da direçãopolítica do Estado;

4.2. faz-se necessário todo um extensosuporte institucional (agências de controle,instituições da sociedade civil organizada,etc.) para realizar um controle essencialmen-te finalístico;

4.3. a falta de cultura cívica e educaçãodemocrática dificulta, ou mesmo inviabili-za a devida e necessária participação po-pular, de modo que a sociedade acaba nãoexercendo nenhum controle, antes findaperdendo maior parcela de liberdade, poisnão participa da formação da opinião polí-tica;

4.4. os partidos se enfraquecem e deixamde representar a sociedade, porque esta nãoé capaz de os pressionar nesse sentido, peloque os mesmos passam a expressar os gru-pos de interesse dominantes, que são capa-zes de fazer pressão;

4.5. a utilização de conceitos jurídicosindeterminados e de normas programáticasnão é tradicional em nossa cultura jurídica,que oferece certa resistência.

Ante dificuldades de tal ordem, impres-cindível se torna intensificar e ampliar asinstâncias de controle das políticas gover-namentais. Com isso, a função do controleexercido pelo Judiciário torna-se mais ex-pressiva, num sentido crescente de quanti-dade e qualidade desse controle. Por outrolado, as pressões favoráveis e contrárias aoincremento desse controle passam a gerarargumentos prós e contras, mediante um dis-curso político-jurídico-ideológico que come-ça a se definir.

5. Correntes acerca da importância docontrole judicial das políticas públicas

As relações estabelecidas entre os Pode-res de Estado de um lado e as relações entre

o Judiciário, especificamente, as forças polí-ticas e a sociedade vêm forçando os aplica-dores do direito a tomar posição como agen-tes políticos e não meramente como técni-cos jurídicos. Essa nova feição gera descon-fiança e receio, dada a potencialidade parao arbítrio que qualquer incremento de con-trole gera. Desta feita, em âmbito que se podedizer mundial, os primeiros esboços doutri-nários começam a surgir acerca da função eimportância do controle judicial da atuaçãodo Executivo expressa pela adoção de polí-ticas públicas.

Em obra que se pode considerar pionei-ra, intitulada A judicialização da política e dasrelações sociais no Brasil, de 1999, Luiz W.VIANNA analisa a questão expondo duascorrentes contrapostas, que, em síntese, são:

A primeira, que seria chamada a dos pro-cedimentalistas, representada nada maisnada menos que por Habermans e Garapon,entende que o incremento do controle judi-cial prejudica o exercício da cidadania ati-va, pois envolve uma postura paternalista.De tal sorte, favorece a desagregação sociale o individualismo, dado que o indivíduo,enquanto simples sujeito de direitos, fica to-talmente dependente do Estado. Torna-seum cidadão-cliente e o Judiciário o seu forne-cedor de serviços. Portanto, não representa si-tuação desejada, mas situação crítica, cor-relata a uma crise institucional que precisaser superada.

Para os procedimentalistas, os cidadãosdeixam de ser autores e tornam-se merosdestinatários do direito. Isso porque, paraque sejam autores, não é necessária a medi-ação do Judiciário, mas antes a “criação”ou conquista de canais comunicativos, que le-vem o poder democrático do centro para aperiferia. Para os mesmos, dado que a leinão é a vontade direta do povo, este pre-cisa ter meios de expressar sua própriavontade. Assim, a Constituição deve ape-nas garantir a existência desses meios ouprocedimentos, para que os cidadãos cri-em seu próprio direito. Os seus princípi-os não devem, portanto, expressar conteú-

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do substantivo, mas somente instrumen-talizar os direitos de participação e co-municação democrática.

Assim, o controle de constitucionalida-de seria necessário apenas nos casos quetratarem do procedimento democrático e daforma deliberativa da formação da vontadepolítica (democracia deliberativa). Isso porquenão caberia ao Judiciário dizer sobre o quedecidir (conteúdo), mas apenas como decidir(procedimento democrático), para que oscidadãos decidam como lhes convier. Seriaapenas o caso de garantir procedimentospara ampla deliberação democrática, semexclusões. No entanto, isso demanda umaprévia cultura política da liberdade a que alu-de Habermans, de base social estável, ca-paz de produzir consenso democraticamen-te, bem como a existência de partidos fortese livres das pressões econômicas , pautadosem instituições firmes.

A segunda corrente, que também contacom expoentes de prestígio como Capellettie Dworkin, é a dos chamados substancialis-tas, que entendem que o Judiciário precisaadquirir novo papel ante a função interven-cionista do Estado* e passar a ser o intérpre-te do justo na prática social. Se as políticasganharam mais relevância que a própria lei,o Judiciário necessita constituir-se em po-der estratégico, capaz de assegurar que aspolíticas públicas garantam a democracia eos direitos fundamentais e não interesseshegemônicos específicos.

Nessa linha, caberia à Constituição apositivação do ideal de justiça medianteleis básicas, mas incisivas, cuja implemen-tação pelo Judiciário transformaria pro-gressivamente a sociedade e as institui-ções, conduzindo à realização dos valo-res fundamentais e ao exercício da cida-

dania. De fato, vê-se que a lei não é criadapor um processo substancialmente, masformalmente democrático. Entretanto,mesmo na democracia direta prevalecemos interesses da maioria, em prejuízo dasminorias.

Assim sendo, não seria diferente, no sen-tido de não ser preferível, a “criação” juris-prudencial do direito oriunda da interpre-tação constitucional, que a conformação daspolíticas públicas a esse entendimento. Des-tarte, a judicialização das políticas públicasencontra seu fundamento no primado dasupremacia da Constituição, tida como leifundamental. Nessa ordem de idéias, o Judi-ciário não invade o âmbito do Executivo,apenas aplica a Constituição, esta sim su-perior a todos os Poderes Estatais, por se-rem poderes constituídos, ou seja, o Judiciá-rio apenas exerce sua função, aplica a nor-ma (constitucional).

Essa supremacia se justifica pela neces-sidade de preservar certos núcleos de direi-tos, como os Direitos Humanos, confiandosua guarda a instituições majoritárias (cor-tes constitucionais). Por isso é que o contro-le judicial das políticas públicas faz maissentido no âmbito constitucional. Pois asnormas e princípios constitucionais preva-lecem não somente sobre os Três Poderes,mas sobre toda a sociedade, em certo senti-do, sobre a própria vontade da maioria. Porisso, o constrangimento que representa deveser o mínimo necessário para assegurar aque-le ideal de justiça.

Logo, conceder ao Judiciário o poder dedecidir sobre esse ideal (esses direitos fun-damentais) não significa que os juízes re-presentem melhor os interesses dos cidadãosque os parlamentares ou o Chefe do Execu-tivo, que, aliás, são eleitos. Pois, os juízestambém podem ser tiranos e arbitrários tan-to quanto os titulares de cargos eletivos.Destarte, o controle judicial das políticaspúblicas representa apenas mais uma ins-tância de controle, o que significa mais con-trole, qualitativa e quantitativamente, poisé um reforço apenas.

* Aqui, utiliza-se a expressão intervencionista nosentido já visto, como sempre existente indepen-dentemente do modelo de Estado, seja de Bem-estar Social ou de cunho Neoliberal, pois a interven-ção sempre existe e pode dar-se – de fato está sedando – neste “novo” modelo neoliberal com maiorintensidade ainda que no Welfare State.

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6. Vantagens, desvantagens e funçõesdo incremento do controle Judiciário

mediante a análise das políticas públicas

Para os substancialistas, esse controleauxilia na reconstrução do sistema de valo-res democráticos, por ser mais um nível deacesso às instâncias do poder, por intermé-dio do questionamento de decisões políti-cas pelo controle de constitucionalidade.Abre, também, espaço ao pluralismo, medi-ante o amplo acesso ao Judiciário que existena medida em que nenhuma questão deixade ser apreciada, o que garante que gruposmarginais – sem expressão política – ques-tionem e influam sobre as decisões políti-cas. Ademais, fomenta a democracia delibe-rativa (de grupos) pelas ações coletivas.

Como desvantagem costuma ser apon-tada a necessidade de cristalização de mui-tas metas sociais em leis, que “engessa” aexecução das políticas públicas, prejudican-do a flexibilidade necessária para a regula-ção da dinâmica econômica, bem como criamais um entrave burocrático, pelas muitasações que ficam pendentes. Igualmente, diz-se que a própria definição do ideal de justi-ça e dos Direitos Humanos é mutável, peloque o controle judicial dificulta mais essasmudanças de atualizações de valores.

Entretanto, o controle judicial das ativi-dades dos outros Poderes é exercido peloJudiciário, principalmente com base nosprincípios e normas da Constituição, quesão genéricos e muitas vezes utilizam con-ceitos juridicamente indeterminados. Por-tanto, podem ser “atualizados” por simplesinterpretação construtivista (criadora) dojuiz, não havendo perigo real de “engessa-mento” da Administração Pública. Por isso,é importante que não existam normas cons-titucionais excessivamente específicas, poisnão é a especificidade que garante a reali-zação da finalidade legal, mas o tipo e a efi-cácia do controle da execução da lei, sejaesta genérica ou específica.

Essa interpretação construtivista permiteque se preserve-mudando, pelo que favorece a

formação gradual de uma cultura política,pois auxilia na criação pelos cidadãos deconsciência dos seus direitos em sentidomais amplo, a começar pela consciência deseus papéis específicos no momento comuni-cativo do processo, enquanto consumidor,contribuinte e outros. Segundo José Afonsoda SILVA, a Constituição Federal de 1988,pela peculiaridade histórica de sua forma-ção, ficou distante do ideal de qualquer gru-po nacional específico (2000). Teria, portan-to, refletido um mosaico de interesses e pre-ocupações, porque não resultou historica-mente de um conjunto de valores compartilha-dos por uma comunidade política, conforme umamadurecimento democrático do povo. Masnem por isso pode ser tida como ilegítima,pois reflete valores socialmente desejáveis.

Ademais, em um modelo assim de Cons-tituição Aberta, para se usar a expressão dePaulo Bonavides, favorece-se o construtivis-mo jurídico, pelo que se obtém a desejadainterligação entre os Direitos Humanos e ademocracia participativa. Tal porque a par-ticipação jurídico-política encontra no mo-mento processual mais uma instância im-portante no cenário do Poder Estatal. Ao irao Judiciário em busca de seus direitos, ocidadão atua, exercita seu poder de iniciati-va, torna-se cidadão-ativo, não mero cidadão-cliente, porque provoca o exercício da juris-dição e sai da inação. Com isso, mesmo quea Constituição não seja fruto da mais legíti-ma vontade popular, poderá vir a ser pelaatuação jurisdicional construtivista e as suasnormas terão mais chances de não ficar namera função simbólica.

O exercício de ações coletivas e a atua-ção dos Juizados Especiais são exemplos es-pecíficos de momentos em que a jurisdiçãofavorece a aquisição da cidadania. Inquestio-navelmente, tais espaços ainda são muito tê-nues, carentes de toda sorte de aparelhamen-to, assim como a própria estrutura do PoderJudiciário brasileiro, o que não anula os pe-quenos ganhos que significam. Ao se conce-ber o Judiciário enquanto instância democrá-tica, percebe-se que o locus de participação

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popular desloca-se (ou amplia-se) para o Ju-diciário. Isso pressupõe, como base, a possi-bilidade de um controle abstrato de constitucio-nalidade, no qual a supremacia é a da Consti-tuição e não de um Poder Constituído como oJudiciário. Daí não ser cabível falar-se, comojá se tem feito, em “governo dos juízes”.

Em suma, a ampliação do poder de con-trole judicial das leis e, particularmente, daAdministração não tolhe a democracia par-ticipativa, antes lhe favorece, assim como ademocracia representativa. Pois os partidosminoritários, que não estejam em coalizãocom o Executivo, podem utilizar o processojudicial contra as instâncias do poder, istoé, contra os arbítrios do governante de plantão.Favorece, portanto, a conexão entre a demo-cracia participativa e a representativa, o queé muito importante no Brasil, onde “as maio-rias efetivas da população são reduzidas, poruma estranha alquimia eleitoral, em minori-as parlamentares” (VIANNA, 1999, p. 43).

Essas minorias parlamentares passama ter no Judiciário mais uma instância deatuação, com novas possibilidades de pres-são. Entretanto, a adoção de um modelo deEstado-juiz, na expressão acre de Cittadino,correlata a uma visão “romântica” do Juiz-Hércules, como gosta de se referir Canotilho,é totalmente utópica. Pois a participação noJudiciário é, em certa medida, dependenteda mediação do direito e, em conseqüênciada positivação dos direitos, da existênciade cortes de justiça com feição política comoas cortes constitucionais e do grau de cons-ciência política dos magistrados. Contudo,todos esses óbices podem ser minimizadospelo contínuo exercício do controle judicial,pois este apresenta função pedagógica, quese aplica tanto aos cidadãos quanto aosmagistrados.

7. Papel do Judiciário – dificuldadesno exercício do controle

Ao se analisar as dificuldades do con-trole judicial dos atos dos outros poderesdo Estado, especialmente os do Poder Exe-

cutivo, percebe-se a necessidade de utiliza-ção de técnicas de “sopesamento” de valo-res, interesses e direitos. Essas técnicas sãosimultaneamente simples instrumentos eopções valorativas, revelando o viés políti-co do direito, enquanto racionalidade acer-ca do poder. O controle judicial das políti-cas públicas nesse sentido é um típico casoem que a regulamentação legal se defrontadiretamente com os meandros “irracionais”do poder político.

O direito não pode atuar nesses casoscom o mesmo rigorismo técnico, julgando-se neutro, é preciso buscar parâmetros mí-nimos de ética e justiça. Por conta disso, ocontrole legal encontra muitas dificulda-des, de ordem técnica, ideológica e valo-rativa. Já observava Rui Barbosa, citadopor COMPARATO, que:

“O effeito da interferência da justi-ça, muitas vezes não consiste senãoem transformar, pelo aspecto com quese apresenta o caso, uma questão polí-tica em questão judicial. Mas a atribui-ção de declarar inconstitucionaes osactos da legislatura envolve, inevita-velmente, a justiça federal em questõespolíticas. É, indubitavelmente, umpoder, até certa altura, exercido sobas formas judiciaes” (1997, p. 20)

Diante disso, Comparato afirma: “Afas-temos, antes de mais nada, a clássica obje-ção de que o Judiciário não tem competên-cia, pelo princípio da separação de Pode-res, para julgar ‘questões políticas’” (p. 19).No entanto, essa postura é rechaçada pelamaior parte dos juristas pátrios, que só aadmitem por via transversa, mediante umexercício argumentativo pelo qual as ques-tões “deixam de ser” políticas, passando aser jurídicas. Por isso, o controle da Admi-nistração Pública é apontado como restritoao nível constitucional, e por isso os defen-sores de uma maior margem de liberdadepara o gestor público postulam a desconsti-tucionalização de muitos assuntos como osserviços públicos. Porém, como visto de iní-cio, não é o locus da norma que facilita ou

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não o controle, mas os mecanismos de que osistema dispõe. Aliás, está demonstrado quefinda como letra morta a constitucionaliza-ção de muitos temas, pela inviabilidade docontrole.

Portanto, é preciso observar que o con-trole das políticas públicas não pode ficarrestrito ao Controle de Constitucionalida-de, sob pena de ser considerado inviável,ante certos mecanismos estrategicamentepensados para minimizar esse controle,como a Ação Declaratória de Constitucio-nalidade. Ademais, não se pode restringir ocontrole de constitucionalidade ao controleconcentrado. Mesmo porque toda a estrutu-ra do sistema legal pode ser tida como umaconcreção dos fins constitucionalmente pro-postos.

Um segundo ponto, observado por Com-parato, é que o controle judicial da Admi-nistração Pública incide sobre atos e nãosobre programas ou políticas, sendo, por-tanto, um controle pontual não abrangente.Logo, as políticas públicas, em seu conjun-to, findam fora do controle, porque expres-sam a idéia de metas coletivas e de ativida-de, de modo que não se resumem a normasou atos, pois representam o conjunto des-tes, que é unificado pela sua finalidade.

Comparato assim leciona:“A primeira distinção a ser feita,

no que diz respeito à política comoprograma de ação, é de ordem negati-va. Ela não é uma norma nem um ato,ou seja, ela não se distingue nitida-mente dos atos da realidade jurídica,sobre os quais os juristas desenvolvema maior parte de suas reflexões desdeos primórdios da iurisprudentia roma-na. Este ponto inicial é de suma im-portância para os desenvolvimentosa serem feitos a seguir, pois tradicio-nalmente o juízo de constitucionali-dade tem por objeto, como sabido, ape-nas normas e atos” (1997, p. 18).

Entretanto, como visto, as finalidades le-gais que orientam o controle judicial fina-lístico não se resumem ao controle de cons-

titucionalidade. No Brasil, confundem-secom este, dado o caráter extremamenteabrangente da Constituição Federal, porém,isso não significa que ao mesmo se limitem.Logo, é preciso perceber que existe uma hie-rarquia de valores que define o “peso” dosprincípios em conflito, mesmo em nível in-fraconstitucional. Obviamente, se se tratarde um valor constitucional em colisão comum infraconstitucional, aquele deverá pre-valecer, à semelhança do que ocorre no casodas normas.

Porém, tratando-se de princípios, mes-mo essa regra não pode ser absoluta, poispode ser que o valor ou interesse protegidopor normas infraconstitucionais prevaleçanaquele caso concreto por diversas razõestópicas. Uma delas pode ser a de que, a pre-valecer o interesse constitucionalmente pro-tegido, o outro seria aniquilado, ao passoque no caso inverso isso não se daria. Ascolisões de princípios são mais freqüentes ediversificadas que se costuma considerar epodem chegar ao nível processual. Comoexemplo, toma-se o caso dos prefeitos cujasregras de aposentadoria não foram recepci-onadas pela Constituição, mas que ganha-ram o direito a tal aposentadoria em Juízo,estando sob o manto da coisa julgada. En-tão, seria o caso de se dizer que é imperiosorespeitar a coisa julgada, instituto protegi-do pela própria constituição, mesmo quecom isso se estabeleça uma situação contrá-ria à própria Constituição. Esse é um casode aplicação do princípio da proporciona-lidade, pelo qual observa-se que houve me-nor vantagem em se atender ao princípio dacoisa julgada que em desconsiderá-lo.

A princípio, qualquer decisão seria acei-tável ou recusável, posto que se trata de doisvalores constitucionais. Entretanto, impor-ta reconhecer que as técnicas de racionali-zação da decisão jurídica nem sempre po-dem obedecer a um rigor lógico-formal, maspodem atender a uma demanda de raciona-lidade tópica. Desta feita, pode-se fazer umadistinção entre as soluções possíveis juridi-camente, conferindo maior peso a uma, como

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determina a aplicação do princípio da pro-porcionalidade. A maior desvantagem éobservada não apenas do ponto de vista ló-gico, mas finalístico.

Um outro óbice procedimental é que osatos e normas tomados isoladamente são he-terogêneos e possuem um regime jurídicopróprio. Ou seja, sua validade é analisadaseparadamente da atividade global, ou seja,das políticas públicas nas quais se inserem.Desse modo, uma norma ou ato pode serinválido, sem que a política pública na qualse insere o seja e vice-versa. Nesses casos,novamente pela aplicação do princípio daproporcionalidade, na análise dos atos aestes poderia ser conferido um peso dife-renciado, considerando-se sua relaçãodentro da política pública no qual se en-cerra. Com isso, o controle seria amplia-do pela estipulação de uma “sintoniafina” para a análise dos atos, de acordocom uma análise prévia da política pú-blica, seria o caso de esta estar inclusa napré-compreensão do julgador.

Uma outra questão seria o fato de que aConstituição Dirigente, correlata ao EstadoIntervencionista, contém objetivos que sãoimpostos por meio de normas programáti-cas, pelo que estas precisam ser tomadascomo vinculantes para o Estado e para todaa sociedade, incluindo os detentores do po-der econômico. Para tanto, trabalha-se coma noção de conceitos juridicamente indetermi-nados, que, ao lado do princípio da propor-cionalidade, representa mais uma técnicade racionalização da decisão judicial. A pró-pria análise desses tipos de conceitos jurí-dicos implica um juízo de ponderação, ouseja, a ela também se aplicam os parâmetrosdo princípio da proporcionalidade.

Com isso, a generalidade das normaspode ser tida como não redutora de sua fun-ção diretiva ou vinculante. Igualmente, o“alargamento” da competência normativa do go-verno (medidas provisórias, especialmente)pode ser mais estreitamente controlado, sem-pre do ponto de vista concreto, pois a análi-se tópica de prudência ou proporcionalida-

de sempre se dá in concreto, o que não atingea agilidade e mobilidade, necessárias à efi-ciência da gestão pública, afastando o peri-go tão supervalorizado do “engessamento”da Administração Pública. Dessa forma, ocontrole judicial deixa de significar umaampliação no Juízo de Oportunidade e Con-veniência da Administração, ou seja, nãosignifica uma “invasão de competência”,pois não se concebem as questões meramen-te como “questões políticas” ou “mérito ad-ministrativo”, cuja análise deve escapar aoPoder Judiciário.

A resistência dos Poderes do Estado emsubmeter as políticas públicas ao controlejudicial mais rígido está em que tal deman-da uma atuação política do Judiciário, no sen-tido de que deverá questionar as opções do Ad-ministrador. Notadamente, atos como decla-ração de guerra, licença para parlamentarser processado e outros manifestam feiçãomeramente política. Mas sob o rótulo de ques-tões meramente políticas não podem-se escon-der questões que afetam de forma direta erotineira o exercício dos direitos dos cida-dãos, como é o caso dos programas econô-micos e seus efeitos. Tanto que os mesmosestão sendo sempre questionados, sendo asperdas salariais, em geral, reconhecidas.

O incremento do controle judicial da ati-vidade administrativa não significa merasubstituição do arbítrio do Executivo peloarbítrio do Judiciário, pois a mediação danorma e dos princípios jurídicos minimizao subjetivismo. Os atos em si consideradose as políticas nas quais se inserem devemser confrontados com os objetivos constitu-cionais, bem como com as regras infracons-titucionais que estruturam o desenvolvi-mento dessas políticas e atos (atividade).

O Controle de Constitucionalidade noBrasil é bem amplo, pois envolve tanto a ma-téria quanto os meios e instrumentos, a for-ma e competência e, ainda, a omissão. Seusefeitos são desconstitutivos, pois resulta nainvalidade do ato (efeito ex nunc). Há mui-tas falhas, como a própria utilização “máintencionada” da Ação Declaratória de

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Constitucionalidade, mas, independente-mente de uma reforma constitucional, apre-senta muitas possibilidades, que deixam deser empregadas por receio de o Judiciárioassumir seu papel de agente político ao ladodos outros poderes. Poderiam ser mais uti-lizados os instrumentos mandamentais e deinjunção, bem como a tutela preventiva dalegalidade (constitucionalidade).

Com isso, a intervenção sobre o domínioeconômico prepondera, em especial, mastambém a atuação no domínio econômicodo Estado seria passível de um controle maiseficiente, que não fosse meramente formal,como muitas vezes é o exercido pelo Legis-lativo com auxílio dos Tribunais de Contas.Questões como a guerra fiscal, o tratamentoda dívida pública, a função meramente for-mal das leis orçamentárias, entre outras,poderiam ser redimensionadas com vistasa atender interesses sociais reais. Tal por-que o governo deixaria de não ser responsa-bilizado pelas distorções praticadas pormeio de políticas econômicas descompro-missadas com o social, como as que aten-dem aos interesses bancários (operações desocorro aos Bancos), em detrimento de áre-as fundamentais como educação e saúde.

A intervenção econômica não só perma-nece, como vem sendo incrementada, ao queprecisa se seguir um incremento de instru-mentos de controle. Isso porém não deman-da reforma legal para se implementar, poismecanismos normativos já existem, é o exem-plo das leis orçamentárias, que precisam sertratadas como leis, como norma legal vin-culante. Se esses mecanismos já existentesfossem implementados, muitas distorçõespraticadas continuamente seriam evitadas.Isso não significa que as propostas de mu-dança devam ser rechaças, pelo contrário,importa na necessidade de combinar o es-forço para a adoção de mudanças positivascom a efetiva utilização dos mecanismos le-gais já disponíveis, maximizando as possi-bilidades que estes representam.

Aliás, vale ressaltar a vasta gama de pro-postas positivas para incremento do con-

trole, judicial e social, das políticas econô-micas, das quais vale ressaltar as formula-das por Fernando Facury SCAFF, em breve,mas significativo ensaio, em que sugere acriação de agências reguladoras específicaspara setores da economia, com possibilida-de de participação popular, participação deprofessores universitários. Além disso, su-gere, ainda, possíveis alterações na compo-sição dos Tribunais de Contas, podendo-sepensar em inclusão de representantes da so-ciedade e na idéia de exercício de mandatoao invés de vitaliciedade no cargo, entreoutras como a criação de ouvidorias e con-selhos consultivos específicos (2000).

Demais disso, há a noção de orçamentovinculante, pelo que se tentaria reduzir asdivergências entre o aprovado em lei e o exe-cutado, pela utilização de linguagem maisprecisa nas leis orçamentárias e da idéia deobrigatoriedade na realização das despesasprogramadas, com uma margem de mobi-lidade de recursos dentro do estritamentenecessário. Aperfeiçoar o controle a poste-riori nos casos de Responsabilidade doEstado por medidas de política econômi-ca também é um caminho sugerido paraque, pela efetivação de um controle – so-cial e, especialmente, judicial –, seja im-plementado neste país um modelo de de-senvolvimento econômico com efetivoprogresso financeiro e social, capaz dereduzir o grau de marginalidade e exclu-são social. Nesse sentido, o instrumentaljurídico não seria considerado como a molamestra desse processo evolutivo, mas comoum significativo instrumento de realizaçãode ideais democráticos.

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Nadja Aparecida Silva de Araujo

Introdução

O Brasil vivencia uma era de desestimaconstitucional (HORTA, 1995, p. 105-116)1.Nos últimos tempos, a rotineira mudançada Lei Maior por emendas reflete, com pre-cisão, o fenômeno que “se exterioriza na in-diferença pelo destino da Constituição, tor-nando-a alvo freqüente das arremetidas dopoder fático, desfazendo a Lei Suprema na‘folha de papel’ a serviço dos interessesmutáveis dos fragmentos do poder” (HOR-TA, 1995, p. 110).

A Carta de 1988 foi substancialmentetransformada para atender aos desígniospolíticos da hora, contrariando a manifes-tação expressa do Poder Constituinte origi-

Atuação do Poder Executivo no controle deconstitucionalidadeNotas de uma interpretação sistemática do DireitoPositivo brasileiro

Nadja Aparecida Silva de Araújo é Gradua-da em Direito pela Universidade Federal dePernambuco com Especialização em DireitoConstitucional pela Universidade Federal deAlagoas. Procuradora do Estado de Alagoas ePresidente do Conselho Tributário Estadual.

SumárioIntrodução. 1. Premissas necessárias. 2. Con-

trole de constitucionalidade no Direito Positi-vo brasileiro. 2.1. Processo constitucionaliza-do. 2.2. Efeitos da inconstitucionalidade. 3. Pro-cesso administrativo. 3.1. Especificação. 3.1.1.Constitucionalização. 3.1.2. A questão da coisajulgada administrativa. 4. Processo administra-tivo tributário. 4.1. Processo administrativotributário contencioso. 4.1.1. Competência dojulgador. 5. O Poder Executivo e a norma (con-siderada) inconstitucional. 5.1. Afastamento denorma vigente pelo Poder Executivo. 5.2. Con-seqüências da negação de eficácia à lei vigentepelo Executivo. 5.2.1. Intervenção federal emEstado-membro. 5.2.2. Responsabilização doagente público. 5.2.3. Direito processual. 6.Conclusão.

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nário. Se tais fenômenos podem ser tidoscomo fatos habituais da Política, da Socio-logia ou da Economia, no âmbito jurídico,essas demonstrações explícitas da desesti-ma constitucional são fatos atordoantesporque impactam com a efetividade (BAR-ROSO, 2001, p. 279)2 do dispositivo consti-tucional primitivo.

Não se pretende aqui a apologia da imu-tabilidade eterna do Texto Constitucional,até porque é presumível que a perene trans-formação social alcance, necessariamente,a interpretação da Norma Maior3. Contudo,é impossível negar-se a mudança substan-cial que adulterou a Carta de 1988. O exem-plo de maior clareza se configurou na pos-sibilidade de reeleição para os ocupantesda chefia do Poder Executivo, introduzidapela Emenda nº 16, de 4 de abril de 1997,confrontando um dispositivo originariamen-te inserido no Título II – Dos Direitos e Ga-rantias Fundamentais – art. 14, § 5º – São ine-legíveis para os mesmos cargos, no período subse-qüente, o Presidente da República, os Governado-res de Estado e do Distrito Federal, os Prefeitos equem os houver sucedido, ou substituído nos seismeses anteriores ao pleito. A reeleição de muitosdos ocupantes do Poder Executivo, à época,somada à anuência da Corte Suprema e dacomunidade a tal mudança comprovam o(aparente) desapego da Nação às escolhasanteriores. A partir do critério de Carl Sch-mitt (HORTA, 1995, p. 115-116)4, observa-se,em tal episódio, o fenômeno da mudança ra-dical da Constituição brasileira.

Outro fato social – há muito já registra-do – que pode ser tido como manifestaçãoda desestima constitucional é a admissãopopular ao desequilíbrio (na prática) entreas três funções do Estado, o que acentua aexorbitância de poderes para uma delas e, porisso, desfigura a República. Ora, tal ocorrên-cia atinge diretamente um dos alicerces doconstitucionalismo: a limitação do poder doEstado como garantia do indivíduo (MORA-ES, 2001, p. 33)5, que deve ser alcançada me-diante a separação dos poderes e a declara-ção de direitos (BONAVIDES, 2001, p. 22).

Em sua origem, a separação de poderesfundamenta o controle recíproco com vistasà harmonia entre as três atividades estatais,pelo mecanismo dos freios e contrapesospara, com isso, garantir as liberdades doindivíduo (BERCOVICI, 1999, p. 36).

Mas, o controle judicial da atividade le-giferante e administrativa, encontrado namaioria6 dos Estados ocidentais modernos7,denuncia a inexistência de real equivalên-cia entre as três funções estatais e, por isso,recebe censuras incisivas (MENDES, 1999,p. 316, 320)8. Para KELSEN (1990, p. 274),somente o “desenvolvimento histórico ex-plica a posição privilegiada dos tribunaisdentro do sistema político, a sua prerrogati-va de controlar a legislação e a administra-ção, a crença profundamente enraizada deque os direitos do indivíduo podem ser pro-tegidos apenas pelo ramo judiciário do go-verno, o parecer – característico sobretudodo Direito inglês – de que o concurso deum tribunal, como autoridade indepen-dente do legislador, deve ser obtido antesque a expressão da vontade do segundose torne uma regra de conduta. O chama-do poder judiciário funciona como umaespécie de contrapeso do poder legislati-vo e executivo”.

Assim, adotado pelo direito o controlejurisdicional da constitucionalidade dosatos normativos, devem ser cotejadas com osistema as formas dele discrepantes, a fimde estabelecer sua (in)validez. Isso porque aintercalação de fenômenos sociopolíticos nosistema jurídico implica, necessariamente,confrontá-los com parâmetros ignoradospelas outras ciências: o Direito Positivo, que,enquanto assim dispuser, neutraliza quais-quer efeitos de fatos ou atos confrontadores.

Interpretando dispositivos constitucio-nais – principalmente, os direitos e ga-rantias fundamentais e o Estatuto do Con-tribuinte9 –, um segmento da Doutrina10 temvislumbrado competência para o adminis-trador exercer controle de constitucionali-dade no âmbito do processo administrativotributário, afastando a incidência de lei acu-

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sada de inconstitucional, antes mesmo darespectiva manifestação jurisdicional. Comisso, propugnam uma ampliação do meca-nismo dos freios e contrapesos, alargando ainterferência recíproca das três funções es-tatais. A constitucionalização do princípioda ampla defesa no processo administrati-vo, de acordo com esse entendimento (CON-RADO, [199-?], p. 162-167), possibilitaria ocontrole de constitucionalidade pelos agen-tes do Executivo, mesmo quando ausente aespecífica atribuição.

Apresenta-se, então, a (im)possibilidadeda análise da questão constitucional no pro-cesso administrativo: entremostram-se pro-posições originais ou um meio de fraudar(IVO, 2002)11 o Texto Constitucional? Apa-rece mais uma ocorrência da desestima cons-titucional ou salutar evolução da interpre-tação constitucional?

O campo de pesquisa relacionado à po-lêmica é vasto, cuja resposta completa é im-possível de ser contida neste exíguo traba-lho. Dessa forma, a partir de premissas fin-cadas na distinção entre o direito-objeto e odireito-ciência, observar-se-á a validade ju-rídica do exame da (in)constitucionalidadeda lei tributária pelos agentes administrati-vos encarregados do controle de legalidadedo lançamento tributário. Examinar-se-á oTexto Constitucional, como posto atualmen-te12, buscando-se uma interpretação sistemá-tica ao inserir na discussão as disposiçõesda Lei nº 9.868, de 10/11/1999, acerca dosefeitos da declaração de inconstitucionali-dade. Ademais, analisar-se-á a incidênciade normas de direito processual civil sobrea questão.

1. Premissas necessárias

Pretende-se, aqui, um confronto do pro-blema com o Sistema do Direito Positivo bra-sileiro na atualidade. Para tanto, impõe-sefixar premissas que guiem a análise (IVO,[1999?], p. 187-192).

O mundo jurídico é constituído numuniverso de linguagem. São dois corpos de

linguagem. O direito positivo – o objeto – e aCiência do Direito. A primeira linguagemprescreve como deve ser o procedimentohumano, e não como ele efetivamente ocor-re. Por sua vez, a segunda linguagem falada primeira, emitindo enunciados descritivos.

Em outros sítios do conhecimento, a dis-tinção entre a ciência e seu objeto de estudoé mais nítida, já que, comumente, tais obje-tos não se constituem em linguagem. Mas,mesmo diante desse aspecto em constituir-se o próprio objeto em linguagem, não é per-mitido ao estudante do Direito confundir emisturar os dois planos lingüísticos: devedistinguir-se entre enunciado (formulação,disposição) da norma e norma. A formula-ção da norma é qualquer enunciado que fazparte de um texto normativo (de uma fontede Direito). Norma é o sentido ou significa-do adscrito a qualquer disposição. Disposi-ção é parte de um texto ainda a interpretar;norma é a parte de um texto interpretado.

No que respeita à interpretação dos enun-ciados constitucionais – objeto desta análi-se porque dispõem sobre o controle de cons-titucionalidade de normas de inferior hie-rarquia –, os princípios da proporcionali-dade e o da unidade da Constituição sãoguias imprescindíveis já que necessário pro-piciar efetividade a todos eles, mesmo quan-do estejam em (aparente) confronto.

Tendo as distinções apresentadas comomarco fundamental, focalizar-se-á o atualEnunciado Constitucional, dele extraindonossa resposta às seguintes questões:

1. Alterando a clássica separação dos po-deres, na qual o controle de constitucionali-dade das normas é atribuído ao Judiciário,as regras atuais do controle de constitucio-nalidade conferem aos agentes do PoderExecutivo a competência para fazê-lo no jul-gamento dos processos administrativos?

2. O Sistema Jurídico admite regra deexceção implícita?

3. Um ato governamental que determineaos administradores a recusa de aplicaçãoà lei vigente e eficaz é tido como elementodo Sistema do Direito Positivo?

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Essas proposições são estranhas ao dis-curso daqueles que vislumbram a compe-tência para os agentes do Poder Executivodecidirem sobre inconstitucionalidade denorma antes da manifestação judicial.

Observa-se que, na vigência da Consti-tuição de 1988, o Supremo Tribunal Federal– intérprete autorizado e, por isso, constru-tor13 da norma constitucional – não tratouespecificamente do problema, mencionado-o rapidamente no julgamento da ADIn nº221-0-DF14:

“... Em nosso sistema jurídico, nãose admite declaração de inconstitucio-nalidade de lei ou de ato normativocom força de lei por lei ou ato norma-tivo com força de lei posteriores. Ocontrole de constitucionalidade da leiou dos atos normativos é da compe-tência exclusiva do Poder Judiciário.Os Poderes Executivo e Legislativo,por sua Chefia – e isso mesmo temsido questionado com o alargamen-to da legitimação ativa na ação di-reta de inconstitucionalidade – po-dem tão-só determinar aos seus ór-gãos subordinados que deixem deaplicar administrativamente as leisou atos com força de lei que consi-derem inconstitucionais”.

