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Edição Especial RSP Revista do Serviço Público de 1937 a 2007 Revista do Serviço Público de 1937 a 2007 RSP Revista do Serviço Público,1937-2007

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Edição EspecialRSP

Revista doServiço Públicode 1937 a 2007

Revista doServiço Públicode 1937 a 2007

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ENAP Escola Nacional de Administração Pública

Brasília – 2007

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Missão da Revista do Serviço Público

Disseminar conhecimento sobre a gestão

de políticas públicas, estimular a reflexão

e o debate e promover o desenvolvimento

de ser vidores e sua interação com a

cidadania.

ENAP Escola Nacional de Administração PúblicaPresidente: Helena Kerr do AmaralDiretor de Formação Profissional: Paulo CarvalhoDiretora de Desenv. Gerencial: Margaret BaroniDiretora de Comunicação e Pesquisa: Paula MontagnerDiretor de Gestão Interna: Lino Borges

Conselho Editorial

Barbara Freitag-Rouanet, Fernando Luiz Abrucio,Helena Kerr do Amaral, Hélio Zylberstajn, LúciaMelo, Luiz Henrique Proença Soares, MarcelBursztyn, Marco Aurelio Garcia, Marcus André Melo,Maria Paula Dallari Bucci, Maria Rita G. Loureiro

Durand, Nelson Machado, Paulo Motta, ReynaldoFernandes, Silvio Lemos Meira, Sônia Miriam Draibe,Tarso Fernando Herz Genro, Vicente Carlos Y PláTrevas, Zairo B. Cheibub

Periodicidade

A Revista do Serviço Público é uma publicaçãotrimestral da Escola Nacional de Administração Pública.

Expediente

Diretora de Comunicação e Pesquisa: Paula Montagner –Editora: Juliana Silveira Leonardo de Souza –Coordenador-Geral de Editoração: Livino Silva Neto –Revisão: Emília Moreira Torres, Larissa Mamed Horie Roberto Carlos Ribeiro Araújo – Projeto gráfico:

Livino Silva Neto – Capa e editoração eletrônica: MariaMarta da R. Vasconcelos. Imagens: André Abraão,arquivos da RSP e arquivos ENAP – Tratamento

de imagens: Alice Maria Prina e Vinícius AragãoLoureiro.

© ENAP, 2007Tiragem: 1.000 exemplares

As opiniões expressas nos artigos aqui publicados sãode inteira responsabilidade de seus autores e nãoexpressam, necessariamente, as da RSP.

A reprodução total ou parcial é permitida desde quecitada a fonte.

Revista do Serviço Público. 1937 - . Brasília: ENAP, 1937 - .

v. : il.

ISSN:0034/9240

Editada pelo DASP em nov. de 1937 e publicada no Rio de Janeiro até 1959. A periodicidade varia desde o primeiro ano de circulação, sendo que a partir dos últimosanos teve predominância trimestral (1998/2007). Interrompida no período de 1975/1980 e 1990/1993.

1. Administração Pública – Periódicos. I. Escola Nacional de Administração Pública.

CDD: 350.005

Fundação Escola Nacional de Administração PúblicaSAIS – Área 2-A70610-900 – Brasília - DFTelefone: (61) 3445 7096 / 7092 – Fax: (61) 3445 7178Sítio: www.enap.gov.brEndereço Eletrônico: [email protected]

ENAP

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Sumário

Perspectivas da gestão pública no Brasil contemporâneo 07Paulo Bernardo Silva e Helena Kerr do Amaral

Dificuldades e possibilidades da administração pública nos últimos 70 anos 19Paulo Roberto Motta

Burocracia pública e reforma gerencial 29Luiz Carlos Bresser-Pereira

Mais que administrar, cuidar! 49Jorge Viana

Brasil: é possível uma reconstrução do Estado para o desenvolvimento? 59Wilson Cano

Capacidades estatais, empresários e desenvolvimento no Brasil:uma reflexão sobre a agenda pós-neoliberal 71Renato R. Boschi

Ciência, tecnologia e inovação: em busca de um ambienteinstitucional propício 93Lúcia Carvalho Pinto de Melo e Maria Angela Campelo de Melo

As emissoras públicas, o direito à informação e o proselitismo dos caciques 103Eugênio Bucci

Sete décadas de políticas sociais no Brasil 111Marta Ferreira Santos Farah

Reflexões sobre o Sistema Único de Saúde: inovações e limites 123Gastão Wagner de Sousa Campos

Administração pública e seu ensino: um campo em busca de legitimação 133Alketa Peci e Bianor Scelza Cavalcanti

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Prefácio

Há setenta anos, em novembro de 1937, era lançada a primeira edição da Revistado Serviço Público (RSP), sinalizando novos tempos para a administração públicabrasileira. O imperativo da modernização, motor das reformas administrativas do Estadonovo implementadas por Getúlio Vargas, propagava-se pela Revista. O desafio de entãoera estruturar uma burocracia moderna e racional, buscando algum grau de formalismoda administração a fim de garantir a profissionalização do setor público e dar suporte àspolíticas públicas e à industrialização. Para viabilizar essa proposta, no ano seguinte, emjulho de 1938, criava-se o Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP),que dentre outras atribuições, editava a RSP. A partir de 1986, a Revista passou a serpublicada pela ENAP Escola Nacional de Administração Pública.

Desde então, a Revista do Serviço Público vem acompanhando a trajetória daadministração pública brasileira. Sofreu interrupção de sua publicação, em algunsmomentos, de 1975 a 1980, e de 1990 a 1993. Mas sua retomada e continuidadecomprovam seu inegável valor. Nela escrevem servidores públicos a partir de suaspróprias experiências de trabalho, bem como acadêmicos, e já contou com textos clássicosde importantes intelectuais brasileiros, como Celso Furtado, Guerreiro Ramos, CarlosDrummond de Andrade e Antônio Houaiss.

Na busca de consolidar-se como referência no campo dos estudos sobre adminis-tração pública, a Revista tem como missão “disseminar conhecimento sobre a gestãodas políticas públicas, estimular a reflexão e o debate e promover o desenvolvimentode servidores e sua interação com a cidadania”. Nesta edição especial de aniversário, aENAP comemora os 70 anos da primeira revista sobre administração pública do País,analisando o passado, porém apontando perspectivas para o futuro, com autores querefletem sobre as reformas da administração pública, as políticas sociais, o investimentoem ciência e tecnologia, os desafios ao crescimento e desenvolvimento do Brasil e oensino da administração pública.

Com esta edição, convidamos ao debate sobre o setor público que se deseja para oBrasil.

Helena Kerr do AmaralPresidente

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A primeira RSP, publicada em 1937, no Palácio do Catete.

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Paulo Bernardo Silva e Helena Kerr do Amaral

Perspectivas da gestãopública no Brasilcontemporâneo

Paulo Bernardo Silva e Helena Kerr do Amaral

O ciclo virtuoso vivido pela sociedade brasileira nos últimos quatro anos

mostra que é possível ao Estado retomar seu papel de liderança do processo de

modernização econômica e social do País. Isso também redefine os desafios a

serem enfrentados pela administração pública, de modo particular para o nível

federal, na medida em que se busca atender mais e melhor a todos os cidadãos

e coordenar ações de diferentes níveis de governo, aceitando a pluralidade

político-partidária e os espaços de negociação de interesses democraticamente

representados.

É importante lembrar que nossa história econômica e social está entrelaçada

com as transformações promovidas pelo Estado. Isso nos diferencia hoje de

economias vizinhas, pois o Brasil constituiu uma ampla malha produtiva,

comercial e de serviços, ainda que à custa da manutenção de fortes desequilíbrios

regionais e de substancial endividamento. Passadas mais de duas décadas em

que os principais planos de governo buscavam debelar crises inflacionárias e de

endividamento externo, o País alcançou um novo estágio, de estabilidade

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Perspectivas da gestão pública no Brasil contemporâneo

econômica, crescimento dos investimentospúblicos e privados, superávit comercialexterno e crescente governabilidade orça-mentária. Os desafios que se colocam parao gestor público também são maiores,pois, além do reconhecimento da neces-sidade de resgatar a dívida social e regional,foi recuperada a possibilidade de planejar,de pensar como construir o futuro denossa sociedade. Nessa agenda se encontraa consolidação da governança democrá-tica no País.

Nas origens da organização do Estadodesenvolvimentista, em pleno Estadonovo, houve a criação do DepartamentoAdministrativo do Serviço Público(DASP). Esse órgão analisava as possibili-dades de desenvolvimento para um Paíspredominantemente rural, com poucascidades, com pouca interação entre ospólos econômicos, sendo usual haver maisidentificação com notícias e desejos deconsumo dos países para os quais seexportavam nossos produtos primários.

A realidade sobre a qual se debruçamos gestores públicos brasileiros hoje émuito mais complexa e diversa, multifa-cetada. Atingimos um novo patamardemográfico, com a esperança de vida maislonga (74 anos), como resultado demelhoras no atendimento de nosso sistemade saúde e a diminuição da mortalidadede crianças com até um ano. Contudo háregiões em que a mortalidade de criançascom até cinco anos ainda persiste emdecorrência da má alimentação. A escola-ridade básica está praticamente universa-lizada para as crianças de 6 a 14 anos e hácrescimento substancial do número dejovens que atinge o ensino médio esuperior. No entanto, a qualidade do ciclode formação ainda é insuficiente, acarre-tando problemas para a inserção de jovensno mundo do trabalho. Nossos adultos

enfrentam um mercado de trabalho de altarotatividade, com recorrentes períodos dedesemprego, e oportunidades de reinserçãoem ocupações com poucas perspectivasde acúmulo de conhecimento, que tendema perenizar baixas remunerações1. Com oenvelhecimento da população, novasdemandas se colocam tanto para nossossistemas de saúde quanto para a estrutu-ração de um sistema previdenciáriocontributivo, mas, antes de tudo, inclusivo.

As experiências de reorganização daprodução pública e privada de bens eserviços das últimas décadas tornaram claroque não há vantagens em manter odescompasso entre o crescimento econô-mico e a distribuição dos frutos desseprogresso para a sociedade. Nesse contexto,a diminuição da desigualdade de renda ede acesso a bens públicos e privados, alémda erradicação da pobreza absoluta sãoparte integrante da agenda nacional dedesenvolvimento.

Diante desse quadro é fundamentalconsiderar as necessidades de continuidadena transformação da administraçãopública, para aperfeiçoá-la como ferra-menta capaz de potencializar os bonsresultados no plano econômico, fiscal esocial. À administração pública contempo-rânea cabe converter esses resultados emmais e melhores serviços ao público.Como se sabe, esse não é um debatesimples, uma vez que há uma longa históriade desregramento do uso de fundos e damáquina pública. Mas é fundamentalfazê-lo. O que este ensaio propõe é consi-derar a potencialidade e os avanços que agestão pública brasileira obteve paramostrar que isso constitui uma multi-plicidade de experiências de melhora naqualidade dos serviços públicos brasileiros,a ser empregada para a construção denovos paradigmas de gestão.

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Paulo Bernardo Silva e Helena Kerr do Amaral

A boa notícia é que ganhamos certaliberdade para avançar além da rotina derestrições orçamentárias às quais estivemossubmetidos nas últimas duas décadas.Temos uma grande oportunidade detransformação na gestão pública, namedida em que conseguirmos aproveitara mudança dos processos de trabalhopermitida pela revolução tecnológica,com novas tecnologias de informação ecomunicação. Com isso, torna-se possível

simplificar muito a vida dos cidadãos nonosso País.

Fases marcantes da ação estatalentre 1937 - 2007

Foram diversas as tentativas dereforma da administração públicabrasileira. Todas elas visavam, basica-mente, a implantar formas meritocráticas

de uso da máquina pública, lograndoresultados apenas parciais. A históriadessas sucessivas reformas2 tende ademonstrar o voluntarismo na estrutu-ração de uma política orgânica de reformaadministrativa, desenhando oportuni-dades para a atuação do Ministério doPlanejamento, Orçamento e Gestão, quenem sempre se cumpriram.

A reforma administativa iniciada peloDASP marca a constituição do Estado

moderno no Brasil, em meados dos anos1930, trazendo a concepção de moderni-zação do Estado com vistas a combater opatrimonialismo que predominou atéentão. Com a criação do DASP, o governopretendeu “estimular, desenvolver e coor-denar esforços no sentido de racionalizare aperfeiçoar a ação do Estado no âmbitoda Administração geral” (VIANA, 1953).Com base no princípio da impessoalidade e

“O ciclo virtuosovivido pela sociedadebrasileira nos últimosquatro anos mostraque é possível aoEstado retomar seupapel de liderança doprocesso demodernizaçãoeconômica e social doPaís”.

Em seu sumário, a RSP no 01 mostra a sua vocaçãopara a reflexão, o debate e a promoção de melhoriasna administração pública (1937).

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Perspectivas da gestão pública no Brasil contemporâneo

com ênfase no controle, tentou-se instauraruma versão nacional da burocracia weberiana,em um contexto de nacionalismo eintervencionismo do Estado como indutordo processo de industrialização.

A partir da redemocratização de 1945,o processo de constituição do Estadomoderno brasileiro se aprofunda, tanto nosegundo governo de Getúlio Vargas quantono governo do presidente JuscelinoKubischek. Após forte movimento pelaextensão do Estado de bem estar no País,durante os anos 1950 e início dos 1960, oBrasil assiste ao retorno de um regimeautoritário. Contudo, o processo de consti-tuição de uma administração públicamoderna não se interrompe. Gradual-mente, o País começa a estender sua redepública de educação e saúde, por exemplo.A reforma tributária marca um momentoda evolução na capacidade de arrecadação,condição necessária tanto para a oferta deserviços como para a regulação doprocesso crescente de industrialização sobo modelo de substituição de importaçõesem curso.

No campo da administração pública,destaca-se a edição do Decreto-lei 200, de1967, que cria a possibilidade de contra-tação de servidores para estatais efundações sob as regras da Consolidaçãodas Leis do Trabalho (CLT). Esse períodode modernização conservadora combinaimpulso a mecanismos de economia demercado com protecionismo e fortepresença do Estado em determinadossetores. Enfatizam-se as funções de planeja-mento e controle, bem como centralizam-se poderes e recursos no nível federal.Paralelamente, ocorre a expansão daadministração indireta, com o desenvol-vimento de burocracias especializadas,coexistentes com o núcleo tradicional daadministração direta. Acreditava-se que

essas estruturas da administração indireta,como as empresas estatais, teriam atuaçãomais flexível e mais eficiente.

No entanto, permanece a caracterís-tica de centralização das decisões no nívelfederal e de distanciamento Estado-socie-dade. Os excessos da administraçãotecnocrática levaram à implementação doPlano Nacional de Desburocratização, apartir de 1979. Buscava-se melhorar asrelações entre o Estado e a sociedade pormeio da simplificação dos procedimentosna prestação dos serviços públicos.

A progressiva democratização do Paísnos anos 1980 ocorre em um quadro decrise econômica – com recessão e inflaçãoacentuadas – e de consolidação das basesde uma sociedade complexa, com muitasdiferenciações estruturais, funcionais esócio-culturais. Também se amplia oquestionamento sobre a qualidade daprestação dos serviços públicos e daregulação da produção privada de bens eserviços. A elaboração da Constituição de1988, como produto dos embates pelaredemocratização, expressou mudançassignificativas para a administração pública.Ao mesmo tempo em que reconhece ovalor político do cidadão e de sua partici-pação no controle dos serviços públicos,redistribui tarefas e recursos orçamentáriospara estados e municípios. Com a descon-centração e a descentralização, a decisãopública passa a situar-se mais próxima dolocal da ação, com impactos sobre a gestãopública.

Com isso, recoloca-se para a agendagovernamental a necessidade de profissio-nalização dos quadros burocráticos, devalorização do servidor público, de criaçãode escolas de governo habilitadas a capa-citar permanentemente altos funcionáriosde Estado; simultaneamente, a recessãoeconômica e a crise fiscal tornam-se mais

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Paulo Bernardo Silva e Helena Kerr do Amaral

agudas. Essas necessidades, portanto, ficamsubordinadas à necessidade de racionali-zação e contenção de gastos públicos.

No início dos anos 1990, essa tensãose explicita na política que o então presi-dente Collor tenta implementar, marcadapela redução do Estado e reformas que,inclusive, levaram à extinção de estruturas.Essas medidas contribuíram para adestruição de áreas inteiras da máquinaadministrativa, que tiveram de ser recons-truídas, ainda que de forma precária, nosanos subseqüentes, diante dos importantespapéis que cumpriam.

Entre 1995 e 2002, assegurar a estabi-lidade econômica e a governabilidadeganha mais relevância, superando o Estadointerventor e empresarial e, ao mesmotempo, aproximando o governo da socie-dade por meio do controle social daspolíticas públicas (BRASIL, 1995). Escolhasnas formas de integração ao mercadointernacional levam à diminuição do papeldo estado, assim como à privatização deempresas e serviços públicos.

Sob influência teórica da New Public

Management, o governo inicia ações comvistas à reforma gerencial, parametrizadapelo Plano Diretor da Reforma doAparelho do Estado, de 1995, que visavadar mais agilidade ao aparato públicofederal e esferas sub-nacionais, ao mesmotempo em que procurava recuperar acapacidade de formulação de políticaspúblicas, com controle social sobre suaparticipação. O Ministério da Adminis-tração Federal e Reforma do Estado(MARE) criou um marco legal paragarantir controle sobre o peso dos saláriosdos servidores nas despesas nacionais;estabeleceu teto máximo para o salário doservidor público; fomentou a contrataçãode empresas e serviços terceirizados; ebuscou regulamentar a autorização para

outras formas de organização da máquinapública, tais como organizações sociais,agências reguladoras e agências executivas.

Como muitos processos de reforma,os sucessos foram parciais, sendo que noinício do século XXI ainda coexistiampráticas patrimonialistas, segmentos daburocracia weberiana, gerencialismo enecessidades de atender a demandas sociaismais do que justificadas, ao passo que nãohavia consenso técnico ou político pararedistribuição do orçamento.

Visando à melhoria permanente dagestão pública, a administração públicafederal buscou inspiração em exemplosbem sucedidos de inovação em estadose municípios, mas apenas recentementetem sido possível melhorar a negociaçãoe a pactuação de uma agenda nacionalmais inclusiva e participativa. Nessaagenda, estão ações voltadas parasegmentos específicos da população,como as 11 milhões de famílias incluídasno Programa Bolsa Família, um dosexemplos de ação integrada, assim comoações de investimentos que geramemprego e desobstrução dos estrangu-lamentos da infraestrutura nacional.

Perspectivas atuais para amelhoria da gestão pública

Inclusão social e redução das desigual-dades, crescimento ambientalmente susten-tável com geração de emprego e renda,promoção e expansão da cidadania efortalecimento da democracia, e aceleraçãodo crescimento são as diretrizes traçadaspelo governo Lula que orientam hoje asdiscussões sobre a ação estatal e o aprimo-ramento da gestão pública.

O desafio para a administração públicafederal está na criação de novos modelosde coordenação e gestão que promovam

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Perspectivas da gestão pública no Brasil contemporâneo

a atuação integrada entre os diversosórgãos da administração pública, emprocessos de revisão e repactuação depapéis e responsabilidades, assim como naconsolidação do atual marco regulatório ede seus entes institucionais.

Cabe ao Ministério do Planejamento,Orçamento e Gestão dotar a máquinapública de estrutura e tecnologias ágeis,flexíveis e modernas, bem como prepararos servidores que implementarão essasmudanças. Fazer isso não significa perderde vista os princípios da legalidade e daimpessoalidade, mas também deve incluira capacidade de ouvir a sociedade, pormeio de canais institucionais de represen-tação e também por meio do servidorpúblico responsável, criativo e com capaci-dade de oferecer respostas aos problemasapresentados.

Entre as iniciativas a serem destacadas,por representarem o germe desses novosmodelos de gestão, encontram-se aimplementação de uma gestão orientadapara a aceleração do crescimento e com-prometida com a redução da desigualdadesocial; a inauguração de processos inclu-sivos de tomada de decisão, com aampliação dos espaços societais na formu-lação das políticas pública; o reconheci-mento da necessidade de investimento nofortalecimento dos quadros públicos.

O Programa de Aceleração do Cresci-mento (PAC), que definiu as prioridades deinvestimento do governo federal até 2010,trouxe importante retomada na capacidadede fazer a gestão integrada de medidasinstitucionais e econômicas de incentivo aoinvestimento público e privado em infra-estrutura logística, energética, social e urba-na, com vistas à criação de um ambientefavorável ao crescimento do País.

O monitoramento desse programa,realizado pelo Comitê Gestor do Programa

de Aceleração do Crescimento, encarrega-se do acompanhamento dos prazos eresultados das ações que são executadas pordiversos atores dos setores público eprivado. Esse processo engloba o gerencia-mento de riscos para a antecipação deproblemas que comprometam o crono-grama planejado, a maximização da alocaçãode recursos, o apoio ao processo decisóriode gerenciamento das ações e medidas paraassegurar a transparência na divulgação doandamento do PAC à sociedade.

O enfrentamento do desafio do cresci-mento tem sido acompanhado tambémpelo compromisso deste governo com aredução da desigualdade no País. Aimplementação de ações de gestão visandoa assegurar que as políticas de combate àpobreza e às desigualdades social e regional,bem como a elevação do salário mínimo,contribuíram para que a desigualdade derenda familiar per capita, de 2001 a 2006,tenha caído de forma contínua e substancial,alcançando seu menor nível nos últimostrinta anos. De acordo com o RelatórioNacional de Acompanhamento dos Obje-tivos do Milênio, o Brasil reduziu em maisda metade a pobreza extrema, tendoretirado cerca de cinco milhões de pessoasda situação de indigência, cumprindo,portanto, uma das mais importantes metasestabelecidas pela Organização das NaçõesUnidas (ONU) para 2015.

Os problemas sociais e econômicos,sobretudo o grau de desigualdade da nossasociedade, colocam responsabilidadesmaiores para a boa governança. O desenhodas políticas públicas deve aguçar sua sensi-bilidade, de modo a acomodar as diferençasde renda, de larga desigualdade em nossoterritório, e também as desigualdades deacesso a serviços e direitos.

Para isso, tornou-se fundamentalmesclar programas inovadores com

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Paulo Bernardo Silva e Helena Kerr do Amaral

instrumentos de transparência e controlepúblico – como o pregão eletrônico pararealização de compras, o controle do acessoao Bolsa Família, sistemas para marcar portelefone consultas e atendimentos previ-denciários, informatização dos sistemas decoleta de informações fiscais e unificaçãode documentos fiscais, para citar exemplosde sucesso. É prioridade nossa simplificarcada vez mais a vida do cidadão e ampliaro acesso aos benefícios do governo

eletrônico, quase como um processo deevolução permanente.

Todos esses esforços tendem aacentuar inovações de processo detrabalho, cujo objetivo é atender melhoro público e preservar a máquina do usoindevido de recursos, dando ao servidora oportunidade de melhorar o seu desem-penho nos serviços prestados e assegu-rando aos cidadãos seus direitos diante

do Estado. Vale dizer que boa partedesses esforços vêm sendo valorizados edisseminados pela premiação de inicia-tivas através de concursos de caráternacional3.

A melhora dos processos de trabalhonem sempre ocorreu apenas com oconcurso das novas tecnologias. Novasprioridades políticas tornam clara anecessidade de servidores em número maiorpara atender algumas áreas, até então pouco

visíveis ao público. Esse é o caso da assis-tência social e à juventude; do atendimentomédico sanitário em áreas do interior; dosprofessores públicos de nível médio soman-do-se aos que antes atuavam no ensinofundamental; dos profissionais da segurançapública. Os dados da RAIS mostram queesses foram os segmentos em que seobservou o maior crescimento do númerode servidores públicos.

“Os avanços obtidose os esforçosempreendidospermitem vislumbrar oaprofundamento dagovernançademocrática noBrasil”.

Durante muitos anos, a RSP permitiu a inclusão de espaços publi-citários, como esse anúncio do fornecedor do serviço de serralheriapara os portões de entrada do Palácio do Trabalho,Rio de Janeiro (1938).

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Perspectivas da gestão pública no Brasil contemporâneo

Diálogos e propostas

Diálogos e reconhecimento dosconflitos são essenciais para a boa gestão.Esse esforço de pactuação pode ser retra-tado por iniciativas como a Mesa Nacionalde Negociação Permanente (MNNP) e acriação de uma Política Nacional deDesenvolvimento de Pessoal (PNDP). Acriação da MNNP foi um importanteavanço na institucionalização de processosinclusivos de tomada de decisão destegoverno, inaugurando um padrão derelação entre Estado e servidores públicospermeado pelo diálogo. Ela foi instituídaem maio de 2003 como um estímulo aoprocesso de construção de canais partici-pativos, sistemáticos e resolutivos deinterlocução permanente, como eixocentral da democratização das relações detrabalho. Seu funcionamento prevê aparticipação de representantes do governofederal e das entidades representativas dosservidores, livremente escolhidos pelaspartes, com a organização por uma MesaCentral de caráter deliberativo e MesasSetoriais nas quais são discutidos temasespecíficos, levados à Mesa nacional paratomada de decisão (BRASIL, 2003).

Entre os principais objetivos a seremalcançados pelas partes na MNNP estão aformação de alternativas e formas paraobter-se melhoria nas condições detrabalho, a recomposição do poder aquisi-tivo dos trabalhadores e o estabelecimentode uma política salarial permanente,pautada por uma política conjugada dedemocratização das relações de trabalho,de valorização dos servidores públicos ede qualificação dos serviços prestados àpopulação. Resultados importantes foramalcançados com esse mecanismo novo detomada de decisão4. Está sendo negociadaa retomada da Mesa, concomitantemente

ao processo de regulamentação do artigo37 da Constituição Federal, que trata dodireito de greve (BRASIL, 2007a).

Embora a Constituição Federal prevejaem seu art. 37, VII, o direito de greve parao servidor, estabelecendo que seja exercido“nos termos e nos limites definidos em leiespecífica”, a referida lei ainda não foiaprovada, mesmo após 19 anos. O Minis-tério do Planejamento, Orçamento eGestão elaborou proposta que se encontraatualmente em fase de discussão conjuntacom a regulamentação da negociaçãocoletiva no serviço público.

A regulamentação do direito de greveno serviço público deve ser avaliada comoum significativo avanço institucional parao País e uma resposta ao anseio dos servi-dores, que enfrentam instabilidade no exer-cício de seus direitos, e da população, quesofre com as constantes paralisações daprestação de serviços públicos. Algunspontos principais da proposta da regula-mentação são a não-interrupção deserviços essenciais como saúde, segurançapública, controle de tráfego aéreo; descon-to dos dias parados; definição de percen-tuais mínimos de atendimento por tipo deserviço; quórum proporcional para decre-tação da greve e um órgão responsável pelaresolução dos conflitos.

O governo Lula vem enfrentandotambém o desafio de solucionar fragili-dades na área de gestão de pessoas. Houveum fortalecimento dos quadros públicoscom a autorização de preenchimento decerca de 100.000 vagas por concursospúblicos, no período de 2003 a 2007. Esseprocesso foi acompanhado de umapolítica de substituição das terceirizações.Dessas vagas, 30.000 resultaram de substi-tuição de serviços terceirizados em órgãoscomo Inmetro, INPI, hospitais universi-tários e INSS (BRASIL, 2007b). Também

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Paulo Bernardo Silva e Helena Kerr do Amaral

foi publicado o Decreto no 5.497, de julhode 2005, que definiu critérios paraocupação dos cargos em comissão dogrupo Direção e Assessoramento Supe-riores (DAS) da administração públicafederal direta, autárquica e fundacional.Dessa forma, 75% dos DAS de níveis 1, 2e 3 e 50% dos DAS de nível 4 passaram aser ocupados exclusivamente por servi-dores de carreira. Os dados mostram queessa política avança no sentido de garantirque os ocupantes desses cargos de coorde-nação e assessoria técnica sejam pessoascom comprometimento com o serviçopúblico.

Nesse contexto de valorização doserviço público, foi criada, em fevereirode 2006, a Política Nacional de Desenvol-vimento de Pessoal, por meio do Decreto5.707. A PNDP é inovadora desde seusconceitos: considera capacitação umprocesso permanente e deliberado deaprendizagem para o desenvolvimento decompetências institucionais e individuais.Coloca o foco da capacitação na melhoriada eficiência e da eficácia do serviçopúblico. Propõe nova abordagem, a gestãopor competências, as quais devem seradequadas aos objetivos institucionais,tendo como referência o Plano Plurianualde governo. Prevê, ainda, a divulgação e ogerenciamento das ações de capacitação,o que otimiza os recursos alocados. Priorizaa adoção de novos métodos de ensino5,voltados para sensibilizar e incentivar novaspráticas de trabalho no serviço público, emvelhas e novas gerações de servidores.

A formação de parcerias e a articulaçãode uma rede de escolas de governo consti-tuem, de outra parte, os pilares da PNDP.Com isso, potencializa-se a capacitação deservidores em escala nacional, de formacooperativa entre os entes federados. Anova Política convida os ministérios a

elaborarem planos de capacitação parasuprir as lacunas e insuficiências de conheci-mentos técnicos e gerenciais concretas,identificadas por meio de técnicas einstrumentos de diagnóstico adequados.Torna, ainda, explícita a obrigação defortalecimento das áreas de desenvolvi-mento de pessoas e confere grandeimportância à capacitação gerencial equalificação para ocupação dos cargos deDAS. Trata-se, dessa forma, de umapolítica claramente orientada para aprofissionalização do serviço públicofederal. (KERR, 2006).

No âmbito da gestão, está em fase dediscussão no Congresso a proposta decriação da figura jurídica da FundaçãoEstatal de direito privado. Trata-se de umformato gerencial que permite qualificaro gasto público a partir de uma novacapacidade: gerar receitas independentes.O modelo é próprio para a atuação doEstado em áreas que não lhe são exclu-sivas, como saúde, educação, cultura,esporte, turismo, tecnologia, assistênciasocial, entre outras. Essa revalorização dafigura jurídica das fundações está associadaà maior autonomia para agilizar práticasna administração pública federal, contandocom a possibilidade de constituir regula-mento próprio para contratações ecompras, e de determinar os níveis salariaisde acordo com o desempenho e emproporções mais próximas aos salários domercado. Quanto ao controle, a fundaçãoestatal estará submetida aos mesmosmecanismos das demais entidades daadministração pública indireta, mas terácomo ponto de partida o contrato estatalde serviços firmado pela fundação e seuórgão supervisor. A fundação contará, ainda,com uma inovação no que se refere à parti-cipação social no sistema de governança daentidade. Terá um Conselho Social, de

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Perspectivas da gestão pública no Brasil contemporâneo

natureza consultiva, composto por repre-sentantes da sociedade civil, que elegerá ummembro para participar do Conselho deAdministração da Entidade, com direito avoto (BRASIL, 2007d).

A análise integrada das estruturas,processos de trabalho, pessoas, recursostecnológicos e orçamentários vem permi-tindo a adequação da administraçãopública federal às necessidades da socie-dade brasileira contemporânea, maisurbana e complexa, diversa e desigual.Nesse ambiente, cresce a importância deinstituições públicas adequadas, provendoarenas de negociação e interação derecursos entre atores.

Essas linhas de ação são, sem dúvida,possibilitadas pelo novo patamar decontrole do orçamento público de quedispomos nas diferentes esferas públicas.As novas agendas exigem mais debatepúblico e, principalmente, mais detalha-mento das ações que se pretende agilizar.Mas esse é um debate que merece o nossoesforço, pois permitirá que a sociedadecresça em participação e que o Estadoesteja mais atento às demandas dos dife-rentes segmentos da população, cum-prindo assim suas funções. Os avançosobtidos e os esforços empreendidospermitem vislumbrar o aprofundamentoda governança democrática no Brasil.

Notas

1 Além disso, a baixa capacidade de negociação coletiva dos trabalhadores contribui para diminuira nossa capacidade de comparar o custo das remunerações e, por conseguinte, a produtividade denossos trabalhadores em relação a outros países com características similares às nossas.

2 A Escola Nacional de Administração Pública publicou, na década de 1990, um estudo sobre ahistória das reformas administrativas no Brasil, que usamos como referência para extrair as fasesmarcantes da ação estatal nos últimos 70 anos (BRASIL, 1995).

3 O Concurso Inovação na Gestão Pública Federal foi instituído em 1996 por meio de umaparceria da ENAP com o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, e objetiva estimulardirigentes, gerentes e servidores, por meio do incentivo, do reconhecimento e da divulgação dasiniciativas premiadas, à implementação de práticas inovadoras de gestão em organizações do gover-no federal. Em 2007, lançou sua 12ª edição. Para mais informações, acesse o sítio: <http://inovacao.enap.gov.br>. Já o Prêmio Nacional da Gestão Pública, lançado pelo Ministério do Plane-jamento, Orçamento e Gestão, em 1998, busca reconhecer os resultados alcançados pelas organi-zações públicas de todas as esferas que comprovem alto desempenho institucional. Visa tambémestimular órgãos e entidades a priorizarem ações voltadas para a melhoria da gestão e do desem-penho institucional, assim como divulgar informações sobre práticas bem sucedidas da gestãopública empreendedora. Para conhecer mais sobre esse prêmio, acesse o sítio: <http://www.gespublica.gov.br>.

4 Para mais informações, consultar o Balanço das Negociações, disponível em: <http://www.servidor.gov.br/mnnp/arq_down/neg_sal_2005_2006.pdf>.

5 Destaca-se a ampliação da capacitação por meio de educação a distância.

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Brasil e tendências e inovações em nível internacional. Brasília: Centro de Documentação, Infor-mação e Difusão Graciliano Ramos, 1995.

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KERR do Amaral, Helena. Desenvolvimento de competências de servidores na adminis-tração pública brasileira. Revista do Serviço Público, vol. 57, no 4 – Out/Dez 2006.

IPEA – Instituto de Pesquisas Econômicas e Aplicadas. Sobre a recente queda da desi-gualdade de renda no Brasil. Nota Técnica. Rio de Janeiro, s.d. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/sites/000/2/publicacoes/NTquedaatualizada.pdf>. Último acesso em:01 de setembro de 2007.

PRIMEIRO BALANÇO DO PAC – Apresentação do ministro Paulo Bernardo no Sindicato dosEngenheiros do Estado de São Paulo – São Paulo, SP. 14 de maio de 2007.

VIANA, Arísio de. DASP. Instituição a serviço do Brasil. Rio de Janeiro, 1953.

Paulo Bernardo Silva.

Ministro do Planejamento, Orçamento e Gestão desde 2005. Foi deputado federal pelo Estado do Paraná eSecretário de Fazenda do Estado do Mato Grosso do Sul.Contato: <[email protected]>.

Helena Kerr do Amaral.

Presidente da ENAP Escola Nacional de Administração Pública desde 2003. Foi secretária municipal de gestãopública da Prefeitura Municipal de São Paulo. Mestre em Administração Pública pela EAESP/FGV. Contato:<[email protected]>.

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O então presidente do DASP, Luis Simões Lopes (segundo da esquerda para direita), em visita adirigentes da Civil Service Commission, em Washington (1938).

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Paulo Roberto Motta

Dificuldades e possibilidadesda administração pública nos

últimos 70 anos

Paulo Roberto Motta

Nos últimos 70 anos, a administração pública progrediu e ganhou caracte-

rísticas modernas. Com a maior democratização do País, expandiram-se os direitos

de cidadania, e com o aumento das oportunidades educacionais, ampliou-se a

consciência crítica, com maiores expectativas e reivindicações da população,

inclusive o resgate de dívidas sociais. Verificou-se uma inserção maior do País

no contexto mundial, e, fruto de comunicação intensiva, por novas informações

e mimetismo, geraram-se desejos, aspirações e padrões de consumo inusitados.

A globalização trouxe uma perspectiva internacional para praticamente todos

os setores da administração pública. Valores e práticas locais sofreram influência

externa com a introdução de novos interlocutores. Por causa da maior

interdependência entre países, novas referências comparativas como índices

sociais de qualidade de vida, saúde, educação e meio ambiente trouxeram para

a administração novos focos de análise sobre sua eficiência, eficácia e efetividade.

A necessidade de responder a demandas sociais forçou a imposição de novas

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Dificuldades e possibilidades da administração pública nos últimos 70 anos

tecnologias e novos padrões administrativosque reduzem o poder de grupos tradicionaisinternos e os submetem a novas raciona-lidades e maneiras de pensar. Órgãospúblicos e pessoas que no seu cotidianoadministrativo viviam isoladas foramlevadas a novas interações para atender ademandas inclusive externas. A modernidadeveio com propostas de adaptação, flexívele contínua, não só para resolver problemasprementes como também para enfrentar assurpresas oriundas da aceleração demudanças sociais econômicas e políticas.Não é por acaso que grande parte das trans-formações planejadas seguiu as referênciasmundiais sobre a atualização da adminis-tração pública. Tentavam-se inserir naadministração brasileira características típicasou recém-introduzidas nos países maisavançados. Contribuíram para uma moder-nização constante da administração pública,mas não foram suficientes para eliminarvícios tradicionais.

A administração e a cultura tradicionalsão bastante interligadas. Grandesprogressos vieram com a redemocratização,mas os relatos cotidianos na imprensa aindademonstram a forte presença das interli-gações tradicionais entre o público e suaadministração. Nesse sentido, a adminis-tração pública ainda não consegue atenderplenamente às expectativas e necessidadesda população e torna-se um alvo de crítica,criando frustrações tanto para os funcio-nários como para os cidadãos.

Apesar dos progressos, a administraçãopública ainda é refém de um sistema polí-tico com características tradicionais. OEstado, fragilmente alicerçado na sociedade,impõe à administração dimensões pré-modernas como o loteamento político, oelitismo e o patrimonialismo. Grande partedas dificuldades gerenciais origina-se nafragilidade dessas relações do Estado com

a sociedade. Muitos obstáculos foramencontrados no percurso de reformar emodernizar a administração pública. Aquise singularizam apenas algumas dificuldadesque marcaram a história administrativa nosúltimos 70 anos e as opções sobre o con-teúdo das inovações.

Dificuldades

• Se há um alto grau de personalismo eum loteamento político, marcados emgrande parte por interesses particulares, abusca do bem comum tende a não inspirartodas as ações administrativas, e, na prática,há maior probabilidade de ocorrer discrimi-nação no acesso aos serviços públicos.

O esforço da administração deve serpara atender a necessidades e demandassociais. Qualquer interferência em redire-cionar e alterar demandas prejudica direta-mente as aspirações dos cidadãos e aspráticas democráticas. Apesar da sepa-ração codificada em leis, as relações,público-privado, na prática, aindamostram forte conotação patrimonialista.Refletem a cultura tradicional sobre a coisapública. O espaço público tende a servisto como disponível para uso privado.Essa concepção, inserida de certa formana sociedade, é levada aos órgãos públicospor grupos preferenciais. Chegam aopoder para usufruir de benefícios quepodem ser custeados pelo orçamentopúblico. Manejam decisões e políticas parabeneficiar direta ou indiretamente o grupopolítico a que pertencem. Seus interessesse mesclam com o interesse público, muitasvezes prevalecendo sobre ele. A práticapatrimonialista fragiliza as instituições,deixando-as vulneráveis aos grupos prefe-renciais e submissas a um forte persona-lismo. Dirigentes são mais importantes queinstituições. A informalidade das pessoas

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existe lado a lado com a formalidadeinstitucional. Compromissos e mesmocontratos públicos precisam ser rene-gociados a cada vez que muda a liderançadas instituições. A conquista de maioresfatias do orçamento público passa a sero objetivo dos líderes de grupos prefe-renciais para ampliar seu apoio político.Recursos públicos circulam pelos canaisde lealdade, e as escolhas públicasparecem refletir mais lealdades passadas

do que opções ou referências futuras parao desenvolvimento. Essas reações patri-moniais inibem o progresso da adminis-tração pública, já que as transações sãofeitas por relações pessoais e fora dasreferências comunitárias. A presença degrupos preferenciais leva muitosdirigentes públicos a não exercitaremdiariamente o pensamento no bemcomum, e os funcionários acabam por

se subordinar a esses interesses, danifi-cando critérios de eqüidade e de univer-salidade na prestação de serviços.

• Por causa das tradições elitistas, aspromessas de igualdade de acesso e deeqüidade nos serviços são vistas comdescrença.

Em países de tradição democrática maisacentuada, há maior confiança notratamento eqüitativo da administração

pública a seus cidadãos. Esses confiam naigualdade das regras, e as diferenciações nosserviços tendem a ser baseadas nas necessi-dades variadas da clientela. Em sociedadesde diferenciação social acentuada, asvariações na prestação de serviços podematé ser vistas e mesmo aceitas comoconseqüência da crença na desigualdadenatural ou mesmo da ação de grupospreferenciais. Essa crença significa ver

“O esforço daadministração deveser para atender anecessidades edemandas sociais.Qualquerinterferência emredirecionar e alterardemandas prejudicadiretamente asaspirações doscidadãos e aspráticasdemocráticas”.

II Congresso Nacional de Municípios Brasileiros, com opronunciamento do Ministro Arízio de Viana, Diretor-Geraldo DASP (1954).

