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21 EDIÇÃO EM HOMENAGEM A Mauro de Freitas Corrêa ISSN 1809-5917 in memoriam

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nº21EDIÇÃO EM HOMENAGEM A

Mauro de Freitas Corrêa

ISSN 1809-5917

in memoriam

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Ministério Público do Estado de GoiásProcuradoria Geral de Justiça

Revista

do Ministério Público

do Estado de Goiás

Goiânia2011

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APRESENTAÇÃO.................................................................

HOMENAGEM A MAURO DE FREITAS CORRÊA.........................

ASSUNTOS GERAIS

Integração econômica, globalização e soberania: umareflexão sobre a sua necessária compatibilidade..........MARCELO CARDOSO PEREIRA

DIREITO PENAL

Por que punir?.................................................................VICENTE DE PAULO BARRETTO

HJFG

A doação voluntária de sangue como pena restritiva dedireitos.............................................................................JAYME WALMER DE FREITAS

DIREITO PÚBLICO

O direito à vida dos portadores de anencefalia noestado democrático de direito...................................ANGELA ACOSTA GIOVANINI DE MOURA

HJFG

Infrações administrativas, ministério público e estatutodo idoso............................................................................IZABEL CRISTINA SALVADOR SALOMÃO

SUMÁRIO

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Embargos declaratórios para fins de modular os efeitosda declaração de inconstitucionalidade: novo posiciona-mento do STF e sua principal consequência jurídica.......ELISEU ANTÔNIO DA SILVA BELO

HJFG

O tratamento homeopático e suas implicações frente aoestabelecido no estatuto da criança e do adolescentena garantia do direito à vida e à saúde............................LUIZ ANTONIO MIGUEL FERREIRA

HJFG

Declaração de independência e constituição ameri-cana: uma história própria de federalizar o estado..........BRUNO J. R. BOAVENTURA

HJFG

O poder de polícia em razão da segurança pública e afundamentação legal da abordagem policial sob oenfoque do estado democrático de direito..................ADRIANO FIGUEIREDO CARNEIRO

HJFG

Do não cabimento de liberdade provisória no crime de tráficode drogas: leitura da jurisprudência do STF e do STJ.........ANDRÉ WAGNER MELGAÇO REIS

DIREITO INSTITUCIONAL

Abusos e omissões do ministério público e de seusmembros..........................................................................CLÁUDIO BARROS SILVA

DIREITO ESTRANGEIRO

La senda del derecho administrativo en la jurisprudenciade la corte suprema de justicia de la nación.....................NICOLÁS DIANA

NICOLÁS BONINA

Garantismo penal: ¿mito o realidad?...........................FLÁVIO CARDOSO PEREIRA

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'Visto que posso escrever, porque não o farei? Mas

escrever o quê?' A tormentosa constatação já povoava amente de melancólico personagem da sublime obra O últimodia de um condenado (1829) de Victor Hugo, escrita quandotinha apenas vinte e sete anos.

Escreve-se por vários motivos. Para compartilhar um va-lioso pensamento, para aproximar-se de algo ou alguém, parasuperar algo, para degustar boas experiências, etc. Mas, o fun-damental é que nunca se interrompa a arte de escrever, afinal,quando o pensamento é encaixado nas palavras deixa de per-tencer a seu autor e passa a existir para todos os outros.

Com essa provocação, a Escola Superior do MinistérioPúblico apresenta a nova edição da Revista do Ministério Pú-blico de Goiás. O desafio maior é o de incrementar a produçãoacadêmica no âmbito da Instituição, divulgando ideias e posicio-namentos jurídicos, especialmente aqueles ligados à Instituiçãoe atuação funcional dos promotores e procuradores de Justiça.

Além disso, esta edição é muito especial, vez quelançada em homenagem póstuma a um dos mais notáveismembros da Instituição, o procurador de Justiça e professorda Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás,Mauro de Freitas Corrêa.

Professor Maurão, durante sua estada entre nós, reali-zou de forma humilde, mas grandiosa, sua missão: bom amigo,professor dedicado, promotor combativo, rara inteligência,conciliador. Homem simples, mas culto. Contribuiu imensamente

APRESENTAÇÃO

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para a trajetória ascendente da Instituição e ajudou a moldar ocaráter jurídico de inúmeros colegas. A ele, a Escola Superior doMinistério Público rende as homenagens.

Por fim, é desejo desta Escola, por meio de seusintegrantes, agradecer a todos aqueles que participaram eenriqueceram o conteúdo desta edição, enviando artigos etextos de sólida qualidade. O Ministério Público e o meio jurídicose engrandecem com mais essa publicação.

Goiânia, junho de 2011.

Spiridon N. AnyfantisPromotor de JustiçaDiretor da ESMP-GO

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Todos nós temos uma história. Discorrer sobre pedaços da vida de um homem que,

entre tantas virtudes, destacou-se pela simplicidade, sua maiorriqueza, parece tarefa fácil. No entanto, colocar num singeloescrito fatos importantes de uma vida de luta sem trégua nãoé tão simples.

De origem humilde desde cedo soube diferenciar a po-breza material da espiritual. A primeira foi companheira assíduapor longos anos; a segunda, ao contrário, jamais conheceu.

Lutou sozinho. Nunca teve mão que o puxasse ou que oempurrasse com o propósito de fazer subir um degrau sequer daespinhosa estrada que propôs trilhar. Com o olhar sempre fixono horizonte de sua vida, removeu todas as pedras que lhe apa-receram ou lhe foram postas no caminho. Superou todos os obs-táculos que, maliciosa ou gratuitamente, pudessem impedir o seucaminhar em busca de um futuro.

Venceu! Nasceu em 07 de agosto de 1927, pelas mãos de seus

avós maternos, num humilde casebre lá pelas bandas do rio Ca-beleira, modesto riacho que integrava a rede hidrográfica doentão município de Rio Verde, neste Estado. Ali viveu grandeparte de sua infância. Segundo dizia, "os melhores tempos de

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HomeNAgem PóStumA A mAuro de FreitAS CorrêAPromotor de Justiça em Goiás

Professor Livre-Docente em Direito

na Universidade Federal de Goiás

(1927-2011)

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sua vida". Na sua ingenuidade de criança não era capaz deimaginar quantas dificuldades a vida ainda lhe reservava, masem meio a tantos infortúnios e com uma determinação invejávelalcançou seus objetivos almejados.

Em 15 de maio de 1944, o "dia D de sua vida", comodizia, ingressou na Polícia Militar do Estado de Goiás, deixandopara trás dias de miséria. Ali permaneceu por 22 anos chegando,com sua dedicação, a oficial Superior da centenária corporação.Não satisfeito, continuou desafiando seu destino sempre a pro-cura de dias melhores.

Tornou-se brilhante advogado, militou na comarca dePalmeiras de Goiás, onde, pelo grande senso de justiça que lheera inerente, dedicou grande parte de sua vida profissional aosmenos favorecidos. Estudou com profundidade e dedicação oprocesso penal, lutou pela liberdade de muitos, obteve incontá-veis êxitos, graças à excelência de sua oratória.

Mas quis ir além e, em maio de 1966, via de memorávelconcurso, ingressou no Ministério Público goiano, classificando-se em primeiro lugar. Sentia-se vitorioso, orgulhoso por integraruma instituição, que por definição legal, "é permanente, essen-cial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa daordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais eindividuais indisponíveis". Uma instituição que trabalha defen-dendo tudo em que sempre acreditou.

Inicialmente, pela brilhante classificação ocupou a co-marca de Nerópolis, mas um ano depois foi convidado a prestarserviços na Procuradoria, ocasião em que já estava em ebuliçãoa ideia da fundação desta Associação. Entusiasmado, abraçoude corpo e alma a ideia e quando a fundaram foi eleito tesoureiro,tarefa espinhosa, pois, como dizia - "não era permitido fazer des-contos em folha salarial, passou a andar com blocos de recibono bolso e onde via um colega procurava receber a contribuiçãode dez cruzeiros por mês". Tempos difíceis. Chegou à presidên-cia, enfrentou muitos obstáculos, mas não desistiu, deu sua con-tribuição para que esta chegasse onde hoje está.

Posteriormente, deu-se a fundação da CONAMP,evento acontecido em Ouro Preto – MG, ao qual compareceramrepresentantes das Associações de diversos Estados, além de

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convidados especiais, incluindo o professor José Frederico Mar-ques, já falecido, que, segundo dizia, era um grande amigo doMinistério Público e que, mais tarde, viria a compor a bancaexaminadora do Concurso de Livre Docência da Cadeira de Di-reito Processual Penal da Faculdade de Direito da UniversidadeFederal de Goiás, em 1972, no qual foi aprovado com avanta-jada média.

Naquela instituição de ensino federal ingressou em 1969,como Auxiliar de Ensino. Também chegou ao topo da carreira,submetendo-se a quatro concursos, sendo o último o de Profes-sor Titular, no qual conquistou a maior média até então atribuídaa um candidato a esse cargo. Chegou a Diretor e levou paracasa, ainda, o honroso título de Professor Emérito, concedido porunanimidade de votos pelo Egrégio Conselho Universitário daUniversidade Federal de Goiás.

Por suas mãos passaram milhares de alunos. Foi eleo responsável pela formação de grandes profissionais do direito,inclusive brilhantes membros integrantes desta Instituição, quepassaram pelo rigoroso crivo do professor "Maurão" - como eraconhecido na graduação ou por ocasião do ingresso na carreirado Ministério Público.

Todos aqueles, inclusive a autora, que tiveram o privilé-gio de receber do grande docente, detentor de uma didática ini-gualável, preciosos ensinamentos, certamente jamais oesquecerão e sempre lembrarão do mestre com eterna gratidãoe profundo carinho.

Aqueles que o conheceram mais de perto podem confir-mar o que aqui está escrito, e sabem que, de todos os honrososcargos que ocupou ao longo de seus quase 45 anos de serviçopúblico, o de que mais se orgulhava era o de "Professor", gostavade ser chamado de "Professor Mauro".

Sinto-me privilegiada por ser filha deste grande homem,que sempre cumpriu com honestidade, dignidade, e, sobretudo,humildade, seu desiderato. Ele partiu, deixando para nós, seusfilhos, netos, parentes e eternos discentes um grande legado, re-pito, sua maior riqueza - a simplicidade - e a certeza de que umhomem vale não pelas posições que ocupa, mas sim pelo queverdadeiramente conquistou.

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Este foi e sempre será o meu amado mestre e pai.Oportunamente, agradecemos esta honrosa homena-

gem e tenho certeza de que onde quer que ele esteja, neste mo-mento está entre nós.

Profª ivone elizabeth Corrêa SantoméFilha

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O Palácio Conde dos Arcos e ao fundo, a Catedral de Santana, edifícios doPatrimônio Histórico da Humanidade da Cidade de Goiás.

ASSUNTOS GERAISGENERAL AFFAIRS

ASUNTOS GENERALES

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Marcelo Cardoso Pereira*

INTEGRAÇÃO ECONÔMICA, GLOBALIZAÇÃOE SOBERANIA: UMA REFLEXÃO SOBRE A

SUA NECESSÁRIA COMPATIBILIDADE

ECONOMIC INTEGRATION, GLOBALIZATION AND SOVEREIGNTY:

A REFLECTION ON ITS REQUIRED COMPATIBILITY

INTEGRACIÓN ECONÓMICA, GLOBALIZACIÓN Y SOBERANÍA:

UNA REFLEXIÓN SOBRE SU NECESARIA COMPATIBILIDAD

Resumo:

Atualmente, os processos de integração econômica, não

obstante os obstáculos que lhe são inerentes, encontram-se em

pleno desenvolvimento. São, inegavelmente, tão atuais como o

fenômeno da globalização, além de não serem, com esta, incom-

patíveis. Neste contexto, surge a necessidade de uma reflexão

sobre a soberania dos Estados participantes de tais processos,

com o objetivo de demonstrar que continuam como titulares da

soberania, cedendo, somente, o exercício da mesma.

Abstract:

Currently, the processes of economic integration, despite the

obstacles that are inherent, are at full development. They are,

undeniably, as current as the phenomenon of globalization, and

are not, with this last one, incompatible. In this context, arises the

need for a reflection on the sovereignty of participating States in

such processes, in order to show their continued as holders of

sovereignty, giving only the exercise thereof

* Advogado. Professor Universitário. Mestre e Doutor em Direito pelaUniversidad Complutense de Madrid, Espanha.

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Resumen:

En la actualidad, los procesos de integración económica, a pesar

de los obstáculos que le son inherentes, están en plena marcha.

Son, sin lugar a dudas, tan actuales como el fenómeno de la glo-

balización, y no son, con esta, incompatibles. En este contexto,

surge la necesidad de una reflexión sobre la soberanía de los Es-

tados participantes en dichos procesos, con el fin de mostrar la

continuidad de su calidad de titulares de la soberanía, cediendo,

tan sólo, su ejercicio.

Palavras-chaves:

Integração econômica, globalização, soberania.

Keywords:

Economic integration, globalization, sovereignty.

Palabras clave:

Integración económica, globalización, soberanía.

Introdução

O presente trabalho possui, como escopo precípuo,apresentar subsídios para uma reflexão sobre a compatibili-dade dos processos de integração econômica e da globali-zação frente ao clássico instituto da soberania dos Estados.O tema, de inquestionável atualidade, desperta um interesseparticular no caso brasileiro, uma vez que formamos partede um processo de integração econômica que visa a forma-ção de um mercado comum. O dito processo, como é cediço,

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denomina-se MERCOSUL1, vale dizer, Mercado Comum doSul. Ademais, no âmbito europeu temos o mais bem-suce-dido modelo de integração econômica, porém não isento deimperfeições e efeitos negativos, qual seja, a União Euro-peia, que serve de experiência para que o MERCOSULpossa se desenvolver, com a necessária compatibilizaçãoentre os mencionados processos e o instituto da soberania.Eis, pois, o desafio para se alcançar um modelo pleno, e efi-caz, de integração econômica Sul-Americana.

Integração econômica versus globalização

Em primeiro lugar, entendemos oportuno admoestar queo estudo destes institutos e processos se mostra, atualmente,imprescindível ante a consolidação do Direito Comunitário2,novel ramo do direito3. Com efeito, a globalização, ao contráriodo que se sustenta, não é incompatível com a integração eco-nômica. São fenômenos que guardam estreita relação. Destarte,

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1 O Mercado Comum do Sul (Mercosul) é um amplo projeto de integração con-cebido por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. Envolve dimensões econômi-cas, políticas e sociais, o que se pode inferir da diversidade de órgãos que orao compõem, os quais cuidam de temas tão variados quanto agricultura familiarou cinema, por exemplo. No aspecto econômico, o Mercosul assume, hoje, ocaráter de União Aduaneira, mas seu fim último é constituir-se em verdadeiroMercado Comum, seguindo os objetivos estabelecidos no Tratado de Assunção,por meio do qual o bloco foi fundado, em 1991. Conceito retirado da páginaWeb institucional do MERCOSUL: www.mercosul.gov.br.2 Entende-se por Direito Comunitário o ramo do direito formado por um con-junto de normas as quais regulamentam as relações jurídicas levadas a cabopor Estados reunidos em um bloco, com o escopo precípuo, porém não único,de integração econômica.3 Sobre o fenômeno da globalização, e desde uma perspectiva introdutória,vide Dehesa (2007). Uma visão aprofundada acerca do papel do direito na glo-balização pode ser encontrada em Cassese (2006). Para uma excelente apro-ximação à globalização do ponto de vista nacional, consulte-se Caldas (1999).

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poder-se-ia afirmar que a integração econômica apresenta-secomo uma consequência da globalização, tendo em vista queos blocos regionais se formam com o escopo de proteger-se dosaspectos negativos oriundos da mesma.

Nesse contexto, assevera Lewandowski (2008, p. 294) que

Enquanto a globalização possui uma dinâmica própria, deri-vada em especial desse novo modo de produção capitalista,sobre o qual os distintos países isoladamente não têm nenhumdomínio, a regionalização permite um certo controle sobre asvariáveis do processo, dentro de um espaço territorial menor.

Em que pese não ser um processo exclusivamente eco-nômico4, a globalização caracteriza-se como uma integração glo-bal, a qual nos conduz a uma inegável ilação: presenciamos,atualmente, um crescimento da relação de interdependênciaentre as nações. Por outro lado, a integração econômica reveste-se de uma característica singular, qual seja, a de aproximar Es-tados que compartilham pontos em comum, sejam eles de ordemgeográfica, cultural, política, etc., oferecendo, mutuamente, van-tagens no campo econômico-comercial e tendo como escopoprecípuo o fortalecimento no cenário internacional.

Destarte, quer se situe aludida relação a nível global, querseja em âmbito regional, “O grau de interdependência das rela-ções entre os Estados soberanos conduz para a sistematizaçãodos processos de aproximação” (LEMBO, 2004, p. 8). Por conse-guinte, a noção de independência absoluta dos países, alicerçadano conceito inveterado de soberania, não é conciliável com o atualsistema internacional, mormente no campo econômico.

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4 Esta é a opinião de Silva. Para ele (2007, p. 17-18): “Ao longo do século XX, aglobalização do capital foi conduzindo a globalização da informação e dos pa-drões culturais e de consumo”. No mesmo sentido, adverte Vieira para o fato deque: “A globalização, todavia, não se resume a esse novo modo de produçãocapitalista, estruturado em escala mundial. Ela decorre também da universali-zação dos padrões culturais e da necessidade de equacionamento comum dosproblemas que afetam a totalidade do planeta, como a degradação do meio am-biente a explosão demográfica [...]” (VIEIRA, 1997, p. 73).

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Afastada, portanto, qualquer iniciativa de isolamento co-mercial, vale dizer, de rechaço à hodierna realidade econômicamundial, baseada no estreitamento das relações entre os Esta-dos, caberia refletir sobre os efeitos positivos e negativos dessainterdependência. Nesse sentido nos relata Böhlke (2003, p. 33),ainda que aludindo, particularmente, aos processos de integra-ção regional, que:

A interdependência pode ser [...] positiva ou negativa. A inter-dependência positiva ocorre quando uma mudança desejávelverificada em determinado país desencadeia reação tambémdesejável em outro Estado. Será ainda considerada positiva ainterdependência se a mudança for prejudicial em certo Estado,gerando reações também prejudiciais em outro. A interde-pendência negativa é aquela que dá ensejo a conseqüênciasdiversas em outro Estado, ou seja, uma mudança desejávelpara um Estado que gere reações prejudiciais em outro.

Poder-se-ia pensar, à princípio, que recai em equívocoo mencionado autor ao afirmar que a interdependência será po-sitiva quando um Estado suportar mudança perniciosa, a qualprojeta seus efeitos para outro(s) Estado(s). Entretanto, a apro-ximação entre os países, especialmente em seara de integraçãoeconômica regional, implica em um elo de tamanha intensidadeentre os mesmos que benefícios e malefícios devem ser supor-tados em conjunto, em prol do objetivo comum almejado.

Em suma, tanto a integração econômica (regional),quanto a globalização, apresentam-se como fenômenos que im-pactaram, e seguem impactando, a economia internacional5. São,em nossa opinião, processos irreversíveis, entenda-se tendência

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5 No tocante à evolução histórica da integração econômica, posteriormente te-remos oportunidade de a ela nos aproximarmos quando do estudo do processointegracionista europeu. De outra sorte, seria uma conclusão falaz imaginar-seque a globalização apresenta-se como um fenômeno historicamente recente.Oportunamente, admoesta Roberto Luiz Silva (2007, p. 17-18) que: “A doutrinamajoritária identifica [a globalização] como um processo que teve seu início noperíodo dos grandes descobrimentos, no século XV. Com efeito, as expediçõeslideradas pelo navegante genovês Cristóvão Colombo e financiadas pelo Reino

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mundial, cabendo a cada Estado que compõe a sociedade inter-nacional deles participar, segundo seus próprios interesses, tendocomo parâmetro o grau de soberania que deseja compartilhar.

Integração econômica e soberania

Analisando desde uma perspectiva histórica, a integra-ção econômica apresentar-se-ia como um processo recente eem constante evolução. Ante esse panorama, adverte Böhlke(2003, p. 30) que “O fenômeno da integração ainda não está su-ficientemente delimitado e sistematizado, principalmente porquecompreende temática nova e bastante mutável”.

Quiçá por esse motivo se discuta, ainda, se tal fenômenoseria compatível com o instituto da soberania. Entretanto, e antesde enfrentarmos essa intricada quaestio, parece-nos aconselháveltecer alguns comentários sobre tal instituto. Não obstante as vá-rias vertentes que apresenta a soberania6, a mesma pode ser de-finida, desde a óptica da Ciência Política, como a autoridade do

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de Castilla y Aragón, romperam, em 1492, o isolamento entre o ‘Velho’ e o ‘NovoMundo’ e implicaram crescente contato entre os países então existente, se-guindo-se a criação da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais (1621),com o objetivo de eliminar a competição entre diferentes postos mercantis es-tabelecidos pelos mercadores, e a Companhia das Índias Orientais, criada pelaInglaterra a partir da fusão de diferentes sociedades, aspirantes ao monopóliodo comércio com aquela parte do mundo, em uma única companhia, em 1702”.Há quem situe o surgimento histórico da globalização em momento anterior.Nesse sentido, afirma Soares (2002, p. 51) que: “A chamada globalização cons-titui um processo que vem se desenvolvendo desde o passado remoto da hu-manidade. Compreendida num sentido amplo, começa com as migrações dohomo sapiens, transita pelas conquistas dos antigos romanos, pela expansãodo cristianismo e do Islã [...] culminando com a aldeia global que caracteriza omundo de hoje”.6 Nesse contexto, constatamos a existência, teórica, da soberania interna, dasoberania internacional, da soberania popular, da soberania política, entre ou-tras. Para uma aproximação ao tema, vide Saskia (2001). No âmbito da doutrinanacional, consulte-se Diniz (1998, p. 387-388).

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Estado, o que o torna supremo, não podendo tal autoridade serlimitada por outro poder. No mesmo sentido, entende o saudosojurista Sahid Maluf (2003, p. 29) que “Soberania é uma autoridadesuperior que não pode ser limitada por nenhtum outro poder”7.

Sem embargo, o conceito de soberania, que deve ser fle-xível, isso por estar susceptível à evolução, não mais comportainterpretação restritiva. Com efeito, os fenômenos até aqui ana-lisados, quais sejam, a integração econômica, bem como a glo-balização, impactaram a noção clássica de soberania. Portanto,a interdependência, que é característica marcante desses pro-cessos, permite que atualmente a soberania seja compreendida,ainda, como o poder (autoridade) peculiar do Estado, mas quenão impede que este possa, soberanamente, compartilhar algu-mas competências, seja com outros países ou com organizaçõesinternacionais.

Assim, e desde o ponto de vista particular da integraçãoeconômica, dependendo da fase ou etapa em que se encontreum grupo de Estados (bloco econômico) poder-se-á constatar oquanto foi mitigada a noção tradicional de soberania. Ademais,quando determinados países se unem com o intuito de promoverum processo integracionista, provavelmente, para não dizer cer-tamente, nos depararemos com Estados heterogêneos, mor-mente no campo do desenvolvimento social e econômico. Talaspecto justifica a existência de processos de integração econô-mica de grande complexidade e outros, contrariamente, incom-plexos.

Nesse contexto, e de forma perspicaz, pondera GonçalvesPortela (2009, p. 770-771):

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7 Contudo, esclarece esse autor (2003, p. 30) que a soberania “Não pode sofrerrestrições de qualquer tipo, salvo, naturalmente, as que decorrem dos imperativosde convivência pacífica das nações soberanas no plano do direito internacional”.Evidentemente, o saudoso autor desconsiderou outras hipóteses de “erosão” doconceito de soberania, uma vez que vinculava a possibilidade de restrições aopoder (autoridade) do Estado somente quando o escopo fosse manter o convíviopacífico entre os países.

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O regionalismo atual vai atrair Estados em diferentes estágios dedesenvolvimento, que criarão espaços mais ou menos institu-cionalizados e com objetivos que variam da mera promoção deinteresses no âmbito econômico-comercial à integração mais pro-funda, atingindo os campos político e social e limitando vigorosa-mente a soberania estatal.

Por outro lado, e de forma diametralmente oposta, háquem não aceite qualquer argumento no sentido de limitação, re-dução ou, até mesmo, perda de soberania, por parte de paísesque decidiram participar de processos de integração econômica.Autores, os quais comungam tal posicionamento, afirmam, inclu-sive, que a soberania não sofreu qualquer impacto, nem mesmopelo fenômeno, de grande abrangência, da globalização. Alémdisso, entendem, de forma acertada, que no plano interno os paí-ses preservam sua soberania, não havendo, acima deles, ne-nhum outro poder. Na esfera internacional, os Estados somenteassumiriam obrigações se, soberanamente, assim o desejassem,mantendo sua independência em relação aos outros países e àsorganizações internacionais.

Partindo dessa premissa observa, de forma criteriosa,Lewandowski (2008, p. 296):

Nem mesmo os integrantes da União Européia, que se sub-meteram ao direito comunitário, renunciaram à soberania oua parcela desta. Simplesmente passaram a atuar de modoconjunto em determinadas áreas, sobretudo no campo daeconomia, para conferir maior eficácia às respectivas ações.Dito de outra forma, passaram a compartilhar as respectivassoberanias, em áreas consideradas críticas, por intermédiode órgãos supranacionais, aos quais delegaram um certonúmero de competências, taxativamente explicitadas nostratados constitutivos.

Não obstante esse embate doutrinário, manifestamosnosso entendimento no sentido de não ser pertinente falar-se emperda de soberania por parte de Estados que se submeteram a umprocesso de integração econômica. Por outro lado, reconhecemos

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que tal processo implica em uma revisão da tradicional concepçãode soberania. Porém, não se trata de cessão da soberania estatal,vale dizer, de parcela desta. Admoestamos para o fato de que umprocesso integracionista caracteriza-se pela cessão do exercício,e não titularidade, de determinadas competências, mormente aque-las imprescindíveis desde a perspectiva econômica.

Com efeito, e valendo-nos do exemplo da União Euro-peia, os países que a integram estão autorizados, constitucio-nalmente, a ceder tal parcela de competências (soberania) aessa organização internacional de caráter regional. Nesse con-texto, e à título ilustrativo, dispõe o artigo 93 da ConstituiçãoEspanhola de 1978, in verbis: “Mediante la ley orgánica sepodrá autorizar la celebración de tratados por los que se atri-buya a una organización o institución internacional el ejerciciode competencias derivadas de la Constitución8” (grifo nosso).

Destarte, resulta ilação incontestável que a titularidade dascompetências cedidas queda intacta e vinculada à soberania do Estado,em que pese as consequências práticas dessa transferência, máximedo ponto de vista jurídico. De fato, uma parte do poder do país deixa deser exercido pelo mesmo, através de seus órgãos, deslocando-se parauma organização de caráter supranacional que passará, e aí o efeitomais peculiar da cessão de competências, a criar e aplicar normas sobreas matérias a elas transferidas (cf. TREMPS, 2000, p. 116).

Conclusão

Por todo o exposto, não corroboramos o entendimentode parte da doutrina no sentido de que a delegação de poderes

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8 Disponível em: http://www.congreso.es/consti/constitucion/indice/titulos/articu-los.jsp?ini=93&fin=96&tipo=2.

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executivos (competências), por parte dos Estados às organiza-ções internacionais, por certo supranacionais, seria excepcional,uma vez que aqueles resistiriam a fazê-lo9, evidentemente am-parados na noção arcaica de soberania.

Em suma, não há que se falar em perda de soberaniaquando do ingresso de um Estado em um processo integracionistade cunho econômico, uma vez que a titularidade das competênciascedidas permanece com o ente estatal o qual, ressalte-se, não foiobrigado a ceder tal parcela de sua soberania, o fazendo, ao con-trário, na plenitude do exercício de sua soberania.

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DINIZ, M. H. Dicionário Jurídico. v. 4. São Paulo: Saraiva, 1998.

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9 Vide, entre outros, Côrrea Lima (1998, p. 67)

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DIREITO PENALCRIMINAL LAW

DERECHO PENAL

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Vicente de Paulo Barretto*

Por que Punir?

WHY TO PUNISH?

¿POR qUé PUNIR?

Resumo:

A questão da punição e da responsabilidade penal e civil constitui

uma vexata quaestio na cultura jurídica nacional. Tema central

na tradição do pensamento filosófico e político, a questão da pu-

nição no estado democrático de direito pressupõe o estabeleci-

mento de seus fundamentos éticos como condição para a própria

eficácia do sistema jurídico.

Abstract:

The question of punishment and criminal and civil liability is a

vexed question in the national legal culture. Central issue in the

tradition of philosophical and political thought, the question of

punishment in Rule of Law presupposes the establishment of its

ethical foundations as a condition for the effectiveness of the

legal system.

Resumen:

La cuestión de la punición y de la responsabilidad penal y civil

constituye es una cuestión controvertida en la cultura jurídica na-

cional. Tema central en la tradición del pensamiento filosófico y

político, la cuestión de la punición en el Estado democrático de

derecho supone el establecimiento de sus fundamentos éticos

como condición para la eficacia del sistema legal.

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* Professor no PPG em Direito da UERJ e da UNESA. Professor Visitante doPPG em Direito da UNISINOS

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Palavras-chaves:

Moral, crime, punição, responsabilidade.

Keywords:

Ethics, crime, punishment, liability.

Palabras clave:

Moral, crimen, punición, responsabilidad.

i. Da natureza da punição

As reflexões que me proponho a fazer sobre os funda-mentos éticos da punição têm uma dupla origem. Nasceram, emprimeiro lugar, de uma indignação mais psicológica do que racio-nal, provocada pelo grau e pela variedade da violência que tomouconta do Brasil. Originaram-se, também, da necessidade intelec-tual de procurar uma resposta para a constatação de que o grandedesafio que ronda, e ameaça, a sociedade brasileira contempo-rânea consiste na cultura da falta de punição. Essa cultura, porsua vez, vai expressar-se e consagrar-se na impunidade, meraexpressão sociolegal da ausência de punição.

Não me parece que a impunidade, simples materializaçãolegal de uma atitude moral e intelectual, seja o problema, pois pordetrás das leis, do descaso e da corrupção encontra-se um germeantissocial mais ativo e destrutivo. Idêntico a uma célula cance-rosa no corpo humano, multiplica-se e desdobra-se ao perpassare contaminar todo o corpo da sociedade. Manifesta-se na facili-dade com que se aceita a transformação da criança na tirana dospais, dos irmãos, dos colegas, impondo, em seguida, sua vontadedescontrolada à família, à escola e à sociedade. Esse problema

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central também irá ser detectado na própria tentativa de justifica-tiva racional para a falta de punição, pois esta é considerada, pormuitos doutrinadores, como constituindo-se, ela própria, a grandeviolência contra a pessoa humana.

Algumas teorias têm tratado da justificativa, não tanto dapunição, mas da pena. Desde a conhecida definição de puniçãodada por Grotius (1925, cap. XVII, I. 1), no século XVII (malum

passionis quod infligitur ob malum actionis – mal de paixão, infligidoem virtude de uma má ação), a teoria da pena tem abandonado aanálise das razões primeiras de sua aplicação e tratado mais desuas finalidades do que de sua natureza. Isso porque a pena pas-sou a ser considerada como um mal em si mesmo, assim como ocastigo da criança constitui-se, na ótica de algumas escolas peda-gógicas, em violência e atentado aos direitos da criança.

Podemos utilizar a definição de Grotius como parâmetrode referência para a análise dos fundamentos da punição na con-temporaneidade. Essa definição talvez possibilite delimitar ocampo conceitual, que poderá ajudar a compreender e a explicara natureza da punição na sociedade humana. Da definição gro-ciana podemos determinar as seguintes características de todae qualquer forma de punição:

1. quando se fala em punição estamos fazendo referên-cia a um mal, vale dizer, a alguma coisa que não é pra-zerosa, implicando no cerceamento da liberdade e deseus benefícios;2. Aplica-se a punição em consequência de ato praticadoanteriormente e condenado pela lei. Trata-se do segundode um par de termos relacionados, como no título do ro-mance de Dostoievsky, Crime e castigo. Ainda que sepossa infligir dor em outro indivíduo, sem causa ou porsimples crueldade, ou mesmo acreditando-se que seestá proporcionando um benefício à vítima, agir dessa

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forma não caracteriza uma punição legal, legítima, exe-cutada através do poder público;3. Para que se caracterize a punição, deve existir umarelação, estabelecida por lei, entre a punição e o ato quea provocou. Pelo menos, deve-se ter explícito na puniçãoque o infrator deverá vivenciar, na privação da liberdadee na sua consciência, a angústia e o tormento provocadopelo crime na vítima e na comunidade;4. A punição é imposta. Resulta de um ato da autoridadepública e não é uma forma de retaliação da vítima. En-tende-se, assim, como a vingança é uma das conse-quências maléficas da banalidade da violência nosnossos dias, pois substitui a ideia de punição, como atolegítimo, pelo recurso à vingança primitiva, que se ex-pressa na máxima e na prática de que “bandido bom ébandido morto”;5. A punição restringe-se à aplicação de uma pena aocriminoso individualmente ou a alguém responsável poratos considerados criminosos pelas leis. Não se estendeaos seus familiares e nem se constitui no elo de uma ca-deia de punições, que se desdobra para as famílias doscriminosos e que se propaga por gerações sucessivas.

Seguindo o argumento de Grotius, devem-se diferenciarduas questões, para que se possam estabelecer os contornos doespaço da punição na sociedade contemporânea. Estas encontramnas respostas a serem dadas às seguintes questões: Ob quod? e

Cuius ergo? Nem todo ato que viola as normas e os costumes deuma sociedade pode ser considerado como um ato criminoso.Deve-se perguntar, como faz Grotius, qual a ofensa que justifica apunição legal e com que finalidade é o criminoso punido.

A resposta a essas perguntas tem-se constituído em casus

belli na cultura contemporânea, especificamente no pensamento

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social e jurídico, envolvendo uma gama enorme de filósofos, juris-tas, cientistas sociais, economistas e legisladores. Encontramos di-ferenças radicais nas respostas dadas a essas questões, muitasdelas mais preocupadas em responder à interrogação sobre a fi-nalidade da pena do que em considerar a questão nuclear que con-siste em desvendar a sua natureza ética.

As opiniões encontradas na filosofia e na ciência do di-reito sobre quais ofensas devem ser punidas e as razões para aaplicação da pena dividem-se, grosso modo, em três grupos. Oprimeiro afirma que é sempre justificável punir as violações dasnormas sociais e jurídicas, ainda que nem sempre seja possível,na prática, materializar-se a punição; o segundo grupo sustentaque a punição é, às vezes, justificável, e, às vezes, não; final-mente, o terceiro grupo sustenta ser a punição sempre desne-cessária e injustificável (MOBERLY, 1968).

Ob quod?

A primeira pergunta de Grotius possibilitará a recuperaçãoda relação entre a natureza da violação da lei e a punição. qualtipo de ofensa deve ser punido? Essa pergunta tem encontrado,desde as primeiras civilizações, uma resposta comum. Historica-mente, a punição deita suas raízes em tempos arcaicos, quandoa pena era aplicada em virtude da violação de princípios religiosos.O ato criminoso, por mais insignificante que fosse, constituía-seno rompimento de uma ordem sagrada e natural. Entre os crimes,o homicídio, principalmente, era considerado como tendo um sim-bolismo e significado moral único, pois representava um assalto àordem natural sagrada e a sua reparação somente seria possívelcom a morte do próprio homicida (WILSON, 2007, p. 158).

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A resposta a essa primeira questão, suscitada pelo textode Grotius, é simples e imediata, pois afirma que a punição é aaplicação do princípio geral de justiça em virtude do qual cadaindivíduo deve responder por seus atos. Essa justificativa encon-tra-se expressa na conhecida máxima latina: ut, qui malum fecit,

malum ferat, aquele que com o mal fere, com o mal deverá serferido. Nesse sentido, a punição serviria para expressar e satis-fazer a indignação da comunidade diante da transgressão, sendoa pena considerada como tendo uma finalidade em si mesma.

Essas raízes profundas da punição encontram-se no es-paço de uma antropologia que pode explicar-se pela relaçãoentre o ato e sua repercussão na vítima, na sociedade e no cri-minoso. Não existe dúvida de que essa concepção da puniçãoresponde a uma demanda profundamente enraizada na naturezahumana. Torna-se necessário, entretanto, determinar a relaçãomoral existente entre o indivíduo, o criminoso e a punição. A ideiada punição será então estabelecida em função da atitude do in-divíduo em relação ao crime e ao criminoso. Resta, entretanto,uma dúvida sobre a qualidade dessa atitude e dessa demanda:ela será de Deus ou do Diabo?

quando um indivíduo agride o outro, um terceiro expe-rimenta – do ponto de vista moral – um duplo sentimento. Emprimeiro lugar, sente a necessidade de defender a vítima e, emsegundo lugar, de recuperar para o agressor a racionalidadeque se constitui no alicerce da vida social. Ambas as reaçõesque se experimenta diante do crime deitam as suas raízes norespeito à vida e à dignidade da pessoa. O sofrimento mentalvivenciado pela vítima consiste, assim, no fato de que a suadignidade foi violada, fato que se liga à degradação, também,dessa dignidade na pessoa do criminoso. Nos dois casos,torna-se necessário que essa dignidade violada e degradadaseja restabelecida (SOLOVIEV, 1997, p. 302), na vítima e nocriminoso. Na construção da fonte ética da punição teremos

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assim o primeiro alicerce: o restabelecimento da dignidadetanto na vítima quanto no criminoso.

Como escreve Soloviev, essa necessidade de restabe-lecimento da justiça origina-se do princípio moral que exige, nocaso de um crime, i. e., quando ocorre uma ofensa de um homemcontra outro homem, que a sociedade tome antes de tudo umaatitude moral em relação ao agressor e à vítima. Mas a atitude aser tomada irá depender de qual ponto de vista adotaremos.Podem-se considerar exclusivamente os direitos da vítima ou dacomunidade a ser defendida ou vingada; o criminoso será consi-derado, então, como simples objeto de punição, sem os direitosque lhe foram retirados pelo próprio fato de ter sido condenado.Essa posição simplista nos remete às práticas da vingança pri-mitiva e suscitam, por sua vez, uma reação, muito encontrada naatualidade entre doutrinadores, juristas e legisladores, que reco-nhece o direito do ofensor a ser punido unicamente através dapersuasão verbal e não admite coerção punitiva em relação aocriminoso, o que na prática resulta em privar a vítima e a socie-dade do seu direito de defesa. Essas duas atitudes morais e in-telectuais constituem-se na fonte de dois grupos de doutrinaspenais contraditórias: as doutrinas da vingança e a doutrina dapersuasão verbal (SOLOVIEV, 1997, p. 304-305).

Psicologicamente, o nosso sentimento pela vítima é di-ferente daquele que temos pelo agressor, pois pela vítima senti-mos piedade e, pelo agressor, revolta e indignação moral. Aexigência moral faz com que não deixemos a nossa indignaçãotransformar-se em vingança, na negação do seu direito, aindaque materialmente esse direito distingue-se do direito da vítima.Esta tem o direito de ser defendida pela sociedade, enquanto oagressor tem o direito de ser reconduzido à razão. A base moraldesses dois tipos de relacionamento é a mesma: o valor absolutoou a dignidade da pessoa humana, que reconhecemos em nóse nos outros.

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Cujus ergo?

Ambos os modelos teóricos que justificam a aplicaçãoda pena representam um passo à frente no sentido de normati-zar, por meio da lei, a aplicação da punição. Trata-se da supera-ção da ideia de que o ofensor é um inimigo do qual deve asociedade vingar-se, e não um criminoso que deve ser punido.Esse tipo de resposta à segunda pergunta, formulada por Gro-tius, representou um estágio na evolução moral da humanidadee, como escreveu Beccaria (1991), a ideia de que nunca se devepunir pela satisfação da punição. A contribuição de Beccaria parao tema não se reduziu à defesa da ideia da punição como pena,mas prosseguiu para distinguir entre dois níveis de punibilidade:o religioso e o político.

Durante séculos, pecado e crime foram consideradoscomo duas faces de uma mesma moeda. O ofensor da lei civilera também um pecador. Além dessa confusão de níveis – oreligioso e o civil – um servindo ao outro, como no caso da In-quisição, não se tinha presente na consciência jurídica a dife-rença entre níveis de criminalidade. Assim, por exemplo, naIdade Média, o homicídio não era considerado como um crimecapital para a consciência jurídica, mas a falsificação de moedaimplicava na aplicação da pena capital, pois o criminoso violavaum privilégio do poder real e isso significava, por essa razão,um crime político, pois o que se encontrava em causa era a se-gurança da Igreja e do Estado. Vivia-se a época em que Vol-taire, (1768), em carta a Beccaria, escrevia como sendo aquelaem que se cometeu (a propósito da execução do cavaleiro deLa Barre) um “[...]crime jurídico”. E Voltaitre apontava para asconsequências de o Estado ser o braço punitivo da Igreja: “Masque abominável jurisprudência a de sustentar a religião so-mente pelo carrasco”.

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Beccaria foi quem separou as esferas da Igreja e do Es-tado no que se refere ao direito de punir. A Igreja poderia continuara punir o pecado e o estado deveria considerar a desobediênciaà lei civil ao avaliar e sopesar o dano que o seu descumprimentotraria para o indivíduo e para a sociedade. Como escreve Venturi(1971), o grau de utilidade ou não utilidade passaria a ser o critériode medição de todas as ações humanas. A punição deixaria deconstituir-se na expiação de um pecado religioso e civil e o direitopenal perderia todo o seu conteúdo sagrado.

A influência de Beccaria propagou-se exercendo papel de-cisivo na abolição da tortura como pena, na supressão dos suplí-cios e na humanização das leis penais. Ainda no século XX,Camus considerava Beccaria o humanista que, sem ter pertencidoa um movimento religioso ou político, tinha exercido a mais pro-funda influência no pensamento europeu (CAMUS, 1979, p. 60).

A humanização e a secularização do direito de punir rea-lizada por Beccaria não elidiu, entretanto, a questão central danecessidade ou não do dever de punição pelo poder públicocomo condição de existência da sociedade. A aliança entre hu-manismo e reformismo penal marca uma radical reavaliação daideia de punição penal na sociedade moderna. Considera-se,porém, que a pena legal constitui-se a transformação históricada vingança do sangue e, por essa razão, deve ser consideradasob outra perspectiva. Em torno desse tema irão se diferenciaras escolas do pensamento social e jurídico do século XIX e XXque procuram, em face de um sistema punitivo injusto, propor so-luções mais humanas para a questão da pena.

Permanece em debate, entretanto, quais as razões doato de punir e como punir significa necessariamente provocar, dealguma forma, dor – física ou espiritual – e é sempre uma agres-são à pessoa; algumas vezes, no entanto, é um mal menor dianteda alternativa de não se punir. A punição seria, então, justificadasomente como um instrumento com vistas a uma finalidade: a de

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prevenir futuros crimes. A pena ideal teria o papel de servir comoexemplo, sendo destinada a impedir delitos a serem praticadosno futuro.

Mas a pena destina-se, também, a produzir efeitos be-néficos para o próprio criminoso, que ficaria impedido de praticaroutros crimes em três distintas situações. O indivíduo pode serimpedido de praticar outros crimes pelas seguintes causas:morte, prisão ou mutilação; pode sentir-se ameaçado e, assim,enquadrar-se nas normas sociais; finalmente, pode recuperar-separa a vida social.

Sob esse ponto de vista a punição deve ser julgada nãoporque corrige atos passados, mas sim pelas consequências fu-turas de sua aplicação. Portanto, não por sua justiça, mas por suautilidade. Não deve ser considerada como uma retaliação a ofen-sas passadas, mas como uma defesa preventiva contra futuroscrimes.

Menos penas e mais justiça

No contexto do debate contemporâneo sobre o crime, doponto de vista dessa dimensão utilitarista, foram contestadas teo-rias e legislações variadas, que erigiram a pena como tendo ca-racterísticas essencialmente educativas e com a função derecuperação do infrator. Uma importante contribuição à teoriaética da punição é aquela desenvolvida contemporaneamentepelos doutrinadores do abolicionismo penal e do garantismopenal. Essas teorias originaram-se de uma compreensível reaçãoàs penas desumanas, aviltantes e a sistemas penitenciários quese transformaram em fábricas de criminosos, tanto na pessoa docriminoso, quanto na do executor das sentenças penais.

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Como soluções, sustentam essas escolas a tese de quea punição nunca é remédio para um crime cometido, pois os sis-temas penais contemporâneos transformaram-se em sistemasautorreprodutores dos crimes que se propõem coibir. Essa teoriaassume diversas formas na contemporaneidade, principalmenteem dois modelos teóricos. O primeiro é encontrado nos trabalhosde Christie (1998), Hulsmam e Celis (1993) e Baker (2004), con-figurando formas de abolicionismo radical, definido por Ferrajoili(2001, p. 249), como um conjunto um tanto heterogêneo de teo-rias, doutrinas e atitudes ético-culturais unificadas pela negaçãode qualquer classe de justificação ou legitimidade do exercíciodo poder punitivo por parte do Estado. O garantismo penal, porsua vez, se insere nesse processo de reavaliação crítica do di-reito penal clássico e será desenvolvido plenamente na obra deFerrajoli sobre o garantismo penal.

A corrente doutrinária do abolicionismo radical resulta daobservação empírica, psicológica ou sociológica dos criminosos.O crime é explicado, ou pelo menos a maioria deles, como resul-tado de alguma distorção na razão do criminoso ou fruto do seuambiente social. O uso da punição como forma de dissuasãotem-se revelado fútil e cruel e, portanto, essa escola de pensa-mento sustenta que a sociedade deve procurar coibir a incidênciade crime através do tratamento dos possíveis futuros criminosos,e não de sua punição.

Outro paradigma teórico que procura responder a per-gunta sobre a natureza da punição é o garantismo penal. Essateoria argumenta que a questão das razões da punição e os tiposde infração que devem ser considerados como crimes passíveisde punição, ao contrário do que sustentam a teoria clássica retri-butiva e a teoria do abolicionismo penal, devem ser consideradosem função de parâmetros teóricos e empíricos específicos.

O garantismo de Ferrajoli, o chamado “utilitarismo refor-mado”, consiste na tutela de valores ou direitos fundamentais

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cuja satisfação, ainda que contra os interesses da maioria, é ofim justificador do direito penal: a imunidade dos cidadãos contraa arbitrariedade das proibições e dos castigos, a defesa dos maisfracos mediante regras de jogo iguais para todos, a dignidade dapessoa do imputado e, por conseguinte, a garantia de sua liber-dade mediante o respeito também da sua verdade. A garantiadesses direitos fundamentais é que possibilita a aceitação portodos, inclusive a minoria dos réus e dos imputados, do direitopenal e do próprio princípio majoritário (FERRAJOLI, 2001, p.335-336). Mais adiante, esclarece Ferrajoli (idem, p. 336) que“um sistema penal somente estará justificado quando a soma dasviolências – delitos, vinganças e castigos arbitrários – que se en-contra em condições de impedir é superior ao das violênciasconstituídas pelos delitos prevenidos e pelas penas para essesestabelecidas”.

Por uma fundamentação ética

Esse ideal punitivo acha-se desmentido, porém, pelarealidade da sociedade brasileira contemporânea, na qual o au-mento da criminalidade encontra-se, talvez, diretamente rela-cionado com a ausência da punição do infrator. Nesse contexto,em que se perderam, na cultura cívica, os argumentos racionaisque possam legitimar o sistema punitivo, torna-se necessáriauma reflexão que procure a fundamentação ética e, portanto,filosófica da punição. Essa justificativa ética destina-se a formu-lar argumentos razoáveis para convicções que temos como in-divíduos e cidadãos, fruto de predisposições instintivas, masque nós, agentes morais, necessitamos justificar em nossaconsciência.

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A dificuldade primeira em se situar diante do avanço dacriminalidade encontra-se, em primeiro lugar, na repulsa encon-trada na cultura cívica a respeito da punição. O mal acaba sendoa punição, e não o crime, e isso porque o sistema punitivo, porfalta precisamente dessa fundamentação ética, tornou-se um sis-tema reprodutor do crime que deveria punir. Uma constataçãoempírica, que se revela sintomática, a propósito, reside na au-sência na literatura filosófica e jurídica brasileira de textos quetratem da fundamentação ético-filosófica da punição.

Para suprir essa lacuna, que se reflete na legislação ena aplicação da pena, encontramo-nos em face de um desafio.Como justificar a punição, quando se reconhece na sociedadeum ambiente criminógeno? A resposta provavelmente não se en-contra nas razões psicológicas, sociológicas ou religiosas quepodem levar ao crime. Essas razões são relevantes, e uma éticada punição deverá considerá-las como o patamar empírico sobreo qual será construída a fundamentação ética. Mas essas razõesnão são suficientes, por si mesmas, para explicar e justificar umsistema penal eficiente. O desafio com que nos encontramos noBrasil contemporâneo reside em refletirmos sobre essa realidadeem função de princípios morais que servem de alicerce para aprópria sociedade.

Por que punir? Essa pergunta, implícita no debate sobreo crime permanece atualíssima e, para que possamos, pelomenos, situá-la racionalmente no âmbito do espaço público, é ne-cessário recuperarmos para a cultura cívica nacional algumas in-dagações sobre a natureza da pessoa, da sociedade e do crime.A pessoa como agente moral – ser dotado de razão e autonomia– constrói a sociedade, o estado e estabelece leis comuns comvistas a preservar, precisamente, a sua dimensão moral maior. Acondição de sobrevivência da sociedade reside, assim, no reco-nhecimento, antes da própria explicitação do sistema de normasjurídicas, de um conjunto de valores fruto da consciência moral

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de cada indivíduo. Essa é a ideia que se encontra nas teorias con-tratualistas da justificação da sociedade, do estado e do direito.

Logo, a punição com vistas, antes de tudo, a restabelecera igualdade violada pelo ato criminoso – quando um indivíduofurta, ele está, em última análise, estabelecendo uma relação dedesigualdade na sociedade – torna-se, assim, um problema moralantes de legal. Por essa razão, para que possamos ser tambémmoralmente justos no exercício do direito de punir, a punição doscrimes deve atender a duas exigências: defender a vítima e fazercom que o criminoso, através da pena, recupere a racionalidadeperdida, base de todo o relacionamento humano. O castigo con-cebido como vingança e o abolicionismo penal negam, um eoutro, esses dois aspectos inseparáveis da natureza da punição.

Crime e direitos do criminoso

Encontra-se no terreno da consciência moral uma ques-tão que ronda todo o debate sobre a natureza e a dimensão dapena. Essa questão pode ser formulada da seguinte forma: o fatode haver cometido um crime priva o criminoso dos seus direitoscomo pessoa? A resposta das teorias de que a pena é uma formanecessária de vingança desdobra-se na defesa da pena de mortee de que “bandido bom é bandido morto”. Acrescente-se à sedede vingança que se encontra entranhada na revolta diante docrime, as vinculações entre a pobreza e a criminalidade, temaesse que recebeu de muitos antropólogos e sociólogos um trata-mento inocente e abstrato. A impossibilidade de recuperação docriminoso dentro de um sistema penitenciário corrupto e violentolevou a outros tantos idealistas da criminologia ao paradoxo deafirmar que a pena em si mesma é um mal e que nada se pode e

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deve fazer diante do crime. Todo exercício de força ou uso da vio-lência contra o indivíduo é um ato ilícito e, por essa razão, a açãocontra o criminoso deve limitar-se a palavras de persuasão.

O mérito dessas doutrinas talvez possa residir no seuidealismo, mas o seu defeito consiste em não atingir seus obje-tivos. O princípio de tomar uma atitude passiva diante do crimi-noso rejeita qualquer medida de vingança ou de intimidação,mas exclui também as medidas necessárias para prevenir oscrimes ou mesmo para educar os criminosos. No fundo, essacegueira face às dimensões patológicas do ser humano e à rea-lidade social, fazem com que se torne irrelevante o fato de quea sociedade pressupõe a organização do bem, e não a liber-dade do mal.

O fato de o sistema de prisões ter se tornado uma má-quina de humilhação e degradação da pessoa do criminoso nãojustifica o enfraquecimento brutal da ação punitiva do Estado e,portanto, das próprias condições de recuperação do criminoso.Sustentar que a punição tornou-se ilegítima em virtude das con-dições de execução da pena seria o mesmo que sustentar quenão cabe ao Estado, por exemplo, intervir na educação públicadas crianças porque as escolas se encontram em estado de-plorável. Negar a punição significa abandonar a vítima a suaprópria sorte, de um lado, e, de outro, impedir que o infratorpossa trilhar o único caminho moralmente legítimo que lheresta: o cumprimento da pena como etapa na sua recuperaçãomoral e como cidadão.

A fundamentação ética da punição exigirá, assim, parasua formulação, que se aceitem três condições:

1. a punição expressa a condenação moral expressa,portanto, a repulsa moral da comunidade diante docrime praticado;2. destina-se a punição a servir como uma lição para

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todos os indivíduos, mostrando que tais atos são mausem si mesmos;3. pretende corrigir e recuperar o criminoso, fazendo comque cumpra uma pena e, com isso, possa emendar-se econformar-se com as leis sociais.

A punição, portanto, somente atenderá a essas exigên-cias quando significar algo mais do que a simples pena. Significaque o criminoso, pelo seu ato, se encontra em estado de dete-rioração moral e, ainda, que o ato criminoso provoca consequên-cias socialmente maléficas. Tanto para a sociedade, quanto parao criminoso, a resposta dada através da lei constitui-se em umaobrigação moral, pois somente assim sedimentam-se os laçosde respeito ao outro e o tratamento de todos obedecendo a umcritério de igualdade, alicerces da sociedade.

Nesse sentido, a punição reveste-se de um duploaspecto. Em primeiro lugar, ela se destina a dissuadir, e impedir,a prática de outros crimes. A punição visa, portanto, punir e,também, desencorajar o criminoso a reincidir no crime e servirde exemplo para toda a sociedade. Mas, por outro lado, a puni-ção tem a função de passar um julgamento sobre determinadocomportamento e mostrar quais valores a sociedade considerarelevantes para que sejam preservados. Assim, a re-educaçãodo criminoso torna-se um objetivo mediato da punição e não oseu objetivo principal. O criminoso, ao ser condenado, é res-ponsabilizado e o processo deve mostrar toda a sua deformi-dade moral e como isso repercute na consciência do infrator eda sociedade.

Como escreveu Soloviev (1997, p. 318), o fato de que asformas mais violentas de vingança ou de intimidação desapare-ceram das legislações penais modernas, além de representar umavanço no processo de garantia da justiça, tornou esses sistemaspunitivos mais eficazes, e, em última análise, constitui também

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um progresso moral. Esse progresso, entretanto, somente poderáser assegurado na medida em que não se considerar a puniçãodo criminoso como uma violência moral. Longe de ser imoral, apunição será obrigatória em consciência e deriva dos própriosprincípios morais alicerces da sociedade. Impedir um indivíduo depraticar um crime ou puni-lo pela sua prática significa, do pontode vista moral, que procuramos preservar no criminoso a sua pró-pria dignidade humana, gravemente ameaçada pela intenção eviolada pelo ato criminoso.

Uma reflexão pública sobre a questão da punição e dapena, que se situe para além das importantes dimensões socio-lógicas, econômicas, antropológicas e jurídicas dessa questão,tem ocorrido em diferentes países, como na Grã-Bretanha, naFrança, na Itália e na Espanha. A questão da segurança deve,assim, ser precedida por um debate público, que tenha por obje-tivo estabelecer os fundamentos do sistema de segurança no es-tado democrático de direito. No Brasil, essa reflexão sobre osistema penal somente receberá a prioridade espiritual, culturale social que lhe é devida nas sociedades democráticas quandoa inteligência nacional estiver esclarecida sobre a necessáriafundamentação filosófica da punição.

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Jayme Walmer de Freitas*

A DOAÇÃO VOLUNTÁRIA DE SANGUECOMO PENA RESTRITIVA DE DIREITOS

VOLUNTARY BLOOD DONATION AS THE

RESTRICTION OF RIGHTS PENALTY

LA DONACIóN VOLUNTARIA DE SANGRE COMO

PENA RESCRICTIVA DE DERECHOS

Resumo:

O presente artigo tem por fim oferecer diretrizes seguras de

enquadramento da doação de sangue como pena restritiva de

direitos. Desde a vigência da Constituição Federal, em 1988,

a doação de sangue tornou-se bandeira para muitos, como mo-

dalidade de prestação de serviços à comunidade ou a entida-

des públicas. Porém, o STF decidiu em sentido contrário e a

doutrina seguiu a interpretação dada. Este trabalho enquadra

a doação de sangue, a exemplo da doação de cestas básicas,

não no rol das penas restritivas típicas, mas sim no das penas

alternativas inominadas previstas no art. 45, §2º, do diploma

penal. Parte-se da premissa que não pode ser imposta por sen-

tença condenatória, mas fruto de acordo, de consenso, nas in-

frações de menor e médio potencial ofensivo. Para sua

* Mestre e doutorando em Processo Penal pela PUC/SP. Professor e Coor-denador Regional de Pós-Graduação da Escola Paulista da Magistratura.Autor das obras Prisão Temporária (2 ed.), OAB – 2ª Fase – Área Penal (3ed), Penal Especial, na Coleção SOS Direito, todas pela Editora Saraiva.Coordenador da Coleção OAB – 2ª Fase, pela mesma Editora. Coautor dolivro Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade Humana, sob a coordenação deJorge Miranda e Marco Antonio Marques da Silva, pela Editora QuartierLatin. Palestrante.

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adequação ao modelo sugerido, exige-se ofereça duas ou mais

propostas – uma delas contendo a doação de sangue –, para

que o autor do fato ou réu, acompanhado de seu advogado,

exerça sua opção, respeitando-se sua individualidade.

Abstract:

This article aims at providing guidelines for secure framework of

blood donation as a punishment involving the restriction of rights

penalty. As of the Federal Constitution in 1988, donating blood

has become a logo for many, as a way of rendering services to

the community or to public entities. However, the Supreme Court

has ruled to the contrary and the doctrine has adhered to such

interpretation. This paper incorporates blood donation, as in the

donation of food baskets, not to the list of typical restrictive pe-

nalties, but to the unnamed alternative penalties provided for in

art. 45, § 2, of the penal law. It starts from the premise that it can-

not be imposed by a final verdict of guilty, but it is the result of an

agreement, of a consensus, in minor and middle potential offense

infractions. For its suitability to the suggested model, it is required

two or more proposals - one containing blood donation - so the

perpetrator or defendant, accompanied by his/her lawyer, exerci-

ses his/her option, respecting his/her individuality.

Resumen:

Este artículo tiene por objeto proporcionar directrices para un

marco de seguridad de la donación de sangre como pena restric-

tiva de derechos. Desde la vigencia de la Constitución Federal en

1988, la donación de sangre se ha convertido en una bandera para

muchos, como un medio para la prestación de servicios a la co-

munidad o a las entidades públicas. Sin embargo, el Supremo Tri-

bunal Fedral decidió en sentido contrario y la doctrina siguió la

interpretación dada. Este trabajo se ajusta a la donación de sangre,

a ejemplo de la donación de cestas de alimentos, no en la lista de

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las penas restrictivas típicas, pero en la de las penas alternativas

no identificadas previstas en el art. 45, § 2, de la ley penal. Co-

mienza con la premisa de que no puede ser impuesta por una sen-

tencia condenatoria, sino como el resultado de un acuerdo, de un

consenso, en las infracciones de menor y medio potencial ofen-

sivo. Para su adecuación al modelo propuesto es necesario que

se ofrezcan dos o más propuestas - una de ellas sobre la donación

de sangre-, para que el autor de hecho o el acusado, acompañado

por su abogado, ejerza su opción, respetándose su individualidad.

Palavras-chaves:

Doação, sangue, pena restritiva de direitos.

Keywords:

Donation, blood, restriction of rights.

Palabras clave:

Donación, sangre, pena restrictiva de derechos.

As penas restritivas de direitos

No Brasil, as penas restritivas de direitos foram disciplinadaspela primeira vez na reforma de 1984, limitando-se às infraçõescuja pena não alcançasse o patamar de um ano e às culposas.As penas restritivas previstas naquele momento histórico eram deprestação de serviços à comunidade ou às entidades públicas;proibição de exercício de cargo, função ou atividade pública;proibição de exercício de profissão, atividade ou ofício; suspensãode autorização ou habilitação para dirigir veículo; limitação de fimde semana; e multa.

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O perfil de admissão de penas não privativas de liber-dade foi acentuado logo após, com a Constituição Federal, em1988. Em seu art. 5º, XLVI, a Carta Magna garantiu fundamen-talmente que a individualização da pena seria disciplinada porlei ordinária e estabeleceu como penas, entre outras, a priva-ção ou restrição da liberdade; a perda de bens; a multa; a pres-tação social alternativa; e a suspensão ou interdição dedireitos.

As penas restritivas de direitos, uma vez admitidas pelaLei Maior, receberam, dez anos mais tarde, relativa inovaçãoatravés da Lei 9.714/98, que alterou o Código Penal. O art. 43do Código Penal trata das penas restritivas de direitos e foi rees-crito, passando a prever, além daquelas mencionadas acima, aspenas de prestação pecuniária, perda de bens e valores, proibi-ção de frequentar determinados lugares e prestação alternativainominada.

Ampliou o âmbito de incidência das penas restritivas.Essas são autônomas e substituem as penas privativas de liber-dade de crime cuja pena máxima não seja superior a 4 (quatro)anos e desde que este não tenha sido praticado com violênciaou grave ameaça ou se for culposo. São autônomas, porque nãosão acessórias, independem da imposição de sanção detentiva(reclusão, detenção ou prisão simples), como leciona Damásiode Jesus (2006, p. 178); e substitutivas, porque, individualizadaa pena privativa de liberdade, o magistrado poderá substituí-lapela restritiva. Pode-se dizer que o legislador, sabiamente, optoupelo não encarceramento do criminoso que pratica infrações deleve e médio potencial ofensivo consciente da falência do sistemapenitenciário.

No consistente artigo “Em busca da legalidade das al-ternativas penais”, apresentado no I Congresso Brasileiro de Exe-cução de Penas e Medidas Alternativas, realizado em Curitiba noano de 2005, a Promotora de Justiça paranaense Mônica Louise

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de Azevedo, citando Claus Roxin e diversos outros penalistas derenome, aponta caminhos para a superação da pena corporal forada clausura do sistema penitenciário, com ênfase às medidas al-ternativas em infrações leves e de médio potencial ofensivo. Pon-derou, aliás, que o festejado penalista alemão,

observando os avanços e retrocessos dos últimos séculos dahistória das idéias penais, arrisca um prognóstico para o direitopenal do século XXI, que acredita continuará existindo comofator de controle social secularizado: a gradativa substituiçãoda pena privativa de liberdade por outras penas ou conseqüên-cias jurídicas ao ilícito; a supressão definitiva das penas corpo-rais, por se constituírem em atentados contra a dignidadehumana; o retrocesso da utilização da pena de prisão e o sur-gimento de novas formas de controle eletrônico e de medidasterapêuticas sociais, além da maior utilização do trabalho co-munitário e da reparação civil do dano. Justifica esta previsãopela inexistência de vagas e recursos financeiros para executara pena de prisão de forma humanitária e pela impossibilidadede punir a maioria dos delitos com ela.

A falência do sistema prisional e a adoção de medidasinovadoras que atinjam o mesmo fim proposto pela pena, semencarceramento, fizeram surgir, três anos antes da modifica-ção da codificação penal, a Lei 9.099/95, que abarca infraçõesde menor potencial ofensivo – as contravenções penais e,atualmente, os crimes a que a lei comina pena máxima nãosuperior a 2 (dois) anos –, e detém como objetivos maiores areparação do dano à vítima e a aplicação de pena não priva-tiva de liberdade (art. 62, in fine). Inspirada na mitigação doprincípio da legalidade e no consensualismo, o diploma per-mite a barganha entre o acusador e o autor do fato e seu ad-vogado. O art. 76 preceitua que o órgão ministerial, aooferecer sua proposta de acordo, poderá oferecer transaçãopenal consistente na aplicação imediata de pena restritiva dedireitos ou multas. Há mais. No art. 89, ao oferecer a denúncia– nos crimes em que a pena máxima cominada for igual ou in-ferior a 1 (um) ano –, o órgão ministerial, nos crimes previstos

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em qualquer lei, poderá propor a suspensão condicional doprocesso, mediante condições determinadas.

Tanto na transação penal como no sursis processual, épraxe dos integrantes do Ministério Público, e até dos querelan-tes – nas ações penais de natureza privada – ofertarem propos-tas que contenham penas não catalogadas, como, por exemplo,a doação de cestas básicas, que se tornou “coqueluche” emnossa nação por seu caráter altruísta, pedagógico e socializante.Registre-se que, não obstante o teor das propostas, o agente dodelito e seu advogado podem repeli-las ou questioná-las visandoseu abrandamento. É a busca do consenso.

No mesmo diapasão, insere-se o foco principal dopresente trabalho: a doação de sangue. Esta, diferentemente dequalquer outra pena restritiva de direitos, pressupõe contato pes-soal entre o magistrado ou conciliador com o agente para explana-ção das nuances específicas desse ato de benevolência. Em outrostermos, como se exporá no curso deste trabalho, a pena consis-tente na doação de sangue somente pode derivar de transaçãopenal e de suspensão condicional de processo, não de condena-ção, por sentença. É pressuposto inarredável o contato humanoentre juiz, Ministério Público, agente e seu patrono. Nas palavrasde Sérgio Salomão Shecaira (1993, p. 90), “O processo de aplica-ção da pena deve ser dialógico”.

Explica-se: somente após o autor da infração e seu ad-vogado optarem, dentre as propostas ministeriais, por aquelaconcernente à doação de sangue é que lhe será apresentadoum questionário inicial com as exigências mínimas para o ato.Ultrapassada essa etapa, será lavrado o acordo a ser homolo-gado judicialmente. Isso porque nem todos estão aptos a doarsangue, fator que, por si só, inviabiliza um decisório com seme-lhante determinação.

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A prestação de serviços à comunidade

Dentre as penas restritivas, estou convencido de que aprestação de serviços à comunidade ou às entidades públicas é aque mais aproxima o autor do fato, nas infrações de menor poten-cial ofensivo, ou o réu, nas de médio potencial, de seu semelhantee o torna um cidadão útil a si – melhoria na autoestima –, à família– da qual não fica segregado – e à sociedade – por receber algoconcreto a seu favor e aprovar a não segregação do semelhante.Essas penas têm a natureza de respeitar o homem em seu bemmaior – a dignidade –, porquanto de sua aptidão e habilidade pes-soal é que será determinado o que realizará em favor da comuni-dade. O autor da infração cumprirá a pena trabalhando para asociedade. Objetivamente, favorece a comunidade em que vive.

