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Humanitas 58 (2006) 69-97 A PLAUSIBILIDADE DA SÁTIRA DE SULPÍCIA E SUA RELAÇÃO COM A CULTURA PORTUGUESA NUNO SIMÕES RODRIGUES (Universidade de Lisboa) Nos epigramas de Marcial, são feitas duas referências a uma poetisa de nome Sulpícia. Logo no início da primeira delas, escreve o poeta: «Leiam Sulpícia todas as bem amadas/ que desejem agradar a um só homem;/ leiam Sulpícia todos os maridos/ que desejem agradar a uma só esposa.» 1 Na realidade, todo o epigrama é um elogio da poetisa 2 . O mesmo acontece com o segundo poema, com que Marcial celebra os quinze anos de casamento de Sulpícia com Caleno, que alguns autores ________________ 1 MART. 10. 35, 1‑4. Utilizamos a edição portuguesa publicada pelas Edições 70, MARCIAL, Epigramas IV, Lisboa, 2004, com tradução de Paulo Sérgio Ferreira e notas de Maria Cristina de Sousa Pimentel. 2 MART. 10. 35: «Leiam Sulpícia todas as bem amadas/ que desejem agradar a um só homem;/ leiam Sulpícia todos os maridos/ que desejem agradar a uma só esposa./ Esta não reclama a loucura da Cólquida/ nem relata o festim do bárbaro Tiestes;/ e Cila, Bíblis, não crê que tenham existido/ ‑ mas fala de castos e puros amores,/ de divertidos caprichos e brinquedos./ Quem apreciar com justiça os seus versos/ dirá que poetisa alguma é mais maliciosa,/ dirá que poetisa alguma é mais virtuosa./ Tais seriam, eu posso imaginar, o folguedos/ de Egéria na húmida gruta de Numa./ Fora esta tua colega ou tua professora,/ e terias sido mais douta, permanecendo casta, Safo;/ mas, se tivesse visto, a um tempo e a par contigo,/ Sulpícia, tê‑la‑ia amado o inflexível Fáon./ Em vão: porque esta, nem como esposa de Tonante nem como amante de Baco nem de Apolo,/ quereria viver, se Caleno lhe tivesse sido arrebatado.»

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APLAUSIBILIDADEDASÁTIRADESULPÍCIAESUARELAÇÃOCOMACULTURAPORTUGUESA

NUNOSIMÕESRODRIGUES(UniversidadedeLisboa)

NosepigramasdeMarcial,sãofeitasduasreferênciasaumapoetisa

de nome Sulpícia. Logo no início da primeira delas, escreve o poeta:«Leiam Sulpícia todas as bem amadas/ que desejem agradar a um sóhomem;/leiamSulpíciatodososmaridos/quedesejemagradaraumasóesposa.»1 Na realidade, todo o epigrama é um elogio da poetisa2.Omesmo acontece como segundopoema, comqueMarcial celebra osquinze anos de casamento de Sulpícia comCaleno, que alguns autores

________________ 1MART.10.35,1‑4.UtilizamosaediçãoportuguesapublicadapelasEdições

70,MARCIAL,EpigramasIV,Lisboa,2004,comtraduçãodePauloSérgioFerreiraenotasdeMariaCristinadeSousaPimentel.

2MART.10.35:«LeiamSulpíciatodasasbemamadas/quedesejemagradaraumsóhomem;/leiamSulpíciatodososmaridos/quedesejemagradaraumasóesposa./EstanãoreclamaaloucuradaCólquida/nemrelataofestimdobárbaroTiestes;/eCila,Bíblis,nãocrêquetenhamexistido/‑masfaladecastosepurosamores,/ de divertidos caprichos e brinquedos./ Quem apreciar com justiça osseusversos/diráquepoetisaalgumaémaismaliciosa,/diráquepoetisaalgumaémaisvirtuosa./Taisseriam,eupossoimaginar,ofolguedos/deEgérianahúmidagrutadeNuma./Foraestatuacolegaoutuaprofessora,/eteriassidomaisdouta,permanecendo casta, Safo;/mas, se tivesse visto, a um tempo e a par contigo,/Sulpícia,tê‑la‑iaamadooinflexívelFáon./Emvão:porqueesta,nemcomoesposadeTonantenemcomoamantedeBaconemdeApolo,/quereriaviver,seCalenolhetivessesidoarrebatado.»

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nãohesitamemconsiderarumpatronodoepigramatista3.Ajulgarpelaspalavras deste poeta contemporâneo dos Flávios, Sulpícia era umamulher que escrevia versos, marcados por amores castos e virtuosos(amores casti et probi), apropriados a uma vida monogâmica, em que oamorconjugaleraexaltadoeseignoravamasfantasiasmitológicasbemcomo as paixões desenfreadas, que caracterizam as heroínas de outroscorpora,apesardenãodeixardeseralgomaliciosa(nequior)nosseustex‑tos. Tratar‑se‑ia, contudo, de uma malícia saudavelmente erótica, poislogode seguidaopoeta empregao comparativo sanctior para amesmapessoa4. Sulpícia merece, por isso, o elogio do epigramatista, sobres‑saindonumambientesocialmentemarcadoporalgumdesenfreiomoraleque alguns romanos da época reconheceram como pouco adequado aoespírito que presidira aos tempos da República. As comparações comEgériaecomSafotêmaintençãodeelogiarSulpícia,sendoqueambasasfigurassão tidas,pordiferentesrazões,comomatriciaisnadefiniçãodofeminino greco‑latino. Egéria como a imagem da mulher ponderada epoliticamentesábia5;Safocomoagrandepoetisagrega,poisjáosRoma‑________________

3 MART. 10. 38: «Ó carinhosos quinze anos de casamento/ que, com tuaSulpícia, Caleno,/ um deus te concedeu que completasses!/ Ó noites, ó horas,todasmarcadas/Por caraspedrinhasde indianasplagas!/Óque combates, quemútuospleitos,/ovossofelizleitoealucernapresenciaram,/ébriosdosorvalhosnicerotianos!/ Viveste, ó Caleno, três lustros./ Este é o único passado que valeparati/Esócontasosdiasdecasado./Destes,se,peranteoteuincansávelrogo,/Átropotedevolvesseumdiaapenas,/Quatrovezesoprefeririasàvelhicepília.»Para esclarecimentos e comentários acerca destes dois epigramas, ver ediçãoacimacitada,p.38,40.J.P.SULLIVAN,Martial:TheUnexpectedClassic.ALiteraryandHistoricalStudy,Cambridge,1991,49,defendeaideiadequetantoSulpíciacomoCaleno seriam patronos de Marcial; E.A. HEMELRIJK, Matrona Docta. EducatedWomen in theRoman élite fromCornelia to JuliaDomna, London/NewYork, 1999,160‑164,contudo,crêqueapenasCalenoseriapatronodopoeta,baseando‑senofactodeapersonalidademasculinaestarmaispresentenasduascomposiçõesdeMarcial.

4 MART. 10. 35, 11‑12: nullam dixerit esse nequiorem,/ nullam dixerit essesanctiorem;10.35,8‑9:sedcastosdocetetprobosamores,/lususdeliciasfacetiasque.

5 A. RICHLIN, «Sulpicia, the satirist», CW 86, 1992, 125‑140, sugere que apersonagemdeEgéria aparecerianospoemasdaprópria Sulpícia.Dequalquermodo, a figuradamitologia romana é citada emConquestio Sulpiciae 68, o que,nestequadro,ésignificativo.

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nosassimaconsideravam.Mas,overso«teriassidomaisdouta,perma‑necendo casta»6 indica claramente que, ao contrário da escritora deLesbos, Sulpícia orientou a sua vida privada de ummodomoralmentediferente daquele que tem sido atribuído a Safo. Esta ideia reforça osprimeirosversosdomesmoepigrama,onde se lêqueapoetisa romanapretendeu «agradar a um só homem». Isto significa que Sulpícia teráconcretizado o ideal romano da uniuira7. Na mesma linha temática, éigualmente a relação conjugal de Sulpícia que surge no segundo epi‑gramadeMarcial,aparentementeumaconsolatioaCaleno,pelamortedapoetisa8.AcelebraçãodosquinzeanosdematrimóniocomCaleno,tam‑bémcaracterizadopelopoetacomoumdosquepersistememagradara«umasóesposa»,reforçaa ideiadacontençãomoralquelhesestáasso‑ciada.TambémosversosconhecidosatravésdoescoliastadeJuvenalsecoadunamcomoqueMarcialdizacercadela9.

SeSulpíciafoiumapoetisadignadenotaereferêncianosepigramasde Marcial, é muito pouco o que dela sabemos, porque é demasiadoescasso o que dela nos chegou para que possamos comprovar as afir‑maçõesdopoetadeBílbilis.Hámesmoquemnãohesiteemproporqueonome constitui na verdade um pseudónimo metafórico, cujo portadorteriapertencidoàcorteflávia,fazendopartedospoetasquealimentavamaadulatioimperialeapoiavamasuapolítica,equeCalenoéumaperso‑nagem fictícia10.Mas talvez esse deficit seja sintoma do pouco interessequeosseustextossuscitaramaosseuscontemporâneos,apesardaspala‑________________

6MART. 10. 35, 16:Hac condiscipula uel hac magistra/ esses doctior et pudica,Sappho.

7Sobreestaquestão,verS.TREGGIARI,RomanMarriage. Iusticoniuges fromthetimeofCicerotothetimeofUlpian,Oxford,1991.

8 J.P.HALLETT, «Martial’s Sulpicia andPropertius’Cynthia»,CW86, 1992,99‑123.

9M.C.C.‑M.S.PIMENTEL,AadulatioemMarcial,Lisboa,1993,57,nn.200‑201;H. BARDON,La littérature latine inconnue. Tome II, L’époque impériale, Paris, 1956,24‑25;E.A.HEMELRIJK,MatronaDocta,passim.

10 L. DURET, «Dans l’ombre des plus grands II: Poètes et prosateurs malconnusdelalatinitéd’argent»,ANRWII,32.5,1986,3218‑3222,queconsideraqueo recurso ao nome de «Sulpícia», baseado no nome da Sulpícia do CorpusTibullianum, traduz uma argumentação retórica pela importância da poetisa;sobre a adulatio e os Flávios, verM.C.C.‑M.S. PIMENTEL,A adulatio emMarcial,passim.

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vrasqueMarcial lhededica, independentementedo factode terounãosido umamulher a escrevê‑los11. O facto de Sulpícia escrever, todavia,nãoéumaoriginalidade,vistoqueopróprioMarciallouvaoutroscasosdemulheres do seu tempo, e anterior, que se dedicavam a essa activi‑dade.

