revista de informação legislativa · 8 revista de informação legislativa desse modo,...

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Brasília • ano 41 • nº 164outubro/dezembro – 2004

Revista deInformação Legislativa

Subsecretaria de Edições Técnicas do Senado Federal

Revista deInformaçãoLegislativaFUNDADORESSenador Auro Moura AndradePresidente do Senado Federal – 1961-1967Isaac BrownSecretário-Geral da Presidência – 1946-1967Leyla Castello Branco RangelDiretora – 1964-1988

ISSN 0034-835xPublicação trimestral daSubsecretaria de Edições Técnicas

Senado Federal, Via N-2, Unidade de Apoio III, Praça dos Três PoderesCEP: 70.165-900 – Brasília, DF. Telefones: (61) 311-3575, 311-3576 e 311-3579Fax: (61) 311-4258. E-Mail: [email protected]

DIRETOR: Raimundo Pontes Cunha Neto

REVISÃO DE ORIGINAIS: Angelina Almeida Silva e Cláudia Moema de M. LemosREVISÃO DE REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: Raquel P. dos Santos e Sérgio S. SantosREVISÃO DE PROVAS: Leila Rodrigues Mariano, Maria Vanessa Andrade Sampaio,

Soraya Virgínia Damasceno FernandesEDITORAÇÃO ELETRÔNICA: Anderson Gonçalves de OliveiraCAPA: Renzo ViggianoIMPRESSÃO: Secretaria Especial de Editoração e Publicações

Revista de Informação Legislativa / Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas. - - Ano 1, n. 1 ( mar. 1964 ) – . - - Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 1964– .v. Trimestral.Ano 1-3, nº 1-10, publ. pelo Serviço de Informação Legislativa; ano 3-9, nº

11-33, publ. pela Diretoria de Informação Legislativa; ano 9- , nº 34- , publ. pela Subsecretaria de Edições Técnicas.

1. Direito — Periódico. I. Brasil. Congresso. Senado Federal, Subsecretaria de Edi ções Técnicas.

CDD 340.05CDU 34(05)

© Todos os direitos reservados. A reprodução ou tradução de qualquer parte desta publicação será permitida com a prévia permissão escrita do Editor.

Solicita-se permuta.Pídese canje.On demande l´échange.Si richiede lo scambio.We ask for exchange.Wir bitten um Austausch.

Revista deInformaçãoLegislativaBrasília · ano 41 · nº 164 · outubro/dezembro · 2004

Ana Maria D’Ávila Lopes

Jete Jane Fiorati

Maria de Fátima S. Wolkmer

Alvaro Barreto

Paulo R. Roque A. Khouri

Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia

Rodrigo Garcia da Fonseca

Fernando de Barros Filgueiras

Manoel Adam Lacayo Valente

Valerio de Oliveira Mazzuoli

Antonio Marcelo Jackson F. da Silva

Roberto Freitas Filho

Gerson dos Santos Sicca

Ana Paula Ribeiro Bigonha e Luiz Henrique Manoel da CostaEduardo Silva Costa

A garantia do conteúdo essencial dos direitos fundamen-tais 7A lex mercatoria como ordenamento jurídico autônomo e os Estados em desenvolvimento 17Modernidade: nascimento do sujeito e subjetividade jurídica 31A representação das associações profi ssionais na legisla-ção brasileira (1932-1937) 47A proteção do consumidor residente no Brasil nos con-tratos internacionais 65Controle concentrado de constitucionalidade: o “Guar-dião da Constituição” no embate entre Hans Kelsen e Carl Schmitt 87O poder econômico no mercado e o seu controle na legislação antitruste 105Notas críticas sobre o conceito de corrupção: um debate com juristas, sociólogos e economistas 125Democracia em Max Weber 149O Tribunal Penal Internacional: integração ao direito brasileiro e sua importância para a justiça penal interna-cional 157Por que se deve ter e por que não se deve ter a pena de morte: aspectos jurídicos e políticos 179O ensino jurídico e a mudança do modelo normativo: normas fechadas x normas abertas 191Isonomia tributária e capacidade contributiva no Estado contemporâneo 213A carta de Sesmaria Régia outorgada ao Senado da Câ-mara de Vila Rica aos 27 de setembro de 1711 237Em torno da Comunicação Social 271

OS CONCEITOS EMITIDOS EM ARTIGOS DE COLABORAÇÃO SÃO DE RESPONSABILIDADE DE SEUS AUTORES.

Fernando Lagares Távora

Márcio de Oliveira Júnior e Rafael Silveira e Silva

Seguro rural: nova lei, outras subvenções e poucas certezas 385Mudanças no arranjo institucional regulatório: comen-tários sobre as propostas em tramitação no Congresso Nacional 393

Resenha Legislativa (artigos de contribuição da Consultoria Legislativa do Senado Federal)

(artigos de contribuição da Consultoria de Orçamentos, Fiscalização e Controle do Senado Federal)

Luiz Fernando de Mello Perezino Política de aplicação das agências fi nanceiras ofi ciais de fomento: subsídios para a análise do projeto de lei de diretrizes orçamentárias para 2004 413

Liberdade sindical e de associação e o efetivo reconhe-cimento do direito a negociação coletiva como direitos fundamentais no trabalho: inserção das normas interna-cionais no ordenamento jurídico brasileiro 277Valores do Direito e da Política 299A teoria da constituição no common law: refl exões teóri-cas sobre o peculiar constitucionalismo britânico 303Palestina: antes e depois de Cristo – Parte II 317Tag Along: mecanismo de proteção aos acionistas mino-ritários e de sustentação do mercado de capitais 331Considerações acerca do direito à imagem como direito da personalidade 347Reforma do Judiciário. Tribunal Constitucional e Conse-lho Nacional de Justiça: controles externos ou internos? 367

Laís de Oliveira Penido

Jarbas MaranhãoBruno Galindo

Hugo Hortêncio de AguiarRicardo dos Santos Júnior

Bruno Felipe da Silva Martin de ArribasMaria Auxiliadora Castro e Camargo

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Ana Maria D’Ávila Lopes

1. IntroduçãoA natureza principiológica (ALEXY,

1993) dos direitos fundamentais, que os ca-racteriza como semântica e estruturalmenteabertos, exige, na maioria das vezes, suaconcretização via normas infraconstitucio-nais. Nesse sentido, a garantia do conteúdoessencial foi criada para controlar a ativi-dade do Poder Legislativo, visando evitaros possíveis excessos que possam ser come-tidos no momento de regular os direitos fun-damentais (GAVARA DE CARA, 1994, p.325). Contudo, a existência da garantia doconteúdo essencial não deve ser necessari-amente interpretada no sentido de conside-rar que toda regulação ou limitação legisla-tiva dos direitos fundamentais irá decorrerna sua desnaturalização, pois admite-se aimposição de limites (LOPES, 2001), massempre que observem e respeitem o conteú-do essencial do direito fundamental, ou seja,sempre que não o desnaturalizem, situaçãoconfigurada quando:

– o direito é impraticável;– o direito não pode ser mais protegido;– o exercício do direito tem sido dificul-

tado além do razoável.

A garantia do conteúdo essencial dosdireitos fundamentais

Ana Maria D’Ávila Lopes é Doutora emDireito Constitucional pela Universidade Fe-deral de Minas Gerais. Professora Visitante doPrograma de Pós-graduação em Direito daUniversidade Federal do Ceará.

Sumário1. Introdução. 2. O conteúdo essencial na

doutrina de Smend. 3. O conteúdo essencial nateoria de Düring. 4. O conteúdo essencial nateoria de Häberle. 5. A relativização dos direi-tos fundamentais. 6. Conclusões.

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Desse modo, verifica-se que o legislador– em matéria de direitos fundamentais – temduas obrigações: o dever de concretizar oconteúdo normativo desses direitos permi-tindo a sua real aplicação e o dever de res-peitar seu conteúdo essencial.

Justamente como conseqüência da neces-sária atividade legislativa para o desenvol-vimento dos direitos fundamentais e preven-do os seus possíveis excessos foi que se tor-nou indispensável o desenvolvimento deuma garantia que, embora admitindo a li-mitação dos direitos fundamentais, assegu-rasse que fossem regulados sem perder ascaracterísticas que os identificam como tais(ABAD, 1992, p. 7). Surgiu, assim, a garan-tia do conteúdo essencial como mecanismocomplementar dos princípios da pondera-ção dos bens e da proporcionalidade, nadefesa dos direitos fundamentais perante osabusos do Poder Legislativo.

Sobre os critérios utilizados para deter-minar o conteúdo essencial de um direitofundamental, não existe consenso, ou seja,discute-se se deve ser estabelecido segundouma norma objetiva ou um direito subjeti-vo. O primeiro critério exige a consideraçãoglobal do problema, visto que os artigos quecontêm os direitos fundamentais são partede todo o ordenamento jurídico. Assim, ad-mite-se que um direito fundamental possanão ser aplicado a um particular, sem queisso afete o conteúdo essencial, mas sempreque continue vigente para as demais pesso-as. Em oposição, quando é considerada ateoria subjetiva, é necessário examinar a gra-vidade da limitação do direito em relaçãoao indivíduo afetado, pois é ele, e não a co-letividade, o sujeito desse direito funda-mental.

O critério que é aceito pela maioria é osubjetivo, que concorda com a teoria domi-nante sobre os direitos fundamentais, ba-seada na proteção do particular diantedos interesses estatais, ou seja, que outor-ga prevalência ao direito subjetivo do in-divíduo particular em relação à coleti-vidade.

Por outro lado, a respeito da determina-ção do conteúdo essencial, distinguem-sebasicamente duas teorias:

a) teoria relativa: defende a tese de que oconteúdo de um direito fundamental só podeser conhecido analisando-se, em cada casoconcreto, os valores e interesses em jogo. Éesse um conceito relativo porque, segundoas exigências do momento, o conteúdo po-derá ser ampliado ou restringido. Sua prin-cipal diferença com as teorias absolutas éque, para a teoria relativa, o conteúdo es-sencial não é uma medida preestabelecida efixa, na medida em que não é um elementoestável nem uma parte autônoma do direitofundamental, mas possui valor constituti-vo, obtido a partir do controle de constituci-onalidade das normas;

b) teoria absoluta: é a teoria dominante,que refere que o conteúdo de um direito ésempre o mesmo, sem importarem as cir-cunstâncias de cada caso em particular. Naverdade, é uma posição não radical porque,embora fundada em um critério fixo e pre-determinado, a determinação do conteúdodesse critério pode variar segundo as cir-cunstâncias do momento.

A adoção de uma ou de outra teoria im-plicará relevantes conseqüências, das quais,talvez, a mais importante refira-se à prima-zia que irá outorgar-se ao direito fundamen-tal em relação ao interesse estatal. Assim,por um lado, a teoria relativa admite que alimitação de um direito fundamental depen-de apenas dos interesses contrapostos daspartes em conflito, porém aceita a possibili-dade da revogação parcial ou total desse di-reito no caso da afetação de algum interesseestatal; contrariamente, a teoria absoluta pro-clama sempre o respeito ao conteúdo essen-cial do direito fundamental, o que implicagarantir a existência desse direito sempre, ain-da que exista um interesse estatal em conflito.

Resta, agora, estabelecer o que se enten-de por conteúdo essencial. Sobre isso, exis-tem várias teorias, entre as quais menciona-remos as mais importantes e representati-vas das diversas posições.

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2. O conteúdo essencial nadoutrina de Smend

A teoria do “conteúdo essencial” dosdireitos fundamentais foi desenvolvida apartir dos estudos de Rudolf SMEND (1970),que proporcionou a base de uma interpreta-ção mais profunda dos direitos fundamen-tais a partir da sua teoria da integração.

Essa concepção parte da idéia de que oEstado existe e se desenvolve em um pro-cesso de contínua renovação, denominada“integração” por Smend (1968, p. 62-105),isto é, atualização ou desenvolvimento con-tínuo para a realização do Estado. Entre asdiversas formas de integração, destacam-se:a) pessoal: dirige-se a propiciar a unidadepolítica das pessoas na medida em que oEstado se realiza por meio delas; b) funcio-nal ou processual: compreende os diversosprocessos que criam o sentido coletivo dasociedade com a finalidade de uniformizaras distintas vontades coletivas; c) material:configurada pelos conteúdos substantivosnecessários para a realização do Estado,entre os quais se mencionam os direitos fun-damentais.

Nos direitos fundamentais, anotouSmend, existe um meio de “integração obje-tiva”, isto é, o conteúdo objetivo desses di-reitos tem um efeito integrador, pois consti-tuem parte essencial de todo ordenamentodemocrático, graças ao qual a maioria doscidadãos dá seu consentimento ao Estado.Por outro lado, os direitos fundamentaisconcretizam a liberdade e garantem, sobessa figura, seu exercício, mas não como umaexpressão descritiva da realidade, senão nosentido normativo, ou seja, de uma meta quehá de se alcançar. Conseqüentemente, nãodevem ser entendidos como a emancipaçãodos particulares diante do Estado, mas con-cebidos como relações integradoras entreaqueles e este, ou seja, como o conteúdo daunidade ou integração política.

O mérito de SMEND foi ter introduzidouma nova visão dos direitos fundamentais,os quais, até então, eram estudados a partir

da aplicação do princípio de legalidade emrelação à atuação da administração pública.Para o autor alemão, os direitos fundamen-tais deveriam ser estudados como parte doDireito Constitucional, já que constituem ocritério material de validez da Constituição.

Sobre o conteúdo essencial dos direitosfundamentais, SMEND observa que nemsempre coincide com a fórmula legislativada sua enunciação e que, na verdade, com-preende:

a) um sistema de valores e bens e um sis-tema cultural no qual o Estado encontra asua unidade;

b) um sistema nacional de valores únicopara todos os membros – ainda que de dife-rentes nacionalidades – do Estado.

Desse modo, define o conteúdo essenci-al dos direitos fundamentais como o con-creto sistema jurídico de valores que pro-movem a integração material e a legitimida-de da ordem jurídico-política estatal.

3. O conteúdo essencial nateoria de Düring

Essa teoria afirma que é graças ao reco-nhecimento da dignidade humana que o ti-tular de um direito fundamental não podeser considerado como um simples objeto daatividade estatal. Configura-se essa situa-ção quando o titular de um direito funda-mental – ainda cumprindo todos os pres-supostos e condições necessárias para o exer-cício do direito – não se beneficia da sua apli-cação, com o que sua dignidade é vulnerada.

Afirma DÜRING (apud GAVARA DECARA, 1994, p. 218-226) que a dignidadehumana expressa uma especificação mate-rial independente de qualquer tempo e es-paço, que consiste em considerar como per-tencente a cada pessoa um espírito impes-soal, o qual a torna capaz de tomar suaspróprias decisões a respeito de si e de tudoque lhe gira em torno. Precisamente por issoé que o conteúdo material de um direito fun-damental identifica-se com a própria digni-dade humana.

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Ainda que essa teoria pertença ao grupodas absolutas, DÜRING não nega a possi-bilidade de solucionar possíveis conflitosentre direitos fundamentais por meio daconfiguração de uma escala hierárquica dosbens jurídicos protegidos, enquanto salva-guarde a dignidade do homem. A obriga-ção de respeitar os direitos fundamentaisenquanto direitos que traduzem a dignida-de humana implica não apenas a obrigaçãoestatal de se abster de qualquer ação quepossa lesioná-los, mas também a ação posi-tiva de garantir que terceiros também nãotransgridam tais direitos.

O problema dessa teoria apresenta-se nomomento de determinar o que é a dignidadehumana. GAVARA DE CARA (1994, p. 221-226) menciona três teorias que tentam ex-plicar em que consiste a dignidade, a saber:

a) teoria originalista ou consensual: parteda preexistência de uma idéia diretriz dadignidade humana elaborada pelo PoderConstituinte no momento de incorporar anorma de direito fundamental na Constitui-ção. Desse modo, as circunstâncias que de-flagaram a criação da norma constitucionalconstituirão os parâmetros que permitirãodeterminar, no caso concreto, se a dignida-de humana foi lesada ou não;

b) teoria contextual: identifica o conteú-do da dignidade pela interpretação sistemá-tica da norma de direito fundamental que aregula; assim, dever-se-á prestar atenção aoutras normas que, ainda que indiretamen-te, desenvolvam alguma das facetas da dig-nidade humana, com a finalidade de obterum conceito global;

c) teoria que identifica a dignidade hu-mana com os direitos humanos: o problemadessa teoria é que não existe consenso sobre opróprio conceito de direitos humanos, aindaque a maioria os defina como os direitos na-turais que todo homem tem apenas pelo fatode ser tal. Todavia, é uma definição que conti-nua sendo abstrata, porque faz referência aosdireitos naturais, cujo conceito é um dos maispolêmicos na teoria jurídica, do que se con-clui que identificar a dignidade humana com

os direitos humanos não contribui para adeterminação da definição de dignidade.

Discute-se, dentro da teoria jurídica, se adignidade humana deve ser tratada comoum valor ou como uma norma. Um valor éum conceito axiológico que não pode ser tra-tado em termos de dever-ser mas mediantea determinação do que é bom, e a qualifica-ção de algo como bom depende de uma di-versidade de critérios, conforme o consensosocial – seguindo uma determinada tendên-cia: liberal, social, democrática, etc. – queassim o determine. No âmbito jurídico, osvalores atuam como critérios de interpreta-ção sem fazerem parte do Direito, pois este,além de ser deontológico, exige certa dosede objetividade, como meio de oferecer se-gurança aos destinatários da norma.

Sobre o conteúdo da dignidade, esse seráespecificado a partir da sua violação, isto é,considerar-se-á que a dignidade humananão foi respeitada se alguém for tratado nãocomo ser humano, mas como objeto. O sig-nificado dessa afirmação dependerá das cir-cunstâncias do caso concreto.

Critica-se essa posição na medida emque podem existir casos nos quais não ne-cessariamente a pessoa tenha sido tratadacomo objeto, porém, ainda assim, sua digni-dade tenha sido lesada. A partir dessa críti-ca, observam-se as diferenças conceituaisexistentes a respeito dos direitos fundamen-tais. Por um lado, para os autores que iden-tificam os direitos fundamentais apenas comos individuais, será mais fácil determinarse houve ou não violação à dignidade, anali-sando apenas se a pessoa foi tratada comoum objeto. Contrariamente, para os que con-sideram que os direitos fundamentais abran-gem diversas categorias (individuais, coleti-vos, sociais, econômicos, culturais, políticos,difusos, etc.), a especificação do conteúdo dadignidade por meio do critério mencionadonão será, evidentemente, suficiente.

É, dessa maneira, necessário identificaro conteúdo essencial do direito fundamen-tal não apenas com o que estiver diretamen-te relacionado com a dignidade humana.

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Deve-se, sim, entender que todos os bensjurídicos constitucionais estão relacionadose que o homem não pode ser enfocado ape-nas com base em uma visão individualista,mas como um ser inserido na sociedade.Portanto, não é só por meio dos direitos in-dividuais que ele realiza sua existência; a to-talidade de seu desenvolvimento pressupõee exige a satisfação de outras necessidadessuas, concretizadas em outros direitos, comoos sociais, culturais, econômicos e difusos.

4. O conteúdo essencial nateoria de Häberle

Häberle (1994, p. 45-60) define os direi-tos fundamentais como um sistema de valo-res que não pode ser concebido de formaabstrata, exterior ou superior à própria Cons-tituição ou ao ordenamento jurídico, mascomo valores que estão concretizados e po-sitivados constitucionalmente. Dessa ma-neira, identifica os direitos fundamentaiscomo um sistema institucional unitário e ob-jetivo, cujo significado deve ser determinadoem relação à totalidade da Constituição.

Tentando superar os erros da teoria dagarantia institucional de Schmitt, Häberleconcebe os direitos fundamentais como bensjurídicos constitucionais que incluem nãoapenas os bens individuais, mas tambémos da coletividade. Ainda mais: consideracomo bens constitucionais não apenas osacolhidos diretamente no texto fundamen-tal, mas também os que são pressupostosimanentes dela.

Para determinar o significado dos direi-tos fundamentais, Häberle (1994, p. 50) par-te do princípio de que:

a) a função social dos direitos fundamen-tais é dirigida a solucionar dois problemas:a determinação dos limites imanentes e ovínculo material do legislador em relaçãoaos direitos fundamentais;

b) entre os bens jurídicos constitucionais,existem relações de “condicionabilidade”mútua, da mesma forma que entre os direi-tos fundamentais existe também uma con-

dicionabilidade, visto que todos se encontramrelacionados entre si e com a totalidade daConstituição. Assim, os direitos fundamen-tais se reforçam e se protegem mutuamente;

c) os direitos fundamentais são a basefuncional da democracia na medida em que,paralelamente à sua dimensão pessoal eprivada, possuem uma dimensão democrá-tica e pública, embora, em função da demo-cracia, não se devam instrumentalizar osdireitos pessoais, mas procurar o equilíbriodas duas dimensões.

Com base nessas observações, o mestrealemão afirma que a garantia e o exercíciodos direitos fundamentais se caracterizampor enlaçar os interesses individuais e ospúblicos, interesses não contrapostos, massituados paralelamente, um ao lado do ou-tro. Na verdade, é próprio de toda normajurídica procurar proteger, ao mesmo tem-po, o interesse público e o privado.

A situação de tensão entre a proteção debens jurídicos ou interesses constitucionaise os bens ou interesses particulares é o quefundamenta a autorização do Poder Legis-lativo para intervir e proteger os bens e osinteresses da sociedade, devendo solucio-nar os conflitos por meio de um harmônicoequilíbrio entre os interesses constitucionaise os individuais. Desse modo, a constitucio-nalidade de uma lei reguladora de direitosfundamentais dependerá da sua compati-bilidade com o objeto de proteção do Direitoe da sua justificação constitucional.

Observe-se que Häberle inclui a prote-ção dos bens constitucionais no conteúdoessencial dos direitos fundamentais, sendoque, para a determinação e valorização dosbens e interesses em jogo, utiliza o princípioda ponderação de bens, o qual se distinguecomo um princípio constitucional imanen-te. Nesse sentido, sua aplicação deve obser-var que cada direito fundamental, depen-dendo da sua qualidade e concreta regula-ção constitucional, está em relação valorati-va com outros bens jurídicos constitucio-nais. Desse modo, ao se indagar sobre omaior, igual ou menor valor dos distintos

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bens jurídicos – assim como o equilíbrioentre eles e os direitos que decorrem do sis-tema de proteção de bens jurídicos constitu-cionais –, dever-se-á levar em conta que to-dos estão relacionados entre si.

Com base nisso, Häberle (1994, p. 60-61)unifica a teoria dos limites imanentes com ateoria do conteúdo essencial em um concei-to denominado “limites aos direitos funda-mentais segundo a sua essência”, propon-do que as leis reguladoras de direitos fun-damentais adquiram nível constitucionalpara que se consiga uma maior compatibili-dade entre todas as normas sobre direitos fun-damentais (constitucionais e infraconstituci-onais), visto que a Constituição deve ser in-terpretada sempre na sua totalidade, relacio-nando todos os bens constitucionais. Dessaforma, os limites imanentes estariam incluí-dos no conteúdo essencial dos direitos fun-damentais, uma vez que, para conhecer esseslimites, faz-se necessária a ponderação de to-dos os bens constitucionalmente protegidos.

O conteúdo essencial não seria uma me-dida em si mesma, mas estaria determinadopela Constituição e os outros bens jurídi-cos. Nesse sentido, seria o legislador quem,além de regular um direito fundamental,estabeleceria também o seu conteúdo essen-cial e os limites imanentes.

Foi justamente essa aparente confusãoou identificação entre conteúdo essencial elimites imanentes que provocou a enormequantidade de críticas à tese defendida porHäberle, já que o correto teria sido que a de-terminação do conteúdo precedesse a colo-cação dos limites, os quais não podem ser,ao mesmo tempo, os elementos definidoresda sua própria inconstitucionalidade. Oprincipal erro de Häberle, no entanto, foicolocar nas mãos do legislador o poder deele próprio determinar os critérios que qua-lificariam sua tarefa como constitucional ouinconstitucional, esquecendo-se de que tantoa garantia do conteúdo essencial quanto oprincípio dos limites imanentes foram cria-dos para proteger os direitos fundamentaisdos abusos do legislador.

Häberle (1994) responde às críticas ex-pondo a existência de certas limitações. As-sim, o legislador, na concretização normati-va dos direitos fundamentais, não poderia“criar” uma segunda Constituição nem re-alizar uma modificação material da Lei Fun-damental, isto é, não poderia ocupar o lu-gar do legislador constituinte. A garantiados direitos fundamentais obriga a que aatividade legislativa se justifique na própriaConstituição, isto é, exige-se a prévia deter-minação do conteúdo essencial dos direitosfundamentais. A ponderação de bens reali-zada pelo legislador, na sua função regula-dora, teria, assim, como principal limite oconteúdo essencial dos direitos fundamen-tais, determinado pela conjunção dos inte-resses dos particulares e da coletividade.Com base nisso, Häberle (1994) deduziu oduplo caráter dos direitos fundamentais:

a) o aspecto individual, que garante umdireito público subjetivo, cujo titular tantopode ser um indivíduo quanto um grupo,associação, sindicato, etc.;

b) o aspecto institucional, expresso pelagarantia constitucional que reconhece a con-figuração e ordenação de determinados âm-bitos sociais nos quais o indivíduo se de-senvolve, como a família, o matrimônio, aliberdade de associação, a liberdade de im-prensa, etc.

Ambos os aspectos configuram global-mente o direito fundamental, relacionando-se simultânea e paralelamente, em igual ní-vel hierárquico, sem que o legislador possaafetar nem um nem outro aspecto.

Essa visão de Häberle mostra a influên-cia recebida de Hauriou (1972), que inten-tou, com a sua teoria tradicional da institui-ção*, superar a separação entre o direitoobjetivo e o subjetivo, relacionando as duasdimensões não como uma alternativa, mascomo uma correlação, para que a interpre-

* O conceito de instituição foi desenvolvido nomundo jurídico por Hauriou (1972) que a definiucomo uma organização social criada por poderpermanente, a partir de uma idéia fundamentalaceita pela maioria dos membros da sociedade.

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tação dos direitos fundamentais levasse emconta os dois aspectos ao mesmo tempo.

Häberle (1994, p. 49) defende a idéia deque os direitos fundamentais – graças aoseu caráter dinâmico decorrente da sua na-tureza principiológica – relacionam-se fa-cilmente ao âmbito social garantido institu-cionalmente, assim como ao complexo nor-mativo que desenvolve o seu exercício:

“(...) los derechos fundamentales sonno sólo derechos individuales subje-tivos del individuo o del grupo, pues,tutelan también conexiones objetivas,complejos de normas constituidas porel Derecho positivo – facilmenteintuíble en los casos de la propiedadprivada, del derecho público y priva-do de las asociaciones, del matrimo-nio y de la familia (...)”.

O legislador ocuparia, nesse contexto,um papel de suma importância visto que éele quem tem a função de desenvolver a con-figuração e a concretização dos direitos fun-damentais. Daí que se procure fixar constitu-cionalmente os limites aos quais o legisladorestá submetido, com a finalidade de evitar nãoapenas a desnaturalização dos direitos fun-damentais, mas, e sobretudo, que ocupe ousubstitua o lugar do legislador-constituinte.

5. A relativização dos direitosfundamentais

A garantia do conteúdo essencial é con-cebida como um limite à atividade limita-dora dos direitos fundamentais, isto é, comoo “limite dos limites”. O conteúdo essencialatua como uma fronteira que o legisladornão pode ultrapassar, delimitando o espa-ço que não pode ser “invadido” por uma leisob o risco de ser declarada inconstitucio-nal. Por isso é que a garantia do conteúdoessencial é o limite dos limites, indicandoum limite além do qual não é possível a ati-vidade limitadora dos direitos funda-mentais.

Essa visão fundamenta-se na teoria daconcordância prática de Hesse (1983), que

defende a harmonização entre todas as nor-mas constitucionais, ou seja, a idéia de quenenhum direito ou bem constitucional ésuperior ou inferior, por isso, os direitosdevem ser regulados e limitados, não sendopossível, pois, aceitar o seu caráter absolu-to. Observe-se, contudo, que essa limitaçãodeve, por sua vez, ser limitada em razão dorisco da desnaturalização do direito.

Com base nisso, Otto y Pardo (1988) cha-ma a atenção para um interessante parado-xo: a garantia do conteúdo essencial perse-gue o fortalecimento dos direitos fundamen-tais, mas também pode constituir-se no meioque nos leve à direção contrária.

Com efeito, o estabelecimento de um li-mite dos limites – mediante a garantia doconteúdo essencial – não implicaria ne-nhum problema, se se partisse do pressu-posto de que qualquer lei pode limitar umdireito fundamental por qualquer motivo efinalidade. Esse foi o fundamento históricodo surgimento da garantia no Direito ale-mão. Durante a época da Constituição deWeimar, os direitos fundamentais eram pra-ticamente esvaziados de conteúdo pelo tra-balho do Poder Legislativo, além de não exis-tir o controle jurisdicional da constitucio-nalidade das leis, fazendo necessária a cri-ação de um mecanismo, como a garantia doconteúdo essencial, que limitasse a ativida-de legislativa e salvaguardasse os direitosfundamentais.

Na atualidade, entretanto, a situação émuito diferente. Os direitos fundamentaisestão constitucionalizados e sua proteçãorealiza-se – entre outros remédios constitu-cionais – via o controle de constitucionali-dade, no qual se analisam as justificativasda regulação e se o legislador excedeu-senas suas competências.

Se, por meio do controle de constitucio-nalidade, é possível defender os direitosfundamentais dos excessos do Legislativo,questiona-se, então, qual é o sentido da ga-rantia do conteúdo essencial?

Otto y Pardo (1988) conclui que o senti-do da garantia reside na relativização dos

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direitos fundamentais, o que pode ser ob-servado tanto dentro da concepção relativacomo da absoluta sobre o conteúdo essen-cial.

Assim, na teoria relativa, define-se o di-reito fundamental não como algo dotado deum valor incondicional, mas como algo cujacaracterística jurídica é a proibição da sualimitação arbitrária, de tal forma que a ga-rantia do conteúdo essencial não alude, naverdade, ao conteúdo, mas a um juízo derazonabilidade, cujo caráter tem um senti-do “econômico”, visto que se refere a umarelação custo-benefício. A relativização dosdireitos fundamentais que daí decorre émanifesta: “la relación de equilibrio entrelas normas constitucionales se subvierte porentero en perjuicio de los derechos funda-mentales, porque el derecho empieza allí don-de acaba la posibilidad de limitarlo” (OTTO YPARDO, 1988, p. 131). Na teoria relativa, oconteúdo de um direito não desempenhanenhum papel material ou substancial, se-não puramente processual ou argumentati-vo. É processual na medida em que o traba-lho legislativo é analisado só porque estáincidindo num direito constitucionalizado;por outro lado, é argumentativo porque agarantia depende mais do discurso utiliza-do a favor ou contra a norma reguladora doque do conteúdo em si.

Na teoria absoluta, o panorama não émuito diferente, na medida em que verifica-se que a construção dogmática da garantiado conteúdo essencial realiza-se com baseem uma proteção singularizada. Com efei-to, na teoria absoluta, o conteúdo essencialé um núcleo duro, absolutamente resistenteà ação limitadora do legislador, ainda pre-cisando-se proteger outro direito ou bemconstitucional. A proteção unicamente donúcleo implica que a parte periférica estariatotalmente desprotegida, com o que, aindaque indiretamente, o direito poderia ser le-sionado sem a “necessidade” de ter sidodiretamente afetado o seu núcleo.

O pensamento de Otto y Pardo tem pro-vocado interessantes discussões a respeito

da relativização dos direitos fundamentaisem virtude da incorporação da garantia doconteúdo essencial em um sistema no qualjá existe o controle de constitucionalidadedas leis. A doutrina e a jurisprudência têmpredominamente aceito a relativização, sóque não sob o ponto de vista negativo, mas,justamente, como a afirmação da historici-dade e da exigência da constante atualiza-ção de um direito. Nesse sentido, a garantiado conteúdo essencial não apenas aceita apossibilidade da limitação, mas também aregulação de um direito fundamental, coma finalidade de permitir que possa ser efeti-vamente exercido, mas sempre que não sejadesnaturalizado. Essa garantia, junto comos princípios da ponderação dos bens e daproporcionalidade, constitui um mecanis-mo indispensável na realização dos direi-tos fundamentais, os quais não são direitosabsolutos mas também não são, nem muitomenos, instrumentos da arbitrariedade dolegislador.

6. ConclusõesA garantia do conteúdo essencial sur-

giu basicamente para limitar os abusos nor-mativos da atividade reguladora do legisla-dor ordinário em matéria de direitos funda-mentais. A importância da garantia comomecanismo de limite ao poder de legislar éinquestionável, não apenas porque é umagarantia que não depende de maiores regu-lamentações – visto que sua aplicação podeser direta, facilitando sua utilização –, masporque, por meio dela, pode-se garantir oreal exercício dos direitos fundamentais, ele-mentos legitimadores e fortalecedores doEstado Democrático de Direito.

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Jete Jane Fiorati

IntroduçãoA internacionalização das empresas

propiciada pela abertura de mercados e pelamodernização tecnológica fez com que, dosEstados Unidos e da Europa, as regras so-bre defesa da livre concorrência e contrapráticas anticompetitivas e dumping se esprai-assem para outros continentes e, nesta déca-da de 1990, viessem inclusive a constituir umdos capítulos da Ata Final da Rodada Uru-guai que criou a OMC. Se as empresas sãoglobais, o mercado é global, os princípios bá-sicos para a defesa da concorrência tambémdevem ter sua aplicação em âmbito global.

No final do século XX e início deste sé-culo, com a transformação do mercado na-cional, que deixa de ser isolado e torna-seinterdependente, surge um mercado globale surgem também as megaempresas conhe-cidas como multinacionais ou transnacio-nais, que se transformaram em importantesatrizes do cenário econômico global. A glo-balização pode ser caracterizada como umprocesso em que capitais e tecnologia pri-vados, cujos titulares são grandes corpora-ções empresariais transnacionais, circulamem todo o globo, independentemente dasfronteiras nacionais.

A lex mercatoria como ordenamentojurídico autônomo e os Estados emdesenvolvimento

Jete Jane Fiorati é Professora Livre Docenteem Direito Internacional da UNESP. Mestre eDoutora em Direito. Pesquisadora do CNPq eAssessora Científica da FAPESP.

SumárioIntrodução. 1. A lex mercatoria como orde-

namento jurídico autônomo. 2. Estados em de-senvolvimento e lex mercatoria. Consideraçõesfinais.

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Seu objetivo é a produção de um maiornúmero de produtos a menor preço e me-lhor qualidade que possam disputar comoutros concorrentes no mercado mundial,bem assim a obtenção de maiores lucros eminvestimentos realizados nos mercados fi-nanceiros. Esse processo é incrementadopela evolução da tecnologia nos meios detransportes, que permitem que cada etapade produção de um bem seja efetuada emum país diferente, e das comunicações, queeliminam as distâncias na realização dasdecisões empresariais. Nesse cenário, tor-na-se difícil fazer menção a capitais ou tec-nologia nacionais, e até mesmo à aplicaçãoimperativa de leis nacionais a negócios in-ternacionais (FIORATI, 1996, p. 125-127, etseq.). Por outro lado, as conseqüências daatuação das empresas transnacionais po-dem, então, ser descritas como econômicas,de um lado, e culturais, ideológicas e soci-ais, de outro.

A globalização do mundo expressa umnovo ciclo de expansão do capitalismo, re-modelando a produção e introduzindo umprocesso civilizatório de alcance mundial.Um processo de amplas proporções envol-vendo nações e nacionalidades, regimes po-líticos e projetos nacionais, grupos e classessociais, economias e sociedades, culturas ecivilizações. Assinala a emergência da so-ciedade global, como uma totalidade abran-gente, complexa e contraditória. Uma reali-dade ainda pouco conhecida desafiandopráticas e ideais, situações consolidadas einterpretações sedimentadas, formas depensamento e vôos da imaginação (IANNI,1997, p. 23).

As empresas transnacionais desempe-nham um papel de destaque, trazendo re-novado interesse pelas práticas comerciaisoriundas da Lex Mercatoria. De acordo comLuis Olavo Baptista, a empresa transnacio-nal é uma entidade que não possui perso-nalidade jurídica própria. É composta porum certo número de subsidiárias e tem umaou mais sedes, constituídas em diversos pa-íses, de acordo com a legislação local que

lhes dá personalidade jurídica e, sob certoaspecto, nacionalidade. Nesse sentido, LuizOlavo Baptista (1987, p. 17) continua argu-mentando que, sob o prisma estritamentejurídico-positivo, não existe a empresatransnacional, razão pela qual a descriçãoque dela fazem os economistas é útil parasua conceituação: “um complexo de empre-sas nacionais interligadas entre si, subordi-nadas a um controle central unificado e obe-decendo a uma estratégia global”.

A empresa transnacional aproxima-se,assim, do conceito jurídico de grupo de so-ciedades, mas com o acréscimo de que é umgrupo constituído por sociedades sediadasem países diferentes, constituídas sob leisdiversas, cada qual com certa autonomia,agindo por sua conta, mas em benefício doconjunto. Diferencia-se, portanto, das cha-madas companhias internacionais por se-rem organizações econômicas privadas,cujas atividades atravessam fronteiras na-cionais e sistemas jurídicos estatais.

Apesar de seu vínculo aos sistemas jurí-dicos nacionais, é possível a ênfase de que ocontrole das empresas transnacionais é pre-dominantemente exercido de forma extrale-gal, pois a matriz, melhor dizendo, a sedereal da empresa, mantém forte influência nadireção das subsidiárias, em sua maiorianão integrais, interferindo, na prática, emsuas estratégias e decisões.

Outro aspecto a ser salientado é que, deacordo com o modus operandi, há dois tiposde empresas transnacionais: o primeiro é aempresa que trata cada país como unidadeindependente e assemelha-se muito mais àholding company do direito interno, emboraatue internacionalmente. Esta, geralmenteconhecida como empresa multinacional ouempresa policêntrica, não cria problemassérios para os governos hospedeiros, umavez que respeita suas peculiaridades. O ou-tro tipo é aquele que tende a integrar todasas operações das diversas filiais e centrali-zar a sua política e controle. Para essa em-presa, de caráter geocêntrico, o mercadomundial é o seu objetivo como um todo e de

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cada subsidiária em particular, sendo seuideal a ocorrência de um processo que leveprogressivamente a uma padronização denormas jurídicas.

Celso Lafer (1987, p. 3), em seu prefácioà obra de Baptista (1987), afirma que a em-presa transnacional detém o poder de con-trole de investimentos em diversos sistemaseconômicos nacionais, por meio dos quaisorganiza e explora a produção de bens e ser-viços para a venda nos respectivos merca-dos internos e nos mercados de outros paí-ses, configurando uma unidade econômicaque tem como atributo a capacidade de alo-car recursos em escala mundial. Por essarazão, o que ela almeja é liberdade para ope-rar transnacionalmente, o que juridicamen-te se traduz na aspiração do reconhecimen-to da legitimidade e da legalidade de umDireito não-estatal.

Afirma ainda Lafer (1987, p. 4) que essedireito eminentemente baseado nos usos ecostumes é chamado de uma nova lex mer-catoria, que, no mundo globalizado, é elabo-rado pela prática das próprias empresastransnacionais, principais atores do comér-cio internacional. Nesse sentido, as empre-sas internacionais almejam reger suas rela-ções sem a interferência de lei interna ou delei internacional, pelo jogo da autonomia davontade, através de contratos e da arbi-tragem, conforme ainda argumenta CelsoLafer. Há, assim, um esforço de codificaçãodessas práticas, com uma idéia de autocon-trole por meio da estandardização das re-gras.

1. A lex mercatoria comoordenamento jurídico autônomo

Segundo Berthold Goldman (1964, p. 179),a lex mercatoria é um conjunto de princípios eregras costumeiros, espontaneamente referi-dos ou elaborados no quadro do comérciointernacional, sem referência a um sistemaparticular de lei nacional. Schmitthoff1 (1987,p. 27), por sua vez, a compreende como umconjunto de princípios comuns relaciona-

dos aos negócios internacionais presentesem regras uniformes que tem aceitabilidadegeneralizada. Langen 2 a considera comoregras do jogo do comércio internacional,enquanto Goldstajn3 (1973) a identificacomo o corpo de normas que regem as rela-ções internacionais de natureza de direitoprivado, envolvendo diferentes países.

Tendo como antecedentes a Lex Rhodia –Lei do Mar de Rodes (300 a.C.) – e o JusMercatorum (séc. XIV), a lex mercatoria nas-ceu das feiras da Idade Média, em respostaaos direitos feudais que, com seus inúme-ros privilégios, entravavam as relações co-merciais da época. Foi Berthold Goldmanquem, em 1964, observando a existênciadesse direito costumeiro internacional, nas-cido das práticas comerciais internacionais,trouxe à tona a doutrina da nova lex merca-toria, em trabalho publicado nos Archivesde Philosophie du Droit, no 09, intituladoFrontières du droit et lex mercatoria.

Nesse estudo, Goldman (1964) lançou asbases para uma discussão sobre a nova lexmercatoria e sua caracterização como fontedo direito do comércio internacional. Elepropôs realizar um estudo sobre uma expe-riência contemporânea, à luz de alguns cri-térios que se usam como referenciais paradeterminação das regras de direito. E essaexperiência é a das normas originais do co-mércio internacional (lex mercatoria), as quaiscobrem todo o conjunto das relações econô-micas internacionais. Um de seus instru-mentos é o contrato-tipo.

Os contratos-tipo foram amplamente di-vulgados também a outros domínios do co-mércio internacional, a exemplo do comér-cio de produtos agrícolas, florestais, minei-ros, petroleiros, siderúrgicos, têxteis e bensde equipamento. São eles emanados

“de associações profissionais, ou deagrupamentos de empresas mais es-treitamente integradas, até mesmo iso-ladas, mas poderosas; e na última épo-ca, vários foram elaborados, sob a égi-de da Comissão Econômica para aEuropa das Nações Unidas, essenci-

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almente para servir de quadro às rela-ções comerciais entre o Leste e oOeste” 4 (GOLDMAN, 1964 apudFIORATI; MAZZUOLI, 2003, p. 191).

Para Goldman (1964 apud FIORATI;MAZZUOLI, 2003, p. 191-192), esses fatoscomprovam a existência

“de uma rede densa e extensa de do-cumentos, cobrindo a maioria dospaíses com um bom número de benstrocados no comércio internacional; ea considerar o fenômeno sem idéiapré-concebida, é possível constatarque os contratos aí referidos não sãoregidos nem pela lei de um Estado,nem por uma lei uniforme adotada poruma Convenção entre Estados, massim pelos próprios contratos-tipo”.

Ainda conforme o autor:“É preciso ainda sublinhar que es-

tes [contratos] não se limitam a codifi-car usos preexistentes: eles consa-gram também normas novas, diferen-tes daquelas dos direitos estatais tra-dicionais, algumas vezes inspirados,é verdade, pelo interesse dos parcei-ros mais poderosos, mas em outroscasos também pelo interesse comumdos contratantes”5.

O mesmo ocorre com o transporte aéreointernacional, que é regulado pelos contra-tos-tipo da International Air TransportAssociation (IATA), utilizados pela quasetotalidade das companhias aéreas. Comoafirma Goldman (1964 apud FIORATI;MAZZUOLI, 2003, p. 196):

“Ao tratar do funcionamento dassociedades internacionais, observa-se,de início, que não se trata, aqui, deestudar aquelas sociedades cujo fun-cionamento escapa realmente a todoo direito interno estatal, mas que bus-cam o conjunto de regras que as go-vernam nos contratos e acordos queas instituíram, porque, neste caso, ocaráter jurídico de seu estatuto somen-te poderia então ser controverso como do direito internacional público no

seu conjunto, que permanece fora des-se nosso propósito”6.

Goldman (1964 apud FIORATI; MA-ZZUOLI, 2003, p. 196) parte da análise da-quelas sociedades que, embora criadas poracordos internacionais constitutivos, são re-guladas pelos seus estatutos e, subsidiaria-mente, pelas leis do país de sua sede ou in-corporação. Para ele, os estatutos são,

“efetivamente, nesse caso, obra deempresas associadas, distintas dosEstados dos quais elas se libertam;quanto à lei de referência subsidiária,ela somente permanece estatal emaparência, porque ela é ‘cristalizada’em seu estado no dia da constituiçãoda sociedade, e suas modificações ul-teriores não podem ser impostas aesta. Ela é assim conduzida por umacoletânea de normas supletivas denatureza mais próxima dos estatutosde uma sociedade, que do ato legisla-tivo de um Estado soberano”7.

Mais característico ainda, segundo ele, éo caso daquelas sociedades que, criadas ounão por convenções internacionais, referem-se deliberadamente aos “princípios comuns”de várias legislações, até mesmo a fontes in-determinadas, para preencher eventuais la-cunas de seus estatutos. Lembra Goldman(1964 apud FIORATI; MAZZUOLI, 2003, p.197) o exemplo do Scandinavian AirlinesSystem, consortium criado por uma conven-ção entre companhias de transporte aéreo,não se ligando a nenhuma lei nacional: ascláusulas de seu contrato constitutivo sãopouco numerosas, e não se vê quase nadapara completá-las senão os princípios co-muns às três legislações escandinavas, emais geralmente talvez o direito comum dassociedades internacionais, se se admite aexistência delas8.

Quando se mencionam princípios co-muns, imediatamente surge uma questão:quem definirá tais “princípios comuns”? Se-gundo Goldman (1964 apud FIORATI;MAZZUOLI, 2003, p. 197), a questão apare-ce, para as sociedades,

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“porque os seus estatutos a eles ape-lam expressa ou implicitamente, masa questão se põe, na realidade, tam-bém para os contratos do comérciointernacional, na medida em que podeser necessário completar ou interpre-tar as normas dos contratos-tipo oudas ‘Regras e Costumes’, em que serecusa a buscar [resposta], exclusiva-mente para isso, em um sistema jurí-dico estatal cujas partes pretenderamse separar”.

Caberá ao juiz do contrato, que é quasesempre um colégio ou tribunal arbitral, ouda estrutura e do funcionamento da socie-dade responder a essa questão. Serão entãoos árbitros a responder a questão formula-da e eles não têm procurado resposta para ocaso concreto submetido à sua apreciação,em uma lei estatal nem em um tratado inter-nacional, mas sim em um “direito costumei-ro” do comércio internacional – chamadode lex mercatoria –, sendo inútil perquirir setais julgadores apenas a constatam ou se,ao contrário, a elaboram, posto que essasduas diligências estão, segundo Goldman(1964 apud FIORATI; MAZZUOLI, 2003, p.198), intimamente misturadas, como todavez que um juiz exerce uma tal atividade.

Segundo Goldman (1964 apud FIORATI;MAZZUOLI, 2003, p. 198-199):

“Algumas decisões arbitrais, pu-blicadas ou analisadas, ilustram estatendência. Assim, na sentença relati-va ao caso entre Petrolium Develop-ment (Trucial Coast) Ltd. e o Cheik deAbu Dhabi, o árbitro Lord Asquith ofBischopstone, constatando que a leide Abu Dhabi, teoricamente compe-tente para reger o contrato litigioso,não continha um ‘corpo estabelecidode princípios jurídicos utilizáveispara a interpretação de instrumentoscomerciais modernos’, decidiu-se, emrelação igualmente à vontade das par-tes, que é conveniente aplicar, nestecaso, os ‘princípios buscados no bomsenso e na prática comum do conjun-

to das nações civilizadas, uma espé-cie de modern law of nature’. Este apeloa um ‘direito comum das nações’ oupelo menos a elaboração e a aplica-ção de princípios próprios ao comér-cio internacional encontram-se tam-bém na sentença do MM. Ripert etPanchaud, de 2 de julho de 1956, quedecidiu que a garantia contra a depre-ciação monetária deve ser presumidanum contrato internacional. Da mes-ma forma, em um laudo não publica-do, relativo a um litígio entre uma or-ganização internacional e uma socie-dade comercial, o árbitro consideroua presunção de que o signatário de umcontrato tomou conhecimento dascondições gerais às quais são referi-das no próprio contrato, e por outrolado, a sanção do abuso de direito,como regras costumeiras internacio-nais. Os ‘princípios gerais do direito’e os ‘usos seguidos na indústria pe-troleira’ foram, de maneira semelhan-te, invocados na sentença propaladapelos juízes MM. Sauser-Hall, Hassane Saba Habachi, aos 23 de agosto de1958, para resolver o litígio entre Ara-mco e o governo da Arábia Saudita”.

Muitas vezes, ao convidar os árbitrospara julgarem seus litígios, os contratantesrecusam-se a escolher uma lei estatal parareger as suas relações, até mesmo declarandoexpressamente que não querem a tais leis sereferir. Mas, como esclarece Goldman (1964apud FIORATI; MAZZUOLI, 2003, p. 200),

“a despeito de uma confusão tenaz,isto não significa que no seu espíritoos contraentes querem concluir um‘contrato sem lei’, nem mesmo que ocontrato, considerado como um con-junto de ‘normas individuais’, devainteiramente bastar-se a si mesmo; elessentem, ao contrário, embora confu-samente, a necessidade de colocá-lono quadro de normas gerais, mas pen-sam também que estas normas podemser encontradas no direito profissio-

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nal, nos usos ou nos princípios gerais[de direito] ultrapassando as frontei-ras nacionais”.

Nas palavras de José Carlos de Maga-lhães (1994, p. 43):

“A lex mercatoria não compete coma lei do Estado, nem constitui um di-reito supranacional que derroga o di-reito nacional, mas é um direito ado-tado, sobretudo, na arbitragem comer-cial internacional ou outra forma deresolução de controvérsias, ad lateredo sistema estatal. Este o sentido e aamplitude da chamada lex mercatoria.Mesmo porque, como notou ChristophW. O. Stoecker, os tribunais nacionaisnão a aceitam como corpo de lei alter-nativa a ser aplicado em um litígio.Acatando-a, estaria o Estado abdican-do de parte de sua soberania em favorde mãos invisíveis de uma comuni-dade de mercadores em constantesmudanças. Na verdade, a aplicaçãoda lex mercatoria por juízes nacionaisnão é compatível com a própria con-cepção da lex mercatoria, lastreada nocaráter corporativo da comunidade deprofissionais ou dos operadores docomércio internacional. Daí o vínculoestreito entre a lex mercatoria e a arbi-tragem”.

A arbitragem é um dos instrumentos fun-damentais da nova lex mercatoria e não podedeixar de ser levada em consideração quan-do se trata de analisar as normas surgidasda prática internacional dos comerciantessob a ótica do sistema jurídico. A efetivida-de da decisão arbitral não repousa na forçado Estado, mas na da corporação em que seintegram as partes litigantes, já que, se operdedor não acatar os mandamentos dolaudo arbitral, de tal corporação será exclu-ído, ante a falta de credibilidade e de confi-abilidade que passará a caracterizá-lo pe-rante os demais atores do comércio interna-cional (MAGALHÃES, 1994, p. 43).

Somente a constatação material da exis-tência de uma nova lex mercatoria, ou a cons-

tatação psicológica da referência que a ela éfeita, não basta a Goldman para conferir aessas normas costumeiras do comércio in-ternacional o caráter de regras de direito.Afinal é a lex mercatoria um ordenamentojurídico?

Segundo Goldman (1964 apud FIORA-TI; MAZZUOLI, 2003, p. 197): “Os princípi-os, as disposições e contratos-tipo e os usosseguidos no comércio internacional se situ-am incontestavelmente no domínio econô-mico, de modo que eles mereceriam, nesseponto de vista, ser considerados como jurí-dicos”. E assim conclui o jurisconsulto:

“De maneira mais variada, obser-vou-se que o círculo da família e osvínculos de amizade, se eles não sãointeiramente impermeáveis ao direi-to, englobam, entretanto, amplas zo-nas de ‘não-direito’, e que pode sermesmo assim quando as situações quese formam não são desprovidas detoda incidência econômica (como nasdisposições testamentárias precatóri-as ou o transporte gratuito). Ainda aí,tais limitações não poderiam eviden-temente excluir as relações comerci-ais internacionais do domínio do di-reito, admitindo mesmo uma certa for-ma de ‘amizade’ (que deveria, de pre-ferência, chamar-se ‘confraternidade’ou ‘solidariedade profissional’), queunem os que aí participam, e explica,entre outros fatores, a observação es-pontânea de normas não-estatais”(GOLMAN, 1964 apud FIORATI; MA-ZZUOLI, 2003, p. 202-203).

O primeiro passo de Goldman (1964apud FIORATI; MAZZUOLI, 2003, p. 206),então, para caracterizar, por critérios for-mais, a lex mercatoria como direito, foi o dedefinir o conteúdo do termo regra, e, paratanto, tomou emprestada a conceituação,àquele tempo ainda inédita, de Batiffol, paraquem uma regra “é uma prescrição de cará-ter geral, formulada com uma precisão sufi-ciente para que os interessados possam co-nhecê-la antes de agir”.

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E a esse respeito, Goldman (1964 apudFIORATI; MAZZUOLI, 2003, p. 206) escre-ve:

“Admitiremos, sem dificuldade,que as cláusulas dos contratos-tipo,ou os usos codificados correspondema esta definição, pelo menos no queconcerne à generalidade, à precisão eà publicidade. A hesitação é, sem dú-vida, permitida quanto trata-se das‘regras’ costumeiras do comércio in-ternacional, como aquelas das quaisnós citamos alguns exemplos: se sepode, notadamente, considerar que asanção do abuso de direito ou a opo-nibilidade das cláusulas impressastêm sido realmente tiradas pelo árbi-tro de um fundo comum preexistentee conhecido, senão formulado comprecisão, é mais difícil de admiti-lo,por exemplo, para a presunção de ga-rantia de troca nos contratos interna-cionais. Mas a dificuldade não é es-pecífica às normas do comércio inter-nacional. Ela se encontra cada vez queo juiz passa insensivelmente da inter-pretação de uma regra preexistente –escrita ou não, mas certa e conhecida,ou pelo menos conhecível – para a ela-boração de uma regra nova; em resu-mo, para contestar o caráter de regrasàs normas ou princípios extraídospelos árbitros do comércio internaci-onal, poder-se-ia também recusá-lospara a ‘presunção de responsabilida-de’, da qual ninguém sustentará queela foi extraída do Código Civil. Dir-se-á que estas normas ou princípiossão menos conhecidos que as solu-ções constantes da jurisprudência es-tatal? A observação é exata, mas nãorevela uma diferença fundamental,porque as soluções arbitrais não sãorealmente ignoradas no meio profis-sional ao qual elas dizem respeito”.

Assim, surge a questão: essas regras po-dem ser equiparadas às leis ou aos costu-mes que dependem de um ordenamento ju-

rídico interno, de caráter estatal? Duas re-flexões são possíveis segundo Goldman (1964apud FIORATI; MAZZUOLI, 2003, p. 206):

a) inicialmente, pode-se hesitar em ad-mitir que as regras da lex mercatoria sejamefetivas prescrições – porque essa noção im-plica a de comando. As cláusulas dos con-tratos-tipo ou os usos codificados não se im-põem às partes, poder-se-ia pensar, em vir-tude de sua livre adesão; e esta não é, elaprópria, constrangida senão em virtude deuma lei estatal – o artigo 1.134 do CódigoCivil francês, e os textos correspondentesnos outros países. Para ele, encontra-se aqui“a objeção precedentemente reservada, querecusaria às normas estudadas, o caráter deregras (partindo-se das regras de direito)porque a abstração mesmo feita com toda ainvestigação de uma sanção, elas são, em si,radicalmente incapazes de comandar”.

Mas tal objeção, para Goldman (1964apud FIORATI; MAZZUOLI, 2003, p. 208),não é sem réplica. Nas suas palavras:

“Não é de modo algum correto queas partes em um contrato internacio-nal observem suas cláusulas (elas pró-prias emprestadas de um contrato-tipo) porque cada qual estima que sualei estatal da qual ela depende a cons-trange, nem que seja por referênciamais ou menos implícita a uma tal leiestatal que árbitros imporão eventu-almente o respeito; encontra-se, de cer-to modo, tanto em uns como nos ou-tros, a consciência de uma regra co-mum do comércio internacional, mui-to simplesmente expressa no adágiopacta sunt servanda. E pouco importa,para nosso propósito, que esse adá-gio coincida com as regras estatais dotipo do artigo 1.134 do Código Civil;porque se é dele que os contratos-tipoe os usos codificados emprestam suaforça constrangedora, eles são pres-crições, da mesma maneira que as re-gras supletivas de um direito interno”.

b) posteriormente, Goldman (1964 apudFIORATI; MAZZUOLI, 2003, p. 208) faz a

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seguinte colocação: “Permanece, entretan-to, que a existência, hipoteticamente admi-tida, de uma regra comum pacta sunt servan-da não basta para conferir ao conjunto dasnormas do comércio internacional, no está-gio atual de seu desenvolvimento, o caráterde um sistema de direito”. E conclui:

“Assim, por exemplo, não se en-contrará regra relativa à capacidadedos contraentes, ou aos vícios do con-sentimento – cuja necessidade é, alémdo mais, bastante teórica; mas, prati-camente, a medida dos poderes dosórgãos ou dos representantes de umasociedade comercial é determinada demaneira variável pelas diversas leisestatais, sem que se aperceba comouma regra costumeira comum pode-ria unificá-las; a mesma observaçãovale para a prescrição liberatória, e sepoderia dizer sem dúvida lhe encon-trar outras ilustrações”.

A dificuldade de responder à questãoproposta advém da noção de que somente éverdadeira regra de direito aquela que seintegra em um sistema completo e que bastaa si mesma. Conclui, então:

“Tomar partido nessa exigênciasuplementar da definição do direitoultrapassaria o quadro dessas obser-vações. Notemos somente que ela nãoimpediria que, em si, cada norma es-pecífica do comércio internacional ti-vesse realmente as características deuma regra; é somente seu conjunto quenão formaria um sistema de direito.Mas observamos também que umaconcepção monista da ordem jurídicadas relações econômicas faria desa-parecer a objeção: admitiria-se que umcontrato do comércio internacionalseja submetido às suas próprias re-gras, ultrapassando as fronteiras dosEstados eventualmente completadaspor regras estatais. E é aqui o momen-to de acrescentar que, sendo obra deárbitros internacionais, a designaçãodestas regras estatais poderia progres-

sivamente ser feita em virtude de umsistema de solução dos conflitos elemesmo comum, em vez de ser funda-da sobre o direito internacional pri-vado de um país determinado, mascuja escolha não é jamais isenta dearbitrariedade” (GOLDMAN, 1964apud FIORATI; MAZZUOLI, 2003, p.209).

Assim o caráter de regras não poderiaser recusado aos elementos constitutivos dalex mercatoria, embora esta não forme um sis-tema inteiramente autônomo.

Objetando Goldman, Paul Lagarde(apud FIORATI; MAZZUOLI, 2003, p. 210),considera que, caso se pretenda conservar,para a expressão lex mercatoria, um sentidopleno, isto é, considerada como uma ordemjurídica não estatal, é preciso cuidar paranão qualificar de “elemento” da lex mercato-ria o que poderia ser somente uma simplesprática contratual internacional.

Poderia a lex mercatoria ser entendidacomo um “conjunto de normas” formado-ras de um sistema jurídico? Em trabalho pu-blicado em 1979, Berthold Goldman chegoua afirmar que “a lex mercatoria preenche re-almente a função de um conjunto de regrasde direito”. A diferença entre essa afirma-ção e a doutrina contida no artigo anterior,de 1964, objeto deste estudo, teria consisti-do, segundo Paul Lagarde,

“na absorção pela lex mercatoria dosprincípios gerais do direito no senti-do do art. 38 do Estatuto da Corte In-ternacional de Justiça. E como essesprincípios cobrem o conjunto do di-reito das obrigações contratuais e ex-tracontratuais e do procedimento, alex mercatoria que os utiliza teria voca-ção para reger o conjunto dessas ques-tões e mereceria o caráter de ordemjurídica no sentido de conjunto orga-nizado de normas, salvo algumas ex-ceções pouco significativas como acapacidade ou os vícios do consenti-mento” (LAGARDE apud FIORATI;MAZZUOLI, 2003, p. 210-211).

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Essa demonstração, da maneira como foicolocada a questão, permitiria aos “princí-pios gerais do direito” fazer nascer a lexmercatoria, permitindo aos árbitros, quandochamados a resolver os litígios dela advin-dos, deduzir desses princípios gerais (cujapositividade estaria garantida pelo art. 38do Estatuto da CIJ) as soluções a serem da-das ao caso concreto, na ausência de regrasprecisas advindas da prática espontâneados agentes do comércio internacional(LAGARDE apud FIORATI; MAZZUOLI,2003, p. 211).

Paul Lagarde (apud FIORATI; MA-ZZUOLI, 2003, p. 211) concorda em partecom essa argumentação, entendendo que alex mercatoria poderia ser considerada direi-to, mas não direito positivo:

“Se a lex mercatoria constitui umconjunto de regras, este conjunto é dis-tinto daquele constituído pelo direitointernacional. Não é porque os prin-cípios do direito internacional – comoaliás os das ordens jurídicas estatais– derivam de categorias comuns quese deve reconhecer um caráter de po-sitividade a tudo o que poderia serdeduzido desse fundo comum. A po-sitividade dos princípios do direitointernacional, como a dos princípiosdos direitos estatais, se configura por-que esses direitos são, eles próprios,direitos positivos. Parece difícil afir-mar que os princípios gerais da lexmercatoria têm valor de direito positi-vo, se previamente não se colocou quea lex mercatoria constituía uma ordemjurídica positiva. Ora, seria necessá-rio, para aí chegar, uma outra demons-tração quanto à realidade positivadesses mesmos princípios”9.

Seriam, então, as regras da lex mercatoriajurídicas pela sua origem, ou seja, emanar-se-iam de uma autoridade? Para Goldman(1964 apud FIORATI; MAZZUOLI, 2003, p.214):

“Colocar a questão é postular queuma tal ‘proveniência’ é indispensá-

vel para que uma norma seja jurídica– e este postulado não é universalmen-te admitido. As escolas históricas dodireito vêem neste um fenômeno es-pontâneo, nascido do “espírito dopovo” (Volksgeist); e a escola socioló-gica vê um fato social. E parece efeti-vamente difícil unir indissoluvelmen-te direito e autoridade: não se chega-ria assim a negar que o direito costu-meiro seja [parte] do direito, ou pelomenos a não lhe reconhecer este cará-ter senão a partir do momento em queele é consagrado por uma aplicaçãojudiciária, o que seria de novo confun-dir direito e contencioso? A mesmaobservação valeria para amplos seto-res do direito internacional público –que se hesita, entretanto, a considerarsempre como estranhos ao domínio dodireito”.

Claras são as palavras de Goldman(1964 apud FIORATI; MAZZUOLI, 2003, p.216):

“De maneira mais geral, uma ou-tra reserva poderia ser empregadapara uma qualificação ‘jurídica’ dasnormas profissionais, mesmo ema-nando de órgãos representativos oude associações: afirmou-se, com efei-to, que elas não seriam de toda manei-ra aplicadas, em cada país, a não serque a autoridade pública desse paísadmita a sua aplicação. Fontes jurisoriginais por sua proveniência mate-rial, as novas ‘fontes do direito comer-cial internacional’ não o seriam se seconsidera o poder de comando queelas manifestam. Ao nível da aplica-ção não contenciosa das normas, estaafirmação parece muito discutível; elaretomaria, efetivamente, nos parece,sua ‘fixação’ já contestada em umaregra de liberdade contratual depen-dendo de uma ordem jurídica inter-na. A menos que se sustente que mes-mo uma regra comum pacta sunt ser-vanda não poderia ser seguida senão

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porque cada Estado quer realmenteadmiti-la, em seu território; mas é bomlevar em conta a psicologia dos que aaplicam e também recusar a hipótesede um direito comercial internacionalporque excluiu-se dela, antecipada-mente, essa possibilidade”.

A conclusão de Goldman é no sentidode que a experiência ensina que os árbitrosinternacionais não agem no interior de umaordem jurídica estatal, mas se colocam nonível da comunidade internacional dos co-merciantes. Há ainda uma última questãoque deve ser analisada para caracterizar asregras de direito. Trata-se da sanção, meioatravés do qual as regras de direito exigemo seu fiel cumprimento por parte dos desti-natários. Segundo Goldman (1964 apudFIORATI; MAZZUOLI, 2003, p. 217):

“A experiência prova que não so-mente os laudos arbitrais são, na mai-oria das vezes, executados esponta-neamente, o que atesta a efetividadedas regras que eles colocam em práti-ca, se fossem despojados de sançõesaplicáveis pelos comerciantes; mastambém que tais sanções existem. Umnotável inventário de sanções foi re-centemente preparado: encontram-seaí sanções disciplinares aplicadaspelos agrupamentos corporativos, asanção de ordem moral (mas com re-percussão profissional e material)consistindo na publicidade do laudo,das sanções diretamente profissio-nais como a eliminação de uma bolsade comércio ou de algumas operaçõescomerciais, até mesmo das sançõespecuniárias garantidas por consigna-ções prévias. Certamente estas diver-sas ‘sanções’ são, de preferência, mei-os de assegurar indiretamente a exe-cução do laudo do que procedimen-tos de execução forçada propriamen-te ditos; mas que elas sejam primeira-mente cominatórias não devem dissi-mular seu caráter praticamente coer-citivo. Será conveniente, também, que

a licitude de algumas dentre elas pos-sa ser discutida, e foi efetivamente re-cusada pelos tribunais, em particularna França; mas essas dificuldades di-zem respeito, na maioria das vezes,às modalidades de aplicação das san-ções profissionais em lugar de seupróprio princípio”.

Assim, a lex mercatoria não é um sistemajurídico completo, não dizendo respeito auma coletividade politicamente organizada,que só pode ser dotada de uma força coerci-tiva irresistível. Mas isso não é suficiente,segundo Goldman (1964 apud FIORATI;MAZZUOLI, 2003, p. 197), para constatarque pelo menos algumas das normas que acompõem são realmente “regras gerais dedireito”, e não simples normas individuaispresas à uma regra estatal reconhecendoforça obrigatória aos contratos. Tampoucose pode desconhecer – ainda segundoGoldman – o seu movimento em direção auma sistematização certamente incomple-ta, mas crescente, por meio da codificaçãointernacional.

A conclusão a que chegou Goldman foia de que a lex mercatoria situa-se, tanto emfunção de seu conteúdo como em função desua forma, no domínio do direito, asseve-rando para que os interesses que ela regulapara sua satisfação estejam em equilíbrio,garantindo, assim, legitimidade de suasprescrições.

Seria possível concluir que a lex mercato-ria é consubstanciada por um conjunto deregras costumeiras, compostas por usos eprincípios, de direito material (e não por re-gras de conflito de leis no espaço) que sur-gem espontaneamente, durante as ativida-des do comércio internacional, ou que sãoelaboradas pela jurisprudência arbitral,quando, pela interpretação alargada, apli-cam esses costumes à solução dos conflitosque envolvem a matéria do comércio inter-nacional. Há muita discussão acerca daautonomia das regras da lex mercatoria, prin-cipalmente tendo em vista a sua exeqüibili-dade interna, de caráter forçado.

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O próprio Goldman (1964 apud FIORA-TI; MAZZUOLI, 2003, p. 188) dá a chave daimportância para o estudo da lex mercatorianos países em desenvolvimento. Para o au-tor, a lex mercatoria incide sobre

“as relações internacionais de trocanas quais participe pelo menos umaempresa privada (ou uma empresapública que não faça uso das prerro-gativas das quais ela está investidacomo tal) – e a outra participante po-dendo ser ou uma empresa da mesmanatureza, ou uma pessoa moral dedireito público, como uma organiza-ção internacional, ou mais pratica-mente um Estado ou uma coletivida-de pública subordinada (portanto, nahipótese freqüente, e de grande inte-resse, dos investimentos nos países emvia de desenvolvimento)”10.

2. Estados em desenvolvimento elex mercatoria

Para tentar contrabalançar os usos e cos-tumes do comércio internacional acerca dotema investimentos internacionais, boa partedos Estados e até de organizações interna-cionais como a OCDE tenta criar regras es-critas sobre os investimentos. A noção deinvestimento estrangeiro supera a de movi-mento de capitais. A tônica inicial dessasregras centrava-se na garantia e proteçãodo interesse do investidor estrangeiro nopaís. Hoje, em virtude da complexidade daeconomia internacional, é permitido dizer,segundo o Código de Conduta da OCDEsobre investimentos estrangeiros, que esseinvestimento tem o propósito de estabelecerrelações duráveis com uma empresa, pelarealização de atividade econômica ou par-ticipação no controle de sua administração.

Os investimentos são feitos por não do-miciliados ou residentes no país ou por em-presas de nacionalidade ou sede no exteri-or. Podem abranger recursos financeiros emonetários, bens, máquinas e equipamen-tos, direitos relativos à tecnologia, patente,

know how, propriedade industrial e devemdestinar-se à produção de bens, serviços ouà aplicação em atividade econômica.

Baptista (1987, p. 79) afirma que a maio-ria dos países tem admitido, de fato ou dedireito, que uma empresa originária do ex-terior possa realizar atos isolados em seuterritório. Para isso, a mais universal dasexigências é a de que a sociedade estrangei-ra que vai praticar o ato esteja devidamenteconstituída em seu país de origem, é o quese denomina Teoria da Hospitalidade Per-feita para atos isolados.

A atuação permanente, no entanto, ocor-re com a criação da filial ou da subsidiária.A filial foi a formulação jurídica mais utili-zada no começo do século passado e fins doséculo retrasado. Nesse contexto, a empre-sa estrangeira pedia licença para atuar nopaís por meio de uma filial que funcionavacomo simples departamento da firma estran-geira e, por isso, gozava de direitos limita-dos e obrigações especiais. As filiais leva-ram à instalação de subsidiárias segundo alei do país hospedeiro.

Informa ainda Baptista (1987, p. 97) quea legislação brasileira previu duas situaçõese mandamentos diferentes: o da filial ou es-critório, ou representação da empresa es-trangeira que, cumprindo determinados re-quisitos, adquire personalidade jurídicaperante as leis do Brasil; e o daquela empre-sa que, tendo trazido o seu capital para opaís regularmente, registrando-o no BancoCentral, tem garantido o direito de repatriá-lo, bem como aos lucros, e assegurada a suaatuação em termos igualitários com os bra-sileiros, constituindo uma sociedade sob asleis do Brasil.

Os requisitos para a autorização sãomuitos e refletem a preocupação do contro-le governamental. A primeira exigência é ade que a postulante prove ser regularmenteconstituída no país de origem, anexandoseus estatutos, relação de acionistas e sóci-os, exceto quando forem ações ao portador.Verifica-se que a personalidade jurídica eexistência da sociedade devem ser prova-

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das, sendo que essa prova deve ser feita se-gundo as leis do país de origem: locus regitactum. É também exigida a autorização, pelaassembléia de acionistas ou da reunião deadministradores (conforme imponham osestatutos da pessoa jurídica), da criação dafilial no Brasil e destacando o capital paraesse propósito. Outro requisito importanteé o de designação de representantes, quedeverão ser domiciliados no Brasil, com osmais amplos poderes para agir pela socie-dade e para aceitar quaisquer condiçõesimpostas pelo Governo para conceder auto-rização. Atendidos esses e outros requisitosde menor importância, chega-se à fase dapublicidade: a filial deve dar a público to-das as operações que no seu país o são emais aquelas que o devam ser segundo a leibrasileira.

Considerando o caráter e a amplitudedas exigências para a instalação das filiais,o recurso à criação de subsidiárias tornou-se mais comum, pelas maiores facilidades.Nesse caso, a constituição da sociedade,segundo as leis brasileiras, atribui-lhes, paraefeito de obediência à lei, nacionalidade bra-sileira.

A transferência de tecnologia, a aquisi-ção de know how e a exploração de novosprocessos são importantes fatores de moti-vação para a formação de joint ventures e cos-tumam ter como instrumentos jurídicos oschamados contratos-tipo, estandartizadossegundo regras internacionais, nascidas dosusos e costumes verificados no comérciointernacional, em boa parte, formulados porempresas e comerciantes dos Estados cen-trais, seguindo suas seculares práticas delex mercatoria .

Nesse sentido, as exigências de qualida-de do produto por parte dos compradoresestrangeiros, a formação crescente de cons-ciência por parte do consumidor nacional,bem como serem a produção industrial naatual revolução cibernética e o desconheci-mento dos canais de produção desafios paraas empresas dos países em desenvolvimen-to. Por outro lado, os países receptores de

capital estrangeiro de economia aberta exi-gem que as empresas transnacionais se as-sociem às empresas nacionais com o objeti-vo de desenvolver tecnologias, manter suaestrutura industrial, especializar os profis-sionais locais e reduzir a fuga de divisas.Também essas associações acabam por serreguladas por práticas costumeiras interna-cionais como os contratos joint ventures.

As tensões surgem tendo em vista as di-ferenças de natureza e forma entre regrasinternas e regras internacionais. Dessemodo, BAPTISTA (1987, p. 35) afirma quecada Estado, seja aquele sob o qual está su-jeita a matriz, sejam os governos hospedei-ros das subsidiárias, aplica sua diretriz po-lítica às unidades da empresa a ele subme-tidas. Entretanto, essas políticas entram, for-çosamente, em choque com a empresa trans-nacional, no sentido de que, para cada país,há uma política econômica ou social dife-rente, uma orientação e metas de poder quequase nunca coincidem e quase sempre di-vergem das da empresa que busca o seu in-teresse global. Assim, quanto maior for ograu de integração entre as filiais de umaempresa, tanto mais cada uma das filiais setornará uma espécie de refém para o gover-no que a abriga.

Em contraposição, as empresas transna-cionais tendem a levar ao país hospedeiro afilosofia econômica e política do seu país deorigem, bem como seus modelos contratu-ais de caráter jurídico. Há, assim, uma preo-cupação do Estado Hospedeiro com a exis-tência de um controle ou intervenção estran-geira sobre sua economia, interferindo emsua soberania, realizada por meios indire-tos, o chamado soft law, nos quais se inclu-em as práticas internacionais de comérciopresentes, por exemplo, nos contratos-tipo.

Considerações finais

As empresas transnacionais e principal-mente sua atuação em países em desenvol-vimento são alvo de discussões acaloradasentre teóricos, doutrinadores e formulado-

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res de políticas econômicas. Não se podeolvidar que as empresas transnacionais são,no mundo globalizado, os agentes propul-sores do comércio internacional e, em con-seqüência, da economia mundial. Sua in-fluência nos países desenvolvidos e emdesenvolvimento vem aumentando gradati-vamente, ultrapassando os limites econômi-cos e atingindo instâncias sociais e culturais.

Todavia, como instituições econômicasprivadas que são, não se deve ter a ingenui-dade de acreditar que seus benefícios de lu-cro não são relevantes. Apesar da tendên-cia atual e incontestável de aceitação do fimsocial das empresas e de sua maior preocu-pação com os direitos humanos e a prote-ção do meio ambiente, as grandes corpora-ções e empresas transnacionais defendem,em última instância, os interesses determi-nados, na maioria dos casos, pela empresa-sede.

Por outro lado, essas mesmas empresasregulam-se, em boa parte de suas relaçõesjurídicas de caráter comercial, por meio deusos e costumes do comércio internacional.Tais usos surgem a partir das práticas cris-talizadas e consolidadas que essas mesmasempresas adotam nos seus negócios reali-zados em qualquer parte do mundo, pro-movendo uma verdadeira “regra uniforme”global, que muitas vezes é desconhecidapelos Estados em Desenvolvimento, mas queos atinge diretamente quando essas mesmasempresas ali realizam suas atividades e seusinvestimentos.

Por meio de Convenções internacionais,foi iniciado um processo de elaboração es-crita da lex mercatoria, tendo como escopoatingir países em desenvolvimento, que pas-saram a participar do fluxo internacionalde mercadorias e serviços quando este já seorganizara em moldes capitalistas tendocomo seus principais atores empresas trans-nacionais e multinacionais originárias dosestados centrais.

Conquista que já se observa é a aderên-cia a leis materiais internacionais regulan-do o caso concreto, remetendo-se, cada vez

com maior freqüência, aos particulares atarefa de regulamentar em determinados do-mínios as suas atividades que poderiamsofrer interferência estatal. É o caso dos selfexecuting contracts, que se reportam a um con-trato-tipo e que crescentemente aparecem noâmbito do comércio internacional.

Por outro lado, a existência de uma mo-derna lex mercatoria a suprimir dificuldadese barreiras no comércio internacional se fazhoje numa sociedade internacionalizada,em que as nações encontram-se divididasmuito mais por interesses comerciais con-flitantes do que por direitos nacionais dis-tintos. Pode-se mesmo afirmar que Estado elex mercatoria são realidades jurídico-políti-cas conflitantes.

Um direito espontâneo, surgido da ne-cessidade a partir da congruência jurídicarealizada pelos comerciantes internacio-nais, não necessita tanto da aceitação for-mal de um Estado, bastando apenas sua nãocontrariedade para ganhar eficácia. Uma ar-gumentação a favor de uma lex mercatoriatotalmente livre e desvinculada das regrasestatais, um conjunto totalmente autônomode normas, ainda não é uma realidade glo-bal, embora estejamos lentamente evoluin-do nesse sentido, haja vista que os Estados,desenvolvidos ou em desenvolvimento,exercem cada vez mais um papel menor nosfluxos internacionais de comércio e investi-mento, realizados pelas grandes empresastransnacionais ou multinacionais.

Notas1 Tradução da Autora.2 Tradução da Autora.3 Tradução da Autora.4 A tradução do texto original em francês foi

feita de forma livre por Valério Mazzuolli (2003, p.191-192).

5 A tradução do texto original em francês foifeita de forma livre por Valério Mazzuolli (2003, p.191-192).

6 A tradução do texto original em francês foifeita de forma livre por Valério Mazzuolli (2003, p.196).

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7 A tradução do texto original em francês foifeita de forma livre por Valério Mazzuolli (2003, p.196).

8 A tradução do texto original em francês foifeita de forma livre por Valério Mazzuolli (2003, p.197).

9 Lagarde discorda desse raciocínio.10 A tradução do texto original em francês foi

feita de forma livre por Valério Mazzuolli.

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Maria de Fátima S. Wolkmer

IntroduçãoA subjetividade é o tema central da Mo-

dernidade. Nela, a subjetividade expressavalores, como a liberdade e igualdade. Nes-se sentido foi a afirmação de que o homem éo que ele faz desprendido das crenças e cul-turas tradicionais. O Direito, nesse âmbito,decorre das exigências da razão humana. Oquadro da reflexão jurídica altera-se de umavisão da necessidade de produzir uma or-dem igual ao cosmos – como em Aristótelesou Platão, em que o critério do justo estabe-lecia uma ordem hierárquica com cada umocupando um lugar pré-determinado e de-sigual – para uma visão em que a igualdadeé o critério do justo. A partir das teorias doContrato Social, a lei passa a fundar-se so-bre a vontade dos homens, forjando-se, comesse regime da autonomia, as bases parauma nova normatividade ética, jurídica epolítica que caracterizaria a Modernidade.Assim, no presente texto serão traçadas al-gumas linhas desse pensamento.

1. Modernidade e nascimento do sujeitoUm olhar histórico sobre a Modernida-

de envia-nos ao projeto sócio-cultural queemergiu na Europa, a partir do século XVII,

Modernidade: nascimento do sujeito esubjetividade jurídica

Maria de Fátima S. Wolkmer é Mestre eDoutora em Direito pela Universidade Fede-ral de Santa Catarina. Especialista em DireitoPolítico pela UNISINOS-RS.

SumárioIntrodução. 1. Modernidade e nascimento

do sujeito. 2. A questão do Direito na Moder-nidade. Conclusão.

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que provocou mudanças nos diversos seto-res da vida social, tendo como objetivo prin-cipal a afirmação e a emancipação da hu-manidade.

Como assinala Fonseca (2001, p. 79), aconstrução filosófica da Modernidade tinhacomo pressuposto que todos os homens pos-suíam uma estrutura passional e uma razãouniforme e que, apesar de todas as variaçõesespaço-temporais, tornava possível a afirma-ção como regras gerais das descobertas, tantoda razão teórica como da razão prática.

A existência, desde então, seria condu-zida a partir da razão, com o conseqüentedesencantamento do mundo, ou seja, a ci-ência substitui Deus e a Modernidade trans-fere as crenças religiosas para a vida priva-da. Nesse sentido, escreve Sérgio Rouanet(2001, p. 97, 120 et seq.), o racionalismo “im-plicava a fé na razão, em sua capacidade defundar uma ordem racional, e na ciência,como instância habilitada a sacudir o jogodo obscurantismo e a transformar a nature-za para satisfazer as necessidades materi-ais dos homens”. Assim, emancipar, signi-ficava, por um lado, libertar a consciênciatutelada pelo mito e, por outro, usar a ciên-cia, para tornar mais eficazes as instituiçõeseconômicas, sociais e políticas, no intuitode aumentar a liberdade do homem.

Todo o percurso do pensamento moder-no está assentado num pensamento filosó-fico que tem na subjetividade a sua princi-pal identificação. A subjetividade passa,então, a ser a referência:

“da política, da sociedade, do conhe-cimento e também do direito. A orga-nização do poder, a forma de encarara sociedade, o modo de fundamentaras reflexões e a forma de regulamen-tar a vida social, tudo isso terá comoreferência mediata ou imediata (deacordo com as diversas fases históri-cas particulares) a figura do sujeito.Poderá se privilegiar nestes âmbitosum sujeito tomado de uma maneiramonádica e egoística (como nas con-cepções mais radicais do liberalismo)

ou poderá se enquadrar o sujeito nummodo coletivista e social (como, no li-mite, o fizeram certas leituras do soci-alismo). Mas, no processo de forma-ção da modernidade, será progressi-vamente o sujeito a referência básicada análise e o substrato do sistemapolítico, social, científico e jurídico. Amodernidade é, por excelência, a épo-ca da subjetividade” (FONSECA,2001, p. 79).

A subjetividade expressa-se por meio dealgumas abstrações que lhe são fundamen-tais e que, de acordo com Rouanet (2001, p.9, 14), podem ser consideradas as seguintescaracterísticas: universalidade, autonomiae individualidade.

Pela universalidade, o ser humano é vis-to independentemente dos privilégios que oAncien Regime compreendia como inerentesa certos grupos sociais, sendo consideradosem barreiras nacionais, étnicas ou cultu-rais. É uma visão anti-hierárquica, com va-lores universais que trazem consigo umaforça permanente de liberação dos precon-ceitos e das vinculações comunitárias eopõem-nos às sociedades que se encerram,voluntária e totalmente, na procura de suasdiferenças, nos seus particularismos que ascondenam à cegueira e à paralisia (Cf. TOU-RAINE, 1994, p. 335).

O status que define o lugar que o indiví-duo ocupava na sociedade foi substituídopelo contrato, como alicerce jurídico da so-ciedade.

A universalidade quer significar, numprimeiro momento, que a natureza humananão se define dentro das fronteiras nacionais,condenando todos os nacionalismos e outrosparticularismos, considerados como provin-cianos. No dizer de Fonseca (2001, p. 81),

“para o Iluminismo há o reconheci-mento do princípio liberal da auto-determinação dos povos e o repúdio atodas as formas de imperialismos.Aceita a idéia de que entre a enormevariedade das culturas humanas exis-te uma uniformidade fundamental, a

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unidade da natureza humana – e, ten-do-se que todas as formas de hierar-quias (como aquelas das sociedadestradicionais) são rejeitadas por seremarbitrárias, todas as pessoas devemser tratadas como iguais.”

O individualismo é a afirmação do indi-víduo enquanto princípio e valor, e é medi-ante essa afirmação que todo aparato cultu-ral, intelectual e filosófico da Modernidadepode caracterizar-se e comandar um novoimaginário.

A idéia de modernidade foi, especialmen-te, a afirmação de que o homem é fruto dasua vontade, devendo existir uma corres-pondência cada vez maior entre a produ-ção, “tornada mais eficaz pela ciência, pelatecnologia ou pela administração, e a orga-nização da sociedade, regulada pela lei e avida pessoal, animada pelo interesse, mastambém pela vontade de se liberar de todasas opressões” (BEDIN, 1998, p. 25).

O individualismo constitui um elemen-to essencial da subjetividade moderna, e umdos aspectos mais libertadores da Moderni-dade. Vale dizer:

“o indivíduo, em determinado mo-mento histórico, emerge de sua comu-nidade, de sua cultura e de sua reli-gião para ser tomado em si mesmo, apartir de suas exigências próprias eseus direitos intransferíveis a felicida-de e a auto-realização. Nas palavrasde Rouanet, o Iluminismo ‘questionasistematicamente o estatuto impostoa cada um pelas circunstâncias do seunascimento’ e o seu ideal ‘é o da auto-formação, da Bildung Individual, oque pressupõe a apropriação da cul-tura pré-existente, mas pressupõetambém a possibilidade de rompermodelos e normas desta cultura’, pre-cisamente a partir do indivíduo. Emsuma, o sujeito é tomado em sua sin-gular existência, como dotado dasmesmas prerrogativas que seus pares(tomados como seus iguais)” (FON-SECA, 2001, p. 81-82).

Por fim, a autonomia tem, na leitura deRouanet (2001, p. 11), dois sentidos diver-sos: a liberdade (que se refere aos direitos decada um) e a capacidade (que diz respeitoao poder efetivo de exercer os direitos). Oconceito de autonomia cinde-se, também, emvárias dimensões específicas: a autonomiaintelectual, que deve fazer com que as pesso-as adquiram sua maioridade cultural e re-cusem toda a forma de tutela. A razão deveser o guia (o único guia) no desvendamentodo mundo, devendo ser recusadas todas ascrenças e opiniões que não sejam rigorosa-mente guiadas por ela. Autonomia intelectualsignifica rejeitar as trevas em prol da luz darazão, a qual, além de tirar os homens doobscurantismo e da ignorância, tambémpode guiá-los em direção a uma emancipa-ção nas esferas da vida social e política. Daí,vem a segunda dimensão de autonomia: aautonomia política , que significa a superaçãode toda forma de despotismo, na valoriza-ção da liberdade civil (entendida como acapacidade de o homem agir no espaço pri-vado sem interferência ilegítima) e da liber-dade política (entendida como a capacida-de de o homem agir no espaço público). Há,finalmente, a autonomia econômica para po-der produzir, consumir e fazer circular bense serviços.

Em seus trabalhos de antropologia com-parada, Louis Dumont insistiu, com rigor,que as sociedades tradicionais, independen-temente de se tratarem de sociedades primi-tivas ou sociedades medievais, são caracte-rizadas pela heteronomia. É necessário res-saltar que, nessas sociedades, a tradiçãodeve ser acatada pelo indivíduo mesmo con-tra sua vontade. “É-lhe imposta de fora, sobforma de transcendência radical à qual oshomens obedecem como às leis da nature-za.” Isso faz com que a existência das pes-soas esteja subordinada à tradição (Cf. RE-NAUT, 1997, p. 28).

Por oposição, a dinâmica moderna será,ao contrário, a da erosão progressiva des-ses conteúdos tradicionais, minados aospoucos pela idéia de auto-instituição, que a

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Revolução fará aflorar com particular vigor.Herdada das teorias do contrato social, seuprincípio consiste em fundar a lei sobre avontade dos homens, subtraindo-a, tantoquanto possível, à autoridade das tradições(Cf. RENAUT, 1997, p. 30).

O indivíduo, na Modernidade, afirma-se enquanto valor e princípio:

“- enquanto valor, à medida que, nalógica da igualdade, um homem valetanto quanto outro, fazendo com quea universalização do direito de votoseja a tradução política mais comple-ta de tal valor;- enquanto princípio, à medida que,na lógica da liberdade, apenas o ho-mem pode ser, por si mesmo, a fontede suas normas e leis, fazendo comque, contra a heteronomia da tradição,a normatividade ética, jurídica e políti-ca dos modernos se filie ao regime daautonomia” (RENAUT, 1997, p. 30).

Esse processo redimensionou as relaçõesinterpessoais da cultura, criando novos sis-temas de representação, um novo imaginá-rio social, estabelecendo, na dimensão polí-tico-jurídica, a mediação do direito entre oindivíduo e o Estado e, na dimensão econô-mica, a dissolução das antigas formas pro-dutivas do feudalismo, com o surgimentode uma nova classe social: a burguesia.

Com a diferenciação das esferas de va-lor, cada dimensão vai adqui-rindo umaracionalidade, uma lógica própria, à medi-da que a nova visão de mundo vai se eman-cipando da visão tradicional. Como apontaRouanet (2001, p. 121), a racionalizaçãocultural envolve a dessacralização das vi-sões tradicionais e a diferenciação em esfe-ras de valores, até então embutidas na reli-gião: a ciência, a moral, o direito e a arte.

De acordo com Luiz Bicca (1997, p. 179),“é possível afirmar que somente quando aliberdade consegue se firmar como pressu-posto filosófico, em bases sólidas não-natu-ralistas, como critério ou ponto de vista fun-damental para se pensar a subjetividade”,pode a autoconservação humana ser anali-

sada como princípio da ação independentede seus aspectos naturais fixos.

A história da apreensão da investigaçãofilosófica, diz Bicca (1997, p. 146), na qualse insere a filosofia moderna de modo geral(a epistemologia ou teoria do conhecimen-to), está dividida entre racionalismo e empi-rismo. De forma breve, “é possível descre-ver a vertente empirista por meio da tese deque a origem fundamental de todo conheci-mento localiza-se na observação”, enquan-to, ao contrário, “insistiam os racionalistasencontrar-se tal origem nos atos de apreen-são do puro intelecto, as idéias claras e dis-tintas. Para o racionalismo moderno (...) en-contrar a verdade é algo que depende de umapelo à razão.”

Com o racionalismo, confiava-se que arazão humana, poderia elaborar por si mes-ma, ou melhor, a partir de si mesma, expli-cações suficientes.

Como salienta Bicca (1997, p. 152-155),“O racionalismo é assim, desde seusprimórdios, (...), uma postura intelec-tual otimista: em seu centro está a cren-ça de que a verdade é evidente, de queela se revela – se não espontaneamen-te, ao menos por nosso intermédio (...).O conceito central na perspectiva doracionalismo é o da consciência de si,já secundário, por sua natureza e sig-nificado intelectualizante, na ótica doempirismo.”

A questão, conforme o autor, é que, en-quanto “os empiristas privilegiam a objeti-vação do Eu”, os racionalistas claramenteressaltam a subjetivação do Eu, “fazendoda autoconsciência, como a certeza de si ousaber imediato de si, o fundamento de todosos saberes, a base da consciência, ou seja,do saber sobre algum outro, sobre as coisas,e sobre o mundo em geral (Cf. BICCA, 1997,p. 155).”

Segundo Tugendhat, na história da filo-sofia da consciência, pode-se distinguir trêsmomentos:

– primeiramente, a etapa do cartesianis-mo, início histórico da guinada da ontolo-

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gia para uma reflexão em torno da consciên-cia, por meio da primazia que passa a serconcedida ao problema da fundamentaçãoe da comprovação no conhecimento – que éconcebido sempre, como conhecimento decada indivíduo. Comprovar é neutralizarqualquer dúvida, estabelecendo, assim, acerteza. Duvidar, bem como ter certeza, re-mete ao próprio indivíduo. Assim, uma pri-meira definição de consciência é o saber in-dubitável do indivíduo de que ele se encon-tra numa série de estados: sentir, desejar, que-rer etc. Consciência é um domínio interior, aoqual o indivíduo tem acesso imediato.

– a etapa seguinte, a kantiana, é aquelana qual o problema do acesso afeta as pró-prias questões ontológicas, ao contrário daetapa cartesiana, que teria deixada intoca-da a ontologia em si mesma.

A análise ontológica dá lugar a uma re-flexão da possibilidade da experiência e doproblema da constituição de algo como ob-jeto. A reflexão sobre a consciência promo-ve um alargamento do domínio temáticosobre a ontologia pré-moderna. Kant cha-ma atenção para modalidades de consciên-cia que não podem ser compreendidas comoconsciência do objeto – por exemplo, a cons-ciência de mundo, isto é, da totalidade doque se pode experimentar que, enquanto tal,não é um objeto. Em Kant, toda experiênciaencerraria sempre uma referência ao mun-do ou, dito de outro modo, o mundo estásempre pressuposto. Ademais, para Kant, éuma modalidade não objetiva (ou não-reifi-cável) de consciência que constitui a cons-ciência de objetos.

– a terceira e última fase, a heideggeria-na (Ser e Tempo), “é marcada pelo abando-no do termo ‘consciência’ em favor daqueleoutro de ‘abertura’ (...) no qual ‘mundo’, quepermanece um pressuposto (...), não é umsubstituto para a totalidade de objetos e sima totalidade de um contexto de sentido noqual um homem se compreende” (BICCA,1997, p. 189-190).

Reconhece-se em René Descartes (1596-1650) o fundador da subjetividade e do ra-

cionalismo moderno. Devido a sua distin-ção entre corpo e alma, e, tomando-a comopressuposto, Descartes elaborou a certezado cogito. Na sua concepção, o lugar do “eupenso” é o do sujeito que é, sendo indepen-dente do “eu sou”. Descartes foi o filósofoque ultrapassou “o paradigma do ser emdireção ao paradigma da consciência, ouseja, é aquele que substitui a busca do fun-damento da filosofia num substrato materi-al (como os gregos) ou teológico (como osteólogos medievais) para situá-la na própriaconsciência do homem: a partir de agora, éa razão que passa a ser o ponto de partidapara o filosofar e o guia para desvelar omundo” (FONSECA, 2001, p. 64).

Partindo da premissa de que é necessá-rio colocar tudo em dúvida metodicamente,escrevem Strauss e Cropsey (2000, p. 403-404) que,

“Descartes coloca em xeque toda a tra-dição cultural, todos os saberes queforam transmitidos, como também to-das as crenças que são adquiridaspelos sentidos: é necessário duvidarde tudo para a partir daí reconstruir,pela razão, o caminho que leva às cer-tezas. Descartes hiperboliza as dúvi-das, pois o único caminho seguro parasuperá-las é enfrentando-as e atraves-sando-as (jamais evitando-as). É so-mente à medida que todas as idéiassão colocadas em dúvida – até mes-mo aquelas mais claras, que o espíritoconsidera em princípio evidentes – éque ela permite extrair um núcleo decerteza, que cresce à medida que elese radicaliza.”

Descartes se opõe à finalidade do pen-samento filosófico que o precedera, pois suaabordagem abandona as especulações, emfavor do conhecimento útil. Para o autor, sóum método rigoroso pode superar o predo-mínio da paixão diante da razão, à medidaque “os prejuízos causados por nossos ape-tites ou paixões, desde a infância, governamnossas percepções sensoriais e não podemser corrigidos por um tipo de razão que, ser-

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ve a ditas paixões”. Sendo assim, todo pen-samento filosófico, que o precedeu, que ti-nha como ponto de partida a percepção sen-sorial estava eivado de erros, pois não dis-punha de um método. “O método pode sa-nar os defeitos naturais ou as despropor-ções da natureza do homem, tomando comomodelo a matemática, que, sendo exata, nãodeve nada aos sentidos nem ao corpo”(STRAUSS; CROPSEY, 2000, p. 403-404).

Assim, a primeira regra do método seráo abandono de todas as opiniões que nãosão claras e distintas ou a mudança daque-las opiniões pouco confiáveis que são osfundamentos de nossa própria vida (Cf.STRAUSS; CROPSEY, 2000, p. 404).

Nesse sentido, a dúvida é o procedimen-to elaborado por Descartes para relativizarnossa confiança nos sentidos e nas imagensque deles provêm, que formam aquilo quechama “os ensinamentos da natureza” e queele considera uma atitude natural (Cf.STRAUSS; CROPSEY, 2000, p. 408).

Descartes foi atingido pela profundadúvida que se seguiu ao deslocamento deDeus do centro do universo, mas colocou-ocomo o impulsionador, o primeiro movimen-to de toda criação; daí em diante, ele expli-cou o resto do mundo inteiramente em ter-mos mecânicos e matemáticos (Cf. HALL,1998, p. 26-27).

Para isso, Descartes centrou-se em duassubstâncias distintas:

“a substância espacial (matéria) e asubstância pensante (mente). Ele fo-calizou, assim, aquele grande dualis-mo entre a ‘mente’ e a ‘matéria’ quetem afligido a Filosofia desde então.As coisas devem ser explicadas, eleacreditava, por uma redução aos seuselementos essenciais à quantidademínima de elementos e, em últimaanálise, aos seus elementos irredutí-veis. No centro da ‘mente’, ele colo-cou o sujeito individual, constituídopor sua capacidade para raciocinar epensar ‘cogito ergo sum’ que era a pa-lavra de ordem de Descartes: penso,

logo existo. Desde então, esta concep-ção do sujeito racional, pensante e cons-ciente, situado no centro do conheci-mento, tem sido conhecida como o su-jeito cartesiano” (HALL, 1998, p. 27).

Como escreve Ricardo Fonseca (2001, p.66-68), o autor, por meio do “penso, logoexisto” e da “dúvida metódica”, chega a um“ponto fixo”, inquestionável, ou seja, “aconsciência que duvida, e, por conseqüên-cia, que pensa, é o limite; por outro lado, estaconsciência, enquanto ser pensante localiza-do, à medida que pensa (e duvida) não podeter sua existência colocada em dúvida.”

Para Descartes, de acordo com RicardoFonseca (2001, p. 65-66) todo o resto podeser colocado em dúvida, menos a existênciado pensamento que duvida. “Em outraspalavras, se eu duvido, eu mesmo, enquan-to pensamento, me afirmo enquanto tal nopróprio exercício da dúvida.” Se a dúvidaexiste, “então o pensamento, do qual a dú-vida é uma modalidade, existe, e eu mesmo,que duvido, logo penso, existo necessaria-mente, ao menos como ser pensante”.

Sendo assim, pode-se dizer que, ao iden-tificar-se o núcleo irredutível do conhecimen-to (a dúvida metódica), que Descartes men-ciona nas suas Meditações, “atinge-se a cer-teza do pensamento da dúvida e, portanto,da existência do pensamento. Se duvido,penso; se penso, existo”. Constrói-se, então,o pensamento e, conseqüentemente, a no-ção de consciência, como ponto de partidabásico da busca da verdade. Ainda, na as-sertiva de Fonseca (2001, p. 66),

“O homem não encontra mais em si averdade divina, mas descobre a auto-evidência da verdade. Não existemmais formas ou essências transcen-dentes iluminando o mundo sensívele o processo de conhecimento, já quea verdade não se dá no céu das idéiasinteligíveis mas na imanência do pen-samento. E é a descoberta deste eupensante em sua interioridade refle-xiva que se constitui no princípio inau-gural da filosofia moderna.”

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Assim, com Descartes, inicia-se uma fi-losofia que brota da razão e na qual a cons-ciência de si é o momento fundante da ver-dade. Certamente, com Descartes inaugura-se “a cultura dos tempos modernos, o pen-samento da moderna filosofia. Nesse novoperíodo, o princípio geral que regula e go-verna tudo no mundo é o pensamento queparte de si próprio”. Esse ponto de partida,“que é para si, essa cúpula mais pura dainterioridade se afirma e se fortifica comotal, relegando para o segundo plano e re-chaçando como ilegítima a exterioridademorta da autoridade” (FONSECA, 2001, p.67).

A virada dada por Descartes, como sepode notar, é decisiva em toda cultura oci-dental e inaugura um novo modo de pensarque definirá o argumento filosófico, a partirde então. Pode-se dizer, de um modo geral,que toda a reflexão jusnaturalista e contra-tualista, de certo modo, parte dos pressu-postos do cartesianismo. A filosofia da Mo-dernidade, enquanto filo-sofia da razão eda consciência, tem o seu ponto de inflexãoprecisamente nessa concepção de subjetivi-dade, é definida a partir dos seus funda-mentos.

No segundo momento, a profunda refle-xão de Kant, por sua vez, manifesta-se, so-bretudo, por meio de suas três obras funda-mentais: A Crítica da Razão Pura, A Crítica daRazão Prática e a Crítica do Juízo (Cf. CALDE-RA, 1994, p. 30).

Kant, em sua Crítica da Razão Pura, ad-mite que o conhecimento começa com a ex-periência, porém, nem todo conhecimentoprocede da experiência. É necessário per-guntar-se, pois, como é possível a experiên-cia, quer dizer, encontrar a possibilidade detoda experiência. Nesse sentido, os juízos apriori seriam as formulações independen-tes da experiência; os juízos a posteriori sãoos derivados da experiência (CALDERA,1994, p. 30).

Kant lança, assim, o tema que irá trans-formar a filosofia e a estrutura de pensamen-to da era moderna: a existência dos juízos

sintéticos a priori, que não derivam de ne-nhuma experiência e que seriam idéias pu-ras ou categorias puras do conhecimento(CALDERA, 1994, p. 30).

Na sua filosofia transcendental, a inves-tigação ocupa-se menos dos objetos, preo-cupando-se com o modo de os conhecer. E“é aqui (no problema de como conhecer omundo) que ele opera uma verdadeira ‘re-volução coperniana’ na filosofia, moldan-do a idéia da subjetividade cognitiva”. Des-se modo, se Copérnico reformulou o para-digma do cosmo tradicional, “segundo oqual o Sol girava em torno da Terra, Kantaduziu que não é o sujeito que se orientapelo objeto, mas é o objeto que é determina-do pelo sujeito, ou dito de outro modo, aoinvés de a faculdade de conhecer ser regu-lada pelo objeto, é, na verdade, o objeto queé regulado pela faculdade de conhecer”(FONSECA, 2001, p. 69).

Como bem assinala Fonseca (2001, p. 69-70), para Kant, a filosofia,

“deveria se ocupar com os princípi-os, (...) a priori que seriam responsá-veis pelas sínteses dos dados empíri-cos. Tais princípios, por sua vez, de-monstram que todo conhecimento éconstituído por sínteses de dados or-denados pela intuição sensível espa-ço-temporal, mediante as categoriasapriorísticas do entendimento. Sãorejeitadas as noções de intuição inte-lectual (existentes na metafísica tra-dicional), já que a intuição é sempresensível, é o modo como os objetos seapresentam a nós no espaço e no tem-po, é a condição de possibilidadespara que sejam objetos. Assim, o queconhecemos não é o real ou a ‘coisaem si’, mas sempre o real em relaçãocom o sujeito do conhecimento.”

Kant considera que há uma identidadeentre a natureza de nossa sensibilidade e adas sensações que emanam do mundo real.Portanto, trata-se de um processo de com-plementação de um mesmo elemento radi-cado no mundo real e no ser sensível. No

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entanto, ele salienta que “aquilo que captaos nossos sentidos não é o mundo físico se-não suas emanações. Kant denomina sen-sações as emanações do mundo físico”. Es-sas são captadas pela nossa sensibilidadeà medida que ambas são da mesma nature-za. As sensações que Kant identifica “comoemanações da natureza realizam uma du-pla função: por um lado, entram em contatocom nossos sentidos que as captam e, poroutro, recobrem o mundo físico de tal formaque fica impossível ao ser humano entrarem comunicação com ele (Cf. CALDERA,1994, p. 32).”

De acordo com essa formulação de Kant,nós só somos capazes de conhecer o fenô-meno, porém não a substância. A ciência,portanto, é fenomênica (Cf. CALDERA,1994, p. 32).

Kant não vê a possibilidade de conhe-cermos a substância ou a realidade do mun-do físico por meio da ciência, porém, nãonega que tal substância exista (CALDERA,1994, p. 32).

A razão que contém “os juízos sintéticosa priori realiza uma dupla função: por umlado, organiza harmonizando as sensaçõesde sons e de cores e, por outro, deduz osconceitos universais, como causa, ordem,uniformidade, substância, que permitemfundar a ciência sobre a base de leis, relaçãode casualidade etc (CALDERA, 1994, p. 33).”

De acordo com CALDERA (1994, p. 33),“Quanto à primeira função de orde-namento sensorial, a razão só conhe-ce o que pode ordenar e organizar e sóé capaz de ordenar o que pode conhe-cer. Neste caso, a organização em con-ceitos das sensações que foram capta-das pelos nossos sentidos equivalemao ato cognitivo devido a que existeuma mesma natureza das sensaçõesdo mundo físico, do sentido e da ra-zão.Quanto à segunda função, que con-siste em supor a existência da subs-tância sob as sensações, a razão asrealiza mediante os juízos sintéticos a

priori que radicam em nosso eu, nãono eu subjetivo, porém no eu especialque Kant denomina de eu transcen-dental.”

Como descreve, ainda, Caldera (1994, p.34),

“os juízos sintéticos a priori não pro-vêm da experiência, são universais,têm uma necessidade em si mesmos,existem em nossa razão e mais exata-mente em nosso eu transcendental,permitem encadear logicamente osconceitos, estabelecer as relações decausalidade, generalizar as proposi-ções, formular leis, ampliar os concei-tos ao integrar o predicado no sujeitoe, em conseqüência, fazem possível aexistência da ciência. Diferentementedas idéias empíricas que se apóiamna experiência, existem idéias purasque não derivam de nenhuma expe-riência e por isso mesmo são necessá-rias e universais.”

Como a razão teórica inscreve-se “nocampo do conhecimento (dando-se a respos-ta à pergunta: ‘como é possível conhecer?’),é necessário avançar e buscar a dimensãoprática da razão, que determina o seu objetomediante a ação. Passa-se, pois, à tentativade responder à indagação: o que devo fazer?Será na Fundamentação da Metafísica dos Cos-tumes (1785) e na Crítica da Razão Prática(1788) que Kant enfrentará a questão, nabusca de respostas” (FONSECA, 2001, p.70).

Na esfera da razão prática, conserva-sea crença em Deus, liberdade e imortalidade.Essas idéias formulam-se como postuladosda razão prática e, portanto, estão inseridasna existência humana, pois “é a razão noseu uso moral. Uma das noções centrais detal crítica é a da boa vontade. Kant elabora acrítica da chamada ética dos bens, pois estanão pode proporcionar normas de ação ab-soluta.” Assim, delimita como morais, “osatos que fundamentam-se na boa vontadesem restrições. Por isso, nas divisões dosimperativos morais em hipotéticos e categó-

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ricos, só a estes últimos compete a morali-dade absoluta” (Cf. MORA, 1982, p. 1843).

Por outro lado, a vontade humana é ocampo dos valores morais, isto é, o valormoral relaciona-se unicamente com a von-tade humana, ou seja, a radicalização dobem na boa vontade. É de fato com Kant quea autonomia define-se como essência dasubjetividade. Como assinala Fonseca(2001, p. 71-72),

“cabe destacar a centralidade de no-ção de autonomia de vontade na ela-boração desta fundamentação para aação. A autonomia deve ser entendi-da como a faculdade de dar leis a simesmo – e a vontade moral será porisso vontade autônoma por excelên-cia. É por isso que (...) a ação é o terre-no da liberdade – e esta está por suavez calcada na vontade autônoma. Oimperativo categórico afirma a auto-nomia da vontade como o único prin-cípio de todas as leis morais e essaautonomia consiste na independên-cia em relação a toda matéria da lei ena determinação do livre arbítrio me-diante a simples forma legislativauniversal de que uma máxima deveser capaz.”

No entanto, o conceito de liberdade emKant deve ser entendido como obediência auma lei autoprescrita.

Por outro lado, para Kant, precisamentepor ser a pessoa humana o centro dos valo-res morais, ela é um fim em si mesma. A par-tir da apreciação de cada homem ser um fimcom valor absoluto, surge o reino dos fins.“Isto é possível, porque todos os homensestão sujeitos à lei de que cada um deve tra-tar-se a si mesmo e tratar todos os outros,nunca como simples meio, mas sempre, aomesmo tempo, como fim em si mesmo.” Tra-ta-se, no entanto, de um critério formal, pois,de acordo com o imperativo categórico,“toda ação exige a antecipação de um fim,isto é, o ser humano deve agir como se estefim fosse realizável. Não se estabelece o quedeve ou não se deve fazer, mas tão-somente

um critério instrumental e procedimentalpara a ação. Trata-se, portanto, de um crité-rio formal, e não material de conduta (comoos critérios religiosos, por exemplo, o são)”(GIALDI, 1989, p. 35).

Por último, na contemporaneidade, caberesgatar Martin Heidegger, como o primei-ro filósofo que, desde Platão e Aristóteles,considerou prioritariamente a questão doSer. A mais profunda importância de seupensamento brota de sua preocupação como niilismo que tem um signi-ficado metafísi-co e (um significado) moral.

Heidegger enfrenta a questão do Ser emsua obra “Ser e Tempo”. Preocupou-se, nes-sa obra, em “tematizar a significação do Ser(Sein), mediante uma análise do Ser huma-no (Dasein) em função da sua tempo-ralida-de, chegando a um entendimento do Ser edo Tempo, examinando como se unem ohomem e o ser histórico” (Cf. STRAUSS;CROPSEY, 2000, p. 836).

Para Strauss e Cropsey (2000, p. 836), aquestão do Ser em Heidegger “é a fonte e ofundamento de todas as ontologias e os or-denamentos dos seres e, portanto, de todoentendimento humano”. Ao afastar essaquestão, o homem perde a fonte de seu pró-prio conhecimento e “a capacidade de ques-tionar de maneira mais radical, que é essen-cial para o pensamento autêntico e, por suavez, para a liberdade autêntica”.

Para Heidegger, dizem-nos Strauss eCropsey (2000, p. 836), o homem “se reduza essa besta calculadora, preocupada tão-só com sua sobrevivência e prazer, um ‘últi-mo homem’, na terminologia de Nietzche,para quem a beleza, a sabedoria e a grande-za não são mais que palavras.”

Para enfrentar esse niilismo, segundoHeidegger, é necessário, apontam os auto-res, superar o esquecimento do Ser. Nessecontexto, a questão do Ser fica de lado, por-que este é tido como evidente, “como o maisuniversal porém o mais vazio de todos osconceitos”. Isso, de acordo com Heidegger,deve-se a uma atribuição errada ao Ser deuma essência independente do Tempo, ou

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seja, “é resultado de uma interpretação er-rônea da relação do Ser e do Tempo”. Naverdade, desde Platão,

“(...) o Ser tem sido interpretado emoposição às coisas reais, ou como aqui-lo que está além do tempo e que nãomuda. Em oposição ao âmbito imutá-vel do Ser, as coisas reais existem noâmbito do devenir, ou do Tempo. Noentanto, o que se tornou evidente nostempos modernos é que esta distinção,que se encontra no núcleo das catego-rias de nosso conhecimento, nosimpede de captar ade-quadamentenossa realidade histórica concreta, oque Heidegger chama a facticidadeda existência humana” (STRAUSS;CROPSEY, 2000, p. 836) .

Isso significa que não há natureza hu-mana. O homem primeiro existe e depois sedefine. Nesse sentido, o homem é o “únicoente que tem seu próprio Ser como pergun-ta, quer dizer, o homem é o único ente que sepreocupa pelo que significa Ser, acerca doseu futuro, de suas possibilidades de Ser”(STRAUSS; CROPSEY, 2000, p. 837).

Para Heidegger ([19--?], p. 10), o homemé o que ele próprio se faz, isto é, como ele sedeseja após o impulso da existência. O ho-mem é um projeto concebido subjetivamen-te, ou seja, “o homem, na sua opinião, nãotem um fim determinado. Seu fim, e portan-to seu futuro, sempre será uma incógnitapara ele. Nesse sentido, o homem é o únicoente em verdade histórico, dedicado a pla-nejar e forjar o próprio futuro. Heidegger crêque o homem pode servir como entrada naquestão do Ser mesmo” (STRAUSS; CROP-SEY, 2000, p. 837), e a considera a partir dacompreensão do Ser humano no que tangeàs estruturas básicas da existência huma-na, “mostrando não o que é o homem senãocomo existe, como é no Tempo e através doTempo”. Sua análise existencial nasce docotidiano, do deslocamento da questão doser e da verdade para o âmbito da finitude(HEIDEGGER, [19--?], p. 207).

Heidegger inicia

“com uma análise da existência coti-diana, enfocando o fato de que o ho-mem sempre se encontra enquadradonum mundo que se caracteriza poruma particular ontologia e ordem dascoisas. O homem como Ser humano é,assim, o que Heidegger chama ‘Ser-no-mundo’. Por conseguinte, o homemse encontra para as coisas e com osoutros, quer dizer, dentro de uma es-trutura particular que determina asrelações entre todas as coisas, que de-fine seus propósitos e, portanto, suasatividades, determinando como é ohomem e tudo o mais“(FERRY, 1997,p. 77).

Na maioria das vezes, o homem é absor-vido pela ordem prevalecente, aceitando ascoisas como são, sem questionar a existên-cia. No entanto, essa situação é alteradaquando a existência humana é confrontadacom a questão da morte. À medida que o“Ser questiona o futuro, preocupando-secom o que vai ocorrer, o homem inevitavel-mente encontra a questão da morte. Heide-gger descobre a possibilidade de compreen-der autenticamente a morte no fenômeno daangústia”, sobretudo quando a consciênciaé interpelada pelas possibilidades futurasdo Ser. “Esta experiência da morte na an-gústia libera o homem da ordem prevale-cente do Ser. É o reconhecimento da finitu-de do nosso próprio Ser, e abre a possibili-dade para a experiência dada questão dopróprio Ser” (FERRY, 1997, p. 78).

Segundo Heidegger, diz-nos Ferry, aModernidade caracteriza-se pela subjetivi-dade. Se Deus não existe, o homem está con-denado a ser livre. Condenado, porque nãodeterminou sua existência e, no entanto, li-vre, porque, uma vez no mundo, é respon-sável por tudo o que fizer.

Isso significa que“o homem é que serve como medida efundamento de toda verdade. Assim,a Modernidade também é a esfera daliberdade, pois, o predomínio da sub-jetividade libera o homem da estrutu-

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ra teocêntrica da sociedade cristã tra-dicional e o estabelece consigo mes-mo. A fonte desse novo conceito é ainterpretação dada por Descartes aohomem como consciência de si mes-mo, que estabelece sua absoluta inde-pendência como medida de todas ascoisas. Daí em diante, só conta aquiloque pode passar diante do tribunal daconsciência, quer dizer, só o que podeser percebido e avaliado” (FERRY,1997, p. 78).

Por outro lado, como advertem Strauss eCropsey, para Heidegger, ao perder seu lu-gar fixo, que a tradição ou a religião lhe da-vam, o homem moderno é lançado na alie-nação e, portanto, na busca da segurança.O homem diante de si, na Modernidade,passa a ser confrontado com a natureza quenão lhe fornece mais orientações pré-deter-minadas para o agir. Assim,

“a natureza já não oferece os delinea-mentos para a ação humana, agora éuma ordem incerta, e portanto perigo-sa, que o homem deve dominar. Estásubmetido, no nível intelectual, pelaciência moderna, que desenvolve umquadro ou modelo matemático domundo, reduzindo, assim, o mundo àcategoria predizível e, por isso, con-trolável. Heidegger chama de objeti-vação a este processo” (Cf. STRAUSS;CROPSEY, 2000, p. 841-842).

Esse aspecto é essencial, na medida emque define o conflito fundamental da Mo-dernidade, relativizando outros, tais comoos decorrentes “da paixão, da parcialidadehumana, da vontade de poder, do antago-nismo de classe ou disputas pela naturezada justiça”. O conflito determinante, naModernidade, segundo Heidegger, e comoobservam os autores Strauss e Cropsey(2000, p. 844), seria:

“o resultado de tentar conseguir a li-berdade humana no mundo naturalpor meio da tecnologia. Por conse-guinte, o conflito também é inevitável,já que o que significa ser ‘ser huma-

no’ no mundo Moderno é medir, do-minar e domesticar a natureza, querdizer, ser tecnológico. Heidegger se-gue esse desenvolvimento a partir deDescartes, passando por Leibniz,Kant, Hegel, Schelling e Nietzsche,indo até a tecnologia universal do sé-culo XX. É a história do crescente nii-lismo do pensamento moderno na vi-agem do homem como sujeito, desdea autoconsciência cartesiana até avontade de poder nietzscheano, naqual se encontra o miolo da tecnolo-gia mundial.”

Seria a história de degeneração do ho-mem que culminou na formação do homemmassa. O desfecho da Modernidade, paraHeidegger, dá-se com o total esquecimentodo Ser e na desumanização do homem con-vertido em peça de um aparato tecnológicoque tem como objetivo o seu próprio desen-volvimento (STRAUSS; CROPSEY, 2000, p.844).

Desse modo, Heidegger volta-se “contraa tradição da Ilustração para revelar o cará-ter sombrio da Modernidade. Porém, nãochama nossa atenção em relação a esse nii-lismo para provocar desespero ou repug-nância, senão porque acredita vislumbrarna sua profundidade a luz inicial de umanova revelação do Ser” (STRAUSS; CROP-SEY, 2000, p. 844).

Evidenciar isso é demonstrar a ligaçãoimplícita que existe entre o Ser e o nada. “Oniilismo pode ser interpretado como a afir-mação de que não há um só fundamentopara os entes e, portanto, não há uma nor-ma ou ordem imutável” (STRAUSS; CROP-SEY, 2000, p. 867). O fundamento deve apre-sentar-se como algo separado do ente, o quepode ser traduzido como o Ser em seu senti-do primordial, ou seja, como caos ou abis-mo.

Ainda que o homem não possa, de acor-do com Heidegger, superar o niilismo, estáaberta a possibilidade de construir um novoprojeto que estabeleça as condições deapreensão de uma nova revelação.

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Sendo assim, o projeto de Heidegger, queé essa preparação, inclui:

“1. libertar o homem de todas as cate-gorias e normas metafísicas, median-te uma reinterpretação destrutiva fun-damental da história do pensamentoocidental;2. fomentar uma autêntica experiên-cia do niilismo contemporâneo, cha-mando o homem para confrontar-secom o absurdo e a morte;3. convencer o homem para que aceiteseu destino particular dentro do des-tino de seu povo ou sua geração, quese manifestou na revelação do Ser”(STRAUSS; CROPSEY, 2000, p. 868).

Apesar de tudo, concluem Strauss eCropsey (2000, p. 868), Heidegger não podegarantir que, com o seu projeto, ao induzir oSer às circunstâncias mencionadas, este serevelará em sua essência existencial, pro-movendo, a partir da força que essa revela-ção implica, a formação do pensamento au-têntico.

2. A questão do Direito naModernidade

Na Modernidade, a subjetividade jurí-dica será o reconhecimento dos direitos na-turais do indivíduo, entendidos como po-deres ou liberdades que expressam condi-ções para o pleno desenvolvimento de cadaum e de toda sociedade. Assim, “reconhe-cer que o homem tem direitos naturais paraopinar livremente, expressar seu pensamen-to etc. equivale a reconhecer-lhe um certonúmero de poderes que poderá eventual-mente fazer valer contra o poder mesmo, esem os quais não seria um ser humano, querdizer, um sujeito em oposição aos objetos”(RENAUT, 1997, p. 47). Com a afirmação doindivíduo, como já vimos, valoriza-se o ho-mem independente de religião e de raça, apartir de sua dignidade que passa a ser ofundamento e centro do mundo e, também,fonte dos valores que o Direito deverá reco-nhecer.

Para a doutrina do Direito natural racio-nal, as leis seriam válidas à luz da razão ede normas intemporalmente válidas, ante-riores à lei positiva e independentes dela(ROUANET, 2001, p. 128).

“Na época moderna, o fundamen-to na natureza ou em Deus é abando-nado e substituído pela natureza dohomem. Quando se fala no direito na-tural moderno (ou jusracionalismo),fala-se também num direito que se as-senta na natural razão humana e seusatributos (...) seu traço distintivo (...) éque, agora, o direito está ligado ao indi-víduo, à qualidade específica do ho-mem, tornando-se a emanação deste, aexpressão de suas possibilidades ina-lienáveis e eternas. O fundamento dodireito, portanto, aparece, como sendooutro: o homem e a sua racionalidade”(FONSECA, 2001, p. 53-54).

Como Boaventura de S. Santos ([2000?],p. 124) muito bem acentua, o direito naturalracional parte da idéia de fundação de umanova boa ordem, segundo a lei da natureza,a qual se atinge por meio do exercício darazão e da observação. É uma racionalida-de secular e, como tal, assenta-se numa éti-ca social secular que se emancipou da teo-logia moral. Essas novas condições propi-ciam à nova racionalidade um caráter uni-versal e universalmente aplicável.

A partir da visão racionalizadora dopensamento ilustrado, com o processo desecularização e a crescente diferenciação dasesferas de valor, o Direito, distintamente dasformas pré-modernas e pré-capitalistas do-minadas pela legitimidade carismática outradicional, buscará sua legitimidade noEstado Moderno, marcado pela desperso-nalização do poder e pela racionalizaçãodos procedimentos normativos (Cf. WOLK-MER, [199-?], p. 48).

As hipóteses jusnaturalistas relaciona-das à origem da sociedade tinham uma fun-ção, no essencial, de crítica acerca dos con-ceitos tradicionais da autoridade. Se essesconceitos tiveram um alcance revolucioná-

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rio, é porque tinham como objetivo minar osfundamentos das grandes teorias do poderpolítico que estiveram em vigor durante oAntigo Regime. Nesse sentido, instauraramum verdadeiro corte nas teorias tradicionaisda soberania que estabeleciam a origem daautoridade política, tanto em Deus como nopoder paterno. Essas teorias, como se sabe,fundaram a legitimidade do poder numainstância que se supunha transcendente emrelação à subjetividade – a natureza, no casodo poder paterno, e a divindade, no casodas doutrinas do Direito divino. Os teóricosdo Direito natural, quando afirmam o cará-ter puramente convencional do poder legí-timo, introduzem, ao contrário, a idéia deque o fundamento verdadeiro (quer dizer,justo) da autoridade somente pode encon-trar-se na livre vontade do povo (RENAUT,1997, p. 54 et seq.).

O ambiente filosófico-político que per-mitiu o florescimento das idéias jusnatura-listas reuniu duas condições essenciais.

A primeira, como aponta Renaut (1997,p. 54 et. seq.), seria o deslocamento do ho-mem para o centro do universo sendo con-siderado o único sujeito de direito. Nessesentido, natureza

“no pensamento moderno assume oestatuto de objeto jurídico sempre comreferência ao homem. O surgimento dasubjetividade jurídica (dos ‘direitossubjetivos’), cuja origem cristã se re-conhecerá sem dúvida, mas cujo al-cance político ocorre com a escola jus-naturalista, tem em Hobbes a rupturacom o aristotelismo e o direito passa aser considerado definitivamente comoatributo do indivíduo.”

Com as teorias de contrato social e doestado de natureza, vinculam-se as noçõesde legitimidade e de subjetividade: “só é le-gítima a autoridade que é ou foi objeto deum contrato por parte dos sujeitos que, dealguma maneira, lhe estão submetidos. Asubjetividade (adesão voluntária) fica assimestabelecida como origem ideal de toda le-gitimidade, efetuando-se o enlace entre a

idéia dos direitos subjetivos (fundados pore para os sujeitos) e as condições de seuscimentos políticos” (RENAUT, 1997, p. 54et seq.) Nesse contexto, a referência a Rous-seau é obrigatória para que se possa com-preender, segundo Renaut (1997, p. 55-56),“essa primeira possibilidade dos direitos dohomem, porque o Contrato Social e, particu-larmente, a teoria da vontade geral são, se-gura-mente, os que levam a concluir a refle-xão política jusnaturalista, elucidando ascondições, a partir das quais pode o povoser considerado soberano, quer dizer, comosujeito verdadeiro (autor) de toda legitimi-dade política”.

A segunda condição, para Renaut (1997,p. 55-56), traz a questão da relação Socieda-de-Estado. Procura enfocar a contraposiçãodos direitos-liberdades e dos direitos-crédi-tos. Nesse sentido, “os direitos-liberdadesimplicam os limites do Estado, enquanto osdireitos-créditos, ao contrário, implicam aintervenção e o crescimento do Estado”.

A lógica da Modernidade é a do indivi-dualismo e, sendo assim, pensa-se a políti-ca a partir daquilo que constitui a essênciado individualismo, ou seja, a liberdade éconcebida como a faculdade de autodeter-minação. Assinala Renaut (1997, p. 58):“tudo aquilo que representa um obstáculo aesta autodeterminação, e portanto à liber-dade, é visto como intolerável moral-mente,porque destrói a individualidade e aquiloque se considera o fundamento o fim últimode toda ordem social”.

A dificuldade de tal princípio é passardessa concepção individual da liberdadepara a coletiva, ou seja, a passagem da mo-ral para a política. De acordo com Rousseau,é necessário que se pense o povo, em seuconjunto, como um indivíduo, quer dizer,como uma entidade suscetível de conduzir-se livremente (RENAUT, 1997, p. 58). Para oautor, segundo Renaut (1997, p. 59), duascaracterísticas são indispensáveis na cons-tituição do povo como subjetividade:

“a soberania deverá ser o exercício davontade geral, jamais poderá ser alie-

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nada e nem tampouco dividida. Quan-do Rousseau afirma a inalienabilida-de e a indivisibilidade da soberania,contrapõe-se aos autores que conside-ram a liberdade de decidir um bemque pode transferir-se a outro legiti-mamente, com a única condição deque esta transferência se efetue de for-ma voluntária. Para Rousseau, pelocontrário, essa transferência não só éilegítima, senão que carece de senti-do: a liberdade e, como conseqüência,a soberania não são bens dos quais ohomem possa dispor a seu gosto, ohomem é um ser livre por natureza;renunciando livremente a esta liber-dade, estaria renunciando a si mes-mo, e delegar sua liberdade para deci-dir equivaleria a um suicídio.”

Rousseau considera a soberania indivi-sível, pois não é senão o exercício da vonta-de geral. Assim, assevera Renaut (1997, p.59) que “a definição de povo ou de corpopolítico como subjetividade livre se realizaplenamente, pela primeira vez na históriada filosofia política, na teoria da vontadegeral.”

Em Rousseau, o contrato representa umato de atribuição de poder que se reproduzno corpo político que o cria. Daí, duas ca-racterísticas – na unidade do povo, como sub-jetividade – na soberania, a de ser inalienávele indivisível (Cf. FERRY, 1997, p. 58-59).

Assim, conclui Rousseau que, em sendoa soberania inalienável e indivisível, o Di-reito só pode ser autoprescrito. É em razãodisso que o cidadão “não obedece senão asi próprio e não pode ser forçado a nadasenão a ser livre” (RENAUT, 1997, p. 62-63).

A problemática que Rousseau enfrenta éa da essência, uma definição rigorosa dopovo como individualidade livre. Por suavez, a teoria política do século XIX não será,como recorda Alain Renaut (1997, p. 62-63),teoria das essências, mas também uma re-flexão sobre as divisões reais (povo/gover-no, Estado/sociedade) que o Contrato Social

considera uma contradição com os pressu-postos da liberdade.

Com o advento do positivismo e a for-mação do Estado de Direito liberal burguês,inicia-se um segundo momento na forma-ção da doutrina jurídica da Modernidade,em função da ascensão de uma nova episte-mologia, que substituía a razão abstrata pelaexperiência, desqualificando as idéias ina-tas (ROUANET, 2001, p. 129).

Ao afastar-se do jusracionalismo, e como fortalecimento do paradigma científico, oDireito ficou reduzido a uma questão depoder e as garantias fundamentais ficaramdesprovidas de seu referente axiológico paraconstituir-se num fim em si mesmo (CAM-PUZANO, [19--?], p 172).

Naturalmente, como aponta Boaventu-ra de Sousa Santos ([2000?], p. 124), com

“o aparecimento do positivismo naepistemologia da ciência moderna edo positivismo jurídico no direito e nadogmática jurídica, podem conside-rar-se, em ambos os casos, construçõesideológicas destinadas a reduzir oprogresso societal ao desenvolvimen-to capitalista, bem como a imunizar aracionalidade contra a contaminaçãode qualquer irracionalidade não ca-pitalista, quer ela fosse Deus, a reli-gião ou tradição, a metafísica ou a éti-ca, ou ainda as utopias ou os ideaisemancipatórios.”

Se o Direito natural partia da idéia defundação de uma nova ordem, segundo alei da natureza, por meio da razão e da ob-servação, com o positivismo o Direito sepa-rar-se-ia dos princípios éticos e tornar-se-ia“um instrumento dócil na construção insti-tucional e na regulação do mercado, a boaordem transforma-se na ordem tout cour”(SANTOS, [2000?], p. 124-141).

O direito natural moderno, como se cons-tatou, ao romper com a Antigüidade, nosproporcionou o fundamento filosófico danoção geral dos direitos do homem, ou seja,a individualidade livre como fundamento elimite da autoridade.

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A partir daí, começa a fortalecer-se aidéia de que a sociedade civil teria funda-mentação própria, e o pensamento liberalpromove a separação moderna do social edo estatal. Efetua-se a passagem do direitonatural, como elaboração sobre a legitimi-dade, e a soberania para a teoria política,como reflexão sobre as relações entre a socie-dade e o Estado.

O advento do positivismo marca umainflexão na evolução do Direito, e o Estado,por sua vez, nesse novo contexto, passariaa ajustar-se à nova racionalidade e às ne-cessidades regulatórias do capitalismoliberal.

Conclusão

Com a Modernidade, o Direito passa aser atributo do indivíduo, buscando-se con-senso por meio do contrato social, cuja ade-são voluntária será a base da legitimidadena formação do Estado.

A subjetividade, como adesão voluntá-ria (como ato de vontade), estabelece osparâmetros que possibilitam a origem idealde toda formação política, fundamentando-se, assim, a vinculação entre os direitos sub-jetivos originados no indivíduo e a possibi-lidade de legitimidade política a partir daconsagração e proteção daqueles.

Nesse sentido é que a subjetividade jurí-dica será o reconhecimento dos direitos na-turais, entendidos como poderes ou liber-dades que expressam condições para o ple-no desenvolvimento de cada um e do con-junto da sociedade.

Na segunda etapa da Modernidade,houve uma inflexão na evolução do direitoe da subjetividade jurídica. À medida que opositivismo funda uma nova forma de raci-onalidade jurídica, a questão da legitimida-de deixa de ser uma preocupação do Direito(enquanto norma), e este passa a preocupar-se cientificamente com a questão da legali-dade intra-sistêmica.

Todo esse conjunto de idéias, que fazemparte da Modernidade, vem sofrendo uma

série de críticas e, no que se refere à subjeti-vidade, aponta-se que, à medida que o con-ceito de subjetividade ou de sujeito que seimpõe desde Descartes tentou fazer do mun-do o seu império, submetendo a realidadeao seu domínio e fazendo dela um objeto deposse, tem-se como conseqüências: uma von-tade de poder totalitária e uma falsa con-cepção autônoma da subjetividade, da cons-ciência como sendo acessível diretamentepor um sujeito estável que por meio da ra-zão pode estabelecer um conhecimento so-bre si mesmo e o mundo. Sugere-se, nessesentido, que as formações sócio-culturaisexercem um papel fundante na formação daautoconsciência.

Assim, como pensar o sujeito hoje? A cri-se da concepção moderna da verdade, dosvalores e do sujeito deve-se, de um lado, àênfase na liberdade como desenvolvimentopessoal e à crescente preocupação com aperformance e com o êxito individual a qual-quer custo e, por outro lado, a viver-se nummundo sem referências universais, sem va-lores absolutos ou constantes, com a conse-qüente perda da unidade e de fundamen-tos. Ao dizer que “Deus está morto”, iniciou-se a morte da subjetividade humana comocentro e princípio da verdade e valores queeram próprios da civilização moderna e doDireito.

No entanto, somente o sujeito, que nãose confunde com o indivíduo, num contextode intersubjetividade, em diálogo com o ou-tro pode fundar valores e um projeto ético-político capaz de construir uma sociedademais justa.

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Alvaro Barreto

No âmbito deste trabalho, “representa-ção das associações profissionais” é a par-ticipação de representantes eleitos por sin-dicatos e entidades profissionais nos órgãoslegislativos, com direito de voz e voto, idên-tico ao dos representantes políticos tradi-cionais, eleitos pelo voto popular, em baseterritorial1.

No Brasil, ela foi implantada pelo Go-verno Provisório de Getúlio Vargas e vigo-rou para a Assembléia Nacional Constitu-inte de 1933-34. Incorporada à ConstituiçãoBrasileira de 1934, a medida entrou na pau-ta de trabalho do Congresso Nacional, doTribunal Superior de Justiça Eleitoral (TSJE)e das constituintes estaduais.

O período de vigência dessa representa-ção, entretanto, não chegou a seis anos: in-troduzida no Código Eleitoral de fevereirode 1932, foi interrompida pelo Estado Novo,em novembro de 1937, e nunca mais voltoua ser repetida, tornando-se uma experiên-cia inusitada da história política e institu-cional brasileira. Desse modo, os documen-tos legais relativos ao assunto perderam im-portância e caíram em esquecimento.

É importante ressalvar que essa temáti-ca, embora envolva um curto espaço de tem-po, cobre três períodos institucionais dis-tintos: entre 1932 e novembro de 1933, elafoi produto da ação discricionária do Go-verno Provisório; depois, dessa data a julhode 1934, foi objeto do processo de formula-ção da Constituição, desenvolvido pela As-

A representação das associaçõesprofissionais na legislação brasileira(1932-1937)

Alvaro Barreto é Professor do ISP-UFPel,Doutor em História pela PUCRS.

Revista de Informação Legislativa48

sembléia Nacional Constituinte; por fim,retomada a normalidade, entre julho de1934 e novembro de 1937, ela estava incor-porada ao ordenamento jurídico nacional,logo, necessária e obrigatoriamente, deve-ria figurar na legislação relativa ao tema.

Este artigo se propõe, em seu plano maisgeral, a resgatar essa legislação. Ao mesmotempo, pretende investigar as tendências eas orientações que foram seguidas, ao de-nominar, definir e estruturar a representa-ção das associações profissionais. Igual-mente, tem por objetivo analisar as razõesque tenham motivado tais tendências eorientações.

Do primeiro período, selecionamos os se-guintes documentos legais: (1) o Código Elei-toral, promulgado como o Decreto 21.076,de 24 de fevereiro de 1932; (2) o Decreto22.621, de 5 de abril de 1933, que dispõesobre a convocação da Assembléia Consti-tuinte, aprova o Regimento Interno desta,prefixa o número de deputados e dá outrasprovidências; (3) mais os quatro decretos queregulamentaram a eleição da representaçãodas associações profissionais para a Cons-tituinte (22.653, de 20 de abril; 22.696, de 11de maio; 22.745, de 24 de maio; 22.940, de14 de julho, todos de 1933).

No que tange à segunda fase, procura-mos trabalhar com as diversas versões com-pletas da nova Constituição, surgidas du-rante o processo constituinte. Elas foramquatro: (1) o Anteprojeto da Subcomissão doItamarati, enviado à Assembléia pelo Go-verno Provisório para servir como texto-guia; (2) o Substitutivo, formulado pela Co-missão Constitucional, a partir das emen-das propostas pelos deputados; (3) um se-gundo Substitutivo, chamado 1B, fruto denova rodada de emendas; e, enfim, (4) o tex-to promulgado em 16 de julho de 1934.

Esclarecemos que apenas os três últimosforam redigidos pela Assembléia Consti-tuinte, pois o primeiro foi fruto de uma equi-pe de juristas, intelectuais e políticos, no-meada pelo Governo Provisório2. A rigor, tão-somente a versão final da Constituição che-

gou a ter valor legal; no entanto, incluímos osestágios anteriores e preparatórios para quea análise seja mais apropriada à finalidadede abordar as mudanças e as adaptações ocor-ridas durante o processo constituinte.

No que se refere ao último período, reco-lhemos como material de consulta as cartasconstitucionais formuladas pelas unidadesda federação, com o intuito de adequarem-se ao texto nacional (20, mais a Lei Orgâni-ca do Distrito Federal). Igualmente, três de-cisões do TSJE: (1) a Resolução de 11 de se-tembro de 1934, pela qual, no uso das atri-buições conferidas pela Constituição (art. 83,c; art 3o e 4o das Disposições Transitórias),fixou o número de representantes das asso-ciações profissionais para a primeira legis-latura da Câmara dos Deputados, a iniciar-se em maio de 1935; (2) as Instruções, demesma data, na qual definiu os procedimen-tos necessários à eleição desses deputados;e (3) as novas Instruções, aprovadas nassessões de 12 e 14 de junho de 1935, referen-tes às eleições desse tipo de representante àCâmara Municipal do Distrito Federal e àsassembléias legislativas das unidades dafederação, a tomarem parte na primeira le-gislatura sob vigência das novas cartasconstitucionais. Da ação do Congresso Na-cional, selecionamos: (1) o novo Código Elei-toral, sancionado como a Lei 48, de quatrode maio de 1935, e (2) a Lei 29, de 19 defevereiro de 1935, que definiu a composiçãoda Câmara Municipal do Distrito Federal.

O primeiro texto legal brasileiro em queaparece a nossa temática é o Código Eleito-ral de 1932. Há apenas uma referência: noantepenúltimo artigo, o de número 142, noqual se pode ler: “no decreto em que convo-car os eleitores para a eleição de represen-tantes à Constituinte, o Governo determina-rá (...) o modo e as condições de representa-ção das associações profissionais”. Trata-se de um texto sucinto, que apenas autorizao Governo a regulamentar essa representa-ção; chama-a de “das associações profis-sionais”, mas não traz elementos que per-mitam defini-la plenamente.

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Como argumentamos em outro texto, oartigo 142 deu início a uma grande discus-são teórica e também política a respeito desua regulamentação – um debate que aca-bou por envolver o Governo Provisório, oClube Três de Outubro, a Subcomissão doItamarati, o TSJE, as principais liderançaspolíticas do país, além de trabalhadores epatrões (BARRETO, 2002a).

A temática voltou a ser objeto de um do-cumento legal mais de um ano depois, em 5de abril de 1933, quando o Governo Provi-sório pôs fim ao embate a que nos referimosacima. Não por acaso, em cumprimento aoque estabelecia o artigo 142 do Código Elei-toral, isso ocorreu no decreto em que o Go-verno convocou a Assembléia NacionalConstituinte e fixou o número dos deputa-dos, o 22.621. Nele, é definida a “represen-tação das associações profissionais” comoaquela composta pelos “eleitos pelos sindi-catos legalmente reconhecidos e pelas asso-ciações de profissões liberais e as de funcio-nários públicos existentes nos termos da leicivil”3. Mais do que isso, o Decreto determi-na que haveria 40 desses deputados, os quaisestariam ao lado de outros 214, represen-tantes da população das unidades da fede-ração.

Num decreto posterior, o 22.653, de 20de abril, o Governo eliminou qualquer am-bigüidade que pudesse ter permanecido, aoassinalar, no art. 1o, que: “tomarão parte naAssembléia Nacional Constituinte, com osmesmos direitos e regalias que competiremaos demais de seus membros, 40 represen-tantes de associações profissionais”.

Conforme indicara o Decreto 22.621, oGoverno detalhou essa participação em no-vos decretos. Foram quatro no total, nosquais especificou o modo e as condiçõesdessa representação, organizou as entida-des para fins eleitorais, regulamentou osprocedimentos que deveriam ser adotadospelos eleitores durante o pleito.

Destacamos que, ao longo de toda a suaatividade legislativa, o Governo Provisóriosempre denominou a medida “representa-

ção das associações profissionais”. Por suavez, aqueles que a deveriam exercer foramchamados de “representantes das associa-ções profissionais (a partir da ementa doDecreto 22.653) ou de “deputados das asso-ciações profissionais” (como se depreendedo art. 3o do Decreto 22.621). No entanto, apartir do Decreto 22.696, ele passou a utili-zar uma terceira expressão, “representanteprofissional”, a qual comentaremos no de-correr da exposição.

Com a promulgação dessas últimas de-terminações, o Governo Provisório haviacumprido integralmente a autorização tra-zida pelo Código Eleitoral de 1932, isto é,tratar da participação da representação dasassociações profissionais na Constituinte.Qualquer nova determinação relativa ao as-sunto deixou de estar sob sua jurisdição epassou a ser objeto de deliberação da pró-pria Assembléia Nacional Constituinte, ten-do em vista incorporá-lo ou não à nova Cons-tituição. A partir desse momento, a denomi-nação “representação das associações pro-fissionais” não foi usada para identificaresse princípio. No Substitutivo, a preferên-cia recaiu sobre “representação, política, dasprofissões” (art. 38, parág. 1o), expressão quefoi abandonada nas versões seguintes daConstituição, assim como nos demais tex-tos legais produzidos no país.

O Substitutivo 1B trouxe uma outra de-nominação com largo uso nos textos jurídi-cos futuros: a nova representação a ser in-corporada ao ordenamento jurídico era a“representação das profissões” (art. 6o, I, h).A denominação constou da Constituição(art. 7o, I, g; caput do art. 3o das DT). Aquelesque exerceriam esse princípio foram identi-ficados, já desde o Substitutivo, como “de-putados das profissões” (caput dos art. 36 e38; art. 39, parág. 3o) ou “representante dasprofissões” (art. 37, parág. único). Essas de-nominações continuaram a ser utilizadasno Substitutivo 1B (art. 25, parág. 1 o e 3o; art.91) e foram consagradas na Constituição(art. 23, parág. 1o e 3o; caput do art. 83). Estatambém utiliza “representantes eleitos pe-

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las organizações profissionais” (caput doart. 23).

Uma outra expressão, “representaçãoprofissional”, foi aplicada como sinônimode “representação das profissões”. Figuratrês vezes no texto constitucional (art. 23,parág. 4o; art. 3o, parág. 3o; art. 4o, parág. úni-co das DT). A exemplo da anterior, esta tam-bém surgiu no Substitutivo 1B (art. 25, pa-rág. 4o; caput do art. 3o das DT).

Como observamos, a Constituinte, e, porconseqüência, a Constituição Federal, nãose serviu de uma única expressão para refe-renciar a nova modalidade de representa-ção, tendo, inclusive, rompido com a termi-nologia adotada pelo Governo Provisório.O princípio é chamado alternadamente de“representação das profissões” e “profissi-onal”, assim como aqueles que exercem omandato são “deputados/representantesdas profissões”. No entanto, embora haja a“representação profissional”, ela não trazreferências a “deputado” nem a “represen-tante profissional”, identificação que haviasido aplicada pelo Governo Provisório,como vimos há pouco.

A terminologia cambiante permaneceunos textos legais posteriores. O TSJE utili-za, como se fossem sinônimas, as expres-sões: “representantes das associações pro-fissionais” (caput do art. 1o da Resolução;art. 8o das Instruções de junho de 1935),“profissional(is)” (art. 2 o da Resolução; art.1o e 24 das Instruções de setembro de 1934;ementa e caput do art. 26 das Instruções dejunho de 1935), “das profissões” (ementadas Instruções de junho de 1935) mais “de-putado de classes” (art. 21 das Instruçõesde setembro de 1934; ementa das Instruçõesde junho de 1935) – a qual comentaremos –e a inédita “representantes dos grupos pro-fissionais” (caput do art. 1o das Instruçõesde setembro de 1934). A Lei 19 fala tão-so-mente em “representante das profissões”.Nas constituições estaduais, aqueles queexercem essa representação são chamadosde “deputados/representantes das profis-sões” (em 16 dos 21 textos) e, em menor es-

cala, de “representante(s) profissional(is)”– é o caso das constituições de Goiás (caputdo art. 7o) e do Ceará (art. 4o, parág. 2o).

Há expressões apresentadas pelas car-tas estaduais que não encontram utilizaçãona nacional, embora pareçam estar clara-mente contidas no elenco de possibilidadesque ela oferece. É o caso de “deputado” oude “representante das organizações profis-sionais”, que surgem em 13 cartas, as de:São Paulo, Goiás, Minas Gerais, Ceará, Riode Janeiro e Rio Grande do Norte; Paraná;Rio Grande do Sul; Piauí, Espírito Santo,Santa Catarina, Maranhão e Mato Grosso.

Uma última expressão foi utilizada comoequivalente às anteriores: “representação declasses” (ou seu derivado, “classista”). Elanão figura na Constituição de 1934, mas écitada no Anteprojeto da Subcomissão doItamarati, cujo art. 88 afirma: “os conselhosmunicipais poderão ser constituídos medi-ante representação de classes”4. Ela reapa-receu em documentos surgidos depois depromulgada a Constituição, tais como: o art.23 das Instruções do TSJE de 11 de setembrode 1934, a ementa das Instruções de junhode 1935 e o art. 213 da Lei 48, o novo CódigoEleitoral, que afirma: “regular-se-ão por leiespecial as eleições dos representantes declasses”. Em algumas das Constituições es-taduais, essas referências também podemser encontradas, como chamar o princípiode “representação das classes profissio-nais” (Paraíba, art. 90; Piauí, art. 108, pa-rág. 1o) ou “classista” (Ceará, art. 8 o das DT).Da mesma forma, aqueles que o exercem são:“deputado/representante classista” (Paraí-ba, art. 1 o das DT; Goiás, art. 6 o, parág. 1 o; MatoGrosso, art. 6o das DT; Espírito Santo, art. 8o,parág. único das DT) ou “representante declasse” (Bahia, art. 3o, parág. único das DT).

O inventário das denominações utiliza-das na legislação para referenciar esse tipode representação identificou quatro alterna-tivas, aplicadas como se fossem sinônimas:“representação das associações profissio-nais”, “das profissões”, “profissional” e “declasses”, às quais poderiam ser acrescenta-

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das as denominações: “classista”, “dos gru-pos profissionais”, “das organizações pro-fissionais” e das “classes profissionais”.

O Governo Provisório preferiu aplicar aprimeira expressão, não tendo dela se afas-tado, a não ser ao identificar os represen-tantes como “profissionais” (o que permitesupor que o princípio também possa ser cha-mado de “representação profissional”). OSubstitutivo 1B e a Constituição alternamentre as denominações “profissional” e“das profissões”. “Representação de clas-ses” não figura no texto constitucional bra-sileiro, nem nos decretos do Governo, tendosido utilizada no Anteprojeto da Subcomis-são do Itamarati, em constituições estaduais,nas resoluções do TSJE e no Código Eleito-ral de 1935.

A questão que se interpõe é: essas expres-sões são, efetivamente, sinônimas e identifi-cam do mesmo modo o princípio dessa re-presentação, de tal forma que a utilizaçãode uma ou outra é simplesmente aleatória eestilística, ou estamos colocados frente adenominações conceitualmente diferentes,e que, por isso, significam modalidades di-versas de organização?

Em nosso entendimento, há diferençaentre elas, seja ao considerá-las pela exten-são do que exprimem, seja pelo tipo de orga-nização particular a que se referem. Assim,muitas vezes os documentos legais tomamessas expressões como se indicassem o mes-mo conteúdo ou, então, não se preocupamcom a possibilidade de que conteúdos di-vergentes estivessem sendo denominadospelos mesmos termos.

A terminologia mais precisa nos pareceser aquela utilizada pelo Governo Provisó-rio, pois, quando ele definiu o que seria a tal“representação das associações profissio-nais”, tornou evidente ser aquela compostapor representantes (posteriormente se ado-tou também o termo “deputados”) eleitospelas associações profissionais (as expres-sões “organizações” e “grupos profissio-nais” foram utilizadas pelos documentoslegais subseqüentes). Aliás, essa definição

aparece no Substitutivo 1B, sem a correspon-dente denominação, bem como na Consti-tuição Federal. O caput do art. 23 da últimaafirma: “representantes eleitos pelas orga-nizações profissionais”, o que é complemen-tado pelo parág. 3o do mesmo artigo: “elei-tos na forma da lei ordinária, por sufrágioindireto das associações profissionais”.

As constituições estaduais, em sua ab-soluta maioria, também declaram a necessi-dade da eleição pelas entidades profissio-nais, para que alguém seja considerado re-presentante/deputado desta. As exceçõessão as de: Goiás, Espírito Santo, Mato Gros-so e Rio de Janeiro. Nesses quatro textos,entretanto, aqueles que a exercem são cha-mados de deputados/representantes “dasorganizações profissionais”, o que deixa su-bentendida a definição sobre em nome dequem esses deputados vão atuar.

Treze cartas, repetindo o que consta naConstituição Federal (art. 23, parág. 3o), fi-zeram questão de expressar que o sufrágiodas entidades é indireto, caso das de: SãoPaulo, Paraíba, Pernambuco, Sergipe, Piauí,Pará, Bahia, Santa Catarina, Paraná, Ala-goas, Ceará, Maranhão e Rio Grande doNorte. Outras duas indicaram esse sentido,ao afirmarem que a eleição seria realizadana forma da Constituição Nacional (MinasGerais, art 4o, parág. 2o) e da legislação naci-onal (Distrito Federal, caput do art. 7o). Asdo Rio Grande do Sul e do Amazonas nãodeclaram essa obrigatoriedade.

Sendo assim, é evidente que a Consti-tuição Federal e a totalidade dos textosestaduais, de modo expresso ou suben-tendido, definem essa representação pelosufrágio das entidades profissionais, aexemplo do que fizera o Governo Provisó-rio. Apesar disso, elas preferem denominá-la “representação das profissões” e/ou “pro-fissional”, quando não “de classes”, expres-sões que, em nossa concepção, não têm amesma clareza e precisão para indicar oprincípio dessa representação que é apre-sentada pela denominação “representaçãodas associações profissionais”.

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Passemos a indicar o porquê de nossoentendimento. “Representação das profis-sões” é uma expressão sujeita à ambigüida-de, pois, conforme a legislação, não são as“profissões” que serão representadas, e, sim,as associações profissionais. Logo, a legis-lação entende que aquelas só têm existênciaquando filtradas pelas entidades, ou que,para serem sujeito da representação, neces-sitam estar organizadas sob a forma de-terminada pelo Estado – e este, muitasvezes, estabelece organizações interpro-fissionais.

A “representação profissional”, por suavez, além de não evidenciar ser um tipo derepresentante ligado às associações profis-sionais, é uma expressão que pode indicaralguém que exerce essa atividade, ou seja,ser “profissional da representação”. Issoremete a um padrão de relação direta entreindivíduos, a exemplo da representaçãopolítica clássica, exatamente aquela comque pretende romper a nova modalidade,como muitos textos procuraram tornar cla-ro ao falarem em “sufrágio indireto”5. Comoa anterior, ela é uma expressão mais proxi-mamente relacionada a uma determinadamodalidade de “representação das associ-ações profissionais”, ou seja, a uma espéciedesse gênero, a um modo específico de or-ganizar as entidades para efeito eleitoral,no caso calcado nos vínculos oriundos dasprofissões. Os debates ocorridos durante oprocesso constituinte, em torno de projetosdivergentes de regulamentação do princí-pio da participação das entidades, tornamevidente o que desejamos expor, como va-mos mostrar adiante.

A expressão “representação de classes”,da mesma forma, indica com mais proprie-dade um modo específico de considerar asentidades, para efeito de representação – eque, evidentemente, distingue-se daqueleque as considera pelas “profissões”. Foi issoo que fez o Governo Provisório, ao regula-mentar a participação na Constituinte: di-vidiu as entidades em quatro grupos ou ca-tegorias, tendo como critério a separação em

relação ao processo produtivo. Assim, ha-via empregados e empregadores, além defuncionários públicos, vinculados aos pri-meiros, e as profissões liberais, aproxima-das dos segundos6. É importante registrarque, se o Governo Provisório adotou a mo-dalidade de “classes”, não utilizou oficial-mente essa denominação7.

Torna-se difícil, entretanto, especificar oque pretende o Anteprojeto da Subcomissãodo Itamarati, ao estabelecer que “os conse-lhos municipais poderão ser constituídosmediante representação de classes”. Igno-ramos o motivo pelo qual usa essa expres-são: para indicar o princípio, isto é, verea-dores eleitos pelas entidades profissionais,sem detalhar o modo como as organizaçõesdeveriam ser reunidas; ou, ao inverso, paraevidenciar que o critério para tal é a divisãopor classes. Na tentativa de explicação, in-formamos que essa modalidade só foi ado-tada pelo Governo Provisório quatro mesesdepois de a Subcomissão ter votado esse tex-to. Por outro lado, a proposta que incorpo-rava essa representação ao parlamento na-cional, e que foi recusada pela Subcomis-são, propunha o mesmo critério definidopelo Governo (BARRETO, 2002b).

Considerando que as expressões “repre-sentação profissional/das profissões” e “declasses/classista” sejam mais apropriadasa indicarem modalidades da “representa-ção das associações profissionais”, verifi-ca-se que os textos legais não foram muitoprecisos, e acabaram por incorporar ambi-güidades, ao denominarem o princípio ou ogênero.

Todavia, abre-se um novo campo de in-vestigação, qual seja, verificar se esses mes-mos textos, ao definirem uma determinadaestrutura dessa representação, notadamen-te ao considerarem as entidades para efei-tos eleitorais, também utilizaram a(s)expressão(ões) de modo confuso. Em outraspalavras: a imprecisão pode ter ocorridoapenas ao indicar o gênero mediante umadenominação que remete à espécie; mas elatambém pode ter ocorrido ao aplicar a de-

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nominação referente a um tipo particularpara identificar uma outra modalidade.

Novamente não identificamos nenhumequívoco na aplicação adotada, oficialmen-te, pelo Governo Provisório, embora, dessavez, ele não tenha buscado uma terminolo-gia mais precisa: estivesse tratando do prin-cípio ou da modalidade específica por eleescolhida, sempre a denominou “represen-tação das associações profissionais”.

A linguagem “neutra” é seguida pelo Go-verno ao indicar que o eleito e/ou o delega-do-eleitor devem comprovar que são “mem-bros” da entidade e estão no “exercício” daatividade profissional que dizem represen-tar (art. 5o e 6o, parág. 2o, do Decreto 22.653;art. 3o e 5o do Decreto 22.696). Essa tendên-cia não seria repetida pelos documentos le-gislativos posteriores, ao versarem sobreessa exigência, caso de: o Substitutivo 1B, aConstituição, as instruções do TSJE e amaioria das constituições estaduais, osquais vão classificar essas divisões como de“classes”, embora nem sempre estejam a tra-tar apenas desse critério de divisão das en-tidades.

O Substitutivo da Comissão Constitu-cional igualmente foi rigoroso na aplica-ção dos termos. Contudo, ao contrário doGoverno, ele denomina os seus deputados/representantes de “das profissões” ou “pro-fissionais”. E o tipo de organização por eledeterminada efetivamente corresponde aessa terminologia, visto que as entidadesserão classificadas “em círculos profissio-nais de acordo com as respectivas afinida-des e as conveniências econômicas e cultu-rais do país, conforme prescrever a lei ordi-nária” (art. 38, parág. 1o), cuja discrimina-ção ‘inspirar-se-á, sucessivamente, nas co-nexões técnicas, econômicas ou de simplesfinalidade das profissões” (art. 38, parág.1o, a).

Essa versão do texto constitucional ain-da chama esses círculos de “grupos profis-sionais” (art. 38, parág. 1 o, d) e, embora acei-te que haja subdivisões entre empregadorese empregados, quando isso for conveniente,

não as identifica como “classes”, mas, sim,“grupos” (art. 38, parág. 1o, c). Do mesmomodo, ao exigir que os eleitos, efetivamente,façam parte dos círculos a que dizem per-tencer, cita que: “só poderá ser eleito depu-tado das profissões quem de forma real eefetiva pertença a uma associação profissi-onal que faça parte do grupo pelo qual seprocede a eleição” (art. 39, parág. 3 o). Enfim,se as denominações “representação das pro-fissões” ou “profissional” não são as maisprecisas, para indicarem o princípio da “re-presentação das associações profissionais”,no caso do Substitutivo, elas são corretas,quando querem indicar a modalidade espe-cífica que ele adotou.

O rigor e a precisão identificados acimanão ocorreram por acaso. Eles têm por moti-vação o fato de serem fruto das propostasde emenda formuladas por Abelardo Mari-nho (1934), deputado das profissões libe-rais e membro do Clube Três de Outubro.Estudioso da temática, Marinho tinha a con-vicção de que não bastaria, simplesmente,incorporar ao parlamento membros eleitospelos organismos profissionais; era precisoadotar um modelo capaz de redundar emmelhor aproveitamento dessa participação.A sua opção – que se tornou a do Clube Trêsde Outubro, desde antes da instalação daConstituinte – recaía em calcar a represen-tação nas “profissões” ou nos “círculos deprofissões afins”, mas não em critérios ge-néricos, como fizera o Governo. Marinhopropunha manter a divisão em “classes”,quando conveniente, e de incluí-la na clas-sificação dos círculos (como bem o indica oart. 38 do Substitutivo). No entanto, essemodelo de representação implicava a cria-ção de critérios bem delimitados de enqua-dramento sindical, a ampliação da própriasindicalização e o reforço ao modelo de re-conhecimento oficial das entidades, que vi-nha sendo aplicado pelo Governo Provisó-rio (BARRETO, 2001).

A proposta de Abelardo Marinho (1934)foi aceita no estágio inicial do processo cons-tituinte, tanto que compôs o Substitutivo,

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isto é, a primeira versão completa da novacarta constitucional. Tal situação levou asforças políticas contrárias ao Clube Três deOutubro a procurarem uma alternativa ca-paz de impedir essa vitória. E essas forçaseram formadas, embora a partir de motiva-ções diferentes, pela bancada governista,pela maior parte dos deputados dos empre-gadores e pelos mais aguerridos deputadosdos empregados.

Em função dessa circunstância, podemser compreendidas muitas das ambigüida-des e das imprecisões trazidas pelo Substi-tutivo 1B, as quais foram, em sua maioria,incorporadas ao texto constitucional. Issoporque, em função da necessidade de for-mular uma alternativa – ou, exatamente,para permitir a coesão das forças contráriasà proposta do Clube –, foi deixada em se-gundo plano a boa técnica legislativa, a ple-na coerência dos termos e dos conceitos,assim como não foi estabelecido um modelotão ajustado quanto o de Marinho. Ou seja,prevaleceram a necessidade e o interesse po-lítico, mais do que a análise cuidadosa daredação constitucional e a construção deuma articulada estrutura da “representaçãodas associações profissionais”.

Em grande medida, os constituintes re-petiram uma tendência apresentada pelo de-bate intelectual brasileiro: apesar de terem aclara intenção de formular um modelo dife-rente daqueles até então em estudo, eles to-maram as várias expressões como se fossemsinônimas, não se preocuparam em estabe-lecer ou em identificar diferenciações entreos significados e os arranjos institucionaisque elas favoreciam (BARRETO, 2001).

O resultado foi uma sensível mudança,verificável no Substitutivo 1B e mantida naConstituição. Desapareceram os círculosprofissionais tal como definidos no Substi-tutivo (embora a denominação continue sen-do usada) e surgem as “categorias” ou “gru-pos”, que reúnem as entidades em: (1) la-voura e pecuária; (2) indústria; (3) comércioe transportes; (4) profissões liberais e fun-cionários públicos (art. 23, parág. 3 o). As três

primeiras seriam subdivididas, a partir docritério de “classe” (empregados e empre-gadores), a cada uma correspondendo umsétimo do total de vagas (art. 23, parág. 4o).A última teria um sétimo das cadeiras, semestar contemplada com essa divisão (art. 23,parág. 5o). Haveria, enfim, sete “grupos”:empregadores da lavoura e pecuária; da in-dústria; do comércio e transporte; mais em-pregados da lavoura e pecuária; da indús-tria; do comércio e transporte; e funcionári-os públicos–profissões liberais8. Conformeo art. 24 da Constituição (art. 26 do Substi-tutivo 1B), os eleitos “deverão, ainda, per-tencer a uma associação compreendida naclasse e grupo que os elegerem”.

Evidenciamos que a divisão por classes– estabelecida pelo Governo Provisório paraa Constituinte, e mantida pela proposiçãode Marinho (1934) incorporada ao Substi-tutivo – continuou a ser respeitada na ver-são 1B e na Constituição. A grande mudan-ça ocorreu nas categorias ou nos gruposmais específicos: claramente, é rompido ocritério das profissões afins, para dar prefe-rência ao ramo da atividade econômica, bemmenos específico do que aquele propostopelo Clube Três de Outubro. Por isso, iden-tificamos a modalidade efetivamente im-plantada pela Constituição federal de 1934como “representação dos ramos da ativida-de econômica”.

O TSJE manteve a tendência de chamara distinção entre empregados e empregado-res como de “classes”, e a entre “lavoura epecuária”, “indústria”, “comércio e trans-porte”, “funcionários públicos e profissõesliberais” como “grupos” de associaçõesprofissionais afins. Entretanto, nem sempreessa diferenciação foi preservada, pois, noart. 9o das Instruções de setembro de 1934,lê-se: “as classes profissionais, para o efeitode representação, se dividem em quatro ca-tegorias: 1a categoria – Lavoura e pecuária(Empregados e Empregadores); 2a categoria– Indústria (Empregados e Empregadores);3a categoria – Comércio e Transporte (Em-pregados e Empregadores); 4 a categoria – I –

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Profissionais Liberais; II – FuncionáriosPúblicos”.

Nas constituições estaduais, nem sem-pre essa diferenciação foi preservada, e re-pete-se a confusão vista acima. Em muitas,“classe”, “categoria” e “grupo” foram to-mados, ora como sinônimos, ora conformeo sentido fixado pela legislação federal. Nada Paraíba, no art. 12, parág. 2o, lê-se que“os deputados das profissões serão eleitospor sufrágio indireto das associações pro-fissionais, compreendidas para esse efeitocom os grupos afins respectivos, nas quatrocategorias seguintes (...). As duas últimas clas-ses darão, cada uma, dois deputados, sendoum representante das associações de empre-gados e outro das de empregadores (...)”. Noart. 14, ao inverso, o texto repete a Constitui-ção Nacional: “os representantes das pro-fissões deverão ainda pertencer a uma as-sociação compreendida na classe e grupo queos elegerem”.

Na Constituição do Pará, as categoriasou grupos da Constituição Nacional são de-nominadas “classes” (art. 4 o, parág. 5o), paradepois ser dito que o representante das pro-fissões deve pertencer a uma associação dogrupo que o eleger (art. 5 o, parág. 1o). A Cons-tituição de Minas Gerais também adota umaredação inusitada, ao dizer que essa repre-sentação constituir-se-á “de um [deputado]para cada grupo eleitoral das classes orga-nizadas na forma da Constituição da Repú-blica” (art. 4o, parág. 2o), o que dificulta sa-ber se deverá ser respeitada efetivamente adivisão em classes ou em categorias vincu-ladas às atividades econômicas.

As de São Paulo, Espírito Santo, Bahia,Santa Catarina, Mato Grosso e Rio de Janei-ro, embora se sirvam da divisão entre em-pregados e empregadores, não utilizam adenominação “classe”, referindo-se apenasa categorias ou grupos, inclusive, quandodeterminam a obrigatoriedade de o repre-sentante pertencer à entidade do setor pelaqual foi eleito.

Há uma outra questão a ser observadanesse elenco de termos e de conteúdos, qual

seja, saber se há correspondência entre asdenominações adotadas e as categorias for-muladas pelas constituições estaduais, aoreunirem as associações profissionais parafins de representação.

A divisão estabelecida na ConstituiçãoFederal foi seguida, integralmente, por trêscartas (as de Minas Gerais, Rio Grande doSul, Bahia), mais a Lei Orgânica do DistritoFederal. A que mais estritamente estava re-lacionada com o texto nacional é a do RioGrande do Sul, na qual se encontravam pre-servadas inclusive as denominações (art. 12o

das DT). A da Bahia substituiu a expressão“lavoura e pecuária” por “atividades ru-rais”, atribuiu uma vaga às “profissões li-berais” e outra, para os “funcionários pú-blicos” (o que, em termos práticos, subdivi-de a categoria, a exemplo do que fez o TSJE)(art. 4o, parág. 3o). As do Distrito Federal (ca-put do art. 7o) e de Minas Gerais (art. 4o, pa-rág. 2o) destacaram que seguiriam a formapela qual dispõe a legislação federal. Nessesentido, vê-se que todas estavam corretas,ao exigirem dos deputados que eles fizes-sem parte da mesma classe e grupo das as-sociações que os elegeram, visto que elastrabalharam, concomitantemente, com os cri-térios de “classe” e “grupo” ou “categoria”(setor da atividade econômica, na nossa divi-são). Entretanto, a exemplo da ConstituiçãoBrasileira, elas não procuraram uma deno-minação específica para o modelo adotado.

Outras também preferiram obedecer aocritério dos “setores da atividade econômi-ca”; no entanto, formularam categorias di-vergentes daquelas estabelecidas na Cons-tituição Nacional, fruto de fusões e subdivi-sões. As da Paraíba (art. 13, parág. 2o), doPará (art. 4o, parág. 5o) e de Alagoas (art. 10,parág. 2o) são um exemplo: fundiram as ca-tegorias de “lavoura e pecuária” e “indús-tria” (com duas vagas, fracionadas entreempregados e empregadores), mantiverama de “comércio e transporte” (também comduas cadeiras) e subdividiram, formalmen-te, a de “profissões liberais e funcionáriospúblicos” (com uma vaga para cada). O pro-

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cedimento adotado pelas cartas de Pernam-buco (art. 10, parág. único) e do Piauí (caputdo art. 17) foi assemelhado: mantiveram ascategorias de “lavoura e pecuária” (duasvagas, divididas entre as classes), fundiramas de “indústria” e “comércio e transpor-tes” (igualmente divididas), fracionaram,oficialmente, a de “profissões liberais e fun-cionários públicos” (uma vaga cada). Umaoutra variação aparece na Constituição doEspírito Santo (art. 7o, parág. 3o), que estabe-lece três categorias: duas oriundas da sub-divisão formal da de “funcionários públi-cos e profissões liberais (mais imprensa)” eoutra surgida da fusão das demais catego-rias (“lavoura e pecuária”, “indústria”, “co-mércio e transporte”).

Observamos, portanto, que essas consti-tuições, embora se confundam ao denomi-nar o modelo específico que adotaram – emespecial as da Paraíba e do Espírito Santo,que tomam também as classes como referên-cia –, estão coerentes ao usarem os termos“classe” para referenciar a diferenciaçãoentre empregadores e empregados, e “gru-po” ou “categoria” para a divisão entre se-tores da atividade econômica. A exceção é ado Espírito Santo, que, como vimos an-teriormente, utiliza o critério de classes, masnão o denomina como tal.

As cartas de quatro estados (São Paulo,art. 4o, parág. 1o; Ceará, art. 4o, parág. 1o; Riode Janeiro, art. 3o, parág. 3 o; e Maranhão, art.11, parág. 1o) criaram uma categoria nãoprevista no texto nacional: a da “impren-sa”, sempre com direito a uma vaga. As dostrês primeiros, além disso, dividiram, for-malmente, a de “funcionários públicos eprofissões liberais”. A do Ceará ainda fun-diu as de “indústria” e “comércio e trans-porte”. As do Espírito Santo (art. 7o, parág.3o) e do Rio Grande do Norte (caput do art.6o) não estabeleceram “imprensa” como ca-tegoria independente, contudo fizeram ques-tão de informar que ela faria parte das “pro-fissões liberais”.

Em seis constituições, foi seguido ape-nas o critério de classe, ou seja, ao regula-

mentarem essa representação, e ao contrá-rio da Constituição Federal, elas preferiramseguir, exclusivamente, a modalidade e ocritério definidos pelo Governo Provisório.Dessas, apenas a de Sergipe (caput do art.14o) manteve, integralmente, a divisão quevigorara para a Constituinte, qual seja: qua-tro categorias (“empregadores”, “emprega-dos”, “profissões liberais” e “funcionáriospúblicos”). As demais preferiram trabalharcom três categorias: as de Goiás (art 6o, pa-rág. 1o) e do Mato Grosso (art. 4o, parág. 1o)uniram os funcionários públicos e as pro-fissões liberais; as do Paraná (art. 6o, parág.2o) e do Rio Grande do Norte (caput do art.6o) excluíram os funcionários públicos; en-quanto a de Santa Catarina (caput do art. 4 o)fez o contrário: eliminou as profissões libe-rais.

Nesse caso, as constituições de Sergipe edo Rio Grande do Norte, além de não deno-minarem o seu modelo, a partir de uma ex-pressão mais específica, equivocam-se aoidentificarem o critério utilizado, pois elasexigem que o deputado pertença a uma as-sociação da mesma classe e grupo que oselegeram, quando só existe a divisão por“classe”. Corretas, apesar de genéricas, es-tão as redações de Mato Grosso e de SantaCatarina, ao utilizarem apenas o termo “gru-po”. A do Mato Grosso ainda chega a utili-zar a expressão “deputado classista”.

As de uso mais específico e correto, aomencionarem o critério seguido, são as cons-tituições do Paraná e de Goiás, que só falamem “classes”. No entanto, a do Paraná ja-mais chama a representação ou o represen-tante/deputado como “de classes” ou “clas-sista”. A de Goiás, por sua vez, que utilizaessa denominação, serve-se dela como si-nônimo de “profissional”, o que revela pre-cisão na identificação do critério, mas nãona do modelo específico.

A mais inusitada das constituições esta-duais, sem sombra de dúvidas, foi a do Ma-ranhão. Ela define três categorias com direi-to a uma vaga, a vigorarem na primeira le-gislatura: “empregados”, “imprensa” e “pro-

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fissões liberais”. A partir da segunda legis-latura (a qual nunca chegou a se estabele-cer, pois teria início em 1939, período emque o funcionamento dos organismos legis-lativos já havia sido suspenso), haveria seisvagas e seis categorias, novamente oriun-das da mistura entre os critérios (e a termi-nologia) de “classe” e de “atividade econô-mica”: as três anteriores, mais “empregado-res”, “funcionários públicos” e “lavoura epecuária” (art. 11, parág. 1o).

Acabamos de identificar o grau de consis-tência das constituições estaduais, ao deno-minarem e definirem os critérios pelos quaisclassificaram as associações profissionaisdestinadas a elegerem os deputados. Da mes-ma maneira, relacionamos esses critérioscom o modo como foram identificados osmodelos específicos, quando se verifica que,a exemplo da Federal, nenhuma foi integral-mente coerente. O questionamento seguinteé saber como, independentemente da termi-nologia díspar, pôde estabelecer-se essa di-versidade de arranjos institucionais.

A resposta, no campo da técnica legisla-tiva, tem de ser buscada na própria Consti-tuição Federal. Ao regulamentar a compe-tência privativa dos estados, ela ressalvaque esses deveriam respeitar determinadosprincípios, ao decretarem as suas constitui-ções e leis, entre os quais se inclui a “repre-sentação das profissões” (art. 7o, I, g). A me-dida deixava margem a controvérsias, to-das derivadas do fato de que ela simples-mente afirmava que esse princípio deveriaser respeitado, mas não trazia nenhum refe-rencial sobre o modo como ele deveria serregulamentado, para que fosse efetivamen-te “respeitado”.

Uma análise aprofundada dessa deter-minação poderia atestar, inclusive, que elasequer garantia a participação dessa repre-sentação, nas assembléias legislativas, comatributos idênticos aos dos representantesdo povo, ao contrário do que determinava aConstituição para a Câmara dos Deputados(art. 23). Nesse caso, a ambigüidade do tex-to brasileiro poderia transferir para as cons-

tituintes estaduais e reeditar agora, em no-vos cenários, o confronto ocorrido na As-sembléia Nacional Constituinte em torno danatureza da “representação das associaçõesprofissionais” (deliberativa ou consultiva)9.

Essa possibilidade atenua-se quando oart. 7o, I, g, é cotejado com o caput do art. 3o

das DT. Nele é afirmado que as constituin-tes estaduais, após concluírem os seus tra-balhos, transformar-se-iam em assembléiaslegislativas ordinárias e deveriam providen-ciar, desde logo, o atendimento da “repre-sentação das profissões”. Isto é, a medidaaparentemente afirmava que esta deveriaparticipar dos legislativos estaduais, comfunções idênticas às que desempenharia naCâmara dos Deputados, como interpretouAraújo Castro (1936). Entretanto, essa ana-logia não encontra respaldo naquilo que otexto declara, pois continuava em vigor apossibilidade de atender à “representaçãodas profissões” sob a forma consultiva – anão ser que se passasse a entender, pelo ter-mo e pelo princípio, a participação com fun-ções deliberativas nos legislativos.

