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Brasília • ano 34 • nº 136outubro/dezembro – 1997

Revista deInformaçãoLegislativa

Subsecretaria de Edições Técnicas do Senado Federal

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Revista deInformaçãoLegislativaFUNDADORES

Senador Auro Moura AndradePresidente do Senado Federal – 1961-1967Isaac BrownSecretário-Geral da Presidência – 1946-1967Leyla Castello Branco RangelDiretora – 1964-1988

ISSN 0034-835xPublicação trimestral daSubsecretaria de Edições Técnicas

Senado Federal, Via N-2, Unidade de Apoio III, Praça dos Três PoderesCEP: 70.165-900 – Brasília, DF. Telefones: (061) 311-3575, 311-3576 e 311-3579Fax: (061) 311-4258. E-Mail: [email protected]

Diretor: Raimundo Pontes Cunha NetoREVISÃO DE ORIGINAIS

João Evangelista Belém e Wellington de Araújo MoreiraREVISÃO DE PROVAS

Alessandra da Silva Moreira, Eloisa N. de Moura Silva, Helena Maria Vieira da Silvae Fábio José Dantas de Melo

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA

Paulo Henrique Ferreira NunesIMPRESSÃO

Secretaria Especial de Editoração e PublicaçõesCAPA

Paulo Cervinho e Cícero Bezerra

Revista de Informação Legislativa / Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas. - -Ano 1, n. 1 ( mar. 1964 ) – . - - Brasília: Senado Federal, Subsecretaria deEdições Técnicas, 1964– .v.Trimestral.Ano 1-3, nº 1-10, publ. pelo Serviço de Informação Legislativa; ano 3-9, nº 11-

33, publ. pela Diretoria de Informação Legislativa; ano 9- , nº 34- , publ. pela Subsecretariade Edições Técnicas.

1. Direito — Periódico. I. Brasil. Congresso. Senado Federal, Subsecretariade Edições Técnicas.

CDD 340.05CDU 34(05)

© Todos os direitos reservados. A reprodução ou tradução de qualquer parte destapublicação será permitida com a prévia permissão escrita do Editor.

Solicita-se permuta.Pídese canje.On demande l´échange.Si richiede lo scambio.We ask for exchange.Wir bitten um Austausch.

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Revista deInformaçãoLegislativaBrasília · ano 34 · nº 136 · outubro/dezembro · 1997

Cármen Lúcia Antunes Rocha Princípios constitucionais do processo administrativo noDireito brasileiro 5

José Carlos Buzanello Controle de constitucionalidade: a Constituição comoestatuto jurídico do político 29

Danilo Alejandro MognoniCostalunga

A teoria das nulidades e o sobredireito processual 37

Cláudio Brandão A consciência da antijuridicidade no moderno DireitoPenal 55

Josaphat Marinho Constituição e instabilidade institucional 63

Álvaro Melo Filho Novos parâmetros educacionais para o curso jurídico 71

Ricardo Rodrigues Gama A prisão no Brasil 79

Fabiana de Menezes Soares Função administrativa, estabilidade e princípio daneutralidade: alguns apontamentos sobre a reformaadministrativa 87

Flávio Sátiro Fernandes Improbidade administrativa 101

Ricardo Perlingeiro Mendes daSilva

Apropriação indébita tributária? 109

Palhares Moreira Reis Eleições diretas e indiretas no Brasil 115

Diogo de Figueiredo Moreira Neto Revisão constitucional. Subsídios para o processo detransformação do Estado brasileiro 131

Carlos David S. Aarão Reis O fundamento da proteção possessória 143

Bernardo Leôncio Moura Coelho A comprovação da regularidade trabalhista nas licitações:a proteção do empregado 153

Edilson Pereira Nobre Júnior Prescrição: decretação de ofício em favor da FazendaPública 161

Véra Jacob de Fradera Dano pré-contratual: uma análise comparativa a partirde três sistemas jurídicos, o continental europeu,o latino-americano e o americano do norte 169

Luiz O. Amaral Violência e crime, sociedade e Estado 181

Jacques Távora Alfonsin A reforma agrária como modalidade de concretizaçãodos direitos econômicos, sociais, culturais eambientais 191

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Vânia Fernandes Diniz Medidas provisórias - sua especificidade precária e ainfringência de direitos adquiridos 203

Octaciano Nogueira Voluntarismo jurídico e o desafio institucional 229

Arnoldo Wald Do regime legal da Cédula de Produto Rural (CPR) 237

Sílvio Dobrowolski O Poder Judiciário e a Constituição 253

Jete Jane FioratiWilson Fiorati Junior

A interpretação da linguagem do Regime JurídicoAdministrativo 261

Paulo Henrique Soares A recepção da Lei Complementar nº 64, de 1990 (Lei deInelegibilidade), pela Emenda Constitucional nº16, de 1997 277

Rogério Marinho Leite Chaves Ação monitória contra a Fazenda Pública 281

Luiz Carlos Bresser Pereira Cidadania e res publica: a emergência dos direitosrepublicanos 289

Paulo Modesto Reforma administrativa e marco legal das organizaçõessociais no Brasil. As dúvidas dos juristas sobre omodelo das organizações sociais 315

José Ricardo Meirelles O princípio da capacidade contributiva 333

Valéria Aroeira B. D. FerreiraA. Marcos da S. de Jesus

A justiça agrária na Constituição Federal 341

Pedro Sérgio dos Santos A inércia jurídica e os avanços tecno-científicos 347

Léo Ferreira Leoncy Colisão de direitos fundamentais a partir da Lei nº6.075/97: o direito à imagem de presos, vítimas etestemunhas e a liberdade de expressão e deinformação 349

Peter John Arrowsmith Cook Junior A recusa à aplicação de lei pelo Executivo, sob o juízo deinsconstitucionalidade 355

Orlando Venâncio dos Santos Filho Do procedimento monitório 361

José Rossini Campos do CoutoCorrêa

Uma controvérsia jurídica: a remuneração dos conse-lheiros tutelares 369

I’talo Fioravanti Sabo Mendes Do prazo para o ajuizamento da representação eleitoral(Art. 22, da Lei Complementar nº 64/90) 373

Jorgem Rubem Folena de Oliveira O direito como meio de controle social ou como instru-mento de mudança social? 377

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1. IntroduçãoNa peça Les Plaideurs , ficou célebre a

passagem na qual Racine critica, acidamente,o processo, cuja finalidade é tão-somente dotaro juiz de objeto sobre o qual faz incidir o seujulgamento. O papagaio, cujo comportamentoé posto à decisão do magistrado, serve àcaricatura do processo dado ao objetivo dajustiça voltada sobre si mesma.

Também não se pode esquecer a tristeaventura humana da Inquisição, na qual havia“processo”. A questão era, para quê? paraassegurar quem de quê?

O Estado nazista acolheu a figura doprocesso. Mas jamais reconheceu o Direitocomo forma de realização da Justiça. A mesmapessoa que executou uma decisão proferida emprocesso formalizado pelo Estado nazista, foi,no dia seguinte ao da rendição dos alemães,acusado de ter negado o direito ao processadoe tornou-se, ele mesmo, parte de um outroprocesso, no qual figurou como acusado econdenado.

Esses quatro momentos da literatura e darealidade histórica mais recente põem emquestão o centro das preocupações do Direitodo Estado Democrático: para quê o processo?para quem o processo? e, a partir das respostasoferecidas naquelas duas primeiras questões,como o processo?

Kafka narrou um processo. JuscelinoKubischek foi vítima de um processo.

Princípios constitucionais do processoadministrativo no Direito brasileiro

Cármen Lúcia Antunes Rocha é advogada.

SUMÁRIO

1. Introdução. 2. Processo e democracia. 3.Princípios processuais constitucionais. 4. Processoadministrativo, democracia e Constituição. 5.Princípios fundamentais do processo administrativona Constituição brasileira de 1988. 6. Conclusão.

CÁRMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA

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Revista de Informação Legislativa6

A história do processo retrata a própriahistória do homem em sua luta pela demo-cratização da relação do poder e com o poder.

O processo reflete uma forma de convi-vência estatal civilizada segundo parâmetrospreviamente determinados pelo Direito postoà observância de todos. A civilização é formal.As formas desempenham um papel essencialna convivência civilizada dos homens; elasdelimitam espaços de ação e modos inteligíveisde comportamento para que a surpresapermanente não seja um elemento de tensãoconstante do homem em seu contato com ooutro e em sua busca de equilíbrio na vivênciacom o outro e, inclusive, consigo mesmo. Porisso, o processo, como formalização decomportamentos para a reivindicação eefetividade de direitos, põe-se como umanecessidade da civilização e da civilidadejurídica do homem no Estado.

Não se é de esquecer, contudo, que oprocesso é meio, é instrumento, não é fim. Pelomenos na perspectiva democrática, que devedominar todas as formas de se pensar e,principalmente, de se interpretar e aplicar oDireito Público. O processo é o instrumento quegarante ao homem que a justiça pelas própriasmãos não precisa ser feita, porque ela seráaperfeiçoada pelo Estado em forma processadasegundo paradigmas jurídicos bem definidos epreviamente estabelecidos e conhecidos. Foradaí, não há solução para a barbárie e para adescrença no Estado. Sem confiança nasinstituições jurídicas, não há base para agarantia das instituições políticas. O processoé, pois, uma garantia da Democracia realizávelpelo Direito, segundo o Direito e para umaefetiva justiciabilidade.

2. Processo e democraciaComo instrumento para a realização de um

fim que lhe é externo, o processo1 nem sempre

foi – ou tem sido – utilizado democraticamente.Às vezes ele foi mesmo utilizado para impediro exercício livre de direitos, para permitir queo Direito não se realizasse. O processo podeinstrumentalizar a antidemocracia2. Já não setem a crença vã ou a convicção ingênua de serele um instrumento abúlico, política e juridi-camente. Pior: ele pode ser a certeza dogovernante antidemocrático da insegurançaconstituída sob formas que deveriam conduzirao objetivo contrário, qual seja, a segurança quesomente o Direito Democrático pode oferecer.

1 Cabe uma palavra sobre o conceito de processoaqui utilizado. É que não tem sido incomum o usoindistinto ou, de menos, alternado da referência aprocesso ou procedimento administrativo, diferen-temente do que se tem quando se cuida de processojudicial. Quanto a este, os conceitos são mais bemdelimitados, esclarecendo, entre outros, na doutrinanacional, Ada Pellegrini Grinover que “o processopode ser encarado sob o aspecto dos atos que lhedão corpo e das relações entre eles e igualmentesob o aspecto das relações entre os seus sujeitos. Oprocedimento é, assim, apenas o meio extrínsecopelo qual se instaura, se desenvolve e termina oprocesso; é a manifestação extrínseca do processo.

A noção deste é essencialmente teleológica, porqueele se caracteriza por sua finalidade jurisdicional; anoção de procedimento é puramente formal, nãopassando de uma coordenação de atos que sesucedem. E essa série de atos não é senão a maneirapela qual se exterioriza o processo”. (CINTRA,Antônio Carlos de Araújo, GRINOBER, AdaPellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoriageral do processo. São Paulo : Revista dos Tribunais,1981. p. 247).

Para os efeitos do presente estudo, valemo-nosdo entendimento de que o processo é o instrumentopelo qual se cumpre a função estatal de solução deuma lide; é o meio formal de que se vale o Estado,direta ou indiretamente, para solver conflitos havidosno seio da sociedade. Procedimento é o modo peloqual os atos que se desenvolvem processualmentesão coordenados e formalizados. O processo é o meioque pode se desenvolver por mais de um modo, queé o procedimento. Como escrevemos em outraocasião, “processo é o meio, o instrumentojuridicamente criado para se realizar uma deter-minada finalidade. Difere de procedimento, que é omodo pelo qual se atua... O processo é instrumento;o procedimento é a maneira de fazer ou agir, ou,como na hipótese em foco, de conduzir o processo.O processo identifica o objeto e a forma de exercerdeterminadas atividades administrativas; o proce-dimento é o modo de aperfeiçoar esta atividade. Todaexperiência administrativa tem um modo próprio deser aperfeiçoada. Quando este modo se realiza poruma sucessão de atos encadeados e vinculados a fimespecífico, a doutrina do direito administrativodenomina-o procedimento. Nem sempre a atividadeadministrativa necessita de um procedimento; àsvezes realiza-se por um único ato. Nem sempre,igualmente, requer-se um processo, conquanto sejasempre formal a atividade administrativa”. (InLicitação, no prelo).

2 Não é outra a narrativa feita por Pietro Verri,quanto ao caráter extremamente perverso e antide-mocrático do processo, em sua obra Observaçõessobre a Tortura . O relato de um conjunto deelementos forjados para fazer parecer o que deconveniência se fez para o Estado e que se conteveem um processo elaborado para incriminar alguémpreviamente identificado, demonstra a inocuidadedo processo como garantia de direitos pela sua sóocorrência.

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Acaso alguém poderia esquecer o processo deSócrates? Ou as suas palavras platonizadassegundo a fórmula de que

“o que vós, cidadãos atenienses, haveissentido, com o manejo dos meus acusa-dores, não sei; certo é que eu, devido aeles, quase me esquecia de mim mesmo,tão persuasivamente falavam... eu me vejocondenado à morte por vós; vós, conde-nados de verdade, criminosos da impro-bidade e da injustiça. Eu estou dentro daminha pena, vós dentro da vossa”3.

O processo fora uma farsa. A justiça, uma falsa.A segurança, uma morte.

Somente a principiologia democrática fazrealizável a segurança jurídica, que é o princípiomantenedor do próprio Estado, sendo o daJustiça o princípio maior, justificador da própriaexistência do Estado. Por isso mesmo, somenteo processo democrático pode estabelecer umarelação jurídica equilibrada de respeito aosdireitos e ao homem como seu titular.

A segurança jurídica pode ser consideradacomo a certeza do indivíduo na corretaaplicação dos valores e princípios de Justiçaabsorvidos pelo sistema de direito adotado emdeterminada sociedade.

Mas, como bem adverte Gustav Radbruch,“la seguridad jurídica no es el valor úniconi el decisivo, que el derecho ha derealizar. Junto a la seguridad encon-tramos otros dos valores: conveniencia(Zweckmässigkeit) y justicia. En el ordende prelación de estos valores tenemos quecolocar en el último lugar a la conve-niencia del derecho para el bien común.De ninguna manera es derecho todo ‘loque al aprovecha’, sino que al puebloaprovecha, en último análisis, sólo lo quees derecho, lo que crea seguridad jurídicay lo que aspira a ser justicia”4.

Como instrumento realizador dessesprincípios de Justiça, segurança e interessepúblico, o processo baliza-se segundo oselementos nos quais eles se compõem e sedecompõem, pois o meio presta-se aos fins enão o contrário. O processo é um instrumentode exercício do poder. Assim, a democraciapolítica e mesmo a democracia social têm noprocesso uma forma de manifestação erealização dos seus princípios. Mas a antide-mocracia também pode valer-se dele paracumprir os seus objetivos. Daí a necessidadede se estabelecer uma principiologia jurídicademocrática informadora do processo, sem aqual, tanto poderá ele ser uma arma jurídicafavorável, como poderá ser contrária aoindivíduo. Somente o processo democrático éa superação do arbítrio.

O processo administrativo democrático nãoé senão o encontro da segurança jurídica justa.Ele é uma das formas de concretização doprincípio da legitimidade do poder, na medidaem que se esclarecem e se afirmam os motivosdas decisões administrativas5. Tais decisões sãoquestionadas e deslindadas no processoadministrativo e, nessa sede, o poder, noexercício do qual elas foram adotadas, recebe asua condição legítima própria. Quanto maisdemocrático for o processo administrativo, maisdemonstrativo ele é da essência e da prática doexercício do poder em determinado Estado.

3. Princípios constitucionais processuaisConsiderado o processo como instrumento

de exercício do poder, passou ele à condição dematéria fundamental a ser cuidada em sedeconstitucional. A constitucionalização doprocesso decorreu desse novo entendimento quepassou a lhe ser reconhecido. Sendo uminstrumento de atuação do Estado para garantira prestação da jurisdição (denominada comum,para a judicial e à qual se acrescentou aadministrativa), monopólio da pessoa políticapública e manifestação máxima do poder

3 PLATÃO. Apologia de Sócrates. Rio deJaneiro, p. 25 e 92.

4 Segundo aquele autor, “La seguridad jurídica,inherente en toda ley positiva por esa su positividad,ocupa una notable posición intermedia entre laconveniencia y la justificia: por un lado es reclamadapor el bien común, por el otro empero, también porla justicia. Que el derecho sea seguro, que no seainterpretado y aplicado hoy y aquí de una manera,mañana y allá de otra, es, al mismo tiempo, unaexigencia de justicia. Donde se origine una pugnaentre seguridad jurídica y justicia, entre leydiscutible en su contenido, pero positiva, y underecho justo, pero no plasmado en forma de ley, sepresenta en verdad un conflicto de la justicia consigomisma, un conflicto entre justicia aparente yverdadera”.

5 Segundo Niklas Luhman “...quem tem o poderdetém condições de motivar outros a adotar as suasdecisões; deve-se partir da hipótese de que noprocesso se criem razões adicionais para aprovaçãodas decisões e de que, neste sentido, o poder originea decisão e a torne legítima; visto desta forma, oobjetivo do procedimento juridicamente organizadoconsiste em tornar intersubjetivamente transmissívela redução da complexidade com a ajuda da criaçãodo poder legítimo de decisão”. (Legitimação peloprocedimento, 1980, p. 27)

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Revista de Informação Legislativa8

estatal, o processo afirmou-se como direitoindividual formalizado segundo princípiosespecíficos a figurarem nos sistemas entre osdireitos fundamentais do indivíduo. Nessacondição é que se dispôs, na DeclaraçãoUniversal dos Direitos do Homem, de 1948,arts. 8º e 10:

“Art. 8º. Toda pessoa tem direito aum recurso efetivo perante as jurisdiçõesnacionais competentes contra os atos queviolam os direitos fundamentais que lhesão reconhecidos pela Constituição e pelalei”.

“Art. 10. Toda pessoa tem direito, emplena igualdade, a que a sua causa sejaouvida eqüitativamente e publi-camentepor um tribunal independente e impar-cial, que decidirá seja de seus direitos eobrigações, seja da legitimidade de todaacusação penal em matéria penal dirigidacontra ela”.

O direito fundamental a um processo – enão a qualquer processo, mas ao que se designadevido processo legal – passou a ser incluído,no curso do presente século, de maneira formale expressa, entre aqueles arrolados no rol dosdireitos garantidos nos diferentes sistemasconstitucionais positivos e, inclusive, assegu-rado no plano do Direito Internacional.

A jurisdição prestada segundo um processodemocrático deu o tom da natureza dos demaisdireitos fundamentais reconhecidos, declaradose garantidos nos diferentes sistemas jurídicosno curso do século XX.

O processo democrático tornou-se, assim,uma garantia constitucional fundamental postae assegurada pelo Direito. A jurisdição é odireito, de que é a correlata garantia o devidoprocesso legal democrático.

A constitucionalização do processo fez-se,pois, para o atingimento dos objetivos de sepropiciar ao cidadão o acesso à jurisdição(judicial ou administrativa, conforme o modeloconstitucional adotado), à eficiência naprestação desse serviço essencial e à eficáciada decisão proferida pelo Estado na ação. Comtal garantia, se assegura o cumprimento de umdos fins essenciais do exercício do poderpolítico da pessoa estatal, qual seja, o de soluçãode conflitos individuais e sociais na sociedade,a fim de que a liberdade esteja abrigada noespaço da convivência política na sociedadeestatal. Quanto mais o processo oferecersegurança jurídica ao indivíduo de que qualquerameaça ou lesão a direito seu será objeto de

solução pelo Estado ou por quem lhe faça asvezes, segundo o Direito positivado, mais osistema será considerado eficiente e satisfatóriopara a sociedade política, mais a justiça estarásendo realizada e a liberdade garantida. Sabe-se que tanto a falta como o excesso de processopodem comprometer exatamente a eficácia dodireito à jurisdição e do princípio do devidoprocesso legal. É devido, adequado, legítimo oprocesso formalizado segundo a lei e paraatingir o objetivo precípuo de assegurar-se queo direito dito na ação seja eficazmente aplicado,respeitado ou restabelecido na forma decididatempestivamente.

Para que o princípio da jurisdição sejagarantido, as Constituições modernas cuidaramde formular, expressamente, o conjunto desubprincípios que o informam, de tal modo quedo acatamento de todos se tenha a garantia doprocesso eficazmente respeitada. Fundamental-mente se tem como elenco de subprincípiosembasadores daquele princípio magno e dagarantia do processo o de acesso à jurisdição, ode devido processo legal, o de contraditório, ode ampla , o de duplo grau de jurisdição, o detratamento paritário das partes, o de motivaçãodas decisões processadas, o de publicidade dosatos processuais, entre outros nos quais eles sedesdobram.

A inclusão do princípio da jurisdição e dagarantia do processo que a realiza, basicamente,decorre do entendimento afirmado, histori-camente, de que pouco ou nada adiantava a sóreferência formal ao direito do indivíduo ou docidadão de comprar aos umbrais dos tribunais,se ali não pudesse ele adentrar, participar e verconhecido e solucionado o seu caso democra-ticamente. São os subprincípios arrolados eefetivados pelos sistemas constitucionaiscontemporâneos que adensaram a jurisdiçãocomo direito constitucional essencial assegu-rador de todos os outros direitos reconhecidose declarados nos ordenamentos jurídicos. Oconflito é da vivência humana. Há que seracionalizar, nos modelos de Direito, fórmulasnormativas pelas quais possam eles chegar auma solução que assegure ao homem a validadeeficiente da convivência política numasociedade democrática. O que garante essacerteza da Justiça possível dos homens peloshomens é exatamente a jurisdição, formaconstitucional concebida de se fazer brotar dalide a resposta humana da justiça prestada comoserviço estatal prestado, não apenas como idealmaior imaginado. Assim, não basta qualquer

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jurisdição, senão aquela processada segundoparâmetros de Direito, criado justo e aplicadodemocraticamente.

Se a prestação da jurisdição pelo PoderJudiciário pôs-se desde os primeiros desenhosdo Estado moderno como uma forma derealização humana da justiça desejada em dadasociedade, o Estado contemporâneo valorizanovas formas de atuação e reaprende-se,segundo paradigmas que ampliam a garantiado processo, sublinhando a atuação adminis-trativa ao lado daquel’outra judicial.

Após a constitucionalização dos princípiosdo processo judicial, a doutrina trilhou aformulação do processo administrativo, que asConstituições mais recentes vêm contemplando.

4. Processo administrativo,democracia e Constituição

a) Processo administrativo e democracia

O Estado informado, estruturado, cujas asfunções são desempenhadas segundo osprincípios democráticos, tem a sua organizaçãoe dinâmica integralmente modelados por eles.A democracia é a alma do sistema assimformado. Tudo o que lhe arranhe, embarace ouimpeça é inválido por contrariar a essência dosistema constituído. Função alguma, órgão ouentidade que componha a sua estrutura, nãoestranha qualquer dos princípios que afirmama democracia se é ela a opção da sociedadeconstituída em Estado segundo um sistemajurídico formalizado.

Não se poderia afastar, pois, daquelesprincípios a atividade administrativa do Estadoou o conjunto de entidades e órgãos que adesempenham. Sendo base do Estado osprincípios democráticos, não seria pensávelnele haver uma Administração Públicaautoritária ou distante daqueles princípios. Ademocracia modela e remodela a Adminis-tração Pública, reformula-a segundo o que ditaa sua natureza cidadã e pública.

Na organização administrativa democrática,o processo administrativo surge como umaforma de superação da atuação estatal auto-ritária. É por ele, fundamentalmente, que oprincípio da legitimidade do poder, desem-penhado por meio da atividade administrativa,ganha densidade e foros de evidência eeficiência social e política. Mais ainda, é pormeio do processo administrativo – em suasdiferentes concepções, aplicações e demons-

trações – que a legitimidade administrativademocrática concretiza e estampa os princípiosda responsabilidade e da moralidade adminis-trativas.

Do processo administrativo medievalmenteinquisitorial, trancado em porões mal ilumi-nados em seus recônditos motivos, até oprocesso público e dada à garantia de partici-pação do interessado e da sociedade, é de se terque a história aplainou a trilha autoritária daAdministração guardada a sete chaves pelosadministradores tão pouco públicos dasantidemocracias renitentes. O processoadministrativo fez-se uma forma pela qual opoder exercido no desempenho dessa atividaderetorna ao veio do qual afluiu, qual seja, aprópria sociedade, daí retirando a sua vocaçãopara desempenhar-se conforme os paradigmasde justiça nela pensados e postos em seu sistemade direito publicamente aceito como próprio.É nesse ambiente democrático que se concebeo processo administrativo como um instru-mento de realização legítima da atuação estatalpara a solução de conflitos ou para a adoção demedidas preventivas de futuras lides.

A legitimidade do exercício do podermanifestado no desempenho da atividadeadministrativa do Estado faz com que sejamrelevados, então, os princípios da respon-sabilidade estatal e da moralidade adminis-trativa. É a democracia que ilumina a Admi-nistração Pública, concebendo-a, de formanova, sob o enfoque daqueles dois princípios,quais sejam, o da responsabilidade e o damoralidade administrativas.

Pelo princípio da responsabilidade estataltodos e cada qual dos agentes que compõem apessoa estatal e todos aqueles que lhes façamas vezes comparecem perante a sociedade paraa qual e em nome da qual atuam oferecendouma resposta pelo seu comportamento. Aresponsabilidade faz a Administração Públicafalar. Cessa-se por esse princípio a Adminis-tração unilateral, silenciosa em seus motivos,privatizada em suas causas e formas, e dá-se àrazão dialética e à prática multiplicada nasociedade participante.

Pelo princípio da moralidade administra-tiva, põe-se a conduta administrativa confor-mada aos valores de honestidade e justezadevida a cada qual dos cidadãos e dosadministrados na base das condutas públicas.Quer-se por ele atingir-se a juridicidadeadministrativa justa, a dizer, havida com ajusteza determinada segundo os paradigmas do

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Revista de Informação Legislativa10

Direito traçados como norte e limite da atuaçãodos agentes da Administração Pública. Amoralidade administrativa desempenha, então,um papel preponderante e diretivo na garantiados direitos subjetivos dos administrativos noexercício do poder manifestado pela funçãoadministrativa. A Administração Públicaabúlica, inerte, onipotente e altaneira cedeuespaço a uma Administração democrática, naqual a moral advém como resultado do diálogoe da participação do cidadão, cujo sentimentode justiça dita os valores morais que sãotransformados, quando amadurecidos, emprincípios jurídicos adotados pelo Direito6.

É, pois, para a realização dos princípiosdemocráticos legitimadores do exercício dopoder que se põe o processo administrativo comoinstrumento de ação do agente público, geran-do-se em sua base jurídica o conjunto elementardos subprincípios que dão ao cidadão a segurançade aplicação eficiente do Direito justo.

b) Processo administrativo e ConstituiçãoA entronização dos princípios processuais

nos sistemas constitucionais, conforme acimasalientado, representa a necessidade de seassegurar que o acesso à jurisdição não seja oúltimo, mas o primeiro passo para a certeza docidadão de que os seus direitos, postos emquestão, serão considerados, respeitados eassegurados segundo definido em processopúblico e democrático do qual ele participe ativae livremente. Não bastaria formalizar o direitoao acesso à jurisdição, se não se assegurasse aocidadão que ela seria prestada em um processoconduzido em estrita conformidade comnormas previamente estabelecidas, garan-tidoras elas mesmas de outros princípios nosquais se desdobra aquele primeiro.

O processo administrativo passou a sercompreendido constitucionalmente como umaconseqüência inafastável da democracia queimpregna todas as funções estatais, aí incluída,obviamente, a administrativa. Constitucio-nalizada a Administração Pública, o processoadministrativo cuidado, em seus princípiosessenciais, como matéria inserida no sistema

jurídico fundamental do Estado não pode sertida senão como consectário daquela primeiradecisão constituinte.

Em primeiro lugar, como direito funda-mental reconhecido, declarado e assegurado emforma específica pelo sistema, a garantia doprocesso administrativo teria que ser objeto decuidado específico do constituinte originário.Não se disputa a sua natureza de direitoconstitucional fundamental do cidadão.

Em segundo lugar, como matéria adminis-trativa constitucionalizada, o processo adminis-trativo tangencia a questão da competêncialegislativa sobre o tema a indicar e mesmodefinir o exercício de competência política dasentidades que componham, quando for o caso,como ocorre no Estado brasileiro, a Federação.Mesmo em Estados unitários, a organização ea forma de atuação administrativa impõem ocuidado fundamental do processo admi-nistrativo em seus sistemas jurídicos. Guarda-se, aqui, na condição de matéria básica para aorganização e exercício do poder, o tratamentoda competência administrativa, na qual seinclui aquela que se refere ao processoadministrativo.

No Brasil, o direito-fundamento do devidoprocesso legal inteira-se pela garantia doprocesso administrativo. Tal direito é declaradoe assegurado no art. 5º, inciso LV, da Consti-tuição da República de 1988.

Quanto à questão da competência paracuidar do tema em sede infraconstitucional, aorganização federativa brasileira não permiteque haja lei nacional sobre o tema. A autonomiaadministrativa, que caracteriza o princípiofederativo dominante da forma de estadoadotada no Brasil, tem a sua afirmação rigorosana garantia de um espaço próprio de cadaentidade federada (Estados-membros, DistritoFederal e municípios) para estruturar a suaorganização e a sua forma de atuação,observados os princípios constitucionais. Oprocesso administrativo, como instrumento deação adotado pela Administração Pública,garantido em seus princípios fundamentais naConstituição Federal, tem o seu esboçoinfraconstitucional firmado pela legislaçãoelaborada pelas diferentes pessoas políticas,cada qual seguindo as diretrizes que melhor seadaptem às suas condições7.

6 Ensina Ada Pellegrini Grinover que “...oprocesso não é apenas um instrumento técnico, massobretudo ético. E significa, ainda, que é profun-damente influenciado por fatores históricos,sociológicos e políticos. Claro é que a história, asociologia e a política hão de parar às portas daexperiência processual, entendida como fenômenojurídico” (Teoria geral do processo. São Paulo :Revista dos Tribunais, 1981. p. 47).