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Dificuldades e possibilidades da administração pública nos últimos 70 anos

pessoas como naturalmente mais capazesou merecedoras de mais atenção e bene-fícios do que outras. Se as pessoas aceitam adesigualdade natural, tendem, em decor-rência, a ver como normal e legítimo otratamento diferenciado. Cidadãos descon-fiam das promessas da lei, e principalmenteos mais pobres e conscientes dos direitosde cidadania tendem a rejeitar propostas deatendimento de clientela por ordenamentona linha de frente. Sabem que na linha defrente pode haver diferenciação preferencialna prestação de serviços. Tendem a respon-sabilizar a gestão pública por todos os malessociais e econômicos e por sua incapacidadede cumprir promessas; revelam ressenti-mentos contra a administração pública pornão fazer os investimentos necessários à vidadigna e pelos exemplos de descaso com odinheiro público, através de instituiçõesineficientes e ineficazes. Assim, há dificul-dades para a população reconhecer as enti-dades públicas como legítimas represen-tantes de seus interesses. Pressentem que aadministração pública parece desenvolveruma capacidade de resistir às demandas dapopulação. As ações necessárias e prementessó recebem atenção por meio de uma fortee bem-articulada pressão política. Assim,buscam seus direitos através das políticasespecíficas e direcionadas de redistribuiçãode recursos.

• As reformas mais recentes procura-vam estabelecer na administração públicamétodos de gestão inspirados na áreaprivada. Valores e métodos privados nãosão facilmente inseridos na área pública,sobretudo em um contexto tradicional.

Os objetivos das reformas variaramao longo das décadas. Em épocas menosdemocráticas, concentravam-se emaspectos administrativos internos, commenos questionamentos sobre o papel

e a função do Estado. Nos últimosanos, as tentativas de transformar aadministração pública foram inspiradas nagestão privada, com o intuito de ganhosem flexibilidade. Além da alteração dotamanho e das funções do Estado, pormeio de privatizações, procuravam-semais autonomia das organizações públicase foco mais acentuado no cliente doserviço. Essas propostas tinham comovantagem fundamental questionar otradicionalismo da administração pública.Valorizavam a competência dos servi-dores, seu progresso e suas carreirasvoltadas ao bem público. Procuravamintroduzir instrumentos gerenciaismodernos e assumiam a singularidade docliente e suas demandas como funda-mentais na gestão pública. Proclamava-se, assim, a crença nos métodos de gestãoempresarial privada como mais eficazesdo que os da administração pública. Asorganizações públicas deveriam sergeridas de forma racional ao estiloempresarial e fora das interferências econtroles políticos.

Como organização, o Estado écomplexo, e, por carregar característicastradicionais, é um gigante centralizado,loteado politicamente, com poucas possi-bilidades de uma gestão do estilo privado.Se há loteamento político para o comandodas organizações públicas, o Estado setorna uma arena política, com as grandesunidades disputadas por partidos e grupospreferenciais. Não há lealdade à organi-zação pública. Os que chegam ao podertentam dominar a máquina administrativacomo uma conquista pessoal e de gruposaos quais devem lealdade, reconhecimentoe favores. Difícil haver no loteamentopolítico uma lógica de confiança einteração, já que os objetivos de lealdadepolítica irão prevalecer sobre qualquer

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objetivo das unidades de serviço. Por haverpluralidade e conflitos de poder, a únicaforma de manter essas disputas sobre ocontrole maior é pela centralizaçãoexcessiva e o controle dos meios. Assim, aadministração se torna altamente proces-sualista, com procedimentos burocráticosrígidos, para evitar que os empreendedorespolíticos conquistem novos espaços depoder além dos já limitados pelos acordose concessões políticos. A imposição de umprocessualismo administrativo, uniforme erígido, retira das organizações e dos funcio-nários desejosos de progresso o poder demodernizar e de romper com tradições efavorece a inércia e a não-iniciativa. Os quebuscam novos métodos e resultadosencontram dificuldades; os que simples-mente se acomodam encontram facili-dades. Ademais, por serem altamentecentralizadas, todas as pequenas mudançasna administração pública repercutemenorme e sistemicamente em todas asunidades e setores; por serem difíceis decoordenar, assustam os controladores, quepassam a ser cautelosos diante de qualquerproposta de mudança.

Os ganhos com as idéias de inspiraçãoprivada, embora importantes, forammínimos por causa da permanência dosfatores tradicionais e dos controlespolíticos sobre a gestão e os recursospúblicos. Nos cargos de topo há semprerotatividade maior do que a necessária,para acomodar membros dos grupos delealdade. Se possível, tenta-se aumentar onúmero desses cargos. Por outro lado, aseparação nítida entre os objetivos dosfuncionários de carreira dos órgãos públicose os interesses de dirigentes políticos de foradificulta o desenvolvimento de sistemas decooperação.Vale lembrar ainda que asdimensões valorativas do serviço públiconão se coadunam totalmente com os valores

da gestão privada. As organizações públicasse fundamentam em propósitos coletivos.O desafio maior da gestão pública é aeficiência eqüitativa, ou seja, garantir igual-dade de acesso com eficiência no uso derecursos públicos. Impostos e benspúblicos não se justificam facilmente paraa prestação de serviços individualizados.Se os fins não justificam os meios, a satis-fação da clientela não é uma permissão ouum aval para se aceitar como justa qualquerrelação entre o cliente e a administração,nem mesmo a ordem das demandas.Alterar prioridades, variar a qualidade doatendimento ou priorizar os primeiros oumais influentes e poderosos não são tran-sações moralmente válidas, mesmo queexpressas pela clientela como necessáriasou desejadas.

Possibilidades

• Autonomia, flexibilidade e partici-pação.

A administração pública se constitui deuma rede altamente interdependente decoalizões de interesses na qual se inserem asunidades organizacionais. Nessa rede, dire-trizes e expectativas administrativas se cho-cam constantemente, refletindo incoerênci-as nas formas de divisão do trabalho.Dirigentes e servidores agem em partesmuito específicas dessa rede, com poucaautonomia sobre instrumentos básicos degestão, e, principalmente, naquelas de comolidar com as interdependências. Mudançaspodem ser obstaculizadas por pelejas depoder que se desenrolam longe do local daação. Organizações públicas maisautônomas e flexíveis constituem maisuma tentativa modernizante para o setorpúblico. No entanto, a flexibilidade adminis-trativa se constrói pela maior descon-centração, descentralização, autonomias

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locais e setoriais, com o envolvimento dacomunidade ou da clientela. Maior auto-nomia no uso dos instrumentos básicos degestão propicia melhor conhecimento,além de adaptação e capacidade de res-posta às demandas comunitárias. Assim,mudanças podem ser mais eficazes se nosentido de desmobilizar, fracionar e rom-per estruturas, práticas e procedimentosuniformes e centralizados. Descentralizaradministrativamente ou desconcentrarsignifica a transferência de poder, deresponsabilidade e de recursos; exige quedecisões, sobretudo nas áreas financeira,organizacional e, em grande parte, sobrenormas e controle, permaneçam nos limitesda autonomia local; exigem respeito àautonomia e à tolerância das diversidadessobre objetivos, normas e métodos detrabalho. Do contrário, a reconstrução docentralismo será uma conseqüência natural.Autonomia, liberdade de decisão e princi-palmente de iniciativa retratam um espíritoempreendedor positivo – um dos grandesmotores da mudança. Vale lembrar oargumento de que, em princípio, adescentralização pode facilitar o maiordomínio de elites locais. Mas, a experiênciahistórica com a centralização sempredemonstrou ser ela restritiva à maiorprofissionalização do serviço público, poiso centro, em grande parte, refletia oscontroles locais. Na verdade, o risco dedomínio por grupos preferenciais dependemais do sistema político do que doscritérios de racionalidade administrativa.Apenas se presume que decisões maispróximas do local da ação são mais facil-mente influenciáveis e passíveis de controlepela comunidade. Formas participativas,mesmo em nível de clientela, podemavançar no cultivo de novas formas dearticulação e agregação de interesses,instituindo novos canais de comunicação

entre o público e sua administração.A participação, mesmo em nível organiza-cional, proporciona uma oportunidadepara que interesses locais e marginalizadossejam articulados, agregados e processadospelo sistema político-administrativo.Presume-se que essas formas participativasconcorram para criar, dentro do sistemapolítico, uma influência inusitada na decisãopública. Trata-se de uma nova expressãopolítica por meio de práticas adminis-trativas e sociais.

• Responsabilidade e congruência devalores.

Por possuir conhecimentos, técnicas einformações, a administração pública éresponsável por oferecer opções que oscidadãos e os governantes não têm capaci-dade de definir ou formular. O conheci-mento referenciado no interesse públicocondiciona a gestão pública e não deveconflitar com os valores da sociedade, nemcom os da representação política. A admi-nistração pública modernizada é congruentecom os valores e aspirações da população,possui uma definição clara de objetivos ede centros de responsabilidade e é geridade forma participativa, unindo os insumospolíticos, os técnicos e os clientes decada órgão.

• Novas parcerias e complexidade.Devido à globalização, à interdepen-

dência entre as nações e à amplitude deatuação da área privada em todos os países,parece impossível, e mesmo poucodesejado, que o Estado aja sozinho;cooperação e parcerias serão cada vez maisnecessárias. O desenvolvimento é algo cadavez mais complexo e gigantesco, e asmáquinas administrativas tradicionais são umfator tanto de modernização como deobstáculo ao desenvolvimento. Por serem

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imensas as demandas por melhoresserviços, os investimentos necessários sãovultosos e normalmente acima das possibi-lidades orçamentárias. Portanto, a dúvidaque se suscita é se a administração públicatem a capacidade de satisfazer às aspiraçõesda sociedade, prestando os serviçosnecessários e direcionando as transformaçõese o progresso. As formas modernas deparcerias público-privadas parecem sempreum bom começo para melhor harmo-

nização e coordenação, como tambémampliam a possibilidade de cooperaçãoentre órgãos da administração. Valeressaltar que as tradicionais relaçõespúblico-privadas diferem das parceriasmodernas, que são referenciadas no bemcomum. As tradicionais são normalmentevistas como instâncias de proteção deinteresses de uns poucos contra os damaioria.

• Nova imagem.A imagem e a identidade dos cidadãos

com a administração pública são normal-mente frágeis. Os retratos que a mídiatraça cotidianamente da administraçãopública são de ineficiência e de descasocom o interesse público. Transmite-se aidéia de uma imensa burocracia, comfuncionários displicentes para com asnecessidades reais da população. Muitosfuncionários sentem-se prejudicados por

essa imagem, em evidente confronto comseus imensos esforços para atender bem àsua clientela, apesar das adversidadesadministrativas e financeiras. Funcionáriosesforçados, comprometidos e bem-formados sentem-se vítimas de umasituação que não controlam, e, emconseqüência, passam a aceitar de sipróprios comportamentos de ineficiência.Assim, tornam-se passivos e sem

“O desafiomaior da gestãopública é aeficiênciaeqüitativa, ouseja, garantirigualdade deacesso comeficiência nouso de recursospúblicos”.

Vista geral de uma biblioteca pública (1945).

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iniciativa, à espera de uma vontade políticaque os mobilize. A contradição constantee cotidiana entre a lentidão e a ineficiênciana prestação dos serviços e os desejos easpirações da população faz qualquer idéiade reforma ser facilmente aceita, além degerar expectativas de benefícios imediatos.No lado externo, o apoio sempre seráintenso e garantido. No lado interno,principalmente o equilíbrio contribuição/retribuição merece atenção especial emqualquer proposta de transformação emodernização. Os atuais sistemas depessoal, criados para satisfazer a neces-sidades de uma era semifeudal, visandofavorecer grupos preferenciais, poucotêm a ver com qualidade dos serviços edesenvolvimento e progresso dosfuncionários. Funcionários e cidadãostornam-se vítimas de critérios restritivose obsoletos. Novos padrões gerenciaisdevem surgir na medida em que serompem estruturas políticas tradicionaise se reacendem expectativas sobre maise melhores serviços.

Comentários finais

O percurso de modernização daadministração pública revela conquistasvaliosas afinadas com a reforma doEstado. O Brasil se tornou mais prósperoe democrático e avançou nos direitos decidadania. Esse progresso significou aintrodução de vários padrões inspiradosna modernidade e nas práticas de paísesmais desenvolvidos nas suas formas deoferecer, prestar os serviços públicos epermitir o acesso a eles. Adquiriram-seum novo vigor e uma nova crença naspossibilidades da gestão pública. Noentanto, a permanência de algumascaracterísticas tradicionais limitou a eficáciade muitas conquistas e a potencialidade

de maior êxito dessas inovações. As difi-culdades mais típicas referiram-se àsobrevivência de fatores significativos dotradicionalismo, sobretudo o patrimonia-lismo e o elitismo, ainda presentes emmuitas práticas administrativas. Essetradicionalismo serve pouco ao progressodas relações mais efetivas da administraçãocom seu público, pois favorece a perspec-tiva do cidadão como um receptor passivodas decisões, métodos e opções dos líderespolíticos. Na verdade, ultrapassaram-semuitas dificuldades, mas a força do tradi-cionalismo ainda contribui para exclusõesimportantes no acesso e na qualidade deserviços, e constitui o desafio atual para amodernização dos serviços públicos.Ultrapassar dificuldades depende daconcomitância de respostas políticas quevalorizem tanto os insumos políticosquanto as dimensões administrativasde flexibilidade, participação e respon-sabilidade que revigorem a imagem dagestão pública.

Assim, propõe-se uma prática maisdescentralizada da gestão pública comrelações mais efetivas com as comuni-dades; ressalta-se a oportunidade demodernização por meio de um focoacentuado na organização pública, valo-rizando sua autonomia e flexibilidade.Merece maior atenção o reforço dacongruência entre os valores comunitári-os largamente danificados pelo perso-nalismo elitista e o loteamento político damáquina administrativa para atender agrupos preferenciais. Uma alternativa seriarever e centrar a responsabilidade admi-nistrativa, de forma mais localizada, emunidades organizacionais. Os conceitos eas práticas de gestão pública seriamampliados para incluir possibilidadeslocais de cooperação e parcerias cada vezmais necessárias para atender a crescentes

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Paulo Roberto Motta

Paulo Roberto de Mendonça Motta

É doutor em Administração Pública pela University of North Carolina, Estados Unidos. Atualmente é professortitular da Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro. Contato: <[email protected]>.

demandas e necessidades públicas. Nofuturo próximo, as ações reformistasdeverão acompanhar reformas políticas

fundamentais que valorizem a moder-nidade das práticas administrativas.

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Dificuldades e possibilidades da administração pública nos últimos 70 anos

Servidores do serviço de fiscalização da legislação trabalhista (1943).

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Luiz Carlos Bresser-Pereira

Burocracia pública eBurocracia pública eBurocracia pública eBurocracia pública eBurocracia pública ereforma gerencialreforma gerencialreforma gerencialreforma gerencialreforma gerencial

Luiz Carlos Bresser-Pereira

A alta burocracia pública profissional passa a fazer parte das classes dirigentes

brasileiras a partir dos anos de 1930. Durante 50 anos, ela estará basicamente

associada à burguesia industrial na liderança e na promoção de extraordinário

processo de industrialização ou desenvolvimento econômico. Ao mesmo tempo,

na sua condição de classe administrativa, realiza a reforma do aparelho do

Estado: primeiro, ainda nos anos 1930, promovendo a reforma burocrática que

visava torná-lo mais profissional e efetivo, e mais tarde, a partir dos anos de

1990, engajando-se na reforma gerencial que visa tornar esse aparelho mais

eficiente por meio de agências mais autônomas e administradores melhor

responsabilizados perante a sociedade. Essa segunda reforma, entretanto, ocorreu

em um quadro político e econômico adverso. A estratégia nacional-

desenvolvimentista que servira de bandeira para as duas classes entrou em crise

nos anos de 1980, no bojo de uma grande crise da dívida externa. Sem rumo,

não apenas a economia, mas a própria sociedade brasileira entra em crise, que se

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Burocracia pública e reforma gerencial

“resolve”, a partir do início dos anos 1990:os empresários industriais e a burocraciapública deixam de liderar o processoeconômico e político, cedendo lugar a umacoalizão de rentistas, agentes do setorfinanceiro, e interesses estrangeiros queadotam a ortodoxia convencional – oconjunto de diagnósticos e recomendaçõesoriginárias no Norte – como política econô-mica. Sem estratégia nacional de desenvol-vimento, a economia do País entra emregime de quase-estagnação. Nessa novaconjuntura social e política, não há espaçonem para os empresários nacionais nem paraa burocracia pública. Não obstante essequadro, a reforma gerencial de 1995,conduzida pela burocracia pública e apoiadapela sociedade, avança primeiro a nívelfederal, e depois, nos estados e grandesmunicípios. E dá novo sentido de missão atodos que dela participam. Por outro lado,a partir do início dos anos 2000, o sistemahegemônico por trás da ortodoxia conven-cional entra em declínio, sacudido pelofracasso de suas reformas que contrastamcom o êxito dos países – principalmente osasiáticos – que as rejeitaram e adotaramestratégias nacionais de desenvolvimento.Abre-se, assim, uma oportunidade para quenova coalizão nacional se forme, envol-vendo empresários industriais, burocraciapública e trabalhadores, e que novodesenvolvimentismo substitua a ortodoxiaconvencional.

Neste trabalho, porém, meu escoponão é tão amplo como aquele sugerido noparágrafo anterior. Meu foco de atençãoserá o papel político e gerencial da buro-cracia pública brasileira desde o início dosanos de 1990. Para isso é preciso distinguira burocracia pública do aparelho ouorganização do Estado; e importa adotarposição clara em relação a um problemapor natureza ambíguo e dialético que é o

da relação entre sociedade e Estado. Aburocracia pública foi, no passado, meroestamento, e hoje é setor da classe profis-sional ou tecnoburocrática; sempre foi aresponsável pela administração do aparelhodo Estado, e, em muitos momentos, umator importante na definição de suaspolíticas1. Ao mesmo tempo em que é umgrupo de interesses como qualquer outroque pressiona o Estado, a burocraciapública constitui ou integra o aparelho doEstado. Por isso, é freqüente a confusãoentre o Estado e a própria burocraciapública, e a atribuição ao Estado de uma“autonomia relativa”.

Se o Estado fosse a sua burocracia,quando esta tivesse muito poder, serialegítimo falar em autonomia do Estado.A burocracia pública, porém, é apenas umdos setores sociais que buscam influenciaro Estado. Por outro lado, o Estado é muitomais do que simples aparelho ou organi-zação: é o sistema constitucional-legal – éa ordem jurídica e a organização que agarante. E, nessa qualidade, o Estado é oinstrumento de ação coletiva da nação. Suasleis e políticas são o resultado de complexosistema de forças sociais, entre as quais aburocracia pública é apenas uma delas.O Estado, portanto, jamais é autônomo;ele reflete ou expressa a sociedade. O quepode acontecer é a burocracia públicalograr poder desproporcional em relaçãoàs demais classes dirigentes quando estasestiverem divididas. Nesses momentos, aelite burocrático-política aumenta seupoder em relação às demais classes, e seafirma que o Estado “ganhou autonomia”.Na verdade, o que ocorreu foi que as outrasclasses que compõem a sociedade momen-taneamente perderam poder relativo paraa burocracia pública na determinação daspolíticas, na definição de seu sistema legal ena maneira de implementá-lo. Em qualquer

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hipótese, o Estado é a instituição maisabrangente de cada Estado-nação, já que éa própria ordem pública e a organizaçãoque a garante.

Mas em nome de quem essa ordem édefinida e garantida? Essencialmente, emnome das três classes básicas das sociedadescapitalistas contemporâneas: a capitalista, atecnoburocrática ou profissional e atrabalhadora. O poder dessas classes,naturalmente, variará historicamente: quanto

mais democrático for um País, menos poderterão os capitalistas e mais poder terão ostrabalhadores na própria sociedade, e, emconseqüência, no Estado. Em qualquerhipótese, porém, os dois setores sociais quedeterão maior poder político serão o dosgrandes capitalistas e a alta burocraciapública, que também pode ser simplesmentedenominada “burocracia política” já que,além dos servidores em sentido estrito, inclui

os políticos eleitos que vivem de paga-mentos do Estado. A aliança entre esses doissetores sociais é muitas vezes identificadana literatura da sociologia política e dodesenvolvimento econômico como aliançaentre os empresários e o Estado, ou, nalinguagem americana, como uma coalizãoentre business and government. No Brasil, essaaliança deu origem ao nacional-desenvol-vimentismo – a uma bem sucedida estra-tégia nacional de desenvolvimento.

A burocracia pública brasileira, asso-ciada aos empresários industriais, foi, entre1930 e 1986, parte integrante da elitedirigente ou do pacto político nacional-desenvolvimentista que promoveu aindustrialização brasileira. Ao mesmotempo, envolveu-se profundamente naReforma Burocrática de 1937. Entretanto,a partir do colapso, em 1986, do PlanoCruzado e da coalizão política democrática

“A hegemonianeoliberal e globalistaestá em declínio, e umespaço está se abrindopara que a nação sereconstitua, para quepolíticas nacionaissejam adotadas, e que,no quadro da grandecompetição entrenações que é aglobalização, o Brasilvolte a competir comêxito e se desenvolver”.

A RSP também publicava documentos normativos, como

esse para a confecção de mobiliário funcional (1939).

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e nacional que liderou a campanha pelasDiretas Já – da qual uma parte importantedessa burocracia participou – durantequatro anos (1987-2001), o país entrou emum vácuo político ou vácuo de poder, atéque, em 1991, no governo Collor, se rendeuao Norte, deixou de pensar com suaprópria cabeça, e passou a adotar aortodoxia convencional, ao invés de contarcom uma estratégia nacional de desen-volvimento.

Por um breve momento, em 1994, oPlano Real, realizado de acordo com umateoria da inflação inercial desenvolvida noBrasil, devolveu ao País a idéia de nação,mas logo em seguida as autoridadeseconômicas voltaram a se subordinar àsidéias vindas de Washington e Nova York.Em conseqüência, a clássica aliançanacional-desenvolvimentista, rompida em1986, foi, no início dos anos de 1990,substituída por nova coalizão políticaformada de rentistas, setor financeiro,empresas multinacionais e interesses estran-geiros no Brasil, os dois primeiros grupos,beneficiados com as altas taxas de jurosque passam a prevalecer, os dois últimos,com as taxas de câmbio apreciadas.Empresários e burocracia pública ficaramfora do poder. Não estou, entretanto,pessimista. A hegemonia neoliberal eglobalista está em declínio, e um espaçoestá se abrindo para que a nação sereconstitua, para que políticas nacionaissejam adotadas, e que, no quadro dagrande competição entre nações que é aglobalização, o Brasil volte a competir comêxito e se desenvolver.

Reforma gerencial em quadrode crise

Entre 1987 e 1991 o Brasil viveu sobprofunda crise: crise econômica de alta

inflação, de moratória da dívida externa.Crise principalmente política, porquemarcava o fim da aliança histórica entre osgrandes empresários industriais e a buro-cracia política. Marcava também a substi-tuição, na direção do País, dessas duasclasses pelos grandes rentistas – que vivemde juros – , pelos agentes financeiros – quevivem de comissões pagas pelos rentistas –,pelas empresas multinacionais – que agorahaviam se apoderado de grande parte domercado interno brasileiro e se interessavampor câmbio apreciado para enviaremmaiores rendimentos ao exterior – e pelosinteresses estrangeiros no Brasil, igualmentefavorecidos pela taxa de câmbio nãocompetitiva.

No plano da política econômica e dasreformas, a abertura comercial foi apres-sada e radical ignorando-se que as tarifasaduaneiras não tinham como papel apenasproteger uma indústria que deixara de serinfante, mas principalmente neutralizar aapreciação do câmbio causada pela doençaholandesa2 e pela política de crescimentocom poupança externa3. Essa política étransformada na grande política dedesenvolvimento a partir da justificativaequivocada que “o Brasil não tem maisrecursos para financiar seu desenvolvimentoeconômico”. Na verdade, ela só causariao aumento artificial dos salários e doconsumo interno, e a substituição dapoupança interna pela externa, ao mesmotempo em que endividava o país. Por outrolado, a abertura financeira, com a liberaçãocompleta dos movimentos de capital, foiadotada em 1991 – o que levou o país aperder o controle de sua taxa de câmbio.As privatizações foram também aprofun-dadas, eliminando-se a reserva ao capitalnacional que existia para os serviçospúblicos monopolistas; a desnacionalizaçãodos bancos comerciais passa a ser

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permitida. Os resultados são uma profundadesnacionalização da economia brasileira,duas crises de balanço de pagamentos, ebaixas taxas de crescimento, não obstante,a partir do início dos anos 2000, umenorme aumento dos preços das commo-

dities exportadas pelo Brasil permitisse que,em cinco anos, as exportações dobrassem.

Em meados dos anos 1990, osempresários industriais estavam margina-lizados e a burocracia pública via negadotudo o que fora levada a acreditar noperíodo desenvolvimentista. O aparelhodo Estado era agora dirigido por uma“equipe econômica” constituída de eco-nomistas estranhos à burocracia pública quehaviam realizado PhD nos Estados Uni-dos e voltavam para trabalhar no merca-do financeiro. Por outro lado, durante ogoverno Collor, havia sido realizada umatentativa de desmonte do aparelho doEstado inspirada no mesmo neolibera-lismo e na mesma ortodoxia convencionalque orientava a política econômica. É nessequadro desfavorável que terá início, nogoverno Fernando Henrique Cardoso, areforma gerencial ou reforma da gestãopública de 1995. Essa reforma, que coubea mim e à minha equipe no Ministério daAdministração Federal e Reforma doEstado (MARE) idealizar e implementar,era uma imposição histórica tanto para oBrasil, como para todos os demais paísesque, nos 50 anos anteriores, haviam mon-tado um Estado do bem-estar.

O grande crescimento que o aparelhodo Estado se impusera para que pudessegarantir os direitos sociais exigia que ofornecimento dos respectivos serviços deeducação, saúde, previdência e assistênciasocial fosse realizado com eficiência. Essaeficiência tornava-se, inclusive, condição delegitimidade do próprio Estado e de seusgovernantes. Na medida em que a reforma

gerencial é a segunda grande reformaadministrativa do aparelho do Estadocapitalista, sua adoção por nós, como paratodos os países de renda média e alta, eraapenas uma questão de tempo. Unsavançam, outros se atrasam. O Brasil, em1995, saiu na dianteira dos países emdesenvolvimento, e se antecipou a algunspaíses ricos como a França e a Alemanha.

Reformas gerenciais já vinhamocorrendo em alguns países desenvolvidosdesde a década anterior, como respostaao fato de que a transição do Estado liberalpara o Estado democrático no começo doséculo XX havia levado ao aumento dotamanho do Estado e, portanto, à sua trans-formação em Estado democrático e social.Por outro lado, a globalização que entãoganhava momentum aumentava de formaextraordinária a competição entre osEstados-nação e obrigava suas empresase seus serviços públicos a se tornarem maiseficientes. A administração pública buro-crática e sua burocracia weberiana eramadequadas para um pequeno Estadoliberal. No quadro dos Estados democrá-ticos e sociais do final do século, em ummundo mais competitivo do que em qual-quer outra época de sua história, não haviaalternativa senão enveredar pela reformada gestão pública ou reforma gerencial.

A necessidade de mudança começoua ficar clara durante o governo Collor –um governo contraditório que começoufazendo a afirmação do interesse nacional,mas afinal se curvou à ortodoxia conven-cional, que deu passos decisivos no sentidode iniciar as necessárias reformas orientadaspara o mercado, mas cometeu equívocosgraves. Na área da administração pública,as tentativas de reforma do governoCollor foram equivocadas ao confundir –como a direita neoliberal que então chegavaao poder o fazia – reforma do Estado

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com corte de funcionários, redução dossalários reais e diminuição a qualquer custodo tamanho do Estado. A burocraciapública, que havia visto o aparelho doEstado ser enrijecido e formalizadodurante o retrocesso burocrático queocorreu em torno da Constituição de1988, resistia o quanto podia às reformasatabalhoadas do governo. Quando ItamarFranco chega ao poder, essas reformasforam corretamente abandonadas. A ondaideológica neoliberal vinda do Norte,entretanto, tornara-se dominante na socie-dade – e a pressão contra o Estado e suaburocracia apenas aumentava.

Estava claro, porém, que a grandecrise que o país enfrentava desde os anos1980 era uma crise do Estado – umacrise fiscal, administrativa e de sua formade intervenção na economia. Era umacrise que enfraquecia o Estado e abriaespaço para que a ideologia neoliberalvinda do Norte o enfraquecesse aindamais. A solução para os grandes pro-blemas brasileiros não era substituir oEstado pelo mercado, como a ideologial iberal propunha, mas refor mar ereconstruir o Estado para que estepudesse ser agente efetivo e eficiente deregulação do mercado e de capacitaçãodas empresas no processo competitivointernacional. Dessa forma, no MARE,não demorei em fazer o diagnóstico edefinir as diretrizes e os objetivos daminha tarefa. Começava então a reformagerencial de 1995. Não fui eu quemsolicitou a mudança de status e de nomedo Ministério, mas essa mudançaprovavelmente fazia sentido para opresidente: dessa forma ele fazia umdesafio ao novo ministro, e à equipe queeu iria reunir em torno de mim. Aresposta ao desafio foi elaborar, aindano primeiro semestre de 1995, o Plano

Diretor da reforma do aparelho doEstado e a emenda constitucional dareforma administrativa, que afinal seriaaprovada três anos depois (Emenda 19).Tomávamos como base as experiênciasrecentes em países da OCDE, principal-mente no Reino Unido, onde se implan-tava a segunda grande reforma adminis-trativa da história do capitalismo – areforma gerencial do final do séculoXX. As novas idéias estavam ainda emformação; surgira no Reino Unido umanova disciplina, a New Public Management,que, embora influenciada por idéiasneoliberais, de fato não podia ser confun-dida com as idéias da direita; muitos paísessocial-democratas da Europa estavamenvolvidos no processo de reforma e deimplantação de novas práticas administra-tivas. O Brasil tinha a oportunidade departicipar desse grande movimento, e cons-tituir-se no primeiro País em desenvol-vimento a fazer a reforma.

Quando as idéias foram inicialmenteapresentadas, em janeiro de 1995, a resis-tência foi muito grande (BRESSER-PEREIRA,1999), principalmente porque eram idéiasnovas, e também porque elas pareciamneoliberais e contra os interesses dosservidores públicos. Tratei, entretanto, deenfrentar essa resistência da forma maisdireta e aberta possível. O tema era novo ecomplexo para a opinião pública, e aimprensa tinha dificuldades em dar aodebate uma visão completa e fidedigna.Não obstante, a imprensa serviu como ummaravilhoso instrumento para o debate dasidéias. Minha estratégia principal era atacara administração pública burocrática, aomesmo tempo em que afirmava a impor-tância do serviço público, defendia ascarreiras de Estado e mostrava a relaçãodireta da reforma que estava propondocom o fortalecimento da capacidade

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gerencial do Estado. Dessa formaconfundia meus críticos que afirmavamque eu agia contra os burocratas públi-cos, quando eu procurava fortalecê-los,conferir-lhes maior capacidade de ação etorná-los responsabilizados. Em poucotempo, um tema que não estava na agendado país assumiu o caráter de um grandedebate nacional. Os apoios de servidores,de políticos – principalmente de gover-nadores e de prefeitos – e de intelectuais

não tardaram, e afinal quando a reformaconstitucional foi promulgada, em abrilde 1998, formara-se um quase-consensosobre sua importância para o país, agorafortemente apoiada pela opinião pública,pelas elites formadoras de opinião, e emparticular pela alta burocracia pública.Estava claro que a reforma beneficiava amaioria dos altos administradorespúblicos existentes no país que são

dotados de competência técnica e espíritopúblico. A reforma havia conquistado ocoração e as mentes da alta burocraciaque, ao contrário do que afirma a teoriada escolha racional, não faz apenascompensações entre o seu desejo de ficarrica via corrupção e o de subir na carreira,mas na sua maioria faz compensaçõesentre este segundo objetivo e o decontribuir para o interesse público.

Para realizar a reforma dois instru-mentos foram usados: de um lado, oPlano Diretor da Reforma do Aparelhodo Estado, de outro, uma emendaconstitucional. A reforma constitucionalfoi parte fundamental da reformagerencial de 1995 já que esta implicavamudanças institucionais fundamentais.Muitas mudanças institucionais, porém,foram de caráter infraconstitucional. Mas

“Na medida emque a reformagerencial é a segundagrande reformaadministrativa doaparelho do Estadocapitalista, suaadoção por nós, comopara todos os paísesde renda média ealta, era apenas umaquestão de tempo.Uns avançam, outrosse atrasam”.

Homenageados no Concurso de Monografias para a Revista doServiço Público (1960).

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Burocracia pública e reforma gerencial

mesmo no plano legal a reforma excedeuem muito a Emenda 19. Quando, porexemplo, em 1997, as duas novasinstituições organizacionais básicas dareforma, as “agências executivas” (insti-tuições estatais que executam atividadesexclusivas de Estado) e principalmente as“organizações sociais” (instituiçõeshíbridas entre o Estado e a sociedade queexecutam os serviços sociais e competi-tivos) foram formalmente criadas, issonão dependeu de mudança da Consti-tuição. Grandes alterações também foramrealizadas na forma de remuneração doscargos de confiança, na forma de recrutar,selecionar e remunerar as carreiras deEstado, sem que para isso fosse neces-sário mudar a Constituição. Por outrolado, algumas das leis complementares àEmenda 19, como aquela que define ascarreiras de Estado e aquela que, a partirda anterior, estabelece os critérios dedemissão por insuficiência de desem-penho, não foram ainda aprovadas peloCongresso. O documento essencial paraa reforma, entretanto, foi o Plano Diretorda Reforma do Aparelho do Estado, quecontinha o diagnóstico e toda a lógica dareforma que então se iniciava. FernandoAbrucio (2007, p. 5) observou recente-mente que os principais avanços obtidospela reforma gerencial de 1995 se deramno processo de complementação dareforma burocrática de 1937:

“a maior mudança realizada foi,paradoxalmente, a continuação e aper-feiçoamento da civil service reform, pormais que o discurso do Plano Diretorda Reforma do Estado se baseassenuma visão (erroneamente) etapista –com a reforma gerencial vindo depoisda burocrática. Houve grande reorga-nização administrativa do Governo

Federal, com destaque para a melhoriasubstancial das informações daadministração pública – antes desor-ganizadas ou inexistentes – e o forta-lecimento das carreiras de Estado. Umnúmero importante de concursos foirealizado e a capacitação feita pelaENAP, revitalizada. Em suma, o idealmeritocrático contido no chamadomodelo weberiano não foi abando-nado pelo MARE; ao contrário, foiaperfeiçoado”.

Abrucio está correto quando mostraque a reforma gerencial de 1995 tinhaaspecto burocrático. Não havia, porém,nada de paradoxal nisso. A ênfase que deiao núcleo estratégico do Estado e a reali-zação de concursos públicos anuais paratodas as carreiras burocráticas tinhamdeliberadamente esse objetivo. A reformanão foi mera cópia da Nova GestãoPública. Foi adaptação criativa dasreformas de gestão pública que estavamacontecendo em alguns países ricos, como desenvolvimento de uma série deconceitos e de um modelo estrutural quenão estavam presentes ou estavam maldefinidos na literatura européia e americanaa respeito.

A reforma gerencial de 1995 tem trêsdimensões: uma institucional, outra cultural,e uma terceira de gestão4. A prioridade,naturalmente, cabia à mudança institucional,já que uma reforma é em primeiro lugaruma mudança de instituições. Para realizá-la, foi necessário que, antes, se realizasse umdebate nacional no qual a cultura burocráticaaté então dominante foi submetida a umacrítica sistemática, ao mesmo tempo em quese acentuavam dois aspectos da reforma: anova estrutura do aparelho do Estadoque se estava propondo, baseada em ampladescentralização para agências e

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organizações sociais, e a nova forma degestão apoiada não mais em regulamentosrígidos, mas na responsabilização porresultados através de contratos de gestão.

A reforma gerencial de 1995 baseia-se em um modelo que implica mudançasestruturais e de gestão. A reforma nãoestava interessada em discutir o grau deintervenção do Estado na economia, umavez que já se chegou a um razoávelconsenso sobre a inviabilidade do Estadomínimo e da necessidade da ação regula-dora, corretora, e estimuladora do Estado.Ao invés de insistir nessa questão, a reformapartiu de uma série de perguntas de caráterestrutural que tinham como pressupostogerencial o fato de que a descentralização,a conseqüente autonomia dos gestores, e asua responsabilização por resultadostornam os gestores e os executores maismotivados e as agências mais eficientes. Asperguntas de caráter estrutural eram:primeiro, quais são as atividades que oEstado hoje executa que lhe são exclusivas,envolvendo poder de Estado? Segundo,quais as atividades para as quais, emboranão exista essa exclusividade, a sociedadee o Estado consideram necessário financiar(particularmente serviços sociais e cientí-ficos)? Finalmente, quais as atividadesempresariais, de produção de bens eserviços para o mercado? A resposta a essasperguntas dependia da existência de umaterceira forma de propriedade no capi-talismo contemporâneo, além da proprie-dade privada e da estatal: a propriedadepública não-estatal que assume cada vezmaior importância nas sociedades contem-porâneas. A partir dessas perguntas e dadicotomia da administração burocráticaversus gerencial, foi-me possível construiro modelo estrutural da reforma.

Os Estados modernos contamcom três setores: o setor das atividades

exclusivas de Estado, dentro do qual estãoo núcleo estratégico e as agências executivasou reguladoras; os serviços sociais ecientíficos, que não são exclusivos, mas que,dadas as externalidades que possuem e osdireitos humanos que garantem, exigemforte financiamento do Estado; e, final-mente, o setor de produção de bens eserviços para o mercado. Consideradosesses três setores, a reforma estabeleceu trêsperguntas adicionais: que tipo de adminis-tração, que tipo de propriedade, e que tipode instituição organizacional devemprevalecer em cada setor? A resposta àprimeira pergunta é simples: deve-se adotara administração pública gerencial.

No plano das atividades exclusivas deEstado, porém, uma estratégia essencial éreforçar o núcleo estratégico, ocupando-ocom servidores públicos altamente compe-tentes, bem treinados e bem pagos. Aquestão da propriedade é uma questãoestrutural essencial para o modelo dareforma gerencial. No núcleo estratégicoe nas atividades exclusivas do Estado, apropriedade será, por definição, estatal. Naprodução de bens e serviços há hoje, emcontraposição, um consenso cada vezmaior de que a propriedade deve serprivada, particularmente nos casos em quenão haja monopólio, mas um razoável graude competição. No domínio dos serviçossociais e científicos, a propriedade deveráser essencialmente pública não-estatal. Asatividades sociais, principalmente as desaúde, educação fundamental e de garantiade renda mínima, e a realização da pesquisacientífica envolvem externalidades positivase dizem respeito a direitos humanosfundamentais. São, portanto, atividades queo mercado não pode garantir de formaadequada por meio do preço e do lucro.Logo, não devem ser privadas. Por outrolado, uma vez que não implicam no

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Burocracia pública e reforma gerencial

exercício do poder de Estado, não há razãopara serem controladas pelo Estado, nempara serem submetidas a todos oscontroles inerentes à administraçãoburocrática. Logo, se atividades sociais nãodevem ser privadas, nem estatais, aalternativa é adotar-se o regime dapropriedade pública não-estatal, é utilizarorganizações de direito privado, mas comfinalidades públicas, sem fins lucrativos.“Propriedade pública”, no sentido de quese deve dedicar ao interesse público, quedeve ser de todos e para todos, que nãovisa ao lucro; “não-estatal” porque não éparte do aparelho do Estado. As organi-zações públicas não-estatais podem ser emgrande parte – e em certos casos, inteira-mente – financiadas pelo Estado. Quandose trata, por exemplo, de um museu, eledeve ser quase integralmente financiadopelo poder público. Essa forma depropriedade garante serviços sociais ecientíficos mais eficientes do que os reali-zados diretamente pelo Estado, e maisconfiáveis do que os prestados porempresas privadas que visam o lucro aoinvés do interesse público. É mais confiáveldo que as empresas privadas porque, emáreas tão delicadas como a educação e asaúde, a busca do lucro é muito perigosa.É mais eficiente do que a de organizaçõesestatais, porque pode dispensar oscontroles burocráticos rígidos, na medidaem que as atividades envolvidas são geral-mente atividades competitivas, que podemser controladas por resultados com relativafacilidade.

Três instituições organizacionais emer-giram da reforma, ela própria um conjuntode novas instituições: as “agências regu-ladoras”, as “agências executivas”, e as“organizações sociais”. No campodas atividades exclusivas de Estado, asagências reguladoras são entidades com

autonomia para regulamentarem os setoresempresariais que operam em mercadosnão suficientemente competitivos, enquantoas agências executivas ocupam-se princi-palmente da regulação de atividadescompetitivas e da execução de políticaspúblicas. Tanto em um caso como nooutro, mas principalmente nas agênciasreguladoras, a lei deixou espaço para a açãoreguladora e discricionária da agência, jáque não é possível nem desejável regula-mentar tudo por meio de leis e decretos.No campo dos serviços sociais e cientí-ficos, ou seja, das atividades que o Estadoexecuta, mas não lhe são exclusivas, a idéiafoi transformar as fundações estatais hojeexistentes em “organizações sociais”. Asagências executivas serão plenamente inte-gradas ao Estado, enquanto as organi-zações sociais incluir-se-ão no setor públiconão-estatal. Organizações sociais sãoorganizações não-estatais autorizadas peloparlamento de um país a receber dotaçãoorçamentária do poder executivo peranteo qual são responsabilizadas por meio decontratos de gestão.