Com base nos passos de Marcial, os investigadores têm tentadosituaraSulpíciadeCalenonotempo.Oseunomeeapossibilidadedeterpatrocinadooepigramatistasugeremumaorigemaristocrática.Vistoqueo segundo epigrama celebra os quinze anos de casamento da poetisa equeolivroXdeMarcialfoiobjectodeduasediçõesnotempodopoeta,umaem finaisde 95 e outra emmeadosde 98, tem‑se concluídoqueoepigrama 35 constava já daprimeira edição, sendo Sulpícia ainda viva,enquantoocatalogadocomonúmero38teriasidopublicadoapenasnasegundaedição,umavezquesejustificaráprecisamentepelofalecimentoda poetisa, ocorrido entre as duas publicações12. Com base nesta pre‑missa,etendoemcontaainformaçãodadaporMarcial,tem‑seconcluídoqueSulpiciaCaleniseterácasadoentre81e83d.C.Comoalgunsautoresapontamosdozeanoscomoaidadeemqueamaioriadasmulheresdaelitearistocráticaromanasecasava,épossívelqueSulpíciatenhanascidopor volta do ano 70, talvez entre a morte de Nero e a ascensão dosFlávios13.Assim,apoetisaterávividonumperíododeintensaactividade________________

11A.LÓPEZ,Nosólohilaronlana.Escritorasromanasenprosayverso,Madrid,1994,98‑99,crêqueaausênciade textosdaautoriadeSulpícia,comodeoutrasautoraslatinas,sedeveaofactodealiteraturadeautoriafemininatersidopoucovalorizada pelo universomasculino e consequentemente esquecida. Talvez issonão se deva tanto ao aspecto «genérico» da questão,masmais ao pouco valorliterário que esses textos teriam. Na verdade, as mulheres eram comparativa‑mentemenosalfabetizadasqueoshomense,porconsequência,menoseruditasecomumamenorformaçãoliterária.Acrescequeasmulherescomessaformaçãoocupavamumlugarmínimonasociedaderomana.Terásidoestaarazão?Sobreestaproblemática,veroestudodeE.A.HEMELRIJK,MatronaDocta,passim.

12ConclusõesdeI.LANA,LaSatiradiSulpicia.Studiocritico,testoetraduzione,Torino,1949,32‑35,aceitesereproduzidasporA.LÓPEZ,Nosólohilaronlana,102,eE.A.HEMELRIJK,MatronaDocta,161.DiscordadestaideiaA.RICHLIN,«Sulpicia,thesatirist»,125‑140,quepropõeumdivórcioenãoofalecimento.

13Alegislaçãoeoutrostextosromanosapontamparaosdozeanoscomoaidadefemininadocasamento,poiscoincidiacomamenarca;cf.MACR.7.7.6;D.C.LIV, 167; Dig. 5.4.24; M.C.C.‑M.S. PIMENTEL, «A vida quotidiana» in R.M.S.

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política, como foram o fim da dinastia júlio‑cláudia, a emergência dosFlávios, a guerra judaica, a difusão do cristianismo e o principado deDomiciano.Aomesmotempo,terásidocontemporâneadeautorescomoo já mencionado Marcial, Flávio Josefo, Juvenal, Tácito e Plutarco.Sulpícia terá assim coexistido comum importanteperíododa literaturaimperial.

O nome de Sulpícia foi recordado por Ausónio. No final do seuCentonuptialis,estepoetalatinodoséculoIVrecordaSulpíciaentreváriosoutros de vida irrepreensível, como Platão, Cícero, Marcial, Plínio eApuleio,mas cuja criação literária foi algo ousada14. Inserir o nome dapoetisa entre consagrados, como os citados, parece indicar que os seustextos terãosidoconsiderados suficientemente importantesparaque talfizesse sentido, pelo que não deixa de ser estranho que praticamentenada deles tenha sobrevivido. Talvez afinal a alusão se prenda com ofacto de as características,mais que a qualidade literária, da poesia deSulpíciajustificassemasuamençãonalistadeAusónio.Poroutrolado,ofactodeumautordoséculoIVacitarpoderáserreveladordeque,nesseperíodo, a obradeSulpícia era ainda conhecida,mas, comoassinalaA.López,ebem,aspalavrasqueopoetalatinotardioescrevesobreapoe‑tisa não indicam que ele conhecesse a sua obra directamente15. A suamemória,contudo,permanecia.JánoséculoV,opoetaSidónioApolinarvoltavaaincluirSulpícia,comCaleno,numalistadenomesdaliteraturagreco‑latina, apresentada nos seus Carmina minora16. Aí, a autora é denovo associada a Safo, sendo estas as únicas mulheres citadas porSidónio.

Alguns filólogos atribuem a Sulpícia apenas dois versos de tipocatuliano, conhecidos através de um escólio a Juvenal e de sentido

________________ Centeno,coord.,CivilizaçõesClássicasII.Roma,Lisboa,1997,156,eA.G.HARKNESS,«AgeatMarriageandatDeathintheRomanEmpire»,TAPhA27,1986,35‑72.I.LANA,La Satira di Sulpicia, 32‑35, eA. LÓPEZ,No sólo hilaron lana, 102, contudo,situamonascimentodeSulpíciaentreosanos60‑65d.C.

14AUSON.,Centonupt.10(prurireopusculumSulpiciae).15 A. LÓPEZ,No sólo hilaron lana, 102, concluindo pela frase de Ausónio:

prurireopusculumSulpiciae,frontemcaperare.16SIDON.APOL.,Carm.9,259‑264.

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incerto,dadaafaltadecontexto17.Mas,pelotextodeJuvenal,éevidentequesetratadeumtemarelacionadocomasmulheres,vistoqueoescóliofunciona como comentário à sátira VI deste poeta, especialmentevocacionadaparaa criticadogénero feminino18.Alémdisso,a temáticaerótica, ali relacionada com os cultos egípcios, parece ter igualmenteestadopordetrásdocomentário,que,comojáafirmámos,porsuavezsecoadunacomoqueMarcialeAusóniorevelamacercadapoetisa,equelheconfeririaumcarácterespecíficonoâmbitodaliteraturalatina19.

Há, contudo,umoutro texto,bemmais longoqueos simplesdoisversoscitadospeloescoliastadeJuvenal,quetemsidoatribuídoaSulpí‑cia.Trata‑sedeumpoemacomsetentaversoshexamétricos,consideradouma satyra por alguns,mas tambémdesignado apenas como conquestioou questus, «lamentação», publicado em Itália, ainda no século XV, emduas obrasdistintas, sendoumadelas uma ediçãodos textos deAusó‑nio20.Desdeoprimeiroinstantequeasediçõesdasátiraforamnotítulo________________

17Schol.Ad.Iuu.6,537:VndeaitSulpicia:Simecadurcirestitutisfasciis/nudamCalenoconcubantemproferat.Outralição,menosseguida,propõe:VndeaitSulpicia:luxmecadurcidissolutisfasciis/nudamCalenoconcubantemproferat.UmasíntesedopercursodacríticafilológicadopassopodeserlidoemE.A.HEMELRIJK,MatronaDocta,161‑162,havendoquereferirqueatémesmoonomefemininoédeduzidopor uma emenda.Os que aceitam a autenticidadedo fragmento, em especial aprimeiraproposta, têmsalientadoo topos literário latinoqueelesugere.ParaasafinidadescomCatulo,verL.DURET,«Dansl’ombredesplusgrandsII:Poètesetprosateursmalconnusdelalatinitéd’argent»,3219,ondetambémseassinalaqueareivindicaçãodoprazeramorosodentrodocasamentoeraumacaracterísticadeTibuloedePropércio,juntodequemSulpíciaémencionada,nopassodeSidónioApolinar.

18Sobreestaquestão,D.G.BATTISTI,Laretoricadellamisoginia(LaSatiraSestadiGiovenale),Venosa,1996.Sobreofragmento,I.LANA,LaSatiradiSulpicia,29;I.CAZZANIGA,«IlframmentodiSulpicia,Orazio,Ep.XII,eTertulliano,Apol.46,10»,RFIC95,1967,295‑300,eA.RICHLIN,«Sulpicia,thesatirist»,125‑140.

19E.A.HEMELRIJK,MatronaDocta,163‑164,173.20Sulpicia queriturde statu rei publicae et temporibusDomitianiouConquestio

Sulpiciae de statu rei publicae et temporibus Domitiani.O texto foi encontrado nomosteiro de Bóbio, em 1493, e publicado em Publi Gregori Tipherni opusculaquaedam. IouianiPontaninenia et epigrammata.FrancisciOctaui elegiarum libellus etepistolae. Sulpitiae carmina LXX, Venetia, 1498, e emOperaAusonii nuper reperta,Parma, 1499.Umavezmais, a históriada ediçãodo textoda sátirade Sulpícia

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associadas ao nome de uma Sulpícia, e a referência a «Caleno», bemcomo a contextualização no principado de Domiciano, fez com que serelacionasse a alegada autora com a poetisa mencionada por Marcial,Ausónio e Sidónio Apolinar. No século XIX, porém, num contexto decríticafilológicasevera,eporvezesatéexacerbada,oseditoresintroduzi‑ramadúvidaacercadaautenticidadedotexto,designadamentearelaçãocom a Sulpícia do tempo deMarcial. Chegou assim a propor‑se que asátirapertencesseaumautor latinotardio,nãomuitoposterioraAusó‑nio, ou atémesmo a um humanista do século XV, razoavelmente beminformadoacercadocontextoemcausa,que tivesse«forjado»um textode modo a atribuí‑lo a Sulpicia Caleni21. Um dos argumentos maispertinenteséodeH.Fuchs,quesalientaofactodea«sátira»reunirumasériedepalavraseexpressõesaparentementeretiradasdeváriosautoreslatinos, anteriores e posteriores, concluindo desse modo a impossibili‑dadedeotextotersidoescritoantesdoséculoVd.C.Nãoseesclarece,porém, que tais palavras e expressões poderiam não ter sido original‑mente usadas pelos autores de quem se suspeita terem servido dematrizesàalegada«pseudo‑Sulpícia»22.Domesmomodo,poucosexpli‑camarazãopelaqualteriaoalegadoautordasátiraapócrifaatribuídoopoemaàSulpíciadotempodeDomiciano.Issosófariasentidose,alémdeterescritopoesiadenaturezaerótica,aSulpíciadeCalenotivessesidoumafiguradetalintervençãonoseutempo,nomeadamenteaoníveldacomposiçãosatírica,quejustificasseaatribuiçãodeumtextodenatureza________________ pode ser lida em I. LANA, La Satira di Sulpicia. Studio critico, testo e traduzione,Torino,1949.