7 É certo que os sistemas constitucionaiscontemporâneos encarecem os princípios consti-tucionais da Administração Pública, fazendo-o,expressamente, a Constituição da República doBrasil em seu art. 37. Tais princípios ordenam, no

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A autonomia administrativa limita-se peladefinição constitucional da competênciapolítica de cada pessoa federada. Essa compe-tência manifesta-se, fundamentalmente, pelacapacidade de auto-organização e autogovernosegundo suas próprias Constituições e leis queadotarem (art. 25, da Constituição brasileira,de 1988). Todavia, a adoção dessa legislaçãoestadual e municipal e, em especial, a queconcerne à matéria administrativa – em cujaseara se tem o cuidado legislativo do processoadministrativo – tem os seus limites estabe-lecidos no próprio sistema constitucional, peloque tudo quanto desborde tais balizas outransgrida direito fundamental constitu-cionalmente assegurado, é inválido juridica-mente. Assim, os princípios constitucionaisprocessuais são fundamentos necessários dalegislação sobre processo administrativo aserem tomados em consideração e acatados, emsua integralidade material e formal, pelolegislador estadual e municipal.

Dois dispositivos constitucionais referem-seà competência das entidades políticas paralegislar sobre matéria processual: o art. 22, I,estabelece que “compete privativamente àUnião legislar sobre... direito... processual...”,enquanto o art. 24, XI, reza que “compete àUnião, aos Estados e ao Distrito Federal legislarconcorrentemente sobre... procedimentos emmatéria processual”.

Poder-se-ia imaginar que tendo a Consti-tuição da República garantido “aos litigantes,em processo judicial ou administrativo, e aosacusados em geral... o contraditório e ampladefesa, com os meios e recursos a ela inerentes”;o direito processual passou a incluir, neces-sariamente, no sistema positivo nacional, oprocesso administrativo. Nem se poderia excluí-lo do domínio do direito processual por se ternele o desfibramento da garantia constitucional,a ser objeto de cuidado infraconstitucionalespecífico. Tal assertiva – que parece corretaem face da dicção constitucional – poderia, à

primeira vista, fazer supor que então o direitoprocessual administrativo teria que ser objetode legislação infraconstitucional pela União,privativamente, ou, quanto aos procedimentos,concorrentemente pela pessoa federal, pelosEstados-membros e pelo Distrito Federal. Tal,porém, não ocorre. É que, sendo sistema, aConstituição somente pode ser entendida naglobalidade de suas normas, especialmente apartir daquelas que veiculam princípios. Ora,um dos princípios mais fortes e vinculantes dosistema constitucional brasileiro é exatamenteo federativo (cf., por exemplo, o art. 60, § 4º).Este princípio é formulado a partir da garantiada autonomia política e administrativa dasentidades que compõem a Federação. Carentedessa autonomia o que se tem não é senão oque Paulo Bonavides já apelidou de “federaçãode opereta”. Se o processo administrativo,instrumentalizador das condutas administrativase somente utilizado para a garantia dos direitossubjetivos do cidadão e do administrado emgeral, não fosse inserido no espaço decompetência própria e autônoma de cadaentidade federada, como se ter que a auto-administração dessa pessoa estaria garantida?Como dizer autônoma para organizar a suaprópria administração quem não dispõe deautonomia política para legislar sequer sobre oprocesso a ser seguido no exercício dessamatéria? Assim, tanto o processo adminis-trativo, quanto os procedimentos que lhe sãoinerentes são objetos precípuos de tratamentoautônomo de cada qual das entidades daFederação brasileira e a referência à legislaçãoprocessual que compete privativamente àUnião, por definição constitucional expressa,é tão-somente aquela correspectiva à unidadedo direito processual judicial (civil ou penal).

5. Princípios fundamentais do processoadministrativo na Constituição

brasileira de 1988a) Constitucionalização dos princípios

processuais administrativos

1) Como antes asseverado, iniciou-se aintrodução dos princípios processuais nossistemas constitucionais positivos pelo encare-cimento do processo civil e, especialmente, dopenal. É que além de serem ramos do direitomais bem sedimentados em razão de suatradição, deixavam mais claramente à mostra –especialmente o processo penal – a vulnera-bilidade do indivíduo em face do Estado quandodo exercício da jurisdição.

sistema administrativo federal, as autonomiaspolíticas, pelo que a legislação e as práticasadministrativas partem e se voltam para a suarealização, acatando-os no rigor formal e materialde que a natureza constitucional os dota. Osprincípios constitucionais expressos no sistemabrasileiro são o da juridicidade, o da impessoalidade,o da moralidade administrativa, o da publicidade,compondo-se ainda o sistema constitucional dosprincípios administrativos implícitos da razoa-bilidade, da proporcionalidade e da motivaçãosuficiente.

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Daí a inclusão de algumas garantiasprocessuais nos períodos mais remotos doconstitucionalismo. Assim, por exemplo, odevido processo legal e o julgamento pelospróprios pares, como direitos fundamentaisreconhecidos em norma expressa, figuraramnessa condição na Carta Magna do Rei Joãosem Terra (datada de 1215), onde se pode ver,entre outros, os seguintes dispositivos que vêmà baila transcrever:

“21. Os condes e barões serãopunidos por seus pares, e conformementeà medida de seu delito. (...)

38. Nenhum bailio levará, de hoje emdiante, alguém a julgamento, com baseapenas em sua palavra, sem testemunhasdignas de crédito para apoiá-lo.

39. Nenhum homem livre serácapturado ou aprisionado, ou desapro-priado de seus bens, ou declarado forada lei, ou exilado, ou de algum modolesado, nem nós iremos contra ele, nemenviaremos ninguém contra ele, excetopelo julgamento legítimo de seus paresou pela lei do país.

40. A ninguém venderemos, a nin-guém negaremos ou retardaremos direitoou justiça”.

A Revolução Francesa, com o sentidocosmopolita que emprestou às suas idéias, fezdivulgar-se em todo mundo o direito ao devidoprocesso como um dos direitos fundamentaisdo homem, estabelecendo, no inciso VII, daDeclaração dos Direitos do Homem e doCidadão, de 1789, a disposição segundo a qual

“Nul homme ne peut être accusé,arrêté ni détenu que dans les casdéterminés par la loi et selon les formesqu’elle a prescrites. Ceux qui sollicitente,expédiente, exécutent ou font exécuterdes ordres arbitraires doivent être punis;mais tout citoyen appelé ou saisi en vertude la loi doit obéir à l’instant; il se rendcoupable par la résistence”.

A necessidade de um processo havido naforma da lei para que a liberdade e a proprie-dade do homem fosse questionada e, eventual-mente, restringida no exercício garantido foi,pois, reconhecido como um direito fundamentalao lado de todos os outros que são consideradosde primeira geração.

2) O reconhecimento de que também oprocesso administrativo poderia provocarablação a direitos, inclusive direitos funda-mentais, como aqueles relativos ao patrimônio

jurídico e à própria liberdade do indivíduo, bemcomo a demonstração de que esse processo –pela sede administrativa na qual transitava –poderia encarecer a ação do poder político emrelação ao indivíduo, desguarnecido dasmesmas garantias de que se revestia o processopenal e civil patrocinados pelos fundamentosconstitucionais, fez com que se erigisse à sedeconstitucional a matéria relativa ao tema.

Contribuiu para tanto a doutrina, cada vezmais serena, no sentido da condição autônomae peculiar do processo administrativo.

Questionado, inicialmente, até mesmo emsua existência como categoria jurídica especí-fica e distinta dos demais institutos, o processoadministrativo recebeu o reconhecimento de suaespecificidade somente em momentos maisrecentes8. Explica-se a dificuldade de se admitira existência do instituto pela circunstância dese ter associado, tradicionalmente, o termoprocesso à jurisdição, excluindo-se da atividadeadministrativa a condição de ser qualificadapelo desempenho havido também, em algunscasos, segundo um processo, perfeitamentecaracterizado e dotado de elementos que oidentificavam àquele judicial (e objeto decuidados pelo direito processual), mas que odistinguiam daquele pela peculiaridade do seuobjeto e singularidade de sua forma. ÀAdministração Pública vinculou-se o institutodo ato administrativo, deixando que o processofosse apropriado pelo ramo do direito encar-regado do exercício da jurisdição9.

8 Somente em fins do século passado e iníciodeste é que a doutrina alemã e a italiana princi-palmente e a doutrina francesa com mais parcimôniatambém passaram a fazer referência ao procedimentoadministrativo e à operação administrativa com osignificado de um conjunto de atos que se ordenam,coordenam e aliam-se para o atingimento de um fimde interesse público específico. Segundo lição deOdete Medauar, “entre fins da década de 20 e finsda década de 40 vai emergindo outra concepção deprocesso administrativo, não mais integrado aopróprio ato em que resulta, mas como o aspectodinâmico de um fenômeno, ou seja, como odesenvolver-se de um fenômeno em direção a umcerto efeito: o processo como sucessão de fases oude atos. Os momentos ou fases, assim, não seconfundem com o próprio ato final, nem significamum de seus aspectos.” (A processualidade no DireitoAdministrativo. São Paulo : Revista dos Tribunais,1993. p. 58).

9 Nesse sentido cf. REAL, Alberto Ramón.Procedimiento administrativo comparado. In :MARIENHOFF, Miguel S. et al. Procedimientoadministrativo. Tucuman : UNSTA, 1982. p. 195.

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Com a absorção pela doutrina da idéia deque a atividade administrativa teria que serformalizada segundo um processo paraassegurar os direitos do administrado e doagente público e para que os sistemas decontrole pudessem ser exercidos em instânciajurisdicional, o processo administrativo passoua assumir feição própria, cuidada para oatingimento desses objetivos.

A concepção de que o exercício da compe-tência administrativa faz-se mediante processo,com natureza, fins e forma próprios, transferiuo pólo principal da doutrina jusadminis-trativista. Esta, antes centrada na tensão daprodução do ato administrativo unilateral,impessoal e editado no desempenho de poderincontrastável, passou a ser concebida eexplicada como uma relação, que é formalizadapara cumprir um fim exterior e superior ao seuautor. A vocação pública da atividade admi-nistrativa compreende, então, um contraditórioformalizado, o que vem a dar num processo,caracterizado segundo essa condição de suaessência. Essa vocação administrativa com asua forma de realização transformaram-sesegundo a concepção de Estado dominantepraticada. O Estado Democrático de Direitopressupõe uma Administração Pública e põe umdireito administrativo compreendidos, expli-cados e vividos segundo os princípios que onorteiam, dos quais releva o da participaçãolivre do cidadão no exercício do poder, aíinserida a fase de controle da competênciadesempenhada. Pelo que o contraditóriolivremente posto e impessoal, pública eeticamente considerado e resolvido, faz parteda dinâmica administrativa. Logo, o processoadministrativo passou a ser um instrumento daAdministração Pública democrática buscadanum Estado no qual esse regime político sejaadotado. Assim, o processo administrativopassou a ser considerado matéria constitucional,pois a sua garantia é fundamental, como o é oprocesso judicial. A necessidade de se trans-portá-lo para a sede constitucional impôs-se,então, em razão das transformações tanto doEstado quanto dos princípios que o regimepolítico democrático ostenta.

Daí a presença, no direito constitucionalpositivo brasileiro, do art. 5º, inciso LV, daConstituição da República de 1988, segundo oqual “aos litigantes, em processo judicial ouadministrativo, e aos acusados em geral sãoassegurados o contraditório e a ampla defesa,com os meios e recursos a ela inerentes”.

Note-se que o encarecimento do processoadministrativo com os princípios que onorteiam em sistema constitucional não findana dicção apenas de seu reconhecimento comogarantia do administrado, mas se apresenta emoutros direitos que são erigidos na mesmacondição constitucional fundamental, como setem com o reconhecimento do direito de petiçãoaos poderes públicos. Assim, a Constituição daRepública de 1988 estabelece ser “a todosassegurados, independentemente do pagamentode taxas a) o direito de petição aos PoderesPúblicos em defesa de direito ou contrailegalidade ou abuso de poder”. O exercício dodireito de petição tangencia o processoadministrativo, particularmente quando secuida de impugnação (ou “petição” para semanter a expressão constitucional) contrailegalidade ou abuso de poder, porque se tem,então, inevitavelmente, um processo, no qualse abriga tanto o contraditório, quanto a ampladefesa, a segurança dos princípios processuaisconstitucionais explícitos e implícitos adotadospelo sistema.

O direito de petição não começa e terminano pedido do administrado ou do agentepúblico. A petição, obviamente, é apenas aprimeira peça de um processo, que se desenrola,formalmente, para a obtenção do resultadosegundo os princípios estabelecidos. Talresultado mais não é que a prática eficaz,eficiente e justa da atividade administrativajuridicamente concebida.

A realização de um processo pela Adminis-tração Pública não é competência-faculdade,mas competência-dever vinculado. Algunselementos admitidos para o exercício dessacompetência podem ser discricionários, porexemplo, relativos ao momento, mas o exercíciodela é sempre vinculado. Não cabe ao adminis-trador público escolher a forma processual, oueleger se processualiza determinado desem-penho, ou não.

Especialmente no que concerne ao dever dedisciplinar-se interna e externamente e, noexercício da competência disciplinar, deprocessar, quando tanto se impuser pelodesempenho administrativo, a matéria põe-secomo um dever administrativo: esse se cumprepara que a decisão legítima e obtida no fluxode um processo democrático tenha eficácia econteúdo de justeza e de justiça. Esse dever, deresto, decorre do compromisso ético interno eexterno da Administração Pública Democrática,sem o que ela carece de legitimidade e deamparo jurídico-constitucional.

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Não há outra razão que a antidemocracia,o desprezo e pouco zelo pelo exercício dacompetência de processualizar a atividadeadministrativa, inclusive no desempenho daatividade disciplinar. Faz parte de uma culturaadministrativa antidemocrática e decorrente daparticularização do poder no Brasil a arenga,que entorpece os agentes competentes impe-dindo-os de se submeterem à lei, a máximasegundo a qual “aos amigos, tudo; aos inimigos,a lei”, que se faz valer em todos os momentos deruptura e afronta aos princípios democráticos10

.É nessa cultura administrativa antidemocrá-

tica que se releva a importância do processoadministrativo, especialmente o disciplinar,para o administrado. É que se não estiverjuridicamente amparada a competência eformalmente realizada a atividade processualda Administração Pública, surge o que podeser considerado um “poder punitivo informal”exercido antijuridicamente por administradoresatuando abusivamente. A competência disci-plinar, no exercício da qual pode haver puniçãode algum responsável, é jurídica, formal eobjetiva. O que é uma manifestação daresponsabilidade estatal e funcional e umagarantia de que o princípio da responsabilidadecom a sociedade, com a Administração Públicae segundo o Direito será obedecido, converte-se, então, em irresponsabilidade do agentedescuidado em processar ou abusivo ao punirsem formalidade e sem processo.

O processo administrativo é que estampa aresponsabilidade administrativa e permite queo exercício dessa atividade seja controlada emsua juridicidade e em sua legitimidade, peloque não pode se dar o seu desempenho demaneira informal. Qualquer comportamentoadministrativo, especialmente aquele quetangencie direitos específicos além do interessepúblico que define a sua adequação, deve serdesempenhado mediante processo, atendidos,neste, os princípios fundamentais que quantoa ele estabelece o sistema jurídico.

b) Os princípios fundamentaisdo processo administrativo

na Constituição brasileira de 19881) – Reza o art. 5º, inciso LIV, da Consti-

tuição da República de 1988, que: “ninguém

será privado da liberdade ou de seus bens semo devido processo legal”.

Oriunda do direito medieval inglês eincluída na Magna Carta de 1215, a cláusulado due process of law teve o título inicial delaw of the land, a significar, no art. 39 daqueledocumento expedido por João sem Terra sob apressão dos barões ingleses, o direito titu-larizado pelos homens livres de serem invio-láveis em seus direitos concernentes à vida, àliberdade e à propriedade, os quais somentepoderiam ser comprometidos ou extintos perlegem terrae (law of the land). A expressãoinicialmente utilizada foi logo substituída pelodue process of law, sendo que no século XIV(1354), durante o reinado de Eduardo III, umalei do parlamento inglês trouxe, categori-camente, essa expressão.

Foi exatamente ela que adentrou o constitu-cionalismo positivo norte-americano, cons-tando da Emenda V, à Constituição dos EstadosUnidos, na qual se assegura que

“ninguém será detido para responder porcrime capital ou outro crime infamante,salvo por denúncia ou acusação peranteum Grande Júri, exceto em se tratandode casos em que, em tempo de guerra oude perigo público, ocorram nas forças deterra ou mar ou na milícia, quando emserviço ativo; ninguém poderá pelomesmo crime ser duas vezes ameaçadoem sua vida ou saúde; nem ser obrigadoem qualquer processo criminal a servirde testemunha contra si mesmo, nem serprivado da vida, liberdade ou bens semo devido processo legal; nem a proprie-dade privada poderá ser expropriada parauso público sem justa indenização”.

Também a Emenda XIV da Constituiçãonorte-americana refere-se, expressamente, aodevido processo legal, ao estabelecer que“nenhum Estado-membro privará qualquerpessoa da vida, liberdade ou propriedade semo devido processo legal...”. Conquanto essaEmenda XIV faça referência aos Estados-membros da Federação, a sua importânciaacentuou-se pela dimensão que adquiriu com ainterpretação que se lhe foi atribuída, dela seextraindo a igual proteção para todos, aexpansão das garantias relativas ao patrimôniojurídico, cujo comprometimento somentepoderia vir a ocorrer no bojo de processo retoe justo, havido perante o juiz natural, nostermos processuais anteriormente previstos egarantidores de participação ampla do acusado.

10 Releve-se a norma contida no art. 143, da Leinº 8.112/90 (Estatuto dos Servidores Públicos Civisda União), segundo a qual “A autoridade que tiverciência de irregularidade no serviço público éobrigada a promover a sua apuração imediata,mediante sindicância ou processo administrativodisciplinar, assegurada ao acusado ampla defesa”.

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A juridicidade do exercício do poder passou ater, no princípio do devido processo legal, asua manifestação excelente. Mais ainda, nainterpretação da Suprema Corte, esse princípiocontém a noção da juridicidade justa, afirmandoFeliz Frankfurter que

“acha-se assentada a doutrina por estaCorte que a cláusula do due processenfeixa um sistema de direitos baseadoem princípios morais tão profundamenteenraizados nas tradições e sentimentosde nossa gente, de tal modo que ela deveser julgada fundamental para umasociedade civilizada tal como concebidapor toda nossa história. Due process éaquilo que diz respeito às mais profundasnoções do que é imparcial, reto e justo”11.

O princípio do devido processo legalcompreende um conjunto de elementosjurídicos garantidores dos direitos funda-mentais em sua persecução quando ameaçados,lesados ou simplesmente questionados, taiscomo o do direito à ampla defesa, ao contra-ditório, ao juízo objetivo, motivado prévia enaturalmente identificado, entre outros. Esseprincípio é um instrumento de legitimação daação do Estado na solução das indagações sobreos direitos que lhes são postos e um meio formale, previamente conhecido e reconhecido deviabilizar-se o questionamento feito peloadministrado. Pelo que, se nos seus primeirosmomentos de concepção e aplicação, foi eleconsiderado como garantia formal tão-somente,assim não persistiu por largo período, passando-se a vislumbrar, posteriormente, a sua naturezade garantia substancial sem a qual o direitomaterial reconhecido nos sistemas jurídicos nãoteria eficácia12.

Mas além de se ter reelaborado paracomportar não apenas o aspecto das garantiasformais, mas também as garantias materiais, odevido processual legal, inicialmente cogitadopara o processo penal, transportou-se para o

campo civil, onde, na lição de Ada PellegriniGrinover, “o conteúdo da cláusula (dueprocess of law)... subsume-se na garantia daação e da defesa em juízo”13. Essa mesmaautora adverte que

“a Justiça civil, assim como a penal, éinformada por dois grandes princípiosconstitucionais: o direito à tutelajurisdicional e o devido processo legal.Destes decorrem postulados como ainstrução contraditória, o direito dedefesa, a assistência judiciária, o duplograu de jurisdição, a publicidade dasaudiências e outros”14.

No Brasil, o constitucionalismo positivoalbergou o princípio do devido processo legal(conquanto sem a utilização da expressão),desde a Carta de Lei Imperial, de 25 de marçode 1824. Esta dispunha, em seu art. 178, incisoXI, que “ninguém será sentenciado senão pelaautoridade competente, por virtude de leianterior, e na forma por ela prescrita”. AConstituição da República, de 1891, estabelecia,quase que com as mesmas palavras, o preceito,rezando, em seu art. 72, § 15:

“Ninguém será sentenciado senãopela autoridade competente, em virtudede lei anterior e na forma por elaregulada”.

A Constituição de 1934 inovou a matériaampliando as garantias processuais tidas comofundamentais. Além da norma que se continhanas anteriores e que nessa veio prescrita no art.113, inciso XXVI, onde se ampliou a garantiado juízo natural também para o processo e nãoapenas para a sentença, como se fizeraassegurar nas Constituições primeiras, (“nin-guém será processado, nem sentenciado senãopela autoridade competente, em virtude da leianterior ao fato, e na forma por ela prescrita”),ali também se estabeleceu que

“XXIV - A lei assegurará aos acusa-dos ampla defesa, com os meios erecursos essenciais a esta. XXV - Nãohaverá foro privilegiado nem tribunaisde exceção; admitem-se, porém, juízosespeciais em razão da natureza dascausas”.

11 Apud MACIEL, Adhemar Ferreira. Dueprocess of law. In : ROCHA, Cármen Lúcia Antuneset al. Perspectivas do Direito Público. BeloHorizonte : Del Rey, 1995. p. 414.

12 É célebre a assertiva de Eduardo Couturesegundo o qual “Se necesita, no ya un procedimiento,sino un proceso. El proceso no es un fin sino unmedio; pero es el medio insuperable de justiciamisma. Privar de las garantías de la defensa en juicioequivale, virtualmente, a privar del derecho”.(Inconstitucionalidade por privación de la garantíadel debido proceso. In : Estudios de derecho procesalcivil. Buenos Aires : Depalma, t. 1, p. 194.

13 GRINOVER, Ada Pellegrini. As garantiasconstitucionais do direito de ação. São Paulo :Revista dos Tribunais, 1973. p. 40.

14 Idem. Os princípios constitucionais e oCódigo de Processo Civil. São Paulo : JoséBushatsky, 1975. p. 19.

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A Carta de 1937, como não poderia deixarde ser em razão de sua origem espúria eautoritária, tolheu aquela garantia do devidoprocesso ampliada pela Constituição de 1934,deixando-se apenas, no texto havido no art. 122,inciso XI, in fine, que

“a instrução criminal será contraditória,asseguradas antes e depois da formaçãoda culpa as necessárias garantias dedefesa”.

A Constituição de 1946, coerente com osprincípios democráticos que restabelece noEstado brasileiro, retoma a fórmula de garantiasprocessuais mais amplas anteriormenteadotadas e as alarga, dispondo, em seu art. 141,§§ 25 a 27, que:

“§ 25. É assegurada aos acusadosplena defesa, com todos os meios erecursos essenciais a ela, desde a notade culpa, que, assinada pela autoridadecompetente, com os nomes do acusadore das testemunhas, será entregue ao presodentro em vinte e quatro horas. Ainstrução criminal será contraditória. § 26.Não haverá foro privilegiado nem juízose tribunais de exceção. § 27. Ninguémserá processado nem sentenciado senãopela autoridade competente e na formade lei anterior”.

A Carta de 1967, com a redação que lhedeu a Emenda nº 1/69, estabeleceu, em seu art.153, §§ 15 e 16, que

“§ 15. A lei assegurará aos acusadosampla defesa, com os recursos a elainerentes. Não haverá foro privilegiadonem tribunais de exceção. § 16. Ainstrução criminal será contraditória,observada a lei anterior, no relativo aocrime e à pena, salvo quando agravar asituação do réu”.

Coube à Constituição da República de 1988inserir, no elenco dos direitos fundamentaisassegurados pelo Estado, o do devido processolegal, com amplitude ineditamente concebidano direito brasileiro, ali se abrigando não maisapenas a garantia do processo penal e civil eda instrução criminal no caso do contraditório,mas também o processo administrativo.

É que, como antes salientado, a certeza deque também a Administração Pública atuaatingindo o patrimônio de bens jurídicos daspessoas e que carece por isso mesmo de processoo seu desempenho, determinou a expansão doprincípio também ao campo do direito adminis-trativo. Aqui, mais que a retidão e justeza

determinantes da juridicidade dos compor-tamentos impôs-se, no conteúdo do princípiodo devido processo legal administrativo, o damoralidade administrativa. O denominadopoder de polícia exercido pela AdministraçãoPública teve o seu contraponto democratizadorexatamente na cláusula asseguradora do devidoprocesso legal administrativo. Esse princípiopassou a constituir uma baliza na idéiademocrática da limitação do poder público. Enão apenas como limite formal, mas comolimite positivo material, a dizer, não somentecomo forma de extrema negativa, além do qualo poder não poderia atuar por adentrar opatrimônio jurídico protegido de alguém, mastambém como limite material positivo nosentido de que o conteúdo das decisõesadministrativas e a impositividade de suaprática justa e adequada ao sistema jurídicomarca-se e controla-se pelo princípio do devidoprocesso legal. Alastrou-se ainda mais oconteúdo do princípio a albergar-se, presen-temente, o próprio processo de formação dodireito. A feitura das normas subsume-se aoprincípio do devido processo legal e por aí sereporta e se cumpre o princípio da razoabilidadee justiça que nelas se deve ter atendido.

Quanto ao processo administrativo, oprincípio do devido processo constitucional-mente assegurado significa, em primeiro lugar,o dever da Administração Pública de atuarmaterial e formalmente segundo o que o direitodetermine, fazendo com que o desempenhodessa atividade se faça por uma relação tendocomo um dos pólos o administrado, queparticipa da dinâmica administrativa; emsegundo lugar, o direito desse administrado deque essa relação se desenrole segundo osprincípios que conferem segurança jurídica aseu patrimônio. Assim, o devido processo legaladministrativo concerne tanto à forma quantoao conteúdo das decisões administrativas e porele se garante a certeza tanto do dever públicoquanto do direito do particular na relaçãoadministrativa.

O devido processo legal administrativocompreende mesmo os princípios que infor-mam a feitura do ato administrativo, tais comoo da razoabilidade e o da proporcionalidade,de tal modo que ele traz não apenas aprincipiologia do processo, mas extrapola aforma e compromete a substância do provi-mento administrativo. Afinal, o que é reto ejusto constitui a essência da legitimidade dequalquer comportamento, seja ele havido numarelação ou num ato administrativo unilateral.

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Há que se anotar que o relevo dado aoprincípio do devido processo legal comparecetanto na legislação infraconstitucional (mesmoantes da vigência do atual sistema fundamental)quanto na jurisprudência.

Assim, dispositivo como o que se encontrano art. 5º, II, da Lei nº 1.533/51 (apelidada“lei do mandado de segurança”), que reza nãoser objeto de impetração do mandado desegurança “ato disciplinar, salvo quandopraticado por autoridade incompetente ou cominobservância de formalidade essencial”, temsido considerado ora incompatível com a normaconstitucional asseguradora do devido processolegal e seus princípios consectários15, oraconstitucional com a interpretação que aconforma à garantia daquela cláusula funda-mental. O que é certo é que não se nega o direitoao uso da garantia constitucional do mandadode segurança quando comprometido o princípiodo devido processo legal. Esse, por ser direitofundamental, pode e tem sido normalmentequestionado, quando ameaçado ou lesado, noPoder Judiciário, o qual tem consideradopertinente a impetração para segurança dopatrimônio jurídico do impetrante16. De resto,o texto constitucional referente à garantia do

mandado de segurança também não permiterestrição quanto ao seu uso quando direitolíquido e certo tiver sido ameaçado ou lesado.Assim, parece extremamente difícil a susten-tação do dispositivo da Lei nº 1.533/51 em face,quer da norma constitucional do mandado desegurança (art. 5º, LXIX, da Constituição daRepública), quer da norma fundamentalgarantidora do princípio do devido processolegal (art. 5º, LIV, CF). Apenas considero quenão se cuida, aqui, de uma inconstitucio-nalidade, vez que a norma infraconstitucionalantecede o advento do sistema fundamentalvigente. Parece-me que a norma poderia serconsiderada dotada do vício inquinado em faceda Constituição de 1946, sob cuja égide foi elaelaborada. Considerando-se os diplomas que sesucederam àquela e a Constituição da Repúblicade 1988, o que pode ser tido, juridicamente, éque a norma do art. 5º, da Lei nº 1.533/51 nãofoi recepcionada pelo sistema. Não o inte-grando, não pode, por óbvio, ser cogitada desua aplicação.

O que é certo é que a cláusula do devidoprocesso legal, em sua concepção substantivae não apenas formal, integra a principiologiaque informa a atividade administrativa dequalquer entidade e de qualquer dos ramos doPoder Público.

Mais ainda, e o que importa considera-velmente relevar na fase atual de repensamento

15 Nesse sentido leciona Carlos Mário da SilvaVelloso que “a ressalva da Lei 1.533/51, art. 5º, III,não se agüenta diante do que dispõe a Constituição,art. 153, § 21 (referência feita à Carta de 1967 coma Emenda Constitucional nº 1/69), que instituiu omandado de segurança para amparar todos os direitoslíquidos e certos...” (Mandado de segurança. Revistade Direito Público, v. 55/56, p. 343).

Também Celso Antônio Bandeira de Mellodoutrina que “não sinto qualquer constrangimentoem dizer que considero este art. 5º inconstitucional,porque ele estabelece um cerceio, uma contenção,que não está estabelecida em dispositivo consti-tucional. Este se fez amplo e se quer amplo parapoder cumprir a função que lhe é inerente, de via dedefesa a ser compreendida e interpretada comogarantia constitucional, como forma de assegu-ramento da realização dos objetivos do Estado deDireito, o qual abomina a ilegalidade por parte deautoridade ou desvio de poder”.

É certo que ainda prevalecem a opinião degrande parte da doutrina processual quanto àaplicação do dispositivo contido no art. 5º, III, daLei nº 1.533/51. Mas os doutrinadores da áreaconstitucional ou administrativista são, hoje,grandemente favoráveis à inaplicabilidade daqueledispositivo.

16 “RE 120.570 – DJ 8.11.91Relator Ministro Sepúlveda PertenceEmenta:... II – Garantia constitucional da ampla

defesa: ofensa pela omissão da imputação.

A formulação e entrega do libelo acusatório e aforma, segundo a legislação aplicável ao caso, deespecificar a imputação, delimitando o objeto doprocesso disciplinar e, via de conseqüência, dadefesa do acusado: desde que a ciência pelo acusadoda substância de fato das acusações e pressupostoselementares da ampla defesa, a sua omissão ofendeo preceito constitucional que a assegura e implica anulidade da punição”.