Observa-se, em Guilherme de Souza Nucci (2003), pen-samento similar. Dispõe o doutrinador que “Trata-se, em nossoentender, da melhor sanção penal substitutiva da pena privativade liberdade, pois obriga o autor de crime a reparar o dano cau-sado através de seu trabalho, reeducando-se, enquanto cumprepena” (idem, p. 235).

Por seu caráter de cidadania e inserção ou reinserçãosocial, pode ser considerada a mais adequada para a maioriados casos.

Ensinava Shecaira (1993, p. 90-91), no início da décadade 90, que

No direito europeu e norte-americano – e nas legislações maisrecentes e modernas – é a prestação de serviços à comuni-dade a principal alternativa penal à provação de liberdade decurta duração [...]. Em um país que apresenta um quadro comgrande número de pessoas que cometem pequenos delitos(especialmente crimes contra o patrimônio) e, de outro lado,que tem uma situação crônica de presídios superlotados, aprestação de serviços à comunidade é medida eficaz a ser in-centivada como alternativa à pena prisional de curta duração.

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E quais são os momentos processuais rotineiros para suaimposição? São três: a) transação penal em crimes de ação públicaou privada; b) suspensão condicional do processo, no procedimentosumaríssimo da Lei 9.099/95; e c) suspensão condicional do pro-cesso, no rito ordinário do Código de Processo Penal ou especialde Lei Extravagante. Qualifiquei-os como rotineiros uma vez que hásituações excepcionais, como na emendatio libelli e na mutatio libelli,em que, no curso do processo, com a instrução praticamente finali-zada, descobre-se o cabimento dos institutos despenalizadores.

A prestação de serviços à comunidade, em grande partedo Estado de São Paulo, é desenvolvida por órgão afeto à Secre-taria de Administração Penitenciária, denominado de Central dePenas e Medidas Alternativas, e que o torna um braço forte e im-portante para as Varas de Execuções Penais.

Em sua estratégia de ação, a Central de Penas realiza con-vênios com diversas entidades públicas e privadas, de modo a pro-piciar um leque de alternativas para o agente. Após entrevista prévia,o atendente, ciente do perfil do entrevistado, indica a instituição maisapropriada para o trabalho e, estando o agente concorde, será en-caminhado para cumprir sua pena. De forma efetiva e palpável, ocondenado retribui, para a coletividade, o mal que praticou.

Alberto Silva Franco (2007, p. 285) esclarece que

é ele obrigado a prestar pessoalmente, durante certo númerode horas semanais que se prolongam por tempo predetermi-nado, tarefas gratuitas junto a determinadas entidades, públicasou particulares. Ao fazê-lo, é evidente que não dispõe mais dotempo livre correspondente a essas horas semanais já que, sobacompanhamento, vê-se na contingência, nesse espaço tem-poral, de realizar, sem remuneração, algum tipo de trabalho.

O art. 149, §1º, da Lei de Execuções Penais, prescreve que

“O trabalho terá a duração de oito horas semanais e será rea-lizado aos sábados, domingos e feriados, ou em dias úteis,de modo a não prejudicar a jornada normal de trabalho, noshorários estabelecidos pelo Juiz.

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Emana claro do esposado que é da essência da presta-ção de serviços a realização de um trabalho personalíssimo, exer-cido pelo agente em dia e horário que não afetem o seu labordiário. Daí poder ser realizado em finais de semanas e feriadosou em horário compatível com aquele.

Por essa razão que, quando da primeira ideia de implan-tação da doação de sangue no Brasil, esta foi coibida pelo Su-premo Tribunal Federal. Na ocasião, interpretava-se comomodalidade de prestação de serviços à comunidade, o que, porinterpretação ampliativa, não deixaria de ser. No entanto, em votoda lavra do erudito ministro Celso de Mello, a interpretação foi res-tritiva e o sonho foi afastado até o início deste século. Naquelaoportunidade, o STF foi instado a se manifestar acerca de sen-tença em que magistrado fluminense substituíra a pena privativade liberdade por pena restritiva de direitos consistente em doaçãode sangue. Pelo voto, a mesma foi cassada e determinada queoutra fosse prolatada (HC 68.309/DF). No voto, o Ministro Celsode Mello destacou que

A exigência judicial de doação de sangue não se ajusta aos parâ-metros conceituais, fixados pelo ordenamento positivo, pertinentesà própria inteligência da expressão legal ‘prestação de serviços àcomunidade’, cujo sentido, claro e inequívoco, veicula a ideia derealização, pelo próprio condenado, de encargos de caráter ex-clusivamente laboral. Tratando-se de exigência conflitante com omodelo jurídico-legal peculiar ao sistema de penas alternativas ousubstitutivas, não há como prestigiá-la e nem mantê-la.

Como ciência que é o Direito evolui, com o passar dosanos surge a doação de cestas básicas como a salvação dosmais humildes. Os integrantes do tripé jurídico encararam a novi-dade e foi encontrada, no próprio ordenamento jurídico – o CódigoPenal –, a qualificação técnico-jurídica para enquadramento doinstituto. Por idênticos fundamentos, a doação de sangue devereceber o mesmo enquadramento e se tornar uma realidade pau-lista e nacional igualmente simpática aos olhos da sociedade.

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A doação de cestas básicas. Natureza jurídica: prestaçãoalternativa inominada (CP, art. 45, §2º)

A mesma afinidade que nutria pela pena restritiva dedireitos, consistente na prestação de serviços à comunidade oua entidades públicas, passou a me seduzir na pena alternativainominada, por permitir a doação de cestas básicas para entida-des que a revertem em prol de pessoas carentes. Idêntica sim-patia me veio porque, agora – nunca é tarde para a consecuçãode objetivos sociais relevantes –, vislumbrei que a doação desangue é tecnicamente idêntica.

Existe um adensamento doutrinário no sentido de que a doa-ção de cestas básicas é uma prestação inominada. Não obstante,essa mesma doutrina pondera que a pena em questão – prestaçãoalternativa inominada –, tal qual posta no diploma penal, ofende prin-cípios basilares de Direito Penal e seria inconstitucional.

No escólio de Renato Marcão (2010, p. 267), respaldadopor Cezar Roberto Bitencourt e Damásio de Jesus,

A pena de prestação de outra natureza ou inominada padece deflagrante inconstitucionalidade, já que equivale a uma pena inde-terminada, contrariando o princípio da reserva legal albergado noart. 1º do Código Penal, de prestígio constitucional, conforme de-corre do disposto no art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal.

É que o § 2º do art. 45 do diploma penal dispõe que “Nocaso do parágrafo anterior, se houver aceitação do beneficiário, aprestação pecuniária pode consistir em prestação de outra natureza”.

Acrescenta Renato Marcão (2010, p. 267) que

Conforme asseverou Cezar Roberto Bitencourt, “em termos desanções criminais são inadmissíveis, pelo princípio da legali-dade, expressões vagas, equívocas ou ambíguas. E a nova re-dação desse dispositivo, segundo Damásio de Jesus, cominasanção de conteúdo vago, impreciso e incerto”.

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Cezar Roberto Bitencourt (2004), mesmo após criticar apena inominada por ser indeterminada e, por conseguinte, viola-dora do princípio da reserva legal, arremata afirmando que essapena seria, na realidade, “uma espécie substituta da substitutada pena de prisão!”. E, como a substituição da prestação pecu-niária se dá por uma prestação de outra natureza e dependenteda aceitação do beneficiário, certamente é dotada de caráterconsensual (grifos nossos). E quem seria o beneficiário da penaconvertida? Defende, com razão, que é “o beneficiário do resul-tado da aplicação dessa pena pecuniária, que, como afirmamos,tem caráter indenizatório (idem, p. 518-519).

No mesmo sentido, a lição de René Ariel Dotti (1999, p.100): "O Juiz não pode aplicar pena que não esteja expressa-mente prevista na lei. Trata-se de reafirmar o princípio da ante-rioridade da lei quanto à definição do crime e o estabelecimentoda sanção".

Perfilha a mesma linha de entendimento, Luiz FlávioGomes (1999, p. 64). Luiz Flávio lembra que Beccaria, há maisde duzentos anos, já postulava não só a existência de lei para acriação de delitos e penas, senão também a vinculação do juizao texto legal e, sobretudo, a legitimidade exclusiva do legisladorpara criar tais leis.

A despeito das respeitáveis críticas doutrinárias, o textolegal propiciou a abertura de um espectro de penas alternativasao magistrado com o fito de permitir, sempre, a transação, desdeque se evite o encarceramento e se respeite os lindes constitu-cionais para tal fim. Caso o autor da infração não esteja em con-dições de arcar com determinada prestação alternativanominada, um rol de opções lhe pode ser oferecido para atenderà exigência estatal de cumprimento da pena.

Se o intérprete atentar para a redação do § 2º poderá in-ferir que, na doação de cestas básicas, o dispositivo é atendidoem toda a sua amplitude. Conquanto se critique a redação

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aberta, sujeita a toda espécie de interpretação subjetiva judicial,a doação se amolda perfeitamente ao disposto.

Vejamos: para distribuir cestas básicas, o magistrado cri-minal cadastra uma série de instituições em sua Vara, aptas ecom estrutura para o recebimento e distribuição das mercadoriasaos mais carentes da comunidade. A instituição deve ser reco-nhecidamente de utilidade pública e prestigiada nos meios sociaispelo seu trabalho em favor dos mais necessitados. Com este pré-requisito fundamental, preenche-se o tópico do dispositivo ati-nente a se houver aceitação do beneficiário. Como o art. 45, §1º, exige que seja “entidade pública ou privada com destinaçãosocial”, o cadastramento é o bastante.

A proposta ministerial de doação de cestas básicas a umainstituição de caridade aceita pelo agente constitui-se, então, naformalização de uma pena restritiva de direitos inominada. Nesseacordo homologado judicialmente, o autor da infração assume aobrigação de entregar, dentro de certo lapso temporal, determi-nada quantidade de cestas básicas.

A doação de cestas básicas é, portanto, modalidade deprestação alternativa inominada não pecuniária homologadajudicialmente.

Damásio Evangelista de Jesus (2006), ao discorrer sobreo indigitado polêmico parágrafo e discutir as críticas sobre sua re-dação, defende que prestação de qualquer natureza como estána Lei significa, de fato, pecuniária ou não (grifos nossos). Con-tradiz a maioria da doutrina ao asseverar que o dispositivo se en-contra em consonância com as Regras de Tóquio, uma vez queestas recomendam ao juiz a aplicação, se necessário e conve-niente, de qualquer medida que não envolva detenção pessoal.E acrescenta:

Medida liberal corresponde, entretanto, ao ideal de justiça, pelaqual ao juiz, nas infrações de menor gravidade lesiva cometidaspor acusados não perigosos, atribuir-se-ia o poder de aplicarqualquer pena, respeitados os princípios de segurança social

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e da dignidade, desde que adequada ao fato e às condiçõespessoais do delinquente. (idem, p. 188-189).

Jesus, em meu sentir, está coberto de razão ao defenderque a prestação pode ter natureza pecuniária ou não, porquantoa lei, ao prever a substituição da prestação pecuniária por pres-tação de outra natureza, permitiu aos envolvidos no negócio ju-rídico, a ser travado entre partes e juiz, escolher uma pena quecorresponda aos ideais preconizados pela Carta Magna, desdeque não privativa da liberdade e ajustada à realidade do agente.

Nessa esteira, Celso Delmanto et alli (2007, p. 165)orienta que, excluída a prestação pecuniária, a prestação de outranatureza “poderá consistir, v.g., na doação de cestas básicas ouem serviços de mão-de-obra”.

Sem destoar, Mirabete declina (1999, p. 295) que

se houver aceitação do beneficiário, ou seja, do ofendido ou daentidade pública ou privada com destinação social, a prestaçãopecuniária poderá constituir-se, por decisão, do juiz, em pres-tação de outra natureza, como o fornecimento de cestas bási-cas, por exemplo.

Também Fernando Capez (2001, p. 358) pugna, ao cuidarda prestação inominada, que

a prestação pecuniária poderá consistir em prestação de outranatureza, como, por exemplo, entrega de cestas básicas a ca-rentes, em entidades públicas ou privadas. A interpretação,aqui, deve ser a mais ampla possível, sendo, no entanto, im-prescindível o consenso do beneficiário quando o crime tivercomo vítima pessoa determinada.

O Pleno do STF, em voto da lavra do Min. Joaquim Bar-bosa, nos autos do Inquérito 2.721/DF, em 08.10.2009, deu porcorreta a decisão judicial que homologou a doação de cestasbásicas como pena alternativa, fundamentando que

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O crime investigado é daqueles que admitem a transação penale o indiciado cumpre os demais requisitos legais do benefício.Embora haja controvérsia sobre a possibilidade de a prestaçãopecuniária efetivar-se mediante a oferta de bens, a pena alter-nativa proposta pelo Ministério Público - doação mensal de ces-tas básicas e resmas de papel braile a entidade destinada àassistência dos deficientes visuais, pelo período de seis meses- atinge à finalidade da transação penal e confere rápida soluçãoao litígio, atendendo melhor aos fins do procedimento criminal.

O STJ tem como fora de discussão que a doação de ces-tas básicas consiste em modalidade distinta da prestação de ser-viços à comunidade, tanto que a rejeita como substitutiva daquelaem sede de execução, caso inviável seu cumprimento por partedo condenado. Se o condenado não puder cumprir a prestaçãode serviços estipulada, deverá o juiz das execuções impor-lheoutra, adaptada à sua aptidão, sem substituí-la pela doação decestas. Veja-se o seguinte aresto:

A competência do Juízo das Execuções Criminais limita-se àalteração da forma de cumprimento da pena de prestação deserviços à comunidade aplicada pelo Juízo Criminal proces-sante (CP, art. 59, inc. IV), ajustando-a às condições pessoaisdo condenado e às características do estabelecimento, da en-tidade ou do programa comunitário ou estatal’ (Lei 7.210/84,art. 148), sem, contudo, substituí-la por pena restritiva de direi-tos diversa. (STJ, HC 38052/SP, 5ª Turma, Rel. Min. ArnaldoEsteves Lima, DJ de 10/04/2006)

Os tribunais estaduais trilham no mesmo sentido. Na doutrina, encontramos opiniões divergentes para a

natureza jurídica da doação de cestas básicas. A juíza RosanaNavega Chagas, titular de Vara de Juizado Criminal de NovaIguaçu, no Estado do Rio de Janeiro, em artigo específico no qualdefende a doação de sangue, distingue a pena de prestação deserviços à comunidade da prestação social alternativa previstano texto constitucional aduzindo:

Frise-se que tal modalidade de pena, muito embora asseme-lhada, não é igual a pena alternativa da prestação de serviços

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à comunidade, uma vez que a lei tem por um dos seus princí-pios básicos não conter palavras inúteis. Em síntese, existemrazões, de ordem técnica, para a nova denominação, e queconsiste, a toda evidência, na criação de uma nova modalidadede pena alternativa a da prisão, quando couber.

Depois de muita reflexão sobre a melhor disciplina da na-tureza jurídica da doação de cestas básicas, convenci-me, gra-ças à doutrina, que se insere no contexto da prestação inominadaescudada no art. 45, §2º, do Código Penal. Nesse diapasão, fir-mei o entendimento de que a doação de sangue, igualmente,deve receber idêntico tratamento.

A razão é a mesma esposada, porquanto o magistradocriminal cadastra, previamente, instituições idôneas para oatendimento ao futuro doador, por exemplo, a Colsan, em So-rocaba. Feito o acordo judicial, o autor da infração é orientadoa lá comparecer, onde será submetido a exames de praxe parase certificar se pode, efetivamente, doar. Coletado seu sangue,receberá o comprovante respectivo, que será apresentado emjuízo para as anotações de praxe quanto ao cumprimento dareprimenda.

Atendidos esses singelos requisitos da prestação inomi-nada, o doador terá por cumprida sua pena, prestando um serviçocomunitário de alcance imensurável, beneficiando diretamente asaúde de terceiros.

E se, malgrado o acordo judicial, o autor for impedido dedoar sangue, por exemplo, por estar com ou ter tido hepatite ouser portador de hepatite C? Nessa hipótese, deverá comparecerao Cartório, onde será informado da necessidade de substituiçãoda pena de doação de sangue. Em regra, a substituição será peladoação de cestas básicas, ainda que imposta cumulativamente.

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A doação de cestas básicas e as transações. Crítica

Como é conhecido por todos que militam na área crimi-nal, a doação de cestas básicas tornou-se uma das modalidadesmais figuradas, dentre as hipóteses de pena alternativa, dadasua capacidade de auxílio direto e efetivo aos mais carentes. Nãoobstante, salvo raríssimas exceções, como as contravenções pe-nais de pequena expressão, a simples doação de cestas nãodeve ser a única sanção para o cumprimento da pena previstano tipo penal incriminador.

Com a devida vênia aos que pensam diversamente, asimples e exclusiva doação de cestas básicas não exerce papelalgum na reeducação do agente. Por si só, é desproporcional edesarrazoada. É salutar lembrar que o juiz exerce o papel de edu-cador em praticamente toda sua vida profissional, e, por ser co-nhecedor do direito – jura novit curia –, jamais deve banalizar apena. É inconcebível o autor de um crime deixar o fórum dandode ombros, zombando de todo o aparato estruturado para recebê-lo, e expressando em alto e bom som que dará duas ou três ces-tas básicas e sua pena estará cumprida.

René Ariel Dotti (1998, p. 212) ensina que “A penadeve retribuir juridicamente a culpabilidade do agente. Em úl-tima instância ela é o efeito de uma causa e deve guardar a re-lação de proporcionalidade entre o mal do ilícito e o mal devidoao infrator”.

O órgão ministerial, do mesmo modo, deve refletir sobreessa crítica.

Em meu sentir, a doação de cestas básicas deve ser cu-mulada com outra. O simples comparecimento a uma instituiçãode caridade e a entrega dos mantimentos não exerce, pedagogi-camente, o caráter preventivo especial. Conquanto a sociedadereceba algo em favor de uma entidade que cuida de filhos seus,

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a reeducação inexistiu. Os próprios advogados criminais nos suge-rem a cumulação. Alegam que se sentem profissionalmente reco-nhecidos ao conseguirem uma pena branda para seu cliente, masse sentem frustrados quando constatam que a medida punitiva é de-masiado leve.

Assim, a par da doação de cestas básicas em uma infra-ção leve, nada impede que o órgão ministerial ofereça propostade mais expressão penal como, por exemplo, a prestação efetivade serviços + a doação de cestas básicas.

Repise-se que casos haverá em que a mera doaçãoatenda ao reclamo da razoabilidade e da proporcionalidade,contudo, essas situações são excepcionais para se tê-lascomo práxis.

O surgimento da ideia da doação de sangue

No início do ano de 2010, por problema de saúde enfren-tado por um sobrinho de um grande amigo, tive contato com asconsequências letais que a falta de sangue pode acarretar. Foium alerta e, logo após, chamou-me a atenção várias notícias demorte ou de perigo de morte em função da carência sanguíneaem hospitais, com ênfase no nordeste, Rio de Janeiro, São Pauloe em minha cidade, Sorocaba.

Fiz uma breve pesquisa e constatei que, em nosso país,não são raros os episódios de morte por deficiência de sanguepara a transfusão salvadora de vidas.

Para que se tenha noção da gravidade do problema: oBrasil precisa de, pelo menos, 5.500 bolsas de sangue por dia,mas não consegue metade, justamente pela falta de doadores.

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De acordo com o Ministério da Saúde, no Brasil apenas1,9% da população é doadora de sangue. Mesmo estando esteporcentual dentro do parâmetro da Organização Mundial de Saúde(OMS) – de 1% a 3% da população –, o Ministério considera queé urgente e possível aumentar o número de brasileiros doadores:se cada pessoa doasse duas vezes ao ano não faltaria sanguepara transfusão no país. No Brasil, onde o volume coletado é equi-valente ao número de doadores voluntários (3,5 milhões de bolsasde sangue por ano), essa quantidade disponível nos hemocentrospoderia ser duas vezes maior. O ideal seria 5,7 milhões.

Nos finais de ano, o Ministério enfrenta uma preocupa-ção maior, porque o estoque é reduzido em 30% em função dasférias escolares.

Para minimizar a falta de estoque, as campanhas de doa-ção são frequentes em todo o país, como vemos rotineiramente.

Pelo sítio oficial da Secretaria da Saúde do Estado deSão Paulo infere-se que a Fundação Pró-Sangue, ligada à Se-cretaria de Estado da Saúde e à Faculdade de Medicina da Uni-versidade de São Paulo, coleta, em média, 12.000 bolsasmensalmente, volume de sangue equivalente a aproximada-mente 32% do sangue consumido na Região Metropolitana deSão Paulo, 16% do Estado e 4% do Brasil.

A propósito, o desabafo da Dra. Maria Angélica Soares,coordenadora do Hemocentro do Hospital São Paulo da UNI-FESP, em entrevista concedida a Dráuzio Varella:

Ninguém está livre de precisar de uma transfusão de sangue.Ninguém está livre de sofrer um acidente, de passar por umacirurgia ou por um procedimento médico em que a transfusãoseja absolutamente indispensável. Como não existe sangue sin-tético produzido em laboratórios, quem precisa de transfusãotem de contar com a boa vontade de doadores, uma vez quenada substitui o sangue verdadeiro retirado das veias de outroser humano. Todos sabem que é importante doar sangue. Mas,quando chega a nossa vez, sempre encontramos uma desculpa– Hoje está frio ou não estou disposto; nesses últimos diastenho trabalhado muito e ando cansado; será que esse sangue

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não me vai fazer falta... – e vamos adiando a doação que pode-ria salvar a vida de uma pessoa. Sempre é bom frisar que o san-gue doado não faz a menor falta para o doador.Consequentemente, nada justifica que as pessoas deixem dedoá-lo. O processo é simples, rápido e seguro. (Disponível em:www.drauziovarella.com.br)

Com um pouco de noção do que é doar sangue, percebique o juiz é um ferramental impressionante para cooperar com oquadro atual ao estimular autores de infrações a praticarem umaboa ação. Se juízes e membros do Ministério Público, espalhadospelos mais distantes rincões, unirem seus esforços para inserir adoação de sangue como pena alternativa à prisão, nas hipótesesfincadas na Lei 9.099/95 – transação penal e suspensão condicio-nal do processo –, por certo milhares de vidas seriam poupadas.

Em outros termos, sob a ótica do sistema acusatório, ojuiz, representando o Poder Judiciário, o Ministério Público ou oquerelante oferecendo sua proposta, representando o Poder pu-nitivo estatal, a Defensoria Pública e a Ordem dos Advogados doBrasil, representando e ao lado do autor do fato, estaria formadoo tripé de solidariedade em prol de pessoas que necessitam desangue para sobreviver.

Uma vez que o ideal de todos está focado na probabili-dade efetiva de se salvar vidas, basta agir.

Interessante notar que o problema é mundial e não so-mente brasileiro.

Para se aquilatar o que existe pelo mundo, a Cruz Verme-lha Americana apresenta, em seu sítio oficial, fatos e estatísticasde cuja abordagem extraio e destaco dois que são compatíveiscom o presente trabalho:

a) Da necessidade: a cada dois segundos, alguém nosEUA necessita de sangue; mais de 38.000 doadores desangue são necessários a cada dia; mais de um milhãode novas pessoas são diagnosticadas com câncer acada ano, muitas delas necessitam sangue, às vezes

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diariamente, durante o tratamento de quimioterapia; a ví-tima de um simples acidente de carro pode exigir atécem litros de sangue;b) Dos doadores: a razão principal porque os doadoresdizem doar sangue é que eles “querem ajudar o pró-ximo”; dois motivos comuns citados pelas pessoas quenão doam sangue são: “nunca pensei sobre isso” e “eunão gosto de agulhas”; uma doação pode ajudar a salvara vida de até três pessoas; se você começar a doar san-gue aos 17 anos e doar a cada 56 dias até alcançar 76,você terá doado quantidade provável para salvar maisde 1000 vidas; a Cruz Vermelha Americana aceita doa-ção de sangue somente de doadores voluntários.

Dado que a necessidade de sangue é universal, nospróximos itens retratarei como se iniciou este processo na Varada qual sou titular e como está se desenvolvendo. Essa exposi-ção visa auxiliar ou servir de subsídio para que qualquer colegafaça o mesmo. Cada um dos protagonistas que forma o tripé dajustiça brasileira deve colaborar para que a doação de sangueseja, a exemplo da doação de cestas básicas, um novo para-digma, uma pena alternativa inominada a ser igualmente ado-tada, com o diferencial natural de auxiliar na cura de doenças esalvar a vida do semelhante. Se em Nova Iguaçu (RJ) e em Cu-ritiba (PR), bem como em inúmeras outras cidades que nestasse inspiraram, a doação voluntária de sangue – como pena al-ternativa inominada – é uma realidade, o estado de São Pauloe os demais estados da nação precisam a ela se irmanar. OPoder Judiciário, o Ministério Público, a Defensoria Pública e aOrdem dos Advogados do Brasil devem unir-se nessa cruzadapara contribuir, de forma efetiva e intransigente, com a melhorada saúde em nosso país.

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A doação voluntária de sangue como modalidade de penarestritiva. Implantação

Diante desse quadro de perene imprescindibilidade damatéria-prima que somente nós, humanos, temos e podemos ma-terializar, senti-me impelido a desenvolver algo palpável, aindaque embrionário, na 1ª Vara Criminal de Sorocaba.

Conversei com o médico responsável pela Colsan – As-sociação Beneficente de Coleta de Sangue – na cidade de Soro-caba, Dr. Frederico Brandão. A Colsan é uma entidade civilpaulista, sem fins lucrativos, que atua na área de hemoterapia,promovendo a captação de doadores, coleta, análise e proces-samento do sangue e, posteriormente, a distribuição dos hemo-componentes, bem como os procedimentos pré-transfusionais,ligada à Unifesp.

Houve imediata interação e aceitação do propósitolançado.

De nosso diálogo, ciente de como o futuro doadordeve ser preparado para seu importante ato voluntário, men-talmente registrei os procedimentos a serem adotados na au-diência preliminar ou na de suspensão.

Para que o autor do fato/réu não se sinta coagido a fazero que não quer ou lhe é proposto, obrigatoriamente duas ou maispropostas hão de ser fornecidas pelo órgão ministerial ou quere-lante. Assim, na entrevista entre conciliador ou juiz com o autor dainfração ser-lhe-á dado ciência das propostas ministeriais. Aceitaa proposta com doação voluntária de sangue, além das demaiscondições, estaria fechado o ciclo e alcançado o objetivo maior.

Convenci-me da viabilidade jurídica da nova modalidadede pena restritiva de direitos. Em seguida, conversei com os juí-zes criminais da Comarca sobre os meus propósitos e pondereique se fazia imperativa a informação e a parceria com os demais

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protagonistas do cenário jurídico. Reuni-me com as Promotorasde Justiça atuantes na Primeira Vara Criminal, as quais concor-daram de imediato. Por fim, o Defensor Público, que concordoue se irmanou à proposta.

Atentem que a Defensoria Pública é o órgão que dáorientação jurídica para os hipossuficientes na seara penal.Segundo o Defensor Público atuante na 1ª Vara Criminal, Dr.Octavio Bueno, a grande maioria dos entrevistados opta peladoação de sangue, pois não despenderá valor algum e, aomesmo tempo, fará um grande bem para seu semelhante, in-clusive salvando vidas.

Tive certa preocupação com a reação dos advogados,mas relatarei um episódio, aliás, dois, que ocorreram na se-mana do feriado de 15 de novembro de 2010 para que se possaavaliar o alcance do que representa a doação de sangue na opi-nião dos operadores do direito, os quais falam por si. Um advo-gado de fora da terra e desconhecedor da novidade orientouseu patrocinado a aceitar, dentre as propostas apresentadas,aquela que continha a doação de sangue e, ao final da tarde,procurou-me. Estava feliz com o acordo homologado, pois setratava de um caso difícil, no qual seu cliente fora preso por vio-lência doméstica e as condições da suspensão condicional doprocesso não só atendiam ao interesse de ambos, como retor-nava um benefício concreto para a comunidade sorocabana.Naquela mesma data um réu, indagado novamente durante aaudiência de instrução processual de um crime de furto tentado,pois recusara a suspensão condicional do processo anterior-mente, ao tomar ciência da possibilidade de doação de sanguee orientado por seu patrono, indagou-me: “Sr. Juiz, eu possosalvar uma vida, não?”.

Em suma, tenho claro que a maioria dos atores princi-pais do cenário jurídico concorda com a novidade e a ela seintegrará.

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Em uma conversa com o Dr. Frederico, das últimasdez pessoas que foram doar sangue somente uma foi impe-dida. É um percentual excelente: 90% tinham plena capaci-dade para doar!

Questionário suficiente sobre a doação de sangue

O Ministério da Saúde orienta para a doação voluntáriacom as seguintes proposições:

a) Para doar. Ao comparecer para efetuar a doação, odoador deverá trazer documento oficial de identidadecom foto (identidade, carteira de trabalho, certificado dereservista, carteira do conselho profissional ou carteiranacional de habilitação); estar bem de saúde; ter entre18 e 65 anos; pesar mais de 50 kg; não estar em jejum;e evitar apenas alimentos gordurosos nas quatro horasque antecedem a doação;b) Impedimentos temporários. Não poderá estar comfebre, gripe ou resfriado, em estado de gravidez ou puer-pério (parto normal, 90 dias; cesariana, 180 dias), fa-zendo uso de alguns medicamentos e nem se tratar depessoas que adotaram comportamento de risco paradoenças sexualmente transmissíveis;c) Cirurgias e prazos de impedimentos. As maiscomuns e que devem ser observadas são: extraçãodentária: 72 horas; apendicite, hérnia, amigdalec-tomia, varizes: 3 meses; ingestão de bebida alcoó-lica no dia da doação; transfusão de sangue: 1 ano;tatuagem: 1 ano;

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d) Impedimentos definitivos. Não poderá doar sanguea pessoa que contraiu hepatite após os dez anos deidade; com evidência clínica ou laboratorial das seguin-tes doenças transmissíveis pelo sangue: hepatites B eC, AIDS (vírus HIV), doenças associadas aos vírus HTLVI e II e Doença de Chagas; que faz uso de drogas ilícitasinjetáveis e tenha contraído malária.

Juntamente com o Dr. Frederico, fizemos um quadromais singelo de ser apreendido e preenchido pelo futuro doador.É o seguinte:

Esse questionário atende os requisitos mínimos e qual-quer resposta positiva impõe que ele seja instado a optar por outraproposta. Sem olvidar que, ao comparecer para a doação, outrasperguntas responderá, por meio das quais os profissionais desaúde poderão inferir, com maior acuidade, seu quadro clínico.

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Questionário para seleção de doadores de sangue Sim Não

Você ingere bebida alcoólica todos os dias?

Você já teve doença que foi transmitida por sexo(doença venérea)?

Você tem doença de Chagas?

Você tem/teve malária ou sífilis?

Você tem AIDS ou hepatite?

Você já usou drogas ilícitas (de fumar, cheirar ou injetar)?

Você já esteve preso?

Você tem ou teve convulsão (epilepsia)?

Fez tatuagem nos últimos 12 meses?

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Orienta a Fundação Pró-Sangue do Hemocentro de SãoPaulo que

apenas pessoas saudáveis e que não sejam de risco paraadquirir doenças infecciosas transmissíveis pelo sangue,como Hepatites B e C, HIV, Sífilis e Chagas, podem doar san-gue. Antes de toda doação, o candidato é submetido a umteste de anemia, à aferição de seus batimentos cardíacos,pressão arterial e temperatura e respondem a um questionárioonde é lhe perguntado detalhadamente questões sobre a suasaúde e sobre seu comportamento. Somente após essas eta-pas é que o candidato estará aprovado para a doação de san-gue. Todo o sangue doado será rigorosamente testado paraas doenças passíveis de serem transmitidas pelo sangue.

Outras importantes indagações

a) Qual o intervalo para a doação?Homens: 60 dias (até quatro doações por ano); mulhe-

res: 90 dias (até três doações por ano), segundo Normas Técni-cas em Hemoterapia de Proteção ao Doador, contidas naResolução RDC 153 de 2004.

b) Quais os cuidados a serem tomados após a doa-ção de sangue?

Evitar esforços físicos exagerados por pelo menos dozehoras; aumentar a ingestão de líquidos; não fumar por cerca deduas horas; evitar bebidas alcóolicas por doze horas; manter ocurativo no local da punção por pelo menos quatro horas; e nãodirigir veículos de grande porte, trabalhar em andaimes, praticarparaquedismo ou mergulho.

c) E o trabalhador sofrerá algum prejuízo?No Brasil, trabalhador sob o regime de Consolidação

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das Leis do Trabalho (CLT) poderá deixar de comparecer ao ser-viço, sem prejuízo do salário, por um dia, em cada doze mesesde trabalho, em caso de doação voluntária de sangue devida-mente comprovada (art. 473 da CLT). Os funcionários públicoscivis federais, sem qualquer prejuízo, podem se ausentar do ser-viço por um dia para doação de sangue, sem limite anual de doa-ções (art. 97 da Lei n. 8.112/1990).

Conclusões

A Lei 10.205, de 21 de março de 2001, regulamentou o §4º do art. 199 da Constituição Federal, relativo à coleta, proces-samento, estocagem, distribuição e aplicação do sangue, seuscomponentes e derivados, estabelece o ordenamento institucionalindispensável à execução adequada dessas atividades, e dá ou-tras providências. Em seu capítulo II – Dos Princípios e Diretrizes–, no art. 14, elege como fundamento da estratégia governamen-tal, dentre outros, a universalização do atendimento à população;a utilização exclusiva da doação voluntária, não remunerada, dosangue, cabendo ao poder público estimulá-la como ato relevantede solidariedade humana e compromisso social; e a proibição deremuneração ao doador pela doação de sangue.

Diante da certeza de que a atuação do Poder Judiciárioem prol dos que necessitam de sangue para se curar e/ou paraviver está em harmonia com as políticas públicas correlatas aoespírito de desprendimento individual e de solidariedade humana,finalizo este trabalho apresentando os tópicos formadores desseconvencimento.

Duas vertentes preponderantes guiaram-me na realiza-ção desse trabalho: a viabilidade jurídica e o cunho humanitário.

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Aspecto Jurídico

A doação de sangue como pena restritiva de direitosdeve atender a três requisitos: tipicidade, voluntariedade e con-sensualidade.

a) Tipicidade. A doação de sangue é uma pena alterna-tiva inominada, a exemplo da doação de cestas básicas, e encon-tra seu fundamento jurídico no art. 45, § 2º, do Código Penal.Como pena restritiva de direitos, deverá atender aos seguintespostulados constitucionais: ter natureza social alternativa (art. 5º,XLVI, d); não ser proibida (art. 5º, XLVII); assegurar respeito à in-tegridade física e moral (art. 5º, XLIX); e preservar a dignidade dapessoa humana. É prestação alternativa inominada oriunda deproposta da acusação em audiências de tentativa de conciliaçãoemanadas da Lei 9.099/95, i.e., em transações penais e em au-diências de suspensão condicional do processo. Não pode serdecretada em sede de sentença condenatória, por traduzir impo-sição e não consensualidade;

b) Voluntariedade/Consensualidade. Oferecidas duasou mais propostas, estas serão apresentadas ao autor da infra-ção que, sponte sua, escolherá aquela que lhe aprouver. Casoopte pela que contenha a doação de sangue, o juiz/conciliadorexpor-lhe-á o questionário prévio e inicial para que analise eresponda se pode doar sangue, tornando indiscutível o carátervoluntário e não impositivo da aceitação. Ultrapassadas essasetapas, a lavratura do acordo poderá ser finalizada com a ho-mologação judicial.

Note-se que se mostra essencial para a completude daexteriorização do ato de vontade que a doação de sangue sejavoluntária, sem representar imposição/ordem.

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O veio humanitário

Desnecessário estender-me sobre o alcance da pena emtela, uma vez que os quadros, estatísticas e as opiniões das au-toridades médicas envolvidas falam por si. Para o juiz ingressarnessa cruzada do bem e da vida basta articular-se e, em sua ci-dade, procurar o centro médico adequado para recepcionar osautores de infrações, e expor o ideal de implantação da doaçãode sangue como pena alternativa. A partir daí, fomentar o inte-resse dos demais integrantes do tripé judiciário e o auxílio paraa comunidade estará materializado.

Tenho esperança que estas linhas sirvam de inspiraçãopara que os colegas juízes, bem como os demais integrantes dajustiça, adotem esta sugestão.

Evoco atitudes que nos chegam tímidas, uma vez quesomente os estados do Rio de Janeiro e Paraná divulgaram aadoção da doação de sangue como pena alternativa. Se cadaum pensar bem pressentirá que, logo, todo o país, via Poder Ju-diciário, poderá ser um agente de transformação do bem paraevitar mortes e a eternização de algumas doenças. Daremos iní-cio a uma empreitada visando amenizar a dor de tantas famíliasque veem os seus falecer pela falta de sangue.

Repiso que cada juiz criminal detém, sob sua presidên-cia, todo o campo de labor pertinente e indispensável à execuçãodessa tarefa nobilíssima, bastando que lidere a introdução da no-vidade em sua seara contatando os operadores do direito e comeles discutindo a implantação da medida.

Quiçá o Poder Judiciário brasileiro deixe de ser criticadopor “n” fatores e passe e receber elogios por se tornar um vetornatural de mutação positiva da saúde brasileira.

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O Parque Nacional das Emas é uma formação bastante diversificada de Cerrado. Nos 132 mil hectares da reserva, o visitante poderá

observar, além da rica vegetação, muitos animais como veados-campeiros, tamaduá-bandeira, lobo-guará , emas, araras canindé, tucanos, sucuris

e diversas outras espécies, algumas delas em perigo de extinção.

DIREITO PÚBLICOPUBLIC LAW

DERECHO PÚBLICO

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Angela Acosta Giovanini de Moura*

O DIREITO À VIDA DOS PORTADORES DE ANENCEFALIANO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

THE RIGHT TO LIFE OF PATIENTS WITH

ANENCEPHALY IN DEMOCRATIC RULE OF LAW

EL DERECHO A LA VIDA DE PACIENTES CON

ANENCEFALIA EN EL ESTADO DEMOCRÁTICO DE DERECHO

Resumo:

Discute-se nos meios jurídicos e acadêmicos a descriminaliza-

ção do aborto dos fetos portadores de anencefalia, invocando-

se as mais variadas teorias que guarnecem a seara do direito

penal. O tema envolvendo o direito à vida se insere no campo

das garantias individuais, sustentadas pelo princípio da dignidade

da pessoa humana, devendo ser enfrentado sob a ótica da Cons-

tituição Federal e dos preceitos que informam o Estado Demo-

crático de Direito.

Abstract:

It is discussed in the legal and academic centers the decriminali-

zation of abortion of fetuses with anencephaly, referring to the se-

veral theories which line the field of criminal law. The issue

involving the right to life belongs to the field of individual rights,

supported by the principle of human dignity and must be faced

from the perspective of the Federal Constitution and from the pre-

cepts that inform the Democratic Rule of Law.

*Promotora de justiça em Quirinopolis, Estado de Goiás, professora universitá-ria, especialista em ciências penais pela Uniderp, mestranda em Direito, Rela-ções Internacionais e Desenvolvimento pela Pontifícia Universidade Católicade Goiás. Email: [email protected]

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Resumen:

Se discute en los medios jurídicos y académicos la despenaliza-

ción del aborto de fetos con anencefalia, refiriéndose a las diver-

sas teorías que forman parte de la ley penal. El tema que

involucra el derecho a la vida pertenece a la esfera de los dere-

chos individuales, respaldados por el principio de la dignidad hu-

mana y debe ser abordado desde la perspectiva de la

Constitución Federal y los preceptos que informan el Estado De-

mocrático de Derecho.

Palavras-chaves:

Anencefalia, direito à vida, aborto, cláusula pétrea.

Keywords:

Anencephaly, the right to life, abortion, entrenchment clause.

Palabras clave:

Anencefalia, derecho a la vida, aborto, cláusula de afianzamiento.

Permeando discussões nas esferas de poder, nos gru-pos acadêmicos, religiosos, científicos, filosóficos e doutrinários,os debates referentes ao direito à vida dos portadores de anen-cefalia têm se tornado a tônica do momento, porquanto tramitamno Congresso Nacional projetos de leis objetivando autorizar oaborto eugênico.

É crescente, no meio social, a aceitação do aborto eu-gênico, com tendência a tolerá-lo dentro do ordenamento jurídico,sob os mais variados argumentos e teorias, ante a falta de legis-lação que o contemple.

Dentre seus defensores, se destacam renomados penalistas,

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que sustentam não sofrer a vida qualquer lesão em face da prática doaborto seletivo, pois entendem inexistir vida em potencial para o serportador de anencefalia ou de outra má formação grave e incurável.O feto portador de anomalia incurável não teria direito à vida, uma vezque este bem jurídico lhes soa como mera expectativa, não sendo ju-ridicamente tutelado, admitindo-se o aborto, nessa situação, ante a ati-picidade do fato.

Asseveram outros que, no atual Estado Democrático deDireito, os direitos e as garantias individuais não são absolutos,nem mesmo o direito à vida, autorizando-se a extirpação da vidaintrauterina quando esta não apresenta condições de se susten-tar após o nascimento. Nesse caso, merece ser preservada asaúde psíquica da gestante, não se podendo invocar o direito àvida do nascituro, até porque, inviabilizada a vida futura do feto,o dano psicológico sofrido pela mãe poderá perdurar por anos.

Malgrado as posições sustentando a legalidade doaborto eugênico, respaldadas em princípios éticos, sociais e cien-tíficos, a questão que se coloca é se a vida, como direito asse-gurado constitucionalmente, pode sofrer relativização. Em casopositivo, a questão igualmente chamada a debate é se a lei in-fraconstitucional, ou a interpretação judicial, pode fazê-lo.

O presente artigo não objetiva contra-argumentar as po-sições doutrinárias tecidas em favor do aborto eugênico, sobre-tudo do aborto dos anencéfalos, mas trazer à reflexão a questãodo direito à vida, consagrado na Constituição Federal, como di-reito absoluto, que figura no rol das cláusulas pétreas inclusive.

É uníssono o entendimento segundo o qual o direito àvida é o principal direito individual, o bem jurídico de mais rele-vância tutelado pela ordem constitucional, uma vez que o exer-cício dos demais direitos depende de sua existência.

José Afonso da Silva (apud PINHO, 2009, p. 80) sustentaque o direito à vida deve ser “compreendido de forma extrema-mente abrangente, incluindo o direito de nascer, de permanecer

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vivo, de defender a própria vida, enfim, de não ter o processo vitalinterrompido senão pela morte espontânea e inevitável”.

Porque se assegura o direito à vida é que a legislaçãopenal pune todas as formas de interrupção violenta do processovital. “É também por essa razão que se considera legítima a de-fesa contra qualquer agressão à vida, bem como se reputa legí-timo até mesmo tirar a vida a outrem em necessidade dasalvação da própria” (SILVA, 2009, p. 66).

O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos,aprovado pela XXI sessão da Assembleia Geral das Nações Uni-das, reza que o direito à vida é inerente à pessoa humana. Essedireito deverá ser protegido pela lei, ninguém poderá ser arbitra-riamente privado de sua vida.

Luiz Flávio Gomes (2009, p. 36), entendendo que o di-reito a vida não é absoluto, ensina que “não se pode ignorar queo valor vida conta com prioridade (ou seja: prepondera sobrequalquer outro direito. O direito à vida é inderrogável e inviolável(CF, art. 5º, caput), ou seja, não pode ser restringido nem sequerem época de exceção”.

Pontuando o valor máximo conferido ao direito à vida, oMinistro Gilmar Mendes (BRANCO; MENDES; COELHO, 2009,p. 394) assinala que:

[...] dada a capital importância desse direito e em reconheci-mento de que deve ser protegido, sobretudo nos casos em queseu titular se acha mais vulnerável a Constituição Federal, noartigo 227, dispõe ser dever da família, da sociedade e do Es-tado, assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta pri-oridade, o direito à vida.[...] Proclamar o direito à vida respondea uma exigência que é previa ao ordenamento jurídico, inspi-rando-o e justificando-o. Trata-se de um valor supremo naordem constitucional que orienta, informa e dá sentido últimoa todos e demais direitos fundamentais.

Reconhecendo a vida como o maior de todos os direitos,não se pode compactuar com a ideia de que a sua manifestaçãoprecária, intrauterina, retire do ser o direito de tê-la tutelada pelo

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Estado até que se esgote de forma natural, pois tanto a lei maior,quanto as demais que lhe são inferiores, obrigam o Estado a pro-teger o direito à vida desde a sua concepção, sem condicionaressa proteção legal a qualquer outro requisito.

Daí porque não se pode abarcar a ideia de que o direitoà vida, no Estado de Direito, reclame apenas proteção relativa,como se constata em alguma doutrina ou mesmo em decisõesjudiciais autorizando o aborto eugênico.

O elemento decisivo para se reconhecer e se proteger odireito à vida é a “verificação de que existe vida humana desde aconcepção, quer ela ocorra naturalmente, quer [...]” (idem, p. 397).

Nesse sentido, continua Branco (idem, p. 398):

O direito à vida não pressupõe mais do que pertencer à espé-cie homo sapiens. Acreditar que somente haveria pessoa noser dotado de autoconsciência é reduzir o ser humano a umapropriedade do indivíduo da espécie humana, que inclusivepode ser perdida ao longo de sua existência. O indivíduo quese consubstancia da fusão de gametas humanos não é ape-nas potencialmente humano ou uma pessoa em potencial; éum ser humano, por pertencer à espécie humana. Por contadessa sua essência humana, o ainda não nascido tem direitoà vida como os já nascidos, até por imposição do princípio daigual dignidade humana. O direito à vida tem seu termo inicialna fecundação e, na morte, o seu temo final.

O caráter absoluto do direito à vida ressoa de forma aimpedir o confronto com qualquer outro direito individual, de-vendo sempre prevalecer, mesmo porque, sem a vida, os demaisdireitos desaparecem:

Constata-se, por outro lado, que bens juridicamente relevantespodem contrapor-se à continuidade da gravidez. A soluçãocabível haverá de ser, contudo, a inexorável preservação da vidahumana, ante a sua posição no ápice dos valores protegidospela ordem constitucional. Veja-se que a ponderação do direitoa vida com valores outros não pode jamais alcançar um equilíbrioentre estes, mediante compensações proporcionais. Isto porque,na equação dos valores contrapostos, se o fiel da balança apon-tar para o interesse que pretende superar a vida intrauterina, oresultado é a morte do ser contra quem se efetua a ponderação.

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Perde-se tudo de um dos lados da equação. Um equilíbrioentre interesses é impossível de ser obtido. O confronto do di-reito à vida do nascituro com o direito da mãe somente poderárender um resultado favorável a esta nos casos em que aprópria existência física dela esteja em jogo. (idem, p. 399)

Por outro lado, importa destacar que, no atual modelo deEstado de Direito Constitucional, embora o ordenamento jurídicose apresente como um todo, conforme enfatiza Bobbio (2009),devendo ser interpretado sem as regras da temporalidade e hie-rarquia, a Constituição Federal ainda é a fonte de validade dasdemais espécies normativas, com autoridade para varrer do or-denamento jurídico o que contradiz seus postulados.

Fundamentadas em outras normas que lhe são superio-res, ensina Celso Bastos (1998, p. 393), que:

[...] as normas de direito encadeiam-se de forma a dar origema um complexo sistema normativo, fora do qual não podemosimaginar nenhuma regra de direito: ou bem ela se coloca den-tro do sistema, dele passando a retirar sua força obrigatória,ou permanece fora do referido sistema, caso em que deixa deexistir como regra de direito.

Oportuno trazer à colação a teoria kelseniana a respeitoda posição hierárquica da Constituição Federal frente às demaisespécies normativas, objetivando considerar que os direitos e asgarantias individuais contidos em sua ordem não podem sofrerexceção por espécie normativa de calibre inferior. Daí porque aspropostas legislativas ordenadas em lei, sobre a licitude doaborto eugênico, ferem o Estado Democrático de Direito, por-quanto agridem a ordem constitucional.

Kelsen (2006, p. 247) assinala, nesse sentido, que:

A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas orde-nadas no mesmo plano, situadas umas do lado das outras,mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ouníveis de normas jurídicas. A sua unidade é produto daconexão de dependência que resulta do fato de a validade de

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uma norma, que foi produzida de acordo com outra norma, seapoiar sobre essa outra norma, cuja produção, por sua vez édeterminada por outra; e assim por diante, até abicar final-mente na norma fundamental - pressuposta. A norma funda-mental hipotética, nestes termos é, portanto, o fundamento devalidade último que constitui a unidade desta interconexão cri-adora. Se começarmos levando em conta apenas a ordem ju-rídica estadual, a Constituição representa o escalão de Direitopositivo mais elevado.

O Estado Democrático de Direito elege a dignidade dapessoa humana como um de seus pilares. A dignidade da pessoahumana é, por conseguinte, “o núcleo essencial dos direitos fun-damentais, a fonte jurídico positiva dos direitos fundamentais, afonte ética, que confere unidade de sentido, de valor e de con-cordância prática ao sistema dos direitos fundamentais, o "valorque atrai a realização dos direitos fundamentais, el valor básico

(Grundwert) fundamentador de los derechos humanos. Los de-

rechos fundamentales son la expresión más inmediata de la dig-

nidade humana” (SANTOS, 2010).Os direitos fundamentais estatuídos na constituição fede-

ral, denominados de direitos humanos pelo direito internacional,têm em sua base a dignidade da pessoa humana, pois todas aque-las garantias apregoadas pela carta máxima, fruto de conquistahistórica do homem e do cidadão ao longo do tempo, se justificamem favor de ser conferida à pessoa humana a dignidade, valor oranegado, ora relegado, nos modelos de Estado anteriores.

Para garantir o valor absoluto dos direitos e garantias in-dividuais, protegendo-o contra as investidas do poder, o legisladorconstitucional instituiu, no art. 60, parágrafo 4º, as cláusulas pé-treas, enumerando em seu rol os direitos e as garantias individuais.

Enfrentando o tema, sustenta Maria Helena Diniz (2009,p. 32, 34):

O direito à vida, por ser essencial ao ser humano, condicionaos demais direitos da personalidade. A Constituição Federal de1988, em seu art. 5º, caput, assegura a inviolabilidade do direitoà vida, ou seja, a integralidade existencial, conseqüentemente,

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a vida é um bem jurídico tutelado como direito fundamental básicodesde a concepção, momento específico, comprovado cientifica-mente, da formação da pessoa. Se assim é, a vida humana deveser protegida contra tudo e contra todos, pois é objeto de direitopersonalíssimo. O respeito a ela e aos demais bens ou direitoscorrelatos decorre de um dever absoluto erga omnes, por suaprópria natureza, ao qual a ninguém é lícito desobedecer [...]Garantido está o direito à vida pela norma constitucional emcláusula pétrea, que é intangível, pois contra ela nem mesmohá o poder de emendar [...] tem eficácia positiva e negativa [...] Avida é um bem jurídico de tal grandeza que se deve protegê-locontra a insânia coletiva, que preconiza a legalização do aborto,a pena de morte e a guerra, criando-se normas impeditivas daprática de crueldades inúteis e degradantes [...] Estamos no limiarde um grande desafio do século XXI, qual seja, manter o respeitoà dignidade humana.

Segundo José Afonso da Silva (1991, p. 66),

[...] as Constituições Brasileiras Republicanas sempre contiveramum núcleo imodificável. E a Constituição atual ampliou o núcleo,definindo no artigo 60, § 4º, que não será objeto de deliberaçãoa proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa deEstado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separaçãodos Poderes, os direitos e garantias individuais.

Ives Gandra (apud MARTINS, 1995, p. 371) diz que:

[...] os direitos e garantias individuais conformam uma normapétrea e não são eles apenas os que estão no art. 5º, mas,como determina o § 2º,do mesmo artigo, incluem outros que seespalham pelo Texto Constitucional e outros que decorrem deimplicitude inequívoca. Infere-se, pois, que os direitos e garan-tias individuais derivam da própria existência humana e se colo-cam acima de toda e qualquer norma, sendo-lhes inerente opoder de restringir outros direitos inscritos no Texto Maior.

Ressalta-se, ainda, que a rigidez constitucional não é aúnica ferramenta para a tutela dos direitos fundamentais, pois otexto constitucional estabelece, também, um regime jurídico di-ferenciado de proteção aos direitos fundamentais, segundo le-ciona Paulo Ricardo Schier (2010, s/p).

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Ao definir a auto-aplicabilidade dos direitos humanos, o legis-lador constitucional insere tais direitos no rol das chamadascláusulas constitucionais sensíveis (princípios e valores que,uma vez vulnerados, ensejam a deflagração de um processode intervenção federal); declara esses direitos como invio-láveis, dentre outras notas que expressam uma especial pre-ocupação do constituinte brasileiro com a tutela dos direitosfundamentais. Por fim, o sistema de proteção dos direitos fun-damentais no Brasil vem coroado com a inserção dos direitosfundamentais no rol das cláusulas pétreas, o que, somado àexistência de uma experiência rica de controle de constitu-cionalidade, tem permitido a declaração de inconstitucionali-dade, inclusive, de emendas à constituição. No Brasil,destarte, ao menos no âmbito formal, os direitos fundamentaisalcançam um grau de proteção máximo.

Indubitavelmente, os direitos e as garantias individuais,sobretudo o direito à vida, são direitos absolutos, intocáveis, ir-renunciáveis, constituindo-se no alicerce do atual modelo de Es-tado de Direito Democrático, não podendo sofrer exceção por leiinferior, nem mesmo por emenda à Constituição, posto serem es-tatuídos por cláusulas pétreas, que são “cláusulas que possuemuma supereficácia, ou seja, uma eficácia absoluta, pois contêmuma força paralisante total de toda a legislação que vier a con-trariá-la, quer implícita, quer explicitamente. Daí serem insuscep-tíveis de reforma” (BULOS, 1999, p. 42,44).

Conclusão

O direito à vida motiva a tutela jurídica dos demais di-reitos individuais e humanos estatuídos na carta máxima. É,por isso, o bem jurídico de mais relevância, merecedor de pro-teção especial. Somente a Constituição Federal pode excep-cionar as garantias asseguradas por ela aos cidadãos. Issoporque é cidadã, democrática e popular. Fossem seus princí-

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pios modificáveis à luz do entendimento pretoriano ou da ativi-dade legislativa, remontaríamos ao Estado Absolutista, ao Es-tado Liberal e Social, modelos que fracassaram por sobrepujaros princípios constitucionais da época. Somos Estado de Di-reito Democrático Constitucional, onde os direitos e as garan-tias individuais prestigiam a pessoa humana desde aconcepção, tão somente pelo fato de ser pessoa humana, semqualquer outra condição ou requisito. O Direito à vida, que noatual modelo de Estado inaugura o rol das garantias sólidas,absolutas, irrefutáveis, incontestáveis, invioláveis, não pode so-frer ingerência por parte de espécie normativa inferior à ordemconstitucional, menos ainda por atividade judicial, em sua ta-refa de aplicar o Direito e proclamar a Justiça, até porquesomos um Estado Democrático de Direito e não um Estadocom poder concentrado no judiciário ou no legislativo.

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Izabel Cristina Salvador Salomão*

INFRAÇÕES ADMINISTRATIVAS, MINISTÉRIO PÚBLICO E ESTATUTO DO IDOSO

ADMINISTRATIVE OFFENCES,

PUBLIC PROSECUTION AND ELDERLY STATUTE

INFRACCIONES ADMINISTRATIVAS,

MINISTERIO PúBLICO Y ESTATUTO DEL ANCIANO

Resumo:

Diante da inexistência de disposição expressa no Estatuto do

Idoso apontando a autoridade competente para apuração admi-

nistrativa das infrações às normas de proteção ao idoso, previs-

tas nos artigos 56 a 58 do referido diploma legal, este artigo

analisa as hipóteses levantadas pela doutrina pátria e as possi-

bilidades semânticas das regras estatutárias, concluindo por

apontar o Poder Executivo como o mais apto a assumir a com-

petência processante e a imposição das penalidades pecuniárias

previstas. A fim de construir, argumentativamente, o perfil de au-

toridade competente compatível com a presidência do processo

administrativo em questão, o presente estudo aborda algumas

peculiaridades ontológicas das instituições sugeridas pela dou-

trina, bem como os óbices e consequências práticas da escolha

equivocada pelo intérprete, ao tempo em que demonstra que a

solução apontada se coaduna com os enunciados normativos

constantes da Constituição Federal e do Estatuto do Idoso.

* Promotora de Justiça no Estado do Espírito Santo e Mestre em Direitos eGarantias Fundamentais pela Faculdade de Vitória – FDV; membro da Asso-ciação Nacional dos Membros do Ministério Público de Defesa dos Direitosdos Idosos e Pessoas com Deficiência - AMPID.

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Abstract:

Due to the lack of an express provision in the Elderly Statute poin-

ting the competent authority to investigate violations of rules of

protection to the elderly, provided in Articles 56 to 58 of the related

law, this article examines the hypotheses raised by the homeland

doctrine and semantic possibilities of statutory rules, concluding

by pointing out the Executive as the one in charge of taking the

prosecuting authority and the imposition of monetary penalties

provided. In order to build, arguably, the profile of the competent

authority compatible with the presidency of the administrative pro-

cess in question, this study addresses some ontological peculia-

rities of the institutions suggested by the doctrine, as well as the

obstacles and practical consequences of the wrong choice by the

interpreter, at the time it demonstrates that the solution proposed

is consistent with the normative statements contained in the Fe-

deral Constitution and in the Elderly Statute.

Resumen:

Debido a la falta de una disposición expresa en el Estatuto del

Anciano señalando la autoridad competente para investigar ad-

ministrativamente las infracciones a las normas para proteger a

las personas mayores, previstas en los artículos 56 a 58 de dicha

ley, este artículo examina las hipótesis planteadas por la doctrina

patria y las posibilidades semánticas de las normas estatutarias

y concluye señalando el poder ejecutivo como el más apto para

tomar la fiscalía y la imposición de las sanciones pecuniarias pre-

vistas. Con el fin de construir, argumentativamente, el perfil de la

autoridad competente compatible con la presidencia del proceso

administrativo en cuestión, este estudio aborda algunas particu-

laridades ontológicas de las instituciones sugeridas por la doc-

trina, así como los obstáculos y las consecuencias prácticas de

la elección errónea por parte del intérprete, al tiempo en que de-

muestra que la solución propuesta es consistente con las decla-

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raciones normativas contenidas en la Constitución y en el Esta-

tuto del Anciano.

Palavras-chaves:

Estatuto do Idoso, direitos fundamentais, processo administra-

tivo, infrações administrativas, penalidade pecuniária, autoridade

competente.

Keywords:

Elderly Statute, fundamental rights, administrative process, ad-

ministrative offences, pecuniary penalty, competent authority.

Palabras clave:

Estatudo del idoso, derechos fundamentales, proceso adminis-

trativo, infracciones administrativas, penalidad pecuniaria, auto-

ridad competente.

Introdução

Começamos tarde1. Não necessariamente mal, mas de-finitivamente tarde. É indiscutível que a edição do Estatuto doIdoso representou um avanço na legislação pátria ao consolidare ampliar direitos das pessoas idosas, tendo como móvel a ga-rantia da cidadania e a proteção integral àqueles com idadeigual ou superior a sessenta anos. Também não se questionaque de há muito carecíamos de uma política séria de enfrenta-mento ao abandono familiar, social e estatal dos idosos. Masisso não é tudo, e muito ainda falta na efetivação da proteção a

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1 Alusão feita a afirmação do professor L.R. Barroso (2009, p. 27) ao se referirao início verdadeiro do Brasil.

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ser viabilizada pelo Estatuto.O Estatuto do Idoso surgiu da necessidade de assegurar

a esta parcela da população uma maior responsabilização porparte da família, do Poder Público e da sociedade. É um holofoteaceso evidenciando a necessidade de se garantir dignidade erespeito aos que, com o passar do tempo, foram sendo excluídossocialmente, como se passassem da “utilidade à inutilidade”.

De fato, os idosos nunca foram valorizados nas socieda-des ocidentais como nas orientais, onde são conhecidos e res-peitados em razão de sua experiência. Nas sociedadescapitalistas a velhice traduz-se, historicamente, como falta de uti-lidade produtiva e, consequentemente, carta fora do baralho nojogo dos interesses que se comunicam entre os sistemas (Es-tado, mercado e mundo da vida), no qual os jovens produtores econsumidores figuram como os únicos alvos visados pelas polí-ticas públicas, pela cadeia produtiva e inclusive pela sociedade2.

De outra banda, envelhecimento populacional, em núme-ros absolutos e relativos, é um fenômeno mundial e vem ocorrendoa um nível sem precedentes. O Instituto Brasileiro de Geografia eEstatística - IBGE3, por meio do Censo Demográfico de 2000, aler-tou todo o país para o fato de que 8,6% da população brasileira,acompanhando a tendência mundial, era, já aquela altura, consti-tuída por pessoas com sessenta anos ou mais, o que significavaa existência de catorze milhões de idosos no país. Reconhecendo-se que esse percentual aumentou sensivelmente ao longo do sé-culo passado, estima-se que essa tendência perdure pelo séculoXXI, projetando-se para 2020 uma população idosa no total da po-pulação brasileira em torno dos 14%. Registre-se que o incremento

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2 Nesse sentido, Jonas Melman (apud BERZINS; MALAGUTTI, 2010, p. 314)destaca, por exemplo, que: “Atualmente, ainda domina uma visão no imagi-nário social que desvaloriza a velhice. Vivemos numa cultura que valoriza ajuventude, a fora, a beleza, o sucesso medido pelos resultados econômicose pelos índices de produtividade. O idoso, na sociedade moderna, vivenciauma perda progressiva da importância de seu valor social”. 3 Conferir em www.ibge.gov.br. Acesso em 1º de dezembro de 2009.

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ainda mais expressivo da população idosa se dá com os maioresde oitenta anos (CAMARANO, 2005, p. 13), os “muito idosos”.

Se, conforme elucida o IBGE, em 1950 eram 204 mi-lhões de idosos em todo o mundo e, em 1998, esse contingentealcançava 579 milhões de pessoas, apontando um crescimentode quase oito milhões de pessoas por ano, as projeções indicamque em 2050 a população nessa faixa etária alcançará 1,9 milhãode seres humanos. Os números mostram que, atualmente, umaem cada dez pessoas tem sessenta anos de idade ou mais e,para 2050, estima-se que a relação será de uma para cinco emtodo o mundo, e de uma para três nos países desenvolvidos.

Alerta, ainda, o referido Instituto, que também seguindoa tendência mundial o número de pessoas com cem anos deidade ou mais aumentará quinze vezes, passando de 145.000pessoas em 1999 para 2,2 milhões em 2050. Os centenários bra-sileiros que somavam 13.865 em 1991, e já em 2000 chegam a24.576 pessoas, demonstram um aumento de 77%. São Pauloencima a lista de Estados brasileiros com o maior número de pes-soas com cem anos ou mais (4.457), seguido pela Bahia (2.808),Minas Gerais (2.765) e Rio de Janeiro (2.029).

Na exata medida em que o Brasil deixa de ser uma naçãode jovens com o decréscimo acentuado do número de nascimen-tos4, os brasileiros têm sua expectativa de vida aumentada por fa-tores como os avanços da medicina, conscientização danecessidade de uma vida saudável, etc. Ainda segundo o IBGE, em1940 a vida média do brasileiro sequer atingia os cinquenta anosde idade, e hoje esse indicador está em 72,78 anos. A se confirmara projeção, a população do Brasil continuará ampliando a vida médiapara alcançar, em 2050, o patamar de 81,29 anos, nível atual da Is-lândia (81,80), Hong Kong, China (82,20) e Japão (82,60).

Nesse passo, caminhou bem, ainda que tarde, a legisla-ção pátria ao inserir no ordenamento jurídico um Estatuto do Idoso,

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4 Fenômeno já conhecido e estudado no velho mundo.

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reconhecendo a necessidade de proteção e valorização dessa par-cela crescente da população, e facilitando o acesso das pessoasidosas ao gozo de seus direitos, com o claro objetivo da preserva-ção da dignidade e do respeito a tais cidadãos brasileiros.

A proteção dos idosos como alvo da atuação estatalveio firmada, timidamente, pela Constituição Federal, em espar-sos artigos que reconhecem a imperatividade de defesa dessescidadãos que, no ocaso da vida física, se encontravam em con-dição de miserabilidade e abandono5.

Muito embora reconhecidamente concisa6 no trato daproteção ao idoso, a Carta Maior foi taxativa e expressa em seuart. 1º, inciso III, ao estabelecer como fundamento da RepúblicaFederativa do Brasil a dignidade da pessoa humana. É o quebasta para a tutela da aludida proteção.

Sob a égide da Lex Fundamentalis de 1988, vivemos emum Estado Democrático de Direito onde a norma constitucionalestá necessariamente ligada a um contexto, ou seja, seu sentidosomente será extraído diante do caso concreto. Não mais pré-fixado abstratamente, de modo a reger o futuro para sempre,mas construído pelo intérprete diante da experiência fática.

Entre as grandes transformações que tiveram lugar ao

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5 CF/88 Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar,independentemente da contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:I – a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência, à velhice;[...]V – a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadorade deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à pró-pria manutenção ou de tê-la provida por sua família.[...]Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoasidosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua digni-dade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.6 Ao contrário da forma prolixa (em um movimento pendular e diametralmenteoposto à fórmula utilizada para proteção da população idosa), debruçou-se sobretantos outros temas que seriam melhor tratados pela legislação ordinária. Sobreo ponto ver Barroso (2009, p. 47): “A Constituição brasileira, como assinalado,consubstanciou-se em um texto excessivamente detalhista e que, além disso,cuida de muitas matérias que teriam melhor sede na legislação infraconstitucional”.

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longo do século XX na teoria constitucional, destaque se dê àatribuição à norma constitucional de status de norma jurídica, su-perando-se assim o modelo europeu de Constituição como do-cumento político, apenas incentivador da atuação dos Poderesconstituídos, modelo este vigente até meados do século passado(BARROSO, 2005, p. 68-69. Já investidas na condição de nor-mas jurídicas, as normas constitucionais passaram a ser dotadasde imperatividade e supremacia diante de todo o ordenamentojurídico, erigidas a paradigmas de validade das leis, verdadeirosaxiomas para o tema desenvolvido neste estudo.

