revista fuzuê

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Revista laboratório Venda Proibida Edição 02 Ano/001 Março de 2015 ARTE DAS RUAS “Além de Maria Auxiliadora, é fácil encontrar outros artistas apaixonados por seu trabalho. Você passa pelas ruas e vê desenhos colorindo a cidade, e sabe que um grafiteiro passou por ali. Para no sinaleiro, e em meio ao caos do transito é entretido por malabaristas e pode até ser surpreendido por artistas que arriscam suas vidas cuspindo fogo. Também pode andar distraído e, de repente, ver uma estátua viva. A arte tem o poder de encantar e emocionar, ela transforma lugares e pessoas. (p.62) “Curandeira, ajudava os escravos, os guiava contra a perseguição pelo rio até o quilombo na mata densa, onde hoje se localiza o parque. Quando um negro necessitava de ajuda, era para ela que recorriam” (p.8) CAUSOS CUIABANOS Saiba como Junne Fontenelle, mesmo a contragosto, começou a manusear argila para esculpir São Francisco de Assis Arte nas mãos Um santo que inspira mãos (p.24) gráfica ufmt

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Veículo de comunicação concebido a partir das aulas-laboratório da disciplina de Jornalismo de Revista, produzido pelos estudantes de Jornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso [UFMT/Cuiabá]. A revista apresenta reportagens, artigos e crônicas sobre esporte e cultura em Cuiabá.

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ARTE DAS RUAS“Além de Maria Auxiliadora, é fácil encontrar outros artistas apaixonados por seu trabalho. Você passa pelas ruas e vê desenhos colorindo a cidade, e sabe

que um gra�teiro passou por ali. Para no sinaleiro, e em meio ao caos do transito é entretido por malabaristas e pode até ser surpreendido por artistas que arriscam suas vidas cuspindo fogo. Também pode andar distraído e, de repente, ver uma estátua viva. A arte tem o poder de encantar e emocionar, ela transforma lugares e pessoas. (p.62)

“Curandeira, ajudava os escravos, os guiava contra a perseguição pelo rio até o quilombo na mata densa, onde hoje se localiza o parque. Quando um negro necessitava de ajuda, era para ela que recorriam” (p.8)

CAUSOS CUIABANOS

Saiba como Junne Fontenelle, mesmo a contragosto, começou a manusear argila para esculpir São Francisco de Assis

Arte nas mãosUm santo que inspira mãos

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Embora seja uma capital, Cuiabá guarda resquícios da cidade pequena do interior. Com mais de 570 mil habitantes, segundo estimativas do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas) para 2014, a sede político-administrativa de Mato Grosso não se limita a trânsito intenso, construções verticalizadas e chaminés de indústria fumegantes.

A despeito de tudo isso – que, justiça seja feita, Cuiabá também tem aos montes –, a capital mato-gros-sense carrega consigo o germe da simplicidade. Mesmo porque, nos primórdios da história cuiabana, quem dava as cartas como município principal dessas bandas era Vila Bela da Santíssima Trindade. A cidade, que cresceu, se fortaleceu e virou símbolo de um Estado forte, era ape-nas uma promessa. Talvez nem isso.

E é daquele tempo que Cuiabá traz e preserva as ruas estreitas. Em grande quantidade no centro, mar-co zero de toda cidade, porque é a partir dele qualquer município se expande, as vias foram pavimen-tadas levando em conta o eixo das carroças. E ali, onde passam hoje as carroças motorizadas – convencio-nalmente chamadas de carros –, está um dos charmes da Cidade Verde.

Nessas mesmas ruas estão estaca-das outra marca da capital: as casas

mais antigas, cujas portas principais dão na calçada. Assim, sem varan-da, sem portão, sem cerimônias, a simplicidade de outrora era convi-dativa. Receptividade abalada pelo crescimento urbano e expansão da violência, mas não perdida, porque o forasteiro é acolhido com a ternu-ra que falta em outros lugares.

E a gente que pisa nas ruas daqui, que nasceu nas casas daqui, que fez Cuiabá ser o que é, também carrega dentro de si a história capaz de re-sumir um país inteiro. Porque tanto o cidadão de ‘chapa e cruz’, quanto a nação brasileira, são o que aqui se vê: a convivência e a mistura de índios, negros e brancos. O fuzuê, definitivamente, é uma marca cuiabana e um diferencial do Brasil.

Se a miscelânea de culturas e et-nias está no DNA do país, Cuiabá, que tem tudo isso de modo mais notório, também é afeiçoada ao fu-tebol, esporte principal da nação e que sintetiza, como nenhuma outra modalidade, a nossa diversidade. E sendo a multiplicidade a palavra de ordem, outras atividades esporti-vas e físicas, aproveitando o que de melhor a cidade e a região ofere-cem, não poderiam ficar de fora da agenda do ‘cuiabano do pé rachado’ ou de quem é ‘pau rodado’.

Ruas estreitas, corações generosos

A Revista Fuzuê, criada em maio de 2014, é produto das aulas-laborató-rio da disciplina Jornalismo de Revis-ta, ministrada para os estudantes do 6º Semestre de Comunicação Social/Jornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT - Cuiabá).

Professor da Disciplina: Thiago C. LuizCoordenador do Curso: Tinho Costa MarquesChefe de Departamento: Javier Solla Lopez

Editor Responsável: Thiago C. LuizRedação, Projeto Grafico e Dia-gramação: André Faust, André Sou-za, Camila Cabral, Carlos Henrique, Eduardo Mafra, Emilly Cassin, Érika Oliveira, Helen Raquel, Jardel Arru-da, Leandro Popuaski, Leticia Dama-ceno, Paula Rühling, Priscila Soares.Fotos: Estudantes do 4º Semestre de Comunicação Social - Jornalismo. Professora Responsável (Disciplina Fotojornalismo): Janaína PedrottiCapa e Publicidade: Tony DamacenoE-mail: [email protected]

Universidade Federal de Mato GrossoInstituto de LinguagensDepartamento de Comunicação SocialAv. Fernando Correa da Costa, nº 2367 Bairro Boa Esperança, Cuiabá - MT CEP: 78060-900

Enrolados

A cidade é feita dos que vivem nela

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Equilibrio e Aventura nos rios de Chapada

A vida de um artista inspirada por São Franciso de Assis

O futuro cuiabano no futebol... americano

Vidas <In>comuns

Quando o futebol deixa de ser só um esporte

Congo de livramento: mais de um século de historia

Artistas que fazem da rua o seu atelie

EDITORIAL SUMÁRIO

As histórias dos personagens que fizeram e fazem parte da história de Cuiabá, narradas pelo historiador Anibal Alencastro 15

Testamos o esporte do momento e atestamos que quem fica parado não sabe o que está perdendo. Aventura, adrenalina e muita história para contar sobre o uso de pranchas em um lugar paradisíaco

Um dos santos mais queridos da Igreja Católica, São Francisco de Assis tem inspirado novas gerações de artistas com seu amor ao próximo 23

Você trocaria o futebol jogado com os pés pelas 10 jardas?

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História das pessoas que dão vida ao espaço mais público de uma cidade

41

Voluntário, homem de 53 anos dá aula para crianças de bairro carente. O bairro tem um time de futebol há 26 anos que coleciona conquistas. 49

Conheça a trajetória dos grupos de cultura popular mais antigos de Mato Grosso

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A moda dos cachos e do alisamento na visão de quatro mulheres de Cuiabá

Eles deixaram toda a correria da vida urbana, para se dedicar àquilo que lhes dá mais prazer: sua arte

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Lambadão Cuiabano é um estilo de música e dança que faz parte e já se tornou característica da baixada cuiabana, advindo da periferia como muitos dos rit-mos brasileiros, e como qualquer outro sofre muito preconceito, pois as danças sempre são carregadas de muita sexualidade.

Mesmo sendo um ritmo característico do Estado, a maioria da população não aprecia e, por vezes, até critica. Mas para os mais experientes o ritmo é impor-tante e vem carregado de alegria e vibrações boas. O que dizem é que o lambadão é uma mistura de ritmos, e isso é verdade.

Ocorre que as músicas, danças e toda cultura gera-da pelo lambadão não ganham repercussão na mídia e muito menos são reconhecidas pelo poder público. Mas é ai que elas adquirem força. Se pararmos para pen-sar, as bandas de lambadão produzem e lançam mais CD’S e eventos do que qualquer outro ritmo nacional em Mato Grosso. Até mesmo mais que o sertanejo, que alcança um público muito grande em qualquer lugar do país.

Mas não se espante com toda essa produção do lam-badão, pois ela gera muita renda e ainda deixa as pes-soas felizes. Segundo a professora Elisabeth Madureira, desde o final do século 19 pesquisadores de fora que vieram para cá constaram que Cuiabá era o único lugar onde tinham visto as pessoas misturar prazeres sociais, como beber, dançar agarradinho, jogar baralho, com os rituais religiosos.

Os lambadeiros raramente aparecem na TV, não têm músicas nas rádios e não aparecem em nenhum jornal impresso, muito menos em sites de grande au-diência, pois parte da imprensa não consegue enxergar em qual contexto esse ritmo está inserido.

Porém, dentro desta nova configuração musical brasileira, o lambadão não precisa estar inserido em contexto algum. O que precisa é se destacar como um gênero musical único de Mato Grosso. E isso pode acontecer bem na hora em que se precisa de uma iden-tidade musical na capital Cuiabá. Parece fácil, poderia ser a solução, mas o bloqueio do próprio cuiabano ain-da é muito forte.

Me pergunte: de todos os lugares, por que Cuiabá? Não sei responder.

Calma! Talvez eu tenha me precipitado. Vou explicar. Nasci no interior do Estado de São Paulo, em uma ci-

dadezinha de 80 mil habitantes. Cresci naquele mundo compactado. Todos se conhecem. Carroças circulam pelas ruas. O relógio da igreja é escutado pela cidade toda. A vizinha é prima da cunhada do irmão do seu outro vizinho. Um lugar tão interior que, como diz o populacho, é um ovo. Como eu amo esse lugar.

Quando crescemos em um lugar tão pequeno, nossos sonhos são encolhidos, como o perímetro da cidade. No entanto, de repente a surpresa. Faculdade. Onde? Cuia-bá. CUIABÁ?

Quando menos esperava, me vi aqui. Sol. Calor. Que lugar grande! Impressão minha ou tudo aqui parece um misto de verde e laranja? Calor. Avenida Fernan-do Correia lotada. Universidade Federal de Mato Grosso. Calor. Quem é você? Ninguém me conhece. Calor. Garoto, sai da frente! Não sabe atravessar uma avenida não? Calor. Ônibus. Como não sabe andar de Ônibus. COMO EU VIM PARAR AQUI?

Primeiro ano. Cuiabá? É no Mato Grosso do Sul? NÃO. Como você não sabe que Cuiabá é a capital do Mato Grosso? Maria Isabel!!! Saborosa essa comida, né? Farofa de banana. Banana com arroz e feijão? Opa!! Achei que era batata frita, mas não, é banana. Três sho-ppings. Sério que vocês não acham os shoppings daqui legais? O shopping da minha cidade é metade de um an-dar dos shoppings daqui. É...aqui é legal, mas sinto falta de casa, do meu ovo.

Segundo ano. Feirinha na praça. Nossa, que sol!!! Estou ficando cada dia mais bronzeado nessa cidade. Andar de ônibus? Não. Esse troço ainda me dá medo. Tudo é longe aqui, né? Mas pelo menos tem aonde ir. Na minha cidade, uma hora dessas, nunca compraría-mos Coca-Cola. Cuidado! Assalto. Eu devo ser aben-çoado. Todos meus amigos foram assaltados, mas eu, não. GRAÇAS A DEUS. Melhor evitar sair à noite so-zinho. De onde eu venho, nós andamos de madrugada e nada acontece. Mas aqui é diferente. Como o céu é lindo aqui! Que azul!

Terceiro ano. Nossa, que vontade que eu estava de comer farofa de banana. Impressão minha ou tudo pa-

rece mais perto? Não acho tão longe, é só andar um quilometro e depois vira à direita. Aqui do lado, né? Sério que vai ter Copa? Obras. Ixi... Atrasadas. Nos-sa, quanto gringo. GENTE...A SHAKI-RA TÁ EM CUIABÁ. 7x1. É, acabou a Copa. Impressão minha ou o céu está cada dia mais lindo? Mas ainda está calor. Já acabou o ano? Sério? Que pre-guiça de ir para a minha cidade.

Não sei do futuro. Não sei o que vou sentir nem achar. Não sei nem se vou saber explicar o que real-mente sinto quando penso em Cuiabá. De todos os lugares do mundo, aqui eu nunca pensei em morar. Quando vi, já estava no meio do calorão, vendo a vida passar. E, de todos esses anos, uma coisa eu posso falar: para o menino que saiu do ovo, neste lugar tudo é novo. Mesmo sendo uma grande bola de fogo, acho que eu te escolheria de novo para ser meu lar. Com tudo que aqui vivi não teve como não amar essa grande, quente, nova... Cuiabá.

Ei, amigo! Toque uma

Lambada!Assalto. Eu devo ser abençoado.

Todos meus amigos foram

assaltados, mas eu, não.

Leticia Damaceno

Por que Cuiabá?Eduardo Mafra

Page 4: Revista Fuzuê

7

Há séculos as histórias são passadas de geração em geração. Quem nunca sentou numa tarde para escutar aquela pessoa mais velha dividir suas histórias? E não há forma mais gostosa de aprender e conhecer o passado do que ouvindo as trajetórias contadas por pessoas que presenciaram esses acontecimentos de perto.

Sentado em sua cadeira de fio na varanda de casa, Anibal Alencastro, cuiabano, geógrafo, historiador e autor de livros sobre a história da cidade, como Freguesia de Nossa Senhora da Guia, Cuyabá Histórias, crônicas e lendas e Lendas e anos dourados dos nossos cinemas dividiu um pouco de seu vasto conhecimento e vivência sobre o que se passou aqui ao longo de sua vida.

Nas palavras de Anibal, “a cidade é feita dos que vivem nela. De fato, a cidade é a cara de seu povo e de seus habitantes. Sabendo que todas as cidades antigas estão ligadas à história de seu povo, cada rua, cada praça, está ligada às pessoas. Pode ser até um personagem não importante na aristocracia social, um ‘João Ninguém’ ou um simples e simpático mendigo que no dia-a-dia está sempre ali, naquele mesmo lugar, fazendo parte da paisagem”.

Então, seria impossível contar a história de Cuiabá sem citar

personagens importantes que marcaram, fizeram e ainda fazem parte dela. Alguns desses personagens foram tão marcantes, que receberam estátuas e até parques nomeados em sua homenagem, mas que, por muitas vezes, passam despercebidos, não despertam a curiosidade daqueles que não os conhecem, podendo fazer com que suas histórias deixem de ser lembradas futuramente.

A primeira personagem que nos foi citada tem um marco em sua homenagem, uma estátua localizada na praça que recebeu o seu “nome”. Muitos já a viram, mas não conhecem sua história. Maria Taquara é, segundo Anibal, uma das pessoas que fizeram parte da história. Passou por Cuiabá por volta de 1940, ninguém sabe de onde veio, mas desconfia-se que, por causa do seu sotaque, viera do Nordeste. Foi mulher comum, que se destacou dentre as outras por ser a primeira a utilizar calças

compridas. “Ela descia a rua com uma trouxa na cabeça, todos os dias. Era lavadeira. Chamava atenção por ser muito alta e por fazer coisas, como fumar e beber, que outras mulheres da época não faziam”, conta Anibal, que a conheceu na época em que serviu no exército.

Mas a fama de Maria não para por aí: ela foi o motivo da prisão de muitos soldados na época que pulavam os muros para ir ao seu barracão em busca de ‘sua companhia’. “Durante a vigília noturna, os soldados deixavam os seus postos e pulavam os muros para se encontrarem com ela, cujo barracão ficava ao lado do quartel. Depois o sargento passava e olhava para os fuzis deixados do lado do muro. Muitos deles foram presos por abandono de posto. Tudo isso pela Maria Taquara”. Sua fama como ‘mulher da vida’ ficou tão conhecida, que chegou a receber o apelido “De dia Maria Taquara, de noite Maria-meu-bem”. Por fim, não se sabe o que aconteceu com ela, não se tem noticia de nenhum familiar e nem registro de que tenha tido filhos.

Não foi só estátua que Maria recebeu em sua homenagem. Na década de 80, serviu de inspiração para Moisés Martins na criação de um samba-enredo que caiu na

“A cidade é feita dos que vivem nela”

As histórias dos personagens que fizeram e fazem parte da história de Cuiabá, narradas pelo historiador Anibal Alencastro

Emilly CassimLetícia Damaceno

De fato, a cidade é a cara de seu povo e de seus

habitantes. Sabendo que todas as cidades antigas estão ligadas à história de seu povo, cada rua,

cada praça, está ligada às pessoas

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CAUSOS CUIABANOS

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boca do povo:

“Maria Taquara, Maria meu bem.

Mulher de todos, que não é de ninguém.

Taquara de dia, de noite meu bem,

Maria Taquara, não é de ninguém.

Muié de sordado, de meganha também.

De dia Maria, de noite meu bem.

Maria é Cuiabá, Cuiabá é Maria

Não importa se é noite, não importa se é diaMaria é TaquaraTaquara é Maria

Avançada no tempo,Mulher fantasia”.

Dos homenageados, assim como Maria Taquara, tem o Zé Bolo Flô, que atualmente virou nome de

parque. Um poeta andarilho, que retratava Cuiabá em suas poesias. José Inácio da Silva vivia de favor na casa da uma família tradicional, e, para se manter, vendia bolos e flores no centro de Cidade, daí vem o apelido. Adentrava as principais missas com suas roupas maltrapilhas, um terno desgastado e uma camisa desbotada, e, assim, com o saco de estopa nas costas, parava em frente ao altar, rezava e ia embora. Religioso, estava em todas as festas de santo e acompanhava as esmolas do Senhor Divino. Com a ajuda de pessoas que passavam pela Praça Alencastro, local em que estava sempre, colocava no papel suas poesias e canções, que logo iam para alguma gráfica e viravam folhetos que circulavam pela cidade. “Não existe uma história sobre sua vida, mas virou uma figura folclórica e mística pela invenção das estórias populares. Dizem que dezenas de músicas

são de sua autoria. Creditam a ele a composição da letra A lua, muito conhecida por aqui e que foi gravada por Zéze de Camargo e Luciano”, conta a artista plástica Rosylene Pinto. Como não poderia deixar de ser, todo cuiabano do “Pé Rachado” já escutou os famosos versinhos do “Zé” na música Eu sou de Cuiabá.