Todas essas mudanças estruturais,entretanto, devem ser acompanhadas demudanças no plano da gestão estrito senso.Enquanto a administração pública buro-crática enfatizava a supervisão cerrada, o usode regulamentos rígidos e detalhados, e aauditoria de procedimentos, a reformagerencial enfatizará o controle por resul-tados, a competição administrada porexcelência, e a participação da sociedade nocontrole das organizações e políticas doEstado. O instrumento que o núcleoestratégico usa para controlar as atividadesexclusivas realizadas por agências e as não-exclusivas atribuídas a organizações sociaisé o contrato de gestão. Nas agências,o ministro nomeia o diretor-executivo eassina com ele o contrato de gestão; nas

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organizações sociais, o diretor-executivo éescolhido pelo conselho de administração;ao ministro cabe assinar os contratos de ges-tão e controlar os resultados. Os contratosde gestão devem prever os recursos depessoal, materiais e financeiros com os quaispoderão contar as agências ou as organiza-ções sociais, e definirão claramente – quan-titativa e qualitativamente – as metas erespectivos indicadores de desempenho: osresultados a serem alcançados, acordados

pelas partes. A competição administradapor excelência compara agências ouunidades que realizam atividades seme-lhantes, de forma que os indicadores dedesempenho derivam da própria compe-tição, e dos incentivos positivos que sãoestabelecidos. O controle ou a responsa-bilização (accountability) social é essencial parao êxito da reforma baseada em agênciasdescentralizadas.

Uma reforma bem sucedida

Desde o início de 1998, tornou-se claroque a reforma gerencial de 1995 fora bemsucedida no plano cultural e institucional5.A idéia da administração pública gerencialem substituição à burocrática tornara-sevitoriosa, e as principais instituições neces-sárias para sua implementação tinham sidoaprovadas, a começar pela Emenda 19.Entretanto, estava claro também para mim

que o Ministério da Administração Federale Reforma do Estado, criado em 1995,não tinha poder suficiente para a segundaetapa da reforma: sua implementação. Sóo teria se fosse uma secretaria especial dapresidência e contasse com o interessedireto do presidente da República. Comoessa alternativa não era realista, passei adefender dentro do governo a integraçãodesse ministério no do Planejamento, com

“Sabemos (...)que a democraciaimplica não apenasliberdade depensamento eeleições livres,( ...)mas significatambém prestaçãode contas perma-nente por parte daburocracia públicade forma a permitira participação doscidadãos noprocesso político”.

Portões do Palácio do Trabalho, no Rio de Janeiro, ondese publicava a RSP (1938).

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o argumento de que em um ministério quecontrola o orçamento público haveria podersuficiente para implementar a reforma.

Minha proposta coincidiu com a visãodo problema que tinha a Casa Civil, eacabou sendo aceita na reforma ministerialque inaugurou, em janeiro de 1999, osegundo governo Fernando HenriqueCardoso. O MARE foi fundido com oMinistério do Planejamento, passandoo novo ministério a ser chamado Ministériodo Planejamento, Orçamento e Gestão6.Esse ministério, ao qual foi atribuída amissão de implementar a reforma gerencial,não deu, porém, a devida atenção à novamissão, exceto nas ações relativas àimplementação dos projetos do PlanoPlurianual, PPA. Praticamente todos osministros preocuparam-se exclusivamentecom o orçamento, deixando a gestão emsegundo plano. O orçamento não foidiretamente relacionado com o programade gestão da qualidade. A transformaçãode órgãos do Estado em agênciasexecutivas, ou, dependendo do caso, emorganizações sociais, não ganhou força anível federal. Os concursos públicos anuaispara as carreiras de Estado foram parcial-mente descontinuados a título de economiafiscal. Hoje estou convencido que meequivoquei ao propor a extinção do MARE:não previa o desinteresse do ministro pelotema da gestão, sua quase total concentraçãono processo orçamentário7.

Em 2003, começa o governo Lula. Areforma gerencial de 1995, ao enfatizar aimportância do núcleo estratégico doEstado, e ao defender que as atividadesoperacionais do Estado fossem trans-feridas para organizações sociais quandose tratassem de serviços sociais e cien-tíficos, ou simplesmente fossem tercei-rizadas se fossem atividades empresariais,reduzia substancialmente o espaço para a

baixa e média burocracia pública. OEstado devia continuar grande porque acarga tributária se conservaria alta, ou, emoutras palavras, porque se mantinharesponsável pela garantia dos direitossociais, particularmente por uma educaçãofundamental, por cuidados de saúde e poruma renda básica previdenciária, garantidosde maneira universal. Mas esses serviçospodiam ser executados em seu nome pororganizações sociais que, por definição, nãoempregam servidores públicos. Emconseqüência, a partir de 2003, a reformafoi relativamente paralisada a nível federal.Mesmo nesse nível, porém, sua atividadesocial mais bem sucedida, Bolsa Família,vem sendo administrada segundo critériosgerenciais. Por outro lado, seu serviço socialque mais emprega servidores, a previdênciasocial, vem passando por uma reforma emque os princípios gerenciais estão sendoadotados. Finalmente, o governo começoua discutir a criação de uma “fundaçãopública” que, caso se concretize e não contecom servidores públicos, será uma formaalterada e talvez aperfeiçoada de organizaçãosocial. Em qualquer hipótese, está claro quea reforma gerencial de 1995 continua vivamesmo no nível federal. O fato de que estaé uma reforma que corresponde ao estágiode desenvolvimento do Estado brasileiro atorna inevitável. Sua garantia maior é umnúmero crescente de gestores públicos emBrasília que sabem o quão importante ela épara se legitimar a ação do Estado e segarantir o desenvolvimento econômico esocial do país.

Se isso é verdade a nível federal, éainda mais a nível estadual e municipal – oque não é surpreendente dado que osserviços sociais e científicos que envolvemgrandes contingentes de servidores eatendem a um grande número de cidadãossão realizados nesse nível. Nos Estados

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Unidos, conforme Osborne e Gaebler(1992) demonstraram, a reforma iniciou-se e avançou muito mais a nível municipale estadual do que federal. Isso era verdadenos anos de 1990 e continua verdade naatual década. No Brasil, no âmbito estadual,a reforma gerencial está avançando emtoda parte (CONSAD, 2006). Em São Paulo,por iniciativa do governador Mario Covas,foram criadas grandes organizaçõeshospitalares de saúde no formato dasorganizações sociais. Seu êxito em termosde qualidade dos serviços e de redução decustos é impressionante. Entre outrosestados, em Pernambuco e em MinasGerais, estão sendo realizadas reformasamplas que utilizam todos os critérios eprincípios da Reforma da Gestão Públicade 1995. Abrucio e Gaetani (2006, no

32-33), avaliando os avanços da reformada gestão pública de 1995 nos estados,encontraram efeitos em quatro níveis. Oprimeiro nível diz respeito ao apoio que,como ministro, dei aos encontros entresecretários estaduais de gestão. O segundo,“a adoção de modelos institucionaisderivados da reforma Bresser constituiuma segunda demonstração de sua impor-tância”; hoje já existem 67 organizaçõessociais em 12 estados da federação, nãoocorrendo nelas “uma cópia da propostado Plano Diretor, mas um estímulo àimaginação institucional dos estados”. Emum terceiro nível, a partir do debate quese instalou durante quatro anos (1995-1998), essa concepção de reforma foiutilizada como pano de fundo dasreformas, mesmo quando do arrefeci-mento desse modelo no plano federal.Desse ‘caldo de cultura’ estabeleceu-se umreferencial geral de modernização, capazde fornecer motivações para a adoção deum novo modelo de gestão pública.Completando o processo de propagação

das idéias presentes na reforma Bresser,houve, no quadriênio de 2003-2006, umamigração de técnicos de alto escalão quetinham trabalhado no Governo Federal,especialmente no primeiro governo FHC,para os governos estaduais.

Conforme Regina Pacheco (2006, pp.171, 183), quatorze estados apresentamgestão por resultados. A contratualizaçãoenvolveu indicadores de desempenho va-riados, algumas das experiências utilizan-do como indicador final o Índice deDesenvolvimento Humano (IDH) que, noentanto, não é indicado por sua amplitudeexcessiva. Em um nível mais amplo, asidéias da reforma gerencial de 1995ultrapassaram as fronteiras do país, e, pormeio do Conselho Latino-Americano deAdministração para o Desenvolvimento(CLAD), que realiza grandes congressosanuais desde então, estendeu-se para a Amé-rica Latina através da aprovação pelosministros de administração latino-ame-ricanos do documento “Uma Nova GestãoPública para a América Latina”8.

A implementação da reforma gerencialde 1995 durará muitos anos no Brasil,passará por avanços e retrocessos, enfren-tará a natural resistência à mudança e ocorporativismo dos velhos burocratas, osinteresses eleitorais dos políticos, o interessedos capitalistas em obter benefícios doEstado. Mas o essencial é, de um lado, queela corresponde ao estágio histórico dodesenvolvimento brasileiro, e, de outro, queela foi adotada pela alta burocracia públicabrasileira que sabe que seu poder e seuprestígio dependem de um Estadoeficiente. Entretanto, a burocracia públicasó voltará a ter o prestígio e o poder queteve no período áureo do desenvolvi-mento brasileiro quando voltar a participarde nova estratégia nacional de desenvol-vimento. Levar adiante a reforma

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Burocracia pública e reforma gerencial

Gerencial é importante, esta é um meio:para que a ação da burocracia públicabrasileira volte a ter pleno sentido é precisotambém que os objetivos de desenvol-vimento econômico e social sejamrestabelecidos.

Um novo sentido de missão

O Estado brasileiro, do ponto de vistasócio-político, passou por várias fases. OEstado oligárquico era um Estado pordefinição capturado pelos interesses declasse. O Estado nacional-desenvolvimen-tista, entre 1930 e 1984, foi um Estado detransição que promoveu a industrialização,realizou a reforma burocrática de 1936, apartir da aliança política da burguesiaindustrial com a alta burocracia pública,mas foi antes marcado pelo autoritarismodo que pela democracia. O Estado quehoje existe no Brasil é, no plano político, oEstado democrático – e esse foi umgrande avanço. Entretanto, do ponto devista social e econômico, deixou de sernacional e voltou a ser dependente: é umEstado liberal-dependente incompatívelcom a retomada do desenvolvimentoeconômico. Nele, o pacto político domi-nante passou a ser constituído por umaaliança dos rentistas ou capitalistas inativoscom o setor financeiro, as empresasmultinacionais e os interesses internacionaisno Brasil – os dois primeiros gruposinteressados em elevadas taxas de juro eos dois últimos, em taxa de câmbio sobre-apreciada.

Há muitas causas que explicam essequadro nacional, todas elas associadas aofracasso do Pacto Popular-Democráticode 1977 em conduzir o País. Esse pactofoi capaz de promover a transiçãodemocrática, deu origem a uma série depolíticas sociais que contribuíram para

diminuir um pouco a grande concentraçãode renda existente, mas não teve propostaem relação ao desenvolvimento econô-mico, e, quando se viu brevemente nopoder, em 1985, levou o País ao grandedesastre que foi o Plano Cruzado. Havianecessidade, então, de uma mudançaprofunda das políticas econômicas para asquais a sociedade brasileira não estavapreparada. As causas imediatas da GrandeCrise era a dívida externa contraída nosanos 1970 e a alta inflação inercial quedecorreu do uso da indexação de preços.Mas era preciso também mudar do velhodesenvolvimentismo baseado na substi-tuição de importações e nos investimentosdo Estado para um novo desenvolvi-mentismo que se concentrasse em tornar aeconomia brasileira mais competitivaexternamente por meio de políticasmacroeconômicas que combinassemestabilidade com crescimento e quegarantissem aos empresários taxas de jurosmoderadas e principalmente taxas decâmbio competitivas. Esse é, essencial-mente, o tema de meu livro “Macroeco-nomia da estagnação” (2007), cujas tesesnão repetirei aqui.

Aqui, é importante assinalar os fatoresque levaram o Brasil a renunciar à suacondição de nação independente nogoverno Collor e à chegada ao poder deuma coalizão política intrinsecamenteadversária do desenvolvimento econômicodo País – o Pacto Liberal-Dependente –estão desaparecendo. Embora as taxas decrescimento sejam muito baixas quandocomparadas com a dos demais países, aeconomia brasileira não vive mais o quadrode crise dos anos de 1980. Por outro lado,o pressuposto de suas elites intelectuais,marcadas pela teoria da dependência e peloCiclo Democracia e Justiça Social de queo desenvolvimento econômico estava

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assegurado não havendo por que sepreocupar com ele, perdeu qualquer basena realidade: o desenvolvimento que esta-va assegurado durou apenas os anos de1970. Em terceiro lugar, está ficando claropara a toda a sociedade o fracasso daortodoxia convencional, aqui e em outrospaíses como a Argentina e o México, empromover o desenvolvimento econômico.Quando, neste quadro, a Argentina rompecom a ortodoxia convencional e passa aadotar estratégias macroeconômicas seme-lhantes aos dos países asiáticos (câmbiocompetitivo, taxa de juros moderada, eajuste fiscal rígido), passa a crescer forte-mente. Em quarto lugar, a hegemonia ide-ológica norte-americana, que se tornaraabsoluta nos anos de 1990, enfraqueceu-se de maneira extraordinária a partir de2000, devido ao fracasso da ortodoxiaconvencional em promover o desenvolvi-mento econômico e devido ao desastreque representou para os Estados Unidosa guerra do Iraque. Finalmente, nota-seentre os empresários industriais, queficaram calados durante os anos de 1990,uma nova consciência dos problemasnacionais e uma nova competência emmatéria macroeconômica por parte desuas assessorias que serão essenciais para adefinição, em conjunto com a burocraciapública, de um novo desenvolvimentismo.

É nesse quadro mais amplo que a idéiade um novo desenvolvimentismo, que seoponha tanto à ortodoxia convencionalquanto ao velho desenvolvimentismo, seimpõe. O nacional-desenvolvimentismodesempenhou seu papel, mas foi superado,enquanto a ortodoxia convencional é umaestratégia proposta por nossos concor-rentes que antes neutraliza do que promoveo desenvolvimento econômico. É dentrodo quadro do novo-desenvolvimentismoque devemos pensar o papel da burocracia

pública. Por enquanto, ela continua, comotoda a sociedade brasileira, desorientada.Sua área econômica limita-se à racionalidadede reduzir despesas – o que é necessário,mas está longe de ser suficiente. Falta atodos uma estratégia nacional de desen-volvimento. Enquanto o Brasil não voltara ter um projeto de nação, enquanto acoalizão política dominante estiverformada por empresas multinacionais einteresses estrangeiros no Brasil, não haverádesenvolvimento econômico. Só quandovoltar a existir no país uma coalizão políticaampla, da qual façam parte central a altaburguesia industrial e alta burocraciapública, o Brasil poderá voltar a realmentese desenvolver. Enquanto isso não acon-tece, o país se manterá quase-estagnado –crescendo porque o capitalismo é dinâ-mico, mas vendo sua distância em relaçãoaos países ricos aumentar ao invés dediminuir, como seria de se esperar.

A eventual retomada do desenvolvi-mento econômico em termos nacionaisnão resolverá magicamente os problemasdo país. Continuaremos a ver no Brasilum elevado grau de corrupção, umageneralizada violência aos direitos repu-blicanos dos cidadãos, ou seja, ao direitoque cada cidadão tem de que o patrimôniopúblico seja usado de forma pública. Apobreza, a injustiça e o privilégio conti-nuarão ainda amplamente dominantes noBrasil. A violência aos direitos sociaisainda convive com violências aos direitoscivis, especialmente dos mais pobres. Masem todas essas áreas o progresso dependeda retomada do desenvolvimento econô-mico. É verdade que, na área política esocial, houve substancial avanço desde1980, ou seja, desde que a economiaentrou em regime de quase-estagnação.Isso foi possível graças principalmente aoPacto Democrático-Popular de 1977.

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Dificilmente, porém, será possívelcontinuar a progredir nessas duas áreas ena proteção do meio ambiente se aNação não for reconstituída, se a socie-dade como um todo não voltar a se cons-tituir como Nação, e se suas classes diri-gentes não voltarem a contar com umaburocracia pública dotada de missãorepublicana.

A burocracia pública exerce papelimportante quando a respectiva sociedade,e principalmente a classe burguesa que nelaexerce papel dominante tem razoávelclareza quanto aos objetivos a seremalcançados e aos métodos a seremadotados. Entre 1930 e 1980, issoaconteceu, entremeado por uma crise naprimeira metade dos anos de 1960, mas,desde os anos de 1980, o Brasil não contamais com estratégia nacional de desenvol-vimento. Não obstante, essa burocracia, aocontrário do que se afirma, tem logradoêxitos importantes na gestão do aparelhodo Estado. Isso ocorreu especialmente nasaúde pública graças ao êxito do SUS(Sistema Único de Saúde) em estabelecerum sistema de atendimento de saúde àpopulação universal, muito barato, e comqualidade razoável. Tem logrado tambémavanços, entre outros setores, na defesa domeio ambiente e da educação fundamental,onde já não existe mais um problema dequantidade, o problema central é agora oda qualidade do ensino. E poderá termaiores avanços na medida em que essaqualidade depende não apenas de maiortreinamento dos professores, mas princi-palmente de novas formas de gestão daeducação. Fracassa na área do ensinouniversitário, que no Brasil, por ser estatalcomo é na França e na Alemanha, ao invésde público não-estatal como é nos EstadosUnidos e na Grã-Bretanha, apresentaresultados altamente insatisfatórios.

Na área mais geral da gestão, graças aconcursos anuais para todas as carreiras dociclo de gestão e especialmente para a dosgestores públicos, o Estado brasileiro contahoje na área federal com uma burocraciamuito melhor preparada e eficiente do quegeralmente se imagina. No nível estadual,estão também se multiplicando as carreirasde gestores públicos. Na área do PoderLegislativo, a burocracia pública experi-mentou grande avanço graças às carreirasde assessoramento criadas no Senado e naCâmara dos Deputados.

Tais êxitos se devem em grande parteà Reforma Gerencial iniciada em 1995 que,além de tornar o aparelho do Estado maiseficiente, está devolvendo à burocraciapública brasileira parte do prestígio socialque perdeu em conseqüência do esgota-mento da estratégia nacional-desenvol-vimentista e do retorno a uma democracialiberal. Mais do que isso, a reforma dagestão pública está dando a amplos setoresda burocracia pública brasileira um novosentido de missão. O etos do serviçopúblico, que nunca lhe faltou, foi embaçadopela desorientação social, mas a existênciade quadro de reforma factível vem lhedando novo ânimo e objetivos mais claros.São, por enquanto, objetivos internos aoaparelho do Estado. Um objetivo maior,de participação na retomada do desenvol-vimento nacional, depende de toda asociedade e seus líderes políticos sevoltarem para ele. Depende da refundaçãoda nação brasileira.

Nesse processo, o papel da burocraciapública – dos seus servidores, dos seusintelectuais – é importante. Em todas asáreas do Estado, a burocracia pública estritosenso divide o poder com os políticos. Emapenas um dos três poderes, no Judiciário,os burocratas possuem o poder final; nosdemais, os políticos detêm esse poder.

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Desde a Constituição de 1988, a autonomiada alta burocracia judicial, que inclui alémda própria magistratura o Ministério Públicoe a Advocacia do Estado, e a AdvocaciaPública, tornou-se muito mais forte – emcertos momentos, excessiva. Ocorreu,entretanto, um processo de gradualdesvinculação da magistratura pública deideologia liberal e formalista que atende aosinteresses da ordem constituída, e suavinculação, de um lado, a seus própriosinteresses corporativos, de outro, aos inte-resses da justiça social que animaram a cartade 1988. Entretanto, conforme Vianna et al

(1997, p. 38), embora “parte do Estado,encravado em suas estruturas, o Judiciáriocomo ator não está destinado a irrompercomo portador de rupturas a partir deconstruto racional que denuncie o mundocomo injusto”. A lenta autonomização doJudiciário dos interesses econômicos é umfator positivo que reflete o fato de que osmagistrados se percebem como parte daclasse profissional com deveres para comos pobres, ao invés de fazerem parte dacapitalista.

A burocracia pública, para realizar seupapel, precisa de mais autonomia e demais responsabilização (accountability). Areforma gerencial de 1965 deu um papeldecisivo ao controle social, ou seja, àresponsabilização da burocracia públicaperante a sociedade, mas isso vemocorrendo de maneira lenta. Sabemos,porém, que a democracia implica nãoapenas liberdade de pensamento e eleiçõeslivres, não apenas representação efetiva doscidadãos pelos políticos e mais amplamentepela burocracia pública, mas significatambém prestação de contas permanentepor parte da burocracia pública de formaa permitir a participação dos cidadãos noprocesso político. Os quatro pilares dademocracia são liberdade, representação,

responsabilização e participação. Em outrotrabalho (BRESSER-PEREIRA, 2004), vi trêsestágios históricos da democracia: a demo-cracia de elites ou liberal, da primeirametade do século XX, a democracia deopinião pública ou social, da segundametade desse século, e a democraciaparticipativa que vai aos poucos apare-cendo. No Brasil, as três formas dedemocracia estão presentes e embaralhadas:temos muito de democracia de elites, jásomos uma democracia social, e a Consti-tuição de 1988 abriu espaço para umademocracia participativa. Antes de chegara ela, porém, além de melhorarmos osnossos sistemas de participação, seránecessário tornar a burocracia pública maisresponsabilizada perante a sociedade.

Não creio, entretanto, que essa mudançaseja possível se a sociedade brasileira nãovoltar a ser uma verdadeira Nação e a terestratégia nacional de desenvolvimento eco-nômico, social e político. Entre o início doséculo XX e 1964, a sociedade brasileira –no quadro do Ciclo Nação e Desenvolvi-mento – constituiu a nação brasileira eindustrializou o Brasil, mas, em compen-sação, deixou em segundo plano a demo-cracia e a justiça social. Esse ciclo terminouno golpe militar de 1964. A partir do iníciodos anos de 1970, um novo ciclo dasociedade começou – o Ciclo Democraciae Justiça Social –, que promoveu o avançoda democracia e procurou reduzir as desi-gualdades sociais mais gritantes e a pobrezaextrema, mas abandonou a idéia de naçãoe foi incapaz de promover desenvolvi-mento econômico. Em meados de 2000,esse ciclo também está esgotado. O grandedesafio que se coloca hoje para a socie-dade brasileira é o de fazer uma síntesedesses dois ciclos – algo que é possível eque dará orientação e sentido para suaburocracia pública.

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Burocracia pública e reforma gerencial

Notas

1 Fiz a análise da classe tecnoburocrática principalmente em BRESSER-PEREIRA. A sociedade Estatale a tecnoburocracia, 1981.

2 A doença holandesa é uma falha de mercado que leva os países dotados de amplos e baratosrecursos naturais a verem sua taxa de câmbio se apreciar de maneira a tornar não competitiva e,dependendo da gravidade da apreciação, inviabilizar atividades industriais operando no estado daarte da tecnologia.

3 Poupança externa é déficit em conta corrente. Quando um país incorre em déficit em contacorrente sua taxa de câmbio se aprecia em relação àquela que existira se houvesse equilíbrio em contacorrente.

4 Para a formulação e início da implementação da reforma gerencial de 1995, além de escrever,com a ajuda de assessores, o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, escrevi diversostrabalhos publicados principalmente na Revista do Serviço Público. Sintetizei esses trabalhos e asprimeira realizações da reforma no livro “Reforma do Estado para a cidadania” (1998). Ainda noperíodo 1995-98, ver o livro organizado por Vera Petrucci e Letícia Schwarz, (orgs.), 1998, e otrabalho de Indermit Gill (1998). Hoje existe uma enorme bibliografia sobre a reforma.

5 Sobre o processo político de aprovação da reforma ver Marcus Melo, 2002 e Bresser-Pereira,1999.

6 O presidente disse-me então, ao informar de sua decisão de fundir os dois ministérios, queentendia que minha missão na administração federal havia sido cumprida, e me convidou paraassumir o Ministério da Ciência e da Tecnologia. Permaneci nesse cargo entre janeiro e julho de 1999,quando voltei para minhas atividades acadêmicas.

7 A despeito de o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão não ter utilizado o orça-mento como recurso de poder para alavancar a implementação da Reforma Gerencial na segundagestão do governo Fernando Henrique Cardoso, avanços foram alcançados. Ver a respeito, Ministériodo Planejamento, Orçamento e Gestão (2002). No governo Lula, esses avanços continuaram aonível da burocracia pública federal, inicialmente sem o apoio do governo; aos poucos, porém, asidéias gerenciais também alcançaram seu nível decisório.

8 Ver CLAD (1998). O CLAD, com sede em Caracas, reúne os governos de 24 países latino-americanos e do Caribe, e dos dois países ibéricos. Seu Conselho Diretivo é formado pelos ministrosde administração ou correspondentes em cada país.

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Luiz Carlos Bresser-Pereira

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Luis Carlos Bresser-Pereira.

É doutor e livre docente em Economia pela Universidade de São Paulo. Atualmente é professor da FundaçãoGetúlio Vargas, São Paulo. Contato: <[email protected]>.

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Burocracia pública e reforma gerencial

Visão de uma seção de serviço de mecanografia (1945).

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Jorge Viana

Mais queadministrar, cuidar!

Jorge Viana

Quando fui convidado a colaborar com a edição comemorativa dos 70 anos

da Revista do Serviço Público, relatando em ensaio um pouco da experiência de

gestão que adquiri nos quatro anos de Prefeitura de Rio Branco e nos oito de

governo do Estado do Acre, senti-me desafiado a fazer um mergulho na história

do nosso trabalho, tentando buscar um sentido para os nossos sonhos e encontrar

uma resposta para algumas perguntas desafiadoras. Qual é a importância da

gestão pública nas nossas vidas? Em que consiste o papel do gestor? Como

garantir programas de formação continuada para que a capacidade coletiva

aumente e o serviço público seja de melhor qualidade? Poderia acrescentar mais

uma infinidade de questões como suporte do raciocínio que pretendo desen-

volver neste trabalho, mas, para efeito didático, limito-me a um pequeno

mergulho na história do movimento que nos trouxe até aqui.

O Acre é um estado singular na federação. Tem uma história única, que

influenciou diretamente em tudo o que ocorreu. O que construímos até aqui éfruto do capital social acumulado a partir de um sonho originário dos movimentos

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Mais que administrar, cuidar!

sociais organizados, que tiveram comoícone maior nosso companheiro ChicoMendes, que, com seu exemplo de dedi-cação e entrega, chamou a atenção domundo para as causas dos povos dafloresta e da questão ambiental naAmazônia. Essa nossa origem nos impôsum desafio permanente de lidar comsonhos. Sonhos de mudanças e transfor-mações, passando uma percepção dereinvenção do governo. Foi isso o queocorreu no Acre, com uma radicalmudança de comportamento nos indi-víduos, nas instituições e na sociedade. Essatransformação foi ainda mais radical napolítica, permitindo o surgimento de umanova geração de políticos de sucesso quehoje influencia inclusive no cenário nacional,como a senadora e ministra Marina Silva eo senador Tião Viana, vice-presidentedo Senado.

Nossa experiência de gestão públicatraz em si a idéia de serviço à sociedade.Muito além da imagem da desconfiança,formalismo e burocracia que à primeiravista ela sugere, a gestão pública é algofascinante. Para mim, uma das mais nobresatividades, porque se preocupa com o bemestar de todos. A gestão pública tem queser exercida pelos quadros mais qualifi-cados. Por pessoas que reúnam boaformação técnica, compromisso ético esensibilidade social e política. Por isso, noAcre, não aceitamos o conceito administrar

e decidimos trocá-lo por cuidar, porqueadministrar é frio, é distante, é impessoal.Optamos pelo conceito cuidar, porque eleé pessoal, amoroso, inspira envolvimentoe exige total entrega e dedicação. “Quemama, cuida, trata com carinho”, dizia o jingle

de uma de nossas campanhas expressandocom precisão o nosso sentimento.

Assim como a mãe não administra, mascuida dos filhos, o gestor deve ir além e

desenvolver um sentimento de amor peloque faz e se dispor a cuidar com carinhodo bem de todos. O gestor público é acimade tudo um servidor, e sua missão é garantira funcionalidade da estrutura administrativapara que os direitos das pessoas sejam asse-gurados e também para que os deveres doscidadãos sejam cumpridos. Na nossaconcepção, tanto as corporações que repre-sentam os trabalhadores, quanto os gestores,devem estar abertos a este sentido amploda gestão. O poder do gestor público temque ser um “poder obediencial”, como dizEnrique Dussel em suas 20 teses de política(DUSSEL, 2005). O ocupante de funçãopública, para ser legítimo e plenamenterepresentativo, tem que estabelecer formasde aferição para agir em sintonia com seusrepresentados. Prestar contas do que faz.Saber lidar com os mecanismos de controle,que há tempo deixaram de ser apenas asferramentas tradicionais de avaliação. Noatual estágio de globalização e revoluçãotecnológica, da internet, do tempo real, issojá não é mais suficiente. Hoje, nas sociedadescomplexas, as responsabilidades passamnecessariamente pelo que os anglo-saxõeschamam de accountability social, vertical ehorizontal.

Accountability social diz respeito àcapacidade da sociedade controlar ogoverno a partir de suas instâncias derepresentação e do governo ser sensível àsdemandas desta esfera. Na accountability

vertical, temos as eleições periódicas, quevão medir o grau de responsividade (sensibi-lidade, cumprimento, responsabilidade)dos governantes, proporcionando aocidadão o cumprimento de sua vontade e,portanto sua capacidade de premiar ousancionar os gestores e suas políticas.Quanto à accountability horizontal, no dizerde Eli Diniz, trata de resgatar a dimensãorepublicana da democracia, colocando à

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disposição de agências de controle comoMinistério Público, Tribunais de Contas,Ouvidorias, Controladorias, a informaçãodas ações desenvolvidas pelo setor público(DINIZ, 2003).

Infelizmente, a gestão pública nocontinente latino-americano, de um modogeral, pode ser considerada de baixaresponsabilidade. Tanto nos gabinetes dosdirigentes, dos gestores, quanto no modelode gestão adotado, sentimos essa deficiência.

Ainda não se disseminou suficientemente acultura da formação permanente daspessoas, o que se verifica também em boaparte das lideranças que ocupam posiçõesestratégicas. A conseqüência disso é umserviço público sem estabilidade, semcontinuidade, de baixa qualidade, comfragilidade nos mecanismos de tomada dedecisão e uma relação negativa das insti-tuições públicas com a sociedade.

São muitas as ferramentas disponíveispara os gestores que queiram mudar essequadro e se manter tecnicamente atuali-zados. Um diferencial importante na cons-trução da nossa experiência de gestão foia opção que fizemos de nos cercar detodos os instrumentos possíveis paragarantir o sucesso do nosso trabalho. Issocomeçou com a formação das nossaspróprias lideranças. Nesse movimento deformação das lideranças do Acre, eu fui

um dos primeiros a buscar e a ter a oportu-nidade de me preparar como gestor. Como apoio do companheiro Lula, no iníciodos anos 1990, estabeleci um contato comtécnicas de gestão e planejamento estra-tégico. A partir daí, foram inúmeros cursose treinamentos, tanto para mim, como paraoutras lideranças do nosso projeto. Comoresultado, tivemos importantes parceriascom entidades que ajudaram na nossa

“(...) No Acre, nãoaceitamos o conceito‘administrar’ e decidimostrocá-lo por ‘cuidar’,porque administrar éfrio, é distante, éimpessoal. Optamospelo conceito cuidar,porque ele é pessoal,amoroso, inspiraenvolvimento e exigetotal entrega ededicação”. Funcionária na Sala do Código Civil, na Casa de Ruy Barbosa (1943).

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formação, como o Instituto LatinoAmericano de Desenvolvimento Econô-mico e Social (ILDES); a FundaçãoFriedrich Ebert (FES), da Alemanha; aFundação Getúlio Vargas (FGV); a Ama-na-key do educador Oscar Motomura; osconsultores Klaus Schubert e HeloísaNogueira e a própria ENAP. Desde o início,trabalhamos com o método PES – Plane-jamento Estratégico Situacional, de CarlosMatus, e com metodologias alemãs deplanejamento.

Aprendi com Carlos Matus, ex-membro do governo Allende, há quase 20anos, mas que ainda mantém sua atuali-dade, que as técnicas de gestão públicaevoluíram muito pouco quando compa-radas aos avanços experimentados pelasoutras dimensões da vida das sociedades.Mesmo os avanços conquistados sãopouco partilhados. E, no grau de interde-pendência em que as modernas relaçõessociais se estabelecem, é praticamenteimpossível imaginar uma experiênciaadministrativa de sucesso sem que ela estejaatenta aos modelos desenvolvidos etestados com bons resultados. Também éimprescindível que o gestor esteja conec-tado com a realidade global e tenha amplodomínio da realidade à sua volta. Tem queestar aberto às políticas de parceria, formarconsórcios e buscar se articular em blocos,tanto para trocar experiências quanto parafortalecer a luta em defesa dos interessesregionais e locais. O nosso trabalho localsempre foi feito numa interação com oglobal, como prova nossa decisiva contri-buição para mudar as relações do Brasilcom Peru e Bolívia. Temos certeza de queo Brasil só tem a ganhar com sua aproxi-mação dos irmãos latino-americanos.

Quando o assunto é gestão, ouformação de pessoas para o exercício daadministração pública, não tem como

dissociar o Brasil da América Latina,porque, mesmo considerando as diferençase particularidades de cada país, temosmuitos interesses comuns e desafios sociaissimilares a serem superados. Além desermos herdeiros de uma cultura ibéricasecular que nos legou uma tardia consoli-dação das instituições, a experiência demo-crática da América Latina é muito recentequando comparada com os processosvividos na Europa e na América do Norte.

No Brasil, especificamente, somosfruto de um sistema colonial que seestendeu por três dos nossos cinco séculosde história. Nossa experiência republicanaé relativamente nova e a democraciarepresentativa que praticamos mais recenteainda. Aliás, podemos dizer que a nossademocracia está em fase de implantação, ehá uma espécie de consenso na sociedadede que ainda existem muitos aspectos aserem aperfeiçoados. Quanto a isso, nadaa lamentar. A democracia é um valoruniversal que está sempre em construção,e não há nada de anormal no fato dasinstituições e os mecanismos políticosestarem sempre sendo ajustados. O pro-fessor David Held já apontava em 1991que a crença nas idéias e práticas demo-cráticas só podem ser protegidas a longoprazo se aprofundarmos seu enraizamentona nossa vida política, social e econômica.Portanto, devem estar centradas no tripé“cidadãos votantes” (detentores da ferra-menta da responsabilidade), “os quetomam as decisões” (representantes, líderes,etc.) “e o povo” de um determinadoterritório, as pessoas a quem se destinamas políticas públicas (HELD, 1991).

Para que uma experiência adminis-trativa seja plenamente sustentável, elaprecisa estar firmada no chamado triân-gulo de governo desenvolvido por Matus,constituído pelo “projeto, a capacidade de

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governo e a governabilidade”. Aliás, anossa experiência de sucesso no Acre estáfirmada nesses três vértices. Através doPartido dos Trabalhadores e da FrentePopular, trabalhamos com um projetopolítico de poder bem definido e umaestratégia clara. Reunimos uma equipetécnica e política com grande capacidadee criamos as condições de governabilidadee um ambiente político favorável.

A experiência em curso no Acre trazcomo marco diferencial um projeto dedesenvolvimento sustentável de baseflorestal construído e pactuado com todosos segmentos representativos da sociedade.Para dar suporte a este projeto, construímosuma base política que envolveu todos ospartidos progressistas que aceitaram, semimpor condições, dele tomar parte. Valeressaltar que os poderes constituídos e omovimento social organizado tambémfazem parte deste consenso. Um consensofirmado na transparência, no bem comume na garantia de que as mudanças que sefaziam necessárias seriam implementadas.

Na prefeitura de Rio Branco, quebra-mos um ciclo de administrações inefi-cientes, desconfiança e desrespeito aopúblico. A nossa gestão foi baseada no usode técnicas de planejamento estratégico,tanto na campanha, quanto na definiçãodas ações da primeira semana, do primeiromês, dos primeiros cem dias e dos quatroanos. Com isso, foi possível cuidar dacidade e dar eficiência nos serviçospúblicos, tendo sempre a educação comoa maior prioridade. Ganhamos a confiançada população, fizemos sucesso e tivemosuma das melhores avaliações entre ascapitais brasileiras entre 1993 e 1996. Alémde nossa primeira experiência, a Prefeiturafoi também nossa grande escola.

No governo do Acre, as mudançasforam ainda mais marcantes. Com base em

planejamento estratégico eficiente e deta-lhado, inovamos e criamos conceitos,como o slogan “Governo da Floresta” ea expressão Florestania. Priorizamos a defesado meio ambiente, resgatando as simbo-logias do Acre, como o hino, a bandeira, ahistória, celebrando os centenários eprocurando valorizar a cultura e o conheci-mento das populações tradicionais.Podemos afirmar que promovemos umaprofunda mudança política e administrativano Estado, e chegamos ao final com reco-nhecido sucesso, sendo apontado peloIBOPE no último trimestre de 2006 comoo governo melhor avaliado do Brasil. E omais importante é que a atual gestão estádando continuidade ao trabalho, que estásendo aprofundado e aperfeiçoado sob aliderança do governador Binho Marques,que foi o secretário de Educação naPrefeitura e no nosso primeiro Governo,além de ter acumulado por quatro anos asfunções de vice-governador e Secretáriode Educação no segundo governo.

O conceito desenvolvido no Acreatravés da expressão Florestania, que oteólogo Leonardo Boff identificou comouma metáfora perfeita para traduzir aprofundidade e a complexidade doprojeto em curso, pode ser compreendidocomo algo que tenta sintetizar numa palavranova e genuinamente acreana as seisdimensões imprescindíveis para que asustentabilidade aconteça de fato. Emborasendo um conceito em formação e carentede um suporte teórico aprofundado, aFlorestania é algo com alma e está presentena dimensão ambiental, porque é o pontode partida para o desenvolvimento susten-tável; na economia, na medida em que bus-camos usar com sabedoria e atribuir valordiferenciado aos recursos que a naturezanos legou; no social, porque o projeto só ésustentável se melhorar as condições de

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vida das pessoas; no aspecto cultural, porquea sociedade tem que ser ganha para oprojeto para defendê-lo; no político, porqueo projeto precisa de governabilidade; e,por último, na dimensão ética, porque, alémdo zelo e honestidade no trato com osbens e serviços públicos, temos que usaros recursos para prover as necessidades dageração atual mas cuidar para que não hajarisco de comprometimento da vida dasgerações futuras.

O primeiro princípio é o da sustenta-bilidade ambiental, que deve ser condiçãopara a fortaleza das demais variáveis damatriz que buscamos montar para o nossoprojeto de desenvolvimento sustentável.Todos os projetos pensados pelo nossogoverno eram elaborados desde aconcepção, implantação, monitoramento eavaliação na perspectiva do uso sustentáveldos nossos ativos ambientais. Um dospontos de referência do projeto dedesenvolvimento sustentável do Acre foia realização do Zoneamento EcológicoEconômico (ZEE), que se constitui hojeno principal instrumento norteador daspolíticas públicas. O ZEE, construídoatravés de um grande pacto que envolveutodos os segmentos da sociedade, identi-ficou todas as particularidades e potencia-lidades de cada uma das regiões do Estado,de forma a orientar o governo no planeja-mento das políticas públicas e das açõesespecíficas de cada região. Neste sentido,penso que José Maria Maravall tinha razãoquando tratou do controle dos políticosque, numa relação de agência, o cidadão-votante é o principal e o governo seuagente, e que para este agente ser contro-lado pelo seu principal, depende de trêsrequisitos. Primeiro, que as ações do agentee as condições de operacionalização devemser conhecidas publicamente; segundo, queambas as partes, principal e agente, sejam

capazes de prever contingências e, terceiro,que o agente não veja como um custo levara cabo políticas preferidas pelo principal(MARAVALL, 2003). Na relação de agênciaque estabelecemos no Acre, procuramosser permeáveis, tanto nos aspectos técnicos,como nas variáveis mais intangíveis dapercepção deste soberano principal. Nossogoverno procurou observar o carátertransversal da sustentabilidade ambiental,ajustando todos os programas e projetospara que o princípio da sustentabilidadefosse plenamente respeitado.

Conseguimos fazer uma conexão entreo ambiental, o político e a gestão. Doslogan Governo da Floresta à expressãoFlorestania e à busca de estabelecer umaeconomia dependente do uso sustentáveldos recursos florestais. A presença daquestão ambiental na agenda acreana édefinitiva e ganha respeito no planonacional, como bem expressa a trajetóriada senadora e hoje ministra do MeioAmbiente, Marina Silva.

O segundo princípio é o da sustenta-bilidade econômica. Diríamos que estavariável ganha importância porque acredita-mos que é possível utilizar com sabedorianossos recursos naturais, gerando empregoe renda na floresta sem comprometer asfuturas gerações. Procurando potencializara vocação florestal do nosso Estado, queainda dispõe de um ativo de quase 90% desua cobertura florestal original, fortalecemoso círculo virtuoso de que a floresta faz bempara a economia e a economia de baseflorestal é importante para a sustenta-bilidade. Em determinados momentos,tivemos que trabalhar tendo o Acre comouma empresa e a floresta como o nossomelhor negócio. Para a população quedepende da economia da floresta parasobreviver, nada mais vantajoso que aaplicação de técnicas sustentáveis que lhe dão

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a garantia de que os mesmos benefíciospodem ser usufruídos pelas futuras gerações.Quem melhor defende a floresta é quemdepende dela para sobreviver.