RTJ, v. 138.Também “ STF MS 21726/RJ. DJ 11.3.94Relator: Ministro Sepúlveda PertenceEmenta: “Demissão de servidor estável: processo

administrativo com garantia de ampla defesa... Aocontrário do que sucedia sob a Lei nº 1.711/52, aLei nº 8.112/90 distinguiu nitidamente o proce-dimento disciplinar e inquisitivo da sindicância doprocesso disciplinar pela resultante, o qual sedesenvolve integralmente sob os ditames docontraditório, o que impõe, sob pena de nulidade,que, antes de que se proceda à instrução, seja oacusado chamado ao feito”.

Ementário. v. 01736, p. 331.Também STF – MS 21791 – Relator: Ministro

Francisco Rezek.Ementário. v. 01746, p. 170.

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Revista de Informação Legislativa18

dos modelos de atuação da sociedade (por meio,inclusive, de organizações não-governa-mentais), é que não apenas nos processosadministrativos havidos no seio dos órgãos eentidades públicas, mas também naqueles quese façam por entidades civis dotadas decompetência delegada ou regulada pelo PoderPúblico (como se dá com as entidades declasse), é imperativo o princípio, que tem queser acatado com rigor e observância irrestrita,pena de nulidade e de responsabilidade a quemtenha causado ablação a direito sem a suaobediência. Assim, processos administrativospassados em conselhos de categorias profis-sionais ou mesmo em entidades privadas têmque se submeter ao princípio do devido processolegal, de tal modo que o administrado saiba doque cuida a imputação que lhe é feita, devendo-se-lhe assegurar o direito de conhecer e departicipar do processo, podendo contraditar asalegações que contra ele sejam feitas, defen-der-se, recorrer, etc.

2) Estabelece o art. 5º, LV, da Constituiçãoda República, que “aos litigantes, em pro-cesso judicial ou administrativo, e aosacusados em geral são assegurados ocontraditório e ampla defesa, com os meiose recursos a ela inerentes”.

Este dispositivo constitucional conjuga,pois, dois princípios que desdobram e mani-festam o do devido processo legal consideradoem sua substancialidade, a saber, o docontraditório e o da ampla defesa.

2.1) Do brocardo romano audiatur et alterapars o princípio do contraditório foi asseguradocomo garantia constitucional, no âmbito dainstrução criminal, antes de se assentar, nosistema fundamental, a garantia ampla doprocesso de qualquer natureza (penal, civil ouadministrativo).

A cláusula do devido processo legal,aplicável agora também ao processo adminis-trativo como relevado acima, absorve oprincípio do contraditório como sua extensãoprópria e insuperável.

O contraditório significa que a relaçãoprocessual forma-se, legitimamente, com aconvocação do acusado ao processo, a fimde que se estabeleça o elo entre o quantoalegado contra ele e o que ele venha sobreisso ponderar. Somente na dialética pro-cessual é que se afirma o Direito, de tal modoque uma assertiva e a sua contraditacombinam os elementos donde o julgador

extrai, sem vínculo prévio com qualquer daspartes, a sua decisão jurídica17.

O contraditório garante não apenas a oitivada parte, mas que tudo quanto apresente ele noprocesso, suas considerações, argumentos,provas sobre a questão sejam devidamentelevadas em conta pelo julgador, de tal modoque a contradita tenha efetividade e não apenasse cinja à formalidade de sua presença.

Por isso mesmo o contraditório deve serresguardado em todo o processo, vale dizer,mesmo em fase de recurso; apresentado um,há que se ouvir a parte contra quem se recorre,para que ela possa contra-arrazoar o quantoposto pelo recorrente.

2.2) Também o direito à ampla e préviadefesa é assegurado constitucionalmente eprevalece, integralmente, no processo adminis-trativo18.

A garantia processual-constitucional daampla defesa foi assegurada pela jurisprudênciado Supremo Tribunal Federal antes mesmo deser entronizada a sua expressão no texto da LeiFundamental da República19. Esse Tribunalsumulou que “é necessário processo adminis-trativo, com ampla defesa, para demissão defuncionário admitido por concurso” (súmula20) e, ainda, que “funcionário em estágio

17 Daí é que os processualistas retiram o princípioda “bilateralidade da audiência”, pelo qual o juiz,ouvindo uma parte, não pode deixar de ouvir a outra,a fim de que os dois lados da relação processualpossam oferecer os elementos processados que,sopesados, serão considerados pela autoridadecompetente no julgamento oferecido.

18 A Constituição da República expressa agarantia da “ampla defesa, com os meios e recursosa ela inerentes”. Ocorre que não se admitiria queessa defesa pudesse ser feita após a decisãoadministrativa, após a emissão do ato punitivo, porexemplo, em caso de processo disciplinar. O que setem como certo é que, para que se tenha ocontraditório e a defesa e possam ser exercidas amplae livremente, haverá que ser notificado (ou citado,conforme o caso) o processado na fase inicial, a fimde que se possa ter a eficácia da defesa. Ela seráprévia em relação à decisão, não se admitindo queapós a realização dos atos essenciais ou até mesmodo julgamento é que se dê conhecimento e oportu-nidade para o processado contraditar as alegaçõescontra ele feitas ou defender-se do quanto contraele afirmado.

19 No plano infraconstitucional, a legislaçãotambém garante o princípio da ampla defesa,expressamente, especialmente nos documentoslegais que contém os estatutos de servidorespúblicos. Cf. art. 143, da Lei nº 8.112/90.

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probatório não pode ser exonerado nemdemitido sem inquérito ou sem as formalidadeslegais de apuração de sua capacidade”(súmula21), havendo iteratividade e perfeita coerênciade suas decisões, garantindo a ampla defesa emqualquer processo no qual direito de alguémesteja sendo questionado, podendo ser compro-metido.

O princípio da ampla defesa acopla váriasgarantias. O interessado tem o direito deconhecer o quanto se afirma contra os seusinteresses e de ser ouvido, diretamente e/ou compatrocínio profissional sobre as afirmações, detal maneira que as suas razões sejam coerentescom o quanto previsto no Direito. Na primeiraparte se tem, então, o direito de ser informadode quanto se passa sobre a sua situação jurídica,o direito de ser comunicado, eficiente etempestivamente, sobre tudo o que concerne àsua condição no Direito. Para que a defesa possaser preparada com rigor e eficiência, há dereceber o interessado todos os elementos e dadossobre o quanto se ponha contra ele, pelo quehaverá de ser intimado e notificado de tudoquanto sobre a sua situação seja objeto dequalquer processo. Assim, não apenas no início,mas no seguimento de todos os atos e fasesprocessuais, o interessado deve ser intimado detudo que concerne a seus interesses cogitadosou tangenciados no processo20. Tem o direito

de argumentar e arrazoar (ou contra-arrazoar),oportuna e tempestivamente (a dizer, antes edepois da apresentação de dados sobre a suasituação jurídica cuidada na espécie), sobre oquanto contra ele se alega e de ter levado emconsideração as suas razões21. A apresentaçãode defesa formal, produzida com a argumen-tação que comprove a sua contradição ao quantocontra ele se alega, pode ser feita diretamenteou mediante patrocínio profissional. A garantiado advogado (art. 133 da Constituição daRepública) exige mesmo que o Estado provi-dencie um, mesmo no processo administrativo,

20 SFT. re-165680/SC – Relator: Ministro IlmarGalvão.

Ementa: “Policial militar do Estado de SantaCatarina. Licenciamento a bem da disciplina.Invocação do estatuto da polícia militar. Ausênciade procedimento administrativo. Alegação decontrariedade aos incisos LIV e LV da ConstituiçãoFederal. Matéria pré-questionada.

O ato de licenciamento do recorrente, a bem dadisciplina militar, com base no Estatuto da PolíciaMiltiar do Estado de Santa Catarina, não foiprecedido de procedimento administrativo para oesclarecimento das faltas apontadas como infraçõesdisciplinares, capazes de autorizá-lo, verificando-se completa omissão de defesa. O Judiciário, mesmosem entrar no mérito da atuação administrativa, tempoderes para examinar o ato sob o prisma consti-tucional do devido processo legal e da ampla defesa”.

(DJ, p. 29535, 15 set. 1995. Ementário v. 01800-09, p. 0165)

Também “STJ. RMS 1.074/ESRelator: Min. Peçanha Martins– Processo Disciplinar – Fato qualificado –

Garantia de defesa.– A portaria inaugural e o mandado de citação,

no processo administrativo, devem explicitar os atosilícitos atribuídos ao acusado. Ninguém pode

defender-se eficazmente sem pleno conhecimentodas acusações que lhe são imputadas. Apesar deinformal, o processo administrativo deve obedeceràs regras do devido processo legal.

– Recurso conhecido e provido”.RDA, v. 188, p. 136.O Projeto de Lei nº 2.464/96, fruto de trabalho

de comissão presidida pelo insigne administrativistaCaio Tácido e em tramitação no Congresso Nacional,estabelece, no art. 3º, que I – “O administrado temos seguintes direitos perante a Administração, semprejuízo de outros que lhe sejam assegurados:... II –ter ciência da tramitação dos processos admi-nistrativos em que tenha a condição de interessado,ter visto dos autos, obter cópias de documentos nelescontidos e conhecer as decisões proferidas; III –formular alegações e apresentar documentos antesda decisão, os quais serão objeto de consideraçãopelo órgão competente; IV – fazer-se assistir,facultativamente, por advogado, salvo quandoobrigatória a representação, por força de lei”.

No mesmo projeto se contém a estatuição daforma de comunicação dos atos processuais aosinteressados (arts. 26 a 28).

21 É certo que se podem encontrar acórdãos,inclusive do STF, como o que contém a seguintedecisão: “RE-75251/PR. Relator: Ministro AldirPassarinho. DJ, 4 fev. 1983.

Ementa: Militar. Soldado da Polícia Militar doParaná.

Lei nº 1.943... Ampla Defesa. Art. 153, § 15,da Constituição Federal. A ampla defesa a que serefere o art. 153, § 15, da Constituição não é de serentendida como prévia defesa, perante a Admi-nistração, salvo se houver a respeito expressaprevisão legal ou regulamentar. A ampla defesaprevista na norma constitucional e a defesa em juízo.No código de Polícia Militar do Paraná... a expulsãodo soldado, com menos de 10 anos de serviço, podeefetuar-se independentemente de prévia sindicânciaou inquérito. Cabe-lhe, se inconformado, discutir nojudiciário, a ilegalidade do ato administrativo”.

Cuida-se, todavia, de decisão que não encontrarespaldo na maioria dos julgados dos tribunaisbrasileiros, muito rigorosos na exigência da ampladefesa. Cf. RDA, v. 161, p. 79-82, RDA, v. 188, p.136-138, RDA, v. 157, p. 83-89, RDA, v. 152, p.69-77.

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para aquele que lhe requisitar, comprovando-se que não o pode contratar sem o compro-metimento de suas condições de subsistênciaou de seus dependentes. Para a comprovaçãode seus argumentos e razões, tem ele o direitode produzir provas, na forma juridicamenteaceita. É certo que, no julgamento de casossubmetidos a seu exame, o Poder Judiciáriobrasileiro não se abstém de verificar o que sejaa defesa ampla e a alegação de necessidade deprovas, declinando quando sejam elas dispen-sáveis ou meramente protelatórias, o que nãose inclui na definição normativa do princípio.Todavia, o Poder Judiciário tem sido extrema-mente rigoroso na observância dessa garantia,vez que ela informa o princípio do devidoprincípio legal, assegurando a sua eficáciajurídica plena.

É de se relevarem, para os efeitos estreitosdo presente estudo, três questões constantessobre a matéria, mais recentemente, nostribunais brasileiros: a primeira, a aceitação,ou não, da denominada “verdade sabida”, quetem limitado, na prática, a aplicação doprincípio constitucional da ampla defesa; asegunda, relativa ao desfazimento de atoadministrativo praticado invalidamente (contrao Direito) pela autoridade unilateralmente; e aterceira, concernente ao direito ao recursoadministrativo como uma formulação oumanifestação do princípio da ampla defesa, vezque nele se reproduz e se oferece oportunidadeao interessado para expressar o quanto alegaem sua defesa em outra instância.

Quanto à apelidada “verdade sabida” –considerada como a ciência tida diretamentepela autoridade de fato que o leve a punirservidor público sem para tanto ouvi-lo, nempermitir a sua defesa, vez que a circunstânciaque conduz à apenação passou-se em sua pre-sença ou com o seu conhecimento imediato22 –,

foi ela aceita por longo período pelos tribunais.Entretanto, o advento do princípio consti-tucional do devido processo legal impede quese possa aceitar a “verdade sabida”, porque apunição sem qualquer exigência de apuraçãoda falta, do contraditório ou de formalizaçãodo processo agrava, à evidência, o princípio daampla defesa. Como poderia o interessadoalegar qualquer circunstância que atenua oualtera a interpretação de um fato cometido, sea ele não se oferecer a dilação probatória dascircunstâncias que constituam, eventualmente,a sua defesa? Como se especificarem ascondições nas quais ocorreu um fato, se apenasa afirmação do comportamento é feito unila-teralmente pela autoridade? Como se demons-trar a distorção, produzida, por exemplo, emnotícias veiculadas pela mídia, se não seassegurar a dilação probatória ao interessado?Tem-se, pois, que a denominada “verdadesabida” não pode ter qualquer aceitação nosistema jurídico vigente, por contrariar,cabalmente, o princípio do devido processolegal e cercear, em sua raiz, a ampla defesaconstitucionalmente assegurada.

Muito próxima à questão que se tem com aaplicação da denominada “verdade sabida”,pode ser considerada outra, qual seja, a daprodução do ato administrativo unilateral paradesfazimento de ilegalidade que o vicie e queseja notada pela autoridade posteriormente aoseu fazimento.

O Supremo Tribunal Federal sumulara que:“Súmula 346 – A administração pública podedeclarar a nulidade dos seus próprios atos” e,ainda, que: “Súmula 473 – A Administraçãopode anular seus próprios atos, quando eivadosde vícios que os tornam ilegais, porque delesnão se originam direitos...”. Na mesma linhade entendimento firmado inclusive peladoutrina e jurisprudência pacíficas de todos ostribunais e juízos, no sentido de que o vício deantijuridicidade tisna de mácula invalidadorainsanável o ato administrativo, dele retirandoa possibilidade de produzir efeitos válidos, aLei nº 8.112/90 (Estatuto dos FuncionáriosPúblicos Civis da União) veio dispor, em seuart. 114, que “A administração deverá reverseus atos, a qualquer tempo, quando eivadosde ilegalidade”. Note-se que a norma passou ase referir à revisão do ato administrativo viciado

22 Segundo Hely Lopes Meirelles, “verdadesabida é o conhecimento pessoal da infração pelaprópria autoridade competente para punir o infrator...Em tais casos, a autoridade competente queprovidenciou a infração, aplica a pena pela verdadesabida, consignando no ato punitivo as circunstânciasem que foi cometida e presenciada a falta. Esse meiosumário só é admissível para as penalidades cujaimposição não exija processo administrativodisciplinar. Tem-se considerado também comoverdade sabida a infração pública e notóriaestampada na imprensa ou divulgada por outrosmeios de comunicação de massa. O essencial parase enquadrar a falta na verdade sabida é seuconhecimento direto pela autoridade competente

para puni-la, ou sua notoriedade irretorquível. Nãoobstante, embora sem rigor formal, deve-se assegurara possibilidade de defesa”. (Direito AdministrativoBrasileiro. São Paulo : Malheiros, 1995. p. 590)

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como competência-dever. Se alguma compe-tência administrativa pode ser exercida comouma faculdade quanto à definição do tempo emotivos de conveniência, no caso de desfa-zimento do comportamento público em razãode ilegalidade, não se há de cogitar de talnatureza quanto a qualquer dos elementos quea integram. Afirma-se na norma que aadministração deverá, ou seja, terá que reverseus atos quando eivados de ilegalidade. Aquestão põe-se para se saber se a Administraçãoterá que formalizar o processo administrativopara o desfazimento de todo e qualquer ato,quando se deparar com uma situação deilegalidade que ela própria constata, apura esobre a qual conclui após a sua prática. É que oato pode – e em geral deve – ter produzidoefeitos no patrimônio de alguém, basicamenteum administrado ou um servidor público.Ocorre que o bem que teria sido tutelado ouconstituído pelo advento do ato não terá geradodireitos, pois ato nulo não é fonte de direitos.É, então, de se indagar se também nesse caso ahipótese impõe a formalização de processoadministrativo. Preliminarmente, há mister dese relevar a norma contida no art. 148, da Leinº 8.112/90, que contém o Estatuto dosServidores Públicos Civis da União, segundo aqual “o processo disciplinar é o instrumentodestinado a apurar responsabilidade de servidorpor infração praticada no exercício de atri-buições, ou que tenha relação com as atribuiçõesdo cargo em que se encontre investido”. Paraum processo específico, pois, qual seja, odisciplinar, não se haveria como se cogitar deprocesso quando do desfazimento de atoadministrativo nulo, porque não há, então, oque apurar quanto à responsabilidade deservidor. A responsabilidade pela nulidade será,em princípio e em geral, de autoridade da qualtenha emanado o ato, sem que o servidor tenhacontribuído necessariamente para a práticarevista em razão da ilegalidade verificada. Ese o ato nulo não gera direitos, e se não se háde falar em ablação de direitos (que não sãoconstituídos por ato enodoados visceralmentepela ilegalidade), não se haveria de falar emprocesso.

Ocorre que o patrimônio jurídico dointeressado pela prática do ato é atingido. Aindaque para a sua ciência e para que ele, inclusive,possa se contrapor ao desfazimento do ato,oferecendo argumentos no sentido de suamanutenção ou da mantença de seus efeitos, a

jurisprudência dos tribunais tem determinadoa realização de processo23.

A se manter o entendimento, no sentido deque qualquer movimento da administraçãopública que se assente ou se reflita no cabedalde bens jurídicos do administrado ou deservidor público, depende de um processo, éde se colocar em dúvida quanto à prevalênciaou pelo menos à interpretação dada ao dispostonas súmulas do Supremo Tribunal Federal,acima transcritas. Pelo conteúdo das súmulase, mais ainda, pelo que se tem na Lei nº 8.112/90 (art. 114), à Administração Pública sereconhece competência para a prática de atoadministrativo unilateral revisor de outro,praticado sem o devido fundamento legal, quelhe daria validade e, na esteira desta, eficáciajurídica. Ocorre que a imposição desse ato,mesmo quando tocado pelo vício da antiju-ridicidade, que somente pode ser praticado nobojo de um processo administrativo, altera ainterpretação da norma de competência, poisessa não poderia ser exercida senão com aaudiência do interessado e a garantia do devidoprocesso legal, o contraditório e a ampla defesa.E não é outra a interpretação que tem preva-lecido na jurisprudência, onde se vê que aprática de ato administrativo revisor decometimento anterior por vício de contra-riedade ao Direito depende, segundo se tementendido, exatamente de um processo, noqual se estabelece o contraditório com ointeressado.

23 “STJ. ROMS 928-0/MGRelator: Ministro Américo LuzEmenta: Servidor Público. Ato Administrativo.

Ilegalidade.– O poder de a Administração anular seus

próprios atos não é absoluto, sob pena de malferir,como na hipótese, os princípios da ampla defesa edo devido processo legal. Por isso inválido de plenodireito o ato que anula outro sem preceder aoprocesso administrativo exigido como condição paraque o servidor estável possa perder o cargo.

– Recurso provido. Decisão unânime”.“STJ. RMS 281/SPRelator: Ministro Demócrito Reinaldo– Funcionário Público – Sindicância – Ampla

Defesa.– O processo de sindicância não tem forma e

nem figura de juízo, não obedece a procedimentoespecífico, nem ao princípio do contraditório. Aoindiciado não cabe alegar defeitos ou irregularidadesna sindicância (ou vícios de intimação), porquantoa sua defesa será sempre feita, de forma exaustiva eeficiente, na fase do inquérito administrativo, comoocorreu na hipótese”.

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Também vinculado ao direito à ampladefesa é o direito à revisão e/ou recursoadministrativo. Este é uma extensão do direitoà ampla defesa, uma forma de exercê-lo. É aConstituição da República que, no mesmo art.5º, inciso LV, acopla ao direito à ampla defesa“os meios e os recursos a ela inerentes”. Ointeressado reapresenta a sua argumentação eo seu arrazoado na instância recursal e vê asua fundamentação ser objeto de novo exame.Na verdade, o recurso é um segundo momentode defesa, agora na instância e perante o juízorecursal competente. As decisões adminis-trativas, inclusive e principalmente aquelasproferidas no processo, podem conter equí-vocos. São obras humanas e, como tal, sujeitasa desvios e a falhas, como os próprios homens.Daí a necessidade que se foi demonstrando deque as condutas estatais – especialmenteaquelas havidas numa relação de contraditórioe de questionamento e talvez comprometimentode direitos – submetem-se a duplo exame,porque a oportunidade de haver uma segundaanálise propicia uma melhor conclusão e umamaior segurança, diretamente, para o interes-sado e, reflexivamente, para a coletividade. Àprópria autoridade que tenha proferido adecisão recorrida é oferecida uma oportunidadede reexame, em geral, vez que a ela é que sedirige o recurso e o pedido de reconsideração,o que, não ocorrendo, determina a remessa domesmo à autoridade hierarquicamente superior.Os recursos administrativos são específicos ounão, conforme sejam contemplados na legis-lação infraconstitucional para processosdeterminados (casos do processo de licitaçãoou do processo disciplinar, por exemplo) oupara o processo administrativo em geral.

3) O processo administrativo informa-setambém, constitucionalmente, pelo princípio dapublicidade, ressalvando-se apenas casos emque o interesse público, ou o específico dointeressado ou de quem lhe seja dependente,determinar tratamento sigiloso, o que nãoexclui, contudo, a participação permanentedeste na tramitação.

A publicidade é princípio constitucional daAdministração Pública (art. 37 da Constituiçãoda República), estabelecendo-se como consec-tário necessário do próprio princípio demo-crático. Não há como haver a participação dopovo no exercício do poder se não se contarcom o conhecimento público dos atos por elepraticados. Pelo que der ciência ao povo, a dizer,tornar públicos os atos havidos no desempenho

das funções do poder é imperativo do regimepolítico.

Vinculada a ideologia e a principiologia doprocesso ao regime político adotado, conformelembrado acima, não se poderia deixar decoligar também os princípios que fundamentamum e outro.

Os princípios que informam o processodemocraticamente cuidado no Direito são, pois,os mesmos que embasam esse regime político.O princípio da publicidade, portanto, apre-senta-se como um daqueles que se põem comofundamentais para que o processo possacumprir o seu objetivo garantidor de direitos,especialmente aqueles que concernem àliberdade. Processo sigiloso ou sem publicidadeé antidemocrático. Mais que isso, em geral nãoé processo; é um mero ato de força formalizadoem palavras sem forma de Direito e semobjetivo de Justiça.

Note-se que a Constituição da Repúblicaencarece a publicidade inerente a todas asformas de processo, judicial e administrativo.No primeiro caso, dela cuidou a Lei Funda-mental expressamente, ao dispor, no art. 93,IX, que

“todos os julgamentos dos órgãos doPoder Judiciário serão públicos, efundamentadas todas as decisões, sobpena de nulidade, podendo a lei, se ointeresse público o exigir, limitar apresença, em determinados atos, àspróprias partes e a seus advogados, ousomente a estes”.

O dispositivo contém três normas bemdefinidas, a saber, o princípio da publicidadedos julgamentos, o princípio da motivaçãosuficiente (fundamentação das decisões) e apossibilidade de se conferir tratamentoexcepcional ao primeiro, se a lei o determinarpara e quando “o interesse público o exigir”.

Poder-se-ia pensar que tendo o constituintesituado o princípio da publicidade no capítulodo Poder Judiciário, teria excluído a atividadeadministrativa e os processos havidos no seudesempenho do acatamento de idênticoprincípio. Ocorre que, ao expressar a impera-tividade do princípio da publicidade no art. 37,para toda e qualquer atividade administrativade qualquer dos poderes da União, dos Estados,do Distrito Federal e dos Municípios, oconstituinte estabeleceu a extensão e imposiçãodo mesmo ao processo administrativo, que éuma das manifestações daquele desempenho.Até mesmo porque esse processo pode ter e tem

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lugar no exercício da atividade administrativaem sede de qualquer dos poderes do Estado.

Também nesse caso, a publicidade podeexibir face mais amena, quando o interessepúblico o exigir e quando a própria liberdadedo interessado tiver que ser relevada sobre aciência pública do processo. Nesse caso, a lei(e somente nos casos e ocasiões em que elaassim estabelecer) poderá definir hipóteses emque apenas o interessado e seu advogado terãoacesso e presença no julgamento. Mas nãohaverá segredo processual, menos ainda parao interessado, sob pena de nulidade absoluta.Por isso mesmo é que a comunicação de todosos atos e práticas processados, a informaçãoescorreita de todos os elementos contidos noprocesso impõe-se como obrigação do proces-sante em relação ao interessado direto e atémesmo ao terceiro. Sem a publicidade doprocesso, não se tem segurança jurídica; sem oconhecimento pelo interessado, não se temgarantia de sua participação livre e demo-crática.

4) Processo não é improviso; não se faz comopinião; não admite subjetivismo. O processoé instrumento que se formaliza para conferirsegurança ao interessado e à sociedade e paragarantir seriedade ao quanto nele se ponhacomo objeto de apuração e decisão.

Daí por que se impõe a objetividade comoqualidade necessária do processo. Há de seconhecerem todos os elementos que conduzemà abertura do processo (tais como a infração ase apurar, os fatos determinantes de tal inícioprocessual, etc.), ao seu seguimento, os dadose elementos colhidos em seu curso e que sãoconsiderados para o julgamento.

Mesmo nos casos em que o Direito estabe-lece condições de objetividade inconteste, taiscomo prazo para determinada prática, apurávelpela contagem de tempo, etc., há que seesclarecer tal situação no processo, de talmaneira que o interessado possa conhecer doquanto contra ele se alega, como se apura e omotivo por que se conclui em determinadosentido. Assim, por exemplo, em caso deabandono de cargo de servidor público, cujocômputo é feito em dias na legislação específica,há que se iniciar um processo, oferecendo aointeressado a oportunidade de defender-seamplamente, porque, conquanto a lei refira-seao abandono como a ausência do exercício docargo por determinado período, ela mesmatambém excetua de apenação a situação em quehaja um motivo que desqualifique como punível

tal ausência. Haverá, então, que ser asseguradoao servidor ausente o direito de comprovarocorrência que, por exemplo, exclua de puni-bilidade administrativa a sua falta, o quesomente pode ocorrer quando se objetivar, noprocesso, em que período, como se apurou, etc.,a ausência tida, inicialmente, como ilegal.

Toda decisão administrativa – mais aindaaquela que se dê em processo – tem que serobjetiva e fundamentada. No primeiro elementose tem o princípio da objetividade adminis-trativa, que comprova o cumprimento dafinalidade pública assinalada legalmente, e nosegundo se tem a garantia do princípio damotivação, sem o qual não se há de cogitar docontrole de juridicidade e de legitimidade doexercício do poder público.

A objetividade do julgamento é caracte-rística de qualquer processo. E para que essaobjetividade possa ser visível e controlável éque se põe, como seu corolário, o princípio damotivação suficiente.

O dever de fundamentação formal esuficiente dos atos decisórios estatais, espe-cialmente aqueles emitidos em processo judicialou administrativo, tem como finalidade darconcretude ao princípio da juridicidade e daprecedência da norma de Direito aplicável aoscasos, objeto de atuação do Estado, a impedir oarbítrio e qualquer forma discriminatória contrao cidadão. Tanto o princípio da proteçãojurídica do cidadão ou de qualquer pessoa,quanto o sistema de controle dos atos estataissomente podem ser garantidos quando a decisãodo Estado mostrar-se objetiva e fundamen-tadamente. É a fundamentação do ato decisórioque torna possível ao interessado submeter-sea ele, ciente de que se acha resguardada, dequalquer forma, a sua segurança jurídica e,ainda, se permitindo que ele aceite o conteúdodo ato e a aplicação do Direito ao caso em quefigura como parte. A sua segurança jurídica,no caso, mostra-se pela possibilidade de quedispõe de fazer o controle jurídico do ato dedecisão, circunscrevendo-se, assim, o âmbitode sua proteção assegurada no e pelo Direito.Note-se que os efeitos da motivação substanciale formalmente contidos no ato decisório não seinscrevem apenas no plano do interesseimediato do administrado ou jurisdicionado,mas no plano da coletividade, em razão dagarantia dos fins coletivos que são buscadosno regime político democrático e no exercíciolegítimo do poder que nele se põe como únicopossível de ser aceito. Quando um cidadão tem

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a sua segurança jurídica, todos os outroscertificam-se da sua. A efetividade jurídicagarantidora do patrimônio de um cidadão é queassegura a eficácia social do Direito em toda acoletividade.

Note-se que a fundamentação do atodecisório emitido no processo há que sersuficiente, quer dizer, que ela seja clara e que oseu enunciado contenha os elementos quedemonstrem a correlação lógico-jurídicanecessária entre os fatos apurados e a decisãoproferida24. Remissão à lei ou à cláusula ou aodispositivo de norma jurídica sem a explicitaçãoda relação lógico-normativa com os fatos queconduzem à aplicação, não cumpre o princípioda motivação suficiente. Referência à lei não émotivação, menos ainda suficiente. Nem se digacarimbo pré-confeccionado de julgado. Pro-cesso não tem bula. Nem Direito é carimbo,porque a vida não tem formulário pronto.

A motivação suficiente é que objetiva adecisão processada. Julgamento subjetivo é atode arbítrio. Arbítrio é negação da liberdade, éantinômico à democracia.

5) Princípio constitucional processual porexcelência é o do tratamento isonômico daspartes. Mas quando se cuida de processoadministrativo, a aplicação desse princípio –que constitui uma manifestação do princípioda igualdade jurídica – encontra uma condiçãodiversa daquela que se toma para o processojudicial. Neste, o Estado desempenha o papelfundamental de eqüidistância e distanciamentodas partes (ressalvada a sua situação tambémde parte, nos casos em que compareça comoautor, réu, litisconsorte ou interessado). Comojulgador, o Estado exclui-se da tensão litigiosa,pois ele se põe como elemento de desfazimentoe solução do conflito.

No processo administrativo, mantém-se oprincípio da identificação obrigatória daspartes, sem o que se perde a objetividade e

formalidade que protegem o espaço desegurança jurídica do administrado e refor-mula-se o princípio da paridade das partessegundo os princípios jurídicos que presidema atuação do Estado. Esse tem como finalidadeprecípua a realização dos fins de interessepúblico; logo, para que esse se cumpra, há quese sobrelevar sobre interesses particulares.Tanto se reflete no processo administrativo.

Todavia, não se pode deixar de consideraro princípio da isonomia das partes processuais.