Essa discussão ocorreu na Constituintedo Rio Grande do Sul. O deputado Raul Pi-lla propôs a formação de duas câmaras dis-tintas, a popular e a de caráter técnico-con-sultivo, esta com direito de ser ouvida emtodas as questões de ordem econômica in-dicadas à Assembléia Legislativa, de apre-sentar projetos de leis e de provocar referen-dum a propósito de qualquer lei. O argumen-to confirma a nossa interpretação:

“a representação profissional é umdos princípios que os Estados devemobservar, ao se organizarem constitu-cionalmente. Mas a Constituição Fe-deral estabelece tal preceito de modoabsolutamente geral, empregando aexpressão no seu sentido universal,sem limitações de espécie alguma.Claro é, destarte, que ao Estado é líci-to optar por uma das várias formas derepresentação profissional e nada osobriga a cingirem-se à modalidadepreferida na organização do poder

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legislativo federal.” (PILLA apud MI-RANDA, 1936, p. 313)

Porém, essa é uma discussão bizantina,já que, na prática, as constituintes estadu-ais sempre interpretaram e aplicaram, domesmo modo, a norma Constitucional rela-tiva a esse assunto. Logo, em todas as as-sembléias legislativas (assim como na Câ-mara Municipal do Distrito Federal), “repre-sentação das profissões” passou a signifi-car uma abertura de determinado espaçopara deputados eleitos pelas organizaçõesou associações profissionais, e o direito deeles participarem com os mesmos atributosda representação popular. Parece ter preva-lecido, por analogia, a orientação trazidapelo art. 23 da Constituição Federal, segun-do o qual a Câmara dos Deputados com-põe-se de representantes do povo e daque-les eleitos pelas organizações profissionais.

Se a ambigüidade em torno do poder queteria essa representação ficou restrita a umaimprecisão ou diversidade terminológica,sem adentrar na possibilidade de uma re-presentação meramente consultiva, o mes-mo não pode ser dito de um outro aspecto.Referimo-nos ao fato, observado na fala deRaul Pilla, de que a Constituição Brasileiranão trazia indicações sobre o arranjo insti-tucional ao qual deveriam as unidades dafederação obedecer ao regulamentar o prin-cípio dessa representação. Não era estabe-lecido, por exemplo, que fosse seguida a sis-tematização adotada pela própria Consti-tuição para a Câmara dos Deputados.

A abordagem de Pontes de Miranda ca-minha nesse sentido. Ao comentar a Cons-tituição de 1934, observa que esta define eorganiza, única e exclusivamente, a partici-pação de representantes eleitos pelas asso-ciações profissionais na Câmara dos Depu-tados, donde conclui ter ficado certa liber-dade aos estados-membros. O autor chegaao mesmo juízo, ao observar o já comentadoart. 24, que exige o seguinte: esses deputa-dos devem pertencer à classe e ao grupo dasassociações que os elegeram, ou seja, ele sóse dirige ao poder legislativo federal e não

define procedimentos a serem adotados pe-los estados (MIRANDA, 1936, p. 312-313).Desse modo, os estados poderiam organi-zar a “representação profissional” comobem entendessem, o que poderia gerar, comode fato gerou, uma diversidade de modelos.

Vale o comentário de G. de AlmeidaMoura (1937, p. 177-178), que chegou à mes-ma conclusão: “se a Constituição Federal tor-nou obrigatória a representação profissionalnos estados, cometeu um descuido, aoesquecer-se de determinar a extensão donovo instituto”. O autor relata um caso emque essa questão suscitou discussão: em de-zembro de 1936, quando de a necessidadeda Assembléia Legislativa escolher o novoGovernador de São Paulo, depois da renún-cia de Armando de Salles Oliveira, houveum recurso contra a eleição, tendo por justi-ficativa a inconstitucionalidade da compo-sição da Assembléia, visto que ela continha1/4 de representantes das associações pro-fissionais na comparação com a represen-tação popular, enquanto a Constituição Fe-deral estabelecia 1/5. A celeuma foi resolvi-da pelo TSJE, que decidiu em favor da Cons-tituição de São Paulo.

Podemos contrapor que o espírito dosconstituintes brasileiros era exatamente este:garantir que os estados incorporassem a me-dida, mas deixar em aberto o tipo de arranjoinstitucional em que ela ocorreria. Afinal,as dificuldades enfrentadas na Constituin-te para que fosse adotada uma versão mais“atenuada” dessa representação no Legis-lativo Nacional mostraram às forças con-trárias ao modelo do Clube Três de Outubroque era interessante deixar o campo dedisputa em aberto, pois, dessa forma, elasremeteriam a adoção de uma posição defi-nitiva sobre a organização dos estados paraessas constituintes e as correlações bem es-pecíficas dos panoramas regionais.

Esclarecemos que não houve nesse caso,simplesmente, a transferência do campo debatalha. Essas forças também tomaram cui-dado para que ficasse facilitado o atendi-mento aos seus interesses, por isso a Cons-

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tituição Federal (caput do art. 3o das DT) es-tabelecia que as constituintes estaduais sócontariam com representantes eleitos pelopovo. Em outras palavras: nessa instância,ao contrário do que ocorrera no âmbito na-cional, não haveria a participação da “re-presentação das associações profissionais”,uma bancada que estaria, em tese, fortementeinteressada em ampliar o espaço às entida-des profissionais10.

O procedimento de construir um novoespaço de conflito ou de mantê-lo em aber-to, também foi adotado no que diz respeito àlegislação ordinária, destinada a comple-mentar os preceitos da Constituição Nacio-nal relativos ao congresso. Essa missão foidestinada, inicialmente, à função ordináriaassumida pela Constituinte entre julho de1934 e maio de 1935; depois, ela passou àprimeira legislatura, empossada logo após.E, da mesma forma que nas constituintesestaduais, não houve uma simples transfe-rência do confronto.

Um exemplo justifica o que estamos a afir-mar. No art. 23, parág. 7o, da ConstituiçãoFederal, pode-se ler que: “na discriminaçãodos círculos [para o Congresso Nacional], alei deverá assegurar a representação dasatividades econômicas e culturais do país”.Logo, os “ramos da atividade econômica”(“lavoura e pecuária”, “indústria”, “comér-cio e transporte”, “profissões liberais e fun-cionários públicos”) deveriam ser divididosem grupos menores. Dessa forma, verifica-mos que as forças contrárias ao Clube Trêsde Outubro impediram a permanência daproposta dos “círculos das profissões afins”,mas não obtiveram uma vitória definitiva,pois a Constituição afirma a necessidade dea legislação ordinária subdividir aquelascategorias. Isto é, a luta pela afirmação dedeterminado modelo de “representação dasassociações profissionais” foi remetida a umsegundo momento.

O interessante é que a necessidade deregulamentação trazia boas perspectivaspara os dois lados. Abelardo Marinho (1934)mantinha a expectativa de que seu modelo

viesse a ser adotado, já que a subdivisão eraum imperativo constitucional. As demaisforças, ao inverso, tinham afirmado na Cons-tituição – portanto, estava em vigor – ummodelo que era do seu agrado e que não con-templava as idéias do Clube. Apesar disso,elas sabiam que teriam no futuro um novoconfronto em torno das peculiaridades doarranjo institucional dessa representação naCâmara dos Deputados. E, dessa vez, a van-tagem teórica era do inimigo.

Não admira, portanto, que as ações pos-teriores de cada uma dessas forças tenhamprocurado seguir essas circunstâncias ofe-recidas pela Constituição. Logo após a aber-tura da primeira legislatura, em 12 de maiode 1935, o reeleito deputado Euvaldo Lodi –não por acaso um dos artífices da emendaque serviu de base para o texto constitucio-nal aprovado – apresentou o projeto de dis-criminação dos círculos profissionais. Aprincipal oposição ao projeto, que redun-dou inclusive na apresentação de um subs-titutivo, proveio, também não por acaso, doigualmente reeleito Marinho.

O fato de Lodi, rapidamente, ter apresen-tado um projeto voltado à regulamentaçãodesse fracionamento indica a intenção detomar a frente, e de obter vantagem, em umterreno claramente desfavorável aos interes-ses que ele defendia. Essa rapidez pegouMarinho de surpresa. Afinal, ciente de quea perspectiva da legislação ordinária era detrazer a discriminação dos círculos maispara perto do seu modelo, ainda estava arascunhar o seu projeto e a adaptar a suaidéia da “representação das profissões” aofiltro dos ramos da atividade econômicaenxertado na Constituição.

Pouco surpreende que, diante da reaçãode Marinho, do impasse criado aos projetosde regulamentação dos círculos e da impos-sibilidade de minar a tendência favorável aeste, a articulação liderada por Lodi tenhaoptado pela solução que melhor lhe convi-nha, isto é, não aprovar projeto nenhum eprolongar o mais possível a vigência exclu-siva da vitória que eles haviam obtido na

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Constituinte, qual seja a representação dasassociações profissionais “por ramos daatividade econômica”.

Nesse sentido, a Lei 451, de 23 de junhode 1937, estabelecia a proporção de deputa-dos para a segunda legislatura e determi-nava que, se não fosse promulgada até trêsde novembro de 1937 a lei ordinária de quetratava o art. 23, parág. 3o, da ConstituiçãoFederal, a eleição da “representação profis-sional” seguiria as instruções expedidaspelo TSJE em setembro de 1934, referentes àescolha para a primeira legislatura. Comode fato essa lei não foi produzida, as elei-ções para a segunda legislatura, se tivessemtranscorrido, seguiriam o critério do “ramoda atividade econômica”, a exemplo do queocorrera em 1935.

É na perspectiva indicada pelos exem-plos vistos acima que reside, no campo dapolítica, a resposta para a imprecisão ou aambigüidade da Constituição Federal, aqual veio a se refletir nos textos das consti-tuições estaduais, nas decisões do TSJE e naprodução legislativa do Congresso Nacio-nal. Torna-se difícil, no entanto, determinarse a totalidade da imperfeita técnica de re-dação legislativa é devida, simplesmente, àfalta de atenção e/ou de qualificação dosdeputados constituintes, ou se ela tem moti-vação nos interesses que se confrontaramdurante o seu processo de formulação.

A preponderância do aspecto políticopode ter levado os constituintes a se despre-ocuparem com o modo de redigir o textoconstitucional (e, assim, cometerem impre-cisões e/ou introduzirem ambigüidades),bem como a deixarem-no propositadamen-te em aberto, no que tange às determinaçõesrelativas aos estados e à legislação ordiná-ria. Nesse último caso, a imperfeita técnicalegislativa não é um equívoco, mas o produ-to de uma decisão política tomada durantea Constituinte.

Não surpreende, por exemplo, que veri-fiquemos grande variação também no índi-ce de cadeiras destinadas a “representan-tes das associações profissionais” nas as-

sembléias legislativas, na comparação comaqueles eleitos pelo povo. Mais uma vez, naausência de uma determinação na Consti-tuição Federal, os estados adotaram as maisdiversas alternativas, muito em função dacorrelação de forças e de interesses que pre-dominavam em cada assembléia constitu-inte.

A Constituição Brasileira definia que, naCâmara dos Deputados, essa representaçãoseria equivalente a um quinto da popular,cujos números efetivos seriam determinadospelo TSJE, tendo em vista duas regras: o côm-puto oficial da população; e a relação de umdeputado para cada 150 mil habitantes, atéo máximo de 20, e, desse limite para cima,de um para cada 250 mil habitantes (art. 23,parág. 1o e 2o)11.

Vários estados preferiram repetir essafórmula. Em cinco, foram estabelecidos seisdeputados “das profissões” e trinta do povo,num total de 36 na Assembléia Legislativa:Paraíba (caput do art. 13), Pernambuco (ca-put do art. 10), Alagoas (art. 10, parág. 1o),Pará (art. 3o, parág. 3o e 4o), Maranhão (art.11, parág. 1o, a partir da segunda legislatu-ra12). Na do Rio Grande do Sul, o número foifixado em sete para o total de 42 cadeiras(art. 12 das DT). Na do Sergipe, foram qua-tro para 24 na Assembléia (caput do art. 13o).Para o Rio de Janeiro, foram nove para 45do povo e 54 no total (art. 3, parág. 2o).

Em diversas outras, entretanto, foram de-finidas relações diferentes. Quatro unida-des preferiram uma relação próxima àquelaestabelecida na Constituição Nacional, po-rém ampliada, caso de: São Paulo (art. 4o,parág. 1o), Piauí (caput do art. 15) e DistritoFederal (caput do art. 7o), que fixaram em 1/4 da representação popular, o que significa-va, respectivamente quinze para sessentacadeiras no caso do primeiro e seis para 24no das outras duas unidades da federação;mais a Bahia (art. 4o), que formalizou 42 ca-deiras populares e oito das associações pro-fissionais (aproximadamente 19%). A Cons-tituição do Espírito Santo (art. 7o, parág. 2o)determinou 25 representantes populares e

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quatro das entidades (16%). As de MatoGrosso (art. 4o, parág. 1o) e de Goiás (art. 6o,parág. 1o) conceberam três cadeiras para umtotal de 27 deputados (12,5% da representa-ção popular). A Constituição do Rio Gran-de do Norte (caput do art. 4o) foi um poucomais rigorosa: 28 cadeiras, sendo 25 de re-presentantes populares e três das associa-ções profissionais (equivalente a 12% dapopular).

As mais atenuadas foram as do Paraná(caput do art. 6o) e de Santa Catarina (caputdo art. 4o), que definiram uma participaçãode 10% da representação popular (três ca-deiras), mais a do Maranhão, na primeiralegislatura. Ao inverso, na do Ceará (caput eparág. 1o do art. 4o), a participação era deum terço da popular (ou 25% do total decadeiras), respectivamente dez e trinta va-gas.

Há o caso da Constituição do Amazo-nas, que definiu em trinta os representantesdo povo, mas não estabeleceu qualquer ín-dice de deputados das profissões, tendotransferido a decisão à lei ordinária.

Enfim, vemos que, nas vinte constitui-ções estaduais, mais a Lei Orgânica do Dis-trito Federal, há uma variação significativana participação da representação das asso-ciações profissionais em relação à popular,que vai de 10% em Santa Catarina, Paraná eMaranhão (1 a legislatura) a um terço noCeará, tendo, como as mais comuns, índi-ces de 20% (nove estados) a 25% (quatro).

A mesma situação diz respeito à exten-são dessa representação aos municípios.Em apenas três Constituições, há referênciaa esse fato, e mesmo assim em situações bas-tante diferentes. A de Goiás é a única que atorna obrigatória, ao afirmar que “o númerode vereadores, assegurada a representaçãoprofissional e a dos distritos, será fixado nalei orgânica” (art. 65, parág. 1o). A do Piauícondiciona essa participação a: importân-cia, economia e possibilidades de cada Mu-nicípio (art. 108, parág. 1o). A da Paraíbasegue um caminho semelhante ao estabele-cer que: “a lei de organização municipal

determinará os municípios, cujas câmarasdevem comportar representação obrigatóriadas classes profissionais” (art. 90).

Conclusão

A investigação constatou que não hou-ve suficiente clareza, rigor e correspondên-cia entre a terminologia e as definições esta-belecidas pelo arcabouço legal, relativo àparticipação de eleitos pelas associaçõesprofissionais nos órgãos legislativos do país,principalmente quando confrontadas coma classificação por nós estabelecida. No en-tanto, a intenção não é afirmar que os nos-sos preceitos são mais coerentes do que aque-les efetivamente adotados pelos legislado-res brasileiros, nem criticar a cultura jurídi-ca daquela época. Ao contrário, considera-mos que as ambigüidades e as imprecisões,aqui identificadas, só se tornam perceptí-veis porque formulamos uma teorização quetem, por referência, o processo histórico epolítico em que essa temática esteve envol-vida, ou seja, porque nossa classificação tempor objetivo estabelecer e identificar as vári-as versões e modalidades de “representa-ção das associações profissionais” em dis-cussão naquele período.

Dessa forma, inventariar essa legislação,confrontá-la com uma determinada catego-rização e constatar uma série de ambigüi-dades não tem por intenção corrigir umarealidade específica, e, sim, demonstrarcomo o próprio arcabouço legal esteve su-jeito às imprecisões e divergências ineren-tes àquele processo histórico.

As possibilidades de interpretação diver-gente derivam do processo de constituciona-lização desse princípio e do conflito políticoe ideológico que ele contemplou, inicialmen-te, no plano nacional e, depois, nos váriospanoramas regionais. Muitas vezes a faltade precisão e/ou as ambigüidades não sãodevidas unicamente à falta de domínio datécnica jurídica, porém assim se apresentampor causa da intencionalidade dos legisla-dores, embora não possamos descartar que

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alguns desses problemas tenham por ori-gem, única e exclusivamente, uma técni-ca legislativa dominada de modo imper-feito.

Em qualquer hipótese, foram geradas or-ganizações díspares na comparação entreas constituições estaduais e dessas com aFederal, tanto no que tange ao número dedeputados, quanto às denominações e aostipos de categorias em que foram reunidasas entidades. Essa situação possibilitou osurgimento de uma jurisprudência confu-sa, que não chegou a produzir muitasdisputas tão-somente porque a questão setornou letra morta depois de novembro de1937. Em outros termos, não houve tempopara que as divergências ganhassem fôlegoe viessem a produzir novos episódios deconflito político e jurídico. Porém, isso nãosignifica dizer que eles não existissem e, emalguns casos, fossem de efetivo conhecimen-to dos diferentes interessados, os quais es-tavam esperando o momento certo para(re)iniciar a disputa.

Notas1 A expressão pode ter sentido mais amplo e

contemplar outros modelos organizacionais, comoa participação de caráter consultivo, em organis-mos e conselhos técnicos. Neste artigo, como trata-mos da legislação brasileira, vamos utilizá-la ape-nas no modo como foi regulamentada. Para maisdetalhes sobre os possíveis significados da expres-são, ver: Barreto (2001).

2 Alguns chegaram a ser eleitos para a Consti-tuinte, como Antônio Carlos e Carlos Maximiliano.O primeiro foi o presidente da Constituinte e o se-gundo, presidente da Comissão Constitucional.

3 A distinção entre sindicatos e associações pro-fissionais deve-se ao fato de funcionários públicose profissões liberais não poderem organizar-se soba forma de sindicatos, conforme a legislação emvigor, o Decreto 19.770, de 19 de março de 1931.

4 O Anteprojeto não abriu espaço à participa-ção das associações profissionais no parlamentonacional, mas lhes garantiu algumas cadeiras noConselho Municipal do Distrito Federal (“até 12,eleitos pelos sindicatos e associações de classe epelas corporações representativas dos interesses so-ciais, em todos os seus aspectos de ordem admi-

nistrativa, moral, cultural e econômica”, cf. art. 82,parág. 3o).

5 No panorama europeu, alguns concebiam essarepresentação como a formação de colégios eleito-rais a partir dos vínculos profissionais, e não doterritório – caso de BENOIST (1896). Nesse caso, osufrágio permaneceria direto e individual, e sem aparticipação das associações profissionais.

6 A dicotomia “patrões e operários/trabalha-dores” era evitada, pois o Governo a identificavacom o “conflito de classes”. E este deveria ser subs-tituído pela “harmonia de classes”, conforme o fa-moso discurso de Lindolfo Collor, primeiro minis-tro do Trabalho, Indústria e Comércio.

7 Entretanto, Getúlio Vargas, sempre que semanifestou sobre esse assunto antes da convoca-ção da Constituinte, denominou-o “representaçãode classes” (BARRETO, 2001).

8 A Resolução (art. 2o e 3o) e as Instruções (art.1o e 17) do TSJE, de 11 de setembro de 1934, subdi-vidiram, na prática, a categoria de profissões libe-rais e funcionários públicos, ao determinarem queas eleições ocorreriam em sessões separadas, e emdias diferentes, a cada uma correspondendo qua-tro vagas e três suplentes. A interpretação não dei-xa de ser controversa, haja vista que a ConstituiçãoFederal determina, no art. 23, parág. 5o, que: “exce-tuada a quarta categoria [profissões liberais e fun-cionários públicos], haverá em cada círculo profis-sional dois grupos eleitorais distintos: um das as-sociações de empregadores, outro, das associaçõesde empregados”. O entendimento do TSJE foi deque este parágrafo tinha por referência as categori-as em que se aplicava a distinção entre patrões eempregados e que, por conseqüência, a determina-ção de que, na quarta categoria, não haveria doisgrupos eleitorais não deveria ser tomada de modoabsoluto.

9 Esclarecemos que, além do conflito em tornodo modo específico de regulamentar a representa-ção das associações profissionais com assento noCongresso Nacional, houve um confronto anterior,fruto da existência de uma proposta da ChapaÚnica por São Paulo Unido, segundo a qual essarepresentação seria consultiva, a ser exercida emconselhos técnicos de apoio e assessoria ao parla-mento (BARRETO, 2001).

10 Não podemos acompanhar como se deu, nasvárias unidades da federação, o processo de regu-lamentação do princípio afirmado na ConstituiçãoFederal. Que ocorreram debates e proposições di-vergentes, ligadas às peculiaridades locais, não te-mos a menor dúvida. Mas quais foram as basesconcretas desses debates e desses posicionamentosdepende da análise de cada processo constituinte.

11 Na Resolução de 11 de setembro de 1934, oTSJE fixou em 50 o número de deputados das pro-fissões: 14 para “lavoura e pecuária”, “indústria”

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e “comércio e transporte” (sete para empregados esete para empregadores, em cada categoria), qua-tro para “profissões liberais” e quatro para “funci-onários públicos” (art. 2o).

12 A primeira legislatura no Maranhão teria ape-nas três deputados das associações profissionais,cf. art. 11, parág. 1o.

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Paulo R. Roque A. Khouri

IntroduçãoÉ fato que a globalização aumenta so-

bremaneira os negócios entre os contratan-tes de diversos Estados. O Brasil, hoje, in-clusive, é um dos quatro membros do Mer-cado Comum do Cone Sul, Mercosul, cujoobjetivo primordial consiste na consolida-ção de mercado livre comum, com livre cir-culação de bens, serviços, capital e pessoas.Além do Mercosul, futuramente o Brasil

A proteção do consumidor residente noBrasil nos contratos internacionais

Paulo R. Roque A. Khouri é advogado, Pro-fessor da Faculdade de Direito do Uniceub-DF,pós-graduado em Direito do Consumo pelaFaculdade de Direito da Universidade de Lis-boa e Mestrando em Direito Privado pela Fa-culdade de Direito da Universidade de Lisboa.

SumárioIntrodução. 1. Regra geral do Direito Inter-

nacional Privado brasileiro. 1.1. A Lei de Intro-dução ao Código Civil brasileiro. 1.2. O Códi-go Bustamante. 2. Breve panorama da proteçãodo consumidor na União Européia, Conven-ção do México e Mercosul. 2.1. A Convenção deRoma. 2.2 A Convenção do México. 2.3. Prote-ção do consumidor no Mercosul. 3. A proteçãodo consumidor na ordem jurídica brasileira.3.1. A proteção do consumidor como direitofundamental no ordenamento brasileiro – aconcretização do direito à igualdade. 3.2. OCódigo de Defesa do Consumidor e a integra-ção do direito fundamental por meio de nor-mas imperativas. 3.3. A proteção do consumi-dor e a ordem pública internacional. 4. As nor-mas de aplicação imediata ou necessária e aproteção do consumidor. 4.1. As normas de apli-cação imediata e normas autolimitadas. 4.2. Aaptidão da defesa do consumidor para permi-tir o seu enquadramento nas normas de aplica-ção imediata. 4.3. O conteúdo e o fim persegui-dos pelas normas de proteção do consumidor.Conclusão.

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poderá integrar a Área de Livre Comérciodas Américas, a ALCA, que, proposta pelosEstados Unidos, pretende a formação de umgrande corredor comercial em todo o conti-nente americano. Os produtos e serviços,então, tendem a circular de país a país commaior velocidade. Naturalmente, o meio ju-rídico a que se recorre para viabilizar essacirculação é o contrato.

Evidente, então, que, se aumentam astransações transnacionais, aumentam aspossibilidades de conflitos. Conflitos que sópoderão ser resolvidos à luz do Direito In-ternacional Privado. Com referência ao con-sumidor, a questão não é diferente. É que asrelações jurídicas de consumo dão-se, so-bretudo, por meio do contrato. Pode-se di-zer mesmo que o objetivo de um profissio-nal no mercado, do fornecedor, é a celebra-ção do contrato, porque só ele viabiliza, nosistema capitalista, a transferência do bemdo fabricante, do produtor ou do prestadordo serviço até o consumo final. Importa,portanto, saber que proteção tem esse con-sumidor que, em território brasileiro, buscaadquirir bens e serviços de fornecedores es-trangeiros; em outras palavras, interessaidentificar a proteção do consumidor quecelebra contratos internacionais. É nessesentido que essa resposta deve ser buscadaa partir do estudo do Direito InternacionalPrivado.

Num primeiro momento, este trabalhoprocurará identificar as fontes internas einternacionais do Direito Privado Interna-cional brasileiro relativas às obrigações con-tratuais, identificar o elemento de conexãoadotado pelo Brasil para reger essas obriga-ções. Interessa saber qual será o direito apli-cável em casos de conflito.

Uma vez identificada a questão acima,passaremos a cuidar do interesse específicodeste trabalho, que é a proteção do consu-midor brasileiro nos contratos internacio-nais. O elemento de conexão adotado peloBrasil para reger as relações obrigacionais éabsolutamente indiferente ao fato de essarelação envolver ou não consumidores? Ou

seja, da mesma forma que o direito brasilei-ro aceita a lei estrangeira para reger umarelação obrigacional entre uma grande em-presa canadense e uma grande empresa bra-sileira, aceitaria também que essa mesma leiestrangeira viesse a reger uma relação emque esteja em causa a defesa de consumidorresidente no Brasil que celebrou contratocom um fornecedor estrangeiro?

Importam, primeiramente, breves consi-derações sobre como essa proteção do con-sumidor vem sendo considerada em algunstratados internacionais importantes, emmatéria de obrigações contratuais, princi-palmente na União Européia, que busca atri-buir ao consumidor um elevado nível deproteção.

Como se sabe, na maioria dos ordena-mentos, a celebração dos contratos é limita-da por normas imperativas, particularmen-te, por normas destinadas a proteger os con-tratantes mais fracos economicamente. NoBrasil, o Código de Defesa do Consumidor,CDC, Lei no 8078/90, decorre de uma impo-sição direta da Constituição de 1988, quenão se limitou a incluir a defesa do consu-midor como princípio de ordem econômica;foi além, ao incluí-la como um direito fun-damental. Em que medida essa proteção,como direito fundamental, que já existe nodireito interno, Lei no 8078/90, constituiproteção mínima assegurada ao consumi-dor brasileiro na celebração de contratoscom fornecedores com domicílio em outrospaíses? Essa é, portanto, a indagação cen-tral deste trabalho. Essa indagação ganharelevância a partir do momento em que seconstata a ausência de qualquer tratado in-ternacional, em vigência no Brasil, que as-segure de forma expressa ao consumidoruma proteção mínima nos contratos inter-nacionais.

A verdade é que existe uma grande in-terrogação no Direito Internacional Priva-do brasileiro sobre a proteção do consumi-dor. Na existência real dessa interrogação,avulta a importância dos princípios do Di-reito Internacional Privado, como meio de

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buscar uma solução para a questão coloca-da. Poder-se-ia dizer que a proteção do con-sumidor faz parte de uma ordem públicainternacional e que o simples recurso a essaordem pública garantir-lhe-ia uma proteçãomínima?

Entretanto, este trabalho não se limitaráà busca do confronto do problema colocadocom a ordem pública internacional. Nestesentido, este trabalho deverá buscar avaliarcomo as normas imperativas internas, comoo é no caso da legislação brasileira, o Códi-go de Defesa do Consumidor, poderão seraplicadas quando a lex causae não seja abrasileira. Seriam as normas protetivas doconsumidor brasileiras normas de aplica-ção imediata? Antes, porém, importariaidentificar nessas normas, qual o conteúdoe o fim por elas perseguidos, em outras pa-lavras, em que medida elas têm a aptidãopara se enquadrarem como normas de apli-cação imediata. A partir de então, seria im-portante buscar, dentro do ordenamentobrasileiro, uma fonte em que esteja consa-grada essa aplicação necessária, ainda quede forma implícita; ou se haveria uma lacu-na na norma de conflitos ou ainda que nãoseja sequer caso de uma lacuna, mas de umadecorrência de política legislativa.

Devemos, então, apreciar o que se enten-de por norma de aplicação imediata e se esseinstituto constitui ou não um desvio admi-tido pelo DIP, em matéria de direito aplicá-vel.

São questões para as quais este trabalhoestará em busca de resposta nas páginas quese seguem.

1. Regra geral do DireitoInternacional Privado brasileiro

1.1. A Lei de Introdução aoCódigo Civil brasileiro

Os contratos internacionais celebradosentre brasileiros e estrangeiros, em princí-pio, podem submeter-se tanto à lei brasilei-ra como à lei estrangeira. A lei aplicável vai

depender do local onde foi celebrado o con-trato ou do local da residência do propo-nente. É o que vai dizer a Lei de Introduçãoao Código Civil brasileiro, no seu artigo 9o.São, portanto, dois elementos de conexãoadotados: 1) O do local onde foi celebrado o con-trato; 2) O local da residência do proponente 1.

O primeiro elemento de conexão do lo-cal da celebração do contrato diz respeitoaos contratos celebrados entre presentes. Porlocal da celebração do contrato, conformeensina Magalhães Collaço ([1954?]), devecompreender-se o “lugar onde se verificouo último elemento que a lei considera neces-sário para a perfeição do consenso”; o 2o,por sua vez, o da residência do proponente,deve ser aplicado toda vez que o contratotenha sido celebrado entre ausentes.

De acordo com o parágrafo primeiro doartigo 9o, ainda que o contrato não seja cele-brado no Brasil, mas se a obrigação tiver deser executada no Brasil, a exigibilidade damesma em território brasileiro impõe queseja respeitada a formalidade prevista nalei brasileira para validade das declaraçõesde vontade. Tratando-se, v.g., de compra evenda de imóveis, impõe-se que o negócioseja celebrado, no estrangeiro, por escriturapública, tal como exige a lei brasileira, ain-da que a lei do local da celebração ou apli-cável não imponha tal formalidade.

Poderia também o direito aplicável serlivremente escolhido pelas partes? Segun-do a doutrina majoritária, a lei brasileira nãoreservou nenhum espaço para que a auto-nomia da vontade das partes elegesse o di-reito aplicável2. Esse fato, aliás, sempre me-receu da doutrina severas críticas, a pontode o saudoso professor Marques dos Santos(2002, p. 387) falar de uma “irrelevância daautonomia da vontade” no DIP brasileiro.

Há, no Congresso Nacional, um projetode lei, em tramitação, consagrando a auto-nomia da vontade no DIP brasileiro3. Mas ofato é que até hoje, mesmo diante da assina-tura de tratados importantíssimos pelo Bra-sil, em matéria de obrigações contratuais,conforme se verá adiante, as partes, num

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contrato internacional, estão impedidas deeleger qual direito vai reger as relações pa-trimoniais decorrentes do pacto de vonta-des.

O artigo 17 da Lei de Introdução tam-bém atua como importante limitador da apli-cação do direito estrangeiro, inclusive, emmatéria contratual, no território brasileiro.Por força desse dispositivo, não terão qual-quer validade no território brasileiro não só“as declarações de vontade” efetivadas noscontratos, mas quaisquer “leis, atos e sen-tenças de outro país que violarem a ordempública”.

Como se vê, não existe, na Lei de Intro-dução ao Código Civil, qualquer norma es-pecífica do direito dos conflitos relativa àproteção do consumidor ou a qualquer ou-tra categoria de contratante que já à épocapudesse ser considerado economicamentevulnerável. E essa ausência tem uma justifi-cativa histórica. Essa proteção já não cons-tava da Lei anterior de Introdução ao Códi-go Civil de 1916; e, da mesma forma, deixoude constar na Lei de Introdução atual de1942. As leis de introdução, evidentemente,estavam em consonância com o Código Ci-vil de 1916, fruto de influência direta doCódigo Napoleônico de 1804, de reconheci-da vocação liberal, avesso a qualquer inter-ferência maior do Estado nos negócios jurí-dicos. Mesmo com a crescente especializa-ção do direito privado, o fato é também queo DIP manteve-se, na maioria dos ordena-mentos, com o método conflitual genérico,não acompanhando aquela tendência dodireito material4.

Deve-se ainda salientar que a defesa doconsumidor só passou a ocupar espaçosmaiores nos ordenamentos ocidentais a par-tir da II Guerra Mundial, com o incrementodos chamados contratos de adesão. Nessascontratações, não raro o contratante maisfraco economicamente acabava submetidoa cláusulas portadoras de flagrantes dese-quilíbrios contratuais.

Entretanto, indiretamente, pode-se dizerque a Lei de Introdução ao Código Civil, ao

não permitir a autonomia da vontade naescolha do direito aplicável, antes mesmodo advento de uma lei especial de defesa doconsumidor, acabou se constituindo numinstrumento indireto de proteção do contra-tante economicamente mais fraco. É que,havendo a possibilidade de o contratantemais forte fugir à lei brasileira, poder-se-iasubmeter o consumidor brasileiro à legisla-ção do país sede do fornecedor, onde, even-tualmente, ele não tivesse o grau de prote-ção de que dispunha na ordem jurídica in-terna.

1.2. O Código Bustamante

Esse tratado, ratificado em 1929, é consi-derado um dos mais importantes tratadosde Direito Internacional Privado em vigên-cia no Brasil5. Ele foi também ratificado porquinze países da América do Sul e da Amé-rica Central6.

O Código Bustamante, igualmente, nãotraz qualquer menção à proteção ao consu-midor.

O elemento de conexão para as obriga-ções contratuais, estabelecido no Tratado, éo do local da celebração do pacto7, em sin-tonia com o que estabelece o artigo 9o da Leide Introdução ao Código Civil. Pelo texto doCódigo, não há qualquer comprometimentodos países signatários quanto à autonomiada vontade para eleição do direito aplicá-vel.

O “Código” também excepciona a “or-dem pública internacional” como importan-te limitador da aplicação da lei estrangeiraem matéria de obrigações contratuais.

Em duas ocasiões, entretanto, o Códigonão se limita a fazer genericamente a reser-va da ordem pública internacional. Ele vaienumerar algumas condições aptas ao aci-onamento da dita reserva.

Por força de seu artigo 175o, são conside-radas de “ordem pública internacional” asnormas do direito interno que “vedam o es-tabelecimento de pactos, cláusulas e condi-ções contrárias às leis, à moral e à ordempública”.

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Na verdade, o “Código” procurou com-preender como limite de aplicação da leiestrangeira à exigibilidade das obrigaçõescontratuais não só as normas de ordem pú-blica, mas toda e qualquer norma cogente,imperativa, do direito interno. Veja que ocitado dispositivo não fala apenas de pac-tos contrários à ordem pública, ele vai além;inclui, na proibição, as cláusulas pactua-das em contratos internacionais “contrári-as às leis, à moral...”

O Código Bustamante, quando da suaelaboração, não se referiu literalmente àsnormas de aplicação imediata. Até porqueessa discussão em torno desse instituto, noDireito Internacional Privado, ainda é mui-to recente. A questão que se coloca, entre-tanto, dada a função do intérprete, é de sa-ber se dessa principal fonte do DIP brasilei-ro emerge uma norma implícita, em que asnormas de proteção e defesa do consumidorpossam ter sua aplicação assegurada, mes-mo quando a lex causae não seja a brasileira.

Aqui temos de recorrer ao artigo 175o doCódigo. Ainda que literalmente o dispositi-vo se refira à ordem pública internacional, ofato é que ele não está tratando apenas daordem pública internacional, dentro da pers-pectiva restritiva e excepcional em que ela éentendida. Não haveria sentido o dispositi-vo referir-se à ordem pública internacional eincluir na mesma o “estabelecimento depactos, cláusulas e condições contrárias alei”. O estabelecimento de pactos contráriosà lei não se insere automaticamente no con-texto da ordem pública internacional. São si-tuações que, em princípio, não se relacionamcom a ordem pública internacional, cujo cam-po de atuação é reconhecidamente restrito.

Do acima exposto, pode-se inferir que oartigo 175o impôs como importante limita-dor do direito da lex causae as normas impe-rativas da lex fori. Conforme se verá adian-te, uma vez identificados os fins e conteúdoperseguidos pelas normas de proteção doconsumidor, esse dispositivo poderá seracionado para o fim de garantir a proteçãomínima outorgada pela lei brasileira.

Entretanto, ainda que se admita a invo-cação do artigo 175o do Código para o fimde proteção do consumidor brasileiro, taldispositivo não garante, por si, essa prote-ção em todos os contratos internacionais. Éque o próprio Código delimitou seu espaçode aplicação aos Estados Partes.

2. Breve panorama da proteção doconsumidor na União Européia,

Convenção do México e Mercosul

2.1. A Convenção de Roma

A proteção do consumidor na UniãoEuropéia tornou-se um imperativo ante aefetivação de um mercado comum com am-pla liberdade de circulação de pessoas, ca-pitais e serviços.

O Tratado de Roma, que instituiu a Co-munidade Econômica Européia em 1957,inicialmente, não contemplava qualquer tra-tamento específico para os consumidores.Posteriormente, entretanto, o Tratado ocu-pou-se de garantir ao consumidor, em ma-téria de direito aplicável, uma proteção es-pecial, a partir da constatação de que umadas conseqüências do funcionamento ple-no de um mercado comum seria a afetaçãodos consumidores (Cf. MARTINS, 2002, p.64). Hoje, é também objetivo na Comunida-de Européia “promover os interesses dosconsumidores e assegurar um elevado ní-vel de defesa destes...”8.

De acordo com o artigo 3o da Convençãode Roma sobre obrigações contratuais, ad-mite-se a autonomia da vontade para a de-signação do direito aplicável, mesmo noscontratos envolvendo consumidores. Entre-tanto, consoante o artigo 5o, no 2, essa esco-lha tem um importante limite: ela não podeprivar o consumidor da proteção que temno país onde tem sua residência habitual.

Não havendo designação do direito apli-cável, por força do artigo 5o, no 3, da Con-venção, este será o do país em que o consu-midor tiver sua residência habitual. A pre-sente regra será acionada sempre que esti-

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verem preenchidas algumas condições bá-sicas: o consumidor ter contratado bens eserviços, fora de sua atividade profissional,a partir de uma proposta ou anúncio pu-blicitário que lhe seja encaminhada no paísde sua residência habitual; o consumidorter realizado no país de sua residência ha-bitual todos os atos necessários à contrata-ção; a proteção mínima assegurada será ain-da outorgada se, de qualquer forma, o pro-fissional ou seu representante receber o pe-dido do consumidor no país da residênciahabitual deste. Entretanto, mesmo que o con-sumidor celebre o contrato em outro país,que não o de sua residência habitual, a leide seu país será chamada a reger a relaçãose ele se deslocou por viagem organizadapelo próprio vendedor com vistas à aquisi-ção de seus produtos.

Quanto à mensagem dirigida ao consu-midor, tem-se entendido, inclusive, que elanão precisa ser dirigida especificamente aopaís da residência habitual daquele, bastaque ela ali seja divulgada (Cf. PINHEIRO,2002, p. 99). Nesse sentido, as mensagenscomerciais distribuídas através da Internetenquadram-se nessa situação e, se dessa men-sagem resultar a aquisição de um produto ouserviço, o profissional deve sujeitar-se à leida residência habitual do consumidor.

No preenchimento dessas regras, emer-ge de forma clara a obrigação do profissio-nal de sujeitar-se à lei da residência habitualdo consumidor sempre que ele, por meio dequalquer mensagem publicitária, busquecomercializar seus produtos e serviços paraalém do território de seu país, sede do seuestabelecimento. Nesse sentido, em princí-pio, não pode recorrer à lei do país de suaresidência habitual o consumidor que con-trata bens e serviços em qualquer país daUnião Européia e ali firma todos os atosnecessários à contratação quando seu des-locamento não tenha sido promovido porprofissional para aquele fim específico. Aqui,inclui-se o turista, o que viaja a serviço eadquire bens e serviços fora do país de suaresidência habitual.

A Convenção, portanto, avançou ao re-conhecer a necessidade de uma regra deconflito especial para proteger o consumi-dor “como parte economicamente mais fra-ca e negocialmente menos experiente” (PI-NHEIRO, 2002, p. 98).

2.2. A Convenção do México

A Convenção do México9, assinada em1996, pode ser considerada, ao lado do Có-digo Bustamante, o mais importante trata-do assinado pelo Brasil em matéria de obri-gações contratuais.

A Convenção cuida tanto do direito apli-cável em matéria de contratos como de com-petência judiciária. A aplicação da referidaconvenção aos contratos internacionais ce-lebrados entre um consumidor e um contra-tante não profissional poderia acabar porsubmeter o consumidor ao direito aplicávelde países sem qualquer grau de proteção aoconsumidor.

A Convenção consagra de forma ampla,no artigo 7o, a autonomia da vontade na elei-ção do direito aplicável e do foro10. Não há,no referido dispositivo, qualquer indicaçãono sentido de que o direito aplicável devarecair sobre um dos Estados dos contratan-tes. Tal implica que possa ser escolhido, in-clusive, o direito aplicável de um terceiroEstado. Até porque a Convenção permite deforma expressa, no seu artigo 9 o, que as par-tes, na solução de eventual conflito, recor-ram aos “costumes e princípios do direitocomercial internacional, bem como ao uso epráticas comerciais de aceitação geral”.

Embora o artigo 7o, na sua parte final,deixe claro que “a eleição de determinadoforo pelas partes não implica necessariamen-te a escolha do direito aplicável”, o foro elei-to poderá ser um dos critérios a ser levadoem consideração no momento de estabele-cer a conexão ou o “vínculo mais estreito”,conforme preceitua o artigo 9o11.

Por força do artigo 9o, na ausência depacto sobre o direito aplicável, este será odo Estado com que o contrato “mantém osvínculos mais estreitos”. Aqui, o Magistra-

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do poderá levar em consideração vários as-pectos, como o local da celebração do con-trato, o foro do contrato, a residência doscontratantes, o local do cumprimento daprestação característica. Na parte final dodispositivo, ainda permite a “dépeçage”, aoestabelecer a possibilidade de uma ou maispartes do contrato estarem sujeitas a outralei, com a qual o contrato, no geral, estabe-lece os vínculos mais estreitos.

Nessa convenção, entretanto, mais umavez, está presente a reserva da ordem públi-ca como importante fator de limitação daautonomia da vontade e da escolha do di-reito aplicável. A Convenção admite a nãoeficácia do direito aplicável não só quandofor contrário à ordem pública, como tambémàs normas imperativas12. Nos dispositivosabaixo transcritos, percebe-se, entretanto,que as normas imperativas e a ordem públi-ca, que podem obstaculizar a aplicação dodireito aplicável, são a da lex fori, não da lexcausae. Quanto às disposições imperativasda lex causae, estas ficam à disposição doforo, que, se julgar conveniente, poderá apli-cá-las, conforme se depreende da parte fi-nal do artigo 11o da Convenção.

Em princípio, a aplicação da referidaConvenção aos contratos internacionais ce-lebrados entre um consumidor e um contra-tante não profissional poderia acabar porsubmeter o consumidor ao direito aplicávelde países sem qualquer grau de proteção aoconsumidor, já que, como visto, a autono-mia da vontade é amplamente consagrada.

Entretanto, não obstante a ausência demenção expressa à proteção do consumi-dor13, deve-se reconhecer que a Convençãoavançou ao impor como limite à aplicaçãodo direito estrangeiro não só quando esti-ver em causa a ordem pública internacional(cujo espaço de concretização é reconheci-damente reduzido, conforme adiante severá), bem como as normas que se “revesti-rem de caráter imperativo”.

Em matéria de obrigação contratual, é aprimeira vez que um tratado assinado peloBrasil faz menção expressa às disposições

imperativas “do foro” que deverão ser apli-cadas “necessariamente”. A partir da suavigência no ordenamento jurídico brasilei-ro, podemos dizer que o Brasil, pela primei-ra vez, por força de seu artigo 11o, passará acontar com uma regra expressa sobre nor-mas de aplicação imediata em contratos in-ternacionais. O campo de aplicação deste edos demais dispositivos da Convenção nãose limitará aos Estados Partes, mas tambémabrangerá contratos internacionais celebra-dos em terceiros Estados. É o que decorreránaturalmente da interpretação do artigo 2o

da Convenção14.Demonstrada mais adiante a aptidão das

normas de proteção e defesa do consumi-dor para se qualificarem como de aplicaçãoimediata, o referido dispositivo estaria a al-bergá-las (como normas imperativas de de-fesa do consumidor que são) como impor-tante limitador da aplicação do direito dalex causae.

O artigo 11o da Convenção do Méxicoapresenta uma identidade com o artigo 7o

da Convenção de Roma15, na medida em quepermite o afastamento do direito designadopelo método conflitual para aplicação danorma imperativa da lex fori. De acordo comartigo 7o da Convenção de Roma, o seu cam-po de aplicação não se limita a autorizar oafastamento do método conflitual para pres-tigiar a norma de aplicação imediata da lexfori, esse afastamento pode ocorrer em favordo ordenamento de “outro país com o quala situação apresente uma conexão estrei-ta...”. Daí pode decorrer, inclusive, a aplica-ção da norma imperativa, que seja de apli-cação imediata, de ordenamentos, onde ocontrato tenha sido executado, celebrado ouonde o contratante tenha sua residênciahabitual, etc. Parece-me que, conjugando aprimeira parte do artigo 11o da Convençãodo México com a sua segunda parte, chega-se a uma identidade completa entre os doisdispositivos convencionais. É que essa se-gunda parte, ao preceituar que “ficará à dis-posição do foro, quando este o considerarpertinente, a aplicação das disposições im-

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perativas do direito do outro estado com oqual o contrato mantiver vínculos mais es-treitos”, acaba por permitir que a norma deaplicação imediata de ordenamentos estran-geiros possa ser aplicada, em detrimento dalex causae.

2.3. Proteção do consumidor no Mercosul

O Mercado Comum do Cone Sul, Merco-sul16, formado pelo Brasil, Argentina, Uru-guai e Paraguai, tem como objetivo o estabe-lecimento de um grande mercado com cercade 210 milhões de pessoas.

Entretanto, na primeira fase de integra-ção, o consumidor, concordando com o en-tendimento de Cláudia Lima Marques(1998), foi “o grande agente esquecido daintegração”.

Somente a partir de 1995, a proteção doconsumidor passou a fazer parte das preo-cupações dos governos no processo de inte-gração17.

O Protocolo de Santa Maria sobre defesado consumidor, assinado em 1996, trata decompetência judiciária, ao estabelecer o forodo domicílio do consumidor, o que repre-senta um grande avanço. Há também, noanexo do protocolo, a definição de consu-midor individual e consumidor equipara-do, bem como a de fornecedor, mas, em ma-téria de direito aplicável, acabou não cons-tituindo qualquer avanço. É que o seu arti-go 18o18 prevê a adoção de um regulamentocomum de defesa do consumidor, que vincu-laria todos os Estados Partes, inclusive, comocondição de entrada em vigor do referido pro-tocolo no âmbito do Mercosul. Ocorre que oBrasil acabou por vetar a idéia do regulamen-to. Isso porque ele representaria, no maiormercado consumidor do Mercosul, a revoga-ção de cerca de duas dezenas de artigos doCódigo de Defesa do Consumidor brasileiro.

O fato é que hoje, diante do impasse doregulamento comum, o Mercosul não dispõede qualquer tratado que regule o direito apli-cável em matéria de relação de consumo19.

A tendência hoje é que se faça uma har-monização das legislações mais parecida

com a técnica das Diretivas adotada pelaUnião Européia, ou seja, uma harmoniza-ção pontual e não uma unificação, como sepropunha com o regulamento.

A primeira conseqüência dessa novapostura foi a aprovação da Resolução 42/98 sobre garantia contratual20.

Do ponto de vista da proteção do consu-midor, pode-se dizer, no entanto, que os de-lineamentos traçados pelo Protocolo de San-ta Maria encontram-se paralisados e é bemprovável que o referido protocolo, sequer,seja ratificado pelos Estados Partes, tendoem vista a ausência do regulamento.

3. A proteção do consumidor na ordemjurídica brasileira

3.1. A proteção do consumidor como direitofundamental no ordenamento brasileiro – a

concretização do direito à igualdade

É fato que, na maioria dos ordenamen-tos jurídicos ocidentais, o consumidor gozade leis de proteção21, com maior ou menorgrau de efetividade22. A Constituição de1988 foi a primeira carta constitucional bra-sileira a tratar da proteção do consumidor.

A proteção do consumidor brasileiroconstitui-se hoje em um dos direitos e ga-rantias fundamentais, bem como é um dosprincípios que informam a ordem econômi-ca brasileira, ambos consagrados na Cons-tituição Federal, nos seus artigos 5o, XXXII,e 170, V, respectivamente. Os direitos fun-damentais, na atualidade, não são apenasatribuídos aos cidadãos contra os abusosdo Estado, mas também são atribuídos aosparticulares contra os abusos cometidos porparticulares nas suas mais variadas rela-ções do quotidiano (Cf. SARLET, 2000, p.63). É nesse contexto que a defesa do consu-midor é um direito fundamental dirigido nãosó ao Estado, mas também ao particular for-necedor na relação com o destinatário finalde seus produtos e serviços: o consumidor.

A doutrina de direito constitucional bra-sileira inclui o inciso XXXII do artigo 5o

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como norma de integração ou programática(Cf. TEMER, 1994, p. 24; SILVA, 1968, p. 75).É uma norma que, para a sua eficácia ple-na, depende da integração de uma lei infra-constitucional. O próprio texto do incisoXXXII não deixa dúvida quanto à naturezadessa norma ao preceituar que o “Estadopromoverá, na forma da lei, a defesa do con-sumidor”. A Lei no 8078/90 age, portanto,integrando a norma constitucional e per-mitindo sua eficácia plena.

O Código de Defesa do Consumidor agecomo norma instrumentalizadora da efeti-vação desses direitos consagrados consti-tucionalmente23. Na feliz expressão da re-nomada professora da Faculdade de Direi-to da USP, Cristiane Derani (1999), “...a de-fesa do consumidor é um princípio consti-tucional impositivo e conformador a ser con-templado nos processos estatais com o fimde ‘assegurar a todos existência digna, con-forme os ditames de justiça social’”.

Claúdia Lima Marques ([199-?], p. 74-75)coloca o acento da proteção do consumidorenquanto direito fundamental no ordena-mento brasileiro, na concretização do prin-cípio da igualdade. Deixar sem proteção oconsumidor, sujeito apenas às regras demercado, implicaria não tornar efetiva aigualdade material. A igualdade formal jánão é suficiente. Com apoio nela, sempre sejustificou o contrato leonino e a injustiça deum contrato acabava, contraditoriamente,como pretensamente querida pelo contratan-te mais fraco. Tratar de forma desigual osnaturalmente desiguais é a forma de efeti-var a igualdade e permitir que o Estadomoderno possa imprimir às relações con-tratuais um mínimo de conteúdo de justiça.

A imposição da defesa do consumidorcomo um direito fundamental age no senti-do de reduzir as desigualdades econômi-cas dos contratantes24, materializadas, con-tratualmente, no desequilíbrio entre direi-tos e obrigações, vantagens e sacrifícios dosdois pólos da relação: o fornecedor e o con-sumidor, destinatário final de tudo o que aeconomia produz. O consumidor busca no

mercado, por meio da celebração do contra-to, a satisfação de uma variada gama denecessidades próprias do ser humano (Cf.MIRAGEM, 2002, p. 121); necessidades desaúde, transporte, alimentação, lazer, etc; asatisfação dessas necessidades está impli-citamente ligada à própria existência; liber-dade de ir vir; saúde, segurança. É impor-tante, então, que, ao buscar satisfazer essasnecessidades humanas, via contrato, essarelação contratual seja minimamente equi-librada, de forma a não ofender flagrante-mente a dignidade da própria pessoa. Esseequilíbrio, em área tão essencial, só podefazer-se sentir pela intervenção do Estado,amenizando radicalmente os efeitos dasdesigualdades dos contratantes, permitin-do um contrato minimamente equilibradoou minimamente justo. Não se desprestigiacom tal o contrato, como importante instru-mento, que faz circular a riqueza. Entretan-to, como há hoje a necessidade de se limitara própria propriedade, por sua função soci-al, igualmente, a liberdade de contratar, queestá intimamente ligada ao próprio direitode propriedade, também deve ser limitada(Cf. LÔBO, 2003).

Parece-me evidente que a defesa do con-sumidor impõe-se no ordenamento jurídicobrasileiro como forma de concretizar oprincípio da igualdade material. Essaigualdade concretiza-se desigualando-operante os outros sujeitos com os quais serelaciona, o empresário, o próprio Estado(Cf. KHOURI, 2002, p. 33-34; NISHIYA-MA, 2002, p. 90).

A implicação imediata desse tratamentodiferenciado do direito do consumidor,como direito fundamental, perante o orde-namento brasileiro é a própria limitação dopoder constituinte derivado. Por força doartigo 60, parágrafo 4o, inciso IV, da Consti-tuição: “Não será objeto de deliberação aproposta de emenda tendente a abolir: ...IV– os direitos e garantias individuais.” Ouseja, a norma do inciso XXXII do artigo 5o étambém cláusula pétrea, não admitindomodificação em seu conteúdo.

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3.2. O Código de Defesa do Consumidor e aintegração do direito fundamental por meio de

normas imperativas

Ora, se a proteção do consumidor, alémde configurar um direito fundamental, atuacomo um elemento informador da própriaordem econômica, limitando a própria liber-dade de mercado, seria, no caso brasileiro,praticamente impossível concluir no senti-do de que a defesa do consumidor não inte-gra a ordem pública brasileira. A proteçãodessa categoria econômica, ao mesmo tem-po em que concretiza a igualdade material,age também no sentido de efetivar o objetivodo Estado brasileiro para a obtenção do fimalmejado: da justiça social25.

O Código de Defesa do Consumidor bra-sileiro, CDC, logo em seu artigo 1o, auto pro-clama-se lei de “ordem pública interessesocial”:

“O presente Código estabelece nor-mas de proteção e defesa do consumi-dor, de ordem pública e interesse so-cial, nos termos dos artigos 5o, incisoXXXII, 170, inciso V, da ConstituiçãoFederal e artigo 48o de suas disposi-ções transitórias”.

Atento à justiça contratual, ao equilíbriode determinadas relações, o Estado passoua limitar a autonomia da vontade, preocu-pação essa que não estava presente no Có-digo Civil de 1916. A doutrina passou a de-nominar essas normas que comportavamesse objetivo normas de “ordem pública”,como que destacando essas normas do cor-po das demais.

O certo é que as normas que compõem aintervenção do Estado no domínio dos con-tratos são imperativas26. Mas será que, pelosimples fato de serem imperativas, seriamde ordem pública?

Se é verdade que todas as normas de or-dem pública são imperativas, nem todas asnormas imperativas são de ordem pública.Embora o conceito de ordem pública seja pordemais elástico e de difícil delimitação, asnormas imperativas só poderiam ser tam-

bém de ordem pública quando fosse possí-vel uma “valoração, da qual resulte a iden-tificação do interesse fundamental da comu-nidade que está em causa”27.

No âmbito do direito interno, as normasemanadas pelo Código de Defesa do Con-sumidor representam a mais radical inter-venção do legislador brasileiro no domíniodos contratos do Código, limitam drastica-mente a autonomia da vontade na celebra-ção de contratos. Impedem a imposição aoconsumidor de qualquer cláusula que limi-te ou implique a renúncia de quaisquer di-reitos que lhe tenham sido conferidos peloEstado. Com o CDC, o legislador brasileirobusca garantir o equilíbrio contratual entreo fornecedor e o consumidor, estabelecendonormas que, limitando a autonomia da von-tade, atuam no sentido de propiciar umarelação mais justa entre as partes. E se o Es-tado reconhece no consumidor o vulnerá-vel, aquele que precisa da proteção, eviden-te que tal se deveu às injustiças e aos abusosreiterados cometidos contra esse importan-te segmento do mercado.

As normas do CDC são, portanto, demanifesto caráter imperativo. Esse carátermostra-se mais presente no campo das nu-lidades do seu artigo 51o. É que, na celebra-ção de qualquer contrato em que se revele adesobediência a um direito assegurado aoconsumidor, a sanção é a nulidade absolu-ta e não a simples nulidade relativa. Mas, apar de todas essas características, o CDCpoderia ainda ser considerado de ordempública?

Para o fim deste estudo, o próprio títulode “ordem pública”, expressamente atribu-ído ao conjunto de regras do CDC, em cote-jo com o fim perseguido pelo referido diplo-ma, parece autorizar uma resposta positivaà pergunta anterior. Isso porque a menção àordem pública não surge de forma isolada,mas acompanhada de um diálogo maiorcom o próprio ordenamento jurídico brasi-leiro.

No diálogo anterior com o próprio textofundamental do Estado brasileiro, percebe-

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se quão “fundamental” é a proteção do in-teresse em causa para os objetivos persegui-dos pela sociedade brasileira.

Ora, se a proteção do consumidor, alémde configurar um direito fundamental, atuacomo um elemento informador da própriaordem econômica, limitando a própria liber-dade de mercado, seria, no caso brasileiro,praticamente impossível concluir no senti-do contrário: ou seja, que a defesa do consu-midor não integra a ordem pública brasilei-ra. Nesse sentido, pode-se também anteci-par, desde já, a conclusão de que a defesado consumidor integra também a ordempública internacional, conforme adiante severá.

3.3. A proteção do consumidor e a ordempública internacional

O art. 17o da Lei de Introdução do Códi-go Civil brasileiro28, ainda que não se refiraa uma “ordem pública internacional”, comofaz o Código Civil Português, coloca a “or-dem pública” como uma restrição à aplica-ção do direito estrangeiro.

O conceito de ordem pública, a exemplodo que ocorre, quanto a esse mesmo concei-to, na ordem jurídica interna, é de difícildelimitação. A reserva da ordem pública, deacordo com a doutrina (Cf. VICENTE, 2001,p. 682), estará sempre relacionada com a efe-tivação dos princípios fundamentais doforo.

Por conta da dificuldade de se alcançarobjetivamente o seu conteúdo, na verdade,na maioria dos ordenamentos, a reserva daordem pública acabou sendo formulada naforma de uma verdadeira “cláusula geral”(Cf. PINHEIRO, [19--?], p. 462). A determi-nação de seu conteúdo, como é próprio dascláusulas gerais, dependerá da integraçãodos princípios e valores essenciais da or-dem jurídica do foro.

Não obstante a sua difícil delimitação, ofato é que a doutrina trata a reserva da or-dem pública à vista dos princípios informa-dores do DIP, principalmente o princípio daconfiança, apontando para a necessidade

de uma concepção bem restrita29 da ordempública. Essa ordem pública só seria sufici-ente para afastar o direito aplicável se hou-vesse um confronto flagrante entre o direitoaplicável e a ordem pública do foro. Esseconfronto, somente ao produzir um resulta-do intolerável na solução da lide para a or-dem pública do foro, é que deveria permitiro afastamento do direito, em tese, aplicável(Cf. SALCEDO, 1971, p. 244).

Há que separar os conceitos de ordempública interna de direito material e ordempública internacional. Em linhas gerais,pode-se dizer que a ordem pública de direi-to material interno é formada por normasimperativas, cuja natureza impede sua der-rogabilidade por convenção dos particula-res. Porém não será correto sustentar quetodas as normas imperativas da ordem pú-blica interna o são também na ordem públi-ca internacional.

Mas, a ordem pública internacional doforo, embora também seja nacional30, por-que provém do foro, portanto, não lhe é ex-terna, é formada pelos princípios e até mes-mo normas que informam aquela ordem. Talimplica que uma simples diferença de trata-mento a determinada questão pela ordemjurídica do direito aplicável, por si só, não ésuficiente para fazer acionar a reserva daordem pública.

Só será feita a reserva da ordem públicainternacional do foro para excepcionar odireito aplicável quando o resultado a serobtido com a solução da lide não for apenasdiferente do que se alcançaria com aplica-ção da ordem pública de direito material doforo, mas quando esse resultado se mostrarflagrantemente incompatível e intolerávelem relação àquela ordem internacional.

É fato que a Constituição brasileira elegea proteção ao consumidor como um direitofundamental e, portanto, a sua defesa é prin-cípio fundamental na ordem pública inter-na de direito material. Entretanto, será a pro-teção do consumidor pertencente também àordem pública internacional brasileira?Pode-se dizer que, enquanto princípio de

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proteção à parte mais fraca, vulnerável eco-nomicamente, nos contratos, sim31. O pró-prio Código Bustamante qualifica como per-tencentes à ordem pública internacional ospreceitos constitucionais32. Ainda que sedeva dar a essa disposição uma interpreta-ção restritiva, é mesmo inconcebível paraqualquer ordem jurídica que uma proteção,que é tratada como direito fundamental, nãointegre a sua ordem pública internacional.

Do que aqui dissemos, permite-se con-cluir que as diferenças de proteção ao con-sumidor no ordenamento do direito aplicá-vel, por si só, não implicam o acionamentoda exceção da reserva da ordem pública in-ternacional do foro. O que importa é saberse, no ordenamento do direito aplicável, aproteção ao consumidor não é dada ou édada de forma muito frágil. Aqui, sim, umavez que a tendência aponta para um resul-tado na solução do caso totalmente incom-patível com a ordem pública internacionaldo foro, a reserva da ordem pública deveráintervir para afastar a aplicação do direitoestrangeiro. Anote-se que, conforme reitera-do pela doutrina brasileira33, não basta umasimples incompatibilidade, mas uma fla-grante incompatibilidade.

Entretanto, se existe no direito aplicáveluma proteção e essa proteção, embora dife-rente, apresenta um grau razoável, não háqualquer sentido para se fazer uso de umprincípio tão radical como a reserva da or-dem pública internacional do foro. Isso pelasimples razão de que a ordem pública inter-nacional brasileira não estaria de fato afeta-da a ponto de justificar o sacrifício da lexcausae.

As considerações aqui levantadas per-mitem concluir que, apenas excepcional-mente, poder-se-á recorrer à reserva da or-dem pública internacional para efetivar umaproteção do consumidor nos contratos in-ternacionais. Essa proteção não é a que re-sultaria da aplicação do CDC. É tão-somen-te uma proteção mínima, que será acionadaquando o resultado material decorrente daaplicação do direito estrangeiro mostrar-se

flagrantemente incompatível com a defesado consumidor.

Como o recurso à ordem pública é feito aposteriori e não a priori, o tratamento do di-reito do consumidor como direito fundamen-tal, por si só, não é suficiente para fazer aci-onar o sistema protetivo interno de defesado consumidor brasileiro34. Diferentementeda exceção da ordem pública, conforme adi-ante se verá, a norma de aplicação imediataatua a priori e não a posteriori. Na exceção daordem pública, a solução material já existe,mas é rejeitada por violá-la flagrantemente;enquanto, nas normas de aplicação imedia-ta, elas incidiriam na relação preliminar-mente à própria concretização do direitoaplicável, independentemente do resultadoa ser alcançado35.

É nesse sentido que avulta a importân-cia de se identificar as normas de proteção edefesa do consumidor como de aplicaçãoimediata ou necessária (o que se fará a se-guir), porque atuariam a priori, efetivando aproteção mínima assegurada pelo ordena-mento brasileiro.

4. As normas de aplicação imediata ounecessária e a proteção do consumidor

É certo que a regra clássica do DireitoInternacional Público, como regente de re-lações plurilocalizadas, é procurar resolversempre a seguinte questão: qual, entre osvários ordenamentos, vai ser chamado a re-ger a relação, ou seja, qual será o direito apli-cável. Nos ordenamentos que aceitam a au-tonomia da vontade, as próprias partes con-tratantes podem se encarregar de fazê-lo.Entretanto, quando as partes estão proibi-das de indicá-lo ou, mesmo podendo indi-cá-lo, não o fazem, as regras de conflitos,presentes em cada ordenamento, é que seencarregarão de tal. Entretanto, como há umconflito de leis no espaço, o direito de umordenamento terá de ser afastado para darlugar ao outro.

Agora pergunta-se se não haverá algu-ma hipótese de esse direito, em princípio,

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não aplicável a uma relação plurilocaliza-da, poder ser chamado a regê-la.

Se o ponto de partida for da total irrele-vância para o DIP do outro direito “não apli-cável”, qualquer regra desse ordenamentoficaria à margem da solução do problema.

Entretanto, o DIP não é um direito preo-cupado apenas com a solução do conflito,no sentido formal. Há uma crescente preo-cupação, dentro do DIP, com o controle dasolução material36. Embora seja possível afir-mar que, entre os valores justiça e seguran-ça jurídica, a doutrina do DIP adote, prima-cialmente, esse último, tal não implica, poroutro lado, concluir que o conteúdo das nor-mas do direito estrangeiro já não lhe sãomais totalmente indiferentes. A reserva daordem pública internacional é a revelaçãomais flagrante dessa preocupação.

Fora da reserva da ordem pública inter-nacional, outra revelação dessa preocupa-ção do DIP com o controle da solução mate-rial37 é o instituto das normas de aplicaçãoimediata38.

É atribuído a Francescakis o pionerismodo estudo do instituto das normas de apli-cação imediata, por ele definido “como asleis cuja observância é necessária para asalvaguarda da organização política, soci-al ou econômica do país” (Cf. VICENTE,2001, p. 633). Independentemente do direi-to aplicável, a doutrina do DIP consagramodernamente que as normas de aplicaçãoimediata teriam o seu espaço na soluçãodos conflitos internacionais.

Por força das normas de aplicação ime-diata, afasta-se o direito estrangeiro aplicá-vel se a solução material a ser efetivada, porsua conta, entrar em confronto com a solu-ção prevista naquela norma (de aplicaçãoimediata).

Se é certo que a norma de aplicação ime-diata constitui-se em um desvio à regra deque, em princípio, apenas o direito aplicá-vel do país sede da relação jurídica venhaser chamado a regê-la, não é tarefa fácil iden-tificá-la nos ordenamentos jurídicos. É cer-to que, internamente, essas normas são im-

perativas; mas nem todas as normas impe-rativas internas são internacionalmenteimperativas.

Como essas normas têm a característicade expandir sua aplicação para além dassituações absolutamente internas, é impor-tante identificar nas mesmas esse compo-nente espacial. O próprio legislador pode-ria se encarregar de fazê-lo aderindo à nor-ma essa espacialidade expansiva, como,v.g., ocorre no direito português39. É o que adoutrina chama de uma norma de conflitounilateral. Evidente que o fato de gravar anorma com essa particularidade expansivasó tem sentido naquelas matérias cuja obe-diência é vital para determinado ordena-mento.

Entretanto, as normas de aplicação ime-diata seriam apenas aquelas expressamen-te indicadas pelo legislador?

Marques dos Santos (1990, p. 934) en-tende que, na omissão do legislador, elaspodem ser identificadas toda a vez que asnormas imperativas se relacionarem com o“interesse público”, para o funcionamentode determinado ordenamento jurídico. Aocontestar Francescakis, o saudoso professorda Faculdade de Direito da Universidadede Lisboa critica o critério “demasiado res-tritivo” por ele adotado para identificar es-sas normas apenas onde estivesse o “cará-ter vital” do interesse desse Estado.

Lima Pinheiro, sem discordar da possi-bilidade de se chegar a uma norma de apli-cação imediata, por via interpretativa, ado-ta uma posição mais restritiva a esse respei-to, divergindo da orientação defendida porMarques dos Santos. O renomado professorda Faculdade de Direito de Lisboa diz queela só poderá ser buscada na “revelação deuma lacuna oculta mediante interpretaçãorestritiva ou redução teleológica das normasde conflitos gerais em causa...”. Essa posi-ção traduz-se em uma orientação mais cau-telosa na identificação dessas normas, deolho na preservação do método conflitual,ao mesmo tempo que deixa uma janela aber-ta para a sua rejeição quando plenamente

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justificável40. Moura Ramos (1949, p. 121),sem negar a possibilidade da existênciaimplícita de normas de aplicação imediata,adverte para o fato de que “ela pode dar as-sim lugar a grandes incertezas na aplica-ção do direito, na medida em que se saberáprecisamente quais as leis que apresentemessas características”.

Na verdade, o que está em jogo é a conse-qüência profunda que resulta da norma deaplicação imediata: o afastamento do méto-do conflitual tradicional e a maximizaçãodo direito do foro. Essa espécie de “privilé-gio” da lei do foro, não resta dúvida, é umfator propício à criação de insegurança jurí-dica para as partes no tráfico internacional.Parece-me que a tarefa de enxergar em umanorma imperativa, ainda que implicitamen-te, um comando espacial fora da ordem in-terna, antes de ser dificultada, é, na verda-de, alimentada pela própria natureza doDireito Internacional Privado, que trabalhacom conceitos indeterminados, inclusive,para a definição do elemento de conexão,em que os valores e princípios assumem fun-damental relevância41. Se todos concordam,em maior ou menor grau, que essas normasde aplicação imediata são de importância“vital” para o funcionamento de determi-nado ordenamento, e se o próprio conceitodo que seja “caráter vital” é reconhecida-mente vago e impreciso, é evidente que oimportante papel aqui sempre caberá ao in-térprete, diante das situações que forem sur-gindo, de identificá-las ou não com esse “ca-ráter vital”. Entretanto, tal não pode signifi-car um sacrifício arbitrário do método con-flitual, sendo, necessariamente, sempre res-tritiva a identificação de uma norma de apli-cação imediata42.

É plenamente possível descobrir-se umanorma imperativa de aplicação imediata apartir da tomada em consideração de ele-mentos que são vitais para o funcionamen-to daquela organização política, em que selocaliza aquela norma43. Aqui, parece-meabsolutamente feliz a orientação de Marquesdos Santos no sentido de verificar-se, por

meio daquela norma, se o Estado busca sa-tisfazer algum interesse que lhe seja, naque-le momento, importante para o seu funcio-namento.

4.1. As normas de aplicação imediata enormas autolimitadas

As normas de aplicação imediata confi-guram espécie do gênero das normas deaplicação autolimitadas (Cf. SANTOS,1990, p. 265).

A principal decorrência lógica dessaconclusão é que haverá normas imperati-vas que serão normas “autolimitadas”stricto sensu, ou seja, terão sua aplicação de-limitada ao direito interno (Cf. PINHEIRO,[19--?], p. 193). Daí também decorrer quehaverá normas imperativas autolimitadasde aplicação imediata, ou seja, que expan-dem sua aplicação para além das situaçõesreguladas internamente.

É bom lembrar que a norma autolimita-da stricto sensu da lex causae, em princípio,tem sua aplicação assegurada por força dopróprio comando interno do direito aplicá-vel. Para a lex causae, aquele negócio jurídi-co é tratado como se o contrato fosse cele-brado sem qualquer contato com outra or-dem jurídica. Daí que se impõe, normalmen-te, a obediência às normas imperativas dalex causae.

Para o objeto deste trabalho, o problemada norma de aplicação imediata tem rele-vância maior quando a mesma não seja dalex causae e sim da lex fori (ARAÚJO, 2000, p.31). É do que cuidaremos a seguir.

Se a norma imperativa, autolimitada, trazem si, expressamente, uma autorização paraa sua aplicação, independentemente do di-reito aplicável, ou seja, vem acompanhadaexpressamente de uma norma de conflitosunilateral, em tese, sua aplicação será ime-diata ou necessária no foro.

Entretanto, se ela vem desacompanha-da de qualquer menção expressa a esse res-peito, é ao intérprete que competirá a tarefade identificá-la. E como proceder a essa iden-tificação?

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Marques dos Santos (1990, p. 275) dizque essas normas são portadoras de umaespecial intensidade valorativa. Deve-se tersempre em consideração os fins persegui-dos por essas normas. Em outras palavras,se é possível identificar nas mesmas umafinalidade que se relacione de maneira dire-ta com algum “aspecto vital” desse ordena-mento. É por esse motivo que Dário MouraVicente coloca o acento, independentemen-te da existência de uma aparente norma deaplicação imediata, no exame do conteúdoe função dessa norma até para justificar, nosentido oposto, a sua não aplicação.

Para Lima Pinheiro ([19--?], p. 165), asnormas imperativas do foro, em regra, sãoautolimitadas stricto sensu e só deixarão desê-lo por vontade expressa do legislador. OAutor não discorda que, por via interpreta-tiva, seja possível a identificação do conteú-do e fim perseguido pela norma, mas tal,segundo sua opinião, jamais poderá con-duzir à “criação” de uma norma de apli-cação imediata, à margem do método con-flitual.

Parece-me correto sustentar que umaelasticidade na identificação do que sejauma norma de aplicação imediata implicaum sacrifício injustificável do método con-flitual. É que o valor segurança jurídica per-seguido por ele relaciona-se sobremaneiracom os ordenamentos jurídicos dos Estadosmodernos. Entretanto, não parece razoávelque essa norma só possa ser buscada semse recorrer à via interpretativa. Como o pró-prio Lima Pinheiro reconhece que são “di-minutos os casos” em que o legislador em-presta à norma expressamente essa impera-tividade internacional, tal não pode impli-car que, por esse motivo, ela não exista epossa funcionar enquanto tal.

Em todas as situações em que se revelenão apenas de forma branda, mas de formamanifesta, flagrante, que determinada nor-ma persegue um fim essencial para deter-minado ordenamento, deixar de traduzirsua imperatividade interna em imperativi-dade internacional importaria sacrificar

sobremaneira o valor justiça contido na nor-ma em detrimento do valor segurança con-tido no método conflitual.

4.2. A aptidão da defesa do consumidor parapermitir o seu enquadramento nas normas de

aplicação imediata

Conforme anteriormente assinalado, odireito do consumidor brasileiro constitui-se hoje em um dos direitos e garantias fun-damentais, bem como é um dos princípiosque informam a ordem econômica brasilei-ra, ambos consagrados na Constituição Fe-deral, nos seus artigos 5o, XXXII, e 170o, V,respectivamente. No presente estudo, já foiobjeto, inclusive, de conclusão que a defesado consumidor integra a ordem pública in-ternacional brasileira.

Não obstante o entendimento de que adefesa do consumidor integre a ordem pú-blica internacional brasileira, seria possívelconcluir também que as normas que inte-gram o Código de Defesa do Consumidorseriam de aplicação imediata?

Em matéria de proteção contratual, pré-contratual e extracontratual (nesse últimocaso, quando trata da responsabilidade semculpa do fornecedor por acidentes de con-sumo), o CDC é todo ele integrado por nor-mas imperativas. Ao lançar mão de normasimperativas, o legislador abdicou de valer-se das normas supletivas, justamente paraimpedir que os seus comandos sofressemqualquer disposição por parte do contratan-te economicamente mais forte e sequer pu-dessem ser objeto de renúncia por parte docontratante destinatário da proteção, no casoo consumidor. Aqui, não é objeto de prote-ção um simples interesse patrimonial doparticular. Uma vez que essa categoria, osconsumidores, é destinatária de tudo o quemercado produz, interessa sobremaneira aoEstado intervir nas relações de consumopara prevenir e reprimir os abusos freqüen-temente cometidos contra essa categoria eco-nômica. Aqui não é o interesse individualpatrimonial do consumidor que aciona anecessidade de intervenção do Estado, mas

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o consumidor enquanto uma comunidadeeconômica no relacionamento com outracomunidade, a de fornecedores ou profissi-onais44.

É certo, como sustentado aqui, que o fatode uma norma ser internamente imperativanão quer dizer que o seja internacionalmen-te. Seria necessário recorrer à vontade dolegislador45 para ver se ele pretendeu outor-gar a essa norma o conteúdo de norma deconflito unilateral ou de aplicação imedia-ta. E por que ele outorgaria a essa normaesse conteúdo? Exatamente porque estari-am em jogo elementos vitais da regulamen-tação desse ordenamento, seja numa visãomais restrita do que seja esse “caráter vi-tal”, seja numa visão mais aberta, como sus-tenta Marques dos Santos, mas o certo é queesse caráter deverá estar presente. E tal fazsentido, exatamente porque a conseqüênciada norma de aplicação imediata é por de-mais profunda para o método conflitual, aoimplicar o afastamento do direito, em tese,aplicável.

Ao ter como ponto de partida a vontadedo legislador, uma dificuldade se revela deimediato na identificação da norma do CDCcomo sendo de aplicação imediata: a faltade qualquer menção expressa em todos osartigos que compõem o Código sobre a suaprojeção espacial internacional. Ao contrá-rio do diploma das cláusulas gerais do di-reito português46, não há na lei brasileira dedefesa do consumidor qualquer indicaçãoexpressa quanto à presença de uma normade conflito unilateral.

Restaria, então, buscar essa norma deconflito unilateral, no CDC brasileiro, porvia interpretativa. Identificar essa norma deconflito unilateral, por via interpretativa, nãopode significar precisamente a necessidadede recorrer à intenção do legislador. Essaidentificação deve ter como ponto de parti-da a localização da norma dentro de deter-minado ordenamento jurídico e os princípi-os que informam esse sistema jurídico, nãoa vontade do legislador isoladamente con-siderada. Tem que se tomar em considera-

ção a importância daquela norma para de-terminado ordenamento jurídico, se ela estáou não a serviço da efetivação de um fimpolítico ou social considerado importantepara aquela organização política, no caso abrasileira. Colocar o acento, para a resolu-ção da questão, na vontade do legisladorimplica uma limitação severíssima da ativi-dade interpretativa. O acento deve ser sem-pre colocado na relação entre a norma emcomento e o funcionamento da organizaçãopolítica; a sua obediência impõe-se tantointernamente como internacionalmente,para a salvaguarda desses interesses vitaisdessa organização47.

Em se tratando da defesa do consumi-dor, parece-me que, implicitamente, aprópria Constituição impôs um limite ao di-reito aplicável resultante do método confli-tual48.

Não obstante a ausência no texto legalordinário de qualquer norma nesse sentido,a conclusão se impõe por força do estatuídona própria Constituição Federal. Ao atribuirà proteção do consumidor o status de direi-to fundamental, implicitamente, o artigo 5o,XXXII, da Constituição passou a dispor so-bre a necessidade dessa proteção toda a vezque esteja em jogo um interesse de um con-sumidor.

Se não se pode atribuir a toda normaconstitucional a obrigatoriedade da suaaplicação às situações internacionais emdetrimento do método conflitual49, é inegá-vel que os direitos fundamentais, assim re-conhecido no foro, conforme sustenta Mou-ra Ramos (1999, p. 209), “serão estes os quemais poderão ser chamados a influenciaras regras de conflitos”. Tal implica o reco-nhecimento de que a solução material docaso concreto, uma vez sujeita ao controleda lex fori brasileira, não pode ter como irre-levante o direito fundamental de defesa doconsumidor consagrado nessa ordem jurí-dica. É que, se assim fosse, acabar-se-ia neu-tralizando todos os fins e objetivos perse-guidos pelo próprio reconhecimento de umdireito fundamental na lex fori (PINHEIRO,

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[19--?], p. 484). Pode-se dizer, portanto, queo direito fundamental à proteção do consu-midor impõe-se seja nos contratos internos,seja nos contratos internacionais.

4.3. O conteúdo e o fim perseguidos pelasnormas de proteção do consumidor

Pode-se concluir que as normas de pro-teção do consumidor são essenciais para asalvaguarda dos interesses vitais do Esta-do Brasileiro50? Vê-se que a resposta a essaquestão importa em saber como se relacio-na a importância da defesa do consumidorpara a organização social e política brasi-leira, colocando-se, portanto, o acento noconteúdo e função dessas normas.

Como afirmado anteriormente, a defesado consumidor não tem seu ponto de parti-da na proteção patrimonial de um contra-tante individualmente considerado, mas noalcance social dessa proteção. A proteçãojustifica-se na medida em que a desproteção égeradora de desigualdade social para esseimportante seguimento do mercado, fim detudo que o mercado produz: o consumidor.

As normas de defesa do consumidorbuscam concretizar, no ordenamento jurí-dico brasileiro, o princípio da igualdadematerial. O próprio caput do artigo 5o come-ça por preceituar que “todos são iguais peran-te a lei... nos termos seguintes”. Essa igual-dade só será atingida, de acordo com a car-ta maior do ordenamento jurídico brasilei-ro, se também for promovida, na forma dalei, “a defesa do consumidor”. Não é a defesado consumidor um privilégio dessa catego-ria, mas um instrumento que busca igualardesiguais, permitindo relações mais iguali-tárias, enfim, equilibradas. Pode-se mesmodizer que o fim perseguido pela defesa doconsumidor é diretamente o da igualdadematerial; o conteúdo dessas normas proteti-vas está impregnado invariavelmente des-se objetivo, a fim de permitir uma relaçãocontratual ou extracontratual minimamen-te equilibrada51.

Não se pode, sequer, destacar uma úni-ca regra do Código para a efetivação do fim

perseguido pelo Estado brasileiro. Aqui, é opróprio conjunto de regras do Código, comose depreende do seu artigo 1o, com manifes-to caráter imperativo, que está ao serviço daefetivação daqueles fins. Uma vez identifi-cada a aptidão das normas de defesa doconsumidor para integrarem o instituto dasnormas de aplicação imediata, a questãoque ainda persiste é o reconhecimento desua existência ou não no ordenamento jurí-dico brasileiro.

Entretanto, a imperatividade internaci-onal da norma de proteção do consumidorencontra um limite no elemento de conexãoadotado na própria norma constitucional.A norma não persegue propriamente a pro-teção de todo e qualquer consumidor e nemdo consumidor brasileiro em si, mas um con-sumidor que seja residente no Brasil. A re-sidência no Brasil, conforme se infere dopróprio caput do artigo 5o, que diz que essesdireitos fundamentais serão garantidos aos“estrangeiros e brasileiros residentes no Bra-sil”, é o elemento de conexão adotado peloconstituinte brasileiro para autorizar o aci-onamento do sistema protetivo interno. Talimplica que um brasileiro não residente noBrasil, que celebra um contrato no país desua residência, não poderia invocar a pro-teção da lei brasileira. Do contrário, um es-trangeiro, desde que residente no Brasil,poderia invocar a proteção interna.

Mas a simples residência no Brasil, porsi só, seria suficiente para acionar a prote-ção do CDC nos contratos internacionais?Parece-me que não. Mesmo residente no Bra-sil, o conteúdo e os fins das normas de pro-teção do consumidor não serão afetados seele realiza contratos fora do Brasil e em paísestrangeiro realiza todos os atos necessári-os à contratação. É importante para a pre-servação do conteúdo e dos fins da normaque ele tenha sido atraído para a celebraçãodo contrato, no próprio território brasileiro,seja por mensagens publicitárias ou Inter-net, seja por meio do próprio profissionalou seu representante que aqui busca a con-tratação de seus bens e serviços junto ao

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consumidor. É que, assim agindo, o profis-sional não será surpreendido com a aplica-ção da lei brasileira. Portanto, se nenhumdesses atos necessários à contratação ocor-re no Brasil, o consumidor que se deslocapara fora do país e lá adquire bens ou servi-ços, mesmo que como destinatário final, devesujeitar-se à lei do local da contratação.

Conclusão

Do aqui exposto e debatido, pode-se che-gar à conclusão de que é possível fazer atu-ar a reserva da ordem pública internacio-nal, nos contratos internacionais, com vistaa garantir uma proteção mínima do consu-midor brasileiro, quando o resultado decor-rente da aplicação da lex causae for, em con-fronto com aquela (a ordem pública inter-nacional brasileira), manifestamente incom-patível. Não é uma simples diferença de tra-tamento da lei brasileira de defesa do con-sumidor em relação à lex causae que autori-za o acionamento da dita reserva. Esta sóserá acionada, excepcionalmente, de formaa garantir uma proteção mínima ao consu-midor brasileiro, quando o resultado obtidocom o método conflitual clássico se mostrarintolerável no foro brasileiro, diante da re-serva da ordem pública internacional. En-tretanto, esse controle da solução materialfrente ao recurso da reserva da ordem pú-blica internacional é feito a posteriori, semprejuízo inicial do método conflitual.

O controle a priori é também possível exis-tir em matéria de proteção e defesa do con-sumidor brasileiro. Diante do conteúdo edos fins perseguidos pela Lei no 8078/90,pode-se dizer que esse diploma é de vitalimportância para a concretização do prin-cípio da igualdade na República Federati-va do Brasil, ao mesmo tempo em que agecomo princípio informador da ordem eco-nômica, ajudando na redução das desigual-dades sociais. Nesse sentido, as normas doCDC têm aptidão para enquadrarem-secomo norma de aplicação imediata. Dentrodas fontes externas do DIP brasileiro e nos

termos do debate aqui desenvolvido, é pos-sível visualizá-la no Código Bustamante,entendendo que a pactuação em contratosinternacionais de cláusulas contrárias aoque dispõe a Lei no 8078/90, declaradamen-te uma norma de ordem pública e interessesocial, importa em violação a normas impe-rativas de aplicação imediata do foro brasi-leiro. Anote-se, entretanto, que a aplicaçãodo Código Bustamante e, por conseguinte,as normas de aplicação imediata dele de-correntes são restritas às relações entre con-tratantes de Estados Partes do Código.

Com referência à relação com outros pa-íses, que não são signatários do CódigoBustamante, a solução deve ser buscada (pelomenos, por ora, até a ratificação da Conven-ção do México, que dispõe expressamentesobre as normas de aplicação imediata), nopróprio ordenamento brasileiro, mais pre-cisamente no artigo 5o, inciso XXXII, daConstituição Federal.

A natureza do interesse protegido comodireito fundamental, e agindo o Código deDefesa do Consumidor como conjunto denormas tendentes a dar efetividade a essedireito constitucionalmente assegurado,impõe a sua aplicação necessária aos con-tratos internacionais celebrados por consu-midores; consumidores que sejam residen-tes no Brasil e que sejam expostos, no terri-tório brasileiro, a mensagens publicitárias,por qualquer meio, de fornecedores estran-geiros, realizando aqui os principais atostendentes à contratação.

Notas1 “Art. 9o Para qualificar e reger as obrigações,

aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem.Par. 1o Destinando-se a obrigação a ser execu-

tada no Brasil, e dependendo de forma essencial,será esta observada, admitidas as peculiaridadesda lei estrangeira quanto aos requisitos extrínsecosdo ato.

Par. 2o A obrigação resultante do contrato repu-ta-se constituída no lugar que residir o proponente.”

2 Estudos em homenagem à professora Collaço(2002, p. 387, 406).

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3 Projeto de Lei 4.905.4 Nesse sentido, Moura Ramos (1991, p. 191).5 Tratado assinado em fevereiro de 1928 na VI

Conferência Pan-Americana, em Havana; leva onome de Código Bustamante em homenagem aoautor do projeto, Bustamante, renomado estudio-so cubano. O “Código” tem 437 artigos e trata dequase todas as questões de DIP.

6 Ratificaram o “Código” os seguintes países:Brasil, Chile, Equador, Bolívia, Venezuela, Peru,Cuba, República Dominicana, Haiti, Panamá, Cos-ta Rica, Nicarágua, Honduras, Salvador e Guate-mala. Vários países assinaram a convenção comreservas a grande números de disposições. O pró-prio Brasil, à época, fez reserva quanto aos artigos52o e 53o, por causa do divórcio.

7 “Art. 186o Nos demais contratos, e para ocaso previsto no artigo anterior, aplicar-se-á emprimeiro lugar a lei pessoal comum aos contratan-tes e, na sua falta, a do lugar da celebração”. Valla-dão (1980) critica esse e os demais dispositivos daparte de obrigações, que, segundo ele, foram redi-gidos de forma muito confusa.

8 O atual art. 153o e ex-artigo 129o do Tratadoassinado em Roma, em 25.03.1957.

9 A Convenção até hoje não foi ratificada peloBrasil, apenas o México e a Venezuela a ratificaram.

10 “Art. 7o O contrato rege-se pelo direito esco-lhido pelas partes. O Acordo das partes sobre estaescolha deve ser expresso ou, em caso de inexistên-cia sobre acordo expresso, depreender-se de formaevidente da conduta das partes e das cláusulas emseu conjunto. Esta escolha poderá referir-se à tota-lidade do contrato ou a uma parte do mesmo.

A eleição de determinado foro pelas partes nãoimplica necessariamente a escolha do direito apli-cável.”

11 “Não tendo as partes escolhido o direito apli-cável, ou se a escolha do mesmo resultar ineficaz,o contrato reger-se-á pelo direito do Estado com oqual mantém vínculos mais estreitos.

O tribunal levará em consideração todos os ele-mentos objetivos e subjetivos que se depreendamdo contrato, para determinar o direito do Estadocom o qual mantém os vínculos mais estreitos. Le-var-se-ão em conta os princípios de direito comercialinternacional aceitos pelos organismos internacionais.

Não obstante, se uma parte do contrato for se-parável do restante do contrato e mantiver conexãomais estreita com outro Estado, poder-se-á aplicara esta parte do contrato, a título excepcional, a leido outro Estado”.

12 “Artigo 11o Não obstante o disposto nos arti-gos anteriores, aplicar-se-ão necessariamente asdisposições do foro quando revestirem de caráterimperativo.

Ficará à disposição do foro , quando este oconsiderar pertinente, a aplicação das disposições

imperativas do direito do outro Estado com o qualo contrato mantiver vínculos mais estreitos.”

13 “Artigo 18o O direito designado por esta Con-venção só poderá ser excluído quando for manifes-tamente contrário à ordem pública do foro”.

14 Art. 2o “O direito designado por esta Conven-ção será aplicável mesmo que se trate de um Esta-do não parte”. No ordenamento jurídico brasileiro,o tratado internacional goza de simples status de leiordinária. Embora essa posição dos tratados nahierarquia da leis seja criticada duramente peladoutrina majoritária (Cf. RECHSTEINER, 2003, p.103), o que os coloca numa situação de relativainstabilidade em face da possibilidade de revoga-ção por uma lei ordinária posterior, enquanto nãofor sancionada nenhuma disposição em sentidocontrário, o artigo 2o da Convenção do México in-corporar-se-á no nosso ordenamento jurídico comouma verdadeira cláusula geral de relativização dométodo conflitual clássico, consagrado no artigo 9o

da Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro.15 Convenção sobre Lei Aplicável às Obrigações

Contratuais, assinada em Roma, em 19.6.1980.16 O Mercosul foi criado pelo Tratado de As-

sunção, em 1990; hoje, após a constituição de umazona de livre comércio, está na fase da União Adu-aneira Imperfeita, com a adoção de uma políticacomercial externa comum e com uma tarifa externatambém comum. A consolidação de um mercadocomum é objetivo a médio prazo, em que serãoasseguradas as cinco liberdades básicas: livre cir-culação de mercadorias, livre circulação de capi-tais, livre circulação de trabalhadores, livre concor-rência e liberdade de estabelecimento.

17 Comunicado conjunto dos Presidentes doMercosul, de 10 de dezembro de 1998: “A defesado consumidor é: ‘elemento indissociável do desen-volvimento econômico equilibrado do Mercosul’”.Hoje, inclusive, dentro da estrutura organizacionaldo Mercosul, na Comissão de Comércio, existe oComitê 07, especializado em legislar e velar peladefesa dos consumidores no Mercosul.

18 “Art. 18o A tramitação da aprovação do pre-sente Protocolo no âmbito de cada um dos EstadosPartes, com as adequações que forem necessárias,somente terá início após a aprovação do ‘Regula-mento Comum Mercosul de Defesa do Consumi-dor’ em sua totalidade, inclusive eventuais anexos,pelo Conselho do Mercado Comum”.

19 O Protocolo de Buenos Aires sobre jurisdiçãointernacional em matéria contratual, assinado emabril de 94, admite a autonomia da vontade naescolha do foro, mas exclui totalmente da sua apli-cação os contratos celebrados com consumidores.

20 Essa resolução praticamente repete o textodo artigo 50 do Código de Defesa do Consumidorbrasileiro.

21 Cf. LEITÃO, 2002, p. 19.

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22 Cf. ROZAS (1996, p. 277-278).23 Cf. BRANCO, 2002, p. 156. Esse também é o

entendimento corrente da doutrina consumeiristabrasileira (Cf. GUSTAVO TEPEDINO, ([200-?], p.259).

24 Cf. LEITÃO, 2002, p. 12. Nesse mesmo senti-do, Tomasatti Júnior (1995, p. 30).

25 No julgamento do Recurso Especial 292942/MG, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu anatureza de ordem pública das normas do CDC:“...O caráter de norma de ordem pública atribuídoao Código de Defesa do Consumidor derroga aliberdade contratual para ajustá-la aos parâme-tros da lei...”. A doutrina brasileira conclui tam-bém majoritariamente nesse mesmo sentido (Cf.MARQUES, 1999, p. 220).

26 Oliveira Ascensão (2001, p. 507) discorda dotermo “norma imperativa”, posto que “toda regrajurídica é imperativa por definição”. O Autor pre-fere a expressão “regras injuntivas”. Entretanto, nodecorrer deste trabalho, embora concorde com opensamento de Oliveira Ascensão, será utilizada aexpressão “normas imperativas”, por conta de suautilização também corrente no Direito Internacio-nal Privado.

27 Ascensão (2001, p. 508); Irineu Stringer ([199-?], p. 434) defende uma maior amplitude na iden-tificação das normas de ordem pública. Para o re-nomado Professor da Faculdade de Direito da Uni-versidade de São Paulo, normas imperativas e deordem pública têm absolutamente o mesmo signi-ficado. Mais adiante, Stringer defende a opinião deque ordem pública interna e internacional não seconfundem, definindo esta última como “toda aque-la base social, política de um Estado, que é consi-derada inarredável para a sobrevivência desse Es-tado”.

28 “As leis, atos e sentenças de outro país, bemcomo quaisquer outras declarações de vontade, nãoterão eficácia no Brasil, quando ofenderem a sobe-rania nacional, a ordem pública e os bons costu-mes”. Ao comentar o dispositivo em tela, HaroldoValladão (1968, p. 502) diz que ele se refere clara-mente a uma ordem pública internacional, diferen-te da interna, conforme adiante se verá, e afigura-sehoje como uma cláusula geral: é uma noção fluida,relativíssima, que se amolda a cada sistema jurídi-co, em cada época, e fica entregue à jurisprudênciaem cada caso”.

29 A doutrina brasileira também sempre apon-tou nessa direção. Valladão (1980, p. 505): “Sendoum limite, a ordem pública afastará apenas o pre-ceito absolutamente incompatível com o direito do foroe as conseqüências variam caso a caso, normal-mente levando à substituição do direito estrangeiropelo do foro, para proibir ou para conceder (exem-plo do divórcio), para autorizar ou denegar...”

30 Cf. PINHEIRO, [19--?], p. 465.

31Lima Pinheiro ([19--?], p. 465) sustenta queos direitos fundamentais consagrados nas consti-tuições tendem a integrar a ordem pública interna-cional do foro. No mesmo sentido, Teles ([199-?],p. 28). Moura Ramos (1999, p. 234-235) sustentaque não são todos preceitos constitucionais, que,em princípio, estão aptos a integrar a ordem públi-ca internacional, embora admita que é “...irrecusá-vel que, no exercício da actividade judiciária, ostribunais poderão sentir totalmente desvinculadosdo quadro de intenções e diretrizes de sua lei fun-damental, a pretexto de que a internacionalizaçãode certas relações conduz que a regulamentaçãoseja feita através de uma lei estrangeira... Pelaconsideração destes dois vectores – os valoresde certeza e segurança do tráfego internacionale as exigências básicas da ordem constitucional– haverá de passar assim a solução de cada casoconcreto de modo a, com menor dano ao primei-ro, se garantir a integral realização do segun-do”.

32“Art. 4o Os preceitos constitucionais são deordem pública internacional”. Penso que, não obs-tante a literalidade do dispositivo, o mesmo devecomportar uma interpretação restritiva, mais pró-xima do pensamento acima defendido por MouraRamos. Sua interpretação não pode conduzir a umaautorização genérica para o sacrifício do métodoconflitual e, por conseguinte, da segurança jurídi-ca, o que acabaria por implicar o acionamentoda reserva da ordem pública internacional emsituações injustificáveis, em que verdadeiramen-te nem a ordem pública interna poderia estar emjogo.

33 Cf. RECHSTEINER, 2003, p. 156. Nesse mes-mo sentido Valladão (1980, p. 496).

34 Rechsteiner (2003, p. 157), embora, em suaobra, não faça um confronto maior entre a reservada ordem pública internacional e as normas de apli-cação imediata, reconhece a vantagem de se recor-rer a esse último instituto, quando juridicamentepossível.

35 Ramos (1999, p. 121-133). O renomado pro-fessor de Coimbra apresenta de forma bem clara aquestão, pois, como diz, as normas de aplicaçãoimediata devem intervir antes das normas de con-flitos.

36 Cf. Lima Pinheiro ([19--?], p. 226), que admi-te um sintonia mínima entre a justiça da conexão ea justiça material: “A justiça do Direito Internacio-nal Privado, ou justiça conflitual, é mais amplaque a justiça da conexão”.

37 Cf. ROZAS, 1996, p. 279.38 O termo normas de aplicação imediata não reúne

a unanimidade das opiniões. Há autores, como LimaPiheiro ([19--?]), que preferem a expressão normasde aplicação necessária. Até porque, conforme anota oAutor, essas normas nunca reclamam a aplicação

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imediata, mas necessária, porque a sua aplicaçãohaverá de passar sempre por uma valoração confli-tual, conforme adiante se falará. Embora concordecom a manifestação de Lima Pinheiro a esse respei-to, no decorrer deste trabalho, apenas para merosefeitos de sistematização, utilizar-se-á a expressãonormas de aplicação imediata, por conta de sua utili-zação mais corrente na própria doutrina pesquisa-da.

39 Exemplo de norma de aplicação imediata emque o legislador atribuiu-lhe expressamente essacondição é o artigo do Código de Valores Mobiliári-os de Portugal, D.L. no 486/99:

“Independentemente do direito que a outro tí-tulo seja aplicável, as normas imperativas do pre-sente Código aplicam-se se, e na medida em que,as situações, as actividades e os actos tenham co-nexão relevante com o território português”.

40 Entretanto, Lima Pinheiro ([19--?], p. 198)admite que, diante de uma lacuna oculta, poder-se-á chegar a uma norma de aplicação imediata.

41 Cf. PINHEIRO, [19--?], 238. Embora LimaPinheiro conteste os entendimentos de Machado eRamos, que atribuem aos princípios uma funçãohierarquicamente superior à norma conflitual sin-gularmente considerada, o próprio autor não deixade emprestar aos princípios e valores posição derelevância no DIP. “Os valores e princípios estãosubjacentes às regras, servem para sua interpreta-ção e podem justificar uma extensão analógica ouuma redução teleológica. Mas não derrogam as re-gras legais”.

42 Para Vicente (2001, p. 646), o intérprete temampla liberdade em identificá-las e mesmo quan-do, expressamente, haja estabelecido uma normade conflito unilateral, o intérprete deve perquirirsempre seu conteúdo e função dentro do ordena-mento jurídico de origem. Tal pode, na visão doAutor, implicar, inclusive, a simples tomada emconsideração ou até que essas normas não sejamnecessariamente aplicadas.

43 Cf. ARAÚJO, 2000, p. 33. Araújo, entretanto,sugere que o Juiz tem um “poder discricionário degrande alcance” para identificação dessas normasno ordenamento jurídico do foro. Parece-me que aquestão não se relaciona propriamente com um po-der discricionário do Magistrado, porque a decisãonão poderá ser jamais arbitrária. É contra essa arbi-trariedade que a doutrina vem buscando critérios,conforme adiante se verá, para que o recurso a nor-mas de aplicação imediata seja feito sem imporum risco demasiado à segurança das relações con-tratuais internacionais.

44 Em sua tese de mestrado sobre A proteção doConsumidor nos Contratos Internacionais, FDUL, Te-les (1997, p. 79) aponta para esse mesmo entendi-mento do tratamento do consumidor na ordem ju-rídica portuguesa.

45 Cf. PINHEIRO [19--?]. Nesse mesmo senti-do, Vicente (2001) e Teles (1997).

46 DL no 220/95. Art.23o: “Independentementeda lei que as partes hajam escolhido para reger ocontrato, as normas desta secção aplicam-se sem-pre que o mesmo apresente ligação estreita aoterritório dos Estados-membros da União-Eu-ropéia”.

47 Para Menezes Leitão (2002, p. 27), a defesado consumidor “é postulado político essencial” doEstado moderno.

48 Mesmo diante da resistência de Lima Pinhei-ro ([19--?], p. 482- 483) em reconhecer a possibili-dade de chegar-se a uma norma de conflito especi-al, por via interpretativa, ele admite que, em setratando de certos preceitos constitucionais, emespecial os que tratam de direitos fundamen-tais, é possível identificá-las com recurso a exe-gese.

49 Cf. Moura Ramos, 1999, p. 188.50 Analisando a questão sob a ótica da natureza

da defesa do consumidor, Teles (1997, p. 80) con-clui que, em princípio, as normas de proteção aosconsumidores têm aptidão para adquirirem a na-tureza de normas de aplicação imediata.

51 Não está o Código em busca de uma justiçatotal ou um equilíbrio total. Até porque os princi-pais dispositivos do Código revelam-se verdadei-ras cláusulas gerais, em que cabe ao intérprete atarefa de, no caso concreto, efetivar os valores im-pregnados na norma. Admite-se que as cláusulascontratuais possam até ser geradoras de algumdesequilíbrio ou alguma injustiça. O que não seadmite é o desequilíbrio manifesto, a injustiça ma-nifesta. A partir desse momento, o Estado aciona osistema protetivo, intervindo drasticamente no con-teúdo dos negócios jurídicos a fim de corrigi-los epermitir uma relação minimamente equilibrada,justa.

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Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia

1. IntroduçãoEste ensaio buscará cuidar do embate

entre dois dos mais notáveis juristas do sé-culo XX, Hans Kelsen e Carl Schmitt, acercada questão sobre quem deveria ser o “Guar-dião da Constituição”. Pretendemos mos-trar mais de cerca os fundamentos do siste-ma de controle concentrado, tal como forampensados no Estado Social (para depoisrevê-los desde o atual paradigma do EstadoDemocrático de Direito). Ademais, a discus-são mostrará, de forma geral, os princípiosdo próprio controle judicial de constitucio-nalidade. Isso porque é com Kelsen que ocontrole de constitucionalidade passa a sertido como um capítulo do Direito. O que ha-via antes, principalmente nos EUA, eram prá-ticas jurisprudenciais que, como bem diziaLúcio Bittencourt, declaravam o princípio danulidade absoluta de uma lei declarada in-constitucional sem mostrar-lhes os funda-mentos (BITTENCOURT, 1997, p. 140-141).

Kelsen leva a sério o tema do controle deconstitucionalidade, buscando dar-lhe con-

Controle concentrado de constitucionalidadeO “Guardião da Constituição” no embate entre HansKelsen e Carl Schmitt

Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia éAdvogado, Mestre e Doutorando em DireitoConstitucional pela UFMG.

Sumário1. Introdução. 2. Estado, Constituição e nor-

mas constitucionais. 2.1. A Grundnorm de Kel-sen. 2.2. Constituição e leis constitucionais emSchmitt. 3. Justiça constitucional. 3.1. O contro-le de constitucionalidade e o Tribunal Consti-tucional Kelseniano. 3.2. A crítica de Schmittao Tribunal Constitucional. 4. Quem deve sero guardião da Constituição?

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tornos científicos; não só do controle con-centrado que ele cria, mas também do con-trole americano, que ele busca estudar, atémesmo para ao final tecer-lhe críticas. O con-fronto entre Kelsen e Schmitt representa –além de uma belíssima demonstração de téc-nica e retórica – a afirmação da teoria kelse-niana sobre o controle judicial de constitu-cionalidade.

O resultado dessa oposição é uma teoriamais depurada por parte de Kelsen, ofere-cendo a todos um trabalho final muito me-lhor. Para nós, o trabalho de Kelsen é umreferencial não só pela grandeza de suasteses, mas também porque foi justamente eleo criador do controle concentrado que vie-mos a copiar em meados do século passadoe que hoje tem enorme importância no quese refere à jurisdição constitucional noBrasil. Não é possível estudar os efeitos dadeclaração de inconstitucionalidade (ou deconstitucionalidade) nas várias ações hojeexistentes em nosso intricado sistema de con-trole concentrado de constitucionalidade semestudar os fundamentos dados pelo juristavienês; é importante, outrossim, para vermoso quanto seus ensinamentos podem ser ade-quados à nossa realidade constitucional.

Para tanto, seguiremos as discussões tra-vadas entre os dois juristas acerca de quemdeveria ser o “Guardião da Constituição” ecomo essa discussão contribuiu para a Teo-ria da Jurisdição Constitucional (OLIVEIRA,2000, p. 119 et seq.).

Os textos que utilizaremos para expor otema serão basicamente, de Carl Schmitt, DerHüter der Verfassung (A defesa da constituição),publicado no princípio de 1931, e a respos-ta de Kelsen, Were soll der Hüterder Verfas-sung sein? Quem deve ser o Guardião da Cons-tituição?, publicado pouco depois.

Mesmo antes da publicação de Schmitt,Kelsen já sofria ferrenha oposição de algunsjuristas, que acusavam sua teoria de “extre-madamente formalista, una lógica vacia,incapaz de dar cuenta de los fenómenos re-ales, de la vida del derecho, una teoría sinsustancia” (HERRERA, 1994, p. 198).

Quanto a Schmitt1, seu antagonismo aKelsen já pode ser visto desde a primeiradécada do século, mas, a partir da publica-ção de A defesa da Constituição, tornou-se umaconfrontação direta.

Vale a pena lembrar que a época em queos dois juristas publicaram os textos acimafoi marcada pela instabilidade. Em 1929, agrande crise econômica mundial afetou sen-sivelmente a República de Weimar. Haviatambém internamente uma crise de susten-tação política do governo. A partir do finalde 1930, o chanceler Brüning começa a go-vernar por regulamentos (editados pelo pre-sidente), que se apoiavam na segunda partedo famoso artigo 48 da Constituição de Wei-mar:

“Art. 48. (...) No caso de a ordem ea segurança pública do Reich seremperturbadas ou ameaçadas, o Presi-dente do Reich pode tomar as medi-das necessárias para seu restabeleci-mento, se for necessário, com o auxí-lio das forças armadas”.

O próprio Schmitt (1983, p. 25), a despei-to de apoiar publicamente a decisão de Brü-ning, reconhece a crise vivida pela Alema-nha, chegando a escrever no prefácio de seulivro que a análise acerca do guardião daConstituição era um trabalho “difícil e peri-goso”; na Áustria, a situação não era muitodiferente, conforme veremos infra.

Além disso, ambas teorias se deparamcom o problema da unidade do Estado, ame-açada pela emergência política do proleta-riado, principalmente após a 1a Guerra. Pro-curam elas, de alguma forma, mostrar comoseria possível a integração dessas massasem um Estado cujas lutas prefaciavam aaniquilação e/ou a ameaça bolchevique.

A proposta da Constituição de Weimarapontava na direção de uma democraciaorgânica em um Estado Social e inclusivo,inaugurando uma nova fase dentro do cons-titucionalismo; mas, como dissemos, justa-mente essa ordem estava a ruir. O “EstadoPlural” vai ser grandemente combatido porSchmitt, que vê na homogeneidade o princí-

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pio da democracia. Kelsen, ao revés, apóia oaumento de agentes na política e ataca, di-zendo que, na verdade, as elites estavam atemer uma emergência do proletariado. Éesse o pano de fundo que dará a tônica dasdiscussões que se seguem.

Apenas para podermos situar a concep-ção de cada um sobre a defesa da Constitui-ção, vamos, ainda que sucintamente, exporalgumas de suas idéias centrais sobre umaconcepção de Estado, de democracia e deConstituição.

Antes, porém, queremos deixar aqui umaobservação a respeito dos textos de Kelsenque pesquisamos no sentido de concordarcom Herrera (1994, p. 215), quando afirmaque ocasiões como essa servem para des-mistificar o autor de Teoria pura do direitocomo um teórico despreocupado dos pro-blemas concretos; muito ao contrário, comose verá, o que percebemos foi um publicistaferrenhamente defensor da democracia e daformação plural e democrática das leis noParlamento.

2. Estado, Constituição e normasinconstitucionais

2.1. A Grundnorm de Kelsen

Kelsen acredita no Parlamento como ins-tituição nuclear da democracia representa-tiva. Como bem analisou Fioravanti (1999,p. 156), na perspectiva de Kelsen, a Consti-tuição democrática não possui donos, não éfilha de um sujeito ou de um poder, mas de“un proceso que produce constitución en lamedida en que es capaz de mediar, de com-poner, de representar en su interior la plu-ralidad de las fuerzas y de los concretos in-tereses existentes”. Os grupos representa-dos no Parlamento, em suas discussões, pro-curariam não verdades absolutas (como acu-sava Schmitt, infracitado), mas verdades re-lativas, que gerariam compromisso, essênciada democracia e que consiste em “posponerlo que separa a los associados en favor de loque los une” (KELSEN, 1992, p. 453)2.

Contribuiriam para esse mecanismo asoscilações de maiorias, o que possibilitariasempre a revisão dos compromissos de acor-do com a representação mais atual. Apesarda possibilidade de se constituírem novoscompromissos, isso não poderia significarmudanças tão drásticas justamente porque,ao final, o Parlamento teria de ser fiel à Consti-tuição, já que lhe é tributário quanto à sua ori-gem e atribuições3. Por essa razão, para Kelsen(1998, p. 129), não faz sentido opor a JustiçaConstitucional frente a uma pretensa “so-berania do Parlamento” (que, aliás, não exis-te para ele). É que

“no se puede dejar de reconocer quela Constitución regula, en definitiva,el procedimiento legislativo de la mis-ma forma que las leyes regulan el pro-cedimiento de los tribunales y de lasautoridades administrativas, que lalegislación está subordinada a laConstitución exactamente igual que lajusticia y la administración lo están ala legislación”.

Assim, a grande importância dada porele ao Parlamento não configura uma “so-berania do Parlamento” e nem qualquerdefesa de uma “ditadura da maioria”, an-tes pelo contrário, apesar do apoio às deci-sões colegiadas no Parlamento, Kelsen co-loca as leis daí decorrentes dentro de uma(rígida) estrutura escalonada, em que estasestão abaixo – e, logo, sob a dependência –da Constituição4, e, como veremos infra, umadas funções da Justiça Constitucional é jus-tamente a defesa das minorias.

A Constituição da Áustria a ser aqui con-siderada é a aprovada em 1920 até as refor-mas de 1930. As emendas após 1930 nãoserão por ele consideradas para tratar dotema da jurisdição constitucional, porque,nas palavras do próprio Kelsen ([19--?], p.81), tais emendas “fueron decretadas bajoun régimen semifacista y tenían la tenden-cia de restringir el control democrático de laconstitucionalidad de las leys”.

É sobre aquele período anterior queKelsen traça uma proposta de proteção de

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tipo judicial e concentrada à Constituição,o que representou não só uma novidade, masuma revolução conceptual, que viria a pro-pagar-se pelas mais diversas regiões do glo-bo, conforme vimos na primeira parte destetrabalho. Nesse status constitucional, foramdadas garantias à Constituição contra leis eregulamentos. Sobre os “regulamentos”, valea pena esclarecer que estes não são apenasaqueles editados pelo governo para daremeficácia às leis (os nosso conhecidos decre-tos), mas aos doutro tipo, isto é, aos regula-mentos editados “diretamente debaixo daConstituição”.

Kelsen ([19--?], p. 82) tem uma especialpreocupação com essa espécie normativa –preocupação essa que não se mostraria in-fundada dados os acontecimentos futuros.Segundo o mestre vienês, o controle sobreos regulamentos era até mais importante doque o sobre as leis, já que “el peligro de quelos órganos administrativos excedam los lí-mites de su poder de crear normas jurídicasgenerales es mucho mayor que el peligro deuna ley inconstitucional”. A observação,inclusive, é particularmente interessante evale para nosso atual momento institucio-nal; referimo-nos às medidas provisórias quetêm se proliferado e que certamente amea-çam a ordem constitucional tanto ou maisque as leis.

Conclui Kelsen ([19--?], p. 84),“la utilización abusiva del artículo 48de la Constitución de Weimar, queautorizaba al Gobierno a promulgar re-glamentos, fue el camino a través del cualel caracter democratico de la Republica fuedestruído en Alemania, y preparó el as-censo del nacional-socialismo al poder”[grifos nossos] (Cf. KELSEN, 1998, p.133-134).

Mais à frente, mostraremos o quanto ele es-tava preocupado com os regulamentos notocante à independência do Tribunal Cons-titucional em relação à Administração e àforma de escolha dos juízes.

Qual a concepção de Kelsen sobre aConstituição? A Grundnorm é a Norma

Fundamental. Trata-se de uma norma quese constitui no fundamento do Estado (quena verdade com ele se confunde) e que regu-la a produção de todas as outras normas,por isso, deve ser rígida e assegurada a mai-or estabilidade possível. A unidade do or-denamento jurídico dá-se enquanto as leisordinárias são produzidas em conexão dedependência em relação à Constituição.

Fala-se então de Constituição em senti-do material – normas que regulam a produ-ção das demais normas – e Constituição emsentido formal – um documento que contémnormas referentes a assuntos politicamenterelevantes. Sinteticamente, pode-se entenderConstituição como

“un principio en el que se expresa ju-rídicamente el equilibrio de las fuer-zas políticas en el momento que setoma en consideración” (...) [é também,como norma superior,] “la norma queregula la elaboración de las leys, delas normas generales en ejecución delas cuales se ejerce la actividad de losórganos estatales, de los tribunales yde las autoridades administrativas”(KELSEN, 1998, p. 115; Cf. FIORA-VANTI, 1999, p. 155).

A nova fase do constitucionalismo, o Soci-al, inaugurado formalmente com a Consti-tuição de Weimar, não passa desapercebi-da por Kelsen. Observa ele que, nas “Cons-tituições modernas”, é ampliado o conteú-do de normas naquele segundo sentido, poiscontêm um catálogo de direitos fundamen-tais dos indivíduos ou liberdades indivi-duais.

A conseqüência é que agora uma lei podeser inconstitucional por contrariar o proce-dimento de sua elaboração (inconstitucio-nalidade formal) ou por seu conteúdo con-trariar os princípios da mesma (inconstitu-cionalidade material). Com a ajuda da pirâ-mide hierárquica do ordenamento, Kelsen(1998, p. 110) mostra que, no transcurso des-de a Constituição até a sentença (e regula-mentos), “el Derecho regula su propria cre-ación y el Estado se crea y se recrea sin tre-

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gua con el Derecho” 5 (Cf. KELSEN, 1998, p.111-112).

A regularidade da lei e normas inferiores(ou, o que dá no mesmo, a garantia da Cons-tituição) se afere pela relação de correspon-dência de um grau inferior com um superi-or. Dessa forma, não só as normas indivi-duais (sentença e atos administrativos) po-dem ser conferidas com relação à lei, mastambém esta pode ser avaliada frente àConstituição. Essa regularidade apenaspode ser aferida por um Tribunal Constitu-cional, conforme falaremos mais adiante.

2.2. Constituição e leisconstitucionais em Schmitt

A respeito do Parlamento e da Democra-cia, era opinião de Schmitt (1983) que a cren-ça de que a democracia exercida no Parla-mento por meio do livre jogo de opiniõesnão era mais do que uma “metafísica libe-ral”. Democracia para Schmitt é vista comohomogeneidade e, por isso, não estaria ame-açada pelo fascismo ou pelo comunismo,mas pela democracia de massas.

Schmitt diferencia Constituição (um todounitário ou decisão política sobre a existên-cia de um Estado) e leis constitucionais (re-alização normativa). Constituição é a deci-são conjunta de um povo sobre sua existên-cia política (SCHMITT, 1983, p. 130). A Cons-tituição seria democrática quando

“ha sido querida por el pueblo sobe-rano, que en ella aparece como uni-dad política capaz de decidir sobre suproprio futuro, [logo, o grande inimi-go da Constituição se mostra] en elgran proceso histórico, evidente a lolargo del siglo XX, de articulación dela socieadad civil y política en senti-do pluralista, que en esta línea se vecomo algo que continuamente corroe ypone en discusión la unidad del pue-blo soberano representada en la cons-titución” (FIORAVANTI, 1999, p. 159).

Para o autor alemão, a Constituição deWeimar era “liberal”, portanto desconfor-me à realidade (devedora de uma tradição

já superada), mas essa não é uma crítica queapenas opõe o empírico e o ideal; trata-se decondenar todo o modelo e sua base legiti-mante. O problema é que a Constituição deWeimar surgira na época em que o Reichestava limitado pelo Tratado de Versalhes.

Desde a reconstrução histórica feita porele, a Constituição de Weimar era, quanto àsua ideologia, uma Constituição “póstuma”,porque buscaria realizar as já fracassadasidéias liberais-burguesas do século XIX, man-tendo suas instituições e regulamentos.

No século XIX, imperava o dualismoEstado (burocrático, monárquico, que sus-cita desconfiança) vs. Sociedade (represen-tada no Parlamento), e a Constituição eraum contrato entre esses. Apenas em tal qua-dro, em que a Constituição é vista como umcontrato entre Monarca e Povo (representa-do no Parlamento), em que o segundo pre-cisava a todo momento opor a Constituiçãofrente à insubordinação do primeiro, é que oParlamento pode ser visto como o protetor daConstituição, de forma similar a uma partecontratante quando vela pelo pactuado6.

Com o tempo, porém, o Parlamento co-meça a se sobrepor e passa a ser o centrodas atividades estatais; o Estado Legislati-vo vai se aperfeiçoando e desaparece aque-la dualidade, pois o Estado passa a ser a“auto-organização da sociedade”, interven-cionista, assistencialista. Aqueles que semostravam descontentes com as mudançastrataram logo de atacar esse “Estado Total”,principalmente seu órgão mais saliente, oParlamento: logo surgem reclamações degarantias contra o legislador – aqui estariao “germe” das aspirações a um controle dasleis7. Vale a pena ressaltar que Schmitt nãoestava solitário nessas observações, comoaponta Fioravanti (1999, p. 151), as discus-sões em torno de um pretenso “absolutismoparlamentar” estiveram presentes desde oinício da República de Weimar.

Voltando à questão da Constituiçãocomo contrato entre Governo e Parlamento,tendo como substrato uma sociedade dua-lista ou até pluralista, se antes de 1919 po-

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dia-se falar nessa idéia contratualista, apósa Constituição introduz-se a “idea demo-crática de la unidad homogénea e indivisi-ble de todo el pueblo alemán”, que se deuuma Constituição, por um ato unilateral.Logo, a Constituição já não mais pode servista como um contrato, senão no que tangeao compromisso federativo.

Ao lado de – e competindo com – esseelemento unilateral, haveria outro, o dosgrupos pluralistas (SCHMITT, 1983, p. 114),que formariam, sobre todo o territórionacional, “constelações sociais” e “comple-xos de poder”. Apesar de não negar sua exis-tência e sua força – pelo contrário, Schmittmostra o quanto têm eles influenciado apolítica do Reich –, ele acaba por relegar-lhes o papel de amostras da fragmentação plu-ralista do Estado, que não é vista com bonsolhos por ele, conforme dissemos acima,dentro de sua visão de democracia comounidade do povo.

Dessa forma, a atuação desses gruposde poder faria a Constituição transformar-se mais uma vez em um compromisso, ape-nas não mais entre Rei e Parlamento, masentre os próprios grupos sociais. Tal con-cepção, ultrapassada, de Constituição não podeser aceita na nova ordem, sendo de todo in-compatível com aquele ato unilateral.

Mesmo que houvesse coalizões entre es-ses grupos formando “compromissos”, elasseriam variáveis e instáveis, o que gerariadesagregação. A Constituição, assim, umaobra atomizada dos grupos sociais (Consti-tuição como convênio), poderia pois ser re-clamada pelos mesmos, frente ao Estado.Schmitt (1983, p. 116) cita casos do Tribu-nal de Justiça Constitucional, em que se per-cebe que as partes “aparentes” na verdaderepresentavam estruturas sociais ou coali-zões de partidos em disputa, o que é incom-patível com sua teoria democrática8.

Além de pôr em perigo a formação daunidade nacional, o pluralismo do conceitode legalidade destruiria o respeito à Consti-tuição e transformaria sua área de atuaçãoem uma zona cinzenta.

Ainda que não concordemos com suaopinião sobre a influência “danosa” dos gru-pos pluralistas, há um ponto que deve ser le-vado em consideração pela sua atualidade:

“Los grupos (...) que en cada momen-to dominan, consideran sinceramen-te como legalidade la utilizaciónexhaustiva de todas las posibilidadeslegales y el aseguramiento de sus po-siciones, el ejercicio de todas las atri-buciones políticas y constitucionalesen materia de legislación, administra-ción, política personal, (...) de onderesulta naturalmente que toda severacrítica e incluso cualquier amenaza asu situación aparece para esos gru-pos como ilegalidad, como acto sub-versivo o como un atentado contra elespíritu de la Constitución” (SCHMITT,1983, p. 153)9.

Um outro aspecto na doutrina de Schmitt(1983) é a “teoria da exceção”. Em sua Teo-logia política (1922), ele define o soberanocomo aquele que “decide sobre o Estado e aexceção”. O ordenamento jurídico está assen-tado sobre uma decisão10 e não sobre uma nor-ma. Contrapõe-se a Kelsen, que identifica Es-tado e Ordenamento Jurídico, além de priori-zar a formação democrática das leis a partirdas discussões parlamentares.

Schmitt critica ainda Kelsen dizendo quesua teoria de Estado constitui uma “metafísi-ca monista que exclui o arbitrário e a exce-ção”. Segundo ele, a exceção faz parte do di-reito, pois é na situação de exceção que a sub-sistência do Estado mostra sua superiorida-de sobre a validade da norma jurídica, pois éaí que a decisão fica livre de toda obrigaçãonormativa e a norma se reduz a nada (SCH-MITT, 1983, p. 132; HERRERA, 1994, p. 199).

3. Justiça constitucional

3.1. O controle de constitucionalidade e oTribunal Constitucional Kelseniano

Em primeiro lugar, vale apontar que ajustiça constitucional, para Kelsen (1998, p.

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109), é “un elemento del sistema de medi-das técnicas que tienen como fin assegurarel ejercicio regular de las funciones estata-les”11. A importância que já à época de Kel-sen se dava à jurisdição constitucional deve-se, segundo o mesmo, a razões teóricas ejurídicas – às primeiras, pois somente há pou-co tempo teria surgido a doutrina do escalo-namento das normas, que é para ele o que dásuporte ao controle de constitucionalidade.

Quanto às razões políticas, como bemmostra Kelsen, as doutrinas que até entãose debruçavam sobre a realidade das mo-narquias constitucionais, paradoxalmente,não valorizavam o controle de constitucio-nalidade das leis — já que é aqui que surgea doutrina da Constituição como limite. Essasdoutrinas, ao contrário, apresentavam omonarca como o “artífice único” ou autên-tico da legislação, e a função do Parlamentoseria a de apenas aderir, de maneira mais omenos necessária, às suas ordenações.

Hodiernamente, portanto, a justiça cons-titucional deparava-se com um problemateórico-constitutivo básico: como tratar daregularidade da legislação, ou criação doDireito, usando padrões estabelecidos pelopróprio Direito, objeto do controle?12 Esseproblema fica ainda maior – diz Kelsen(1998, p. 110) – quando se confundem legis-lação e criação do Direito, e, conseqüente-mente, Direito e lei. A identificação entre le-gislação e criação do Direito não pode seraceita por Kelsen, pois, segundo sua doutri-na, o aplicador da norma (juiz/administra-dor) também cria Direito.

Haveria, enfim, duas formas de garantiada regularidade das normas. As chamadasgarantias preventivas e as repressivas. Ocontrole preventivo refere-se às formas polí-ticas de responsabilização pessoal do órgãoque promulgou a lei e o outro, repressivo,jurídico, consiste em nada menos que a nãoaplicação da lei.

As garantias repressivas referem-se à te-oria das nulidades: nulo (a priori) é o atoquando qualquer pessoa pode lhe exami-nar a regularidade; anulável quando neces-

sita de outro ato jurídico que lhe retire sua“qualidade jurídica”. Essa distinção torna-se muito importante quando combinada àdistinção entre inconstitucionalidade for-mal e material (supracitado - 2.1.); no pri-meiro caso, temos um ato nulo (trata-se deuma pseudolei) e, no segundo, o ato é anu-lável (aqui, sim, a lei é inconstitucional).

Dessa forma, dentro de uma teoria dasgarantias, como observa o Professor José Al-fredo de Oliveira Baracho (1999, p. 100),Kelsen percebeu muito bem que a “anula-ção do ato inconstitucional representa aprincipal garantia e o meio mais eficaz depreservação da Constituição”.

A despeito da teoria das nulidades, Kel-sen (1998, p. 124) diz que no sistema de di-reito positivo não é possível conceber-seuma norma que possa ser tida como nula,pois apenas há nulidade após o reconheci-mento por uma autoridade pública, e nun-ca a priori13. Por isso, apenas se pode falarem nulidade como anulação com efeito re-troativo. Leis criadas em desconformidadecom o procedimento legislativo (ou que nãocontenham o conteúdo por ele determina-do) são “válidas” – no sentido de existentes– a despeito de revogáveis por um processoespecial.

A questão sobre quando um ato é nulo/anulável deve ser decidida por uma esferapública. O particular não pode ter a prerro-gativa de atribuir nulidade a uma norma,pois faria com que a mesma tivesse cessadasua força coativa. Se o indivíduo ainda as-sim o faz, é por sua conta e risco, pois pode vira sofrer conseqüências caso a norma sejaposteriormente tida como constitucional.

Assim, apenas os tribunais poderiamverificar a constitucionalidade das leis. Mastodo e qualquer tribunal? Não, segundo aconcepção kelseniana. Se qualquer tribunalpudesse verificar a regularidade de normasgerais em um caso concreto, isso resolveriao problema para aquele caso, mas sua atua-ção “apenas” pontual não conferiria uni-dade ao sistema, podendo causar insegu-rança jurídica; esta foi a maior crítica de

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Kelsen ([19--?], p. 83) ao sistema difuso ame-ricano, in verbis, “la ausencia de una decisi-ón uniforme en torno de la questión sobrecuándo una ley es inconstitucional (...) esun gran peligro para la autoridad de laConstitución”.

Se o controle difuso não é a melhor op-ção, propõe então o mestre de Viena um con-trole “concentrado”. Mas, para isso, era ne-cessária uma redefinição da organizaçãojudiciária, já que a cúpula do Judiciário aus-tríaco (como de resto em toda Europa Conti-nental) não possuía força suficiente parapossibilitar o respeito às sentenças. De fato,a Obster Gerichttshof não possuía autorida-de para que suas decisões sobre a constitu-cionalidade das leis se impusessem aos de-mais tribunais ordinários (e administrati-vos) inferiores, nem mesmo aquela CorteSuprema estaria obrigada a decidir da mes-ma forma em caso análogo posterior.

A criação de um Tribunal Constitucio-nal era, pois, de suma importância paraKelsen, principalmente no que diz respeitoà Constituição Austríaca (cujo projeto lhepertencia). Senão vejamos. A Constituiçãode 1920 previu, nos artigos 137 a 148, a cri-ação do primeiro Tribunal Constitucional,o Verfassungsgerichtshof, a quem foi dada acompetência primordial de anular leis queconsiderasse inconstitucionais.

As decisões desse Tribunal anulavam alei inconstitucional, valendo (em princípio)para o futuro. Caso o Verfassungsgerichtshofconsiderasse que a lei é inconstitucional, adecisão valeria contra todos, e a lei seriaanulada, cassada (aufhebt), ou seja, perde-ria a eficácia a partir da decisão. Isso querdizer que, até a sentença começar a ter eficá-cia, a lei seria válida e os atos celebradoscom base nela permaneceriam inalterados;em contrapartida, a decisão, quando come-çasse a produzir efeitos, atingiria a todos osórgãos do Estado e aos cidadãos em geral.

Essa peculiaridade torna-se muito im-portante no Brasil a partir do momento emque as Leis 9.868/99 e 9.882/99 que regula-mentaram as ações referentes ao controle

concentrado de normas contêm dispositivosemelhante, possibilitando ao Supremo Tri-bunal Federal,

“tendo em vista razões de segurançajurídica ou de excepcional interessesocial, (...) por maioria de dois terçosde seus membros, (...) decidir que ela[a decisão] só tenha eficácia a partirde seu trânsito em julgado ou de ou-tro momento que venha a ser fixado”(art. 27 da lei 9.868/99).

Voltando ao Tribunal ConstitucionalAustríaco, Kelsen defendia que ele deveriaser independente do Governo e do Parla-mento; seus membros eram escolhidos peloParlamento entre juristas renomados (Kel-sen mesmo presidiu o Tribunal por largotempo). A razão de assim ser está relaciona-da diretamente com a posição do TribunalConstitucional como legislador negativo.Como a Constituição lhe confere uma fun-ção tipicamente legislativa (derrogar leis),segue-se natural para Kelsen a escolha deseus membros pelo órgão legislativo, o quede pronto diferenciava os juízes daquelaCorte dos demais, escolhidos pela Adminis-tração. Tal é a importância disso que o juris-ta vienês, ao se referir à reforma de 1929,destaca, como um dos indícios da ascensãodo nazismo na Áustria, a mudança na for-ma de escolha dos membros da Corte Cons-titucional, pois, com a citada reforma, osantigos juízes do Tribunal Constitucionalforam afastados e os novos juízes passarama ser escolhidos pela Administração.

É curioso observar que o jurista vienêsnão faz referência às outras mudanças quea reforma de 29 provocou no Verfassungsge-richtshof, ao alargar a legitimidade ativa da“ação de inconstitucionalidade”. A possí-vel razão dessa omissão, como já referido, éque essas reformas já apontavam para aqueda do Estado austríaco e, com ele, daConstituição tão cara a Kelsen.

Sob o aspecto político, o Tribunal Cons-titucional possuía duas funções: garantir aidoneidade da democracia, oferecendo àsminorias um instrumento para se defende-

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rem das decisões da maioria, e ser tambémuma garantia para o Parlamento, na medi-da em que controlava também os regulamen-tos do Governo. Importante salientar queessas eram as razões de existir um órgão decontrole de constitucionalidade, na perspec-tiva de Kelsen. Quanto à proteção das mi-norias, diz ele:

“Si se considera que la esencia dela democracia se halla, no en la omni-potencia de la mayoría, sino en el com-promiso constante entre los gruposrepresentados en el Parlamento por lamayoría y por la minoría y, como con-secuencia de ello, en la paz social, lajusticia constitucional aparece comoum medio particularmente idóneopara hacer efectiva esta idea” (KEL-SEN, 1998, p. 152).

Dessa forma, o Tribunal Constitucionalpodia então garantir a paz política dentrodo Estado. Dizia Kelsen (apud HERRERA,1994, p. 204), em seu ensaio Essência da de-mocracia, que “uma democracia sem contro-le não pode durar”.

3.2. A crítica de Schmitt aoTribunal Constitucional

Preliminarmente, começa Schmitt (1983,p. 27), “la demanda de un protector, de undefensor de la Constitución es, en la mayo-ria de los casos, indicio de situaciones críti-cas para la Constitución”. Assim teria sido,segundo seu parecer, na Inglaterra apósCromwell e na França, na Constituição de1799, que, após grande agitação política,coloca o Senado como conservateur da Cons-tituição. Se no século XIX, na Alemanha, osproblemas constitucionais puderam ser ti-dos apenas como políticos e os mecanismosde defesa da Constituição, deixados de lado,admite o jurista alemão que, desde a Consti-tuição de Weimar, voltam a interessar asgarantias especiais da Constituição e se de-manda que “alguém” a proteja, pelas razõesque abaixo relacionamos.

A princípio, pensa-se em um controlejudicial, mas essa é apenas uma solução in-

tuitiva, pois ignora a superioridade do Par-lamento sobre o Judiciário, na medida emque as decisões deste baseiam-se em leis di-tadas por aquele. Os ensaios sobre um con-trole de tipo judicial produzidos até entãoforam como que atos reflexos às ambiçõesintervencionistas do Estado, capitaneadas,segundo Schmitt, pelo Parlamento.

Considerando a situação constitucionalpolítica em que vivia, essa não lhe parecia amelhor resposta à questão. O Estado abs-tencionista do século XIX desaparecera,dando lugar cada vez mais a um Estado queintervém, e em que “todos os problemas setornaram estatais”.

Seguindo os apelos dos que pediam umcontrole contra o Parlamento, o Tribunal deJustiça Constitucional do Reich chegou a secolocar como protetor da Constituição. Nomesmo sentido, pululavam projetos de leique atribuíam a um tribunal a missão dedefender a Constituição. Mais uma vez,Schmitt atribui tal posicionamento à ideo-logia que concebe que um procedimento ju-dicial resolve todos os problemas e desco-nhece a diferença entre uma sentença e umaresolução acerca de um preceito constituci-onal, limitando a proteção apenas contra leise regulamentos.

Schmitt admite que os tribunais façamum controle geral e acessório das leis, masisso não significaria, pelo menos na Alema-nha, uma defesa da Constituição. Para isso,ele diferencia proteção e controle. O que ostribunais em geral fazem é o controle dasleis (tal atividade é ocasional, incidenter, di-fusa), mas não a proteção. Dizer o contrárioé querer importar o sistema de controle ame-ricano, que não poderia ser adaptado a ne-nhum Estado da Europa Continental.

De outro lado, também ruim é a alterna-tiva de se confiar tal missão a um TribunalConstitucional; diz Schmitt (1983, p. 58) ci-tando Hugo Preuss, “pai” da Constituiçãode Weimar, que retirar dos juízes comuns afunção do controle difuso e atribuí-la a umTribunal excepcional seria como “encomen-dar as ovelhas ao lobo”.

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Apenas poderia haver um controle judi-cial em um país onde toda a vida políticaestivesse sob o controle dos tribunais, comoseria o caso dos EUA (SCHMITT, 1983, p.46, 52) (ver infracitado, 3.2), em que o tribu-nal, com base em princípios gerais e critéri-os fundamentais, defendesse a ordem sociale econômica existente.

Afora isso, para que fosse possível po-der falar-se em contradição de uma lei fren-te à Constituição, seria imprescindível quea norma constitucional se pudesse subsu-mir de forma precisa, concreta, no litígio e,frente a isso, estar em contradição com anorma ordinária. O juiz poderia, então, nes-ta situação de necessidade, deixar de aplicaressa última, mas não lhe retirar a validade.Caso contrário, qualquer pessoa, física oujurídica, poderia arrogar-se em protetor daConstituição. Se não há um caso concreto, en-tão a atividade resume-se apenas em comparar“normas sobre normas”, o que desqualifica a ati-vidade do juiz como jurisdicional e o transfor-ma em legislador.

Colocada nesses termos a verdadeira atu-ação difusa dos tribunais no trato das leis,Schmitt propõe-se a rebater o natural contro-le judicial da função de proteção da Consti-tuição.

A atribuição de soluções judiciais a pro-blemas políticos, no ideal do Estado de Di-reito, apenas traz prejuízos para o PoderJudiciário, pois representaria mais uma “po-litização da justiça” do que uma “juridici-zação da política”14. A distinção entre con-trole judicial e proteção política advém deuma distinção anterior, feita por Schmitt,entre Constituição e lei constitucional: as leisordinárias podem ser controladas judicial-mente frente às leis constitucionais, mas aConstituição, como decisão política de umpovo, tem de ser protegida politicamente.

Mas não é isso o que se tem feito, não éassim que a doutrina (e até o Tribunal deJustiça Constitucional do Reich, como vimossupra) tem trabalhado. Ao contrário, tem-sepreferido trabalhar com “ficções sem con-teúdo”. Parte-se de que, se no século XIX o

Parlamento era o natural defensor da Cons-tituição frente ao Governo (daí as teorias emtorno das monarquias constitucionais), ago-ra no século XX, se o Executivo não pode sê-lo, e nem o Legislativo, pois, como se disse,ele assumiu grande importância na estru-tura do Estado, segue-se intuitivamente quecabe ao Judiciário ser o guardião da CartaPolítica.

A limitação de um controle judicial, quenão pode ir além do jurídico, pois do con-trário iria desnaturar-se, pode ser exempli-ficada por dois acontecimentos importan-tes da história constitucional alemã: o con-flito prussiano de 1862 – 1866 e a dissolu-ção do Reichstag em 193015. Casos como es-ses, em que a questão ultrapassava o âmbi-to jurídico, penetrando no político, deixa-ram o Tribunal de Justiça Constitucionalsem ação, sem poder decidir; ora, isso mos-tra o que Schmitt tem sempre afirmado: ojuiz apenas pode dar conta das leis e regu-lamentos, não de questões políticas, funçãoessa típica do Legislativo.

Assim, a atual teoria da defesa da Cons-tituição formulada, segundo ele, frente àsvariações das maiorias parlamentares seriadevedora do constitucionalismo do séculoXIX, em que tal função cabia ao Parlamento(que representava a sociedade), em sua lutacontra o soberano, não podendo, pois, dar-se ao juiz aquela função – que é – política,sem alterar sua posição constitucional.

Schmitt insiste nesse ponto: sentença e leisão coisas diversas. Não se pode aceitar, porformalismo, que qualquer ato proferido pelojuiz seja tido como jurídico. Para ser umadecisão judicial, é-lhe fundamental derivarde uma lei (lei essa que deve ser minima-mente específica a ponto de obrigar de modoconcreto o juiz).

“Si las normas de la política, enlugar de ser determinadas por elChanciller del Reich, lo fueron por elTribunal Supremo, bajo la égida de suindependencia judicial, ello no pro-duciría Justicia ” (SCHMITT, 1983, p.81).

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As conclusões são inevitáveis: nenhumalei pode proteger outra lei; lei é fundamento, enão objeto de decisão; subsumir um fato auma lei não é o mesmo que subsumir umalei simples frente a uma lei constitucional.Quanto à última, não se olvide que só é pos-sível, como dissemos, falar-se em empare-lhamento de uma lei a outra caso haja umfato concreto subjacente, e mesmo aí, na ver-dade, a subsunção se dá entre cada lei e ofato, para se saber se o legislador, intérpreteautêntico, atribuiu correto conteúdo à leiconstitucional.

Sobre a atuação de Tribunais com fun-ção de controle, para o jurista alemão, emquaisquer decisões existe um elemento depura decisão, que não deriva da norma, masque, pelo contrário, é sentido e objeto dessetipo de sentença. Isso estaria presente emTribunais como a Suprema Corte America-na, em que a existência de votos vacilantesou divergentes mostraria que o que ela faznão é, por meio do livre jogo de argumenta-ções, chegar a esclarecer o sentido verda-deiro da Constituição, em contraposição auma norma alegada inconstitucional, mastão-só, suprimir a dúvida de modo autoritário(mais uma vez, o elemento decisionista euma supervalorização da exceção).

Isso tornar-se-ia ainda mais evidente emum Tribunal tal qual o pretendido porKelsen, que apenas cuida de resolver “dú-vidas e divergências de opinião” (pois nãohá um caso subjacente) e em que ao elemen-to decisionista somar-se-ia o fato de que ditaCorte, sendo formada por expertos, tornariaseus “informes” uma atividade pericial ti-picamente administrativa e não judicial, masque, ao se tornarem obrigatórios, converter-se-iam em sentenças (SCHMITT, 1983, p.93)16.

Um Tribunal Constitucional, ademais,só é possível se a Constituição é vista comoum contrato (uma relação jurídica bilaterale não uma decisão política unitária). O queocorre é que Kelsen (1998, p. 152) entendedemocracia como compromisso constanteentre os grupos presentes no Parlamento e a

Constituição como Lei Constitucional, ouseja, como norma, como um sistema de di-reitos, que podem ser vindicados pelas par-tes (SCHMITT, 1983, p. 102).

Schmitt (1983), ao contrário, faz diferen-ça entre litígios constitucionais (políticos) eas dúvidas e opiniões sobre a interpretação dasleis constitucionais, estas como se disse po-dem ser ocasionalmente resolvidas pelosjuízes sem alterar sua competência. Mas sefor colocado para os primeiros quaisquerlides que tenham imediata ligação real coma Constituição, isso seria o mesmo que darao próprio tribunal a missão de delimitarsua competência.

O máximo que pode-se admitir no fede-ralismo da Constituição de Weimar é que oTribunal de Justiça Constitucional do Rei-ch resolva questões políticas entre a Uniãoe os Länder, entre os Länder e até no interiorde um Länder (como quando alguma asso-ciação invoque para si a proteção baseadano Livro Segundo, referente aos Direitos eDeveres Fundamentais), mas sempre den-tro da teoria contratual do federalismo.

Já que, para além dos casos de litígiosfederais, a Jurisdição Constitucional não setraduz na melhor forma de constituir umdefensor da Constituição, já que a justiça éincompatível com a política, e tendo em miratodas as considerações acima, quem deveser o defensor da Constituição?

4. Quem deve ser o guardiãoda Constituição?

Concluindo o pensamento de Schmitt(1983), ao contrário do Poder Judiciário,apenas o Executivo poderia fazer frente àgrandeza do Parlamento.

Isso porque, em conformidade com a lei-tura que ele faz do art. 48 da Constituiçãode Weimar, o único que ainda manteria acaracterística de representar plebiscitaria-mente o povo em sua unidade seria o Presiden-te do Reich , porque seria o único a se manteracima de todos os interesses parciais. Se-gundo o mestre alemão, o presidente, nos

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últimos anos, já teria até assumido tal en-cargo, agindo, com freqüência, como defen-sor da Constituição (SCHMITT, p. 30, 222)17.O Reichspräsident constituir-se-ia em umainstância neutra e superior, capaz de unifi-car a vontade estatal, diante da “impureza”pluralista.

Além de suprir a lacuna sobre a prote-ção da Constituição, tal teoria dá sentido àprópria existência de um Presidente ou umRei em um regime parlamentar, que règne etne gouverne pas. De fato, o chefe de Estadonão é uma figura apenas “decorativa”, elepossui importantes funções, entre as quais,segundo Schmitt (1983, p. 219), estaria a derepresentar “la continuidad y permanenciade la unidad politica y de su homogéneofuncionamiento” e por isso “deve tener unaespecie de autoridad que es tan consustan-cial a la vida de cada Estado como la fuerzay el poder imperativo que diariamente semanifestan de modo activo”.

De toda sorte, esse papel não é realizadocontinuamente pelo Presidente; ao contrá-rio, é uma função fundamentalmente “me-diadora, tutelar y reguladora”, isto é, oca-sional, excepcional, porque não deve com-petir com os demais poderes, atuando ape-nas em casos de necessidade. Nesse senti-do ele dá como exemplos de atuação dessafunção presidencial o Poder Moderador, pre-visto nas Constituições Brasileira de 1824(art. 98) e Portuguesa de 1826 (art. 71).

Segundo vindica Schmitt, sua doutrinafundamenta-se na teoria política do pouvoirneutre de Benjamin Constant18, para quemos conflitos políticos podem ser resolvidos,excepcionalmente, por um órgão judicial,quando se objetive atribuir pena ao quetransgride a Constituição; ou por um tercei-ro acima dos litigantes, soberano do Esta-do.

Mas pode ser dada tal competência a umorganismo não superior, mas um terceironeutro, intermediário e regulador, que se co-loque não numa relação de superioridade,mas de coordenação. Esse outro poder, dis-tinto dos já existentes, garantiria o funcio-

namento constitucional dos outros poderese da Constituição. A conclusão de Schmitt éautomática, o Presidente do Reich era o únicoque poderia ser o “Guardião da Constitui-ção”, pois que não estaria sujeito às paixõesdos partidos e logo só ele poderia resolver(“de fora”) os conflitos dos grupos pluralis-tas, que, disputando em equilíbrio, ameaça-vam a Constituição, como ordem política daunidade do povo alemão.

É em resposta à teoria de Schmitt queKelsen publica o artigo Quem deve ser o de-fensor da Constituição?. A crítica de Kelsen édesenvolvida principalmente sobre a defe-sa do controle judicial da Constituição emface do caráter “nada novo” e “ideológico”da argumentação de Schmitt. Kelsen atacaprimeiramente a falsa distinção feita porSchmitt entre controle e defesa da Constitui-ção, dizendo ser essa uma distinção apenasterminológica.

Schmitt (1983) tentara retirar o caráterjurisdicional do Tribunal Constitucional, aoargumento de que, em um processo comum,decide-se uma causa, enquanto o TribunalConstitucional apenas resolveria acerca dedúvidas/divergências acerca de uma lei.

Ora, rebate Kelsen, na maior parte dasdecisões judiciais decidem-se divergênciassobre o conteúdo de uma lei; se não há di-vergências, cessa a jurisdição. Valendo-seda própria teoria de Schmitt, poder-se-iaconcluir que, em um processo sobre a cons-titucionalidade, há tanta subsunção quan-to em um processo criminal, por exemplo. Oproblema seria que o jurista alemão conce-be o controle de constitucionalidade como oconfronto entre duas leis, o que não corres-ponde ao pensamento kelseniano, que émais complexo: para Kelsen, na verdade, ocontrole visa averiguar o processo legislati-vo como fattispecie subsumível à Constitui-ção da mesma forma como a doutrina clás-sica (entre eles o próprio Schmitt) desenvol-ve a subsunção tendo o fato como premissamenor e a norma como premissa maior19.

Assim, não é que uma lei mais débil é tutela-da por outra mais forte, mas sim que deve ser

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anulada porque a fattispecie que a produziucontrasta com a norma que regula esta fattispe-cie (KELSEN, 1991, p. 248; HABERMAS,1998, p. 315-316).

Para KELSEN, o principal argumento deSchmitt sobre a danosa influência da políti-ca em um Tribunal Constitucional é um fal-so-problema: se se entende o político , no sen-tido dado por Schmitt, como exercício do po-der, fácil é perceber que aquele não se limitaao Parlamento, pois que toda sentença, aoresolver um conflito, tem um elemento deci-sório20.

Logo, o controle judicial de constitucio-nalidade das leis não altera a posição cons-titucional da jurisdição. Kelsen não vê umadistinção qualitativa entre legislação e ju-risdição, mas quantitativa, porquanto a le-gislação produz normas gerais e a jurisdi-ção, normas individuais (dito doutra forma,quem interpreta também cria). Antes pelocontrário, chega mesmo a afirmar que o Ju-diciário possui até um caráter mais políticoque o Legislativo:

“quando il legislatore autorizza il giu-dice a valutare, entro certi limit, inte-ressi tra loro contrastani e a decidereil contrasto in favore dell’uno odell’altro, gli attribuisce un potere dicreazione del diritto e quindi un pote-re che dà alla funzione giudiziaria lostesso carattere ‘politico’ che – siapure in misura maggiore – ha la legis-lazione” (KELSEN, 1991, p. 242).

Schmitt então é que seria “devedor” de umadoutrina própria ao constitucionalismomonárquico, que consideraria o Parlamen-to como o único órgão político e criador doDireito e o juiz como um “autômato jurídi-co”, que apenas aplica a lei.

Dessa forma, se a política não se restrin-ge ao Parlamento e se também as sentençascontêm uma fração de poder, todo conflitojudicial é também um conflito de poder, não háuma natureza política incompatível com ajudicial. Além do que, se todo conflito judi-cial é também político, confiar o controle deconstitucionalidade a um Tribunal, em que

a ação segue em contraditório, possuiria avantagem de dar publicidade à efetiva situ-ação de interesses ao invés de mascará-lossob o capa de “política” e escondê-los de-baixo de ficções como “unidade da vontadegeral” e “Estado Total”.

O ponto central, portanto, contra a teo-ria de Schmitt do Presidente como o Guar-dião da Constituição é, por um lado, o velhoprincípio “nessuno può essere giudice in causapropria” (KELSEN, 1991, p. 232) [apenas emitálico no original] e, por outro lado, a ne-cessidade de que o controle seja feito porum Tribunal independente dos poderes Exe-cutivo e Parlamentar, para que possa tercondições de controlar os atos inconstituci-onais porventura praticados por algum de-les. Como observa o Professor MarceloCattoni de Oliveira (2000, p. 31), o debate deeuropeus e norte-americanos em torno docontrole de constitucionalidade e de sua le-gitimação “é conduzido quase sempre emrelação à distribuição de competências en-tre Legislativo e jurisdição e, como afirmaHabermas (1998, p. 314 et seq.), ‘nessa me-dida ela é sempre uma disputa pelo princí-pio da divisão dos poderes”.

Voltando ao publicista austríaco, o quena verdade pretenderia a doutrina deSchmitt seria restaurar a doutrina do cons-titucionalismo monárquico que considera-va o rei como um pouvoir neutre. Caso um reiou um Presidente representassem de fato umpoder neutro, isso significaria uma contra-dição para alguém que diz que as estrutu-ras monárquicas do século XIX teriam sidoabandonadas com a Constituição de Wei-mar. É que Schmitt confia ao Executivo atarefa de Guardião da Constituição porqueparte do pressuposto de que, se nas Monar-quias Constitucionais era contra aquele quese deveria ficar atento, hoje o Parlamento éque estaria sob suspeita – pressupondo umapretensa preponderância deste. A contradi-ção esboça-se claramente: se hoje a situaçãoé outra, como aplicar uma teoria antiga?Como querer dar ao Presidente poderes tí-picos do Monarca? E mais, Schmitt faz pres-

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suposições “como se, na Alemanha, o pro-blema da constitucionalidade da atividadedo ‘governo’, (...) desenvolvida com base noart. 48, não fosse (...) um problema vital”(KELSEN, 1991, p. 233, 238, tradução livre;1998, p. 114).

E continua Kelsen, a teoria de Constanté uma “ficção de extrema audácia” que di-vidia o poder executivo em poder ativo (go-verno/administração) e passivo (sanção,celebração de tratados, alto comando dasForças Armadas...); este último representa-va o poder neutro. Mas o monarca não épassivo; de outro lado, o Presidente do Rei-ch não está acima das pressões dos parti-dos, já que é eleito por eles e com eles man-tém relações de dependência política.

Em síntese, Kelsen conclui que as idéiasde Schmitt são produto de uma confusãoentre um problema de teoria jurídica (o con-ceito de jurisdição) e outro de política doDireito (a melhor organização de um con-trole jurisdicional). Além do que, se Schmittcritica a teoria kelseniana acusando-a denormativista e formalista, esquece que tais“abstrações” não haviam impedido que oTribunal Constitucional Austríaco realizas-se uma “boa dose de trabalho criativo”, oque não é examinado por Schmitt, lá do altode suas próprias abstrações (KELSEN, 1991,p. 252).

Concluindo, a imensa importância quea discussão entre Kelsen e Schmitt tem paratoda a Teoria da Constituição e, mais de cer-ca, para a doutrina acerca do controle deconstitucionalidade não nos impede de te-cer algumas críticas aos mesmos. Isso, con-tudo, não invalida a importância de ambospara nós hoje (até o fato de hoje estarmosrelendo-os e repensando seus postuladosapenas mostra o quanto algumas pessoasconseguem se eternizar por suas contribui-ções à Ciência).

Assim, porque suas teorias têm algo anos dizer em pleno século XXI e porque, poroutro lado, pior que desconhecê-los é que-rer aplicar seus postulados sem um mínimocotejo espaço-temporal é que podemos nos

sentir à vontade em tecer-lhes algumas crí-ticas.

Quanto a Schmitt, além das críticas fei-tas por Kelsen, é importante ressaltar que,

“[q]uién, como en su tiempo C. Sch-mitt, quisiera convertir en ‘protectorde la Constitución’ al presidente delReich, es decir, à cúpula del ejecutivo,en lugar de a un tribunal constitucio-nal, estaría invirtiendo, por tanto, elsentido que la división de poderes tie-ne en el Estado democrático de dere-cho, convirtiéndola exatamente en locontrario” (HABERMAS, 1998, p. 314).

Gostaríamos de ressaltar algumas opi-niões de Kelsen, principalmente por suaimportância com relação à nossa realidadeconstitucional.

Sobre a extensão das funções da Cortemais alta do país, é interessante observar –principalmente em tempos como os que hojevivemos, em que a todo momento se levan-tam vozes a favor da criação de um Tribu-nal Constitucional – a afirmação do juristavienês de que seria melhor o Tribunal Cons-titucional não se limitar ao controle de cons-titucionalidade:

“... puede ser oportuno, si se presentael caso, hacer también del tribunalconstitucional un Alto Tribunal deJusticia, encargado de juzgar a los mi-nistros sometidos a acusación, un tribu-nal de conflictos central o atribuirle otrascompetencias para evitar instituir juris-dicciones especiales. Es preferible, enefecto, de una forma general, reducir lomás posible el número de autoridades su-premas encargadas de aplicar el Derecho”(KELSEN, 1998, p. 137) [grifos nossos].

Sobre a caracterização da função do Tri-bunal Constitucional como sendo de um“legislador negativo”, isso contraria a na-tureza da atividade judicial desenvolvidapor qualquer Tribunal, inclusive uma CorteConstitucional; claro está que, como disse-mos, não há contradição no pensamentokelseniano em afirmar que o Tribunal Cons-titucional é um órgão Judicial e ao mesmo

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tempo dizer que sua tarefa é de “derrogarleis” à semelhança do que o Parlamento tam-bém faz (a distinção seria quantitativa, nãoqualitativa). Sem embargo, não podemosconcordar com um tal posicionamento,pois, como bem mostra o Professor MarceloCattoni de Oliveira (2000, p. 122), as ativi-dades Legislativa e Judicial possuem “pers-pectivas lógico-argumentativas” diversas;enquanto a primeira “visa ao estabelecimen-to de programas e políticas para a realiza-ção dos direitos constitucionais”, a segun-da deve ter em mira “a aplicação reconstru-tiva do Direito Constitucional”; não pode-mos nos esquecer, outrossim, da diferençafeita por K. Günther (1993) entre discursosde justificação e de aplicação.

Quanto à “danosa influência da políti-ca no direito”, como vimos, Kelsen admiteque a política é um dado presente; em vezde tentar extirpá-la ou ignorá-la, ele tentatrabalhar com ela de forma a manter o Tri-bunal o mais imparcial possível. A políticaentra no raciocínio kelseniano no momentode escolha dos membros da Corte, uma es-colha feita pelo Parlamento entre juristasexpertos (técnicos), o que garantia a neutra-lidade do Tribunal. Ele acredita que todacontrovérsia jurídica é de interesse políticoe todo conflito de interesse político pode serdecidido na esfera jurídica. Como se disse,a necessidade de um Tribunal Constitucio-nal reside em ser justamente a instância neu-tra e eqüidistante do confronto latente entreParlamento e Governo.

Dessa perspectiva, dá-se um passo à fren-te, ao criar um outro órgão e não dar maispoderes a uma das partes, como queriaSchmitt. É um avanço outrossim a naturali-dade com que ele lida com a questão da in-terferência do Judiciário nas decisões legis-lativas (ainda que apenas o Tribunal Cons-titucional possa fazê-lo). Dessa forma, umaquestão que sempre é colocada frente aocontrole de constitucionalidade, qual seja,a legitimidade que possuiria o Judiciário deinvalidar atos procedentes do órgão de re-presentação popular, parece estar supera-

da em seu pensamento, ainda que se possavir a criticá-lo por isso (conseqüentemente,não faz sentido a discussão da contradiçãoentre Democracia – materializada no Parla-mento – e Constituição – como limite àque-la21).

Contudo, seguindo o raciocínio de Kel-sen, pode-se ver que apenas é possível fa-lar-se em efeitos ex nunc porque há o pressu-posto de que o Tribunal Constitucional é oúnico, além do Parlamento, que pode inter-pretar autenticamente a Constituição. As-sim, as leis criadas pelo Parlamento possu-em presunção de constitucionalidade por-que ele está autorizado a interpretar a Cons-tituição; forma-se aí a presunção (relativa)de constitucionalidade da lei que apenaspoderá ser elidida se o outro órgão encarre-gado – o Tribunal Constitucional – disserque a lei é inconstitucional.

Tais colocações nos obrigam, mais umavez, a empreender críticas ao seu sistema,pois, apesar de defender o elemento plura-lista como forma de obter compromissos –que são, como já se disse, a essência da de-mocracia –, o jurista vienês não pode admi-tir que outras pessoas sejam legitimadas ainterpretar a Constituição, porque, se issoocorresse, todo seu sistema cairia por terra.Contudo, a legitimidade do ordenamentojurídico moderno está diretamente ligada àaceitação por parte dos cidadãos das nor-mas que lhes são impostas; já que não sepode recorrer a um centro que forneça o subs-trato dessa legitimidade (Deus ou a razão),o Direito Moderno necessita do cidadãopara, paradoxalmente, legitimar uma vio-lência que não é sentida como tal apenas seracional e intersubjetivamente aceita. Naspalavras de Habermas (1998, p. 96), as nor-mas apenas podem cobrar cumprimento“haciendo que los destinatarios de esas nor-mas jurídicas puedan a la vez entenderseen su totalidad como autores racionales deesas normas”.

Limitar a interpretação (autêntica) daConstituição a apenas dois órgãos, além deirreal – pois “todo aquele que vive a Consti-

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tuição é um seu legítimo intérprete”22 –, étambém temerária. Considerando que o Tri-bunal Constitucional possui a última pala-vra, pode ele vir a se transformar numa ins-tância máxima de definição dos valores deuma sociedade, uma espécie de “alter ego”daquela comunidade, o que não parece ade-quado desde uma perspectiva atual de Es-tado Democrático de Direito23.

Para finalizar, gostaríamos de deixar cla-ra nossa posição a respeito da questão so-bre quem deve ser o Guardião da Constitui-ção e dizer que a mesma não é bem respon-dida (pelo menos desde o atual paradigmado constitucionalismo) nem atribuindo talprerrogativa ao Chefe de Estado (SCHMITT,1983) nem a um Tribunal Constitucional(KELSEN), pois “[a] cidadania não precisade tutores” (OLIVEIRA, 2001, p. 213, 263);dito doutro modo, somente os cidadãos, le-gítimos intérpretes da Constituição, podemnão apenas guardá-la, mas também desenvol-vê-la procedimentalmente em suas relaçõesdiárias.

Notas1 Para um estudo mais completo da obra de

Schmitt, ver, Diniz (1998, p. 150-170).2 Schmitt (1983, p. 61), ao contrário, vê nessa

proteção às minorias um atentado ao princípio de-mocrático das maiorias.

3 Colocação semelhante na defesa da JudicialReview pode ser vista em Freeman (1994, p. 187).

4 “La ley vale ahora [desde a perspectiva deKelsen, não mais em razão de ter sido elaboradapela “vontade geral” mas] en cuanto, y sólo en cu-anto, realice en sí el ideal democrático de la pacíficaconvivencia entre la pluralidad de las fuerzas e in-tereses que operan en realidad” (FIORAVANTI,1999, p. 158).

5 Schmitt (1983, p. 83) critica expressamente taltese, no que diz respeito à hierarquia entre normas,que considera uma “antropomorfizacion, insensa-ta e confusa”.

6 Sobre sua classificação dos Estados segundoa função estatal que neles predomina, ver Schmitt (1983,p. 131-132).

7 Trataremos mais pormenorizadamente dissomais à frente, ao tratarmos da opinião de Schmittsobre o controle judicial e suas ferrenhas críticas aele.

8 “En suma, desde el punto de vista del juristaalemán se devía evitar que la crisis del conjunto delos partidos y de la representación política del par-lamento arrastrase consigo a toda la Constitución”(FIORAVANTI, 1999, p. 153).

9 Sobre as críticas de Schmitt ao pluralismo, verainda Herrera (1994, p. 220) e as críticas de Kelsen(1991, p. 261 et seq.) a tal conceito.

10 A decisão é o elemento central da ordem jurídi-ca, cria a norma, mantém-na e a aplica, além denão derivar de nenhum outro elemento (BATISTA,1999, p. 173 ; DINIZ, 1998, p. 142, 151).

11 Ver também Diniz (1998, p. 150). As funçõesestatais seriam os atos jurídicos produzidos peloEstado e se dividem tradicionalmente em: legisla-ção (promovida pelo Poder Legislativo) e execução(que englobaria os Poderes Executivo e Judiciário).

12 No fundo, o que se apresenta aqui é o conhe-cido paradoxo sobre o Direito, que cria a si mesmoe se auto-regula. Nesse sentido, Habermas (1998),notadamente o Capítulo 3.

13 E “a ordem jurídica não pode fixar as condi-ções sob as quais algo que se apresente com a pre-tensão de ser uma norma jurídica tenha de ser con-siderado a priori como nulo e não como uma normaque deve ser anulada através de um processo fixa-do pela mesma ordem jurídica” (KELSEN, 1987,p. 308).

14 A respeito, há ainda as críticas de B. Constant(1815, p. 65) e de Guizot (1846, p. 101 apudSCHMITT, 1983, p. 75); segundo este, com a juri-dicização, “la política no tiene nada que ganar, y laJusticia puede perdelo todo”.

15 Para os detalhes acerca dos dois episódios,ver Schmitt (1983, p. 66-69).

16 Ver também, na mesma página, nota 65, aopinião de A. Bertram.

17 Schmitt terá a oportunidade de defender pu-blicamente suas posições em 1932 como Conselhei-ro do Reich, quando redigiu um memorandum a fa-vor de uma intervenção federal na Prússia, combase em sua teoria sobre o Presidente do Reich como“guardião da Constituição” (HERRERA, 1994, p.214).

18 Sobre as fontes de que se valeu o jurista ale-mão, ver Schmitt (1983, p. 214, 216), em que tam-bém se poderão encontrar interessantes pareceresde Hugo Preuss e Neumann.

19 Apesar de trabalhar com esses conceitos, éimportante lembrar que Kelsen não vê a atividadejurisdicional como simplesmente dedutiva; qual-quer juiz, ao aplicar a lei, não o faz como um autô-mato, mas como criador de normas individuais.

20 Interessante reler o que já dizia Ruy Barbosa(1932-1934, p. 41-42), referindo-se já à função decontrole de constitucionalidade, no começo do sé-culo passado: “não há nada, realmente, mais artifi-cial (...) do que a distinção entre questões políticas e

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jurídicas”. A função de declarar a inconstitucionali-dade “é um poder, até certa altura, politico, exerci-do sob ás fórmas judidiciaes”.

21 Um bom panorama dessa discussão pode servisto em Fioravanti (1999) e também Freeman(1994).

22 Apresentação feita por Gilmar F. Mendes aolivro de Häberle (1997, p. 30-31).

23 Não vamos nos alongar mais nesse aspecto,já que não é o objeto do presente. Para maioresdetalhes, ver, Maus (2000).

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Rodrigo Garcia da Fonseca

1. IntroduçãoO objeto do presente trabalho, como des-

crito no título, é a análise do poder econô-mico no mercado e do seu controle no âmbi-to da legislação antitruste.

O primeiro aspecto a ser abordado, demodo a garantir a sistematização do estu-do, refere-se à própria definição de podereconômico. Em seguida, ver-se-á quais sãoas formas de obtenção do poder econômicopor parte das empresas e como se relacio-nam as normas do Direito Societário e doDireito da Concorrência.

O passo seguinte é o exame das diferen-tes maneiras pelas quais se manifesta o po-der econômico e dos critérios de sua identi-ficação para os fins da legislação antitruste.

No tocante ao controle do poder econô-mico no âmbito das normas de defesa da

O poder econômico no mercado e o seucontrole na legislação antitruste

Rodrigo Garcia da Fonseca é Advogado noRio de Janeiro e em São Paulo com Especializa-ção em Direito da Empresa (PUC/RJ) e em Eco-nomia e Direito da Concorrência e da Regula-ção (UFRJ).

Sumário1. Introdução. 2. Poder econômico no mer-

cado. 2.1. Poder econômico. 2.2. Formas de ob-tenção do poder econômico. 2.3. Direito Socie-tário e Direito Antitruste. 3. A identificação dopoder econômico. 3.1. As manifestações dopoder econômico. 3.2. Critérios de identifica-ção do poder econômico. 3.3. A noção de mer-cado relevante. 4. Controle do poder econômi-co na legislação antitruste. 4.1. Finalidades dalegislação antitruste. 4.2. Natureza da legisla-ção antitruste. 4.3. Setores regulados. 4.4. Téc-nicas de controle do poder econômico. 4.5. Alegislação antitruste no exterior e no Brasil. 5.Conclusões.

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livre concorrência, serão abordadas as fina-lidades e a própria natureza jurídica da le-gislação antitruste. O trabalho segue comconsiderações sobre o controle do poder eco-nômico em determinados setores reguladosda economia e sobre as técnicas legais decontrole preventivo e repressivo. Finalmen-te, o estudo é encerrado com um painel re-sumido das principais características dasnormas antitruste de controle do poder eco-nômico nos Estados Unidos, na Europa, noMercosul e no Brasil.

2. Poder econômico no mercadoNão é fácil definir o que vem a ser o po-

der econômico no mercado. Economistas ejuristas tentam fazê-lo, mas nem sempre con-cordam com as opiniões uns dos outros.Trata-se de figura mais fácil de reconhecerempiricamente do que de definir na teoria.Diz-se corriqueiramente, e aceita-se a afir-mação, por exemplo, que as grandes empre-sas transnacionais têm poder econômico.Mas o que nelas revela tal poder? O que sig-nifica deter poder econômico?

Não é possível estabelecer qualquer for-ma de controle do poder econômico, comopretende a legislação antitruste, sem antesdefinir e identificar justamente o objeto des-se controle, ou seja, o poder econômico.

Assim, a definição, ainda que difícil, épressuposto necessário para o estudo doDireito da Concorrência.

2.1. Poder econômico

Dentro da linha liberal e clássica da teo-ria econômica, especialmente a partir daobra de Adam Smith, o mercado livre tende-ria ao modelo da concorrência perfeita, noqual produtores e consumidores chegariama um ponto de equilíbrio, maximizando obem-estar da sociedade mediante a produ-ção e comercialização de bens aos melhorespreços possíveis.

Num tal cenário de concorrência perfei-ta, nenhuma empresa teria poder maior doque a outra, não sendo possível que os agen-

tes econômicos individualmente pudessemdistorcer essa situação de equilíbrio concor-rencial e fazer prevalecer os seus interessesparticulares sobre os da coletividade.

Na vida real, porém, não é isso que seobserva, e o modelo da concorrência perfei-ta não passa efetivamente de um modelo,teórico e ideal, uma abstração dissociadadaquilo que se vê na prática.

Dentro desse contexto, a própria existên-cia do poder econômico, por meio do qualdeterminadas empresas são capazes de im-por ao mercado a sua vontade, em maior oumenor grau, é resultado da existência de fa-lhas no sistema de mercado1.

Ao mesmo tempo que o acúmulo de po-der econômico nas mãos de determinadosagentes econômicos revela a presença deimperfeições no mercado, não se pode ne-gar que, do ponto de vista de cada empresaindividualmente considerada, numa econo-mia capitalista voltada para a obtenção dolucro, conseguir e aumentar o poder econô-mico é o principal objetivo a ser almejado.

Se de um lado a teoria da eficiência capi-talista se baseia na excelência do mercado,de outro as empresas querem amealhar cadavez mais poder econômico, aproveitando-se das falhas desse mesmo mercado paraaumentar os lucros. Esse paradoxo se fazpresente na análise da legislação antitrustede todos os países, como veremos, e não podejamais ser esquecido ou menosprezado.

É comum se definir o poder econômicode uma empresa no mercado, simplistica-mente, como o poder de aumentar os preçosdos seus produtos. Mas a definição é pobree incompleta. Há outros atributos inerentesao agente econômico que detém poder, tãoimportantes quanto o de aumentar os preços.

Calixto Salomão Filho (2002, p. 83) bemmostra que o detentor de poder econômicotem, na realidade, uma opção, na qual oaumento de preços é apenas uma das vári-as escolhas que se apresentam. O agenteeconomicamente poderoso tem a possibili-dade de escolher entre uma maior partici-pação no mercado com menor lucrativida-

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de ou uma menor participação no mercadocom maior lucratividade.

Não se pode esquecer, porém, que talpossibilidade de escolha tem uma dimen-são quantitativa e uma outra temporal. Sóse fará efetivamente presente o poder eco-nômico se o agente for capaz de manipularo mercado em níveis quantitativamente sig-nificativos (com relação ao mercado comoum todo, seja em participação ou em pre-ços) e por um período considerável de tem-po (desconsiderando-se, assim, as situaçõesconjunturais e passageiras).

Nessa ótica, uma definição bastantecompleta e abrangente é aquela dada porMichael J. Trebilcock e Robert Howse (1999,p. 464). Em termos econômicos, o poder sig-nifica a capacidade de aumentar preços, oureduzir aspectos concorrenciais não ligadosdiretamente ao preço, de modo lucrativo,acima dos níveis de competição do merca-do, em montantes não triviais, e por um pe-ríodo extenso de tempo.

Uma observação adicional é importan-te. A experiência demonstra que o poder eco-nômico resulta normalmente não só em acú-mulo crescente de recursos financeiros, comotambém em forte capacidade de influênciapolítica na região em que atua (ou quer atu-ar) o agente poderoso, interferindo na pró-pria atividade normativa e reguladora doEstado.2 Essa situação tende a perpetuar opoder econômico nos mesmos setores soci-ais e cria riscos sérios para a democracia.

Com tais conceitos em mente, passamosao ponto seguinte.

2.2. Formas de obtenção do poder econômico

A primeira e mais óbvia forma de cresci-mento de uma empresa ou agente econômi-co, adquirindo poder econômico, é median-te o aumento das vendas, produção e lucro,por meio da eficiência. Sendo mais eficienteque os seus concorrentes, uma determinadafirma coloca produtos melhores no mercado,a preços mais competitivos, com boas mar-gens de lucratividade. Com o lucro acumula-do, cresce, produz mais, fixa a sua marca,

aumenta a sua participação no mercado, ob-tém ainda mais lucro e com o tempo se colocaem situação perfeitamente lícita de poder.3

Por outro lado, além de se obter podereconômico por meio da competição no mer-cado, também é possível obtê-lo, ou aumentá-lo, falseando essa mesma competição. É pos-sível que o exercício de práticas abusivas edesleais por parte de uma empresa tenham oefeito de minar os concorrentes, enfraquecen-do-os e alçando-a a uma condição de podereconômico superior. A legislação antitrustereprime tais comportamentos e considera opoder econômico assim obtido ilegítimo.

Outra maneira de falsear a concorrên-cia, obtendo ou consolidando o poder eco-nômico, é a combinação de ações de algunsagentes econômicos em detrimento dos de-mais. É o caso, por exemplo, dos acordos dedivisão de mercado, ou de fixação artificialde preços, e demais práticas oligopolísticase de cartelização. Tais atuações concertadastendem a não ser explícitas, uma vez que sãonormalmente consideradas ilícitas pela legis-lação antitruste, e freqüentemente é difícil com-provar concretamente a sua existência.4

Finalmente, dá-se a obtenção do podereconômico pela concentração empresarial,que pode tomar várias formas. Podem sercitadas as concentrações horizontais, entreempresas que desempenham a mesma ati-vidade; as concentrações verticais, entreempresas que desempenham atividadessucessivas ou entrelaçadas dentro de umadeterminada cadeia produtiva; e a forma-ção de conglomerados, entre empresas quedesempenham atividades independentes enão relacionadas entre si.5

Do ponto de vista contratual e/ou socie-tário, tais concentrações tomam as mais va-riadas formas. Há operações de fusão ouincorporação de empresas; há as chamadasfusões de fato (ou de facto mergers), por meiode permutas de ações ou permutas de açõespor ativos; há reengenharias empresariais emontagem de grupos de sociedades e con-glomerados; há a aquisição de controle so-cietário, acordada ou hostil; há a alienação

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de ativos, como a compra e venda de fábri-cas, de marcas, etc.; há a pura e simples alie-nação de participações de ações ou quotas;há os acordos de acionistas; há a formaçãode consórcios e joint ventures, entre outrasoperações.6

2.3. Direito Societário e Direito Antitruste

Em tese, o Direito Societário é neutro comrelação à concorrência. O seu objetivo não éproteger a livre competição entre os agenteseconômicos, mas sim regular as relaçõesentre os sócios das empresas.7

É possível, no entanto, que a legislaçãosocietária facilite a concentração de podereconômico dependendo de quais forem assuas normas. Um exemplo brasileiro, na Leino 6.404/76, é a norma que permite a emis-são, pela sociedade anônima, de ações pre-ferenciais, sem direito a voto, em até 2/3 docapital social. Ora, se a empresa tiver 2/3do seu capital em ações preferenciais, é pos-sível ao acionista adquirir o seu controle,com 51% do capital votante, comprandoapenas 16,7% do capital total da sociedade,o que é muito mais barato do que se todo ocapital fosse votante, ou se apenas uma pe-quena parcela fosse não votante.8

Da mesma forma, as regras relativas aodireito de recesso, ou aquelas tocantes àsofertas públicas obrigatórias de aquisiçãode ações de minoritários, afetam diretamen-te o preço de aquisição das sociedades anôni-mas, e, portanto, o preço de determinadasconcentrações empresariais, facilitando oudificultando, conforme for o caso, a obtençãodo poder econômico por parte das firmas.