Atendendo ao princípio da sustenta-bilidade social, nosso governo procuroucriar as condições necessárias para melhorara vida das pessoas, dando atenção prioritáriaaos mais necessitados. Para isso, foramdesenvolvidos diversos programas, entreeles o Adjunto da Solidariedade destinado

às famílias em situação de pobreza absoluta.Esse programa, posteriormente incorpo-rado ao Bolsa-Família do Governo Federal,exigia como contrapartida que as famíliasmantivessem os filhos na escola. Tambémcomo parte da preocupação social, criamosum programa de atenção especial àscomunidades mais carentes, em risco social.

Para assegurar o princípio da sustenta-bilidade cultural, nossas ações foram

orientadas pelo capital social cultural existentecomo fruto da resistência e mobilização domovimento social organizado. A esse capitalsocial herdado da história de nossa culturapolítica, buscamos incrementar1 políticaspúblicas que estivessem na mesmafreqüência dos movimentos sócio-políticos,como os manejos comunitários, florestasestaduais (unidades de conservaçãoambiental), incentivo ao extrativismo coma Lei Chico Mendes de subsídio à produção

de borracha, que associa a proteção epreservação da floresta ao modo de vidados povos que nela habitam. Nossa apostaé que ninguém protege melhor a florestaque os que estabelecem atividades econô-micas de uso sustentável a partir dela.

No princípio da sustentabilidade polí-tica, fomos objetivos na construção dagovernabilidade. Trabalhamos sempre comalianças políticas, construindo consensos

“Um diferencialimportante naconstrução de nossaexperiência de gestãofoi a opção quefizemos de noscercar de todos osinstrumentospossíveis paragarantir o sucessodo nosso trabalho.Isso começou com aformação das nossaspróprias lideranças”.

O diretor-geral do DASP, João Guilherme de Aragão, visita aComissão do Serviço do Governo Federal Norte-Americano eseu presidente, o Sr. Harris Elworth (1957).

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e sendo firmes na defesa desses consen-sos. Ousamos, em primeiro plano, estabe-lecer os mecanismos de efetividade dagovernança, para no passo seguinte esta-belecer um nexo entre aquilo que estáva-mos desenvolvendo em termos de gestãopública com uma nova cultura política docidadão-votante mais exigente. Queríamosprovar, e penso que conseguimos, que apolítica é uma atividade nobre que deveser exercida por pessoas vocacionadas aoserviço público. Tentamos quebrar oparadigma do pensamento tacanho que vêtoda política como nociva ao bem público.Buscamos o envolvimento de todos numanova filosofia do ganha-ganha, em oposiçãoà tradicional equação da disputa de soma

zero. O trabalho permanente na perspec-tiva da construção de consensos em tornoda defesa dos interesses maiores da socie-dade garantiu a governabilidade necessáriapara o sucesso do projeto.

O último princípio é o da sustentabi-lidade ética. O grande exercício quetivemos que fazer foi o de não deixar queas tarefas de um governo técnico-polí-tico, como pensamos que foi o nosso,perdesse de vista a dimensão ética denossas ações. Se tivéssemos feito tudo oque fizemos sem levar em conta os valores,as tradições e principalmente a firmeconvicção na inversão de prioridadescomo forma de inclusão social, não esta-ríamos em conformidade com osprincípios anteriores, pelos quais ChicoMendes e tantos outros lutaram até a

morte. O nosso compromisso ético nosimpõe que a Educação seja sempre amaior prioridade. É impossível pensarem mudanças profundas e duradouras senão for pela educação. Por isso, aeducação sempre foi a base do nossoprojeto. A educação é tudo, e o sucessodo nosso trabalho se deve em grandeparte à nossa firme decisão de fazer tudopela educação.

Como se vê, são inúmeras as recomen-dações para o bom exercício da gestãopública, mas, se tivesse que apontar as maisimportantes delas, eu citaria três: a infor-mação, a formação e o planejamento.Procurei levar isso ao pé da letra e criamosa cultura do fazer acontecer, tanto noperíodo em que fui prefeito de Rio Branco,quanto nos oito anos em que estive à frentedo Governo do Estado do Acre, e osresultados foram extraordinariamentepositivos. Sinto-me inteiramente realizadopelos avanços que conquistamos, e sei quetodos os passos dados, desde as campanhasvitoriosas, passando pela escolha da equipee o planejamento detalhado de cada umadas ações, tiveram como ponto de partidaum amplo domínio das informações darealidade. Evidentemente, estratégias comoessas permitem também um melhor desem-penho eleitoral. Estamos no terceirogoverno da coalizão que nos levou ao poderno Acre, e vemos nisso uma prova de queo cidadão-votante está atento e dispostoreconhecer a boa política e a boagovernança.

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Nota

1 Um recurso pode ser usado para aumentar a efetividade de um determinado bem, ou pode,simplesmente, não ser utilizado e tornar-se obsoleto. James Coleman assinala que o capital socialse desvaloriza se não é renovado (1990). No entanto, esse uso, quando é incremental, permite quea ação coletiva tome emprestado da comunidade os meios de se criar mais capital social paragrupos que estavam fora da prática coletiva, os quais se alimentam do incremento do capitalinstitucional.

Referências bibliográficas

COLEMAN, James. Foundation of social theory. Cambridge: Havard University Press, 1990.

DINIZ, Eli. Planejando o desenvolvimento: a centralidade da dimensão político-democrática. Versão Preliminar. Ciclo de Seminários Brasil em Desenvolvimento. Instituto deEconomia da UFRJ. Rio de Janeiro, 2003.

DUSSEL A, Henrique. 20 teses de política. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2005.

HELD, David. Modelos de democracia. Madrid: Alianza Universidad, 1991.

MARAVALL, José Maria. El control de los político. Madrid: Taurus, 2003.

MATUS, Carlos. O líder sem Estado-maior. São Paulo: FUNDAP, 2000.

PUTNAM, Robert. Comunidade e democracia. A experiência da Itália moderna. FGV, 2000.

Jorge Viana.

É graduado em Engenharia Florestal pela Universidade de Brasília. Foi prefeito de Rio Branco, Acre, de 1993 a1996 e governador do Acre de 1999 a 2002 e de 2003 a 2006. Contato: <[email protected]>

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Mais que administrar, cuidar!

O presidente Getúlio Vargas em pronunciamento na solenidade em que assinou o decreto deaposentadoria para os extranumerários da União (1941).

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Wilson Cano

Brasil: é possível umareconstrução do Estado

para o desenvolvimento?

Wilson Cano

Reproduzo, nesta introdução, a hipótese que usei em outro texto sobre o

processo de industrialização na América Latina, que se dá entre 1929 e 1979, a

qual sofreu forte inflexão a partir do final desse período1.

Ela se resume em que, por várias circunstâncias históricas, pudemos e quisemos

explorar mais corajosa e inteligentemente a soberania nacional resultante das

brechas e contradições externas de quase todo esse período: a Grande Depressão,

entre 1929 e 1937; a II Guerra Mundial; o surgimento de uma bipolaridade, com

a expansão da ex-URSS; o esforço dos EUA para reconstruir o Japão e a Alemanha;

a Guerra Fria; a desaceleração da economia dos EUA, nas décadas de 1960 e

1970 e os Golden Years da expansão da Europa e do Japão.

Mas é bom lembrar que a excepcionalidade do período 1929-1979 não

significa que estávamos trilhando o almejado caminho do desenvolvimento

econômico, que nos pudesse levar, algum dia, a atingir o padrão de vida dos paí-

ses desenvolvidos. Celso Furtado já havia esclarecido essa questão, em 1974, em

seu clássico O mito do desenvolvimento. Tentávamos desde os anos 1930, isto sim,

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Brasil: é possível uma reconstrução do Estado para o desenvolvimento?

alterar nosso padrão de crescimento viaindustrialização, como sabiamente teorizoua Cepal, ao final da década de 1940.

Mas a hipótese também significa,infelizmente, que após 1979, os tempossão outros, com muito menos brechas,menos coragem e menos vontade polí-tica para um enfrentamento internacionalresponsável e cooperativo. Ou seja, após1979, os EUA, secundados pelos demaisimperialismos, retomaram as açõesmediante as quais nos impuseram ochamado Consenso de Washington,centrado pela dominação da finançainternacional. Isso reduziu fortementenossa soberania nacional e nos impôs –com a aceitação de nossas elites – umaverdadeira ressurreição liberal-conser-vadora, nossa velha conhecida, hojeporém vestida de “nova” roupagem, ada (falsa) “ida ao primeiro mundo”.

Para o Brasil, o período 1929-1933representa a ruptura com um passadopolítico liberal e, principalmente, uma radicalmudança do processo de acumulação decapital, ou a mudança do Centro Dinâmico da

Economia Nacional, como disse Furtado, como que a determinação da renda e doemprego, antes comandada pelas expor-tações, passava a sê-lo pelo investimentoautônomo2.

A Crise de 1929 atingiu duramente aAmérica Latina e sua economia primário-exportadora, e com mais intensidade, ospaíses mineiros e Cuba, então dominada,de fato, pelos EUA. A maioria dos demaispaíses sofreu fortes pressões, principal-mente dos EUA e da Inglaterra, com aimposição de “acordos” draconianos eelevações tarifárias sobre nossas expor-tações. A todos atingiu a forte redução dacapacidade de importar, a exaustão dasreservas e o drástico constrangimento dasfinanças públicas, o que impediu, de fato,

a continuidade de condução de uma polí-tica econômica liberal.

Contudo, a reação e o enfrentamentoà crise não foram uniformes3. Venezuela,Equador e América Central mantiveram-se, durante alguns anos, mergulhados nacrise, mas aguardando a “volta aos dias deglória” do liberalismo. Brasil, Argentina,México e Chile constituíram o grupo depaíses que tomaram essa atitude maisrápida, com a substituição de governosliberais, via processos revolucionários oueletivos, e promovendo rapidamenteousadas alterações na política econômicae na forma de intervenção econômica doEstado Nacional.

O Brasil foi um precursor nessa tarefa.Ela nos exigiu não só uma rápida e efetivapolítica estatal de defesa da renda e doemprego, mas também a construção deuma política de industrialização, única rotapara atenuarmos as incertezas e crisesgeradas pelo velho “primário expor-tador” e que nos possibilitaria ingressarem formas econômicas urbanas maismodernas e progressistas4. Exigiu, acimade tudo, uma firme vontade política e aousadia de utilizar o que tínhamos desoberania nacional.

Para tanto, precisávamos construir umnovo Estado e redesenhar o painel dapolítica econômica com os instrumentosnecessários para aquele mister, entre os quais,a moratória da dívida externa, sempre quenecessária, o controle (e a desvalorização)do câmbio, uma nova política de comércioexterior, de crédito, de juros e tributária,além da organização de normas para regeros contratos e o mercado de trabalho e umamais avançada legislação política, social etrabalhista5.

A (re) construção do Estado exigiutambém a reformulação ou a criação deinúmeros órgãos:

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• uns, de caráter mais geral, como oConselho Técnico de Economia e Finanças,o Conselho Federal de Comércio Exterior,o famoso Departamento Administrativodo Serviço Público (DASP), o ConselhoNacional de Política Industrial e Comercial,a Comissão de Planejamento Econômico,a Superintendência da Moeda e do Crédito,em 1945, e o BNDE em 1952;

• outros, de caráter mais específico,como a Comissão de Financiamento da

Produção, vários departamentos, comis-sões ou conselhos de âmbito setorial (café,açúcar e álcool, sal, pinho, mate, cacau,petróleo, minerais, etc.).

Além disso, o Estado teve ainda queformar equipes técnicas para dar conta desseempreendimento vultoso. Construiu assim,uma grande e competente burocracia queadministrou o planejamento e a execuçãodos principais projetos de desenvolvimento.

Entre 1930 e 1945, com Vargas,pudemos assim avançar a industrialização,graças à inequívoca condução de umapolítica nacional de desenvolvimento. Entre1946 e 1950, com Dutra, sofremos umacurta ameaça de um retorno ao liberalismo,a qual, contudo, frente a nosso velho,conhecido e recorrente problema cambial,não teve o fôlego suficiente para anular omuito que avançáramos. Mesmo assim,continuamos o caminho desenvolvimentista.

O retorno de Vargas (1950-1954) deumais clareza em seus propósitos naciona-listas e industrializantes. A despeito doperíodo em grande parte conflituoso comas forças reacionárias do País, avançamosainda mais na consolidação da implantaçãoda indústria leve e do preparo da marcharumo à indústria pesada. Cerceado peladireita, Vargas se suicida em 1954, e seugesto, tendo tido forte impacto político

“O Brasil foi umprecursor [na reaçãoà crise de 1929]. Elanos exigiu não sóuma rápida e efetivapolítica estatal dedefesa da renda e doemprego (...). Exigiu,acima de tudo, umafirme vontade políticae a ousadia de utilizaro que tínhamos desoberania nacional”.

Solenidade de posse da nova diretoria da Associação dos ServidoresCivis do Brasil, no dia 27 de outubro de 1951, no Teatro Municipal.

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sobre as massas populares, certamenteconseguiu adiar (para 1964) o golpe tãoalmejado pela direita.

Durante todo esse processo, o Estadoteve não apenas que cumprir com as tarefasacima assinaladas, mas também com a decriar empresários nacionais, pois isso eramatéria escassa, pelo menos para os setoresmodernos que se pretendia implantar. Maisainda, dada a debilidade do capital nacionale o pouco interesse do capital estrangeiroem nosso desenvolvimento, o Estado teveque assumir também a função primordialde produtor de bens e serviços fundamentaisa esse processo: energia, transportes,comunicações, educação, siderurgia,petróleo, mineração, etc.

Com JK, entre 1956 e 1960, e comuma situação internacional favorável àemigração do capital forâneo para a peri-feria mundial, pudemos implantar aprimeira fase de nossa indústria pesada e ade bens de consumo durável. As trêsdécadas decorridas exigiram novas adap-tações do Estado, da estrutura tributária,do financiamento e da política econômica,que, em que pese alguns conflitos políticos,conseguiu avançar esse processo6.

Tudo isso se fez, ainda com uma cargatributária nacional pequena, que havia saltadode cerca de 12% do PIB, na década de 1920,para 15%, na de 1940, e 18% na de 1960.Da estreiteza dessa capacidade fiscal e dadebilidade de nosso balanço de pagamentosresultariam maiores pressões inflacionáriasao final do período. A indústria de trans-formação, entre 1928 e 1962, cresceu à taxamédia anual de 7%, seu peso no PIB passoude 12,5% para 26%, e em sua estruturaprodutiva, os bens de produção já perfaziamcerca de 40%.

Os conhecidos fatos que transcorrementre 1958 e 1964, como a crescente parti-cipação e manifestação popular em prol

das Reformas de Base, a desaceleração docrescimento econômico e o aumento dainflação reacenderam o reacionarismo noPaís. O curto governo de Jânio Quadrosfoi o estopim para a crise política, asuspensão temporária do presidencialismoe a precipitação do golpe contra o governoGoulart, em abril de 1964.

O regime militar, politicamenteapoiado nas elites reacionárias e conser-vadoras e no governo dos EUA, fez asreformas necessárias. Não, contudo, paraatender os objetivos sociais e políticosalmejados pela reivindicação popular, mastão somente para desatar as amarras docapital público e notadamente do privado.Deu muito ao capital, e muito pouco aotrabalho, retirando-lhe inclusive direitostrabalhistas conquistados na Era Vargas.

As reformas ampliaram a fiscalidadedo Estado, passando a carga tributária a25% do PIB e introduzindo a correçãomonetária nos títulos da dívida pública, oque permitiu forte alargamento do gastopúblico. Com isso, o investimento público(governo mais empresas públicas) cresceu,perfazendo cerca de 60% da formação decapital fixo, passando essa formação a25% do PIB.

As reformas também causaramprofundas modificações no mercado decapitais, dando-lhe maior organicidade eexpandindo o mercado financeiro, coma criação do Banco Central e de novasinstituições públicas e privadas. Ainda, fez-se uma reforma administrativa e criaram-se novos dispositivos para incentivarexportações e dinamizar e modernizar aagricultura de exportação. Contida ainflação e implantadas as reformas aeconomia pôde sair da crise e encetar umnovo período de elevado crescimento,entre 1967 e 1974, que ficou conhecidocomo o “milagre brasileiro”7.

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A despeito do discurso tecnocráticodo golpismo, de que o sistema deveriaconter a expansão do Estado na economia,nunca houve expansão tão grande degoverno e de empresas estatais como aocorrida no período que se estende de1965 a 1980.

Entre 1967 e 1980 o crescimentoeconômico acelerou ainda mais, com aindústria de transformação crescendo àmédia anual de 9,8% e aumentando suaparticipação no PIB para 31%, ao mesmotempo em que os bens de produção jáperfaziam cerca de 50% de seu valoradicionado. A pauta de exportações já sediversificara, com a inclusão de váriosprodutos manufaturados, cuja participaçãona pauta saltou de 6%, em 1964, para 45%em 1980.

Contudo, o regime militar, no afã de seperpetuar no poder, tentara transformar aeconomia do País em uma das maiores domundo – o projeto Brasil Potência – e, paraisso, abusou do endividamento externo edescuidou do desequilíbrio do balanço depagamentos, o que nos traria perversasconseqüências a partir de 1980.

Nesse mesmo momento (fins de 1979),as pressões das grandes potências sobreos EUA para que estes debelassem suainflação e cuidassem de seu enormedesequilíbrio fiscal e comercial resultaramem violenta retaliação daquele país, com abrusca e forte alteração de sua política fiscal,elevando a taxa de juros, entre 1979 e 1981,de 7% para 21%.

Com essa atitude aparentementeparadoxal, pois eles eram os maioresdevedores do planeta, causaram a quebrafinanceira dos estados nacionais de todosos países endividados, que eram os subde-senvolvidos e alguns países socialistas. Aomesmo tempo, ampliaram ainda mais seusdéficits e, graças à elevação dos juros,

praticamente obrigaram os demais paísesdesenvolvidos a financiá-los, carreandopara os EUA enormes fluxos de capital.

Com isso, o dólar voltou a valorizar-se, a economia dos EUA a crescer e o Paísa recuperar sua hegemonia, antes aparen-temente enfraquecida. A valorização dodólar causou desvalorização das demaismoedas, aumentando-lhes a competiti-vidade internacional de seus bens e serviçosno mercado norte-americano.

A política econômica proposta eimposta pelo FMI aos países devedores foio clássico e ortodoxo ajuste monetário dobalanço de pagamentos, consistindo suasprincipais medidas em cortes do gastopúblico, constrangimento salarial, da moedae do crédito, e câmbio desvalorizado.

Os resultados não se fizeram esperar:recessão, baixo crescimento da renda, doconsumo e do emprego, corte de impor-tações, queda do investimento público eprivado e elevação dos juros, que conti-veram a demanda interna e estimularamfortemente as exportações, nas quais, aparir de 1985, os manufaturados jápesavam 55%. Mas o forte aumento denossas exportações para aquele mercadofoi insuficiente sequer para pagar os jurosda dívida, com o que nosso saldo devedorcresceu vertiginosamente.

Como nos ensina a boa teoria, o ajustenão funcionou. O desequilíbrio externo ea inflação aumentaram, a despeito de váriosplanos de estabilização então aplicados.Acumulamos baixo crescimento do PIB edo emprego e um grande atraso tecno-lógico, justamente quando o mundo sereestruturava com a revolução microele-trônica. A taxa de investimento despencoupara cerca de 17% e a indústria de transfor-mação cresceu, entre 1980 e 1989, àmedíocre taxa média anual de 0,9%, caindosua participação no PIB, para 26%.

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Brasil: é possível uma reconstrução do Estado para o desenvolvimento?

O debilitamento fiscal e financeiro doEstado – que reduziu a carga tributária a23% –, e a alta inflação causaram o aban-dono da tarefa de pensar e programar oPaís a longo prazo. Passou a predominaro “curtoprazismo” e o “conjunturalismo”,com a política econômica tornando-serefém do ajuste do FMI. Com isso, iniciou-se também o desbaratamento da buro-cracia técnica desenvolvimentista.

Mas os maus resultados não se limi-taram a isso. O regime descuidou dosaneamento básico, do planejamentourbano, do déficit habitacional, da saúdepública e da educação, a qual sofreu forteprivatização e desqualificação no período,da qual nos ressentimos até hoje. Dada suanecessidade de cooptar civis para tentarmanter o poder, disso resultou uma proli-feração do fenômeno da corrupção quepassou a permear vários canais da socie-dade, além de forte corrosão na ação eno trato da política.

De bom, tivemos a agonia do regimemilitar e sua transição em 1985, e, graças auma crescente participação política econscientização, em 1988 uma nova LeiMagna – a Constituição Cidadã –, queampliava os direitos políticos e sociais dapopulação.

A longa e complexa crise financeira e oesgotamento do padrão de acumulação daSegunda Revolução Industrial aumentaramainda mais a concorrência, o risco e a incer-teza para o capital privado. Frente a isso, ospaíses desenvolvidos formaram os GrandesBlocos (EUA-Canadá, UE e Japão-SudesteAsiático), estimulando grandes fluxos decapitais “Norte-Norte”(Estados Unidos,Japão, MCE) durante a década de 1980,mantendo ainda em altos níveis os fluxospara a Coréia e sudeste asiático. Com isso,disseminaram no mundo um novo neolo-gismo – a globalização dos mercados –

vendendo a idéia de que o “paraíso seriapara todos”. Mas os fluxos para a África,América Latina e parte da Ásia, pratica-mente cessaram, aumentando a situação jácrítica dessas áreas.

O discurso político da abertura e daglobalização resultou também na RodadaUruguai e depois na OMC, em mais umengodo aos países subdesenvolvidos,dado que fizemos várias concessõescomerciais sobre bens e serviços aosdesenvolvidos, ao passo que a expansãoprometida de nossas exportações foimenos que proporcional.

As pressões que os Estados Unidosfizeram à América Latina, para integrar-seno projeto da Associação de LivreComércio das Américas (ALCA) foi maisuma demonstração de suas reais intençõessobre a região. A “nova” crise do México(1995) mostrou a armadilha em que estecaiu, ao ingressar no Tratado Norte-Ame-ricano do Livre Comércio (NAFTA). Os“estouros” brasileiro e argentino desnu-daram ainda mais essa realidade. A miragemde um Mercado Comum para países doCone Sul (o MERCOSUL) é outra “cons-trução na areia”, face às enormes diferen-ças estruturais entre seus países membros, àinstabilidade macroeconômica e aospercalços neoliberais de suas políticaseconômicas.

Adicione-se a isso alguns dos efeitosperniciosos da Terceira Revolução Indus-trial sobre os países subdesenvolvidos:automatização de máquinas e sucateamentode antigas, alto desemprego, desindus-trialização e substituição de insumosnacionais por importados. A reestruturaçãoespúria que tem sido feita nesses países eos “milagrosos remédios” impostos pelasinstituições internacionais repetem, exausti-vamente, a miragem da cura da estagnação,da instabilidade e da incerteza.

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As reformas neoliberais foramimpostas à América Latina já a partir de1987 – fora os precoces e sangrentosintentos na Argentina, Chile e Uruguai,entre 1973 e 1975 – e o Brasil, nessesentido, foi retardatário, instaurando-as apartir de 1990. O ajuste delas decorrentedebilitou ainda mais, fiscal e financeira-mente, a maioria dos estados nacionais,duplicando o endividamento externo, e“justificando”, por isso, a “necessidade”

de ajustes patrimoniais a favor do setorprivado.

A ideologia por um Estado mínimorespaldou também as políticas de descen-tralização, que tentaram transferir atribuiçõese recursos do poder central aos podereslocais, contendo ainda mais o papel doEstado nacional. Assim, o receituárioneoliberal implicou na submissão consentidados países subdesenvolvidos à Nova

Ordem, conforme os preceitos contidos nochamado Consenso de Washington, com oque abdicamos de nossa soberania nacional,no desenho, implementação e manejo dapolítica econômica8.

Esse receituário está assentado paraatender, primordialmente, aos interessesda finança internacional, decorrente dacrise internacional, que subordinou aofinanceiro todas as outras formas decapital, impondo a quebra da soberania

nacional de nossos países, para liberar seumovimento internacional na buscaincessante da valorização. Para isso,ressuscitou o liberalismo, preconizandoreformas neoliberais que contemplam,fundamentalmente: desregulamentaçãodos fluxos internacionais de capital, fimdos monopólios públicos, privatização,abertura comercial, previdência social e“flexibilização” das relações de trabalho.

“É preciso, pois,repensar a questãonacional. Não, repito,como uma simplesvolta ao passado, mascom novos caminhospossíveis para darcontinuidade a nossoprocesso históricosocial e transformaçãoprogressista daeconomia e dasociedade nacionais”.

Balcão de inscrições, no antigo serviço de saúde pública (1951).

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Brasil: é possível uma reconstrução do Estado para o desenvolvimento?

Dado que as grandes empresastransnacionais na década de 1980 já haviamfeito sua reestruturação produtiva ecomercial em suas bases nos países desen-volvidos, o receituário também foi peça-chave para que elas, na década de 1990,também se reestruturassem em suas basesnos subdesenvolvidos.

As novas políticas de estabilização,diferentes das anteriores, desempenharampapel estratégico para o funcionamento donovo ajuste. No Brasil, implantada entrefins de 1993 e junho de 1994, a política deestabilização (Plano Real) teve como lastrouma elevada valorização da moedanacional ante o dólar e um ciclópicocrescimento da dívida pública interna,inflada por elevados juros reais. A valori-zação cambial e a abertura comercialresultaram em forte diminuição dos custosdos importados, debilitando as exportações,gerando grandes déficits comerciais e deserviços e contenção da inflação.

A política de estabilização e asreformas constituem um todo articuladopara permitir a plena funcionalidade domodelo:

• ampla liberdade ao capital (estran-geiro ou nacional) financeiro para obterelevados ganhos setoriais e regionais, pelobaixo valor dos ativos públicos e privadosadquiridos, pela especulação bursátil e dadívida pública; pelas tarifas públicas maiselevadas após a privatização, e pela maiorremessa de lucros e de juros. A justificativafoi a de que, com isso, o capital externonão só financiaria nosso “passageiro”desequilíbrio externo como a retomada donosso desenvolvimento;

• a reforma do sistema financeironacional, necessária para compatibilizar avelocidade exigida pelos novos fluxosexternos e pela diversificação que então seoperaria nos mercados financeiros;

• a abertura comercial e de serviços,via forte redução tarifária e não tarifária evalorização cambial, que sancionou enxur-radas de importações e gastos interna-cionais, e enfraqueceu ainda mais o capitalnacional, dada nossa menor capacidade deconcorrer em igualdade com o capitalinternacional;

• flexibilização das relações trabalho-capital, para diminuir ainda mais o já baixocusto do trabalho, adequar contratos aonovo timing da tecnologia e debilitar asestruturas sindicais;

• as reformas previdenciárias, para criarmais um importante flanco de mercadopara o capital financeiro e abrir maiorespaço no orçamento público para osjuros das dívidas públicas interna e externa;

• a reforma do estado, para desman-telar suas estruturas, diminuir seu tamanhoe sua ação, eliminar órgãos públicos, reduzirsalários reais dos funcionários, privatizarativos públicos, desmantelar os sistemas deplanejamento e de regulamentação;

• os estados subnacionais (governosestaduais e prefeituras) que tambémestavam fortemente endividados e com suafiscalidade debilitada, foram obrigados anegociar suas dívidas com o governofederal, comprometendo por 30 anosparte de suas receitas com o pagamentocompulsório de amortizações e juros.Alguns conseguiram, através de duroscortes em gastos correntes e investimentos,sanear suas finanças. Contudo, a maiorianão usou essa nova situação para políticassociais e sim para conceder subsídios devárias modalidades ao setor privado,ampliando assim a guerra fiscal.

Com as medidas do Plano Real, ainflação foi contida em níveis baixos, masà custa de elevado crescimento das dívidasexterna e interna e de forte perturbaçãoda produção nacional. Ocorre que para

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manter um alto fluxo de importações e deoutros gastos externos, que aumentamaceleradamente à medida que o PIB cresce,há necessidade de altos, crescentes epersistentes fluxos de capital estrangeiro,forte endividamento externo e interno,contaminando as contas públicas, uma vezque a taxa de juros tem que ser muito alta eseu montante, crescente. “Torramos”, entre1990 e 2003, nada menos do que US$ 185bilhões, em saldos negativos de transaçõescorrentes, o que fez com que nossa dívidaexterna saltasse de US$ 123 bilhões paraUS$ 235 bilhões e nosso passivo externosubisse para cerca de US$ 400 bilhões.

Qualquer movimento internacional quesensibilize a finança internacional ou adeterioração visível do balanço de paga-mentos e das contas públicas, provoca umfreio na entrada de capital, uma crisecambial e uma recessão. Com isso, ocâmbio se desvaloriza, as importações sãoem parte contidas, e as exportações,estimuladas. Porém, a taxa de crescimentodo PIB cai, só retomando níveis mais altos,quando a “festa” de gastos internacionaispode se reiniciar.

O investimento não retomou seusníveis (altos) anteriores: o público, porquenão há nem política de desenvolvimento,nem, muito menos, recursos, haja vista queo montante dos juros se agigantou noorçamento público; o privado, dada aincerteza do movimento da economia eos elevados juros internos. Assim, o cresci-mento é ciclotímico, resultando numa taxamédia anual tão medíocre quanto a obser-vada na década anterior. Por exemplo, nos18 anos do período 1988-2006, somenteem quatro deles nosso PIB teve taxas acimade 4%; negativas em dois; e menores que2%, em seis9.

Após a crise cambial de 1999 e a“ressaca” que se estende até 2003, o quadro

só não piorou ainda mais dado o grandeincremento na liquidez internacional e aforte expansão das importações mundiaisestimuladas pelo “efeito China”, quepermitiram crescimento um pouco maiorno último triênio. Ainda assim, cabelembrar que a taxa de inversão, emboratenha subido um pouco, situa-se em tornode 19%; que o montante de juros noorçamento público, que tem girado emtorno de 7% do PIB, só é adimplentegraças ao brutal aumento da carga tribu-tária, que dos 28% em 1990 saltou paracerca de 35% do PIB; o crescimento médioanual da indústria de transformação, entre1989 e 2006, foi de medíocres 1,8%,caindo sua participação no PIB para cercade 20%, num inequívoco processo dedesindustrialização.

Mas as exportações, agora ainda maisestimuladas pelo “efeito China”, põem anu nossa desindustrialização, mostrandoque a participação dos produtos básicose a dos manufaturados, que em 2000atingiram, respectivamente, 23% e 59%,regrediu, em 2006-2007, para cerca de 30%e 53%. Por outro lado, entre os produtosindustrializados exportados, a expansão deseu valor se deu naqueles de menor valoragregado por produto e de menores níveisde intensidade tecnológica10.

A Constituição Cidadã de 1988 foidesfigurada ao longo dos últimos anos,com várias emendas que abriram osmonopólios públicos; através de artifícioslegais, rescentralizaram no governo federala fiscalidade que havia sido descentralizadapara os governos subnacionais; retiraramdireitos previdenciários; concederamreeleição a cargos do Poder Executivo; edesobstruíram alguns entraves ao livreingresso e saída do capital forâneo, coisaque uma nação digna desse nome decenteprecisa manter.

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Brasil: é possível uma reconstrução do Estado para o desenvolvimento?

Para “aperfeiçoar” o ataque ao Estadonacional, o receituário neoliberal reco-mendou a criação de agências reguladorasem substituição ao papel conferido pelaConstituição ao Poder Executivo. Foramcriadas várias, nos campos do petróleo, daenergia, das telecomunicações, da água, daaviação comercial e outras. O pretexto demelhor regulamentar esses setores –principalmente os privatizados e privati-záveis – encobriu o óbvio ululante: sãoórgãos com mandato de diretorias conce-didos pelo Congresso, dificilmenteremovíveis e que, na verdade, servem deanteparo entre o público e o privado.

Têm servido, basicamente, para asse-gurar um caminho mais suave e profícuoao lucro privado do que atender à fiscali-zação do setor público. Os escândalosatuais sobre recentes desastres e fatos decorrupção na aviação comercial, logros aosconsumidores, tarifas escorchantes, já sãomais do que suficientes para demonstrar oerro de suas criações e a necessidade deextingui-las.

Finalizo este pequeno artigo em agostode 2007, quando um novo vento pertur-bador começa a sacudir os mercados

financeiros do mundo todo. Será apenasmais uma nova, passageira e “adminis-trável” crise; uma repetição das de 1995,1997, 1998 e 2001; ou uma de proporçõesmais graves e duradouras?

A História sempre nos pode ser útil,não para reproduzi-la, mas para repensarsuas lições. Não esqueçamos que em 1929éramos uma economia primário-exporta-dora, também tínhamos elites conser-vadoras e nosso Estado tinha umaestrutura absolutamente inadequada paraum projeto de industrialização. A crisesuperou tudo isso, com a Revolução de1930, um Estado que se reestruturou e umacorajosa política nacional de desenvol-vimento.

É preciso, pois, repensar a questãonacional. Não, repito, como uma simplesvolta ao passado, mas com novos cami-nhos possíveis para dar continuidade a nos-so processo histórico social e transfor-mação progressista da economia e dasociedade nacionais. E, repetindo Furtado,preservar e incentivar a cultura e acriatividade nacionais, tão necessárias a essemister. Mas para isso, será fundamental areconstrução do Estado nacional.

Notas

1 O texto está no capítulo 1 do livro: CANO, Wilson. Soberania e política econômica na AméricaLatina. UNESP: São Paulo, 2000.

2 Conforme o seu clássico Formação econômica no Brasil. 4a ed. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura,1961, especialmente os capítulos 30-32.

3 Ver a respeito SEERS, D. Inflación y crecimiento: Resumen de la experiencia en América Latina.Cepal, Boletín Económico de América Latina, v.VII, n.1, Santiago, 2/1962.

4 Sobre a política de defesa ver CANO, W.. Crise de 1929, soberania na política econômica e industria-lização, 2002. In: CANO, W.. Ensaios sobre a formação econômica regional do Brasil., Ed. Unicamp, 2002.

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5 Sobre o tema, embora exista ampla bibliografia, restrinjo-me a algumas das quais, por sua vez,contemplam referências detalhadas. Ver, em especial: DINIZ, E. Empresário, estado e capitalismo no Brasil,1930-45, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, e DRAIBE, S. Rumos e metamorfoses: Estado e industrializaçãono Brasil (1930/1960), Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985.

6 Para esse período ver LESSA, C. Quinze anos de política econômica. Campinas, Universidade Esta-dual de Campinas, 1975. (Cadernos do Inst. Fil. Ciências Humanas).

7 Sobre as modificações do papel do Estado e sua participação na economia, ver MARTINS, L.Estado capitalista e burocracia no Brasil pós-64, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985 e BAER, W.; KERSTENETZKY,I.; VILLELA, A.V. As modificações do papel do Estado na economia brasileira. Pesquisa e PlanejamentoEconômico. Rio de Janeiro: IPEA, dezembro de 1973.

8 Para uma análise dessas reformas e de seus efeitos na América Latina e Brasil, ver CANO (2000).9 É bom lembrar que as taxas médias mais altas do período 2004-2006 se devem, substancial-

mente, ao excepcional comportamento das exportações, estimuladas pelo “efeito China”.10 Ver a respeito, Carta do IEDI no 272, de 16 de agosto de 2007. Disponível em

<www.iedi.org.br>.

Wilson Cano.

É doutor em Ciências Econômicas pela Universidade Estadual de Campinas.Atualmente é professor titular daUniversidade Estadual de Campinas. Contato: <[email protected]>

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Brasil: é possível uma reconstrução do Estado para o desenvolvimento?

Visita feita ao Ministro Arízio de Viana, diretor-geral do DASP, pelo encarregado dos Negócios de Israel noBrasil, Dr. M. Shneerson (1954).

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Capacidades estatais,empresários e desenvolvi-

mento no Brasil: uma reflexãosobre a agenda pós-

neoliberal

Renato R. Boschi

A discussão sobre a retomada do crescimento e as alternativas de desenvol-

vimento no Brasil no cenário pós-reformas dos anos 1990 tem transitado entre

dois extremos: de um lado, uma hiper-valorização dos preceitos de mercado

que levaram à estabilização, combinados a uma perspectiva de integração do

País no contexto da globalização financeira e, por outro lado, uma perspectiva

de natureza mais endógena que preconizaria uma ruptura com as políticas

neoliberais através da busca de soluções fundadas na força do intervencionismo

e do controle estatais. No debate público, observa-se um embate entre a

perspectiva favorável ao mercado, comumente associada à eficiência e ao bom

desempenho, portadora de um discurso bastante convincente quanto à manu-

tenção rígida de certos preceitos, sobretudo na esfera da estabilidade mone-

tária, de um lado, e o retorno de uma tradição desenvolvimentista fundada na

necessidade de recuperação de capacidades estatais, porém geralmente identificada,

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Capacidades estatais, empresários e desenvolvimento no Brasil: uma reflexão sobre a agenda pós-neoliberal

na visão hegemônica, com arcaísmo, nacio-nalismo inconseqüente, protecionismo eatraso, de outro. Dessa forma, de um ladoprevalece uma naturalização da perspectivaortodoxa quanto aos benefícios de coorde-nação pela via do mercado e a insistênciana tese de que os parcos resultados emmatéria de crescimento se deveriam ao fatode que as reformas não avançaram sufi-cientemente. De outro lado se contrapõeum discurso que ainda não teria se impostoeficazmente, visto que tem sofrido críticas,mormente por parte dos setores conser-vadores, sobre a necessidade de recuperaçãode capacidades estatais como fator dedesenvolvimento.

Tudo indica, porém, que as saídas parao desenvolvimento não se situam noaprofundamento do modelo ortodoxo,fazendo “tábula rasa” das capacidadesestatais acumuladas ao longo da trajetóriapregressa do estatal desenvolvimentismo emantendo quase intocáveis os fundamentosda estabilidade com a integração cada vezmais intensa do País nos circuitos financeirosglobalizados. Tampouco parece razoáveluma postura de rejeição radical dos ele-mentos apontados como fatores de estabi-lidade, apostando na ruptura como a únicapossibilidade de se avançar na direção deretomada do desenvolvimento. Hoje em dia,o quadro encontra-se bastante matizado, sejaporque os mercados financeiros interna-cionalizados operam com relativa auto-nomia e impõem um conjunto de limites àatuação dos estados nacionais no seuconjunto, seja porque a percepção sobre osefeitos nefastos da operação de mercadosauto-regulados do ponto de vista social játeria sido incorporada como dimensãoimportante pelos próprios críticos internosda globalização.

Parece claro, assim, que os caminhosque se delineiam para a retomada do

crescimento se situariam na definição deum modelo de desenvolvimento quecombinaria elementos dessas duasperspectivas polares, recuperando o papelprotagonista do Estado que remonta aoperíodo desenvolvimentista, mas, aomesmo tempo, incorporando elementosdo modelo instaurado pelo processo dasreformas de mercado. O resultado seriauma síntese institucional que se expressariaem uma modalidade de desenvolvimentoque vem sendo cunhada de “novodesenvolvimentismo” no debate domés-tico (BRESSER-PEREIRA, 2005; 2006) e queteria sua contrapartida externa na preo-cupação da Cepal (MACHINEA; SERRA, 2007)com a retomada da tradição estruturalista,adaptada e redefinida aos novos tempos.Neste sentido, tal como se expressa naagenda pública, o debate doméstico, salvoalgumas exceções, estaria defasado daperspectiva que se delineia no âmbitointernacional, seja em termos da revisão quejá se faz no campo hegemônico sobre opapel do Estado, seja, certamente, emtermos da produção acadêmica em um viés“estatista” (LANGE; RUESCHEMEYER, 2005).

Por sua vez, a dimensão social, relegadaa segundo plano durante quase todo operíodo do desenvolvimentismo, apareceagora fortemente como prioridade nocenário pós-neoliberal, retomando o veioapontado pela proposta da Cepal nos anos1980 de crescimento com eqüidade. Noque se refere a esse aspecto, novamentepode-se dizer que o debate atual no cenáriodoméstico encontra-se defasado, postoque agrupa tanto os setores conservadoresquanto os segmentos da esquerda radical,em uma crítica bastante veemente àspolíticas focalizadas de combate à pobrezae à desigualdade e que estão sendoimplementadas em diversos países daAmérica Latina, além do Brasil. A ênfase

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nessas orientações de política por governosprogressistas pode ser interpretada comoresposta aos parcos resultados dasreformas de mercado na direção daincorporação social e deve ser entendidahoje como dimensão central do processode desenvolvimento, pelo fato de que essaspolíticas significam a incorporação deamplos segmentos ao mercado, favore-cendo, assim, uma dinâmica de cresci-mento. As discussões contemporâneas,

seguindo a tradição dos estudos sobre oEstado de bem-estar que apontavam aimportância de a política atuar contra osmercados, surgiram de análises que pro-curavam explicar o desempenho econô-mico de países que trilharam a via da polí-tica social como fator de desenvolvimento.Dessa forma, insistir na futilidade dosintentos de política social seria tão inade-quado quanto negar, em nome de uma

visão pró-intervenção estatal, a impor-tância das políticas de estabilização comofator positivo na geração de renda e nocrescimento.