‘Eu vim, eu vim, eu vim, eu vim de lá pra cá, eu sou, eu sou, eu sou,

eu sou de Cuiabá.Terra de Dom Aquino, me

lembra o tempo de menino.Jogava peteca, soltava iô-iô,

brincava com Zé Bolo Flô’.

Outro personagem citado por Anibal foi o General Saco. “Ele era meio tan-tan, se vestia como um general. Vivia sentado em frente a um banco, calçava botas e vestia uma túnica onde colocava centenas de santinhos de igreja

para se parecer com medalhas honrosas, e se portava como tal. A ‘gurizada’, na época, quando o encontrava, gritava ‘Ô geral saco!’. Ele ficava louco e saia correndo atrás”. Um homem simples, mas que, como já dito, constituía a paisagem da cidade por ser alguém que estava sempre ali e que sempre que era citado, todos o conheciam. “Este também foi um dos que tive contato, também foi da minha época”, disse.

Na mesma época também teve o “Barbeiro da rua dos Porcos”, que hoje é a rua Antônio João. “Serafim era um barbeiro que estava muito velhinho e tinha esclerose, mas ele permanecia ali fazendo o seu trabalho. Naquele tempo ainda se usava a navalha, e pouca gente ia lá, mas ele continuava com o salãozinho. Certa vez, veio um caixeiro viajante (nome dado, na época, aos homens que viajavam como representantes para vender algum produto). Já tarde foi atrás de um barbeiro e só achou Serafim ainda aberto. Ele sentou na cadeira do Serafim, e ele amolando a navalha. Passou o sabão, e o caixeiro observando ele rindo. Cansado como estava, acabou pegando no sono. Nesse breve cochilo ele acorda ouvindo Serafim falando:

A Praça Alencastro: cenário de grandes histórias

Como visto na matéria, muitos de nossos personagens passaram e fizeram história nesse local. A Praça Alencastro foi construí-da em 1882, pelo Presidente da Província de Mato Grosso, Coro-nel José Maria de Alencastro. A in-auguração aconteceu em setembro do mesmo ano com uma grande festa que começara às 10 horas e só foi terminar à noite, com um baile de gala. Durante o evento, a praça permaneceu iluminada com balões multicores e cheia de pes-soas. Naquela época, ainda não era chamada de praça, mas sim, Jardim do Palácio. É só em novembro que ela recebe a denominação atual, homenageando o seu idealizador. A Praça Alencastro é a primeira praça pública da cidade.

“Por décadas, o jardim da praça viveu cercado por grades de ferro. Os ‘ricos’ se reuniam na parte in-terna, onde havia bancos de madei-ra, e os mais ‘humildes’ na externa. Com o processo de modernização da cidade, lá pelos fins dos anos 30, as grades foram retiradas, dan-do fim também a uma certa forma de discriminação que ela levava consigo”, conta Anibal.

Durante anos a praça foi palco para shows artísticos, encontro de casais apaixonados, tocatas de Me-stre Inácio, entre outros eventos. Até a década de 70, ela possuía ain-da outra atração que conquistava a todos que por ali passavam, prin-cipalmente as crianças: uma fon-te luminosa. “Famílias inteiras vinham para ver o sobe e desce das águas da fonte. Era a atração preferida, principalmente nos dias de calor”, disse.

A praça foi, por muito tempo, um dos grandes pontos turísticos da cidade, mas atualmente está abandona. Pode-se até dizer que ela perdeu o “glamour” de seus anos dourados, mas não que tenha perdido sua importância histórica.

Aníbal que já publicou 3 livros, está no processo de criação do “Causos

Cuiabanos”.

Jhenifer Heinrich

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Fotos da antiga Cuiabá expostas no livro “Freguesia de Nossa Senhora da Guia”.

‘Não, não, sim, não’. Assustado, pergunta pra ele o que houve, e ganha essa resposta: ‘É que eu tô ouvindo uma voz pra cortar seu pescoço, mas a outra fala pra não cortar’. E esse era o Serafim”, relata Anibal. Casos como esse chegaram ainda a sair nos jornais da época.

Compondo ainda o grupo, tinha o Milton Cabecinha. “Tinha uma cabeça pequena, logo se deu o apelido. No entanto, uma pessoa boa, sempre ficava esperando

os alunos saírem da escola. Não era uma pessoa ruim, não fazia nada com eles, somente gostava de atormentar a criançada”, diz. E ainda a “Preta”, uma mulher mais madura, gordinha, que ficava na Praça Alencastro cantando cantigas de roda para as crianças brincarem.

Contribuindo com as histórias de Anibal, o senhor Sebastião Proença, de 83 anos, contou a história de um peculiar morador da Cidade Alta, o professor Ezequiel. “Em 42, houve uma grande enchente em Cuiabá, e, depois disso, a modernização começou a chegar à cidade. Houve a criação do Grande Hotel, onde se recebiam os turistas. Era aí que entrava o professor. Como ninguém aqui conseguia falar outras línguas, o

CAUSOS CUIABANOSCAUSOS CUIABANOS

Page 6: Revista Fuzuê

hotel dava um ‘banho de loja’ no professor e o trazia para ajudar na tradução dos hóspedes gringos. O professor, um mendigo que falava várias línguas e que provavelmente ficou doido de tanto estudar”.

Viajando para períodos mais distantes, no século 19, marcou história em Cuiabá e ganhou estátua, parque e córrego com o seu nome, em homenagem. Mãe Bonifácia era uma mulher negra que lutava pela liberdade e igualdade dos outros negros e escravos. “Mãe Bonifácia foi libertada devido à idade avançada, e ao deixarem de usar seus serviços,

foi morar na saída para a Estrada da Guia, em um barracão em frente ao 44º Batalhão. Também era ali que nascia o córrego, que viria a ter o mesmo nome, ‘Mãe Bonifácia”, conta Anibal.

Curandeira, ajudava os escravos contra a perseguição pelo rio até o quilombo na mata densa, onde hoje se localiza o parque. Quando um negro necessitava de ajuda, era para ela que recorriam. Sobre as dúvidas que existem a respeito da real existência dessa mulher, Anibal confirma dizendo que a história é real, pois foi atrás dos familiares remanescentes dos escravos que

viveram aqui na década de 50. Eles confirmam a existência da “negra velha que ajudava os escravos”.

Como diz Pescuma em sua música Tipos Populares, “sem eles, qualquer cidade seria um jardim faltando flor”. Seja nos séculos passados ou no atual, as pessoas continuam sendo a peça principal que constitui a paisagem da cidade. Maria, José, Serafim são poucos dentre tantos, muitos que já se perderam, que foram enterrados na memória dos antigos. Daqui a uns anos, haverá novas histórias, novas pessoas, e fica a importância de se preservar essas memórias.

O “contador de histórias” narrando

suas experiências.

Mural de condecorações e

fotografias na casa de Aníbal.

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Jhenifer Heinrich

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Ah, o verão! A estação que todos esperam. A esta-ção da mudança de vida, das atividades ao ar livre, do projeto de emagrecimento e da mudança de visual. E apesar de Cuiabá ser uma cidade onde se tem verão o ano inteiro, essa condição climática só faz efeito entre os meses de dezembro e fevereiro.

Talvez seja pela proximidade com o carnaval, ou pela vontade de se sentir bem em um traje de banho (ainda que você tenha usado a vestimenta durante todo o ano) e exibir o corpinho. Talvez seja pelas horas a mais que se ganha de sol, ou ainda pela crença de “ano novo, vida nova”. Têm aqueles que começam com o sentimento de culpa por toda a gula das festas de natal e ano novo.

Mesmo que o verão seja a esta-ção mais chuvosa da cidade, pare-ce que nem a possibilidade de cair o mundo no final da tarde tira o foco desses determinados tempo-rários. Independente do motivo e das condições, as pessoas estão se exercitando: nas calçadas, nas ruas e nos parques e, principalmente, na Arena Pantanal.

Ao que tudo indica, o elefante branco da Copa do Mundo em Cuiabá contribuiu para o verão dos cuia-banos, e não pode mais ser considerado um mal para a cidade. Virou modinha ir à Arena Pantanal praticar atividades físicas. Conheço muita gente que comprou até equipamentos esportivos para participar da multi-dão convencional.

Patins, patinetes, skates, longboards e bicicletas. Parece não haver outro lugar na cidade com as condi-ções necessárias para se usar esses aparatos. Os mais “fominhas” montaram até pista com obstáculos (com madeira, escadas, compensado e metal), onde os mais profissionais exibem suas manobras. Cansados de car-regar os materiais todos os dias, as rampas, caixas e corrimãos adaptados já fazem parte do mobiliário do entorno da Arena Pantanal.

Como não tem uma divisão ou sinalização, os es-portistas disputam o espaço com o menino que solta

pipa, a moça que leva o cachorro para passear, a crian-ça que está no carrinho elétrico, todos estes multiplica-dos por 100, além de outras tantas pessoas que só vão com o tênis e muita disposição para caminhar e correr. Dividem espaço também com as tribos que por lá se encontram, a galera que vai fumar narguilé ou drogas proibidas, os que ficam escutando funk, rock, pagode, entre ‘emos’, góticos e ‘periguetes’.

Quem foi esperto enxergou no local uma oportu-nidade de negócio. Sabe o aluguel de bicicletas que a gente vê nas cidades turísticas? Agora tem em Cuia-bá. Meia hora, dez reais, e 180 quilocalorias perdidas. Como criança adora cama elástica, às seis da tarde ela pode escolher dentre as que são montadas todos os

dias. E devido à falta de infraestru-tura no entorno, além dos restau-rantes prometidos que ainda não abriram, o que não falta são barra-quinhas vendendo água, carrinhos de cachorro-quente e pipoca.

Existem aqueles menos esper-tos, que dentro de seus carros que-rem ocupar o mesmo local dos pe-destres. São os carros rebaixados,

geralmente equipados com aparelhos de som potentes, que passam do limite do estacionamento, e querem pa-rar no meio da ‘pista’. E que comece a disputa...

Para não falar que, por lá, a coisa está um pouco bagunçada. Não houve relatos de acidente, assalto ou furto. E a polícia também bate ponto das 17 às 22 horas ou enquanto houver movimento. E o que se espera é que esse movimento continue...

“Cuiabá tem um déficit muito grande de espaços para a prática de esportes, e a população está sabendo aproveitar este aqui”, ouvi alguém dizer. E que apro-veitem bastante. Que cobrem das autoridades a manu-tenção do entorno, além de uma maneira de dividir os espaços, para que todos possam usá-los sem prejuízo. Que cobrem a criação de outros lugares como esse. E que não desistam do projeto ‘ano novo, vida nova’, do projeto ‘carnaval de todos os anos’, do projeto ‘pronta para a praia’. Afinal, é sempre verão por aqui.

No primeiro ano do ensino médio, eu era aquele tipo de pessoa que o capitão pensava duas vezes antes de chamar, e acabava escolhendo por não haver mais nenhuma opção, afinal eu sempre ficava por último e ainda tinha que lidar com a cara de insatisfação dele por ter em seu time um pos-te. Eu era do tipo que via a bola vindo em minha direção e não sabia se saia correndo para não levar uma bolada no meio da fuça ou tentava, ridiculamente, pegar a bola nem que fosse por dois segundos para tentar passar pro primei-ro que aparecesse. Trocava o handebol, vôlei, futebol ou qualquer outro esporte pra ir à escola no sol escaldante de 15 horas pra poder jogar xadrez, tamanha era minha cons-ciência dos meus não dotes esportivos.

Talvez não saber jogar direito nenhum esporte explique muita coisa na minha personalidade. Creio muito no po-der dele e como contribui na formação das pessoas, através da superação, muitas vezes como re-fúgio, autoconfiança, deixa as pessoas mais destemidas, coisas que não sou. Talvez se eu tivesse me esforçado mais e não fosse medrosa, teria ao menos uma medalha em casa ou fotos de uma olimpíada em que ajudei meu time vencer, teria histórias de vestiário para contar, amigas do futebol pra re-encontrar e fizesse parte ainda de al-gum time, daqueles que marcam jogo quando dá.

Sempre admirei muito pessoas que conheci e conheço que são boas em algum esporte, que se dedicam àquilo e almejam poder um dia representar nosso país. Admiro a força de vontade de querer se aperfeiçoar, de olhar o espor-te com seriedade e não apenas como lazer, de sonhar em mudar de vida através daquilo que mais gosta de fazer.

Participo de um projeto social que envolve futebol, e um dia desses uma das atividades antes da partida era colocar numa árvore dos sonhos improvisada o desejo deles para o futuro. E foi quase unanimidade o anseio por ser joga-dor de futebol: a maioria dos meninos é carente não só fi-nanceiramente, mas emocionalmente também. Talvez essa admiração toda pelos jogadores de futebol seja reflexo da falta de uma figura paterna, porque muitos deles não co-nhecem o pai, outros têm o pai atrás das grades e a maioria nunca teve realmente uma relação de pai e filho, de sentar

e conversar sobre qualquer assunto. Corta meu coração sa-ber que, diferente de mim, eles não tiveram a oportunidade de saber como é abraçar um pai, de como é ter em quem se espelhar dentro de casa, como é ser confortado e aconse-lhado por alguém que se admira.

Tenho certeza que muitos deles dariam tudo pra ser um Neymar da vida, um Messi, Kaká, David Luiz, Robinho, Ronaldo, Cristiano Ronaldo e tantos outros jogadores. Te-nho certeza de que a maioria detesta a escola, mas pergunte de futebol pra ver... Sabem tudo! Desde o tamanho de um campinho de terra, até o tamanho da bola. Meninos que falam do futebol com tanto amor, que somente o brilho no olhar deles pode expressar a imensidão desse sentimento.

Magnus Carlrsen é um dos melhores jogadores de xa-drez. Minha sagacidade é bem limitada comparada à desse norueguês. Minhas tardes enganando o professor e a mim

mesma, na verdade, era pra eu não ficar sem nota, não posso negar, não me atreveria de jeito nenhum a chegar perto de um tabuleiro com qualquer pessoa que seja.

Muito se fala da falta de incenti-vo ao esporte, mas essa é uma ques-tão que não podemos culpar apenas os governantes, ou seja lá quem for o responsável por isso. Antes de tudo, o

incentivo maior deveria vir de casa, dos nossos pais. Claro, como algo natural, sem forçação de barra. Apesar de todo amor que sempre me rodeou, nunca ninguém me disse que eu deveria procurar um esporte que eu me desse bem, nun-ca ninguém disse que faz bem não só pro físico, mas pra mente.

O olhar que eu encontro todas as segundas-feiras no projeto, quando vejo os meninos pedirem para jogar fute-bol, é o mesmo que desejo um dia ver nos filhos que eu ain-da nem tenho. Não importa qual esporte eles decidam fa-zer: quero poder sair do serviço para acompanhar e vibrar pelo time do Théo e depois arrumar as coisas da Mariana para ir à aula de natação. Quero que eles tenham a alegria de ter o nome gritado por uma torcida, mas se, assim como eu, eles não levarem jeito nenhum pro esporte e escolhe-rem também o xadrez, eu os levarei pelo menos à escola para que não enfrentem o sol das 15 horas.

“Cuiabá tem um déficit muito grande

de espaços para a pratica de esportes, e a população está sabendo aproveitar

Verão saudável, um legado da copa do mundoPaula Rühling

Muito se fala da falta de incentivo ao esporte, mas... antes de tudo o incentivo

maior deveria vir de casa, dos nosso pais

Uma Torcida nunca gritou meu nomeCamila Cabral

Page 8: Revista Fuzuê

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Equilíbrio e aventura nos rios de Chapada

Testamos o esporte do momento e atestamos que quem fica parado não sabe o que está perdendo. Aventura, adrenalina e muita história para contar sobre o uso de pranchas em um lugar paradisíaco

SUP RIVER

Se o final de semana em Cuiabá parece entediante, opções para deixá-lo mais animado não faltam. Não estamos falando de balada ou de shows, que ultimamente têm aumentado na capital, mas de aventura. Falamos de poder aproveitar o que a natureza da região tem a oferecer, de forma radical, e junto, claro, com guias habilitados para isso. A Chapada dos Guimarães tem mais opções do que se imagina, e nós fomos conferir uma delas.

Pegamos a Rodovia Emanuel Pinheiro por volta das 13h40, empolgadas, ansiosas e... atrasadas. A atividade estava marcada para as 14h, e tínhamos mais de 30km pela frente. Seguimos em velocidade máxima permitida, torcendo para que a equipe nos esperasse e para que o sol continuasse brilhando. Em período de chuva, podemos dizer que estávamos com sorte.

Chegamos à Tribo do Remo, nosso ponto de partida, depois de andar mais de 10km à toa. À beira do Rio Claro, os instrutores Gabriel Maluf e Ana Carolina Vasconcellos nos esperavam animados. Eles transmitiam tranquilidade, mas tínhamos nossas dúvidas. “Vamos conseguir ficar de pé? Quantos hematomas vão surgir depois dessa prática? Será vergonhoso demais?”. Não podíamos amarelar, pois deveríamos escrever sobre a

Érika OliveiraPaula Rühling

emoção de surfar em rio. Sim, é de Surf que estamos

falando. Equilíbrio na prancha, sem ondas e com remo. No litoral brasileiro se tornou comum ver surfistas remando no mar, em cima de uma prancha gigante. Em algumas praias, tem mais surfista em pé na prancha do que esperando deitado para pegar aquela onda maneira.

A modalidade, conhecida como Stand Up Paddle, ou SUP, nunca pareceu ser fácil. Aliás, só de olhar dá um frio na barriga. Traduzida ao pé da letra, significa ‘remo em pé’. A prática no rio recebe o nome de River Sup.