21I.LANA,LaSatiradiSulpicia,23‑50;H.FUCHS,«DasKlageliedderSulpiciaüberdieGewaltherrschaftdesKaisersDomitian» inDiscordiaConcors:Festgabefür Edgar Bonjour zu seinem siebzigsten Geburtstag am 21. August 1968, I,Basel/Stuttgart, 1968, 32‑47; H. BARDON, La littérature latine inconnue II, 228;A.LÓPEZ,Nosólohilaronlana,104;E.A.HEMELRIJK,MatronaDocta,163.

22 H. FUCHS, «Das Klagelied der Sulpicia über die Gewaltherrschaft desKaisersDomitian», 32‑47. Tem‑se destacado, por exemplo, as semelhanças comFloro e Claudiano.H. BARDON,La littérature latine inconnue, II, 228, distingue aSulpíciadotempodeMarcialdeumaoutraqueteriavividonoséculoIV‑V,oquenãoparecemuitoverosímil:«l’onnesauraitlaconfondreaveclaSulpicia,auteurd’une Satire de 70 vers sur l’expulsion des philosophes: celle‑ci se place, sansdoute,auIVeouauVesiècle».

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política23. Foinotado tambémqueas conjunturaspolíticasdo tempodeAmiano Marcelino e de Santo Ambrósio fornecem um quadro deverosimilhançaparaacomposiçãodalamentação,porexemplo.AlémdequeosautoresdessaépocaconsideravamDomicianoumtiranoabsoluto,peloqueummedíocreversejadordessetempopoderiaperfeitamentetersido o autor da «Lamentação de Sulpícia»24. De qualquer forma, aconfirmar‑seestahipótese,issodemonstrariaque,noséculoV,apoetisagozava ainda de enorme prestígio entre a elite culta e, como afirmaM.C. Pimentel, «o nome de Sulpicia pode ter servido para “esconder”uma qualquer voz desagradada com as injustiças de épocas menosrecuadas»25.

Nãoobstante, comonotou já I.Lana,nãodeixade ser curiosoquealgunsautoresseapoiemnosmesmosargumentosparachegaremacon‑clusõesopostas,oquemostrabemacomplexidadedoproblemaeadifi‑culdadeemchegaraumahipótesecientificamenteirrefutável26.Partindodeumaanálisedoscondicionalismoshistóricos,I.Lanaconclui,porsuavez,quedificilmenteaSulpíciahistóricapoderia terescritoasátiraquelheéatribuída27.Mas,comotambémfrisaA.López,éigualmenteafrase

________________

23 A favor dessa ideia, ver A. RICHLIN, «Sulpicia, the satirist», 125‑140;contra,verE.A.HEMELRIJK,MatronaDocta, 330,n. 81.ApropostadeL.DURET,«Dansl’ombredesplusgrandsII:Poètesetprosateursmalconnusdela latinitéd’argent», 3221, segundo a qual «Sulpicia ne pouvait à la fois servir Domitiendanssesversamoureuxetlancercontreluideshexamètrespleinsdehaine»nãonos parece consistente, visto que tudo dependeria domomento e do objectivocomqueapoetisativesseescritoosdoistiposdeversos.Cf.aindaA.BALLANTI,«Documenti sull’opposizione degli intellettuali a Domiziano», AFLN 4, 1954,80‑82,cujasreflexõessobreascausasdaevocaçãodonomedeSulpíciavãonestesentido.

24AMM.14,6,18‑20;15,5,35;21,16,8;AMBR.,Off.3,7,45‑51;AUR.VICT.11,1‑3;EUTR. 7, 23, 2;SHA,ClodiusAlbinus 13, 5;Carus 3, 3; apud L.DURET, «Dansl’ombre des plus grands II: Poètes et prosateurs mal connus de la latinitéd’argent»,3222.

25M.C.C.‑M.S.PIMENTEL,AadulatioemMarcial,57.26A.LÓPEZ,Nosólohilaronlana,105,eI.LANA,LaSatiradiSulpicia,50.27 I.LANA,LaSatiradiSulpicia,50,eA.LÓPEZ,Nosólohilaron lana,105.Da

mesmaopiniãoéoautordeumadasmaisrecentesediçõesdaSulpiciaeconquestio,A.GiordannoRampioni,Bologna,1982.

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«sembra difficile ammettere», utilizada por Lana, que deve ser tida emconta,vistoque«noexisteargumentoalgunodefuerzaincontrovertibleparanegarlepertenenciaaSulpiciadelossetentaversos»28.Istoéigual‑menteumfactoeoutrosautoresassumiramestamesmaideiaeaceitaramapropostadaautoriadeSulpíciaparaalamentação29.

Quase todosos filólogosqueduvidamdaautenticidadedopoemabaseiamassuasopiniõesemargumentoslinguísticos,estilísticos,prosó‑dicosemétricos,sobressaindoprincipalmenteaideiadequeacomposi‑çãofinalnãopassadeumaimitaçãodefracaqualidadedeváriosoutrosautoresantigos30.Apesardereconhecermosasproblemáticasfilológicas,particularmente bem fundamentadas no estudo de Fuchs, que levantasériosproblemasàaceitaçãodoséculoI,econsequenteligaçãoàSulpíciade Caleno, como o tempo da composição da «sátira», há um contextosócio‑políticoquedeveserconsideradoequetalvezofereçaumacredibi‑lidadehistóricaparaatemáticadopoemaeumaconjunturacredívelparaa sua composição. Além disso, como veremos, consideramos que,enquantomulher, a figura de Sulpícia poderia ter sido a autora de umtextodaquelanatureza,não sendoo factodepertencer aogénero femi‑ninoumóbiceàautoria,comojásesugeriu31.Poroutro lado,nãotrata‑mos questões, ainda que pertinentes, como a da classificação do textocomo«sátira»,ounão,dodomíniodateoria literária.Éasuaplausibili‑dadeeverosimilhançahistóricaquedemomentonosinteressa.

No poema, considerado pelo português LuísAntónio deAzevedouma«invectiva»ondenãofaltaaacrimónia32,aautoralamentaasituaçãosócio‑política que se vive em Roma. Nele, invoca‑se Calíope, musa da

________________

28A.LÓPEZ,Nosólohilaronlana,105.29 Cf. A. BALLANTI, «Documenti sull’opposizione degli intellettuali a

Domiziano»,80‑82;A.LÓPEZ,Nosólohilaronlana,106,quecitaA.ROSTAGNI,StoriadellaletteraturalatinaIII,Torino,1964,162,comoexemplo.

30A.LÓPEZ,Nosólohilaronlana,106.31 I. LANA, La Satira di Sulpicia, 36‑37. Ao lado da sua condição feminina,

Lanaquestiona‑sesobreosentidodeumamulher,aparentementefeliz,seenvol‑ver em questões de oposição política ao imperador. Não cremos que hajasubstâncianestareflexão,poisoqueinvalidaaliaactividadepolítica?

32L.A.deAZEVEDO,«Prefação»inSatiradeSulpicia,matronaromana,Lisboa,1786,vi‑vii.

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poesiaépica33,queapareceàAutoracomafunçãodeprofetisa.Aolongodo texto, encontramos digressões de teoria poética, antes de se criticarJúpiter,comometáforadoimperador,queparecepretenderconduzirosseussúbditosàignorância,poispermitiuaexpulsãodossábiosdaUrbe.Deste modo, ao mesmo tempo que se exalta a romanitas, evocando‑sefeitosmilitareseconquistaspolíticas,caricatura‑seaimagemdoimperatorpelaatitudedespóticaqueteve.OcontextocriadoemtornodogenitivoSulpicia Caleni, em particular a referência à expulsão dos filósofos daCidade, levou a relacionar o conteúdo do texto com o principado deDomiciano.Defacto,duranteodomíniodoúltimodosFláviossurgiramdiversos focos de oposição e de resistência aos seus princípios degovernação.Algunsautoresnãohesitarammesmoemdefiniraexistênciadepelomenos três grupos emque essa realidade se verificou: cristãos,judeusefilósofos34.Ofactorcomumaestestrêsgruposresideemques‑tõesdecontestaçãoreligiosaeideológica,aindaquehajaumaproblemá‑ticaaindanãototalmentedefinidaeunanimementeaceiteemrelaçãoaosdoisprimeiros35.Algumas fontes referemquehouveduas expulsõesdefilósofos,aqueseassociamosastrólogos,noprincipadodeDomiciano:aparentemente uma em 88/89 e outra entre 93 e 9636. Outras fontesmencionamapenasumaexpulsão37.Sejacomofor,comonotaB.W.Jones,notempodeDomiciano,estasexpulsõespoucotinhamdeoriginal38,poisestesgruposentraramfrequentementeemconflitocomopoderpolítico,por surgirem como ameaça de contestação ideológica ou até mesmocomoarmadearremessocontraopoderestabelecido.Osastrólogos,porexemplo, tinham sido expulsos já por nove vezes39. Recordemos comoUlpianoanotavaqueaconsultadeumastrólogoacercadasaúdedeum

________________

33Orecursoaestafiguralevouaquesecolocassemproblemasaoníveldateorialiterária,chegando‑seacontestaraclassificaçãodopoemacomosátira.

34B.W.JONES,TheEmperorDomitian,London,1993,114‑125.35N.S.RODRIGUES,IudaeiinVrbe.OsJudeusemRomadePompeioaosFlávios,

Lisboa,2004,722‑732.36EUS.,Chron.;D.C.67,12,2‑3.37SUET.,Dom.10,3‑5;PLIN.,Ep.3,11,2;AP.TY.,Ep.7,3;PHILOSTR.,VAVII,4.38B.W.JONES,TheEmperorDomitian,120.39 F.C. CRAMER, «Expulsion of astrologers from ancient Rome», C&M 12,

1951,9‑50.

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imperador era passível de punição com a pena capital40. Logicamente,umaacçãodessanaturezasugeriaaexistênciadeconspiração41.Sabendoque a acessão de Domiciano se fez no quadro de uma dinastia recéminstituídaequeas forçasdeoposiçãoerammuitasevariadas,nãoédeestranhar que o imperador tivesse tomado taismedidas. Relativamenteaos filósofos, foi já demonstrado que as expulsões que se verificaramnada tinham que ver com a filosofia em si mesma, nomeadamente oestoicismo, a quepertenciammuitosdos abrangidospor aquelasmedi‑das42. O caso relacionava‑se com uma oposição política de grupo àgovernaçãodeDomiciano,queoimperadordecidiueliminar,executandounseexilandooutrosdosimplicados.Emcausaestavaamanutençãodopoder autocrático do imperator, proveniente de uma família recente nopoder, contra o qual resistiram algumas das famílias aristocráticas deRoma43. Alguns autores, baseando‑se nos textos de Filóstrato, Epicteto,Quíon de Heracleia, nas cartas alegadamente trocadas entre Séneca ePaulodeTarsoe,precisamente,emSulpícia,insistemmesmonumaopo‑sição intelectual ao imperador44. Um grupo de intelectuais faria, assim,parte do núcleo duro dessa resistência. Mas, a proposta não ganhougrandeentusiasmo,porfaltadeevidênciaconcretadarelaçãodostextosdestesautorescomumaeventualoposiçãoaDomiciano45.