No que concerne ao papel do Estado, odebate no cenário da globalização pós-reformas de mercado tende a contrapor opossível enfraquecimento das instituiçõesestatais e sua suplantação por instituiçõessupra-estatais à definição de nova modalidadede intervencionismo como conseqüência e

solução, respectivamente. Dessa forma,uma vertente da literatura tem tratado demostrar a importância do Estado nosentido de contrabalançar a atuação dosmecanismos de mercado e operar comoalavanca do desenvolvimento. Na trilha dosestudos sobre o Estado desenvolvi-mentista, a sinergia Estado/setor privadoé destacada como central na implemen-tação de estratégias de desenvolvimento,

“Cumpre destacarque, na linha dasvariedades decapitalismo apolítica social éapontada comocentral aodesenvolvimento”.

Auditório do Ministério da Educação e Saúde (1951).

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tendo em vista o papel positivo de umaparato burocrático de moldes weberianos,de um lado, e, de outro, funcionando emarticulação com os grupos empresariaisorganizados do setor privado. Esse tipo dearranjo, embora não possa ser singularizadocomo fator determinante em todos oscasos, aparece como fundamental na litera-tura, seja visualizando pelo prisma do Estadoem termos das características da burocracia,seja focalizando os padrões de organizaçãodo empresariado (EVANS, 1992/1995.SCHNEIDER, 2004/2004a).

Nosso objetivo no presente trabalhoé situar o debate contemporâneo em tornodo desenvolvimento em contraponto comas discussões teóricas que antecederam einformaram a implantação de um discursohegemônico favorável ao mercado e suaposterior retomada em uma direção maisfavorável ao papel do Estado no processo.Em função de alguns aspectos apontadosna literatura contemporânea sobre o tema,procuraremos avaliar alguns esforçosrecentes no caso do Brasil em particular,tratando de salientar a atuação de elementosde trajetória que, combinados a políticasem curso, poderiam definir uma perspec-tiva positiva na direção do desenvol-vimento. Trataremos de examinar, para ocaso do Brasil, dimensões da dependênciade trajetória presentes no padrão de organi-zação dos setores empresariais, bem comoalguns dos fatores institucionais que, combi-nados aos esforços de política industrial,poderiam se apresentar como favoráveisà definição de um modelo de desenvolvi-mento, no qual estaria também presente aprioridade conferida às políticas de incor-poração social. Concluiremos com umabreve reflexão concernente à possibilidadede tradução do discurso favorável aodesenvolvimento em termos de síntesecapaz de superar polaridades, de resto

aparentemente resolvidas no campohegemônico, tendo como pano de fundoo cenário latino-americano.

Visões em confronto: Estadomínimo e intervenção estatal naexplicação do desenvolvimento

Se é certo que a intervenção do Estadosobre mercados nem sempre redunda emconseqüências positivas do ponto de vistado desenvolvimento, é ainda mais patentea impossibilidade de se pensar esse últimosem se levar em conta a intervenção posi-tiva de Estados1. Considerar a centralidadedo Estado em uma série de processoscontemporâneos implica na especificaçãode capacidades estatais como conjunto dedimensões que variam temporal e contex-tualmente. Variações no conteúdo e ênfasesubstantiva das análises e abordagensrecentes da ciência política quanto ao papeldo Estado no desenvolvimento sugerema percepção da importância de tal tarefa,embora marcada pelo embate entrecampos opostos.

Tendo como ponto de partida a crisedo Estado intervencionista nos anos 1970,após sua expansão no período conhecidocomo a “era dourada”, que teve início aofinal da Segunda Guerra, pode-se constatarcomo a trajetória que teria levado àpredominância de visões calcadas na noçãode “estado mínimo” veio a informar todoo processo de reformas institucionaislevadas a cabo nos países avançados e nospaíses em desenvolvimento. Essa visãoconstituiu-se a partir de um diálogo com aperspectiva do estado interventor preconi-zada nas abordagens de cunho keynesianona economia e foi marcada pela ênfase noestado de direito, a garantia dos direitosde propriedade e pela preocupação como controle da apropriação indevida de

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rendas (rent seeking). Para além disso,quaisquer outros aspectos da intervençãoestatal, vistos como positivos na perspec-tiva oposta, eram rejeitados ou conside-rados indesejáveis, sobretudo no que serefere a formas de protecionismocomercial (mais no discurso do que naprática) e políticas industriais. Por sua vez,o veio keynesiano na economia se traduziuna ciência política em termos de abor-dagens centradas na consideração doEstado como unidade de análise e navalorização do seu papel enquanto ator.

Para se entender a dinâmica de funcio-namento do Estado, é necessário qualificara atuação de grupos de interesse do capitale do trabalho, de outros atores coletivosdentro e fora do aparato estatal, como partedo processo de definição das metas e dosmeios para se atingir o objetivo básico docrescimento econômico. É preciso ter emconta, também, que os instrumentos paraa consecução das metas de crescimentosão variados e que a escolha de determi-nado conjunto de instrumentos implica amobilização de apoio social, a formaçãode coalizões de suporte, a difusão devalores favoráveis às diferentes opções, aorganização da ação coletiva em diferentesformatos institucionais (partidos, asso-ciações, sindicatos), tudo isso com impli-cações quanto aos recortes e aos limitesque se estabelecem entre o público e oprivado e, portanto, com conseqüênciasacerca do tamanho e da natureza doEstado daí resultante.

O início das reformas institucionais deprimeira geração ensejou a emergência deanálises na perspectiva que passou a serconhecida como neo-institucionalista.Estudos nessa abordagem, que floresceramestimulados pela onda de reformas,ressaltam a importância das instituições,definidas de maneira restrita, enquanto

regras formais que moldam o comporta-mento dos atores e, de maneira maisampla, como conjunto de procedimentosformais e informais, historicamenteconstruídos, para o desempenho econô-mico e eficiência das políticas. No quadrode avaliação das reformas de primeirageração, tem início a difusão da perspectivada reforma do Estado na linha da New

Public Management. Além da preocupaçãocom o equilíbrio fiscal, essa perspectivainclui também a noção do público não-estatal e a governança, com grande atuaçãodas agências multilaterais estabelecendocondicionalidades e supervisando a suaimplementação. Após cerca de uma décadadesde a adoção das primeiras reformasorientadas ao mercado, com temposdistintos nos diferentes países que asimplementaram, uma avaliação preliminarindicava os parcos resultados das políticaslevadas a cabo, tanto do ponto de vista docrescimento econômico, quanto principal-mente do ponto de vista social.

A segunda leva de reformas enfatizaainda mais a necessidade de se completaro quadro anterior de reformas com baseno fortalecimento das instituições. É nessecontexto que surge a idéia da reforma doEstado na linha da “Nova Gestão Pública”,idealizada pelo Fundo Monetário Interna-cional e pelo Banco Mundial, ainda comoum antídoto à possibilidade de perspectivaintervencionista como solução. Dessaforma, ao lado de propostas da escola daescolha pública (WILLIAMSON, 1985) queviam a necessidade do Estado se concentrarnas tarefas em que se desempenhavambem, abandonando outras, surge a pers-pectiva do “gerencialismo”, cujo pressu-posto fundamental é o de que o setorpúblico deveria se pautar pelo mesmo tipode visão administrativa que impera emsetores privados bem sucedidos. Além de

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mínimo, o Estado deve ser tambémeficiente. As boas práticas de governança,segundo o Banco Mundial, consistiriam nacriação de regime regulatório capaz depromover a competição em termos deatuação conjunta com mercados, a geraçãode ambiente macro-econômico estávelpara a ação dos mercados, a eliminaçãoda corrupção e a garantia dos direitos depropriedade. Todo esse conjunto demedidas pode ser resumido em termosda percepção do Estado enquanto fun-cional, isto é, voltado ao objetivo de servirà geração de um mercado eficiente.

As análises mais afinadas com umaperspectiva intervencionista no veio dodesenvolvimento capitalista afirmavam astendências à disparidade de resultados ediferenciação dos processos de reforma emdiferentes áreas do sistema internacional. Anatureza e a qualidade do intervencionismoestatal aparece, assim, como uma dasdimensões centrais na discussão contempo-rânea sobre as possibilidades de desenvol-vimento no cenário da globalização.Contrastando com as abordagens quepreconizam a primazia da regulação pelomercado e a adoção de políticas neoliberaiscomo o único caminho possível paraviabilizar competitivamente distintaseconomias nacionais no contexto globa-lizado. Tais perspectivas – como a escoladas “variedades de capitalismo” e a “teoriada regulação” – enfatizam a existência deformas alternativas de economias demercado coordenadas e outras modalidadesde regulação. A noção de vantagensinstitucionais comparativas constitui o cernedas argumentações na linha das variedadesde capitalismo. Como sugerem tais estudos,as vantagens comparativas institucionaisasseguram modalidades de coordenaçãoeconômica que, por um lado ressaltam opapel estratégico do Estado e, por outro,

das articulações deste com o setor privadopara a adoção de políticas de desenvolvi-mento (HALL; SOSKICE, 2001; BOYER, 2005).

Cumpre destacar que, na linha dasvariedades de capitalismo a política socialé apontada como central ao desenvolvi-mento. O livro de Huber (2002), entreoutros, re-introduz a dimensão socialcomo o cerne das políticas de desenvolvi-mento. Segundo essa autora, políticassociais e políticas de crescimento econô-mico se reforçam mutuamente e somentepor meio de políticas econômicas quecontemplem o aspecto social poderá aAmérica Latina instaurar um novo ciclo dedesenvolvimento.

O que se pode concluir a partir docotejamento das diferentes perspectivasanalíticas sobre as reformas e o papel doEstado é que, a despeito da adoção de umconjunto de reformas segundo um recei-tuário bastante semelhante, não teriaocorrido convergência quanto aos resul-tados entre diferentes países do capitalismoavançado, menos ainda entre esses e ospaíses em desenvolvimento da periferia,tampouco entre os que compõem essesegundo grupo. O que se observou foi,antes, a redefinição do intervencionismoestatal, levando a diferentes modalidadesde capitalismo e assim também a diferentesestados, pautados, sobretudo, por dife-rentes formas de articulação entre os planosdo político e do econômico2.

Fatores institucionais, capaci-dades estatais e características daorganização empresarial no Brasil:desenvolvimento com liberalismomacroeconômico?

Dois fatores no caso brasileirosugerem forte dependência de trajetória emtermos da recuperação de capacidades

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estatais para o desenvolvimento: de um lado,a infra-estrutura de suporte e fomentomontada durante o período desenvolvi-mentista dos anos 1950 em diante que, nãosomente acumulou experiência, mas semanteve a despeito do desmonte do Estadopromovido durante os anos 1990.A reforma do Estado preservou certosnúcleos de excelência técnica e burocráticae foram mantidas instituições de fomentocomo o Banco Nacional do Desenvolvi-

mento Econômico e Social (BNDES) que,no porte e na natureza de suas atividades,não tem paralelo em nenhum outro paísna América Latina. Preservou-se, assim,um protagonismo que se fizera presentedurante a fase desenvolvimentista. Deoutro lado, o padrão de organização dasassociações empresariais, conquanto frag-mentado e diversificado, teve como esteioa experiência acumulada em moldes

corporativos caracterizados por intensainterlocução com o Estado e assimtambém se adaptou de maneira eficienteno novo regime produtivo.

No Brasil como se sabe, as reformassetoriais ocorreram muito tardiamente emrelação aos outros países da América Latinae também avançaram menos, dandoespaço a um maior aprofundamento domodelo desenvolvimentista. O processo deprivatização, bem como o de outras

reformas posteriormente, sofreu oposiçãode setores organizados que conseguiram,senão bloquear, pelo menos atenuar o seualcance. Os setores empresariais, caracte-rizados por forte pragmatismo e organi-zados em associações corporativas e umateia de outras entidades à sua margem,foram em geral receptivos às reformas,muito embora a abertura tivesse impactadodiferencialmente distintos segmentos da

“Estudo recentesugere que ainternacionalização dasempresas brasileirasestá focalizada nainovação tecnológica,indicando mudançaestrutural em curso noregime produtivobrasileiro”.

Capa da RSP publicada pelo DASP, em 1973.

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indústria (DINIZ; BOSCHI, 2004). As reformasocorreram quase simultaneamente aoprocesso de redemocratização com eleiçõesdiretas para a presidência e, conquantotivessem envolvido surpresas, ocorreramsem o recurso ao chamado switch, como foio caso da Argentina (STOKES, 2001).

É assim que, em um quadro de rápidase drásticas mudanças institucionais impul-sionadas pelas reformas orientadas aomercado, porém combinadas com fortelegado do período desenvolvimentista, oresultado foi um híbrido caracterizado pormecanismos de mercado e coordenaçãoestatal. É necessário enfatizar que não seteria ainda consolidado uma nova matrizinstitucional capaz de sintetizar as trajetóriaspregressas, as mudanças introduzidas aolongo dos anos 1990 e as de cunho estra-tégico, isto é, almejando vantagensinstitucionais para uma atuação no futuro(DINIZ; BOSCHI, 2004). A redefinição dopapel estratégico do Estado, envolvendonovas modalidades de intervencionismo sedelineia, em grande parte, nessa fusãoinstitucional que se expressa na manutençãode partes do aparato institucional doperíodo desenvolvimentista, na sua adap-tação às mudanças introduzidas pelasreformas (sobretudo no campo da regu-lação, como resultado da aberturacomercial financeira e das privatizações) ena criação de novos formatos institucionaiscapazes de assegurar ou aprimorar acapacidade de coordenação do Estado(sobretudo em termos de suas relaçõescom o setor privado).

A nova agenda ficou também definidapor uma preocupação com a retomadado crescimento em um modelo de desen-volvimento no qual as políticas sociaisassumem lugar estratégico. A agenda incluiutambém, mais fortemente em alguns dospaíses do que em outros, a manutenção e

o compromisso com a estabilidade, fatoque, no contexto altamente competitivo daglobalização, limita sobremaneira os grausde liberdade para a implementação depolíticas voltadas ao crescimento.

No caso do Brasil, onde tal compro-misso apareceu com mais força, conquantoa opção pela estabilidade pudesse implicarlimitações, escolhas voltadas ao desenvol-vimento não estariam de todo descartadas,principalmente em uma ótica de médio elongo prazo. Um dos pontos centrais queaqui se quer desenvolver é o fato de que aobservância de certos parâmetros garan-tidores da estabilidade econômica, emborapossa limitar o âmbito das escolhas nocurto prazo, não impede necessariamenteatuação seletiva e progressiva voltada aodesenvolvimento, pensado em longo prazocomo a criação das bases institucionais.

No que diz respeito à incorporaçãoda estabilidade monetária na nova agendagovernamental constatam-se dilemas que,em curto prazo, se traduzem pela dificul-dade em compatibilizar estabilização epolíticas de crescimento. Persistemcondições de vulnerabilidade a crises, o quetorna a questão da governabilidade parti-cularmente complexa. Além do problemaclássico da formação de maiorias, ogoverno tem de levar em conta a dimensãodos mercados nos cenários internacional edoméstico, ou seja, a capacidade de sersensível aos chamados sinais de mercado.Operar no contexto da globalização finan-ceira implica também esforços no sentidode aumentar a autonomia nacional emmatéria de política econômica, embora aprópria adoção de certas medidas, comoo aumento das reservas cambiais, o paga-mento de dívidas com agências multila-terais, entre outras, freqüentemente geremdilemas e controvérsias adicionais. Tendosido saldada a dívida do Brasil com o FMI,

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a discussão continua a girar em torno dacorreta dosagem dos instrumentos depolítica monetária entre taxa de juros,câmbio e metas inflacionárias. Neste quadrode severas restrições, torna-se imperativaa adoção de postura pragmática, bemcomo a implementação de políticas indus-triais e setoriais3.

O atual governo teve atuação decisivana direção de conferir destaque aoBNDES, transformado em agência deimplementação do programa de privati-zação na gestão Fernando HenriqueCardoso. Colocando-o como o núcleo deuma rede institucional voltada à coorde-nação das atividades de desenvolvimento,o governo Lula procurou redefinir o papeldo BNDES em termos do significado,porte e diversidade de linhas de atuação.Tal redefinição visava a implementação deuma política industrial, tecnológica e decomércio exterior (PITCE), a qual inovouem termos de uma série de novas linhasde financiamentos como aqueles voltadosao apoio à pequena e à média empresas etambém incrementando o apoio às ativi-dades de exportação. Lado a lado, ogoverno procurou montar, também, umarcabouço institucional voltado à concer-tação de um projeto de desenvolvimentoenvolvendo segmentos da sociedade civilcom a criação do Conselho de Desenvol-vimento Econômico e Social (CDES),além de outros foros de articulação einterlocução com o empresariado. Esseconjunto de iniciativas, favorecidas,ademais, por certas características no quetange à organização do setor privado nocontexto pós-reformas, indica que ogoverno soube aproveitar, calcado nolegado institucional do desenvolvimen-tismo, as estreitas margens de manobra quedelimitavam as escolhas voltadas a um pro-jeto de desenvolvimento de longo prazo.

Quais seriam, em linhas gerais, algumasdas características que, no âmbito do setorempresarial privado poderiam favorecerrespostas na direção do esforço desen-volvimentista articulado pelo governo?Uma avaliação acerca da capacidade deresposta do empresariado requereria, emprimeiro lugar, uma rápida caracterizaçãodas mudanças que se operaram noambiente empresarial com a transição dosanos 1990. Tal transição, caracterizada porgrande variedade de formatos institu-cionais, fruto da combinação de modali-dades mais centralizadas de coordenaçãocom coordenação efetivada pelo mercadoapós as reformas econômicas, implicouuma rápida adaptação das organizações deinteresse do empresariado às novascondições de mercado. Além disso, com aredemocratização, o Congresso assumepapel de destaque na formulação de legis-lação pertinente à atividade empresarial e,dessa forma, passa a se tornar o alvo daação organizada do empresariado, com aatuação de lobbies. As organizações empre-sariais – ancoradas em uma estrutura dualcom modalidades compulsórias e volun-tárias de ação coletiva que se transformoue se adaptou em sucessivos momentosdesde o início da industrialização capita-neada pelo Estado a partir dos anos de1930 – caracterizam-se, a esta altura, comobastante complexa, combinando segmen-tação com centralização. Novamente, emum rápido esforço adaptativo, tal estruturase revelou propícia a desempenhar papelcentral em termos das atividades de coor-denação no novo regime produtivo. Porum lado, orientando-se, mais em longoprazo, por meio de associações profissio-nalizadas e mais eficientes na busca e trocade informações necessárias ao desempenhoem seus respectivos setores. Por outro lado,movendo-se na direção de associações

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articulando cadeias produtivas, além daorganização com base em setores daprodução, mais típicas das fases anterioresda industrialização (DINIZ; BOSCHI, 2004).

Organizações congregando desenvol-vimentistas tradicionais, como o Institutopara o Estudo do DesenvolvimentoIndustrial (IEDI), já há bastante tempoproduzem estudos e documentos anali-sando sistematicamente a situação daindústria, publicam as Cartas IEDI,boletins de acompanhamento da conjun-tura industrial na Internet, e estão sistemati-camente voltadas ao estabelecimento deparcerias com o governo para o desen-volvimento industrial. A Federação dasIndústrias do Estado de São Paulo (Fiesp),a mais importante entre as entidades regio-nais da indústria pela primeira vez, recente-mente, apresentou competição interna paraa eleição de suas lideranças representativas,moveu-se na direção de autonomia rela-tiva em relação ao Estado, mas tambémna direção do estabelecimento de vínculos.A Confederação Nacional da Indústria(CNI), a entidade máxima do empresariadoindustrial no Brasil passou por um processode expressiva modernização, criou umacoordenadoria de assuntos legislativos, aCoal, voltada ao acompanhamento dospleitos de interesse da indústria noCongresso, tem investido em estudos deprodutividade e uso de tecnologia e temcuidado também de relações trabalhistas.Além disso, uma série de associaçõessetoriais e algumas outras organizadas porcadeias produtivas, como a OrganizaçãoNacional da Indústria do Petróleo (Onip),por meio de atividades de coordenação,têm se mostrado bastante ativas na defesade seus interesses. Em suma, há indicações,na esfera associativa do setor privado, deuma adaptação aos novos tempos, sobre-tudo do ponto de vista da articulação das

firmas no regime produtivo que se instalouapós as reformas orientadas ao mercadono Brasil (DINIZ; BOSCHI, 2004).

Há também indícios de competiti-vidade na indústria brasileira baseada emnovas visões empresariais. Entre essas,pode-se citar estratégias para a inovaçãoe diferenciação de produtos, mudançasestruturais e organizacionais ao nível dasfirmas e a busca por atingir padrõesinternacionais por meio de inovaçõestecnológicas. Estudo recente sugere que ainternacionalização das empresas brasi-leiras está focalizada na inovação tecno-lógica, indicando mudança estrutural emcurso no regime produtivo brasileiro. Onovo ambiente econômico não terialevado a uma especialização regressiva,desta forma apontando para o fato deque a reestruturação industrial brasileirapode aumentar o potencial do país na eco-nomia mundial. De acordo com a mesmafonte, firmas que inovam e diferenciamprodutos têm melhor performancequando comparadas com as que se espe-cializam em produtos que são padrão ecom as que não diferenciam (ARBIX;NEGRI, 2006).

Dessa forma, no âmbito das ativi-dades de desenvolvimento, pode-seapontar a preocupação com a criação decondições institucionais em longo prazo.Observa-se a retomada, no cenário pós-reformas, de uma trajetória específica dedesenvolvimento fundada numa modali-dade de intervencionismo estatal queinova, mas que tem uma linha de conti-nuidade com o desenvolvimentismo es-tatal do século XX4. Além disso, do pon-to de vista do regime produtivo, atransição parece se consolidar em termosde arranjo institucional flexível quanto àsrelações Estado/setor privado, comnovos fóruns de concertação e estrutura

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associativa mais moderna, ainda que, emgrande parte, calcada nas estruturascorporativas do período desenvol-vimentista. Observa-se, em resumo, ageração de competitividade institucionalcom a criação de um aparato voltado aodesenvolvimento no front da políticaindustrial, por um lado, e da políticaexterna, por outro, com o estímulo àsexportações e à integração regional noâmbito da América do Sul.

Conclusões

As análises sobre o desenvolvimentoem uma perspectiva histórica não foramde fato abandonadas, seguindo umatradição que, como vimos, remonta aotrabalho de Polanyi (1944), passa porestudos clássicos como o de Gershenkron(1962) sobre o atraso econômico em umaperspectiva histórica e inclui o também

clássico trabalho de Shonfield (1965) queanalisa comparativamente o desempenhode países do centro do sistema capitalista.Na perspectiva da ciência política ameri-cana, como também focalizamos anterior-mente, os estudos tomando por base oEstado foram abandonados em favor deanálises enfatizando a modernização e aeventual convergência institucional dospaíses em desenvolvimento com os paísesde tradição pluralista e liberal. Enquanto

os estudos nessa vertente eram otimistasquanto a essa modalidade de transição, ostrabalhos em uma vertente marxista ou noveio histórico desenvolvimentista salien-tavam os limites às possibilidades decrescimento econômico na periferia, comofoi o caso, na América Latina, da tradiçãoestrutural cepalina, das teorias da depen-dência e também das teorias sobre osistema mundial que situavam alguns países

“Observa-se, emresumo, a geração decompetitividadeinstitucional com acriação de umaparato voltado aodesenvolvimento nofront da políticaindustrial, por umlado, e da políticaexterna, por outro,com o estímulo àsexportações e àintegração regionalno âmbito da Américado Sul”.

Técnica em educação trabalhando na Sala Maria Augusta,na Casa de Ruy Barbosa (1943).

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da região na categoria de semi-periferia.Os dilemas quanto às alternativas dedesenvolvimento apontavam, desde apossibilidade de desvinculação ao sistemamundial, passando por diagnósticos quepreconizavam a possibilidade de seexplorar brechas no sistema e se desen-volver de maneira associada ao capitalismocentral, até as afirmações de total impossi-bilidade de se implementar políticas dedesenvolvimento no contexto do sistemacapitalista, cada vez mais interdependentee hegemônico.

As discussões contemporâneas sobrealternativas de desenvolvimento replicamum pouco desse debate, agora adaptadoà possibilidade de desenvolvimento noâmbito de um sistema capitalista expan-dido, ainda mais interdependente eglobalizado, com graus expressivos deconcentração da riqueza no eixo dos paísesavançados do Norte, a partir de fluxos decapital que se dão preferencialmente entreos três subsistemas que o compõem: obloco norte-americano, a comunidade eu-ropéia e os países do nordeste e do lesteasiático liderados pelo Japão. Que alterna-tivas se colocariam para os países daperiferia, para a América Latina em parti-cular, que teria demonstrado, a partir depolíticas intervencionistas sob o modelode protecionismo e industrializaçãosubstitutiva, um razoável desempenho emtermos de taxas constantes de crescimento,ainda que sem a contrapartida no planoda redução da pobreza e das desigualdadesestruturais?

O fato de que os graus de liberdadedos governos no sentido da alocação deinvestimentos produtivos estejam bastantereduzidos, dada a perda de centralidade doEstado como o agente de acumulação, ladoa lado à pressão exercida pelo capitalespeculativo em vista da liberalização

financeira, podem ser apontados comofatores limitadores, mas não impeditivos deopções intervencionistas de cunho desen-volvimentista. Há que se tomar em contatambém o fato de que a instabilidade cíclicaque assolou os países latino-americanos aofinal do ciclo desenvolvimentista do séculoXX, a dificuldade de se operar os ajustesestruturais no contexto de estagflação e ospífios resultados sociais das políticas dedesenvolvimento contribuíram para a visãoacerca da necessidade de medidas mais drás-ticas, de cunho fiscal, nas políticas dereformas para a região. O caso dos paísesdo Leste Europeu, em vista da derrocadados regimes comunistas, implicava oestímulo a reformas de mercado quepuderam ser implementadas a partir deuma plataforma de desempenho muito maiselevada daqueles países no âmbito social.Os países do Leste Asiático, não somentepartiram de um patamar também maiselevado no que diz respeito a resultadossociais, fruto das políticas de reformaagrária implementadas no pós-guerra e deexpansão das oportunidades educacionais,como também foram capazes de imple-mentar as reformas de maneira maiscontrolada, coordenada e sistemática.

Em muitos aspectos, as limitações e osdesafios que enfrentam hoje os países daAmérica Latina são bastante semelhantes aosque se colocam para alguns países desen-volvidos, como, por exemplo, é o caso daprópria União Européia: retração e limitesao estado de bem-estar, flexibilização dosdireitos do trabalho, moeda forte comcâmbio sobrevalorizado, altos superávitsprimários, altas relações dívida pública/PIB,fuga de empresas e perda de postos detrabalho, tudo isso agravado pelos fluxosmigratórios provenientes dos países menosdesenvolvidos. A despeito disso, não apenaso desempenho dos países membros é

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bastante diferenciado. O próprio processode integração teria sido o resultado doembate entre perspectiva mais favorável amecanismos de coordenação pelo mercadono nível supranacional como forma de seisolar o impacto de interferências políticas,versus uma outra perspectiva mais favorávelà coordenação centralizada como forma dese manter capacidades estatais e ao mesmotempo se assegurar direitos sociais conquis-tados no plano nacional. Se no âmbito daUE como um todo o resultado foi umasíntese entre essas posições, no âmbito depaíses específicos observou-se, não apenasdesempenhos muito variados, comotambém combinações de políticas pautadaspor dosagens específicas segundo caracterís-ticas dos seus respectivos regimes produtivos.Em outras palavras, existem assimetrias entrepaíses integrantes de um mesmo conjunto eestas são precisamente indicativas de possi-bilidades diferenciadas no cenário daglobalização, configurando “variedades decapitalismo”, formas híbridas que se combi-nam a trajetórias prévias na criação de capaci-dades institucionais.

Assim sendo, o ritmo e a forma comoforam implementadas as reformas orien-tadas ao mercado foram muito maisdrásticos no caso dos países latino-ameri-canos, a partir de uma crítica feroz aopassado desenvolvimentista, levandoassim, à necessidade de ruptura radical comas políticas intervencionistas e protecio-nistas pregressas. Contudo, tanto a noçãode um modelo desenvolvimentista uni-forme, quanto a noção da adoção de ummodelo neoliberal de cartilha em substi-tuição ao primeiro, nos países latino-americanos, não se sustentam diante de umexame mais detalhado das políticas efetiva-mente em curso nos países da região.Tal exame revela variações importantestanto nas políticas de desenvolvimento

pregressas, quanto nas políticas de reformaem função das trajetórias de cada contextoonde o mesmo receituário de reformas foiaplicado, em função da natureza das insti-tuições existentes em cada contexto e emfunção, finalmente, das respostas dos atorespolíticos e econômicos ao conjunto defórmulas preconizadas.

Em qualquer caso, ingressar em umatrajetória de desenvolvimento implica aexploração de possibilidades que nãonecessariamente envolvem a ruptura radicalcom caminhos trilhados anteriormente. Éassim que se observa na América Latinaum sutil e salutar retorno a processos quese poderiam caracterizar como novodesenvolvimento e que se constituem numadimensão característica dos governosprogressistas de anos recentes. No que dizrespeito a um traço distintivo da plataformade tais governos enquanto esquerda – aclara incorporação da dimensão socialcomo prioridade –, na verdade, trata-sede uma retomada, no cenário pós-neoliberal, de uma agenda da Cepal dosanos 1980 de “crescimento com eqüi-dade”, agora redefinida. Em comum nasexperiências dos distintos países, um maiorgrau de pragmatismo no sentido deaumentar os respectivos graus de auto-nomia relativa: desenvolvimento combi-nado à valorização da estabilidade (controleda inflação), disciplina fiscal, maior inde-pendência frente às agências multilaterais epolíticas focalizadas de redução dapobreza. O neo-intervencionismo repre-senta, assim, um modelo híbrido decoordenação econômica efetuadade maneira centralizada e a partir domercado. Nesse sentido, a nova moda-lidade de intervenção não representa umavolta ao estado produtivo, mas apenas ummaior grau de coordenação estatal da esferaeconômica, com maior espaço para as

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Notas

1 Esse dilema é reconhecido na célebre cunhagem de Evans (1995), diferenciando“estados predatórios” de “estados desenvolvimentistas”, por meio da qual se constataque a explicação da natureza positiva da intervenção do estado requer a consideraçãode capacidades estatais.

2 Numa perspectiva histórico-comparada, outros estudos têm salientado a impor-tância de trajetórias e de conjunturas críticas que seriam responsáveis por inflexõesem uma direção virtuosa. No contexto de uma discussão que se avoluma crescentemente,a questão do tempo e a mudança institucional têm sido apontadas como fatoresque alteram os padrões de desenvolvimento e a geração de capacidades estatais(PIERSON, 2004; MAHONEY, 2000).

3 O governo Lula implementou uma política econômica que, ao contrário do que sesalientou tanto à direita quanto à extrema esquerda, apresenta linhas de descontinuidadecom a política anterior, embora caracterizada pela manutenção dos mesmos funda-mentos. No plano da performance macroeconômica, o compromisso com a estabili-dade num contexto com tendência inflacionária ascendente, endividamento externocombinado ao risco de fuga de capitais e máquina estatal desaparelhada implicou aadoção de medidas mais duras, em termos das taxas de juros, política fiscal e cambial.Em longo prazo, a manutenção dos fundamentos da política anterior significam a garantiade previsibilidade e um escudo para crises externas que, em última análise, são fatorespositivos no quadro de retomada do desenvolvimento.

4 O legado que se expressa na atuação do BNDES enquanto agência de fomento,por outro lado, apresenta forte descontinuidade quando se leva em conta a retomada,no governo do PT, de um papel protagonista, colocado em segundo plano no governoFHC quando da priorização do BNDES enquanto agência de privatização.

atividades de regulação e controle, comesquemas de intervenção na esfera daprodução que não ocupam papel central,senão estratégico. Daí a necessidade de se

encaminhar para um novo discurso, menosfundado nas virtudes do livre mercado emais positivo com relação às possibilidadesdo intervencionismo estatal.

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Lúcia Carvalho Pinto de Melo e Maria Angela Campelo de Melo

Ciência, tecnologia e inovação:em busca de um ambiente

institucional propício

Lúcia Carvalho Pinto de Melo e

Maria Angela Campelo de Melo

A crescente taxa de aceleração do processo de globalização, que se faz sentir

com maior intensidade a partir da última década do século passado, tem sugerido

inquietantes questões relativas ao desenvolvimento sustentável dos países

periféricos. A esses países, em evidente desvantagem em um cenário em que a

eqüidade não prevalece, cabe redefinir uma inserção que lhes assegure não apenas

a sobrevivência, mas um papel que ultrapasse o de meros coadjuvantes no

“espetáculo do desenvolvimento” que ora se encena no planeta.

Partindo-se do pressuposto de que uma inserção eqüitativa do Brasil no

cenário mundial depende da instauração, no País, de um processo de moderni-

zação e inovação que o credencie a proteger seus interesses em equilíbrio de

condições com os demais atores, abordam-se, aqui, questões institucionais

consideradas relevantes para a instauração de tal processo. Iniciando-se com

uma caracterização sumária do ambiente de ciência, tecnologia e inovação,

apresentam-se as organizações sociais (OS) como uma solução institucional

adequada para lidar efetivamente com as exigências de tal ambiente e focaliza-se

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a atuação do Centro de Gestão e EstudosEstratégicos (CGEE), uma OS que temdesempenhado um papel relevante noprocesso de modernização do sistemanacional de CT&I.

O ambiente de ciência, tecno-logia e inovação

Na atual Sociedade do Conhecimento,em que o patrimônio mais relevante éintangível, constituído primordialmente pelocapital intelectual, magnificado pelo capitalsocial, a ciência e a tecnologia desempenhamo papel de bens fundamentais para acompetitividade das nações. Freeman (2004)enfatiza que o investimento público eminfra-estrutura tecnológica e em capitalintelectual é crucial para o desenvolvimentoeconômico. Nessa sociedade, o mercadoglobalizado, caracterizado por competiçãoacirrada, custos crescentes de processos eprodutos, necessidade de investimentosvultosos e bem planejados e elevado graude complexidade, destaca-se pelo alto graude riscos e incertezas a ele inerente.

O espaço de ação compartilhado pelasentidades que lidam com Ciência, Tecno-logia e Inovação, abrangendo o conjuntode decisões nessa área (FRIEND, Power &YEWLETT, 1974), caracteriza-se por umanatureza multidimensional. Os diferentesatores responsáveis por essas decisõesrelacionam-se de maneira corresponden-temente complexa, interdependente ecomplementar, embora, muitas vezes, essarelação seja subestimada (MELO, 1986).

A heterogeneidade dos agentes, aliadaa desigualdades de desenvolvimento desetores e a desequilíbrios de recursos quese rebatem espacialmente, e o alto grau desofisticação de determinados segmentosdesse ambiente requerem agilidade, flexibi-lidade e articulação por parte de atores com

competências políticas, técnicas e organi-zacionais diversificadas. Esses atores devembuscar uma sinergia de esforços que oshabilite a uma atuação efetiva em prol dodesenvolvimento do País.

No ambiente científico mundial atual,não obstante o esforço por uma políticanacional de desenvolvimento científico etecnológico, ainda cabe ao Brasil, em múltiplascircunstâncias, nos moldes de uma inserçãoperiférica, a exportação do conhecimentoproduzido, porém sem proteção adequadacontra sua incorporação em produtosdesenvolvidos no exterior e sem agregaçãode valor à sociedade brasileira Além disso, élimitado o empenho no sentido de incor-porar esse conhecimento a produtos aquidesenvolvidos. Assim, embora o Brasil tenhaatingido um patamar respeitável, quanto àsua produção científica, que está na 15a

posição na classificação mundial, isso não sereflete nos indicadores de inovaçãotecnológica. A Organização Mundial daPropriedade Intelectual (OMPI) constata queo Brasil é o último país na relação do númerode patentes obtidas em outros países.Enquanto os estados Unidos – primeiro dalista – obtiveram aproximadamente 160.000mil patentes, o Brasil obteve apenas 1.000.<www.inovacaotecnologica.com.br>.

Fenômeno igualmente preocupantetem-se verificado em relação ao desenvol-vimento de talentos para inovação. Açõesvoltadas à formação de recursos humanospara a inovação algumas vezes têm seusefeitos minorados com a emigração decientistas, engenheiros e técnicos parapaíses industrializados, devida não só àausência de mecanismos de atração e fixaçãodessa mão-de-obra qualificada, mastambém em conseqüência de uma açãosistemática de busca por esses talentosempreendida por empresas e universidadesde outros países.

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Esses aspectos são parte de umaproblemática comum a países que aindanão atingiram um nível de maturidadecientífica que lhes assegure a independêncianessa área. Segundo o Modelo de Basalla(1967), que permite avaliar a ciênciaproduzida em um país, dentre oselementos que caracterizam a indepen-dência científica de uma sociedade desta-cam-se: a criação de uma tradição cientí-fica local própria; uma comunidade

científica com tamanho suficiente paraauto-estimular-se e para produzir novoscientistas com valores científicos eculturais autóctones; publicações locaiscom prestígio internacional, atraindo ointeresse dos pesquisadores de outrasnações; escolha de temas de pesquisasegundo os interesses daquela sociedade;e tecnologia e ciência locais mutuamentesustentáveis, garantindo a produção e o

desenvolvimento de técnicas e equipa-mentos de investigação científica.

O desenvolvimento tecnológico, cadavez mais inseparável da ciência e da inovação,também demanda a ultrapassagem de umdeterminado limiar para assegurar sua auto-sustentação. O meio propício à inovaçãosó se configura com a ação concatenada econvergente de vários agentes, sejam elesorganizações, grupos ou mesmo pessoas.Esse cenário requer a atuação de entidades

de interface, que propiciem a interaçãodesses múltiplos atores, possibilitando asinergia de resultados.

É ilusório pensar que esse quadropossa se consolidar de modo favorávelsem que haja uma atuação institucionalpró-ativa, projetada com esse fim. Osmodelos institucionais tradicionais nãoatendem às especificidades desse novoambiente. Relações público-privadas

“Na atual Sociedadedo Conhecimento, emque o patrimônio maisrelevante é intangível,constituído primor-dialmente pelo capitalintelectual, magni-ficado pelo capitalsocial, a ciência e atecnologia desempe-nham o papel de bensfundamentais para acompetitividade dasnações”.

Em seminário na SEDAP, o Ministro Aluízio Alves (centro) conduziaos trabalhos ao lado do secretário-geral Gileno Fernandes Marcelino(à esquerda) e do presidente da FUNCEP, Paulo Catalano (1987).

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passam a ser fundamentais, tornando-secada vez mais relevante o papel indutor,fomentador e articulador do Estado.Torna-se fundamental considerar que,nesses ambientes, conforme destacaBurns, “os resultados são o co-produtode um padrão em evolução de decisõesindividuais e mútuas tomadas por atoresparticipantes da rede de planejamento”.(1984, p. 28). Assim, o papel do Governonesse processo, embora não seja decontrole, é crítico, cabendo-lhe: “1) ajudara criar o suporte institucional que possi-bilite aos membros da comunidadeestabelecer relações colaborativas deplanejamento e 2) contribuir com osrecursos necessários, conjuntamente comatores não governamentais, para aimplementação de programas conjuntosde ação que possam resultar do plane-jamento colaborativo”. (idem, ibidem)

As organizações sociais noambiente de CT&I

Inovação institucional dotada com ograu de flexibilidade administrativa reque-rido por contextos dinâmicos como o deCT&I, a Organização Social constitui umnovo tipo de entidade, classificada comopública não estatal. Exerce uma funçãopública sob um controle flexível, focadoem resultados, por intermédio de umcontrato de gestão. Com essas organi-zações, propicia-se uma maior participaçãosocial, por intermédio de seus conselhosde administração. Para ser qualificadacomo Organização Social, a entidade, entreoutros requisitos específicos, deve apre-sentar objetivos de natureza social relativosà sua área de atuação.

Instituídas no Brasil pela Lei no 9.637,de 15/05/1998, as OS surgiram comoresultado de um esforço de modernização

do Estado baseado em experiências deoutros países, principalmente França eInglaterra. Essa proposta permite a descen-tralização da prestação de serviços nãoexclusivos, que não requerem o exercíciodo poder do Estado, visando maioreficiência operacional, com financiamentopúblico. Incentiva o estabelecimento deparcerias entre o Estado e a sociedade paraa gestão de serviços de natureza social, como foco no cidadão e ênfase no desem-penho e no controle social.

Como vantagens do modelo OS,destacam-se, para o cidadão, a ênfase nosresultados, estabelecidos no Contrato deGestão e avaliados por uma Comissão deAvaliação; a transparência, exigida pelaPrestação Pública de Contas; e o ControleSocial exercido pelo Conselho de Adminis-tração, pelas Auditorias e Órgãos de Controle.

Para a administração pública, a maioreficiência na prestação de serviços àsociedade é a principal vantagem trazida peloContrato de Gestão. A avaliação da gestãoconstitui papel fundamental dos Conselhosde Administração, para o balizamento dotrabalho da direção executiva e garantia documprimento das diretrizes fixadas. Essaavaliação deve abranger a gestão patri-monial, de recursos humanos, de finanças ede controles e resultados.

A maior eficiência traduz-se em umamelhor relação custo-benefício. Paraorganizações com fins lucrativos, essaeficiência é mais facilmente aquilatada.Nelas, o excedente da eficiência significalucro, no curto prazo, juntamente comcrescimento e capacidade de sobrevivênciaorganizacional, a longo prazo.