Descobrimos essa atividade aqui em Mato Grosso através das redes sociais. Gabriel Maluf (companhia da aventura), proprietário da empresa que promove o SUP, publica diversas fotos de turmas que toparam a aventura e, pelo que vimos, se divertiram muito. Foi o nosso primeiro contato e o suficiente pra querermos praticar também.

O pacote oferecido incluía a descida de Stand Up Paddle nas corredeiras do Rio Claro e do Rio Coxipó (duas horas em média), os devidos equipamentos de segurança, acompanhamento de instrutor e transporte. Também ganhamos chocolate e bolacha de água e sal para repor as energias,

mas não sabemos se estava incluso. Por enquanto, o passeio é exclusivo da companhia.

Fichas devidamente preenchidas (até mesmo para caso de emergência), capacete e coletes no corpo, muito protetor solar e repelente, chegava a hora de entender como funcionava a brincadeira. Ainda em terra firme, Ana Carolina e Gabriel nos fizeram uma demonstração de como se comportar sobre a prancha e caso caíssemos.

Equilíbrio era o elemento-chave. Em pé ou ajoelhado, o importante era se manter bem ao centro da prancha e deixar os pés um pouco espaçados. Remar, a gente entenderia a melhor forma com o tempo. Se caíssemos, era só voltar para a prancha, presa ao colete. Era permitido também deitar. Estando com a cabeça pra cima, tudo certo. Haveria alguém na dianteira e atrás para se certificar da situação. Ficamos tranquilas.

Era hora de conhecer o rio. Seguimos em uma trilha de aproximadamente 300 metros em direção a uma pequena piscina que se formava logo após uma cachoeirinha de um metro. Água transparente, com pouca correnteza. Começamos bem, fizemos uma aula rápida de abaixar e levantar sobre a prancha, e chegou a hora de descer. No

Gab

riel M

aluf

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SUP RIVER

começo, havia muitas pedras, então o recomendado era descermos de joelho. Após dois pontos de correnteza forte, chegou a hora de se levantar.

Modéstia à parte, fomos elogiadas logo no começo. Demonstramos facilidade em nos equilibrarmos, mas devia ser porque não tínhamos passado pela pior parte. A maior dificuldade era conduzir o remo e recordar a posição das mãos, para remarmos de maneira efetiva.

Em geral, o trajeto é de águas calmas seguidas de algumas corredeiras. Segundo os instrutores, há pessoas que fazem todo o percurso, de seis quilômetros, apenas de joelhos na prancha. Outras se arriscam mais e acabam caindo. Mas cair também é divertido. Quando você está preparado para as dificuldades do caminho, tudo é como uma grande brincadeira.

Entre os obstáculos, além das pedras que praticamente alcançavam a superfície da água, estavam as margens do rio. Era como se nos atraísse. O remo também tinha a função de nos afastar dela. Além disso, encontramos galhos pelo caminho, pedaços de tronco, dos quais precisávamos desviar. Cordas, as quais erguíamos com a mão, e passávamos agachadas.

Mas a maior barreira era passar sobre um grande número de pessoas que aproveitavam o sábado para tomar banho de rio. A grande maioria eram crianças, que ficavam surpresas com o que estávamos fazendo. Dava para ver o brilho nos olhos e a vontade que eles tinham de fazer também. Alguns nos incentivavam, achando que era um tipo de competição. Outros gritavam “cai, cai, cai”. Ríamos de tudo aquilo, e sustentávamos a pose de profissionais.

As duas paradas para lanche nos permitiam admirar a natureza, mergulhar e também bater um papo. Descobrimos o ‘casal

aventura’. Gabriel e Ana Carolina estão juntos há quatro anos. Ele é turismólogo e já deu uma volta ao mundo para conhecer e praticar vários esportes de aventura. Quando voltou, fundou a sua empresa, e agora permite que os outros tenham experiências radicais em Mato Grosso. Carolina se formou em advocacia, mas se pudesse viveria de esportes, como ele. Nos finais de semana, ela o ajuda no trabalho, ou melhor, eles se divertem juntos. Conheceram o SUP em Florianópolis, terra natal de Ana, e resolveram trazê-lo para Chapada.

O Stand Up Paddle é um esporte muito democrático, pois os surfistas não precisam necessariamente de água salgada para se divertir. Os adeptos podem praticá-lo em lagos, represas e em rios, inclusive com corredeiras, como no nosso caso. O esporte está se tornando popular, e não podia ficar de fora do nosso cerrado.

Se se equilibrar na prancha já é um desafio, mais difícil ainda é perder o remo. Isso aconteceu

justamente com Ana Carolina, quando estava desviando de uma pedra. Como o remo não flutua, não foi possível recuperá-lo. Para não acabar a brincadeira, ela seguiu sendo puxada. Mas não há nada de errado em deitar na prancha e sentir as ondas baterem. É a aventura vista de outra forma, mais zen.

Passamos por uma ponte, por outras correntezas, e depois de duas horas a aventura chegou ao fim, com direito a mais mergulhos. Tudo porque não há vontade de abandonar o rio. O que, na verdade, motiva o estreante a voltar outra vez e fazer do Stand Up Paddle uma prática.

A emoção é tamanha que, ao final do passeio, não é possível sentir o cansaço. A vontade é de continuar descendo, até alcançar o rio Cuiabá. Depois de um tempo, acabamos agradecendo por apenas duas horas, afinal, quando a adrenalina passa, as dores aparecem.

Sentamos no carro que nos levaria ao ponto de partida,

SUP RIVER

sentindo o vento no rosto. Era o fim da aventura, mas o começo de outras, pois depois que se conhece o Stand Up Paddle, não tem como deixar de praticá-lo. Não tivemos hematomas, não foi vergonhoso, e conseguimos ficar em pé na prancha. O esporte é seguro, mas aventureiro. É relaxante, mas exige adrenalina. É de mar, mas também de rio, de lagos, de surfistas e de turistas.

Já quero a minha pranchaLeonardo Bezerra levou o

esporte a sério e até encomendou uma prancha dos Estados Unidos. Ele conheceu o SUP em Porto Seguro, no final de 2012. Remou em cima de uma prancha de fibra, mas logo descobriu que existia inflável, do tipo que poderia levar para qualquer lugar. “Não pensei duas vezes: pesquisei e comprei uma pela internet”.

Mas a prancha inflável não é tão fácil de carregar. Ela pesa em média 18kg. Para quem busca aventura, vale a pena carregar a carga. Morando em Cuiabá, ele não tem

Ana

lu M

elo

Ana

lu M

elo

Analu Melo

Page 10: Revista Fuzuê

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OUTRAS MODALIDADES DE SUP

O Stand up Paddle começou no mar, em uma modalidade conheci-da como Wave. Hoje o SUP ganhou outras superfícies e novas formas de praticá-lo. Vamos conhecê-las?

WAVE

A modalidade Stand Up Paddle Wave é uma mistura do desem-penho do surf clássico e moderno com o uso do remo. Desta forma, as potencialidades e características dos equipamentos prancha e remo são usadas em uma onda.

RACE

A modalidade Race é como uma corrida. Tem o objetivo de decla-rar como campeão aquele atleta que tem o maior potencial de ren-dimento da prancha com o remo. Ou seja, quem é capaz de realizar o percurso estabelecido para prova em menor tempo.

FREESTYLE

A modalidade Freestyle tem como objetivo avaliar a variedade de ma-nobras realizadas sobre a prancha de Stand Up Paddle apenas com a mobilidade do corpo e auxílio do remo. A criatividade e a técnica do surfista decidem quem é o melhor.

RIVER SUP RAFTING

A modalidade Rafting foi a que fi-zemos, em um nível considerado fácil. O objetivo é descer corredei-ras sobre a prancha de Stand Up Paddle apenas com a mobilidade do corpo e auxílio do remo. Além, é claro, de admirar a natureza ao redor.

como praticar o esporte no mar, como foi sua primeira experiência. Precisou se adaptar à água doce.

Ele conta que já usou a prancha no Lago do Manso, na Lagoa Trevisan, no Rio Claro (inclusive com Gabriel Maluf). Agora pensa em desbravar rios e lagos do Estado nas suas férias. Prometeu que, depois de surfar bastante, conta para a gente quais os melhores lugares para ir, e os mais bonitos. Afinal, uma das vantagens desse esporte é apreciar a natureza.

O esporte do momento Se o Hawaii é o paraíso dos

surfistas, o Stand Up Paddle só poderia ter surgido nesse Estado americano. Os instrutores de surf utilizavam as pranchas gigantes para observar melhor os alunos na arrebentação. O remo foi inserido no início dos anos 2000, quando um grupo de havaianos, liderados por Laird Hamilton, passou a produzir pranchas e remos específicos para SUP. Hamilton passou a usar materiais inovadores, além de aparecer com frequência nas praias havaianas, ora descendo ondas, ora fazendo travessias.

Como não poderia deixar de

SUP RIVER

ser, o esporte chamou a atenção de alguns brasileiros que estavam nas ilhas. E mais ou menos em 2004, Vitor Marçal, um respeitado salva-vidas radicado em Oahu, que estava de férias no Brasil, foi provavelmente o primeiro brasileiro a ser visto remando em uma prancha feita para SUP em águas tupiniquins.

Mais tarde, em 2009, um grupo de amigos que também começou a praticar o esporte por aqui montou a Associação Brasileira de Stand Up Paddle. A ABSUP tinha o objetivo de organizar o esporte em nível nacional. Mas a legitimação veio com a Confederação Brasileira de Stand Up Paddle, em 2013, um conjunto de federações estaduais que mantém contato direto entre atleta e entidade e preza pelo desenvolvimento do esporte.

A CBSUP está de portas abertas para todos os competidores, praticantes, dirigentes de associações, técnicos de atletas, jornalistas especializados, organizadores de eventos ou até mesmo apreciadores do Stand up Paddle que desejem dar a sua contribuição para o desenvolvimento do esporte.

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Olhando para fora dos grandes centros urbanos, dos prédios, carros, pessoas engravatadas, maquiadas, olhan-do nos relógios na busca frenética por dinheiro, vemos logo ali o contraste chocante da nossa sociedade.

Uma recente pesquisa realizada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e veiculada em sites como o Valor Econômico mostrou que a parcela dos 10% mais ricos do país concentram 42% da renda do Brasil. Enquanto isso, outra pesquisa do IBGE registrou que no país cerca de 7,2 milhões de pessoas passam fome.

Esses que fazem parte da segunda estatística se encon-tram nas periferias, afastados do conforto e segurança. Não tiveram a oportunidade de ter uma vida melhor e, por isso, vivem nas favelas e subúrbios. As condições são mínimas: falta saúde, educação, segurança, saneamento básico e acesso a ferramentas importantes para a constru-ção social de um indivíduo. Dentre essas ferramentas de construção social está a arte.

Com tantas necessidades mais importantes a serem supridas, parece que ensinar as crianças e adolescentes a tocar violão, dançar, pintar, atuar, confeccionar artesanato ou mexer no computador é algo sem importância. Porém, se pararmos para pensar que a arte é a forma que o indivi-duo utiliza para se comunicar com o mundo, percebemos a importância de se introduzir esse conhecimento.

O ser humano precisa de algo para se sentir útil e feliz, e é nessa busca pessoal, influenciados pelo meio em que vivem, que muitas crianças e adolescentes buscam em coi-sas erradas essa satisfação. Infelizmente, a facilidade de se envolver com drogas, tráfico, prostituição e crimes é mui-to maior nas periferias, e se esses jovens não tiverem outra opção, a não ser essas, com certeza seu futuro não poderá ser muito melhor.

Como diz a nossa presidenta, um país rico é um país sem pobreza. Mas para acabar com ela, não basta dar bol-sa isso, bolsa aquilo. Os jovens precisam de ferramentas, de conteúdo, de ensino, de educação. É preciso desenvol-ver programas, que os incentivem a trabalhar, produzir, pensar e criar.

Por isso, a arte é tão importante! Ela não é só um passa-tempo! O garoto da favela que aprende a tocar um instru-mento pode se tornar um músico, ao invés de traficante. A menina que aprende a cantar pode usar seu talento para viver, ao invés de se prostituir. Os jovens que aprendem a usar o computador e as tecnologias podem ingressar no mercado de trabalho.

É preciso dar oportunidade! Trezentos reais podem colocar arroz na mesa, mas não vão mudar a vida de nin-guém. Precisamos que essas crianças e jovens saiam dos subúrbios e venham para os centros, tomar parte daquilo que eles têm por direito.

“Vamos anunciar as cidades-sede da Copa do Mun-do 2014 em ordem alfabética. De acordo com o alfa-beto brasileiro, que é muito especial. Belo Horizonte. Brasília, a capital. Cuiabá [...]”, disse, no dia 31 de maio de 2009, o presidente da Federação Internacional de Futebol (FIFA), Joseph Blatter. A princípio, a euforia, o entusiasmo e a felicidade tomaram conta dos mato-grossenses e cuiabanos. Mesmo eu, que até então mo-rava no interior do Estado, fui tomado pelo sentimen-to. No entanto, a princípio.

Era a possiblidade de estar perto, mesmo à distân-cia, de ídolos do futebol que você só tem a chance de ver pela televisão e que fazem nossos olhos brilharem. Porém, com o passar do tempo, a dificuldade e o so-frimento foram fazendo parte da rotina do cuiabano. Com as construções, que já começaram atrasadas, a ci-dade se transformou num grande canteiro de obras. E transtornou quem tentava ir ao mercado, buscar o filho na escola ou chegar em casa. Coisas que eram comuns viraram quase que um desafio diário.

Os desvios não foram feitos apenas nas ruas, mas a maior parte nas verbas que deviam ser empregadas nas obras. Cuiabá se maquiou para os quatro jogos agendados na cidade: tampou-se canteiro de obras com grama, ruas principais foram varridas, colocaram-se enfeites, algumas vias, recapeadas. 13 de julho de 2014, fim dos jogos. Acabaram as partidas, não as obras.

Em um ponto de seus discursos, assumo a sabedoria da presidenta Dilma: “obras da Copa não são legado para os brasileiros”. Pense na execução dessas obras em longo prazo. Talvez seus filhos usufruam do esperado Veículo Leve sobre Trilhos (VLT). A partir do anúncio das cidades-sedes e passados sete meses do evento em Cuiabá, ainda se tromba em obras.

Entretanto, a maior trombada que os cuiabanos ti-veram no pós-Copa foi cultural. Em qualquer ponto da cidade você esbarra em haitianos, senegaleses ou ou-tros imigrantes de nacionalidade africana. Eles invadi-ram, no bom sentido, Cuiabá. Atraídos pela oferta de empregos que a Copa demandaria, os centro-america-nos e africanos imigraram para a capital em busca de condições de vida melhores.

Não que Cuiabá seja a melhor cidade do mundo quando se trata de oportunidades e distribuição de ren-da, mas, além do calor, outra coisa é quente por aqui: o

Ensinar arte é transformar

vidas

O maior legado cuiabano na Copa não são as obras

André Souza

Em um ponto de seus discursos, assumo a

sabedoria da presidenta Dilma: “Obras da Copa não

são legado para os brasileiros”

coração das pessoas. Os estrangeiros escolheram nossa cidade para fazer nova morada, assim como eu fiz ao decidir me mudar para a capital para estudar. Assim como qualquer família que migrou do sul, do norte ou de qualquer canto do país.

Cuiabá é um fuzuê de expressões, jeitos, identida-des e culturas. Se o Brasil é tão heterogêneo, por que não deixar essa mistura um pouco mais bagunçada, no bom sentido?

Eles já são tão brasileiros quanto nós. Ouvem músi-ca sem fone de ouvido no ônibus, alguns usam camise-ta da seleção brasileira. Já cheguei a presenciar um com a camisa do Flamengo. Tudo bem que eu ainda não en-contrei nenhum que torça para o Mixto ou coma pequi no arroz, mas o tempo vai se encarregar de adicionar esses itens na cultura deles.

Eles dominaram o centro da cidade com barracas e muambas e são facilmente identificáveis: estão sempre com um sorriso estampado no rosto, por mais difícil

que seja a lida diária. Eu, por muitas vezes, me pe-

guei no impulso de puxar con-versa, interagir, conhecer todas as histórias, mas sempre acho melhor só ouvir. Se já foi difícil manter um diálogo com um ho-mem que só havia me pergun-tado as horas certa vez, imagi-ne conversar sobre coisas mais

complexas?Do lado de cá, o nosso, ouvem-se alguns comentá-

rios negativos, como: “esse povo vai invadir a cidade”, “eles vão trazer doença deles da África”, “vieram roubar os empregos”, “vão todos para a favela da cidade”. Isso me entristece. Mas realmente eles invadiram a cidade da melhor forma possível, trazendo sua cultura e di-ferentes histórias – eu sempre fui apaixonado por co-nhecer novas histórias. Com a baixa remuneração, eles vão mesmo ocupar os bairros mais distantes do centro, mas mesmo assim estão felizes. A favela os acolheu. Tudo bem que já temos nossas próprias desigualdades sociais. Só faça o favor de retribuir o sorriso. Seja, no mínimo, humano.

Sou negro e completamente apaixonado pela cul-tura africana. Ritmos, cores, cabelos, sorrisos, simpli-cidade. Não sou ativista da causa – talvez devesse ser. Sei que o maior legado de Mato Grosso na Copa não são obras. É cultural. E cultura se troca, não se guarda. Cuiabá é cidade verde, preta, branca, morena, colorida, é para todos.

Priscila Soares

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Page 12: Revista Fuzuê

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São Francisco de Assis, um dos santos mais populares do mundo, marcou profundamente não só a vida da Igreja, mas também a sociedade temporal de sua época. Por isso, o artista Junne Fontenelle Cardoso traz em suas obras peças de São Francisco de Assis, unindo o dom da arte com a inspiração de vida do santo.

Junne, com seus 35 anos, casado e pai de dois filhos, exerce a profissão de escultor e escolheu Mato Grosso para morar. Ele veio residir em Mato Grosso, em função de sua família, quando tinha 24 anos. Natural do Estado do Ceará, ele possui um atelier na cidade de Várzea Grande.