De qualquer modo, a expulsão de um núcleo parece ter sido umfactoeaConquestioSulpiciaesugereavozdeumamulherquereagecon‑traaprepotênciadoimperador,aomesmotempoqueoatacaemtermosmorais:«Agora,pois,aqueleque imperaentreascoisasromanas,oquesedeixaaviltarpordetrásenãopelaviga,odatezpálidaporcausadaglutonaria,ordenouaexpulsãodetodososestudiososequeonomeealinhagem dos homens sábios fossem para fora da Cidade.»46 O passo________________

40VLP.,Deofficioproconsulis7.41Cf.SUET.,Dom.10,4.42B.W.JONES,TheEmperorDomitian,121‑122.43E.g.SUET.,Dom.4,1;8,3;10,1.3;11,2‑3;PLIN.,Ep.3,11,2‑3;6,29,1;7,16,

5;7,19,4.5.6;9,13,16;D.C.67,13,1.2.44 A. BALLANTI, «Documenti sull’opposizione degli intellettuali a Domi‑

ziano»,75‑95.45B.W.JONES,TheEmperorDomitian,124‑125.46Conquestio Sulpiciae35‑38:Nunc igitur qui res Romanas imperat inter,/ non

trabe sed tergo prolapsus et ingluuie albus,/ et studia et sapiens hominum nomenque

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evocaprecisamenteaexpulsãodos filósofosedos sábios.Comoassina‑lámos,adeterminadaaltura,avozassocia‑seaCaleno,criando‑seoelonecessário para relacionar o texto com a Sulpícia sobre quem Marcialescreve47. Nenhum historiador, porém, menciona este Caleno, o queimplica alguma dificuldade na interpretação dos factos. Apenas umacomparação dos epigramas de Marcial com o passo da Conquestio nospermite, portanto, estabelecer esta relação, o que é pouco.De qualquermodo,seotextoétardioeseoseuautordesejouassociaraspalavrasqueescreveuàpoetisadotempodosFlávios,éporqueconheciaocontextodasuaexistência,designadamenteatravésdospoemasdeMarcial48.

Talcomoasquestõeslinguísticasepuramentefilológicas,tambémocontextohistóricodafiguradeSulpiciaCalenifoijáestudado.Masgosta‑ríamos de tecer ainda algumas considerações neste domínio. Uma dasideiasquefoiutilizadaparanegarSulpíciacomoaautoradeumasátiracontraoprincepséofactodaalegadaautoriapertenceraumamãofemi‑nina,argumentando‑seque,dificilmente,umamulherseriaavozactivade uma reacção ou protesto contra um imperador49. Tal argumentoparece‑nos totalmente desprovido de sentido, chegandomesmo a insi‑nuarafaltadealgumconhecimentohistórico.Naverdade,houveváriasmulheresdasociedadeepolíticaromanasquearriscaramseroposiçãoaopoderealgumasdelaspagarammesmocomaprópriavidaessaousadia.Assim aconteceu com Agripina Maior e Cláudia Livila, no tempo deTibério50;Márcia,notempodeCalígula51;JúliaLivilaeValériaMessalina,________________ genusque/ omnia abire foras atque urbe excedere iussit. Note‑se a insinuação denaturezasexualfeitacomnontrabesedtergoprolapsus,cujoobjectivoéclaramenteodedenegrir a imagemdo imperadorpela insinuaçãoda sexualidadepassiva.Na sua tradução portuguesa, Luís António de Azevedo ignora completamentequalquer sentido desta natureza, associando trabs a «meteoro» e a uma inter‑pretaçãoastrológica,pp.35‑41.

47ConquestioSulpiciae62.Numaatitudehermenêutica,nasuatradução,L.A.Azevedoassume«Caleno»como«esposoCaleno».

48Vernota5econsideraçõesacercadeEgéria.49I.LANA,LaSatiradiSulpicia,36‑37.50AgripinaMaior:TAC.,Ann.I,33,41‑42,44,69;II,43,54‑57,71,75,79;III,1,

3‑4,17‑18;IV,12,17,19,39‑40,52‑54,60,67‑68,70‑71;V,1,3‑4;VI,25‑26;XIV,63;CláudiaLivila:TAC.,Ann.II,43,84;IV,3,10,12,39‑40,60;VI,2,29.

51 Márcia: SEN., Dial. VI, 4, 2; D.C. LVII, 24; SUET., Cal. XVI. SegundoSuetónio, a publicação da obra de Cremúcio Cordo, pai de Márcia, que fora

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notempodeCláudio52;AgripinaMenoreEpícaris,notempodeNero53;eFlávia Domitila, Árria Menor, Fânia e Gracila, no tempo do próprioDomiciano54,porexemplo.Parece‑nos,porisso,totalmenteplausívelqueumamulher comoSulpíciapudesse reagirpoliticamenteaumamedidaqueconsiderasseinjusta,atravésdaarmaqueachoumaisadequadaàsuacondição: as letras. Na verdade, estaria mesmo numa posição privile‑giada para isso. Não afirmamos a autoria certa do texto, visto que asdúvidas filológicas são bastante pertinentes e dificilmente contestáveis,masoenquadramentohistórico‑socialpermite‑nosconsiderarahipótesecomo totalmente válida. Sulpícia poderia ter sido mais uma voz deintervençãopolítica,comoasdeoutrasmulheresdoseuséculoo foramem Roma. Ser mulher não teria sido de modo algum obstáculo55. IssosignificariaqueasRomanascomeçaramafazerusodasuaemancipaçãointelectualeatomarvozactivaepúblicapelosacontecimentospolíticosdo seu tempo. Essa participação encetou, provavelmente, pela viafilosófica. Já Teófila, a noiva do poeta Cânio Rufo, era tida como umasábiaversadanoestoicismoenoepicurismo, comquemos filósofosdeRoma teriam desejado contar nos seus círculos56. É certo que sedesconheceporcompletoqual teria sidoavivênciapolíticaousequera

________________ proibida sobTibério eSejano, foi autorizadaporGaioCalígula.Mas foiMárciaquemconservouoslivros,evitandoasuadestruição,ereagindo,portanto,dessaforma,àpolíticaimperialentãovigente.

52 Júlia Livila: TAC.,Ann. XII, 54;VI, 15; XIV, 63;ValériaMessalina: TAC.,Ann.XI,2,12,26,29‑32,34‑38;XII,1,7,9,42,65;XIII,11,19,32,43.

53AgripinaMenor:TAC.,Ann.IV,53,75;XI,12;XII,1‑8,22,25‑27,37,41‑42,56‑59,64‑69;XIII,1‑2,5,13‑16,19‑21;XIV,1‑13,57;XV,50;XVI,14,21;Epícaris:TAC.,Ann.XV,51.

54FláviaDomitila:SUET.,Dom.XV,1;D.C.LXVII,14,1‑3;ÁrriaMenor,FâniaeGracila:TAC.,Ann.XVI,34;PL.,Ep.VII,19.SobreopapelpolíticodasmulheresemRoma,veros estudosdeE.MEISE,Untersuchungen zurGeschichte der Julisch‑‑ClaudischenDynastie,München,1969,eR.BAUMAN,WomenandPoliticsinAncientRome,London,1992.

55ComoA.LÓPEZ,Nosólohilaronlana,105‑106,tambémanósahipótesedeI. Lana, segundo a qual uma mulher dificilmente afrontaria Domiciano, nosparecedescabida.

56 MART. 7. 69; M.C.C.‑M.S. PIMENTEL, A adulatio em Marcial, 53. Estesmesmos,TeófilaeopassodeMarcial,sãocitadosemSatiradeSulpicia46.

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posição de Caleno neste contexto,mas não é de excluir a ideia de quefosse significativa. Por outro lado, a verificar‑se esta hipótese, não teriaDomicianoretaliadoenãoteriamoshistoriadorescomoTácitoeSuetónioregistado qualquer dado nesse sentido? Pelo menos, fizeram‑norelativamenteaoutroscasos.

Que saibamos, atéhoje, aConquestio Sulpiciae conheceuumaúnicatraduçãoportuguesa57.EssafoifeitanoséculoXVIII,porLuísAntóniodeAzevedo,umprofessorrégiodegramáticaelíngualatina,desólidafor‑maçãoclássica.LuísAntóniodeAzevedonasceuemLisboa,em1755,soboreinadodeD.José,portanto,sendofilhodeumlivreiro.OInocênciodá‑o como um celibatário que pouca importância dava à aparência, che‑gando mesmo a desprezar o asseio e sendo sempre seguido por umamatilhadecães,própriosealheios58.Oretratoquesedádesteintelectualcorrespondeassimaodeummisantropo,cujaexistênciasecentravanoslivros.OprofessorteriaacabadoosseusdiasnobairrodaGraçaemor‑rido sexagenário, entre os anos de 1818 e 1820. Como herança, deixouumaricabiblioteca,quefoiconstruindoaolongodavida,poisoslivrosparecemdefactotersidoaquiloaquesempredeumaisatenção.Peloquese sugere, no momento do seu falecimento devia dinheiro, que só foipagocomavendadoseuespóliobibliográfico,emleilão.L.A.Azevedofoi, aliás, ele próprio editor e tradutor, encontrando‑se alguns títulosclássicos no seu curriculum: editou, em 1785, com prefácio próprio, atraduçãoportuguesaqueD.FreiAntóniodeSousa,bispodeViseu, fezdo original grego doManual de Epicteto; em 1790, foi a vez de dar àestampaumasegundaediçãodatraduçãoqueDuartedeResendefizera,noséculoXVI,dostratadosDaAmizade,ParadoxoseOSonhodeCipiãodeCícero, e traduziu do grego Rivaes ou Diálogo Moral de Platão sobre aFilosofia;em1795foipublicadaumatraduçãoquetambémeleprópriofez

________________

57 L.A. de AZEVEDO, «Prefação» in Satira de Sulpicia xxvii, refere‑se a D.FernandoCorrêadelaCerda,BispodoPorto,que,noseuPanegyricoaoMarquezdeMarialva, publicado em 1674, se teria referido aos v.48‑51 deste texto, alega‑damentedeSulpícia;notasque,aliás,consideraerradas.