Em primeiro lugar, saliente-se que, noprocesso administrativo, o Estado – na condiçãode pessoa exercente das funções de adminis-tração do bem público – cumpre mais de umpapel, comparece em situação dúplice: comopólo ativo ou passivo de argüição feita e comojulgador da situação processada. Aqui, contudo,a sua condição de julgador distingue-se daquelaque ostenta no processo judicial. É queenquanto neste há uma evidente eqüidistânciadas partes litigantes (mesmo quando o Estadoé parte, pois o órgão encarregado de exercer ajurisdição não compõe o poder nem se confundecom a função jurisdicional), no processoadministrativo o órgão julgador integra o poderque administra, e no exercício de cuja funçãoemerge o conflito a ser solucionado. A aplicaçãodo princípio da separação de poderes desguar-nece-se, aqui, de sua aplicação mais clara erigorosa, cedendo lugar a uma relação que é,então, extremamente sensível, delicada evulnerável.

Privilégios de qualquer pessoa, inclusive aestatal, são inconstitucionais. Assim, porexemplo, a estatuição, em norma rigorosa efrontalmente agressiva ao princípio daigualdade jurídica das partes no processo, deprivilégios de prazos da Fazenda Pública (emquádruplo para contestar e em dobro pararecorrer), duplicidade obrigatória de exame dedecisão judicial etc., são contrárias à Consti-tuição. A violência sem fundamento constitu-cional ao princípio magno da igualdade jurídicatorna inválidas as normas que contemplem taisprivilégios, não podendo elas ser consideradasrecepcionadas (aquelas que antecedem apromulgação da Lei Fundamental da Repú-blica) ou inconstitucionais (aquelas queprocedem tal promulgação).

As denominadas “prerrogativas” daAdministração Pública (que se apresentamem alguns processos administrativos, como,por exemplo, o de licitação e mesmo, emalguns casos, no disciplinar, como a utili-

24 Leciona José Oswaldo Gomes que “não ésuficiente a fundamentação que apenas enunciafundamentos de facto ou só de direito, e muito menosaquela que se limita a invocar a lei ou os princípiosde direito, sem os enunciar, ou que, sem qualqueroutro motivo, refere apenas o preceito legal... semprese terão de rejeitar aquelas (fundamentações) queapontem apenas um princípio de motivação ou quese limitem a formular uma conclusão. É o que, nodireito francês, se designa por proibição de fórmulaspasse-partout que, podendo utilizar-se para todasas situações, não são aplicáveis ao thema deci-dendum”. (Fundamentação do acto administrativo.Coimbra : Coimbra Ed., 1981. p. 123)

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zação de documentos e provas havidas emseus próprios aparatos burocráticos) sãoantes deveres que faculdades, menos aindaprivilégios que ela ostenta, e têm como únicajustificativa o zelo e o comprometimento como interesse público maior e determinante daatuação estatal.

Não podem ser compreendidas, então, asprerrogativas como faculdades excepcionais esuperiormente diferenciadoras da entidadepública em relação ao particular, naquilo queambos apresentem como igualadores de suasituação jurídica. Prerrogativas adaptam-se edão concretude aos princípios constitucionais.Não há prerrogativas contrárias às matrizesconstitucionais, menos ainda quanto aosprincípios que informam o sistema funda-mental.

Não se haverá, pois, de cogitar-se de prazosdiferenciados para a prática de quaisquer atosprocessuais, nem de possibilidade de presun-ções favoráveis à entidade administrativa emdetrimento ou diferenciadamente do particular,nem o que quer que favoreça ou facilite,imotivadamente, o comportamento público,discriminando privilegiadamente a pessoaestatal. A discriminação que beneficia o Estadoprejudica o particular. O mesmo ocorreria, deresto, se do contrário se cogitasse, mas, emgeral, os “privilégios” são exibidos pelaentidade pública, ainda fantasiada com oargumento de que privilegia-se pela condiçãode responsável pelo privilegiado interessepúblico. Nada é mais interesse público que agarantia de cada um e de todos de que aigualdade jurídica prevalece em todos os casosem que não haja fundamento jurídico paradesigualar, ou, dito de outro modo, que não hádesigualdade jurídica a relevar.

6) Princípio constitucional processualencarecido no sistema democrático e que temraízes remotas é o do juiz natural. Emanadotambém do princípio da igualdade jurídica (queproíbe a discriminação beneficiadora tantoquanto a prejudicial a alguém, o que, no caso,ocorreria pela escolha específica de julgadorpara determinado caso e pessoa), o princípiodo juiz natural compõe-se da garantia de juízopré-constituído, de um lado, e pela segurançade que o julgamento será feito por um órgão eagentes pré-qualificados, sem vinculação aocaso posto à análise, o que assegura aimparcialidade do julgado. Daí a expressãoconstitucional no sentido de que “ninguém seráprocessado nem sentenciado senão pela

autoridade competente” (art. 5º, inciso LIII, daConstituição da República)25.

No processo judicial, o princípio é inter-pretado e aplicado pela identificação prévia dojuízo encarregado de julgar. Com essa pré-constituição assegura-se a independência e adesvinculação com as partes, vez que o juiz nãoterá sido escolhido a partir da situação a seranalisada e decidida, mas previamente. Aco-ple-se a essa norma aquela que se segue a elano conjunto dos direitos constitucionaisfundamentais no sentido da vedação de foroprivilegiado e tribunais de exceção e se tem,então, a garantia de que o julgamento seráobjetivo e calcado nas condições de fato e dedireito aferidas e aplicadas sem qualquertomada prévia de posição em relação a umadas partes, o que provocaria, evidentemente, odesequilíbrio desigualador das partes. O juiznatural deixa patenteada a independência dojuiz e a sua liberdade em relação às partes, oque compõe a sua imparcialidade, a dizer, asua não-ligação suspeita, juridicamente, comqualquer das partes, a determinar previamenteo seu juízo.

No processo administrativo, a definição dacompetência para o processo não é sempreprévia. Haverá que se conferir competência aoórgão ou agente processante, e tal conferênciase dará nos estritos termos da legislação vigente.Todavia, nem sempre, reitere-se, tal compe-tência será detida por um órgão ou agente antesde se verificar a ocorrência da situação a serinvestigada, instruída e decidida.

Afirma-se “nem sempre” porque há os casospara os quais a competência é previamentedefinida. Assim, por exemplo, não é incomumcomissões de pessoal competentes conhecer esolucionar situações de questionamento deservidores no âmbito dos poderes a cujosquadros eles pertencem (especialmente noPoder Executivo é freqüente a existência dessascomissões). Também nas entidades da Admi-nistração Pública Indireta compõem-secomissões com aquela atribuição processual,

25 Esse princípio compareceu nas Constituiçõesbrasileiras desde o Império, omitindo-se quanto aesta garantia apenas as Cartas de Lei antidemo-cráticas e ilegítimas outorgadas nos anos de 1937,1967 e pela denominada Emenda nº 1, datada de1969. Em todas as outras, o princípio garantidor dojuiz natural foi expresso entre os direitos funda-mentais (art. 149, inciso 11, da Carta Imperial de1824; art. 72, § 15, da Constituição Republicana de1891; art. 113, inciso 26, da Constituição de 1934;art. 141, § 27, da Constituição de 1946).

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normalmente composta por servidores daprópria pessoa jurídica, com prazo de exercíciopreviamente definido. Algumas leis, como a delicitações (Lei nº 8.666/93), estabelecem aexistência de comissão de licitação, no círculode cuja competência se passa o processolicitatório e que julga os recursos interpostospelos interessados ou pelos licitantes. Tambémse tem tornado mais e mais comum a instituiçãode corregedorias nos diversos órgãos daAdministração Pública, e a elas se confere,legalmente, competência para os processosadministrativos. Nesses casos todos, a compe-tência é previamente estabelecida, o que atendebem ao princípio constitucional.

Todavia, há casos em que a Comissãoprocessante26 é instituída, quando surge umasituação a exigir apuração, no âmbito de umprocesso. Aí se tem, então, uma competênciaestabelecida posteriormente ao fato ou àsituação que exige o processo, mantendo-se,entretanto, a obrigatória exigência de definiçãoda medida de capacidade de ação do órgãoconstituído, sua condição de independência,insuspeição e condição de imparcialidade emrelação ao processado, pena de argüição denulidade de sua constituição e de seu trabalhopor lesão aos direitos do interessado.

O cuidado para a constituição da Comissãoadministrativa processante impõe-se por razõesrelevantes. O julgamento pelos próprios parespode conduzir a desvios graves, quer no sentidode se atuar corporativamente no sentidonegativo, qual seja, o de se formalizar um

processo para não se permitir que o processocontra alguém cumpra o seu objetivo deinvestigação, instrução e decisão sobresituações de fato e de direito, o que agride todosos princípios que asseguram a realização dointeresse público; quer no sentido oposto, valedizer, de se atuar discriminatoriamente, proces-sando-se alguém a quem se imputa previamenteuma situação jurídica independentemente doque se venha a produzir como razões e provasno processo.

O processo administrativo passa-se noâmbito da entidade estatal autora da condutasobre a qual se disputa, donde a comissãoprocessante ser, em geral, composta porservidores públicos que participam do mesmogrupo do interessado (caso de processodisciplinar contra servidor público), oudesempenham a função administrativa quesurge no bojo da situação discutida (caso deprocesso havido no curso de licitação), ou,ainda, representam uma das partes interessadasna decisão (caso de processo administrativo emque se indaga sobre uma decisão administrativaunilateral e em que o interessado submete anovo exame, da mesma entidade, o quantodecidido).

Para que essas maiores dificuldadesconstatadas no processo administrativo nãoconstituam hipóteses de exclusão do Direito oude inaplicação do Direito ao caso, é que se temque conjugar os princípios constitucionaisacima elencados – entre outros implícitos eidenticamente componentes do sistema cons-titucional adotado – com o da responsabilidadepública.

A entidade pública e a particular, que fazas vezes ou desempenha funções do poderpúblico, por delegação, concessão, permissãoou autorização, respondem pelo seu exercíciosegundo os princípios de direito administrativoe não segundo regras de direito privado. Oprincípio da responsabilidade da pessoa públicaou privada prestadora de serviço público (art.37, § 6º, da Constituição da República) é umdos pilares do Estado democrático, donde serinexpugnável em qualquer atuação. O processoadministrativo que não seja operado segundoos princípios constitucionais e infraconsti-tucionais, que lhe sejam decorrentes oucorrelatos, macula-se pela eiva de invalidadejurídica absoluta. Pelos danos que de umprocesso havido fora de tais parâmetrosnormativos sobrevierem ao administrado,responderá a pessoa jurídica a cujos quadros

26 A legislação refere-se a comissão de inquéritoe a autoridade julgadora (art. 149 da Lei nº 8.112/90, por exemplo). Mas, em geral, o que se tem é oprocesso feito perante uma Comissão processante,competindo à autoridade competente para a emissãodo ato punitivo (Presidente da República, Gover-nador do Estado ou do Distrito Federal e Prefeito,ou quem a lei determinar se se cuidar de autoridadediversa) a sua prática, com fundamento na conclusãoexarada no processo. Como a prática do ato, inclusivepunitivo, é dever e não mera faculdade, do quantohavido no processo não pode se afastar a autoridadecompetente para aquele cometimento, pena deresponsabilizar-se pela omissão ou pela condutaimotivada.

É de ser mencionada a figura do Ombudsman,ou ouvidor-geral, que recebe reclamações de servidorou de administrado em geral a demandar apuraçãode fato ou situação de qualquer natureza, ameaçadoraou lesivo a interesses ou direitos específicos ouinespecíficos, a quem a lei, às vezes, também outorgacompetência para a investigação e para acionar oórgão competente pelo processo administrativo.

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pertençam os agentes que dele tenhamparticipado na condição de agentes proces-santes, regredindo contra estes, necessária eobrigatoriamente, a entidade nos casos de doloou culpa, nos estritos termos do art. 37, § 6º,da Constituição da República.

É a responsabilidade rigorosamente obser-vada que assegura, objetivamente, a escorreiçãodo processo administrativo pela condutaextreme de parcialidade ou distanciamento doDireito dos membros da Comissão processante.

Assim, não apenas a invalidade de umprocesso ou da decisão nele proferida poderáser comprovada em hipótese na qual sedemonstre a previedade do juízo manifestadosobre o quanto nele se contém, mas, especial-mente, a responsabilidade de quem operou comos vícios agressivos aos princípios consti-tucionais da defesa produzida e consideradapara a emissão de decisão, e os danos decor-rentes de julgamento havido segundo aquelejuízo prévio e contrário aos paradigmasnormativo-constitucionais, haverá que serapurada com profundidade e com severidade.

Talvez pela maior dificuldade de seassegurar, no âmbito do processo adminis-trativo, o juízo pré-constituído, a fim de segarantir o julgamento imparcial e inde-pendente, é que evoluiu mais nessa seara queem matéria de direito processual judicial, aquestão relativa à responsabilidade do julgadore da entidade pública responsável pelojulgamento. Em efeito, continua sendo maisaceitável a teoria e a aplicação da respon-sabilidade da entidade pública por desvios eequívocos havidos no processo administrativo,que aqueles que igualmente ocorrem noprocesso judicial. A responsabilidade, todavia,é inerente à atuação de entidade pública noexercício de qualquer de suas funções, inclusivea jurisdicional, donde inexistir qualquerexplicação para os entraves opostos ao plenoacatamento do princípio quando se cuida deconduta pública apurada em processo judicial,tanto quanto não se aceitaria tal exclusãoquando se cuida de processo administrativo.

7) O processo administrativo, democra-ticamente concebido e acatado como antesmencionado, legitima o exercício do poder, peloque ele torna efetivo também o princípio damoralidade administrativa . É que não secircunscreve o exame do comportamentopúblico, sobre o qual se questiona em deter-minado processo, ao aspecto formal, mas seanalisa o aspecto substancial da conduta estatal

ou de quem lhe faça as vezes. Nesse passo, oprocesso administrativo ostenta uma qualidadeque o torna mais denso e permissivo de análiseque o próprio processo judicial. Sendo o própriopoder, autor do comportamento que determinae leva a cabo o processo administrativo, ele nãose escusa de examinar o merecimento do atoou situação questionada. Inexiste, nesse caso,qualquer obstáculo como o que se extrai daaplicação do princípio da separação de poderes.Assim, o julgamento feito detalha, pormenorizae desce às entranhas éticas do cometimento emquestão, permitindo que se faça uma análiseque nem sempre é feita (ou pode vir a sê-lo)em idêntica extensão no caso do processojudicial. É certo que, como o princípio damoralidade administrativa é, hoje, expresso nosistema constitucional brasileiro, dele não sepode ausentar o juiz, posto ter se transformado,por expressão textual da Lei Fundamental, emprincípio jurídico excelente da AdministraçãoPública.

Todavia, a possibilidade que com ele seapresenta no espaço do processo administrativoé ainda maior, porque a Administração Pública,nesse caso, cumpre o seu dever de resgatar ajuridicidade que é o fundamento único de suaatuação válida.

Daí poder o processo administrativo ampliaros direitos assegurados como princípiosconstitucionais do cidadão e do particular emgeral, permitindo que a Administração Públicalegitime o seu desempenho e responsabilize-sepelo seu exercício com a ajuda do próprioadministrado.

Cumpre, finalmente, observar que osprincípios processuais, judiciais e adminis-trativos, não se exaurem no sistema consti-tucional, desdobrando-se, como antes lem-brado, no plano da legislação infracons-titucional.

Mas como princípios magnos do sistemajurídico, aqueles que se encontram na legislaçãoinfraconstitucional emanam dos que se põem,expressa ou implicitamente, no contextoconstitucional e para eles convergem.

A legislação infraconstitucional esmiúça osprincípios e os preceitos relativos ao processoadministrativo, atribuindo procedimentosdiferenciados a ele, conforme o seu objeto e asua finalidade. Nenhum escapa ou refoge aoquanto prescrito como princípio constitucional.É esse que determina inclusive a interpretaçãoe a aplicação de todas as normas sobre o tema,donde a sua importância maior no Direito.

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6. ConclusãoNão sei se se pode afirmar que Cristo foi

processado. Sabe-se apenas que foi julgado,tendo sido deixado ao cristão o exemplo dojulgamento mais perverso visto pela huma-nidade, aquele aclamado por uma multidãoensandecida, enfurecida e sem razões que nãoas do Estado. Ficou a lição de que processo nãose faz com emoção de momento, nem comaflição de público, mas com racionalidade,objetividade e segundo normas postas a salvode urgências despidas de tranqüilidade e dehumanidade serenada.

Muitos cristos tem visto a história humana.De Sócrates a Dreyffus, a mão do homem temusado formas de processo para processos sem-forma e argumentos de lei para leis sem-argumento.

E, no entanto, o Direito faz-se para a Justiça.O processo é apenas um instrumento demo-crático para que o Direito justo se concretize eofereça ao homem uma razão de conviver comdignidade e segurança, legitimando o poder etornando o cidadão seu artífice participante econfiante de que vale a pena viver com os outrosnuma ambiência política que pode aperfeiçoare abrandar a experiência daquele que vierdepois.

Para isso o constitucionalismo contem-porâneo, atento ao batuque surdo da exclusãosocial por carência de instrumentos viabiliza-dores do Direito conquistado, expressaprincípios que convergem para a concretizaçãodo princípio magno da dignidade da pessoahumana (art. 1º , III, da Constituição daRepública do Brasil), absorvendo por meio doacesso ao direito posto o processo maisdemocrático, para a proteção universal dopatrimônio de bens jurídicos dos homens e apossibilidade de cada um exigir do Estado oestrito cumprimento de seus deveres com cadaqual e com todos.

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1. IntroduçãoO tema constitucionalidade e inconsti-

tucionalidade, bem como seu controle, temconsumido páginas de intermináveis contro-vérsias na literatura jurídica internacional. Aidéia de controle da Constituição brasileira,enquanto objeto deste texto, visa estabelecer ascompetências e atribuições dos poderes daRepública e os respectivos procedimentosregulatórios de limitação das medidas e finsdo processo político. A Constituição comoestatuto jurídico do político, conforme o juristaJosé Canotilho1, tem como centro um conjuntonormativo ativo e finalístico, regulador ediretivo da sociedade. Objetivamos, ainda,demonstrar os tipos e espécies de controlede constitucionalidade e, quando possível,sua recepção do direito constitucionalcomparado.

Controle de constitucionalidade:a Constituição como estatuto jurídico dopolítico

JOSÉ CARLOS BUZANELLO

José Carlos Buzanello é Diretor do Curso deDireito da Universidade do Grande Rio – Duque deCaxias/RJ. Professor do Mestrado em Direito daUniversidade Estácio de Sá – Rio de Janeiro/RJ;Bacharel em Filosofia (UFSM) e Direito (UFRJ);Mestre em Direito (PUC/RJ) e Doutorando emDireito (UFSC).

SUMÁRIO

1. Introdução. 2. Estado e supremacia consti-tucional. 3. Tipos de controle de constitucio-nalidade. 3.1. Controle político. 3.2. Controlejurídico. 4. Espécies de controle de constitucio-nalidade. 4.1. Controle difuso ou incidental. 4.2.Controle direto amplo. 4.3. Controle direto geral.4.4. Controle direto interventivo restrito. 4.5.Controle direto interventivo estadual. 5. Conside-rações finais.

1 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Consti-tucional. 6. ed. Coimbra : Almedina, 1995. p. 13. Oautor nesta mesma obra, p. 12, conceitua consti-tuição, como “uma ordenação sistemática e racionalda comunidade política, plasmada num documentoescrito, mediante o qual se garantem os direitosfundamentais e se organiza, de acordo com oprincípio da divisão de poderes, o poder político”.

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O direito, como manifestação cultural dasociedade, uma vez constituído, passa a ser umdos fatores reflexivos, que a condicionam e amodificam, isto é, a partir de si constrói o direitoe o Estado. Como o direito não cria a sociedade,apenas a consolida e estabelece suas formas eindica seus contornos futuros, assim, asConstituições modernas, fundadas no Estadodemocrático, estabelecem um equilíbrio entreas diferentes forças políticas que disputamespaço de influência e decisão dentro dasociedade estatal. Para sua estabilidade eeficácia, conferem proteção aos espaços de quenecessitam: a personalidade individual (direitose garantias políticas) e a personalidade coletiva(direitos sócio-econômicos). Na Constituiçãodeve haver uma visão integradora dos fatosjurídicos e políticos, aspirando encontrar umponto de equilíbrio entre diversos fatores eforças que operam na realidade social. A forçacriadora política e o ordenamento do direitoconfluem para a Constituição, que vai repre-sentar o ordenamento do poder por meio daestabilidade das instituições políticas e asrelações entre o Estado e a sociedade civil. AConstituição como “lei fundamental” do Estadorepresenta, por conseqüência lógica, a supe-rioridade sobre o complexo das normasjurídicas existentes.

A constitucionalidade e a inconstitucio-nalidade designam um conceito relacional quese estabelece entre uma norma constitucionale outra que não lhe é conforme, que com ela éimcompatível formal e materialmente. À luzda moderna doutrina do Direito, é quase assenteque a problemática da constitucionalidade dasnormas estaria resolvida por força da aplicaçãodo princípio da supremacia da Constituição, pormeio do qual a validade do ato depende de suaadequação à norma hierárquica superior. Porconseguinte, todo ato ofensivo à Constituiçãoé inconstitucional, juridicamente ineficaz, porforça do princípio da hierarquia que impõe umaverticalidade de valores normativos, onde osatos de grau mais elevado funcionam comofundamento de validade para os atos inferiores.Dessa deliberação axiológica surgem doisinstitutos jurídicos: a hierarquia das normas eo controle da constitucionalidade das leis. Parase efetivar a conformidade dos princípios eenunciados da Constituição, positiva-se, porfim, a teoria do sistema constitucionalintegrando os elementos político-jurídicos nasua formação e aperfeiçoamento.

O controle constitucional diz respeito aoslimites do Estado e às garantias de estabilidadeda Constituição contra atos do Poder Públicoque importem em seu desrespeito. A doutrinaconstitucional denomina de Jurisdição Consti-tucional, que não é só a decretação da incons-titucionalidade das leis, mas envolve a soluçãodos conflitos constitucionais em geral. Ocontrole é, antes de tudo, uma técnica político-jurídica de limitar o poder, de impor limites aopróprio legislador e aos demais poderes e órgãospúblicos.

2. Estado e supremacia constitucionalA supremacia constitucional e o respectivo

controle constitucional das leis decorrem, emtermos gerais, da sistematização teórica doEstado liberal. As democracias constitucionaisestabeleceram o princípio da primazia da lei,onde todo o poder político tem de ser legalmentelimitado e controlado por instituições espe-cíficas. A positivação do ordenamento estatale de princípios orgânicos na Constituiçãoescrita é fruto de uma valoração político-ideológica liberal, que exigia direitos egarantias das liberdades fundamentais. Oprimado de certeza da lei, concepção dominantedo Estado liberal, informa que o Estadopersegue seus fins só dentro das formas e limitesdo direito, e deve garantir aos cidadãos a certezade sua liberdade jurídica. E, se o Estadointerferir nos direitos subjetivos dos indivíduos,apenas justifica sua ação com uma lei geralprovinda dos poderes estatais, resultando ocontrole constante da produção legiferante e deatos do Executivo. O controle de atividade daAdminstração Pública é mantido, às vezes, paragarantir a subordinação de um órgão do Estadoa outro, ou para fiscalizar o cumprimento dalei e, por fim, para garantir e tornar eficaz aliberdade jurídica do cidadão.

Da racionalização da atividade política,firmou-se um “pacto de poder” entre o Estadoe a sociedade civil, consubstanciado numdocumento solene, escrito, que denominamosmodernamente de Constituição Política. Este“contrato político” estabelece as regras do jogoe partilha do poder, como também a acomo-dação de interesses de grupos sociais eeconômicos com capacidade de participarativamente do controle do sistema político.Com o fenômeno constitucionalista do séculoXVIII, foram racionalizadas as ações políticasdo Estado, mediante controle político e jurídico,

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dos freios e contrapesos do poder pelo própriopoder, ou mecanismos não-estatais de defesasocial, como o direito de resistência. A teoriados freios e contrapesos do poder político surgiucomo um grande achado da engenharia políticaliberal, superestimando sua capacidade decontrole absoluto do poder estatal. A expe-riência constitucional tem largamente demons-trado que os freios e contrapesos, comoprocedimentos de controle das manifestaçõesdos agentes políticos, são insuficientes paraacobertarem toda a problemática política. Osinstrumentos de controle do poder não-estatalenvolvem uma relação entre governantes egovernados, onde estes podem invocar olegítimo direito de resistência ao reagir às açõesdespóticas do Governo, quando falharem osfreios e contrapesos do poder do Estado. Deoutra parte, o instituto do direito de resistência2

tem sido desprezado pelo positivismo jurídico,por entender que o Estado, por si só, dispõe deinstrumentos para controlar e limitar o poderpolítico. O Professor Mauro Cappelletti nos dizque a questão da

“desobediência a leis e a ordens iníquas,imorais, desarrazoadas ou antinaturaistem sido um problema perene da huma-nidade. O gênio da humanidade tentou,agora, traduzir este problema em termosde constitucionalidade, afirmando odireito de não seguir os preceitos das leise ordens inconstitucionais”3.

A mutação do Estado Liberal para o EstadoSocial, identificado este como Estado Contem-porâneo, ambos constitucionalizados, não podeser compreendida somente como um momentode força resultante da questão social. Essa novaconfiguração do Estado se estrutura a partir deuma série de instituições especificadamenteestatais de caráter administrativo, legislativo,judicial e econômico, que não são próprias dasociedade civil e que combinam uma funçãode duplo caráter de força e de consenso. OEstado Contemporâneo pode ser concebidocomo um ente universal-particular, como nosdiz, brilhantemente, o Professor Aldo Fornazieri,que é ao “mesmo tempo expressão e regulaçãode uma sociedade fundada numa consciência

histórica universal particularista e umaexistência regulada por valores particu-laristas”4. O Estado é, assim, particular-universal, subordinado-subordinador, instru-mento-medição, força-consenso. A sociedadecivil, portanto, compreende a medição entre asparticularidades e a universalidade, isto é, entrea estrutura objetiva mais universal, que é oEstado, e uma rede de instituições de naturezanão estatal própria das expressões sociais egrupos particulares da sociedade. O poder comoposição sociopsicológica é fundado em efeitoreflexo, entre os que o detêm e os que o exercem,e aqueles a quem se dirige o poder, surgindodesse entrechoque a questão da legitimidadepolítica. O Estado, por sua vez, como expressãomaior do poder político e com o processo depublicização do direito, faz-se presente desdea microfísica intersubjetiva da vida privada atéa regulação do espaço público.

3. Tipos de controlede constitucionalidade

As Constituições políticas como fontesirradiadoras de poder positivado dispõem deum sistema de órgãos para controlar aconstitucionalidade do ordenamento jurídico.No direito comparado constitucional, temos trêstipos de controle constitucional: o político, ojurídico e o misto.Vamos analisar brevementeos dois primeiros sistemas, dando mais destaqueao prevalente no Brasil, o controle jurídico:

3.1. Controle político

O controle político realiza-se por poderesde natureza estritamente política, o Executivo,pelo Chefe de Governo, e o Legislativo, peloCongresso Nacional. É um controle preventivo,não judicial, pois ocorre antes que a lei entreem vigor no interior do processo legislativo.Esse controle político de constitucionalidade étípico do sistema francês, exercido previamentepelo Conselho Constitucional desde a Consti-tuição de 1958, Corte essa eminentemente denatureza política.

No Brasil, o controle político de constitu-cionalidade das leis e dos atos normativos peloCongresso Nacional se faz mediante duasformas: uma preventiva e outra suspensiva. Aprimeira radica no processo legislativo

2 Recomendamos a leitura do nosso artigo Direitode Resistência e a Legalidade, in: Perspectivasociológica do Direito : 10 anos de pesquisa. Riode Janeiro : OAB/RJ : Thex Ed., 1995. p. 59.

3 CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicialde constitucionalidade das leis. Porto Alegre :Fabris, 1982. p. 19.

4 FORNAZIERI, Aldo. Considerações sobre asociedade civil, o Estado e a estratégia. RevistaTeoria e Política, São Paulo, n. 9, p. 59, 1988.

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mediante controle prévio de admissibilidade econstitucionalidade dos projetos de leis e dasmedidas provisórias, por meio do controleprévio de leis inconstitucionais, quanto à suaexistência e validade. A segunda forma visasustar os atos normativos do Poder Executivoque exorbitem do poder regulamentar ou doslimites de delegação legislativa (art. 49, V, CF),por meio do veto legislativo, consubstanciadonum decreto legislativo que declare a inconsti-tucionalidade do ato impugnado. A sustaçãodesse ato pelo Legislativo ataca apenas aexistência e a validade da norma jurídica. Ocontrole político pelo Presidente da Repúblicase faz, basicamente, pelo veto executivo que,considerando-o inconstitucional ou contrário aointeresse público, veta o projeto de lei aprovadono Legislativo, comunicando e motivando seuato ao Congresso Nacional, conforme o art. 60,§ 1º, da Constituição Federal.

3.2. Controle jurídicoO controle jurídico é o sistema originário

do Poder Judiciário, conforme o modelo norte-americano da judicial review of legislation, quereconhece o acesso direto dos juízes à Consti-tuição a fim de controlarem a constitucio-nalidade das leis, momento esse, segundoCanotilho, relevantíssimo para a gênese dajustiça constitucional5. No Brasil adota-se osistema misto, combinando dois tipos decontrole de jurisdição constitucional: difuso(incidente) e concentrado (direto). O critériodifuso segue a matriz norte-americana, em suaessência, ou seja, qualquer juiz pode declarar ainconstitucionalidade da lei, por via incidental,isto é, pela argüição da inconstitucionalidadeem defesa do réu no processo concreto. Ocontrole concentrado, que pode ser combinadocom o primeiro, é um ataque direto do atoimpugnado em apenas um Tribunal que,conforme a competência constitucional, podeser no Supremo Tribunal Federal ou nosTribunais de Justiça dos Estados, sendo estecompetente para exercer o controle último deconstitucionalidade.

O sistema difuso tem uma grande vantagemem relação ao concentrado, por possibilitar adescentralização política dos atos judiciais aqualquer cidadão para pleitear em juízo adeclaração de inconstitucionalidade de qualquerlei ou ato administrativo. De outra parte, ocontrole difuso traz outros problemas, tais como

a violação do princípio constitucional daisonomia e da generalidade da lei, por nãogerar, por si, a eliminação da lei declaradainconstitucional, tanto que, outro juiz podeentendê-la constitucional em outro casoconcreto. Nesse caso, configura-se um trata-mento desigual, porque pode ocorrer que, numcaso, o réu ganhe a lide pelo simples acolhi-mento da argüição de inconstitucionalidade e,no outro, ele perca porque não foi acolhida.