Já para as organizações sem fins lucra-tivos, há maior dificuldade na avaliação daeficiência, considerando-se o componentedos benefícios intangíveis e não-monetários.Assim, para as OS, a avaliação da eficiência

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deve ser realizada com base em uma análisecusto-efetividade na qual os benefícios sãoexpressos em unidades de resultados, e osavaliadores devem decidir se o resultado eo desempenho valem o custo dos recursosaplicados.

Experiência recente, as OS têm demons-trado agilidade na gestão dos própriosrecursos e rapidez para responder aos estí-mulos e desafios da área de CT&I. Reco-nhecendo essa efetividade, desde aconcepção inicial do modelo, o Ministérioda Ciência e Tecnologia foi receptivo àpresença dessas organizações. Atualmente,as OS atuantes no sistema de CT&I consti-tuem um conjunto de instituições decaracterísticas distintas, com missões quevariam da realização de pesquisa científica eserviços técnico-científicos ao apoio àformulação de políticas públicas. Esseconjunto abrange a Associação Brasileira deTecnologia Luz Síncrotron – ABTLuS, oInstituto de Desenvolvimento SustentávelMamirauá – IDSM, o Instituto Nacional deMatemática Pura e Aplicada – IMPA e aAssociação Rede Nacional de Ensino ePesquisa – RNP, além do CGEE. Os ciclosde avaliação realizados por suas Comissõesde Acompanhamento e Avaliação – CAA,de 2002 a 2006, sobre seus Contratos deGestão apresentam resultados queconfirmam a eficiência dessas OS, as quaisobtiveram essas médias: ABTLuS, 9,13;IDSM, 9,71; IMPA,10,00; RNP, 9,44 eCGEE, 9,85. A metodologia de análise queproduziu esses resultados baseou-se emrelatórios de desempenho, atendimento àsrecomendações anteriores da CAA eexposição de justificativa da Diretoria da OS.

O CGEE

Organização Social que tem contribuídopara o processo de modernização do

Sistema Nacional de CT&I (SNCT&I),intensificado a partir da última década, oCentro de Gestão e Estudos Estratégicosdestaca-se por prover subsídios técnicos evisões antecipatórias de futuro para atomada de decisão de natureza estratégica,nesse Sistema, e para o estabelecimento dasbases de um projeto capaz de assegurar aeficaz apropriação, pela sociedade, doconhecimento gerado no País. O CGEE,criado em 2001 como uma Associação Civilsem fins lucrativos, em janeiro de 2002 foiqualificado como Organização Social,passando a integrar o conjunto de taisorganizações atuantes no âmbito do MCT.

O CGEE atua na área de Ciência,Tecnologia e Inovação buscando servir àsociedade brasileira pela agregação devalor aos processos de tomada dedecisão, formulação e implementação depolíticas, mediante a geração de conheci-mento nessa área. Para isso, mobiliza umconjunto de atores formado por seucorpo diretivo e técnico-funcional, espe-cialistas, formuladores de políticas etomadores de decisão. Suas ações, desen-volvidas com base no compartilhamentode idéias, são fundamentadas no pressu-posto de que o conhecimento é elementopropulsor do desenvolvimento susten-tável e são balizadas por uma visão defuturo e pela busca de excelência. Em seuscinco primeiros anos de existência, oCentro interagiu com grande número deespecialistas e instituições, tendo produ-zido 360 estudos e análises. Os benefi-ciários diretos dessa atuação são entidadespúblicas ou privadas que realizaramcontratos com o CGEE. Como benefi-ciários indiretos, cabe mencionar, além daprópria sociedade, órgãos de governo,academia, empresas e as entidades diretae indiretamente envolvidas com CT&I(CGEE, 2006).

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De acordo com seus estatutos, oCentro tem como objetivos promovere realizar tanto estudos e pesquisasprospectivas na área de ciência e tecnologiae suas relações com setores produtivos,como avaliação de estratégias e deimpactos econômicos e sociais das polí-ticas, programas e projetos científicos etecnológicos. Visa, também, difundir infor-mações, experiências e projetos à socie-dade, promover a interlocução, a arti-culação e a interação dos setores de ciênciae tecnologia e produtivo, desenvolveratividades de suporte técnico e logístico ainstituições públicas e privadas e prestarserviços relacionados à sua área de atuação.

Pela natureza da Organização Social,delineada na seção anterior, constata-se quesuas características, com destaque para aflexibilidade, apresentam-se como apro-priadas para o exercício das funções e aconsecução dos objetivos do CGEE noSNCT&I.

O arcabouço institucional brasileiroainda não propicia a incorporação, com aintensidade necessária, de CT&I noprocesso de desenvolvimento sustentávele na construção de políticas públicas inova-doras. Por sua natureza institucional, oCGEE assume um papel importante nesseprocesso, desempenhando uma funçãoessencial no apoio à gestão estratégica doSistema, ao fornecer subsídios às políticasdo setor. Dentre suas funções, destaca-sea de estimular, na fase atual de evoluçãodesse Sistema, o aprendizado institucional,aprimorando as redes que atuam na áreade CT&I, favorecendo a eficaz absorçãode seus resultados em benefício da socie-dade brasileira.

Ressalta-se, ainda, o papel do Centrocomo parceiro especial no esforço deretomada do planejamento estratégico dosetor de CT&I, conduzido pelo MCT num

momento de crescimento significativo dosinvestimentos e modernização da gestão edos instrumentos de apoio à expansão dosistema científico e tecnológico e das açõesde apoio à inovação nas empresas.

Embora de criação recente, o CGEEtem contribuído efetivamente para apolítica de CT&I. Cabe ressaltar a atuaçãona área de Energia, em que tópicosprioritários foram sugeridos ao comitêgestor do Fundo Setorial de Energiavisando orientar as decisões sobre aalocação de recursos. Além disso, foicriado o Programa Nacional de Células aCombustível, pelo MCT. Foi estabelecidoo marco legal sobre biossegurança, comsubsídios fornecidos pelo estudo sobreBiotecnologia. A decisão da Presidênciada República de lançar um ProgramaNacional de Nanociência e Nanotec-nologia teve, entre seus aportes, estudosrealizados pelo Centro. Contribuiçõesmais recentes incluem elementos para aformulação do Programa Nacional deBiotecnologia, apoio ao Plano de CT&Ido MCT e o projeto que analisou asOrganizações Estaduais de PesquisasAgropecuárias, além de contribuiçõesà agenda da Subvenção Econômica àsempresas, capitaneada pela Finep.

O CGEE desempenha, também, umpapel de instituição de interface entre ogoverno, a academia e o setor produtivo.Os resultados dos seus trabalhos, realizadosem estreita colaboração com os atoresenvolvidos, contribuem para a adoção depolíticas que conjugam visões pluraisassociadas ao conhecimento e sua difusãona sociedade. A capacidade de analisartendências e cenários relativos a CT&Idemanda intensa atividade de mobilizaçãode competências, além de uma adequadaestrutura de gestão da informação e doconhecimento.

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Para uma melhor caracterização des-se papel de interlocução, torna-se neces-sário introduzir, aqui, os conceitos de‘reticulado’, ‘processo de reticulação’ e‘agente reticulador’. O reticulado consisteem uma rede integrada de agentes comresponsabilidade compartilhada em rela-ção a uma problemática comum (MELO

& MELO, 1985, apud ALMEIDA, 2006). Oprocesso de reticulação abrange o projetoe a implementação de canais apropriados

de comunicação e de mecanismos quepropiciem a melhor interação entre oscomponentes do reticulado. (idem,ibidem). O agente reticulador é umaorganização cujo propósito primeiro édesenvolver redes de planejamentointerativo, capazes de estabelecer e atingirobjetivos de interesse dos membros doreticulado (BURNS, 1981). Esse agente de-verá decidir que ligações devem ser

ativadas, “mobilizando as redes dedecisão de uma maneira inteligentementeseletiva”, com base na “apreciação daestrutura da situação problemática e dasrelações políticas e organizacionais que ascercam” (FRIEND; POWER; YEWLETT, 1974,p. 364).

Considerando o reticulado insti-tucional formado pelos diversos agentesdo ambiente de CT&I, o Centro devedesempenhar a indispensável função de

agente reticulador, acionando cada atorno momento oportuno e orquestrando aeficiente contribuição de cada um, deacordo com sua competência, de modoa garantir a excelência dos resultados.Cabe, ainda, a esse agente a responsabi-lidade pela instituição de uma ordemnegociada, constantemente redefinidarespeitando os interesses e necessidadesde cada ator.

“(...) Torna-seimprescindível umaprofunda mudançacultural na sociedadebrasileira, (...) e umamais intensa valori-zação da contribuiçãoda ciência e datecnologia para aqualidade de vida daspessoas, de suasrelações e dasinstituições”.

Centro de Documentação e Informação (CDI), FUNCEP (1988).

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Cabe destacar, contudo, ainda deacordo com Burns (1984), que o papel deagente reticulador não constitui a funçãoprimordial dos órgãos que o desem-penham, sendo raramente percebidoexplicitamente. Esses agentes caracterizam-se, em princípio, por seu grau de flexibi-lidade interna, sua liderança criativa, suacapacidade de coordenação e mediação,seu interesse e competência para o planeja-mento e sua preocupação em processar etransmitir informações de interessecomum, continuamente aprimorando ograu de comunicação entre os atores.(MELO; MELO, 1985).

Buscando contribuir para o aprimo-ramento dos mecanismos de avaliaçãoinstitucional, em comum acordo com aComissão de Acompanhamento e Ava-liação, o CGEE definiu, em 2006, umasistemática de avaliação do Contrato deGestão a partir de um conjunto deindicadores e metas alinhado com a suamissão. Essa sistemática inclui a análise daefetividade, do desenvolvimento institu-cional e da qualidade dos processos eprodutos, além da avaliação do Plano deAção e de sua execução.

Os avaliadores devem apresentarevidências que indiquem a contribuição daOrganização para o processo de gestãode uma política pública ou na percepçãodo futuro. A dimensão efetividade buscaavaliar, principalmente, além da capacidadee do aprendizado dos formuladores,opções de políticas públicas decorrentes daatuação do Centro, resultados de políticaspúblicas (ex: competitividade), avanços emtramitações legislativas, desdobramentosde estudos e a evolução de percepçõescoletivas sobre o futuro (a médio e longoprazos).

O CGEE deve se consolidar comouma organização de referência para o

suporte aos processos contínuos detomada de decisão de políticas, programase desenvolvimento de instrumentos em suaárea de atuação. Essa função é certamentefacilitada pela sua natureza institucional deOrganização Social.

Desafios

A dinâmica de trabalho do CGEEpossibilita identificar, no contexto doprocesso de modernização do SistemaNacional de Ciência, Tecnologia e Inovação,ao lado de abordagens criativas e inova-doras, um alto grau de petrificação emrelação à adoção de novas soluções, o queentrava a decolagem de um processo deinovação sustentável, próprio para ocenário brasileiro.

Um ambiente propício à inovaçãorequer um grau administrável de estabi-lidade institucional. No entanto, oambiente de CT&I brasileiro, refletindoo quadro nacional, ainda apresenta umnível de turbulência institucional incom-patível com a eficaz realização dosobjetivos de desenvolvimento do País,com foco na inovação.

Especificamente quanto à consoli-dação das OS, em dezembro de 1998, foiimpetrada, em relação a essas organizações,uma Ação de Inconstitucionalidade (Adin1923). A Academia Brasileira de Ciências,conjuntamente com a Sociedade Brasileirapara o Progresso da Ciência, apresentou,perante o Supremo Tribunal Federal, emmaio do corrente, uma peça Amicus Curiae,

argumentando em prol das OS. Emboraa liminar tenha sido indeferida pelo STFem decisão recente (01/08/2007), oprocesso ainda não está concluído. Talsituação gera insegurança relativa à legi-timidade de operação de entidades assimqualificadas. Isso demandará por parte do

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Centro um acompanhamento permanentede seu modelo institucional de forma aminimizar eventual instabilidade e compro-metimento de seu futuro.

Apesar das limitações do quadroinstitucional, pode-se constatar uma signifi-cativa evolução no marco legal que regulae dá suporte ao processo de inovação.Com a criação de novos instrumentos,como a Lei da Inovação e a Lei do Bem,com a subvenção econômica às empresas,que reforçam o significativo aporte derecursos para C&T ocorrido com oestabelecimento dos Fundos setoriais deC&T, atingiu-se um novo patamar naestruturação do ambiente de CT&I e naviabilização de ações eficazes na área.

Contudo, o nível de insegurançajurídica, gerado por diferentes interpre-tações, por parte dos mais variados órgãos,dos diversos dispositivos legais existentes,constitui obstáculo à realização das ativi-dades de empresas e organizações quebuscam a inovação como um elemento decompetitividade no País.

Outro elemento a considerar é que aavaliação com foco em resultados, comtodas suas vantagens, principalmente a deressaltar a efetividade da organização e suaeficácia para a sociedade, pode redundar,no entanto, na não valorização do aprimo-

ramento de processos, levando a queresultados de aprendizado, de naturezaintangível, sejam negligenciados. Lidar comessa possibilidade é um desafio a serenfrentado.

As organizações sociais, por suanatureza, requerem a adoção de umafilosofia de gestão compatível com o graude flexibilidade interna exigido parao cumprimento de sua missão. Sua concep-ção inovadora ainda precisa ser comple-mentada com o projeto de mecanismos einstrumentos administrativos tambéminovadores, apropriados para uma atuaçãoágil, capaz de apresentar respostas oportunase competentes aos desafios que devemenfrentar permanentemente.

Para lidar com esses desafios, torna-seimprescindível uma profunda mudançacultural na sociedade brasileira, queimplique o entendimento da sociedade doconhecimento em sua essência, e uma maisintensa valorização da contribuição daciência e da tecnologia para a qualidade devida das pessoas, de suas relações e dasinstituições. Essa transformação poderiaconduzir a uma nova percepção sobre asorganizações, de modo a propiciar aideação e a implementação de soluçõesinstitucionais apropriadas para umprocesso inovador genuinamente brasileiro.

Referências bibliográficas

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Ciência, Tecnologia e Inovação: em busca de um ambiente institucional propício

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Lúcia Carvalho Pinto de Melo.

É mestre em Física, pela Universidade Federal de Pernambuco, e em Energia e Meio Ambiente, pela Universi-dade da Califórnia, Santa Bárbara. Atualmente é presidente do CGEE Centro de Gestão e Estudos Estratégicos.Contato: <[email protected]>.

Maria Angela Campelo de Melo

É doutora pela Wharton School da University of Pennsylvania e Engenheira Civil pela UFPE; Research Fellowdo Tavistock Institute of Human Relations de Londres e Senior Fulbright Scholar do Busch Center da Universityof Pennsylvania. É professora associada da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e assessora dapresidência do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos – CGEE. Contato: <mailto:[email protected]>

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Eugênio Bucci

As emissoras públicas,o direito à informação e oproselitismo dos caciques1

Eugênio Bucci

O problema não está na lei, mas no hábito. Embora a legislação não

autorize, o costume consagra: exceções à parte, e as exceções existem, os

governos ou setores de governos no Brasil, tanto nos estados como no âmbito

federal, ainda tentam se valer dos serviços de comunicação social sob seu

controle, direto ou indireto, para extrair vantagens para a própria imagem.

Nas emissoras públicas, o partidarismo – conhecido vício da imprensa que,

quando pró-governo, ganha agravantes – talvez não seja explícito o tempo

todo, mas persiste como tradição.

Sem dúvida, a democracia brasileira avançou de vinte anos para cá, mas, ainda

hoje, a maioria das emissoras públicas de rádio e televisão, mantidas por governos

de estado ou pelo governo federal, assim como as que pertencem a parlamentos,

ainda atua para preservar a boa imagem da autoridade ou da instituição que sobre

elas tem ascendência funcional. Tratam-nas com deferência demasiada, isso quando

não sonegam informações relevantes para não molestá-las.

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As emissoras públicas, o direito à informação e o proselitismo dos caciques

O hábito pode ser compreendido, emparte, pela estrita dependência das insti-tuições públicas ou estatais de comunicaçãoem relação aos poderes da República. Parapagar as contas, dependem do repasse derecursos e, por isso, adotariam a posturade subserviência, que sacrifica o direito àinformação do público para favorecer aimagem do chefe. Embora o raciocíniopareça lógico, não existe base legal paratamanha servidão: órgãos públicos,embora mantidos por dinheiro público,devem pautar-se pela impessoalidade e, emalguns casos, com independência. Não hásentido democrático no proselitismo a quese dedicam as emissoras públicas. O maisespantoso é a resignação com que oproblema é percebido – se é que de fato épercebido como um problema.

Quando, em alguma unidade daFederação, o noticiário de uma rádioestatal se permite promover a pessoa dogovernador ou de um ministro, encontraamparo na cultura política média, tantodos agentes públicos como dos cidadãos.Em virtude desse traço cultural, quase nãosurgem questionamentos conseqüentescontra a prática da promoção pessoal. Emassuntos de informação, o espírito repu-blicano parece valer menos do que já valepara assuntos de saúde ou de educação.De fato, alguns se declaram indignadosquando surge um caso de proteção a umparente ou correligionário numa escola ounum hospital públicos. Quase ninguém,no entanto, reage da mesma formaquando práticas análogas são vistas ememissoras públicas. Aí, o proselitismogovernista – que nada mais é que o usode equipamento público para obtençãode vantagem pessoal ou partidária – aindaé visto como se fosse um dado danatureza. É como se o senso comumsentenciasse, conformado: “A rádio, afinal,

é do governo, e é natural que ela defendao governador”.

Quando se olha o assunto com umpouco mais de cuidado, a diferença de trata-mento que a cultura política destina à infor-mação ressalta de forma ainda mais nítida.Em matéria de informação para o público,os excessos passam galhardamente.

A lei não pactua com a promoçãopessoal que há na prática do proselitismo.A propósito, no que se refere ao princípioda impessoalidade, ela não poderia ser maisclara. Serão apresentadas, a seguir, duassituações hipotéticas, apenas para efeito deexposição do modo como a legislaçãoprocura coibir o uso do equipamentopúblico para fins particulares – é neces-sário lembrar que os interesses partidários,aos olhos da administração pública, nãopassam de fins particulares. Vamos àprimeira situação.

Se um servidor federal de alto escalão,por exemplo, consente que sua mulher váaté o cabeleireiro no automóvel do Estado,o mesmo que ele utiliza em serviço, e aindacom o motorista da repartição, ofende alei em vários níveis. Para começar, aLei no 8.112, de 1990, sobre o regime jurí-dico dos servidores públicos civis da União,das autarquias e das fundações públicasfederais, é muito clara: o servidor não pode“valer-se do cargo para lograr proveitopessoal ou de outrem, em detrimento dadignidade da função pública” (art. 117,inciso IX). Esse mesmo servidor, cujaesposa foi ao cabeleireiro de carro oficial,desobedece também o Código de ÉticaProfissional do Servidor Público Civil doPoder Executivo Federal (Decretono 1.171, de 22 de junho de 1994), queveda ao servidor “desviar servidor públicopara atendimento a interesse particular”, edescumpre a Instrução Normativa no 09,de 26 de agosto de 1994 (Ministério do

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Planejamento), que proíbe, no item 12.1.4.,“a utilização de veículos oficiais no trans-porte de familiares do servidor”. Isso paraficarmos numa lista pequena.

A pergunta que deveria ser feita é: se oautomóvel não pode servir a fins privados,por que os microfones, as câmeras ou asantenas podem? Que cultura política é essanossa que reage com naturalidade frenteaos desmandos personalistas que se vêemnas emissoras públicas? Passemos a uma

outra historinha, também fictícia, que é asegunda situação hipotética.

O diretor de escola pública que dê pre-ferência aos filhos de seus correligionáriosna distribuição de vagas, desobedece nadamenos que a Constituição Federal. No arti-go 37, diz: “A administração pública diretae indireta de qualquer dos Poderes da União,dos Estados, do Distrito Federal e dosMunicípios obedecerá aos princípios de

legalidade, impessoalidade, moralidade (...)”.No artigo 206, a Constituição Federal ain-da assegura a todos “igualdade de condi-ções para o acesso e permanência na esco-la”. O diretor de escola que age dessa formatambém viola o inciso XV do Código deÉtica Profissional do Servidor Público Ci-vil do Poder Executivo Federal (Decretono 1.171, de 1994), que pune “o uso docargo ou função, facilidades, amizades,tempo, posição e influências, para obter

qualquer favorecimento, para si ou paraoutrem”.

Quando comportamentos semelhantessão flagrados na vida real, os representantesda opinião pública se declaram ultrajados,em sintonia com os valores que a lei protege.A cultura política média, entre nós, amadu-receu o suficiente para não aceitar que a ins-tituição pública destinada ao atendimentode direitos – direito à saúde ou à educação,

“Uma sociedadeque já despertoucontra o nepotismo,contra as variadasformas de obtençãode vantagem pormeio do serviçopúblico não podemais conviver como proselitismogovernista ememissoras públicas”.

Palestra no Auditório da FUNCEP (1985).

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que são os mais bem compreendidos –opere para benefícios pessoais. No entanto,quando se trata do direito à informação,tão fundamental quanto os outros, amentalidade é tolerante. Entre nós, infe-lizmente, o direito fundamental à infor-mação não é tão fundamental assim.

Nessa matéria, somos bárbaros, ouquase. O direito à informação e o direitoà comunicação freqüentam o rol dosdireitos fundamentais desde, pelo menos,o século XVIII. Está escrito no artigo 11da Declaração de Direitos do Homem edo Cidadão, lançada em 26 de agosto de1789, na França: “A livre comunicação dasidéias e das opiniões é um dos maispreciosos direitos do homem”. A Decla-ração Universal dos Direitos Humanos,adotada e proclamada pela resolução 217A (III) da Assembléia Geral das NaçõesUnidas, de 10 de dezembro de 1948, tratado mesmo direito, em seu artigo 19: “Todapessoa tem direito à liberdade de opiniãoe expressão; esse direito inclui a liberdadede, sem interferência, ter opiniões e deprocurar, receber e transmitir informaçõese idéias por quaisquer meios e independen-temente de fronteiras”. Também o Art. 5o

da Constituição da República Federativado Brasil assegura esse direito em seusincisos IV, IX e XIV, bem como o artigo220, no caput e no parágrafo 1o.

Por que, então, na nossa cultura polí-tica, ele ainda é visto como algo que não éassim muito para valer? A resposta deveser procurada nos hábitos, na cultura, nãona lei propriamente dita. A informaçãoainda é vista como algo que se obtémquando se compra um jornal – comomercadoria, portanto – ou quando osujeito se diverte diante da TV – comoum item da indústria do entretenimento.A informação não é vista nem vivenciadacomo direito fundamental. A má-vontade

dos governos e dos poderes da repúblicaem relação ao seu dever de tornar transpa-rentes todos os dados da administraçãopública é sintoma dessa mentalidade.É nesse contexto que o uso de rádios outelevisões públicas para fins governistas étacitamente admitido.

É preciso levar em conta, ainda, que o“aparelhamento” das emissoras públicas nãodestoa da rotina da imensa maioria dascomerciais. Trata-se, isto sim, de um padrãogeneralizado. É verdade que o uso parti-dário da radiodifusão é mais raro hoje nasgrandes redes – em algumas, há mesmoprogressos perceptíveis em matéria deindependência editorial. Porém, quanto maislocais são as emissoras privadas, mais elasse tornam vulneráveis a pressões deanunciantes comprometidos com o poderlocal ou, freqüentemente, sujeitam-se àinterferência direta de famílias e oligarquiasregionais: mais elas se tornam partidárias.Em resumo, de modo geral, emissoras derádio e televisão ainda são administradas epensadas como ferramentas ou moedas detroca no jogo político tradicional.

Embora definida como serviçopúblico na Constituição Federal (art. 21,XII, a), a programação de rádio e TV aindaatua para promover a imagem de uns edestroçar a imagem de outros, comoserviço acessório nos embates entrecoronéis. A prática do setor espelha apromiscuidade entre Estado e interessesprivados, regada a concessões que seefetivam por favorecimentos. O compadrioentre empresários e políticos – inclusive dospolíticos que se tornam empresários demídia, de forma acobertada ou escan-carada, e dos empresários de mídia quetambém obtêm mandatos políticos – dáo tom da promiscuidade.

A cultura política que se alastra dasemissoras públicas às comerciais,estende-se,

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também, à direita e à esquerda no espectroideológico. Nessa matéria, as visões decorrentes de esquerda e de direita seaproximam e, não raro, coincidem. A idéiade que a comunicação serve como escadapara o atingimento de fins políticos écomum a ideários dos dois lados, emboranão seja totalmente unânime. Em regra, acomunicação infelizmente ainda não épensada como processo autônomo, hori-zontal, por meio do qual os cidadãos dopúblico, em público, informam-se, comu-nicam-se e formam livremente suasvontades e suas opiniões. Ela é vista comoo seu oposto: a comunicação é um processoque se direciona a favor dos governantes.Portanto, no pensamento que consagra oaparelhamento, a comunicação não é sequercomunicação, já que não há diálogohorizontal: ela é, quando muito, exercíciode convencimento unilateralmente posto.

É, claramente, uma visão conser-vadora, que tem adeptos à direita e àesquerda. Para os primeiros, beneficiáriosou mesmo autores dos regimes de forçaque se abateram sobre o Brasil no séculoXX, os instrumentos de comunicaçãodevem garantir a ordem social, a disci-plina, a obediência – basta ver o uso queas ditaduras do nosso continente fizeramda televisão e do rádio. Para os segundos,os meios de comunicação são vistos porum ângulo oposto, mas idêntico, apenaso sinal se inverte: estariam a serviço da“classe dominante”. Estes não conside-ram e muito menos admitem que hácontradições que escapam às intenciona-lidades das classes, pois, segundo eles, jáque não há neutralidade no exercício dacomunicação, também não poderá jamaishaver democracia. O melhor que se podepretender é que a comunicação esteja aserviço, engajada, bem entendida, decausas justas e humanitárias, pretensamente

emancipadoras. Postulam, enfim, umaespécie de “aparelhamento do bem”.

Para nenhum dos dois pólos conser-vadores a comunicação é vista comoprocesso capaz de imaginar e fomentarnovas visões, originais, fecundas – eindependentes. Para ambos, não existe avariável de que o público desenvolvaopinião mais rica e diferenciada emrelação àquela que os controladores dosmeios por ventura imaginam deter.Pensam, enfim, a comunicação comoescoadouro de pacotes de sentido intei-ramente formatados, prontos para o uso,jamais como campo em que possamexistir o pensamento e a crítica.

Reverter esse quadro é possível. Emmatéria de mudar a cultura, fazendo valero que o legislador democrático vislumbroupara a República, uma experiência talvezseja de interesse do leitor deste breve artigo.

Entre 2003 e 2007, a Radiobrás, estatalque controla três emissoras de TV, seisestações de rádio e duas agências de notíciasna Internet, tentou se diferenciar emrelação ao hábito do proselitismo. Fixandoparâmetros públicos de impessoalidadepara os seus comunicadores, que tiveramforça de norma interna e foram publicadosna Internet2, a empresa deu início a umtrabalho que obteve prêmios de jornalismoe, entre outras coberturas, destacou-sedurante a campanha eleitoral de 2006 pornão ter permitido a partidarização de seusconteúdos. Por meio do Protocolo deCompromisso com o Cidadão, expôstodos os cuidados que seriam adotadosdurante a cobertura. Seus dirigentes,voluntariamente, assumiram para si odever, estabelecido no Protocolo, de nãodar declarações públicas, de nenhumanatureza, contra ou a favor de nenhumacandidatura, em nenhum nível, paranenhum posto. As reportagens publicadas

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As emissoras públicas, o direito à informação e o proselitismo dos caciques

pelos veículos da Radiobrás, como a sérieque expôs as pendências de vários candi-datos junto ao Tribunal de Contas daUnião, repercutiram em diversos jornaise emissoras, públicas e privadas. Em tornodos termos do Protocolo, os jornalistas,radialistas e demais funcionários da estatalpactuaram em atender o direito à infor-mação do cidadão, e nada mais. Foi, porassim dizer, o coroamento de um trabalhoiniciado mais de três anos antes com umanova missão, apartidária, para toda aempresa.

Essa missão, formulada a partir de umlongo exercício de planejamento, que seestendeu por todo o ano de 2003, comenvolvimento das várias equipes daRadiobrás, dizia:

“Somos uma empresa pública decomunicação. Buscamos e veiculamoscom objetividade informações sobreEstado, governo e vida nacional.Trabalhamos para universalizar oacesso à informação, direito funda-mental para o exercício da cidadania”.

Para as eleições gerais de 2006, oProtocolo aprofundou e detalhou asposturas já adotadas. A mudança de culturaque ali se verificava se deu, fundamen-talmente, com base na lei. Ele afirmava:

“Como assegura o parágrafo únicodo artigo primeiro da ConstituiçãoFederal, “todo o poder emana do povo,que o exerce por meio de representanteseleitos ou diretamente, nos termos destaConstituição”. As eleições gerais são oponto mais alto de delegação de poderna democracia brasileira. Na perspec-tiva da Radiobrás, portanto, elas repre-sentam o evento oficial mais fecundono âmbito do Estado brasileiro – para

o qual concorre a mobilização de todaa sociedade –, evento a partir do qual,ou em torno do qual, os demais searticulam. A vontade do povo funda ademocracia.”

“Cobrir as eleições é um dever daRadiobrás. No exercício de suasatribuições legais, ela se empenhará emfazê-lo de modo equilibrado, objetivoe apartidário, fiel à sua missão debuscar e veicular com objetividadeinformações sobre Estado, Governoe vida nacional.”

“A exemplo do que fez antes deiniciar a cobertura das eleições muni-cipais de 2004, a Radiobrás vem agoraa público informar os cidadãosbrasileiros sobre os seus critérios decobertura das Eleições 2006. Essescritérios respeitam as obrigações elimitações impostas aos veículos decomunicação pela Lei Eleitoral (Lei no

9.504 de 30 de setembro de 1997), epelo Calendário Eleitoral (ResoluçãoTSE no 22.124, de 6 de dezembro de2005), e acompanham os parâmetrosdo jornalismo com foco no cidadãoque a Empresa vem praticando(conforme os Parâmetros do Jorna-lismo da Radiobrás). O objetivo dapublicação do presente Protocolo épermitir que o cidadão acompanhe efiscalize os critérios apartidáriosadotados pela Empresa.”

Entre outras afirmações, o documentofazia questão de explicitar que “a Radiobrásexiste para fornecer ao cidadão elementosque o ajudem a formar livremente a própriavisão dos fatos e não para direcionar aformação da opinião pública”, opondo-sefrontalmente ao costume das instituições

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públicas de comunicação. Minuciosas, asregras que se seguiam ao texto introdutóriodo Protocolo definiam a postura exata paracada situação distinta. Por exemplo: se quisessetrabalhar numa campanha eleitoral, mesmofora de seu horário de trabalho, o funcio-nário deveria se licenciar, sem remuneração.Como todas as regras tinham passado porexaustivas discussões integrando várioscomponentes de várias equipes, elas foramcumpridas sem um único incidente interno, esem que uma única reportagem tivesse a suaveracidade e a sua objetividade questionadasnos debates públicos.

O caso da Radiobrás, aqui apenasmencionado, pode ser visto como umpequeno laboratório dentro do esforçogeral de mudança que a democraciareclama. Ele nunca se pretendeu modeloe, ademais, a própria configuração jurídicadas instituições de comunicação vinculadasao governo federal, neste segundo semestrede 2007, ocasião em que foi escrito opresente, encontra-se em fase de redefinição

profunda. Mesmo assim, o que se buscoupraticar ali ao longo de quatro anos talvezinteresse. O resultado prático poderá serverificado tanto pelo conjunto das cober-turas3 como pelos extensos documentosque sistematizaram o modo de procederjornalístico e que aqui foram indicados.

Além dessa pequena sugestão espe-cífica, deixo uma outra, de caráter geral.Seria recomendável que tribunais ecomissões encarregados de fiscalizar agestão da coisa pública e as condutas dosservidores analisassem, com regularidadee com profundidade, a incidência doaparelhamento nas emissoras públicas,promovendo aí as atividades de formaçãoe de prevenção que renderão bons frutosno futuro. Uma sociedade que já despertoucontra o nepotismo, contra as variadasformas de obtenção de vantagempor meio do serviço público não podemais conviver com o proselitismo gover-nista em suas emissoras públicas.

Notas

1 O presente trabalho se beneficiou de escritos anteriores do autor, entre eles: CASO RADIOBRÁS:o compromisso com a verdade no jornalismo de uma empresa pública, em DUARTE, Jorge.Comunicação pública: Estado, mercado, sociedade e interesse público. São Paulo: Editora Atlas,2007. Ver também, NUCCI, Celso (org.), Manual de Jornalismo da Radiobrás – produzindo informa-ção objetiva numa empresa pública de Comunicação. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria deEdições Técnicas, 2006.

2 Ver em: <http://stream.agenciabrasil.gov.br/estatico/jornalismo.htm>.3 Ver em: <http://www.agenciabrasil.gov.br>.

Eugênio Bucci.

É doutor em Ciências da Comunicação, área de Jornalismo, pela Escola de Comunicações e Artes da Universi-dade de São Paulo. É jornalista. Contato: <[email protected]>.

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As emissoras públicas, o direito à informação e o proselitismo dos caciques

O presidente Juscelino Kubitschek, que foi o responsável, entre outras reformas, pela mudança doDistrito Federal do litoral fluminense para a Região Centro-Oeste (1950).

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Marta Ferreira Santos Farah

Sete décadas depolíticas sociais no Brasil

Marta Ferreira Santos Farah

A criação da Revista do Serviço Público, em 1937, ocorreu na mesma época

em que nasceram, no Brasil, as primeiras políticas sociais, num ambiente marcado

por forte inflexão na relação entre Estado e Sociedade, acompanhada por

inúmeras inovações na área pública. Foi nesse momento que se deu, pela primeira

vez, uma intervenção sistemática do Estado na área social, com a criação dos

Institutos de Aposentadoria e Pensões, a partir de 1933.

Olhar para estas sete décadas de políticas sociais é olhar, a um só tempo,

para as transformações da questão social e para as respostas dadas pelo Estado

aos problemas sociais. A década de 1930 não constitui, evidentemente, um

momento inaugural em que a população brasileira enfrentou pela primeira vez

dificuldades no plano social. No século XIX, as condições de vida dos pobres

urbanos – trabalhadores e desempregados – eram bastante precárias. O problema

da pobreza não chegou a se constituir, no entanto, em problema social, no sentido

de se transformar em preocupação das elites e em objeto de intervenção do

Estado. A resposta da sociedade brasileira à pobreza se dava, então, na esfera

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Sete décadas de políticas sociais no Brasil

privada (FARAH,1983). De um lado, noâmbito da caridade privada, destacava-se aatuação da igreja, das sociedades benefi-centes e das Santas Casas de Misericórdia.Laços verticais de proteção se estabeleciamentre as classes altas e os pobres, os quaisnão se restringiam à ação de entidades,permeando também as relações entre ricose pobres no espaço das famílias e dasrelações interpessoais mais próximas. Esten-deu-se, então, para o espaço urbano umpadrão de relações típico do mundo rural,marcado pela patronato, pelo favoritismoe pelo apadrinhamento. De outro lado, ostrabalhadores se organizavam em asso-ciações de auxílio mútuo, criandomecanismos de proteção com quepodiam contar em momentos de neces-sidade. As associações socorriam seusmembros com recursos resultantes dascontribuições de todos, prestando auxílioem caso de doença, de morte de membroda família e de desemprego.

Mas o Estado não esteve inteiramenteausente da questão social no século XIX enos primeiros anos do século XX. Algunsdos problemas enfrentados pela populaçãopassaram a integrar a agenda pública e agovernamental. O primeiro tema amerecer a atenção estatal foi a questão dasaúde pública (BONDUKI; 1982. PINHEIRO;HALL, 1981. FARAH; 1983). As medidasnessa área derivaram da preocupação como impacto das más condições de vida dascamadas populares sobre o conjunto dapopulação. No final do século XIX e nasprimeiras décadas do século XX, osmaiores centros urbanos do País foramatingidos por epidemias que atingiamindiscriminadamente ricos e pobres. Asprimeiras medidas estatais na área socialconsistiram na elaboração de legislaçãosanitária, que estabelecia os critérios paraconstrução de moradias “higiênicas” nas

cidades, na interdição e demolição demoradias insalubres e na execução de obraspúblicas de corte sanitarista. Não se tratava,ainda, de “proteção social” aos trabalha-dores, de medida direta do Estado na áreasocial, mas sim de ação indireta, no espaçourbano, por meio de legislação e fiscali-zação e de intervenção na infra-estruturaurbana.

Um segundo tema também ingressouna agenda pública e na governamental, noinício do século XX: a ordem pública. Ostrabalhadores urbanos assalariados, repre-sentantes de uma nova ordem econômico-social que se introduzia no país, associada àeconomia cafeeira, passaram a reivindicarmelhores condições de trabalho. Os anos1910 e 1920 do século passado forammarcados por fortes movimentos reivin-dicativos e por greves operárias em SãoPaulo. A resposta estatal foi, em boa parte,a organização de uma estrutura repressiva ea promoção de ações policiais que inibiama ação e a organização dos trabalhadores.

Por outro lado, além da repressão aosconflitos sociais, teve início no país, durantea República Velha, a implantação de legis-lação social, com a promulgação, em 1923,da Lei Eloy Chaves, que criava Caixas deAposentadorias e Pensões por empresa,para trabalhadores ferroviários (SANTOS;1994. MALLOY; 1976). A partir dessa lei, àqual se seguiu legislação similar para outrascategorias de trabalhadores urbanos, asempresas do setor ficavam obrigadas acontribuir para uma “caixa” ou fundo,com recursos que seriam colocados àdisposição dos trabalhadores em situaçãode doença e de aposentadoria ou comopensão à família, em caso de morte dotrabalhador.

A intervenção estatal na área socialnasceu, assim, como ação indireta, naforma de legislação que regulava a ação

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do setor privado. Essas medidas podemser consideradas os antecedentes daspolíticas sociais no Brasil.

Intervenção do Estado na áreasocial: as primeiras políticas sociais

As políticas sociais propriamente ditastiveram início nos anos 1930 do séculoXX, no quadro das transformações maisabrangentes ocorridas a partir da

Revolução de 1930. O Estado assumiu,nesse momento, o papel de promotor dodesenvolvimento do país, passando aintervir de forma direta na economia ena área social. Constituiu-se então umSistema de Proteção Social no Brasil, inau-gurado com a criação dos Institutos deAposentadoria e Pensões, ao longo dadécada de 1930 (FARAH; 1983; SANTOS,1994).

Os IAP eram estruturas estatais,organizadas em âmbito nacional e porcategoria profissional, com quadro deservidores públicos específicos, cuja funçãoera captar recursos – de empregadores, deempregados e do próprio Estado paragarantir aposentadorias e pensões aos traba-lhadores urbanos. Nascia, assim, com osIAP, a Previdência Social no Brasil. Os IAPsão os antecedentes institucionais maisantigos do Instituto Nacional do Seguro

Social (INSS), mas também de todas asdemais instituições que atuam na área social.Neste período inaugural, as primeirasmedidas diretas e sistemáticas na área socialpor parte do Estado tiveram o caráter dereconhecimento de direitos sociais de cida-dania. No entanto, tratava-se de incorpo-ração restrita, descrita por WanderleyGuilherme dos Santos como CidadaniaRegulada (SANTOS, 1994). Instituída pelo

“Programasinovadores nas áreasde saúde, educação,orçamento, crianças eadolescentes, geraçãode emprego foramdesenvolvidos porestados e pormunicípios de dife-rentes portes,localizados nasdiversas regiões dopaís, os quais têm sedisseminado paraoutras localidades”.

Vista da sede da Funcep, onde a RSP passou a ser editada apartir de 1981.

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Sete décadas de políticas sociais no Brasil

Estado, de cima para baixo, caracterizou-sepor uma abrangência limitada e pela organi-zação de base profissional. Eram “prote-gidos” com os benefícios concedidos pelosIAP apenas trabalhadores urbanos,pertencentes a categorias profissionaisreconhecidas pelo governo federal. Osbenefícios variavam segundo a categoriaprofissional, refletindo as desigualdadessalariais existentes entre as diferentesocupações. Por outro lado, a maioria dapopulação brasileira permanecia excluídado atendimento estatal – toda a populaçãorural (em 1940, 68,8 % da população) eboa parte dos moradores das cidades.

Embora bastante restrito e segmen-tado, o novo sistema pôde ser consideradoo marco inicial do processo de construçãode um moderno sistema de proteção socialno Brasil, o qual tinha como foco a parcela“moderna” da economia e da sociedadebrasileira. Os IAP, como seu próprio nomediz, tinham como centro de sua atuação aPrevidência Social, mas acabaram atuandotambém nas áreas de saúde e de habitação,caracterizando-se como os antecedentes desistemas mais complexos de políticaspúblicas nestas áreas.