58InocêncioFranciscodaSILVA,DicionárioBibliográficoPortuguês,tomoXIII,Lisboa, 1858‑1923, 213. Ver o estudo deM.H.UREÑA PRIETO, «LuísAntónio deAzevedo, classicista português do séc. XVIII» in VII Congresso da AssociaçãoInternacionaldeLusitanistas,Providence,2002(actasemsuportedigital).

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dogrego,dosVersosdeouro,quevulgarmenteandamemnomedePythagoras,umaediçãobilinguecomescólioseanotaçõescríticas;em1801,apareceasua tradução doTratado sobre a unidade da Igreja, de S. Cipriano; e terádeixado por publicar uma versão portuguesa em prosa da Batra‑comiomaquia, atribuída a Homero59. L.A. Azevedo tornou‑se ainda umafigura de importância redobrada, designadamente para a Arqueologiaportuguesa,aodeixarumdosmaisantigosregistosconhecidosacercadoteatro romano de Lisboa, descoberto em 1798, sendo o seu relatórioparticularmenteimportantepelosdesenhosdoarquitectorégioFranciscoXavierFabriqueneleincluiu60.

Foi,pois,estemesmoclassicistaque,em1786,aostrintaeumanosde idade, jásoboreinadodeD.Maria I,apresentouemvernáculoumaversãodeSulpiciae de edictoDomitiani, quo philosophos urbe exegit satira61.Paraestaedição,L.A.Azevedofundamentou‑sedeumaformarigorosa,consultando mais que uma lição do texto, nomeadamente as de JúlioCésar Escalígero, IsaacCasaubono eMarco Zuerio Boxhornio, frequen‑tementecitadas,alémdeoutras,querefereporviaindirecta,ecomentá‑rios, como os de Wernsdorf e Burmanno62. Estes exegetas tinhamestudado a sátira de Sulpícia, contribuindopara a abordagemdos pro‑blemasfilológicosque,essencialmenteapartirdoséculoXIX,sevieramacolocar.Nãodeixa,por isso,deserpertinentequeAzevedo tivesse tido

________________

59Sobreestaseoutras traduçõesdogregoedo latim, I.F.SILVA,DicionárioBibliográficoPortuguês XIII, 213‑215.O catálogoda suabiblioteca encontra‑senoANTT,Testamentarialiv.70.

60 Trata‑se daDissertação critico‑philologico‑historica sobre o verdadeiro anno,manifestascausaseattendiveiscircumstanciasdaerecçãodotabladoeorquestradoantigotheatro romano, descoberto na excavação da rua de S.Mamede, perto do castello destacidade,coma intelligenciadasua inscripçãoemhonradeNero, enoticia instructivadeoutras memorias alli mesmo achadas, Lisboa, Nova impressão da Viúva Neves eFilhos, 1815. Sobre este relatório, I. MOITA, «Problemas da Lisboa Romana. Arecuperação do teatro de Olisipo» in Arqueologia de las Ciudades ModernassuperpuestasalasAntiguas,Saragoza,1985.

61SatiradeSulpiciafeitaporoccasiãodoEdicto,quemandoupublicarDomiciano,parahaveremdesahirdeRomatodososFilosofos,trad.il.enotasdeLuizAntoniodeAzevedo,Lisboa,RegiaOff.Typ.,1786.

62L.A.deAZEVEDO,«Prefação» inSatiradeSulpicia iii‑v,xxvii‑xxviii;SatiradeSulpicia49‑50,e.g.

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acessoatodoseleseestivesseactualizadorelativamenteàsproblemáticasquejáentãosecolocavamaotexto.Otradutorportuguêsconheceohis‑torial filológico do poema; estava a par das discussões que no séculoXVIIIsecolocavamjáemtornodaautoriadomesmo,bemcomodabio‑grafia da alegada Autora63; utiliza já uma terminologia ainda hojereconhecida, como a de «Idade Argêntea» da literatura latina, na qualsitua a nossa Sulpícia64; cita nomes da literatura antiga tão desconhe‑cidos então como hoje, como é o exemplo de Cornifícia65; fornece umacontextualizaçãohistóricaenriquecidaporfontescomplementares,desig‑nadamente as numismáticas66; e chega mesmo a contestar a classifica‑çãodo textocomosátira,pordesobedeceradeterminadas regras, como

________________ 63L.A.deAZEVEDO,«Prefação»inSatiradeSulpiciax‑xii;«VidadeSulpicia»

in Satira de Sulpicia xxxiii ss. Note‑se como as questões essenciais em torno dapoetisaSulpíciadeCalenoeramjápostasporestefilólogoportuguês,queatemcomo contemporânea de Tácito,Satira de Sulpicia 61.A este propóstio, refira‑seque os vv. 7‑8 da Conquestio: quot denique milia lusi/ primaque Romanos docuicontendereGrais,foramlidosnaliçãousadaporAzevedocomoquotdeniquemilialusi/primaqueRomanasdocuicontendereGraiis,oqueoriginouumentendimentonofemininoeumareflexãodotradutoracercadaimportânciadasmulheresautorasnaculturaclássica,salientando‑seaspoetisasgregascomomestrasdas latinasevalorizando‑sedessemodoopapeldasmulheresedousoquepodiamfazerdasletras.Subjacenteaessejuízoestá,comoéóbvio,afiguradeSafo.Setivermosematenção que, no final da sátira, é citado o nome de Egéria, não deixa de serpertinenterelacioná‑locomumdosepigramasdeMarcialquedátestemunhodeSulpícia, e que também a relaciona com essas duas figuras. Talvez AzevedoconhecesseotestemunhodeMarcial.Émuitoprovávelquesim.Cf.MART.10.35;Conquestio Sulpicia 67‑68; Satira de Sulpicia 11‑13; L. BOWMAN, «The “Women’sTradition”inGreekPoetry»,Phoenix58/1‑2,2004,1‑27.

64 L.A. deAZEVEDO, «Prefação» in Satira de Sulpicia ix, xxiii; cf. L. DURET,«Dansl’ombredesplusgrandsII:Poètesetprosateursmalconnusdela latinitéd’argent»,3218‑3222.

65 Poetisa epigramática do tempo de Augusto, Satira de Sulpicia 11; sobreesta poetisa queL.A.Azevedo indica ser citada por S. Jerónimo e Eusébio, verE.A.HEMELRIJK,MatronaDocta,147‑150.

66E.g.SatiradeSulpicia22‑23.Odomíniodanumismáticacomprovaasólidaformação deAzevedo.Os comentários exegéticos são quase ummotivo para otradutormostrarasuaerudição.

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indica a invocação de Calíope67. Ao mesmo tempo, saliente‑se aquantidadedeautoresclássicospresentesquernoprefácioqueraolongodas notas e comentários que L.A. Azevedo redige como acompa‑nhamento da sua tradução.Aliás, a edição que o professor nos oferecevem acompanhada de longas anotações, em que se justificam opções,discutemquestõesdemétricaesecomparamconstantementeosversosepalavrasdaalegadaAutoracomosdeoutrosautoresantigos68.Aí,lemosnomesecitaçõesdeSantoAgostinho,Apiano,ApolóniodeTíana,AuloGélio,AurélioVictor,Boécio,Cícero,Columela,Cornifícia,Demóstenes,Díon Crisósotomo, Eliano, Énio, Epicteto, Epicuro, Ésquines, Estácio,Eusébio, Fedro, Filóstrato, Floro, Hesíodo, Hipónax, Horácio, São Jeró‑nimo, Justino, Juvenal, Lucano, Luciano, Lucrécio, Marcial, Nónio,Ovídio, Pacúvio, Pérsio, Petrónio, Píndaro, Plauto, Plínio‑o‑Jovem,Plínio‑o‑Velho,Plutarco,Propércio,Quintiliano,Salústio,Séneca,Sérvio,Simónides, Suetónio, Tácito, Tito Lívio, Varrão, Valério Flaco, VeleioPatérculoeVergílio,mastambémdeCamões,DiogodoCoutoeVieira,entre os portugueses, que funcionam como argumentos de autoridade.Cremos que este panorama corresponde ao gosto e interesse que oséculoXVIIItevepelosclássicos,inclusivamenteemPortugal,aomesmotempo que o tradutor demonstra uma extraordinária capacidade deanálisefilológica,erudiçãoeactualizaçãocientífica.

Aquestãoqueagoracolocamosprende‑secomasrazõesquepode‑rãotermotivadoatraduçãodestetexto,comtãopoucaprojecçãoepesonos curricula clássicos. Isso comprova‑se, aliás, pelas poucas edições etraduções que existemnoutras línguas, designadamente o castelhano, eatémesmonaportuguesa,queparecenãomais tervoltadoàConquestioSulpiciae. Talvezo contexto sócio‑políticodo tempodeLuísAntóniodeAzevedoforneçaalgumasindicaçõesparaaescolha69.Asegundametade

________________ 67 L.A. deAZEVEDO, «Prefação» in Satira de Sulpicia ix;Conquestio Sulpiciae

1‑2,12‑13,59‑61.68Omelhor exemplodestametodologiadeverá ser a longadigressão que

dedica aos versos 35‑38, onde a insinuação de natureza sexual presente nooriginal latino é completamente substituída por uma outra, totalmente despro‑vidadessesentido,p.35‑41.

69Éclaroqueogostopessoaldotradutorpodesempreserumajustificaçãoválida,mas haverá um contexto sócio‑político‑cultural que poderá e deverá tercondicionadoeincentivadoaopção.

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doséculoXVIIIportuguêsépoliticamentedominadapelagovernaçãodeD. José e do seuministro, SebastiãodeCarvalho eMelo.Doprogramapolíticoque levamacabo,destacamosoreforçodoaparelhodoEstado,inseridonoespíritododespotismo iluminado,paraoqual contribuiuocerradoataqueaosprivilégiosdoclero,emparticularaosdaCompanhiade Jesus, que tinha ganhado uma importância significativa e constituíaumasériaoposiçãoaorei.OMarquêsdePombal incentivouassimumaintensacampanhacontraos Jesuítas,consentâneacomoquesepassavaem outros estados europeus, designadamente em Espanha e França. AOrdem acabaria por ser expulsa do país. Muitos dos rendimentoseclesiásticos reverteram a favor do Estado, num quadro de políticaregalenga,quedominouofimdoAntigoRegime70.Ajustificaçãodequeo ensino jesuítico retardara o desenvolvimento português parece assimnão ser mais que uma forma de escamotear a verdadeira causa daoposiçãoàCompanhia:opodereaposiçãoquehaviamangariadodesdeasuacriaçãonoséculoXVI71.