A Constituição Federal de 1988, já refor-mada em parte em relação à Constituiçãorevogada, introduziu três institutos que podemefetuar o controle de constitucionalidade, alémda ação direta de inconstitucionalidade (Adin)já existente, todos com sede no SupremoTribunal Federal (STF), que são:

a) primeiro, a Constituição ampliou alegitimidade dos entes políticos para proporação de inconstitucionalidade (art. 103): oPresidente da República; as Mesas da Câmarados Deputados e do Senado Federal; a Mesa deAssembléia Legislativa; os Governadores deEstado; o Procurador-Geral da República; oConselho Federal da OAB; os partidos políticoscom representação no Congresso Nacional; asconfederações sindicais ou entidade de classede âmbito nacional. Na Constituição anteriorrevogada, era limitada a propositura da açãoapenas ao Procurador-Geral da República,mediante ato discricionário, segundo oprincípio da oportunidade e conveniência,possibilitando lesões à ordem política-jurídicabrasileira. A atual Constituição, para evitar aexperiência passada de centralidade em umúnico órgão, ampliou consideravelmente osentes políticos que podem provocar o STF adecisões que retirem do “mundo jurídico” a leiou ato normativo federal ou estadual incons-titucional;

b) o segundo instituto prevê a ação deinconstitucionalidade por omissão (art. 103, §2º), recepcionado da Constituição portuguesa.A Constitução Federal inovou quanto aosaspectos de inconstitucionalidade, ao deter-minar que toda situação jurídica, além de seadequar aos ditames constitucionais (ação deinconstitucionalidade – art. 102, I, a; III, a, b,c), deve exigir que a omissão do poderregulamentar do Legislador ou do Executivoseja declarada como conduta inconstitucional,pois tem o dever constitucional de legislar. E,tratando-se de órgão administrativo, deverátomar as providências integradoras em trintadias. A omissão, em regra, revela-se umaquestão política e não jurídica, para isso, o novel5 Ibidem, p. 959.

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instituto jurídico desencadeia um processo depressão política ao legislador ou ao admi-nistrador, para que exerça o poder regulamentarde sua competência (lacunas legislativas), paraefeito de efetividade das normas consti-tucionais;

c) o terceiro instituto, a novíssima açãodeclaratória de constitucionalidade (art. 102,I, a, § 2º), introduzida pelo constituintederivado por meio da Emenda Constitucionalnº 3, de 17 de março de 1993. A nova açãoprovoca o exame abstrato de inconstitucio-nalidade e alcança somente a lei e o atonormativo federal; trata-se de um controleinterpretativo das normas jurídicas federais comefeito vinculante ao Judiciário e à Adminis-tração. Essa ação declaratória de constitucio-nalidade, em abstrato, destina-se ao SupremoTribunal Federal, único órgão competente paraanalisar e julgar essa ação.

4. Espécies de controlede constitucionalidade

O sistema brasileiro de controle de constitu-cionalidade apresenta-se com três espécies decontrole judicial: controle difuso ou incidental;ação direta de constitucionalidade e deinconstitucionalidade; e ação direta inter-ventiva. O sistema estabelece o controleconstitucional de ato normativo federal eestadual e, excepcionalmente, por via inci-dental, e somente por essa via, a impugnaçãodo ato municipal em face da ConstituiçãoFederal.

Para a melhor interpretação do sistema decontrole de constitucionalidade, adotamos emparte o quadro analítico elaborado peloProfessor Dilvanir José da Costa6 para aConstituição revogada. O quadro abaixo, deforma didática, foi adaptado para a ConstituiçãoFederal vigente:

4.1. Controle difuso ou incidental –Constituição Federal – art. 102, III, b, c

(Exceção de Inconstitucionalidade)a) órgão julgador: qualquer Juiz ou Tribunal

e o STF para efeito de suspensão da eficácia danorma;

b) instrumento e legitimação: em qualquerprocesso, por qualquer das partes;

c) pedido incidente: declaração de incons-titucionalidade de lei ou ato normativo federal,estadual e municipal, em face da ConstituiçãoFederal;

d) efeito imediato e específico: não aplicaçãoda norma inconstitucional à espécie;

e) efeito mediato e abstrato: decorrente deato posterior de suspensão de execução danorma pelo Senado Federal (art. 52, X), apósdecisão definitiva de inconstitucionalidade peloSTF.

4.2. Controle direto amplo – ConstituiçãoFederal – art. 103 (ação direta de

inconstitucionalidade – Adin)

a) órgão julgador: Supremo TribunalFederal – STF;

b) instrumento e legitimação: por repre-sentação do Presidente da República; das Mesasda Câmara dos Deputados e do Senado Federal;da Mesa de Assembléia Legislativa; dosGovernadores de Estado; o Procurador-Geralda República; do Conselho Federal da OAB;dos partidos políticos com representação noCongresso Nacional e de confederação sindicalou entidade de classe de âmbito nacional;

c) objeto ou pedido principal: declaração deinconstitucionalidade de lei ou ato normativofederal ou estadual (Constituição Estadual, leiou decreto federal ou estadual, etc.);

d) efeito imediato e específico: I) ineficáciaimediata da norma julgada inconstitucional,independente da manifestação do SenadoFederal; II) comunicação ao Poder ou órgãoresponsável; III) intervenção federal pordesobediência à ordem ou decisão judicial (art.34, VI);

e) efeito mediato e abstrato: após decisãodefinitiva de inconstitucionalidade pelo STF,o Senado Federal, por meio de decretolegislativo, afasta do ordenamento jurídico oato impugnado (art. 52, X), ataca, portanto, aexistência e a validade da norma.

4.3. Controle direto geral – ConstituiçãoFederal – art. 102, I, a, § 2º –(açãodeclaratória de constitucionalidade)

a) órgão julgador: Supremo TribunalFederal – STF;

b) instrumento e legitimação: por repre-sentação do Presidente da República; das Mesasda Câmara dos Deputados e do Senado Federalou pelo Procurador-Geral da República (art.103, § 4º);

6 COSTA, Dilvanir José da. O controle consti-tucional e a autonomia dos Estados federados.Revista de Informação Legislativa, Brasília, n. 83,p. 218-219.

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c) objeto ou pedido principal: declaração deinconstitucionalidade de lei ou ato normativofederal (lei complementar, ordinária, decreto,portaria, etc.);

d) efeitos: I) efeito vinculante a todos osJuízes e Tribunais e Poder Executivo; II)eficiência imediata da norma julgada cons-titucional; III) comunicação ao órgão res-ponsável.

4.4. Controle direto interventivo restrito –Constituição Federal – art. 36 (ação direta

interventiva federal):a) órgão julgador: Supremo Tribunal

Federal – STF;b) instrumento e legitimação: representação

por vários entes (Poderes e órgãos), conformeo caso concreto (art. 36);

c) objeto ou pedido principal: declaração deinconstitucionalidade da lei ou ato normativoestadual, com pedido de intervenção federal nosEstados para exigir a observância dos princípiosconstitucionais, para os fins do art. 34, VII, daConstituição Federal;

d) efeitos imediatos: I) comunicação àautoridade interessada; II) comunicação aoPresidente da República para que suspenda oato impugando por decreto e proceda àintervenção federal (art. 84, X);

e) Efeito mediato: cessados os motivos daintervenção, as autoridades afastadas de seuscargos a estes voltarão, salvo impedimento legal(art. 36, § 4º).

4.5. Controle direto interventivo estadual –Constituição Federal – art. 35, IV (ação

direta interventiva estadual)

a) órgão julgador: Tribunal de Justiça doEstado;

b) instrumento e legitimação: representaçãodo Chefe do Ministério Público Estadual (art.129, IV, da Constituição Federal);

c) objeto ou pedido principal: declaração deinconstitucionalidade de lei ou ato normativomunicipal, para fins de intervenção estadualno Município, para exigir a observância dosprincípios constitucionais estaduais;

d) efeito imediato: I) comunicação àautoridade municipal; II) comunicação aoGovernador do Estado para que suspenda o atoimpugnado por decreto; III) nomeação dointerventor no Município para prover aexecução de lei de ordem ou de decisão judicial;

e) efeito mediato: cessados os motivos daintervenção, as autoridades afastadas de seus

cargos a estes voltarão, salvo impedimento legal(art. 36, § 4º, CF).

5. Considerações finaisA evolução do pensamento jurídico em

vários países tem se enveredado no sentido deuma intensa flexibilização do paradigma daconcepção formalística, exigindo do Direitocriatividade e capacidade para responder àaltura a esses novos desafios. Todavia, essaconcretude foi se transformando histo-ricamente, possibilitando o aparecimento deuma nova produção doutrinária, fecunda denovas opções intermediárias entre o chamadoestado de plena constitucionalidade e o estadode absoluta inconstitucionalidade. As elabo-rações contemporâneas a respeito das CortesConstitucionais e de natureza jurídico-política,tais como: Áustria de 1920; Espanha de 1931;Itália de 1947; Alemanha de 1949 e Guatemalade 1965. Essas novas formulações foramintroduzidas principalmente por doutrinadoresalemães e italianos, que reconhecem que ocontrole de constitucionalidade não se limita aum pretenso contraste entre norma superior ea regra hierarquicamente inferior, medianteestreita vinculação com os fatos e a realidadeque o concebeu.

A história constitucional brasileira registrao princípío da supremacia e do controleconstitucionais pelo Poder Judiciário, mas semuma “cultura constitucional”, estribada nosproblemas estruturais de formulação política,como o pouco apego à perenidade institucionalestatal e das instituições democráticas. Ascaracterísticas culturais que molestam o estatutojurídico, obviamente, vão repercutir noJudiciário de duas maneiras: primeiro na formado recrutamento dos juízes dos TribunaisSuperiores que o tornam reféns do “leviatãpresidencial” e, por fim, na ingerência políticanas suas decisões. De outro lado, a desva-lorização da constituição escrita já eraobservada por Karl Loewenstein7 em outrasdemocracias constitucionais, sendo descuidadapelos detentores do poder político. As insti-tucionalizações de inconstitucionalidademarcam a experiência constitucional brasileira,que vai refletir na qualidade das decisões doJudiciário, onde, muitas vezes, os vazados peloPoder Executivo, flagrantemente incons-

7 LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Consti-tución . Traducción Alfredo Gallego Anabitarte.Barcelona : Ariel, 1979. p. 222 e segs.

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titucionais, são legitimados pelo PoderJudiciário, precisamente pelo Supremo Tribu-nal Federal, órgão competente pela guarda daConstituição. Por fim, somando todos essesaspectos, temos como resultado a fragilidadeinstitucional do sistema de controle consti-tucional, por não conseguir neutralizar apolitização do Estatuto Jurídico do político.

A partir do modelo brasileiro de controlede constitucionalidade, acima apresentado,podemos aduzir o seguinte:

1. O sistema de controle constitucional temnatureza mista, com nuances de sistemaromanístico e o Common Law, respectivamente,concentrado e difuso.

2. O controle concentrado é privativo dosTribunais Superiores, fixado as competênciasna Constituição Federal para o SupremoTribunal Federal e, quando couber, para osTribunais de Justiça dos Estados, conformeprescrevem as respectivas Constituições dosEstados-membros. A jurisdição do STF quantoao controle concentrado de inconstitucio-nalidade, equivale, na prática, a uma declaraçãode ineficácia válida erga omnes, sem prejuízo doprincípio constitucional da independência do juiz.

3. O incidente de declaração de consti-tucionalidade é um procedimento suscitadoperante o julgamento no Supremo Tribunal,para provocar o pronunciamento de constitu-cionalidade de lei ou de ato normativo federalcom força vinculante a todos os juízes do País eao Poder Executivo, e pode “prejudicar aefetividade” do sistema de jurisdição difuso, casohaja o exame da matéria em abstrato da normaimpuganda em face da Constituição Federal.

4. O controle interventivo visa resguardaros princípios constitucionais do Estado Federal(art. 34, VII, CF), sob a sanção da intervençãoda União nos Estados-membros e destes nosMunicípios que desrespeitarem tais princípios.

5. O controle difuso conta também comampla e irrestrita legitimação ativa, posta àdisposição de qualquer pessoa física ou jurídica,pública ou privada, e numa ampla variedadede órgãos jurisdicionais (todos os juízes etribunais do País), enquanto que os sistemasconcentrados têm como parte ativa apenasalguns órgãos previstos nos arts. 36 e 103 daConstituição Federal.

6. O Brasil, seguindo o modelo norte-americano, adota também o sistema difuso decontrole de constitucionalidade das leis, issosignifica que qualquer órgão jurisdicional podedeclarar a inconstitucionalidade de uma lei ese recusar a aplicar a lei inconstitucional, maso órgão parcial do Tribunal não pode, caso não

se alcance a maioria absoluta de votos quedeclare a inconstitucionalidade do ato impug-nado. Em caso negativo, os autos retornam paraa Câmara ou órgão do Tribunal, e mesmo quetodos os membros desses órgãos sejam pelainconstitucionalidade, eles não podem serecusar a cumprir a lei, porque a declaração deinconstitucionalidade não alcançou no plenárioos votos da maioria absoluta (art. 97, CF). Aquise identifica uma limitação da liberdade dejulgamento dos juízes do órgão julgador, porforça de imposição constitucional.

7. O controle difuso pode ter por objetonormas de qualquer nível (federal, estadual emunicipal), enquanto que o outro sistemadesampara o controle contra normas municipaisem conflito com a Constituição Federal e asleis federais. Por isso, o controle incidentaldireto se impõe como modelo de praticidade eeficiência, contribuindo sobremaneira para adesburocratização e descongestionamento doJudiciário.

Assim, a mola propulsora da dinâmicasocial converte-se em peça vital no processo deinterpretação e aplicação do Direito. Nenhumanação construiu-se ou pôde caminhar para seudesenvolvimento pleno sem uma sociedadeorganizada e forte, condição essa impres-cindível para o próprio aperfeiçoamento econtrole das instituições político-jurídicas,missão que a todos é dada.

Bibliografia

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1. Considerações geraisDesde o princípio da humanidade, que

remonta a aproximadamente dois milhões deanos, a vida em comum implicava relacio-namento entre os seus membros. Os homens,necessariamente, eram e são compelidos a serelacionarem uns com os outros, embora essatarefa, por vezes, seja um pouco complexa edelicada.

A partir dessas relações, de natureza vária,nascem normas de condutas espontâneas porparte dos membros que em sociedade convivem.Essas normas de condutas espontâneas,algumas vezes, são aceitas e absorvidasinstantaneamente pelos seus membros comoregras sociais, sendo acatadas pacificamente.Outras, no entanto, geram conflito e discor-dância, ante a não-realização natural daquelasnormas, acarretando a rotura das estruturassociais. Dessa relação íntima de sociedade epoder é que surge o direito1, como fato

A Teoria das nulidades e o sobredireitoprocessual

DANILO ALEJANDRO MOGNONI COSTALUNGA

Danilo Alejandro Mognoni Costalunga éBacharel em Direito; Pós-graduando em DireitoProcessual Civil na PUC-RS.

“E não haverá consolo maior à alma de um juizdo que tanger o processo com inteligência esabedoria, para, de suas mãos deslumbradas, verflorir a obra plástica e admirável da criação dojusto, do humano, na vida”.

Galeno Lacerda

SUMÁRIO

1. Considerações gerais. 2. Sistema dasnulidades processuais. 3. Sobredireito processualcomo categoria relativizadora das nulidades. 4.Conclusões.

1 Em verdade, o direito já é algo que faz parteda própria substância e essência das pessoas,

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eminentemente cultural, humano e social,tendente a pautar aquelas condutas dos homens.

A história nos demonstra que a vida humanae o próprio direito ao longo de todo esse período,especialmente nos últimos quinhentos anos,evoluíram de uma forma sem igual. Com aformação do “Estado”, o direito havido dessarelação de sociedade e poder é levado ao seuconhecimento, recebendo de sua parte acolhidae normatização. A finalidade do direito nesteestágio, como ser normativo, é a de outorgarproteção ao homem e à sociedade.

Estabelecido o monopólio da jurisdição,como natural conseqüência da modificação doconceito de Estado, a possibilidade de ação ereação pelas próprias mãos dos titulares – aautotutela –, no sentido de que seja observadoe realizado o direito, foi eliminada. Daí anecessidade do processo judicial como meiopara obtenção da tutela jurídica estatal2.

Inquestionável, nesse sentido, que diante dofato concreto de ter sido a jurisdição mono-polizada pelo Estado, e que é por meio doprocesso que ela é realizada, a ação de direitomaterial, anteriormente permitida, só poderáser exercida por intermédio da ação de direitoprocessual, salvo raríssimas exceções3. O deverde prestação jurisdicional por parte do Estado4,

uma vez provocado pelo interessado na soluçãodo conflito existente em sua relação jurídicamaterial com outrem, desencadeará umarelação jurídica processual, relação esta quecom a obra memorável de Bülow5 reconheceua existência de outra relação, que não só aquelaentre particulares, mas uma relação jurídica dedireito público, entre Estado e particulares. Daíporque falar-se no vínculo que se estabelece noprocesso entre as partes e o juiz.

Dessa autonomia da relação jurídica –material e processual – decorreu conseqüen-temente a autonomia do direito processual civil,que, a partir da já mencionada obra do grandeprocessualista alemão Bülow6, permitiu aodireito processual civil, antes mero apêndicedo direito material, ser erigido à categoria deverdadeira ciência jurídica.

Assim sendo, o processo, meio pelo qualpoderemos ver declarado e realizado o nossodireito, só pode ser conhecido pelos órgãosestatais encarregados pela prestação jurisdi-cional. Coube ao Poder Judiciário, um dos trêspoderes que compõem o nosso Estado, supe-rando, pois, as reservas doutrinárias deMontesquieu, que ainda tinha o juiz como ummero subordinado pronunciador das palavrasda lei7, esta missão, ou seja, aplicar e fazerincidir a norma legal a casos particulares,missão essa por demais importante para asatisfação dos interesses do cidadão e desen-volvimento da paz social.

Note-se que justamente por ser reconhecidocomo “Poder Judiciário”, o papel que o juizexerce na sociedade, julgando, até mesmo, atosdos demais poderes (Executivo e Legislativo),confere-lhe reconhecida e necessária indepen-dência no exercício de suas funções. AConstituição Federal assim dispõe, verbis:

“a lei não excluirá da apreciação doPoder Judiciário lesão ou ameaça adireito;” (art. 5º, XXXV).

Pois bem, para que possamos fazer valerefetivamente este ideal, de efetiva realizaçãoda justiça, é que devemos adequar o direito aofato concreto e à própria natureza do direito

enchendo parte da nossa vida pessoal, e que existesempre envolvido com coisas concretas e com a vida,como muito bem ensina o filósofo gaúcho Carlos N.Galves, em Manual de Filosofia do Direito. Rio deJaneiro : Forense, 1995. p. 16-17.

2 Para Cândido Rangel Dinamarco, processo é ométodo ou sistema de atuar a tutela jurisdicional, cf.nota 1 a Liebman, em Manual de Direito ProcessualCivil. Rio de Janeiro : Forense, 1984. p. 3.

3 É o caso, verbi gratia, da regra constante doart. 502 do nosso Código Civil, que permite aopossuidor turbado ou esbulhado na sua posse manter-se ou restituir-se por sua própria força. Do mesmomodo a regra inserta no art. 776 do Código Civil, aopermitir que o hospedeiro ou estalageiro, e bemassim os fornecedores de pousada ou alimento,titulares de penhor legal, retenham as bagagens,móveis, jóias ou dinheiro que os fregueses ouconsumidores tiverem consigo, bem como ao locadorsobre os móveis do locatário.

4 A jurisdição, como sabido, é uma dasexpressões da soberania, e o processo instrumentodessa jurisdição, instrumento político de efetivaçãodas garantias asseguradas constitucionalmente atémesmo de manifestação político-cultural, espelhocultural da época , na dicção de Franz Klein,consoante bem pinçado por Mauro Cappelletti, emProblemas de reforma do processo civil nassociedades contemporâneas. Revista de Processo, v.65, p. 127.

5 BÜLOW, Oscar von. Excepciones procesalesy presupuestos procesales. Tradução espanhola de1964. Buenos Aires, 1968.

6 Ibidem, p. 1 e segs.7 Sobre a doutrina racionalista da consagração

dogmática da separação estrita dos poderes, após aRevolução Francesa, ver o interessante estudo deJon Henry Merryman, La Tradicion jurídicaromana-canónica. 2. ed. México : Fondo de CulturaEconómica, 1994. p. 72-79.

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posto em causa. Sabido que o juiz de direitotem em suas mãos, para a prática diuturna deseu mister, norteado por aquele ideal, um bomCódigo de Processo, instrumento de declaraçãoe realização do direito material e, sobremaneira,da justiça, não encontrando paralelo emnenhum outro, embora tenha de submeter-se,por vezes, ao inconveniente do preciosismotécnico de Buzaid.

Por isso, o juiz precisa e deve pensar.Inicialmente, porque não é um espectador deuma cena preconcebida; depois, porque devepensar desatrelado da razão do jurista e do serhumano, que é por demais limitada, validando,corolariamente, a sua sintonia com o caso realposto em causa. Se é verdade que o direito nascecom a vida, com o caso em concreto, sendo,nesse aspecto, ser espiritual, como bem adverteo ilustre filósofo Carlos N. Galves8, necessáriose faz que o juiz tenha a presteza, a sensibi-lidade para captá-lo. Imprescindível, nestediapasão, que cada vez mais desconfie daquelarazão limitada, porque ela se baseia emabstrações9, não autorizando a concretização darealidade, que, em última análise, está nopróprio indivíduo, e tão-somente será encon-trada por meio da intuição intelectual esentimental10, e da exaltação do amor, consi-derado como a pedra de toque na arguta liçãoproclamada pelo mestre Galeno Lacerda.

Talvez essa reflexão em paragens maissubjetivas, longe de solucionar o problemafilosófico da escolástica, possibilite o reconhe-cimento da deficiência na aplicabilidade einterpretação da lei ao caso concreto com quevêm labutando os operadores do direito. Atarefa não é fácil, pelo contrário, é de difícildesate, mas não é impossível, pois as coisasnão se mantêm inalteráveis11, de acordo com amáxima de Heráclito.

Avulta-se, desde logo, que não se está aquidefendendo, ou mesmo instigando, a correntedo direito alternativo, que dá atenção maior aoproblema do “sentimento de direito”. Muitopelo contrário, o que na verdade se pretende épropiciar o debate, no sentido de que enfren-temos minudentemente o estudo, por meio deuma releitura aprofundada das leis processuais,veículos de realização da justiça, à luz deprincípios e normas fundamentais que inspiramtoda a sua estrutura. E mais, uma releitura àluz do Direito e do Sistema que o anima.

Tudo isso de molde a evitar que o processopor si mesmo se conceba. A sentença é dopróprio Galeno Lacerda:

“Subverteu-se o meio em fim. Distor-ceram-se as consciências a tal ponto quese cria fazer justiça, impondo-se a rigidezda forma, sem olhos para os valoreshumanos em lide. (...) Insisto em dizerque o processo, sem o direito material,não é nada. O instrumento, desarticuladodo fim, não tem sentido”12.

Não é possível imaginarmos processo ouprocedimento judicial algum que não reconheçaa supremacia do direito, que se realiza, comosabido, precipuamente, pelo princípio dalegalidade, expressamente adotado pelo nossoordenamento13. Mas, não só o princípio dalegalidade assegura a supremacia do direito,mas os valores superiores igualmente inscul-pidos na Carta Magna, que diretamente sãojuridicizados ou positivados como objetivosúltimos do Estado de Direito14. Esses princípiosdispostos no preâmbulo são o ápice de toda aestrutura normativa da Constituição Federal edo Ordenamento, cabendo ao operador do

8 GALVES, Carlos Nicolau. Manual de Filosofiado Direito. Rio de Janeiro : Forense, 1995. p. 18.

9 É o que Aristóteles e São Tomás de Aquinochamam de realismo moderado.

10 Sobre a incidência da intuição na aplicaçãodo direito, confira-se o recente estudo realizado peloDr. Luiz Antonio Rizzato Nunes, A intuição e odireito : um novo caminho. Belo Horizonte : DelRey, 1997, em especial os capítulos 10 e 11.

11 Neste sentido, vide o erudito livro deBenjamim N. Cardoso, intitulado Natureza doprocesso e a evolução do direito, em especial a partesobre a Evolução do Direito, publicado pelaCompanhia Editora Nacional, com tradução de LedaBoechat Rodrigues, 1943 e Coleção Ajuris, n. 9,1978.

12 LACERDA, Galeno. O código e o formalismoprocessual. Ajuris, v. 28, p. 8.

13 Cf. art. 5º, I e LIV, da Constituição daRepública Federativa do Brasil vigente.

14 “Nós, representantes do povo brasileiro,reunidos em Assembléia Nacional Constituinte parainstituir um Estado Democrático, destinado aassegurar o exercício dos direitos sociais eindividuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar,o desenvolvimento, a igualdade e a justiça comovalores supremos de uma sociedade fraterna,pluralista e sem preconceitos, fundada na harmoniasocial e comprometida, na ordem interna einternacional, com a solução pacífica das contro-vérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, aseguinte Constituição da República Federativa doBrasil”, Preâmbulo da Constituição Federal. Vide,também, arts. 1º, 2º, 3º e 4º (Princípios Funda-mentais), e arts. 5º ao 17 (Direitos e GarantiasFundamentais) da CRFB.

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direito extrair deles o seu fundamento,funcionamento e finalidade. Só assim estaráassegurada a concretização da utópica demo-cracia.

Como sabido, o processo está preci-puamente vinculado à proteção constitucionaldos direitos individuais e coletivos pelo dueprocess of Law, igualmente de estrutura efundamento constitucional. A teoria de NiklasLuhmann sobre a “Legitimação Segundo oProcedimento” sustenta que o que há de novoé a acentuação da imprescindibilidade noDireito Constitucional e na Teoria da Consti-tuição de uma adequada dimensão proce-dimental, e isso, por três fundamentais motivos:

Em primeiro lugar, porque a dinamizaçãode um programa normativo constitucionalimplica a transformação da lei constitucionalem Law in Public Action, isto é, o processo derealização das normas constitucionais apontapara a necessidade de se trazer para a rua aprópria Constituição. Um instrumento consi-derado adequado para a conversão da Cons-tituição em ordem dinâmica de uma comu-nidade é o procedimento. Em segundo lugar, ademocratização do exercício do poder por meioda participação pressupõe que esta participaçãose traduza mediante sua canalização por meiode procedimentos justos, numa influênciaqualitativa do resultado de suas decisões. Daquideriva, em terceiro lugar, que a participaçãopor intermédio do procedimento, além de serum meio de comunicação ascendente edescendente entre governantes e cidadãos, éigualmente uma compensação e uma garantiados particulares e das comunidades perante astarefas crescentes de conformação política eeconômica, levadas a efeito por uma burocraciae tecnologia estatais sem qualquer transpa-rência democrática. É o conjunto de regras eatos constitucionais de um procedimentojuridicamente ordenado, por meio do qual sefiscaliza jurisdicionalmente a conformidadeconstitucional dos atos normativos. Tal comoo processo jurisdicional, em geral, também oDireito Processual Constitucional serve paragarantir a observância e realização de umdireito substantivo, o Direito Constitucional,por meio da definição de regras constitutivas deum item procedimental adequado ao controle eao exame das questões jurídico-constitucionais15.

Logo, é preciso que enfrentemos o problemaatual da processualística em sua verdadeira

complexidade e dimensão, passo esse que jáfoi dado por Galeno Lacerda, pelo sufrágio dodespacho saneador e da sistematização da teoriadas nulidades processuais, na sua famosamonografia intitulada “Despacho Saneador”,com efeito, identificando-as de maneira notável,sendo reconhecida como definitiva, e rece-bendo, como decorrência, a acolhida de E. D.Moniz de Aragão, para quem,

“foi Galeno Lacerda quem logroudesvendar o sistema adotado pela lei numtrabalho similar ao do garimpeiro nolocalizar e revelar a pedra preciosa”16.

Em que pese a admirável tarefa desvendadapelo culto mestre gaúcho, a insatisfação se fezpresente, invadindo a sua alma com o passardos anos. Diversamente da personagemhistórica Dom Quixote, surgido de pura eimaginável fantasia de um artista, o fidalgoincansável Galeno Lacerda continua vivo e éreal, abeberado em suprema harmonia deespírito e genialidade. Em sua longa jornadade mestre e ilustre professor, não poderia serde forma diversa, diuturnamente vem desven-dando a cada momento o verdadeiro e realsentido de todo processo, por meio de argutacondensação, síntese de amadurecimento dopensamento e do conhecimento, que vaigerando saudáveis conseqüências pelo decursodo tempo.

Com efeito, já em meados de 1976, intuiu apossibilidade de adequar todo o sistema legaldo código às realidades jurídicas diversas,proclamando, nessa ocasião, a importânciafundamental da adequação como princípiounitário e básico para justificar a autonomiacientífica de uma teoria geral do processo17.

A partir de então, iniciou-se um processode criação maravilhoso por parte do professorGaleno Lacerda. Ao ensejo de conferênciaproferida em comemoração dos dez anos devigência do atual Código de Processo Civil,sublinhou o notável processualista gaúcho aexistência de uma nova categoria, relativi-zadora de todas as nulidades processuais. A essacategoria, após exaustiva análise da evoluçãoda teoria das nulidades por ele sistematizada,denominou-a de sobredireito processual.

Os resultados que foram colhidos com essaintuitiva descoberta, como adiante se verá, foi

15 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Consti-tucional, p. 1035.

16 ARAGÃO, Moniz E. D. Comentários aoCódigo de Processo Civil. Forense, v. 2, p. 273.

17 LACERDA, O código como sistema legal deadequação do processo. Revista do Instituto dosAdvogados do Rio Grande do Sul, comemorativado cinqüentenário 1926-1976, Porto Alegre, p. 164.

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a superação de um exame meramente formal eexterno do processo. Como quem ergue umpano de fundo, Galeno Lacerda logroudesenrolar boa parcela dos dramas que dentroda alma do jurista habitam. A lição do notávelprocessualista e poeta18 uruguaio, mestre dopróprio Galeno Lacerda, renasce de formaeminentemente contemporânea, verbis:

“todos estamos habituados a manejar asformas do processo, seus prazos, suascondições, como se fossem fins em simesmos. Esse ramo do direito, pois, nossurge, em sua aparência, como a formasolene, como o cerimonial da Justiça. Aexperiência, contudo, nos ensina que issoé unicamente o invólucro do fenômeno.Por baixo das formas existe um conteúdoprofundo e angustioso, que necessitaaflorar à superfície”19.