Por outro lado, os direitos de participa-ção de acionistas minoritários na gestão deempresas e as normas de responsabilidadedos administradores e dos acionistas con-troladores são regras que afetam diretamente(ainda que de forma involuntária) a gestão,atuação e consolidação do poder econômi-co do âmbito das empresas.

De outra parte, o operador do DireitoAntitruste deve entender certos conceitos dalegislação societária. É preciso compreen-

der os mecanismos internos de tomada dedecisões das empresas, a noção de controleindividual ou compartilhado e os direitosdecorrentes de acordos de acionistas, tudode modo a verificar se é possível que umdeterminado acionista, isoladamente ou emconjunto, exerça influência determinantesobre os destinos do negócio.9

Para efeitos da legislação antitruste, épreciso averiguar, em cada situação dada,quais agentes econômicos têm capacidadede influenciar os rumos da sociedade e emque grau. Assim, o Direito Concorrencialdeve entender os princípios do Direito Soci-etário, ainda que não se preocupe necessa-riamente com vários deles, e por vezes atémesmo os ignore.

Um exemplo desse divórcio entre os prin-cípios societários e concorrenciais se verifi-ca na questão da personalidade jurídica.Para o Direito Antitruste, não importa sevárias empresas têm existência legal distin-ta, desde que tenham controle comum, per-tencendo a um mesmo grupo econômico. NoDireito Antitruste, prevalece a noção econô-mica de empresa, e não a noção estritamen-te jurídica de cada sociedade com persona-lidade jurídica independente.10

Os conceitos a serem fixados nesse cam-po, portanto, são vários. O Direito Societá-rio é em princípio neutro com relação à ques-tão da livre concorrência, mas pode influen-ciá-la, facilitando ou dificultando o surgi-mento e a consolidação do poder econômi-co de empresas e grupos empresariais. Poroutro lado, para a correta aplicação do Di-reito Antitruste, é preciso compreender vá-rios institutos de Direito Societário, aindaque nem sempre os princípios jurídicos apli-cáveis a um desses ramos do Direito sejamaplicáveis ao outro.

3. A identificação do poder econômico

Para que seja passível de controle, o po-der econômico deve antes ser identificado,o que tampouco é tarefa simples. Mas comose manifesta esse poder?

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3.1. As manifestações do poder econômico

Já vimos que o poder econômico dá aoagente a capacidade de aumentar a sua lu-cratividade a níveis superiores aos de umahipotética situação de concorrência perfei-ta, seja mediante aumento de preços, sejapor meio de outros comportamentos anti-concorrenciais.

A teoria microeconômica está baseadano conceito do agente econômico racional.Sendo o objetivo primordial das empresas amaximização dos lucros, o postulado docomportamento racional indica que elas fa-rão tudo o que puderem para atingir taisobjetivos. Buscarão a melhor relação possí-vel entre o custo de produção, o preço devenda do produto e a quantidade de produ-tos vendidos.

Como o poder econômico possibilita àempresa justamente maximizar os seus lu-cros, mediante vários tipos de comportamen-tos, inclusive o aumento de preços, o com-portamento racional da empresa que detémpoder econômico será no sentido de exer-cer, tanto quanto for possível, esse poder.Noutras palavras, a microeconomia prevêque o poder econômico, quando existente,será sempre exercido.11

A situação de poder econômico mais evi-dente é a do monopólio. O único fornecedorde um determinado bem tem o grau máximode domínio sobre o mercado. A principal emais fácil forma de o monopolista maximi-zar os seus lucros é pela redução da oferta edo respectivo aumento do preço, regulandoa relação entre os dois elementos da formamais lucrativa possível.

São vários os aspectos negativos decor-rentes de tal comportamento monopolísticoracional. Revela-se para a sociedade o que adoutrina chama de perda do peso morto(dead weight loss). A redução da oferta doproduto implica a redução do consumo des-te. Assim, consumidores que estariam dis-postos a adquirir o produto a preços com-petitivos deixam de usufruir das suas utili-dades, pois ficam incapacitados de consu-

mi-lo em razão da oferta reduzida e do pre-ço elevado.12

Do ponto de vista distributivo, há umatransferência de renda dos consumidorespara o monopolista. Este, como mostra aexperiência, faz gastos pesados em lobbiesgovernamentais destinados unicamente amanter a sua posição de monopólio, exer-cendo forte influência política e direcionan-do recursos para atividades não produtivas.Os monopolistas freqüentemente têm a ca-pacidade até de enfrentar governos e resis-tir a políticas macroeconômicas, aumentan-do os preços mesmo em contextos de com-bate ferrenho à inflação. Paralelamente, omonopolista tende a não investir em inova-ções tecnológicas ou em qualquer tipo demelhoria de eficiência, em razão da sua cô-moda posição sem concorrentes.13

Os oligopólios, como visto acima, carac-terizam-se na maior parte das situações poracordos tácitos entre as poucas empresasque dominam o mercado. Tais acordos ten-dem a produzir um aumento paralelo e pro-gressivo dos preços, mediante o mecanismoconhecido como price leadership. Uma em-presa aumenta o seu preço e as demais se-guem logo após, igualmente elevando osseus preços em níveis semelhantes. Empre-sas oligopolísticas tendem a também co-ordenar um processo de diferenciaçãoentre os seus produtos, criando nichos demercado para cada uma e viabilizandoaumentos de preços. Em oligopólios, iden-tifica-se ainda uma manutenção de parti-cipações estáveis no mercado ao longo dotempo.14

Os monopsônios e oligopsônios, concen-trações de poder econômico no lado da de-manda, e não da oferta, merecem análise emseparado. Se obtêm vantagem na compra doinsumo, o comportamento racional de taisagentes econômicos será de não repassartais benefícios ao consumidor dos seus pró-prios produtos, mas só poderão impor ospreços que desejarem se ostentarem podertambém no mercado do produto final. Por-tanto, do ponto de vista exclusivo do consu-

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midor final, monopsônios e oligopsôniossão em princípio irrelevantes.15

Seja qual for a estrutura do mercado, háoutros comportamentos que normalmenterevelam a existência de poder econômico,sendo manifestações típicas.

Contratos de exclusividade, vendas ca-sadas, diferenciação entre consumidores(cobrando mais daqueles que têm maiorpoder aquisitivo ou que necessitam mais doproduto) são alguns exemplos.

O dumping, ou seja, a venda a preços abai-xo dos custos mínimos de comercialização,também é freqüentemente empregado pelospoderosos como forma de eliminação daconcorrência.16 Embora aparentemente a re-dução predatória de preços fuja do compor-tamento racional tradicionalmente espera-do da empresa, na prática pode ser uma for-te arma para expulsar do mercado os com-petidores existentes, e inclusive afugentarquaisquer concorrentes em potencial.

Em resumo, são várias as formas de ma-nifestação do poder econômico, e devem seravaliadas caso a caso, dentro do contextofático de cada situação colocada.

3.2. Critérios de identificação dopoder econômico

O aumento de preços como critério iden-tificador do exercício do poder econômico éo mais utilizado. É o que povoa até mesmo oimaginário popular, na figura do empresá-rio poderoso e ganancioso que aumenta se-guidamente o preço dos produtos em detri-mento dos consumidores. Mas o critério éfalho, em vários aspectos.

Em primeiro lugar, é possível que a situ-ação de poder econômico esteja tão consoli-dada com o tempo que o preço já esteja nosníveis de lucratividade mais altos. Em talsituação, não haverá aumento de preços,pois um aumento acarretaria uma queda deconsumo desvantajosa para a empresa, masa simples manutenção dos preços será umaforma de exercício do poder econômico.

Por outro lado, nem sempre o agente de-tentor do poder econômico aumenta os seus

preços. Como visto acima, há outras manei-ras de exercer o poder econômico, e muitasvezes este se manifestará com outra feição.Já se abordou o exemplo da hipótese de dum-ping , na qual até mesmo o monopolista po-derá ter uma política de agressiva baixa depreços.

De outra parte, a capacidade de aumen-tar preços muitas vezes é decorrência diretada eficiência do agente econômico, e não doexercício ilícito do poder econômico. É ocaso, por exemplo, da empresa que investeem inovações e passa a produzir determi-nados bens de consumo com qualidade su-perior à dos produtos dos seus concorren-tes. O consumidor aceita pagar mais por umproduto melhor.

Finalmente, a dificuldade de obtenção deinformações completas sobre todo o ciclodesde a produção até a distribuição dos pro-dutos, e das distintas realidades das váriasempresas, faz com que seja extremamentecomplexo, quando não impossível, definirum preço teórico de competição perfeita,acima do qual os aumentos de preços seri-am abusivos e decorrentes do exercício dopoder econômico. O mundo real é muitomais complicado do que os modelos abstra-tos da microeconomia clássica.

No mesmo passo, é comum pretenderidentificar o exercício do poder econômicocom a figura do lucro excessivo ou do au-mento arbitrário de lucros. Mas como defi-nir se uma determinada lucratividade é ex-cessiva? Da mesma forma como o aumentodos preços, o aumento do lucro pode serdecorrente da eficiência da empresa ou daocorrência de situações conjunturais. Logo,o aumento do lucro só poderá ser conside-rado excessivo ou arbitrário se for o resulta-do do exercício do poder econômico, con-fundindo-se, assim, causa e efeito.

Diante de tantas dificuldades, as legis-lações antitruste costumam identificar cri-térios objetivos de poder econômico presu-mido. Normalmente, é tida como possuido-ra de poder econômico a empresa que deti-ver uma certa participação mínima do mer-

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cado (market share) e/ou que ostente um de-terminado faturamento. Enquadrando-se nahipótese legalmente prevista, a empresapassa a ser monitorada, tendo que comuni-car e/ou pedir autorização para práticas oucontratos que possam colocar em risco a li-vre concorrência.

3.3. A noção de mercado relevante

De outra parte, não se pode aquilatar opoder econômico de um agente no mercadosem definir, ainda, qual é exatamente o seumercado de atuação. O poder econômico semanifesta dentro de um espaço determina-do, que é conhecido pela doutrina como o“mercado relevante”. Fora do seu mercadorelevante, a atuação do agente econômico éinócua.

O mercado relevante é aquele em que setravam as relações de concorrência ou atuao agente econômico cujo comportamentoestá sendo analisado.17

Duas são as dimensões básicas do mer-cado relevante, reconhecidas por todos osautores. Uma dimensão substancial, ou seja,qual é o produto (ou são os produtos)transacionado(s) nesse mercado, e uma di-mensão geográfica, ou seja, qual é a área fí-sica na qual tais transações ocorrem ou po-dem ocorrer. Calixto Salomão Filho (2002,p. 98) ressalva que a doutrina mais moder-na adiciona uma terceira dimensão, a tem-poral.

O enquadramento do mercado relevantenem sempre é simples. As definições são fle-xíveis e freqüentemente afetadas por avali-ações subjetivas.

Justamente em função da subjetividadeenvolvida na definições dos mercados rele-vantes, e dos conceitos elásticos aí empre-gados, Paula Forgioni (1998, p. 199-218) falaem “válvula de escape”, por meio da qualse pode flexibilizar a incidência das normasantitruste de controle do poder econômico.

A conclusão é intuitiva. Quanto maioresos mercados relevantes, menor será a avali-ação do poder de cada agente econômico;quanto mais restritos forem os mercados re-

levantes, maior será a identificação de situ-ações de poder econômico merecedoras deatenção e controle por parte das autorida-des de defesa da concorrência.

3.3.1. Mercado relevante de produtos

Para a definição do mercado relevantede produtos, é preciso definir quais os benssão vistos pelos consumidores e produtorescomo substitutos uns dos outros. Se, na fal-ta de um produto, o consumidor aceita ad-quirir um outro, pois o considera de utilida-de semelhante, então ambos os produtosfarão parte do mesmo mercado relevantesubstancial.

Para tanto, é preciso analisar os compor-tamentos passados de produtores e consu-midores dos produtos em questão, inclusi-ve as relações de preços. O comportamentodos vendedores e dos compradores leva emconta a possibilidade de substituição dosprodutos, um pelo outro e vice-versa?

Na falta de manteiga, os consumidorescompram mais margarina? Se aumenta opreço da margarina, aumenta o consumo demanteiga? O produtor de manteiga se inte-ressa em passar a produzir margarina quan-do o preço daquela se torna atrativo? Nassuas estratégias comerciais, o fabricante demargarina leva em conta a atuação dos fa-bricantes de manteiga? Se as respostas fo-rem positivas, chegar-se-á à conclusão deque manteiga e margarina são substitutos ecompõem um único mercado relevante. Casocontrário, haverá um mercado relevante demanteiga e outro mercado relevante de mar-garina.18

A tais relações entre a oferta e a deman-da de dois ou mais produtos se denominaelasticidade cruzada de oferta ou deman-da, conforme for o caso. Quanto maior asubstitutividade de um produto por outro,maior será a elasticidade cruzada e vice-ver-sa.19

A análise das relações passadas de elas-ticidade cruzada, entretanto, também apre-senta riscos. Em mercados altamente con-centrados, o preço do produto poderá ser

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tão alto ao longo do tempo que a elasticida-de cruzada com produtos substitutos ten-derá a ser grande, mesmo que para o consu-midor a substituição seja parcial e imperfei-ta. O analista será induzido a acreditar quea substitutividade entre os produtos consi-derados é maior do que ela efetivamente se-ria numa situação mais próxima da concor-rência perfeita.20

Tampouco podem ser ignorados os cus-tos de substituição dos produtos, tanto paraos produtores como para os consumidores.A substituição, mesmo quando desejada,nem sempre é factível.

Para os produtores, há os custos de redi-recionar a produção, comprar novas máqui-nas ou adaptar as existentes, treinar pesso-al, fazer propaganda, entre outros.

Para os consumidores, além da questãodo gosto pessoal de cada um, a substituiçãotambém pode ter um custo, que, conforme ocaso, não é desprezível. Parar de comprarou alugar vídeos para passar a comprar oualugar DVDs envolve o custo de comprar oaparelho de reprodução de DVDs (comoocorreu na mudança tecnológica dos LPspara os CDs). Existe ainda a situação co-nhecida como de lock in. Uma vez adquiridoum produto, muitas vezes num ambientecompetitivo, o consumidor fica preso a de-terminados fornecedores de caráter mono-polista. O consumidor pode escolher váriosfabricantes ou modelos de automóveis oude aparelhos eletrônicos. Mas, uma vez quecomprou um determinado veículo ou apa-relho, fica preso à sua rede de assistênciatécnica e peças de reposição. O custo paratrocar de fornecedor de peças de reposiçãoenvolve aquele de comprar outro veículo ouaparelho, de outro fabricante (que por suavez colocará o consumidor em nova situa-ção de lock in).21

Por fim, ainda que se considere um pro-duto como substituto do outro, e portantointegrante de um mesmo mercado relevantesubstancial, existe a necessidade de se de-terminar quanto da produção de cada bemdeverá ser considerada no mercado unifi-

cado, o que nem sempre é óbvio, notadamen-te do ponto de vista da oferta.22

3.3.2. Mercado relevante geográfico

Definido o mercado de produtos, é pre-ciso definir então o mercado geográfico. Aprodução de um determinado local poderáse deslocar e ser vendida em outras regiões?Terão os consumidores de um lugar facilida-de para comprar os produtos de outro local?

A análise pode ser razoavelmente sim-ples em algumas situações. A concorrênciaentre padarias se dá nos bairros. Dificilmentealguém se desloca para longe para comprarpão. Já o consumidor de restaurantes, ousupermercados, normalmente está dispos-to a um deslocamento um pouco maior, em-bora normalmente não vá sair de uma cida-de para outra.

Do ponto de vista da oferta, os fornece-dores têm uma região na qual são capazesde distribuir os seus produtos, o que depen-derá dos recursos de cada um, do seu siste-ma e dos custos de distribuição, do tipo deproduto (perecível ou não perecível, porexemplo) e de uma série de outros fatores,como as tarifas de importação ou barreirassanitárias, no caso de fornecedores estran-geiros.

Em algumas situações, novas tecnologi-as podem ampliar os mercados geográficospara consumidores e fornecedores, comoocorre, por exemplo, com a possibilidade devendas de produtos por telefone ou por in-ternet.

Também com relação ao mercado geo-gráfico, há dificuldade em se definir qual aquantidade da produção de uma determi-nada região será capaz de ser direcionadapara outra, caso isso se torne economica-mente interessante. É um exercício em cimade hipóteses e, como várias outras análisesnesse campo, envolve um alto grau de sub-jetivismo, freqüentemente impregnado dosconceitos ideológicos daquele que define oscritérios do exame.

É inegável, no entanto, que a existênciade mercados comuns internacionais e o

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movimento de globalização econômica vêmalargando os mercados geográficos para umgrande número de produtos.

4. Controle do poder econômico nalegislação antitruste

Como visto no início, a concorrência per-feita é um modelo teórico ideal, que não sereproduz com todas as suas característicasno mundo real. No entanto, considerando-se as virtudes do modelo, a legislação dedefesa da livre concorrência pode combateras falhas do mercado e fazer com que, aindaque artificialmente, mediante a intervençãodo Estado, as empresas e o mercado se com-portem o mais próximo possível da teoria.

Para tanto, é indispensável que se sub-meta o poder econômico a diferentes formasde controle, de modo a impedir que ele sejaexercitado em detrimento da concorrência.

4.1. Finalidades da legislação antitruste

Não é pacífico, no entanto, o entendimen-to quanto a quais são as finalidades primor-diais da legislação de defesa da concorrên-cia e tampouco a sua natureza jurídica.

Dependendo da ideologia dominante,“defender a concorrência” pode ter váriossignificados e pode ser conseguido de ma-neiras diversas.

Na realidade, não se pode falar no temacomo um assunto fechado e definido. Comobem lembra Paula Forgioni (1998, p. 149-153), as funções exercidas pela legislaçãoantitruste serão tão variadas quanto foremdistintos os locais e momentos históricos desua aplicação e normalmente estarão rela-cionadas às políticas econômicas então pre-valecentes.

Diz-se que a livre concorrência faz fun-cionar a “mão invisível” do mercado, cita-da por Adam Smith. Mas o Direito de Defe-sa da Livre Concorrência vai além da meragarantia de funcionamento da mão invisí-vel.

Nos Estados Unidos, onde surgiu no fi-nal do século XIX, inicialmente com o Sher-

man Act, o Direito Antitruste tinha um exa-cerbado caráter político. Servia para o com-bate aos grandes monopólios e grandes gru-pos empresariais, como as ferrovias e a in-dústria do petróleo, que, naquele momentohistórico, acumulavam um excesso de po-der econômico e, por conseguinte, tambémde poder político.

Consolidada essa visão, no início dosanos 60, a Suprema Corte dos EUA chegoua dizer, no caso Brown Shoe, que a lei expres-sava uma opção de política econômica apro-vada pelo Poder Legislativo no sentido defavorecer uma economia pulverizada, depequenas empresas locais.23

No entanto, com o passar dos anos, eco-nomistas e empresas passaram a identifi-car a perda de competitividade de compa-nhias americanas com as restrições impos-tas pelas normas antitruste, e surgiram no-vas concepções. O poder econômico passoua ser visto como uma necessidade, desde queapto a promover a eficiência econômica, enão mais como algo ruim em si mesmo. Opensamento da chamada Escola de Chica-go, ou neoclássica, começou a dominar aSuprema Corte a partir dos anos 80 e doGoverno Reagan.24 As autoridades se tor-naram muito mais receptivas às fusões deempresas, como solução de sobrevivêncianum mercado internacional cada vez maisduro, a tal ponto que, nos anos 80, de dezmil fusões notificadas, o Governo Norte-Americano só questionou vinte e oito.25

Já na Europa, e notadamente na Alema-nha, historicamente a legislação protegia alealdade da competição, ou seja, regulava aboa-fé na relação entre as empresas concor-rentes no mercado. Paralelamente, porém,havia a formação de grandes cartéis e mo-nopólios, muitas vezes com o estímulo dopróprio Estado. A situação se modificou logoapós o fim da Segunda Guerra Mundial,quando a política dos aliados para a Ale-manha tendeu à descartelização da econo-mia e à cisão compulsória de grandes gru-pos. Em seguida, porém, o esforço de recons-trução levou à necessidade de um novo pro-

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cesso de concentração empresarial, que acar-retou modificações na legislação .26

Nesse contexto, a partir do advento doTratado de Roma, de 1957, e com a consoli-dação da Comunidade Econômica Euro-péia, a nova legislação comunitária passoua dar mais ênfase à liberdade de competirdas empresas, ao lado da já antiga preocu-pação da lealdade na competição. Tal ten-dência se fez sentir também nos vários paí-ses europeus tomados individualmente, epersiste até os dias de hoje.

Atualmente, há duas grandes escolasteóricas que balizam as discussões sobre asfinalidades da legislação antitruste.

Segundo a Escola de Chicago, ou neo-clássica, que hoje prevalece no pensamentonorte-americano, o objetivo principal da le-gislação de defesa da concorrência deve sera garantia da eficiência econômica das em-presas, pois assim se possibilitará a redu-ção dos preços dos produtos e o consumi-dor final será beneficiado. As teorias da Es-cola de Chicago, assim, têm grande apelopolítico-ideológico, por colocarem o consu-midor como o grande beneficiário da legis-lação antitruste.

No entanto, ao aceitar a formação degrandes grupos em nome da eficiência, a li-nha da Escola de Chicago propicia muitasvezes a concentração do poder econômico.Em tal cenário, nem sempre a redução doscustos de produção serão repassados aospreços dos produtos, pois, como vimos, oagente econômico poderoso tenderá a man-ter para si os ganhos obtidos.

A influência de conceitos econômicos, noque ficou conhecido como a Análise Econô-mica do Direito (Economic Analysis of Law),base teórica da Escola de Chicago, eliminapreocupações valorativas, tais como as ques-tões de justiça distributiva. Também deixade lado a preocupação com aspectos subje-tivos do comportamento do consumidor nãoligados diretamente ao preço.

No cenário europeu, ressalta a Escola daFreiburg, ou ordo-liberal, de origem alemã.Para tal linha de pensamento, a legislação

de defesa da concorrência não tem um obje-tivo econômico predeterminado. Os mode-los econômicos buscam uma concorrênciaperfeita que é impossível, e portanto nãopodem ser a única base da análise. Quantomaior a concorrência, porém, maior será a li-berdade de escolha dos agentes econômicos,de modo que possam descobrir a melhor op-ção no mercado e o comportamento mais ra-cional. Assim, na esteira de Hayek, o sistemaconcorrencial se confunde com um processode descoberta, e a possibilidade de escolha étomada como um valor em si mesmo.27

4.2. Natureza da legislação antitruste

No Brasil, tradicionalmente nunca sereprimiu o poder econômico por si só, masapenas o seu abuso. O poder econômico sóé combatido quando exercido em deturpa-ção às regras do mercado, pois do contrárioé considerado normal e não abusivo.28

E qual seria a natureza da legislação decombate ao abuso do poder econômico, aíincluída a legislação antitruste, ou de defe-sa da livre concorrência?

Há quem defenda fazer parte do DireitoAdministrativo. Outros entendem que per-tence ao Direito Penal. Uma terceira posi-ção é dos que a classificam dentro do Direi-to Econômico.

Parece difícil enquadrar a legislação an-titruste no ramo do Direito Administrativo,no entanto, pois este é essencialmente vol-tado para o funcionamento do Estado e àprestação dos serviços públicos.

Por outro lado, as leis de repressão aoabuso do poder econômico, no Brasil, têmorigem na proteção à economia popular,com forte caráter punitivo e criminal. Daí al-guns autores ainda considerarem a legisla-ção antitruste como parte do Direito Penal.29

Entendemos contestável, porém, a inser-ção do Direito Antitruste no âmbito do Di-reito Penal. A legislação de defesa da con-corrência tem como característica uma flui-dez e flexibilidade dos conceitos e dos limi-tes das responsabilidades que não se coa-dunam com os rígidos princípios da legis-

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lação criminal, como o princípio da tipici-dade.30 Além do mais, as normas antitrusteincorporam formas de controle preventivoda atuação do poder econômico, como o con-trole prévio de fusões de empresas, que tam-pouco se encaixam nas noções clássicas deDireito Penal, essencialmente punitivas, enão preventivas.

Já o Direito Econômico, entendido comoo ramo do Direito que tem por objeto o trata-mento jurídico da política econômica e dosagentes que dela participem,31 parece a áreamais adequada para inserir a legislação dedefesa da concorrência.

Tratando-se de uma intervenção regula-tória do Estado na ordem econômica, sejapermitindo concentrações de empresas, sejadificultando-as, seja reprimindo determina-das condutas, seja admitindo-as, a aplica-ção do Direito Antitruste bem se amolda aoslimites do Direito Econômico.

4.3. Setores regulados

Uma questão que surge freqüentementena aplicação da legislação antitruste é o pro-blema da sua eventual incidência, ou não,em determinados setores da economia já re-gulados por normas próprias e específicas.É o caso, por exemplo, das concessionáriasde serviços públicos e das instituições finan-ceiras.

Calixto Salomão Filho (2002, p. 210-223)discorre a respeito das doutrinas desenvol-vidas sobre o assunto nos Estados Unidos.Lá surgiu, com base na forte tradição fede-ralista, a State Action Doctrine, segundo a qualnão se aplica a legislação federal antitrustea atividades reguladas por um Estado se,cumulativamente, (a) o Estado toma a deci-são política de substituir a competição pelaregulação e (b) o Estado fiscaliza ativamen-te a sua regulamentação. Quanto às demaisagências reguladoras governamentais, de-senvolveu-se ainda a Pervasive Power Doc-trine, pela qual afasta-se a incidência dasnormas de defesa da concorrência quandoa agência governamental tem, cumulativa-mente, (a) uma competência tão ampla (que

substitui o sistema de concorrência por umsistema regulado) ou profunda (por recebercompetência para aplicar, ela mesma, asnormas de concorrência) que afasta as nor-mas antitruste comuns da concorrência e (b)a agência efetivamente exerce o seu poder.

É difícil transferir as doutrinas america-nas para o Brasil. O federalismo é muito di-ferente, a Constituição é muito diferente e asnormas específicas sobre as competênciasestatais não se confundem.

No Brasil, por sinal, a Lei no 8.884/94, oprincipal diploma legal antitruste, afirmano artigo 15 ser aplicável a todos os setoresda economia, mesmo aqueles explorados emregimes especiais de monopólio legal.

Em matéria de instituições financeiras,porém, a Lei no 4.595/64 atribui ao BancoCentral a competência para autorizar as fu-sões (art. 10, X, “c”) e para regular as condi-ções de concorrência, coibindo eventuaisabusos (art. 18, § 2o). Considerando que, emvirtude do artigo 192 da Constituição Federalde 1988, a Lei no 4.595/64 só pode ser altera-da por lei complementar e que a Lei n o 8.884/94 é lei ordinária, a Advocacia-Geral da Uniãodeu parecer no sentido de que esta última nãose aplica às instituições financeiras.32

Há quem sustente, da mesma forma, que,em se tratando de concessionárias de servi-ços públicos, a competência do Poder Con-cedente e das agências reguladoras (fede-rais ou estaduais) exclui a incidência da le-gislação antitruste, a não ser que haja res-salva legal explícita.33

No setor de telefonia, privatizado na ges-tão do Presidente Fernando Henrique Car-doso, há legislação específica (Lei n o 9.472/97) disciplinando a aplicação das normasde defesa da concorrência e dividindo asatribuições da agência reguladora (ANA-TEL) e das autoridades antitruste (SDE,SEAE e CADE). No setor elétrico, apenasparcialmente privatizado, há um regime hí-brido de concorrência e regulação (Leis nos

9.427/96 e 9.648/98), ainda não totalmentedelineado, prevendo-se convênios entre aANEEL e as autoridades antitruste.

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Caberá ao Poder Legislativo explicitar aquestão nas demais áreas, mediante a edi-ção de novos diplomas normativos, e ao Ju-diciário, quando provocado especificamen-te sobre o tema, decidi-la em definitivo.

4.4. Técnicas de controle do poder econômico

A legislação antitruste dos vários paísesnormalmente se utiliza de duas técnicasprincipais de controle do poder econômico.Pode haver o controle repressivo, quando aautoridade pune o agente e faz cessar umadeterminada prática anticoncorrencial. Epode haver o controle preventivo, nas con-centrações empresariais, quando a efetiva-ção destas fica sujeita à apreciação da auto-ridade antitruste.

No controle repressivo, freqüentementehá condutas que são consideradas ilícitasper se. A concorrência desleal é combatidasempre, mesmo que o agente não detenhapoder econômico específico ou não se pre-valeça dele na sua atuação.

Já no controle preventivo, guia-se a au-toridade sobretudo pelo princípio da razo-abilidade, ou regra da razão (rule of reason).Não se impede a concentração por si só,pois, como se viu, o combate não deve ser aopoder econômico apenas, mas ao seu abu-so. A concentração empresarial poderá serpermitida se houver justificativas razoáveisque a sustentem como algo positivo, econô-mica e socialmente. Busca-se antever qualpoderá ser a conduta futura das empresasconcentradas, de modo a se impedir que pos-sam exercer o poder econômico, que passa-rão a ostentar, de maneira anticoncorrencial.

4.5. A legislação antitruste noexterior e no Brasil

Feitas as considerações acima, o pontofinal é a abordagem dos aspectos principaisda legislação antitruste nos Estados Unidos,na Europa, no Mercosul e no Brasil.

4.5.1. Estados Unidos

Conforme explicado acima, os EstadosUnidos foram o berço da legislação antitrus-

te. O Sherman Act, de 1890, foi a primeira leide defesa da livre concorrência a ser edita-da no mundo e ainda hoje é a principal nor-ma na matéria, tendo as leis subseqüentes,como o Clayton Act e o Federal Trade Commis-sion Act, ambos de 1914, servido para com-plementá-lo e modernizá-lo.34

A Federal Trade Commission, ou simples-mente FTC, é o órgão governamental respon-sável por fazer aplicar as normas de defesada concorrência, ressalvadas as exceções daState Action Doctrine e da Pervasive PowerDoctrine já mencionadas.

No famoso caso Standard Oil, em 1911, aSuprema Corte aplicou pela primeira vez achamada rule of reason, segundo a qual aspráticas anticoncorrenciais e o exercício dopoder econômico só devem ser repudiadosse a restrição que impuseram aos negóciosfor desarrazoada (unreasonable). O princípiopassou a ser aceito como regente da aplica-ção das normas antitruste. Ainda assim,apesar da regra geral, a jurisprudência nor-te-americana reconhece alguns casos de ili-citude per se, ou de falta presumida de razo-abilidade, segundo a definição da SupremaCorte no caso Northern Pacific Railway, de1958. São hipótese extremas, como aquelasde acordos de divisão de mercado ou de fi-xação de preços.35

As autoridades norte-americanas apli-cam as suas normas de defesa da concor-rência extraterritorialmente. Não importa sea concentração empresarial ou a condutaocorreu no exterior, pois, se há efeitos nosEstados Unidos, são aplicáveis as suas re-gras.36

O Clayton Act permite que as empresasou pessoas que se considerem individual-mente prejudicadas por práticas anticoncor-renciais de terceiros ajuízem ações indeni-zatórias, as quais, se tiverem sucesso, dãoao autor o direito à indenização dos seusprejuízos multiplicada por três (treble dama-ges). Com isso, houve um estímulo a um gran-de número de ações indenizatórias basea-das na legislação antitruste, o que merececrítica de parte da doutrina e da jurispru-

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dência, compondo parte do quadro de liti-giosidade exacerbada que se observa nosEstados Unidos.37

Finalmente, é interessante notar que,embora a legislação antitruste norte-ameri-cana seja famosa pelos casos contra gran-des empresas – Standard Oil, AT&T, IBM,Microsoft, para citar alguns –, ela tem imensaaplicação em situações locais, impedindoabusos no pequeno comércio das cidades.38

4.5.2. União Européia

No âmbito da Comunidade EconômicaEuropéia, hoje União Européia, as princi-pais normas relativas à defesa da livre con-corrência constam do Tratado de Roma, de1957. O artigo 81 trata dos acordos, associa-ções e práticas que possam ter efeitos anti-concorrenciais, e o artigo 82 disciplina a ili-citude do abuso de posição dominante, ter-minologia empregada para classificar oabuso do poder econômico.39

Os órgãos de defesa da concorrência, naComissão Européia, têm competência paraeditar regulamentação de forma a dar apli-cabilidade às normas comunitárias, inclu-sive no tocante ao controle das concentra-ções empresariais.

As normas européias não visam apenasmanter a livre concorrência, mas tambémsão uma ferramenta de política econômica,sendo aplicadas de modo a favorecer o de-senvolvimento econômico comunitário e acompetitividade internacional das empre-sas européias.40

O artigo 86, § 2o, do Tratado de Roma(antigo artigo 90, § 2o) cria um regime deexceção para os monopólios fiscais e asempresas encarregadas pelos Estados dagestão de serviços de interesse econômicogeral. Tais atividades estão em princípiosubmetidas às regras antitruste, mas pode-rão ficar de fora se a aplicação das normasde defesa da concorrência implicarem em-baraços e impedirem o cumprimento dosobjetivos da delegação recebida.

Os subsídios ou outras formas de estí-mulo econômico eventualmente estabeleci-

dos por determinados Estados a certas ati-vidades ou regiões, embora possam criarsituações artificiais que falseiam a livre con-corrência, são apreciados dentro de um exa-me de razoabilidade, podendo ser aceitoscomo justificados se aptos a corrigir distor-ções e a promover o desenvolvimento eco-nômico.41

Tal como os Estados Unidos, a UniãoEuropéia aplica as suas normas de defesada livre concorrência de maneira extraterri-torial, bastando que haja efeitos no territó-rio comunitário para que as mesmas sejamtidas por incidentes, ainda que os atos oupráticas em questão tenham lugar no exte-rior.

Cada país também tem a sua própria le-gislação antitruste. Embora nos últimosanos esteja ocorrendo um movimento nosentido da harmonização da legislação dosvários países, ainda há situações de con-flito.

Como princípio, a competência comuni-tária se limita àquilo que foi definido expres-samente no Tratado de Roma (consolidadopelo Tratado de Amsterdã). Fora daí, cadapaís conserva a sua própria competêncialegislativa independente e soberana. Noâmbito da competência legislativa comuni-tária, porém, esta prevalece sobre as compe-tências nacionais.

Assim, o Tribunal de Justiça Europeudesenvolveu com o tempo a doutrina dadupla barreira mitigada, também conheci-da como a doutrina do efeito útil. As nor-mas comunitárias e nacionais podem seraplicadas concorrente e cumulativamente,mas, se houver incompatibilidade, prevale-ce a norma comunitária, por hierarquica-mente superior. Mesmo dentro da compe-tência nacional, porém, a norma local deveser afastada se a sua aplicação resultar naeliminação do efeito útil perseguido peloTratado de Roma, no sentido da promoçãoda livre concorrência. Noutras palavras, osEstados nacionais não podem tomar medi-das que anulem o efeito útil das normas co-munitárias de concorrência. Por exemplo, o

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Estado não pode autorizar uma prática quea União Européia proíbe. Também aí, naanálise do conflito, prevalece o princípio darazoabilidade. Para restringir a livre con-corrência, as regras estatais excepcionaisdevem ser razoáveis, proporcionais e neces-sárias para os fins a que se destinam, mes-mo que o objetivo seja de interesse geral(como é o caso em normas sanitárias, tribu-tárias, ou de combate à inflação). Apesar demuitas idas e vindas, e de uma jurisprudên-cia muitas vezes vacilante, esta é, resumi-damente, a maneira de solucionar os confli-tos entre as legislações antitruste nacionaise comunitárias.42

4.5.3. Mercosul

No âmbito do Mercosul, o diploma fun-dador do mercado comum, o Tratado deAssunção, não aborda expressamente aquestão da concorrência sob o aspecto anti-truste. O artigo 1o, porém, proclama ser oobjetivo do acordo a eliminação de qualquerrestrição não alfandegária à circulação demercadorias, o que faz a doutrina conside-rar aí incluídas as eventuais restrições de-correntes de práticas anticoncorrenciais edo abuso do poder econômico.43

Os países membros do Mercosul firma-ram em 1996 um Protocolo de Defesa daConcorrência, conhecido como Protocolo deFortaleza, promulgado no Brasil com o De-creto no 3.602, de 18.09.2000.

O Protocolo de Fortaleza prevê a futuraintegração de suas normas aos sistemas ju-rídicos da cada país, com a harmonizaçãodas legislações nacionais. Há um rol exem-plificativo de condutas consideradas comoanticoncorrenciais e não se prevê o controlede concentrações, embora o artigo 7o acenecom a sua futura instituição, o que até hojenão ocorreu. Por outro lado, é reconhecida acompetência privativa dos Estados para osatos que gerem efeitos apenas em cada paísrespectivamente.

A falta de instituições comunitárias for-tes como as européias, notadamente um Tri-bunal de Justiça, faz com que as normas

antitruste do Mercosul estejam muito maisno plano teórico e programático do que narealidade prática, e resta esperar e observarse os países estarão dispostos a efetivamentetransferir parcelas significativas de suas pró-prias soberanias para órgãos supranacionais,cenário que hoje ainda parece distante.

4.5.4. Brasil

As normas antitruste, no Brasil, passa-ram por interessante evolução histórica,sendo marcante, ao longo do processo, ainfluência estrangeira, especialmente nor-te-americana.

O primeiro diploma a promover estrutu-radamente a repressão ao abuso do podereconômico foi a Lei no 4.137/62, que tinhaorigem em regras constitucionais e penaisde proteção da economia popular. A menci-onada Lei criou o CADE, ainda que comcaracterísticas muito distintas das atuais, eregulava um tanto genericamente a repres-são ao domínio dos mercados, às formaçõesmonopolísticas, ao aumento arbitrário doslucros, à elevação de preços, à eliminaçãoda concorrência e à concorrência desleal.44

O Decreto no 52.025/63, no entanto, dis-pensava de registro os acordos e ajustes quevisassem realizar operações normais aosusos e praxes comerciais para contratos damesma natureza, numa verdadeira cartabranca a um sem-número de práticas e con-centrações potencialmente anticoncorrenci-ais.

Por outro lado, como comentado anteri-ormente, houve momentos em que a políticaeconômica governamental foi abertamentefavorável à formação de grandes gruposempresariais nacionais, proporcionando aconcentração do poder econômico não ape-nas consentida, mas estimulada, como foi ocaso do II PND, nos anos 70.

Hoje, o arcabouço legislativo de defesada livre concorrência tem esteio na Consti-tuição Federal, notadamente no § 4o do arti-go 173, que remete à lei a repressão ao “abu-so do poder econômico que vise à domina-ção dos mercados, à eliminação da concor-

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rência e ao aumento arbitrário dos lucros”.E, com base nesse dispositivo, foi editada aLei no 8.884/94, que transformou o CADEem autarquia, dando-lhe atribuições e po-der dos quais antes não dispunha, e regu-lou “a prevenção e a repressão às infraçõescontra a ordem econômica”.

A própria norma constitucional dá àmatéria uma feição pluralista, concepçãoessa abarcada no artigo 1o da Lei no 8.884/94, que define como suas finalidades a ob-servância aos ditames constitucionais dalivre iniciativa, da livre concorrência, dafunção social da propriedade, da defesa dosconsumidores e da repressão do abuso dopoder econômico.45

A conquista de mercado e o crescimentoda empresa em razão de sua eficiência, semabuso de poder econômico, são expressa-mente reconhecidos como legítimos na le-gislação (Lei no 8.884/94, art. 20, § 1o).

Há o reconhecimento de que a políticaeconômica pode ser uma justificativa paraexcepcionar a aplicação rigorosa das nor-mas antitruste, como previsto no § 2o do ar-tigo 54, mas é no mínimo discutível, no sis-tema constitucional brasileiro, se pode ser oCADE o juiz do que venham a ser “motivospreponderantes da economia nacional e dobem comum”. A regra parece transformar oCADE em formulador de política econômi-ca, o que é claramente fora do seu escopo decompetência. Além do mais, segundo o arti-go 174 da Constituição da República, o pla-nejamento econômico estatal é meramenteindicativo para o setor privado, e não deter-minante, o que torna obscura a constitucio-nalidade de regra que vincule a aprovaçãoou não de atos ou contratos de empresasprivadas às decisões de política econômica,seja qual for o órgão governamental a deci-di-las e/ou implementá-las.

Como regra, a concorrência desleal ésempre reprimida, e o seu combate indepen-de de haver ou não poder de mercado.

Por outro lado, a Lei Antitruste é refratá-ria a quaisquer das formas de abuso de po-der econômico, e não apenas àquelas que

afetem o consumidor, como se pode depreen-der dos artigos 1o e 21, V, da Lei no 8.884/94.

Ainda assim, pode ser sentida na legis-lação uma forte influência da Escola de Chi-cago, na medida em que se adota o sistemada regra da razão46 para a avaliação de con-centrações potencialmente anticoncorrenci-ais, permitindo-se que estas sejam justifica-das mediante a demonstração de ganhos deeficiência, além de outros requisitos, como severifica do artigo 54, § 1o, da mencionada lei.

A forma jurídica dos contratos ou atossubmetidos à apreciação do CADE é irrele-vante e não inibe a aplicação das regrasantitruste, pois o que importa são os efeitoseconômicos que deles possam advir. Nessalinha, admite-se amplamente a utilizaçãoda teoria da desconsideração da personali-dade jurídica para fins de incidência dasnormas antitruste.

A Lei no 8.884/94 criou parâmetros depresunção de poder econômico, como severifica nos artigos 20, § 3o, e 54, §3o. Umaparticipação acima de 20% em determina-do mercado relevante, ou um volume anualde faturamento bruto a partir de R$ 400 mi-lhões, coloca a empresa (ou o grupo de em-presas) em situação de poder econômicopresumido, e portanto sujeita a maiores res-trições legais. Tais parâmetros servem maispara a análise estrutural, especialmente emmatéria de concentrações, pois, como já seafirmou, em matéria de condutas mais im-porta a deslealdade da prática em si do quea situação econômica daquele que age.

O artigo 29 da Lei no 8.884/94 dá amplalegitimação a qualquer um que se considereprejudicado por práticas anticoncorrenciaispara ingressar em juízo, pedindo a cessa-ção da prática e/ou indenização, e tambémpermite o ajuizamento de ações coletivas.

Na mesma esteira de outros países, es-pecialmente dos Estados Unidos e da UniãoEuropéia, a lei brasileira também se consi-dera aplicável de modo extraterritorial, naforma do artigo 2o.

O sistema de controle repressivo dosabusos do poder econômico se encontra cen-

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trado nos artigos 20 e 21 da Lei n o 8.884/94.Primeiramente há a definição teórica de ti-pos ilícitos, para em seguida ser feita umalistagem exemplificativa de condutas ina-ceitáveis. A doutrina critica a imprecisãotécnica do legislador, que parece ter tentadocompatibilizar o formalismo do jurista deorigem civilística, romano-germânica, coma flexibilidade da regra da razão de origemnorte-americana, e acabou criando certasconfusões conceituais.47

São várias as penas previstas para a prá-tica dos ilícitos dos artigos 20 e 21, podendochegar até mesmo à fragmentação compul-sória da empresa ou grupo de empresas, emcaso de reiteradas infrações, como prevê oinciso V do artigo 24.48

A parte poderá, em qualquer fase do pro-cedimento administrativo, acordar com aautoridade antitruste um compromisso decessação da prática sob investigação, cujocumprimento será posteriormente monito-rado, tudo conforme previsão do artigo 53da Lei no 8.884/94.

No campo do controle preventivo, oucontrole das concentrações empresariais, alegislação submete à apreciação do CADE“os atos, sob qualquer forma manifestados,que possam limitar ou de qualquer formaprejudicar a livre concorrência, ou resultarna dominação de mercados relevantes debens ou serviços” (Lei no 8.884/94, art. 54,caput). A regra da prévia apreciação doCADE, portanto, aplica-se a quaisquer for-mas de atos, não importando se de cunhosocietário ou meramente contratuais. Assim,para tais finalidades, pouco importa, porexemplo, se uma empresa faz uma cisão se-guida de incorporação da parcela cindidapor outra ou se há simplesmente a venda di-reta de ativos de uma empresa para a outra.Justamente por ser preventivo, esse controleindepende da concretização de qualquer pre-juízo à livre concorrência, bastando que aoperação em questão seja potencialmente pe-rigosa, ou seja, possa ter efeitos prejudiciais.

Como já se viu acima, os vislumbradosganhos de eficiência econômica decorren-

tes da concentração poderão justificar a au-torização do ato pelo CADE, desde que nãoseja substancialmente eliminada a concor-rência, sejam observados os limites estrita-mente necessários para atingir os objetivosvisados e os eventuais benefícios sejam dis-tribuídos eqüitativamente entre produtoresde um lado e consumidores do outro (Lei no

8.884/94, art. 54, § 1o). Nesse contexto, oCADE pode definir compromissos de desem-penho para que seja assegurado o cumpri-mento das condições impostas na lei para aaprovação (Lei no 8.884/94, art. 58).

Há a possibilidade de aprovação parci-al ou com restrições, como já ocorreu emvárias oportunidades. Podem ser citados osexemplos dos casos Kolynos, quando a con-centração foi aprovada mediante a retiradatemporária de uma marca do mercado, ouAMBEV, quando se impôs a obrigação devenda de uma das marcas de cerveja do gru-po para terceiros.

Estes são, em apertada síntese, os prin-cipais contornos do sistema do controle dopoder econômico existentes na legislaçãoantitruste brasileira.

5. Conclusões

O presente trabalho não se pretendeexaustivo. Os temas foram abordados aquiem linhas gerais, e são complexos.

O aparecimento e o exercício do podereconômico nos mercados é um dado da rea-lidade, e o seu controle não é tarefa simples.

A legislação antitruste não deve ser uti-lizada para impedir o desenvolvimento e ocrescimento legítimo das empresas, decor-rente da eficiência, que é da essência do sis-tema econômico capitalista. Há quem defen-da, por sinal, que o principal objetivo doDireito da Concorrência é justamente pro-mover a eficiência econômica dos agentesno mercado, capaz de beneficiar os consu-midores mediante a redução dos preços, aopasso que outros consideram a competiçãoimportante em si mesma, por permitir maiorpossibilidade de escolha para o consumidor.

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De qualquer modo, é preciso reconhecerque a legislação antitruste é fortemente in-fluenciada pelas ideologias prevalecentesem cada local e momento histórico e se pres-ta a funcionar como instrumento de políticaeconômica.

No Brasil, a matéria está regulada naConstituição Federal de 1988 e na Lei no

8.884/94, que muito modificaram o regimejurídico anterior. O Protocolo de Fortaleza,de 1996, no âmbito do Mercosul, foi promul-gado aqui em 2000.

O controle do poder econômico nos mer-cados está na ordem do dia. Resta esperar eobservar atentamente como a questão evo-luirá daqui em diante.

Notas1 NUSDEO, 1997, p. 317-319.2 SALOMÃO FILHO, 2002, p. 53-54.3 Como veremos adiante em maior detalhe, de

um modo geral as legislações antitruste não repri-mem a obtenção do poder econômico por meio dosganhos obtidos pela eficiência do agente econômi-co. Somente o exercício abusivo do poder econômi-co é que será considerado ilícito, não a pura e sim-ples detenção de poder conseguida mediante con-corrência lícita e leal no mercado, que nada mais édo que o objetivo perseguido por todas as empre-sas numa economia capitalista.

4 Um caso clássico de cartel que reforça o podereconômico dos seus componentes é a Organizaçãodos Países Produtores e Exportadores de Petróleo,a OPEP, que estabelece quotas de produção e pre-ços para o mercado mundial. Por ser uma organi-zação internacional de países, em torno de um pro-duto essencial, a OPEP pode se organizar explici-tamente sem sofrer repressão legal, ficando sujeitaapenas às condicionantes da política internacional.

5 SALOMÃO FILHO, 2002, p. 278-279; NUS-DEO, 1997, p. 314.

6 Para a análise das operações aqui citadas, eoutras, no contexto de concentrações empresariaise acúmulo de poder econômico: Batalha, Neto(1996, p. 24-112).

7 SALOMÃO FILHO, 2002, p. 244-245.8 SALOMÃO FILHO, 2002, p. 247. É interes-

sante notar que a Lei das Sociedades Anônimas écontemporânea ao II Plano Nacional de Desenvol-vimento (PND), no qual o Governo Federal adota-va como política pública o estímulo à formação degrandes grupos empresariais nacionais, como for-

ma de reforçar a competitividade internacional daeconomia brasileira. Ver: SOUZA (2003, p. 260).

9 NOTARI, 1996, p. 6.10 Nesse sentido, vale mencionar um caso inte-

ressante analisado pela Comissão da ComunidadeEconômica Européia, o caso Kodak, no qual os con-tratos entre a matriz e uma filial foram considera-dos irrelevantes para efeitos de concorrência, poispara tais fins as empresas já eram consideradascomo uma só. Assim, considerou-se o grupo eco-nômico como sendo uma empresa só. Ver: Compa-rato (1983, p. 384-385).

11 SALOMÃO FILHO, 2002, p. 87.12 SALOMÃO FILHO, 2002, p. 133.13 SALOMÃO FILHO, 2002, p. 134-135. É im-

portante ressaltar que a teoria dos monopólios seaplica também a empresas que tenham grande par-ticipação em mercados nos quais os demais com-petidores são pulverizados. Em certas situações,porém, há monopolistas que podem ser induzidosa comportamentos tipicamente competitivos emvirtude de baixas barreiras à entrada e de alta elas-ticidade cruzada da demanda. Daí ser necessária,para fins da legislação antitruste, a análise não sóda situação de monopólio da empresa em questão,mas de toda a estrutura do mercado no qual atua.

14 SALOMÃO FILHO, 2002, p. 135-136. Naspáginas subseqüentes, o autor identifica as princi-pais críticas a essas análises em geral aceitas comocaracterizadoras dos oligopólios. As ações conjun-tas de várias empresas enfrentam inúmeras difi-culdades de diferentes naturezas. Observa-se ain-da, na prática, que a existência de poucas empre-sas num determinado mercado muitas vezes acar-reta concorrência muito acirrada, e não acordos deoligopólio ou cartel.

15 Deve ser observado, no entanto, que oligop-sônios tendem a se converter em oligopólios, tendoem vista a articulação existente entre as empresas.De outra parte, os monopsônios podem induzir asempresas à integração vertical, de forma a se for-marem grandes grupos com poder econômico ain-da maior, até mesmo monopolistas.

16 BATALHA; NETTO, 1996, p. 146.17 FORGIONI, 1998, p. 200.18 Como sempre, a economia apresenta mode-

los teóricos que não se verificam integralmente naprática. Não há produtos substitutos totalmenteperfeitos, até mesmo porque o comportamento decada consumidor nunca é idêntico ao do outro, e asmesmas variações de preços ou escassez de produ-tos terão resultados variáveis de acordo com umasérie de outras condicionantes, como a situação daeconomia em geral, os hábitos locais, o nível derenda dos consumidores e outros dados.

19 Para os conceitos de oferta e demanda, elasti-cidade e demais bases analíticas microeconômicas,ver Nusdeo (1997, p. 261-300).

Revista de Informação Legislativa122

20 Para descrição do problema, inclusive comexemplo do famoso caso Du Pont, julgado pelaSuprema Corte dos Estados Unidos, no qual sediscutiu a elasticidade cruzada de demanda entreo papel celofane e demais papéis de embalagemver Posner (1998, p. 326).

21 SALOMÃO FILHO, 2002, p. 104-105.22 SALOMÃO FILHO, 2002, p. 103-104.23 SALOMÃO FILHO, 2002, p. 42.24 SALOMÃO FILHO, 2002, p. 43.25 FRIEDMAN, 2002, p. 392.26 SALOMÃO FILHO, 2002, p. 66-69.27 Para uma análise crítica da Escola de Chica-

go e da Escola de Freiburg ver Salomão Filho (2002,p. 22-28).

28 BASTOS, 2003, p. 230.29 FRANCESCHINI, 1996, p.16.30 BATALHA; NETTO, 1996, p. 127.31 SOUZA, 2003, p. 23.32 Parecer no AGU/LA-01/2001, DOU-I

25.04.2001, p. 13-15. O Conselho Administrativode Defesa Econômica – CADE, principal entidaderesponsável pela aplicação da legislação antitrusteno Brasil, não vem aceitando o parecer da AGU evem se dizendo competente na matéria. Ver, p. ex.:Ato de Concentração no 08012.004499/2002-77,DOU-I 18.02.2003, p. 18. O Judiciário ainda nãodecidiu esse conflito de competências, e, se não foreditada lei complementar específica sobre o tema,a palavra final deverá ser do Supremo TribunalFederal, por envolver matéria constitucional.

33 ARAGÃO, 2003, p. 295. Algumas decisõesdo Superior Tribunal de Justiça parecem indicaruma tendência no Judiciário nesse sentido. No Man-dado de Segurança no 5.307-DF, decidiu-se que osserviços públicos concedidos de radiodifusão nãosão atividades econômicas sob regime empresarial,sendo regidos por normas específicas de DireitoPúblico, com origem no artigo 21 da Constituição,não predominando a livre iniciativa e a livre concor-rência consagradas no artigo 173 (Relator o Minis-tro Demócrito Reinaldo, julgamento em 14.10.98,íntegra do acórdão disponível na internet no sitewww.stj.gov.br). Os Tribunais reconhecem nature-za diversa à atividade econômica desenvolvida di-reta e livremente pelo empresário daquela vincula-da de alguma forma a um contrato administrativo.Nessa linha, por exemplo, o Supremo Tribunal Fe-deral vem julgando inconstitucionais várias leismunicipais que fixam uma distância mínima paraa instalação de farmácias e drogarias, por implica-rem restrição à livre concorrência e ao princípio daliberdade de iniciativa econômica privada (ver p.ex.: Recurso Extraordinário no 203.909-SC, Relatoro Ministro Ilmar Galvão, julgamento em 14.10.97; eRecurso Extraordinário no 199.517-SP, Relator o Mi-nistro Maurício Corrêa, julgamento em 04.06.98;

ambos os acórdãos disponíveis na íntegra na inter-net no site www.stf.gov.br). Já numa hipótese emque tinha havido uma licitação para a instalaçãode uma lanchonete num terminal rodoviário, o Su-perior Tribunal de Justiça aceitou os argumentosdo licitante vencedor para proibir a instalação deoutra lanchonete no mesmo local, pois o edital re-servara as demais lojas para outras atividades. Aquestão foi apreciada sob a ótica do Direito Admi-nistrativo e da Lei de Licitações, e não sob o viés dalivre concorrência e da livre iniciativa. Ver RecursoEspecial no 147.666-GO, Relator o Ministro HélioMosimann, julgamento em 03.09.98, íntegra do acór-dão disponível na internet no site www.stj.gov.br.

34 SHENEFIELD; STELZER, 2001, p. 15-23.35 SHENEFIELD; STELZER, 2001, p. 16-17.36 SHENEFIELD; STELZER, 2001, p. 115-120.37 SHENEFIELD; STELZER, 2001, p. 111-113.38 FRIEDMAN, 2002, p. 392.39 O Tratado de Amsterdã, de 1999, modificou

a numeração de vários artigos do Tratado de Roma.Os atuais artigos 81 e 82 equivalem aos originaisartigos 85 e 86 do Tratado de Roma.

40 FORGIONI, 1998, p. 164-169.41 SUTHERLAND, 1991, p. 52-54.42 PASTOR, 1995, p. 280-440. O autor discorre

detalhadamente sobre a matéria, inclusive expli-cando os vários precedentes julgados ao longo dotempo pelo Tribunal de Justiça Europeu. É impor-tante ressaltar, no entanto, que, mesmo quandoaparentemente a competência for exclusiva do Es-tado, pode haver uma situação de competênciaconcorrente. Há precedente, por exemplo, no qual oconjunto do território alemão foi considerado comoparte substancial do mercado comum. Assim, em-bora não extrapolasse as fronteiras de um país, ocaso mereceu aplicação do direito comunitário, poishaveria reflexos em toda a comunidade, e não ape-nas no país em questão. Ver Passos (2000, p. 29).

43 SALOMÃO FILHO, 2002, p. 46.44 BATALHA; NETTO, 1996, p. 124-125.45 A norma pátria não inclui, entre as finalida-

des específicas das regras antitruste, a defesa daspequenas empresas, que deverá ser promovida poroutros meios. A Constituição Federal trata do temano artigo 170, e não no artigo 173, o que parecejustificar a opção do legislador ordinário.

46 Embora a utilização da chamada regra darazão para o exame de concentrações empresariaisrevele de fato a influência do Direito Antitruste dosEstados Unidos, a aplicação do princípio da razo-abilidade não é inovação ou particularidade da le-gislação de defesa da concorrência. Há muitos anos,o Supremo Tribunal Federal pondera alegações deinconstitucionalidade das leis com base no exameda razoabilidade das normas impugnadas. Sobre amatéria: Mendes (1998, p. 187-199), Barroso (1999,p. 209-234).

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47 SALOMÃO FILHO, 2002, p. 74-77.48 A desestruturação empresarial como forma

de repressão a reiteradas condutas anticoncorren-ciais é uma das técnicas adotadas nos Estados Uni-dos, já tendo sido efetivamente aplicada em casosrumorosos, como os da Standard Oil, no início doséculo XX, e, mais recentemente, no caso daAT&T.

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Revista de Informação Legislativa124

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Fernando de Barros Filgueiras

1. IntroduçãoA teoria social do século XX marca uma

virada importante para o racionalismo, apartir da qual a dimensão normativa deixade ser considerada como objeto da ciência,que agora se utiliza da empiria informadaou por técnicas de pesquisa e pela história,buscando entender a política como de fatoela é. Nesse mesmo contexto, o período demudanças sociais, políticas e econômicasgeradas no início do século XX criou umprofundo sentimento de dúvida sobre comoocorre a corrupção na política, dado o pro-cesso de racionalização e burocratização daordem pública que lançam raízes desde operíodo do Iluminismo1.

O propósito deste artigo é fazermos umaexposição crítica das teorias vigentes sobrea corrupção na política e averiguarmos osmotivos segundo os quais esse fenômeno éentendido como um prejuízo ao bem comuma favor das vantagens privadas. O argumen-to fundamental a ser defendido neste artigoé de que, para falarmos em corrupção napolítica, precisamos colocá-la em relaçãocom a capacidade dos indivíduos de uma

Notas críticas sobre o conceito de corrupçãoUm debate com juristas, sociólogos e economistas

Fernando de Barros Filgueiras é Douto-rando em Ciência Política pelo Instituto Uni-versitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IU-PERJ) e Mestre em Ciência Política pela Uni-versidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Sumário1. Introdução. 2. A positivação das leis, o

Estado e a corrupção segundo o positivismojurídico. 3. Instituições, modernização e a cor-rupção segundo o estrutural-funcionalismo. 4.Racionalidade, instituições e a corrupção se-gundo a public choice. 5. Considerações finais.

Revista de Informação Legislativa126

dada comunidade política empreenderemação coletiva mediante laços comuns sedi-mentados em uma ética, que modere os inte-resses a partir da civitas. Por decorrênciadessa argumentação, o aparato institucio-nal do Estado melhor funciona – no sentidode maior transparência e eficácia – quandocertos valores dos participantes da ordempolítica se vinculam às leis positivas, legiti-mando essa ordem e assegurando a exis-tência de certos valores que definirão a vidado corpo político e não sua corrupção. Aopasso dessa argumentação, afirmamos queas teorias sociais da corrupção, tratadas nes-te breviário, prescindem desse recurso à éticaentendida enquanto valor, afirmando seremas instituições políticas o fator de legitimida-de que define a corrupção ou não da ordem.

Essa exposição crítica começará com te-oria do positivismo jurídico e mostraremoscomo, segundo os autores dessa tradiçãoteórica, a corrupção é uma decorrência deuma deslegitimação da ordem jurídica e daineficácia das leis. A corrupção, entretanto,não pode ser o produto de leis ineficazes,mas de valores que os homens carregamconsigo e compartilham num espaço públi-co. Após a apresentação da concepção decorrupção segundo o positivismo jurídico,apresentaremos a concepção da teoria es-trutural-funcionalista, com inspiração naobra de Parsons (1949), tendo como seu prin-cipal expoente a teoria de Samuel Hunting-ton (1975), relacionando a modernização ea corrupção e a maneira de acordo com aqual esse fenômeno ocorre nas ordens polí-ticas contemporâneas. Finalmente, fechare-mos este breviário com a teoria da publicchoice sobre a corrupção, que mostra como,quando existem indivíduos que monopoli-zam a burocracia, há uma tendência deles asobreporem seus interesses privados ao in-teresse público, na medida em que são ma-ximizadores de utilidade.

A constante lógica que perpassa as teo-rias sobre a corrupção, mesmo que elas este-jam em dimensões epistemológicas diferen-tes, é que ela é entendida como a sobreposi-

ção dos interesses privados ao interessepúblico. Esse é o ponto de partida de todasas teorias sobre a corrupção e o núcleo lógi-co que define o conceito. Portanto, na medi-da em que envolve uma concepção de pú-blico, precisamos colocar o conceito de inte-resse em relação à ética na política, para quepossamos falar das duas dimensões dialé-ticas que definem o conceito: a dimensão dopúblico e a dimensão do privado.

E é essa concepção lógica do conceito decorrupção na política que resultará na críti-ca às teorias vigentes sobre esse tema. A teseé que essas teorias sobre a corrupção napolítica não a entendem a partir da capaci-dade de vida comum entre os indivíduos,apesar de partirem do mesmo pressupostoteórico. Porém a entendem como uma nãoefetivação das leis, como uma função damodernização, ou, finalmente, como um cres-cimento excessivo da burocracia do Estado,respectivamente, prescindindo da éticacomo o fator determinante da ordem políti-ca. É a comunidade que expressa o valor daética nos negócios públicos e o sentimentode não-corrupção que perpassa um “bom”governo, atribuindo às suas instituições adevida confiança necessária para a efetiva-ção da ordem jurídica e das políticas públi-cas, tendo em vista não a racionalidade es-treita, mas o sentimento de justiça, de igual-dade, de liberdade, de tolerância e outrossentimentos afins.

2. A positivação das leis, o Estadoe a corrupção segundo o

positivismo jurídico

O positivismo jurídico, ou teoria juspo-sitivista, ocupa uma posição de destaque,enquanto corpo filosófico de teoria do direi-to, no contexto do Estado moderno. Na mo-dernidade, é o positivismo jurídico a teoriaresponsável por racionalizar as questõesque dizem respeito ao direito e à justiça,além de estabelecer, no contexto das socie-dades complexas, formas de legitimidadepolítica do Estado-Nação.

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O intuito de recuperarmos as noções cen-trais do positivismo jurídico é deduzirmoso conceito de corrupção na política a partirda ótica das autoridades responsáveis poraplicar o direito. Para tanto, seguiremos omesmo itinerário, guardadas as devidasproporções, exposto por Bobbio (1995) emseu O Positivismo Jurídico , no qual ele sinte-tiza muito bem um movimento de filosofiado direito que tem raízes de longo alcancehistórico e que já atravessou dois séculoscomo a teoria que assegura o ordenamentojurídico2. Esta exposição, vale ressaltar, nãotem o objetivo de apresentar novas hipóte-ses a respeito dessa filosofia do direito, nemcriticar seus pressupostos teóricos centrais,mas apenas jogar luz sobre um tema aindapouco estudado, que seria a corrupção napolítica, do ponto de vista dos responsáveispor realizar o direito. Entretanto, ao deri-varmos a concepção juspositivista da cor-rupção, não hesitaremos em tecer-lhe even-tuais críticas metodológicas e conceituais.

O exame do positivismo jurídico, de acor-do com Bobbio (1990), deve partir do seguin-te problema: o que é preferível, um governodos homens ou um governo das leis? A afir-mativa juspositivista de que é preferível ogoverno das leis ao governo dos homens é atese central desse corpo de filosofia e, certa-mente, demanda a reconstrução do edifíciológico-conceitual que perpassa a filosofia dodireito desde Aristóteles (1985). O ponto departida é a definição de dois tipos de direi-to: o natural, que cristaliza as concepçõesmorais dos homens racionalmente formu-ladas mediante sua natureza; e o positivocomo o direito da civitas, que organiza osconflitos particulares entre os homens.

É com a dissolução da sociedade medie-val e a emergência do Estado moderno queo direito positivo ganhará em preponderân-cia com relação ao direito natural pelo pro-cesso de monopolização da produção jurí-dica por parte do Estado. O preceito lógicoinerente a essa monopolização jurídica porparte do Estado é exposto na leitura do clás-sico Leviatã de Hobbes (1979), o qual justifi-

cará a transposição da ordem jurídica sus-tentada no direito natural para a ordem jurí-dica sustentada no direito positivo, ou civil.

De acordo com Hobbes, os homens seorganizavam em um estado de natureza noqual são todos iguais e todos têm o direito –natural – de usar a força necessária paradefender seus interesses. Nesse estado denatureza, mediado pelo direito natural, nãoexiste uma lei eficaz, porque, se cada umpode utilizar a força que for necessária paraatingir seus interesses, não existirá jamais agarantia de que a lei será respeitada por to-dos, constituindo, dessa forma, um estadode anarquia permanente. Para sair desseestado de anarquia permanente, em que to-dos lutam contra todos, é necessário dele-gar toda a força para uma só instituição, aqual assegurará, legitimamente e de formasoberana, que todos obedeçam às leis, por-que ela será a portadora de uma força irre-sistível e indiscutível. É o Estado, segundoHobbes, que monopoliza o uso da força econstrange os homens a obedecer às leis pormeio da coerção.

Portanto, como assevera Bobbio (1995),essa monopolização do uso da força legíti-ma por parte do Estado, nos termos hobbe-sianos, cria o processo de subordinação dodireito natural ao direito positivo, formali-zando, dessa forma, a relação entre os ho-mens por meio de instituições políticas res-ponsáveis por apaziguar a guerra de todoscontra todos e moderar as paixões transfor-mando-as em interesses. De um lado, por-que o Estado surge da finalidade de regula-mentar as relações sociais e pôr termo aoconflito generalizado. E de outro lado, dadaessa finalidade, passa a ter valor somente odireito positivo porque é aquele que se orga-niza a partir do poder de coerção do Estado.A definição do direito com base na mono-polização da função jurídica por parte doEstado, por conseguinte, denota dois carac-teres típicos que fundamentarão o positivis-mo jurídico enquanto corpo de filosofia dodireito: (1) de que o direito é definido combase na autoridade que põe as normas, ou

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seja, com base num elemento estritamente for-mal; e (2) de que o direito é definido como umconjunto de normas através das quais o sobe-rano ordena ou proíbe certas ações por partedos súditos, ou seja, o direito é imperativo.

O caráter da formalidade do direito, naperspectiva juspositivista, dado o primeiropressuposto decorrente da filosofia hobbe-siana, pode ser melhor expresso na herançadeixada pela Escola Histórica do Direito.Seguindo o mesmo preceito da ineficácia dalei natural, Savigny (1949) aponta a varie-dade do homem, imputando uma concep-ção segundo a qual o direito não é único,mas varia no tempo e no espaço como todosos fenômenos sociais. A resultante dessaconcepção é a idéia de que o direito não éfruto da razão mas produto da história. Essavertente da filosofia do direito representapara o positivismo jurídico, dessa forma, acrítica mais radical ao direito natural, comoo concebia o Iluminismo. Esse radicalismoda Escola Histórica resultará em um dospilares do positivismo a partir da defesa queela fazia da codificação, isto é, a substitui-ção de normas consuetudinárias por umdireito constituído por um conjunto siste-mático de normas jurídicas deduzidas racio-nalmente através da história, como preten-dia Thibaut (apud BOBBIO, 1995). O forma-lismo positivista estaria alicerçado, portanto,nas codificações, uma vez que estas represen-tariam a “positivação do direito natural”3.

O formalismo juspositivista, decorrentedo movimento de codificações, leva a enca-rar o direito não como um valor, mas comoum fato, prescindindo de conotações moraisou valorativas que seriam próprias do di-reito natural. A idéia de formalismo conduz,portanto, ao preceito de que a validade danorma se funda apenas em sua estruturaformal e não em seu conteúdo ético. Alémdisso, o ordenamento jurídico, do ponto devista formal, deve ser codificado de manei-ra tal que assegure sua coerência interna esua completitude. Isto é, o caráter formal dodireito não pode admitir normas antinômi-cas e que contenham lacunas.

O caráter imperativo do direito, por ou-tro lado, diz respeito ao seu problema defi-nicional em função do elemento de coação.Justamente por monopolizar o uso da forçae ser produtor da lei, o Estado não deve pres-cindir da coerção como o elemento de efeti-vidade da norma jurídica, que deve ser in-terpretada pelos súditos como um coman-do. Essa questão da norma como um coman-do pressupõe que o ato jurídico consista naconformação exterior do sujeito à norma,diferentemente da concepção naturalista,fundada na moral, que necessita apenas daadesão à norma por respeito à própria nor-ma, ou seja, numa adesão interna necessá-ria para a moralidade do ato.

Esse elemento coativo do direito foi mo-dernamente expresso por Kelsen (1992), se-gundo o qual é o elemento central de defini-ção do direito positivo, que tem por objeto aregulamentação do uso da força em umadada sociedade. É dessa forma que o direi-to, segundo Kelsen (1999), é visto como umprocedimento que regula o papel do Estadodentro da sociedade e do qual são deriva-dos o regime político, a forma de governo e oconteúdo das instituições políticas4.

Retornando ao questionamento funda-mental de Bobbio (1990), notamos então queé preferível, para os juspositivistas, o gover-no das leis ao governo dos homens, justa-mente porque este significaria a anarquiageneralizada e a ausência de uma ordemlegítima em função da existência de paixõesincompatíveis, enquanto aquele, ao contrá-rio, colocaria termo ao conflito generaliza-do e asseguraria padrões regulares de obe-diência às regras do jogo.

O positivismo jurídico é a concepção deacordo com a qual é necessário um sobera-no que monopolize o uso da força – o Esta-do – para que os homens possam participarde forma privada da criação do interessepúblico. O que deve ser destacado é que anorma jurídica, de acordo com o positivis-mo jurídico, materializa o interesse público,porque o mundo de paixões dá lugar a umaordem racional, já que em um estado de na-

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tureza é inconcebível haver ação coletiva apartir do momento em que todos estão emguerra contra todos, perseguindo apenasseus interesses privados. Por redundância,seria considerado um ato corrupto qualquerato que infringisse a lei positiva, na medidaem que é ela que materializa o interesse pú-blico da civitas.

Essa concepção decorre da idéia de Kant(1980) de que é impossível definir o bem co-mum a partir de orientações deduzidas danatureza humana, mas que é possível ape-nas com o uso da razão prática fundamen-tada na concepção de liberdade. Portanto,por se tratar de um empreendimento da ra-zão, a norma jurídica materializa racional-mente o interesse público, uma vez que ter-mina com a perseguição violenta dos inte-resses privados movidos a paixões e asse-gura o imperativo categórico de que “a má-xima da tua ação se devesse tornar, pela tuavontade, em lei universal da natureza”(KANT, 1980, p. 130). A norma jurídica, naperspectiva kantiana, portanto, por meio douso da coerção5, garante esferas de liberda-de individuais racionalmente perseguidasque fundamentam o único bem comum queassegura benefícios públicos: a liberdade.

O caráter formal do direito desvincula,então, a corrupção de qualquer ato moralou ético, já que a norma está esvaziada deconcepções sobre o bem e sobre o mal, mas avincula à existência da própria norma, tor-nando-a um ato de desvio ou infração6. Acorrupção, portanto, não significa, dada aformalidade do método juspositivista, umainfração à ética ou ao interesse público deri-vado da natureza humana, mas uma infra-ção à lei emanada do Estado derivada for-malmente da capacidade institucional deempreender coerção junto aos homens.

O fio condutor lógico da corrupção, quepodemos derivar desde Aristóteles (1985),faz-se presente no juspositivismo. Da mes-ma forma, a corrupção significa a subordi-nação do interesse público ao interesse pri-vado. No entanto, o interesse público somen-te é possível mediante normas formalmente

constituídas pelo poder soberano, a partirda delegação do uso da força a uma autori-dade responsável por garantir a paz. O pres-suposto juspositivista de que o direito posi-tivo se torna eficaz como instrumento da pazentre os homens no estado de natureza, apartir do caráter formal e do conteúdo coer-citivo da norma, encobre a necessidade deque haja o consentimento dos homens emtorno da constituição do poder soberano,como mostra Kelsen (1992) por meio de seuprincípio da eficácia.

Podemos afirmar, portanto, que existe nobojo do positivismo jurídico uma lacunaconceitual no que tange à questão do inte-resse público. Se a norma materializa o inte-resse público, os próprios juspositivistas,desde Hobbes (1979), consideram que é ne-cessário um interesse comum, ou seja, uminteresse compartilhado por todos anterior-mente, que seja apenas no momento da for-mação do pacto social, para que haja umpoder soberano eficaz e, por redundância,uma norma jurídica eficaz. O princípio daeficácia da norma de Kelsen, portanto, con-tradiz o princípio segundo o qual a normareproduz o interesse público ou o bem co-mum, na medida em que, para que a eficá-cia exista, é necessário um consentimentoanterior que transpõe o estado de naturezana acepção hobbesiana. A noção de acordocom a qual a corrupção, portanto, é uma in-fração formal da lei esquece de que esta éassentada sobre uma concepção moral emtorno do bem comum que a antecede e criasua eficácia. A corrupção, nesse sentido,transcende os próprios limites da normajurídica, estando tributada à capacidade deuma dada comunidade empreender coleti-vamente, por meio do consentimento, a efi-cácia da ordem política.

3. Instituições, modernização e acorrupção segundo o estrutural-

funcionalismo

A teoria estrutural-funcionalista parte dopressuposto geral de que sociedade pode ser

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entendida como um grande sistema consti-tuído por múltiplas partes, cada qual exer-cendo um papel dentro do sistema geral e serelacionando a partir de determinado inpute output à semelhança de um grande com-putador que processa informações. No casoda sociedade, o sistema é o processo pelo qualestará assegurada a existência de uma or-dem social que impute a paz junto aosindivíduos.

Apesar da grande influência do funcio-nalismo de Durkheim (1983), que concebiaa sociedade de maneira organicista medi-ante o conceito de função, Parsons (1949)avança no paradigma funcionalista, agre-gando ao método de abordagem do corposocial pelas conseqüências dos fatos soci-ais uma abordagem estrutural. De acordocom Parsons, mesmo que imaginemos a so-ciedade como uma organização constituí-da de várias partes, em que cada uma exer-ce um papel, o objeto da sociologia não é arelação entre essas partes, mas o processo sis-temático através do qual os indivíduos praticamsuas ações no cotidiano. É nesse sentido que oautor irá conceber o sistema geral de açãocomo a grande síntese dos processos cotidi-anos de ação dos indivíduos, organizadosem uma dimensão estrutural que se reiteraao longo do tempo.

O Sistema Geral de Ação de Talcott Par-sons (1949) é uma teoria que visa, de umaforma ampla, a organizar e entender a ma-neira como os indivíduos estabelecem a açãosocial no mundo, tendo em vista os aspec-tos coletivos e individuais que perpassamas atitudes e os comportamentos do homemna sociedade.

A ação social é o ponto central da teoriasociológica parsoniana e projeta um qua-dro extremamente amplo e complexo pormeio do qual o autor delimita sua teoria noscontornos da noção de sistemas de ação. Ointeressante é notar que a ação social, paraParsons, adquire significação a partir dasubjetividade do ator, isto é, a partir da per-cepção que este tem do contexto no qual estáinserido, de suas motivações e reações que

se apresentam à sua própria ação. Contu-do, o autor não limita sua análise somenteno ponto de vista subjetivo do ator, ele ana-lisa a ação pela dicotomia entre situação eator. A inovação que Parsons introduz nasteorias da ação social é colocar o agente nocontexto no qual está inserido. O meio noqual está inserido impõe ao ator determina-das escolhas que serão fundamentais nasua ação em si. O ator de Parsons é o serdentro de um ambiente no qual ele reage àssituações colocadas diante de si e para asquais emite uma resposta. Em outras pala-vras, é o ser dentro de uma estrutura socialque apresenta uma totalidade de unidades-agentes responsáveis por lhe emitir códigosestruturantes que possibilitarão a interaçãodessas unidades.

O sistema de ação, segundo o autor, exi-ge três condições por meio das quais é pos-sível detectar as unidades do sistema. Pri-meiramente, o sistema deve ter uma estrutu-ra, isto é, modalidades organizadas queconstituam elementos estáveis e recorrentesque sirvam de ponto de referência para oator executar sua ação no âmbito do siste-ma em questão. Em segundo lugar, o siste-ma deve implementar certas funções, medi-ante as quais ele pode satisfazer suas ne-cessidades elementares. Finalmente, o sis-tema deve ter um processo por meio do qualcertas regras serão cumpridas pelos partíci-pes do sistema.

São quatro as variáveis estruturais dosistema geral de ação de Parsons. Valores,normas, coletividade e papéis informam aoagente as regras do convívio social e os meca-nismos pelos quais eles organizarão a distri-buição de recursos e benefícios produzidospela sociedade. São todas as formas recorren-tes de interação que se institucionalizam emformas organizadas de relacionamento.

Os requisitos funcionais do sistema deação parsoniano também são quatro, a sa-ber: adaptação, consecução dos objetivos,integração e latência. Por adaptação, Par-sons entende aquelas relações que conec-tam o agente a seu meio exterior, sendo este

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entendido pelo autor como um outro ou vá-rios outros sistemas, que podem ser de açãoou de não ação7. A adaptação é o meio peloqual o sistema buscará os recursos necessá-rios para servir às suas necessidades bási-cas, isto é, o meio pelo qual ele garantirá asobrevivência dos indivíduos participantes.Por consecução dos objetivos, o autor en-tende as ações que definem os fins do siste-ma, que devem ser perseguidos metodica-mente pelos atores. Como integração o au-tor entende a função estabilizadora do sis-tema, mediante a qual este manterá sua coe-rência interna e a solidariedade de suaspartes, possibilitando sua continuidade eseu funcionamento. Por último, Parsonsentende por latência um conjunto de unida-des-ato que asseguram as devidas motiva-ções aos atores, isto é, que “canalizam” asenergias do sistema.

As dimensões funcionais do sistema deação estão relacionadas às variáveis estru-turais, que asseguram o cumprimento des-sas funções e garantem sua continuidade.Os valores atendem à função de latência dosistema. As normas cumprem a função inte-gradora, ensejando coerção junto aos indi-víduos por meio de dadas situações presen-tes no cotidiano. A coletividade, de acordocom Parsons, é a variável estrutural quecumpre a função de consecução dos objeti-vos, os quais são consensos para se alcan-çar os fins fundados nas sociedades moder-nas, por meio da comunidade. Finalmente,os papéis cumprem a função de adaptação,em que os indivíduos interagem e criam assituações do cotidiano.

O sistema de ação parsoniano compre-ende elementos e fatores que perpassam avida dos indivíduos e é assentado na inte-ração de quatro subsistemas, a saber: o sub-sistema de cultura, o subsistema físico-biológi-co, o subsistema da personalidade e o subsistemasocietal ou social. Esses quatro subsistemassão definidos de acordo com as categoriasque os diferenciam, compondo o que o au-tor nomeou de paradigma de diferenciação dosistema de ação.

Parsons parte do sistema social para efe-tuar sua análise, tomando-o em interaçãoaos outros três subsistemas. O subsistemafísico-biológico diz respeito a todos aquelesrecursos mobilizados pela sociedade quevisam a garantir a vida dos indivíduos noque tange à sobrevivência, aos quais o sub-sistema social recorre. O subsistema cultu-ral fornece a legitimação para o subsistemasocial e o subsistema da personalidade for-nece as motivações individuais do sistemageral de ação, que garantem o engajamentodos indivíduos à ordem social. Parsons afir-ma que o sistema social exerce a função in-tegradora do sistema geral de ação. Segun-do Parsons (1969, p. 9):

“In the functional terms of our pa-radigm, the social system is the inte-grative subsystem of action in gene-ral. The other three subsystens of acti-on constitute principal environmentsin relation to it.”

Nos deteremos, daqui em diante, somen-te no sistema social, seguindo a visão geralde Parsons, no qual está contida a noção depolítica desse autor. O sistema social, paraParsons, é composto por quatro outros sub-sistemas, a saber: a política, a economia, acomunidade societária e a socialização.

A interdependência entre esses quatrosubsistemas é que forma, para o autor, o sis-tema social. Aqui é um ponto em que a in-fluência de Weber (1999), para o qual a polí-tica é tomada no mesmo patamar da econo-mia e dos demais subsistemas, é forte emParsons, que tenta dar conta desse comple-xo mosaico que é o sistema social, analisan-do suas partes e os mecanismos que as unemumas às outras8.

De acordo com Parsons (1969), o concei-to chave para se explicar a política é o con-ceito de institucionalização da ordem normati-va. Segundo o autor, a institucionalizaçãoda ordem normativa é o elemento por meiodo qual um sistema procedimental, que co-difica o uso do poder, torna-se significan-te para os membros de uma dada coletivi-dade. Mais especificamente, a instituciona-

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lização é a construção de códigos simbóli-cos, legitimados socialmente, por meio dosquais o poder fará a mediação na organiza-ção social mediante canais que asseguremà autoridade sua eficácia na implementa-ção de metas coletivas.

É importante destacar que o poder, paraParsons (1969), é um dos elementos respon-sáveis pela interação dos atores no sistemasocial, adquirindo um caráter simbólico,assim como o dinheiro para a economia. Opoder faz a mediação nas interações entreindivíduos ou grupos no que tange à forma-ção e tomada de decisão relativa aos objeti-vos fundados pela comunidade societal.Contudo, o poder em Parsons está atreladoa uma interação instrumental entre os ato-res, sobretudo para integrar os demais sub-sistemas do sistema social em torno de umaordem. Isto é, os agentes sociais buscamadequar meios para a busca de um fim raci-onalmente formulado9. O poder, portanto,segundo a teoria parsoniana, é o modo peloqual os atores expressam seus interesses aosistema, na tentativa de persuadir os demaisenvolvidos acerca da alocação dos recursosda sociedade10. De acordo com o autor:

“Power is here conceived as a cir-culating medium, analogus to money,within what is called the political sys-tem, but notably over its boundariesinto all three of the other neighboringfunctional subsystems of a society (asI conceive them): the economic, inte-grative, and pattern-maintenance sys-tems” (PARSONS, 1969, p. 360).

Como pode ser percebido, Parsons en-tende a política dentro do contexto maiordas sociedades modernas. Conforme o au-tor, a política não é uma esfera que funcionapor si só; está relacionada com as outrasdimensões do sistema social e dentro do sis-tema geral de ação, mediante o qual o ho-mem age e intervém no mundo. Logo, é ointercâmbio entre as dimensões do sistemasocial, entendido a partir de seu processo, enão da racionalidade inerente à ação ape-nas, que explica a política e, por decorrên-

cia disso, a ação dos participantes do siste-ma social.

O intercâmbio entre a economia, que ex-pressa a função adaptativa do sistemasocial, e a política forma o que o autor deno-mina sistema de mobilização de recursos.Por meio desse sistema é que ocorrerá o con-trole da produtividade, mediada pelo po-der e pelo dinheiro. A economia informa àpolítica os recursos à disposição da socie-dade (input) e esta decide, por meio da polí-tica, sobre a alocação dos recursos (output),em princípio, escassos.

O intercâmbio entre a política e a comu-nidade societária é que assegura, para Par-sons, a eficácia do sistema. A comunidadesocietária exerce a função integrativa do sis-tema social por um conjunto de normas eleis que tornam possível o controle social. Énesse ponto que Parsons desenvolve um deseus conceitos centrais para explicar a polí-tica: o conceito de influência. A influência,segundo o autor, é a contrapartida do poderconstituído da autoridade central, imple-mentada pela comunidade societária, visan-do a eficácia das decisões tomadas no siste-ma político. A comunidade societária, pormeio de suas instituições e associações, exer-ce pressão junto ao sistema político, tentan-do influir nas decisões deste, apresentandorequerimentos, demandas e interesses. Ainfluência, de acordo com o autor, ocorre pormeio de atos comunicacionais, que se utili-zam da persuasão como instrumento deconvencimento dos participantes do siste-ma. Os indivíduos, ou grupos, no contextoda política, advogam intencionalmente seusinteresses, tentando convencer os demaisatores acerca das questões colocadas napolítica11.

A conexão entre a comunidade societá-ria e a política se faz por meio da influência.Nesse sentido, cabe destacar que o conceitode influência parsoniano significa o inputdo intercâmbio entre o sistema político e acomunidade societária, ou seja, a participa-ção dos indivíduos na formação das metascoletivas do sistema social. A influência, de

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acordo com Parsons, garante a efetividadedas decisões políticas, além de tornar a li-derança política responsável diante da coi-sa pública. A conexão entre política e comu-nidade societal garante a eficácia das deci-sões, uma vez que a segunda passa a dar,de acordo com o autor, o devido suporte aestas, configurando o sistema de suportepolítico. Parsons chama a atenção para ofato de que o grau de influência da comuni-dade societária sobre a política é diretamenteproporcional ao grau de organização da-quela – que se dá por meio da presença deuma vida associativa ampla que resolve osproblemas da ação coletiva. A influênciademanda, então, da estrutura normativa eprocedimental do sistema social a liberda-de de associação e de voto, que amplia asformas de solidariedade entre os indivídu-os, que se expressa por meio da confiançainterpessoal e da confiança que estes têmnas instituições do sistema.

Finalmente, a relação entre a política e asocialização forma o sistema de legitimação,que envolve o universo dos valores e moti-vações dos agentes sociais. Esse sistema uti-liza os compromissos formados entre a po-lítica e a socialização. Do lado do input dosistema, a política oferece a responsabilida-de de funcionamento, enquanto os valoresfornecem a legitimação da autoridade. Dolado do output, o poder público oferece a res-ponsabilidade moral quanto aos interessescoletivos, enquanto a socialização sinalizaos elementos legais sobre os quais se apóiaa autoridade dos políticos.

O mérito do modelo parsoniano certa-mente é descobrir os elementos que ligam apolítica aos demais componentes da estru-tura social e o modo como é interdependen-te dos demais. Entretanto, o modelo parso-niano é empregado somente em sociedadesmodernas que passaram por formas de de-senvolvimento que levam aos quatro sub-sistemas do sistema social. Ou seja, a tenta-tiva de síntese que o autor empregou paraanalisar as sociedades encobre possíveispatologias do próprio sistema. Apesar de o

modelo parsoniano ser coerente, lógico econsistente internamente, a tentativa desseautor de elaborá-lo com grau elevado de ge-neralidade fez com que este perdesse a suacapacidade de explicação. Além disso, Par-sons (1949) encerrou todo o seu modelo ge-ral de ação dentro de quatro funções bási-cas que o estruturam, não dando aberturapara processos de mudança social.

No que tange ao fenômeno da corrup-ção, por sua vez, a teoria estrutural-funcio-nalista tem uma visão muito peculiar dessetema. Tem na figura de Samuel Huntington(1975) o principal teórico que estudou a cor-rupção como um fenômeno inerente às or-dens políticas. O autor coloca o tema da cor-rupção funcional e estruturalmente ligadoao fenômeno da modernização, conceben-do-o como “uma medida da ausência deinstitucionalização política suficiente”(HUNTINGTON, 1975, p. 72). A preocupa-ção central dessa abordagem é: como as soci-edades modernas conseguem construir uma or-dem política estável, dado o processo de moder-nização política, econômica e social, mediante oqual são alterados os valores sociais básicos dasociedade, gerando incertezas e uma não aceita-ção das normas tidas como tradicionais. Alémdisso, a modernização, segundo esse autor,contribui para a ascensão de novos grupossociais à cena política e para a expansão daautoridade governamental e a multiplica-ção de atividades sujeitas ao controle dogoverno.

Portanto, a teoria estrutural-funcionalis-ta quando trata do fenômeno da corrupção,parte do pressuposto de que as sociedadesse modernizam e que o resultado dessa mo-dernização depende de fatores estruturais efuncionais decorrentes da mudança, osquais informam o patamar que determina-da sociedade ocupa no desenvolvimento,sendo que a corrupção varia conforme essaposição. Por outras palavras, o que a teoriaestrutural-funcionalista afirma sobre a cor-rupção é que ela é um problema funcional eestrutural de uma dada sociedade, tendo emvista o estágio de desenvolvimento desta12.

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De acordo com Samuel Huntington, a“corrupção é o comportamento de autori-dades públicas que se desviam das normasaceitas a fim de servir a interesses particu-lares” (HUNTINGTON, 1975, p. 72), sendo,como afirmamos acima, mais comum emalgumas sociedades do que em outras e,como mostra o autor, mais comum em algu-mas etapas da evolução de uma sociedadedo que em outras. A definição desse autorparte do problema da institucionalizaçãopolítica, que significa uma aceitação co-mum entre os atores políticos das normasdo sistema, assegurando estabilidade eprevisibilidade das ações tomadas a par-tir do sistema. A partir dos pressupostosgerais do estrutural-funcionalismo, pode-mos verificar que o autor parte de ambasas dimensões teóricas da concepção so-bre a sociedade: a estrutural, em que o autorpõe a corrupção como uma função da institu-cionalização, e a funcional, que, como vere-mos adiante, informará a peculiaridade dessateoria sobre o tratamento do fenômeno dacorrupção.

Os critérios adotados por Huntingtonpara verificar o grau de institucionalizaçãosão quatro pares dicotômicos de análise apartir dos quais é possível abordar as insti-tuições políticas como padrões de compor-tamentos previsíveis dos atores, legítimos erecorrentes.

O primeiro critério de institucionaliza-ção política parte da verificação da adapta-bilidade ou da rigidez das instituições emrelação à mudança. Como afirma o autor, éuma característica organizacional adquiri-da, por meio da qual as instituições ganhamflexibilidade frente à modernização. A adap-tabilidade das instituições à mudança, se-gundo o autor, assegura certos padrões derecorrência das normas do sistema, ao pas-so que a rigidez torna inaceitável certoscomportamentos que são aceitáveis namodernidade. Dessa forma, o critério deadaptabilidade é um padrão de recorrên-cia das normas, objetivando a institucio-nalização.

O segundo critério de institucionaliza-ção política parte da verificação da comple-xidade ou da simplicidade das organizaçõesem relação à mudança. A complexidade é amultiplicação de subunidades organizaci-onais destinadas a resolver os problemasda sociedade que aumentam na proporçãoda modernização. Sistemas políticos com-plexos garantem maior lealdade dos mem-bros e maior capacidade de resposta às pres-sões sociais e políticas. Em campo diame-tralmente oposto, sistemas políticos simples,dependentes de poucos indivíduos, são osmenos estáveis e que mais facilmente su-cumbem às pressões da sociedade, na me-dida em que não as conseguem respondersatisfatoriamente.

O terceiro critério de institucionalizaçãoadotado por Huntington é o par dicotômicoautonomia e subordinação. A autonomia é acapacidade com que as organizações do sis-tema político são independentes de certosgrupos sociais. Por outras palavras, a auto-nomia das instituições políticas ocorrequando elas não são instrumentos do inte-resse de grupos sociais específicos – comofamília, classe ou clã – mas possuem seupróprio interesse e valor, por princípio uni-versais13. A ausência de autonomia – subor-dinação – implica corrupção na medida emque as instituições estão atreladas aos inte-resses de grupos específicos da sociedade,que se insulam no aparelho estatal predan-do a coisa pública a favor de seus exclusi-vos interesses.

Finalmente, o quarto par dicotômico deanálise da institucionalização é a coesão oudesunião das organizações da política. Quan-to mais coesos são os membros de uma dadaorganização, segundo Huntington, mais ins-titucionalizada ela é. A coesão assegura dis-ciplina burocrática e maior capacidade decoordenação política entre as unidades dosistema, resultando num padrão de eficiên-cia e articulação do interesse público.

Dados os quatro critérios de institucio-nalização política, segundo Huntington, acorrupção se torna mais evidente quando

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não há institucionalização política satisfa-tória que dê conta de tornar as normas dosistema aceitas pelos diferentes grupos pre-sentes na arena política. A modernização,acompanhada de baixa institucionalização,de acordo com esse autor, cria um hiato polí-tico mediante o qual a corrupção políticaocorre. Quando as organizações do sistemasão rígidas, simples, subordinadas e apre-sentam desunião entre seus membros, a pro-babilidade de que a corrupção se torne recor-rente e um padrão de articulação de interes-ses é enorme. Esse autor observa a corrupçãocomo fruto da modernização, ou seja, comofenômeno decorrente das mudanças sociaise políticas, que tem seu grau proporcional-mente determinado pela institucionalização.

Quando as organizações do sistema po-lítico não são adaptáveis às mudanças, asnormas deixam de ser legítimas, criando umdescompasso entre a ação dos grupos soci-ais e as instituições, tornando muitas vezesalguns comportamentos aceitos como mo-dernos, corruptos de um ponto de vista tra-dicional. De outro lado, quando a moderni-zação ocorre em sociedades cujas institui-ções não são complexas, a oportunidadepara que a corrupção ocorra é muito grandena medida em que o poder é dependente depoucas pessoas. Quando a modernizaçãoocorre em sociedades cujas instituições po-líticas estão subordinadas a grupos sociaisespecíficos, o produto da mudança fica con-centrado nas mãos desses grupos, a partirdo momento em que eles se utilizam dessasinstituições para corromper o sistema e arti-cular seus interesses, ou seja, capturam aburocracia do Estado para perseguir seusfins privados. Por fim, quando as institui-ções não são coesas, não há disciplina bu-rocrática e coordenação política, fazendocom que a modernização, que amplia as ati-vidades sujeitas ao controle do governo, criea oportunidade para que burocratas se uti-lizem do aparelho estatal para tirar vanta-gens pessoais.

De acordo com Huntington, a corrupçãoé, então, uma função da modernização

acompanhada de baixa institucionalizaçãopolítica, que cria, incentivos para que certosgrupos sociais se utilizem da coisa públicapara auferir benefícios privados. O autoraborda ainda três tipos de relação que res-saltam a corrupção no setor público.

Primeiramente, a modernização alteraos valores da sociedade, que, se não tem ins-titucionalização política da ordem, resultaem incertezas e instabilidade, emergindo adecadência institucional e a corrupção ge-neralizada, na medida em que as normasdo sistema não têm valor em si.

“O comportamento que era aceitoe legítimo pelas normas tradicionais,torna-se inaceitável e corrupto quan-do visto de um ângulo moderno.Numa sociedade em modernização, acorrupção é, em parte, portanto, nãotanto o resultado do desvio do com-portamento das normas aceitas quan-do do desvio das normas dos padrõesestabelecidos de comportamento. [...]O conflito entre as normas modernase as tradicionais dá margem a que osindivíduos ajam de forma não justifi-cada por nenhuma delas” (HUN-TINGTON, 1975, p. 73).

Em segundo lugar, a modernização con-tribui para a ascensão de novos grupos so-ciais à arena política, estabelecendo umambiente propício a comportamentos cor-ruptos por meio da criação de novas formasde riqueza e de poder. Em arranjos institu-cionais pouco adaptáveis e subordinados,esses novos atores tendem a ser corruptospela estrita ausência de instituições políti-cas eficazes para intermediar a relação en-tre o público e o privado mediante sançõesaos comportamentos desviantes.

Finalmente, a expansão da intervençãoestatal cria incentivos para a corrupção, ouseja, a modernização “estimula a corrupçãopelas mudanças que produz na parte dosresultados (output) do sistema político”(HUNTINGTON, 1975, p. 75). A multipli-cação de atividades sujeitas ao controle dogoverno torna-se uma fonte de corrupção na

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medida em que a modernização colaborapara o insulamento do Estado em relação àsociedade por meio da burocratização e daespecialização técnica, sujeitas à capturapor determinados grupos sociais. Caso nãohaja institucionalização política suficiente,a expansão das atividades governamentais,gerada pela modernização, cria incentivospara a corrupção.

Como nos mostra Huntington, a corrup-ção é uma função do processo de moderni-zação das sociedades, que é tão maior quan-to maior for o hiato político resultante damudança social, política e econômica, ouseja, quanto maior for o descompasso entreinstituições – normas – e comportamentos –valores. No entanto, como destaca o autor, acorrupção pode exercer uma função impor-tante no desenvolvimento econômico e po-lítico, sendo um meio para superar a rigi-dez burocrática que emperra o crescimentoeconômico e um meio para superar as nor-mas tradicionais, fazendo com que novaselites sejam incluídas na arena política viacompra de cargos públicos. É essa a visãotão peculiar ao estrutural-funcionalismosobre a corrupção. Os autores dessa verten-te teórica observarão na corrupção uma fun-ção no desenvolvimento. O argumento bá-sico é que a corrupção pode ser benéfica aodesenvolvimento na medida em que ela de-sobstrui barreiras burocráticas e facilita oinvestimento econômico, auxiliando a socie-dade na modernização. O melhor tratamen-to desse problema da função da corrup-ção política na sociedade é mostrado nocontroverso artigo de Joseph Nye (1967),publicado na American Political ScienceReview.

Nye objetiva revisar o conceito de cor-rupção, fazendo uma análise de seus cus-tos e de seus benefícios no contexto do de-senvolvimento político. De acordo com esseautor, até então o conceito de corrupção ti-nha uma conotação moralista, que encobriaa dinâmica mediante a qual esse fenômenoocorre e quais as causas e conseqüênciasdesse fenômeno para o Estado e para a socie-

dade. Nesse sentido, é necessário fazer umaanálise dos custos e dos benefícios da cor-rupção, tendo em vista o processo de mo-dernização em curso e as dimensões estru-tural e funcional do problema.

No campo dos benefícios da corrupção,Nye (1967) cita o desenvolvimento econô-mico, a integração nacional e o aumento dacapacidade do governo por meio dos víciosprivados que, em princípio, gerariam bene-fícios públicos. No que tange ao desenvol-vimento econômico, o autor vê a corrupçãocomo instrumento para a formação de capi-tal privado, que seria utilizado pelo gover-no para investimentos por meio do aumen-to de receitas com a ampliação de impostos.A corrupção também ajuda no desenvolvi-mento econômico por meio da superação debarreiras burocráticas. Além disso, a corrup-ção cria incentivos para investimentos es-trangeiros e de grupos minoritários na eco-nomia nacional. No que tange aos benefíci-os da corrupção para a integração nacio-nal, o autor cita a integração das elites emtorno de um consenso nacional de desen-volvimento, além de catalisar a transição devalores tradicionais para valores modernosdas não-elites14. Finalmente, dadas as duasconseqüências possíveis da corrupção men-cionadas acima, ela colabora para o aumen-to da capacidade governamental por meioda centralização do poder em função dasmudanças estruturais em curso15.

No campo dos custos da corrupção, oautor cita-os no espaço diametralmenteoposto ao dos benefícios. A corrupção podeprejudicar o desenvolvimento econômico, aintegração nacional e a capacidade do go-verno. Em face do desenvolvimento econô-mico, a corrupção favorece a emissão de ca-pital para paraísos fiscais, retirando-o dopaís em que esses recursos foram acumula-dos, além de criar uma distorção dos inves-timentos econômicos. Ademais, a corrupçãorepresenta uma perda de tempo e energiaem função dos custos de transação ineren-tes, além de custos de oportunidade decor-rentes da dependência ao capital estrangei-

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ro. No que diz respeito aos custos da cor-rupção à integração nacional, a corrupçãofavorece revoluções sociais, golpes milita-res e segregação étnica. Isso porque as insti-tuições políticas de dada sociedade em pro-cesso de modernização carecem de institu-cionalização política satisfatória, resultan-do em instabilidade e não aceitação da nor-ma vigente no sistema. Como produto doscustos anteriores, a capacidade do governose vê reduzida na medida em que há umaredução da capacidade administrativa, de-corrente da inefetividade dos programas go-vernamentais, e uma decadência da legiti-midade do regime político.

A análise dos custos e dos benefícios dacorrupção, no entanto, deve ser realizada,como chama a atenção Nye (1967), no con-texto do desenvolvimento político de cadapaís. Por outras palavras, a corrupção so-mente é benéfica se o contexto político e so-cial for favorável, isto é, se apresentar umatolerância cultural elevada e de grupos do-minantes, a existência de segurança paramembros de partidos opostos e a existênciade mecanismos societais e institucionais decontrole sobre o comportamento corrupto.De outro lado, se essas condições não foremobservadas, a corrupção provavelmente re-sultará na instabilidade e em obstáculospara o desenvolvimento, tais como os cus-tos relacionados acima.

O que é fundamental apreendermos dateoria estrutural-funcionalista, por conse-guinte, é que mesmo essa visão peculiar so-bre o fenômeno parte do mesmo pressupos-to geral: de que a corrupção é uma subordi-nação do interesse público ao interesse pri-vado. Entretanto, esses autores não definemclaramente o que é o interesse público e seas instituições políticas são suficientes paramaterializá-lo, já que os autores desse cor-po teórico analisam a corrupção em funçãoda institucionalização. O suposto lógico éque, se a corrupção ocorre a partir da insti-tucionalização, é necessário precisar a for-ma segundo a qual ela implicará a forma-ção do interesse público.

4. Racionalidade, instituições e acorrupção segundo a public choice

Em contraste com a perspectiva anteriorpara o fenômeno da corrupção, os econo-mistas da public choice partem do pressupos-to teórico de que os indivíduos agem tendoem vista uma aritmética dos benefícios me-nos os custos de ação, cujo produto – os in-centivos seletivos – informarão o curso daação e a racionalidade inerente. Tal pers-pectiva decorre do entendimento da racio-nalidade de um ponto de vista tido comorealista, capaz de compreender os fenôme-nos sociais de uma maneira generalizante.Além do pressuposto da racionalidadecomo forma de interação estratégica, a publicchoice segue o pressuposto de que o merca-do cumpre a função de alocar bens e servi-ços produzidos pela sociedade, na medidaem que é a única esfera da vida social naqual os atores agem impessoalmente. Dessaforma, o mercado perfeito assegura a devi-da simetria nas relações entre os agentesprivados e a eficiência na alocação de benspúblicos a partir de trocas impessoais quemaximizam a utilidade esperada. Além dis-so, na dimensão do Estado, caso haja ummercado perfeito e os burocratas se compor-tem de maneira estritamente pública, as de-cisões também serão impessoais e os agen-tes públicos maximizarão o bem-estar cole-tivo. Contudo, os economistas da publicchoice reconhecem que os mercados não sãoperfeitos – apresentam assimetrias de recur-sos e informação entre os agentes – e que osagentes públicos do Estado não se compor-tam de maneira pública, fazendo com quehaja distorções nas decisões tomadas.

Antes de compreendermos as questõescentrais da public choice enquanto corpo deteoria política, remontaremos ao problemada racionalidade dos agentes sociais, queserá fundamental para a concepção do con-ceito de corrupção. Para isso, retomaremosas categorias centrais da teoria da escolharacional a partir dos argumentos de Downs(1957), Elster (1989a) e Olson (1999).

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O ponto de partida da teoria da escolharacional é a concepção weberiana da açãoracional como uma busca pela satisfaçãodos interesses. Por outras palavras, Weber(1999) nos diz que a análise sociológica devepartir do método de observação da socieda-de mediante o indivíduo e não mediante ocoletivo16. O ponto central é seu conceito deação social como aquela em que indivíduosracionais praticam certo curso de ação combase na ação de terceiros17. Isto é, o conceitode ação social é tudo aquilo que o indivíduoleva em consideração para escolher certopadrão de agência: o comportamento deoutros agentes, antecipando a ação dos ter-ceiros por meio de um cálculo de benefíciosmenos os custos da ação.

É a partir dessa inspiração que Downs(1957) afirmará ser o homem um indivíduoque age conforme um conjunto de preferên-cias fixo, resultante do cálculo que os agen-tes sistematicamente fazem dos benefíciosda ação menos seus custos. O autor afirmaque essas preferências podem ser colocadasem um continum entre pares dicotômicosque podem representar as diferentes cliva-gens de uma ordem política ou social. O pres-suposto geral, então, é que o ponto de parti-da para a análise sociológica e política é aobservação empírica das preferências, queinformam as razões segundo as quais a açãoocorre. Além disso, essa capacidade de or-ganização das preferências dos atores porparte do analista é que possibilita, comoobserva Downs, a idéia de uma ciência dapolítica, isso em nome de um suposto rea-lismo que preconiza o entendimento da po-lítica “como de fato ela é”, ou seja, o mundodos interesses, do conflito de interesses e dacoerção.

A partir desse pressuposto lançado porDowns, Olson (1999) afirma ser a dimensãoestrutural da sociedade não explicativa dasações praticadas pelos atores na arena soci-al e política. Olson (1999) afirma que a açãocoletiva somente ocorrerá quando existiremmecanismos de coerção que criem incenti-vos seletivos que obriguem a participação

dos indivíduos. O autor não está preocupa-do com a dimensão privada, uma vez quenesta os indivíduos agem de forma exclusi-vamente individual, mas está preocupadocom a dimensão pública, na qual os benscriados conjuntamente pelos atores são com-partilhados por todos. De acordo com Ol-son, a condição ideal para um indivíduotomado isoladamente é que sua ação resul-te na maximização do prazer e na minimi-zação da dor, assim como o princípio damoral de Bentham (1989). Segundo essa ló-gica, todo tipo de ação coletiva – que vise acriar um bem público – cairá num dilemaem função da racionalidade inerente aosatores individuais – a maximização do pra-zer e a minimização da dor.

O bem público, por princípio, existe por-que, segundo Olson, os atores individuaistêm possibilidades limitadas de satisfaze-rem amplamente seus interesses. Só com acooperação e o estabelecimento de uma açãocoletiva é que os agentes terão sua possibili-dade de satisfação de interesses maximiza-da. Contudo, segundo o autor, a ação coleti-va cai no paradoxo da falibilidade da orga-nização dos indivíduos em uma coletivida-de. O dilema da ação coletiva ocorrerá, comomostra Olson, porque, devido à falibilidadeda organização coletiva, um ator, visandomaximizar seus interesses, deixa de partici-par da ação coletiva já que o bem público,gerado coletivamente, não pode conter res-trições aos benefícios de ninguém. Por ou-tras palavras, o ator individual deixa departicipar da construção do bem público,porque, assim, ele pode se beneficiar domesmo modo que aqueles que participaram.O ator individual maximiza seu prazer pormeio dos bens públicos, sem ter que sofrer ador da participação em uma organizaçãocoletiva, isto é, o ator racional “pega caro-na” na ação coletiva e se beneficia igual-mente do bem gerado coletivamente, porque,de acordo com Olson, a participação teriacustos.

O dilema da ação coletiva foi definidopor Olson mediante o estudo dos sindica-

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tos norte-americanos. O autor identifica naexistência de incentivos seletivos a razãosegundo a qual os indivíduos participamde uma organização coletiva. A racionali-dade dos agentes no momento de participa-ção em um empreendimento coletivo, por-tanto, pode ser organizada num quadro depreferências fixo, em que a ação mais racio-nal é aquela em que o agente não cooperacom esse empreendimento, enquanto os ou-tros cooperam. Esse quadro de preferênciaspode ser representado pelo dilema do prisi-oneiro, conforme a figura abaixo:

O dilema do prisioneiro pode ser defini-do como um recurso heurístico colocado àdisposição do analista para explicar certostipos de relações políticas e sociais. O dile-ma do prisioneiro consta do seguinte: doisprisioneiros são interrogados, individual-mente, um após o outro, por um juiz, sendoque eles são mantidos incomunicáveis.Ambos são considerados culpados de umcrime grave. O juiz, para incriminá-los e naprocura de uma prova irrefutável, propõe acada um dos prisioneiros o seguinte proce-dimento: se ambos confessarem, ambos se-

Figura 1. O dilema do prisioneiro

rão condenados a penas pesadas que, noentanto, poderão ser reduzidas em funçãoda confissão; se um deles confessar e dela-tar o companheiro, será libertado e receberáuma recompensa, enquanto o outro será con-denado à pena máxima; enfim, se nenhumdeles confessar, ambos serão colocados emliberdade, porque não podem ser acusadossem provas. O prisioneiros, portanto, vêem-se diante de quatro estratégias que possibi-litam a maximização de seus interesses in-dividuais. Eles se darão conta de que a es-tratégia mais racional para cada um é trair edelatar o companheiro, precavendo-se con-tra a pena máxima e recebendo a recompen-sa. Entretanto, se tivessem cooperado, guar-dando o silêncio, ambos poderiam ser colo-cados em liberdade18.

A participação, portanto, somente ocor-rerá quando ela for compulsória, isto é, quan-do não prescindir de mecanismos de coer-ção que obriguem a ação coletiva. Como nosmostra Olson (1999), indivíduos egoístassomente participam do sindicato porque são

obrigados a se filiarem e a pagarem as taxasde manutenção. Caso não fosse assim, elessimplesmente aguardariam os resultados daluta daqueles trabalhadores que se organi-zaram, para que lhes rendessem – lhes inte-ressassem – os bens públicos gerados, sema menor contrapartida de esforço – ou dor.

Ademais, Olson (1999) corrobora, com aajuda das teorias dos grupos sociais deHomans (1950) e Simmel (1955), o teoremada impossibilidade de Arrow (1974). O ar-gumento é de que quanto maior for o gruposocial, menor será a capacidade de ação co-letiva; na medida em que o aumento do nú-mero de participantes significar a reduçãodo poder proporcional de cada agente, cadaum deles, por ser egoísta, sentir-se-á à von-tade para não cooperar e, além disso, a ca-pacidade de decisão desse locus de partici-pação será menor já que cada agente buscaa satisfação de seus exclusivos interesses.Como os recursos são escassos e o númerodos que querem maximizá-los é grande,cada um se sentirá lesado pela organização

Preferências: NC>CC>NN>CN

Ator 1

Cooperar Não cooperar

Cooperar CC CN Ator 2

Não cooperar NC NN

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coletiva e dificultará a tomada de decisão.Quanto maior for o número de participan-tes, portanto, menor será a capacidade dedecisão e maior será o incentivo para a nãocooperação, já que o peso de cada partici-pante no processo de tomada de decisõesdiminuirá assim que o número de partici-pantes aumentar. Em grupos grandes, comoclasses sociais, por exemplo, o peso de cadaparticipante é insignificante em face do gru-po, uma vez que um indivíduo sozinho, den-tro desse grupo, dificilmente conseguirádecidir sobre as ações tomadas a seu favor.O tamanho do grupo, portanto, influencia asua capacidade de empreender ação coleti-va e possibilita o surgimento do free-rider,que usufrui do bem público construído semter envidado o menor esforço.

A concepção olsoniana da racionalida-de, portanto, dá-se no contexto de um con-flito entre indivíduos ontologicamenteegoístas, que têm um quadro de preferênci-as fixo, o qual faz com que, de um quadro deações factíveis dos agentes frente aos obje-tos, uma seja a escolhida. Nesse sentido, ohomem downsiano e olsoniano é uma má-quina calculadora de utilidades, capaz decompreender os custos e os benefícios im-plícitos em cada contingência apresentadaà sua pessoa.

Como aponta Elster (1989b), o interessedo analista da sociedade e da política devese concentrar na forma com que as estraté-gias dos atores convergem para uma agre-gação que possibilite falar de coletividade.Elster aponta para a noção de ponto de equi-líbrio como a forma com que as estratégiasde cada ator, com informação perfeita, con-vergem num conjunto maior de preferênci-as que passam a ser coletivamente compar-tilhadas. O ponto de equilíbrio19 ocorrerácomo solução do dilema da ação coletiva nosentido de que as preferências individuaistornar-se-ão estáveis, na medida em que nin-guém ganhará com a deserção.

A idéia de indivíduos egoístas e maxi-mizadores de utilidades pode dar a impres-são de que o mundo é uma grande arena de

conflitos anárquicos no qual o mais forteseria o vencedor, na mais perfeita represen-tação de um estado de beligerância hobbe-siano. A solução, nesse sentido, encontradapelos pensadores da escolha racional tam-bém é hobbesiana. Como nos mostra Tho-mas Schelling (2001), o problema da políti-ca é construir uma estrutura de enforcementvia instituições, a qual estabilizará o jogopela convergência de preferências individu-ais por meio da intermediação da interaçãoestratégica via coerção.

Ou então, como observa Akerlof (2001),a não cooperação universal provocaria osurgimento de externalidades – custos com-partilhados por toda a coletividade – e esta-bilizaria o jogo no sentido de que a intera-ção dos agentes será de cooperar estrategi-camente, já que estes percebem que a deso-nestidade e a não cooperação têm custos. Oque esse autor nos mostra é que, de um su-posto hobbesianismo social inicial, no quala incerteza universal é preponderante, osagentes estrategicamente mudam suas pre-ferências para a cooperação transitiva viamercado, que cria certezas mínimas e regrasestrategicamente criadas para a mediaçãoda ação e a redução das externalidades.

A concepção de Akerlof (2001), portan-to, lança o alicerce da public choice como cor-po de teoria social e política. A concepçãológica é que os indivíduos, para resolveremo problema das externalidades e assegurara paz social, fazem uso da criação de insti-tuições formais para mediar a interação es-tratégica dos agentes, isto é, a racionalida-de instrumental inerente ao egoísmo. Paratanto, criam estruturas de coerção que sereiteram no tempo e no espaço, obrigandoos agentes a acomodarem e agregarem seusinteresses privados em instituições que ma-terializam os interesses ditos públicos. Essaconcepção da política, própria da publicchoice, Fábio Wanderley Reis (2000, p. 102)nomeou de problema constitucional, que, se-gundo esse autor, é o problema de “minimi-zar as externalidades que o comportamentode uns acarreta para os outros e de se alcan-

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çar, pelo menos neste sentido, o bem coleti-vo [...]”.

O que é importante destacar é que o pro-blema constitucional, como observamTullock e Buchanan (1962), é resolvido es-trategicamente por um consenso minima-mente calculado pelos agentes. O argumen-to desses autores é que a racionalidade es-tratégica pura – a acumulação de utilida-des com o menor esforço – cria efeitos exter-nos – ou externalidades – por meio dosquais todos passam a perder. O que Tullocke Buchanan nos dizem é que a estratégia desatisfação incondicional dos prazeres criacustos para a ação individual. A solução,segundo os autores, é criar uma estruturainstitucional mediante leis que não prescin-dam do uso da coerção para reduzir essescustos, que, por princípio, são compartilha-dos por todos os indivíduos. Essas leis re-presentariam um consenso criado estrate-gicamente pelos indivíduos egoístas, queveriam os custos – como ter que compraruma arma para proteger o dinheiro embai-xo do colchão e por isso ter que deixar detrabalhar e acumular novas riquezas – re-duzidos a um nível considerado ótimo. Afundação lógica, portanto, de uma ordempolítica, de acordo com Tullock e Buchanan(1962), dar-se-ia porque o descompasso depreferências conflitivas gera externalidadescompartilhadas por todos. Só com a criaçãode mecanismos de coerção é que as externali-dades poderão ser reduzidas a um nível con-siderado ótimo, porque as preferências ten-dem a se agregar e a estabilizar o conflito.

O argumento central é de que o estudoda racionalidade demanda, então, a obser-vação da coleta e do processamento das in-formações por parte dos indivíduos egoís-tas, as quais orientam sua ação. Contudo, otema da informação para a tradição da pu-blic choice são dados que os agentes acu-mulam para formar um estoque de evidên-cias, mediante as quais o ator irá agir, ounão. É nesse sentido que para Elster (1989a)a racionalidade é imperfeita, na medida emque, para o agente operar com esse estoque

de evidências, esse deverá, no mínimo, apro-ximar-se a um nível ótimo paretiano. Issoporque, se o agente tem informação de me-nos, não decide e não toma um curso de ação;se o agente tem informação de mais, nãoconsegue processá-la e fica paralisado, semdecidir e tomar o curso de ação.

Entretanto, se a estabilização dos inte-resses demanda uma estrutura de coerção,como vimos com Tullock e Buchanan (1962),a catalisação desses, que assegurará o de-senvolvimento humano, somente poderáocorrer em outra estrutura, como vimos comAkerlof (2001), na qual todos possam bus-car a maximização de utilidades e desenca-dear a ação social: o mercado. Se, de um lado,o Estado materializa, de acordo com a pu-blic choice, o interesse público, o mercado, deoutro lado, materializa o interesse privadoe assegura a ação dos agentes20. A política,portanto, além de uma estrutura de enforce-ment, demanda um mercado político pormeio do qual os agentes formarão seus inte-resses e os apresentarão aos agentes públi-cos, garantindo, dessa forma, um procedi-mento democrático minimalista pela parti-cipação universal dos agentes nos negóciospúblicos21.

A corrupção na política, de acordo coma public choice, ocorrerá, como afirma SusanRose-Ackerman (2002), justamente na inter-face dos setores público e privado. Esta de-pende dos recursos disponíveis – políticosou materiais – para as autoridades agiremdiscricionariamente, sendo observada a dis-tribuição de benefícios e de custos para adimensão do privado, que redunda na cria-ção de incentivos para o uso de pagamen-tos de propinas e de suborno. Além disso, acorrupção, segundo a autora, ocorre na pro-porção em que as falhas de mercado estãopresentes na cena política, fazendo com queos agentes públicos se comportem de ma-neira rent seeking, ou seja, maximizando seubem-estar econômico, seja seguindo as re-gras do sistema, seja não as seguindo.

A teoria do rent seeking foi desenvolvidapor Tullock (1967) e Krueger (1974), segun-

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do a qual os agentes econômicos encontrammotivação para maximizar o bem-estar eco-nômico. Essa maximização de bem-estar estáinserida dentro de um contexto de regrasdeterminadas e de uma renda fixada de acor-do com as preferências individuais. Os agen-tes, segundo esses autores, buscarão a mai-or renda possível, dentro ou fora das regrasde conduta, resultando em transferênciasdentro da sociedade mediante a existên-cia de monopólios e de privilégios, cons-tituindo um mercado político competiti-vo em que os agentes lutam por esses mo-nopólios e por esses privilégios, transfe-rindo a renda de outros grupos sociaispara si.

É nesse sentido, portanto, que a corrup-ção ocorre quando o mercado político não éperfeito. Os agentes públicos visam maxi-mizar bens-públicos para seus fins particu-lares, com o intuito de ampliar sua renda,sendo que, no caso de corrupção, essa caçaàs rendas é estritamente ilegal. Porém, comoobserva Rose-Ackerman (1996a), antecedeà ação dos agentes públicos de caça a ren-das sua ação de monopolizar a burocraciapossibilitando o controle do fluxo das deci-sões políticas e o controle sobre a depen-dência dos agentes privados ao Estado. Por-tanto, a corrupção é diretamente proporcional aotamanho da máquina burocrática, ou seja, ao ní-vel de controle do Estado sobre os agentes priva-dos por meio da emissão de documentos, da co-brança de impostos e taxas e da consecução deprogramas e obras públicas.

A monopolização da burocracia, porconseguinte, cria incentivos para que osburocratas profissionais cobrem propinasdos agentes privados para a liberação dedocumentos e recursos públicos. Isso por-que o governo se encontra na posição decomprador ou de fornecedor de recursospúblicos, criando incentivos para que a pro-pina se torne um mecanismo recorrente deação política. A monopolização cria, comoobserva Rose-Ackerman (2002), um proble-ma de agent x principal. Os cidadãos – prin-cipals – de uma determinada comunidade

política delegam aos políticos e burocratas– agents – o controle do fluxo dos recursospúblicos, sem, no entanto, conseguirem con-trolar a ação dos agentes, que se encontramlivres para agregar os bens públicos às suasrendas privadas. Na medida em que os go-vernos são exclusivos compradores e forne-cedores de recursos públicos, os cidadãosnão conseguem controlar os preços dessesrecursos, uma vez que estes não são estabe-lecidos de acordo com as regras de um mer-cado impessoal. Como observa Przeworski(2001), o problema do agent x principal é umdos principais pontos a serem abordadosnas reformas de Estado em curso. Além dis-so, é uma das fontes da corrupção na políti-ca, na medida em que os agentes têm con-trole sobre o fluxo das informações das tran-sações públicas, enquanto os principals nãotêm informação suficiente, impossibilitan-do, dessa forma, qualquer tipo de controle ede accountability em relação à coisa pública.A citação abaixo, extraída de Rose-Acker-man (2002, p. 70), ilustra bem a forma medi-ante a qual a public choice percebe a corrup-ção na política:

“A gravidade da corrupção é de-terminada pela honestidade e pelaintegridade, tanto de agentes públicosquanto dos cidadãos. Entretanto, e emse admitindo que esses fatores sejamconstantes, a dimensão e a incidênciade propinas são determinadas pelo ní-vel geral de benefícios disponíveis pe-los poderes discricionários das autori-dades, pelo risco das transações cor-ruptas e pelo relativo poder de negoci-ação do corruptor e do corrompido.”

A causa da corrupção, segundo a visãoda public choice, portanto, é a existência demonopólios e privilégios no setor público,que criam incentivos para que os agentesbusquem maximizar sua renda privada pormeio do suborno e da propina. Contudo,como mostra Rasmusen e Ramseyer (1994),a corrupção sofre do problema de coorde-nação da ação coletiva, caso os recursos e opoder de negociação dos agentes públicos

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estejam fragmentados. A fragmentação demonopólios e a criação de estruturas com-petitivas simétricas de um mercado políticoinibem a cobrança de propinas por parte delegisladores racionais, que têm os custos daação corrupta ampliados.

De outro lado, caso existam monopóliose privilégios no setor público, a principalconseqüência da corrupção é a transferên-cia de rendas dentro da sociedade, criandodesperdício de recursos públicos, em prin-cípio escassos, e a alocação destes em ativi-dades improdutivas, as quais não geramcrescimento do bem-estar agregado da soci-edade. Nesse sentido, a perspectiva adota-da pela public choice para o fenômeno dacorrupção está em campo diametralmenteoposto, se comparada com a teoria estrutu-ral-funcionalista, que preconiza eventuaisbenefícios decorrentes dela.

A corrupção, como observa Paolo Mau-ro (2002), inevitavelmente inibe o crescimen-to econômico e cria incentivos para que osagentes enviem o capital acumulado pormeio dela para paraísos fiscais. De acordocom esse autor, cada ponto que cresce nosíndices de corrupção – que são decrescen-tes, ou seja, quanto maior o índice, menor acorrupção –, equivale ao aumento de doispontos percentuais na taxa de investimen-tos e meio ponto percentual na taxa de cres-cimento do produto interno bruto. Assim, acorrupção influencia na composição dosgastos sociais dos governos. Por exemplo, acada dois pontos que um país melhore emseu indicador de corrupção, é possível au-mentar os gastos com educação na ordemde meio ponto percentual do produto inter-no bruto. Finalmente, a corrupção está rela-cionada com a ampliação da carga tributá-ria do Estado. Por outras palavras, quantomaior for a corrupção no setor público deum país, maior a carga tributária paga pelosetor privado.

No campo da ordem política, a corrup-ção afeta, como observa Rose-Ackerman(1996b), a legitimidade do sistema político,na medida em que as falhas de mercado re-

sultam na decadência da cooperação entreos atores políticos e na recorrência de práti-cas ilegais entre os atores, maximizadoresde rendas.

Em face das conseqüências acima, a pu-blic choice defende a reforma do Estado nosentido de erosão dos monopólios estatais,de fragmentação das burocracias profissio-nais e da privatização de empresas contro-ladas pelo governo. Em resumo, segundo oseconomistas da public choice, o combate àcorrupção se dá por meio da criação de umaestrutura constitucional que limite o níveldos benefícios dos monopólios sobre con-trole do Estado, que por natureza é um ex-propriador de riquezas dos agentes priva-dos. Por outras palavras, a public choice, comonos mostra Rose-Ackerman (1996b; 2002),defende a transferência das atividades con-troladas pelo Estado – que é uma estruturapersonalista por natureza – para o merca-do, tanto em sua dimensão política quantoeconômica.

Como destacarão Montinola e Jackman(2002), o ponto central da teoria da publicchoice para o estudo da corrupção na políti-ca é a consideração dos sistemas de incenti-vos criados pela burocracia para que osagentes tenham um comportamento rentseeking. É dessa forma que, dados os pressu-postos gerais da public choice, enquanto cor-po de teoria política, as democracias com-petitivas e os mercados são condições ne-cessárias para um governo honesto, já queestabilizam os interesses egoístas dos agen-tes em torno de regras mínimas de pacifica-ção social. Ademais, a partir dessa concep-ção, os teóricos da public choice recuperam oaforismo de Mandeville, já que estruturascompetitivas, no âmbito da ordem política eno âmbito da ordem econômica, é que criamos benefícios públicos que atendam às ne-cessidades dos agentes.

5. Considerações finais

A partir do inventário das teorias soci-ais que tratam do fenômeno da corrupção

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na política, podemos perceber uma constan-te lógica, ou um ponto comum a todas elas,que suscitará a crítica aqui formulada: d eque a corrupção, basicamente, é a sobreposiçãodas vantagens privadas ao bem comum. A par-tir dessa concepção, a estrutura lógica doproblema nos obriga, então, a pesquisarmoscomo é possível a formação do bem públicopara verificarmos e coletarmos evidênciassuficientes para entendermos a corrupçãona política. O pressuposto lógico é o seguin-te: se é possível o bem público, por redundânciaserá possível a ação coletiva e o compartilhamentode valores comuns entre os agentes políticos emuma esfera pública.

Dados os dilemas de definição conceitu-al da corrupção, como observa Heywood(1997), a conseqüência é o inevitável caráternormativo do conceito, que se concentra nadimensão dos deveres em relação à honesti-dade dos agentes políticos, ou seja, na di-mensão deontológica da ordem política.Somente com a contraposição entre hones-tidade e transparência, de um lado, e cor-rupção, de outro, poderemos definir a for-ma segundo a qual esse fenômeno ocorre napolítica. Portanto, o conceito de corrupçãonão pode prescindir de uma noção ligadaao dever, já que seu núcleo definicional re-side no campo dos valores, que, como jámostrou Montesquieu (1973), na moderni-dade, são transpostos para o campo das ins-tituições.

Entendido esse pressuposto lógico, po-demos lançar a crítica a ser formulada. Asteorias sociais sobre a corrupção na políti-ca, mesmo que tenham pressupostos episte-mológicos diferentes, lançam mão da con-cepção comum de que ela ocorre quando obem comum é subordinado aos interessesprivados, mas atribuem ao bem comum umaconcepção de matriz kantiana de que o mes-mo não resulta em concepções a priori. Oerro dessas teorias é atribuir à corrupçãouma noção de interesse público que não levaem consideração certos valores comuns aosagentes políticos responsáveis por fomen-tá-lo, destituindo-a de qualquer caracterís-

tica normativa que é inerente ao seu concei-to. Logo, a tentativa de observar a corrup-ção a partir de um viés estritamente racio-nalista desconsidera a ética presente na es-fera pública que, esta sim, materializa o in-teresse público. A idéia presente no positi-vismo jurídico de que a lei materializa o in-teresse público; no estrutural-funcionalismode que as instituições o materializam e deque a corrupção pode ter uma função po-sitiva ou uma função negativa; e, final-mente, na public choice de que o interessepúblico é um conjunto de interesses pri-vados estabilizados não leva em conside-ração, portanto, que a esfera pública é fei-ta de valores compartilhados de maneiracomum.

Essa crítica possibilita, então, formular-mos uma hipótese alternativa, central desteartigo: de que a corrupção é uma ação praticadapor qualquer ator social visando a obtenção devantagens pessoais – materiais ou imateriais –que contrarie as normas institucionalizadas dosistema político, legitimamente aceitas pela so-ciedade por meio de seus sistemas de solidarie-dade, tendo em vista os valores e a confiança doscidadãos em função das estruturas de socializa-ção das normas da comunidade política .

Em outras palavras, a corrupção é, comopodemos lançar hipoteticamente, de umlado, uma função dos padrões de eficáciainstitucional, entendida como interação en-tre as esferas pública e privada que tendemou não a garantir a transparência e a eficá-cia na formulação e implementação das de-cisões do governo. Isto é, a corrupção é, emparte, o resultado, que pode variar em grau,do arranjo institucional de um dado siste-ma político, a partir do qual é assegurada atransparência nas relações entre o público eo privado. De outro lado, a corrupção é umafunção dos padrões recorrentes de intera-ção dos indivíduos de uma dada coletivi-dade, que assegurem um acordo comum emtorno das leis, a partir do qual eles possamparticipar do bem-estar coletivo e o condicio-narem, expressos na capacidade das estru-turas de socialização de manter uma ordem

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política que fomente a ação coletiva por meiode valores que impliquem sanções contrauma ação propriamente corrupta ou deso-nesta. Por conseguinte, o suposto é que devehaver uma estrutura compatível entre insti-tuições políticas, de um lado, e valores com-partilhados na esfera pública, de outro,para que seja assegurada a transparência ea honestidade dos agentes políticos no tra-to com a coisa pública.

Portanto, a tentativa de construir um con-ceito de corrupção que dê conta de lidar como problema da formação dos interesses in-dividuais a partir de sua convergência pormeio da esfera pública e de como ela ocorrea partir desse quadro de eficácia institucio-nal das sociedades contemporâneas são asquestões centrais de que deve tratar umateoria sobre a corrupção.

Notas1 A própria idéia de que o mundo político pode

ser concebido racionalmente, no qual o analista podeapreender com o uso da razão as diversas categori-as e conceitos e organizá-los num todo genérico ecompreensivo para predizer novas teorias, não dei-xa de ser uma noção ideal. O ponto central é avirada epistemológica da teoria social do séculoXX, que deixa de lado a deontologia ou a dimensãodos deveres em função de uma concepção pragmá-tica e ontológica.

2 Bobbio (1995) ocupa no corpo do positivismojurídico uma posição, como ele mesmo se define,moderada.

3 Mesmo que pertencessem à mesma escola defilosofia do direito, Savigny e Thibaut não concor-davam com relação às codificações na Alemanha,durante o século XIX. De acordo com Thibaut, acodificação deveria ser imediata e guindaria a Ale-manha à modernidade, enquanto Savigny afirma-va dever ser a codificação realizada somente emcondições culturais favoráveis, que ele não obser-vava em seu país, naquela época.

4 A idéia de procedimento, segundo Bittar eAlmeida (2001), deriva do “princípio da eficácia”,o qual faz pressupor que a Constituição existe por-que ocorre um consentimento das pessoas em acei-tar as leis. Kelsen termina por afirmar que o princí-pio da eficácia resulta que a ciência jurídica nãotem espaço para os juízos de justiça, mas apenaspara os juízos de direito.

5 Kant afirma que o direito é “vinculado à fa-culdade de obrigar”, mostrando que a injustiça éum impedimento à liberdade que está submetida aleis universais. O ato ilícito, segundo Kant, repre-senta um abuso de minha liberdade sobre a liber-dade do outro, quebrando a lei universal. O únicoremédio é usar a coerção de modo a impedir que oshomens invadam as esferas de liberdade dos ou-tros.

6 Contemporaneamente, a corrupção, no cam-po do direito, é definida como infração ao direitoadministrativo, que regulamenta as relações entreo funcionário público e a coisa pública. Ademais, odireito administrativo tipifica a corrupção na for-ma de delitos, tais como a fraude, o estelionato,etc.

7 Para Parsons, os sistemas de não-ação sãoaqueles caracteristicamente relacionados aos mei-os físico e biológico em geral.

8 Parsons foi responsável por introduzir a soci-ologia de Weber nos Estados Unidos por meio desua tradução de A Ética Protestante e o Espírito doCapitalismo. Entretanto, Parsons introduz uma in-terpretação sistêmica e desenvolvimentalista daobra weberiana, enquanto Bendix (1986) introduza interpretação não sistêmica, contrapondo a visãoparsoniana.

9 Para uma devida concepção do poder segun-do Parsons (1969), ver o artigo de Habermas (1980),O Conceito de Poder em Hannah Arendt, no qual esseautor contrapõe as visões instrumental e comuni-cativa do conceito de poder. Habermas (1980) ob-serva que a noção parsoniana da política está su-bordinada a uma noção de ação social teleológica,ou, em outras palavras, a um modelo de ação en-quanto forma para se alcançar fins, inspirado nasescolhas e comportamentos dos atores que visammaximizar ganhos em relação ao conjunto da soci-edade. Nesse sentido, Habermas imputa ao concei-to de poder de Parsons (1969) uma noção de racio-nalidade estratégica, que, por si só, não legitimizaa política em face da sociedade.

10 No que tange ao conceito de poder, Parsons(1969) direcionou forte crítica ao trabalho de Wri-ght Mills (1982), que o entendia como expressãomanipulativa das elites sobre a massa da popula-ção.

11 O conceito de influência de Parsons (1969) foiapreendido por Habermas (1997) em seu tratamentosobre a democracia e sobre a política deliberativa,por meio do qual o sistema político irá adquirirlegitimidade diante da sociedade. O conceito deinfluência, na teoria habermasiana, é uma forma deação comunicativa que fará com que seja garanti-da a participação dos cidadãos nos negócios públi-cos. Entretanto, Habermas chama a atenção para ofato de que Parsons não indica ou explica o localonde os indivíduos exercerão a influência, nem o

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modo pelo qual esta será institucionalizada. Esse éum dos problemas que Habermas (1997) tentaráresolver por meio da teoria da ação comunicativa(Cf. FILGUEIRAS, 2003).

12 Como destaca Joseph La Palombara (1994),para que a corrupção na política exista é necessárioque ocorra um desvio das regras formais do siste-ma. Essa noção de desvio, que marcará as posiçõesdo estrutural-funcionalismo e do positivismo jurí-dico, surge da capacidade de racionalização e in-fluência que o positivismo teve – não só o jurídico,mas o positivismo geral – nas Ciências Sociais atémeados do século XX. O que as teorias sob influên-cia do positivismo afirmam é que o estudo da soci-edade é possível a partir de um método estrita-mente objetivo, como mostrará Durkheim (1983), eque a organização coletiva precede as ações indivi-duais mediante certas instituições sociais. Logo, seas instituições determinam as ações individuais,elas também assegurarão a existência de certas re-gras, o que faz com que a noção de desvio surjacomo categoria teórica inerente àquelas ações quefujam às regras estabelecidas.

13 Huntington cita o judiciário como exemplode uma instituição dotada de autonomia. É umaorganização que necessita estar separada dos inte-resses de grupos sociais e dotada de valor por si,que assegura padrões de legitimidade para as de-cisões tomadas no nível institucional.

14 Huntington (1975) e Nye (1967) reiteram vá-rias vezes que os grandes exemplos de função dacorrupção no desenvolvimento político são encon-trados principalmente na América Latina, incluin-do o Brasil, e no Leste Asiático, que entraram tardi-amente no capitalismo.

15 James Scott (1969) afirma ser a corrupçãouma forma alternativa encontrada pelos agentespolíticos de articular seus interesses junto à esferapública mediante a construção do que ele chamaráde máquinas políticas. Essas máquinas políticas sãogrupos sociais que procuram influenciar o conteú-do das decisões políticas tomadas na arena legisla-tiva pela persuasão das elites partidárias em tornode seus valores. Scott, assim como Nye, afirma quea constituição dessas máquinas políticas colaborapara o arrefecimento da disputa entre clivagenssociais que surge com a mudança, colaborando,dessa forma, para o desenvolvimento.

16 É interessante observarmos que a etimologiada palavra interesse remete à idéia de lucro. Sendoassim, podemos afirmar que a idéia de interesse,como preconizada pela teoria política contemporâ-nea, leva-nos à idéia de cálculo como catalisadordas intenções dos agentes.

17 É importante chamar a atenção para o argu-mento segundo o qual a teoria da escolha racionalprescinde da concepção weberiana de efeitos nãointencionais da ação social.

18 Axelrod (1984) mostra que, se o dilema doprisioneiro for reiterado ao infinito, no futuro a es-tratégia que equilibra o jogo é a da cooperação uni-versal, ou seja, aquela em que os indivíduos coope-ram incondicionalmente.

19 Quando falamos de ponto de equilíbrio, nãopodemos deixar de nos referenciarmos a John NashJunior (2001a, 2001b). Segundo Nash Junior a so-lução de equilíbrio deriva de padrões racionalmen-te definidos e recorrentes ao longo da reiteração dojogo. A solução de equilíbrio, portanto, é aquela emque os atores envolvidos no jogo, por serem racio-nais e terem informação perfeita, encontram umponto em que as estratégias se estabilizam, ou seja,ninguém ganhará mais por meio da deserção e nin-guém bancará o sucker cooperando incondicional-mente.

20 De acordo com essa concepção, podemos re-montar ao antigo aforismo liberal, criado por Man-deville, de que os vícios privados asseguram osbenefícios públicos.

21 Como aponta Fábio Wanderley Reis (2000),teremos aqui os dois fundamentos dialéticos dapublic choice: a noção do problema constitucionalenquanto forma de coerção e estabilização de inte-resses e a noção de mercado político enquanto fer-mento dos interesses e garantidor da liberdade e daigualdade, ou seja, da democracia. Todavia, a fa-lha, segundo Reis, da public choice é vedar à teoria acapacidade de ação intencional por parte de sujei-tos coletivos, ou seja, de coletividades produtorasde solidariedade entre indivíduos supostamenteegoístas mas capazes de ação comum, como seri-am, por exemplo, os movimentos sociais contem-porâneos.

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Manoel Adam Lacayo Valente

1. IntroduçãoMax Weber (1864-1920) era, estritamente

– nas acepções marxista e não-marxista –,um burguês, um homem das camadas su-periores e mercantis da vida urbana (MA-cRAE, 1985, p. 42). Filho de um deputadofederal do então Partido Nacional-Liberal,Weber teve sua juventude influenciada pe-las atividades políticas de seu pai; e muitoprovavelmente a sua idéia a respeito da clas-se política, como a aristocracia responsávelpela condução do destino da nação, tenhasido forjada a partir de ideais defendidos porseu pai. John Patrick Diggins (1999, p. 301-302) comenta a visão aristocrática de Webersobre a política com as seguintes palavras:

“O apelo de Weber a tradição aris-tocrática política. Suas reservas comrelação à ‘honra’, ‘nobreza’ e ‘digni-dade’ indica sua afinidadeo cm à de-mocracia, deve-se notar, não revelamum elitismo arrogante, mas, ao con-trário, um realismo calculado.”

Mas enfim, em que consistia a visão aris-tocrática de Weber a respeito da democra-cia? Weber visualizava a democracia em seusentido procedimental, ou seja, como siste-ma de escolhas de lideranças políticas pe-las massas, sem, entretanto, ultrapassar esselimite no que diz respeito à participação

Democracia em Max Weber

Manoel Adam Lacayo Valente é bacharelem Direito, com habilitação em Direito Públi-co, bacharel em Comunicação Social, Mestreem Sociologia pela Universidade de Brasília,Consultor Legislativo, da área de Direito Ad-ministrativo, da Consultoria Legislativa daCâmara dos Deputados e Advogado.

Sumário1. Introdução. 2. O elitismo plebiscitário. 3.

Max Weber e a política alemã. 4. Conclusão.

Revista de Informação Legislativa150

popular na condução política da nação.Uma vez exercido o direito de voto e sagra-dos os vencedores do pleito eleitoral, a von-tade popular estaria atendida, cabendo aosseus representantes, de maneira autônoma,a direção governamental do país.

As palavras de Raymond Aron (2000, p.501) confirmam a concepção weberiana dedemocracia:

“Weber foi um nacional-liberal,mas não um liberal no sentido norte-americano. Ele não era propriamenteum democrata no sentido francês, in-glês ou norte-americano. Punha aci-ma de tudo a grandeza da nação e opoder do Estado. Indubitavelmente,estimava as liberdades a que aspiramos liberais do velho continente. Semum mínimo de direitos individuais,escreveu, não poderíamos mais viver.Não acreditava, porém, na vontadegeral ou no direito dos povos de dis-por de si mesmos, nem na ideologiademocrática. Se desejava uma ‘parla-mentarização’ do regime alemão, erapara aprimorar a qualidade dos líde-res, e não por princípio.”

Patrícia Castro Mattos (2000, p. 84) dis-corre sobre a visão weberiana de democra-cia com as seguintes considerações:

“É interessante percebermos comoWeber enxerga a democracia. Para ele,a participação popular se resume aosufrágio universal. O processo é de-mocrático somente na escolha e legiti-mação do governante. Não cabe aogovernante atuar em função da von-tade das massas que, segundo ele, sãoemocionais e irracionais. O sufrágiouniversal é muito mais uma aclama-ção periódica que confirma o carismado líder escolhido. Em momento al-gum, identifica a participação dasmassas com a participação no poder.A participação das massas é impor-tante na escolha dos líderes enquantomais um fator de seleção de homenshábeis para conduzir a nação.”

Dessa forma, Weber “considerava as ins-tituições e idéias democráticas pragmatica-mente: não em termos de seu ‘valor intrínse-co’, mas de suas conseqüências para a sele-ção de líderes políticos eficientes” (GERTH;MILLS, 1982, p. 53).

Além dessas características, a perspecti-va weberiana de democracia contemplavaa valorização do parlamento como o celeironatural de lideranças políticas e a necessi-dade da existência de um líder governamen-tal carismático que, contrapondo-se ao po-der da burocracia estatal, controlando-a,seria o condutor das aspirações nacionais.

Aqui surge outra questão intimamenteligada à concepção de democracia weberia-na, qual seja como lidar com a expansão dodomínio da burocracia estatal. Com efeito,para Weber a burocracia representava oaparato funcional indispensável para o Es-tado fazer funcionar a “máquina” adminis-trativa. Weber louvava a impessoalidade, oformalismo, a previsibilidade e a perícia téc-nica da burocracia ao mesmo tempo queexpunha seus temores pelo receio da ampli-ação desmedida da influência burocráticasobre a vida cotidiana das pessoas, bemcomo sobre as liberdades públicas e sobre aatividade política, o que, em última instân-cia, significaria o “estrangulamento” dademocracia.

Maria das Graças Rua (1997, p. 178),comentando a visão weberiana sobre demo-cracia e burocracia, pondera o seguinte:

“O efetivo dilema a ser enfrentadopelas democracias seria: consideradoo inexorável processo de complexifi-cação e burocratização da sociedademoderna e dadas as características decada um dos agentes do jogo políticoe os seus recursos de poder, como im-pedir que a burocracia venha a usur-par o poder e como assegurar que per-maneça sendo apenas um elo de liga-ção entre dominadores e domina-dos?”

Esse mesmo dilema é formulado pelopróprio Weber (1999, p. 542):

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“Em face da indispensabilidadecrescente e da conseqüente firmeza,cada vez maior, da posição de poderdo funcionalismo estatal, que aquinos interessa, como pode haver algu-ma garantia de que existam poderescapazes de manter dentro de seus li-mites a prepotência enorme desta ca-mada cada vez mais importante, e quea controlem eficazmente? Como serápossível uma democracia pelo menos nes-te sentido limitado?”

Em termos sintéticos, pode-se dizer quea democracia weberiana equivalia a ummero procedimento de legitimação de lide-ranças pelo voto e por aí se limitava suaabrangência. Uma vez eleitos, os líderespolíticos, como possuidores de cheques embranco, poderiam conduzir, livremente,suas ações, sem quaisquer vinculações comas aspirações dos seus eleitores. Esse mode-lo de democracia, considerado por estudio-sos da sociologia política (SANTOS, 2002,p. 42) como sendo de democracia de “baixaintensidade”, em muito se aproxima do pa-radigma democrático idealizado por JosephSchumpeter (1961), para quem “a democra-cia é um método político, ou seja, um certotipo de arranjo institucional para se alcan-çarem decisões políticas – legislativas e ad-ministrativas – e, portanto, não pode ser umfim em si mesma, não importando as deci-sões que produza sob condições históricasdadas”. Na visão de Schumpeter, não exis-te governo pelo povo, o que pode existir égoverno para o povo, que é exercido por eli-tes políticas que são as responsáveis pelaproposição de alternativas para a nação.

2. O elitismo plebiscitário

A visão weberiana de democracia cen-trava o sucesso da condução política danação no desempenho de seus líderes polí-ticos, limitando a participação popular aosufrágio em pleitos eleitorais, o que reflete apostura de Weber contrária à participaçãopopular na condução do processo governa-

mental da nação. Os políticos, para Weber,seriam a expressão da representatividademáxima da nação e, portanto, seus condu-tores autorizados. A burocracia estatal aocontrário, ameaçava, com sua expansão téc-nica, a “saúde” da democracia e deveria sercontrolada, com vigor, por lideranças caris-máticas.

Essa mescla de burocracia profissional,de um parlamento formado por elites e delideranças carismáticas, formava o que opróprio Weber denominava como “demo-cracia plebiscitária”, que constituiria “o tipomais importante de democracia de líderes –em seu sentido genuíno, é uma espécie dedominação carismática oculta sob a formade uma legitimidade derivada da vontadedos dominados e que só persiste em virtudedesta” (WEBER, 2000, v. 1, p. 176).

Nesse modelo, idealizado por Weber, adominação carismática que, em sua confor-mação original, era legitimada pelo reconhe-cimento, puro e simples, das qualidadesextracotidianas dos líderes carismáticos(profetas, sábios, curandeiros, heróis deguerra, etc.) pelos carismaticamente domi-nados passa a ser legitimada pela realiza-ção de pleitos eleitorais.

Dessa maneira, a dominação carismáti-ca, interpretada em seu sentido originalcomo autoritária, pode ser reinterpretadacomo antiautoritária, pois a potencialidadeda autoridade carismática se reveste da le-gitimação eleitoral que ratifica o primitivoreconhecimento carismático. Nessa situa-ção, o senhor legítimo, em virtude do pró-prio carisma, transforma-se em um líder li-vremente eleito (WEBER, 2000, v. 1, p. 175-176).

A democracia plebiscitária weberiana seinspira nessa concepção de denominaçãocarismático-eleitoral. O plebiscito é o instru-mento de legitimação periódica do líder ca-rismático como homem de confiança dasmassas (WEBER, 2000, v. 1, p. 176).

O caráter elitista da visão política webe-riana se revela nessa sua concepção de de-mocracia plebiscitária. Com efeito, para

Revista de Informação Legislativa152

Weber, as massas eram irracionais e des-preparadas, sem condições de contribuirpara a gestão governamental da nação, logo,“no Estado moderno, a liderança tinha queser uma prerrogativa da minoria, caracte-rística inevitável dos tempos modernos”(GIDDENS, 1998, p. 33).

A democracia plebiscitária de Weber,com a figura do líder carismático legitima-do pelas urnas, foi idealizada como umacontraposição ao paradigma tradicional dademocracia representativa, que ele entendiacomo “acéfala”, sem liderança (BOBBIO,1987, p. 170).

A liderança carismática, caracterizadapela paixão, tinha uma significação vital naconcepção democrática de Weber, já que,sem ela, o “Estado ficaria relegado a umademocracia sem liderança, ao governo depolíticos profissionais sem vocação” (GID-DENS, 1998, p. 51). O elitismo do paradig-ma weberiano refletia a sua crença de que ocarisma de algumas almas aristocráticassempre fora a força revolucionária e criati-va da história (BELLAMY, 1994, p. 364).

3. Max Weber e a política alemã

A maior parte das idéias que justificama concepção weberiana de democracia ple-biscitária resulta da visão crítica que Weberpossuía a respeito da política alemã e queconsolidara entre 1890 e 1920. Não por aca-so, mas como resultantes do seu olhar aten-to sobre o cenário político da época de Bis-marck (1815-1898), Weber produziu escri-tos que refletem os motivos orientadoresda sua opção pela democracia plebiscitá-ria: “Parlamento e Governo na AlemanhaReordenada” (1918) e “Política como Voca-ção” (1919) são trabalhos que documentamesse contexto.

Weber era um descontente com o legadopolítico da era Bismarck. Com efeito, na suavisão, o “Chanceler de Ferro”, condutor doprocesso de unificação da Alemanha, ulti-mado em 1871, com seu autoritarismo, foiresponsável pelo enfraquecimento do par-

lamento alemão, em contraste com o fortale-cimento do executivo. Essa ação de Bismarcksufocara “a emergência de novos talentoscom vocação de liderança independente,legando a condução dos negócios públicosa burocratas, em grande medida eficien-tes e honestos, mas politicamente míopes”(KRAMER, 2000, p. 181).

Em ensaio sobre Weber, Paulo Kramer(2000, p. 181) resume a decepção do pensa-dor alemão com os políticos alemães da suaépoca:

“A desilusão de Weber tem poralvo seus companheiros de classe bur-guesa que jamais demonstram a cora-gem política necessária para forneceruma alternativa liberal ao regime con-servador dos Junkers. Paralisados peloque Weber estigmatizava como ‘espí-rito de segurança’, os políticos burgue-ses aparentemente gozavam das be-nesses advindas do surto de desen-volvimento industrial do final do sé-culo passado, escudando-se numaaristocracia agrária decadente contraa ‘ameaça’ do movimento operário ede seu representante político no Par-lamento, a social-democracia.”

As palavras do próprio Weber (1993, p.38-39), contidas no primeiro capítulo de“Parlamento e Governo na Alemanha Reor-denada”, cujo título é “A Herança de Bis-marck”, tornam claras algumas das razõesque o levaram ao paradigma da “democra-cia plebiscitária”:

“Diante desses pressupostos epelo ângulo da questão que nos inte-ressa, qual foi a herança política deBismarck? Ele nos legou uma naçãosem qualquer formação política e mui-to abaixo do nível que já alcançaravinte anos antes. E, principalmente,uma nação sem qualquer vontade po-lítica, acostumada a ver o grandeestadista, lá no alto, a cuidar da polí-tica em seu lugar. E mais, como conse-qüência do mau uso do sentimentomonárquico usado como biombo a ser-

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viço de seus próprios interesses no em-bate partidário, nos deixou uma na-ção habituada a deixar as coisas acon-tecerem de forma fatalista sob a égidedo ‘regime monárquico’, sem sensocrítico em relação aos que se instala-ram no lugar deixado vago por Bis-marck e que tomaram nas mãos as ré-deas do poder com surpreendente atre-vimento. Nesse ponto, consumou-se,de longe, o maior dano. Em contrapo-sição, o grande estadista não nos dei-xou nenhuma tradição política. Elenão atraiu, sequer tolerou, cabeçaspensantes e íntegras. E, para maiordesgraça da nação, além de nutrir amais completa desconfiança por qual-quer pessoa que, a seu ver, pudessevir a ser seu sucessor, ele ainda tinhaum filho cujas qualidades realmentemodestas de estadista ele surpreen-dentemente superestimava. Em con-trapartida a essa desconfiança doen-tia, podemos citar uma conseqüênciatotalmente negativa de seu tremendoprestígio: um parlamento completa-mente impotente. Ele mesmo reconhe-ceu esse erro, quando não ocupavamais o cargo e sofreu na própria peleas conseqüências dessa realidade.Essa impotência também trazia con-sigo um parlamento com um nível in-telectual grandemente reduzido. Éfato que a lenda moralizante de nos-sos literatos apolíticos dá uma expli-cação exatamente oposta para suasorigens: por ter, e continuar tendo, umbaixo nível intelectual é que o parla-mento, merecidamente, permaneceusem poderes. Contudo, fatos e ponde-rações simples mostram a verdadeiracorrelação dos acontecimentos, cris-talina para todo pensador conscien-te. Decisivo para o alto ou baixo nívelde um parlamento é se, em suas ins-tâncias, os problemas são meramentedebatidos ou se elas têm poder e deci-são. Isto é, se o que acontece entre suas

paredes é decisivo ou se ele é simples-mente um órgão decorativo tolerado acontragosto pela burocracia reinan-te.”

Em razão desse contexto, como forma derevitalizar o cenário político alemão, Weberformula sua concepção de “democracia ple-biscitária”, um regime híbrido, em que oparlamento, como celeiro de líderes e comoinstituição que controlaria os excessos daburocracia e do próprio líder carismático doExecutivo, dividiria com o presidente doReich a condução política do país.

Nesse modelo, Weber abandona sua an-tiga tendência pelo parlamentarismo puro,“tendo em conta que no parlamentarismoclássico o líder se tornava prisioneiro decompromissos partidários e interesses cor-porativos” (KRAMER, 2000, p. 184), passan-do a defender a eleição direta do presidentedo Reich, que, fortalecido pelo amplo apoio“plebiscitário” dos seus eleitores, poderia,com o vigor do seu carisma, “romper o imo-bilismo burocrático e as resistências parla-mentares às suas medidas de direção naci-onal...” (COHN, 1993, p. 18). Assim, no mo-delo weberiano, o líder político carismáticodeveria ser eleito pelo povo inteiro e não peloParlamento (MAYER, 1985, p. 75-76).

Segundo Weber, citado por Mayer (1985,p. 76):

“Somente a eleição por maioriapopular do Presidente do Reich dariaa oportunidade de seleção da lideran-ça política e poderia conduzir à revi-talização de partidos políticos quesuperassem o antiquado sistema diri-gido pelas notabilidades, até aqui pra-ticado. Se esse sistema continuasse,uma democracia político-progressis-ta não teria vez.”

A visão política de Weber, afora a suapercepção do avanço da racionalização eda conseqüente burocratização, tem seu focoassentado no contexto político concreto daAlemanha, durante as eras bismarckiana epós-Bismarck. Assim, Weber não tinha apretensão acadêmica de empreender um

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estudo sistemático da democracia; suas in-cursões nesse campo eram motivadas porpreocupações com relação ao futuro políti-co da Alemanha, que enfrentava uma guer-ra externa e profundas reformas internas(HELD, 2001, p. 182).

A concepção democrática de Weber, tri-butária da sua visão contextual e históricada Alemanha do seu tempo, apresentava asseguintes características:

1. A liderança política era uma prerro-gativa da minoria [a “classe dirigente” deMosca], a massa da população apenas es-colheria os integrantes do parlamento e olíder carismático pelo voto (GIDDENS, 1998,p. 33).

2. A burocracia, indispensável ao funci-onamento da democracia, deveria ser con-trolada pelos líderes políticos, como formade se evitar uma dominação burocráticaincontrolada (GIDDENS, 1998, p. 33).

3. O líder carismático e plebiscitário, quese contrapõe a uma democracia sem lide-rança, seria o condutor político da nação(GIDDENS, 1998, p. 51).

4. O parlamento, além de funcionarcomo uma escola de líderes, agiria “comosalvaguarda contra a aquisição excessi-va de poder pessoal por um líder plebisci-tário”(GIDDENS, 1998, p. 37).

5. “Conceitos como a ‘vontade do povo’,a verdadeira vontade do povo (...) são fic-ções” (GIDDENS, 1998, p. 67).

6. O representante parlamentar é o se-nhor de seus eleitores e não o servidor deles(WEBER, 2000, v. 1, p. 194).

4. Conclusão

A concepção de democracia plebiscitá-ria de Max Weber refletia, sem dúvida, o seuperfil político liberal, mas, também, elitista.Se, por um lado, procurava contrapor-se aosavanços da burocratização, com a conse-qüente perda da liberdade humana, poroutro, não reconhecia capacidade políticaàs massas para se autodirigirem, tendo emconta a sua suposta irracionalidade. A po-

lítica, para ele, deveria ser conduzida poruma camada dirigente recrutada segundocritério plutocrático (WEBER, 1998, p. 66),fato que compromete, na essência, o outropilar da democracia, além da liberdade: aigualdade.

Em Weber, “a democracia é um procedi-mento, um meio na luta pelo poder. Valorseria a liberdade mais do que a igualdade, enisso se revela o liberal mais do que o demo-crata” (COHN, 1993, p. 22). Uma frase suaresume o seu pensamento sobre a democra-cia: “Em uma democracia, as pessoas esco-lhem um líder em que confiam; então o líderescolhido fala: ‘Agora calem-se e façam oque eu disser’” (GIDDENS, 1998, p. 69, nota11).

Contudo, o diagnóstico e o modelo we-berianos se demonstraram insatisfatórios àluz da realidade política contemporânea.Com efeito, a debilidade dos regimes repre-sentativos, no que diz respeito à credibili-dade pública, decorre, em grande parte, dodesempenho insatisfatório das delegaçõesconferidas pelos cidadãos aos ocupantes demandatos eletivos (descumprimentos deprogramas eleitorais, corrupção, inobser-vância de fidelidade partidária, etc.), con-forme mostram, entre outros, os estudos deDaniel García Delgado (1998) e de Paul Hirst(1992).

Na verdade, o “perigo burocrático” vi-sualizado por Weber não atingiu propor-ções reais que viesse a comprometer a go-vernabilidade estatal, sendo, ao contrário,uma garantia mínima de que o aparato es-tatal poderia atuar de maneira impessoal,técnica e previsível, afastando-se de postu-ras cartoriais, favorecedoras de interessesde determinados grupos.

A confiança de Weber na força de umaliderança carismática, sua percepção de queo agir político seria sempre orientado peladevoção aos supremos interesses da naçãoe sua incredibilidade quanto ao potencialde participação política racional dos cida-dãos, bem como a sua aversão à burocraciaestatal profissional, que, em essência, repre-

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senta uma garantia para a própria socieda-de, são fatores que comprometem a preten-dida eficácia política do seu modelo de de-mocracia representativo-plebiscitária.

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Valerio de Oliveira Mazzuoli

1. IntroduçãoO estudo do Tribunal Penal Internacio-

nal (TPI) está intimamente ligado à própriahistória da humanidade e às inúmeras vio-lações de direitos humanos ocorridas noperíodo sombrio do Holocausto, que foi ogrande marco de desrespeito e ruptura paracom a dignidade da pessoa humana, em vir-tude das barbáries e das atrocidades come-tidas a milhares de pessoas (principalmen-te contra os judeus) durante a Segunda Guer-ra Mundial.

Portanto, qualquer análise que se queiraempreender em relação ao TPI deve ser pre-cedida de uma investigação (ainda que bre-ve) sobre as origens históricas da modernasistemática de proteção dos direitos huma-nos, nascida dos horrores da chamada “EraHitler”.

O Tribunal Penal InternacionalIntegração ao direito brasileiro e sua importância para ajustiça penal internacional

Valerio de Oliveira Mazzuoli é Mestre emDireito Internacional pela Faculdade de Direi-to da Universidade Estadual Paulista (UNESP).Professor de Direito Internacional Público eDireitos Humanos no Instituto de Ensino Jurí-dico Professor Luiz Flávio Gomes (IELF), emSão Paulo. Professor de Direito InternacionalPúblico e Direitos Humanos nas FaculdadesIntegradas Antônio Eufrásio de Toledo, emPresidente Prudente-SP. Advogado no Estadode São Paulo.

Sumário1. Introdução. 2. O “Estatuto de Roma” e a

criação do Tribunal Penal Internacional. 3.Competência material do Tribunal Penal In-ternacional. 3.1. Crime de genocídio. 3.2. Cri-mes contra a humanidade. 3.3. Crimes de guer-ra. 3.4. Crime de agressão. 4. O Tribunal PenalInternacional e os (aparentes) conflitos com aConstituição brasileira de 1988. 4.1. A entregade nacionais ao Tribunal Penal Internacional.4.2. A pena de prisão perpétua. 4.3. A questãodas imunidades: o foro por prerrogativa defunção. 5. Considerações finais: perspectivaspara uma Justiça Penal Internacional.

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Esse período histórico, que ensangüen-tou a Europa entre 1939 a 1945, ficou mar-cado na consciência coletiva mundial pelofato de apresentar o ser humano como algodescartável e totalmente destituído de dig-nidade e direitos. A chamada “Era Hitler”,portanto, condicionava a titularidade dedireitos à condição de pertencer o indiví-duo a determinada raça, qual seja, a “raçapura” ariana. Atingia-se, com isso, de for-ma erga omnes, todas aquelas pessoas desti-tuídas da referida condição, passando asmesmas a se tornar (de fato e de direito) in-desejáveis, não encontrando outra saídasenão a própria morte nos campos de con-centração1.

O legado do Holocausto para a interna-cionalização dos direitos humanos consis-tiu na preocupação que gerou no mundopós-Segunda Guerra, acerca da falta quefazia uma arquitetura internacional de pro-teção de direitos, com vistas a impedir queatrocidades daquela monta viessem a ocor-rer novamente no planeta. Daí por que operíodo pós-guerra significou o resgate dacidadania mundial, ou a reconstrução dosdireitos humanos, baseada no princípio do“direito a ter direitos”, para se falar comoHannah Arendt2.

A partir desse momento, que represen-tou o início da humanização do Direito In-ternacional, é que são elaborados os gran-des tratados internacionais de proteção dosdireitos humanos, que deram causa ao nas-cimento da moderna arquitetura internaci-onal de proteção dos direitos humanos. Seudesenvolvimento pode ser atribuído àsmonstruosas violações de direitos humanosda Segunda Guerra, bem como à crença deque parte dessas violações poderiam serevitadas se um efetivo sistema de proteçãointernacional desses direitos existisse.

Como respostas às atrocidades cometi-das pelos nazistas no Holocausto, cria-se,por meio do Acordo de Londres (1945/46),o famoso Tribunal de Nuremberg, que sig-nificou um poderoso impulso ao movimen-to de internacionalização dos direitos hu-

manos. Esse Tribunal surgiu, como umagrande reação à violência do Holocausto,para processar e julgar os maiores acusa-dos de colaboração para com o regime na-zista.

O art. 6o do Acordo de Londres (Nurem-berg) tipificou os crimes de competência doTribunal, a saber:

a) crimes contra a paz – planejar, preparar,incitar ou contribuir para a guerra, ou parti-cipar de um plano comum ou conspiraçãopara a guerra.

b) crimes de guerra – violação ao direitocostumeiro de guerra, tais como assassina-to, tratamento cruel, deportação de popula-ção civil que esteja ou não em territórios ocu-pados, para trabalho escravo ou para qual-quer outro propósito, assassinato cruel deprisioneiro de guerra ou de pessoas em alto-mar, assassinato de reféns, saques a propri-edades públicas ou privadas, destruição decidades ou vilas, ou devastação injustifica-da por ordem militar.

c) crimes contra a humanidade – assassina-to, extermínio, escravidão, deportação ououtro ato desumano contra a população ci-vil antes ou durante a guerra, ou persegui-ções baseadas em critérios raciais, políticose religiosos, independentemente se em vio-lação ou não do direito doméstico do paísem que foi perpetrado.

No seu art. 7o, o Estatuto do Tribunal deNuremberg deixou assente que a posiçãooficial dos acusados, como os Chefes de Es-tado ou funcionários responsáveis em de-partamentos governamentais, não os livra-ria e nem os mitigaria de responsabilidade.O art. 8o do mesmo Estatuto, por seu turno,procurou deixar claro que o fato de “um acu-sado ter agido por ordem de seu governo oude um superior” não o livraria de responsa-bilidade, o que reforça a concepção de queos indivíduos também são passíveis de res-ponsabilização no âmbito internacional3.

Destaca-se também, como decorrênciados atentados hediondos praticados contraa dignidade do ser humano durante a Se-gunda Guerra, a criação do Tribunal Mili-

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tar Internacional de Tóquio, instituído parajulgar os crimes de guerra e crimes contra ahumanidade, perpetrados pelas antigasautoridades políticas e militares do Japãoimperial. Já mais recentemente, por delibe-ração do Conselho de Segurança das Na-ções Unidas, com a participação e voto fa-vorável do Brasil, também foram criadosoutros dois tribunais internacionais de ca-ráter temporário: um instituído para julgaras atrocidades praticadas no território daantiga Iugoslávia4 desde 1991 e outro parajulgar as inúmeras violações de direitos deidêntica gravidade perpetrados em Ruanda5.

Não obstante o entendimento da consci-ência coletiva mundial de que aqueles queperpetram atos bárbaros e monstruosos con-tra a dignidade humana devam ser puni-dos internacionalmente, os tribunais ad hocacima mencionados não passaram imunesa críticas, entre elas a de que tais tribunais(que têm caráter temporário e não-perma-nente) foram criados por resoluções do Con-selho de Segurança da ONU (sob o amparodo Capítulo VII da Carta das Nações Uni-das), e não por tratados internacionais mul-tilaterais, como foi o caso do Tribunal PenalInternacional, o que prejudica (pelo menosem parte) o estabelecimento concreto de umaJustiça Penal Internacional. Estabelecer tri-bunais ad hoc por meio de resoluções signi-fica torná-los órgãos subsidiários do Con-selho de Segurança da ONU, para cuja apro-vação não se requer mais do que nove votosde seus quinze membros, incluídos os cincopermanentes (art. 27, § 3o, da Carta das Na-ções Unidas). Esse era, aliás, um argumentoimportante, no caso da antiga Iugoslávia, afavor do modelo do Conselho de Seguran-ça, na medida em que o modelo de tratadoseria muito moroso ou incerto, podendo le-var anos para sua conclusão6.

Ainda que existam dúvidas acerca doalcance da Carta das Nações Unidas em re-lação à legitimação do Conselho de Segu-rança da ONU para a criação de instânciasjudiciárias internacionais, as atrocidades eos horrores cometidos são de tal ordem e de

tal dimensão que parece justificável chegar-se a esse tipo de exercício, ainda mais quan-do se têm como certas algumas contribui-ções desses tribunais para a teoria da res-ponsabilidade penal internacional dos in-divíduos, a exemplo do não-reconhecimen-to das imunidades de jurisdição para cri-mes definidos pelo Direito Internacional edo não-reconhecimento de ordens superio-res como excludente de responsabilidadeinternacional. Entretanto, a grande máculada Carta da ONU, nesse ponto, ainda é a deque jamais o Conselho de Segurança pode-rá criar tribunais com competência para jul-gar e punir eventuais crimes cometidos pornacionais dos seus Estados-membros comassento permanente.

Daí o motivo pelo qual avultava de im-portância a criação e o estabelecimento efe-tivo de uma corte penal internacional per-manente, universal e imparcial, instituídapara processar e julgar os acusados de co-meter os crimes mais graves que ultrajam aconsciência da humanidade e que constitu-em infrações ao próprio Direito Internacio-nal Público, a exemplo do genocídio, doscrimes contra a humanidade, dos crimes deguerra e do crime de agressão7.

O Direito Internacional Público positi-vo, na letra dos arts. 53 e 64 da Convençãode Viena sobre Direitos dos Tratados, de1969, adotou uma regra importantíssima, ado jus cogens, que talvez possa ter servido debase (antes de sua positivação em normaconvencional) para o julgamento do Tribu-nal de Nuremberg, segundo a qual há certostipos de crimes tão abruptos e hediondos queexistem independentemente de estarem regu-lados por norma jurídica positiva8.

A instituição de tribunais internacionaisé conseqüência da tendência jurisdicionali-zante do Direito Internacional contemporâ-neo. Neste momento em que se presencia afase da jurisdicionalização do direito dasgentes, a sociedade internacional fomenta acriação de tribunais internacionais de vari-ada natureza, para resolver questões dasmais diversas, apresentadas no contexto das

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relações internacionais. A partir daqui é quepode ser compreendido o anseio generali-zado pela criação de uma Justiça Penal In-ternacional, que dignifique e fortaleça a pro-teção internacional dos direitos humanosem plano global.

A sociedade internacional, contudo, tempretendido consagrar a responsabilidadepenal internacional desde o final da Primei-ra Guerra Mundial, quando o Tratado deVersalhes clamou, sem sucesso, pelo julga-mento do ex-Kaiser Guilherme II por ofensaà moralidade internacional e à autoridadedos tratados, bem como quando o Tratadode Sèvres, jamais ratificado, pretendeu res-ponsabilizar o Governo Otomano pelo mas-sacre dos armênios. Não obstante algumascríticas formuladas em relação às razões detais pretensões, no sentido de que as mes-mas não seriam imparciais ou universais,posto que fundadas no princípio segundo oqual somente o vencido pode ser julgado,bem como de que estaria sendo desrespeita-do o princípio da não-seletividade na con-dução de julgamentos internacionais, o fatoconcreto é que tais critérios foram sim utili-zados, de maneira preliminar, pelo Acordode Londres e pelo Control Council Law no 10(instrumento da Cúpula dos Aliados), aoestabelecerem o Tribunal de Nuremberg,bem como pelo Tribunal Militar Internacio-nal de Tóquio, instituído para julgar as vio-lências cometidas pelas autoridades políti-cas e militares japonesas, já no período dopós-Segunda Guerra9.

Todas essas tensões internacionais, ad-vindas desde a Primeira Guerra Mundial,tornavam, portanto, ainda mais premente acriação de uma Justiça Penal Internacionalde caráter permanente, notadamente após acelebração da Convenção para a Prevençãoe a Repressão do Crime de Genocídio, de1948, das quatro Convenções de Genebrasobre o Direito Humanitário, de 1949, e deseus dois Protocolos Adicionais, de 1977,da Convenção sobre a Imprescritibilidadedos Crimes de Guerra e dos Crimes de Lesa-Humanidade, de 1968, e dos Princípios de

Cooperação Internacional para Identifica-ção, Detenção, Extradição e Castigo dosCulpáveis de Crimes de Guerra ou de Cri-mes de Lesa-Humanidade, de 1973.

A criação de um tribunal penal interna-cional instituído para julgar as violações dedireitos humanos presentes no planeta foitambém reafirmada pelo parágrafo 92 daDeclaração e Programa de Ação de Viena,de 1993, nestes termos: “A ConferênciaMundial sobre Direitos Humanos recomen-da que a Comissão de Direitos Humanosexamine a possibilidade de melhorar a apli-cação de instrumentos de direitos humanosexistentes em níveis internacional e regio-nal e encoraja a Comissão de Direito Inter-nacional a continuar seus trabalhos visan-do ao estabelecimento de um tribunal penalinternacional”.

Como resposta a esse antigo anseio dasociedade internacional, no sentido de es-tabelecer uma corte criminal internacionalde caráter permanente, nasce o TribunalPenal Internacional, pelo Estatuto de Romade 1998, que é a primeira instituição perma-nente de justiça penal internacional e tem,entre outras vantagens, a de evitar que so-mente os vencidos ou os menos poderosossejam julgados e condenados, garantindo-se, assim, uma maior imparcialidade ao jul-gamento10.

2. O “Estatuto de Roma“ e a criação doTribunal Penal Internacional

Aprovado em julho de 1998, em Roma,na Conferência Diplomática de Plenipoten-ciários das Nações Unidas, o Estatuto deRoma do Tribunal Penal Internacional tevepor finalidade constituir um tribunal inter-nacional com jurisdição criminal perma-nente, dotado de personalidade jurídica pró-pria, com sede na Haia, na Holanda11. Foiaprovado por 120 Estados, contra apenas 7votos contrários – China, Estados Unidos,Iêmen, Iraque, Israel, Líbia e Quatar – e 21abstenções12. Não obstante a sua posiçãooriginal, os Estados Unidos e Israel, levan-

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do em conta a má repercussão internacio-nal ocasionada pelos votos em contrário,acabaram assinando o Estatuto em 31 dedezembro de 200013. Todavia, a ratificaçãodo Estatuto, por essas mesmas potências,tornou-se praticamente fora de cogitaçãoapós os atentados terroristas de 11 de se-tembro de 2001 em Nova York e Washing-ton, bem como após as operações de guerrasubseqüentes no Afeganistão e Palestina,em flagrante violação à normativa interna-cional. Assim foi que, em 6 de maio de 2002e em 28 de agosto do mesmo ano, EstadosUnidos e Israel, respectivamente, notifica-ram o Secretário-Geral das Nações Unidasde que não tinham a intenção de tornarem-se partes no respectivo tratado14.

O Estatuto do TPI entrou em vigor inter-nacional em 1o de julho de 2002, correspon-dente ao primeiro dia do mês seguinte aotermo do período de 60 dias após a data dodepósito do sexagésimo instrumento de ra-tificação, de aceitação, de aprovação ou deadesão junto do Secretário-Geral das NaçõesUnidas, nos termos do seu art. 126, § 1o.