É tambémverdadeque,noséculoXVIII,opaísconheceuumforteinteresse pela educação, como se confirma pela quantidade de obraspublicadasnaépocaacercadotemaoupeloimpulsoquePombalacaboupordaràsinstituiçõesdeensino72.MasexpulsãodosJesuítassignificara________________

70 J. BORGES DE MACEDO, «Pombal, Marquês de (1699‑1782)» in J. Serrão,coor.,Dicionário deHistória de Portugal V, Lisboa, 1975, 113‑121; J.S. SILVADIAS,«Pombalismo e teoria política»,Cultura. História e Filosofia 1, 1982, 45‑114. Paraum enquadramento da questão do Absolutismo, M.P.M. LOURENÇO, «Estado epoderes» in J. Serrão e A.H. Oliveira Marques, dir.,Nova História de Portugal,vol. VII, Portugal. Da Paz da Restauração ao Ouro do Brasil, coor. A.F. Meneses,Lisboa,2001,17‑89.

71 Uma das críticas que se fazia àmetodologia pedagógica jesuítica era ofacto de os membros da Companhia descurarem «o valor das línguas grega elatina, tão necessárias à formação do homem culto», J. VERÍSSIMO SERRÃO,«Marquês de Pombal: o homem e o estadista» in J. Medina, dir., História dePortugalIX,Amadora,2004,245.MasaformaçãoclássicadeumhomemcomooPadreAntónioVieira,porexemplo,nãopode ser ignorada.Vieiraé citado,porexemplo, em Satira de Sulpicia 42. O que sabemos acerca dos seus curriculatambémcontradizessaideia.

72F.LEMOS,Areformapombalinadaescolasecundáriaeoensinodolatim:políticaeducativa,enquadramentocurricular,métodos,agenteseinstrumentosdeensino,Lisboa,

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igualmente um forte ataque a um dos principais pilares do saber emPortugal,sendoosmembrosprofessosdessaordemgrandepartedosquedominavamaslínguasclássicas,queporsuavezserviamdemestresaosfuturos classicistas73.Mas, em 1757, foram expulsosdoPaço os Jesuítasquealiexerciamafunçãopastoral.Osalvarásquelhesretiraramodireitodeensinardatamde1759ede1760,seguindo‑seoencerramentodosseuscolégios e residências, os bens confiscados emuitos dos padres presos,criando‑seumvaziopedagógiconopaís74.Em1761, foisentenciadoumimportante representante da Companhia, o padre GabrielMalagrida, epoucotempodepois,osmembrosdaCompanhiaquenãoficarampresosnoreinoseguiamparaoexílio,emItália.Foramdepoiscriadosquadrosdeprofessoresrégios,mantidospelacoroa,medidadequeopróprioL.A.Azevedo viria a beneficiar, ao tornar‑se um deles. Mas a semente doestudo edo gostopelaAntiguidadeClássicadevera‑semuitopor certoaos Jesuítas e,muitoprovavelmente, terá sido comdiscípulosdos colé‑giosdessaordemqueLuísAntóniodeAzevedoseiniciounolatimeno________________

1998; A. LEITE, Como interpretar Pombal?, Lisboa, 1983, 165‑172. Sobre asrepercussões desta reforma,M.H. ROCHA PEREIRA, Ecos da reforma pombalina napoesiasetecentista,sep.BracaraAugusta28,Braga,1974.

73 Que o latim e o grego faziam parte dos curricula inacianos pode sercomprovadoemM.C.MONTEIRO,InácioMonteiro(1724‑1812),umjesuítaportuguêsnadispersão,Lisboa,2004,80,85‑86,90‑91,103‑105,ondesecitamasConstituiçõesdaCompanhia de Jesuseovalorque estasdão ao ensino e estudodo latimedogrego [366, 381, 447]. Serámesmoútil citar o §381, «Todos,mas emespecial osque frequentam os estudos humanísticos, falarão habitualmente em latim.Aprenderãodecoroquelhesforindicadopelosprofessores.Exercitarãooestiloem numerosas composições, e deve haver alguém para as corrigir. Poderãotambémalguns,comoparecerdoReitor,leremparticularcertosautoresdosquenãoseestudamnaAula.Umavezporsemana,depoisdarefeição,umdosmaisadiantadosfaráumsermão,emlatimouemgrego,sobreumtemaedificanteparaos de dentro e de fora, estimulando‑os ao que é demaior perfeição emNossoSenhor»,apudM.C.MONTEIRO,op.cit.,86,n.21.Entreosautoresestudados,noscurricula jesuíticos, destacam‑se os nomes deCatulo, Cícero,Ovídio, Propércio,Tibulo, Vergílio, entre os latinos, e Demóstenes, Hesíodo, Homero, Platão,Píndaro eTucídides, entreosgregos.Efectivamente, os Jesuítas aproveitaramoHumanismo, adaptando o desenvolvimento científico com ele relacionado aosseusprogramasemétodosdeensino.

74Sobreoalvará,verporexemploM.C.MONTEIRO,InácioMonteiro,196‑197.

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grego, durante as décadas de 60‑70 do século XVIII75. L.A. Azevedodeveráterreconhecidoessaimportância,assimcomopercebidooempo‑brecimentoculturaldopaís,apósaexpulsão76.AUniversidadedeÉvora,por exemplo, foi forçada a encerrar as suas portas. Efectivamente, osJesuítasdetinhamquaseomonopóliodoensinocolegialeuniversitárioe,primeiroquetudo,issoeraumaimportantíssimaformadepoder77.ComoafirmaJ.VeríssimoSerrão,«Pombalcompreendeuosriscosquepodiamresultar da livre circulação de correntes opostas ao despostimo ilumi‑nado... Para Carvalho e Melo o grande perigo estava, sobretudo, nasobrasestrangeirasouvertidasparaoidiomanacionalemquesedefendiaum enciclopedismo contrário aos princípios da actuação pombalina.Assim se caminhouparauma censurade finalidadepolítica e quepre‑tendiaconsolidarareformapedagógica.»78Em1768,eracriadaporcartarégiaaJuntadeProvidênciaLiterária,queacusavaosJesuítasdoestadolamentávelaquetinhamchegadoosestudosuniversitários.ARealMesaCensória tinha o objectivo de inspeccionar tudo o que era publicado ecirculavapeloreino.Em1773,aCompanhiaacabouporserextintatam‑bémnoEstadopontifíciopormeiodabulaDominusacRedemptorNosterJesus Christus. Em 1774, era publicado o regimento que subordinava aInquisição ao poder régio.A Igreja conhecia assim sérias limitações notempodePombal.

Masestefoitambémoperíododajacobeia,quetevecomoapoiantesreligiososagostinhos,beneditinos,cisterciensesepaulistas.Tratava‑sedeum movimento de reforma da Igreja que privilegiava a ascese e apiedade, no esforço de alcançar ummaior rigor espiritual. Juntamentecom o chamado «sigilismo», a jacobeia e os seus adeptos foram malaceitespeloregalismodeD.José,tornando‑semaisumfocodeoposiçãomútua.Dealgummodo,acaracterizaçãoquesefazdeLuísAntóniode

________________ 75 Sabemos, por exemplo, que a Gramática latina do jesuíta português

Manuel Álvares (1572) continuou a ser usada mesmo depois da expulsão,inclusivamente sob disfarce. Sobre os colégios inacianos e sua importância noensinoemPortugal,M.C.MONTEIRO,InácioMonteiro,86‑91,105.

76OensinoministradonoColégioRealdosNobrespreviaclassesdelatimedegrego,porexemplo.

77J.VERÍSSIMOSERRÃO,«MarquêsdePombal:ohomemeoestadista»,211.78 J.VERÍSSIMOSERRÃO,«MarquêsdePombal:ohomemeoestadista»,247‑

‑248;vertambémA.LEITE,ComointerpretarPombal?,Lisboa,1983,165‑172.

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Azevedo coincide com o desprendimento próprio dos adeptos dajacobeia.Teriaonossoautorsidoinfluenciadoporela?

Após amorte deD. José, em 1777, Carvalho eMelo caiu emdes‑graça, ao ser repudiado pelo povo e rejeitado pela herdeira do trono,D.Maria I. Entre 1779 e 1780, oministro deD. José foi interrogado noâmbito de um processo que a própria rainha lhe instaurou, por teracusado o rei de vários actos de perseguição política e violências, queacabaramporcairsobresi.CarvalhoeMeloacabouporsercondenadoedesterrado.Pelamesmaépoca,iniciam‑seosprocessosdereabilitaçãodealguns dos nobres antes executados, presos ou expulsos do reino,surgindo na corte uma facção política claramente anti‑pombalina, quetrabalha no sentido de reaver o poder perdido sob D. José. Em 1781,conseguem mesmo a reabilitação dos Távoras, o que deu aos Jesuítasexiladosaesperançadepoderemavirarecuperaraposiçãoquehaviamdetido.EstessãofactosquecontribuíramparaqueoreinadodeD.Mariaacabasseporserconhecidocomoa«Viradeira»,conceitohojerelativizadoeproblematizado,dadaacontinuidadedemuitasdaspolíticasdotempode D. José sob a governação da sua filha. Para a problemática quetrazemos à discussão, todavia, interessa‑nos sobretudo a «queda» dePombal e a acção que sob a sua administração se verificou contra aCompanhia de Jesus. Poderemos inserir a publicação da traduçãoportuguesadasátiradeSulpícianessecontexto?FoisobD.MariaIquesepublicouaversãoportuguesadotextoquealudiaaumtiranodéspota,oimperador Domiciano, que expulsava da capital do seu Império osintelectuais.HaveráalgumarelaçãoentreoconteúdodasátiraeotempodotradutorportuguêsdeSulpícia?