O advento da Lei 10.741/2003, muito embora patenteandoa tendência legalista de nosso ordenamento, permeado pelo sen-timento de que a letra da lei, por si só, tem o condão de modificara realidade, sistematizou a ação estatal, familiar e da sociedadeem benefício do idoso, entretanto não o fez com o primor que seesperava do legislador pátrio em matéria de tamanha relevância.Nesse contexto, foi legado ao intérprete a construção do perfil eda definição da autoridade competente para a presidência do pro-cesso administrativo e para a imposição da penalidade pecuniáriapertinente, nos moldes estabelecidos no art. 59 e seguintes do re-ferido Estatuto. Esta é a trilha escolhida para o presente estudo.

Instituições de longa permanência: um lugar para viver oupara morrer?7

No capítulo II do título IV, que trata da política de atendi-mento ao idoso, o Estatuto cuida de descrever os princípios queregem as instituições de longa permanência para idosos, bem

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7 Tema abordado na palestra “Envelhecimento e ILPI: desafio do presente”,proferida por Marília Berzins no II Encontro sobre Instituições de Longa Per-manência para Idosos, dia 12/11/2009, no auditório da FAESA – Vitória/ES.

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como as obrigações a que estão submetidas.As Instituições de Longa Permanência para Idosos – ILPI

– têm sido um desafio e, na prática, de difícil conciliação com aaplicação do fundamento constitucional da dignidade da pessoahumana aos idosos de todo o país. A razão que fundamenta talassertiva é que no imaginário de grande parte da população bra-sileira ainda não se construiu uma diferenciação consistente entreos antigos “asilos” ou “abrigos” e as atuais ILPI’s descritas pelo Es-tatuto (e, posteriormente detalhadas em todos os aspectos pelaRDC 283/058, da ANVISA), situação traduzida como fonte de todaviolência institucional9 contra o idoso levada a termo neste país.Antes e acima de toda legislação aplicada, sustenta e fundamentaa referida diferenciação a vigência do novo paradigma estabele-cido pela Carta de Ottawa (OMS/OPAS, 1996), resultante da As-sembleia Internacional sobre Promoção da Saúde realizada noCanadá em 1986, que enfatizou a autonomia das pessoas e des-tacou a capacidade de mobilização da então chamada “populaçãosilenciosa”.

Os asilos existentes no Brasil há mais de quatrocentosanos foram criados para abrigar loucos, doentes e abandonadospela família e pela sorte, e estavam sempre relacionados à cari-dade (Igreja Católica), possuindo natureza eminentemente filan-trópica (BARROSO, 2005, p. 68-69). Lugares como estes foram(e são) camufladores da violência de toda espécie ali praticada,na medida em que escondem do espaço público todos que nãopodem aparecer10, sob pena de ter que se apurar responsabili-dades e tipificar condutas hoje já não mais toleradas socialmente.

Por outro lado, as Instituições de Longa Permanência

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8 Resolução da Diretoria Colegiada 283/2005 da ANVISA, norma que definequais são os graus de dependência e as condições gerais de organização ins-titucional baseada nos direitos dos idosos, incluindo recursos humanos, infra-estrutura, processos operacionais, etc.9 Definida aqui como a exercida nos/pelos próprios serviços públicos, por açãoou omissão (BRASIL, 2002).10 Considerações expostas pela palestrante, vide nota 8.

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para Idosos11, no contexto do Estado Democrático de Direito es-tabelecido pela Carta Constitucional de 1988, onde o princípiodos princípios é o da dignidade da pessoa humana, são mora-dias, mas moradias disciplinadas pela lei, que devem oferecerum serviço de natureza híbrida, qual seja, médica e social, porse tratar de um espaço com um sentido de gestão profissional.São lugares para viver e devem ser instituições abertas que man-tém relação com a sociedade, não “instituições totais”12, um es-paço impermeável ao passar do tempo e apartado do mundoexterior por altos muros, portões e porteiros, cuja conduta poderiaser facilmente caracterizada como cárcere privado. Enfim, umlugar a ocultar o descaso da sociedade moderna.

O Brasil não conhece ao certo o número de idosos queresidem em ILPI’s (CAMARANO, 2005, p. 29) ou residências co-letivas, mas as condições físicas e estruturais dessas “Institui-ções” são de fácil constatação.

Não raro, nas zonas mais abandonadas pelo poder pú-blico, nos grandes e pequenos municípios, onde o Estado só seapresenta na forma policial e repressiva, encontram-se “Casasde Repouso”, “Lares”, “Colônias para Idosos”, etc., sem que issoas diferencie dos citados “asilos”, onde se “depositam” aquelesque se transformaram, pelo peso da idade, em “personas nongratas“ no convívio familiar e social.

Sem embargo da excepcionalidade da institucionalizaçãoapregoada pelo Estatuto do Idoso13, inúmeras são as hipótesesem que os idosos são encaminhados a viver em Entidades deLonga Permanência, afastados de sua família e círculo pessoal

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11 Modalidade asilar de atendimento ao idoso sem vínculo familiar ou condiçõesde prover à própria subsistência de modo a satisfazer as suas necessidadesde moradia, alimentação, saúde e convivência social.12 Considerada aquela em que predomina um modelo de atendimento que seestrutura pela dominação do corpo do asilado que se incorpora no seu habituspela força da rotina, da impossibilidade de outra escolha para uma vida digna,segundo Berzins (2010, p. 281).13 “Art. 37. O idoso tem direito a moradia digna, no seio da família natural ousubstituta, ou desacompanhado de seus familiares, quando assim o desejar,

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de amizades. Algumas situações são marcadas pelo conflito fa-miliar e resultam na procura da família ou, às vezes, do próprioidoso, pela institucionalização. Outra hipótese frequente se dáquando muitas famílias não conseguem manter o idoso depen-dente em casa porque o cuidado se torna difícil e desgastante fí-sica e emocionalmente (nos casos de necessidade dereabilitação, ausência temporária do cuidador domiciliar, estágiosterminais de patologias e dependência elevada) (CHAIMOWICZ;GRECO, 1999, p. 454-460). Nessas circunstâncias depara-secom “lares” ironicamente denominados “Vovô Feliz”, “Luz daVida”, etc., que, a troco do benefício de prestação continuada14

concedido pela Assistência Social, “amontoa” idosos sem qual-quer estrutura e salubridade, com níveis desumanos de higiene eausência total de regulamentação junto aos órgãos de fiscaliza-ção, onde os idosos aguardam (por vezes impacientemente) omomento de morrer.

Violência institucionalizada

Diferentes formas de violência têm como alvo mais fre-quente a população idosa, seja ela física, emocional, econômicae financeira, além de outras, mais silentes, porém potencialmentetão danosas quanto as demais, como a violência estrutural e ainstitucional.

A violência estrutural reúne os aspectos resultantes dadesigualdade social, do sofrimento decorrente da pobreza e da

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ou, ainda, em instituição pública ou privada.§1º A assistência integral na modalidade de entidade de longa permanênciaserá prestada quando verificada inexistência de grupo familiar, casa-lar, aban-dono ou carência de recursos financeiros próprios ou da família.”14 Não apenas 70% como determina o § 2º, art. 35 do Estatuto do Idoso, mas detodo o benefício.

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miséria, e a discriminação, que se expressa de inúmeras formas.No caso brasileiro, pesquisas apontam que somente 25% dosidosos vivem com três salários mínimos ou mais, evidenciandoa miséria e a pobreza da maioria deles, inseridos em famíliascom condições de miserabilidade (MINAYO, 2004, p. 30). Muitoembora não seja a violência estrutural prerrogativa da populaçãoidosa, é inegável que, diante da vulnerabilidade desse grupo, asituação é extremamente agravada, funcionando como mais umfator de institucionalização em casas asilares.

A Violência institucional, disseminada por todo o mundo,no Brasil ocupa um capítulo muito especial nas formas de abusoaos idosos, e se realiza como uma agressão política, em nívelmacro-social produzida pelo Estado, e de maneira particular re-produzida nas instituições públicas de prestação de serviços enas instituições de longa permanência para idosos – ILPI’s, querpúblicas, quer privadas (idem, ibidem).

Conquanto no Brasil o aparato normativo em favor doidoso seja grande, a prestação de serviços pelo Estado (saúde,assistência e previdência social, etc.) aparece como campeã dereclamações dos usuários idosos15, o que evidencia um enormefosso entre a teoria e a prática.

Intramuros, em uma instituição de longa permanênciapara idosos, tal violência tem terreno fértil para suas mais variadasroupagens, apresentando-se desde travestida de ausência de es-trutura física adequada ao grau de dependência dos idosos; au-sência de cuidados médicos e alimentação adequados; até oisolamento ou a despersonalização dos institucionalizados, quedeixam de ter vontade e nomes próprios para serem tratados por”vovôs” e “vovós”, absolutamente distanciados do convívio social.

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15 Minayo exemplifica citando a “burocracia impessoal na prestação dosserviços, que reproduz a discriminação por classe, gênero e idade [...]As longas filas de que são vitimas, a falta de comunicação, ou comuni-cação confusa, e a ausência de uma relação pessoal compreensiva porquem precisa dos cuidados, constituem uma forma de violência dasquais os idosos mais se queixam”.

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Um estudo de caso: o município de Cariacica

O município de Cariacica, situado na região metropoli-tana da Grande Vitória, Estado do Espírito Santo, com uma po-pulação de 356.536 habitantes, como tantos outros municípiosdo país não conhece o número de seus filhos idosos. Notório,porém, que os idosos em situação de risco foram, historicamente,invisibilizados pela sociedade.

Contam-se às décadas o abandono estatal a essa par-cela da população, o que oportunizou que inúmeras “pessoas deboa vontade” abrissem o próprio negócio, custeados com a pres-tação de benefícios continuados percebidos pelos idosos, amon-toando-os em espaços inadequados, insalubres e mal-cheirosose, via de regra, escondidos por altos muros em pontas de ruasda periferia. Quando conhecidos e interditados judicialmente, emvirtude da comunicação de algum vizinho insatisfeito com o odorou barulho, tais espaços eram reproduzidos em outro bairro, soboutro nome, sem qualquer consequência16.

Como resultado de uma série de fatores17 foram desen-volvidas, no município (citado com objetivo de fundamentar aaplicação do presente estudo), novas estratégias para a fiscali-zação das ILPI’s, com identificação, entre o ano de 2009 e iníciode 2010, de quatro instituições clandestinas, culminando com ofechamento, quer por Termo de Ajuste de Condutas com o Minis-tério Público, quer por interdição da Vigilância Sanitária Munici-pal. Muito embora sejam públicos os Inquéritos Civis onde houve

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16 Caso do “Lar do Idoso Vovô Adão” interditado judicialmente por sentença judicialproferida em Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Estadual (autos n.200500414176) em 04/04/2006 e reaberto no bairro vizinho como “Lar do IdosoVovó Alzenira”.17 Caso do “Lar do Idoso Vovô Adão”, interditado judicialmente por sentença ju-dicial proferida em Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Estadual(autos n. 200500414176) em 04/04/2006 e reaberto no bairro vizinho como “Lardo Idoso Vovó Alzenira”.

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a apuração em análise, as instituições serão designadas, parafins didáticos, da seguinte forma:

Instituição A18 – A partir de relatório do serviço de assistênciasocial do município, datado de março de 2007, acrescido de ou-tras investigações preliminares, foi instaurado, em abril domesmo ano, Procedimento Preparatório na Promotoria de JustiçaCível de Cariacica – com atribuição na defesa e proteção da pes-soa idosa e com deficiência, objetivando elucidar as reais condi-ções em que se encontravam os quarenta internos.

Com o Relatório da Vigilância Sanitária apontando inú-meras irregularidades, desde oferta de alimentação com prazode validade expirado, higiene precária, presença de portadoresde transtorno mental, ausência de qualquer atividade de lazer ouocupacional direcionada aos idosos, até superlotação da área dainstituição com o dobro do número de internos recomendado peloMinistério da Saúde (Portaria 819/1989), veio a conclusão de quea entidade não atendia os requisitos (RDC 283/05) para funcio-namento como instituição de longa permanência para atendi-mento a idosos.

Ouvida a proprietária da Instituição pelo Ministério Pú-blico, foi acordado prazo para adequação das irregularidadesidentificadas, com cronograma de fiscalização e datas de cum-primento. Sanada parte das irregularidades, lograva a proprietá-ria êxito na prorrogação dos prazos, apostando, sempre, nainoperância da fiscalização municipal, no reduzido número de as-sistentes sociais e na impunidade de sua conduta - vez que ape-nas reproduzia uma postura já adotada em outra instituição asilarde idosos de propriedade de sua família, que fora fechada pordeterminação judicial em Ação Civil Pública movida pelo Minis-tério Público Estadual19, sem qualquer outra consequência.

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18 Inquérito Civil n. 003/2009.19 Vide nota 16.

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Com a reiteração do descumprimento pela proprietáriada “Instituição A” das advertências da Vigilância Sanitária, queainda mantinha a instituição sem qualquer registro ou autoriza-ção dos órgãos competentes, requisitou o Parquet à VISA Es-tadual a remoção dos idosos e portadores de transtorno mentale a interdição da ILPI, requisição não cumprida sob o argu-mento de inexistir local adequado para encaminhamento dosinternos.

Com a modificação de inúmeros fatores20, reunindo di-versos Procedimentos Preparatórios e outras diligências inves-tigativas pertinentes, instaurou o Ministério Público InquéritoCivil com encaminhamento de Notificação Recomendatória àproprietária, determinando cumprimento imediato das determi-nações legais, bem como requisição de instauração de InquéritoPolicial. Com o comparecimento quase imediato da responsávelna Promotoria de Justiça, foi assinado Termo de Ajustamentode Conduta com prazo de dez dias para encaminhamento detodos os internos e fechamento da instituição, sob pena demulta diária.

Registre-se que todo o encaminhamento dos idosos eportadores de transtorno mental ocorreu com o suporte da Se-cretaria de Assistência Social do município e foi monitorado peloNASP – Núcleo de Assistência Psicossocial do Ministério Públicodo Estado do Espírito Santo;

Instituição B21 – Com o mesmo percurso de recalcitrância e de-sobediência às determinações da Vigilância Sanitária, desde1997, aliadas à crença absoluta na impunidade, os proprietáriosda “Instituição B” sequer responderam ou compareceram parajustificar o não cumprimento da Notificação Recomendatória en-caminhada nos moldes da anteriormente referida.

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20 Vide nota 17.21 Inquérito Civil n. 005/009.

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Após atualização de todos os relatórios (VISA, NASP eAssistência Social do município) e a confirmação do estado de-plorável22 em que eram mantidos os 18 internos na ILPI23, colhi-das as informações necessárias e suficientes que comprovaraminúmeras violações à legislação infraconstitucional e, para alémde tudo, ao direito constitucional à dignidade humana dos ido-sos institucionalizados na “Instituição B”, o Ministério Público,mobilizando a Vigilância Sanitária Municipal e Estadual, a Se-cretaria Municipal de Assistência Social, o Núcleo de AssistênciaSocial do Ministério Público – NASP e a Polícia Militar, orques-trou uma ação conjunta que culminou com a interdição da insti-tuição de longa permanência para idosos pela VigilânciaSanitária e prisão em flagrante dos proprietários responsáveisem razão da descoberta de uma idosa em cárcere privado epelos demais crimes perpetrados contra a integridade física emental dos idosos;

Instituição C24 – Instituição asilar clandestina localizada no BairroRio Marinho, Cariacica, em funcionamento há cerca de um ano,contava na oportunidade com oito internos e inúmeras irregulari-dades, sem qualquer condição de habitabilidade, acessibilidade esegurança. Usando da mesma estratégia anteriormente narrada efeitas as investigações preliminares no bojo do Procedimento Pre-paratório, mobilizou o Ministério Público a Vigilância Sanitária Mu-nicipal, a Secretaria Municipal de Assistência Social, o Núcleo deAssistência Social do Ministério Público – NASP e a Polícia Militar,em uma ação conjunta que teve como desfecho a interdição da ins-tituição de longa permanência para idosos pela Vigilância Sanitáriae o encaminhamento dos idosos pela Secretaria Municipal de

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22 Alguns isolados em uma construção nos fundos da instituição e fechados comgrades e cadeados.23 Com fotos que identificavam, inclusive, a existência de uma pocilga com qua-renta porcos no quintal da Instituição, tornando o ar irrespirável.24 PCCC n. 030/10.

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Assistência Social a instituições adequadas e um caso de rein-tegração à família; tudo com acompanhamento e monitoramentodo Núcleo de Assistência Social do Ministério Público – NASP; e

Instituição D25 – Largamente conhecida pela vizinhança, essaresidência acolhia quatro idosos indesejados pela família; doishomens e duas mulheres, que compartilhavam um dormitório eo sanitário utilizado pelos demais membros da família. Sem qual-quer atividade, dividiam o dia entre tomar sol em uma área de2m² aos fundos da residência e dormir.

A existência da mencionada instituição clandestina che-gou ao conhecimento do Ministério Público por notícia dos vizi-nhos, indignados com o tratamento dispensado pela proprietáriaaos idosos, que ia de ofensas à dignidade destes a ameaças decastigos corporais. De igual forma, atuaram o Ministério Público,a Vigilância Sanitária Municipal, a Secretaria Municipal de Assis-tência Social, o Núcleo de Assistência Social do Ministério Pú-blico – NASP e a Polícia Militar, em uma parceria que vemmudando o panorama do abandono de idosos no município deCariacica e, no caso em questão, foi repetido o procedimento deencaminhamento e monitoramento dos idosos.

Diante dos quatro exemplos retronarrados que, comsuas peculiaridades, se reproduzem em todas as unidades da fe-deração, um fator se mostrou constante: todos os idosos abriga-dos recebiam benefício de prestação continuada, o que faz comque instituições clandestinas, como as exemplificadas, se multi-pliquem com o único objetivo de se apropriarem dos referidos be-nefícios, trancafiando os idosos em espaços insalubres einacessíveis, coisificando-os.

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25 PCCC n. 007/10.

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Providências cabíveis

Sem prejuízo da responsabilização civil e criminal dos pro-prietários das ILPI’s, verifica-se a ocorrência da infração administra-tiva inserta no art. 56 do Estatuto do Idoso26, que prevê a aplicaçãode multa, o que, seguramente, poderá ter um efeito pedagógico e deprevenção geral mais imediato que as lentas apurações judiciais.

Embora aparentemente simplista, o raciocínio esbarracom a ausência de entendimento sobre quem seria a autoridadecompetente para presidir o processo administrativo27 e aplicar assanções regulamentares.

O procedimento referido neste artigo é correlacionado àsinfrações administrativas elencadas nos artigos 56 a 58, com afinalidade de impor a multa administrativa. Marcos Ramayama(2004, p. 76) posiciona-se:

O requerimento deve ser dirigido ao Conselho do Idoso, poisa imposição no âmbito do próprio Ministério Público implicaem evidente desnaturação do processo administrativo.Vê-se que o procedimento para a imposição de falta adminis-trativa das entidades que abrigam idosos é diverso dos proce-dimentos referentes às faltas familiares (art. 45), assim, é defremente necessidade a definição do órgão julgador das infra-ções administrativas, pois, simplesmente deslocar esta compe-tência para a Vigilância Sanitária não dirime a vexata quaestio.[...] No silêncio da lei, entendemos ser o Conselho Estadual doIdoso carente de regulamentação em vários Estados da Fede-ração, ou, ainda, o próprio juiz com competência na vara cível,pois a medida administrativa poderá ser requerida na petiçãoinicial, por exemplo, de uma medida cautelar inominada.

Em sentido diverso, Damásio E. de Jesus (2005, p. 172):

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26 Art. 56. Deixar a entidade de atendimento de cumprir as determinações doart. 50 desta Lei:Pena - multa.27 Art. 60. O procedimento para imposição de penalidade administrativa por in-fração ás normas de proteção ao idoso terá início com requisição do MinistérioPúblico ou auto de infração elaborado por servidor efetivo e assinado, se pos-sível, por duas testemunhas.

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Ainda que as normas não indiquem expressamente a compe-tência jurisdicional (a autoridade competente, como se vê dosarts. 62 e 63), e nesse particular o legislador foi claramente in-feliz, tem-se que a estipulação do valor da sanção pecuniáriareceberá sempre a apreciação do ‘juiz’, como indica o art. 58.

O entendimento esposado por Roberto Mendes de Frei-tas Júnior (2008, p. 185-186) aponta solução distinta, verbis:

O Estatuto do Idoso não especifica qual é a autoridade públicacompetente para aplicação das penalidades referentes às infra-ções administrativas prevista nos artigos 56 a 58, da Lei10.741/2003. Ante a lacuna da lei e a ausência de regulamentaçãosobre a matéria, cabe ao intérprete a definição.Temos, para nós, que as infrações administrativas devem ser apu-radas por meio de procedimento administrativo, instaurado pe-rante o Poder Executivo Municipal, do local da infração, que terácompetência para aplicação das penalidades correspondentes.

Fundamenta o autor seu posicionamento, afirmando quese o legislador almejasse que o procedimento referente às infra-ções administrativas fosse julgado pelo Juiz de Direito, o teria in-serido no capítulo destinado ao processo judicial, e se não o fezintentou, claramente, diferenciá-los.

Aduz, ainda, que a própria dicção do diploma legal corro-bora esse entendimento quando, no art. 60, reza que “o procedi-mento para imposição de penalidade administrativa [...] terá iníciopor requisição do Ministério Público ou por Auto de infração [...]”.

É de se considerar que, diante da ausência de previsãolegal, inúmeras são as opções possíveis a apontar a autoridadecompetente para apuração administrativa de infração às normasde proteção ao idoso, reclamando, via de consequência, um pro-cesso de interpretação criativa, onde o intérprete torna-se coparti-cipante do trabalho de criação do Direito e completa o trabalho dolegislador ao realizar escolhas entre as soluções possíveis, à luzdos elementos do caso concreto.

O Direito como integridade, pelas lentes de Dworkin(1999, p. 272 e ss.), nega que as manifestações do Direito sejam

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relatos factuais do convencionalismo, voltados para o passado, ouprogramas instrumentais do pragmatismo jurídico, voltados parao futuro. Defende que as afirmações jurídicas são opiniões inter-pretativas e dessa forma combinam elementos que se voltam tantopara o passado quanto para o futuro; interpretam a prática jurídicacontemporânea como um processo em contínuo desenvolvimento.

Ao se entender o Direito como integridade, os casos dedifícil resolução se apresentam diante de qualquer intérprete, e,quando sua análise preliminar não fizer prevalecer uma entre asvárias interpretações de acordo, nos moldes das leis aplicáveis,deve este fazer uma escolha racional, questionando-se qual delasseria a mais adequada não apenas do ponto de vista da moralpolítica, mas tendo em vista a estrutura das instituições e decisõesaceitáveis pela comunidade a qual a norma é endereçada.

Ocorre que as decisões que envolvem a atividade criativado intérprete potencializam o dever de fundamentação, um maiorônus argumentativo, a comprovar a racionalidade da interpretaçãonessas situações. Se argumentação (do latim argumentatio) é oprocesso pelo qual se reúnem argumentos e/ou dados conver-gentes no sentido de respaldar uma determinada tese (BAR-RETO, 2006, p. 60), necessário que se construa,argumentativamente, uma solução que goze de aceitabilidade ra-cional e leve em conta as consequências práticas produzidas nomundo dos fatos. Explica-se.

Construindo argumentativamente o perfil da autoridadecompetente

Lastreados nos posicionamentos de estudos acadêmicossobre o tema de qual seria a autoridade competente para presidir

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o procedimento de apuração administrativa de infração às nor-mas de proteção ao idoso, urge que se analise, sob a melhor luz,as possibilidades semânticas das normas do Estatuto e as con-sequências práticas das soluções apontadas emergentes decada direcionamento.

Registre-se que ao atribuir a fiscalização das entidades deatendimento ao idoso, quer governamentais, quer não governa-mentais, ao Conselho do Idoso, ao Ministério Público e à VigilânciaSanitária (bem como a outros órgãos ou instituições a depender deprevisão legal), o Estatuto do Idoso apontou rota segura para sedefinir a autoridade competente para apurar administrativamenteas infrações estabelecidas em seus arts. 56 usque 58.

A primeira hipótese extraída das correntes doutrinárias seriaa atribuição de competência processante ao Conselho do Idoso, aoqual incumbiria, ao final do procedimento administrativo, a imposiçãode multa. Dessa alternativa emergem questionamentos que devemnecessariamente ser respondidos previamente, sob pena de super-ficializar e consolidar um entendimento sem enfrentamento dos pro-blemas que lhe subjazem. Como funcionam os Conselhos Gestoresde Políticas Públicas no Brasil? Estariam os Conselhos do Idoso ha-bilitados, capacitados e destinados a esse mister?

Conselho do idoso28

A década de 1990 presenciou, com lastro nas determi-nações constitucionais, uma extraordinária explosão de criaçãode conselhos em todo o território nacional, eis que da Lei Maiorse extraiu a obrigatoriedade de implementação de Conselhos detoda ordem: de saúde; de educação; de acompanhamento dos

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28 Trecho inserido em Salomão (2008, p. 73).

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fundos vinculados a esses direitos; de assistência social e, pos-teriormente, Conselho do Idoso, etc.

Muito embora os diversos tipos de conselhos de controlesocial instituídos no Brasil possuam características diferenciadasno que diz respeito à natureza, composição, funções, atribuições,estruturas e regimento, o objetivo primordial comum a todos elesé possibilitar a participação da sociedade como destinatária daspolíticas públicas a serem implementadas pelo Estado, em seuprocesso de elaboração, forma de implementação e fiscalizaçãodos meios utilizados para tal.

Objetiva, ainda, em todos os níveis da federação (nacio-nal, estadual e municipal) descentralizar as atividades do Estado,nos moldes do apregoado pela Carta Constitucional, em seu art.204, que prevê o princípio da descentralização política (inciso I),aliado à participação popular (inciso II), para elaboração e con-trole das ações de implementação nas três esferas de governo(GUGEL; MAIO, 2009).

Com a explosão de criação de conselhos de toda ordem,hoje os conselhos fazem parte da vida política de todos os mu-nicípios brasileiros, que se não possuem a totalidade dos deter-minados constitucionalmente, quer por ausência de criação, querde implementação, é fato que ao menos os de existência vincu-lada ao repasse de verbas de programas federais, os Conselhosde programa, brotaram nesses entes federativos.

A utilização do verbo é proposital, “brotar” no sentido dejorrar, surgir, aparecer, o que se aplica também aos demais tiposde Conselhos, mas, diversamente do que se dá com os vegetais,onde a semente aguarda no ventre da terra o necessário tempode germinação, no seio social essa eclosão não tem como trazer,em si, o amadurecimento necessário à completa preparação daexperiência programada. Assim, a superação dos desafios lan-çados pela nova existência é imperativa.

Nessa esteira, foram criadas variadas espécies de conselhos,

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assim classificados pela pesquisa dos Conselhos Municipais de Polí-ticas Sociais (IBAM, IPEA, Comunidade solidária, 1997) (SILVEIRA,2004, p. 78): a) Conselhos de programa; b) Conselhos temáticos; e c)Conselhos gestores ou conselhos setoriais ou de políticas públicas.Estes últimos dizem respeito à dimensão da cidadania, à universali-zação de direitos sociais e à garantia ao exercício desses direitos.

No tocante ao suporte financeiro, já foi dito alhures (SA-LOMÃO; ALMEIDA, 2008) que atualmente, no Brasil, a realidadedo Controle social nessas bases se dá em reuniões de Conse-lhos (quando não apenas colheita de assinaturas em atas peloscorredores) que, por vezes, ocorrem em salas improvisadas (al-moxarifados, cômodos de entulhos, etc.) por falta de local espe-cífico destinado a tal finalidade, onde, por falta de consciência ecapacitação para o desempenho da função de conselheiros, sãotratados temas periféricos e irrelevantes, além de diversos do ob-jetivo de planejamento e monitoramento das políticas públicas.

Para tanto, é necessário que os membros de um Conselho te-nham um aprendizado de competências e conhecimentos específicos,na maioria das vezes completamente alheio a sua prática cotidiana.

Ocorre que, muito embora a legislação pertinente pre-veja e imponha ao executivo, em todos os níveis, a obrigatorie-dade de apoio técnico e capacitação dos conselheiros, isso nãoacontece na dimensão que deveria. O que se vê na rotina de reu-niões dos Conselhos, os mais diversos, é a total falta de conhe-cimento específico, de capacitação técnica para a tarefa deacompanhamento, fiscalização e controle interno e externo.

Os Conselhos de direitos das pessoas idosas, já previs-tos na Lei 8.842/94, que instituiu a Política Nacional do Idoso29,

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29 Art. 6º - Os conselhos nacional, estaduais, do Distrito Federal e municipaisdo idoso serão órgãos permanentes, paritários e deliberativos, compostos porigual número de representantes e entidades públicas e de organizações repre-sentativas da sociedade civil ligadas às áreas.Art. 7º - Compete aos conselhos de que trata o artigo anterior a formulação,coordenação, supervisão e avaliação da política nacional do idoso, no âmbitodas respectivas instâncias político-administrativas.

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com competências específicas na construção, monitoramento efiscalização das políticas públicas de atendimento às pessoasidosas, foram incorporados no Estatuto do Idoso, que claramente

determinou suas atribuições para zelo pelo cumprimento dos di-reitos dos idosos ali definidos:

Art. 53. O art. 7º da Lei 8.842, de 1994, passa a vigorar com aseguinte redação: Art. 7º Compete aos Conselhos de que trata o art. 6º desta Leia supervisão, o acompanhamento, a fiscalização e a avaliaçãoda política nacional do idoso, no âmbito das respectivas ins-tâncias político-administrativas.

As atribuições dos Conselhos Municipais do Idoso vêm, comopoucas variantes, seguindo as constantes na Cartilha deOrientação para criação de Conselhos de Direitos do Idoso30:São atribuições do Conselho Municipal de Direitos do Idoso:

-Formular, acompanhar, fiscalizar e avaliar a Política Municipaldos Direitos do Idoso, zelando pela sua execução;

- Elaborar proposições, objetivando aperfeiçoar a legislaçãopertinente à Política Municipal dos Direitos do Idoso;

- Indicar as prioridades a serem incluídas no planejamento mu-nicipal quanto às questões que dizem respeito ao idoso;

-Cumprir e zelar pelo cumprimento das normas constitucionaise legais referentes ao idoso, sobretudo a Lei Federal nº 8.842,de 04/07/94, a Lei Federal nº 10.741, de 1º/10/03 (Estatuto doIdoso) e leis pertinentes de caráter estadual e municipal, de-nunciando à autoridade competente e ao Ministério Público odescumprimento de qualquer uma delas;

-Fiscalizar as entidades governamentais e não-governamen-tais de atendimento ao idoso, conforme o disposto no artigo52 da Lei nº 10.741/03.

-Propor, incentivar e apoiar a realização de eventos, estudos,programas e pesquisas voltados para a promoção, a proteção

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30 AMPID – Associação Nacional dos Membros do Ministério Público de Defesados Direitos dos Idosos e Pessoas como Deficiência - Cartilha de Orientaçãopara Criação de Conselhos de Direitos do Idoso, 2007. Disponível em< http://www.ampid.org.br/Docs_ID/Criacao_Conselhos_CNDI.php > acesso em2/12/2009.

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e a defesa dos direitos do idoso;

-Inscrever os programas das entidades governamentais e não-governamentais de assistência ao idoso;

-Estabelecer a forma de participação do idoso residente nocusteio da entidade de longa permanência para idoso filan-trópica ou casa-lar, cuja cobrança é facultada, não podendoexceder a 70% (setenta por cento) de qualquer benefícioprevidenciário ou de assistência social percebido peloidoso;

-Indicar prioridades para a destinação dos valores depositadosno Fundo Municipal dos Direitos do Idoso, elaborando ou apro-vando planos e programas em que está prevista a aplicaçãode recursos oriundos daquele.

-Zelar pela efetiva descentralização político-administrativa epela participação de organizações representativas dos idososna implementação de política, planos, programas e projetosde atendimento ao idoso;

-Elaborar o seu regimento interno.

Cabe, ainda, ao Conselho participar ativamente da elabora-ção das políticas públicas de atendimento ao idoso, velandopela sua inclusão nas peças orçamentárias municipais (PlanoPlurianual – PPA, Lei de Diretrizes Orçamentárias – LDO eLei Orçamentária Anual – LOA), observando se a dotação or-çamentária destinada à construção da referida política é com-patível com as reais necessidades e prioridadesestabelecidas, zelando pelo seu efetivo cumprimento, entreoutras atribuições que se apresentem.

Importa, em síntese, concluir que a atribuição dessefórum formal de controle social cinge-se à elaboração, monitora-mento e fiscalização das políticas públicas referentes aos idosos,bem como à fiscalização das Instituições de Longa Permanênciapara Idosos – ILPI’s, passando ao largo de alguma competênciapara aplicação de multas, ou, antes, do procedimento de apura-ção das infrações administrativas que implicarão na aplicaçãodas referidas penalidades.

Considerando toda a herança histórico-cultural impreg-nada de autoritarismo, afastamento popular das causas públicas

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e ausência de formação democrática da sociedade brasileira, queé a matriz de todos os problemas inerentes ao controle social noBrasil, como conceber a inovação e acréscimo das atribuiçõesdos conselhos, em especial do Conselho do Idoso - irmão maisjovem da família dos conselhos gestores de políticas públicas -se os chamados a representar o corpo social ainda não estão ha-bilitados a executar as tarefas originariamente propostas?

Muito embora seja diamantino o crescimento em expe-riência democrática e no nível de aprendizado já alcançadospelas instâncias formais de controle social, resta evidenciado,pelo já expedido, que imputar ao Conselho do Idoso a atribuiçãodo processamento da apuração administrativa das infrações àsnormas de proteção ao idoso não é a melhor solução a ser dadaà problemática apresentada, tendo-se em vista, além das viola-ção das determinações legais, as desastrosas consequências fá-ticas que desse encaminhamento adviriam.

Poder judiciário - juízo cível

A segunda das hipóteses possíveis de autoridade com-petente para processar a apuração administrativa às normas deproteção ao idoso vem do posicionamento de Damásio E. deJesus, sustentando que por não indicar a Lei 10.741/03 expres-samente a competência jurisdicional, por atecnia do legislador, oentendimento é que a estipulação do valor da sanção pecuniáriareceberá sempre a apreciação do ‘juiz’, como indica o art. 58.

Em que pese a abalizada percepção do professor Da-másio, a indicação do juízo cível como o mais indicado para apre-ciar a questão esbarra em óbices de várias matizes:

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a) A uma, o empecilho da impossibilidade semântica doenunciado normativo em questão. Quando o art. 75 fazexpressa referência ao início do procedimento “por re-quisição do Ministério Público”, em nenhuma exegese,por mais extensiva que seja, poderá significar “por re-

querimento do Ministério Público”, vez que só medianterequerimento poderá o Parquet iniciar um procedimentoperante o Poder Judiciário, jamais por requisição.

b) A duas, pela própria localização topológica do referidodispositivo, inserido em capítulo diverso do referente à“Apuração Judicial de Irregularidades de entidade deatendimento” (capítulo VI), demonstrando a clara inten-ção do legislador em distingui-los, como acertadamentedefendido por Freitas Júnior.

c) A três, não se poderá olvidar, como anteriormente sus-tentado, na interpretação criativa de uma determinadanorma, as consequências práticas decorrentes da soluçãopossível escolhida no caso concreto. Como chamar paraas barras do Poder Judiciário outras demandas, clara-mente dele excluídas, se é notória a dificuldade de estedesincubir-se da competência a ele atribuída pelo legisla-dor constitucional e infraconstitucional? Acaso dever-se-ia desconsiderar o hercúleo esforço que o Judiciário se vêenvolvido para cumprir as “metas” de julgamento dos pro-cessos - que se arrastam por anos nos escaninhos desuas serventias - impostas pelo Conselho Nacional deJustiça? Sem qualquer objetivo de diminuir a importânciade um Poder Judiciário forte na manutenção do EstadoDemocrático de Direito, ver esse poder como único cami-nho para a solução de conflito é, em uma visão míope, vê-lo como superego de uma sociedade órfã (MAUS, 2000).

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Assim, sem resvalar pelo pecado do raciocínio óbvio, écristalina a incompatibilidade e as inúmeras inconveniências dese judicializar a apuração administrativa das infrações às normasde proteção ao idoso. Resta, então, como alternativa válida eadequada, o processamento da referida apuração administrativapelo Poder Executivo – sendo este o gestor das políticas públicaspara o idoso e um dos encarregados pelo Estatuto do Idoso dafiscalização das Instituições de Longa Permanência para Idosos.

Ministério Público Estadual

Outra hipótese a ser considerada seria atribuir ao Parquet

a função de instância para apuração, via procedimento admi-nistrativo, das infrações às normas de proteção ao idoso.

Nesse passo, acertada a manifestação doutrinária que en-tende que a imposição no âmbito do próprio Ministério Público im-plica em evidente desnaturação do processo administrativo, ondea sanção pecuniária seria aplicada como resultado de um procedi-mento sui generis na Instituição, em uma interpretação criativa quevai de encontro ao perfil constitucional do Parquet, vocacionado aproteção dos direitos fundamentais do idoso e cujas atribuições, aolado das atribuições de suas respectivas Leis Orgânicas, foram cui-dadosamente descritas, mesmo que em numerus abertus.

Poder-se-ia contra-argumentar estribado em um alarga-mento do inciso V do art. 7431, que prevê a instauração de pro-cedimento administrativo, o que seria facilmente contestado, haja

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31 Estatuto do Idoso - “Art. 74. Compete ao Ministério Público:V- instaurar procedimento administrativo e, para instruí-lo:a) expedir notificações, colher depoimentos ou esclarecimento e, em caso de nãocomparecimento injustificado da pessoa notificada, requisitar condução coercitiva,inclusive pela Polícia, Civil ou Militar;

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vista que o procedimento a que se refere o supracitado disposi-tivo é essencialmente investigativo, objetivando a colheita de ele-mentos a respaldar e fundamentar: a) o arquivamento, em nãose vislumbrando as violações da lei investigadas; b) o Termo deAjustamento de Conduta, nas hipóteses de adequação do com-portamento violador das determinações legais; e, c) em últimocaso, quando restarem infrutíferas todas as tentativas de media-ção dos conflitos e adequação das condutas lesivas levadas atermo pelo Ministério Público, restará o árduo caminho a ser per-corrido pela Ação Civil Pública.

Por outro lado, a hipótese de atribuir-se ao Parquet a pre-sidência do procedimento administrativo a ensejar a penalidadepecuniária ao violador das normas de proteção ao idoso sequertem fôlego para resistir a um mergulho até o § 2º do referido art.7432, que elucida que, sem embargos das explicitadas, outrasatribuições podem ser acolhidas pelo Ministério Público, con-quanto compatíveis com a finalidade e com as atribuições da ins-tituição ministerial, o que definitivamente não alcança aimposição de penalidades, excluídas as acordadas em Termosde Ajustamento de Condutas.

Poder Executivo

Perseguindo, ainda, a aná lise sob a melhor luz das possi-bilidades semânticas das normas do Estatuto, e as consequências

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b) requisitar informações, exames perícias e documentos de autoridades muni-cipais, estaduais e federais, da administração direta e indireta, bem como pro-mover inspeções e diligências investigatórias;c) requisitar informações e documentos particulares de instituições privadas;”32 Estatuto do Idoso - “Art. 74. (omissis)§ 2º As atribuições constantes deste artigo não excluem outras, desde que com-patíveis com a finalidade e atribuições do Ministério Público.”

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práticas das soluções apontadas, emergentes de cada direciona-mento, alcança-se a hipótese de atribuir ao Poder Executivo (esta-dual e municipal) a competência para processamento de apuraçãoadministrativa das infrações às normas de proteção ao idoso.

Inserida nos limites da norma estatutária que identificanão apenas o Conselho do Idoso e o Ministério Público, mas tam-bém o Poder Executivo (por meio da Vigilância Sanitária) comoresponsável pela fiscalização das Instituições de Longa Perma-nência para Idosos – ILP’s é racional e argumentativamente sus-tentável seja – diante dos óbices levantados – o Poder Executivoa assumir a competência processante.

Necessário lembrar ser imperioso, para tal desiderato,que a referida autoridade competente seja dotada de poder depolícia para que proceda à aplicação das penalidades referentesàs infrações administrativas previstas nos artigos 56 a 58 da Lei10.741/2003. Quem mais autorizado para penalizar administrati-vamente pelo descumprimento das regras do Estatuto do Idososenão o próprio gestor das políticas públicas endereçadas a estaparcela da população?

Nessa trilha, a solução apontada se coaduna com osenunciados normativos constantes da Constituição Federal e doEstatuto do Idoso, a saber:

a) Estabelece a CF/88 em seu art. 230: “A família, a so-ciedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoasidosas, assegurando sua participação na comunidade,defendendo sua dignidade e bem-estar e lhes garantidoo direito à vida”, o que indica, de forma irrefutável, odever do Estado na garantia dos direitos constitucional-mente garantidos aos idosos;

b) Diante da determinação inserta na cabeça do art. 60,“o procedimento para imposição de penalidade adminis-

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trativa [...] terá início por requisição do Ministério Públicoou por Auto de infração [...]”, e, acrescenta-se, será diri-gido ao órgão municipal (estadual ou federal) responsá-vel especificamente pela fiscalização das infrações eaplicação das multas administrativas, previstas no Esta-tuto do Idoso, nos artigos 56 a 58.

De outra banda, afastadas as hipóteses aventadas nosentido de atribuir ao Conselho do Idoso ou ao Ministério Públicocompetências que se afastam de sua vocação constitucional elegal; e refugindo-se, ainda (após providências extrajudiciais, emsua totalidade), de resvalar para as barras de um Poder Judiciárioabarrotado e impossibilitado de, em tempo hábil, atender ao ca-ráter pedagógico de aplicação da penalidade administrativa (epor isso mesmo, não judicial); encontra-se na atribuição de tal ta-refa ao Poder Executivo Municipal, uma solução com consequên-cias fáticas de possível viabilidade, conforme a seguir elucida-se.

Um caminho viável

Em que pese a pluralidade de soluções possíveis na elei-ção da autoridade competente para presidir o processamento daapuração administrativa em tela, por todo o exposto, melhor secoaduna com a ontologia das instituições apontadas a eleição doPoder Executivo para tal mister.

Um caminho viável seria a criação de um órgão de fiscaliza-ção no âmbito da Secretaria Municipal de Assistência Social, mas quepoderá ser fruto da congregação de esforços entre esta, a SecretariaMunicipal de Saúde, por meio da Vigilância Sanitária, e o PROCON.

É necessário que se estabeleça o âmbito de atuação e

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a vinculação administrativa desse órgão que, dotado do poderde polícia administrativa, seria legitimado para apurar as infra-ções administrativas ao Estatuto do Idoso, bem como promoverações educativas, no sentido de auxiliar as instituições, órgãose estabelecimentos de modo geral, quer públicos, privados oucom finalidade social, que prestam serviços a idosos, a cumpriro estabelecido a Lei Federal n. 10.741, de 1° de outubro de 2003(Estatuto do Idoso), no tocante à prioridade absoluta e na defesados demais direitos estabelecidos no art. 50 do referido diploma.

Nesse sentido, há que se considerar que a Política Na-cional do Idoso, estabelecida pela Lei n. 8.842, de 1994, prevê acongregação de esforços dos órgãos e entidades públicos dasáreas da assistência social, saúde, educação, trabalho e previ-dência social, habitação e urbanismo, justiça, e cultura, esportee lazer, em ações coordenadas destinadas a assegurar os direi-tos sociais do idoso, dada a complexidade e amplitude da temá-tica. Por sua vez, o Decreto n. 1.948, de 1996, que regulamentaa Política Nacional do Idoso, reputa à Secretaria Especial de Di-reito Humanos a competência de articular e apoiar a estruturaçãoda rede nacional de proteção e defesa dos direitos da pessoaidosa. Aplicando a esse raciocínio o princípio constitucional dadescentralização político-administrativa aduz-se que, no âmbitomunicipal, as secretarias que desenvolvam ações relacionadasaos direitos do idoso estariam envolvidas diretamente na imple-mentação da Política Nacional do Idoso.

Inegavelmente, tal eleição logrará encontrar despreparadoe desaparelhado qualquer que seja o ente federativo responsável,tendo em vista a novidade dessa construção interpretativa.

Nessa vertente, outro caminho não há que uma constru-ção dialogada entre Ministério Público e o gestor público, cuja in-terlocução (no caso do município), a título de sugestão, poderáiniciar v.g. depois de instaurado Procedimento Preparatório, ob-jetivando a investigação do cumprimento das normas do Estatuto

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do Idoso, que determinam a apuração administrativa das infra-ções às suas normas. Para tanto, sugere-se seja encaminhadoofício pelo Promotor de Justiça ao Prefeito Municipal para queeste indique, no prazo assinalado, o órgão municipal responsávelpela fiscalização das ILPI’s e também pela aplicação das penali-dades administrativas constantes dos arts. 56 a 58 do referidodiploma, em caso de descumprimento, mais adequado será a no-tificação recomendatória em tal sentido.

Argumente-se, na oportunidade, que nada adiantará oMinistério Público realizar seu papel fiscalizatório se não houvera apuração e a penalização pelo Poder Executivo, inviabilizandoa aplicação das sanções cabíveis por falta de órgãos incumbidoslegalmente dessa atribuição. Razoável, ainda, que se solicite, nosupracitado ofício, o encaminhamento das verbas oriundas dasmultas administrativas para o Fundo Municipal do Idoso, vez quenada mais justo que parte da verba para financiamento das polí-ticas públicas destinadas aos idosos seja proveniente exata-mente daqueles que descumpram as regras de proteção àpopulação idosa contidas no Estatuto, surgindo, assim, um cicloque se retroalimentará até que todos cumpram seus deveres,cientes da criteriosa atuação do Poder Executivo.

Como suporte à efetivação da criação do órgão fiscaliza-dor, conveniente ainda que se municie o poder executivo com mo-delo de Projeto de Lei que cria, no âmbito da Secretaria deAssistência Social, o PROIDOSO33, disciplinando a aplicação dasmultas previstas nos arts. 56 a 58 da Lei 10.741/03, com criaçãode cargos para seus membros, ou, ainda, utilizando-se de servido-res oriundos da Secretaria Municipal de Assistência Social, doPROCON e da Vigilância Sanitária, objetivando, assim, contornara dificuldade financeira e a realização de concursos, que têm o con-dão de inviabilizar projetos como estes em municípios menores.

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33 Nome sugerido para o órgão encarregado da apuração administrativa de infra-ção às normas de proteção ao idoso.

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Anote-se, por derradeiro, que, como desobstrutor dos ca-nais de comunicação entre a sociedade civil e o Estado, deveráo Promotor de Justiça buscar adredemente a parceria do Con-selho do Idoso, expondo seus argumentos e ouvindo esse fórumformal de controle social, no afã de melhor alcançar os objetivosde materialização dos direitos dos idosos, via procedimentoadministrativo, para imposição de penalidades administrativas.

A apuração a que se refere o presente estudo é de inte-resse absoluto da sociedade, haja vista que experimentará direta-mente os nefastos efeitos da atuação desrespeitosa dos violadoresdas mencionadas disposições estatutárias e da proliferação de ins-tituições asilares clandestinas, como as exemplificadas no item an-terior. Nesse passo, não se olvide que o Conselho do idoso reúnerepresentantes do poder executivo e da sociedade civil, fórum pri-vilegiado para se articular esforços, objetivando a efetivação dosdireitos assegurados à população dessa faixa etária.

Destaques conclusivos

O escorço extraído da proposta de construir argumenta-tivamente o perfil da autoridade competente para a presidênciado procedimento administrativo e a aplicação das penalidadesdele decorrentes poderá ser assim estruturado:

- A sociedade brasileira enlaçada ao Estado caminhacom passos largos. Os últimos vinte anos foram lépidos na per-secução e superação do atraso na efetivação dos direitos sociais.Muito se fez e muito ainda está por fazer. Vias desobstruídas departicipação social na elaboração das soluções para os proble-mas que afligem a sociedade são o objetivo determinante da

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atuação do Ministério Público;

- O Estatuto do Idoso veio a lume com o claro objetivode regulamentar e detalhar a forma de defender a dignidade e obem-estar dos idosos, garantindo-lhes o direito à vida. Essas sãoas razões da definição de infrações administrativas, crimes esuas respectivas penalidades;

- Vivemos em um Estado Democrático de Direito ondea norma constitucional, sob a égide da Constituição Federal de1988, ganha status de norma jurídica, dotada de imperatividadee supremacia diante de todo o ordenamento jurídico, sendo im-prescindível que funcione como filtro axiológico (BARROSO,2009, p. 95) pelo qual a legislação infraconstitucional deve serlida e interpretada;

- O Estatuto do Idoso estabelece sanções administrativasaplicáveis às entidades de atendimento ao idoso, aos profissionaisde saúde ou responsável por estabelecimento de longa perma-nência e àqueles que deixarem de cumprir a prioridade no atendi-mento ao idoso, o que inclui uma gama de possibilidades, taiscomo instituições bancárias, da administração pública e demaisinstituições que prestem atendimento ao idoso. Tendo em vista aatecnia do legislador estatutário ao não definir a autoridade com-petente para apuração administrativas das infrações às normas deproteção ao idoso, imperativa a coparticipação do intérprete nacriação do Direito, realizando sua escolha entre as soluções pos-síveis, à luz das consequências fáticas advindas desta eleição;

- A necessidade de justificação racional da construçãointerpretativa é questão de primacial relevância para a cientifici-dade do Direito, demandando, para tanto, maior ônus argumen-tativo do intérprete;

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- Ao construir argumentativamente o perfil da autoridadecompetente para a apuração administrativa objeto deste estudo,analisaram-se as instituições indicadas pela doutrina pátria, quaissejam, Conselho do Idoso, Ministério Público, Poder Judiciário ePoder Executivo; a vocação constitucional e as consequênciaspráticas da atribuição de tal competência;

- Conclui o presente artigo por eleger o Poder Executivo,por meio de um órgão criado para tal finalidade, como o mais in-dicado para a apuração administrativa das infrações previstasnos artigos 56 a 58 do Estatuto do Idoso e a imposição das pe-nalidades pecuniárias, levando-se em conta os limites das pos-sibilidades semânticas das normas estatutárias, nos moldes daPolítica Nacional do Idoso, do princípio da descentralidade ad-ministrativa e, para além de tudo isso, como meio de buscar as-segurar aos idosos a dignidade constitucionalmente garantida.

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Eliseu Antônio da Silva Belo*

EMBARGOS DECLARATÓRIOS PARA FINS DE MODULAR OS EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE

INCONSTITUCIONALIDADE: NOVO POSICIONAMENTODO STF E SUA PRINCIPAL CONSEQUÊNCIA JURÍDICA

thE ModulAtion EFFEctS oF thE dEclArAtion oF

unconStitutionAlity:nEW PoSition By StF

And thEir chiEF lEGAl conSEQuEnSE

EMBArGoS dEclArAtorioS PArA FinES dE

ModulAr loS EFEctoS dE lA dEclArAciÓn dE

inconStitucionAlidAd: nuEVo PoSicionAMiEnto

dEl StF y Su PrinciPAl conSEcuEnciA JurídicA

Resumo:

A modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade

exercida pelo Supremo Tribunal Federal tem previsão legal ex-

pressa no art. 27 da Lei n. 9.868/99 e no art. 11 da Lei n. 9.882/99.

Para que ela ocorra, contudo, a jurisprudência sedimentada do

STF tem exigido pedido expresso e prévio da parte legitimada,

sob pena de não conhecimento de eventuais embargos de decla-

ração opostos com o objetivo de se alcançar tal modulação. Não

obstante, no julgamento da ADI 3601 ED/DF, da relatoria do Mi-

nistro Dias Toffoli, encerrado no dia 09.09.2010, o Tribunal, por

maioria qualificada de oito votos, acolheu os embargos de decla-

ração, mesmo não havendo pedido anterior de modulação, posi-

ção nova que impõe uma releitura da regra geral de eficácia extunc do juízo de inconstitucionalidade exercido pelo STF.

* Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Goiás. Ex-servidor daJustiça Federal em Goiás.

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Abstract:

The modulation effects of the declaration of unconstitutionality exer-

cised by the Supreme Court has express legal provision in art. 27

of Law n. 9.868/99 and Art. 11 of Law n. 9.882/99. For it to occur,

however, the jurisprudence of the Supreme Court has required ex-

press and prior request of the legitimate, otherwise no knowledge

of any requests for clarification opposites with the goal of achieving

such modulation. Nevertheless, in judging the ADI 3601 ED/DF, the

Ministry reporting for Dias Toffoli, closed on 09.09.2010, the Court,

by a majority of eight votes, welcomed a clarification, even in the

absence of previous application modulation, a new position that re-

quires revising the rule overall effectiveness ex tunc of the judg-

ments of unconstitutionality by the Supreme Court exercised.

Resumen:

La modulación de los efectos de la declaración de inconstitucio-

nalidad ejercida por el Supremo Tribunal Federal tiene previsión

expresa en el art. 27 de la Ley n. 9.868/99 y en el art. 11 de la

Ley n. 9.882/99. Para que ella ocurra, no obstante, la jurispru-

dencia reiterada del STF ha obligado un pedido expreso y previo

de las partes legitimadas, bajo la penalidad de no conocimiento

de los eventuales embargos de declaración opuestos con el ob-

jetivo de lograr dicha modulación. Sin embargo, en el juzgamiento

de la ADI 3601 ED/DF, de informe del Ministro Dias Toffoli, cer-

rado el 09.09.2010, el Tribunal, por mayoría de ocho votos, dio

la bienvenida a los embargos de la declaración, pese a no haber

solicitud previa de la modulación, posición nueva que requiere

una reinterpretación de la norma general de la eficacia ex tuncde la corte de inconstitucionaliad ejercida por el STF.

Palavras-chaves:

Declaração de inconstitucionalidade, modulação dos efeitos, embar-

gos de declaração, Supremo Tribunal Federal, novo posicionamento.

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Keywords:

Declaration of unconstitutionality, modulation effects, requests for

clarification; Supreme Court, new position.

Palabras clave:

Declaración de inconstitucionalidad, modulación de los efectos,

embargos de declaración, Supremo Tribunal Federal, nuevo po-

sicionamiento.

como se sabe, ao declarar a inconstitucionalidade de leiou ato normativo, o Supremo tribunal Federal pode limitar ou res-tringir os efeitos dessa declaração, afastando a regra geral daeficácia ex tunc, nas hipóteses expressamente previstas no art.27 da lei n. 9.868/99, assim redigido:

Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo,e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcionalinteresse social, poderá o Supremo tribunal Federal, por maioriade dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela de-claração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsitoem julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.

Em se tratando de arguição de descumprimento de pre-ceito fundamental, idêntica norma vem consagrada no art. 11 dalei n. 9.882/99.

Para que tal dispositivo seja aplicado, nos feitos emque o Supremo declara a inconstitucionalidade de lei ou atonormativo, é preciso que haja pedido expresso de uma daspartes do processo objetivo ou subjetivo em que se exerça ocontrole de constitucionalidade, ou mesmo manifestaçãonesse sentido de eventual amicus curiae, até o julgamento daação, sob pena de, não sendo tal pleito formulado, tornar-seinviável a interposição de embargos de declaração, a fim de

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que tal finalidade seja alcançada após o julgamento.Esse tem sido até agora o posicionamento pacífico, em-

bora não unânime, do Supremo tribunal Federal, conforme seextrai do seguinte acórdão, assim ementado:

Embargos de declaração. Ação direta de inconstitucionalidadeprocedente. inscrição na Paranaprevidência. impossibilidadequanto aos serventuários da justiça não remunerados peloscofres públicos. Modulação. Eficácia em relação às aposenta-dorias e pensões já asseguradas e aos serventuários que jápreencham os requisitos legais para os benefícios.1. A ausência, na ação direta de inconstitucionalidade, depedido de restrição dos efeitos da declaração no tocante adeterminados serventuários ou situações afasta, especifica-mente no caso presente, a apontada omissão sobre o ponto.2. Embargos de declaração rejeitados, por maioria. (Adi 2791Ed/Pr, relator originário Min. Gilmar Mendes, relator p/ oacórdão Min. Menezes direito, julgado em 22/04/2009, grifosnossos)

idêntico posicionamento sagrou-se acolhido nos autosda Adi 1498 Ed/rS, de relatoria originária do Min. ilmar Galvão,redator p/ o acórdão Min. Marco Aurélio, de cuja ementa se extraio seguinte trecho:

EMBArGoS dEclArAtÓrioS – oMiSSÃo – FiXAÇÃo dotErMo iniciAl doS EFEitoS dA dEclArAÇÃo dE in-conStitucionAlidAdE – rEtroAtiVidAdE totAl. Ainexistência de pleito de fixação de termo inicial diverso afasta aalegação de omissão relativamente ao acórdão por meio do qualse concluiu pelo conflito do ato normativo autônomo abstratocom a constituição Federal, fulminando-o desde a vigência.

Esse mesmo trecho está também contido na ementa dojulgamento proferido nos autos da Adi 2728 Ed/AM, de relatoriado Min. Marco Aurélio, ocorrido no dia 19.10.2006.

consoante dito linhas acima, tais julgamentos, contudo,não contaram com a unanimidade dos votos proferidos, sendocerto que a corrente então vencida foi praticamente capitaneadapelo Min. Gilmar Mendes, o qual, no julgamento mais recente jámencionado (Adi 2791 Ed/Pr), apresentou os seguintes funda-

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mentos, justificadores do conhecimento e provimento dos em-bargos de declaração, mesmo não havendo pedido anterior demodulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade,in verbis:

caso se entenda que o fundamento para a limitação dosefeitos é de índole constitucional e que, presentes os requisitospara a declaração de inconstitucionalidade com efeitos restri-tos, não poderá o tribunal fazê-lo com eficácia ex tunc,afigura-se inevitável o acolhimento dos embargos de de-claração nas hipóteses em que de fato se configura uma omis-são do tribunal na apreciação dessas circunstâncias.[...].Parece evidente que o princípio da segurança jurídica tem aquium peso incontestável, capaz de sobrepujar o próprio postu-lado da nulidade absoluta da lei inconstitucional.[...].o princípio da nulidade somente há de ser afastado se sepuder demonstrar, com base numa ponderação concreta, quea declaração de inconstitucionalidade ortodoxa envolveria osacrifício da segurança jurídica ou de outro valor constitucionalmaterializável sob a forma de interesse social.[...].no caso em exame, entendo que, tendo em vista a necessi-dade de preservação de situações jurídicas formadas legitima-mente e com inteira boa-fé, a declaração deinconstitucionalidade deva ser retroativa, porém ressalvadosos benefícios previdenciários (aposentadorias e pensões) jáassegurados, assim como as hipóteses em que o serventuáriojá preencheu todos os requisitos legais para a obtençãodesses benefícios.

Sobre a necessidade de já existir pedido prévio de mo-dulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, a fimde que sejam conhecidos os embargos de declaração, o Min. Gil-mar Mendes, nesse mesmo julgamento, fez a seguinte observa-ção, que parece ser razoável:

no entanto, apostar no pedido já prévio de modulação deefeitos é extremamente problemático porque, em geral, esseinteressado quer ver declarada a inconstitucionalidade da lei.talvez a modulação de efeitos só aparecesse, eventualmente,se houvesse participação, na qualidade de amicus curiae, dosinteressados atingidos.

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Minoritária até então essa corrente, o Supremo tribunalFederal, no julgamento já concluído da Adi 3601 Ed/dF, de re-latoria do Min. dias toffoli, adotou novo posicionamento, se-guindo agora a linha de pensamento defendida pelo Min. GilmarMendes, segundo se pode concluir da leitura do trecho quesegue, extraído do informativo StF n. 599, de 06 a 10 de setem-bro de 2010, assim redigido:

Em conclusão de julgamento, o tribunal, por maioria, acolheuembargos de declaração para modular os efeitos de decisãoproferida em ação direta de inconstitucionalidade. Esclare-ceu-se que o acórdão embargado tem eficácia a partir dadata de sua publicação (21.8.2009). na espécie, o Supremodeclarara a inconstitucionalidade da lei distrital 3.642/2005,que dispõe sobre a comissão Permanente de disciplina daPolícia civil do distrito Federal — v. informativos 542 e 591.Reconheceu-se, de início, a jurisprudência da Corte, nosentido de inadmitir embargos de declaração para finsde modulação de efeitos, sem que tenha havido pedidonesse sentido antes do julgamento da ação. Entendeu-se que, no caso, entretanto, a declaração não deveria serretroativa, por estarem configurados os requisitos exigi-dos pela Lei 9.868/99 para a modulação temporal dosefeitos da declaração de inconstitucionalidade, tendo emconta a necessidade de preservação de situações jurídi-cas formadas com base na lei distrital. Mencionou-se, noponto, que a declaração de inconstitucionalidade comefeitos ex tunc acarretaria, dentre outros, a nulidade detodos os atos praticados pela Comissão Permanente deDisciplina da Polícia Civil do Distrito Federal, durante osquatro anos de aplicação da lei declarada inconstitu-cional, possibilitando que policiais civis que cometeraminfrações gravíssimas, puníveis inclusive com a demis-são, fossem reintegrados. Vencidos os Ministros Marco Au-rélio e celso de Mello que não acolhiam os declaratórios, pornão vislumbrar os pressupostos de embargabilidade, e re-jeitavam a modulação dos efeitos. (Adi 3601 Ed/dF, rel. Min.dias toffoli, 9.9.2010. Adi-3601, grifos nossos)

interessante observar que, nesse julgamento, foi ressal-tado e acolhido – expressamente pelo Min. ricardo lewandowski,por exemplo – um argumento sustentado pelo embargante (Go-vernador do distrito Federal), para que fosse dado provimento aos

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embargos, consistente na constatação de que a inconstituciona-lidade declarada na Adi foi apenas de cunho formal, de modo queos policiais punidos ao longo da vigência da lei distrital em foco ti-veram respeitadas as garantias constitucionais do contraditório,da ampla defesa e do devido processo legal, nos processos dis-ciplinares conduzidos sob a disciplina dessa mesma lei distrital.com efeito, da peça de interposição dos embargos declaratóriosse extrai a seguinte passagem:

tal restrição na eficácia da decisão não importará em prejuízosao interesse público, ou mesmo à ordem constitucional. relem-bre-se que o fundamento da ação direta de inconstitucionali-dade ora em exame consiste em um vício de natureza formal,por usurpação de competência legislativa. não há, em face daaplicação da norma distrital aqui examinada, um caráterdesproporcional ou a eventual violação a garantias constitu-cionais, como a ampla defesa e o devido processo legal.Em outras palavras: a aplicação da norma impugnada na pre-sente sede de controle normativo abstrato no âmbito do dis-trito Federal não prejudicou os acusados nos respectivosprocessos administrativos. Foram observadas todas as garan-tias constitucionais aplicáveis [...].

como se vê, a tese de viabilidade dos embargos de de-claração, para fins de modulação dos efeitos da declaração deinconstitucionalidade, mesmo não havendo pedido prévio e ex-plícito nesse sentido, tornou-se agora vencedora, pois acolhidapelo quórum de oito votos, exigido pelo art. 27 da lei n. 9.868/99.

tendo prevalecido esse novo posicionamento na corte,torna-se imperioso concluir que a regra geral de eficácia ex tunc,ou seja, retroativa da declaração de inconstitucionalidade, deveráser redefinida ou, pelo menos, aclarada; vista sob nova perspec-tiva, a fim de se consignar que tal declaração é retroativa sempreque inexistentes as hipóteses de modulação previstas no art. 27da lei n. 9.868/99, ou no art. 11 da lei n. 9.882/99, em se tra-tando de AdPF. isso implica dizer que a Suprema corte, ao de-cidir pelo juízo de inconstitucionalidade das leis e atos

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normativos, nos feitos de sua competência, terá o dever de veri-ficar ex officio a presença ou não das situações legais que legiti-mam a modulação em questão, sob pena de, não o fazendo,autorizar a interposição de embargos de declaração, com o fimde suprir a omissão daí decorrente.

ou seja, não mais valerá o argumento expendido peloMin. celso de Mello, ao proferir seu voto vencido na apontadaAdi 3601 Ed/dF, conforme o qual “se na declaração de incons-titucionalidade o Supremo não optou por modular os efeitos, pre-valece a doutrina de que atos inconstitucionais são atos nulos”.

Em outras palavras, a retroatividade dos efeitos da de-claração de inconstitucionalidade deverá ser expressamente con-signada pelo StF, ressaltando, para tanto, a ausência dosvalores ou vetores apontados pelo art. 27 já referido, pois, con-forme destacado pelo Min. cezar Peluso ao proferir seu voto naAdi 2728 Ed/AM, acima citada, “[...] é perfeitamente sustentávelque o tribunal devesse, dadas as repercussões possíveis do re-sultado do julgamento, ponderar a questão da limitação da eficá-cia da decisão”; ou ainda, segundo o próprio Min. Gilmar Mendes,nos debates travados ao longo do julgamento da Adi 1498Ed/rS, também citada neste trabalho, “[...] em tese, é possível,sim, dizer que o tribunal foi omisso ao não vislumbrar todas asconseqüências de uma declaração de inconstitucionalidade”.

Em verdade, a essência desse novo e importante posicio-namento parece ter ligação com a imprescindibilidade de o StF,ao emitir um juízo de inconstitucionalidade, ter a obrigação ou ocuidado – para ser menos impactante – de ponderar os valoresconstitucionais envolvidos e normalmente em conflito, quais sejam:de um lado, o princípio da nulidade absoluta da lei inconstitucional,e, de outro, o princípio da segurança jurídica ou a configuração deexcepcional interesse social, também de extração constitucional.

Essa, sem dúvida, é a principal consequência jurídicaque resulta do julgamento da Adi 3601 Ed/dF, concluído no dia09/09/2010.

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Luiz Antonio Miguel Ferreira*

O TRATAMENTO HOMEOPÁTICO E SUAS IMPLICAÇÕES FRENTE AO ESTABELECIDO

NO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NA GARANTIA DO DIREITO À VIDA E À SAÚDE

HOMEOPATHIC TREATMENT AND ITS IMPLICATIONS FACE TO THE

ESTABLISHED IN STATUTE OF CHILDREN AND ADOLESCENT IN THE

WARRANTY OF THE RIGHT TO LIFE AND HEALTH

EL TRATAMENTO HOMEOPÁTICO Y SUS IMPLICACIONES EN LO

ESTABLECIDO EN EL ESTATUTO DEL NIñO Y DEL ADOLESCENTE EN LA

GARANTíA DEL DERECHO A LA vIDA Y A LA SALUD

Resumo:

O presente texto procura abordar a temática do tratamento

homeopático frente ao que estabelece o ECA. Em um pri-

meiro momento, analisa a questão da possibilidade de imple-

mentação de políticas públicas na área da saúde que

contemplem o referido tratamento. A seguir, faz uma análise

específica da questão relativa à vacinação obrigatória e sua

relação com as crianças e adolescentes que se submetem ao

tratamento homeopático.