No Superior Tribunal de Justiça – padrãorespeitado de jurisprudência – são encon-tradas decisões discrepantes. A 1ª Turmadecidiu em 1993, no julgamento do RecursoEspecial 23.121-GO: “Lei inconstitucional– Poder Executivo – Negativa de eficácia. OPoder Executivo deve negar execução a atonormativo que lhe pareça inconstitucional”.Já a 2ª Turma, em 1998, por meio do Recur-so Especial 184.884-SP, declarou: “... O cré-dito resultante de pagamento realizado àbase de lei inconstitucional só pode ser com-pensado através de sentença judicial, por-que à Administração não compete o contro-le da constitucionalidade das leis (REsp.86.032-MG)”. Até o momento, não há umentendimento uniforme. No primeiro caso,o processo está no Supremo Tribunal Fe-

deral com o Recurso Extraordinário nº233.960-7, distribuído em 18/08/1998,aguardando julgamento. No segundo pro-cesso, a decisão transitou em julgado.

Assim sendo, apresentam-se argumen-tos que devem integrar a avaliação técnico-jurídica do problema.

2. Controle de constitucionalidade noDireito Positivo brasileiro

2.1. Processo constitucionalizado

A Carta Magna apresenta as regras parao controle de constitucionalidade das nor-mas infraconstitucionais, estabelecendo ascompetências específicas para cada um dosÓrgãos de Poder do Estado, bem como per-mitindo às partes litigantes argüirem a efe-tividade da norma constitucional em pro-cesso judicial (arts. 5º, XXXV, e 97).

O Legislativo exerce o controle prévio(FERRAZ, 1999, p. 289-290) dos projetos delei, emendas constitucionais e atos norma-tivos, por intermédio de Comissões de Cons-tituição e Justiça criadas em cada uma desuas Casas. Tal atribuição é vista, também,na rejeição ao veto presidencial em projetode lei já votado (mas não promulgado ain-da) ou pelo exame anterior à promulgaçãodo projeto de lei delegada (elaborado peloExecutivo). Ademais, há a legitimação parao controle de constitucionalidade posteriorà vigência da norma, pela possibilidade desustação de atos do Presidente da Repúbli-ca (art. 49, V) e pela legitimação para propo-situra do controle concentrado perante aCorte Suprema (art. 103, II, III, IV).

Ao Executivo é atribuída a competênciapara o controle prévio por meio do veto (porinconstitucionalidade) a projeto de lei jáapreciado pelo Legislativo (art. 66, § 1º). Já ocontrole sucessivo é exercido pela legitima-ção processual para o controle concentrado(art. 103, I, V).

O Ordenamento Jurídico, como posto,estabelece a competência exclusiva ao Po-der Judiciário para decisão no controle de

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constitucionalidade posterior à vigência doato normativo impugnado.

O juiz, à vista do caso em que é argüida ainconstitucionalidade de uma norma, devedecidir a questão como prejudicial do méri-to da causa, negando eficácia à lei que repu-te inconstitucional. Nessa circunstância, oreconhecimento do vício maior só afeta aosrespectivos litigantes, já que tal decisão care-ce de eficácia geral em virtude dos limites sub-jetivos da coisa julgada15 e porque a sentençajudicial não tem o condão de revogar lei.

A norma que seja inconstitucional deveser expulsa do sistema por outra de igualfeição16. Observe-se que a suspensão da efi-cácia pelo Senado Federal17 de norma de-clarada inconstitucional em controle difu-so não a retira do sistema; para tanto, a har-monia entre os elementos sistemáticos exi-ge ato da autoridade que a promulgou18 –lei revogadora – em conformidade com a Leide Introdução ao Código Civil, art. 2º19.

Atentando para o art. 102, caput, conclui-se que o Supremo Tribunal Federal é o ór-gão investido de jurisdição de controle paradeter a ilegitimidade constitucional e confe-rir prevalência à Constituição, tendo a com-petência para a produção da norma invali-dante (cf IVO, 1998, p. 169)20 no controleconcentrado, em que o exame abstrato eamplo da norma infraconstitucional permi-te sua invalidação com efeitos erga omnes.

É decorrência lógica da supremacia dasnormas constitucionais no sistema do di-reito positivo que a regulação do processode controle da constitucionalidade das nor-mas infraconstitucionais deve ser positiva-da na própria Constituição, já que de outraforma (incongruente) admitir-se-ia que agarantia de eficácia das normas constitucio-nais teria fundamento de validade em nor-ma de hierarquia inferior que dispusesse deoutro modo. Assim, o regramento estabele-cido na Constituição Federal para garantira eficácia de seus dispositivos impõe a con-clusão de que quaisquer formas discrepan-tes dessa previsão não integram o sistemajurídico.

2.2. Efeitos da inconstitucionalidade

No entendimento clássico, a inconstitu-cionalidade fulminava a norma viciada des-de sua origem: lei inconstitucional era leinula, sem efeitos. O reconhecimento do ví-cio tinha eficácia ex tunc.

O Direito Positivo nacional, a partir daLei nº 9.868, de 10 de novembro de 1999,permite ao Intérprete Autorizado da Cons-tituição (STF) estabelecer efeitos variadospara a inconstitucionalidade de uma dadanorma. Assim, a inconstitucionalidade podeprovocar a nulidade (efeitos ex tunc), a anu-labilidade (efeitos ex nunc), a anulação apartir de um momento específico21. Ade-mais, na interpretação conforme à Consti-tuição e na declaração de inconstitucionali-dade sem redução do texto, o enunciado nãoé atingido – assim o é porque “a norma jurí-dica é o resultado de sua interpretação”,conforme VELOSO (2000, p. 169).

As inovações no controle de constitucio-nalidade brasileiro foram anteriormenteobservadas em outras ordens jurídicas(MENDES, 1990, p. 273-275). As conclusõesadotadas pelo legislador pátrio são decor-rentes de percucientes análises do tema, apartir da concretização da hipótese norma-tizada. O sistema recepciona a norma in-constitucional não só com escopo de evitarque o seu destinatário a desobedeça, alegan-do vício formal ou material, como tambémpara manter a sua unidade e coerência lógi-ca, ante a impossibilidade de emprego ime-diato daqueles mecanismos de controle parasanar essa irregularidade (DINIZ, 2001, p.152-154).

Portanto, a norma inconstitucional nãoé, necessariamente, ineficaz. Desencadeadoo controle de constitucionalidade, o Judiciá-rio determina a eficácia da norma que sejainvalidada. No controle concentrado, a Cor-te Suprema explicita os efeitos da invalida-ção. E no controle difuso, mesmo após a de-finitiva decisão de inconstitucionalidadepelo Supremo Tribunal Federal, no que res-peita ao Sistema de Direito Positivo, enquan-

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to a norma não for revogada por outra nor-ma de seu respectivo prolator, ela permanecevigente e eficaz, podendo ser invocada porterceiros não alcançados pela coisa julgada.

3. Processo administrativo

3.1. Especificação

O processo administrativo era alvo deinvestigação doutrinária com vistas a en-cerrar a discussão existente acerca de suanatureza: é processo ou procedimento?

Atualmente, não há dissensão de relevoquanto à amplitude do processo. O Legis-lativo tem por função editar leis e essa funçãonormativa legiferante obedece a um processusespecífico, que vai desde o projeto de lei até apublicação e a sanção. O Poder Judiciário tempor função dizer o direito e o processo (civil,penal, trabalhista) é o meio de se realizar demaneira ordenada e dentro de certo limite detempo a função jurisdicional. O Executivo fi-cou encarregado de aplicar a lei e, para tanto,também obedece a um rito ordenado.

Assim, o processo administrativo é, emrealidade, um modus procedendi específico daAdministração Pública, avultando o proces-so ou procedimento fiscal como um rito re-lacionado com a determinação e a exigên-cia dos créditos tributários ou com a con-sulta sobre a aplicação da legislação tribu-tária (CABRAL, 1993, p. 24).

3.1.1. Constitucionalização

É inegável o novo status atribuído ao pro-cesso administrativo pela Constituição de1988, à vista do art. 5º, LV – aos litigantes, emprocesso judicial ou administrativo, e aos acusa-dos em geral são assegurados o contraditório eampla defesa, com os meios e recursos a ela ine-rentes. Conforme BALERA (p. 63-64), “o Tex-to Máximo utiliza-se do preceito que veicu-la a diretriz do contraditório e da ampladefesa para elevar à dignidade constitucio-nal a figura jurídica do processo adminis-trativo”. Mas, tal dispositivo igualaria o pro-cesso administrativo ao processo judicial?

Destaque-se a ausência de elementosfundamentais à pretendida equiparação.“Basta lembrar, como um dos mais expres-sivos elementos diferenciadores entre pro-cesso civil e procedimento administrati-vo, que não existe processo sem um juizinvestido (jurisdição), e indo-se maisalém, mesmo o processo instaurado pe-rante juiz investido não terá validade, semo pressuposto basilar da imparcialidade”(ALVIM, 1994, p. 11).

No processo judicial, o juiz é parte isen-ta sem qualquer relação com os litigantes, eno processo administrativo a autoridadejulgadora é também parte. Não pode ser ig-norado que, na atividade jurisdicional, oEstado substitui22 a atividade do litigante:“como o Estado não permite ao particularfazer justiça por suas próprias mãos, deveeste recorrer ao Poder Público para realizarseu direito”(BARBI, 1993, p. 10).

Um item crucial à distinção entre os doisprocessos concerne à jurisdição una, tradi-ção do Ordenamento Jurídico brasileiro,consagrada na Carta Magna, art. 5º, XXXV– a lei não excluirá da apreciação do Poder Judi-ciário lesão ou ameaça a direito. De tal postula-do decorrem a inafastabilidade do acesso àjurisdição e a coisa julgada. Por isso, a Ad-ministração Pública está sujeita ao crivo ju-risdicional como qualquer outro sujeito dedireitos e deveres. Não há exceção: mesmoas decisões dos Tribunais de Contas – ór-gãos especiais de controle externo da Ad-ministração Pública, cujas competênciasestão assentadas na Constituição23 – podemser subjugadas pelo Poder Judiciário.

Apresentadas as distinções entre o pro-cesso administrativo e o judicial, conclui-seque o enunciado constitucional do art. 5º,LV, não trouxe a equiparação entre os doisinstitutos. Tal dispositivo deve ser encara-do como mais uma garantia aos direitos fun-damentais do indivíduo, na medida em quea ampla defesa e o contraditório no proces-so administrativo propiciam o conhecimen-to pelo administrado dos moldes legais paraa decisão administrativa, possibilitando o

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amplo controle jurisdicional da atividadepública (cf. DANTAS, 2001)24.

3.1.2. A questão da coisa julgadaadministrativa

É conhecida a prerrogativa da Adminis-tração Pública de “anular seus próprios atosquando eivados de vícios que os tornam ile-gais, porque deles não se originam direitos;ou revogá-los, por motivo de conveniênciaou oportunidade, respeitados os direitosadquiridos e ressalvada, em todos os casos,a apreciação judicial” 25.

Em face da autotutela da AdministraçãoPública, há quem reclame a coisa julgada ad-ministrativa26 para atender à segurança jurí-dica das relações do Ente Público com oparticular. Nesse sentido, exarada a deci-são de última instância, a Administraçãodeveria respeitá-la, até mesmo quando ei-vada de vícios, em nome da segurança jurí-dica e da inércia do Poder por lapso tempo-ral considerável27.

Entende-se que, mesmo sem validar acoisa julgada administrativa, o Direito Positi-vo propicia a requerida segurança jurídicapela delimitação do prazo para a Adminis-tração Pública exercer a revisão do ato in-quinado, como disposto nas normas queregulam o processo administrativo.

No âmbito federal, dispõe a Lei nº 9.784,de 29 de janeiro de 1999, art. 54:

O direito da Administração de anularos atos administrativos de que decorramefeitos favoráveis para os destinatáriosdecai em cinco anos, contados da data emque foram praticados, salvo comprovadamá-fé. § 1º No caso de efeitos patrimoniaiscontínuos, o prazo de decadência contar-se-á da percepção do primeiro pagamen-to. § 2º Considera-se exercício do direitode anular qualquer medida de autoridadeadministrativa que importe impugnaçãoà validade do ato.

Nos mesmos moldes, a Lei Alagoana nº6.161, de 27 de junho de 2000, art. 54. E noEstado de São Paulo, a decadência para arevisão se configura após dez anos, conta-

dos da produção do ato – Lei Estadual nº10.177, de 30 de dezembro de 1998, art. 1028.

Dessa forma, o reclamo para configura-ção da coisa julgada administrativa pareceignorar esses dispositivos normativos queatentam para a segurança jurídica reivindi-cada, ao imprimir, após o decurso de tempoestabelecido, a definitividade na decisãoadministrativa.

A decisão final do processo administra-tivo não se reveste dos efeitos inerentes àcoisa julgada porque dela inafastável ocontrole judicial. O Sistema Normativo brasi-leiro não valida a figura da coisa julgada admi-nistrativa porque mesmo a auto-executorieda-de e o exercício da autotutela sobre seus atos– poderes inerentes à Administração Pública– não estão livres do controle jurisdicional.

4. Processo administrativotributário

No âmbito da Administração Pública,ganha destaque o processo administrativotributário, precipuamente, porque, estandodiretamente relacionado com o poder de tri-butar, deve atentar para os princípios cons-titucionais (arts. 150 a 152) que norteiamessa atividade.

O processo administrativo tributário évisto em modalidades distintas que são aconsulta sobre aplicação da legislação tri-butária e o processo atinente à exigência docrédito tributário.

Na consulta, sendo o processo iniciadopelo contribuinte, pressupõe-se não haverlitígio. O contribuinte formula questões paraesclarecer dúvidas que tenha quanto à cor-reta aplicação da legislação tributária queindica. A Administração Fazendária, aosolucionar a consulta, apresenta o parâme-tro para sua atividade e para o contribuinteconsulente. É usual não caber recurso oupedido de reconsideração da resposta à con-sulta. Contudo, é possível, a qualquer tem-po, a revisão da resposta com apresentaçãode outro entendimento, a ser aplicado daíem diante.

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Na exigência de crédito tributário, o pro-cesso administrativo tem por objetivo anali-sar todos os elementos do lançamento já efe-tuado para conferir-lhe a legalidade exigi-da constitucionalmente (art. 150, I). Sendointrinsecamente contencioso, aparece comoo processo administrativo-tributário carac-terístico.

4.1. Processo administrativo-tributário contencioso

O lançamento de tributos é constituídopela Administração Fazendária em proce-dimento que permite a intervenção do sujei-to passivo da relação tributária. Em atençãoao Princípio da Legalidade, especificamen-te positivado, o contribuinte tem a garantiaconstitucional dos arts. 5º, II, LIV, e 150, I29,e a Administração Fazendária é conforma-da pelos arts. 23, I e 37, caput30.

A peça inaugural do procedimento – emgeral, denominada auto de infração – é re-sultante de atividade administrativa regu-lar, estabelecida em lei complementar31. Ocontencioso é instaurado a partir da inter-venção do contribuinte (normalmente) im-pugnando a autuação efetuada e propici-ando o desenrolar do feito para a decisãoacerca da (im)procedência da imposição tri-butária.

O julgador aprecia os fundamentos nor-mativos do lançamento efetuado, exercen-do o poder-dever de autotutela da legalida-de que lhe é imposto pelo Ordenamento Ju-rídico. O direito de revisar o lançamento étratado em lei complementar, por força daConstituição Federal, art. 146, III, b. E o Có-digo Tributário Nacional prevê os prazospara a Administração Fazendária constituire cobrar seus créditos (arts. 173 e 174), játratando da hipótese de um primeiro lança-mento irregular (art. 173, II), bem como, olapso temporal para o contribuinte reclamara restituição do indébito (art. 168).

Tal como ocorre no processo judicial, adecisão de primeira instância é prolatadapor um único agente público, enquanto adecisão de segunda instância é exarada por

um colegiado. Observando-se a estruturaorgânica da União Federal e dos Estadosbrasileiros, constata-se que os julgadores noprocesso administrativo tributário – princi-palmente os que formam a primeira instân-cia – são funcionários integrantes dos qua-dros da fiscalização fazendária que, momen-taneamente, exercem a função julgadoracom exclusividade. A exceção conhecidaaparece no Estado de Pernambuco, onde foicriada a carreira de Julgador Tributário doEstado, afastando os agentes da fiscaliza-ção da decisão do processo administrativotributário32.

Dessa forma, os julgadores do processoadministrativo-tributário analisam as autu-ações efetuadas por seus pares mesmo nasegunda instância, já que os Tribunais deTributos são formados a partir da represen-tação paritária entre os delegados da Fazen-da e os representantes dos contribuintes. Apartir dessa característica, confirma-se a dis-tinção entre esse agente público e o integran-te do Judiciário, o qual, verificada sua par-ticipação nas circunstâncias fáticas exa-minadas na lide em julgamento, dele é afas-tado por lhe faltar a irrenunciável impar-cialidade33.

Outrossim, deve ser registrado que, mes-mo tendo natureza especial – precipuamen-te, por ter em seus quadros representantesdos contribuintes (sujeitos alheios ao servi-ço público, portanto) –, não existe, no Bra-sil, Tribunal Administrativo como entidadeautônoma ou exterior à esfera administrati-va. Mesmo em Pernambuco, o Tribunal Ad-ministrativo Tributário está inserido na es-trutura administrativa de sua Secretaria daFazenda34. Também na União Federal, osConselhos de Contribuintes integram a es-trutura do Ministério da Fazenda, nos ter-mos do Decreto nº 70.235, de 6 de março de1972, art. 25, II, e Lei nº 8.748, de 9 de de-zembro de 1993.

Assim, na atualidade, o Direito Positivoque rege a Administração Pública, necessa-riamente, incide sobre os julgadores admi-nistrativos.

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4.1.1. Competência do julgador

Estando integrada à Administração Pú-blica, a autoridade julgadora do processoadministrativo tributário só pode agir quan-do expressamente autorizada por lei, queestabelece sua competência para tanto e de-limita-lhe o âmbito de ação35, seja o julgadorsingular de primeira instância, sejam os in-tegrantes da segunda instância configura-da nas Cortes Administrativas, normal-mente denominadas Conselho TributárioEstadual36 ou Tribunal Administrativo deTributos37.

E, partindo-se dessa premissa, vislum-bra-se o ponto nodal da questão: a compe-tência estabelecida para o julgador do pro-cesso administrativo tributário possibilitaa declaração de inconstitucionalidade (ouo afastamento) de norma atinente ao caso,antes da decisão judicial?

Repita-se: a atribuição para o agentepúblico decorre de norma expressa38. Con-siderando que o controle de constituciona-lidade no processo administrativo seria ex-ceção às regras constitucionais sobre o tema,sua validade jurídica exigiria norma queespecificasse tal atribuição, já que o sistemanão valida exceção de competência por meiode norma implícita. Bem ensina Celso An-tonio Bandeira de MELLO (1998, p. 87-88)que “o plus no uso da competência, seja emextensão, seja em intensidade, acaso ocorri-do significará, em última instância, um ex-travasamento dela, um desbordamento, umaultrapassagem de seus limites naturais, en-sejando fulminação tanto pela autoridadeadministrativa superior, de ofício ou sobprovocação, quanto pelo Judiciário, a ins-tâncias da parte titulada para insurgir-se”.

Assim, não sendo vislumbrada uma nor-ma (constitucional) explícita para tanto,conclui-se não ter o julgador administrati-vo competência para um controle de consti-tucionalidade anterior ao pronunciamentojudicial.

“O Executivo não pode descum-prir lei inconstitucional, e não pode

fazê-lo porque o Executivo não tempoder jurídico de expulsar norma dosistema. Ele pode expelir atos admi-nistrativos do sistema, mas não podeexpelir leis. O senhor de introduçãode uma lei no sistema é o Poder Legis-lativo. O senhor da retirada dessa leido sistema, por inválida, por incons-titucional, é o Poder Judiciário. O di-reito positivo estabelece os mecanis-mos e sistemas pelos quais uma nor-ma perde a sua força jurídica, não con-ferindo ao Executivo esta função doPoder Judiciário” (MELLO, p. 12-18).

Quem, ao contrário, vislumbra tal com-petência para o administrador fundamentasua proposição com o arrazoado de que aconstitucionalização da garantia de ampladefesa e contraditório no processo adminis-trativo teria, implicitamente, conferido acompetência para o amplo exame das ques-tões apresentadas no processo, o que, emconseqüência, incluiria o exame e a decisãoacerca da inconstitucionalidade de lei ouato normativo incidente39.

Contudo, garantir ampla defesa não im-plica instituir competência plena para to-das as questões da causa. Mesmo no pro-cesso judicial, a competência do juiz não é,necessariamente, ampla e irrestrita para co-nhecer todos os elementos da lide em tela.Nelson Nery (1997:381) deslinda a questão,afirmando que

“a lei fixa critérios que distribuem en-tre os diversos órgãos do Estado a ór-bita do poder jurisdicional de seusagentes, conferindo competência aoórgão estatal incumbido de exercer ajurisdição, nos exatos limites que tra-ça.... De sorte que se a natureza da cau-sa a ser decidida versar sobre temasrelativos a direito eleitoral, trabalhis-ta e militar, devem ser processadas ejulgadas, respectivamente, pela justi-ça eleitoral (CF, 118 e ss), trabalhista(CF 111 e ss) ou militar (CF, 122 e ss),denominadas justiças especiais. Se acausa não versar sobre esses temas,

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deverá ser julgada pela justiça comum,estadual ou federal”.

O Direito Positivo não permite a um su-jeito buscar tutela jurisdicional para, porexemplo, uma lide de natureza trabalhistaperante um juiz investido da jurisdição cí-vel comum, e nem por isso daí decorre a res-trição do direito ao contraditório e ampladefesa de tal indivíduo. Ao contrário, o sis-tema admite o indeferimento de plano dapetição inicial do autor que escolhe proce-dimento incompatível com a natureza dacausa40. O contraditório deve ser observadoem consonância com as peculiaridades doprocesso sobre o qual esteja sendo aplica-do, alcançando diferente incidência no pe-nal e no civil, bem como no processo admi-nistrativo (NERY JÚNIOR, 2001, p. 132).

Dessa forma, a ausência de competênciapara o administrador exercer controle deconstitucionalidade não implica cercea-mento de defesa no processo administrati-vo, mas tão-somente conforma tal funçãojulgadora aos limites legais do sistema, noqual não se vislumbra norma que valide essapretendida atribuição.

Deve ser destacado que a legislação, porvezes, impede a discussão porque veda, ex-pressamente, a análise da questão constitu-cional pelo agente administrativo. É o direi-to positivado, por exemplo, em Alagoas (LeiEstadual nº 4.418, de 27 de dezembro de1982, art. 125. Não se inclui na competênciados órgãos julgadores: I – a declaração de in-constitucionalidade;), Pernambuco (Lei Esta-dual nº 10.654, de 27 de novembro de 1991,art. 4º, § 10. A autoridade julgadora não poderáapreciar a ilegalidade ou a inconstitucionali-dade de qualquer ato normativo.), Sergipe(Decreto Estadual nº 15.072/1994, art. 4º.As decisões administrativas são incompeten-tes para: I – declarar a inconstitucionalidadeou ilegalidade de lei, decreto, portaria, ins-trução normativa, ou qualquer outro ato nor-mativo;) e Bahia (Decreto nº 7.629, de 9 dejulho 1999, art. 167. Não se incluem na com-petência dos órgãos julgadores: I – a declara-ção de inconstitucionalidade;).

Assim, na prática cotidiana da Adminis-tração Fazendária, o controle de constitucio-nalidade só pode ser feito se e como a legis-lação o expressar. Nesse sentido, avulta oregrante para o tema no âmbito federal, naLei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996:

Seção X – Dispositivo Declarado In-constitucional. Art. 77. Fica o Poder Exe-cutivo autorizado a disciplinar as hipóte-ses em que a administração tributária fe-deral, relativamente aos créditos tributá-rios baseados em dispositivo declaradoinconstitucional por decisão definitiva doSupremo Tribunal Federal, possa: I – abs-ter-se de constituí-los; II – retificar o seuvalor ou declará-los extintos, de ofício, quan-do houverem sido constituídos anterior-mente, ainda que inscritos em dívida ativa;III – formular desistência de ações de execu-ção fiscal já ajuizadas, bem como deixar deinterpor recursos de decisões judiciais.

Os agentes da Administração TributáriaFederal só têm competência para afastar aincidência de norma tributária após a especí-fica decisão definitiva do Supremo TribunalFederal acerca de sua inconstitucionalidade.

5. O Poder Executivo e a norma(considerada) inconstitucional

O Direito, como sistema, regula o modode produção e de eliminação de seus ele-mentos (normas) e uma norma deve ser ex-purgada do sistema por norma invalidanteque, para tanto, tem que ser válida. A partirde tal parâmetro, investiga-se a validade doato do Poder Executivo que imponha inefi-cácia à lei tida por ele inconstitucional, an-tes de manifestação judicial sobre o caso.

5.1. Afastamento de norma vigente peloPoder Executivo

Na Ordem Jurídica anterior, o SupremoTribunal Federal reconheceu a constitucio-nalidade de decreto do Chefe do Poder Exe-cutivo que determinava aos órgãos a ele su-bordinados que se abstivessem de executarlei tida por inconstitucional41. E tal decisão

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tem sido esteio para quem (e. g. BARROSO,1990, p. 395-396) supõe a competência doadministrador para afastar norma que con-sidera inconstitucional.

Contudo, diante do Direito Positivo ho-dierno, tal ato normativo não encontra res-paldo porque um decreto não subsiste comoautônomo: “só a lei inova em caráter inicialna ordem jurídica” (MELLO, 1998, p. 200).Ou seja, considerando a hierarquia entre asnormas no Sistema do Direito Positivo, é deconcluir-se não haver fundamento de vali-dade para um decreto que imponha ineficá-cia a lei vigente42. Se norma vem de norma,se o ordenamento jurídico é um conjuntoharmônico de normas e se uma norma sópertence ao sistema quando pode ser con-duzida à norma fundamental (IVO, 1998, p.165), tal decreto apresentar-se-ia43 inválidoporque sem substrato, já que ausente no sis-tema, norma que permita o controle de cons-titucionalidade pelo Executivo de tal formadivergente da Constituição Federal, arts. 66,§ 1º, e 103, I, V.

Admita-se que uma norma invalidantepossa ser veiculada por meio de medidaprovisória. Assim, haveria o alicerce jurídi-co para o Presidente da República44 editarmedida provisória revogando um ato nor-mativo (lei ou outra medida provisória) quereputasse inconstitucional. Contudo, a pre-tensão revogadora do Executivo não sub-sistiria por si só, dependendo da chancelado Poder Legislativo, que, a seu critério, po-deria ou não converter em lei tal medidaprovisória. Ao fim, a norma tida por incons-titucional seria revogada pela lei de conver-são e não pelo ato do Executivo, estandoinserida, portanto, na regra geral: revoga-ção da norma por norma posterior de igualhierarquia. Ademais, por expressa vedaçãoconstitucional, tal medida provisória nãopoderia tratar de matéria submetida à leicomplementar45, o que, de pronto, retira ofundamento de validade de uma supostamedida provisória que pretendesse revogarlei tributária46. De qualquer forma, insta re-lembrar que a Corte Suprema já negou tal

competência para o Chefe do Poder Execu-tivo, no julgamento da mencionada ADInnº 221.

5.2. Conseqüências da negação deeficácia à lei vigente pelo Executivo

5.2.1. Intervenção federal em Estado-membro

O Texto Constitucional47 estabelece comocausa de intervenção federal nos Estados-membros, o provimento para execução delei federal.

“Intervenção é antítese da autono-mia. Por ela afasta-se momentanea-mente a atuação autônoma do Esta-do, Distrito Federal ou Município quea tenha sofrido. Uma vez que a Cons-tituição assegura a essas entidades aautonomia como princípio básico daforma de Estado adotada, decorre daíque a intervenção é medida excepcio-nal, e só há de ocorrer nos casos nelataxativamente estabelecidos e indica-dos como exceção ao princípio da nãointervenção” (SILVA, 2001, p. 487).

Ou seja: o direito positivo admite o provi-mento à representação interventiva contrao Estado-membro no qual seja negada eficá-cia à lei vigente editada pelo CongressoNacional.

Relembrando-se que a competência paralegislar sobre direito tributário é concorren-te, cabe à União a edição de normas gerais48.

Apresentemos, então, uma hipótese in-serida nesse contexto normativo.

A Lei Complementar nº 87, de 13 de se-tembro de 1996 – norma geral sobre ICMS,positivada pelo Congresso Nacional, comvigor49 em todo território nacional –, em seuart. 3º determinou a não-incidência do tri-buto estadual sobre a exportação de produ-tos semi-elaborados, o que, para alguns,confrontaria a exceção do Enunciado Cons-titucional, art. 155, § 2º, X, a. Assim, admita-mos que um Governador, alegando a incons-titucionalidade dessa Lei Complementar50

– por afronta ao art. 151, III51 –, determinas-se o afastamento do dispositivo na análise

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de processo administrativo tributário pormeio de decreto, portaria, resolução (etc.).Partindo da argumentação comum aos quedefendem tal possibilidade (e. g. BINENBO-JM, 2001, p. 220), o julgador administrativo– atentando para o ato normativo governa-mental – negaria a não-incidência promo-vida pelo art. 3º e cobraria o tributo, apli-cando a lei estadual que determinava a co-brança de ICMS sobre a exportação de pro-duto semi-elaborado (situação jurídica pre-sente em todos os Estados-membros antesda vigência da referida Lei Complementar).

Diante de tal quadro, o Procurador-Ge-ral da República estaria autorizado a propora representação interventiva para execuçãoda mencionada Lei Complementar em facede tal Estado e o Superior Tribunal de Justiçateria fundamentos para deferir o pedido in-terventivo (Constituição Federal, art. 36, IV).

Se a intervenção – exceção à autonomiados Estados-membros – é sanção pela não-execução da lei, a interpretação sistemáticaleva à conclusão de ser juridicamente inváli-da a possibilidade de o Executivo negar cum-primento à lei antes de decisão judicial. Daíconcluir-se pela rejeição do sistema ao ato doExecutivo que negue eficácia à lei federal.

5.2.2. Responsabilização do agentepúblico

Questiona-se, também, a conclusão emi-tida pelos defensores do controle de consti-tucionalidade no processo administrativode que a posterior declaração jurisdicionalda constitucionalidade da norma afastadaimplicaria a responsabilidade do agentepúblico que o determinara – principalmen-te o Chefe do Executivo que o tenha mani-festado por meio de ato específico52.

Ora, responsabilização é imputada aquem praticou ilícito (político, administra-tivo, civil, penal): se o ato que afastou a nor-ma é permitido a tal agente público, não háfundamento para essa posterior responsa-bilidade. Ou o agente público é competentepara o controle de constitucionalidade (an-tes da respectiva decisão judicial) e pratica

um ato lícito, não incorrendo em qualquersanção, ou ele é incompetente e, por isso,posteriormente é responsabilizado pelo Ju-diciário (ou politicamente).

Outrossim, não pode ser ignorado que anão-aplicabilidade da lei tributária, prova-velmente, implicará desconstituição do cré-dito tributário em exame pelo julgador ad-ministrativo. E tal ato, em confronto com aLei de Responsabilidade Fiscal – arts. 11 e1453, pode ser caracterizado como atentadoà responsabilidade na gestão fiscal, na me-dida em que, sem decisão específica do Ju-diciário, o agente do Poder Executivo negaeficácia à lei que autorizou a cobrança dotributo na espécie.

5.2.3. Direito processual

Estabelecida a invalidez de decisão ad-ministrativa que, alegando exercer o controlede constitucionalidade, nega vigência à lei(ou ato normativo) antes de decisão judicialacerca da matéria, examinemos em tal con-texto a incidência de normas do processocivil em face da eficácia desse ato adminis-trativo.

Um contribuinte autuado apresenta im-pugnação ao auto de infração alegando in-constitucionalidade da exação. Dessa for-ma, a aceitação de tal argumento levará àimprocedência do auto de infração, sendo,por isso, desconstituído o crédito tributário.Nessa hipótese, não há qualquer interesseou utilidade54 para o contribuinte ir ao Judi-ciário confirmar tal decisão, já que não lhefoi cobrado o tributo exigido pela lei afasta-da: faltar-lhe-ia uma das condições da ação– interesse processual –, o que, de qualquerforma, impediria o julgamento de mérito55.

Se outro agente administrativo (o Secre-tário da Fazenda, um Corregedor Fazendá-rio, um Procurador da Fazenda etc.), enten-dendo que tal decisão é inválida, posterior-mente, for buscar sua anulação pelo Judiciá-rio, será possível vislumbrar a legitimidadeprocessual do Ente Público que, outrora,decidira pela inconstitucionalidade da nor-ma e, por isso, anulara o crédito tributário?

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O Estado, por sua Procuradoria, pretende adeclaração de nulidade ou a anulação, peloJudiciário, de ato do julgador administrati-vo – funcionário ou órgão de sua Secretariada Fazenda. Haveria legitimidade processu-al, já que o Procurador e o julgador são agen-tes dessa mesma pessoa jurídica requerente?

O problema deve ser examinado a partirde premissas distintas.

Se, nos termos da norma de regência doprocesso administrativo, a decadência nãofulminou o direito de revisão do ato admi-nistrativo, ele pode (deve!) ser revisto e sa-neado pela autoridade administrativa com-petente para tanto, já que a incompetênciado agente administrativo para declaraçãode inconstitucionalidade vicia a decisão doprocesso administrativo tributário. Nessecaso, a provocação do Poder Judiciário im-plica a renúncia ao exercício da autotutelapelos agentes administrativos, bem como afalta de interesse processual para a deman-da, já que a decisão judicial não seria im-prescindível à anulação do ato viciado,como já consagrado em Súmulas do Supre-mo Tribunal Federal56.

Mas, supondo que esteja configurada adecadência para o exercício da autotutela, oEstado precisaria recorrer ao Judiciário paraanular o ato administrativo praticado porseu agente. Em tal circunstância, conside-rando que a Processualística acerca da legi-timidade das partes indica que “para che-gar-se a ela, de um ponto de vista amplo egeral, não há um critério único, sendo ne-cessário pesquisá-la diante da situação con-creta em que se achar a parte em face da lidee do direito positivo” 57, impõe-se distinguirduas possibilidades.

Se o Estado ajuíza ação anulatória de atoadministrativo apontando como réu o seuagente ou o representante do órgão admi-nistrativo julgador, a ilegitimidade passivaestaria caracterizada já que tal sujeito, naqualidade de agente público, não tem per-sonalidade jurídica própria, agindo sempreem manifestação do próprio Estado, não res-pondendo individualmente (exceto quando

comprovado o dolo). Em tal situação, o pro-cesso seria extinto sem julgamento do méri-to pelo indeferimento da petição inicial oupela carência de ação58 em decorrência dailegitimidade passiva do agente público in-dicado, como visto, por exemplo, na deci-são do Tribunal Regional Federal QuintaRegião (Apelação Cível 3100. Processo:8905030394. UF: PE. Órgão Julgador: Segun-da Turma. Data da decisão: 12/12/1989.Documento: TRF500008176. Fonte DOE 05/04/1990. Relator(a) Juiz José Delgado): “oEnte Público é quem deve figurar no pólopassivo das demandas que visam descons-tituir atos praticados por seus agentes, jáque, não sendo eles titulares do patrimôniopúblico, não podem ser tidos como sujeitosprocessuais nas causas relativas aos atosadministrativos por eles praticados”.

De outra forma, o Estado poderia acio-nar o Judiciário em face do contribuinte be-neficiado, pleiteando a anulação ou decla-ração de nulidade do ato administrativo vi-ciado pela incompetência do julgador ad-ministrativo que declarou a inconstitucio-nalidade da norma que fundamentava aexação. Em sua contestação, o contribuintecertamente indicaria a discrepância de ati-tudes dos agentes públicos envolvidos nacircunstância, todos manifestando a “von-tade” de um único ente: o não-recolhimentodo tributo resultante da manifestação dojulgador administrativo que desconstituírao crédito tributário e a demanda judicial,como manifestação posterior de outro agen-te da mesma pessoa jurídica.