Paraaformulaçãodesteproblemaéirrelevanteofactodeafilologiapôr hoje em causa a autenticidade do texto, visto que LuísAntónio deAzevedo não considerou a proposta e aceitou a sátira como sendo daSulpícia, mulher de Caleno, que reagiu contra o despotismo de Domi‑ciano.Alémdisso,seopoemafoiforjadonosséculosIV‑Vd.C.,asmoti‑vaçõesparaa sua reutilizaçãonoséculoXVIIIpoderão ter sidoasmes‑mas que levaramoAutor tardio a compô‑lo e atribuí‑lo a umamulhercontemporâneadeMarcialedosFlávios.Hipótesesquecolocamosdadaa escolha de um texto desta natureza para traduzir e editar naqueletempo.Comofacilmentepercebemospelabibliografiacitadapelotradu‑tor, o contexto flávio era suficientemente conhecido de L.A. Azevedo,para quepudesse estabelecer umparalelismo entre uma época e outra,

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entreumagovernaçãoeaoutra,eoquenelapoderiaterecoparaoseupróprio tempo e contexto sócio‑político. Note‑se, por exemplo, comoSuetónio,querefereaexpulsãodos filósofos,édiversasvezescitadoaolongoda«Prefação»edasnotasecomentáriosqueacompanhamaediçãolatinadasátira,demonstrando‑se,emparticular,umbomconhecimentodasuabiografiadeDomiciano79.OmesmosepodedizeracercadeFilós‑trato.Pretender‑se‑á,assim,comaalusãoaoImpérioRomano,umpara‑lelocomoImpérioPortuguês?80Osversos20‑34daConquestiopermitemtambémestabeleceressarelação,emparticularoverso34,ondeaAutoracitaVergílio,opassodaEneidaemque JúpiterprometeaVénusqueosRomanosdeterãoumImpériosemfim:imperiumsinefinededi81.Estecon‑texto de que veio também a derivarOs Lusíadas, terá sugerido inevita‑velmente uma analogia com o caso português. Consequentemente, oparalelismo entre a expulsão dos filósofos no tempo deDomiciano e adosJesuítasnotempodeD.Josépareceverosímil82.Seráoretratonega‑tivo de Domiciano, assumido por Azevedo, o aproveitamento de umarepresentaçãoedeumaleituratipológicaparaumaimagemdomarquêsde Pombal que se coaduna com a forma como os inimigos dele aconstruíram?Talvezpor isso também tivessea tradução sidopublicadaapenasdepoisdasmortesdeD. José edeCarvalho eMelo,dedicadaà

________________

79 Cf. SUET.,Dom. 10, 3‑5. Aliás, que o período flávio era suficientementeconhecido nos séculosXVII e XVIII atesta‑se pela tragédiaBérénice deRacine epelas cartas de Madeleine de Scudéry. Esse conhecimento provinha funda‑mentalmentedaleituradeSuetónio.EstehistoriadoréparticularmentecitadoemSatiradeSulpicia38‑39.

80SatiradeSulpicia34:«DepoisdetermostradoSulpiciaaimbelledeleixaçãodos Romanos, acabada já a conquista domundo, e o cuidado, que então prin‑cipalmentepuzerãonoestudodasLettras,unicabase,emqueficaraestribadaaconservaçãodoImperioRomano;queixa‑seagoradevirDomicianoarrancarestabase,paraultimadecadenciadomesmoImperio, suppondocomtudo, fundadanasindefectiveispromessasdeJupiter».

81VERG.,Aen.I,283;SatiradeSulpicia33‑34.82Note‑secomofazemsentidoosversosdasátiranestecontexto:«mandou

quenãosómenteosestudos,masaindaomesmonomeecondiçãodosFilosofos,queassistiãoemRoma,tudofosseparafóradella,esahissedestaCidadepunidocomdegredo.Quefazemos?»,SatiradeSulpicia35‑39.

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rainha D. Maria e impressa numa oficina régia83. A este título, sãosignificativas as palavras que o tradutor escreve na «Prefação»: «SealgumadasinteressantesObras,quenosrestãodaAntiguidade,mereciacomjustoselogiosandarimpressanamemoriadoshomens,nãosóparareprehensãodeindoutos,masaindaparaexemplo,eestímulodeSabios,era, e devia ser por certo a presente Satira de Sulpicia», sendo espe‑cialmentemotivadoroobjectivodaalegadaAutora:«Everdadeiramenteninguem haverá, que, sendo amante das Letras, e repassando com amemoria o quanto estranha, e condemna Sulpicia nesta Invectiva oEdicto,quepublicouDomicianopara fazer sahirdeRoma, ede Italia atodos os Filosofos, e com elles o magisterio das Bellas Artes, que alliexercitavão»84.Estaspalavras teriamdecertoumaconotaçãoespecialnotempodeD.MariaI.Oassuntoédenovoabordadonocomentárioqueescreveaosversos12‑13daConquestio,Dicmihi,Calliope,quidnampaterilledeorumcogitat?:«queatéoshabitantesdaMetrópoledoImperioRomanosejão ignominiosamente punidos com degredo, não mais que pordesejarem contribuir, e cooperar da sua parte com um dos meios deengrandeceroEstado,qualheoestudodasLettras,ficandoactualmentepor esta razão quasi nos mesmos cerrados nevoeiros da ignorancia, ebarbaria, em que se achára antigamente o natural inculto, sasarodaquelles primeiros homens, que vierão ao mundo»85, e continuandoum pouco à frente: «desterradas tam ignominiosamente as Artes, esupprimidascomtantoescandaloasSciencias,ficariãosendooshomens,como antigamente, segundo a expressão de Horacio... mutum & turpepecus, similhantesaosbrutosnamudez, enodesalinhodoespirito,nãocuidandomaisd’alliemdiantenaculturadasSciencias,eArtesliberaes,tam necessarias, como uteis á vida humana. E com isto dá mais aentender Sulpicia que era tam barbaro, e cruel o Edicto deDomiciano,queparece intentavaextinguirnoshomensapericiade fallar,dom,poronde (alémda racionalidade, e varias differenças) claramente se distin‑________________

83VerSatiradeSulpicia,matronaromana,trad.il.enotasdeLuizAntoniodeAzevedo, Lisboa, Regia Off. Typ., 1786. Leia‑se o comentário que o tradutorescrevenapag.57:«EstesreceiosdeSulpiciaerãojustos,ebemfundados,nãosóporqueeraparatemeratyrannia,eopodermuitomaispelomanifestoperigodocatástrofe,eruina,quedevolviaaoEstadoapublicaçãodoseuEdicto.»

84L.A.deAZEVEDO,«Prefação»inSatiradeSulpiciai‑ii.85SatiradeSulpicia16.

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guem dos outros animaes; e por consequencia obrigálos a ficarem porforça mudos, e tanto monta irracionaes»86. O último escólio transcritoacompanha a tradução que Azevedo faz de nosque iubet tacitos et iamrationisegenos,nonaliterprimoquamcumsurreximusaruo,glandibusetpuraerursusprocurrerelymphae?,«EstabeleceránosdecretosdasuaProvidenciaquetodosnósámaneirademudos,edestituidosjádetodaarazão,bemcomo se estiveramos na primeira idade, em que viemos ao mundo,tambem como então debruçados sobre a terra nos sustentemos só debolotas, e abatidos nesta postura bebamos igualmente da clara ecrystallina fonte?»87Alémdas implicações políticas, uma reflexão destetipo encontrava eco nas discussões filosóficas que o século XVIIIfomentou, relativamente à essência daHumanidade, e também nisso aescolhaserevelavadeextremaactualidade.

Outrosparalelismossugerem‑secom:«sóosGregosmereciãoteronomedehomens,vistoaperfeiçoaremoseuentendimentocomoestudodasSciencias;equeosRomanospelocontrarionãoerãosenãodignosdadenominaçãodebrutos,porseacharemactualmentecomasArtesdester‑radasporDomiciano,aquemcomespecialidadeallude,eremoquêa...osRomanoshaviãoconcedidonoutrotempomuitas immunidades,privile‑gios,eisençõesaosGregos,paraqueestesdemelhorvontadeosinstruis‑sem tantonasArtesLiberaes, comonoestudodasSciencias; equepelabarbara crueldade dos tempos aquellesmesmos, que sollicitados entãocom tantospremiosvierãoa se estabelecer emRoma,achando‑seagoranesta Cidade, são della ignominiosamente expulsados, e punidos comdegredo», sendo os Gregos como que uma metáfora dos Jesuítas e osRomanos dos Portugueses administrados por Pombal88. Terá Azevedodesejado fazer sua a voz de Sulpícia? O objectivo da tradução é bemexplicitado:«reflexõesconcernentesáutilidade,quetodospodemtirardaliçãodapresenteSatira»89.

Talvez a escolha deste texto seja uma crítica à expulsão dos queAzevedoconsideravafundamentaisparaodesenvolvimentodoensino,aqueestavatãodedicado,reconhecendoepublicitandooquetinhacomoinjustiça, apesar das reformas pombalinas no domínio. Com D.Maria,________________

86SatiradeSulpicia18.87ConquestioSulpiciae15‑17;SatiradeSulpicia19‑23.88SatiradeSulpicia43‑44.89L.A.deAZEVEDO,«Prefação»inSatiradeSulpiciaiii.

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saiu,emparte,frustradaaesperançadaCompanhiaserreabilitadacomamesmaforçaque tivera,pois talseriadifícilnoentãocontextoeuropeu.Ainda assim, a rainha atendeu aos Jesuítas com uma nítida protecçãoespecial, permitindo que os que haviam ficado presos no reino sereunissem às suas famílias e se constituíssemmesmo em comunidade,outorgando‑lhes uma pensão. Apesar de se terem mantido algumasproibições, os passos dados apontam já numa atenuação das medidastomadas sob seu pai e o ministro dele90. Talvez o comentário queAzevedoteceaoverso65daConquestio(ponemetusaequos,cultrixmea)serelacione com esta questão: «ConsolaCalliope a Sulpicia, promettendo‑lhe com a sua assistencia o restabelecimento das Lettras: e com apropinqua e imminentemorte deDomiciano remigração dos FilosofosparaRoma.»91Nessesentido,aMusaCalíope,aquicomoprofetisa,assu‑mir‑se‑iacomoumametáforadeD.MariaIedasmudançasquedelaseesperavam.

Nãonosparece,portanto, inverosímil, que a escolhado texto atri‑buídoaSulpíciaderivedeste contextohistórico equeatravésdeleLuísAntónio de Azevedo se pronuncie contra umamedida que considerouinjusta.OtempodePombalfizeravítimasemPortugalcomoodeDomi‑cianoemRoma.Ofactodeserumavozfemininaaescolhidaparaareac‑ção parece‑nos também significativo, tanto num momento como no________________

90Sobreestaquestão,M.C.MONTEIRO,InácioMonteiro,258‑259.91 Satira de Sulpicia 57. E continua na pag. 58: «será Domiciano de todos

odiado,eaborrecido.MasquevemaseroquedizCalliope,queDomicianohadeperecer com honra dasMusas? Não he outra coisa mais, que affirmar, não sedever fazer caso do Edicto de Domiciano: que as Musas ficarão livres do talEdicto,postoquesemordaainveja,eescumeairadomesmoDomiciano:equeantes pelo contrario todas ellas com summa ignominia deste Imperador, eavultadissima honra sua, hão de transmitir á posteridade a memoria das suasmaldades,eabominaveisflagicios.»Terminaentãonas64‑65:«RematafinalmenteCalliopeaspromessas,quefazaSulpicia,comaffirmarquenãosóellaMusa,masainda todo o coro de suas irmans, e o mesmo Apollo, assegurão, affianção, etomão sobre si o cumprimento effectivode tudo quanto lhe acabade predizer:motivo, porque não deve recear detrimento algum ás Lettras, nem por conse‑quencia viver fóra da sua companhia... para que a Posteridade reconhecesse, eadmirasseestePoema,comoumtestemunhoirrefragaveldoamor,queellatinhaás Sciencias, e do extremado, e ardente zelo, quemostrava pela conservação, eaugmentodasuaestimadaPatria.»