Diariamente, dedica-se à criação artística em sua casa, que é uma verdadeira galeria de arte, com dezenas de peças que retratam a mulher, traços indígenas, pescadores, os músicos, pássaros e também o carro-chefe nas vendas, que é a arte sacra.

Junne relata que, ainda criança, aos oito anos, já sabia o que queria. Na época já demonstrava sua paixão pelos desenhos. Aos 14 anos, descobriu a cerâmica e já esculpia os seus brinquedos, alguns pratos e jarros.

O primeiro contato com as obras de arte foi nas feiras do nordeste, quando pôde conhecer diversos produtos em cerâmica dentre pratos, potes, jarros, cofres em formato de porco. Aí surgiu o interesse pela argila como matéria-prima.

Aos 20 anos, passou a produzir bonecos para revenda nas feiras de arte. Começava, ali, uma atividade

profissional. Naquele período, criou peças em tamanhos maiores, que ambientam a vida do homem sertanejo e rostos de animais. As imagens sacras também tiveram um papel preponderante no universo do artista. A sua primeira escultura foi a imagem feminina.

Além de desenhista, pintor, ceramista e escultor, a produção artística está a todo vapor. Quando recebeu os estudantes de Comunicação da UFMT, Junne dava os últimos retoques na

restauração de um crucifixo.

ObrasFoi com o barro que o homem

se comunicou pela primeira vez, traçando uma linguagem simbólica, e assim nasciam os primeiros passos para a escrita, diz os registros achados em Ur. Em algumas teorias, diz-se que o homem vem do barro, da terra, e para ela voltará. O Adão da bíblia foi moldado a partir de algo semelhante ao barro.

Os pergaminhos, na antiguidade, eram guardados em potes de barro; no Egito antigo, os potes tinham valor de ouro. A história está cheia de referências à argila, e a sua valorosa contribuição na vida do homem até os dias de hoje é de grande importância.

Boa parte das obras de arte de Junne Fontenelle pode ser encontrada na própria casa do artista, que, desde a sua entrada, está repleta de peças que representam períodos da sua história de vida.

Junne sempre começa seus trabalhos com característica do ser humano. São obras que expõem sua preocupação com a transformação do mundo e da cultura de um povo. Por exemplo, no atelier há peças de todos os tamanhos e imagens que

A vida de um artista inspirada por São Francisco de Assis

Um dos santos mais queridos da Igreja Católica, São Francisco de Assis tem inspirado novas ger-ações de artistas com seu amor ao próximo

Leandro Popuaski

ARTE NAS MÃOS

“Graças a Deus estou na arte. Pra mim não tem outra coisa, é isso que eu quero e gosto”M

aria Eduarda de França

Page 13: Revista Fuzuê

percorrem a figura do pescador, morador de rua e do campo. Mulheres amamentando também se destacam.

O artista conta que o cliente chegou a pedir a ele que fizesse a imagem do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A imagem foi feita e colocada em exposição na cidade de Sobral.

Feitos de uma devoçãoO artista revelou que nunca

gostou de fazer imagem de santo, até que um dia sua irmã mais nova pediu a ele que fizesse a imagem de São Francisco de Assis. Porém o artista se negava a fazer. Quando a irmã ficou doente na UTI, ele sentiu a necessidade de produzir essa imagem e a entregou no hospital. A emoção foi ímpar, destacou o artista ao falar que se sentiu culpado por ter negado o pedido inicialmente.

Mesmo não tendo a devoção pela imagem de São Francisco de Assis, ele confessa que é sua obra preferida para fazer. Junne conta que já foram diversos colecionadores à sua procura para fazer a imagem de São Francisco. “Já perdi as contas de quantas imagens do santo já fiz”. O artista também já produziu imagens de Santo Antônio, São Benedito e São Jorge.

ExposiçõesFontenelle já participou de várias

exposições coletivas e individuais e salões de arte, entre eles o Salão Karakatius de Artes Plásticas de Sobral, e, no ano de 2008, a Casa da Cultura em Sobral (CE). Participou, também, da exposição coletiva na Casa de Cultura do Estado de Mato Grosso, no memorial da Praça das Bandeiras.

No entanto, as outras estão acumuladas no atelier em Várzea

Grande. O artista tem peças em exposição

permanente na Casa do Artesão, no Museu da Pré-História Dom Aquino Correia e na Academia de Letras de Mato Grosso.

A cada exposição o artista plástico apresenta um novo tema. Dentre as exposições mais bem visitadas está “A Identidade”, que mostra a realidade dos moradores de rua, mendigos e prostitutas.

Já “Caminhos de Francisco” apresentou um pouco da história de São Francisco de Assis através das imagens do santo. Outra ainda foi “Pantanal no Barro”, levando o público a mergulhar na natureza pantaneira com os animais como personagens principais.

Matéria-primaJunne deixa claro que a matéria-

prima é encontrada abundantemente na natureza, nas margens dos rios ou

Colecionadora apaixonada por São Francisco de Assis tem mais 172 peças

;

Ele é um dos santos mais carismáticos da Igreja Católica. Há muito tempo, o carinho dele pelos pobres e pelos animais despertam devoção. Mas para uma psicóloga e graduanda em História pela Universidade Federal de Mato Grosso, São Francisco de Assis é mais do que um santo: é um amigo que a acompanha há muito tempo, que virou também tema de uma coleção preciosa. Neide Maria Rodrigues da Silva, 58 anos, abre mão de quase tudo na vida, menos da coleção de estátuas de São Francisco.

“Não tenho uma data definida”, recorda, referindo-se ao começo da coleção. Um dia, porém, sua mãe a presen-teou com a primeira estátua. “Ganhei de presente de minha mãe por ser apaixonada por São Francisco de Assis”.

De lá para cá, todos os amigos e parentes que viajam trazem de lembrança para ela uma estátua de São Francisco. Há estátuas de todos os cantos do Brasil e do mundo, desde minúsculas até uma de mais de um metro. “Eu mesma, por ocasião de uma viagem à Assis, na Itália, trouxe algumas peças”, diz Neide.

Uma história bem curiosa que relata é quando sua mãe trouxe de Brasília uma imagem de argila medindo um metro. “A imagem era pesada. Ela trouxe de carro, no seu colo, com medo de quebrá-la”.

Ela tem outras peças curiosas, como imagens feitas na ponta de um lápis, com palito de fósforo, em cabaça e até mesmo dentro de uma pequena garrafa.

A partir daí, a quantidade aumentou – atualmente são mais de 142 peças –, e foram inúmeras as aquisições que estão expostas, em sua maioria, na sala de estar da servidora pública estadual aposentada.

A maioria das estátuas está reunida em uma prateleira na sala da casa dela, feita especialmente para abrigá-las. “Tenho a satisfação de tê-las”. Todas as vezes que vai organizar ou limpar o seu acervo pessoal, ela conversa com o santo.

“Acredito que essa paixão tenha começado, aproximadamente, 20 anos atrás, quando estive visitando Assis. Lembrava apenas do santo Francisco de Assis, como também da consciência com amigos frades franciscanos”, contou a colecionadora.

Enquanto isso, o espaço já ganha outro formato. Segundo ela, já tem peças de Santa Clara de Assis, santa essa que segue o exemplo de São Francisco de Assis. “Tenho poucas imagens de Santa Clara de Assis”.

A colecionadora aponta para os dias de hoje, em que vivermos em numa sociedade fragmentada, em crise e em mudanças constantes, não há mais tempo. “Ninguém tem mais tempo para nada. Eu gosto de parar e admirar a minha coleção, e já estou até pensando em outro lugar na casa, pois sei que vai aumentar”.

nos manguezais. A argila é usada pelo homem para representar seus medos e alegrias por milênios. Por ser um produto extremamente barato, acaba comprando. Ele garante ser fácil de manipular, tem uma enorme elasticidade, permitindo a execução de trabalhos dos mais delicados (esculturas) aos mais rudes (utensílios de cozinha, dentre outros). Pode ser reciclada e mantida em seu estado natural por anos, somente exigindo um pouco de cuidado e umidade.

ReconhecimentoAs peças atuais mostram uma

extrema capacidade de transformar o barro e o metal em algo que chama e prende a atenção. Uma preocupação do escultor é criar peças únicas. Mesmo que pertençam à mesma temática, sempre têm algo de diferente. Em algumas delas trabalha com tintas, o que fornece tons que lembram o bronze. Outras vezes, a peça é tão delicada, que do jeito que sai da fornalha já ganha destaque. A produção de uma obra de arte leva, em média, dois dias, dependendo de sua estrutura. O custo para adquirir seu produto é a partir de R$ 8.

“As esculturas, para muitos artistas, é um meio de sobrevivên-cia. Para mim, são

como filhos”

Leandro Popuaski

Josiyane Machado

ARTE NAS MÃOS ARTE NAS MÃOS

Colecionadora de Ima-gens de São Francisco

Neide Maria

Alem de esculpir o ar-tista restaura imagens

Page 14: Revista Fuzuê

Junne também aplica aulas de esculturas, levando o ensino a quem deseja aprender suas técnicas. O mais importante é levar o aluno no passo a passo,

começando no pé, corpo, rosto e mão. O inicio é a modelagem, fazendo com que, ao final do curso, o aluno consiga produzir sua própria escultura. Na transmissão

de conhecimento para seus alunos, Junne deixa claro que o custo-beneficio não é satisfatório, porém amor e harmonia devem sempre existir nas produções de arte.

Barbara Muller

Homem do Campo Trabalhador

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Page 15: Revista Fuzuê

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Assistir a um jogo de futebol é um ritual que começa mui-to antes da partida propriamente dita. Quando você torce para um time do “grande centro do futebol” e mora no in-terior do país – no meu caso, quando se mora em Cuiabá e se torce para o soberano São Paulo Futebol Clube –, os ritos começam quando surgem as especulações de que um empre-sário vai comprar o mando de campo de um jogo do seu time.

Quando surgiu o primeiro boato sobre a partida entre Santos x São Paulo, pelo Campeonato Brasileiro do ano pas-sado, quase dois meses antes do confronto, que na época seria uma das últimas do mito Rogério Ceni, poderia acontecer na malfadada Arena Pantanal, meu ritual começou.

Virgem como torcedor de estádio, já que sempre compa-reci a eles como jornalista e não apenas espectador, mal sa-bia o que fazer. Durante a Copa do Mundo, estive em todos os jogos na Arena Pantanal, mas nunca havia acompanhado um sequer como torcedor. Eu era o representante perfeito do brasileiro que adora futebol, mas nunca havia pisado em um estádio para torcer pelo time.

Perdido, deleguei ao setoris-ta do esporte do jornal online de onde trabalho a missão de me in-formar cada novidade que ele re-cebesse. Eu sentia que tudo seria tenso. E foi. Primeiro por causa do chove-e-não-molha da liberação ou não do jogo em Cuiabá. A cada três dias, uma informação diferen-te quase me matava do coração. 

Quando, enfim, bateram o martelo, nunca começavam a vender os ingressos. Ansioso, prometi que compraria online no primeiro dia para evitar filas e quaisquer outros imprevis-tos. Queria cadeiras junto da torcida organizada, logo atrás do gol onde ficaria Rogéri Ceni, em um tempo, e no outro eu poderia apreciar Luís Fabuloso fazer um gol. Estava tudo perfeitamente planejado na minha cabeça. 

Mas... Sempre tem um “mas”...Quando começaram as vendas, o limite do meu cartão

de crédito estava estourado, e eu não sabia. Somente um dia depois de eu jurar ter concluído a compra das cadeiras é que descobri só ter perdido tempo. Irritado, mas determinado, peguei um cartão emprestado para a compra. E mais uma vez o mesmo problema.

Dois dias após, todas as cadeiras reservadas a torcedores do São Paulo já estavam vendidas. As da zona mista, escas-sas e caras. Ofereciam um serviço que, eu tinha certeza, seria ruim. E mesmo assim as filas para comprar um ingresso eram gigantes no postos de vendas.

Desanimado, estava prestes a me entregar e aceitar a sina de continuar sendo um torcedor via internet e TV. Então, me surge um amigo de um colega de trabalho oferecendo ingres-sos nos lugares reservados para a torcida do Santos. Em dois segundos decidi que essa era a melhor opção restante e que não perderia esse jogo por nada. 

Com dois ingressos na mão, eu e meu irmão nos prepara-mos para o dia do jogo. Nossa carona nos deixou a cerca de um quilômetro do estádio. Usávamos camisetas lisas ao invés da do nosso time de coração para evitar confusões. Em pouco tem-po, quanto mais caminhávamos em direção ao estádio, mais mergulhávamos em um mar de são-paulinos caracterizados. Os peixes santistas eram minora absoluta naquela romaria.

E quando chegamos aos pés da Arena Pantanal, agora transformada em templo sagrado do futebol, até mesmo as entradas reservadas aos santistas, pelas quais eu e meu irmão entraríamos, estavam lotadas de são-paulinos. Já me sentia em casa quando os guardas falaram que quem estava com a camisa do São Paulo não entraria por ali.

Foi uma bagunça. Torcedores do Tricolor reclamando, alguns tirando as camisas, motivo de comemoração dos santistas. Enquanto isso, a orga-nizada do Santos furava a fila e ia se aconchegado no estádio. Eu e meu irmão entramos logo atrás, deixan-do a confusão para quem insistia em ficar com a camisa do time. Eu já havia ido com o espírito preparado

para “torcer escondido”.Mas não teve jeito. Tiveram de liberar os torcedores do

São Paulo com camisas. Para evitar confusão, colocaram to-dos os são-paulinos na metade superior da área reservada aos santistas e deixaram os praianos e sua organizada na metade inferior. Eu e meu irmão já estávamos na parte que se trans-formou em área tricolor. 

Não dá para mentir que fiquei feliz em ver como éramos maioria e “invadimos” a praia do Santos. Quando o jogo co-meçou, fiquei ainda mais feliz em conseguir encobrir os gritos santistas. Totalmente ambientado ao estádio, gritei e cantei o jogo inteiro. Senti a aura mítica de Rogério emanar quando ele estava em campo e gritei pela entrada de Luís Fabiano. 

O jogo nem foi dos melhores e quem fez o gol foi um garo-to da base ainda semidesconhecido. Mas já teria valido só por termos vencido a disputa contra a torcida do Santos, como quando você sai vitorioso daquele embate por alguém com quem você queria muito ficar. Naquele domingo, eu ganhei.

Virgem de estádioJardel Arruda

Quando começaram as vendas, o limite do meu cartão de crédi-to estava estourado,

e eu não sabia.

Craque Dourado: o

futebol que vale ouro

Helen Raquel

O futebol é a profissão dos sonhos de muitos meninos, porém a realidade não é fácil, e muitas crianças e adolescen-tes acabam se distanciando do sonho e se aproximando do mundo do crime. No bairro Tijucal, na região do Coxipó, em Cuiabá, um projeto social vem possibilitando o resgate desse sonho infantil. Craque Dourado é um projeto do Cuiabá Es-porte Clube em parceria com a Secretária Municipal de Es-porte e Cidadania (SMEC).

O projeto foi criado em abril de 2014 e atualmente conta com a participação de mais de 90 meninos, de 8 a 17 anos. Além de estarem praticando uma atividade saudável entre amigos, os garotos com idade entre 14 e 17 anos que se desta-cam nos torneios e treinamentos podem ser escolhidos pela comissão técnica para jogarem profissionalmente.

É de projetos como esse que as comunidades precisam, projetos que deem uma outra visão do mundo para esses jo-vens. O futebol, assim como outros esportes praticados por crianças e adolescentes, ajuda no desenvolvimento físico, motor e social das crianças, pois através dele elas aprendem sobre regras, respeito ao próximo, a vez do outro, os horários, o treinador, a função de cada um dentro da modalidade do esporte praticado. Esses aprendizados do esporte são levados para a vida fora das quadras. Através do desempenho e dedi-cação, eles dão um passo em direção à realização do sonho de ser jogador, ou seja, em direção oposta ao crime.

Além do Craque Dourado, o Tijucal possuí outros proje-tos, como aulas de capoeira e de futsal. Esses projetos já estão trazendo resultados: no ano passado, a categoria sub-15 do Craque Dourado venceu a escolinha Planalto por 6x0 no jogo final, conquistando o torneio “7 de setembro”. O jogo foi rea-lizado no miniestádio do Tijucal.

O projeto conseguiu mostrar resultados com apenas cinco meses de realização, o que ressalta que vale a pena o investi-mento nos jovens.

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Page 16: Revista Fuzuê

GLOSSÁRIO DE FUTEBOL AMERICANO

National Football League (NFL): Maior liga de futebol americano do mundo. Conta com 32 equipes e é dividida, atualmente, em duas conferências: Nacional e Americana. Em cada conferência há quatro divisões (Norte, Sul, Leste e Oeste), com quatro times cada.Super Bowl: Final da NFL, que decide o campeão da temporada. O evento é o mais assistido dos Estados Unidos e, por isso, conta com a publicidade mais cara do país. Além dos anúncios, o intervalo do Super Bowl conta com shows de artistas mundialmente conhecidos. Em 2014, Bruno Mars e Red Hot Chili Peppers se apresentaram.Wes Welker: Jogador de 33 anos que está desde 2013 no Denver Broncos.Danny Amendola: Jogador de 29 anos que atua desde 2013 no New England Patriots.Julian Edelman: Jogador de 28 anos que joga pelo New England Patriots desde 2009.

O que você sabe sobre futebol americano? Com certeza é um esporte com regras bem diferentes das do futebol que jogamos por aqui. Além disso, nem mesmo as posições dos jogadores segue uma lógica similar à nossa. Sem contar que, por conta da forte tradição americana, fica difícil se livrar dos termos importados como tackle ou quaterback, ou até se acostumar com um sistema de medidas tão distante do métrico.

Apesar de tudo isso, é improvável que você nunca tenha ouvido falar no jogo ou visto alguma partida, mesmo que apenas em trechos de filmes. E se você é — como a nossa querida revista — um cuiabano, então você deve ter ouvido falar do Cuiabá Arsenal, um dos maiores

times de futebol americano do Brasil (ou, como os americanos chamam, apenas “Football”).