Compreendido o processo como meio,instrumento, a sua estrutura e direção devemser apontadas a uma só finalidade, de molde aque se possibilite a busca da satisfação dosinteresses sociais e legítimos, mediante arealização da justiça, com o que restarájustificada a sua própria existência20. Pensarmosem processo ou procedimento desatrelado desseideal seria admitir-se a negativa de sua próprialegitimidade.

Como muito bem advertido por Couture, aidéia de processo tem pouco conteúdo, limita-sea si mesma, se não aponta para um fim; o fimdo processo é algo assim como o significadoteleológico do conceito; este não se refere só àestrutura, senão também à função, e esse fimnão é só o privado, senão também o público21:

“para el individuo y para la sociedad, elproceso es un instrumento de realizaciónde la justicia. Perdido ese contenido, susentido propio ha desaparecido. Cuandola iniquidad ha sustituído a la justicia,cuando el despotismo ha aplastado alindividuo, la paz social se ha perdido.Ejecución sin sentencia, sentencia sinproceso, proceso sin derecho y derechosin justicia, constituyen la tragedia deAntígona. La víctima de la iniquidadpuede, com el verso de fuego queSófocles pone en sus labios, entrar en latumba como en una cámara nupcial”22.

2. Sistema das nulidades processuaisO sistema das nulidades processuais, como

adotado pacificamente por todo nosso ordena-mento, teve sua origem na brilhante tese deconcurso de cátedra elaborada por GalenoLacerda, em meados de 1953.

A elaboração dessa teoria deveu-se àinquietude do gênio de Galeno Lacerda emsaber quando seria possível ou não sanar umvício ocorrente no processo. Iniciou o ilustremestre com o exame daquela distinção jáexistente no nosso Código Civil. Aprofundandoa análise no campo próprio do direito proces-sual, que concebe a existência de nulidaderelativa23, diferentemente do direito civil,necessitaria o preclaro jurista saber a distinçãoentre nulidade absoluta e nulidade relativa,considerando e aprofundando a análise de cadaum dos atos.

Para tanto, valendo-se do método indutivo,a partir dos fatos, em determinado momentoGaleno Lacerda viu que não era possíveldistinguir as nulidades examinando o ato emsi mesmo, mas sim descobrindo o motivo peloqual ele é viciado, ou seja, porque não obedece

18 Sobre a poesia de Couture, veja-se LaComarca y el mundo. Montevidéo : Biblioteca Alfar,1953, obra na qual revelou a verdadeira vocaçãoartística em sua plenitude, considerada um “mimoliterário” por Galeno Lacerda, a quem incumbiu adolorosa tarefa de prestar homenagem póstuma(Presença de Couture. Revista da Faculdade deDireito de Porto Alegre, v. 4, n. 1, 1958).

19 COUTURE, Eduardo J. Introdução ao estudodo processo civil. 3. ed. Rio de Janeiro : Forense,1995. p. 3.

20 A respeito da idéia e função essencial doprocesso, na qual lhe é emprestado sentido orgânicoe teleológico, ao ensejo da construção da teoria dainstituição, veja-se o maravilhoso ensaio dedicado aEnrico Redenti, desenvolvido por Couture, El procesocomo institución. In : Studi in Onore di Enrico Redenti.Milão : Giufré, 1951. v. 1, p. 351-373.

21 A existência de outra relação, que não sóaquela entre particulares, mas uma relação jurídicade direito público, entre Estado e particulares, foi

reconhecida por Oscar von Bülow, em sua memo-rável monografia intitulada Excepciones procesalesy presupuestos procesales. Tradução espanhola de1964. Buenos Aires, 1968.

22 COUTURE. El proceso como institucion. In :op. cit., p. 361 e 373.

23 A nulidade relativa é permitida no direitoprocessual porque ela é própria e necessária para alegitimidade do direito instrumental, meio para adescoberta e realização do direito material, nãosendo curial que a menor infração provocasse a mortede tão trabalhoso e caro instrumento. Nesse sentido,a ordem jurídica deve prover para que sempre quefor possível esse instrumento seja salvo, para cumprircom o seu escopo último. Daí porque a relativizaçãodas nulidades no processo.

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o preceito legal. Isto é, se há, como existe,distinção entre esses atos, a distinção resideúnica e exclusivamente na lei violada, na suanatureza.

Daí porque acentua o insigne mestregaúcho, que

“o que caracteriza o sistema das nuli-dades processuais é que elas se distin-guem em razão da natureza da normaviolada, em seu aspecto teleológico”24.

Neste sistema das nulidades processuais,como alhures referido, pacificamente aceito eadotado pela doutrina brasileira, os defeitos dosatos processuais podem acarretar três categoriasde vícios25: nulidade absoluta, nulidade relativae anulabilidade, sendo que, para Couture, anulidade relativa é a regra geral das nulidadesdos atos no processo civil26.

Para bem determiná-las, repise-se, misterque a distinção resida não nos atos em si, masna natureza da norma atingida. Assim, se anorma violada for de natureza imperativa,cogente, estaremos diante de um vício essencial,que poderá acarretar nulidade absoluta ounulidade relativa. Por outro lado, se a normaviolada for de natureza dispositiva, estaremosaí diante de um vício que, embora também sejaessencial, poderá acarretar anulabilidade. O atonasce válido, eficaz, mas possui defeito, vícioque se for apresentado oportunamente em juízopelo prejudicado, poderá ser tornado ineficaz,desconstituído.

A distinção entre as nulidades absolutas eas relativas vêm esteiada, igualmente, nanatureza da norma infringida e nos finstutelares da norma violada. Se a normatransgredida tiver natureza cogente e tutelarinteresse predominantemente público, anulidade poderá ser considerada absoluta.

“Vício dessa ordem deve ser declarado deofício, e qualquer das partes pode invocar”27.Se a norma violada tiver natureza cogente etutelar interesse predominantemente de parte,a nulidade será relativa e, por isso, o víciopoderia ser sanado.

O critério que distingue a nulidade relativada anulabilidade repousa, do mesmo modo, nanatureza da norma atacada. A nulidade relativa,como visto, viola norma de natureza cogenteque tutela interesse predominantemente departe. Já na anulabilidade, a norma violada éde natureza dispositiva e tutela interesseeminentemente de parte, permanecendo o atotão-somente na esfera atuante das partes, como que a sua anulação só ocorrerá mediantemanifestação do interessado, obstada a cogniçãooficiosa do juiz. O ato anulável nasce eficaz,mas viciado.

Essa teoria das nulidades até hoje tem sidoaplicada pelos operadores do direito, tamanhaa sua importância e eficácia prática, e deveráassim continuar a valer. A dificuldade que surgena aplicação dessa notável teoria dá-se quandoencontramos normas processuais que sesobrepõem a essas regras de vícios, comoadiante se verá. Para tanto, perfeita validadetem a aplicação adequada da categoria dosobredireito processual, proclamada por GalenoLacerda, a qual dá, precipuamente, prevalênciaàquelas normas que sufragam em si mesmasvalores superiores e, até mesmo, supremos.

3. Sobredireito processual como categoriarelativizadora das nulidades

Trinta anos após a edição da obra memo-rável do mestre Galeno Lacerda, por meio daqual conquistou cátedra na saudosa Faculdadede Direito de Porto Alegre, na qual o entãojovem processualista gaúcho desvendava econsolidava, como acima visto, uma verdadeirateoria das nulidades na seara do direitoprocessual e sufragava o despacho saneador,motivos de entusiasmos e aplausos por toda acomunidade jurídica, ao ensejo de conferênciaproferida em comemoração ao décimo aniver-sário do atual Código de Processo Civilbrasileiro, o eminente professor assinalou queo capítulo mais importante de um código deprocesso encontra-se nos preceitos relativiza-dores das nulidades28.24 LACERDA. Despacho saneador. 3. ed. Porto

Alegre : Fabris, 1990. p. 72.25 Sobre as irregularidades, apontadas pelos

processualistas como uma quarta espécie de defeitodos atos processuais, ver o estudo realizado porAntônio Janyr Dall’agnol Júnior, Invalidadesprocessuais. Porto Alegre : Lejur, 1989.

26 COUTURE. Fundamentos del derechoprocessal civil. Buenos Aires : Depalma, 1988. n.252, p. 391.

27 LACERDA, Despacho saneador, p. 72.

28 Quem o diz é o professor Marcel Storme,relator-geral do tema sobre “O Ativismo do Juiz”,no IX Congresso Mundial de Direito Judiciário,realizado em agosto de 1991 em Portugal, verbis:“C’est d’ailleurs au droit judiciaire, celle qui ordonele juge à considérer un acte comme valide, dès quecet acte ait atteint son objectif (art. 244 CodeBrésilien). É, aliás, ao direito judiciário brasileiroque devemos a mais bela regra de direito judiciário,aquela que ordena ao juiz considerar um ato como

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Isso porque, continua Galeno Lacerda,“eles é que asseguram ao processocumprir sua missão sem transformar-seem fim em si mesmo, eles é que olibertam do contra-senso de desvirtuar-se em estorvo da justiça”29.

Falarmos de preceitos relativizadores dasnulidades processuais, como de início colocado,de um modo geral, traduz imediatamente a idéiade processo como instrumento de definição erealização da justiça. Processo como instru-mento para o acesso à ordem jurídica justa, naexpressiva e percuciente síntese de KazuoWatanabe e Cândido Rangel Dinamarco30.

Em tempos atuais, onde predominamsaudáveis “ondas renovatórias” na vida dodireito processual, corroboradas, de certo modo,pela novíssima reforma do Código de ProcessoCivil, cujo espírito que a imbuiu foi endereçadoa quatro finalidades específicas31, em evidenteharmonização e pertinência o breve ensaio oraesposado, assumindo, como se vê, altarelevância no imenso e fundamental âmbito dodireito processual, longe de restringir-se a meratertúlia acadêmica.

Aos preceitos relativizadores das nulidadesprocessuais, adotado, analogicamente, conceitode Ernst Zitelmann para definir as normas dedireito internacional privado – direito sobre-direito32 –, difundido por Pontes de Miranda,Galeno Lacerda inspiradamente denominou-osde sobredireito processual, porque, segundosufraga,

“se sobrepõem às demais, por interessepúblico eminente, condicionando-lhes,sempre que possível, a imperatividade”33.

Importante avultarmos o momento no qualocorreu a descoberta do sobredireito processualpor Galeno Lacerda. A esta ocasião, o mentorda teoria das nulidades processuais adotada emnosso país teve essa teoria colocada à prova, aoensejo da análise concreta de um caso real, aotempo em que atuava com invulgar brilhan-tismo como desembargador do Tribunal deJustiça do Estado do Rio Grande do Sul. Aexperiência de Galeno Lacerda como magis-trado foi maravilhosa, sendo considerada porele mesmo como a mais rica e importanteatividade de sua vida.

Tratava-se de agravo de instrumento emação de cobrança de honorários médicos, contradecisão do juiz monocrático que rejeitou apreliminar de violação ao disposto no art. 275,I e II, do Código de Processo Civil, quedetermina a observância do rito sumaríssimo.Propugnou o agravante, a ocorrência denulidade absoluta, uma vez que a ação decobrança de honorários deveria seguir o ritosumaríssimo: houve uma infração ao rito, quetutela interesse público, e não de parte. Paratanto, seus argumentos foram centrados nadoutrina do próprio Galeno Lacerda, esposadaem seu despacho saneador, que, por uma dessasvicissitudes da vida, acabou sendo o magistradoeleito para conhecimento e julgamento do casoreferido.

Da valoração adequada da espécie, GalenoLacerda constatou que era necessário modificaro anteriormente sustentado, tendo, nesse caso,reconhecido seu próprio erro, diante de umconflito normativo no próprio direito proces-sual. Para resolver esse conflito, aplicou regramais alta existente no próprio código, no casovertente a do art. 250 e seu parágrafo único, ea do art. 154, ambos do Código de ProcessoCivil34.

Barbosa Moreira, igualmente, sustenta queo processo não pode ser forçosamente anulado,caso se tenha instaurado como ordinário, emhipótese de cabimento do rito sumaríssimo. Oaproveitamento dos atos deverá ocorrer sempreque a utilização do rito inadequado não houver

válido, desde que tenha atingido seu objetivo (art.244 do Código brasileiro). Relatórios Gerais, I, p.405". LACERDA, Livro de estudos jurídicos. Riode Janeiro : Instituto de Estudos Jurídicos, v. 5, p. 2.

29 LACERDA, O código e o formalismoprocessual, p. 11.

30 Este o sentido do princípio da instru-mentalidade visto sob o prisma positivo, ou seja,“como instrumento eficaz de acesso à ordem jurídicajusta, apto a realizar os seus verdadeiros escoposjurídicos, políticos e sociais”, cf. DINAMARCO,Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo.São Paulo : Revista dos Tribunais, 1987. p. 450-451.

31 Segundo Dinamarco, são elas: a) defor-malização e agilização; b) redução de tempo deespera pela tutela jurisdicional; c) aprimoramentoda qualidade dos julgamentos e d) efetividade datutela jurisdicional. (Nasce um novo processo civil,in: Reforma do Código de Processo Civil, p. 7,Saraiva, 1996).

32 Pontes de Miranda considerava o DireitoInternacional Privado como verdadeiro sobredireito,porque é o ramo do direito que traça as regras parasolução de conflitos normativos no espaço, entre alei de um país e a lei de outro.

33 LACERDA, O código e o formalismoprocessual, p. 11.

34 Em outra oportunidade Galeno Lacerdadecidiu da mesma forma, consoante Agravo deInstrumento n. 585008816, julgado em 21 de marçode 1985, em que foi relator.

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causado prejuízo à defesa35. Do mesmo modo,Pimenta Bueno, para quem não há nulidade,tendo em vista que o processo tem por fimconhecer a verdade36.

Vejamos a síntese genial de Galeno Lacerda,acolhida à unanimidade pelos demais inte-grantes do colegiado:

“Possibilidade de conversão doprocedimento sumaríssimo em ordinário.O interesse público na instrumentalidadedo processo relativiza, em regra, asnulidades processuais. Aplicação dosarts. 250, parágrafo único, e 154 do CPC,e do art. 1.218 do CC.“...os valores ou os interesses no mundodo Direito não pairam isolados nouniverso das abstrações; antes, atuam, nodinamismo e na dialética real, empermanente conflito com outros valorese interesses. Certa, sem dúvida, apresença de interesse público na deter-minação do rito do processo. Mas, acimadele, ergue-se outro interesse público demaior relevância: o de que o processosirva, como instrumento, à justiçahumana e concreta, a que se reduz, naverdade, sua única e fundamental razãode ser.

Essa natureza de meio a serviço deum interesse público mais alto possui onecessário e indispensável condão derelativizar a maior parte das normasimperativas processuais e, por conse-guinte, as nulidades resultantes de suainfração.

Por este motivo, o capítulo maisimportante de um Código de Processomoderno situa-se nas normas relativi-zadoras dessas nulidades. Elas é quegarantem ao processo cumprir suamissão sem transformar-se em fim emsi mesmo, desvirtuando-se, em contra-senso, em estorvo da Justiça. Se permi-tem o neologismo, as regras sobrenulidades integram-se no ‘Superdireito’(‘sic’, Sobredireito) processual porque sesobrepõem às demais, por interessepúblico eminente, condicionando-lhes,sempre que possível, a imperatividade”37.

Em função desse caso concreto, GalenoLacerda descobriu o sobredireito processual. Osobredireito processual, como concebido peloseu intuidor, é a aplicação de regras e princípiosmaiores que podem revogar ou suprimir aincidência de regras menores. Para tanto,deverá o operador do direito extrair a verdadeirahierarquia dos interesses tutelados pelos textosde um Código, desvendando o sentido profundoe vital de todo o sistema que o inspira e sustenta.

Por isso, às idéias de finalidade e instrumen-talidade das formas dos atos processuais, nãose erra ao se permitir uma releitura dacominação de nulidade absoluta àqueles víciosessenciais insculpidos em nosso código, bemcomo ao se exigir a adequação como princípiofundamental e unitário do processo, a justificar,até mesmo, a autonomia científica de uma teoriageral do processo, como bem proclama GalenoLacerda38.

Iniludivelmente, a natureza de instrumentoadequado de declaração e realização do direitomaterial, logo, na sua função informativa deresolução de conflitos de interesses genéricos,está a buscar o ideal da efetividade da tutelajurisdicional, calcado na tríplice identidade dodireito tutelado, qual seja, subjetiva, objetiva eteleológica.

Os atos processuais, de regra, independemde forma, salvo exceção prevista em lei, comoacentua o art. 154 do Código de Processo Civilem vigência no Brasil. Trata-se, aqui, deverdadeiro princípio da relevância relativa dasformas legais na qual tem especial aplica-bilidade a liberdade das formas, afastando,como corolário, o princípio da legalidadeformal. Por outro lado, o processo é regido pelanecessidade de estreita obervância das regraspertinentes ao seu procedimento. Dessamaneira, prima facie, aquele ato processual quefor praticado em ofensa à forma taxativa eexpressamente disposta em lei, ou aquele atoque atentar contra as regras procedimentais,será havido como nulo, portador de vício ditoessencial, que poderá acarretar nulidadeabsoluta ou relativa.

Entretanto, vale dizer, o que ocasionará oreconhecimento de nulidade ou não, desvin-culado está dessas normas que determinam a

35 O Novo Processo Civil Brasileiro. 3. ed. I/159, parágrafo 13, n. 2, citado por Galeno Lacerda,em RJTJRS, n. 102, p. 286.

36 Apontamento sobre as formalidades doprocesso civil. 3. ed. 1911. p. 170, nota 29, citadopor Galeno Lacerda, em RJTJRS, n. 102, p. 286.

37 LACERDA. RJTJRS, n. 102, p. 285-286.

38 LACERDA. O código como sistema legal deadequação do processo. Revista do IARGS,Comemorativa do Cinqüentenário 1926-1976, p.163-170. Em estudo mais recente, veja-se os Comentáriosao CPC. 6. ed. Rio de Janeiro : Forense, 1994. v. 8,t. 1, p. 18-20.

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forma dos atos e a obediência às regrasprocedimentais. Embora toda doutrina entendaque a nulidade absoluta, por ensejar vício maior,afeta o interesse público, dispensando, por isso,a constatação de prejuízo para ser declarada39,enquanto na nulidade relativa o prejuízo devevir cabalmente reconhecido, o fato é que assimnão pode ser pacificamente aceito, ante aconstrução de uma estrutura teleológica, em queos valores e a finalidade da norma sãoreconhecidos como supremos. Como muito bemproclamado por Galeno Lacerda, o equívocoque cometem os que enchem a boca com ointeresse público reside principalmente no fatode que na compreensão desse conceito,altamente abstrato e genérico, daqueles tidoscomo indeterminados, não existe apenas uminteresse – o público –, como poderia se supor,mas nela se situa, ao contrário, uma extensãoenorme de interesses diferenciados, tão amplaquanto aquela que diversifica os interessesprivados40.

Com efeito, se embora praticados dessamaneira, supostamente havida como viciada,atingirem a sua finalidade, não causandoprejuízo algum, reputar-se-ão válidos elegítimos. Isso porque, sabendo-se qual averdadeira e única finalidade do processo, bemcomo valendo-se de uma visão sistemática detodo o ordenamento, eventual atentado contraas suas formas e seu procedimento, nenhumvício acarretará, uma vez alcançado o escopoúltimo a que ele se destina: servir à realizaçãodo direito material e da justiça. Lembra AdolfSchöncke que o processo “é um remédiopacificador destinado a restabelecer entre osparticulares a paz e, com isso, manter a dacomunidade”41.

Nos ordenamentos jurídicos hodiernosnão só vige, de modo geral, o princípio dainstrumentalidade das formas, como tambémos princípios da convalidação, da conser-vação, da causalidade, do interesse e daeconomia processual, todos destinados arelativizar o assim considerado desaten-dimento à forma em sentido estrito, sempreque atinja sua finalidade essencial42. Com

razão, o art. 154 do CPC43, bem como outrosdispositivos do mesmo corte, no sentido de darprevalência à finalidade, ou seja, ao aspectoteleológico, como bem demonstrado pelo Dr.Carlos Alberto Álvaro de Oliveira,

“impedem o fenômeno das formasresiduais, as formas que teimam empermanecer apesar da perda de sentido eobstaculizam, do mesmo modo, suadegeneração, ou seja, sua extensão atermos não previstos inicialmente. Varre-se, assim, o fetichismo da forma,eliminando-se as imprestáveis, mantidastão-somente as que tenham finalidadeatual ou sirvam à garantia das partes”44.

Evidencia-se assim, ao longo da história, aminimização da questão que concerne à formaem sentido estrito, vigorando desde muito, oprincípio de que o aspecto externo deve cederao conteúdo do ato processual, predominando,destarte, princípios relativizadores dasnulidades processuais como categorias funda-mentais para a definição da justiça e do direito45.

Tomemos um exemplo, na tentativa depossibilitar a fácil compreensão desse funda-mental e importante tema. O art. 82 do Códigode Processo Civil determina em quais ashipóteses deve o Ministério Público, comocustos legis, intervir no processo46.

39 É o que a doutrina entende por presunção deprejuízo das nulidades absolutas.

40 LACERDA. O código e o formalismoprocessual, p. 10.

41 SCHÖNCKE, Adolf. Derecho Procesal Civil.Tradução espanhola da 5. ed. Alemã. Barcelona :Bosch, 1950. Parágrafo 1, p. 15.

42 É o professor Carlos Alberto Álvaro deOliveira quem nos traz a definição magistral daessência da finalidade insculpida por Heilbut em

1886, verbis: “Nem todo descumprimento de umaforma determinada deve ter como conseqüência aineficácia do ato processual realizado, pelo contráriohaverá ineficácia apenas e na medida em que, coma desatenção da forma, for malograda a própriaobtenção da finalidade para cuja segurança a formafoi estabelecida”, em Do formalismo no processocivil. Tese de Doutoramento, orientada peloprofessor Dr. José Rogério Cruz e Tucci, na USP,defendida em 12-12-96, nota 67, p. 282, que lherendeu nota dez, com direito a lauda.

43 OLIVEIRA. BIDART, Gelsi. In: La huma-nización del proceso, Revista de Processo, 1978, p.105-151, esp. 150-151, n. 9, v. 3, invocando o nossoart. 154 do CPC, estabelece como orientaçãohumanizadora do processo temperar o formalismoprocessual com o princípio da finalidade”. Tese deDoutoramento, nota 70, p. 283.

44 OLIVEIRA, Tese de Doutoramento. p. 283-284.

45 Cf. percuciente conclusão de OLIVEIRA, op.cit., item 41.5.4, p. 312.

46 A idéia do exemplo não é nossa. Esta já seencontrava em Galeno Lacerda, Despacho Saneador.p. 131. Ver também o trabalho de Dall’agnol Júnior,publicado na Revista da Ajuris n. 24, p. 196,intitulado Nulidades do processo civil por falta deintimação do MP, onde o ilustre jurista defende arelativização de referida nulidade.

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Suponhamos que em uma ação de nulidadede casamento, digamos com fundamento no art.183, VI (são impedidas de contrair o matri-mônio as pessoas casadas), do Código Civil, odemandante, para essa ação legitimado, aopropor a demanda, não propugne pela inti-mação do Ministério Público para que acom-panhe o feito. Segundo dispõem os arts. 84 e246 do CPC, seria nulo o processo, anteinfração à norma cogente, que tutela interessepredominantemente público. Dizemos predo-minantemente público, haja vista que as partesigualmente têm interesse no justo desate dacontrovérsia. Vício dessa ordem, na qual existecominação expressa de nulidade, por serinsanável, acarretaria a imediata nulidade dofeito, podendo ser ventilada por qualquer daspartes, representante legal do MinistérioPúblico ou pelo próprio juiz.

No entanto, hipoteticamente, nem a partedemandada, nem o juiz verificaram essaomissão, e, por via de conseqüência, levaram atermo o processo que visava à declaração danulidade do casamento. No julgado, conje-turamos a improcedência da demanda proposta,uma vez que o cônjuge demandado, ao contráriodo que sustentava o sujeito ativo da ação, nãoera casado, e sim divorciado, consoante logroudemonstrar com a produção de cópia dasentença de divórcio transitada em julgado.Qual haverá de ser, nesse caso, a providência aser tomada, verificada, ou até mesmo suscitadaa nulidade ocorrente pela falta de intervençãodo órgão ministerial?

Primeiramente, por óbvio, ao juiz não édada a oportunidade para suscitá-la, uma vezque lhe falta jurisdição, ante a lavratura da cartasentencial. De plano, igualmente, afastamos odireito do demandante de suscitar referido vício,uma vez que foi ele próprio quem deu causa ànulidade, embora presente o seu prejuízo coma improcedência da ação e certa a indispo-nibilidade do direito em concreto. Logo, tão-somente ao órgão do Ministério Público e àparte demandada é que se lhes faculta aargüição de eventual nulidade.

Feita essa breve ressalva, cumpre agoraperquirirmos sobre a pertinência ou não dedeclararmos a nulidade do feito e, com isso,procedermos na renovação de todo o proces-sado, que fatalmente seria julgado da mesmaforma, ou seja, no sentido de declarar aimprocedência da ação, ante a prova cabal dodivórcio.

Pode parecer que, à primeira vista, anulidade cominada tenha, inevitavelmente, o

caráter obrigatório de determinar a insana-bilidade do processado, com a conseqüenteretificação e repetição dos atos processuaisviciados. Os mais afoitos, sob o pálio de umainterpretação meramente literal e gramatical47

do dispositivo legal e isolada do resto dosistema, à evidência, declarariam a nulidadeabsoluta do feito. Mas assim não poderiadecorrer, uma vez interpretada adequadamentea disposição que comina a nulidade absoluta,em conjugação e harmonia com o disposto legaldos parágrafos 1º e 2º dos arts. 249 e 244,ambos do CPC, que, respectivamente, funda-mentam os princípios do não-prejuízo, doaproveitamento e da finalidade, informadoresdo princípio da instrumentalidade das formas.

Embora o exemplo referido trate de vícioabsoluto, em que há cominação expressa denulidade, tudo nos conduz a acreditar que asua relativização, diante do caso concreto,poderá tomar contornos de efetividade. Tudodependerá do caso em particular, que estará amerecer a tríplice adequação das normasprocessuais ao direito material, daí o porquêda necessidade imperiosa de aproximação eapaixonamento do juiz à causa.

A se possibilitar a declaração da nulidadeno exemplo acima, por conseqüência tendo deser renovado todo o processo, estar-se-áatentando contra o princípio da economiaprocessual, para falarmos do menos. Aexigência na renovação do processo, emhomenagem tão-somente à sacralidade daforma, ou seja, o processo por si mesmo, comodecorreria obviamente, não se admite emhipótese alguma.

Em sentido similar, o exemplo dado peloemérito Professor Ovídio Araújo Baptista daSilva, no qual uma vez intervindo o repre-

47 A interpretação literal e gramatical, semdúvida, é considerada a mais pobre das inter-pretações. Conforme refere o gênio de CarlosMaximiliano, “ela oferece o encanto da simpli-cidade; fica ao alcance de todos; impressionaagradavelmente os indoutos, e convence os própriosletrados não familiarizados com a ciência do Direito.Empresta-lhe menor valor o profissional de boaescola, verdadeiro jurisconsulto. A forma é sempredefeituosa como expressão do pensamento; e é esteque se deve buscar. Em vez de se ater à letra,aprofunde-se a investigação, procure-se revelar todoo conteúdo; o sentido e o alcance do dispositivo.Scire leges non est verba earum tenere; sed vim adpotestatem: já ensinara Celso (Digesto, De legibus,frag. 17)”, Comentários à Constituíção de 1891. 1.ed. p. 95.

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sentante legal do Ministério Público, ainda queem segunda instância, ao ensejo de seu parecer,a nulidade, ante a ausência de sua intimaçãono processo de primeiro grau, poderá sersanada, não sendo raros os modelos de decisãonos quais os tribunais têm relevado este vício48.

Tomemos outro exemplo, a fim de bem fixaro alcance e importância efetiva deste mara-vilhoso instituto, que, adequadamente aplicado,logrará acertar e realizar a justiça e o direitoem concreto. Suponhamos que em uma ação49

o autor produza um documento redigido emlíngua espanhola, sem a tradução que lhe exigeo art. 157 do Código de Processo Civil, ou seja,em vernáculo, firmada por tradutor juramen-tado. Esse documento, hipoteticamente, seriaa cópia de alguns dispositivos do Código Civiluruguaio. Juntamente com ele produziu o autorcópia de obra doutrinária idônea, na qual vêmreproduzidos para o idioma português osdispositivos suscitados. O réu, por ser uruguaio,não tem dificuldade alguma na compreensão eleitura do texto, nem ventila a exigência legaldo art. 157 do nosso CPC. O magistrado, porsua vez, domina com perfeição o idiomaespanhol. Qual seria o procedimento a seradotado no caso concreto? Deveria o juiz, à luzdo disposto no art. 157 do CPC, exigir atradução do texto colacionado? Poderia serdeclarado nulo o processo a partir da juntadadesse documento, tendo em vista a não-traduçãopara o vernáculo, ante frontal desrespeito aodisposto no art. 157 do CPC, conseqüentementeà legalização documental?

Temos que a solução, antes de mais nada,não aceita generalizações. O juiz deveráexaminar caso a caso, sopesando a prejudi-cialidade e finalidade do ato perpetrado. Na

hipótese vertente, acreditamos que nenhumprejuízo acarretará a aceitação do texto legaluruguaio sem a tradução devida para overnáculo. Primeiro porque o espanhol, comosabido, se assemelha muito ao nosso idioma,nesse sentido, não ensejando dificuldadealguma na sua compreensão 50. Segundo,porque, tanto o autor, como o réu e o juiz,conhecem perfeitamente o espanhol, dispen-sando qualquer tradução para bem compre-enderem o texto de lei. Terceiro, porque o autortrouxe à colação obra doutrinária idônea, queafasta por completo qualquer dúvida natradução do texto. Por último, entendemos quepor ser dirigida ao magistrado a produção dodocumento, a ele cumpre reconhecer ocumprimento da finalidade da prova ou não.

Veja-se que o exemplo acima trata de vícioessencial. No entanto, por não cominar odispositivo legal do art. 157 pena de nulidade,consoante bem disposto no art. 244, ambos doCPC, o juiz deverá “considerar válido o ato se,realizado de outro modo, lhe alcançar afinalidade”51. Logo, perfeitamente autorizadoao juiz aceitar o texto legal sem a traduçãorespectiva, uma vez preenchida a finalidadeessencial do ato, que, igualmente, não acarretouqualquer prejuízo para as partes. Vale ressalvarque em assim procedendo não estaria omagistrado desobedecendo, ou mesmo negandovigência ao disposto no art. 157 do CPC. Muitopelo contrário, estaria dando prevalência ànorma geral e superior do art. 154 e, especial-mente, a do art. 244, ambos do CPC, que, emsíntese, dão especial relevância à necessidadetécnica de se lograr ao fim ou objetivo últimodo próprio ato.