O corpo diplomático brasileiro, que jáparticipava, mesmo antes da Conferência deRoma de 1998, de uma Comissão Prepara-tória para o estabelecimento de um Tribu-nal Penal Internacional, teve destacada atu-ação em todo o processo de criação desteTribunal. E isso foi devido, em grande par-te, ao mandamento do art. 7o do Ato das Dis-posições Constitucionais Transitórias, daConstituição brasileira de 1988, que assimpreceitua: “O Brasil propugnará pela for-mação de um tribunal internacional dos di-reitos humanos”.

Em 7 de fevereiro de 2000, o governo bra-sileiro assinou o tratado internacional refe-rente ao Estatuto de Roma do Tribunal Pe-nal Internacional15, tendo sido o mesmo pos-teriormente aprovado pelo Parlamento bra-sileiro por meio do Decreto Legislativo no

112, de 06.06.2002, e promulgado pelo De-creto no 4.388, de 25.09.200216. O depósitoda carta de ratificação brasileira foi feito em20.06.2002, momento a partir do qual o Bra-

sil já se tornou parte no respectivo tratado.A partir desse momento, por força da nor-ma do art. 5o, § 2o, da Constituição brasileirade 1988 (verbis: “Os direitos e garantias ex-pressos nesta Constituição não excluemoutros decorrentes do regime e dos princí-pios por ela adotados, ou dos tratados in-ternacionais em que a República Federativado Brasil seja parte”), o Estatuto de Romado Tribunal Penal Internacional integrou-se ao direito brasileiro com status de normaconstitucional, não podendo quaisquer dosdireitos e garantias nele constantes seremabolidos por qualquer meio no Brasil, in-clusive por emenda constitucional17.

O Tribunal Penal Internacional, que temcompetência subsidiária em relação às ju-risdições nacionais, é composto por um to-tal de 128 artigos com um preâmbulo e trezepartes (capítulos), quais sejam: I – criaçãodo Tribunal; II – competência, admissibili-dade e direito aplicável; III – princípios ge-rais de direito penal; IV – composição e ad-ministração do Tribunal; V – inquérito e pro-cedimento criminal; VI – o julgamento; VII –as penas; VIII – recurso e revisão; IX – coo-peração internacional e auxílio judiciário;X – execução da pena; XI – Assembléia dosEstados-partes; XII – financiamento; e XIII –cláusulas finais.

O preâmbulo do Estatuto proclama a de-terminação dos Estados em criar um Tribu-nal Penal Internacional, com caráter perma-nente e independente, complementar dasjurisdições penais nacionais18, que exerçacompetência sobre os indivíduos, no querespeita àqueles crimes de extrema gravida-de que afetam a comunidade internacionalcomo um todo. O “regime de consentimen-to” proposto pela França e a proposta dejurisdição universal e direta do Tribunal,defendida bravamente pela Alemanha, nãoencontraram respaldo durante os trabalhosda Conferência Diplomática em Roma, ten-do sido a partir da proposta intermediáriada Coréia do Sul que se conseguiu chegar àelaboração do sistema de jurisdição restritae complementar do Tribunal.19

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Os crimes referidos pelo preâmbulo doEstatuto de Roma são imprescritíveis e po-dem ser catalogados em quatro categorias:crime de genocídio, crimes contra a huma-nidade, crimes de guerra e crime de agres-são. O Tribunal somente tem competênciarelativamente aos crimes cometidos após asua instituição, ou seja, depois de 1o de ju-lho de 2002, data em que o seu Estatuto en-trou em vigor internacional (art. 11, § 1o).Ainda assim, nos termos do art. 11, § 2o, doEstatuto de Roma, caso um Estado se torneparte do Estatuto depois da sua entrada emvigor, o Tribunal somente poderá exercer suacompetência para o processo e julgamentodos crimes cometidos depois da entrada emvigor do Estatuto nesse Estado, a menos queeste tenha feito uma declaração específicaem sentido contrário, nos termos do § 3o doart. 12 do mesmo Estatuto, segundo o qual:

“Se a aceitação da competência doTribunal por um Estado que não sejaParte no presente Estatuto for neces-sária nos termos do parágrafo 2o, podeo referido Estado, mediante declara-ção depositada junto do Secretário,consentir em que o Tribunal exerça asua competência em relação ao crimeem questão. O Estado que tiver aceitoa competência do Tribunal colabora-rá com este, sem qualquer demora ouexceção, de acordo com o disposto noCapítulo IX”.

A jurisdição do Tribunal não é estran-geira, mas sim internacional, podendo afe-tar todo e qualquer Estado-parte da Organi-zação das Nações Unidas. Ela também nãose confunde com a chamada jurisdição uni-versal, que consiste na possibilidade de ajurisdição interna de determinado Estadopoder julgar crimes de guerra ou crimes con-tra a humanidade cometidos em territóriosalheios, a exemplo dos casos de extraterri-torialidade admitidos pelo art. 7o, e seus in-cisos, do Código Penal brasileiro.

Segundo o Estatuto de Roma, o TribunalPenal Internacional é uma pessoa jurídicade Direito Internacional com capacidade

necessária para o desempenho de suas fun-ções e de seus objetivos. O Tribunal poderáexercer os seus poderes e funções nos ter-mos do seu Estatuto, no território de qual-quer Estado-parte e, por acordo especial, noterritório de qualquer outro Estado (art. 4o,§§ 1o e 2o). Sua jurisdição, obviamente, inci-dirá apenas em casos raros, quando as me-didas internas dos países se mostrarem in-suficientes ou omissas no que respeita aoprocesso e julgamento dos acusados, bemcomo quando desrespeitarem as legislaçõespenal e processual internas.

O Tribunal será inicialmente compostopor dezoito juízes, número que poderá seraumentado por proposta de sua Presidên-cia, que fundamentará as razões pelas quaisconsidera necessária e apropriada tal me-dida. A proposta será seguidamente apreci-ada em sessão da Assembléia dos Estados-partes e deverá ser considerada adotada sefor aprovada na sessão, por maioria de doisterços dos membros da Assembléia dos Es-tados-partes, entrando em vigor na data fi-xada pela mesma Assembléia (cf. art. 36, §§1o e 2o).

Os juízes serão eleitos entre pessoas deelevada idoneidade moral, imparcialidadee integridade, que reúnam os requisitos parao exercício das mais altas funções judiciaisnos seus respectivos países. No caso brasi-leiro, portanto, a candidatura para uma vagade juiz no TPI exige que a pessoa reúna ascondições necessárias para o exercício docargo de Ministro do Supremo Tribunal Fe-deral, inclusive a relativa à idade mínimade 35 e máxima de 65 anos, além do notávelsaber jurídico e da reputação ilibada (CF,art. 101)20.

Os referidos juízes serão eleitos por ummandato máximo de nove anos e não pode-rão ser reeleitos. Na primeira eleição, umterço dos juízes eleitos será selecionado porsorteio para exercer um mandato de trêsanos; outro terço será selecionado, tambémpor sorteio, para exercer um mandato de seisanos; e os restantes exercerão um mandatode nove anos. Um juiz selecionado para exer-

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cer um mandato de três anos poderá, contu-do, ser reeleito para um mandato completo(art. 36, § 9o, alínea c).

O Tribunal é composto pelos seguintesórgãos, nos termos do art. 34 do Estatuto: a)a Presidência (responsável pela administra-ção da Corte); b) uma Seção de Recursos,uma Seção de Julgamento em Primeira Ins-tância e uma Seção de Instrução; c) o Gabi-nete do Promotor (chamado pelo Estatutode “Procurador”, constituindo-se em órgãoautônomo do Tribunal); e d) a Secretaria(competente para assuntos não judiciais daadministração do Tribunal).

No que tange à composição do Tribunal,merece destaque a figura do Promotor. Esteserá eleito por escrutínio secreto e por maio-ria absoluta de votos dos membros da As-sembléia dos Estados-partes, para um man-dato de nove anos, sendo vedada a reelei-ção. O Gabinete do Promotor atuará de for-ma independente, enquanto órgão autôno-mo do Tribunal, cabendo-lhe recolher comu-nicações e quaisquer outros tipos de infor-mações, devidamente fundamentadas, so-bre crimes da competência do Tribunal, afim de as examinar e investigar e de exercera ação penal junto ao Tribunal (art. 42, § 1o).Da mesma forma que os juízes, o Promotorcumprirá suas funções com plena liberda-de de consciência e imparcialidade.

Os Estados-partes deverão, em confor-midade com o disposto no Estatuto, coope-rar plenamente com o Tribunal no inquéritoe no procedimento contra crimes da compe-tência deste. O Tribunal estará habilitado adirigir pedidos de cooperação aos Estados-partes. Esses pedidos serão transmitidospela via diplomática ou por qualquer outravia apropriada escolhida pelo Estado-parteno momento da ratificação, aceitação, apro-vação ou adesão ao Estatuto (arts. 86 e 87, §1o).

É interessante notar que, nos termos doart. 88 do Estatuto, os Estados-partes deve-rão assegurar-se de que o seu direito inter-no prevê procedimentos que permitam res-ponder a todas as formas de cooperação es-

pecificadas no Capítulo IX do Estatuto (re-lativo à cooperação internacional e auxíliojudiciário).

Outro ponto importante a ser destacadodiz respeito às questões relativas à admissi-bilidade de um caso perante o Tribunal. Nostermos do art. 17 do Estatuto, o Tribunalpoderá decidir sobre a não-admissibilida-de de um caso se: a) o caso for objeto de in-quérito ou de procedimento criminal porparte de um Estado que tenha jurisdiçãosobre o mesmo, salvo se este não tiver von-tade de levar a cabo o inquérito ou o proce-dimento ou não tenha capacidade para ofazer; b) o caso tiver sido objeto de inquéritopor um Estado com jurisdição sobre ele e talEstado tenha decidido não dar seguimentoao procedimento criminal contra a pessoaem causa, a menos que esta decisão resultedo fato de esse Estado não ter vontade deproceder criminalmente ou da sua incapa-cidade real para o fazer; c) a pessoa em cau-sa já tiver sido julgada pela conduta a quese refere a denúncia e não puder ser julgadapelo Tribunal em virtude do disposto no §3o do art. 20; ou d) o caso não for suficiente-mente grave para justificar a ulterior inter-venção do Tribunal.

Nos termos do § 2o do mesmo art. 17, afim de determinar se há ou não vontade deagir num determinado caso, o Tribunal, ten-do em consideração as garantias de um pro-cesso eqüitativo reconhecidas pelo DireitoInternacional, verificará a existência de umaou mais das seguintes circunstâncias: a) oprocesso ter sido instaurado ou estar pen-dente ou a decisão ter sido proferida no Es-tado com o propósito de subtrair a pessoaem causa à sua responsabilidade criminalpor crimes da competência do Tribunal, nostermos do disposto no art. 5o; b) ter havidodemora injustificada no processamento, aqual, dadas as circunstâncias, se mostraincompatível com a intenção de fazer res-ponder a pessoa em causa perante a justiça;ou c) o processo não ter sido ou não estarsendo conduzido de maneira independen-te ou imparcial, e ter estado ou estar sendo

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conduzido de uma maneira que, dadas ascircunstâncias, seja incompatível com a in-tenção de levar a pessoa em causa perante ajustiça.

Além do mais, a fim de determinar se háincapacidade de agir num determinadocaso, o Tribunal verificará se o Estado, porcolapso total ou substancial da respectivaadministração da justiça ou por indisponi-bilidade desta, não está em condições defazer comparecer o acusado, de reunir osmeios de prova e depoimentos necessáriosou não está, por outros motivos, em condi-ções de concluir o processo (art. 17, § 3o).

O Estatuto atribui ao Conselho de Segu-rança da ONU a faculdade de solicitar aoTribunal, por meio de resolução aprovadanos termos do disposto no Capítulo VII daCarta das Nações Unidas, que não seja ini-ciado ou que seja suspenso o inquérito ouprocedimento crime que tiver sido iniciado.

Nos termos do art. 16 do Estatuto, ne-nhum inquérito ou procedimento crime po-derá ter início ou prosseguir os seus termospor um período de doze meses a contar dadata em que o Conselho de Segurança as-sim o tiver solicitado em resolução aprova-da nos termos do disposto no Capítulo VIIda Carta das Nações Unidas. O pedido po-derá ser renovado pelo Conselho de Segu-rança nas mesmas condições, ficando o Tri-bunal impedido de iniciar o inquérito ou dedar andamento ao procedimento já inicia-do.

As despesas do Tribunal e da Assem-bléia dos Estados-partes, incluindo a suaMesa e os seus órgãos subsidiários, inscri-tas no orçamento aprovado pela Assem-bléia, serão financiadas: a) pelas quotas dosEstados-partes; e b) pelos fundos proveni-entes da Organização das Nações Unidas,sujeitos à aprovação da Assembléia Geral,nomeadamente no que diz respeito às des-pesas relativas a questões remetidas para oTribunal pelo Conselho de Segurança (art.115).

O Estatuto veda expressamente a possi-bilidade de sua ratificação ou adesão com

reservas, nos termos do seu art. 120. Issoevita os eventuais conflitos de interpretaçãoexistentes, sobre quais reservas são e quaisnão são admitidas pelo direito internacio-nal, retirando dos países cépticos a possibi-lidade de escusa para o cumprimento desuas obrigações21. Caso fossem admitidasreservas ao Estatuto, países menos desejo-sos de cumprir os seus termos poderiampretender excluir (por meio de reserva) aentrega de seus nacionais ao Tribunal, ale-gando que tal ato violaria a proibição cons-titucional de extradição de nacionais22, nãoobstante o Estatuto ter distinguido a “entre-ga” da “extradição” no seu art. 102, alíneasa e b. O impedimento da ratificação com re-servas, portanto, é uma ferramenta eficazpara a perfeita atividade e funcionamentodo Tribunal.

Nos termos do art. 121 e parágrafos doEstatuto, depois de sete anos de sua entra-da em vigor, qualquer Estado-parte poderápropor-lhe alterações, submetendo o textodas propostas de alterações ao Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas,que convocará uma Conferência de Revisão,a fim de examinar as eventuais alteraçõesno texto. A adoção de uma alteração numareunião da Assembléia dos Estados-partesou numa Conferência de Revisão exigirá amaioria de dois terços dos Estados-partes,quando não for possível chegar a um con-senso. O Tribunal, contudo, não exercerá asua competência relativamente a um crimeabrangido pela alteração sempre que estetiver sido cometido por nacionais de umEstado-parte que não tenha aceitado a alte-ração ou cometido no território desse Esta-do-parte.

3. Competência material do TribunalPenal Internacional

O Tribunal Penal Internacional, como jáse noticiou, é competente para julgar, comcaráter permanente e independente, os cri-mes mais graves que afetam todo o conjuntoda sociedade internacional dos Estados e

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que ultrajam a consciência da humanida-de. Tais crimes, que não prescrevem, são osseguintes: crime de genocídio, crimes con-tra a humanidade, crimes de guerra e crimede agressão23. A competência do Tribunalem relação aos referidos crimes, deve-se fri-sar mais uma vez, só vigora em relação àque-las violações praticadas depois da entradaem vigor do Estatuto. Caso um Estado setorne parte no Estatuto depois de sua entra-da em vigor, o Tribunal Penal Internacionalsó poderá exercer a sua competência em re-lação aos crimes cometidos depois da en-trada em vigor do Estatuto nesse Estado.

3.1. Crime de genocídio

O crime de genocídio foi, sem sombra dedúvida, uma das principais preocupaçõesdo pós-Segunda Guerra, que levou à ado-ção, pela Resolução 260-A (III), da Assem-bléia Geral das Nações Unidas, da Conven-ção sobre a Prevenção e a Repressão do Cri-me de Genocídio, em 9 de dezembro de194824. Nos termos do art. 2o desta Conven-ção, entende-se por genocídio qualquer dosseguintes atos, cometidos com a intenção dedestruir, no todo ou em parte, um gruponacional, étnico, racial ou religioso, taiscomo: a) assassinato de membros do grupo;b) dano grave à integridade física ou mentalde membros do grupo; c) submissão intenci-onal do grupo a condições de existência quelhe ocasionem a destruição física total ouparcial; d) medidas destinadas a impedir osnascimentos no seio do grupo; e e) transfe-rência forçada de menores do grupo paraoutro grupo.

Nos termos da Convenção (art. 3o), serãopunidos os seguintes atos: a) o genocídio; b)o conluio para cometer o genocídio; c) a in-citação direta e pública a cometer o genocí-dio; d) a tentativa de genocídio; e e) a cum-plicidade no genocídio.

Nos termos de seu art. 5o, as partes con-tratantes da Convenção assumem o compro-misso de tomar, de acordo com as respecti-vas Constituições, as medidas legislativasnecessárias a assegurar a aplicação de suas

disposições e, sobretudo, a estabelecer sançõespenais eficazes aplicáveis às pessoas culpa-das de genocídio ou de qualquer dos outrosatos enumerados no art. 3o.

O seu art. 6o, é interessante observar, jápropugnava pela criação de uma corte in-ternacional criminal, nestes termos:

“As pessoas acusadas de genocí-dio ou de qualquer dos outros atosenumerados no art. 3o serão julgadaspelos tribunais competentes do Esta-do em cujo território foi o ato cometi-do ou pela corte penal internacional com-petente com relação às Partes Contra-tantes que lhe tiverem reconhecido ajurisdição” (grifo nosso).

De lá para cá, afirmou-se, cada vez mais,no seio da sociedade internacional, o cará-ter de norma costumeira do crime de genocí-dio, posição também consolidada na CorteInternacional de Justiça, na Opinião Con-sultiva emitida em 28 de maio de 1951, so-bre as “Reservas à Convenção para a Pre-venção e a Repressão do Crime de Genocí-dio”, em que tal ilícito foi reconhecido comosendo um “crime do direito internacional”25.

O Estatuto de Roma do Tribunal PenalInternacional, acompanhando essa evolu-ção do direito internacional dos direitoshumanos e do direito humanitário, definiuo crime de genocídio no seu art. 6o. Para osefeitos do Estatuto de Roma, entende-se por“genocídio” qualquer um dos atos a seguirenumerados, praticado com intenção dedestruir, no todo ou em parte, um gruponacional, étnico, racial ou religioso, enquan-to tal, a saber: a) homicídio de membros dogrupo; b) ofensas graves à integridade físicaou mental de membros do grupo; c) sujeiçãointencional do grupo a condições de vidacom vista a provocar a sua destruição físi-ca, total ou parcial; d) imposição de medi-das destinadas a impedir nascimentos noseio do grupo; e e) transferência, à força, decrianças do grupo para outro grupo.

A consagração do crime de genocídio,pelo Estatuto de Roma, é bom que se frise,deu-se a exatos cinqüenta anos da procla-

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mação, pelas Nações Unidas, da Conven-ção sobre a Prevenção e a Repressão do Cri-me de Genocídio. Trata-se, portanto, de umdos maiores e mais importantes presentesjá entregues à humanidade, pelo cinqüente-nário da Convenção de 1948.

3.2. Crimes contra a humanidade

Os crimes contra a humanidade têm suaorigem histórica no massacre provocadopelos turcos contra os armênios, na Primei-ra Guerra Mundial, qualificado pela Decla-ração do Império Otomano (feita pelos go-vernos russo, francês e britânico, em maio de1915, em Petrogrado) como um crime da Tur-quia contra a humanidade e a civilização.

Nos termos do art. 7o, § 1o, do Estatuto deRoma, entende-se por “crime contra a hu-manidade” (crime against humanity) qual-quer um dos atos seguintes, quando cometi-dos no quadro de um ataque, generalizadoou sistemático, contra qualquer populaçãocivil, havendo conhecimento desse ataque,a saber: a) homicídio; b) extermínio; c) escra-vidão; d) deportação ou transferência força-da de uma população; e) prisão ou outra for-ma de privação da liberdade física grave,em violação das normas fundamentais dedireito internacional; f) tortura; g) agressãosexual, escravatura sexual, prostituição for-çada, gravidez forçada, esterilização força-da ou qualquer outra forma de violência nocampo sexual de gravidade comparável; h)perseguição de um grupo ou coletividadeque possa ser identificado, por motivos po-líticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais,religiosos ou de gênero, ou em função deoutros critérios universalmente reconheci-dos como inaceitáveis no direito internacio-nal, relacionados com qualquer ato referidoneste mesmo parágrafo ou com qualquercrime da competência do Tribunal; i) desa-parecimento forçado de pessoas; j) crime deapartheid; e ainda k) outros atos desumanosde caráter semelhante, que causem intenci-onalmente grande sofrimento, ou afetemgravemente a integridade física ou a saúdefísica ou mental26.

O § 2o do mesmo art. 7o explica os signi-ficados de cada um dos termos inseridos no§ 1o. Por “ataque contra uma população ci-vil” entende-se qualquer conduta que en-volva a prática múltipla de atos contra umapopulação civil, de acordo com a política deum Estado ou de uma organização de prati-car esses atos ou tendo em vista a prossecu-ção dessa política.

O “extermínio” compreende a sujeiçãointencional a condições de vida tais como aprivação do acesso a alimentos ou medica-mentos com vista a causar a destruição deuma parte da população.

Por “escravidão” entende-se o exercício,relativamente a uma pessoa, de um poderou de um conjunto de poderes que tradu-zam um direito de propriedade sobre umapessoa, incluindo o exercício desse poderno âmbito do tráfico de pessoas, em particu-lar mulheres e crianças.

A “deportação ou transferência à forçade uma população” é entendida como o des-locamento forçado de pessoas, por expul-são ou outro ato coercivo, da zona em que seencontram legalmente, sem qualquer moti-vo reconhecido no direito internacional.

Por “tortura” entende-se o ato por meiodo qual uma dor ou sofrimentos agudos, fí-sicos ou mentais, são intencionalmente cau-sados a uma pessoa que esteja sob a custó-dia ou o controle do acusado. Esse termo,entretanto, não compreende a dor ou os so-frimentos resultantes unicamente de san-ções legais, inerentes a essas sanções ou porelas ocasionadas.

Por “gravidez à força” entende-se a pri-vação ilegal de liberdade de uma mulher quefoi engravidada à força, com o propósito dealterar a composição étnica de uma popula-ção ou de cometer outras violações gravesdo direito internacional. Mas essa definiçãonão pode, de modo algum, ser interpretadacomo afetando as disposições do direito in-terno relativas à gravidez.

A “perseguição” é entendida como a pri-vação intencional e grave de direitos funda-mentais em violação do direito internacio-

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nal, por motivos relacionados com a identi-dade do grupo ou da coletividade em causa.

Por “crime de apartheid” entende-se qual-quer ato desumano praticado no contextode um regime institucionalizado de opres-são e domínio sistemático de um grupo ra-cial sobre um ou outros grupos nacionais ecom a intenção de manter esse regime.

Por fim, por “desaparecimento forçadode pessoas” entende-se a detenção, a prisãoou o seqüestro de pessoas por um Estado ouuma organização política ou com a autori-zação, o apoio ou a concordância destes,seguidos de recusa a reconhecer tal estadode privação de liberdade ou a prestar qual-quer informação sobre a situação ou locali-zação dessas pessoas, com o propósito delhes negar a proteção da lei por um prolon-gado período de tempo.

O § 3o do art. 7o deixa claro que, paraefeitos do Estatuto, entende-se que o termo“gênero” abrange os sexos masculino e fe-minino, dentro do contexto da sociedade,não lhe devendo ser atribuído qualquer ou-tro significado.

3.3. Crimes de guerra

Os crimes de guerra, também conheci-dos como “crimes contra as leis e costumesaplicáveis em conflitos armados”, são frutode uma longa evolução do direito internaci-onal humanitário, desde o século passado,tendo sido impulsionado pelo Comitê Inter-nacional da Cruz Vermelha, ganhando fo-ros de juridicidade com as quatro Conven-ções de Genebra, de 12 de agosto de 1949, ecom as bases teóricas do direito costumeirode guerra27.

Dos crimes de guerra cuida o art. 8o doEstatuto de Roma. Segundo o § 1o desse dis-positivo, o Tribunal terá competência parajulgar os crimes de guerra, em particularquando cometidos como parte integrante deum plano ou de uma política ou como partede uma prática em larga escala desse tipode crime.

Nos termos do longo § 2o do mesmo arti-go, são exemplos de crimes de guerra, entre

outros, as violações graves às Convençõesde Genebra, de 12 de agosto de 1949, a exem-plo de qualquer um dos seguintes atos, diri-gidos contra pessoas ou bens protegidos nostermos da Convenção de Genebra que forpertinente, a saber: a) homicídio doloso; b)tortura ou outros tratamentos desumanos,incluindo as experiências biológicas; c) o atode causar intencionalmente grande sofri-mento ou ofensas graves à integridade físi-ca ou à saúde; d) destruição ou apropriaçãode bens em larga escala, quando não justifi-cadas por quaisquer necessidades militarese executadas de forma ilegal e arbitrária; e) oato de compelir um prisioneiro de guerra ououtra pessoa sob proteção a servir nas for-ças armadas de uma potência inimiga; f)privação intencional de um prisioneiro deguerra ou de outra pessoa sob proteção doseu direito a um julgamento justo e imparci-al; g) deportação ou transferência ilegais, oua privação ilegal de liberdade; e h) tomadade reféns.

São também exemplos de crimes de guer-ra, nos termos do Estatuto, outras violaçõesgraves das leis e costumes aplicáveis emconflitos armados internacionais no âmbi-to do Direito Internacional, a exemplo dosseguintes atos: a) dirigir intencionalmenteataques à população civil em geral ou civisque não participem diretamente nas hostili-dades; b) dirigir intencionalmente ataquesa bens civis, ou seja, bens que não sejamobjetivos militares; c) dirigir intencional-mente ataques ao pessoal, instalações, ma-terial, unidades ou veículos que participemnuma missão de manutenção da paz ou deassistência humanitária, de acordo com aCarta das Nações Unidas, sempre que estestenham direito à proteção conferida aos ci-vis ou aos bens civis pelo direito internacio-nal aplicável aos conflitos armados; d) lan-çar intencionalmente um ataque, sabendoque o mesmo causará perdas acidentais devidas humanas ou ferimentos na popula-ção civil, danos em bens de caráter civil ouprejuízos extensos, duradouros e graves nomeio ambiente que se revelem claramente

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excessivos em relação à vantagem militarglobal concreta e direta que se previa; e) ata-car ou bombardear, por qualquer meio, ci-dades, vilarejos, habitações ou edifícios quenão estejam defendidos e que não sejam ob-jetivos militares; f) matar ou ferir um comba-tente que tenha deposto armas ou que, nãotendo mais meios para se defender, se tenhaincondicionalmente rendido; g) submeterpessoas que se encontrem sob o domínio deuma parte beligerante a mutilações físicasou a qualquer tipo de experiências médicasou científicas que não sejam motivadas porum tratamento médico, dentário ou hospi-talar, nem sejam efetuadas no interesse des-sas pessoas, e que causem a morte ou colo-quem seriamente em perigo a sua saúde; h)matar ou ferir à traição pessoas pertencen-tes à nação ou ao exército inimigo etc.

O Estatuto de Roma também traz váriasnovidades no campo dos crimes de guerra,como, por exemplo, ao incluir, no rol doscrimes dessa espécie, os conflitos armadosnão internacionais, que são a maioria dosconflitos existentes na atualidade, a exem-plo daqueles ocorridos na Ex-Iugoslávia eem Ruanda, que representaram uma sériaameaça à segurança e à paz internacionais.Isso não se confunde, entretanto, com as si-tuações de distúrbio e de tensão internas,tais como motins, atos de violência esporá-dicos ou isolados ou outros de caráter se-melhante (art. 8o, § 2o, alíneas d e f).

Enfim, esse rol exemplificativo dos cri-mes de guerra previstos pelo Estatuto deRoma já basta para justificar a criação deuma corte penal internacional de caráterpermanente, com competência para proces-sar e julgar os maiores responsáveis pelaviolação do direito internacional humani-tário.

3.4. Crimes de agressão

O crime de agressão sempre causou po-lêmica na doutrina, desde as primeiras ques-tões envolvendo a licitude ou ilicitude daguerra, sabendo-se que, no plano internaci-onal, a guerra foi declarada um meio ilícito

de solução de controvérsias internacionais(art. 2o, § 4o, da Carta das Nações Unidas),mas já anteriormente afirmado pelo Pactode Renúncia à Guerra de 1928 (Pacto Bri-and-Kellog), que assim dispõe no seu art. 1o:

“As Altas Partes Contratantes de-claram, solenemente, em nome de seusrespectivos povos, que condenam orecurso à guerra para a solução dascontrovérsias internacionais, e a issorenunciam, como instrumento de po-lítica nacional, em suas relações recí-procas”.

Como acertadamente leciona Tarciso DalMaso Jardim (2000, p. 28), a discussão

“da abrangência de recorrer à amea-ça e ao uso da força, estabelecida peloreferido artigo, rendeu várias corren-tes doutrinárias, como a do direito deingerência por razões humanitárias.A confusão se dá porque essa absten-ção deve ser, segundo o art. 2o, § 4o [daCarta da ONU], contra a integridadeterritorial ou a independência políti-ca de um Estado ou outro modo in-compatível com os objetivos das Na-ções Unidas”.

A não-existência de uma definição pre-cisa de agressão, suficientemente abrangen-te para servir como elemento constitutivo do“crime de agressão” e, conseqüentemente,para fundamentar a responsabilidade pe-nal internacional dos indivíduos, dificultou,portanto, a inclusão dessa espécie de crimeno Estatuto de Roma de 1998.

Por esses e outros motivos igualmenterelevantes foi que, dos quatro crimes incluí-dos na competência do TPI, a definição docrime de agressão foi propositadamente re-legada a uma etapa posterior, nos termosdo art. 5o, § 2o (c/c os arts. 121 e 123), doEstatuto, segundo o qual o Tribunal poderáexercer a sua competência em relação ao cri-me de agressão desde que seja aprovadauma disposição em que se defina o crime ese enunciem as condições em que o Tribu-nal terá competência relativamente a tal cri-me. Essa nova disposição poderá ser por

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emenda (art. 121) ou por revisão (art. 123),pois durante a Conferência de Roma nãohouve consenso sobre a tipificação dessaespécie de ilícito internacional. O Estatutoesclarece ainda que tal disposição deve sercompatível com as disposições pertinentesda Carta das Nações Unidas.

A tipificação jurídica do crime de agres-são será resultado dos trabalhos da Comis-são Preparatória do TPI (PrepCom), que estáentabulando negociações no sentido de sechegar a um consenso sobre os elementosconstitutivos de tal crime internacional.

Como leciona Fábio Konder Comparato(2003, p. 453), a idéia

“de qualificar os atos de agressão bé-lica como crimes contra a paz inter-nacional surgiu, pela primeira vez, naConferência de Versalhes, de 1919,que criou a Sociedade das Nações. Oart. 227 do tratado então assinado ins-tituiu um tribunal especial incumbi-do de julgar o ex-Kaiser Guilherme II,‘culpado de ofensa suprema à moralinternacional e à autoridade dos tra-tados’. Sucede que a Holanda, país noqual se asilou o antigo monarca, recu-sou-se a extraditá-lo, alegando a suaimunidade internacional de Chefe deEstado, à época em que praticou osatos de que era acusado”28.

Esse entendimento manifestado à épo-ca, relativo à imunidade de jurisdição doschefes de Estado, como veremos mais à fren-te, foi hoje abolido pela regra do art. 27, §§ 1o

e 2o, do Estatuto de Roma de 1998, que não oadmite em quaisquer hipóteses.

4. O Tribunal Penal Internacional e os(aparentes) conflitos com a Constituição

brasileira de 1988

Uma das principais virtudes do Estatu-to de Roma reside na consagração do prin-cípio segundo o qual a responsabilidadepenal por atos violadores do Direito Inter-nacional deve recair sobre os indivíduos queos perpetraram, deixando de ter efeito as

eventuais imunidades e privilégios ou mes-mo a posição ou os cargos oficiais que osmesmos porventura ostentem29.

Nos termos do art. 25, e parágrafos, doEstatuto, o Tribunal tem competência parajulgar e punir pessoas físicas, sendo conside-rado individualmente responsável quemcometer um crime da competência do Tribu-nal. Nos termos do Estatuto, será conside-rado criminalmente responsável e poderáser punido pela prática de um crime da com-petência do Tribunal quem: a) cometer essecrime individualmente ou em conjunto oupor intermédio de outrem, quer essa pessoaseja, ou não, criminalmente responsável; b)ordenar, solicitar ou instigar a prática des-se crime, sob forma consumada ou sob a for-ma de tentativa; c) com o propósito de facili-tar a prática desse crime, for cúmplice ouencobridor, ou colaborar de algum modo naprática ou na tentativa de prática do crime,nomeadamente pelo fornecimento dos mei-os para a sua prática; e d) contribuir de al-guma outra forma para a prática ou tentati-va de prática do crime por um grupo de pes-soas que tenha um objetivo comum.

O Estatuto de Roma repete a conquistado Estatuto do Tribunal de Nuremberg emrelação aos cargos oficiais daqueles que pra-ticaram crimes contra o Direito Internacio-nal. Nos termos do art. 27, §§ 1o e 2o, do Esta-tuto de Roma, a competência do Tribunalaplica-se de forma igual a todas as pessoas,sem distinção alguma baseada na sua qua-lidade oficial30. Em particular, a qualidadeoficial de Chefe de Estado ou de Governo,de membro de Governo ou do Parlamento,de representante eleito ou de funcionáriopúblico em caso algum poderá eximir a pes-soa em causa de responsabilidade criminalnos termos do Estatuto nem constituirá deper se motivo para a redução da pena. Dizainda o Estatuto que as imunidades ou nor-mas de procedimentos especiais decorrentesda qualidade oficial de uma pessoa, nos ter-mos do direito interno ou do direito interna-cional, não deverão obstar a que o Tribunalexerça a sua jurisdição sobre essa pessoa.

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A consagração do princípio da respon-sabilidade penal internacional dos indiví-duos é, sem dúvida, uma conquista da hu-manidade. E essa idéia vem sendo sedimen-tada desde os tempos em que Hugo Grotiuslançou as bases do moderno Direito Inter-nacional Público. Esse grande jurista holan-dês divergiu, ao seu tempo, da noção cor-rente àquela época – e que ainda mantémalguns seguidores na atualidade – de que oDireito Internacional está circunscrito tão-somente às relações entre Estados, não po-dendo dizer respeito diretamente aos indi-víduos31.

O chamado Direito Internacional dosDireitos Humanos, que emerge finda a se-gunda Guerra Mundial, vem sepultar de vezessa antiga doutrina, que não atribuía aosindivíduos personalidade jurídica de direi-to das gentes. A idéia crescente de que os in-divíduos devem ser responsabilizados nocenário internacional, em decorrência doscrimes cometidos contra o Direito Internaci-onal, vem bastante reforçada no Estatuto deRoma, que, além de ensejar a punição dosindivíduos como tais, positivou, no bojo desuas normas, ineditamente, os princípiosgerais de direito penal internacional (arts.22 a 33), bem como trouxe regras claras ebem estabelecidas sobre o procedimento cri-minal perante o Tribunal (arts. 53 a 61). Talacréscimo vem suprir as lacunas deixadaspelas Convenções de Genebra de 1949, quesempre foram criticadas pelo fato de teremdado pouca ou quase nenhuma importân-cia às regras materiais e processuais da ci-ência jurídica criminal32.

Tais regras penais e procedimentais, es-tabelecidas pelo Estatuto de Roma, com umaleitura apressada do texto convencional,podem pressupor certa incompatibilidadecom o direito constitucional brasileiro, maisespecificamente em relação a três assuntosde fundamental importância disciplinadospelo Estatuto: a) a entrega de nacionais aoTribunal; b) a pena de prisão perpétua; e, c)a questão das imunidades em geral e as re-lativas ao foro por prerrogativa de função.

Segundo o art. 58, § 1o, alíneas a e b, doEstatuto, a todo o momento após a aberturado inquérito, o Juízo de Instrução poderá, apedido do Promotor, emitir um mandado dedetenção contra uma pessoa se, após exa-minar o pedido e as provas ou outras infor-mações submetidas pelo Promotor, conside-rar que existem motivos suficientes para crerque essa pessoa cometeu um crime da com-petência do Tribunal e a detenção dessapessoa se mostra necessária para garantir oseu comparecimento no Tribunal, assimcomo garantir que a mesma não obstruirá,nem porá em perigo, o inquérito ou a açãodo Tribunal. O mandado de detenção tam-bém poderá ser emitido, se for o caso, paraimpedir que a pessoa continue a cometeresse crime ou um crime conexo que seja dacompetência do Tribunal e tenha a sua ori-gem nas mesmas circunstâncias.

Como leciona Cachapuz de Medeiros(2000, p. 13), é essencial

“para que se garanta a efetiva admi-nistração da Justiça Penal Internacio-nal que esta tenha a faculdade de de-terminar que os acusados da práticados crimes reprimidos pelo Estatutosejam colocados à disposição do Tri-bunal. Seria inútil o esforço de criar oTribunal Penal Internacional caso nãose conferisse ao mesmo o poder dedeterminar que os acusados sejamcompelidos a comparecer em juízo”.

Para o êxito dessas finalidades, o Esta-tuto prevê um regime de cooperação entreos seus Estados-partes. Nos termos do art.86 do Estatuto, os Estados-partes deverãocooperar plenamente com o Tribunal, noinquérito e no procedimento criminal, emrelação aos crimes de sua competência. TaisEstados, diz o art. 88, deverão assegurar-sede que o seu direito interno prevê procedi-mentos que permitam responder a todas asformas de cooperação especificadas no Es-tatuto.

A colaboração dos Estados, portanto, éfundamental para o êxito do inquérito e doprocedimento criminal perante o Tribunal.

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Tais Estados devem cooperar com o Tribu-nal da forma menos burocrática possível,atendendo ao princípio da celeridade.

4.1. A entrega de nacionais ao TribunalPenal Internacional

O primeiro conflito aparente entre umadisposição do Estatuto de Roma e a Consti-tuição brasileira de 1988 advém do teor doart. 89, § 1o, do Estatuto, segundo o qual oTribunal poderá dirigir um pedido de de-tenção e entrega (surrender) de uma pessoa aqualquer Estado em cujo território essa pes-soa possa se encontrar e solicitar a coopera-ção desse Estado na detenção e entrega dapessoa em causa, tendo os Estados-partes odever de dar satisfação ao Tribunal aos pe-didos de detenção e de entrega de tais pes-soas, em conformidade com o Estatuto e comos procedimentos previstos nos seus respec-tivos direitos internos.

Não obstante os procedimentos nacio-nais para prisão continuarem sendo apli-cados, eventuais normas internas sobre pri-vilégios e imunidades referentes a cargosoficiais, bem como regras sobre não-extra-dição de nacionais, não serão causas váli-das de escusa para a falta de cooperaçãopor parte dos Estados-membros do Tribu-nal33.

A Constituição brasileira de 1988, no seuart. 5o, incisos LI e LII, dispõe, respectiva-mente, que “nenhum brasileiro será extra-ditado, salvo o naturalizado, em caso de cri-me comum, praticado antes da naturaliza-ção, ou de comprovado envolvimento emtráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins,na forma da lei”; e também que “não seráconcedida extradição de estrangeiro por cri-me político ou de opinião”. Tais incisos doart. 5o da Constituição, pertencendo ao roldos direitos fundamentais, estão cobertospelo art. 60, § 4o, inc. IV, da mesma Carta,segundo o qual “não será objeto de delibe-ração proposta de emenda tendente a aboliros direitos e garantias individuais”.

Por esse motivo é que o Estatuto de Roma,levando em consideração disposições seme-

lhantes de vários textos constitucionaismodernos, distingue claramente o que en-tende por “entrega” e por “extradição”. Nostermos do seu art. 102, alíneas a e b, para osfins do Estatuto entende-se por “entrega” oato de o Estado entregar uma pessoa ao Tri-bunal “nos termos do presente Estatuto” epor “extradição” entende-se a entrega deuma pessoa por um Estado a outro Estado“conforme previsto em um tratado, em umaconvenção ou no direito interno de determi-nado Estado”34. Portanto, se a entrega deuma pessoa, feita pelo Estado ao Tribunal,der-se nos termos do Estatuto de Roma, tal atocaracteriza-se como “entrega”, mas caso o atoseja concluído, por um Estado em relação aoutro, com base no previsto em tratado ou con-venção ou no direito interno de determinado Esta-do, nesse caso trata-se de “extradição”.

O art. 91, § 2o, alínea c, do Estatuto impõeuma regra clara de cooperação dos Estadoscom o Tribunal, no sentido de que as exi-gências para a entrega de alguém ao Tribu-nal não podem ser mais rigorosas do que asque devem ser observadas pelo país em casode um pedido de extradição.

Como corretamente destaca Cachapuz deMedeiros (2000, p. 14), a diferença funda-mental

“consiste em ser o Tribunal uma ins-tituição criada para processar e jul-gar os crimes mais atrozes contra adignidade humana de uma forma jus-ta, independente e imparcial. Na con-dição de órgão internacional, que visarealizar o bem-estar da sociedademundial, porque reprime crimes con-tra o próprio Direito Internacional, aentrega do Tribunal não pode ser com-parada à extradição”.

Portanto, não se trata de entregar alguémpara outro sujeito de Direito InternacionalPúblico, de categoria igual à do Estado-par-te, também dotado de soberania na ordeminternacional, mas sim a um organismo in-ternacional de que fazem parte vários Esta-dos. Daí entendermos que o ato de entrega éfeito pelo Estado a um tribunal internacional

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de jurisdição permanente, diferentemente daextradição, que é feita por um Estado a ou-tro, a pedido deste, em plano de absolutaigualdade, em relação a indivíduo neste úl-timo processado ou condenado e lá refugia-do. A extradição envolve sempre dois Esta-dos soberanos, sendo ato de cooperaçãoentre ambos na repressão internacional decrimes35, diferentemente do que o Estatutode Roma chamou de entrega, em que a rela-ção de cooperação se processa entre um Es-tado e o próprio Tribunal.

O fundamento que existe para que asConstituições contemporâneas prevejam anão-extradição de nacionais está ligado aofato de a justiça estrangeira poder ser injus-ta e julgar o nacional do outro Estado semimparcialidade, o que evidentemente não seaplica ao caso do Tribunal Penal Internaci-onal, cujos crimes já estão definidos no Esta-tuto de Roma e cujas normas processuaissão das mais avançadas do mundo no quetange às garantias da justiça e da imparcia-lidade dos julgamentos.

Portanto, a entrega de nacionais do Es-tado ao Tribunal Penal Internacional, esta-belecida pelo Estatuto de Roma, não fere odireito individual da não-extradição de na-cionais, insculpido no art. 5o, inc. LI, daConstituição brasileira de 1988, bem comoo direito de não-extradição de estrangeirospor motivos de crime político ou de opinião,constante do inc. LII do mesmo art. 5o daCarta de 1988.

Parece clara, assim, a distinção entre aentrega de um nacional brasileiro a umacorte com jurisdição internacional, da qualo Brasil faz parte, por meio de tratado queratificou e se obrigou a fielmente cumprir, ea entrega de um nacional nosso (esta simproibida pela Constituição) a um tribunalestrangeiro, cuja jurisdição está afeta à so-berania de uma outra potência estrangeira,que não a nossa e de cuja construção nósnão participamos com o produto da nossavontade.

Não bastasse essa diferença técnica, umaoutra ainda se apresenta. Embora, nos ter-

mos do Estatuto de Roma, as regras inter-nas dos Estados continuem tendo validade,não serão aceitas determinadas escusas –entre elas a de que não se pode entregar na-cionais do Estado ao Tribunal – para a não-cooperação desses Estados com o Tribunal.Um Estado-parte no Estatuto que não entre-ga um nacional seu quando emitida ordemde prisão contra o mesmo será tido comoum não-colaborador, o que lhe poderá cau-sar enormes prejuízos, tendo em vista exis-tir no Estatuto de Roma todo um processoque pode ser levado à Assembléia dos Esta-dos-partes do TPI e até mesmo ao Conselhode Segurança das Nações Unidas, para quepossam ser tomadas medidas de enquadra-mento de conduta em relação a esses Esta-dos não-colaboradores.

4.2. A pena de prisão perpétua

Outro ponto delicado que pode causarum aparente conflito entre as disposiçõesdo Estatuto de Roma e a Constituição brasi-leira de 1988 diz respeito à previsão do art.77, § 1o, alínea b, do Estatuto, segundo o qualo Tribunal pode impor à pessoa condenadapor um dos crimes previstos no seu art. 5o,entre outras medidas, a pena de prisão per-pétua se o elevado grau de ilicitude do fato eas condições pessoais do condenado a jus-tificarem.

O art. 80 do Estatuto traz uma regra deinterpretação no sentido de que as suas dis-posições em nada prejudicarão a aplicação,pelos Estados, das penas previstas nos seusrespectivos direitos internos, ou a aplicaçãoda legislação de Estados que não preveja aspenas por ele referidas.

A Constituição brasileira, por seu turno,permite até mesmo a pena de morte “em casode guerra declarada” (art. 5o, inc. XLVII, alí-nea a), mas proíbe terminantemente as pe-nas de caráter perpétuo (alínea b do mesmoinciso). Contudo, é bom que fique nítido queo Supremo Tribunal Federal não tem tidonenhum problema em autorizar extradiçõespara países onde existe a pena de prisãoperpétua, em relação aos crimes imputados

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aos extraditandos, mesmo quando o réu cor-re o risco efetivo de ser preso por essa moda-lidade de pena. Como destaca Cachapuz deMedeiros (2000, p. 14-15), entende “o pre-tório excelso que a esfera da nossa lei penalé interna. Se somos benevolentes com ‘nos-sos delinqüentes’, isso só diz bem com ossentimentos dos brasileiros. Não podemosimpor o mesmo tipo de ‘benevolência’ aosPaíses estrangeiros”.

O Supremo Tribunal Federal, também, emmais de uma ocasião, autorizou a extradiçãopara Estados que adotam a pena de morte,com a condição de que houvesse a comuta-ção dessa pena pela de prisão perpétua.

A título de exemplo, pode ser citado oentendimento do Ministro Francisco Rezek,no processo de extradição no 426, em que oSTF deferiu extradição de estrangeiro a Es-tado requerente que aplicaria, sem condi-ções, a pena de prisão perpétua. Apesar deo referido processo ter se desenvolvido soba égide da Carta Política anterior, a liçãonos serve perfeitamente, tendo em vista asimilitude dos enunciados da Carta de 1967com a atual Carta de 1988. A Carta de 1967também previa, no § 11 do seu art. 153, aproibição da aplicação da pena de caráterperpétuo. O então Ministro Francisco Rezek(hoje juiz da Corte Internacional de Justiça),em seu voto, deixou expresso, à época, que

“no que concerne ao parágrafo 11 dorol constitucional de garantias ele es-tabelece um padrão processual no quese refere a este país, no âmbito especi-al da jurisdição desta República. A leiextradicional brasileira, em absoluto,não faz outra restrição salvo aquelaque tange à pena de morte. (…) O quea Procuradoria Geral da Repúblicapropõe é uma extensão transnacionaldo princípio inscrito no parágrafo 11do rol de garantias” (cf. RTJ no 115/969)36.

Esse tipo de medida encontra sua justifi-cativa na Lei no 6.815/80 (Estatuto do Es-trangeiro), por força do seu art. 91, que nãorestringe, em nenhuma das hipóteses que

elenca, a extradição em função da pena pri-são perpétua. Portanto, no Brasil, ainda queinternamente não se admita a pena de pri-são perpétua, isso não constitui restriçãopara efeitos de extradição.

Portanto, a interpretação mais correta aser dada para o caso em comento é a de quea Constituição, quando prevê a vedação depena de caráter perpétuo, está direcionan-do o seu comando tão-somente para o legis-lador interno brasileiro, não alcançando oslegisladores estrangeiros e tampouco os le-gisladores internacionais que, a exemplo daComissão de Direito Internacional das Na-ções Unidas, trabalham rumo à construçãodo sistema jurídico internacional37.

A pena de prisão perpétua – que não re-cebe a mesma ressalva constitucional con-ferida à pena de morte – não pode ser insti-tuída dentro do Brasil, quer por meio de tra-tados internacionais, quer mediante emen-das constitucionais, por se tratar de cláusu-la pétrea constitucional. Mas isso não obs-ta, de forma alguma, que a mesma pena pos-sa ser instituída fora do nosso país, em tri-bunal permanente com jurisdição interna-cional, de que o Brasil é parte e em relaçãoao qual deve obediência, em prol do bem-estar da humanidade38.

A Constituição brasileira de 1988, comojá falamos, preceitua, no art. 7o do Ato dasDisposições Constitucionais Transitórias,que o Brasil “propugnará pela formação deum tribunal internacional dos direitos hu-manos”. E isso reforça a tese de que o confli-to entre as disposições do Estatuto de Romae a Constituição brasileira é apenas aparen-te, não somente pelo fato de que a criação deum tribunal internacional de direitos huma-nos reforça o princípio da dignidade da pes-soa humana (também insculpido pela Cons-tituição, no seu art. 1o, inc. III), mas tambémpelo fato de que o comando do texto consti-tucional brasileiro é dirigido ao legisladordoméstico, não alcançando os crimes come-tidos contra o Direito Internacional e repri-midos pela jurisdição do Tribunal PenalInternacional.

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Portanto, não obstante a vedação daspenas de caráter perpétuo ser uma tradiçãoconstitucional entre nós, o Estatuto de Romade forma alguma afronta a nossa Constitui-ção (como se poderia pensar numa leituradescompromissada de seu texto); mas ao con-trário, contribui para coibir os abusos e asinúmeras violações de direitos que se fazempresentes no planeta, princípio esse que sus-tenta corretamente a tese de que a dignidadeda sociedade internacional não pode ficar àmargem do universo das regras jurídicas.

De outra banda, o condenado que semostrar merecedor dos benefícios estabele-cidos pelo Estatuto poderá ter sua pena re-duzida, inclusive a de prisão perpétua. Nostermos do art. 110, §§ 3o e 4o, do Estatuto,quando a pessoa já tiver cumprido dois ter-ços da pena, ou 25 anos de prisão, em casode pena de prisão perpétua, o Tribunal ree-xaminará a pena para determinar se haverálugar a sua redução, se constatar que se ve-rificam uma ou várias das condições seguin-tes: a) a pessoa tiver manifestado, desde oinício e de forma contínua, a sua vontadeem cooperar com o Tribunal no inquérito eno procedimento; b) a pessoa tiver, volunta-riamente, facilitado a execução das decisõese despachos do Tribunal em outros casos,nomeadamente ajudando-o a localizar benssobre os quais recaíam decisões de perda,de multa ou de reparação que poderão serusados em benefício das vítimas; ou c) quan-do presentes outros fatores que conduzama uma clara e significativa alteração das cir-cunstâncias, suficiente para justificar a re-dução da pena, conforme previsto no Regu-lamento Processual do Tribunal.

4.3. A questão das imunidades: o foro porprerrogativa de função

Por fim, pode surgir ainda o conflito (tam-bém aparente) entre as regras brasileiras re-lativas às imunidades em geral e às prerro-gativas de foro por exercício de função eaquelas atinentes à jurisdição do TPI. Taisregras são aplicáveis, por exemplo, ao Pre-sidente da República, seus Ministros de Es-

tados, Deputados, Senadores etc. Essas imu-nidades e privilégios, contudo, são de or-dem interna e podem variar de um Estadopara o outro. Também existem outras limi-tações de ordem internacional, a exemploda regra sobre imunidade dos agentes di-plomáticos à jurisdição penal do Estadoacreditado, determinada pelo art. 31 da Con-venção de Viena sobre Relações Diplomáti-cas, de 1961, que é norma interna brasileira.Os embaixadores têm imunidade plena najurisdição penal dentro dessa sistemática.

Os crimes de competência do TPI – cri-me de genocídio, crimes contra a humani-dade, crimes de guerra e crime de agressão–, por sua vez, são quase sempre perpetra-dos por indivíduos que se escondem atrás dosprivilégios e imunidades que lhes conferemos seus ordenamentos jurídicos internos.

Levando em conta tais circunstâncias, oEstatuto de Roma pretendeu estabelecer re-gra clara a esse respeito, e assim o fez no seuart. 27, que trata da irrelevância da qualida-de oficial daqueles que cometem os crimespor ele definidos, segundo o qual:

“1. O presente Estatuto será apli-cável de forma igual a todas as pesso-as sem distinção alguma baseada naqualidade oficial. Em particular, aqualidade oficial de Chefe de Estadoou de Governo, de membro de Gover-no ou do Parlamento, de representan-te eleito ou de funcionário público, emcaso algum eximirá a pessoa em cau-sa de responsabilidade criminal nostermos do presente Estatuto, nemconstituirá de per se motivo de redu-ção da pena.

2. As imunidades ou normas deprocedimentos especiais decorrentesda qualidade oficial de uma pessoa,nos termos do direito interno ou dodireito internacional, não deverãoobstar a que o Tribunal exerça a suajurisdição sobre essa pessoa.”

Portanto, as imunidades ou privilégiosespeciais que possam ser concedidos aosindivíduos em função de sua condição como

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ocupantes de cargos ou funções estatais, sejasegundo o seu direito interno, seja segundoo Direito Internacional, não constituem mo-tivos que impeçam o Tribunal de exercer asua jurisdição em relação a tais assuntos. OEstatuto elide qualquer possibilidade deinvocação da imunidade de jurisdição porparte daqueles que cometeram crimes con-tra a humanidade, genocídio, crimes de guer-ra ou de agressão. Assim, de acordo com asistemática do Direito Internacional Penal,não podem os genocidas e os responsáveispelos piores crimes cometidos contra a hu-manidade acobertar-se pela prerrogativa deforo, pelo fato de que exerciam uma funçãopública ou de liderança à época do delito.

O Estado brasileiro, doravante, terá umpapel importante no que tange à compatibi-lização das normas do Estatuto de Roma doTribunal Penal Internacional – respeitando odever consuetudinário insculpido com todasas letras no art. 27 da Convenção de Vienasobre o Direito dos Tratados, de 1969, segun-do o qual um Estado-parte em um tratado in-ternacional tem a obrigação de cumpri-lo deboa-fé –, no sentido de fazer editar a normati-vidade interna infraconstitucional necessá-ria para que o Estatuto possa ser implemen-tado e não se transforme em letra morta, sobpena de responsabilização internacional.

Quanto à nossa Constituição, ela estáperfeitamente apta a operar com o direitointernacional dos direitos humanos e com odireito internacional humanitário, não ha-vendo que se falar em conflito entre as dis-posições do Estatuto de Roma e o texto cons-titucional brasileiro, consoante a cláusulade recepção imediata dos tratados interna-cionais de direitos humanos insculpida no§ 2o de seu art. 5o, bem como os princípios dedireitos humanos consagrados pela Cons-tituição brasileira, em especial o princípioda “prevalência dos direitos humanos”,constante de seu art. 4o, inc. II.

Não há que se cogitar, portanto, de even-tual inconstitucionalidade intrínseca do Esta-tuto de Roma de 1998 em relação à Consti-tuição brasileira de 198839.

5. Considerações finais: perspectivaspara uma Justiça Penal Internacional

Terminado este estudo, resta-nos dizerainda algumas palavras finais, relativas àimportância do TPI para a Justiça Penal In-ternacional.

Sem qualquer dúvida, a instituição doTribunal Penal Internacional é um dos fato-res principais que marcarão as ciências cri-minais no século XXI. Primeiro porque, des-de os Tribunais de Nuremberg e Tóquio, umsistema internacional de justiça pretendeacabar com a impunidade daqueles que vi-olam o Direito Internacional, em termos re-pressivos (condenando os culpados) e pre-ventivos (inibindo a tentativa de repetiçãodos crimes cometidos)40. Segundo, porquevisa sanar as eventuais falhas e insucessosdos tribunais nacionais, que deixam impu-nes seus criminosos, principalmente quan-do esses são autoridades estatais, que go-zam de imunidade, nos termos das suas res-pectivas legislações internas. Terceiro, por-que evita a criação de tribunais ad hoc, insti-tuídos à livre escolha do Conselho de Segu-rança da ONU, dignificando o respeito àgarantia do princípio do juiz natural, ouseja, do juiz competente, em suas duas ver-tentes: a de um juiz previamente estabeleci-do e a ligada à proibição de juízos ou tribu-nais de exceção. Quarto, porque cria instru-mentos jurídico-processuais capazes de res-ponsabilizar individualmente as pessoascondenadas pelo Tribunal. E, finalmente, emquinto lugar, porque institui uma JustiçaPenal Internacional que contribui, quer in-terna quer internacionalmente, para a eficá-cia da proteção dos direitos humanos e dodireito internacional humanitário41.

A consagração do princípio da comple-mentaridade, segundo o qual a jurisdiçãodo TPI é subsidiária às jurisdições nacio-nais (salvo o caso de os Estados se mostra-rem incapazes ou sem disposição em pro-cessar e julgar os responsáveis pelos crimescometidos), contribui sobremaneira parafomentar os sistemas jurídicos nacionais a

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desenvolver mecanismos processuais efica-zes, capazes de efetivamente aplicar a justi-ça em relação aos crimes tipificados no Es-tatuto de Roma, que passam também a sercrimes integrantes do direito interno dosEstados-partes que o ratificaram.

Não existe restrição ou diminuição dasoberania para os países que já aderiram,ou aos que ainda irão aderir, ao Estatuto deRoma. Ao contrário: na medida em que umEstado ratifica uma convenção multilateralcomo esta, que visa trazer um bem-estar quea sociedade internacional reivindica há sé-culos, ele não está fazendo mais do que, efe-tivamente, praticando um ato de soberania,e o faz de acordo com sua Constituição, queprevê a participação do Executivo e do Le-gislativo (no caso brasileiro: CF, arts. 84, inc.VIII, e 49, inc. I, respectivamente) no proces-so de celebração de tratados.

A Justiça Penal Internacional, portanto,chega ao mundo em boa hora, para proces-sar e julgar os piores e mais cruéis violado-res dos direitos humanos que possam vir aexistir, reprimindo aqueles crimes contra oDireito Internacional de que nos queremoslivrar, em todas as suas vertentes. Será essaJustiça Penal Internacional a responsávelpela construção de uma sociedade interna-cional justa e digna, calcada nos princípiosda igualdade e da não discriminação, quesão o fundamento da tutela internacionaldos direitos humanos.

O papel do Tribunal Penal Internacio-nal para o futuro da humanidade, portanto, éimportantíssimo, no sentido de punir e reti-rar do convívio coletivo mundial os respon-sáveis pela prática dos piores e mais bárba-ros crimes cometidos no planeta, em relaçãoaos quais não se admite esquecimento.

Notas1 Nas palavras do Prof. Celso Lafer (2001): “Um

dos meios de que se valeu o totalitarismo para ob-ter esta descartabilidade dos seres humanos foi ode gerar refugiados e apátridas. Estes, ao se veremdestituídos, com a perda da cidadania, dos benefí-

cios do princípio da legalidade, não se puderamvaler dos direitos humanos. Assim, por falta deum vínculo com uma ordem jurídica nacional, aca-baram não encontrando lugar – qualquer lugar –num mundo como o do século XX, totalmente or-ganizado e ocupado politicamente. Conseqüente-mente, tornaram-se de facto e de jure desnecessáriosporque indesejáveis ‘erga omnes’, e acabariam en-contrando o seu destino e lugar nos campos deconcentração”.

2 A Declaração Universal dos Direitos Huma-nos (1948), a esse respeito, assim estabelece em seuArt. 1o: “Todas as pessoas nascem livres e iguaisem dignidade e direitos. São dotadas de razão econsciência e devem agir em relação umas às ou-tras com espírito de fraternidade”. Para HannahArendt, a participação dos indivíduos em uma co-munidade igualitária construída é a condição sinequa non para que se possa aspirar ao gozo dos di-reitos humanos fundamentais (Cf. ARENDT, 1973,p. 299-302).

3 Cf. THE CHARTER and Julgament of the Nuren-berg Tribunal [U.N.]. doc. A/CN, 4/5, de 3 março1949, p. 87-88. Cf. também Ramella (1987, p. 6-8).

4 O texto do “Estatuto da Iugoslávia” pode serencontrado no documento das Nações Unidas (NU)S/25704, de 03.05.93, p. 32 et seq.

5 Resolução do Conselho de Segurança da ONUno 955 (1994), NU-Doc. S/Res/955 (1994), de 8 denovembro de 1994. As regras de procedimento eprova foram adotadas em 29.06.95 (ITR/3/Rev.1), tendo sido uma segunda revisão realizada emmeados de 1996. Sobre o assunto, Cf. MELLO, 2001,p. 917-918; COMPARATO, 2003, p. 446-447.

6 Cf. AMBOS, 1997.7 Cf. MEDEIROS, 2000, p. 12.8 Sobre as normas de jus cogens na Convenção de

Viena Sobre o Direito dos Tratados, Cf. Mazzuoli(2004a, p. 162-182).

9 Cf. JARDIM, 2000, p. 16-17.10 Cf. MELLO, 2001, p. 913.11 Para um estudo dos fundamentos jurídicos

do TPI, Cf. Ambos (1999, p. 739 et seq.).12 Cf., a propósito, Lee (1999, 639 p.)13 Países como os Estados Unidos, de postura

absolutamente contrária à criação do Tribunal, ti-veram, contudo, a oportunidade de oferecer suaspropostas para o alcance material do crime de ge-nocídio ao grupo de trabalho sobre os elementos docrime. Sobre o assunto, Hall (2000, p. 733-788).

14 Cf. COMPARATO, 2003, p. 448.15 A assinatura do Brasil ao Estatuto de Roma

do TPI foi precedida de belo Parecer da lavra doProf. Dr. Antônio Paulo Cachapuz de Medeiros,digníssimo Consultor Jurídico do Ministério dasRelações Exteriores do Brasil.

16 A versão integral brasileira do Estatuto deRoma do Tribunal Penal Internacional (bem como a

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quase totalidade dos outros instrumentos interna-cionais citados no decorrer deste estudo) pode serencontrada em Mazzuoli (2004b, p. 691-745).

17 Sobre essa interpretação, relativa à incorpora-ção dos tratados de direitos humanos no ordena-mento jurídico brasileiro, Cf. Mazzuoli (2002, p.233-252). Na literatura estrangeira, Cf. Egãna(1999, p. 353-361).

18 Consagrou-se, aqui, o princípio da comple-mentaridade, segundo o qual o TPI não pode inter-ferir indevidamente nos sistemas judiciais nacio-nais, que continuam tendo a responsabilidade pri-mária de investigar e processar os crimes cometi-dos pelos seus nacionais, salvo nos casos em que osEstados se mostrem incapazes ou não demonstremefetiva vontade de punir os seus criminosos. Issonão ocorre, frise-se, com os tribunais internacionaisad hoc, que são concorrentes e têm primazia sobreos tribunais nacionais.

19 Cf. CHOUKR; AMBOS, 2000, p. 07-08; COM-PARATO, 2003, p. 449-450.

20 O Brasil foi um dos países que conseguiueleger representante para o cargo de juiz do TPI,tendo sido eleita a Dra. Sylvia Helena de FigueiredoSteiner, Desembargadora do Tribunal Regional Fe-deral da 3a Região, para o mandato de nove anos.

21 Cf., nesse sentido, Choukr (2000); Ambos(2000).

22 Veja-se algumas das dificuldades envolven-do a aplicação dos tratados multilaterais que defi-nem os crimes internacionais, no que tange à ques-tão da impossibilidade de extradição, em Soares(2003, p. 224-225).

23 Cf., sobre o assunto, Boot (2002); Reed (2002,p. 268-273); e Shelton (2000).

24 Tal Convenção foi aprovada no Brasil peloDecreto Legislativo no 2, de 11 de abril de 1951, epromulgada pelo Decreto no 30.822, de 6 de maiode 1952. Esta Convenção integra o direito internobrasileiro com status de norma constitucional, nostermos do art. 5o, § 2o, da Constituição de 1988, querecepciona os direitos humanos provenientes de tra-tados com hierarquia igual à das normas constitu-cionais e com aplicação imediata. Sobre o assunto,Cf. Mazzuoli (2002, p. 233-252). No Brasil, a Lei no

2.889, de 1o de outubro de 1956, define e pune ocrime de genocídio.

25 Cf. JARDIM, 2000, p. 22.26 Sobre o assunto, Cf. Guzman, 2000.27Cf. sobre o assunto, Dörmann (2003, 498 p.).28 A recusa da Holanda em extraditar o Kaiser

constituiu violação do disposto no próprio Trata-do de Versailles de 1919. Adotou-se, à época, ovelho e arraigado entendimento de que os indivídu-os não podem ser tidos como sujeitos de DireitoInternacional, pois são os Estados que atuam nocenário político externo, sendo os indivíduos merosrepresentantes seus. Desde a instituição do Tribu-

nal de Nuremberg, essa doutrina foi afastada e nãopode mais, sob quaisquer aspectos, ser reafirmadapara livrar de punição aqueles que cometem geno-cídio, crimes de guerra, crimes contra a humanida-de, crime de agressão ou quaisquer outros atos vi-oladores do Direito Internacional.

29 Cf., a propósito, Hortatos (1999).30 A respeito do assunto, Cf. PAULUS, 2003, p.

855-858.31 Cf. MEDEIROS, 2000, p. 12-13.32 Cf. MEDEIROS, 2000, p. 15.33 Cf. MEDEIROS, 2000, p. 14.34 No plano da legislação infraconstitucional

brasileira, a Lei no 6.815, de 19 de agosto de 1980(Estatuto do Estrangeiro), estabelece, no seu art.76, que: “A extradição poderá ser concedida quan-do o governo requerente se fundamentar em trata-do, ou quando prometer ao Brasil a reciprocida-de”.

35 Cf. FRAGA, 1985, p. 286-287.36 O Ministro Sidney Sanches afirmou ainda, no

mesmo julgamento, que a referida lei constitucio-nal “visou impedir apenas a imposição das penasali previstas (inclusive a perpétua) para os que aquitenham de ser julgados. Não há de ter pretendidoeficácia fora do País” (RTJ no 115/969).

37 Cf. MEDEIROS, 2000, p. 15.38 No mesmo sentido, Cf. STEINER, 2000, p.

34-41.39 Para um estudo específico do problema da

inconstitucionalidade intrínseca dos tratados interna-cionais Cf. MAZZUOLI, 2004a, p. 247-252.

40 Cf. HUMAN Righots Watch world report 1994:events of 1993. Human Rights Watch, New York,1994, p. XX.

41 Cf. JARDIM, 2000, p. 17-18.

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Antonio Marcelo Jackson F. da Silva

Sendo um dos mais polêmicos temas daárea jurídica, a “pena de morte” ou “penacapital” tem recebido os mais diversos tra-tamentos dos operadores do Direito sem,entretanto, oferecerem comentários que es-tejam de fato vinculados ao assunto quandoobservado nas legislações e teses que acata-ram ao longo do tempo tal princípio, issoporque, antes de mais nada, falar sobre a“pena de morte” é falar sobre a exclusãopermanente de indivíduo do meio social ou,em outros termos, partir do princípio que amais extrema forma de punição deve estan-car permanentemente uma pessoa da socie-dade a qual estava vinculada. Pode parecerum certo preciosismo abordar o tema sobessa ótica. Todavia, não se deve esquecerque a exclusão do meio social como formade se punir um dos membros do grupo ébem provavelmente a mais grave pena im-posta a um indivíduo, dado que o homemcomo ser social – ou político, na origináriadefinição de Aristóteles – apenas pode serentendido como tal quando se encontra emsociedade. A pena capital ou a exclusãopermanente é, portanto, retirar desse indi-víduo sua condição humana. Tomemos al-guns rápidos exemplos.

Por que se deve ter e por que não se deveter a pena de morteAspectos jurídicos e políticos

Antonio Marcelo Jackson F. da Silva é Ba-charel em História pela UERJ, Mestre e Douto-rando em Ciência Política pelo IUPERJ.

Sumário1. Por que se deve ter a pena de morte. 2.

Por que não se deve ter a pena de morte. 3. Àguisa de uma conclusão ou o início de um novodebate.

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Tanto para aqueles que são favoráveis atal punição quanto para aqueles que sãocontra, um dos argumentos diz que a mes-ma pode ou não reduzir a criminalidade.Torna-se interessante porque, salvo em umúnico caso1, jamais essa pena foi imputadaacreditando-se que, com isso, a violência emsua forma mais grave seria embargada, issoporque nenhum dos estudos, clássicos oucontemporâneos, feitos até hoje pressupõea punição como o termo necessário para eli-minar o delito. Em todos eles reconhece-sea capacidade – ou possibilidade, como quei-ram – humana de transgredir as regras so-cialmente produzidas, e assim a existênciaperene da delinqüência é um fato que não sepode ignorar. Em outros termos, a trans-gressão das regras socialmente produzidas(ou das normas legalmente feitas por meiodas relações políticas) é um dado que seapresenta em todas as sociedades sem qual-quer vínculo com as punições previstas, tan-to pelos costumes quanto pelas leis. Aindaque se credite a certos autores – a contar dePlatão – a possibilidade de se construir me-canismos pedagógicos para que, com isso,seja alterado o comportamento dos indiví-duos, tal objetivo não se materializa em suaplenitude, produzindo-se assim uma deter-minada margem para o delito, seja ele umenfrentamento claro aos costumes ou às leis.Dessa maneira, a punição existe, quandomuito, para que a parte da sociedade quetende à transgressão tenha um exemplo dasconseqüências em relação a um determina-do crime e, por meio da dúvida, evite suaconsumação ou, em outros termos, a penaaparece, se tanto, para uma espécie de con-trole sobre a criminalidade – nunca com autópica idéia de se acabar com os delitos.

No que diz respeito aos aspectos peda-gógicos, isso não aparece na letra da lei oumesmo dos costumes ao longo do tempo,mas sim a contar do Mundo Moderno com oentendimento que se produziu em relação àpobreza e à responsabilidade do Estado,principalmente a partir dos argumentos deThomas Robert Malthus. Para ele, era ine-

vitável as desgraças periódicas e agudas, eisso ocorria em virtude da tendência de apopulação aumentar mais rapidamente doque os meios de sobrevivência, fazendo comque existisse sempre não apenas uma desi-gualdade entre os diversos grupos sociais,mas também o entendimento de que isso sedava a contar de uma lei natural e, portan-to, inevitável. Desse modo, o único papel aser desempenhado tanto pelas classes maisricas quanto pelo poder público seria o deeducar os segmentos mais baixos no intuitode minimizar da melhor forma possível oproblema (BENDIX, 1996, p. 95). Assim, se,por um lado, tal proposta torna-se a propul-são de uma nova pedagogia, que informavasobre a inevitável pobreza, por outro, torna-va-se também necessária a criação de forçaspúblicas que controlassem a transgressãoperenemente produzida. É nesse sentido,por exemplo, que surge no século XVIII eganha forma definitiva no século XIX o con-ceito de polícia ou, no sentido original, poli-ciar, polir, dar polimento a uma sociedadeabrutalhada que não condiz com os termosda civilidade. Em outras palavras, a idéiade se produzir uma espécie de modelo que“educasse” a sociedade em direção aos“bons modos” surge em virtude de se fazeracomodar os segmentos mais baixos da po-pulação frente a sua miséria e as possíveisrevoltas oriundas desse posicionamentosocial, ou seja, muito mais do que a “trans-gressão” (no sentido de um crime – na au-sência de termo melhor), a preocupação re-sidia na “transgressão social”: a possibili-dade de se subverter uma hierarquia socialanteriormente produzida.

Retornando ao tema principal, um se-gundo exemplo – muito mais voltado paraaqueles que são contrários a esse tipo depunição – é aquele que afirma ser essa pe-nalidade irreversível, ou seja, frente à possi-bilidade de um erro jurídico, o suposto con-denado não teria uma “segunda chance”,pelos motivos óbvios. Esse tipo de comen-tário torna-se frágil porque, salvo enganode nossa parte, nenhuma pena é reversível:

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não há como reverter uma punição injusta,pouco importando qual seja a punição. Bemsabemos que, de maneira usual, o que se fazé converter uma punição injusta – poucoimportando aqui o motivo da injustiça, sejapor erro no processo, falso testemunho etc.– em valores de ordem financeira, ou seja,“paga-se tanto a fulano por ter sido envia-do e detido em uma delegacia ou penitenci-ária por erro judicial”. Não se pode dizer,necessariamente, que essa pessoa tenha “re-vertido” o constrangimento social de estarpreso por receber uma certa quantia pois,afinal, qual é o valor da liberdade? De for-ma sucinta e com todos os erros possíveis,sabemos que o cálculo é feito da seguintemaneira: toma-se a idade, a profissão, osdependentes diretos e os ganhos que a pes-soa teria durante o tempo em que ficou deti-da; a soma corresponderá, aproximadamen-te, ao valor que a dita pessoa deve receberpor ter sido presa injustamente. Nesse caso,podemos chegar à curiosa conclusão de quea tal “reversibilidade” das penas que nãoexcluem perenemente um indivíduo do meiosocial varia na proporção direta entre, porexemplo, um diretor e um faxineiro de umamesma empresa; imaginando que ambos fi-quem detidos por um mês, o faxineiro deveser ressarcido talvez em três ou quatro salá-rios mínimos; já o diretor da empresa...

Para não nos estendermos em demasia,um terceiro exemplo seria aquele que afir-ma serem os defensores da pena de morte“pessoas que são contra a vida”; talvez omais curioso de todos, posto que – é o queparece – a “vida” em questão seria tão-so-mente a biológica, pouco importando se ascondições da “vida social” são boas ou não.Em outras palavras, aceita-se sem muitostranstornos a existência de um contingenteenorme da população vivendo abaixo da li-nha de miséria – utilizando-se como medi-da o IDH (Índice de Desenvolvimento Hu-mano) da ONU – ao mesmo tempo em quese é radicalmente contra a pena capital. Tra-ta-se, curiosamente, de se saber qual o tipode morte é a mais aceitável...

Para além disso, cria-se um perigoso pre-cedente, isso porque, dando-se ênfase nascondições de vida de um criminoso, ou seja,demonstrando de maneira clara que é pos-sível dar a um delinqüente meios necessári-os para a sua dignidade ao mesmo tempoem que não se oferecem as mesmas condi-ções para o “homem honesto”, o corpo queatua no meio jurídico é questionado para sesaber, afinal, “em que lado está”. Dito emoutras palavras, apresenta-se de maneiranítida que é possível defender o criminoso,porém, não há recíproca em relação à socie-dade civil. É óbvio, e bem sabemos disso, aresponsabilidade de prover o meio social deum elenco mínimo de subsistência é obriga-ção do Poder Executivo; contudo, não custalembrar, as personagens que habitam o meiopúblico, particularmente o meio jurídico –magistrados (estes, sim, membros do Judici-ário), defensores (subordinados ao PoderExecutivo), membros de Ministério Públicoe advogados (os atores privados da área emquestão) –, em um país em que, por força delei, todos os impasses legais devem ser acom-panhados por um representante autoriza-do (exceto, é claro, os itens que são solucio-nados nos Juizados Especiais), tornam-seresponsáveis diretos pela possibilidade dese chegar a uma espécie de justiça, poucoimportando aqui a forma como se define talpalavra. Assim, a opinião de todos que atu-am nesse meio é transformada em referên-cia de certo e errado, de justo e injusto para asociedade, o que apenas potencializa o pro-blema exposto acima.

Dito isso, o que se propõe no presentetexto é discutir a exclusão permanente deindivíduo de sua sociedade, seja por meioda pena de morte ou de qualquer outra for-ma, em seus aspectos estritamente jurídicose políticos, tendo como fontes os argumen-tos historicamente produzidos contra ou afavor da mesma, procurando dessa formaencontrar as justificativas plausíveis paraqualquer uma das opções. Assim sendo,vejamos, então, os argumentos a favor des-se tipo de punição para, logo a seguir, veri-

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ficarmos os que são contra e procurarmosalguma conclusão a esse respeito.

1. Por que se deve ter a pena de morte

É sabido que a primeira legislação civil– ou seja, estamos descartando todas as leisproduzidas por sociedades cuja organiza-ção política era mítico-religiosa, como, porexemplo, Babilônicos, Hebreus, Egípcios etc.– aparece com o Direito Romano. Para estecaso, antes de mais nada, deve-se entendera organização da sociedade romana comovinculada ao princípio da Res Publica (coisade todos). Não havia espaço para qualquerdiscussão que escapasse da idéia de queapenas existia a sociedade e, acima de tudo,ela deveria ser mantida. Tomando por em-préstimo os argumentos de seu princi-pal jurisconsulto, Marco Túlio Cícero, o úni-co papel que deveria ser exercido (funcio-nando como um direito e uma obrigação, aomesmo tempo) pelo indivíduo era o de serum “cidadão virtuoso” ou, em outras pala-vras, agir em prol da saúde pública, o bem-estar de todos. Para Cícero, a virtuosidadedeveria ser espontânea; porém, caso isso nãosurgisse de forma natural, ela deveria serobservada nas ações dos grandes vultos quepromoveram a existência e manutenção deRoma, daí brotar o princípio de “históriamestra da vida”, ou seja, a história comosendo a dos bons exemplos, dos homensvirtuosos. Da mesma forma, o inverso eraverdadeiro: um homem não virtuoso trans-formar-se-ia muito rapidamente em um mauexemplo a ser seguido. Nesse sentido, eranecessária a produção de uma série de nor-mas jurídicas que de algum modo funcio-nassem como referência a todos os homensque desejassem a virtuosidade e, por via deconseqüência, o bem-estar da república.

Dando seqüência ao argumento do au-tor, o passo seguinte seria definir quem fa-ria parte da res publica , isso porque a exigên-cia e/ou expectativa em relação à virtuosi-dade dos homens era diretamente propor-cional a seu vínculo com a sociedade.

Desse modo, Cícero (1973, p. 155) afirma-va que

“é, pois, (...) a República coisa dopovo, considerando tal, não todos oshomens de qualquer modo congrega-dos, mas a reunião que tem seu funda-mento no consentimento jurídico e na uti-lidade comum. Pois bem: a primeiracausa dessa agregação de uns homensa outros é menos a sua debilidade doque um certo instinto de sociabilida-de em todo inato; a espécie humananão nasceu para o isolamento e paraa vida errante, mas como uma dispo-sição que, mesmo na abundância detodos os bens, a leva a procurar oapoio comum. (grifo nosso).

Assim, não deve o homem atribuir-se, como virtude, sua sociabilidade,que é nele intuitiva. (...) [Deste modo],todo povo, isto é, toda sociedade fun-dada com as condições por mim ex-postas, (...) toda coisa pública, (...) ne-cessita, para ser duradoura, ser regi-da por uma autoridade inteligente quesempre se apoie sobre o princípio quepresidiu a formação do Estado”.

Dessa maneira, a virtuosidade deveriaser algo esperado dos homens que fizessemparte da República, ou seja, daqueles queestivessem dentro do “consentimento jurí-dico da utilidade pública”, da mesma for-ma que os “direitos e obrigações” do cida-dão romano eram itens da agenda daquelesque fizessem parte da república, nunca paraaqueles que não possuíssem a cidadania.

Assim, transportando os argumentos deMarco Túlio Cícero para analisarmos a le-gislação romana que chegou até nós, a Leidas XII Tábuas, observamos que, quando umcidadão romano cometia um delito, o pri-meiro passo em termos de uma punição se-ria, dependendo do caso, o açoite ou umamulta. A reincidência do delito poderia de-terminar a perda da cidadania (sendo trans-formado em escravo) e, aí sim, surgia a pos-sibilidade da pena capital (precipitando opunido do alto da rocha da Tarpéia). A im-

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portância de destacarmos esse processo re-side na idéia de que apenas um “não cida-dão” poderia ser condenado à morte: ja-mais alguém com a cidadania plena sofre-ria tal punição. Em outras palavras, a rela-ção entre a pena capital e a cidadania eracompleta: enquanto existisse a segunda,jamais a primeira poderia ocorrer. O queestava em jogo, portanto, seria a garantia deexistirem sempre “cidadãos virtuosos” nosquadros da res publica : os que ameaçavam obem-estar de todos teriam, antes, perdidoseus direitos dentro da Pax Romana e, porconseguinte, estariam fora da circunscriçãoda lei.

Observa-se, para esse primeiro caso, quea pena capital apenas aparece para aquelesque não fazem parte do conjunto de direitose obrigações dentro da ordem jurídico-polí-tica, inexistindo para qualquer outro. Amaior punição, portanto, seria a perda da ci-dadania por um grave delito cometido, o quejá significava a exclusão do meio social2.

Se o bem-estar da sociedade seria a prin-cipal referência para o funcionamento doDireito Romano, o Mundo Medieval insereo argumento “moral” dentro dos estudosjurídico-políticos. A palavra “moral” (mo-rus, em latim) originalmente significava oconjunto de hábitos, costumes de uma de-terminada sociedade. Assim, estar dentrodos termos moralmente aceitos significavaagir dentro dos costumes do meio social emque se vivia. Com o advento do cristianis-mo, essa palavra ganhou um novo desíg-nio, passando a estar vinculada aos termosque a religião imprimia. A conseqüênciaprática foi que, se antes a “moral” era umacoisa que brotava da própria sociedade, apartir da Idade Média a mesma seria “exte-rior” à sociedade, ou seja, seria um conjun-to de valores que deveriam oferecer referên-cias ao comportamento dos indivíduos. Aomesmo tempo, a personagem do governan-te adquiriu uma roupagem presa aos valo-res cristãos, assumindo, então, um caráterque não apenas o deixava como sendo o re-presentante primeiro do poder político, mas

também o legítimo representante dos inte-resses morais. É por essa época que começaa ser construída a idéia dos crimes de “lesa-majestade” (cuja fórmula estará completa noMundo Moderno), ou seja, aqueles crimesque ameaçavam os interesses do rei e, porconseguinte, de toda a sociedade. Para es-ses casos, a pena de morte aparecia parapunir um delito que tanto era compreendi-do como uma ameaça ao bem-estar da socie-dade, quanto era também um desafio à or-dem moral. Em outras palavras, se para oMundo Romano a perda da cidadania era o“pré-requisito” necessário para ser punidocom a morte, no Medievo esta mesma cida-dania se vê acrescida de elementos que es-tariam, a priori, fora da sociedade: um bomcidadão seria não apenas aquele que ageem prol de todos, mas também aquele que émoralmente correto em suas ações3.

É com essa linha de raciocínio que sechega à Idade Moderna e, particularmente,àquele que irá fornecer o melhor argumentosobre o tema: Thomas Hobbes.

O raciocínio hobbesiano parte da obser-vação de que a natureza humana é incapazde, espontaneamente, lidar com suas prin-cipais características, a saber: seu ímpetopredatório e sua vontade de vingança vi-vendo em um mundo escasso em bens. Talquestão seria a fonte principal da vaidadedos homens que, por sua vez, inviabilizama própria condição primária de se viver emgrupo. Nas palavras do autor (HOBBES,1973, p. 79):

“os homens não tiram prazer algumda companhia uns dos outros (...)quando não existe um poder capaz demanter a todos em respeito. Porquecada um pretende que seu companhei-ro lhe atribua o mesmo valor que elese atribui a si próprio e, na presençade todos os sinais de desprezo ou desubestimação, naturalmente se esfor-ça (...) por arrancar de seus contendo-res a atribuição de maior valor, cau-sando-lhes dano, e dos outros tam-bém, através do exemplo.

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De modo que na natureza do ho-mem encontramos três causas princi-pais de discórdia. Primeiro, a compe-tição; segundo, a desconfiança; e ter-ceiro, a glória.

A primeira leva os homens a ata-car os outros tendo em vista o lucro; asegunda, a segurança; e a terceira, areputação. Os primeiros usam a vio-lência para se tornarem senhores daspessoas, mulheres, filhos e rebanhosdos outros homens; os segundos, paradefendê-los; e os terceiros por ninha-rias, como uma palavra, um sorriso,uma diferença de opinião, e qualqueroutro sinal de desprezo, quer seja di-retamente dirigido a suas pessoas,quer indiretamente a seus parentes,seus amigos, sua nação, sua profis-são ou seu nome”.

Com isso, mesmo que os homens nãoestejam explicitamente em um conflito béli-co, existe, como uma sombra constante, um“estado de guerra dos homens com outroshomens”, o “homem como sendo o lobo dopróprio homem”, na conhecida expressãode Hobbes.

A única solução possível, conforme oautor, é a existência de um poder soberanosobre todos os homens, tendo como princí-pio gerador desse poder o reconhecimentode todos de que ele é a única fonte legítimade todas as decisões políticas e jurídicas.Para tanto, esse poder deve determinar oconjunto de leis civis, definidas como “cons-tituída por aquelas regras que o Estado lheimpõe, oralmente ou por escrito, ou por ou-tro sinal suficiente de sua vontade, parausar como critério de distinção entre o beme o mal; isto é, do que é contrário ou não écontrário à regra” (HOBBES, 1973, p. 165).Dessa maneira, antes de mais nada, a leicivil é algo que existe para limitar as açõesdos homens: “a lei não foi trazida ao mun-do para nada mais senão para limitar a li-berdade natural dos indivíduos, de manei-ra tal que eles sejam impedidos de causardano uns aos outros, e em vez disso se aju-

dem e se unam contra o inimigo comum”(HOBBES, 1973, p. 167).

Assim, frente ao exposto, os únicos ate-nuantes admitidos pelo autor ao não cum-primento de uma lei seriam o seu desconhe-cimento, pela pouca clareza da mesma, porseguirem as interpretações erradas de pes-soas autorizadas a interpretá-la, por serconstrangido por meio da força a cometerum delito, por não poder renunciar a suaprópria preservação ou por “inferências er-radas feitas a partir de princípios verdadei-ros” (HOBBES, 1973, p. 182). Em todos osoutros casos, ninguém poderá ser absolvi-do caso cometa um crime, isso porque talprática faria aflorar a natureza dos homense, conseqüentemente, haveria o risco do bem-estar da sociedade.

Por analogia, conforme o autor, o crimedeve ser medido segundo determinados“graus”, cujas penas deverão ser equivalen-tes, a saber: pela malignidade da fonte oucausa, pelo contágio do exemplo, pelo pre-juízo ou efeito e pela concorrência de tem-po, lugares e pessoas (HOBBES, 1973, p.185). Nesses casos, como na fundação doEstado cada um renunciou ao direito de sedefender dos outros em virtude da naturezacomum de todos os homens, cabe ao poderpúblico determinar a pena a ser aplicada –inclusive a pena de morte – principalmenteporque, “de todas as paixões, a que menosfaz os homens tender a violar as leis é omedo” (HOBBES, 1973, p. 183). SegundoHobbes, se é papel do Estado garantir a pazpública, essa garantia deve ser dada comtodos os recursos disponíveis, principalmen-te pelo medo provocado pela aplicação dasleis, incluindo a morte do criminoso.

Por último, conforme o autor, admite-sea possibilidade do erro no julgamento. Po-rém, esse erro seria muito mais visível naórbita do Estado – posto ser ele o responsá-vel pela justiça –, e assim os representantespolíticos da sociedade poderiam ser substi-tuídos por outros. Dito de forma diferente,se, dentro do contrato social hobbesiano, opapel do Estado é garantir a paz (pela con-

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trapartida de ter assumido todos os direitosabdicados pelos cidadãos), o maior interes-sado na inexistência do erro jurídico seria opróprio Estado, ou aqueles que o fazem fun-cionar, isso porque a não garantia da pazsignificaria a substituição do Leviatã poroutro.

Vimos, ainda que de modo sucinto, astrês formas apresentadas historicamente nadefesa da pena de morte e em todas elas ob-servamos que o passo crucial para esse tipode punição é a perda da cidadania, seja pelareincidência de um grave delito, por razõesmorais ou pela ameaça à paz da sociedade.Vejamos, agora, a argumentação contráriaa esse tipo de pena.

2. Por que não se deve ter apena de morte

As guerras religiosas que assolaram aEuropa a partir da Reforma Protestante (Lu-tero, em 1517, Calvino e Henrique VIII, am-bos em 1534) foram, pouco a pouco, corro-endo as certezas que sustentavam os pode-res políticos nos países. Todavia, essasmesmas guerras, pelo menos em seus doisprimeiros séculos, acabaram por determinara vitória de um ou outro lado sem, entretan-to, resolver o pomo da discórdia que seria aconvivência de ambas as partes num mes-mo lugar.

Dentro dessa questão, o caso francês as-sumiu proporções distintas do restante docontinente europeu visto que a populaçãofrancesa encontrou-se desde o primeiromomento dividida quase que de forma igualentre católicos e protestantes, o que deter-minou diversos embates entre os gruposdesde a tristemente célebre Noite de São Bar-tolomeu, em 15724.

Chegando ao século XVIII, os francesesse viram envolvidos no escandaloso julga-mento de Jean Calas acusado de matar seupróprio filho por razões religiosas. Conde-nado à morte, o processo sofreu uma revira-volta, com novas provas, tendo sido reabili-tada a memória do réu e indenizada a famí-

lia. Esse julgamento foi o mote de um doslivros mais famosos do pensador francêsVoltaire (1993, p. 109), chamando a atençãopara o fanatismo religioso e as conseqüên-cias tremendas que poderia causar, tanto naesfera do poder público, quanto nos termosda sociedade:

“para que um governo não tenha odireito de punir os erros dos homens,é necessário que esses erros não se-jam crimes; eles só são crimes quandoperturbam a sociedade; perturbam asociedade a partir do momento queinspiram fanatismo. Cumpre, pois,que os homens comecem por não serfanáticos para merecer a tolerância”.

Esse problema nitidamente social, segun-do podemos deduzir a partir da afirmaçãode Voltaire, determinava uma alteração napostura do governo em relação às penalida-des a serem aplicadas – particularmente apena capital –, posto que, com o fanatismo,todo o processo jurídico estaria comprome-tido.

O debate provocado pelo texto de Voltai-re suscitou novas discussões sobre a penade morte. Contudo, para que essa discus-são possuísse um argumento mais sólido,era necessário um novo entendimento so-bre a própria organização social. Em ou-tros termos, quando entendida da forma tra-dicional, a idéia que se tinha sobre a socie-dade autorizava, de um modo ou de outro, aexistência dessa penalidade conforme vi-mos anteriormente.

De forma curiosa, posto que a preocupa-ção residia em outro registro, essa discus-são tem início a partir da obra de Montes-quieu. Para ele, toda organização social nãopode estar sob o jugo de uma única pessoaou grupo, daí ser necessária a divisão depoderes para que nenhuma espécie de abu-so seja cometido. A legitimidade do poder,afirma esse autor, apenas existe quando essepoder serve para garantir condições e direi-tos básicos a todos os indivíduos, nunca ocontrário. Assim, a legitimidade do poderapenas existe quando o mesmo se dá dentro

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dos limites necessários: para além disso,toda e qualquer prática torna-se abusiva5.

Paralelamente a essa obra, um outro pen-sador, Helvétius, oferecia o argumento ne-cessário para o funcionamento completodessa fórmula, ao afirmar que a sociedadeseria o resultado da soma de todas as partescontidas em seu interior (SANTOS, 2002, p.15). Sendo assim, numa relação recíproca, obom funcionamento de todos segmentos (in-divíduo, sociedade e Estado) seria dado pe-las garantias fundamentais oferecidas pe-las leis e sustentadas por todos os segmen-tos sociais.

Reunindo os argumentos de Montes-quieu e Helvétius, vem à baila, na décadade 1760, o livro Dos Delitos e das Penas, deCesare Beccaria. Nessa obra, o autor acataa idéia de que a sociedade é a soma de seusindivíduos e de que não há sentido no po-der que vá além daquilo que está estabeleci-do. Contudo, Beccaria acrescenta outrospontos. Para ele, a lei ideal seria aquela queproporciona a “máxima felicidade compar-tilhada pela maioria” (BECCARIA, 1999, p.40), principalmente porque, se é verdade queos homens para viverem em sociedade en-tregaram uma parte de suas liberdades vi-sando o bem comum, é também verdadeiraa afirmação de que isso ocorreu tão-somen-te para que cada um atingisse particular-mente o máximo de felicidade possível. Ditode outra forma, a “soma das partes” queacaba formando a sociedade é um “cami-nho de mão dupla”, ou seja, se, por um lado,cada um contribuiu para a formação do gru-po social, por outro lado, cada um esperaatingir a sua felicidade particular, indivi-dual, dentro do grupo em questão. Admitirisso significa aceitar o argumento de Mon-tesquieu sobre a função dos Poderes de Es-tado; admitir isso significa entender que anecessidade das leis e, mais particularmen-te, das penas somente é possível desde quederive da “necessidade absoluta”: caso con-trário, a lei e a punição perderiam suas qua-lidades primárias e seriam transformadasem atitudes tirânicas. Por essas razões, Bec-

caria defende então a idéia de que a lei deveser produzida com o intuito de facilitar abusca à felicidade, nunca o contrário.

Entretanto, o autor admite que algunsindivíduos podem exceder seus direitos e,com isso, provocar um mal estar a outros.Como, então, seriam estabelecidas as penas?A primeira preocupação, diz esse autor, éidentificar o grau de utilidade que uma penaoferece à sociedade. Ao contrário dos argu-mentos anteriores que viam a punição comoalgo que operava unicamente com o intuitode atingir o criminoso, Beccaria afirma queuma penalidade apenas tem sentido se efe-tivamente produzir ganhos reais à socieda-de, ou seja, se ela for efetivamente útil à feli-cidade da maioria (BECCARIA, 1999, p. 61).Sabendo-se que uma punição não possui opapel de “desfazer um delito”, nas palavrasdo próprio autor, é “necessário escolher pe-nas e modos de infligi-las, que, guardadasas proporções, causem a impressão maiseficaz e duradoura no espírito dos homens”(BECCARIA, 1999, p. 62). Assim, inverten-do um dos argumentos de Hobbes, se o fun-cionamento de uma lei – principalmenteaquela que trata das punições – está direta-mente vinculado ao “medo” que sua apli-cação pode produzir, não é na severidadeda pena que esse medo aparecerá, mas simna rapidez do julgamento – pois, “quantomais a pena for rápida e próxima ao delito,tanto mais justa e útil ela será” (BECCARIA,1999, p. 79) – e na constância de sua aplica-ção:

“não é a intensidade da pena que pro-duz o maior efeito sobre o espíritohumano, mas a extensão dela; pois anossa sensibilidade é mais fácil e maisconstantemente afetada por impres-sões mínimas, porém, renovadas, quepor um abalo forte mas passagei-ro”(BECCARIA, 1999, p. 96).

Nesse sentido, afirma Beccaria, é muitomais racional uma ação pública que viseevitar o delito do que uma que se preocupetão-somente em aplicar punições (BECCA-RIA, 1999, p. 30):

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“é melhor prevenir os delitos do quepuni-los. É este o escopo principal detoda boa legislação, que é a arte deconduzir os homens ao máximo defelicidade ou ao mínimo de infelici-dade possível, conforme todos os cál-culos dos bens e dos males da vida”.

Sendo assim, aceitar a possibilidade dese excluir permanentemente um indivíduodo meio social será, antes de mais nada,admitir o fracasso da própria sociedade edos poderes públicos na educação destemesmo indivíduo, posto que o meio social eo Estado possuem um instrumental mais doque necessário para prover qualquer mem-bro das condições mínimas de civilidade.

Em outro aspecto, condená-lo à morteseria também entrar em contradição com adefinição daquilo que vem a ser uma socie-dade: a soma de todos os seus indivíduos.Se uma pessoa, durante certo tempo, contri-buiu para a formação e funcionamento desua sociedade, ela não pode ser descartadasumariamente, pouco importando o delito.

Por último, não haveria ganho nenhumpara a sociedade com a condenação de al-guém. Segundo Beccaria (1999, p. 96):

“não é o espetáculo terrível mas pas-sageiro da morte de um celerado, e simo longo e sofrido exemplo de um ho-mem privado da liberdade e que, con-vertido em besta de carga, recompen-sa com seu trabalho aquela sociedadeque ofendeu, que constitui o freio maisforte contra os seus delitos. Aquelarepetição a si mesmo, eficaz por seuinsistente retorno, ‘eu mesmo serei re-duzido a tal longa e mísera condiçãose cometer semelhantes delitos’, émuito mais poderosa do que a idéiada morte, que os homens sempre vêemlongínqua e obscura”.

Aproximadamente trinta anos depois deBeccaria ter publicado seu livro, Jeremy Ben-tham potencializa esse argumento. Aceitan-do a idéia da máxima felicidade (que, emseu texto, assume outra terminologia, a sa-ber, a relação existente em todos os homens

entre a dor e o prazer), Bentham (1989, p.60-62) defende que, nos casos das punições,a lei deve possuir duas características fun-damentais: a primeira, que o castigo deveser aplicado quando efetivamente valer a penafazê-lo e, a segunda, que a lei deve induzir ocriminoso a praticar o delito menos grave,aumentando ou diminuindo a punição con-forme as ações cometidas ao se materializaro delito ou, nas suas palavras:

“I – o valor ou gravidade da puni-ção não deve ser em nenhum caso in-ferior ao que for suficiente para supe-rar o valor do benefício da ofensa oucrime; II – quanto maior for o prejuízoderivante do crime, tanto maior será opreço que se pode valer a pena pagarno caminho da punição; III – quandohouver dois crimes em concorrência,a punição estabelecida para o crimemaior deve ser suficiente para indu-zir uma pessoa a preferir o menor; IV– a punição deve ser regulada de talforma para cada crime particular, quepara cada nova parte ou etapa do pre-juízo possa haver um motivo que dis-suada o criminoso de produzi-la; V –a punição apenas deve ocorrer quan-do o seu custo não for superior ao va-lor do crime cometido.”

Muito mais pragmático do que Beccaria,Bentham entende, pelo que nos foi possívelexaminar, que todas as leis devem ser pro-duzidas a partir da relação custo/benefíciopara todo o conjunto da sociedade (enten-dida, também, por ele como sendo a somade todos os indivíduos). Quando uma leiproduzir mais dor do que prazer ou, para ocaso das punições, seu custo não for com-pensador, o resultado de ambos os casos éque a sociedade será punida e, portanto, essetipo de legislação deve ser descartado.

Em ambos os autores, observa-se o pro-blema de um prisma distinto daquele quevimos anteriormente. Para o primeiro caso– os argumentos que entendem como umaopção plausível a exclusão permanente deum indivíduo do meio social –, identifica-

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mos que a preocupação fundamental residena aplicação da penalidade. Para esses úl-timos, a pergunta que se faz é saber até queponto esse tipo de punição oferece umganho para o meio social e, com isso, anegativa para uma pena de tal espéciereside em ser ela, a priori, completamentedesnecessária.

3. À guisa de uma conclusão ou oinício de um novo debate

Observamos, ainda que sucintamente, osargumentos que foram produzidos ao lon-go do tempo para apoiarem ou não a penade morte ou, para usarmos uma expressãomais exata, a exclusão permanente de umindivíduo do meio social. Poderíamos, comouma primeira conclusão, perceber que aconstrução de cada um desses argumentosnão nos oferece condições para uma com-paração: para aqueles que defendem a penacapital, a preocupação primária reside empura e simplesmente punir o criminoso; paraos que são contra esse tipo de pena, a preo-cupação reside na utilidade que isso teriapara o bem-estar da sociedade. De maneiracuriosa, percebe-se a inversão dos valoresque cotidianamente aparecem nas análisesmais tradicionais, ou seja, quanto mais pró-xima está a defesa dos interesses da socie-dade, mais próxima está a ação sobre o in-divíduo; da mesma forma que o inverso éverdadeiro: quanto mais se pretende defen-der o indivíduo, mais se quer manter a socie-dade como um bem a ser preservado.

Um segundo aspecto seria observar que,para cada uma das opções, a definição quese tem do “ser humano” é distinta. Para osdefensores da pena capital, ou bem o indi-víduo é descartado de qualquer avaliação eleva-se em conta tão-somente a sociedade(como é o caso da legislação romana ou, poroutros meios, dos fundamentos do mundomedieval), ou bem o indivíduo possui umanatureza anti-social e que seu convívio comoutros indivíduos apenas é possível quan-do todos estão sob o rígido controle do po-

der público (de acordo com os termos deHobbes). Já no extremo oposto, daqueles quesão contrários a esse tipo de punição, o in-divíduo é entendido como peça primordialna constituição da sociedade (a sociedadecomo a soma de todas as partes), daí, ex-cluí-lo permanentemente do meio social seralgo inconcebível. Portanto, a segunda con-clusão que podemos chegar é que a puniçãoestá diretamente vinculada à maneira pelaqual o indivíduo é definido pela sociedadecivil – o que nos impede, mais uma vez, detecer qualquer tipo de comparação.

Todavia, isso não nos basta. Frente aoexposto, poderíamos, então, acatar a idéiade que a existência ou não da pena de morteestá por completo vinculada ao arranjo po-lítico da sociedade em questão. Noutraspalavras, como os argumentos são distin-tos e não propiciam uma comparação parase saber qual dos dois seria o mais aplicávelou mais sensato, a escolha de se ter tal tipode pena estaria dependente dos conflitos emodelos de organização política entre osrepresentantes da nação no parlamento.Seria, em última análise, uma mera questãode se escolher entre um ou outro a partir doembate político.

Porém, se aceitarmos tal afirmação – deque tudo não passa de uma opção por estaou aquela fórmula –, torna-se necessárioidentificarmos, caso isso seja possível, quetipo de configuração política determina estaou aquela escolha, ou seja, quais as conjun-turas políticas que tendem mais a aceitar aexclusão permanente de um indivíduo equais as conjunturas que não acatam essaidéia.

Nesses termos, em um levantamento su-mário em que se teve a preocupação de ob-servar países desenvolvidos e subdesenvol-vidos do Mundo Ocidental6 na atualidade,foi possível constatar, em um primeiro mo-mento, a substituição paulatina da pena demorte pela prisão perpétua (em ambos oscasos, a exclusão permanente do indivíduoem relação ao meio social): à exceção daHolanda, Dinamarca e da Alemanha, em

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todos os países desenvolvidos a legislaçãoprevê a prisão perpétua, sendo a pena demorte exclusiva dos Estados Unidos, Gré-cia e Irlanda (vale ressaltar que Espanha eBélgica, originariamente defensoras da penacapital, apenas recentemente alteraram alegislação nesse sentido). Inversamente,observa-se que, nos países subdesenvolvi-dos, inexiste qualquer uma dessas punições,com as penas mais severas nunca ultrapas-sando trinta ou quarenta anos de reclusão(exceção para o Chile e a Argentina, quepossuem uma legislação que prevê a prisãoperpétua).

Frente a esses dados, o que poderíamospressupor? Podemos entender como derra-deira conclusão, aqui transformada numaHipótese, que a escolha política pela exclu-são definitiva do indivíduo do meio socialestá diretamente vinculada ao desenvolvi-mento econômico e humano do país ou, emoutros termos, quanto mais próximo de umademocracia social, mais torna-se aceita apena de morte ou a prisão perpétua; quantomais distante de uma democracia social,menos a legislação prevê esse tipo de puni-ção. Ainda dentro dessa Hipótese, tal fatoocorreria em virtude da não aceitação de queum indivíduo se utilize de atos violentos(sejam eles de qualquer espécie) em umasociedade em que as condições de vida sus-tentadas tanto pelo poder público quantopelo meio social conseguem suprir aquelemínimo necessário para a sobrevivência dig-na. Da mesma forma, o inverso é verdadei-ro: quanto menos digna é a vida dos indiví-duos no dia-a-dia de uma sociedade – pou-co importando aqui se é pela incapacidadedo Estado em solucionar as desigualdadessociais e econômicas ou, então, por proble-mas puramente de ordem sociológica –,menos é aceitável sua completa exclusãosocial.

Sendo assim, ainda que nos países eco-nômica e socialmente desenvolvidos existao princípio das garantias individuais, es-ses mesmos países assumem o custo de ex-cluir permanentemente um indivíduo que

rompa todas as regras básicas de civilidadee boa convivência, transformando-se, assim,numa punição justa...portanto. Da mesmaforma o inverso é verdadeiro, ou seja, ospaíses subdesenvolvidos que adotassem talmodalidade de pena estariam, no final dascontas, punindo certos indivíduos duas ve-zes: pela miséria que convivem diariamen-te e pela exclusão definitiva do meio social,que já os “exclui” cotidianamente. Umapunição injusta, por...tanto.

Notas1 Trata-se da legislação aprovada pelo estado

de Nova Iorque, nos EUA, que, após os atentadosde 11 de setembro de 2001, reeditou a pena demorte como tentativa de se evitar novos atos terro-ristas.

2 Esses comentários podem ser observados noDireito Romano, Tábuas Segunda, Sétima e Nona.

3 Tanto no aspecto teórico quanto na descrição,um bom exemplo sobre tema pode ser visto emSanto Tomás de Aquino (1997); Kramer; Sprenger(1995).

4 Por ordem do rei Carlos IX, houve um massa-cre de protestantes em Paris e diversas partes daFrança.

5 É a observação feita pelo autor e amplamenteconhecida. Para maiores esclarecimentos, cf. Se-condat (1973) (particularmente, o livro XI).

6 Nossa amostra insere os seguintes países: naAmérica: Brasil, Equador, México, Argentina, Uru-guai, Venezuela, Peru, Bolívia, Canadá, Chile e Es-tados Unidos; na Europa: Inglaterra, Portugal,Espanha, França, Hungria, Áustria, França, Bél-gica, Holanda, Alemanha, Dinamarca, Suécia,Noruega, Rússia, Irlanda e Grécia. As informa-ções foram obtidas junto às embaixadas dessespaíses no Brasil e junto aos órgãos da UniãoEuropéia.

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Roberto Freitas Filho

IntroduçãoNo presente trabalho, pretendo discutir

a mudança do padrão jurídico normativono direito brasileiro no período posterior àConstituição Federal de 19881 e suas conse-qüências para o ensino jurídico e para aaplicação das normas a casos concretos.

Trabalho com o pressuposto de que vi-vemos um momento de transição paradig-mática no direito brasileiro que resulta, en-tre outras, na mudança do padrão normati-vo de normas semanticamente mais preci-sas e menos vagas – as quais chamo de nor-mas fechadas – a normas semanticamentemenos precisas e mais vagas – as quais cha-mo de normas abertas. Essas têm como carac-terística principal o fato de terem uma maioramplitude de significação do que as primei-ras e, devido a tal fato, pressupõem umamudança do padrão de atividade judicantepor parte do intérprete-aplicador do direito.

O ensino jurídico e a mudança do modelonormativoNormas fechadas x normas abertas

Roberto Freitas Filho é Mestre e Doutoran-do em Direito pela USP, Professor de Direitodo Consumidor e de Introdução ao Estudo doDireito, respectivamente no UniCEUB e no IESB,ambos em Brasília, DF.

SumárioIntrodução. 1. O problema do ensino jurídi-

co.1.1. Cultura jurídica. 2. Ensino jurídico e seuobjeto (a economia, a globalização e o direito).2.1. A globalização. 3. A mudança no padrãonormativo: normas fechadas x normas abertas. 4.O problema da interpretação: ceticismo x inter-pretação correta. 4.1. Inafastabilidade dos juízosvalorativos. 4.2. Desconstrutivismo, pragma-tismo e função da interpretação. 5. A aplicaçãodas normas abertas e sua problematicidade: odes-fecho da discussão.

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Os problemas que movem a investiga-ção são: a) a teoria jurídica vem-se adequan-do às mudanças do modelo normativo pre-ponderante na dogmática vigente? b) qual aconseqüência da mudança do padrão nor-mativo para a atividade de interpretação eaplicação do direito desempenhada pelosatores jurídicos?

1. O problema do ensino jurídico

A chamada “crise do ensino jurídico”vem sendo discutida no Brasil, sistematica-mente, há duas décadas de forma vigorosa.As reflexões de José Eduardo Faria e de Joa-quim de Arruda Falcão Neto, por todas asdemais, demonstram emblematicamente aimportância que o tema assumiu no momen-to da transição para a democracia2.

A crise pode ser conceituada como a in-capacidade do ensino do direito de se adap-tar às novas condições de produção e apli-cação das normas, considerando os câno-nes conceituais e hermenêuticos de um tipode ensino que tem suas origens na tradiçãocoimbrã do século XIX. O direito não foi ca-paz de adaptar-se à nova realidade da soci-edade brasileira, que se modificara radical-mente no período compreendido entre asdécadas de 40 e 90, passando o Brasil de serum país predominantemente composto deuma população rural para se tornar um paísde população urbana. Na década de 40,aproximadamente 70% da população erarural, sendo que esse percentual cai, na dé-cada de 90 para aproximados 25%3.

Decorrência da mudança do perfil dedistribuição social brasileiro, vários confli-tos de natureza coletivizada surgiram,acompanhados de conseqüentes demandasque foram levadas ao Judiciário4. Questõesde ocupação de espaços periféricos nas gran-des cidades; acesso à saúde, educação, mo-radia; questões relativas à segurança públi-ca; direitos dos consumidores são apenasalguns exemplos dos conflitos que se ins-tauram na sociedade complexa em que vi-vemos.

1.1. Cultura jurídica

A crise do ensino jurídico pode ser veri-ficada em dois momentos distintos: na for-mação do ator jurídico e na sua atuação prá-tica como profissional do direito. Tanto naaplicação do direito quanto na formaçãodo ator jurídico, está presente um conjun-to de práticas, valores, procedimentos,concepções, condicionantes culturais ehistóricas que compõem um ideário doator jurídico.

Lopes (1997, p. 76-77), citando Friedman,dá uma definição complessiva do que é acultura jurídica:

“São as atitudes que fazem do sis-tema um todo, uma unidade, e quedeterminam o lugar dos aparelhos edas normas na sociedade globalmen-te considerada. A cultura jurídica en-globa tanto as atitudes, hábitos e trei-namento dos profissionais quanto docidadão comum. A esfera da culturajurídica envolve as questões de comose preparam os juízes e os advogados,o que os cidadãos pensam do Direito,quais as pessoas ou grupos que recor-rem aos juízes e tribunais, para que sesocorrem de advogados, qual a rela-ção entre a estrutura de classes da so-ciedade e o uso ou não das institui-ções jurídicas. Estas e outras questõesdizem respeito à cultura jurídica, ou,usando outras palavras, ao imaginá-rio jurídico, quer dos profissionais,quer dos leigos.”

O conceito de cultura jurídica é, portan-to, relativo à praxis cotidiana do operadordo direito, informada por uma determinadabagagem valorativa e conceitual que lhe éinculcada durante sua formação.

É possível se diferenciar dois momentosnos quais o operador jurídico lida com achamada cultura jurídica. Um primeiromomento é o de uma cultura jurídica de for-mação e, conseqüentemente a esse primeiromomento, há uma cultura jurídica de atua-ção prática do direito5.

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1.1.1. Cultura jurídica de formaçãodo ator jurídico

Sobre a noção de cultura jurídica de for-mação do ator jurídico, Warat nos aponta ochamado “senso comum teórico” dos juris-tas como sendo um certo condicionamento,“em suas práticas cotidianas, por um con-junto de representações, imagens, noçõesbaseadas em costumes, metáforas e precon-ceitos valorativos e teóricos que governamseus atos, suas decisões e suas atividades”6.O ator jurídico recebe, ao longo da suaformação, a transmissão de uma bagagemque vai conformar sua forma de ver e enten-der o direito como um repositório valorati-vo, uma tecnologia decisória e um sistemaconceitual7.

A cultura jurídica de formação vai legarao operador do direito um dado universoconceitual, uma determinada matriz ideo-lógica que lhe confere, conseqüentemente,um tipo de socialização política e tambémde função social.

A formação do ator jurídico é dada apartir de duas diferentes visões sobre o di-reito. A veiculação da cultura jurídica nasfaculdades dá-se numa perspectiva preten-samente científica, por um lado, e ideológi-ca, por outro. Na primeira, é conferida aoestudante uma visão do que seja o direito,de ciência do direito, do método de conheci-mento do fenômeno jurídico e da aplicaçãoprática do direito enquanto sistema norma-tivo. De outro lado, os padrões da capacita-ção profissional do ator jurídico, significan-do o conjunto de atitudes e procedimentosdo ator jurídico em seu exercício profissio-nal. As duas visões ora expostas são as cha-madas visão lógico-formal e a visão liberal8. Avisão lógico-formal se funda no normativis-mo lógico e a visão liberal, nos princípiosgerais da ideologia liberal importada daEuropa.

A visão lógico-formal

A visão lógico-formal9 faz conferir aodireito seu caráter científico, conformando

o estudo da dogmática jurídica a um estudoda forma normativa, reduzindo, assim, odireito ao aspecto normativo desvinculadodas disciplinas que o fundamentam ou tan-genciam, como a Filosofia, a Economia, aCiência Política e a Sociologia, por exem-plo. O método privilegiado, nessa concep-ção de direito, é o método dedutivo, que par-te de dogmas fora do conhecer jurídico. Talmétodo não possui caráter científico, já quesua verificação e objetivação progressivanão são atingíveis. A característica básica éa predominância do estudo do direito posi-tivo, sendo o direito válido apenas o direitoestatal, o que redunda na noção de que odireito é uno e monolítico.

Do ponto de vista hermenêutico, a no-ção de subsunção dedutivista acaba porprivilegiar a idéia de um sentido literal danorma ao qual o aplicador deverá se aterpara realizar a aplicação adequada do co-mando normativo ao caso. Aqui vemos aidéia prevalecente de uma aplicação da nor-ma ao modo da Escola da Exegese francesado século XIX, ou mesmo uma visão aproxi-mada aos pandectistas na Alemanha nomesmo período. Ao aplicador da norma éapenas reservada uma função mecânica esem criatividade10.

Características como a predominânciada visão da legalidade e da validade comoconceitos privilegiados, o trato das discipli-nas de forma estanque, a não interdisci-plinariedade e a desconsideração da políti-ca na influência da criação da norma fazemdo ator jurídico um aplicador acrítico e nãoquestionador do direito e das normas.

A visão liberal

A visão liberal define o ideário da pro-fissão jurídica, bem como responde pela vi-são de integração do direito na sociedade,com o apelo aos valores de liberdade, igual-dade e fraternidade. De forma conseqüente,no âmbito político são adotadas a democra-cia e a tripartição dos poderes e no âmbitoeconômico, o sistema de concorrência e ocapitalismo.

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A cultura jurídica veiculada nas facul-dades de direito tem a dupla função de sele-ção dos conflitos levados ao Judiciário e delegitimação do poder no nível simbólico11.A primeira se realiza pela seleção dos pró-prios tipos de demandas levadas ao Judici-ário, bem como nos padrões decisórios apli-cados aos casos. A segunda se realiza namedida em que reforça a estrutura socialhierárquica justificada por meio do ideárioliberal, bem como do método pedagógicoaplicado12. A liberdade e a igualdade jurídi-cas formais, em nome das quais advoga oator jurídico, são, dadas as evidentes condi-ções sociais iníquas, apelos retóricos que nãorepresentam na prática uma busca da reali-zação de justiça distributiva13.

A par da existência de uma cultura jurí-dica de formação do ator jurídico, é possíveltambém identificarmos uma dada culturajurídica de atuação do ator jurídico.

1.1.2. Cultura de atuação práticado ator jurídico

Um outro viés da cultura jurídica é aque-la que se revela na praxis do ator jurídico, nocotidiano de suas atividades profissionais.Ao operar o direito, vai colocar em prática oconjunto de práticas e valores que consigotraz desde a sua formação e que influenciamtanto a consciência que tem de seu papelsocial como a forma como lida com o direitodo ponto de vista técnico. É no momento daprática profissional que se materializam osconceitos dogmáticos “científicos” com osquais o estudante foi formado, bem como,por meio de suas atitudes, o resultado dasocialização política perpetrada nos bancosescolares.

Na observação do posicionamento doator jurídico em face de determinados temase nas próprias posições teóricas defendidas,poderemos configurar algumas hipóteses aesclarecer o compromisso do mesmo frentea sua matriz cultural de formação. Jori (1990,p. 233), falando sobre a cultura jurídica deaplicação do direito e sobre o significado dachamada “ciência do direito”, ressalta:

“Therefore, the simple core of theentire notion of the rule of law is theidea that lawyers and judges produ-ce, and make use of, a description oflaw, which is a real science of law,where the law is conceived as an ob-ject prior to and independent from itsdescription”.

Em temas relevantes como o direito e osmovimentos populares, a participação po-lítica, a chamada “aplicação alternativa dodireito”, na aplicação das penas alternati-vas em direito penal, na lida com os mean-dros processuais dos processos civil e tra-balhista, em todos esses, aos quais exem-plificativamente nos remetemos, é possívelidentificarmos uma postura de maior oumenor conservadorismo, liberalidade, refor-mismo, entre outras características.

É possível se identificar, no modelo decultura jurídica que o bacharel recebe etransmite, a idéia de um conceito de direitocomo um sistema de normas que teria sidofeito e pensado para a resolução de proble-mas em uma sociedade na qual, do pontode vista das partes envolvidas, os conflitosfossem resultantes de divergências entre in-divíduos mais ou menos padronizados e,do ponto de vista do conteúdo, versassemsobre questões contratuais e patrimoniaisno direito privado e, por outro lado, no di-reito público, do indivíduo contra interven-ções injustas e arbitrárias do Estado em suaesfera privada.

Esse modelo de direito e de cultura jurí-dica não se mostrou suficientemente eficazpara responder às demandas da sociedadea partir da segunda metade do século XX,dadas as alterações na conformação do pa-pel do Estado e dos conflitos levados ao Ju-diciário frente à autocompreensão de seupapel social e teórico-funcional.

2. Ensino jurídico e seu objeto (aeconomia, a globalização e o direito)

O conceito de crise está relacionado coma idéia de uma fase difícil, grave, na evolu-

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ção das coisas, dos fatos, das idéias. Tam-bém podemos encontrar a referência léxicaao termo crise associada a tensão, conflito,alteração, acidente, manifestação violenta erepentina de ruptura de equilíbrio. Pensarnuma alteração de forma rápida, repentina,mudando um dado estado de coisas nos aju-da a compreender a idéia de uma crise noensino jurídico.

Ocorreram transformações importantesno campo da economia e da geopolítica in-ternacional que redundaram na falência domodelo de direito concebido no século XIXpara dar resposta aos conflitos apresenta-dos a seus operadores. Podemos dizer que,a partir da segunda metade do século XX,vêm ocorrendo mudanças avassaladoras nocampo da economia que acabam por fazercom que o paradigma14 da cultura jurídicaveiculado nas faculdades de direito e prati-cado na forma de uma cultura de aplicaçãodo direito tenha se tornado insuficiente pararesponder às demandas da sociedade porsoluções satisfatórias dos conflitos existen-tes.

A mudança de perfil de ocupação do es-paço na sociedade brasileira, ocorrida du-rante o século XX, conforme já mencionadono item 1, causou uma série de importantesmudanças nos conflitos levados ao Judiciá-rio, que passou a viver a tensão entre fazer aaplicação acrítica da norma, por um lado, efazer justiça por outro. Conflitos de nature-za coletivizada surgiram, acompanhados deconseqüentes demandas que foram sendolevadas ao Judiciário. Os problemas decor-rentes da exclusão social de um modo geral,como o acesso à saúde, educação, moradia,são conflitos que se instauram na socieda-de complexa em que vivemos. Segundo Fa-ria (1991, p. 98),

“essa transformação da infra-estrutu-ra social acarretou, como decorrência,a ruptura dos valores tradicionais dosdiferentes grupos e classes, um pro-cesso migratório contínuo, maioragressividade de comportamentos,novos modos de reinserção sócio-po-

lítica, a emergência de estruturas pa-ralelas de representação ao lado dosmecanismos representativos tradicio-nais e, sobretudo, o aparecimento denovas demandas por segmentos soci-ais desfavorecidos e não geradores dereceita”.

O argumento do autor é de que há umatendência ao esgarçamento do tecido sociale o Judiciário se vê com novos tipos de con-flitos a serem resolvidos.

Além da questão interna das demandasde populações excluídas em decorrência doprocesso migratório, a globalização tambémse apresenta como um fenômeno que põeem xeque alguns conceitos fundamentaispara o paradigma teórico do século XIX. Asidéias de soberania territorial, de territoria-lidade da aplicação da lei, monismo jurídi-co, segurança jurídica, por exemplo, não re-sistem a uma ordem mundial em que o sis-tema financeiro internacional consegue pro-eminência na determinação de políticaspúblicas internas e consegue também con-dicionar reformas legais e influenciar de for-ma significativa a realização de uma refor-ma do Poder Judiciário. Segundo Faria(1999, p. 39), a idéia de Estado-nação comounidade privilegiada e exclusiva de gestãoeconômica, direção política, controle sociale iniciativa legislativa está sendo questio-nada, estando o direito num momento deexaustão paradigmática. Diz o autor que,

“Dada a impressionante rapidezcom que muitos dos conceitos e cate-gorias fundamentais até agora preva-lecentes na teoria jurídica vão sendoesvaziados e problematizados pelofenômeno da globalização, seus códi-gos interpretativos, seus modelos ana-líticos e seus esquemas cognitivos re-velam-se cada vez mais carentes deoperacionalidade e funcionalidade”.

A sociedade brasileira contemporâneanão é mais a sociedade na qual e para a qualo direito, segundo o paradigma liberal e le-galista kelseniano, foi concebido. Já no iní-cio da década de 90, Faria (1991, p. 110) in-

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dicava exemplos de incapacidade do mo-delo jurídico de dar respostas aos proble-mas existentes. Conflitos relativos ao direi-to de greve e à ocupação de terras – portantocoletivizados – são apontados como exem-plos do esgotamento da operacionalidadedas decisões judiciais.

Outra característica decorrente da trans-formação da infra-estrutura social no Brasilé a complexificação das relações sociais. Háuma multiplicidade crescente de tipos deconflitos, com atores envolvidos nas maisdiversas situações processuais e demandan-do direitos de diferentes gerações. A idéiade linearidade e permanência com a qual oparadigma tradicional funciona é pouco útilquando se pensa na efetivação dos direitossociais previstos constitucionalmente, porexemplo. Como garantir-se o acesso ao tra-balho15 como meio de realização da existên-cia digna do homem se é próprio ao incre-mento da mecanização e informatização daprodução que cada vez mais se tenha de-semprego estrutural em taxas crescentes? Oque dizer do direito à previdência social quan-do, por exemplo, se tem a Justiça do Trabalhoatuando como agente de sonegação previden-ciária, na medida em que se desprezam osrecolhimentos devidos em nome da produti-vidade de decisões judiciais?16

A existência de normas abertas, como severifica na Constituição Federal de 1988, é oresultado da demanda social pela proteçãode direitos típicos de segunda e terceira ge-rações. Faria (1989, p. 18) indica uma inte-ressante característica do processo políticode construção da Constituição:

“Ao evitarem partir de um textobásico como o da Comissão Arinos ouo que poderia ter sido escrito por umagrande Comissão constitucional e aotrabalharem sem um diagnóstico dascrises econômica, social ou política emcondições de sustentar e balizar suasestratégias de negociação, os consti-tuintes acabaram agindo em confor-midade com as pressões contraditóri-as dos lobbies, das corporações e dos

movimentos organizados. Essa é arazão pela qual os constituintes, ape-sar de terem fortalecido o Estado, au-mentando seus serviços, alargandosua burocracia, multiplicando seusinstrumentos e cobrindo amplos do-mínios da vida social com uma espes-sa malha regulamentar, não consegui-ram evitar nem o risco da fragmenta-ção conceitual e ideológica da novaCarta nem a ilusão de que, a partirdela, a justiça social poderia ser asse-gurada pela simples produção de no-vas leis e novos códigos”.

2.1. A globalização

Embora não seja um termo unívoco, “glo-balização econômica” diz respeito a um fe-nômeno que pode ser descrito como a inten-sificação dos efeitos da chamada “econo-mia mundo” nos demais campos dos dife-rentes processos sociais. Na economia mun-do, os agentes econômicos têm seu poderioaumentado de forma nunca vista. O campoda economia passa a ter proeminência emrelação ao campo da política, do direito, daciência, da religião, etc.

As tecnologias informacional e de trans-portes têm modificado o panorama das re-lações comerciais e sociais de forma signifi-cativamente importante nas últimas duasdécadas. Tais mudanças resultam no apa-recimento de uma estrutura político-econô-mica multipolar incorporando novas fon-tes de cooperação e conflito tanto no movi-mento do capital quanto no desenvolvimen-to do sistema mundial17.

A função do direito num contexto de glo-balização econômica se modifica e os con-ceitos operativos do paradigma kelseniano-exegético não mais se apresentam como ap-tos a fornecerem respostas satisfatórias adeterminadas questões que são apresenta-das ao Judiciário. Veja-se, à guisa de maisum exemplo, a idéia de territorialidade dalei: o Superior Tribunal de Justiça, em julga-do recente, decidiu responsabilizar a Pana-sonic do Brasil por um vício em uma câma-

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ra filmadora comprada fora do território bra-sileiro, cuja curiosa ementa é a seguinte18:

“Direito do consumidor. Filmado-ra adquirida no exterior. Defeito damercadoria. Responsabilidade daempresa nacional da mesma marca(“PANASONIC”). Economia globali-zada. Propaganda. Proteção ao con-sumidor. Peculiaridades da espécie.Situações a ponderar nos casos con-cretos. Nulidade do acórdão estadualrejeitada, porque suficientemente fun-damentado. Recurso conhecido e pro-vido no mérito, por maioria”.

A mudança dos conceitos com os quaiso operador do direito trabalha está relacio-nada com a questão relativa ao conteúdo doensino jurídico. O que ensinar como sendoo direito válido se o próprio direito passapor um momento de exaustão paradigmáti-ca? Da perspectiva da cultura jurídica, aidéia de um direito estatal monolítico vemsendo corroída progressivamente. Da pers-pectiva institucional, vemos um movimen-to de tentativa de reforma do Poder Judiciá-rio. Da perspectiva normativa (que obviamen-te não está dissociada das duas dimensõesanteriores), vemos uma mudança do padrãonormativo que denomino como a passagemdas normas fechadas às normas abertas.

3. A mudança no padrão normativo:normas fechadas x normas abertas

Como vimos, o direito passa por ummomento crítico. Há uma limitação estrutu-ral-funcional do direito positivo em face daglobalização e da mudança na tipologia dosconflitos que chegam ao Judiciário, na se-gunda metade do século XX e, mais precisa-mente entre nós, a partir do contexto da tran-sição democrática.

Com o aumento da complexidade dasrelações sociais contemporâneas e a multi-plicidade de papéis sociais que daí advêm,o paradigma do direito kelseniano-exegéti-co não mais consegue subsistir eficazmen-te. As normas padronizadas e formuladas

abstratamente para serem subsumidas acasos concretos têm de ser progressivamen-te ampliadas na sua significação. A idéiade um sistema fechado, imune a contradi-ções, sem lacunas e absolutamente lógico-formal não dá conta de responder a rela-ções multifacetárias e diferenciadas. Faria(2002, p. 76) comenta o problema dizendo quetais normas “são singelas demais tanto paradar conta de uma pluralidade de situaçõessociais, econômicas, políticas e culturais cadavez mais funcionalmente diferenciadas”.

O ordenamento passa a ser composto,predominantemente, de normas semantica-mente abertas, ao invés de normas semanti-camente fechadas. Chamo de normas aber-tas aquelas que se caracterizam pelo fato denão conterem uma dada conduta que possaser direta e objetivamente verificada. Os au-tores divergem quanto a nomear essa tipo-logia de normas, mas o que em todos é pos-sível se identificar como traço característicodelas é que não enunciam uma determinadaconduta, mas qualificam uma conduta. Dasnormas abertas, não é possível se aplicar odireito pela subsunção imediata do fato aelas, mas antes é necessário extrair-se delasuma regra que possa identificar uma con-duta especificada em uma ação ou omissão.

A distinção ente normas abertas e nor-mas fechadas não diz respeito à moldurade possíveis significações de Kelsen (1991,p. 366). Para o autor, todas as normas sãopolissêmicas e, dessa forma, a questão dainterpretação do sentido a ser dado para anorma ao caso concreto fica adstrita a umato de vontade do aplicador, o que nãopermite um critério científico para que se digaqual interpretação é a correta. Kelsen, aliás,na Teoria Pura se nega declaradamente a apro-fundar a análise do direito do ponto de vistada hermenêutica, já que para ele não há comotratar dessa temática “cientificamente”19.

Exemplo de um autor que distingue asnormas pela amplitude de significação quepossuem é Karl Larenz (1997, p. 300). Eledistingue as “normas conceito” das “nor-mas tipo”. Quanto às primeiras, diz que “só

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se pode falar de um ‘conceito’ em sentidoestrito quando for possível defini-lo clara-mente, mediante a indicação exaustiva detodas as notas distintivas que o caracteri-zam”. Com relação à norma conceito, é pos-sível se fazer a subsunção de forma direta,imediata. A definição de norma conceito é aseguinte, segundo Larenz (1997, p. 307):

“Um conceito está fixado por meioda sua definição, de tal modo que hajade aplicar-se a um evento concreto ousituação de facto ‘só quando e sempreque’ se possam (sic) nele encontrar oconjunto das notas características dadefinição. Esta proposição não valepara o tipo.”

Quanto ao tipo, esclarece Larenz (1997,p. 308):

“O tipo não se define, descreve-se.Não se pode subsumir à descrição dotipo; mas pode-se, com a sua ajuda,ajuizar se um fenômeno pode ou nãointegrar-se no tipo. ... O legislador con-forma o tipo tendo em vista as conse-qüências jurídicas que nele coenvol-ve, e nestes termos, a valoração quenele plasma. ... Exemplos como ‘eco-nomia doméstica’ ou ‘empresa econó-mica’, assim como todos os demaispontos de vista evidenciados pela ca-suística cobram aí o seu limitado va-lor enunciativo. Sem o ponto centralde referência da ratio legis seriam maisou menos casuais – meros topoi”.

Com respeito à metodologia de aplica-ção, as normas conceito se diferenciam dasnormas tipo pelo fato de que, nas primeiras,a subsunção é feita predominantemente20 deforma isenta de valoração. O grau de segu-rança21 jurídica aqui é, comparativamenteao das normas abertas, alto. Já no segundomodelo, o preenchimento do conteúdo é al-cançado “mediante a consciência jurídicageral dos membros da comunidade jurídi-ca, que não só é cunhada pela tradição, masque é compreendida como estando em per-manente reconstituição” (LARENZ, 1997, p.311).

Colocados os dois modelos de normaspara Larenz (1997, p. 316), podemos dizer,seguindo nossa conceituação, que as nor-mas tipo seriam normas abertas e as nor-mas conceito seriam normas fechadas. Oautor trata, ainda, de identificar a naturezados chamados “princípios jurídicos” rela-tivamente à sua distinção entre normas tipoe conceito. Diz:

“Os ‘princípios jurídicos’ não sãosenão pautas gerais de valoração oupreferências valorativas em relação àidéia do Direito, que todavia não che-garam a condensar-se em regras jurí-dicas imediatamente aplicáveis, masque permitem apresentar ‘fundamen-tos justificativos’ delas. Estes princí-pios subtraem-se, como todas as pau-tas ‘carecidas de concretização’, auma definição conceptual; o seu con-teúdo de sentido pode esclarecer-secom exemplos”.

Larenz (1997, p. 314) se pronuncia sobreo aumento da utilização das normas tipo:

“Uma primeira dúvida sobre se adogmática jurídica não é mais do quetrabalho conceptual valorativamenteneutro resulta, desde logo, do facto deque na dogmática hodierna adquireimportância crescente a descrição detipos, em vez da formação de concei-tos passíveis de subsunção”.

Ao tratar do tema da eficácia jurídica edas respostas judiciais, Faria (1991, p. 108)diz que

“cabe a uma magistratura com umconhecimento multidisciplinar, pode-res decisórios mais ampliados e umprocesso mais flexível uma dupla res-ponsabilidade: tornar menos vaga emais precisa uma ordem jurídica am-bivalente e reformular – por via juris-prudencial e a partir das próprias con-tradições sociais – os conceitos fecha-dos e tipificantes dos sistemas legaisvigentes”.

No procedimento de coordenação aotipo, por sua vez, Larenz diz que, em vez da

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subsunção a um conceito, ele é um processode pensamento orientado a valores.

Embora Larenz admita que “tipo” e “con-ceito” não são contraposições rígidas, pos-suindo pontos de comunicação, penso quehá uma diferença marcante entre os doismodelos de comandos normativos. Tal podeser encontrada no conteúdo semântico docomando: as normas tipo têm o sentido dequalificar ou dar razões para uma ação ouomissão. As normas conceito têm o sentidode determinar a ação ou omissão que deveráser realizada.

Outro importante autor para a reflexãosobre a diferença entre tipos de normas quedeterminam condutas específicas e outrasde natureza mais semanticamente aberta éRonald Dworkin. A obra de Dworkin22 é umataque ao positivismo de matriz hartiana23

e tem como objetivo central combater a idéiade discricionariedade do intérprete-aplica-dor da norma no momento da decisão.Dworkin assume a defesa de uma teoria li-beral do direito, crítica em relação ao que cha-ma de teoria dominante. A teoria dominante,segundo o autor, é o positivismo de Hart,herdeiro do pensamento de John Austin, estepor sua vez herdeiro do pensamento deBentham. A pergunta inicial que faz oautor é se os princípios podem ser conside-rados parte integrante do direito. Dworkin

(2002, p. 10) conjectura sobre a origem “na-tural” dos princípios não positivados.

Na introdução de seu livro mais conhe-cido, Dworkin (2002, p. 15) estabelece ummarco conceitual sobre as espécies de pa-drões normativos; há, portanto, os chama-dos direitos preferenciais (background rights),que podem ser chamados também de direitosfundamentais ou direitos de base, e os direi-tos institucionais ou específicos, que são di-reitos criados pela lei ou por instituições. Parao autor, no positivismo somente existem osdireitos institucionais. Para ele, entretanto, os“princípios” fazem parte do direito.

Dworkin distingue argumentos de prin-cípios e de políticas e defende que argumen-tos de princípios são compatíveis com deci-sões democráticas, ainda que exclusivamen-te feitas sobre tais padrões normativos.

A idéia fundamental do projeto deDworkin é combater a discricionariedade e,para tanto, entende que os princípios sãoparte constituinte do sistema de padrõesdecisórios que são utilizados para que pos-samos produzir decisões.

Os princípios são, para Dworkin (2002,p. 36), padrões decisórios diferentes das re-gras24. Esquematicamente, podemos distin-guir regras e princípios da seguinte maneira:

A diferença entre princípios e regras podeser enunciada do ponto de vista lógico, ou

econômico

político

social

seja, a natureza da orientação do padrãodecisório (ou do comando normativo, qual-quer que seja a terminologia utilizada) de-

termina que, do ponto de vista dos proces-sos lógicos de aplicação de um ou de outro,se possa agir de um ou de outro modo. Nas

Padrõesdecisórios

regras

princípios

princípios: exigência de justiça ou eqüidade

políticas: objetivo a ser alcançado

Revista de Informação Legislativa200

regras, temos a possibilidade da aplicaçãoà moda “tudo ou nada”. E nos princípios,não temos conseqüências jurídicas automá-ticas ao preenchimento das condições da-das. Eles enunciam uma razão que conduzo argumento, mas ainda assim o intérprete-aplicador tem de determinar uma decisãoparticular. O princípio é uma razão relevan-te do ponto de vista das autoridades queaplicam o direito. Possuem a dimensão do“peso” ou da “importância”, havendo as-sim uma força relativa em cada princípio25.As regras, por sua vez, possuem apenasimportância funcional. Não têm a dimen-são do peso ou da importância valorativa26.

Podemos extrair dos conceitos de regrase princípios elementos para acrescer à nos-

sa distinção entre normas de conduta e nor-mas abertas. Do ponto de vista do aspectosemântico, a regra, assim como a norma deconduta, significa que o endereçado deve secomportar desta ou daquela forma. Seus ele-mentos constitutivos permitem a aplicaçãodedutiva de forma imediata, sem nenhumaextração de nova regra, ou seja, novo conjun-to de condições formulado para que, em ocor-rendo o preenchimento de seus elementos,incida a sanção. Os princípios são, de outraforma, razões para decidir, qualificam a con-duta a ser observada, informam valores.

Faria esquematiza a função dos princí-pios (2002, p. 77):

Sobre a distinção de tipologia normati-va que ora sustento, a discussão poderia ser

Função e Objetivos dos Princípios

FUNÇÃO OBJETIVOS Integradora

- propiciar resolução dos litígios não enquadráveis nas normas (hard cases) - orientar preenchimento de lacunas

Interpretativa

- orientar a compreensão das normas no sentido do próprio sistema jurídico

Diretiva

- apontar os rumos da ordem jurídica - atuar como diretriz programática

Unificadora

- assegurar coerência doutrinária e sistémica à ordem jurídica - propiciar a conjunção entre formal (sic) racionalidade substantiva

aprofundada grandemente em relação aosconceitos trabalhados, mas, para os efeitosdo presente trabalho, parece-me suficientedemonstrar que há uma diferença importan-te entre dois padrões de julgamento ou doistipos de normas que se pode chamar de con-ceitos x tipos, regras x princípios ou normasfechadas x normas abertas.

O direito positivo brasileiro, a partir dafeitura da Constituição Federal de 1988,passou a ser composto cada vez mais denormas abertas. A lei mais significativa nes-se sentido é a 8.078/90, o Código de Defesado Consumidor. O exemplo mais recente é aLei 10.406/2002, o Código Civil. Evidente-

mente as Constituições Federais sempre ti-veram um caráter normativo mais genéricoe sempre foram caracterizadas pela técnicalegislativa da utilização de expressões se-manticamente amplas. Entretanto, do pon-to de vista infra-constitucional, não eramuito comum que o legislador fizesse usode normas abertas como técnica legislativapreponderante para a confecção de leis.

A necessidade já descrita de dar contade uma realidade social crescentementecomplexa e multifacetária e a falibilidadeda metodologia lógico-dedutiva quando oaplicador-intérprete tem de lidar com casos-limite tornam o recurso a normas mais ge-

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néricas e maleáveis uma eficiente respostapara o problema da aplicação da mesma leiaos sujeitos de direito abstratamente consi-derados sem que se rompa com o dogma dacompletude do direito. Não há, assim, pro-blemas sem respostas.

Aqui aparece o nosso problema central:como compatibilizar a formação de nature-za kelseniana e exegética do ator jurídicocom a aplicação de normas que não são ope-racionalizáveis mediante o emprego dométodo dedutivo que toma por premissamaior a norma posta? Meu argumento é deque não é possível se aplicar as normas aber-tas com a utilização de uma dedução singe-la, como se seu sentido como regra já pudes-se ser extraído de seus elementos constitu-intes. Toda aplicação de uma norma abertapressupõe o preenchimento de uma pautavalorativa e conceitual que não é auto-evi-dente a partir de sua leitura. Não é o caso dese desconsiderar a polissemia característi-ca da linguagem natural como um elementodificultador da aplicação da norma. Pensoque é sempre necessário se determinar umsentido literal à norma, mas tal procedimentoé bastante diferente quando se tem uma nor-ma que contém a determinação de uma con-duta (comissiva ou omissiva) ou quando,por outro lado, se lida com uma norma queadjetiva uma conduta, ou que aponta razõesde decidir num ou noutro sentido.

O ensino jurídico pressupõe o métododedutivo e a subsunção como categoriasinterpretativas primordiais. O aluno apren-de o direito estatal, o direito positivado, en-carando as normas como se fossem concei-tos definíveis na forma de premissas maio-res às quais se possam subsumir todos osfatos da vida social do homem. A perplexi-dade aparece, por exemplo, quando tem deresolver o seguinte problema:

O artigo 51 do Código de Defesa do Con-sumidor elenca as chamadas cláusulas abu-sivas. Diz, no seu inciso IV, que: “... são consi-deradas nulas de pleno direito as cláusulasque estabeleçam obrigações consideradas iníquas,abusivas, que coloquem o consumidor em desvan-

tagem exagerada, ou sejam incompatíveis coma boa-fé ou a eqüidade;” (grifo nosso)

No parágrafo primeiro do mesmo artigo,está pretensamente definido o conceito devantagem exagerada e lá se encontra, noinciso III, o termo onerosidade excessiva daseguinte forma:

Ҥ 1o Presume-se exagerada, entreoutros casos, a vantagem que:

III – se mostra excessivamente onero-sa para o consumidor, considerando-sea natureza e conteúdo do contrato, ointeresse das partes e outras circuns-tâncias peculiares ao caso.” (grifo nos-so)

Pensemos no conceito de onerosidadeexcessiva e de vantagem exagerada aplicá-veis às três seguintes situações:

a) consumidor que compra uma bolsa decouro de marca glamourosa pagando o pre-ço de R$ 8.000,00 (oito mil reais);

b) consumidor que contrata com umainstituição financeira o fornecimento de cré-dito num determinado valor, vencível men-salmente com a contrapartida do pagamen-to de juros no montante de 10% mensais, ochamado “cheque especial”;

c) consumidor que contrata com forne-cedor a prestação de serviços de saúde (mé-dico-hospitalar) e em cujo contrato há umacláusula determinando que, na hipótese deinternação (eletiva ou emergencial), mesmoque o consumidor esteja em dia com suasobrigações contratuais, ele deverá emitir umcheque ou nota promissória no valor dodobro da estimativa do valor do serviço aser prestado na ocasião.

A norma do CDC não é auto-evidentequanto à possibilidade de sua aplicação aostrês diferentes casos. O que é onerosidadeexcessiva? O preço pago pela bolsa, no pri-meiro caso, é excessivamente oneroso? Osjuros remuneratórios, no segundo caso, sãoexcessivamente onerosos? E a obrigação dedar uma garantia além do cumprimento re-gular das obrigações do consumidor, no ter-ceiro caso, é cláusula que contém onerosi-dade excessiva?

Revista de Informação Legislativa202

O operador do direito aqui se vê frente aum grau de complexidade no processo de-cisório significativamente mais alto do quese tivesse de determinar se alguém teriamatado outrem, como prevê o artigo 121 doCódigo Penal.

Faria (2002, p. 92-93) fala, em um con-texto diverso, embora ajustável à presentereflexão, a respeito do aumento da comple-xidade da aplicação das normas abertas,tomando o conceito de soft law:

“Expressando-se sob a forma deprincípios, recomendações, códigosde conduta e ‘diretivas’, este tipo denorma não estabelece a priori as regrasdo jogo nem assegura determinadasgarantias fundamentais (papel bási-co da Constituição no âmbito do Esta-do liberal clássico) ... E, do ponto devista estritamente jurídico, essa soft lawdecorrente da redução do grau de im-peratividade do direito positivo tam-bém encerra o risco de formular co-mandos sem precisão, por um ladocriando zonas de incerteza e indetermina-ção que acabam sobrecarregando o traba-lho hermenêutico dos intérpretes e, poroutro, deixando enormes dúvidasquanto ao seu verdadeiro potencial deeficácia” (grifo nosso).

Segundo o paradigma jurídico reprodu-zido nas universidades, ao juiz não é dadocriar o direito, cabendo-lhe exclusivamenteaplicar as normas de forma dedutivista ló-gico-formalmente, mediante um simplesprocesso de subsunção que é caracteriza-do como a adequação do fato à norma,esta sendo um conceito dado. A subsun-ção é, segundo a definição léxico-jurídi-ca, a “... 2. Operação pela qual se conside-ra um fato como incluído no âmbito deincidência de uma norma. 3. Na aplica-ção da lei, operação análoga à do silogis-mo, que toma a disposição legal como pre-missa maior”27. Como fazer a subsunçãose os elementos da premissa maior nãosão suficientemente determinadores deuma dada conduta?

O problema de se aplicar as normas aber-tas entreabre uma nova discussão. Já que anorma é bastante ampla de significado, épossível que haja algum critério de interpre-tação do sentido dela que dê ao operador dodireito alguma segurança quanto à corre-ção de tal procedimento? Aqui voltamos atrês autores já citados no início do trabalho:Kelsen, Hart e Dworkin.

Para os dois primeiros, não há como seestabelecer um critério crítico que possa seruma ferramenta analítica precisa para ava-liar se uma decisão é ou não adequada. As-sim, se, no nosso exemplo, dois juízes dife-rentes tiverem posições opostas em relaçãoà caracterização da onerosidade excessivanos três casos, ambos estão agindo de acor-do com seu campo de discricionariedade aointerpretar e aplicar as normas e toda inter-pretação é igualmente válida.

Dworkin defende, por outro lado, a pos-sibilidade de que a decisão seja avaliadacriticamente, já que o juiz tem o compromis-so de julgar segundo um padrão decisórioque lhe transcende.

A riqueza da discussão travada entre,por um lado, aqueles que acham que não hácritério cientificamente válido para se criti-car a decisão e, por outro, aqueles que achamque é possível se avaliar a correção dela está,penso, no âmbito do reconhecimento pelasociedade de que o direito é um locus impor-tante da discussão dos valores republica-nos e democráticos que conformam um dadoprojeto de sociedade que queremos. O ensi-no jurídico, ao não considerar com a devidaimportância o advento do novo padrão nor-mativo predominante nas nossas leis, sone-ga ao aluno a real dimensão de complexi-dade da atividade profissional para a qualele se prepara28.

4. O problema da interpretação:ceticismo x interpretação correta

A questão de se determinar se é possívelalgum critério crítico para a avaliação dasdecisões – que na verdade são o resultado

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do processo de interpretação e aplicação danorma – pode ser formulada em termos dese é possível ao homem decidir por meio deuma razão lógico-formal neutra e avalorati-va. Em contraposição a essa idéia, temos apossibilidade da utilização da chamada ra-zão prática.

A noção de razão prática tem a ver com afaculdade de deliberar sobre questões quedemandam respostas decisórias fundamen-tadas no campo moral29. Existirá algumamotivação fundamentadora de certa deci-são que possa ser dita como melhor do queoutra de alguma forma? Se entendermos quenão é possível nenhum critério crítico sobreas decisões proferidas, então a interpreta-ção e aplicação das normas abertas será pro-cesso sem qualquer controle, puro ato devontade do intérprete-aplicador. Se assimfor, qualquer decisão será igualmente boa eválida, desde que dada pela autoridade cer-ta30. Não haverá, portanto, qualquer acrés-cimo de dificuldade ou complexidade naoperacionalização do direito que seja rele-vante ao ensino jurídico se ocupar, a partirdo advento da predominância das normasabertas constituintes das leis. Aos que de-fendem essa posição chamarei de céticos-de-cisionistas. Os céticos-decisionistas são aque-les que não crêem que seja possível um con-trole crítico sobre as decisões jurídicas.

Em oposição aos céticos, temos aquelesque pensam ser possível uma avaliação dasdecisões de um ponto de vista crítico, dadosalguns critérios. Chamarei a esses, na faltade termo melhor, de interpretativistas.Dworkin, por exemplo, é um interpretativis-ta, pois acha possível dizer racionalmentese uma decisão é melhor do que outra.

4.1. Inafastabilidade dos juízos valorativos

Em interessante texto sobre a posturacética e a razão prática na literatura e nodireito, Martha Nussbaum (1994, p. 714-744)defende a impossibilidade de uma decisãohumana ser completamente racional. To-mando como ponto de partida para sua ar-gumentação três estórias atribuídas ao filó-

sofo grego Pirro, argumenta que há sempreuma tomada de posição valorativa entreuma gama de possibilidades decisórias. Aautora diz que, sempre que alguma decisãotem de ser tomada, ela será impregnada deum sentimento de cuidado ou preocupaçãocom o outro. A decisão sempre será tomada,segundo ela, tendo em vista a emoção decompaixão natural entre os homens e elaserá compartilhada com os demais indiví-duos por meio da exposição dos fundamen-tos decisórios, ou seja, por meio de uma ra-zão pública. Sustenta, assim, que é possíveldar uma justificação racional para uma ex-plicação de razão prática, que é, em seustermos mais genéricos, universal e não-re-lativa ainda que se funde exclusivamenteem critérios históricos e experienciais (NUS-SBAUM, 1994, p. 717).

Nesse ponto, podemos verificar a proxi-midade com um argumento de Dworkin(1999, p. 11) sobre os critérios de avaliaçãodas decisões jurídicas. Ele fala dos princí-pios como padrões decisórios caracteriza-dos por serem exigências de justiça e equi-dade e, além dessas condicionantes decisó-rias, fala também do processo de interpreta-ção construtiva, que seria o seguinte: “... oraciocínio jurídico é um exercício de inter-pretação construtiva, de que nosso direitoconstitui a melhor justificativa do conjuntode nossas práticas jurídicas, e de que ele é anarrativa que faz dessas práticas as melho-res possíveis”. Dworkin (1999, p. 226 et seq.)apresenta um critério crítico de decisõesenunciado como o “princípio da integrida-de”, que vem a ser o compromisso do julga-dor com sua inserção histórica e valorativa.Considera a comunidade como um agentemoral e defende que o princípio da integri-dade determina que deve haver coerênciadas decisões legislativas e judiciais com aherança vivencial de tal comunidade.

Os céticos defendem que não há argu-mentos mais fortes do que outros em termosde valores. Nussbaum (1994, p. 725 et seq.)argumenta contra Derrida, Fish e Bork nosentido de que há valores que podem ser

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racionalmente sustentados como de maiorpeso contra outros e que tal argumento podeser avaliado criticamente. Sustenta que osseres humanos (e tal característica é tam-bém admitida pelos próprios céticos) nãosão somente instintivos, mas também cria-turas éticas, estando comprometidos comconcepções do bem e que, portanto, se con-duzem segundo elas. A autora conclui seuargumento sublinhando que, para um serhumano, a vida em sociedade não se apre-senta como algo fora de sua existência, massomente a imersão num conjunto de valorese de crenças centrais é que lhe confere senti-do (NUSSBAUM, 1994, p. 743).

Ricoeur (1991) é outro autor que discutea questão da ação relacionada às opções éti-cas. Na análise do discurso da ação, o autordistingue as causas dos motivos do agir. Ascausas seriam as descrições de movimen-tos. Os motivos, por sua vez, são propria-mente parte da própria descrição da ação.Aponta para o fato de que o discurso é es-sencialmente dialético, mediado, possuiuma dimensão prática. Dar uma razão, as-sim, é uma forma de conduzir um argumen-to para mim e para o outro. Há, portanto,uma responsabilidade do agente que dizseus atos. Há uma intencionalidade no dis-curso que conforma e justifica a ação. O au-tor sustenta que o discurso é sempre umaforma de veiculação existencial. Há, portan-to, um sentido no agir e o discurso ético é odiscurso da ação sensata.

O objetivo de se apontar brevemente nosautores citados a existência de uma dimen-são valorativa no juízo sobre uma condutaé, nos limites do presente trabalho, apenaso de sustentar o argumento da impossibili-dade de que uma decisão seja dada de for-ma exclusivamente racional. A neutralida-de e a defesa de que não há critério de avali-ação possível de ser aplicado a uma deci-são judicial são falhas, na medida em quedesconsideram que o direito tem um senti-do específico e que este não é dissociado daexistência humana e, conseqüentemente, deseu próprio sentido. O direito é instrumen-

tal, não se encerra em si mesmo. Sobre a ques-tão do sentido do direito e de sua relaçãocom a moralidade, diz Ferraz Jr. (1994, p.358):

“O direito, em suma, privado demoralidade, perde sentido, emboranão perca necessariamente império,validade, eficácia. Como, no entanto,é possível, às vezes, ao homem e à so-ciedade, cujo sentido de justiça se per-deu, ainda assim sobreviver com seudireito, este é um enigma, o enigma davida humana, que nos desafia perma-nentemente e que leva muitos a umangustiante ceticismo e até a um des-pudorado cinismo”.

Entendo que o direito pode até episodi-camente existir em descompasso com o pro-jeto de sociedade que dada comunidade es-tabelece e conduz, mas sua transformação éinevitável se ele discrepa de forma constan-te e radical de tal projeto.

As decisões são sempre escolhas funda-mentadas em um projeto amplo de que tipode sociedade queremos. Dworkin (1999, p.492) aponta essa característica do direito:

“A atitude do direito é construti-va: sua finalidade, no espírito inter-pretativo, é colocar o princípio acimada prática para mostrar o melhor ca-minho para um futuro melhor, man-tendo a boa-fé com relação ao passa-do. É, por último, uma atitude frater-na, uma expressão de como somosunidos pela comunidade apesar dedivididos por nossos projetos, interes-ses, convicções. Isto é, de qualquer for-ma, o que o direito representa paranós: para as pessoas que queremos sere para a comunidade que pretende-mos ser”.

Gadamer (1997, p. 280 et seq., v. 1) é maisum autor que entende que o processo inter-pretativo é condicionado; no seu caso, pelaconsciência histórica. O homem interpreta,pois isso marca o todo de sua experiênciano mundo. Para Gadamer, é fundamental atemporalidade. É a partir daí que ele procu-

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ra repensar a hermenêutica, o que vai signi-ficar uma passagem da hermenêutica psi-cologizante de Schleiermacher e Diltheypara uma hermenêutica histórica (OLIVEI-RA, 1996, p. 225-226). Para ele, a constitui-ção do sentido não é dada fora da historici-dade própria do homem. Pertencer à tradi-ção é condição existencial do indivíduo enão somos, destarte, donos do sentido queatribuímos às coisas e aos eventos dos quaisparticipamos. A linguagem, para Gadamer(1997, p. 460), é o meio no qual se efetiva oentendimento entre os partícipes do diálo-go e a compreensão é interpretação que sefaz no seio da linguagem. O problema dainterpretação se dá na relação entre pensa-mento e linguagem. O autor coloca em pri-meiro plano a questão da aplicação, já quepara ele

“... na compreensão, sempre ocorrealgo como uma aplicação do texto aser compreendido, à situação atual dointérprete. Nesse sentido nos vemosobrigados a dar um passo mais alémda hermenêutica romântica, conside-rando como um processo unitário nãosomente a compreensão, mas tambéma aplicação”.

Gadamer (1997, p. 469-470) chama aten-ção para o fato de que é próprio da funçãointerpretativa jurídica a aplicação. Sobreesse ponto, liga Aristóteles às modernas ci-ências do espírito:

“Este é o ponto em que se poderelacionar a análise aristotélica dosaber ético com o problema hermenêu-tico das modernas ciências do espíri-to. É verdade que na consciência her-menêutica não se trata de um sabertécnico nem ético, porém, essas duasformas do saber contêm a mesma tarefada aplicação que temos reconhecidocomo a dimensão problemática cen-tral da hermenêutica”.

Ao discorrer sobre o papel da hermenêu-tica jurídica, o autor fala sobre a tarefa dainterpretação, que seria concretizar a lei emcada caso, isto é, em sua aplicação.

“Na idéia de uma ordem judicialsupõe-se o fato de que a sentença dojuiz não surja de arbitrariedades im-previsíveis, mas de uma ponderaçãojusta do conjunto. ... Justamente porisso existe segurança jurídica em umestado de direito, ou seja, podemos teruma idéia daquilo a que nos atemos”(GADAMER, 1997, p. 489).

Verificamos que não há decisão sem umjuízo deliberativo, que é feito sob critérios,ainda que tenham eles alguma variabilida-de. O direito, como sabido, não é um saberque se possa equiparar ao das ciências na-turais. Não há controle preciso de verifica-bilidade no direito como há, por outro lado,na matemática, na física, na química etc.Assim, embora o procedimento de tomadade decisão não seja um procedimento quese possa verificar cientificamente (do pontode vista cartesiano), ainda assim é controla-do metodologicamente e pode ser criticadoquanto ao seu resultado. O direito faz partedas chamadas ciências do espírito e diz res-peito ao que Aristóteles chamou de filosofiaprática. Sobre o tema, Berti (1998, p. 116) co-menta:

“A filosofia prática, portanto, temem comum com a teorética o fato deprocurar a verdade, ou seja, o conhe-cimento de como são efetivamente ascoisas, e também a causa de como são,ou seja, o fato de ser ciência. Sua dife-rença em relação à filosofia teorética éque, para esta última, a verdade é fimpara si mesma, enquanto para a filo-sofia prática a verdade não é o fim,mas apenas um meio em vista de ou-tro, ou seja, da ação, sempre situadano tempo presente: não alguma coisajá existente, mas que deve ser feita ago-ra”.

4.2. Desconstrutivismo, pragmatismo efunção da interpretação

Sobre as possibilidades de validação in-terpretativa no âmbito da literatura, na li-nha do posicionamento cético, há aqueles

Revista de Informação Legislativa206

que propugnam por uma abertura de possi-bilidade de interpretações válidas de formapraticamente ilimitada.

Miller (1995, p. 81), ao defender o des-construtivismo como um método de leituradesafiador, diz que

“... a desconstrução questionou o pres-suposto de que uma obra de qualida-de deveria ter ou tem um significadoúnico, passível de ser determinado eorganicamente unificado. Colocou emdúvida a certeza de que a linguagem,incluindo a linguagem literária, é pri-mordialmente referencial, que inicial-mente nomeia algum estado de coisasextralingüístico e extrai o seu valor dasua exatidão e força justamente nesseprocesso. Afinal, a desconstruçãomostrou pacientemente, através daleitura cuidadosa de uma variedadede textos literários e também filosófi-cos, que a linguagem figurada não éum floreio casual acrescentado a umabase literal, mas que essa linguagem,inclusive a linguagem literária, é in-teiramente figurativa, da cabeça aospés, por assim dizer”.

Se levarmos essa proposta de validaçãode interpretação para o direito, estaremosvirtualmente no campo da anomia. O direi-to tem como uma de suas funções conferir achamada segurança jurídica. Se não há umainterpretação pelo menos plausível, entãonão há segurança jurídica alguma. Se trans-portada a proposta desconstrutivista parao direito, ela corresponderia à inutilizaçãodo mesmo como tecnologia de controle soci-al. Isso não quer dizer que a proposta des-construtivista não seja uma forma válida deinterpretação, mas aí teremos de nos inda-gar qual a função da interpretação. Por exem-plo, um professor que esteja procurandoverificar a aprendizagem de um aluno doponto de vista conceitual não poderá acei-tar respostas que não apresentem os elemen-tos do conceito perguntado. A função dainterpretação da pergunta e do sentido bus-cado pelo instrumento de avaliação é, de

alguma forma, canônica. Da mesma forma,um médico ao diagnosticar a doença de umpaciente ou um advogado ao identificar oproblema jurídico. Aqui se trata de dar res-postas práticas a questões de inafastávelnecessidade de deliberação por parte do in-térprete.

A função da abordagem desconstrutivaé, parece-me, de ampliação das capacida-des cognitivas do intérprete, por um lado, etambém politicamente emancipatória emface de certas estratégias de controle do co-nhecimento por parte de grupos ligados aoensino, pesquisa e, conseqüentemente, con-troladores dos meios de financiamento detais atividades. Não se nega validade a essetipo de abordagem ou método interpretati-vo, desde que o mesmo não esteja sendo usa-do num contexto que exija uma respostaconcreta para um problema que demandauma decisão inadiável, como é o caso dosconflitos jurídicos.

Hirsh (1993, p. 7), em sua obra sobre oobjetivo da interpretação, defende a possi-bilidade de uma interpretação correta, ata-cando o relativismo cético. Contesta o posi-cionamento dos desconstrutivistas, ressal-tando o papel da ética no processo interpre-tativo:

“The choice of an interpretive normis not required by the ‘nature of thetext’, but, being a choice, belongs tothe domain of ethics rather than thedomain of ontology. ... the object ofinterpretation is no automatic given,but a task that the interpreter sets hi-mself. He decides what he wants toactualize and what purpose his actu-alization should achieve”.

No campo do pragmatismo, uma boapeça introdutória de discussão teórica é aconferência realizada em Cambridge, em1990, publicada em português31, na qualRichard Rorty defende sua posição pragma-tista frente a Umberto Eco. Segundo a visãode Rorty, o que é possível se fazer com umtexto é utilizá-lo segundo os propósitos doleitor, o que descaracteriza qualquer possi-

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bilidade de intenção do autor que possa serencontrada a partir de sua leitura. Descartaa possibilidade de que haja um sentido dotexto que possa determinar alguma coerên-cia canônica. Diz o autor:

“Eu diria que um texto tem apenasa coerência que por acaso adquiriudurante a última volta da roda da her-menêutica, assim como um monte debarro tem apenas a coerência que poracaso obteve durante a última voltado torno do oleiro. ... Sua coerência [dotexto] não é mais do que o fato de al-guém ter encontrado algo interessan-te para dizer sobre um conjunto de si-nais ou ruídos – um modo de descre-ver esses sinais ou ruídos que os rela-ciona a algumas das outras coisassobre as quais estamos interessadosem falar” (ECO, 1993, p. 115).

A idéia de relativização presente em Ror-ty funcionaliza sua proposta pragmática, namedida em que o autor defende que um tex-to dado somente pode ser fruído, sem ne-nhuma garantia de que haja, de qualquerforma, um sentido a ser percebido, desven-dado, interpretado. Nesse sentido, qualquerdação de significado ao texto é, para Rorty,mistificadora:

“A idéia de que um comentadordescobriu o que um texto realmentefaz – por exemplo, que ele realmentedesmistifica um construto ideológico,ou realmente desconstrói as oposiçõeshierárquicas da metafísica ocidental,e não apenas pode ser utilizado paraestes propósitos – é, para nós, prag-matistas, só mais um ocultismo”.

Rorty segue criticando qualquer possi-bilidade de interpretação válida segundocânones, investindo inclusive contra Miller:“O que a ‘teoria’ não fez, penso eu, foi criarum método de leitura, ou o que Hillis Millerchama de ‘uma ética de leitura’. Nós,pragmatistas, pensamos também que nin-guém jamais conseguirá isso”.

Eco oferece réplica a Rorty colocando emprimeiro plano a idéia de função do texto.

Um texto produzido tem a pretensão de vei-cular uma idéia, uma representação qual-quer. Embora reconheça que um texto criati-vo é sempre uma obra aberta (assim são asobras de ficção), há certamente uma funçãoprópria desse tipo de texto que é deixar emaberto uma possibilidade maior de interpre-tações. Segundo Eco (1993, p. 169), entre-tanto, embora haja várias possibilidades deinterpretação para um texto criativo, em suaspróprias palavras: “não é verdade que tudoserve”. Sustenta que é possível que haja vá-rias interpretações válidas para um texto,mas há pertinências impossíveis e pertinên-cias absurdas. Interpretar é construir, nomínimo, um consenso da comunidade so-bre a pertinência plausível de um sentidodado.

5. A aplicação das normasabertas e sua problematicidade:

o des-fecho da discussão

Parece claro que, no processo de inter-pretação e aplicação das normas, ou seja,na tomada de decisão, está em jogo mais doque a manifestação do ato de vontade daautoridade. Há, no momento da tomada dedecisão, um exercício racional de pondera-ção de valores, preenchimento de sentidodas normas, adequação do sentido a serdado a determinada norma a uma tradiçãona qual estamos imersos, a percepção deque a decisão tem conseqüências futuras,enfim, uma série de condicionantes do atoque então se fazem presentes problemati-camente.

No presente trabalho, pretendi apontaro aumento da complexidade do processo deinterpretação e aplicação da norma conse-qüente à presença, na legislação infra-cons-titucional, cada vez maior, de normas aber-tas.

Se não é qualquer decisão que pode seraceita como válida, devemos como socieda-de poder ter acesso ao caminho mental per-corrido pelo juiz quando deliberou em de-terminado sentido. Nosso modelo de ensi-

Revista de Informação Legislativa208

no jurídico, a meu ver, não privilegia ade-quadamente o aspecto da problematicida-de da construção das decisões e sua publi-cização. O resultado de uma prática judici-al de pouco cuidado com a fundamentaçãodas decisões é a corrosão progressiva daidéia de função social e de responsabilida-de do Judiciário, com conseqüências já visí-veis do ponto de vista de sua legitimaçãofrente à sociedade. É importante que as ques-tões relativas ao discurso interno sobre osmecanismos de tomada de decisão sejamabordadas com maior ênfase no âmbitodo ensino do direito. Larenz (1997, p. 310-313) descreve o problema da interpreta-ção insuficientemente fundamentada queé proferida por meio da simples subsun-ção:

“Os tribunais argumentam nãoraramente de modo tipológico, masdeclaram a sua argumentação, justifi-cada como coordenação a um tipo,como subsunção a um conceito, quecomo tal não é, de facto, aceitável. Afalta de consciência do modo de argu-mentar tipológico reduz a fundamen-tação a uma fundamentação ilusória,mas que seria correcta se o tribunaltivesse argumentado abertamente demodo tipológico... A necessidade deum pensamento ‘orientado a valores’surge com a máxima intensidadequando a lei recorre a uma pauta devaloração que carece de preenchimen-to valorativo, para delimitar uma hi-pótese legal ou também uma conse-quência jurídica. Tais pautas são, porexemplo, a ‘boa-fé’, uma ‘justa causa’,uma ‘relação adequada’ (de prestaçãoou contraprestação), um ‘prazo razo-ável’ ou ‘prudente arbítrio’”.

A alternativa a uma decisão realmentefundamentada e cuja motivação possa severificar convenientemente explicitada é umtipo de decisionismo que hoje se pode ob-servar, por exemplo, no STJ e no STF. Umpadrão de decisão que materializa o discur-so mistificador da dedução mecanicista, da

subsunção neutra e que em verdade se ma-nifesta como a expressão do chamado argu-mento de autoridade. Em recente artigo, Silva(2002, p. 23-50) cobra do STF coerência so-bre a utilização de dois dos chamados “prin-cípios”32 de interpretação constitucional: oda proporcionalidade e o da razoabilidade.Demonstra o autor como os argumentos uti-lizados nas fundamentações de algumasdecisões não somente não se aprofundamsuficientemente nas questões de mérito,como também nem mesmo esclarecem comprecisão os conceitos jurídicos com os quaisargumentam.

Sobre a importância da fundamentaçãoadequada para que haja possibilidade decrítica à decisão, Larenz (1997, p. 326) pro-põe:

[a Jurisprudência] “Tem que ‘arriscar’uma solução, mesmo que não seja ca-paz de a apoiar plenamente com fun-damentos; nesta medida, a sua solu-ção contém inevitavelmente uma par-cela de ‘discricionariedade’. Mas ele[o juiz ou funcionário] deve fundamen-tar, tanto quanto lhe seja possível, a suasolução com argumentos jurídicos –assim lho exige a sua vinculação cons-titucional à ‘lei e ao Direito’” (grifonosso).

A questão da fundamentação adequadaé diretamente relacionada com a mudançado modelo normativo preponderante naprodução legislativa atual, qual seja, o dautilização de normas abertas. Não adianta-rei a discussão no sentido do aprofunda-mento de tal questão, ficando por ora comas reflexões aqui apresentadas.

A complexidade dos problemas aquiapontados não ensejam uma conclusão ouuma resposta terminativa, mas podemapontar questões que instiguem a continui-dade de investigações sobre o tema. Gosta-ria de pensar ter proposto, diversamente doque seria um encerramento da discussão,um des-fecho que possa motivar o interesseem novos enfrentamentos das questõesapontadas.

Brasília a. 41 n. 164 out./dez. 2004 209

Notas1 Se é certo que não se pode precisar o momento

em que, na história, os períodos se sucedem, traçoum corte metodológico a partir da Constituição de1988 tendo em vista o surgimento, posteriormentea ela, das Leis 8.078/90, 8.884/94 e 10.406/02,que ilustram uma técnica legislativa diversa da-quela utilizada nas leis anteriores à Constituição.

2 Cf. FARIA, 1991, 1995, 1987, 1984; FALCÃONETO, 1977, 1981, 1979.

3 Cf. FARIA, 1995, p. 20.4 Por simplificação e em razão do corte meto-

dológico adotado, não serão analisados o proble-ma da crise do direito e do Judiciário no presentetrabalho, mas é importante ressaltar que eles sãoigualmente importantes e têm implicação direta nacrise do ensino do direito.

5 Sobre essa diferença, falei em Crise do direito ejuspositivismo: a exaustão de um paradigma.Brasília: Brasília Jurídica, 2003.

6 Cf. WARAT, 1988, p. 30.7 O conceito de sistema aqui tomado é o do

sistema conceitual lógico-formal, cujos conceitosencadeiam-se de forma vertical, conforme a repre-sentação kelseniana.

8 Cf. FALCÃO NETO, 1979, p. 7-8.9 O termo “lógico-formal” aqui utilizado ex-

pressa uma dada visão sobre o direito que é descri-ta na doutrina sobre o tema do ensino jurídico. Nãofaço, assim, uma crítica à lógica formal propria-mente, mas o termo me permite descrever uma pers-petiva teórica sobre o direito. Reconheço, como cor-retamente me apontou José Reinaldo de Lima Lo-pes, que a lógica formal é condição do pensamentoconseqüente, na linha de argumento de autores comoRaz, MacCormick e Ricoeur, por exemplo.

10 Sobre as escolas citadas, ver Gillissen, 1995,p. 513-520; Van Caenegem, 1995, p. 151-163.

11 Bourdieu (1989, p. 7) “...o poder simbólico é,com efeito, esse poder invisível o qual só pode serexercido com a cumplicidade daqueles que nãoquerem saber que lhes estão sujeitos ou mesmo queo exercem”.

12 San Tiago Dantas advertia sobre a questãodo método em relação ao que chamou de “restau-ração da cultura jurídica”: Esse movimento tem delançar raízes numa revisão da educação jurídica eé, portanto, como programa de ação, um apelo àreforma do ensino do direito nas nossas escolas euniversidades.

“O ponto de onde, a meu ver, devemos partir,nesse exame do ensino que hoje praticamos, é adefinição do próprio objetivo da educação jurídica.Quem percorre os programas de ensino das nossasescolas, e sobretudo quem ouve as aulas que nelasse proferem, sob a forma elegante e indiferente davelha aula-douta coimbrã, vê que o objetivo atual

do ensino jurídico é proporcionar aos estudantes oconhecimento descritivo e sistemático das institui-ções e normas jurídicas. Poderíamos dizer que ocurso jurídico é, sem exagero, um curso dos insti-tutos jurídicos, apresentados sob a forma expositi-va de tratado teórico-prático. “

13 Cf. FERREIRA, 1986.14 A despeito de críticas ao uso do termo para-

digma aplicado às ciências humanas e em especialàs sociais, penso ser possível fazê-lo. Para o apro-fundamento da discussão, ver Kuhn, 1996. Numacrítica sobre a teoria de Kuhn aplicada de formairrestrita às ciências sociais, Jeffrey C. Alexander(1987) aponta: “As condições definidoras da crisedo paradigma nas ciências naturais são a rotinanas sociais”; e em sua nota de rodapé: “Essa é arazão porque tantas das primeiras aplicações dasidéias de Kuhn à sociologia (por exemplo, Friedri-chs, 1970) parecem hoje tão exageradas. Elas pro-clamavam revoluções numa disciplina em estadocontínuo de profundo desacordo e de revoluçãoteórica”.

15 O artigo 6o da CF88 diz que “são direitossociais a educação, a saúde, o trabalho, a mora-dia, o lazer, a segurança, a previdência social, aproteção à maternidade e à infância, a assistên-cia aos desamparados, na forma desta Consti-tuição”.

16 Sobre esse tema, falei em: A flexibilização dalegalidade nas práticas conciliatórias na Justiça doTrabalho. Revista de Informação Legislativa, Brasília.

17 Cf. FARIA, 1999, p. 59.18 RESP 63981/SP; Recurso Especial 1995/

0018349-8. Disponível em: <http://www.stj.gov.br/webstj/>. Acesso em: 24/11/2003.

19 Kelsen tem uma idéia de ciência cartesiana,moderna e, portanto, quantificável, verificável.

20 Larenz não fala em “predominância”, masfala em que a aplicação assim seria num “casoideal”. Penso que não é a questão de falar-se emtese, mas de fato o que ocorre é isso. Há aqui umarelação de predominância de processos metodoló-gicos.

21 O termo “segurança jurídica” é aqui utilizadocom a conotação de razoável previsibilidade sobre osentido normativo de determinado comando.

22 Faço aqui referência à obra de Dworkin pen-sando fundamentalmente nos seus três mais co-nhecidos livros: Levando os direitos a sério, Uma ques-tão de princípio e O império do direito, todos publica-dos recentemente em português pela EditoraMartins Fontes.

23 Especificamente a versão do positivismo de-senvolvida em O conceito de direito. Lisboa: Calous-te Gulbekian, 1996.

24 Esclareço que o termo “padrão” é utilizadopelo próprio Dworkin, referindo-se ao critério deci-sório.

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25 Podemos exemplificar esse ponto imaginan-do o peso simultâneo de dois princípios como o daliberdade de imprensa versus o da preservação daintimidade, ambos constitucionais.