Além de representarem a cidade verde em todo o território nacional, o Cuiabá Arsenal possui um time de base, que está treinando os atletas do futuro. Gabriel Pereira e Mateus Guimarães, ambos de 16 anos, fazem parte dessa equipe. Mateus joga há apenas quatro meses, mas ganhou destaque no campeonato sub-19 de 2014. Gabriel está na equipe há dois anos, e já representou o time principal em jogos oficiais. Apesar da grande diferença de tempo dentro do esporte, ambos têm certeza de que pretendem continuar nesse caminho até quando não puderem mais jogar.

Gabriel PereiraEntre seus principais ídolos

estão os jogadores Wes Welker, que atua no Denver Broncos, Danny Amendola e Julian Edelman, jogadores do New England Patriots. O jovem, que joga entre os adultos do Cuiabá Arsenal desde os 14 anos, atua como receiver do time. Ele conta que acompanha a NFL (National Football League), e todo ano aguarda, ansiosamente, pelo Super Bowl. Não está entendendo nada? Esse estranhamento que você teve ao ler esses nomes resume um pouco do início de Gabriel Pereira, 16, no universo do futebol americano. “[Quando eu comecei] eu só sabia que a bola era diferente”, conta.

Gabriel, de estilo tímido e

O futuro cuiabano no futebol... americano

Você trocaria o futebol jogado com os pés pelas 10 jardas? Os jogadores do sub-19 do Cuiaba Arse-nal falam sobre como o esporte americano mudou suas vidas

André FaustCarlos Palmeira

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Page 17: Revista Fuzuê

32introspectivo, é esportista desde pequeno. Começou no futsal, como ala esquerda, aos sete anos, e só não continuou porque a escola particular em que estudava parou de participar dos torneios intercursos de Cuiabá. Sua vida esportiva mudou quando recebeu um convite - de seu professor, xará e jogador do Cuiabá Arsenal, Gabriel Teixeira – para assistir a um treino da equipe. Desde então, ele nunca mais largou o futebol americano, e o esporte se tornou parte de sua vida. Apesar das poucas palavras, quando perguntado sobre sua

vida pessoal, Gabriel se empolga quando fala sobre o futebol americano e seus sonhos.

O jovem, que sempre frequentou boas escolas em Cuiabá, fala inglês e consegue “enrolar” no espanhol, e, além disso, conhece boa parte das capitais do país por conta da profissão do pai. Apesar da pouca idade, ele - que está indo para o terceiro ano do Ensino Médio - considera o planejamento profissional uma das melhoras formas de se antecipar a futuras (e possíveis) frustrações como esportista. Não à toa, escolheu o curso de Medicina como área de atuação e já estuda sério para conseguir entrar em boa universidade. Para justificar a escolha da área médica, ele explica que “desde pequeno eu sempre tive a curiosidade e a vontade de ajudar pessoas”. Ele conta que já recebeu conselhos de um tio que

é médico e explica que, pelo que sabe, a concorrência é um desafio maior do que o conteúdo teórico da área em si.

Segundo o pai de Gabriel, o senhor Angouleme Pereira, consultor de informática, 61, o filho é proativo, educado, tem boas notas, porém é bastante quieto e reservado. “Ele namora há mais ou menos quatro meses. Só fomos conhecer a moça nas últimas semanas”, relata, rindo. Angouleme revela que, após começar a praticar o futebol americano, o filho se tornou mais independente e responsável. O pai ainda acredita que isso se deve à proposta humanística do Cuiabá Arsenal, que procura não só formar atletas, mas também seres humanos melhores. Ele ainda conta que em casa as principais preocupações em relação à prática esportiva do filho vêm da mãe do garoto. “Ela vive falando que tem medo dele (Gabriel) machucar, que o esporte é violento, mas mesmo assim ela apoia”, conta.

Nas horas de lazer, Gabriel conta que gosta de jogar pelo computador, curiosamente, jogos de futebol e de MMORPG (Massive Multiplayer Online Role-Playing Game) – jogos cooperativos onlines, que reúnem milhares de jogadores ao redor do planeta. No mundo da música, o jovem conta que gosta de bandas Blink 182, Green Day e System of a Down, e, inclusive, aprendeu a tocar bateria. Entre os filmes, Harry Potter é sua saga favorita. No campo da literatura, ele conta que adora ler livros sobre mitologia e história. Gostos esses bem parecidos com os dos amigos. A única coisa, porém, que destoa no grupo

é a questão esportiva. Gabriel relata que boa parte dos colegas admira, de fato, o futebol, e que já tentou convencê-los, em vão, a irem treinar a modalidade norte-americana. Sobre a namorada, ele afirma que consegue conciliar seu tempo para passar algumas horas com ela por semana. Igual à mãe, a garota se preocupa com possíveis lesões, mas acaba entendendo e aceitando a escolha.

Entre as paixões de Gabriel estão os Estados Unidos. Justificando, ele diz que gosta do país por conta, principalmente, de sua diversa cultura esportiva. Comentando sobre a diferença

entre os dois países, ele diz que “aqui no Brasil nós só temos um esporte que dá a oportunidade de uma pessoa subir na vida”, e acrescenta: “nos Estados Unidos, eles têm o futebol americano, o hóquei no gelo, o beisebol e o basquete, então eles têm mais variedades de esportes que podem ajudar uma pessoa a melhorar de vida”. Para ele, o governo e a iniciativa privada deveriam incentivar mais a prática esportiva diversa entre, principalmente, as crianças. “Pretendo estar nos Estados Unidos praticando o futebol americano e a faculdade de Medicina”, é a resposta quando

perguntado sobre onde pretende estar daqui a cinco anos.

Mateus GuimarãesMateus Guimarães de Souza

tem 16 anos. Ele mora em Várzea Grande, estuda em um colégio estadual que fica no centro da cidade e quer prestar vestibular para engenharia civil quando sair do ensino médio. Sua mãe é professora no IFMT em Cuiabá. Seu pai tem uma sapataria na avenida principal de Várzea Grande. Ele tem ainda uma meia-irmã, de um primeiro casamento de seu pai, e uma irmã mais velha, que faz faculdade em Várzea

“Quando eu comecei, eu só

sabia que a bola era diferente”

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O time sub-19 treina sem o equipamento de

jogo, por causa do preço

Page 18: Revista Fuzuê

34do Cuiabá Arsenal. Segundo Paulo César, esses jogadores ganham, com o esporte, uma oportunidade única para a grande maioria dos brasileiros, adquirem muito conhecimento e muita experiência e depois retornam para cá com o poder de realizar mudanças significativas

nesse ponto. Como o treinador do time e diretor do Cuiabá Arsenal, Paulo César, explica e ensina, o futebol americano foi feito para todos os tipos de biotipos. Cada um pode encontrar um lugar e uma função para desempenhar em campo, só precisa querer e se esforçar. Essa ideia se torna um dos pontos fundamentais do espírito de equipe no time.

De acordo com as palavras de Paulo César, o Cuiabá Arsenal possui um perfil de fundação sem fins lucrativos que busca melhorar a sociedade em que está inserida. Além de promover ações beneficentes de doação em parceria com os torcedores e até mesmo doação de sangue dos membros da equipe, o time busca se inserir em comunidades carentes. Ali, faz programas em escolas estaduais e busca estimular os alunos a dedicarem-se ao esporte, um caminho trilhado em todo o mundo na tentativa de afastar adolescentes de drogas e envolvimento com o crime. Além do time sub-19, existem as escolinhas de flag, um jogo, voltado para crianças, que simula o futebol americano, mas sem as desvantagens de um esporte

Nas próximas semanas Mateus passou a conversar mais. Falava de futebol americano com a família inteira. Se tinha uma oportunidade de explicar as regras, ele aproveitava. Disse que seu relacionamento com a irmã foi o que melhorou mais graças ao esporte. Além de ouvi-lo, falando animado sobre tackles e jardas, ela também é a carona de volta para casa dos treinos, que acontecem no campo do Sesi, em Varzea Grande.

Seu pai é quem mais o incentiva, na sua opinião. Deu apoio desde o começo, apesar de saber pouco sobre o jogo. A namorada também pouco sabia das regras quatro meses atrás, mas gosta de assistir — Mateus até a convidou para fazer parte do time feminino, as Angels, mas ela resolveu deixar essa oportunidade passar.

Os amigos aproveitam para tirar sarro de seu tamanho. Mateus é um menino de corpo magro, pernas e braços compridos, pouco parecido com as estrelas de futebol americano que existem na nossa imaginação. Mas acontece que nossa imaginação está bem errada

de contato. E essa mentalidade também se aplica aos jogadores individualmente. Todos os anos o time reúne dados e vídeos de seus jogadores e encaminha essas informações para universidades nos Estados Unidos, que mais de uma vez já concederam bolsas de estudo integrais para os jogadores

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Grande. Tem amigos do colégio — como qualquer garoto — e uma namorada, com quem gosta de ir ao shopping no final de semana.

Até o começo de 2014, ele jogava futebol como atacante. Já participou de torneios e já representou os times de base do Grêmio e do Santos, apesar de torcer para o Palmeiras. Diz que ficou de saco cheio de chutar bolas e parou de praticar ainda no primeiro semestre de 2014. Passou cerca de cinco meses parado, até que resolveu dar uma chance para um convite de seu primo, e foi até um treino do time sub-19 do Cuiabá Arsenal.

Era um sábado, e a primeira coisa que lhe perguntaram foi em que posição ele queria jogar. Sem saber muito das regras, mesmo já tendo visto jogos do Cuiabá Arsenal no estádio, não soube o que responder. Gabriel Fanally, o treinador do dia — e jogador do time principal do Cuiabá Arsenal — então simplificou a pergunta: “você gosta de bater ou de apanhar?”. Mateus respondeu “bater”, e foi parar no time de

defesa, como Corner. Ele, ainda assim, não sabia o que

fazer. Ensinaram-lhe primeiro as regras mais básicas e mais ou menos o que ele tinha que fazer quando soasse o apito. E ele treinou. Correu para lá e para cá e ouviu o que o treinador tinha para falar. No final de semana seguinte ele voltou. E no outro também. E já está no time há mais de quatro meses.

Sua maior dificuldade, no começo, foram mesmo as regras. Mais até do que sua mãe ameaçando não levá-lo ao hospital, se ele quebrasse a cabeça com esse novo esporte. Com o passar do tempo os dois problemas foram se resolvendo. As regras ele aprendeu durante os treinos e, mais tarde, “estudando”, enquanto jogava Madden em seu vídeo game. Com sua mãe, o problema foi se desarmando aos poucos, provavelmente porque muita coisa estava mudando em casa. O novo esporte estava rendendo mais do que o programa de sábado ou algumas cicatrizes: estava rendendo conversas com todos ao seu redor.

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em seu meio.Mateus, com apenas quatro

meses de time, não sabia da maioria dessas coisas. Não sabia dos eventos beneficentes ou da doação de sangue. Não sabia que todos os anos a diretoria organizava uma aula inaugural para o time sub-19 e convidava todos os pais para conhecerem melhor o time, o time principal, a diretoria e até mesmo o esporte, para que se criasse um laço de confiança e proximidade entre todos. Mas, enquanto falava, era possível perceber claramente o impacto e a força que essa filosofia tinha nele como jogador.

Ao falar do time, dizia que eram como uma segunda família. Quando destacou os melhores jogadores do time, disse que era preciso que todos fizessem um bom trabalho para que esses jogadores mostrassem seu diferencial. Que confiava neles, pois quando um errava, o outro tentava estimular, dando apoio para que melhorasse. Comparando com o futebol, disse que em muitos jogos, por ser atacante, ficava “parado lá na frente, esperando”, enquanto o futebol americano exigia que ele se

movimentasse a cada jogada, em sincronia com todos os jogadores. Para Mateus, o diferencial do time — sua maior força — vinha da união. O dia que isso ficou mais evidente foi no ultimo jogo do campeonato de Sevens sub-19, a disputa pelo terceiro lugar.

Quando chegaram ao último jogo, antes de entrarem para a partida, os atletas ouviram do treinador que a palavra “perder” não ia mais existir em seu vocabulário. Que tinham chegado até ali com muito esforço, que tinham dado o melhor de si e que tudo pela frente era uma vitória. E, naquele dia, “perder” não esteve mesmo no vocabulário deles. Para Mateus, foi o dia mais marcante de sua, ainda curta, vida como jogador de futebol americano.

Também foi nesse campeonato que Mateus usou pela primeira vez o equipamento completo de futebol americano, já que ele é caro e pode desgastar muito com o treino. Além disso, puderam jogar com o time quase completo durante todo o campeonato, algo que não é muito comum durante os treinos.

Aparentemente, apesar de contar com muitos jovens, nem todos comparecem à maioria dos treinos pelo Cuiabá Arsenal, principalmente na época de final de ano. Conforme o treinador disse, a cada treino se constrói um conhecimento mais profundo do esporte, e isso vai acumulando. Quem treina hoje está um dia à frente daqueles que não aparecem, e isso é sempre muito importante, ainda mais se considerarem que em 2015 já são seis jogos marcados para o sub-19. Mateus admitiu ficar um pouco desanimado com a ausência dos colegas, mas nem de longe o suficiente para deixá-lo decepcionado com o esporte. Segundo ele, “o treinador está vendo quem está participando, e isso vai contar muito na hora do jogo”.

Mateus disse que vai jogar futebol americano até os médicos o mandarem parar — e ele espera que isso demore bastante. O esporte mudou sua vida em aspectos-chave. Ele nem mesmo se importa mais quando o Palmeiras perde algum jogo. Seu time do coração agora é o Seatle Seahawks. Até mesmo no vídeo game ele mudou para o futebol americano.

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Page 20: Revista Fuzuê

38 39Ah, o linguajar cuiabano. Não há nada mais carac-

terístico da cidade do que o seu modo de falar, e posso afirmar que o desta cidade é riquíssimo. Aquele que discorda com certeza é um “bocó de fivela” (pessoa boba).

Cresci escutando dos meus avós, “cuiabanos do pé rachado” (nasceram e vivem aqui até hoje), as famosas gírias. O maior medo dos netos era quando se escutava: vou “xinxá sua orêa”, que queria dizer que estávamos prontos para levar um be-liscão nas orelhas. E olha que ouvimos isso “pra besteira” (muito). Vovó detes-tava que ficássemos “coloiados” (junto, próximos, em grupo) dentro de casa. Isso era sinal de que estávamos aprontando. Se ela viesse “berrando” (gritando), lá de dentro conseguíamos escutar, e aí era aquela correria para se “ribuça” (cobrir o corpo com lençol ou cober-tor) e se esconder do castigo. Mas sempre tinha aquele medroso, o famoso “leva e traz”, fofoqueiro, que con-tava tudo e acabava colocando todos “na xinxa” (rece-ber uma ação com seriedade) da vovó.

O fofoqueiro acabava sempre sendo alvo de “mica-ge” (fazer imitação de alguém, caretas), e só voltaria

Mato Grosso é, sem sombra de dúvida, um dos grandes celeiros culturais do nosso Brasil. Aqui vi-venciamos nossas tradições com um toque próprio de ser, pensar e consumir as “coisas da terra”. No entanto, observamos que a falsa cultura tem permeado o imag-inário popular e nele tornado equívoco a identidade cultural do povo mato-grossense.

Para ilustrar o que digo, é só perceber os festejos no Estado e o que nele hoje se reproduz como refer-encias das nossas tradições: festas de santos, mitos, lendas, linguajar, culinária, danças e músicas regionais. Esses elementos inseparáveis têm sido, ao longo dos anos, distorcidos pela multimídia do consumismo, de uma indústria poderosa do entretenimento que tra-balha com padronizações, estilizando e (piorando) os elementos absorvidos do popular e, com ela, afogan-do-se na falta de originalidade, levando até mesmo ao esquecimento. Assim, por exemplo, acontece com o rasqueado, ritmo envolvente de nossa musicalidade, que já não aparece como antigamente. O sertanejo so-bressai nos mais diversos eventos.

A partir dessas características, popularizaram-se mensagens confusas, promovendo a venda gratuita de novos paradigmas regionais e sugerindo a distorção dos valores essenciais das relações de sociedade e família tradicional, numa linguagem rasteira e de mau gosto.

Com a falta de incentivo governamental, as raízes da tradição popular estão se apagando com o passar do tempo, levando as futuras gerações à construção de uma nova história. Nesses casos, a falsa cultura, repeti-da constantemente até ser reconhecida como referência da cultura popular saída do seio do povo. Puro engano.

Numa lógica de construção de uma identidade de povo, lugar ou nação a partir daquilo que consumimos, ficamos então em estado de alerta quanto à afirmação da nossa cultura e seus valores seculares, ao observar-mos estas distorções tão bem aceitas hoje na mesa que alimenta as nossas tradições.

Sendo assim, renego essa cultura do vazio, agressiva e inútil e, por isso, quero as minhas tradições regionais de volta. Por orgulho de ser mato-grossense e cuiaba-no.

Aqui se faz, aqui se falaEmilly Cassim

a participar do grupo se prometesse, “por essa luz que me alumea” (pra dizer que está falando sério), que não faria mais isso.

Ir à vendinha ao lado de casa e ganhar umas balinhas “de jápa” (grátis) era sinal de que o dia iria ser bom, mas os dias em que nós acordávamos meio “jururus”

(tristes, quietos) era sinal de que não se-riam tão bons. Quando vovó nos via as-sim, pra ela era sinal de “constipação” (gripe), e pra isso sempre tinha um re-medinho caseiro.

Assim foi crescer na casa dos avós, conhecer um pouco de minha cultura

através do que eles me falavam. E, confesso, até hoje me pego falando muito do que escutei deles. Volta e meia solto aquele “fiiiiiiiga, vote” como sinal de admi-ração, espanto, e logo me lembro deles. Não só deles, mas dos vizinhos, dos amigos, do pessoal da feira, da vendinha, do vendedor de picolé, enfim, de um pouqui-nho de cada cuiabano.

São pequenos detalhes que te tornam ainda mais presente dentro da cultura da sua cidade, além de pro-piciar uma identidade marcante. E é isso: “quem bejô, bejô, quem não bejô, não beja mais” (acabou).