O problema da forma dos atos processuaissem dúvida é dos mais importantes na seara dodireito processual52. Àqueles que imputam aorigor da forma as graves mazelas do processo,ergue-se a opinião daqueles que crêem que a

48 SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Curso deprocesso civil. 3. ed. Porto Alegre, 1996. p. 179.

49 Sobre o conceito de ação, que não é objetodeste ensaio, vejam-se, entre nós, os estudos eruditosde LACERDA, Ensaio de uma teoria eclética daação. Revista da Faculdade de Direito de PortoAlegre, p. 89-94; 1958, SILVA, Direito subjetivo,pretensão de Direito Material e ação, AJURIS, n.29, p. 99-126, 1983, e Jurisdição e execução natradição romano-canônica. São Paulo : Revista dosTribunais, 1996, especialmente p. 161-180. Naliteratura estrangeira podem ser encontradas diversasobras a esse respeito, como, por exemplo em Wach,Couture, Windscheid e Muther, Chiovenda.Sugerimos, em especial para a compreensão da teoriaadotada pelo nosso sistema, a de Enrico TillioLiebman, Concepto de la acción civil. Revista deEstudios Jurídicos y Sociales, Montevidéo : v. 13,n. 70, p. 217-242, 1940.

50 A esse respeito, no sentido de dispensar atradução de documentos redigidos em línguaespanhola, já existe jurisprudência: Julgados doTARS, n. 112, p. 176.

51 Nosso código de processo só em poucos casosexpressamente comina pena de nulidade, como,exempli gratia: arts. 11, parágrafo único, 13, I, 113,parágrafo 2º, 214, 236, parágrafo 1º, 246, 247, 618,1.074, 1.100 e 1.105, consoante bem pinçado peloprofessor OLIVEIRA, Tese de Doutoramento p. 170-171.

52 Para estudo mais profundo, veja-se a brilhantee inédita tese de doutoramento do professorOLIVEIRA, Do formalismo no processo civil.

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falta de forma engendraria confusão e incerteza.Essa afirmação, por vezes, é identificada como formalismo. Entretanto, vale dizer, a certezaé precisamente a de que existem fins maisrelevantes ao prosseguimento dinâmico doprocesso.

O gênio de Carlos Alberto Álvaro deOliveira sustenta eruditamente que

“a forma investe-se da tarefa de indicaras fronteiras para o começo e o fim doprocesso, circunscrever o material a serformado, estabelecer dentro de quaislimites devem cooperar e agir as pessoasatuantes no processo para o seu desen-volvimento”,

enfim, parafraseando Rudolf von Jhering,“a forma é a inimiga jurada do arbítrio e irmãgêmea da liberdade”53.

Daí por que acudir imediatamente aspalavras com que Montesquieu inaugurou oLivro 29, Do Espírito das Leis: “As forma-lidades da justiça são necessárias à liberdade”54.Esse é o real sentido e finalidade da forma, quenão pode e não deve ser deturpado, sob penade erigirmos a forma como valor único em simesmo.

A esse respeito, as regras de sobredireitoprocessual, nitidamente antiformalistas,quando ordenam ao juiz considerar válido oato, desde que tenha atingido o seu objetivoprecípuo (art. 244 do CPC); quando deter-minam a aceitação do ato, embora viciado, seinexistente prejuízo à parte (art. 249, parágrafo1º, do CPC), à evidência, estão a reconhecer arelativização dos vícios ocorrentes por infraçãoa normas de natureza imperativa, que visamtutelar interesse público55.

Por aqui já se verifica que a categoria dosobredireito processual deve ser adequadamenteaplicada quando ocorrente suposta nulidadeabsoluta, pois, no que pertine à nulidade relativae à anulabilidade, estas podem de todo sersanadas. E é o próprio Ovídio Baptista quemconclui no sentido de que todo o sistema denulidades dos atos processuais está prima-riamente dominado por um conjunto deprincípios específicos e peculiares ao direitoprocessual, gerando um certo relativismo detodas as regras sob as quais se pretendaclassificar os defeitos dos atos processuais e suasconseqüências56, confortando, à saciedade, aorientação alhures lançada por Galeno Lacerda.

Por esse motivo, o juiz de direito ao lidarcom a matéria-prima no exercício de suafunção, ou seja, com conflitos de interessesgerais e universais, deve validar e aprofundara sua efetiva participação com o caso real postoao seu desate, para que, uma vez abstraída alegítima hierarquia de interesses tutelados pelostextos de um código de processo, seja preser-vado o sentido fundamental e vital de todo osistema que o anima.

“Neste sentido, tratando-se de umCódigo de Processo, o interesse públicosuperior, que o inspira e justifica, é quese preste ele a meio eficaz para definiçãoe realização concreta do direito material.Não há outro interesse público mais alto,para o processo, de que o de cumprir suadestinação de veículo, de instrumento deintegração da ordem jurídica mediantea concretização imperativa do direitomaterial”57.

Além desses dispositivos legais, queencerram evidentemente o caráter de normasde sobredireito processual, Galeno Lacerdaconstatou a existência de alguns outros. Nessesentido, o disposto no parágrafo único do art.250 do CPC, que determina que sejam apro-veitados os atos praticados, desde que nãoresulte prejuízo à defesa, apesar do erro naforma do procedimento58. Tudo em homenagem

53 Ibidem. p. 8-9.54 Cf. MONTESQUIEU. Do Espírito das Leis.

São Paulo : Abril Cultural, 1973. p. 469.55 “Quando o Código, no art. 244, ordena ao juiz

que considere válido o ato, apesar da nulidade, sealcançado o objetivo; quando, no art. 249, parágrafo1º, determina que, apesar de nulo, o ato não serárepetido nem suprida a falta, se inexistente prejuízoà parte, estamos em presença, na verdade, de normasprocessuais superiores que eliminam os efeitos legaisda inobservância de dispositivos inferiores, comose o Código, em outras palavras, estabelecesse oseguinte silogismo: embora nulo o ato, porquedescumpriu prescrição imperativa imposta peloartigo número tal, a regra mais alta reguladora dasnulidades impede a declaração do vício porque nãohouve prejuízo; porque, a resguardar a instru-mentalidade do processo, o fim foi atingido. Isto é,a cogência da norma inferior cessa”, cf. LACERDA,Livro de estudos jurídicos, p. 2, e O código e oformalismo processual, p. 11.

56 SILVA, op. cit., p. 179.57 LACERDA, O código e o formalismo proces-

sual, p. 10.58 A jurisprudência tem entendido no mesmo

sentido, embora não vislumbrando a prevalência deuma norma de sobredireito processual. No sentidode que o processo deva ser adaptado a todo tempo,com o aproveitamento dos atos praticados, quandonão tiver havido prejuízo, v. RT, 487/138, 541/189,610/101, 625/74, e Julgados do TARS, 87/368, 88/138, 110/344. Em caso de não haver ocorrência de

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ao preceito mais alto da instrumentalidade dasformas e do processo, que se sobrepõe aqualquer outra norma. É o caso examinado pelopróprio Galeno Lacerda, por ocasião dojulgamento da apelação cível nº 583048061,cuja ementa vem assim noticiada, verbis;

“Pretensão possessória, encaminhadasob forma equivocada de medida cautelarinominada de imissão de posse. Consti-tuto possessório. Efeitos. Confere eleação possessória ao adquirente, e não deimissão na posse. Possibilidade em tesede cautelas satisfativas, não, porém, naespécie. Aplicação do art. 250 do CPC,como regra de sobredireito processual, afim de a forma processual errôneaadaptar-se à pretensão possessóriamanifestada. Anulação do processo paratal fim, a partir do despacho inicial e dacitação inclusive” (in RJTJRS 108/365).

Também o do art. 462 do CPC59, aodeterminar que

“se, depois da propositura da ação, algumfato constitutivo, modificativo ouextintivo do direito influir no julgamentoda lide, caberá ao Juiz tomá-lo emconsideração, de ofício ou a requeri-mento da parte, no momento de proferira sentença”,

atribuindo, portanto, a idéia da relevância dosfatos supervenientes, em repúdio ao formalismoexcessivo, a fim de, com os olhos voltados àeconomia das partes e à necessidade deeliminar-se o litígio com presteza, possa seraproveitado o já instaurado para fazer a justiçaulterior ao momento inicial60.

Por fim, a receber por parte do mestre anatureza de normas fecundas de flexibilidade,se sobrepõem às demais os parágrafos 1º e 2º,do art. 515 do CPC, no sentido de que seja

ampliado o efeito devolutivo da apelação, alémdos limites da sentença, a todas as questõessuscitadas e discutidas no processo, ainda quenão as tenha julgado por inteiro. Do mesmomodo, o disposto no art. 517 do CPC, queautoriza que sejam suscitadas na apelação asquestões de fato, se a parte provar que deixoude fazê-lo por motivo de força maior61.

Com a nova redação trazida pela Lei nº8.950/94, entendemos que o art. 516 do CPCigualmente encerra a condição privilegiada deprevalência sobre as demais regras comuns, aodispor que ficarão submetidas ao segundo grauo conhecimento das questões anteriores àsentença, ainda não decididas. Nesse particular,importante o estudo daquelas questões que,embora decididas em primeiro grau, ensejamo dever de cognição oficiosa pelo órgãoencarregado de prestar a jurisdição, como, porexemplo, as referentes às condições da ação eaos pressupostos processuais62.

Existe ainda outra regra de sobredireitoprocessual, bem pinçada pelo processualistaDarci Guimarães Ribeiro, e de enorme utilidadepara a prática forense: é a regra insculpida noparágrafo único do art. 245 do CPC, quereconhece a não-ocorrência de preclusão parao juiz no conhecimento de nulidade dos atos.Segundo sustenta o ilustre jurista, essa regradeve ser interpretada de molde a alcançar,igualmente, as partes, no que pertine àpossibilidade de ser suscitada a nulidaderelativa, ainda que a destempo. Isso porque,continua ele, seria um contra-senso lógicoadmitir-se que o juiz conhecesse de ofício danulidade (parágrafo único do art. 245) e a partenão pudesse suscitá-la (caput do art. 245),porque deixou passar a oportunidade.

Com efeito, sendo matéria de cogniçãooficiosa por parte do juiz, a sua omissãoensejaria a argüição pela parte, que o provocariapara agir de ofício. Logo, a lei ao mesmo tempoem que reconhece a preclusão contra a parte,autoriza que seja ela superada pela imperiosanecessidade de conhecimento por parte do juiz,que poderá, se esse eventualmente for omisso,acarretar a provocação pela própria parte, a fimde que o magistrado da nulidade conheça. Ainterpretação meramente literal desse dispo-sitivo legal, à evidência, constituiria, atémesmo, negativa da prestação jurisdicional.

prejuízo à parte adversa, embora tenha preferido aparte autora o procedimento ordinário ao sumário,v. REsp. 11.200-SP e Resp. 13.573-SP. Cf. NegrãoTheotonio. Código de Processo Civil. 28. ed.,Saraiva, 1997. nota 4 ao art. 250, p. 231.

59 Sobre a aplicação do art. 462 do CPC, videjurisprudência do próprio LACERDA, em ApelaçãoCível n. 587026493, da 3. Câmara Cível do Tribunalde Justiça do Rio Grande do Sul, que faz referênciaa outras decisões, insertas na RJTJRS, 96/398, eRJTJSP, 74/183. Vide, igualmente, o R. Esp. n.10.398-SP, da lavra do Ministro Athos GusmãoCarneiro, inserto na LEX – JSTJ e TRF, n. 37, p.126-131.

60 LACERDA, O código e o formalismoprocessual, p. 12-13.

61 Ibidem, p. 13.62 Sobre a obrigação precípua do juiz de perquirir

dos pressupostos que legitimam o direito de ação,recomendamos a leitura da obra de LACERDA,Despacho Saneador, especialmente no capítuloreferente aos efeitos do despacho saneador.

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Às vezes, como já mencionado, atospraticados por aqueles que participam de umarelação jurídica processual atingem a sua realfinalidade, embora as normas que os regula-mentem tenham eleito um meio em detrimentode outro, com o qual lhe atribuem o caráterformalístico, como muito bem assinalouChiovenda no início do século63.

No entanto, predominando a idéia deprocesso como fenômeno essencialmentecultural, continuativo e dinâmico64, seu fim, enão sua forma, é que o define e o delimita. Tantoé o seu fim que o delimita que a idéia teleológicade processo já de há muito predomina nopensamento dos mais renomados proces-sualistas, consoante advertência de Wach eSchönke, citados por Couture65. Teleológicaporque o fim visado precipuamente peloprocesso, antes da satisfação dos interesses doindivíduo, é a realização efetiva da justiça e apacificação social66. Esse é o conceito social deprocesso, veementemente proclamado pelojovem e talentoso processualista gaúcho DarciGuimarães Ribeiro, em suas palestras.

Note-se bem que precisamente por conside-rarmos o processo um fenômeno sócio-cultural,é que possibilitamos um passo além para neletambém identificarmos, à luz de uma visãojurídica, a finalidade, o seu aspecto teleológico,como nota fundamental e informadora.

Com efeito, o que há de mais cristalino eaxiologicamente irredutível no processo,enquanto fenômeno sócio-cultural, é o estarsempre dirigido para a efetiva e justa realizaçãode algo. E sobre essa finalidade, ou seja, sobrea legitimidade do instrumento de orientar-sena área de sua própria incidência – na vida, nohumano – diferentemente do sol que se põe, dachuva que cai, é que se constitui a justiça e apaz social, de molde a atribuir-lhe supremacia.

Avulte-se para a descoberta genial erevolucionária no direito processual. Longe de

afirmar-se como alternativa, a doutrina deGaleno Lacerda vem adminiculada na sólidainterpretação sistemática67 e teleológica doCódigo de Processo Civil, considerado por eleum dos melhores do mundo. Nesse sentido, ooperador do direito não pode e não devesimplesmente ater-se à fria aplicação da lei aocaso concreto. Antes, deverá buscar, dainterpretação e leitura sistemática de todo oordenamento, os princípios e as normasfundamentais que animam todo o sistema68.

Não erramos em considerar como ocorrenteantinomia entre normas do nosso ordenamentojurídico, tendentes a, aparentemente, afetar todaa estrutura do sistema, uma vez verificada amaior hierarquia de valores em algunspreceitos, considerados paradigmáticos. É queexistindo determinada norma que se sobre-ponha às demais, nesse sentido, atribuindo-se-lhe caráter de preceito maior, superior, a suaefetiva aplicação é a única solução para aantinomia aparente, sob pena de em não sendoaplicada, negarmos vigência e o caráter danorma hierarquicamente superior69.

63 CHIOVENDA, Giuseppe. Principios dederecho procesal civil. Madr : 1925, t. 2, p. 113.

64 Sobre a idéia de processo como fenômenocultural, veja-se o brilhante artigo firmado peloprofessor LACERDA. Processo e Cultura. Revistade Direito Processual Civil, v. 3, p. 74 e segs., 1962.

65 COUTURE. Función privada y funcion publicadel proceso. Revista da Faculdade de Direito dePorto Alegre, n. 1, 1950. p. 53.

66 Cf. Jaime Guasp, esta seria a visão de processosob o seu prisma material, ou seja, processo comoinstrumento guiado e dirigido para a resolução doconflito social, propugnando a justiça e a pacificaçãosocial. Derecho Procesal Civil. 3. ed., Madrid,1968. t. 1.

67 A idéia de interpretação sistemática aquiadotada é aquela sustentada pelo ilustre juristaJuarez Freitas, na qual é “a interpretação sistemáticao processo hermenêutico, por essência, do Direito,de tal maneira que se pode asseverar que ou secompreende o enunciado jurídico no plexo de suasrelações com o conjunto dos demais enunciados, ounão se pode compreendê-lo adequadamente. Nestesentido, é de se afirmar, com os devidos tempe-ramentos, que a interpretação jurídica é sistemáticaou não é interpretação”, A interpretação sistemáticado direito, Malheiros, 1995. p. 49.

68 Sobre o sentido de Sistema, a propósito, ver oexcelente trabalho de Norberto Bobbio, Teoria doordenamento jurídico. 7. ed. UNB, 1996, para quem,“(...), ‘sistema’, equivale à validade do princípioque exclui a incompatibilidade das normas”.

69 Cf. Freitas, a norma hierarquicamente superiorguarda o caráter do princípio da hierarquizaçãoaxiológica, sendo, neste aspecto, uma meta-regra,um operador deôntico que ocupa o topo do sistemajurídico. Entende o ilustre professor que o critériodefinitivo para o solvimento de toda e qualquerantinomia ocorrente no sistema deverá ser buscadopelo princípio da hierarquização axiológica, que é ometacritério que ordena, diante inclusive deantinomias no plano dos critérios, a prevalência doprincípio axiologicamente superior, ou da normaaxiologicamente superior em relação às demais,visando-se a uma exegese que impeça a autocon-tradição do sistema conforme a Constituição e queresguarde a unidade sintética dos seus múltiploscomandos, p. 81 e segs.).

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Nesse momento, especial atenção deve tero operador do direito, por ocasião da adequadainterpretação e aplicação da lei na prática deseu mister. Para tanto, deverá conhecer comoninguém todo o sistema, ou, ao menos, osprincípios retores que o animam. Aliás, comobem sustenta Juarez Freitas, todas as fraçõesdo ordenamento jurídico estão em conexão coma inteireza de seu espírito, daí porque concluir-se que toda e qualquer interpretação de umanorma jurídica há de, necessariamente, serefetivada à luz dos princípios gerais, normas evalores constituintes que animam todo osistema70.

Deverá o operador do direito escolher qualdas duas normas “conflitantes” prevalecerá,adotando, para tanto, adequados critérios dehermenêutica e interpretação, bem como,muitas vezes, o bom-senso, a fim de que possaassegurar, declarar ou realizar o direito com omenor gravame possível.

Essa, sem dúvida, a idéia fundamental quedeverá nortear todos nós, ou seja, o caráter defato cultural do processo, cujos fins consistem,precipuamente, na realização da justiça e dapaz social, bem como na solução da lide71, emseu aspecto geral e universal. Necessário, pois,a relativização de todas as normas e princípiosprocessuais sempre que forem conflitantes coma efetiva obtenção da justiça, sob pena deautorizarmos a existência de um modeloprocessual inadequado ao seu objeto72. O escoposocial do processo deverá ser perquerido deforma incansável, definindo e realizando odireito material, de molde a adequá-lo àrealidade social a que se destina.

Por isso a importância do movimento pelachamada constitucionalização e efetivação doprocesso, a evidenciar a natureza fundamental

e política do acesso à ordem jurídica justa e doseu efetivo exercício, sempre guardandorespeito à dignidade da pessoa humana e à pazsocial, valores supremos insculpidos na CartaPolítica Federal. A aplicação e a interpretaçãosistemática dessas regras permitirão, extremede dúvidas, ao operador do direito, a justacomposição da lide.

É tarefa primordial do operador do direitodescobrir a relação direta entre o texto da lei eo caso concreto, entre a norma jurídica e o fatosocial. Interpretar será o seu único caminho,isto é, determinando o verdadeiro sentido ealcance das expressões do Direito73. Assimprocedendo, como referido, estará aplicando odireito, de modo justo e efetivo.

4. ConclusõesO presente ensaio teve como principal

objetivo analisar a importância da estrutura dosistema das nulidades, no que pertine ao examede vícios essenciais do processo, à luz dosprincípios da adequação e da relativização dasnulidades, por meio da categoria dos sobre-direitos processuais.

Após discorrer-se brevemente sobre aestrutura fundamental e básica da sistema-tização das nulidades processuais perpetradapelo mestre Galeno Lacerda, desse exame,conseguiu-se demonstrar a sua atualidade elegítima pertinência para a prática diuturna dosoperadores do direito. Tão-somente no que dizrespeito aos vícios essenciais e insanáveis,concebidos como nulidades absolutas, é quedeveremos ter especial e redobrada atenção parao seu reconhecimento, uma vez realizada aleitura sistemática e teleológica da norma legal,em conjugação com a categoria dos sobre-direitos processuais.

A categoria do sobredireito processual,compreendida como a aplicação de regras eprincípios superiores, deve ser interpretada deforma a abranger todo o sistema vigente.

Nesse diapasão, cremos que bem aplicadaa teoria das nulidades processuais, em conjuntocom a categoria do sobredireito processual e,principalmente, com a teoria da adequação, oprocesso, visto e entendido como verdadeiroinstrumento colocado à disposição dos cidadãospara o efetivo acesso à ordem jurídica justa,

70 Ibidem, p. 47-50.71 A idéia de lide aqui utilizada não é a mesma

de Carnelutti, que a tinha voltada única e exclusi-vamente para o caráter privado, mas, muito pelocontrário, a idéia de lide é a mais genérica e universalpossível, envolvendo todo e qualquer conflito deinteresses, aliás, a mesma adotada pelo mestreGaleno Lacerda.

72 A esse respeito, importante a orientação deMorello, citado por José Roberto dos SantosBedaque, segundo a qual nenhum princípioprocessual pode impedir a realização rápida eeconômica do processo, ou seja, será necessário umalimitação racional desses princípios para que sepossa dar preferência a uma decisão adequada àsituação objetiva. Direito e processo, influência dodireito material sobre o processo. Malheiros, 1995.p. 50.

73 Para uma análise e estudo mais completo dadefinição de interpretação e suas origens, vide o livrodo mestre Carlos Maximiliano, Hermenêutica eaplicação do Direito.

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servirá à justiça humana, social e concreta, aque se redunda seu princípio informador ecapital.

A realidade da vida nos impõe diariamenteuma multiplicidade de conflitos de valores. Aoinvés de rechaçarmos certos princípiosessenciais à justiça e à dignidade da pessoahumana, deveremos, isto sim, orientar nossaconduta para a sujeição na aplicação derelevantes e superiores princípios, sem nosbasearmos em critérios preconcebidos, sempreque houver necessidade da observância depreceitos paradigmáticos de maior hierarquia.A justiça da decisão está na concretude do bemcomum, na valoração axiológica do caso real,sempre dirigido ao fim último da realização dajustiça e da paz social.

Para tanto, mister se faz que para cadarelação jurídica material exista uma estruturaprocessual adequada74. As normas processuais,como bem proclama o mestre Galeno Lacerda,têm de se adequar ao direito material, e nãoeste àquelas. Tudo isso, para que seja possibi-litada a outorga de efetiva tutela jurisdicional,que será determinada e delimitada pelanatureza do direito posto em causa, lançando ainstrumentalidade do direito processual àeficácia plena e efetiva de sua utilidade jurídico-social.

74 A respeito, ver a percuciente admoestação paraa criação de ritos diferenciados em correspondênciaà tutela de direito substancialmente diversos,efetivada pelo ilustre processualista Ovídio AraújoBaptista da Silva, Processo de conhecimento eprocedimento especial. Ajuris n. 57, p. 17, 1993.

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1. Conceito da consciênciade antijuridicidade

A consciência da antijuridicidade vemsendo o conceito mais difícil de se estabelecerem todo o Direito Penal, todavia, apesar dessadificuldade, ela é o elemento mais importanteda teoria do delito contemporânea. Suaimportância é tamanha que Jescheck chega aafirmar que

“através do reconhecimento da cons-ciência da antijuridicidade como base dareprovação da culpabilidade, o processode moralização do Direito Penal alemãoalcançou o seu cume”1.

A consciência da antijuridicidade nomoderno Direito Penal

CLÁUDIO BRANDÃO

Cláudio Brandão é Professor da EscolaSuperior da Magistratura de Pernambuco e daUFPE, mestrando em Direito e advogado.

SUMÁRIO

1. Conceito da consciência de antijuridicidade.2. Pressupostos do estudo. 3. Formação daconsciência da antijuridicidade. 4. Consciência deantijuridicidade e culpabilidade. 5. Consciência deantijuridicidade e antijuridicidade. 6. Teoria estritado dolo 7. Teoria limitada do dolo. 8. Teoria estritada culpabilidade. 9. Teoria limitada da culpa-bilidade.

1 Hans-Heinrich Jescheck. A Nova dogmáticapenal e a política criminal em perspectiva com-parada. In : Ciência e política criminal em honra deHeleno Fragoso. Rio de Janeiro : Forense, 1992. p.233. Em outra obra o autor assim se expressa: “Elreconocimiento de la consciencia de la anti-juridicidad como elemento de la culpabilidad por lafundamental sentencia del Gran Senado paraassuntos penales de 18 marzo 1952 (BGH 2, 194[201]) constitui un hito que señala el inicio de unaetapa en la historia moderna de la ciencia delDerecho Penal alemán. (...) con la admissión delrequisito de la conciencia del injusto para el reprochede culpabilidad se há empreendido el camino parala plena realización del principio de culpabilidad”.

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A consciência da antijuridicidade é oreverso do erro de proibição. Enquanto o errode proibição consiste na falta de apreensão docaráter ilícito da conduta, a consciência daantijuridicidade consiste na percepção docaráter ilícito da ação. A ação humana passapor várias fases, uma delas é a sua elaboraçãointelectual. É nesta fase que surge a consciênciada antijuridicidade, que pode ser traduzida numconhecimento prévio da significação ilícita docomportamento. O conhecimento é dito prévioporque é anterior à modificação do mundoexterior, acarretado pela referenciada ação.

Classifica-se a consciência da antijuri-dicidade em consciência da antijuridicidadeformal e consciência da antijuridicidadematerial. A consciência da antijuridicidadeformal exige, para o seu perfazimento, o prévioconhecimento da norma, que dá à conduta ocaráter de ilícita, assim, por exemplo, o sujeitosó terá consciência da ilicitude de sua condutahomicida, se conhecer o art. 121 do CódigoPenal. Entre os autores que sustentam aconsciência formal da antijuridicidade, des-taca-se Franz von Liszt, afirmando que amultirreferenciada consciência da anti-juridicidade só se perfaz se o autor sabe que

“su acto ataca, lesionando o poniendo enpeligro, los intereses jurídicamenteprotegidos, ya sean de un individuo o yasean de la colectividad”2.

A consciência da antijuridicidade materialexige apenas que o sujeito apreenda o caráteranti-social da ação, tendo por base a experiênciaadquirida na vida em sociedade, é a chamadaconsciência profana do injusto. Esta segundaposição, vigente no Direito brasileiro, é adefendida pela maioria da doutrina. Wesselsafirma que

“o objeto da consciência do injusto não éo conhecimento da disposição penal ouda punibilidade do fato, mas a compre-ensão do autor de que sua conduta éjuridicamente proibida”3,

enquanto Asúa alerta que não se pode exigir aconsciência formal da ilicitude

“porque ello nos levaría a la exigenciadel conocimiento del derecho escrito entodos los individuos, lo que es realmenteimposible”4.

A consciência da antijuridicidade, deve-seressaltar, não precisa ser atual, bastando queela seja potencial. Isso significa que não énecessário, para que surjam seus efeitosjurídicos no âmbito da culpabilidade –conforme se verá adiante – que ela estejarealmente presente no indivíduo, basta que osujeito tenha tido condições de auferi-la no seuconvívio social. Welzel afirma que é dever doindivíduo informar-se, por isso se reprova osujeito quando, em que pese o mesmo não ter aconsciência atual da ilicitude, ele poderia tê-laadquirido se procurasse se informar5.

2. Pressupostos do estudoFigueiredo Dias nos ensina que só podemos

estudar a consciência da antijuridicidadepartindo da análise teorética dos termosconsciência e antijuridicidade6. A conceituaçãode antijuridicidade pode ser sintetizada como

“um juízo de valor negativo ou desvalorque atribui ao fato do homem a qualidadede ser contrário ao Direito, dando à açãoo caráter de não-querido pelo Orde-namento Jurídico”7;

quanto à questão da definição de cons-ciência, é certo que não é um conceito jurídicopropriamente dito, devendo-se buscar naPsicologia sua definição. Contudo, não devemosabsorver o conceito de consciência simples-mente como ele é apresentado na Psicologia.Com efeito, é tarefa do hermeneuta do Direitoadequar este conceito à categoria lógico-jurídica, que precisa ser estudada (isto é, deveadequá-lo à consciência da antijuridicidade, deacordo com sua função no Direito Penal).

(Tratado de Derecho Penal : parte general.Traducción de S. Mir Puig e F. Muñoz Conde.Barcelona : Bosch, 1981. v. 1, p. 622).

2 LISZT, Franz von. Tratado de Derecho Penal.Traducción Luis Jiménez de Asúa, Madrid : Reus,[s. d.]. v. 2. p. 414.

3 WESSELS, Johannes. Direito Penal : partegeral. Traducción Juarez Tavares. Porto Alegre :Fabris, 1976. p. 90.

4 JIMÉNEZ DE ASÚA, Luis. Teoria juridica deldelito. Buenos Aires : Universidad del Litoral, 1956.p. 83.

5 WELZEL, Hans. La posizione dogmatica delladottrina finalistica dell’azione. Rivista Italiana diDiritto Penale. Milano, v. 4, n. 1/2, p. 12, gen./apr.1951.

6 DIAS, Jorge de Figueiredo. O problema da faltade consciência de ilicitude em Direito Penal. 3. ed.Coimbra : Coimbra Ed., 1987. p. 4.

7 BRANDÃO, Cláudio. A importância daconceituação da antijuridicidade para a compreensãoda essência do crime. Revista de InformaçãoLegislativa, Brasília, v. 34, n. 133, p. 24, jan./mar.1997.

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Não se poderia, por exemplo, no âmbitopenal, definir a consciência como sendo umestado de espírito. Se assim se definisse,nenhuma contribuição traria para a compre-ensão do problema.

Para o Direito Penal, considera-se aconsciência como um saber perceptivo nosentido de um estado disposicional. Isto é, aconsciência é uma apreensão de sentido, combase na percepção, tendo em vista um deter-minado estado disposicional.

3. Formação da consciênciada antijuridicidade

Em recente tese, o Professor Chaves deCamargo, da Universidade de São Paulo,baseado no código de comunicação de Habermas,propõe uma moderna teoria para explicar aformação da consciência da antijuridicidade.Para o autor, a sociedade é formada por diversosgrupos sociais, que mantêm entre si um códigode comunicação. O que caracteriza a integraçãodo indivíduo na sociedade é sua participaçãosolidária no mesmo código de comunicação.Essa solidariedade permite que a sociedade secomponha de ordens legítimas, aceitas pelamaioria do grupo social.

O agir comunicativo do indivíduo deveráestar em consonância com os valores conden-sados nos modelos de comunicação, que estãopresentes nas normas. A consciência daantijuridicidade limitará este agir comunicativodo sujeito, que se não agir conforme o direito,terá sua conduta reprovada pelo único instru-mento existente para fazer a reprovação daconduta individualmente considerada: a pena8.