Abstract:

This paper addresses the issue of homeopathic treatment face

* Promotor de Justiça, Coordenador da área educacional do CAO Cível ede Tutela Coletiva do Ministério Público do Estado de São Paulo. Especia-lista em Direito Difuso e Coletivo pela ESMP. Mestre em Educação pelaUNESP. Fevereiro/2011. E-mail: [email protected].

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to what establishes the ECA (Children and Adolescent Sta-

tute). At first, examines the question of the possibility of imple-

mentation of public policies in the health field that covers such

treatment. It then provides a specific analysis of the issue of

mandatory vaccination and its relationship with children and

adolescents who undergo homeopathic treatment.

Resumen:

Este documento trata de abordar la cuestión del tratamiento

homeopático en comparación con lo que establece el ECA.

En primer lugar, se examina la cuestión de la posibilidad de

la implementación de políticas públicas en la salud que in-

cluya el referido tratamiento. A continuación, se ofrece un

análisis específico de la cuestión de la vacunación obligatoria

y su relación con los niños y adolescentes que se someten a

un tratamiento homeopático.

Palavras-chaves:

Tratamento homeopático, criança e adolescente, vacinação

obrigatória, direito à saúde no ECA, políticas públicas.

Keywords:

Homeopathic treatment, children and adolescents, mandatory

vaccination, the right to health in the ECA, public policies.

Palabras clave:

Tratamiento homeopático, niño y adolescente, vacunación obli-

gatoria, derecho a la salud en el ECA, políticas públicas.

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Introdução

Obedecendo ao que estabelece a Constituição Federal,o legislador estatutário acabou por contemplar um capítulo espe-cífico do direito à saúde da criança e do adolescente. Trata-se deum regramento básico, previsto nos artigos 7º a 14 do Estatutoda Criança e do Adolescente.

Destaca-se desse ordenamento que a proteção do direitoà vida e à saúde da criança e do adolescente se efetiva atravésde políticas públicas. Tais políticas visam garantir o nascimentoda criança e o seu posterior desenvolvimento, em condições dig-nas de existência.

O legislador, como era de se esperar, não detalhou todasas formas dessa garantia, mas especificou, nos artigos mencio-nados, algumas regras básicas em relação à gestante, nasci-mento e posterior desenvolvimento da criança. Deixouconsignado que o atendimento integral à saúde da criança e doadolescente será efetivado através do Sistema Único de Saúde(art. 11) com serviços para promoção, proteção e recuperaçãoda saúde. Nesse sentido, incumbiu o Poder Público da obrigato-riedade de fornecer gratuitamente os medicamentos, próteses eoutros recursos relativos ao tratamento, habilitação e reabilitaçãoda saúde de crianças e adolescentes necessitados.

Também estabeleceu como regra prevista no art. 14, pa-rágrafo único, que é obrigatória a vacinação nos casos recomen-dados pelas autoridades sanitárias.

Em face dessas determinações legais, surgem algumasindagações, especificamente no que diz respeito ao tratamentohomeopático, objeto deste estudo. Deve ser ele fornecido peloPoder Público? É obrigatória a vacinação de crianças que se tra-tam pela homeopatia? Em síntese, como analisar o Estatuto daCriança e do Adolescente em face destas questões? Estes são

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os pontos principais que se buscam discutir neste artigo, visandouma interpretação legal que se harmonize com a garantia da vidae da saúde da criança e do adolescente.

Homeopatia como política pública de saúde

Homeopatia (homeo: similar, patia: doença) é um métodoterapêutico baseado no princípio da similitude, cujo enunciado é‘SIMILIA SIMILIBUS CURENTUR (ou seja, o semelhante cura osemelhante), e que admite causas físicas e psicológicas (porexemplo, perdas, culpas, medos, etc.) para o adoecer do ser hu-mano. Utiliza medicamentos em doses infinitesimais, diluídos emágua e álcool, dinamizados para a liberação de sua energia me-dicamentosa (MIRANDA, 2010).

Para a Federação Brasileira de Homeopatia, esta de-fine-se como um método prático fundamentado e que, metodo-logicamente, aumenta o nível de saúde de um organismo, pelaadministração de experimentados e potencializados medicamen-tos individualmente selecionados de acordo com a lei dos se-melhantes.

A homeopatia procura equilibrar o indivíduo, diminuindosua sensibilidade às doenças, de tal maneira que se torne saudávelfísica e psiquicamente (BARROLO, 1996, p. 25). O tratamento ho-meopático consiste em fornecer, a um paciente sintomático, dosesextremamente pequenas dos agentes que produzem os mesmossintomas em pessoas saudáveis, expostas a quantidades maiores.Desse modo, o sistema de cura natural da pessoa seria estimuladoa estabelecer uma reação de restauração da saúde por suas pró-prias forças, de dentro para fora (ULLMAN, 1988).

O oposto de homeopatia é considerado tratamento

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alopático, que seria o tratamento atual, convencional, fundadoem bases científicas e em medicamentos.

A homeopatia é reconhecida como especialidade médicapelo Conselho Federal de Medicina (inicialmente pela Resoluçãon. 1000/1980 e hoje pela Resolução CFM 1634/2002) e como es-pecialidade farmacêutica pelo Conselho Federal de Farmácia (aoprincípio pela Resolução n. 232/1992 e atualmente pela n.440/2005). A partir da década de 1980, alguns estados e municí-pios brasileiros passaram a oferecer o atendimento homeopáticocomo especialidade médica aos usuários dos serviços públicosde saúde, porém como iniciativas isoladas e, às vezes, desconti-nuadas, por falta de uma política nacional. Em 1999, o Ministérioda Saúde inseriu na tabela SAI/SUS a consulta médica em ho-meopatia. Através da Portaria n. 971, de 03 de maio de 2006, oMinistério da Saúde aprovou a política nacional de práticas inte-grativas e complementares no Sistema Único de Saúde, tratandode maneira específica a questão da homeopatia.

Segundo consta da referida portaria, a implementaçãoda homeopatia no SUS representa uma importante estratégiapara a construção de um modelo de atenção centrado na saúde,uma vez que:

- Recoloca o sujeito no centro do paradigma da atenção, com-preendendo-o nas dimensões física, psicológica, social e cul-tural. Na homeopatia, o adoecimento é a expressão da rupturada harmonia dessas diferentes dimensões. Dessa forma, essaconcepção contribui para o fortalecimento da integralidade daatenção à saúde;- Fortalece a relação médico-paciente como um dos elementosfundamentais da terapêutica, promovendo a humanização naatenção, estimulando o autocuidado e a autonomia do indivíduo;- Atua em diversas situações clínicas do adoecimento como,por exemplo, nas doenças crônicas não transmissíveis, nasdoenças respiratórias e alérgicas, nos transtornos psicossomá-ticos, reduzindo a demanda por intervenções hospitalares eemergenciais, contribuindo para a melhoria da qualidade devida dos usuários; - Contribui para o uso racional de medicamentos, podendo re-duzir a farmacodependência.

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Como já afirmado, alguns municípios implementaram otratamento homeopático junto à rede de atenção primária àsaúde1, alcançando alguns resultados significativos, principal-mente no que diz respeito ao menor número de exames comple-mentares e diminuição dos custos.

Diante desse posicionamento, não há como negar que éperfeitamente possível exigir do Poder Público referido trata-mento, com base, essencialmente, no art. 11 do ECA que, ao con-trário do que se possa alegar, tem eficácia plena. Diz o artigo:

Art. 11 – É assegurado atendimento integral à saúde da cri-ança e do adolescente, por intermédio do Sistema Único deSaúde, garantindo o acesso universal e igualitário às ações eserviços para promoção, proteção e recuperação da saúde.[...]§ 2º– Incumbe ao Poder Público fornecer gratuitamente àque-les que necessitarem, os medicamentos, próteses e outros re-cursos relativos ao tratamento, habilitação ou reabilitação.

Assim, como referido tratamento está especificado noSistema Único de Saúde, deve o mesmo ser garantido de formauniversal e igualitária. Aliás, em face dos benefícios mencionados,principalmente no que diz respeito aos custos, tal política poderiaser cada vez mais acentuada. Logo, a homeopatia como políticapública de saúde apresenta-se entre aqueles recursos relativosao tratamento, habilitação ou reabilitação de que trata o § 2º doart. 11 do ECA, que devem ser disponibilizados às crianças e aosadolescentes.

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1 A Lei Orgânica do Município de Belo Horizonte, de 21 de março de 1990, es-tabelece: “Art. 144 - Compete ao Município, no âmbito do Sistema Único deSaúde, além de outras atribuições previstas na legislação federal: vI - o ofe-recimento aos cidadãos, por meio de equipes multiprofissionais e de recursosde apoio, de todas as formas de assistência e tratamento necessárias e ade-quadas, incluídas a homeopatia e as práticas alternativas reconhecidas;”.

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Normas legais de vacinação e suas implicações

A outra questão que merece análise diz respeito à vaci-nação daquelas crianças tratadas pela homeopatia.

Destaca-se, de plano, o estabelecido pelo Estatuto daCriança e do Adolescente quanto à questão da vacinação: “Art.14. [...] Parágrafo Único. É obrigatória a vacinação das criançasnos casos recomendados pelas autoridades sanitárias”.

A Lei n. 6.259, de 30 de outubro de 1975, que dispõesobre a organização das ações de vigilância epidemiológica esobre o programa nacional de imunizações, estabelece:

Art. 3º. Cabe ao Ministério da Saúde a elaboração do Pro-grama Nacional de Imunizações, que definirá as vacinações,inclusive as de caráter obrigatório.

Parágrafo Único. As vacinações obrigatórias serão prati-cadas de modo sistemático e gratuito pelos órgãos e entidadespúblicas, bem como pelas entidades privadas, subven-cionadas pelos Governos Federal, Estaduais e Municipais, emtodo o território nacional.

Em cumprimento a tal legislação, em 28 de outubro de2010 foi publicada a Portaria n. 3.318 do Ministério da Saúde, queinstituiu em todo o território nacional o calendário básico de vaci-nação da criança, do adolescente e dos idosos2.

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2 Esta portaria foi publicada com base nos incisos I e II do Parágrafo único doart. 87 da Constituição Federal, da Lei n. 6.259, de 30 de outubro de 1975,que dispõe sobre a organização das ações de vigilância Epidemiológica,sobre o Programa Nacional de Imunizações, estabelece normas relativas ànotificação compulsória de doenças; nos arts. 27 e 29 do Decreto n. 78.231,de 12 de agosto de 1976, que regulamenta a Lei n. 6.259, de 30 de outubrode 1975; Portaria GM/MS n. 3.252/GM/MS, de 22 de dezembro de 2009, queaprova as diretrizes para a execução e o financiamento das ações de vigilân-cia em Saúde pela União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; Por-taria n. 2.452/ GM/MS, de 31 de agosto de 2010, que define as terminologiasadotadas em legislação nacional, conforme disposto no Regulamento Sani-tário Internacional 2005 (RSI 2005), a relação de doenças, agravos e eventos

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Diz a portaria:

Art. 1º. Fica instituído, em todo o território nacional, oCalendário Básico de vacinação da Criança, o Calendário doAdolescente e o Calendário do Adulto e Idoso, no âmbito doPrograma Nacional de Imunizações (PNI), visando ao controle,à eliminação e erradicação de doenças imunopreveníveis. [...]Art. 3º. As unidades de saúde do Sistema Único de Saúde(SUS) adotarão o Calendário Básico de vacinação da Criança,o Calendário do Adolescente e o Calendário do Adulto e Idoso. Art. 4º. As vacinas e períodos constantes no Calendário Básicode vacinação da Criança, o Calendário do Adolescente e oCalendário do Adulto e Idoso são de caráter obrigatório coma finalidade de assegurar a proteção da saúde pública.

Em seguida, detalhou as diretrizes da vacinação obriga-tória para crianças de 0 a 10 anos de idade, como a BCG-ID, He-patite B, Tetravalente, vOP, rotavírus humanos, entre outras.

Destaca-se de tal legislação que tais vacinas são de caráterobrigatório e que todas as crianças devem ser vacinadas, sob penados pais ou responsáveis sofrerem uma das medidas previstas noEstatuto da Criança e do Adolescente, conforme ficou estabelecidono artigo a seguir, com especial destaque aos incisos vI a X:

Art. 129. São medidas aplicáveis aos pais ou responsável:I - encaminhamento a programa oficial ou comunitário de pro-teção à família;II - inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, ori-entação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos;III - encaminhamento a tratamento psicológico ou psiquiátrico;Iv - encaminhamento a cursos ou programas de orientação;v - obrigação de matricular o filho ou pupilo e acompanhar suafreqüência e aproveitamento escolar;vI - obrigação de encaminhar a criança ou adolescente a trata-mento especializado;vII - advertência;vIII - perda da guarda;IX - destituição da tutela;X - suspensão ou destituição do poder familiar.

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em saúde pública de notificação compulsória em todo o território nacional eestabelecer fluxo, critérios, responsabilidades e atribuições aos profissionaise serviços de saúde.

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Sem prejuízo de tais medidas, vislumbra-se, também, apossibilidade da responsabilização dos genitores pelo descum-primento dos deveres inerentes ao poder familiar, em especial odo cuidado (ECA, art. 22), de maneira administrativa:

Art. 249. Descumprir, dolosa ou culposamente, os deveresinerentes ao poder familiar ou decorrente de tutela ou guarda,bem assim a determinação da autoridade judiciária ou Con-selho Tutelar.

Quando essa questão é analisada com base nos princí-pios da medicina homeopática, outros referenciais são apresen-tados que levam a alguns questionamentos quanto a esseprocedimento especificado.

Sobre o assunto, discorre Barollo (1996, p. 125/127):

Homeopaticamente falando, e do ponto de vista teórico, éindiscutível que as vacinas podem ser nocivas.Acabamos de dizer que as doenças infecciosas são válvulasde escape que permitem que não se agrave um desequilíbriojá existente. O que aconteceria se para toda doença infecciosajá tivesse sido encontrada uma vacina? O organismoprecisaria de outras válvulas de escape, novas doenças sur-giriam, porém desta vez mais graves como são as doençasdegenerativas ou as hipertrofias (tumores).Por outro lado, as vacinas são nocivas porque obrigam o sis-tema de defesa do organismo a uma atividade que não é recla-mada naturalmente, isto é, o aumento, a proliferação decélulas de defesa fora de hora.Além disso, pela vacinação são introduzidas proteínas estra-nhas tanto ao nível químico quanto energético, sem que hajauma predisposição ou preparo do corpo.Do ponto de vista prático, existe hoje muita controvérsia sobreo real efeito protetor de algumas vacinas.Por exemplo, no caso da BCG-ID (contra tuberculose) existemtrabalhos extensos, mostrando que o nível de proteção verifi-cado em vários lugares do mundo é quase nulo, se não, real-mente inexistente. Outro fato: na clínica, encontramos váriasocorrências de “BCGites” provocadas pela instalação do baciloda vacina, que é agente patogênico, induzindo o aparecimentode uma real doença.Em relação à Tríplice (contra difteria, coqueluche e tétano), al-guns autores já aceitam a aplicação apenas da Dupla(diftérica/tetânica) eliminando a parte referente à coqueluche,

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devido aos possíveis efeitos colaterais da fração pertussis(Bordetella pertussis é o agente etiológico da coqueluche).Todas as vacinas podem causar efeitos colaterais e são con-tra-indicadas em alguns casos.O que se percebe nos consultórios homeopáticos é que osrecém-nascidos não vacinados adoecem com menos frequên-cia do que os que tomaram vacinas. Infelizmente, o nível so-cioeconômico da população brasileira ainda é baixo e nãopermite um equilíbrio total das pessoas que não temacesso a uma boa alimentação, à higiene e à educação,justificando-se desta forma a vacinação generalizada, poisa maioria é suscetível às doenças infecciosas.Sabemos também que muitas doenças, como sarampo e co-queluche, para as quais existem vacinas, são realmentegraves somente para desnutridos ou imunodeprimidos e quecrianças bem alimentadas e cuidadas com higiene, con-seguem passar por essas doenças sem grandes problemas.Muitas vezes, as infecções, incluindo os mais apavorantescasos, como a paralisia infantil, podem ser debeladas commedicamentos homeopáticos.O ato de vacinar deve ser consequência de uma avaliação cri-teriosa. O médico precisa analisar o paciente, considerandoos seguintes fatores: sensibilidade, família, meio ambiente ea chance de encontrar ou não o Simillium. O assunto não deveser fechado. A questão deve ser amplamente discutida, pen-sada e avaliada, para que, com o médico, os pais possam de-cidir conscientemente. (grifos nossos)

Tal questão já chegou a ser analisada pelo Conselho Re-gional de Medicina do Estado de São Paulo, através da consultan. 1.865-58/88, cujo relator foi o conselheiro Edmílson Gigante.Nessa oportunidade, ficou consignado:

A consulta em epígrafe inicia-se com carta do Dr. J.M.F.,enviada ao CREMESP em 24/08/88, na qual ele questiona aatitude de alguns médicos homeopatas que proíbem seus pa-cientes, geralmente crianças, de se submeterem à vacinação,o que, segundo nosso consulente, contraria a ética médica ea legislação de nosso país, além de ser uma atitude não cien-tífica, razões pelas quais pede um posicionamento deste Con-selho a respeito da matéria.

Para exararmos nosso parecer sobre esta questão, torna-senecessário que façamos, inicialmente, três colocações, quesão as seguintes:

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a) A homeopatia é uma especialidade médica como outra qual-quer, reconhecida pelo Conselho Federal de Medicina e omédico homeopata tem autonomia para escolher o melhortratamento para seus pacientes, em um determinado mo-mento, sem interferências externas de qualquer natureza. Ascitações acima estão contidas no Processo Consulta nº 1.722-70/86, da lavra do Conselheiro Edmilson Gigante, que pas-samos a transcrever, em parte, a seguir:

Como já dissemos atrás, a Homeopatia, no Brasil, constitui umaEspecialidade Médica reconhecida pelo Conselho Federalde Medicina, pela Associação Médica Brasileira e pelosServiços Públicos de Saúde, ou seja, faz parte da MedicinaOficial de nosso País. Assim sendo, a autonomia a que nos refe-rimos no item anterior, segundo a qual todo médico tem o direitoe o dever de escolher o tratamento mais adequado a seus pa-cientes, deve ser aplicada também ao médico homeopata, poisdo contrário estaremos discriminando-o e, portanto, infringindoo artigo 20 do nosso atual Código de Ética Médica, que reza:“Édireito do médico: Art. 20 - Exercer a Medicina sem ser discrimi-nado por questões de religião, raça, sexo, nacionalidade, cor,opção sexual, idade, condição social, opinião política ou de qual-quer outra natureza.”

Além disso, para se fazer um curso de Homeopatia no Brasil,necessita-se ser médico diplomado por uma das escolasmédicas do país e ter esse diploma registrado por um Con-selho Regional de Medicina, o que significa que todo home-opata é, antes de tudo, um médico e como tal está apto ausar não só a terapêutica homeopática como também aalopática, podendo ainda associá-las, de acordo com cadasituação em particular, para o bem de seus pacientes e con-forme o seu entendimento. Portanto, entendemos que omédico homeopata tem, como qualquer outro médico, o di-reito e o dever de escolher o tratamento mais adequado parao seu paciente num determinado momento e sob determi-nadas condições (respeitados os artigos 46 e 56 do nossoCódigo de Ética Médica), sem interferências externas dequalquer natureza, não cabendo, pois aos Conselhos deMedicina em geral e ao CREMESP em particular, ditar nor-mas ao homeopata a respeito de como tratar seus pacientes,mesmo porque (citando novamente o parecer contido noProcesso Consulta nº 1.748-24/87) “não cabe a este con-selho a manifestação quanto aos aspectos técnicos do exer-cício da profissão médica, mas somente no que concerne aoplano ético”.

Do exposto acima depreende-se que cabe ao médico, e so-mente a ele, decidir autonomamente sobre a terapêutica indi-cada para seus pacientes, seja ele homeopata ou não.

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b) A proibição de vacinar seus pacientes, que é própria dealguns homeopatas, está longe de constituir uma unanimi-dade em nosso país, mesmo entre os próprios homeopatase a orientação das várias escolas homeopáticas e associ-ações de homeopatas são bem diferentes entre si, sendo al-gumas totalmente contra, outras totalmente a favor e, outras,ainda, que preconizam uma proibição parcial das vacinas, oque lança alguma confusão na análise da questão. De ummodo geral, podemos dizer que, realmente, existem home-opatas que proíbem seus pacientes de se submeterem àvacinação tradicional. Estes homeopatas alegam, para talconduta, o seguinte:

1 - As vacinas, como atualmente são preparadas, causaminúmeras complicações e os homeopatas, com uma visãoglobal das doenças, entendem que estas complicações são,na realidade, maiores e mais numerosas que as comumenterelatadas pelas observações alopáticas.

2 - Entendem ainda que, tratando seus pacientes commedicação homeopática, estes ficariam quase imunes àsdoenças infecciosas, pois seus organismos estariam equilibra-dos, com pouca probabilidade de adoecerem. Admitem, ainda,que em alguns casos, como por exemplo a poliomielite, o pa-ciente que adquira a doença (vacinado ou não) já era um indi-víduo pré-disposto, apresentando sempre “espina bífida”,como preconiza, em seus trabalhos, o respeitado (e hoje jáfalecido) Prof. Walter Edgar Maffei, patologista brasileiro delongos anos de experiência, a maioria dos quais como profes-sor universitário.

c) A vacinação, em nosso Estado, é regida pelo Decreto nº12.342, de 27 de setembro de 1978, Código Sanitário, cujosartigos 512, 513 e 514 dizem o seguinte:“Art. 512 - A Secretariade Estado da Saúde é responsável pela vacinação obrigatóriano território do Estado de São Paulo, nos termos da LeiFederal nº 6.259, de 30 de outubro de 1975, que dispõe sobrea organização das ações da vigilância Epidemiológica e sobreo Programa Nacional de Imunizações. Parágrafo Único - ASecretaria de Estado da Saúde, elaborará, fará publicar eatualizará, bienalmente, a relação das vacinações de caráterobrigatório no Estado de São Paulo, após a devida aprovaçãopelo Ministério da Saúde.”“Art. 513 - É dever de todo cidadãosubmeter-se à vacinação obrigatória, assim como os menoressob sua guarda ou responsabilidade.

Parágrafo Único - Só será dispensada da vacinação obrigatóriaa pessoa que apresentar atestado médico e contra-indicaçãoexplícita da aplicação da vacina.”

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Art. 514 - Anualmente, para pagamento do salário-família, seráexigida do segurado a comprovação de que seus beneficiáriosreceberam as vacinas obrigatórias na forma do Decreto Federalnº 78.231, de 12 de agosto de 1976, por meio de seus órgãosresponsáveis pelos Programas de vacinação”

Analisando o material apresentado nos três itens anteriores,devemos ressaltar, inicialmente, que existe uma diferença im-portante entre um médico homeopata, por um lado, tratar deseus pacientes, em seu consultório, com medicamentos home-opáticos e, por outro lado, contra-indicar, sistematicamente, avacinação para seus pacientes. Na primeira situação, como jáfoi dito (item “a” deste parecer) entendemos que o homeopata,como qualquer outro médico, tem o direito de tratar seus pa-cientes como julgar mais adequado ao caso, pois ele está como paciente sob controle, visto que, em caso de má evoluçãoou falta de resposta ao tratamento com possibilidade de danoao seu paciente, ele terá condições de rever sua conduta uti-lizando-se de meios terapêuticos homeopáticos ou não, tudoem prol do paciente e de acordo com o artigo 57 do atualCódigo de Ética Médica que diz:

“É vedado ao médico: Art. 57 - Deixar de utilizar todos osmeios disponíveis de diagnóstico e tratamento a seu alcanceem favor do paciente”.

Por outro lado, no caso da vacinação, ao contrário, enten-demos que o médico homeopata não está com o paciente sobcontrole, pois é no mínimo discutível que o medicamentohomeopático imunize o paciente deixando-o resguardado deuma possível infecção. Não existem, no momento, trabalhosde pesquisa que nos garantam que o paciente não será infec-tado quando se trata com medicamentos homeopáticos e aalegação de que os pacientes infectados já seriam pré-dispos-tos (como preconiza Maffei) é também a nosso ver discutível,não podendo ser considerada uma verdade absoluta no mo-mento atual das pesquisas neste campo da Medicina.

Outrossim, com relação às complicações causadas pelas vaci-nas, sabemos que elas realmente existem, mas entendemosque os riscos de uma não vacinação, deixando os indivíduosexpostos a possíveis doenças, nem sempre benignas, sãotambém muito grandes, podendo causar danos irreparáveisestas pessoas.

Assim sendo, é de nosso parecer que, o médico home-opata, proibindo, sistematicamente, seus pacientes dese vacinarem, está deixando-os vulneráveis a determi-nadas doenças das quais poderiam se proteger através

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da vacinação e, automaticamente, estará infringindo o ar-tigo 57 do atual Código da Ética Médica, já enunciado linhasatrás. Além disso, proibindo seus pacientes de se vacinareme, às vezes, até fazendo propaganda contrária à vacinação,nos meios de comunicação, o médico homeopata acabacriando dificuldades para as autoridades sanitárias e, aomesmo tempo, está infringindo o Decreto nº 12.342, de 27 desetembro de 1978, já citado, o qual, como vimos, considera avacinação obrigatória em nosso país. Desta forma, enten-demos que ele estaria também infringindo os artigos 14 e 44do atual Código de Ética Médica, que rezam:

“Art. 14 - O médico deve empenhar-se para melhorar ascondições de saúde e os padrões dos serviços médicos e as-sumir sua parcela de responsabilidade em relação à saúdepública, à educação sanitária e à legislação referente à saúde.”

“É vedado ao médico: art. 44 - Deixar de colaborar com as au-toridades sanitárias ou infringir a legislação pertinente.”

Entretanto, se o médico homeopata contra-indicar, eventual-mente, a vacinação para determinado paciente por considerá-la prejudicial ao mesmo naquele momento, entendemos quenão estará sendo anti-ético, pois é prerrogativa de todo médicodecidir sobre o que é melhor para seus pacientes em qualquersituação e estará ele também de acordo com a legislaçãocorrespondente, fornecendo ao seu paciente um atestadomédico dispensando-o da vacinação, de acordo com o pará-grafo único do artigo 513 do Decreto nº 12.342, que reza:

“Parágrafo Único - Só será dispensada da vacinação obri-gatória a pessoa que apresentar atestado médico e contra-indicação explícita da aplicação da vacina.”

Entretanto, como ocorre com qualquer médico, o fornecimentodo citado atestado não o exime de responsabilidade ética nocaso de haver dano ao paciente.

Conclusão: Resumindo o exposto anteriormente, enten-demos que, devido a Homeopatia ser uma especialidademédica em nosso país, o médico homeopata tem a mesmaautonomia que os demais médicos de outras especiali-dades quanto à escolha de condutas médicas de um modogeral, o que lhe confere o direito de contra-indicar, even-tualmente, uma vacinação para um determinado paciente,num determinado momento, bastando, para tanto, fornecer-lhe o atestado médico adequado. Entretanto, esta autono-mia não lhe confere o direito de contra-indicar,sistematicamente, todas as vacinações aos seus pacientes,pois isso implica em conduta ilegal, por infringência do já

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citado Decreto nº 12.342 e em conduta anti-ética, porinexistência, no momento, de respaldo científico paratal procedimento. (Aprovada na 42ª Reunião da III Câ-mara em 04/05/92.Homologada na 1.489ª RP em01/06/92) – grifos nossos.

Constata-se da resposta à citada consulta que o tema foidevidamente trabalhado pelo ilustre conselheiro que abordou, nãosó a questão legal, mas também ética e filosófica.

Essa resposta encontra-se em harmonia com o que esta-belece o Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 14, parágrafoúnico) e a Lei n. 6.259, de 30 de outubro de 1975 (art. 3º, parágrafoúnico), que tratam da obrigatoriedade da vacinação quando reco-mendada pela autoridade sanitária. Assim, apesar de se respeita-rem os princípios seguidos pelos médicos homeopatas, não hácomo negar a obrigatoriedade das crianças se submeterem às va-cinações obrigatórias, sendo essa a regra geral. A obrigação e res-ponsabilidade, nesse sentido, é dos genitores A exceção fica porconta do estabelecido no art. 513, parágrafo único do Decreto n.12.342/78, mas a contraindicação vale não somente para o médicohomeopata como alopata. Contudo, essa exceção deve ser anali-sada judicialmente por conta da obrigatoriedade prevista na legis-lação menorista. Assim, caso os responsáveis não queiram vacinarseu filho porque realizam tratamento homeopático, deve ser reque-rida a sua liberação através de medida judicial na qual demonstrea inviabilidade da medida e as condições de saúde da criança. Apenalidade é imposta aos pais, sendo estes os responsáveis paraas providências com relação a eventual liberação da vacinação.

vale destacar que o Ministério da Saúde, através da Se-cretaria de vigilância em Saúde (Departamento de vigilância epi-demiológica – programa nacional de imunizações) editou, em2005, um manual de eventos adversos pós-vacinação, que se re-fere a qualquer ocorrência clínica indesejável em indivíduo quetenha recebido algum imunobiológico. Um evento que está tem-poralmente associado ao uso da vacina nem sempre tem relação

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causal com ela. A grande maioria dos eventos são locais e sistê-micos leves, por isso as ações de vigilância são voltadas para oseventos moderados e graves.

A jurisprudência a respeito do tema

Os tribunais não analisaram diretamente essa questão –tanto da homeopatia como da política pública ou da questão va-cinação –, sendo o tema tratado de forma transversal em algunsjulgados. Destaco as seguintes decisões:

AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS MORAL E MATERIAL -vACINAÇÃO EM MENOR (DTP) QUE LHE ACARRETOUENCEFALITE PÓS-vACINAÇÃO. COM GRAvES CONSE-QUÊNCIAS PARA QUALIDADE DE SUA vIDA SEGUIDA DEMORTE, QUE ENSEJOU O INGRESSO NOS AUTOS DESEUS PAIS - NEXO CAUSAL CONFIGURADO - RESPON-SABILIDADE OBJETIvO PELA MODALIDADE DO RISCOADMINISTRATIvO CONFIGURADA - ATO LíCITO DA AD-MINISTRAÇÃO QUE TEM POTENCIALIDADE DE CAUSARDANO - OBRIGATORIEDADE DE vACINAÇÃO DEMENORES IMPÚBERES E DA PREvISIBILIDADE NODESENCADEAMENTO DE DOENÇAS GRAvES QUE NÃOPODE SER RELEGADA, NÃO SE ADMITINDO QUALQUERCAUSA ESCULPANTE PELO PODER PÚBLICO – REDUÇÃODA vERBA INDENIZATÓRIA - SENTENÇA MANTIDA - RE-CURSO DA FAZENDA DO ESTADO E DOS AUTORES NÃOPROvIDOS. (APELAÇÃO CívEL COM REvISÃO n. 644.556-5/1-00, da Comarca de SÃO PAULO, em que é recorrente oJUíZO "EX OFFICIO", sendo apelantes e reciprocamenteapelados FAZENDA DO ESTADO DE SÃO PAULO E ELISA-BETE APARECIDA BARBOSA CERDEIRA (E OUTRO): De-sembargadora CONSTANÇA GONZAGA – novembro/2009).

Consta do citado acórdão que o ponto central da discus-são posta em julgamento é

o efeito causado pela vacina DTP que, em relação aos pais,

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mostra-se de cunho compulsório, na medida em que têm odever de levar o filho a um posto de saúde para ser vacinado,assumindo a Administração Pública o risco desta atividadeque, embora se tenha conhecimento da possibilidade de rea-ção adversa, ainda assim obriga a sua aplicação. (grifo nosso)

Diz ainda que:

Mesmo que lícita a conduta do poder público na ministraçãoda vacina DTP, assumiu o risco público e sabido de reaçõesadversas na vida de quem é vacinado, como ocorreu no casoconcreto. O que não se pode perder de vista é que a respon-sabilidade do Estado evoluiu da total irresponsabilidade pararesponsabilidade objetiva (art. 37, § 6o, CF), consubstanciadana "obrigação de indenizar que incumbe a alguém em razãode um procedimento LíCITO ou ilícito que produziu uma lesãona esfera juridicamente protegida de outrem. Para configurá-la basta, pois, a mera relação causal entre o comportamentoe o dano" (Celso Antônio Bandeira de Mello, "Curso de DireitoAdministrativo", 20a edição, Malheiros, p. 949/950). E evi-dente que se o Estado, por meio de sua atividade fornecevacina e impõe aos pais a sua realização e, desta imuni-zação decorre consequências graves, não poderá sim-plesmente ser liberado de indenizar, escusando-se deresultado previsível. Não é porque a Administração não co-meteu falta no serviço público e nem ocorreu culpa de seusagentes é que poderá se livrar de ressarcir lesão advinda devacina por ela administrada. Ou seja, seus atos lícitos tambémgeram danos indenizáveis.

Decorre de tal decisão que o fato de impor a obrigatorie-dade da vacinação às crianças e adolescentes implica na respon-sabilização do Poder Público por eventual dano.

Outra decisão apresenta a mesma questão, mas comoutro enfoque.

RESPONSABILIDADE CIvIL DO ESTADO - AQUISIÇÃO DEPOLIOMIELITE NO CURSO DA IMUNIZAÇÃO OBRI-GATÓRIA – INEXISTÊNCIA DE FALHA DO SERvIÇOPÚBLICO, QUER NO TOCANTE À ATUAÇÃO DE SEUSAGENTES, QUER NA QUALIDADE DA vACINA APLICADA– RISCO DA PRÓPRIA IMUNIZAÇÃO, OBRIGATÓRIA EMvIRTUDE DE LEI NACIONAL, ACENTUADO POR FA-TORES DE ORDEM SANITÁRIA – AÇÃO JULGADAPROCEDENTE – SENTENÇA REFORMADA. (APELAÇÃO

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CívEL COM REvISÃO n. 660.028-5/0-00, da Comarca deSÃO JOSÉ DO RIO PRETO, em que é recorrente o JUíZO"EX OFFICIO". Rel. Des. COIMBRA SCHMIDT –março/2008).

Nessa decisão consta que a

fundamentação a indenização não foi pedida porque o autorfoi obrigado a tomar a vacina. O foi porque teria recebido aten-dimento deficiente no posto de saúde de Cedral e porque oEstado teria omitido "medidas elementares de segurança" aoadquirir "tais vacinas'1 (f 6). Daí a correção do parecer emitidopelo Dr. Ronaldo Porto Macedo Júnior. Após também discutira questão da eficácia da vacina Sabin, concluiu que, no casoem questão, o Estado cumpriu o seu dever de realizar a açãoque lhe competia, isto é, promover campanhas de vacinaçãoprestando adequadamente o serviço público que lhe cabia, uti-lizando de produto igualmente adequado para tal fim (isto é,utilizando vacinas seguras e sem vícios de qualidade). O riscoda contração da doença através da vacina é manifestamentebaixo, de 1 caso para 2,4 milhões de doses aplicadas, sendomaior na primeira dose (1/750.000) e em pessoas imunodefi-cientes. Ele decorre não da prestação do serviço, mas do pró-prio produto (f. 169/70). Rematou asseverando que a falta doserviço teria ocorrido caso o Estado não tivesse patrocinado acampanha de vacinação. A vacinação, como medida de pre-venção geral, é obrigatória pela lei nacional n° 6.259/75, quedispõe sobre a organização das ações de vigilância Epidemio-lógica, sobre o Programa Nacional de Imunizações, estabelecenormas relativas à notificação compulsória de doenças, e dáoutras providências. Ainda que, no caso, pudesse ser impu-tada responsabilidade à Administração pelas sequelas incapa-citantes do autor, não vejo como atribuí-la ao Estado-Membroque se limitou a executar comando contido no art. 3o, pará-grafo único, do diploma. Em suma, não há nexo de causali-dade entre fato imputável à ré e o resultado lesivosubsequente.

Comentários conclusivos

Os questionamentos apresentados buscaram colocar emdebate esta questão referente ao tratamento homeopático e a suas

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implicações frente ao que estabelece a legislação em relação àspolíticas públicas de saúde e à obrigatoriedade da vacinação. Nãoteve a pretensão de esgotar o assunto, mas de apresentar algu-mas considerações em face da legislação menorista.

É certo, porém que outras questões podem ser levanta-das, como, por exemplo, o estabelecido na lei n. 8.213, de 24 dejulho de 1991, que dispõe sobre os planos de benefício da previ-dência social e coloca como um dos requisitos para o pagamentodo salário-família a apresentação do atestado de vacinação obri-gatória. Diz a lei:

Art. 67. O pagamento do salário-família é condicionado à apre-sentação da certidão de nascimento do filho ou da documen-tação relativa ao equiparado ou ao inválido, e à apresentaçãoanual de atestado de vacinação obrigatória e de compro-vação de frequência à escola do filho ou equiparado, nos termosdo regulamento. (Redação dada pela Lei n. 9.876, de 26.11.99)

Observa-se que esse tema merece uma reflexão, até por-que cada vez mais esse tratamento está sendo procurado pelapopulação, que se vale de profissionais devidamente credencia-dos em planos de saúde. Juízes, Promotores de Justiças, Defen-sores Públicos e Advogados que trabalham na Justiça da Infânciae da Juventude serão cada vez mais acionados para tratar dequestões como a discutida neste artigo, o que implica uma pre-paração adequada para definir políticas públicas.

O que se deve ter em mente quando se trata de políticaspúblicas é a coletividade. Tratamento homeopático e vacinaçãoobrigatória somente tem sentido quando analisadas sob esse en-foque. Nessa hipótese o individual cede ao coletivo, ou seja, o tra-tamento homeopático não pode ser considerado um privilégiopara alguns e ao direito individual de não ser vacinado se contra-põe o direito de imunização de toda coletividade, que não gozado mesmo patamar socioeconômico, pois são muitos os que nãotem acesso a uma boa alimentação, higiene e educação e queestão mais suscetíveis às doença infecciosas.

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Referências

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FEDERAÇÃO BRASILEIRA DE HOMEOPATIA. Definição de Ho-meopatia. Disponível em: http://homeopatiabrasil.org.br/fbh/con-tent/view/33/73/. Acesso em: dez. 2010.

MIRANDA, L. U. Principais tópicos da Homeopatia. Disponívelem: http://francisverissimo.sites.uol.com.br/Homeopatia.htm.Acesso em: dez. 2010.

ULLMAN, D. Homeopatia - Medicina para o Século XXI. SãoPaulo: Cultrix, 1988.

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Bruno J. R. Boaventura*

Declaração De InDepenDêncIa e constItuIção amerIcana: uma hIstórIa

próprIa De feDeralIzar o estaDo

THE DECLARATION OF INDEPENDENCE AND AMERICAN

CONSTITUTION: A STORY TO FEDERALIZE THE STATE

DECLARACIóN DE LA INDEPENDENCIA Y CONSTITUCIóN

AMERICANA: UNA HISTORIA PROPIA DE FEDERALIZAR EL ESTADO

Resumo:

O texto aborda as características gerais e algumas específicas do

processo de formação do Estado americano através de dois de

seus principais marcos documentais: a Declaração de Indepen-

dência e a Constituição americana, na tentativa de esboçar as ex-

clusividades culturais relacionadas a este processo.

Abstract:

This paper addresses some specific and general characteristics

of the formation process of the American state, through two of its

major landmarks documents: the Declaration of Independence

and American Constitution in an attempt to outline the cultural ex-

clusivity related to this process.

Resumen:

El documento analiza las características generales y algunas es-

pecíficas del proceso de formación del estado americano por

medio de dos de sus principales documentos: la Declaración de

* Mestrando em Política Social pela Universidade Federal de Mato Grosso.

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Independencia y la Constitución americana, en un intento de in-

dicar las exclusividades culturales relacionados con este proceso.

Palavras-chaves:

Revolução americana, independência americana, constituição

americana, federalismo americano.

Keywords:

American Revolution, american Independence, american consti-

tution, american federalism.

Palabras clave:

Revolución americana, independencia americana, constitución

americana, federalismo estadounidense.

Introdução

Em 1607 desembarcam os primeiros emigrantes, fun-dando em Virgína a primeira colônia inglesa na América. Eram osperegrinos (pilgrims), pertencentes ao puritanismo, possuidores decrenças que se confundiam em vários pontos com as teorias de-mocráticas e republicanas mais absolutas, e exatamente por issoforam obrigados pelo reinado de Carlos I a abandonar a terra natal.

Herbet Schneider (apud SALDANHA, 1968, p. 46) ex-plica a interligação das crenças religiosas com as teorias demo-cráticas e republicanas pelo conceito que formaria nacionalmentee historicamente toda cultura do país: a “ilustração”. Esse con-ceito conjuga a benevolência com a ligação da “religião natural”e à ética humanitarista; a teoria da liberdade com a origem naatitude política dos whigs, que tem base nos textos clássicos e

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modernos em que a ideia de república é latente; e a liberdade re-ligiosa como sustentáculo da separação do Estado da Igreja.

O governo britânico iniciou a colonização através de trêsdiferentes sistemas: a) governador nomeado encarregado de ad-ministrar sob o comando das ordens da coroa (Nova York); b)concessão a um homem ou companhia de propriedade de certasporções de terra (Maryland, as Carolinas, Pensilvânia e Nova Jer-sey); c) concessão a certo número de emigrantes do direito dese autogovernarem em tudo que não era contrário às leis damãe-pátria (Nova Inglaterra e, depois, Massachusetts).

A organização política formou-se a partir da comuna (Mu-nicípio) para o condado, do condado para o Estado e do Estadopara a União, e não como inversamente aconteceu na maiorparte das nações colonizadas pelos europeus (ex: Brasil), ouseja, a estrutura estatal se organizou da base para o topo, e nãodo topo para a base.

A comuna nomeava seus magistrados, instituía e arre-cadava seus tributos, claros exemplos de que realmente era umente político autônomo (TOCQUEVILLE, 2005, p. 44-45, 48)). Aautonomia no terceiro sistema de colonização era tamanha que,na Nova Inglaterra, a representação política foi abolida: era napraça pública, assim como em Atenas, onde os cidadãos resol-viam as questões do interesse de todos.

a luta pela independência

É no fervor desse novo mundo, a América do Norte, queo protestantismo ganha forças para germinar e florescer o novoconstitucionalismo federativo. A razão do bom frutificar foi a con-cepção religiosa amadorista de uma seita que se organizava em

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uma assembleia igualitária e democrática de fieis sem hierarquiareligiosa ou social, e, com isso, atraía o homem comum que gos-tava dos ritos sem ritualismos, dos pecados sem penitências, e,principalmente, da salvação terrena pelo trabalho (HOBSBAWM,1977, p. 249).

Nas palavras de Aléxis Tocqueville (2005, p. 50-51, 348):“na América, é a religião que leva às luzes; é a observância dasleis divinas que conduz o homem à liberdade”, existia a combi-nação maravilhosa do espírito de religião ao espírito de liberdade.Isso era devido, principalmente, a completa separação entreIgreja e Estado. Assim, a democracia política americana nasceuda democracia social religiosa.

As concepções econômicas que propulsionaram o incen-tivo ao trabalho capitalista foram: a exploração individual daquase ilimitada extensão de terra desocupada, a doutrina nacio-nalista de desenvolvimento político, econômico e jurídico, e atémesmo a total ausência das velhas concepções ligadas às rela-ções feudais (HOBSBAWM, 1977, p. 169).

A história demonstra que a crescente unificação das es-tratégias de defesa militar, em razão da ocupação francesa aonorte, da espanhola ao sul, e, ainda, os conflitos com os gruposindígenas ao centro, foi o início da prospecção de uma identidadenacional. Essa identificação entre os americanos se expandiapara todo o território, o que levou Tocqueville (2005, p. 190) a tra-çar a seguinte sátira: “Do Estado do Maine ao da Geórgia, hácerca de quatro-centos léguas. Existe porém, entre a civilizaçãodo Maine e a da Geórgia, menos diferença do que entre a da Nor-mandia e a da Bretanha”.

A Inglaterra, visando obter mais recursos a partir das co-lônias, inaugura uma política de rigorosa tributação, o que levaessa identidade nacional americana a se unir para a reação. In-clusive a cultura jurídica se enraíza como parte dessa identi-dade, e um dos principais embates se dá quando a coroa

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inglesa, visando ampliar as competências do Tribunal do Almi-rantado, contraria a forte legitimidade dos julgamentos por júripopular (BIGLIAZZI; PAIXÃO, 2008, p. 102).

Essa legitimidade do júri popular era tão forte no povoamericano quanto o voto universal no que tange ao poder de pra-ticar a vontade da maioria. Tocqueville (2005, p. 321) considerouesse hábito, sobretudo o júri civil, um meio difusor em todas asclasses do respeito pela coisa julgada, da ideia do direito, da prá-tica da equidade, em razão de que em matéria civil, diferente-mente da criminal, todos podem ser processados algum dia. Foidita como uma verdadeira escola gratuita de educação popular,em que as leis são ensinadas de maneira prática e postas ao al-cance de sua inteligência pelos esforços dos advogados, das opi-niões do juiz e das próprias paixões das partes.

O Stamp Act de 1766 é o exemplo mais drástico da ten-tativa frustrada da coroa de aumentar a arrecadação imperial,que passava por uma crise. A lei estabelecia a exigência de com-pra de selo emitido pela coroa para validar todos os documentosjurídicos emitidos na colônia. A revolta que se sucedeu nos ame-ricanos não era imposição de uma obrigação pelo parlamento bri-tânico, mas sim que isso fosse feito sem o consentimento dopovo americano, que reivindicava representação no parlamento(BECKER, 1922, p. 91) (princípio da tradição liberal: no taxation

without representation).Já em outro momento, em 1768, as ingerências políticas

sobre a auto-governabilidade das colônias torna os ânimos aindamais acirrados. Carl Becker evidencia um evento bem caracterís-tico desse momento histórico, quando a Assembleia de Massa-chusetts recebe ordens do representante real de suspender acirculação de cartas que pediam que as outras Assembleias deli-berassem sobre ações de defesa de suas liberdades. Agora, oque estava em jogo não era a mera representação política ame-ricana na Inglaterra, mas sim a própria preservação da já conquis-

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tada autonomia legislativa de governo das colônias (idem, p. 96). A luta era para estabelecer, como Benjamim Franklin de-

fendeu, que as colônias originalmente foram constituídas comoEstados distintos conforme os charters assinados pelo Rei, e quenão poderiam mais suportar a usurpação da autoridade de fazeras leis (BECKER, 1992, p. 103).

Da sucedânea relutância em não permitir as interferên-cias da coroa é que eclode a Guerra por independência das trezecolônias contra o domínio inglês, deixando a marca da necessi-dade de reestruturação unificada do país. Assim, as justificativaspara a instituição da Federação Americana tem a seguinte órbitacentral: as treze colônias unidas em uma só federação teriammais facilidade em manter a paz, ou, inclusive, de mostrar resis-tência em uma nova guerra contra forças estrangeiras (HAMIL-TON; JAY; MADISON, 2001, p. 10-15). As palavras memoráveisde Tocqueville (2005, p. 127) formam uma aula em poucas linhas:

As treze colônias que sacudiram simultaneamente o jugo daInglaterra no fim do século passado tinham, como já disse, amesma religião, a mesma língua, os mesmos costumes, quaseas mesmas leis; elas lutavam contra um inimigo comum, logodeviam ter fortes motivos para se unirem intimamente umasàs outras e se absorverem numa só e mesma nação.

A geopolítica econômica, nas palavras de Alexandre Ha-milton, que depois viria a ser o primeiro Secretário do TesouroAmericano, também ganha um enfoque profundo. As transaçõescomerciais externas seriam facilitadas, por um lado, no controledo acesso e tributação de produtos estrangeiros por navios aocrescente mercado americano de três milhões de pessoas (im-portações), e, pelo outro, a União teria mais condição de consti-tuir uma frota de navios com as Índias (exportações) (HAMILTON;JAY; MADISON, 2001, p. 50, 51, 58).

Filosoficamente, a recente desgraça advinda da opres-são da coroa britânica inspirava os Fundadores a se tornarembravos defensores da capacidade americana de reagir às brava-

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tas arrogantes vindas da Europa, como a de que todos os ani-mais se degeneravam na América, inclusive as pessoas1, ou ade que o povo é feita para os Reis e não os Reis são feitos parao povo (idem, p. 238).

Politicamente, a República é ressaltada como o poder deescolha dos representantes advindo de todo o povo igualitaria-mente considerado2, e não dos tirânicos títulos de nobreza; osaltos funcionários públicos durariam o tempo de seus mandatosou o tempo de seu bom comportamento (good behaviour) (idem,p. 194). A eleição era garantia de obediência e de eficiência emum diferente patamar do que a obtida pela vigilância hierárquicaadministrativa (TOCQUEVILLE, 2005, p. 89).

a histórica propriedade americana da força constitucionalcentrípeta

Em 10 de maio de 1775, o Congresso Continental, reu-nido na Filadélfia, decidiu que ainda não era o momento para adeclaração da independência, mas, para prover uma direção cen-tral dos assuntos americanos e promover uma cooperação maisacentuada entre as treze colônias visando uma oposição mais

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1 “Faxts have too long supported these arrogant pretensions of the European: itbelongs to us to vindicate the honor of the human race, and to teach that assumingbrother moderation. Union will enable us to do it. Disunion will add another victimto his triumphs. Let Americans disdain to be the instruments of European great-ness! Let the Thirteen States, bound together in a strict and indissoluble union,concur in erecting one great American system, superior to the control of all tran-satlantic force or influence, and able to dictate the terms of the conexion betweenthe old and the new world” (HAMILTON; JAY; MADISON, 2001, p. 54-55).2 “Who are to be the electors of the federal representatives? Not the rich, morethan the poor; not the learned, more than the ignorant; not the haughty heirs ofdistinguished names, more than humble sons fo obscure and unpropitious for-tune. The electors are to be the great body of the people of the United States”(idem, p.296).

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coordenada à dominação britânica, foi elaborado o primeiro pro-jeto genuinamente americano sobre governança que delineavaos poderes e funções de um governo central, intitulado “Os artigosda Confederação e da União Perpétua”. Ficou ainda instituído oexército continental comandado por George Washington.

Paralelamente à esse processo político nacional, acon-teciam autonomamente os processos políticos estaduais. No dia29 de junho de 1776, vinte anos após a publicação do Espíritodas leis, o Estado americano da Virgínia proclama, na convençãode Williamsburg, o estabelecimento, como forma de organizaçãoestatal, da divisão nos três poderes concebidos por Montesquieu(VILE, 1998, p. 131). No mesmo ano os Estados de Maryland eCarolina do Norte, e, no ano seguinte, a Geórgia, também institu-cionalizam constitucionalmente a tripartição dos poderes comoforma de organização estatal (idem, p. 132). Apesar de nessesprimeiros Estados ter sido adotada a versão “pura” da doutrina,sem ainda os mecanismos dos “checks and balance”, eles foramos mesmos que, pela primeira vez, estabeleceram uma série denovas liberdades, em face do domínio da coroa inglesa, como: li-berdade da pessoa, liberdade da propriedade, liberdade da cons-ciência, direito de assembleia, liberdade da imprensa, direito depetição, rotatividade do poder, responsabilidade de prestação decontas dos gestores (accountability), entre outras (JELLINEK,1901, p. 85-86).

Foi, primeiramente, na Constituição de Massachusetts,em 1780, que a nova teoria da separação dos poderes conju-gada com a teoria dos freios e contrapesos foi implementada(VILE, 1998, p. 163). Um dos líderes dessa luta vitoriosa foiTheophilus Parsons, jovem advogado que depois se tornouChefe da Corte de Massachusetts, que rejeitou no ensaio Essex

Result a supremacia do legislativo e a doutrina pura da sepa-ração dos poderes (HANDLIN; HANDLIN, 1966). Jefferson foioutro que claramente evidenciou a necessidade de aplicação

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prática de suplementação da teoria da separação dos poderes;a quebra dessa teoria se faria através de barreiras dos poderessobre os próprios poderes, para que nenhum pudesse transcen-der os limites legais.

A independência defendida deixava clarividente que ne-nhum homem poderia exercer dois cargos, ao mesmo tempo, empoderes distintos (idem, ibidem). Assim, a Constituição de Mas-sachusetts, construída a partir de um projeto que bem expres-sava a genialidade política de John Adams, tornou-se o centroirradiador da nova concepção da teoria balanceada da separaçãodos poderes, influenciando a teoria constitucional americanatanto no nível estadual como nacional (HAMILTON; JAY; MADI-SON, 2001, p. XXX) e entrando para a história como a mais an-tiga constituição escrita em vigor.

Novamente no âmbito nacional, os americanos não ou-viram o plano de Benjamim Franklin para implementar o projetodo novo governo. Mas a omissão termina no dia 7 de junho de1776, quando é aprovada uma resolução apresentada por RicharHenry Lee determinando: 1 – As Colônias Unidas estão no direitoe no dever de serem Estados independentes; 2 – Estas aliançasdevem ser feitas para a proteção delas; e 3 – O plano para umaconfederação deve ser preparado e transmitido para as colônias.

uma análise do texto da Declaração de Independência

Em 4 de julho de 1776, o comitê para escrever a Decla-ração da Independência foi instaurado, composto pelo próprioBenjamim Franklin, Thomas Jefferson, John Adams, Roger Sher-man e Robert R. Livingston, e consegue a aprovação por unani-midade de um texto que representaria a consolidação das ideias

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e vontades políticas das treze colônias britânicas que, naquelemomento, passariam a se denominar Estados Unidos da América.

O texto brilhantemente escrito por Thomas Jefferson,com algumas poucas correções feitas por John Adams e Benja-mim Franklin, foi definido pelo próprio autor, em carta à HenryLee, como não sendo um texto de originalidade de princípios ousentimentos, não sendo também um texto copiado de algum es-pecífico e prévio estudo, mas, na verdade, uma expressão damente americana. Era um texto que harmonizava as ideias dospartidários dos Whigs com os sentimentos do dia a dia, comaquilo que era expresso nas conversas, nas cartas, nos artigospublicados e nos livros elementares de direito público. O reper-tório ideário dos Whigs era sustentado principalmente pela réplicacontundente que Locke, no livro Segundo Tratado do governo

civil, dera à Filmer sobre a questionabilidade do poder absolutodos Reis. Era a renovação americana da doutrina que deu baseà Revolução Gloriosa.

A Declaração de independência americana é a síntesehistórica da filosofia dos direitos naturais, representando, com pro-funda carga emocional e inspirada nos movimentos revolucioná-rios do século XVII e XVIII, a ideia fundamental de que os direitosnaturais estavam no ponto máximo de superioridade das normasjurídicas, eram a lei maior (BECKER, 1922, p. 26, 28, 79, 278).

A primeira das premissas é considerar o momento histó-rico vivido, por isso se começa a declaração com uma referênciaao tempo através do advérbio “quando”. A realidade que se pas-sava na América é colocada como a de um povo incurso nos maisimportantes fatos da humanidade daquele presente momento. Étrazer ao centro do mundo as discussões tão próximas dos leito-res do documento, em busca de um sentimento de elevação doamericano não só como cidadão, mas como responsável por as-sumir que entre a natureza de Deus nos poderes da terra estavao de ser o liame do fim e do começo de uma era na história.

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Intercalada na imagem da intersecção dos caminhos his-tóricos do americano entre a coroa e a independência, entre ohomem e o mundo, o primeiro parágrafo introduz a ideia políticade separação por palavras que denotam a liberdade em sentidoquase pueril de fazer crer que era necessário, tanto quanto na-tural, cortar o cordão umbilical político com os ingleses.

A imagem do texto é que a separação de fato já existia,pois a América já se reconhecia como igual à Grã-Bretanha,sendo chegada a hora de declarar para o mundo as causas queimpeliram à separação. A persuasão do texto é pela força de umaautoridade que tem em tais premissas, advindas das leis da na-tureza, a autorização para uma conclusão inerente a qualquerpessoa que tenha um respeito decente para as opiniões que re-fletem sobre a humanidade.

No preâmbulo, o segundo parágrafo, além das defesasdos direitos inalienáveis do homem (vida, liberdade e felicidade)como direitos justificadores da existência dos governos e ditoscomo autoevidentes, têm conclusões reivindicadoras, como a exi-gência de que não basta ter poder sem justiça, e não ter podercom qualquer justiça, mas somente poder da justiça advinda doconsentimento dos governados.

A essencialidade de consentimento do povo para gover-nar é interligada com a naturalidade de alterar aquilo que estásendo autodestrutivo. Assim, aquilo que é minimamente con-senso do povo, a segurança e a felicidade, e que fundam qual-quer princípio e organização de poderes, não sendo o governoefetivo em tais fins, ou seja, sendo destrutivo para aquilo que foiformado, é natural não só alterar, como também abolir e instituirum novo governo.

No terceiro parágrafo temos a preparação para o leitorconhecer de fato quais eram os motivos para a Independência.A mudança é apresentada como sendo limitada pela prudência,pois os governos devem ser renovados, mas não por causas

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transitórias. A mensagem era que os ideais da Revolução seriammantidos após a Independência e que os americanos estavamdiante de algo não efêmero.

Os males que se combatiam era, principalmente, não osdireitos em si, mas a forma que eles foram acostumados a seremimpostos. Aquele era o momento de romper com a disposição daacomodação dessa forma de governo. A permanência de taisabusos e usurpações ao longo do tempo evidenciava a reduçãodos direitos em despotismo absoluto, e esta era a história do Reiatual da Grã-Bretanha. Silenciar-se nesse momento, mais do quenão cumprir com um direito, era não cumprir com uma obrigaçãoe correr risco pela provável falta de segurança.

A prudência não significava paciência sem limites, equando o sofrimento das colônias chegou ao ponto de prejudicá-las foram constrangidas, tornando o desejo de mudança em ne-cessidade de alteração das formas de governo. Apesar dos ata-ques, existe o cuidado de ressaltar o respeito com a Inglaterra,até porque o passado da história americana ainda se confundiacom o daquele país.

Dessa parte em diante são apresentados ao juízo impar-cial do mundo os motivos, os fatos que justificavam a Indepen-dência. Os sete primeiros fatos demonstram interferências quede certa maneira atingiram o Poder Legislativo; denota-se queexiste uma importância fundamental dada para a teoria da sepa-ração dos poderes, vejamos: 1) O Rei tinha se recusado a san-cionar leis salutares e necessárias ao interesse público; 2) O Reitinha proibido que os Governadores aprovassem leis de impor-tância imediata e de grande pressão popular, tendo suspendidoas mesmas até a obtenção do assento real e sendo negligenteao pedido nesse ínterim; 3) O Rei recusou-se a aprovar outrasleis que organizariam distritos largamente povoados, a menosque o povo desses distritos renunciasse ao direito de represen-tação no Legislativo. Direito este inestimável para o povo e temível

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somente para os tiranos; 4) O Rei tem convocado os corpos legis-lativos em lugares incomuns, distantes dos arquivos daqueles, so-mente pelo propósito de que o cansaço possa se tornar acomplacência de seus objetivos; 5) O Rei repetidas vezes dissol-veu casas de representantes que tinham sido firmes opositorasdas invasões deles no direito do povo; 6) O Rei recusou, por umlongo tempo após as dissoluções, que outras pudessem ser elei-tas; enquanto isso os poderes legislativos foram incapacitadospela aniquilação de serem exercidos pelo povo; o Estado, nesseperíodo, permaneceu exposto a todos os perigos de invasão ex-terna e convulsão interna; 7) O Rei tem se empenhado em obs-tar a população desses Estados; para tal propósito tem obstruídoas leis de naturalização dos estrangeiros; recusando o encoraja-mento de outros na emigração na condição de se apropriaremdas terras.

Esses pontos, lidos com atenção e somados a outrospontos relevantes da justificativa factual da Independência, con-verjem para a representação da principal razão do rompimentocom a coroa britânica: o autogoverno. Na verdade, existe a de-monstração clara de que no tabuleiro do jogo do poder desejadopelos americanos não constava mais como possível o movimentode tolher do Rei inglês.

uma análise da constituição americana

Concomitantemente, o projeto “Os artigos da Confede-ração e da União Perpétua” foi amplamente debatido, finalizando-se em 15 de novembro de 1777, para, então, cumprir com aexigência de ser ratificado por unanimidade por todos os podereslegislativos estaduais. Tal formalidade somente foi cumprida em

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1781, após as convenções de New England (1780) e New York(1781) apontarem para a necessidade de uma maior solidificaçãoda confederação. Pesava contra esse documento que a própriaDeclaração de Independência proclama o direito do povo se au-togovernar, algo que não aconteceu, pois a ratificação não contoucom uma participação popular direta.

Essas insurgências fazem eclodir, já no início da vigênciade “Os Artigos”, como era chamado tal documento, um fervorosoopositor de pseudônimo “O Continental”, nada menos que outrofederalista Alexander Hamilton.

O propósito oposicionista de Hamilton era dar mais po-deres ao Congresso para assuntos de interesse nacional, comounificar a legislação do comércio e a arrecadação de tributos.Para isso, escreveu três artigos para incutir nos líderes políticosa necessidade do chamamento de uma convenção para estabe-lecer uma confederação mais forte. Os apelos ressoaram, eentão James Madison solicitou que o Congresso compelisse osEstados a se engajarem no fortalecimento da Federação.

A impossibilidade prática de mudanças do texto emrazão da necessidade de aprovação por unanimidade dos Esta-dos foi a fraqueza do sistema estabelecido pelo “Os Artigos” efez a força daqueles que queriam uma União mais consolidada.O primeiro estágio da construção do federalismo americano játinha sido concluído, e, durante o curto período de oito anos deduração do documento “Os Artigos”, a América nortista conheceuo tratado de paz, a negociação da independência, e se tornou osEstados Unidos.

A convenção federal para revisão dos “Os artigos daConfederação e da União Perpétua” foi precedida da Convençãode Annapolis. O interessante é saber que esta foi precedida dareunião entre os Estados de Virgínia e Maryland para resolverquestões tributárias sobre as mercadorias transportadas no RioPotomac e na Baía de Chesapeake. Então James Madison, já

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uma liderança expressiva, convence o Poder Legislativo de Vir-ginia a chamar a Convenção de Annapolis, na expectativa de queo comércio fosse regulado a nível nacional.

A Convenção de Annapolis foi a oportunidade de os dele-gados votarem e acatarem a proposta de Alexandre Hamilton danecessidade de realização de uma Convenção Federal na Filadél-fia em maio do próximo ano para estabelecer uma ConstituiçãoFederal adequada às exigências do fortalecimento da União. Masfoi somente após o Estado de Virgínia aprovar uma Resolução pro-posta por James Madison, que estabelecia o envio da delegação,que todos os outros estados começaram a fazer o mesmo.

A convenção foi então estabelecida em maio de 1787 eteve como primeira mudança a polêmica do sistema de aprova-ção das propostas, que passaram de unanimidade dos delega-dos para ratificação popular em nove convenções estaduais. Adefesa de tal modificação ficou a cargo de James Madison, quejustificou dizendo que: “a nova Constituição precisa ser ratificadada forma mais inatacável: a suprema autoridade do próprio povo”.Isso foi referenciado pelas seguintes palavras de George Mason:“Os legisladores não possuem o poder para ratificar. Eles sãomeras criaturas da Constituição dos Estados e não podem sermaiores que seus criadores”. Essa inclusão manteve a participa-ção dos Estados no processo de ratificação, incluindo um ele-mento democrático da participação popular direta contrastandocom o monárquico sistema em que a legitimidade é originária dacoroa, constituindo uma prática política sem paralelo na história.Adverte-se que a base popular não alcançava a universalidadedo povo devido às restrições censitárias dos Estados tais comopossuir propriedade direta, pagar impostos ou até mesmo serprotestante. Em uma população de 3,5 milhões de pessoas, ototal de votantes não passou de 160 mil.

Em 28 de setembro de 1787 a aprovação da nova Consti-tuição foi retransmitida aos Estados pelo presidente da convenção,

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George Washington. Começava então a batalha para que hou-vesse as ratificações. A nação foi tomada novamente por panfletos,sermões, ensaios e jornais que discutiam a nova forma do governo.Os que eram favoráveis à ratificação foram chamados de “os Fe-deralistas”, que tinham como fervor a força de um governo nacional.O patriotismo construído a partir da identidade nacional da inde-pendência é o meio de apelo dos autores para reforçar que o sen-timento em questão era desfazer ou não os laços de identificaçãodo povo americano, tais como língua, religião e ancestrais.

Na luta pela inclusão das proposições na Nova Consti-tuição dos Estados Unidos, os Republicanos assumiram a tesede que a teoria da separação dos poderes sem a complementa-ção dos freios e contrapesos faria com que o Poder Legislativoinevitavelmente sobrepusesse o Executivo e o Judiciário (VILE,1998, p. 167). Conforme a Revolução avançava, o medo da ti-rania do Legislativo e a independência do Executivo afloraramna cabeça dos delegados, e assim a teoria pura da separaçãodos poderes foi perdendo adeptos e os freios e contrapesos se-riam inevitavelmente referendados, somente faltando definir atéque ponto chegariam (idem, p. 168). A escolha foi pelo equilíbrio:o poder de veto foi restaurado, porém somente um veto qualifi-cado; o poder de nomear foi dado ao Presidente, mas somentecom a confirmação do Senado, e o poder de declarar Guerra per-maneceu com o Congresso (idem, p. 171-172). Tocqueville(2005, p. 137) conceituaria a novidade do veto como uma espé-cie de chamado ao povo pelo Poder Executivo, que poderia, comessa garantia, fazer ouvir os seus motivos em uma secreta opres-são do Poder Legislativo.

O sentimento patriota evoluiu ao longo do texto para ra-zões justificadoras mais específicas de manter a Nação no for-mato de uma Federação. O texto da Nova Constituição é entãoapresentado como algo recomendado por experientes homensque sabidamente muito o discutiram na Convenção Federal.

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Uma das mais importantes problemáticas é a da segurançatanto interna quanto externa. O pavor da guerra ainda presente éusado como fator de necessidade da proteção de um governo na-cional forte o suficiente para garantir a paz com outras nações.

Na construção desse cenário internacional, a Federação,unificadas as treze colônias e todos os Estados, se tornaria umapoderosa nação, o suficiente para embater de frente com os outrospaíses. Detalhando o recorte da cena geopolítica econômica, estaé dada como incerta, pois com a França e a Inglaterra disputandoo mercado pesqueiro e as outras nações europeias disputando ocomércio marítimo restaria um possível achaque ao desenvolvi-mento americano. Esse estado de insegurança internacional ne-cessitava da União para estabelecer um exército mais forte, maisorganizado facilmente e permanente do que três ou quatro gover-nos independentes. A vantagem econômica da União residiria emnegociar o acesso de um mercado conjunto dos Estados de 3 mi-lhões de pessoas, em contrapartida a uma não interferência daprosperidade marítima. Para dar força ao argumento se descreveum exemplo do potencial de força que teria a União ao fechar oacesso de todos os portes aos navios britânicos.