Cadê as tradições

regionais que estavam aqui?

Leandro Popuaski

“Quem bejô, bejô, quem

não bejô, não beja mais”

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VIDAS <IN>COMUNSHistória das pessoas que dão vida ao espaço mais público de uma cidade

A PRAÇA

Construída em 1882 pelo co-ronel José Maria de Alencastro, de quem herdou o nome, a Praça Alencastro já foi o principal pon-to de encontro da cuiabania. Em seu alvorecer, era conhecida como “Jardim do Palácio”, e ao invés de concreto e asfalto, o lugar era cheio de exóticos flamboyants e palmei-ras imperiais, até ser concretado em 1909 e ocupado, principalmen-te, por acácias brancas.

A praça foi erguida em fren-te ao antigo Palácio Presidencial, de onde inúmeros governadores de província comandaram e que hoje dá lugar ao Palácio Alencas-tro, sede do poder municipal. Ela era circundada por um gradil que se abria em quatro portões, e uma lei velada mantinha a parte inter-na reservada à elite e a externa, aos plebeus. 

Em 1930, o gradil foi retirado e, gradativamente, as árvores foram diminuindo, estando a figueira lo-calizada em uma das extremidades do local até hoje, a única remanes-cente do primeiro jardim. Por ou-tro lado, ganhou um coreto e, mais tarde, uma fonte luminosa, que saía de suas entranhas na forma de um arco-íris.

Até o fim da década de 70, a Pra-ça Alencastro se mantinha como principal ponto de glamour da cuiabania, que partia dali aos clu-bes, aos cinemas – Tropical, Cine Teatro e Bandeirantes –, ou para o Bar Internacional, onde hoje fun-ciona o prédio do INSS. Também era em volta da praça que aconte-

Jardel P. Arruda

ciam os desfiles de carnaval e até mesmo touradas em tempos idos.

Se agora é um ponto morto da cidade durante a noite, continua sendo um dos mais movimentados durante o dia. Nela fica um dos aglomerados de pontos de ônibus que bombeia pessoas para diver-sos pontos da cidade. Além disso, a praça também serve como ponto nevrálgico do centro de Cuiabá, uma ponte de ligação entre os cal-çadões do Centro Histórico e cen-

tro comercial da cidade.Com três histórias, Fuzuê ilus-

tra para o leitor a rotina do alvore-cer ao crepúsculo desse espaço que ganha vida a partir de seus habi-tantes, a Praça Alencastro. 

A AlvoradaO sol ainda não despontou,

quando Terezinha desce do carro todos os isopores e garrafas tér-micas  com salgados, café e acho-colatado que trouxe de casa até a Praça Alencastro. Além do isopor grande que sempre costuma carre-

gar, quatro caixas cheias de bolo de arroz. “Uma moça encomendou, mas teve uns problemas, e não pa-gou. Agora, eu tenho que vender, antes que fiquem velhos”, comen-tou, enquanto ajeitava tudo. Já faz 36 anos que ela repete essa mesma rotina quase todos os dias.

Enquanto ela – e outros ocu-pantes diurnos do local – come-çam a se instalar, os habitantes noturnos, moradores de rua e usu-ários de droga, começam a se reti-rar. Esse, segundo ela, é o momen-to mais perigoso de se trabalhar na praça. Sem segurança policial, alguns dependentes químicos, sob efeitos de drogas, brigam entre si e, às vezes, disparam ameaças contra ela e outras pessoas. Além disso, foi mais ou menos nesse horário que ela foi assaltada pela única vez no trabalho.

“Isso foi há uns seis anos. Eles eram dois jovenzinhos, estavam bem vestidos e limpos. Não eram dos meninos perdidos que ficam na praça à noite. Pediram salga-dos, café. Na hora de me pagar eles mostraram a arma, pegaram o di-nheiro que eu trago para usar de troca e foram embora correndo. Não perdi muita coisa, mas fiquei tão nervosa, que voltei para casa sem trabalhar”.

Em questão de alguns minu-tos, a praça está repleta de outros vendedores. Barraquinhas móveis espalhadas estrategicamente atrás do ponto de ônibus que escoa pes-soas para as mais variadas regiões de Cuiabá. No começo da manhã,

Em questão de alguns minutos, a praça está

repleta de outros vendedores. Barraquinhas

móveis espalhadas estrategicamente atrás do ponto de ônibus que

bombeia pessoas para as mais variadas regiões de

Cuiabá.

Habitante mais antiga da praça, a figueira

quase-bi-centenária ob-serva o cotidiano e suas histórias no coração de

Cuiabá

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a praça fica repleta de “vendedo-res de café da manhã”. Aos poucos, os taxistas também assumem suas posições, bem como seus rivais mototaxistas.

Tudo ajeitado, hora de começar a vender. E parece que foi crono-metrado ela terminar de ajeitar as coisas, para os clientes começarem a aparecer. “Oi, linda”. “Oi, lindo”. “Oi, querido”. “Oi, querida”. “Vai o cafezinho?”. Sempre com um sor-riso no rosto, movimentava-se de um lado para o outro em volta das próprias caixas dispostas sobre a mureta que rodeia a fonte lumi-nosa, mas apagada, da Praça Alen-castro. Ao invés de 58, parecia ter 18 anos.

E, além disso, ela conhecia qua-se que de forma íntima pratica-mente todos os clientes, e aí está o seu diferencial. Os anos de con-vivência com alguns fizeram deles amigos, partes da sua própria vida. Sabia o horário que cada um pas-saria por ali, dos dramas familia-res, das dúvidas profissionais e ou-tros problemas pessoais. “E o filho da Creuza, melhorou?”. “Você vai largar mesmo o emprego de tantos anos por esse outro?”. “Vem mais cedo amanhã para a gente conver-sar mais”. Junto com o café, ia um conselho gratuito.

“Aqui nessa praça, só a figueira tem mais tempo que eu”, disse aos risos, enquanto apontava para a árvore frondosa localizada na ex-tremidade oposta de onde estava. Apesar do tom de brincadeira, ela falava a verdade. Quando decidiu fazer da praça seu ponto de ven-das, ninguém estava ali. 

E tudo começou por acaso, quando, depois de anos, ela con-seguiu férias da escola onde tra-balhava na portaria, e viajou para a casa da irmã, em Paranaíba-MS. Voltou após 15 dias, sem nenhum

dinheiro, apenas com os pães de queijo feitos pela parente e outras guloseimas, e ainda faltava mais uma quinzena para voltar a traba-lhar.

“Eu não sabia o que ia fazer sem dinheiro. Então, minha mãe suge-riu que eu saísse para vender aque-les pães de queijo que eu trouxe. Eu topei, saí andando pelo centro. Desci a rua Pedro Celestino. Vendi tudo muito rápido, nem deu para chegar no centro. E todo mundo já pedia café. Eu não tinha no pri-meiro dia. Mas, no outro dia, eu fiz o café e fui de novo. Mais uma vez, nem deu tempo de chegar ao cen-tro, e tinha vendido tudo”.

Só depois de voltar a trabalhar meio período na escola, ela se fi-

xou na praça. Com o passar do tempo, largou o emprego na esco-la porque ganhava mais na Praça Alencastro. Em 36 anos, comprou terrenos, construiu sua casa e uma para a filha, comprou e trocou de carro. Agora, ela prepara a aposen-tadoria trabalhando apenas meio período. “Já estou um pouco can-sada, mas preciso ficar aqui mais um pouco”.

EntardecerAo meio-dia, a praça já tem um

aspecto muito diferente do ama-nhecer. As barracas de café da ma-nhã praticamente desapareceram e cederam espaço para as mais va-riadas coisas. Um boliviano vende pen drives cheios de músicas. Um

artista de rua batuca em panelas, enquanto medita na posição de ló-tus. Engraxates oferecem um pou-co de brilho para o seu calçado. Ambulantes vendem frutas, chips para celulares e picolé.

Contudo, um grupo de pessoas resiste ali desde  o mesmo horário que Terezinha chegou: os motota-xistas. Sentados na moto ou de pé ao lado delas, com seus coletes flo-rescentes, eles resistiam ao calor e revezavam entre si para poderem almoçar, sem deixar o mais antigo ponto de mototáxi desguarnecido.

O mais antigo deles que estava ali, Paulo Sérgio era um dos que mantinham o plantão no horário de almoço dos colegas. Há três

A PRAÇA

anos, ele é policial militar nas ho-ras vagas como mototaxista, pro-fissão na qual começou 12 anos atrás. Quando chegou ali, apenas um motoqueiro disponibilizava o serviço. Eles trocaram ideia, e ele sugeriu criar o ponto. Deu certo e até criaram outro ponto na cidade alguns anos mais tarde. Mas o pri-meiro foi ideia dele.

“Eu estava desempregado na época e ouvi dizer que estavam começando com esse tipo de tra-balho. Vim aqui na praça dar uma olhada. Encontrei o outro rapaz que já trabalhava aqui, e dei a ideia. Ele topou e começamos a trabalhar juntos. Mas muita coisa mudou. Tanto na praça, como na

A PRAÇA

profissão”, disse o moreno, que na casa dos 30 anos parecia ser re-sistente como o aço perto de um cidadão médio.

Paulo conta que antes era di-fícil confiarem nos mototáxis e que mulher nunca usava o servi-ço. Com o tempo, para serem le-vados a sério, eles brigaram para regulamentar o trabalho. Agora, só quem tem esse colete, recebe treinamento e é vistoriado pela prefeitura pode ser mototáxi. 

“Isso melhorou para nós, por-que somos mais respeitados. Não é fácil confiar em alguém aqui na praça. Acontece muita coisa. Mas nós estamos todos os dias aqui e temos essas identificações, en-tão acreditam na gente. Agora, a maioria dos clientes são mulhe-res”, comentou com um sorriso no rosto, apesar de tentar manter a expressão séria.

E com “acontece muita coisa na praça”, ele quis dizer muita coi-sa mesmo. Brigas, furtos, roubos, confusões e manifestações. Pau-lo afirma ter perdido a conta de coisas relevantes que presenciou no lugar. As jornadas de junho, por exemplo, começaram ali. Os mais variados protestos contra a prefeitura, também. Mas é sem-pre a violência que marca. Menos de um mês atrás ele presenciou a drogaria da frente ser assaltada. 

“Mas eles pediram para isso. Sempre tiravam os malotes de di-nheiro no mesmo dia e horário. E na semana passada bateram no “Neguinho”, um rapaz que tem problema com bebida, mas é boa gente, ajuda os vendedores aqui. Um cara se irritou com ele e bateu até terem de levar o “Neguinho” pro hospital”. Não importa. Ele não quer sair dali pelo menos nos próximos 12 anos.

Sempre de portas aberta aos transeuntes da Praça Alen-castro, a Basílica do Senhor

Bom Jesus, conhecida como “Igreja Matriz”, é um dos símbolos da fé cuiabana

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O CrepúsculoO sol já estava praticamente

desaparecido, em pleno horário de verão, quando ela se sentou no coreto da Praça Alencastro para esperar o namorado. Usava o uniforme do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso (IFMT), uma mochi-la xadrez branco e vermelho, cheia de bótons de bandas, e o cabelo, com mechas coloridas, caía solto sobre os ombros. 

Ana Luísa esbanjava uma ju-ventude muito diferente da do gru-po de senhores idosos que ficavam no mesmo lugar enquanto o dia reinava. Pouco a pouco, outros jo-vens foram chegando, e formavam um agrupamento. Eram alunos das escolas próximas. IFMT, Liceu Cuiabano e até da não tão próxima Presidente Médici. Alguns de ska-te, alguns sem uniforme, alguns com cigarros na mão, todos com alguma coisa para diferenciá-lo do

outro. Seja um cabelo chamativo, algum piercing extravagante ou roupas exageradas.

“Isso aqui é como minha segun-da casa. Eu saio da escola e venho para cá encontrar meus amigos. Faço isso há dois anos, desde que entrei no IFMT. Moro em Várzea Grande. Como não compensa ficar indo em vindo, então passo o dia todo, quase todos os dias, por aqui. Então, me sinto em casa. Agora aqui é minha sala, estou esperando meu namorado chegar”, disse Ana. Pouco depois, ela recebeu com um beijo um jovem imberbe, que ves-tia uma toca e uniforme do Liceu Cuiabano.

A praça agora estava repleta de carrinhos de pipoca e cachorro quente. A unidade da MTU, que fi-cava por ali para vender passagens, já havia fechado, os engraxates, ido embora e o ponto de mototáxi estava para fechar. Enquanto o rit-mo diminuía para uns, aumentava

para outros. Os jovens dominavam boa parte da praça agora, muitos deles sentados em volta da velha figueira.

“Antes, eu não conhecia nada de Cuiabá. Nomes de ruas, onde ficava a prefeitura, a biblioteca. Agora tudo isso faz parte da minha vida. E aqui é o lugar em que fico mais tempo quando não estou na escola. Foi aqui que conheci meu namorado. Meu primeiro namora-do, sabe? Então é um lugar muito importante para mim”.

O sol desaparece completamen-te. Até os jovens esvaziam parte do lugar. A praça começa a ficar quase tão parada quanto no amanhecer. Mas nunca vazia. Sempre alguém vaga por ali. Seja um desabrigado deitado no coreto, coberto com papelão. Seja um dependente quí-mico atrás de alguém para lhe ven-der mais. Seja um andarilho em busca de um caminho novo para explorar na cidade.

O ponto de táxi mais antigo da cidade nunca fica vazio.

Que a Copa do Mundo no Brasil foi um sucesso – como evento e, principalmente, no quesito futebol –, é de conhecimento geral. Agora, uma coisa é reconhecer a qualidade da festa, outra é lembrar que equívocos graves foram cometidos.

Em Cuiabá, um dos maiores erros foi a Arena Pan-tanal. Orçado, entre idas e vindas, em R$ 626 milhões – valor este pago pelo Governo de Mato Grosso –, o es-tádio tem a difícil, e quase impossível, missão de não se tornar um “elefante branco”. Longe de ser uma crítica ao futebol local e um contraincentivo ao desenvolvimento do esporte no Estado, afirmar que o projeto não deveria ser executado é, antes de tudo, um exa-me de consciência em relação ao nosso dinheiro. Afinal, quem custeou a obra foi você, contribuinte.

Entre os exageros que permeiam a Arena Pantanal está a capacidade. Com a possibilidade de abrigar 42 mil pessoas, o estádio só se viu cheio em jogos de Copa. A inauguração da Arena – marcada pelo jogo entre Mixto e Santos – registrou um público de 17 mil pessoas. No pós-tor-neio mundial de seleções, Vasco e Santa Cruz jogaram pela Série B do Campeonato Brasileiro para um público de pouco mais de cinco mil pagantes. Para não falar que foi de todo ruim, Santos e São Paulo se enfrentaram, em novembro de 2014, para 33 mil pessoas.

Ao trazermos à tona alguns números nacionais, a discrepância aumenta. No ano passado, a Série A do Campeonato Brasileiro contou com média de 16.555 pagantes; a Série B, 5.636; e a Série C, com míseros 2.961 espectadores. Ou seja, se mesmo com equipes grandes a lotação de um estádio não é garantida, o que dirá dos es-taduais e nacionais com equipes locais? Existiu até a pro-

messa de que a capacidade fosse diminuída para 20 mil pessoas, mas, como disse, por enquanto é só promessa.

Estádios como Maracanã, Morumbi e Arena Grêmio tiveram ocupação média de menos de 50% no último ano. Lembrando-se, com base nesses números, o atual governador de Mato Grosso, Pedro Taques, e seu ante-cessor, Silval Barbosa, já admitiram que o Estado não tem condições de gerir o estádio em Cuiabá. “O Mara-canã, por exemplo, está renegociando sua concessão. Se um estádio como aquele não dá lucro, imagina a Arena Pantanal”, afirmou Taques, por meio de sua assessoria. Citando quem deveria ser o verdadeiro responsável pelo

estádio, Silval Barbosa disse que “uma obra como a Arena Pantanal necessita de uma equipe especializada. O Governo de Mato Grosso não tem condições de cui-dar dela. A concessão à iniciativa privada é o melhor caminho [...]”.

Resumindo a história: a capacidade do estádio é exagerada, pois, nem os maio-res estádios do país lotam o ano inteiro. Apostar em jogos esporádicos de clubes grandes é um erro: os times gastam mui-

to com a logística e não têm a certeza de um retorno financeiro. Além disso, foi gasto muito pelo governo em uma obra que deveria ser arcada – integralmente – pela iniciativa privada. Por fim, pouco mais de seis meses de-pois a Arena já foi interditada por problemas estruturais.

É incrível perceber que se os gestores desta obra fizes-sem, de fato, um rápido exame de consciência, a Arena Pantanal não teria sido realizada nos moldes atuais. Mas é mais fácil ver o Mixto sendo campeão mundial do que esperar que políticos cuidem bem do nosso dinheiro. De um modo geral, confiar em político parece ser jogo perdido.

Como lidar com o proavável prejuízo da Arena Pantanal?

Carlos Henrique Palmeira

O Governo de Mato Grosso não

tem condições de cuidar dela. A Concessão à

iniciativa privada é o melhor caminho

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O Pedregal é um daqueles bairros de subúrbio bem tradicionais, onde cada vizinho se conhece pelo nome e todos estão prontos para ajudar o outro em situações de necessidade. Ao passar por algumas ruas do bairro para conversar com Ademir de Oliveira, o Pelé, me dou conta de que o bairro é mais uma comunidade na qual todos os organismos fazem parte do mesmo ecossistema. São lojinhas, lanchonetes, salão de beleza, tudo no mesmo lugar. O Pedregal.

Enquanto aguardo Pelé, jogador do Ponte Preta – o time de futebol do bairro –, na varanda de sua casa sou recebido pela mãe do jogador, que com toda simplicidade do mundo me pergunta o que eu fazia ali. Ao responder que era estudante de Jornalismo e faria uma entrevista com seu filho sobre o trabalho social com crianças, ela me interrompeu para revelar que mal sabia falar ‘jornalismo’ e que sua língua enrolava no meio da palavra. Após explicar minha função, fui encaminhado para o campo de futebol do bairro onde Pelé me esperava. Nada mais justo que a conversa ser no lugar em que tudo acontece: dentro de campo.