26 A diferença entre regras e princípios encontra-se especialmente tratada por Dworkin nos capítu-los 2 e 3 do Levando os direitos a sério. São Paulo:Martins Fontes, 2002.

27 Cf. CUNHA, 2003.28 Não nos aprofundaremos, por óbvia questão

de espaço e propósito do presente trabalho, na ques-tão relativa ao papel ideológico de um discursoacadêmico da pureza do direito na reprodução deuma dada estrutura de Estado, de sociedade e deuniversidade. Para o aprofundamento desta ques-tão, ver, entre tantos, Bourdieu (1989); Bourdieu;Passeron (1992).

29 “... è da notare che Rousseau e dopo di luiKant hanno identificato la ragione con il sentimentomorale: manifestazione pratica della ragione, o ‘ra-gion pratica’” (DIDIER, 1989).

30 Kelsen entende dessa maneira. Cf. o capítuloVIII da Teoria pura do direito, no qual o autordeclara que nenhum método pode garantir a corre-ta aplicação da norma, até porque, segundo ele,não há qualquer interpretação a ser destacada como“correta”.

31 Cf. ECO, 1993.32 O autor contesta, valendo-se de Alexy, que a

proporcionalidade e a razoabilidade sejam princí-pios, defendendo a opinião de que são regras.

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Revista de Informação Legislativa212

Brasília a. 41 n. 164 out./dez. 2004 213

Gerson dos Santos Sicca

1. IntroduçãoO tema enfrentado envolve uma série de

questionamentos dotados de alta complexi-dade, cuja solução, não raras vezes, trans-cende a esfera da dogmática jurídica e re-mete para a problematização dos própriosimperativos de legitimidade do Estado deDireito. A consolidação do princípio daigualdade, cânone inarredável do ideal damodernidade, incorporado às Constituiçõesliberais e concebido como o ápice da afir-mação da dignidade humana e da garantiado livre desenvolvimento do indivíduo, en-controu um gama de dificuldades, tendo emvista a dura realidade imposta pelas cir-cunstâncias políticas de cada época.

Na seara da tributação, a dificuldade nãoé de menores proporções. A força do princí-pio jurídico da igualdade, como forma de con-tenção do uso abusivo do poder pelo Estadoe preservação da isonomia entre os cidadãos,nem sempre obteve sua plena potencialidadenas ordens jurídicas concretas. Ao contrário,inúmeras vezes o comando é invocado tão-

Isonomia tributária e capacidadecontributiva no Estado contemporâneo

Gerson dos Santos Sicca é Mestre em Direi-to pela Universidade Federal de Santa Catari-na (UFSC). Procurador Federal, em exercíciona Procuradoria Seccional da União em RioGrande-RS.

Sumário1. Introdução. 2. Sentido e problematização

do princípio da isonomia. 3. O princípio da iso-nomia e seus reflexos no Direito Tributário. 4.A isonomia e seu principal fator de discrímen:a capacidade econômica ou contributiva. 5.Pontos de reflexão sobre a isonomia e a capaci-dade contributiva. A sua operatividade no Es-tado contemporâneo. 6. Considerações finais.

Revista de Informação Legislativa214

somente como estratégia discursiva para aconsolidação de modelos tributários formu-lados sob a ótica eminentemente arrecadató-ria, sem o intento de desconstituir a desigual-dade fática existente na sociedade.

Os obstáculos, todavia, não impedem adelimitação do princípio da isonomia tri-butária e sua operatividade nos sistemas ju-rídicos contemporâneos. Ligada a esse co-mando principiológico, encontra-se a capa-cidade contributiva, expressão notável da in-tervenção estatal na esfera dos particulares,com o intento de associar a demanda fiscalao dever de minimização das desigualdadese conferir inarredável grau de legitimidade àatuação do Fisco. Em termos desprovidos dorigor técnico, isso significa que tirar dos maisricos para dar aos mais pobres justifica paraos excluídos a própria existência do Estado.

O texto desenvolve uma análise dos prin-cípios da isonomia e da capacidade contri-butiva e sua eficácia no estágio atual do Es-tado brasileiro. O enfoque problematizanteconferido à abordagem busca uma reflexãosobre a capacidade de tais princípios efeti-vamente protegerem o cidadão do Fisco, emais ainda, de que forma os mesmos po-dem ter alguma eficácia positiva, para quese imponha ao Estado a realização de deter-minadas condutas.

Para tanto, serão expostos os fundamen-tos do princípio da isonomia tributária. Após,a caracterização do princípio da capacidadecontributiva servirá como ponto de reflexãosobre a determinação e a força normativa doprincípio da igualdade, bem como as princi-pais indagações que surgem na sua aplica-ção. Ao final, o tratamento do tema permitiráa exteriorização de algumas consideraçõesdestinadas a contribuir para a construção deuma dogmática instrumentalmente adequa-da aos desígnios do Estado de Direito.

2. Sentido e problematização doprincípio da isonomia

O princípio da igualdade assume impor-tância nuclear na estrutura do Estado Mo-

derno, ao evidenciar o repúdio a injustifica-das discriminações em razão de classe oucondição social. No campo tributário, aigualdade representada pela universaliza-ção dos tributos refutou a utilização dosmesmos como mecanismos de segregaçãosocial, o que possibilitou a inserção no cam-po jurídico de um discurso radicalmenteavesso à arbitrariedade e ao exercício irra-zoável do poder. A cobrança de tributos,típica hipótese de restrição a direito funda-mental, necessariamente deveria submeter-se a liames positivos que delimitassem a atu-ação estatal sobre o âmbito privado, a fimde garantir a previsibilidade, a segurança ea igualdade na competição inerente ao sis-tema capitalista.

A afirmação do princípio da isonomia,no entanto, trouxe consigo grandes dificul-dades na sua delimitação, o que levou a ter-se de admitir a efetiva possibilidade de olegislador estabelecer uma série de diferen-ciações, além de apresentar-se como câno-ne de complexa concretização pelo intérpre-te do Direito. Não bastasse isso, a compre-ensão do âmbito de proteção estabelecidopelo princípio da igualdade exige adequa-da interpretação conforme as disposiçõesconstitucionais vigentes em cada ordem ju-rídica concreta, bem como do período histó-rico vivido. No Direito Tributário, como seanalisará adiante, a aplicabilidade do prin-cípio apresenta consideráveis obstáculosante a existência de diversos interesses pos-tos em conflito e de delicada harmonização,como o interesse fiscal do Estado, os direi-tos dos particulares e as políticas de benefí-cios e isenções fiscais exigidas por diversossetores da economia.

Em relação à caracterização do princí-pio da igualdade, afirma Alexandre de Mo-raes (2003, p. 65):

“O princípio da igualdade consa-grado pela constituição opera em doisplanos distintos. De uma parte, frenteao legislador ou ao próprio executivo,na edição, respectivamente, de leis,atos normativos e medidas provisóri-

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as, impedindo que se possam criar tra-tamentos abusivamente diferenciadosem razão a pessoas que se encontramem situações idênticas. Em outro pla-no, na obrigatoriedade ao intérprete,basicamente, a autoridade pública, deaplicar a lei e atos normativos de ma-neira igualitária, sem estabelecimen-to de diferenciações em razão de sexo,religião, convicções filosóficas ou po-líticas, raça, classe social”.

Compreendida a igualdade como impos-sibilidade da distinção de tratamento de in-divíduos em situações similares, o que afir-ma uma dimensão negativa do princípio(cláusula de defesa do cidadão contra o ar-bítrio do Estado), surge o problema da inda-gação sobre a legitimidade dos critérios dis-tintivos e a valoração dos mesmos, dificul-dade que se traduz na própria definição doslimites do controle judicial dos atos discri-minatórios.

Canotilho (1999, p. 398) afirma que aigualdade “condensa hoje uma grande ri-queza de conteúdo”. O autor português,quando se refere ao princípio como igual-dade quanto à criação do Direito, aborda aproibição geral do arbítrio, no sentido de que“existe observância da igualdade quandoindivíduos ou situações iguais não são ar-bitrariamente (proibição do arbítrio) tratadoscomo desiguais”. Sustenta que, embora “ain-da hoje seja corrente a associação do princí-pio da igualdade com o princípio da proibi-ção do arbítrio, este princípio, como simplesprincípio de limite, será também insuficien-te se não transportar já, no seu enunciadonormativo-material, critérios possibilitado-res da valoração das relações de igualdadeou desigualdade” (CANOTILHO, 1999, p.403). Adiante, escreve o mestre português:

“A necessidade de valoração ou decritérios de qualificação, bem como anecessidade de encontrar ‘elementosde comparação’ subjacentes ao carác-ter relacional do princípio da igual-dade implicam: (1) a insuficiência do‘arbítrio’ como fundamento adequa-

do de ‘valoração’ e de ‘comparação’;(2) a imprescindibilidade da análiseda ‘natureza’, do ‘peso’, dos ‘funda-mentos’ ou ‘motivos’ justificadores desoluções diferenciadas; (3) insuficiên-cia da consideração do princípio daigualdade como um direito de nature-za apenas ‘defensiva’ ou ‘negativa’”.(CANOTILHO, 1999, p. 403).

A isonomia não comporta a afirmaçãode uma igualdade absoluta entre pessoas,coisas ou situações, pois o legislador pode,legitimamente, estabelecer critérios de dis-crímen, o que transfere o problema para averificação da compatibilidade entre o fatordiferenciador acolhido pela Lei e os interes-ses constitucionalmente protegidos. Nessestermos, é salutar a indagação sobre a exis-tência ou não de uma relação racional entreos meios adotados e a finalidade a ser pro-tegida, bem como sobre o valor em si mesmoda finalidade perseguida em determinadacircunstância, o que leva Celso AntônioBandeira de Mello (1993, p. 17) a afirmar:

“as discriminações são recebidascomo compatíveis com a cláusula iguali-tária apenas e tão-somente quando existeum vínculo de correlação lógica entre apeculiaridade diferencial acolhidapor residente no objeto e a desigual-dade de tratamento em função delaconferida, desde que tal correlação nãoseja incompatível com interesses pres-tigiados na Constituição.”

O princípio da igualdade, compreendi-do como ferramenta posta à disposição dooperador do Direito para a sindicabilidadedos atos do Poder Público, comporta dentrode si a idéia de comparação entre situaçõesdiferenciadas pela Lei, cujo fator discrimi-natório apresenta-se problemático, sendosalutar a reflexão sobre a sua legitimidade.Em síntese, trata-se de saber qual razão de-terminou a distinção, se a mesma é compa-tível com a Constituição e se o meio utiliza-do para a diferenciação é adequado e neces-sário para a realização da finalidade anun-ciada.

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É possível constatar que, na conforma-ção do Estado contemporâneo, tem especialrelevância a tarefa de identificar, tomandoem conta os princípios fundamentais daConstituição, os critérios justos de discrimi-nação entre pessoas e grupos, e.g., até queponto é correta a diferenciação dos critériosde tributação estabelecidos e se realmenteestão de acordo com as disparidades eco-nômicas existentes e pretendem realizar in-teresses considerados da mais alta valia.Para o juiz, a sindicabilidade dessas si-tuações não raras vezes envolve ponde-rações de prognose, o que, aliado ao cará-ter aberto dos princípios constitucionais,acaba por dificultar a indagação sobrepossíveis lesões a direitos dos parti-culares.

Especificamente no Direito Tributário, arelevância dos fatores econômicos agregaoutras dificuldades à aplicação do princí-pio da isonomia. No mais das vezes, a fina-lidade arrecadatória impõe-se como prota-gonista, de maneira a justificar a tributaçãosobre setores mais suscetíveis à ação do Fis-co, como a classe média e os ramos fragili-zados da atividade econômica. Afora isso,até mesmo naqueles impostos cuja funçãoextrafiscal caracteriza a sua própria razãode ser, a avaliação feita pelos agentes públi-cos para a fixação de alíquota e base de cál-culo acaba por privilegiar interesses de mi-norias detentoras de poder de barganha fren-te ao Estado. Como poderá o Judiciário ques-tionar a legitimidade de medidas tributári-as concentradoras do capital se as finalida-des estabelecidas na Constituição são de evi-dente vagueza (justiça social, distribuiçãode renda, entre outras), suscetíveis à reali-dade concreta apresentada pelo Legisladorou pelo Executivo, na condução da políticaeconômica? Esse dilema descortina a fragi-lidade do princípio da isonomia em relaçãoàs determinações impostas pelo poder polí-tico ante a carência de elementos segurosque permitam a invalidação de normastributárias injustificadamente discrimina-tórias.

3. O princípio da isonomia e seusreflexos no Direito Tributário

A indagação jurídica sobre a isonomiatributária põe em causa a tendência atual,presente na prática neoliberal, de generali-zação e manutenção da desigualdade, im-pondo-se uma série de políticas que benefi-ciam a concentração do capital e submetemgrande parte da carga tributária às cama-das menos favorecidas da população, no in-tuito de ampliar as isenções para certos seg-mentos do setor produtivo e do capital es-peculativo e, a fim de não prejudicar a arre-cadação, jogar a conta da perda para a po-pulação trabalhadora (operação que tem noImposto de Renda/Pessoa Física instrumen-to decisivo).

Essas diretrizes tributárias contribuempara o “engessamento social”, ao facilitar oacúmulo de capital por parte das camadasmais altas e impor severas restrições aos ren-dimentos assalariados1. Não bastasse isso,facilitam a livre circulação e desenvolvimen-to do capital especulativo, inexistindo gran-de preocupação com o estabelecimento deuma matriz tributária que incentive a refor-mulação do concentrado modelo econômi-co brasileiro e objetive a redução das desi-gualdades sociais e regionais. Todas essascircunstâncias merecem ser confrontadascom as pretensões do legislador constituin-te de 1988, que procurou inserir no textoconstitucional diversos mandamentos des-tinados à vinculação dos poderes estataisno intento de promover uma autêntica revo-lução social e econômica no país, concebidapor cânones de igualdade material, comobem se estabelece no Preâmbulo e no art. 3o

da Carta Magna.Neste breve trabalho, não se pretende efe-

tivar uma análise das reais possibilidades(políticas, sociais e econômicas) de realiza-ção dos objetivos fundamentais da Repú-blica Federativa do Brasil. Embora essas in-dagações sejam de extrema importância, apreocupação central que se apresenta nestareflexão concentra-se no sentido e aplicabi-

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lidade do princípio da isonomia, e a respec-tiva relação com a capacidade contributiva,o que exige a atenção voltada para as nor-mas jurídicas relativas ao tema e a interpre-tação das mesmas pelos tribunais. Eviden-temente, o enfoque jurídico tem extrema va-lia para exteriorizar as diversas orientaçõespolítico-ideológicas predominantes em de-terminados momentos históricos2, o que en-riquece a abordagem realizada pelo cientis-ta do Direito e lhe permite compreender me-lhor a realidade, sempre consciente de que ajustiça fiscal é um dos instrumentos mais efi-cazes para a redução das desigualdades.

A igualdade tributária reclama uma abor-dagem problematizante, tomando por baseseu sentido e a dinâmica concreta de suaaplicação, identificando-se na Constituiçãosuas dimensões, e em especial o princípioda capacidade contributiva, estabelecidohistoricamente como o principal fator dediscrímen relacionado à isonomia. Nessaanálise, exige-se a consideração do instru-mental dogmático posto à disposição do ju-rista e as possíveis limitações de suas utili-zações.

O princípio da isonomia tributária, comogarantia individual a ser preservada portodos os membros da Federação, encontra-se disposto no art. 150, II, impedindo queUnião, Estados, Distrito Federal e Municí-pios instituam “tratamento desigual entrecontribuintes que se encontrem em situaçãoequivalente, proibida qualquer distinção emrazão de ocupação profissional ou funçãopor eles exercida, independentemente dadenominação jurídica dos rendimentos, tí-tulos ou direitos”. Além disso, a Constitui-ção estabelece outras normas que pretendemgarantir a igualdade tributária entre aque-las pessoas jurídicas de direito público,como nos arts. 151, I e II, e 152, em decorrên-cia da formulação ideal do pacto federativo,com a instrumentalização de relações hori-zontais entre os membros da Federação.

A defesa da igualdade representou umadas grandes bandeiras de luta das revolu-ções liberais, com o objetivo de romper com

os privilégios da nobreza e garantir a igual-dade de todos perante a lei, sem distinçõesde qualquer natureza. Dessa maneira, pre-conizava-se a isonomia na aplicação do Di-reito e na delimitação da ingerência na esfe-ra dos particulares, como no caso da tribu-tação (CANOTILHO, 1994, p. 381), tendosurgido a tradicional distinção entre igual-dade perante a lei e igualdade na lei, a pri-meira assumindo o aspecto formal da racio-nalização da atividade de subsunção dasleis a todas as pessoas sem consideração desuas qualidades e a segunda acepção diri-gida preponderantemente ao legislador,para que este não possa criar distinções en-tre cidadãos situados na mesma condição3.

A igualdade perante a lei é decorrêncialógica do regime do Estado de Direito, noqual se substitui o governo dos homens pelogoverno das leis, em nome da segurança jurí-dica e da proibição de favorecimentos a umadeterminada classe de cidadãos. Essa dimen-são, no entanto, assemelha a isonomia ao prin-cípio da legalidade (CANOTILHO, 1994, p.381), ou seja, sob uma ótica meramente for-mal, o postulado nada mais é do que umimperativo de hipoteticidade (MACHADO,1994, p. 54) da norma jurídica, criada com oobjetivo de regular uma determinada situa-ção, sem levar em conta as condições pesso-ais dos sujeitos envolvidos. A norma dirige-se a todo aquele que realizar a hipótese le-gal, independentemente de seus atributosindividuais.

No que se refere ao aspecto formal daigualdade, esta dirige o comando aos apli-cadores do Direito, para que realizem a ati-vidade de aplicação das normas conformeo previsto pela hipótese incidente ao casoconcreto. Nessa dimensão, qualquer aplica-ção incorreta acaba por atentar contra a pró-pria legalidade, e a igualdade não apresen-ta maior problematicidade do que aquela re-velada quando se indaga sobre a observân-cia à lei4. Para o aplicador da norma tributá-ria, sob um enfoque formal, a igualdadenada mais é que o respeito ao cânone davinculação positiva à norma jurídica, pois

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os atos que constatam a ocorrência do fatogerador e determinam o lançamento do tri-buto são plenamente vinculados.

O aspecto da igualdade perante a lei nãohá de ser desprezado, já que a exigência deaplicação isonômica da disposição legal éparticularmente importante na atuação dis-cricionária da Administração, mormentenos casos de alteração do habitual modo deproceder dos agentes públicos5. A alteraçãodos procedimentos pelo Fisco deve ser rea-lizada de maneira racional, com fundamen-tos jurídicos relevantes e não arbitrários, jáque condutas mais gravosas ou, por outrolado, mais benéficas, em relação a certoscontribuintes em detrimento de outros, con-figuram em tese conduta irrazoável que vio-la o postulado da isonomia na dimensãoem apreço6.

Por sua vez, a segunda dimensão da iso-nomia, a denominada igualdade na lei, es-tabelece ao legislador o dever de preservar oprincípio na criação da norma, com a veda-ção de criar discriminações injustificadas,compreensão essa que fundamenta a afir-mação corrente da necessidade de tratar-seigualmente os iguais e desigualmente osdesiguais. A definição da igualdade sob esseaspecto envolve basicamente dois proble-mas: primeiro, o de se o legislador observouo tradicional juízo acima mencionado e, emsegundo lugar, se os fatores de discrimina-ção utilizados podem ser considerados le-gítimos perante a ordem jurídica vigente.

Com o esclarecimento das duas faces daigualdade na lei, compreende-se o sentidocom que os tribunais costumam utilizar oprincípio isonômico. Contudo, conforme ex-põe o constitucionalista português Canotilho(1994, p. 382), o dever de tratar igualmenteos iguais e desigualmente os desiguais repre-senta um juízo tautológico que possibilitou aconstrução da fórmula da proibição do arbí-trio, sem tomar em conta o sentido da liberda-de de conformação do legislador.

O controle dos atos do Poder Público, afim de constatar-se a legitimidade dos crité-rios discriminatórios, pode ser implemen-

tado com verificação da relação racionalentre meios e fins, bem como a legitimidadedos valores cuja proteção é almejada. Essaforma de sindicabilidade, sem dúvida, afas-ta a possibilidade de exclusão do controle,devido ao reconhecimento de um espaço deabsoluta liberdade de ação política conferi-do ao Poder Público.

Feitas essas considerações, impõe-se aanálise do princípio da isonomia no Direitobrasileiro. De antemão, pode-se afirmar quesua aplicação no sentido de “igualdade pe-rante a lei” não apresenta polêmica signifi-cativa, já que o postulado sintetiza-se na“exigência dirigida ao juiz legal e às autori-dades administrativas no sentido de se as-segurar formalmente uma igual aplicação dalei a todos os cidadãos” (CANOTILHO, 1994,p. 381). As dificuldades residem, portanto, naigualdade através da lei ou igualdade na lei.

A igualdade na lei é compreendida comouma cláusula geral de proibição do arbítrio,sendo exemplo significativo a decisão abai-xo mencionada ao analisar processo em quese pedia a exclusão de despesas profissio-nais realizadas em virtude de atividade pro-fissional como representante comercial dabase de cálculo do imposto de renda, proce-dimento admitido para outras profissões.Diz a ementa:

“TRIBUTÁRIO – MANDADO DESEGURANÇA – IMPOSTO DE REN-DA – Representante comercial – Ex-clusão de despesas profissionais –Princípio da igualdade tributária(art.150, II, CF/88) – Inaplicação

Ementa: 1. A aplicação do princí-pio da igualdade tributária pressupõea existência de situações equivalen-tes, inadmitindo-se interpretação ab-soluta no sentido de que deva ser dis-pensado o mesmo tratamento a todosos contribuintes.

2. Na verdade, o que se pretendeevitar é a utilização de critérios casu-ísticos, permitindo-se ao legislador, noentanto, a opção política de contem-plar determinadas categorias profis-

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sionais com a pretendida exclusão dedespesas.

(...)” (BRASIL. Tribunal Regional,1998a, p. 265-266).

A decisão aplica o princípio da isono-mia no sentido da impossibilidade da exis-tência de discriminações “gratuitas, artifi-ciais”, sendo que os critérios políticos (osfundamentos da discriminação) que moti-varam a distinção não podem ser indaga-dos pelo julgador. A mesma orientação éadotada pelo Supremo Tribunal Federal, aovedar tratamento distinto para situaçõesequivalentes:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTI-TUCIONALIDADE. TRIBUTÁRIO.IPVA. ISENÇÃO CONCEDIDA A VE-ÍCULOS DESTINADOS À EXPLORA-ÇÃO DOS SERVIÇOS DE TRANS-PORTE ESCOLAR, DEVIDAMENTEREGULARIZADOS JUNTO À COO-PERATIVA DE TRANSPORTES ES-COLARES DO MUNICÍPIO DE MA-CAPÁ. LEI No 351 DO ESTADO DOAMAPÁ, DE INICIATIVA PARLA-MENTAR. INCONSTITUCIONALI-DADE: ART. 150, II DA CONSTITUI-ÇÃO FEDERAL. PLAUSIBILIDADEDA TESE JURÍDICA SUSTENTADA.LIMINAR DEFERIDA.

Isenção do Imposto sobre a Propri-edade de Veículos Automotores con-cedida pelo Estado-Membro aos pro-prietários de veículos destinados à ex-ploração dos serviços de transporteescolar no Estado do Amapá, devida-mente regularizados junto à Coope-rativa de Transportes Escolares doMunicípio de Macapá – COOTEM.Tratamento desigual entre contribuintesque se encontram em situação equivalen-te. Violação ao princípio da igualda-de e da isonomia tributária. Art. 150,II da Constituição Federal. Medida li-minar deferida.

Votação: por maioria. Resultado:deferida.” (BRASIL. Supremo Tribu-nal Federal, 1997)7 [grifo nosso].

O Supremo Tribunal Federal adota paci-ficamente a caracterização do princípio daigualdade como tratamento isonômico parasituações semelhantes, na linha da fórmulareiteradamente exposta na doutrina e juris-prudência brasileiras. Ainda a título de ilus-tração, veja-se o entendimento da Corte Su-prema nos litígios que questionavam a cons-titucionalidade da conformação estabeleci-da pelo Decreto-Lei no 2.434/88, quando sedecidiu, por diversas vezes, que a isençãode IOF sobre pagamento de bens importadoscom emissão de guia anterior a 1o de julho de1988 não violava o postulado da isonomia, jáque essa situação somente ocorreria se a isen-ção fosse negada a importadores que tambémpossuíssem guias com data posterior àquela.Entendeu a Corte Suprema:

“IMPOSTO SOBRE OPERACÕESFINANCEIRAS. DECRETO-LEI N.2.434/88. ISENÇÃO NAS OPERA-ÇÕES DE CÂMBIO REALIZADASPARA PAGAMENTO DE BENS IM-PORTADOS AO AMPARO DA GUIAEMITIDA A PARTIR DE 1o DE JU-LHO DE 1988. ALEGADA VIOLA-ÇÃO AO PRINCÍPIO DA ISONOMIA.

O Decreto-lei n. 2.434/88, condicio-nando o benefício da isenção fiscal asimportações cobertas por guia expe-dida a partir de 1o de julho de 1988,estabeleceu critério pertinente, vaza-do em elemento inerente às operaçõesde importação, sem discrepar da regraconstitucional da igualdade tributáriae nem deslocar a data da ocorrência dofato gerador. O tratamento outorgadopelo referido decreto-lei alcançou im-portadores em igual situação, sem im-por exceções ou privilégios em favor deuns contribuintes em detrimento deoutros em idênticas circunstâncias.

Não cabe ao Poder Judiciário es-tender a isenção de modo a alcançaras operações não previstas pelo legis-lador, tendo em vista que o ato de quedecorre a isenção fiscal escapa ao seucontrole.

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(...)” (BRASIL. Supremo Tribunal Fede-ral, 1995a, p. 12997).

Verifica-se que o Tribunal, ao afirmar ainexistência de violação do princípio da iso-nomia porque o legislador “estabeleceu cri-tério pertinente, vazado em elemento ineren-te às operações de importação”, deixa ex-plícito que o controle do critério de discrí-men é admissível na hipótese de o fator ado-tado não encontrar pertinência lógica coma finalidade perseguida e abre o caminhopara a aplicação de princípios como arazoabilidade e a proporcionalidade.

Nesse sentido, a jurisprudência pátrianão vê problemas em definir a isonomiacomo a paridade entre pessoas em situaçõessemelhantes. A diferenciação, admitida econsiderada até mesmo exigível, é estabele-cida pelo legislador, o que remete o proble-ma para verificação da legitimidade dos cri-térios adotados, caso em que a doutrina e ajurisprudência majoritárias procuram con-trolar a legislação com base no critério derazoabilidade, sem a valoração, pelo Judi-ciário, dos critérios utilizados (DÓRIA, 1986,p. 147), e sim a verificação de se os mesmosnão são meramente arbitrários ou fantasio-sos e se estão relacionados a fatos econômi-cos.

Bernardo Ribeiro de Moraes (1995, p.116-117), aliás, enuncia as regras que nor-teiam a aplicação do princípio da isonomia:

“a) a igualdade jurídica tributáriaconsiste numa igualdade relativa,com seu pressuposto lógico da igual-dade de situações ou condições (...); b)não se admitem exceções ou privilégi-os, tais que excluam a favor de umaquilo que é exigido de outros em idên-ticas circunstâncias (...); c) a existên-cia de desigualdades naturais justifi-ca a criação de categorias ou classescontribuintes, desde que as distinçõessejam razoáveis e não arbitrárias.”

Não destoa dessa compreensão SampaioDória (1986, p. 138), ao citar as palavras doentão Justice Brandeis, da Suprema Corteamericana:

“O princípio da igualdade não im-pede que o Estado discrimine para finsde tributação. Considera-se violado-ra da regra tão-somente a classifica-ção que exorbite do regular exercíciodo julgamento e discrição legislativos.Por outras palavras, o princípio daigualdade exige meramente que a dis-criminação seja razoável. E razoávelserá a classificação que um homembem informado, inteligente, de bomsenso e civilizado possa racionalmen-te prestigiar.

Examinando a constitucionalida-de de leis à luz do princípio da igual-dade, este Tribunal tem declarado quea classificação deve repousar sobreuma diferença real, e não aparente, es-peciosa ou arbitrária, de modo quetodos situados identicamente sejamtratados com igualdade; que a classi-ficação deve ter uma finalidade, ou aconsecução de uma política dentro dacompetência do Estado; e que a dife-rença deve ter um nexo com o objetivoda legislação, que seja substancial, enão apenas especulativo, remoto ounegligenciável.”

A razoabilidade nos termos em que é ex-posta nas palavras acima possui pouca den-sidade metodológica para permitir uma sa-tisfatória indagação sobre a legitimidade daatuação do poder de tributar no Estado atu-al, dimensionado para realizar “(...) umaactividade de igualização de possibilidadesde acesso ao bem-estar social, quer através deuma política de distribuição de rendimentosquer por uma política de investimentos pú-blicos em equipamentos sociais” (MOREIRA,1987, p. 91). Na estrutura estatal contempo-rânea, o princípio da igualdade não se limi-ta a uma função negativa de exclusão das si-tuações que representem violação de seu nú-cleo essencial, pois exige do legislador a efeti-vação da igualdade de possibilidades e devantagens (CANOTILHO, 1994, p. 381), nointuito de reduzir as desigualdades geradaspela sistema social e econômico.

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O princípio da igualdade adquire feiçãopositiva e possibilita, em especial, a cons-trução de critérios de controle de constituci-onalidade de leis tributárias que estabele-cem isenções ou graus de capacidade con-tributiva, caracterizando a formulação deum juízo de compatibilidade com as dispo-sições constitucionais que pretendem edifi-car um sistema tributário destinado à ga-rantia do desenvolvimento nacional e à jus-ta distribuição de riqueza. Deve-se ter claroque a indagação sobre a isonomia represen-ta em verdade a preocupação do jurista emracionalizar as diferenciações que fatalmen-te serão estabelecidas pelo legislador, sejapor necessidades fáticas, naturais, econô-micas, ou por razões ideológicas, a fim deque os critérios comparativos das situaçõesreais preservem “as linhas mestras da igual-dade material”. Nas notas de atualizaçãoda grande obra de Aliomar Baleeiro (1997,p. 530), há a enunciação de cinco maneirasde comparação, a saber:

“1. na proibição de distinguir (uni-versalmente) na aplicação da lei, emque o valor básico protegido é a segu-rança jurídica;

2. na proibição de distinguir noteor da lei (...). Os princípios da gene-ralidade e da universalidade estão aseu serviço e têm como destinatáriostodos aqueles considerados iguais;

3. no dever de distinguir no con-teúdo da lei entre desiguais, e na me-dida dessa desigualdade. No DireitoTributário, o critério básico que mensu-ra a igualdade ou desigualdade é a ca-pacidade econômica do contribuinte;

4. no dever de considerar as gran-des desigualdades econômico-materi-ais advindas dos fatos, com o fim deatenuá-las e restabelecer o equilíbriosocial. A progressividade dos tribu-tos favorece a igualação das dísparesconcretas, em vez de conservá-las ouacentuá-las;

5. na possibilidade de derrogaçõesparciais ou totais ao princípio da ca-

pacidade contributiva pelo acolhi-mento de outros valores constitucio-nais como critérios de comparação, osquais podem inspirar progressivida-de, regressividade, isenções e benefí-cios, na busca de um melhor padrãode vida para todos, dentro dos planosde desenvolvimento nacional integra-do e harmonioso.”

A aplicação do princípio da igualdade,no Direito Tributário, é dotada de altíssimacomplexidade, por diversas razões: 1o) o sis-tema de tributação parte do pressuposto danecessária distinção entre os contribuintes;2o) a Constituição trata do sistema tributá-rio com o intento de vincular a atividade decobrança de tributos à realização de objeti-vos estabelecidos pela Carta, o que ocorre,por exemplo, com a progressividade-sançãodo ITR e do IPTU; 3o) embora a Constituiçãoenuncie diversos princípios impositivos aolegislador ordinário, a potencial vaguezadas normas concede um grande espaço deapreciação àquele, o que dificulta o juízo decompatibilidade do Judiciário; 4o) especifi-camente em relação à política de isenções, étarefa extremamente complexa a exteriori-zação de um raciocínio jurídico-normativoque demonstre a sua legitimidade, em cadacaso concreto, tendo em conta a importân-cia para o desenvolvimento nacional.

O reconhecimento dessas dificuldadesnão deve levar à conclusão, no entanto, daimpossibilidade de controle das normas tri-butárias que estabeleçam distinções. A veri-ficação da legitimidade da discriminação vi-abiliza a análise da adequação dos atos le-gislativos à Constituição. Para tanto, 1) é dese reconhecer a liberdade de conformaçãoconferida ao legislador ordinário; 2) o legis-lador, ao estabelecer a discriminação, pre-tende atingir determinada finalidade, quedeve ser objeto de sindicabilidade peranteas normas constitucionais; 3) deve ser inda-gada a legitimidade dos meios adotadospara o legislador atingir a finalidade em cau-sa; 4) o princípio da igualdade, assim comotodos os princípios, pode ser compreendido

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em dupla função, seja para vedar discrimi-nações arbitrárias, seja para exigir a equipa-ração de pessoas em situações semelhantes.

Não parece adequado o entendimento daliberdade de conformação como apreciaçãode caráter meramente político, inalcançávelpelo Poder Judiciário, tese exposta na deci-são abaixo, do Supremo Tribunal Federal:

“EMENTA: RECURSO EXTRA-ORDINÁRIO: ISENÇÃO DO IMPOS-TO SOBRE OPERAÇÕES FINANCEI-RAS NAS IMPORTAÇÕES. LIMITA-ÇÃO À DATA DA EXPEDIÇÃO DAGUIA DE IMPORTAÇÃO. DESLOCA-MENTO DA DATA DA OCORRÊN-CIA DO FATO GERADOR. INEXIS-TÊNCIA. DECLARAÇÃO DE IN-CONSTITUCIONALIDADE DA PAR-TE FINAL DO ART. 6o DO DECRETO-LEI No 2.434/88. IMPOSSIBILIDADE.

1. A isenção fiscal decorre do im-plemento da política fiscal e econômi-ca, pelo Estado, tendo em vista o inte-resse social. É ato discricionário queescapa ao controle do Poder Judiciá-rio e envolve o juízo de conveniênciae oportunidade do Poder Executivo.O termo inicial de vigência da isen-ção, fixada a partir da ata da expedi-ção da guia de importação, não infrin-ge o princípio da isonomia tributária,nem desloca a data da ocorrência dofato gerador do tributo, porque a isen-ção diz respeito à exclusão do créditotributário, enquanto o fato gerador tempertinência com o nascimento da obri-gação tributária.

2. Não pode esta Corte alterar o sen-tido inequívoco da norma, por via dedeclaração de inconstitucionalidade departe do dispositivo da lei. A CorteConstitucional só pode atuar como le-gislador negativo, não, porém, comolegislador positivo.” (BRASIL. Supre-mo Tribunal Federal, 1995b, p. 29585).

O mesmo raciocínio é encontrado na ju-risprudência do Tribunal Regional Federalda 4a Região, conforme segue:

“TRIBUTÁRIO. MANDATO DESEGURANÇA. LEI No 9.317/96. EN-QUADRAMENTO NO SISTEMA IN-TEGRADO DE PAGAMENTO DEIMPOSTOS E CONTRIBUIÇÕES DASMICROEMPRESAS E DAS EMPRE-SAS DE PEQUENO PORTE (SIM-PLES). ART. 9o, INCISO XIII. VIOLA-ÇÃO AO PRINCÍPIO DA ISONOMIAE RAZOABILIDADE DA NORMA.INOCORRÊNCIA. ADIN 1.643-1-DF.l. A Lei 9.317/96 regula, em conformi-dade com o artigo 179 da Constitui-ção Federal, o tratamento diferencia-do e simplificado das microempresase das empresas de pequeno porte, cujoartigo 9o, inciso XIII, não viola o prin-cípio da isonomia tributária, nem tam-pouco a razoabilidade da norma. 2.Referido tratamento diferenciado possuievidente natureza isentiva, inserida noâmbito de atuação discricionária do Esta-do, utilizada exatamente para satisfazer oobjetivo almejado, qual seja, o tratamen-to diferenciado determinado pelo dis-positivo constitucional. 3. O Poder Judi-ciário somente atua como legislador ne-gativo, vedando-se-lhe o atuar de formapositiva, conferindo isenção não previstaem lei ou estendendo a mesma àqueles con-tribuintes expressamente excluídos, oueventualmente não contemplados pela le-gislação, (...) 5. O fator de discrimina-ção efetivado pela lei, contra o qual seinsurgem as Apelantes, não passoudespercebido pela decisão do STF naADIN 1643-1-DF, tendo sido susten-tado pelo Relator que a lei tributáriapode discriminar por motivo extrafis-cal ramos da atividade econômica,desde que a distinção seja razoável. 6.Precedente da Turma. 7. Apelaçãoimprovida.” (BRASIL. Tribunal Re-gional Federal, 2000b, p. 2000) [grifonosso].

“TRIBUTÁRIO. LEI-9.317/96,ART-9o SISTEMA INTEGRADO DEPAGAMENTOS DE IMPOSTOS E

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CONTRIBUIÇÕES DE MICROEM-PRESAS E EMPRESAS DE PEQUENOPORTE – SIMPLES.

(...) O Poder Judiciário só atua comolegislador negativo, deixando de aplicara norma declarada ilegal ou inconstitu-cional, sendo-lhe vedado conferir isençãonão prevista em lei ou estender o benefícioàqueles contribuintes não contempladospela lei existente. A isenção tributária re-vela conveniência política, insuscetível,neste aspecto, de controle do Poder Judi-ciário, na concretização de interesses eco-nômicos e sociais, estimulando e benefici-ando determinadas situações merecedorasde tratamento privilegiado. Além disso,a extensão do benefício fiscal a situa-ções não abrangidas pela norma, cri-ando direito estranho à previsão le-gal e atribuindo à norma supostamen-te inconstitucional vigor maior, des-respeita a exegese do ART-111, INC-2, do CTN-66.” [grifo nosso] (BRASIL.Tribunal Regional Federal, 1999b, p.409).

As decisões merecem considerações prin-cipalmente em dois aspectos: o primeiro éque a relação entre discricionariedade doato exclusão de sua apreciação viola art. 5o,XXXV, da Constituição Federal. O segundoaspecto é que a orientação tradicional daCorte Maior relativa à impossibilidade daatuação como legislador positivo encontradificuldades quando se trata da aplicaçãode princípios.

A limitação da função jurisdicional àatuação de legislador negativo não se coa-duna com a atual compreensão sobre o ca-ráter normativo dos princípios, identifica-dos como verdadeiras normas jurídicas,com força irradiante e presencialidade nor-mativa, de forma a permitir que os mesmospossam indicar a solução mais adequadadiante do caso concreto.

Aliás, a dimensão positiva dos princípi-os pressupõe uma síntese dialética entre anorma e a realidade e amplia o horizontemetodológico do operador do Direito, con-

ferindo a este a possibilidade de ponderar alegitimidade dos atos do Poder Público, cir-cunstância muitas vezes de difícil resolu-ção com a tradicional estrutura legalista uti-lizada no direito público, notadamente naschamadas “omissões parciais”. No estágioatual, a normatividade dos princípios e a cris-talização de sua dimensão positiva garantemuma atuação adequada do julgador peranteos referenciais do Estado de Direito.

Sendo assim, não é incompatível com aseparação dos poderes a atividade de con-trole da razoabilidade da discriminação, afim de verificar o nexo de causalidade entreo meio adequado e a finalidade perseguida,bem como a própria legitimidade desta pe-rante a Constituição; tarefa, sem dúvida, designificativa complexidade, a ser cumpridacom base nos ensinamentos da teoria cons-titucional.

De qualquer forma, cabe uma advertên-cia: assiste razão a Hugo de Brito Machado(1994, p. 59) quando afirma ser “menos pro-blemático trabalhar com o princípio da ca-pacidade contributiva do que com o princí-pio da isonomia jurídica”. Aquele princí-pio surge como a lapidação da isonomia, esua instrumentalidade dogmática eviden-cia-se mais claramente ao jurista. A seguir,serão feitas algumas considerações sobre oprincípio mencionado.

4. A isonomia e seu principal fatorde discrímen: a capacidadeeconômica ou contributiva

O princípio da capacidade contributivainstrumentaliza, no Direito Tributário, apossibilidade de tratamento distinto parapessoas em condições diversas, concepção,aliás, plenamente aceita dentro do EstadoLiberal (Cf. DERZI apud BALEEIRO, 1997,p. 529), pois a diferenciação nos encargosfiscais consolida a igualdade no “ponto departida”, a fim de que os indivíduos pos-sam diferenciar-se legitimamente por meioda livre concorrência, sem que existamquaisquer privilégios.

Revista de Informação Legislativa224

Entretanto, no Estado Social e Democrá-tico de Direito, o princípio adquire notas pe-culiares que transcendem a formulação daisonomia em seus termos genéricos, comoconcebido no Estado Liberal. O postuladoem apreço ressalta o aspecto material daigualdade, ao possibilitar que a tributaçãosirva para a redução das desigualdades defato existentes na sociedade e colocar emníveis concretos e realizáveis as tarefas dis-tributivas e desenvolvimentistas impostaspelo modelo do Welfare State. Afora a exi-gência da necessária consideração das de-sigualdades, na acepção tradicional da iso-nomia, releva no âmbito tributário a tarefapromocional de permitir o incremento da in-terferência estatal sobre a esfera patrimonialdos mais abastados, sendo adequadas as pa-lavras de Sampaio Dória (1986, p. 128) quan-do afirma que “(...) a faculdade de discrimi-nar é da essência do poder tributário”, com-preendidas, é claro, no contexto da estruturaestatal proposta pela Constituição de 1988.

O raciocínio aqui explicitado serve paradeixar claro o seguinte aspecto: em um Es-tado de Direito, a igualdade jurídica não serestringe a uma igualdade formal, abstrata,isolada das circunstâncias concretas: a gran-de promessa jurídica das Constituições con-temporâneas é a correção das desigualda-des de fato geradas pelo sistema capitalista,que imprimiu sua particular forma de apro-priação privada dos meios de produção ede exploração da mão-de-obra. O Direito li-beral omitiu-se ao não admitir possibilida-des de conformação da realidade e de restri-ção da exploração e do acúmulo de capital,sendo silente diante do mundo concreto,concedendo ao Judiciário a restrita tarefa decassação de atos que violem o dever de omis-são imposto ao Estado. A partir dessas con-siderações, verifica-se que a capacidadecontributiva preconizada pelo Estado deBem-Estar Social expressa no mundo dasnormas a crença de que, por intermédio doDireito, é possível realizar a tarefa distribu-tiva, de inviável ocorrência na esfera de li-vre atuação da sociedade.

Esse contexto exterioriza o sentido doprincípio da capacidade contributiva naConstituição de 1988: o legislador, ao defi-nir as hipóteses de incidência dos impostose a alíquota dos mesmos, deve adotar comoreferencial a capacidade econômica dos con-tribuintes, tendo sempre presente que quantomaior a esfera patrimonial do particularmais intensa será a carga fiscal; por outrolado, as parcelas economicamente mais fra-cas da população não podem arcar com pe-sadas cargas tributárias. Dessa forma, exi-ge-se do legislador uma avaliação das con-dições concretas das pessoas e dos gruposeconômicos envolvidos: a mesma carga tri-butária para setores economicamente dife-renciados facilita o acúmulo de capital epenaliza as camadas pobres e médias, quepassam a arcar prioritariamente com as des-pesas suportadas pelos cofres do Estado.

Após essa breve delimitação do intentodo legislador constituinte ao estatuir o prin-cípio da capacidade contributiva8, inseridono art. 145, parágrafo único, da CF, salienta-se que esse princípio não se confunde com aproporcionalidade nos tributos (MACHADO,1994, p. 56), pois a diferenciação na intensi-dade da incidência implementa a justiça tri-butária. Assim, embora a instituição de umaalíquota única para determinados impos-tos possa garantir um grau de proporciona-lidade na intervenção do patrimônio do ci-dadão, viola frontalmente o cânone que exi-ge a distinção entre contribuintes9. Por talmotivo, bem lembra Carrazza (1999, p. 76)que são inconstitucionais os denominados“impostos fixos”, como ISS de alíquota fixapara profissionais liberais em alguns mu-nicípios10, além da Contribuição Provisóriasobre Movimentação Financeira (CPMF)11.Aalíquota única, portanto, somente seria ad-missível em uma sociedade de absolutaigualdade, algo inviável dentro do regimecapitalista, ou quando fosse impossível adistinção entre contribuintes.

No entanto, afora casos-limite, em quefica evidente o erro de apreciação12 do legis-lador, o princípio da capacidade contribu-

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tiva é de difícil delimitação, o que levouBecker (1972, p. 439) a afirmar que a expres-são, “tomada em si mesma”, “significa ape-nas: possibilidade de suportar o ônus tribu-tário”, sendo uma expressão ambígua pas-sível de variadas interpretações.

O mesmo Alfredo Augusto Becker (1972,p. 447), em sua conhecida obra, afirma queo princípio da capacidade contributiva sur-ge do direito natural, sendo que, para a suaconsagração no direito positivo, foi realiza-da uma série de constrições que permitiramsua aplicabilidade. Para o autor, a primeiraconstrição é que a capacidade contributivarefere-se a um único tributo, não se levandoem conta o conjunto da tributação13. A se-gunda constrição relaciona-se com a idéiade que a riqueza do contribuinte não é, narealidade, a real e verdadeira e total condi-ção econômica daquele, e sim um “fato-sig-no presuntivo de sua renda ou capital”(BECKER, 1972, p. 453). Por fim, a terceiraconstrição sofrida pelo princípio em ques-tão é que a renda ou capital presumido deveser em valor acima do mínimo indispensá-vel para a subsistência do cidadão (BE-CKER, 1972, p. 454). Nesse ponto, surge oelo entre a capacidade contributiva e a ve-dação do confisco, princípio contido naConstituição Federal de 1988.

A análise de Becker evidencia como oprincípio da capacidade contributiva en-contra viabilidade dogmática dentro dos or-denamentos jurídicos. O tributarista lembrabem que o princípio origina-se no direito na-tural, característica dos princípios funda-mentais incorporados nas Constituiçõespós-revolução francesa. Da mesma forma,esses princípios, formulados a partir de ori-entações jusnaturalistas que propulsiona-ram os ideais revolucionários, sofreram in-terpretações e adequações, permitindo a suautilização pelos juristas, idêntico caminhotrilhado para a positivação da capacidadecontributiva.

A ambigüidade do princípio e a possí-vel diversidade de interpretações sobre seuconteúdo não o destituem de operacionali-

dade, já que a moderna metodologia do Di-reito Público tem realçado o caráter norma-tivo dos princípios, pelo que a abertura des-tes representa a efetiva possibilidade decompreensão do fenômeno jurídico em umaperspectiva estruturada com base nos pos-tulados fundantes do sistema, mormente osprincípios constitucionais. Dessa perspec-tiva não se distancia o Direito Tributário,com a nítida intenção do legislador consti-tuinte de ressaltar a importância dos prin-cípios de Direito Tributário como mecanis-mos de proteção do cidadão-contribuinte.

Além de discorrer sobre as constriçõesoperadas em relação ao princípio da capa-cidade contributiva, Becker (1972, p. 454-456) sustenta que este possui quatro alcan-ces de eficácia jurídica. Primeiro, que o pos-tulado é endereçado somente ao legislador.O segundo estabelece que o legislador deveprever fatos e situações que garantam o mí-nimo para a subsistência do contribuinte. Oterceiro alcance, por sua vez, dimensiona-se no sentido da exigência de uma relaçãode progressividade que contemple o graude “riqueza presumível do contribuinte”, en-quanto o último alcance obriga o legislador aexteriorizar, quando lançar mão da figura dosubstituto legal tributário, a “repercussão ju-rídica do tributo sobre o substituído”.

Entre as considerações do emérito tribu-tarista gaúcho, a afirmação de que o princí-pio é dirigido unicamente ao legislador deveser vista com reservas. Em verdade, os prin-cípios jurídicos, tomada sua importância eoperatividade dentro do sistema jurídico,apresentam-se como normas dotadas depresencialidade suficiente para excluir si-tuações que a eles se contraponham, e emdeterminadas situações até mesmo permi-tem ao operador do direito a verificação dasolução mais justa diante do caso concreto.Os princípios, entendidos como normas,embora notadamente dirigidos ao legisla-dor, reclamam do Poder Judiciário a efetivaproteção de sua carga impositiva, já que nãose constituem mais em meras exortações dolegislador constituinte.

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Com base nessas considerações, assisterazão a Misabel Derzi (1997, p. 521), que,com sua peculiar linearidade de raciocínio,sustenta que os “(...) direitos e garantias tri-butárias têm no Judiciário não apenas o le-gislador negativo, mas também o legisladorpositivo-supletivo”. O princípio da capaci-dade contributiva serve como um dos parâ-metros normativos pelos quais o operadordo Direito verifica a validade substancialdos atos legislativos, indagando a correçãodos critérios adotados pelo legislador paraa delimitação das hipóteses de incidênciatributária. Tem o Poder Judiciário a atribui-ção constitucional de invalidar critérios quecolidam com o núcleo essencial do princí-pio, como nas situações de impostos de alí-quota única (exemplo já mencionado), e ainstituição de critérios que não revelem acapacidade econômica, além da possibili-dade de corrigir distorções sedimentadaspelo legislador, sendo certo que, como afir-ma Misabel Derzi (1997, p. 551), o “entendi-mento do STF sobre a idéia de legisladornegativo se choca com a Constituição Fede-ral de 1988”.

Além do mais, a expressão “capacidadeeconômica” foi utilizada pelo legisladorconstituinte com o claro intento de condi-cionar a atividade legiferante ordinária nosentido de permitir a incidência do impostosomente até os reais limites dos contribuin-tes, o que exige o estabelecimento de critéri-os para a aferição de patrimônio, lucro ourenda, que efetivamente possam sofrer aimposição estabelecida pelo Fisco. Mecanis-mos de restrição das deduções, no caso doimposto de renda, e de limitações na com-pensação de prejuízos, possivelmente ata-cam o princípio analisado. Aliás, é de se re-ferir a orientação dos Tribunais tendente aaceitar a legitimidade da limitação em 30%dos prejuízos para efeito de compensação,destinada à apuração do fato gerador doimposto de renda/pessoa jurídica, que nãose mostra adequada a uma efetiva com-preensão da capacidade econômica. Ilustra-tiva é a decisão a seguir:

“TRIBUTÁRIO – IMPOSTO DERENDA – CONTRIBUIÇÃO SOCIALSOBRE O LUCRO – PESSOA JURÍDI-CA – COMPENSAÇÃO DE PREJUÍ-ZOS – LIMITAÇÃO DE 30% – LEINo 8.981/95 – CONSTITUCIONA-LIDADE – APELAÇÃO IMPROVI-DA.

1. É constitucional o art. 42 da Leino 8.981/95, que limitou a 30% o va-lor da compensação dos prejuízos naapuração da base de cálculo do Im-posto de Renda e da contribuiçãosocial sobre o lucro de pessoa jurí-dica, no exercício financeiro de1995.

2. Os arts. 42 e 58 da Lei no 8.981/95 não ofendem o princípio da capa-cidade contributiva, já que não seconstitui em empréstimo compulsórioa limitação imposta à compensaçãode prejuízos fiscais.

3. Não houve ofensa, também, aoconceito de lucro e renda, pois a leinão impediu a dedução dos prejuízos,apenas delimitou e definiu a forma defazê-lo.

(...)” (BRASIL. Tribunal RegionalFederal, 2000a, p. 666).

Por outro lado, a capacidade contributi-va, como fator de discrímen, deve buscar emreais fatores econômicos as distinções, peloque diferenciações feitas por critérios su-perficiais ou fantasiosos não podem ser en-tendidas como legitimamente concretizado-ras do mandamento constitucional. Cabemencionar julgado do extinto Tribunal deAlçada do Rio Grande do Sul, entendendoque a simples distinção entre pessoas degrau de instrução semelhante não demons-tra violação ao princípio em análise:

“Ementa: Direito Tributário. Prin-cípio da igualdade. Tratamento iso-nômico.

(...) Em matéria fiscal, interessa menos

saber o que o legislador está proibidode distinguir e mais o que ele deve dis-

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criminar. Atividades iguais devemreceber tratamento igual, e atividadesdesiguais devem receber tratamentodesigual. Os contribuintes agrupadosna mesma classe deverão ter trata-mento idêntico; os de situações dife-rentes, tratamento, também, diferente.A condição de profissionais liberaisde nível superior, por si só, não deter-mina a igualdade de tratamento fis-cal, a qual deve somar-se a capacida-de contributiva das várias categoriasprofissionais consideradas pelo legis-lador” (BRASIL. Tribunal de Alçadado Rio Grande do Sul, 1995).

Por fim, nesta breve análise dos elemen-tos do princípio da capacidade contributi-va, impõe-se esclarecer o significado da ex-pressão “sempre que possível”, encontradano art. 145, §1o, da Constituição Federal.Além disso, há o questionamento sobre ocaráter objetivo ou subjetivo do referidomandamento principiológico.

Roque Antonio Carrazza (1999, p. 75)entende que a capacidade econômica deve-rá ser preservada toda vez que o imposto,por sua natureza, admita a verificação dacondição do contribuinte, o que não é possí-vel nos impostos indiretos. Estes, por suavez, no caso do ICMS e do IPI, apresentamcomo irradiação do princípio o cânone daseletividade (CARRAZZA, 1999, p. 71). Acapacidade econômica, portanto, será de ne-cessária observância em impostos sobre arenda e o patrimônio, em que a avaliação sedá sobre a riqueza do sujeito passivo da obri-gação tributária. Nos impostos indiretos,pois, a aplicabilidade do princípio mostra-se demasiamente complexa.

Quanto ao debate sobre o caráter objeti-vo ou subjetivo do princípio, cabem algu-mas considerações. Na verdade, o proble-ma da verificação da capacidade econômi-ca do contribuinte, tendo em conta a sériede constrições sofridas pelo princípio nointento de construir sua força normativa,somente pode tomar por base o fato-signopresuntivo de riqueza (na expressão cunha-

da por Becker), pelo que é correta a lição deCarrazza (1999, p. 67), quando afirma que,“(...) nos impostos sobre a propriedade, acapacidade contributiva revela-se com opróprio bem”. Assim, a realização da hipó-tese de incidência tributária já indica a pos-sibilidade de submeter-se à imposição doFisco, sendo que a condição pessoal do con-tribuinte não pode ser tomada em conside-ração em impostos que adotem como fatogerador a aquisição ou manutenção de pro-priedade.

5. Pontos de reflexão sobre a isonomia ea capacidade contributiva. A sua

operatividade no Estado contemporâneo

Os pontos trabalhados anteriormenteserviram para situar a construção dos prin-cípios da isonomia e da capacidade contri-butiva, bem como a utilização dos mesmospelos tribunais. No entanto, as idéias emanálise trazem uma série de consideraçõesque servem para indagar sobre grande par-te das medidas tributárias adotadas peloPoder Público e, da mesma forma, o papeldo Poder Judiciário na proteção dos direi-tos dos contribuintes.

O primeiro aspecto a ser ressaltado é queo princípio da capacidade contributiva, em-bora vinculado ao da isonomia, não se con-funde com este, conquanto existam respei-táveis opiniões em contrário14. A capacida-de contributiva salienta uma das dimensõesda isonomia, a saber, a igualdade na lei (tra-tar de forma distinta situações diversas),ainda que não encerre toda essa forma decompreensão do preceito isonômico. Perti-nentes, portanto, as considerações de Alvesde Andrade (2001, p. 127):

“Destaque-se que, se o princípio dacapacidade contributiva está profun-damente ligado ao da igualdade, nãomenos certo é que nele não se esgota.

(...) é preciso dizer que o princípioda capacidade contributiva não se es-gota no princípio da igualdade. É queele representa um critério material de

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justiça no campo tributário. Não cui-da apenas de vedar discriminaçõesarbitrárias ou não razoáveis, mas deafirmar que o sistema tributário se ori-enta em conformidade com um crité-rio específico de justiça, qual seja, acapacidade de contribuir das pesso-as.

Em suma, tem-se que o princípioda capacidade contributiva e o daigualdade se encontram mutuamenteimplicados. Mas enquanto esse prin-cípio é marcado por um caráter relaci-onal, ao permitir o confronto entreduas situações jurídicas, aquele prin-cípio representa sobretudo um crité-rio efetivo de justiça para o direitotributário”.

O princípio da isonomia serve como cri-tério para a verificação das distinções reali-zadas pelo legislador, sempre com a exigên-cia de um juízo de comparação entre duassituações aparentemente semelhantes, con-dição essa que torna problemática a discri-minação efetivada. Por via de conseqüên-cia, indaga-se sobre a equivalência ou dife-rença de tratamento15 (reclamando a identi-ficação de cada situação ou pessoa envolvi-da), e, na hipótese de discrímen, a razoabili-dade do mesmo. Essa última operação, em-bora não esteja consagrada pela jurispru-dência, encontra suporte em certas decisões,como no julgado mencionado abaixo, oriun-do do Supremo Tribunal Federal, em que sediscutia a razoabilidade das limitações àopção de tributação no sistema SIMPLES,constando no voto do Ministro MaurícioCorrea o seguinte trecho:

“Conseqüentemente, a exclusãodo ‘Simples’, da abrangência dessassociedades civis, não caracteriza dis-criminação arbitrária, porque obede-ce critérios razoáveis adotados com opropósito de compatibilizá-los com oenunciado constitucional.

Não há falar-se, pois, em ofensa aoprincípio da isonomia tributário, vis-to que a lei tributária – e esse é o cará-

ter da Lei no 9.317/96 – pode discri-minar por motivo extrafiscal entre ra-mos de atividade econômica, desde quea distinção seja razoável, como na hipóte-se vertente, derivada de uma finalidadeobjetiva e se aplique a todas as pessoas damesma classe ou categoria.

A razoabilidade da Lei no 9.317/96 consiste em beneficiar as pessoasque não possuem habilitação profis-sional exigida por lei, seguramente, asde menor capacidade contributiva esem estrutura bastante para atender acomplexidade burocrática comum aosempresários de maior porte e aos pro-fissionais liberais.

Essa desigualdade factual justifi-ca tratamento desigual no âmbito tri-butário, em favor do mais fraco, demodo a atender também à norma con-tida no §1o do art. 145 da Constitui-ção Federal, tendo-se em vista que essefavor fiscal decorre do implemento dapolítica fiscal e econômica, visando ointeresse social. Portanto é ato discri-cionário que foge ao controle do Po-der Judiciário, envolvendo juízo demera conveniência e oportunidade doPoder Executivo.” (BRASIL. SupremoTribunal Federal, 2003).

Nota-se que a fundamentação segue aorientação tradicional de isenção do con-trole. Todavia, indaga sobre a razoabilida-de da distinção, demonstrando a sindicabi-lidade efetuada pelo Judiciário, ainda quepara justificar a constitucionalidade da nor-ma. O Superior Tribunal de Justiça, damesma maneira, já se debruçou sobre a veri-ficação da razoabilidade de uma distinção,conforme segue:

“CONSTITUCIONAL. RECURSOORDINÁRIO EM MANDADO DESEGURANÇA. ICMS. REDUÇÃO DEALÍQUOTA. TERMO DE ACORDO.REPETIÇÃO DO INDÉBITO. NÃOUTILIZAÇÃO DA VIA JUDICIAL.VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA ISO-NOMIA TRIBUTÁRIA. ART. 150, II,

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DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. INE-XISTÊNCIA. ERROR IN JUDICAN-DO. AUSÊNCIA. RECURSO DES-PROVIDO. 1 – Não ofende o princí-pio da igualdade tributária (art. 150,II, CF) ato estatal que possibilita a ce-lebração de Termo de Acordo, conces-sivo de redução de alíquota de ICMS(17% para 12%), somente às empre-sas que desistirem de ações judiciaisque busquem repetir valores dessamesma natureza tributária. Por meiodo acordo celebrado, o Fisco, tão-so-mente, tornou disponível a todos oscontribuintes, e não apenas a um oualguns deles, regime alternativo – pos-sivelmente mais benéfico –, de arreca-dação daquele imposto, ao qual esses,por ato de livre disposição, optam poraderir ou não. 2 – A condição impostapelo Fisco, no sentido de que as empresasdesistam de ações que busquem repetir cré-ditos oriundos daquele mesmo imposto, éexigência que se mostra de todo razoável.Entendimento diverso conduziria àsituação de a Fazenda, por um lado,submeter-se à eventual condenaçãojudicial para devolução de valores re-colhidos em excesso; de outro, e con-comitantemente, conceder expressivoabatimento no valor do imposto a sercobrado.

(...)” (BRASIL. Superior Tribunal deJustiça, 2002, p. 173) [grifo nosso].

A leitura da jurisprudência demonstraque a reflexão sobre a legitimidade das dis-tinções estabelecidas tomando-se por baseum critério constitucionalmente referenda-do é realizada pelo Poder Judiciário, no maisdas vezes, com o intento de afirmar a consti-tucionalidade das leis. Isso não ofusca, con-tudo, a evidência de que efetivamente há umaperspectiva de controle da razoabilidade, aser, obviamente, incrementada pelo opera-dores do Direito.

O princípio da isonomia possibilita, in-clusive, o controle das leis de isenção, paraque se questione 1) a existência dos fatos

selecionados pelo legislador para o estabe-lecimento da distinção; 2) a aptidão do meioadotado-isenção, para a finalidade perse-guida; 3) a própria legitimidade do fim, ten-do-se em conta os preceitos da Constitui-ção. Esses pontos não negam a margem deapreciação reconhecida ao legislador: ape-nas servem como referenciais para o reco-nhecimento da inexistência de esferas total-mente imunes ao Direito e esclarecem a po-sição do Juiz perante o controle de normasde isenção, sempre com a consciência de quea ponderação do Legislador goza de pre-sunção de constitucionalidade16 e realiza-se em um âmbito em que determinadas de-cisões são tomadas a partir de um juízo deconveniência e oportunidade.

Por outro lado, a capacidade contributi-va, intimamente ligada à isonomia no mo-mento em que esta é considerada como di-reito à compensação das desigualdades fá-ticas, encontra espaço próprio de aplicação,ainda que sua força normativa esteja sofren-do severos abalos com a preponderância depolíticas econômicas que utilizam a tribu-tação (ou falta dela) como meio de atraçãode grandes capitais. Para tanto, o comandoprincipiológico deve ser compreendidocomo determinação para que a incidênciada tributação seja estabelecida conforme acapacidade econômica exteriorizada pelofato presuntivo de riqueza adotado comopressuposto relevante.

A capacidade contributiva deve ser afe-rida de acordo com os elementos da realida-de determinantes para a consideração rea-lizada pelo legislador, de forma que o erromanifesto de apreciação do legislador(quando, por exemplo, não observa a dispa-ridade econômica entre classes sociais ou adiferença no patrimônio dos contribuintes)deve ser afastado por meio do controle ju-risdicional de constitucionalidade. Da mes-ma forma, é imprópria a derrogação a priorido princípio, excluindo, em tese, determi-nadas situações de seu âmbito de aplica-ção, solução adotada pelo Supremo Tribu-nal Federal para afirmar que a capacidade

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contributiva não se aplica aos casos em quea finalidade do imposto é extrafiscal.

Embora seja notório que o controle daobservância dos princípios constitucionaistributários é complexo nos impostos com fi-nalidade extrafiscal, há de se ter em contaque o legislador, ao utilizar-se da tributa-ção para o implemento de uma determina-da medida econômica, tem a obrigação deobedecer a determinados limites, como es-clarece Machado (2001, p. 41), quando abor-da a relação entre capacidade contributivae leis de isenção:

“Questão delicada consiste em sa-ber se, havendo a Constituição consa-grado expressamente o princípio dacapacidade contributiva, ou, maisexatamente, o princípio da capaci-dade econômica, a lei que concedeisenção de tributo fere, ou não, talprincípio.

Em se tratando de imposto cujo fatogerador não seja necessariamente umindicador de capacidade contributi-va do contribuinte, a lei que concedeisenção certamente não será inconsti-tucional, posto que não fere o princí-pio em estudo. Em se tratando, porém,de imposto sobre o patrimônio, ou so-bre a renda, cujo contribuinte é preci-samente aquele que se revela possui-dor de riqueza, ou de renda, aí nosparece que a isenção lesa o dispositi-vo constitucional que alberga o prin-cípio em referência.”17

Conclui-se, pois, que a capacidade con-tributiva é princípio fundamental para ocontrole da ação tributária, sendo um doselementos-chave dos propósitos igualitári-os desenhados pela Constituição. É elemen-to determinante para a ação política de umgoverno, que, ao adotar as medidas tributá-rias consideradas relevantes para o desen-volvimento nacional, deve proceder de ma-neira a proteger a norma do art. 145, §1o, daConstituição Federal.

Afora essa imposição dirigida ao Legis-lativo e ao Executivo, tem o Judiciário fértil

campo de ação, especialmente na esfera docontrole concentrado, em que o Supremo Tri-bunal Federal pode até mesmo conceder efei-to ex nunc parcial à declaração de inconsti-tucionalidade, de maneira a conceder umprazo para o legislador adequar a normatributária à Constituição Federal.

6. Considerações finais

O texto apresentou os princípios da iso-nomia tributária e da capacidade contribu-tiva, bem como a interpretação conferida aestes pela doutrina e jurisprudência, alémdas possibilidades de concretização dosmesmos, no intento de se aperfeiçoar a pro-teção do contribuinte.

Não resta dúvida de que os princípiosde Direito Tributário, por limitarem a açãodo Fisco, são extremamente suscetíveis aconcretizações de duvidosa rigorosidademetodológica, diversas vezes submetidosaos desejos de aumento da carga tributária,cujo produto é prioritariamente dirigido aopagamento da dívida pública e à constitui-ção de um superávit primário. Essa realida-de faz com que os Tribunais, diante da com-plexidade dos assuntos econômicos e daprópria pressão exercida por diversos seto-res, pelo governo e pela mídia, acabem utili-zando nos princípios tributários severoscritérios de exclusão do controle, como omero caráter político dos critérios de discri-minação adotados pelo legislador e a im-possibilidade de qualquer eficácia positivados princípios.

A limitação judicial do controle, entre-tanto, não representa uma barreira intrans-ponível, que impede a perquirição das ra-zões que levaram o legislador a adotar de-terminados critérios de distinção e a consi-derar determinados elementos como fatospresuntivos de riqueza. O princípio da iso-nomia, como já afirmado, é uma vedação àdistinção entre situações semelhantes e so-mente é preservado com a demonstração darazoabilidade ou proporcionalidade18 dadiferenciação, sendo imperiosa a indagação

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sobre os meios adotados e a finalidade pre-tendida. A capacidade contributiva, por suavez, impõe ao legislador a obrigação de to-mar em conta fatos econômicos presuntivosde riqueza, de modo que a incidência da tri-butação seja progressivamente superior, deacordo com o incremento patrimonial docontribuinte, admitindo-se a relativizaçãodo princípio somente na hipótese de exis-tência de outro mandamento constitucionalincidente à espécie (e.g. garantia do desen-volvimento), situação a ser desvendada di-ante do caso concreto.

Por todas as razões expostas, tanto oprincípio da isonomia tributária quanto oda capacidade contributiva apresentam es-feras próprias de incidência, cujo sentidojustifica uma redefinição do sentido impos-to pelo senso comum para a tributação. Esta,afora o objetivo arrecadatório, somente pos-sui sentido no momento em que o cidadãotem consciência da sua importância para arealização da justiça social, implementadacom a correção das desigualdades perpe-tuadas pelo sistema capitalista.

Notas1 Outro fator, conjugado com a excessiva carga

tributária exercida principalmente sobre os rendi-mentos da classe média, contribui para o aumentodas desigualdades: a má prestação dos serviçospúblicos e, em vários casos, a sonegação destes.Significativo é o fato de que cada vez mais o cida-dão precisa recorrer a serviços privados para satis-fazer necessidades essenciais (e.g., os planos desaúde e a educação privada), acarretando maioresdespesas nos orçamentos familiares e reduzindo adisponibilidade de renda (já que os abatimentos noIRPF são limitados). Afora isso, assustador é oquadro brasileiro, em que grande parte da popula-ção não recebe sequer o mínimo para efetivamenteter uma vida digna.

2 Gastón Jèze, no início do século, já dizia que aanálise do sistema de impostos de um país permiteque se identifique, com segurança, qual a classedetentora do poder político (BALEEIRO, 1997, p.521).

3 “Que duas pessoas quaisquer sejam tratadasde modo igual em relação a uma determinada regrade distribuição, é coisa que se há de distinguir do

fato de elas terem de ser tratadas assim em virtudedessa regra” (BOBBIO; MATEUCCI; PASQUINO,1994, p. 598).

4 Quando se menciona o postulado da igualda-de perante a lei, não se está indagando sobre se a leiefetivamente trata situações iguais de forma iguale situações desiguais de forma desigual, mas ape-nas se a lei está sendo cumprida de maneira unifor-me para todos aqueles a que se dirige. QuandoAliomar Baleeiro (1981, p. 267) afirma que “a regrade que ‘todos são iguais perante a lei’(...), em ter-mos fiscais, significa que o legislador não pode exi-gir impostos mais gravosos de uns do que de ou-tros dentro dum grupo que se acha nas mesmascondições”, parece que a afirmação é mais adequa-da dentro da compreensão de isonomia como igual-dade na lei.

5 A alteração é uma prática habitual que podeser vista como “Infração contra direitos fundamentais eprincípios administrativos gerais”, como bem ilustraHartmut Maurer (2001, p. 52): “A autoridade deveobservar geralmente os direitos fundamentais e osprincípios administrativos gerais, também, e exa-tamente, no cumprimento de seu poder discricio-nário. Isso é indiscutível, somente a disposição sis-temática desses limites não é totalmente inequívo-ca. A esses direitos fundamentais, que se tornam,sempre de novo, atuais nessa conexão, pertence,sobretudo, o princípio da igualdade (art. 3, I, daLei Fundamental). Se, por exemplo, a autoridade,para ficar no caso da taxa, pede, para uma deter-minada prestação administrativa, 100,00 marcosalemães, para a mesma prestação fixa 150,00 mar-cos alemães, porém, em um caso sem fundamentomanifesto, ela fica, sem dúvida, no quadro das ta-xas, de forma que não existe um caso de excesso depoder discricionário, mas infringe o princípio daigualdade. Uma prática administrativa uniformeprolongada conduz, sobre o princípio da igualda-de, para a autovinculação e limita, com isso, o es-paço de poder discricionário”.

6 O próprio Código Tributário Nacional estabe-lece que “as práticas reiteradamente observadaspelas autoridades administrativas” são normascomplementares “das leis, dos tratados e das con-venções internacionais e dos decretos” (art. 100,III).

TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE RENDA. PES-SOA FÍSICA. VERBAS PAGAS A TÍTULO DEAJUDA DE CUSTO. NÃO-APLICAÇÃO DEISENÇÃO. A isenção do imposto de renda sobre asverbas pagas a título de ajuda de custo exige provainconteste de que as parcelas foram efetivamenteutilizadas em locomoção, alimentação e pousadaatinentes ao serviço público. ENCARGOS LEGAIS.APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA ISONOMIATRIBUTÁRIA. PRÁTICA REITERADA. CTN,ART-100, INC-3. Aplicável o princípio da isono-

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mia tributária apenas para afastar os acréscimoslegais do tributo, visto que a autoridade fazendá-ria os dispensou em casos análogos, a confirmar aprática reiterada (BRASIL. Tribunal Regional Fede-ral, 1997a, p. 40668).

7 No mesmo sentido julgou o Tribunal de Justi-ça de Santa Catarina “IMPOSTO SOBRE SERVI-ÇOS DE QUALQUER NATUREZA – MANDA-DO DE SEGURANÇA – FATO GERADOR, BASEDE CÁLCULO E ALÍQUOTAS – DEC. – LEI N.406/68, COM FORO DE LEI COMPLEMENTAR –PRINCÍPIO DA RECEPÇÃO EM FACE DA NOVACARTA CONSTITUCIONAL – INAPLICABILI-DADE DA LC N. 34/67 PORQUE REVOGADOPELA CF/67 – O TRATAMENTO PARA FIM TRI-BUTÁRIO DÍSPARE DIANTE DE CONTRIBUIN-TE COM IDÊNTICA CAPACIDADE ECONÔMICAÉ QUE SOFRE VEDAÇÃO POR NORMA CONS-TITUCIONAL (ART. 150, II , CF/88) ( . . . )”(BRASIL.Tribunal de Justiça de Santa Catarina,1991, p. 7).

8 O princípio da capacidade contributiva apli-ca-se somente aos impostos. Além disso, a juris-prudência tem entendido que a mera antecipaçãoda cobrança de tributos não ofende o postulado.Nesse sentido é a seguinte decisão do Tribunal Re-gional Federal da 1a Região (BRASIL. Tribunal Re-gional Federal, 1997b, p. 108982): TRIBUTÁRIO ECONSTITUCIONAL. ALTERAÇÃO DE PRAZOPARA PAGAMENTO DO IPI. ALEGAÇÃO DEINCONSTITUCIONALIDADE POR VIOLAÇÃODOS PRINCÍPIOS DA PROPRIEDADE, VEDA-ÇÃO DE CONFISCO, ANTERIORIDADE E CA-PACIDADE CONTRIBUTIVA. NÃO CONFIGU-RAÇÃO DE EMPRÉSTIMO COMPULSÓRIO EINFRINGÊNCIA DE CONTEÚDO DA L.D.O.MEDIDA PROVISÓRIA. MOMENTO DE CON-VERSÃO. MP 298, DE 29.07.91. LEI 8.218, DE30.08.91. 1. Redução do prazo para pagamento detributo não consubstancia majoração tributária,para fins do Código Tributário Nacional, razão porque é matéria passível de ser normatizada em le-gislação, prescindindo de lei tributária (CTN, art.160), não se encontrando, igualmente, tutelada peloprincípio da anterioridade, que, aliás, não se aplicaao IPI.

2. O poder impositivo decorre do ius imperii,daí por que toda a carga tributária, autorizada pelolegislador, não entra em testilha com o direito depropriedade. 3 (...). 4. A minoração de prazos depagamento não é meio adequado à mensuração da capa-cidade econômica, não se relacionando com o princípiorespectivo. Este é um comando para determinação dacapacidade do cidadão de contribuir para as despesas doEstado, não agindo com respeito aos elementos conse-qüentes da obrigação tributária (...)” [grifo nosso].

Também as multas decorrentes do inadimple-mento da obrigação tributária não são considera-

das dentro da esfera de incidência do princípio,como se vê no julgado mencionado do Tribunal deJustiça do Rio Grande do Sul (BRASIL. Tribunal deJustiça do Rio Grande do Sul, 1999):

“Tributário e Processual Civil. Embargos deDeclaração. Prequestionamento. Ofensa à capaci-dade contributiva. Confisco. Omissão inocorrente.(...); 2. O valor da multa de mora ou punitiva, emdireito tributário, é fixado, segundo critérios de con-veniência e com o fito de impedir a evasão tributá-ria, e não tem limite, sobre não constituir confiscoou ofensa à capacidade contributiva do sujeitopassivo. Recurso Desprovido”.

9 Há quem entenda que a proporcionalidade naincidência tributária atende ao princípio da capaci-dade contributiva, opinião que não compartilha-mos: “A nossa Carta Magna, porém, não faz a op-ção pela progressividade ao prescrever na primeiraparte do §1o do art. 145 – ‘Sempre que possível, osimpostos terão caráter pessoal e serão graduadossegundo a capacidade econômica do contribuin-te...’

O texto constitucional contenta-se, portanto,com a graduação dos impostos segundo a capaci-dade econômica do contribuinte, o que pode serfeito, observadas as exigências expressas constitu-cionais, tanto pelo critério da proporcionalidadequanto pelo critério da progressividade. Pelo pri-meiro, enquanto aumenta a base de cálculo, a alí-quota permanece a mesma; pela progressividade,à medida que aumenta a base de cálculo, aumentaa alíquota. Nos dois casos o imposto grava de modouniforme sujeitos passivos com idêntica capacida-de contributiva e de maneira desigual os que te-nham desigual capacidade contributiva. Mesmoadotando-se o critério da proporcionalidade, quemtem propriedade de maior valor venal pagará maisIPTU, observado assim o princípio da capacidadecontributiva que, como já se disse supra, é o únicoelemento positivo que permite a satisfação do prin-cípio da igualdade. A única diferença entre os doiscritérios é que o critério da progressividade aumen-ta o valor do imposto a pagar, aumentando a arre-cadação municipal.” (OLIVEIRA, 1996, p. 41-42).

10 “IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS (ISS) – SOCI-EDADE DE PROFISSIONAIS LIBERAIS – PRIN-CÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA.

1.O regime da alíquota fixa, anual, atinge acondição profissional do contribuinte, tributando-o não por decorrência da prestação de serviço, maspor se encontrar habilitado para tal profissão.

2. Por isso, tal regime é incompatível com osprincípios jurídicos da capacidade contributiva eda isonomia, uma vez que é um evidente absurdoque o renomado profissional esteja sujeito a mes-ma carga tributária de um diletante.

3. Deve prevalecer, então, o critério lógico quetem como base de cálculo o preço do serviço, pois

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esta é a única fórmula equânime de distribuição dacarga tributária conforme a capacidade econômicados contribuintes (...)” (BRASIL. Tribunal de Alça-da do Paraná, 1995).

11 Em sentido contrário, a título de exemplo, adecisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região,a seguir citada (BRASIL. Apelação Cível em Man-dado de Segurança, 1998b, p. 145): “TRIBUTÁ-RIO. CONTRIBUIÇÃO SOBRE MOVIMENTA-ÇÃO FINANCEIRA – CPMF. INSTITUIÇÃO PORLEI ORDINÁRIA CONSTITUCIONALIDADE.PRINCÍPIOS DA ISONOMIA E DA CAPACIDA-DE CONTRIBUTIVA (...); 2. A Lei no 9.311, de 24/10/96, editada no permissivo daquela Emenda [no 12/96], não padece de inconstitucionalidade. A CPMF, naalíquota de 0,20%, leva cada contribuinte a pagar se-gundo a sua idoneidade financeira, sem ofensa aos prin-cípios da isonomia e da capacidade contributiva [grifonosso]. 3. Improvimento da apelação.”

12 Embora em diversos casos a apreciação daobservância pelo legislador do princípio em análiseseja uma tarefa espinhosa, o que pode levar a umacerta autolimitação do Poder Judiciário na sindica-bilidade, deve-se ter claro que o manifesto erro deapreciação deve ser coibido pelo órgão judicial.

13 Há quem defenda, no entanto, a aplicabilida-de do princípio ao conjunto da tributação. Nessesentido Andrade (2001, p. 133): “(...) resta claroque o princípio da capacidade contributiva comolimite assume uma função absolutamente funda-mental diante de uma pluralidade de tributos. É oque sucede-se, repita-se, acima de tudo no que dizrespeito à não-confiscatoriedade, cujo sentido pro-tetivo ganha maior expressão em face da carga tri-butária global – abstratamente considerada – inci-dente sobre uma pessoa, atividade ou bem.”

14 “CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. IM-POSTO DE RENDA. CORREÇÃO MONETÁRIA.PLANO VERÃO. MEDIDA PROVISÓRIA 32, DE15 DE JANEIRO DE 1990. LEI 7.730, DE 31 DEJANEIRO DE 1990. INOCORRÊNCIA DE VIO-LAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DA ANTERIORIDA-DE, IRRETROATIVIDADE E IGUALDADE TRI-BUTÁRIA. CONSTITUIÇÃO FEDERAL, ART. 150,II E III. CTN, ART. 97, §2o. I. Os princípios daanterioridade e da irretroatividade constituem ga-rantias do cidadão-contribuinte no caso de institui-ção ou aumento de tributos. II. A variação de cor-reção monetária, a despeito dos seus efeitos sobre acarga tributária, não significa, de acordo com o CTN(art. 97, §2o), aumento de tributo. III. A isonomia, naesfera tributária, realiza-se através do princípio da capa-cidade econômica, segundo critérios previstos em lei. IV.Apelo a que se nega provimento.” (BRASIL. Tribu-nal Regional Federal, 1999a, p. 292).

15 É exemplo desse raciocínio quando se verifi-cou a distinção de tratamento entre situações equi-valentes: “TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE IMPOR-

TAÇÃO. LEI 10.182/2001, ART. 5o, §1o, INCISOX. REDUÇÃO DE ALÍQUOTA. MONTADORASE FABRICANTES DE VEÍCULOS. SUPRIMENTOSDESTINADOS AO MERCADO DE REPOSIÇÃO.PRINCÍPIO DA ISONOMIA. – Ofensa ao princí-pio da isonomia residente na redução da alíquotado imposto de importação somente direcionada àsempresas montadoras e fabricantes de veículos,quando atuantes no mercado de reposição, em de-trimento das demais empresas importadoras dosmesmos produtos. – Provimento da apelação.”(BRASIL. Tribunal Regional Federal, 2003, p. 250).

16 Afirma Barroso (1996, p. 165), ao tratar doprincípio da presunção de constitucionalidade: “Emsua dimensão prática, o princípio se traduz emduas regras de observância necessária pelo intér-prete e aplicador do direito: a) não sendo evidente ainconstitucionalidade, havendo dúvida ou a possi-bilidade de razoavelmente se considerar a normacomo válida, deve o órgão competente abster-se dadeclaração de inconstitucionalidade; b) havendoalguma interpretação possível que permita afirmar-se a compatibilidade da norma com a Constitui-ção, em meio a outras que carreavam para ela umjuízo de invalidade, deve o intérprete optar pelainterpretação legitimadora, mantendo o preceito emvigor.”

17 Segue o autor na sua lição: “É certo que nossaConstituição contém regras no sentido de que odesenvolvimento econômico e social deve ser esti-mulado (art.170), e especificamente no sentido deque a lei poderá, em relação à empresa de pequenoporte constituída sob as leis brasileiras, e que tenhasua sede e administração no País, conceder trata-mento favorecido (art.170, IX).

Não nos parece, todavia, sejam tais disposi-ções capazes de validar regra isentiva de impostode renda, a não ser que se trate de situações em quea isenção realiza o princípio da capacidade contri-butiva, como acontece com a concedida às micro-empresas, ou aquelas que em geral são pertinentesao considerado mínimo vital. Isenção de imposto derenda a empresa industrial, a pretexto de incre-mentar o desenvolvimento regional, sem qualquerconsideração ao montante do lucro auferido, cons-titui flagrante violação do princípio da capacidadecontributiva, especialmente se concedida por pra-zo muito longo, como acontece com certas empre-sas no Nordeste, favorecidas com isenção ou redu-ção do imposto de renda há cerca de vinte e cincoanos.”

18 Não é objetivo do estudo a caracterizaçãodos princípios da razoabilidade e da proporciona-lidade. A pretensão é limitada a indicar a possibili-dade de aplicação dos mesmos. Não obstante, re-gistre-se a proximidade entre os dois princípios,fato já constatado pela doutrina italiana no Direito

Revista de Informação Legislativa234

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Administrativo: “In questo nuovo âmbito di appli-cazione il principio di proporzionalità vinene, adesempio, a fungere da parâmetro di valutazionecirca la congruità delle delimitazioni intodotte dallegislatores fra diverse categorie di beneficiari deuma data prestazione. Esso viene, cioè, utilizzatoallo scopo di stabilire se lê differenziazioni intro-dotte in aplicazione del principio di egualianza nondiano però vita a risultati contrari al principio diproporzionalità. Ladove il principio di proporzio-nalità viene qui, pertanto, a rappresentareum’ulteriore prospettiva di corretta applicazionedel principio di egualianza, sotto il profilo dellaverificazione dei risultati in concreto raggiunti tra-mite la sua applicazione.” (GALETTA, 1998, p.64-65). (Tradução livre do autor: Neste novo âmbi-to de aplicação, o princípio da proporcionalidadevem, por exemplo, a funcionar como um parâme-tro de valoração sobre a congruência das delimita-ções introduzidas pelo legislador entre diversas ca-tegorias de beneficiários de uma dada prestação.Isso vem sendo utilizado com o objetivo de estabe-lecer se as diferenciações introduzidas na aplicaçãodo princípio da igualdade não dão vida a resulta-dos contrários ao princípio da proporcionalidade.Ali o princípio da proporcionalidade vem, portan-to, representar uma ulterior perspectiva de corretaaplicação da igualdade, sob a ótica da verificaçãodos resultados concretos alcançados com sua apli-cação).

Brasília a. 41 n. 164 out./dez. 2004 235

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Revista de Informação Legislativa236

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Ana Paula Ribeiro BigonhaLuiz Henrique Manoel da Costa

1. IntroduçãoEste estudo teve como justificativa a exis-

tência de ações de usucapião que tramitamperante a Comarca de Ouro Preto – MG, emque o Município contesta a prescrição aqui-sitiva invocada pelos autores, com a junta-da da Carta de Sesmaria Régia de 1711, ale-gando a propriedade das terras inseridasdentro do perímetro constante na Carta;questão trazida como situação problema aser enfrentada.

O desenvolvimento do trabalho partiudo aprofundamento teórico das questõesapresentadas, assim mediante extensa pes-quisa bibliográfica dividida em quatro pon-

A carta de Sesmaria Régia outorgada aoSenado da Câmara de Vila Rica aos 27 desetembro de 1711

“Que vale, realmente, ao Estado a propriedadede vastos territórios, se o indivíduo é que os irá rote-ar e fazer produtivos; se, cedo ou tarde, deverá distri-buí-los entre os seus cidadãos, a fim de povoá-los?”(LIMA, 1991, p. 57).

Sumário1. Introdução. 2. Apresentação do proble-

ma. 3. Sesmarias. 3.1. Origem etimológica. 3.2.Antecedentes históricos. 3.3. Natureza jurídica.4. Terras devolutas. 4.1. Conceituação. 4.2. Evo-lução legislativa – antecedentes históricos. 4.3.Disciplina legal atual. 4.4. Alienabilidade dasterras devolutas. 4.5. Cadastramento das terrasdevolutas. 5. Bens públicos. 5.1. Conceituaçãoe características. 5.2. Imprescritibilidade dosbens públicos. 6. Usucapião. 6.1. Conceito e ele-mentos. 6.2. Legislação atual. 7. Discussão. 8.Considerações finais.

Ana Paula Ribeiro Bigonha é Bacharel emDireito pela Universidade Federal em OuroPreto.

Luiz Henrique Manoel da Costa é Promo-tor de Justiça, Professor da Universidade Fede-ral de Ouro Preto, Pós-graduado pela Univer-sidade Gama Filho.

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tos: sesmarias, terras devolutas, bens públi-cos e usucapião. Foram consultadas e usa-das também algumas fontes primárias, asaber: a Carta de Sesmaria de 1711 e suaposterior confirmação, as atas da Câmarade Vila Rica de 21 de julho de 1711 a 30 dedezembro de 1715, o termo de erecção deVila Rica (1711, erigida a Vila, em anexo),algumas amostras de Ordens Régias, deCartas de Sesmarias e de datas mineraisconcedidas em Ouro Preto.

Livros da coleção de obras raras da Casados Contos também foram valiosos como:“Bi Centenário de Ouro Preto” (SENNA,1911), “Regimento das Câmaras Munici-pais” (LAXE, 1885), “Diccionário Geogra-phico do Imperrio do Brasil” (SAINT ADOL-PHE, 1863), sobre a peculiar história de OuroPreto, além da farta legislação sobre o as-sunto, que foi fundamental para estabelecero paralelo necessário entre a Carta de Ses-maria outorgada à Câmara e sua repercus-são jurídica no regime atual das terras pú-blicas brasileiras.

Fixados os conceitos necessários sob oenfoque técnico e dogmático, passou-se àdiscussão das questões levantadas peloMunicípio, tendo como referência os doismarcos teóricos adotados: a imprescritibili-dade dos bens públicos por usucapião e afunção social da propriedade.

Sem perder de vista os relevantes aspec-tos históricos e sociais revelados no cursoda pesquisa, considerados quando da dis-cussão e conclusão do trabalho, é importantelembrar que não se pretendeu esgotar o es-tudo de tão ampla matéria, posto necessá-rio maior aprofundamento, tempo e a cola-boração de um levantamento histórico rigo-roso sobre o assunto. Neste sentido, lembra-nos o ilustre professor Costa Porto ([198-?],p. 7) que “a história das sesmarias, essa ain-da não foi escrita”.

2. Apresentação do problema

A relevância do tema escolhido deflui daquestão jurídica argüida nas contestações

padrão apresentadas pela Procuradoria doMunicípio de Ouro Preto nas ações de usu-capião em tramitação nessa Comarca, sob aalegação de que os imóveis pretendidos, si-tuados dentro do perímetro da Carta de Ses-maria outorgada ao Senado da Câmara deVila Rica em 1711, são insuscetíveis de pres-crição aquisitiva, assim partindo dos pres-supostos seguintes:

1o) que se trata de bem público, posto queinserido no perímetro descrito na Carta deSesmaria, portanto insuscetível de prescri-ção aquisitiva nos termos do art. 183, §3o,da Constituição e entendimento consubstan-ciado na Súmula n. 340, do STF;

2o) que a ausência de registro imobiliá-rio importa em presunção de que o imóvelpretendido encontra-se sob o domínio pú-blico;

3o) que o Município, para exercer seu di-reito sobre as terras públicas, não necessitademarcá-las ou registrá-las no Cartório Imo-biliário da circunscrição competente.

3. Sesmarias

3.1. Origem etimológica

Divergências há na doutrina sobre a ori-gem do vocábulo sesmaria. O mestre CirneLima (1991, p. 19) relata os diversos senti-dos da palavra dados pelos estudiosos damatéria:

“Na própria palavra sesmaria, es-tão resumidos as características prin-cipais do instituto, como se transmi-tiu à legislação posterior.

Sesmaria deriva, para alguns desesma, medida de divisão das terrasdo alfoz; como, para outros, de sesmaou sesmo, que significa a sexta partede qualquer coisa; ou ainda para ou-tros de caesina, que quer dizer inclu-são, corte. Herculano parece tê-la comoprocedente de sesmeiro, cuja filiaçãoetimológica, entretanto, não indica.

Seis, acaso, seria o número dos ses-meiros, reunidos em colégios admi-

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nistrativos? Seriam os sesmeiros dossexviri ou seviri municipais, da eraromana?

Segundo a opinião de Scheler,sesmaria provém de sesmar, e sesmar,derivação do latim ad aestimare, pren-der-se-ia a esmar, de que nossa línguaconhece também a variante Osmar”.

Conclui o autor que a opinião de Scheleré fortemente amparada pelas bases históri-cas da instituição da sesmaria, justo porquesesmar e esmar exprimem a única operaçãonecessária para constituição dos sexmospeninsulares, divididos e talhados no mu-nicípio antigo.

Lígia Osório Silva (1996, p. 38) tambémexplica o enigma etimológico, não adotan-do nenhuma posição, apenas ressaltandoque a partir do século XVII passou a pala-vra sesmeiro a também designar aquele querecebia a concessão de sesmaria:

“A origem da palavra sesmariaainda provoca algumas divergências.Para alguns, ela vem da palavra lati-na caesinae, que significa os cortes ourasgões feitos na superfície da terrapela relha do arado ou pela enxada.Para outros a palavra vinha do verbosesmar, quer dizer, partir, dividir oudemarcar terras. Outros ainda afir-mam que as terras distribuídas eramchamadas de sesmaria porque o agen-te que repartia as terras devolutas erao sesmeiro, uma espécie de magistra-do municipal, escolhido entre os ‘ho-mens bons’ da localidade integrantesdo sesmo ou do colégio de seis mem-bros, encarregado de distribuir o soloentre os moradores. Mas é possívelque a palavra sesmeiro tenha outraorigem: derivada da palavra sesma ousesmo, que era a sexta parte de qual-quer coisa”.

Por sua vez, Costa Porto ([198-?], p. 33)responde afirmativamente à questão levan-tada por Ruy Cirne Lima (acima), de provira denominação etimológica da palavra dosantigos Sesmeiros, integrantes do Siximum,

ou Sesmo, colégio integrado de seis mem-bros, encarregados de distribuir o solo entreos moradores.

Discussão quanto à origem da expres-são, longe de chegar ao fim, apresenta di-versas opiniões, não desmerecidas de fun-damento, sempre partindo da provável ori-gem etimológica da palavra.

3.2. Antecedentes históricos

Muito antes da constatação de que a ter-ra era redonda, Portugal teve uma visãoempreendedora. Diante de seus objetivosexpansionistas, adiantou-se na procura doapoio do poder espiritual às suas idéias.Percebendo que não conseguiria levar adi-ante seus planos sem extraordinários recur-sos financeiros, D. João I pleiteou de Marti-nho V, no começo da década de 1420, a de-signação de seu filho, o infante D. Henri-que, para administrador da instituição daOrdem de Cristo, sob a alegação de objeti-var a propagação da fé cristã, o que o ponti-fício, muito agradecido, aceitou. (PORTO,[198-?]). Dessa forma, foi possível a Portu-gal buscar uma nova rota para o périplo afri-cano.

Interceptadas suas metas expansionis-tas, Portugal e Espanha repartiram o jus do-minis das terras a descobrir, por meio de umasucessão de tratados, com a chancela do Va-ticano, mostrando-se perante os outros paí-ses, advindas as conquistas territoriais, comoque detentores de um direito erga omnes.

Em 1494, antes mesmo da chegada dosportugueses aqui, foi firmado por Espanhae Portugal o Tratado de Tordesilhas, legiti-mado pelo Papa, estipulando uma linhaimaginária a 370 léguas das ilhas de CaboVerde a dividir hipoteticamente entre os doispaíses as terras a descobrir:

“apraz a Suas Altezas, e os seus ditosprocuradores em seu nome, e em vir-tude dos ditos seus poderes, outorga-rem e consentirem que se trace e assi-nale pelo dito mar Oceano uma raiaou linha direta de pólo a pólo; con-vém a saber, do pólo ártico ao pólo

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antártico, que é de norte a sul, a qualraia ou linha e sinal se tenha de dar ede direita, como dito foi, a trezentas esetenta léguas das ilhas de Cabo Ver-de em direção à parte do poente, porgraus ou por outra maneira, que me-lhor e mais rapidamente se possa efe-tuar contanto que não seja dado mais.E que tudo o que até aqui tenha acha-do e descoberto e daqui em diante seachar e descobrir pelo dito senhor Reide Portugal e por seus navios, tantoilhas como terra firme desde a dita raiae linha dada na forma supracitadaindo pela dita parte do levante dentroda dita raia para a parte do levante oudo norte ou do sul dêle, contanto quenão seja atravessando dita raia, quetudo seja, e fique e pertença ao ditosenhor Rei de Portugal e aos seus su-cessores, para sempre. E que todo omais, assim as ilhas como terra firme,conhecidas e por conhecer, descober-tas e por descobrir, que estão ou foremencontrados pelos ditos senhores Reie Rainha de Castela, de Aragão, etc...,e por seus navios, desde a dita raiadada na forma supra indicada indopela dita parte do poente, depois depassada a dita raia em direção ao po-ente ou ao Norte, Sul dela, que tudoseja e fique, e pertença aos ditos Rei eRainha de Castela e Leão, etc.., e paraseus sucessores, para sempre” (LA-CERDA, 1960, p. 73).

Entretanto, não chegou a sair o Tratadode Tordesilhas do papel, pois de fato a li-nha traçada era imaginária, não se poden-do saber, como assinala Costa Porto ([198-?]), em qual das Ilhas de Cabo Verde, umarquipélago formado de 14 ilhas, iniciar-se-ia o ponto de onde começaria a contagemdas 370 léguas.

A corrida em direção às Índias para acomercialização direta das especiarias doOriente resultou para Portugal, em 1500, naperipécia da invenção do Brasil. Tendo issoocorrido, era preciso garantir o “domínio”

sobre a terra de Vera Cruz. “Domínio”, por-que, como comenta Ruy Cirne Lima (1991,p. 57), “dizia já Portugal que os reis adquiri-am, pela conquista, o direito de distribuir asterras conquistadas entre os seus vassalos,não porém o domínio delas”:

“Et quamvis reges nostri Regnum Mauro-rum faucibus eripuerunt, tamen non acquisie-runt particulare terrarum dominium, sed jus tan-tum distribuendi terras inter súbditos” (De Do-natibus Jurium et Bonorum Regiae Coronae,Lugduni, 1726, liv. III, cap. 43, n. 79, p. 325).

Cuidou a diplomacia perante os outrospaíses do direito impostergável de Portugalcolonizar o Brasil, isto é da efetiva domina-ção e exploração da colônia sem possíveisinconvenientes.

No tocante à Espanha, um acontecimen-to de natureza dinástica, segundo Linharesde Lacerda (1960), acalmou as disputas ter-ritoriais. Sucedeu-se que Felipe II da Espa-nha, sob o comando do Duque d’Alba, pro-clamou-se rei de Portugal, situação que vi-gorou até 1640, quando o Duque de Bragan-ça assumiu o trono, restaurando a hegemo-nia lusitana. As fronteiras brasileiras, nestadata, já tinham avançado, devido ao ban-deirismo desbravador, muito além do Meri-diano de Tordesilhas.

Mas, foi com o Tratado de Madri, em1726, que Portugal conseguiu vislumbrar omodo de garantir o reconhecimento de seu“domínio” sobre o Brasil, triplicando-lheseu primitivo território. Deveu-se essa tare-fa à influência de um brasileiro: AlexandreGusmão, que inseriu em seu bojo a orienta-ção de resolver as controvérsias territoriaispor um princípio de origem romana, o utipossidetis: “Bastaria, pois, reconhecer noocupante um vassalo ou preposto de umadas nações disputantes, para logo declarar-se em favor delas o domínio conseqüente”(LACERDA, 1960, p. 90).

O uti possidetis foi a condução sábia paraPortugal consolidar seu domínio territorialsobre o Brasil, ultrapassando, inclusive, abilaterialidade Portugal-Espanha, pois ou-tros países, desde a chegada dos portugue-

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ses no Brasil, protestavam quanto aos trata-dos realizados por esses dois países, che-gando o Rei da França a pronunciar: “Jevoudrais bien qu’on me montrait l’ articledu testament d’ Adam qui partage lê nou-veau monde entre mês frères d’ Espagne etPortugal, et m’ excluant de la sucession”(JUNQUEIRA, 1975, p. 19). Foi necessária arápida e efetiva posse do Brasil, o que so-mente foi possível com o difícil empreendi-mento da sua colonização, que nada maisfoi do que legitimar a consolidação do “do-mínio” português à luz do uti possidetis.

A propósito da colonização do Brasil,vale transcrever:

“A chegada ao Brasil foi um ato deposse: Entre os índios do Brasil, aotempo da descoberta, havia, ao menosem certas tribos, posse comum dascoisas úteis, entre os habitantes damesma oca, estando apenas individu-alizada a propriedade de certos mó-veis como redes, armas e utensílios deuso próprio. O domínio territorial,esse não existia absolutamente. O soloera possuído em comum pela tribointeira, e isso mesmo temporariamen-te, porquanto, de tempos e tempos, selevantava o grupo, abandonava asocas, e mais longe ia fixar os seus la-res, não se demorando em um local,ordinariamente, mais de 5 ou 6 anos”(BEVILÁQUA, 1941, p. 116).

Em 3 de dezembro de 1530, Martim Afon-so de Souza trouxe junto a si, em sua expe-dição ao Brasil, três Cartas Régias: a primei-ra autorizando-o a tomar posse das terrasque descobrisse e organizar respectivo go-verno; a segunda, conferindo-lhe título decapitão-mor e governador de todas as terrasdo Brasil; e a terceira, outorgando-lhe pode-res para conceder sesmarias das terras queachasse, na condição de serem aproveita-das. (NAVARRO, 1940). Esta última, segun-do Ruy Cirne Lima (1991, p. 36), tem o se-guinte teor:

“Dom João, por graça de Deus reide Portugal e dos Algarves, d’aquem

e d’além mar, em Africa senhor deGuiné, e da conquista, navegação,commercio da Ethiopia, Arabia, Per-sia e da India, etc. A quantos esta mi-nha carta virem, faço saber, que as ter-ras que Martim Affonso de Souza domeu conselho, achar e descobrir naterra do Brasil, onde o envio por meucapitão-mór, que se possa aproveitar,por esta minha carta lhe dou poderpara que elle dito Martim Affonso deSouza possa dar às pessoas que com-sigo levar, e ás que na dita terra quize-rem viver e povoar, aquella parte dasterras que bem lhe parecer, e segundolhe o merecer por seus serviços e qua-lidades, e das terras que assim der serápara elles e todos os seus descenden-tes, e das que assim der ás ditas pes-soas lhes passará suas cartas; e quedentro de dous annos de data cadahum aproveite a sua e que se no ditotempo assim não fizer, as poderá dara outras pessoas para que as aprovei-tem, com a dita condição; e nas ditascartas que assim der irá translada estaminha carta de poder para se saber atodo tempo como o fez por meu man-dado, e lhe será inteiramente guarda-da a quem a tiver; e porque me apraz,lhe mandei passar esta minha cartapor mim assignada e sellada com omeu sello pendente. Dada na villa doCrato da Ordem de Christo, a 20 denovembro. Francisco da Costa a fez,anno do nascimento de Nosso SenhorJesus Christo de 1530 annos. Rei”.

Alguns anos depois, em 1532, D. João IIIordenou que Martim Afonso de Souza divi-disse o litoral do Brasil, de Pernambuco aoRio da Prata, em donatarias (LIMA, R.C.,1991), as quais seriam administradas porcapitães, vindo a chamarem-se, por essa ra-zão, conforme ilustra Lacerda (1960), deCapitanias Hereditárias.

Foram criadas 14 capitanias hereditári-as (JUNQUEIRA, 1975) por meio da conces-são de poderes políticos quase majestáticos

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pelo rei aos donatários, cabendo-lhes dis-tribuir as terras de sesmarias a pessoas quelhes pedissem, mas com a proibição de apro-priarem-se delas, ainda que de modo indi-reto, fosse por concessão à mulher ou ao fi-lho herdeiro, fosse por título de compra,antes de passados oito anos de serem apro-veitadas pelos primitivos concessionários(LIMA, R.C., 1991), restando-lhes como pa-trimônio dominical apenas 10 léguas (POR-TO, 1983).

A efêmera duração do regime das capi-tanias, resultante da impossibilidade dequalquer ação coletiva do Governo, em faceda igualdade de poderes dos donatários eda incapacidade financeira destes para ad-ministrar suas capitanias, foi substituídapelo Governo Geral.

Tomé de Souza foi o primeiro governa-dor geral, incumbido da continuidade dasdoações de porções territoriais pelas cartasde sesmarias, transplantando definitiva-mente os preceitos das Ordenações Portu-guesas para regência dos germes da propri-edade privada brasileira.

3.3. Natureza jurídica

Para a transferência da propriedade des-tinada à colonização, valeu-se a Coroa Por-tuguesa, no Brasil, de Cartas de Dada, ouSesmarias e cartas de Data, ou Forais. Asprimeiras cediam ao colono a propriedadeprivada do solo, sob condições que se mul-tiplicaram com o decorrer do tempo. As se-gundas transferiam poderes políticos parao recolhimento de privilégios da coroa, me-diante a permissão de dadas de terras. La-cerda (1960, p. 117) dá a definição dos doisinstitutos, nos termos das Ordenações, queforam os pilares dessas instituições:

“Sesmaria – Dada de terra inculta,ou terreno maninho, para se aprovei-tar ou povoando; dada de terras, ca-sais ou pardieiros (casais são casasde campo, ou granjas; pardieiros sãocasas abandonadas ou em ruínas,chamadas taperas do Brasil, que fo-ram de alguns donos ou heróis e se

lavraram em outros tempos, e estãoincultas ao tempo da doação, ou me-lhor abandonadas (Ord. 4-43 e pará-grafo 9)

Forais – Eram as leis que o con-quistador ou fundador dava à cidadeconquistada ou fundada, acerca dapolícia, tributos, juízos, privilégios,condição civil, etc. Foro – As Ordena-ções Afonsinas, 6-65, Rep. ao §1o – Ossenhores também davam forais às cidadese vilas, conselhos, julgados de seus senho-rio, e até aos rendeiros das quintas,courelas e sítios, os quais continhamas leis e condições dos contratos, li-mites dos sítios, pensões e foragens: aque chamavam privilégios”. (grifonosso)

As cartas de doações das CapitaniasHereditárias eram forais típicos (LACERDA,1960). Outorgavam aos donatários o domí-nio do solo apenas em pequena porção daCapitania, dez léguas, com a proibição in-clusive de tomar como seu um quinhão demaior proporção. Representavam o poderde jurisdição dado ao donatário, sendo fri-sada a natureza de tais cartas por CostaPorto:

“Talvez a linguagem das cartasdos donatários responda por estaconcepção de que el-Rei cedera limi-tes dominicais sobre o solo, quando,na verdade, se limitara a outorgar po-deres políticos, largos, sim, direitosmajestáticos quase absolutos mas, denenhum modo, direitos sob o solo,como, de resto o ressalta Rocha Pom-bo (1967, p. 110 apud PORTO, [198-?], p. 21), ao descrever: quando se falaem doação, parece, realmente, que setratava de propriedade territorial. Enão é isso, entretanto, o que se fazia.Não era a terra que o Soberano dava,mas o benefício, o usufruto dela so-mente. E tanto era assim que, na pró-pria carta de doação, concedia o Rei....um dado prazo de terras ao donatário,e como propriedade plena, imediata e

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pessoal. O Capitão donatário....eracomo um locotenente do Rei....exercedireitos de soberania. Só não é propri-etário da terra: aufere, apenas, unstantos proveitos do feudo que lhe foiconcedido”.

Já as cartas de sesmarias correspondi-am a instituto diverso dos forais. Foram da-das visando à povoação e cultivo da terra.Com o tempo, sofreram variadas imposições,que, no entanto, nunca desviaram do seuobjetivo primordial, servindo, antes de qual-quer coisa, como pressão para o cumprimen-to pelo sesmeiro da função social dapropriedade.

Primitivamente com a essencial cláusu-la do cultivo da terra e o encargo do paga-mento do dízimo sobre os frutos à Ordem deCristo, podia-se dizer que as sesmarias eramuma concessão gratuita, pois não havia tri-butação sobre a terra, e condicional, isto é,dependia do real cultivo por parte do ses-meiro.

A transposição para o Brasil colônia doregime das cartas de sesmarias foi decor-rente da lei portuguesa originariamenteaplicada na metrópole. Diante da crise deabastecimento de gêneros alimentícios, con-cluiu-se no séc. XIV, ao tempo de D. Fernan-do, que, se todos cultivassem, haveria “pamde sobejo” (PORTO, 1982).

Remonta à legislação de 1375, instituí-da pelo rei D. Fernando e, após, codificadasucessivamente nas Ordenações Afonsinas,Manuelinas e Filipinas, tendo como princí-pio imutável: a cultura do solo obrigatória,sob pena de arrendamento compulsório ouconfisco (PORTO, [198-?]). Contudo, foramas Ordenações Manuelinas e as Filipinasas responsáveis pela introdução do sistemaaqui. A definição de sesmarias, em ambas,tem idêntico teor:

“Sesmarias são propriamente asdadas de terras, casaes, ou pardieiros,que foram, ou são de alguns senhori-os, e que já em outro tempo foram la-vradas e aproveitadas, e agora o nãosão mais” (Ord. Man., liv. IV, tit. 67;

Ord. Filip., liv. IV, tit. 43 apud SAN-TOS, 1983, p. 45).

De início não existia no Brasil legislaçãoespecífica para a concessão das dadas deterras por meio das cartas de sesmarias, su-cedendo a regulamentação pelos forais doReino, sob o princípio norteador de não dara cada pessoa mais terras do que parecesseaproveitar.

Diferentes autoridades foram competen-tes para o pronunciamento quanto ao pedi-do de concessão de terras, lavrando as car-tas de sesmarias: até 1590, o Capitão-mor e,de 1590 em diante, Governador, o CapitãoGeneral ou Vice-Rei, nos termos do Alvaráde 8 de dezembro de 1590, corroborado pos-teriormente pelo Decreto de 22 de junho de1808 (LOUREIRO, [198-?]).

A partir de 1549, foi imposto o registroda Carta, quando o regimento dos provedo-res obrigou o sesmeiro a registrar a data noslivros da Provedoria para só então passar aterra a constituir seu patrimônio nos termosdo use, desfrute e abuse (SILVA, 1996).

Até quase o final do século XVII, as con-cessões de sesmarias foram feitas unicamen-te com o encargo do pagamento dos dízi-mos da Ordem de Cristo sobre os frutos ob-tidos e com a condição de aproveitamentoem prazo pré-determinado, esta última ca-racterizando o “fundamento de todo o sis-tema” (PORTO, [198-?], p. 94). O tempo es-tabelecido pelas Ordenações para o cumpri-mento do cultivo era de cinco anos.

Em 1695, pela Carta Régia de 27 de de-zembro de 1695, implantou-se a exigênciada cobrança de um foro, segundo a grande-za e a bondade da terra, atingindo até a ter-ra inculta e dando, ainda, a incumbênciaaos ouvidores de examinar, nas terras desua jurisdição, se as terras concedidas porsesmaria estavam cultivadas totalmente pe-los donatários, seus colonos ou foreiros, paraque, em caso negativo, as mesmas pudessemser julgadas vagas, a fim de serem repartidascom outros moradores (LOUREIRO, [198-?]).Porém, somente de 1780 em diante é que co-meçaram a registrar nas concessões a obri-

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gação, por légua concedida, de pagamentode foro anual. Era mais uma condição a im-pelir o sesmeiro não pedir mais terras doque fosse cultivar, pois pagaria o tributosobre toda a concessão.

Com a introdução do pagamento do foro,o sistema sesmarial modificou-se substan-cialmente. O proprietário das terras passoua ser enfiteuta do Estado (SILVA, 1996).

Após, em 1698, os sesmeiros ficaram su-jeitos a mais uma cláusula: a confirmaçãoda carta de sesmaria, depois de certo prazopara averiguação do cumprimento das con-dições em que se davam. Em regra, decorri-dos dois anos, outras vezes três anos, emoutros casos, omisso o prazo e, ainda, emoutras cartas, não se introduziu sequer amenção da confirmação.

Com o tempo, aumentou o interesse daCoroa pelo Brasil e o número de peticionári-os, o que refletiu na diminuição dos limitesdas dadas de terra. Assim, a provisão de 19de maio de 1729 “limitou as concessões dassesmarias a três léguas de comprido e umade largo e uma de comprimento; ou final-mente, de uma légua em quadro” (LOUREI-RO, [198-?], p. 41), reafirmada essa limita-ção nas legislações de 1698, 1699, 1711, 1743(SILVA, 1996). Interessante lembrar que,para determinação da área de uma sesma-ria, era preciso recorrer à carta ou à legisla-ção da época e verificar qual o tipo de ses-maria estipulado.

Em Minas Gerais, as sesmarias, de 1674a 1739, tiveram seu regime jurídico especi-almente definido pelas seguintes OrdensRégias (CARRARA, 1999):

1) A Ordem Régia de 22 de outubro de1698, concedendo o prazo de dois anos paracultivo e povoação das terras dadas por ses-marias, findo o qual consideravam-se as ter-ras devolutas. Esse prazo foi modificadopara um ano e oito meses a partir das con-cessões de 3 de outubro de 1727 e, após 12de junho de 1728, para dez meses da datada concessão demarcada judicialmente.

2) A Ordem Régia de 1713 orientando aoGovernador para que, nas concessões ses-

mariais, agisse “com parcimônia, que pedeo grande número de gente que concorre paraas minas, e a fertilidade das terras; que dei-xe sempre terras bastantes nos termos dasnovas Vilas, para S. M. lhes poder dar algu-ma parte delas, ficando bens do Conselho, epara ficar outra parte ao Patrimônio Real, eque nas datas, que der das minas, reservealguma mais rica para se lavrar por contade S. M.”. Dessa forma inseria-se nas cartasde sesmarias: “e acontecendo que nelas sedescubram minas de ouro ou qualquer ou-tro metal será obrigado a dar logo parte aeste Governo”.

3) Em 1725, estabeleceu-se que, antes deserem demarcadas as concessões, deveriamos vizinhos e moradores confrontantes sernotificados no intuito de alegarem algumprejuízo e embargarem a demarcação judi-cialmente. Tudo, sem prejudicar a fórmulaadotada a partir de 1710-1 de concessõesem terra já povoadas: “achando-se dentrodelas algum morador com título de primei-ro povoador, ou de haver comprado, nãoserá expulso, e menos obrigado a aforar-se,porém não roçará de novo”.

4) Ainda, a Ordem Régia de 1725 orde-nando ao Governador para que não dessemais de meia légua de sesmaria, a fim deque chegassem as terras a todos que vivemna capitania e pudessem laborá-las.

5) A Ordem Régia de 14 de abril de 1738,a qual determinava que os que se achassemde posse de terras sem títulos pedissem-nasde sesmarias, sob pena de não poderem ale-gar a posse após um ano. Repercutiu estaOrdem, segundo o autor, num verdadeirolevantamento fundiário na Capitania.

6) As Ordens Régias de 1743, 1744 e1754, que sedimentaram os procedimentosde posses, demarcações e confirmações dasCartas de Sesmarias.

A obrigação de medição e demarcaçãodos terrenos imóveis (Alvará de 5 de outu-bro de 1795) também adotada seria impres-cindível para a efetiva cobrança do foro, fi-xado pela extensão das léguas concedidas.No entanto, um ano depois (Alvará de 10 de

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dezembro de 1796) suspendeu-se a medidapela carência de geômetras.

A par desse quadro, não poderia ser, noentanto, ignorada a realidade colonial, re-fletindo no instituto das sesmarias profun-damente. Acontecia que, devido à grandequantidade de terra a distribuir, a poucaspessoas a recebê-las e à falta de fiscaliza-ção, as cláusulas estipuladas mostravam-se, muitas vezes, esquecidas. Funcionavam,porém, verdadeiramente, quando outrospeticionários, pessoas com título de comprae venda do imóvel, ou a Coroa, pretendiamas glebas já concedidas, caracterizando umtípico conflito de interesses dos dias atuais.Comenta Costa Porto ([198-?], p. 96) a res-peito:

“Surgisse alguma demanda e asjustiças se mostravam severas: sesma-ria não aproveitada era sesmaria cujaconcessão caducara irremediavel-mente.

André de Albuquerque receberaumas terras em Goiatá, as quais, ina-proveitadas no termo da lei, haviamsido redistribuídas a Pedro Barroso,de cujos herdeiros as compraram osbeneditos de Olinda. E quando as ne-tas do primeiro donatário foram a juí-zo, em ação reivindicatória, a Justiçalhes repeliu a pretensão, consideran-do caduca a data de André, ainda pormais antiga, porquanto se nam colheque tomasse posse...devendo não so-mente tomar posse, mas aproveitá-lae povoa-la em termo de cinco anos....oque não fez donde se colhe que foi bemdada ao dito Pedro Barroso por estardevoluta, passando o tempo da lei”.

Da mesma forma, justificava o CapitãoJosé Tavares em sua petição por carta desesmaria:

“Comprara umas roças nas matasvirgens do Sumidouro a um ManoelNunes, no qual tinha casa de vivendae senzalas, árvores de espinho, cria-ção de toda a casta e tinha plantado ecolhido três plantas, e estando de pos-

se por si e seu antecessor havia maisde seis ou sete anos... e porque sobre omesmo sítio e outros muitos que exis-tiam na mesma mata corria litígio comum Matias de Castro Porto sobre que-rer-lhe pertencerem (as mesmas ter-ras), de que tinha alcançado sentençada Relação do Estado contra si por nãoter justo título; e o suplicante e maismoradores estarem possuidores à vis-ta e face dele mesmo havia muitosanos plantando, derrubando e roçan-do, e maiorrmente por ser contra or-dens de Sua Majestade o senhorar-seum homem de mais de três léguas emque se achavam compreendidas per-to ou mais de quarenta roças com pos-ses de meia légua cada,... pelo quequeria o suplicante além da sentençada Relação a seu favor assegurar a suaposse por sesmaria”. (CARRARA,1999).

O próprio pagamento do foro era calcu-lado pelas informações prestadas pelos pe-ticionários em suas Cartas, impossibilitadaa medição e demarcação das terras por ca-rência de geômetras, não detendo a Coroaum maior controle.

Nesse contexto, Caio Prado Júnior (1953)explica as conseqüências da doação pelascartas de sesmaria:

“A propriedade do sesmeiro eraalodial, isto é, plena, não consagran-do outro ônus que não o pagamentoda dízima da Ordem de Cristo, queafinal não passava de um simplesimposto, e outras restrições, como osmonopólios das servidões reais, ser-vidões públicas e de águas, caminho,etc. Não comporta, todavia, nenhumarelação de caráter feudal, vassalagemou outra. As terras eram alienáveis porlivre disposição dos proprietários enão criavam laço algum de dependên-cia pessoal. Só muito mais tarde, de1780 em diante, passaram as cartasde dadas de terras a registrarem a clá-usula do foro. É verdade que desde

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1695 determinavam as leis que nãoconcedessem terras sem tal cláusula,mas essa providência só teve cumpri-mento quase 1 século depois. O quecaracterizava ainda as sesmarias é aobrigação de seu aproveitamento den-tro de um certo prazo. Esta disposi-ção de Lei (Ord. Man. Liv. IV, 67), re-petida nos forais dos donatários, e comfreqüência confirmada nas cartas dedadas de terras. Como sanção figura-va a perda da terra e uma determina-da multa pecuniária. Tais disposiçõesficaram, freqüentemente, é verdade, letramorta, mas não são raros na história colo-nial os exemplos de sua rigorosa aplica-ção”. (grifo nosso).

Mesmo a confirmação das cartas, comoexigência imposta numa tentativa de coagiro sesmeiro a cumprir o pertinente regimelegal, não passou de medida inócua, nãohavendo exemplos da ocorrência de umaefetiva e real verificação do cumprimentodas cláusulas estipuladas nas Cartas ou-torgadas.

Situação agravada pelo quadro caóticoda época, descrito por Ruy Cirne Lima (1991,p. 46):

“a legislação e o processo das sesma-rias se complicam, emaranham e con-fundem, sob a trama invencível daincongruência dos textos, da contra-dição dos dispositivos, do defeituosomecanismo das repartições e ofíciosdo governo, tudo reunido num amon-toado de dúvidas e tropeços”.

Dessa forma, os controles das condiçõescom que davam as sesmarias acabavam, viade regra, sendo realizados pelos própriossesmeiros, quando queriam parte de terrasjá concedidas a outros concessionários oupelo Reino quando tinha algum interessemaior na gleba de terra. E assim conviviamsesmarias com divergentes condições im-postas, sesmeiros em comisso; sesmarias jáconfirmadas, embora ainda não demarca-das e parcialmente cultivadas, posseiros quecultivavam a terra, porém não tinham título

do imóvel; peticionários de terras já conce-didas a outros sesmeiros, alegando o nãocumprimento por este das cláusulas; enfim,uma balbúrdia completa.

Portanto, o sistema sesmarial singulari-zado pela condição de aproveitamento dasterras, no decorrer da história da proprie-dade fundiária brasileira, adquiriu novasimposições. As obrigações de registro, pa-gamento de foro, medição, demarcação econfirmação incorporaram-se às exigênci-as para concessões de sesmarias. No entan-to, não desvirtuaram o sistema, posto queforam, antes de mais nada, tentativas de ins-trumentalizar a exigência do próprio culti-vo da terra. Mesmo após as Ordens Régiasdeterminando a cobrança de foro e confir-mação, encontram-se inúmeras cartas desesmarias que não atenderam a tais exigên-cias, rectius: há registro de cartas sem taiscláusulas, diferentemente da condição decultivo, característica essencial do sistemasesmarial. O enfraquecimento do institutopela aplicabilidade na realidade brasileirarevelou-se na dicotomia teórico-prática.

Talvez essa dicotomia tenha resultadodo fato de Portugal, nos auspícios da colo-nização, estender ao Brasil o instituto dassesmarias não considerando circunstânci-as completamente diversas. Basta ver a fi-nalidade do instituto nos dois países: emum, pretendia-se obrigar o cultivo de todasas terras de uma pequena península; emoutro, colonizar terras nunca antes lavra-das de uma colônia de imensas proporções.Dessa maneira, se, em Portugal, havia pes-soas para redistribuir as terras confiscadas,dando a estas um fim social, no Brasil, exis-tiam poucas pessoas com condições de co-lonizar parte deste vasto território, não ten-do a quem redistribuir; sobrava terra. EmPortugal, valorou-se a pequena proprieda-de; no Brasil, solidificou-se o latifúndio.

Assim, o princípio da razoabilidade (ex-presso nas Ordenações do Reino), transferi-do da Metrópole à aplicação na colônia, deque não dessem maiores quantidades de ter-ras a uma pessoa que parecesse não poder

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aproveitar, correspondeu, no Brasil, a da-das de terras de acordo com as posses deseus peticionários, distribuindo enormeslatifúndios a uma pequena classe de abas-tados. Freqüentemente, por esse motivo, foio requerimento de sesmarias feito com basenas posses de seus peticionários, definidapelo Professor Ângelo Carrara (1999) como“a posse pelo título de se fabricar os sítios”.

Por outro lado, analisa Messias Junquei-ra (1975, p. 20) que, “se não fosse o latifún-dio outorgado por este tempo, ainda estarí-amos como os caranguejos arranhando asareias do litoral”. Sob esse prisma, não dei-xa de ter o mestre razão, mas é inegável quehouve um pequeno desvio na aplicação dasOrdenações à realidade brasileira. Condi-ções ignoradas pela Metrópole que, na prá-tica, não puderam se mostrar esquecidas.

O tumulto da situação das terras no Bra-sil resultou na Resolução de 17 de julho de1822, baixada por D. Pedro de Bragança,suspendendo sine die a concessão de terrasde sesmaria, situação prorrogada até a pro-mulgação da Lei 601 de 18 de setembro de1850.

4. Terras devolutas

4.1. Conceituação

A Lei no 601/1850 inovou quanto aosentido do vocábulo devoluto. Terras devo-lutas, no sentido originário, eram aquelasterras que, dadas pela Coroa ao particular,sob cláusulas resolutivas, tinham caído emcomisso pelo não cumprimento de algumacondição, voltando ao patrimônio da Coroa.Ganhou-se nova adequação, servindo omesmo vocábulo para indicar o terreno va-zio, ermo, sem dono, não apropriado por tí-tulo algum.

O ponto de partida para definição dasconseqüências da Lei no 601/1850, segun-do Messias Junqueira (1964, apud SILVA,1983, p. 19), foi a condição desse imóvel àdata de promulgação da Lei n o 601. Se àque-la época era isento de manifestação posses-

sória, seria devoluto; caso contrário, a devo-lutividade não se caracterizaria.

Mais recentemente, o Decreto-Lei no

9.760, de 5 de setembro de 1946, ao disporsobre imóveis da União, deu o seguinte con-ceito de terras devolutas:

“Art. 5o São terras devolutas, nafaixa de fronteiras, nos Territórios Fe-derais e no Distrito Federal, as terrasque, não sendo próprias nem aplica-das a algum uso público federal, esta-dual, territorial ou municipal, não seincorporaram ao domínio privado:

a) por força da Lei no 601, de 18 desetembro de 1850, Decreto no 1.318, de30 de janeiro de 1854, e outras leis e de-cretos gerais, federais e estaduais;

b) em virtude de alienação, conces-são ou reconhecimento por parte daUnião ou dos Estados;

c) em virtude de lei ou concessãoemanada de governo estrangeiro e ra-tificada ou reconhecida, expressa ouimplicitamente, pelo Brasil, em trata-do ou convenção de limites;

d) em virtude de sentença judicialcom força de coisa julgada;

e) por se acharem em posse contí-nua e incontestada, por justo título eboa fé, por termo superior a vinte anos;

f) por se acharem em posse pacífi-ca e ininterrupta, por 30 (trinta) anos,independentemente de justo título eboa fé;

g) por força de sentença declarató-ria proferida nos termos do art. 148,da Constituição Federal, de 10 de no-vembro de 1937

Parágrafo Único – A posse a que aUnião condiciona a sua liberalidadenão pode constituir latifúndio e de-pende do efetivo aproveitamento emorada do possuidor ou do seu pre-posto, integralmente satisfeitos porestes, no caso de posse de terras situa-das na faixa da fronteira, as condiçõesespeciais impostas na lei”. (grifo nos-so).

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Como se vê, o conceito de terras devolu-tas, introduzido pela Lei 601/1850, aindaestá, de certa forma, presente nas legislaçõesatuais. Em parte, porque, como bem lembraAltir de Souza Maia (1982, p. 19), “a ocupa-ção não desnatura a conceituação de terrasdevolutas”, como de início o fez a Lei n o 601/1850, se destinadas ao cumprimento da fun-ção social: cultura e morada habitual.

Dessa forma, diversos autores contem-porâneos conceituam terras devolutas, ado-tando o sentido dado pela referida Lei no

601/1850, recebido pela legislação posteri-or:

“Celso Antônio Bandeira de Me-llo (1995, p. 525) “como sendo aque-las que, dada a origem pública da pro-priedade fundiária no Brasil, perten-cem ao Estado – sem estarem aplica-das a qualquer uso público – porquenem foram trespassadas do PoderPúblico aos particulares, ou se o fo-ram caíram em comisso, nem se inte-graram no domínio privado por al-gum título reconhecido como legíti-mo”.

“Maria Sylvia Zanella Di Pietro(2001, p. 575): “continua válido o con-ceito residual de terras devolutas comosendo todas as terras existentes no ter-ritório brasileiro, que não se incorpo-raram legitimamente ao domínio par-ticular, bem como as já incorporadasao patrimônio público, porém não afe-tadas a qualquer uso público”.

“Hely Lopes Meirelles (1990, p.449): “terras devolutas são todas aque-las que, pertencentes ao domínio pú-blico de qualquer das entidades esta-tais, não se acham utilizadas peloPoder Público, nem destinadas a finsadministrativos específicos. São benspúblicos patrimoniais ainda não uti-lizados pelos respectivos proprietári-os. Tal conceito nos foi dado pela Leiimperial 601, de 18.9.1850, e tem sidoaceito uniformemente pelos civilis-tas”.

4.2. Evolução legislativa –antecedentes históricos

Após um período sem legislação algu-ma a respeito de transferência do domínioda propriedade e proibidas as concessõesde sesmarias, a posse consolidou-se comomeio de ocupação do território brasileiro,ficando esse período conhecido como a faseáurea da posse.

Mesmo os antigos sesmeiros, como asse-vera Lacerda (1960), freqüentemente aban-donavam seus próprios domínios para selocalizarem em terras devolutas, sem títuloalgum, porque o aproveitamento das terrasde sesmaria importava no cumprimento decondições.

O comportamento dos posseiros comoverdadeiros proprietários chegava a serequivalente ao dos sesmeiros, tumultuan-do, ainda mais, a situação agrária do país:

“O espírito latifundiário que jápervertera a legislação das sesmariascontinuou a deturpar o regime dasposses. O posseiro, que era, a princí-pio, o pequeno proprietário, deixou-se também contagiar pela fome de ter-ras. Calçou bota de sete léguas, comoqualquer senhor de engenho, e saiufincando marcos a distância”. (RIOSapud SILVA, 1996, p. 61).

Adicionavam-se a essa situação: sesma-rias concedidas, ainda não demarcadas, nãomedidas e nem confirmadas; “casos dúbiosde sucessivas doações das mesmas dadasde terras” (SILVA, 1996, p. 61); petição desesmeiros que pediam a concessão de ses-maria alegando o cultivo da terra em ses-maria já concedida a outro concessionário,que não teria sequer condições de se asse-nhorear de seus domínios, dada a extensãode suas terras.

A situação do quadro fundiário nacio-nal, nessa época (1822/1850), podia ser as-sim dividida (PORTO, 1982, p. 75):

“1 – terras aplicadas a algum usopúblico nacional, provincial ou mu-nicipal – os chamados bens públicos,

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ou dominiais, do futuro Código Civilde 1917;

2 – terras dadas de sesmaria, cujosbeneficiários, tendo satisfeito todas ascondições fixadas em lei, lhes haviamadquirido o domínio pleno, com to-das as decorrências atribuídas ao do-mínio – “o ius utendi, fruendi et abu-tendi”;

3 – terras distribuídas de sesma-ria, cujos titulares, não tendo cumpri-do as condições essenciais – aprovei-tamento, registro, confirmação, demar-cação, pagamento do foro etc. – haviaperdido o direito sobre elas, caindoem comisso, considerados, desta sor-te, sesmeiros irregulares ou não legíti-mos;

4 – terras simplesmente ocupadas,figurando, quem a trabalhava, comomero possuidor, sem nenhum títuloque lhe assegurasse o domínio;

5 – finalmente, tudo quanto não seenquadrava neste elenco tipificador eraconsiderado terra devoluta , que nuncadeixara de pertencer ou voltara – foradevoluta, – ao dono originário – aNação, ou à Coroa de Portugal e, de-pois da Independência, o Estado ou oPatrimônio Nacional”. (grifo nosso).

Para pôr ordem na estrutura fundiáriavigente, legitimando a posse e revalidandoas sesmarias, após um lapso temporal semexpedição de títulos de domínio pelo gover-no, surgiu a Lei no 601, de 18 de setembro de1850, instituindo princípios, a saber:

1 – proibição de aquisição das terras de-volutas a título gratuito, excetuando as ter-ras de fronteira:

“Art. 1o Ficam proibidas as aquisi-ções de terras devolutas por outro tí-tulo que não seja o de compra. Excetu-ando-se as terras situadas nos limitesdo Império com países estrangeiros emuma zona de dez léguas, as quais po-derão ser concedidas gratuitamente”.

2 – A conceituação do que vinha a serterras devolutas:

“Art 3o São terras devolutas:§1o As que não se acharem aplica-

das a algum uso público nacional,provincial, municipal.

§2o As que não se acharem no do-mínio do particular por qualquer ou-tro título legítimo, nem forem havidaspor sesmarias e outras concessões doGoverno Geral ou Provincial, não in-cursas, em comisso por falta de cum-primento das condições de medição, con-firmação e cultura.

§3o As que não se acharem dadaspor sesmarias ou outras concessõesdo Governo, que, apesar de incursasem comisso, forem revalidadas poresta Lei.

§4o As que não se acharem ocupa-das por posses que, apesar de não sefundarem em título legal, forem legiti-madas por esta Lei”. (grifo nosso).

3 – A revalidação das sesmarias que,apesar de incursas em comisso, estivessemcom princípios de cultura e morada habitu-al do sesmeiro:

“Art 4o Serão revalidadas as sesmariasou outras concessões do governo geral, ouprovincial, que se acharem cultivadas, ou comprincípios de cultura e morada habitual do res-pectivo sesmeiro ou concessionário, ou de quemos represente, embora não tenha sido cumpridaqualquer das outras condições com que foramconcedidas”. (grifo nosso).

4 – A legitimação das posses, por ocupa-ção primária ou havidas do primeiro ocu-pante, que se achassem com princípios decultura ou morada habitual:

“Art. 5o Serão legitimadas as pos-ses mansas e pacíficas, adquiridas porocupação primária ou havidas do pri-meiro ocupante, que se acharem cultiva-das, ou com princípios de cultura e mora-da habitual do respectivo posseiro”. (gri-fo nosso).

5 – A obrigação de todo possuidor regis-trar a sua posse:

“Art. 13. O mesmo Governo faráorganizar por freguesias o registro das

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terras possuídas, sobre as declarações fei-tas pelos respectivos possuidores, impon-do multas e penas àqueles que deixa-rem de fazer nos prazos marcados asditas declarações ou as fizerem ine-xatas”. (grifo nosso).

O Decreto n. 1.318 de 30 de janeiro de1854 regulamentou a Lei no 601/50. Entreoutras coisas, garantiu também a legitima-ção do segundo ocupante, se pessoa queadquiriu a terra de boa-fé do primeiro ocu-pante e instituiu o registro do vigário:

“Art. 24. Estão sujeitas à legitima-ção:

§1o As posses que se acharem empoder do primeiro ocupante, não ten-do outro título senão a sua ocupação.

§2o As que, posto se achem em poderdo segundo ocupante, não tiverem sido poreste adquiridas por títulos legítimos.

§3o As que achando-se em poderdo primeiro ocupante até a data dapublicação do presente Regulamento,tiverem sido alienadas contra a proi-bição do art. 11 da Lei n. 601 de 18 desetembro de 1850.

Art. 91. Todos os possuidores deterras, qualquer que seja o título de suapropriedade e possessão, são obriga-dos a fazer registrar as terras que possuí-rem, dentro dos prazos marcados pelopresente Regulamento, os quais secomeçarão a contar, na Corte e Pro-víncia do Rio de Janeiro da data fixa-da pelo Ministro e Secretário de Esta-do dos Negócios do Império e nas Pro-víncias da fixada pelo respectivo pre-sidente”. (grifo nosso)

“Art. 97. Os vigários de cada umadas Freguesias do Império são os encar-regados de receber as declarações para oregistro de terras, e os incumbidos deproceder a esse registro dentro de suasfreguesias, fazendo-o por si ou por es-crevente, que poderão nomear e ter sobsua responsabilidade”. (grifo nosso)

O registro do vigário, como se mostra,não instituiu nenhum valor probatório como

título de domínio, no máximo como docu-mento de posse, visto que as declaraçõesseriam feitas pelo próprio possuidor.

Portanto, a Lei no 601 e seu subseqüenteRegulamento, “seguindo a tradição, consi-derou a cultura efetiva do solo como condi-ção essencial para deixar no patrimônioprivado as terras com, pelo menos, início decultura, fazendo retornar ao patrimôniopúblico as terras não cultivadas” (SILVA,1983, p. 16).

“Foi, não resta dúvida, uma conquistado humilde posseiro sobre o orgulhoso ses-meiro” (JUNQUEIRA, 1975, p. 20).

Em 1891, com a proclamação da repúbli-ca e a promulgação da Constituição, as terrasdevolutas em quase sua totalidade passarama constituir patrimônio do Estado:

“Art. 64. Pertencem aos estados asminas e terras devolutas situadas nosseus respectivos territórios, cabendoà União somente a porção do territó-rio, que for indispensável para a defe-sa das fronteiras, fortificações, cons-truções militares e estradas de ferrosfederais”.

O decreto 19.924/1931 reafirmou o di-reito dos Estados-membros sobre as terrasdevolutas e reconheceu-lhes expressamen-te a competência para regular a administra-ção, concessão, exploração, uso e transmis-são das terras devolutas, que lhes perten-cem, excetuando a aquisição por usucapião(MEIRELLES, 1990).

4.3. Disciplina legal atual

A Constituição de 1988 absorveu a atri-buição estatal das terras devolutas, adotan-do o conceito de exclusão, em que as terrasnão pertencentes à União incluem-se entreos bens do Estado, na mesma direção dasConstituições precedentes de 1946 e de 1969.A novidade é a compreensão das terras in-dispensáveis à preservação ambiental, de-finidas em lei, entre bens da União, as quaissão, inclusive, indisponíveis:

“Art. 20. São bens da União:II – as terras devolutas indispen-

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sáveis à defesa das fronteiras, das for-tificações e construções militares, dasvias federais de comunicação e à pre-servação ambiental, definidas em lei” .(grifo nosso).

“Art. 225. Todos têm direito aomeio ambiente ecologicamente equili-brado, bem de uso comum do povo eessencial à sadia qualidade de vida,impondo-se ao Poder Público e à cole-tividade o dever de defendê-lo e pre-servá-lo para as presentes e futurasgerações: (...)

§5o São indisponíveis as terras de-volutas ou arrecadadas pelos Estados,por ações discriminatórias, necessá-rias à proteção dos ecossistemas na-turais.”

“Art. 26. Incluem-se entre os bens doEstado:

IV – as terras devolutas não compreen-didas entre as da União”. (grifo nosso).

Quanto à matéria, a Constituição Esta-dual de Minas Gerais dispõe:

“Art. 12. Formam o domínio pú-blico patrimonial do Estado os seusbens móveis e imóveis, os seus direi-tos e rendimentos das atividades eserviços de sua competência.

Parágrafo Único. Incluem-se entreos bens do Estado: (...)

IV – as terras devolutas não compreen-didas entre as da União.” (grifo nosso).

A Lei Estadual mineira n. 11.020 de ja-neiro de 1993, que dispõe sobre Terras Pú-blicas e Devolutas Estaduais, define:

“Art. 1o São terras devolutas dodomínio do Estado as assim defini-das pela Lei no 601, de 18 de setembrode 1850, que lhe foram transferidaspela Constituição da República de1891 e que não compreendam entreas do domínio da União por força daConstituição da República de 1988.”

Seu regulamento, por meio do Decreto34.801 de junho de 1993, estatui:

“Art. 2o: São terras devolutas esta-duais as que:

I – não se acharem sob o domínioparticular por título legítimo;

II – não tiverem sido adquiridas portítulo de sesmaria ou outras concessões doGoverno, NÃO INCURSAS EM COMIS-SO; (grifo nosso)

III – estiverem ocupadas por pos-seiros ou concessionários incursos emcomisso;

IV – não se acharem aplicadas a al-gum uso público federal, estadual, muni-cipal; (grifo nosso)

V – as que não se compreendamentre as do domínio da União por for-ça do artigo 20 da Constituição daRepública.

§1o Consideram-se títulos legíti-mos aqueles que, segundo a lei civil,sejam aptos para transferir o domínio,entendendo-se, também, como tais, ostítulos de sesmarias, expedidos peloGoverno, desde que não incursos em co-misso; sesmaria não confirmada, masrevalidada de acordo com a Lei n o 601,de 18 de setembro de 1850...”

§2o Considera-se comisso a falta decumprimento das condições de medição,cultura, confirmação de terra dada em ses-maria”. (grifo nosso).

4.4. Alienabilidade das terras devolutas

As terras devolutas, como bens domini-cais, depois de apuradas, devem ser desti-nadas a programas de reforma agrária oucolonização, ou sobre elas efetuadas con-cessões, mediante a legitimação e regulari-zação de posse, ou a venda, mediante licita-ção (MAIA, 1975).

O Estatuto da Terra, a Lei no 4.504/64,prescreve:

“Art. 9o Dentre as terras públicas,terão prioridade, subordinando-se aosfins previstos nesta lei (colonização ereforma agrária), as seguintes:

(...)III – as devolutas”.

Só por autorização do Congresso pode-rão ser concedidas ou alienadas áreas su-

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periores a dois mil e quinhentos hectares,excetuadas as destinadas a fins de reformaagrária:

“Art. 49. É da competência exclu-siva do Congresso Nacional:

XII – aprovar, previamente, a alie-nação ou concessão de terras públi-cas com área superior a dois mil e qui-nhentos hectares.”

“Art. 188. A destinação de terraspúblicas e devolutas será compatibi-lizada com a política agrícola e com oplano nacional de reforma agrária.

§1o A alienação ou a concessão, aqualquer título, de terras públicas comárea superior a dois mil e quinhentoshectares a pessoa física ou jurídica,ainda que por interposta pessoa, de-penderá de prévia aprovação do Con-gresso Nacional.

§2o Excetuam-se do disposto noparágrafo anterior as alienações ou asconcessões de terras públicas parafins de reforma agrária.”

“Art. 189. Os beneficiários da dis-tribuição de imóveis rurais pela refor-ma agrária receberão títulos de domí-nio ou de concessão de uso, inegociá-veis pelo prazo de dez anos.”

A Constituição Estadual de Minas Ge-rais estabelece:

“Art. 246. O Poder Público adota-rá instrumentos para efetivar o direi-to de todos à moradia, em condiçõesdignas, mediante políticas habitacio-nais que considerem as peculiarida-des regionais e garantam a participa-ção da sociedade civil.

§2o A legitimação de terras devo-lutas situadas no perímetro urbano ouna zona de expansão urbana, assimconsiderada a faixa externa contíguaao perímetro urbano de até 2 km (doisquilômetros) de largura, compatibili-zada com o plano urbanístico muni-cipal ou metropolitano, é limitada,respectivamente, a 500 m² (quinhen-tos metros quadrados) e a 2.000 (dois

mil metros quadrados), permitida aoocupante a legitimação da área rema-nescente, quando esta for insuficienteà constituição de um novo lote.

§3o Será onerosa a legitimação:I – de terreno ocupado por propri-

etário de outro imóvel urbano ou ru-ral no mesmo município;

II – de área superior a 1.000 m² (milmetros quadrados), situada em zonade expansão urbana;

III – de área remanescente.§4o O poder executivo PODERÁ de-

legar aos municípios, nos termos da lei, adiscriminação e a legitimação das terrasdevolutas situadas no perímetro urbano ena zona de expansão urbana.

§5o A legitimação onerosa efetua-da pelo Município obedecerá à tabelade preços previamente aprovada pelaCâmara Municipal.

§6o Das áreas arrecadadas pelo muni-cípio em processo discriminatório admi-nistrativo ou ação judicial discriminató-ria, 30% (trinta por cento) continuarão apertencer ao Estado e serão destinadasprioritariamente, a:

I – construção de habitações po-pulares;

II – implantação de equipamentoscomunitários;

III – preservação do meio ambiente;IV – instalação de obras e serviços

municipais, estaduais e federais.Art. 214. Todos têm direito a meio

ambiente ecologicamente equilibrado,bem de uso comum do povo e essenci-al à sadia qualidade de vida, e ao Es-tado e à coletividade é imposto o de-ver de defendê-lo e conservá-lo paraas gerações presentes e futuras.

§6o São indisponíveis as terras devo-lutas, ou arrecadadas pelo Estado, ne-cessárias às atividades de recreação pú-blica e à instituição de parques e demaisunidades de conservação, para a proteçãodos ecossistemas naturais”. (grifos nos-sos)

Brasília a. 41 n. 164 out./dez. 2004 253

Na seção V, da política rural, dispõe:“Art. 247. O Estado adotará pro-

gramas de desenvolvimento rural des-tinados a fomentar a produção agro-pecuária, organizar o abastecimentoalimentar, promover o bem-estar dohomem que vive do trabalho da terrae fixá-lo no campo, compatibilizadoscom a política agrícola e com o planode reforma agrária estabelecidos pelaUnião.

§1o Para a consecução dos objeti-vos indicados neste artigo, será asse-gurada, no planejamento e na execu-ção da política rural, na forma de lei,a participação dos setores de produ-ção, envolvendo produtores e traba-lhadores rurais, e dos setores decomercialização, armazenamento,transporte e abastecimento, levando-se em conta, especialmente: (...)

IX – a alienação ou a concessão, a qual-quer título, de terra pública para assenta-mento de trabalhador rural ou produtorrural, pessoa física ou jurídica ainda quepor interposta pessoa, compatibilizadascom os objetivos da reforma agrária e li-mitadas a 100ha (cem hectares).

§2o A alienação ou concessão deque trata o inciso IX do parágrafo an-terior será permitida uma única vez acada beneficiário, ainda que a negoci-ação se verifique após o prazo fixadono §4o. (...)

§4o Será outorgado título de domínioou de concessão de uso, inegociável peloprazo de dez anos, ao beneficiário do dis-posto no inciso IX do §1o que comprovarexploração efetiva e vinculação pessoal àterra, nos termos e condições previstas emlei. (...)

§6o Quem tornar economicamente pro-dutiva terra devoluta estadual e compro-var sua vinculação pessoal a ela terá pre-ferência para adquirir-lhe o domínio, atéa área de duzentos e cinqüenta hectares,contra o pagamento do seu valor, acresci-do de emolumentos. (...)

§8o Na ação judicial discriminató-ria, o Estado poderá firmar acordopara a legitimação de terra devolutarural com área de até 250ha (duzen-tos e cinqüenta hectares), atendidosos seguintes requisitos:

cumprimento da função social, nos ter-mos do art. 186 da Constituição Federal;e devolução, pelo ocupante, da árearemanescente”. (grifos nossos).

A Lei mineira 11.020/93 define formasde alienação ou de concessão das terrasdevolutas estatais: concessão gratuita de do-mínio, alienação por preferência, legitimaçãode posse, concessão de direito real de uso:

“Art. 17 – O título de concessãogratuita de domínio será outorgado aquem, não sendo proprietário de imó-vel rural ou urbano, possua como sua,por 5 (cinco) anos ininterruptos, semoposição, área de terra devoluta ruralnão superior a 50ha (cinquenta hec-tares), tenha nela sua moradia e a te-nha tornado produtiva.”

“Art. 18 – Aquele que tornar eco-nomicamente produtiva terra devolu-ta estadual e comprovar sua vincula-ção pessoal à terra terá preferênciapara adquirir-lhe o domínio, até a áreade 250ha (duzentos e cinqüenta hec-tares), contra o pagamento de seusemolumentos.”

“Art. 20 – Tem direito à legitima-ção de posse quem, não sendo propri-etário de imóvel rural, ocupe terradevoluta cuja área não exceda 250ha(duzentos e cinqüenta hectares), tor-nando-a produtiva com o seu traba-lho e o de sua família e tendo-a comoprincipal fonte de renda.”

“Art. 22 – A concessão de direitoreal de uso de terra devoluta estadu-al, por tempo certo de até 10 (dez)anos, como direito real resolúvel, parafins específicos de uso e cultivo da ter-ra, até o limite de 250ha (duzentos ecinqüenta hectares), será outorgada aquem comprovar exploração efetiva e

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vinculação pessoal à terra, nos termose condições previstos neste artigo.”

A distinção entre legitimação e regulari-zação de posse, conforme o Prof. Cysneiros(apud SILVA, 1982, p. 42), é que:

“na primeira reconhece o Poder Pú-blico uma ocupação em que, atendi-dos os requisitos legais, a legitimação,reconhecimento, se torna imperativapara este, levando-o à expedição dotítulo. Já na segunda, a faixa de arbí-trio do Poder Público é maior e condi-cionada à aplicação que se quer desti-nar ao bem dominial suscetível de sertransferido ao domínio privado, porforça de um reconhecimento e açãoregularizadora.”

4.5. Cadastramento das terras devolutas

Os bens dominicais, nos quais estão in-seridas as terras devolutas, submetem-se aoregime jurídico de direito privado, porque aadministração comporta-se em relação aeles como verdadeira proprietária privada,tendo os mesmos função patrimonial e fi-nanceira, pela suscetibilidade de poderemensejar rendas ao Estado (PIETRO, 2000).

O regime jurídico privado a que são sub-metidos refletirá:

“Na falta de regras jurídicas sobreos bens dominicais, incidem as de di-reito privado, ao passo que, na faltade regras jurídicas sobre bens públi-cos stricto sensu (os de uso comum e osde uso especial), são de atender-se osprincípios gerais de direito públi-co”(MIRANDA, 1954, p. 136 apudPIETRO, 2000, p. 536).

Dessa forma, em virtude do regime jurí-dico de direito privado a que estão submeti-das, as terras devolutas devem ser registra-das; para tanto devem ser discriminadas,incorporadas ao patrimônio público. Mas,antes disso, nas ações de usucapião, a quemincumbe provar se a terra é ou não devolu-ta, ao poder público ou ao particular? A ju-risprudência opera a favor das duas teses(TENÓRIO, 1984 apud PIETRO, 2002), ora

defendendo a existência de presunção emfavor da propriedade pública, cabendo aoparticular provar que a terra não é pública,ora militando a favor do interessado, opi-nando caber ao Poder Público fazer essaprova, não sendo suficiente a simples au-sência de transcrição imobiliária em nomede terceiros (Revista dos Tribunais 465/67;469/68; 424/78-79).

Corrobora com a segunda tese o art. 98do Código Civil, equivalente ao art. 65 doCódigo Civil de 1917, que, ignorando a defi-nição de forma residual das terras devolu-tas a partir da Lei 601, institui em sentidooposto:

“Art. 98. São bens públicos os bensdo domínio nacional pertencentes àspessoas jurídicas de direito públicointerno; todos os outros são particu-lares, seja qual for a pessoa a que per-tencerem.”

Quanto aos bens dominicais, MiguelMaria de Serpa Lopes (1962, p. 183) distin-gue, para efeito de exigibilidade do registroimobiliário, aqueles sobre os quais recai atode império, não sujeitos portanto a registro,e aqueles submetidos ao jus gestionis, estessujeitos a registro, verbis:

“Os bens públicos são:I – os de uso comum do povo, tais

como mares, rios, estradas, ruas e pra-ças;

II – os dominicais, isto é, os queconstituem patrimônio da União, dosEstados, ou dos Municípios, comoobjeto de direito pessoal, ou real decada uma dessas entidades.

Não estão compreendidos no re-gistro de imóveis os bens classifica-dos no no I. Quanto aos demais bens,temos que partir da natureza do ato, enão dos bens, isto é, de serem estespertencentes ao Estado ou ao Municí-pio. Os atos praticados em relação aosditos bens, por força do jus imperii d equalquer daquelas entidades, estão exce-tuados do Registro Imobiliário. Quandoos atos são praticados jure gestionis es-

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tão subordinados ao Registro Imobiliá-rio”. (grifo nosso).

Considerando a clássica distinção entreatos de império e atos de gestão, parece con-cluir Serpa Lopes que apenas os atos nego-ciais do estado (de natureza imobiliária) comparticulares estariam obrigados ao registro.

Tal discussão remonta à primeira meta-de do século XX, quanto à prova das con-cessões de terras devolutas ou validade dasmesmas pela via administrativa exclusiva-mente. Lembra Lígia Osório Silva (1996, p.327), a propósito, que o Decreto 19.924/31teria resolvido a questão ao estabelecer que“os títulos expedidos pelo Estado e as certi-dões autênticas dos termos lavrados em suasrepartições administrativas, referente a con-cessão de terras devolutas, valerão qualquerque seja o preço da concessão para os efei-tos da transcrição no Registro de Imóveis.”

A questão da exigibilidade ou não docadastramento ou registro de imóvel públi-co, no tocante ao ônus da prova, é, ainda,colacionada por Moraes (2001, p. 632) ci-tando Celso de Melo (1995):

“a inexistência de registro imobiliá-rio não é suficiente para a caracteri-zação do domínio público. Essa cir-cunstância não induz à presunçãode que as terras sejam devolutas. Ofato de o imóvel não se achar registra-do em nome de um particular não oconverte em terra devoluta (RTJ 65/856, 99/234, 81/191; RJTJSP 19/54,24/260, 26/246; RT 405/153, 411/120, 419/129, 490/65, 551/110, 520/141, 549/204). Neste sentido: Pontesde Miranda, Tratado de direito privado,Borsoi, v. 12, § 1.419. Em sentido con-trário: considera-se devoluta toda aterra sobre a qual não recaia título re-gistrado no registro de imóveis (RF159/71, 116/470; RT 388/619, 307/260, 257/465). Trata-se de posiçãoatualmente minoritária (RDA 134/208). Registre-se, ainda, que não bas-ta a mera alegação de ser, a terra, de-voluta. É necessário que o Poder Pú-

blico prove que o imóvel é de sua pro-priedade: RT 537/77, 541/131, 555/223, 558/95.”

Em interessante acórdão proferido emsede de recurso extraordinário, sendo rela-tor o Ministro Moreira Alves, a Segunda tur-ma do Supremo Tribunal Federal decidiusob a ementa seguinte:

“Usucapião. Alegação de Estadomembro de que cabe ao usucapiente oônus da prova de que a gleba em cau-sa não é terra devoluta, não bastando,para comprová-lo, o depoimento detestemunhas e a existência de indíci-os. Inexiste em favor do Estado a pre-sunção iuris tantum que ele pretendeextrair do artigo 3o da Lei 601, de 18de setembro de 1850. Esse texto legaldefiniu, por exclusão, as terras públi-cas que deveriam ser consideradasdevolutas, o que é diferente de decla-rar que toda a gleba que não seja par-ticular é pública, havendo presunçãoiuris tantum de que as terras são públi-cas. Cabia, pois, ao Estado o ônus daprova de que, no caso, se tratava deterreno devoluto.” (RE no 86.234-MG,de 15/12/1976).

No voto condutor do acórdão, lembra oMinistro Moreira Alves decisão semelhanteproferida pela Primeira turma do STF; quan-do asseverou o relator, Ministro Djaci Falcão:

“Cuida-se de saber se pode ser con-siderada devoluta uma gleba, pelosimples fato de não constar no regis-tro imobiliário como pertencente aparticular. Nota-se, pois, que a Fazen-da, ao sustentar que as terras, de quese pretende usucapião, são de seudomínio, por serem devolutas, teriaque comprovar a alegação. E, comoprova, não se pode compreender aausência de transcrição imobiliária.”(RE no 75.459-MG, de 23/04/1973).

Vale acentuar, finalmente, que a decisãoda Segunda Turma do STF, acima citada,não conheceu do recurso extraordinário,para tanto mantendo o entendimento sufra-

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gado pelo Tribunal de Justiça de Minas Ge-rais, donde extrai-se a sentimental conclu-são do Desembargador Relator:

“Em conclusão, dou provimento,e o faço mesmo até com alegria no cora-ção, visto que muito me pesaria ter querepelir a pretensão de uma velha lavra-dora, despojando-a das terras que ela,ao longo de quarenta e cinco anos, la-vrou e cultivou com amor e dedicação.”

Exigível ou não o registro imobiliário dasterras devolutas, certa é a necessidade deextremá-las do patrimônio particular, o queexige a propositura de ação discriminató-ria, com o objetivo de possibilitar o cadastroe conseqüente registro.

A Lei Estadual n. 7.373 de outubro de1978, que dispõe sobre legitimação e doa-ção de terras devolutas do Estado de MinasGerais em Zona Urbana ou de ExpansãoUrbana, regula em seu artigo 8o que, após arealização de processo discriminatório ad-ministrativo, ou do término de ação judicialdiscriminatória, será feito o cadastramentoimediato de todos os bens arrecadados. Cor-robora o art. 7o, III, da Lei Estadual mineiran. 11.020/93, que incumbe à RURALMI-NAS, órgão estatal competente para a reali-zação do processo discriminatório e arreca-damento dos bens, promover o cadastramen-to geral das terras existentes no Estado.

A Constituição Estadual também, na se-ção III, do domínio público, diz:

“Art. 18. §3o Os bens do patrimônioestadual devem ser cadastrados, zelados etecnicamente identificados, especialmen-te as edificações de interesse administrati-vo, as terras públicas e a documentaçãodos serviços públicos.

§4o O cadastramento e a identifi-cação técnica dos imóveis do Estado,de que trata o parágrafo anterior, de-vem ser anualmente atualizados, ga-rantido o acesso às informações nelescontidas.” (grifo nosso).

A Lei Complementar estadual no 3, quedispõe sobre a organização municipal doEstado de Minas Gerais, estabelece nos ter-

mos do art. 96, na Seção I, da administraçãodos bens municipais, que “todos os bens mu-nicipais deverão ser cadastrados, com identifi-cação respectiva, segundo o que for estabelecidoem decreto.” (grifo nosso).

E, finalmente, a Lei Orgânica Municipalde Ouro Preto, na seção III, regula:

“Art. 14 – Constituem bens municipaistodos os bens móveis e imóveis, direitos eações que, a qualquer título pertençam aoMunicípio.

Art. 18 – Os bens do patrimônio municipaldevem ser cadastrados, zelados e tecnicamenteidentificados, especialmente as edificações deinteresse administrativo, as terras públicas e adocumentação dos serviços públicos.

Parágrafo Único – o cadastramento e aidentificação técnica dos imóveis do Muni-cípio de que trata o artigo devem ser anual-mente atualizados, garantido o acesso à in-formação neles contidas.” (grifo nosso).

5. Bens públicos

5.1. Conceituação e características

O Código Civil, Lei 10.406/2002, dispõe:“Art. 99. São bens públicos:I – os de uso comum do povo, tais

como rios, mares, estradas, ruas e pra-ças;

II – os de uso especial, tais comoedifícios ou terrenos destinados a ser-viço ou estabelecimento da adminis-tração federal, estadual, territorial oumunicipal, inclusive os de suas au-tarquias;

III – os dominicais, que constitu-em o patrimônio das pessoas jurídi-cas de direito público, como objeto dedireito pessoal, ou real, de algumadessas entidades.

Parágrafo Único. Não dispondo alei em contrário, consideram-se domi-nicais os bens pertencentes às pesso-as jurídicas de direito público a quese tenham dado estrutura de direitoprivado.”

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Manteve-se a mesma classificação ado-tada pelo Código de 1916.

Define J. M. de Carvalho Santos (1953, p.101): “são bens de uso comum do povo aque-les que, pertencendo ao Estado, sejam des-tinados por lei ou por fato natural ao uso di-reto e imediato do povo”. A distinção entre osbens dessa espécie e os de uso especial, se-gundo o autor (1953, p. 102), reside, nos bensde uso especial, na restrição na pessoa queadministra, não sendo o serviço público a quevisam, mesmo nos casos que se destinam aouso público, feito sem interferência desta.

Pietro (2000) explica, com bastante cla-reza que a classificação dos bens públicosresulta da destinação ou afetação dos bens.Os bens de uso coletivo são destinados pornatureza, ou por lei, ao uso coletivo; os bensde uso especial, ao uso da Administração,para alcance de suas metas; os bens domini-cais, não têm destinação específica , nos quaisse enquadram as terras devolutas. Os benspúblicos podem, ainda, ser divididos em:os do domínio público do Estado, nos quaisse inserem os de uso comum e de uso espe-cial, e bens do domínio privado do Estado,correspondente aos dominicais. Quanto àtitularidade, podem ser federais, estaduaisou municipais.

5.2. Imprescritibilidade dos bens públicos

Em virtude do silêncio do Código Civilde 1917, a maioria dos autores e até da juris-prudência consideraram os bens dominicaissujeitos a usucapião, pela sua não afetaçãoa um fim específico e sua suscetibilidade àalienação. A matéria viria a ser objeto de re-gulação nos decretos n o 19.924/1931; 22.785/1933; 710/1938, os quais proibiram expres-samente o usucapião dos bens públicos, in-terpretação adotada outrossim nos termos dasúmula 340 do STF, verbis: “desde a vigênciado Código Civil, os bens dominicais, como osdemais bens públicos não podem ser adqui-ridos por usucapião” (LOPES, 1962).

Porém, a jurisprudência, antes do Decreton. 22.785/1933, não era pacífica, admitin-do, como o Tribunal de Justiça de São Pau-

lo, uma exceção à imprescritibilidade dosbens públicos: a prescrição aquisitiva dosbens públicos patrimoniais, precisamentepelo próprio espírito da Lei de 1850 quemandava respeitar a posse dos terrenos ocu-pados com cultura efetiva (CAVALCANTI,1956, p. 345, 346). Outrossim, não obstanteo entendimento sumulado sob o verbete n.340 do STF, lembra a Professora Ângela Sil-va (1983) a existência de decisão do próprioSTF admitindo a possibilidade de usuca-pião dos bens públicos na vigência do Có-digo Civil desde que consumado anterior-mente à vigência do Decreto 22.785/33.

A divergência jurisprudencial teve refle-xos não uniformes: uma corrente admiteusucapião de bens imóveis da União – pres-criptio longissimi temporis (30 anos ou mais)consumada antes da vigência do CódigoCivil de 1917 (Revista Trimestral de Juris-prudência 67/1-Ação originária no 132, T.Pleno – STF, Rel Min. Aliomar Baleeiro; Re-vista Trimestral de Jurisprudência no 66/732, Recurso Extraordinário 61.508, T. Ple-no, mesmo relator; Recurso Extraordinário69/175 – Recurso Extraordinário 75.144,Rel Min. Djaci Falcão); uma segunda cor-rente considera que, antes do decreto de1933, os bens patrimoniais, e não somenteas terras devolutas, podiam ser usucapidosno prazo de 30 anos (Recurso Extraordiná-rio 71.298 – 1 a T., Rel. Min. Barros Monteiro– Revista dos Tribunais 436/264); uma ter-ceira corrente afirma que as terras que nun-ca foram da União, Estado-membro ou Mu-nicípio, nem dos particulares, são terras semdono, res nullis. Podem ser objeto de posse,no sentido privatístico (acórdão do E. TJ-SP2a Câm. Civ-Ap. 194.817, Rel. Des. CordeiroFernandes – de 13.04.1971 – Revista dosTribunais 436/76).

Hoje a matéria está sedimentada: os benspúblicos são imprescritíveis, qualquer queseja a sua natureza, estabelecendo a Consti-tuição Federal, em seus artigos 183 e 191, e oCódigo Civil, em seu art. 102, verbis:

“Art. 183, §3o Os imóveis públicosnão serão adquiridos por usucapião.”

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“Art. 191. Parágrafo Único. Os imó-veis públicos não serão adquiridos porusucapião.” (CF)

“Art. 102. Os bens públicos nãoestão sujeitos a usucapião”. (CC)

Parece-nos portanto, sem dúvida, queao Estado incumbe discriminar as terrasdevolutas que lhe pertencem, o que exigeoperações práticas, tendentes ultima ratio apropiciar-lhe o cadastramento das referidasterras.

6. Usucapião

6.1. Conceito e elementos

Segundo Clóvis Bevilacqua (1956, p. 141,143), “usucapião é a aquisição do domíniopela posse prolongada. A posse é o fato ob-jetivo; o tempo a força que opera a transfor-mação do fato em direito”.

Laffayete Rodrigues Pereira (1943) dis-tingue dois gêneros da prescrição: a aquisi-tiva e a liberatória ou extintiva. Uma geradireitos, tendo a extinção de direito de ou-trem como corolário, outra é negativa, de-corre da inércia, “paralisando destarte odireito correlato”. Por conseguinte, esta úl-tima nunca pode tomar a forma de ação, masreveste sempre a natureza de exceção, pe-remptória da ação. Cuidar-se-á da primei-ra: o usucapião.

Os pressupostos para aquisição da pro-priedade pelo usucapião são o justo título ea posse mansa, contínua, pacífica, com ani-mus domini, consistente na vontade de pos-suir a coisa, exercida perante determinadodecurso temporal. O prazo maior, exigidopara consumação do usucapião extraordi-nário, supre o título e boa-fé, que “em talcaso, se presumem” (MIRANDA, 1955, p.120).

O justo título pode ser definido como oato jurídico, em tese, apto a transferência dodomínio, mas, na realização do ato in con-creto, incapaz de realizá-la. É que algum ví-cio impede o alcance deste objetivo pelo ad-quirente. No entendimento de J. M. de Car-

valho Santos (1956, p. 437), o justo títulodeve ser válido, certo, real e estar devida-mente transcrito. Válido, quando atende asformalidades externas essenciais, real e cer-to, pois não pode ser presumido ou supos-to, transcrito, já que sem esta o título nãoseria capaz de transferir o domínio. Opiniãodiversa manifesta Pereira (1943, p. 235)quanto a este último requisito do justo títu-lo, a quem a transcrição só é exigível paravaler-se contra as hipotecas inscritas sobreo mesmo imóvel.

A posse que enseja a prescrição aquisiti-va da propriedade não pode ser precária,porque esta afasta a intenção de possuir acoisa como própria, caracterizando, ainda,a má-fé do possuidor que a invoca comosuscetível de gerar direito de propriedadeem seu favor. Exemplos: a posse tomadamediante violência, aquela possuída emnome de outro, tais como a exercida peloinquilino, o rendeiro, o depositário, o pro-curador.

O usucapião de coisa possuída em co-mum era considerado como impossível pelaprópria precariedade do título do possui-dor: “o precário, na ampla acepção do direi-to moderno, isto é, uma relação de direitoque exclui a convicção do possuidor de quea coisa possuída do direito lhe pertence”.(SANTOS, 1956, p. 435) Atualmente, o Esta-tuto da Cidade, ao regulamentar a possibi-lidade de usucapião coletivo, modificou, decerta forma, essa interpretação.

Quanto ao lapso temporal, deve ser con-tínuo e ininterrupto, podendo acrescentar-se ao cômputo do prazo a posse anterior doantecessor à posse atual, contanto que am-bas contenham os requisitos ensejadores dousucapião. A posse deve ser pacífica, ou seja,incontestada durante o período transcorrido.

Espécie peculiar de posse, que faz às ve-zes de Usucapião, é a posse imemorial. Tra-ta-se daquela que não se tem lembrança en-tre vivos, estabelecendo a presunção de aqui-sição legal (SANTOS, 1956). Pereira (1943,p. 263) também define: “A posse imemorialfaz presumir a existência de justo título e

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boa fé, e não admite prova em contrário. Éessa razão porque costuma dizer que o pos-suidor adquire o domínio, não propriamen-te em virtude de prescrição, senão do títulopresumido, diante do qual cedem todas asdificuldades que poderiam sugerir as ou-tras espécies de prescrições”.

A respeito da suscetibilidade ao usuca-pião, durante a vigência do Código Civil de1916, encontram-se autores, como Lafayet-te Rodrigues Pereira (1943) e J. M. de Carva-lho Santos (1956), que defendem a seguintetese: as coisas que não se acham fora do co-mércio são usucapíveis, isto é, todas as coi-sas que são alienáveis são aptas a seremusucapidas. Assim, as terras devolutas, in-seridas como espécie das dominicais, pode-riam, nesse contexto, ser adquiridas porprescrição aquisitiva. Opinião diversa, po-rém sustentada por Pontes de Miranda(1955), Miguel Maria de Serpa Lopes (1962)e Clóvis Bevilacqua (1956), que combatem ousucapião de bens públicos alienáveis.

O usucapião deve ser invocado pela par-te, ajuizando a ação de usucapião, provan-do a sua posse, citando todos os interessa-dos conhecidos, como também os entes pú-blicos de direito interno. Obtendo a senten-ça de posse, esta somente produzirá efeitodeclaratório, devendo ser transcrita no res-pectivo registro de imóvel.

A justificativa da perda imposta ao pro-prietário pela prescrição aquisitiva funda-menta-se, nos dizeres de Pereira (1943, p.217), nos imperiosos motivos de utilidadepública, apesar de contrária às regras fun-damentais do Direito. Acrescenta:

“Como quer que seja, ela estabele-ce a firmeza da propriedade, libertan-do-a de reivindicações inesperadas,corta pela raiz um grande número depleitos, planta a paz e a tranqüilida-de na vida social: tem a aprovação dosséculos e o cosenso unânime dos po-vos antigos e modernos. Uma institui-ção desta natureza assenta necessari-amente em fundamentos sólidos eprofundos”. (PEREIRA, 1943, p. 220).

Instituto recente apercebido pela juris-prudência brasileira, de ampla aplicação naAlemanha, ao que parece, com as mesmasbases do usucapião, é a Suppressio, definidapelos doutrinadores como “o exercício inad-missível do direito”. Corresponde à inter-pretação de que um direito não exercidodurante certo lapso de tempo não poderiamais sê-lo, por contrariar a boa-fé.

A respeito, reflete o acadêmico Hélderde Souza Campos (2003):

“A distinção básica entre suppres-sio e a decadência/prescrição resideem que, nessas, a pretensão é regidasomente pelo tempo, e naquela a exi-gência primordial é um comportamen-to inadmissível pela parte detentorado direito subjetivo, que, em face àscircunstâncias, e em antítese ao prin-cípio da boa-fé, permanece em crista-lina omissão.”

O Superior Tribunal de Justiça dá vogaao princípio em acórdão (Resp no 214680-SP – 4a Turma – Rel. Min. Ruy Rosado deAguiar, 1999 apud CAMPOS, 2003):

“Condomínio – Área comum –Prescrição – Boa-fé – Área destinadaa corredor, que perdeu sua finalidadecom a alteração do projeto e veio a serocupada com exclusividade por al-guns condôminos, com a concordân-cia dos demais. Consolidada a situa-ção há mais de vinte anos sobre áreanão indispensável à existência do con-domínio, é de ser mantido o status quo.Aplicação do princípio da boa-fé (su-ppressio).”

A prima facie, parece que o princípio po-deria alterar, em algumas situações, comona posse exercida por condôminos, a per-cepção da posse precária como não gerado-ra de direitos. Tudo dependerá dos contor-nos a serem dados ao instituto.

6.2. Legislação atual

As formas de usucapião previstas são:usucapião ordinário (art. 1.242, Código Ci-vil), usucapião extraordinário (art. 1.248,

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Código Civil), usucapião especial rural (art.191, Constituição Federal), usucapião espe-cial urbano (art. 183, Constituição Federal):

“Art. 1.238.(CC) Aquele que, porquinze anos, sem interrupção, nemoposição, possuir como seu um imó-vel, adquire-lhe a propriedade, inde-pendentemente de título e boa-fé; po-dendo requerer ao juiz que assim odeclare por sentença, a qual serviráde título para o registro no Cartóriode Registro de Imóveis.

Parágrafo Único. O prazo estabe-lecido neste artigo reduzir-se-á a dezanos se o possuidor houver estabele-cido no imóvel a sua moradia habitu-al, ou nele realizado obras ou servi-ços de caráter público.”

“Art. 1.242.(CC) Adquire tambéma propriedade do imóvel aquele que,contínua e incontestadamente, comjusto título e boa fé, o possuir por dezanos.

Parágrafo Único. Será de cincoanos o prazo previsto neste artigo seo imóvel houver sido adquirido, one-rosamente, com base no registro cons-tante do respectivo cartório, cancela-da posteriormente, desde que os pos-suidores nele tiverem estabelecido asua moradia, ou realizado investimen-tos de interesse social e econômico.”

São expressos, na Constituição, a possi-bilidade de usucapião urbano e rural, co-nhecidos como especiais, permitidos umaúnica vez, concedidos ao homem ou à mu-lher, desde que não incidentes sobre imóvelpúblico:

“Art. 183. Aquele que possuir comosua área urbana de até duzentos e cin-qüenta metros quadrados, por cincoanos, ininterruptamente e sem oposi-ção, utilizando-a para sua moradia oude sua família, adquirir-lhe-á o domí-nio desde que não seja proprietário deoutro imóvel urbano ou rural.”

“Art. 191 Aquele que, não sendoproprietário de imóvel rural ou urba-

no, possua como seu, por cinco anosininterruptos, sem oposição, área deterra, em zona rural, não superior acinqüenta hectares, tornando-a pro-dutiva por seu trabalho ou de sua fa-mília, tendo nela sua moradia, adqui-rir-lhe-á sua propriedade.”

E, finalmente, o usucapião coletivo deimóvel urbano, disposto pelo Estatuto daCidade, Lei 10.257/01:

“Art. 10. Áreas urbanas com maisde duzentos e cinqüenta metros qua-drados, ocupadas por população debaixa renda para sua moradia, porcinco anos, ininterruptamente e semoposição, onde não for possível iden-tificar os terrenos ocupados por cadapossuidor, são suscetíveis de seremusucapidas coletivamente, desde queos possuidores não sejam proprietá-rios de outro imóvel urbano ou ru-ral.”

7. Discussão

Funda-se a contestação do Município deOuro Preto em três premissas. A primeira, onúcleo da sua argumentação:

1o) que se trata de bem público, posto queinserido no perímetro descrito na Carta de Ses-maria, portanto insuscetível de prescrição aqui-sitiva nos termos do art. 183, §3o, da Constitui-ção e entendimento consubstanciado na Súmulan. 340, do STF.

Assim, entende que a Carta de SesmariaRégia seria título atributivo da propriedadedas terras, nela mencionadas, ao Municí-pio de Ouro Preto. Convém, portanto, sejatranscrita para exame:

“Juramento e Posse dos Officiales Elei-tos para a Câmara

Aos nove dias do mez de julho demil setecentos e onze annos, nestanova villa, intitulada Villa Rica deNossa Senhora do Pilar e Albuquer-que, nas casas em que mora o SenhorGovernador e Capitão General Antô-nio de Albuquerque Coelho de Carva-

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lho, foram chamadas por sua ordemas pessoas que sahiram eleitos paraservirem este anno na camara destadita villa, para haverem de tomar ju-ramento e posse que uma e outra cou-sa lhe foi dado pelo dito Senhor Go-vernador, depois de lhe ser declaradopelo dito Senhor a dita eleição, comotambém muito recomenndado as obri-gações com que ficavam para bem exer-citarem os seus cargos com a maiorattenção e zelo ao serviço de Deus, desua majestade e ao bem comum e so-cego desta República e utilidade dosmoradores delia; o que prometterãofazer os ditos eleitos de que se assig-narão com o título Senhor Governa-dor neste termo que me mandou fa-zer; e eu Manoel Pegado. Secretáriodeste Governo o escrevi. Antônio deAlbuquerque Coelho de Carvalho.Coronel José Gomes de Mello. Fernan-do da Fonseca e Sá. Manoel de Figuei-redo Mascarenhas. Felix de GusmãoBueno Brandão. Antonio de Faria Pi-mentel. Manoel de Almeida Costa.