Existe uma satirização aos anti-Federalistas, pois estesestavam defendendo um paradoxo da paz perpétua entre os Es-tados, uma vez que divulgavam a ideia de que, como EUA eraum país estruturado a partir do comércio, naturalmente era umpaís pacifista e que não entraria em guerra. Os Federalistas des-constroem tal argumento com os exemplos históricos de Esparta,Atenas, Roma e Cartago, encarando os possíveis conflitos regio-nais como exemplos de que os americanos, como qualquer outropovo do globo, devem ter na política a presunção da máxima deque o homem não só é feito de virtude perfeita.

Na questão da segurança interna, apresentando ohomem como um ser ambicioso, vingativo e ciumento, que po-deria sacrificar a paz nacional para querer fazer guerra entre as

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subdivisões da Confederação, era então necessário um podercentral para organizar os radicalismos de uma possível divisãointerna. Assim, para que houvesse uma neutralização da reso-lução dos conflitos e o uso da força fosse evitado, era necessárioque tais conflitos fossem resolvidos por uma corte federal queuniformizasse as interpretações da própria Constituição. A impor-tância da federalização da corte suprema está em evitar a multi-plicação de interpretações finais equivalentes ao número decortes finais estaduais. É exatamente essa multiplicação queacontecia com base nos “artigos” relacionado aos tratados feitoscom as nações estrangeiras.

Outra questão enfrentada é o formato da separação dospoderes. Os “checks and balances” eram intencionais mecanismosde conter a supremacia do legislativo. Debatem o argumento apre-sentado pelos anti-Federalistas, com base em Montesquieu, daimpossibilidade de uma República ser efetivada com um longo ter-ritório. A polêmica é resolvida com o esclarecimento dos ensina-mentos do Barão de que a democracia direta é limitada a umterritório pequeno. Para evitar radicalismos que poderiam subver-ter a vontade de uma minoria em algo não considerável, ou damaioria em algo impróprio, era melhor uma extensa República, quepoderia selecionar melhor e distribuir mais proporcionalmente seushomens públicos. O Federalismo funcionaria com os “checks e ba-

lances” agindo tanto verticalmente como horizontalmente.No modelo anterior descrito nos “Artigos”, as leis estabe-

lecidas pela União não passariam de meras recomendações, poisa responsabilidade de fiscalizar a aplicação era do Estado. A mu-dança proposta era uma reorganização da divisão das competên-cias: aos Estados ficariam a administração da justiça em casos queenvolvam cidadãos do mesmo Estado, supervisão da agricultura,e todos ,outros poderes não estabelecidos para a União.

O medo da tomada total do poder pela União é repelidocom o argumento que com os Estados existiria mais proximidade

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com o povo, pois a administração da justiça civil e criminal seriaa guardiã da vida e da propriedade, e exatamente esta, mais quequalquer outra circunstância, impulsiona as aflições populares.Ao tratar dessa grande barreira para a ratificação da Constitui-ção, o medo dos Estados perderem a sua autonomia, se cita aGuerra do Peleponeso, cuja causa é demonstrada através damaturidade política das cidades-estados, Atenas e Grécia, quese guerreiam ao invés de promoverem uma refundação da Con-federação Grega. E essa demonstração se repete com o impériogermânico, o holandês e outros exemplos históricos. Apelampara que esses erros não acontecessem com a América

Ao adentrarem na questão da arrecadação, esclarecemque a riqueza de uma nação depende do solo, do clima, da na-tureza das produções, da natureza do governo, do gênio dos ci-dadãos, do grau de informação que eles possuem, do estado docomércio, das artes e da indústria. Justificam a necessidade demudar a arrecadação tributária da União de proporção do valorde todas as terras, as chamadas quotas, para a proporção da ri-queza de cada produto produzido. A natureza do governo repu-blicano é que a lei é o resultado natural de todas as associaçõespolíticas. O gênio da liberdade republicana é que todo o poderderiva do povo e depende, permanentemente, de sua vontade.

Assim, a administração dada pelo povo aos homens pú-blicos é limitada por um curto período ou enquanto tiverem umbom comportamento. A conjugação dos elementos dessa novavisão foi consolidada pela doutrina do behaviourism. O constitu-cionalismo deveria assumir que as forças sociais são determi-nantes para o estabelecimento das regras e princípios jurídicos,o foco passaria de questões políticas consideradas isoladamentepara questões políticas inseridas em um amálgama que envolvetodos os fatores sociais (VILE, 1998, p. 324-325).

O governo nacional é estabelecido pelas “Casas dos re-presentantes” proporcionalmente eleitas pelo mesmo critério esta-

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belecido pelas eleições estaduais; o governo é federal pela repre-sentação dos estados no Senado. Diante da existência desse sis-tema híbrido tem-se um governo tanto nacional como federal. Issose deve principalmente à necessidade de a votação para alterar asleis passar pelas duas casas, em uma espécie de tribunal de ape-lação para a revisão dos projetos (TOCQUEVILLE, 2005, p. 96).

Na batalha para a ratificação da Constituição nos esta-dos, James Madison justifica os mecanismos práticos de controleda invasão de uma das funções do Poder sobre a outra com umacélebre passagem da historiografia ocidental:

It may be a reflection on human nature, that such devicesshould be necessary to control the abuses of government. Butwhat is government itself, but the greatest of all reflections onhuman nature? If men were angels, no government would benecessary. If angels were to govern men, neither external norinternal controls on government would be necessary. In framinga government wich is to be administered by men over men, thegreat difficulty lies in this: you must first enable the govern-mente to control governed; and in the next place oblige it tocontrol itself. A dependence on the people is, no doubt, the pri-mary control on the government. (HAMILTON; JAY; MADISON,2001, p. 268-269)

No campo da distribuição das competências políticas, oexercício das funções conjugadas na União do Estado-Nação edo Estado Federal é criado (idem, p. 199), com a subdivisão doEstado Federal nos governos estaduais propriamente ditos pelodefinido atualmente como federalismo dual (BIGLIAZZI, 2008, p.145). A originalidade dessa repartição de competências e a divi-são da soberania entre a União e os Estados residem no fato deque, em todas as federações precedentes à americana, a Uniãopara fazer com que os cidadãos cumprissem as suas leis era ta-refa dos estados. Isso levaria a uma quebra do equilíbrio federa-tivo, já que algum Estado, não concordando na obediência danorma, poderia, se fosse forte, insurgir em guerra com a União,e, se fosse fraco, tolerar o descumprimento pelo cidadão (TOC-QUEVILLE, 2005, p. 176).

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A perda da soberania, mas não da autonomia das colô-nias, estava justificada, restando saber quais seriam as delega-ções centralizadoras de poderes à União.

Na Constituição as competências da União ficaram des-critas, e quanto as dos Estados seriam de natureza residual (HA-MILTON; JAY; MADISON, 2001, p. 241). Originalmente, a Uniãomuito mais revigoraria os poderes originais do que receberia novospoderes (idem, p. 242), ficando, principalmente, com a exclusivi-dade da representação externa. Após a ratificação definitiva dasemendas apresentadas por Thomas Jefferson e Madison, a Uniãopassou a contar com um Bill of Rights federal (GILISSEN, 2003,p. 425). Todas essas concepções conjungadas são o próprio ger-mem da nova forma de governo genuinamente americana: o pre-sidencialismo3.

conclusão

Vile (1998, p. 218), comparando as revoluções ameri-cana e francesa, acredita que as diferenças dos textos constitu-cionais resultantes devem-se ao fato de a influência dopensamento de Rousseau ter sido determinante na Constituiçãode 1789, e não na de 1787. Assim, a preocupação na Américaera alcançar o equilíbrio entre os dois poderes políticos (legisla-tivo e executivo) pela teoria da separação dos poderes aliadacom os freios e contrapesos; na França, o pensamento roussea-ninano ocasiona a aplicação radical da teoria pura da separação

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3 “Pode-se afirmar com toda a segurança que o presidencialismo foi uma criaçãoamericana do século XVIII, tendo resultado da aplicação das idéias democráti-cas, concentradas na liberdade e na igualdade dos indivíduos e na soberaniapopular, conjugadas com o espírito pragmático dos criadores do Estado norte-americano” (DALLARI, 1989, p.164).

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dos poderes, resultando no que mais tarde seria chamado de di-tadura autocrata do legislativo (idem, p. 265).

Podem ainda persistirem dúvidas sobre qual foi a pri-meira das assembleias populares constituintes, a primeira dasconstituições modernas, a mais influente revolução, mas quantoao desenvolvimento original de um sistema de repartição hori-zontal de funções do poder não há, foi primordialmente históricaa maneira americana de federalizar uma República.

referências

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BIGLIAZZI, R.; PAIXÃO, C. História constitucional inglesa e norte-

americana: do surgimento à estabilização da forma constitucio-nal. Brasília: Finatec, 2008.

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Adriano Figueiredo Carneiro*

O PODER DE POLÍCIA EM RAZÃO DA SEGURANÇA PÚBLICA E A FUNDAMENTAÇÃO LEGAL

DA ABORDAGEM POLICIAL SOB O ENFOQUE DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

THE POWER OF POLICE IN REASON OF PUBLIC SAFETY AND

LEGAL GROUNDING OF POLICE APPROACH IN THE

PERSPECTIVE OF THE DEMOCRATIC RULE OF LAW

EL PODER DE LA POLICÍA EN RAzóN DE LA SEGURIDAD PúBLICA

Y LA FUNDAMENTACIóN LEGAL DEL ABORDAJE POLICIAL

BAJO EL ENFOqUE DEL ESTADO DEMOCRÁTICO DE DERECHO

Resumo:

Os atos dos servidores policiais1 estão limitados pelo princípio da

legalidade expresso em dois momentos na Constituição Federal

de 1988: a uma, no caput do art. 37; a duas, no art. 5º, inciso II, da

mesma Constituição (“ninguém será obrigado a fazer ou deixar de

fazer alguma coisa senão em virtude de lei”). A vontade pessoal

do agente de segurança é irrelevante para o ato administrativo rea-

lizado com base no poder de polícia, de modo que a ação de abor-

dar pessoas nas vias terrestres de circulação, no exercício de suas

*Assessor Técnico da Assessoria Jurídica da Polícia Militar do Ceará, graduadoem Direito pela Universidade de Fortaleza, em Ciências Contábeis pela Univer-sidade Federal do Ceará e em Segurança Pública pela Academia de Polícia Mi-litar General Edgard Facó. Especialista em Ciências Criminais pela UniversidadeCândido Mendes.1 A expressão servidores policiais foi retirada do art. 144, § 9º, da ConstituiçãoFederal de 1988. Deduz-se que o legislador constituinte tentou abranger todosos agentes públicos relacionados nos incisos I a V do mesmo artigo, quaissejam, os integrantes da Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, PolíciaFerroviária Federal, Polícias Civis e Polícias Militares, porém, maciça doutrinaadministrativista considera os integrantes das polícias militares como militaresestaduais (espécie de agentes públicos), em consonância com o art. 42, caput,da própria Constituição Federal de 1988.

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liberdades de ir e vir, deverá ter, de um lado, finalidade legal, e, de

outro, expressar previsão legal para regular o comportamento das

pessoas – objeto da ação estatal –, sob pena de o Estado respon-

der pelo ato ilícito e pelos danos causados às vítimas, bem como

promover a violência social. O patrocínio da segurança pública, na

ordem jurídica vigente, cabe a todos, isto é, à sociedade e ao Es-

tado, de maneira que a conscientização da importância das ações

estatais legais, por parte dos servidores policiais e da própria po-

pulação, dá suporte à tranquilidade pública e à paz social.

Abstract:

The acts of police officers2 are limited by the principle of legality

expressed in two moments in the Federal Constitution of 1988:

the first in the caput of Art. 37; the second, in Art. 5, section II, of

the same Constitution ("no one shall be compelled to do or not to

do anything except by force of law"). The personal will of the se-

curity officer is irrelevant to the administrative act performed on

the basis of police power, so that the action of approaching people

in the land routes of movement in the exercise of his/her freedom

of coming and going, must have, in one hand, legal purpose, and

in the other hand expressed legal provision to regulate people's

behavior - the object of state action - otherwise the state is ac-

countable for wrongdoing and for the harm caused to victims, as

well as promoting social violence. The promotion of public safety,

in the current legal system, is up to everyone, that is, to society

and to the State, so that awareness of the importance of the legal

state actions on the part of police officers and, even the people

themselves, supports public calmness and social peace.

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2 The phrase “policemen servers” was removed from the Art. 144, paragraph 9of the Constitution of 1988. It deduces that the constitutional legislator tried tocover all public officials listed in paragraphs I to V of this article, namely, mem-bers of the federal police, federal highway police, federal railway police, civilianpolice and military police, but massive doctrine managerialism considers mem-bers of the military police as state military (a kind of public officials), in accor-dance with Article 42, caput, of the Constitution of 1988.

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3 La expresión “servidores policiais” se retiró del artículo 144, § 9, de la Consti-tución Federal de 1988. Deduce que el legislador constitucional trató de cubrirtodos los funcionarios públicos enumerados en los apartados I a V de este ar-tículo, a saber, los miembros de la Policía Federal, Policía de Carreteras, Fer-rocarriles Federales de Policía, la Policía Civil y la Policía Militar, sin embargo,la sólida doctrina administrativa considera los miembros de la policía militarcomo militares del estado (una especie de funcionarios públicos), de conformi-dad con el art. 42, encabezamiento, de la propia Constitución de 1988.

Resumen:

Los actos de los policías3 están limitados por el principio de le-

galidad contenido en dos momentos en la Constitución de 1988:

el primero en el encabezamiento del art. 37, el segundo en el art.

5, sección II, de esta Constitución ("nadie será obligado a hacer

o dejar de hacer alguna cosa sino por fuerza de la ley"). La vo-

luntad personal del agente de seguridad es irrelevante para el

acto administrativo realizado con base en el poder de policía, de

modo que la acción de acercarse a la gente en las rutas terrestres

de movimiento, en el ejercicio de su libertad de ir y venir, debería

tener, en primer lugar, un propósito legal, y, de otro, expresar dis-

posición legal para regular el comportamiento de la gente -objeto

de la acción del Estado-, de lo contrario el Estado podrá respon-

der por el acto ilícito y por los daños causado a las víctimas, así

como promover la violencia social. El patrocinio de la seguridad

pública, en el sistema legal en vigor, es dever de todos, es decir,

de la sociedad y del Estado, de modo que la concienciación de

la importancia de las acciones estatales legales, por parte de los

policiales y de las propias personas, apoya la tranquilidad pública

y la paz social.

Palavras-chaves:

Poder, polícia, abordagem, policial, Estado, democrático. direito.

Keywords:

Power, police officer, police approach, State, democratic, law.

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Palabras clave:

Poder, policía, abordaje policial, Estado, democrático, derecho.

Introdução

A atuação dos órgãos policiais realizada por meio deseus agentes de segurança é critério básico e fundamental paraa promoção da segurança pública, e tem a finalidade de fomen-tar a ordem pública, a preservação de vidas e do patrimônio doscidadãos.

Em qualquer sociedade avançada, ou seja, aquela que,constantemente, aprimora suas relações sociais, econômicas ecientíficas, há a presença de fragilidades e ameaças que cons-piram em desfavor do bem comum, gerando, destarte, a cha-mada sociedade de risco4.

A presença de conflitos sociais de afastamento (infraçõespenais, como homicídio, furto, latrocínio, dentre outros), com acrescente “onda” da violência e da criminalidade, é uma cons-tante na vida dos cidadãos contemporâneos, de modo que aatuação efetiva do Estado, por meio das atividades desenvolvi-das pelos órgãos policiais, tanto no âmbito de polícia administra-

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4 No século XXI, com um novo conceito de modernização da sociedade, oselementos essenciais para o convívio humano foram substituídos por outros.As instituições sociais, como a família, o casamento, a igreja, dentre outras,perdem a sua importância nos debates, de maneira que o indivíduo isoladopassa a ter lugar de destaque em detrimento do coletivo. A procura desen-freada do “ter”, após a Revolução Industrial, e o avanço do capitalismo negama própria existência humana e as bases fundamentais do Welfare State. Napauta do dia, surgem as discussões sobre a destruição do meio ambiente, oaumento da criminalidade e da violência, a corrupção, a improbidade adminis-trativa, as questões de gênero, de raças inferiores, caos aéreo, caos rodoviário,dentre outros, de modo que a sociedade está exposta a um perigo comum econstante.

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tiva como de polícia judiciária, impede o caos social e a destrui-ção das relações humanas.

Entrementes, o Estado, frente aos riscos inerentesao convívio social atual, tem que agir preventivamente, deforma proativa, antecipando suas ações e impedindo o sur-gimento de incursões criminosas. Uma das formas afirmati-vas para a realização da atuação preventiva do Estado,assegurando a tranquilidade pública, é a abordagem policial5

às pessoas nas vias terrestres de circulação, e nos logra-douros públicos.

Numa visão mais superficial, a abordagem policial nãopassa de mero obstáculo do prosseguimento da pessoa ao seudestino, ou seja, para os desavisados, esta é uma simples de-monstração de poder do Estado sobre o indefeso cidadão –época do “Estado de Polícia” que precedeu o Estado Democrá-tico de Direito. Entretanto, se aprofundarmos os debates, verifi-caremos que a finalidade de tal ato vai mais além, ao passo que,se a abordagem feita ao cidadão tiver finalidade legal, esta pro-moverá a paz e a justiça social. Por outro lado, se realizada comfins outros que não a legal, seja por dolo ou culpa, dará impulsoao processo de violência social.

Neste resumido estudo, falaremos sobre o poder de po-lícia em razão da segurança pública; os fundamentos legais daabordagem policial, ou, mais tecnicamente, da busca pessoal, eo abuso de poder nas abordagens policiais com suas consequên-cias no âmbito do Direito Civil, ou seja, o surgimento da respon-sabilidade objetiva do Estado.

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5 A abordagem policial de que se fala tem o mesmo significado de buscapessoal, prevista no art. 244 do Código de Processo Penal, ou revista poli-cial, ou “baculejo”, na gíria policial.

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O poder de polícia em razão da segurança pública

O poder de polícia é uma prerrrogativa atribuída à Adminis-tração Pública, com o objetivo de facilitar sua atuação em prol dacoletividade. É um instrumento de que os órgãos estatais se utilizampara cumprirem seus fins institucionais, obviamente, fundamentadosna supremacia e na indisponibilidade do interesse público. É umpoder, portanto, essencialmente instrumental, ou seja, é o meio peloqual o Estado se utiliza para a consecução de seus fins.

A Administração Pública utiliza-se de tal prerrogativapara limitar ou disciplinar direito, interesse ou liberdade daqueleque ameaça ou lesiona interesse coletivo, de maneira a regulara prática de ato ou abstenção de fato, em razão da segurançapública, da tranquilidade pública, dentre outros. Senão, vejamosdefinição legal, disposta no caput do art. 78 do Código TributárioNacional – CTN:

Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da ad-ministração pública que, limitando ou disciplinando di-reito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ouabstenção de fato, em razão de interesse público concer-nente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, àdisciplina da produção e do mercado, ao exercício de ativi-dades econômicas dependentes de concessão ou autoriza-ção do Poder Público, à tranquilidade pública ou aorespeito à propriedade e aos direitos individuais ou cole-tivos. (Redação dada pelo Ato Complementar n. 31, de28.12.1966, grifos nossos)

O poder de polícia, portanto, é a vantagem conferida àAdministração Pública para regular e restringir direitos pessoaise patrimoniais dos cidadãos, enquanto particular, com vistas aoatingimento do bem comum. Nesse caso, há uma relativizaçãode direitos, ou seja, o Estado restringe determinado direito deuma pessoa, a partir do momento em que sua ação individualprejudica o interesse coletivo.

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Tendo em vista as finalidades públicas a serem alcança-das com as atividades da Administração Pública, é necessário quese estabeleçam, para os órgãos executores da preservação daordem pública, da incolumidade das pessoas e do patrimônio, po-deres especiais a fim de tornar essa atividade efetiva e duradoura.

Obviamente, o ente político não pode agir diretamente,mas por intermédio de seus agentes públicos, que, ao executa-rem suas atividades de segurança pública, a fazem em nome daprópria pessoa jurídica de direito público interno, como se asduas pessoas fossem uma só – é a conhecida Teoria do órgão6.Vejamos o que a insigne administrativista Maria Sylvia Di Pietro(2003, p. 425) ensina a respeito da Teoria do órgão:

Pela teoria do órgão, a pessoa jurídica manifesta sua vontadepor meio dos órgãos, de tal modo que quando os agentes queos compõem manifestam a sua vontade, é como se o próprioEstado o fizesse; substituísse a idéia de representação pelade imputação.

O Estado, quando realiza atividades executivas de poli-ciamento preventivo (poder de polícia administrativa) ou ostensivo(poder de polícia judiciária), o faz por meio de seus servidores po-liciais componentes dos quadros de agentes públicos dos órgãosde polícia, quais sejam, os de polícia federal, civil e militar.

Com efeito, quando o agente executa a busca pessoal aum transeunte suspeito7, obviamente, com poder de polícia pre-ventiva, o faz em nome do Estado, pois este não tem vontadeprópria e somente pode agir indiretamente, por intermédio de

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6 A Teoria do órgão, criada por Otto Gierke, é a adotada em nosso ordenamentojurídico pátrio. Revela a vontade do ente estatal, por meio de ato realizado poragente público, ato este que tem por finalidade atingir resultado previsto em lei.Tal entendimento já é pacificado em nossa doutrina administrativa.7 Conforme De Plácido e Silva (2004, p. 1354), “suspeito” vem do latim sus-pectus, e, como adjetivo, refere-se ao que infunde dúvidas ou ao que nãoinspira confiança, trazendo em relação aos fatos, às coisas, ou às pessoas,justo receio quanto a condições que nelas se apresentam. Assim, o que ésuspeito traz o receio de que não é real, não é legítimo, não é idôneo, não é,afinal, o que pretende ser.

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seus servidores policiais. A exemplo do auto de prisão em fla-grante de um estuprador – poder de polícia judiciária –, essa cus-tódia foi realizada pelo Estado, por meio de um agente desegurança – é o chamado flagrante obrigatório. Enfim, o Estadoé quem detém o jus puniendi, e não o agente de segurança.

As pessoas as quais competem atuar com poder de po-lícia são aquelas previstas na organização político-administrativada República Federativa do Brasil (art. 18 da Constituição Federalde 1988), quais sejam, a União, os Estados, o Distrito Federal eos Municípios, todas pessoas jurídicas de direito público interno,abstratas, com autonomia política, administrativa e financeira.

Sendo assim, as unidades orgânicas dos entes federa-dos, diretas e indiretas, que tenham personalidade jurídica de di-reito público, podem desempenhar suas funções utilizando-se dopoder de polícia em proveito da coletividade. Fala-se dos órgãosda administração direta (personalizados ou despersonalizados)e indireta, que sejam de direito público.

Os órgãos policiais, a saber, os de polícia administrativaou judiciária, podem agir restringindo as liberdades individuaisem favor do interesse público. Tais órgãos têm atribuições e res-ponsabilidades voltadas para a segurança pública e suas mis-sões estão previstas no art. 144, caput, da CF/88: "A segurançapública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, éexercida para a preservação da ordem pública e da incolumidadedas pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos [...]".

Portanto, a Polícia Federal (no âmbito da União), a Po-lícia Militar ou Civil (no âmbito dos Estados) são, certamente,responsáveis por executar ações em prol da coletividade, noâmbito da segurança pública. Obviamente, tal ação deverá terfinalidade legal.

Tais órgãos, no âmbito federal ou estadual, cumprem suasmissões institucionais devendo utilizar-se das prerrogativas quelhes são inerentes, de modo a facilitar a execução de um arcabouço

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de atribuições constitucionais de que são incumbidos, conformeelenca o art. 144, §§ 1º, 5º e 6º da Constituição Federal de 1988:

Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito eresponsabilidade de todos, é exercida para a preservação daordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio,através dos seguintes órgãos:[...]§ 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente,organizado e mantido pela União e estruturado em carreira,destina-se a:I - apurar infrações penais contra a ordem política e social ouem detrimento de bens, serviços e interesses da União ou desuas entidades autárquicas e empresas públicas, assim comooutras infrações cuja prática tenha repercussão interestadualou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dis-puser em lei;II - prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogasafins, o contrabando e o descaminho, sem prejuízo da açãofazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas áreasde competência;III - exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e defronteiras; IV - exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciáriada União.§ 2º A polícia rodoviária federal, órgão permanente, organizadoe mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se, naforma da lei, ao patrulhamento ostensivo das rodovias federais.§ 3º A polícia ferroviária federal, órgão permanente, organi-

zado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento ostensivo das ferroviasfederais. § 4º - Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia decarreira, incumbem, ressalvada a competência da União, asfunções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais,exceto as militares.§ 5º - Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e apreservação da ordem pública; aos corpos de bombeirosmilitares, além das atribuições definidas em lei, incumbe aexecução de atividades de defesa civil.§ 6º - As polícias militares e corpos de bombeiros militares,forças auxiliares e reserva do Exército, subordinam-se, junta-mente com as polícias civis, aos Governadores dos Estados,do Distrito Federal e dos Territórios.

O poder de polícia administrativo dos órgãos policiais, emregra, tem caráter preventivo (caso da abordagem policial), en-quanto o poder de polícia judiciário dos mesmos, em regra, tem

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caráter repressivo (custódia de quem esteja em situação de fla-grância), pois este visa a reprimir a conduta de infratores por meioda instrução criminal, a qual constitui supedâneo da instrução pro-cessual. Ressalte-se que, na fase processual, surge a autoridadejudicial aplicando uma pena ao infrator, conforme seja necessárioe suficiente para a reprovação e prevenção da infração.

Alerte-se que, muitas vezes, o caráter preventivo, parao poder de polícia administrativo, e o repressivo, para o poder depolícia judiciário daqueles órgãos, não é critério básico para dis-tinção entre estas espécies, pois, em alguns casos, teremosações repressivas no âmbito da polícia administrativa, e preven-tivas no âmbito da polícia judiciária. Realmente, o momento daexecução dos atos de uma delas é que vai diferenciar uma daoutra, pois há poder de polícia administrativa quando o agenteimpede ou sana atividade ofensiva à sociedade, enquanto, nopoder de polícia judiciária, o Estado, detentor do jus puniendi edo poder disciplinar, procura responsabilizar o infrator, por meiode uma aplicação de pena (derivada de uma ação penal) oumulta (derivada de um processo administrativo).

Observem-se as lições do ilustre administrativista CelsoAntônio Bandeira de Mello (2006, p. 784):

Tem, a nosso ver, razão Rolland ao rejeitar a oposição caráterpreventivo/caráter repressivo como critério de distinção entreas duas polícias – judiciária e administrativa.Com efeito, freqüentemente a Administração, no exercício dapolícia administrativa, age repressivamente. Sempre que obstaa uma atividade particular, já em curso, é porque esta serevelou contrastante com o interesse público, isto é, lesou-o;enfim, causou um dano para a coletividade.[...]O que efetivamente aparta polícia administrativa de polícia ju-diciária é que a primeira se predispõe unicamente a impedir ouparalisar atividades anti-sociais enquanto a segunda se preor-dena à responsabilização dos violadores da ordem jurídica.

Portanto, quando determinado agente público desem-penha uma atividade policial realizando abordagem policial à

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pessoa suspeita em uma via de circulação, restringindo-lhe a li-berdade de ir e vir, certamente estará utilizando-se de uma prer-rogativa conferida à Administração Pública, a saber, o poder depolícia. Tal prerrogativa, nesse caso, foi exercida de forma pre-ventiva, de modo a promover a sensação de segurança, ou seja,fomentando um clima de convivência harmoniosa e pacíficaentre os cidadãos, vigorando, assim, um ambiente de bem-estarsocial (Welfare State).

Note-se que, mesmo havendo restrição de direitos oudas liberdades individuais, o interesse coletivo autoriza o Estadoa, temporariamente, restringi-los, haja vista a ameaça ou perigode dano a um bem jurídico maior, de maneira que não se fala emdireito de indenização da parte de quem sofreu o cerceamentode liberdade – o direito de um vai até onde começa o direito dooutro. Ressalte-se que, mesmo dentro dessa perspectiva, o Es-tado presta serviço público, pois a segurança pública é seu deverconstuitucional.

As ações de segurança pública, nas quais o Estado con-cretiza o exercício de sua função executiva utilizando-se do poderde polícia, tem natureza de ato administrativo, ou seja, deveráestar em sintonia com os requisitos (competência, finalidade,forma, motivo, objeto e conteúdo), os atributos (presunção de le-gitimidade, autoexecutoriedade, imperatividade ou coercibilidade,exigibilidade e tipicidade) e os princípios da Administração Pública(legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência).

A doutrina administrativista aponta três atributos do atoadministrativo, que, antecipadamente, são características dopoder de polícia, quais sejam: a discricionariedade, a autoexe-cutoriedade e a coercibilidade (ALEXANDRINO, 2009, p. 246).Não poderia ser diferente, pois, no exercício regular de suas fun-ções, necessária se faz sua aplicação, haja vista as finalidadespúblicas do ato.

A discricionariedade é a temperada liberdade que oagente público tem para praticar um ato administrativo, de modo

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que ele poderá aferir a oportunidade e a conveniência da ação,ou seja, o momento ideal e o real interesse público. Essa liber-dade não poderá exceder os limites legais impostos pela ordemjurídica. Ressalte-se que o agente público age em nome do Es-tado, no intuito de fazer cumprir a lei e servir à sociedade.

Entretanto, é através da autoexecutoriedade que a Ad-ministração Pública realiza seus atos de modo direto e imediato,sem pedir autorização ao poder judiciário, de modo eficaz, demaneira a cessar com as ameaças que, porventura, apareçampara desequilibrar as relações sociais. Diferentemente do parti-cular, pois, se este quiser limitar ou disciplinar direito, interesseou liberdade, regular a prática de ato ou abstenção de fato deoutra pessoa, deverá fazê-lo através do judiciário.

Já a coercibilidade significa o poder que a AdministraçãoPública tem para agir independentemente da vontade pessoal doparticular, ou seja, os atos administrativos são coativamente im-postos aos particulares, este gostando ou não, inclusive me-diante o emprego da força.

O fundamento legal da abordagem policial

É dever constitucional dos órgãos policiais exercer a po-lícia preventiva e ostensiva, preservar a ordem pública, protegera incolumidade das pessoas e do patrimônio e garantir aos Po-deres constituídos o regular desempenho de suas competências,cumprindo as requisições emanadas de qualquer destes, bemcomo exercer a atividade de polícia judiciária, relativa às infra-ções penais definidas em lei.

No intutito de atingir a preservação da ordem pública ea proteção da incolumidade das pessoas e do patrimônio, os

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órgãos de polícia atuam preventivamente ou ostensivamente,de forma a evitar as incursões criminais e promover a tranquili-dade pública, ou seja, suscitar um clima de convivência harmo-niosa e pacífica.

Visando tais finalidades, os servidores policiais realizamaborgagens às pessoas (busca pessoal, revista policial) nas viasde circulação terrestre. Somente poderá ocorrer a abordagem deque se fala nos casos em que ocorra a necessidade de prisãoem flagrante delito, quando houver fundada suspeita8 de que de-terminada pessoa esteja na posse de qualquer elemento físico –coisa, distinta da pessoa humana – que constitua corpo de delitode crime ou quando a abordagem for determinada no curso debusca domiciliar.

Destarte, com base no exercício do poder de polícia ecom o fim de preservar a ordem pública (art. 144, § 5º, CF), oagente de polícia deverá (obrigação), quando for caso de fla-grante delito ou havendo fundada suspeita, abordar, na via pú-blica, o cidadão, de maneira a realizar a prisão de quem estejaem flagrante delito, ou liberar, após a revista, a pessoa em estadode suspeição, promovendo a segurança pública de forma diretae indireta, respectivamente.

A busca pessoal feita pelos policiais independerá demandado judicial, ou seja, o profissional de segurança públicanão precisará de ordem do juiz para realizar tal busca. No caso,trata-se de ato administrativo discricionário, de conteúdo subje-tivo, de modo que somente o agente de segurança mensurará,no caso concreto, a conveniência e a oportunidade de fazer ounão fazer a abordagem, desde que, obviamente, nos casos pre-vistos nos arts. 240, § 2º, e 244, todos do Código de ProcessoPenal. Lembre-se que a autoexecutoriedade é atributo da buscapessoal, ou seja, a Administração Pública realiza o ato de revistapessoal sem pedir autorização ao poder judiciário.

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8 Ver nota de rodapé 6, p. 8.

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A abordagem policial tem natureza de ato administrativo,e, assim, deverá estar em sintonia com os requisitos (competên-cia, finalidade, forma, motivo, objeto e conteúdo) e os atributos(presunção de legitimidade, autoexecutoriedade, imperatividadeou coercibilidade, exigibilidade e tipicidade) do mesmo.

Vejamos o que preconiza o art. 240, caput, e 244 do Có-digo de Processo Penal, que foram recepcionados pela Consti-tuição Federal de 1988:

Art. 240. A busca será domiciliar ou pessoal.§ 1º Proceder-se-á à busca domiciliar, quando fundadasrazões a autorizarem, para:a) prender criminosos;b) apreender coisas achadas ou obtidas por meios criminosos;c) apreender instrumentos de falsificação ou de contrafação eobjetos falsificados ou contrafeitos;d) apreender armas e munições, instrumentos utilizados naprática de crime ou destinados a fim delituoso; e) descobrir objetos necessários à prova de infração ou à de-fesa do réu;f) apreender cartas, abertas ou não, destinadas ao acusadoou em seu poder, quando haja suspeita de que o conheci-mento do seu conteúdo possa ser útil à elucidação do fato;g) apreender pessoas vítimas de crimes;h) colher qualquer elemento de convicção.[...] § 2º Proceder-se-á à busca pessoal quando houver fun-dada suspeita de que alguém oculte consigo arma proibidaou objetos mencionados nas letras b a f e letra h do pará-grafo anterior.[...]Art. 244. A busca pessoal independerá de mandado, no casode prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoaesteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis queconstituam corpo de delito, ou quando a medida for determi-nada no curso de busca domiciliar.

Lembre-se que, por ser ato administrativo discricionário,não se pode olvidar os parâmetros legais impostos, pois o ato deque se trata terá que ter embasamento legal e estar em sintoniacom os princípios da Administração Pública gravados no art. 37,caput, da Constituição Federal de 1988, quais sejam, o da lega-lidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da

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eficiência, sob pena de o agente responder por ato ilícito, na es-fera criminal, administrativa e civil.

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquerdos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dosMunicípios obedecerá aos princípios de legalidade, impes-soalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, aoseguinte: [...]

Portanto, o agente somente poderá realizar a busca pes-soal nas condições legais sobreditas, de maneira que qualqueração que venha a extrapolar os limites legais é abusiva e nulade pleno direito por vício de finalidade. Veja-se o parágrafo únicodo art. 78 do Código Tributário Nacional:

Art. 78. [...]Parágrafo único. Considera-se regular o exercício do poderde polícia quando desempenhado pelo órgão competente noslimites da lei aplicável, com observância do processo legal e,tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária,sem abuso ou desvio de poder.

Nos casos de flagrante delito, tanto a busca pessoal rea-lizada extramuros (fora do âmbito domiciliar), como aquela reali-zada no curso de busca domiciliar, poderá ser realizada semautorização judicial, ou seja, os policiais não necessitarão dequalquer autorização de outro agente público para fazer aborda-gem em pessoas que, por exemplo, estejam na posse ilegal dearmas de fogo sob suas vestimentas, ou apreender, após a en-trada no domicílio, objetos obtidos por meios criminosos, que es-tejam na posse das mesmas, como relógios, munições, carros,motos, dentre outros.

Importante ressaltar que a casa é asilo inviolável do indi-víduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento domorador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou paraprestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial, con-forme preceitua o art. 5º, XI, da Constituição Federal de 1988. Ou

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seja, sem flagrante delito, desastre, prestação de socorro ou con-sentimento do morador somente é permitida a busca domiciliardurante o dia9, desde que presente a determinação judicial.

Observe-se que é perfeitamente possível a abordagemà pessoa suspeita que venha na condução de veículo automotor,em qualquer horário, sob pena de aquele que não se submeterà ordem de revista ser preso por desobediência, nos termos doart. 330 do Código Penal Brasileiro: “Art. 330 - Desobedecer aordem legal de funcionário público: Pena - detenção, de quinzedias a seis meses, e multa”.

Note-se que, nesse caso, o veículo não pode ser consi-derado domicílio, uma vez que o veículo automotor se encontrafora da definição de "casa" dada pelo Código Penal em seu art.150, § 4º. Dessa forma, casa compreende somente qualquercompartimento habitado, aposento ocupado de habitação cole-tiva, compartimento não aberto ao público, onde alguém exerceprofissão ou atividade.

Na mesma linha, o § 5º do mesmo artigo do CPB elenca,explicitamente, que a hospedaria, estalagem ou qualquer outrahabitação coletiva, enquanto aberta, e a taverna, casa de jogo eoutras do mesmo gênero, não são considerados casa.

Os profissionais da advocacia não são imunes à revistapolicial, porém o art. 7º da Lei n. 8.906, de 04 de julho de 1994,que dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advo-gados do Brasil, elenca os direitos dos advogados, sendo pre-vista, em seu inciso II, a inviolabilidade de seu escritório ou localde trabalho, bem como de seus instrumentos de trabalho, de suacorrespondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática,

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9 Também é permitida a busca domiciliar à noite, no caso de consentimentodo morador, conforme dicção do art. 245 do Código Processual Penal:“Art. 245. As buscas domiciliares serão executadas de dia, salvo se o mora-dor consentir que se realizem à noite, e, antes de penetrarem na casa, osexecutores mostrarão e lerão o mandado ao morador, ou a quem o repre-sente, intimando-o, em seguida, a abrir a porta.”

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desde que relativas ao exercício da advocacia. Note-se que o servidor policial necessitará de um man-

dado de busca e apreensão, específico e pormenorizado, expe-dido por autoridade judiciária competente, para quebrar ainviolabilidade prevista na disposição legal acima mencionada,obviamente, sempre quando houver indícios de autoria e mate-rialidade da prática de crime por parte de advogado, conforme oart. 7º, II e § 6º da Lei n. 8.906/94.

Art. 7º São direitos do advogado:[...]II – a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bemcomo de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondên-cia escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que rela-tivas ao exercício da advocacia; [...]§ 6o Presentes indícios de autoria e materialidade da práticade crime por parte de advogado, a autoridade judiciária com-petente poderá decretar a quebra da inviolabilidade de quetrata o inciso II do caput deste artigo, em decisão motivada,expedindo mandado de busca e apreensão, específico e por-menorizado, a ser cumprido na presença de representante daOAB, sendo, em qualquer hipótese, vedada a utilização dosdocumentos, das mídias e dos objetos pertencentes a clientesdo advogado averiguado, bem como dos demais instrumentosde trabalho que contenham informações sobre clientes

A abordagem policial ocorrerá, como já dissemos, emcasos de flagrante delito e quando houver fundada suspeita. Aprimeira situação, qual seja a de flagrante delito, é definida noart. 302, I, II, III e IV, do Código de Processo Penal, como sendo:quando alguém está cometendo a infração penal; acaba de co-metê-la; é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendidoou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir serautor da infração; é encontrado, logo depois, com instrumentos,armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor dainfração.

De outra parte, a fundada suspeita é quando o agentede segurança tem razões, motivos ou provas para desconfiar dedeterminada conduta de uma pessoa, de maneira que faça pres-sentir que alguém esteja na posse de arma proibida ou de objetos

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ou papéis que constituam corpo de delito, ou seja, de qualquerelemento material de infração penal, sejam objetos, como veícu-los, papéis, dinheiro, ou pessoas.

A revista, ou a busca pessoal, deverá ser executada semconstrangimento, sem discriminação às pessoas, e dentro dospadrões ético-profissionais. O critério básico que deverá ser le-vado em conta pelo agente é a conduta, a maneira de agir, ocomportamento da pessoa alvo da abordagem, e não a pessoaem si, como o modo que ela se veste, a orientação sexual, araça, etnia, cultura, etc., pois, se assim for, estará cometendodesvio de poder, isto é, a atuação do agente, embora dentro desua órbita de competências, contraria a finalidade explícita ou im-plícita na lei que determinou ou autorizou a sua atuação (ALE-XANDRINO, 2009, p. 252).

O policial deve saber diferenciar a fundada suspeita daespeculação de suspeita. Na primeira, o agente público se fun-damenta em critérios subjetivos e objetivos; na segunda, ilegal,se baseia apenas em critérios subjetivos. A fundada suspeitaexige elementos concretos que indiquem a necessidade da re-vista, em face do constrangimento que causa. Vejamos decisõesdos Tribunais Superiores a respeito da presente questão:

EMENTA: HABEAS CORPUS. TERMO CIRCUNSTANCIADODE OCORRÊNCIA LAVRADO CONTRA O PACIENTE. RE-CUSA A SER SUBMETIDO A BUSCA PESSOAL. JUSTACAUSA PARA A AÇÃO PENAL RECONHECIDA POR TURMARECURSAL DE JUIzADO ESPECIAL. Competência do STFpara o feito já reconhecida por esta Turma no HC n.º 78.317.Termo que, sob pena de excesso de formalismo, não se podeter por nulo por não registrar as declarações do paciente, nemconter sua assinatura, requisitos não exigidos em lei. A "fun-dada suspeita", prevista no art. 244 do CPP, não pode fundar-se em parâmetros unicamente subjetivos, exigindo elementosconcretos que indiquem a necessidade da revista, em face doconstrangimento que causa. Ausência, no caso, de elementosdessa natureza, que não se pode ter por configurados na ale-gação de que trajava, o paciente, um "blusão" suscetível deesconder uma arma, sob risco de referendo a condutas arbi-trárias ofensivas a direitos e garantias individuais e caracteri-

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zadoras de abuso de poder. Habeas corpus deferido para de-terminar-se o arquivamento do Termo. (STF - HC 81.305-4/GO, Rel. Ministro Ilmar Galvão)

PROCESSUAL PENAL. BUSCA PESSOAL. ARTS. 240, § 2º,E 244, CPP. AUSÊNCIA DE FUNDADA SUSPEITA. NECES-SIDADE DE DEMONSTRAÇÃO DE CRITÉRIO OBJETIVOJUSTIFICADOR DO ATO. PRISÃO EM FLAGRANTE DECOR-RENTE DA BUSCA PESSOAL. ILEGALIDADE. ARBI-TRARIEDADE. DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAISDESRESPEITADOS.

1. "Fundada suspeita" é requisito essencial e indispensávelpara a realização da busca pessoal, consistente na revista doindivíduo (Guilherme de Souza Nucci).

2. A busca pessoal sem mandado deve assentar-se em critérioobjetivo que a justifique. Do contrário, dar-se-á azo à arbi-trariedade e ao desrespeito aos direitos e garantias individuais.

3. A suspeita não pode basear-se em parâmetros unicamentesubjetivos, discricionários do policial, exigindo, ao revés, ele-mentos concretos que indiquem a necessidade da revista,mormente quando notório o constrangimento dela decorrente(STF - HC 81.305-4/GO, Rel. Ministro Ilmar Galvão). 4. Re-curso em sentido estrito não provido.

"A busca é autorizada nos casos previstos no art. 240 e ss. doCPP, como exceção às garantias normais de liberdade indi-vidual. Mas, como exceção, para que não degenere a medida,sem dúvida violenta, em abusivo constrangimento, a lei esta-belece normas para a sua execução, normas que devem serexecutadas com muito critério e circunspecção pela autori-dade". (TJSP – AP – Rel. Dalmo Nogueira – RT 439/360)

A busca pessoal não poderá ser objeto de arbitrariedade,constrangimento ou desrespeito ao cidadão, seja o infrator ounão, e deverá estar em consonância com os direitos individuaise coletivos, estes peculiares ao Estado Democrático de Direito,quais sejam: homens e mulheres são iguais em direitos e obri-gações (isonomia); ninguém será obrigado a fazer ou deixar defazer alguma coisa senão em virtude de lei (reserva legal); nin-guém será submetido à tortura nem a tratamento desumano oudegradante (proibição de tortura); inviolabilidade domiciliar (salvo

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por determinação do morador, em caso de flagrante delito ou de-sastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determi-nação judicial), a prática do racismo (proibição de racismo), ouseja, a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religiãoou procedência nacional, o que constitui crime inafiançável e im-prescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da Lei n.7.716/79; ninguém será considerado culpado até o trânsito emjulgado de sentença penal condenatória, ninguém será presosenão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentadade autoridade judiciária competente, salvo nos casos de trans-gressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei; opreso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisãoou por seu interrogatório policial.

Caso a ser discutido é a busca pessoal, ou abordagempolicial, a ser realizada em mulher suspeita, pois, de acordo como art. 249, caput, do Código Processo Penal - CPP, o agente dosexo masculino poderá, nos casos de importar retardamento ouprejuízo da diligência, revistar pessoa do sexo feminino:“Art. 249. A busca em mulher será feita por outra mulher, se nãoimportar retardamento ou prejuízo da diligência”.

Entende-se que tal situação não está em consonânciacom os preceitos do Estado Constitucional de 1988, pois colocaa mulher em situação de inferioridade perante o homem, po-dendo, em alguns casos, submeter a mulher a vexame, constran-gimento, ou mesmo lesar sua honra. Note-se que o CPP é de1941, ou seja, é anterior à Constituição Federal de 1988. Nesseponto, o CPP não foi recepcionado pela nossa Carta Magna. Por-tanto, agente policial feminina fará busca pessoal em mulher sus-peita, até porque, nas corporações policiais, já existem em seusquadros agentes femininas.

A abordagem policial se concretiza por meio do contatofísico e verbal do agente de segurança com a pessoa suspeita,de modo que, no contato físico, o agente deverá seguir todos osprocedimentos ético-profissionais da técnica policial, e, no contato

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verbal, deverá solicitar identificação da pessoa suspeita, sob penade esta ser presa, nos termos do art. 68 da Lei Contravencional(Decreto-Lei n. 3.688, de 3 de outubro de 1941).

Art. 68. Recusar à autoridade, quando por esta, justificadamentesolicitados ou exigidos, dados ou indicações concernentes àprópria identidade, estado, profissão, domicílio e residência:Pena – multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis. Parágrafo único. Incorre na pena de prisão simples, de um aseis meses, e multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis,se o fato não constitue infração penal mais grave, quem, nasmesmas circunstâncias, f'az declarações inverídicas a respeitode sua identidade pessoal, estado, profissão, domicílio eresidência.

A identificação civil da pessoa poderá ser atestada pormeio da apresentação da carteira de identidade, carteira de tra-balho, carteira profissional, passaporte, carteira de identificaçãofuncional ou outro documento público que permita a identificaçãodo indiciado, nos termos do art. 2º da Lei n. 12.037, de 1º de ou-tubro de 2009, que regulou o art. 5º, inciso LVIII, da ConstituiçãoFederal: “LVIII - o civilmente identificado não será submetido aidentificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei;”. Con-vém lembrar que equiparam-se aos documentos de identificaçãocivis os documentos de identificação militares:

Art. 2º A identificação civil é atestada por qualquer dosseguintes documentos:I – carteira de identidade;II – carteira de trabalho;III – carteira profissional;IV – passaporte;V – carteira de identificação funcional;VI – outro documento público que permita a identificação doindiciado.Parágrafo único. Para as finalidades desta Lei, equiparam-se aos documentos de identificação civis os documentos deidentificação militares.

Note-se que poderá existir contra aquela pessoa sus-peita ordem de prisão, escrita e fundamentada, expedida por

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autoridade judicial competente, conforme art. 5º, LXI, da Cons-tituição Federal: “LXI - ninguém será preso senão em flagrantedelito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judi-ciária competente, salvo nos casos de transgressão militar oucrime propriamente militar, definidos em lei”. Daí a necessidadede solicitar a identificação da pessoa suspeita.

A responsabilidade do Estado devido a abordagens po-liciais ilegais é objetiva (não necessita a demonstração da culpa,apenas o nexo causal e o dano), conforme previsão do art. 37,§ 6º, da Constituição Federal de 1988, pois o agente público, noexercício das funções públicas ou atuando em razão dela, agecom abuso de poder (sem finalidade legal). No caso das abor-dagens policiais ilegais, a conduta do agente é comissiva, ouseja, um atuar positivo com dolo ou culpa, fazendo parte da re-lação de causalidade, gerando o dano e a responsabilidade doente político:

§ 6º - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito pri-vado prestadoras de serviços públicos responderão pelosdanos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a ter-ceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsávelnos casos de dolo ou culpa.

Conclusão

O convívio entre os homens, sejam os agentes do Es-tado ou os cidadãos propriamente ditos, exige o estabelecimentode uma ordem jurídica decorrente de um pacto social entre ospróprios sujeitos. Essa ordem legal estabelecida em determinadacomunidade imporá limites de atuação aos seres, atores das re-lações sociais vigentes, no intuito de que nenhum deles atinjama esfera jurídica do outro, caso contrário, promove-se o desequi-

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líbrio social, e conspira-se, assim, com a felicidade humana. O homem é o lobo do próprio homem10, e, caso não

fosse estabelecida uma ordem legal, com a criação de um Estadode Direito, a tendência da comunidade seria a própria destruição.Sem sombra de dúvida os servidores policiais são responsáveispelo equilíbrio social e pela promoção da segurança, sendo pro-tagonistas do estado de bem-estar social – Welfare State.

Assim, conclui-se que a abordagem policial realizadadentro dos padrões legais, e, obviamente, utilizando-se do poderde polícia, é ferramenta fundamental para que o Estado atinjasua finalidade maior, qual seja, a paz social.

REFERÊNCIAS

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10 Expressão pela qual Thomas Hobbes descreve o homem. Este não apenassatisfaz seus desejos naturais, mas, além disso, suas vaidades.

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André Wagner Melgaço Reis*

DO NÃO CABIMENTO DE LIBERDADE PROVISÓRIA NO CRIME DE TRÁFICO DE DROGAS:

LEITURA DA JURISPRUDÊNCIA DO STF E DO STJ

FROM NO ACCEPTANCE OF INTERIM FREEDOM IN THE CRIME OF

DRUG TRAFFICKING: READING OF THE CASE LAW OF STF AND STJ

DE LA NO ADECUACIÓN DE LA LIBERTAD PROVISIONAL

EN EL CRIMEN DE TRÁFICO DE DROGAS: LECTURA

DE LA JURISPRUDENCIA DEL STF Y DEL STJ

[...] o título prisional em que o flagrante consiste opera por si mesmo;isto é, independentemente da presença dos requisitos do art. 312 doCPP. Há uma presunção constitucional de periculosidade da condutaprotagonizada pelo agente que é flagrado praticando crime hediondoou equiparado. A Constituição parte de um juízo apriorístico (objetivo)de periculosidade de todo aquele que é surpreendido na práticade delito hediondo, o que já não comporta nenhuma discussão.

(Ministro Carlos Ayres Britto)

Resumo:

Em se tratando do crime de tráfico de drogas é incabível a con-

cessão de liberdade provisória, independentemente da presença

ou não dos requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal. A

uma porque a vedação à liberdade provisória em relação aos cri-

mes hediondos e a ele equiparados decorre da própria inafiança-

bilidade prevista na Lex Fundamentalis (art. 5º, inciso XLIII, da CF).

A duas porque o art. 44 da Lei 11.343/06 é, por si só, fundamento

suficiente, por se tratar de norma especial em relação ao parágrafo

único, do art. 310, do Código de Processo Penal. A três porque a

* Promotor de Justiça em Goiás. Ex-Assessor de Ministro do STJ.

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Lei 11.464/07, ao suprimir do inciso II, do art. 2°, da Lei 8.072/90,

a vedação à liberdade provisória aos crimes hediondos e a ele

equiparados, apenas corrigiu redundância contida na norma.

Abstract:

In the case of the crime of drug trafficking is inacceptable the gran-

ting of interim freedom, regardless of the presence or not of the re-

quirements of Art. 312 of the Code of Criminal Procedure. First

because the prohibition of bail in relation to heinous crimes and,

the ones to them equated, comes from no bail possibility in Lex

Fundamentalis (art. 5, clause XLIII of the Federal Constitution). Se-

cond because the art. 44 of Law 11.343/06 is, by itself, sufficient

grounds, for dealing with special provisions regarding to the sole

paragraph of art. 310 of the Code of Criminal Procedure. Third be-

cause the Law 11.464/07, when deleting the item II of art. 2, of Law

8.072/90, the prohibition of bail for heinous crimes and, to the ones

to them equated, only corrected redundancy contained in the Law.

Resumen:

En el caso del delito de tráfico de drogas es inaceptable la con-

cesión de libertad provisional, independientemente de la presen-

cia o no de los requisitos del artículo 312 del Código Procesal

Penal. En primer lugar, porque la privación a la libertad provisio-

nal en relación a los delitos graves y a los a él equiparados pro-

viene de la falta de fiabilidad prevista en la Lex fundamentalis

(artículo 5, inciso XLIII de la Constitución Federal). En segundo

lugar, porque el artículo 44 de la Ley 11.343/06 es, por sí mismo,

motivo suficiente, por tratarse de norma especial relativa al pár-

rafo único del artículo 310 del Código Procesal Penal. En tercero

lugar, la Ley 11.464/07, al suprimir del punto II del artículo 2° de

la Ley 8.072/90 la prohibición de la libertad provisional para deli-

tos atroces y los a él equiparados, sólo corrigió la redundancia

contenida en la norma.

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Palavras-chaves:

Tráfico de drogas, liberdade provisória, não cabimento, inafian-

çabilidade decorrente da Constituição Federal, artigo 44 da Lei

11.343/06,. norma especial em relação ao parágrafo único do art.

310 do Código de Processo Penal, desnecessidade de se fazer

menção aos requisitos do art. 312 do CPP, lei 11.464/07, corre-

ção de redundância contida na norma.

Keywords:

Drug Trafficking, bail, no acceptance, no bail possibility due to the

Federal Constitution, article 44 of Law 11.343/06, the special pro-

vision regarding the sole paragraph of art. 310 of Code of Criminal

Procedure, no need to mention the requirements of Art. 312 of

Code of Criminal Procedure, Law 11.464/07, correction of redun-

dancy contained in the Law.

Palabras clave:

Tráfico de drogas, libertad provisional, no adecuación, falta de

fiabilidad proveniente de la Constitución Federal, artículo 44 de

la Ley 11.343/06, norma especial relativa al párrafo único del ar-

tículo 310 del Código Procesal Penal, no necesidad de hacerse

mención a los requisitos del artículo 312 del CPP, ley 11.464/07,

corrección de redundancia contenida en la norma.

Embora o tema desperte grande controvérsia, tanto noâmbito doutrinário como jurisprudencial, perfilhamos do enten-dimento de que é incabível a liberdade provisória no que serefere ao delito de tráfico de entorpecentes.

Para tanto elencamos três fundamentos, todos eles res-paldados na jurisprudência do c. Supremo Tribunal Federal edo e. Superior Tribunal de Justiça.

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Primeiro fundamento

O art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, ao proibira concessão de fiança, evidencia que a liberdade provisória nãopode ser concedida. Vale dizer, a vedação à liberdade provisóriaem relação aos crimes hediondos e a ele equiparados decorreda própria inafiançabilidade prevista na Lex Fundamentalis.

A propósito o seguinte precedente do e. Pretório Excelso:

PENAL. PROCESUAL PENAL. HABEAS CORPUS. ASSOCIAÇÃOPARA O TRÁFICO DE DROGAS. ART. 35 DA LEI 11.343/2006.LIBERDADE PROVISÓRIA. IMPOSSIBILIDADE. ART 5º, XLIII, DACONSTITUIÇÃO. INAFIANÇABILIDADE. VEDAÇÃO CONSTITU-CIONAL. PRISÃO CAUTELAR. SUPERVENIÊNCIA DE SEN-TENÇA CONDENATÓRIA. NOVO TÍTULO A RESPALDAR ASEGREGAÇÃO DO PACIENTE. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DAPRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA. MATÉRIA NÃO SUSCITADA NOTRIBUNAL A QUO. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. HABEASCORPUS NÃO CONHECIDO. [...] II - A proibição da liberdadeprovisória nos crimes hediondos e equiparados decorre daprópria inafiançabilidade imposta pelo art. 5º, XLIII, da Consti-tuição Federal à legislação ordinária. Precedentes. III - A ale-gação de que a custódia do paciente viola o princípio da presunçãode inocência não foi submetida à apreciação do Tribunal a quo, oque impede seu exame por esta Corte sob pena de supressão deinstância. IV - Habeas Corpus não conhecido.(STF, HC 101503,Relator Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Primeira Turma, julgadoem 10/08/2010, DJe de 22-10-2010)

E do c. Superior Tribunal de Justiça:

HABEAS CORPUS. CRIME DE TRÁFICO ILÍCITO DE EN-TORPECENTES. LIBERDADE PROVISÓRIA. VEDAÇÃO EX-PRESSA CONTIDA NA LEI N.º 11.343/06.FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA E SUFICIENTE PARA JUSTI-FICAR O INDEFERIMENTO DO PLEITO.1. Hipótese em que o Paciente foi preso em flagrante em28/01/2009, com duas pedras de crack.2. Não se descura o que o Plenário Virtual da Corte Supremareconheceu a existência de repercussão geral da questão sus-citada no Recurso Extraordinário n.º 601.384/RS, Rel. Min.MARCO AURÉLIO – no qual se discute a validade da cláusulaproibitiva de liberdade provisória aos acusados do crime de

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tráfico de drogas, prevista no art. 44 da Lei n.º 11.343/2006.3. Entretanto, a matéria em análise no referido Recurso Ex-traordinário ainda não teve o mérito debatido pelo Plenáriodo Supremo Tribunal Federal, prevalecendo, na ju-risprudência dos Tribunais Pátrios, o entendimento deque a vedação expressa do benefício da liberdade pro-visória (e do apelo em liberdade) aos crimes de tráficoilícito de entorpecentes é, por si só, motivo suficientepara impedir a concessão da benesse ao réu preso emflagrante por crime hediondo ou equiparado, nos ter-mos do disposto no art. 5.º, inciso LXVI, da Constitu-ição Federal, que impõe a inafiançabilidade dasreferidas infrações penais.4. Ordem denegada. (STJ, HC 166.354/MG, Rel. MinistraLAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 05/10/2010,DJe 18/10/2010)

PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DERECURSO ORDINÁRIO. ASSOCIAÇÃO E TRÁFICO ILÍCITODE ENTORPECENTES. INDEFERIMENTO DE PERÍCIAGRAFOTÉCNICA. FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA. LIVRE CON-VENCIMENTO MOTIVADO. PRISÃO EM FLAGRANTE.CUSTÓDIA CAUTELAR. LIBERDADE PROVISÓRIA.VEDAÇÃO LEGAL. LEI 11.343/06. ORDEM DENEGADA.1. O magistrado, como destinatário direto da instrução pro-batória, pode, mediante fundamentação (princípio do livre con-vencimento motivado), indeferir a produção daquelas queentender impertinentes, desnecessárias ou protelatórias.2. O inciso XLIII do art. 5º da Constituição Federal estabeleceque o tráfico ilícito de entorpecentes constitui crimeinafiançável.3. Não sendo possível a concessão de liberdade provisóriacom fiança, com maior razão será a não concessão de liber-dade provisória sem fiança.4. A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça consoli-dou o entendimento de que a vedação imposta pelo art. 2º,II, da Lei 8.072/90 é fundamento suficiente para o indeferi-mento da liberdade provisória (HC 76.779/MT, Rel. Min.FELIX FISCHER, DJ 4/4/08).5. A Lei 11.343/06, expressamente, fez constar que o delito detráfico de drogas é insuscetível de liberdade provisória, cuja dis-posição não foi revogada pela Lei 11.464/07.6. Ordem denegada. (STJ, HC 152.342/SP, Rel. Ministro AR-NALDO ESTEVES LIMA, QUINTA TURMA, julgado em15/06/2010, DJe 02/08/2010)

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Segundo fundamento

A vedação à concessão do benefício da liberdade provi-sória para os autores do crime de tráfico ilícito de entorpecentesestá prevista no art. 44 da Lei 11.343/06, que é, por si só, funda-mento suficiente por se tratar de norma especial em relação aoparágrafo único do art. 310 do Código de Processo Penal.

Nesse sentido o seguinte julgado da e. Suprema Corte:

PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. TRÁFICO ILÍCITODE ENTORPECENTES. DECISÃO MONOCRÁTICA DO STJ.NÃO HOUVE ESGOTAMENTO DA JURISDIÇÃO DO TRIBU-NAL A QUO. LIBERDADE PROVISÓRIA. PROIBIÇÃO. ORIEN-TAÇÃO DO STF. NECESSIDADE DE MANUTENÇÃO DACUSTÓDIA CAUTELAR PARA GARANTIA DA ORDEMPÚBLICA. WRIT NÃO CONHECIDO. [...] 2. Esta Corte temadotado orientação segundo a qual há proibição legal paraa concessão da liberdade provisória em favor dos sujeitosativos do crime de tráfico ilícito de drogas (art. 44, da Lei n11.343/06), o que, por si só, é fundamento para o indeferi-mento do requerimento de liberdade provisória. Cuida-se denorma especial em relação àquela contida no art. 310, pará-grafo único, do CPP, em consonância com o disposto no art.5 , XLIII, da Constituição da República. [...].(STF, HC 95671,Relatora Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em03/03/2009, DJe de 20-03-2009)

E do c. Superior Tribunal de Justiça:

RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS LIBERATÓRIO.NARCOTRAFICÂNCIA INTERNACIONAL. PRISÃO EM FLA-GRANTE DELITO EM 26.09.09. LIBERDADE PROVISÓRIA.VEDAÇÃO LEGAL. NORMA ESPECIAL. LEI 11.343/06. FUN-DAMENTAÇÃO IDÔNEA. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA.QUANTIDADE E NATUREZA DA DROGA (1082 GRAMAS DECOCAÍNA). PARECER DO MPF PELO DESPROVIMENTO DORECURSO. RECURSO ORDINÁRIO DESPROVIDO.1. A vedação de concessão de liberdade provisória, nahipótese de acusados da prática de tráfico ilícito de entorpe-centes, encontra amparo no art. 44 da Lei 11.343/06 (nova Leide Tóxicos), que é norma especial em relação ao parágrafoúnico do art. 310 do CPP e à Lei de Crimes Hediondos, coma nova redação dada pela Lei 11.464/07.

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2. Referida vedação legal é, portanto, razão idônea e sufi-ciente para o indeferimento da benesse, de sorte que prescindede maiores digressões a decisão que indefere o pedido deliberdade provisória, nestes casos. [...]. (STJ, RHC 28.153/AC,Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, QUINTA TURMA,julgado em 22/06/2010, DJe 09/08/2010)

Terceiro fundamento

A Lei 11.464/07, ao suprimir do inciso II, do art. 2°, da Lei8.072/90, a vedação à liberdade provisória aos crimes hediondose a ele equiparados, apenas corrigiu redundância contida nanorma. Afinal, se o crime é insuscetível de fiança é porque nãocabe liberdade provisória. Dessa forma, o fato de não haver maisprevisão expressa proibitória de liberdade provisória quanto aoscrimes hediondos e a ele equiparados de forma alguma nos per-mite concluir que esta passou a ser permitida quanto a eles.