Pelé tem história no Ponte Preta. Começou a participar de jogos e competições ainda na adolescência, em 1988 quando o time foi criado. O amor pelo esporte que contagia milhares no país foi fundamental para a criação de um time que leva o nome de um clube de Campinas, no Estado de São Paulo. Pelé me leva para a arquibancada, e lá um senhor está ajeitando um canteiro

com uma cavadeira. O homem é Sandrelino Ribeiro, de 53 anos. “Seu Delino”, tio de Pelé, com seu jeito simples e suado do trabalho, me estende a mão esquerda que está limpa e enxuta. Me sento com a dupla na arquibancada e, de longe, observamos um grupo de crianças que brinca no campo que eles deixam bem claro: “está sempre aberto”.

O gramado à nossa frente tem história. O campo construído em

1979 faz parte da vida de Pelé, Seu Delino e dezenas de personagens que o bairro abriga. Pelé um dia também foi criança, e de pés descalços, como que os que vi ali, pisou na mesma grama. Seu Delino criou o sobrinho dentro de campo, é pai dele no futebol. Segundo a dupla, o que agora é considerado um “miniestádio”, foi construído por Detelino, que já não está mais entre nós.

Tio e sobrinho me contam que para a construção do campo a confusão foi armada. Detelino, como aqueles vizinhos ranzinzas que não me deixavam brincar de bola por causa das plantas, exigia que o campo fosse quadrado, e não um retângulo. Depois de brigas e confusões, ganhou o quadrado. Após intervenções, chegou-se ao formato atual: um retângulo.

Hoje, no campo retangular, Seu Denilo treina voluntariamente pelo menos 80 garotos em três dias da semana. Os olhos enchem d’água quando começa a falar da felicidade dos meninos. Todo o esforço que ele põe em prol dos garotos e da comunidade passa em sua mente quando se gaba das congratulações que recebe. “Têm uns ‘olhos gordos’ que

Quando o futebol deixa de ser só um esporte

Voluntário, homem de 53 anos dá aula para crianças de bairro carente. O bairro tem um time de fute-bol há 26 anos que coleciona conquistas.

André Souza

FUTEBOL SOCIAL

“Eu faço isso, e eu faço porque

eu gosto.”

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ouza

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UM TIME CAMPEÃO

Fundado em fevereiro de 1988, o Ponte Preta mato-gros-sense é dono de uma infinidade de troféus. A varanda da casa de Pelé é a sede oficial das re-líquias. E já não há mais es-paço. A estante está abarrota de história. E o time já nasceu campeão. No meio dos troféus encontramos um datado no ano de sua criação, 1988. Pelé con-ta que uma das histórias mais emocionantes do time aconte-ceu quando a equipe ganhou de 30 times, num torneio disputado em Várzea Grande, região me-tropolitana de Cuiabá. O prê-mio, uma novilha, teve destino certo: um churrasco para a co-munidade. Atualmente o Ponte Preta disputa o campeonato do Bairro Imperial, mas não está tão confiante. Segundo Pelé, to-dos já passaram da idade e não há mais tantos treinos regulares como antes. Espaço para o tro-féu não vai faltar!

André Souza

André Souza

crescem quando eu me junto com os alunos. Eu até ouço os outros falarem para os meninos: ‘o que vocês fazem com aquele fulano, ele não sabe de nada!’ E a resposta é: “Sabe! Sabe sim. Ele corre atrás de campeonato, de amistosinho para a gente, e vocês só dão treino’”, conta já quase chorando.

A ideia de tirar as crianças da rua é de Denilo. Com seu jeito simples, ele diz que apenas reúne a gurizada. Ele põe o pé na estrada e não tem vergonha nem medo de esticar a mão e pedir apoio para o time de crianças do Pedregal. Em seus relatos, Denilo diz que ouve

muitos ‘não’ na cara, mas ele não desiste, porque a causa é nobre.

O professor de quase 80 crianças se sente recompensado em trazer uma nova chance para a vida de quem ainda está começando. Pelé interrompe por um momento e, discretamente, faz um agradecimento ao tio e idealizador do projeto. “O futebol ajuda na formação pessoal de cada um, sim. E isso é importante para uma criança. Na minha vida, ajudou. É que hoje anda tudo mais complicado, mas ajuda, sim. Na minha história fez toda diferença”.

Os dois sabem da dificuldade

que enfrentam. É um bairro carente, mas eles não se envergonham da origem humilde, e estão dispostos a encarar a vida pela formação de crianças. Delino conta que recebe muito ‘não’ na cara quando procura patrocínio. Mas, segundo ele, o maior ‘não’ é da Prefeitura. “Nunca há recurso, nunca há”.

Não como mágica, mas com muito suor e trabalho duro, as coisas acontecem e vão dando certo. Com o esforço comunitário, as crianças já viajaram para São Paulo no ano passado e pretendem voltar em 2015. Tudo isso com dinheiro de rifa. Suor de cada menino derramado no campo e na rua. O próximo destino é

Bauru, interior paulista, onde irão disputar um campeonato.

Por enquanto, ainda não estão treinando, pois falta espaço. Para resolver o problema, o jeito é botar a mão na massa. Para eu ter uma ideia, Seu Denilo me mostra a mão calejada. Pergunto-lhe por quê, e a resposta é que ele estava roçando o miniestádio do Bairro Quilombo. “Isso tudo só para ver o sorriso de alegria deles”, revela.

O esforço deve chegar ao fim em breve. Apesar da negligência do poder público, o miniestádio do Pedregal foi contemplado, após 20 anos de descaso, com uma revitalização através do Programa Ativação, que, além desse, irá reformar mais quatro campos espalhados pela cidade.

A obra já começou e é notória

a diferença. O campo já está com a drenagem feita, pintura nova, alambrado reforçado e vestiário reformado. No entanto, todo esse esforço cai por terra quando

você vê crianças treinando sem equipamentos.

Seis crianças que brincavam no campo estavam todas descalças. Quando pergunto a um deles, um corintiano de seis anos, o que falta no campo, inocentemente ele me responde: “um par de tênis faria

FUTEBOL SOCIAL

diferença”.Sebastião é irmão de Eliezer

da Silva, 14 anos, o Zezé, como é chamado por todos. Os dois têm sonho e inspiração na família: são primos do atual goleiro do Vasco da Gama, Diogo Silva.

As crianças têm autoridade para falar. E todas, em unanimidade, dizem que estariam na rua ocupados em outras atividades que possivelmente não trariam tantos benefícios quanto o futebol.

Todas elas vão crescer e irão passar pelas mesmas dificuldades que Pelé passa. Vão ter a mesma correria que Seu Denilo. Talvez nem sigam no futebol, alguns querem ser veterinários outros professores. O fato é que o futebol social proporcionou esse sonho a todos eles.

FUTEBOL SOCIAL

“A gente recebe muito ‘não’ na

cara, inclusive da prefeitura”

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Congo de Livramento: mais de um século de

históriaConheça a trajetória dos grupos de cultura popular mais antigos de Mato Grosso

Folclore

Helen Raquel

A Dança do Congo é uma mani-festação folclórica de origem afri-cana, composta por dança e canto que homenageiam São Benedito e Nossa Senhora do Rosário.

O grupo de dança do Congo da cidade de Nossa Senhora do Livra-mento tem sua história atrelada à do quilombo de Mata Cavalo, que foi formado no século XIX, em 1883, doado a seus escravos por Anna Tereza. Nesse contexto nas-ceu o grupo de dança. Apesar da data oficial indicar 132 anos de existência, o “Rei do Congo”, An-tônio João Batista de Arruda, afir-ma que o grupo foi formado em 3 de abril de 1773, ou seja, antes da data em que o quilombo foi oficia-lizado, tendo mais de 200 anos de história.

Ele quase foi extinto devido às disputas por terras que acabaram separando a comunidade do qui-lombo. Além dessas brigas, o con-go de Livramento sofreu persegui-ções da igreja católica, tendo sido transferido para Várzea Grande, num lugar que se chamava Capão de Negro.

Cesário Sarat foi o grande res-ponsável por reunir os antigos moradores do quilombo de Mata Cavalo. Eles conseguiram, juntos, recuperar suas terras, retomar o grupo e dar continuidade à festa de São Benedito.

Trajes, dança e músicaOs dançarinos são divididos em

dois subgrupos: os de vermelho, pertencentes ao reino do congo (África escravizada), e os de azul, reino monarca (reino de Portu-gal). Eles são compostos pelos reis e príncipes que possuem, além da farda e saiote que todos os demais utilizam, uma capa e uma coroa; o secretário do monarca usa capa parecida com a do seu rei; os ge-nerais possuem capa, porém ela é mais curta que as dos reis e prín-

cipes, e o capacete é parecido com o de Napoleão; o mucuache (bobo da corte do reino do Congo) tem uma pena no capacete para se di-ferenciar das outras funções; os fi-dalgos (soldados) são o cargo mais baixo. Eles utilizam apenas a farda, o saiote e capacetes simples. Os fidalgos podem ter o número de dançarinos sem limites desde que tenham a mesma quantidade nos dois reinos; os caranguejis (crian-ças) com fardas, saiotes e capacetes simples.

A dança e as músicas são ca-racterizadas por encenarem uma

guerra entre os dois reinos que envolvem até o uso de espadas de madeira. As músicas falam de guerra, do sofrimento vivido pelos escravos e louvores a São Benedi-to e Nossa Senhora do Rosário. As letras misturam o português do Brasil com o de Portugal e palavras africanas e são tão antigas que não tem como saber quem as compôs. As apresentações intercalam can-to, dança, declamação de versos e teatralização com diálogos. Os ins-trumentos musicais são a marim-ba, o ganzá, baqueta ou gericongo e adulfo (pandeiro).

Saiu do sacrácio, saiu do sacrácioO Deus infinito, o Deus infinito

Virgem do Rosário. Viva São Be-nedito

Viemos de Luanda aqui nessa terra chama filho alheio pra morrer na

guerra.

A pobreza pede, já tornou pedirHomem de consciência pra nosso

Brasil.

Oh-lê, oh-lá, cangiracá.Oh, giramundá. Oh nosso rei.

Oh, giramundá. Oh, giramundá,Oh-lê, oh-lá, cangiracá.

“Eu quero ser conhecido como Toty, o eterno Rei de

Congo”. Antônio de Arruda

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Festa de São BeneditoSão Benedito é conhecido como

o santo negro por ter sido, segun-do a história, descendente de es-cravos ou ter sido escravizado. Ele era muito humilde e caridoso, rou-bava alimentos do convento em

que vivia para doar aos pobres e trabalhava como cozinheiro.

Todos os anos, em abril, acon-tece em Nossa Senhora do Livra-mento uma festa em homenagem ao santo. A festa tem duração de quatro dias e conta com apresen-tações culturais, ficando o último dia reservado ao Congo de Livra-

mento.Nesse dia, a festa começa às 7

horas com a missa. O grupo par-ticipa da celebração junto com os moradores da cidade. Ao final da missa, a imagem de São Benedito é levada para a casa do santo, acom-panhada de uma procissão e do grupo de congo. Chegando lá, tem início a apresentação com duração de duas horas aproximadamente. Durante a apresentação são servi-dos café da manhã, bolo, biscoito e chá, e, após a apresentação, o al-moço.

O Congo atualAtualmente o Congo de Livra-

mento tem como Rei do Congo e responsável Antônio João Batista de Arruda (o sobrinho neto de Ce-sário Sarat) e como Rei monarca Eduardo Arruda. O grupo é for-mado por descentes dos primeiros dançantes, porém não vivem mais

apenas em Livramento. Vivem em outros municípios, como Cuiabá e Várzea Grande.

Fazem apresentações em várias cidades, dentro e fora do Estado de Mato Grosso. Já se apresentaram no Encontro de Culturas Tradicio-nais de Chapada dos Veadeiros e foram convidados para os eventos da Copa do Pantanal, em 2014.

No ano passado foi realizado um projeto de dança do Congo mirim. Segundo Antônio Arruda, “Tia Odália [filha de Cesário Sarat] montou junto com a Secretária de Cultura para dar continuidade ao Congo”. Esse projeto foi realizado através de oficinas na casa (sede) de São Benedito em Livramento. A oficina tem início “com uma

palestra, depois ensinamos a dan-çar, cantar e tocar instrumentos”. Sobre a importância desse projeto para o fortalecimento da cultura, o Rei do Congo afirma: “Ele não vai deixar o Congo morrer, até porque ele já está enfraquecido. Eles são o nosso futuro”.

Em dezembro do ano passado, Antônio Arruda foi chamado à Casa Cuiabana, e o secretário de Cultura, Fabiano Prates, mostrou interesse em criar um projeto para realização de oficinas de Congo nas escolas municipais e estaduais em Cuiabá e em outras cidades do Estado. “Se der certo, vai ser um sucesso”, relatou Antônio, empol-gado.

O REI DO CONGOAntônio João Batista de Arruda nasceu em Várzea Grande e es-tudou até a sétima série. Tem 46 anos e este ano vai completar 40 de dança do Congo. Aprendeu ainda muito pequeno, aos sete anos. No começo, lia as letras das músicas para seu pai analfabeto decorar, e logo foi colocado para dançar. Antônio lembra que, na primeira vez que dançou não havia ensaiado, o colocaram por último na fila para que visse os primeiros fazendo a coreografia e pudesse aprender para fazer igual. Ele sempre se emociona quando fala do Congo. Dedicado às apresentações e projetos, diz que não faz as coisas só por fazer: “Eu quero ser conhecido como Toty, o eterno Rei de Congo”.

Apresentação durante a tradicional festa de São Benedito em Nossa Sen-hora do Livramento.

Os dançarinos do Reino Monarca.

FolcloreFolclore

“Ele não vai deixar o Congo morrer, até porque ele já está enfraquecido. Eles

são o nosso futuro.” Antônio de Arruda

Dois representantes do grupo Congo Mirim

Sobre a importância desse projeto para o

fortalecimento da cultura, o Rei do Congo afirma: “Ele

não vai deixar o Congo morrer, até porque ele já está enfraquecido. Eles

são o nosso futuro”

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Helen Raquel

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A palavra arte (do latim, ars) significa técnica ou habilidade de produzir e realizar manifestações usando o corpo e seus sentidos. Existem várias formas de expressá-la, seja com danças, pinturas, artesanatos, música, teatro, cinema, escultura, escrita e suas variações. Artistas são aqueles que desenvolvem esse papel, geralmente pessoas mais criativas, sensitivas e que têm uma visão de mundo diferenciada.

Muitos, quando pensam em arte, limitam-se aos telões de cinema, às exposições em museus, peças de teatro e grandes produções culturais. Esquecem que a arte pode estar mais perto do que se imagina. Nas ruas, praças e centros urbanos, é possível encontrar os artistas que escolheram a rua para expor o seu trabalho.

A arte de rua é aquela que se apresenta diretamente às pessoas, pois é produzida e pensada especificamente para a rua. Os artistas fizeram das ruas o seu ateliê. É nelas que eles fazem e vendem o seu trabalho, e assim sobrevivem.

Com essa forma alternativa de trabalho, as dificuldades são muitas: falta de segurança, preconceito, instabilidade financeira e, às vezes,

distância de seus familiares são alguns dos problemas enfrentados. Mesmo com tudo isso, é vivendo da arte de rua que eles se sentem realizados.

Origem da arte de ruaNão se sabe ao certo onde surgiu

ou quem criou a arte de rua. Relatos históricos mostram apenas que, desde a Grécia, havia cantores que

discursavam em versos e música e percorriam o país cantando um repertório de lendas e tradições populares, que pode ser entendido como arte de rua.

Outro exemplo pôde ser visto em meados do século XII, na Idade Média. Naquela época, a Literatura Portuguesa acabava de surgir, e suas primeiras obras literárias eram elaboradas em versos, ou seja, em poemas. Como ainda não havia como publicar os

seus escritos, os poemas medievais eram declamados em ruas, praças, festas e palácios, com o objetivo exclusivo de divulgação. Como tinham acompanhamento musical, receberam o nome de cantigas ou trovas.

O Trovador era o artista que tinha como missão realizar essas apresentações e deixar todos, principalmente os reis, satisfeitos. Entretanto, além do poeta nobre, havia o poeta plebeu, apelidado de Jogral.

O Jogral veio de uma classe popular, que não pertencia à nobreza. Realizava performances mais simples para os senhorios das terras e assumia o papel de “bobo da corte” com suas sátiras, mágicas, acrobacias e mímicas.

Nesta mesma época, as festas medievais populares contavam com apresentações teatrais, que consistiam em colocar os atores imóveis e congelados numa pose expressiva, dando a impressão de uma pintura. Mais tarde, das mãos do francês Etienne Decrox nascia a mímica moderna. Para essa forma de arte, ele deu o nome de tableuaux vivants, ou seja, quadros vivos.

Todos os anos, acontece na Holanda, na cidade de Arnhem,

Artistas que fazem da rua o seu ateliê

Eles deixaram toda a correria da vida urbana, para se dedicar àquilo que lhes dá mais prazer: sua arte

Camila CabralPriscila Soares

ARTE DAS RUAS

Antes eu só trabalhava e

estudava. Agora, eu faço o meu horário, produzo tudo o que

tenho

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60o Arnhem Mime Festival, evento que reúne estátuas vivas de todo o mundo. No Brasil, é possível encontrá-las em muitas esquinas, ruas e praças de cidades grandes.

Aqueles que vivem da arteAtualmente, essas manifestações

de arte da rua ainda são encontradas pelos grandes centros urbanos e ganham admiradores por onde passam. Maria Auxiliadora é um desses artistas. Depois de 50 anos trabalhando incansavelmente, passando por muitas humilhações e dificuldades, procurou no curso de Fisioterapia a sua vocação, o que não vingou. Foi então que ela descobriu no artesanato uma forma de se libertar da rotina estressante que vivia.