Ao estruturar instituições voltadasespecificamente para a área social, oEstado passa progressivamente a seridentificado como o responsável peloatendimento de necessidades da popu-lação na área social e pela prestação deserviços públicos. Assim, quando, aolongo das décadas de 1940 e 1950, diantedo rápido crescimento das áreas urbanas,houve uma intensificação dos problemassociais no país, ocorreu não apenas ainclusão de novos temas sociais na agendapública, mas também a identificação doEstado como o responsável pela elabo-ração e pela implementação de políticassociais que dessem resposta a esses

problemas. Questões como moradia,transporte urbano e saúde passam a seralvo de manifestações de trabalhadoresurbanos. Tais reivindicações, diferen-temente dos movimentos do início doséculo XX, passaram a ter como alvoprivilegiado o Estado: é deste que secobram respostas e políticas (FARAH,1985).

Extensão segmentada eexcludente

No período subseqüente – o quese instaurou em 1964 sob regime autori-tário –, importantes mudanças foram intro-duzidas no campo da intervenção doEstado na esfera social. Se o períodoautoritário se caracterizou pela restriçãode direitos civis e políticos, as característicasdo regime na área social são bem mais com-plexas. Houve diversificação da atuação doEstado, com a criação de estruturasespecializadas em áreas como previdência,saúde, habitação, saneamento e transporteurbano. Tal diversificação refletia não apenasa intensificação dos problemas sociais, mastambém sua crescente complexidade.

Na área da previdência e da saúde,eliminou-se a segmentação por categoriasprofissionais e promoveu-se a extensão dacobertura para trabalhadores rurais (1971),trabalhadores domésticos (1972) e autô-nomos (1973). Implantou-se um sistemanacional na área de habitação e saneamento,acompanhado pela criação de um sistemafinanceiro que captava e destinava recursospara essas áreas. Na área de educação,houve também ampliação da rede pública,acompanhada pelo estímulo à atuação dosetor privado para os segmentos dapopulação de renda alta e média. Oestímulo à ação do setor privado tambémocorreu na área da saúde para atendimentodas camadas médias.

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A montagem desses sistemas orien-tou-se para a superação do que se consi-derava uma característica crítica doperíodo anterior: a operação do sistema,a concessão de benefícios e o acesso aosserviços obedeciam a uma lógica clien-telista, sobretudo a partir dos anos 1950.Houve também, neste período, rupturacom o modelo “corporativista”, quecaracterizara a ação estatal no períodoprecedente, e esforço de ampliaçãoda abrangência da atenção estatal (DRAIBE,1993).

No entanto, o sistema foi incapaz degarantir acesso a serviços públicos a umaparcela expressiva da população, assimcomo de garantir qualidade nos serviçosprestados. No final dos anos 1970, osmovimentos sociais expressavam, nasbrechas de manifestação pública existentesno quadro do regime ditatorial, a insatis-fação de amplos contingentes da populaçãodiante de necessidades sociais não atendidase reprimidas. Tais movimentos identifi-cavam, no modelo de proteção social entãoexistente, as seguintes características críticas:a) centralização decisória e financeira naesfera federal; b) fragmentação institucional;c) gestão das políticas sociais a partir deuma lógica financeira levando à segmen-tação do atendimento e à exclusão deamplos contingentes da população doacesso aos serviços públicos; d) atuaçãosetorial; e) penetração da estrutura estatalpor interesses privados; f) condução daspolíticas sociais segundo lógicas clientelistas;g) padrão verticalizado de tomada dedecisões e de gestão e burocratização deprocedimentos; h) exclusão da sociedadecivil dos processos decisórios; i) opacidadee impermeabilidade das políticas e dasagências estatais ao cidadão e ao usuário;h) ausência de controle social e de avaliação(DRAIBE, 1993; FARAH, 2001).

Reforma das políticas sociais apartir da década de 80

Nos anos 19801, teve início umprocesso de reforma das políticas sociais,que se estendeu pelas décadas seguintes, oqual se insere em um contexto maisabrangente de crise do Nacional-desenvol-vimentismo e do padrão de intervençãoestatal até então prevalecente no país.Dentre os condicionantes das mudançasentão ocorridas, destacam-se a democra-tização do país e a crise fiscal.

Num primeiro momento, a reforma daspolíticas sociais foi influenciada pela luta pelaredemocratização em que se destacavam aspropostas de descentralização e de partici-pação. A Constituição de 88 consagrou, noplano legal, as principais demandas na áreasocial, estabelecendo novo arcabouço paraas políticas sociais, inspirado no modelouniversalista de proteção social.

Mas a reforma das políticas sociaissofreu também o impacto da crise fiscal.Em um contexto de escassez de recursose de debate internacional sobre o papel doEstado, a questão da eficiência na utilizaçãodos recursos públicos assumiu lugar centralna reforma. No contexto da crise fiscal ediante dessa nova ordem de considerações,a descentralização assume novos contornos:passa a ser entendida também comomecanismo de controle no uso de recursose de maior efetividade dos gastos.

Com a descentralização, um novo atorassume papel central no campo das polí-ticas sociais no período recente: osgovernos locais. O processo de descentra-lização confere novo grau de complexi-dade ao Sistema Brasileiro de ProteçãoSocial. De um lado, pela articulação inter-governamental implícita no modelo dedescentralização implementado no País.Trata-se de um federalismo cooperativo,

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em que, num mesmo setor, os três níveisde governo exercem funções comparti-lhadas e complementares. A implantaçãodesse novo sistema não se deu semdificuldades, dentre as quais se destaca aambigüidade na definição de papéis efunções. A maior complexidade do sistemadecorre, de outro lado, da variação signi-ficativa no grau de descentralização dediferentes setores e, dentro de cada umdestes setores (educação, saúde, assistênciasocial), pela variação da descentralizaçãoem diferentes estados e regiões do País(ARRETCHE, 2000).

Em que pesem essas dificuldades, onovo sistema tem contribuído para a emer-gência de novas políticas e programas sociais(SPINK, 2006. JACOBI; PINHO, 2006), queacabam por beneficiar não apenas umalocalidade específica, mas todo o País.Programas inovadores nas áreas de saúde,educação, orçamento, crianças e adoles-centes, geração de emprego foram desen-volvidos por estados e por municípios dediferentes portes, localizados nas diversasregiões do país, os quais têm se dissemi-nado para outras localidades, seja horizon-talmente, de município para município e deestado para estado, seja por efeito da induçãode níveis mais abrangentes de governo,especialmente do Governo Federal (FARAH,2006; FARAH, 2006 b).

A participação da sociedade civiltambém é componente do novo sistema,em relação ao qual se constatou grandevariação de setor para setor, entre estados,e de município para município (FARAH,2001; Diniz, 1996; SPINK, 2002). Os Conse-lhos Gestores de Políticas Públicas, porexemplo, concretização de demandas dosmovimentos democratizantes dos anos1970 e início dos 1980, passaram a ser umarealidade nas diversas áreas sociais. Suascaracterísticas, porém, são bastante

heterogêneas, variando segundo o setor,mas também segundo a localidade em quesão implantados. Passados vários anos desua institucionalização, é possível perceberhoje não apenas seus potenciais, mastambém seus limites e as dificuldadesenfrentadas em sua implantação. Problemascomo existência meramente formal,voltada à obtenção de recursos federais;cooptação pelo Executivo local ou porsegmentos do setor privado ou ainda baixacapacitação dos conselheiros societários sãoalguns dos problemas que vêm sendoapontados pela literatura (DAGNINO, 2002).

Outra importante alteração nas políticassociais das últimas décadas consiste noreconhecimento da diversidade que carac-teriza a população atendida, mudançacomplementada pela incorporação de novasabordagens no desenho e implementaçãodas políticas. Assim, os modelos padro-nizados característicos do período anterior,na área de saúde e educação, por exemplo,passam a ser flexibilizados de forma a sereconhecerem necessidades diversificadasdas mulheres, de grupos indígenas, de idosos,de jovens e dos negros. Isso requer que aspolíticas contem, de fato, com a participaçãode representantes desses grupos em suaformulação, o que não se dá apenas no nívelfederal, mas também em âmbito local.Incorporam-se “atores” locais na gestão ena implementação de políticas, como nocaso de programas de educação indígena,da formulação do Programa Integral daSaúde da Mulher, para citar apenas doisexemplos. O reconhecimento de segmentosdiversificados é complementado pelamudança da perspectiva que preside apolítica social.

Assim, por exemplo, nas políticasvoltadas a crianças e adolescentes (e nãomais para o menor), há uma tendência deruptura com as políticas de caráter

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assistencialista-repressivo e de constituiçãode políticas e programas baseados naperspectiva de direitos. Do mesmo modo,desde os anos 1980, procura-se, na áreada saúde, superar um modelo de atençãobaseado exclusivamente na perspectivacurativa, para implantar um sistema de basepreventiva, o qual requer, necessariamente,abordagem multisetorial, que integre nãoapenas a ação de agentes de saúde junto àcomunidade, mas também a articulação

entre saúde e condições de vida, consi-derando aspectos como saneamento ehabitação (FARAH, 2006 c).

Outro aspecto que tem sido destacadona análise do período recente diz respeitoà participação de organizações não-governamentais e do setor privado naprovisão de serviços públicos. Essatendência, ora se traduz em propostas deprivatização, ora em propostas de atuação

conjunta do Estado com o setor privadoe não-governamental.

Do ponto de vista de foco temático,por sua vez, observa-se que algumas áreas,centrais no período anterior, como a dahabitação, após o “desmonte” dos anos80, não tornaram a ser objeto de políticasestruturadas e consistentes. Essa “omissão”ou negligência não é fortuita, revelando aeleição de outras prioridades como focoda atenção governamental.

Ao lado de políticas setoriais em quese mantém ainda certa preocupaçãouniversalizante, observa-se, no períodorecente, a constituição de novas modali-dades de ação na área social, de abran-gência nacional, com foco no combate àpobreza. Passados os primeiros impactospositivos do Plano Real, com a estabi-lização da moeda, a sociedade brasileiracontinuou a enfrentar queda do nível de

“(...) Se há o quecomemorar, osdesafios são tãoimportantes e graves,que nos alertam paraa necessidade de darcontinuidade aoesforço de construçãoe reconstruçãopermanente daspolíticas sociais,atentos a velhos enovos problemas”.

A RSP noticiou as melhorias para a administração públicacom a promulgação da Constituição Federal de 1988.

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atividade econômica, com intensificaçãoda precarização do emprego e aumentodo trabalho no setor informal. O desem-prego estrutural veio se somar a este qua-dro, agravando ainda mais os problemasde exclusão social, num País cuja popu-lação, diferentemente do início doperíodo analisado, passara a se concentrarnas áreas urbanas.

De um lado, os governos locaispassaram a promover políticas de geraçãode emprego e renda, tradicionalmenteatribuição do governo federal, com ocaráter de inclusão social. De outro,algumas localidades implantam, pelaprimeira vez, nos anos 90, programas derenda mínima (Programa Renda Mínima,em Campinas, São Paulo, e ProgramaBolsa-Escola, no Distrito Federal), comopolítica social de combate à pobreza. Taisprogramas envolvem, como condição deentrada, o ingresso e permanência na escolade crianças em idade escolar, com oobjetivo de permitir a superação dapobreza pela nova geração – por inter-médio do acesso à educação.

De outro lado, o governo federalpassou a promover ações de combate àpobreza e a estimular a adesão degovernos locais a programas com estecaráter. O Programa Comunidade Soli-dária, desenvolvido no governo FernandoHenrique Cardoso, foi uma das primei-ras iniciativas nesse sentido. Baseado naparceria com a “comunidade”, incluindoo setor privado e ONGs, esse programafoi um dos primeiros a aderir a uma dasnovas tendências deste período – afocalização das políticas. O programa foiconcebido de forma a eleger municípioscom maiores índices de pobreza (menorIDH) como beneficiários da ação estatalde combate à pobreza. Outro programade combate à pobreza desenvolvido pelo

governo federal consiste no Bolsa-Escola,derivado de iniciativas de âmbito local, jámencionadas, transformado, no governoLula, em Bolsa-Família.

É em torno de programas decombate à pobreza que se dá outro dosdebates mais relevantes a respeito depolíticas sociais hoje no Brasil. Esse debatediz respeito ao lugar a ser ocupado porpolíticas de transferência de renda – decaráter compensatório – no conjunto daspolíticas sociais, à manutenção da perspec-tiva de longo prazo do Bolsa-Família –implícita nas condicionalidades – e aoequilíbrio entre políticas focalizadas epolíticas universalistas.

É importante também considerar osresultados das políticas sociais, nos últimosanos. Os indicadores sociais sugeremmelhoras significativas em algumas áreas,tais como a redução da mortalidadeinfantil e a queda expressiva do índice decrianças fora da escola e da taxa de analfa-betismo infantil. Da mesma forma, houvequeda nos indicadores de pobreza. Mastais avanços não têm correspondência naredução da desigualdade. A desigualdadeem termos de renda, a desigualdadeétnica, a de gênero e a desigualdade entreregiões continuam extremamenteelevadas e constituem um dos principaisdesafios na área social, a ser enfrentadoconjuntamente por políticas sociais e porpolíticas de desenvolvimento de âmbitonacional. Além disso, outras questõesigualmente relevantes ainda estão por serenfrentadas de forma mais sistemática eeficaz, como o da segurança pública, emsuas conexões com a área social, a doacesso à terra, e a do trabalho, incluindodesde a erradicação do trabalho escravono país, até as novas formas de precari-zação do trabalho, que hoje atingemtambém a classe média.

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Marta Ferreira Santos Farah

Desafios e perspectivas

Este balanço das políticas sociais noBrasil desde sua constituição até hoje revelaa evolução da agenda governamental naárea social. De uma agenda tímida inicial,na década de 1930, centrada na PrevidênciaSocial, ocorreu uma progressiva inclusãode novos temas, como a saúde e ahabitação, processo em que se destacatambém a crescente complexidade de cadaum dos temas. Assim, de uma indiscri-minação inicial de necessidades em cadauma das áreas, passa-se, já nos anos 1980,ao reconhecimento da diversidade dapopulação atendida e à proposição depolíticas que incorporem esta diversidade.

A incorporação de novos temas pelaagenda governamental foi conseqüência detransformações na sociedade brasileira noperíodo, acompanhadas pela emergênciade novos problemas sociais, pela intensi-ficação de problemas existentes e pelapressão exercida por diversos atores –nacionais e internacionais – para que fossemobjeto de ação estatal. De outro lado,alguns temas deixam de ocupar lugarcentral, em decorrência de alterações naconcepção sobre o papel do Estado naárea social, num processo que envolvedisputas entre diferentes correntes políticas.

Não obstante, em que pesem osavanços ocorridos, há ainda hoje impor-tantes desafios na área social.

Ao lado dos desafios ainda exis-tentes de ampliação do contingente debeneficiários das políticas sociais, há os

decorrentes da entrada na agendapública de “novos” problemas sociais,assim como os desafios associados àdesigualdade regional e, sobretudo, osassociados à persistência da desigualda-de social.

De igual relevância são os desafiosreferentes à efetividade das políticas e àqualidade dos serviços prestados, os quaisenvolvem questões relativas à gestão derecursos financeiros e à gestão de pessoas,incluindo aspectos como capacitação evalorização das equipes, e à coordenaçãode ações, de modo a favorecer os fluxosintergovernamentais. Assim, por exemplo,diretrizes e programas concebidos naesfera federal não se efetivam em determi-nadas localidades, por inexistência demecanismos que permitam dar flexibili-dade à gestão “no local” e “pelo local”das referências formuladas no centro, deforma a responder efetivamente aosproblemas enfrentados pela população.

Para finalizar, é importante chamar aatenção a um aspecto: se, de um lado, aspolíticas sociais nas últimas décadas contri-buíram para a redução da pobreza no paíse para a inclusão social de contingentesexpressivos da população, de outro, persisteum quadro de desigualdade que inibe umagrande comemoração. Pois, se há o quecomemorar, os desafios são tão impor-tantes e graves, que nos alertam para anecessidade de dar continuidade ao esforçode construção e reconstrução permanentedas políticas sociais, atentos a velhos enovos problemas.

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Notas

1 Agradeço a Sofia Ferreira Santos Farah pela colaboração no levantamento de material sobrepolíticas sociais na presente década.

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Marta Ferreira Santos Farah

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Marta Ferreira dos Santos Farah.

Professora do curso de mestrado e doutorado em Administração Pública e Governo da FGV-EAESP, coordena-dora do Curso de Graduação em Administração e pesquisadora do Centro de Estudos em Administração Públicae Governo da mesma instituição. Contato: <[email protected]>

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Sete décadas de políticas sociais no Brasil

Do Palácio do Trabalho à Escola Nacional de Administração Pública, 70 anos pensando oserviço público brasileiro.

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Gastão Wagner de Sousa Campos

Reflexões sobre oSistema Único de Saúde:

inovações e limites

Gastão Wagner de Sousa Campos

O que houve de significativo nos últimos trinta anos no campo da saúde

pública no Brasil?

Citarei três fenômenos que sintetizam as linhas de mudança, bem como

os impasses por que passou o campo da saúde. Em primeiro lugar, constata-se

a existência de profunda alteração nas condições de vida e de saúde da maioria

da população brasileira, tanto em sentido de melhorar, quanto de agravar o

quadro sanitário. Em segundo, valeria ressaltar a criação de nova política pública

voltada para o campo da saúde, tendo como sua principal expressão o Sistema

Único de Saúde (SUS). Houve, na saúde, uma profunda recomposição da noção

de direito, da legislação e dos mecanismos de intervenção do Estado. Essa

reforma foi co-produzida pela interação de movimentos políticos, sociais e

técnico-sanitários. Apesar da complexidade dos fatores que interferem

no processo saúde e doença, muitos de ordem social, econômica e cultural,

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Reflexões sobre o Sistema Único de Saúde: inovações e limites

observa-se que o SUS, rede pública deprestação de serviços, voltados tanto paraa coletividade quanto para indivíduos, foio principal ordenador da política públicabrasileira, para o setor, durante esse período.Em terceiro, valeria ressaltar a confor-mação de um ativo movimento em saúde.Um movimento de opinião, com pensa-mento e práticas com importante grau deautonomia em relação ao Estado e aosinteresses econômicos e corporativosdominantes. Denominado de MovimentoSanitário, pejorativamente cognominado dePartido da Saúde, esse setor da opiniãopública alcançou elaborar um projeto paraa saúde, que acabou se transformando,quase que em sua totalidade, em políticaoficial. Note-se que não criou um discursoúnico para o campo ou tampoucoeliminou o intenso conflito de interessespresentes no setor. Ao contrário, conseguiutão-somente produzir tensão com aracionalidade dominante, abrindo, comisso, possibilidades para a realização de umareforma sanitária que contemplassetambém o interesse do povo (entidadegenérica, ausente da reflexão econômicacontemporânea, e chamados de “usuários”pelo jargão da saúde).

Qual a relação entre esses três eventos?Como foram se co-produzindo?

Mudanças nas condições devida e saúde e o efeito SUS

O processo saúde e doença no Brasiltem características peculiares e, como emoutros países, é bastante complexo.As condições sociais de existência para amaioria dos brasileiros são bastantedesfavoráveis a uma sobrevivência saudável.Durante os últimos trinta anos, não se alterousignificativamente o quadro de desigualdadesocial e de acesso à renda (POCHMANN, 2004).

Somou-se a essa linha de condicionamentonegativo do quadro sanitário, a urbanizaçãodegradada, com constituição de bairroscom péssimas condições de habitação ede saneamento básico (SANTOS, 1996).Nesses territórios foi onde irrompeutambém a violência, produzindo verda-deira epidemia de mortes e lesões entrejovens (SOUZA; LIMA, 2006). Houve aindacrescimento econômico sem distribuiçãode renda, com acelerada reorganização dotrabalho que produziu novo quadro deemprego informal e desregulamentado. Hápolêmica sobre os benefícios que adviriamdesse modelo de crescimento. De qualquerforma, em curto prazo, enquanto ocorre,observa-se intensificação de riscos emsaúde para a maioria dos expostos. Essequadro é também produto da baixa capaci-dade de gestão e de controle do Estado,que deveria investir maior parte dosuperávit econômico em infra-estrutura epolíticas de proteção social.

Paradoxalmente, contudo, durante estastrês décadas, podem-se observar sérieshistóricas de indicadores que apontam paramelhoria das condições de saúde entreimportantes segmentos da população,inclusive entre os mais pobres. Ocorreuimportante elevação da esperança média devida (em torno de 8/9 anos para os homense 10/11 para as mulheres), diminuição damortalidade infantil e da taxa de fecundidade(de 4.4, em 1980, para 2.1, em 2004)(NORONHA; PEREIRA; VIACAVA, 2005).

Houve diminuição da mortalidadeproporcional por doenças infecciosas,com avanço de doenças cardiovasculares,câncer e outras enfermidades crônicas,aproximando o Brasil de um perfil demorbidade semelhante ao dos paísesdesenvolvidos. A sobrevivência de pessoasportadoras de problemas crônicos desaúde, de longa duração, passíveis de

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Gastão Wagner de Sousa Campos

controle, mas não de cura completa, requerprogramas permanentes de atenção emsaúde, com atendimento individual emvárias profissões, medicamentos, educaçãoem saúde, etc. Em nosso caso, a heteroge-neidade do acesso a recursos por parte dapopulação contribui para a permanênciade doenças infecciosas das quais não noslivramos ou que retornaram na últimadécada. Assim, a malária persiste comoendemia com amplas proporções (média

de 400 mil casos/ano), houve aumento datuberculose, leishmaniose, raiva, entreoutras. Registra-se que persistem desigual-dades no quadro sanitário conforme asregiões do país e as classes sociais. Quantomais pobres, piores os indicadores(SCHRAMM et als, 2004).

Tendo em vista a debilidade das polí-ticas sociais e a adversidade das condiçõesde vida da maioria, caberia investigar,

com mais acuidade, a importância especí-fica das ações de saúde – preventivas eclínicas – implementadas pelo SUS ou pormudanças na legislação sanitária nessamelhoria relativa do quadro. Há algumaspolíticas sociais que, certamente, tambémcontribuíram para melhorar a saúde dapopulação. A Previdência com a concessãode aposentadoria a importante segmentode trabalhadores rurais e urbanos, amanutenção do salário mínimo, a

concessão de bolsas, a escola pública, entreoutras políticas sociais, têm efeitospositivos sobre os indicadores de saúde.

O SUS produziu dois fenômenos, emtese, favoráveis à saúde. Tanto ampliou arede de atenção à saúde, quanto favoreceuo surgimento de arcabouço legal deproteção ao usuário. Pode-se considerar quenos últimos trinta anos qualificou-se oaparelho encarregado da saúde pública e

“O SUS produziudois fenômenos, emtese, favoráveis àsaúde. Tanto amplioua rede de atençãoà saúde, quantofavoreceu osurgimento dearcabouço legalde proteção aousuário”.

A experiência adquirida pela ENAP com a publicaçãoda RSP ajudou a incrementar sua linha editorial.

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Reflexões sobre o Sistema Único de Saúde: inovações e limites

da promoção à saúde. Em articulação comoutros setores, aperfeiçoaram-se a legis-lação brasileira sobre trânsito, controle dealimentos, produtos químicos, fármacos eambiente. Ocorreu também o desenvol-vimento de estruturas para executar avigilância sanitária. Em contraste, oaparelho voltado para a saúde do traba-lhador desenvolveu-se menos.

Ampliou-se também o acesso aprogramas e serviços em várias regiões dopaís e em relação a vários problemas desaúde. Há evidências empíricas de que abusca de universalização combinada comprogramas e intervenções focalizados emproblemas prioritários e grupos vulneráveisalcançou resultados positivos. O Brasillogrou controle relativo da epidemia deAids com a adoção de um programa quesoube articular intervenção clínica epreventiva, assegurando atenção universalaos expostos à epidemia. A redução damortalidade infantil deveu-se a um conjuntode medidas em si bastante simples. Entreelas destacam-se a elevação da coberturavacinal (durante os últimos trinta anos,saltamos de 60% para 80% de pessoasvacinadas nos programas obrigatórios)(BRASIL/MS/SVS, 2006). Outra medidadecisiva foi a introdução da re-hidrataçãooral para tratamento de diarréia e a extensãoda puericultura pelo Programa de Saúde daFamília. Em relação aos adultos cabedestacar a importância de se haver ampliadoo atendimento a hipertensos, diabéticos epessoas com câncer, assegurando-lhescuidado profissional, drogas e examescomplementares (TRAVASSOS; OLIVEIRA;VIACAVA, 2006). Esse conjunto de medidasamplia a esperança média de vida em todosos países que as aplicaram. A queda da nata-lidade dependeu de uma pressão dademanda, de interesse dos usuários, mais doque de programas estruturados pelo SUS.

Considero que há, todavia, um descom-passo entre o crescimento da capacidadede atenção do SUS e a de outras políticassociais. Observa-se, hoje, em várias cidadesdo Brasil, a cena paradoxal de pessoas quesão pobres, mas que fizeram transplanterenal, ainda que continuem desempregadase vivendo em favelas. Por outro lado,observa-se que o SUS é ainda uma reformaincompleta. Não se implantou igualmenteem todo o país, havendo ainda importantedesigualdade regional. Faltam recursos parafinanciá-lo e faltam políticas de pessoal e deciência e tecnologia que lhe dêem viabilidade(GERSCHMAN; VIANA, 2005).

A importância da sociedadecivil na co-constituição do SUS: umarelação singular entre movimentosanitário e o Estado

Um dos elementos singulares sobrea criação e implantação do SUS e a conso-lidação de um novo pensamento sobresaúde, refere-se, exatamente, à grandeinfluência que um segmento específico dasociedade civil, no caso o movimentosanitário, teve sobre esse processo. Foramseus integrantes, intelectuais e entidades,que elaboraram, em traços gerais, apolítica, as diretrizes e, até mesmo, omodelo operacional do SUS.

Ressalta-se que a base material sobre aqual se apoiaram esses sujeitos foi a exis-tência de uma razoável rede de organi-zações públicas com existência prévia a doSUS. Refiro-me à Fundação OswaldoCruz, ao Instituto Butantã, à rede de labora-tórios estaduais, às Universidades Públicas– particularmente as escolas de SaúdePública e os departamentos de preventivaem medicina e enfermagem, de pediatriae de psicologia social – e ainda às redes deatenção básica em estados, como em São

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Gastão Wagner de Sousa Campos

Paulo, e no Ministério da Saúde (FundaçãoNacional de Saúde). Grande parte dosativistas desse movimento era de profis-sionais, pesquisadores, docentes ouestudantes de alguma dessas organizações.Ainda durante os anos 80 do século XX, oMovimento Sanitário aproximou-se dedeputados constituintes e de gestorespúblicos, influenciando-os quanto àlegislação e ao ordenamento legal dosistema. A viabilidade política dessainiciativa deveu-se ao Movimento Sanitáriobuscar o envolvimento de políticos,partidos e autoridades governamentaiscom o projeto de reforma sanitária.

Por que esse segmento da classe médiahaveria se metido com fazer política,atuando para além de suas obrigaçõesinstitucionais e dos seus interesses corpo-rativos? Esse Movimento foi construídoainda durante os anos 1970 e 1980, segun-do várias motivações e inúmeras vertentespolíticas e teóricas. Em grande medida, aluta pela saúde foi utilizada como táticapara enfrentamento contra a ditadura, deonde surgiu com força o lema que juntava“saúde e democracia”. Ativistas da entãoconsiderada Nova Esquerda, ecologistas,católicos de base, críticos do comunismotradicional, meteram-se, principalmente,com movimentos populares, educação emsaúde e medicina comunitária. Ocorreuuma ida à periferia, um deslocar-se deprofissionais em direção ao povo. Refor-çaram a rede básica e experimentarammodelos de gestão democrática e departicipação comunitária.

Com os anos, esse movimento “instru-mental” (um “meio” para se fazer política,junto ao povo e em instituições, sob o mantoprotetor da saúde) encontrou-se comagrupamentos da Universidade, técnicos deorganismos internacionais e de instituiçõespúblicas. Essa fusão deu nova orientação às

finalidades do Movimento Sanitário; isto é,conseguiu elaborar sofisticado projeto demudanças para as políticas públicas de saúde.A VIII Conferência Nacional de Saúde, em1986, e a Constituinte, em 1987/88, podemser considerados o cadinho que unificoutodas essas tendências.

A partir dos anos 1990, tratar-se-ia dedar realidade ao projeto então transfor-mado em lei. Grande parte da culturaorganizacional e sanitária do SUS foiimportada de países socialistas ou daquelescom políticas sociais de bem-estar, entreeles os Sistemas Nacionais de Saúde deCuba, Inglaterra, Canadá, Itália, Espanha,Portugal, todos influenciaram a construçãodo SUS. Exigiu-se, então, uma posturaprática, pragmática e que implicava aproxi-mação do Movimento Sanitário comgestores do futuro Sistema. Durante os anos90, houve que se debruçar sobre a regula-mentação do novo Sistema.Imaginar umdesenho organizacional, em geral referidoà tradição dos sistemas públicos: rede deatenção preventiva e clínica, integral;responsabilidade sanitária e distribuição deunidades com base territorial; hierarqui-zação da oferta com ênfase na AtençãoBásica concomitante a uma redefinição dopapel dos hospitais. Outro desafio foiviabilizar e regularizar as fontes e linhas parafinanciamento do sistema.

Outra vertente do Movimento Sani-tário valorizou a crítica teórica, buscandonão somente extensão de coberturaassistencial, como também recompor osparadigmas tradicionais da medicina e dasaúde pública. Desse esforço surgiu a áreade Saúde Coletiva. Uma característicasingular de nosso sistema é a de haverdesenvolvido uma extensa crítica ao modotradicional de fazer-se gestão e atenção emsaúde. Dessa crítica surgiram propostasconcretas inovadoras, transformadas em

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política oficial. A idéia de uma novaprofissão, os Agentes Comunitários deSaúde, para ampliar as possibilidades derealizar prevenção e promoção à saúde enão somente atendimento aos doentes foifruto desse esforço. Esse pensamentodefende uma extensão “prudente” doacesso, já que reconhece e valoriza atendência contemporânea do acesso aoSistema redundar em consumismo emedicalização. Critica-se o papel central dohospital e dos especialistas. As instâncias decontrole social previstas no SUS têm amesma origem: gestão participativa,conselhos e conferências seriam umantídoto contra o patrimonialismo e acorrupção.

Observa-se, porém, um fenômenocurioso que tem assegurado longevidade aomovimento sanitário. Apesar do contextosocial desfavorável aos movimentos sociais,no caso da saúde brasileira, verificou-se queo próprio funcionamento do SUS, ao gerarempregos, salários e lugar institucional paraque milhares de profissionais construamsentido e significado para suas vidas, vempermitindo a importante contingente depessoas combinarem trabalho regular commilitância social. Alguns projetos eprogramas do SUS têm operado como sefossem imensas “ONGs sem fronteiras”,que atraem idealistas, e convertem desencan-tados, assegurando-lhes tanto a sobrevi-vência material quanto convivência social.Durante os anos 1990, os programas deDST/Aids e de Saúde Mental, os movi-mentos de Promoção e Humanização daSaúde, bom como os setores de Saúde daFamília, Vigilância e Saúde Ambiental (aindaque em menor grau) transformaram-se emespaço de ativismo social, tanto para setoresda sociedade civil, quanto para profissionais.Essa combinação tem, inclusive, atenuado,em alguma medida e em algumas ocasiões,

o corporativismo estreito tão típico aosindicalismo brasileiro.

A quase ausência de política de pessoalpara o SUS – estima-se que 50% dostrabalhadores do SUS trabalham emsituação precária ou ilegal – atua comofator instabilizador dessa aliança usuário-profissionais, em parte por produzirressentimento aberto contra o Sistema epor diminuir o vínculo dos profissionaiscom o SUS e com os problemas de saúde.

Paradoxos da descentralização

A reforma sanitária brasileira pode serconsiderada tardia, por comparação coma maioria dos países que optaram por criarsistemas públicos de saúde. Nos anos 1980,já havia evidência sobre as vantagens e osimpasses daquelas experiências. Um dosproblemas identificados era a burocrati-zação, o emperramento e a uniformidadeexcessiva de procedimentos tendo em vistaa heterogeneidade dos problemas erecursos locais. O antídoto contra essatendência seria inventar-se um sistemadescentralizado, acreditava-se. E o SUS foiordenado como uma rede descentralizadade serviços sobre gestão direta dos muni-cípios. Todavia subestimaram-se os efeitosparadoxais que seriam produzidos porduas diretrizes, forças, que empurraram arealidade em sentido contrário: autonomialocal e integração em rede. Funcionamentosistêmico depende de coordenação e deforte interligação entre os pontos da rede.No caso, integração entre os vários sistemasmunicipais de saúde, legalmente constituídoscom importante grau de autonomia. Istosem contar a tradição brasileira, típica dospaíses em que a atenção à saúde é reguladapelo mercado, de funcionamento isoladoentre os milhares de serviços e equipesde saúde. O papel de coordenação e de

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unificação desse mosaico caberia aoMinistério da Saúde e às Secretarias de Saúde.

Essa doutrina, na prática, vem produ-zindo efeitos paradoxais. Por um lado, coma municipalização permitiu-se avançar naimplantação do sistema naquelas cidades queacumularam condições propícias. Essasexperiências ousadas demonstraram apotência da proposta reformista, tornandoevidente que parte das diretrizes, conside-radas utópicas ou improváveis de acontecer

no Brasil, eram factíveis. Além disso, o SUS,para responder ao desafio de integrar entesfederados autônomos – União, estados ecidades – em um sistema único, viu-seobrigado a criar arranjos organizacionaisinovadores para a secular tradição dosserviços públicos brasileiros. Ressalta-se ainvenção de novo mecanismo de co-gestãoentre esses entes federados: a gestãocolegiada, que deu origem a Comissão

Tripartite de âmbito nacional, as ComissõesBipartites com governabilidade sobreprojetos em cada estado e, mais recente-mente, as Comissões Regionais de Saúde,que reúnem todos os dirigentes municipaisde uma macro-região com delegados dogoverno estadual. Apesar da criação dessesespaços de deliberação participativa,observou-se uma tendência do Ministérioda Saúde e Secretarias de estado em utilizarmecanismos de repasse financeiro para

induzir a adesão dos municípios a deter-minados programas e prioridades. É aindamuito recente a tentativa de introduzir-sea metodologia dos contratos ou de pactosde gestão entre os entes federados. Apesardestes esforços, contudo, a integraçãosistêmica ainda é baixa no Brasil.

Por outro lado, em decorrência dessasdificuldades, houve três efeitos colateraisnegativos para o bom desempenho do

“Um dos elementossingulares sobre acriação e implantaçãodo SUS e aconsolidação de umnovo pensamentosobre saúde refere-se,exatamente, à grandeinfluência que (...) oMovimento Sanitárioteve sobre esseprocesso”.

Os eventos internacionais da ENAP ampliam a visão eo debate sobre temas atuais e comuns entre os paísesparceiros, fomentando a produção de artigos para RSP.

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Reflexões sobre o Sistema Único de Saúde: inovações e limites

sistema. Com o grau amplo de autonomiados municípios, cada gestor pôde optar pelaconveniência de implantar-se ou não o SUS.Acredito que esse recurso vem se transfor-mando na principal forma de resistênciaconservadora ao prescrito na lei orgânicada saúde. Cada município, os estadosfederados ou a União podem eleger comliberdade que aspectos do SUS irãotrabalhar, e que faceta do direito à saúde iráou não ser contemplada. Assim, algunsmunicípios resolveram, até o limite, nãoaderir ao SUS, como foi o caso exemplarde São Paulo. A maioria dos estados emunicípios, contudo, tem optado porvincular-se parcialmente ao Sistema: elegemos serviços de urgência, outros escolhem avigilância, ou a atenção básica, algum serviçohospitalar. Com isso, retarda-se a implan-tação da política de saúde, além deacentuarem-se diferenças de acesso regional.

Outro efeito negativo, ligado aoanterior, é a imprecisão na definição daresponsabilidade sanitária de cada entefederado. A lei orgânica é bastantegenérica ao atribuir encargos aos entesfederados. Pela teoria, a descentralizaçãode responsabilidades e do financiamentopara garanti-las seria concomitante eproporcional. Essa lisura não se verificouna prática. Houve amplo processo demunicipalização, desigual no país, em quese delegaram às cidades serviços do antigoInamps, do Ministério da Saúde e dos esta-dos. Além disso, passou a caber aos muni-cípios a criação de novos serviços e pro-gramas, bem como a contratação de pessoalpara exercer essas atividades. Por outro lado,o Ministério e as Secretarias dos estados têmexecutado com dificuldades e falhas seupapel de coordenação, apoio e mesmo deexecução de ações a eles atribuídas, como aformação de pessoal, políticas de ciência etecnologia, investimentos, etc. As Secretarias

de estados reduziram seu pessoal duranteestes anos de implantação do SUS. Noinício dos anos 1990, gastavam 2,3% doPIB estadual com o sistema de saúde; aolongo dos 15 anos seguintes, praticamentenão houve alteração desse patamar degastos. O governo federal, em 1995,utilizava 5,2% de suas despesas totais emsaúde. Em 2005, essa porcentagem haviacaído para 3,7%. Ainda assim, houveincremento absoluto do gasto em saúde,isso pelo crescimento econômico e pelamaior carga dirigida aos municípios.

O terceiro efeito negativo refere-se àdificuldade de organizar-se a regionalizaçãodo SUS. O modelo adotado estimula acomposição de sistemas municipaisautárquicos, ainda que haja dependência decidades pequenas e médias àquelas conside-radas pólo, onde há concentração deserviços de alta complexidade. Pode-seconsiderar que os hospitais do SUS aindafuncionam isolados, com regulação indiretae muito precária. O direito à saúde dosbrasileiros varia, portanto, conforme seulocal de residência.

Tensão entre o contexto liberal eo SUS: uma política fora do tempo?

Há um paradoxo curioso entre odiscurso dominante no Brasil e a consti-tuição do SUS. Falar em socialização,ampliação da ação estatal, direitos auto-máticos somente pelo fato de alguém serhumano, tudo isso passou a ser consi-derado coisa do passado, de mau gosto.O SUS remou contra a maré e conseguiuefetivar-se.

No Brasil, imaginou-se realizar adescentralização não articulada à diretriz daprivatização; isto é, serviços públicos federaise estaduais ao se descentralizarem muda-riam de gestor, mas não, necessariamente

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de regime jurídico. Nesse sentido, a relaçãoentre o público e o privado na área de saúdepode também ser considerada singular. Aocontrário de Portugal ou da Grã-Bretanhaquando da implantação do sistema, aqui seoptou por não se nacionalizar a rede privadae filantrópica de hospitais. Criou-se a moda-lidade de convênios e de contratos, quejamais evoluiu para contratos de gestão,dificultando a integração desses serviços aoSUS. Mas, por outro lado, essa possibili-dade atenuou em muito a oposição demédicos e empresários da saúde ao SUS.

O movimento sanitário imaginou quea descentralização, regras de repassefinanceiro automático aos Fundos dosestados, municípios e prestadores, somadosao controle social da sociedade sobre o SUSseriam suficientes para afastar a tendênciahistórica do estado brasileiro de impedir oclientelismo, o favoritismo, a impunidade,as negociatas políticas e empresariais. Essecontexto desfavorável tem dificultado oaprofundamento do debate sobre a“reforma da reforma”; ou seja, sobre aurgência de inventar-se um novo modelo

organizacional e de gestão para o Sistemaque supere os problemas identificados aolongo do século XX. Os liberais têm algumarazão no diagnóstico sobre o mau funcio-namento dos sistemas públicos. Erram,porém, sobretudo, quando esgrimam afavor da privatização como panacéia uni-versal para a recomposição da viabilidadede prestação de serviços públicos. Osfavoráveis a políticas públicas têm defen-dido o status quo sem admitir o esgotamentoem vários aspectos da tradição das políticasde bem-estar. Nesse embate, alcançar umsistema público solidário, eficaz e eficientetorna-se crônico.

Concluindo: o SUS tem empuxoe potência para prosseguir aperfeiçoando-se, ainda que seus dois principais adver-sários – o ideário neoliberal e a questio-nável tradição de gestão pública dominanteno Brasil – pareçam cada dia mais fortes,quer se olhe à esquerda, ou à direita; querse mire para os de baixo ou para os decima. Enfim... Resta-nos pelejar sem dei-xar de aproveitar a vida, esta sim, única esistêmica.

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Reflexões sobre o Sistema Único de Saúde: inovações e limites

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Gastão Wagner de Sousa Campos.

É doutor em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente é professor-adjunto daUniversidade de Campinas. Contato: <[email protected]>.

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Alketa Pecie e Bianor Scelza Cavalcanti

Administração pública e seuensino: um campo em busca

de legitimação

Alketa Peci e Bianor Scelza Cavalcanti

O principal objetivo deste trabalho é apresentar uma reflexão acerca da

trajetória do campo da administração pública e o seu ensino, a partir de uma

perspectiva comparativa e histórica. Busca-se, dessa forma, identificar os prin-

cipais movimentos e orientações desse campo, assim como suas modificações

ao longo do último século.

A primeira parte do ensaio argumenta que, na sua estruturação enquanto

um campo distinto de conhecimento, a administração pública e o seu ensino no

contexto brasileiro encontram sua principal fonte de inspiração em uma síntese

peculiar de duas correntes aparentemente contraditórias: a norte-americana e a

européia. A comparação com o momento do surgimento da administração pública

nesses dois contextos, dos EUA e da Europa continental, serve para apontar

não apenas as diferenças substanciais entre as abordagens dominantes da admi-

nistração pública, mas também a relativa unidade do seu objeto inicial de estudo

e prática: o processo de modernização estatal, materializado no conceito da

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Administração pública e seu ensino: um campo em busca de legitimação

burocracia e pautado pelos princípiosracionais de eficiência e legalidade. De fato,com as devidas diferenças, a administra-ção pública surge do imperativo demodernização administrativa e profissio-nalização, ao mesmo tempo em queencontra sua base disciplinar nos princípiosda Escola Clássica de Administração.