Se, por um lado, a incompetência vicia oato do julgador administrativo e, por isso,caracteriza-se o interesse processual do Es-tado, por outro ângulo, a admissão da legi-timidade processual ativa do Ente Público,em tal hipótese, confronta o entendimentoacerca dos órgãos estatais serem “simplespartições internas da pessoa cuja intimida-de estrutural integram, não tendo persona-lidade jurídica própria” (MELLO, 1998, p.85). Em tal circunstância, um grupo respei-tável de doutrinadores59 apontam a ilegiti-

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midade ativa do Ente Público. É certo, con-tudo, não haver ainda um consenso60 acer-ca da matéria.

Mas, não pode ser ignorada a regra bási-ca de que a nulidade não produz efeitos,não podendo o contribuinte ser desobriga-do da exação em decorrência de declaraçãode inconstitucionalidade da norma tributá-ria por agente incompetente para tanto. Porisso, estando configurada a decadência dodireito de revisão do ato administrativo pelaprópria Administração, admitir-se-ia a le-gitimação do Ente Público para pleitear aoJudiciário a declaração de nulidade da de-cisão proferida por agente incompetente,desde que seja ainda permitida a constitui-ção61 do crédito tributário outrora descons-tituído, já que, em caso contrário, inútil se-ria o provimento jurisdicional.

6. Conclusão

No panorama normativo atual, entende-se haver melhor conformação sistemática naconclusão da inexistência de atribuiçãopara o administrador exercer o controle deconstitucionalidade (posterior à vigência danorma) no processo administrativo tributá-rio, já que o Poder Executivo tem as prerro-gativas do veto e da legitimação processualpara o controle concentrado e, exercitando-as, atenta para seu dever constitucional deguardar a Constituição.

Conforme PALU (2001, p. 159),“a inconstitucionalidade é um víciodo plano da validade (relação de com-patibilidade com a Constituição), masa norma pode ser inconstitucional (in-válida em sua conformação intrínse-ca), mas vigente e eficaz (!). Não hácontradição alguma nisso, pois mui-tos atos legislativos podem ser inváli-dos no plano de sua compatibilidadecom o paradigma obrigatório (a Cons-tituição) e estar, ao mesmo tempo, vi-gendo e produzindo efeitos práticos.O ordenamento jurídico brasileiro épródigo em exemplos do que foi afir-

mado. Somente o poder investido dajurisdição poderá cassar os efeitospretéritos da norma, bem assim, suaeficácia presente e futura, sendo estaa razão pela qual os demais poderesda República devem cumprir as leis,ainda que se entenda, a priori, que sãoinconstitucionais”.

No Estado de Direito, não se pode deixarde obedecer, ou cumprir, comando do poderpúblico, alegando sua invalidade: é o princí-pio da presunção juris tantum da veracidadee legitimidade dos atos do Poder Público que,alfim, confere eficácia à norma inconstitucio-nal. Contudo, o convívio com a norma incons-titucional será temporário já que sua invali-dade poderá ser argüida judicialmente, pormeio da ação de declaração de inconstitucio-nalidade direta ou por via de exceção62.

O Poder Executivo poderia deixar de cum-prir lei, por entendê-la inconstitucional?

Não. A idéia de segurança jurídica faz osistema normativo absorver a norma incons-titucional, até que se processe a declaraçãooficial de sua inconstitucionalidade. A in-validade temporária é elemento que mantéma unidade e coerência lógica do sistema.

Notas

1 A permanência e a mudança da Constituição éverificada a partir de fenômenos sociais que atin-gem a efetividade da norma constitucional ao longodo tempo: a intangibilidade da Constituição, o sen-timento constitucional, a mutação constitucional eformas de mudança constitucional.

2 Efetividade designa a atuação prática da nor-ma, fazendo prevalecer, no mundo dos fatos, osvalores por ela tutelados. Ao ângulo subjetivo, efeti-va é a norma constitucional que enseja a concretiza-ção do direito que nela se consubstancia, propician-do o desfrute real do bem jurídico assegurado.”

3 “...é Pontes de Miranda quem alerta para atransformação de sentido, realizada pelo ser huma-no, que sofrem os textos legais ao passar do tempo:“Hoje, o artigo tal do Codigo não exprime, exacta-mente, o que, no anno passado, exprimia; porquenão diz elle o que está nas palavras, mas algo demutavel que as palavras quiseram dizer” (IVO,[1999?], p. 187-197).

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4 O autor relembra que Carl Schmitt descreveformas radicais de mudança (destruição e supres-são da Constituição) e mudanças parciais (refor-ma constitucional, quebra ou suspensão da Cons-tituição). ”As formas radicais da mudança consti-tucional acarretam a substituição, por destruiçãoou supressão da Constituição, das decisões políti-cas fundamentais (formas de Governo e de Estado,direitos fundamentais)”.

5 São apontados como traços marcantes do cons-titucionalismo “a organização do Estado e a limi-tação do poder estatal, por meio da previsão dedireitos e garantias fundamentais”.

6 A exceção de relevo aparece na França, onde oJudiciário tem atribuições restritas já que os atosadministrativos são julgados por um TribunalAdministrativo – com jurisdição específica – e ocontrole de constitucionalidade é feito antes da pro-mulgação das leis (já votadas) pelo Conselho deEstado (órgão político).

7 FERRAZ (1999, p. 280). “Embora ainda se te-nha presente a discussão sobre a compatibilizaçãodo controle de constitucionalidade com a teoriademocrática, ou, mais precisamente, sobre a legiti-midade do controle de constitucionalidade exerci-do sobre as leis por órgão estranho ao legislativo, ofato é que a adoção de sistemas de controle deconstitucionalidade permeia praticamente todos osestados constitucionais”.

8 A Constituição de 1937 (art. 96, parágrafoúnico) permitia ao Legislativo declarar a ineficáciada decisão judicial de inconstitucionalidade de lei,confrontando, assim, a interação harmônica entreos três Poderes – característica da República. Oautor noticia a contundente crítica elaborada porFrancisco Luiz da Silva Campos, que, partindo docaráter antidemocrático da jurisdição, justificava ainovação: “... O mecanismo do controle judicial,inventado pelos legistas americanos, correspondia,inteiramente, aos motivos, conscientes ou obscu-ros, que os inspiravam. O caráter dinâmico dasinstituições democráticas se achava coarctado poruma poderosa força de inibição, tanto mais pode-rosa quanto idealizada por uma hábil propagan-da, que conseguiu criar no público a convicção deque a peça teria por função proteger o povo contraos abusos do poder. A verdade, porém, é que omecanismo de controle judicial da constitucionali-dade das leis tinha por fim exclusivo a proteçãodos interesses criados ou da ordem de cousas esta-belecida contra as veleidades de iniciativa dos po-deres representativos no sentido de favorecer as as-pirações populares ou de alterar, na direção demo-crática, as relações de poder existentes no País aotempo da promulgação da Constituição.”

9 CARRAZZA, noticia a definição de Paulo deBarros Carvalho, “estatuto do contribuinte: direi-tos, garantias individuais em matéria tributária e

limitações constitucionais nas relações entre Fisco econtribuinte” (1998, p. 279).

10 A exemplo de BALERA; BOTALLO; MAR-TINS (1999); BARROS e VIDAL (2001).

11 “Fraude à Constituição: sem modificação dotexto constitucional, o intérprete constrói um senti-do proibido.”

12 Rege-nos a Carta de 1988 com a Emenda Cons-titucional nº 38, de 12/06/2002.

13 “No domínio do Direito, apenas a opiniãoautêntica, isto é, da autoridade instituída pela or-dem jurídica para estabelecer um fato, é decisiva”(IVO, [1999?], p. 195).

14 DJ DATA-22-10-93 PP-22251.15 Código de Processo Civil, art. 472. A sentença

faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, nãobeneficiando, nem prejudicando terceiros. Nas causas re-lativas ao estado de pessoa, se houverem sido citados noprocesso, em litisconsórcio necessário, todos os interessa-dos, a sentença produz coisa julgada em relação a terceiros.

16 “Norma invalida norma. Uma norma jurídi-ca, portanto, só pode ser invalidada por outra nor-ma. A norma que invalida uma outra norma pos-sui a mesma estrutura de toda norma, ou seja, aforma hipotética... A hipótese de incidência da nor-ma invalidante descreve como fato a norma invali-dada, delineada pelo motivo da invalidação, que éo defeito na sua formação... Na conseqüência ouprescritor estarão estabelecidos os efeitos...” (IVO,1998, p. 149-171).

17 Texto Constitucional, art. 52. Compete privati-vamente ao Senado Federal: X - suspender a execução, notodo ou em parte, de lei declarada inconstitucional pordecisão definitiva do Supremo Tribunal Federal.

18 “Sobrevindo a declaração de sua nulidade,esta declaração pode ter um efeito revogador e anorma sai do sistema, embora, por vezes, a decla-ração não tenha este efeito, havendo necessidadede uma norma revogadora, como é o caso de decla-ração de inconstitucionalidade em certos sistemas:a norma declarada inconstitucional pelo SupremoTribunal Federal tem sua eficácia suspensa pelo Sena-do e devendo ser revogada por ato da autoridadeque a promulgou”(FERRAZ JÚNIOR, 1991, p. 195).

19Art. 2° - Não se destinando à vigência temporária,a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue. § 1°- A lei posterior revoga a anterior quando expressamente odeclare, quando seja com ela incompatível ou quando re-gule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior....

20 “deixando de lado as questões puramenteideológicas, cabe averbar que, em um Estado dedireito, o intérprete maior das normas jurídicas detodos os graus e titular da competência de aplicá-las aos casos controvertidos é o Poder Judiciário”(BARROSO, 2001, P. 127).

21 Lei nº 9.868, art. 27. Ao declarar a inconstitucio-nalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razõesde segurança jurídica ou de excepcional interesse social,

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poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de doisterços de seus membros, restringir os efeitos daquela de-claração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seutrânsito em julgado ou de outro momento que venha aser fixado. Art. 28.... Parágrafo único. A declaração deconstitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusi-ve a interpretação conforme a Constituição e a declaraçãoparcial de inconstitucionalidade sem redução de texto,têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relaçãoaos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Públicafederal, estadual e municipal.

22 MARINONI (1999, p. 184) apresentando opensamento de Giovanni Verde.

23 Constituição Federal, art. 71.24 BARROS e VIDAL: “O processo não se en-

contra mais a serviço do Estado, antes representaverdadeiro instrumento de ação para os resguar-dos de direitos subjetivos” (2001).

25 Súmula STF 473.26 Equivalente à coisa julgada consagrada no

direito processual como a qualidade da sentençaque a torna imutável, conforme CINTRA, GRINO-VER, DINAMARCO (1997, p. 310).

27 “A necessidade de manutenção dessa confi-ança do administrado na legalidade dos atos ema-nados pelo Poder Público fornece a importância deum aspecto da segurança jurídica evidenciado napreservação de um ato, mesmo que originalmenteviciado de ilegalidade, preservação essa em respeitoà inércia daquele Poder” (ARANHA, 1997, p. 66).

28 Sacha Calmon Navarro Coelho: “... a decisãoadministrativa definitiva, contra a Fazenda Públi-ca, certa ou errada, constitucional ou não, extinguea obrigação tributária. Inexiste no Direito Brasileiroação anulatória de ato administrativo formalmen-te válido praticado pela Administração, sendo elaprópria autora” (MARTINS, 1999, p. 190).

28Art. 10. A Administração anulará seus atos invá-lidos, de ofício ou por provocação de pessoa interessada,salvo quando: I – ultrapassado o prazo de 10 (dez) anoscontado de sua produção; II – da irregularidade nãoresultar qualquer prejuízo; III – forem passíveis de con-validação.

29Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distin-ção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros eaos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dodireito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e àpropriedade, nos termos seguintes: II - ninguém seráobrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão emvirtude de lei; LIV - ninguém será privado da liberdadeou de seus bens sem o devido processo legal; Art. 150.Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contri-buinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Fede-ral e aos Municípios: I - exigir ou aumentar tributo semlei que o estabeleça;.

30Art. 23. É competência comum da União, dos Es-tados, do Distrito Federal e dos Municípios: I - zelar pelaguarda da Constituição, das leis e das instituições demo-

cráticas e conservar o patrimônio público; Art. 37. Aadministração pública direta e indireta de qualquer dosPoderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dosMunicípios obedecerá aos princípios de legalidade, im-pessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência...;

31 Código Tributário Nacional: Art. 142 - Compe-te privativamente à autoridade administrativa consti-tuir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendi-do o procedimento administrativo tendente a verificar aocorrência do fato gerador da obrigação correspondente,determinar a matéria tributável, calcular o montante dotributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso,propor a aplicação da penalidade cabível. Parágrafo úni-co. A atividade administrativa de lançamento é vincula-da e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional.

32 Constituição do Estado de Pernambuco, art.247. Os órgãos julgadores administrativos, com organi-zação e funcionamento disciplinados em lei, serão inte-grados por titulares de cargos de provimento efetivo,estruturados em carreira, nomeados entre bacharéis emdireito, aprovados em concurso público de provas e Títu-los. Parágrafo Único. Nos órgãos julgadores constituí-dos sob a forma colegiada é assegurada a participação derepresentação classista, nos termos previstos na lei.

33 Conforme o Código de Processo Civil, art. 134,I, II.

34 Na mencionada Secretaria da Fazenda existeum Órgão Especial denominado Contencioso Ad-ministrativo Tributário do Estado (CATE), ondeestão lotados os Julgadores Tributários e inserido oTribunal Administrativo de Tributos Estaduais(TATE).

35 “... a função administrativa se subordina àlegislativa não apenas porque a lei pode estabelecerproibições e vedações à Administração, mas tam-bém porque esta só pode fazer aquilo que a leiantecipadamente autoriza”(MELLO, 1998, p. 60).

36 Em Alagoas. No Paraná: Conselho de Contri-buintes e Recursos Fiscais. Em Mato Grosso do Sul:Conselho de Recursos Fiscais.

37 Em Pernambuco. Em São Paulo: Tribunal deImpostos e Taxas.

38 “A competência resulta da lei e é por ela deli-mitada. Todo ato emanado de agente incompeten-te, ou realizado além do limite de que dispõe aautoridade incumbida de sua prática, é inválido,por lhe faltar um elemento básico de sua perfeição,qual seja o poder jurídico para manifestar a vonta-de da Administração. Daí, a oportuna advertênciade Caio Tácito de que ‘não é competente quem quer,mas quem pode segundo a norma de Direito”’(MEIRELLES, 1993, p. 134).

39 Conforme, por exemplo, MARTINS (1999, p.72): “Se a ampla defesa é assegurada no processoadministrativo, não pode a autoridade adminis-trativa negar-se a discutir matéria constitucional,visto que reduziria a defesa do contribuinte, quedeixaria de ser “ampla” no processo administrati-

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vo”. No mesmo sentido, BARROS e VIDAL (2001).40 Código de Processo Civil, art. 295. A petição

inicial será indeferida... V - quando o tipo de procedimen-to, escolhido pelo autor, não corresponder à natureza dacausa, ou ao valor da ação; caso em que só não será indefe-rida, se puder adaptar-se ao tipo de procedimento legal;

41 Representação nº 980-SP, DJ 19/09/1980.EMENTA: É constitucional decreto de Chefe doPoder Executivo Estadual que determina aos ór-gãos a ele subordinados que se abstenham da prá-tica de atos que impliquem a execução de disposi-tivos legais vetados por falta de iniciativa exclusi-va do Poder Executivo.

42A autorização para o Presidente da Repúblicaeditar decreto autônomo – Emenda Constitucionalnº 32, de 11 de setembro de 2001 – é relativa, tão-somente, às matérias de sua iniciativa legislativaexclusiva: específicas atribuições e estruturação in-ternas dos Ministérios e órgãos da AdministraçãoPública Federal.

43 “A validade de qualquer norma jurídica não seconstitui num atributo que possamos deduzir intrinse-camente, ou seja, as normas jurídicas não são válidasem si: dependem do relacionamento da norma com asdemais normas do contexto” (IVO, 1998, p. 161).

44 E Governador do Estado em que a respectivaConstituição Estadual autorize a edição de medi-da provisória estadual, hipótese que tem sido ques-tionada por ser uma ampliação (analógica) da com-petência estabelecida pela Constituição Federal ape-nas para o Presidente da República.

45 Constituição Federal, art. 62. § 1º É vedada aedição de medidas provisórias sobre matéria: III – reser-vada a lei complementar;

46Art. 146. Cabe à lei complementar: b) obrigação,lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários;

47Art. 34. A União não intervirá nos Estados nemno Distrito Federal, exceto para: VI - prover a execuçãode lei federal, ordem ou decisão judicial;

48 CF, art. 24. Compete à União, aos Estados e aoDistrito Federal legislar concorrentemente sobre: I - di-reito tributário, financeiro, penitenciário, econômico eurbanístico;... § 1º - No âmbito da legislação concorren-te, a competência da União limitar-se-á a estabelecer nor-mas gerais. § 2º - A competência da União para legislarsobre normas gerais não exclui a competência suplemen-tar dos Estados. § 3º - Inexistindo lei federal sobre nor-mas gerais, os Estados exercerão a competência legislati-va plena, para atender a suas peculiaridades. § 4º - Asuperveniência de lei federal sobre normas gerais suspen-de a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário.

49 “O vigor, contudo, não se confunde nem coma vigência nem com a validade. Que uma normatem vigor, tem força, significa que ela é vinculante,ou seja, não há como subtrair-se ao seu comando,ao seu império”(FERRAZ JÚNIOR, 1991, p. 180).

50 A lei complementar mencionada foi examina-da pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento

da ADIn nº 1600, sendo diversa a matéria litigiosa.51 Art. 151. É vedado à União:... III - instituir isen-

ções de tributos da competência dos Estados, do DistritoFederal ou dos Municípios.

52 O Min. Humberto Gomes de Barros, no REspnº 23.121-1-GO, cita Ronaldo Poletti, Controle daConstitucionalidade das Leis: “... o Poder Executi-vo, também interessado no cumprimento da Cons-tituição, goza da faculdade de não executá-la, sub-metendo-se aos riscos daí decorrentes, inclusive odo impeachment. Quem for prejudicado pode so-correr-se dos remédios judiciais aos seu alcance.Recusando cumprimento a lei havida como incons-titucional, o chefe do Poder Executivo se coloca naposição do particular que se recusa, a seu risco, aobedecer à lei, aguardando as ações e medidas dequem tiver interesse no cumprimento dela....”

No mesmo sentido, BINENBOJM (2001, p. 220-221): “a decisão da Chefia do Poder Executivo es-tará sempre sujeita a ulterior reexame pelo PoderJudiciário, o que poderá dar-se tanto em sede decontrole concreto, como no âmbito da fiscalizaçãoabstrata. À Administração Pública caberá alegarem sua defesa que o descumprimento da lei deveu-se à sua incompatibilidade com a Constituição. Casoo argumento seja acolhido, a conduta da Adminis-tração estará sendo, a fortiori, validada pelo PoderJudiciário. Proclamada ao revés, a constitucionali-dade da lei até então enjeitada, fica o Chefe doExecutivo à mercê dos procedimentos constitucio-nais e legais tendentes à sua responsabilização po-lítico-administrativa. Com efeito, ao optar por sim-plesmente negar aplicação à lei, ao invés de ajuizaruma ação direta de inconstitucionalidade – casocabível – o agente político o faz por sua conta erisco, submetendo-se aos ônus daí decorrentes”.

53 Lei de Responsabilidade Fiscal – Lei Comple-mentar nº 101, art. 11. Constituem requisitos essenciaisda responsabilidade na gestão fiscal a instituição, previ-são e efetiva arrecadação de todos os tributos da compe-tência constitucional do ente da Federação. Art 14. Aconcessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natu-reza tributária da qual decorra renúncia de receita deveráestar acompanhada de estimativa do impacto orçamen-tário-financeiro no exercício em que deva iniciar sua vi-gência e nos dois seguintes, atender ao disposto na lei dediretrizes orçamentárias e a pelo menos uma das seguin-tes condições: I - demonstração pelo proponente de que arenúncia foi considerada na estimativa de receita da leiorçamentária, na forma do art. 12, e de que não afetará asmetas de resultados fiscais previstas no anexo próprio dalei de diretrizes orçamentárias; II - estar acompanhada demedidas de compensação, no período mencionado no ‘ca-put’, por meio do aumento de receita, proveniente da ele-vação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majora-ção ou criação de tributo ou contribuição. § 1º A renúnciacompreende anistia, remissão, subsídio, crédito presumi-do, concessão de isenção em caráter não geral, alteração de

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alíquota ou modificação de base de cálculo que impliqueredução discriminada de tributos ou condições, e outrosbenefícios que correspondam a tratamento diferenciado.

54Admitindo-se a acepção de interesse proces-sual como a necessidade/utilidade da decisão ju-dicial para garantia de bem ilegitimamente amea-çado ou subtraído por outrem, causando um pre-juízo ao requerente da medida jurisdicional.

55 CPC, art. 267. Extingue-se o processo, sem julga-mento do mérito:... Vl - quando não concorrer qualquerdas condições da ação, como a possibilidade jurídica, alegitimidade das partes e o interesse processual,

56 Súmula 346. A Administração Pública podedeclarar a nulidade dos seus próprios atos. Súmula473. A Administração pode anular seus próprios atos,quando eivados de vícios que os tornam ilegais, por-que deles não se originam direitos; ou revogá-los, pormotivo de conveniência ou oportunidade, respeitadosos direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os caso,a apreciação judicial.

57 THEODORO JÚNIOR (1996, p. 57). Confiratambém ARAGÃO (1998, p. 399).

58 Código de Processo Civil, art. 267. Extingue-seo processo, sem julgamento do mérito: I - quando o juizindeferir a petição inicial; Vl - quando não concorrer qual-quer das condições da ação, como a possibilidade jurídica,a legitimidade das partes e o interesse processual; Art.295. A petição inicial será indeferida: II - quando a partefor manifestamente ilegítima;

59 MARTINS (1999), p. 76, Ives Gandra da SilvaMartins; p. 154, Hugo de Brito Machado; p. 177,Ricardo Lobo Torres, p. 190, Sacha Calmon Navar-ro Coelho, entre outros.

60 BARROS e VIDAL (2001); MARTINS (1999), p.357 Yoshiaki Ichihara; p. 551 Fernando Facury Scaff.

61 Código Tributário Nacional, art. 173.62 DINIZ (2001, p. 154-155), com fundamento

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Manoel Moacir Costa Macêdo e LevonYeganiantz

É mais fácil legalizar certas coisas doque legitimá-las – Nicolau Chamfort

(1768-1848) (moralista francês) 1.

1. Considerações preliminares

Este trabalho foi inspirado no Código daÉtica e Disciplina da Ordem dos Advoga-dos do Brasil que entrou em vigor em 1º demarço de 1995. O seu objetivo é justificar anecessidade de fortalecer a ética, particular-mente a ética profissional como instrumen-to de convergência entre a legalidade e a le-gitimidade. Ele pretende responder a seguin-te questão: existe coesão entre legalidade,legitimidade, eqüidade e ética?

Ética na advocacia não deve ser confun-dida com ética de direito, uma vez que a éti-ca na advocacia tem caráter de um códigoprofissional ou um sentido de etiqueta a serseguida pelos praticantes da profissão deadvogado. A ética do direito é parte da filo-sofia do direito, da sociologia do direito eda deontologia (DINIZ, 1998, p. 81).

Sociologia no direitoA convergência entre a legalidade, a legitimidade e aética

Manoel Moacir Costa Macêdo é Advogado,PhD em Sociologia pela University of Sussex,Inglaterra e Assessor do Gabinete do SenadorAntero Paes de Barros.

Levon Yeganiantz é PhD em Economia, Pós-doutorado em Economia do Meio Ambiente ePesquisador da Embrapa, Brasília, DF.

Sumário

1. Considerações preliminares. 2. O papelda sociologia do direito. 3. Autonomia e hete-ronomia. 4. Dilemas entre legalidade e legiti-midade. 5. Ética do direito, legalidade e legiti-midade. 6. A convergência entre legalidade elegitimidade. 7. Observações finais.

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Entre as inovações mais significativas nocódigo em destaque, vale ressaltar as refe-rências expressas quanto ao papel do advo-gado na defesa do Estado Democrático deDireito, da cidadania e da moralidade pú-blica (art. 2º, caput), à dedicação que deveoferecer à conciliação entre os litigantes, àabstenção da prática de atos contrários à éti-ca, à moral, à honestidade e à dignidade dapessoa humana (ACQUAVIVA, 1995, p. 3).

Um destacado problema de nossa civili-zação é o desenvolvimento desigual entreos diferentes ramos do conhecimento. Comouma conseqüência, o direito progrediu eavançou muito mais do que a filosofia mo-ral. Para cada estudioso da ética, existemcentenas de advogados militantes que pra-ticam os princípios da legalidade. Esse de-sequilíbrio entre os estudiosos da ética e osoperadores do direito cria uma assimetriade informações entre legalidade e legitimi-dade e coloca a legalidade como um meca-nismo de controle e de domínio da legitimi-dade. Essa assimetria aparece com maiornitidez no contexto do ordenamento jurídi-co positivado. A legitimidade está mais re-lacionada com a ética, a cultura e a realida-de social.

Embora o desafio da humanidade sejacriar uma sociedade em que as normas éti-cas tenham a força de lei, essas mesmas nor-mas são desprezadas com mais intensida-de do que as leis no contexto normativo edogmático do direito positivo. Nesse senti-do, o interesse tradicionalmente estabeleci-do no campo do direito positivo está sendosubstituído ou complementado por discipli-nas baseadas na deontologia como a éticaempresarial, jurídica, ambiental e bioética eprincipalmente na sociologia do direito.

Predomina também uma assimetria emtermos da eqüidade entre os ricos e pobres,uma vez que a legalidade envolve o proces-so judicial, com os custos financeiros daprestação jurisdicional, o que resulta emmultas e sanções que atingem com maiorintensidade os pobres2. Essa assimetria de-saparece quando a prestação jurisdicional

é determinada pelos princípios da legitimi-dade em que mesmo para os ricos existe oconceito noblesse oblige.

Como exemplo, no caso do Brasil, RO-SEN (1998, p. 17) explica que o chamado“jeitinho” brasileiro tem a sua origem naformação do Estado português, que moldouo sistema jurídico brasileiro. Para ele cincocaracterísticas culturais foram legadas pe-los portugueses: alta tolerância da corrup-ção, falta de responsabilidade cívica, pro-funda desigualdade sócio-econômica, sen-timentalismo e disposição de chegar a umacordo. O “jeitinho” está profundamentearraigado a todas essas heranças.

2. O papel da sociologia do direito

A sociologia do direito trata o direitocomo uma realidade objetiva vivida social-mente, e que tem como objeto o fenômenojurídico identificado como um fato social.Isso quer dizer que o direito legitima-se, noseu exercício e nos seus efeitos, como umfenômeno social (LÉVY-BRUHL, 1997) edesse modo torna-se um terreno privilegia-do de observação sociológica.

O fundamental no desafio da sociologiado direito segundo FARIA (1988, p. 7) estána seguinte questão:

“ ... até que ponto será oportuno esti-mular os estudiosos de direito a dei-xarem sua zona de certeza tradicio-nal, representada pelas análises ex-clusivamente dogmáticas [legalida-de], para integrarem-se em aborda-gens sociologicamente mais abran-gentes da realidade em que atuam?”.

Os conflitos entre legalidade e legitimi-dade, uma vez bem compreendidos, estimu-lam a renovação de leis, orientam as pes-quisas jurídicas, servem como lubrificantesda política econômica e social e facilitam aimplementação de novas tecnologias, comoinformática, biotecnologia, engenharia so-cial e a democratização da sociedade. Nes-se contexto, a sociologia do direito tem deser interpretada além do direito escrito, mas

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na forma do direito pensado, como a ade-quação das normas à realidade atual (legi-timidade).

Como exemplo, tem-se as funções pre-ventivas do direito com respeito ao apareci-mento de crimes virtuais, da exploração in-devida da biotecnologia e engenharia gené-tica, das novas relações de trabalho, regula-mentações do comércio, direitos de proprie-dade intelectual, as implicações dos acor-dos internacionais, a exemplo dos relacio-nados com os direitos humanos, com a ex-ploração de menores e com os problemas degênero, que podem ser tratados de formaproativa pelo sistema jurídico.

Nesses casos, a ética pode servir comoum filtro entre a legalidade e a legitimidade.Segundo VASQUEZ (1984, p. 57), as

“ ... normas morais que se integraramnos hábitos e costumes chegam a tertal força que sobrevivem até mesmoquando, depois de surgir uma novaestrutura social, domina outra moral:a mais adequada às novas condiçõese necessidades”.

A moral como a legitimidade possui umcaráter social, isso quer dizer que as pesso-as se submetem a princípios, normas e valo-res socialmente estabelecidos. Em outros ter-mos, a moral como a legitimidade regulamatos e relações que acarretam conseqüênciaspara outros e exigem necessariamente a san-ção dos demais no sentido de cumprir a fun-ção social de induzir os indivíduos a acei-tarem livre e conscientemente determinadosprincípios, valores ou interesses.

O que se observa neste final de séculoem face da globalização é a verdadeira des-truição do aparelho estatal e sua gradualperda ou a substituição de legitimidade pelalegalidade, prejudicando dessa forma tantoos critérios éticos quanto a justiça no con-ceito de John Rawls, para quem

“ ... o objeto primário da justiça é aestrutura básica da sociedade, oumais exatamente, a maneira pela qualas instituições sociais mais importan-tes distribuem direitos e deveres fun-

damentais e determinam a divisão devantagens, provenientes da coopera-ção social” (RAWLS, 1997, p. 7).

No Brasil, o Estado moderno desenvol-vimentista tornou-se submisso ao patrimo-nialismo e ao clientelismo, gerando em con-seqüência o patrimonialismo corporativo,sempre acompanhado pelo clientelismo epelo cartorialismo. Segundo CAMARGO(1999, p. 5), aqui “as leis não pegam, ou de-vem pegar à fórceps, como a que obriga oscartórios a oferecer certidões de graça a re-cém-nascidos”. Para SORJ (2000, p. 15), issosignifica o patrimonialismo jurídico, ou seja,“é a capacidade de manipular o sistemapolicial, fiscal e judiciário, utilizando me-canismos ilegais para assegurar a impuni-dade face à lei”.

Isso implica afirmar que, em vez de con-viver com princípios éticos e morais, é maisconveniente conviver com o mundo das leis,o que na visão de CAMARGO (1999, p. 5)significa “... disfarçar a verdadeira dimen-são do engodo”. Nesta perspectiva, CA-MARGO (1999, p. 7) afirma que,

“ ... a única solução para tudo isto édesregulamentar a nação sob a tutelade um amplo e sufocante aparato le-gal que nos persegue desde a Colô-nia. Só regulamentar o estritamentenecessário para o bem público. Comou sem Constituição, o cartorialismodos colonizadores portugueses aindamanda em todos nós, com a teia doclientelismo”.

O que se observa é que a sociologia noTerceiro Mundo (inclusive a sociologia dodireito) muitas vezes foi direcionada para achamada sociologia radical que explora anatureza da desigualdade e admite a possi-bilidade de abolir a desigualdade e descre-ver os instrumentos necessários para imple-mentar uma ordem social mais igualitária.A busca da eqüidade é somente uma partedo impulso radical e constitui a investiga-ção da capacidade da sociedade, da manei-ra como está atualmente organizada, emproporcionar eqüidade.

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3. Autonomia e heteronomia

Autonomia origina-se do grego autós =eu e nomos = lei; isso quer dizer a capacidadehumana de agir de acordo com a sua pró-pria vontade por meio de escolhas que es-tão ao seu alcance, diante de objetivos porela estabelecidos. Com o passar do tempo, aautonomia se afasta da lei e da legalidade eaproxima-se da legitimidade e do compor-tamento ético, enquanto a legalidade seaproxima da heteronomia, que quer dizer aobediência sem crítica às regras de condutasugeridas por uma autoridade exterior.

Para BETIOLI (2000, p. 57, 64), o direito é“heterônomo”e a moral, “autônoma”. Issosignifica dizer que “as normas jurídicas sãoimpostas, valem objetivamente, independen-temente da opinião do querer dos seus des-tinatários ... obriga os indivíduos indepen-dente de suas vontades”.

Autonomia significa a capacidade dedecidir por si mesmo nas questões que di-zem respeito a si próprio, como indivíduo.Do ponto de vista da ética, significa o modode agir segundo os princípios morais consi-derados como guias básicos para a convi-vência em sociedade. Nesse sentido, a legi-timidade tem significado mais ético e cono-tação moral particularmente fora do contex-to do direito, como definida no Vocabuláriojurídico De Plácido e SILVA (1999, p. 480):

“Nas ciências políticas, a legitimi-dade do ato ou do agente refere-se ànecessária qualidade para tornar vá-lida a sua atuação em face dos demaiscidadãos. Na Constituição Federal de1988, o artigo 70 atribui ao Tribunalde Contas o poder de perquirir a le-gitimidade das despesas públicas, istoé perquirir se o ato atende aos requisi-tos de satisfação do interesse público”.

Nessa perspectiva, a “legítima defesa”,no plano da autonomia, não é do indivíduo,mas da sociedade em sentido amplo, comrepulsa levada a efeito pela pessoa; nessecaso, refere-se ao ataque injusto à socieda-de, a seu corpo ou seus bens. De acordo com

BETIOLI (2000, p. 64), isso “implica a con-vicção de que se deve respeitá-la porque éválida em si mesma... as normas morais secumprem através da convicção íntima dosindivíduos... ”. Na terminologia do direitopenal, manifesta-se igualmente a repulsa daforça pela força, diante do perigo apresen-tado pela injusta agressão, atual e iminente,quando outro meio não se apresenta paraevitar o perigo ou a ofensa que dela possaresultar. Legal entende-se, a rigor, o que sefaz em conformidade à lei segundo preceitoou regra instituída em lei. Também se enten-de por legal tudo o que se possa fazer ou tudoo que é autorizado pela jurisprudência.

4. Dilemas entre legalidade elegitimidade

Legal, pois, em ampla acepção é tudo oque não contravém a princípio de Direito,seja instituído pela lei, pelo costume ou pelajurisprudência. Por vezes, legalidade querexprimir as próprias ou principalmente asformalidades legais.

O legítimo na ciência política refere-seao poder que está de acordo com o consensopopular. Na lógica jurídica, legitimidadequer dizer coerência lógica, o que está deacordo com princípios lógicos ou racio-nais. É a racionalidade jurídica (DINIZ,1998, p. 81).

Na teoria geral do direito, a legitimidadetécnica refere-se à qualidade da norma ile-gal que, apesar de não ter requisito formalde vigência, é aceita pela comunidade, ten-do plena eficácia social por atender os inte-resses da comunidade (DINIZ, 1998, p. 81).

Na linguagem comum, o termo legitimi-dade possui dois significados, um genéricoe outro específico. No seu significado gené-rico, legitimidade tem, aproximadamente, osentido de justiça ou de racionalidade (fala-se na legitimidade de uma decisão, de umaatitude, entre outros). Entretanto é no senti-do da linguagem política que aparece o sig-nificado específico. Nesse contexto, o Esta-do é o ente a que mais se refere o conceito de

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legitimidade (BOBBIO et al., 1992, p. 675).No Dicionário enciclopédico de teoria e de

sociologia do direito, André - Jean ARNAUD(1999, p. 456), o seu organizador, define le-galismo como a “disposição que consiste emtratar os problemas jurídicos, ou outros,aplicando literalmente e em detalhe os mé-todos e os critérios definidos pela lei, à ex-clusão de toda consideração de ordem maisgeral”. O mesmo dicionário define legitimi-dade como “qualidade de conformidade aocritério normativo que fixa os parâmetrosde valorização do objeto que ele regula e emrelação ao qual prediz-se, ou não, a legiti-midade” (p. 460).

Por fim, é necessário separar o fenôme-no da legitimação e considerar como legíti-mo, justo, digno de um julgamento positivotodo poder que tenha conseguido, por qual-quer meio que seja, obter o consentimento ea legitimidade.

O principal dilema ético relacionado coma dialética ou com a dicotomia da legalida-de e legitimidade aparece com o conceito delegalidade resumido como: “a cada qualsegundo o que a lei lhe atribui” indicandoas regras estabelecidas, enquanto a legiti-midade pode ser interpretada de duas for-mas: primeiro “a cada um segundo a suanecessidade” e segundo a “cada um segun-do os seus méritos”.