Pouco depois veio o seguinte:CARTA DA SESMARIA, QUE S.M.

A QUEM DEUS GUARDE, CONCE-DEU AO SENADO DA CAMARADESTA VILLA:

D. João, por graça de Deus, Rei dePortugal e dos Algarves, d aquém e dalem mar, Senhor da Guiné e da Con-quista, de navegação com o comércioEthyopia, Arábia, Pérsia e da Índia,etc.

Faço saber aos que esta minha car-ta de confirmação de sesmaria virem,que, respeito aos oficiaes da Câmarade Villa Rica e apresentarem outra,passada pelo governador capitão-ge-neral que foi da capitania de S. Pauloe Minas de que o teor é o seguinte:

Antonio d Albulquerque Coelhode Carvalho, conanendador da ordemde Christo e da commenda de SantoIldefonso do Val de Telhas, do conse-

lho de sua Majestade a quem DeusGuarde, governador e capitão gene-ral da capitania de S. Paulo e Minasdo Ouro e todos os seus districtos,etc...Faço saber a todos que esta mi-nha carta de sesmaria virem que, porhaver respeito ao que por sua petiçãome enviarão a dizer aos oficiaes daCâmara de Vila Rica de Albuquerqueque aquella Villa se achava sem ter re-creio nem terra alguma assim para a cria-ção dos gados como para venda e aforaraos moradores para assim o dito Senadoler alguma renda para o conselho poderacudir e reparar as obras do conselho, oque as Câmaras são obrigadas porque dapassagem do Ribeirão até terreno da ditaVilla e da Serra do Itacolomy até a deAntonio Pereira, correndo até entestar como capitão Manoel de Mattos se achavamuita terra devoluta, a qual necessáriapara este senado e queria por sesma-ria com todos os mados, campos, seuscantos e recantos que não tivessemdados por sesmaria, como também oscampos que estivessem devolutos des-de Prinhy Curralina e Serra do Ita-tyaia, portanto me pedião me fizessemercê de conceder a sesmaria da ditaterra e campos assim confrontados, evisto o seu requerimento em formaçãoque se me deu não offerecer duvida,

Hei por bem fazer mercê aos ditosofficiaes da Câmara, em nome de SuaMagestade a que o Deus Grande, delhe dar por sesmaria a terra que pe-dem, porém no que toca à divisão como Ribeirão será o limite della no altoda Poça grande do coronel AntonioFrancisco da Silva, da qual pode co-meçar a dita sesmaria assim e de modoque são as ditas terras e com as suasreferidas confrontações sem prejuízode terceiro, com declaração que achando-se dentro delle algum morador com o títu-lo de primeiro povoador ou de haver com-prado não será expulso e apenas obrigadoa aforar-se, porém não roçará de novo as

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ditas terras, se cultivarão e povoarem den-tro de dois annos, e não fazendo nellas sedê lhe negarão mais tempo e se lhe julga-rão por devolutas, na forma da ordem deSua Magestade de 22 de outubro de 1691,e outrossim serão obrigados os ditosofficiaes da câmara a mandar confir-mar esta carta de data por Sua Mages-tade a quem Deus Guarde dentro emtrês annos, pelo que mando ao minis-tro a que toca lhes mande dar possedas ditas terras na forma do estylo esua petição e a todos os officiaes dajustiça a quem o reconhecimento des-ta pertencer a facão cumprir e guar-dar tão inteiramente como nella secontem, a qual por fineza de tudo lhesmandei passar, por mim assignada esellada como o sinete de minhas ar-mas, que se registrará na secretariadeste governo e nos mais que tocar,dado em Minas Geraes aos 27 dias domez de setembro de 1711 – O secreta-rio Monoel Pegado a fez – Antonio deAlbuquerque Coelho de Carvalho.”

Pedindo-me os ditos officiaes daCâmara que porquanto o dito gover-nador capitão-general da capitania deS. Paulo Minas lhe fizera a mercê emmeu nome de lhes dar as ditas terras,expressada nas cartas nesta incorpo-rada, lhes fizesse mercê de mandar-lh’as confirmar, e sendo visto o seurequerimento, o que responderão osprocuradores de minha fazenda a co-roa a quem se deu vista, e informaçãode que deu o governador e capitãogeneral da capitania de Minas:

Hei por bem de fazer-lhes mercêde lhes confirmar uma légua de ‘terra emquadro a qual fará pião no pelourinhoda dita Villa, correndo pra todas aspartes na distancia de meia legoa, comdeclaração que só das casas edifica-das que agora pagão e das que nova-mente se edificarem se pagarão forose de nenhum maneiras das que até opresente não pagão por serem mais

antigas que a mesma Câmara ou poroutra alguma causa, e assim também nãose pagará nem para foro algum nas terrasmeneraes em que há ou possa haver la-vras, minas ou buraco que se tire outro,pelo que mando o meu governador ecapitão-general da Minas, provedorda fazenda e mais ministros a que atocar, cumprão e guardem esta cartade confirmação e a facão inteiramentese cumprir como nella se contém, semduvida alguma e se passasse por duasvias e pagou de novo direito quatro-centos reis, que se carregarão ao the-soureiro José Corrêa de Moura às fo-lhas sessenta e nove do livro vinte etrês de sua receita, como consta do seureconhecimento em fôrma registradono livro dezenove do registro geral àsfolhas trezentas e quatro verso – Lis-boa Occidental, aos 17 de Janeiro de1736 – El Rei.”

“Carta de confirmação de semariaporque Vossa Magestade há por bemfazer mercê aos officiaes da Câmaradesta Villa Rica de lhes confirmar umalégua de terra em quadro, a qual há defazer pião ao pelourinho da dita Villa,correndo para todas as partes na distan-cia de meia légua, com declaração que sóas casas edificadas que agora pagão e dasque novamente se edificarem se pagarãoforos e de nenhuma maneira que até o pre-sente se não pagão por serem mais antigasque a mesma Câmara ou por outra algu-ma causa, e assim também se não pa-gará nem para fôro algum nas terrasmineraes em que há ou possa haverlavras, minas ou buracos em que setire ouro, a qual lhes deu em nome deVossa Magestade o governador e ca-pitão-general da capitania de S. Pau-lo e Minas, como assim se declara paraVossa Magestade ver. – Theodoro Co-elho Pereira a fez. – O secretario Ma-noel Caetano Lopes de Lavre a fez es-crever por despacho do Conselho Ul-tramarino de 23 de novembro de 1731.

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– José Vaz de Carvalho – José de Car-valho Abreu – Isaac de Souza.”

Registrada à folhas cento e sessen-ta e cinco verso do livro vinte e dois deofficios do Conselho Ultramarino – Lis-boa Occidental, 21 de março de 1736 –Manoel Caetano Lopes de Cavre.

Fica registrada esta carta nos livrosdas mercês e não pagou por servia. –Amaro Nogueira de Andrade.

Pagou três réis por servia – LisboaOccidental, 15 de outubro de 1736. –Innocencio Ignacio de Moura.

Registrada, cumpra-se como SuaMagestade manda. – Villa Rica, 15 deJaneiro de 1737. Martinho de Mendon-ça de Pinna e Proença.

Registrada à folhas 107 verso dolivro I do registro de provisões reaesda secretaria deste governo – VillaRica, 15 de Janeiro de 1737. – Anto-nio de Souza Machado.”

(...)”(grifos nossos).Ao contrário do que insinua o Municí-

pio de Ouro Preto, a Carta de Sesmaria ou-torgada à Câmara de Vila Rica contém omesmo espírito dos forais, outrora concedi-dos, transferindo-lhe não um domínio realdo solo, e sim rendas, direitos, foros e tribu-tos que lhes passavam a pertencer. Esse sen-tido extrai-se do seguinte trecho da carta:

“por haver respeito ao que por suapetição me enviarão a dizer aos ofici-aes da Câmara de Vila Rica de Albu-querque que aquella Villa se achavasem ter recreio nem terra alguma as-sim para a criação dos gados comopara venda e aforar aos moradorespara assim o dito Senado ter algumarenda para o conselho poder acudir e re-parar as obras do conselho, o que as Câ-maras são obrigadas porque da passa-gem do Ribeirão até terreno da ditaVilla e da Serra do Itacolomy até a deAntonio Pereira, correndo até entes-tar com o capitão Manoel de Mattosse achava muita terra devoluta.” (gri-fo nosso).

Aliás, em nenhuma parte do documentoé encontrada qualquer referência a transfe-rência de domínio territorial. A regra de que,no Brasil, as doações territoriais eram feitaspor meio de Cartas de Sesmarias pode con-duzir, certamente, numa interpretação me-ramente literal, a que a Carta concedida aoSenado da Câmara de Vila Rica tivesse essasó característica. Não obstante, atribuindo-lhe a natureza de foral, mais nos aproxima-mos de uma das prováveis origens etimoló-gicas da palavra sesmaria: colégio munici-pal, encarregado de distribuir terras (POR-TO, [198-?]), ou esmar, talhar, dividir (LIMA,R.C, 1991).

Ademais, a Carta de Sesmaria de 1711não tem a mesma natureza das Cartas deSesmarias, pelo essencial fato de não conterem seu bojo a imposição de cultivo, cláusu-la máxima que acompanhou toda evoluçãodo seu instituto e presente desde as primei-ras cartas de sesmarias:

“No sistema sesmarial do Brasil otítulo constitutivo da propriedade pri-vada, é assim a doação; mas como oregime das sesmarias pressupõe umencargo que, como vimos, constituíauma autêntica servidão nas leis por-tuguesas, esse encargo, que era a exi-gência do efetivo aproveitamento da ter-ra, jamais deixou de estar presente, ao lon-go de toda a evolução do sistema, no Bra-sil. Doações de terras com encargo de apro-veitamento, eis a natureza jurídica dassesmarias no Brasil” (MIRANDA, 1983,p. 13, grifo nosso).

Outrossim, nem poderia ter a cláusulade cultivo, posto que incompatível com asatribuições do Senado da Câmara cultivaros terrenos supostamente lhes outorgados,senão pela transferência dos mesmos aosmoradores de Vila Rica.

Também outros municípios mineiros fo-ram aquinhoados com cartas de naturezajurídica semelhante, não sendo portanto aorigem da municipalidade de Ouro Preto suigeneris, como alega o procuradoria munici-pal:

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“à exceção de Mariana e Minas No-vas, todas as vilas criadas na primei-ra metade do século XVIII receberamdatas, sem que precisassem as con-frontações. Vila Rica recebeu uma lé-gua da passagem do ribeirão (Do Car-mo) até o terreno da vila e da Serra doItacolomi até Antônio Pereira; do Tri-puí Curralinho ao morro da Itatiaia,confrontando-se com as roças grandesdo coronel Antônio Francisco da Silva.Estas sesmarias legitimavam a cobrança deforo pela Câmara”. (CARRARA, 1999,grifo nosso).

A natureza que aqui se empresta à cartaem comento mais se coaduna com a impor-tância e poder que detinham as Câmaras naépoca colonial, chegando a extrapolar a suaórbita, como leciona Victor Nunes Leal(1997, p. 82):

“Além das atribuições de interes-se peculiar do município, exerciamelas funções hoje a cargo do Ministé-rio Público, denunciando crimes eabusos aos juízes, desempenhavamfunções de polícia rural e de inspeçãode higiene pública, auxiliavam os al-caides no policiamento da terra e ele-giam grande número de funcionáriosda administração geral.”

“Viveiros de Castro contesta queas câmaras coloniais tenham exerci-do tão amplas atribuições com o be-neplácito real. Em sua opinião, ‘a dis-tância em que estavam da Corte ani-mava as câmaras municipais a inva-direm sem cerimônia seara alheia;mas o Rei severamente as repreendiaquando o fato chegava ao seu conhe-cimento, como o fez, por exemplo, nascartas régias de 4 de dezembro de1677, 12 de abril de 1693, 20 de no-vembro de 1700 e 28 de março de 1794,nas quais está formalmente declara-do que as câmaras eram subordina-das aos governadores, cujas ordensdeviam cumprir, mesmo que tais or-dens fossem ilegais e contrárias à ju-

risdição das câmaras’”. (LEAL, 1997,p. 87).

Lembra Costa Porto ([198-?], p. 115) que,no começo do século XVIII, a concessão desesmaria se cerca de formalidades mais ob-jetivas, determinando-se mais acurada in-vestigação, por meio das Câmaras locais,dos capitães-mores das Vilas ou Comar-cas. Por ordem régia de 1744, Sua Mages-tade passou a exigir a manifestação pré-via das Câmaras locais para concessãode sesmaria.

É certo, contudo, que parte das terras in-tegrantes da carta era insuscetível de distri-buição, sendo destinada ao uso comum dopovo, não sendo possível a doação, veda-ção consubstanciada no livro LV, título 43,§10, das Ordenações, “por ser em prejuízonotável do comum proveito”. Ainda CostaPorto ([198-?], p. 129):

“Em regra, o Senado da Câmarada Vila separava o patrimônio fundi-ário em duas partes, uma aforada oudada em enfitêuse, proporcionandorecursos financeiros à administraçãolocal, e outra insuscetível de apropri-ação privada porque considerada ‘deutilidade pública, em proveito comumda vila, para madeira, lenha, canas ecipós, onde todos mandam buscarcomo mato destinado ao bem comum.’De resto, esta preocupação ‘pelo bemcomum’ seria uma constante na men-talidade do tempo, indo além da áreade propriedade direta das Vilas, usu-al, nas cartas de data, a ressalva deque, recebendo o solo de sesmariaficava o morador ‘obrigado a dar,pelas ditas terras, caminhos livresao Conselho para fontes, pontes epedreiras’”.

De outro lado, o direito de terceiros nãopassou despercebido pela Carta de 1711,outorgada ao Senado, obedecendo ao pre-ceito do respeito ao primeiro ocupante, ado-tado nas fómulas sesmariais: “achando-sedentro delas algum morador com título deprimeiro povoador, ou de haver comprado,

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não será expulso, e menos obrigado a afo-rar-se”, assim expondo:

“com declaração que só as casas edi-ficadas que agora pagão e das quenovamente se edificarem se pagarãoforos e de nenhuma maneira que até opresente se não pagão por serem maisantigas que a mesma Câmara ou poroutra alguma causa”.

Dessa forma, mesmo antes da outorgada Carta de Sesmaria já existiam terrenosocupados, em que o Município jamais po-deria deter o domínio, nem aforar, antes res-peitar, “por serem mais antigos que a pró-pria Câmara”.

Se a outorga dessa Carta tivesse comoconseqüência a propriedade do Municípiode Ouro Preto sobre as terras que alega, nãoseriam todas as terras dentro do termo des-crito e sim aquelas que não estivessem ocu-padas por título de primeiro povoador, as-sim antes mesmo da instalação da Câmara.Donde conclui-se que àquela data seria ne-cessário extremar “o domínio da Câmara”do domínio particular.

Seja sob o regime das sesmarias, seja soba legislação de terras devolutas ou mesmoapós a edição do Código Civil Brasileiro(1917), certo é que, para o exercício pleno dodomínio público sobre as primeiras (sesma-rias) e segundas (devolutas), o legisladorcolocou sempre a salvo as posses e/ou ocu-pações legítimas, exigindo, antes do Códi-go Civil Brasileiro e após, procedimento pré-vio administrativo e/ou judicial (juízos desesmarias e ação discriminatória) destina-do a extremar o patrimônio público do pri-vado, com o que a inalienabilidade e impres-critibilidade dos bens públicos não defluiipso iure da lei que as institui senão da con-formidade destas com a realidade dos fatosconstatados pelas operações práticas a car-go das administrações públicas interessa-das na preservação de seus bens domini-cais.

Assim colocada a questão, qual seja, deque a Carta de 1711 não é atributiva de pro-priedade senão de poder político, prejudi-

cados restariam os demais fundamentosinvocados pelo Município posto que decor-rentes diretamente da premissa principal,afastada.

Todavia, o exame dos demais fundamen-tos poderá, a contrario senso, justificar a teseacima apresentada, reforçando o entendi-mento ora proposto, senão vejamos.

Assim, argumenta a Procuradoria doMunicípio:

2o) que a ausência de registro imobiliárioimporta em presunção de que o imóvel pretendi-do encontra-se sob o domínio público .

3o) que o Município, para exercer seu direitosobre as terras públicas, não necessita demarcá-las ou registrá-las no Cartório Imobiliário dacircunscrição competente.

O conteúdo das afirmações acima foiexaminado no item 4.5 – Cadastramento dasterras devolutas, quando restou apurado: 1o)que a inexistência de registro imobiliário nãoé suficiente para a caracterização do domí-nio público, não sendo tal circunstânciaapta a ensejar presunção de que as terrassejam devolutas, o que deflui do entendi-mento majoritário dos tribunais: RevistaTrimestral de Jurisprudência 65/856, 99/234, 81/191; Revista de Julgados do Tribu-nal do Estado de São Paulo 19/54, 24/260,26/246; Revista dos Tribunais 405/153,411/120, 419/129, 490/65, 551/110, 520/141, 549/204. Registre-se, ainda, que nãobasta a mera alegação de ser, a terra, devo-luta. É necessário que o Poder Público pro-ve que o imóvel é de sua propriedade: Re-vista dos Tribunais 537/77, 541/131, 555/223, 558/95. Trata-se, por conseguinte, dequestão atinente ao ônus da prova e que nãorefoge da regra geral estabelecida no artigo333 do Código de Processo Civil; 2o) que, emvirtude do regime jurídico de direito priva-do a que estão submetidas, as terras devolu-tas devem ser cadastradas e, para tanto, dis-criminadas, obrigação decorrente da LeiComplementar Estadual no 3, que dispõesobre a organização municipal do Estadode Minas Gerais, Leis Estaduais 7.373/78 e11.020/93, não descurando igualmente do

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disposto no artigo 18 da Lei Orgânica Mu-nicipal de Ouro Preto.

8. Considerações finais

A carta de sesmaria de 1711 outorgadaao Senado de Vila Rica não tem a naturezajurídica das cartas de sesmarias concedidasdurante quase três séculos no Brasil, por lhefaltar a essência do instituto das sesmarias:a cláusula do cultivo, cujo adimplementosó poderia ser feito pela outorga e venda aparticulares pela Câmara. Seria um instru-mento, por razão, muito mais próximo dosforais concedidos aos donatários: uma ou-torga política, administrativa, de jurisdição,não de título de domínio ao Município deOuro Preto.

Ademais, justificativas sobram a ampa-rar a natureza política da Carta de Sesma-ria Régia de 1711: as prováveis origens eti-mológicas da palavra, os poderes das Câ-maras Municipais, a investigação in loco paraa concessão de novas sesmarias, a legitima-ção da cobrança de foro pelas Câmaras, o res-peito ao título de primeiro povoador.

As terras públicas não registradas, nãodiscriminadas, não destinadas a uso espe-cífico são terras devolutas e, como tal, benspertencentes à União e/ou aos Estados,numa evolução legislativa linear. A Lei no

6.383/76 estatui sobre o processo discrimi-natório das terras devolutas da União, de-terminando o subseqüente registro destas.A Lei Estadual mineira no 7.373/78 de-termina a realização de processo discri-minatório e cadastramento imediato detodos os bens arrecadados. A Lei Orgâni-ca do Município de Ouro Preto determinao cadastramento e identificação dos bensmunicipais

Há possibilidade de existência de terrasdevolutas municipais, no entanto, aquelasdelegadas pelo Estado ao Município (art.246, III, §4o, Constituição Estadual Mineira).A evolução histórica demonstra que, desde aConstituição do Império, as terras devolutasincluem-se entre bens do Estado e da União.

Se a lei atribui aos Estados e à União apropriedade das terras devolutas, tambémlhes incumbe o dever de discriminá-las,cadastrando-as, não autorizando trata-mento privilegiado ao Estado na divisãodo ônus probandi, em sede judicial, quan-do em disputa de direito relativo aimóveis.

O espírito da Lei no 601 de 1850 não veiosomente proibir a aquisição gratuita das ter-ras devolutas, como também colocar um fimao tumulto fundiário, aos abusos dos pos-seiros e sesmeiros, à propriedade improdu-tiva. Tanto assim que igualou duas condi-ções, a do sesmeiro e a do posseiro, com baseno cumprimento da função social da pro-priedade: cultura e morada habitual. Repre-sentou o ponto de partida a retomada docontrole pelo Estado da situação fundiária,dando-lhe o dever de discriminar e cadas-trar as terras públicas para posterior desti-nação a fim social.

Não se justifica as terras ficarem ocio-sas, esperando indeterminadamente pelaarrecadação do Estado por meio da açãodiscriminatória, quando deveria atender aoprincípio da função social da propriedade,consubstanciado no art. 5o, XIII, da Consti-tuição Federal.

A Constituição Federal de 1988 vedouexpressamente o usucapião de bens públi-cos, conforme se verifica dos artigos 183, §3o,e 191; outrossim, estabeleceu no capítulo“dos direitos e garantias individuais”, arti-go 5o, XXIII, que a propriedade atenderá asua função social, norma de aplicabilidadeimediata, como o são todos os princípiosconstitucionais.

O princípio da função social da proprie-dade é dirigido primordialmente à proprie-dade privada, no pressuposto de que é ele-mento integrante e indissociável da propri-edade pública; todavia, quando o poderpúblico desatende ao dever de propiciar oacesso dos cidadãos à fruição dos direitosinerentes à propriedade, a ação de usuca-pião surge como meio legítimo para garan-tir-lhes a tutela jurídica.

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Brasília a. 41 n. 164 out./dez. 2004 269

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Revista de Informação Legislativa270

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Anexo

Termo de Erecção de Vila Rica

Aos oito dias do mês de julho do ano de mil,setecentos e onze, neste arraial das Minas Gerais doOuro Preto, em as casas de morada em que assisteo senhor Governador e capitão-general Antônio deAlbuquerque Coelho de Carvalho, achando-se pre-sentes em uma Junta geral que o dito senhor orde-nou para o mesmo dia as pessoas e moradoresprincipais deste dito arraial, lhes fez presente o ditosenhor governador que, na forma das ordens deSua Majestade, determinava erigir neste mesmoarraial uma nova povoação e vila para que seusmoradores e os mais de todo o distrito pudessemviver arreglados e sujeitos, com toda alva forma, àsleis da justiça, como Sua Majestade manda; e dese-ja se conserve todos os seus vassalos nesta novaconquista porque, supondo não achava o sítio muitoacomodado, atendendo às riquezas que prometi-am as minas que há tantos anos se lavram nestesmorros e ribeiras e ser a parte principal destas Mi-nas aonde acode o comércio e fazendas, que delemana para as mais, e outras mais que o tempomostraria, se resolvia a executa-lo assim e que to-dos deviam neste particular dar o seu parecer; osquais uniformemente todos convieram em que nes-te dito arraial, junto com o de Antônio Dias, sefundasse a vila pelas razões referidas, pois era sítiode maiores conveniências que os povos tinham acha-do para o comércio, e que nesta forma se sujeita-

vam a viver todos como leais vassalos de Sua Ma-jestade, sujeito às suas reais leis e às da justiça comtoda obediência, sem que se lhes ofereça dúvidaalguma ao proposto pelo dito senhor governador; epor ele dito governador foi respondido que, vistoque todos assentavam em fosse nestes sítios e doisarraiais de Ouro Preto e Antônio Dias levantada adita vila, era necessário que logo todos os ditosmoradores e pessoas deste povo fizessem eleiçãopara os ofícios da Câmara dela, declarando todosjuntamente que desejavam e tinham devoção deque se continuasse a invocação e padroeira destaigreja do Ouro Preto Nossa Senhora do Pilar, o nomeda vila fosse Vila Rica de Albuquerque; e de comoassim se ajustou tudo, mandou o dito senhor go-vernador fazer este termo, que assinaram os assis-tentes sobreditos. Eu, Manoel Pegado, Secretáriodeste Governo, o escrevi. Antônio de AlbuquerqueCoelho de Carvalho. Felix de Azevedo CarneiroCunha. Antônio Francisco da Silva. Pascoal da Sil-va Guimarães. Leonel da Gama Telles. BartolomeuMarques de Brito. José Eduardo Passos Rodrigues.Francisco Viegas Barbosa. Jorge da Fonseca Freire.Luiz de Almeida Barros. Fernando da Fonseca e Sá.Manoel do Nascimento Fraga. João Carvalho deOliveira. Francisco Maciel da Costa. Manoel de Fi-gueiredo Macedo. Felix de Gusmão Brandão Bue-no. Manoel de Almeida Costa. Coronel José Gomesde Mello. Roberto Neves de Brito. Manoel da SilvaBorges. Antônio Ribeiro Franco. Henrique Lopes.Antônio Alves Magalhães. Laurentino RodriguesGraça. (VEIGA, 1998, p. 661, 662)

Em 15 de dezembro de 1712, foi confirmada,por carta régia, a criação de Vila Rica.

Em 1823, foi Villa Rica erigida em cidade, como título de Imperial cidade de Ouro Preto.

Brasília a. 41 n. 164 out./dez. 2004 271

Eduardo Silva Costa

“Comunicação social” é a expressão comque o texto designa todo um processo queinteressa sobremodo à sociedade. A ampli-tude da sua incidência no corpo social ha-veria de merecer o cuidado que o legisladorpôs ao regrar acerca de dados pré-existen-tes como, por exemplo, diversões e espetá-culos públicos e outros que são de naturezamoral, quais os que entendem com a pessoae a família. Na verdade, os primeiros sãoum produto da vida social no aspecto lúdi-co; os últimos referem-se ao valor espiritualda pessoa e da família, que se constituembens superiores a serem protegidos de for-ma igualmente superior.

É no capítulo V do título VIII da Consti-tuição que se cuida da “Comunicação Soci-al”. Nela alinham-se cinco artigos – do 220ao 224 –, que encerram os preceitos basila-res desse fenômeno cultural, hoje proemi-nente.

À semelhança de todo fenômeno cultu-ral, a comunicação emerge como emanaçãoda liberdade, que, por isso mesmo, é ima-nente a ela. E, dada a sua natureza social e asua finalidade, reveste-se ela de ordenaçãonormativa. Pela dimensão que alcançou nacontemporaneidade, tal ordenação é de grauhierárquico supremo, o que importa dizer,situa-se na Constituição.

Nessa conformidade, o texto constituci-onal sagra em primeiro lugar a liberdade deexpressão, haja vista o artigo 220, queenuncia

Em torno da Comunicação Social

Eduardo Silva Costa é Advogado em Sal-vador, Bahia. Do Instituto dos Advogados Bra-sileiros. Do Instituto Brasileiro de Direito Cons-titucional. Do Instituto dos Advogados daBahia.

Revista de Informação Legislativa272

“A manifestação do pensamento,a criação, a expressão e a informação...não sofrerão qualquer restrição...”

que remata com a limitação “observado odisposto nesta constituição”, uma limitaçãoque importa regulação do próprio direitoenunciado.

Em segundo lugar, a par da liberdadeassim qualificada, prevê-se, no concernentea rádio e televisão, a fixação de princípios,que deverão balizar a atividade desses doismeios de comunicação, tal como se inscreveno artigo 221:

“A produção e a programação dasemissoras de rádio e televisão atende-rão aos seguintes princípios...”

À vista disso, tem-se que a expressão dopensamento, em que se consubstancia a es-sência do pensamento protegido em nívelde Constituição (criação, manifestação, in-formação só existem quando expressos), é ogarante do direito de liberdade de que eladimana. Ela se particulariza em regras quelhe regulam a ação em face do acentuadoteor democrático de que se reveste. E, no casoda Comunicação Social de que cuida a nos-sa Lei Maior, tal particularização obedece ànecessidade a um tempo de preservar valo-res e promover a sua disseminação.

De fato, ao fixar os princípios a que de-vem estar jungidas “a produção e a progra-mação das emissoras de rádio e televisão”,o dispositivo constitucional do artigo 221distingue de uma parte “finalidades edu-cativas, artísticas, culturais e informativas(I)”, “promoção da cultura nacional e regio-nal (II)”. Enquanto o enunciado nos itens I eII é de reputar-se de ordem promocional, hajavista os termos mesmos “finalidades artísti-cas, culturais, educativas”, “promoção dacultura”, o enunciado do item IV, por sua vez,vincula-se à preservação, consoante por igualos próprios termos dele ao “respeito aos valo-res éticos e sociais da pessoa e da família”.

Nessas considerações acerca dos prin-cípios estabelecidos no capítulo V, de quese trata aqui, sobressaem os elementos dedilatação e de circunscrição normativa. Na

verdade, a liberdade, ou, para empregar adicção legal e constitucional, a não restri-ção do exercício da comunicação, nas suasdiversas formas e modalidades, é ínsita aoobjeto precípuo da atividade midiática –informar. Tanto assim que o ditame dirigi-do pela Constituição à lei ordinária é incisi-vo nesse particular:

“Nenhuma lei conterá dispositivoque possa constituir embaraço à ple-na liberdade de informação jornalís-tica em qualquer veículo de comuni-cação social...”

Então, a ação comunicativa recebe daprópria lei, na sua dimensão suprema, aConstituição, o impulso da liberdade “semqualquer restrição”, com a só ressalva apos-ta no artigo 220, caput, no modo genérico, eno § 1o, de forma especificadora, “observa-do o disposto no artigo 5o...”, da liberdade.É de notar que essa ressalva diz com a ga-rantia da liberdade de pensamento na suamultímoda expressão; o conteúdo dos itensevidencia isso.

Atente-se no que está no irem IV do arti-go 5o, a vedação do anonimato; no item V, éo direito de resposta a agravo cometido poroutro; no item X, cogita-se da inviolabilida-de da pessoa na pluralidade do seu ser – aintimidade, a honra e a imagem; no item XIII,ressalta-se a liberdade do trabalho; e por fim,no item XIV, é assegurado o acesso à infor-mação, resguardado o sigilo da fonte.

Assim, em todos os itens assinalados, éa liberdade na sua diversidade de atuaçãoque se normatiza. Ela não se afirma, com asó essência, porque as mais das vezes, emrazão do intercurso humano, há uma contí-nua interação dos seres. Dessa interação éque se deparam os embates, fonte de dispu-tas, do mesmo modo que resultam conver-gências. E quase todo esse agir próprio davida humana acontece em nome da liberda-de, assim como se está sempre a reclamarpela liberdade, a reivindicá-la. Motivaçãode agir e no mesmo diapasão meta no agir, aliberdade é teoricamente a causa magna dosseres viventes.

Brasília a. 41 n. 164 out./dez. 2004 273

Todavia, a liberdade não é sinônimo dearbítrio, de que pudesse advir uma afluên-cia de voluntariedades. Disso certamenteadviria um depotismo incalculável, uma mi-noria possessa a ditar comandos em nomeda liberdade, com o que não se teria umaconvivência mínima de civilidade.

Porque não é isso, a liberdade importaliberdades, com gradações necessárias noseu exercício, precisamente para que sejapreservada a sua essência, como resguar-dada a sua efetividade mínima. Não há li-berdade senão quando se define ela comoatributo precípuo da pessoa humana em si.Nesse sentido, ela não é uma e sim múlti-pla.

Deste modo, a pessoa humana, enquan-to ser existencial, goza da liberdade de mo-vimento – o ir e vir, protegido juridicamentecom relevo –, assim como goza da liberdadede reunião, que alguns reputam a mais im-portante de todas as espécies, do mesmomodo que tem a liberdade de professar a cren-ça religiosa que lhe aprazer e cultuar o deusda sua fé. A mesma pessoa humana a quemé inata a liberdade de escolher a ideologiapolítica do seu gosto e conceber a sua repre-sentação do mundo.

Se é assim no plano espiritual, nas coi-sas que concernem à vida do espírito, nãose dá o mesmo no reino, digamos, material.Aí a liberdade é de iniciativa, do impulsooriginário ou criador, de que é ilustrativa aliberdade de contratar, para citar um exem-plo. Em qualquer situação caracterizadorade interação, em que as vontades tenhampapel decisivo para a formação de uma dadarelação, a liberdade há de exercer-se em ob-servância de determinados controles e atéde restrições. Portanto, nesse agir interati-vo, a liberdade de um defronta-se com a li-berdade do outro, de maneira que o desfrutedela por um não redunde em superposiçãoa respeito do outro.

Nesse particular, e em que pese não seter ainda atingido um parâmetro desenvol-vido em matéria de consciência ética, tantono domínio público ou semipúblico, diga-

mos, como no âmbito privado, há de obser-var-se que os desvios, as contrafações, astransgressões no plano interpessoal, de in-divíduo em relação com o grupo, de organi-zações para com os indivíduos, atraem mei-os de prevenção e coibição.

Mas, quando se depara com o fenômenode massa, o que irrompe em função desta edesponta como macropoder, com influxo to-talizador no cotidiano, qual a pauta maisrazoável e controle? Dado o poder avassa-lador que adquiriu, como obter, em resguar-do da cultura mesma, a que a comunicaçãosocial deve sobretudo servir, a medida deproporção da incidência dos veículos de talcomunicação na coletividade em geral?

Entre os meios de controle dessa liber-dade que é atribuída a “qualquer forma, pro-cesso ou veículo” destinado a “manifesta-ção de pensamento, a criação, a expressão ea informação”, para reproduzir a linguagemconstitucional, existe a lei, o mais positivodeles, por ser o mais tangível e dotado decoercitividade. Não obstante isso, a lei, mes-mo considerando ser esta no seu grau hie-rárquico supremo – a Constituição –, nãodispõe do condão de fazer efetivo o seu man-damento em campo como esse.

Pois bem, transcorridos quinze anos davigência da Constituição, o fenômeno soci-al da comunicação assumiu proporções dir-se-ia satânicas, de controle que tende a refu-gir do poder da lei. Poder que se exacerba éum poder temerário; o esforço para contro-lá-lo deve ser ingente. E quando a sua atua-ção está as mais das vezes rente às massas,com oferta de fantasias, transportando-as aum mundo feérico, o controle, além de hesi-tante em face do espírito de massificaçãoreinante, não tem apoio da opinião, porquetambém massificada. O que há é uma ououtra reação, que os próprios veículos, emlance iniludivelmente tartúfico, divul-gam, de parte de camadas, setores de opi-nião, a deblaterar contra os horrores daviolência.

Diante desse quadro, aqui apenas mini-aturado, a indagação recorrente concerne ao

Revista de Informação Legislativa274

contraponto que o ordenamento constituci-onal ergue ao poder da comunicação e à efe-tividade possível de realizar-se em decor-rência dele.

Então, retoma-se o capítulo V, para aten-tar-se no essencial da sua textura, qual seja,o controle dos veículos de comunicação, vis-to que os preceitos de outra ordem definema liberdade em si (art. 220 e parágrafos), paraenfatizar, no nível do pensamento e suamanifestação, a primazia dela na estruturajurídica do Estado Democrático, do mesmomodo que fixa, nos itens do mesmo artigo,diretrizes no tocante a diversões e espetácu-los públicos e a formas de defesa da pessoahumana e de família com vista à observân-cia do mandamento do artigo 221.

É, porém, conforme ressaltado, no artigo221 que se radica o conteúdo essencial danorma sobre a Comunicação Social, vistoque nele se enunciam os princípios a que “aprodução e a programação das emissorasde rádio e televisão” deverão submeter-se.Princípios explicitados no texto não impor-tam maior garantia de aplicação ou de efeti-vidade. Valem para que se considere a pro-eminência do conteúdo da norma e se aten-te, por isso mesmo, na necessidade socialda realização dela.

Entre os princípios inscritos no citadoartigo 221, não se pode divisar superiorida-de de uns em relação a outros; todos têmigual relevo e importância. Não obstanteisso, o último dos itens – “respeito aos valo-res éticos e sociais da pessoa e da família” –condensa uma normatividade que se conec-ta com dois elementos, primazes da ordemsocial, duas expressões fundamentais doDireito.

Da pessoa humana já se disse que é prin-cípio e fim, a razão de ser da existência doDireito. É ela que a Constituição erige como“valor ético e social”, associando-lhe noabrigo normativo a família, ente que é suacriação e na qual se desenvolve para afir-mar a sua sociabilização. Uma e outra jus-tapõem-se assim na textura constitucional,com realce em virtude de nelas se encerra-

rem sobretudo valores éticos. Note-se, aliás,que o texto enfatiza a esse respeito; bastariaa menção à pessoa e à família, que se estariasignificando a integralidade existencial deuma e outra, com a eticidade que lhes é con-substancial.

Portanto, de que maneira, há de inda-gar-se, poderão a pessoa humana e a famí-lia resguardar-se, para preservação de taisvalores, que a Constituição soleniza, no pla-no normativo, em face dos instrumentos ouveículos, sejam televisivos, sejam radiofôni-cos, notadamente os primeiros? Como po-derão estar protegidos de modo a que nãose pratique desrespeito aos valores nomi-nados na Lei Magna? Será que o controlepor via judicial tem efeito pedagógico, aponto de não incorrerem os transgressoresdo comando constitucional em recidiva?

Tais indagações são de inegável perti-nência mesmo para que se realce a nota deceticismo nos resultados. O recurso, porexemplo, empregado amiúde, à repetição deimagens terrificantes ou de acentuada vio-lência, não atende a ratio legis, a exemplo, asfinalidades elencadas no artigo 221 acimareferido

“A produção e a programação dasemissoras de rádio e televisão atende-rão aos seguintes princípios:

I – preferência a finalidades edu-cativas, artísticas, culturais e informa-tivas”.

Então, como reputar-se informativa a fi-nalidade que não é educativa? Informar,pela via televisiva, importa não só a ampli-tude da notícia, envolve o seu sentido edu-cativo. E educativo não pode eferecer a ne-gação do desenvolvimento cultural, artísti-co, elementos todos esses que se inerem noconteúdo da norma constitucional, e quedevem estar presentes na comunicação so-cial de que os veículos desta são instrumen-tos. Porque, sem dúvida, seria uma contra-fação de ordenamento normativo superiortudo que se expressa para informar às aves-sas, bem como deseducar ou educar paradeformar a pessoa humana, bem como ins-

Brasília a. 41 n. 164 out./dez. 2004 275

tilar-lhe no ser desvios e máculas que con-formam socialmente a personalidade mar-ginalizada.

Decerto, o que se constrói na estruturada Constituição é o domínio normativo paratornar o poder da organização de comuni-cação ajustado a parâmetros razoáveis deatuação. Para que isso se realize com o mí-nimo de efetividade, estabelecem-se limitesdeduzidos de critérios de natureza ética.Dir-se-á a ética democrática, porquanto visa-se a sedimentar o processo democrático, deinteresse maior da sociedade. É dela, dessaética, que se precisa dotar a sociedade, a fimde fazer funcionar as instituições em geral –as instituições governamentais, as institui-

ções ditas da sociedade civil –, e pratica-rem-se os costumes políticos depurados devícios vetustos.

Eis aí, a nosso ver, o sentido da fixaçãode princípios na Constituição no respeitan-te à Comunicação Social. Da relevante im-portância desse fenômeno esteve atento olegislador constituinte, na verdade um im-perativo para aquele momento histórico. Sese cuidava de ordenar no plano jurídico oEstado Democrático, impunha-se a toda aevidência preparar igualmente a ordem so-cial, de modo que se fortalecesse a socieda-de em vista da sua interação com o Estadona incessante execução do projeto democrá-tico que deve envolver toda a Nação.

Revista de Informação Legislativa276

Brasília a. 41 n. 164 out./dez. 2004 277

Laís de Oliveira Penido

1. IntroduçãoEste estudo tem por objeto a análise da

liberdade sindical e de associação e o reco-nhecimento de um efetivo direito à negocia-ção coletiva como direitos fundamentais notrabalho. Para atingir essa finalidade, serãotecidas considerações sobre a concepçãodesse direito fundamental no âmbito danormativa internacional e a sua incorpora-ção ao ordenamento jurídico brasileiro.

Após breves incursões a respeito do as-pecto histórico-evolutivo da legislação in-ternacional, será exposto: o processo de ju-ridicização dos direitos humanos, o fenô-meno da internacionalização do Direito doTrabalho, o reconhecimento do instituto es-tudado como um direito fundamental no tra-balho pela Declaração da OIT, de 1988, e,ato contíguo, a efetividade e controle da suaaplicabilidade por esse órgão internacional.

Liberdade sindical e de associação e o efetivoreconhecimento do direito a negociação coletivacomo direitos fundamentais no trabalhoInserção das normas internacionais no ordenamentojurídico brasileiro

Laís de Oliveira Penido é Analista Proces-sual na PRT – 8a Região, Especialista em Direi-to Processual Civil e em Direito e Processo doTrabalho, ambos pela UFG, e Doutoranda emDireito do Trabalho pela Universidade de Sa-lamanca, Espanha.

Sumário1. Introdução. 2. Processo de juridicização

dos direitos humanos. 2.1. Positivação nacio-nal. 2.2. Positivação internacional. 3. Internacio-nalização do Direito do Trabalho. 3.1. OIT e aDeclaração dos Princípios e Direitos Fundamen-tais no Trabalho. 3.2. Efetividade e controle daaplicação dos direitos fundamentais no traba-lho. 4. Aspectos doutrinários sobre a inserçãodas normas internacionais nos ordenamentosnacionais. 4.1. Normas da OIT sobre a liberda-de sindical e de associação e o reconhecimentoefetivo do direito a negociação coletiva. 4.2.Tratados internacionais. 5. Conclusão.

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Ademais do especificado no parágrafoanterior, será examinada a incorporação danormativa internacional ao ordenamentojurídico brasileiro. Para tanto, serão anali-sadas, de forma geral, as relações entre tra-tados e a ordem jurídico-brasileira sob vári-os aspectos, para então ser abordado o §2o

do artigo 5o da Constituição de 1988, quecuida da proteção dos tratados de direitoshumanos. Serão tocados alguns aspectosdoutrinários relevantes para a compreensãodo complexo processo de recepção das con-venções na ordem jurídica interna, assimcomo os possíveis conflitos no exercício esalvaguarda desses direitos. Outro aspectoa ser enfocado consubstancia-se na posiçãohierárquica adotada, tanto sob a ótica dou-trinária como jurisprudencial, dos tratadossobre os direitos humanos no Direito brasi-leiro.

2. Processo de juridicização dosdireitos humanos

Começar-se-á a expor sobre o processode dar o caráter de norma jurídico-positivaaos direitos humanos por sua dimensão his-tórica, assinalando, de maneira sucinta, tan-to os cenários históricos nos quais foramcristalizados os direitos humanos, nos tex-tos legais nacionais, como o processo de in-ternacionalização do Direito do Trabalho.Far-se-á um conciso escorço das diversasetapas de sua evolução, as quais supuse-ram uma diversificação dos direitos huma-nos em cada contexto histórico, responden-do às turbulências sociais. O tempo no qualaparecem os direitos humanos e o espaçogeopolítico em que se estabelecem são tra-ços imprescindíveis para a compreensão doseu conteúdo. Por isso, torna-se indispen-sável especificá-los.

As declarações de cada Estado em parti-cular enunciam direitos gerais próprios doshomens. Os direitos de liberdade pessoal doindivíduo, no Estado, encontraram sua cul-minação nas Constituições Americanas e naDeclaração de Direitos do Homem e do Ci-

dadão da Revolução Francesa. Esses enqua-dramentos jurídicos inspiraram a positiva-ção dos direitos fundamentais das Consti-tuições modernas.

A conscientização de que para garantir-se e proteger os direitos individuais serianecessária a viabilidade de alegá-los diantedos tribunais e que para isso seria impres-cindível a sua sustentação legal perfilou aformação dos Estados nacionais e o desen-volvimento constitucional tendente à demo-cracia. Insta ressaltar que os conteúdos dasdenominadas Declarações de Direito nãoforam tão-só dogmáticos, encerravam tam-bém o desenho básico da estrutura do Esta-do, demonstrando que ambos eram elemen-tos primordiais para caraterizá-los. Essesdireitos continham duplo caráter: eram aomesmo tempo elementos caracterizadores efundamentadores do ordenamento jurídicoe direito subjetivo dos indivíduos.

2.1. Positivação nacional

A idéia dos direitos do homem é moder-na, esboçada a partir dos movimentos polí-ticos e sociais, das correntes tanto filosófi-cas como religiosas, bem como das doutri-nas jurídicas que pretenderam consolidar aproteção da esfera individual dos seres hu-manos. Os múltiplos problemas jurídicos,políticos e sociais surgidos na Idade Médiaimpeliram os pensadores de cunho cristãoa elaborar, particularmente no século XVI,uma doutrina revigorada sobre a pessoa eseus direitos. A esse respeito, cabe especialmenção a Francisco de Vitoria (da Escola deSalamanca), a Bartolomé de las Casas, aFrancisco Suáres e a toda Escola JurídicaEspanhola.

Merecem expresso registro algumas car-tas, estatutos e declarações de direitos, em-bora não sejam abordadas, por excederemamplamente o terreno das idéias e do perío-do que foi delimitado para este trabalho: aCarta Magna Leonesa (1188); a Magna Car-ta (1215); a Petition of Rights (1628); o HabeasCorpus Amendment Act (1679); o Bill of Rigths(1689); a Declaração de Direitos de Filadél-

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fia (1774); a Declaração de Direitos do BomPovo de Virgínia (1776); a Declaração deMassachussets, a Declaração do Estado deSéneca Fall – reconhecendo expressamentedireitos de cidadania para a mulher – (1848);a Constituição do México (1917); a Declara-ção de Direitos do Povo Trabalhador e Ex-plorado – incorporada à Constituição daRússia – (1918); a Constituição de Weimar(1919) e todas as Constituições promulga-das depois da Segunda Guerra Mundial,cuja inspiração abeberou-se nos princípiosdemocráticos. Tampouco se adentrará navelha polêmica de se a Declaração Ameri-cana exerceu influência na Declaração Fran-cesa.

Diante da situação de violência e repres-são gerada pelos enfrentamentos, por moti-vos religiosos, entre as Igrejas e seus fiéis,houve uma ruptura da unidade religiosa eo surgimento do protestantismo, fato queameaçou a estabilidade dos Estados. Noâmbito do debate sobre a tolerância, surgiu,em conseqüência dessa situação, a reflexãosobre o respeito da consciência. A idéia detolerância, de liberdade de consciência e depensamento, assim como os esforços dohumanismo para suplantar as bárbarascondições do Direito Penal e Processual e odespotismo da Monarquia absolutista pro-duziram as primeiras formulações históri-cas dos direitos de liberdade pessoais.

Com a decadência do regime feudal, aburguesia, em conseqüência de um grandenúmero de fatores sócio-político-econômi-cos, converte-se no grupo social dominante,capaz de impor aos outros estratos sociaissua maneira de compreender e de entendera sociedade, seu modo de organização soci-al e sua forma de estruturação econômica,desencadeando a regulação da economiacapitalista de mercado, estabelecida sobre oespírito liberal-individualista e assentadana não intervenção estatal.

Os direitos humanos foram estabeleci-dos com fulcro numa mudança de mentali-dade no pensamento ocidental, impulsio-nada pelos humanistas e pela reforma, de

cuja perspectiva o direito, a política e asociedade começaram a ser explicadas cen-tradas no indivíduo. As reflexões resultan-tes dessas ponderações desembocaram nasposições contratualistas1, na doutrina daseparação de poderes2 e na idéia de que oscidadãos devem concorrer para a formaçãodo poder (o Estado Democrático de Direitoincorpora a sua estrutura político-institu-cional, os direitos fundamentais dos homense cidadãos3, ao mesmo tempo que os conce-be como elementos que o caracterizam comotal).

2.1.1. Declaração de Independência dosEstados Unidos – 1776

A revolução que deu lugar à indepen-dência dos Estados Unidos foi uma revoltacontra a política colonial inglesa, que proi-bia o desenvolvimento de uma indústria euma navegação comercial nacionais. Luta-ram tanto pela liberdade política quantopela implantação de um capitalismo nãosubjugado à metrópole. Tratava-se, simul-taneamente, de limitar o poder da Inglater-ra e de se tornarem independentes. Sob esseprisma, o poder das autoridades nacionaisdeveria estar limitado pela estrutura fede-ral de poder4, em virtude de ser consideradoo governo diferente do povo e dever aqueleestar limitado e restringido para que o povoficasse protegido do uso abusivo desse po-der, assim como a minoria diante da maioria.

A liberdade individual era a liberdadeque se deveria preservar, implicando no res-peito por parte do poder da esfera privadado indivíduo na sociedade. Foi o processode constitucionalização dos Direitos Fun-damentais, com a incorporação dos direitossubjetivos à Constituição. Somente em vir-tude dessa incorporação, dito de outra for-ma, da constitucionalização, se verificam(para os adeptos do positivismo) os Direi-tos Fundamentais em sentido estrito, direi-tos que, na trajetória posterior do desenvol-vimento constitucional, vão poder ser invo-cados e alegados num procedimento deconstitucionalidade5.

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2.1.2. Declaração de Direitos do Homem e doCidadão na França – 1789

A revolução francesa adquiriu uma famaincomensuravelmente maior que a Ameri-cana. Tratava-se de instaurar um poder, ins-tituindo-se regras protetoras de direitos sub-jetivos, da separação dos poderes, da for-mulação de princípios e definições da liber-dade e da reserva legal. Somente o equilí-brio entre os poderes poderia impedir o des-potismo que tinha causado tanto sofrimen-to ao povo francês. A mentalidade do hu-manismo, vinculada às posições ilustradas,realizou a crítica ao Direito Penal e Proces-sual da Monarquia absolutista, propugnan-do profundas reformas para instituir unsdireitos naturais, inalienáveis e sagrados,assim como garantias processuais, de cu-nho incompatível com a organização jurí-dica e política do Estado Absolutista.

A progressiva ascensão de uma classesocial, a burguesia, que começava a deter opoder econômico por meio da propriedadeda terra, da indústria e do controle do co-mércio, toleraria cada vez menos o absolu-tismo monárquico, assim como os obstácu-los e limitações corporativas medievais6, oque a levou a promover a busca de justifica-ções filosófico-político-sociais para limitá-lo. O Estado liberal foi evoluindo em dife-rentes âmbitos. No âmbito jurídico, cristali-zou os direitos fundamentais, isto é, os di-reitos personalíssimos: a liberdade de cons-ciência, de pensamento e de opinião, os di-reitos de participação política, de proprie-dade, de herança e as garantias processu-ais. O liberalismo, como filosofia política,cuja expressão era a democracia liberal, tevecomo finalidade, no aspecto sociofilosófico,proteger os direitos da personalidade hu-mana e, no econômico, garantir a proprie-dade privada7, com seus inseparáveis com-plementos: a livre iniciativa e a herança. Aeconomia capitalista liberal favoreceu a li-vre concorrência, com a ruptura das barrei-ras gremiais, abrindo a via para a liberdadedo comércio e da indústria e adequando o

sistema econômico ao novo espírito burguês:o individualismo racionalista.

O liberalismo clássico dissociava o Es-tado da Sociedade. O Estado tinha comoprincipal função vigiar e assegurar o trans-correr das relações individuais, por ummodelo econômico apoiado no absentismo.A ordem jurídica deveria ser estabelecidade forma tal que permitisse e assegurasse oexercício das prerrogativas e dos direitosinalienáveis do cidadão, assim como tam-bém preservasse a coexistência pacífica eharmônica da comunidade, restringindosua ação apenas na garantia da ordem, dapaz e da segurança, sem interferência naesfera econômica, ou seja, a teoria do laissez-faire, laissez-passer8, como aplicação especí-fica do liberalismo individualista ao fenô-meno econômico. As primeiras positivaçõesconstitucionais dos direitos humanos, ins-piradas nessa ideologia individualista, esua conseqüente conversão em direitos pú-blicos subjetivos,· supuseram tão-só a auto-limitação Estatal, com a proteção de deter-minados espaços de interesses9.

A revolução francesa foi uma revoluçãoburguesa10 e a Declaração de Direitos, a re-presentação, mais ou menos dissimulada,dos interesses e aspirações do homem bur-guês como realidade histórica. Esses direi-tos não foram pensados para todos os ho-mens, senão só para o cidadão, estritamen-te percebido como burguês. Tais direitos fo-ram incluídos na noção do contrato soci-al11, que foi a noção legitimadora das insti-tuições sociais. A concepção individualistada sociedade, do Direito e do Estado, na qualforam situados e desenvolvidos os direitosdo homem, impregnou todas as manifesta-ções do poder político percebidas como le-gítimas.

Com o triunfo da burguesia, houve aexaltação da liberdade. Predicava-se a liber-dade absoluta, transportada às relações detrabalho como dogmas: o da autonomia davontade e da igualdade dos contratantes.Essa postura desembocou numa políticaproibitiva: nada entre o indivíduo e o Esta-

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do, já não teriam os “corpos intermediári-os”, conseqüentemente, não se declarou odireito de sindicalização12; pelo contrário, oproibiu no art. 3 da DDHC, verbis: “O prin-cípio de toda soberania reside essencialmen-te na nação. Nenhuma corporação nem indi-víduo podem exercer autoridade que nãoemane expressamente daquela” (PACHECOGOMES, 1987, p. 50).

Posteriormente, em 1791, a Lei de Cha-pellier suprimiu as corporações e os clubespolíticos que surgiram com a revolução e,em 1802, o Código Penal, no seu artigo 291,condicionava a associação de mais de vintepessoas à autorização prévia do Governo“e com as condições que a autoridade pú-blica deseja impor à sociedade” (PECES-BARBA, 1986-87, p. 242). Começa a fase derepressão do movimento sindical.

2.2. Positivação internacional

As primeiras concepções da universali-dade do trabalho surgem em conseqüênciada revolução industrial (um fenômeno con-siderado universal), que afetou por igual asgrandes massas de trabalhadores e exigianormas que extrapolassem o âmbito nacio-nal. Essas noções, apesar de surgirem noséculo XIX, não chegaram a ser positivadasnesse século, não obstante terem avançadomuito no caminho de alcançá-lo.

Surgiram, nos anos 20 e 30 do século XX,vários regimes totalitários13, os quais supri-miram totalmente os direitos e garantiasconstitucionais, sinalizando, desse modo,a necessidade de uma fundamentação maisestável e consistente da positivação nacio-nal dos direitos humanos (cuja finalidadeera proteger os cidadãos desses mesmos re-gimes totalitários)14. Soma-se a essa idéia anecessidade de matizar o conceito do posi-tivismo jurídico que sanciona ser válida ede cumprimento obrigatório, independen-temente do seu conteúdo, todo o Direito po-sitivo e, em particular, toda norma jurídicaemanada do Poder Estatal. Essa conjunturadoutrinária facilitou a institucionalizaçãoda ideologia nacional-socialista e de suas

conseqüências: as barbaridades perpetradascontra os direitos humanos pelo TerceiroReich.

Depois da Segunda Guerra Mundial, opropósito de impedir, no futuro, a repetiçãodessa situação conduziu a um amplo con-senso entre os Estados no sentido de ser acomunidade dos povos a responsável porvelar pela proteção e garantia dos direitoshumanos; para tanto deveriam ser garanti-dos aos indivíduos direitos que, sendo ne-cessários, poderiam ser alegados em face deseu próprio Estado. Ademais, a proteção doindivíduo não deveria permanecer delega-da ao Estado exclusivamente; a salvaguar-da dos direitos humanos deveria ser atri-buída coletivamente à comunidade dos po-vos15. Essa concepção foi inscrita entre osfins essenciais da Organização das NaçõesUnidas e cristalizada na Declaração Uni-versal dos Direitos do Homem – DUDH, de1948, e se estende manifestando nos poste-riores documentos internacionais.

A DUDH foi o primeiro texto jurídicointernacional que articulou um catálogo dedireitos humanos, os quais deveriam valeruniversalmente, por significar o menciona-do consenso sobre os conteúdos éticos des-ses direitos, ainda que tenha havido percal-ços na sua aprovação16 . Esse documentointernacional converteu-se no protótipo ouarquétipo das constituições democráticascontemporâneas, isto é, uma vez materiali-zados esses princípios nessa Declaração, osdireitos humanos têm exercido uma in-fluência considerável sobre o conteúdo dasConstituições elaboradas com posteriorida-de, se bem que muitas vezes incorporadoscomo normas programáticas17.

A Declaração Francesa definia uns di-reitos absolutos, ilimitados e individuais, otexto mencionava serem esses direitos tão-só restringidos razoavelmente pela lei ecomo limitadores do poder. Na DeclaraçãoUniversal, houve uma ampliação dos valo-res protegidos pela norma, em virtude doespecial momento histórico então vivencia-do. Não foram consagrados só os direitos

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de concepção liberal18 (artigos 1 a 21), foramtambém amparados direitos de cunho eco-nômico-sociocultural: direito à PrevidênciaSocial (art. 22); direito ao trabalho, a salárioigual pela realização de igual trabalho, auma remuneração eqüitativa e satisfatória,a fundar sindicatos e à livre sindicalização(art. 23); direito a férias remuneradas (art.24); direito à assistência médica (art. 25);direito à educação (art. 26); direito a usu-fruir livremente da vida cultural e a partici-par dos progressos científicos (art. 27).

A DUDH não possuía força jurídica paraser exigível, portanto foi prevista, na deno-minada segunda fase, a regulamentaçãodessa Declaração por um instrumento jurí-dico vinculante. Esse desiderato só foi par-cialmente alcançado19 em 1966, com a apro-vação de um tratado que desdobrava a De-claração em duas Convenções: uma recor-ria aos direitos civis e políticos (direitos sub-jetivos atribuídos diretamente ao indivíduoe exercitáveis em face do Estado) e a outra,aos direitos econômicos, sociais e culturais(que prescrevem compromissos estatais paraum desenvolvimento nacional gradual comum objetivo determinado a ser alcançado).

Com a acolhida desses direitos (econô-micos, sociais e culturais), nos documentosinternacionais e nacionais o conceito deEstado Liberal de Direito sede espaço aoconceito de Estado Social de Direito, impli-cando recortes, limitações e intervenções noâmbito da propriedade privada. Trata-se dasocialização da propriedade, o que consti-tuiu a perda de seu significado de direitoilimitado, sobretudo se é cotejado com asexigências do bem comum e do interessesocial. A propriedade passa a ter que cum-prir uma função social20.

Por outro lado, a evolução do Estado Li-beral para o Estado Social de Direito deter-minou o progressivo abandono da catego-ria dos direitos públicos subjetivos21, em fa-vor de uma concepção mais extensa de di-reitos fundamentais22. Foi a passagem a for-mas mais amplas de integração política, pelacompreensão de que não se pode conseguir

metas econômico-sociais somente a partir dedentro da organização estatal. Surgem, en-tão, as antinomias da transição da sociedadeburguesa à sociedade do bem-estar23.

3. Internacionalização doDireito do Trabalho

A internacionalização do Direito do Tra-balho é um fenômeno relativamente recen-te, porque, ainda que a manifestação social“trabalho” tenha surgido simultaneamentecom a própria humanidade, desenvolve-seem diferentes fases e só a finais do séculoXIX adquire essa característica. Esse proces-so nasce e se afirma pela conjunção de umasérie de motivações muito diversas.

Na economia liberal, a atividade produ-tiva é regida por leis econômicas iguais àsda natureza: as leis da oferta e demanda24.De acordo com essa doutrina, as relaçõessociotrabalhistas devem atuar livremente ede acordo com o costume, sem a necessida-de de qualquer intervenção por parte doEstado, pois, do contrário, poderia ser alte-rado seu funcionamento. Nela é predicadaa liberdade absoluta, por conseguinte, a ple-na liberdade de contratação, sendo abriga-dos os dogmas da autonomia da vontade eda igualdade dos contratantes.

A sacralização de leis imutáveis da eco-nomia para regular a atividade produtivapropiciou uma exploração sistemática daclasse trabalhadora, já que a igualdade emdireitos25 não suprimiu a desigualdade narealidade fática, era uma igualdade jurídi-ca aparente. Essa sociedade, que constrói asi mesma em torno do princípio de igualda-de, divide-se em governantes e governados,proprietários dos meios de produção e pro-prietários da mão-de-obra (os trabalhado-res), homens e mulheres, isto é, em indiví-duos diferentes26.

Esse novo modelo de vida sócio-econô-mica traduz-se no estabelecimento de pés-simas condições de trabalho (jornadas exte-nuantes e salários de fome), impostas pelosempresários a uma população trabalhado-

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ra abundante e desunida, causando umadeterioração econômica de tal magnitude doproletariado que provocou, como conseqü-ência, um fenômeno de reação (medidas dedefesa) frente a esse estado de coisas, apare-cendo um incipiente associacionismo obrei-ro, a princípio de matiz revolucionário: re-belando-se contra os princípios liberais dasociedade burguesa, com a finalidade dereverter o regime, substituindo o sistema detrabalho assalariado por outro. Essa violen-ta reação por parte das organizações prole-tárias ameaçava a subsistência do métodode produção capitalista como um todo, fatoque influi poderosamente na mudança depostura do liberalismo clássico. A burgue-sia cede na intervenção Estatal para a ma-nutenção do sistema como um todo27.

Os Estados se viram coagidos pelas pres-sões das massas trabalhadoras e decidiramintervir. Aparecem as primeiras normas tra-balhistas para regular essa relação jurídica,nos âmbitos em que ficou mais evidente aexploração do trabalhador; foi uma inter-venção gradual e paulatina, que começavaa limitar a autonomia da vontade dos em-presários na fixação das condições e do con-teúdo do contrato de trabalho.

A dureza dessas condições de trabalho,durante a revolução industrial, tambémmotivou o surgimento de idéias sociais queprimeiramente se concretizam na demandade uma regulamentação internacional. Esseprocesso unificador dos direitos positivo-nacionais28 foi considerado como uma con-dição indispensável para a própria preser-vação da existência e do desenvolvimentodas legislações nacionais.

O catastrófico resultado da PrimeiraGuerra Mundial nas economias nacionais,somado ao problema político que supunhaa conquista do poder da classe trabalhado-ra, em 191729, (com a conseqüente coletivi-zação da propriedade dos meios de produ-ção e o desaparecimento das classes soci-ais), assim como a compreensão de que aconcorrência internacional existente entreas empresas elevava os custos de produção

e as condições de trabalho de um país, pon-do as empresas desse país em uma situaçãodesvantajosa com respeito às demais dosoutros países30, provocam soluções do tiposupranacionais. Os governantes compreen-deram que só se poderia obter o bem-estarinterno de cada país, individualmente con-siderado, com a tranqüilidade e a paz tantointerna quanto externa de todos os países.Houve, portanto, internacionalmente, o re-conhecimento de que a paz internacional einterna tem por fundamento e se sustentano reconhecimento de uma equanimidadeque deve presidir as relações de trabalho.

O movimento trabalhista internacionalformou parte das negociações de paz31, per-tencendo, dentro da Conferência de Paz, àComissão de Legislação Internacional queredigiu o projeto de Constituição da OIT. Oprocesso de internacionalização do Direitodo Trabalho materializou-se no Tratado deVersalles. Em duas de suas partes, faz-sereferência ao trabalho: no artigo 23, “a”32,da Parte I e nos artigos 387 a 427 da ParteXIII. Nessa última, cria-se a OrganizaçãoInternacional do Trabalho.

A Constituição da OIT, no seu preâmbu-lo, estabeleceu os princípios gerais, cuja efi-cácia jurídica já era considerada vinculantea seus membros. Esses princípios foram,posteriormente, aprimorados pela Declara-ção de Filadélfia33, adquirindo uma relevân-cia especial tanto a liberdade sindical comoo direito de negociação coletiva. Com a cria-ção da ONU, em 1945, a OIT passa a ser, em1946, um organismo especializado a ela vin-culado e competente para empreender açõesem conformidade com seu instrumentoconstitutivo, cuja finalidade era cumprir osobjetivos e fins nele prescritos.

3.1. OIT e a Declaração dos Princípios eDireitos Fundamentais no Trabalho

O preâmbulo da Constituição da OIT, de1919, já enunciava ser a consolidação doprincípio de liberdade sindical um dos mei-os idôneos para a melhoria das condiçõesde trabalho e para assegurar a paz mundi-

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al. A Declaração de Filadélfia novamenteproclamou ser essencial a liberdade sindi-cal para que haja um constante progressoda liberdade de expressão e de associação,fixando ainda “a obrigação solene da Orga-nização Internacional do Trabalho de fo-mentar, entre todas as nações do mundo,programas que permitam (...) conseguir oreconhecimento efetivo do direito de nego-ciação coletiva”34 e especificando ser esseprincípio plenamente aplicável a todos ospovos, não obstante a adoção do primeiroconvênio regulando a liberdade sindical eproteção do direito de sindicalização dar-setão-só em 194835. Infere-se dessas manifesta-ções revestir a liberdade sindical de uma im-portância primordial para esse Órgão.

Desde cinqüenta anos atrás, os EstadosMembros da OIT convencionaram constituiro respeito à liberdade sindical uma obriga-ção implícita a cada Estado Membro em vir-tude da sua afiliação a esse órgão e que afalta de ratificação desses convênios porqualquer um deles não o eximiria do acata-mento dos princípios que inspiram a OIT,na medida em que esses princípios estejamformulados na própria Constituição. A acei-tação dessa Constituição, requisito formalde afiliação, é considerada o fundamentojurídico dessa obrigação e a submissão aesses princípios deriva-se desse ato volun-tário de adesão.

Depois de tentar adotar, sem muito êxi-to, diversas proposições36 com a finalidadede conceder maior efetividade na adoção ena aplicação dos princípios do direito desindicalização e de negociação coletiva pe-los seus membros, a OIT, no 50o aniversárioda adoção do Convênio no 87, realizou umareflexão sobre o fato de esse Convênio nãoter sido ratificado por países que, tomadosem seu conjunto, compreendiam em tornoda metade dos trabalhadores e empregado-res do mundo (Brasil, China, Estados Uni-dos e Índia); em razão desse percentual eem se tratando de convênios tão importan-tes, o nível de ratificações foi consideradorelativamente baixo37.

À parte do já manifestado, a OIT, preo-cupada com o impacto das profundas trans-formações experimentadas pelo mundo dotrabalho, em virtude das conseqüências dofenômeno da globalização38 (cuja dinâmicade competitividade implica que as condi-ções do Estado, onde prevaleça custos maisbaixos de produção, determinam as condi-ções de produção dos demais Estados), queimpuseram um descenso nas condições devida e trabalho39 de um número cada vezmaior de pessoas40, permitindo a previsão deuma futura conjuntura de tensões e conflitossociais, portanto, com o fito de promover, umavez mais, a justiça social, teria que explicitarum mínimo abaixo do qual não se deveriapermitir a qualquer Estado do mundo man-ter as condições de seus trabalhadores. Logo,o Conselho de Administração da oficina de-cidiu dever considerar-se fundamentais oitoconvênios41 para o direito de quem trabalha,os quais deveriam ser ratificados e aplicadospor todos seus Estados Membros.

A Declaração da OIT relativa aos Princí-pios e Direitos Fundamentais no Trabalhorecorda a seus membros que, ao se incorpo-rarem livremente à OIT, todos eles

“aceitaram os princípios e direitosenunciados em sua Constituição e naDeclaração de Filadélfia, assim comose comprometeram a esforçar por con-seguir os objetivos gerais da Organi-zação em todas as medidas de suaspossibilidades e atendendo a suascondições específicas”

e “que esses princípios e direitos têm sidoexpressados e desenvolvidos em forma dedireitos e obrigações específicas em convêni-os reconhecidos como fundamentais dentroe fora da Organização”. Portanto,

“declara que todos os Membros, ain-da quando não tenham ratificado osaludidos convênios, têm um compro-misso que se deriva do mero fato depertencer à organização, de respeitar,promover e fazer valer, de boa-fé e con-forme prescreve a Constituição, osprincípios relativos aos direitos fun-

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damentais que são objetos desses con-vênios“42.

3.2. Efetividade e controle da aplicação dosdireitos fundamentais no trabalho

Existem múltiplos problemas práticos eteóricos43 quando se aborda o assunto rela-tivo à eficácia dos direitos fundamentais notrabalho. Este tópico se ocupará de deslin-dar a fragilidade dos instrumentos e técni-cas jurídicas de proteção internacional des-ses princípios e direitos considerados fun-damentais pela OIT.

A temática da efetividade das normasinternacionais está intimamente interliga-da ao marco jurídico regulador de sua trans-posição ao direito interno, assim como como fato de tratar-se de uma decisão soberanados Estados e não do órgão internacionalque as emitiu, isto é, as normas da OIT nãosão dotadas de plenitude, estão privadas deauto-suficiência e de auto-executoriedade.A dependência do direito internacional arespeito das soberanias expressa o relativis-mo e a imperatividade condicionada44 des-sas normas.

Os Estados não estão obrigados a ratifi-car um convênio. A ratificação45 constituium ato livre e não vinculado à sua partici-pação nas votações prévias do órgão inter-nacional. Essa norma só surtirá efeitos n odireito interno quando forem cumpridos to-dos os trâmites regulados pelo ordenamen-to jurídico nacional para a ratificação e a suadevida publicação oficial; em conseqüênciadesse sistema e do exposto no parágrafo an-terior, a efetividade dos convênios fica muitoreduzida46 e manejável pelo Estado.

A Declaração Relativa aos Princípios eDireitos Fundamentais no Trabalho não ins-tituiu qualquer sistema novo de controle47.Para que essa Declaração fosse plenamenteeficaz, foi institucionalizado um instrumen-to de seguimento, cujo objetivo geral seriameramente promocional dos aludidos prin-cípios e direitos, não podendo “substituir osmecanismos de controle estabelecidos nemobstaculizar seu funcionamento”, e deveria

“contribuir na identificação dos âm-bitos, nos quais a assistência da Orga-nização, através de suas atividades decooperação técnica, poderia resultarútil a seus Membros com a finalidadede ajudá-los a tornar efetivos esses prin-cípios e direitos fundamentais”48.

O controle da aplicação dos Convênios Fun-damentais realizar-se-á por dois mecanis-mos: pelo seguimento anual49 relativo aosconvênios não ratificados e pelo relatórioglobal50.

Os Estados Membros, em obediência aosartigos 5, 6, 7 e 19 da Constituição da OIT,devem submeter uma memória ou relatóriosobre os convênios não ratificados, indican-do a situação de sua legislação, precisandoademais em que medida poderá o convênioser aplicado e a sua intenção em fazê-lo, bemcomo as dificuldades que impedem sua ra-tificação.

A inadimplência dos governos em cum-prir com as obrigações de enviar essas me-mórias esboça um sério problema: o de de-pender o bom funcionamento do sistema decontrole dessas remessas dentro do prazo, ede as repetidas solicitações da Comissão deAplicação de Normas para o adimplemen-to dessa obrigação por parte dos Governossomente serem atendidas em um percentu-al muito baixo51, considerando-se serem es-ses convênios fundamentais. Por outro lado,quando oferecidas, com relativa freqüência,contêm informações superficiais, particular-mente no relativo a sua aplicação prática,ou, em muitos casos, com conteúdo bastan-te incompleto ou propenso a limitar-se adeclarações de caráter puramente formal, oque não permite uma avaliação acerca dodevido respeito do convênio em questão52.

Outro aspecto que merece ser destacadoé serem os motivos invocados por algunsgovernos para a não ratificação desses con-vênios apenas uma máscara para ocultar aausência de vontade política, demostrando,de forma nítida, a falta de colaboração des-ses Governos a esse respeito. Os motivosinvocados são normalmente: a incompati-

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bilidade com a legislação nacional; a situa-ção econômica ou política, ou ainda suapretensa rigidez legislativa53.

Não existem, na Constituição da OIT,mecanismos de punição ou de expulsão deMembros que sistematicamente não ratifi-cam os convênios54 e, quando o fazem, nãoo cumprem ou cumprem de forma incom-pleta, assim como para os que não cum-prem55 suas obrigações com a OIT, isso paranão mencionar a total falta da obrigação deratificar esses convênios. Não basta só aconsagração dos direitos fundamentais: tor-na-se necessário levar a cabo um sistema deação que os faça realmente efetivos.

4. Aspectos doutrinários sobre ainserção das normas internacionais nos

ordenamentos nacionais

Com o processo de integração do DireitoInternacional Público ao ordenamento jurí-dico interno dos Estados, ao término da Pri-meira Guerra Mundial, começam a ser cons-truídas as doutrinas sobre as relações entreeste e aquele: a dualista; a monista com pri-mazia do Direito interno e a monista comprimazia do Direito Internacional.

Segundo a doutrina dualista56, o DireitoInternacional e o interno constituem duasordens separadas57, devendo os convêniosratificados serem objeto de um ato formalpor parte do legislador para os fins de suaincorporação no direito positivo do país.Trata-se da adoção de outras normas, dis-tintas da ratificação, que convertem as clá-usulas do convênio em legislação nacional,sancionando-se um novo texto em harmoniacom indigitadas disposições, modificandoleis em vigor ou derrogando artigos ou regi-mes contrários ao instrumento ratificado.

A doutrina monista ensina não existirseparação entre a ordem jurídica interna-cional e a interna, mas, sim, uma intercone-xão (fundamentada na unidade dessas duasordens jurídicas, formando esse conjuntoparte de um mesmo ordenamento), de modoque os tratados ratificados se incorporam

automaticamente à legislação vigente decada país. Essa corrente se subdivide, noscasos de conflito de normas, em dois posi-cionamentos diferentes: um defende o pri-mado do Direito interno e o outro, a preva-lência do Direito Internacional.

O monismo com primazia do Direito in-terno alega ser a construção jurídica inter-na a irradiação de sua soberania, como umato independente, e, ademais, ser a mani-festação dessa soberania. Desse modo, nãopoderia estar sujeita a um sistema normati-vo não emanado de sua própria vontade58,cuja emanação foi configurada pela vonta-de se seus cidadãos. Já o monismo comprioridade do Direito Internacional59 argu-menta preponderar, nos casos de conflito, oDireito Internacional, sem que haja rupturada unidade do sistema jurídico60; portanto,os tratados situar-se-iam no vértice do orde-namento jurídico, com hierarquia superiorà das leis ordinárias. Essa é a doutrina se-guida pela maioria dos internacionalistas.

Encontrando-se incorporada a NormaInternacional na ordem jurídica interna, aeficácia que terá dependerá (ainda que nãode forma exclusiva) de qual seja a posiçãoocupada por ela no escalonamento hierár-quico do sistema nacional; em conseqüên-cia da posição assumida nessa hierarquia,outro ponto transcendental seria qual amaneira de solucionar os conflitos entre es-ses dois sistemas jurídicos.

O §2o do artigo 5o da CF, de 1988, é oúnico que regula os tratados e a proteçãodos direitos humanos, verbis:

“Os direitos e garantias expressosnesta Constituição não excluem ou-tros decorrentes do regime e dos prin-cípios por ela adotados, ou dos trata-dos internacionais em que a Repúbli-ca Federativa do Brasil seja parte”.

Da exegese desse parágrafo pode-se dedu-zir não ter essa Constituição disciplinadoexpressamente as relações entre o DireitoInternacional Público e o Direito interno.Com o vazio deixado pela norma constitu-cional, a jurisprudência e a doutrina é que

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têm estabelecido o princípio de ser o DireitoInternacional parte do Direito interno, nãoobstante ser a doutrina majoritariamente fa-vorável ao monismo, com primazia do Direi-to Internacional, ao contrário dos Tribunais,que conferem maior eficácia à norma editadaposteriormente, conferindo ao tratado cate-goria equivalente à conferida à lei ordinária.

A integração do ordenamento internaci-onal ao Direito interno, seja dos tratadosinternacionais ou das normas da OIT, deveser efetuada sem menosprezar o respeito aosdireitos e liberdades fundamentais e acatan-do os princípios nos quais está fulcrado oEstado Democrático de Direito, sem embar-go seja mais difícil na práxis a transferênciade princípios e instituições que afetam dire-tamente as relações de poder entre as forçassócio-político-econômicas, como é o caso doDireito Coletivo do Trabalho e principal-mente no tocante à liberdade sindical.

É interessante notar dispor a Constitui-ção Brasileira, no inciso II do artigo 4 o (loca-lizado topograficamente no título I, dos Prin-cípios Fundamentais, título que condicionaa interpretação da parte orgânica da Cons-tituição), que as suas relações internacionaisserão regidas pelo princípio da prevalênciados direitos humanos. Sustentar afetar o res-peito integral dos direitos humanos e dosprincípios do Estado Democrático tão-só àesfera externa das relações de Estado seriaseparar radicalmente a atuação ad intra e adextra do mesmo; embora seja uma atitude ado-tada com freqüência pelos Estados, estabele-ce uma dissociação de difícil justificação,indo contra a unidade essencial do Direito edo ordenamento jurídico encarado como umtodo, e uma total dicotomia entre os meiosusados nas políticas exterior e interna.

4.1. Normas da OIT sobre a liberdade sindicale de associação e o reconhecimento efetivo do

direito a negociação coletiva

A OIT editou três convênios e duas reco-mendações relacionadas ao tema deste tra-balho: o Convênio no 87, sobre a liberdadesindical e a proteção ao direito de sindicali-

zação, de 1948; o Convênio no 98, sobre odireito de sindicalização e de negociaçãocoletiva, de 1949; o Convênio n o 154, sobre anegociação coletiva, de 1981; a Recomenda-ção no 91, sobre os contratos coletivos, de1951, e a Recomendação no 92, sobre a con-ciliação e a arbitragem voluntárias, de 1951.

4.1.1. Inserção na legislação brasileira

O Brasil não ratificou o Convênio no 87,sobre a liberdade sindical e a proteção dodireito de sindicalização, não obstante te-nha ratificado tanto o Pacto Internacionalde Direitos Econômicos, Sociais e Culturaiscomo o Pacto Internacional de Direitos Ci-vis e Políticos sem nenhuma reserva61, e issoacarretou a ratificação indireta do Convê-nio no 87 da OIT, isto é, a obrigatoriedade deobservância do conteúdo desse convênio.

Ambos Pactos fazem expressa referên-cia ao aludido convênio: o Pacto Internacio-nal de Direitos Econômicos, Sociais e Cul-turais regula a liberdade sindical no artigo8.1.a62 e, no número 2, aduz que

“nada do disposto neste artigo auto-rizará os Estados Partes do Convênioda Organização Internacional do Tra-balho, de 1948, relativo à liberdadesindical e à proteção do direito de sin-dicalização, a adotar medidas legis-lativas que menosprezem as garanti-as previstas em mencionado Convê-nio ou a aplicar a lei de forma quemenospreze essas garantias”63.

Por sua vez, o Pacto Internacional de Direi-tos Civis e Políticos, no número 3 do artigo22. 164, estabelece que

“nenhuma disposição desse artigoautoriza os Estados Partes no Convê-nio da Organização Internacional doTrabalho, de 1948, relativo à liberda-de sindical e à proteção do direito desindicalização, a adotar medidas legis-lativas que possam menosprezar asgarantias nele previstas nem a aplicara lei de tal maneira que possa menos-prezar essas garantias” (PACHECOGOMES, 1987, p. 160).

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Portanto, mesmo que não tenha havido umaexpressa ratificação do Convênio no 87 daOIT pela legislação brasileira, houve, pormeio desses documentos internacionais, re-pita-se, ratificados sem nenhuma reserva, aobrigação do ordenamento jurídico brasilei-ro de respeitar o conteúdo do mesmo. Essainterpretação tem por fundamento a peculi-ar organização65 e métodos adotados pelaOIT para aprovar um convênio66. Todos osEstados Membros dessa Instituição Interna-cional participam de todo o processo de ela-boração67 de um convênio ou recomenda-ção, assim como cada delegado tem direitode voto68 na Conferência Geral, portanto osEstados podem perfeitamente ser conside-rados como Estado Parte dos convênios apro-vados nessas conferências.

De outra parte, o Brasil ratificou tanto oConvênio no 9869 como o Convênio no 15470

da OIT.

4. 2. Tratados internacionais

Uma parte importante dos tratados so-bre os direitos humanos tem conteúdo labo-ral. Insta ressaltar, aparte do já dito, que aConferência Internacional do Trabalho, emsua trigésima reunião, adotou por unani-midade os princípios embasadores da re-gulamentação internacional e que a Assem-bléia-Geral das Nações Unidas, no seu se-gundo período de sessões, fez seus essesprincípios.

A Carta Internacional Americana deGarantias Sociais ou Declaração dos Direi-tos Sociais do Trabalhador, de 1947, no Riode Janeiro, formula expressamente os direi-tos de associação e de greve71.

No apartado 4 do artigo 23 da Declara-ção Universal dos Direitos Humanos, ado-tada em 10 de dezembro de 1948, foi asse-gurado expressamente o direito à liberdadesindical nos seguintes termos: “toda pessoatem direito a fundar sindicato e a sindicali-zar-se para a defesa de seus interesses”72.

A Declaração Americana dos Direitos eDeveres do Homem, aprovada em Bogotá,em 1948, em seu artigo XXII, prevê que

“toda pessoa tem o direito de associar-se com outras para promover, exercere proteger seus legítimos interesses deordem política, econômica, religiosa,social, cultural, profissional, sindicalou de qualquer outra ordem”73.

Por sua vez o Pacto Internacional de Direi-tos Econômicos, Sociais e Culturais, adota-do em 16 de dezembro de 1966, prescreve odireito de sindicalização74.

O Pacto Internacional de Direitos Civis ePolíticos, adotado em 16 de dezembro de1966, convenciona, no artigo 2.2, que

“Cada Estado Parte compromete-sea adotar, ajustando seus procedimen-tos constitucionais e suas disposiçõeslegislativas a este Pacto, as medidasoportunas para ditar as disposiçõeslegislativas ou de outro caráter que fo-rem necessárias para tornar efetivos osdireitos reconhecidos nesse Pacto e quenão estejam já garantidos por disposi-ções legislativas ou de outro caráter”

e, no artigo 22, assegura o direito de sindi-calização75.

A Convenção Americana sobre os Direi-tos Humanos, mais conhecida por “Pactode São José da Costa Rica”, aprovada em 22de novembro de 1969, na parte I, sobre osdeveres dos Estados e direitos protegidos,no artigo 1o, determina que

“os Estados Partes nesta Convençãocomprometem-se a respeitar os direi-tos e liberdades nela reconhecidos e agarantir o seu pleno e livre exercício atodas as pessoas que estejam sujeitasà sua jurisdição, sem nenhuma dis-criminação por motivo de raça, cor,sexo, idioma, religião, opiniões políti-cas ou de qualquer outra índole, ori-gem nacional ou social, posição eco-nômica, pelo nascimento ou qualqueroutra condição social”.

No artigo 16 76 , protege a liberdade deassociação. O artigo 29 estabelece que

“Nenhuma disposição da presen-te Convenção pode ser interpretada nosentido de: (...) b) limitar o gozo e exer-

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cício de qualquer direito ou liberdadeque possa estar reconhecido confor-me as leis de qualquer dos EstadosPartes ou de acordo com outra con-venção em que seja parte um de men-cionados Estados”,

e na letra d), “excluir ou limitar o efeito quepossa produzir a Declaração Americana dedireitos e Deveres do Homem e outros atosinternacionais da mesma natureza”.

4.2.1. Inserção no ordenamento interno

O Brasil ratificou o Pacto Internacionalde Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,o Pacto Internacional de Direitos Civis e Po-líticos77 e a Convenção Americana sobre Di-reitos Humanos, “Pacto de São José da Cos-ta Rica”78.

No artigo 2.2. da Convenção Americanasobre os Direitos Humanos, os Estados com-prometem-se a adotar as medidas necessá-rias para editar as disposições legislativasou de outro tipo, seja na normativa consti-tucional ou infraconstitucional, para tornarefetivos os direitos reconhecidos nos precei-tos da Convenção e que ainda não estejamgarantidos pelo ordenamento jurídiconacional79. Pelo simples fato de transformaro conteúdo regulado por esse Pacto em di-reito interno, por um ato legislativo, o Esta-do já implicitamente assumia o compromis-so de adequar as normas concernentes aoPacto; o artigo 2.2 é uma obrigação adicio-nal. É a assunção expressa dessa obrigação.Assim como se compromete, no âmbito desua jurisdição, a eliminar todos os obstácu-los que se opõem à aplicação da convenção.Vale mencionar, por oportuno, que o art. 2880

da Declaração Universal de Direitos Huma-nos (1948) preleciona ter direito toda pes-soa a que seja estabelecida uma ordem sociale internacional na qual os direitos e liberda-des proclamados na Declaração Universalse façam plenamente efetivos.

Nada obstante, a ratificação de um tra-tado internacional, na esfera internacional,e especialmente tratando-se dos direitos eco-nômicos, sociais e culturais,

“não implica para o Estado ratifican-te a obrigação de aplicar suas dispo-sições, mas, sim, simplesmente a deadaptar progressivamente sua estru-tura social às exigências do tratado,cujo cumprimento tenha que impor-tar significativas transformações so-ciais”81.

Essa concepção doutrinária conduz a umaineficácia desses tratados mesmo quandosejam ratificados pelos países.

O propósito das Partes contratantes deum Pacto ou uma convenção sobre direitoshumanos é salvaguardar um regime jurídi-co e político dos cidadãos de um Estado;está orientado para reconhecer e garantir olivre e pleno exercício dos direitos e liberda-des das pessoas que estejam sujeitas à suajurisdição e não tem por objetivo a conces-são de direitos e obrigações recíprocas aosEstados, com o fim de levar a efeito seus in-teresses nacionais.

Essa também é a interpretação perfilha-da pela Corte Americana de Direitos Hu-manos, manifestada em virtude de uma con-sulta sobre a entrada em vigor da Conven-ção Americana, em 24 de setembro de 1982,que aduz:

“os tratados modernos sobre direitoshumanos, em geral, e em particular, aConvenção Americana, não são trata-dos multilaterais do tipo tradicional,concluídos em função de um inter-câmbio recíproco de direitos, para obenefício mútuo dos Estados contra-tantes. Seu objetivo e fim são a prote-ção dos direitos fundamentais, tantofrente a seu próprio Estado, como fren-te aos outros contratantes. Ao apro-var esses tratados sobre direitos hu-manos, os Estados submetem-se auma ordem legal dentro da qual eles,pelo bem comum, assumem váriasobrigações, não estabelecidas comoutros Estados, mas, sim, em relaçãoaos indivíduos sob sua jurisdição,”82

o que na práxis não se reverte em um sistemaefetivo de direitos dos cidadãos.

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5. Conclusão

O direito diversifica-se a cada momentohistórico e conforme a evolução da socieda-de em que está incrustado. O contexto so-cio-político-econômico-cultural serve de ca-talisador para a inclusão dos traços especí-ficos de cada sociedade no direito positivo eo reconhecimento, em cada momento histó-rico, dos interesses, objetivos, valores e de-sejos (das necessidades) dessa sociedade.

A proclamação dos denominados “di-reitos de liberdade” coincidiu com o desen-volvimento do Estado Liberal; posteriormen-te foram cristalizados nos documentos jurí-dico-internacionais, cujo arquétipo tem exer-cido uma considerável influência sobre oconteúdo das Constituições elaboradas aposteriori. A declaração dos direitos sócio-econômicos coincide com a aparição do Es-tado Social e a progressiva democratizaçãodaquele modelo (corresponde à afirmação ereconhecimento dos direitos de participa-ção política e de associação).

Um percentual dos Estados Membrosnão tem a adequada estrutura para a tutelados direitos sociais garantidos nos Pactos eDeclarações Internacionais (não dispõemdas condições necessárias para a realiza-ção de seu exercício), embora os tenha ratifi-cado. A proclamação dos direitos funda-mentais fica reduzida, nesses países, a umtermo vazio, em razão do insuficiente de-senvolvimento sócio-econômico e da ausên-cia das reformas legislativas necessáriaspara a sua efetividade.

A OIT trata de paliar as divergênciasentre as legislações nacionais e as disposi-ções dos convênios fundamentais, median-te um dispositivo promocional, por meio dosserviços dos especialistas do Departamen-to de Normas Internacionais do Trabalho ea correspondente assistência técnica aosgovernos e aos sindicatos de empregadorese empregados. Não existem, na Constitui-ção da OIT, mecanismos de punição ou deexpulsão de Membros que sistematicamen-te não ratificam os convênios e, quando o

fazem, não o cumprem ou cumprem de for-ma incompleta, assim como para os que nãocumprem suas obrigações com a OIT. Poroutro lado, frisa-se a total falta de obrigatorie-dade de ratificar esses convênios. Não bastasó a consagração dos direitos fundamentais,torna-se necessário levar a cabo um sistemade ação que os faça realmente efetivos.

A determinação de se um Estado adota adoutrina dualista ou, pelo contrário, a mo-nista não é uma questão regulada pelo Di-reito Internacional Público, senão é o resul-tado de uma opção levada a efeito pelo Di-reito Constitucional de cada Estado. Tam-pouco a opção de qual norma deve prevale-cer nos casos de conflitos entre as regras deDireito Internacional e as de Direito internoé regida pelo Direito Internacional, mas, sim,depende do Direito Constitucional de cadapaís. Isso, agregado à falta de mecanismosque obriguem os Estados a respeitarem osconvênios fundamentais da OIT, faz comque as normas trabalhistas percam muitoem eficácia.

No Brasil, a Carta Magna não discipli-nou as relações entre o Direito Internacio-nal Público e o Direito interno, labor reali-zado pela doutrina e pela jurisprudência. Adoutrina é majoritariamente favorável aomonismo com primazia do Direito Interna-cional, e os Tribunais conferem maior eficá-cia à norma posterior, igualando os trata-dos das leis ordinárias nacionais. Algunspoucos autores vêm entendendo que os Tra-tados Internacionais sobre os Direitos Hu-manos têm hierarquia constitucional porforça do artigo 5 o, §2o, da Carta de 1988. Ten-do status constitucional, esses tratados pre-ponderariam sobre as normas infraconsti-tucionais e, nos casos de conflito com a pró-pria Constituição, deveria prevalecer a nor-ma mais favorável.

Nesta fase de reformas Constitucionaisainda pendentes, o Legislativo brasileiro temoutra oportunidade para realizar significa-tivas alterações na regulação da autonomiacoletiva e estabelecer uma ordem político-constitucional que permita a adoção de um

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efetivo funcionamento da autonomia coleti-va da vontade.

As Declarações de Direitos Internacio-nais fizeram do direito à livre sindicaliza-ção uma das senhas de identidade dos Es-tados Democráticos de Direito. As disposi-ções, todavia, em vigor no Brasil constituemum empecilho ao exercício do direito de li-berdade sindical e a tudo que esse direitoagrega. O Poder Executivo e o Legislativodevem adotar posições político-legislativascom a finalidade de conferir efetividade aosconvênios fundamentais e aos tratados ra-tificados pelo Congresso Nacional, para re-conhecer o direito, em sua totalidade, de li-berdade sindical e de associação e do reco-nhecimento a um efetivo direito à negocia-ção coletiva como direitos fundamentais notrabalho, já que foram devidamente ratifica-dos pelo Congresso Nacional.

Notas1 “Teses cujo antecedente remoto cabe situar na

sofística e que alcança ampla difusão no séculoXVIII, sustentará que as normas jurídicas e as ins-tituições políticas não podem conceber-se como oproduto do arbítrio dos governantes, senão como oresultado do consenso ou vontade popular”.(PÉREZ LUÑO, 1998, p. 96).

2 O segundo fundamento da liberdade civil noEstado moderno é a constituição representativa, de

cujas funções do Poder Estatal: Legislativo, Execu-tivo e Judicial, estão encarregados os órgãos esta-tais diferentes e independentes.

3 “Para o Estado Nacional, isso significa, comodeclarou Rousseau, que os súbditos não somentesão objeto do poder estatal, senão que têm tambémuma participação no mesmo, como sujeitos jurídi-cos, isto é, que não são meramente sujets, senãotambém cidadãos”. (HINTZE, 1968, p. 311).

4 A Carta Magna Americana retirou certas ma-térias, tais como a liberdade de culto e imprensa,da competência federal e atribuiu aos Estados Fe-derados o direito exclusivo de legislar sobre essasmatérias.

5 Alexander Hamilton, Jon Jay e Madison escre-veram uma série de artigos antes da realização daConvenção da Filadélfia, que antecedeu à Consti-tuição Americana de 1787, os quais foram posteri-omente compilados em uma obra chamada “TheFederalist” (Os Federalistas), origem de toda a teo-ria constitucional que resultou na criação do regi-me presidencialista do sistema de governo dos Es-tados Unidos. Essa obra é considerada o primeiroTratado de Direito Constitucional, sendo divididaem números. O Federalista no LXXVIII, escrito porAlexander Hamilton, trata especificamente do Po-der Judiciário e do judicial review, expressão adota-da, originariamente, como revisão constitucional,para designar o controle de constitucionalidade.Remilton, na obra suso mencionada, procurou enfa-tizar que o Poder Judiciário deveria ser, na verda-de, o guardião da Constituição na ordem civil, porser, como ensinado em obras anteriores, o lessdangerous, ou seja, o menos perigoso dos Poderes,já que o Judiciário, como dizem os Federalistas,não detém a bolsa (significando o controle das fi-nanças públicas) nem a espada (significando o pró-prio exercício da administração pública). Nesse sen-tido, então, também não sendo um Poder eleito,teria melhores condições de ser o guardião da or-dem jurídica e da própria Constituição, porque nãoestaria vinculado às facções momentâneas, vincu-ladas a um mandato eletivo temporário. Por outrolado, a origem do controle de constitucionalidadesurgiu em uma decisão histórica da Corte Supre-ma dos Estados Unidos, em 1803, no famoso casoMarbury versus Madison.

6 O grêmio medieval enquadrava o indivíduoem uma corporação fechada e ninguém que nãopertencesse ao respectivo grêmio poderia exerceresse ofício. Tinham rígidas regras para produzirseus artigos, fixar preços e determinar seus centrosde vendas. Por outro lado, possuíam o monopólioda compra de matérias-primas, assim como poderpara limitar o número de unidades manufatura-das, limitando, dessa maneira, a livre concorrência.As regulamentações corporativas impediam os

Abreviaturas mais utilizadas

AA.VV. – Autores vários; ADH – Anuario deDerechos Humanos; AFD – Anuario de Filosofíadel Derecho; BSBDI – Boletim da Sociedade Brasi-leira de Direito Internacional; DDHC – Declaraçãode Direitos do Homem e do Cidadão; DL – Dere-chos y Libertades, Revista del Instituto Bartoloméde las Casas; DOXA – Cuaderno de Filosofía delDerecho; DUDH – Declaração Universal de Direi-tos Humanos; OIT – Organização Internacional doTrabalho; PEC – Proposta de Emenda Constitucio-nal; RBEP – Revista Brasileira de Estudos Políticos;REDC – Revista Española de Derecho Constitucio-nal; REP – Revista de Estúdios Políticos; RFD –Revista da Faculdade de Direito; RIT – Revista In-ternacional del Trabajo.

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movimentos de capitais e sua inversão nas ativida-des de produção.

7 Pérez-Luño (1979, p. 25) destaca que “desdeuma ótica marxista têm-se afirmado que a teoriados direitos subjetivos não é outra coisa mais queuma construção do pensamento jurídico burguês,para, ao amparo de sua vinculação com a teoriados direitos humanos, situar em nível jurídico po-sitivo o livre gozo da propriedade privada fora e asalvo das ingerências do ordenamento legal”.

8 “O fisiocrata francés Gournay (1712-1759)formula a célebre frase: laissez faire, laissez passer (dei-xar fazer, deixar passar). Deixar fazer: cancelar aslimitações do intervencionismo e abrir o campo àiniciativa individual; deixar passar: abrir os portosdas nações, suprimindo as barreiras aduaneiras,de modo que se estimule e ative a circulação dariqueza, faz-se presente o liberalismo econômicoou teoria da livre concorrência, reguladora da pro-dução e dos preços, e no livre jogo das ‘leis natu-rais’ ou do mercado”. (MONTENEGRO, 1976, p.31-32).

9 Esses direitos subjetivos públicos transforma-ram-se, posteriormente, nos denominados direitoscivis e políticos.

10 “Agora, na França, tanto nas cidades comono campo, a burguesia é dona e senhora da nação.É a única que tem sido beneficiada pela Revolução.(...) sua filosofia social: Todos os cidadãos sãoiguais em direitos, mas não em faculdades, em ta-lentos e em meios. A Natureza não quis assim. Éimpossível, pois, que todos pretendam conseguiros mesmos ingressos monetários”. (JACCARD,1971, p. 263). Para Pablo Lucas Verdú (1958, p.59), “o estado liberal se caracteriza porque preten-de manter uma estrutura social baseada em umaestratificação rígida na qual a passagem de umaclasse social inferior a outra superior é difícil por-que não existe suficiente número de oportunidadespara fazê-lo, dado estar a organização econômicasustentada com base em só prosperar quem pos-sua mais capacidade aquisitiva e estes são sempremembros das classes sociais acomodadas. Nãopode haver uma dinâmica social integradora emtal sociedade; para isso é mister o aumento de opor-tunidade mediante uma política econômica e soci-al de grande amplitude”.

11 Rousseau, que já havia empregado o termo“cidadão” na sua obra o Contrato Social, explicitasurgirem os direitos das relações sociais e só na “ci-dade”, empregada na acepção liberal, tem sentidofalar de direitos do homem, e só na cidade, por esseautor denominada “de justa”, os direitos nascemda simples condição de o homem de ser cidadão.

12 Tampouco foi reconhecido o direito ao traba-lho.

13 Nazismo na Alemanha, Fascismo na Itália,Estado Novo no Brasil, Franquismo na Espanha.

14 Cf. BULYGIN, 1987, p. 80.15 Cf. SOMMERMANN, 1996, p. 99. Merece

também ser mencionada a posição de Peces-Barba(1986-1987, p. 253) manifestada no artigo: “Sobreel puesto de la historia en el concepto de los derechosfundamentales” : “Pelo processo da internacionaliza-ção toma-se consciência da insuficiência duma pro-teção em nível estatal, que sempre pode encontrarseu limite na razão de Estado. A soberania é umobstáculo para a organização e para a proteçãodos direitos humanos e tem que superar as frontei-ras nacionais para vencê-los”.

16 Os trabalhos preparatórios, que tinham a fi-nalidade de elaborar um esboço da Declaração, fo-ram realizados por uma comissão composta por:Austrália, Chile, China, França, Líbano, União So-viética, Grã Bretanha e Estados Unidos. Pode-senotar uma maior representação dos países de cul-tura ocidental, o que ocasionou oito abstenções naaprovação dessa Declaração na Assembléia Geralda ONU: Arábia Saudita, África do Sul, UniãoSoviética, Bielo-Rússia, Polônia, Ucrânia, Iugoslá-via e Checoslováquia.

17 A título de exemplo: CF – “art. 7o – São direi-tos dos trabalhadores urbanos e rurais, além deoutros que visem à melhoria de sua condição soci-al: IV – salário mínimo, fixado em lei, nacionalmen-te unificado, capaz de atender às suas necessida-des vitais básicas e às de sua família com moradia,alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, hi-giene, transporte e previdência social, com reajustesperiódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sen-do vedada sua vinculação para qualquer fim”.

18 Baseados nas doutrinas utilitaristas e indivi-dualistas.

19 Não se conseguiu que essas Declarações fos-sem vinculantes por si mesmas.

20 O direito de propriedade, na teoria dos direi-tos, tem sido entendido explicitamente limitado,afirmando-se que a propriedade implica obriga-ções, bem como o dever de ser utilizada e usufruí-da a serviço do interesse geral, o que dista muito doconceito de propriedade como direito “inviolável esagrado” enunciado e sacralizado no artigo 17 daDeclaração Francesa, de 1789, e depois reiteradonos Códigos Civis do século XIX.

21 As garantias individuais baseadas nessa con-cepção derivam-se da concepção institucional dodireito.

22 De acordo com essa concepção, não se podeconsiderar os direitos econômicos e sociais menosfundamentais que os direitos civis e políticos.

23 Cf. VESES PUIG, 1983, p. 285.24 As leis naturais constituem o núcleo dessa

teoria. Os fisiocratas alegam que o fenômeno eco-nômico é um fenômeno natural, sendo portanto ló-gico deixar que atue por si mesmo como as leis“naturais”, sem a intervenção do Estado.

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25 Na Declaração Francesa, o que realmente con-cedia ou declarava não correspondia exatamenteàs aspirações populares, mas sim às posições libe-rais da burguesia. Cf. RODRIGUEZ PANIAGUA,1987, p. 65.

26 Cf. RUBIO, 1995, p. 262.27 Essa postura é adotada em razão do temor,

de um senso de defesa e do desejo de evitar malesmaiores, evitar o que não devia passar de reivindi-cações de classe no âmbito social e transformar-seem verdadeiras revoluções fundamentadas emmotivações políticas de matiz reivindicativo. Issofoi o que impulsou os Estados a adotarem medi-das mais justas para os trabalhadores, dando, emparte, satisfação a suas demandas, criaria a barrei-ra que deteria o avanço do qual tanto temiam: aderrogação do sistema. Cf. JACCARD, 1971, p.266; PALOMEQUE LOPÉZ, 2001.

28 O prof. Palomeque Lopéz (2000, p. 293) ale-ga que “(...) na base deste processo encontrava-se,certamente, uma noção chave: a própria internacio-nalização dos pressupostos sócio-econômicos daprestação do trabalho por conta alheia, cujo núcleode interesse não ficava enquadrado nas esferas par-ticulares de lugar e tempo”.

29 A posição adotada pelo socialismo, as açõesreivindicatórias do proletariado organizado.

30 A internacionalização do Direito do Trabalhoapareceu como um meio de igualar as cargas daconcorrência internacional, desse modo, os própri-os empresários, em benefício próprio, convertem-seem defensores e patronos da uniformidade em ní-vel internacional do Direito Trabalho.

31 Com a finalidade de garantir que os direitostrabalhistas fossem assegurados internacionalmen-te.

32 Nesse artigo, havia somente “uma recomen-dação genérica aos membros da Sociedade dasNações para que se esforçassem em assegurar emanter condições de trabalho eqüitativas e huma-nas para o homem, a mulher e a criança em seuspróprios territórios, assim como em todos os paí-ses aos quais se estendam suas relações de comér-cio e indústria, e com esse fim estabelecer e susten-tar as necessárias organizações”. (ALONSOGARCÍA, 1985, p. 135).

33 Adotada em 10 de maio, na vigésima-sextareunião da Conferência Geral.

34 Por ser essa uma forma autônoma e demo-crática de solução de conflitos. Os documentos daOIT, uma vez publicados, poderão ser consulta-dos também em sua página de Internet: www.ilo.org.

35 Convênio no 87, sobre a liberdade sindical e aproteção do direito de sindicalização, de 1948; Con-vênio no 98, sobre o direito de sindicalização e denegociação coletiva, de 1949; Convênio no 154, so-bre a negociação coletiva, de 1981.

36 Na Conferência Internacional do Trabalho, de1997, o diretor-geral submete a exame uma pro-posta com a finalidade de que fosse concedida uma“etiqueta social” aos países que respeitem integral-mente os direitos e princípios fundamentais no tra-balho e estejam dispostos a submeterem-se a ins-peções internacionais autônomas e fiáveis, emboraessa proposta não tenha sido aceita. Por outro lado,na criação da Organização Mundial de Comércio –OMC, em 1994, tentou-se incluir uma “cláusulasocial” ao sistema de comércio mundial, exigindo-se dos países o respeito a umas normas mínimas,posteriormente fixadas, sob pena de sanções àque-les que as desrespeitassem; esse desiderato tam-bém não foi alcançado.

37 Cf. Relatório da Comissão de Aplicação dasNormas da OIT, 86a Reunião, Genebra, junho de1998.

38 Muitos fenômenos importantes estão relacio-nados com esse novo modelo de desenvolvimentoeconômico agregados ao das inovações tecnológi-cas, tais como: a expansão das formas atípicas detrabalho e os contratos temporais; o aparecimentode novas formas de organização de trabalho e pro-dução; a descentralização produtiva; a individua-lização e o desenvolvimento do setor terciário; ofomento da competitividade das empresas, resul-tante da abertura da concorrência a escala interna-cional; a desregulamentação dos mercados; a re-dução do setor público nas economias nacionais; aredefinição e reestruturação do papel do Estado; ageneralização das técnicas eficazes para lutar con-tra a inflação. Vid ademais o Parágrafo 12 do pri-meiro relatório global entitulado Sua voz no traba-lho, no qual o Diretor-Geral da OIT alega que “amundialização para os efeitos do presente relatóriose refere à abertura e à integração dos mercados,somadas as inovações tecnológicas, as transforma-ções estruturais e as reformas políticas. A primeiravertente da mundialização é a intensificação daconcorrência, em conseqüência da liberalização docomércio e dos regimes financeiros e da integraçãodos mercados. A expansão do comércio de bens eserviços, os movimentos de capital e a diminuiçãodos custos de transporte e de comunicação obri-gam aos empregadores, aos sindicatos e aos gover-nos a terem cada vez mais em conta a concorrênciados outros países”.

39 “O membro trabalhador do Brasil expressaque o mercado de trabalho do seu país é um dosmais flexíveis do mundo. Sem embargo, todaviaexiste um alto nível de desemprego, instabilidade edeterioro social como resultado das políticas deajuste estrutural.” Parágrafo 107 do Memorandoda 88a Reunião da Conferência Internacional do tra-balho – Genebra, 30 de maio – 15 de junho de 2000.

40 Em virtude de se ater a política das empresasestritamente aos critérios de produtividade.

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41 – Liberdade sindical e efetivo reconhecimentodo direito de negociação coletiva (Convênios no 87 e98);

– Eliminação de todas as formas de trabalhoforçado ou obrigatório;

– Abolição efetiva do trabalho infantil; e– Eliminação de discriminação em matéria de

emprego e ocupação.42 86a Reunião da Conferência Internacional do

Trabalho, Genebra, junho de 1998. Disponível em:<http://www.ilo.org>. Acesso em: [199-?].

43 A incerteza nas definições e noções dos Direi-tos Fundamentais. A expressão “Direitos Huma-nos” é a denominação mais utilizada, ainda quenão contenha uma concepção fechada, precisa edefinitiva sobre esse instituto. Não há uma expres-são ideal que integre todo o complexo entramadodos Direitos Humanos e conduza à compreensãodesse fenômeno em sua inteireza. Assim como exis-tem várias expressões para designarem os DireitosHumanos, também coexistem diversos conceitosque o definem, apesar de não haver uma precisãoconceitual, na qual se permita reconhecer uma refe-rência semântica que possa considerar-se límpida einequívoca. Cf. CASCAJO CASTRO, 1988.

44 O consentimento do Estado soberano é im-prescindível quando da inserção dessa normativainternacional no ordenamento jurídico interno, ditode outro modo, o processo de positivação das nor-mas jurídicas internacionais depende da posturaadotada pelo direito constitucional nacional e nãopelo direito internacional.

45 A ratificação é um ato-condição e implicauma adesão do Estado Membro a um ato legislati-vo preexistente.

46 No parágrafo 23, “os membros trabalhadoresobservaram que, segundo as últimas informações,foram registradas 80 ratificações dos convêniosfundamentais, desde o lançamento da campanhado Diretor-Geral (...) Dois terços dos Estados Mem-bros ratificaram entre cinco e sete destes convênios;35 ratificaram sete convênios, enquanto 17 ratifica-ram entre ‘um e dois’, e seis, ‘nenhum’”. Informe daComissão de Aplicação das Normas, 86a Reuniãoda Conferência Internacional do Trabalho, Gene-bra, junho de 1998.

47 O sistema de controle regular foi estabelecidopara supervisionar a aplicação dos convênios daOIT ratificados pelos Estados Membros. Os meca-nismos de controle de aplicação das normas inter-nacionais do trabalho têm por base a ratificação deuma norma internacional do trabalho, assim comoa obrigação de informar periódica e regularmentesobre as medidas tomadas para fazer efetivas asdisposições desse instrumento. Os procedimentosprevistos nos artigos 24 e 26 da Constituição daOIT aplicam-se aos convênios ratificados, nos ca-

sos de reclamações concretas contra um EstadoMembro. Tratando-se dos princípios de liberdadesindical, em virtude da importância que a Consti-tuição da OIT lhe atribui, além do sistema de con-trole regular, existe um procedimento de controleespecial para fazê-los cumprir, inclusive contra osEstados Membros que não tenham ratificado osconvênios na matéria, porque o procedimento dequeixas se fundamenta nos princípios constitucio-nais desse órgão internacional.

48 Declaração da OIT relativa aos Princípios eDireitos Fundamentais no Trabalho.

49 O seguimento anual “somente suporá certosajustes às atuais modalidades de aplicação do ar-tigo 19, parágrafo 5, e) da Constituição”. “Seu ob-jeto seria proporcionar uma oportunidade de se-guir a cada ano, por meio de um procedimentosimplificado que substituirá o procedimento a cadaquatriênio introduzido, em 1995, pelo Conselho deAdministração, os esforços realizados para ajustaro conteúdo da Declaração pelos seus Membros queainda não tenham ratificado todos os convêniosfundamentais”. Declaração da OIT relativa aosPrincípios e Direitos Fundamentais no Trabalho.

50 Será elaborado sob a responsabilidade doDiretor-Geral e “permitirá otimizar os resultadosdos procedimentos levados a cabo no cumprimen-to da Constituição”, servindo “de base para a ava-liação da eficácia da assistência prestada pela Or-ganização e estabelecendo as prioridades para operíodo seguinte mediante programas de ação emmatéria de cooperação técnica destinada a mobili-zar os recursos internos e externos necessários parao respeito”, através de uma imagem global e dinâ-mica que abarcará uma área dos princípios e direi-tos fundamentais enumerados na Declaração acada quatro anos: a base de informações oficiais oureunidas e avaliadas para ajustar os procedimen-tos estabelecidos. Com Respeito aos países que nãotenham ratificado os convênios fundamentais, es-sas informações repousarão, em particular, no re-sultado do seguimento anual antes mencionado.No caso dos Membros que tenham ratificado osconvênios correspondentes, essas informações re-pousarão, em particular, nas memórias tal comoforam apresentadas e tratadas em virtude do arti-go 22 da Constituição.

51 A título de exemplo, cita-se o parágrafo 217do Informe da Comissão de Aplicação das Nor-mas: “A Comissão toma nota de que, até a data dareunião da Comissão de Expertos, foram recebidas151 memórias das 290 solicitadas, com fulcro noartigo 19, sobre o Convênio no 159, de 1983; dezoutras memórias foram recebidas mais tarde; o quesignifica 52,1 por cento. Conferência Internacional doTrabalho, 86a Reunião, Genebra, junho de 1998.

52 Parágrafos 45 e 142 do Relatório da Comis-são de Aplicação das Normas da Conferência In-

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ternacional do Trabalho, 86a Reunião, Genebra, ju-nho de 1998.

53 Cf. Parágrafo 23 do Relatório da Comissãode Aplicação das Normas.

54 “69. O número de ratificações do convênio87, passou de 109 para 122 desde o último Estudogeral; ‘(...) Além disto, 37 dos países que não seencontram obrigados pelo Convênio, são Membrosda OIT há mais de 20 anos’. Memorando 88a Reu-nião da Conferência Internacional do Trabalho, Ge-nebra, 30 de maio – 15 de junho de 2000.

55 “218. A Comissão lamentou tomar conheci-mento de que durante os últimos cinco anos nenhu-ma das memórias sobre os convênios não ratifica-dos e sobre as recomendações, solicitadas em vir-tude do artigo 19 da Constituição, não tinham sidosubministradas pelos seguintes países: Afeganis-tão, Albânia, Djibuti, Fidji, Haiti, Ilhas Salomão,Jamaica Árabe, Líbia, Lesoto, Libéria, Nepal, Nigé-ria, Paraguai, República de Moldavia, Santa Lúcia,Somália e Iemem”. Ibidem .

56 Celso de Mello menciona no, Curso de DireitoInternacional Público, (v. 1, p. 97) que o primeiroestudo sistemático sobre as relacões entre o DireitoInternacional e o Direito interno dos Estados inte-grantes da sociedade internacional foi feito porHeinrich Triepel, em 1899, na obra “Volkerrecht undLandesrecht”, apresentando, desse modo, a dou-trina que mais tarde viria a ser conhecida como“dualismo”. Na tese desse jurista alemão Triepel,os indivíduos não podem nunca ser obrigados nembeneficiados pelas normas de Direito Internacional:só o Estado é o obrigado ou favorecido por elas, emsuas relações com outros estados. Com a finalida-de de alcançar o indivíduo, a norma de Direito In-ternacional deve ser transformada em disposiçõesde Direito Interno, sejam leis ou medidas adminis-trativas. Cf. JIMÉNEZ DE ARECHAGA, 1987-1989,p. 36.

57 O embasamento dessa doutrina funda-se emdois pressupostos prévios. O primeiro postuladosustenta existir uma fundamental diferença entreessas duas ordens jurídicas, têm diferentes fontes.O segundo alega que o Direito interno tem por ob-jeto a regulamentação das relacões entre os indiví-duos ou entre o Estado enquanto poder e seus ci-dadãos, ao contrário do Direito Internacional, quesanciona as relações entre os Estados. Assevera queo Estado, na ordem internacional, é o único sujeitode direito; todavia, na ordem interna, há também ohomem, que no Direito internacional é o resultadoda vontade objetiva dos Estados, e o Direito de umEstado é o resultado de sua vontade, e ainda que,na ordem internacional, existe coordenação e, nainterna, subordinação. Sendo ordens jurídicas dife-rentes, não existe a possibilidade real de conflitoentre elas.

58 Tal teoria foi seguida por: Wenzel, Zorn, De-cencière – Ferrandière, bem como pelos autores so-viéticos e nazistas. Cf. MELLO, 1994, p. 100.

59 Foi desenvolvida principalmente pelos auto-res da denominada Escola de Viena (Kelsen, Kunz)e pelos franceses (Scelle, Politis). Cf. FRAGA, 1997,p. 8.

60 Celso Albuquerque Mello (1994, p. 100) ex-plica essa doutrina: “O conflito entre o Direito In-terno e o Direito Internacional não quebra a unida-de do sistema jurídico, como um conflito entre a leie a Constituição não quebra a unidade do direitoestatal. O importante é a predominância do DI,que ocorre na prática internacional, como se podedemonstrar com duas hipóteses: a) uma lei contrá-ria ao DI dá ao Estado prejudicado o direito deiniciar um ‘processo’ de responsabilidade interna-cional; b) uma norma internacional contrária à leiinterna não dá ao Estado direito análogo ao dahipótese anterior”.

61 Faço saber que o CONGRESSO NACIONALaprovou, e eu, Mauro Benevides, Presidente do Se-nado Federal, nos termos do art. 48, item 28, doRegimento Interno, promulgo o seguinte DECRE-TO LEGISLATIVO no 226, de 1991 – Aprova os tex-tos do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticose do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, So-ciais e Culturais, ambos aprovados, junto com o Pro-tocolo Facultativo relativo a esse último pacto, naXXI Sessão (1966) da Assembléia-Geral das Na-ções Unidas.

O CONGRESSO NACIONAL decreta: Art. 1 o –São aprovados os textos do Pacto Internacional sobreDireitos Civis e Políticos e do Pacto Internacional sobreDireitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos apro-vados, junto com o Protocolo Facultativo relativo aesse último pacto, na XXI Sessão (1966) da Assem-bléia-Geral das Nações Unidas. Art. 2o – Este de-creto legislativo entra em vigor na data de sua pu-blicação. Senado Federal, 12 de dezembro de 1991.SENADOR MAURO BENEVIDES – Presidente –publicado DOFC 13/12/1991, página 028838,COL 2, Diário Oficial da União.

62 “Artículo 8 – Los Estados Partes en el presentePacto se comprometen a garantizar: a) El derechode toda persona a fundar sindicatos y a afiliarse alde su elección, con sujeción únicamente a los esta-tutos de la organización correspondiente, para pro-mover y proteger sus intereses económicos y soci-ales. No podrán imponerse otras restricciones alejercicio de este derecho que las que prescriba la leyy que sean necesarias en una sociedad democráticaen interés de la seguridad nacional o del orden pú-blico, o para la protección de los derechos y liberta-des ajenos” (PACHECO GOMES, 1987, p. 149).

63 Cf. PACHECO GOMES, 1987, p. 150.64 “Artículo 22, inciso 1. Toda persona tiene de-

recho a asociarse libremente con otras, incluso el

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derecho a fundar sindicatos y afiliarse a ellos parala protección de sus intereses”.

65 A Conferência Geral compõe-se de 4 delega-dos de cada Estado Membro: 2 representantes dosgovernos, 1 representante dos empregadores e 1representante dos trabalhadores. Constituição daOIT, artigo 2o.

66 Constituição da OIT, artigo 19.67 Um convênio segue o procedimento da dis-

cussão do tema objeto de normatização em duasreuniões de dois anos seguidos para que seja apro-vado. Os informes preliminares, dois meses antesde cada Conferência, são sempre submetidos aosEstados membros para que, com a prévia consultadas organizações representantes dos empregados eempregadores, possam destacar seu ponto de vis-ta sobre os diferentes aspectos que devem ser leva-dos em consideração sobre as cláusulas reguladase os mecanismos de flexibilidade. Cf. AA. VV., 1990,p. 53.

68 O voto, mesmo que favorável, não obriga aratificação de um convênio.

69 “DLG-000049 – 27/08/1952 – APROVACONVENÇÃO 98 RELATIVA A APLICAÇÃODOS PRINCIPIOS DO DIREITO DE ORGANI-ZAÇÃO E DE NEGOCIAÇÃO COLETIVA ADO-TADA EM 1949, NA CIDADE DE GENEBRA POROCASIÃO DA 32a CONFERÊNCIA INTERNA-CIONAL DO TRABALHO. Faço saber que oCONGRESSO NACIONAL decreta, nos termos doart. 66, inciso I, da Constituição Federal, e eu pro-mulgo o seguinte DECRETO LEGISLATIVO no 49,de 1952. Art. 1o – É aprovada a Convenção no 98,relativa à aplicação dos princípios do direito deorganização e de negociação coletiva, adotada em1949, na cidade de Genebra, por ocasião da 32a

Sessão da Conferência Internacional do Trabalho.Art. 2o – Revogam-se as disposições em contrário.SENADO FEDERAL, em 27 de agosto de 1952.JOÃO CAFÉ FILHO – PRESIDENTE DO SENA-DO FEDERAL”.

70 “DLG-000022 – 12/05/1992 – APROVA OTEXTO DA CONVENÇÃO 154, DA ORGANIZA-ÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO – OIT,SOBRE O INCENTIVO À NEGOCIAÇÃO COLE-TIVA, ADOTADO EM GENEBRA, EM 1981, DU-RANTE A 67a REUNIÃO DA CONFERÊNCIA IN-TERNACIONAL DO TRABALHO. Faço saber queo CONGRESSO NACIONAL aprovou, nos termosdo art. 49, inciso I, da Constituição, e eu, MAUROBENEVIDES, Presidente do Senado Federal, pro-mulgo o seguinte DECRETO LEGISLATIVO no 22,de 1992 – Aprova o texto da Convenção no 154, daOrganização Internacional do Trabalho (OIT), so-bre o incentivo à negociação coletiva, adotado emGenebra, em 1981, durante a 67a Reunião da Confe-rência Internacional do Trabalho. O CONGRESSO

NACIONAL decreta: Art. 1 o É aprovado o texto daConvenção no 154, da Organização Internacionaldo Trabalho (OIT), sobre o incentivo à negociaçãocoletiva, adotado em Genebra, em 1981, durante a67a Reunião da Conferência Internacional do Tra-balho. Art. 2o Este decreto legislativo entra em vigorna data de sua publicação. Senado Federal, 12 demaio de 1992. SENADOR MAURO BENEVIDES –Presidente”.

71 “Derechos de Asociación – Artículo 26. Lostrabajadores y empleadores sin distinción de sexo,raza, credo o ideas políticas, tienen el derecho deasociarse libremente para la defensa de sus respec-tivos intereses, formando asociaciones profesiona-les o sindicatos, que, a su vez, puedan federarseentre sí. Estas organizaciones tienen derechos agozar de personería jurídica y a ser debidamenteprotegidas en el ejercicio de sus derechos. Su sus-pensión o disolución no puede imponerse sino envirtud de procedimiento judicial adecuado.

Las condiciones de fondo y de forma que seexijan para la constitución y funcionamiento de lasorganizaciones profesionales y sindicales no debencoartar la libertad de asociación.

La formación, funcionamiento y disolución defederaciones y confederaciones estarán sujetos a lasmismas formalidades prescritas para los sindica-tos.

Los miembros de las directiva sindicales, en elnúmero que fije la respectiva ley, y durante elperíodo de su elección y mandato, no podrán serdespedidos, trasladados de empleo, ni desmejora-dos en sus condiciones de trabajo, sino por justacausa, calificada previamente por la autoridadcompetente.

Derechos de Huelga – Artículo 27. Los trabaja-dores tienen derecho a la huelga. La Ley regularáeste derecho en cuanto a sus condiciones y ejerci-cio.” PACHECO GOMES, 1987, p. 646; 647.

72 Cf. PACHECO GOMES, 1987, p. 64.73 Cf. PACHECO GOMES, 1987, p. 53 et seq.74 “Artículo 8.1. Los Estados Partes en el presente Pacto se

comprometen a garantizar:a) El derecho de toda persona a fundar sindica-

tos y a afiliarse al de su elección, con sujeción úni-camente a los estatutos de la organización corres-pondiente, para promover y proteger sus intereseseconómicos y sociales. No podrán imponerse otrasrestricciones al ejercicio de este derecho que las queprescriba la ley y que sean necesarias en una socie-dad democrática en interés de la seguridad nacio-nal o del orden público, o para la protección de losderechos y libertades ajenos;

b) El derecho de los sindicatos a formar federa-ciones o confederaciones nacionales y el de éstas afundar organizaciones sindicales internacionales oa afiliarse a las mismas;

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c) El derecho de los sindicatos a sin obstáculosy sin otras limitaciones que las que prescriba la leyy que sean necesarias en una sociedad democráticaen interés de la seguridad nacional o del orden público opara la protección de los derechos y libertades ajenos;

d) El derecho de huelga, ejercido de conformidadcon las leyes de cada país.

2. El presente artículo no impedirá someter arestricciones legales el ejercicio de tales derechospor los miembros de las fuerzas armadas, de lapolicía o por la administración del Estado.

Nada de los dispuestos en este artículo autorizará alos Estados Partes en el Convenio de la OrganizaciónInternacional del Trabajo de 1948 relativo a la liber-tad sindical y a la protección del derecho de sindi-cación a adoptar medidas legislativas que menoscabenlas garantías previstas en dicho Convenio o a aplicar laley en forma que menoscabe dichas garantía” (grifo nos-so). PACHECO GOMES, 1987, p. 149-150.

75 PARTE III – “Artículo 221. Toda persona tiene derecho a asociarse libre-

mente con otras, incluso el derecho a fundar sindi-catos y afiliarse a ellos para la protección de susintereses.

2. El ejercicio de tal derecho sólo podrá estarsujeto a las restricciones previstas por la ley que seannecesarias en una sociedad democrática, en interés dela seguridad nacional, de la seguridad pública o del ordenpúblico, o para proteger la salud o la moral públicas o losderechos y libertades de los demás. El presente artículono impedirá la imposición de restricciones legales alejercicio de tal derecho cuando se trate de miembrode las fuerzas armadas y de la policía.

Ninguna disposición de este artículo autoriza alos Estados Partes en el Convenio de la OrganizaciónInternacional del Trabajo de 1948, relativo a la libertadsindical y a la protección del derecho de sindicación, aadoptar medidas legislativas que puedan menos-cabar las garantías previstas en él ni a aplicar la leyde tal manera que pueda menoscabar esas garantí-as” (PACHECO GOMES, 1987, p. 159, 160, 167).

76 “Artículo 16 Libertad de Asociación1. Todas las personas tienen derechos a asoci-

arse libremente con fines ideológicos, religiosos,políticos, económicos, laborales, sociales, cultura-les, deportivos o de cualquiera otra índole.

2. El ejercicio de tal derecho sólo puede estarsujeto a las restricciones previstas por la ley quesean necesarias en una sociedad democrática, en in-terés de la seguridad nacional, de la seguridad o delorden públicos, o para proteger la salud o la moralpúblicas o los derechos y libertades de los demás.

Lo dispuesto en este artículo no impide la im-posición de restricciones legales, y aun la privacióndel ejercicio del derecho de asociación, a los miem-bros de las fuerzas armadas y de la policía” (PA-CHECO GOMES, 1987, p. 189, 190, 197, 202).

77 BRASIL. Decreto Legislativo no 226, de 1991.Aprova os textos do Pacto Internacional sobre Di-reitos Civis e Políticos e do Pacto Internacional so-bre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. DiárioOficial da União, Brasília, p. 028838, col. 2, 13 de-zembro de 1991.

78 BRASIL. Decreto Legislativo no 27, de 26 demaio de 1992. Aprova o texto da Convenção Ame-ricana sobre Direitos Humanos (Pacto São José),celebrado em São José da Costa Rica, em 22 denovembro de 1969, por ocasião da Conferência es-pecializada Interamericana sobre Direitos Huma-nos. Diário Oficial da União, Brasília, p. 006586, col.1, 28 maio de 1992. BRASIL. Decreto no 000678, de06 de novembro de 1992. Promulga a ConvençãoAmericana sobre Direitos Humanos (Pacto de SãoJosé da Costa Rica). Diário Oficial da União, Brasília,p. 015562, col. 1, 09 novembro de 1992.

79 “Artículo 2.2. Cada Estado Parte se compro-mete a adoptar, con arreglo a sus procedimientosconstitucionales y a las disposiciones legislativasdel presente Pacto, las medidas oportunas paradictar las disposiciones legislativas o de otro ca-rácter que fueren necesarias para hacer efectivos losderechos reconocidos en el presente Pacto y que noestuviesen ya garantizados por disposiciones legis-lativas o de otro carácter”.

80 Art. 28 – “Toda pessoa tem direito a que seestabeleça uma ordem social e internacional na qualos direitos e liberdades proclamados nesta Decla-ração se façam plenamente efetivos”.

81 Cf. VESES PUIG, 1983, p. 305.82 Cf. JIMÉNEZ DE ARÉCHAGA, 1987-1989,

p. 44.

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Jarbas Maranhão

Nesses tempos conturbados, urge revi-gorar os valores éticos.

A ética, segundo os jusfilósofos, compre-ende a moral e o direito, normas da condutahumana, respectivamente o Fórum Internume o Fórum Externum, de Thomasius.

Como acentua o saudoso mestre Pauli-no Jacques, a moral é a ética propriamentedita e regula a conduta do homem perantesi mesmo ou em face de sua consciência.

É quase destituída de coercibilidade anão ser a do próprio íntimo do homem,“como o remorso, o arrependimento”, e acensura de outrem, “a má fama, a desconsi-deração pública”.

O Direito, ao contrário, é coercitivo e,quando violado, dispõe da sanção jurídica.“Conta com o poder constrangedor do Esta-do para se fazer valer.”

O Direito é básico para a ordem social.Segundo Gustavo Radbruch, é sinônimo

de vontade e desejo de justiça.Para este professor, não é certa a expres-

são: “tudo que é útil ao povo é direito”.O certo é dizer-se: “só o que for direito é

útil e vantajoso ao povo”.E o antigo mestre da Universidade de

Heidelberg explica as suas palavras, de-monstrando que aquela proposição traria,em seu bojo, os males do arbítrio ilimitado,a violação dos tratados e a ilegalidade.

Escreveu ainda:“Há princípios fundamentais de

Direito que são mais fortes que todo e

Valores do Direito e da Política

Jarbas Maranhão foi Secretário de Estado,Deputado à Constituinte Nacional de 1946,Deputado Federal reeleito, Senador da Repú-blica, Presidente do Tribunal de Contas de Per-nambuco, Professor de Direito Constitucional,Integrante da Centenária Academia Pernam-bucana de Letras e da Academia Brasileira deCiências Morais e Políticas.

Revista de Informação Legislativa300

qualquer preceito jurídico positivo, detal forma que toda lei que os contrarienão poderá deixar de ser privada devalidade.

Há quem lhes chame de DireitoNatural e quem lhes chame DireitoRacional.

Na verdade tais princípios acham-se, no seu pormenor, envoltos em gra-ves dúvidas.

Contudo, o esforço dos séculos con-seguiu extrair deles um núcleo segu-ro e fixo, que se consubstanciou naschamadas Declarações de Direitos doHomem e do Cidadão, e fê-lo com umsentimento de tal modo universal que,com relação a muitos deles, só o siste-mático ceticismo poderá ainda levan-tar dúvidas.”

O professor Gilvandro Coelho, da Uni-versidade Federal e da Universidade Cató-lica, ambas de Pernambuco, em um de seusensaios, manifesta, a respeito, com clareza,o seu pensamento ao escrever que a ordemjurídica não pode ficar ao sabor da vontadedos governantes, ou depender apenas doconsenso de eventuais maiorias parlamen-tares e sim fundamentar-se em valores quese hierarquizam e sejam perenes por cor-responderem a anseios humanos... Daí ha-ver Santo Tomás de Aquino definido a leicomo:“Ordenação racional para o bem co-mum, promulgada pela autoridade social.”

E o professor Gilvandro acrescenta que,entre esses valores, a Justiça é, sem dúvida,o mais importante para o Direito. É o seufim específico, o seu valor fundamento.

Diz ainda que a liberdade e a igualdadesão, nessa ótica valorativa, fins condicionan-tes, que conduzem à ordem social, enquan-to a segurança jurídica, o bem comum e apaz social são valores conseqüênciais. E asgarantias constitucionais e processuais,valores jurídicos instrumentais.

Nesse completo estudo, o autor de Os Va-lores Éticos na Formação Jurídica desenvolveconsiderações sobre a eqüidade, a graça, aanistia.

E amplia sua conceituação sobre a liber-dade e a igualdade.

A primeira, que implica sempre em res-ponsabilidade, serve à realização dos sereshumanos e limita-se pelo bem comum.

Lembra, na oportunidade, as quatro li-berdades básicas na democracia, proclama-das pelo presidente Roosevelt ao tempo daSegunda Guerra Mundial: a liberdade depalavra, a liberdade de religião, a liberdadede necessidades e a liberdade de temores.

A segunda, ou seja, a igualdade determi-na como tratar aos iguais e aos desiguais ese apresenta, conforme o jurista GiovanniSartori, em seus aspectos de igualdade soci-al, de igualdade política e de igualdade deoportunidades.

A nobre legenda da Revolução Francesa– liberdade, igualdade, fraternidade – é não sóedificante como essencial à ordem jurídica,ao bem comum, à ordem e à paz social.

Em fases de desordem ou anarquia, o Es-tado democrático usa de medidas emergen-ciais, como, na atual Constituição do Brasil,o Estado de Defesa e o Estado de Sítio.

Referimo-nos à ordem social, à ordem ju-rídica, à paz social e ao bem comum. Outroprincípio construtivo da coexistência har-mônica é o da segurança jurídica.

Ordem Social

A ordem social repousa em princípios éti-cos, “que cumpre ao direito respeitar”.

Segundo o saudoso professor PaulinoJacques, em um de seus livros, a ordem soci-al é situação de equilíbrio estabelecida emface de princípios preexistentes aos fatos so-ciais (as leis sociológicas). E acrescenta: sãoelementos da ordem social:

a) o equilíbrio dos fatos sociais resultan-te da incidência das leis sociológicas sobreeles;

b) a preexistência das leis sociológicasatuando sobre os fatos.

Ordem jurídica

A ordem jurídica é essencial à garantiadas liberdades, à segurança, ao desenvolvi-

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mento do indivíduo humano e ao bem co-mum. Até porque, se não existe direito semsociedade, não existe sociedade sem direito.

E é ainda Paulino Jacques quem apontaos elementos da ordem jurídica:

a) o equilíbrio dos fatos jurídicos decor-rente da incidência das leis jurídicas sobreeles;

b) a preexistência das leis jurídicas, atu-ando sobre os fatos.

Segurança jurídica

A segurança jurídica é uma das razões doDireito. O respeito às situações jurídicasdefinitivamente constituídas (direito adqui-rido, ato jurídico perfeito e coisa julgada) éimprescindível.

A estabilidade dessas situações consti-tui o fundamento da segurança jurídica –“que é apenas um dos aspectos da seguran-ça pública, a qual deve presidir as ativida-des globais do Estado”.

Segurança pública que, segundo a nos-sa Constituição, é dever do Estado, direito eresponsabilidade de todos.

A. Sampaio Dória (Direitos do homem.São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1942. p.256-257, v. 2) ensina: a Segurança Jurídica “re-quer a inserção das liberdades em Consti-tuição escrita, garantidas por habeas corpus,mandados de segurança, interditos posses-sórios e outros instrumentos de garantia...limites sagrados que a nação soberana sedá a si mesma.

“Nem ao povo na praça pública,inorgânico, apaixonável, nem ao go-verno, no legislativo ou no executivo,é prudente confiar um poder onipo-tente, ainda que no intuito de assegu-rar aos indivíduos os seus direitos elhes promover o bem comum, de que omais alto é o respeito à liberdade”.

Quanto à Segurança Nacional, há umaconcepção nova, segundo a qual não é maisa segurança mantida unicamente pelas For-ças Armadas, mas defendida por grupossociais e pelo próprio indivíduo, como pelaciência e pela tecnologia, pelo pensamento

e pelo humanismo que possam haver nasociedade.

Paz Social

A paz social foi conceituada pelo autorde “Valores Éticos na Formação Jurídica”com a definição de Santo Agostinho:

“O tranqüilo conviver na ordem.”E com a expressão consagrada do profe-

ta Isaias:“O fruto da justiça será a paz e a

obra da justiça será a tranqüilidade esegurança para sempre.”

Concluindo com as seguintes palavras:Não se obtém a paz preparando a guerra,como diziam os romanos, mas realizando ajustiça.

Bem comum

O Estado não foi criado senão para ga-rantir as liberdades humanas e assegurar obem comum.

O bem comum é, ao mesmo tempo, bem dapessoa e bem do todo social. É de essênciamoral e política.

O professor Arthur Machado Paupério,da UFRJ e membro da Academia Brasileirade Ciências Morais e Políticas, enumera ascondições necessárias à realização do bemcomum – o que me é grato transcrever:

1o) Uma ordem econômica que dê à soci-edade a base material desse bem comum efaça chegar a todos os recursos que impul-sionam o livre desenvolvimento da perso-nalidade;

2o) Uma ordem jurídica, capaz de dar aobem comum a necessária garantia de suarealização, inclusive de segurança;

3o) Uma ordem educacional, capaz de le-var, sobretudo às novas gerações, o acervocultural acumulado pela sociedade e doqual cada um depende para desenvolver-sepessoalmente;

4o) Uma ordem política, capaz de pro-mover o desenvolvimento das três ordensanteriores.

Esses valores que acabo de sumariar, ne-cessários à uma ordem jurídica e à uma or-

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dem social moralmente saudáveis, sãoigualmente matéria de estudo da ciênciapolítica e se constituem suportes imprescin-díveis à formação do regime democrático.

Regime baseado na liberdade, nos direi-tos não somente civis, como nos direitos po-líticos, econômicos, sociais e culturais do ho-mem. E que tem na igualdade de oportuni-dades um de seus pilares.

Regime fundado na justiça, no direito,na lei, conforme o conselho de Cícero:

“Sejamos servos da lei para sermoslivres.”

Regime no qual deve sempre crescer aárea de participação política e a sua trans-parência.

Regime oriundo de uma AssembléiaConstituinte e da promulgação de uma Car-ta Magna, inspirada na realidade nacional,nas motivações da época e nos ideais de li-berdade, igualdade e solidariedade.

Já nos idos de 1933, o saudoso professore estadista Agamemnon Magalhães doutri-nava que a sociedade contemporânea have-ria de ter por base a interdependência detodos os valores sociais e que o fenômenoda solidariedade social dominaria todas asconstruções políticas.

Por isso, nos dias de hoje, é melhor de-signar o chamado Estado de Direito de Esta-

do Social de Direito, dado o seu teor e o revi-goramento da democracia sob os estímulosda solidariedade social.

Os desencontros entre as classes e ospovos, o choque de culturas, o antagonismode civilizações podem gerar e geram o pes-simismo, mas não sufocam nem destroemas nobres aspirações do espírito.

Acertando ou errando, com utopias ourealismos, os homens continuam a desejarum mundo mais justo e fraterno.

Aludi à Carta Magna. Que a Constitui-ção seja de fácil entendimento e interpreta-ção pelo povo e difundida nas escolas, uni-versidades, ambientes de trabalho, ondehouver condições, de modo a favorecer a for-mação de u’a mentalidade constitucional,de úteis resultados para o exercício da cida-dania.

É preciso ver o Texto Supremo como elerealmente é: uma lei de extraordinário teorpolítico. A Constituição é Direito e Políticaa um só tempo.

Direito, como norma que disciplina asrelações sociais, que traça os rumos para aconduta de governantes e governados.

Política, como resultado de escolhas e de-cisões, pela inspiração ideológica e por tra-tar do Estado, do Governo e dos Direitos doHomem.

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Bruno Galindo

1. O conceito de constituição comoproblema da teoria da constituiçãoO debate histórico e atual acerca do que

seja uma constituição nunca tem fim, sim-plesmente pelo fato de a teoria da constitui-ção não ter construído um conceito razoa-velmente preciso para tal fenômeno políti-co-jurídico. A depender do conceito de cons-tituição que se adote, a resposta à indaga-ção que tem suscitado tantos debates entreos constitucionalistas britânicos, qual seja,se o Reino Unido1 possui ou não constitui-ção, pode ser diversa, tanto em um sentido,quanto em outro.

Em verdade, o debate proposto nestasconsiderações iniciais é muito antigo. Apartir do século XVIII, ele ganha uma enor-me importância em virtude dos fenômenosconstitucionais insurgentes nos Estados

A teoria da constituição no common lawReflexões teóricas sobre o peculiar constitucionalismobritânico

Bruno Galindo é Professor Adjunto da Uni-versidade Federal do Rio Grande do Norte (Gra-duação e Mestrado em Direito); Professor eCoordenador de Pós-Graduação da Faculdadede Direito de Caruaru/ASCES; Doutor em Di-reito Público pela Universidade Federal dePernambuco/Universidade de Coimbra-Portu-gal; Mestre em Direito Público pela Universi-dade Federal de Pernambuco.

Sumário1. O conceito de constituição como proble-

ma da teoria da constituição. 2. As memóriasconstitucionais do Reino Unido: da Magna Char-ta Libertatum ao Bill of Rights. 3. A evolução cons-titucional britânica a partir do século XVIII: asedimentação gradativa de um constituciona-lismo sui generis . 4. As principais característi-cas do constitucionalismo britânico. 4.1. Dis-tinção entre direito da constituição (law of theconstitution) e convenções constitucionais (cons-titutional conventions). 4.2. A supremacia do par-lamento: entre a tradição e as possibilidadescontemporâneas.

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Unidos e na França. Nesses dois países, te-mos a ocorrência de acontecimentos profun-damente transformadores das respectivassociedades. As instituições políticas e jurí-dicas, conseqüentemente, também são afe-tadas pela Independência das Treze Colô-nias e pela Revolução Francesa, movimen-tos de inspiração liberal e democrática, in-fluenciados pelo Iluminismo e seus escrito-res reformadores e, por vezes, revolucioná-rios como Rousseau.

Para o nosso debate, o mais importanteacontecimento, entre tantos de variadas or-dens no Século das Luzes, é o surgimento,tanto nos EUA como na França, das consti-tuições codificadas (na maioria das vezesdenominadas de “escritas”). A proposta dereunir as normas constitucionais em umcorpo único, como um código normativo,ganha contornos concretos nos dois paísesapós a transformação política revolucioná-ria por que passam. Nos EUA, a libertaçãocolonial faz surgir um novo Estado, comuma intencionalidade (ao menos formal) deser um país bem diferente do que é a sua ex-metrópole inglesa. Na França, a revolta daclasse burguesa contra as amarras do abso-lutismo monárquico propicia o advento domovimento revolucionário que necessitaafirmar-se como poder social legítimo. Emambos os casos, a constituição codificadaem um único documento serve a esse pro-pósito. Redigir em um documento solene eaprovado por uma assembléia constituinte aorganização do poder político do Estado e oslimites à atuação deste último, além dos di-reitos fundamentais dos cidadãos, é o modoencontrado pelos revolucionários francesese norte-americanos para regulamentarem so-cialmente as condutas dos agentes estatais edos cidadãos no espírito iluminista liberal.

O surgimento da Constituição dos EUA,em 1787, e da Constituição da França, em1791 (com a antecessora Declaração dosDireitos do Homem e do Cidadão, de 1789),é o divisor de águas do debate constitucio-nal. Até então, não há constituições codifi-cadas e essa discussão acerca dos países

terem ou não constituição é irrelevante. Tudomuda com o novo constitucionalismo libe-ral e o seu conceito para a constituição que,com o passar dos anos, torna-se o conceitopredominante e permanece até os nossosdias, apesar da instabilidade conceitual apartir do aprofundamento da integraçãoeuropéia (GALINDO, 2004, p. 35 et seq.,2002a, passim). Contudo, é curioso perce-ber que, pelo menos desde a Grécia antiga ea polis ateniense, há referências constitucio-nais em sentidos, no mais das vezes, diver-sos dos que são referidos a partir do consti-tucionalismo liberal do século XVIII. É im-perioso, portanto, se queremos discutir ci-entificamente a existência ou não de umaconstituição no Reino Unido, não ficarmosadstritos a uma uniformidade conceitualque, embora possa ser cômoda, não ajudaem nada no esclarecimento do problema.

As mais remotas referências a constitui-ções são geralmente atribuídas a Aristóte-les. Como se não bastasse a sua influêncianas instituições atenienses em termos de fi-losofia política, é Aristóteles o primeiro teo-rizador do fenômeno constitucional que eleconcebia como a forma essencial do Estado.

Não havia em Aristóteles qualquer refe-rência à hierarquia normativa ou à supre-macia constitucional em relação às demaisnormas jurídicas. Para ele, constituição é aestrutura política da polis, que ordena a dis-tribuição dos cargos governamentais, a de-terminação do poder governamental supe-rior e a finalidade da comunidade política2.Analisa o ser constitucional aliado a con-teúdos ético-sociais, construindo um con-ceito empírico-axiológico de constituição(Cf. ARISTÓTELES, 1998, p. 105; NEVES,1994, p. 54; VERDÚ, 1994, p. 19).

É bom esclarecer que a palavra original-mente utilizada por Aristóteles é politeia, quepassa a ser correntemente traduzida comoconstituição a partir do século XVIII, masnão é a única acepção possível do termo, poishá controvérsias acerca de sua tradução (Cf.CANOTILHO, 1999, p. 50; DANTAS, 1999,p. 103-105; NEVES, 1994, p. 54-55).

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O termo constituição tem origem no vo-cábulo constitutio, utilizado pelos romanos.É utilizado tanto para traduzir a palavragrega politeia, como assume outros signifi-cados. Sobretudo por influência de Cícero,o vocábulo assume o significado de organi-zação jurídica da civitas romana (equivalentea polis grega). A maior predominância dosaspectos técnico-jurídicos e um certo distan-ciamento do telos axiológico apontado porAristóteles diferenciam Cícero do filósofoateniense quanto ao conceito de constitui-ção (VERDÚ, 1994, p. 18-19). Mais uma vez,a noção de constituição confunde-se com aidéia de ordem jurídica, compreendendo asnormas de direito positivo em geral, sem asidéias concernentes ao constitucionalismoda modernidade.

Na Idade Média, apesar do surgimentode documentos constitucionalmente impor-tantes, como a Magna Charta Libertatum(1215) que comentaremos adiante, ainda hánebulosidade acerca da idéia de constitui-ção. Somente no final da Idade Moderna éque temos o debate conceitual efetivamenteestabelecido a partir das experiências revo-lucionárias norte-americana e francesa.

A partir das ditas revoluções e da ascen-são do constitucionalismo liberal, ganhaimportância a questão destas consideraçõesiniciais. “O que é uma constituição?”, per-guntam todos, já que, se considerarmos quebritânicos, norte-americanos e francesespossuem constituições, torna-se evidenteque estamos falando de coisas distintas aoutilizarmos o vocábulo. Se o conceito for omesmo, é difícil equipararmos as experiên-cias dos EUA e da França com o singularexperimento britânico. São necessários con-ceitos distintos para aceitar a existência deuma constituição do Reino Unido, tão dife-rente das que usualmente conhecemos, no-tadamente para os brasileiros habituadoscom uma constituição codificada, à seme-lhança com o modelo europeu continentalde inspiração francesa, assim como algumainfluência norte-americana, embora menordevido às origens do constitucionalismo dos

EUA serem, em última análise, britânicas,apesar da tentativa dos sobrinhos do TioSam de se afastarem do common law inglês.

O que chamamos aqui de modelo euro-peu continental de inspiração francesa é omodelo de constituição que se consagra naEuropa continental (visto que a Grã-Breta-nha é uma ilha européia separada do conti-nente). Praticamente todos os Estados euro-peus ocidentais (e atualmente até mesmo osdo leste europeu, saídos do regime socialis-ta) adotam um modelo de constituição cu-jas principais características são, em geral:

1) em termos formais, a supremacia hie-rárquico-normativa, a rigidez (imutabilida-de relativa), o controle de constitucionali-dade e a forma escrita codificada;

2) em termos substanciais, a regulamen-tação fundamental da organização e fun-cionamento do aparato estatal e a relaçãodos direitos fundamentais mais relevantesconcernentes aos cidadãos, alegáveisdogmaticamente contra os demais cidadãose/ou grupos de cidadãos e contra o próprioEstado.

Além da própria prática constitucionaldos Estados, em especial após a SegundaGuerra Mundial e a progressiva democrati-zação da Europa ocidental, há uma crescen-te sedimentação teórica que vai do séc. XVIIIao séc. XX que estabelece pouco a poucopadrões conceituais que se tornam usuaisnesses países e também nos que estão sob asua esfera de influência, como o Brasil. Nãohá dúvida que inúmeros autores contribuí-ram ao longo de mais de dois séculos para acriação de tais padrões, mas aqui destaca-mos a contribuição de apenas dois, separa-dos por mais de um século: EmmanuelSieyès e Hans Kelsen.

O primeiro estabelece uma sólida teoriado poder constituinte, diferencia este em re-lação aos poderes constituídos (legislativo,executivo e judiciário), e ainda propugna poruma teoria da representação política e pro-põe a idéia de controle de constitucionali-dade das leis (BARACHO, 1979, p. 17;BONAVIDES, 1997, p. 120; CANOTILHO,

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1999, p. 64-67; SALDANHA, 2000, p. 77-78;SIEYÈS, 1997, p. 97-98).

O segundo, ao propor uma teoria purado direito, estrutura este em uma gradua-ção hierárquica na qual a constituição ocu-pa a supremacia normativa em relação aosdemais atos de natureza jurídico-positiva.Para assegurar a supremacia constitucional,são estruturadas teoricamente algumas pro-posições, tais como: a rigidez constitucio-nal (que consagra uma espécie de imutabi-lidade relativa da constituição), pois a cons-tituição só pode ser alterada por um proces-so legislativo mais difícil do que o existentepara a modificação das normas infraconsti-tucionais; o controle de constitucionalida-de destas últimas, ou seja, a possibilidadede que cortes judiciais ou outros órgãos es-tatais possam anular atos normativos quecontrariem a constituição, estruturando aidéia de jurisdição constitucional (KELSEN,1984, passim, 1998, p. 168-170, 182-184,2003, passim).

As características substanciais que refe-rimos acima são oriundas da contribuiçãoideológica liberal, consubstanciadas no art.16 da famosa Declaração dos Direitos doHomem e do Cidadão: “toda sociedade naqual não esteja assegurada a garantia dosdireitos (fundamentais – grifo nosso) e a se-paração de poderes determinada não pos-sui constituição”. Esses caracteres perma-necem como conteúdo mínimo fundamen-tal de toda e qualquer constituição inspira-da nas idéias da modernidade, embora osurgimento do constitucionalismo social noséc. XX exija novos conteúdos para a cons-tituição, tornando-a um instrumento de con-sagração de direitos sociais e econômicos enão apenas individuais. Mas isso não ex-clui os caracteres liberais clássicos do art.16 da declaração francesa, antes os comple-menta e os condiciona (mais pormenoriza-damente em GALINDO, 2003, p. 61 et seq.).

Se considerarmos um conceito de cons-tituição que exija a presença dos caracteresformais esboçados acima, podemos afirmarcom segurança que o Reino Unido não pos-

sui uma constituição. Por outro lado, se le-varmos em conta apenas os aspectos subs-tanciais, com uma certa relativização no quediz respeito à idéia de separação de pode-res, pode-se dizer que há uma constituiçãobritânica, na medida em que existem no Rei-no Unido normas regulamentadoras dosfundamentos organizacionais do Estado,assim como cartas de direitos fundamentaisdos cidadãos.

A partir do exposto, analisemos a cons-trução do constitucionalismo britânico, ob-viamente sem a menor pretensão de exaurira temática.

2. As memórias constitucionais doReino Unido: da Magna Charta

Libertatum ao Bill of Rights

Conhecer o direito constitucional do Rei-no Unido é conhecer a sua história3. Maisdo que em qualquer outro país ocidental, odireito constitucional britânico é fruto desuas tradições e consolidações históricas,mais do que de fórmulas racionais estrutu-radas legislativa ou constitucionalmente.Daí a importância dessas memórias consti-tucionais.

Tida por muitos como o primeiro docu-mento constitucional escrito, a Magna Char-ta Libertatum, de 1215, é, sem dúvida, o pon-to de partida histórico para o constitucio-nalismo em terras inglesas. Na verdade, tra-ta-se de uma carta de direitos destinadaapenas aos nobres feudais, insatisfeitos coma política desenvolvida pelo Rei João SemTerra, especialmente no que diz respeito àtributação. Não se trata de uma revoluçãoclassista ou de uma ruptura drástica com omodelo anterior; antes, ao contrário, os se-nhores feudais desejam estabelecer docu-mentalmente a confirmação de seus privilé-gios e liberdades existentes em regras con-suetudinárias e que se vêem ameaçados pe-los decretos reais. É bom salientar que o feu-dalismo inglês se desenvolve de forma di-versa do feudalismo europeu continental ehá, já nessa época, uma centralização mo-

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nárquica semi-absolutista, o que antecipatambém as lutas antiabsolutistas modernas,embora os direitos e liberdades sejam ape-nas para os “homens livres”, os pertencen-tes a setores privilegiados da sociedade(CANOTILHO, 1999, p. 65; DAVID, 1998,p. 285). Apesar disso, é no documento me-dieval inglês que surgem importantes ins-trumentos de garantias de direitos funda-mentais, assim como limitações ao poder es-tatal, tais como o princípio da legalidadetributária e penal, e a ação de habeas corpus.

A luta antiabsolutista que toma vulto noséc. XVIII tem uma antecipação em mais deum século no solo inglês, talvez devido aomaior centralismo existente desde a IdadeMédia. Na Idade Moderna, as lutas religio-sas, que culminam com o embate entre ossúditos leais ao Rei Charles I e os puritanosde Oliver Cromwell, propiciam o surgimen-to de novos documentos constitucionais. Em1628, surge o Petition of Rights como conces-são de Charles I que, no entanto, fez dessacarta de direitos, que reforça a legalidadetributária e as garantias penais dos cida-dãos, entre outras, praticamente letra mor-ta. Com a queda do monarca e a ascensãode Cromwell, temos o efêmero período re-publicano na Inglaterra, com a outorga em1653 do Instrument of Government, conside-rado por alguns como a primeira constitui-ção escrita (LOEWENSTEIN, 1964, p. 158).Curiosamente, essa efêmera carta constitu-cional tem poucos caracteres das constitui-ções modernas: não possui catálogo de di-reitos, nem separação de poderes. Apesardisso, estabelece uma superioridade hierár-quica em relação aos atos regulares doParlamento e a organização institucional daRepública Inglesa. Mas o Instrument ofGovernment não sobrevive à morte do seuautor, assim como a própria República(CUNHA, 2002, p. 130-131, 137-138).

Com a restauração monárquica, surgemoutros atos como o Habeas Corpus Act de1679, e, finalmente, o célebre Bill of Rights,de 1689, que legitima juridicamente a mu-dança dinástica ocorrida com a Revolução

Gloriosa de 1688. Esta, com a fuga do mo-narca, ocorre praticamente sem derrama-mento de sangue, em contraste com o res-tante do sangrento séc. XVII inglês. São pro-clamados monarcas William e Mary deOrange e estabelecidas normas de sucessão.É firmado um catálogo de direitos e liberda-des extensivos aos comuns (portanto, nãosomente às classes nobres privilegiadas),que dizem respeito: aos poderes do Parla-mento e suas relações com a Coroa; às leis,sua execução e suspensão; aos tributos; aoexército, seu recrutamento e manutenção; àseleições, liberdade de expressão, penas esentenças; entre outros (CUNHA, 2002, p.137-138)4. É a partir daqui que se pode con-ceber uma nova evolução constitucionalentre os britânicos.

3. A evolução constitucionalbritânica a partir do século XVIII: a

sedimentação gradativa de umconstitucionalismo sui generis

Do ponto de vista formal, a história cons-titucional britânica nasce com a RevoluçãoGloriosa e o Bill of Rights. Pela primeira vez,há uma carta constitucional que, de certomodo, está de acordo com aquele conceitosubstancial que discutimos no ponto 1 des-te ensaio, inclusive com a aprovação por umpoder constituinte tido como autêntico(STRECK, 2002, p. 242).

Entretanto, essa Carta não possui a es-truturação codificada que caracteriza asmodernas constituições pós-revolucionári-as. Não é uma carta totalizante, não derro-ga os atos constitucionais anteriores, assimcomo não é protegida por critérios de modi-ficação mais rigorosos do que os estabeleci-dos para a modificação da legislação ordi-nária proveniente do Parlamento.

Ao longo de três séculos (XVIII, XIX eXX), consolidam-se princípios constitucio-nais e são expedidos atos constitucionaisespecíficos, sem uma preocupação efetivacom uma codificação sistematizada dos pre-ceitos constitucionais ou com mecanismos

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de proteção a estes. As proteções formais àconstituição britânica são muito tênues,quase inexistentes, e a sua consagração tem-se dado muito mais pela força material edimensão político-institucional dos seuspreceitos do que pela existência de garanti-as formalizadas.

Não é difícil perceber que o Reino Unidonão possui uma constituição sistematizadaem um único documento, como o Brasil, osEUA, a França ou a Alemanha. Por outrolado, parece-nos de afastar a idéia de quenão há uma constituição britânica. Juízes,políticos e doutrinadores do Reino Unidofreqüentemente fazem referência, em termosgerais, a uma constituição; além disso, des-crevem várias regras e princípios como cons-titucionais, assim como muitos juízes e tri-bunais salientam que, em certos casos, há apresença de questões de importância cons-titucional (BARENDT, 1998, p. 26).

Afinal de contas, o que é essa Constitui-ção do Reino Unido?

Pode ser uma questão simples, se consi-derarmos apenas uma definição teórica.Assim mesmo, não é tão simples quantodefinir constituição em um país que a tenhacorporificado em um documento único, àsemelhança de um código. No Brasil e emoutros países, é relativamente simples (aomenos de um ponto de vista formal) dizer oque é ou não norma constitucional. Bastaabrir o código constitucional e conferir osseus dispositivos. Estes ainda recebem umaproteção especial contra modificações fei-tas por maiorias parlamentares eventuais(quorum de três quintos dos deputados e dossenadores, no Brasil, para aprovação deemendas constitucionais), assim como pos-suem um guardião especial de sua obser-vância, geralmente uma corte constitucio-nal, que exerce o controle de constituciona-lidade dos atos normativos infraconstituci-onais que possam estar em conflito com osartigos da constituição.

Nada disso é possível, em termos de de-finição, para a Constituição do Reino Uni-do. Em termos teóricos, a doutrina constitu-

cional britânica consolida, ao longo de trêsséculos, o entendimento segundo o qual fa-zem parte da Constituição britânica:

1) As regras concernentes à estru-turação do Parlamento, do governo eda magistratura, assim como seuspoderes, o exercício destes e o relacio-namento interinstitucional;

2) A proteção dos direitos e liberda-des individuais (tais como liberdade deexpressão e de locomoção), assim comoos direitos políticos (BARENDT, 1998,p. 29)5.

4. As principais características doconstitucionalismo britânico

Autores mais tradicionais, como AlbertDicey (1982, p. CXL passim), afirmam que odireito constitucional britânico compreen-de todas as regras que, direta ou indireta-mente, afetem a distribuição ou o exercíciodo poder soberano no Estado. Nele tantoestão as normas referentes à estruturaçãofundamental dos principais poderes esta-tais, como também as suas limitações (aquise enquadrando os direitos e garantias fun-damentais). Além disso, aponta esse céle-bre doutrinador inglês dois pontos que, nomeu entender, são básicos para a compre-ensão do direito constitucional do ReinoUnido: a) a diferença entre direito da consti-tuição (law of the constitution) e convençõesconstitucionais (constitutional conventions); b)a soberania/supremacia do parlamento.

4.1. Distinção entre direito da constituição(law of the constitution) e convenções

constitucionais (constitutional conventions)

O direito constitucional britânico é com-posto por dois tipos de regras que regulamo exercício do poder político soberano noReino Unido. De um lado, o direito da cons-tituição; de outro, as convenções constituci-onais. Nesses dois tipos de regras estão in-cluídas: a definição dos membros do podersoberano, a regulamentação de suas rela-ções recíprocas, o modo como esse poder

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exerce a sua autoridade, a ordem de suces-são ao trono, as prerrogativas da magistra-tura, o processo legislativo e a forma daseleições parlamentares, entre outras coisas.

No primeiro caso, direito da constitui-ção, podemos afirmar que estão aquelas re-gras que podemos denominar jurídicas emum sentido estrito. Compreendem o direitoda constituição as regras que, uma vez comos conteúdos assinalados acima, sejam con-solidadas pelas cortes judiciais, indepen-dentemente de sua origem, se do direito legis-lado do statute law, ou do direito jurispruden-cial do common law. São regras que, em últimaanálise estabelecem-se pela força que tem ajurisprudência no direito britânico em geral,e em particular no direito da Inglaterra.

E esse é um outro ponto relevante: aocontrário de certos mitos criados em tornodo direito inglês afirmando que o mesmo énão escrito e costumeiro, dá-se concretamen-te o fenômeno inverso: o direito inglês é pre-dominantemente escrito (a parte não escrita– se é que podemos denominá-la assim – éreduzida) e é um direito que, em termos mate-riais, é basicamente jurisprudencial, apesardo princípio da supremacia do parlamento,que será visto adiante (neste sentido Cf. DA-VID, 1998, p. 281 et seq.; BARENDT, 1998,passim; em sentido diverso, Cf. MIRANDA,2002, p. 75-76).

O common law, muitas vezes referidocomo direito não escrito e como direito cos-tumeiro, não é nem uma coisa nem outra.Ele é escrito, na medida em que surge dasdecisões judiciais, sobretudo dos Tribunaisde Westminster, que consolidam, a partir doséc. XIII, um direito comum a toda a Ingla-terra, em oposição aos costumes locais. Tam-bém não é costumeiro, visto que surge dajurisprudência e vem justamente tomar olugar de determinados costumes (DAVID,1998, p. 286 et seq.). Consiste fundamental-mente nos precedentes judiciais que possu-em força obrigatória. No caso do direito cons-titucional, somente os precedentes referen-tes às matérias constitucionais é que pas-sam a fazer parte do direito da constituição.

O statute law, por sua vez, compreendeos diversos atos oriundos do Parlamentoque regulamentam as aludidas matériasconstitucionais. Fazem parte do statute lawa Magna Charta Libertatum (1215), o Petitionof Rights (1628), os Habeas Corpus Acts (1679e 1816), o Bill of Rights (1689), o Act of Settle-ment (1701), os Judicature Acts (1873-1875),os Acts of Parliament (1911 e 1949), o Statuteof Westminster (1931), o European Communi-ties Act (1972) e o Human Rights Act (1998),apenas para citar os mais importantes(CUNHA, 2002, p. 138-139; DAVID, 1998,p. 300; DICEY, 1982, p. CXL et seq.; HAR-TLEY, 1999, p. 168 et seq.; O’NEILL, 2002,p. 724 et seq.; STRECK, 2002, p. 247).

O common law, o statute law e os costumese tradições jurídicas aceitos como tais pelostribunais compõem o chamado direito daconstituição.

As convenções constitucionais, por suavez, seriam o que Dicey (1982, p. CXLI) de-nomina de “moralidade constitucional”.São convenções, entendimentos, hábitos oupráticas que, embora não consolidadas pe-las cortes judiciais, regulam a conduta demuitos membros do poder soberano, taiscomo ministros e os próprios parlamenta-res, entre outros. São regras convencionaisde conduta ordinária dessas pessoas que sesedimentam na prática constitucional britâ-nica ao longo do tempo, de modo que se tornaum impensável contra-senso desrespeitá-las.

As mais importantes convenções consti-tucionais estão relacionadas com os limitesdos poderes legais do monarca e com a re-gulação das relações recíprocas entre gover-no e parlamento.

Quem observar somente os atos consti-tucionais formais do Reino Unido pode in-correr em inúmeros equívocos compreensi-vos, notadamente se utilizar os tradicionaisparadigmas racionalistas a que estamoshabituados. Em termos de estrito direitoconstitucional formal, o monarca pode, porexemplo, recusar conceder o AssentimentoReal (Royal Assent) ao nome do PrimeiroMinistro escolhido pela bancada parlamen-

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tar majoritária da Câmara dos Comuns eescolher livremente o Primeiro Ministro. Porsua vez, o princípio da responsabilidadecoletiva do Gabinete, segundo o qual háuma responsabilização solidária de todosos ministros pelas decisões do Gabinete,também não consta em nenhum documentoconstitucional. No entanto, esse princípiosedimenta-se na prática parlamentaristabritânica, assim como o Royal Assent não érecusado ao líder do partido majoritário háquase trezentos anos (BARENDT, 1998, p.40 et seq.). Também a exigência de que so-mente um Lorde Jurista (Law Lord) possa to-mar parte nas decisões da Câmara dos Lor-des quando esta atua como Corte de Apela-ção é comumente enquadrada como conven-ção constitucional (DICEY, 1982, p. CXLII).

As convenções constitucionais, apesarda aparente informalidade, regulam parteimportante do direito constitucional britâ-nico, e este é incompreensível se não as es-tudarmos. Nesse ponto, elas se aproximamdos “fatores reais de poder” descritos porLassalle, embora o direito da constituiçãotambém integre estes últimos.

Ainda em relação às convenções consti-tucionais, pode-se dizer que são a parte efe-tivamente consuetudinária da constituição,na medida em que se trata de consolidaçõesde costumes parlamentares e/ou governa-mentais. Porém, dizer que são não escritas,no meu entender, é passível de discussão.Não se pode esquecer que as mesmas sãodireta ou indiretamente reduzidas a termonos documentos oficiais solenes, assimcomo existe até mesmo a possibilidade deser verificada a sua existência nas cortes quedeclaram ou não a existência da convenção,e tudo isso é feito de forma escrita. Daí anossa discordância, com a devida venia agrandes mestres como Dicey, em caracteri-zar tais normas como não escritas.

4.2. A supremacia do parlamento: entre atradição e as possibilidades contemporâneas

Se perguntarmos aos constitucionalistasbritânicos qual a principal característica do

direito constitucional do Reino Unido, se-guramente responderão: a supremacia doparlamento (BARENDT, 1998, p. 86-89;DICEY, 1982, p. 3; HARTLEY 1999, p. 168;MIRANDA, 2002, p. 74)6. Mas, em verdade,no que consiste essa supremacia parlamen-tar?

Para responder, é necessário mais umavez proceder a alusões retrospectivas. Des-de a Magna Charta Libertatum, ainda na Ida-de Média, o constitucionalismo britânico sedesenvolve basicamente nas lutas entre omonarca e os súditos, sobretudo nas ques-tões referentes à limitação dos poderes doprimeiro. Basta observar que todas as car-tas inglesas de direitos até o séc. XVII são oproduto legislativo das tentativas limitado-ras por parte dos representantes dos súdi-tos (embora muitas vezes não os represen-tem por inteiro). Sempre traduzem uma cer-ta desconfiança em relação ao monarca epropugnam por esses limites, que, em ter-mos políticos, são estabelecidos a partir dasuposta vontade democrática e popular.Antes de qualquer outro país europeu, háuma rejeição do absolutismo monárquico euma aspiração por uma monarquia consti-tucionalmente limitada e por um órgão re-presentativo dos súditos que efetivamentedetermine a direção política do Estado.

O único órgão apto a desempenhar sa-tisfatoriamente essa função seria o Parla-mento.7

No Reino Unido, o Parlamento é estru-turado em duas câmaras: a Câmara dos Lor-des (House of Lords) e a Câmara dos Comuns(House of Commons), sendo a primeira repre-sentativa dos nobres cuja investidura não éeletiva, e a segunda representativa dos sú-ditos que não detêm títulos de nobreza (daíserem chamados de “comuns”), eleitos di-retamente pela população. Pode-se falar queexiste no Reino Unido uma espécie de bica-meralismo aristocrático. Ao longo do tem-po, a competência efetivamente legislativada Câmara dos Lordes é esvaziada pela cri-ação de convenções constitucionais queposteriormente se transformam nos dois

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Parliament Acts (1911 e 1949), que estabele-cem a predominância da Câmara dos Co-muns nas questões legislativas e governa-mentais. Subsistem importantes atribuiçõesjudiciais para os Lordes, notadamente as doComitê de Apelação (Appellate Committee),formado por Lordes Juristas (Law Lords), eque funciona como um último grau de re-curso judicial no Reino Unido.

Poder legislativo formado em grandeparte por representantes eleitos diretamen-te pelos súditos de Sua Majestade, é o Parla-mento britânico a instância adequada e con-fiável para a sociedade atribuir um conjun-to de poderes e prerrogativas para o desem-penho não somente das funções legislati-vas, mas de funções executivas governamen-tais, o que ocorre com o tempo e o desenvol-vimento do sistema parlamentarista com umGabinete e um Primeiro Ministro oriundosda agremiação partidária que obtém a mai-or parte dos votos populares nas eleições.Somente o Parlamento teria legitimidade,pelo seu grau de representatividade, paradeterminar efetivamente a direção políticado Estado e as obrigações e direitos atribuí-dos aos súditos.

A partir daí, desenvolve-se, ao longo detrês séculos, a idéia da soberania ou supre-macia do parlamento como princípio cons-titucional fundamental no Reino Unido. Étalvez o mais importante dos princípiosconstitucionais britânicos e produz conse-qüências teóricas e práticas igualmente re-levantes. Vejamos.

Por incrível que possa parecer, o princí-pio da supremacia do Parlamento significa(ao menos em um sentido formal) precisa-mente a idéia de que as decisões fundamen-tais são provenientes desse órgão sem a pos-sibilidade de revisão por parte de qualqueroutro órgão estatal. Não há, em princípio,limites formais ao poder do Parlamento. Parase ter uma idéia da dimensão da suprema-cia parlamentar, De Lolme afirma, com umcerto exagero, que o Parlamento pode fazertudo, menos transformar mulher em homeme homem em mulher (isso no séc. XIX, pois

com a disseminação das cirurgias de mu-dança de sexo, até isso o Parlamento pode-ria nos dias atuais, a estar correta a obser-vação de De Lolme) (DICEY, 1982, p. 5).

A idéia é, portanto, de que o Parlamentonão tem limitações ao seu poder, podendorevogar quaisquer das cartas de direitos eliberdades fundamentais, os atos constitu-cionais em geral e até mesmo proceder a umamodificação na forma e no sistema de go-verno, transformando o Reino Unido de umamonarquia parlamentarista em uma repú-blica presidencialista. Em termos formais,não há supremacia hierárquico-normativa,não há dispositivos pétreos imutáveis, nãohá procedimentos mais difíceis para a re-forma constitucional do que os estabeleci-dos para a modificação das leis em geral,assim como não existe controle judicial deconstitucionalidade dos atos do Parlamen-to (BARENDT, 1998, p. 86-89; DICEY, 1982,p. 3; HARTLEY, 1999, p. 168; WEILL, 2003,passim). Tudo isso tem conseqüências im-portantes para a construção de uma teoriada constituição britânica. Vejamos quaissão.

1) Inexistência de supremacia hierárqui-ca dos atos constitucionais em relação aosdemais atos do Parlamento. Não há, no Rei-no Unido, a determinação de que os atos doParlamento tenham hierarquia entre si, demodo que não se pode falar em normas cons-titucionais como normas hierarquicamentesuperiores às leis e atos infraconstitucionaisa que estamos acostumados na Europa con-tinental e no Brasil.

2) Não há dispositivos constitucionaisimutáveis. O que conhecemos no direitoconstitucional brasileiro como “cláusulaspétreas” (CF, art. 60) também inexiste noReino Unido. Qualquer norma constitucio-nal pode ser modificada, até mesmo a formae o sistema de governo, como afirmamosacima.

3) Não há maior dificuldade para a re-forma dos atos constitucionais do que paraos atos legislativos comuns. Com a mesmamaioria parlamentar, é possível modificar

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uma norma constitucional ou uma lei ordi-nária. Em virtude disso, a Constituição bri-tânica é concebida como uma constituiçãoflexível.

4) Inexistência de um controle judicialde constitucionalidade das leis. Como oParlamento detém supremacia, os seus atosnão podem ser passíveis de revisão judicial(judicial review). Só o próprio Parlamentopode rever os seus atos. Ao contrário do queocorre na maioria dos Estados constitucio-nais da atualidade, não há controle judicialde constitucionalidade, seja na forma difu-sa (deferido a qualquer juiz ou tribunal), sejade modo concentrado (adstrito a um tribu-nal constitucional ou a uma corte específi-ca). Nem mesmo os Law Lords do Comitê deApelação da Câmara dos Lordes podem re-ver os atos parlamentares.

Tendo em vista as considerações feitasaté aqui, o leitor pode vir a pensar que oReino Unido é simplesmente uma ditadurada maioria, com um Parlamento incontrolá-vel e autoritário, determinando despotica-mente a direção política estatal. Simplesmen-te substituíram o absolutismo real por umabsolutismo parlamentar.

Em termos meramente formais, é preci-samente isso. Em termos substanciais, noentanto, é bem diferente. Vejamos.

Dissemos anteriormente que conhecer odireito constitucional britânico é conhecera sua história. Mais do que isso, é conhecersuas tradições e suas práticas, seus costu-mes e sua forma de pensar. Mais que emqualquer outro direito, no caso do ReinoUnido, é mesmo imprescindível esse conhe-cimento.

Ao longo dos séculos, o próprio Parla-mento vem procurando comportar-se demaneira sóbria e moderada, apesar de al-guns momentos despoticamente desviantes,como o caso do Septennial Act (1716)8. Pode-se perceber tal comportamento, por exem-plo, em relação à preservação das normasconstitucionais ao longo do tempo. Veja-sea longevidade do Bill of Rights, do Act of Set-tlement e do Statute of Westminster, todos em

pleno vigor e consolidados social e politica-mente, apesar da possibilidade formal dealteração e até de supressão dos mesmospelo Parlamento. Em termos substanciais,tem-se afirmado como uma constituição atémais rígida do que certas constituições for-malmente classificadas como rígidas, aexemplo do próprio Brasil. O Parlamento,portanto, tem sido prudente na observânciae na modificação dos atos constitucionais,assim como na institucionalização de no-vos atos legislativos dessa natureza.

Um outro dado interessante que confir-ma essa postura parlamentar britânica é autilização, até com uma certa freqüência, daprerrogativa de renunciar à supremacia le-gislativa se presentes motivos relevantespara tal. Situação meramente hipotética nossécs. XVIII e XIX passa a ser concreta no séc.XX. Destacamos três atos que expressamen-te declaram a renúncia à supremacia legis-lativa diante de determinadas motivações:o Statute of Westminster (1931), o EuropeanCommunitties Act (1972) e o Human RightsAct (1998).