Confira-se, uma vez mais, o entendimento do e. Su-premo Tribunal Federal:

HABEAS CORPUS. PACIENTE PRESO EM FLAGRANTEPOR RECEPTAÇÃO (ART. 180 DO CP), POSSE IRREGULARDE ARMA DE FOGO DE USO PERMITIDO (ART. 12 DA LEI10.826/03) E TRÁFICO DE ENTORPECENTES E RESPEC-TIVA ASSOCIAÇÃO (ARTS. 33 E 35 DA LEI 11.343/06). PE-DIDO DE LIBERDADE PROVISÓRIA INDEFERIDO.OBSTÁCULO DIRETAMENTE CONSTITUCIONAL: INCISOXLIII DO ART. 5º (INAFIANÇABILIDADADE DO DELITO DETRÁFICO DE ENTORPECENTES). JURISPRUDÊNCIA DAPRIMEIRA TURMA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.ORDEM DENEGADA. 1. Se o crime é inafiançável e preso oacusado em flagrante delito, o instituto da liberdade provisórianão tem como operar. O inciso II do art. 2º da Lei 8.072/90,quando impedia a "fiança e a liberdade provisória", decerta forma incidia em redundância, dado que, sob oprisma constitucional (inciso XLIII do art. 5º da CF/88), talressalva era desnecessária. Redundância que foi reparadapelo art. 1º da Lei 11.464/07, ao retirar o excesso verbal e

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manter, tão-somente, a vedação do instituto da fiança. 2.Manutenção da jurisprudência desta Primeira Turma, no sen-tido de que "a proibição da liberdade provisória, nessahipótese, deriva logicamente do preceito constitucional queimpõe a inafiançabilidade das referidas infrações penais: [...]seria ilógico que, vedada pelo art. 5º, XLIII, da Constituição, aliberdade provisória mediante fiança nos crimes hediondos,fosse ela admissível nos casos legais de liberdade provisóriasem fiança" (HC 83.468, da relatoria do ministro SepúlvedaPertence). 3. Correto esse entendimento jurisprudencial, namedida em que o título prisional em que o flagrante con-siste opera por si mesmo; isto é, independentemente dapresença dos requisitos do art. 312 do CPP. Há uma pre-sunção constitucional de periculosidade da conduta pro-tagonizada pelo agente que é flagrado praticando crimehediondo ou equiparado. A Constituição parte de um juízoapriorístico (objetivo) de periculosidade de todo aqueleque é surpreendido na prática de delito hediondo, o quejá não comporta nenhuma discussão. Todavia, é certo, talpresunção opera tão-somente até a prolação de eventual sen-tença penal condenatória. Novo título jurídico, esse, que há deostentar fundamentação específica quanto à necessidade, ounão, de manutenção da custódia processual, conforme estabele-cido no parágrafo único do art. 387 do CPP. Decisão, agorasim, a ser proferida com base nas coordenadas do art. 312 doCPP: seja para o acautelamento do meio social (garantia daordem pública), seja para a garantia da aplicação da lei penal.Isso porque o julgador teve a chance de conhecer melhor oacusado, vendo-o, ouvindo-o; enfim, pôde aferir não só a realpericulosidade do agente, como também a respectiva culpa-bilidade, elemento que foi necessário para fazer eclodir opróprio decreto condenatório. 4. Isso não obstante, esse en-tendimento jurisprudencial comporta abrandamento quando delogo avulta a irregularidade do próprio flagrante (inciso LXV doart. 5º da CF/88), ou diante de uma injustificada demora da respec-tiva custódia, nos termos da Súmula 697 do STF ("A proibiçãode liberdade provisória nos processos por crimes hediondosnão veda o relaxamento da prisão processual por excesso deprazo"). O que não é o caso dos autos. 5. Ordem denegada.(STF, HC 103399, Relator Min. AYRES BRITTO, PrimeiraTurma, julgado em 22/06/2010, DJe de 20-08-2010)HABEAS CORPUS. PRISÃO EM FLAGRANTE POR TRÁ-FICO DE DROGAS. LIBERDADE PROVISÓRIA: INADMIS-SIBILIDADE. DECISÃO QUE MANTEVE A PRISÃO.GARANTIA DE APLICAÇÃO DA LEI PENAL. CIRCUNSTÂN-CIA SUFICIENTE PARA A MANUTENÇÃO DA CUSTÓDIACAUTELAR. ORDEM DENEGADA. 1. A proibição de liber-dade provisória, nos casos de crimes hediondos e equipara-dos, decorre da própria inafiançabilidade imposta pelaConstituição da República à legislação ordinária (Constituição

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da República, art. 5º, inc. XLIII): Precedentes. O art. 2º, inc.II, da Lei n. 8.072/90 atendeu o comando constitucional, aoconsiderar inafiançáveis os crimes de tortura, tráfico ilícito deentorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidoscomo crimes hediondos. Inconstitucional seria a legislaçãoordinária que dispusesse diversamente, tendo como afi-ançáveis delitos que a Constituição da República determinasejam inafiançáveis. Desnecessidade de se reconhecer ainconstitucionalidade da Lei n. 11.464/07, que, ao retirara expressão 'e liberdade provisória' do art. 2º, inc. II, daLei n. 8.072/90, limitou-se a uma alteração textual: aproibição da liberdade provisória decorre da vedação dafiança, não da expressão suprimida, a qual, segundo ajurisprudência deste Supremo Tribunal, constituía re-dundância. Mera alteração textual, sem modificação danorma proibitiva de concessão da liberdade provisóriaaos crimes hediondos e equiparados, que continuavedada aos presos em flagrante por quaisquer daquelesdelitos. 2. A Lei n. 11.464/07 não poderia alcançar o delitode tráfico de drogas, cuja disciplina já constava de lei espe-cial (Lei n. 11.343/06, art. 44, caput), aplicável ao caso ver-tente. 3. Irrelevância da existência, ou não, defundamentação cautelar para a prisão em flagrante porcrimes hediondos ou equiparados: Precedentes. 4. Ao con-trário do que se afirma na petição inicial, a custódia cautelardo Paciente foi mantida com fundamento em outros elemen-tos concretos, que apontam o risco concreto de fuga comocircunstância suficiente para a manutenção da prisão proces-sual. Precedentes. 5. Ordem denegada.(STF, HC 99333, Re-latora Min. CÁRMEN LÚCIA, Primeira Turma, julgado em01/06/2010, DJe de 01-07-2010)

E do c. Superior Tribunal de Justiça:

PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EMHABEAS CORPUS. TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPE-CENTES. LIBERDADE PROVISÓRIA. PROIBIÇÃO DECOR-RENTE DO TEXTO LEGAL E DA NORMACONSTITUCIONAL. NULIDADES PROCESSUAIS.MATÉRIAS ALEGADAS, MAS NÃO APRECIADAS PELO E.TRIBUNAL A QUO. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA.I - A proibição de concessão do benefício de liberdade provisóriapara os autores do crime de tráfico ilícito de entorpecentes estáprevista no art. 44 da Lei n.º 11.343/06, que é, por si, funda-mento suficiente por se tratar de norma especial especifica-mente em relação ao parágrafo único, do art. 310, do CPP.II - Além do mais, o art. 5º, XLIII, da Carta Magna, proibindoa concessão de fiança, evidencia que a liberdade provisória

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pretendida não pode ser concedida.III - Precedentes do c. Pretório Excelso (AgReg no HC 85711-6/ES, 1ª Turma, Rel. Ministro Sepúlveda Pertence; HC 86118-1/DF, 1ª Turma, Rel. Ministro Cezar Peluso; HC 83468-0/ES,1ª Turma, Rel. Min. Sepúlveda Pertence; HC 82695-4/RJ, 2ªTurma, Rel. Ministro Carlos Velloso).IV - "De outro lado, é certo que a L. 11.464/07 - em vigordesde 29.03.07 - deu nova redação ao art. 2º, II, da L.8.072/90, para excluir do dispositivo a expressão “e liber-dade provisória”. Ocorre que – sem prejuízo, em outra opor-tunidade, do exame mais detido que a questão requer –, essaalteração legal não resulta, necessariamente, na virada dajurisprudência predominante do Tribunal, firme em que da“proibição da liberdade provisória nos processos porcrimes hediondos [...] não se subtrai a hipótese de nãoocorrência no caso dos motivos autorizadores da prisãopreventiva” (v.g., HC 83.468, 1ª T., 11.9.03, Pertence, DJ27.2.04; 82.695, 2ª T., 13.5.03, Velloso, DJ 6.6.03; 79.386, 2ªT., 5.10.99, Marco Aurélio, DJ 4.8.00; 78.086, 1ª T., 11.12.98,Pertence, DJ 9.4.99). Nos precedentes, com efeito, háressalva expressa no sentido de que a proibição de liberdadeprovisória decorre da própria “inafiançabilidade imposta pelaConstituição” (CF, art. 5º, XLIII)." (STF - HC 91550/SP, Rel.Min. Sepúlveda Pertence, DJ 06/06/2007).(...) (STJ, RHC27.914/RS, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA,julgado em 02/09/2010, DJe 04/10/2010)

Conclusão

Em se tratando do crime de tráfico de drogas é incabí-vel a concessão de liberdade provisória, independentementeda presença ou não dos requisitos do art. 312 do Código deProcesso Penal.

Vale dizer, não há a necessidade de o Magistrado fun-damentar a decisão de indeferimento do pedido de liberdade pro-visória na garantia da ordem pública, da ordem econômica, porconveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicaçãoda lei penal.

O simples fato de o agente ser preso em flagrante praticando

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tráfico de drogas é razão suficiente para o indeferimento do pedidode liberdade provisória, consoante os três fundamentos anteriormenteexpostos.

É claro que qualquer ilegalidade no flagrante ou entãoa demora injustificada na marcha processual pode ensejar orelaxamento da prisão, uma vez que esta se tornaria ilegal(v.g., Súmula n° 697 do STF: "A proibição de liberdade provi-sória nos processos por crimes hediondos não veda o relaxa-mento da prisão processual por excesso de prazo").

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Cláudio Barros Silva*

Abusos e omissões do ministério Público e de seus membros

ABUSES AND OMISSIONS OF PUBLIC

PROSECUTOR AND ITS PROSECUTORS

ABUSOS Y OMISIONES DEL MINISTERIO

PÚBLICO Y DE SUS MIEMBROS

Resumo:

A concepção do Ministério Público tem vinculação com os inte-

resses da sociedade. A função judicial é, apenas, uma das tantas

que foram destinadas à instituição. O Ministério Público exerce

funções de Estado e está ao lado dos Poderes, sem subordina-

ção e com independência para fiscalizá-los. A Constituição Fe-

deral reservou largos espaços para a efetivação dos interesses

sociais. Em contrapartida, conferiu espaços restritos à tradicional

função de custos legis. Os membros do Ministério Público têm o

dever geral da administração pública, pois seus atos devem ser

legais, impessoais, públicos, morais, eficientes, leais, objetivos,

razoáveis e, principalmente, imparciais. A violação a um desses

princípios pode caracterizar excesso ou omissão. Em regra, há

excesso de membro quando há omissão da instituição.

Abstract:

The conception of Public Prosecutor has linking with the society

interests. The judicial function is simply one of many that were

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* Procurador de Justiça do Ministério Público do Rio Grande do Sul, ex-Presidenteda Associação do Ministério Público, ex-Procurador-Geral de Justiça no RioGrande do Sul, membro do Conselho Nacional do Ministério Público.

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given to the institution. Public Prosecutor exercises functions of

State and is set beside the Powers, with no subordination or in-

dependence, to supervise them. The Federal Constitution reser-

ved large spaces for the achievement of social interests. In

contrast, it has given restricted space to the traditional function of

Custos Legis. The prosecutors have a general duty of public ad-

ministration, because their acts must be legal, impersonal, public,

moral, efficient, fair, objective, reasonable and, above all, impar-

tial. Violation of one of these principles can characterize excess

or omission. As a rule, there is excess of prosecutor when there

is omission of the institution.

Resumen:

La concepción del Ministerio Público tiene vínculos con los inte-

reses de la sociedad. La función judicial es simplemente una de

las muchas destinadas a la institución. El Ministerio Público

ejerce funciones del Estado y está al lado de los Poderes, sin su-

bordinación y con independencia para supervisionarlos. La Cons-

titución Federal ha reservado largos espacios para la efectivación

de los intereses sociales. Por el contrario, conferió espacios res-

tritos a la tradicional función de custos legis. Los miembros del

Ministerio Público tienen la obligación general de la administra-

ción pública, debido a que sus actos deben ser legales, imperso-

nales, públicos, morales, eficientes, justos, objetivos, razonables

y, sobre todo, imparciales. La violación a uno de estos principios

puede caracterizar un exceso o una omisión. Como regla general,

hay exceso de un miembro cuando hay omisión de la institución.

Palavras-chaves:

Ministério Público, conceito, membros do, independência funcio-

nal, imparcialidade, excesso e omissão.

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Keywords:

Public Prosecutor, concept, prosecutors, functional indepen-

dence, impartiality, excess and omission.

Palabras clave:

Ministerio Público, concepto, miembros del Ministerio Público, in-

dependiencia funcional, imparcialidad, exceso y omisión.

introdução

O Ministério Público, como instituição do Estado, essen-cial ao funcionamento do sistema de justiça, deve atender satis-fatoriamente, com os seus serviços, aos mais elementaresinteresses da sociedade e dos cidadãos, que, necessariamente,devem ser os atores e protagonistas sociais. Não foi, portanto,concebido para exercer, puramente, função judicial, mas paraexercer, pela via que eleger, através do exercício de suas fun-ções, a sua grave missão constitucional.

O direito pátrio avançou sobre a concepção da separa-ção dos poderes, que se constitui em um dogma constitucionalsuperado e sustentado pela crença da garantia às liberdades in-dividuais frente ao Estado absoluto. É inegável que o Estado éum todo, havendo, ao lado dos poderes, órgãos essenciais, tam-bém exercendo parcela de poder do Estado.

O Estado, em sua concepção atual, pode exercer podere funções, sendo muito estreita essa relação. Ao controle exa-gerado de poder se procura evitar com a desconcentração, poisse estará afirmando os direitos fundamentais em contrapontoao poder quase absoluto. Também, quando se cuida da divisãoefetiva das funções do Estado, o que se quer é a sua eficiência,

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eficácia e essencialidade em razão do seu destinatário: o povo.O Ministério Público é uma instituição permanente, não

subordinada a qualquer poder do Estado, exercendo funções defiscalização sobre os próprios poderes do Estado, sendo essen-cial à realização dos direitos fundamentais e sociais. Para tanto,estando ao lado dos poderes e com o encargo de, inclusive, fis-calizá-los, foram conferidos à instituição, para o exercício de suasfunções constitucionais, todos os requisitos necessários à sua au-tonomia e à atividade livre e independente de seus membros.

É, portanto, como define Canotilho, órgão constitucionalde soberania, pois, além de derivar de expressa regra constitucio-nal, é coessencial à caracterização da forma de Estado concebida.Como tal, assim como os poderes, não é totalmente independentee possui relações intercorrentes com outros órgãos ou poderesque exercem, também, funções autônomas e de soberania, cujasrelações são paritárias, harmônicas e sem subordinação.

No sistema de justiça brasileiro, o Ministério Público temcomo função presentar o Estado, pois, quando se movimentaatravés de seus membros, é o Estado agindo na implementaçãode direitos. Todavia, o sistema constitucional brasileiro reservouà instituição a defesa do interesse público, compreendido comointeresse no Estado enquanto povo, deixando de lado a defesado interesse do Estado enquanto poder.

Sob esse destaque diferenciado, o direito constitucionalbrasileiro separou claramente o foco da atenção do olhar da ins-tituição. O interesse público reservado à tutela do Ministério Pú-blico é o interesse geral, impessoal, isonômico e necessário àstransformações da realidade social. Esse interesse é socialmentedifuso, é de todos sem ser de ninguém em particular, não perten-cendo a pessoas, a grupos ou a coletividades.

Como autêntico defensor do interesse público do Estado,visto enquanto povo, o Ministério Público não poderá se afastar doseu dever ético-jurídico de luta permanente pela realização dos

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mais elementares e transcendentais valores da sociedade.É notável a evolução da instituição que, até a Constitui-

ção Federal de 1988, defendia muito mais o Estado enquantopoder, realizando, inclusive, a sua defesa e representação judi-cial, do que o Estado enquanto povo, razão da existência do pró-prio Estado organizado.

Ao lado de suas tradicionais ações como presentante doEstado, principalmente na área criminal, uma nova feição foi dadaà instituição. Em razão do regime fechado, das carências sociais,da desarticulação da cidadania, do desconhecimento de direitoselementares, da falta da informação real, e não apenas da oficial,da necessidade de liberdade e democracia, se observou uma no-tável e diferenciada evolução institucional do Ministério Públicobrasileiro.

Antes da abertura democrática, o Estado brasileiro, em-bora forte e centralizador, não era capaz de realizar os mais ele-mentares direitos da sociedade. Esta, por sua vez, era compostapor uma cidadania hipossuficiente, para não dizer inexistente. Arealidade mostrava a carência estatal e a cidadania inerte.

A abertura democrática mudou o perfil sociopolítico dopaís e seus reflexos ocorreram diretamente no Ministério Público.Essa nova realidade tornou a instituição diferenciada, peculiar emseus sistemas constitucionais contemporâneos, tendo reflexo di-reto na realidade democrática e social de nosso país. O acessoà justiça pelo cidadão, principalmente as ações de massa, o des-pertar das questões sociais, a realidade do conhecimento deseus direitos pelo cidadão, o reconhecimento à garantia dos di-reitos humanos, a preservação do regime democrático e a defesados direitos supraindividuais, sejam coletivos ou difusos, sãotemas permanentes e atuais das discussões e embates jurídicosem que estão envolvidos os membros da instituição.

É esse o campo de ação do Ministério Público e de seusmembros. A Constituição Federal reservou à tradicional função

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de custos legis pequenos e restritos espaços. Todavia, ao con-trário, definiu larga e especial direção à efetivação dos interessesda sociedade: “Com o afastamento da idéia tradicional do juizcomo figura única de autoridade, garante da legalidade, da ordemsocial e da segurança e paz públicas, essas atribuições, ante-riormente dele, foram transferidas para o Ministério Público”(RIBEIRO, 2003, p. 108).

Essa nova posição constitucional, que determinou a tu-tela desses interesses visando à implementação da cidadania,teve consequências importantes no âmbito do Ministério Público.

Inegavelmente, em razão de suas carências, o Estado,especialmente pelos movimentos dos membros do Ministério Pú-blico, começou a trabalhar, com muito afinco e resultados, o des-pertar da cidadania, o respeito aos direitos humanos, a evoluçãosocial e a consolidação da democracia. Como instituição, o Mi-nistério Público, nesses mais de vinte anos de mudanças em seuperfil, realmente tutelou interesses e auxiliou, com muito empe-nho e dedicação, nas transformações sociais. Olhando para o passado com a clareza do presente, háque se pensar no futuro da instituição, refletir sobre seus equí-vocos e acertos, seus excessos e omissões e sobre a sua ne-cessidade social.

Destacam-se, em nosso país, a consolidação e a esta-bilidade da democracia, efetivada por cidadãos que já identificam,e os exercem plenamente, os direitos que lhe são assegurados.O Estado, até ontem distante das questões sociais, dispõe de re-gras e estrutura que possibilitam o acesso a bens e direitos quenão eram permitidos ou alcançados aos seus cidadãos.

Em razão dessa realidade, o Ministério Público não deveser visto mais como condutor ou tutor de interesses. Não podeser mais o móvel disponível para despertar a cidadania. O Minis-tério Público deve, necessariamente, entender o processo demo-crático de estabilização institucional, organização dos segmentos

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sociais e movimentação da sociedade para poder compreendera sua importância, (re)descobrir seus caminhos e (re)afirmar asua necessidade.

Tradicionalmente, se pensou no Ministério Público comoórgão interveniente, custos legis, ou órgão agente, atuando comoparte ou substituto processual. Deveria intervir no processo oulutar, de forma obstinada, como sujeito da relação processual,pela prevalência do interesse que estava a tutelar.

Ser parte no processo, aos membros do Ministério Pú-blico, significa ser, sempre, parte diferenciada e contraponto coma parte contrária, mesmo que o faça como substituto processual.Todavia, o Ministério Público jamais será parte, no processo,igual à parte contrária, mesmo que no lado oposto esteja o pró-prio Estado, entendido como poder, ou outra instituição públicaque tenha o dever de defender os interesses de cidadãos quecomprovem a insuficiência de recursos.

Agindo como parte, os membros do Ministério Público têmos deveres gerais que informam a administração pública. Sobreos seus atos prevalecem os princípios da legalidade, da impes-soalidade, da publicidade, da moralidade, da eficiência, da leal-dade, da objetividade, da razoabilidade, da independência e,principalmente, da imparcialidade. Todos os membros do MinistérioPúblico encarnam, em seus movimentos e atos, todos esses prin-cípios. São, verdadeiramente, magistrados pro populo. Por essarazão, jamais o membro do Ministério Público, como parte, estaráem situação de igualdade com a outra parte, que pode ter o melhorpropósito possível na demanda, mas não terá todos esses atribu-tos constitucionais no conjunto de seus atos. Por ser diferenciadoe por encarnar, em seus atos, esse conjunto de princípios, o mem-bro do Ministério Público, por exemplo, deve, para impedir injusti-ças contra o acusado, requerer a absolvição de um réu queentenda inocente ou promover o arquivamento de um inquérito civilem razão de uma notícia sem prova ou por falta de objeto.

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Isso, por certo, não torna o Ministério Público uma parteprivilegiada no processo, apenas afirma o seu destaque diferen-ciado, pois os prazos devem ser cumpridos, deve provar o quealega, o contraditório e a ampla defesa devem ser respeitados,sofrendo no processo os mesmos ônus e deveres que as partes.Os membros do Ministério Público têm que ver realçado o seudever ético-funcional em relação aos cidadãos e à sociedade.

A relação processual em que estão envolvidos os mem-bros do Ministério Público se estabelece em razão de interessese direitos que devem ser tutelados pelo Estado. Estes são dele-gados à instituição e teremos, de um lado, os interesses perma-nentes e indisponíveis da sociedade, sejam sociais ouindividuais, e, do outro, os interesses individuais em conflito.

O que interessa à sociedade e ao cidadão é a efetividadedo Estado. O Estado enquanto poder deve direcionar as suasações para, permanentemente, concretizar os direitos de seus ci-dadãos. O cidadão, hoje, exige a implementação e a consolidaçãodos direitos fundamentais e sociais. A efetividade desses direitos,assim, passa pela conscientização da missão institucional.

Se o compromisso do Ministério Público é com o Estadoenquanto povo, impõe-se o zelo efetivo pelo cumprimento dasregras constitucionais e democráticas, o respeito aos poderespúblicos e, especialmente, aos serviços de relevância pública quecompõem o arcabouço de direitos afirmados à cidadania.

Esse, sem dúvida, é o amplíssimo campo de atuaçãodos membros do Ministério Público. Todas as suas atribuições efunções, tendo repercussão pública e social, estão inseridasnesse contexto.

A norma constitucional tem eficácia e aplicabilidadeplena, independente da enorme gama de atribuições definidas nalegislação infraconstitucional e que conferem aos membros do Mi-nistério Público posição privilegiada para a realização de direitos.O Ministro Teori Albino Zavascki, em voto proferido, sustentou que

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poder-se-ia, quem sabe, duvidar da auto-aplicabilidade do art.127, da CF, em face do seu conteúdo indeterminado, o quecomprometeria sua força normativa, desde logo, independen-temente de intermediação do legislador infra-constitucional,autorizar o Ministério Público a propor demandas judiciais emdefesa de bens jurídicos ali referidos. A dúvida não tem con-sistência. Mesmo quando genéricas, as normas constitu-cionais possuem, em algum grau, eficácia e operatividade.‘Não há norma constitucional alguma destituída de eficácia.Todas eles irradiam efeitos jurídicos, importando sempre umainovação da ordem jurídica preexistente...’, ensina José Afonsoda Silva (auto-aplicabilidade das normas constitucionais, RT,SP, 1968, p.75). ‘De fato’, observa Celso Bandeira de Mello,‘não teria sentido que o constituinte enunciasse certas dis-posições apenas por desfastio ou por não sopitar seus sonhos,desvaneios ou anelos políticos. A seriedade do ato constituinteimpediria a suposição de que os investidos em tão alta missão,dela se servissem como simples válvula de escape dasemoções antecipadamente coordenadas, por seus emissores,a permanecer no reino da fantasia. Até porque, se esfrutavamdo supremo poder jurídico, seria ilógico que, desfrutando-o,houvessem renunciado a determinar, impositivamente, aquiloque consideram desejável, conveniente, adequado’ (Eficáciadas normas constitucionais sobre justiça social, Revista de Di-reito Público, v. 57, p. 238). Ora, o preceito constitucional queconfere ao Ministério Público a incumbência de promover adefesa de direitos individuais indisponíveis (art. 127) é um pre-ceito completo em si mesmo, apto a legitimar o agente minis-terial, se for o caso, a exercer inclusive judicialmente aincumbência ali atribuída. Trata-se de preceito muito mais es-pecífico que o contido, por exemplo, no art. 82, III, do CPC,que atribui ao Ministério Público a competência para intervirem todas as demandas em que há interesse público. Muito sequestionou a respeito da extensão de tal comando processual,mas jamais se duvidou de sua auto-aplicabilidade. A mesmaatitude interpretativa se há de ter frente à norma constitucionaldo art. 127: pode-se questionar seu conteúdo, mas não suasuficiência e aptidão de gerar, desde logo, a eficácia que lhe éprópria”.1

Há, assim, um acervo de normas constitucionais, consti-tuídas de eficácia plena, e infraconstitucionais que dão suporte àsmovimentações do Ministério Público no sentido de colaborar como acesso à justiça, em parceria com a sociedade e com o próprio

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1 Recurso Especial n. 822.712/RS, rel. Ministro Teori Albino Zavaski, DJ de17.04.06, p. 196.

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Estado, para consolidar um democrático sistema que afirme osmais elementares direitos e garantias conferidas ao cidadão.

Deve ficar evidenciado que o Ministério Público temque ser parceiro e não tutor, deve, como instituição, entenderque a sociedade e a cidadania não necessitam de tutor ou de-fensor, mas de um parceiro na construção e na transformaçãoda sociedade. Deve, ainda, entender o Ministério Público que,como protagonista, tem papel de extrema relevância na cons-trução democrática, mas não detém o monopólio do correta-mente justo e, sequer, a onipotência de dizer o que é certo enecessário ao cidadão.

Consciente da sua importância e da medida necessáriade sua atuação institucional, estará o Ministério Público inseridona concepção contemporânea do direito constitucional, com acerteza de que o alerta de Zagreblesky possa ter eco na institui-ção: “a idéia de direito que o atual estado constitucional implicanão entrou plenamente no ar que respiram os juristas” (ZAGRE-BLESKI, 2007, p. 10).

Definida a posição contemporânea de compromisso eespaço institucional, impõe-se direcionar o olhar aos denomina-dos abusos de poder ou excessos e omissões dos membros eda instituição, tão presentes em ambientes em que se discutemos rumos e os caminhos do Ministério Público.

Abusos na atuação da instituição e dos seus membros

O objetivo final de uma sociedade moderna é garantir omáximo possível de liberdade para seus cidadãos. Por sua vez,o propósito de regras constitucionais, normas gerais e decomando comum é assegurar aos cidadãos uma sociedade livre,

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justa, solidária e democrática.Embora pareça não interessar ao tema em exame, mas

sendo essencial para a sua compreensão, os estudiosos em di-reito constitucional têm se debruçado na discussão dinâmica quetem tensionado a matéria. Na discussão, ressalta-se a contradi-ção permanente entre um direito constitucional liberal e substan-cial, que reservava às constituições a fonte estrutural de órgãosou procedimentos normais à elaboração de leis tão somentetransferindo a estas a produção de normas que pudessem efe-tuar transformações jurídicas e sociais, com um direito constitu-cional em função da garantia da democracia procedimental que,além de incorporar a histórica concentração de poder e organi-zação estatal, destaca a necessidade de mudança radical da es-trutura e da visão das constituições.

O constitucionalismo que surge desses embates deslocao seu centro de gravidade da soberania parlamentar e da supre-macia da lei para um sistema de direitos fundamentais diversifi-cado, abrangente e expansivo, e que incorpora nas constituiçõesvalores morais, políticos e sociais que, até meados do séculopassado, pertenciam ao discurso filosófico dos direitos humanos.Com isso, as constituições passaram a romper com o postuladopositivista da pureza da ordem jurídica e a promover o reencontrodo Direito com a moral, exatamente por intermédio da positivaçãodos direitos humanos nos sistemas de direitos fundamentais(MELLO, 2004, p. 84-85).

Esse direito constitucional que destaca a democraciaprocedimental, realçando a importância da necessidade de cons-titucionalizar o processo judicial, materializa a concentração dadiscussão dos direitos fundamentais, sejam individuais ou so-ciais, devendo ser enfatizados através do ativismo judicial emrazão da crônica incompetência do Estado brasileiro para asse-gurá-los pelo processo democrático (BONAVIDES, 1999, p. 553).

Um dos maiores pensadores do direito contemporâneo,

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responsável teórico pelo grande movimento de acesso à justiça,entendeu, em razão do sistema constitucional democrático liberal,que não haveria avanços sociais sem modificação radical dasestruturas formais. Assim, buscou dar suporte teórico à legitimi-dade democrática, pela via da jurisdição, no processo constitu-cional, para o controle do Estado e dos Poderes, principalmentenas suas omissões (CAPPELLETTI, 1993, p. 40-42).

Em seus estudos, Mauro Cappelletti destaca o cresci-mento da organização social e o reconhecimento dos direitos fun-damentais, que, em muitas ocasiões, estão em contraponto comos interesses do Estado organizado, cuja evolução estrutural ematerial é muita mais lenta do que as necessárias transformaçõessociais. Em consequência, surge a legitimidade democrática doPoder Judiciário para fazer valer a efetividade de direitos subjetivoscontra o Estado, serviços de relevância pública e direitos sociais.

Sobre esse aspecto, Lênio Streck em determinadomomento, visando dar substrato à legalidade e aos princípiosconstitucionais, à democracia e à cidadania tão incipientes, paraque estas saiam da obscuridade institucional, procurou radicali-zar quanto ao novo direito constitucional, após 1988, propondoum maximalismo da norma constitucional e, como sustentou,com a coerência da necessidade dialética e da construção polê-mica do momento histórico pós-constituinte deveria ser mais doque um ativismo jurisdicional, um intervencionismo judicial(STRECK, 2002, p. 159-163).

Esse radicalismo doutrinário, necessário para o acerta-mento do direito constitucional na nova democracia brasileira,esteve muito próximo da doutrina jurídico-constitucional querefletia o pensamento do professor italiano da Universidade deCamerino e juiz aposentado, Luigi Ferrajoli, muito acatado ecitado, ainda hoje, por alguns segmentos que entendiam ser oPoder Judiciário o centralizador da interpretação constitucional eo motivador das transformações sociais, promovendo um garan-

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tismo à brasileira, leitura equivocada dos seus ensinamentos,abandonando a ideia de que o Estado representativo consenteque a soberania resida no povo e que o seu exercício seja legí-timo enquanto represente a vontade da maioria. Para o eminenteprofessor, o Estado de direito requer que as instituições políticase jurídicas sejam instrumentos voltados à satisfação dos interes-ses primários de todos os cidadãos e da sociedade, não apenasde alguns (FERRAJOLI, 2002, p. 694).

Todavia, em razão da estabilidade democrática, o direitoconstitucional começou a caminhar também pela afirmação dasua estabilidade. É inegável que as modernas funções judiciaisexigem do Poder Judiciário e dos lidadores do direito uma atitudeativista, dinâmica e criativa, dotada de um inevitável grau de dis-cricionariedade na interpretação e aplicação dos direitos sociais(CAPPELLETTI, 1993, p. 41).

O Direito Constitucional, em razão do aperfeiçoamentoe da estabilidade democrática, tem sofrido modificações na suainterpretação e caminhado para alcançar mais racionalidade nasua aplicação. Não há muito mais espaço para que possa sobre-viver a dicotomia e o antagonismo das visões do direito constitu-cional e, como consequência, a sua aplicação ao seudestinatário, o cidadão. A cidadania e a democracia exigem muitomais do que teses novas para a tutela de direitos. A cidadania ea democracia não querem, pois não necessitam mais de tutela.Não aceitam, por certo, que alguém ou o próprio Estado digam oque é moral, correto ou socialmente justo. O cidadão, ao exercerseus direitos, sem defensor ou tutor, sustenta a estabilidade doregime democrático.

Por certo que muito há, ainda, a ser consolidado para al-cançarmos certa razoabilidade entre os interesses que possam re-fletir uma interpretação constitucional hermética, puramentesubstancial, reafirmando a prevalência da norma geral sobre as de-mais e sobre a sociedade, visando sustentar a estrutura do Estado,

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mesmo distante, por vezes, do cidadão, na qual há interesses iden-tificados, muitas vezes, por quem exerce o poder ou representainteresses de pessoas ou grupos, ou de outra interpretação cons-titucional, mais aberta, despida de dogmática, procurando ser de-mocrática, dizendo-se de afirmação da cidadania, mas produzidapor lidadores do direito que, como já foi dito em julgamento, nãosaem às ruas e se colocam muito distantes do cidadão necessitadoe da realidade social.

Muito há que ser feito, mas não há dúvidas que o movimentoproduzido pela sociedade, nesse momento de estabilidade demo-crática, fez com que se reconheça a necessidade de estar a jurisdi-ção constitucional, dentro do que se entenda como razoável enecessário, vinculada às transformações sociais, à democracia e àcidadania.

Cláudio Ari Mello (2004, p. 112) diz que essa advertênciade modo algum é uma recusa da concepção substancialista, queé, em parte, por ele subscrita. Todavia, destaca a necessidade daconstrução urgente de um caminho que possa produzir um mo-delo equilibrado de democracia constitucional sólida, que atendaà sociedade e à cidadania. Cita Gustavo Zagrebelsky (1999, p.153) e reconhece, nesse ponto, razão ao eminente jurista:

Hoje, certamente, os juízes têm uma grande responsabilidadena vida do Direito desconhecida nos ordenamentos do Estadode Direito legislativo. Mas os juízes não são senhores do Direitono mesmo sentido em que eram os legisladores do século pas-sado. São mais exatamente os garantes da complexidade es-trutural do Direito no Estado constitucional, vale dizer, osgarantes da necessária e dúctil coexistência entre lei, direitos ejustiça. E mais, poderíamos afirmar como conclusão que entreEstado constitucional e qualquer ‘senhor do Direito’ há uma radicalincompatibilidade. O Direito não é um objeto de propriedade deum, senão que deve ser objeto de cuidado de todos.

Essa é a grave questão. Não deve, porque a democracianão mais o permite, haver a tutela apenas de direitos ou da cida-dania. Não há mais espaço para os que afirmam ‘dizer o direito’ em

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nome dos interesses da sociedade. Não há mais espaço para os‘Senhores do Direito’. Todo cidadão, em uma democracia, é titularde direitos e não necessita de outros para tutelá-los ou provê-los.

É necessário compreender que há uma imbricação in-contornável entre ordem jurídica, regime democrático e direitosfundamentais no Estado, que reconhecemos ser democrático ede direito, eis que é a ordem jurídica constitucional que sustentao Estado de Direito é que determina e garante a democracia. Ademocracia (ou regime democrático) é aquela que faz umaordem jurídica ser justa e para todos, caracterizada pelo respeitoàs regras do jogo democrático e apreço aos direitos fundamen-tais. Estes, positivados na ordem jurídica, são o conteúdo mate-rial da democracia e uma ordem materialmente justa. Sem umou outro não haveria, em realidade, um Estado Democrático deDireito (RITT, 2002, p. 154).

Os membros do Ministério Público, pela concepção ins-titucional, exercem as suas funções visando a supremacia daordem constitucional. O foco imposto à instituição e aos seusmembros deve realçar o cumprimento, por todos, Estado e cida-dãos, do ordenamento jurídico, em que se destaca a ConstituiçãoFederal, com a finalidade de se evitarem agressões ou descon-siderações de regras e de princípios fundamentais, assim comodeve realçar funções direcionadas ao enfrentamento de abusosdo poder, político ou econômico, à prática de atos ilícitos de au-toridades contra o patrimônio público ou social, e às violações epráticas contrárias à cidadania, em razão dos seus mais elemen-tares direitos e fundamentos.

Esse, sem dúvida, é o espaço para que esteja posicio-nada a discussão sobre os possíveis abusos ou excessos no usodas atribuições, no âmbito do Ministério Público, que têm sériasconsequências institucionais, sociais e funcionais.

A Constituição Federal reserva ao Poder Judiciário o mo-nopólio da jurisdição. A ninguém é dado o direito de dizer quem

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tem razão em determinado conflito, senão ao julgador compe-tente, definido pela lei e pela Carta da República. Ao Poder Judi-ciário, que não tem iniciativa, cabe resolver os conflitos e, ainda,na solução destes, refletir sobre seus posicionamentos e as con-sequências da abrangência das disposições legais e constitucio-nais aos casos concretos. É defesa ao julgador competente iralém, ou ficar aquém, do que lhe é pedido para julgar.

O Ministério Público, como instituição, é essencial à fun-ção jurisdicional do Estado. Seus membros devem defender aordem jurídica, o regime democrático e os interesses indisponí-veis, sejam sociais ou individuais. A própria Constituição Federalimpõe, como funções da instituição, entre outras, a promoção,reservando a titularidade exclusiva, da ação penal pública, a pro-moção, também com exclusividade, do inquérito civil, e a possi-bilidade do ajuizamento da ação civil pública na proteção dopatrimônio público e social, do meio ambiente e de outros inte-resses difusos ou coletivos, a promoção da ação de inconstitu-cionalidade da própria Constituição e de leis, da ação dedescumprimento de preceitos fundamentais ou da representaçãopela intervenção da União e dos Estados. Impõe que o MinistérioPúblico defenda os direitos e interesses das populações indíge-nas, que zele pelo respeito dos Poderes Públicos e dos serviçosde relevância pública aos direitos assegurados na ConstituiçãoFederal, que são muitos, devendo promover as ações necessá-rias à sua garantia.

Para tanto, o próprio legislador constituinte ofereceu au-tonomias, garantias, recursos e instrumentos para investigar ealcançar os resultados necessários às demandas. Pode expedirnotificações e recomendações em seus procedimentos adminis-trativos, requisitando informações e documentos, pode requisitardiligências e a instauração de inquérito policial.

Há, portanto, uma gama ilimitada de atribuições e deinstrumentos constitucionais que lhe dão suporte para alcançar

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resultados definidos e, ainda, uma série de outros instrumentosprevistos em uma diversidade de leis federais e estaduais.

Todos esses instrumentos estão à disposição do MinistérioPúblico. Essa instituição é composta de membros que presentam

o Estado, em razão essencialidade, e possuem, para o exercíciode suas atribuições, garantias que lhes são conferidas pela socie-dade. Na essência, são agentes políticos que quando agem são opróprio Estado efetivando direitos, mas cabe ressaltar que a natu-reza humana, moldada na racionalidade, sempre irá repudiarações abusivas, caracterizadas pelo excesso e pelo exagero.

O cidadão, como fim do próprio Estado democrático, temo sentimento do que lhe é justo e o invoca como ordem de pro-teção que reflete a organização normativa. Passou a ter o cida-dão, como sentimento do que lhe é ideal, um valor diferenciadode justiça. “Tudo isto possibilita a concluir que o justo é o propor-cional, e que o injusto, ao contrário, é o que nega a proporção”(ARISTÓTELES, 1997, p. 21).

É inata a compreensão de justiça ao cidadão, principal-mente quando está colocado em situação de exposição, onde sedestacam a arbitrariedade, a imparcialidade, a desproporção oua ilegalidade. Ao cidadão é muito mais difícil reconhecer os atosde justiça, pois devem, permanentemente, fazer parte das rela-ções humanas, do que identificar os atos de injustiça. O senti-mento de injustiça estará sempre ao lado de atos que possamser considerados justos.

A complexidade do tema está na dicotomia entre os limi-tes do que é justo e injusto. E os excessos, quando ocorrem naação dos membros do Ministério Público, estão centrados emduas grandes questões, sendo importante ressaltar que uma nãoexclui a outra, podendo, ainda, ocorrer situações conjuntas.

Primeiramente, já se disse que os membros do MinistérioPúblico, no exercício de suas atribuições, têm o dever geral daadministração pública. Conjuntamente, sobre os seus atos

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devem prevalecer os princípios da legalidade, da impessoali-dade, da publicidade, da moralidade, da eficiência, da lealdade,da objetividade, da razoabilidade e, principalmente, o da impar-cialidade. Faltando um desses princípios, estaremos diante daquebra de requisitos que compõem a formatação dos membrosdo Ministério Público, dos seus deveres éticos para com a socie-dade. Se o ato for ilegal ou revestido de interesse pessoal, se oato for imoral ou desleal, se o ato for ineficiente ou desnecessá-rio, se não for razoável ou faltar objeto ao ato ou, ainda, se o atopraticado for parcial ou vinculado a um interesse menor, subje-tivo, será sempre o ato praticado, irregular, que deporá contra osprincípios que informam a instituição e que devem caracterizar aação de seus membros.

Ato praticado, no exercício do dever funcional, maculadode ilegal, parcial ou imoral, caracteriza excesso e deve ser objetode atenção especial da instituição. Não há dúvida de que qualqueragente político, com as atribuições definidas na Constituição Fe-deral, deve mostrar-se apto ao exercício de seu munus público,sob pena de responsabilidade administrativa, civil ou criminal. Atopraticado em desfavor do que se possa ter como eticamente justo,que leva ao abuso e à injustiça, deve beirar a falta de razão, estarimerso na ilegalidade e revestido de imparcialidade.

O ato de excesso, que caracteriza o abuso de direito, re-vela intimidade com a iniquidade, com a ausência de razoabili-dade e com a inadequação. À caracterização do ato de excessodevem ser mensurados a vinculação entre o direito e o compor-tamento ético do membro do Ministério Público. Inegavel que,despido de elemento moral e de conteúdo ético, não há comojustificar o excesso e o abuso de direito.

Além dos princípios que diferenciam os membros do Mi-nistério Público no exercício de suas atribuições, que, caso ma-culados, caracterizam abuso de poder, há uma clara distinçãoentre o excesso ou abuso de direito e a prática de ato ilícito.

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O Código Civil, em seu artigo 927, não faz distinçãomaior entre a violação de direito (art. 186) e o abuso do direito(art. 187), ao determinar que “aquele que, por ato ilícito (arts. 186e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. A dou-trina tem se dedicado ao tema e sustenta que

o ilícito, sendo resultante da violação de limites formais, pres-supõe a existência de concretas proibições normativas, ou seja,é a própria lei que irá fixar limites para o exercício do direito.No abuso não há limites definidos e fixados aprioristicamente,pois estes serão dados pelos princípios que regem o ordena-mento, os quais contêm seus valores fundamentais. Por estemesmo motivo pode-se afirmar que o abuso supõe um direitosubjetivo lícito atribuído a seu titular, que, ao exercê-lo, o tornaantijurídico. Já o ilícito, por ser contrário à disposição legal,mostra-se previamente reprovado pelo ordenamento, não com-portando controle de abusividade.(CARPENA, 2003, p. 382)

Essa, sem dúvida, é outra questão que diz respeito àvisão do membro do Ministério Público sobre a efetividade dosdireitos constitucionais, sobre os limites fixados pela lei e seuseventuais conflitos sobre a prevalência do processo de jurisdiçãoconstitucional sobre a própria ordem normativa. Se o membro doMinistério Público entender que o regime constitucional está ex-clusivamente fundado no princípio democrático, que a proteçãojudicial dos direitos fundamentais e sociais reforça a vitalidadeda democracia, que o Poder Judiciário tem o dever de dar pre-valência aos direitos fundamentais, sobre os quais gravita aConstituição Federal e que devem ser objeto de jurisdição cons-titucional, poderá, em razão das suas convicções e formação ju-rídica, optar pela provocação do Poder Judiciário para que esteefetive os direitos dos cidadãos e da sociedade.

Em razão do princípio constitucional da independênciafuncional, o membro do Ministério Público pode entender quedeva ser considerada a supremacia constitucional, mesmo cominterpretação de conceitos jurídicos indeterminados, subjetivosou normativos, sobre a efetividade e a aplicação de postulados

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que informam a cidadania. A sua visão do que é justo e ético àsociedade não tem limites anteriores definidos e fixados em lei.Se os limites da interpretação do membro do Ministério Públicosão os princípios que regem todo o ordenamento jurídico-consti-tucional, neles estão contidos valores fundamentais, embora pos-sam os atos ser abusivos, o que justifica os eventuais excessos.

A formação dos membros do Ministério Público, como ados demais lidadores do direito, está vinculada aos valores éticose humanos que compõem o núcleo do direito no positivismo jurí-dico. A expressão desses conceitos faz parte do ensino jurídicotradicional. A vida, o desconforto e a crítica social, o aperfeiçoa-mento cultural e jurídico fazem parte do crescimento pessoal eda mudança do pensamento médio dos membros da instituição.A sua visão multidisciplinar e interdiciplinar e a formação huma-nística que passa a adquirir ao tratar as questões sociais permi-tem que possa interpretar a lei e a extensão de sua aplicação emrazão dos preceitos constitucionais, sem, contudo, violar a suaconsciência e o que entende ser permissivo. Mesmo que a suaconduta seja abusiva, não há que se falar em responsabilidadepor ser jurídica e adequada aos limites de interpretação do direitoe do que entende como justo.

O abuso do direito baseado na interpretação do quepossa ser a correta aplicação da lei ou da supremacia dos direi-tos fundamentais sobre o conteúdo normativo singular, emborapossa caracterizar, por vezes, excesso, deve estar restrito à res-ponsabilidade administrativa e ao controle interno da instituiçãopor seus órgãos de correição.

Esstes atos praticados e que eventualmente possam ca-racterizar excesso em razão da interpretação da constituição ou dalei aplicável, poderão, quando possível e adequado, ser modifica-dos, suprimidos ou anulados, restabelecendo-se a situação anteriore a correta interpretação. José Carlos Barbosa Moreira sustentaque, para tanto, “basta deixar de aplicar a regra consagradora do

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benefício que se quis maliciosamente fazer incidir” (MOREIRA,2003, p. 102).

Todavia, caso o abuso de poder estiver maculado de ilí-cito, em razão da quebra de princípios que caracterizam os mo-vimentos dos membros do Ministério Público, com a quebra daimparcialidade, da legalidade, da moralidade, da publicidade,entre outros, poderá, além da responsabilidade administrativa,haver sanção civil, penal e, até, processual.

Na esfera cível, como, por exemplo, exposição públicade fato que não é verdadeiro, o artigo 927 do Código Civil deter-mina a indenização pelo dano abusivo causado. Se houver prá-tica de ilícito penal, como, por exemplo, divulgar escutas deinterceptações telefônicas autorizadas, sob sigilo, pelo juiz de di-reito, poderá haver a responsabilidade criminal. Também poderáhaver sanção processual, com a condenação por litigância demá-fé, em razão da proposição de ações temerárias ou a conde-nação ao pagamento de multa em razão da interposição de em-bargos de declaração manifestamente protelatórios.

Como as esferas judiciais são autônomas, poderá haver,nessas situações, além da responsabilidade administrativa, res-ponsabilidade civil, penal e processual.

omissões da instituição e dos seus membros

É inegável que o Ministério Público sofreu modificaçõesexpressivas na Constituição Federal de 1988. Hoje, passadosmais de vinte anos da concretização dos avanços e da conso-lidação da posição constitucional do Ministério Público, é impor-tante que se reflita sobre o leque inesgotável de atribuiçõesdisponíveis à atuação da instituição e de seus membros. Na

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realidade, se aquele marco histórico pode ser visto como o co-roamento do sonho de gerações anteriores de membros da ins-tituição, a consolidação das autonomias e a concretização dasatribuições passaram a ser, nas últimas duas décadas, a exte-riorização da missão institucional.

Também, não é possível negar-se que, nas duas últimasdécadas, em razão do apoio da sociedade, o Ministério Públicoatuou de forma ativa e decisiva para consolidar os avanços so-ciais e a estabilidade democrática, servindo de paradigma a ou-tras instituições e comprometendo o próprio Estado a assumirposicionamentos diretamente voltados ao fortalecimento da ci-dadania. Realmente, o Ministério Público, no mesmo momentoem que procurou consolidar as suas autonomias, lutou, commuita intensidade, para a realização dos mais elementares direi-tos e interesses dos cidadãos.

O eminente professor, estudioso da evolução do Estadobrasileiro e pesquisador do IDESP, Rogério Bastos Arantes, aodissecar o Ministério Público, afirmou que

[...] a história da reconstrução do Ministério Público brasileiroé uma história de sucesso. Em menos de vinte anos, a insti-tuição conseguiu passar de mero apêndice do Poder Execu-tivo para a condição de órgão independente e, nesseprocesso que alterou sua estrutura, funções e privilégios, oMinistério Público também abandonou seu papel de advogadodos interesses do Estado para arvorar-se em defensor públicoda sociedade. (ARANTES, 2002, p. 19)

Com o seu reconhecimento social, com autonomias, ga-rantias e estrutura constitucionalmente reconhecidas, a institui-ção passou a se destacar como a grande protagonista dastransformações sociais, do acesso massificado aos mais elemen-tares direitos e das conquistas afirmadas a segmentos de cida-dãos de reconhecida hipossuficiência. Marcou, de forma muitosignificativa, a sua importância na consolidação da democraciae do respeito à Constituição Federal. Destacou-se na defesa de

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novos e significativos direitos, enfrentou e combateu a corrupção,mexeu com interesses de grupos privilegiados, econômicos e po-líticos, até então intocáveis, afirmou, permanentemente, direitostransindividuiais.

Com respaldo de seu novo perfil constitucional, o Minis-tério Público, sem dúvida, marcou sua trajetória com resultadosefetivos e reconhecidos pela sociedade.

Essa história, que era o sonho acalentado por geraçõesantecedentes, foi construída internamente pelo trabalho de seusmembros em cada canto do país. Após a Constituição Federalde 1988, observou-se que “a reconstrução institucional do Minis-tério Público foi impulsionada e determinada endogenamente,isto é, as sucessivas mudanças sofridas pela instituição nos últi-mos anos foram intencionalmente perseguidas pelos seus pró-prios integrantes” (ARANTES, 2002, p. 21).

Não restam dúvidas que o Ministério Público tem se des-tacado na implementação dos direitos sociais e individuais indis-poníveis, pois estão seus membros vocacionados ao ajuizamentode ações penais ou cíveis na busca da tutela jurisdicional dessesdireitos.

Assim, o tema referente, ao deixar de fazer o que consti-tucionalmente é imposto, deve refletir esta real contradição entreo sucesso e o reconhecimento do que a instituição efetivou e doque também produz na atual realidade social, bem como a neces-sidade, ainda maior, dos compromissos institucionais com os avan-ços sociais.

Muito mais expressivo do que os abusos de direito ou oschamados excessos pelo uso abusivo do poder está situada aquestão referente às possíveis omissões do Ministério Público,como instituição, e as eventuais omissões dos membros do Mi-nistério Público à sua atividade finalística. Os fatos sociais, asconsequências da afirmação da cidadania e da estabilidade de-mocrática impõem ao Ministério Público, em razão da amplitude

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de suas atribuições, com a urgência das transformações neces-sárias, a assunção de novas posturas e da real compreensão desua importância nesse momento histórico.

Foram vinte anos de avanços, de consolidação de direi-tos sociais e de regras que garantem a cidadania. Todavia, o su-cesso, o olhar para o ambiente interno, demonstra a necessidadede realmente mudar, mais ainda, o perfil da instituição para que,efetivamente, abandone praxes ultrapassadas, desnecessárias,burocráticas, que dificultam os seus movimentos e lhe impõe umperfil semelhante ao de um paquiderme.

Essa constatação, que é real e traduz o sentimento crí-tico majoritário dos membros do Ministério Público brasileiro,impõe imediata postura de autoanálise, com os reflexos diretose traumáticos que o olhar para si possa reproduzir, com a finali-dade de se obter resultados mais efetivos e condizentes com agrandeza das atribuições constitucionais.

Como instituição permanente, o Ministério Público é es-sencial à função jurisdicional do Estado. Os grupos políticos eeconômicos, anteriormente intocáveis, que historicamente forma-ram uma elite superior no país, quando começaram a sofrer asconsequências do novo perfil constitucional do Ministério Público,bem como a mudança do perfil das decisões proferidas pelos jul-gadores, quando provocados, passaram a tentar, através de di-versas fórmulas, restringir ou (re)adaptar a instituição e o PoderJudiciário ao status quo ante, pois, em razão da independênciae autonomia de seus membros, poderiam estar fora de daqueles

controles que sempre se fizeram necessários à manutenção desituações diferenciadas. Os vinte e poucos anos pós 1988 retra-tam a luta intensa desses grupos visando a mitigação do Minis-tério Público, instituição essencial à cidadania e à democracia,bem como das atribuições de seus membros, que as encarnam,com extremada dedicação, no exercício de suas nobres missões,pois responsáveis, também, pelos graves e profundos avanços

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sociais e democráticos que identificamos. Foram a revisão cons-titucional, as legislações de organização, as reformas da previ-dência, a reforma administrativa e as reformas do PoderJudiciário e do Ministério Público ambientes permanentes dessatentativa de mitigação do arcabouço de reserva da cidadaniaconstruído na Constituição Federal de 1988.

A Lei de Responsabilidade Fiscal, legislação de carátergeral e inferior à Constituição Federal, definiu, por exemplo, o ta-manho do Ministério Público e o limite de sua essencialidade àsociedade, ao Estado Democrático de Direito, à afirmação de di-reitos e às transformações sociais. Para o Ministério Público dosEstados, devem os custos de pessoal, em razão do comprometi-mento da receita corrente líquida, ser três vezes menor do que ocusto do Poder Judiciário dos Estados. Poderá a instituição com-prometer dois por cento da receita corrente líquida com as des-pesas de pessoal. Todavia, quando alcançar um ponto oito dareceita corrente líquida, estará no regime de alerta e, em um pontonove, receberá, por estar no regime prudencial, o alerta para onecessário ajustamento. Essa fragrante e inegável agressão àregra constitucional, que viola as autonomias dos Estados Fede-rados e impõe limites à instituição, à sua essencialidade e à pró-pria cidadania, estão na Lei que limita o tamanho constitucionaldo Ministério Público. A instituição será essencial até alcançar olimite imposto por Lei, mesmo que a organização social clame poruma estrutura que permita a implementação de direitos funda-mentais.

A instituição deverá exercer, em nome do Estado, todasas suas atribuições, com a maior abrangência possível, pois oMinistério Público, como também o Poder Judiciário, destina-se,exclusivamente, à prestação de serviços à sociedade. Todavia,mesmo que se reconheça a importância da Lei de Responsabili-dade Fiscal, o Ministério Público será essencial, como determinaa Constituição Federal, desde que não ultrapasse os dois por

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cento da receita corrente líquida.Essas colocações, que refletem apenas uma das fórmu-

las alcançadas pelos que lutam para limitar a ação do MinistérioPúblico e de seus membros, são de importância substancial paraque se reflita sobre o papel da instituição, no presente, que con-tinua a exercer, burocraticamente, praxes ultrapassadas e semrepercussão social. Essas circunstâncias levam ao reconheci-mento de seu sucesso institucional em determinadas áreas deatuação e, em contrapartida, à identificação da sua real omissãoquanto à efetivação de tantos direitos indisponíveis, sejam sociaisou individuais, que o Ministério Público poderia dar especial aten-ção e promover, mas que, em razão de suas limitações e opções,não consegue identificar ou, se consegue, os observa com olhosde quem não quer ver.

Para se ter uma posição crítica sobre o tema proposto,que tem passado ao largo das muitas discussões institucionais,há que se separar a questão referente às omissões institucionais,que se possam identificar, das eventuais omissões dos membrosdo Ministério Público, pois os reflexos e as consequências sedão, também, de modo diversificado.

Já se disse que não cabe mais à atual posição constitu-cional do Ministério Público a repetição do brocado, até hojemuito utilizada, de tutor de direitos fundamentais ou defensor dasociedade, em razão do amadurecimento da sociedade, da cons-cientização da cidadania e da organização social. O MinistérioPúblico deve ser parceiro da sociedade, interlocutor de questõessociais, indutor de políticas públicas, defensor do respeito à le-galidade, do zelo pelos serviços de relevância pública e da vidaem sociedade, motivador constante da estabilidade democrática.

Assim, a omissão institucional estará em destaque pú-blico permanente e exporá o futuro do Ministério Público caso ainstituição e seus membros não assumam, com a clareza devida,as suas mais destacadas funções constitucionais. Como não há

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mais espaço para um crescimento estrutural, deve ocorrer umaclara opção pelas funções que refletem o interesse da sociedadeem detrimento de posturas totalmente ultrapassadas e sem a mí-nima repercussão social.

A instituição será omissa caso não priorize o planeja-mento, a gestão correta de seus recursos, que massivamentesão recursos humanos, e as suas ações. A instituição seráomissa se não identificar, nos movimentos da sociedade, as suasreais prioridades. A instituição será omissa se priorizar velhaspraxes e a burocracia em detrimento às expectativas e aos an-seios sociais.

Talvez esses pontos sejam os mais cruciais da moderni-dade do Ministério Público. Até o presente, agindo e efetivandodireitos fundamentais, o Ministério Público tem obtido sucesso eé reconhecido pela sociedade. No presente, com a estabilidadedemocrática e consolidação da cidadania, outras instituições pú-blicas passaram a concorrer no mesmo espaço, com a fome queidentificam os adolescentes que querem crescer a qualquer custo.

O Ministério Público será omisso se não projetar à frente,no mínimo, vinte anos e, com esse olhar para o seu futuro, deixarde definir as suas prioridades. A Constituição Federal dá ao Mi-nistério Público todas as condições para fazê-lo. O posicionoupara estar ao lado dos poderes do Estado para fiscalizá-los, comautonomias e garantias, sendo muito mais do que necessário,pois essencial à prestação jurisdicional em todas as questõesque estejam ligadas aos cidadãos e à sociedade, sustentar aordem constitucional e legal, como garantia da democracia e desua estabilidade, promover a realização de direitos indisponíveis,sejam sociais ou individuais. Essas são atribuições que possuemuma abrangência tão ampla e difusa que a própria ConstituiçãoFederal já legitima a instituição a promover ações civis públicaspara a tutela de outros interesses difusos ou coletivos. Outros in-teresses que não sejam os anteriormente definidos, tampouco

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os previstos, apenas, no art. 129 da Carta Constitucional e naslegislações infraconstitucionais, mas que poderão surgir à frentee que digam respeito aos cidadãos e à sociedade, que, hoje, atépossam ser desconhecidos ou que não se dediquem, a eles, aatenção devida e necessária.

Quando se fala em manipulação genética e ao se proje-tar os avanços tecnológicos aos próximos vinte anos, quais osreflexos que esses fatos podem gerar aos cidadãos e à socie-dade? E o Ministério Público, como se portará frente às questõesreferentes à biotecnologia, objeto presente de grandes pesquisase avanços, à biopirataria, por ser o país fonte inesgotável de re-cursos naturais à manipulação genética em razão de suas rique-zas, e à bioética, razão da certeza da finalidade correta dequalquer manipulação?

Quando se trazem à discussão pública questões referen-tes à segurança pública, projetando-as vinte anos à frente e ana-lisando os seus reflexos sociais, como e onde estará colocada ainstituição? Como estará enfrentado o crime tradicional, do coti-diano, de pequena ou grave ofensividade, ou o crime organizado,nacional ou transnacional? O que pensa o Ministério Público dosistema de justiça criminal, que, já hoje, passa pela ineficiênciada investigação e do arcaico e superado inquérito policial, pelafalta de estrutura de segurança pública, em razão da carência deinvestimento humano, material e qualificação técnica, pela dico-tomia corporativa das polícias, por um processo penal arcaico,burocrático e ineficiente, por um sistema penal elitista, que jamaisalcançou resultados expressivos com relação aos delitos quelesam o povo e a sociedade, pelo ineficiente sistema de progres-são da pena e pela falácia de que a pena privativa de liberdaderessocializa, pela falácia da pena privativa de liberdade, com ainiquidade e o doloso abandono do sistema carcerário? O Minis-tério Público é titular da ação penal, destinatária do trabalho poli-cial, que é realizado, hoje, quase que exclusivamente pelo

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flagrante. A instituição não é chamada a discutir as modificaçõeslegislativas e, quando assim o faz, é para o enfrentamento cor-porativo. Até pouco tempo o Ministério Público, por ser o titular daação penal, sempre teve voz decisiva na elaboração legislativa enas suas modificações. Hoje, a instituição está ao largo das dis-cussões e recebe, para fazer cumprir, cada vez mais legislaçõesextremamente permissivas, inadequadas e distantes dos anseiosda sociedade. Caso continue correndo atrás dos fatos, por nãoquerer planejar as prioridades na área de segurança pública eestar envolvida na sua elaboração, estará repartindo, em um fu-turo muito breve, a titularidade da ação penal até com a própriavítima dos crimes. Esse não é um tema novo, esteve presente naconstituinte e no processo revisional, merecendo atenção especialem razão da grandiosidade da matéria e da repercussão social.

Essas questões são claramente de gestão da institui-ção, onde o planejamento, com a priorização de ações, deveprevalecer, por estarem ligadas ao futuro do Ministério Público.Há muito a fazer, caso se pense nas mudanças climáticas e noaquecimento global, na utilização e reaproveitamento do lixo,hoje recebido, para reciclagem, em conteiners de países do cha-mado primeiro mundo, nas relações virtuais e de consumo, noscontratos bancários, nos fundos de previdência privada e desaúde, no futuro das crianças e dos adolescentes, observandoo acesso ao ensino fundamental e superior com as questões re-ferentes às cotas.

Todas estas, e muitas outras, são questões que fazemparte do cotidiano do Ministério Público e de seus membros. Ob-servando o Ministério Público brasileiro, identificando algumasilhas de excelência, fica claro que se trabalha em razão de fatosjá ocorridos. A instituição tem sido caudatária, em regra, dasquestões sociais. Resulta daí a postura de defesa e de tutela dedireitos que são ou foram violados. Todavia, a instituição deve seantecipar aos fatos, estar ao lado da sociedade, como parceira

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integral, atuando de forma preventiva e educativa. Ao lado desses temas, a todo momento são identificados

problemas relativos às minorias, que não têm acesso à educa-ção, à saúde, ao saneamento básico, à moradia, ao empregodigno, ao salário justo, aos essenciais bens da vida. Esses seg-mentos necessitam da implementação de seus direitos funda-mentais e sociais, e são os que exigem que o Estatuto do Idosose concretize, que a Lei das Pessoas Portadoras de Deficiênciaseja respeitada, que o Estatuto das Cidades seja implementado.São milhões de cidadãos brasileiros, com direitos constitucionaisafirmados expressamente no pacto constitucional de 1988 e queesperam, ainda, efetividade.

Estes, por certo, são temas que não se resolvem comações judiciais, pois tratam de direitos assegurados na Consti-tuição Federal e que devem ser implementados. Esses direitoscaracterizam os serviços de relevância pública e as obrigaçõesque o Estado deve assumir com o seu cidadão. São direitos quedependem de real transformação da sociedade.

Esse é o espaço reservado ao futuro do Ministério Pú-blico, sem dúvida, não como tutor ou defensor, tampouco comofigurante, mas como parceiro integral para implementação de di-reitos do cidadão necessitado, da sociedade carente e do Estadoa ser, permanentemente, provocado. Caso a opção da cami-nhada do Ministério Público seja, efetivamente, em outro sentido,significará a omissão institucional e, como consequência, os re-flexos aparecerão como muito mais intensidade.

O Ministério Público contemporâneo que planeja o seufuturo deve ser ágil e estar ao lado do interesse social. O eventualerro da escolha do momento oportuno, ou da decisão necessáriade avançar nesse sentido, irá carimbar o Ministério Público comomais uma das tantas instituições que compõem o Estado brasi-leiro desacreditadas pela sociedade.

Para alcançar esse nível diferenciado, ajustado à reali-

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dade de um Estado que, inegavelmente, alcançou a sua estabili-dade democrática, embora visíveis, ainda, as contradições sociais,o Ministério Público, primeiramente, muito mais do que fazer o seuacerto para fora, com o cidadão e a sociedade, terá que direcionaro seu olhar para resolver os seus problemas internos.

Sempre se disse que o Ministério Público é a mais de-mocrática das instituições públicas do Estado. Se a realizaçãode eleições, em todos os níveis, significa democracia plena, nãohá qualquer dúvida sobre essa afirmação. Todavia, seria umgrave equívoco afirmar que há democracia interna somente porvotar em diversos pleitos e para diversos cargos.

A instituição de vinte anos atrás não é a mesma de hoje.Ontem, se desligou do Poder Executivo, passou a ter autonomiae garantias, iniciativa de leis, seus membros passaram a ter car-reira e direitos idênticos aos dos magistrados, passaram a elegersuas chefias. A instituição passou a ter, assim, a mesma configu-ração dos poderes do Estado, mas sem ser um deles, pois seconfigurou dessa forma para, inclusive, fiscalizá-los. Hoje, estru-turado administrativamente em praticamente todo o país, deve oMinistério Público, olhando para si mesmo, ver que não está maisorganizado em carreira e se enfrentar se quiser de fato resolver,essa gravíssima questão. A estagnação da carreira imposta pelasmodificações constitucionais e pelas restrições da Lei de Respon-sabilidade Fiscal, a falta de concurso para o provimento de car-gos, as consequências das reformas da previdência social eadministrativa, têm exposto a instituição a uma tensão interna quedeve ser solvida, com responsabilidade, maturidade e urgência.

Todos esses fatos demonstram que deve haver o aper-feiçoamento da democracia interna não só para os cargos dechefia, mas, também, para os de responsabilidade junto aos ór-gãos colegiados da instituição.

Ainda, não há como deixar o Ministério Público de enfrentaras questões referentes à atividade fim, onde ocorre a concretização

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de toda a esperança que tem o cidadão e a sociedade na instituição.O reconhecimento e o sucesso do Ministério Público não estãona letra fria da Lei ou da Constituição Federal, mas no trabalhosério, responsável e dedicado dos membros da instituição. Seeste é o trabalho que dá o destaque necessário ao Ministério Pú-blico, é dever da instituição priorizar as questões que tenham re-percussão social em detrimento da burocrática e desnecessáriaintervenção em causas sem o mínimo reflexo para a cidadania oupara a sociedade.

Tão ou mais importante do que esse tema é o dever quese impõe à instituição de repensar a atuação em segundo grauque, na maioria das vezes, é repetitiva, praticamente inconse-quente e socialmente desnecessária. No segundo grau, atuammembros do Ministério Público experientes e extremamente qua-lificados. Quando atingem o ápice da carreira, deixam de exercerrelevantes funções, pois passam a lhes ser reservadas apenasparcela das atribuições destinadas quando do ingresso na car-reira e da atuação em primeiro grau.

Para cumprir o que é determinado pelas leis e pela Cons-tituição Federal sem que ocorra omissão institucional, é neces-sária a revisão dessas situações, em um processo autoanalítico,que será, certamente, crítico, tenso e desgastante, mas que le-vará ao planejamento das definições para a obtenção de novose mais abrangentes resultados e à harmonia democrática interna.

Não há dúvidas que o cidadão, a sociedade e o Estado,embora não tenham conhecimento, esperam este acertamentoinstitucional interno necessário ao futuro diferenciado do Minis-tério Público.

Ao lado dessas questões que, se realmente enfrentadas,suprirão a imputação de omissão institucional em determinadasquestões, pois poderá haver mão de obra qualificada ao acerta-mento para novas atribuições, o Ministério Público deve resolver,também com muita eficiência, a questão relativa à omissão dos

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seus membros no exercício de suas funções.O Diagnóstico do Ministério Público dos Estados, coor-

denado pela eminente professora e pesquisadora Maria TerezaSadek (2006), revela, claramente, que a instituição tem um novoperfil e é constituída de jovens que, em sua maioria, ingressaramna carreira após a Constituição Federal de 1988.

As bases do Ministério Público de hoje foram firmadasna década de setenta, que autorizou, quando ainda no regimemilitar, através da Emenda Constitucional n. 9, a possibilidade daelaboração de regras de organização da instituição, traduzidaspela Lei Complementar n. 40/81. Esta, sem dúvida, é a legislaçãomais importante na história do Ministério Público, fonte primáriade todo o regramento normativo acolhido na Constituição Federalde 1988. A década de oitenta serviu para que, ao lado da aberturademocrática, fossem consolidados os valores de uma instituiçãoessencial ao Estado, fundamental à democracia e à cidadania.Em razão desse reconhecimento social foi aprovada a Lei daAção Civil Pública e, logo após, iniciado o processo constituinte.A instituição, como o país, estava, naquela época, em ebuliçãopermanente. Após a Constituição Federal, vieram leis definindouma enorme gama de novas atribuições, bem como as legisla-ções organizacionais e estatutárias.

Todavia, em movimento que se iniciou na passagem dametade da década de noventa, deu-se início ao processo de di-minuição do Estado, que passou a restringir direitos e impor mo-dificações em sua estrutura, com reflexos em todos ossegmentos da organização pública e social.

Como já foi destacado, o Ministério Público sofre, hoje,em razão dessas modificações e das restrições legislativas, daestagnação estrutural, e seus membros, na grande maioria jo-vens e idealistas, apaixonados pelo que podem e devem fazer,se sentem desmotivados, por vezes, pois não vêm perspectivade carreira e, tampouco, de acesso a novos cargos ou funções.