A legitimidade envolve responsabilidaderecíproca, enquanto a legalidade envolve dí-vidas contratualizadas entre as partes compossíveis coerções. O direito positivo (lega-lidade) jamais pode conflitar com a justiçaformal; o mesmo não se aplica para a legiti-midade que tem conotação subjetiva (nor-mativa).

5. Ética do direito, legalidade elegitimidade

A cultura brasileira pode ser caracteri-zada pelo dilema ético entre “tudo bem” e“tudo mau”. Assim, normalmente no contex-to político-partidário, a situação e os seusaliados partem do pressuposto otimista de

que “tudo bem” e as melhorias devem acon-tecer lentamente e de forma incremental. Aocontrário da oposição, que pressupõe “tudomau” e deseja introduzir mudanças subs-tantivas e aceleradas. Assim, o dilema éticopode ser contextualizado entre a legalidadeexercida pela situação e a legitimidade dese-jada pela oposição.

Essa legitimidade normalmente é justifi-cada pela problemática da eqüidade apoia-da na ética, que constitui o conceito de justi-ça de John RAWLS (1997, p. 11), ou seja, a“... justiça se define pela atuação de seusprincípios nas atribuições de direitos e de-veres e na definição da divisão apropriadade vantagens sociais”.

A inveja, o individualismo e o egoísmopodem ser considerados conceitos relacio-nados à manutenção da legalidade, enquan-to a cooperação, a solidariedade, o altruís-mo e a filantropia estão associados com as-pirações de legitimidade. A norma corres-ponde a uma regra ou critério de juízo, elaregula e assim faz parte da legitimação.

A lei é uma regra dotada de força quegarante a sua coercibilidade. A transgres-são de uma lei pode causar punição na for-ma de multas, exclusões e até na detenção ereclusão dos seus infratores. As normas for-mam códigos de conduta que regulam ocomportamento ético. As leis formam códi-gos objetivos que penalizam os seus trans-gressores. A “Justiça Rawliana” (RAWLS,1997) tenta evitar as “divergências” e con-duzir às “convergências” entre leis e nor-mas; e em nível mais avançado entre legali-dade e legitimidade.

O conflito ético entre legalidade e legiti-midade pode ser analisado a partir do con-ceito de “jeitinho brasileiro”. Nesse caso,tem-se a aplicação particular da lei, objeti-vando atender os interesses particulares depessoas e organizações com capacidade deencontrar brechas no sistema jurídico. Par-te-se sempre do pressuposto de que é possí-vel burlar a lei e fazer exceções. Na maioriadas vezes, o “jeitinho brasileiro”, além deestar no campo da legalidade, é também legí-

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timo, dentro do contexto da cultura e dastradições históricas da sociedade brasileira(ROSEN, 1998).

A ética moderna tem sido consideradauma ética legal. Um extenso debate no cam-po teórico tem envolvido os filósofos anti-gos como Kant e os modernos como MacIn-tyre. Os comunitaristas modernos comoJohn Rawls argumentam que o único modode compreender o comportamento huma-no é referir os indivíduos ao seu contextosocial, cultural e histórico.

A moral republicana era uma moral dodever, do esforço, do mérito, para que cadacriança pudesse se elevar ao nível das nor-mas comuns, à humanidade, superior aosindivíduos considerados isoladamente. Elaestá sendo atacada por uma ética da auten-ticidade segundo a qual cada indivíduo épara si mesmo sua própria norma. Do direi-to à diferença, à diferença dos direitos é sóum passo (CHANGEUX, 1999, p. 31).

Em outras palavras, isso quer dizer queexiste um ethos que é anterior ao indivíduo eque determina suas escolhas. Nesses ter-mos, a ética do direito é reduzida à justifica-ção de regras e esquece-se das condições daboa vida, ou ainda separam-se os proble-mas de justificação da moralidade dos pro-blemas da ética aplicada, da bioética, e daética ecológica.

Na sociedade tradicional, havia uma“moral de grupo” que controlava as rela-ções intragrupais, as quais se baseavam nocompanheirismo e até mesmo na solidarie-dade. Havia ainda outra moral referente aosestranhos baseada no “afã pelo lucro”, aqual não considerava os dilemas éticos.Assim, na base dos problemas éticos está acrença de que não é possível uma convivên-cia social sem o mínimo de solidariedadecom os outros.

Nessa perspectiva, a sobrevivência deum indivíduo depende da sobrevivência dogrupo ao qual ele pertence, uma vez que osimpulsos egoístas são freqüentemente maisfortes do que os altruístas. “Ação comunitá-ria é fundamentalmente uma forma de coo-

peração” (LUCAS, 1985, p. 58). Essa é a es-sência dos dilemas éticos nas sociedadesque elaboram normas, códigos e leis moraispara regular e solucionar tais dilemas.

Kant distingue a moralidade da legali-dade. Para ele, legalidade é a conformaçãoexterior e objetiva de uma conduta a umadada lei moral; a moralidade é a conforma-ção interior e subjetiva, ou seja, traduz umcumprimento da lei por convicção pessoal epor reconhecimento interior do valor objeti-vo da lei (BIROU, 1982, p. 227).

Legalidade significa qualidade do quese conforma à lei. Considera-se legal tudo oque não vá contra uma lei estabelecida, tudoo que não constitua uma infração à legisla-ção. A noção de legalidade refere-se ao di-reito positivo.

No contexto neoliberal, a liberdade in-clui o descompromisso em relação aos de-mais membros da sociedade. Isso quer di-zer a aceitação das atitudes egoístas, a li-berdade de concentrar-se nos interesses in-dividuais, inclusive a acumulação ilimita-da de riqueza pessoal na esfera da legalida-de. Mas o que vem a ser responsabilidadesocial, o “economicamente correto”, o “lu-cro com ética”? Decisões empresariais in-formadas pelo balanço dos interesses dosstakeholders e consubstanciadas no chama-do “balanço social” das empresas. Na fren-te interna das empresas, equacionam-se osinvestimentos dos proprietários (detentoresdo capital) e as necessidades dos gestores edos trabalhadores. Na frente externa, sãolevadas em consideração as expectativasdos clientes, fornecedores, prestadores deserviços, fontes de financiamentos (bancos,credores), comunidade local, concorren-tes, sindicato de trabalhadores, autorida-des governamentais, associações volun-tárias e demais entidades da sociedadecivil (SROUR, 2000, p. 195).

A preocupação mundial com as questõesmorais nos anos 60 movimentou três seto-res essenciais: a ética dos negócios, a éti-ca ambiental e a bioética (GARRAFA,1999, p. 13). Segundo JONAS, citado por

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GARRAFA (1999, p. 14), “nos dias atuais,freqüentemente sentimos que o progressointelectual (científico e tecnológico) avançamais rapidamente que o progresso moral(ético)”. O mesmo autor, estudando os pro-blemas e contradições existentes, afirma quea humanidade encontra-se obrigada a ad-mitir que a racionalidade ética não cami-nha com a mesma velocidade do progressocientífico e tecnológico (1999, p. 15).

Nessa perspectiva, a propriedade inte-lectual apresenta-se como causadora demuitos dilemas éticos. Existe de um lado umdilema entre a criação e difusão de novastecnologias com impactos sociais relevan-tes e do outro os interesses particularesdo inventor e dos incentivos à sua pró-pria criatividade.

Para MERTON (1968), no contexto deuma visão funcionalista, os cientistas noprocesso de geração do conhecimento cien-tífico seguem os princípios identificadoscomo: universalismo, comunismo, desinte-resse e ceticismo organizado. Entre eles, des-taca-se o comunismo na ciência, identifica-do como o senso de propriedade comum doconhecimento científico. Os cientistas ofe-recem as suas descobertas para a sociedadebuscando o retorno em forma de reconheci-mento pela comunidade científica. Convémdestacar o ceticismo organizado, o qual in-dica a independência dos cientistas em re-lação à política, à religião e aos dogmas eco-nômicos.

Outra dimensão desse dilema ético é queas patentes incentivam, além do próprio in-ventor, os proprietários dos meios de pro-dução a investir no desenvolvimento denovas tecnologias, assim como pressionamos governos para atender os seus interessesno contexto da geração tecnológica. Dile-mas éticos também surgem do fato de que aspatentes resultam em publicações de pro-gressos científicos, as quais colocam à dis-posição da comunidade científica conheci-mentos e processos inventivos que sem apossibilidade de patenteamentos seriamguardados como segredos comerciais, o que

prejudicaria o desenvolvimento científico etecnológico (YEGANIANTZ, 1998).

Os princípios éticos estão entre os prin-cipais instrumentos que definem as relaçõeseconômicas, sociais e políticas nos sistemasde trocas, nas relações internacionais, nasrelações de trabalho e nos conteúdos cultu-rais e interpessoais. Problemas de políticaagrícola como as questões de eqüidade en-tre o setor rural e o urbano, de reforma agrá-ria, de abastecimento e segurança alimen-tar, de crédito subsidiado e dos juros e taxa-ções podem ser considerados como dilemaséticos e morais. Espera-se que as organiza-ções responsáveis pela política agrícola eambiental possam superar a fase limitadada acumulação linear dos lucros, para in-gressar numa etapa em que a ética estabele-ça os princípios da responsabilidade social,como uma estratégia da gestão empresariale do sucesso competitivo dos negócios.

Adam SMITH, em 1776, reconheceu que“não se pode organizar e viver num gruposocial, onde há uma divisão de trabalho eos indivíduos necessitam de ajuda de ou-tros, baseado somente no egoísmo, na defe-sa do interesse próprio”. Em outras pala-vras, freqüentemente a sobrevivência de umindivíduo depende em parte da sobrevivên-cia do grupo em que ele deve colaborar comos outros.

É importante salientar a preocupação dogrande pensador da sociologia jurídica daatualidade, Professor Boaventura de SouzaSANTOS (2000, p. 72), que, em seu livro“Para um novo senso comum: a ciência, odireito e a política na transição paradigmá-tica”, em seu primeiro volume “A crítica darazão indolente: contra o desperdício daexperiência”, expressa que “o declínio dahegemonia da legalidade é concomitante dodeclínio da hegemonia da casualidade”. Omesmo Professor SANTOS (2000, p. 379)declara que “[...] a nossa sensibilidade éticalimitada não é uma prova da hipocrisiahumana; é sobretudo, um produto do conhe-cimento limitado que temos da situaçãohumana”.

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6. A convergência entrelegalidade e legitimidade

A aproximação e a convergência entrelegalidade e legitimidade está sendo silen-ciosamente desenvolvida no Brasil. O reco-nhecimento constitucional de que as obri-gações com a saúde, educação e segurançasão de responsabilidade do Estado e um di-reito do cidadão é um caso exemplar; assimcomo o crime identificado como roubo fa-mélico, que justifica o roubo em função dasnecessidades básicas de sobrevivência. Ouainda, o princípio de proteção dos desiguais,que implica proteger “desigualmente as de-sigualdades” favorecendo os mais fracos,tem os seus impactos nas decisões judiciais.Por exemplo, o Superior Tribunal de Justiça(ACORDA Brasil, 2000) decidiu que o “imó-vel em construção destinado a residênciada família não pode ser penhorado”.

Similar julgamento foi efetuado em deci-são unânime pela Primeira Turma do Supe-rior Tribunal de Justiça (ACORDA Brasil,2000) que sentenciou que o “fornecimentode água não pode ser interrompido porinadimplência”. Na mesma direção, a Se-gunda Seção do Superior Tribunal de Justi-ça (ACORDA Brasil, 2000) entendeu porunanimidade que “o Juízo da Infância e daJuventude... deve ser o responsável pelosprocessos movidos contra as escolas parti-culares que recusarem a emitir os documen-tos necessários à transferência de alunoscom as mensalidades atrasadas”.

Esses julgamentos demonstram como osconflitos entre legalidade e legitimidade sãodecididos a favor da legitimidade, ou seja,em função da ética e da eqüidade e contráriosà legalidade. Isso demonstra que tais deci-sões estão contrárias às tendências do pas-sado de aplicar e favorecer a legalidadeembora ilegítima e amoral. Isso de certa for-ma rejeita a impunidade preponderante nossegmentos sociais dominantes e abastadosem relação aos fracos e desfavorecidos.

A convergência entre legalidade (direitopositivo) e legitimidade que envolve aspec-

tos sociais, culturais e políticos pode ser en-tendida por meio da interdisciplinaridade:

“uma atitude mental [...] fruto de umaformação contínua, de flexibilizaçãodas estruturas e cada dia mais será acondição de uma verdadeira investi-gação científica ... [própria para] for-mular e executar ações para transfor-mar uma realidade como a nossa ...são processos interdisciplinares emultiprofissionais que têm verdadei-ro impacto na modificação das deteri-oradas condições de vida da popula-ção” (SANTOS, 1998, p. 56).

Em outras palavras, quando o social queenvolve a legitimidade for considerado nomesmo nível que o econômico que envolve alegalidade, essas aproximações resultarãoem relações simbióticas entre legitimidadee legalidade e eliminação das contradiçõesentre eles.

7. Observações finais

O importante neste trabalho foi identifi-car os meios de convergência entre legali-dade e legitimidade e buscar a factibilidadee desejabilidade dessa união. O problema éque o conceito de legitimidade no direitoainda acompanha a legalidade, embora nasciências sociais, a exemplo da sociologia eda ciência política, o conceito de legitimida-de assuma uma conotação independente eàs vezes contrária ao sentido dialético emrelação à legalidade.

A base da legitimidade está na ficção ju-rídica da ideologia democrática segundo aqual o povo é o somatório abstrato de indi-víduos, cada qual participando diretamen-te com igual fatia de poder no controle doGoverno e no processo de elaboração das de-cisões políticas (BOBBIO et al., 1992, p. 678).

A crescente preocupação com a ética e amoral promove a convergência da legalida-de com a legitimidade. Ao mesmo tempo, adominação e a preponderância da teoriaeconômica consubstancia com maior rele-vância a legalidade por meio da racionali-

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dade econômica e da subordinação “do so-cial” ao econômico. Assim, para unir os doispreceitos, é necessário que a economia sejaligada à ética e o chamado social seja valo-rizado tanto quanto o econômico.

As possibilidades técnico-científicas pro-duzem no mundo atual determinadas açõese omissões humanas, a ponto de não ser maispossível contentar-se com normas moraisque regulamentem a convivência humanaem pequenos grupos e confiem as relaçõesentre os grupos à luta pela sobrevivência.Para APEL (1994),

“...a pressuposição da validade de nor-mas morais é condição paradigmáticade possibilidade do jogo de linguagempertencente à justificação de normas ede que a objetividade da ciência não-valorativa ainda pressupõe a validezintersubjetiva de normas morais ... alógica e com ela todas as ciências e tec-nologias pressupõe uma ética comosua condição de possibilidade”.

No cerne de todo agir ético está o reco-nhecimento e a fixação de limites. A éticacircunscreve e delimita o exercício de pode-res. A perspectiva ética é, assim, eminente-mente relacional e vincula-se às noções dealteridade e de vulnerabilidade, ou seja, aética nasce nas relações entre o mesmo e odiverso e reconhece que essas relações po-dem ser ameaçadas de destruição.

Finalmente, o principal desafio no orde-namento jurídico brasileiro é criar a solida-riedade entre legalidade e legitimidade. Sobesse enfoque, a solidariedade é um termo deorigem jurídica que indica a conexão recí-proca ou a interdependência. A assistênciarecíproca entre os membros do mesmo gru-po também é chamada solidariedade. As-sim, fala-se de solidarismo para indicar adoutrina moral e jurídica que adota como asua idéia fundamental a solidariedade.

A solidariedade não pode ser fortalecidaquando existe divergência entre legitimida-de e legalidade. Em outros termos, isso signi-fica que legitimidade e legalidade não podemser independentes, ao contrário, devem sem-

pre ser complementares entre si e toda a lega-lidade deve ser parte da legitimidade.

Notas

1 Citado por Lucboyer ROMAIN (1993, p. 149).2 SANTOS (1988) em pesquisa realizada em fa-

vela do Rio de Janeiro, mostra que os pobres procu-ram com menor intensidade a estrutura operacionaldos sistemas jurídicos estatais contemporâneos.

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Roberto Moreira de Almeida

1. Introdução

O tema sesmarias e terras devolutas, embo-ra vetusto, ainda gera uma série de contro-vérsias e questionamentos no meio jurídicobrasileiro.

De fato, temos observado publicações asmais variadas discorrendo sobre o assunto.Estudiosos de Direito Agrário (jus-agraris-tas) têm abordado a matéria em artigos, li-vros e outras publicações científicas es-pecializadas sob os mais variados enfoques.

Ademais, processualistas civis pátrios ealienígenas tentam elucidar o processo es-pecial destinado a discriminar as terras de-volutas na atualidade, ou seja, a analisar eperscrutar os processos judicial e adminis-trativo discriminatórios das terras devolu-tas da União e dos estados-membros.

Em face disso, resolvemos elaborar umestudo com o afã de contribuir com o debate

Sesmarias e terras devolutas

Roberto Moreira de Almeida é Procuradorda República no Estado da Paraíba, Professor eMestre em Direito.

Sumário

1. Introdução. 2. As sesmarias. 2.1. Concei-to. 2.2. Origem do vocábulo. 2.3. Antecedenteshistóricos. 2.4. Etapas da implantação sesmaria-lista no Brasil. 2.5. Críticas às sesmarias brasi-leiras. 3. Terras devolutas. 3.1. Conceito. 3.2.As terras devolutas consideradas como benspúblicos. 3.3. A propriedade das terras devolu-tas na Constituição Federal de 1988. 3.4. As ter-ras devolutas e a usucapião. 3.5. Destinação dasterras devolutas no Estatuto da Terra. 4. Doprocesso discriminatório. 4.1. Conceito. 4.2.Previsão legal. 4.3. Processos. 5. Conclusões.

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e tentar absorver e carrear ao mundo jurídi-co nossa opinião acerca dos sobreditos ins-titutos agrários, bem como, de forma sintéti-ca, discorrer sobre as etapas para se efetivara discriminação e demarcação das terraspúblicas devolutas.

Esse estudo está dividido em três partesprincipais.

A primeira destinada será às sesmarias.Nela abordaremos o conceito, a origem dovocábulo, os antecedentes históricos, as eta-pas de implantação no Brasil, bem comouma análise crítica ao instituto implantadoem solo pátrio e sua correlação com o regi-me instituído em Portugal.

Não descuramos, por outro ângulo, doestudo sobre as terras devolutas no que con-cerne ao seu enquadramento legal de bemdominical, de sua finalidade pública e deser insuscetível de aquisição por usucapião.

Noutra ocasião, tratamos do processodiscriminatório como instrumento adminis-trativo ou judicial hábil a discriminar as ter-ras devolutas e separá-las das terras públi-cas não-devolutas e particulares.

2. As sesmarias

2.1. Conceito

Sesmarias, sinteticamente, consistemnos lotes de terras abandonadas ou in-cultas cedidos pelos reis lusitanos a de-terminadas pessoas que resolvessem cul-tivá-las. Esses cultivadores passaram aser conhecidos e tratados por sesmeiros,ou seja, os beneficiários das sesmarias(FERREIRA, 1994, p. 107).

2.2. Origem do vocábulo

Questão movediça concerne à origem dapalavra sesmaria.

Para LOBÃO (1861, p. 182-183), sesma-ria é originária de caesimare, que significacortar ou arar a terra abandonada.

A sobredita opinião é refutada por PintoFERREIRA. Para o jurisconsulto pernambu-cano, sesmaria deriva de sesma, isto é, “a sex-

ta parte de alguma coisa, tal como o foro dasterras férteis dadas a requerente por ficaremelas em abandono, representando em gerala sexta parte dos frutos”. Em arremate, as-severa o insigne mestre, “o verbo sesmar ex-primia a concessão de terras sujeitas a talpagamento de foro, daí surgindo a palavrasesmaria” (1994, p. 108).

No mesmo pensar, Manuel MADRUGAassevera que em Portugal ocorreu a “con-cessão de terras sob o pagamento de umarenda barata, fixada na sexta parte dos fru-tos – a sesma – de onde se originou a deno-minação sesmaria” (1928, p. 11).

Embora não se tenha uma conclusão in-dubitável acerca da origem vocabular, en-tendemos que as opiniões de Pinto Ferreirae de Manuel Madruga são as mais corretas.Com efeito, a sesmaria, no sentido segundoo qual a conhecemos no Brasil, consistindona concessão de uma dada gleba de terraabandonada ou não cultivada a uma pes-soa (sesmeiro), tendo esta por obrigação ocu-pá-la e fazê-la produzir, originou-se da pa-lavra sesma.

2.3. Antecedentes históricos

Não é de Portugal o nascedouro do ins-tituto agrário da sesmaria.

Menciona-se, no meio histórico-doutri-nário, a presença sesmarial no antigo Impé-rio Romano, quando, com o afã de estimu-lar e melhor aproveitar o uso do solo, os reispromoviam sua divisão em pequenos lotese os distribuíam, gratuitamente ou median-te o pagamento de simbólica remuneração,aos guerreiros ou a quem resolvesse culti-vá-los (MADRUGA, 1928, p. 11).

A implantação do regime em Portugaldeveu-se ao Rei D. Fernando I. Ele aprovoua lei de 26 de junho de 1375 (Lei das Sesma-rias), instrumento legislativo destinado apromover uma verdadeira reforma agráriae distribuir aos súditos lusitanos pequenasglebas de terra. Teve Sua Majestade o esco-po de realizar um maior desenvolvimentoagrícola e melhor utilização do solo. O ses-meiro, em contrapartida, ficava incumbido

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de efetivar o pagamento de um percentualsobre os frutos colhidos (a sesma).

Antes mesmo do descobrimento do Bra-sil, diversos tratados já disciplinavam apartilha do território americano entre Por-tugal e Espanha. A propósito, a título deexemplos, pode-se citar o Tratado de Alcáço-vas, de 1479; a Bula Papal “Inter Coetera”,de 1492; e o Tratado de Tordesilhas, de 1494.

Em 21 de abril de 1500, com a chegadada esquadra lusitana comandada por Pe-dro Álvares Cabral, oficializou-se a ocupa-ção portuguesa, fenômeno que passou a sedenominar descobrimento do Brasil.

Toda a terra, antes ocupada pelos silví-colas, por direito de ocupação (descobrimen-to), passou a pertencer à Coroa portuguesa.

Portugal, entrementes, somente resolveuocupar a nova terra e explorá-la a partir de1530, com o malogro do comércio das espe-ciarias indianas.

O marco inicial se deu com a divisão dosolo tupiniquim em quinze lotes, denomi-nados capitanias hereditárias.

Essas capitanias foram concedidas adoze donatários. Diziam-se particulares ehereditárias essas capitanias pelo fato depertencerem aos donatários e serem trans-missíveis aos seus descendentes causa mor-tis (FERREIRA, 1994, p. 109).

Nesse regime das capitanias heredi-tárias, os capitães-mores eram os verdadei-ros plenipotenciários, eis que incumbidosestavam de exercer a quase totalidade dasfunções, entre as quais a de conceder cartasde sesmaria, que foi o primeiro instrumentode divisão e legitimação da ocupação da pro-priedade territorial no Brasil.

2.4. Etapas da implantaçãosesmarialista no Brasil

O professor e magistrado federal JoãoBosco Medeiros de SOUSA (1994, p. 17) tra-ça três fases de implantação do regime ses-marialista no Brasil, a saber:

A primeira seria aquela em que as cartasou dadas de sesmarias podiam ser outorga-das pelos capitães-mores, que, além da obri-

gação de ocupar, povoar e explorar a capi-tania, estavam incumbidos de conceder taistítulos de ocupação do solo.

Em ocasião seguinte, a outorga sesmari-alista deixou de pertencer aos capitães he-reditários e passou para a incumbência dosgovernadores-gerais.

Numa fase posterior, em decorrência dasfalhas vislumbradas nos sistemas anterio-res, porquanto bastante ineficientes, a Co-roa portuguesa reservou para si a respon-sabilidade de escolher os sesmeiros e outor-gar as respectivas cartas.

2.5. Críticas às sesmarias brasileiras

A instituição sesmarialista no Brasil nãoé aceita como tendo sido positiva.

De fato, propugnam os jus-agraristas queela foi bem sucedida em Portugal e nas colô-nias portuguesas de Açores e Cabo Verde,devido às suas reduzidas áreas geográficas.No Brasil, a contrario sensu, um país de di-mensão continental, já era previsto que osistema não poderia funcionar, como efeti-vamente não funcionou, a contento.

Ela trouxe seqüelas insanáveis ao regi-me agrário pátrio, por ter dado início à for-mação dos grandes latifúndios em nossopaís, que ainda hoje perduram nas cincoregiões brasileiras, diferentemente do queocorreu em Portugal, de dimensão territorialreduzida, onde o sistema provocou o nasce-douro da pequena propriedade agrícola bemmais eficiente e justa social e economicamen-te do que a grande propriedade brasileira,na maioria das vezes improdutiva.

Ademais, a implantação do sistema ses-marialista no Brasil foi calcado em critériospessoais e econômicos. Apenas as pessoasprivilegiadas político-economicamente fo-ram beneficiadas. O grande contingente ru-ral-trabalhador ficou desamparado e nãoteve outra alternativa senão trabalhar emregime de servidão ou de quase-escravidãopara os sesmeiros.

No plano estritamente jurídico, tambémnão se pode dizer que se implantou o regi-me sesmarialista no Brasil, pois não havia

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no Brasil terras abandonadas, mas áreascompletamente inexploradas até então. Nes-se pensar, vaticinou Emílio Alberto MayaGISCHKOW “... que no Brasil colonial nãoexistiam propriedades abandonadas, masterras virgens para serem cultivadas (demodo que) não tivemos sesmarias e sim datase concessões da Coroa portuguesa, de que aexpressão sesmaria foi usada como sinôni-mo” (1988, p. 71-72).

3. Terras devolutas

3.1. Conceito

3.1.1. Considerações preambulares

Tarefa não muito fácil tem sido traçar oconceito de terras devolutas.

Em face disso, além dos doutrinadores,alguns diplomas legais passaram a concei-tuá-las, embora saibamos não ser tarefa legi-ferante a conceituação de institutos jurídicos.

Em um primeiro momento, abordaremosos conceitos legais e, em seguida, traremosa lume o entendimento da doutrina pátria.

3.1.2. Conceitos legais

Basicamente, dois diplomas legais ten-taram conceituar ou definir o que se deveentender por terras devolutas: a) a Lei Impe-rial nº 601, de 18 de setembro de 1850, e b) oDecreto-lei nº 9.760, de 5 de setembro de1946.

a) A Lei Imperial Nº 601/1850 (Lei deTerras)

O critério fixado pelo legislador, ao con-ceituar as terras devolutas, foi o da exclu-são. Seriam terras devolutas aquelas áreasexcluídas das hipóteses mencionadas nosquatro parágrafos do art. 3º, in verbis:

“Art. 3º São terras devolutas:§ 1º As que não se acharem aplica-

das a algum uso público nacional,provincial ou municipal;

§ 2º As que não se acharem no do-mínio particular por qualquer títulolegítimo, nem forem havidas por ses-

marias e outras concessões do Gover-no Geral ou Provincial, não incursasem comisso por falta de cumprimentodas condições de medição, confirma-ção e cultura;

§ 3º As que não se acharem dadaspor sesmarias ou outras concessõesdo Governo, que, apesar de incursasem comisso, forem revalidadas poressa lei;

§ 4º As que não se acharem ocupa-das por posses que, apesar de não sefundarem em título legal, forem legiti-madas por essa lei”.

b) O Decreto-lei Nº 9.760/1946Esse diploma normativo, no que pertine

ao conceito de terras devolutas, manteve ocritério legal adotado pela Lei de Terras,denominando-as como sendo aquelas que,embora não sendo aplicadas a algum usopúblico federal, estadual ou municipal, nãoforam incorporadas ao patrimônio particu-lar. Assim está redigido o art. 5º, in litteris:

“Art. 5º São terras devolutas, nafaixa de fronteira, nos Territórios Fe-derais e no Distrito Federal, as terrasque, não sendo próprias nem aplica-das a algum uso público federal, esta-dual, territorial ou municipal, não seincorporaram ao domínio privado:

a) por força da Lei nº 601, de 18 desetembro de 1850, Decreto nº 1.318, de30 de janeiro de 1854, e outras leis edecretos gerais, federais e estaduais;

b) em virtude de alienação, conces-são ou reconhecimento por parte daUnião ou dos Estados;

c) em virtude de lei ou concessãoemanada de governo estrangeiro e ra-tificada ou reconhecida, expressa ouimplicitamente, pelo Brasil, em trata-do ou convenção de limites;

d) em virtude de sentença judicialcom força de coisa julgada;

e) por se acharem em posse contí-nua e incontestada, por justo título eboa-fé, por termo superior a 20 (vinte)anos;

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f) por se acharem em posse pacífi-ca e ininterrupta, por 30 (trinta) anos,independentemente de justo título eboa-fé;

g) por força de sentença declarató-ria proferida nos termos do art. 148da Constituição Federal, de 10 de no-vembro de 1937.

Parágrafo único - A posse a que aUnião condiciona a sua liberalidadenão pode constituir latifúndio e de-pende do efetivo aproveitamento emorada do possuidor ou do seu pre-posto, integralmente satisfeitas porestes, no caso de posse de terras situa-das na faixa da fronteira, as condiçõesespeciais impostas na lei”.

3.1.3. Conceitos doutrinários

No pensar de Altair de Souza MAIA:“Terras devolutas, espécie do gê-

nero de terras públicas, são aquelasterras que, tendo sido dadas em ses-marias, foram, posteriormente, em vir-tude de haverem caído em comisso,devolvidas à Coroa. Pelo menos, foiesse, originariamente, o conceito queas nominava, evoluindo, ao depois,para a definição contemplada no De-creto-lei nº 9.760/46, art. 5º, i. e., sãodevolutas as terras que não se acharemaplicadas a algum uso público federal,estadual ou municipal, ou que não ha-jam, legitimamente, sido incorporadasao domínio privado”(19- -?, p. 3-12).

Paulo GARCIA (1958, p. 12), estudioso eprofundo conhecedor do assunto, estabele-ce um critério tricotômico para identificaras terras devolutas. Para ele, tais terras sãoaquelas que:

a) não se encontram utilizadas pelaUnião, Estados, Distrito Federal ou municí-pios;

b) não estiveram em posse de algum par-ticular em 1850, seja por título ou sem títuloimobiliário e

c) não estejam no domínio de um parti-cular, em decorrência de um título legítimo.

Tomás PARÁ FILHO, por seu turno, en-tende que as terras devolutas são bens pa-trimoniais da União, Estados-membros, Dis-trito Federal ou municípios (bens do Esta-do), “afetados por destinação social ‘suigeneris’, i. e., bens imóveis que passam, ob-servados os requisitos legais, para o patri-mônio privado, em razão de pressupostasvantagens disso advindas para a economiasocial, com a efetiva colonização do solo, opovoamento dos sertões e a cultura de gle-bas produtivas, utilizando, ao máximo, asriquezas fundiárias potenciais” (1977-1982,p. 55).

Pinto FERREIRA vaticina que “terrasdevolutas são aquelas terras que, emboraantes doadas ou ocupadas, não se encon-tram cultivadas e aplicadas para nenhumuso público, sendo assim devolvidas aodomínio do Estado” (1994, p. 281).

Clóvis Beviláqua, Teixeira de Freitas eEpitácio Pessoa trazem um conceito simpli-ficado. Para eles, as terras devolutas seriamas áreas desocupadas, não possuídas e semdono.

Data venia, não aceitamos o entendimen-to de que as terras devolutas sejam desocu-padas e sem dono. Com efeito, as terras de-volutas não são objetos sem dono ou deso-cupados. São bens públicos em sentido am-plo, o que será apreciado mais adiante.

Em suma, podemos conceituar terrasdevolutas como sendo aquelas glebas ouporções de terras não incorporadas ao pa-trimônio do particular e que não se encon-tram destinadas a um uso específico pelopoder público.

3.2. As terras devolutas consideradascomo bens públicos

Os bens públicos, segundo o art. 65 dodiploma civil pátrio de 1916, são aquelesintegrantes do domínio da União, Estadosou dos Municípios. Todos os demais bensseriam particulares, qualquer que seja o seutitular.

Na realidade, o entendimento legislati-vo supra merece reparos.

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De fato, esqueceu-se dos bens do Distri-to Federal, que também são públicos.

Por outro lado, existem hoje as empresaspúblicas e as sociedades de economia mis-ta, integrantes da administração pública fe-deral, estadual, distrital ou municipal indi-reta. Os bens dessas entidades não são con-siderados públicos no sentido estrito, poissomente em um sentido amplo assim pode-riam ser conceituados.

É digno de registro enfatizar que o Códi-go Civil Beviláqua estabelece uma classifi-cação dos bens públicos em três categorias:a) bens de uso comum do povo, tais como osmares, rios, estradas, ruas e praças; b) os deuso especial, tais como os edifícios ou terre-nos aplicados a serviço ou estabelecimentofederal, estadual ou municipal; e c) os do-minicais, isto é, os que constituem o patri-mônio da União, dos Estados, ou dos Muni-cípios, como objeto de direito pessoal ou realde cada uma dessas entidades (art. 66, CC).

Surge, destarte, a pergunta: as terras de-volutas são bens públicos ou privados? Sepúblicos, seriam de uso comum do povo, deuso especial ou dominicais?

Não temos dúvidas de que as terras de-volutas são integrantes do patrimônio pú-blico disponível. Estão, portanto, relaciona-das na categoria dos bens dominicais oudominiais.

3.3. A propriedade das terras devolutas naConstituição Federal de 1988

Como já salientado acima, as terras de-volutas são bens públicos dominiais. Você,caro leitor, pode indagar: a quem pertencemtais terras: à União, aos estados-membros, Dis-trito Federal ou aos municípios?

A propriedade dos bens públicos estátraçada, preambularmente, na Constituição.Vejamos, a propósito, o que disciplina a LeiÁpice vigente sobre o domínio das terrasdevolutas:

“Art. 20. São bens da União:I – os que atualmente lhe perten-

cem e os que lhe vierem a ser atribuí-dos;

II – as terras devolutas indispensáveisà defesa das fronteiras, das fortificações econstruções militares, das vias federais decomunicação e à preservação ambiental,definidas em lei...” [grifo nosso].

“Art. 26. Incluem-se entre os bensdos Estados:

I – (...)IV – as terras devolutas não compre-

endidas entre as da União...” [grifo nos-so].

Compulsando os dois dispositivos daConstituição Federal supratranscritos, vis-lumbra-se que todas as terras devolutas bra-sileiras pertencem à União ou aos Estados.Conclui-se que não há terra devoluta muni-cipal.

Em síntese, não há mais terras devolu-tas municipais. São de propriedade daUnião apenas aquelas indispensáveis à de-fesa das fronteiras brasileiras, das fortifica-ções e construções militares, das vias fede-rais de comunicação e à preservação ambi-ental, nos termos definidos em lei. Todas asdemais pertencem aos estados-membros, deacordo com a sua localização.

3.4. As terras devolutas e a usucapião

Questão que por muito tempo encetoudiscussões no meio jurídico brasileiro foi apossibilidade ou não de se adquirir o domí-nio das terras devolutas por meio da usuca-pião.

Em um primeiro estágio, quando se acei-tava que as terras devolutas seriam aquelassem titular, sem dono e sem utilização, po-der-se-ia ventilar a hipótese de que a pes-soa, ao dela se apossar, por um determina-do período, sem oposição, poderia adqui-rir-lhe a propriedade.

A questão foi levada à apreciação doPoder Judiciário.

Após várias decisões discrepantes, umasconcedendo o domínio e outras o negando,a matéria foi submetida à apreciação doColendo Supremo Tribunal Federal, que, aopacificar o entendimento jurisprudencial,editou o verbete de Súmula nº 340, assim

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redigido: “Desde a vigência do Código Ci-vil, os bens dominicais, como os demais benspúblicos, não podem ser adquiridos porusucapião”.

Destarte, não se admite usucapião deterras devolutas porque são consideradasbens públicos em sentido estrito.

3.5. Destinação das terras devolutas noEstatuto da Terra

Discute-se acerca de qual fim deveria opoder público dar às terras devolutas. Des-tinar-se-iam para fins públicos em geral oupara fins especiais?

O Estatuto da Terra (Lei nº 4.504/64)especifica, entre as possibilidades de utili-zação, a sua destinação para fins de refor-ma agrária.