Tudo começou quando, em um desses dias corridos, ela parou para observar um pintor e nem imaginava que ele seria seu maior

incentivador e futuro namorado. “Eu já gostava de artesanato, mas foi no natal de 2013 que eu comecei a fazer e aprender mais, com a influência do meu namorado, que é artesão e pintor. Foi aí que minha vida deu um giro, e agora eu estou fora do sistema que vivia. Antes, eu só trabalhava e estudava. Agora, eu faço o meu horário, produzo tudo o que tenho”, diz Maria Auxiliadora.

A decisão de mudar radicalmente chocou seus familiares, inclusive sua única filha, que, até hoje, não aceita muito bem o seu estilo de vida, e alguns dos seus amigos chegaram até a chamá-la de louca. Mas ela diz não se arrepender de sua decisão. Viver de sua arte é o que lhe proporcionou paz, tempo, independência e melhor qualidade de vida. No momento, Maria se dedica a aperfeiçoar o seu trabalho. Segundo ela, busca aprender com outros artesãos, vídeos no youtube

e pela internet novas técnicas e maneiras de se renovar a cada dia.

É muito raro encontrar nesse tipo de trabalho pessoas que se preparam para o futuro. Maria é considerada uma hippie diferente. Um dos motivos é que ela contribui com a previdência social e faz parte da associação dos artesãos. Por vezes também faz viagens com seu namorado para expor e vender seus trabalhos.

Além de Maria Auxiliadora, é fácil encontrar outros artistas apaixonados por seu trabalho. Você passa pelas ruas e vê desenhos colorindo a cidade, e sabe que um grafiteiro passou por ali. Para no sinaleiro, e em meio ao caos do transito é entretido por malabaristas e pode até ser surpreendido por artistas que arriscam suas vidas cuspindo fogo. Também pode andar distraído e, de repente, ver uma estátua viva. A arte tem o

poder de encantar e emocionar, ela transforma lugares e pessoas.

Sempre tem lugar pra mais um em toda essa imensidão. Há quem não goste de cinema, mas ame teatro; quem não suporte observar quadros, mas ame desenhar. Só não encontra um lugar na arte quem não se arrisca.

Raul Matos, de 50 anos, sempre foi artista, mas não de rua. Ele trabalhava como arte-finalista de jornal e em campanhas políticas, e a caricatura era apenas um passatempo. Até que decidiu fazer um curso de desenho pra se especializar em retratos, e hoje trabalha por conta própria fazendo seus desenhos. “Antes eu gostava, só não fazia, não saía perfeito. Não que eu acho que está perfeito agora. Antes eu tinha mais dificuldade, mas depois da aula de desenho já melhorei bastante”, diz Raul.

A instabilidade financeira é uma das maiores dificuldades que Raul encontra. Há dias que faz mais de dois desenhos e, às vezes, passa até

três sem nenhuma encomenda. Outra dificuldade é o preconceito em relação ao seu trabalho. Apesar de não estar em uma grande galeria de arte, Raul faz questão de frisar o seu comprometimento em aperfeiçoar sua arte. “Você cria o seu estilo próprio, o desenho tem o DNA da pessoa. Por mais que eu tente copiar o desenho de alguém, pode ter certeza que o artista vai deixar sua marca”.

Diferente da família de Maria, Raul tem total apoio da esposa, que também trabalha com arte, fazendo biscuit (conhecido também como porcelana fria, parecendo uma massa de modelar). Ele reconhece que com sua renda não consegue sustentar sua família, mas o fato de ter liberdade para trabalhar a hora que quiser é dos pontos positivos desse tipo de atuação.

Nem sempre os artistas de rua fazem esse trabalho somente por amor. Muitas vezes, as suas escolhas e suas histórias de vida fizeram com que a única saída fosse usar o seu

talento na rua para se sustentar. E como dependem disso pra viver, fazem questão de dar o seu melhor.

Assim como os renomados artistas, que expõem suas obras em grandes eventos e para um público seleto, tornam-se respeitados e admirados, os artistas que vivem pelas ruas merecem ser reconhecidos e valorizados. É notória a satisfação que eles sentem quando, além de vender o que produzem, conseguem contar para alguém sobre a sua história e compartilhar um pouco de suas ideologias.

Olhando com atenção, você vai perceber que as manifestações artísticas acontecem a todo momento ao nosso redor e que a arte é produzida a todo instante, por diversas pessoas, de formas diferentes. Você mesmo pode um dia acordar, e, cansado da mesmice do dia a dia, decidir viver da sua arte. Se isso não acontecer, respeite e valorize aqueles que tiveram coragem para tomar essa difícil.

ARTE DAS RUAS ARTE DAS RUAS

Pedro (nome ficticio) fazendo malabares para

arrecadar dinheiro

Cam

illa

Zeni

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illa ZeniA

llan Pereira

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EnroladosA moda dos cachos e do alisamento na visão de quatro mulheres de Cuiabá

MULHER

O Brasil é conhecido há alguns anos, entre os profissionais da be-leza mundial, como o país da cha-pinha. A moda dos cabelos lisos é unanime entre as brasileiras há mais de décadas, e não é difícil en-contrar por perto alguma mulher que já se submeteu às práticas de alisamento. No entanto, nos últi-mos anos o comportamento fe-minino foi afetado por um novo movimento: o movimento das ca-cheadas.

Seguindo o caminho contrário, algumas meninas que exibem seus cabelos naturalmente cacheados decidiram mostrar ao mundo que o padrão de beleza imposto sobre as mulheres, modelo em que o cabelo liso é a única forma de al-cançar a beleza, não passa de uma grande mentira. A musa Rayza Nicácio, estudante de 21 anos, é uma das mais famosas responsá-veis pelo grande sucesso da valo-rização da naturalidade feminina. Seguindo suas dicas, Rayza acu-mula mais de 300 mil seguidores, contando com seu blog, seu vlog e sua página no Facebook.

Em Cuiabá, podemos perceber o quanto essa nova tendência tem se espalhado. Mato Grosso possui grande número de habitantes ne-gros e pardos. Em 2010, segundo dados do Censo, o Estado possuía mais de 60% da população que se inseriam nos dois parâmetros, superando até a média nacional, de 51%. Sendo assim, temos uma

grande porcentagem de cachinhos andando pela nossa capital.

Devido ao clima da capital ma-to-grossense, notamos a escolha feminina em ser mais natural, desde as roupas até as madeixas. O calor excessivo faz com que seja difícil manter o visual liso conquistado pela dupla ‘secador e chapinha’. No entanto, com a aju-da da quebra de regras impostas pelos padrões de beleza, pode-se notar que é cada vez mais presen-

te no dia-a-dia mulheres exibindo suas molinhas, sem medo de ser feliz.

E para mostrar toda essa exu-berância, Fuzuê traz o depoimen-to de três moradoras da cidade verde, contando as dores e mara-vilhas de assumir a ‘juba’ e mos-trar sua força interior.

Sara, 20 anosCom toda certeza, o cabelo é

uma parte do corpo da mulher que é, indubitavelmente, impor-tante para o convívio em socieda-de. Nós crescemos ouvindo que o cabelo é o molde do rosto e que ele

Eduardo Mafra

deve ser bonito, macio, brilhoso, sedoso, cheiroso, liso. Sim, para o cabelo ser considerado bonito ele tinha que ser liso. Aí eu per-gunto, e como ficam as irmãs, que assim como eu, nasceram com os cabelos crespos? Vocês imaginam a resposta, né? Para o bem geral da nação, a gente alisa, ou melhor, alisava.

Eu tive a sorte de ter uma su-permãe, uma mulher maravilho-sa que entendia o meu cabelo. A maioria das técnicas que vejo hoje em vlogs sobre cabelos crespos a minha mãe já usava em mim anos atrás. Ela me ensinou a gostar do meu cabelo desde criança. Eu saía na rua, ouvia algumas coisas de-sagradáveis, entre elas que meu cabelo era duro, grosso, ruim. Eu tinha todos os motivos do mundo para odiar o meu cabelo. Entre-tanto, quando eu chegava em casa, eu tinha o apoio da minha família. Para uma criança é muito difícil lidar com o preconceito. Por isso, sem sombra de dúvida, essa base familiar foi muito relevante para a formação da minha identidade.

Naquela época, usava o que hoje as vlogueiras chamam de twist (penteado onde se enrolam duas pequenas mechas dos cabe-los formando cachinhos bem defi-nidos), o tempo todo. Quando eu fui crescendo, com mais ou menos 11 ou 12 anos, comecei a usar ras-tafáris. Aos 17, alisei. Passei um ano com os cabelos lisos, e decidi

“Sim, para o cabelo ser considerado bonito ele tinha que ser liso. Aí eu

pergunto: e como ficam as irmãs que, assim como eu, nasceram com os cabelos

crespos?”

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voltar ao meu natural. Não foi uma decisão simples.

Eu sabia que ia enfrentar muita coisa. Sabia que teria muito traba-lho para cuidar dos meus cachi-nhos. E não foi fácil. Abrir mão da química para assumir o cabelo na-tural é um grande desafio. Antes de qualquer decisão sobre o corte dos fios, busquei informações so-bre as fases de uma transição. E segui em frente. Cortei toda a par-te com química do meu cabelo e ele ficou bem curto. Mas bem cur-to mesmo. Eu quase não me reco-nheci no espelho. Senti-me livre e, ao mesmo tempo, feia. Com isso, tomei mais uma decisão, e voltei a usar tranças até que meu cabelo crescesse novamente.

Faz seis meses que tirei as tran-cinhas, e estou de volta. Cabelos crespos 100% naturais. Eu estou muito feliz nessa nova fase. Muito mesmo. Estou me redescobrindo. Mas vale a pena lembrar que o fato de assumir os cabelos naturais não está relacionado ao sentimen-to de consciência de raça, e sim à autoestima. Somos submetidas o tempo todo a um padrão de bele-za do qual jamais faremos parte, por mais que dediquemos a vida a isso. Por esse motivo, é muito difícil assumir e amar os cabelos crespos como são em sua genuini-dade. Difícil, mas não impossível.

Joice, 23 anosMinha história capilar come-

çou com a minha mudança pra

MULHER

“Mesmo me sentindo melhor com esse cabelo,

confesso que já sofri algum tipo de preconceito

e até desaprovação de alguns amigos”

Cuiabá, em 2012.Eu morava no interior do Esta-

do do Rio de Janeiro e tinha outro estilo de vida lá.

Quando me mudei pra Cuiabá, eu usava os cabelos lisos, quimica-mente tratados, compridos e tin-gidos. Na cidade de onde venho, eu trabalhava como fotógrafa e, inocentemente, achava mais práti-co e rápido quando me preparava para fotografar algum evento. Por várias vezes, quando fazia o pro-cedimento de relaxamento no ca-belo, meu couro cabeludo se feria por ser muito sensível. Mesmo as-sim, engolia a dor e aguentava até o final para obter o resultado es-perado. Hoje sei que, na realidade, o fato era que eu não cuidava do meu cabelo como se deveria.

Já no segundo ano de faculda-de, residindo em Cuiabá, come-cei a me incomodar com o clima da cidade e com a dificuldade de manter o aspecto liso do cabelo. Os salões muito caros e a falta de

comodidade não favoreciam a que eu continuasse usando esse tipo de cabelo.

Foi então que eu decidi deixar meu cabelo crescer ao natural. Morrendo de medo de perder o comprimento dele, fiquei por seis meses deixando crescer, cortando somente as pontas do cabelo, que estava muito desidratado. O resul-tado era um cabelo mal cuidado e minha autoestima completamente abalada.

Até que um dia, uma amiga que tem os cabelos cacheados me in-centivou a cortar toda a parte lisa do meu cabelo. No começo fiquei com medo de perder o compri-mento, mas repensei, pois já não estava me fazendo feliz usar aque-le tipo de cabelo. Não combinava mais comigo e nem com a fase que eu estava vivendo, em uma cidade nova com outras culturas e pen-samentos e, principalmente, com outro clima. Aquele visual me pre-judicava no “ritual” de me arru-

mar e ter vontade de sair. Aquele cabelo já não me satisfazia.

Decisão tomada: uma amiga me levou a um cabeleireiro, e fiz o que marcaria uma mudança na minha vida. Assim que ela cortou meu cabelo, eu já via a diferença. Eu me sentia outra pessoa. Sentia como se uma outra Joice nascesse naquele instante. Eu fiquei hip-notizada com a minha imagem, o cabelo tinha formado uma nova moldura pro meu rosto. Eu saía na rua e as pessoas não me reconhe-ciam e quem não me conhecia fi-cava me encarando, tipo: “de onde é essa menina?”. Eu me divirto até hoje com os olhares curiosos.

Por causa do meu cabelo, fui convidada a participar de ensaios fotográficos e comerciais, ain-da não aceitei por ter vergonha, mas, com certeza, minha autoes-tima voltou melhor do que antes. Mesmo me sentindo melhor com esse cabelo, confesso que já sofri algum tipo de preconceito e até desaprovação de alguns amigos. Mas é dessa forma que me sinto bem, e não vou mudar por opi-nião alheia. Finalmente posso di-zer que me encontrei. Minha vida facilitou muito mais com o cabelo cacheado, e hoje não me arrepen-do nem um segun-do de ter mudado meu estilo de vida.

Leilaine, 21 anosEra 2006, e, no

alto dos meus 13 anos, eu via cole-guinhas da escola sendo elogiadas pelo balanço nos cabelos soltos no pátio, nos dias de educação físi-ca. Eu também os queria. O meu, sempre rebelde e volumoso, era contido num grandioso rabo de cavalo no topo da cabeça, com a

MULHER

frente bem lisa, colada no couro cabeludo e emplastada de creme, gerando uma caspa sem igual. Ti-nha vontade de tê-los soltos. Foi quando uma cabeleireira, amiga da família, sugeriu à minha mãe que eu fizesse um relaxamento

leve. Quando eu vi o resultado, não me cabia em mim. Usava solto no co-légio e nos encon-tros de sextas-fei-ras. A química da amônia em com-binação com sol forte modificou a

cor dos meus cabelos, ficando de loiro escuro a ruivo queimado, tipo água de salsicha. Comecei a tingir, mas pouco adiantou: mais laranja ele ficava, e ainda tive um corte químico porque tentei tin-

gir e alisar no mesmo dia. Agora, tinha falhas no cabelo, algumas partes nasciam rebeldes e não as-sentavam. Tinha muita vergonha. Em 2008, pintei de preto azulado, e as partes que caíram já se disfar-çavam no meio da ‘juba’. Continu-ava com a amônia religiosamente a cada quatro ou seis meses. Usei preto até 2009 e o cabelo cresceu, chegando à metade das costas. So-frido, muito quebrado no compri-mento.

Em 2012, depois de anos de químicas e cortes tentando recu-perar minha autoestima, resolvi radicalizar. Fiz luzes bem platina-das. Era o sonho do cabelo loiro me dominando. Estraguei meu cabelo de vez. Fiquei cinco meses somente tratando, hidratando. Foi quando comecei a pesquisar e des-cobrir como realmente cuidar do

“Que assumi-lo era um voto político de gratidão às minhas raízes afros,

era aceitar a maneira na qual Deus sonhou comigo quando me criou. Aquela

loira não era eu.”

Leilaine assumiu suas raízes e enfrentou o preconceito.

Joice assumiu os cachos depois de mudar para Cuiabá.

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Edua

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meu cabelo. Eu lia blogs (vi o lin-do cabelo da Rayza Nicácio e me apaixonei. Queria ser como ela) que me mostravam que o cabelo afro tem a sua beleza. Que assu-mi-lo era um voto político de gra-tidão às minhas raízes, era aceitar a maneira que Deus sonhou comi-go quando me criou. Aquela loira não era eu.

Foi quando em novembro de-cidi cortar “tudo o que não era meu”. Cortei. Assustei todos à minha volta. Amigos, colegas de trabalho, família e namorado. Chamavam-me de louca, inconse-quente. De sapatão, sim. Achavam que tinha perdido a vaidade e que isso me faria perder o namorado e admiradores. Sofri muito. Chora-va quando ia sair e não sabia que roupa me deixaria mais feminina. Mas, na realidade, esses novos há-bitos me fizeram uma nova pes-soa. Foi um ótimo começo. Afinal, aquele simples corte de cabelo me ajudou a filtrar amizades, amores, relações profissionais.

O cabelo foi crescendo e, ago-ra sim, era eu refletida no espelho. Hoje meus cachos já estão na al-tura dos ombros. O volume ainda incomoda. O frizz (grande terror das cacheadas: fios rebeldes que se tornam ouriçados com a umida-de), a imperfeição e a irregularida-de são questionados. Mas hoje sei que tudo isso virou traço de mim, reflexo da minha personalidade, da diferença que eu faço nesse mundo velho, que tem muito que amadurecer quando o assunto são mudanças.

O liso que prevaleceMesmo com a grande onda cacheada, algumas mulheres ainda prefe-

rem as madeixas lisas. E se engana quem acha que o movimento das cache-adas torce o nariz para essas garotas. A nova regra entre elas é “seja o que você quer ser, não o que querem que você seja”.

Damaris, 23 anos

Lembro-me de quando eu tinha uns cinco anos de idade... Eu atraves-sava a quadra do pátio da pequena escola de bairro onde eu estudava, e gostava de observar o vento soprando os cabelos lisos das minhas cole-guinhas. Eu achava lindo. Apesar de ter cachinhos bem hidratados pela minha senhora mãe, desde criança eu sempre tive uma admiração por ca-belos com essa textura lisa.

A primeira vez que passei por um tratamento de alisamento aconteceu aos meus onze anos de idade, e, sinceramente, foi a realização de algo que eu sempre desejei. E uma das primeiras coisas que eu fiz foi correr para frente de um ventilador para ver meus cabelos esvoaçarem.

Apesar de alguns desconfortos na infância, eu realmente não sinto pressionada pelo padrão atual de beleza. Ao mesmo tempo não me consi-dero “escrava da chapinha”. Aliso porque me sinto bem dessa forma. A fa-cilidade e praticidade das minhas madeixas se encaixam perfeitamente ao meu estilo de vida, por isso não pretendo deixar a química de lado. Sempre admirei e sempre desejei. Se eu posso, então por que não fazer?

MULHER

J.

Damaris continua feliz com os fios escorridos.

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