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outro.NotempodeDomiciano,eramjámuitasasmulheresquetinhamreagido politicamente contra poderes instituídos e assumido mesmoposições políticas que lhes custaram caro, em muitos casos a própriavida.Seforjado,aescolhadapoetisatemumaclaraintençãodemostrarqueatéfigurascomoadeSulpíciasentiramanecessidadedereagircon‑traosactosimperiais.NotempodeD.José,omesmopoderiaverificar‑se:D.LeonordeTávora foraumadas implicadasnoprocessoque levouamaioriadosTávorasaopatíbulo,em1758.Umadassuasfilhas,MarianaBernarda, Condessa de Atouguia, foi uma das várias mulheres entãoencarceradas. As memórias que nos deixou, que terá escrito poucostempoantesdoseufalecimento,nadécadade80doséculoXVIII,funcio‑namcomoumaespéciedereacçãoaoqueconsiderouumainjustiça92.Damesma família, aMarquesa deAlorna veio a ser uma das vozes femi‑ninas de cultura portuguesa da época. Não querendo de modo algumestabelecer qualquer relação directa entre os textos das aristocratasportuguesas setecentistas e a «Lamentação de Sulpícia», não podemosdeixardeapontaroelementofemininocomoumimportantereagente,doaparentementemais frágil ao tido como omnipotente, ao que se consi‑deroudespotismo.

Apêndice

Satira de Sulpicia feita por occasião do Edicto, quemandou publicarDomiciano,

parahaveremdesahirdeRomatodososFilosofos,trad.il.enotasdeLuizAntoniodeAzevedo,Lisboa,RegiaOff.Typ.,1786:

«Satira de Sulpicia feita por occasião do Edicto, que mandou publicarDomiciano,parahaveremdesahirdeRomatodososFilosofos:“Permitte‑me,óMusa, tecer com o teu beneplacito em termos igualmente concisos uma brevenarraçãodestemeuassumptonaquellesversos,emquetunãocessasdecelebrarasacçõesdosHeróesfamosos,edestemidosGuerreiros.PorquantoeujáemteuobsequiomeretireiaomeuGabinete,procurandocomatuaassistenciaresolverosagradothesourodosteusconselhos.Nãohepoisminhaintençãodeixarcorrerapenna em verso Faléco, nem tam pouco em trímetro Iambo, nem por fimnaquelle, que, padecendo manqueira sempre no mesmo pé, tem aprendido aenfurecer‑se com estranha cólera debaixo da conducta de seu inventorClazomenío.Jánotocanteásoutrasespeciesdeversos,queentrãonaPoesia,sem

________________ 92MemóriasdaúltimacondessadeAtouguia:manuscritoautobiographico inédito

comumestudopreliminardoP.ValerioA.Cordeiro,Pontevedra,1916.

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exceptuaraindaquantosmetemservidomilharesdevezesparafazerasminhascomposições,enosquaeseufuiaprimeira,queensineiasRomanasacompetircomasGregas,eavariálos,erevestíloscomdiversas,enovasfacecias,todosellesponhodeparte,omittindo‑osdeproposito.Eis‑aquiomotivo,porquesódirijoati, ógrandeMusa, omeudiscurso, ligadonaquellesmesmosversos, aque tamdignamente presídes sábia, e períta, e nos quaes logras a singular vantajemdeumalinguaamaisfacunda,eeloquente.Portantodesceládoaltoássúpplicasdetuaserva,edábenignoassentoásminhasvozes.

Dize‑me, ó Callíope, em que está cuidando aquelle Pai dos Deoses? PorventuraquermudarasleisdoImperio,edaséras,emquenossospaisvivêrão,etamditosamenteexistírão?IntentaporacasotiraraosRomanos,quasichegadosapontodepenarentreparoxismosdemorte,oconhecimentodaquellasArtes,quejánoutrotempolhesconcedeo?EstabeleceránosdecretosdasuaProvidenciaquetodos nós ámaneira demudos, e destituidos já de toda a razão, bem como seestiveramosnaprimeira idade, emqueviemosaomundo, tambemcomoentãodebruçadossobreaterranossustentemossódebolotas,eabatidosnestaposturabebamosigualmentedaclaraecrystalinafonte?Ouconservarátalvezpropicioasoutras terras,eCidades,reservandoporémsóbandir,eexterminarospóvosdeItaliaeosdescendentesdeRemulo?Poisquepoderemosnósajuizar,ediscorrer?Duas são as emprezas, ou timbres, que tem feito com eminencia prodigiosalevantaracabeçaágrandeRoma,ovalornaguerra,easabedorianapaz.Porémesteesforço,tendosidoexercitadonasbatalhas,erecontros,quetivemosdentrode Italia, e nas guerras dos nossos Aliados, verdade he que fez trasbordar acorrente de suas victorias contra o estreito de Sicilia, e contra as fortalezas deCarthago;elogocomarrebatadocursofoisujeitandoosoutrosImperiosaonossodominio,e juntamentecomellesaredondezadetodaa terra.Masdepoisdisto,assim como a valentia de um Athléta, que sempre sahio vencedor, não tendofinalmentecomquemmedirasforçasnoEstadioOlympico,semurcha,ecomsigomesma, posto que inconcussa, e incontrastavel se perde ociosa, e sopíta; assimtambemaPotenciaRomana,depoisquedeixoudetravarchoques,erefrégascomseusinimigos,eresolveosoltarápazcompridasrédeas,trabalhandoaindanestetempo ella mesma entre nós por manter a observancia das leis dos Gregos, ecultivar igualmente os descobrimentos desta Nação, começou logo d’alli emdiantea regercomeffeminadoconselho,edebilmanejo, tudoquantohaviamosganhadopormarepor terra,quevemaseropremiodasbatalhasemquetamgloriosamentedebellámosanossosinimigos.Taeserãoaindaosesteios,oubases,emqueestribavatodaaconservaçãodoEstado;poishecertoquesemellasnãopodiaterestefirmeza,nemestabilidadealguma:ouentão,aquerermosdizerquenão tinha de subsistir, fica de todo convencida por vã, e mentirosa aquellapromessa,quenoutrotempofezJupiterasuafilhaVenus,quandolhedisse:EutenhodadoaosRomanosumImperiosemfim.

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Nuno Simões Rodrigues

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Agoraporultimo rematedadesgraça, aquelle, que temapreminenciadeimperar entre os negocios de Roma, vindo a cahir numdosmaiores absurdos,nãocomopresagiod’algumaTrave,quenoarapparecesse,mascomodassuasmesmascostas,eaffimpállido,comohe,pelasindigestõesdapropriaglotoneria,mandouquenãosómenteosestudos,masaindaomesmonomeecondiçãodosFilosofos, que assistião em Roma, tudo fosse para fóra della, e sahisse destaCidadepunidocomdegredo.Quefazemos?Tempohouve,emquedeixámososGregos,easCidadesdestes,quesópodemteronomedehomens,governando‑sepelas suas proprias leis, para que a nossa de Roma estivesse com tam sabiosProfessores mais bem disciplinada, e instruida; mas ao preferente, bem assimcomoosGallos,quandochegouCamilloa libertaroCapitolio,metendoatodoselles em grande confusão, e ruina, fugírão logo d’aqui, largando espadas, ebalanças; assim tambem se diz que os nossos respeitaveis Filósofos andão porvariaspartesvagabundos,equeellesmesmossãoosquerasgão,equeimãoseusproprios livros, como um pezo desgraçadamente pernicioso, e funesto. LogoerrounestaparteaquelleegregioScipiãoNumantino,eAfricano,queveioasubira tam alto gráo de merecimento e de gloria pelas instrucções de seu MestrenaturaldeRhodes;comotambemtodaaoutrafecundamultidãodeHeróes,queflorecêrão no tempo da segunda guerra Púnica, entre os quaes Catão o Priscoteriasummamenteestimado,comtodaaprudenciadosseusdictames,entender,se por ventura poderia conservar‑se mais a Nação Romana com os successosprósperos,ouantespelosadversos?Ehedesaberquepelosadversos.Porquantoesta Nação, quando o amor da Patria, e a Esposa, que fica encerrada e prêzadentrodecasa,incítaoseualentadobrio,paradefenderáforçad’armasaproprialiberdade,acóde logoapelejarcomseus inimigos,ámaneiradeumenxamedeabelhas, que denodadas tirão de seus amarellos córpos, como de bainha, pelosferrõescontraasvespas,cujoninhoseachanotemplodeMoneta.Porém,tantoque as abelhas voltão seguras da incursão das vespas, todo este enxamenumeroso,esquecidojádelavrarosdocesfavos,ejuntamenteaMestra,queellepor tal reconhece, perdem logo a natural vivacidade num profundo somno,causado pela sua mesma fartura, desidia, e folgada ociosidade. Logo porconsequenciaalonga,econstantepazfoiaruinadosRomanos.

Destamaneiradáfimapresentenarração.Quantoáparte,quemetoca, jáque nenhum gosto faço de viver fóra da tua companhia, desejára, Musaincomparavel, que me suggerisses d’aqui em diante, se por ventura querestambemausentar‑teagoradenós,comojánoutrotempofizeste,quandoaCidadedeEsmyrna foiassoladapelosLydos:ouem fimdescobre, comoDeosaqueés,outromeio,qualquerqueseja,porondeeufiquecertadatuavontade.Oquesótepeçohe,que,asahirmosd’aqui,apaguesdamemoriaameuesposoCalenoasaudosa imagemdassoberbasmuralhasdeRoma,edaherdade,quepossuenoterritoriodosSabinos.Istofoioqueeudisse.EntãoaDeosa,dignando‑sedeme

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A plausibilidade da sátira de Sulpícia e sua relação com a cultura portuguesa

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fallar em breves palavras, começa desta maneira: Despe‑te já, Cultora minha,d’essesbemfundadosreceiosdatuacircumspecção.Attendequeesteodio,quetodosentrãoaconceber,estáameaçandoserjáoderradeirocontraoTyranno,dequemtu,eellessequeixão,oqualporissotembrevementedeacabarseusdias,ficando assim illésa, e desaffrontada a nossa honra. Por quanto nós habitâmosaindaoslauriferosbosquesdeNuma,easmesmasfontes,dequesãoregados;ecom Egéria ao nosso lado estamos zombando das vans emprezas do mesmoTyranno.Vivealegre,fazeportersaude,efica jád’aquientendendo,queaestador, e pezar do teu generoso animo aguarda a sua bem merecida fama. IstomesmoprometteoCorodasMusas,eoRomanoApollo.”»