De fato, prescrevem os arts. 9º e 10 docitado estatuto, in verbis:

“Art. 9º Dentre as terras públicas,terão prioridade, subordinando-se aosfins previstos nesta lei (colonização ereforma agrária), as seguintes:

I – as de propriedade da União quenão tenham outra destinação especí-fica;

(...)III – as devolutas...”[grifo nosso].“Art. 10. O Poder Público poderá

explorar, direta ou indiretamente,qualquer imóvel rural de sua proprie-dade, unicamente para fins de pesqui-sa, experimentação, demonstração efomento visando ao desenvolvimentoda agricultura, a programas de colo-nização ou fins educativos de assis-tência técnica e de readaptação.

(...)§ 3º Os imóveis rurais pertencen-

tes à União, cuja utilização não se en-quadre nos termos deste artigo, pode-rão ser transferidos ao Instituto Brasi-leiro de Reforma Agrária...”.

No mesmo diapasão, estabelece o art.188 da Constituição Federal de 1988, a sa-ber: “A destinação de terras públicas e de-volutas será compatibilizada com a política

agrícola e com o plano nacional de reformaagrária”.

Ante o exposto, em regra, o poder públi-co deve destinar as terras devolutas exis-tentes para fins de colonização e reformaagrária.

4. Do processo discriminatório

4.1. Conceito

O processo discriminatório é aquele des-tinado a assegurar a discriminação e deli-mitação das terras devolutas da União e dosestados-membros, além de separá-las dasterras particulares e de outras terras públi-cas.

4.2. Previsão legal

A discriminação das terras devolutas daUnião está prevista na Lei nº 6.383, de 7 dedezembro de 1976.

4.3. Processos

Existem duas modalidades de processosdiscriminatórios: a efetivada administrati-vamente e por meio judicial.

4.3.1. Processo administrativo

É aquele efetivado pela própria Admi-nistração. Está elencado nos arts. 2º usque17 da Lei nº 6.383/76.

Pode ser dividido em três fases:I – InstauraçãoO presidente do Instituto Nacional de

Colonização e Reforma Agrária (INCRA)está encarregado de criar as Comissões Es-peciais, com circunscrição e sede estabele-cidas no ato de criação.

Essas Comissões Especiais, integradaspor um advogado do serviço jurídico doINCRA (presidente), um engenheiro agrô-nomo (membro) e um funcionário (secretá-rio), ficarão incumbidas de instaurar o pro-cesso administrativo discriminatório.

II – InstruçãoApós instaurada, a Comissão instruirá

o processo do seguinte modo:

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a) elaboração do memorial descritivo daárea;

b) convocação, por edital, com prazo de60 (sessenta) dias, dos interessados paraapresentarem seus títulos dominiais ou ale-garem aquilo do seu interesse. Esse editaldeverá ser afixado em lugar público na sededos municípios e distritos onde se situar aárea nele indicada, bem como, por duas ve-zes, no Diário Oficial da União, do Estado ena imprensa local, onde houver, com interva-lo mínimo de 8 (oito) e máximo de 15 (quinze)dias entre a primeira e a segunda publicação;

c) autuação da documentação recebidade cada interessado e tomadas por termo asdeclarações dos interessados e depoimen-tos das testemunhas se houverem previa-mente sido arroladas;

d) vistoria para identificação do imóvel;e) pronunciamento sobre as alegações,

títulos de domínio, documentos dos interes-sados e boa-fé das ocupações;

f) levantamento geodésico e topográficodas terras objeto de discriminação bem comosua demarcação. Excluídas, nessa demarca-ção, estarão as áreas particulares devidamentecomprovadas pelos legítimos proprietários.

III – ConclusãoEncerrada a demarcação, será lavrado

termo de encerramento da discriminaçãoadministrativa e levado a registro, pelo IN-CRA, em nome da União, no Registro Civilde Imóveis.

4.3.2. Processo judicial

O processo discriminatório judicial,como é cediço, é aquele que se efetiva porintermédio do Poder Judiciário.

Disciplinada está a discriminação dasterras da União nos arts.18 a 23 da Lei nº6383/76.

Extraímos os seguintes pontos impor-tantes dos dispositivos legais em epígrafe:

a) Autoria: é da incumbência do INCRApromover a ação discriminatória da União(art. 18, LAC);

b) Cabimento: promove-se o processo ju-dicial discriminatório: i) quando o processo

administrativo for dispensado ou interrom-pido por absoluta ineficácia; ii) contra aque-les que não atenderem ao edital de convoca-ção ou notificação; e iii) quando ocorrer al-teração de divisas, ou transferências de ben-feitorias a qualquer título, sem assentimen-to da União (atentado) (art. 19, LAC);

c) Competência: sendo parte autora umaautarquia federal (o INCRA), a competên-cia para processar e julgar processo discri-minatório de terras devolutas da União é daJustiça Federal.

d) Procedimento: o rito do processo dis-criminatório judicial será o comum sumá-rio e não o sumaríssimo, como previsto noart. 20 da lei de regência. Está elencado nahipótese material genérica do art. 275, II, g,do Código de Processo Civil brasileiro.

e) Regras específicas: i) petição inicial: deveser instruída com o memorial descritivo daárea a ser discriminada; ii) citação: não seráefetivada pelo correio, mas sim por edital;iii) sentença: caberá apelação recebida sem-pre no efeito devolutivo, possibilitando asua execução provisória; iv) prioridade: a açãodiscriminatória terá prioridade em relação àsoutras ações em andamento relativas a domí-nio ou posse de imóveis, situados, no todo ouem parte, na área a ser discriminada.

5. Conclusões

Ao fim e ao cabo do presente estudo, po-demos extrair as seguintes conclusões:

1) Embora vetusto, o tema sesmarias e ter-ras devolutas ainda enseja discussões as maisacirradas no meio jurídico brasileiro.

2) As sesmarias eram os lotes de terrasabandonados ou incultivados e cedidos,originariamente, a determinadas pessoasque pretendessem cultivá-los.

3) A origem do vocábulo “sesmaria” nãoé pacífica. Predomina o entendimento deque provém de “sesma”, ou seja, a rendaexigida sobre os frutos colhidos nas terrasférteis dadas ao beneficiário. Este passou aser conhecido por sesmeiro e o instituto, porsesmaria.

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4) No antigo Império Romano, já haviaa distribuição de pequenos lotes de terrasdestinadas pelo rei aos guerreiros (sesma-rias gratuitas) como retribuição pelos ser-viços prestados ao Exército; ou a quemquisesse cultivá-los, desde que pagasseuma quantia simbólica (sesmaria remu-nerada).

5) Em Portugal, o instituto foi implanta-do por D. Fernando I, pela Lei das Sesmarias(Lei de 26 de junho de 1375). Visava promo-ver uma verdadeira reforma agrária em ter-ras lusitanas, dada a crise agrícola e de abas-tecimento que se abatera sobre o reino.

6) No Brasil, a ocupação inicial proce-deu-se com a divisão da colônia em capita-nias hereditárias. Eram hereditárias porquese transferiam aos sucessores dos donatárioscausa mortis.

7) A concessão das sesmarias no Brasil,na primeira fase, era da incumbência dosdonatários, também conhecidos como capi-tães-mores; em seguida, passou-se para osgovernadores-gerais e, por último, para pró-pria Coroa portuguesa.

8) Critica-se a implantação das sesmari-as no Brasil porque: a) ela trouxe graves se-qüelas ao regime agrário brasileiro, por terdado início à formação de grandes latifún-dios, ainda hoje existentes; b) foi implanta-da com base em um critério pessoal e econô-mico, gerando injustiças, pois somente osricos eram beneficiados e os pobres ficavamdesprovidos de terra e restavam submetidosao trabalho escravo ou em regime de servi-dão para o sesmeiro.

9) As terras devolutas surgiram com aLei Imperial nº 601 de 1850 (Lei de Terras).

10) São conceituadas como sendo aque-las terras não incorporadas ao patrimôniodo particular às quais não se tenha destina-ção específica pelo poder público.

11) São bens da União ou dos Estados-membros. São de propriedade da Uniãoapenas aquelas terras devolutas indis-pensáveis à defesa das fronteiras brasi-leiras, das fortificações e construções mi-litares, das vias federais de comunicação

e à preservação ambiental, nos termosdefinidos em lei. Todas as demais perten-cem aos Estados-membros, de acordo coma sua localização.

12) Não há mais terras devolutas muni-cipais, após o advento da Constituição de1988.

13) Em regra, o poder público deve desti-nar as terras devolutas existentes para finsde colonização e reforma agrária.

14) O processo existente para possibili-tar a identificação e demarcação das terrasdevolutas denomina-se discriminatório.

15) Está disciplinado o processo discri-minatório das terras devolutas da Uniãopela Lei nº 6383/76.

16) Estabelecem-se duas modalidades deprocessos discriminatórios: a efetivada ad-ministrativamente ou por meio judicial, sen-do que a atribuição de movê-las é do IN-CRA – Instituto Nacional de Colonização eReforma Agrária.

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1. Introdução

Funda-se o presente artigo na necessi-dade de se alcançar a mais ampla aplicabi-lidade de um remédio constitucional cujaevolução e importância convivem visceral-mente com o Estado democrático de direito:o mandado de segurança.

Sem se valer de processos de hermenêu-tica comprometedores da ordem jurídica epreservando, sobretudo, o interesse públi-co, busca-se debater uma problemática cons-tantemente enfrentada pelos administrados,com vistas ao fortalecimento do poder difu-so de controle sobre os atos da administra-ção.

Este sucinto ensaio é, pois, provocadopor um continuado entendimento jurispru-dencial que, a despeito de ser aparentemen-te unânime, não pode, data maxima venia, ser

Da aplicabilidade do mandado desegurançaExtensão às autoridades de empresas estatais em casosde procedimentos licitatórios decorrentes do exercício daconcessão de serviços públicos

Hugo Sarubbi Cysneiros de Oliveira é Ba-charel em Direito pela UFPE e Advogado ins-crito na OAB/DF.

Hugo Sarubbi Cysneiros de Oliveira

Sumário

1. Introdução. 2. Do mandado de segurança– ato de autoridade passiva. 3. Da aplicabilida-de do writ a atos de empresas públicas – enten-dimento jurisprudencial. 4. Da extensão aoscasos de procedimento licitatório no exercícioda concessão de serviços públicos – fundamen-tação. 4.1. Da concessão de serviço público e dalicitação. 4.2. Dos princípios da administraçãopública afetos ao procedimento da licitação. 4.3.Da consideração de procedimentos licitatóriosrealizados por empresas concessionárias deserviço público como atos de império. 4.4. Dahermenêutica constitucional. 5. Conclusão.

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aceito pelo presente autor, que o faz imbuí-do da sua mais absoluta modéstia.

Trata-se, portanto, de uma breve exposi-ção acerca da aplicabilidade do writ of man-damus contra atos provenientes das autori-dades regentes de empresas públicas, quan-do da condução de procedimentos licitató-rios, em decorrência do exercício da conces-são de serviços públicos.

2. Do mandado de segurança – ato deautoridade e legitimidade passiva

Reza a Lei 1.533, de 31 de dezembro de1951, no seu artigo 1º, que “conceder-se-ámandado de segurança para proteger direi-to líquido e certo, não amparado por habeascorpus, sempre que, ilegalmente ou com abu-so de poder, alguém sofrer violação ou hou-ver justo receio de sofrê-la por parte de auto-ridade, seja de que categoria for e sejamquais forem as funções que exerça”.

Mais adiante, no parágrafo primeiro docitado artigo, esclarece a lei, com redaçãodada pela Lei 6.978, de 19 de janeiro de 1978,o conceito de autoridade, que considera paraseus efeitos “os representantes ou órgãosdos partidos políticos e os representantesou administradores das entidades autárqui-cas e das pessoas naturais ou jurídicas comfunções delegadas do poder público, somen-te no que entender com essas funções”.

Por sua vez, no inciso LXIX do seu art. 5º,a Constituição da República consagrou omandado de segurança, garantindo a suaconcessão a fim de “proteger direito líquidoe certo, não amparado por habeas corpus ouhabeas data, quando o responsável pela ile-galidade ou abuso de poder for autoridadepública ou agente de pessoa jurídica no exer-cício de atribuições do Poder Público”.

Das previsões legais acima referidas,pretende-se aqui destacar a figura do ato deautoridade e, conseqüentemente, o patroci-nador desse ato, ou seja, a autoridade coa-tora.

Na categórica definição do insubstituí-vel mestre Hely Lopes MEIRELLES (1992),

“ato de autoridade é toda manifestação ouomissão do Poder Público ou de seus dele-gados, no desempenho de suas funções oua pretexto de exercê-las. Por autoridade, en-tende-se a pessoa física investida de poderde decisão dentro da esfera de competênciaque lhe é atribuída pela norma legal”.

Para fins de mandado de segurança,portanto, deve-se entender por autoridadepública aquela que possui poder hierárqui-co, capaz de emanar atos administrativosdecisórios. Saliente-se, contudo, que nãoapenas essas autoridades podem praticaratos de autoridade, mas também os admi-nistradores ou representantes de autarquiase de entidades paraestatais, além das pes-soas naturais ou jurídicas com funções de-l e g a d a s .

Tem-se, assim, a autoridade coatora – ou,em termos processuais, a parte impetrada –considerada como tal por ser a pessoa queordena ou omite a prática do ato impugna-do e que responde pelas suas conseqüên-cias administrativas, dispondo da compe-tência para corrigir a ilegalidade atacadajudicialmente.

Enfim, pode o coator pertencer a qual-quer Poder ou entidade estatal, paraestatalou autarquia, bem como aos serviços dele-gados, cujas atribuições, apesar de pertence-rem à entidade delegante, colocam-no comoo agente que pratica o ato impugnado.

3. Da aplicabilidade do writ a atos deempresas públicas – entendimento

jurisprudencial

Muito embora seja a Constituição daRepública cristalina ao prever a concessãodo mandado de segurança quando confi-gurada a ilegalidade ou abuso de poder pra-ticado por “autoridade pública ou agentede pessoa jurídica no exercício de atribui-ções do poder público”, registra-se maciça-mente na construção pretoriana pátria umentendimento restritivo no que se refere àsatribuições que estariam realmente abraça-das pelo comando constitucional.

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Tal problemática decorre do fato de queo Estado, por força de outorga constitucio-nal, pode exercer as suas atividades de va-riadas formas: a centralizada na adminis-tração direta e a descentralizada ou delega-da, seja em favor de pessoas jurídicas inte-grantes da administração indireta, seja pormeio de pessoas alheias ao aparato estatal.

Pronunciam-se os tribunais no sentidode que apenas os atos exercidos pelas enti-dades delegadas, mediante o poder de im-pério da administração pública, poderiamser objeto do mandado de segurança. As-sim, atos de mera gestão de órgãos da admi-nistração pública indireta ou de qualquerpessoa jurídica no exercício de atribuiçõesdo poder público não seriam passíveis docontrole via o writ of mandamus.

Assim, devido ao hibridismo jurídico deentidades paraestatais – como empresaspúblicas, por exemplo –, atos meramentenegociais inerentes à prestação de um ser-viço concedido escapam do crivo de “ato deautoridade”, por não haver verdadeira coa-ção administrativa.

Seguindo esse entendimento, pode-se ci-tar os seguintes julgados: AMS 90.02.07139-6, TRF 2a, 1a T, DJU 09.09.93; REO-MS95.01.22891-6/MA, TRF 1a, 1a T, DJU14.12.1998, p. 69; AMS 94.01.11553-2/DF,TRF 1a, 1a T, DJU 14.12.1998, p. 66; AMS96.01.46212-0/DF, TRF 1a, 1a T, DJU04.10.1999, p. 28.

Ocorre que tal raciocínio, assentado, ébom salientar, em bem fundamentado exer-cício intelectual, sofre de danoso desvirtua-mento. Não há dúvidas de que tarefas me-ramente gerenciais estão excluídas do rolde atos de autoridade; entretanto, o problemasurge quando atos claramente revestidos dasprerrogativas e poderes característicos do ser-viço público são tratados como simples pro-cedimentos formais administrativos.

Se, por um lado, o exercício delegado depoder público cerca-se de atos gerenciaispertencentes à atividade-meio do ente exe-cutor, por outro, ele também se vale de me-canismos afetos à condução da função ad-

ministrativa, cujo caráter de ordem pública oinsere no âmbito da parcela de poder delega-da. Nesse sentido, destaca-se a realização deprocedimentos licitatórios realizados por en-tidades concessionárias de serviço público.

4. Da extensão aos casos deprocedimento licitatório no

exercício da concessão de serviçospúblicos – fundamentação

4.1. Da concessão de serviço público eda licitação

A Constituição Federal, em seu artigo175, estabelece que “incumbe ao poder pú-blico, na forma de lei, diretamente ou sobregime de concessão ou permissão, sempreatravés de licitação, a prestação de serviçospúblicos”. Tem-se, assim, estampada a ma-nutenção do caráter público do serviço pres-tado pela administração pública quando ofaz diretamente, ou por meio de delegação.

Para efeitos deste artigo, restringimo-nosexclusivamente à modalidade da concessão,cuja natureza jurídica é proficientementeidentificada pela professora Maria SylviaZanella DI PIETRO (1999, p. 72), para quemse trata de um “contrato administrativo peloqual a Administração Pública delega a ou-trem a execução de um serviço público, paraque o execute em seu próprio nome, por suaconta e risco, mediante tarifa paga pelousuário ou outra forma de remuneração de-corrente da exploração do serviço”.

Tal raciocínio funda-se na norma que ex-pressamente dispõe sobre o regime de con-cessão e permissão da prestação de serviçospúblicos – Lei 8.987, de 13 de fevereiro de 1995–, cujo artigo 2º, inciso II, prevê que “conces-são é a delegação de prestação de serviço, fei-ta pelo poder concedente, mediante licitação,na modalidade de concorrência, à pessoa ju-rídica ou consórcio de empresas que demons-tre capacidade para seu desempenho, por suaconta e risco e por prazo determinado”.

Consoante se percebe nos termos dosdispositivos normativos citados, exige o or-

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denamento jurídico brasileiro, sempre, a ocor-rência de procedimento licitatório quando dahipótese de concessão de serviço público.

A imperiosidade da norma justifica-seno fato de que, quando se procede a transfe-rência de poderes a terceiros, é necessáriobuscar aqueles que apresentem as melhorescondições para a realização dos serviçosdelegados. A licitação, assim, além de ga-rantir a opção que melhor atenda o interes-se público, impede que o procedimento deconcessão de serviços públicos privilegie avontade pessoal de administradores ou ad-ministrações, fato que facilitaria desvios nacondução da atividade pública.

De acordo com a já citada professoraMaria Sylvia Zanella DI PIETRO (2001, p.291), licitação é, pois, “o procedimento ad-ministrativo pelo qual um ente público, noexercício da função administrativa, abre a to-dos os interessados, que se sujeitem às condi-ções fixadas no instrumento convocatório, apossibilidade de formularem propostas den-tre as quais selecionará e aceitará a mais con-veniente para a celebração do contrato”.

4.2. Dos princípios da administração públicaafetos ao procedimento da licitação

Assim, o procedimento licitatório encer-ra a consagração de alguns princípios daadministração pública, em especial, o dalegalidade, o da supremacia do interessepúblico, o da impessoalidade, e ainda o daigualdade, o da moralidade, o da publici-dade e o da eficiência.

Deve-se lembrar que o princípio da lega-lidade constitui lastro constitucional paratoda a administração pública e que no casode procedimento licitatório o mandamentodo estrito respeito à lei torna-se ainda maisimportante. Desobedecer tal princípio sig-nificaria ignorar o mandamento capital paraa configuração do regime jurídico-adminis-trativo, como bem ilustra o renomado admi-nistrativista Celso Antônio Bandeira deMELLO (2000, p. 71):

“O princípio da legalidade contra-põe-se, portanto, e visceralmente, a

quaisquer tendências de exacerbaçãopersonalista dos governantes. Opõe-se a todas as formas de poder autori-tário, desde o absolutista, contra oqual irrompeu, até as manifestaçõescaudilhescas ou messiânicas típicasdos países subdesenvolvidos. O prin-cípio da legalidade é o antídoto natu-ral do poder monocrático ou oligár-quico, pois tem como raiz a idéia desoberania popular, de exaltação dacidadania. Nesta última se consagraa radical subversão do anterior esque-ma de poder assentado na relação so-berano-súdito (submisso). (...) É frutoda submissão do Estado à lei. É, emsuma: a consagração da idéia de quea Administração Pública só pode serexercida na conformidade da lei e que,de conseguinte, a atividade adminis-trativa é atividade sublegal, infralegal,consistente na expedição de coman-dos complementares à lei”.

Da mesma maneira, a vinculação daAdministração Pública à licitação decorredo princípio da indisponibilidade do inte-resse público, segundo o qual a administra-ção terá sempre que escolher a proposta quemelhor atenda ao interesse público, e doprincípio da impessoalidade, pois sem oprocedimento licitatório não há garantia deque houve objetividade no atendimento dointeresse público, nem de que não houvepessoas prejudicadas e/ou favorecidas.

Não há, também, como olvidar outroprincípio alicerce da licitação, o da igual-dade entre as partes. Ele visa não apenaspermitir à Administração a escolha da me-lhor proposta, como também assegurar aigualdade de direitos a todos os interessa-dos em contratar, in casu, licitar.

No que tange aos princípios da morali-dade administrativa e da publicidade, a Lei8.666/93, em seu artigo 3º, elimina quais-quer dúvidas quanto à sua imprescindibili-dade: “a licitação destina-se a garantir aobservância do princípio constitucional daisonomia e a selecionar a proposta mais

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vantajosa para a Administração e será pro-cessada e julgada em estrita conformidadecom os princípios básicos da legalidade, daimpessoalidade, da moralidade, da igual-dade, da publicidade, da probidade admi-nistrativa, da vinculação ao instrumentoconvocatório, do julgamento objetivo e dosque lhes são correlatos”.

Assim, torna-se imperioso exigir da ad-ministração comportamento não apenas lí-cito, mas também consoante com a moral,os bons costumes, as regras de boa admi-nistração e os princípios da justiça e da eqüi-dade, visto que, além de garantir a todo oprocedimento ampla divulgação e abertu-ra, possibilita a fiscalização da atividade ad-ministrativa.

Precisas são as palavras do combativoCelso Antônio Bandeira de MELLO (p. 90)acerca do princípio da moralidade adminis-trativa: “de acordo com ele, a Administra-ção e seus agentes têm de atuar na confor-midade de princípios éticos. Violá-los im-plicará violar o próprio direito, configuran-do ilicitude que sujeita a conduta viciada àinvalidação, porquanto tal princípio assu-miu foros de pauta jurídica, na conformida-de do art. 37 da Constituição”.

Finalmente, no que tange ao princípioda eficiência, a Mensagem Presidencial nº886/95, convertida em proposta de Emen-da Constitucional e que culminou na Emen-da Constitucional nº 19 (que dispõe sobreprincípios e normas da administração pú-blica), observava, em sua exposição de mo-tivos, que “o aparelho de Estado deverá-serevelar apto a gerar mais benefícios, na for-ma de prestação de serviços à sociedade,(...) a assimilação, pelo serviço público, dacentralidade do cidadão e da importân-cia da contínua superação de metas de-sempenhadas, conjugada com a retiradade controles e obstruções legais desneces-sários, repercutirá na melhoria dos servi-ços públicos”.

Conforme observa o comemorado cons-titucionalista Alexandre de MORAES (2001,p. 312),

“o princípio da eficiência é aquele queimpõe à administração pública diretae indireta e a seus agentes a persecu-ção do bem comum, por meio do exer-cício de suas competências de formaimparcial, neutra, transparente, par-ticipativa, eficaz, sem burocracia esempre em busca de qualidade, pri-mando pela adoção dos critérios le-gais e morais necessários para a me-lhor utilização possível dos recursospúblicos, de maneira a evitar-se des-perdícios e garantir uma maior renta-bilidade social”.

Ante todo o exposto, conclui-se que a li-citação, sobremaneira quando serve de re-quisito para a delegação de serviço público,encerra uma série de atos administrativosrevestidos de todos os atributos que os cer-cam e sujeitos aos princípios orientadoresda administração pública.

4.3. Da consideração de procedimentoslicitatórios realizados por empresas

concessionárias de serviço público comoatos de império

Ocorre que, em alguns casos, as entida-des delegadas, ou seja, as concessionáriasde um determinado serviço público, por cau-sa da natureza do poder concedido por meiode uma licitação, vêem-se, também, obriga-das legalmente a realizar procedimentos li-citatórios.

Nesses casos, a licitação não constituimera formalidade gerencial, posto que re-presenta, por força de lei, exercício direto dopoder delegado, mormente quando se exa-minam hipóteses de contratações de bens eserviços ou casos de posteriores concessõespúblicas decorrentes do serviço concedido.

Patente é o caso constante do art. 21, inci-so XII, alínea ‘c’, da Constituição Federal, se-gundo o qual “compete à União explorar, di-retamente ou mediante autorização, conces-são ou permissão, a navegação aérea, aeroes-pacial e a infra-estrutura aeronáutica”.

Vê-se, portanto, que a exploração, oumelhor, a administração da infra-estrutura

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aeronáutica constitui um serviço públicopassível de concessão, como, de fato, ocorrena maioria dos grandes aeroportos nacio-nais. À Infraero – Empresa Brasileira de In-fra-estrutura Aeronáutica, empresa públicacriada por lei, foi delegado tal poder, porexemplo.

Assim, na condução de suas atividades,a Infraero necessita lançar mão de prerro-gativas inerentes à administração pública,específicas do serviço concedido. Uma de-las é a concessão de uso de áreas públicas,que apenas pode ser realizada medianteprocedimento licitatório.

Como considerar, então, a natureza des-ses atos necessários ao deslinde da imperio-sa licitação? Admiti-los como passos subs-tancialmente formais e de gestão, por certo,não parece ser o melhor caminho.

Essas hipóteses consubstanciam, clara-mente, o exercício do poder de império daentidade detentora dos poderes delegados/concedidos pela administração pública.São, no sentido da legislação que regula omandado de segurança, atos de autorida-de, e os autores de eventuais ilegalidadesou abusos de poder, quando da sua imple-mentação, serão passíveis de serem enqua-drados como autoridades coatoras.

Isso equivale a dizer que a licitação, cujoobjeto é a contratação de bens ou serviçosou a concessão de área pública – atos neces-sários ao desempenho da atividade delega-da pela administração –, afeta o cerne daatividade pública federal, de sorte que suarevisão pode dar-se pela via do remédioconstitucional aqui examinado.

No caso da Infraero, hipótese aqui esco-lhida, licitar e contratar compõem o serviçopúblico delegado de “explorar a infra-estru-tura aeronáutica”. Portanto, eventuais des-vios desses atos poderão ser atacados emsede de mandado de segurança.

4.4. Da hermenêutica constitucional

O caput do artigo 37 da Constituição Fe-deral representa motivo suficiente para seconcluir pela procedência de tal raciocínio.

Conforme revela o dispositivo: “a adminis-tração pública direta e indireta de qualquerdos Poderes da União, dos Estados, do Dis-trito Federal e dos Municípios obedecerá aosprincípios da legalidade, impessoalidade,moralidade, publicidade e eficiência”.

A Carta Magna, dessa maneira, em ca-sos como o de licitações, equipara as empre-sas públicas à administração direta, às au-tarquias e às fundações públicas, tornandopossível que atos daquelas empresas pos-sam ser, do ponto de vista literal do art. 37,impugnados na via mandamental.

Esse entendimento está categoricamen-te articulado no parecer emitido pelo ilustreProcurador Regional da República da 1a

Região Odim Brandão Ferreira, nos autosdo recurso de apelação em mandado de se-gurança nº 2000.34.00.000215-5/DF.

“Tal conclusão, apoiada no teorliteral do art. 37, parece confirmadapelo critério de interpretação maisimportante – o teleológico – de modoa se sobrepor ao argumento sistemáti-co, baseado no art. 173 da CF, que,hoje, tenho por equivocado e, que, ou-trora, me levou a negar o cabimentodo mandado de segurança em casosdesta espécie. A finalidade do art. 37consiste em submeter o Estado – quersob a aparência clássica da adminis-tração direta, quer sob as formas mo-dernas da administração indireta – acontroles uniformes, em pontos sen-síveis. Assim, seria contrário à finali-dade constitucional permitir que oEstado se subtraia do rápido controledo mandado de segurança, apenasporque empregou formas privadas derealizar serviços públicos. De resto, aEC 19/1998 parece ter caminhado nadireção do reconhecimento de que, aodesempenharem certas atividades, asempresas públicas e sociedades deeconomia mista estão investidas depoder público. Tanto assim, que im-portou para o artigo que sujeita taispessoas jurídicas ao regime da inicia-

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tiva privada a seguinte imposição: ‘li-citação e contratação de obras, servi-ços, compras e alienações, observadosos princípios da administração públi-ca’, na forma de lei própria (§1º, II)”.

5. Conclusão

É arrimado nesses motivos que o presenteautor cultiva a sua inconformidade – já an-teriormente citada – e procura, assim, de-monstrar quão danosos podem ser os efei-tos do aparente lapso de interpretação ob-servado na produção jurisprudencial hojedominante.

Conduzir um procedimento licitatório,por imposição legal, quando do exercício daconcessão de um serviço público, indubita-velmente representa um ato dotado de im-periosidade administrativa, sujeito, portan-to, ao controle judicial por meio do manda-do de segurança. Privar a coletividade dautilização de um importante remédio cons-

Bibliografia

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titucional em casos como esses não só com-promete a lisura e legitimidade da atuaçãopública, como também enfraquece um ins-trumento de defesa da ordem democrática,conquistado a tão duras penas.

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Adriana de Andrade Roza

1. Intróito: a preservação daintegridade física e/ ou moral como

direito humano fundamental

A tortura é um tema por demais envol-vente: para uns causa repugnância e/oudesprezo; para outros, seduz. Destarte re-solveu-se escolher esse tema tão fascinantee expor um breve estudo crítico sobre suadigressão histórica, até a vedação constitu-cional de sua prática positivada no art. 5ºda Carta Magna e na Lei 9.455/97. A pre-servação da integridade física e ou moralhumana constitui direito humano funda-mental de primeira geração, cláusula pétreanos termos do art. 60, § 4º, IV, da Constitui-ção Federal.

2. Das atrocidades da ditabarbárie pré-clássica

A tortura, conforme definiu FOUCAULT(2001, p. 30-31)1, é uma forma de domina-ção sobre o corpo, por meio da produção de

TorturaUm estudo crítico de sua digressão histórica

Adriana de Andrade Roza é estudante doCurso de Direito da faculdade de Direito doRecife – UFPE.

Sumário

1. Intróito: a preservação da integridadefísica e/ ou moral como direito humano fun-damental. 2. Das atrocidades da dita barbáriepré-clássica. 3. Da tortura instituída. 4. Da pro-gressiva rejeição da tortura, graças à influênciade Cesare Beccaria, à sua positivação no art. 5º,III e XLIII, da Carta Magna e na Lei 9.455/97. 5.Conclusão.

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uma certa quantidade de sofrimento que sepossa, se não medir exatamente, ao menosapreciar, comparar e hierarquizar.

A história da tortura poderia ser dividi-da basicamente em três fases (cf. MATTO-SO, 1986, p. 35-36). A primeira fase é a dasatrocidades tribais da dita barbárie pré-clás-sica. A segunda é a tortura institucionaliza-da das tiranias e impérios antigos, medie-vais e modernos – as colônias. A terceira é atortura, quase sempre clandestina, das Re-públicas e das Ditaduras contemporâneas.Essa tem sido a divisão, embora um tantosimplificada, adotada pelos historiadoresAlec Mellor, francês, e Ryley Scott, inglês.

Na primeira fase, a tortura funcionacomo ritual de iniciação à vida adulta e àreligião ou de vingança contra os inimigoscapturados. O dever do guerreiro era agüen-tar com bravura e firmeza, sem gritar nemimplorar piedade, e assim os torturadoresprocuravam torná-la o mais dolorosa pos-sível, a fim de fazer a vítima fraquejar. Comoresultado, a iniciação de um guerreiro emsua tribo acabava, muitas vezes, em morte,citar-se-ão exemplos: tribos da Guiana ini-ciavam seus meninos com um dança de açoi-tamento, aboríngenes da Oceania e nativosda África oriental mutilavam os órgãos ge-nitais, entre outros rituais primitivos de ini-ciação à vida adulta.

“As mais antigas civilizações,como a egípcia, babilônica, assíria epersa, tiveram seus castigos devida-mente catalogados e classificados.Cerca de 2.000 anos antes de Cristo, achamada pena de talião (olho porolho, dente por dente) já estava pre-sente no código de Dungi (o rei sumé-rio da lei sumária), que inspirou o có-digo de Hamurábi (rei babilônico), quepor sua vez teria inspirado a legisla-ção hebraica (Tora ou Pentateuco) egrega (código turiano, por exemplo)”(MATTOSO, 1986, p. 37).

Entre os gregos, a tortura probatória eraaplicada tantos aos escravos, quanto aosestrangeiros e cidadãos livres. Demóstenes

a descreve como “um meio seguro de obterevidência” (MATTOSO, 1986, p. 38). Os ro-manos, por sua vez, grandes conquistado-res, aperfeiçoaram a herança grega incre-mentando, praticamente, todos os tipos desuplícios da antiguidade. A tortura proba-tória, em Roma, era denominada quaestio (cf.MATTOSO, 1986, p. 38-39). São exemplos detormentos empregados pelos romanos: tor-mentum ignis (do fogo), tormentum famis (dafome), tormentum sitis (da sede), entre outros.

Entre as penas capitais, havia a crucifi-cação, que era um método de asfixia lenta egradual. Muitos foram os cristãos crucifica-dos: Jesus, São Pedro e Santo André sãoexemplos. Com a perseguição aos seguido-res de Cristo, abriu-se uma nova faceta paraa tortura probatória: “em vez da confissãode um crime, o que se exigia era a renegaçãoda fé” (MATTOSO, 1986, p. 40).

3. Da tortura instituída

A segunda fase é o símbolo da torturainstitucionalizada com a Santa Inquisição.O termo inquisitio também significa inquéri-to, investigação ou interrogatório e tornou-se sinônimo dos Tribunais do Santo Ofício.Destarte, revelou-se uma nova faceta da tor-tura: a intimidação.

Vale a pena ressaltar que a tortura nãoera monopólio da igreja, uma vez que, ain-da na Idade Média, os Estados europeusincorporaram torturas probatórias e/oupunitivas2. A Igreja reprovava a tortura fei-ta por tribunais civis e exigia a imunidadedo clero aos suplícios judiciários.

A obra mais notória sobre o uso da tortu-ra pela Igreja é “O manual dos inquisido-res” de Nicolau EMÉRICO (1972). Essa obratraz o seguinte sobre a finalidade desse su-plício: “aplicar-se-lhe-á a tortura, a fim delhe poder tirar da boca toda a verdade”(p. 42). E a seguir complementa: “tortura-seo acusado, com o fim de o fazer confessarseus crimes” (p. 63).

A quaestio romana (MATTOSO, 1986,p. 44) foi herdada pela França, que, não sa-

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tisfeita, a aperfeiçoou em duas categorias: aquestion préparatoire (preparatória) e a ques-tion préalable (prévia). Aquela é a que ocorreantes da confissão do crime; esta é a préviaà condenação capital, com o intuito de obterdelação dos supostos cúmplices. De acordocom o grau de severidade, a question se sub-dividia ainda em ordinaire, que significavadose normal, e a extraordinaire, que seria adose dupla.

Países como Inglaterra3, Alemanha eRússia também se utilizaram fartamente datortura laica e profana, a fim de compensara falta de uma Inquisição soberana.

“Os tribunais de Inquisição não se-guiam ordem jurídica alguma e os pro-cessos não obedeciam às formalidadesdo Direito. Estimulava-se a delação, queformalizava a peça acusatória. A de-núncia oral fazia-se com as mãos sobreo Evangelho, como juramento, e, a par-tir daí, o inquisidor tramitava o proces-so, mantendo oculta a identidade dodenunciante. A obrigação de denun-ciar os hereges era permanente” (EVA-RISTO, 1986, p. 287-288).

Em suma, a Inquisição virou sinônimode tortura e, realmente, fez jus à fama, vistoas condenações à fogueira terem virado ro-tina e os tribunais eclesiásticos terem se es-palhado por toda a Europa.