O Estatuto de Westminster estabelece em1931 que o Parlamento não poderá legislarpara uma colônia ou domínio britânico semo requerimento ou o consentimento dos mes-mos. É bom lembrar que, nessa época, aindahá muitos e importantes domínios britâni-cos e essa renúncia do Parlamento configu-ra um primeiro passo para a completa inde-pendência que se verifica posteriormente namaioria desses domínios (BARENDT, 1998,p. 89).

O Ato das Comunidades Européias é aconseqüência constitucional da adesão doReino Unido às Comunidades Européias,com a conseqüente aceitação das normaspresentes nos Tratados Comunitários, as-sim como no direito comunitário derivado(CAMPOS, 2002, p. 275). Em virtude desseAto de 1972, o Parlamento cede parte de suasupremacia legislativa aos entes comunitá-rios e aceita, como Estado membro da agoraUnião Européia, a superioridade do direitocomunitário em relação ao direito nacional,

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assim como sua aplicabilidade e efeito dire-tos (Cf. GALINDO, 2002b, p. 103; HILL, 2001,p. 685). Apesar dos problemas em torno daadaptação do Reino Unido à legislação co-munitária, com certas vacilações e recuoscomo no caso da unificação monetária (vis-to que os britânicos não entraram ainda nadenominada “zona euro”), o entendimentopredominante tem sido o de que, como mem-bro da União Européia, o Reino Unido seobriga a determinadas condutas que impli-cam uma renúncia, ainda que não absoluta,à supremacia do Parlamento (HARTLEY,1999, p. 174-175). Alguns, como Bradley, vãoainda mais longe e afirmam a quebra doprincípio da supremacia do Parlamentocom o Ato de 1972 (STRECK, 2002, p. 246).

Parece assistir certa razão ao entendi-mento predominante. É o mesmo entendi-mento consolidado no Comitê de Apelaçãoda Câmara dos Lordes de que a supremaciado Parlamento, a partir do European Com-munitties Act, é relativizada e não pode seroposta ao direito comunitário. Contudo,subsistem restrições a essa relativização quemerecem um exame mais acurado.

Em virtude da dificuldade que ensejariaa possibilidade de, com a aplicação do prin-cípio da lex posteriori derogat priori, qualquerlei implicitamente poder revogar o Ato de1972, assim como impossibilitar a aplica-ção dos atos normativos comunitários, ostribunais têm decidido não aplicar os Atosque conflitem com os dispositivos do direi-to comunitário. Qualquer Ato do Parlamen-to que possa implicitamente revogar aquelalegislação não deve ser aplicado, prevale-cendo a supremacia do direito comunitárioem lugar da supremacia da Câmara dosComuns.

Todavia, há diferença entre a revogaçãoimplícita e a explícita. No segundo caso,prevalece a supremacia do Parlamento, poisa superioridade hierárquica do direito co-munitário somente se verifica com a perma-nência do Reino Unido na União Européia.Se os britânicos se retiram desta última, re-vogando expressamente, mediante novo Ato

do Parlamento, o European Communitties Act,não poderiam os tribunais do Reino Unidodeixar de aplicar o novo Act parlamentar(GALINDO, 2004, p. 270; HILL, 2002, p. 28-32)9.

Por sua vez, o Ato dos Direitos Huma-nos de 1998 nada mais é do que a tardiaincorporação no direito constitucional bri-tânico da Convenção Européia de DireitosHumanos da década de 50. Não obstante ofato de que boa parte dos referidos direitosjá estava consagrada anteriormente em ou-tros Acts, o Ato traz importantes inovações,sobretudo no campo processual. Regula doisnovos procedimentos, a Declaração de In-compatibilidade e o Remédio Judicial, ins-trumentos processuais que propiciam acompatibilidade entre a legislação nacionale a Carta Européia, assim como com a juris-prudência do Tribunal Europeu dos Direi-tos Humanos, possibilitando o afastamen-to da aplicação da lei ou ato que sejam in-compatíveis com a Convenção Européia(BARENDT, 1998, p. 46-48; O’NEILL, 2002,p. 724-726; STRECK, 2002, p. 245-246).

Ademais há controvérsias sobre se de fatoinexiste um judicial review dos atos do Par-lamento no Reino Unido. Tendo em vistaser o direito britânico concretamente um di-reito jurisprudencial, a dimensão efetiva dospróprios Atos do Parlamento termina sen-do dada pela jurisprudência. Destaca RenéDavid (1998, p. 343-344) que, “de fato, asdisposições da lei inglesa acabam rapida-mente sendo submersas por uma massa dedecisões jurisprudenciais, cuja autoridadese substituiu à dos textos legais; o espíritogeral da lei arrisca-se a ser esquecido e afinalidade que ela procurava atingir perde-se de vista, no emaranhado das decisões quese destinaram a resolver, cada uma delas,um ponto de pormenor particular”.

Em adendo ao que diz David, percebe-seque a supremacia do Parlamento, emboranão seja negada diretamente por nenhumjuiz ou tribunal britânico, termina por sermitigada na prática interpretativa das cor-tes judiciais. Fazendo uso de processos in-

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terpretativos, os magistrados ditam senten-ças criativas e, em vez de anular as leis in-constitucionais, interpretam-nas até criaruma nova norma, incorporando-a ao orde-namento jurídico do Estado, por meio datécnica do precedente vinculante. Como as-severa Lafuente Balle, é o que faz a House ofLords: acata o princípio da supremacia doParlamento e reconhece que não pode anu-lar a legislação oriunda deste último, masinterpreta as normas, ditando sentençascorretivas, manipulativas, aditivas, reduti-vas ou diretivas, enfim, o mesmo tipo de sen-tenças criativas que os tribunais constitu-cionais da Europa continental (STRECK,2002, p. 246-247). Tudo pela via interpreta-tiva, verdadeiramente concretizante (Cf.GALINDO, 2003, passim; MÜLLER, 2000,passim).

Para complementar a análise, deve-sefazer menção à discussão que está aconte-cendo no Parlamento britânico, mais preci-samente no Joint Committee on House of LordsReform, uma das comissões parlamentaresexistentes, a possibilidade de criação de umaefetiva jurisdição constitucional, com carac-terísticas semelhantes à norte-americana, oque seria uma verdadeira revolução em umprincípio tricentenário como a supremaciado Parlamento10. É esperar para ver.

Notas1 Note-se que sempre fazemos referência ao

Reino Unido, já que os atos constitucionais britâni-cos têm validade para todo o território que com-preende Inglaterra, País de Gales, Escócia e Irlandado Norte. Até o início do séc. XVIII, ainda se podefalar em um direito constitucional inglês, vigentena Inglaterra e em País de Gales. A partir da uniãocom a Escócia, em 1707, há direitos diversos apli-cados no Reino Unido, um para ingleses e galeses eoutro para escoceses. Mas em termos de direitoconstitucional, passamos a ter um único para todoo Reino Unido, inclusive com a jurisdição da Câ-mara dos Lordes para a Escócia como tribunal su-premo para toda a Grã-Bretanha. Cf. DAVID, 1998,p. 281 et seq.; MIRANDA, 2002, p. 71-72.

2 É importante não confundir o conceito aristo-télico com aquele defendido por Lassalle (1998, p.

32,52) no séc. XIX. O conceito lassalliano afirma adiferença entre constituição formal (que seria umamera “folha de papel”) e constituição real, a verda-deira constituição de um Estado que seria “a somados fatores reais de poder” que efetivamente regemo Estado. O conceito de Lassalle é meramente em-pírico, não possuindo características axiológicas ouformalistas. Para uma visão panorâmica dos con-ceitos clássicos, Cf. SCHMITT, 1996, p. 29 et seq.

3 Para Jorge Miranda (2002, p. 71-73), “Na for-mação e na evolução do Direito constitucional in-glês ou britânico distinguem-se três grandes fases:a) A fase dos primórdios, iniciada em 1215 com aconcessão da Magna Carta (pela primeira vez, por-que diversas outras vezes viria posteriormente aser dada e retirada consoante os fluxos e refluxosda supremacia do poder real; b) A fase de transi-ção, aberta em princípios do século XVII pela lutaentre o Rei e o Parlamento e de que são momentosculminantes a Petição de Direito (Petition of Right)de 1628, as revoluções de 1648 e 1688 e a Declara-ção de Direitos (Bill of Rights) de 1689; c) A fasecontemporânea, desencadeada a partir de 1832pelas reformas eleitorais tendentes ao alargamentodo direito de sufrágio”.

4 É importante destacar o contributo de JohnLocke (1998, p. 479, 514 et seq.) para o legado daRevolução Gloriosa e do Bill of Rights. O filósofoinglês é a grande influência em termos de estrutu-ração de uma teoria de separação e limitação dospoderes estatais em solo britânico e seu discursolegitima a nova ordem revolucionária, apesar desua teoria não ser tão engenhosa como a de Mon-tesquieu. Cf. BONAVIDES, 1996, p. 46-49;GALINDO, 2003, p. 37, 2002a, p. 108).

5 Os direitos sociais não são, em geral, conside-rados no Reino Unido como de importância consti-tucional, prevalecendo entre eles uma teoria consti-tucional liberal. Não obstante isso, o Estado socialtem sido realizado em solo britânico pelo que cha-maríamos de via legislativa ordinária, com a insti-tucionalização de proteções sociais relevantes, ape-sar do liberalismo formal. O Welfare State depende,portanto, diretamente da discricionariedade políti-ca governamental e tem sido revisto a partir daaceitação da ideologia neoliberal pelo governoThatcher, a partir da década de 80 do século XX(Cf. DAINTITH, 1995, p. 136 et seq.).

6 Autores consagrados como os citados Dicey eHartley utilizam a expressão “soberania” do Par-lamento em lugar de supremacia. Mas parece terrazão Barendt quando afirma que a expressão par-liamentary sovereignty deve ser evitada, sobretudopor ser mais usual para designar a afirmação daindependência de um Estado nacional, assim comodas suas prerrogativas mais genéricas. O Professorlondrino é um dos que prefere a expressão suprema-cy e, seguindo sua lição, adotaremo-la aqui.

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7 Charles Mac Ilwain destaca que o fato do Par-lamento britânico ter sido criado ainda na IdadeMédia, faz com que o mesmo tenha peculiares ca-racterísticas da época, dentre as quais a divisãobicameral aristocrática. O autor norte-americanosalienta que o Parlamento não era um law-maker,isto é, não criava direito. Antes se tratava de umacorte judicial, justamente a “corte mais alta” doReino, em sentido muito diverso do que vieram ater os parlamentos e instituições judiciárias moder-nas. Cf. SALDANHA, 2000, p. 53; MIRANDA,2002, p. 75.

8 Em 1716, a duração do mandato dos parla-mentares da Câmara dos Comuns é de três anos,segundo um Ato do Parlamento de 1694, e estãoprevistas eleições para o ano seguinte. O Rei e oMinistério estão convencidos de que eleições geraisem 1717 ameaçam não somente o Gabinete Minis-terial, mas a própria tranqüilidade do Estado, emvirtude da tendência revolucionária de parte do elei-torado britânico de então. Por proposta do Gabine-te, o Parlamento aprova o Septennial Act , que pror-roga o mandato dos parlamentares então compo-nentes da House of Commons de três para sete anos.Sem dúvida, uma violação da confiança popularao sabor das conveniências políticas momentâne-as, considerado por autores como Hallam comoum excesso de prerrogativas e um abuso do princí-pio da supremacia do Parlamento (DICEY, 1982,p. 7). Todavia, momentos como esse são excepcio-nais na história constitucional britânica.

9 Merece transcrição a lição de Barendt (1998, p.99) acerca da questão: “As cortes têm decidido nãoaplicar estatutos que conflitem com dispositivosde direito comunitário diretamente aplicáveis. Aposição seria, quase certamente, bem diferente se oParlamento está a promulgar legislação expressa-mente revogando o Ato das Comunidades Euro-péias de 1972, como uma conseqüência da retiradado Reino Unido da União. As cortes aplicariam,quase certamente, aquela legislação sobre o Trata-do de Roma e o direito comunitário. Todavia, essaexpectativa não é suficiente para sustentar a visãode que o Parlamento ainda desfrute de supremacialegislativa indiscriminada. Não é assim enquanto oReino Unido continua um membro da União Euro-péia (...). Lord Bridge enfatizou no caso Factortamede que o Parlamento tem voluntariamente aceitoum limite nos seus poderes legislativos através davigência do Ato das Comunidades Européias de1972. O Parlamento tem direcionado as cortes, pe-las seções 2 e 3 do Ato, a dar prioridade ao direitocomunitário diretamente aplicável”. No original, emidioma inglês: “The courts have decided not to ap-ply statutes which conflict with directly effectiveprovisions of Community law. The position wouldalmost certainly be quite different if Parliament wereto enact legislation expressly repealing European

Communities Act 1972, as a consequence of Uni-ted Kingdom withdrawal from the Union. Thecourts would almost certainly apply that legislati-on over the Treaty of Rome and Community law.However, this expectation is not enough to supportthe view that Parliament still enjoys unqualifiedlegislative supremacy. It does not while the UnitedKingdom remains a member of the European Uni-on. (...) Lord Bridge emphasised in Factortame thatParliament had voluntarily accepted a limit on itslegislative powers through passage of the Europe-an Communities Act 1972. Parliament had di-rected the courts, in sections 2 and 3 of the Act,to give priority to directly effective Communitylaw”.

10 Disponível em <www.parliament.uk/parliamentary_committees/joint_com mittee_on_house_of_lords_reform>. Acesso em: 22 maio2004.

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Hugo Hortêncio de Aguiar

1. Introdução

Na 1a Parte deste artigo, foi feito um acom-panhamento mais ou menos pormenoriza-do das nações que habitaram a Palestinaaté o aparecimento de Jesus de Nazaré, edas invasoras, em número muito maior. Tam-bém procedeu-se a uma crítica de filmes edocumentários de televisão sobre filmes bí-blicos, motivada pela onda de projeções so-bre esse tema, ligado ao assunto do nossoartigo.

Nesta 2a Parte, em virtude do númeroexcessivo de invasores da tão turbulentaPalestina, preferimos fazer um quadro cro-nológico panorâmico das invasões, paracomentar os aspectos mais expressivos dacompreensão dos atuais problemas de seushabitantes e suas perspectivas de solução.Paralelamente, porém, como de costume,faremos uma rápida apreciação sobre o fil-me “A Paixão de Cristo”, de Mel Gibson,somente agora assistido por este articulista,e que nos forneceu curiosos dados para aanálise. Como o filme tem estreita ligação

Palestina: antes e depois de Cristo – Parte II

Hugo Hortêncio de Aguiar é coronel refor-mado do Exército e especialista em cultura doOriente Médio.

Sumário1. Introdução. 2. A destruição do Templo e

da cidade de Jerusalém. 3. A Palestina até 395depois de Cristo. 4. Invasões à Palestina. 5. OEstado de Israel e os palestinos; área, popula-ções e confrontos. 6. Elementos essenciais eantagonismos do conflito. 7. Um enfoque es-pecial. 8. Conclusão1.

Revista de Informação Legislativa318

com o tema aqui abordado, e está em apre-sentação nas salas de espetáculo do mundointeiro, para perto de quinhentos milhõesde espectadores, ele tem despertado, obvia-mente, o interesse dos mais diversificadosleitores.

2. A destruição do Templo e dacidade de Jerusalém

O primeiro século da Era Cristã foi umperíodo conturbado da História. Sem falar-mos da crucifixão de Jesus em Jerusalém (jáincluída na 1a Parte), foram tantos os even-tos para a iniciação desta 2a Parte que a es-colha de um deles constituiu-se no nossomaior problema. Selecionamos “A destrui-ção do Templo e da cidade de Jerusalém”pelos seguintes motivos:

a) Esse episódio liquidou com a oligar-quia judaica e foi causa da 2a Grande Diás-pora;

b) Embora os saduceus e os essênios ti-vessem sido eliminados, os fariseus trans-feriram o centro de sua atividade religiosapara Iavné, onde os romanos continuarama reconhecer sua autoridade;

c) Com a vitória na Palestina de seu filhoTito, o chefe militar romano Vespasiano, aseu contragosto, foi empossado como Impe-rador em Roma, e o Império Romano conse-guiu sobreviver por mais quatrocentos anos,a despeito da crise do ano 70 dC, a maiordurante sua supremacia política no mun-do, com grande repercussão no domínio daPalestina;

d) Para os atuais comunicadores de mas-sa, especialmente os de televisão, escanda-lizados com as mortes de alguns america-nos ou iraquianos hoje em dia, quando asarmas de destruição são muito mais mortí-feras que no passado, vamos informar que,na destruição de Jerusalém, em breve perío-

do, morreram mais de dez mil pessoas, so-mente do lado judeu. Como isso ocorreu noano 70 dC, cerca de quarenta anos depoisda predição de Jesus, “a maior destruiçãode uma cidade de que o mundo teria conhe-cimento”, onde não ficaria “pedra sobre pe-dra”, julgamos um marco notável como pon-to de partida histórico para o longo períodode dois milênios, objeto de nosso estudo.

3. A Palestina até 395depois de Cristo

Mesmo apesar da derrota contundenteperante os romanos, os judeus, por seus re-presentantes fariseus, continuaram distri-buídos não somente pelas usuais áreas dedispersão, no exterior, mas também na pró-pria Palestina, eis que, apenas na Galiléia,vinte e quatro núcleos permaneceram nassuas principais cidades.

Roma continuou a dominar a Palestina,e venceu mais uma rebelião, a de 132-135dC, quando Jerusalém foi “romanizada” echamada “Aelia Capitolina”, em homena-gem ao então Imperador Adriano, cujo nomeera Publius Aelius Hadrianus. O Final “Ca-pitolina” é devido à tríade do Capitólio: osdeuses Júpiter, Juno e Minerva.

A capital passou por uma reformulaçãomuito grande, cujas bases permanecem atéhoje, apesar das alterações de muralhas doperíodo Bizantino, que procurou colocardentro do perímetro vários lugares sagra-dos do cristianismo. Foi no ano 395 dC quehouve a separação dos Impérios Romano eBizantino (cristão), passando a Palestina aocontrole de Constantinopla (Bizâncio).

A partir dessa data, as invasões foramtantas que resolvemos organizar um qua-dro cronológico, com os “invasores”, os“habitantes” principais, por ordem decres-cente e “condições especiais” verificadas.

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4. Invasões à Palestina

4. a. Quadro Cronológico

Quadro Cronológico (todas as datas são dC – depois de Cristo) Datas

(de-até) Invasores Habitantes (por ordem

decrescente) Condições Especiais

395-614 Bizantinos Cristãos-Judeus Judeus sofrem restrições e se dispersam pelo país.

614-628 Persas Judeus-Cristãos Judeus aliados dos persas; Depois, perseguidos por eles.

629-638 Bizantinos Judeus-Cristãos Acordos e rompimentos: Judeus e Cristãos; Judeus procurados por Maomé para acordos2.

638-1070 Árabes (muçulmanos)

Árabes-Judeus-Cristãos Judeus em Jerusalém; Acordos entre Judeus e Árabes; Paz para os Judeus.

1070-1090 Turcos (Seldjúlcidas) Árabes-Judeus-Cristãos Muitos centros judaicos no exterior

1090-1187 Cruzados (Império Latino de Jerusalém) (1a e 2a Cruzadas)

Judeus-Àrabes-Cristãos Judeus perseguidos Acordos entre Cristãos e Judeus Jerusalém proibida aos Judeus

1187-1244 Cruzados x Árabes (3a, 4a, 5a) (Saladino)

Idem como p/anterior Judeus voltam a Jerusalém e crescem em número Cristãos: representações religiosas

1244-1248 Mongóis Idem como p/anterior Os mongóis só se interessaram por pilhagens e saques

1248-1291 Cruzados (8a Cruzada)

Idem como p/anterior Queda de Acre Fim das Cruzadas

1291-1516 Mamelucos Muçulmanos (do Egito)

Judeus-Árabes mamelucos Forte colonização judaica Imigração da Espanha Paz geral

1516-1917 Turcos otomanos Judeus-Árabes-Turcos-Cristãos

Grandes fundações judaicas Frustrada invasão de Napoleão 1a Guerra Mundial

1917-1948 Britânicos (Mandato) Judeus-Árabes-Cristãos Declaração Balfour (lar p/ Judeus) Governo Árabe na Transjordânia Distúrbios entre Árabes e Judeus3 Estado de Israel Partição da Palestina entre Árabes e Judeus

1948 Líbano, Síria, Iraque, Jordânia e Egito invadem Israel

Judeus-Árabes-Cristãos Judeus desafogam Cidade Nova Jordânia com a Cidade Velha de Jerusalém

1956 Egito x Israel Judeus-Árabes-Cristãos Vitória dos Judeus e conquista do Sinai

1967 Guerra dos Seis Dias Judeus-Árabes-Cristãos Israel conquista Gaza, Banda Ocidental e Golan

Hoje Israel x Palestinos Israel x Sírios (Golan)

Judeus-Árabes-Cristãos Mediante acordo, palestinos ocupam Gaza, Banda Ocidental, sob administração de Israel Israel ocupa trecho de Golan

Revista de Informação Legislativa320

4.b. Análise sumária do quadro cronológico

1 – O número de etnias da Palestina noperíodo em estudo é tão numeroso que fo-mos forçados a reuni-las num quadro pa-norâmico, sem consideração de contingen-tes dispersos menos expressivos, semprepresentes pela área4. Somente foram consi-deradas “nações” como habitantes aquelasque mais se ligaram à terra, para simplifica-ção do estudo.

2 – Os “cristãos” representam váriasnações, presentes na Terra Santa na condi-ção de ordens religiosas, guarda de lugaressantos do cristianismo e peregrinações. Nóssomos obrigados a reconhecer a sua critica-da colonização, especialmente no períododas Cruzadas, quando, como combatentes,os cristãos cometeram desatinos.

3 – Um ponto que chama a atenção é apresença de judeus em todos os períodos.Mesmo nos períodos Bizantino (Cristãos) eÁrabe-Muçulmano (Árabes), embora emminoria, os judeus estavam distribuídos emnúcleos por toda a área. Nos demais perío-dos, sempre foram maioria. Convém ressal-tarmos que o entendimento entre árabes ejudeus, naquela época, era mais fácil do queentre essas duas nações e os cristãos.

4 – De todos os povos que conquistarama Palestina, somente dois demonstraramapego à terra: os judeus, em primeiro lugar,pelo sonho milenar de uma pátria fixa naTerra Prometida, sob a liderança monoteís-ta de Moisés e em fuga à brutal escravidão noEgito; e os árabes, na sua expansão, motiva-dos por Maomé, a levar a bandeira do Islã.

5 – Não podemos esquecer ter sido a con-quista da Palestina, por judeus e árabes, semconsiderar a motivação, realizada pelas ar-mas, o que implica serem essas duas naçõesadequadamente consideradas, pelos histo-riadores, “invasoras” daquela região.

5. O Estado de Israel e os palestinos:área, população e confrontos

Desde a invasão dos filisteus, a Terra deCanaã foi batizada pelos gregos como “Pa-

lestina” e essa palavra já foi sobejamenteexplicada por nós em artigos anteriores.Assim, os dois povos habitantes da terra, osisraelitas e os filisteus, foram realmente os“palestinos”. Muito depois, já no períodoromano, com o imperador Adriano, a regiãofoi batizada com o nome oficial de Síria-Pa-lestina (abreviada em Palestina) cerca de 135dC, com os israelitas caracterizados, então,por judeus, samaritanos, galileus e idumeus,e constituindo os autênticos “palestinos”.Após a invasão árabe-muçulmana de 638dC, os árabes passaram a ocupar definiti-vamente a Palestina, em maior ou menorgrau, e formaram, com os judeus, já entãopersonalizando todos os antigos israelitas,e sempre presentes na área, o contingentedefinitivo da Palestina. Os demais povosnunca se ligaram a ela. Somente com a cria-ção do Estado de Israel, proclamado pelaONU em 1948, é que os dois povos foram“batizados” separadamente: os judeus e ospalestinos (árabes). Essa é uma verdade in-contestável.

A área destinada aos judeus (Erets Israel),mais ou menos correspondendo à atual, tempouco mais de 20.000 Km2, menor que o nos-so Estado de Sergipe, e a área destinada aospalestinos (árabes) menos de 10.000 km2.

As populações, em 1948, eram aproxi-madamente 630.000, os judeus, e 140.000,os árabes muçulmanos.

Mesmo sem contarem com os recursosde hoje em censos demográficos, os manda-tários britânicos, responsáveis pela partiçãoda terra, procuraram atender, tanto quantopossível, à situação ut possidetis5 existente.Com sua natural habilidade, na busca domais indicado para a conciliação, os ingle-ses procuraram a divisão mais prática, umavez que, desde 1921, os conflitos eram fre-qüentes entre árabes e judeus, quase todosde natureza agrária.

Os conflitos foram motivados pela imi-gração crescente de judeus oriundos da Eu-ropa, particularmente da URSS, de onde trou-xeram uma verdadeira ideologia social-re-volucionária do campo, com a fundação das

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fazendas coletivas de diversos tipos de so-cialização (Moshavá, Moshav, Kivutsá, Ki-buts)6, o que forçou os tradicionais e humil-des agricultores palestinos a abandonarseus assentamentos, porquanto não podi-am competir com a tecnologia adquiridapelos judeus na dispersão. Nem mesmo umEstado Árabe, criado na Transjordânia, ser-viu para contrabalançar as forças.

Tão logo os ingleses deixaram a Palesti-na, ainda mesmo em 1948, o Líbano, a Síria,o Iraque, a Jordânia e o Egito invadiram Is-rael, com o propósito de liquidar o inimigocomum no nascedouro.

Embora muito superiores em número, ospaíses árabes foram derrotados, numa guer-ra chamada pelos judeus de “Libertação”.Porém o lucro territorial de Israel não foigrande. Conseguiram liberar a Nova Jeru-salém (a judaica) da pressão árabe e con-quistaram alguns pontos estratégicos parafuturas ações. No entanto, a Velha Cidadede Jerusalém ficou nas mãos da Jordânia.

No ano de 1949, um armistício entre ára-bes e judeus destinou a Banda Ocidental,ou Margem Ocidental, para os palestinos,administrada pela Jordânia, e também paraos mesmos a Faixa de Gaza, esta última ad-ministrada pelo Egito.

Com a Guerra dos Seis Dias, em 1967, eampla vitória de Israel, os judeus reunifica-ram Jerusalém (tomando a Velha Cidade daJordânia), e assumiram o controle e a admi-nistração da Banda Ocidental e da Faixa deGaza, além do que conquistaram um trechodas Colinas de Golan, pertencentes à Síria.

A Península do Sinai, conquistada duasvezes do Egito, em 1956 e 1967, foi logo emseguida restituída ao Egito, mediante acor-do e pressão internacional.

6. Elementos essenciais e antagonismospara solução do conflito

6.a. Elementos essenciais

São elementos de análise, fundamentaispara a formulação das propostas de solu-

ção para o conflito judeu-palestino no Ori-ente Médio, sem os quais toda e qualqueriniciativa na busca da paz na região estácondenada ao fracasso desde o início.

1) JerusalémÉ uma aspiração de judeus, árabes e cris-

tãos. Os judeus a veneram como centro detodo o seu ideário bíblico, desde o tempo deAbraão e Melquizedec, com o nome de Sa-lém. A partir de sua conquista por David,um pouco mais de um milênio antes de Cris-to, a cidade foi conquistada e destruída qua-se vinte vezes e ressurgida por uma vonta-de férrea de seus habitantes.

Somente depois da proclamação do Es-tado de Israel, os judeus já entraram em guer-ra por ela duas vezes. A primeira, liberandoa Cidade Nova (a judaica) do cerco jordani-ano; a segunda, conquistando a Cidade Ve-lha, e reunificando a magnífica Capital.

Os árabes, quando a conquistaram em638 dC, transferiram os mecanismos admi-nistrativos para Ramla, perto de Lida, paranão ferirem a magnitude mística da suanova Cidade Santa por adoção, já que assuas Cidades Santas de origem são Meca eMedina.

Passaram a chamar Jerusalém de Al QudsAsh-Shariff7 (o Venerável Santuário) e cons-truíram na Esplanada do antigo Templo ju-daico a Mesquita Al Aqsa, a terceira na hie-rarquia islâmica, e a “turística” Mesquitade Omar (na realidade Domo de La Roca),de onde Maomé, segundo uma tradição pa-ralela, foi elevado aos céus.

Como os judeus, os árabes tomaram par-te nas guerras de 1948 e 1967 por sua possee, na nossa opinião, essa ansiedade pelaformação de um Estado Palestino nada maisé que a busca de um meio bem estruturadopara a conquista futura da cobiçada Capital.

Os cristãos já participaram de oito expe-dições (Cruzadas) para a posse de Jerusa-lém com a bandeira de “livrar a Palestinadas mãos dos infiéis”, e, com o fracasso, sónos resta a nós, cristãos, o recurso fácil epoderoso da oração, o livre turismo e as pe-regrinações à Terra Santa.

Revista de Informação Legislativa322

Esclarecemos que todas essas conside-rações se referem à Velha Cidade, à bíblica(intramuros) e só se estendem à Nova (ju-daica) se falarmos dos judeus, construídabem maior, em área e população, e onde es-tão instalados os órgãos do Governo.

2) Retorno à PalestinaRessaltado no número 5, anterior, a imi-

gração de judeus, oriundos da Europa, noinício do Século XX, é interessante notar-mos que essas ondas de retorno à Palestina,em hebraico “Aliá”8, começaram ainda nadominação turca, a partir de 1888. Essasondas se intensificaram depois da criaçãodo Estado de Israel, motivadas pela místicada volta à terra sonhada, que, desde a der-rota do ano 70 dC, os “Guardiães do Tem-plo” (judeus que ficaram) procuraram man-ter com seu exemplo. A corrente migratóriacresceria permanentemente, variando deintensidade conforme a situação política naPalestina e seu objetivo final atende a umadestinação quase messiânica.

Por seu lado, os palestinos sofrerammuita pressão com a Guerra dos Seis Dias,cujo resultado foi um movimento centrífugoda Banda Ocidental para os países árabesperiféricos, onde se tornaram desde logo umproblema para os governos que os acolhe-ram, constituindo um dos sérios desafios doMédio Oriente.

Esses refugiados palestinos, árabes, an-siosos pelo retorno às restritas áreas de ondesaíram, não possuíam mística de Terra Pro-metida, mas uma grande necessidade de umnível aceitável de sobrevivência.

Eram numerosos, cerca de 4.000.000 (qua-tro milhões), que, somados aos judeus ain-da por retornar, vão atingir uma proporçãode 350 a 400 habitantes por Km2, uma cifrapreocupante. Como curiosidade, e para com-paração, vamos citar alguns exemplos: Ser-gipe, o menor estado brasileiro, tem 68 hab./Km2; a Bahia, 23 hab./Km2; o Rio de Janei-ro, 298 hab./Km2, este o estado de taxa maisalta do Brasil, em virtude do Grande Rio.Esses são números aproximados, como tam-bém considerarmos 29.000 Km2 a área total

da Palestina, somadas as duas áreas desti-nadas a judeus e palestinos. Todos os paí-ses, pelas condições geofísicas, possuemáreas não utilizáveis. Na Palestina tambémé assim, mas diferente, porque tudo ali é di-ferente do resto do mundo. Escassa em águadoce, baixo índice pluviométrico e higromé-trico, a região se espraia ao Sul pelo desertodo Néguev, árido e inclemente, praticamen-te inabitável em curto prazo. Também asencostas das montanhas da Judéia, desérti-cas, a descer abruptamente para o Mar Mor-to, além de inabitáveis, constituem um de-safio para qualquer turista “acrobata”. Es-sas duas áreas, somadas, constituem cercade um terço da superfície total da Palestina.

Com todas essas dificuldades, os judeuse os árabes-palestinos são encantados poressa terra. Também os de outras nacionali-dades, vivenciando-a turisticamente apenasde relance, já ficam fascinados pelo seu va-lor histórico e messiânico, e desejam a elaretornar sempre que possível.

3) GolanAs colinas de Golan estão situadas na

Síria. O trecho ocupado por Israel em 1967,num arriscado avanço de fim de jornada, ecaracterizado por um erro infantil dos de-fensores sírios, tem uma superfície de 1.150Km2.

Com essa ocupação, Israel, na Guerra de1967, resgatou uma tropa altamente especi-alizada que operava no vale Nordeste daAlta Galiléia.

No no 153 desta Revista, no artigo “Israel– Estado e Religião”, abordamos esse assun-to, ressaltando o valor tático dessas alturas,com o potencial de destruir, até com armasde tiro tenso (metralhadoras, fuzis, etc.),qualquer tropa em circulação no vale do Jor-dão superior, entre Cafarnaum e Dan, áreaabsolutamente necessária para a seguran-ça dos 80 Km de extensão da fronteira com aSíria. Essa área, somada aos 120 Km com oLíbano, torna a fronteira Norte-Nordeste deIsrael uma região crítica.

Dessa forma, julgamos o tema “Golan”,embora aparentemente de menor importân-

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cia, inegociável para Israel, como busca deuma solução de paz com os palestinos.

4) Faixa de GazaSempre tem sido um problema para os

judeus. Historicamente, para falar com sin-ceridade, nunca pertenceu a Israel, a nãoser como base provisória de ações defensi-vas ou ofensivas ou como refúgio nos perío-dos de invasão estrangeira.

Desde o tempo dos filisteus, quando es-tes mantiveram a predominância de toda afaixa com capital em Gaza, durante o Reinode Israel, e posteriormente durante as cam-panhas pela Palestina – em que Gaza secaracterizava sempre por um “sabor” egíp-cio – , somente com o Estado de Israel e assuas contundentes vitórias com seu vizinhode oeste, Gaza passou a ser integralmentejudaica, trazendo mais problemas e preocu-pações do que vantagens para o governo deJerusalém, apesar de sua excepcional posi-ção estratégica como “Posto de controle” da“Via Maris” dos romanos.

Vários complicadores poderiam tornara Faixa de Gaza uma ameaça muito maiorcomo área de fronteira:

I – Fazer parte, como terminal, de umafronteira seca, marcada sobre a areia do de-serto, que vai de Rafá, na ponta Oeste, a Ei-lat, no Mar Vermelho, com 180 Km de exten-são, facilmente infiltrável, particularmentenos trechos não controlados, propiciando apassagem subterrânea de armas e explosi-vos;

II – Ponto de fácil reunião de terroristas,que a ela têm acesso por terra e por mar;

III – Sua compartimentação seletiva (di-visão em blocos), não somente na zona ru-ral como também na urbana, numa faixa li-torânea de 50 Km x 6 Km, oferece condiçõesfavoráveis a ataques aéreos e terrestres deblindados;

IV – Tem servido de alternativa para as-sentamentos judaicos em sítios palestinos,com as naturais complicações futuras;

V – Embora um tanto excêntrica em rela-ção ao coração da Palestina, dista poucomais de 40 Km do porto de Ashdod, o mais

moderno e, do ponto de vista militar, maisoperacional de Israel, o que o torna um alvoem potencial de ações oriundas de Gaza;

VI – Apesar da limitada área (cerca de300 Km2) possui uma expressiva popula-ção, um milhão de palestinos, e apenas al-guns milhares de judeus assentados na pe-riferia.

Com todos esses fatores de agravamen-to, que, sem dúvida, tornam a Faixa de Gazauma região explosiva, de atritos constantes,não a julgamos – em consultando a históriae a filosofia política de Egito e Israel – umaameaça à segurança nacional desses paísesvizinhos. Por isso, não vamos considerar aFaixa de Gaza, no item a seguir, um “anta-gonismo”, senão um “elemento essencial”nas propostas de paz, contudo perfeitamen-te manobrável na mesa de negociações.

6.b. Antagonismos

São fatores que não somente dificultam,mas impedem qualquer resposta de paz noconflito do Oriente Médio entre judeus epalestinos.

1) O Estado de IsraelApós quase quatro milênios de lutas e

vicissitudes por uma pátria fixa, dela vári-as vezes desterrado pela força, e a ela retor-nando insistentemente para juntar-se aosque, sonhadores, sempre permaneceram naPalestina, o povo judeu, finalmente, conse-guiu o reconhecimento de seu vínculo his-tórico à terra de adoção. Esse reconhecimentodeu-se, primeiramente, em 1917, pela Decla-ração Balfour e cristalizou-se posteriormen-te, em 1947, pela ONU, mediante uma reso-lução que criou o Estado de Israel na Terrade Israel.

Além disso, determinou (a resolução) aoshabitantes judeus da Terra de Israel que to-massem, eles próprios, todas as medidaspara a organização de um Estado soberano.Uma das medidas, já iniciada anteriormen-te nas Guerras Mundiais (1a e 2a), em que osjudeus atuaram como tropa auxiliar dos ali-ados contra a Alemanha, foi a organizaçãode uma força de defesa, com o apoio dos

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aliados ocidentais, especialmente os EE.UU., e com o suporte de uma indústria béli-ca própria da alta tecnologia que já despon-tava.

Até aqui, nada de novo a destacar.Acontece, porém, que os países árabes

ou arabizados que circundavam a Palesti-na, e que foram conquistados pelas armas,sob a bandeira do Islã e com a decisiva utili-zação do idioma árabe, tinham agora comocentro e pólo do dispositivo um país comoutra filosofia religiosa, outras tradições, umidioma – embora semítico - que apresentasensíveis diferenças com aquele, e, além detudo, um país impregnado de ocidentalis-mo.

Em síntese, um inimigo à vista, quasedentro de casa, muito bem armado e o únicopaís não conquistado.

Era necessário acabar com ele no nasce-douro.

Tão logo os britânicos se retiraram, ain-da no ano 1948, o Líbano, a Síria, o Iraque, aJordânia e o Egito invadiram o Estado deIsrael, com o fim de destruí-lo.

Nascia assim um antagonismo perma-nente, que iria crescer cada vez mais com avitória de Israel na chamada “Guerra deIndependência” e mais ainda com a “Guer-ra dos Seis Dias”, em 1967, em que Israelassumiu o controle da Banda (ou Margem)Ocidental, ou Cisjordânia, da Faixa de Gaza,e ocupou um trecho das alturas de Golan,além de reunificar a Grande Jerusalém (aNova e a Velha Cidade).

2) Essa situação, a atual distribuição deáreas e responsabilidades, com pequenasalterações, é conseqüência do último episó-dio de guerra convencional, na qual os ára-bes sofreram uma derrota contundente, e ti-veram a convicção de não poderem enfren-tar os judeus nesse tipo de operação militar.Por esse motivo, procuraram uma nova mo-dalidade de luta armada. Após inúmerasdissidências e cisões entre grupos de influên-cia religiosa e política, comuns na comuni-dade árabe, foi vencedora a idéia da adoçãode ações extremadas, que, no conjunto, cons-

tituem o “terrorismo” atual, variando deisoladas ações individuais ou de pequenosgrupos em assentamentos judaicos da zonarural a ataques suicidas por homens-bom-ba nos centros urbanos. Surge aí o segundoantagonismo, cujos resultados não comenta-remos, porque são publicados diariamentepor todos os meios de comunicação.

3) A resposta do Exército de Israel a es-ses atos é implacável e, dos dois lados, temmorrido um número expressivo de civis ino-centes, incluindo mulheres e crianças, o queforçou, por diversas vezes, o encontro de lí-deres judeus e palestinos com o fim da pa-rar a mortandade.

O resultado dessas reuniões de dirigen-tes caracterizou então uma falha na lideran-ça política palestina, enquadrada como “an-tagonismo”, e um dos mais sérios, que clas-sificamos como o de no 3.

Essa ausência de líderes civis, democrá-ticos, que, no mundo árabe, podemos cha-mar de “seculares”, é facilmente explicável.Os palestinos são provenientes de paísesárabes ou arabizados, adotaram formas degoverno teocrático-monárquicas, centraliza-dor, quase sempre despótico e exercido porelementos da linha sucessória da realeza, eainda são ligados, com menor ou maior de-pendência, a líderes religiosos do Islã.

Essas formas teocráticas de governo ti-veram origem na Arábia Saudita e foramexportadas pela expansão árabe. Fora dessemodelo, só existem lideranças despóticas.

Quando Yasser Arafat, na ausência deum Estado Palestino, organizou a OLP (Or-ganização para a Libertação da Palestina),deu-lhe caráter nacional e passou a “Presi-dente da autoridade palestina”, sensibili-zando o mundo ocidental (foi aclamado depé na ONU) por sua tentativa de criar umperfil de líder democrático. Ele organizouum conselho político, um embrião de umórgão dirigente do futuro estado palestino,que não lidera absolutamente nada.

Os verdadeiros líderes, os religiosos daala radical, contam com o apoio total dapopulação, como, por exemplo, Ahmed Yas-

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sim, líder do Hamas, e seu sucessor, AbdelRantissi, recentemente eliminados.

Os chefes islamitas da ala moderada es-tão apagados, alienados do processo políti-co. É uma perspectiva de cisão no Islã que jáestá produzindo seus efeitos, com a organi-zação de congressos na Arábia Saudita e emoutros países da Ásia, com o propósito deconvocar toda a comunidade árabe interna-cional à verdadeira e autêntica doutrina deMaomé, absolutamente contrária à violência.

Quanto a Arafat, a despeito de manteruma boa dose de popularidade com o povopalestino, vem perdendo a confiança dosemissários ocidentais, adquiriu a suspeiçãodos dirigentes judeus e está desgastado nasbases radicais da luta armada palestina.

Talvez isso tenha sido a sua salvação.Ninguém até hoje conseguiu definir a suapersonalidade, nem o que é, nem o que pre-tende exatamente.

4) FronteiraA única fronteira física, geográfica, defi-

nida, existente no território palestino, é par-te da fronteira Nordeste com a Síria, onde amargem oriental do Mar da Galiléia (LagoTiberíades, Quinéret, de Genezaré) serve delimite natural, continuada pela fronteira Les-te com a Jordânia, formada pelo Rio Jordão,pelo Mar Morto e pela Baixada do Aravá.

A atual fronteira, a separar a Banda Oci-dental da Terra de Israel propriamente dita,é uma fronteira seca, sem marcos geográfi-cos, definida por acordos e absolutamenteartificial.

Numa extensão aproximada de 800 Km,transponível por elementos a pé em qual-quer trecho e por pequenos veículos emmuitas passagens, também pode ser facil-mente infiltrada por elementos terroristas, eexpõe as cidades de Haifa (a 33 Km), TelAviv (a 25 Km), Lod (Aeroporto, a 12 Kmj) aataques de todo o tipo, inclusive por mís-seis de pequeno alcance.

Muito mais grave é a situação de Jerusa-lém, especialmente a Cidade Nova (judai-ca), abraçada pelas bordas internas dos doisgrandes conjuntos territoriais palestinos,

além da ameaça constante e imediata dosegmento oriental da Grande Jerusalém.

Essa fronteira, que pode ser chamada de“antagonismo vivo”, é causa de tensão con-tínua, para habitantes com compromissos eencargos de ambos os lados, espaço ondemuitos circulam para o trabalho de cada dia,não pode ser substituída por uma muralha,uma solução pouco inteligente, por seus efei-tos psicossociais e também por se tratar deum desafio a tentativas de demolições emrepresália.

No entanto, é preciso ressaltar que a fron-teira, na situação política atual, não podecontinuar como está, pois constitui uma fon-te de atritos diários. E mais: se ela não formodificada e for criado o Estado palestino,constituir-se-á uma tragédia permanente,como a pior solução para esse conflito doOriente Médio.

7. Um enfoque especial

Conforme assinalamos na “Introdução”,vamos fazer um pequeno comentário sobreo filme “A Paixão de Cristo”, que não pôdeser incluído na 1a Parte deste artigo, em vir-tude de sua exibição aqui em Brasília terocorrido após o nosso trabalho ter sido en-viado para publicação.

É do conhecimento público que o MelGibson sempre exagera na sua atuaçãocomo diretor ou produtor. Essa característi-ca tem que ser levada em conta, com o devi-do desconto para as observações que fare-mos a seguir.

Se o diretor pretendia apresentar um fil-me para produzir choque, conseguiu o seuobjetivo plenamente.

Também não concordamos com a opi-nião de segmentos da comunidade judaica,segundo publicaram alguns meios de comu-nicação, de que o filme era uma crítica seve-ra ao povo judeu.

Somente assistimos ao filme uma únicavez, mas guardamos de memória certos as-pectos que nos impressionaram, pela juste-za histórica e pela coerência mostrada na

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interpretação dos principais personagensenvolvidos naquele dramático episódio bí-blico. Vejamos alguns desses aspectos:

1) A imagem de Maria, sóbria, modera-da, de atitudes equilibradas em face do so-frimento do Filho e o ineditismo da frase“Meu Filho, até onde vais permitir esse so-frimento?”, durante a marcha para o Calvá-rio. Isso jamais vimos anteriormente em fil-mes sobre o tema, eis que revela uma inteli-gente abordagem da percepção de Mariasobre a missão sobrenatural de Jesus, dis-cretamente guardada;

2) As vestimentas das “mulheres de Je-rusalém”, juntas com Maria, vindas da Ga-liléia, combinam com as pesquisas fidedig-nas feitas pelos maiores especialistas noassunto, a que juntamos modestamente asnossas, realizadas durante muitos anos ealgumas delas nos próprios locais ondetranscorreram os eventos. Respeitou-se, ain-da, o perfil antropométrico das “mulheresde Jerusalém”: estatura mediana, pele cla-ra, dolicocéfalas e de nariz afilado9. A foto-grafia é histórica, bem revelada e, acima detudo, responsável;

3) A conduta dos judeus durante o jul-gamento na casa de Caifás não apresentounovidades: frustrados com o novo Messias,“que não era deste mundo”, desmoraliza-dos publicamente pelos sinais de Jesus,ameaçados da perda dos privilégios oligár-quicos pelos romanos e exaltados pela apro-ximação da Páscoa, que sempre causavaexcitação, os judeus (particularmente os di-rigentes fariseus) se compensavam com asbofetadas e cusparadas gratuitas aplicadasno indiciado, expressão fiel da frustração edo desespero de que estavam possuídos.

Não vemos em que o Mel Gibson tenhaexagerado.

Quanto aos romanos, uma análise maisprofunda da Flagelação (um verdadeiromassacre), ponto mais alto do filme paraproduzir choque ao espectador, alinha duasséries de considerações: a primeira, a favordo diretor do filme; a segunda, fazendo-lhecertas restrições.

Primeira série de considerações:1) Os romanos sempre foram cruéis. Sua

crueldade vinha de longas datas. Somentecomo exemplos: no período da República,com a derrota de Espartacus, seis mil de seusadeptos foram crucificados; poucos anosdepois, com a morte de Caio Grato, três milseguidores foram trucidados com morteviolenta. Os romanos receberam dos anti-gos o castigo da crucifixão e o aperfeiçoa-ram com as modalidades mais perversas;

2) Uma das modalidades era fazer pre-ceder a crucifixão pela flagelação, em que ocondenado era açoitado com chicotes comargolas de metal nas pontas, para debilitá-lo e apressar sua morte na cruz. Isso, nãopara diminuir o tempo de sofrimento, maspara aumentar a disponibilidade de cruzes;

3) Pôncio Pilatos, tudo indica, não que-ria crucificar Jesus, pois disse ao tribuno,seu auxiliar, para recomendar uma puni-ção exemplar, mas evitar a morte. Com isso,queria apenas a exibição do indiciado, fla-gelado, para depois soltá-lo. Provavelmen-te não assistiu à flagelação e abandonou oCristo à sanha dos algozes. Estes aproveita-ram a oportunidade e deram vazão a seuódio aos judeus (principalmente ao “Rei dosJudeus”) e ultrapassaram o número de chi-cotadas estabelecidas pela lei;

Os argumentos acima defendem a posi-ção do diretor do filme em projetar a flagela-ção de Jesus como um massacre sem parale-lo na História. Mas as seguintes considera-ções contrariam essa descrição do fato.

1) No tempo de Pilatos, as leis romanaseram caprichosamente explícitas, para nãodar margem a interpretações erradas, espe-cialmente por parte dos judeus, para evitaratritos. Alguns anos depois da morte de Je-sus Cristo, Paulo de Tarso iria beneficiar-sedessa preocupação constante, pois o fato deser cidadão romano o livraria de punições etalvez da morte em Jerusalém. Os romanos,em respeito aos costumes judaicos, não des-piam completamente os condenados, limi-tando o número de chicotadas na flagela-ção. Ou seja, o condenado, amarradas as

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suas mãos a um poste ou coluna, era chicote-ado não pela frente, mas nas costas nuas, paraque não fossem atingidas diretamente partesvitais e produzissem a morte nesse ato. Sen-do um suplício público e controlado, tudo issosugere uma flagelação um tanto diferente;

2) Os episódios posteriores à flagelaçãomostraram que Jesus ainda guardava algu-ma reserva de ânimo:

– carregou uma cruz completa, pesando50 quilos no mínimo, em boa parte do per-curso abrupto de 600 metros, embora cain-do três vezes e contando com o auxílio doCirineu;

– chicoteado constantemente, conseguiulevantar-se três vezes, embora trôpego, e re-tomar a caminhada;

– dirigiu-se, com voz audível, às mulhe-res de Jerusalém, fazendo-lhes recomenda-ções de caráter doutrinário, o que indicavacompleto controle mental;

– pregado na cruz, perdendo mais san-gue, falou palavras suficientemente altaspara ser ouvido pelos judeus que passavama certa distância, e conseguiu resistir vivopor quase três horas.

Nenhum homem normal, por mais vigo-roso que fosse, resistiria vivo a tantos esfor-ços depois de uma carnificina daquelas;

3) O convento das Irmãs de Sion, situa-do sobre as ruínas da Fortaleza Antonia,inaugurado em 1868, é um valioso arquivode documentação dos principais episódiosda Paixão de Cristo. O convento foi construí-do exatamente sobre a Litóstrotos e o Portãoda frente da Fortaleza. São, pois, de capitalimportância as considerações emitidas naspublicações oriundas do Convento. Umadelas, “Antonia Lithostrotos”, edição de 31-09-62, em francês, sugere que a Coroação deEspinhos deve ter acontecido em virtude deterem os soldados romanos realizado comJesus, ao vivo, o “Jogo do Rei”. Este exigiado condenado vários movimentos e atitu-des impraticáveis para um exaurido quasemorto;

4) Outro argumento não muito comenta-do pelos analistas é a atitude de admiração

de Pilatos (Marcos, XV, 44), ao receber o pe-dido do corpo de Jesus, por José de Arima-téia. Não acreditando ter Jesus morrido,mandou chamar o centurião, para se certifi-car do relatado. Isso quer dizer:

– ou Pilatos estava esperando um fatosobrenatural, influenciado pela sua mulher,angustiada pela condenação;

– ou a recomendação feita por ele, Pila-tos, ao encarregado da flagelação não foiaquela explicitada no filme (este baseado,naturalmente, em fontes fidedignas), maspara poupar o condenado. Em verdade nin-guém sabe o que foi dito realmente.

Julgamos, sinceramente, que os argu-mentos dessa 2a série não são suficientemen-te convincentes para anular a versão exibi-da no filme. Assim, reconhecemos ter MelGibson, como diretor de “A Paixão de Cris-to”, realizado um trabalho magistral.

8. Conclusão

Durante o longo período da Históriaaqui estudado, quase dois mil anos, foi ele-vado o número de nações presentes na Pa-lestina, consideradas “invasoras”. Como“habitantes”, isto é, os que mais se ligaramà terra, despontaram os judeus e os árabes10.

A seguir, vieram os cristãos, embora nãocaracterizando uma nação, mas represen-tando uma série delas. Os cristãos bizanti-nos foram os primeiros a assumirem os en-cargos de colonização da turbulenta Síria-Palestina, em uma transferência automáti-ca do poder romano, de Roma para Bizân-cio (Constantinopla). Essa representaçãomultinacional, a Bizantina, cujo ápice foiatingido com as Cruzadas, consistiu, namaior parte do tempo, em representações deordens religiosas.

É curioso notarmos que a pequena Pa-lestina, atração mística desde os tempos bí-blicos, reparte a sua história atualmente comas três grandes filosofias monoteístas: o Ju-daísmo, dos judeus; o Islamismo, dos ára-bes; e o Cristianismo, de várias etnias doOcidente e de parte do Oriente.

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Como o conjunto dessas três crenças ex-pressa um contingente de quase dois bilhõese meio de seguidores, detentor de mais de80% da tecnologia mundial e controladorda comunicação global, podemos dizer quea Palestina se transformou num centro detensão internacional, cujos antagonismosvão ficando cada vez mais sérios, sem pers-pectiva de neutralização a curto ou médioprazo.

Então – perguntarão os leitores –, não hásolução para o conflito do Oriente Médio?

Se continuarem os antagonismos, entrejudeus e árabes, bem como persistir a medi-ação – quase sempre de ocidentais –, a apli-car terapias ilusórias, com foco apenas nacura dos efeitos, valendo-se de ingredientesartificiais e inócuos, a nossa resposta é ne-gativa.

As propostas de paz somente terão re-sultados compensadores se forem elimina-das, ou pelo menos contornadas, as causasprofundas dessa incompatibilidade atávi-ca entre essas duas nações, assentada, semdúvida nenhuma, em base prevalentemen-te religiosa.

As duas etnias possuem fundamentos,estrutura cultural e material humano con-dizentes com uma reformulação filosófica,o que implica mudanças de conceitos, tra-duzidos em atitudes, algumas delas anti-páticas (no âmbito das suas próprias comu-nidades), entre as quais sugerimos, comoexemplo:

A – Para os judeus.1) Uma reavaliação do critério “o trunfo

é Espadas”, simbolismo da idéia “olho porolho, dente por dente”, com que a nação ju-daica se estruturou no período bíblico. O“Senhor dos Exércitos” presidia o destinodos combates diretamente, em consonânciacom a dureza dos sentimentos na época, ajustificar essa atitude. Agora, porém, “o trun-fo é Copas”, isto é, o coração deve impelir ascoletividades para a busca de solidarieda-de, da harmonia entre os povos, da paz en-tre as nações, ante o desencanto das guer-ras modernas;

2) A noção de “Povo de Deus”, para umaúnica minoria étnica, embora valorosa e res-peitada pelos mais heróicos eventos bíbli-cos e eventos históricos, não encontra acei-tação em outras confissões, ou seitas religi-osas, e está completamente superada no atu-al estágio da cultura filosófica moderna. In-dependentemente da universalidade dePaulo de Tarso – que, sabemos, não ser doagrado dos judeus –, esse conceito, de res-trição messiânica, não mais atende aos re-clamos do ecumenismo religioso e huma-nístico.

B – Para os islamitas (muçulmanos).1) É necessário que os líderes religiosos,

os guardadores fiéis dos ensinamentos damais pura essência moral, de Maomé, e quesão de fato a maioria, levem à frente a rea-ção já iniciada no mundo islâmico contra achamada ala radical. Esta, por sua posiçãoextremada, aproveita-se do fundamentalis-mo religioso de expressiva parcela da po-pulação árabe para pôr em prática uma atu-ação armada assemelhada a uma guerrasanta. Esse movimento de protesto à atualpolítica de tolerância do terrorismo, emboranão caracterize ainda um cisma, já promo-ve congressos, passeatas e manifestaçõespúblicas em vários países da Ásia, inclusi-ve no Iraque;

2) A ala conservadora está precisandomesmo é de personalidade para o enfrenta-mento decidido com os mandantes terroris-tas, que escolheram uma modalidade de lutacompletamente desafinada com os textos doCorão, maldosamente adulterados na suainterpretação pelos radicais.

Urge esclarecer os muçulmanos dessasfacções terroristas que o Islã não pode ser-vir de argumento místico para a justificati-va de ações de barbaridade pré-histórica,vazias de qualquer sentimento de humani-dade, e, muito menos, para sensibilizar acomunidade, simpatizantes e a populaçãoárabe em geral, no sentido de criar imagemde guerra santa à reação contra a ocupaçãoestrangeira. Nessa campanha psicológica,os líderes terroristas estão manipulando,

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com muita inteligência, parte expressiva daimprensa ocidental. Esta última não assi-milou, ainda, a ameaça maior que paira so-bre a comunidade internacional.

C – Para os cristãos1) No Velho Mundo, as comunidades,

em geral, estão apavoradas com o terroris-mo. Nações com o mais tradicional e exem-plar repertório de luta pela cristandade es-tão perdendo a personalidade e, como ro-bôs teleguiados, modelam a sua política ex-terna, e mais ainda a interna, em função deameaça à distância de grupos terroristas.Potências, historicamente aureoladas peloorgulho nacional, episodicamente se reú-nem para uma atuação efetiva contra essaameaça, mas na realidade esses encontrosmultinacionais não têm caráter prático, seupapel é a transferência das soluções indefi-nidamente, contanto que não sejam inscri-tas na chamada “lista negra”. Utilizam me-canismos paralelos de compensação publi-citária, como a proibição de símbolos cris-tãos e véus muçulmanos, em defesa da so-berania do Estado diante das influênciasmonoteístas. Seus representantes fazem umjogo de equilibristas virtuosos, e artistica-mente o fazem desde os últimos conflitos noOriente.

2) No Novo Mundo, os americanos, doNorte, estão querendo levar o seu reconhe-cido sistema democrático às nações muçul-manas, particularmente às árabes. Não selembram de que essas nações são oriundasda Península Arábica, berço do conserva-dorismo, que exportou governos monárqui-co-teocráticos para toda a região, e que, porsua tradição milenar, conservará seu mode-lo ditatorial de governo. Utilizam os ameri-canos os chamados direitos humanos parapretexto de suas guerras de conquista, massão surpreendidos com a quebra desses di-reitos pelos seus próprios nacionais.

3) É um “farisaísmo” do mais alto nívelno nosso mundo ocidental, que não possuicredenciais para ditar regras sobre como asmuçulmanas devem-se vestir ou como osjudeus e os palestinos devem-se tratar mu-

tuamente, eles que, adeptos de outras filo-sofias religiosas, modelam-se por padrõessociais de conduta diferente, têm uma visãoparticular dos direitos humanos e, imedi-atamente, pagam um preço alto e imedia-to por qualquer iniciativa errada que to-mam.

Apesar de tantas contradições e distor-ções de julgamento, o mundo civilizado,mais particularmente o ocidental, tem con-seguido neutralizar parcialmente os anta-gonismos e manter uma custosa sobrevivên-cia, malgrado alguns desgastes, graças auma política de acomodação e concessõesmútuas. Fazendo uso de prazos indefinidos,o Ocidente vai transferindo para o futuro asolução de problemas inadiáveis.

Contudo, surge agora um fato novo, umantagonismo universal, de muita gravida-de e preocupação: a possibilidade de domí-nio da tecnologia nuclear e de aquisição deingredientes radioativos para a construçãode artefatos atômicos por parte de gruposterroristas, que podem empregá-los irres-ponsável, desesperada e fanaticamente.

A ação terá um efeito devastador.A reação dos países desenvolvidos –

uma vez atingidos –, que já dispõem desseinstrumento de destruição em massa, emgrau muito maior de poderio e eficácia, se-ria implacável, não tenhamos dúvida, e asconseqüências catastróficas.

O prazo de que dispúnhamos para umasolução racional está-se acabando e, quemsabe, já se acabou, pois o controle do “mer-cado negro” de material atômico é pratica-mente impossível, segundo declarou publi-camente um dirigente do órgão internacio-nal de fiscalização.

Assim sendo, os responsáveis pela se-gurança deste planeta, enquanto é tempo,devem fazer uma reciclagem – inclusive es-piritual – nos moldes das reformulações ci-tadas, única forma de neutralizar essa ame-aça real e global e de adquirir a força moralnecessária à luta pela salvaguarda da civi-lização e sobrevivência da humanidade.Fora disso, não há salvação.

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Bibliografia

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TORÁ, profetas e escrituras. [S. l.]: Israel agency,1970. Em hebraico.

Notas1 As grafias de nomes próprios aqui presen-

tes são apresentadas conforme são pronuncia-das.

2 Pouco antes de morrer, Maomé enviou emis-sários ao Sul da Palestina, próximo a Eilat, paracontatos com judeus, prevendo uma futura inva-são árabe.

3 Nesse período, ocorreram os primeiros dis-túrbios sérios entre árabes e judeus, após a Decla-ração Balfour.

4 Considerações sobre minorias, como drusos,bahais, gregos, mesopotâmicos e outros, não fo-ram levadas em conta para não sobrecarregarem otrabalho.

5 Expressão latina de direito que correspondeem português a “conforme a posse”.

6 Moshavá-aldeia; Moshav-aldeia de pequenosproprietários; Kivutsá-povoado coletivo; e Kibuts-povoado coletivo grande.

7 A grafia é Al Quds Al Shariff.8 “Aliá” é uma transliteração do hebraico e

significa “subida”. Sendo Jerusalém alta (830 me-tros de altitude), para o imigrante que lá chegava,subentendia-se que subia à Capital.

9 E bonitas, no juízo deste articulista.10 Não foram considerados os romanos, porque

já estavam na Palestina durante o período estuda-do na 1a Parte.

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Ricardo dos Santos Júnior

1. Introdução

Com a dinamicidade da política econô-mica, grandes operações de concentraçãoempresarial são realizadas. As sociedadesanônimas de capital aberto são protagonis-tas de várias dessas operações, envolven-do, entre outros aspectos, os acionistas mi-noritários e o mercado de capitais. Uma vezque os acionistas minoritários não influen-ciam no negócio da alienação do poder decontrole, qual a segurança oferecida a eles?E quanto ao mercado de capitais, que é de-pendente dos acionistas minoritários, quala forma de sustentá-lo?

Procurou-se explicar, neste artigo, que,para o sucesso do mercado de capitais, osinvestidores têm de experimentar um teormínimo de segurança que lhes proporcionea aplicação da sua poupança nas oportuni-dades de ganho então oferecidas. Os inves-timentos realizados têm de trazer, além da

Tag AlongMecanismo de proteção aos acionistas minoritários e desustentação do mercado de capitais

Sumário1. Introdução. 2. Definição e conceituação

do Tag Along. 3. Breve análise da relação entrepoder de controle e o prêmio de controle e adiferença deste para o prêmio do § 4o do art.254 da Lei n. 6.404/76. 4. Origem do Tag Along.4.1. Origem no exterior. 4.2. Origem no Brasil.5. Análise demonstrativa da importância do TagAlong. 5.1. A importância da governança cor-porativa para o Tag Along. 5.2. O Tag Along e avalorização das ações ordinárias. 5.3. Cautelano processo de alienação. 6. Conclusão.

Ricardo dos Santos Júnior é Bacharel emDireito pelo Centro Universitário de BeloHorizonte – UniBH e candidato a MBA nosEstados Unidos.

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segurança, liquidez e rentabilidade. Comoos negócios realizados no mercado de capi-tais são saturados de especulações, promo-vendo grandes índices de insegurança nosinvestidores, alguns instrumentos assegu-ram um patamar aceitável para a permanên-cia desses investidores no referido merca-do. Pretende-se, pois, demonstrar a impor-tância do Tag Along como mecanismo hábila proporcionar maior segurança aos acio-nistas minoritários no âmbito das socieda-des anônimas (S.A.) abertas, constituindo,conseqüentemente, uma das bases de sus-tentação do mercado de capitais.

A origem do Tag Along, em nosso orde-namento jurídico, teve influência do direitoestrangeiro. A primeira menção expressa nalegislação brasileira ao Tag Along foi feitano art. 254 da Lei no 6.404, de 15 de dezem-bro de 1976 (LSA). No entanto, em 1997, aLei no 9.457, de 5 de maio de 1997, retirou oTag Along do sistema legal brasileiro emuma manobra estratégica, gerando insegu-rança nos acionistas minoritários e abusosnas alienações do poder de controle. Em2001, a Lei conhecida por ter provocadouma minirreforma na legislação das S.A.reintroduziu o benefício do Tag Along, ga-rantindo um padrão adequado de seguran-ça aos investidores do mercado de capitais.Ressalta-se que o benefício reingressou nodiploma legal com algumas melhorias, ain-da que o valor da compra das ações dosminoritários seja menor do que o estipula-do na redação original de 1976.

Embora se trate de relevante mecanismonas diferentes formas de alienação, o TagAlong oferece algumas dificuldades de con-ceitos básicos aplicação em determinadoscasos, sendo necessário explicar os a ele li-gados. Diante disso, este artigo encontra-sedividido em alguns itens, de modo a explo-rar, de forma breve e analítica, os conceitosrelativos ao tema. Uma vez explorados taisconceitos, procurou-se demonstrar a suaaplicação prática em casos recentes do ce-nário societário nacional, nos quais o meca-nismo do Tag Along tem-se revelado como

sujeito principal. Tais casos subdividem-seem duas categorias: aqueles de repercussãonacional, noticiados pela mídia; e aquelesapreciados pelo Poder Judiciário, contribu-indo para a formação da jurisprudência arespeito do tema.

Destarte, pretende-se demonstrar a im-portância do Tag Along para a proteção dosacionistas minoritários, bem como consta-tar que se trata de mecanismo fomentadordo sucesso do mercado de capitais.

2. Definição e conceituaçãodo Tag Along

A tradução da expressão Tag Along paraa língua portuguesa, em sua literalidade,seria “etiquetar conjuntamente”. Tag ou“etiqueta” designa também o verbo to tag ou“etiquetar”, no sentido de estabelecer o preçode determinada coisa. Nesse contexto, a ex-pressão relaciona o ato do acionista minori-tário em precificar, com o alienante, suas açõesem limites legalmente estabelecidos, quandodo recebimento de uma oferta pública decor-rente da alienação do poder de controle deuma sociedade anônima de capital aberto1.Esse negócio jurídico é denominado, além dealienação, compra e venda ou aquisição.

O art. 254-A2 da Lei no 6.404/76 trata,em seu caput, das formas de alienação, quepodem ser direta ou indireta. A primeiramodalidade, mais corriqueira, constitui, se-gundo Modesto Carvalhosa (2003, v. 4, t. 2,p. 165), uma relação de poder que se estabe-lece entre o acionista controlador e os ór-gãos da sociedade, cuja fonte é o bloco decontrole formado por ações de emissão daprópria sociedade. A alienação indireta,entretanto, é aquela na qual o alienante nãocontrola diretamente a companhia3 alienada,mas, por ser controlador de uma holding 4, que,por sua vez, controla a companhia alienada,será indiretamente o controlador dela.

Existem também duas condições para serealizar a alienação: suspensiva ou resolu-tiva. Na condição suspensiva, as partes donegócio jurídico – adquirentes e alienantes

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– aguardam a realização da oferta públicaaos minoritários para, então, contratar a ali-enação. Na resolutiva, de praxe trivial, osefeitos do negócio são produzidos desde já,podendo ser anulados caso haja algum ví-cio na oferta pública.

A oferta pública é obrigatória nas alie-nações de controle de companhia, devendoser direcionada a todos os acionistas comdireito a voto, quais sejam: os titulares deações ordinárias (ON); os titulares de açõespreferenciais (PN) que adquiriram o direitoa voto pela falta de pagamento de dividen-dos nos últimos três exercícios; os acionis-tas preferenciais que não têm tal direito res-tringido expressamente no Estatuto Social;e, por fim, os preferencialistas que possuemo direito de saída conjunta previsto no art.17, § 1o, alínea c, da LSA. Ressalta-se, contu-do, que a habitualidade no mercado de ca-pitais é vetar o voto aos preferencialistas,embora algumas empresas concedam essedireito – a Companhia Vale do Rio Doce éum exemplo.

Fábio Ulhoa Coelho (2002, p. 483) resu-me a única hipótese em que o preferencia-lista nunca poderá ser beneficiado pelo TagAlong:

“[...] se o estatuto da companhiaaberta lhe assegurar apenas o direitoao dividendo diferencial (art. 17, § 1o,b, da LSA) e não contiver menção àrealização do direito de voto na hipó-tese de não recebimento de dividen-dos por até três exercícios consecuti-vos. Neste caso, ele nunca terá direitode voto, posto que o art. 111, § 1o, sóbeneficia os titulares de dividendosfixos ou mínimos, e, em decorrência,não titularizaria em nenhuma circuns-tância o direito de saída conjunta”.

A ocasião adequada para a realizaçãoda oferta pública é à época da contrataçãoda alienação, e não quando da efetivaçãodo pagamento das ações alienadas aos con-troladores, constituindo-se uma propostairrevogável, uma declaração unilateral devontade e obrigatória do ofertante.

A Comissão de Valores Mobiliários(CVM), por atribuição prevista nos §§ 2o e 3o

do art. 254-A, é responsável pela fiscaliza-ção do correto procedimento de oferta, asse-gurando que seja efetuado pelo adquirentedo controle o pagamento mínimo de 80%aos sujeitos elencados no caput daquele ar-tigo. Vale ressaltar que a oferta deve ser deno mínimo 80%, não estando o valor limita-do a esse percentual. Há situações em queas companhias, como forma de atrair os in-vestidores para a Bolsa ou para o mercadode balcão, prevêem em seu Estatuto Social opagamento, pelo adquirente, aos minoritá-rios, de 100% do valor pago em cada açãointegrante do bloco de controle. É o caso,por exemplo, do Banco Itaú e da empresaBraskem, duas das companhias presentesna lista do website da Bolsa de Valores de SãoPaulo (Bovespa) que oferecem tal atrativo.

Outro ponto de destaque no tema TagAlong é a possibilidade existente no § 4o doart. 254-A, que se refere ao pagamento deum prêmio para aquele acionista que, emvez de vender sua ação, decidir permanecercomo acionista da companhia. Foi uma al-ternativa fornecida pelo legislador como for-ma de reduzir o dispêndio nas aquisiçõesde controle de companhias abertas.

3. Breve análise da relação entre poderde controle e o prêmio de controle e a

diferença deste para o prêmio do § 4o doart. 254 da Lei n. 6.404/76

Tomou-se como direção fundamental nodesenvolvimento deste item o ensinamentodo Professor Fábio Ulhoa Coelho (2002, p.485), quando apresenta o mecanismo do TagAlong com um significado bem maior do queo simples direito de saída conjunta dos aci-onistas minoritários na venda do controleacionário de uma companhia:

“A expressão Tag Along deve sertraduzida literalmente por ‘fim con-junto’, com vistas a designar o encer-ramento da sociedade entre controla-dores e não-controladores em razão

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da venda ‘simultânea’ de suas ações.[...] Ao receber o ‘Prêmio de Controle’,que significa não só o valor nominaldas ações, mas todo o poder resultan-te do controle da empresa, o controla-dor pode estar se apropriando indivi-dualmente de um valor agregado àempresa pelo capital nela investidopor todos os acionistas”.

Comecemos pela definição legal de con-trolador. O art. 1165 da Lei n o 6.404/76 elen-ca, além das hipóteses de uma pessoa – na-tural ou jurídica – ser controladora nas so-ciedades anônimas, o momento em que opoder de controle se dá efetivamente e asresponsabilidades oriundas desse poder.Entende-se que o conceito de controladorestá intimamente relacionado ao conceito dopoder de controle de uma S.A. O poder decontrole pode ser avaliado como a possibi-lidade de determinada pessoa, ou grupo depessoas, decidir a respeito do futuro de umacompanhia em relação a inúmeros aspec-tos: âmbito comercial, de planejamento, deestruturação organizacional, etc. FábioUlhoa Coelho (2003, p. 207) também ensina:

“O acionista (ou grupo de acionis-tas vinculados por acordo de voto) ti-tular de direitos de sócio que lhe asse-gurem, de modo permanente, a maio-ria de votos na assembléia geral e opoder de eleger a maioria dos admi-nistradores e usa, efetivamente, dessepoder para dirigir as atividades soci-ais e orientar o funcionamento dosórgãos da companhia é considerado,pelo artigo 116 da Lei 6.404/76, acio-nista controlador”.

O poder de controle pode dividir-se eminterno ou externo. O controle interno repre-senta aquele capaz de influenciar na gerên-cia do negócio de maneira direta. FábioKonder Comparato (1983, p. 38) recorda queAdolf A. Berle Jr. e Gardner C. Means (1940)identificaram e transpareceram em sua obracinco tipos de controle: o controle fundadona posse de quase toda a totalidade dasações de uma companhia; o controle funda-

do na posse da maioria dessas ações; o con-trole fundado mediante expedientes legais(through a legal device); o controle com me-nos da metade das ações; e o controle admi-nistrativo ou gerencial (management control).Guilherme Döring Cunha Pereira (1995, p.1) relembra as conclusões de Fábio KonderComparato pela redução, depois de detidoexame na obra americana, a quatro modali-dades de controle interno conforme o graucrescente em que se manifesta a separaçãoentre propriedade acionária e poder de con-trole empresarial: totalitário, majoritário,minoritário e gerencial. Sobre o tema, lecio-na Fábio Konder Comparato (1983, p. 196):

“A vida econômica moderna, po-rém, passou a contar com sociedadesde controle minoritário, ou mesmogerencial, graças ao vigoroso desen-volvimento do mercado de capitais eà grande dispersão acionária, verifi-cada nas macrocompanhias de capi-tal aberto”.

O controle externo representa, por suavez, a possibilidade de a última palavra nacondução de um negócio de determinadacompanhia ser advinda de alguém que nãosócio. Seria o caso do endividamento de umaempresa, por exemplo. O Professor FábioKonder Comparato (1983, p. 69) trata de al-guns modelos proveitosos, entre os quais,um deles seria o de “alguns contratos deempréstimo a uma sociedade, com a atribui-ção ao mutuante, em garantia do seu crédi-to, da caução das ações do chamado blocode controle”. Outro exemplo da influênciade fato dos maiores credores sobre uma soci-edade em situação econômica difícil seria asubordinação de um banco em face da ame-aça de retirada dos depósitos de um grandecliente – o caso dos petrodólares depositadospor alguns países do Oriente Médio em ban-cos ocidentais, por exemplo.

Guilherme Döring Cunha Pereira (1995,p. 16) ainda lembra oportunamente os ca-sos de franchising6 e algumas hipóteses desociedade em conta de participação. A cau-sa da subordinação, a seu ver, não é tanto a

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relação de débito, mas a existência de umadependência dos conhecimentos especiali-zados (know-how), dos produtos ou dafranchise. Elucidemos com os contratos deconcessão de venda de veículos. Os conces-sionários de veículos dependem das mon-tadoras em diversos aspectos, quais sejam:treinamento para prestação de serviços dereparo, concessão de crédito para pedido deveículos nas fábricas, entre outros. Dessa for-ma, o concessionário está sujeito ao controleexterno oriundo das montadoras. A impor-tância da clara acepção do conceito de poderde controle torna-se necessária para enten-dermos a questão do prêmio de controle.

O poder de controle em uma companhiapermite ao seu possuidor reconhecida van-tagem sobre os demais acionistas. As açõessustentadoras desse poder de controle sãonegociadas por valor superior às demais. Ospread7 pago pelo mercado é comumentechamado de prêmio de controle. O ProfessorFábio Konder Comparato (1981, p. 212) en-fatiza muito bem os dizeres de Henry Win-throp Ballantine, autor de On Corporations, aorepetir em sua obra, praticamente, todos ostermos da seguinte decisão norte-americana:

“The right to manage and controla great corporation, to direct itspolicies, involving in many cases therightful levy and expenditure of vastsums of money, is in itself, a right ofgreat value”. (Carnegie Trust Co. vs.Security Life Insurance Co., III Vª, 1,68 S.E 412, 421).

(“O direito de dirigir e controlaruma grande companhia, definir suaspolíticas, envolvendo em vários casoso direito de orientar o gasto de gran-des somas de dinheiro, é, em si mes-mo, um direito de grande valor”.)

O ágio do prêmio de controle representa,portanto, um valor bem maior do que a sim-ples valorização de mercado das referidasações, sendo influenciado por situações jus-tificadoras daquele spread pago pelo adqui-rente, incluindo a subscrição de capital porparte dos minoritários.

Aliás, oportuno diferenciar a expressãoprêmio de controle, de origem doutrinária, dotermo prêmio, expresso no § 4o do art. 254-Ada Lei no 6.404/76, de origem legal. No § 4o,foi instituída uma possibilidade de paga-mento de um prêmio aos acionistas minori-tários que permanecerem na companhia.Válido ressaltar que esse prêmio não é umaalternativa à oferta pública. Esta é uma me-dida obrigatória, ao passo que aquele con-siste numa faculdade do adquirente. Desta-ca-se que o legislador, equivocadamente,utilizou o termo opção no § 4o, sendo esteoutro instituto das sociedades anônimas quefica sujeito a maliciosas interpretações.

O valor do prêmio de origem legal por açãodeverá ser o resultado da diferença entre acotação de mercado de uma ação e o valorpago por ação integrante do bloco de con-trole. Dessa forma, o legislador visou asse-gurar ainda mais o minoritário que desejecontinuar como acionista da companhia, demodo que receba o mesmo ágio recebido poraquele alienante pelo investimento realiza-do por ambos – alienante e premiado – até omomento da alienação. Ressalta-se que ovalor do prêmio não é restrito ao valor dadiferença supracitada, podendo ser superi-or, mas nunca inferior.

4. Origem do Tag Along

O mecanismo de oferta pública presentena aquisição de ações visando à tomada decontrole é uma das soluções de aperfeiçoa-mento do mercado de capitais, incorporadaao nosso ordenamento jurídico na décadade 70, após certificação da sua eficiência noambiente societário internacional. Passa-sea explanar sobre a origem do Tag Along noexterior e, posteriormente, no Brasil.

4.1. Origem no exterior

O Tag Along vem sendo disciplinado eaperfeiçoado em vários âmbitos mundiais,como demonstra claramente Fábio KonderComparato (1983, p. 198-199). Afirma o au-tor que, em 1948, o Companies Act britânico

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regulou a troca de ações de duas ou maiscompanhias, além de prever a aquisiçãocompulsória das ações da minoria pelo lan-çador de uma take-over bid8, bem como o di-reito recessivo da minoria de obrigar o ofer-tante a adquirir suas ações. Aponta tambémo fato de o Securities Exchange Act de 1934 tersido alterado, em 1968 e 1970, para regularas operações de oferta pública de compraou troca de ações.

Além desses exemplos, Fábio KonderComparato destaca a atuação expressiva deórgãos reguladores do mercado de capitais,como a Securities and Exchange Comissions(SEC), nos Estados Unidos, e a Comission Ban-caire, na Bélgica. Iniciativas oriundas da Ale-manha, Itália e França também foram incluí-das no rol de exemplos elencados pelo autor.

Nos Estados Unidos, a origem do TagAlong está relacionada a alguns aspectosanteriores, como a proibição pela SEC doinsider trading – uso de informações privile-giadas de uma companhia na negociação(compra ou venda) de suas ações e valoresmobiliários. Lá, os tribunais federais reco-nhecem ao particular lesado um direito deação visando à obtenção de ressarcimento apartir das regras estipuladas pela SEC.

Fábio Konder Comparato (1983, p. 239)também demonstra que, na França, em 1973,foi adicionado ao regulamento da Compa-gnie des Agents de Change o mesmo princípiode igualdade de tratamento que regula asofertas públicas de aquisição de ações, com-petindo à Câmara Sindical dos Corretoresapreciar se há ou não cessão de controle. Oadquirente fica obrigado a comprar, pelopreço da cessão originária, durante pelomenos dez sessões, todas as ações que lheforem apresentadas.

4.2. Origem no Brasil

No Brasil, as iniciativas de proteção aoacionista minoritário começaram em algunsepisódios ocorridos entre 1967 e 1973, nosquais o acionista controlador apropriava-se de todo o sobrepreço correspondente avárias vezes o valor de mercado da ação.

Um bom exemplo foi o de uma alarmantecessão de controle de um banco9 comercial,na qual os acionistas controladores do ban-co abusaram de sua posição para adquirirações da minoria, revendendo-as, na poste-rior alienação do controle por ele detido, apreço muito superior ao daquela aquisição.A ação do Estado era necessária para ditarum regime de equilíbrio.

Em vista disso, o Deputado Herbert Levyfoi autor de um projeto de lei, em 1972, queexarava a necessidade de proteger os acio-nistas minoritários, garantindo-lhes o rece-bimento da mesma quantia percebida peloscontroladores na alienação de seus títulos.O projeto de lei, porém, era falho e restrito,não dispondo sobre a forma de garantir odireito atribuído aos minoritários. Limitou-se a mencionar sobre a venda de controle, nãopermitindo a ampla aplicação do princípioda igualdade. Ressalta-se que o Tag Alongmerece aplicação em qualquer transferên-cia do poder de controle, e não apenas noscasos de venda.

Em 1973, foi apresentado à Câmara dosDeputados outro projeto, desta vez por su-gestão da Bolsa de Valores, introduzindo nalegislação brasileira uma inovação que viriaa ser posteriormente adotada: a oferta públi-ca de aquisição das ações pelo alienante aosminoritários. A despeito de essa tendênciater sido seguida naquela época em países es-trangeiros, o projeto não se desenvolveu.

Em junho 1974, então, deu-se início ofi-cialmente aos estudos para a reforma doDecreto-Lei no 2.627/40. Observam-se osdizeres de Modesto Carvalhosa (1979, p.119) que expõe em sua obra a previsão do IIPlano Nacional de Desenvolvimento (apro-vado pela Lei no 6.151, de 4 de dezembro de1974) do governo Geisel:

“Com o objetivo de proteger as mi-norias acionárias e desenvolver o es-pírito associativo entre os grupos em-presariais privados, reformar-se-á aLei das sociedades por ações tendo emvista os seguintes objetivos: [...] evitarque cada ação do majoritário possua

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valor de mercado superior a cada açãodo minoritário”.

A doutrina revela que, naquela conjun-tura, transparecia o espírito predominantede proteger os acionistas minoritários nasalienações do poder de controle. O Congres-so Nacional estava para divulgar o projetode lei sobre as sociedades anônimas, noqual, tudo indicava, seria respeitado o prin-cípio da igualdade de tratamento nas trans-ferências onerosas de controle. Chegou-se aponto de o Deputado Herbert Levy presu-mir desnecessária a reapresentação de seuprojeto de lei na sessão legislativa de 1975.No segundo dia do mês de agosto de 1976,tal espírito fora abalado com a Mensagemno 204, do Presidente da República ao Con-gresso Nacional, completamente contrária atodas as antecessoras. Ao oposto do aguar-dado, era manifesto naquela mensagem o re-conhecimento do direito do controlador deapropriar-se do ágio oriundo da alienação.

Dada a grande resistência ao projeto go-vernista, foi proposta a Emenda no 232, deautoria de Herbert Levy, que sintetizavaoutras duas emendas sobre o mesmo assun-to, mas era legislativamente confusa. Daí aaparição da Emenda no 26, de autoria doSenador Otto Lehmann, corrigindo as falhasda Emenda no 232 e prevendo, efetivamen-te, a obrigatoriedade da oferta pública naalienação do controle. Com a aprovação emplenário, a Emenda no 26, conhecida comoEmenda Lehmann, foi incorporada, em1976, à nova Lei reguladora das sociedadesanônimas, no art. 254. Naquele mesmo ano,essa Lei foi promulgada, sob o número 6.404,dispondo sobre as sociedades anônimas esubstituindo o Decreto-Lei no 2.627, de 26de setembro de 1940.

O direito de saída conjunta era, então,de fato conferido aos acionistas minoritári-os com a redação original na Lei no 6.404/76. Situado no art. 254, impunha ao adqui-rente do controle acionário de uma compa-nhia a obrigação de pagar o mesmo preçopago ao alienante detentor do poder de con-trole. O art. 254 da LSA, em seu parágrafo

primeiro, previa o tratamento igualitário aosacionistas minoritários, que gerou, à época dapromulgação dessa Lei, divergência de opi-niões. Uns afirmavam que os minoritáriosseriam aqueles que não detinham o poderde controle, incluindo aí os preferencialis-tas sem direito a voto. Outros entendiam quea referência que o § 1 o atribuíra era aos acio-nistas ordinários que não detinham o po-der de controle. Então, a Resolução no 401,de 22 de dezembro de 1976, oriunda do Con-selho Monetário Nacional, regulamentouque a oferta pública seria obrigatória somen-te para aqueles acionistas minoritários comdireito a voto , tendo a jurisprudência majori-tária decidido no mesmo sentido.

Em 4 de dezembro de 1991, interessanteacórdão sustentou o que fora determinadopela Resolução no 401. Como recorrente emvia de recurso especial, encontrava-se ClóvisDalle Grave Silva e Outro contra os recorri-dos CVM, Savema S/A de Veículos Nacio-nais e Outro. O Ministro Garcia Vieira, Re-lator do recurso, acompanhado pelos de-mais integrantes do órgão julgador, negouprovimento ao recurso:

“Ementa: Sociedade Anônima –Alienação do Controle de CompanhiaAberta – Oferta Pública para Aquisi-ção de Ações.

A Autorização para a transferên-cia do controle de companhia aberta,através de oferta pública para a aqui-sição de suas ações, referendada peloBanco Central e pela Comissão deValores Imobiliários, não envolveações preferenciais, quando determi-na que seja assegurado o tratamentoeqüitativo aos acionistas minoritáriosmediante simultânea oferta pública.

Somente os acionistas minoritári-os portadores de ações ordinárias es-tão protegidos pela Lei societária.

Recurso improvido”.10

Ainda assim, com a questão relativamen-te pacificada quanto à proteção aos acionis-tas minoritários, o projeto de lei conhecidocomo Projeto Kandir resultou na Lei no

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9.457/97, a qual, além de outras modifica-ções, dispunha sobre a extinção do art. 254e dos §§ 1o e 2o do art. 255. Com essa extin-ção estratégica, após longo período, não ha-via mais a necessidade da oferta pública aosacionistas minoritários pelo exato preçopago aos alienantes. Modesto Carvalhosa(2003, p. 141) sustenta que permaneceu ape-nas a oferta pública voluntária, seja para aaquisição do controle acionário (art. 257,caput), seja para reforço do controle (art. 257,§ 3o), ambos de parco uso na prática dosnegócios.

Naquele tempo, estava ocorrendo no Bra-sil uma jornada de privatizações das em-presas estatais. A justificativa dada paraessa alteração legislativa era a necessidadede reduzir os custos da operação para oadquirente do controle acionário. Em vez deas disponibilidades de capital do compra-dor serem investidas na capitalização docaixa da companhia, seriam gastas com osminoritários não controladores. Portanto, asociedade objeto da alienação nunca viria ausufruir aquele recurso.

Como na mesma época ocorria o movi-mento de privatização das empresas esta-tais no Brasil, não seria nada interessantepara a União não se apropriar integralmen-te do ágio das ações por ela alienadas, divi-dindo o sobrepreço do prêmio de controle,como controladora, com os acionistas mi-noritários.

Outro ponto abordado pelo governo cor-respondia ao programa de autofinancia-mento das empresas de telecomunicações.O governo precisava de recursos para sus-tentação e expansão de tais companhias e,então, optou por cobrar uma taxa na contade cada usuário de linha telefônica. O re-curso necessário para a sustentação supra-mencionada adveio dessa cobrança. Dessamaneira, no momento das privatizaçõesocorridas em 1998 e 1999, cada usuário se-ria cliente e sócio minoritário da companhiatelefônica de sua região. Desse modo, seriaimpossível e economicamente inviável opagamento do valor pago às ações integran-

tes do bloco de controle a cada usuário-aci-onista minoritário.

Propala-se a opinião de Modesto Carva-lhosa (2002, p. 387) sobre a retirada do TagAlong da Lei no 9.457/97:

“Tal medida constituiu um enor-me retrocesso em nosso sistema dedireito societário, tendo sido altamentelesiva aos interesses dos acionistasminoritários. [...] Ao mesmo tempo emque, entre nós, abolia-se o tratamentoigualitário, verificava-se, no DireitoComunitário Europeu, nítida tendên-cia em sentido contrário, ao determi-nar a Décima Terceira Diretiva”.

A extinção da oferta pública ensejou abu-sos praticados pelos novos controladores decompanhias. Os acionistas minoritários es-tavam completamente desamparados nomomento seguinte à alienação de controle.Depararam, entre outras conseqüências,com a perda da liquidez de suas ações, quelhes acarretou prejuízo patrimonial. Nova-mente, Modesto Carvalhosa (2002, p. 387)explana:

“Em alguns casos, após a aquisi-ção do controle acionário, os novoscontroladores compravam no merca-do quantidades significativas deações de emissão das companhias,suas novas controladas, reduzindogradativamente a liquidez de tais pa-péis, para depois promoverem o fecha-mento de seu capital, aos preços que lhesfossem mais convenientes. Em outroscasos, os novos controladores com-pravam lotes significativos de ações apreços diferenciados, pagando a al-guns minoritários, que lhes eram maiscaros, preços menores”.

A Lei no 10.303, de 31 de outubro de 2001,reavivou o extinto Tag Along, alterando oque era disposto originalmente em algunstópicos. Interessante retratar, neste artigo, oretorno da oferta mínima, que atualmente éde 80% sobre o preço pago em cada açãointegrante do bloco de controle, em vez dos100% previstos na Lei de 1976.

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5. Análise demonstrativa daimportância do Tag Along

Fábio Ulhoa Coelho (2002, p. 484) expres-sa opinião cética sobre o retorno do TagAlong ao diploma legal das sociedades anô-nimas, por entender pela relativa ineficiên-cia do mecanismo:

“Estas companhias, ao tentaremcaptar recursos, seja no mercado decapitais, seja junto a investidores pri-vados, não conseguiram encontrarinvestidores que atribuíssem valor aoinvestimento agregado especificamen-te em razão da outorga do direito aotratamento eqüitativo em hipotéticafutura venda do controle. Há quem sóinvista se lhe for assegurado o tagalong e há quem invista sem atribuir aotag along nenhuma importância; é raro,porém, encontrar-se alguém disposto ainvestir mais em razão do tag along”.

Discorda-se parcialmente do ceticismoapontado pelo autor, em razão de duas te-máticas: importante atribuição dada atual-mente pelos reguladores do mercado de ca-pitais à governança corporativa e os altosíndices de especulação no mercado de capi-tais quando noticiadas duas recentes alie-nações: Ambev e Embratel.

5.1. A importância da governançacorporativa para o Tag Along

A governança corporativa é uma boa fer-ramenta para o efetivo e correto cumprimen-to do Tag Along . Tal ferramenta resulta natransparência das contas da empresa, pro-movendo maior nível de proteção aos acio-nistas minoritários, que necessitam de se-gurança11 para aplicar o fruto de sua pou-pança em investimentos com baixo nível derisco. Logo, o principal objetivo dos dirigen-tes, qual seja, a criação de valor para os aci-onistas, é garantido.

Em interessante trabalho sobre a relaçãodo mercado de capitais e a governança cor-porativa no Brasil, Edson Roberto Vieira eVanessa Petrelli Corrêa ([200-?]) afirmam

que pesquisas internacionais assinalam queas companhias que não adotam essas boaspráticas sofrem desconto no preço de suasações, na razão de 20% a 30%. A governan-ça visa, sobretudo, propiciar aos acionistaso reconhecimento do trabalho executadopelos controladores e dirigentes de determi-nada companhia, garantindo o cumprimen-to dos princípios12 elencados no art. 154 daLei no 6.404/76.

A Bovespa, estudando formas alternati-vas para contornar o problema, investiu naconstituição de um Novo Mercado, no qualse reunirão apenas empresas comprometidasem manter um bom relacionamento com osacionistas, orientadas pelas boas práticas degovernança corporativa. Almeja-se, assim, oaumento da liquidez, da viabilização da cap-tação de recursos no Brasil como real alterna-tiva e maior espaço para os minoritários.

Para participar desse Novo Mercado, asempresas têm de atender a cerca de 25 exi-gências similares às de outro programa –selos de qualidade níveis 1 e 2. A principaldiferença do programa do selo de qualida-de para o programa do Novo Mercado é que,neste, as empresas devem compor seu capi-tal social com 100% de ações com direito avoto13, ao passo que naquele não há tal exi-gência. Edson Roberto Vieira e Vanessa Pe-trelli Corrêa ([200-?]) lembram a eficácia des-sas alternativas como alavancadoras domercado de capitais:

“De fato, nesse país (Alemanha) oNeuer Market tem apresentado um cres-cimento muito superior ao da princi-pal Bolsa Alemã (a Deustch Borse). Parase ter uma idéia, entre 1965 e 1999, estaúltima assistiu a apenas 219 aberturasde capital por emissão de ações (GA-ZETA MERCANTIL, 20/11/2000), aopasso que o Neuer Market começou, emMarço de 1997, com apenas 2 empre-sas, fechou aquele ano com 13, regis-trou 45 novas empresas listadas, em1998, outras 140, em 1999, e estiman-do-se a entrada de mais de 150, em 2000(GAZETA MERCANTIL, 24/8/2000)”.

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A Bovespa, em excelente projeto, implan-tou dois selos de qualidade de adesão vo-luntária, divididos nos níveis 1 e 2, para asempresas listadas nela. Tal projeto consisteno seguimento de regras estipuladas pelaBovespa em contrato previamente firmadode institutos da governança corporativa.Osmar Brina Corrêa-Lima (2003, p. 506-507)anota as exigências da Bolsa de São Paulopara as empresas receberem o selo do nível 1:

[...];a) manutenção em circulação de uma

parcela mínima de ações, representando25% do capital;

b) realização de ofertas públicas de colo-cações de ações por meio de mecanismosque favoreçam a dispersão do capital;

c) melhoria nas informações prestadastrimestralmente, entre as quais, a exigênciade consolidação e de revisão especial;

d) cumprimento de regras de disclousure14

em operações envolvendo ativos de emissãoda companhia por parte de acionistas con-troladores ou administradores da empresa;

e) divulgação de acordo de acionistas eprogramas de stock options15;

f) disponibilização de um calendárioanual de eventos corporativos.

As companhias dispostas a adotaremprocedimentos mais avançados de governan-ça receberão o selo do nível 2, como listaOsmar Brina Corrêa-Lima (2003, p. 507-508).Frisamos a presença do Tag Along no item ida referida lista:

g) mandato unificado de um ano paratodo o Conselho de Administração;

h) disponibilização de balanço anual se-guindo as normas do US GAAP ou do IASGAAP;

i) extensão para todos os acionistas detento-res de ações ordinárias das mesmas condiçõesobtidas pelos controladores quando da venda docontrole da companhia e de, no mínimo, 70% des-te valor para os detentores de ações preferenciais;

j) direito de voto às ações preferenciaisem algumas matérias, como transformação,incorporação, cisão e fusão da companhia eaprovação de contratos entre a companhiae empresas do mesmo grupo;

k) obrigatoriedade de realização de umaoferta de compra de todas as ações em cir-culação, pelo valor econômico, nas hipóte-ses de fechamento do capital ou cancelamen-to do registro de negociação neste Nível;

l) adesão à Câmara de Arbitragem pararesolução de conflitos societários.

Cita-se a análise feita por Edson RobertoVieira e Vanessa Petrelli Corrêa ([200-?]),indicando que, até o dia 22 de abril de 2002(TAB. 1), a relação entre o Índice de Gover-nança Corporativa (IGC) e o Índice Bovespa(Ibovespa) demonstrava claramente os be-nefícios da política de boa governança:

“Alguns dados recentes indicamque os aplicadores estão buscando nomercado de capitais nacional justa-mente as empresas que apresentem‘boa governança’. A comparação doÍndice de Governança Corporativa(IGC) calculado pela Bovespa (com-posto apenas com ações que aderiramaos segmentos diferenciados de gover-nança – Nível 1 e 2 e Novo Mercado) eo Ibovespa mostra que, enquanto esteúltimo caiu 2,8% neste ano, o IGC au-mento 12,1% no mesmo período”(VIEIRA; CORRÊA, [200-?]).

Fonte: Disponível em: <www.bnb.gov.br>apud <Economática.com.br> Gazeta Mercantil,24 abr. 2002.”

Tabela 1 – Oscilação das empresas que têmboa governança x Índice Bovespa

Oscilação até 22 de abril (em %)

No ano No mês

Gerdau PN 54,8 12,1 Cemig PN 12,7 7,5 Unibanco Holding 18,7 5,4 Unibanco PN 6,7 5,0 Perdigão PN 11,9 4,5 Sadia AS PN 15,4 3,9 Bradesco PN 16,5 2,9 Aracruz PNB 24,0 1,7 Itaubanco PN 8,6 1,7 Weg PN 10,8 1,4 Itausa nN 13,3 1,3 Ripasa PN 4,1 0,8 ICG 12,7 3,7 Ibovespa -2,6 -0,2

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Pela interpretação da TABELA 1, perce-be-se que o IGC ofereceu lucratividade res-peitável, ao passo que o Ibovespa, em igualperíodo, restou em prejuízo aos seus inves-tidores. Uma vez identificada a relevânciadada, como tendência inequívoca, pelos re-guladores do mercado de capitais à gover-nança corporativa, denota-se clara a contri-buição do Tag Along , juntamente com a go-vernança corporativa, para a sustentabili-dade do mercado de capitais, uma vez queos investidores auferem maiores lucros coma presença de ambos os mecanismos atribu-ídos aos seus papéis.

5.2. O Tag Along e a valorizaçãodas ações ordinárias

Um importante argumento da relevân-cia do Tag Along é demonstrado na valori-zação das ações ordinárias, quando da no-tícia de alienação de uma companhia. Apolêmica entre o valor das ações ordináriase preferenciais aumentou a partir da aquisi-ção pela Interbrew da holding Ambev, naseqüência, com a venda da Embratel para amexicana Telmex.

Com a atual estruturação do mercadobrasileiro, em que o controlador não raropossui mais da metade do capital votantesem restrições para negociar, as ações pre-ferenciais tornaram-se mais líquidas e, por-tanto, valorizadas em relação às ordinári-as. Contribui também para a maior procurae conseqüente valorização das ações prefe-renciais a estipulação legal do art. 17 da LSAque, entre outras vantagens, determina adistribuição de dividendos aos preferencia-listas em, no mínimo, 10% a maior do quefoi pago aos detentores de ações ordinárias.

Contudo, nas alienações das empresasque concedem o Tag Along , o desinteressepelas ações ordinárias pode ser alterado.Começa-se, destarte, a comprovar-se a efici-ência do direito de saída conjunta.

No caso Ambev, as ações ordinárias va-lorizaram-se de forma imponente após anotícia da fusão. Desde a divulgação donegócio entre ambas as empresas, a procu-ra dos investidores pelo papel16 de nature-za ordinária aumentou consideravelmente.No quadro a seguir, temos a clara demons-tração de como as ações ordinárias se valo-rizaram em favor de tal benefício.

Fonte: Disponível em: <www. exame. com.br> apud Economática

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Sobre o assunto, o website do jornal OEstado de S. Paulo noticiou17, em 3 de marçode 2004, que os ADRs18 das ações ordinári-as da Ambev eram negociados em Nova Ior-que com alta de 5,81%, enquanto os ADRsdas ações preferenciais despencavam em15,85%. Completando as informações acer-ca da valorização das ON da Ambev, o sitedos consultores técnicos associados AB&F,B.A.L.A.N., noticiou, em 17 de março de2004, que as ações preferenciais da Ambevcaíram mais de 30% desde o anúncio davenda19. Tudo isso porque às ações ordiná-rias o Tag Along é conferido por expressadisposição legal.

Não foi diferente no caso Embratel, umavez que as ações ordinárias sofreram fortesdemandas quando da divulgação da alie-nação. O website da Folha de S. Paulo divul-gou, em 22 de março de 2004, em notícias domercado de capitais, que a única ação do Ibo-vespa a registrar alta era a ON da Ambev.Como naquela data o processo de alienaçãoestava em curso, percebe-se que o Tag Alongpode contribuir como sustentador do mer-cado de capitais:

“A ação ordinária (com direito avoto) da Embratel é a única dos 54 pa-péis que formam o Ibovespa a regis-trar alta hoje. O papel sobe 3%, cotadoa R$ 12,27. Já o principal índice daBovespa cai 1,98%, aos 21.820 pontos[...]. Por sua vez, a ação preferencialda Embratel recua 3,4%, cotada a R$8,64 o lote de mil. É a quarta maiorqueda do dia”20. (grifo nosso)

A notícia demonstra que o Tag Alongcontribui não só para assegurar os investi-dores minoritários, como também para asustentação do mercado de capitais. Peloincremento de demanda, a valorizaçãodas ações ordinárias é reconhecida quan-do da alienação de uma companhia. Logo,a segurança aos acionistas minoritários ea sustentabilidade do mercado de capi-tais encontram no Tag Along um impor-tante alicerce nos mecanismos da leisocietária.

5.3. Cautela no processo de alienação

Há de se ter cautela, contudo, quanto àoperacionalização do direito de saída con-junta. A ação das entidades fiscalizadorasé extremamente necessária, de modo a nãobanalizar um direito de caráter tão altivo.Um bom exemplo se dá no caso Embratel.Por delongas na negociação, a alta que vi-nham sofrendo as ações ordinárias foi in-terrompida e prontamente substituída poruma baixa cotação adjetivada de especula-ções financeiras. Em 13 de abril de 2004, asações ON da Embratel caíam 23,4%, enquan-to o papel preferencial subia 6,6% (GLOBOON-LINE, 2004). Qual o motivo de tal fato?

A explicação é que havia alguns gruposinteressados na aquisição da Embratel. Umdeles, o Telmex, ofereceu valor menor queoutro grupo, o consórcio Calais, mas, aindaassim, sagrou-se vitorioso. A venda da Em-bratel à Telmex, obviamente, implicaria aredução do valor do Tag Along . Logo, os in-vestidores, sentindo-se desmotivados coma notícia, começaram a vender suas ações,fazendo o preço delas cair. Acontece que aopção pela oferta de menor valor tinha umajustificativa que não fora apresentada coma rapidez e a cautela necessárias. Dessemodo, os especuladores encontraram umespaço para operar e auferir ganhos.

Movida pelo processo de especulação, aAssociação Nacional de Investidores doMercado de Capitais (Animec) encaminhouà CVM, em 22 de março de 2004, um pedidode intervenção na alienação da Embratel.Solicitou que aquela entidade questionasseà alienante o motivo pelo qual optou pelavenda à mexicana Telmex em detrimento doconsórcio Calais. O consórcio Calais fez, àépoca, uma oferta de US$ 550 milhões, en-quanto a Telmex ofereceu US$ 360 milhões.Entendeu-se, portanto, que a oferta da Tel-mex prejudicaria os acionistas minoritáriosda Embratel.

Nos comunicados divulgados sobre aalienação, a norte-americana MCI, contro-ladora da Embratel, justificou que a opção

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pela venda à Telmex fora uma forma de evi-tar problemas com órgãos reguladores doBrasil, como o Conselho Administrativo deDefesa Econômica (Cade) e a Agência Naci-onal de Telecomunicações (Anatel). O moti-vo alegado foi que o consórcio Calais é for-mado por três operadoras de telefonia fixano Brasil – Brasil Telecom, Telefônica e Te-lemar – e restaria em prejudicada a concor-rência do ramo de telecomunicações.

Por sua vez, o consórcio Calais ajuizouação em foro norte-americano, consideran-do que a MCI se encontra em processo deconcordata. Alegou que uma proposta fi-nanceira menor feriria os interesses dos cre-dores da concordatária MCI, uma vez que adiferença de valores é substancial. Apesardisso, o Juiz Arthur Gonzalez, da Corte deFalência de Nova Iorque, decidiu o destinoda Embratel, confirmando sua compra pelaTelmex, justificando que a alienação do con-sórcio Calais poderia ser “barrada” peloCade. Resta saber se tal disputa prejudicaráo mecanismo do Tag Along , embora a bata-lha se encontre em nível acirrado e os ana-listas de mercado não apontem um prazocurto para a efetivação da venda.

6. Conclusão

Tentou-se demonstrar todos os aspectosinerentes ao Tag Along , com o exame sistê-mico de sua definição e conceituação e coma exposição da origem do mecanismo emâmbito nacional e mundial. Ao final, apon-tou-se a análise demonstrativa da importân-cia do Tag Along em exemplos de alienaçõesrecentes e jurisprudência decidindo os con-flitos relacionados ao tema.

Os casos em questão demonstram a vo-latilidade pela qual as duas espécies deações daquelas companhias alienadas vêmpassando desde a notícia das aquisições. Aespeculação e conseqüente insegurança exis-tentes no cenário financeiro ganham espa-ço, ainda que a jurisprudência venha, ao lon-go da história, procurando arredondar as ares-tas provocadas pela falha da legislação.

Acredita-se que o Tag Along auxilia naprevenção da especulação financeira. Cabe-nos opinar que maior destaque deveria seroferecido ao tema pelos legisladores e regu-ladores, a despeito do que é feito em outrospaíses. Entende-se que, para maior eficácia,o Tag Along deveria acolher todos os acio-nistas, e não só os com direito a voto. Alerta-se, ainda, sobre a cautela necessária, portodas as partes, na operacionalização dodireito de saída conjunta. Como exposto, ainobservância dessa cautela pode banalizaresse importante instituto societário.

Acredita-se que esse direito é parte inte-grante e importante de um contexto genera-lizado da economia, e, uma vez levantadatal expressão, mister apontá-la não como umaatividade-fim, mas como uma atividade-meio,na qual o fim é sempre o bem-estar social.Como ensina o ganhador do Prêmio Nobelde Economia de 2001, o norte-americanoJoseph E. Stiglitz (2002, p. 13-25), “a econo-mia é a ciência da escolha. Ela pode pareceruma disciplina estéril e inaudita, mas, na re-alidade, boas políticas econômicas têm o po-der de mudar a vida dos menos privilegia-dos”.

O Tag Along , com seu caráter protetivo,visa atingir exatamente o bem-estar social,uma vez que proporciona aos investidoresa segurança necessária para a manutençãoe para o aumento de investimentos nas com-panhias. O mercado de capitais, como su-jeito operante de tais investimentos, encon-tra sua sustentabilidade, uma vez que asrelações empresariais entre cidadãos civisrestam fortalecidas. Com o mercado de ca-pitais sustentado, a prosperidade da eco-nomia de uma nação é atingida e o bem-estar social, verdadeiro fim de toda e qual-quer ação humana, alcançado.

Notas

1 Ressalta-se desde já que não será mencionadadaqui adiante a expressão S.A. “aberta”, uma vezque deve o leitor presumir estar-se tratando dela,

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eis que não se cabe falar de Tag Along em S.A.“fechada”.

2 “Art. 254. A alienação, direta ou indireta, docontrole de companhia aberta somente poderá sercontratada sob a condição, suspensiva ou resoluti-va, de que o adquirente se obrigue a fazer ofertapública de aquisição das ações com direito a votode propriedade dos demais acionistas da compa-nhia, de modo a lhes assegurar o preço no mínimoigual a 80% do valor pago por ação com direito avoto, integrante do bloco de controle.

§ 1o Entende-se como alienação de controle atransferência, de forma direta ou indireta, de açõesintegrantes do bloco de controle, de ações vincula-das a acordo de acionistas e de valores mobiliáriosconversíveis em ações com direito a voto, cessão dedireitos de subscrição de ações e de outros títulosou direitos relativos a valores mobiliários conversí-veis em ações que venham a resultar na alienaçãode controle acionário da sociedade.

§ 2o A Comissão de Valores Mobiliários autori-zará a alienação de controle de que trata o caput,desde que verificado que as condições da ofertapública atendem os requisitos legais.

§ 3o Compete à Comissão de Valores Mobiliári-os estabelecer normas a serem observadas na ofertapública de que trata o caput.

§ 4o O adquirente do controle acionário de com-panhia aberta poderá oferecer aos acionistas mino-ritários a opção de permanecer na companhia, medi-ante o pagamento de um prêmio equivalente à dife-rença entre o valor de mercado das ações e o valorpago por ação integrante do bloco de controle.

§ 5o (Vetado.)”3 O termo “companhia” é outra forma de trata-

mento das sociedades anônimas.4 Holding é uma sociedade cujo objeto social

visa à participação societária em outras socieda-des empresariais – subsidiárias – com fins de oti-mização da gestão operacional, estruturação soci-etária, proteção patrimonial ou controle de investi-mentos.

5 “Art. 116. Entende-se por acionista controla-dor a pessoa, natural ou jurídica, ou o grupo depessoas vinculadas por acordo de voto, ou sob con-trole comum, que:

a) é titular de direitos de sócio que lhe assegu-rem, de modo permanente, a maioria dos votos nasdeliberações da assembléia geral e o poder de elegera maioria dos administradores da companhia; e

b) usa efetivamente seu poder para dirigir asatividades sociais e orientar o funcionamento dosórgãos da companhia.

Parágrafo único. O acionista deve usar o podercom o fim de fazer a companhia realizar o seu ob-jeto e cumprir sua função social, e tem deveres eresponsabilidades para com os demais acionistasda empresa, os que nela trabalham e para com a

comunidade em que atua, cujos direitos e interes-ses deve lealmente respeitar e atender”.

6 O termo franchising ou franchise traduzido parao vernáculo significa uma concessão, uma franquia,um direito de exploração.

7 O termo spread tem vários significados: opçãopara vender ou comprar títulos, margem de lucro,distribuição, diferença, etc. Adota-se, neste artigo,o significado de “diferença”.

8 Take-over bid é uma expressão da língua ingle-sa que, traduzida para a língua portuguesa, deno-ta a oferta pública de aquisição de ações de deter-minada empresa.

9 Não obstante ampla pesquisa nas obras indi-cadas na bibliografia desta monografia tão comoem outros livros, não se encontrou o nome do refe-rido banco, restando unicamente a válida informa-ção de que tal fato contribuiu para o processo dereconhecimento da necessidade do Tag Along .

10 Recurso Especial no 2.276 – RJ – (90.0001659-2) Revista do Superior Tribunal de Justiça, Rio deJaneiro, v. 32, p. 200, 1992.

11 Rúbia Carneiro Neves (2003) ensina: “As pes-soas decidem poupar e investir a partir de motiva-ções particulares e em virtude de processos de ava-liação que levam em conta três fatores. O primeirofator refere-se à liquidez, qual seja, a capacidadede comprar e vender investimentos com o mínimode esforço. Diz-se um investimento líquido aquelepara o qual sempre se têm compradores e vende-dores interessados. O outro fator é a lucratividade,ou seja, a capacidade que o investimento tem deoferecer lucros. [...] E o terceiro fator relaciona-secom a segurança, isto é, com o grau ou a capacidadeque o investimento oferece ao investidor de receberde volta os capitais aplicados”. (Grifo nosso).

12 Tais princípios contidos no art. 154 são o daeficácia e o da eficiência, uma vez que o adminis-trador deve exercer as atribuições que a lei e o esta-tuto lhe conferem para lograr os fins e no interesseda companhia, satisfeitas as exigências do bempúblico e da função social da empresa.

13 Temos empresas com a totalidade do capitalem ações ordinárias no Brasil. É o caso da SouzaCruz e da CSN.

14 Disclousure quer dizer “divulgação”. É o atopelo qual as empresas divulgam via publicaçõesem veículos de comunicação oficiais ou outras for-mas listadas em lei.

15 A expressão stock options significa “na opçãode compra de ações”.

16 O termo “papel” é sinônimo de ação. É umagíria utilizada comumente no mercado de capitais.

17 Disponível em: <www.estadao.com.br/eco-nomia/noticias/2004/mar/03/143.htm>. Acessoem 2004.

18 A sigla ADR, de American Depositary Receipts,corresponde aos certificados de ações de uma em-

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Bruno Felipe da Silva Martin de Arribas

1. IntroduçãoAo falarmos de imagem, reporta-nos nos-

sa mente, de pronto, aos aspectos simbóli-cos que caracterizam o indivíduo, geralmen-te no seu todo, vez que restam daí excluídasoutras acepções que são de grande valiapara o Direito. Ao jurista, como é cediço, nãocabe se ater ao conceito que seu objeto pos-sui em vulgar. Deve ele precisar mentalmen-te sua matéria de análise e buscar, assim,uma definição que seja mais apropriada.

A importância da imagem da pessoa re-side em elementos de cunho originariamen-te pré-legal, mas que, por questão de políti-ca jurídica, encontrou-se positivada em di-versos Ordenamentos Jurídicos. Assim, to-mando o estudo numa perspectiva filosófi-ca, a figura do Ser tratar-se-ia do elementode sua individuação. Sociologicamente, se-ria fator de reconhecimento e integração so-cial. Nesse passo, juridicamente, como aquinos interessa, temos uma caracterizaçãodúplice.

De tal modo, como adendo preliminar,basta que tomemos nosso objeto sob os dois

Considerações acerca do direito à imagemcomo direito da personalidade

Bruno Felipe da Silva Martin de Arribas éacadêmico de Direito – CCJ/UFPE e monitorde Direito Civil.

Sumário1. Introdução. 2. Imagem como aspecto da

personalidade. 3. Reflexos do direito à ima-gem no post mortem. 4. Especificidades quantoao exercício do direito. 5. Uso indevido da ima-gem. 6. Possibilidades de utilização lícita. 7.Interseção da esfera do direito à imagem comas de outras faculdades jurídicas. 8. Conclusão.

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ângulos em que ele se apresenta: veremoster a imagem ora o sentido de retrato, ora deboa fama, conforme mais se apegue aos ele-mentos visíveis ou coletivos da definição, res-pectivamente. Queremos dizer com isso que,além daquela concepção supra (que há de serprecisada ainda), devemos encarar a imagemtambém como o modo pelo qual os seres vêemo outro na sociedade. Disso resulta, inclusi-ve, diversa disposição constitucional.

Regula o artigo 5o da Carta Política de1988, nos incisos V, X e XXVIII, sob o títuloDos Direitos e Garantias Fundamentais, aproteção da imagem. Não o faz, porém, ale-atoriamente: preocupou-se o Primeiro Legis-lador, além de assegurar a indenização pelamácula pública da reputação do indivíduo,com o explicitar a guarida dum bem jurídi-co que, devido ao avanço das técnicas decaptação, reprodução e veiculação da ima-gem, encontra-se tão suscetível a lesões.

Dentro desses chamados, então, busca-remos compreender precipuamente o envol-vimento da imagem como objeto de Direitoda Personalidade com distintivos atípicosao conjunto dessa classe de faculdades. Tra-remos, também, em consideração suas es-pecificidades, seus pontos de contatos con-flitivos e a importância que sua proteçãoadquiriu hodiernamente, principalmentepor sua relação estreita com diversos outrosbens jurídicos, num contexto despretensio-so de delimitação da matéria.

2. Imagem como aspecto dapersonalidade

Há muito, apercebeu-se a doutrina quecerto grupo de direitos possuía uma tal serie-dade que seria de melhor alvitre atribuir-lhes pechas vultosas procurando firmar porconvicta a veemência de sua dignidade parao Ordenamento. Dentro do que se denomi-na direitos subjetivos, haveria uns que serelacionariam tão grandemente com a pró-pria pessoa que seriam a ela essenciais. As-sim, representariam os bens sem os quaisnão se conceberiam tais entes. Seriam esses

os Direitos da Personalidade, também chama-dos Originários, Inatos, Personalíssimos, e ou-tras tantas denominações 1.

Importa a nós, neste estudo, que buscoua doutrina – no que teve apoio das moder-nas codificações civis (entre elas a italiana,e constando também do novo Código Civilbrasileiro) – conferir a essa classe de facul-dades mínimas e inatas certas qualificaçõespelo que a sua violação configurar-se-ia emilícito mais reprovável. Diz-se, dessa forma,serem os Direitos da Personalidade oponí-veis erga omnes, intransmissíveis, imprescri-tíveis, indisponíveis, irrenunciáveis, e maisoutras alcunhas que se encontram larga-mente enumeradas e destrinchadas em to-dos os manuais de introdução ao estudo doDireito Privado Comum.

Noutro viés, no ramo público, teremosuma teoria que muito se aproxima a esta: ados Direitos Fundamentais, ou LiberdadesPúblicas, igualmente resguardadas nasmais diversas Constituições, que se prendemais, doravante, a um arquétipo de defesado cidadão perante o Estado.

Acompanhando esses imperativos degarantia, deles tratou semelhantemente oSistema Normativo Brasileiro. Como vimos,assim restou prescrito no artigo 5o da CF/88, e, como novidade, ateve-se o Código Ci-vil de 2002 em seus artigos 11 usque 21, dife-rentemente do que fez a Lei Civil de 1916.Daí que, por ato de escolha e persuasão,encontra-se a imagem nesse elenco.

Para que entendamos a figura como ob-jeto de Direito da Personalidade, havemos,a princípio, de fixar qual seja seu real con-teúdo de relevância jurídica. Isto é, trata-seagora de delimitar a matéria de discussãopara vê-la, somente a partir de então, inclu-sa nessas teorias de austeridade protetiva,mais especificamente na do ramo privado.

Pois bem, o que se tem entendido comoimagem é um dos aspectos da personalida-de. Seria, outrossim, a manifestação pictóri-ca desta, como emanação dos caracteres fí-sicos que individuam o Ser2. Como se sabe,a personalidade, qual atributo concedido

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(ou reconhecido, para alguns) a certos en-tes, entre os quais o homem, não se encerraapenas em aspectos espirituais: possui tam-bém feições físicas, visíveis, que se revelame dessa forma integram esse substrato idealde direitos e obrigações. E a esses ares exte-riores também se outorgam aquelas qualifi-cações de quase intangibilidade.

Como dissemos anteriormente, para oDireito, o que se chama imagem possui umcaráter de dupla apreciação: se a tomarmoscomo já agora remansamos, teremos a ima-gem-retrato (ou figura). É, noutros termos,aquele elemento material vislumbrável quetransporta a personalidade duma esfera tão-só privada e moral para uma sobrelevaçãovisivelmente aberta. Por outro lado, tambémsob esse léxico (o signo imagem) se inclui aboa fama ou imagem-atributo (MOREIRA,2002).

Embora possam ser albergadas pelo mes-mo vocábulo, tais acepções não se podemconfundir. São ambas direitos da persona-lidade, ou fundamentais, intimamente rela-cionados, mas a lesão a um deles não impli-ca dano necessário ao outro. Pelo primeiro,temos um bem jurídico que se expressa fisi-camente: é o semblante, a feição, o corpo, asimbolização deste ou de parte deste (comoos olhos da famosa modelo), que nos fazperceber ser aquele dado externo parte dumdeterminado indivíduo, ou seja, que o dis-tingue e imprime nas circunstâncias da vidaa sua presença. É um sensível ver-o-homem,que se apalpa, representa-o figurativamen-te e se pode captar por diversos meios mate-riais. O segundo – imagem/boa fama – refe-re-se diferentemente a uma especial formade ver alguém, dentro da vicissitude dos fa-tos sociais. Não se trata do corpo que se en-xerga mas do composto moral que se aper-cebe no Ser, como sua reputação, sua consi-deração, sua nomeada que assume uma va-riável mais coletiva. É um moral ver-o-ou-tro, que pode ser igualmente prejudicado poragressões repulsivas.

Essa delimitação nos serve para que res-trinjamos a análise precipuamente àquele

composto físico/visível da personalidade.Importa-nos mais especificamente a ima-gem/retrato que se insere como espécie dogênero privacidade e é objeto de proteção ju-rídica.

Como ensina o mestre Antônio Chaves(1972, p. 47 et seq.), em verdade, a imagem,em que pese a carga moral que possui, sobsua perspectiva física não passaria do refle-xo da luz sobre um corpo. Todavia, nesseentendimento simplório, restringe-se às as-sertivas referentes à imagem como compos-to ótico, o que é por nós peremptoriamenterejeitado. Aqui a veremos como objeto dedireito.

Seguindo essa ótica, quando falamos dedireito subjetivo, é de destacar estamos tra-tando duma ampla concepção que se reme-te a uma relação jurídica entre dois pólossubjetivos em torno, a propósito, dum obje-to. Dentro de nosso estudo, este se portacomo bem (jurídico), que, na lição de Orlan-do Gomes (2001, p. 151), é uma noção histó-rica, e não naturalística; daí que

“não é a personalidade (...) objeto des-ses direitos, visto que, sendo o pres-suposto de todos os direitos, em simesma não é um direito (Unger) e,muito menos, objeto de qualquer relação.Recaem em manifestações especiaisde suas projeções, consideradas dig-nas de tutela jurídica, principalmenteno sentido de que devem ser resguar-dadas de qualquer ofensa, por neces-sária sua incolumidade ao desenvol-vimento físico e normal de todo ho-mem”.

Assim, o objeto desse enlace não é a per-sonalidade (substrato), mas o bem jurídicoconsiderado como valor basilar de garan-tia, no caso vertente: a figura da pessoa.

Pode-se, deste feito, expor em didáticaque se relaciona intersubjetivamente umhomem com todos os demais, pelo que estesnão devem usar indevidamente a imagemdaquele, prerrogativa exclusiva sua, tendoo titular ativo o poder de exigir que se res-peite essa faculdade jurídica e, em caso de

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contraventiva, acionar o aparato judicialpara repor ou compensar as perdas, comoveremos mais adiante. É essa a noção daoponibilidade erga omnes do direito à ima-gem e dessa forma é que se concebe a figuracomo objeto de direito da personalidade.

Nessa relação que toma por base a ex-clusividade do portador sobre sua estam-pa, advirtamos, não estamos nos referindoà proibição de que outros dela tomem co-nhecimento, mas que se use a efígie contra avontade de seu detentor. Inócuo imaginarpossível elidir qualquer envoltura ou inva-são alheia sobre a própria imagem, simples-mente porque, como entes sociais, convive-se em povoamento. É, no entanto, repulsivoque se valha indistintamente da figura deoutrem, tratando-se, à evidência, noutrostermos a exclusividade.

Dentro duma linha histórica, não se en-controu amparo legal sistematizado que tra-tasse do tema no pergaminho civil pátrio de19163. Na América, a primeira menção le-gal acerca dos Direitos da Personalidadeencontra-se no Código Civil Peruano de1936. Ganhou deveras um maior destaquena Lei Civil Italiana de 1942, que dispôs dotema em dois capítulos (OLIVEIRA, 2002).Tal matéria, e mais propriamente o direito àimagem, a par do encaminhamento jurídicoque há muito vinha recebendo, restou posi-tivada explicitamente tanto na ConstituiçãoBrasileira de 1988, que dele tratou nos re-gramentos sobreditos, como no Código Ci-vil de 2002 (Lei no 10.406 de 10/01/2002),que vem em seu art. 20 e parágrafo únicodisciplinar tal esfera.

Implica tal encaixe do retrato (conside-rado lato sensu no que diz com a própriaimagem) o enquadramento de todas as prer-rogativas que distinguem em importânciaos direitos inatos da pessoa. A imagem, par-te física da personalidade vislumbrável ecaptável por instrumentos, é direito absolu-to (com a séria ressalva de que assim se oentende por ser oponível erga omnes), impres-critível, irrenunciável, vitalício, necessário,indestacável de seu titular, etc., sendo, con-

tudo, que a ele não cabe a pecha da indispo-nibilidade, ao menos nos termos que adi-ante veremos.

Constituído, dessa forma, como é, porembaso no personalismo, percebe-se ser aimagem bem jurídico de íntima sintonia combens outros de ordem moral, mas que, de se-melhante modo ao que ocorre com a reputa-ção, não se os pode tratar indistintamente.

Como vimos acima, há de se impor umadiversidade de tratamento ao se falar deimagem/retrato e imagem/boa fama. Essaé a garantia constituída no inciso V do arti-go 5o da CF/88, que assim fala da indeniza-ção por dano material, moral ou à imagemconseguinte ao mau uso da liberdade demanifestação do pensamento, carreada emconcomitância ao direito de resposta. Simi-larmente, temos a boa fama como parâme-tro de aferição de um dos possíveis usos in-devidos do retrato de outrem tal qual se en-contra no art. 20, caput, do noviço diplomacivilista.

A figura, noutra ótica, encontrou graça eguarida nos incisos X e XXVIII do art. 5o daCF/88, que tratam da inviolabilidade des-se bem e da proteção às participações indi-viduais em obras coletivas e à reproduçãoda imagem e voz humanas, inclusive nasatividades esportivas.

Assim, proscrevendo a violação a diver-sas esferas da privacidade da pessoa (rightof privacy), houve por bem, e acertadamenteo fez, o Constituinte distinguir intimidade,vida privada, honra e imagem. Afirma oconstitucionalista José Afonso da Silva(1999, p. 207) que se deve tomar a privaci-dade genericamente, para que assim possaenglobar essas outras manifestações da es-fera íntima, privada e da personalidade.Igualmente, desse modo o fez o art. 20 daepístola civil de 2002, que se preocupa emos separar como bens jurídicos autônomos.

O insigne Celso Bittar (2000, p. 93-94)nos chama a perceber também esse aparta-mento quando explana que,

“na divulgação da imagem, é vedadaqualquer ação que importe lesão à

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honra, à reputação ao decoro (...), àintimidade e a outros valores da pes-soa (...), verificando-se, nesse caso,atentado contra os aspectos corres-pondentes (e não violação ao direitode imagem, que se reduzirá a meiopara o alcance do fim visado)”.

Afigura-se-nos, desse modo, a importân-cia que possui essa faculdade jurídica, e issoporque sua violação pode agravar por de-mais o limiar de preservação de outros bensjurídicos igualmente insertos numa redomade semi-intangibilidade, como direitos per-sonalíssimos que são. Assim, quando seexpõe ilicitamente o retrato de uma pessoa(notória ou não), pode essa veiculação ata-car tão-somente a representação pictórica dapersonalidade, como também, concomitan-temente, agredir sua honra, sua reputaçãoetc.

3. Reflexões do direito à imagemno post mortem

Discorremos, quando da caracterizaçãoretro dos direitos da personalidade, que sãoesses intransmissíveis, por isso personalís-simos. Quer isso dizer que tal classe não sedesliga sob nenhuma hipótese do seu titu-lar. Não pode, assim, a pessoa deliberar acer-ca de transferir a sua posição em relação àprópria imagem para outrem, sob qualquertítulo, o que seria uma afronta àquela regra.

Essa é a mesma concepção relevada paratodos os outros direitos da personalidade(não podemos alienar nosso direito à vida,nossa honra, etc.). Dessa forma, permanece-se como titular ativo do direito à imagemmesmo que não se o queira, e em nenhumahipótese poder-se-á dissociá-lo da pessoaportadora (D’AZEVEDO, 2001), vez queimplicaria desgaste ao princípio maior dadignidade humana.

Contudo, mister que se tome em consi-deração que a personalidade não é um ar-cabouço potencial que apenas ao sujeito dizrespeito. Direitos há cuja produção de efei-tos, após sua atuação, sobrepassa a vida e

vai servir de limitação contra ataques mes-mo na situação post mortem.

A personalidade emite eflúvios que re-pousam no ordenamento fazendo com queeste continue a proteger as implicações decertas faculdades adquiridas em vida, masque ainda se guardam na memória. Não es-tamos dizendo, com essas palavras, que ode cujus possui direito à própria imagem.Não, vez que absurdo. No advento da mor-te, extingue-se a personalidade, e com elatodos os direitos que lhe tomavam por base,inclusive o poder sobre o retrato.

Mors omnia solvit.Mas aquele direito, assim como alguns

outros (tais quais honra, obra, memória),inobstante só se possam ter por existentesenquanto também viva o titular, possuemreflexos que não se limitam ao período devida: antes, perduram além desse. Dessaforma é, v.g., que se punem o vilipêndio acadáveres (art. 212 do Código Penal) e de-mais ilícitos que atentam contra o respeitoaos mortos.

Deve o leitor ter bem claro que não seestá falando em persistir o direito, mesmosem o seu titular, mas que, uma vez que estejá o teve, a faculdade necessariamente exi-girá respeito, cuja implicação ressoa aindaapós a deterioração da vida. Nas palavrasde Arnaldo Rizzardo (2002, p. 148),

“acontece que, prolongando-se os va-lores para além da morte, a tutela tam-bém deve estender-se. Não se está de-fendendo um objeto, ou uma coisa (...)mas sim um valor pessoal, a emana-ção da pessoa, os atributos decorren-tes do espírito”.

Conseguintemente, houve por bem o le-gislador ordinário atribuir a legitimidadeativa para propor ação que vise cessar a le-são e requerer a devida indenização, ao côn-juge, ascendente ou descendentes do mortoe do ausente (parágrafo único do artigo 20do NCC). Essa atribuição traz à tona a ex-clamação da defesa dos efeitos post mortemdo direito à imagem ao par que em hipótesealguma se diz transmitido o direito aos in-

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divíduos elencados no referido dispositivolegal.

É uma questão de bom senso e respeitoàquele que um dia possuía personalidadede direito e que agora, sem possibilidade dese amparar per se, terá a reminiscência pre-servada por meio de seus parentes, que de-terão a legitimatio ad causam ativa com vistaa pleitear liminar para cessar a exposiçãoilícita e o pedido de indenização, sem quedetenham a vera titularidade do direito.

4. Especificidades quanto aoexercício do direito

Após havermos emoldurado a imagemsob aquela classificação, é de igual relevân-cia que ponhamos a limpo certos feitios pe-culiares que tornam o estudo dessa peçamatéria para muita discussão. O esboçoduma figura jurídica engloba, além de suadelimitação conceitual, os problemas e o re-gime que se lhe destinam enquanto fruto deapuro que se desliga da simples empiria.

A questão de relevo que se há de explici-tar nesse ponto é a referência elucidativadevida quando se distingue o direito à ima-gem do seu respectivo exercício. A despeitode imprecisões doutrinárias que freqüente-mente se vêem, permanece a imagem comosubstrato duma proteção inegavelmente in-disponível, o que não ocorre, destarte, coma sua exploração. Com isso estamos dizen-do da possibilidade de disposição que temo sujeito ao celebrar pacto tendo como obje-to prestação referente à sua imagem. Nego-cia-se temporariamente o exercício do direi-to, no seu aspecto patrimonial, e não a pró-pria faculdade.

O direito à imagem, como tal, é algo pu-ramente pensado, moral, espiritual que seja.Não pode, outrossim, tal composto sequerfigurar num contrato, porque dele não sepode dispor. O mesmo ocorre com todos osdemais de sua classe de importância e aus-teridade, sendo inconcebível qualquer ten-tativa de cessão do direito que prive termi-nantemente o sujeito da própria titularida-

de. Jamais se desvinculará a imagem daque-le que a porta.

Porém, como asseveram diversos gran-des autores, e deles fazendo eco a jurispru-dência brasileira4, além desse conteúdo pu-ramente moral, existe uma faceta que assu-me o caráter apreciável economicamente queé decerto o exercício desse direito. Por umademanda de esclarecimento, citemos o exem-plo do direito autoral (que não se trata dumdireito da personalidade), cujo ângulo ide-al é de intrínseca ligação com o autor, masque possui, por certo, uma estimação pecu-niária quanto ao seu exercício: daí poder eleceder sua obra intelectual para reproduçãoe comércio, conquanto por nada se autorizeafirmar que assim alienou seu direito. Oautor não transfere a titularidade de seu di-reito, continua ele sendo o criador da obra;ele negocia a exploração do corpus mechani-cus que carrega sua criação do espírito ex-pressada de alguma forma (ASCENSÃO,1980, p. 14). Além do que, poderá retomarsua construção e proibir que se a reprodu-za, arcando, é claro, com os prejuízos quede sua atitude resultarem. Por semelhantemodo, um indivíduo que celebra um contra-to pelo qual se encarrega de expor sua inti-midade num programa televisivo (os cha-mados “shows de realidade”) não está comisso transferindo definitivamente sua esfe-ra da vida secreta, pois que indisponível,mas negociando temporariamente seu exer-cício, deixando com isso que alguém de al-guma forma a invada5.

Isso em muito se equipara ao contratoque se estabelece rotineiramente para o usoda imagem em propagandas ou publicida-des. Agências celebram com artistas, mode-los, jogadores etc. contratos pelos quais sevinculará a imagem da pessoa ao produtoque se quer divulgar. Essa negociação, ob-viamente, possui limitações que serão adi-ante analisadas, mas que, dentro do corteda escorreição contratual, não apresentamqualquer problema ético para o Direito. Emnada conflita essa possibilidade de pactua-ção com o personalismo que reveste a ima-

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gem. Não há qualquer subversão ontológi-ca que desautorize essa prática tão comum.

Daí se dizer que da exclusividade quereveste o direito à própria imagem resulta,materialmente, ter seu titular uma série defaculdades conexas, como o direito de di-vulgá-la, publicá-la, vender sua estampa-gem (i.e. uma sua fixação fotográfica) emconjunto ou separadamente, com todas asprecisas estremaduras (CHAVES, 1980, p.53).

Para esse fim,“o contrato adequado é o de licença,ou de concessão de uso, em que sedevem explicitar, necessariamente,todos os elementos integrantes do ajus-te de vontades, a fim de evitarem-seeventuais dúvidas: direito objetivado,fim, prazo, condições, inclusive a re-muneração, possibilidade de renova-ção e outras” (BITTAR, 2000, p. 91).

Disso nos vêm as devidas formalidadespara a conclusão dum contrato dessa alça-da, vez que, como direito da personalidade,exige parcimônia.

Em primeiro plano, um acordo de vonta-des que envolva a utilização da imagem/retrato de outrem deve possuir todos os re-quisitos de um contrato. Em lição lapidar,destaca Serpa Lopes (1996, p. 63 et seq.) oselementos integrantes dos elementos cons-titutivos. Estes tratariam daqueles de quedepende a existência do contrato e seriam apresença dos sujeitos, o consentimento e umobjeto que forme a matéria do que se contra-tou. Os integrantes consistiriam nos requi-sitos imprescindíveis para a validade docontrato e seriam agente capaz, objeto lícito,possível e determinado ou determinável, eforma prescrita ou não defesa em lei 6.

Seguidamente, há de constar em estipu-lação expressa o objeto da cessão temporá-ria e as cláusulas que regularão o negócio.Isto é, o que se quer com o contrato, quais osdeveres e direitos de cada parte, as presta-ções e remuneração, as condições contratu-ais, o prazo. Este, basilar, pois que não ha-veria cabimento numa concessão indetermi-

nada de uso da imagem (o que não proscre-ve a exclusividade: impede-se a utilizaçãoarbitrária e perpétua, não a vinculação daimagem da pessoa a apenas um produto decerta classe., conquanto não seja de definiti-va pactuação).

5. Uso indevido da imagem

Vimos, em passagem supra, referir-se aimagem da pessoa ao seu retrato, o que deforma alguma se deve resumir ao seu todosemblante, à sua só efígie considerada emplenitude. Antes de se taxar tal objeto dessemodo, importa que se o tome numa perspec-tiva maior de identificação da pessoa. Por issohavemos considerar que também partes docorpo, como rosto, olhos, membros, colo, ouqualquer outra peça da matéria humana queseja o bastante para asseverar sua indivi-dualização exterior, são elementos de pro-teção jurídica. Daí se ter esse direito à ima-gem como um “um vínculo que une a pes-soa à sua expressão externa, tomada no con-junto, ou em partes significativas” (BITTAR,2000, p. 90).

Antes de embrenharmo-nos no pontoproposto, obriga-nos esclarecer a relaçãoentre a propagação hodierna de ações quevisam rebelar a violação do direito à ima-gem (tomado no sentido que acabamos dereferir) e o desenvolvimento de meios de cap-tação e reprodução do retrato de outrem.

É da ciência de todos que a sociedade,pelo gênio que possuem seus integrantes,busca sempre aprimorar as tecnologias deacordo com sua capacidade e necessidadede novos maquinários. Dessa forma, é pa-tente o progresso que se tem atingido na áreados artifícios de comunicação, colheita dedados fonográficos e visuais. Sendo a efígieo aspecto físico e aparente da personalida-de, nada mais óbvio que a possibilidade desua apreensão por instrumentos mais vári-os, como máquinas fotográficas, videográfi-cas, e a reprodutibilidade desses dados nosimpressos periódicos (revista, jornal), na te-levisão, na rede de Internet etc.

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Percebamos, ademais, que a esse com-plexo de veiculação alia-se a permissão depactuação temporária do retrato da pessoapara fins mais diversos possíveis. Isso pos-to, jaz claro que os compostos resultantesda negociabilidade com a reprodutibilida-de facilitada pelos modernos meios de exi-bição levam a eventuais perversões que setraduzem na utilização ilícita da imagemde outrem e nos conseqüentes danos querepudiam ao Sistema Normativo. O que noscabe, mais propriamente, nessa passagem,é expor, no tanto que for possível, os casosdesse uso indevido, o que simboliza, talvez,a mais interessante faceta desse tema. Wal-ter Morais (1996)7, citado por Antônio Cha-ves (1972, p. 52-53), vivamente dispunhaque, ao se lançar mão da figura alheia, queconsiderava como “misteriosa e quase di-vina emanação” da personalidade, era comose estivesse a utilizar a própria pessoa, mul-tiplicando sua presença moral.

Em princípio, pelo ordinário de sua ocor-rência, havemos a hipótese de publicação dafoto de outrem, para fins comerciais, sem autori-zação do titular da imagem8.

É mister que se tome em vista o comple-xo de configuração que se impõe à referidaprática. Ao falarmos de publicação, referi-mo-nos à exposição pública da imagem, àsua divulgação pelos meios hábeis, comosua veiculação numa revista ou periódicoqualquer. Exige-se igualmente um elementofinalista, qual seja: a postura do retrato àexibição visando angariar, de alguma for-ma, com isso, um acréscimo benéfico nasrelações de cunho patrimonial. É o intentolucrativo que se busca ao se associar a ima-gem dum dado artista ou modelo, que pos-sui uma receptividade meio ao público, aum dado produto ou serviço. Se para algunsa publicação sem consentimento já é de todoreprovável, máxime quando de caráter mer-cantil. Acontece que, há muito, o sistema depublicidade – que pode ser entendida comoa informação propagandística que buscaengendrar no espectador um impulso deconsumir (SZAFIR, 1998, p. 62-63) – apre-

endeu o alcance que tem a vinculação deum bem a certo indivíduo que goza da em-patia e/ou da respeitabilidade coletiva, oque pode levar (como efetivamente tem le-vado) a uma infinidade de abusos.

O ponto nevrálgico desse atentado resi-de, contudo, na ausência do consentimentoda pessoa para que se exponha sua figura.Como bem jurídico de alçada tão sensível, aprática no sentido de valia sem anuência épassível de reprimenda,

“de modo que, integrando o direito dapersonalidade a imagem [...] das pes-soas, não é permitido o uso desautori-zado em publicidade, visando provei-to econômico ou outra finalidade pro-veitosa, como acontece na divulgaçãode entidades, produtos, serviços; ousimplesmente maior venda de revis-tas, jornais, livros e outras espécies depublicações e gravações; ou conseguirgrande audiência em programas au-diovisuais, transmitidos por cinemas,canais de televisão (...). Aproveitam-se pessoas de destaque, conhecidaspor dotes físicos, artísticos, científicos,intelectuais, esportistas etc., dando-serealce a aspectos como o rosto, os ca-belos, os olhos, o perfil, (...), dentreoutros” (RIZZARDO, 2002, 154).

Negociar ou não sobre isso é uma quæs-tio voluntatis.

Seguindo esse viés, no artigo 46, I, c, daLei 9.610/98, temos a exigência da concor-dância do titular ou de seus herdeiros paraa reprodução de retratos ou outra forma derepresentação da imagem. E de tal formasubmerge a grandeza da autorização paraque se empregue a imagem que esse modose o pode denominar violação quanto à aqui-escência9.

Prosseguindo na análise, uma segundaocorrência aqui elencada é o caso em que,firmado o contrato (com o que já se podedizer houve acordo), a utilização se dá parafins, total ou parcialmente, temporal ou ma-terialmente, diversos do avençado. Muito co-mum se nos apresentam eventos em que um

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indivíduo que frui de boa acolhida popularafirma ter celebrado um acordo pelo qualconcedia temporariamente a exploração desua imagem para determinado trabalho, oupor um lapso fixo, mas no entanto a agên-cia, sub-repticiamente, houve por bem es-tampar sua efígie em matérias além do acer-tado, ou então “prolongar” o contrato semavisar o artista e sem remunerá-lo por isso,caracterizando um desvio quanto ao uso.

Ocorre que, como já havíamos elucida-do, por envolver um objeto tão precioso, ocontrato que tenha por conteúdo qualquerobrigação referente à manifestação física dapersonalidade há de se pautar pelos princí-pios que regem as negociações, ainda maisque os acerca de outros bens de cunho pre-cipuamente patrimonial. O estrito cumpri-mento dos deveres resultantes do acordo,com suas cláusulas, é questão inconteste,pois homologação da segurança jurídica,tão querida na seara privada do Direito.Aclarando esse tópico, segundo o mestreBittar (2000, p. 92-93),

“nenhum uso pode, salvo as limita-ções naturais, exceder aos contornoscontratuais: assim, a empresa que dis-põe de fotografia de atriz para publi-cidade do filme não pode, paralela ouposteriormente, utilizá-la em revistaou na divulgação de produto de outraempresa, ou cedê-la para qualqueroutra inserção. Também não estãoautorizados os bancos ou arquivos defotos [...] a fazer usos não previstos noajuste com o interessado [...]”.

É da ciência geral, e se não era antes, comeste trabalho já o é, que a imagem pessoal seaproxima intensamente de outros objetos derelação jurídica, mais propriamente de ou-tros também personalíssimos direitos taisquais a honra, a intimidade, a identidade,vida privada, e outros tantos que se referemà integridade moral (GOMES, 1967, p. 40)do indivíduo. O homem está rodeado debens jurídicos que se intercomunicam for-mando um complexo não subsumido aopuramente material, mas da órbita do espí-

rito, o que é por si já uma mixórdia fluida.Tais conteúdos jurídicos não se podem to-mar por estanques e disjuntos: antes, relacio-nam-se podendo sofrer detratações que osatacam conjuntamente. Tendo dito isso,emerge o terceiro lance do catálogo de ilicei-dade na exploração do retrato d’outrem:quando denigre, concomitantemente, outro va-lor pessoal, de relevância jurídica, como oshá pouco citados. Outra não é a prescriçãodo art. 20 do NCC, que proíbe genericamen-te a exposição ou utilização da imagem deuma pessoa se lhe atingirem a honra, a boafama ou a respeitabilidade.

Urge que explicitemos não haver rela-ção de igualdade entre qualquer desses di-reitos. São de configuração autônoma, poisassim considerados para o Direito, como jáem enfado repetimos. Para o fim de destrin-chamento, é a situação, v.g., dum treinadorde futebol que tem uma sua imagem estam-pada em poses esdrúxulas num periódico,ou na porta dum lavabo de restaurante. Háde se convir que, pelas circunstâncias, podetal hipótese estar agredindo o titular do di-reito, ferindo dessa forma sua honra e, qui-çá, sua reputação entre os que se deparamcom a efígie10. Ressaltemos que, como já foidito, servindo assim a violação à imagemcomo veículo para a agressão a outro bemjurídico, tal qual honra, vida privada, ouquaisquer daqueles compostos morais jáventilados, teremos cabível ação a respeitodesses, que é a matéria desiderato da con-duta, e não contra o direito ao próprio retra-to11.

Arrematando essa síntese das possíveisafrontas, imprescindível que se fale da ocor-rência de irregularidade de maior alçada fí-sica. A completude da proteção a esse direi-to não se daria sem a plenitude de sua abran-gência visível, o que nos faz ter em menteque também na alteração desautorizada do re-trato haveríamos uma conduta desviante.

No instante em que se tira uma pose fo-tográfica de alguém, ou se apreende sua fi-gura em instrumentos de vídeo, a esfera dedefesa da imagem do interessado adquire

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um corpo filosófico e jurídico que não elideo mais simples dos modos de proteção: agarantia de que o titular terá a sua repre-sentação pictórica preventa das deturpaçõespara as quais não consente. Livra-se, aí, nanorma em abstrato, dos retoques, modifica-ções, colagens, montagens e de toda sortede mutação da imagem, por mais benfazejoque seja o propósito, se com isso não está deacordo o sujeito detentor do direito.

O rol de usos indevidos do retrato su-pralistado é formado por tipos que se com-plementam e podem, em diversas ocasiões,estar presentes num mesmo fato concreto.Expomos, com isso, que em nada contrariaa divisão didática aqui apresentada se senos apresenta um caso em que a utilizaçãose dá, ao mesmo tempo, para fins comerci-ais desautorizadamente e fere a intimidadedo indivíduo, que poderá servir de balizapara a fixação do quantum na indenização.Não há, dessa forma, cogitar de impossibi-lidade de interseção, como nos mostra esseexemplo.

Havendo adentrado em tal particulari-dade, ressaltemos que a proteção aqui con-ferida não se restringe aos indivíduos quepossuem certa notoriedade perante o públi-co. Como significado imperante dum Esta-do de Direito, ao vulgo também se garante opoder de fruição de sua imagem e decisãosobre seu destino, facultando-lhe opor-se aqualquer conduta que a venha ter em des-consideração. Dessa forma, tampouco sejustifica uma invasão na esfera de privaci-dade em que se circunscreve a imagem dealguém que goza do reconhecimento popu-lar, como por bem não se o faz a qualquerdesse mesmo povo.

No rastro do art. 186 do NCC, a violaçãodo direito objeto de nosso estudo é ato ilíci-to e, por conseguinte, hipótese-condiçãoduma sanção jurídica, qual seja: o ressarci-mento pela lesão a bem jurídico. Concomi-tantemente à prática do ilícito vergastado,resulta uma tal situação incômoda para avítima, provocando-lhe sofrimento e pesar,restando, por assim dizer, ensejada a con-

veniência duma ação de indenização porperdas e danos. Como ainda nos ensina Bit-tar (2000, p. 96),

“das medidas cabíveis, as tendentesa fazer cessar o ilícito (cautelar, de quese destaca a busca e apreensão domaterial violador) e a satisfação dosprejuízos (ação de reparação de da-nos compreendendo tanto os de cará-ter moral, como patrimonial) são asmais eficazes na prática”.

Pode, dessa forma, acarretar-lhe um pre-juízo patrimonial (descortinando, por exem-plo, portas de trabalho para um determina-do modelo) ou, como consagrado já em nos-sa Constituição Federal, trazer-lhe amargu-ra, privação de bem-estar, padecimento, in-quietação mental e perturbação da paz (VE-NOSA, 2002, p. 257-262). Temos, outrossim,configurada a possibilidade de dano mate-rial e dano moral decorrente do uso indevi-do da imagem de outrem, cumulativamente.

Numa questão de delimitação, talvez aquidescabida, mas que nunca é demais consig-nar, podemos conceituar dano moral como

“todo aquele que não venha a afetar opatrimônio material da vítima. Ou seja,abrange a dor física e psíquica, constrangi-mento, raiva, angústia, aflição, vergonha,sentimento de humilhação, etc. Enfim é tudoaquilo bastante o suficiente para causar umarepercussão negativa no íntimo da vítima”(MOREIRA, 2002).

Dito isso, nada mais óbvio que o padeci-mento moral que sofre o titular do retratoquando do locupletamento ilícito daqueleque sorrateiramente o usou com desígnioespeculativo, ou da situação vexatória deque foi vítima quando lhe expuseram fotocomprometedora. Válido ressaltar que, es-tritamente considerado, o dano moral é irre-parável, sem mensuração pecuniária, ser-vindo a indenização como lenitivo para ador (VENOSA, 2003, p. 33-39).

E o relevo que a essa condição se aplica éde tal monta que se tem tido como havido odano moral com a tão-só exposição indevi-da. Nos termos do RESP 267529/RJ,

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“Em se tratando de direito à imagem, aobrigação da reparação decorre do própriouso indevido do direito personalíssimo, nãohavendo de cogitar-se da prova da existên-cia de prejuízo ou dano. O dano é a própriautilização indevida da imagem, não sendonecessária a demonstração do prejuízo ma-terial ou moral”.

Entende-se inclusive que não se faz ne-cessária a mácula à reputação (imagem/boafama) da pessoa para se ter nascida a obri-gação de ressarcir12.

Contudo, é de se levar em conta que nema todos assim parece, pois, tendo sido postaem negociação, logo apreçada, não se podefalar em violação do direito à imagem, nomáximo de dever de indenizar por culpacontratual. A cessão da exploração do re-trato desautorizaria, espantosamente, qual-quer postulação acerca da privacidade. Portudo que aqui já dissemos, resta claro, coma devida vênia, que com esse tino não con-cordamos. Essa esfera da vida secreta não éum indistinto bem jurídico cuja manipula-ção é aprazível ao Direito, inda mais queindisponível. Não havemos de falar em “ab-dicação” do direito pelo simples fato de seter pactuado temporariamente quanto aoseu exercício.

No tocante ao dano material, temos umcunho de transgressão com eflúvios patri-moniais que assolam a vítima, fustigando-lhe total ou parcialmente o conjunto de suasrelações jurídicas apreciáveis economica-mente. Não será demais apontarmos aquique, nesse dever jurídico de compensação,“a indenização por violar o direito à ima-gem não deve se limitar ao valor que o indi-víduo perdeu (dano emergente), mas tam-bém deve se estender para quanto deixou deganhar (lucros cessantes)” (D’AZEVEDO,2001). A fustigação material se demonstra,v.g., no caso do artista que tem sua imagemfotográfica levada em referência a um dadoproduto que possui repulsa popular, e porisso tem sua empatia meio ao público des-gastada, perdendo assim a firmação de ou-tros acordos envolvendo sua figura. Por isso,

tem-se entendido ser a notoriedade um cri-tério de aferição do quantum indenizatório.O professor Carlos Bittar (2000, p. 97)aprecia que o ressarcimento deve estar emconsonância com tal advento do renomee que

“deve-se, assim, na fixação da inde-nização, optar por valores que, a parda satisfação do interesse patrimoni-al do titular, sancionem a violação aoaspecto pessoal, buscando-se, pois,adicionar à verba usual do mercado oplus correspondente à lesão à perso-nalidade, e em níveis desincentivado-res da prática, como medida de plenasatisfação ao interesse do lesado, e emperfeita consonância com a teoria daresponsabilidade”.

De se consignar, ainda, que a nós, afigu-ra-se-nos bastante razoável admitir que oConstituinte tenha aberto, na inteligência doinciso V do art. 5o, o cabimento do pedidode uma terceira verba, além da correspon-dente ao dano material e moral, devida porum ato injurídico, visando compensar pe-cuniariamente o que teve sua imagem/boafama lesada. Atente-se que na Magna Cartase vê: “além da indenização por dano mate-rial, moral ou à imagem”.

Moral e Imagem (nesses termos concebi-da) não se confundem. São ambas objetosdistintos, passíveis de danos distintos, logodiversas poderão ser as verbas indenizató-rias requeridas13. De melhor, assim, por queconsideramos que toda lesão deve, na me-dida do possível, ser ressarcida, compensa-da. De melhor, ainda mais, por que dessamaneira atribuímos maior eficácia ao texto,encarando-o não como mera disjuntivida-de alternativa, porém cumulativa14.

Acostemos que, ao se falar de “honraobjetiva” da pessoa jurídica, não podemostomar em consideração bem outro que nãoseja a reputação, que possui necessários re-flexos econômicos no patrimônio da em-presa, mas que não se deve confundir comhonra, no sentido subjetivo que se destinatão-somente aos homens.

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6. Possibilidades de utilização lícita

Por certo que não só de contravençõesreveste-se a exploração, econômica ou não,do direito à imagem. Prestando-se, com em-baso volitivo ou inclusive sem o consenti-mento, a certas hipóteses que procuraremosaqui delimitar, é de se ver que a carga melin-drosa que acompanha tal faculdade jurídi-ca é sobrelevada para se atingir um campode atuação dentro das conformidades legais.Quer isso dizer que, embora seja a imagemobjeto tão frágil e de tutela premente, muitopossível haja exercício que não fira ilicita-mente interesse, público ou privado, haven-do então liceidade no uso.

Poder-se-ia pensar que de contrapontoresolver-se-ia esse tópico. Bastaria tão-so-mente saber dos casos de uso indevido parase chegar, por negativa, ao que de resto se-ria juridicamente aceite. Não se enquadran-do no que taxado está de repugnante, aomais, repousados estaríamos no tolerado.Às conclusões se pode chegar dessa manei-ra, em verdade. Mas não é de todo bom con-signar algo mediante apenas o que lhe sejacontraproducente, i.e., definir por negativas.

Em vista então dessa proposta, o traba-lho do sabedor do direito é tomar sua maté-ria de análise, apartá-la do que malmente selhe imiscui e fixar sua descrição numa óticade direito. Daí que não seria satisfatório sóproclamar que é permitido o uso que não forconsiderado indevido. Mister que tratemoscom mais minudência o agir sobre a estritaesfera da liberdade jurídica no que tange aoretrato.

Posto que não seja de boa técnica trans-crever o texto da lei em estudo científico, ain-da assim não deixariam de conceder vêniaos cautos para que aqui possamos transmi-tir ao leitor o que no Código Civil luso seencontra, vez que de singular valia pelo seualcance e caráter elucidativo. Vejamos o quereza o artigo 79o, n. 2:

“Não é necessário o consentimen-to da pessoa retratada quando assimo justifiquem a sua notoriedade, o car-

go que desempenhe, exigências depolícia ou de justiça, finalidades ci-entíficas, didácticas ou culturais, ouquando a reprodução da imagem vierenquadrada na de lugares públicos,ou na de factos de interesse públicoou que hajam decorrido publicamen-te.”

Ainda no n. 3:“O retrato não pode, porém, ser

reproduzido, exposto ou lançado nocomércio, se do facto resultar prejuízopara a honra, reputação ou simplesdecoro da pessoa retratada.”

Indubitavelmente lúcida a dicção supra-citada15. Talvez já desnecessário, aqui, algoquerer se acrescentar; mas, deveras, é o aque se propôs.

Afirmamos no ponto anterior que ao su-jeito cabe decidir, conquanto não se fira alei, os bons costumes e a moral, sobre explo-rar a faceta patrimonial de seu direito à ima-gem. Não haveria, como dissemos, subver-são ontológica em pactuar temporariamen-te seu exercício. Daí ser cabido pormos, pre-liminarmente, que, sendo plenamente escor-reita a vinculação contratual que diga com oretrato de alguém, igualmente lícita seria suautilização. As contravenções são exceçãodas condutas juridicamente relevantes. Aessa primeira situação, havemos de admi-tir, chegar-se-ia por simples dedução do quejá foi expresso.

Que se dirá, contudo, de que se valhaalguém da imagem de outrem para apresen-tações sem seu consentimento expresso?

Devemos ter em vista que os direitos dapersonalidade (sob outro enfoque, os fun-damentais) não podem servir de arrazoadopara enclausuramento do sujeito. Os indi-víduos interagem socialmente, pois que in-sertos no tablado da coletividade em queconstantemente se há de contrabalançar di-reitos e interesses aparentemente opostos.

A par de toda consideração feita, nãopodemos deixar de mencionar que granderelevância também há em exibições de cará-ter informativo, científico, etc. Vejamos, v.g.,

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a hipótese de um jornalista que, ao realizaruma reportagem, capta a imagem dos tran-seuntes que servem de modelos ao que sequer ilustrar. A difusão da imagem e sompode, deveras, ser instantânea, ao vivo, doque resultaria impossível se pedir autoriza-ção a cada um dos que passam. Os fins in-formativos, culturais, de interesse público emgeral nos parecem motivos bastantes paraque se possa reproduzir a figura de alguémsem necessariamente se cogitar do pedidode anuência. Não se imagine assim que es-tamos querendo outorgar livre passe paracontextos de violação. Trata-se aqui de con-temporaneizar a vicissitude jurídica, poisdescabida seria a obrigação de que se peça,sempre, autorização de qualquer do povofortuitamente apreendido pela lente dumacâmera, sendo desinteressada a exibição.

Finquemos também que a mesma possi-bilidade deriva aos anônimos e notórios, oque de plano já se pode sentir na leitura docitado artigo da Lei Civil lusitana. Estandoem consonância com a posição que assu-mem, ainda mais, não há torpeza em se usarsuas representações para propagações me-ramente jornalísticas.

A esfera da licitude, todavia, encerra-sequando a prática causa mal-estar ao Siste-ma Jurídico. É preciso se aclarar que, con-quanto permitido se faça uso do retrato deoutrem para veiculações de cunho coletivo,como corolário do Direito à Informação, e àLivre Manifestação do Pensamento (MORA-ES, 1999, p. 67-71), tal propagação não háde transgredir outros bens jurídicos, como aintimidade ou a honra; tampouco se aceitaque os fins “informativos” possuam inten-to especulativo. Esse é o efeito da acareaçãoentre o que se tacha conforme à lei e o quelhe afronta. Paradigmático é o caso recentede uma famosa modelo, esposa e mãe, que,em época de carnaval, teve estampada fotosua em que se trajava sumariamente, comvestuário íntimo alegadamente transparen-te. Declarando a Liberdade de Imprensa, oobjetivo sério de transmitir a notícia, e o Di-reito à Informação, não houve por mal o jor-

nalista em veicular indiscriminadamente achapa e permitir que outros veículos de co-municação também o fizessem, sem atentarao fato de estar com isso invadindo a inti-midade da indigitada. Assim, importa quese perceba que, na medida em que se permi-te a exibição eventual não expressamenteconsentida em estritas situações, coíbe-se oabuso, fazendo-se isso ao examinar maisapuradamente se se subsume a conduta emqualquer daquelas ocorrências indevidas ouse seu enquadramento nesse ponto analisa-do se resume.

Certo que, como se expõe do texto legalsupra, justifica-se a exibição da imagem da-queles que gozam de notória publicidade,visto que, por certo, sua vida profissionaldela depende, como se o interesse público“suplantasse” o privado (CHAVES, 1972,p. 68-70). De semelhante modo, com os de-vidos resguardes, anônimos ocorre de teremsua representação reproduzida. Numa ounoutra situação, em eventos sociais, trans-missão de cataclismos, etc. porventura sem-pre se é captado por teleobjetivas, e não exis-tiria motivo para se opor, em regra, se comisso não se penetram esferas outras da pri-vacidade e não se desse demasiado relevo àpessoa (BITTAR, 2000, p. 67-68). Entende-mos, deveras, predominar a vontade do ti-tular, que poderia objetar mesmo essa espé-cie de exibição, ou sua continuação. Alémdo mais, não nos parece razoável indulgên-cia para com a difusão da imagem dum ar-tista ou modelo se, na ocasião em que foraflagrado, nada havia a respeito de sua vidacomo ente de elevada nomeada.

Encarando a noção de aquiescência tá-cita, prevê-se a conformidade jurídica douso da imagem daqueles que, em multidão,comportam-se como se autorizando estives-sem a colheita e veiculação de seu retrato.Não se poderia enjeitar que, inserto numagrupamento em que as feições se não dis-tinguem, possa-se haver captação do aglo-merado. A depender da distância, até ao ti-tular do direito sucumbe a possibilidade dese apontar no estádio de futebol lotado, e

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não há que se falar de falta de autorizaçãoou de invasão da privacidade, pois que nin-guém é surpreendido pela presença dumalente fotográfica ou câmera de vídeo numapartida de final de campeonato, muito me-nos cabe alegar que está se resguardandono seio de sua esfera mais íntima, enquantotraja roupa de banho e toma sol na praia deBoa Viagem em feriado de carnaval. São si-tuações que se dão em meio público e empúblico decorrem.

Não vemos, nesse último caso, irregula-ridade nem em que se use o instantâneo dopopulacho inclusive para fins comerciais,sob limites, evidentemente. Bem de se res-saltar, doravante, que a veiculação não podedar relevo a uma ou outra pessoa, ou à partede qualquer delas. Contudo, em que se podecombater a empresa que se vale da fotogra-fia de um vasto campo no qual se encon-tram indistintamente dispostos uma enxur-rada de indivíduos para a publicidade desua marca? Haveríamos de exclamar aten-tado se vinculasse precisamente a efígieduma pessoa, ou de algumas, ao produto.Conquanto não focada a captação e rarefei-ta a exposição, não enxergamos problema.

Também sem dificuldade crer não exis-tir, em princípio, afronta na feitura, cópia edifusão de caricaturas. Produzida com ani-mus jocandi, tal representação da imagem sepresta, no mais das vezes, a retratar comica-mente cenas, atos envolvendo pessoas pú-blicas ou fatos que atraíram a observaçãopopular, com conteúdo social crítico ou não.O intento reside no burlesco, no irônico sin-gelo ou mordaz que seja. Daí, porém, a que acharge descambe no puro escárnio depreci-ativo já havemos bastante diferença. Intole-rado isso. E o exame cabe ao magistradoquando o interessado trouxer à apreciaçãodo Judiciário o conflito.

O arremate dos casos que arrolamoscomo revestidos de licitude na utilização daimagem põe-se à baila com o respeito que édevido à representação visual da persona-lidade dos indivíduos suspeitos de cometi-mento de ilícito penal.

Instaurado o Inquérito Policial, e duran-te todo esse procedimento inquisitório e si-giloso, não se pode capitular o que aindanão foi indiciado, tampouco acusado, comocriminoso (IBIAPINA, 1999). A conclusão aque se chegará na polícia judiciária diz res-peito à probabilidade de o indigitado, im-plicado na prática da conduta delituosa, sero seu real autor (indiciamento). O sujeito sóa partir da triagem do Ministério Públicoserá considerado acusado. E mais: comoexpressa garantia dum Estado Democráti-co de Direito, não se o poderá dizer delin-qüente até que sobrevenha o trânsito em jul-gado da sentença penal que o diz culpado16.

Não há que se olvidar os malefícios pro-duzidos pela simples exibição da figura dealguém associado, devidamente ou não, ainfrações. Que o digam os suspeitos de cri-mes contra a liberdade sexual. Ainda maisdanoso é quando tal associação é feita pe-los meios de comunicação em massa, postosua facilidade de adentrar nas residências,tornando de ampla ciência o fato: perda deemprego, desassossego ou ruptura da estru-tura familiar, constrangimento social etc.Todos esses seriam motivos suficientes, aalguns (IBIAPINA, 1999), para que não secorresse o risco de estar exibindo a figura dealguém sem que se certifique, por res iudica-ta, ter sido ele o agente da transgressão. Oapontado pode ter sido o sujeito ativo dodelito ou não, mas os prejuízos de haver suaestampa vinculada ao crime persistem, ino-bstante se ateste judicialmente sua inocên-cia. Ferir-se-ia, dessa forma, concomitante-mente, o direito à imagem e o princípio da pre-sunção de inocência.

Porém, não é bom deixar de explanarque imperativos de ordem e segurança pú-blica há e que tais se sobrepõem aos percal-ços particulares, sob critérios, em vista dointeresse público. Inegável que, freqüente-mente, por trás da exposição do suspeito,encontra-se a índole narcisista e autocen-trada do Delegado de Polícia e/ou o instin-to sensacionalista da mídia. Porém, deve-mos atentar ao fato de que, ao se veicular a

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imagem daquele que porventura cometeu oilícito, teremos perscrutado não apenas ocrime em tela, mas também outros de que,por acaso, igualmente seja autor.

Possíveis outras vítimas poderão emer-gir de tal enunciação. Além do mais, a expo-sição do retrato do acusado pode ter um fimdidático ao se apontar qual seja a condutasocialmente repugnante, indicando-se, con-seguintemente, aquela que condiga com oequilíbrio social.

A práxis indica pela predominância dointeresse público na exibição. Nesse senti-do também se encontra o texto da Lei Civilportuguesa, no supra-relatado artigo, quan-do dita não ser necessário o consentimentoda pessoa retratada quando assim o justifi-quem as exigências de polícia ou de justiça. Adoutrina brasileira já tendia a essa linha(GOMES, 2001, p. 156), no que foi acompa-nhada pelo Código Civil de 2002, que, des-sa maneira, permite a exposição ou utiliza-ção da imagem, entre outros casos, quandonecessárias à administração da justiça ou àmanutenção da ordem pública (art. 20)17.

7. Interseção da esfera do direito àimagem com as de outras faculdades

jurídicas

O tema é mais tratado sob o epíteto decolisão de direitos fundamentais. Estes, comosabemos, são os considerados como essen-ciais dentro duma ordem jurídica nacional18

num elenco encarado intangível, pois quefunciona de garantia do cidadão frente aoEstado. Decerto que não nos cabe nesse bre-ve estudo tecer considerações apreciáveisacerca dessa disciplina. Importa a nós tão-somente investigar quais as conseqüênciasde eventuais choques entre o direito à pró-pria imagem e direitos outros de mesma al-çada protetiva constitucional.

Preferimos aqui falar em interseção, poisque a noção de colisão nos parece reportar aembate, em que um dos pólos invariavelmen-te prevalecerá em detrimento do outro, o quedeveras não procede sempre. De todo jeito,

com essa ressalva, as expressões serão utili-zadas indistintamente, como sucede na dou-trina.

Nesse mote, abordaremos mais especi-ficamente o conflito de interesses que podeexistir entre o exercício do direito à imagem eo direito autoral do fotógrafo, o direito à infor-mação e a liberdade de imprensa. Por tudo oque se disse, não é preciso que explicitemosnovamente o que seja direito à imagem.

Entende-se o direito de autor como espé-cie do gênero direito autoral. Este englobariaaquele e os direitos conexos referentes às fa-culdades dos intérpretes e executores dasobras intelectuais. Por estas, entendemos aexteriorização duma criação do espírito, i.e., umamanifestação de uma criação intelectual(ASCENSÃO, 1980, p. 11-13), que pode serpor meio oral, escrito, representada artisti-camente, por desenho, música, cinema, fo-tografia (como aqui mais nos preocupa).

Ao falarmos de direito de autor de obrasfotográficas, referimo-nos à tutela que seconcede àquele que, valendo-se do seu gê-nio criativo, imprime, por meios puramentemecânicos, uma valia estética, um caráterartístico a uma chapa fotográfica. As pres-crições normativas que lhe dizem respeitoencontram-se na Lei 9.610 de 19/02/1998(art. 7o, inc. VII, art. 79) e, como direito fun-damental, nos inc. XXVII e XXVIII do art. 5o

da Carta Magna de 1988.Doutra forma, como corolário da liber-

dade de expressão do pensamento (art. 5o,IV, CF/88), temos a liberdade de comunica-ção, de expressão por meio de difusão demassa (FERREIRA FILHO, 1997, p. 31), deimprensa falada ou escrita, pela qual se pro-íbe toda e qualquer censura de naturezapolítica, ideológica e artística (art. 220 e ss.da Constituição de 88). De igual maneira,tem-se assegurado que o direito à informa-ção não sofrerá restrição que lhe embarace odesenvolvimento em qualquer veículo decomunicação social, inclusive por disposi-tivo legal.

Por certo que, vedada a obstrução dosreferidos direitos, casos haverá em que seu

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exercício implicará choque com faculdadesoutras de tão ou maior cobertura jurídicatutelar, como se nos apresenta na regra dodireito à imagem. Disso, como exemplo, ima-gine-se um fotógrafo que, buscando estam-par a beleza bucólica de certo parque, bateum chapa da paisagem. Gozando das fa-culdades de ordem patrimonial que lhe sãoasseguradas19, poderá ele, v.g., vender talfotografia a uma empresa de publicidadeque lhe dará destino de exibição em cadeianacional. Ora, vemos, sob esse ângulo, aexploração dum direito resguardado expli-citamente na Lei de Direitos Autorais, comembaso no título constitucional referente àsgarantias fundamentais. Por outro lado, quese dirá daqueles que, presentes no instanteda fotografia, tiveram suas imagens preci-sas veiculadas ao produto comercial semque para isso lhe tivessem requerido aqui-escência? Límpido se afirmar também quehouve, por certo modo, uma violação nesseseu direito.

Queremos com isso ilustrar que, em quepese o valor coerência que se deve impreg-nar no Ordenamento Jurídico Positivo, a re-alidade demonstra fatos em que a proteçãoque se confere a um direito entra em choquecom a tutela de outro. Por isso se afirma queo conflito aqui é, ultima ratio, um conflito denormas (LEONCY, 1998) – a que, no citadoacima, outorga a proteção à efígie da pessoae a norma que assegura a exploração da obrafotográfica.

Ainda mais conturbada é a hipótesequando a estampa se destina a alertar a po-pulação dos malefícios causados pelo usodo cigarro. Vê-se quão altaneira e compla-cente é essa exibição. A sociedade não deveter cerceado o seu direito a que o conheci-mento lhe chegue, pelo meio que for, parale-lo à liberdade de imprensa interessada nadivulgação do apontamento. Decerto ser umalerta que trate de saúde pública, de elevadapreciosidade coletiva. Porém, acaso poderásofrer indiscriminadamente o titular da ima-gem retratada se não lhe convém expor o cor-po ou as vísceras combalidos pela moléstia?

Conseguinte à apresentação do imbró-glio, deve o estudioso alertar para qual sejao desfecho que considere mais adequado.Mas antes de explicitarmos tal arremate,válido observarmos como o proceder-se-á.Com acerto, elucida Alexy (1998, p. 73) que“todas as colisões podem somente então sersolucionadas se ou de um lado ou de am-bos, de alguma maneira, limitações são efe-tuadas ou sacrifícios são feitos”. De sorteque, ao que se chama colisão de direitos fun-damentais, refere-se a três espécies de inter-seção: colisão com redução bilateral, colisão comredução unilateral e colisão excludente (ROLIM, 2002).

Diz-se colisão com redução bilateralquando o exercício de ambos os direitos fun-damentais apenas se viabiliza se os doissofrem limitação na sua esfera. É decerto opreferível. Por outro lado, haveremos cho-que com sacrifício unilateral se, resultanteda colisão, tivermos o abatimento de ape-nas um dos direitos, sem o que o outro nãopoderia subsistir. Por fim, colisão excludenteocorrerá se o exercício de um dos direitos,preferindo ao outro, pressupõe o afastamen-to do exercício deste, vez que impossível aconvivência dos dois.

Porém, não se terá dito suficiente com oque foi exposto. Aos mais atentos restará aindagação: qual, então, o critério determi-nante para sabermos, in concreto, se do cho-que de direitos deveremos promover relati-vização de um, de ambos ou exclusão deum deles?

Para isso, sob a teoria dos princípios,deverá o jurista valer-se do princípio da pro-porcionalidade, que adquire um grande rele-vo pela sua função hermenêutica que per-mite discernir, entre o que se apresenta fati-dicamente na colisão real, aquilo que deve-rá preponderar (ROLIM, 2002). Assim, es-tando o titular da imagem fotografada e ofotógrafo ou jornalista em oposição quantoaos seus direitos, ou mais especificamentequanto às normas que lhes conferem essesdireitos, a querela só poderá ser resolvidase se proceder a um juízo de ponderação

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que manifestará qual seja a conveniênciadas partes com o todo normativo. Indaga-se, dessa forma, o direito que sofreria maiorlesão se, em seu detrimento, se fizesse pre-valecer o outro.

Isso posto, convence-nos que o caráterprofundamente mais arraigado à própriaconstituição moral da pessoa do direito àimagem é razão suficiente para que, efetua-da a devida proporção entre os exercíciosdos direitos, se conclua no sentido de queeste, em regra, deva sobressair. A figura doente trás, por si, embutida uma carga de iden-tificação que o manifesta na realidade, im-primindo nas circunstâncias da vida a suaexistência e representando visualmente suapersonalidade de direito. Uma agressãoàquela simboliza um atentado contra a ór-bita dos direitos da personalidade, pois vaiferi-la num de seus poucos compostos per-ceptíveis fisicamente, pelo que aqueles de-mais direitos deverão, em geral, dar-lhe pas-sagem.

Daí, ao se contrapor o direito à própriaimagem e o direito de autor do fotógrafo, ouqualquer dos outros, a boa práxis indicarápela superveniência daquele. A justificaçãoda efígie, como espécie da órbita da privaci-dade, assume um caráter de maior dignida-de, característico dos direitos da personali-dade, posto que quem a defende guarda parasi os cuidados do Direito e se limita à prote-ção de sua esfera jurídica com um conteúdoque ao próprio Direito precede. Conquantoigualmente regulado sob o epíteto de direitofundamental, o exercício do direito do fotó-grafo sobre sua obra poderá extrapolar a cir-cunscrição da sua tão-só defesa e descam-bar na esfera jurídica de outrem para agre-dir uma sua faculdade inata.

Os limites que deverão sofrer os demaisdireitos não reagem noutra advertência quenão a da lei de ponderação (ALEXY, 1998, p.77) exclamada no princípio da proporcio-nalidade, pela qual é tanto maior a justifica-tiva da proteção de um direito por tão graveque sejam as razões que levam a tal inter-venção. Sendo assim, o amparo jurídico,

precipuamente, tenderá àquele direito per-sonalíssimo.