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Essa constatação reflete o pensamento majoritário da-queles que pensam a instituição. Os membros do Ministério Pú-blico que atuam em segundo grau estão desmotivados, pois,embora tenham capacidade de colaborar, ativa e qualitativa-mente, nas transformações sociais, não o fazem pelas restriçõesde suas atribuições. Os membros do Ministério Público queatuam em primeiro grau, também extremamente qualificados eidealistas, não vislumbram perspectivas maiores em razão da es-tagnação da carreira e dos defeitos da democracia interna.

Dessa leitura do presente, no Ministério Público brasileirose passou a identificar alguns temas que não ocorriam anterior-mente. Há, como questão contemporânea, a disposição de algunsmembros do Ministério Público de não morarem na Comarca delotação. Essa é uma obrigação constitucional em razão das am-plas e graves atribuições definidas aos membros do Ministério Pú-blico na Carta da República, pois eles devem estar envolvidos,permanentemente, com os problemas de suas comunidades. Aautorização para residir fora da Comarca de lotação deve, semoutra interpretação, ser a exceção e não a regra. A Chefia que au-toriza a quebra da determinação constitucional deve fundamentá-la corretamente e o motivo deve ser relevante. Não há como seafirmar o envolvimento social e o conhecimento da realidade co-munitária se o membro do Ministério Público e sua família nãoconvivem com a sociedade local, não conhecem os seus proble-mas e as dificuldades que sofrem os cidadãos que vivem no local.Porque o médico, o professor, o amigo, o lazer deverão ser dife-rentes para o cidadão que é o destinatário de suas atribuições?Como destinatário constitucional da efetivação de direitos funda-mentais, o membro do Ministério Público não poderá ser encon-trado na cidade apenas no horário do expediente forense.

Morar na comarca de atuação significa conviver coma comunidade, caminhar pela cidade, conhecer o seu interiore seus cidadãos, ir à festa no colégio de seus filhos, andar de

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bicicleta com eles nas praças e parques, ir ao culto religioso,participar de gincanas, festas, atividades cívicas ou esportivas,fazer palestras, ser cidadão como os demais que convivem nolocal. Assim, o membro do Ministério Público será apenas maisum cidadão que tem o dever de bem servir a sua comunidade.

Também, por décadas, os gabinetes dos membros doMinistério Público eram a última ou a única porta aberta ao cida-dão que tivesse algo a dizer, onde este fazia perguntas ou resol-via seus problemas. Em muitas comarcas neste país os horáriossão fixados e limitados, com número determinado de consultase dias certos para atendimentos. Por vezes, estes são delegadosa estagiários. A instituição do Ministério Público foi formatadapara dar solução aos problemas sociais e estes ocorrem a cadadia e a cada momento. Fechar as portas ao cidadão significadizer, em alguns locais de nosso país, que ninguém poderá au-xiliá-lo, permitir que outros, em um futuro muito próximo, ocupemessa função tão digna e importante.

Outra questão preocupante na organização atual da insti-tuição, e que causa danos à imagem do Ministério Público e deseus membros, é a quebra, por vezes, da regra constitucional doacúmulo de outra função pública, salvo uma de magistério. Comoa norma constitucional gera interpretações controvertidas sobreduas questões básicas ao exercício das atribuições, há a necessi-dade, por certo, da adequação dos membros da instituição. Quandoum candidato ao cargo de membro do Ministério Público efetua oconcurso de ingresso à carreira, pretende, como realização de vida,exercê-lo na sua plenitude, servindo à cidadania e à sociedade,cumprindo o que dispõem a lei e a Constituição Federal.

Embora a Constituição Federal permita que ao exercíciodas funções seja permitido a acumulação de apenas outro cargode magistério, deve se ter claro que este tem que ser somenteum, público ou privado, e ter limite quanto à carga e horário deefetivação para não prejudicar o principal, que é o exercício de

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funções como membro do Ministério Público. Este deve estar pre-sente no horário de expediente forense, embora não tenha horá-rio a cumprir, pois, como agente político, está investido do cargo,com suas consequências, desde que ingressou na carreira. Essadeve ser a ótica da leitura da abrangência de seu cargo e de suasfunções, o cargo de magistério, público ou privado, deverá sersecundário ao exercício funcional, realizado em horário diversoe com carga limitada.

Evidente que, ao Ministério Público, à entidade de ensinoe à sociedade é importante que o membro do Ministério Públicoutilize esse canal de relação com a comunidade escolar, ondeserá móvel de divulgação de direitos, de apresentação da insti-tuição e motivador das transformações sociais. O que deve serevitado, para que não ocorram prejuízos à atividade finalística dainstituição e à sociedade, é a inversão das prioridades, que, porvezes, são identificáveis, onde o exercício das funções deixa deser o principal em razão de compromissos maiores assumidoscom o magistério.

Importante ressaltar, também, a necessidade de preser-vação de regras constitucionais que afirmam direitos fundamen-tais. Os procedimentos administrativos realizados pelo MinistérioPúblico, em suas investigações criminais ou cíveis, devem estarsubmetidos ao rigor das normas constitucionais ou legais quandonão tiverem a proteção do sigilo. Esses procedimentos têm na-tureza unilateral e facultativa. Pode o membro do Ministério Pú-blico instaurá-lo, se entender necessário, e poderá, nas questõescriminais, requisitar a instauração de inquérito policial. Qualquerinvestigação se inicia por uma notícia, que deve fazer parte daportaria instauradora do procedimento. Todo procedimento queinicia deve, necessariamente, ter um fim em um período razoável,levando em conta a possível complexidade da matéria. O resul-tado será suficiente a uma ação civil ou penal, ou, por falta deprovas, terá a promoção de seu arquivamento, devendo, nas

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questões cíveis, se submeter ao controle legal do órgão cole-giado, e nas criminais, ao controle judicial. Independente do queou de quem seja investigado, o membro do Ministério Público de-verá ser responsabilizado pelo uso indevido das informações quepossui, inclusive nas hipóteses de sigilo.

Essa é uma das matérias mais sensíveis aos membros dainstituição, pois devem agir e proceder às investigações necessá-rias de todas as notícias que recebem em razão das carências doEstado para a realização de investigações mais complexas, e seusmembros devem ter o máximo de cautela no sentido de preservara investigação e as pessoas envolvidas. Está muito próximo oliame entre a leitura do que é necessário à sociedade e o que al-guns identificam como abuso que impõe a responsabilização.

O tema referente a abuso de poder é vastíssimo e me-rece atenção especial, sendo estes alguns detalhes que impor-tam na necessária atenção de todos que tratam com tãodelicadas situações. Mesmo que se pudesse avançar em outrasquestões que são objeto de discussão pública e de identificaçãode situações tópicas, há um sentimento claro de segmentos queexercem poder na estrutura social, seja corporativo, político oueconômico, que reflete uma visão atual da instituição, certa ouerrada, que tem alcançado um somatório de expressão e faz econa mídia, no Congresso Nacional e, já presente, na sociedade.

Os membros do Ministério Público, se exercem poder, ofazem quando atuam com independência funcional. Este, sem dú-vida alguma, é o maior e mais significativo princípio entre tantosque, escritos ou não, informam e sustentam a instituição. Somentea Lei, vista sob a mais abrangente interpretação, e o exercício dasua liberdade de consciência caracterizam os membros do Minis-tério Público que agem e concretizam direitos. Esse princípio éintocável, incapaz de ser mitigado ou subordinado a outro princí-pio ou interesse, e, certamente, paira acima dos deveres de cadamembro da instituição, bem como, no âmbito da jurisdição, está

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acima do julgador quando profere a sua decisão. Todas as deci-sões dos julgadores e as posições dos membros do Ministério Pú-blico, quando tomadas, estão revestidas do poder conferido peloEstado e pela sociedade, que não aceitam qualquer ingerênciaexterna sobre esses atos. Se houver equívoco, se houver parcia-lidade, se houver excesso ou quebra de qualquer princípio quedevem informar os atos proferidos pelos agentes políticos do Es-tado investidos nesses cargos, poderá haver excesso e respon-sabilidade. Todavia, se o ato é praticado no exercício deinterpretação da Lei ou da Constituição Federal, na visão inde-pendente de cada membro, não há como maculá-lo.

conclusões

A ideia inicial deste trabalho era refletir sobre o conceitodo Ministério Público e as atribuições de seus membros, dentrode um perspectiva constitucional afirmativa, onde a soberania davontade da norma fosse sempre sobreposta pela finalidade daConstituição Federal, com a prevalência dos direitos sociais edos direitos fundamentais.

Sob essa ótica, também identificando a necessidade dereconhecer que o país passa por um período de estabilidade de-mocrática e exercício da cidadania, impõe-se que ocorra mu-dança na postura da instituição. Aos membros do MinistérioPúblico sempre foi determinado que fossem defensores da so-ciedade ou tuteladores de interesses a serem efetivados.

A democracia e a sociedade não necessitam de de-fensores e não querem tutores de seus direitos. Já não hámuito mais espaço para demandas em defesa da sociedadeem juízo, com proposições de ações que não têm o resultado

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esperado pela própria sociedade. Essa iniciativa, além detransferir a solução do litígio ou conflito social ao Poder Judi-ciário, tem resultados sem muita repercussão e efetividade,pois, em razão da especialidade da matéria e da complexi-dade dos temas sociais, as respostas têm sido, propriamente,ineficazes e insuficientes.

O caminho a ser percorrido pelo Ministério Público, comtodo o instrumental legal e constitucional que dispõe, é outro,sem dúvida, e terá muito mais efetividade, dando as respostasnecessárias às transformações sociais. O Ministério Público deveser parceiro permanente da sociedade nos seus grandes movi-mentos, deve auxiliar a solução dos problemas sociais, atuando,na maior parte das vezes, fora do processo, como articulador ouator social, deve intermediar, fomentar e pacificar as grandesquestões que envolvem os direitos da sociedade.

O processo judicial, com a concepção de ineficiência quefoi pensando e como é utilizado, mormente nessas questões,atende a interesses privilegiados, de manutenção de estruturasprivilegiadas, que continuam intocáveis. Pela sua ineficiência, asclasses privilegiadas, econômica ou politicamente, não o utilizamcomo autores de demandas. Todavia, se tiverem interesse, se be-neficiam, como réus, por ser o processo burocrático cheio de in-cidentes protelatórios, que o tornam demorado, ineficaz e injusto.

As grandes questões sociais efetivadas pelo Ministé-rio Público não devem mais ser objeto nesse tipo de processojudicial. Aproximando-se da sociedade, deve a iInstituição uti-lizar toda a sua capacidade para, na atuação extrajudicial,com os instrumentos que possui, alcançar resultados sociaisque jamais serão solvidos no âmbito estrito do direito proces-sual tradicional.

Saindo do processo formal, privilegiando a atuação ex-trajudicial, investindo seus mais qualificados recursos na capaci-tação e qualificação técnica e trabalhando com responsabilidade

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suas investigações civis e criminais, o Ministério Público estaráassumindo essa nova função de parceiro social, dispondo de re-cursos como a delação premiada, a transação e o ajustamentode conduta, e alcançará, com muito mais efetividade, os resulta-dos desejados pela sociedade.

Em contrapartida, seus membros, em razão da efetivi-dade que possam alcançar e de resultados que o processo nãolhes assegura, estarão muito mais expostos aos abusos no exer-cício de suas funções e aos chamados excessos.

Mas esse é um risco a ser enfrentado. Outro caminhonão há, olhando o futuro do Ministério Público, senão enfrentá-locom seriedade e responsabilidade.

Deve, portanto, a instituição assumir o seu grave papel nocontexto da sociedade democrática contemporânea. Deve se pro-por, para alcançar resultados que continuem sendo reconhecidosno futuro, mecanismos estratégicos e objetivos definidos. Se nãoo fizer, poderá pagar o preço do descrédito e ceder, no todo ou emparte, suas funções a outras que têm sede para fazê-lo.

O caminho passa, necessariamente, pelo planejamento.Cada vez mais a instituição deve estar vinculada à modificaçãode suas ultrapassadas praxes, pois o que não tiver repercussãosocial não cabe ao Ministério Público fazer. Também deve, complanejamento e movimento preferencial, rever sua prática demo-crática interna em razão da estagnação das carreiras e da im-possibilidade de crescimento. Deve, com atenção especial, estarvoltada à capacitação técnica e profissional de seus membros eservidores para que estes possam fazer amanhã o que hoje des-conhecem. Deve privilegiar o planejamento institucional, defi-nindo metas e prioridades, medindo resultados, sendoefetivamente eficaz e necessário à sociedade. Deve realçar agestão administrativa, priorizar orçamento, qualidade, tecnologiada informação e recursos humanos com o fim de atingir os resul-tados definidos.

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Os membros do Ministério Público devem privilegiar a suarelação com a sociedade e ter consciência da sua importância narealidade democrática brasileira. Os membros do Ministério Pú-blico são agentes políticos que, por disposição constitucional, pos-suem atribuições e funções que lhes são impostas e não sãodestinadas a mais ninguém. As questões sociais e de cidadaniasão inesgotáveis e ilimitáveis. Estas, que não conhecemos total-mente, e muitas outras, que o tempo, no futuro, poderá identificar,estão disponíveis à atuação dos membros do Ministério Público.A missão que reflete o compromisso do cargo assumido no Mi-nistério Público é de extrema gravidade e responsabilidade, de-vendo ser destacada e priorizada no exercício diário.

Os abusos, ou excessos, e as omissões são, no âmbitodo Ministério Público, situações singulares, especiais e identifi-cáveis. Não pode a instituição deixar de enfrentá-los através deseus órgãos de controle interno, de quem se cobra, cada vezmais, efetividade e resultados, e de seus órgãos de controle ex-terno, também tidos como corporativos, mas que, por disposiçãoconstitucional, só podem agir quando deixam de atuar as Corre-gedorias-Gerais.

Inegavelmente, o Ministério Público recebeu muito da so-ciedade e de seus representantes na Constituição Federal de1988. Nesses mais de vinte anos, procuraram, a Instituição e seusmembros, efetivar, permanentemente, os encargos sociais quelhes passaram. O Ministério Público e seus membros obtiveramsucesso e reconhecimento, possuindo, ainda, em razão da res-ponsabilidade com que atuam, crédito social. Todavia, como muitoreceberam e muito já fizeram, os membros e a Instituição são,cada vez, cobrados pela própria sociedade. Aos membros e aoMinistério Público a Constituição Federal disciplinou garantias,princípios, atribuições, orçamento, iniciativa de leis, direitos, ve-dações, poderes e vencimentos. Essa configuração idêntica à dospoderes, essencial para fiscalizá-los, tem um custo alto e pesa,

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fortemente, na estrutura estatal mantida pela sociedade.Daí ressalta a dicotomia entre o custo da instituição e a

satisfação e resultado que ela pode proporcionar à sociedade.São inegáveis a sua importância, a sua essencialidade e a suanecessidade. Todavia, a responsabilidade do futuro da instituiçãopassa pela necessidade da discussão interna intensa, da radica-lização da democracia, do planejamento estratégico, da aproxi-mação, para parceria, com a sociedade e organismos estatais,da revisão de praxes ultrapassadas, da consciência da grandezadas funções de cada membro e da responsabilidade pelos abu-sos ou omissões pelos órgãos de controle.

Este é o caminho, pois outro não há. Caso a instituiçãonão queira trilhá-lo, por certo a sociedade se encarregará de fazeras mudanças devidas e outros assumirão, no todo ou em parte,muito do que pode ser ou já foi feito pelo Ministério Público.

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DIREITO ESTRANGEIROFOREIGN LAW

DERECHO EXTRANJERA

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Nicolás Diana *Nicolás Bonina**

LA SENDA DEL DERECHO ADMINISTRATIVOEN LA JURISPRUDENCIA DE LA CORTE SUPREMA DE JUSTICIA DE LA NACIÓN1

O CAMINHO DO DIREITO ADMINISTRATIVO NA JURISPRUDÊNCIA

DA SUPREMA CORTE DE JUSTIÇA DA NAÇÃO

THE PATH OF ADMINISTRATIVE LAW IN THE CASE LAW

OF THE NATION SUPREME COURT OF JUSTICE

No somos lo bastante sutiles para percibir el flujo proba-blemente absoluto del devenir; lo permanente no existemás que gracias a nuestros groseros órganos que resu-men y reúnen las cosas en planos comunes, mientrasque nada existe bajo esta forma. El árbol es a cada ins-tante una cosa nueva; afirmamos la forma porque noaprehendemos la sutileza de un movimiento absoluto.2

(NIETZSCHE apud BARTHES, 2008, p. 80)

Resumen:

El derecho administrativo se caracteriza por ser la técnica social

que regula la constante tensión entre poder y libertad, acortando

* Abogado (Universidad de Buenos Aires). Especialista en derecho administra-tivo y administración pública (Universidad de Buenos Aires). Docente de la Fa-cultad de Derecho y Ciencias Económicas de la UBA, en la Escuela del Cuerpode Abogados del Estado y en la Universidad Nacional de La Matanza. Autor dediversos libros y artículos de su especialidad.** Abogado (Universidad de Buenos Aires). Especializado en derecho adminis-trativo, obras públicas y regulación económica. Docente (Facultad de Derechode la UBA). Autor de diversos libros y artículos de su especialidad. 1 Se nos permitirá la paráfrasis con el recordado trabajo de Holmes (2010, p. 40).2 En palabras del propio Holmes (2010, p. 18), “El derecho es testimonio ysedimento de nuestra vida moral. Su historia es la historia del devenir moralde la raza”.

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(o debiendo acortar) la distancia entre ambos ámbitos. Sobre este

punto, los autores se inclinan por una elección pro libertatis en-

tendiendo al derecho administrativo como técnica social cuya fi-

nalidad es favorecer la realización, autoafirmación y libertad del

hombre en comunidad y no como técnica de subordinación y man-

tenimiento de las relaciones de poder dominantes. Sin embargo,

la organización de las estructuras a través de las cuales se mani-

fiesta el ejercicio del poder público, se presenta incapaz de ase-

gurar jurídicamente el libre y pleno ejercicio de los derechos

humanos que conlleven a la autoafirmación y realización del ser

humano. El derecho administrativo termina convirtiéndose en una

mera cuestión formal, en algo irreal, que sólo favorece el mante-

nimiento de ciertas interacciones de poder e incentiva la exclusión.

Luego, el ciudadano pierde la fe en las respuestas del sistema.

Esta fragilidad en el funcionamiento de nuestras instituciones de-

mocráticas -originada, principalmente, por nuestra propia incapa-

cidad social- es la prueba cabal del fracaso actual del derecho

administrativo como técnica de realización del hombre en comu-

nidad. Ante esta situación, se hace repaso de la crisis y las deudas

del modelo actual de derecho administrativo, y se propone un

cambio de paradigma, tanto en la concepción de nuestra rama ju-

rídica como en su vocación como herramienta social.

Resumo:

O Direito Administrativo se caracteriza por ser a técnica social

que regula a tensão constante entre liberdade e poder, encur-

tando (ou devendo encurtar) a distância entre ambos. A esse res-

peito, os autores se inclinam para uma eleição pro libertatis,

entendendo o Direito Administrativo como uma técnica social que

visa promover a realização, a autoafirmação e a liberdade do

homem em comunidade, e não como uma técnica de subordina-

ção e de manutenção das relações de poder dominantes. No en-

tanto, a organização das estruturas por meio das quais o

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exercício do poder público se manifesta parece incapaz de ga-

rantir juridicamente o livre e pleno exercício dos direitos humanos

que levam à autoafirmação e à realização do ser humano. O Di-

reito Administrativo acaba sendo uma mera questão formal, algo

irreal, que favorece a manutenção de certas interações de poder

e incentiva a exclusão. Dessa forma, o cidadão perde a confiança

nas respostas do sistema. Essa fraqueza no funcionamento de

nossas instituições democráticas - causada principalmente pela

nossa própria incapacidade social -, é a prova cabal do fracasso

atual do Direito Administrativo como técnica de realização do

homem na comunidade. Diante disso, se analisam a crise e as

dívidas do atual modelo de Direito Administrativo e se propõe

uma mudança de paradigma, tanto na concepção do nosso ramo

jurídico como em sua vocação como ferramenta social.

Abstract:

The Administrative Law is characterized as a social technique

which regulates the constant tension between freedom and

power, shortening (or should do) the distance between them. In

this regard, the authors lean toward a pro libertatis election, un-

derstanding the Administrative Law as a social technique which

aims at promoting achievement, self-assertion and freedom of

man in community, and not as a subordination technique and of

maintenance of dominant power relationships. However, the or-

ganization of the structures through which the exercise of govern

manifests itself seems incapable of juridically ensuring the free

and full exercise of human rights that lead to self-assertion and

the achievement of human beings. The Administrative Law ends

up being a mere matter of form, something unreal, which favors

the maintenance of certain interactions of power and encourages

the exclusion. Thus, the public loses confidence in the system

responses. This weakness in the functioning of our democratic

institutions - mostly caused by our own social disability - is the

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proof of the current failure of the Administrative Law as a techni-

que of achievement of man in the community. Therefore, we ana-

lyze the crisis and the debts of the current model of Administrative

Law and we propose a paradigm shift, either in the design of our

legal field and in its vocation as a social tool.

Palabras clave:

Derecho administrativo como técnica social, elección pro libertatis,

sistema y parasistema, la jurisprudencia actual de la Corte Su-

prema de Justicia de la Nación en materia de derecho público,

crisis y deudas del derecho administrativo, división de Poderes,

democracia formal, democracia material, finalidad y vocación del

derecho administrativo actual.

Palavras-chaves:

Direito Administrativo como técnica social, eleição pro libertatis,

sistema e parassistema, a jurisprudência atual da Suprema Corte

de Justiça da Nação em matéria de Direito Público, crises e dívi-

das do Direito Administrativo, divisão de poderes, democracia for-

mal, democracia material, finalidade e vocação do Direito

Administrativo atual.

Keywords:

Administrative Law as a social technique, pro libertatis elec-

tion, system and Para system, the current Case Law of the

Nation Supreme Court in the field of Public Law, debt and

crises of the Administrative Law, separation of powers, for-

mal democracy, material democracy, purpose and vocation

of current Administrative Law.

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Introducción

La Corte Suprema ha afirmado que “la función del dere-cho, en general, es la de realizarse; lo que no es realizable nuncapodrá ser derecho”3.

Pero, ¿qué tipo de derecho es el que realizamos cadadía? O, más precisamente, ¿qué tipo de derecho administrativoconstruimos y para qué? ¿Qué futuro se vislumbra para nuestrarama jurídica en la jurisprudencia de los tribunales federales?

A lo largo de este trabajo, intentaremos formular respues-tas tentativas a tales interrogantes basados en la jurisprudencia denuestros tribunales federales -especialmente de nuestra Corte Su-prema de Justicia de la Nación- en los últimos veinte años.

¿Ha fracasado el derecho administrativo?

Nuestro Máximo Tribunal ha señalado que “Las disposicionesconstitucionales establecidas en garantía de la vida, la libertad y la pro-piedad de los habitantes del país, constituyen restricciones estableci-das principalmente contra las extralimitaciones de los poderespúblicos”4. Del mismo modo, ha afirmado que “las garantías emana-das de los tratados sobre derechos humanos deben entenderse enfunción de la protección de los derechos esenciales del ser humano yno para beneficio de los estados contratantes”5.

Bajo ese tipo de fórmulas, nuestra Corte Suprema mate-rializa aquella idea que afirma que el derecho administrativo es

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3 CSJN, García Méndez, Fallos, 331:2691 (2008).4 Recordado por Gordillo (2009a, cap. V-5, nota 10); CSJN, Salazar de Campo,Fallos, 137:251 (1922).5 CSJN, Arce, Fallos, 320.2145 (1997).

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el derecho constitucional concretizado (WERNER, 1959, p. 527;SCHÖNBERGER, 2006, p. 53 y ss., citados por IBLER, 2005, p.5-22), pues aquél efectivamente se nos revela como la herra-mienta que regula las relaciones entre los ostentadores del podery quienes se someten al mismo6 o, en otros términos, entre elpoder y la libertad7.

Por tal razón, resulta de suma importancia verificar quétipo de derecho estamos realizando en la actualidad y qué tipo decimentos estamos construyendo hacia el futuro. Debemos tenerpresente que asistimos a una época de cambios, a una realidadque muda a la velocidad de los avances tecnológicos y de la cir-culación del conocimiento y de la información. Una época dondelas estructuras jurídico-institucionales se ven muchas veces su-peradas y se vuelven insuficientes. Un tiempo en el cual esta rea-lidad cambiante exige nuevas respuestas del derechoadministrativo.

Como señalamos, nuestra rama jurídica se caracteriza,justamente, por ser la técnica social que regula la constante ten-sión entre poder y libertad, entre gobernantes, grupos de podery gobernados, acortando (o debiendo acortar) la distancia entretodos ellos. De allí que el punto de partida de todo análisis pasapor definir, epistemológica y filosóficamente, la finalidad del de-recho administrativo, es decir, si su función es tender al mante-nimiento de las formas de poder imperantes en una épocadeterminada o si, contrariamente, tiene por objetivo la autoafir-mación, realización y libertad de los individuos. Ésta es la cues-tión clave. Luego, el resto será consecuencia de esta primeradecisión, que es privativa de cada operador jurídico.

En este esquema epistemológico, los autores nos inclinamos

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6 Sabido es que nuestra rama jurídica nació como una disciplina tendiente a en-corsetar legalmente al poder, incontenible por definición (ver por todos, para eldesarrollo histórico del derecho administrativo, Balbín (2008, cap. I, p. 1 y ss.).7 “El derecho administrativo es derecho constitucional y político, es lucha contrael poder -cualquier poder- en la defensa de los derechos de los individuos y aso-ciaciones de individuos, es la aventura de pensar.” (GORDILLO, 2003, p. 10)

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por una elección pro libertatis8, entendiendo al derecho admi-nistrativo como técnica social cuya finalidad es favorecer larealización, autoafirmación y libertad del hombre en comu-nidad (BONINA; DIANA, 2009)9.

El problema reside en que la organización del aparatogubernamental y, en general, las estructuras a través de las cua-les se manifiesta el ejercicio del poder público, se presentan in-capaces de asegurar jurídicamente el libre y pleno ejercicio delos derechos humanos que conlleven a la autoafirmación y reali-zación del ser humano. Incapacidad que deja traslucir una inten-ción por dejar planteado el derecho administrativo como unamera cuestión formal, ni siquiera técnica, en la cual se reprodu-cen ideas, principios y valores que no son los que vemos a diarioen nuestra administración pública, en la calle y en los tribunales.

Se aprecia, por tanto, un sistema social gobernado porprincipios, valores y creencias que no son. Esta convivenciaentre sistema y parasistema (GORDILLO, 2001) conlleva a una

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8 Esto supone el abandono y reemplazo de la vetusta máxima in dubio pro ad-ministratione por la de in dubio pro libertatis (GORDILLO, 2007).9 En similar sentido, ver el voto del Dr. Petracchi en CSJN, Comunidad Ho-mosexual Argentina, Fallos, 314:1531 (1991), al señalar que la democraciano es sólo una organización del poder, sino un orden social destinado a larealización de la plena personalidad del ser humano. Ver, también, CSJN,Portal de Belén, Fallos, 325:292 (2002), en cuanto que “el hombre es eje ycentro de todo el sistema jurídico y en tanto fin en sí mismo -más allá de sunaturaleza trascendente- su persona es inviolable y constituye un valor fun-damental con respecto al cual los restantes valores tienen siempre carácterinstrumental (Fallos: 316:479, votos concurrentes)”. En ese mismo sentido,CSJN, Campodónico de Beviacqua, Fallos, 323:3229 (2000) y AsociaciónBenghalensis, Fallos, 323, 1339 (2000), entre muchos otros. En cuanto a lafinalidad del derecho como herramienta para la autoafirmación del individuo, vervoto del Dr. Petracchi en CSJN, Sejean, Fallos, 308:2268 (1986), “El orden jurí-dico debe pues, por imperio de nuestra Constitución, asegurar la realización ma-terial del ámbito privado concerniente a la autodeterminación de la concienciaindiv idual para que el a l to propósi to espir i tual de garant izar la independencia en la formulación de los planes de vida no se vea frustrado.”Igualmente, el voto del Dr. Baqué, “en la Carta Magna se promete a todosaquéllos que quieran habitar el suelo argentino un sistema coherente, amplioy efectivo de libertad individual que les permita desarrollar planes tendientesa alcanzar una vida satisfactoria para ellos y para su posteridad”.

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fractura social a la vez que favorece el mantenimiento de ciertasrelaciones de poder e incentiva la exclusión. El derecho se vuelveasí un juego, una mise-en-scène (BOURDIEU, 2000, p. 202-220).La norma dirá algo, la jurisprudencia otro tanto, pero sólo lograránsus cometidos aquellos que jueguen según las verdaderas re-glas imperantes. El resto, o no conseguirá nada o, peor aún, pordesatender las reglas verdaderas, será excluido, aislado o casti-gado. A ello habrá que sumarle aquellos que ni siquiera tenganacceso a las verdaderas reglas o al juego mismo.

El derecho se convierte así en un instrumento frágil e ine-ficaz. Se vuelve irreal, justamente porque los operadores canali-zan sus acciones y buscan soluciones a través de vías yprocedimientos paralelos a las instituciones que deberían encau-zarlas. Como señalábamos precedentemente, se relega el dere-cho a una mera cuestión formal, teórica, distanciada de la vidareal y, consecuentemente, el ciudadano pierde la fe en las res-puestas del sistema10. Esa fragilidad en el funcionamiento denuestras instituciones democráticas -originada, principalmente,por nuestra propia incapacidad social- es la prueba cabal del fra-caso actual11 del derecho administrativo argentino como técnicade realización del hombre en comunidad. Como el derecho estátan alejado de la realidad que debería canalizar y los ciudadanosactúan a través del parasistema informal, la distancia se vuelve

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10 Lo que ocurre entonces es “que todo el sistema normativo pierde prestigioy consenso, por culpa de aquellas partes suyas que pueden nacer y subsistiren infracción constitucional sin que se produzca una específica reacción cor-rectora oportuna del mecanismo institucional” (GORDILLO, 2001, p. 28).11 Nos referimos al fracaso actual pues los fines del derecho administrativo,como técnica social, se definen según época y lugar de que se traten. Conla revolución francesa, el derecho administrativo cumplimentó una finalidadespecífica de ordenamiento y sujeción formal del poder a la ley. Luego, fuecumpliendo diferentes misiones sociales en distintos momentos históricos yen diferentes comunidades. En nuestro medio, los períodos de consolidaciónnacional han quedado atrás y hemos logrado alcanzar una etapa de acepta-ción formal de las instituciones democráticas y de legitimidad constitucional.Al respecto ver García de Enterría (2004).

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difícil de salvar y el derecho queda circunscrito: (a) a justificar susacralidad e inmutabilidad (función mítica) y, (b) a impedir el cues-tionamiento de la dicotomía “régimen formal régimen informal” yde su ineficacia (función discursivo-ideológica), perpetuando,todo ello, determinados tipos de relaciones de poder.

Sin embargo, el devenir es inevitable, aunque no seamoslo suficientemente sutiles para percibirlo12. La realidad de nuestrostiempos reclama un replanteo de las bases de nuestra rama jurídica.Debemos advertir que hoy en día el derecho administrativo se en-cuentra inserto en un proceso global - el orden jurídico mundial - 13

en medio de la interacción entre grupos económicos globales depoder -las grandes corporaciones y grupos transnacionales - y de-rechos y garantías globales - los denominados derechos humanos.

Las grandes corporaciones globales realizan muchas fun-ciones que antes pertenecían al Estado en lo que hace a accionessociales, efectividad y representatividad. Por su parte, la tendenciadeja entrever que los individuos depositan en mayor medida su con-fianza y se sienten más identificados con estas corporaciones, consus marcas, productos, etc., que con el Estado, el cual, en muchoscasos, ya no materializa ningún sentimiento o idea colectiva. Para-lelamente, la masividad y rapidez de la información y de las comu-nicaciones conlleva a una socialización del conocimiento14. Estasocialización del conocimiento también ha generado una mayorsensibilidad social sobre las problemáticas que aquejan al hom-bre moderno. La mayor sensibilidad social y la esfumación de loslímites del poder estatal y gubernamental a manos del crecimientode grupos de poder económico globales, exigen que el derecho ad-ministrativo - a partir de una aprehensión de este fenómeno global- se constituya en una técnica que tienda a la autoafirmación, rea-lización y libertad del individuo. Ésta debe ser su misión.

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12 Ver supra, el epígrafe y la nota 2.13 Sobre el carácter inexorable de este proceso, alcances y peculiaridades, incluidoen el Global Administrative Law, ver Gordillo (2009b, p. 50-89) y Gordillo (2009c).14 El proceso, aunque parezca imposible, sigue una tendencia inevitable.

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Las deudas del Derecho Administrativo15

A partir de este nuevo escenario local y mundial en elque se inserta el derecho administrativo -y del cual debe hacersecargo- se nos revela la gran deuda pendiente del mismo: el sin-ceramiento y reconocimiento del desequilibrio real en la divisiónde funciones estatales.

Observamos, actualmente en el orden nacional, un despla-zamiento del poder hacia el Ejecutivo y una mayor abstinencia del Le-gislativo, como consecuencia, tal vez, de la reforma constitucional de199416, junto con una mayor influencia de grupos de poder econó-mico. Aunque nuestra estructura político constitucional lo prohíba, elPoder Ejecutivo realiza cada vez más funciones pseudo jurisdiccio-nales y pseudo legislativas17. De esa forma, ejerce y concentra nosólo el poder en términos cuantitativos, sino también cualitativamente,ya que toma una decisión y la pone inmediatamente en práctica. No

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15 Deudas que sólo podrán saldarse con más y mejor democracia dentro delEstado de Derecho (ver Mairal (XXVI-2)).16 Desplazamiento consentido desde la propia Corte Suprema, por ejemplo,a través de sentencias anteriores a la reforma de 1994, como la dictada enla causa Cocchia, donde se dijo que la interpretación del reparto constitucio-nal de competencias “debe evolucionar en función de la dinámica de los tiem-pos históricos, signados a menudo por fases o episodios críticos, quedemandan remedios excepcionales, carácter que no resulta necesariamenteincompatible con el marco normativo general y perdurable previsto por nues-tros constituyentes” (CSJN, Fallos, 316:2624 (1993), recordado en Balbín,2004, p. 8):El lector puede y debe cuestionarse, entonces, la incidencia queel paso de los años y la legislación de emergencia de la década de 90 tuvie-ron en la mutación de una nueva y más profunda crisis, reconocida primeropor la ley 25.344 (2000), y luego, por la ley 25.561, vigente, gracias a susdistintas prórrogas, hasta el 31.12.11 (cfr. ley 26.563; con anterioridad lo ha-bían hecho las leyes 26.339, 26.204, 26.077, 25.972, 25.820 y 26.456.) Cam-biaron los hombres y los gobiernos, pero la emergencia parece ser lo únicoperenne por encima de la propia Constitución (ver al respecto: Mairal, 2005,p. 17-32; y en un análisis retrospectivo y comparativo hacia mediados de ladécada del ’90 del siglo pasado, Tawil, 1996).17 ¿Acaso no deberíamos cuestionarnos si los reglamentos no se han con-vertido ya en la mayor fuente normativa de nuestro orden jurídico federal, porsobre las leyes?

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existen, consecuentemente, mecanismos previos de controlque sean eficaces en el ámbito de la realidad18.

La aplicación de la doctrina tradicional de la división depoderes y funciones estatales -que impone la igualdad cualitativade los tres poderes19- a una realidad en la que los departamentosestaduales se encuentran en constante desequilibrio con unafuerte preeminencia del Ejecutivo, implica no sólo el distancia-miento entre derecho, instituciones y realidad, sino que determinala ineficacia de los dos primeros. Así, el individuo no se sienteidentificado con las instituciones, normas y principios que lo rigen,ya que contemplan supuestos ideales, pero omiten los fenóme-nos reales, que son justamente los que afectan su vida cotidiana.

El análisis del derecho alejado de los hechos y de las pro-blemáticas concretas constituye simplemente el absurdo. Ni siquieralas teorías científicas -salvo las lógicomatemáticas, que son abs-tractas- se postulan omitiendo los resultados empíricos, los hechosy las problemáticas reales; la sola elaboración o estudio mediantepseudo postulados lógico-matemáticos tampoco alcanza para porsí solos dar una visión transparente del fenómeno jurídico20.

Adviértase que hoy todavía se sostiene - en materia deresponsabilidad estatal -que tarde o temprano el Estado paga.

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18 Esa falta de mecanismos eficientes se advierte de manera manifiesta, enla lentitud del Congreso para ejercer sus propias funciones cuando se exigerapidez de acción, como por ejemplo en el reciente caso de las reservas (de-cretos 2010/2009, 296/2010 y 298/2010), en el cual el Ejecutivo hizo y des-hizo a su antojo, gracias a la presunción de legitimidad y a la ejecutoriedadde los actos administrativos. 19 Sobre este tema, ampliar en Gordillo (2009a, cap. II-3 y ss).20 Como un paso necesario hacia la desmitificación de ese fenómeno en elimaginario jurídico, vale recordar que mediante la Acordada n° 36 del 9 deseptiembre de 2009, la Corte Suprema de Justicia de la Nación creó la “Uni-dad de Análisis Económico” en la órbita de la Secretaría General de Admi-nistración, legitimando científica e institucionalmente esa práctica (DÍAZ,2009-F). Mismo fenómeno que trasciende del plano jurídico al económico,tal como lo comenta Robert J. Samuelson (s/d), quien indica que “[t]here'sa great deal economists don't understand. Not surprisingly, the adherents of"rational expectations" - a theory that people generally figure out how bestto respond to economic events — didn't anticipate financial panic and eco-nomic collapse. The disconnect between theory and reality seems ominous”.

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Pero, ¿puede seguir afirmándose eso cuando un proceso contrael Estado dura entre 20 o 30 años y se termina pagando en bonosal 25% de su valor? Aún cuando la Corte Suprema haya dichoque esta modalidad equivale a “pagar”21 no podemos engañar-nos: para el particular eso no constituye un pago, representa lisay llanamente la cabal materialización de la irresponsabilidad es-tatal (GORDILLO, 2009c, cap. XXI). Cuando el Estado incumpleya no sólo la sentencia declarativa, sino la de ejecución más lasastreintes y todas las intimaciones posibles, ¿puede seguir sos-teniéndose válidamente que la emisión de mandamientos de eje-cución y/o embargo afecta la división de poderes? ¿O que unembargo puede paralizar el accionar estatal?

Ante un Ejecutivo cada vez más omnímodo, con mayo-res poderes presupuestarios (BONINA; DIANA, 2006), mayorespoderes normativos22, mayores poderes exorbitantes que él

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21 CSJN, Cacace Josefa Ermida, Fallos, 318:1887 (1995); CSJN, EmpresaArgentina de Servicios Públicos SA de Transportes Automotores, Fallos,320:2756 (1997), en este último la Corte señala que “es oportuno recordarque este Tribunal ha señalado que la aplicación del sistema de consolidaciónde deudas no priva al acreedor del crédito declarado en la sentencia sinoque sólo suspende temporalmente la percepción íntegra de las sumas adeu-dadas, lo que obsta a su declaración de inconstitucionalidad, máxime cuandola reclamante no ha alegado una situación de emergencia o necesidad im-postergable de recibir su acreencia, sino tan sólo la inconstitucionalidad ge-nérica del plazo establecido por la ley (confr. Fallos: 316:3176 y 317:739)”.Ver también CSJN, Colina, René Roberto y otros, Fallos, 328:3354 (2004),especialmente cons. 3°, en el que la Corte afirma que “en la medida enque dichos títulos efectivamente sean entregados o acreditados a los ac-tores y sus condiciones de amortización se cumplan de acuerdo con loprevisto, no se advierte que las modalidades previstas para la cancelaciónde los bonos previstos en el art. 12 de la ley 25.725 impliquen, por sí mis-mas, la desnaturalización de los demandantes (doctrina de Fallos,301:793; 302:564 y 322:232, entre muchos otros)”. Para consolidación dedeudas y ejecución de sentencias, ver Aberastury (2001), Hutchinson(2001-2), Bonina (2006-1, p. 91).22 El incremento cuantitativo de DNU’s en los últimos veinte años es público ynotorio. Hasta la década del noventa, sólo se habían dictado 25 decretos denecesidad y urgencia (http://edant.clarin.com/diario/1999/02/24/t-00901d.htm).La tendencia parece no detenerse, de allí que ante la inevitable realidad, envez de negarla debamos reconocerla, identificarla e institucionalizar los me-canismos adecuados para canalizarla y mantenerla dentro de límites acepta-bles y útiles a los valores que debemos escoger como sociedad.

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mismo se ha otorgado23, ¿puede sostenerse que la verificaciónde la oportunidad, mérito y conveniencia de la solución dañaríael esquema constitucional de división de funciones o que las ac-ciones populares o puras de inconstitucionalidad son improce-dentes en nuestro ordenamiento federal24, justo cuando elEjecutivo dicta decretos de necesidad y urgencia ilegítimos conalcances generales y ejecutorios, aprovechándose de la lentitudburocrática del Congreso?

¿Y qué hacer ante las omisiones legislativas inconstitu-cionales?25 Ante la sistemática y estructural pasividad y omisióndel Congreso26,¿todavía seguiremos defendiendo que imponerlemandamientos de ejecución con plazo determinado de cumpli-miento significa avanzar sobre las facultades propias del órgano(ir)representativo?27

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23 Porque ya no sólo se trata de un concepto esotérico que ocasionalmenteentra en escena para justificar cualquier exceso de la administración. Ahoraestá institucionalizado en el art. 12 del decreto 1023/2001 y en vez de cues-tionarse la institucionalización de la desmesura, este auto-otorgamiento defacultades exorbitantes se lo considera “como un poder que traduce el ejerci-cio de la potestad, que permite limitar su alcance y efectos, en la medida queno se contravenga el orden público administrativo ni el fin de interés públicorelevante que la Administración persigue al celebrar el contrato” (CASAGNE,1965, p. 455).24 Ver, entre otros: CNFed.C.A., sala IV, Lonigro Félix Vicente c. Estado Na-cional (21-03-06), LL, 2006-F, 390. En esa misma tendencia, CSJN, Thomas,Enrique c. E.N.A. s/ amparo (15-06-10). Para un desarrollo del tema, ampliaren (BONINA, 2006-F).25 CSJN, García Méndez, Emilio y Musa, María Laura, Fallos, 331:2691 (2008).26 En fecha reciente, se ha distinguido entre la omisión legislativa absoluta yotra relativa. En el primer caso, la infracción constitucional se refiere a la noproducción de una norma legal que el legislador está obligado a dictar. En elsegundo caso, la norma legal se dicta; "pero en cuanto omite determinadoscontenidos o previsiones no cumple con entera satisfacción las exigenciasconstitucionales impuestas al legislador (por ejemplo, no regula todos los as-pectos previstos, reduce el ámbito de aplicación requerido, implica discrimi-nación o arbitrariedad, etc.)" (CNACAF, sala V, Asociación de magistrados yfuncionarios, 8-V-10; con cita de GÓMEZ PUENTE, 1997, p. 26 y FERNÁN-DEZ RODRÍGUEZ, 1998, p. 114 y ss).27 Tal como sucedió en CSJN, Badaro Adolfo Valentín, Fallos (08-08-2006).Omisión inconstitucional que por cierto todavía no ha sido solucionada me-diante el dictado de la respectiva ley.

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Si hoy en día los DNU’s28 son uno de los institutos másconflictivos dentro de la práctica y disciplina del derecho admi-nistrativo, ¿por qué no repensar el sistema? Con el caso Re-

drado29 ha quedado nuevamente en descubierto la fragilidad denuestra rama jurídica como técnica para someter al poder. Paracuando los mecanismos formales de control de un DNU se ponenen marcha, muchas veces puede llegar a ser demasiado tarde.Tal vez la clave sea no atribuirle a los DNU presunción de legiti-midad ni ejecutoriedad, especialmente si se los considera comoactos de naturaleza legislativa, tal como lo hace la Procuracióndel Tesoro en este punto30.

Si sabemos que una de las deudas del derecho consistejustamente en la gran cantidad de justiciables que no logran ac-ceder a la justicia, sea por desconocimiento, por pobreza, por di-ficultades materiales, económicas, etc., ¿podemos seguir

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28 Para un seguimiento de la recepción y desarrollo jurisprudencial en materiade decretos de necesidad y urgencia, ver: (a) CSJN, Peralta, Fallos,313:1513 (1990); (b) CSJN, Video Club Dreams, Fallos, 318:1154 (1995); (c)CSJN, Rodríguez Jorge, Fallos, 320:2851 (1997); (d) CSJN, Verrocchi, Fal-los, 322:1726 (1999); y, finalmente, (e) CSJN, Consumidores Argentinos, sen-tencia del 19.05.10; entre tantos otros. En materia de decretos delegadosluego de la reforma constitucional de 1994, la Corte había tenido oportunidadde expedirse en Colegio Público de Abogados de la Capital Federal, ante lainconstitucionalidad planteada frente al Decreto 1204/2001, destacando, prin-cipalmente, que el reconocimiento de esas facultades de excepción por laconvención constituyente lo fueron con el objeto de atenuar el presidencia-lismo (Fallos, 331:2406 -2008-; al respecto ver GELLI, 2009-A, recordada porSÁNCHEZ, 2010, p. 22). Discusión que había quedado pendiente respecto alas retenciones a las exportaciones y el juego de delegaciones del CódigoAduanero y la Ley 25.561 (ver BARRA, R. C.; FOS, B. M. “Sobre retencionesy federalismo”, LL, 2008-D, 924). Lamentablemente, en lo que hace a la pro-mulgación parcial de leyes, obviando la omisión legislativa en lo que respectaa la sanción de la actual Ley 26.122, el Máximo Tribunal eludió su tratamientoen la causa Universidad Nacional de La Plata, Fallos, 331:1123 (2008).29 Nos referimos, en conjunto, a las sentencias de primera instancia recaídasen las causas Pinedo Federico y Pérez Redrado Hernán M., en 8.01.10 por el Juzgado Nacional de Primera Instancia en lo Contencioso AdministrativoFederal n° 11, y la confirmación de la cautelar dictada en la primera de ellas,por la Cámara en 22.01.10; y CNACAF, sala IV, Morales, Gerardo, 30.03.10(Al respecto ver: GARCÍA SANZ; VERAMENDI, 2010, p. 5).30 PTN, Dictámenes, 236:27; 268:358, entre muchos otros.

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afirmando que los efectos erga omnes de las sentencias y las ac-ciones populares y puras de inconstitucionalidad31 violan nuestradivisión de poderes?32

Al haber mutado las bases fácticas que otorgaban fun-damento a la imagen tradicional de la división de poderes - quees parte de la mutación total que afecta a la democracia, talcomo veremos infra - se torna necesario construir nuevos me-canismos de control y equilibrio. Y eso sólo puede ser realizadopor el Poder Judicial. En ese punto, nuestra judicatura todavíatiene una deuda pendiente con la sociedad. La división de po-deres no puede constituir el fundamento de su auto restricción33.

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31 En tal sentido, recomendamos la lectura comprensiva y comparativa de loscasos Halabi, Fallos, 332:111, cons. 19 y 25 de la mayoría (2009); Thomas,sentencia del 15.06.10, cons. 4° y Mendoza, Fallos, 329:2316, cons. 14(2006). Ver también: Bonina (2006-F).32 Ver el análisis realizado por CILURZO, M. R. Efectos erga omnes de lassentencias contra el Estado. JA, 2009-I-1077.33 No desconocemos el rol institucional de la Corte Suprema y su necesidadde valorar políticamente sus sentencias y las consecuencias de las mismas(explicado por BIANCHI, 1997-B). No nos caben dudas que la CSJN es lacabeza de uno de los poderes políticos del Estado y debe actuar como tal.Tampoco queremos omitir que nuestro Máximo Tribunal en su composiciónactual realiza grandes esfuerzos para reencauzar el desequilibrio real en ladivisión de poderes [ver, por ejemplo, CSJN: Intercorp S.R.L. y HermitageS.A. (sentencias dictadas en 15.VI.10), en materia tributaria; Madorrán, Fal-los, 330:1989 (2007); Ruiz (15.05.07) y nota de Diana; Kodelia (2007-c);Schiavone, Fallos, 332:1413 (2009); Schnaiderman, Fallos, 331:735 (2008);Micheli, Fallos, 332:2741 (2009); Ramos (6-IV-10) y Sánchez (6-IV-10), entremuchos otros, vinculados a empleo público y control del ejercicio de faculta-des discrecionales. En esa misma tendencia, no queremos omitir las solu-ciones de la Corte en las causas vinculadas a derechos humanos: Simón,Fallos, 328:2056 (2005); medio ambiente: Mendoza, Fallos, 329:2316; saludmental: Tufano, Fallos, 328:4832 (2005); R. M. J., Fallos, 331:211 (2008); li-bertad de expresión y manejo de publicidad oficial: Editorial Río Negro, Fal-los, 330:3908 (2007); Radiodifusora Pampeana, Fallos, 331:2893 (2008);entre muchas otras, donde el Tribunal ha tenido un rol ordenador y tutelarfrente a las omisiones de los otros poderes del Estado. No obstante tales es-fuerzos, entendemos que todavía resta mucho por hacer para reencauzar enforma óptima y eficaz el desequilibrio real en la división de funciones estata-les, pero también, y principalmente, para mejorar la salud institucional denuestro país. Vale destacar, además, que todavía “[q]ueda un largo caminopor recorrer, en materia de nulidad de disposiciones reglamentarias, de in-constitucionalidad de las leyes, de acciones declarativas de certeza e incons-titucionalidad, pero una puerta esperanzadora se ha abierto, pues como

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Al contrario, la evidente falta de equilibrio en la distribución delas funciones estatales en la práctica hace necesario que sea elPoder Judicial quien vele por los derechos y garantías de los par-ticulares34, de la manera más amplia necesaria, aun cuando ellose traduzca en la construcción de nuevos mecanismos de de-fensa del individuo frente al poder desmesurado del Ejecutivo, lapasividad del Legislativo y la incorporación de los grupos depoder económicos a esa dinámica .

Es conocida la doctrina de la Corte Suprema de Justiciaespecto de autorestringirse cuando su intervención pueda que-brar la división de funciones estatales (self - restraint). Así, encaso de cuestiones políticas no justiciables35, cuando se trata decausas de legisladores planteadas en su carácter de tales36, enlos casos de oportunidad, mérito o conveniencia37, en los supues-

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señalara Borges del soldado de Urbina, errante por España: «...Sin saber dequé música era dueño, atravesando el fondo de algún sueño, por él ya an-daban don Quijote y Sancho»” (GARCÍA PULLÉS, 2009-B, anotando la sen-tencia en el caso Halabi, Fallos, 332:111 -2009-).34 Ver, por ejemplo, los comentarios del Dr. Ricardo Lorenzetti, en cuantoafirmó que “el Poder Judicial tiene que poner límites a los otros poderes” yaque “no hay poderes ilimitados”, en El Cronista Comercial, edición del01.06.2010, p. 7.35 Superada a través de los casos Bussi, Fallos, 326:4468 (2003) y Patti, Fallos,331:549 (2008); ello, pese a la insistencia del voto disidente del Dr. Maquedaen el primero de ellos (en especial, cons. 13 y 14.) Hacemos propia la idea deque toda la actividad estatal debe, “en todo Estado de Derecho, estar efecti-vamente fiscalizada”, sin excepciones (REJTMAN FARAH, 2000, p. 1).36 CSJN, Dromi, LL, 1990-E, p. 97; CSJN, Polino, LL, 1994-C, 294; CSJN, Ro-dríguez, Jorge, LL, 1997- F, 884; CSJN, Gómez Diez, Fallos, 322:528 (1999);Garré, Fallos, 323:1432 (2000); Raimbault, Fallos, 324:2381 (2001) y, finalmente,CSJN, Thomas, Enrique (15-VI-10). Ampliar en Bianchi (2002, p. 79 y ss.).37 CSJN, Editorial Río Negro, Fallos, 330:3908 (2007), disidencia del Dr. Ma-queda; Simón, Fallos, 328:2056 (2005), disidencia del Dr. Fayt; Verbitsky,Fallos, 328:1146 (2005); prudencia política aceptada por la mayoría del tri-bunal en Compañía Azucarera Concepción, Fallos, 324:2231 (2004), cons.9°, y con anterioridad en Barrientos, Fallos, 326:3683 (2003). En forma másexplícita, el Máximo Tribunal ha sostenido la improcedencia de juzgar la opor-tunidad, mérito y conveniencia en CSJN, Ferrer, Fallos, 308:2246 (1986), endonde ha señalado que “la potestad del Poder Judicial de revisar los actosadministrativos sólo comprende, como principio, el control de su legitimidad–que no excluye la ponderación del prudente y razonable ejercicio de las fa-cultades de las que se hallan investidos los funcionarios competentes-, pero

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tos en los que se enarbola una esotérica zona de reserva de la

administración38, cuando lo que se intenta es una acción decla-rativa de inconstitucionalidad pura o una acción popular39. Sabe-mos que el Poder Judicial debe actuar con prudencia y mesura,en cada caso, ya que ejerce la mayor de las facultades: la de de-clarar la inconstitucionalidad de los actos de los otros poderes,ostentando la última palabra de la controversia.

¿Pero qué acontece cuando los supuestos de hechoque originaron una determinada concepción de la división defunciones ya no existen? ¿Qué hacer cuando, en virtud de la

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no el de la oportunidad, mérito y conveniencia de las medidas por éstos adop-tadas.” Más recientemente, la CSJN ha afirmado que “[…] es preciso recordarla tradicional jurisprudencia del Tribunal cuya sintética formulación postulaque las razones de oportunidad, mérito o conveniencia tenidas en cuenta porlos otros poderes del Estado para adoptar decisiones que les son propias noestán sujetas al control judicial (Fallos: 98:20; 147:403; 150:89; 160:247;238:60; 247:121; 251:21; 275:218; 295:814; 301:341; 302:457; 303:1029;308:2246; 321:1252, entre muchos otros”, en CSJN, Smith (Banco de Galicia y Buenos Aires), Fallos, 325:28 (2002).38 CSJN, Serra, Fallos, 316:2454 (1993); Pazos Eliana Beatriz, Fallos,318:554 (1995). En ese último caso, el Tribunal afirma que “ante la ausenciade norma de rango legal que asegurara inexorablemente el mantenimientode la relación de hecho antes aludida, la autoridad administrativa podía - enel ejercicio de sus propias atribuciones - dictar normas en la materia. La cir-cunstancia de que en los considerandos de los decretos citados se hicierareferencia a la delegación producida por la ley 21.307 no enervaba dichasfacultades -enmarcadas en la denominada «zona de reserva de la adminis-tración» resultantes de la Constitución Nacional (entonces art. 86, inc. 1°)”“[…] en consecuencia, la pretendida discordancia que pudiere existir cuando,como en el caso, se trata de una ley y un decreto, no impone de por sí ladescalificación de este último por violatorio del artículo 31 de la Ley Funda-mental, pues resultaba indiscutible la competencia del Poder Ejecutivo Na-cional para disponer la modificación de los índices preexistentes. Ello es asíya que tales criterios ingresan dentro de una materia en la cual, excepciónhecha de las hipótesis de arbitrariedad o irrazonabilidad manifiesta, procederespetar las opciones valorativas y el margen de discrecionalidad indispen-sable de las autoridades administrativas, cuando actúan válidamente en laesfera de sus potestades constitucionales”. Cabe recordar que esa teoría fueintroducida del derecho francés por el profesor Miguel S. Marienhoff. Ver, portodos, Coviello (1998, p. 193-222).39 Ver, entre otros, CNFed.C.A., sala IV, Lonigro Félix Vicente c. Estado Na-cional – Congreso de la Nación s/ Amparo Ley 16.986 (21-III-06), LL, 2006-F, 390. En esa misma tendencia, CSJN, Thomas, Enrique (15-VI-10). Paraun desarrollo del tema, ampliar en Bonina (2006-F).

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realidad imperante, se termina afectando la división de pode-res en virtud de la aplicación ideal y tradicional de la misma?

Tenemos en claro que el Poder Judicial no es el salvadorde nuestra sociedad. Pero, al ser el poder estatal el con mayormargen de independencia política, es el que tiene que impulsar lasmodificaciones necesarias para restablecer el equilibrio de las ins-tituciones. Hoy, la deuda primaria del derecho administrativo debeser abordada por el Poder Judicial. Sólo la judicatura, en su rol deguardián último de la Constitución nacional, tiene en su poder lafacultad para restablecer el equilibrio real de los departamentosestatales40. Lo contrario, sólo seguirá fomentando la fragmentaciónsocial e incentivando el parasistema (GORDILLO, 2001).

Repensar la Democracia

● Paralelamente -¿o en forma yuxtapuesta?- , la demo-cracia formal e ideal -plasmada en la Constitución, los tratados,las leyes y las demás normas derivadas- también se revela insu-ficiente para materializar los valores y los hechos de esa realidadcambiante41. La vida democrática constituye una experiencia re-lativamente nueva para nosotros como sociedad y para nuestrosjuristas, quienes han vivido, padecido y realizado su lucha por el

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40 Ver Ricardo Lorenzetti, en El Cronista Comercial, edición del 01.06.2010, p. 7,en cuanto a que el Poder Judicial tiene poner límites a los otros poderes.41 En una posición extrema y aún más realista, se ha concluido que la dificul-tad de encontrar sociedades que respeten fielmente los ideales propios deligualitarismo, nos habla, quizás, de la implausibilidad de tal proyecto o de laimposibilidad de llevarlo a cabo (GARGARELLA, 2008, p. 282). Mario Rejt-man Farah (2005, p. 335 y ss) da cuenta de esa crisis de la democracia alseñalar que según una medición de Latinobarómetro(www.latinobarometro.org), realizada en diecisiete países de América Latina,los argentinos están insatisfechos en un noventa por ciento por el funciona

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derecho en un escenario plagado de rupturas sociales, económi-cas y políticas; donde el valor de nuestras instituciones y, en par-ticular, de la Constitución misma, ha pasado a estar en unsegundo plano42, frente a administraciones de jure y usurpadorasque han destronado sin mayores inconvenientes la supremacíade la ley fundamental por la supremacía del interés particular.

Podemos definir la democracia como un conjunto de ga-rantías contra el ascenso o el mantenimiento en el poder políticode dirigentes contrarios a la voluntad de una pseudo y, muchasveces, demasiado ambigua mayoría43. Desde una perspectivamás técnica, puede caracterizarse como la libre elección a inter-valos regulares de los gobernantes por los gobernados. Se defineasí, con claridad, el mecanismo institucional sin el cual aquélla noexiste. Por su parte, para De Tocqueville (2000, p. 567), la demo-cracia moderna se entiende como la creciente e inexorable ten-dencia hacia la igualación de las condiciones que trasciende laesfera política para ser considerada una forma de vida en la cualtodos los hombres son semejantes y hacen cosas más o menosiguales; sujetos a grandes y continuas vicisitudes, con las mismasvictorias e iguales reveses que se repiten continuamente44.

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miento de la democracia y un ochenta y cinco por ciento afirman que la soluciónde los problemas no depende de la democracia sino de las elites dirigentes. 42 Ver, por ejemplo, CSJN, Richardi, Fallos, 301:101 (1979), donde se indicóque las Actas Institucionales y el Estatuto para el Proceso de ReorganizaciónNacional eran normas que se integraban a la Constitución y tenían por objetoel restablecimiento de la vigencia plena del orden jurídico y la instauraciónde una democracia republicana, representativa y federal, aunque pudierasostenerse que en la cúspide del orden de prelación del art. 31 se encontra-ban las disposiciones que, en uso de su poder constituyente, sancionara elgobierno usurpador por medio de su órgano político competente. Huelgacualquier comentario.43 Todo lo que atañe al gobierno de la comunidad puede y debe ser controladopor el pueblo, y es también su responsabilidad la ausencia de control o juz-gamiento, sus excesos y abusos (HAMILTON; MADISON; JAY, 2006, p. 38).44 Criterio seguido por el Dr. Petracchi en CSJN, Comunidad Homosexual Ar-gentina, Fallos, 314:1531 (1991), al señalar que la democracia no es sólo unaorganización del poder, sino un orden social destinado a la realización de laplena personalidad del ser humano.

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Lo importante a enfatizar es que la democracia como en-tidad omnipresente no existe. Contrariamente a esa idea tergi-versada que se enseña en escuelas primarias, secundarias y enuniversidades, la democracia sólo constituye otra técnica social.Y, para cumplir sus fines, la efectividad de la misma reposa en elactuar responsable de los ciudadanos en la vida pública, en sucompromiso y convicción respecto del reconocimiento del yo ydel otro como parte de un mismo fenómeno45. La Constitución,en términos de la Corte Suprema,

no admite la validez de una voluntad mayoritaria expre-sada sin respetar los principios del estado de derecho niles permite derogar principios fundamentales sobre los quese basa la organización republicana del poder y la protec-ción de los ciudadanos. La Democracia es Constitucional,y por ello la función de esta Corte en este caso se dirige agarantizar la vigencia de principios regulativos del modoen que expresan las mayorías. El escrutinio judicial de losprocedimientos resulta esencial para robustecer las prác-ticas democráticas.

Justamente, el buen juicio de un estadista es

afirmar reglas que constituyan incentivos apropiados para los fu-turos participantes en la competencia electoral. El cumplimientode los principios que constituyen el núcleo del estado de derechoes lo que orienta a una sociedad hacia una expresión madura yplural, mientras que su apartamiento condena al futuro a repetirun pasado que se desea mejorar.46

● Ahora bien, los dos pilares clásicos en los que se asientala democracia son los principios de soberanía popular y represen-

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45 La democracia aprehendida como patrón conceptual para el manejo de losasuntos comunitarios no se asienta sobre cualquier base de consenso; setrata de un consenso sobre valores adoptados en la sociedad: todos los ciu-dadanos son igualmente libres para pactar, en los que se distingue a la de-mocracia como forma de producción del sistema jurídico (con contenidodeterminado por la actividad ciudadana) y a la democracia como grado delegitimación (FERREYRA, 2004, p. 124).46 CSJN, Bussi, Fallos, 330:3160 (2007).

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tación política por vía del sufragio47 - que además de la funciónelectoral tiene función gubernativa48 -. Bobbio (2006, p. 214-215)señala que a partir del principio del pueblo soberano y del fenó-meno del asociacionismo, el Estado representativo se consolidóprogresivamente en Inglaterra, difundiéndose a través de los mo-vimientos constitucionalistas de las primeras décadas del siglo XIXen la mayor parte de los estados europeos, a través de un procesode democratización que se desarrolló en dos líneas: la ampliacióndel derecho al voto hasta llegar al sufragio universal y el avancedel asociacionismo político hasta llegar a la formación de los par-tidos de masas y al reconocimiento de su función pública49.

Actualmente, la realidad nos demuestra que el pueblo nodetenta ninguna soberanía y que, con suerte, sólo puede ejerceralgún tipo de poder en algunas situaciones aisladas. El pueblo

como tal pocas veces decide algo y cuando lo hace, siempre esde manera demasiado indirecta, habiéndose afirmado, incluso,que el funcionamiento de la clase política representa un obstá-culo para el desarrollo nacional, manteniendo “su atención dis-traída de las cosas importantes por hacer a fin de encarrilar a laNación en la senda del desarrollo sostenible”50.

Las herramientas de participación ciudadana dejanmucho que desear; contrariando la premisa de que “el elemento

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47 No desconocemos, al mismo tiempo, la libertad de prensa y de expresión alextremo de que sin su resguardo existiría tan sólo una democracia desmedradao puramente nominal (cfr. CSJN, Abal, Edelmiro c. Diario La Prensa, Fallos,248:291-1960-; Ediciones La Urraca, Fallos, 311:2553 -1988-). Siendo funda-mental para la democracia la existencia de una prensa diaria, independiente ydiversificada (CSJN, La Prensa S.A., Fallos, 310:1715 (1987), voto del Fayt).48 CSJN, Baeza, Fallos, 306:1125 (1984), disidencia del Dr. Fayt.49 El Máximo Tribunal ha indicado, mucho antes de la reforma de 1994, quelos partidos políticos, cuya existencia y pluralidad sustenta el art 1° de la Cons-titución, condicionan la vida política nacional e, incluso, la acción de los pode-res gubernamentales. Han llegado a convertirse en órganos de la democraciarepresentativa (Partido Obrero - Capital Federal, Fallos, 253:133 -1962-).50 Bluske (2009-2, p. 33), cuya lectura recomendamos, aun que disentimosen sus conclusiones, ya que consideramos que el responsable de nuestrascíclicas crisis no sólo es la clase política, sino la sociedad en su conjunto dedonde proviene ésta, en todo caso, entre otras causas.

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central del proceso democrático es el procedimiento de la políticadeliberativa” (HABERMAS, 1996, p. 296). Tanto los regímenesde elaboración participada de normas como las audiencias pú-blicas -ambas reguladas en el ámbito federal en una norma dejerarquía infralegal -prácticamente no funcionan y cuando logranser instrumentadas, la manipulación política las tornan ineficacesa los fines participativos y deliberativos. Por tales motivos, cuestatrabajo creer en la soberanía popular cuando las herramientaspara materializarla son creadas, sancionadas, dictadas, puestasen marcha y manipuladas justamente por aquellos a quienes lasmismas debieran obligar y limitar.

En cuanto al sufragio, el incremento cuantitativo de la po-blación hace que se pierda la necesaria conexión entre represen-tado y representante51. A su vez, la magnitud de un acto electoral-tanto por electorado como por distancias- hace que por lo gene-ral sólo sean conocidos aquellos que gozan de los fondos nece-sarios para costear su campaña política y para solventar laestructura pertinente (personal, punteros, fiscales, logística, lo-comoción, etc.), sin que los regímenes electorales implementa-dos a nivel nacional y provincial hayan podido solucionar esteproblema central en la teoría política52.

Por otro lado, a nadie puede serle ajena la crisis de re-presentación política que vive nuestro país desde antes de200153; así como tampoco puede pasar inadvertido el desgasteque en la opinión pública (oficialista y no oficialista) tienen no sólonuestra clase dirigente, sino también los poderes del Estado,compartiendo -en este aspecto- el sitial de descrédito por iguallos tres poderes. Ese desgaste favorece y recrea en forma cons-tante, permanente y continua el apotegma -para nada feliz, por

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51 Como memoraba Rousseau (1997), tan pronto como un pueblo se da repre-sentantes, deja de ser libre y de ser pueblo, sustituyendo la libertad individualpor la ficción de la representación colectiva.52 Ver su desarrollo histórico en Costa (1997).53 Ver, en tal sentido, Diana y Kodelia (2005-1, p. 53-69).