4. Da progressiva rejeição datortura, graças à influência de

Cesare Beccaria, à sua positivaçãono art. 5º, III e XLIII, da Carta

Magna e na Lei 9.455/97

Com a evolução dos tempos, a Igreja en-volveu-se com as idéias humanistas e mi-norou os procedimentos medievais, estabe-leceu igualdade de todos perante a Justiçae, assim, restringiu a prática de torturas edetenções preventivas.

“O humanista cristão João Vives,em seu comentário a De Civitatte Dei,de Santo Agostinho, rejeita decidida-mente a tortura: como podem viver

tantos povos, inclusive bárbaros,como dizem os gregos e latinos, quepermitem torturar durissimamente umhomem de cujos delitos se duvida?Nós, homens dotados de todo sensohumanitário, torturamos homenspara que não morram inocentes, em-bora tenhamos deles mais piedade doque se morressem: muitas vezes os tor-mentos são, de longe, piores do que amorte...” (EVARISTO, 1986, p. 39).

Apesar de vários eventos terem contri-buído para o declínio da era institucionalda tortura, talvez o principal tenha sido apublicação da obra “Dos delitos e das pe-nas” de Cesare BECCARIA (2000)4, em 1764.Não só este, mas também outros iluminis-tas, como Voltaire e Bayle, posicionaram-secontrariamente à tortura. Levantar-se-ia, en-tão, a tese da injustiça e ineficácia da tortura.No entanto, em 3 de fevereiro de 1766, o SantoOfício incluiu no Index de livros proibidos amagnífica e revolucionária obra de Beccaria.

Poder-se-ia dividir a história da torturaem antes e depois de Beccaria; este foi extre-mamente à frente do seu tempo: denuncioua crueldade dos suplícios e julgamentos se-cretos e a prática da tortura como meio deobter a prova do crime – confissão. Defen-deu a nobre idéia de homens iguais e livresperante as leis. Destarte, Beccaria exerceuinfluência decisiva na reformulação da le-gislação vigente à época e estabeleceu osconceitos fundamentais das legislações quese sucederam, inclusive na atual Lei 9.455/97 (Lei da Tortura).

Segundo os ensinamentos de BECCA-RIA (2000, p. 39)5, quando for utilizada atortura como meio para abstrair a inocênciaou culpa de um indivíduo, prevalecerá a leido mais forte: “entre dois homens, igualmenteinocentes ou igualmente culpados, o mais robus-to e corajoso será absorvido; o mais débil, contu-do, será condenado” (2000, p. 39). Na síntesede seu pensamento, a tortura era vista comoum meio certo de condenar o inocente e ab-solver o criminoso forte, tudo se resumiria àmensuração da força física do pretenso cul-

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pado. Ao inocente tão-somente restará gri-tar que é culpado, a fim de se cessarem ostormentos a ele infligidos; o mesmo meiousado para distinguir o inocente do crimi-noso fará desaparecer qualquer distinçãoentre ambos. Assim, quem tem mais a per-der com a tortura é o inocente, que poderáterminar confessando um crime que nãocometeu ou, se tiver sorte, poderá ser absol-vido, mas só depois de já ter passado porvários suplícios, que não os fez por merecer.

Apesar de formalmente extinta, a tortu-ra entra, no século XX, em sua terceira fase:a do apogeu extra-oficial ou clandestino.Ainda hoje, é grande a influência de Becca-ria nas legislações vigentes, no entanto, atortura ainda sobrevive, principalmente nospaíses subdesenvolvidos e/ou nos em viade desenvolvimento. No Brasil, a Constitui-ção Federal de 1988 condena a prática datortura na clandestinidade (art. 5º), funda-mentada na dignidade da pessoa humanae nos direitos humanos. Vige, também, a Lei9.455/97 (Lei da Tortura), que afirma o se-guinte no art. 1º, § 6º : “o crime de tortura éinafiançável e insuscetível de graça ou anistia”.No entanto, são poucos os casos de torturaoficialmente registrados no Brasil, uma vezque quem é torturado sente-se quase sem-pre intimidado para denunciar os culpados;não é tão-somente uma questão de falta decoragem, mas também de medo de represá-lias por parte dos torturadores ou de mem-bros das organizações/corporações da qualestes últimos, normalmente, fazem parte.

5. Conclusão

Em suma, quem é torturado quer esque-cer o suplício, quem torturou quer a impu-nidade de uma legislação que vige, mas nãoobtém a eficácia social almejada. A ineficá-cia da Lei da Tortura deve-se sobretudo àtolerância dispensada à prática desse tor-mento, o qual mascara o conflito de duasforças poderosas: a luta do homem pela do-minação de seus semelhantes, por poder eprestígio, e os direitos à vida e à integridade

física e/ou corporal humana. Resta-nos,destarte, lutar para que os direitos huma-nos, presentes na Carta Magna, não sejamtão brutalmente desrespeitados e para queseja dada a devida importância à Lei 9.455/97, a fim de coibir o delito de tortura.

Notas

1 Eis o que afirma FOCAULT (2001, p. 31): “Osuplício repousa na arte quantitativa do sofrimen-to. Mas não é só: esta produção é regulada. O su-plício faz correlacionar o tipo de ferimento físico, aqualidade, a intensidade, o tempo dos sofrimentoscom a gravidade do crime, a pessoa do criminoso,o nível social de suas vítimas”.

2 “O suplício faz parte de um ritual. É um ele-mento da liturgia punitiva, e que obedece a duasexigências. Em relação à vítima, ele deve ser mar-cante: destina-se, ou pela cicatriz que deixa no cor-po, ou pela ostentação de que se acompanha, a‘purgar’ o crime, não reconcilia; traça em torno, oumelhor, sobre o próprio corpo do condenado sinaisque não devem se apagar; a memória dos homens,em todo caso, guardará a lembrança da exposição,da roda, da tortura ou do sofrimento devidamenteconstatado” (FOCAULT, 2001, p. 31-32).

3 “Já em 1760, se havia tentado na Inglaterra(por ocasião da execução de Lord Ferrer) uma má-quina de enforcamento (um suporte, que se esca-moteava por baixo dos pés do condenado, deviaevitar as lentas agonias e as altercações ocasiona-das entre a vítima e o verdugo). Foi adotada e aper-feiçoada definitivamente em 1783 (...)” (FOCAULT,2001, p. 15).

4 “Cesare Bonesana, marquês de Beccaria, nas-ceu em 15 de março de 1783, em Milão. Estudou nocolégio jesuíta de Parma, formou-se em Direito naUniversidade de Parma, em 1758. De 1768 a 1771,ocupou a cátedra de Economia nas Escolas Palati-nas de Milão. Foi nomeado conselheiro do SupremoConselho de Economia; enquanto membro desseConselho, supervisionou uma reforma monetária elutou pelo estabelecimento do ensino público. Em1791, participou da junta que elaborou uma refor-ma no sistema penal.(...) O marquês de Beccariamorreu em Milão, em 24 de novembro de 1794.”(2000, p. 125).

5 “Efetivamente, o inocente submetido à tortu-ra tem tudo contra si: ou será condenado por con-fessar o crime que não cometeu, ou será absolvido,porém após ter passado por tormentos que nãomereceu. Os culpados, ao contrário, tem por si umconjunto favorável; será absolvido se souber su-

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portar a tortura com coragem, e fugirá aos suplíci-os que pesavam sobre si, sofrendo após ter passa-do por tormentos que não mereceu” (2000, p. 40).

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Seção Resenha Legislativa daConsultoria Legislativa do Senado Federal

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Marcos Mendes

Quando o juiz deu por encerrada a par-tida final da copa do mundo de 2002 – Bra-sil 2 x 0 Alemanha –, Ronaldo Nazário eraum homem realizado: campeão do mundo,craque do jogo e da Copa, artilheiro do tor-neio. Tudo isso pouco depois de um ano deuma sucessão de cirurgias que quase o in-capacitaram para o esporte. No momentode euforia, tirou vigorosamente a sua cami-sa amarela número 9 e a arremessou para atorcida.

Em Taiwan, onde o futebol não está en-tre os esportes favoritos da população, al-guns homens vibraram com essa imagemvitoriosa.

Eram executivos da indústria têxtil lo-cal, que viam pela televisão a imagem deseu produto de última geração: as camisasesportivas dry fit, de tecido duplo, que ab-sorvem o suor do atleta e permitem a suarápida evaporação, deixando o corpo doesportista confortavelmente seco durantetoda a disputa. Quando Ronaldo tirou acamisa, pôde-se ver, com clareza, que o uni-

Desenvolvimento e eqüidade social: oBrasil visto de Taiwan

Marcos Mendes é Consultor Legislativo doSenado Federal. Doutor em Economia.

Sumário

O modelo de desenvolvimento de Taiwan.O modelo de desenvolvimento brasileiro. Li-ções de experiência de Taiwan. É preciso solu-cionar a restrição externa. Promoção comercial:estimular exportações sem distorcer os sinaisde mercado. A melhor política social é o em-prego. A importância da consistência de longoprazo. Conclusão.

Este artigo é o resultado da participação doautor no International Trade Promotion Workshop2002, promovido pelo Internacional Cooperationand Development Fund, órgão do governo deTaiwan dedicado à cooperação e assistência téc-nica em assuntos referentes a desenvolvimen-to econômico. O Workshop foi realizado no pe-ríodo de 12 a 26 de novembro de 2002, na cida-de de Taipei – Taiwan.

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forme tinha um forro interno, como uma se-gunda veste. Essa imagem era a garantia deum crescimento de vendas do produto emtodo o mundo nos próximos meses. Era tam-bém a confirmação de que a pequena ilhade Taiwan, que há menos de quarenta anosera tão pobre quanto o Haiti, estava agorana ponta do desenvolvimento tecnológicomundial.

Um país que consegue um desenvolvi-mento econômico tão rápido e vigoroso me-rece ser olhado com um pouco mais de aten-ção por aqueles que, como o Brasil, têm difi-culdade para fazer crescer a renda per capi-ta, a igualdade social e a estabilidade ma-croeconômica. Como mostra o documento“Agenda Perdida”, recentemente divulgadopor um grupo de economistas, “o Brasil nãocresce há vinte anos. Comparadas às déca-das de 60 e 70, as duas últimas décadas secaracterizam pela persistência de um cres-cimento quase nulo da renda por habitan-te” (LISBOA, 2002, p. 6).

Taiwan é hoje um país quase desenvol-vido. Andando por suas ruas, é possívelperceber uma população bem vestida e bemalimentada. Mendigos são uma raridade,encontrados em número muito inferior aosde Londres ou Nova York. Inimaginável se-ria encontrar crianças pedintes e maltrapi-lhas, como as que abundam nas grandes emédias cidades brasileiras. O sistema detransportes públicos é impecável e de gran-de capilaridade. A capital, Taipei, ostentaum sistema de metrô – inaugurado há trêsanos, e ainda em expansão – extremamenteeficiente e que supera em qualidade de ser-viço sistemas exemplares, como o de Paris.O metrô está integrado ao sistema de trensque liga Taipei às cidades vizinhas e aosistema de ônibus urbanos. As estações cen-trais desses transportes estão estrategicamentesituadas, lado a lado, no centro da cidade.

A qualquer lugar que se vá em Taipei, háum mar de pequenas motocicletas – scooters– pelas ruas. Às vezes famílias inteiras equi-libram-se em uma única moto, e ainda le-vam bagagens, como cestos com compras,

colchões ou móveis. Se um décimo dessesmotociclistas resolvesse andar de carro, Tai-pei teria engarrafamentos insolúveis, capa-zes de gerar “inveja” aos 180 quilômetrosdiários de congestionamento da cidade deSão Paulo.

As scooters não são apenas um símbolovisual e cultural do país. Elas são uma sina-lização da boa distribuição da renda. Amaioria da população não é rica o suficien-te para comprar um carro, mas todos po-dem ter uma moto, que facilita o desloca-mento até à estação mais próxima do metrô.

As moradias também indicam que nãose está em um país de primeiro mundo. Vê-se, por quase toda a capital, prédios comaparência de antigos, mal construídos oumal conservados. Provavelmente mais dametade da população vive em residênciascom pouco conforto. É muito comum a vi-são de prédios situados muito próximos aviadutos, com moradores expostos à fuma-ça e ao barulho, como aqueles edifícios de-bruçados sobre o minhocão em São Pauloou colados ao elevado Paulo de Frontin, noRio de Janeiro. Mas não se vê qualquer tipode favela, palafita ou moradia improvisada.

A todo momento as cenas de rua nos in-dicam que estamos em um país que foi po-bre e está caminhando rapidamente para ariqueza: barraquinhas de rua, oferecendocomidas típicas de forte odor e qualidadesanitária suspeita, instalam-se em frente amodernas lojas que ofertam notebooks e câ-meras digitais a preços inacreditavelmentebaixos. O grande número de pedestres emotociclistas usando máscaras de pano in-dica que a ânsia do crescimento não deixoumuito espaço para o controle da poluição.

De fato o crescimento da renda deTaiwan nos últimos 40 anos foi meteórico.Em 1961 a renda per capita do país era deUS$ 152, pouco mais da metade do valorapurado para o Brasil no mesmo ano (US$270). Em 1970 Taiwan ainda estava atrásdo Brasil: US$ 389 contra US$ 457.

No ano 2000, Taiwan havia atingidouma renda per capita três vezes e meia maior

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que a do Brasil: US$ 12.000 contra poucomais de US$ 3.500. O crescimento médioanual do PIB taiwanês no período 1962-95foi de 9%, quase o dobro da taxa de 5% obti-da pelo Brasil no mesmo período (WU, 2002;BANCO Central do Brasil).

O mais interessante é que, enquantoTaiwan crescia rapidamente, a sua distri-buição de renda não se deteriorava, enquan-to o Brasil não conseguiu reverter a extre-ma desigualdade herdada dos séculoscoloniais. Em 1995, as famílias que se en-contravam entre as 20% mais ricas emTaiwan tinham renda apenas 5,34 vezesmaior que as famílias que compunham ogrupo dos 20% mais pobres1. No Brasil essadiferença era de 28 vezes!2.

Também chama atenção o fato de queTaiwan não acumulou dívida externa aolongo do seu processo de crescimento. Pelocontrário, o país dispõe de reservas interna-cionais equivalentes a US$ 157 bilhões (50%do PIB), contra uma dívida externa irrisóriade US$ 55 milhões3. O Brasil exibe situaçãoinversa: uma dívida externa de US$ 165 bi-lhões (32% do PIB) (BANCO Central do Bra-sil), já tendo passado por duas moratórias,em 1982 e 1987. Tais moratórias foram se-guidas de penosas renegociações com os cre-dores, além de inúmeros acordos com o FMI,para sanar a aguda escassez de divisas.

Taiwan também não precisou recorrer aofinanciamento inflacionário para viabilizaros investimentos de sua arrancada econô-mica. A inflação anual média no período1961-95 foi de 6,4%. No Brasil a inflaçãomédia anual nesse período atingiu 257%!Tampouco existe uma dívida pública des-confortável, que equivalia, em 2001, a 32%do PIB, enquanto no Brasil o setor públicodeve o equivalente a 60% do PIB4.

E não é demais lembrar que Taiwan ob-teve todo esse sucesso enfrentando condi-ções bastante adversas. A formação moder-na do país se deu a partir de 1949, quandolá desembarcaram os chineses expulsos pelarevolução comunista, sob o comando do lí-der nacionalista Chang Kai Chek. Desde

então Taiwan vive uma situação de hosti-lidade e conflito iminente com a Chinacontinental – tendo vivenciado diversos epi-sódios de conflito armado nos primeirosanos –, o que consome grandes quantias derecursos nacionais.

O orçamento do ministério da defesa, porexemplo, representa 24% das receitas fiscaistotais, drenando recursos que poderiam es-tar sendo empregados em investimentosprodutivos. Há a necessidade de se manterum estoque de alimentos, para o caso de ailha vir a ser isolada. Para tanto, além daimportação acima das necessidades de con-sumo diário, Taiwan subsidia os produto-res agrícolas e dá a eles um insumo extre-mamente escasso na ilha: a água doce. Osagricultores contribuem com pouco mais de2% do PIB e consomem quase metade daágua disponível5.

Hoje, a China continental tem 64 mís-seis nucleares apontados para a ilha, queconsidera como província rebelde. E faz umapolítica externa visando isolar o país dosfóruns econômicos e políticos internacio-nais. Taiwan está fora da ONU e só conse-guirá ingressar na Organização Mundial doComércio após a aceitação da China, o querepresenta uma espera de 12 anos.

Não bastasse o poderoso inimigo inter-nacional, Taiwan ainda tem que lidar comterremotos e tufões que atingem seu territó-rio de tempos em tempos. Em setembro de1999, um terremoto vitimou quase 2 mil pes-soas, feriu outras 4 mil e destruiu 30 mil re-sidências (QUAKE of the century, 1999?). Aárea geográfica da ilha é extremamente pe-quena (36 mil Km2), um pouco maior que oestado de Alagoas (28 mil Km2), sendo quequase um terço da ilha é composta por mon-tanhas que não podem ser habitadas e nãosão passíveis de exploração econômica. Nãohá recursos naturais disponíveis e as condi-ções do solo não são favoráveis à agricultura.

Como é que em condições tão adversasesse país conseguiu sair da pobreza extre-ma e entrar no século XXI como candidato apaís rico?

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O modelo de desenvolvimento deTaiwan

Ao final da década de 50, Taiwan eraum país com abundância de mão-de-obrade baixa qualificação e sem capital pararealizar investimentos. Precisava impor-tar quase todos os produtos para consu-mo cotidiano, inclusive comida. Não ha-via mercado interno porque os habitanteseram poucos e pobres. Sobrevivia-se, nosprimeiros anos, em função da ajuda econô-mica dos Estados Unidos, que doava recur-sos aos inimigos dos comunistas instaladosno continente.

Para superar essa situação, montou-seum modelo econômico voltado para o usointensivo do único insumo abundante: mão-de-obra. E era preciso empregar essa mão-de-obra na produção de bens exportáveis,para gerar as divisas necessárias à impor-tação de alimentos e demais bens de consu-mo. Os taiwaneses compreenderam muitocedo que obter dólares era uma questão devida ou morte. E a única forma de fazê-loera por meio da exportação.

Criou-se, então, um modelo de exportarpara poder importar. A base da economiafoi a pequena empresa, que produzia ma-nufaturas a baixo custo (brinquedos, pro-dutos têxteis, calçados), para as quais ha-via imensos mercados nos países desenvol-vidos, em que o custo mais alto da mão-de-obra tornava os similares nacionais nãocompetitivos. Se fosse produzir para o mer-cado interno, as empresas de Taiwan iriamvender “meia dúzia” de sapatos. No merca-do externo, o céu era o limite.

Uma conseqüência imediata desse mo-delo foi o crescimento com inclusão social.A população, embora recebendo, inicialmen-te, baixos salários, foi rapidamente empre-gada. A taxa de desemprego em Taiwan nosúltimos 30 anos sempre ficou abaixo de 3%6.No Brasil o IBGE calcula, para as regiõesmetropolitanas, uma taxa média de 6,6% nosúltimos 30 anos e o DIEESE estima em 17%a média para os últimos cinco anos.

A base da economia de Taiwan, até hoje,é formada por pequenas e médias empresasque, reconhecidamente, são as que mais ge-ram empregos: 98% das empresas do paíssão pequenas e médias empresas (com fatu-ramento de até US$ 3 milhões/ano), contri-buindo com 35% do PIB e mais de 50% dasexportações7.

Com quase toda a população emprega-da, tornaram-se menos importantes as polí-ticas de assistência social e complementa-ção de renda, evitando-se um ônus adicio-nal ao setor público, que pôde concentrar osseus gastos na construção de uma infra-es-trutura de transportes e logística que facili-tasse os negócios privados e as exportações.À medida que Taiwan conquistava novosmercados externos, os salários subiam. En-tre 1960 e 2000, os salários de trabalhado-res iniciantes na indústria cresceram, emdólar, 100 vezes!8.

Outro importante pilar do modelo eco-nômico foi o investimento em educação e oacúmulo de capital humano. Em 1965Taiwan já havia atingido a taxa de 97% dascrianças matriculadas na educação funda-mental, meta que o Brasil só atingiu no ano2000. Em 1975, 89% dos jovens de Taiwanem idade de cursar o ensino secundário es-tavam efetivamente matriculados nessescursos. No Brasil, em 2000 essa taxa estavaem torno de 36%. Outra característica inte-ressante do sistema educacional de Taiwanfoi o direcionamento do currículo para asnecessidades do mercado de trabalho. As-sim, em 1988, para cada vaga no ensino se-cundário acadêmico, destinado a alunosque desejavam ir para a universidade, ha-via duas vagas no ensino secundário voca-cional, voltado para alunos que desejavamingressar no mercado de trabalho ao finaldos estudos secundários. À medida que aeconomia foi migrando de uma estruturamanufatureira para uma especialização emtecnologia e serviços, o ensino secundárioacadêmico ganhou espaço, passando a teruma vaga para cada 1,14 vagas no ensinovocacional9.

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Com uma população altamente escola-rizada e dispondo de dólares, os taiwane-ses puderam importar produtos de tecnolo-gia avançada e copiar as tecnologias nelescontidas. Criou-se, com isso, um modelo dedesenvolvimento em que a produção indus-trial foi gradualmente se sofisticando e in-corporando tecnologia e valor agregado. Aindústria têxtil é um exemplo dessa evolu-ção: de fabricante de tecidos sintéticos debaixo custo, ela se transformou, paulatina-mente, em criadora de “tecidos inteligentes”para uso esportivo, como a camisa usadapor Ronaldinho e grande parte das seleçõesna Copa do Mundo. De fabricantes de tos-cas bicicletas, utilizadas como meio detransporte no meio rural, Taiwan passou àposição de principal fabricante mundial debicicletas esportivas.

Essa evolução foi forçada pelo própriosucesso do modelo exportador, como mos-tra um relatório governamental: “Na déca-da de 1980, Indonésia, Malásia e Tailândiaengajaram-se no desenvolvimento de suaseconomias, canalizando a mão-de-obra do-méstica barata e lucrativa para desenvolveras indústrias de mão-de-obra intensiva edirigir-se diretamente ao mercado mundial.(...) Enquanto isso, a competitividade demuitas indústrias de mão-de-obra intensi-va de Taiwan diminuiu quando o NovoDólar de Taiwan se valorizou [em funçãodo acúmulo de reservas internacionais] e ossalários aumentaram acentuadamente. Issoforçou algumas indústrias a melhorar osseus padrões técnicos em um ritmo muitomais rápido que o originalmente planeja-do” (TAIWAN, 1999a).

Ou seja, o sucesso do modelo exporta-dor de Taiwan (e de Japão e Coréia do Sul)induziu economias vizinhas a adotar o mes-mo caminho. Como Taiwan estava duasdécadas mais adiantada que Indonésia,Malásia e Tailândia no desenvolvimentodesse modelo, os seus salários já estavammais altos, os terrenos e imóveis já estavammais valorizados e a própria moeda do paístambém se valorizara, e isso representava

custos mais altos. Era, portanto, necessárioevoluir para um novo patamar, vendendoprodutos diferentes daqueles oferecidos pe-los novos concorrentes.

O investimento governamental em pes-quisa tecnológica, em que se destaca o Par-que Científico Industrial de Hsinchu, inau-gurado em 1981, permitiu que essa corridaem busca da sofisticação chegasse até à in-dústria de eletrônica e informática. Em 1987apenas 24,2% das exportações do país eramrepresentadas por produtos intensivos emtecnologia. Em 1995 esse percentual chega-va a quase 50%10.

A contribuição do governo para esse pro-cesso não se restringiu a investimento tec-nológico e a incentivos fiscais e creditícios àexportação. Parece ter sido fundamental aobstinação em manter o equilíbrio macroe-conômico, evitando a tentação de financiaro crescimento por meio da emissão de moe-da e da inflação; bem como a preocupaçãode se criar um ambiente institucional quedesse segurança aos investidores externospara levarem seus capitais para Taiwan.Assim, medidas como controles de remes-sas de lucros, moratórias em débitos exter-nos e quebras unilaterais de contratos fo-ram, desde cedo, banidas das políticas go-vernamentais.

O modelo de desenvolvimentobrasileiro

A política de desenvolvimento de Taiwancontrasta com o que se fez no Brasil. Aqui,embora tivéssemos uma exuberância de re-cursos naturais, inexistentes em Taiwan,éramos igualmente pobres em capital e tí-nhamos abundância de mão-de-obra. Mas,em vez de investirmos em um modelo deprodução que usasse intensivamente a nos-sa mão-de-obra, optamos por uma industri-alização intensiva em capital. Assim, já nadécada de 40, o governo fazia grande esfor-ço para implantar uma indústria de aço nopaís, com a criação da Companhia Siderúr-gica Nacional. E esse padrão se repetiu ao

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longo das décadas seguintes, com a vindadas indústrias automobilísticas e o desen-volvimento de indústrias de base, como osetor petroquímico.

Essa opção parece ter sido determinantede várias mazelas e desequilíbrios econô-micos que carregamos até hoje. Em primeirolugar, ao optar por um modelo industrialcapital-intensivo, sem dispor desse capital,o país precisou pagar para obter tal insu-mo. É verdade que boa parte do capital veioespontaneamente para o país, mediante in-vestimentos diretos estrangeiros. Mas boaparte dos investimentos foi financiada porempréstimos externos. O país se endivida-va antes de criar a riqueza suficiente parapagar essa dívida.

Em segundo lugar, ao tentar “queimaretapas” desenvolvendo uma indústria ca-pital-intensiva, o Brasil contrariava a lógi-ca de mercado. Não havia capitais priva-dos dispostos a investir em siderurgia ouem química fina em um país que não apre-sentava vantagens comparativas nessa área.A solução, então, foi substituir o investimen-to privado pelo investimento estatal. O go-verno passava a se envolver diretamente naprodução. Durante muitas décadas, as maio-res empresas brasileiras eram estatais: Sider-brás e Petrobrás são dois claros exemplos.

E como financiar o investimento públiconessas atividades que deveriam ser priva-das? A dívida externa pública e o impostoinflacionário foram as soluções encontra-das. O modelo de desenvolvimento capital-intensivo implantado a partir dos anos 40selava o destino de instabilidade macroeco-nômica (excessivo endividamento públicointerno e externo; inflação descontrolada)que seria vivido a partir da década de 80.Também se usou fartamente o mecanismode estimular os investidores privados a im-portar capital, dando-se garantia estatal aoendividamento privado. Isso, mais tarde,significou a estatização da dívida externaprivada, com a socialização dos custos domodelo de desenvolvimento. Possivelmen-te esse é um dos motivos para o fato de a

dívida pública brasileira ser hoje, em termosde PIB, o dobro da dívida pública de Taiwan.

Outra conseqüência do modelo de desen-volvimento capital-intensivo foi a atrofia dacapacidade exportadora do país. Taiwanoptou por começar exportando manufatu-ras baratas porque enxergou um mercadointernacional para a colocação desses pro-dutos. Os países desenvolvidos não esta-vam interessados nesse tipo de mercado edeixavam a porta aberta para a arrancadainicial da indústria manufatureira de umpaís pobre. Já o Brasil, ao produzir aço, car-ros e aviões, batia (e bate) de frente, no mer-cado internacional, com o interesse de paí-ses como Estados Unidos e Canadá, que têmmuito mais capital e poder político nos fó-runs internacionais.

O caso Embraer é um bom exemplo. OBrasil emprega um grande volume de recur-sos fiscais subsidiando a produção nacio-nal de aviões, assim como o Canadá tam-bém subsidia a sua Bombardier. Qual dosdois países tem mais poder de fogo nessabriga de subsídios? E qual dos dois paísestem mais condições de angariar aliadosquando essa disputa comercial chega àmesa da OMC? Obviamente o Canadá e, comisso, as exportações brasileiras não deslan-cham, bloqueadas por competidores maisfortes. Ou, quando se consegue exportar, háum alto custo fiscal associado a essa venda.

É preciso levar em conta, também, quealguns produtos em que o Brasil tem fortesvantagens comparativas sofrem restriçõescomerciais nos EUA. É o caso, por exemplo,do suco de laranja. Mas essa constatação sóreforça o argumento de que para alavancarexportações o país precisaria ter desenvol-vido setores que fossem complementares – enão concorrentes – às economias desenvolvi-das, para compensar o fato de já sermos natu-ralmente competidores em alguns segmentos.

Um outro problema fundamental gera-do pelo modelo de industrialização capital-intensivo é que ele reforçou, em vez de re-mover, a restrição externa ao crescimento dopaís. Criou-se, no Brasil, uma sofisticada

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indústria de bens de consumo, cujo ícone éo automóvel. Todavia essa indústria é alta-mente dependente de insumos e maquiná-rio importado. Como tal indústria é voltadapara o mercado interno, ela não gera as di-visas necessárias para pagar suas importa-ções. Em conseqüência, sempre que a eco-nomia começa a crescer mais rápido, há umsalto nas importações sem um correspon-dente aumento de exportações: o resultadoé uma crise no balanço de pagamentos. Te-mos um gigante com pés de barro.

Além disso, as indústrias intensivas emcapital não geraram empregos suficientes,marginalizando grande parte da população,que fica sem perspectivas de trabalho. Quan-do os agricultores de Taiwan iam para ascidades em busca de emprego, ali encontra-vam um sem-número de microempresas ofe-recendo esses empregos. No Brasil, entre osmilhares de agricultores que chegavam a SãoPaulo, apenas uns poucos afortunados con-seguiam uma vaga na Volkswagen ou emuma empresa estatal. Os outros se acumu-lavam nas periferias, sobrevivendo de tare-fas eventuais e de baixa produtividade.

O modelo brasileiro de estímulo estatalà industrialização capital intensiva pareceter sido determinante para a exclusão sociale a má distribuição de renda. Somente ospoucos privilegiados que conseguiam em-prego na indústria capital-intensiva é quetinham capacidade de consumo. O merca-do interno, portanto, era composto por es-ses privilegiados. Só eles tinham renda paracomprar a produção da indústria nacional.Fechava-se um círculo. O mercado só cres-cia se a renda dos “incluídos” crescesse.Fosse o modelo um pouco mais preocupadocom a produção e exportação intensiva emmão-de-obra, a paulatina absorção dos de-sempregados, via expansão das exporta-ções, permitiria a sua inclusão no mercadointerno. Talvez esteja aí uma explicaçãopara o fato de a renda ser tão mais concen-trada no Brasil do que em Taiwan.

Mas o desemprego não podia se acumu-lar impunemente no Brasil, sob pena de con-

vulsão social. E por isso o modelo capital-intensivo gerou outro subproduto indeseja-do. O inchaço do setor público. Se a econo-mia privada não era capaz de absorver amão-de-obra que entrava no mercado de tra-balho, os chefes políticos locais e nacionaispassaram a receber pressões para empregarsua clientela no governo. Todos os níveis degoverno, em especial os governos locais,deixaram, e até hoje deixam, de ter como fun-ção principal a oferta de bens públicos àpopulação, passando, muitas vezes, a se-rem simples pagadores de salários, tendoem suas folhas de pagamento um contin-gente muito superior ao necessário.

Um claro exemplo da importância que oinvestimento e o emprego público ganha-ram na economia nacional está na constru-ção da nova capital do país na década de50. Juscelino Kubitscheck, o grande líderdesenvolvimentista do Brasil, não teve comoprincipal projeto a construção de um mode-lo industrial ou a instalação de infra-estru-tura pública que estimulasse ou agilizasseos negócios privados. O projeto de sua vida,e pelo qual é lembrado, foi a construção, comdinheiro público, de uma nova cidade. Pré-dios, ruas, monumentos. Nada que acres-centasse capacidade produtiva ou ganhosde produtividade à economia privada dopaís. Mas sim gastos públicos, que geravamemprego e transferências de renda dentroda sociedade, à custa de inflação e dívidapública crescente.

Como a maioria da população não temacesso a emprego ou a contratos públicos,outra pressão é exercida sobre o erário: ademanda por gastos sociais que aliviem apobreza dos desempregados e excluídos.Programas sociais como cestas básicas, ren-da mínima, subsídio para bens de primeiranecessidade e aposentadoria rural aumen-tam, a cada ano, o contingente da popula-ção que vive de rendas públicas. EnquantoTaiwan resolveu o seu problema de pobre-za por meio da geração de emprego privadoe do crescimento do salário à medida que ageração de riqueza aumentava, no Brasil, a

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economia privada, que gera as riquezas dopaís, precisa ser crescentemente tributadapara sustentar as transferências de rendarealizadas pelo setor público.

Junte-se a isso a amortização da dívidaacumulada pelo setor público ao tomar noexterior o capital necessário para financiaro desenvolvimento capital-intensivo, e pa-rece ficar claro o motivo pelo qual a dívidapública, em especial a dívida pública exter-na, disparou ao longo dos anos 60 e 70, le-vando à moratória externa e à débâcle dasfinanças públicas em 1982.

Desde então muito esforço tem sido feitono sentido de se promover um ajuste fiscalno país. Todavia, a grande importância dosetor público na geração de emprego e ren-da (aí incluído o peso da previdência do setorpúblico) e na “remediação” da pobreza, bemcomo a alta dívida pública, impedem umaredução significativa do gasto público. Porisso o ajuste fiscal se tem feito pelo lado dareceita. A carga tributária brasileira que erade 25% do PIB em 1991 chegou a 34% doPIB em 2001 e, mesmo assim, o governo ain-da contribui negativamente para a forma-ção de poupança nacional, consumindo re-cursos que poderiam estar sendo investidosno setor produtivo.

Lições da experiência de Taiwan

Antes de se tentar extrair lições a partirda comparação de dois países, é precisodeixar claras importantes diferenças. Afir-mar que o modelo de desenvolvimento apli-cado a um país pequeno e sem recursos natu-rais, como Taiwan, seria adequado a um paísde dimensões continentais e de natureza pró-diga, como o Brasil, soa estranho. Ademais,as lições que interessam são aquelas que po-dem vir a ser aplicadas daqui para frente, combase na estrutura econômica de que o Brasildispõe. Portanto, estão fora do cardápio pro-postas exóticas do tipo “abandone tudo e co-mece de novo, com uma indústria intensivaem mão-de-obra”. Até porque o momento his-tórico para essa estratégia já passou.

A primeira diferença que se deve enfati-zar é que é natural que Taiwan tenha se de-votado mais ao comércio exterior que o Bra-sil. Como mostra a literatura (FRANKEL;ROMER apud RODRIK; SUBRAMANIAN;TREBBI, 2002, p. 14), países pequenos têmmaior propensão ao comércio. Isso é intuiti-vo: quanto menor a área geográfica, meno-res tendem a ser as disponibilidades de re-cursos naturais e insumos, bem como me-nor tende a ser a população e a escala domercado interno. Assim, tais países tendema buscar mercado, renda e insumos em ou-tros países.

O Brasil, tendo população suficiente quegaranta escala de produção para consumointerno, tem a opção de gerar renda e em-prego investindo em setores não voltados àexportação. Também pode economizar divi-sas pela substituição de importações. Mas issonão afasta uma outra realidade: o país é ca-rente em reservas internacionais e, por isso,precisa buscá-las por meio da exportação.

Uma outra diferença relevante é que, aoimplantar o seu modelo exportador, Taiwancontou com condições favoráveis que nãoexistem atualmente para o Brasil. O interes-se estratégico dos EUA em auxiliar um ad-versário da China comunista garantiu aTaiwan um fluxo de capital estrangeiro, semcustos, que permitiu o financiamento inicialdo desenvolvimento. Além disso, nos anos60 e 70 havia menos concorrência no mer-cado internacional. A Coréia do Sul, forteconcorrente de Taiwan, ainda não haviainiciado seu esforço de exportação. Hoje di-versos países em todo o mundo descobri-ram a importância de ganhar mercados ex-ternos e a disputa é muito mais intensa. Nãoexistem apenas Taiwan, Japão e Coréia ex-portando para todo o mundo, mas há tam-bém Singapura, Tailândia, China continen-tal, Malásia, Vietnam. Outros países comoÍndia, Irlanda e México também entraramfirmes na disputa.

O modelo de Taiwan foi implantado poruma ditadura política, que durou até 1996.Não havia espaço para demandas de gru-

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pos de pressão internos que representassemaumentos nos custos de produção. Os tra-balhadores, por exemplo, não podiam fazergreve. Do ponto de vista de eficiência domodelo exportador, esse era um ponto posi-tivo, pois não havia atraso na entrega dasencomendas no exterior, e os exportadorestaiwaneses tornavam-se confiáveis para osimportadores de todo o mundo. Mas do pon-to de vista interno, tinha-se o custo da faltade direitos de expressão e reivindicação.