O ensaio destaca a contribuição daadministração pública para o desenvolvi-mento, um movimento intelectual originalque surge no contexto brasileiro e trazconseqüências práticas muito importantespara o campo. Além das principais contri-buições intelectuais, é analisado o tecidoinstitucional composto pelas escolas degoverno e a academia brasileira de adminis-tração pública, em um determinadocontexto caracterizado pelo papel doEstado desenvolvimentista.

A segunda parte do trabalho descreveo processo de fragmentação do campoda administração pública e o seu ensino,encontrando sua fonte no pluralismoteórico e ideológico que o caracteriza apóso questionamento dos princípios da EscolaClássica de Administração, assim como nacrescente complexidade das funçõesestatais, decorrentes do processo de inter-venção do Estado na vida econômica esocial. Simultaneamente, destaca algumascontribuições intelectuais de acadêmicosbrasileiros e atualiza a análise do tecidoinstitucional da administração pública e oseu ensino.

No entanto, o trabalho também argu-menta que a crise do Estado dos anos 1970traz para a agenda atual da administraçãopública problemáticas e preocupaçõespráticas de natureza universal e global, queco-existem com o pluralismo ideológico econceitual presente no campo. O impera-tivo de globalização da administraçãopública e o seu ensino é analisado na última

parte do trabalho, a partir de duas perspec-tivas: questões de caráter universal e global,que fazem parte da agenda intelectual docampo, e a presença de análises relativas àgovernança global nos cur ricula dosprogramas voltados para o ensino de admi-nistração pública. O ensaio argumenta queembora seja possível perceber certaconvergência da agenda de ensino epesquisa em torno de algumas questões deinteresse universal, os programas de ensinoem administração pública pouco abordamas relações de interdependência determi-nadas pelo sistema de governança global,que impõem crescentes restrições elimitações aos sistemas governamentaisnacionais.

A origem da administraçãopública: coesão e unidade docampo

A origem da administração pública naEuropa continental geralmente se associa coma consolidação do processo de construçãodos Estados-nações, a necessidade de lega-lizar e constitucionalizar esses novos aparelhospolítico-administrativos e o surgimento daburocracia como manifestação da autoridaderacional-legal, no contexto da RevoluçãoIndustrial e da proliferação das idéiasiluministas. Para alguns autores, o movimentocameralista – influente nos estadosgermânicos, no decorrer do século XVI –foi o responsável pela implementação dealgumas reformas, como a entrada de servi-dores competentes e treinados para servirao interesse público em detrimento do usopatrimonialista dos cargos públicos e aorientação pelos princípios gerais de admi-nistração e profissionalismo (HOOD, 2005;LYNN, 2005).

A burocracia e suas característicaspautaram o conteúdo da administração

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Alketa Pecie e Bianor Scelza Cavalcanti

pública no contexto europeu. As principaiscontribuições européias de administraçãocaracterizaram-se pela orientação genera-lista, em busca dos princípios gerais deadministração que caracterizavam a buro-cracia (FAYOL, 1965). No entanto, a ênfasecolocada no domínio da lei no contextoeuropeu, fez com que o treinamento dosservidores públicos em serviço à buro-cracia se orientasse pelo Direito e não pelasciências administrativas. O Direito e as

ciências econômicas, acompanhando ainfluência crescente do trabalho de AdamSmith, eclipsaram o peso das ciênciasadministrativas no discurso intelectualeuropeu (LYNN, 2005).

O contexto norte-americano daadministração pública apresenta algumasimportantes diferenças quandocomparado ao europeu. Para algunsautores, a administração pública é um

empreendimento essencialmente norte-americano (MOSHER, 1975; WALDO, 1975).Desenvolvida a partir da preocupaçãocom a corrupção e escândalos no setorpúblico, a administração pública norte-americana originou-se nos problemasadministrativos das cidades (e não, nasteorias européias de soberania, nação-estado ou separação dos poderes); eravoltada para a reforma e refletia o etosda era progressista: “um otimismo

fundamental no sentido de que a huma-nidade podia dirigir e controlar seuambiente e destino, melhorando-os”(MOSHER, 1975, p. 4). As característicaspeculiares do ambiente político e institu-cional norte-americano criaram as con-dições para a consolidação das ciênciasadministrativas, um campo de conheci-mento próprio e distinto do Direito e daEconomia.

“A ênfase colocadano domínio da leino contexto europeu,fez com que otreinamento dosservidores públicosem serviço àburocracia seorientasse peloDireito e nãopelas ciênciasadministrativas”.

Desde a turma de 1938, quefoi à American Universityespecializar-se emadministração pública, até oseventos de hoje, na ENAP, aRSP sempre esteve presentena disseminação dos temasmais relevantes.

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Administração pública e seu ensino: um campo em busca de legitimação

Os founding fathers da administraçãopública norte-americana foram influen-ciados pelas idéias européias (WILSON,2004), mas tentaram adaptá-las às caracte-rísticas peculiares do seu contexto (LYNN,2005). A autoridade atribuída à Consti-tuição, a concepção federalista maisdescentralizada do governo, o pesoatribuído à democracia e à separação defato dos poderes incentivaram umaconcepção baseada na separação entrepolítica e administração.

Para se adaptar às peculiaridadescontextuais, com sua reverência ao indi-vidualismo e ao mercado, a administraçãopública norte-americana deveria aparecerneutra, científica, universal, eficiente evoltada para resultados. Assim, os teóricosnorte-americanos analisaram a experiênciaeuropéia buscando selecionar as práticasque poderiam ser adequadas ao seucontexto. O resultado foi a criação de umateoria que conceitua a administraçãopública como o governo em ação esugere sua separação do campo da polí-tica, como a melhor forma de evitarinterferências e alcançar a eficiência, viaaplicação de instrumentos administrativoscientíficos. Assim, a administração públicaganhou legitimidade e se distanciou dopoder burocrático associado ao contextoeuropeu, ao reinterpretar Weber, redu-zindo sua noção mais ampla de racio-nalidade à de eficiência (GAYDUSCHECK,2003).

No Brasil anterior à era Vargas, a orien-tação européia tinha influenciado umaabordagem legal da administração pública,mais centrada nos aspectos formais. Ajustaposição da administração pública e doDireito não se fez presente apenas nopensamento, mas também no ensino daadministração pública naquele período(MEZZOMO, 1994).

A construção da administração públicacomo um campo distinto de conhecimentoe prática coincide com os esforços deestruturação, racionalização e profis-sionalização da burocracia necessária a umradicalmente novo projeto de Estado, naera Vargas. Como em outros países, aindustrialização e a urbanização do Brasilforam acompanhadas por um processo dacriação e consolidação de ministérios,autarquias e outras organizações públicas,tornando mais imperiosa a necessidade deprofissionalização dos quadros pertencentesa esses novos órgãos. Dessa forma, surgeno País a preocupação com a reformaadministrativa e com o funcionalismopúblico, materializada na plataforma polí-tica de Getulio Vargas. A busca pelaeficiência e economia no serviço público,através da profissionalização e dignificaçãoda função pública, torna-se a razão deexistência do novo campo (WAHRLISCH,1983).

O Estado-novo reinstitucionaliza nãoapenas o campo da administração pública,mas também lança as sementes das insti-tuições voltadas ao seu ensino. Por váriosanos, o Departamento Administrativo doServiço Público (DASP), criado em 1938com o objetivo de ser o “braço adminis-trativo” do Estado-novo, foi o lócusprincipal dos esforços de consolidação daadministração pública, do seu ensino e trei-namento. Explorando uma síntese dasteorias de administração científica de Taylore da gestão administrativa de Fayol, assimcomo dos teóricos de administração públicaamericanos, como Gulick e Willoughby, oDASP foi o responsável pela criaçãopropriamente dita do campo da adminis-tração pública e o seu distanciamento doDireito. Essa visão foi propagada pela Revistado Serviço Público, cujo aniversário de 70anos é lembrado neste momento.

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Alketa Pecie e Bianor Scelza Cavalcanti

No entanto, os primeiros anos deadministração pública no Brasil são carac-terizados por uma “resistência” àinstitucionalização do ensino acadêmicoem administração. Prevalecia uma visãotécnica do campo, sustentada em cursostécnicos e profissionais oferecidos peloDASP, em detrimento de uma formaçãoacadêmica. Como se verá adiante, apenasno período de 1944 a 1952 a formaçãoacadêmica da administração pública seconsolida com a contribuição da FundaçãoGetúlio Vargas, num contexto de desvin-culação das referência européias para umatendência norte-americana (COELHO, 2006).

Dessa forma, o País constrói suaagenda de administração pública baseadoem uma síntese peculiar, e um tanto“esquizofrênica”, da herança institucionaleuropéia com a orientação intelectualnorte-americana.

A consolidação do ensino emadministração pública

Com as respectivas diferenças, a admi-nistração pública nos três contextos anali-sados surge do imperativo de moderni-zação de uma máquina estatal em francaexpansão. Do mesmo modo, a estru-turação do ensino da administraçãopública também se manifestou de formadiferenciada nos três contextos analisados.

Como já foi destacado, os EUAforam os responsáveis pela concepção deum campo prático e profissional distintode administração pública, com caracterís-ticas próprias que a distinguiram do Direitoou da Economia. Essa distinção foitambém incorporada pelo campo doensino em administração pública.

A evolução desse campo nos EUAcomo sendo auto-consciente foi intima-mente relacionada com a trajetória histórica

da administração pública e da educaçãode nível superior, fazendo parte de ummovimento de maior amplitude voltadopara a profissionalização. De fato, a eraprogressista também influenciou o estabe-lecimento do sistema educacional e osurgimento de profissões nos EstadosUnidos, baseadas na mesma retórica sobrea superioridade científica. Foi o períodoem que muitas das ocupações, atualmentereconhecidas como profissões, se estabe-leceram: contabilidade, administração deempresas, planejamento de grandescidades, silvicultura, engenharia, diplomacia,jornalismo, enfermagem, saúde pública,serviço social, engenharia e muitas outras(MCSWITE, 1997; MOCHER, 1975).

Não obstante a consolidação da admi-nistração pública (especialmente a muni-cipal) no início do século XX no contextonorte-americano, a resposta das univer-sidades às necessidades educacionais daadministração pública não foi imediata. Asprimeiras tímidas experiências iniciadas nonível municipal foram acompanhadas porum crescimento mais uniforme dosprogramas de ensino apenas no decorrerda década de 1920. A primeira verdadeira“escola” de administração pública foiconstituída com a transferência de grandeparte dos programas da Escola de Treina-mento para o Serviço Público para a oprograma de administração pública daUniversidade de Syracuse, em 1924. Desdeentão, o campo do ensino e treinamentoem administração pública passou a crescerde forma contínua. Nos anos 1990,virtualmente todas as escolas e depar-tamentos organizados individualmenteofereciam o grau de Mestrado emAdministração Pública (MAP) (MCSWITE

1997; STONE, STONE 1975; HENRY, 1995).Resumindo, a prática da administração

pública é o objeto do campo de ensino

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Administração pública e seu ensino: um campo em busca de legitimação

em administração pública e, em boamedida, serviu para legitimá-la, conformedemonstrado por McSwite (1997). Noentanto, essa associação entre os doiscampos não significa que administradorespúblicos tenham sido produto dosprogramas de administração pública. Em1975, apenas uma fração de 1% daspessoas que a cada ano começavam atrabalhar no serviço público vinha dosprogramas de administração pública, oude programas voltados para o setorpúblico ou ainda de programas dedenominação similar. Segundo Waldo(1975, p.198), jamais houve qualquerintenção de rotular todos os servidorespúblicos com a marca “administraçãopública”; houve apenas uma esperança depreparar um número suficiente de pessoascapazes a fazer uma diferença significativano componente “administrativo” doserviço público.

Diferentemente dos EUA, onde ocampo do ensino da administração públicaencontrava-se em fecunda proliferação, noBrasil e em vários países da Europa conti-nental o mesmo fenômeno não se verifi-cava. Na Europa, o ensino de administraçãoconcentrava-se em faculdades de economiaaplicada, na Alemanha; nas écoles decommerce, na França; e nos technicalcoolleges, na Inglaterra. A primeira expe-riência voltada para o ensino de adminis-tração pública localiza-se na França, coma fundação da École Nationale D’adminis-tration (ENA), voltada à capacitação daelite do serviço público no início das suascarreiras (COELHO, 2006).

Com o tempo, o modelo europeu deensino em administração pública opta,predominantemente, pelo modelo deescola de governo, em países como ReinoUnido (National School of Government),Paises Baixos (ROI) e recentemente em

países como Polônia (National School ofPublic Administration), criada em 1990. Asescolas de governo co-existem comprogramas universitários de administraçãopública e recentemente optam por criarprogramas em parceria com essas últimas(DUGGET, 2007).

Novamente, é importante lembrar queo campo da administração pública e o seuensino no contexto brasileiro se desenvolvecom base em uma síntese peculiar: por umlado, o País ganha uma herança institucionaleuropéia, caracterizada pelo legalismo e pelaorientação centralizadora; por outro lado, oensino da administração pública é fortementeinfluenciado pela vertente norte-americana,caracterizado pela orientação processualistae o foco na eficiência de gestão.

O alto teor reformista da era Vargastornou possível a independência da admi-nistração pública em relação ao direitoadministrativo e propagou o ideário dessecampo como ciência administrativa aplica-da às atividades-meio do governo, combase nas idéias da escola clássica de admi-nistração. Foram os técnicos do DASP, soba liderança de Luiz Simões Lopes, osresponsáveis pela criação da FundaçãoGetulio Vargas e, em 1952, da EscolaBrasileira de Administração Pública (EBAP),a primeira escola de administração não ape-nas no Brasil, mas em toda América Latina.A EBAP surge sob os auspícios das NaçõesUnidas e consolida seu corpo de profes-sores a partir de uma forte cooperação comas universidades americanas. Seu objetivo foia consolidação da tecnologia administrativavoltada à reforma e à modernização daorganização público-estatal (BOMENY,MOTTA, 2002; SILVA, 2006).

A assistência técnica norte-americana seestende a outras universidades brasileirascomo a UFBA, a UFRGS e a EAESP. Essaconsolidação do ensino da administração

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pública servia à necessidade de profissio-nalização e acompanhava a proliferação doserviço público no País, contribuindo parao futuro projeto de industrialização deJuscelino Kubitschek, assim comoplantando firmes raízes para os esforçosdesenvolvimentistas posteriores aos anos1960 e 1970.

Em termos de conteúdo intelectual, asprimeiras experiências acadêmicas optampor uma formação abrangente e global do

administrador público, com um enfoqueem ciências sociais, matemática, economiaou direito, nos primeiros anos deformação, e uma capacitação orientadapela Escola Clássica de Administração, nosúltimos anos da graduação. As primeirasinstituições acadêmicas, como a EBAPE,construíram seus curricula contando com acontribuição de professores e acadêmicosnorte-americanos, ao passo em que

investiam na contratação de jovenspesquisadores brasileiros recém formadosno exterior, que aliavam a vivência no setorpúblico com uma sólida formaçãoacadêmica (BOMENY; MOTTA, 2002;FISCHER, 1984).

Segundo Coelho (2006), o ensino emadministração pública no Brasil desseperíodo, impulsionado pela criação dacarreira de técnico de administração, peloDASP, e pelo curso de graduação em

Administração Pública, da EBAPE e deoutras instituições, traz como resultadoconcreto – após um atraso de mais de duasdécadas – a regulamentação da categoriaprofissional do administrador, em 1966. Ainstituição da nova categoria profissional e aoficialização da formação acadêmica podemser consideradas dois fortes indicadores dograu de maturação do campo da adminis-tração pública e do seu ensino no País.

“Desenvolvidaa partir dapreocupação coma corrupção eescândalos no setorpúblico, a adminis-tração pública norte-americana originou-senos problemasadministrativos dascidades (e não, nasteorias européiasde soberania, nação-estado ou separaçãodos poderes)”.

A publicação da RSP pela ENAP a tornou uma importanteferramenta de capacitação de servidores públicos por meioda disseminação do conhecimento.

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Administração pública e seu ensino: um campo em busca de legitimação

As experiências acima analisadasapontam que, na sua origem, o campo daadministração pública e o seu ensino écaracterizado por uma certa coesão emtorno de objetos e objetivos relativamenteclaros. As experiências apontam as diferen-ças no distanciamento existente entre aacademia e o setor público, nos diversoscontextos analisados. No entanto, é possívelperceber que o ensino da administraçãopública nos três contextos norteava-se pelalógica da modernização administrativa queemprestasse racionalidade ao desempenho

do Estado, quer no exercício de suas funçõesbásicas, quer no apoio ao desenvolvimentoe à profissionalização. Essa orientação foiresponsável pela relativa padronização dagrande parte dos programas de ensino e

treinamento, oferecidos seja pela academia,seja pelas escolas de governo, de acordo como modelo optado. Em termos de teoracadêmico, predominou a Escola Clássicade Administração. Resumindo, tratava-se deum campo relativamente coeso, com umescopo de estudo definido pela práticagovernamental e pelas teorias clássicas deadministração.

O quadro 1 resume a trajetória inicial daadministração pública e do seu ensino nostrês contextos analisados, buscando destacaras principais diferenças e semelhanças.

A administração pública para odesenvolvimento e seus dilemas

A administração pública para odesenvolvimento é a denominação mais

Quadro 1: O campo de administração pública e do seu ensino na sua origem

Surgimento do

campo

Fatores

Objeto de estudo

Base disciplinar

Orientação

Idéias dominantes

Resultados

Europa

Séc. XVIII e Séc. XIX

Construção de Esta-dos-nações;Iluminismo; indus-trialização; racionali-zação do Direito;

Burocracia

Direito e Economia

Topo-base

EUA

Final do séc. XIX

Industrialização;urbanização; pro-blemas de adminis-tração de cidades;era progressista;separação dos pode-res; peso atribuído àConstituição;

Processoadministrativo

Ciências adminis-trativas

Base-topo

Brasil

Início do séc. XX

Novo papel do Estado(desenvolvimentista);projeto de industria-lização e urbanizaçãodo País; construçãoda burocracia estatal

Síntese

Ciências administrativase Ciências sociais

Topo-base

Escola Clássica de Administração (Administração científica, Gestãoadministrativa, Teoria da burocracia)

Separação política-administração; administração da burocracia;profissionalização; aperfeiçoamento de técnicas de administração

Fonte: Elaboração própria

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adequada para se referir seja à contribuiçãointelectual, seja à dinâmica do campo daadministração pública no Brasil, a partir dosanos 1960. Trata-se de um movimento denatureza intelectual, com conseqüênciassignificativas na prática, que moldousubstancialmente a formação dos adminis-tradores públicos no Brasil.

Com base na análise acima apresen-tada, foi possível perceber que a relaçãoentre a administração pública e suacontrapartida acadêmica não foi imediatano contexto brasileiro. No entanto, aconsolidação e a aproximação dos doiscampos nos anos 1960 deu resultadosconcretos. A administração pública para odesenvolvimento (APD) consolida-secomo uma corrente intelectual importante,agregando a atenção dos estudiosos docampo nos requisitos administrativosnecessários ao alcance dos objetivos depolíticas públicas em contextos de paísesem desenvolvimento. Em termos intelec-tuais, é possível afirmar que a ADP foi umaconseqüência do movimento de adminis-tração pública comparada (APC) que aantecedeu, cujos representantes desenvol-veram uma série de estudos comparativosdos sistemas administrativos em várioscontextos nacionais, percebendo a neces-sidade de adequação das teorias adminis-trativas aos estágios de modernização nosquais os países se encontravam (Ver, porexemplo, RIGGS, 1968).

Como Paulo Motta (1972) argumenta,a ADP pode ser vista como o movimentode uma disciplina em busca de relevância.De fato, ADP busca compreender qualseria a contribuição da administraçãopública, suas técnicas e instrumentos, parao alcance das metas do desenvolvimentopolítico, econômico e social. Constituiu emum esforço de conceituação teórica, alme-jando integrar conhecimento de diversas

áreas das ciências sociais, para formar umcorpo doutrinário que facilitasse a expli-cação dos fenômenos administrativos dospaíses em desenvolvimento.

A ADP buscou fazer com que a admi-nistração pública servisse aos objetivosdesenvolvimentistas e defendeu reformasnecessárias ao sistema administrativo paratransformá-lo em instrumento de moder-nização da sociedade. Refletiu a preocupaçãoou a urgência da aplicação prática e partiupara a formulação de novas estratégias deação administrativa, mais apropriadas àscondições de desenvolvimento, encon-trando inspiração intelectual em autorescomo Guerreiro Ramos (1966).

Concretamente, a ADP encontrou suabase material de surgimento no contexto deconsolidação do Estado desenvolvimentistae serviu ao projeto nacionalista em francaexpansão no País desde o Governo Vargas.Apresentou-se como uma crítica “brasileira”à separação entre política e administração,originalmente defendida pelos fundadoresintelectuais do campo, defendendo a neces-sidade de alinhar a administração pública comos objetivos da política governamental eplanificação econômica.

Paradoxalmente, foi o modelo organi-zacional e institucional que o Estadodesenvolvimentista veio a assumir, após adécada de 1960, o responsável pelo enfra-quecimento das fronteiras do campo daadministração pública e sua aproximaçãomaior com a administração das empresas.De fato, a partir do Decreto-Lei 200, de1967, a máquina administrativa brasileiraexpande-se sob a forma de empresasestatais, autarquias e fundações típicas daadministração indireta. O papel do Estado-empresário, manifestado na agregação defunções políticas, administrativas e decontrole, diluiu as diferenças entre osadministradores públicos e privados. Na

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Administração pública e seu ensino: um campo em busca de legitimação

prática, os administradores tornaram-segerentes de empresas estatais, tecnocratascom conhecimentos em áreas comoeconomia ou engenharia, que ajudavam aconstruir capacidades analíticas úteis noprocesso de formulação de planoseconômicos e outras esferas de planeja-mento. Concretamente, a esfera de atuaçãoda administração pública perde suacentralidade e se aproxima de outras áreasde conhecimento.

Obviamente, essas modificações sefizeram presentes também nos debates daacademia acerca da necessidade de unir,em nível de graduação, a administraçãopública com a administração de empresas– um campo em franca expansão nocontexto do “milagre econômico”.Simultaneamente, o surgimento domodelo de escola de governo em váriosestados brasileiros, como São Paulo, Riode Janeiro, Rio Grande do Sul e outros,fez com que as necessidades mais ime-diatas de capacitação de gestores públicosfossem supridas pela ação das escolas.Mais focada nas necessidades gerenciais emais próximas às demandas do setorpúblico, o modelo das escolas de governocomeçou a proliferar, a partir de lógicasdiferenciadas, que privilegiam funções (porexemplo, a Escola de AdministraçãoFazendária) ou setores (por exemplo, aEscola Nacional de Saúde Pública, oInstituto Rio Branco, a Escola Superiorde Guerra) e se expandiram nos trêsníveis da União.

Na academia, o resultado maisconcreto desses movimentos foi o fortale-cimento dos programas de pós-graduaçãoem administração pública (ver exemplo doMestrado em Administração Pública daEBAPE, criado em 1967), em detrimentoda graduação. Enquanto algumas insti-tuições tradicionais, como a EBAPE,

terminaram o curso de graduação emadministração pública, outras fundiram-nocom a sua área empresarial (BOMENY,MOTTA, 2002; COELHO, 2006).

A fragmentação do campo daadministração pública e o do seuensino

A administração pública e o seu ensinosurgem e consolidam-se como conse-qüência do fortalecimento do Estado e danecessidade de profissionalizar o serviçopúblico e assumem configurações dife-rentes dependendo do contexto da análise.No entanto, é o mesmo processo decrescimento das funções estatais e aumentode instituições administrativas que tambéminfluenciam a subseqüente fragmentaçãodo campo.

Nos EUA, esse processo se faz presentecom a complexidade crescente da presençaestatal na vida econômica e social, decorrentedas reformas keynesianas, e reflete-se no teordos programas de ensino e treinamento daárea. De fato, ao lado dos cursos tradicionaisde administração pública, surgem outrosprogramas como planejamento urbano,estudos urbanos; planejamento e desenvol-vimento de comunidades rurais; relaçõesinternacionais; planejamento, controle ouestudos ambientais; justiça criminal, correçãoou administração judicial; administração deobras públicas; planejamento e administraçãoda saúde pública; ou desenvolvimentocomunitário (HENRY, 1995). De certa forma,o que começou a ser denominado de admi-nistração ou gestão pública (public

administration, public affairs ou ainda a vertentemais operacional de public management) estavaacompanhando a evolução das funçõesestatais na vida econômica e social. O queficou claro, no entanto, é que o escopo docampo transcendia os princípios da escola

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clássica de administração, abrangendofunções, diretrizes e políticas públicas(COELHO, 2006).

A fragmentação da administraçãopública também foi acompanhada poruma fragmentação das correntes teóricasque serviram de sustentação ao campo. Dadivisão entre política e administração e aconseqüente “roupagem” técnica dada aesta última pela Escola Clássica deAdministração – orientações originais de

administração pública defendidas porGoodnow (2004), Wilson (2004) eWilloughby (1927), os debates da área seconcentram inicialmente na crítica à divisão(WALDO, 1948), na crítica aos princípiosgerais de administração (DAHL, 1947;SIMON, 1950), no peso da teoria institucionale sua influência no desenho e ação dasorganizações governamentais (MARCH;OLSEN, 1989); no normativismo manifes-

tado nas conferências de Minnowbrook eBlacksburg (FREDERICSON, 2004; WAMSLEY

et al, 1990); no peso da escola public choice,

também com origem em Blacksburg, naVirginia Tech; na crítica ao funcionalismoa partir de abordagens mais interpre-tativistas (WEICK, 1979) e no reencontro daadministração pública com o campo daeconomia, ciências políticas e sociologia,demonstrando as perplexidades intelectuaise práticas do campo (LYNN, 2005).

Essa fragmentação teórica também sefaz presente no contexto brasileiro,especialmente após o enfraquecimento dodomínio intelectual da administraçãopública comparada. No entanto, paravários expoentes da academia brasileira deadministração pública, os desafios intelec-tuais impostos pela APD, especificamentecom relação à necessidade de adequar asteorias administrativas à realidade brasileira,

“(...) A relaçãoentre a administraçãopública e sua contra-partida acadêmicanão foi imediata nocontexto brasileiro.No entanto, a conso-lidação e a aproxi-mação dos doiscampos nos anos1960 deu resultadosconcretos”.

A Revista do Serviço Público de 1937 aos dias atuais.

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Administração pública e seu ensino: um campo em busca de legitimação

ainda mereciam investigação e reflexão.Construindo seu marco teórico na críticaao funcionalismo dominante na área apartir das abordagens interpretativistas,Cavalcanti (2005) propõe a metáfora dogerente equalizador para compreender aação do administrador público bem-sucedido, capaz de ultrapassar as restriçõese patologias sistêmicas do contexto brasi-leiro como patrimonialismo, corpora-tivismo, gerencialismo ou nepotismo, assimcomo aquelas referentes às estruturasadministrativas. Bresser Pereira (2001)promove uma reflexão acerca do papeldo Estado brasileiro e a forma de exerceresse papel nos anos 1990, sistematizada naproposta de Plano Diretor da Reformado Aparelho do Estado. Junquilho (2002)expressa elementos dessas duas pers-pectivas na sua metáfora de “gerentecaboclo”, quando analisa a cultura nacionale a ação do administrador público brasi-leiro frente os desafios da reforma doEstado no Brasil.

Em termos de tecido institucional, omodelo brasileiro atual também dá algunssinais fragmentados. Por um lado, a opçãopelo modelo de escolas de governo parececada vez mais consolidada. A criação daENAP Escola Nacional de AdministraçãoPública, em 1986, consolidou o papel doGoverno Federal na profissionalizaçãodos seus servidores públicos. A ENAPconcentrou também uma importante novacarreira, a de Especialista em Políticas Públicase Gestão Governamental, e influenciousubstancialmente a retomada do discursoacerca da importância de profissionalizaçãono setor publico. Logo, o movimento acom-panhou-se pela proliferação de escolas degoverno em vários estados e municípios daUnião, assim como pela instituição da carrei-ra de gestor em alguns estados, como Bahia,Sergipe ou Goiás.

Outro movimento interessante podeser percebido recentemente na criação eno fortalecimento de escolas de governonas instituições representativas de outrospoderes, como os Tribunais de Contas (verexemplo do Instituto Serzedello Corrêa doTCU e das escolas de contas do Estadode Pernambuco ou do município deRio de Janeiro) e o poder judiciário (verexemplo da Escola Judicial do TribunalRegional do Trabalho da 3ª Região). A redede escolas de governo reúne, atualmente,dezenas de instituições presentes no País.Assim, é possível afirmar que existe uminteresse crescente do Estado brasileiro eminvestir diretamente na profissionalizaçãodos seus quadros, como uma forma delegitimação perante a sociedade brasileira.

Por outro lado, o declínio da graduaçãoem administração pública nos anos 1970 foicompensado pelo aumento dos cursos degraduação em administração pública a partirdos anos 1990, chegando a totalizar 78 cursosem 2006. Para autores como Coelho (2006),trata-se de uma resposta aos desafiosimpostos pela reforma do Estado, que abreum novo ciclo pró-público, embora nãoexclusivamente estatal.

Nesse modelo misto institucional, ospapéis e as funções, seja da academia, sejadas escolas do governo, ainda são confusos.Existem instituições, como a FundaçãoJoão Pinheiro (MG) que optaram para iralém de uma escola voltada para capaci-tação dos servidores públicos, abrindocursos de graduação e pós-graduaçãostricto-sensu em administração pública,enquanto outras escolas de governo nãoentram em atividades acadêmicas, ou aspromovem em parceria com instituiçõesindependentes de ensino e pesquisa. Trata-se de importantes questões ainda nãoprofundamente debatidas pelo campo daadministração pública e do seu ensino.

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A crise do Estado e a globali-zação da administração pública

Outro fator que influenciou o campoda administração pública e o do seu ensinofoi a mudança substancial nas contex-tualizações em níveis mundial, continental eregional do Estado, com implicações parao seu papel e funções vivenciados, moni-torados e, em importantes dimensões,apoiados desmotivados ou mesmosatanizados internacionalmente, a partirda década de 1970. A crise fiscal e econô-mica, o questionamento do Estado debem-estar social, os processos de retraçãodo Estado na vida econômica e socialcriaram espaço para o questionamentoda administração pública e implementaramuma agenda mais conservadora doseu papel.

De acordo com Hood (1995), osembates ideológicos do campo da admi-nistração pública se fazem presente nadiferença terminológica entre public

administration e management e se manifestamnos diferentes movimentos políticos eideológicos do campo ao longo das últimasdécadas. Entre esses movimentos, o maisinfluente foi abrigado sob o guarda-chuvada New Public Management (NPM), espe-cialmente nos países anglo-saxões. O NPM,de cunho pragmático, propunha soluçõespara a administração pública. Pontoscentrais eram a adaptação e a transferênciados conhecimentos gerenciais desenvol-vidos no setor privado para o público,pressupondo a redução do tamanho damáquina administrativa, uma ênfase cres-cente na competição, incentivo ao empreen-dedorismo e ao aumento da eficiência.Para alguns autores, o NPM é um movi-mento que materializa os interesses e asidéias de uma nova classe, os adminis-tradores – a nova elite do capitalismo.

Paralelamente, o movimento se propagouem vários contextos como resultado dainfluência de organismos internacionaiscomo Banco Mundial, OCDE, PNUD eoutros. É interessante perceber nessemovimento o deslocamento do estudoacadêmico da NPM para departamentosde administração privada, contrariamenteà manutenção do peso deste tipo de estudonas escolas de administração pública ouciências políticas.

O resultado das reformas de inspiraçãoneoliberal nos quais vários países do mundoforam envolvidos, em maior ou menorgrau, foi uma convergência das proble-máticas e questões de interesse para o campoda administração pública, contribuindo paraa consolidação de uma agenda intelectualmais global. Embora ainda exista umapulverização teórica e ideológica do campo,algumas questões globais tendem aconvergir como resultado das preocupaçõescomuns impostas pelas reformas, seja nosEUA, na Europa ou no Brasil. A própriapropagação teórica, metodológica e práticado New Public Management em várioscontextos nacionais, independentemente dassuas características, demonstra essa tendênciaà globalização do campo.

A dimensão global do ensino deadministração pública

A dimensão global da administraçãopública pode ser analisada sob diferentesperspectivas. Para alguns autores, trata-sede reconhecer os temas de interesseuniversal que atualmente são abordados nosdiversos curricula dos programas de ensinoda área, independentemente dos contextosnacionais (LYNN, 2005), enquanto paraoutros trata-se da necessidade de adaptaros curricula dos programas de adminis-tração pública, construídos sob o prisma

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das estruturas governamentais nacionais,aos imperativos impostos pela realidadeda governança global (DUGGET, 2007).

Lynn (2005) defende que é possívelperceber a existência de uma agenda inte-lectual comum ao campo da administraçãopública, independentemente das diferençasque naturalmente vão existir na suaperspectiva de análise. Os problemas delegalidade, legitimidade, eficiência e eficáciavão estar sempre presentes nas agendas dasreformas administrativas; o estudo dasdicotomias público-privado, política-administração, Estado-sociedade; a neces-sidade de mais responsabilização acercados resultados da administração pública; arelação com uma opinião pública maisparticipante e uma mídia mais intrusiva; arelação da burocracia com a democracia,entre os administradores e os cidadãos,entre a responsabilidade gerencial e a sobe-rania popular e outras questões se apre-sentam como universais no debate atualde administração pública e serão indispen-sáveis para a compreensão da sua dinâmica.

Por outro lado, Dugget (2007) baseia-se no reconhecimento da governançaglobal, argumentando que os Estadosestão inseridos em uma rede de relaçõesglobais e dependem da inserção em umarede composta de diversas instituiçõesinternacionais, as quais, em maior ou menorgrau de poder e autoridade, influenciam,de fato, as dinâmicas nacionais. A gover-nança global se manifesta em diversosníveis que variam desde o reconhecimentodo peso e papel de organismos interna-cionais como o Banco Mundial, a Organi-zação Mundial do Comércio, as NaçõesUnidas, passando pelo reconhecimento dopeso de entidades de natureza consultivacomo a Organização para Cooperação eDesenvolvimento Econômico (OCED)ou G8, de instituições globais da sociedade

civil (como a Cruz Vermelha, a IgrejaCatólica, o Green Peace), tratados regionais(como a União Européia, o NAFTA, oMercosul), dos estados pós-modernoscom limites impostos pelas estruturasmultilaterais (estados que compõem aUnião Européia) e das relações dosestados, assim como as diversas entidadesregionais, com organismos multilaterais.

O ponto que se coloca para reflexãoé: em que medida o ensino da adminis-tração pública leva em consideração essadimensão global do seu campo de estudo:a administração pública?

Sobre a segunda perspectiva, o próprioDugget (2007) apresenta uma pesquisa dasescolas de governo, principalmenteestabelecidas em países da União Européia,para concluir que existem ainda poucosprogramas que abordam de forma abran-gente as questões impostas pela governançaglobal; quando essa abordagem existe, elaé voltada apenas para treinar uma elite dofuncionalismo público. Com relação aoBrasil, a mesma conclusão parece valer,uma vez que é corroborada por nossasdificuldades em implementar tratadosregionais e avançar interesses nacionais facea comunidade mundial, a despeito dascompetências, historicamente compro-vadas, de nossa diplomacia profissio-nalizada. Hoje, todos os setores de políticaspúblicas relevantes estão sujeitos aparâmetros internacionais, quando se desejainteragir, influir e comerciar globalmente.Nesse contexto, faz-se imprescindívelprofissionalizar administradores públicos,em todos os setores, capazes de defendere avançar os interesses e o poder nacionalconstrutivamente, com o apoio da diplo-macia, em um mundo cada vez maisinterdependente, quer seja para produzir,comerciar ou sustentar complexosmosaicos políticos, sociais e ambientais.

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Alketa Pecie e Bianor Scelza Cavalcanti

Com relação à orientação atualizada daagenda intelectual da administração pública,o mínimo que se pode afirmar é a relevânciadas questões de natureza global identificadaspor Lynn (2005) e aqui citadas anterior-mente. Indo mais longe, acreditamos queinstituições de ensino do País estão (ou têmcondições de vir a estar) inseridas nosdebates globais. Algumas melhorias educa-cionais nos processos de formação eprofissionalização podem contribuir paraessa inserção, tais como: o aumento e aconsolidação dos programas de doutorado,mestrado e mesmo de especialização, inter-câmbio contínuo entre as universidades,centros de pesquisa e escolas de governonacionais e internacionais, tais como aEBAPE e suas congêneres universitárias,com escolas de governo, tais como a ENAPe suas congêneres estaduais, realização depesquisas conjuntas, participação emencontros internacionais da área (CLAD –

Centro Latinoamericano de Administracion para

el Desarrolo, IASIA - International Association

of Schools and Institutes of Administration,

INPAE – Interamerican Network for Public

Administration Education, NASPAA –

National Association of Schools of Public

Administration and Affairs e similares), publi-cação em revistas internacionais e, sobre-tudo, o recrutamento, seleção, profissio-nalização educacional atualizada, inicial econtinuada nos termos aqui propostos,de verdadeiros talentos, no sentido demotivá-los a mantê-los e desenvolvê-lospara a administração pública do século XXI.

Conclusões

Este trabalho apresentou uma reflexãoacerca da trajetória do campo de adminis-tração pública e do seu ensino, a partirde uma perspectiva comparativa e histó-rica, buscando identificar movimentos e

orientações do campo ao longo do últimoséculo.

A análise comparativa da experiênciabrasileira com a norte-americana e aeuropéia não foi aleatória e tampoucoexaustiva. O trabalho argumenta que aestruturação do campo de administraçãopública e do seu ensino no Brasil baseou-se em uma síntese peculiar da herançainstitucional européia (de caráter legalista),com a consolidação de uma ciência deadministração de orientação norte-americana (de cunho mais pragmático).Com as devidas diferenças culturais einstitucionais, a administração pública, emtodos os contextos estudados, foi umprojeto em serviço da modernização doEstado. O foco na burocracia, na profis-sionalização e nos princípios de eficiênciajustificou seu surgimento, encontrando suainspiração intelectual na Escola Clássica deAdministração. A administração pública seapresentava como uma ciência neutra, deinspiração universal, baseada no principioda separação política-administração epautada pela busca da eficiência dessa última.

O ensaio relembra a contribuição daadministração pública para o desenvol-vimento, analisando-a no contexto doprojeto desenvolvimentista do Estadobrasileiro. ADP traz implicações práticasprofundas que se refletem até hoje sejamno tecido institucional de ensino emadministração pública, caracterizado porum modelo misto de escolas de governoe academia, seja na contribuição intelectualdo campo, caracterizado pela constantepreocupação de construção de teoriasadministrativas adequadas às condiçõespeculiares de desenvolvimento do País.

A coesão e a unidade da administraçãopública e do seu ensino não são mais arealidade do campo, cada vez mais frag-mentado em termos de concepções

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Administração pública e seu ensino: um campo em busca de legitimação

teóricas e ideológicas. Em alguma medida,a fragmentação acompanhou o próprioprocesso de complexificação das funçõese dos papéis estatais, aproximando aadministração pública de disciplinas e áreascomo políticas públicas, economia, ciênciapolítica, planejamento urbano e regional,relações internacionais, saúde pública,educação e outros. Por outro lado, afragmentação resultou do pluralismo inte-lectual da área que questionou a aplica-bilidade da Escola Clássica de Adminis-tração e abriu espaços para váriascorrentes teóricas e conceituais quepassaram a co-existir até hoje.

A crise do Estado que se fez presenteem vários países do mundo a partir dosanos 1970 contribuiu para trazer para aagenda intelectual do campo as proble-máticas e as preocupações de naturezamais global e universal. Mesmo a partirde diversas perspectivas teóricas eideológicas – resultado do processo defragmentação intelectual do campo –atualmente existem alguns problemas decaráter universal, seja para a agenda das

reformas administrativas, seja para aagenda intelectual e teórica do campo. Otrabalho aponta alguns desses problemase também argumenta que a academiabrasileira tem condições para participar econtribuir substancialmente para osdebates intelectuais mais desafiantes.

Nesse contexto, o trabalho analisa apresença de análises relativas à governançaglobal nos curricula dos programas voltadospara o ensino de administração pública eargumenta que atualmente os programasde ensino em administração pública poucoabordam as relações de interdependênciadeterminadas pelo sistema de governançaglobal. Tal sistema impõe restriçõescrescentes, mas oferece, quiçá, oportu-nidades aos sistemas governamentaisnacionais mais bem dotados de capitalhumano qualificado, não só para decisõese ações nacionais como também paraaquelas de caráter e expressão global.Paralelamente, o trabalho aponta a neces-sidade de discussões mais profundas acercado tecido institucional da administraçãopública e do seu ensino.

Referências

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Alketa Peci.

Professora e coordenadora do Mestrado em Administração Pública da EBAPE-FGV. Contato: <[email protected]>

Bianor Scelza Cavalcanti.

Professor e diretor da EBAPE-FGV. Contato: <[email protected]>