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cierto- de divide y reinarás. Y así funciona no sólo con el fenó-meno político, sino muy en especial con el derecho, una de susrepresentaciones y manifestaciones clásicas o, al menos, másimportantes.

L a representatividad se encuentra cuestionada a nivelesestructurales . Se nos presenta como un integrante más en estagalería de fantasmas que no tiene fin, donde la ideología ha sus-tituido la realidad (VICTORICA, 1985, p. 7). El sentimiento gene-ralizado es que ni el Ejecutivo54 ni el Legislativo representan anadie55. Sólo a sus intereses, a sus propios planes de gobierno,a sus bloques y partidos. Los propios legisladores así lo ponende manifiesto en las sesiones. Hablan en nombre de sus bloques,no del pueblo al que deberían representar. Se confunde, así, re-presentatividad con ideología política56.

Sin embargo, desde el plano ideal-formal -en este uni-verso de ficciones constitucionales- la Corte ha sostenido que “elpueblo, como entidad política, es la fuente originaria de la sobe-ranía” y el modo de ponerla en ejercicio es la elección de los re-presentantes por el cuerpo electoral sustentada en la libre

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54 Aún cuando el Ejecutivo tiene como responsabilidad primaria contribuir alfortalecimiento de la democracia (ver, CSJN, Granada, Fallos, 307:2284(1985), voto del Dr. Fayt.).55 Al respecto se ha dicho que “El Poder Legislativo parece no tener la sufi-ciente capacidad estructural para representar las diversidades de interesessociales. Las prácticas legislativas muestran ausencia casi total de vínculosentre representantes y representados y un alto grado de opacidad con quese insiste en legislar -casi en la oscuridad como hemos dichos en algunaoportunidad- en la medida en que se ha insistido en votar no nominalmenteen el recinto al momento de dar tratamiento a los proyectos de leyes” (REJT-MAN FARAH, 2005, p. 335 y ss).56 Eso porque “El diputado elegido a través de la organización del partidose vuelve un mandatario, si no de los electores, sí del partido que lo castigaquitándole confianza cuando él no respeta la disciplina, la que se vuelveun subrogado funcional del mandato imperativo de parte de los electores”(BOBBIO, 2006, p. 218). Parte del problema reside en que las definicionesrealistas de la democracia contrastan con las prescriptivas, que sólo nosindican cómo debería ser la misma (O’DONNELL, 2007, p. 31); pero en talcaso, ¿deberíamos resignarnos a la mera realidad o todavía podemos cons-truir herramientas para encauzarla de manera más efectiva y útil para losindividuos?

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representación. El sufragio es, entonces, la base de la organiza-ción del poder57. En un caso anterior, nuestro Máximo Tribunalafirmó que los partidos forman parte de la estructura políticareal58, de ahí que la vida política de la sociedad contemporáneano pueda concebirse sin ellos; reflejan los intereses y las opi-niones que dividen a los ciudadanos, actúan como interme-diarios entre el gobierno y las fuerzas sociales y de ellos surgenlos que gobiernan59.

Adviértase que, en estos casos, la Corte aborda los dospilares de la democracia desde un punto de vista ideal, omitiendolas interacciones que acontecen en el ámbito de la realidad y per-petuando la brecha entre ambos planos. Sostener en el mundo delas ideas lo que no es en los hechos sólo contribuye al distancia-miento entre el ordenamiento jurídicoinstitucional y los ciudadanos.Construir un derecho ideal sólo genera exclusión: cada individuose siente menos identificado por sus instituciones y se vuelve másapático, más distante60. Ello favorece a nuestra fractura como co-munidad organizada y a la fragilidad de nuestro derecho.

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57 CSJN, Partido Justicialista - Distrito Neuquén; Fallos, 319:1645 (1996).58 Actualmente deberíamos replantearnos qué se entiende por estructurapolítica real, ya que luego de la reforma de 1994 y la inclusión del nuevo ar-tículo 38, los partidos políticos han sido constitucionalmente institucionaliza-dos desde un plano ideal, incrementando la distancia respecto de sufuncionamiento real e imponiendo al Estado su financiamiento. Al respectover: Leyes 23.298 (Orgánica de los Partidos Política, la Transparencia y laEquidad Electoral).59 CSJN, Ríos, Antonio Jesús; Fallos, 310:819 (1987).60 Apostamos a una democracia útil, efectiva, “a su extensión y profundiza-ción, al mejoramiento de su hoy pobre calidad. Y esto hay que hacerlo entodos los frentes, incluyendo la «gran» política, los movimientos sociales, lasuniversidades, las ONGs y tantos otros lugares […] Esto no implica buscarlos «amplios consensos» que se ha puesto de moda invocar. Se trata másbien de no temer los conflictos que sin duda desatarán los intentos de exten-der los aspectos civiles, económicos y sociales de estas democracias. Setrata también de ayudar a que esos conflictos se desplieguen dentro de losparámetros de la legalidad democrática, aunque esos mismos parámetrosdeberán ser ampliados a lo largo de esas luchas” (O’DONNELL, 2007, p.201). Lucha que incluye, casi es innecesario mencionarlo, la lucha por unmejor derecho administrativo.

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● Otro punto a tener en cuenta es el del interés o bienestarcomún. Como concepto jurídico indeterminado su definición es im-posible, irrealizable61. Esto ya lo ha adelantado Gordillo (2006)62

mucho antes de ahora. Pueden existir intereses coincidentes deuna mayor cantidad de individuos, siempre que en ese colectivocada uno pueda encontrar un interés propio y compartirlo a la vez.El interés común no existe, ya que no hay intereses comunes atodos (bienestares comunes) ni para todos los individuos. Al con-trario, la diferencia y variedad es lo que nos identifica63.

Paralelamente, el Estado no existe sino a través de susórganos64 y, en ese caso, parece improbable -y de hecho así lo hasido en la realidad- que un órgano persona con facultad decisoriapueda percibir en forma completa el interés de la totalidad o de lamayoría de los individuos65. Consecuentemente, el interés comúnes imposible tanto a nivel teórico (concepto) como en la práctica.

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61 Al respecto, ver voto en disidencia del Dr. Petracchi, cons. 19, “Frecuente-mente en nuestra historia, el triste hábito de recurrir a conceptos tales comobien común, para justificar decisiones de gobiernos de turno, restrictivas dela libertad, ha sido la noche en que, funcionarios que declamaban distintasideologías o adhesiones partidarias, fueron todos, como los gatos, indistintay confundiblemente pardos (CSJN, Comunidad Homosexual Argentina, Fallos,314:1531 (1991). Sobre la utilidad y diseño de los conceptos jurídicos inde-terminados en nuestro país, ver: Grecco (1980-D) y COMADIRA, JULIO RO-DOLFO, “La actividad discrecional de la Administración Pública. Justa medidadel control judicial,” El Derecho, Buenos Aires, 29-III-00; entre otros.62 Especialmente p. 35 en adelante.63 Al respecto ver: Buchanan (2009, p. 31). En esa línea, la Corte Supremade Justicia de la Nación ha sostenido que esa garantía radica en consagrarun trato legal igualitario a quienes se hallan en una razonable igualdad decircunstancias (CSJN, Fallos, 270:374; 286:97; 300:1084, entre otros), perono excluye la facultad del legislador de establecer distinciones o formar ca-tegorías, siempre que tales clasificaciones no revistan el carácter de arbitra-rias o estén inspiradas en un propósito manifiesto de hostilidad contradeterminadas personas o clases (CSJN, Fallos, 195:270; 196:337; 207:270,entre otros). La verdadera igualdad consiste en aplicar la norma según lasdiferencias que los constituyen y caracterizan. Cualquier otra inteligenciao acepción, es contraria al interés social (Cfr. GONZÁLEZ, p. 110, con citade Fallos, 7:119; recordado en CNACAF, sala I, Fernández Emilio Manuelc/ UBA y Otro s/amparo ley 16.986, 9.V.00).64 Por todos ver: Gordillo (2003, cap. XII).65 Se trata lisa y llanamente de la aplicación del relativismo einsteiniano.Ampliar en Bonina (2005-F).

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● De todo lo dicho se desprende que la democracia dehoy en día es tan indirecta, con tantos operadores e intermedia-rios, con tantos intereses disímiles y complejos, que se ha ale-jado en buena medida de sus postulados fundadores. La crisisde la democracia se basa así, en dos motivos que se retroali-mentan mutuamente: (a) la realidad que aquélla está llamada acontener, ha mutado y, (b) consecuentemente, los postuladosfundadores de la misma y sus instituciones han perdido su vigen-cia e idoneidad para contener a esta realidad mutada66. De esaforma, la democracia exhibe su insuficiencia para dar respuestasrenovadas ante las exigencias de una realidad cambiante y, con-secuentemente, saltan a la superficie las promesas incumpli-das67 de la democracia clásica-formal, frente al fenómeno de lademocracia social-sustancial (BOBBIO, 2005, p. 209-222).

Es necesario poner de resalto que la crisis del sistemademocrático no debe ser entendida como amenaza de colapsoinminente pues sus insuficiencias no lo ponen al borde de la ex-tinción. Las amenazas a la democracia no son tanto externas -ya que no parece haber serios riesgos de involución autoritariareaccionaria-, cuanto internas por la autonomización de ciertosaparatos del Estado, por la formalización de las instituciones re-presentativas que pierden poder decisional real y capacidad decontrol y por el distanciamiento entre el poder y la sociedad (RO-DRÍGUEZ AGUILERA DE PRAT, 1997). También debe advertirseque este fenómeno de revalorización de la democracia directaestá relacionado con el aumento de las demandas de más de-mocracia, no tanto para sustituir la representativa cuanto paracomplementarla68. De allí que la clave y el desafío que tenemoscomo sociedad es modificar los mecanismos necesarios de

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66 En este punto ver: GARGARELLA, 2008. 67 Al respecto ver: Bobbio (2005).68 En sociedades complejas la exclusividad de la democracia directa es in-viable y, además, es inconveniente por sus riesgos potencialmente antiplu-ralistas (ver RODRÍGUEZ-AGUILERA DE PRAT, 1997).

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nuestro sistema democrático para poder dar respuesta institu-cional a las problemáticas de una realidad cambiante que hoyno se encuentra canalizada de la manera más útil y eficaz parala libertad del ser humano.

La senda del Derecho Administrativo

Al comienzo de este trabajo nos preguntamos sobre eltipo de derecho administrativo que estamos realizando colectiva-mente y sobre su futuro.

La respuesta -tentativa, por cierto- es que estamos cons-truyendo un derecho administrativo insuficiente, frágil y, en mu-chos casos, ineficaz; edificado sobre postulados que hoy debenser reexaminados a la luz de la realidad superadora y cambianteque nos toca experimentar.

La incapacidad actual de la antigua teoría de la división depoderes y de los postulados clásicos del sistema democrático pa-ralizan al derecho administrativo, lo convierten en un producto ideal,basado en valores que no son, aislado de la realidad que está lla-mado a canalizar. Alejado, en fin, del individuo. De allí que estosdos puntos cardinales de nuestra estructura jurídico-institucionaldeben ser repensados, no sólo en su correspondencia con la rea-lidad sino también en su eficacia, no respecto a la institucionaliza-ción y organización del poder, sino a partir del individuo y su libertad.

Por tales razones, la senda del derecho administrativoactual debe comenzar por la decisión colectiva por la libertad.Nuestra rama debe constituirse en la plataforma institucionalpara la realización y autoafirmación del hombre en comunidad69.

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69 Ver, supra, nota 10. La vara con la que debe medirse la actuación y/uomisión estatal no son conceptos esotéricos tales como división presunción

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Y su futuro, su vocación, debe ser su propia muerte. Pues elderecho administrativo sólo cumplirá acabadamente con su finprimario cuando el hombre realizado y autoafirmado en comu-nidad ya no tenga necesidad de su existencia; cuando el derechoadministrativo realmente concrete el derecho constitucional, esdecir, cuando se realice en su función. Sólo en ese momento es-taremos frente a un verdadero cambio de paradigma70.

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de legitimidad, interés público, bienestar común, régimen exorbitante, zonasde reservas, etc., sino la realización de los ciudadanos en cada caso bajoexamen, obviamente.70 No sin tener muy presente que todo cambio de modelo “tiene consecuen-cias graves cuando no va acompañado de las correlativas alteraciones nor-mativas porque hace que las leyes anteriores entren en contradicción conel nuevo modelo” (NIETO, 2010, p. 163).

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Flavio Cardoso Pereira*

GARANTISMO PENAL: ¿MITO O REALIDAD?

GARAntIA PEnAL: MItO OU REALIDADE?

CRIMInAL wARRAnty: Myth OR REALIty?

Resumen:

El garantismo es “tema de moda” en la dogmática penal de los

países desarrollados en términos de democracia. Partiendo de

la concepción de que los derechos fundamentales son el núcleo

duro de un verdadero Estado Constitucional de Derecho, se im-

pone a los Estados el deber de ejercer su poder de punir, pero,

a su vez, con la obligación de no sacrificar los derechos y ga-

rantías fundamentales de los ciudadanos de modo irrazonable

y sin criterios de proporcionalidad y racionalidad. Todavía, de-

bemos hacer hincapié en el sentido de que el verdadero garan-

tismo consiste en la protección integral de todos los derechos

en peligro, sean individuales o mismo colectivos. Con esa

actitud, evitase una catastrófica y por veces abusiva instru-

mentalización de las garantías, hecho este que viene a pro-

vocar serios daños a la persecución penal de las formas más

graves de criminalidad.

*Promotor de Justiça MP-GO. Professor convidado no Curso de Mestrado em“Corrupción y buen gobierno” da Universidade de Salamanca/Espanha. Pro-fessor convidado no Curso de Especialização em Ciências Criminais da Uni-versidade Federal da Bahia (UFBA). Professor da Rede de Ensino Luiz FlávioGomes no Curso de Especialização em “Investigação, Constituição e Direitode defesa”. Especialista em Direito Penal pela Universidade de Salamanca/Espanha. Especialista em combate ao crime organizado, terrorismo e corrup-ção pela USAL/Espanha. Doutorando em Direito Processual Penal pela Uni-versidade de Salamanca/Espanha. Coordenador da Associação Brasileira deProfessores de Ciências Penais (ABPCP) no Estado de Goiás.

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Resumo:

A garantia é o tema em voga na dogmática penal dos países de-

senvolvidos em termos de democracia. Partindo da concepção

de que os direitos fundamentais são o núcleo de um verdadeiro

Estado Constitucional de Direito, se impõe aos Estados a obri-

gação de exercer o seu poder de punir, mas, por sua vez, não

com a obrigação de não sacrificar os direitos e garantias funda-

mentais dos cidadãos de modo irracional e sem critérios de pro-

porcionalidade e racionalidade. No entanto, devemos enfatizar

que a verdadeira garantia consiste na proteção de todos os di-

reitos em perigo, sejam individuais ou coletivos. Com essa ati-

tude, se evita uma catastrófica e, por vezes, abusiva manipulação

das garantias, fato que causa sérios danos à repressão das for-

mas mais graves de criminalidade.

Abstract:

The warranty is the theme in vogue in criminal dogmatic of deve-

loped countries in terms of democracy. Starting from the idea that

fundamental rights are the core of a truly Constitutional Rule of

Law, it imposed to States the obligation of exercising their power

to punish, but, in turn, not with the obligation of not sacrificing the

fundamental rights and guarantees of the citizens irrationally and

with no criteria of proportionality and rationality. However, we must

emphasize that real warranty is the protection of all rights in dan-

ger, either individual or collective. With this attitude, it’s avoided

a catastrophic and, sometimes, abusive handling of warranties,

a fact which causes serious damage to the prosecution of the

most serious forms of crime.

Palavras-chaves:

Garantismo penal, delinquência organizada, garantias, eficiência

processual.

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Keywords:

Criminal warranty, organized crime, warranties, procedural effi-

ciency.

Palabras clave:

Garantismo penal, crimen organizado, garantías, eficiencia

procesal.

Introducción al tema del garantismo

Como punto de partida, conviene preguntarse algofundamental: ¿Qué es el garantismo1?

De inicio, deberá hacerse hincapié en el sentido de quehablar del garantismo corresponde también, obligatoriamente, ahablar de los derechos fundamentales. Además, garantismo, ensiendo sinónimo de derechos fundamentales, no puede ser con-fundido con el abuso de derechos y ni con la impunidad. Esta laregla básica a la comprensión del tema.

Así, es posible extraer una premisa elementar: el dere-cho existe para tutelar los derechos fundamentales.

De igual modo, nos cumple señalar que los derechosfundamentales tienen una base edificada en las distintas revolu-ciones burguesas inglesa, americana y francesa junto a diversosmovimientos sociales que se han encargado de plasmar losvalores jurídicos de igualdad, libertad y fraternidad; a partir delos cuales se ha erigido y construido el Estado liberal de derechoy, posteriormente, el Estado constitucional (AGUILLERA POR-tALES; LÓPEZ SÁnChEZ, 2007, p. 1).

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1 Respecto al tema, con profundidad, vid. Ferrajoli (1995), Gianformaggio(1993), Mora Molina (2004), Acosta (2006); Calabrich; Fischer; Pelella(2010); Ferrajoli; Carbonell; Salazar (2005).

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nótese que, en este caso, el garantismo es un sistemasociocultural que establece instrumentos jurídicos para la de-fensa de los derechos y consecuente defensa del acceso a losbienes esenciales a la vida de los individuos o de las colectivida-des, que puedan entrar en conflicto con intereses de otros indivi-duos, u otras colectividades, y, sobretodo, con intereses delEstado. Estos instrumentos jurídicos son las garantías, o sea, lasarmas jurídicas que tienen por finalidad proteger los ciudadanosque por ventura vengan a abrir mano de parcela de su autonomíaen beneficio de la colectividad, entregando al Estado el poderpara que ello propicie seguridad, salud, educación, trabajo, etc.

De otra parte, en el modelo tradicional del garantismo,garantizar significa afianzar, asegurar, proteger, defender, tutelaralgo; y, cuando en la cultura jurídica se habla de garantismo, ese“algo” que se tutela son derechos o bienes individuales. Podríadecirse pues,

como primera aproximación, que un derecho garantista es-tablece instrumentos para la defensa de los derechos de los in-dividuos frente a su eventual agresión por otros individuos y(sobre todo) por el poder estatal; lo que tiene lugar mediante elestablecimiento de límites y vínculos al poder a fin de maxi-mizar la realización de esos derechos y de minimizar sus ame-nazas. (GASCÓn ABELLÁn, 2006, p. 13)2

Pero no solo esto, pues, para la comprensión del ga-rantismo, en especial cuando tratamos del “garantismo penalintegral”, deberá ser procedido un análisis más amplio, inclu-yendo la defensa también de los derechos colectivos frente alas grandes amenazas.

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2 Esta misma autora, en otro trabajo, también señala que es importante vi-sualizar “como primera aproximación que un derecho garantista establece ins-trumentos para la defensa de los derechos de los individuos frente a sueventual agresión por parte de otros individuos y (sobre todo) por parte delpoder estatal; lo que tiene lugar mediante el establecimiento de límites y vín-culos al poder a fin de maximizar la realización de esos derechos y de minimi-zar sus amenazas” (GASCÓn ABELLÁn, 2005, p. 21).

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Volviendo a la teoría jurídica actual, hablar del garantismoremite necesariamente a la obra de Luigi Ferrajoli3, denominadaDerecho y razón, que, aunque, lleva por subtítulo Teoría del ga-

rantismo penal, está sustentada en una teoría general del garan-tismo. En ese sentido, esa teoría general es la teoría del derechopropio del Estado Constitucional de Derecho4.

En efecto, el modelo de Estado de Derecho propuestopor el citado maestro italiano muestra la incidencia concreta dela presencia de las normas de derechos fundamentales en el Or-denamiento de un Estado de Derecho, y sirve para mostrar lasimplicaciones normativas y estructurales de la afirmación segúnla cual sin derechos fundamentales no se puede hablar de Es-tado de Derecho5. Según los enseñamientos de Andrés Ibáñez

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3 Ferrajoli (1995, p. 851 y ss) utiliza la expresión “garantismo” bajo tres acep-ciones: en la primera, designa un modelo normativo de derecho (el modelodel Estado de Derecho); en la segunda, el garantismo es una teoría jurídica(la del iuspositivismo crítico como opuesta al iuspositivismo dogmático); y, enla tercera, el garantismo es una filosofía política (la que funda el Estado en elreconocimiento y la protección de los derechos). Ambos significados apunta-rán al axioma sobre el derecho como garantía de limitación al poder, de aquíse establece la ya celebre frase del jurista italiano que reza que “El derechoes la garantía de los más débiles frente a los más fuertes. El derecho es laley del más débil”. En palabras de Aguillera Portales y López Sánches (2007,p. 2), “actualmente, existe una interesante, abundante y prolija bibliografía dedivulgación y crítica sobre el garantismo de Luigi Ferrajoli, pues estamos ha-blando de uno de los autores más señalados y renombrados dentro del nuevoparadigma jurídico del neoconstitucionalismo, cuyas ideas siguen teniendotanto una gran aceptación como una gran crítica en el mundo jurídico ameri-cano y europeo”.4 En ese mismo sentido, Fischer (2010, p. 26) nos enseña que “el garantismopenal no es simplemente legalismo, pues la teoría está fundamentada en unavisión teórica de un derecho propio de un Estado social y democrático”.5 Incluso, sostiene con absoluta claridad Ainaga Vargas (2003) que “para ha-blar del Estado constitucional hemos de partir de una premisa indispensable.no todo Estado en la configuración moderna constituye en si mismo un Estadoconstitucional, toda vez que se impone no sólo la existencia de un ordena-miento jurídico fundamental, que sea la norma de las normas, causa motordel Estado, sino que tal ordenamiento debe estar impregnado de valores hu-manistas a favor de los derechos y libertades fundamentales y de todo el con-junto de técnicas y procedimientos que hacen posible su existencia y disfruteante la invasión, intromisión o actuaciones negatorias en su contra, seadel poder público o de algún sujeto privado en su dimensión física o jurídica”.

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(2008, p. 39), la figura del jurista italiano Luigi Ferrajoli ocupa hoyun lugar central en la reflexión teórica sobre el derecho; y lohace de manera muy singular, de un modo del que, diría, noexisten precedentes en tal ámbito disciplinar. En este autor seda la más afortunada combinación de rigor lógico-formal y ri-queza de contenidos, de formación filosófica y conocimiento ju-rídico (experiencia práctica incluida), de empeño cultural ycompromiso civil.

En la construcción del maestro italiano, nunca es demásdestacar que las garantías son verdaderas técnicas insertas enel ordenamiento, que tienen por finalidad reducir la distanciaestructural entre la normatividad y la efectividad, posibilitando,así, una máxima eficacia de los derechos fundamentales (perode todos los grupos de derechos fundamentales) según determi-nado por la Constitución (FERRAJOLI, 2001, p. 25)6.

Destaca, además, Ferrajoli (2006, p. 64), que el garan-tismo viene así a configurarse al mismo tiempo como doctrina dejustificación y como teoría crítica del derecho vigente dirigida aidentificar las carencias de garantías que deslegitiman política-mente y, cuando las garantías se hallen establecidas por lasconstituciones, también jurídicamente el derecho existente; y, porconsiguiente, a poner de relieve los perfiles de injusticia y, a lavez, de invalidez respecto a los criterios axiológicos o constitu-cionales que valen como fuentes de justificación.

De otro modo, deberá hacerse hincapié en el sentido quedesde el modelo garantista el Estado de Derecho no solamentees un Estado legal sino que, más allá, es un Estado caracterizadopor la funcionalización de todos los poderes del Estado a serviciode las garantías de los derechos fundamentales de los ciudadanos,

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6 Como bien señalado por Martí Mármol (2005, p. 384), “el paradigma cons-titucional incluye asimismo, según Ferrajoli, los siguientes grupos de dere-chos fundamentales: derechos políticos (o de autonomía pública), derechosciviles (o de autonomía privada), derechos liberales (o de libertad) y derechossociales”.

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mediante la incorporación limitativa en su constitución de losdeberes públicos correspondientes, en donde cabe destacar lalegalidad en sentido estricto. De esa forma, según la idea degarantismo propuesta por Ferrajoli, el contenido de la ley deberáestar condicionado por los principios éticos que contienen elconstitucionalismo.

Cabe considerar entonces que la acepción prevalente dela palabra “garantismo” es de “garantismo penal”7. Es, en efecto,en él ámbito del derecho penal donde el garantismo ha desarro-llado como teoría y como práctica jurídica, en oposición, primero,a los contundentes legados de la legislación fascista y, después,a las numerosas leyes excepcionales y de emergencia que hanterminado reduciendo, en contra de los principios constituciona-les, el ya débil sistema de garantías contra el arbitrio punitivo (FE-RRAJOLI, 2006, p. 3-4).

Desde el planteamiento que aquí se sostiene, en la pers-pectiva garantista del proceso penal8, aunque las eventuales es-trategias en su discurso de aplicación no se prestan a inviabilizarla celeridad de los procedimientos y ni la esperada eficacia delDerecho penal, muy al contrario, el respecto a las garantías indi-viduales y colectivas demuestra la consciencia de las limitacionesinherentes al conocimiento humano y la madurez social en laardua tarea del ejercicio del poder.

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7 La expresión “garantismo”, en su sentido estricto de “garantismo penal”, sur-gió, en la cultura jurídica italiana de izquierda en la segunda mitad de los añossetenta, como respuesta teórica a la legislación y a la jurisdicción de emer-gencia que, por aquel entonces, redujeron de diferentes formas el ya de porsí débil sistema de garantías procesales. En ese sentido, el garantismo apa-rece asociado a la tradición clásica del pensamiento penal liberal (FERRA-JOLI, 2008, p. 61). 8 Incluso es de suma importancia destacar lo que defiende el profesor Ibáñez(2005, p. 60), al señalar que se debe analizar la existencia actualmente de un“garantismo dinámico, que es el que transciende el marco del proceso penaly también el de la mera garantía individual de carácter reactivo para ampliarseal aseguramiento de otros derechos y de los correspondientes espacios há-biles para su ejercicio”.

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no se puede negar que en los últimos años hemos pre-senciado una clara tendencia hacia el garantismo y hacia la tomaen consideración del acusado como titular de derechos procesa-les, que ha conducido a un mayor grado de “humanización” delproceso penal9.

todavía, a mi juicio, hablar del garantismo no puedeconsistir en la utilización de un radicalismo injustificable eirresponsable como ha sido defendido por algunas personas10.El garantismo no se parece a una doctrina “cerrada” y blindadaa la realidad criminológica actual por la cual vivimos, biencomo no se puede considerarlo una concepción acabada ybien definida11.

Alguna autora, así Gianformaggio (1993, p. 26), al co-mentar respecto al garantismo defendido por Ferrajoli, ha seña-lado que la teoría del garantismo no es reconducible, pese a lasreiteradas profesiones de fe iuspositivista y utilitarista del autor,a una corriente o a una concepción bien definida, es más, las te-orías a las que aparece más próxima no son aquellas de las quela teoría del garantismo es, y se declara, mayormente tributaria12.

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9 En este sentido, vid. Gascón Inchausti (2009, p. 471).10 Por esa razón, en lo relativo a una visión crítica del garantismo, sostieneVélez Rodríguez (2008, p. 101) que “desdeñoso de ofrecer alternativas paraenfrentar los nuevos problemas se mantiene en una posición exclusivamenteopositora de cualquier medida político criminal con la que se busque hacerfrente a alguna disfunción social que de alguna manera entre en contradiccióncon los principios en los que se sustenta. Esto ocasiona que ante problemasreales, como lo es el crimen organizado, la postura garantista no encuentrecomprensión dentro de una sociedad que reclama soluciones”. 11 Siguiendo esa línea de pensamiento, Carbonell Sánchez (2005, p. 171) esmás incisivo y objetivo al defender que “la teoría garantista de Luigi Ferrajolipresentase como un paradigma inacabado, como una obra en el medio delcamino, carente de complementación y debida comprensión”. 12 Incluso, esta misma autora, Leticia Gianformaggio (1993, p. 34 y ss.), resaltaen concreto la similitud entre la teoría de la interpretación de la Constitución deFerrajoli y la de Dworwin. Además, Gascón Inchausti (2009, p. 480) ha sostenidocon claridad que “el camino del garantismo no es ni uniforme ni cerrado: no estácerrado, porque todavía existen piezas o aspectos, en todos los sistemas proce-sales penales, en que el sujeto pasivo se encuentra en posición de mayor debi-lidad; y no es un camino uniforme, porque no todos los ordenamientos lo han

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En esa línea de pensamiento, el garantismo en sentidoamplio, integral y proporcional sería, pues, una forma de visua-lizar el derecho como se fuera algo preocupado con aspectosformales y sustanciales que deben siempre existir para que elderecho sea válido. Esa unión de esos dos aspectos tendría lafunción de rescatar la posibilidad de garantizarse, efectivamente,a los sujetos de derecho, todos los derechos fundamentalesexistentes y necesarios a su condición de vida como ser portadorde dignidad humana.

El garantismo penal en realidad revela la necesidad deuna precisa ponderación entre la indispensable tutela de la dig-nidad de la persona, mediante la protección de los derechos fun-damentales individuales, y la adecuada preservación de losmecanismos e instrumentos investigatorios y procesales capacesde propiciar condiciones para que el Estado realice de modo efi-caz el deber de prestar seguridad a los ciudadanos13.

El derecho procesal y la teoría del garantismo

En un Estado democrático contemporáneo, la eficaciaconcreta de los derechos constitucionales y legalmente asegura-dos a los ciudadanos depende de la garantía de la tutela jurisdic-cional efectiva, en razón de que, sin ella, el titular del derecho no

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recorrido del mismo modo ni han llegado, movidos por esta tendencia, a resulta-dos homogéneos”.13 En esa misma línea de pensamiento, dice Gascón Inchausti (2009, p. 471)respecto al garantismo en el proceso penal que “el centro de atención de des-plaza hacia el sujeto pasivo del proceso penal y se asienta la idea de que laaplicación judicial del Derecho penal ha de ser respetuosa con una serie degarantías y de límites vinculados con la dignidad del ser humano, es decir,con los derechos fundamentales, cuyo alcance y contenido experimentan, porotra parte, un importante desarrollo, en especial en el ámbito de la adminis-tración de justicia”.

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dispone de la protección necesaria del Estado a su pleno derecho.Entonces, la tutela jurisdiccional es, por lo tanto, no solo

una garantía, pero, ella misma, un derecho fundamental, cuyaeficacia irrestricta es necesaria asegurar, en respecto a la propiadignidad humana (GRECO, s/d).

nótese que, en ese caso, la efectividad de la protecciónencuéntrase en gran parte pendiente de la actividad jurisdiccio-nal, principal responsable por dar o negar la tutela de los dere-chos fundamentales14. En consecuencia, el fundamento de lalegitimidad de la jurisdicción y la independencia del poder judicialestán en el reconocimiento de su función de garantidores de losderechos fundamentales inseridos o resultantes de la Constitu-ción. y es por esto que se debe considerar que la función del juezes actuar como garantidor de los derechos de la persona some-tida al proceso penal.

Partiendo de esta consideración, concluyese como pre-misa preliminar que existe una relación muy próxima y conexaentre las garantías y el proceso15. todavía, es importante desta-car que el garantismo no tiene ninguna relación con el mero le-galismo, formalismo o simple procesalismo.

y más que esto, pues del reconocimiento de la existenciade un derecho sustancial a un proceso justo en las Constitucio-nes y en los documentos de derecho internacional, puédese aferirla importancia que han asumido las garantías constitucionalesdel proceso en el pensamiento jurídico contemporáneo.

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14 Por esa razón, deberá ser destacada “la importancia que en el conjunto delas instituciones del Estado desempeñan los órganos judiciales, al ser los ga-rantes últimos del respecto a las normas jurídicas por parte de ciudadanos yde poderes públicos, que, con la evolución histórica, se ha ido acentuando,por ejemplo, la necesidad de que los titulares de la potestad jurisdiccionalgocen de independencia, o la de que sus actuaciones y su régimen jurídico seencuentren sometidos al principio de legalidad” (LLOBREGAt, 2009, p. 40-41).15 En ese sentido, es correcto, en nuestra opinión, señalar que las garantíasse prestan a preservar y asegurar los derechos fundamentales consagradosen la Constitución, ganando efectividad mediante el proceso, instrumento téc-nico y público de realización de derechos frente a los tribunales.

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Surge de este enlace, el tema del garantismo procesal16. Ante ese escenario, siguiendo la doctrina defendida por

Picó I Junoy (2006, p. 111), deberá recordarse que durante la se-gunda mitad del siglo XX surgió un fenómeno de especial rele-vancia para el derecho procesal, a saber, el de la“constitucionalización de las garantías procesales”, que ha venidoa asegurar, por vía de los textos constitucionales, en el ámbitonacional, y de tratados y convenios supra estatales de derechoshumanos, en el ámbito internacional, un mínimo de garantías afavor de las partes, que deben presidir cualquier modelo de en-juiciamiento, y a través del carácter normativo de esos textos, yde su aplicación directa e inmediata, esto es, su alcance jurídico-positivo, se pretendió evitar que el futuro legislador desconocieseo violase tales garantías, así como que el juzgador no se viesevinculado por las mismas en la dirección de los procesos17.

Partiendo de esta premisa del desarrollo del tema delas garantías constitucionales, es cierto afirmar que la doctrinagarantista propone una visión alternativa para el moderno pro-ceso penal, direccionando sus objetivos a la preservación delos derechos y garantías de los ciudadanos o hasta mismo dela propia sociedad.

Búscase pues, un proceso penal que siga los ideales delos preceptos constitucionales, poniendo las garantías y derechosfundamentales como pilares destacables en la búsqueda de unproceso justo.

Parte de la idea de que el Estado democrático funda-menta su legitimidad en el reconocimiento, en la defensa y en las

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16 Para una comprensión más detallada del tema vid. Alvarado Velloso (2005),Lorca navarrete (2009). De se destacar que percibiese que en el momentoactual, existe una intensa confrontación de ideas entre los procesalistas res-pecto a las bases del “garantismo procesal”. Así se denota de los estudios deLorca navarrete, Montero Aroca y Picó I Junoy en España, Alvarado Vellosoen Argentina, Barbosa Moreira en Brasil, Franco Cipriani y Girolamo Monte-leone en Italia, Ariano Deho en Perú, etc. 17 Para un estudio más proficuo, vid., del mismo autor, Las garantías cons-titucionales del proceso (1997).

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garantías de las libertades de los ciudadanos, alejándose de laidea de que el Estado sea un instrumento de autoritarismo.

Efectivamente, parafraseando Ferrajoli, parece evi-dente que de nada servirá un sistema formalmente garantista yefectivamente autoritario. Esta falacia garantista consiste en laidea de que es suficiente las razones de un “buen” derecho, do-tado de sistemas avanzados y actuales de las garantías consti-tucionales, para contener el poder y poner los derechosfundamentales garantizados de los desvíos y arbitrariedades.

Con arreglo a lo anteriormente afirmado, se puede afir-mar que no existen Estados democráticos que, por sus sistemaspenales, puedan ser considerados plenamente garantistas oantigarantistas, sino que existen diferentes grados de garantismoy el punto central de esa cuestión estaría en el alejamiento entreel ser y el deber ser.

En palabras de uno de los defensores de la “escuela ga-rantista” en España, Lorca navarrete (2009, p. 2), el Derecho pro-cesal es funcionalmente autónomo por cuanto que su cometidoes actuar la norma en tanto en cuanto se aplique la norma proce-sal con arreglo a su propio y autónomo sistema de garantías.

A mí me parece que cuando se habla de un garantismoprocesal, en esencia, la cuestión refiérese a tratar de buscar unsistema procesal donde se compatibilice el respecto por lasgarantías del debido proceso y al mismo tiempo se obtenga laeficacia de dicho proceso. Sería el encuentro de la tan deseada“armonía procesal penal”, marcada por el equilibrio entre laeficiencia y las garantías.

y más que esto, pues el garantismo procesal supone,simplemente, la adecuación del procedimiento conforme al cualse deben desarrollar los procesos a las exigencias y mandatosque el legislador, y especialmente la Constitución, prescriben alconsagrar y proteger la garantía del proceso judicial. Por lo tanto,es propio de un Estado de Derecho.

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Presenta, además, este pensamiento dogmático, unafuerte carga de obediencia a la normativa constitucional, fun-dando sus pilares en un irrestricto mantenimiento de la vigenciade la Constitución18.

Así es que el garantismo procesal de justificaciónconstitucional supone la puesta en práctica de las garantíasque las leyes procesales se contienen, conjuntamente con lasque poseen proyección constitucional, a través de una posturagarantista plenamente comprometida con la realidad constitucio-nal de aquí y ahora (LORCA nAVARREtE, 2009, p. 4).

Es lícito, de esa forma, considerarnos la importancia delgarantismo procesal, sea como modelo normativo de la función ju-risdiccional estatal, sea como una teoría jurídica, marcada por labúsqueda de un proceso vinculado a los valores éticos prestigiadospor la Constitución, sea como base de la democracia sustancial.

Interesante, por fin, dentro del ámbito estricto del garan-tismo procesal penal, destacar que él, como metodología, enseñaque a la norma procesal penal no tanto le ha de interesar que larepresión incumba a la jurisdicción ordinaria, cuanto que la normade Derecho procesal penal sea garantía de aplicación de la normapenal. En limpio: que el Derecho procesal penal no es represory ha de ser garantista (LORCA nAVARREtE, 2008, p. 91).

y más, para se atingir el equilibrio en el proceso penal,deberá tener en cuenta que la eficacia del proceso sin garantismoes inadmisible desde un punto de vista constitucional, y el garan-tismo sin eficacia tampoco es aceptable si lo que se pretende eslograr la tutela judicial más justa posible, y no se puede olvidarseque la “Justicia” también es un valor supremo en la mayoría de

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18 Como pone de manifiesto Alvarado Velloso (2009, p. 85), “el garantismoprocesal no tolera alzamiento alguno contra la norma fundamental; por lo con-trario, se contenta modestamente con que los jueces -insisto que comprome-tidos sólo con la ley declaren la certeza de las relaciones jurídicas conflictivasotorgando un adecuado derecho de defensa a todos los interesados y res-guardando la igualdad procesal con una clara imparcialidad funcional para,así, hacer plenamente efectiva la tutela legal de todos los derechos”.

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los textos constitucionales, ya venga proclamada expresamenteo bien lo sea de forma implícita (PICÓ I JUnOy, 2006, p. 112).

Como conclusión y siguiendo esta línea del garantismoprocesal penal, deberá ser deducido el entendimiento de que elmoderno proceso penal tiene un doble fundamento que viene ajustificar su plena existencia: instrumentalidad y garantismo. Pormedio de esos dos postulados, realizada la también doble funcióndel Derecho penal, en que pese la separación institucional y laautonomía de tratamiento científico: de una parte, hace viable larealización de la justicia correctiva y la aplicación de la sanción;y de otro, sirve como instrumento efectivo de garantía de los de-rechos y libertades individuales, protegiendo a los ciudadanoscontra eventuales abusos.

El punto ideal: el garantismo integral y proporcional

hemos visto hasta ahora que el garantismo encuentrasu antítesis en el Derecho penal máximo y en el utilitarismoprocesal (eficacia antigarantista). Del mismo modo es, la matrizconstitucional garantista, un importante instrumento de resisten-cia al creciente movimiento de terror en el derecho penal y pro-cesal penal, con sus manifestaciones más perversas en la ideade guerra contra los enemigos.

Garantista, según nuestra opinión, será el pensamientoque preséntese de acuerdo con la consideración harmónica detodos (por eso se debería hablar en garantismo penal integral yproporcional) los valores, principios y reglas constitucionales, yno solo en la consideración parcial de la necesaria protección delos derechos fundamentales individuales.

Como bien recordado por Feldens (2008, p. 66), aunque

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sea innegable que la expresión “garantismo” permanezca ligadaa la figura de Ferrajoli, al contrario de lo que muchos piensan, elmodelo del citado autor italiano es tan solo uno de los modelosgarantistas y más, ser garantista no significaría adoptar una pos-tura inmune, en género, a la intervención jurídico-penal, y tam-poco pugnar por la aplicación procesal más benéfica al acusado.

Surge, entonces, la necesidad de comprehender queal lado de las garantías penales y procesales del investigado oimputado, defendidas de forma brillante en la teoría de Ferrajoli,surgen otros bienes jurídicos de la sociedad que deben ser igual-mente tutelados por el proceso penal, en consecuencia de losmandamientos de protección estipulados en el propio ordena-miento constitucional, reforzados por los tratados internacionalesfirmados por los Estados.

De gran importancia es también destacar que el ar-gumento de que el derecho y el proceso penal tiene por funciónúnica la garantía del imputado, peca por el excesivo individua-lismo, olvidándose de la existencia de bienes jurídicos colectivos,del contenido objetivo-material de los derechos fundamentales ytambién de los intereses sociales (BALtAZAR JR., 2010, p. 92)19.

Mismo estando de acuerdo en el sentido de que lafunción del proceso penal contemporáneo sea la de instrumen-talidad garantista, nos parece incompleta la visión general-mente difundida, pues presenta demasiada relevancia a ladefensa de los derechos y garantías individuales y concretasdel ciudadano. nos presenta así que al lado de las garantías

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19 El mismo autor incluso señala, con absoluta claridad, que “se el derechoy el proceso penal no prestasen para nada, del punto de vista de la protecciónde los bienes jurídicos, pero tiñesen tan solo la finalidad de garantizar el de-recho de los acusados, la mejor solución, que no puede ser defendida seria-mente, sería su abolición, caso en que tendríamos el grado máximo deprotección del imputado. Más que esto, el derecho y el proceso penal perde-rían su legitimidad, que recurre justamente del pretender ser el resultado deuna ponderación, que demostre su adecuación, necesidad y proporcionalidadpara una situación de colisión representada por la quiebra de la norma penalque pretendía mantener la paz jurídica” (BALtAZAR JR., 2010, p. 93).

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del individuo sometido a la persecución penal existen otrosbienes jurídicos que, del mismo modo, deberán ser protegidos eigualmente merecedores de tutela. Cítese como ejemplo, los de-rechos de la colectividad a la seguridad plena en situaciones pro-vocadas por la actuación de los grandes grupos de delincuentesorganizados, a ejemplo de los delitos de narcotráfico y terrorismo.

Dicho en otros términos, no se debe privilegiar el garan-tismo tan solo en el ámbito del ciudadano en el sentido individual,fortaleciendo este aspecto de modo a anular la necesaria defensade los intereses de la colectividad, de suerte a crear un hiperga-rantismo en detrimento de los demás derechos de la sociedad.

Correcto pues, el establecimiento de un garantismointegral, buscando, como bien defendido por Scarance Fernan-des (2008, p. 231), un equilibrio entre la exigencia de aseguraral investigado, al acusado y al condenado, la aplicación de susgarantías fundamentales y la necesidad de mayor eficiencia delsistema persecutorio para la seguridad social, con el intuito deproteger los demás intereses sociales tutelados.

Pues bien, a partir de esas premisas deberá ser estable-cido un garantismo integral y proporcional, lo que significa alejary abandonar una visión monocular e incompatible con la realidad,pautada en la protección de los bienes jurídicos únicamente delimputado, en cualquier situación. El garantismo integral significala consideración equilibrada y proporcional de todos los bienesjurídicos envueltos en el proceso penal y garantizado en la Cons-titución y en los tratados de derechos humanos. En ese caso, elprincipio de la proporcionalidad justamente debe ser visto comoel “fiel de la balanza”, para auxiliar la interpretación adecuada ase buscar en el equilibrio, ha mucho ya perdido, entre los bienesjurídicos en juego, de suerte a se hablar en un garantismo integraly proporcional (MEnDOnÇA, 2010, p. 180).

El problema que se observa muchas veces en las discu-siones respecto al garantismo penal refiérese al hecho de que ha

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sido encontrado un sinnúmero de manifestaciones en la jurispru-dencia y en la doctrina, con una simple referencia a los postuladosdel “garantismo penal”, sin que se comprenda, en esencia, cualla extensión real y los criterios verdaderos de su aplicación.

En muchas situaciones se percibe una distorsión de losreales pilares fundantes de la doctrina de Ferrajoli. Muchos hanconfundido el garantismo con la impunidad y con la aboliciónde todo el sistema de punición penal20. La verdad es que hasido difundido un garantismo penal únicamente monocular y hi-perbólico21, evidenciando de forma aislada la necesidad de pro-tección solamente de los derechos de los ciudadanos que seencuentran en posición de procesados o condenados por lajusticia penal22.

Incluso, Chiavario (2006, p. 461), al referirse al tema deldenominado “despertar garantista”, ocurrido a principios de losaños noventa, llega a afirmar que es un garantismo que, sin em-bargo, no es del todo cristalino, no es del todo positivo: garan-tismo que muchas veces se expresa en la acumulación derequisitos formales por parte de los jueces, las previsiones de nu-lidad se diseminan de nuevo, dando cabida a la sutil habilidaddel abogado, más que a su capacidad de persuasión sobre labase de los hechos y los argumentos de fondo23.

Ahora bien, como pone de manifiesto Díez Ripollés (2004)de modo crítico, el garantismo no nos da las claves para interpretar

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20 Vid., como buen ejemplo, el trabajo de Larrauri Pijoan (2006, p. 65-103).21 terminología utilizada en la doctrina brasileña por Fischer (2009) al señalarel equívoco cometido por algunos “falsos” garantistas.22 En la opinión de Pierobom de Ávila (2007, p. 62), “posee un razonable des-arrollo en la doctrina la perspectiva del garantismo en sentido individual, es-tableciéndose garantías a los individuos de protección contra un resultadoprocesal que no lo degrade como objeto de un juicio, pero que permita almismo una participación activa en el procedimiento, en la cualidad de sujetode derechos”. 23 Del mismo modo, la opinión de Baltazar Jr. (2009, p. 213), al señalar que “esen estos casos, de los agentes con dinero y poder para el ejercicio de la de-fensa, que vislumbrase un apego excesivo a las garantías, dando una dimen-sión mayor del que la efectivamente merecida, en el llamado hipergarantismo,

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los recientes cambios político-criminales, porque éstos obedecena una nueva forma de configurar y modelar el control social24.

En esta línea de análisis, en particular en lo referente alcombate al crimen organizado, afírmase que el garantismo tradi-cional se ha mantenido en el mundo de los ideales, y en el terrenode la crítica, sin plantear alternativas de solución viables. Ade-más, la determinación de la línea de política penal contra la cri-minalidad organizada debe encuadrarse en la discusión de lamodernización del Derecho penal, esto es, de la adaptación delas categorías a las nuevas formas de criminalidad de la sociedadmoderna (ZÚÑIGA RODRÍGUEZ, 2009, p. 194).

Así, delante de las críticas planteadas, pregúntase: ¿ylos derechos sociales de los ciudadanos, que del mismo modoson violados, a ejemplo de la seguridad colectiva delante del cre-cimiento de la delincuencia organizada transnacional, no estaríanamparados por el garantismo en los moldes defendidos por LuigiFerrajoli?

nos parece que en la obra de Ferrajoli esa idea no sepresenta puramente delimitada. De otra parte, una respuesta ho-nesta a esta cuestión deberá se basar en el hecho de que unacomprensión integral de los postulados garantistas nos lleva acomprender que el Estado debe llevar en cuenta que, en la apli-cación de los derechos fundamentales (individuales y sociales),habrá la necesidad de garantizar también al ciudadano la eficien-cia y la seguridad, evitándose la impunidad. El deber de garanti-zar la seguridad no está en solo evitar conductas delictuosas queatinjan derechos fundamentales de terceros, pero también en ladebida apuración (con respecto a los derechos de los investiga-dos o procesados) del acto ilícito y, en siendo el caso, en la

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una hipertrofia de la interpretación de los derechos de defensa, que compro-mete el caminar de la persecución penal”.24 también interesante la opinión de Zúñiga Rodríguez (2009, p. 193)al señalarque “la aproximación a la política penal de la criminalidad organizada desdeel garantismo tampoco es correcta”.

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punición del responsable. A este pensamiento dogmático sepodría denominar “garantismo positivo”25.

Incluso, Streck (2005, p. 171-202) utiliza las expresio-nes “garantismo negativo” (para la protección de las libertadesnegativas por la prohibición de exceso) y “garantismo positivo”(para la protección de las libertades positivas mediante la prohi-bición de insuficiencia), concluyendo por la posibilidad, además,de un control de constitucionalidad bajo la perspectiva del garan-tismo positivo26.

Sin embargo, muy importante a la exacta comprensiónde este asunto ha sido la opinión defendida por Goméz de Liaño(2004, p. 23), al sostener que el nuevo marco constitucional po-tencia las normas relativas a los derechos fundamentales detodas las personas y también de la sociedad como tal, ya que elenfoque cabal de esa cuestión debe hacerse teniendo en cuentaque en ella confluyen tres clases de intereses diversos: a) elorden social y la seguridad pública, que precisa de la sociedadpara su defensa y existencia; b) la dignidad y la libertad personaldel “presunto culpable” al que asiste el sagrado derecho de de-fensa; y c) los derechos de la víctima a que se restablezcan su

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25 Vid., con más detalles, Mendes (2004, p. 131-142). Es por esa razón que no esadecuado hablar tan solo de una función de protección negativa del Estado (ga-rantismo negativo). nótese que, en ese caso, Baratta (1999, p. 11) ha utilizado eltérmino “política integral de protección de los derechos”, lo que significa definir elgarantismo no solamente en sentido negativo como límite del sistema positivo, osea, como expresión de derechos de protección relativamente al Estado, sino tam-bién como garantismo positivo. Prosigue el citado autor sosteniendo que esenuevo modelo de Estado deberá dar la respuesta para las necesidades de segu-ridad de todos los derechos, también los prestacionales por parte del Estado (de-rechos económicos, sociales y culturales) y no solamente de aquella parte de losderechos denominados de prestación de protección, en particular contra las agre-siones provenientes de comportamientos delictivos de determinadas personas.26 En este significativo estudio, el citado autor desarrolla sus ideas partiendo dela constatación de que no parece difícil sostener la tesis por la cual solamenteel acusado puede soportar el riesgo de restricción a la libertad, incidiendo, poresto, el principio de proporcionalidad como protección contra los excesos esta-tales (lo que se denomina de garantismo negativo). Por otro lado, en una pers-pectiva liberal-iluminista, no tiene sentido el proceso buscar garantir el derechode libertad y, al mismo tiempo, transformarse en causa de agresión al ciudadano.

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integridad física, moral y demás derechos afectados por la infrac-ción penal.

Así es que, delante de todo lo afirmado, en nuestro modode pensar, el verdadero garantismo no comprende una protecciónilimitada del individuo, pero también debe compatibilizar la nece-sidad de protección de la colectividad, pues, en contrario, estarí-amos delante de un “garantismo o de un minimalismo autista”27.

Por lo tanto, una visión unilateral del garantismo tan soloindividualista no es compatible con la efectiva protección de losderechos fundamentales como un todo, ni con la dignidad hu-mana bajo la perspectiva personalista, y mucho menos con lasideas que impregnan el constitucionalismo moderno.

Siguiendo por esa línea, se puede defender sin miedo deequivocarse que el garantismo exacerbado puede originar la inefi-cacia del proceso, y la eficacia extrema puede propiciar la vulnera-ción de las garantías básicas de la actividad del juez, con su deberde imparcialidad, y de las partes, con sus derechos a la defensa(PICO I JUnOy, 2006, p. 126).

En realidad, al lado de los bienes jurídicos individualeso dotados de referente individual y al mismo nivel de exigenciacautelar autónoma, existen auténticos bienes jurídicos sociales,transindividuales, transpesoales, colectivos, o como quiere quepreferíamos exprimirse a propósito (FIGUEIREDO, 2001, p. 51).

De esa forma y de acuerdo con los postulados de ungarantismo penal integral28, puédese afirmar que realidad in-negable es que, al lado de los bienes individuales, existe unmodelo en la actualidad de derechos sociales, con una pros-pección colectiva, producto de las funciones del Estado inter-

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27 Esta expresión ha sido utilizada por Sarlet (2004, p. 60-122).28 Por esta denominación se quiere decir que el garantismo integral tiene la fun-ción de maximizar la protección del individuo directamente afectado por el pro-ceso contra una irracionalidad punitiva, pero también de maximizar larealización práctica de los derechos de la colectividad mediante la protecciónpenal. Así es que algún autor, cítese Pierobom de Ávila (2007, p. 61), señalaque “una visión unilateral del garantismo tan solo individualista no es compatible

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vencionista, sobre todo, en políticas económicas (BAROnAVILAR, 2006, p. 401).

En palabras de Douglas Fischer (2010, p. 48), del garan-tismo penal integral surge la necesidad de protección de losbienes jurídicos (individuales y también colectivos) y de la protec-ción activa de los intereses de la sociedad, de los investigados yde los procesados. Integralmente aplicado, el garantismo imponeque sean observados rígidamente no solo los derechos fundamen-tales (individuales y colectivos), pero también los deberes funda-mentales (del Estado y de los ciudadanos) previstos en laConstitución. El Estado no puede agir sin proporcionalidad: debeevitar excesos y, al mismo tiempo, no incurrir en deficiencia en laprotección de todos los bienes jurídicos, principios, valores e inte-reses que posean dignidad constitucional, siempre buscando la pro-porcionalidad cuando necesaria a la restricción de alguno de ellos.

Dicho de modo diverso, la tese central del garantismo in-tegral se resume en el hecho de que habrán que ser observadosde modo rígido no solo los derechos fundamentales individualesy también colectivos, pero también los deberes fundamentalesdel Estado y de los ciudadanos previstos en la Constitución29.

tenemos pues que admitir que en la cúspide de los de-rechos humanos se encuentra la libertad y la dignidad personal,que los textos constitucionales proclaman como valores superioresdel ordenamiento jurídico, que es necesario proteger. Pero nuestralibertad es una libertad en convivencia, lo cual significa pensartambién en la de los demás. y como tantas veces se ha puestode manifiesto, la propia libertad tiene los límites que la marcan

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con la efectiva protección de los derechos fundamentales como un todo, ni conla dignidad humana desde la perspectiva personalista, tampoco con la idea querige la Constitución”. 29 En ese sentido, Carbonell (2005, P. 194) destaca que “la obligación de pro-teger significa que el Estado debe adoptar medidas destinadas a evitar queotros sujetos violen los derechos sociales, lo que incluye mecanismos no so-lamente reactivos frente a las violaciones […], sino también esquemas de ca-rácter preventivo que eviten que agentes privados puedan hacerse con elcontrol de los recursos necesarios para la realización de un derecho”.

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los derechos ajenos, y así cuando regulamos aquella convivenciaa través del ordenamiento jurídico, se impone restricciones aaquella libertad30.

A respecto, cobra singular relevancia la opinión de Ran-gel (s/d) cuando señala que la teoría del garantismo penal de-fendida por Ferrajoli es originaria de un movimiento del usoalternativo del derecho nascido en Italia en los años setenta porintermedio de jueces del grupo de la magistratura democrática(de entre ellos, Ferrajoli), siendo una consecuencia de la evolu-ción histórica de los derechos de la humanidad, que moderna-mente considera el imputado no como un objeto de investigaciónestatal, pero si como sujeto de derechos, tutelado por el Estado,que pasa a tener el poder-deber de protegerlo, en cualquier fasedel proceso (investigatorio o propiamente punitivo).

En síntesis, siguiendo a una línea integral del pensa-miento garantista, deberá ser defendido con uñas y dientes que,en un verdadero Estado Constitucional de Derecho, no se puedeprescindir, directa o indirectamente, explícita o implícitamente, dela tutela penal como uno de sus marcos primarios, responsablepor la protección de aquellos núcleos axiológicos fundamentalessobre los cuales se reposan sus estructuras.

De otra parte, deberá ser concluido que el garantismointegral o proporcional es aquello que respecta las garantías delacusado o investigado, no las violando de modo inadecuado, sinnecesidad o sin proporcionalidad, al mismo tiempo en que ase-gura de modo eficiente la protección de otros bines jurídicosrelevantes para la sociedad, como, por ejemplo, el derecho a laseguridad, dentro de un doble enfoque del principio de propor-cionalidad, o sea, incluyendo la prohibición de exceso, especial-mente al establecer límites a los derechos y garantías delacusado, y también, la necesidad de establecer una tutela juris-diccional penal efectiva y célere, que venga a asegurar la segu-

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30 En este sentido, vid. Gómez de Liaño González (2004, p. 19).

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ridad del ciudadano, de suerte a prestigiar los bienes jurídicosque son objeto de protección por la propia norma penal.

Llegado a este punto se hace imprescindible lanzaralgunas palabras respecto al derecho a la seguridad como dere-cho fundamental a ser buscado para la manutención de la pazciudadana y para la prevención de la delincuencia.

Una primera observación debe relacionarse con el hechode que en la gran mayoría de los Estados democráticos no existeduda respecto al status constitucional del derecho a la seguridadpor parte del ciudadano, con la necesaria contrapartida del deberpor parte del Estado31.

En razón que la transgresión hace parte de la vida, lamanutención de niveles mínimos de seguridad requiere unapersecución penal mínimamente eficaz, lo que, a su vez, de-pende de una investigación criminal dotada de medios capacesde hacer frente a la criminalidad tradicional y aquella que presen-tase contornos de modernidad, principalmente la criminalidadempresarial y organizada (BALtAZAR JR., 2009, p. 184).

Así, la prohibición de insuficiencia (Untermaßverbot)

como otra face de la moneda de la protección de los derechosfundamentales, al lado de la prohibición de exceso (Übermaßver-

bot) es especialmente relevante en relación al deber estatal degarantizar la seguridad32, tanto en su sentido objetivo, de seguri-dad exterior, o sea, de protección a los riesgos y peligros efecti-vos, como en sentido subjetivo o interno, de ausencia de miedo

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31 Vid., como ejemplo, la jurisprudencia consolidada en el Supremo tribunalFederal brasileño, hC 87.310/SP, Min. Carlos Britto, en 08.08.2006. Estemismo tribunal Constitucional también ha reconocido, al lado de los derechosfundamentales de garantía del acusado, como derechos de defensa contra laactuación estatal, también los derechos de la colectividad como el principio dela protección penal eficiente (StF, hC 90138/PR, Min. Ricardo Lewandowski,en 27.02.2007). De otra parte, peculiar opinión es adoptada por parte de ladoctrina española al afirmarse que “la persecución penal no es un derecho fun-damental, por más que el Estado deba garantizar la seguridad pública”. Vid.,Moreno Catena (1999, p. 147). 32 En ese sentido, “es indiscutible que la seguridad interna y externa tiene unalto significado para las tareas estatales”. Vid. Gusy (1996, p. 573).

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(Freiseinvon Furcht), bien jurídico que conforma y condiciona elejercicio de los derechos fundamentales (hABERLE, 1983, p. 14).

El deber estatal de garantizar la seguridad de los ciuda-danos33 es uno de los fundamentos de la propia existencia y legi-timación del Estado, cuya alternativa es la anarquía. La seguridadno es, todavía, un fin a ser buscado a cualquier precio como yahemos visto, pues ni mismo se podría decirse que existe una se-guridad absoluta, lo que solamente sería obtenido a través de unalto grado de vigilancia, que comprometería la libertad general deacción, que es basilar para el libre desarrollo de la personalidadhumana y que se confunde con la propia dignidad del hombre(BALtAZAR JR., 2009, p. 347).

La verdad es que la existencia del derecho a la seguri-dad, afirmada al tiempo del absolutismo y acepta en la época delliberalismo, mantiene en el modelo contemporáneo del Estadode Derecho democrático y social, con las adaptaciones decurren-tes de las nuevas estructuras estatales, lo que acrecienta, sin ex-cluir las demás acepciones de la seguridad, entre los ciudadanosy contra el Estado, la protección ofrecida por los derechos socia-les para las necesidades de seguridad económica (ISEnSEE,1983, p. 3-5).

Conclusiones

Al fin de este artículo es de concluirse con algunas ideascentrales.

En primero, que un factor de relevancia en esta tenden-cia hacia el garantismo en el proceso penal ha sido el hecho de

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33 En palabras de Bull (1977, p. 347), “esta es la más antigua tarea impuestaal Estado y ha sido valida por muchos siglos como la única o la más impor-tante justificativa del Estado en si”.

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convertirse el proceso penal en un proceso con mayor protago-nismo de las partes, en el que quedé más limitada la influenciadel juez o del tribunal. Que el proceso penal sea cada vez másun proceso “de partes” conduce inevitablemente a realzar la fi-gura del acusado y fuerza la necesidad de reconocerle frente alacusador público una posición de igualdad en derechos y posibi-lidades procesales34.

Además, en consonancia con lo que se acaba de afir-marse, que es posible entender la lucha contra la criminalidadorganizada, con el debido respecto a los postulados garantistas,o sea, el garantismo como forma de prevalencia de los derechosfundamentales debe estar presente cuando se trata del combatea esta grave forma de delincuencia.

Otra interpretación que se intente hacer sobre el temaconducirá, por cierto, a una caótica situación de impunidad refor-zada por una creciente y abusiva instrumentalización de las ga-rantías. De lo dicho resulta que el garantismo penal no es, endefinitiva, sinónimo de impunidad. no puede significar deslealtadprocesal ni mucho menos absolución o condenación a cualquiercosto. Luchase con vehemencia contra el abuso de poder depunir del Estado y repítese el error con el abuso por veces delderecho de defensa, intentando difundir una equivocada concep-ción de un “garantismo negativo”, utilizándose de maniobras pro-cesales de procrastinación o aduciendo perjuicios para ladefensa sin fundamentación jurídica consistente.

Esto significa, sencillamente, que debe lograrse la mayoreficacia posible en la lucha contra la criminalidad, especialmentela organizada, pero siempre en el marco del Estado democráticode derecho, evitando una relativización innecesaria de los prin-cipios y garantías, y lo más grave, sin obedecer a criterios de pro-porcionalidad.

no se puede afirmar, por ejemplo, que los poderosos

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34 En ese sentido, vid. Gascón Inchausti (2009, p. 473-474).

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(autores de delitos de cuello blanco) o delincuentes pertenecien-tes a grandes grupos criminales no necesitan de garantías, por-que ello, además, podría acabar afectando a la generalidad delos ciudadanos. La reducción de las garantías del proceso con elpretexto de combatir la criminalidad de poderosos puede acabarconvirtiendo la excepción en regla general, con el peligro de quefinalmente se institucionalice el modelo del proceso como un ins-trumento del Estado de control social, frente al actual modelo delproceso como instrumento del Estado de Derecho (EChARRICASI; GOnZÁLEZ GARCÍA, 2005, p. 62). Fruto de esta eventualdesorientación, podría estar legitimándose un verdadero procesopenal del enemigo, asunto este que tendremos la oportunidad deanalizar en apartados siguientes.

también que la tarea del Estado es defender la sociedad,a partir de la conjunción de las varias dimensiones de los dere-chos, protegiendo la misma contra los varios tipos de agresión. Osea, el agresor no es solamente el Estado. Cítese como ejemplolas agresiones practicadas por la criminalidad organizada trans-nacional que impone obstáculos, en gran escala, a la realizaciónde políticas públicas por parte del Estado, provocando miedo ysensación de inseguridad a toda la sociedad. Por fin, la conclusiónfinal dice respecto a la necesidad de imponerse una recusa a laeficacia antigarantista35 demostrada muchas veces por los órga-nos de persecución penal, pues, en este caso, la eficacia invocadapodría llevar a una erosión del orden constitucional36.

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35 Se puede utilizar la expresión “utilitarismo procesal” como sinónima de efi-ciencia antigarantista. nótese que el término “utilitarismo” encuéntrase rela-cionado a la idea del combate a la criminalidad a cualquier costo, a un procesopenal más célere y eficiente, en el sentido de disminuir las garantías proce-sales del ciudadano en nombre de los intereses estatales de más rápidamenteapurar y aplicar sanciones. Es sinónimo de exclusión, supresión de derechosfundamentales para alcanzar la máxima eficiencia (antigarantista). 36 Para mejor entender el drama y la tragedia de los anhelos inmediatistas porla celeridad y rapidez en los juicios penales, es esencialmente recomendableque se vuelva a los clásicos, citando a Carnelutti (1994, p. 14), que señalabaque “cuando oímos decir que la justicia debe ser rápida, he ahí una fórmula

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En síntesis, tratase de comprender la cuestión desde labrillante óptica destacada por Baratta (1999, p. 110), el cual hadenominado la situación de “política integral de protección delos derechos”, lo que significa definir el garantismo no sola-mente en sentido negativo como límite del sistema positivo, osea, como expresión de los derechos de protección relativamenteal Estado, sino que también como garantismo positivo37.

Del mismo modo, perfecta la observación del jurista por-tugués Baptista Machado (1998, p. 131), para quien el principiodel Estado de Derecho, en este punto de la historia contemporá-nea, no exige tan solo la garantía de defensa de derechos y li-bertades contra el Estado: exige también la defensa de losmismos contra cualquier de los poderes sociales de hecho. Así,es posible afirmar que la idea del Estado de Derecho se pierdeen su función cuando se abstiene de recurrir a los medios pre-ventivos y represivos que se muestren indispensables a la tutelade la seguridad de los derechos y libertades de los ciudadanos.

Por fin, es muy importante esclarecer una vez más quela lucha contra la delincuencia organizada no es incompatible conla más escrupulosa observancia de las garantías constituciona-les. todo lo contrario: su cumplimiento constituye la esencia del

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que se debe tomar en beneficio de inventario; el clisé de los llamados hombresde Estado que prometen a toda discusión del balance de la justicia que tendráun desenvolvimiento rápido e seguro, plantea un problema análogo de la cua-dratura del círculo. Por desgracia, la justicia, si es segura no es rápida, y sí esrápida no es segura. Preciso es tener el valor de decir, en cambio, del proceso:quien va despacio, va bien y va lejos. Esta verdad transciende, incluso, de lapalabra proceso, la cual alude a un desenvolvimiento gradual en el tiempo:proceder quiere decir, aproximadamente, dar un paso después del otro”. 37 Este mismo autor centraliza sus ideas al definir que no se puede más ha-blarse tan solo en una función de protección negativa del Estado, o dicho enotras palabras, en el garantismo negativo. Así es que llama la atención parala relevante circunstancia de que este nuevo modelo de Estado deberá dar larespuesta para las necesidades de seguridad de todos los derechos, tambiénlos prestacionales por parte del Estado (derechos económicos, sociales, cul-turales) y no solamente de aquella parte de los derechos denominados deprestación de protección, en particular contra agresiones provenientes decomportamientos delictivos de determinadas personas.

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Estado de Derecho y la demostración más palpable de su supe-rioridad ética frente a otros tipos de Estado38.

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38 En este sentido, cfr. Gálvez Muñoz (2003, p. 67).

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