Se houvesse espaço para pressão e de-bate político na Taiwan dos anos 70, possi-velmente o crescimento econômico seria me-nos intenso, dando lugar a questões como,por exemplo, a proteção ambiental, que ele-va os custos de produção e restringe algu-mas atividades econômicas nocivas aomeio-ambiente.

Uma diferença relevante, no que diz res-peito à distribuição de renda, é que logo noinício do processo de desenvolvimento, nosanos 50, Taiwan promoveu uma ampla re-forma agrária. A distribuição eqüitativa doprincipal patrimônio de uma economiaagrária certamente teve forte impacto sobrea distribuição de renda. Com isso, Taiwanentrou no processo de desenvolvimentocomo um país pobre, porém, igualitário. Aocontrário do Brasil que, no início de sua in-dustrialização, já tinha a renda bastante con-centrada e milhares de ex-escravos e seusdescendentes formando uma massa de pes-soas pobres, sem instrução e sem patrimônio.

Apesar dessas diferenças, é possível ti-rar algumas lições para que o Brasil possaaprimorar o seu modelo econômico visan-do ao desenvolvimento econômico e à in-clusão social.

É preciso solucionar arestrição externa

A primeira lição é que, para um país nãodesenvolvido, a restrição mais importante éa restrição externa. Ter uma moeda nacio-nal não conversível significa estar expostoà possibilidade de não ter liquidez para

pagar compromissos internacionais ou im-portar bens necessários ao desenvolvimen-to econômico.

No Brasil, freqüentemente a classe pro-dutora reclama da taxa de juros, alegandoser esse o maior entrave para o crescimentoda economia. Não é verdade. A taxa de juroselevada é conseqüência, entre outras coisas,da falta de divisas estrangeiras suficientespara permitir que a economia cresça sem quehaja uma crise no balanço de pagamentos.

No passado recente, sempre que a eco-nomia cresceu acima de 4% ou 5% ao ano,abriu-se significativo déficit na conta-cor-rente do balanço de pagamentos. Isso por-que, como argumentado acima, nossa plan-ta industrial é dependente de importações(como o são as indústrias na maioria dospaíses), mas gera poucas receitas em moedaestrangeira, estando primordialmente volta-das para o mercado interno. O crescimentoeconômico por vários anos seguidos é, por-tanto, receita certa para uma crise cambial.

Para evitar essa crise, os gerentes da eco-nomia elevam os juros, que atraem capitaisde empréstimo e reduzem o nível de ativi-dade econômica. Entram divisas pela contade capitais e diminui a saída de divisas parapagamento de importações.

Os gráficos a seguir mostram o compor-tamento do saldo de transações correntesnos períodos de expansão e contração daeconomia. É nítido o movimento de gangor-ra: quando o PIB está em expansão, o déficitem transações correntes dispara; quando hárecessão, o déficit desaparece.

Entre 1974 e 1980, o Brasil teve um cres-cimento médio do PIB de 7,1%. Nesse perío-do, o déficit em transações correntes foi ele-vado e crescente, subindo de US$ 7 para US$13 bilhões, com a balança comercial sendonegativa em todos os anos, numa média deUS$ 2,4 bilhões (Gráfico 1). Foi necessáriauma recessão no período 1981-83, com varia-ção média do PIB de -2,1%, para que o défi-cit em transações correntes fosse zerado(Gráfico 2). A economia voltou a crescer en-tre 1984 e 1986, com uma evolução média

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Gráfico 1

Gráfico 2

Gráfico 3

Saldo em Transações Correntes Durante Expansão de 1974-80

(crescimento médio do PIB de 7,1%)(US$ Milhões)

-13.000

-10.000

-7.000

-4.000

1974 1975 1976 1977 1978 1979 1980

Saldo em Transações Correntes Durante Recessão de 1981-83 (crescimento médio do PIB de -2,1%)

(US$ Milhões)

-18.000

-15.000

-12.000

-9.000

-6.000

1981 1982 1983

Saldo em Transações Correntes Durante Expansão de 1984-86 (crescimento médio do PIB de 6,9%)

(US$ Milhões)

-6000

-4000

-2000

0

1984 1985 1986

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Gráfico 5

Gráfico 4

do PIB de 6,9%, o que derrubou o saldo dabalança comercial e levou a conta-correntea um crescente déficit, que atingiu US$ 5,3bilhões em 1986 (Gráfico 3). Entre 1987 e1992, a economia teve desempenho medío-cre, com evolução média do PIB de apenas0,46%, e as contas externas voltaram a seequilibrar, passando de um déficit de US$ 2bilhões em 1987 para um superávit de US$6 bilhões em 1992 (Gráfico 4). A economiaacelerou seu passo a partir de 1993, cres-cendo em média 5% até 1995, o que foi sufi-ciente para que o déficit em conta-correntesubisse a US$ 18 bilhões, agora também

impulsionado pela sobrevalorização cam-bial (Gráfico 5) (BANCO Central do Brasil).

O comportamento da balança comercialno ano de 2002 é mais um exemplo claro decomo se faz o ajuste das contas externas: osuperávit comercial de US$ 1,8 bilhão em2001 pulou para US$ 14 bilhões em 2002.Isso foi conseguido basicamente às custasda compressão das importações, que caíram16%, frente a um aumento de apenas 3% nasexportações. O ajuste se fez, portanto, a par-tir de uma grande freada nas importações, oque se consegue, apenas, com um menorcrescimento do PIB.

Saldo em Transações Correntes Durante Estagnação no Período 1987-92

(crescimento médio do PIB de 0,46%)(US$ Milhões)

-5.000

-2.000

1.000

4.000

7.000

1987 1988 1989 1990 1991 1992

Saldo em Transações Correntes Durante Expansão de 1993-1995 (crescimento médio do PIB de 5%)

(US$ Milhões)

-19000

-13000

-7000

-1000

1993 1994 1995

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Revista de Informação Legislativa346

Por isso, se o Brasil não fizer um esforçode ampliação de suas exportações, estarácondenado a ver seus ciclos de crescimentoeconômico estancados pela ampliação dodéficit externo. Ou, se quiser manter sob con-trole as contas externas, terá que manterpermanentemente juros elevados e taxasmedíocres de crescimento do PIB. E paraampliar exportações não é preciso apenas“vontade política” ou “declarações de in-tenções”. É preciso uma estratégia ativa.

Como o Brasil não é um país que estápartindo do zero em termos de capacidadeprodutiva – que era o caso de Taiwan nosanos 50 – e como tem escala de produção emercado interno, é factível pensar não sóem expansão de exportações, mas tambémem uma ação governamental buscando asubstituição de importações.

Não se está falando aqui da velha políti-ca de barreiras tarifárias e não-tarifáriaspara proteção da indústria nascente. Essetipo de procedimento impede o país de ab-sorver novas tecnologias por meio da im-portação de produtos inovadores. Trata-sede estabelecer uma política de atração deinvestimentos, para que se produzam nopaís bens que hoje são importados.

Um estudo do Instituto de Estudos parao Desenvolvimento Industrial (IEDI), porexemplo, sugere que parcela substancial dasimportações de empresas multinacionaissediadas no Brasil representa comércio in-trafirma. Ou seja, existiria a possibilidadede essas empresas transferirem para o Bra-sil a produção de partes e insumos que hojesão produzidas em suas matrizes ou emoutras filiais que não a brasileira (GRAN-DES empresas..., 2003). Para que isso ocor-ra, todavia, é preciso haver um estudo deviabilidade e uma estratégia governamen-tal de médio e longo prazo capazes de con-vencer tais firmas a tomar tal atitude.

E como incentivar exportações e substi-tuir importações sem que isso representeuma intromissão do governo nos processosdecisórios do mercado? Terá o governo ca-pacidade de definir quais setores têm van-

tagem comparativa e, por isso, merecem tra-tamento preferencial? Possivelmente não. Atendência é que grupos de maior acesso aopoder capturem os benefícios fiscais.

O próprio governo de Taiwan sofreu esseproblema. Como o seu modelo incluía umaforte dose de dirigismo, com o governo esco-lhendo os setores exportadores que consi-derava mais promissores, houve desvirtua-mento dos incentivos. Como reconhece umrelatório governamental: “alguns negóciosfingiam participar das exportações paraaproveitar as devoluções tarifárias e subsí-dios governamentais. Enquanto isso, mui-tas empresas privadas, sem receber qual-quer assistência governamental, se conver-teram em líderes de exportação em Taiwan,ao explorar novas áreas” (TAIWAN, 1999).

Provavelmente a forma mais neutra deatuação seja por meio dos mecanismos depromoção comercial. Tendo sido esse o ob-jeto da visita realizada a Taiwan, cabe umaabordagem mais detalhada do tema.

Promoção comercial: estimularexportações sem distorcer os

sinais de mercado

Promover exportações é dar assistênciaaos exportadores para que eles possam co-locar seus produtos no mercado externo. OBrasil está apenas engatinhando nessa área.A agência encarregada dessa tarefa – APEX– foi criada muito recentemente, em 1997, eestá escondida dentro do organograma doServiço de Apoio às Micro e PequenasEmpresas (SEBRAE). Restringe-se a auxi-liar as pequenas empresas a entrar no mer-cado externo. Está cumprindo seu papelcom bastante eficiência, mas ainda estálonge de ser um centro estratégico de pro-moção comercial do país.

Em Taiwan, a agência de promoção deexportações – China External Trade Deve-lopment Council (CETRA) –, criada em1970, ocupa posição de destaque entre asinstituições de formulação de política eco-nômica e tem sido uma ferramenta funda-

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mental para o boom exportador do país. Aidéia é que não basta um governo atuar nocampo diplomático, buscando acordos decomércio com outros países. É preciso atuardiretamente ajudando os exportadores a fe-char negócios.

A CETRA realiza pesquisas de mercadobuscando detectar países que constituammercados potenciais para os produtos deTaiwan, coleta e organiza informações so-bre importadores, repassando-os aos expor-tadores locais, organiza a viagem de gru-pos de importadores a Taiwan para visitarseus fornecedores e de grupos de taiwane-ses a países com potencial de compra, aju-da os exportadores taiwaneses a participarde feiras internacionais, organiza feiras emTaiwan, auxilia no desenvolvimento de de-sign dos produtos de exportação, realizaseminários e treinamentos sobre como par-ticipar de feiras no exterior e como exportar,publica periódicos e notícias de interessedos exportadores.

Trata-se, portanto, de um serviço que visaestimular a realização de negócios externospelo tratamento sistemático de informaçõese conhecimentos sobre como e onde fazernegócios.

Algumas características dessa institui-ção merecem relevo. Em primeiro lugar, elanão é totalmente financiada pelo governo.Parte significativa de suas receitas vem dacontribuição dos exportadores. A razão paraisso é que – nas palavras de K.H. Wu –, “sea CETRA depender exclusivamente de re-cursos do orçamento do governo, ela teráque escutar o governo em vez de escutar osexportadores” (WU, 2002). Trata-se de darpoder ao setor exportador para influenciaras ações da agência.

Ao mesmo tempo, há a vantagem de queos beneficiários diretos da promoção de ex-portações estão pagando por esse serviço, ede que as ações da entidade não ficam sujei-tas a eventual escassez de recursos fiscaispara financiar suas atividades.

A contrapartida do financiamento pelosexportadores é a sua participação direta no

conselho diretor da CETRA. Dos 36 direto-res da entidade, apenas nove são indicadospelo governo. Os demais 27 são líderes desetores exportadores e especialistas em pro-moção comercial.

Outra característica interessante da CE-TRA é que seus empregados não são funcio-nários públicos. Isso significa que não épossível haver migração de pessoal da CE-TRA para outros órgãos públicos e vice-ver-sa. O resultado é que aqueles que entram naCETRA, mediante concurso, ali desenvol-vem suas carreiras por toda a vida, tornan-do-se especialistas em promoção comercial.Não há a opção de passarem um tempo desua carreira em outras atividades de gover-no. Por isso, para crescerem na carreira, pre-cisam se especializar em promoção comer-cial. Por outro lado, não há a possibilidadede funcionários de outros órgãos, que nãoforam treinados dentro da filosofia de pro-moção comercial, virem a integrar os qua-dros da instituição.

Isso criou, ao longo dos anos, um corpotécnico com grande conhecimento práticode como participar de negócios. Nos primei-ros anos, o esforço era para levar os expor-tadores a feiras internacionais. Com o pas-sar do tempo, a organização tornou-se ca-paz de selecionar as feiras mais importan-tes e que davam maior retorno. Passou tam-bém a ter maior capacidade de logística parafazer tais organizações. Aprendeu, também,a “trabalhar” o cliente potencial, avisando-o antecipadamente de que estaria presentea uma determinada feira, enviando catálo-gos antecipadamente, etc. Passou a usar asfeiras, também, para testar produtos novos,exibindo-os a clientes selecionados. Atual-mente, os especialistas da CETRA conhe-cem em profundidade o perfil das princi-pais feiras do mundo.

A atividade de promoção comercial sedesenvolve por meio da experiência, doaprender fazendo. Percebendo-se os deta-lhes que podem significar ou não o fecha-mento de um contrato. Um exemplo ilustra-tivo é o sítio de exportações de Taiwan na

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internet (www.taiwantrade.com.tw), man-tido pela CETRA. Ali, todos os exportado-res podem ser encontrados. Um importadorpode solicitar amostras de produtos e obtertodas as informações relevantes para a con-cretização de negócios. O Brasil também temum sítio semelhante. Todavia a amplitude ea qualidade das informações no sítio taiwa-nês são muito superiores. Ele se constituiem uma ferramenta de negócios, enquantoo similar brasileiro é quase que meramentedisseminador de informações gerais. Emambos os sítios há a possibilidade de se lo-calizar dados das firmas exportadoras. Mas,no caso brasileiro, em 90% dos casos em quese usa essa opção, recebe-se a resposta “in-formação não disponível”.

O governo brasileiro lançou esse sítio narede e limita-se a divulgá-lo junto a exporta-dores brasileiros, com propagandas even-tuais. Trata-se, portanto, de mais um entreos milhares de portais disponíveis pelomundo. No caso de Taiwan, a CETRA in-veste pesado na divulgação de seu portal.Anúncios são colocados em banners nas fer-ramentas de busca da internet. Há um standdo taiwantrade.com nas principais feiras domundo, em que se oferecem cadeiras paraos visitantes descansarem, lanche e compu-tadores para checagem de e-mails. E, comisso, os administradores do sítio conseguemcaptar os cartões comerciais dos visitantesdo stand e passam a fazer follow up, convi-dando aquelas pessoas a visitarem o portale conferir oportunidades de negócio.

Pode-se dizer, de modo genérico, queambos os países têm portais de promoçãode exportação na internet. Mas quando seavaliam os detalhes, fica nítido que Taiwanestá muito a frente. E é assim em toda a ati-vidade de promoção comercial: a experiên-cia, a capacidade de perceber os detalhesrelevantes, o esforço de melhoria contínua;são esses os fatores que fazem a diferença. Épreciso treino, experiência, planejamento.

Também é preciso dinheiro. Não foi pos-sível obter o valor do orçamento anual daCETRA. Porém, o jornal O Estado de São Pau-

lo (APEX..., 2003) apresentou, recentemen-te, que o custo de promoção comercial daCoréia do Sul está em torno de US$ 300 mi-lhões por ano, enquanto a brasileira APEXdispôs de apenas US$ 25 milhões (R$ 80milhões) em 2002. O Brasil ainda tem muitoa evoluir nessa caminhada, havendo um gran-de potencial para expandir as exportações.

O turismo é um bom exemplo de como éimportante ter capacidade de organizaçãoe auxílio governamental na promoção co-mercial. O Brasil tem nítidas vantagens com-parativas para ofertar serviços de turismo.É um setor de grande importância, porquegera dois produtos importantes para o país:divisas e emprego. Mas o fato de ter belaspraias com coqueiros não garante que turis-tas de todo o mundo aparecerão espontane-amente no país. É preciso ter aeroportos eestradas com localização estrategicamentedefinidas, ter guias e atendentes fluentes emlínguas estrangeiras, fazer uma campanhade divulgação no exterior abrangente e per-manente, aperfeiçoar constantemente a qua-lidade no atendimento. Todas essas ativi-dades precisam da participação do gover-no, seja como executor direto, seja como co-ordenador. Os empresários do setor turísti-co – muitos deles microempresários – nãotêm capacidade financeira e de organiza-ção para, sozinhos, gerarem as condiçõesnecessárias para a expansão do setor.

A melhor política social é oemprego

Outra lição que se tira do modelo taiwa-nês é de que uma política de igualdadesocial deve ser baseada em três pilares: em-prego, emprego e emprego. Emprego priva-do e produtivo, é claro! Mais do que empre-go: oportunidade de trabalho, seja como em-pregado seja como autônomo ou microem-presário. É necessário ter instituições quefavoreçam a criação dessas oportunidadesde trabalho bem como expandir setores daeconomia que usem mão-de-obra de formaintensiva.

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Uma série de reformas microeconômicaspoderia alavancar a geração de empregosno Brasil. Um recente trabalho conjunto doIPEA e Banco Mundial, sob o título Empregono Brasil: prioridades de políticas (FERRAN-TI, 2002), mostra que a reforma da legisla-ção trabalhista poderia reduzir os encargostrabalhistas, desestimular o conflito entretrabalhador e empregador com mudança naforma de atuação da justiça do trabalho, fle-xibilizar as modalidades de contratação,bem como criar sistemas menos onerosos decontribuição para a previdência social.

A reforma tributária poderia desonerara produção e, em especial, desburocratizara contabilidade das pequenas empresas.Uma mudança na legislação de sigilo ban-cário poderia liberar a divulgação de infor-mações sobre bons pagadores, o que contri-buiria para a redução do spread bancário e ataxa de juros paga pelas empresas. Altera-ções na legislação de garantias de emprésti-mo, em especial de hipotecas de imóveis,ampliaria a oferta imobiliária e estimulariao setor de construção civil, grande empre-gador de mão-de-obra pouco qualificada.Atenção especial às micro e pequenas em-presas, com programas de treinamento demão-de-obra e gerencial, crédito cooperati-vo, informatização e acesso a mercados tam-bém têm potencial gerador de empregos11.Segundo o BNDES, 53% dos postos de tra-balho no Brasil estão em empresas com atédezenove funcionários (O EMPREGO...,2003).

Por outro lado, no campo macroeconô-mico, a reforma da previdência pública, re-duzindo benefícios e aumentando a contri-buição dos funcionários, diminuiria as ne-cessidades de financiamento do setor pú-blico, o que viabilizaria uma redução dacarga tributária sobre as empresas, estimu-lando o investimento e o emprego. Ao mes-mo tempo, o aumento da poupança públicapermitiria ao governo voltar a investir eminfra-estrutura de transportes, reduzindo oscustos das exportações. Também seria sig-nificativa a contribuição de uma reforma

previdenciária para o aumento da poupan-ça nacional, na medida em que a limitaçãodo volume das aposentadorias futuras le-varia a população a formar uma poupançapara, no futuro, complementar sua pensão.

Por outro lado, quando se diz que políti-ca social em país pobre é emprego, o que sequer dizer é que não se pode imaginar serpossível ficar eternamente tentando remen-dar os problemas do modelo econômico ex-cludente com programas de assistência so-cial (renda mínima, bolsa-escola, vale-ali-mentação, previdência rural, subsídios aospreços de gás de cozinha, etc). E há duasrazões para isso. A primeira é que há umcusto fiscal elevado para esses programas.Ao final dos anos 90, o Brasil gastava R$ 63bilhões com programas sociais, sem incluira previdência, que consumia outros R$ 67bilhões (VON AMBSBERG; LANJOUW;NEAD, 2000). Despesa em montante tão ele-vado acaba exigindo uma maior carga fis-cal sobre o setor privado, que perde compe-titividade e, portanto, gera menos empregos.O que se dá com uma mão, por meio do sub-sídio público ao pobre, toma-se com a outra,quando a economia passa a ter menos ca-pacidade de gerar emprego para que o po-bre deixe de sê-lo.

A segunda razão é que os burocratas epolíticos têm grande poder de decisãosobre a alocação dos recursos de assis-tência social, e não é incomum o fato de quegrupos sociais de renda média e alta sejamcapazes de influenciar as decisões da má-quina pública. O resultado é que os recur-sos que deveriam minorar a pobreza aca-bam sendo capturados por segmentos não-pobres da população. Já se tornou célebre afrase do economista Ricardo Paes e Barros,reconhecido estudioso de políticas sociais,segundo o qual se os recursos hoje alocadospara políticas sociais nos orçamentos pú-blicos brasileiros fossem jogados de helicóp-tero, teriam mais chance de serem recebidospelos pobres12.

Quem nunca ouviu falar, por exemplo,em desvio de verbas destinadas a auxiliar

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flagelados de secas no Nordeste? E o segu-ro-desemprego, que só está disponível paraos trabalhadores do setor formal da econo-mia, não atingindo a grande massa que seemprega à margem da lei trabalhista? Omesmo ocorre com os benefícios do vale-ali-mentação e do vale transporte. Ninguém temdúvida de que a previdência social dos fun-cionários públicos – que fazem parte da eli-te econômica do país – é muito mais bene-volente que a previdência dos trabalhado-res do setor privado.

A importância da consistênciade longo prazo

Um elemento fundamental do modelo deTaiwan foi estabelecer instituições confiá-veis aos olhos dos investidores. Isso signifi-ca cumprir as leis, evitar medidas de exce-ção, proteger a propriedade privada, a exe-cução dos contratos, os direitos autorais ede patentes. Significa, também, evitar con-fiscos diretos e indiretos por meio de inflaçãoe moratórias de dívidas públicas, adotando-se políticas macroeconômicas consistentes.

Como o Brasil fez uso irrestrito dessesprocedimentos no passado recente, será pre-ciso reconstruir sua reputação. E isso só sefaz com a adoção contínua e persistente depolíticas que evitem quebrar as regras dojogo em meio a uma partida. Instituiçõessólidas e confiáveis são o resultado de mui-tos anos de políticas públicas respeitado-ras de contratos e da lei. E, como no casodos alcoólatras em recuperação, um únicotrago pode pôr a perder anos de esforço ededicação.

Nas duas gestões de Fernando HenriqueCardoso, a ênfase da política econômica foia estabilidade fiscal e monetária. E essa foiuma política correta. Não é simples reverteruma mentalidade de indisciplina fiscal, deuso abusivo do imposto inflacionário, derecorrentes calotes e moratórias de dívidainterna e externa.

Foi necessário jogar todas as fichas emuma política dura de controle fiscal e de cri-

ação de instituições que perpetuem o equilí-brio fiscal e monetário, como a Lei de Res-ponsabilidade Fiscal e a autonomia do Ban-co Central. Sem essas pré-condições, não sepode ir a lugar algum. Estudo recente doFundo Monetário Internacional, envolven-do uma amostra de 140 países, conclui queo principal determinante do crescimentoeconômico de longo prazo é a qualidade dasinstituições do país, que garantem um am-biente sem incertezas para os investidores(RODRIK; SUBRAMANIAN; TREBBI, 2002).E instituições sólidas são o resultado demuitos anos consecutivos de políticas fis-cal, monetária e externa consistentes e res-peitadoras de contratos e direitos de pro-priedade.

O comportamento da economia brasilei-ra às vésperas das eleições presidenciais de2002 exemplifica a importância da estabili-dade institucional. À medida que aumenta-va a probabilidade de vitória eleitoral dopartido dos trabalhadores, a oferta de finan-ciamentos externos às empresas brasileirasescasseava e a cotação do dólar aumentava.De R$ 2,30, a moeda norte-americana che-gou a quase R$ 4,00.

Essa desconfiança dos credores externosera mais que fundada. Afinal, o partido dostrabalhadores prega, desde a sua fundação,o repúdio às dívidas interna e externa. Che-gou, inclusive, a patrocinar um “plebisci-to” sobre a conveniência ou não de se pagaresses débitos. Além disso, o partido semprefoi crítico de reformas voltadas a buscar oequilíbrio fiscal, da autonomia operacionaldo Banco Central para conduzir a políticamonetária, da inserção do país na Área deLivre Comércio das Américas (ALCA).

O impacto negativo da provável vitóriado Partido dos Trabalhadores (que se con-cretizou em novembro de 2002) certamenteseria menor se o país tivesse uma tradiçãoconsolidada de respeito a contrato; uma le-gislação que permitisse a ação autônoma doBanco Central no controle monetário; umsistema legal ou de mercado que restringis-se o déficit público; um sistema jurídico ágil,

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Notas

1 Fonte: Escritório de Informação do Governode Taiwan.

2 Extraído do documento A agenda perdida (LIS-BOA, 2000), tendo como fonte primária BARROS;HENRIQUES; MENDONÇA, 2000).

3 Fonte: Escritório de Informação do Governode Taiwan.

4 Fontes: Escritório de Informação do Gover-no de Taiwan e BANCO Central do Brasil(www.bcb.gov.br) .

5 Informações obtidas nas palestras de ThomasB. Lee, Professor do College of International Studies

capaz de condenar rapidamente os agentespúblicos que tomassem medidas ilegais.Certamente, nesse contexto de instituiçõesconsolidadas, os agentes econômicos sabe-riam ser pequena a margem de manobrapara a adoção de medidas não-ortodoxas, oque diminuiria o risco de seus investimen-tos no país.

Conclusão

A experiência de Taiwan mostra queaquele país montou um modelo econômicoque foi capaz de gerar crescimento econô-mico com distribuição de renda sem gerarinflação ou dívida pública elevada. Olharpara o Brasil, com os pés em Taiwan, nosleva a crer que tomamos o caminho inverso:geramos um modelo econômico no qualnão se pode crescer a taxas elevadas, sobpena de se ter uma crise de balanço de pa-gamentos, e que gera segregação social epobreza. Além disso, o nosso modelo apre-sentou alto custo em termos de dívidapública e inflação.

Reverter essa situação exigirá do paísuma ousada estratégia de comércio exterior,bem como um conjunto de reformas volta-das à consolidação de instituições favorá-veis ao investimento, à geração de empre-gos e à redução do fosso social, sem esque-cer do investimento contínuo e crescente vi-sando à massificação e aumento da quali-dade da educação.

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– Tankang University e de Francis Liang, Diretor doBureau of Foreign Trade do Ministério das Finanças.

6 Fonte: Escritório de Informação do Governode Taiwan.

7 Extraído da palestra de Chi Chu Chen, Diretordo International Comercial Bank of China.

8 Dado apresentado na Palestra de Thomas B.Lee, Professor do College of International Studies –Tankang University

9 Palestra do Professor Joseph S. Lee – Diretorda Escola de Business da National Central Universi-ty e MEC/INEP.

10 Fonte: Escritório de Informações do Governode Taiwan.

11 O já citado documento A agenda perdida (apudBARROS; HENRIQUES; MENDONÇA, 2002) tra-ta em detalhes esses pontos.

12 A esse respeito, ver VON AMSBERG; LAN-JOUW; NEAD (2000) e Paes de BARROS; FOGUEL(2000).

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Seção Resenha Legislativa daConsultoria de Orçamentos, Fiscalização e

Controle do Senado Federal

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1. Primeiras considerações

1.1 A propósito do Projeto da Lei de Di-retrizes Orçamentárias para 2004 (PLDO2004), cuja tramitação se avizinha, o Con-sultor-Geral de Orçamentos do Senado Fe-deral solicita sejam feitos comentários a res-peito da metodologia de apuração do im-pacto das despesas inscritas em restos apagar sobre os resultados fiscais1. Conside-ra-se que a discussão técnica da matéria sejade valia para efeito da elaboração de diretri-zes aplicáveis ao orçamento de 2004, parti-cularmente em vista do esforço que se vemdevotando a bem da higidez das finançaspúblicas federais e, por que não dizer, nacio-nais.

1.2 Há algum ineditismo nesse tema,pelo menos do ponto de vista da aborda-gem que se propõe seja-lhe devotada. É que,até hoje, não se havia cogitado a discussãoformal e sistemática da metodologia de apu-ração dos resultados fiscais, notadamentedo primário, em face do pagamento de des-pesas em exercícios subseqüentes ao de seuempenho2. Trata-se de matéria de certo rele-vo, pois não apenas envolve os três distin-tos níveis de governo, mas também porque

Nota técnica nº 47/03

Fernando Veiga Barros e Silva

Fernando Veiga Barros e Silva é Consultorde Orçamentos do Senado Federal.

Assunto: Projeto de Lei das Diretrizes Orçamen-tárias para 2004; comentários sobre os efeitosdos restos a pagar sobre o resultado primário.

Interessado: Consultor-Geral de Orçamentos doSenado Federal.

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Revista de Informação Legislativa356

atinge o núcleo da metodologia de registro eapuração de resultados fiscais. Diz respei-to, por isso, à precisão e à fidedignidade dealguns procedimentos contábeis em uso,tornando passíveis de contestação a pru-dência e o conservadorismo de que se reves-te o trabalho de elaboração e divulgação dosnúmeros referentes ao comportamento dasfinanças do setor público.

2. Desenvolvimento do tema

2.1 Se há alguma controvérsia em tornodeste tema, ela fatalmente se reporta ao mé-todo pelo qual se vem reconhecendo a des-pesa pública como executada3. Melhor dizen-do, reporta-se às diferenças entre os métodosde reconhecimento da execução da despesapública, assim como aos efeitos que essas di-ferenças podem produzir do ponto de vistados resultados fiscais e de sua apuração4.

2.2 No âmbito do setor público, admi-tem-se três estágios, fases ou momentos paraefeito do reconhecimento prático e formalda execução da despesa. Isso pode aconte-cer quando se verifica o empenho, quandohá a liquidação ou por oportunidade do pa-gamento − estágios que se sucedem, nessamesma ordem, na realização da despesa5.Neste último caso, no de pagamento, con-venciona-se denominar regime de caixa ométodo utilizado, pois somente se dá porexecutada a despesa quando ela é paga,implicando a saída de recursos da contaúnica do Tesouro Nacional6. Nos dois ou-tros estágios ou momentos, não é raro quese lhes atribua, como método, a denomina-ção regime de competência, talvez porque,nessas fases, o fato gerador da despesa e oformal reconhecimento da execução da des-pesa estejam, na linha do tempo, mais pro-ximamente situados um do outro7.

2.3 Vem-se lançando mão do regime decaixa com variados propósitos. Um, no en-tanto, é particularmente importante. É como propósito de apurar-se o resultado primá-rio − senão a mais, uma das mais gravesmetas fiscais da política econômica gover-

namental8. Em linhas muito gerais, o resul-tado primário é apurado pela diferença en-tre receitas e despesas não financeiras exe-cutadas, sendo sistematicamente demons-trado e divulgado por oportunidade da pu-blicação do Relatório Resumido da Execu-ção Orçamentária.

2.4 A importância desse resultado é tri-pla. Primeiro porque lhe é atribuída meta,na forma de grandeza a resultar da execu-ção orçamentária. Em segundo lugar, emrazão do fato de que o resultado primárioconstitui ponto de referência para efeito daadoção de medidas de contingenciamentoorçamentário, medidas essas denominadas,na legislação, limitação de empenho e mo-vimentação financeira. Finalmente porqueo resultado primário reflete a capacidade go-vernamental de satisfazer, com recursos pró-prios, compromissos assumidos no passa-do (pagamento de dívida). O resultado pri-mário, por tudo isso, constitui meta fiscalde extrema importância para, em horizon-tes de tempo mais próximos, oferecer a me-dida da programação financeira e do con-tingenciamento orçamentário e, a longo pra-zo, proporcionar recursos necessários aopagamento da dívida pública, o que contri-bui para o disciplinamento de sua trajetóriae a adequação de seu comportamento aosmais amplos desígnios da política econô-mica governamental9.

2.5 O regime de competência, por seuturno, é o método pelo qual se afere a execu-ção da despesa pública em todos os demaisquadrantes da Administração e para efeitoda mensuração de todas as demais grande-zas de relevância fiscal. É assim no Relató-rio Resumido da Execução Orçamentária,exceção feita ao cálculo do resultado primá-rio, como também o é no Relatório de GestãoFiscal. Reproduzindo as palavras do Secre-tário do Tesouro Nacional, extraídas doRelatório Resumido da Execução Orçamen-tária referente a janeiro de 2003, considera-se como execução orçamentária da despesaa ocorrência do estágio da liquidação, efeti-vado ou não o seu respectivo pagamento10.

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2.6 A pergunta que se insinua, portanto,é: há alguma notável diferença entre utili-zar-se o regime de competência e o de caixa,particularmente para o fim de apuração doresultado primário e, por via de conseqüên-cia, para oferecer tratamento ao desafio re-presentado pela dívida pública e sua traje-tória? (Vale, aqui, lembrar que a utilizaçãodo regime de caixa constitui exceção à regrade apuração da execução orçamentária edos resultados fiscais, exceção essa feitasomente no caso do resultado primário).

2.7 A resposta a essa pergunta não podeser outra: sim. Existe diferença quando seopta por adotar o regime de caixa, em lugardo de competência, para a apuração do re-sultado primário. E para explicar essa dife-rença, é necessário que se recorra à defini-ção de dívida consolidada líquida e aos cri-térios utilizados em sua mensuração.

2.8 De acordo com a legislação em vigore as normas dela decorrentes, a dívida con-solidada ou fundada é o montante total,apurado sem duplicidade, das obrigaçõesfinanceiras do ente da Federação, assumi-das em virtude de leis, contratos, convêniosou tratados e da realização de operações decrédito, para amortização em prazo superiora doze meses, nos termos do art. 29 da LRF.Sua expressão líquida, a dívida consolida-da líquida, é obtida pela dedução do ativodisponível e dos demais haveres financei-ros, estes, o disponível e os haveres finan-ceiros, já, por sua vez, reduzidos pelo mon-tante das despesas inscritas em restos a pa-gar processados, isto é, pelo montante dasdespesas que, havendo sido empenhadas,já foram também liquidadas, restando porrealizar apenas o seu pagamento11.

2.9 E o que isso significa dizer? A des-peito da aparente complexidade contábil en-volvida, significa dizer algo muito simples:que uma parcela nada desprezível dos com-promissos assumidos e a serem pagos nocurto prazo − as despesas que hajam transi-tado apenas pelo estágio do empenho, o pri-meiro dos três estágios aqui citados − nãosão considerados na apuração nem do re-

sultado primário nem da dívida consolida-da líquida12. Na apuração do resultado pri-mário porque ele, como já dito, incorporaapenas as despesas pagas − as despesasque, no mesmo exercício fiscal, já foram em-penhadas e liquidadas e implicaram a saí-da de recursos do caixa do Tesouro Nacio-nal em razão de seu pagamento13. Deixamde ser consideradas na mensuração da dí-vida consolidada líquida porque ela, comojá dito, incorpora em seu cálculo as despe-sas liquidadas (restos a pagar processadosao final de cada exercício), ficando-lhe defora da apuração as despesas que somentehajam sido empenhadas (restos a pagar nãoprocessados ao final de cada exercício)14.

2.10 Sob esses critérios, as despesas quehajam transitado somente pelo estágio doempenho inexistem na prática, pelo menospara a mensuração do resultado primário eda dívida consolidada líquida15. Ao final decada exercício, quando então as metas fis-cais são todas apuradas, tendo em vista ve-rificar-lhes a consecução, ignoram-se as des-pesas empenhadas. Só mais tarde, já notranscurso de exercício subseqüente, é queseu reconhecimento acontece: quando liqui-dadas, passam a afetar o cálculo da dívidaconsolidada líquida, e isso tão-somente, poistransitam de restos a pagar não processa-dos para restos a pagar processados; quan-do pagas, incorporam-se à apuração do re-sultado primário do exercício em que ocor-rer o pagamento, já agora como despesasextra-orçamentárias, pois não mais produ-zem qualquer efeito sobre o orçamento emexecução e suas dotações, senão sobre asmetas fiscais referentes a esse mesmo orça-mento.

2.11 Não admira que o recurso a medi-das de limitação do empenho e da movi-mentação financeira venha inaugurando,ano a ano, a execução das leis orçamentá-rias. É que o pagamento de despesas oriun-das de exercícios anteriores, a exemplo dosrestos a pagar, e de outras obrigações ain-da, todas componentes da dívida flutuante,fazem a sangria do caixa governamental e

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ameaçam a consecução das metas fiscais,até porque a mais importante delas, o resul-tado primário, é apurada exatamente sob oregime de caixa16. E não adianta dizer que ochamado float já estaria reconhecendo osefeitos dos compromissos flutuantes sobreo resultado primário17. A hipótese heróica desua neutralidade fiscal desqualifica-o comograndeza relevante e decisiva para a fixaçãoda meta de resultado primário, tornando ameta fixada e o resultado que se pode apurarpela integral execução do orçamento grande-zas divergentes, entre si, por definição18.