Seguindo uma fidelidade de pensamen-to, cabe-nos objetar, no entanto, que preva-lecerá, em toda hipótese, o direito relaciona-do à imagem da pessoa sobre os demais nesteestudo realçados. É sensato que a convic-ção do jurista depende do argumento que selhe apresenta, com o que devemos acrescen-tar ser a regra o predomínio do pólo referen-te ao retrato da pessoa. Entendemos que,visto o direito à imagem em colisão, aquelafaculdade que se lhe opõe será passível orade relativização ora de exclusão mesmo. Noentanto, nada impede que, no caso concre-to, a justiça exclame pela redução bilateral,ou mesmo pela prevalência da liberdade deimprensa, ou do direito de informação, oude autor do fotógrafo.

Acontece que a dignidade extremada quese destina à tutela da figura da pessoa nãopode ser causa de abuso20, situação na qualaquel’outras tutelas seriam vítimas de danoproporcionalmente maiores. Exemplifica ocaso de exibição de uma matéria televisivadada em efeito na praia, lugar público. Rea-lizada com fins meramente informativos,descabida será a ação de indenização pordano referente à veiculação desautorizadade sua imagem, vez que o direito à informa-ção, sob esses aspectos, como já relatado noponto anterior, não terá razão de ser coibi-do. O reforço de um ou de outro será conteú-do de apreciação para o justo, equilibrado ecauto decisum do juiz.

8. Conclusão

Ao se falar do que diz respeito ao direitoà imagem, entre os que se tipificam como dapersonalidade, a ilação a que se chega, con-cordante com todos os pontos merecedoresde análise, há de repousar sempre no dadoda dignidade da pessoa humana.

O ser humano, como pessoa, fundamen-to do direito e razão de toda ordem normati-va, rodeado se encontra de um arcabouçojurídico que o garante nos compostos basi-

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lares de sobrevivência social e desenvolvi-mento moral próprio.

A par de todas as faculdades que se lheprotegem, o realce ora exclamado deu-se aoque definimos como representação pictóri-ca da personalidade, numa interpenetraçãoque por vezes reporta-se ao dado da boafama, da reputação do sujeito. Alertamos,por precaução, que essa associação não im-plica, de forma alguma, relação de necessa-riedade, mas harmonia, como de resto tam-bém ocorre, referentemente à efígie, com bensjurídicos outros tais quais intimidade, hon-ra, vida privada.

O composto da dignidade desse precei-to soa ainda que não se pode quedar inertefrente aos abusivos e remansosos empregosilícitos da estampa dum sujeito mesmo sejaele, por seu ofício, ente notório. A publicida-de da personalidade justifica que momen-tos de seu convívio íntimo até sejam exibi-dos sob circunstâncias, mas, à evidência,não se mostra arrazoado que tal “liberda-de” resvale para a agressão moral, para ainvasão ignóbil e totalmente descabida.

Por não fazer da propaganda seu ins-trumento de trabalho, ao vulgo correspon-de ainda mais o poder de exclusividade desua representação, pelo que de mais auste-ro se agasalha essa capacidade sua pararepelir, por meio do competente aparato ju-dicial, a incursão para a qual deveras nãoconsente. Declaramos com isso terminante-mente indevida a irrupção de sua privaci-dade, em especial com mácula ao seu direi-to ao próprio retrato, que é ainda mais in-justificada.

Importou, sobretudo, sem o que nada te-ríamos dito, a caracterização do direito àimagem como direito da personalidade, sobamparo legal e constitucional, cujo exercí-cio admite uma exploração econômica cau-telosa, paralela a todas as implicações quedo seu regime jurídico derivam. A sistema-tização do tema, invariavelmente, passoupela vicissitude jurisprudencial e pelas pos-sibilidades de se servir, licitamente ou deforma defesa, da imagem, em que o arrema-

te entendeu pela regra da prevalência de tãolídimo interesse sob outras faculdades jurí-dicas com que venha, eventualmente, a coli-dir.

Pelo que se expôs, não casuisticamente,houve por bem consignar o Legislador,como já havia feito o Constituinte de 1988, afigura qual objeto de relação jurídica dentroda classe protetiva assinalada da persona-lidade, sob todas as qualificações e mean-dros figurativos que fazem da imagem ma-téria de profícua e prazerosa apreciação.

Notas1 A expressão “Direito da Personalidade”, como

já empregava Gierke, é com efeito o mais usado nadoutrina pátria. Cf. GOMES, 2001, p. 148-150.

2 Nesse sentido, RESP 58101/SP. Agasalhamosa ratio de que a pessoa de direito, no tanto em que seconsidere essa sua qualidade, compõe-se de proma-nações peculiares em vista individual mas cujo fun-do comum é de alçada social, porquanto percebíveligualmente em todos da mesma classe jurídica.

3 Em situação esparsa, prescrevia a obra legalde Beviláqua no inciso X do art. 666: “A pessoarepresentada e seus sucessores diretos podem opor-se à reprodução ou pública exposição do retrato oubusto”.

4 Não é outro o entendimento dos nossos tribu-nais superiores. Como se lê: “I – O direito à ima-gem reveste-se de duplo conteúdo: moral, porquedireito de personalidade; patrimonial, porque as-sentado no princípio segundo o qual a ninguém élícito locupletar-se à custa alheia. II – O direito àimagem constitui um direito de personalidade, ex-trapatrimonial e de caráter personalíssimo, prote-gendo o interesse que tem a pessoa de opor-se àdivulgação dessa imagem, em circunstâncias con-cernentes à sua vida privada. III – Na vertente pa-trimonial, o direito à imagem protege o interessematerial na exploração econômica, regendo-se pe-los princípios aplicáveis aos demais direitos patri-moniais” (RESP 74473 / RJ).

5 O problema desses reality shows reside na tê-nue linha que separa as esferas de atuação da emis-sora de televisão e o círculo de autonomia privadada pessoa que negocia a invasão, do ponto em queesta vem a ferir o princípio da dignidade humana.

6 Cf. os artigos 82 do CC/1916 e 104 do CC/2002.

7 MORAES, Walter. A regra da imagem (disser-tação datilografada), 1966 apud CHAVES, 1967,p. 52-53.

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8 Neste Sentido, RESP 230268 / SP, RESP 86109/ SP.

9 Sobre essa ausência de consentimento é apredominância dos julgados nas Cortes bra-sileiras, v.g. , RE 215984 / RJ. Cf. aindaD’AZEVEDO (2001).

10 Dentro desse ponto, espreita-se a veiculaçãoda imagem em periódicos de cunho eminentementelibidinoso, o que no mínimo pode atingir a reputa-ção de quem a preza. No início do referido art. 20da Lei 10.406, temos o alerta excludente da tipici-dade: “salvo se autorizadas...”, o que afasta dedúvidas ter deixado o legislador a cargo da auto-nomia privada decidir pela prática e ratifica a dis-ponibilidade do exercício desse direito da persona-lidade. Para melhor explano sobre a distinção direi-to x exercício, conferir o ponto 4 deste trabalho.

11 Em conseqüência da independência entre asresponsabilidades civil e criminal (art. 935 do Códi-go Civil de 2002), pode ocorrer até um eventual en-quadramento penal (como algum dos crimes contraa honra: artigos 138 a 145 do Código Penal Brasilei-ro) nessa conduta que denigre outro bem jurídico.

12 Para um maior aclaramento da vicissitudejurisprudencial a esse respeito, recomendamos oInformativo STF 273.

13 Neste sentido, Cf. MOREIRA, 2002.14 Diferentemente, entendem alguns ser o dano

à imagem, em tela, apenas espécie do gênero danomoral, e não caracteres distintos. Cf. FERREIRAFILHO, 1997. p. 35.

15 Com a mesma dicção, já vemos tal disposi-ção na Lei italiana no 633, de 22/04/1941, em seusartigos 96 e 97. O Código Civil italiano, em seu art.10, excursa: “Quando a imagem de uma pessoa oudos pais, do cônjuge ou dos filhos tenha sido ex-posta ou publicada fora dos casos em que a expo-sição ou a publicação é permitida pela lei, ou entãocom prejuízo do decoro ou da reputação da pró-pria pessoa ou dos mencionados parentes, a auto-ridade judiciária, a pedido do interessado, podedeterminar que cesse o abuso, sem prejuízo da in-denização por danos”.

16 É o disposto no inc. LVII do art. 5o, CF/88.17 A Lei Estadual no 6.075/97 (PA) dispõe con-

trariamente, ao proibir o constrangimento ativo oupassivo dos presos a exposição de sua figura emqualquer meio de comunicação.

18 A matéria é inexaustível nestes apontamen-tos. Para isso, Cf. ALEXY, 1998.

19 Art. 79, caput, da Lei 9.610/98. Cf. ASCEN-SÃO, 1980, p. 228-229.

20 Define o abuso de direito o art. 187 do NovoDiploma Civil, rezando: “Também comete ato ilíci-to o titular de um direito que, ao exercê-lo, excedemanifestamente os limites impostos pelo seu fimeconômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons cos-tumes”.

Bibliografia

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ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito autoral. Riode janeiro: Forense, 1980.

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1. Introdução

No Brasil, diuturna e paradoxalmente,presenciamos, por um lado, debates sobre aimplantação de um controle externo do Po-der Judiciário e, por outro, a implantaçãoda Súmula Vinculante no âmbito do STF.Inúmeras e celébres vozes tem-se manifes-tado sobre o assunto. No entanto, até o mo-mento não foi firmada uma posição prepon-derante que venha a colocar fim à celeumainstaurada acerca da legitimidade de referi-do controle externo e dos perigos decorren-tes da vinculação das decisões do STF.

Em razão da crescente falta de credibili-dade do Poder Judiciário, tornou-se unâni-me, em todos os segmentos da sociedade, aidéia da necessidade de uma reforma noPoder Judiciário que venha a conferir maisceleridade e eficácia às suas decisões. Ins-taurou-se uma crise que culminou numaproposta de reforma que tramita pelo Con-gresso Nacional desde 19921. É bem verda-de que, nos seus aproximadamente 11

Reforma do Judiciário. TribunalConstitucional e Conselho Nacional deJustiçaControles externos ou internos?

Maria Auxiliadora Castro e Camargo

Maria Auxiliadora Castro e Camargo é Pro-curadora Federal, especialista e mestre em Di-reito pela Universidade Federal de Uberlândiae Universidade Federal de Goiás e doutorandaem Direito Constitucional pela Universidadede Salamanca-Espanha.

Sumário1. Introdução. 2. Insatisfação popular X ob-

jeto da reforma. 3. O denominado controle ex-terno da PEC 29/2000 e o direito comparado.3.1. Os Conselhos da Magistratura no DireitoComparado. 3.2. A proposição brasileira. 4.Separação de poderes. 5. Efeito vinculante econtrole da atividade de julgar. 6. A criação doTribunal Constitucional como forma de con-trole “externo”.

Revista de Informação Legislativa368

(onze) anos de tramitação, a PEC 29/2000vem recebendo várias propostas de emen-das e que tantas outras propostas lhe te-nham sido apensadas, realmente dificultan-do sua apreciação. Mas nem por isso os de-bates que envolvem a matéria deverão serradicalmente desprezados, como sugeriu oMinistro da Justiça. Em razão da gravidadedo tema, pensamos que todos os argumen-tos devem ser considerados, mesmo porque,tratando-se de nova legislatura, que reno-vou grande parte do Congresso Nacional, ede novo momento político na história dademocracia brasileira, parece ser a hora ade-quada para que todas as reformas propos-tas possam ser objeto de crítica e sugestõespor parte da sociedade brasileira. Assim,certamente os debates que deverão precedera votação devem apresentar enfoques maiscoerentes com a realidade social.

Ninguém nega a existência da crise. Elaé tamanha que, diuturnamente, vem sendoanunciada por membros de todos os Pode-res do Estado. O atual Presidente da Repú-blica chegou a mencionar a existência deuma “caixa preta” no Judiciário, certamen-te para referir-se à necessidade de uma mai-or transparência que se convencionou de-nominar “controle externo”. O tema não épacífico. O controle externo tem sido causade muita polêmica entre os poderes e umdos motivos que emperram o andamento daproposta de reforma do Judiciário, traduzi-da pela PEC 29/2000.

Cogita-se na criação de um órgão paracontrole externo do Poder Judiciário e dis-cute-se sua viabilidade diante do princípioorganizativo da separação dos poderes; pre-ga-se a instituição da Súmula Vinculante,contestada por muitos em razão dos princí-pios do juiz natural e livre convicção do juiz.Perquire-se, então, se seria viável a criaçãode um único órgão de controle do Judiciá-rio, que não interferisse na função jurisdici-onal afetando a independência dos juízes e,ao mesmo tempo, zelasse, também, pela uni-formização da jurisprudência. Sem nenhu-ma sombra de dúvida, a resposta só pode

ser negativa, devido à diversidade dos obje-tos. Entretanto, deve ser destacada a granderesponsabilidade do Congresso Nacional,investido do poder reformador, na criaçãode mecanismos de controle interno e órgãosde controle externo do Judiciário, tudo issoem fiel observância aos princípios democrá-ticos de direito.

Talvez seja essa necessária observânciaaos princípios gerais e democráticos de di-reito que faz emergir uma certa incoerênciados argumentos que tentam justificar e fun-damentar a reforma. Por isso, em razão daaparente contradição entre as propostas –que até o momento foram colocadas em dis-cussão – é que, ao iniciarmos nosso estudo,afirmamos ser paradoxa a pretendida refor-ma do Judiciário. A afirmativa é baseada nofato de que, inspirada num lema da morali-zação, a proposta, ao mesmo tempo quepretende criar um órgão para o controle ex-terno do Poder Judiciário, por outro lado,confere poderes extraordinários e ilimitadosao STF, que, além de ser o órgão de cúpulado Poder Judiciário (e nessa qualidade pro-ferir decisões exclusivamente jurídicas), étambém a Corte Constitucional brasileira aquem compete a interpretação da Constitui-ção Federal, inclusive quanto aos seus as-pectos políticos.

Como no Brasil o controle da constituci-onalidade das leis está a cargo do Poder Ju-diciário, uma das questões a ser enfrentadapelo poder reformador, ao criar um controleexterno do Judiciário, deverá responder àseguinte indagação: como um órgão exter-no poderá controlar o controlador da Cons-tituição, sem que, com isso, possa pretenderser maior que a própria Constituição (mes-mo que seja por ela previsto)? A histórianos mostra que teorias que tentaram ideali-zar um quarto poder, inspiradas na teoriade Benjamim Constant (1796-9), fracassaramporque conduziram a um regime antidemo-crático. Assim, como permitir o controle ex-terno do Poder Judiciário sem ofender o clás-sico sistema de freios e contrapesos, expli-cados pela teoria da separação dos poderes

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de Montesquieu, na qual o poder deve sercontrolado pelo próprio poder?

Essas são algumas das questões que opresente artigo pretende afrontar com o ob-jetivo de demonstrar que alguns órgãos,ou mecanismos de controle, que se pretendeimplantar no direito brasileiro, não são des-conhecidos no mundo político-jurídico. Pre-cedentes existem e podemos encontrá-losnuma breve incursão pelo direito europeu.Pretendemos, assim, realizar uma análisecomparada da proposta brasileira em con-fronto com os antecedentes europeus com oobjetivo de constatar em que medida a expe-riência européia pode influenciar a nossatão almejada reforma. A comparação dosmodelos apresenta-se especialmente rele-vante para uma boa interpretação e compre-ensão dos temas controvertidos.

2. Insatisfação popularversus objeto da reforma

É grande a insatisfação popular com ainoperância do Judiciário brasileiro. As cen-suras são várias e, entre as principais quei-xas, podemos destacar: a) quanto ao acesso:as dificuldades encontradas pelo cidadãocomum para ingressar com seu pedido deprovimento jurisdicional; b) quanto ao anda-mento dos feitos: a morosidade na entrega daprestação jurisdicional; c) quanto à própriaprestação jurisdicional: a divergência de deci-sões que, acobertadas pela coisa julgada, re-solvem casos semelhantes tutelando direi-tos de alguns, mas negando esse mesmo di-reito a outros; d) quanto à fiscalização de seusagentes e administração de seus recursos: as cres-centes denúncias de desvio de verbas e cor-rupção de magistrados e serventuários con-tribuem para deixar o Judiciário em umaposição desconfortável perante a opiniãopública e demais poderes constituídos.

A divergência das decisões judiciais con-tribui para um progressivo sentimento na-cional de que as leis, no Brasil, foram feitaspara ser transgredidas e beneficiar apenasa uma minoria privilegiada: mas é o con-

junto desses e outros fatores que fez arrai-gar o sentimento, praticamente unânime, emtodos os segmentos da sociedade – incluin-do o próprio Judiciário – de que mudanças,além de benéficas, são necessárias. Assim,o desejo urgente da promoção de uma totale necessária reforma do Judiciário vem co-brar os trabalhos do Congresso Nacional.

Entretanto, faz-se necessário distinguirmuito bem a diversidade de objeto e nature-za da pretendida reforma, no escopo de queela possa atender aos reclamos sociais,transformando realmente o Poder Judiciá-rio, de modo a possibilitar que esse cumprasua finalidade de distribuir justiça. A nin-guém interessa um Judiciário submisso oudependente de outros poderes apenas efici-ente e justo.

Considerando os anseios popularesapontados, as peculiaridades de objeto e na-tureza da pretendida reforma podem seragrupadas em inúmeras classificações enão pretende o presente artigo esgotar aanálise de todas elas. No que diz respeitoao acesso ao Judiciário e ao andamento dos fei-tos, devemos reconhecer que muito vem sen-do conseguido com a criação de juizadosespeciais dotados de procedimento sumá-rio, criação de meios alternativos para solu-ção de controvérsias, maior aparelhamentojudiciário, criação de varas, etc. É claro quemuito ainda pode ser feito como a diminui-ção dos valores das taxas judiciárias e equi-paração de referidos valores em todos osEstados da Federação, criação e otimizaçãodas Defensorias Públicas previstas na CF/88, simplificação das normas processuais,etc.

Contudo, o que pretende analisar o pre-sente artigo são alguns dos pontos polêmi-cos da reforma considerados como outrosgrandes males que acometem o Judiciário eque residem na fiscalização de seus agentes eadministração de sua própria organização, as-sim como na uniformização de suas decisões.Cremos que a cura desses males não podemerecer igual tratamento, nem apresentar-se em doses homeopáticas. A reforma, para

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cumprir seu objetivo, deve ser ampla, masnão deve restringir o acesso do cidadão aoJudiciário. Tampouco deve representar su-pressão de garantias ou direitos.

Em uma campanha generalizada contracorrupção, o principal alvo a ser atingido,no que tange ao Judiciário é o estabelecimen-to de um controle externo. Na seqüência,analisamos o significado desse controle cha-mado “externo” e sua previsão no projetode reforma até o presente momento.

3. O denominado controle externo daPEC 29/2000 e o direito comparado

Atualmente, parece firmar-se o entendi-mento de que “externo” seria o órgão criadocom o fim específico de controlar “a atua-ção administrativa e financeira do PoderJudiciário e o cumprimento dos deveresfuncionais dos juízes”2. Mas seria esse novoórgão realmente órgão de controle “externo”?

A proposta originária era de criação deum Conselho situado fora da estrutura doPoder Judiciário cuja composição heterogê-nea previa, inclusive, a presença de 2 (dois)cidadãos, escolhidos um pela Câmara dosDeputados e outro pelo Senado Federal3 .Rejeitada pela Comissão de Constituição eJustiça da Câmara, a proposta foi emenda-da para modificar a composição do Conse-lho, excluindo a participação de cidadãos eretirando o termo “externo” de seu nome.Naquela ocasião, entendeu-se que realmen-te a criação de um conselho que não inte-grasse a estrutura do Poder Judiciário seriacontrária à limitação material ao poder dereforma constitucional contida no art. 60, §4o, da CF/88, que veda a deliberação deemenda tendente a abolir a separação dosPoderes. O Substitutivo à PEC no 96/92,aprovado na Câmara dos Deputados, veioa propor, então, a criação de um Conselhoinserido na estrutura do Poder Judiciário,cuja composição reflete os diversos segmen-tos da Instituição em nível federal e estadual.

A então Relatoria da PEC no 29/2000sugeriu a criação de um órgão nacional de

direção superior da magistratura compostopor juízes, representantes do MinistérioPúblico e da advocacia. Na versão do Sena-do, foram eliminados da composição doConselho Nacional de Justiça membros es-tranhos ao Poder Judiciário, e no texto apro-vado pela legislatura que terminou em 2002,foi retirado o inciso que era acrescido ao ar-tigo 92 da CF, a qual previa o Conselho comoórgão do Poder Judiciário; todavia, o pará-grafo único do mesmo artigo estabelece queo CNJ terá sede na capital federal4.

Mesmo que não seja expressamente pre-visto como órgão integrante do Judiciário,por meio de simples interpretação sistemá-tica da Constituição, elimina-se qualquerdúvida a respeito do assunto, vez que o atualprojeto inclui referido Conselho Nacionalde Justiça no Título IV – Da Organizaçãodos Poderes, Capítulo III – Do Poder Judici-ário da CF/88.

Assim, ainda que os debates continuemreferindo-se ao dito controle como “contro-le externo”, esse – nos termos da propostaem andamento – de “externo” já não levanem mesmo o nome; isso é perfeitamentecompreensível, vez que o controle que vier aser exercido por um órgão integrante da es-trutura do Poder Judiciário composto – namaioria – por seus próprios membros naverdade deve pertencer ao próprio Judiciá-rio, mesmo que alguns continuem insistin-do em denominá-lo “externo”.

Sob nenhum aspecto – seja quanto à suacomposição, competência ou localização –poderia a fiscalização que a PEC 29/2000pretende instituir sobre o Judiciário ser de-nominada “controle externo”. Ao contrário,trata-se de um controle inerente a proble-mas “internos” do próprio Poder Judiciá-rio, mas nem por isso desnecessário ou ine-ficiente. Entretanto, deve-se nominá-lo deacordo com sua verdadeira vocação, sob ris-co de confundirmos os institutos jurídicos eo próprio direito.

Não se discute aqui a necessidade oudesnecessidade de controle funcional, ad-ministrativo e financeiro sobre o Judiciário

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porque a aceitação dessa necessidade é pon-to pacífico, admitida, inclusive, pelos maisaltos representantes desse próprio Poder. Oque é controvertida e combatida é a possibi-lidade de referido controle ser realmente re-alizado por um órgão situado fora da estru-tura do próprio Judiciário, como ocorre emoutros ordenamentos jurídicos.

3.1. Os Conselhos da Magistraturano direito comparado

Ainda que inspirada em causas diame-tralmente opostas, a criação do ConselhoNacional de Justiça espelha-se no direitoeuropeu, e sua origem está na Constituiçãofrancesa de 1946, que dedicou o Título IX acriar e regular um conselho superior damagistratura como forma de acrescentar ummecanismo garantidor da independênciajudicial, além das garantias já previstas deinamovibilidade do juiz e o submetimentodesse à lei.

Inspirada na França, a Constituição ita-liana de 1947 criou o Consiglio Superiore de-lla Magistatura e depois, seguindo o exem-plo, foram criados os conselhos superiores dasmagistraturas5 no caso português; ConsejoGeneral del Poder Judicial na Espanha, comotambém ainda faria a Grécia.

Entretanto, o que originou a criação des-ses Conselhos na Europa não foi a fiscali-zação do Judiciário. Ao contrário, o objetivoera o de conferir autonomia e governo de-mocrático a um Poder que se dizia comple-tamente independente, quando na verdadetinha todo seu pessoal e orçamento contro-lados pelo Governo.

No Brasil, a Constituição assegura auto-nomia administrativa e financeira ao PoderJudiciário (art. 99/CF), competindo aos Tri-bunais apresentar suas propostas orçamen-tárias e organizar sua própria administra-ção. Assim, a criação de um CNJ não teriacomo escopo principal assegurar uma in-dependência que já existe, mas, sim, contro-lar essa independência por meio da atua-ção administrativa e financeira do Poder Ju-diciário e do cumprimento dos deveres funci-

onais dos juízes, com poderes para aplicar ascorrespondentes sanções disciplinares.

Os conselhos europeus, em geral, tam-bém possuem essas mesmas competências,contudo, historicamente estavam chamadosa desapoderar o Executivo das atribuiçõesque mantinha em relação à administraçãodo Judiciário e com a direção de pessoal,notadamente seleção, nomeação, promoção,inspeção e regime disciplinar. Assim, a cri-ação desses conselhos na Europa, por umlado, significava colocar o governo da judica-tura fora do controle do Executivo, mas, poroutro lado, é verdade, também significava que,num Estado democrático, fazia-se necessáriodotar a magistratura de um sistema de admi-nistração que, evitando o mandarinato dosjuízes e propiciando um certo grau de coor-denação com a representação da soberaniapopular, pudesse ser ao mesmo tempo garan-tia de independência e de não manipulação(Cf. PEDRAZ PENALVA, 1996, passim).

Normalmente designados como órgãosde autogoverno do Judiciário, os conselhoseuropeus não integram a estrutura dessePoder, tanto pelo motivo de que na sua com-posição formam partes sujeitos estranhos àordem jurisdicional, quanto em razão desuas atribuições, que são de natureza polí-tica-administrativa (assim como disciplina-res, competência essa que configuraria osconselhos como juiz especial) – (Cf. TEROLBECERRA, 1990, passim).

Esse modelo de administração do PoderJudiciário produziu, na Europa, o resulta-do de reforço da independência desse po-der , quer no plano externo, quer no interno.No plano externo, diminuiu, visivelmente,a área de influência que o Executivo exerce-ria sobre os juízes; no plano interno, produ-ziu uma queda, cada vez mais significativa,do poder hierárquico dos tribunais superi-ores, já que as competências, ainda mera-mente administrativas, desses tribunais fo-ram transferindo-se para os conselhos.

Evidentemente, como costuma acontecernos sistemas democráticos, o modelo foi alvode críticas como a de Satta (1965), para quem

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“separar ‘administrativamente’ o juiz-servidor é absurdo; uma coisa é a in-dependência judicial, e outra, o vín-culo que como empregado lhe une àAdministração. Para evitar que tal vín-culo, ainda que indiretamente, se re-solva em dependência de sua funçãojurisdicional, existem as leis de ina-movibilidade, requisitos e garantiaspara o acesso, etc”.

Mas a verdade é que o modelo também per-mitiu aos juízes exercerem suas competên-cias constitucionais e legais independente-mente da vontade política daqueles que, naconjuntura parlamentarista, possuem amaioria.

Entretanto, a eficácia e o papel do conse-lho dependem muito da sua composição, domodo de designação de seus membros e dassuas competências. O direito comparado nosoferece diversas formas de administrar oJudiciário.

Como já foi dito, na França, Portugal, Itá-lia e Espanha existem conselhos superioresda magistratura a quem se reconhece as com-petências referentes ao estatuto da magis-tratura e nomeação, ascensão, transferênci-as, seleção, formação, regime disciplinar,etc. Na Itália e Espanha, também lhes sãoconferidos poderes para emissão de “infor-mes” sobre anteprojetos de leis atinentes àmatéria orgânica e processual. Ainda queesses “informes” possam assemelhar-se aum controle preventivo de constitucionali-dade, ressalta-se que jamais vincularão qual-quer Poder do Estado.

Na Itália e Espanha, também cabe aosconselhos a indicação de altos magistrados(Tribunais Constitucionais e Tribunais Su-periores). Na França, Itália e Portugal, exis-te uma manifesta inter-relação com os ou-tros poderes, seja por meio da titularidadeda presidência que se outorga ao Presiden-te da República, seja pelas faculdades a essereconhecidas para designar, direta ou indi-retamente, parte dos membros que devemcompor os conselhos (Cf. PEDRAZ PENAL-VA, 1990, p. 77). Também pode vir atribuí-

da ao Legislativo a eleição de uma parte dosmembros dos conselhos, como a seguir cons-tatamos.

O Conselho francês é composto por 11(onze) membros e é presidido pelo Presiden-te da República – salvo no exercício da po-testade disciplinar que será presididapelo presidente da “Corte de Cassação”. Avice-presidência é ocupada pelo Ministro daJustiça. Dois, entre os onze componentes,são nomeados livremente pelo Presidenteda República, a quem ainda compete elegeros demais membros entre os nomes cons-tantes das listas apresentadas pelo Conse-lho de Estado (Legislativo) e Tribunal deCassação (Judiciário). (Cf. GARCÍA PE-LAYO, p. 515-516).

O Conselho italiano está formado por 33(trinta e três) membros, sendo três natos: OPresidente da República, Presidente da Cortede Cassação e Procurador Geral da Corte deCassação. Os restantes 30 (trinta) membrossão eleitos, 10 (dez), pelo parlamento, emsessão conjunta, entre professores universi-tários em matérias jurídicas e advogadoscom 15 (quinze) anos de exercício profissio-nal, e os outros 20 (vinte) entre os magistra-dos, por um sistema proporcional de listascontrapostas. Na Itália, o conjunto de ativi-dades administrativas do Conselho estãodefinidas como “administração da jurisdi-ção”, considerando que, apesar de seremsubstancialmente administrativas, repre-sentam uma condição necessária para o exer-cício da jurisdição (Cf. PIZZORUSSO, 1984,passim).

Em Portugal, como já dissemos (Cf.CANOTILHO, 1984, p. 224-225), o Conse-lho Superior da Magistratura para os juízesdos Tribunais Judiciais é distinto dos Tri-bunais Administrativos e fiscais previstospara os magistrados desses órgãos. O Con-selho Superior da Magistratura português écomposto por 20 (vinte) membros, sendo 4(quatro) natos (Presidente da República, doSupremo Tribunal de Justiça, Presidente deum Tribunal de segunda instância e Procu-rador de Justiça) e 16 (dezesseis) eleitos, sen-

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do que 4 (quatro) entre eles devem ser perso-nalidades designadas pela Assembléia daRepública, 2 (dois) juízes do Tribunal Su-premo, 6 (seis) juízes titulares e 4 (quatro)servidores da Administração da Justiça. Osjuízes e servidores serão eleitos por sufrá-gio universal e secreto entre todos os servido-res ativos e as listas, elaboradas por organi-zações sindicais ou associação de juízes ouainda por um mínimo de 20 eleitores.

O Conselho Geral do Poder Judiciário naEspanha está integrado pelo Presidente doTribunal Supremo, que o preside, e por 20(vinte) membros eleitos pelo Congresso dosDeputados e pelo Senado da seguinte for-ma: cada uma das casas elege – por maioriade 3/5 – 6 (seis) membros entre juízes dequalquer categoria que se encontrem em ati-vidade; igualmente por maioria, cada umadas casas elege também 4 (quatro) membrosentre advogados e outros juristas de reco-nhecida competência com mais de 15 (quin-ze) anos de exercício na profissão (Cf. PE-REZ ROYO, 2002, p. 919-920).

Na Alemanha, não existe nenhum órgãoparecido, sendo que a administração da Jus-tiça ali apresenta uma grande dependênciado Executivo em tudo o que não é estrita-mente jurisdicional. Entretanto, um setor daliteratura germana vem defendendo, já hávários decênios, a conveniência de centrali-zar toda competência em matéria de Justiçaem um conselho para administração da jus-tiça Rechtspflegeministerium (Cf. PEDRAZPENALVA, 1996).

3.2. A proposição brasileira

No Brasil, a proposta contida na PEC29/2000 prevê a criação do CNJ compostode 11 (onze) membros oriundos, na suamaioria, do Judiciário. Entretanto, admite-se a participação da OAB na composiçãoque ficaria assim definida: um Ministro doSupremo Tribunal Federal, um Ministro doTribunal de Justiça, um Ministro do Tribu-nal Superior do Trabalho – todos indicadospor seus respectivos tribunais; um desem-bargador de Tribunal de Justiça e um de-

sembargador federal de um TRF – ambosindicados em reunião dos respectivos pre-sidentes, assegurada a alternância entre ostribunais de origem dos magistrados; umjuiz federal, um juiz estadual e um juiz dotrabalho – indicados entre os com mais dedez anos de exercício, mediante eleição daqual participem todos os magistrados dasrespectivas categorias; e, por fim, dois ad-vogados, indicados pelo Conselho Federalda Ordem dos Advogados do Brasil.

A competência, primordialmente estabe-lecida, é o controle da atuação administrati-va e financeira do Poder Judiciário e do cum-primento dos deveres funcionais dos juízes.Verificamos, assim, que, seja quanto a suafinalidade, atribuições, competência oucomposição, sob nenhum aspecto o CNJpode ter sua natureza como jurisdicional.Contudo, tampouco pode ser consideradocomo um órgão de controle “externo”.

A composição dos tribunais jurisdicio-nais brasileiros também conta com a parti-cipação de membros oriundos da advoca-cia e do Ministério Público. Nem por issodeixam de pertencer ao Poder Judiciário.Assim, a composição de um conselho queconta com a participação de membros oriun-dos da advocacia não causa espanto nemtem o condão de configurar um controle ex-terno. A ausência de membros do Ministé-rio Público certamente está justificada emrazão de que a PEC 29/2000 também criaum conselho superior para o MinistérioPúblico.

Na forma constante da PEC 29/2000, oCNJ trata-se apenas de um órgão de “auto-governo” do Judiciário, e assim deve serconsiderado: como apêndice do próprio Ju-diciário, localizado dentro da estrutura detal Poder. De toda a forma, mesmo não setratando de um órgão “externo” estranho àtradicional forma de divisão de poderes,onde quer que seja localizado dentro da es-trutura estatal, deve manter sua indepen-dência dos demais Poderes do Estado. Nes-se sentido, decidiu com muita propriedadeo Tribunal Constitucional espanhol:

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“la verdadera garantía de que el Con-sejo cumpla el papel que le ha sidoasignado por la Constitución en de-fensa de la independencia judicial noconsiste en que sea el órgano de auto-gobierno de los Jueces sino en que ocu-pe una posición autónoma y no subor-dinada a los demás poderes públicos”(Sentencia del Tribunal Constitucionalno 108/1986, de 29 de julio. F.j. 10).

De qualquer forma, para concluir, pode-mos afirmar que o controle a ser exercidosobre o Judiciário não pretende controlar amagistratura, enquanto função do Estado,apenas fiscalizar a organização administra-tiva desse Poder. Essa fiscalização adminis-trativa é independente da judicial, que é averdadeira essência da jurisdição como po-der-dever de dizer o direito.

Montesquieu afirmou que não existirialiberdade se o poder de julgar estivesse vin-culado ao Poder Legislativo ou Executivo.Não podemos confundir o poder de julgarcom o Poder Judiciário, enquanto órgão es-tatal, cuja atribuição primordial é julgar asquestões que lhe são apresentadas. Não sepretende controlar o poder de julgar, massim o Poder Judiciário como Poder constitu-ído, nas suas funções de administração, fis-calização de seus recursos e agentes (quepor sinal são funções específicas dos outrosPoderes da União).

4. Separação de poderes

Mesmo não incidindo sobre a atividadede julgar específica do Poder Judiciário, oprincipal óbice encontrado para que, nacomposição do CNJ, integre membros oriun-dos de outros poderes constituídos (ou atémesmo da sociedade) é justificado sob o ar-gumento de que uma composição heterogê-nea, cujos membros pertencessem a distin-tos poderes, ofenderia a clássica teoria daseparação de poderes, o que estaria vedadopela Constituição.

A teoria da divisão dos poderes nasceuconcomitantemente com o Estado Consti-

tucional enquanto forma de organização doPoder (Cf. PEREZ ROYO, 2002, p. 727 ). En-tretanto, com todo o respeito com que se de-vem prestigiar as teorias clássicas, é incon-testável que o direito, assim como as rela-ções sociais que lhe dão causa, evolui. Odireito constitucional não é exceção, vistoque inclusive as Constituições rígidas nãopretendem ser imutáveis. Assim, os parti-dários da implantação do chamado “con-trole externo” defendem a relativização doprincípio da separação de poderes, afirman-do que nem mesmo Montesquieu defendiauma separação absoluta.

Apesar de encontrarmos as primeirasformulações sobre a teoria da separação dospoderes no direito inglês, foi realmente comMontesquieu que a teoria se transformariaem “doutrina” da separação de poderes econseguiria aceitação universal (Cf. PEREZROYO, 2002, p. 726). É mais que conhecidoo pensamento de Montesquieu expressadoem seu Espírito das Leis de que

“o valor político supremo é a liberda-de, o maior inimigo da liberdade é opoder já que todo poder tende ao abu-so, mas como o poder só pode ser deti-do pelo poder é preciso neutralizarseu abuso dividindo o exercício de talpoder em distintos órgãos”.

Por sua vez, a crítica básica que se faz dateoria de Montesquieu e que é invocada pe-los defensores do “controle externo” é res-saltada por Constantino Mortati (1973) cen-trando-se no ponto de que cada poder reali-za atos que em sua pureza não lhe corres-ponderiam, mas que continuam da compe-tência que é reconhecida a cada poder parase auto-organizar. Por exemplo: o Parlamen-to atua administrativamente ao se ocuparde seu próprio funcionamento, ou judicial-mente ao resolver sobre os títulos de admis-são de seus próprios membros ou, como nocaso brasileiro, onde tem a competência parajulgar o Presidente da República nos crimesde responsabilidade, etc. Para o autor, to-dos os poderes intervêm em funções dife-rentes das suas específicas. Assim, o Execu-

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tivo realiza funções materialmente legisla-tivas (regulamento), o Legislativo, funçõesexecutivas (aprovação de orçamentos); opoder Judiciário funções executivas (juris-dição voluntária, administração de tutela);o Poder Executivo desempenha funções ju-risdicionais (tribunais administrativos...),etc.

Mesmo que tenha sido muito combatidae que, por certo, não represente um dogmaabsoluto, a verdade é que a teoria da sepa-ração dos poderes transformou-se em umdos cânones do Direito Constitucional e,desde a Constituição de Virgínia (1776),passa a ser considerada como componenteessencial de uma verdadeira Constituição,nos termos consagrados pelo art. 16 da De-claração dos Direitos do Homem e do Cida-dão de 1789 e recepcionada pela Constitui-ção francesa de 1791.

Críticas sempre existiram. Desde o Fede-ralista (1787-1788), James Madison já afir-mava que os poderes legislativo, executivoe judiciário não são em absoluto totalmenteindependentes e distintos entre si e con-cluía que Montesquieu “não queria dizerque esses poderes não devem ter nenhumaingerência parcial, ou nenhum controle so-bre atos uns dos outros”.

Ilustrando o caso europeu, de forma ajustificar a existência de órgãos cuja locali-zação espacial é inexplicável segundo aclássica teoria da divisão de poderes, Bobbio(1988, p. 376), citando Vergotini, afirma queo princípio da separação de poderes resultasuperado. Para ele, a tendência é a afirma-ção da unidade do poder estatal, que, entre-tanto, é exercido por meio de uma vastagama de órgãos colegiados representantescoletivos em nível local, estatal e federal, comatribuições cada vez mais relevantes, quesão expressas por órgãos de administraçãoe de jurisdição, coordenados entre si em pla-no horizontal e vertical.

Porém, o certo, no caso brasileiro, é que aConstituição de 1988 recepciona referidateoria, afirmando, no artigo 2o, que “são po-deres da União, independentes e harmôni-

cos entre si, o Legislativo, o Executivo e oJudiciário”. Por sua vez, o parágrafo 4o

do artigo 60 é taxativo no que diz respeitoao poder reformador: “Não será objeto dedeliberação a proposta de emenda tenden-te a abolir: (...) III – a separação dosPoderes”.

Apesar dos citados dispositivos consti-tucionais que, como a maioria das consti-tuições, prestam homenagem ao principioda separação de poderes, ainda assim con-cluímos que a proposta brasileira não ofen-de a Constituição ou o princípio da separa-ção de poderes, pelo mesmo motivo peloqual não pode ser considerado como con-trole “externo”: sua composição, a exemplodos tribunais jurisdicionais, é quase queexclusivamente feita por membros do pró-prio Judiciário, além de estar localizado es-pacialmente dentro da própria estrutura dereferido Poder.

Contudo, mesmo que se tratasse de umacomposição heterogênea com a participaçãode membros oriundos de outros poderes, ouaté mesmo com a participação de cidadãos,ainda assim concluímos que não represen-taria ofensa ao princípio da separação depoderes, já que não se trata de controlar aatividade de julgar, função específica doPoder Judiciário e fundamento da teoria daseparação de poderes, ao contrário, preten-de a proposta apenas regulamentar um con-trole que já existe, transferindo a competên-cia para fiscalizar a atividade administrati-va, financeira6 e disciplinar para um únicoórgão, criado exclusivamente para esse fim,otimizando, assim, a administração do Ju-diciário.

Entretanto, ainda devemos estar atentospara o fato de que a função de julgar, “po-der tão terrível entre os homens” conformeentendia o próprio Montesquieu, tambémestá na iminência de vir a ser controlada,não por um órgão externo a ser criado paraesse fim, mas pelo próprio Judiciário, quepretende vincular a decisão dos seus julga-dores às suas próprias decisões. É desseassunto que trataremos a seguir.

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5. Efeito vinculante e controle daatividade de julgar

A PEC 29/2000 pretende, ainda, insti-tuir a Súmula Vinculante, acrescentando oartigo 103-A ao texto Constitucional. Trata-se de conceder ao STF poderes para editarsúmulas, que, a partir de sua publicação naimprensa oficial, terá efeito vinculante emrelação aos demais órgãos do Poder Judici-ário e à administração pública direta e indi-reta, nas esferas federal, estadual, distrital emunicipal.

O efeito vinculante das decisões do STFpode ser justificado pela supremacia daConstituição. Entretanto, devemos observarbem a natureza de tais decisões, pois asúnicas decisões da Suprema Corte que po-dem vincular são aquelas proferidas no con-trole de constitucionalidade que compete aoguardião da Constituição. Então, como con-ferir efeito vinculante a decisões do órgãode cúpula do Judiciário, em matérias infra-constitucionais, sem ofender a independên-cia dos juízes e o princípio da livre convic-ção de que está investido o julgador de pri-meiro grau para apreciar o caso concreto?

Admitindo que as decisões proferidasno controle concentrado de constitucionali-dade devem produzir “eficácia contra todose efeito vinculante relativamente aos demaisórgãos do Poder Judiciário e ao Poder Exe-cutivo”, por outro lado rechaçamos por com-pleto a idéia de que as decisões proferidaspela jurisdição infraconstitucional tambémpossam produzir efeitos vinculantes, poisentendemos que, na verdade, contraria, sim,a independência dos juízes, bem como daprópria Administração Pública. Imagine-mos, por exemplo, que nos casos de omis-sões da lei infraconstitucional, se em referi-das situações tais matérias pudessem vir aser sumuladas pela Suprema Corte, em vir-tude de decisões reiteradas sobre o assunto,vinculando, dessa forma, todo o Judiciárioe a Administração Pública, encontrar-nos-íamos diante de casos em que a Súmula Vin-culante substituiria a função do legislador

e, isto sim, representaria ofensa ao princí-pio da divisão de poderes já que legislar éfunção específica do Poder Legislativo.

É certo que a jurisprudência evolui, mastambém é certo que os votos divergentes, àsvezes vencidos, muito têm contribuído paraessa evolução. Assim, mesmo que a súmulavinculante se estenda aos demais órgãos daAdministração Pública, sem, todavia, vin-cular o próprio STF (que, dessa forma, po-derá mudar sua orientação), ainda assimrepresenta um grande perigo como o detransformar os juízes e tribunais inferioresem meros chanceladores das orientações to-madas por seu órgão de cúpula, impedin-do-os de se manifestar sobre o assunto su-mulado. Tolhe a capacidade criativa do jul-gador e cerceia seu poder-dever de interpre-tar as leis e dizer o direito. Da mesma forma,cerceia a atividade administrativa dos ór-gãos da Administração Pública representan-do uma ingerência do Judiciário no Execu-tivo.

A pretensão de instituir a Súmula Vin-culante para matérias de toda natureza, enão apenas de natureza constitucional, sóocorre porque no Brasil o órgão de cúpulado Judiciário é também o guardião da Cons-tituição. Contudo, se no Brasil fosse criadoum Tribunal Constitucional, não haveriamais a necessidade de um controle “inter-no” do Judiciário ou, em outras palavras,um controle sobre a função de julgar pró-pria do Judiciário.

Essa assertiva está baseada no fato deque, competindo apenas a uma Corte Cons-titucional a competência para contro-lar a constitucionalidade das leis (e atos comforça de lei) e uma vez que é pacífica a acei-tação de que as decisões proferidas nessetipo de controle de constitucionalidade sãodotadas de eficácia erga omnes e efeitos vin-culantes, essa vinculação representaria auniformização da jurisprudência em maté-ria constitucional e a redução do volume deprocessos que abarrotam o STF e tribunaisem geral, cumprindo, dessa forma, o objeti-vo de evitar decisões conflitantes e agilizar

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a prestação jurisdicional, sem ferir a inde-pendência dos juízes. Mas como justificar acriação de um Tribunal Constitucional seesses estão localizados fora da estrutura doPoder Judiciário? É desse assunto que trare-mos a seguir.

6. A criação do Tribunal Constitucionalcomo forma de controle “externo”

Desde que Kelsen inspirou a criação domodelo concentrado de controle de consti-tucionalidade das leis por meio de Tribu-nais Constitucionais situados fora do âm-bito do Poder Judiciário e mesmo que tenhajustificado – com sua célebre teoria acercado “legislador negativo” – que o modelo con-centrado não atenta contra a separação dospoderes, ainda assim inúmeros estudos bus-cam justificar a legitimidade7 dessas cortesconstitucionais para controlar um órgãodemocrático (Parlamento). Muito se tem de-batido sobre o assunto; entretanto, respos-tas absolutas ainda não foram encontradas.

Para Kelsen, os Tribunais Constitucio-nais formam um poder independente dosdemais poderes constituídos, cujo papelconsiste em assegurar o respeito à Consti-tuição em todos os seus âmbitos. Além dis-so, seria um contra-senso que o órgão en-carregado de fazer respeitar a Constituiçãopudesse integrar qualquer um dos poderesque controla. Entretanto, a verdade é que omodelo idealizado por Kelsen pretendeuapenas controlar os atos emanados do le-gislativo e proteger o direito da minoria dese opor à maioria legislativa8. Mas, com acrescente evolução das competências dosTribunais Constitucionais, esses passarama controlar também os atos jurídicos ema-nados do Poder Judiciário que atentam con-tra a Constituição9. É significativa a impor-tância que o modelo europeu empresta aocontrole de constitucionalidade, e a cada diapodemos verificar que novas responsabili-dades pesam sobre os Tribunais europeus,permitindo que esses se aparelhem commecanismos processuais que lhes permitem

atuar como verdadeiros “legisladores posi-tivos”10, concorrentemente com o Poder Le-gislativo, fato que faz sempre atual a dis-cussão sobre a legitimidade dessas Cortes.

No Brasil, o modelo que se apresentapara o controle de constitucionalidade é bemdistinto do europeu, tendo o Constituintede 1891 se inspirado no modelo americanoem que o sistema de controle é o difuso e acargo do Poder Judiciário. É certo que a Cons-tituição brasileira – desde a EC 16, de 6.12.65– também presta homenagem ao sistema kel-seniano, admitindo o controle concentradocujas decisões são dotadas de efeito vincu-lante e eficácia erga omnes. Entretanto, tam-bém é certo que modelos puros, conformeidealizados por seus criadores, são cada vezmais escassos. Assim, a cada dia, cresce aaceitação e proliferação de sistemas híbri-dos (Cf. PEGORARO, 2002) cuja implanta-ção, na prática, vem exigir aperfeiçoamen-tos dos sistemas tradicionais, visando aatender as particularidades do direito in-terno de cada país.

De qualquer forma, é de bom alvitre re-cordar que ambos os modelos – americano eeuropeu – consagram a Constituição comonorma fundamental e hierarquicamente su-perior a todo o ordenamento normativo exis-tente num determinado país11, pois é exata-mente sobre esse pilar que se assentam to-das as teorias que versam sobre o controlede constitucionalidade. De qualquer sorte,no que se refere à diversidade dos modelosde Justiça Constitucional, adverte RubioLlorente (1997) que “falar hoje de um siste-ma europeu [refere-se ao modelo idealizadopor Kelsen] carece de sentido, porque exis-tem mais diferenças entre os sistemas de jus-tiça constitucional existentes na Europa queentre alguns deles e o norte-americano”.

Além da Europa Ocidental e posterior-mente da Europa do Leste, os TribunaisConstitucionais aparecem ainda como ele-mento de consolidação da democracia emvários países de toda América Latina, po-dendo ser encontrados na América do Sulem países como Peru e Equador, sempre ins-

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pirados no modelo europeu, ainda que aten-dam a suas particularidades internas. NoBrasil, também, já houve uma tentativa deimplantação de um Tribunal Constitucio-nal. Nos trabalhos da Assembléia Constitu-inte que elaborou a Carta de 1988, foi vota-da a Emenda no 1916 – Substitutiva, rejeita-da por 263 votos desfavoráveis, contra 130votos favoráveis e 2 abstenções, entre os 432Constituintes presentes à votação12. O prin-cipal argumento para a rejeição da criaçãode um Tribunal Constitucional brasileiro foio reconhecimento de que o STF é o guardiãoda Constituição13.

Nos termos da Emenda Substitutiva no

1916, a composição do TC brasileiro seriade 16 ministros, todos nomeados pelo Pre-sidente da República para um período deoito ou nove anos. Porém, a indicação, aocontrário do que ocorre hoje com os minis-tros do STF, estaria a cargo dos poderes Le-gislativo, Executivo e Judiciário, além daOAB e Ministério Público. Apesar de quetodos os ministros devessem ser nomeadospelo Presidente da República, a fim de ga-rantir uma ampla representação social, aindicação dos ministros sería assim distri-buída: quatro ministros indicados livremen-te pelo Presidente da República e quatro peloCongresso Nacional (dois pelo Senado edois pela Câmara dos Deputados), escolhi-dos entre professores de Direito e advoga-dos de reconhecida competência, compro-vada prática democrática e em defesa dosdireitos humanos, com mais de quinze anosde exercício profissional; quatro indicadospelo Judiciário entre os magistrados; doisindicados pelo Ministério Público e doispela Ordem dos Advogados do Brasil.

Um dado curioso que se extrai das Atasda Assembléia Constituinte é que os minis-tros do STF, então constituintes, MaurícioCorreia e Nelson Jobim votaram contraria-mente à criação do TC, ao passo que Fer-nando Henrique Cardoso e Luís Inácio Lulada Silva votaram favoravelmente.

Passados quinze anos da promulgaçãoda Constituição, no atual momento históri-

co de transformações sociais, o assunto daReforma do Judiciário ganha destaque e re-levância. A necessidade de uma reforma,ampla e urgente, vem sendo admitida pu-blicamente – ainda que com diferentes enfo-ques e fundamentos – pelas mais altas au-toridades do país integrantes dos três Pode-res, Ministério Público, OAB, AGU e, prin-cipalmente, pelo Povo, que espera que anun-ciadas reformas possam conduzir o Brasilpara o caminho do bem-estar social. Mesmoassim, em nenhum momento vimos seremreacesas as discussões sobre a implantação,no Brasil, de uma jurisdição exclusivamen-te constitucional.

A criação de um verdadeiro TribunalConstitucional, que, baseado no modeloeuropeu, estivesse situado fora da estruturado Poder Judiciário, não representaria, ne-cessariamente, o fim absoluto do controledifuso, característico no Brasil, que mesclaelementos do controle concentrado ectrópio.Junto com a Corte Constitucional poderiam,também, ser criados mecanismos para quejuízes e tribunais, ao depararem com o casoconcreto cujo julgamento dependa de inter-pretação de matéria constitucional – queainda não tenha sido submetida ao contro-le concentrado –, pudessem decidir a maté-ria constitucional ao julgar o caso concreto,por não estarem vinculados a nenhuma de-cisão antecedente.

Contudo, decidindo pela inconstitucio-nalidade, imediatamente deveriam proce-der à “remessa de ofício” para que o Tribu-nal Constitucional decida, definitivamente,a matéria constitucional, decisão essa, que,evidentemente, seria dotada de eficácia con-tra todos e efeitos vinculantes, inclusivequanto aos processos em andamento. Nocaso de a decisão proferida pelo juízo reme-tente ser contrária à posterior decisão (en-tão vinculante) da Corte Constitucional, osautos seriam então devolvidos à origempara julgamento do caso concreto, mas emconsonância com a interpretação constitu-cional realizada pelo TC, que é a quem, ver-dadeiramente, compete a interpretação cons-

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titucional. Esses ou outros mecanismos po-deriam ser criados no objetivo de implantarum sistema de controle constitucional queatendesse as particularidades do caso bra-sileiro.

Observamos, entretanto, que esse contro-le, sim, representaria um controle “externo”vez que a jurisdição constitucional não estálocalizada dentro da estrutura do Judiciá-rio ou de qualquer outro poder constituído.Assim, a função de julgar, específica do Po-der Judiciário, seria controlada, mas apenasquanto à sua constitucionalidade, cuja com-petência já não lhe pertencerá.

A criação de um Tribunal Constitucio-nal teria como conseqüência imediata resol-ver um dos principais problemas que asso-lam o Judiciário, pois representaria a imedi-ata redução do volume de processos queabarrotam nossos tribunais, já que a eficá-cia erga omnes e os efeitos vinculantes atin-giriam todos os processos em andamentoque versem sobre a matéria decida pelo Tri-bunal Constitucional. Por sua vez, a conse-qüência desta redução do exorbitante nú-mero de processos acarretaria, pelo menosem parte, a solução de outro problema, queé o da morosidade na prestação jurisdicio-nal.

Representaria ainda o fim da coisa jul-gada inconstitucional, vez que todo proces-so que decidir matéria constitucional deveobrigatoriamente ser remetido ao TribunalConstitucional, verdadeiro intérprete daConstituição. Assim, outro grave problemarestaria resolvido, pois já não haveria a pos-sibilidade de existirem interpretações cons-titucionais conflitantes que decidissem di-ferentemente casos concretos semelhantes.Mas, por se tratar de controle “externo”,como explicar a questão de sua legitimida-de? Na verdade, esse é um dos temas maistormentosos e polêmicos desde a implanta-ção da Justiça Constitucional na Europa. Ocerto é que a convergência entre os sistemaseuropeus e americanos, que a cada dia crianovos modelos de jurisdição constitucional,vem sempre situando essas cortes fora dos

Poderes constituídos, apesar de também cri-ar seus próprios mecanismos internos decontrole de constitucionalidade.

Ciente de que o problema da inserção dosTC no sistema político constitucional glo-bal enseja muitas controvérsias, acredita-mos não se tratar de pretensão de nossaparte sugerir que a legitimidade da im-plantação, no Brasil, de uma jurisdição ex-clusivamente constitucional possa encon-trar sua justificação na própria suprema-cia da Constituição e na soberania popu-lar expressa por meio do Poder Constitu-inte. Explicamos.

Sem pretensão de ser imutável, a própriaConstituição prevê seus mecanismos de re-forma que Bobbio (1988, p. 115) chama de“Poder constituinte em sentido impróprio”,já que não podem criar um novo ordena-mento, limitando-se apenas a modificar ouacrescentar detalhes ao texto constitucionalpara adaptá-los às novas exigências soci-ais. Na nossa realidade, em que pesem aslimitações do artigo 60/CF, não nos pare-cem bem claros os reais limites que tem opoder reformador para modificar a Consti-tuição, já que, não raro, criam sim um novoordenamento. Mas esse é um tema que deveser enfrentando brevemente pelo STF dian-te das reformas atuais, que na prática estãocriando um novo ordenamento constitucio-nal.

De qualquer forma, se admitirmos que opoder reformador trata-se de um poder cons-tituinte “impróprio”, que é exercido de for-ma permanente pelo parlamento, podemosafirmar, ainda, que a vontade do PoderConstituinte originário, como poder de to-dos os cidadãos (ou do povo em geral) e,portanto, dos titulares da soberania, tam-bém deve permanecer no tempo (ainda queo exercício da função constituinte – em sen-tido próprio – somente se verifique uma vezna vida de um Estado já que um novo exer-cício da origem a um novo ordenamento)(Cf. BOBBIO, p. 115). Essa fiscalização per-manente é um dos fundamentos do controlede constitucionalidade já que a Constitui-

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ção é hierarquicamente superior aos pode-res que ela mesmo constitui.

Se, além da Constituição material, a von-tade ou intenção do Constituinte originá-rio, ao elaborar a norma constitucional, tam-bém deve ser respeitada de modo permanen-te e se são os Tribunais Constitucionais osórgãos encarregados de fiscalizar essa von-tade do Constituinte, materializada na pró-pria Constituição, podemos afirmar, então,que esse poder de controlar a Constituiçãodecorre do próprio Poder Constituinte, sen-do uma de suas manifestações. Sendo de-corrência do Poder Constituinte, não sesitua na esfera dos Poderes Constituídos.Espacialmente situar-se-ia ao lado do Po-der Constituinte.

Contudo, devendo ser uma das manifes-tações do Poder Constituinte originário, aimplantação da jurisdição Constitucionalno Brasil, separada da jurisdição ordinária,apenas poderia ser realizada por meio daconvocação de nova Assembléia Constitu-inte, a não ser que considerássemos que elajá tenha sida implantada pela Constituiçãode 1988 ao estabelecer, no art. 102, que “com-pete ao Supremo Tribunal Federal, precipu-amente, a guarda da Constituição”. Ao vin-gar tal interpretação, bastaria transferir parao STJ as demais competências que hoje sãoatribuídas ao STF e que não versam sobre aguarda da Constituição para transformar-mos o STF numa verdadeira Corte Constitu-cional e o STJ em órgão de cúpula do Judici-ário, último grau de uma hierarquia e de umacarreira.

Por entendermos que a fiscalização daconstitucionalidade não pode ser entregueapenas à jurisdição comum ou ordinária,registramos aqui nossa proposta esperan-do que ela possa ensejar debates no campodas idéias, que venham a culminar em pro-jeto para que o STF seja tido como um verda-deiro e próprio Tribunal Constitucional, as-sumindo seu verdadeiro papel de exclusivoguardião da Constituição, cuja composiçãoassegure o pluralismo como resultado de umaação transparente e democrática.

Notas1 A proposta é de autoria do Deputado Hélio

Bicudo e o número na origem é PEC 96/1992. NoSenado, recebe o número de PEC 29/2000, sendo oatual relator o Senador José Jorge (PFL/PE).

2 Redação da PEC 29/2000.3 Proposta contida no parecer da Deputada

Zulaiê Cobra.4 Recordamos que a Lei Complementar no 35 de

14.3.79 dispunha sobre o Conselho Nacional daMagistratura como órgão integrante da estruturado Poder Judiciário e sede na capital da União ejurisdição em todo território nacional.

5 Emprega-se o plural porque em Portugal con-sidera-se como diferentes “corpos” da Justiça ostribunais administrativos e fiscais, o Ministério Pú-blico e os próprios tribunais judiciais. Todos os in-tegrantes desses órgãos são considerados “magis-trados” (Cf. CANOTILHO; MOREIRA, 1991, p.224-225).

6 Referida fiscalização sobre a atividade finan-ceira, sem embargo, não exclui o controle externode competência do Tribunal de Contas que conti-nua sendo exercido nos termos da Constituição,bem como o controle de competência do Legislati-vo no que diz respeito à elaboração da Lei de Dire-trizes Orçamentárias.

7 Referida polêmica foi colocada em evidênciaem Lisboa por ocasião do 10o aniversário do Tribu-nal Constitucional português e registrada na obracoletiva: Brito et al. (1995). Ainda: Rosseau (2002).

8 No parlamentarismo europeu atual, o contro-le de constitucionalidade visa, ainda, garantir umcontrole efetivo do Executivo ou Governo, conside-rando que a evolução do regime parlamentaristapara um “regime majoritário” desemboca no fatode conferir uma imunidade jurisdicional das açõesdo Governo na medida em que seus projetos de leisão votados “sem pestanejar” por uma maioriaparlamentária às “suas ordens”(Cf. FAVOREAU,1994, p. 26).

9 Tribunais Constitucionais como os da Alema-nha, Itália e Espanha admitem que seja discutida aconstitucionalidade das decisões jurisdicionais (oamparo espanhol é dirigido, principalmente, con-tra as decisões proferidas pelo judiciário). A críticadoutrinaria é no sentido de que referido controleassemelha os Tribunais Constitucionais a “super-tribunais de cassação” que funcionariam como umterceiro ou quarto grau da jurisdição ordinária.Posicionamo-nos contrariamente a essa crítica, poisentendemos que é exatamente o fato de competiraos TC o controle de constitucionalidade das deci-sões do judiciário, que faz dessas Cortes o contro-lador “externo” do Judiciário.

10 Exemplo clássico para ilustrar o tema nos dáo TC italiano por meio das chamadas “sentenças

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11 Ressaltamos que, na atualidade, estuda-se oprojeto de uma “Constituição” para toda a UniãoEuropéia, fato que poderá ter como conseqüência aidealização de uma justiça constitucional supra-nacional.

12 Dados coletados do DIÁRIO DA ASSEM-BLÉIA NACIONAL CONSTITUINTE (1988, p.9.055-9.061.

13 Merece destaque o trecho do voto do relator,Senador Bernardo Cabral, que na oportunidade, po-sicionando-se contrariamente à criação de um TC,assim se manifestou: “ Basta apenas fazer umapergunta ao Plenário: quem é que faz, porque acompetência é sua, a guarda da Constituição?Supremo Tribunal Federal. O que esta Assembléiaaprovou? Aprovou a manutenção do Supremo Tri-bunal Federal e criou, já aprovado, o Superior Tri-bunal de Justiça. O que o Superior Tribunal de Jus-tiça faz? Vela pela vigência e uniformidade inter-pretativa da lei federal. Portanto, não há como, aesta altura, pensar-se na criação de um TribunalConstitucional, pois seria ferir, cortar, podar a com-petência do Supremo Tribunal Federal.”

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Fernando Lagares Távora

1. Principais novidades nalegislação rural em 2003

As inovações legais de 2003 para o meiorural recaíram nas já tradicionais renegoci-ações de dívidas agrícolas, na discussão emtorno dos organismos geneticamente modi-ficados (transgênicos) e na proposta paraestruturação do seguro rural. O objetivo des-te texto é avaliar a proposta do governo emrelação a este último tema, não tendo, noentanto, a pretensão de avaliar qual seria omelhor modelo de seguro rural para o País.

Há vários programas de renegociação dedívidas agrícolas em plena vigência. Issoacaba redundando em inúmeras negocia-ções, que, por sua vez, provocam o senti-mento de desigualdade em mutuários deprogramas não atendidos. Esse fato leva, emgeral, a uma nova rodada de negociação,que se sucede em um ciclo que aparentemen-te não tem fim. As principais solicitaçõessão alongamento de prazos (os mais varia-dos), redução da taxa de juros e liberação/redução de pagamento inicial para partici-pação de renegociação de dívidas. Dada acomplexidade do problema, mesmo apósvárias reduções de juros, concessão de

Seguro rural: nova lei, outras subvenções epoucas certezas

Fernando Lagares Távora é Consultor Le-gislativo do Senado Federal.

Sumário1. Principais novidades na legislação rural

em 2003. 2. Cronologia no setor de seguro ru-ral. 3. A Lei no 10.823 de 2003. 4. Algumas dire-trizes para estruturação de um seguro rural. 5.Considerações finais.

Revista de Informação Legislativa386

bônus de adimplência e, ainda, a concessãode equalização, não foi possível o estanca-mento desse processo de reiteradas reivin-dicações.

Se não se pode afirmar que o processo derenegociação seja rotina, pelo menos se podeasseverar que o fato é habitual, uma vez que,nos últimos anos, foram várias as leis tra-tando sucessivamente do mesmo tema.

A questão dos transgênicos, atualmente(fevereiro de 2004), está sendo discutida noSenado Federal por intermédio do Projetode Lei no 2.401, de 2003, que pretende regu-lar toda a questão da biossegurança. Assim,não cabe aqui tratar desse tema, mesmo por-que as duas medidas provisórias de 20031

se destinaram a resolver o problema especí-fico do plantio em dissonância com a legis-lação vigente.

Desse modo, para estudo da nova políticapara o seguro rural no Brasil, o presente tra-balho está segmentado em quatro seções, alémdesta introdução. Na seção 2, encontra-se umabreve cronologia sobre o tema. A seção seguinteapresenta a base legal para criação ou fomen-to do seguro rural no País; e, também, a descri-ção da Lei no 10.823, de 2003, que visa a dis-por sobre a subvenção econômica ao prêmiodo seguro rural e dar outras providências.Algumas considerações de mérito sobre o temasão feitas na seção 4. Por fim, a última seçãoapresenta conclusões e observações sobre otrabalho.

2. Cronologia no setor de seguro rural2

A criação da Companhia Nacional deSeguro Agrícola, em 1954, e, posteriormen-te, a regulamentação do seguro rural pormeio do Decreto-Lei no 73, de 21 de novem-bro de 1966, representaram as primeiras ten-tativas para estruturação desse mecanismono País. Esse normativo criou o Fundo deEstabilidade do Seguro Rural (FESR), quetem por fim equilibrar o mercado de segurorural, minimizando os prejuízos das segu-radoras, em caso de sinistros abrangentes,como secas e geadas, e está sob administra-

ção do Instituto de Resseguros do Brasil(IRB).

Nessa sistemática, as seguradoras queoperam com seguro rural devem, obrigato-riamente, contribuir para o Fundo com cin-qüenta por cento do lucro anual dessas ope-rações3. Em caso de catástrofe abrangente, oFESR cobre o prejuízo causado pelo eleva-do número de indenizações concentradasque devem ser pagas.

Na área privada, a Companhia de Segu-ros do Estado de São Paulo (COSESP), cria-da em 1969, que opera, basicamente, em SãoPaulo e no Paraná, representa um dos pou-cos exemplos de sucesso nesse segmento.

No setor público, em 1973, foi criado oPrograma de Garantia da Atividade Agro-pecuária (PROAGRO), que tinha por objeti-vo exonerar o produtor das obrigações fi-nanceiras do crédito rural, caso houvessequebra de produção em decorrência de even-tos naturais.

Dessarte, o PROAGRO não seguravatoda a produção, mas tão-somente o valorcorrespondente ao crédito de custeio con-tratado junto ao agente financeiro, o que otornava um seguro de crédito, protegendomais os agentes financeiros do que os pro-dutores. Além disso, por se tratar de um pro-grama de governo, não estava sujeito às de-mais regras do seguro rural.

Historicamente, o PROAGRO foi alvo dedenúncias de fraude, além de ser financei-ramente inviável, uma vez que o volume to-tal de prêmios arrecadado, na grande maio-ria dos anos, era insuficiente para cobrir oscustos das indenizações, havendo necessi-dade de aporte financeiro. Além disso, de-vido à dificuldade de fiscalização e aos cons-tantes entraves burocráticos, grande núme-ro de indenizações não foram honradas, oque levou o programa ao descrédito.

Em 1991, o PROAGRO foi reformulado,passando a operar em uma nova fase. Apartir de 1995, os prêmios e as coberturasdo programa passaram a ser calculados combase no zoneamento agrícola. Esse fato per-mitiu a regionalização das datas de plan-

Brasília a. 41 n. 164 out./dez. 2004 387

tio, e a conseqüente redução e diferencia-ção, por cultura, do valor do prêmio.

Além disso, procedeu-se a retirada dossinistros causados pela seca (apontada comoprincipal risco da agricultura brasileira) doseventos cobertos pelo PROAGRO, o que, porum lado, contribuiu para a redução do valordos prêmios, mas, por outro, levou à dimi-nuição do interesse pela contratação do se-guro.

Em 2 de outubro de 2002, o Poder Execu-tivo, por meio da Exposição de MotivosMAPA 31 EMI/PL/MF/SEGURO RURAL,apresentou minuta de projeto dispondo so-bre a subvenção econômica ao prêmio doSeguro Rural, que recebeu, na Câmara dosDeputados, o código “PL no 7.214, de 2002”,posteriormente transformado no PLC no 68,de 2003, e, finalmente, convertido na Lei no

10.823, de 19 de dezembro de 2003, que serádescrita na próxima seção.

3. A Lei no 10.823 de 20034

O seguro rural representa importantemecanismo para o desenvolvimento agríco-la e tem destaque na legislação pátria. Pri-meiramente, porque a própria ConstituiçãoFederal de 1988, em seu art. 187, V, consa-gra o seguro rural como elemento a ser con-siderado no planejamento da política agrí-cola. Da mesma forma, a Lei no 8.171, de 17de janeiro de 1991 (Lei de Política Agrícola),em seu Capítulo XV – “Do Seguro Agríco-la”, institui o seguro agrícola e reserva im-portante papel para o Poder Público no fo-mento às atividades do setor.

Por fim, o Decreto-Lei no 73, de 21 de no-vembro de 1966, estabelece normas de fun-cionamento para o seguro privado e, em seuart. 16, cria o Fundo de Estabilidade do Se-guro Rural, com a finalidade de garantir aestabilidade das operações seguradas e deatender às coberturas suplementares dosriscos de catástrofe.

A Lei no 10.823, de 2003, em comento,dispõe sobre a subvenção econômica ao prê-mio do seguro rural do seu art. 1o ao art. 5o.

O art. 6o altera a Lei no 10.696, de 2 de julhode 2003, para modificar prazos e condiçõesfinanceiras de renegociações de dívidas ru-rais com o Governo Federal.

Esse art. 6o foi fruto de emenda apresen-tada na Comissão de Constituição, Justiça eCidadania (CCJ), ratificada pela Comissãode Assuntos Econômicos (CAE) e pelo ple-nário do Senado Federal, e, posteriormente,pela Câmara dos Deputados, quando doretorno do projeto àquela Casa. Por não serobjeto precípuo da análise deste trabalho, amatéria será, oportunamente, discutida den-tro do contexto de renegociação de dívidasagrícolas.

De forma breve, exceto quanto ao art. 6o, aLei no 10.823, de 2003, está descrita a seguir.

O art. 1o autoriza o Poder Executivo aconceder subvenção econômica, em percen-tual ou valor do prêmio do seguro rural.Estabelece, também, que o seguro rural deve-rá ser contratado junto a sociedades autori-zadas pela Superintendência de Seguros Pri-vados (SUSEP), devendo o proponente, paraobter a concessão da subvenção econômica,estar adimplente com a União, nos termosdo regulamento; e que as obrigações assumi-das pela União em decorrência da subven-ção econômica serão integralmente liquida-das no exercício financeiro de contrataçãodo seguro rural, correndo as despesas à con-ta das dotações orçamentárias consignadasanualmente ao Ministério da Agricultura,Pecuária e Abastecimento.

O art. 2o estabelece que a subvenção po-derá ser diferenciada segundo modalidadesdo seguro rural, tipos de culturas e espéciesanimais, categorias de produtores, regiões deprodução e condições contratuais, priorizan-do aquelas consideradas redutoras de riscoou indutoras de tecnologia.

Nos termos do art. 3o, o Poder Executivoregulamentará as modalidades de segurorural contempláveis com o benefício; as con-dições operacionais gerais para a implemen-tação, execução, pagamento, controle e fis-calização da subvenção econômica; as con-dições para acesso aos benefícios, incluin-

Revista de Informação Legislativa388

do o rol dos eventos cobertos e outras exi-gências técnicas pertinentes; os percentuaissobre prêmios ou montantes máximos desubvenção econômica, de forma compatívelcom a Lei Orçamentária Anual; bem como acomposição e o regimento interno do Comi-tê Gestor Interministerial do Seguro Rural.O Poder Executivo poderá, ainda, fixar li-mites financeiros da subvenção, por benefi-ciário e unidade de área.

Os arts. 4o e 5o tratam da criação, no âm-bito do Ministério da Agricultura, Pecuáriae Abastecimento, do Comitê Gestor Intermi-nisterial do Seguro Rural, bem como de suacompetência.

Este Comitê Gestor Interministerial po-derá criar Comissões Consultivas – dasquais poderão participar representantes dosetor privado –, definindo sua organizaçãoe composição e regulando seu funcionamen-to, cabendo ao presidente do Comitê desig-nar os seus integrantes.

Ao Comitê Gestor do Seguro Rural com-petirá apreciar e encaminhar ao Poder Exe-cutivo propostas relativas ao percentualsobre o prêmio ou ao valor máximo da sub-venção econômica; propor os limites sub-vencionáveis; aprovar as condições opera-cionais específicas, implementar e operaci-onalizar o benefício; incentivar a criação eimplementação de projetos-piloto pelas so-ciedades seguradoras, contemplando novasculturas ou espécies, tipos de cobertura eáreas, com vistas ao apoio e desenvolvimen-to da agropecuária no País; estabelecer di-retrizes, coordenar a elaboração de metodo-logias e a divulgação de estudos e dadosestatísticos, entre outras informações, queauxiliem o desenvolvimento do seguro ru-ral como instrumento de política agrícola; edeliberar sobre as culturas e espécies ani-mais objeto do benefício, as regiões a serempor ele amparadas, as condições técnicas aserem cumpridas pelos beneficiários, bemcomo sobre a proposta de Plano Trienal ouseus ajustes anuais, dispondo sobre as di-retrizes e condições para a concessão dasubvenção econômica.

Algumas observações preliminares so-bre a Lei. Primeira, o Poder Executivo pode-rá definir, por meio de regulamento, o que éadimplência para os fins desta Lei, ou seja,há possibilidade de um mutuário estar ematraso não negociado com a União e, aindaassim, ser considerado adimplente. Dessaforma, manteria o direito de receber a sub-venção do prêmio, o que, do ponto de vistafiscal, é inapropriado.

Segunda, os termos relativos à descriçãoorçamentária são inadequados. O § 4o doart. 1o utiliza os termos “conta das dotações”para se referir às rubricas orçamentárias. Otexto também não é suficientemente claro aomisturar os conceitos de movimentação deempenho com pagamentos. O empenho é aprimeira fase da despesa, ao passo que opagamento é a terceira, após a liquidação –reconhecimento do direito do credor –, que éa segunda fase. Para uma análise mais deta-lhada deste ponto, sugere-se a leitura do Ma-nual Técnico do Orçamento no 02 e da Lei no

4.320, de 1964 (Lei de Direito Financeiro).Terceira, não há a explicitação da com-

posição do Comitê Gestor Interministerial,fato inapropriado, por dar margem a dispu-tas políticas. Por fim, a grande liberdadeconferida ao Poder Executivo para regula-mentar a matéria é preocupante.

4. Algumas diretrizes para estruturaçãode um seguro rural

Inicialmente, cabe citar as observaçõesde Peter B.R. Hazell e de G.E. Redja, repro-duzidas pelo Prof. Jerry R. Skees (1999, p. 3),para a estruturação de um modelo de segu-ro rural desejável5.

As recomendações de Hazell (1992) sãoas seguintes:

1) Os seguradores devem ser indepen-dentes do Ministério da Agricultura e, tam-bém, responsáveis pelo próprio negócio.

2) Os seguros devem cobrir somente ris-cos da produção (seguráveis), e não riscosconcernentes à má administração dos ne-gócios.

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3) Franquias e deduções devem ser usa-das para pagamentos de parcelas segura-das em caso de perdas.

4) Deve-se tomar cuidado para que hajaincentivo para diversificação de riscos.

5) A participação no seguro deve ser vo-luntária.

6) Rendimentos médios não devem serusados para cobertura individual.

7) Incentivos apropriados devem seradotados para se controlar custos adminis-trativos. À medida que as seguradoras ope-ram, os seus custos de avaliar as operaçõesdevem cair devido à acumulação de conhe-cimento. Não seria saudável que o Governocompensasse indiscriminadamente essasdespesas, sob risco de não haver incentivospara redução de custos.

8) Devido à grande variedade de perfor-mance atuarial dos estados, uma política di-ferenciada de seguro deve ser adotada.

9) Sistema financeiro “saudável” e boalegislação (clara e precisa) são pré-requisi-tos para um efetivo setor de seguros.

Redja (1995), por sua vez, aponta seiscondições para que o risco seja segurado:

1) Necessidade de um grande númerode unidades passíveis de exposição ao ris-co. Para que a lei dos grandes números pos-sa ser assegurada para se predizer a perdafutura média, é necessário um grande nú-mero de unidades aproximadamente homo-gêneas e com exposição de risco indepen-dente.

2) Perda acidental e não-intencional. Asperdas devem ocorrer em face de um resul-tado aleatório. Havendo mudança de com-portamento devido à compra de um seguroa ponto de modificar a probabilidade deperda ou sua extensão, o “risco moral”6 po-derá acontecer.

3) Perda mensurável e determinável. Emoutras palavras, as perdas devem ser men-suradas dentro de um nível aceitável de pre-cisão.

4) Evitar perdas em face de catástrofe.Com a existência de risco sistêmico, as per-das estão altamente correlacionadas, o que

inviabiliza a ocorrência da lei dos grandesnúmeros. Em outras palavras, nesse casonão ocorre a independência entre os even-tos cobertos pela apólice e, em conseqüên-cia, inexiste a diversificação dos riscos. Nosegmento de automóveis, a diversificação deriscos ocorre porque a seguradora arrecadao prêmio de muitos segurados, mas somen-te alguns terão seus carros sinistrados, o quepermite o equilíbrio entre os valores arreca-dados e eventuais indenizações, já se consi-derando os lucros das seguradoras. As su-gestões do autor para amenizar o problemasão a utilização do resseguro e diversifica-ção geográfica do risco.

5) Possibilidade de estimação de perdas.Para se estimar uma taxa de prêmio apro-priada, deve ser factível estimar-se tanto afreqüência média quanto a incidência deperda.

6) Os prêmios devem ser economicamen-te factíveis. As chances de perda devem es-tar em patamar que não resulte em prêmiosexcessivamente caros. De outro modo, cor-re-se o risco de seleção adversa7.

Essas observações foram, igualmente,abordadas pelo Prof. Cunha (2002, p. 4-5),que apontou princípios para um adequadoseguro agrícola para a realidade brasileira.Em complemento à lista já apresentada, des-tacamos mais três pontos:

1) O contrato de seguro deve ser feito comantecedência. Isso evitará que somente agri-cultores com alto risco contratem o seguro.Para o autor, a antecedência deve ser de nomínimo quinze dias do plantio da safra.Skees (1999, p. 5) recomenda a contrataçãocom um período de seis semanas de antece-dência do plantio.

2) Lucro operacional (diferença entre fa-turamento, acrescida de prêmios de resse-guros, e as indenizações) como base da con-tribuição das seguradoras para um fundode estabilidade do seguro (referência a suaproposta). Essa rubrica contábil é de fácilapuração e pouco susceptível a fraudes.

3) Subsídio ao prêmio do seguro em gru-po. O baixo valor arrecadado por apólice

Revista de Informação Legislativa390

pode não ser suficiente para cobrir as des-pesas do contrato. Nesses casos, o seguroem grupo torna-se uma alternativa. Repre-senta uma forma de combater o elevado cus-to de gerenciamento do seguro.

Tendo esses princípios como referênciabásica, poder-se-ia partir para a definiçãode parâmetros de perdas aceitáveis para asociedade e, obviamente, o estabelecimentoda função do Estado no sistema.

Lugar comum nas Lições de Skees (1999)e de Cunha (2002) é o fato de que o critérioutilizado para estruturação de sistema deseguro rural nem sempre segue o princípioda racionalidade econômica e, não raro, a alo-cação de recursos é ineficiente, podendo a for-matação do modelo sofrer influência políticaque venha a distorcer os seus resultados.

Considerando, ainda, a existência devolumosos subsídios – ambiente propíciopara existência de rent seeking8 – e o fato de omercado ser incompleto – inexistência demecanismos eficazes para transferência deriscos por desastre natural –, o estabeleci-mento de um modelo de seguro rural – se-gundo o entendimento de especialistas –deveria reservar ao Estado o papel de regu-lador e, se necessário, de interventor em si-tuações específicas, como, por exemplo, emfenômenos naturais abrangentes.

Nessa linha, Cunha (2002, p. 42) enten-de que a intervenção do governo é de todorecomendável nos seguintes casos sinistrosgeneralizados devido à existência de riscosinterdependentes; seguro de agricultoresmuito pequenos; e amenização dos efeitosdo alto custo de gerenciamento do seguro,por criar a possibilidade de estímulo à frau-de e à seleção adversa.

Feitas essas considerações, pode-se re-tornar à Lei no 10.823, de 2003. A Lei nãotrata da estruturação ampla de um modelode seguro rural, restringe-se a autorizar oPoder Executivo a conceder subvenção eco-nômica para auxiliar o agricultor a pagar oprêmio do seguro, dentro de condições es-pecíficas a serem estabelecidas oportuna-mente, sendo a iniciativa privada respon-

sável pela contratação das apólices e con-dução do negócio.

Três das principais críticas a essa esco-lha do governo são as seguintes:

1) Fornecimento de subvenção para apó-lices que estão sujeitas a riscos independen-tes, ou seja, operações que são bem estima-das pela lei dos grandes números e, portan-to, representam eventos em que as segura-doras são especialistas. A substituição dainiciativa privada pelo Estado é entendidacomo ineficiente, exceto para produtoreshumildes, por motivo diverso (assistênciasocial). Na opinião dos críticos, o Estadodeveria ajudar em operações com sinistroscorrelacionados, como geadas, secas e ou-tros efeitos naturais generalizados. Mesmonesses casos, a participação estatal seria decaráter complementar.

2) A ação do Estado pode vir a não aju-dar na diluição e redução do risco, fazendocom que sua atuação acabe gerando efeitosdistorcivos e, em conseqüência, arcando comuma parcela do custo maior do que a aceitá-vel pela sociedade. Os custos iniciais de ge-renciamento do seguro agrícola são altos,mas declinam à medida que as seguradorasmontam bancos de dados com informaçõesdetalhadas dos produtores e das regiões. OEstado deve tomar cuidado no fornecimen-to de subsídios; caso contrário, não irá in-centivar as seguradoras a reduzirem os cus-tos iniciais.

3) Com a concessão dessas subvenções, oEstado deve criar uma situação de fato, naqual os agentes econômicos se articulam paramanter seus benefícios, sem, no entanto, seempenharem para aumentar a qualidade doseguro rural. Qualquer mudança a partirdessa situação é uma tarefa difícil, devido ànova configuração de poder dos agentes en-volvidos.

É com base nas observações de toda essaseção que muitos entendem que o modelo oraaprovado não dispõe de viabilidade técnicasuficiente para garantir um seguro eficiente,sustentável financeiramente, digno de credi-bilidade e duradouro.

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5. Considerações finais

A política de equalização de taxa de ju-ros e de pagamento de subvenção econômi-ca surgiu no País em um ambiente muitoparticular.

Com a falência do modelo de crédito ru-ral, no qual o Poder Público injetava os re-cursos, corria o risco do empréstimo e arca-va, ainda, com o prejuízo da perda real dovalor financiado – que foi elevadíssimo, emambientes inflacionários –, novas alternati-vas precisavam ser adotadas.

Acrescendo-se ainda a isso a exigênciada sociedade pela estabilidade da economiae o rigor fiscal exigido nos acordos com oFundo Monetário Internacional, sobraramao Estado poucas saídas.

Sem recursos e com a grande dependên-cia do setor agrícola do financiamento pú-blico, o Estado adotou a equalização de ta-xas como política de suporte à produção.Rapidamente, esse instrumento se espalhoue hoje é a ação dominante do Governo nofinanciamento. É usada na área rural, nosetor de exportações, no segmento de pes-ca, para fomentar investimento industri-al, para propiciar aquisição de máqui-nas...

Agora a equalização de encargos finan-ceiros chegou ao segmento de seguro rural.Mas é forçoso reconhecer que a situação aquié bem diferente. Com um sistema financeiropouco desenvolvido e, também, com o mo-nopólio do resseguro sob o domínio de umaempresa pública, a diversificação de riscose a transferência, ou diluição, da exposiçãodas seguradoras se tornam mais difíceis.Assim, a pura e simples concessão de sub-venção ao prêmio pode gerar efeitos dani-nhos como a indução de free rider9 no siste-ma, uma vez que esses irão beneficiar-se doinvestimento do Estado para fomentar o se-guro rural. E, mais uma vez, a sociedade nãopode aceitar (nem suportar) que a partici-pação do Estado seja no sentido de substi-tuir os instrumentos de mercado especializa-do para essa finalidade.

Certamente, a discussão em torno da Leino 10.823, de 2003, ficou restrita ao meca-nismo de subvenção econômica. No entan-to, até esse ponto é complicado. Caso o Paíscomece a crescer a taxas expressivas, não seacredita que o Estado irá prover recursos,tempestivamente, para fazer face à deman-da dos produtores por seguro rural.

Por fim, entende-se que a estruturaçãodo seguro rural ainda terá um longo e ár-duo caminho a percorrer, e o consolo é queem nenhum país do mundo é possível en-contrar um seguro dessa natureza que te-nha superado esses condicionantes e, ain-da, seja considerado eficiente. Para o País,no entanto, fica uma importante lição: émelhor tentar aprender com as experiênci-as dos outros – o que, certamente, se tornamenos oneroso – do que tentar aprender comos nossos próprios erros.

Notas1 A primeira foi a MPV no 113, de 26 de março

de 2003, convertida na Lei no 10.688, de 13 de junhode 2003; e a outra, a MPV no 131, de 25 de setembrode 2003, convertida na Lei no 10.814, de 15 de de-zembro de 2003.

2 Para uma visão complementar da reestrutura-ção do seguro rural no Brasil, e especialmente sobreesta Seção, ver Estudo no 522, de 2003, da Consulto-ria Legislativa. Cf. TAGLIALEGNA, 2003, p. 1-8.

3 Há muitas críticas sobre a cobrança com baseno lucro líquido, devido à possibilidade de mani-pulação das despesas operacionais.

4 Publicada no Diário Oficial da União em 22de dezembro 2003. Em fevereiro de 2004, aindanão havia sido expedido o decreto regulamentandoos efeitos desta Lei.

5 As traduções são livres. Para maior rigor lin-güístico, recomenda-se a leitura dos originais.

6 Do inglês moral hazard . Esse fenômeno se refe-re, entre outras, a situações em que o agente alteraseu comportamento em face de ter adquirido umseguro. Para o caso de um seguro rural: se o indiví-duo tem um seguro com cobertura total, ele podevir a não ter incentivos para tomar os cuidados e asprecauções que teria se não fosse capaz de adquirirnenhum tipo de seguro.

7 Imagine que uma companhia se instale emum país para vender seguros agrícolas contra per-das no plantio de soja. Por hipótese, há duas regi-

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Bibliografia

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ões: na norte, há grande probabilidade de perda e,na sul, baixíssima. Caso a empresa adote a mesmapolítica de venda de seguros para ambas, com basena expectativa de perda média, o que poderia acon-tecer? Adotando, também, a hipótese de racionali-dade dos agentes, haveria grande tendência de queapenas os agentes com maior probabilidade de ris-co contratassem esse seguro, ou seja, ocorreria umprocesso de seleção adversa. Para mais informa-ções sobre perigo moral e seleção adversa, ver Varian(1997, p. 651-656).

8 Ação de grupos de pressão que defendem in-teresses próprios.

9 Em tradução livre, o termo significa caroneiro,ou seja, o grupo que se beneficia de investimento deterceiro.

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Brasília a. 41 n. 164 out./dez. 2004 393

Márcio de Oliveira JúniorRafael Silveira e Silva

1. IntroduçãoEntre todos os assuntos que chamaram

a atenção no início do governo do Presiden-te Luís Inácio Lula da Silva, um foi particu-larmente polêmico, pois demarcou uma di-visão de posturas em relação ao governo an-terior: o papel e a autonomia das agênciasreguladoras.

Essas entidades públicas e independen-tes foram idealizadas partindo-se da con-cepção de que não seriam suscetíveis a pres-sões políticas. Criadas na administraçãoFernando Henrique Cardoso, por meio deleis aprovadas pelo Congresso Nacional,não são considerados órgãos pertencentesa um determinado governo, mas ao Estado,e ganharam notoriedade e relevância a par-tir do processo de desestatização, ao regu-larem as relações entre poder público e pri-vado.

Logo no início do mandato presidenci-al, em 2003, a postura dos partidos da base

Mudanças no arranjo institucionalregulatórioComentários sobre as propostas em tramitação noCongresso Nacional

Márcio de Oliveira Júnior é Consultor Le-gislativo do Senado Federal, doutorando emeconomia pela UFRJ, ex-Pesquisador do IPEA-RJ.

Rafael Silveira e Silva é Consultor Legisla-tivo do Senado Federal, mestrando em ciênciapolítica pela UnB, ex-Analista do Banco Cen-tral, ex-Especialista em Políticas Públicas e Ges-tão Governamental.

Sumário1. Introdução. 2. Considerações teóricas so-

bre a regulação econômica. 3. PEC no 81, de2003. 4. Projeto de Lei no 3.337, de 2004. 4.1.Transferência de atribuições. 4.1.1. Uso de cri-térios subjetivos políticos de outorga. 4.1.2. Per-da de estabilidade regulatória. 4.2. Mandatos.4.3. Consulta pública. 4.4. Contratação de espe-cialistas. 4.5. Contrato de gestão e desempe-nho. 4.6. Ouvidorias. 4.7. Defesa da concorrên-cia. 4.8. Colaboração federativa. 5. Conclusão.

Revista de Informação Legislativa394

aliada revelou divergências em relação aomodelo vigente. Essa atitude causou gran-de discussão e principalmente desconfortonas administrações das agências regulado-ras e nos diversos segmentos de mercadosafetados, uma vez que esses órgãos foramidealizados dentro de uma estrutura queinviabilizasse influências políticas.

De qualquer modo, há certo consenso deque existem problemas relativos às agênciasreguladoras, mas boa parte deles pode sersanada. Pode-se destacar, entre eles, o fatode que as agências muitas vezes podem ex-trapolar suas funções, atuando em áreasde exclusiva competência dos ministérios,como o planejamento de políticas públicas.

Esse aspecto, contudo, não pode ser atri-buído tão-somente às agências, tendo emvista que, eventualmente, houve falhas deplanejamento, o que provocou um vácuo ins-titucional. Nesse caso, as agências preen-cheram esse vazio, realizando o trabalhoque deveria ter sido desenvolvido pelos mi-nistérios.

As agências fazem parte de um modelonovo de Estado já implantado em diversospaíses do mundo. Logo, em razão de ser ummodelo recente, ainda em implementação noBrasil, tais dificuldades são decorrentes doperíodo natural de maturação de uma novaestrutura, que necessita de algum tempo atéoferecer resultados positivos1. Desmontarpor completo a estrutura vigente hoje será ummovimento extremamente maléfico à maturi-dade institucional de que o Brasil necessita.

Assim, ainda que ocorram vozes diver-gentes, o novo governo tem demonstrado serfavorável às agências, entretanto, dentro demoldes diferenciados, por meio dos quais aagência regula e fiscaliza e o ministério tra-ça as políticas. Portanto, parece estar sendoestabelecida uma tendência na qual os mi-nistérios procuram fortalecer suas missõesinstitucionais e reforçar seus quadros comvistas a evitar um novo vácuo no planeja-mento, como já ocorrido no passado.

Nesse contexto, duas propostas legisla-tivas que tramitam no Congresso refletem

tendências políticas diferenciadas. A Pro-posta de Emenda Constitucional no 81, de2003, que objetiva assegurar a independên-cia das agências reguladoras, e o Projeto deLei no 3.337, de 2004, que tem por finalidadeprecípua disciplinar essa mesma indepen-dência, readequando o papel dos ministé-rios setoriais e das agências.

No presente texto, pretende-se realizarcomentários analíticos acerca das citadasproposições legislativas, com base nos fun-damentos teóricos que tratam a questão daindependência das agências regulatórias.

2. Considerações teóricas sobre aregulação econômica

Antes de entrar especificamente nas con-siderações teóricas, é necessário definir oque se entende por regulação. SegundoVillela e Maciel (1999, p. 8), é o estabeleci-mento de meios para exercer o controlesocial de mercados. Para isso são necessári-as regras explicitadas em leis, decretos, con-cessões, contratos, decisões de órgãos regu-ladores, entre outros.

Para Peci e Bianor (2000, p. 2), o conceitode regulação não se encontra claro na dou-trina jurídica brasileira. Na área jurídica, aregulação se fundamenta na idéia de uma“razão” que visa garantir a permanência, aestabilidade e a manutenção de uma deter-minada ordem social e política. Os autorestambém fazem remissão a uma dimensão“esquecida” da regulação, a política, sendoque a regulação busca o equilíbrio de dife-rentes atores, com poderes e ideologias de-siguais.

Observa-se, então, um predomínio dosestudos na área de regulação enfocados es-pecialmente no lado econômico. Tal aspec-to também pode ser explicado pela necessi-dade imposta pelas circunstâncias de ado-ção da regulação para os setores de infra-estrutura econômica e serviços de utilidadepública, tendo em vista o processo de priva-tização. Esses setores, por sua vez, apresen-tam características peculiares, a saber:

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(i) seus investimentos não são facilmen-te recuperáveis. Há nesses setores aquilo queos economistas chamam de sunk costs (cus-tos não recuperáveis ou custos afundados).Isso ocorre porque as tecnologias usadas poresses setores são bastante específicas;

(ii) há, em grande parte dos casos, aqui-lo que os economistas chamam de monopó-lio natural, ou seja, o mercado comportapoucas firmas. Se houver uma grande quan-tidade de firmas no mercado, seus custosunitários e, conseqüentemente, seus preçosserão muito altos porque elas não serão ca-pazes de explorar as economias de escala;

(iii) os produtos fornecidos pelas empre-sas são essenciais para grande parte dosconsumidores, sendo que eles não encon-tram com facilidade, no mercado, produtosou empresas prestadoras de serviços subs-titutos.

As três características expostas acimasão úteis para compreender por que há anecessidade de regular os setores de infra-estrutura e de serviços de utilidade pública.Como há monopólios naturais em grandeparte desses setores, as empresas têm poderde mercado. Mesmo tendo custos unitáriosmais baixos, as empresas podem não repas-sá-los aos consumidores. Pelo contrário, elaspodem usar seu poder de mercado para co-brar altos preços e/ou reduzir a produção.Em ambos os casos, os consumidores seri-am prejudicados (basta lembrar que os pro-dutos geralmente são essenciais e que nãoexistem substitutos próximos). Para evitarque isso ocorra, os governos podem regularos preços cobrados pelas empresas, de modoa proteger os consumidores.

A tendência é que o órgão regulador fixeos preços em patamares próximos aos cus-tos. Mas as empresas são vulneráveis à açãodo governo. Este pode determinar preçosabaixo do custo, causando-lhes prejuízos.Dado que, como discutido acima, os inves-timentos não são facilmente recuperáveis,as firmas não podem sair do mercado semincorrer em altos custos. Elas também nãopoderiam fazer os investimentos necessári-

os à manutenção da qualidade do serviço.Portanto, a regulação é útil para protegertambém as empresas, que estão sujeitas àação discricionária do governo. SegundoSalgado (2003, p. 2), o grande desafio da re-gulação econômica é encontrar o ponto óti-mo que viabilize a lucratividade das firmase o bem-estar dos consumidores, na formade disponibilidade de bens e serviços dequalidade a preços razoáveis.

As atuais agências reguladoras existen-tes no Brasil começaram a ser criadas emmeados da década passada, sendo parte darevisão do papel do Estado na economiabrasileira. As Emendas Constitucionais 5 a9, de 1995, introduziram a permissão paraque serviços públicos pudessem ser oferta-dos por empresas privadas (Salgado, 2003,p. 1). Até então os serviços de infra-estrutu-ra eram fornecidos por empresas estatais. Édifícil imaginar um órgão do Estado – umaagência – regulando um outro órgão de Es-tado – uma empresa estatal. Com a privati-zação, a situação mudou. Tornou-se neces-sário regular empresas privatizadas paralhes garantir uma rentabilidade adequadae para proteger os consumidores.

Não obstante, a atuação do poder públi-co na área regulatória passou a ser tambémobjeto de atividades cujo exercício é muitasvezes atribuído aos setores público e priva-do, bem como a múltiplos atores, exigindouma forma de articulação institucional maiságil e eficaz. Dessa maneira, desponta o in-teresse em regular atividades de relevânciasocial, ampliando-se o escopo da atividaderegulatória para além do setor de infra-es-trutura, principalmente quando os agentesnão são ainda capazes de disciplinar suascondutas pautando-se no equilíbrio entreinteresses público e privado2.

Muito embora a esfera econômica sejaum espaço importante, ela somente pode sercolocada com êxito na prática caso outrasdimensões como o embasamento legal domodelo, a estrutura institucional das agên-cias, a ampla participação da sociedade ci-vil organizada, entre outras, sejam levados

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em consideração (Peci e Bianor, 2000, p. 2).Assim, a noção da intervenção estatal tam-bém no âmbito das relações sociais não foicolocada no seu devido destaque, mormen-te em se tratando do patamar de relevânciadado na própria Constituição aos chama-dos “direitos sociais”, entre os quais a edu-cação, saúde e previdência (Constituição,art. 6o, caput).

Todos esses aspectos revelam que a in-dependência decisória e financeira é fun-damental para as agências regulatórias. Nocaso do Brasil, elas foram legalmente esta-belecidas na forma de autarquias especiaise com a previsão de que receitas compostas,basicamente, por recursos próprios. Nessedesenho institucional, as agências ficamdispensadas de subordinação hierárquica,embora sejam vinculadas aos ministériossetoriais, e ganham agilidade operacional.A independência ficou mais asseguradapelo fato de que o regime regulatório foi es-tabelecido sob forma de leis, tornando difí-cil a sua alteração sem que um debate ocor-ra no Congresso (Pires e Goldstein, 2001).

Além de contar com fontes de recursospróprios para reduzir sua dependência deverbas orçamentárias politicamente dirigi-das, Villela e Maciel (1999, p. 17) listam maisalgumas condições para que as agênciastenham de fato independência. São elas:

(a) que os reguladores tenham manda-tos, para que sejam extintas ou limitadas aspressões políticas;

(b) que os reguladores sirvam por pra-zos fixos;

(c) que os reguladores tenham competên-cia profissional ou outras qualificações eque sua nomeação envolva os poderes Exe-cutivo e Legislativo;

(d) que os mandatos dos reguladores nãosejam coincidentes, para que se reduza arelação com um governo em particular;

(e) que as agências sejam isentas das es-calas salariais dos servidores públicos, atra-indo profissionais mais qualificados;

(f) que se estipulem padrões elevados detransparência nos atos regulatórios.

Mesmo com independência em relaçãoa pressões políticas, não há garantias de queos reguladores atuarão com isenção em pro-cessos envolvendo empresas reguladas econsumidores. Há os que defendem que issoocorre porque as empresas reguladas po-dem capturar o regulador e levá-lo a agir emseu interesse (Teoria da Captura)3. A resul-tante do desenvolvimento e integração des-tes dois conceitos – grupos de interesse erent-seeking – foi que o Estado deixou de servisto, no papel de agente regulador, comouma entidade cuja atuação econômica esta-va fundamentalmente voltada para o bempúblico.

Segundo Salgado (2003, p. 6), gruposcompactos e bem organizados tendem a sebeneficiar mais da regulação que gruposamplos e difusos. Os grupos de produtoresgeralmente são mais bem organizados queo conjunto dos consumidores e por isso sebeneficiam mais da regulação. Ainda segun-do a mesma autora, a Teoria da Captura dáênfase aos resultados do processo e não aosprocedimentos. A maneira pela qual as fir-mas capturam os reguladores não é levadaem consideração.

Salgado (2003, p. 7) também discute aTeoria da Escolha Pública, segundo a qualé um erro supor que as políticas públicassão conduzidas por motivações alheias aointeresse pessoal dos envolvidos – políticose burocratas – e em nome de alguma entida-de abstrata chamada de “interesse público”.Para o caso em discussão, isso significa queos reguladores podem agir em interesse pró-prio.

Por outro lado, os agentes reguladoresnão são eleitos, o que torna a discussão daindependência particularmente relevanterelativamente ao debate democrático. Nes-se sentido, os formatos de regulação prati-cados no Brasil e em outros países europeustêm apresentado falhas, especialmente noque tange à insuficiente responsabilizaçãopolítica das agências regulatórias indepen-dentes (Melo, 2001, p. 55). Assim, a questãodo controle democrático dessas agências

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passou a ocupar papel relevante na agendade debates no âmbito do governo e do Con-gresso Nacional, uma vez que as relaçõesentre representação e responsabilização sãoessenciais para o desenlace da temática daindependência de agências.

Para manter o equilíbrio entre a autono-mia dos reguladores e sua responsabiliza-ção, Villela e Maciel (1999, p. 17) propõemas seguintes medidas:

(a) demitir o regulador em caso de irre-gularidade comprovada;

(b) estipular claramente os deveres na lei;(c) estipular elevados padrões de trans-

parência nos procedimentos regulatórios;(d) estipular exigências rigorosas na fei-

tura de relatórios, inclusive um relatórioanual;

(e) estipular escrutínio legislativo daspropostas orçamentárias da agência.

Embora não eliminem o risco de que osreguladores ajam em interesse próprio ousejam capturados pelas empresas regulado-ras, os itens apontados por Villela e Maciel(1999) são importantes para reduzi-lo. Porisso seria interesse observá-los em uma le-gislação.

3. PEC no 81, de 2003

Cada agência foi criada por uma lei es-pecífica, não havendo, até o momento, umaLei Geral das agências reguladoras. O mo-delo de agências se ressente de um arcabou-ço jurídico-institucional, dispondo somen-te de normas infraconstitucionais avulsas etópicas. A regulação da atividade econômi-ca é mencionada em apenas três dispositi-vos constitucionais: (i) no inciso XI do art.21, relativo às telecomunicações; (ii) no in-ciso III, § 2o, do art. 177, que trata do mono-pólio do petróleo; e (iii) no art. 174, que atri-bui ao Estado o papel de regulador da ativi-dade econômica.

A PEC no 81, de 2003, de autoria do Se-nador Tasso Jereissati, não contraria quais-quer dos citados dispositivos. Ao contrário,tende a ocupar uma lacuna no ordenamen-

to jurídico-constitucional referente à regu-lação da atividade econômica, amoldando-se perfeitamente ao atual sistema constitu-cional. A proposta pretende, em síntese,constitucionalizar os princípios da ativida-de reguladora, muitos dos quais já presen-tes nas diversas leis que criaram as agênci-as reguladoras. O espírito que norteia a PECno 81, de 2003, é o da “blindagem” da inde-pendência das agências reguladoras, tor-nando inconstitucionais quaisquer tentati-vas de reduzi-la.

A necessidade de uma Lei Geral dasAgências Reguladoras continua a existir e,aliás, é prevista na própria PEC no 81, de2003. Esta terá por finalidade estabelecersuas regras de composição e funcionamen-to, respeitando e concretizando os princí-pios constitucionais.

Entre os princípios que estão propostosna atividade regulatória (incisos I a XIV doart. 1o da PEC no 81, de 2003), há a garantiade autonomia para as agências. O inciso VIIIgarante a independência funcional, decisó-ria, administrativa e financeira das agên-cias. O inciso XI garante a investidura a ter-mo dos dirigentes das agências e a sua esta-bilidade durante os mandatos. Há tambéma exigência de capacidade técnica e reputa-ção ilibada para os dirigentes das agênciasreguladoras (inciso XII).

Entretanto, com base nos argumentosdefendidos no arcabouço das teorias da cap-tura e da escolha pública, expostas na se-ção anterior, uma excessiva independênciadas agências, garantida até mesmo no textoconstitucional, poderia ser considerada ne-gativa. Caso as agências atuem em interes-se próprio ou sejam capturadas pelas em-presas reguladas, o Poder Executivo podeficar sem instrumentos para corrigir essasdistorções. O mesmo raciocínio vale para ocaso em que as agências reguladoras não sealinharem aos objetivos de políticas públi-cas definidos pelos ministérios setoriais.Esses dois casos podem ser agravados casoa estabilidade dos dirigentes das agênciasseja incontestável.

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Nesse sentido, alguns dos princípiosapresentados para a atividade regulatória(incisos I a XIV do art. 1o da PEC no 81, de2003) reduzem o risco de que uma excessi-va independência ocorra. O inciso I, porexemplo, estabelece que a proteção do inte-resse público deve ser observada. O incisoIV, por sua vez, determina que deva haver aprestação de contas. Há ainda a determina-ção de que a regulação garanta a universa-lização, a continuidade e a qualidade dosserviços (inciso VI). De acordo com o incisoVII, a regulação deve respeitar os preceitosde imparcialidade, transparência e publici-dade. A forma de decisão nas agências tam-bém é tratada nos incisos IX e X, devendoser colegiada em agências reguladoras emonocrática, mas recorrível a colegiado, emagências executivas, o que lhe dá maiortransparência e publicidade. Assim sendo,legislação infraconstitucional que tratar dotema poderia “limitar” a independência dasagências para que eventuais problemas deinfluência excessiva de grupos de interessesejam evitados4.

Também se nota no texto da PEC no 81,de 2003, a preocupação em inserir disposi-tivos que preservem a estabilidade do ambi-ente regulatório. Entre eles, pode-se citar oinciso V do art. 1 o, que prevê a mínima inter-venção das agências na atividade empresa-rial, e os incisos XIII e XIV, que estabelecem,respectivamente, a estabilidade e a previsi-bilidade das regras e a vinculação da ativi-dade reguladora aos regulamentos, contra-tos e pactos.

Entre os princípios que regerão a ativi-dade regulatória, caso a PEC no 81, de 2003,seja aprovada, estão alguns de caráter maisgeral, como a defesa do consumidor e daconcorrência (inciso II) e a promoção da li-vre iniciativa (inciso III). No entanto, é ne-cessário chamar a atenção para o fato deque, no caso da defesa da concorrência, háum tratamento diferenciado para parte dossetores regulados.

As agências reguladoras instauram osprocessos e instruem atos de concentração

e processos relativos a condutas potencial-mente anticompetitivas e os encaminhampara o Conselho Administrativo de DefesaEconômica (CADE) julgar. Para os demaissetores da economia, a Secretaria de DireitoEconômico do Ministério da Justiça (SDE) ea Secretaria Especial de AcompanhamentoEconômico do Ministério da Fazenda(SEAE) são responsáveis pela aplicação dalegislação de defesa da concorrência, incum-bindo-lhes a análise dos atos de concentra-ção e a instauração e instrução de averigua-ções preliminares e processos administrati-vos para apuração de infrações contra a or-dem econômica, sendo o CADE a instânciajulgadora.

No tocante à inclusão de matéria diver-sa ao tema da regulação econômica no textoda PEC no 81, de 2003, há, como foi discuti-do anteriormente, alguns dispositivos deordem geral (incisos II e III do art. 1o), que jáconstam nos incisos II, IV e V do art. 170 daConstituição Federal, que estabelece os prin-cípios da ordem econômica. Eles dizem res-peito à defesa do consumidor e da concor-rência e à promoção da livre iniciativa.

Mesmo levando-se em conta as vanta-gens proporcionadas pelos dispositivos,bem como seu conteúdo de caráter genérico,o art. 174-A proposto pela PEC acaba fazen-do parte dos Princípios Gerais da Ativida-de Econômica (Capítulo I, Título VII da Cons-tituição), o que nos remete novamente à ques-tão da generalização da temática das agên-cias regulatórias em torno dos aspectos eco-nômicos, ou melhor dizendo, em relação à cla-reza do desenho institucional adotado.

Isso, se verificado de maneira rigorosa,poderia implicar incoerência com as demaisatividades exercidas por agências cujas fun-ções fossem, além da fiscalização e norma-tização, a aplicação e a coordenação de po-líticas públicas referentes à Ordem Socialda Constituição, contrariando a intenção dolegislador. Dessa forma, os princípios nãoseriam estendidos a todas as agências.

É o caso, por exemplo, da ANA, da ANSe da Anvisa, que exercem, na visão de

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Salgado (2003, p. 34), funções típicas de umaagência executiva, que, “ao mesmo tempoque fiscaliza, em perspectiva regulatória, ofuncionamento dos mercados que compõemsua área de atuação, executa diretrizes degoverno”. Essa diferenciação é interessan-te, pois demarca o que seria uma típica agên-cia reguladora, que cuida de áreas tipica-mente do universo econômico e que deveaplicar a lei na forma estabelecida pelo Po-der Legislativo, como é o caso da Aneel,ANP e Anatel.

Portanto, dois raciocínios podem ser evi-denciados:

a) o efeito da constitucionalização dosprincípios busca justamente descaracterizaressa classificação técnica entre as agências,tipificando-as todas como regulatórias, commais ou menos viés de atuação em merca-dos (mesmo a ANA e a Anvisa também cui-dam da regulação de preços de serviços e deprodutos);

b) os princípios da regulação elencadosna PEC não se aplicariam à atuação dasagências executivas, ou de governo, no cam-po social.

4. Projeto de Lei no 3.337, de 2004

Em março de 2003, foi criado, por deter-minação do Presidente da República, umGrupo Interministerial de Trabalho para (i)analisar o arranjo institucional regulatóriono âmbito federal; (ii) avaliar o papel dasagências reguladoras; e (iii) propor medi-das corretivas ao modelo adotado.

A partir das propostas do referido Gru-po de Trabalho, o Poder Executivo iniciou,em setembro de 2003, consulta pública acer-ca de dois anteprojetos de lei referentes aotema. O primeiro deles dispunha sobre agestão, organização, controle social e com-petências das agências reguladoras fede-rais, abrangendo todas as “autarquias es-peciais”, caracterizadas como tal em suasleis instituidoras – Agência Nacional deEnergia Elétrica (Aneel), Agência Nacionalde Telecomunicações (Anatel), Agência

Nacional do Petróleo (ANP), Agência Nacio-nal de Vigilância Sanitária (Anvisa), Agên-cia Nacional de Saúde Suplementar (ANS),Agência Nacional de Águas (ANA), Agên-cia Nacional de Transportes Aquaviários(ANTAQ), Agência Nacional de Transpor-tes Terrestres (ANTT) e Agência Nacionaldo Cinema (Ancine). O segundo anteproje-to tratava de alterações de dispositivos dasleis de regência de cada uma das agênciasde infra-estrutura: Aneel, Anatel, ANP,ANTT e ANTAQ.

Os dois anteprojetos de lei foram conso-lidados no Projeto de Lei (PL) no 3.337, de2004, enviado pelo Poder Executivo ao Con-gresso Nacional em abril do mesmo ano.Essa proposição legislativa traz várias alte-rações de vulto em relação à legislação vi-gente. Destacam-se as seguintes mudanças:

I – a transferência do poder de concessãodas agências reguladoras para o Poder Exe-cutivo, ou seja, para os Ministérios setoriais;

II – a alteração e a uniformização dosmandatos dos diretores das agências (tantoos mandatos como as formas de escolha dosdirigentes passam a ser os mesmos para to-das as agências);

III – a ampliação das hipóteses de atosdas agências reguladoras nos quais caberiasubmissão à consulta pública antes de suaadoção;

IV – assegura às associações de prote-ção ao consumidor, à ordem econômica ouà livre concorrência, o direito de indicar atétrês especialistas no objeto da consulta pú-blica para acompanhar o processo e lhe as-sessorar, sendo esta a quarta mudança;

V – a introdução do Contrato de Gestãoentre as agências e os ministérios setoriais;

VI – introdução da obrigatoriedade dafigura do Ouvidor, que passa a existir emtodas as agências, com a ampliação e o for-talecimento do seu poder, sendo enfatizadoo seu papel de “representante dos usuá-rios”;

VII – a Secretaria Especial de Acompa-nhamento Econômico (SEAE) do Ministérioda Fazenda e a Secretaria de Direito Econô-

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mico (SDE) do Ministério da Justiça passama instruir atos de concentração e processosrelativos a condutas anticompetitivas;

VIII – são estabelecidas regras para a in-teração entre as agências reguladoras fede-rais e os órgãos de regulação estaduais emunicipais.

Constituída uma Comissão Especial naCâmara dos Deputados, onde a proposiçãoainda tramita, com o objetivo de apreciar oProjeto do Poder Executivo, foi designadoRelator da matéria o Deputado LeonardoPicciani (PMDB/RJ), cujo parecer propôs aapresentação de Substitutivo, o qual nãoapresenta grandes diferenças com o Projetode Lei do Executivo.

Como metodologia de análise adotar-se-á como base o texto do Substitutivo, medi-ante o qual serão destacados os pontos emque houver diferenças importantes em rela-ção ao projeto apresentado pelo governo.Será examinado o mérito das nove altera-ções mais importantes ali contidas5.

Antes, porém, de iniciar os comentáriossobre as modificações acima descritas, é in-teressante notar um detalhe em ambas asminutas. A técnica de redação utilizada noart. 1o fixa quais são as agências regulado-ras, não por meio de um conceito, o qualpoderia ser aplicado a qualquer outra agên-cia que viesse a ser criada. Ao contrário, otexto é enunciativo, pontuando uma a umaas agências hoje constituídas, sem fazerqualquer ressalva a futuras agências.

Tal aspecto pode ser revelador, na medi-da em que pode denotar ou intenção do go-verno em impedir o prosseguimento do mo-delo institucional adotado ou uma falha depercepção. Desse modo, entende-se maisconveniente e razoável que a própria lei, poruma exigência de clareza e segurança, deve,muitas vezes, formular definições explíci-tas e estipulativas para sua correta interpre-tação e aplicação.

4.1. Transferência de atribuições

De acordo com a nova regra proposta noSubstitutivo, a concessão e a expedição de

normas para outorgas de exploração de ser-viços serão atribuições dos Ministérios se-toriais. Estes também editarão os atos deoutorga e de extinção de direito de explora-ção e celebração de contratos de concessãode serviços. Os Ministérios setoriais pode-rão delegar essa tarefa para as agências re-guladoras. Pela regra atual, essa é uma atri-buição das agências.

Segundo a exposição de motivos, umadas principais distorções do papel das agên-cias detectadas foi o seu exercício de com-petências de governo, como a absorção daatividade de formulação de políticas públi-cas e do poder de outorgar e conceder servi-ços públicos. Nesse sentido fica claro que,com a nova regra, há o objetivo de explicitara divisão de trabalho entre as agências re-guladoras e os Ministérios setoriais. Aque-las apenas implementariam as políticaspúblicas definidas pela lei e pelo Poder Exe-cutivo.

A nova regra não representa uma ruptu-ra com o modelo de Estado adotado no Bra-sil nos anos 90, mas estabelece importantesmodificações. Volta a ser o Poder Executivoo ente que formula políticas públicas e ou-torga concessões para que os serviços deutilidade pública sejam prestados por em-presas privadas, tarefas que ficavam a car-go das agências reguladoras. Isso vai aoencontro de críticas feitas à independênciadas agências reguladoras: (i) a coerência depolíticas no conjunto do governo pode serreduzida, dado que elas são “desenhadas”pelo Poder Executivo e implementadas porum órgão independente deste; (ii) a agênciapode se tornar tão forte que venha a se com-portar como um poder quase independentedentro do Estado; (iii) as agências replicari-am um “Estado dentro do Estado”, com fun-ções legislativas, executivas e judiciárias.

Devem-se questionar, então, quais são osriscos de uma nova regra que reduz a inde-pendência e o escopo de atuação das agên-cias reguladoras. Relembrando Salgado(2003), essa iniciativa inspira-se no concei-to de agências de atuação executiva, na me-

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dida em que coloca a autarquia na condi-ção de executora de políticas traçadas me-diante diretrizes ministeriais. Mais adian-te, a introdução da figura do contrato degestão fortalecerá essa noção.

4.1.1. Uso de critérios subjetivospolíticos de outorga

O critério de escolha do concessionáriodeve ser técnico, reduzindo-se ao máximo achance de outorga a empresas menos efici-entes. A justificativa para essa proposiçãoreside no fato de que o consumidor pode serprejudicado pela escolha do prestador deserviço. Se isso ocorrer, o objetivo mor daregulação econômica – encontrar o pontoótimo em que consumidores são protegidose em que as firmas têm um lucro razoável –será contrariado. É necessário manter me-canismos impessoais como o instrumentoessencial de políticas públicas quando setrata da concessão de serviços públicos.

O Substitutivo apresentado ao Projeto deLei no 3.337, de 2004, não altera o princípiode conceder a prestação de serviços às fir-mas que ofereçam menor tarifa, maior ofertapela outorga, melhor qualidade dos servi-ços e melhor atendimento da demanda. Issomitiga o risco apontado acima, mas não oelimina. Isso ocorre porque o texto determi-na que o Poder Executivo (o Poder Conce-dente) estabelecerá as diretrizes sob as quaiso processo de licitação será levado a cabo. Énecessário ressaltar ainda que as agênciasreguladoras somente disciplinarão e opera-cionalizarão as licitações quando essa prer-rogativa lhes for concedida pelo Poder Exe-cutivo.

Nada garante que as agências serão isen-tas ao fazer as outorgas. Pode ser que elas,uma vez capturadas pelos interesses das fir-mas reguladas, usem critérios subjetivos epolíticos. A “solução” para o problema po-deria ser a mudança do texto, introduzindoum mecanismo que garanta que as agênciasassessorarão os Ministérios setoriais nosprocessos de licitação. Isso seria útil tam-bém porque elas acumularam conhecimen-

to acerca desses processos e do funciona-mento dos mercados objeto de regulaçãodesde a sua criação.

4.1.2. Perda de estabilidade regulatória

Poderá ocorrer um trade-off: pode-se per-der coerência das políticas públicas com amanutenção da atual independência dasagências, mas ganha-se compromisso(commitment) com a manutenção de uma es-tabilidade mínima para a política regulató-ria. Esta é fundamental para que as empre-sas reguladas possam fazer seus investi-mentos. O distanciamento das agências emrelação ao Executivo, que, segundo os críti-cos de sua independência, pode levar à ne-gligência com o Executivo ou o Legislativo,é uma garantia de estabilidade do aparatoregulatório, evitando uma percepção de quepode haver expropriação regulatória (mu-dança súbita das regras) por parte do PoderExecutivo. O objetivo da independência, peçafundamental do modelo de agências introdu-zido na década de 90, era garantir às empre-sas que não haveria expropriação regulató-ria, o que estimularia o investimento.

Note-se que, nos argumentos favoráveisà independência das agências e à manuten-ção de suas prerrogativas, existem hipóte-ses implícitas de que a estabilidade das re-gras é fundamental para o investimento ede que as agências reguladoras são as suasúnicas guardiãs. A estabilidade é importan-te, mas também deve ser considerado que asituação macroeconômica do País é de sumaimportância para que investimentos sejamlevados a cabo. É difícil imaginar que em-presas façam investimentos em cenários re-cessivos, mesmo com todas as garantias deque haverá estabilidade regulatória. Deve-se também considerar que não há certeza deque o Poder Executivo desrespeitará as re-gras estabelecidas e praticará a expropria-ção regulatória.

4.2. Mandatos

Outra mudança contida no Substitutivodiz respeito aos mandatos dos diretores das

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agências reguladoras. Atualmente não háuma regra única para todas elas. Para aAnatel, os mandatos são de cinco anos, semrecondução. Nos casos da Anvisa e da ANS,os mandatos são de três anos, permitidauma única recondução por igual período.Para a ANP, a ANA, a ANTT e a ANTAQ,os mandatos são de quatro anos, admitidauma recondução por igual período. Os man-datos na Aneel e na Ancine são de quatroanos, vedada a recondução.

De acordo com o texto do Substitutivo,os mandatos dos diretores de todas as agên-cias passarão a ser de quatro anos, vedadaa recondução. O texto do Projeto de Lei no

3.337, de 2004, admitia uma única recondu-ção por igual período. O dispositivo aindadetermina que os mandatos se encerrementre os dias 1o de janeiro e 30 de junho dosegundo ano de mandato do Presidente daRepública.

A regra proposta tem o mérito de padro-nizar os mandatos dos diretores das agên-cias. No entanto, ela pode ser consideradaparcialmente nociva à sua independência,principalmente se for permitida a recondu-ção dos diretores ao cargo para um segun-do mandato. Isso se deve ao fato de que osdiretores tenderão a não contrariar o PoderExecutivo, que terá a prerrogativa de recon-duzi-los ao cargo. Em tese, apenas no se-gundo mandato os diretores agiriam comindependência em relação ao Executivo.Note-se que o Substitutivo veda a possibili-dade de recondução dos dirigentes das agên-cias. Se seu texto prevalecer, as críticas deperda de independência em um primeiromandato estarão afastadas. No entanto,como não se sabe qual será a redação defi-nitiva, seria recomendável evidenciar as crí-ticas ao texto do Projeto de Lei.

É necessário observar que a nova regratorna mais difícil a demissão dos dirigentesdas agências, garantindo-lhes estabilidadepor quatro anos e limitando a perda dosmandatos somente aos casos de renúncia,condenação judicial transitada em julgadoou processo administrativo disciplinar. Esse

dispositivo não anula a redução da inde-pendência dos dirigentes se supusermosque eles desejarão a recondução a um se-gundo mandato.

A análise acima trata da independênciasomente em relação ao Poder Executivo. Noentanto, é desejável que as agências tambémtenham independência em relação às em-presas reguladas. Nesse sentido, cabe ob-servar que a redução da independência emrelação ao governo pode ser um contrapesoà possibilidade de captura das agências porparte das firmas reguladas. Haveria, pois,maior equilíbrio, já que os dirigentes dasagências teriam que prestar contas ao Exe-cutivo, as firmas reguladas teriam que in-fluenciar não somente a agência, mas tam-bém os Ministérios setoriais.

A nova regra também estabelece a sin-cronização dos mandatos dos dirigentes dasagências ao determinar que eles se encer-rem entre os dias 1o de janeiro e 30 de junhodo segundo ano de mandato do Presidenteda República. Esse dispositivo se mostrainoportuno ao levar à perda de parte damemória da hierarquia superior do órgão, oque comprometeria uma mínima estabilida-de das políticas regulatórias e a sua quali-dade. Seria desejável manter na diretoriapessoas que conhecem bem os problemasque tiveram origem no período anterior, eque ainda são objeto de análise pelas agên-cias.

4.3. Consulta pública

Uma terceira mudança diz respeito àconsulta pública, à qual são submetidos, deacordo com a regra atual, apenas os atosnormativos. De acordo com o texto do Subs-titutivo, serão objeto de consulta pública,previamente à tomada de decisão pelos Con-selhos Diretores das agências, os pedidosde revisão de tarifas e as minutas e propos-tas de alterações de atos normativos de inte-resse geral dos agentes econômicos, de con-sumidores ou usuários dos serviços presta-dos6. O período de consulta pública iniciar-se-á sete dias após a publicação de despa-

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cho motivado no Diário Oficial e terá a du-ração mínima de trinta dias.

O texto amplia os casos em que atos dasagências reguladoras devem ser submetidosà consulta pública, o que aumenta a suatransparência. Nesse sentido, a medida con-tribui para que a regulação seja efetiva eencontre o equilíbrio entre a proteção aosconsumidores e a garantia de uma taxa deretorno adequada às empresas reguladas.

O ganho de transparência, no entanto,não ocorre sem custos. O dispositivo pode-ria trazer morosidade às decisões gerenci-ais das agências. Firmas, consumidores e/ou outras instituições que se sentirem pre-judicados por alguma ação das agênciaspodem requerer a sua submissão à consultapara adiar decisões.

A mudança sugerida pelo Relator noSubstitutivo parece resolver o problema namedida em que, por um lado, restringe asmatérias que serão objeto de consulta públi-ca e, por outro, a estende para os pedidos derevisão tarifária. Este último ponto é extre-mamente importante para garantir a trans-parência das agências a respeito de um as-sunto que interessa diretamente aos consu-midores: os valores das tarifas. Ao tornarpúblico o processo de alteração dos preçoscobrados pelos serviços, diminui-se o riscode que o regulador seja benevolente com oregulado.

O prazo mínimo de trinta dias pode serconsiderado muito longo para a duração daconsulta pública, podendo comprometer aagilidade das agências no processo de to-mada de decisões. Essa observação é válidapara o caso da aprovação do texto originaldo Projeto de Lei. Caso seja considerado otexto do Substitutivo, que prevê a consultapública apenas para revisões tarifárias epara alterações de atos normativos, o prazonão é demasiado longo. Trata-se de ques-tões que devem ser analisadas minuciosa-mente pela sociedade, dado que seus inte-resses serão afetados. De todo modo, o pre-ço a pagar pela maior transparência é a maiormorosidade das decisões.

4.4. Contratação de especialistas

O PL no 3.337, de 2004, determina aindaa indicação de especialistas no objeto daconsulta pública, sendo esta a quarta alte-ração importante, já que não há, na legisla-ção em vigor, regra sobre esse tema. Segun-do o texto do Substitutivo, é assegurado aAssociações constituídas há pelo menos trêsanos, nos termos da lei civil, que incluamem suas finalidades a proteção ao consumi-dor, à ordem econômica, à livre concorrên-cia, à defesa do meio ambiente ou à defesados recursos hídricos, cadastradas previa-mente na agência reguladora, o direito dereceber o apoio técnico de até três especia-listas com notórios conhecimentos da maté-ria objeto da consulta pública, que acompa-nharão o processo e darão assessoramentoqualificado às entidades e seus associados.

De acordo com o Projeto de Lei, é assegu-rado às associações indicar os três especia-listas às agências para acompanhar o pro-cesso de consulta pública, sendo que asagências devem arcar com as despesas cor-rentes, observadas as disponibilidades or-çamentárias, os critérios, limites e requisi-tos fixados em regulamento e o disposto noart. 25, inciso II, e no art. 26 da Lei no 8.666,de 1993.

Há autores que afirmam que a assesso-ria de especialistas não deveria ser custea-da pelas agências, dado o difícil quadro fis-cal do Estado brasileiro. No entanto, é pre-ciso levar em consideração que, caso o fi-nanciamento fique a cargo das próprias as-sociações, somente aquelas com mais recur-sos poderão acompanhar os processos. Ha-verá uma desigualdade no tratamento dasassociações e uma menor transparência.

O Substitutivo corrige parcialmente esseproblema. Ele não exime as agências da res-ponsabilidade financeira. Segundo o seutexto, cabe às agências contratar o apoio téc-nico depois de ouvir as associações. No en-tanto, o Substitutivo determina ainda que acontratação deva ser feita preferencialmen-te junto a universidades, o que poderia re-

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duzir o seu custo. Segundo o Voto do Rela-tor, a sugestão de que a contratação seja fei-ta junto a universidades tem ainda o méritode evitar questionamentos éticos e legais quepoderiam ser gerados pela contratação deespecialistas por indicação de terceiros – asassociações. Assim, uma alteração possívelpoderia ser a de que a contratação de espe-cialistas ligados a empresas ou outras insti-tuições somente deveria ser permitida quan-do as universidades ou qualquer institui-ção pública de ciência e tecnologia não pos-suíssem pessoal para lidar com o objeto daconsulta pública.

A participação das universidades e dasinstituições públicas de ciência e tecnolo-gia contribuiria ainda para evitar que enti-dades privadas patrocinadas direta ou in-diretamente por empresas reguladas passas-sem a ter representantes permanentes comacesso pleno aos processos conduzidospelas agências, o que poderia gerar trans-torno à manipulação dos autos, podendo,inclusive, levar ao vazamento de infor-mações confidenciais das empresas e dosprocessos.

4.5. Contrato de gestão e desempenho

Segundo a proposição, a Agência Regu-ladora deverá firmá-lo com o Ministério aque estiver vinculada, nos termos do § 8 o doart. 37 da Constituição Federal, negociado ecelebrado entre a Diretoria Colegiada ouConselho Diretor e o titular do respectivoMinistério.

O próprio Projeto de Lei é claro quantoao objetivo da adoção do contrato de gestão:aperfeiçoar as relações de cooperação daagência reguladora com o poder público, emparticular no cumprimento de políticas pú-blicas definidas em lei. Ao determinar quehaja a compatibilização entre as ações dasagências e as políticas públicas definidasem lei, determina-se um padrão mais objeti-vo para a avaliação do desempenho dasagências a ser definido em audiências noCongresso. As agências não terão de adap-tar suas ações a políticas públicas e a pro-

gramas governamentais que não dependamde alterações da Lei e dos contratos de con-cessão.

O Substitutivo também reforça a neces-sidade de aderência do contrato de gestão àlei ao determinar que ele seja firmado anu-almente, no prazo de noventa dias após apublicação da lei orçamentária anual (LOA).Ao associar o contrato à LOA, fica garanti-da a implementação do conjunto de políti-cas setoriais aprovadas pelo CongressoNacional. O desempenho da agência seráavaliado tendo como base um plano de tra-balho compatível com o disposto na lei or-çamentária.

Essas garantias são necessárias devidoà natureza de longo prazo e de “custos afun-dados” (sunk costs) dos investimentos emserviços de infra-estrutura, bem como a umaadaptação lenta às novas políticas, de talmodo que se evitem expropriações regula-tórias dos investidores. Nesse sentido, é de-sejável que a agência, mesmo com a entradade um governo com novas diretrizes, conti-nue usando, por algum tempo, pelo menosparte das diretrizes estabelecidas no progra-ma de governo anterior.

Assim, para prevenir que as mudançasde governo impliquem mudanças bruscasnas ações das agências, os contratos de ges-tão deveriam ter como base a aderência dasatividades das agências a uma diretriz es-tável. Em vez de avaliar se as agências estãoagindo de acordo com políticas públicas de-finidas em lei, dever-se-ia avaliar se elasagem de acordo com as próprias leis que ascriaram.

Contudo, mesmo a aderência à lei nãosuprimiria os problemas que poderiam co-locar em risco a qualidade da regulação. Emprimeiro lugar, é difícil traduzir comandoslegais em metas objetivas, uma vez que nelasreside a base para empreender avaliações.

Há também o problema de assimetria deinformações entre o Ministério setorial e oregulador. Aquele pode não saber quais asinformações que este possuía quando tomouas suas decisões. Quando o Ministério tiver

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acesso às informações, pode ser que estas játenham mudado em função da própria açãodo regulador.

Além do mais, podem ocorrer choquesexógenos entre a decisão do regulador, ba-seada em informações ex ante, e a avaliaçãodo Ministério, feita ex post. Esses choquesdevem ser levados em conta quando as agên-cias forem avaliadas, o que torna difícil apre-ciar suas decisões. Por conseguinte, a avali-ação envolve elementos de subjetividade, oque pode transformar esse processo em uminstrumento indesejável de influência polí-tica do Executivo.

Ainda assim, fica evidente que o PoderExecutivo julga que as diretrizes das políti-cas setoriais devam ser definidas pelo go-verno eleito. A legislação atual não esclare-ce se a definição das políticas setoriais foimesmo transferida para as agências regula-doras. Os textos legais que tratam do assun-to (a Lei Geral de Telecomunicações, porexemplo) se referem às obrigações do “po-der público”, sem especificar se este é a agên-cia ou o Ministério. Nesse sentido, o objeti-vo do Projeto de Lei é muito claro. A Exposi-ção de Motivos que o acompanha afirma queseu propósito é estabelecer a fronteira entreformulação de política setorial e regulaçãoeconômica, sendo que aquela prerrogativaficará com os Ministérios. O contrato seriauma forma de garantir que as agências im-plementem as políticas formuladas peloPoder Executivo.

Ademais, não há garantias de que os di-rigentes das agências não agirão de acordocom seus próprios interesses, contrariandonão somente as políticas públicas definidaspelo Poder Executivo, mas também os obje-tivos da regulação econômica (preços e mar-gens de lucro razoáveis). Por isso é útil teralgum mecanismo que os faça prestar con-tas de suas ações. O texto do PL no 3.337, de2004, é bastante claro quanto a esse objetivoquando dispõe que o contrato de gestão de-verá aperfeiçoar o acompanhamento da ges-tão das agências reguladoras, promovendomaior transparência e controle social.

O Substitutivo garante maior controlesocial sobre as agências e sua maior trans-parência, mas também traz algumas altera-ções que reduzem o risco de ingerência doPoder Executivo. Em primeiro lugar, o Subs-titutivo delimita melhor o escopo do contra-to de gestão (§§ 1o e 2o do art. 13), destacan-do que as metas de desempenho adminis-trativo e operacional dizem respeito apenasaos aspectos organizacionais da agência eàs ações relacionadas à promoção: (i) daqualidade dos serviços prestados pela agên-cia; (ii) do fomento à pesquisa no setor regu-lado; e (iii) da cooperação com os órgãos dedefesa da concorrência. Ademais, as medi-das a serem adotadas em caso de descum-primento injustificado das metas e obriga-ções pactuadas no contrato de gestão nãointerferirão na autonomia das agências, emseus aspectos regulatórios e nem terão cará-ter disciplinar.

Foi também adotada no Substitutivo umaimportante modificação na Seção I – DaObrigação de Apresentar Relatório Anualde Atividades – do Projeto de Lei. O Relatoratribuiu ao Poder Legislativo um controlemais efetivo sobre as atividades das agên-cias, incluindo um dispositivo (art. 10) se-gundo o qual o controle externo das agên-cias reguladoras será exercido pelo Congres-so Nacional, com auxílio do Tribunal deContas da União (TCU). Esse controle seráespecialmente usado para verificar a com-patibilidade das ações adotadas pelas agên-cias com as políticas definidas para os seto-res regulados.

A necessidade de um maior controle so-cial sobre as agências é defendida por al-guns autores, mesmo que implique umapossibilidade de perda de autonomia regu-latória. Pode-se dizer que o Substitutivo temo mérito de preservar o controle social dasagências e aumentar a transparência de suasações – ao determinar que elas prestem con-tas também ao Congresso Nacional – e re-duzir o risco de que o Poder Executivo façaingerências no que concerne às atividadesde regulação das agências.

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Finalmente, como já se verificou, os con-tratos de gestão firmados entre as agênciase o governo são é uma maneira de aproxi-má-las do modelo de agência executora depolíticas públicas. Em última instância,pode-se afirmar que o estabelecimento docontrato de gestão qualifica as agências re-guladoras em agências executivas, ou seja,ao instituto criado pela Emenda Constitu-cional no 19, de 4 de junho de 1998. Agên-cias executivas não mais são que autarqui-as ou fundações pré-existentes, diplomadaspor intermédio de um Decreto do Poder Exe-cutivo, que celebrem contrato de gestão coma Administração Direta. No entanto, dife-rentemente da concepção dada originalmen-te ao contrato de gestão, a proposta do PL n o

3.337, de 2004, e Substitutivo, concebe esseinstrumento menos como metas de desem-penho e, como se observou, mais como ins-trumento de controle (social e político). A ANSe a Anvisa já possuem contratos de gestãofirmados do com o Ministério da Saúde, de-monstrando estarem inseridas no modelo quese pretende estender às demais agências7.

4.6. Ouvidorias

Uma sexta mudança importante é o for-talecimento institucional das Ouvidoriasnas agências reguladoras. A regra atual de-termina apenas que o Ouvidor seja nomea-do pelo Presidente da República para man-dato de dois anos, admitida uma recondu-ção, com acesso a todos os assuntos da agên-cia. De acordo com o Substitutivo, haverá,em cada Agência Reguladora, um Ouvidorque atuará junto ao Conselho Diretor semsubordinação hierárquica e exercerá suasatribuições, sem acumulação com outrasfunções, com mandato de quatro anos, ve-dada a recondução. O Ouvidor terá acessoa todos os processos da agência e contarácom o apoio administrativo de que necessi-tar, competindo-lhe produzir, semestralmen-te e quando julgar oportuno, relatórios sobrea atuação da agência. São atribuições do Ou-vidor zelar pela qualidade dos serviços pres-tados pela agência e acompanhar o processo

interno de apuração de denúncias e reclama-ções dos interessados contra a atuação delaou contra a atuação dos entes regulados.

O texto fortalece a posição do Ouvidordentro das agências e o seu papel de repre-sentante dos usuários. Em adição à regraatual, o Ouvidor contará com uma estrutu-ra administrativa, não terá subordinaçãohierárquica em relação às diretorias, teráacesso pleno aos processos das agências eatribuições específicas. A transparência dasagências e o controle social sobre elas serãobeneficiados com a medida.

Contra o fortalecimento do papel doOuvidor, pode-se argumentar que, sendo eleindicado pelo Poder Executivo, este pode-ria usá-lo para cercear as agências regula-doras. É duvidoso que isso ocorra, dado queo mesmo critério de escolha dos diretoresserá usado para escolher o Ouvidor. A in-fluência poderia ocorrer diretamente pormeio dos diretores nomeados pelo Executi-vo. Diante disso, pode-se dizer que a inde-pendência das agências não é afetada.

4.7. Defesa da concorrência

O PL no 3.337, de 2004, padroniza as re-gras para todas as agências quanto ao que-sito concorrência8. Os órgãos de defesa daconcorrência serão responsáveis pela apli-cação da legislação pertinente, incumbin-do-lhes a análise dos atos de concentraçãoe a instauração e instrução de averiguaçõespreliminares e processos administrativospara apuração de infrações contra a ordemeconômica. Para executar essa tarefa, os ór-gãos de defesa da concorrência poderão so-licitar às agências reguladoras pareceres téc-nicos para subsidiar a instrução e análisedos atos de concentração e processos admi-nistrativos. O CADE será a instância julga-dora desses processos.

Pode-se criticar a proposta do Projeto deLei com base no fato de que o processo dedefesa da concorrência no Brasil precisapercorrer um longo caminho (SDE e SEAE)até ser julgado pelo CADE, sendo, portanto,moroso. Argumenta-se também que a lenti-

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dão pode ser explicada pela estrutura defi-ciente dos órgãos que atuam na defesa daconcorrência. Por isso seria um erro transfe-rir os processos para esses órgãos. Seria me-lhor deixá-los com as agências, cabendo ojulgamento ao CADE. Caso contrário have-ria um custo burocrático desnecessário.

É necessário observar ainda que a SEAEe a SDE são órgãos de governo e não inde-pendentes como as agências reguladoras.Isso implica que a transferência da instru-ção dos processos pode torná-los menos in-dependentes de eventuais ingerências doPoder Executivo.

Algumas observações a respeito são ain-da pertinentes. Em primeiro lugar, é precisoreconhecer que a SDE e a SEAE têm maisexperiência que as agências reguladoras noque tange ao instrumental de análise dadefesa da concorrência, o que poderia con-trabalançar o maior custo burocrático e amenor independência mencionados acima.

É preciso lembrar também que as agên-cias não têm total independência e isençãono tocante à instrução de processos de con-corrência, dado que estão sujeitas à possibi-lidade de captura por parte das empresasreguladas. Nesse sentido, envolver os órgãosdo Poder Executivo no processo é uma me-dida positiva. É necessário também obser-var que a instrução dos processos pelas agên-cias traz o problema de dar aos setores regu-lados tratamento diferenciado daquele dadoaos setores que não são objeto de regulação.

Um aspecto positivo do Projeto de Lei é aintrodução da consulta pelas agências àSEAE acerca do eventual impacto negativode suas normas e regulamentos sobre a con-corrência. Apesar de constranger a ação daagência, a medida pode ser interessanteporque há uma série de normas e regula-mentos com forte interface com a área dedefesa da concorrência.

4.8. Colaboração federativa

Preenchendo uma lacuna da legislaçãoatual, o Projeto de Lei no 3.337, de 2004, pre-vê a interação das agências com os órgãos

de regulação estaduais e municipais. O tex-to determina que as agências reguladoraspromoverão a articulação de suas ativida-des com as das agências reguladoras ou ór-gãos de regulação dos Estados, do DistritoFederal e dos Municípios, nas respectivasáreas de competência, promovendo, sempreque possível e a seu critério, a descentrali-zação de suas atividades. Na execução dasatividades de regulação, controle e fiscali-zação objeto de delegação, o órgão regula-dor estadual, do Distrito Federal ou munici-pal que receber a delegação observará as per-tinentes normas legais e regulamentares fe-derais. Os atos de caráter normativo edita-dos pelo órgão regulador estadual ou mu-nicipal que receber a delegação deverão har-monizar-se com as normas expedidas pelaagência reguladora.

A medida é positiva porque as agênciasreguladoras estaduais e municipais – quejá são cerca de vinte em todo o Brasil – têmcapacidade técnica suficiente para execu-tar e fiscalizar o cumprimento de normasdefinidas pelas agências reguladoras fede-rais. No caso de um país com dimensõescontinentais e carente de recursos humanos,técnicos e financeiros como o Brasil, é dese-jável que haja a descentralização e a trans-ferência de responsabilidades para outrosentes da Federação. Com a regra atual, ten-tativas de descentralização poderiam sercontestadas judicialmente pelas empresasou outras instituições interessadas.

O texto do Substitutivo deixa claro quesomente as atividades de fiscalização po-dem ser delegadas. Essa medida é salutarporque, se Estados e Municípios adquiris-sem a capacidade de estabelecer seus pró-prios marcos regulatórios, poderiam surgirconflitos entre estes e o marco federal.

5. Conclusão

A figura mitológica de Ulisses é bastan-te utilizada como metáfora da escolha racio-nal de atores políticos em favor de arranjosinstitucionais que lhes tragam benefícios

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futuros. Tal como Ulisses, que se amarrouao mastro do navio para não ser seduzidopelo canto das sereias, governos racionaispodem escolher limitações ao exercício desua vontade, recorrendo à delegação pormeio de legislação que exige folgada maio-ria para ser alterada. Segundo Melo (2001,p. 63), “essas estratégias podem tomar a for-ma de transferência do poder decisório a umagente externo”. Nesse sentido, pode-se en-caixar o modelo de regulação por intermédiode agências reguladoras como arranjo insti-tucional mais eficiente e a moldura legal comolimitação auto-imposta pelo governo.

A adoção do modelo de regulação reali-zado por agências independentes é instru-mento de delegação recente no Brasil. Sen-do assim, é natural que ele apresente falhas,como a ausência de uma lei orgânica, porexemplo. Não há um tratamento homogê-neo para agências que regulam e fiscalizamserviços cuja importância para a sociedadeé difícil de diferenciar. Além disso, existemmuitos problemas acerca da responsabili-dade perante o consumidor/eleitor e osmecanismos decisórios que envolvem com-plexo aparato técnico.

Assim, a busca por um certo grau de de-legação torna-se um imperativo nas socie-dades modernas complexas e o problemada responsabilização passa a ser duplo: deresponsabilização dos políticos e governan-tes pelos cidadãos e de responsabilização dosburocratas em relação aos políticos eleitos.Existe, no entanto, uma relação dicotômicaentre esses elementos, na medida em que de-legação produz um déficit de responsabili-zação, um trade-off (Melo, 2001, p. 59). Daí aquestão da independência se transformar emelemento crucial na arena política.

Esse contexto torna fértil o terreno dasiniciativas legislativas, tanto do Poder Exe-cutivo, quanto do Legislativo, suscitandodebates importantes.

Observou-se que a PEC no 81, de 2003, épositiva ao introduzir princípios para a atu-ação das agências reguladoras. A análisedesses princípios, contidos nos incisos I a

XIV e no parágrafo único do art. 174-A, mos-tra que eles poderão fortalecer as garantiasde independência das agências e a transpa-rência das decisões por elas tomadas, in-clusive com a determinação da instituiçãode um mecanismo de controle externo. Hátambém a adoção de limites e parâmetrospara a atividade reguladora, o que tende atornar o ambiente regulatório mais estável.Não obstante, impõe uma característica nãoevidenciada em todas as agências: a atua-ção em aspectos econômicos da sociedade,seja na produção de bens, na oferta de servi-ços ou na viabilização da infra-estrutura.Três agências possuem características dife-renciadas, pois também cuidam da articu-lação de políticas públicas de saúde (ANS eAnvisa) e do equilíbrio de recursos não re-nováveis (ANA). Dessa maneira, a proposi-ção pode estar atingindo apenas parcial-mente a realidade regulatória brasileira.

Relativamente ao PL no 3.337, de 2003, eseu respectivo Substitutivo, ambos são po-sitivos ao homogeneizar, entre outros, itenscomo a nomeação e o mandato dos dirigen-tes, o processo decisório, o escopo de atua-ção das agências, a necessidade de consul-tas públicas e o papel da ouvidoria. Ao en-quadrar todos esses pontos em uma mesmalei, crescem o controle social e o grau detransparência dos órgãos reguladores, ob-jetivos desejáveis. Evidencia-se que o referi-do Projeto de Lei pretende ser uma Lei Or-gânica, ou Geral, das agências reguladoras.

Alguns autores afirmam que o PL no

3.337, de 2004, e o Substitutivo apresentadotrazem riscos à qualidade da regulação por-que contêm dispositivos que reduzem a in-dependência das agências em relação aoPoder Executivo, havendo então riscos denão serem observados critérios técnicos nosleilões de concessão de serviços e de ocorrerexpropriação regulatória. Nesse caso, tantoos consumidores quanto as firmas poderi-am ser prejudicados. Já outros autores afir-mam que esses riscos são um preço a pagarpara se ter um maior controle social sobreas agências reguladoras.

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Inegável também é ressaltar que o PL no

3.337, de 2004, pelo nível de detalhamento,apresentou elementos mais evidentes emrelação à preocupação com o excesso de in-dependência das agências reguladoras, ins-pirado em vários princípios das escolas daTeoria da Escolha Pública e da Teoria daCaptura, bem como na Reforma Adminis-trativa, que introduziu para a matriz insti-tucional do Estado a figura das agênciasexecutivas e dos contratos de gestão. Final-mente, esse projeto não apresenta, em prin-cípio, conflitos insanáveis em relação à PECno 81, de 2003, mas deve-se ressaltar que aPEC prevê que o art. 174-A seja regulamen-tado por Lei Complementar. Assim, o PL no

3.337, de 2004, poderá ser consideradoinjurídico, caso a PEC seja promulgadaantes dele, por estar tramitando como leiordinária.

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Notas1 Mesmo em países com forte experiência em

regulação, como os Estados Unidos, problemas edeficiências ainda existem, merecendo constantesrevisões e ajustes.

2 Exemplo dessa atuação é a criação da Anvisae da ANA, a qual foi delegada a tarefa de regularas atividades concernentes à saúde.

3 As primeiras versões da Teoria da Capturaapresentavam, contudo, uma grave deficiência: asimetria em relação às teorias do regulador benevo-lente. Se antes o agente regulador era visto comoessencialmente voltado para o bem-estar social,agora ele passava a ser visto como órgão que ape-nas sancionava passivamente os interesses priva-dos das empresas reguladas. Obviamente, como oprocesso regulatório é bastante complexo, envol-vendo vários grupos de interesse, não foi difícil en-contrar evidências empíricas que contrariassem essainterpretação mais superficial do processo de cap-tura.

4 Duas observações devem ser feitas sobre aperda do mandato dos dirigentes das agências: (i)a própria Constituição Federal prevê, no art. 37, §4o, a perda de função pública, por decisão judicial,quando forem cometidos atos de improbidade (cor-

rupção); (ii) há a possibilidade de prevê-la expres-samente na Constituição, dando a seguinte reda-ção ao parágrafo único do art. 174-A: “Lei Com-plementar regulamentará o disposto neste artigo,inclusive quanto ao controle externo das agênciasreguladoras e às hipóteses de perda de mandato”.

5 Há outras alterações que não são tratadasneste trabalho porque, via de regra, visam à ade-quação da legislação vigente ao texto do Projeto deLei no 3.337, de 2004.

6 O texto do Projeto de Lei prevê a consultapública em todas as decisões das agências. O Rela-tor o considerou inapropriado, uma vez que a agi-lidade gerencial das agências poderia ser compro-metida. Por outro lado, o Relator acrescentou umtipo de decisão específica que deverá ser objeto deconsulta pública: os pedidos de revisão de tarifas.

7 Cabe uma ressalva: a lei que criou a Aneel (Leino 9.427, de 26 de dezembro de 1996), em seu art.7o, prevê que a administração da agência seria obje-to de contrato de gestão com o Poder Executivo.Entretanto, até o momento, tal contrato ainda nãofoi implementado.

8 Secretaria de Direito Econômico (SDE), Secre-taria Especial de Acompanhamento Econômico(SEAE) e Conselho Administrativo de Defesa Eco-nômica (CADE).

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1. IntroduçãoO tema referente à “política de aplicação

das agências financeiras oficiais de fomen-to” é, ainda, um dos que menos evoluíramem produção legislativa apta a auxiliar oCongresso Nacional na fiscalização dos re-cursos aplicados pelas Agências Financei-ras Oficiais de Fomento (AFOF). O conteú-do prático dos dispositivos insertos anual-mente nas leis de diretrizes orçamentárias(LDO) pouco tem contribuído para o aper-feiçoamento legislativo do assunto. De umlado, o Poder Executivo atuou, nos últimosexercícios financeiros, de forma burocráti-ca, com textos de eficácia quase nula, quan-do do envio do projeto de lei anual de dire-trizes orçamentárias. De outro, o Poder Le-gislativo praticamente tem ratificado o tex-to original, resultando que recursos vulto-sos carecem de um controle social mais rígi-do, ou, pelo menos, mais transparente1.

Iniciativas isoladas, por intermédioda LDO/2003, contribuíram significativa-mente para alterar esse cenário, exigindo queas Agências publiquem relatórios com mai-or visibilidade de suas aplicações financei-

Política de aplicação das agênciasfinanceiras oficiais de fomentoSubsídios para a análise do projeto de lei de diretrizesorçamentárias para 2004

Sumário1. Introdução. 2. LDO e política de aplicação

das agências financeiras oficiais de fomento. 3.O tratamento do tema pelo Poder Legislativo. 4.Participação das agências no sistema financeironacional. 5. BNDES e FAT. 6. Empréstimos e fi-nanciamentos concedidos. 7. O tratamento dotema pelo Poder Executivo. 8. Conclusão.

Luiz Fernando de Mello Perezino

Luiz Fernando de Mello Perezino é Con-sultor de Orçamentos do Senado Federal.

Revista de Informação Legislativa414

ras. Somente a partir do exercício financeirovigente é que podemos saber exatamentequal o valor dos financiamentos efetivamen-te concedidos pelas Agências para as uni-dades federadas. Há um longo caminho aser percorrido, visando o aperfeiçoamentoda LDO em cooperar na fiscalização e dis-tribuição regional da alocação de vultososrecursos provenientes, em grande parte, deexações fiscais: impostos e contribuições.

2. LDO e política de aplicação dasagências financeiras oficiais de fomento

Os instrumentos de planejamento con-sagrados no Texto Constitucional permitemas condições necessárias para uma regulare eficaz fiscalização dos gastos públicos peloParlamento. Com efeito, a concepção de umplano plurianual, uma lei de diretrizes or-çamentárias (LDO) e uma lei orçamentáriaanual (LOA), todos compatíveis entre si,proporcionam o objetivo de integrar planocom orçamento, aferindo os resultados pro-gramados. Nesse ambiente, estão insertasas aplicações das agências de fomento. O Tex-to Constitucional outorga competência à LDOpara dispor sobre “a política de aplicação dasagências financeiras oficiais de fomento”.Esta lei tem suprido o limite normativo con-cernente à lei orçamentária anual, devido aoprincípio da exclusividade. Também tem pre-enchido as lacunas da legislação orçamentá-ria em face da inexistência de legislação com-plementar, consoante previsão constitucional.Desse modo, uma primeira dificuldade seriadelimitar o que pode o Parlamento legislar,no âmbito das diretrizes orçamentárias, so-bre as políticas de aplicação dessas agências.Por outro lado, independentemente dos ques-tionamentos, é inequívoco que a fiscalizaçãodas aplicações dos recursos públicos estáprotegida por diversos princípios consagra-dos na Constituição. Assim, vislumbram-seamplas possibilidades de utilização de legis-lação orçamentária provisória para aperfei-çoar a transparência nas aplicações das Ins-tituições Financeiras Públicas de Fomento2.

3. O tratamento do tema peloPoder Legislativo

A discussão anual da política de aplica-ção dos recursos das AFOFs, no âmbito dasdiretrizes orçamentárias, não tem desperta-do a atenção especial do Parlamento. Essaassertiva reflete o modo de atuação políticaconcernente às matérias orçamentárias. Apreocupação dominante é manter o poderde emendar o orçamento, ao menos nosmoldes do exercício anterior. Isso significalutar pela irrisória participação política in-dividual, refletida nas emendas individu-ais. No plano estadual, essa luta reflete aparticipação política na elaboração dasemendas coletivas, especialmente as de ban-cada. Estas têm demonstrado ser uma am-pliação das demandas individuais, fra-cionadas em grupos de representantes pro-porcionais ao número possível dessas emen-das coletivas.

À luz deste corolário, resulta que algunstemas pertinentes ao domínio das leis dediretrizes orçamentárias não evoluíram por-que estão muito distantes do que efetivamen-te é discutido quando da tramitação da pro-posta orçamentária. Esse cenário inibe algu-mas questões relevantes de caráter nacional,como as aplicações das AFOFs, não obstanteo conjunto de suas ações ter entre suas fun-ções a redução das desigualdades inter-regi-onais, em analogia ao art. 165, § 7o, da CF3.

4. Participação das agências nosistema financeiro nacional

A perpetuação das discussões orçamen-tárias conforme explanado impede avançosna parte normativa alusiva às AFOFs. Essefato não condiz com a enorme quantidadede recursos movimentados pelas agências.

Uma comparação interessante para ates-tar a dimensão das Instituições Públicas deFomento é a visualização do conjunto dosativos das AFOFs com os ativos totais dasdemais instituições do sistema financeironacional.

Brasília a. 41 n. 164 out./dez. 2004 415

O quadro demonstra que a participaçãodo Estado no sistema financeiro nacional ébastante significativa, mantendo-se ao re-dor de 40% nos últimos anos.

A Tabela I explana o ranking , segundoos ativos totais, das Instituições Financei-ras Oficiais de Fomento no âmbito de todo osistema financeiro nacional. O Banco doBrasil é o maior Banco da América Latina,com ativos totais de R$ 194,4 bilhões. Sãoativos semelhantes em grandeza aos do Ban-

Participação (%) das AFOFs no Sistema Financeiro Nacional

54 60 64 64 58 62 58

46 40 36 36 42 38 42

020406080

100120

1994 1995 1996 1997 1998 1999 2002

Ano

(%)AFOFs

Demais

Fonte: Ministério da Fazenda (até 1999); Bacen – 2002

co Interamericano de Desenvolvimento –BID, que, em 31.12.2001, registrou U$ 58,5bilhões em ativo total. Em seguida estão clas-sificados o BNDES e a CEF. Essas Institui-ções aplicam recursos dos maiores fundosvigentes: Fundo de Amparo ao Trabalhador(FAT) e Fundo de Garantia por Tempo deServiço (FGTS), respectivamente. As trêsmaiores agências oficiais de fomento – BB,BNDES e CEF – detêm 96% dos ativos totaisdo conjunto das AFOFs.

R$ mil Ranking Agências de Fomento (AFOFs) Ativos Totais

1 BB 194.473.3512 BNDES 150.989.0643 CEF 122.257.797

19 BNB 10.944.67026 BASA 4.382.28346 BESC 2.034.78559 BEC 1.020.85969 BEM 728.088

Total das AFOFs (a) 486.830.897Total do Sistema Bancário (b) 1.167.961.743

(%) de participação das Afofs no Total do Sistema Financeiro Nacional (a)/(b) 42%

Tabela IRanking dos Maiores Bancos por Ativos Totais

Fonte: Bacen – Elaboração: CONORF/SF

Revista de Informação Legislativa416

5. BNDES e FAT

Entre as AFOFs, a atuação do BNDESrequer atenção especial na fiscalização, vis-to ser a principal fonte de recursos para suasaplicações originária de contribuições soci-ais (PIS/PASEP). Cerca de metade do seupassivo corresponde aos valores repassa-dos anualmente pelo Fundo de Amparo aoTrabalhador – FAT, nos termos do art. 239da Constituição. Trata-se de empréstimospara aplicações em projetos de desenvolvi-mento econômico, cujo montante, em31.12.2001, somava R$ 39,6 bilhões, cercade 62% do total do patrimônio do Fundo. ATabela II evidencia a composição do patri-

mônio do FAT, revelando que, além dos em-préstimos constitucionais ao BNDES,cerca de R$ 8,4 bilhões foram colocados àdisposição desse Banco para outros finan-ciamentos sob a denominação de depósitosespeciais. Desse modo, 75% dos recursos doFAT estão aplicados no BNDES.

A análise sob a ótica do Balanço Patri-monial do BNDES realizado em 31.12.2001revela que, dos R$ 112.753 bilhões que cons-tituem o passivo total, 61% (R$ 69,1 bilhões)são recursos do PIS/PASEP e do FAT. Astransferências anuais ao BNDES proveni-entes do FAT, após transitarem uma únicavez no orçamento da União, passam a cons-tituir parte do passivo do Banco, sobre o qual

inexistem mecanismos institucionalizadosde avaliação e controle de resultados.

6. Empréstimos e financiamentosconcedidos

Vejamos agora o montante consolidadodos desembolsos realizados e estimados a

partir do ano de 2000. Para o exercício vi-gente, estão estimadas aplicações no mon-tante de R$ 225,6 bilhões. Esse valor é forte-mente influenciado pela carteira de emprés-timos e financiamentos do Banco do Brasil,com previsão de desembolsos no valor deR$ 175,8 bilhões, consoante pode ser confir-mado nas Tabelas III e IV.

Valores em R$ mil

2 0 0 0 2 0 0 1 2 0 0 2 2 0 0 3 FONTE DE RECURSOS Realizado Realizado Exec.Provável Estimativa

Recursos Próprios 102.401.319 141.430.317 172.827.056 190.168.958 Recursos Tesouro Nacional 7.849.463 6.077.053 6.393.369 7.967.404 Recursos Outras Fontes 16.228.952 23.612.387 25.673.319 27.553.957

TOTAL 126.479.734 171.119.758 204.893.743 225.690.320

Tabela IIIDemonstrativo dos Empréstimos Efetivos

Fonte: Informações Complementares ao Projeto de Lei Orçamentária para 2003.

Programa Ano (R$ Bilhões) (%) 2000 2001 2001 BNDES – Art. 239 da CF 36.751 39.625 BNDES – Depósitos Especiais 8.186 8.465 75

Outros 14.420 15.934 25 Total do Patrimônio 59.357 64.024 100

Tabela IIPatrimônio do FAT

Fonte: Informações Complementares ao Projeto de Lei Orçamentária para 2003.

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A maior parte das aplicações são prove-nientes de recursos próprios das institui-ções. O Banco do Brasil, por exemplo, esti-ma aplicar R$ 169 bilhões de recursos pró-prios. Mas, no caso do BNDES, a maior fon-te de recursos foi originada da Contribui-ção para o PIS/PASEP. Nesse caso, é plau-sível a assertiva de que a fiscalização de suasaplicações, estimadas em R$ 26,4 bilhões

para este exercício, mereça atenção especialpor parte do Poder Legislativo. Esse valorrepresenta mais de 4 vezes o total de investimen-tos adicionados na proposta orçamentária enca-minhada pelo Poder Executivo. Como explicitaa Tabela V, foram acrescidos R$ 6,3 bilhões eminvestimentos, após ultimada a tramitação doProjeto de Lei Orçamentária.

Todas as Tabelas apresentadas tiveramo escopo de demonstrar, sob diversos ângu-los, os significativos montantes movimen-tados pelas agências oficiais. Nada que de-sabone o Estado estar inserto nas ativi-dades de fomento. A questão é que o Con-gresso tem permanecido totalmente à mar-

gem da orientação e fiscalização das apli-cações dos recursos financeiros das agênci-as oficiais de fomento.

Quando se confrontam os valores apro-vados no Orçamento da União, provenien-tes das emendas parlamentares, com os re-cursos administrados pelas AFOFs, perce-

R$ Milhões

Grupo de Despesas Projeto de Lei Substitutivo Diferença

Pessoal 76.893 77.046 153

Juros 93.644 93.644 0

Outras Despesas Correntes 213.302 223.894 10.592

Investimentos 7.350 13.694 6.344

Inversões Financeiras 23.054 24.366 1.312

Amortizações 582.315 582.315 0

Reserva de Contingência 12.973 21.096 8.123Total 1.009.531 1.036.055 26.524

Tabela VLei Orçamentária para 2003

Fonte: Conorf/SF

Valores em R$ mil

2 0 0 0 2 0 0 1 2 0 0 2 2 0 0 3 AFOFs Realizado Realizado Exec.Provável Estimativa

Banco do Brasil 92.987.156 129.486.569 154.871.441 175.865.566 BNDES 21.126.974 24.214.374 26.988.650 26.489.012 Caixa Econômica Federal 7.541.451 13.739.754 18.854.198 16.727.316 Banco do Nordeste 2.605.548 1.810.309 2.300.000 3.700.000 Banco do Amazônia 1.374.712 921.000 774.366 1.531.088

Demais AFOFs 843.894 947.751 1.105.089 1.377.337 TOTAL 126.479.734 171.119.758 204.893.743 225.690.320

Tabela IVDemonstrativo dos Empréstimos Efetivos

segundo as Agências de Fomento

Fonte: Informações Complementares ao Projeto de Lei Orçamentária para 2003.

Revista de Informação Legislativa418

be-se a diminuta participação legislativa naaplicação de parte significativa de recursossob a responsabilidade do Estado. O esfor-ço e a mobilização da sociedade, concentra-dos no orçamento, não é proporcional à re-levante parcela de recursos disponíveis paraaplicações em programas de desenvolvi-mento à disposição das agências oficiais.Basta somente comparar o que o CongressoNacional efetivamente interfere na propos-ta orçamentária encaminhada pelo PoderExecutivo com os recursos administradospelas AFOFs.

Produzimos alguns quadros com o obje-tivo de visualizar as aplicações consolida-das das AFOFs e as aplicações do BNDESno período compreendido entre 1995 e 2001,consoante os seguintes anexos:

I – Aplicações Consolidadas das Agên-cias de Fomento – Distribuição por Região;

II – Aplicações Consolidadas das Agên-cias de Fomento – Distribuição Per capita;

III – Aplicações Consolidadas das Agên-cias de Fomento – Distribuição por UF;

IV – Aplicações do BNDES no períodocompreendido entre 1995 e 2001 – Distri-buição Per capita;

7. O tratamento do tema pelo Executivo

O Poder Executivo também não tem de-monstrado efetivo controle sobre as aplica-ções das AFOFs. Uma tentativa visandocoordenar a atuação das Agências foi a cri-ação de um Comitê de Coordenação Geren-cial das Instituições Financeiras PúblicasFederais – COMIF, órgão de representaçãoda União como acionista controlador dasinstituições financeiras públicas federais,nos termos e para os fins do Decreto de 30de novembro de 1993, criado no âmbito doMinistério da Fazenda. O Ministério con-tratou uma Consultoria privada em 1999para diagnosticar e colher sugestões, na for-ma de audiência pública, com apoio no “Re-latório de Alternativas para a ReorientaçãoEstratégica do Conjunto das Instituições Fi-nanceiras Públicas Federais (IFPFs)”.

O Relatório confirma a tese aqui susten-tada de que tanto o Poder Executivo quantoo Poder Legislativo estão afastados do efeti-vo controle na aplicação dos recursos dasAFOFs. Algumas conclusões merecem des-taque, e são expostas a seguir:

a) não há uma separação clara entre res-ponsabilidades e recursos do Tesouro e asresponsabilidades e recursos dessas insti-tuições. Os custos relacionados à execuçãodas políticas públicas não são claramenteidentificados, sendo subsidiados sem o ne-cessário grau de visibilidade, prejudican-do a transparência das ações;

b) o inter-relacionamento das ativida-des comerciais com a execução das políti-cas públicas gera subsídios cruzados en-tre captação, alocação de recursos, riscos,receitas e custos operacionais, que tornampouco evidentes a eficácia de atuação dasAFOFs;

c) o conjunto atual das AFOFs apresentaineficiência estrutural no equilíbrio entre onível de despesas e receitas operacionais.Este indicador é consistentemente superiorao observado no setor privado, sendo que aconstituição de um nível de provisionamen-to para perdas de crédito comparável ao doresto do sistema financeiro sensibilizariaainda mais esse quadro;

d) deficiências no planejamento indivi-dual e inexistência de planejamento conjun-to das Instituições.

8. Conclusão

A atuação do Poder Legislativo no temaem análise tem sido insuficiente para pro-duzir mecanismos capazes de permitir atransparência da gestão dos recursos sob aresponsabilidade das AFOFs. A Lei de Di-retrizes Orçamentárias vigente modificouum pouco esse cenário, possibilitando a pro-dução de informações capazes de dimensi-onar, ao menos, os desembolsos efetivos dasagências de fomento, por região e unidadeda federação. Tais informações não eramacessíveis em anos pretéritos.

Brasília a. 41 n. 164 out./dez. 2004 419

Visando aperfeiçoar as instruções perti-nentes aos relatórios exigidos nas informa-ções complementares ao projeto de lei orça-mentária, julgamos de grande utilidade in-serir no rol das prescrições a elaboração dos

quadros de aplicação também pelo porte dotomador do empréstimo, conforme a seguin-te nomenclatura, já utilizada pelo BNDES:Micro e Pequena Empresa e Pessoa Física,Média Empresa e Grande Empresa.

O anexo seguinte apresenta um comparativo da distribuição per capita consolidada epor Região.

Anexos

Anexo IAplicações Consolidadas das Agências de Fomento

Distribuição por Região

R$ mil

2 0 0 0 2 0 0 1 2 0 0 2 2 0 0 3 Região Realizado % Realizado % Exec.Provável % Estimativa %

Centro-Oeste 14.913.074 11,8 18.615.082 10,9 20.183.239 9,9 22.212.300 9,8

Norte 6.030.591 4,8 7.575.956 4,4 8.677.336 4,2 10.288.345 4,6

Nordeste 22.338.008 17,7 27.132.690 15,9 29.494.973 14,4 34.418.393 15,2

Sudeste 55.494.022 43,8 80.990.717 47,3 104.535.510 51 112.512.141 49,9

Sul 27.704.040 21,9 36.805.313 21,5 42.002.686 20,5 46.259.140 20,5

Total 126.479.734 100 171.119.758 100 204.893.743 100 225.690.320 100

Fonte: Informações Complementares – Projeto de Lei Orçamentária para 2003.

Anexo IIAplicações Consolidadas das Agências de Fomento

Distribuição Per Capita

Fonte: Informações Complementares – Projeto de Lei Orçamentária para 2003.

Região Realizado Realizado Exec. Provável Estimativa 2000 2001 2002 2003 Centro-Oeste 1.282 1.600 1.734 1.909 Norte 467 587 673 798 Nordeste 468 568 618 721 Sudeste 766 1.118 1.444 1.554 Sul 1.103 1.466 1.673 1.842 Total 745 1.008 1.207 1.329

Revista de Informação Legislativa420

R$ mil 2 0 0 0 2 0 0 1 2 0 0 2 2 0 0 3 Distribuição UF Realizado Realizado Exec.Provável Estimativa Per-capita(2003) MA 1.632.873 2.179.258 2.007.638 2.270.528 402 AM 752.179 938.271 1.224.328 1.339.626 476 SE 693.334 761.869 856.420 988.672 554 AL 1.210.165 1.367.072 1.562.399 1.766.893 626 PI 1.226.603 1.398.879 1.571.896 1.869.166 657 PB 1.664.867 2.056.988 2.028.723 2.340.428 680 CE 3.352.165 3.918.783 4.278.808 5.145.069 692 PA 2.344.665 3.214.417 3.803.148 4.344.130 702 PE 3.132.185 4.176.087 4.973.581 5.945.555 751 BA 7.600.674 9.110.129 9.797.446 11.233.448 859 AC 316.686 422.768 482.114 546.055 979 AP 223.346 323.164 321.948 468.882 983 RN 1.825.141 2.163.625 2.418.063 2.858.634 1.029 RO 915.801 1.165.636 1.270.752 1.601.614 1.161 ES 2.610.440 3.782.749 4.114.175 3.716.240 1.200 MG 12.921.847 17.296.201 19.730.057 21.705.224 1.213 TO 1.229.552 1.136.083 1.132.631 1.518.271 1.312 RJ 10.040.392 14.569.879 16.828.399 19.763.059 1.373 RR 248.362 375.618 442.415 469.768 1.448 GO 4.361.062 6.062.039 6.830.997 7.416.566 1.482 MS 2.093.788 2.636.164 2.994.187 3.211.649 1.546 PR 9.053.837 12.010.926 13.610.201 15.188.863 1.588 SP 29.921.343 45.341.887 63.862.878 67.327.618 1.818 RS 11.712.878 15.369.309 18.361.924 20.125.831 1.975 SC 6.937.325 9.425.078 10.030.561 10.944.446 2.043 MT 3.027.036 4.153.232 4.926.558 5.278.086 2.108 DF 5.431.188 5.763.646 5.431.497 6.305.998 3.074 TOTAL 126.479.734 171.119.758 204.893.743 225.690.320 1.329

Anexo IIIAplicações Consolidadas das Agências de Fomento

Distribuição por UF

Fonte: Informações Complementares – Projeto de Lei Orçamentária para 2003.

Brasília a. 41 n. 164 out./dez. 2004 421

(Valores R$ Mil)

UF Valor 1995 a 2000

Valor 2001 Total Total

Per-capita

RR 7.492 6.419 13.911 43 AP 21.550 19.697 41.247 86 AC 45.242 6.040 51.283 92 PI 280.162 67.447 347.609 122 AL 289.169 66.475 355.644 126 RO 200.001 42.545 242.545 176 MA 658.916 418.523 1.077.439 191 RN 438.362 95.421 533.783 192 PB 388.106 279.823 667.929 194 PE 1.279.247 284.169 1.563.416 197 AM 545.169 119.767 664.936 236 CE 1.772.364 422.479 2.194.843 295 PA 1.517.737 544.437 2.062.174 333 TO 438.114 120.790 558.904 483 SE 857.671 47.859 905.530 507 BA 5.089.236 1.652.028 6.741.264 516 GO 2.591.671 412.247 3.003.918 600 MG 9.361.656 1.730.221 11.091.878 620 MS 1.139.139 168.049 1.307.188 629 PR 6.307.025 1.586.154 7.893.179 825 RS 7.309.131 1.702.833 9.011.964 885 MT 1.806.050 451.822 2.257.872 902 ES 1.913.144 1.038.474 2.951.618 953 RJ 11.743.054 2.466.816 14.209.870 987 SP 31.608.195 9.258.231 40.866.426 1.104 DF 1.838.525 671.281 2.509.805 1.224 SC 5.309.814 1.536.477 6.846.291 1.278 TOTAL 94.755.943 25.216.525 119.972.468 707 Fonte: BNDES

Anexo IVFinanciamentos do BNDES segundo Critério Populacional

Período 1995 a 2001

Revista de Informação Legislativa422

Notas

1 As prescrições pertinentes ao capítulo reser-vado à “Política de Aplicação das Agências Finan-ceiras Oficiais de Fomento” são em resumo:

– um artigo reservado às prioridades que asagências devem observar, respeitadas suas especi-ficidades, cuja amplitude genérica anula qualquerpossibilidade de coerção. Exemplo: a) O BNDEStem como uma de suas prioridades, “o desenvolvi-mento das micro, pequenas e médias empresas,direta e indiretamente, com recursos próprios ourepassados, como forma de ampliar a oferta depostos de trabalho e fortalecer sua capacidade deexportação”. b) A CEF tem como prioridade redu-zir o déficit habitacional, etc;

– vedação de empréstimos para quem estiverinadimplente com a União, seus órgãos e entidadesda administração direta e indireta e com o FGTS;

– vedação para que os encargos dos emprésti-mos e financiamentos não sejam inferiores aos res-pectivos custos de administração e captação, res-salvados os casos previstos em lei;

– o Relatório de execução bimestral, a que serefere o art. 165, § 3 o, da CF, demonstrará, também,os empréstimos e financiamentos concedidos pelasagências financeiras oficiais de fomento.

2 Segundo GIACOMONI (1998, p. 267):“...O eficaz tratamento desse tema na LDO

depende da compreensão, a mais precisa possível,sobre a margem de ação que esse normativo podeter no disciplinamento de temática coberta por le-gislação ordinária e por inúmeros regulamentos téc-nicos-operacionais. Sendo vedado à LDO alterar alegislação substantiva, assim como violar a lógicaque preside as políticas operacionais das agênciasde fomento, cabe utilizar o instrumento como de-monstração transparente da ação pública nessa áreae com base para o seu efetivo controle”.

3 Art. 165, § 7o – “Os orçamentos previstos no §5o, I e II, deste artigo, compatibilizados com o pla-no plurianual, terão entre suas funções a de reduzirdesigualdades inter-regionais, segundo critério po-pulacional”.

Bibliografia

GIACOMONI, J. A Lei de Diretrizes Orçamentáriase a política de aplicação das agências financeirasoficiais de fomento. Revista de Informação Legislativa,Brasília, ano 35, n. 137, p. 265-280, jan./mar. 1998.