2.12 Em vista disso, o que se verifica éque os resultados fiscais, especialmente oprimário, quando estabelecidos como metaimplícita no conjunto das despesas fixadase da receita prevista na lei orçamentáriaanual, apóiam-se em falsa presunção. Apói-am-se na presunção de que, realizando-se areceita pelo menos nos limites de sua previ-são, poderão as despesas fixadas na lei tran-sitar por todos os estágios de sua execuçãoorçamentária e financeira, sendo até mes-mo possível pagá-las sem que se recorra aoexpediente de transferir-lhes o pagamentopara exercício subseqüente, mediante ins-crição em restos a pagar. Falso. A execuçãofinanceira de despesas inscritas em restos apagar, ou seja, o pagamento de despesas deexercícios anteriores reduz a disponibilida-de de recursos para o pagamento de despe-sas fixadas para o exercício em curso. E nemse pode recorrer ao superávit financeiroapurado em balanço do exercício anteriorpara fazer-lhe frente às próprias despesasque restaram para serem pagas no exercícioem curso, pois essa manobra afetaria o re-sultado primário em formação, que é exata-mente calculado sob o regime de caixa.

2.13 Não se pode, tampouco, alegar queo tal float estaria implícito no resultado pri-mário estabelecido na lei orçamentária. Elenão está. Primeiro porque a lei orçamentá-ria se ocupa da previsão, da fixação e daexecução de receitas e despesas orçamentá-rias, não figurando entre seus elementos asatisfação da dívida flutuante, que é um fe-

nômeno afeito à programação e à execuçãofinanceira. Segundo porque pelo menos umaparte do tal float – os restos a pagar não pro-cessados − não é reconhecida nem no resul-tado primário nem na dívida consolidadalíquida. E a fixação do resultado primárioestá subordinada ao montante da dívida lí-quida, o que induz ao sentimento de que adívida consolidada líquida e o resultadoprimário, este por conseqüência daquela,são considerados por valores menores queos efetivamente necessários à fixação dasmetas fiscais. Terceiro porque o float padeceda hipótese heróica que lhe é inerente porconvenção: de que, a cada ano, o pagamen-to de uma parte das despesas fixadas noorçamento do exercício em curso será trans-ferido para exercício subseqüente. É a hipó-tese da execução parcial ou da inexecuçãoparcial, o que dá no mesmo: quando muito,executa-se o orçamentário, mas não se exe-cuta, totalmente, o financeiro, pois partedele, do financeiro, só vai ser executada noexercício subseqüente.

2.14 Há, ainda, que se fazer breve comen-tário sobre o descompasso estabelecido en-tre o resultado primário, que é apurado sobo regime de caixa, e a programação/execu-ção financeira, notadamente no exercício emque termine o mandato de titular de Poderou órgão. A esse respeito, vale verificar queuma das precondições para a inscrição dedespesas em restos a pagar, ao final do exer-cício fiscal, é a existência de recursos dispo-níveis que lhes possam acorrer ao pagamen-to. Assim se exige não apenas porque hádeterminação nesse sentido no art. 42 da LeiComplementar nº 101, de 2000, mas tam-bém porque, nas normas de encerramentodo exercício, desse modo comandou a Coor-denação-Geral de Contabilidade da Secre-taria do Tesouro Nacional19. Não obstante aexigência de que, ao final do exercício de2002, houvesse a disponibilidade de recur-sos que pudessem acorrer ao pagamento dasdespesas que fossem inscritas em restos apagar, é fácil verificar, já no curso dos doisprimeiros meses do exercício de 2003, que

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essa exigência teve caráter meramente for-mal − prestou-se ao atendimento do coman-do legal. O pagamento desses restos, pro-cessados ou não, vem ocorrendo à conta dasreceitas arrecadadas no presente exercício,não à conta dos recursos havidos como dis-poníveis ao final de 2002 para fazê-lo. Es-sas disponibilidades oriundas de 2002 es-tão, de fato, esterilizadas na conta única doTesouro Nacional, seja porque o regime deapuração do resultado primário não lhespermite a utilização para o pagamento dedespesas no presente exercício, ainda queoriginárias de exercícios anteriores, sejaporque, em regra, os recursos disponíveisao final do exercício, descontados os vincu-lados a fundo, órgão ou despesa, prestar-se-iam ao abatimento, inclusive antecipado,de dívida pública.

2.15 Vale, por fim, comentar a desneces-sária incompatibilidade que se vem crian-do entre o resultado primário, como metafiscal, e o financeiro, particularmente o su-perávit financeiro, como fonte de recursos20.É que o superávit financeiro, apurado nobalanço patrimonial do exercício anterior,vem sendo desconsiderado, formalmente,como fonte de recursos para o pagamentode despesas. Assim se tem feito na crençade estarem sendo preservadas as metas fis-cais, muito especialmente a de resultado pri-mário. Tratando-se o resultado primário degrandeza apurada sob o regime de caixa, osque o defendem incondicionalmente argu-mentam que as receitas válidas para apurá-lo, em qualquer exercício, são as receitas nelearrecadadas. O esforço de arrecadação deexercícios anteriores é, ao revés, inválido nopresente, exceto se destinado ao pagamentode dívida fundada ou a outra finalidadeprevista na política fiscal21. Exatamente porconta dessa argumentação é que se diz,muito comumente, que a política de geraçãode resultados primários implica sacrificar oorçamento e a execução de seu programa detrabalho. E não estão totalmente equivoca-dos os que o dizem, ainda que nem sempreo digam pelas mesmas razões.

2.16 O fato é que ainda há alguma coisaa acrescentar nessa discussão, pois a incom-patibilidade que se vem criando entre o re-sultado primário e o financeiro, além de sa-crificar o orçamento desnecessariamente, éartificial e perniciosa do ponto de vista daspróprias metas fiscais e de sua consecução.E isso se pode comprovar com alguma faci-lidade. É que o resultado primário é umamedida de aferição da capacidade de paga-mento da dívida pública. Como tal, optou-se por apurá-lo sob o regime de caixa, atéporque se supôs que esse regime, de maisfácil entendimento e manejo, evitaria as in-certezas e sutilezas inerentes aos regimesde competência. Além disso, é o regime decaixa que mantém as mais vivas relaçõescom as disponibilidades, exatamente os ele-mentos do ativo que se prestam ao paga-mento de obrigações, porque os de maior li-quidez, e, portanto, que se prestam à aferi-ção da capacidade de pagamento do Esta-do no curto prazo. Ocorre, no entanto, que acapacidade de pagamento é uma medidarelativa, pois aferida mediante o contrasteentre ativos realizáveis no curto prazo e obri-gações a pagar, desde as prontamente exi-gíveis até as devidas a prazo mais dilatado− é uma medida de liquidez. Nesse contex-to, nenhum sentido faz seja desconsidera-da parte das obrigações de curto prazo, istoé, parte da dívida flutuante, quando se esta-belece a meta de resultado primário em facede uma pretendida trajetória para a dívidaconsolidada líquida. O importante é que seconsiderem as obrigações integralmente.

2.17 Observe-se que se faz menção, aqui,ao momento em que se estabelece a meta fis-cal de resultado primário em face de umatrajetória que se almeja seja percorrida peladívida consolidada líquida. Assim se fazporque se identifica divergência entre os cri-térios que balizam a fixação da meta de re-sultado primário e, de outro lado, os que ori-entam o acompanhamento da gestão fiscaldevotada à consecução dessa meta.

2.18 No estabelecimento da meta, há apresunção de que, dada a previsão de arre-

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cadação de receitas, as despesas orçamen-tárias fixadas podem ser integralmente rea-lizadas, incluindo-se no conceito de reali-zação o empenho, a liquidação e o paga-mento das despesas. Isso porque, em tese,receitas e despesas primárias se combinamde modo a produzir, mediante sua realiza-ção, exatamente o resultado primário al-mejado. A dívida consolidada líquida, re-ferência básica para o estabelecimento dameta de resultado primário, é apuradamediante a combinação da dívida conso-lidada e dos restos a pagar processados ea subtração, dessa grandeza, das dispo-nibilidades de caixa e dos demais have-res financeiros.

2.19 Os critérios de acompanhamento dagestão fiscal, por sua vez, são outros. E sãooutros exatamente em face da hipótese deque parte da execução financeira das des-pesas orçamentárias deve ser transferidapara exercício subseqüente − é o float. E nãoé só isso. Também divergem porque essahipótese, subjacente ao float, é falsa. Não háigualdade, simetria, proporção, equilíbrio oucoisa que o valha na transferência, de umexercício para outro, ao longo dos exercí-cios fiscais que se sucedem, da execução fi-nanceira das despesas orçamentárias. Essatransferência não é autocompensatória − oque um exercício transfere para o outro nãose compensa na próxima rodada das trans-ferências. A hipótese do float, por isso, nãopossibilita o maior ou o melhor controle daexecução orçamentária e financeira. É umelemento que perturba essa execução, poisa torna incerta e parcialmente invisível.

2.20 Desde logo, a apuração do resulta-do primário contempla todos os pagamen-tos que se vão realizando. Isso inclui o pa-gamento das despesas orçamentárias dopróprio exercício, assim como o das despe-sas extra-orçamentárias, boa parte das quaisrestos a pagar transferidos de exercíciosanteriores. O pagamento desses restosabrange tanto os processados quanto os nãoprocessados, assim como quaisquer outrassaídas do caixa governamental por conta

da satisfação de obrigações que compõem adívida flutuante.

2.21 Ora, na fixação da meta de resulta-do primário, em face da dívida consolidadalíquida, não se considerou a dívida flutu-ante por inteiro, mas tão-somente uma par-te sua − os restos a pagar processados. As-sim mesmo, o efeito dos restos a pagar pro-cessados sobre as metas foi considerado combase na hipótese heróica do float, aquela queadmite a neutralidade fiscal das despesasde exercícios anteriores. Quando então sevão realizando os pagamentos à conta detodas as obrigações que compõem a dívidaflutuante, a possibilidade de convergênciada execução orçamentária e financeira coma meta de resultado primário cai por terra.O que se pretendia fosse uma equação viá-vel torna-se inequação. A integral execuçãoorçamentária e financeira, mesmo que a ar-recadação de receitas se comporte conformeprevista, não possibilita a consecução dasmetas fiscais estabelecidas nas leis de dire-trizes orçamentárias e do orçamento anual.

2.22 Os números relacionados somentea restos a pagar, constantes da tabela a se-guir, corroboram a tese aqui esposada.

2.23 Os valores inscritos em restos a pa-gar, assim como os que são efetivamentepagos, nenhuma relação aparente mantêmentre si, senão a de que são todos bastanteelevados e de que os montantes inscritos,anulados ou pagos divergem, de um anopara o seguinte, na casa dos bilhões de re-ais. Não por outra razão é que, aqui, se apon-ta a hipótese oficial do float como equivoca-da. Não por outra razão, ainda, é que se fina-liza esta parte da nota técnica com a transcri-ção do trecho da mensagem presidencial, queencaminhou o projeto da lei orçamentáriapara 2003, no qual é feita menção ao float22:

(...)Por princípio, na elaboração orça-

mentária, assume-se que o float dedespesas discricionárias, assim comodas outras despesas obrigatórias nãomencionadas, seja nulo, admitindo-seque o volume dessas despesas de exer-

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cícios anteriores a serem pagas em2003 seja o mesmo de despesas decompetência deste exercício a serempagas em 2004. (grifo nosso)

(...)

3. Comentários conclusivos

3.1 A bem da higidez das finanças pú-blicas, é forçoso reconhecer que não é ade-quado o tratamento que se vem dispensan-do aos restos a pagar, ou float, qualquer onome que se dê a esse fenômeno contábil. Eas razões para que assim seja são muitas,algumas delas havendo sido analisadas aolongo deste trabalho. O fato é que os crité-rios em uso respondem por séria confusãoentre caixa e competência, entre elementospatrimoniais e de resultado e entre execu-ção orçamentária e financeira e apuraçãodo resultado primário. O fato também é queos restos a pagar estão muito longe de se-rem neutros para o orçamento, tanto quantopara a política fiscal. E essa característicaparece haver ficado evidenciada pela exu-berância dos números que a execução dosrestos a pagar apresenta.

3.2 Evidenciou-se, da mesma forma, nãohaver um buraco de agulha que possa res-tringir ou, mesmo, critérios que possam dis-ciplinar a prática da inscrição de despesasem restos a pagar ao final dos exercícios fis-cais. E se alguma disciplina existe, ela cer-tamente varia muito de um ano para o ou-tro. De qualquer modo, é perceptível que osrestos a pagar constituem risco relativamen-te grave para o grau de solvência do Estadono curto prazo, até porque, no longo prazo,o problema do endividamento ainda se res-sente de uma solução. Também se percebeque as despesas que restam a pagar repre-sentam, por sua magnitude, elemento per-turbador para a execução orçamentária e fi-nanceira do exercício em que lhes deva ocor-rer o pagamento.

3.3 A conclusão, portanto, não pode seroutra: há que se prever técnica mais ade-quada, ou menos inadequada, para a elabo-ração da meta fiscal de resultado primário epara o controle de sua execução. Sem preju-ízo de tantas outras sugestões possíveis,seria de bom proveito se a técnica de fixaçãoda meta e de apuração do resultado primá-rio se aproximasse da de acompanhamento

Tabela Única Acompanhamento de Restos a Pagar

Exercício/Restos(1) Inscritos Anulados Pagos

1995 7.754.980.884,07 2.566.317.562,53 5.188.663.321,54 1996 6.821.657.900,81 801.888.571,15 5.980.930.581,02 1997 3.656.629.348,10 116.447.374,70 3.191.033.129,63 1998 21.233.926.524,30 216.520.119,14 18.268.544.869,76 1999 29.501.627.496,03 682.484.337,30 21.806.380.583,60 2000 12.676.248.655,11 2.679.061.931,98 9.098.203.459,20 2001 20.296.981.820,03 5.614.924.634,77 14.297.433.976,28

2002(2) 14.461.304.412,74 2.058.353.030,71 3.297.474.643,06 Fonte: SIAFI. (1) A execução financeira dos restos a pagar ocorre nos exercícios subseqüentes. (2) Posição até 9 de abril de 2003.

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da execução orçamentária, incorporando-sea essa nova técnica alguns benefícios já hámuito observados no acompanhamento daexecução financeira. Explica-se:

3.3.1 o núcleo da apuração do resultadoprimário deve permanecer sob o regime decaixa, reconhecendo-se a realização da des-pesa pelo pagamento e a arrecadação da re-ceita pelo recolhimento;

3.3.2 devem ser acrescentados novos ele-mentos à apuração do resultado primário,notadamente as despesas quase-caixa, as-sim entendidas as obrigações de pagamen-to que se vão formando ao longo do exercí-cio fiscal em curso, como as despesas quehajam transitado somente até o estágio daliquidação;

3.3.3 os novos elementos acrescentadosao resultado primário, as despesas quase-caixa, não compreendem as despesas extra-orçamentárias imputáveis à execução orça-mentária de exercícios anteriores, mas so-mente as do exercício em curso;

3.3.4 as despesas extra-orçamentáriascuja execução orçamentária haja ocorridoem exercícios anteriores devem compor, como restante do passivo financeiro e o ativofinanceiro, o cálculo da dívida consolidadalíquida (admitindo-se, nesse cálculo, a de-puração contábil do ativo e do passivo fi-nanceiro, de modo a livrá-los de elementosque, na prática, não representam bens, di-reitos ou obrigações efetivas);

3.3.5 no demonstrativo do resultado pri-mário, os elementos caixa e os quase-caixadevem ser especificamente discriminados;

3.3.6 o princípio subjacente ao orçamen-to, em face do resultado primário, deve ser ode sua exeqüibilidade, vedando-se o con-tingenciamento orçamentário em razão dedéficit financeiro ou insuficiência do resul-tado primário, verificado em exercício ante-rior, exceto se a legislação o permitir;

3.3.7 ao final do exercício, o resultadoprimário deverá compor-se dos elementoscaixa e quase-caixa aqui citados, cabendo,no exercício subseqüente, fazer o reconheci-mento da realização (pagamento) dos ele-

mentos quase-caixa apenas no plano patri-monial (balanço patrimonial, ativo e passi-vo financeiros, o que já ocorre) e para efeitodo cálculo da dívida pública, nunca na apu-ração do resultado do exercício subseqüente.

3.4 Com essa sugestão, procura-se garan-tir que as metas fiscais sejam precisas, con-fiáveis e conservadoras, além de plenamen-te compatíveis com a execução orçamentá-ria e financeira e com a administração pa-trimonial do Estado. É fórmula que buscaimpedir o descontrole sobre o endividamen-to estatal de curto prazo, ao tempo em que oevidencia, permitindo-lhe a avaliação.

Notas

1 Os restos a pagar são originalmente reguladospela Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964, queestatui normas gerais de Direito Financeiro para elabora-ção e controle dos orçamentos e balanços da União, dosEstados, dos Municípios e do Distrito Federal. Váriossão os dispositivos dessa Lei que tratam do assun-to. Seu art. 22 permite entender que os restos apagar constituem compromissos financeiros exigíveis.Mais à frente, o art. 36 define-os como as despesasempenhadas mas não pagas até o dia 31 de de-zembro, distinguindo-se as processadas das nãoprocessadas. Por convenção, o Poder Público regis-tra na categoria dos restos a pagar processados asdespesas que hajam sido empenhadas e liquida-das, enquanto, na categoria dos não processados,as despesas que tenham sido apenas empenhadas.Finalmente, o art. 92, reforçando o entendimento deque os restos a pagar constituem compromisso exi-gível, relaciona-os no conjunto das obrigações quecompõem a dívida flutuante.

2 O resultado primário constitui grandeza deimportância para as finanças públicas, muito par-ticularmente. Formalmente, é a Lei Complementarnº 101, de 4 de maio de 2000, que estabelece normasde finanças públicas voltadas para a responsabilidade nagestão fiscal, que lhe oferece papel de relevo no con-junto das metas de resultado fiscal desenhadas parao Poder Público. Segundo o § 1º do art. 4º dessaLei, integrará o projeto de lei de diretrizes orçamentáriasAnexo de Metas Fiscais, em que serão estabelecidas metasanuais, em valores correntes e constantes, relativas a re-ceitas, despesas, resultado nominal e primário e montan-te da dívida pública (....). Como hoje a conhecemos, ametodologia de cálculo do resultado primário estáevidenciada na mensagem presidencial de encami-nhamento do projeto da lei orçamentária anual para

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2003, projeto esse transformado na Lei nº 10.640,de 14 de janeiro de 2003.

3 A rigor, a Lei nº 4.320, de 1964, adota comocritério de execução orçamentária o empenho − oprimeiro dos três estágios de realização da despe-sa: empenho, liquidação e pagamento. Assim seinfere por conta do que estabelece o inciso II do art.35: pertencem ao exercício financeiro as despesasnele legalmente empenhadas. Isso não significa di-zer que a expressão despesa executada equivalha adespesa realizada. Na execução, o que se reconhece éo fato contábil orçamentário. Cuida-se de identifi-car a que exercício fiscal pertence uma determina-da despesa orçamentária. A realização, por seuturno, subentende a passagem pelos três estágiosda despesa.

Muita confusão é estabelecida em torno dosconceitos de realização e execução. Por vezes, hádificuldade no entendimento de que o critério deexecução é orçamentário, identificando o exercíciofiscal a que pertence uma despesa orçamentária, eque a execução orçamentária da despesa é ato pre-paratório necessário à realização da despesa, ain-da que a realização se complete em exercício fiscalsubseqüente àquele em que se verifica a execução.

4 A esse respeito, vale perceber que os resulta-dos fiscais podem ser apurados sob três perspecti-vas básicas: a orçamentária, a patrimonial e a fi-nanceira, querendo-se dizer por financeiro o fatocontábil que implica variação nas disponibilidadesde caixa (pagamentos e recebimentos). Essas pers-pectivas estão previstas na Lei nº 4.320, de 1964,sendo-lhes um bom indicador as disposições conti-das nos arts. 101 a 106 dessa Lei.

Na perspectiva orçamentária, é bom que se diga,a Lei nº 4.320 já estabelece o empenho como critériode execução da despesa, lembrando-se que o termoexecução não se pode confundir com o de realização.E é muito fácil entender o porquê disso: para queuma despesa seja realizada em qualquer exercício,seu empenho deve ocorrer no exercício para o quala lei do orçamento consigna os créditos orçamentá-rios correspondentes. Sem a prévia execução orça-mentária da despesa (o empenho), e essa execuçãosó pode ocorrer no exercício fiscal em que os crédi-tos orçamentários estão abertos e prontos para quesejam empenhados, não há a realização da despe-sa (liquidação e pagamento), dê-se a realização nomesmo exercício da execução orçamentária ou emexercício posterior a essa execução. Por isso, o re-sultado fiscal sob a perspectiva financeira, isto é,da liquidação e pagamento da despesa, subordi-na-se à execução orçamentária. É também por issoque a liquidação e o pagamento constituem fatoscontábeis extra-orçamentários, pois o fato contábilorçamentário, que delimita a execução orçamentá-ria da despesa, é o empenho. Se a execução orça-mentária da despesa não estiver centrada no empe-

nho, mas, incorretamente, na liquidação ou no pa-gamento, todas as despesas que, ao final de umexercício fiscal qualquer, restarem para serem li-quidadas e pagas no exercício subseqüente jamaisafetarão os resultados fiscais sob a perspectiva or-çamentária. Como veremos mais à frente, a prati-cada indistinção entre fatos contábeis orçamentá-rios e extra-orçamentários, entre resultados sob aperspectiva orçamentária e sob a financeira, temdado lugar a muita confusão, a exemplo da ado-ção do elemento de resultado denominado float (vernota 8).

5 O empenho é o ato emanado de autoridadecompetente que cria para o Estado obrigação depagamento pendente ou não do implemento decondição (ver art. 58 da Lei nº 4.320/64). Ele deveocorrer até o limite dos créditos orçamentários pre-vistos na lei do orçamento.

A liquidação da despesa consiste na verifica-ção do direito adquirido pelo credor, tendo por baseos títulos e os documentos comprobatórios do res-pectivo crédito (ver art. 63 da Lei nº 4.320/64).

O pagamento é estágio que se dá por ordem daautoridade administrativa competente, determinan-do que uma despesa seja paga.

Conforme já se argumentou na nota anterior,infere-se do disposto na legislação em vigor, e essalegislação se favorece do racionalismo de suas nor-mas, que empenho delimita a execução orçamentá-ria da despesa, enquanto os atos de liquidação epagamento, fenômenos extra-orçamentárias, são re-solutivos, dando por realizada a despesa, qual-quer o exercício fiscal em que ocorram.

6 Não é incorreto dizer que o pagamento impli-ca movimentação no caixa do Poder Público, poisele efetivamente o faz. Há incorreção, no entanto,quando se pretende reconhecer uma despesa ape-nas quando ocorre o seu pagamento. Isso porque adespesa, para ser reconhecida, admite que o faça-mos do ponto de vista orçamentário ou do extra-orçamentário ou financeiro, esta última fase culmi-nando com o seu pagamento. E assim é não apenasporque a legislação o exige, mas também porque,em virtude da lógica ou da razão, a existência deum orçamento pressupõe que se lhe reconheça aimportância da execução (ver nota 4).

7 O fato gerador da despesa não se confundecom os atos de empenho ou liquidação, que sãoatos administrativos formais e preparatórios parao pagamento da despesa, isto é, para a realizaçãoda despesa. O fato gerador da despesa, comumen-te, é o implemento da condição que torna liquidá-vel e pagável uma despesa empenhada. Trata-seda condição a que alude o art. 58, combinado aoart. 63, ambos da Lei nº 4.320/64. A eclosão dofato gerador é normalmente associada a um pontoou segmento na linha do tempo, exatamente o mo-mento ou o período em que o fato gerador se aper-

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feiçoa, sendo que, nem sempre, ou quase nunca, oempenho e a liquidação são contemporâneos aofato gerador. Via de regra, o empenho antecede aeclosão do fator gerador, enquanto a liquidação e opagamento, nessa ordem, a sucedem. Exatamentepor isso, pela maior proximidade relativa entre osatos de empenho e liquidação e a eclosão do fatorgerador é que se denomina regime de competênciaaquele que centra o reconhecimento da despesa nes-ses dois atos.

8 De acordo com o Manual de Elaboração doRelatório Resumido da Execução Orçamentária,confeccionado e publicado pela Secretaria do Te-souro Nacional, do Ministério da Fazenda, o resul-tado primário é a diferença entre as receitas e asdespesas não financeiras do Estado, entendidos pornão financeiros os fatos contábeis que não estejamrelacionados a juros, encargos da dívida, conces-são e retorno de empréstimos e financiamentos,aquisições de títulos e valores mobiliários já inte-gralizados e amortização de dívida.

O método de apuração do resultado primáriode Estados, Distrito Federal e Municípios difere doda União. Neste ente da Federação, a apuração doresultado primário compreende, para cada perío-do de apuração, as receitas arrecadadas e as des-pesas pagas, isto é, as despesas para as quais jáhajam sido emitidas ordens bancárias de pagamen-to. Nos demais entes da Federação, compõem oresultado primário, além das receitas arrecadadas,as despesas que estejam ou no estágio de liquida-ção ou no de pagamento. As despesas que hajamsido apenas empenhadas somente são considera-das se, ao final do exercício, forem inscritas emrestos a pagar. Na União, portanto, desconside-ram-se as despesas que se hajam processado ape-nas até o estágio da liquidação. Caso essas despe-sas, depois de liquidadas, venham a ser pagas emexercício subseqüente ao de seu empenho, elas sãoconsideradas para efeito do cálculo do resultadoprimário do exercício em que ocorrer o pagamento.O efeito dessas despesas pagas em exercício poste-rior sobre o resultado primário é denominado floatpelo governo, adotando-se a hipótese heróica deque o efeito desse float sobre o resultado primário éneutro, pois, em cada exercício, o pagamento dedespesas oriundas de exercícios anteriores seriaequivalente ao pagamento, em exercícios posterio-res, de despesas do presente exercício.

9 Quando se diz que o resultado primário ofere-ce a medida da programação financeira e do con-tingenciamento orçamentário, faz-se alusão indire-ta aos arts. 8º e 9º da Lei Complementar nº 101, de2000. Significa dizer que o esforço de geração doresultado primário é ingrediente para efeito da ela-boração da programação financeira e do cronogra-ma de execução mensal de desembolso, assim comopara, na hipótese de a consecução da meta de re-

sultado primário estar ameaçada, a adoção demedidas de limitação de empenho e movimenta-ção financeira.

Do ponto de vista da dívida pública, o resulta-do primário, como grandeza, constitui a medidados recursos que, internamente gerados pelo Esta-do, podem ser utilizados para a satisfação dasdemais despesas, isto é, das despesas que não lheintegram a base de cálculo − as despesas financei-ras. Se o resultado primário se demonstra maiorque as despesas financeiras a satisfazer, isso signi-fica dizer que o resultado primário possibilita asatisfação ou o resgate antecipado da dívida pú-blica, contribuindo para sua diminuição. Se, ao con-trário, o resultado primário não é suficiente à satis-fação sequer das despesas financeiras em curso,então se delineia a tendência para que as despesasfinanceiras sejam satisfeitas mediante a utilizaçãode recursos de terceiros, o que contribui para o cres-cimento da dívida pública.

10 Nas notas explicativas oferecidas ao Relató-rio Resumido da Execução Orçamentária de janei-ro de 2003, presta-se o seguinte esclarecimento:considera-se como execução orçamentária da des-pesa a ocorrência do estágio da liquidação, aindaque o correspondente pagamento não se tenha efe-tivado. Esse critério de reconhecimento da execu-ção da despesa aplica-se ao Balanço Orçamentá-rio, ao Demonstrativo da Execução das Despesaspor Função/Subfunção, ao Demonstrativo das Re-ceitas e Despesas Previdenciárias do Regime Pró-prio dos Servidores Públicos e a outros tantos de-monstrativos.

11 Na legislação, a definição de dívida consoli-dada é oferecida pelo inciso I do art. 29 da LeiComplementar nº 101, de 2000. Segundo essa defi-nição, a dívida consolidada (ou fundada − a sino-nímia é estabelecida pela própria Lei Complemen-tar nº 101/2000) compreende o montante total, apura-do sem duplicidade, das obrigações financeiras do enteda Federação, assumidas em virtude de leis, contra-tos, convênios ou tratados e da realização de opera-ções de crédito, para amortização em prazo superior adoze meses.

O inciso V do § 1º do art. 1º da Resolução nº 40,de 2001, do Senado Federal, dá a definição de dívi-da consolidada líquida: dívida pública consolida-da menos as disponibilidades de caixa, as aplica-ções financeiras e os demais haveres financeiros.Para efeito do Demonstrativo da Dívida Consoli-dada Líquida, constante do Relatório de GestãoFiscal para que se afira a consecução das metasfiscais, descontam-se do conjunto das disponibili-dades de caixa, das aplicações financeiras e dosdemais haveres financeiros, como elementos do ati-vo financeiro, as obrigações representadas pelosrestos a pagar processados, isto é, as despesas que,empenhadas e liquidadas em seu exercício de ori-

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gem, restam no passivo financeiro para serem pa-gas em exercício subseqüente.

A definição de dívida consolidada líquida, maisconservadora e adequada que a constante da Reso-lução nº 40, do Senado Federal, origina-se de con-venção adotada para a demonstração dos resulta-dos da gestão fiscal. Observe-se que a Resolução nº40, formalmente, não se aplica à União, mas, tão-somente, aos Estados, ao Distrito Federal e aosMunicípios.

12 De acordo com a definição contida no Manu-al de Elaboração do Relatório de Gestão Fiscal, apro-vado pela Portaria nº 516, de 14 de outubro de2002, da Secretaria do Tesouro Nacional, os restosa pagar não processados estão excluídos da basede cálculo da dívida consolidada líquida. Isso sig-nifica dizer que as despesas que hajam sido so-mente empenhadas são excluídas da apuração dadívida líquida, pois essas são as despesas que, aofinal do exercício, quando inscritas em restos a pa-gar, são classificadas como restos não processados(normas de encerramento do exercício de 2003, bai-xadas pela Coordenação-Geral de Contabilidade,da Secretaria do Tesouro Nacional).

13 Cabe, aqui, lembrar que o resultado primárioincorpora o pagamento de quaisquer despesas −orçamentárias e extra-orçamentárias. As extra-or-çamentárias abrangem os restos a pagar processa-dos e os não processados, isto é, despesas oriundasde orçamentos de exercícios anteriores que resta-ram para serem pagas no exercício em curso e quetransitaram apenas até o estágio da liquidação, ouseja, ou foram apenas empenhadas ou foram em-penhadas e liquidadas. Ao pagamento de restos,processados ou não processados, dá-se a denomi-nação float, cabendo chamar a atenção para a hipó-tese heróica comentada na nota de rodapé 8. Aapuração do resultado primário, portanto, descon-sidera os empenhos (com ou sem liquidação) feitoscontra as dotações do exercício de sua competên-cia, incorporando, no lugar dessas despesas orça-mentárias (empenhos com ou sem liquidação), opagamento das despesas orçamentárias que resta-ram de exercícios anteriores. Como a hipótese he-róica do float implica que o pagamento de despesasde exercícios anteriores, sempre que se apura o re-sultado primário, equivale ao pagamento de des-pesas do orçamento cuja execução está em cursoem exercícios subseqüentes, parte-se do pressupos-to, para a fixação da meta de resultado primário,que os restos a pagar, processados ou não proces-sados, nenhuma interferência produzem nesse re-sultado. Essa hipótese, obviamente, é falsa, assimcomo o são todos os pressupostos que procuramfundamentá-la, pelo menos no caso brasileiro.

14 Na apuração da dívida consolidada líquida,desconsideram-se os restos a pagar não processa-dos, isto é, as despesas que, empenhadas num exer-

cício, restaram para serem pagas em exercício sub-seqüente (ver nota de rodapé 11).

15 O raciocínio aqui é simples: somente depoisde liquidadas é que as despesas reúnem condiçõespara serem pagas. Portanto, enquanto apenas em-penhadas, e uma vez inscritas em restos a pagarnão processados, as despesas deixam de existir,seja para a apuração do resultado primário, sejapara a da dívida consolidada líquida. Quando li-quidadas e reclassificadas para restos a pagar pro-cessados, as despesas passam a compor o cálculoda dívida consolidada líquida, não obstante conti-nuem a ser desconsideradas para efeito da apura-ção do resultado primário. É somente com o paga-mento que as despesas passam a ser consideradaspara todos os efeitos. Essa prática representa, defato, o reconhecimento retardado de fatos contá-beis relevantes para efeito tanto da fixação quantoda apuração dos resultados fiscais. O recurso àhipótese heróica do float termina por tornar incom-paráveis o resultado primário fixado como meta eaquele apurado na gestão fiscal. É que o pagamen-to de despesas de exercícios anteriores, inscritas emrestos a pagar, não exibe o comportamento neutroque se lhe quer impingir com o recurso à hipóteseheróica.

16 A respeito de dívida flutuante, ver a notaseguinte.

17 É interessante perceber existir alguma, nãotoda, simetria entre os significados dos termos floate flutuante, seja na linguagem cotidiana, seja emdiscurso com função técnica, especialmente no cam-po das finanças públicas. Vale notar, no entanto,que, com a ascensão do termo float no campo dasfinanças, perdeu-se, quase que por completo, anoção da importância do termo flutuante, particu-larmente na acepção que lhe empresta a legislaçãode Direito Financeiro. A Lei nº 4.320, desde 1964,define dívida flutuante em seu capítulo sobre a con-tabilidade orçamentária e financeira, esclarecendoque fazem parte da sua composição os restos apagar, os serviços da dívida a pagar, os depósitos(de terceiros) e os débitos de tesouraria (a exemplode obrigações decorrentes de empréstimos por an-tecipação de receita orçamentária). A despeito dis-so, na legislação mais recente, inclusive nas normasde hierarquia infralegal, assim nas práticas que têmmerecido larga aplicação, vem-se ignorando o con-ceito de dívida flutuante e a importância desse gru-po de elementos patrimoniais para efeito do acom-panhamento e da avaliação da gestão fiscal. Háexemplos disso na Lei Complementar nº 101/2000,especialmente em seu conceito restritivo de dívidapública (consolidada ou fundada), na Resoluçãonº 40/2001 do Senado Federal, em que a dívidaflutuante é desconsiderada na apuração da dívidaconsolidada líquida, e nas leis de diretrizes orça-mentárias e orçamentária anual, em que a dívida

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flutuante (o float, melhor dizendo) é neutra do pon-to de vista dos resultados fiscais (hipótese herói-ca), assim como nos manuais que orientam a ela-boração dos relatórios sobre a execução da políticafiscal.

18 Sobre float e sua hipótese heróica, ver nota derodapé 8.

19 A respeito das normas de encerramento, vernota de rodapé 12.

20 Lembra-se, aqui, que o resultado financeiro,como a diferença entre o ativo e o passivo financei-ro, pode ser superavitário ou deficitário. De acordocom o inciso I do § 1º do art. 43 da Lei nº 4.320/64,o superávit financeiro, apurado em balanço patri-monial do exercício anterior, constitui fonte de re-cursos para o fim da abertura de créditos adicio-nais suplementares ou especiais.

21 Aqui, utiliza-se a definição de dívida funda-da que é oferecida pelo art. 98 da Lei nº 4.320, de

1964: a dívida fundada compreende os compromissos deexigibilidade superior a doze meses, contraídos para aten-der a desequilíbrios orçamentários ou a financeiros deobras e serviços públicos. A utilização do conceito dedívida fundada facilita a argumentação porque,no conjunto das obrigações do Estado, a dívidafundada e a flutuante justapõem-se, uma em rela-ção à outra. O conceito de dívida consolidada, comoé dado pela Lei Complementar nº 101, de 2000, nãoparece suficientemente preciso, até porque se ad-mitem variantes desse conceito, como o da dívidaconsolidada líquida, constante da Resolução nº 40/2001, do Senado Federal, e aquele a que se faz refe-rência no Relatório Resumido da Execução Orça-mentária, que não é nem o da Resolução do Senadonem o previsto na Lei Complementar nº 101.

22 A respeito da mensagem presidencial, ver notade rodapé 2.