Por meio da teoria do agir comunicativo,pode-se traçar um perfil da evolução daconsciência de ilicitude no indivíduo. A partirdos primeiros anos de vida, a criança vaiconstruindo o seu código de comunicação,tomando consciência do mundo social, até quese integre no dito grupo social, aceitando averacidade dos conceitos que lhes foramtransmitidos.

Com o seu crescimento, adquirido pelalinguagem, o sujeito constrói um mundo devida, que é o ponto de partida e de chegada deuma reflexão de toda a sociedade.

Por meio desse código de comunicação, oindivíduo pode apreender o sentido do que é

querido pelo Direito e do que não é querido,adquirindo assim, a consciência da antiju-ridicidade.

Numa reflexão mais profunda, pode-seafirmar que a consciência da antijuridicidadeestá presente em qualquer ato de comunicaçãoque o indivíduo realize a partir de quando elechega a uma reflexão de sociedade9.

4. Consciência de antijuridicidadee culpabilidade

A consciência da antijuridicidade tem porconteúdo a antijuridicidade e por objeto aculpabilidade. Tem por objeto a culpabilidade,pois, como veremos, encerra a culpabilidadeem si. Tem por conteúdo a antijuridicidadeporque a apreensão de sentido é formada tendoem vista a contradição do fato com as exigênciasdo Direito. Entretanto, como alerta Maurach,

“com la inclusión del conocimiento delinjusto en la estructura total del delitosurgió además la necesidad de atribuir,a esta característica, un lugar dentro delos particulares elementos del delito”10.

A culpabilidade, com o finalismo, encontrao seu suporte teórico na consciência daantijuridicidade, “por isso se diz que aconsciência da antijuridicidade está inserida naculpabilidade, sendo elemento desta”11.

A culpabilidade existe desde o DireitoRomano, ainda que sem uma base científicaestruturada. Os romanos consideravam-nacomo dolo e distinguiam dois tipos de dolo: odolus bonus e o dolus malus. O dolus bonusera a sagacidade para enganar, sendo, para eles,uma virtude; o dolus malus era aquele no qualhavia uma vontade aliada a um mau propósito,propósito este conhecido e querido pelo agente,qual seja, o dolo valorado pela consciência daantijuridicidade. O conceito romano de

8 CAMARGO, A. L. Chaves de. Culpabilidadee reprovação penal. São Paulo : Sugestões Literárias,1994. p. 162.

9 Ibidem, p. 165-169.10 MAURACH, Reinhart. Tratado de Derecho

Penal. Traducción de Juan Córdoba Roda.Barcelona : Ariel, 1962, p. 131.

11 Numa posição inovadora, mas minoritária, aprofessora portuguesa Teresa Serra considera aconsciência da antijuridicidade elemento autônomodo juízo de culpa, definitivamente separada do dolo.Entretanto, considera que o dolo tem uma duplafunção: pertence a ação e a culpa a um só tempo(Problemática do erro sobre a ilicitude. Coimbra :Almedina, 1991. p. 38-40, 58). A maioria dadoutrina, contudo, considera o dolo definitivamentelivre da culpabilidade, tendo lugar exclusivamenteno tipo.

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culpabilidade perdurou durante toda a idademédia, período em que vigia o DireitoCanônico.

Durante o século XIX, com a hegemoniadas ciências naturais, procurou-se umaexplicação puramente naturalística para acompreensão da ação humana, surgindo entãoa Teoria Psicológica da Culpabilidade. Para estateoria, a culpabilidade era um fato da condutainterna do agente, de cunho psíquico, consis-tindo no dolo e na culpa. O dolo consistia navontade livre e consciente, enquanto a culpana imprudência, negligência ou imperícia.Nesta época há, pois, um retrocesso no DireitoPenal, posto que não mais se considera oelemento normativo do dolo, abandonando-sea valiosa contribuição do Direito Romano.

Entretanto, este retrocesso não perdura naciência do direito! Deveu-se a Franz von Lizta concepção psicológico-normativa da culpa-bilidade, a qual trouxe novamente à tona avaloração dada pelos romanos ao dolo. Dessemodo, a culpabilidade era composta pelo doloe pela culpa, mas ocorre que o dolo não é umasimples vontade, despida de qualquer elementonormativo. Pelo contrário, o dolo era valoradopor um elemento normativo, que era justamentea consciência da antijuridicidade12.

Com o advento da teoria finalista da ação,a concepção psicológico-normativa da culpa-bilidade foi rechaçada, dando-se lugar a umaconcepção exclusivamente normativa damesma. Tal teoria foi criada por Hans Welzel,e preconizava que toda ação humana é dirigidaa um fim, ou seja, a ação é finalista, porconseqüência, o elemento psicológico (dolo)está na ação e não na culpabilidade.

A consciência da antijuridicidade – nateoria finalista – é a essência da culpabilidadee é o que permite que se faça um juízo pessoalde reprovação sobre o autor do ilícito penal.Tal juízo é feito pelo juiz, que personifica oordenamento jurídico.

A culpabilidade, desse modo, é puramentea consciência da antijuridicidade, que é um

juízo de valor feito pelo juiz. Deve-se distinguira valoração (consciência da antijuridicidade)do objeto da valoração (ação). No seu sentidopróprio, a culpabilidade é só a consciência daantijuridicidade, estando a ação fora daculpabilidade, que é apenas o objeto davaloração. O dolo se insere no objeto daculpabilidade, qual seja, a ação, nunca naculpabilidade em si; como o tipo penal descrevea ação humana, diz-se acertadamente que, nateoria finalista, o dolo está no tipo. É, pois, aconsciência da antijuridicidade que converte aação e a vontade em ação e vontade culpável13.

Francisco de Assis Toledo ensina, cominigualável precisão, que Welzel não adicionounenhum elemento novo à Teoria do Delito. Eleapenas “rearrumou” seus elementos. Deslocouo dolo para a ação, mas o fez sem seu elementonormativo, qual seja, a consciência daantijuridicidade. Isto ocorreu porque o dolusmalus dos romanos já vivera muito tempo e nãopoderia subsistir, frente a um direito penalmoderno, impregnado de valiosas contribuiçõesda criminologia14.

Dentro do finalismo, cujas linhas básicasnorteiam o Código Penal pátrio, podemosafirmar que a consciência da antijuridicidadeé o elemento mais importante da teoria docrime, pois ela é a própria culpabilidade. Diz-se que a consciência da antijuridicidade é oelemento mais importante da teoria do delitopor força do princípio nulum crimen, nullapoena sine culpa, visto que este princípio é ocorolário máximo das legislações penaismodernas, aí incluída a brasileira.

5. Consciência de antijuridicidadee antijuridicidade

Em que pese a consciência da antijuri-dicidade estar ou não estar inserida naantijuridicidade propriamente dita, as relaçõesentre elas são muito estreitas. Como visto, aantijuridicidade é a relação entre o ordenamentojurídico e a ação humana, onde há umadivergência entre o primeiro e a última.

A relação de antijuridicidade não vaiinduzir a relação de consciência de antijuridi-cidade. De fato, a relação de antijuridicidade éum juízo de reprovação sobre o fato do homem,

12 Sobre esta concepção, são precisas as palavrasde Bettiol: “la coscienza dell’antiguiridicità è ancoraun dato di fatto que se aggiunge a queli dellapevisione e voluntarietà del evento lesivo. Eppuresi può dire che la concezione valutativa e normativadella colpevolezza è proprio partita dalla esigenzache l’imperativo della norma sai sentito dallacoscienza indivuduale nel momento della perpe-trazioe del reato.” (Il Problema Penale. Palermo :G. Priulla, 1948. p. 97-98). Ver também Bettiol eMantovani. Diritto Penale. Padua : CEDAM, 1986.p. 508-509.

13 WELZEL, Hans. Derecho Penal. BuenosAires : Depalma, 1956. p.147 e segs.

14 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípiosbásicos de Direito Penal. São Paulo : Saraiva, 1991.p. 227-228.

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enquanto a relação de consciência de antijuridi-cidade é um juízo de reprovação sobre o autordo fato.

É possível que o fato seja reprovável(antijurídico) sem, contudo, ser culpável (pornão ter o autor consciência da ilicitude).

Destarte, pela antijuridicidade infere-se umjuízo de desvalor sobre a ação, e pela cons-ciência da antijuridicidade faz-se um juízo dedesvalor pessoal sobre o autor, por ter agidocontráriamente ao ordenamento jurídico,quando ele poderia dirigir seu comportamentoconforme o ordenamento.

Na hipótese do indivíduo agir com cons-ciência da antijuridicidade em um fato que nãoé antijurídico, ainda que suponha sê-lo, nãohaverá crime. Isso decorre do fato de ser aantijuridicidade a essência do crime, o crimeem si; sem haver primeiro o juízo de antiju-ridicidade, não há que se cogitar em juízo deculpabilidade (consciência de antijuridicidade).

Vejamos o seguinte exemplo:João vê uma camisa que supõe ser do seu

vizinho e pretende subtraí-la para si. Tem aconsciência da reprobabilidade do fato, mas,mesmo assim, decide fazê-lo. Se a camisarealmente for do seu vizinho, haverá aantijuridicidade da ação e, como o autor poderiaevitar a ação antijurídica, a consciência daantijuridicidade, rectius, culpabilidade, perfaz-seplenamente.

Se, entretanto, a camisa pertence ao próprioJoão e ele supõe por engano pertencer ao seuvizinho, não haverá ação antijurídica e,portanto, não haverá culpabilidade, apesar dosujeito ter a consciência da antijuridicidade deseu atuar.

6. Teoria Estrita do DoloDentro da culpabilidade, quatro teorias

procuram explicar a posição da consciência daantijuridicidade: a teoria estrita do dolo, a teorialimitada do dolo, a teoria estrita da culpa-bilidade e a teoria limitada da culpabilidade,que veremos a seguir15.

As teorias do dolo tiveram origem naAlemanha. As construções doutrinárias sobre

elas derivam da posição do antigo Reichsgericht,o alto tribunal do império alemão. O tribunaldesconsiderou a consciência da antijuridi-cidade, quer como elemento do dolo, quer comoelemento da culpabilidade16.

A doutrina alemã então, diante de gravesinjustiças causadas pelo Tribunal do império,criou uma saída para as decisões do RG: deuuma nova interpretação ao art. 59 do CódigoPenal alemão de 1871, o qual vigorou até asegunda metade desse século17.

Para a teoria estrita do dolo, a consciênciada antijuridicidade é elemento do dolo e,quando ocorre a sua ausência, o dolo ficaexcluído. Para que se perfaça o dolo, oconhecimento da antijuridicidade precisa seratual, pois “dolus significa reprovar al autor elhecho de no haber detenido ante el pensamientode estar obrando antijurídicamente”18. Ernstvon Beling afirma que não se considerar aconsciência atual da antijuridicidade comoelemento do crime conduz a graves injustiças19.O agente precisa efetivamente saber que dirigesua vontade a uma ação antijurídica. Aculpabilidade, pois, “no sólo és culpabilidad dela voluntad en el sentido aqui empleado, sinode modo bien concreto ‘culpabilidad de lavoluntad mala’”20.

Nessa concepção, qualquer erro, quer sejade tipo, quer seja de proibição, exclui o dolo.Pelo erro de tipo, exclui-se a vontade de praticaro fato típico e antijurídico, excluindo-se,portanto, o elemento psíquico do dolo; pelo errode proibição exclui-se a consciência daantijuridicidade, excluindo-se, portanto, oelemento normativo do dolo.

15 Afirma Córdoba Roda que “hoy, mientrasexiste acuerdo unánime por parte de la dogmáticamoderna en afirmar la necesidad del conocimientode la antijuridicidad, el punto central de la discusiónse há desplezado a la determinación del lugarsistemático de este conocimiento”. (El conocimientode la antijuridicidad en la teoria del delito. p. 105).

16 MAURACH, op. cit., p. 133.17 Diz o referido dispositivo legal: “Lorsqu’au

moment de la perpétration de l’infraction, l’auteurignorait l’existence des circonstances qui enconstituent les éléments légaux ou qui sontaggravantes, ces circonstances ne lui seront pointimputeés.” RELINGER, A. Code Pénal Allemand.Baden : Wervereis, 1995. p. 36.

18 BELING, Ernst von. Esquema de DerechoPenal : la doctrina del delito-tipo. Buenos Aires :Depalma, 1944. p. 72 (grifo nosso).

19 “Es también evidente la grave injustiça depensar que no importa para nada la conciencia de lailicitud. Debiera, p. ej., ser considerada se condenadoa muerte el agente de policia que habendo entendidoerróneamente (talvez sin culpa alguna) susinstrucciones de serviço, se creyese obligado a alcomissíon antijurídica de una muerte y hubieseobrado por fidelidad a su deber”. Ibidem, p. 78.

20 MAURACH, op. cit., p. 135.

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7. Teoria Limitada do DoloA teoria limitada do dolo também considera

a consciência da antijuridicidade comoelemento do dolo; ocorre que tal consciêncianão precisa ser uma consciência atual, masapenas potencial. Essa teoria encontra seu pontode partida no Projeto Gürtner de 1936, quedispunha:

“Actúa dolosamente quien lleva acabo el hecho con conciencia y voluntad,siendo conciente de obrar el injusto o deinfringir la ley (parágrafo a, párrafo 2)...El error es relevante si se basa en unaactitud que es incompatible con unaconcepción sana de Derecho y injusto(parágrafo b)”21.

Essa concepção foi embasada na doutrinade Mezger. Num primeiro momento Mezgeraderiu à teoria estrita do dolo, que exigia doautor o conhecimento “di quelle circostanzeobbiettive della fattispecie legale, che giàsussustono nel momento dell’atto volitivo, eperciò sono indepiendenti dalla volontàdell’agente”22.

Mezger, contudo, reformulou a sua posição.Afirma que existem distintos graus de culpabi-lidade, mesmo frente à teoria do dolo: não há,pois, sempre o dolo na forma normal deculpabilidade23. Em regra, o dolo exige aconsciência da antijuridicidade, mas emdeterminados casos ela é inexigível: quando aconduta do autor é incompatível com umaconcepção sã, de conforme ao direito e decontrário ao direito, essa conduta desviantepode ser chamada de inimizade ao direito oucegueira jurídica24. Tal erro sobre a antiju-ridicidade seria evitado por uma concepção sãde direito, a qual o indivíduo não possui,devendo, portanto, responder a título de dolopor sua conduta.

8. Teoria Estrita da CulpabilidadeA teoria estrita da culpabilidade, adotada

pelos finalistas, vê toda falta de consciência deantijuridicidade como erro de proibição. A faltade consciência de antijuridicidade não exclui odolo, porque o dolo esgota-se com o querer

objetivo do tipo. Entretanto, a inconsciência dailicitude exclui a culpabilidade, posto que, comoo dolo, esgota-se com vontade e previsibilidade,a consciência da antijuridicidade passa a ser,ao lado da imputabilidade, a própria daculpabilidade25.

“los dos elementos de la culpabilidad,esto es, imputabilidad e possibilidad deconocimiento del injusto, non sonindependientes entre si; el último no ésmás que la concreción del primero (...).El contenido de la culpabilidad estribaen la abierta rebelión contra la norma opor la reprochable indiferencia frente alas exigencias del Derecho, según que elsujeto actuara con atual, o potencial,conocimiento del injusto”26.

A consciência da antijuridicidade é, porconseguinte, sempre potencial. Não vai seindagar se o agente tinha efetivamente estaconsciência, mas far-se-á um juízo pessoalsobre o sujeito para aferir se ele tinha, naquelasdeterminadas circunstâncias do cometimentoda ação típica e antijurídica, a possibilidade deter o conhecimento do injusto.

9. Teoria limitada da culpabilidadeA teoria limitada da culpabilidade é muito

semelhante à teoria estrita da culpabilidade. Adiferença reside no erro quanto às causas dejustificação ou discriminantes putativas.

Na teoria estrita da culpabilidade, essaespécie de erro sempre excluirá a consciênciada antijuridicidade, ou seja, sempre será errode proibição. Na teoria limitada, o erro quantoàs discriminantes putativas, dependendo docaso, será equiparado ao erro de tipo, excluindoo dolo, ou erro de proibição, excluindo aculpabilidade. Se o erro for quanto aos limitesda causa de justificação teremos erro deproibição; se for quanto à existência dajustificadora que autoriza a ação típica, temosa equiparação ao erro de tipo. Dizemos que oerro sobre as discriminantes putativas fáticasse equipara ao porque o dolo não é excluído nomesmo sentido de que o agente não tem suavontade dirigida à produção do resultado, mas

21 CÓRDOBA RODA, op. cit., p. 108.22 MEZGER, Edmund. Diritto Penale. Padova :

CEDAM, 1935. p. 328.23 Idem. La culpabilidad en el moderno Derecho

Penal, p. 28.24 Ibidem, nota às p. 29-30; ver também nota à

p. 11.

25 “Al constituir el conocimiento de la anti-juridicidad un elemento de la culpabilidad, el errorinevitable de la proibición excluy este elemento deldelito, y el evitable da lugar a que el juez puedaatenuar a pena en virtud de la diminuición de laculpabilidad.” CÓRDOBA RODA, op. cit., p. 111.

26 MAURACH, op. cit., p. 144-145.

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porque do mesmo modo que os elementosobjetivos da justificação compensam o desvalordo resultado, os elementos operam com igualconseqüência no que concerne ao elementosubjetivo27.

Os partidários da teoria limitada daculpabilidade fundamentam-na em uma razãode política criminal. von Weber dá o seguinteexemplo: pode-se afirmar que um soldado quemata um camarada, por confusão com oinimigo, teve resolução de cometer um delitode homicídio?28 Deve ele, então, responder pelocrime na forma culposa, em virtude dainexistência do dolo. Essa teoria é a adotadano Direito Positivo brasileiro.

27 SERRA, Teresa. Problemática do erro sobrea ilicitude. Coimbra : Almedina, 1991. p. 83.

28 apud CÓRDOBA RODA, op. cit., p. 118.

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1. Sentido da aulaA aula inicial de curso superior, sobretudo

em Faculdade de Direito, nos tempos atuais, édiferente da de outras épocas. Não equivale ànarrativa da vida despreocupada e alegre dosestudantes, no antigo estilo, em uso até ocomeço deste século. Não deve ser a oração dasapiência, revestida de retórica e de princípiosgerais, com alheamento da realidade. Há designificar uma reflexão, em base científica ede objetividade, sobre problemas contem-porâneos.

A inquietude provocada por tantasquestões sem solução, ou encaminhadasinadequadamente, exige juízo crítico, abertoàs indagações, às dúvidas e aos anseios dosespíritos em formação, de idades diversasmas por igual ciosos da verdade pesquisada.

Tanto maior é a responsabilidade da aula,se coincide, como no caso, com o começodos atos comemorativos do centenário daEscola, perlustrada por eminentes figuras dopensamento jurídico, entre professores,juízes, membros do Ministério Público,advogados e políticos. Essa grandeza dosanos vividos associa indissoluvelmente aInstituição à ciência nela ensinada, para queuma e outra engrandeçam a cultura, a serviçodo povo.

Constituição e instabilidade institucional

JOSAPHAT MARINHO

Aula inaugural dos cursos da Faculdade deDireito da Universidade Federal de Rio Grande doSul, em 1º de abril de 1997.

SUMÁRIO

1. Sentido da aula. 2. O tempo e o Direito. 3.Constituição e estabilidade. 4. Gerando a insta-bilidade. 5. Transição interminável. 6. Lição de bomsenso. 7. Necessidade de mudança de rumo. 8.Reformar não é repudiar.

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2. O tempo e o direitoO tempo que as vincula – a Faculdade e a

ciência jurídica –, neste espaço de estudo, é omesmo elemento que imprime continuidade aoDireito, como norma de convívio civilizado.Dá-lhe dimensão e colorido diferenciados entreos povos, porém o conserva, vivo e atuante. Otempo que modifica, mantém, transformado, odireito indispensável à existência disciplinadasem violência.

“O direito – permiti que me ampareno saber de Ruy Cirne Lima –, o direito,pelo seu conteúdo e pelo seu endereçoespiritual, denota, de modo particular, naestrutura de seus institutos sinaisabundantes dessa evasão do tempo, quasecompleta no conceito de eviternidade”1.

Decerto, a incidência do tempo altera anorma, e as relações que nela se baseiamcompelem o intérprete, e não raro o legislador,a transmitir novo alcance e conteúdo às regraspositivas. Porém estas se substituem por outrasque, embora de fisionomia distinta, têm amesma função reguladora. Afirma-se, nasucessão dos preceitos, a continuidade dodireito. O fenômeno é de tal evidência quemesmo as ditaduras, as de índole tradicional,sem idéias, e as modernas de caráter progra-mático, impositivas de filosofias ou depreconceitos, instituem um simulacro decomando legal, em busca de legitimidade.

3. Constituição e estabilidadeAtingindo toda a perspectiva da ordem

jurídica, a correlação tempo-direito é de reflexopreponderante no plano constitucional. É quea Constituição, abrangendo o complexo dasrelações humanas, entre seus múltiplos fins,visa, de modo superior, dar estabilidade àsinstituições e segurança à vida individual ecoletiva.

Não se há de confundir estabilidade esegurança com imutabilidade. Os fatos daexistência do homem são variáveis no espaço eno tempo, não podendo revestir-se de inalte-rabilidade, também, as normas que os disci-plinam. Para que sejam eficazes na garantia depermanência da normalidade política e social,os preceitos constitucionais variam de sentidoe de dimensão. Há mudanças formais, resul-tantes de emenda ou de revisão, e mudanças

informais, originárias de exegese ou decostume. Apesar do estilo enumerativo que acaracteriza, a Constituição de 1988 declara, nomesmo critério das anteriores, que os direitose garantias expressos em seu texto “nãoexcluem outros decorrentes do regime e dosprincípios por ela adotados, ou dos tratadosinternacionais em que a República Federativado Brasil seja parte” (art. 5º, § 2º). Logo, pelaprópria estrutura do sistema, o conteúdo daConstituição pode ser enriquecido por inter-pretação construtiva, de sorte que o valorestabilidade não traduz fixidez absoluta, masconstância de contextura flexível. Mais do quedas leis, de modificação fácil, é da índole dasConstituições esse tipo de compreensão, paraque lhes seja proporcionada sobrevivência acavaleiro de reformas, em regras complexas.

Há sempre nelas um terreno livre àinterpretação. Conquanto reconheça-se que“mais do que o moralista ou o político, o juristase preocupa, e com toda a razão, com asegurança jurídica”, Chaïm Perelman observaque essa posição não elimina “a intervençãode qualquer julgamento, substituindo os juízespor computadores na administração dajustiça”2. Vale dizer que a estabilidade, nãosendo um conceito rígido, é medida segundo aintensidade de fatos relevantes, que modelama convivência no Estado e na sociedade.

Por implicar estabilidade, portanto, aConstituição não há de ser interpretadalimitadamente, ou seja, sem alcançar arealidade nova, provinda de fatos relevantes.Se nela se inscrevem, no correto dizer deBurdeau, as regras que a situam “ao abrigo dasflutuações da vida política corrente”3, no seusistema se hão de divisar, em princípio, asnormas suficientes à regulação de fatosmutáveis. Não podendo estancar a vida, e sendoantes um instrumento para orientá-la, aConstituição forma um tecido elástico, que sedesdobra em função de mudanças sensíveis nocorpo social e do Estado. Conseqüentemente,há de extrair-se dela o máximo de forçanormativa, em paralelo com as inovaçõesemergentes da sociedade. Assim a Constituição,como Lei Fundamental e extensiva a todos osgrupos sociais, renova-se, sem alteração de seutexto, para atender a necessidades diversas, que

1 LIMA, Ruy Cirne. Sistema de Direito Admi-nistrativo brasileiro : introdução. Porto Alegre :Gráf. Santa Maria, 1953. v. 1, p. 242.

2 PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. Traduçãode Maria Ermantina Gabão G. Pereira. São Paulo :Martins Fontes, 1996. p. 659-660.

3 BURDEAU, Georges. Traité de sciencepolitique. Paris : LGDJ, 1969. T. 4, p. 201.

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hão de ser amplas, e não expressões apenas davontade de governantes ou da ânsia de grupos.Parcialidades não devem servir de suporte,salvo em situações excepcionais, para alterar asubstância das Constituições.

Quando ocorre grave desequilíbrio entre aConstituição e os fatos, ou se apura omissãoinsanável por exegese, é que se legitima areforma, com o cuidado de não adulterar-se osistema, na sua letra e no seu espírito. Em tese,tal situação requer decurso de tempo e aocorrência de fenômenos e circunstâncias,indicativos da necessidade de norma inovadora.

Procedem assim os povos que não subme-tem seu destino a aventuras reformistas. AConstituição americana contará em setembroexatos 216 anos, e vigora com apenas 27emendas. Não é que seu conteúdo real seja omesmo de 1787: a interpretação judicial lhe temdado dimensão diversa, segundo as verdadeirasmudanças na ordem sócio-econômica e cultural.Basta que se atente no reconhecimento amplo,em nossos dias, dos direitos civis. De 1947 é aConstituição italiana. Em que pese à ebuliçãopolítica e social que vem abalando essa naçãoeuropéia, sua estrutura constitucional não foidesfigurada. Mesmo com o surto liberalposterior à queda dos sistemas comunistas doLeste do continente, preservou o poder deinterferência do Estado na esfera econômica.Fê-lo para garantir programas e seus finssociais, como estipulado no art. 41, ou paraassegurar o apoio estatal à gestão das empresas,em benefício dos trabalhadores, consoanteprevisto no art. 46. Da Constituição francesade 1958 se disse que não sobreviveria a DeGaulle, tanto com o dele o seu pensamento seidentificava. A caminho de quarenta anos deadotada, aplicada por presidentes de tendênciasvariadas, inclusive um socialista, não sofreualteração nos seus lineamentos básicos. Aprincipal mudança, provavelmente, propostapor De Gaulle, foi para aperfeiçoá-la, subme-tendo ao sufrágio universal a eleição doPresidente da República. As modificaçõessugeridas pelo Presidente Mitterrand – o grandeantagonista do General –, ainda não foramvotadas. Reconheceu ele a controvérsia atualsobre a duração do mandato presidencial de seteanos, com direito à reeleição. Não propôs,porém, novo período. Embora lhe parecesse quedevia ser mais longo que o do deputado,lembrou que havia escrito, em 1988 – epermaneceu fiel a essa postura ética –, quedeixava à deliberação “do Parlamento e das

grandes formações políticas determinar, por umacordo tão amplo quanto possível, a duraçãoconveniente”4. Resultante de revolução quesoterrou regime de índole fascista, a Consti-tuição portuguesa de 1976 já passou por trêsrevisões, mas que lhe aperfeiçoaram e nãodeformaram o texto. Foram suprimidosexcessos da fase de turbulência, como oConselho da Revolução, fortalecida a demo-cracia e feitas adaptações tendo em vista aconsolidação da unidade européia. Subsistemsuas linhas mestras, mesmo quanto às normasde conteúdo econômico, quais as dos arts. 80 e91, garantidoras da presença do Estado nacorreção dos contrastes da sociedade. Supe-riormente prevalece o princípio da “subor-dinação do poder econômico ao poder políticodemocrático” (art. 80, a). A Constituiçãoespanhola é de 1978. Sobrevive, também, comsuas linhas originárias. Por seu art. 128reconhece “a iniciativa pública na atividadeeconômica” e permite que o Estado, “mediantelei, se poderá reservar ao setor público recursosou serviços essenciais”, inclusive em forma demonopólio, como autoriza “a intervenção emempresas, quando o exigir o interesse geral”.O vivo contraste das forças políticas espa-nholas não propiciou a perversão do textoconstitucional.

Assim, as Constituições se renovam, semperda de sua identidade e do caráter estável dosinstitutos e princípios por elas criados. Dobram-se aos fatos relevantes, não às circunstâncias,nem às pretensões passageiras.

4. Gerando a instabilidadeA Constituição brasileira ainda não

completou dez anos de vigência e lhe faltammuitas leis complementares, nela previstas. Jálhe foram incluídas, porém, quinze emendas.Entre elas assinala-se a que imprimiu sentidoneoliberal ao texto, extinguindo monopólios doEstado e vantagens atribuídas às empresasbrasileiras diante das organizações estrangeiras.Outras emendas, originárias do Poder Execu-tivo, estão em curso, concernentes à reformaadministrativa, à previdência, e ao sistematributário. Propostas sem coordenação com asociedade e as forças políticas transitaminseguramente, com sugestões contraditórias e

4 Propositions pour une révision de la Consti-tution -15 février 1993. Comité consultatif pour larevision de la Constitution, presidé par le doyenGeorges Vedel – La Documentation Française, Paris,1993, p. 11.

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objeções de desrespeito a direitos adquiridos.Se não são rejeitáveis de plano, também nãoconquistam efetivo apoio coletivo. Mesmo areforma tributária, que deveria ser prioritáriapara corrigir o desequilíbrio financeiro dosEstados e Municípios, em agravamentoperigoso, desdobra-se com desalento para oespírito federativo, por escassez de enten-dimento entre a União e as entidades congre-gadas. De origem parlamentar, há cerca dealgumas centenas de propostas de emendas, nasduas Casas do Congresso Nacional.

O amontoado de emendas aprovadas e depropostas apresentadas, sem hierarquia deimportância nem convencimento de suanecessidade, amortece o sentimento consti-tucional, pela descrença criada na supremaciadas normas fundamentais. Perdendo firmeza,a ordem reguladora transforma-se em insta-bilidade de princípios.

Esse é um mal de efeitos extremamentedanosos, porque alui a consciência geral eprovoca desânimo de difícil reversão. Comoponderou Rui Barbosa, “uma vez desencadeada,a soberania da conveniência política nãoconhece limites: rota a cadeia das garantias,não há uma só, que se não perca”5.

Tanto que, agora, antes de concluir-se aapreciação de outras emendas de sentido amplo,sobreveio a da reeleição dos governantes. Senão envolve postulados doutrinários oufilosóficos, destrói uma tradição republicana,e está em marcha de adoção sem ser precedidada reforma política, indispensável ao fortale-cimento dos partidos, bem como do espírito decidadania, sobretudo nas regiões menosdesenvolvidas. Abre-se caminho, portanto, aregime de maior facilidade de pressão políticae eleitoral, e que pode caracterizar-se ainda pordesigualdade entre os candidatos, um nogoverno e outros na planície, se prevalecer oanômalo critério da desnecessidade de desin-compatibilização.

Urge que o legislador federal não esqueça oexemplo do Pacto de Pedras Altas, com queem 1923 o espírito público rio-grandensedeterminou a reforma da Constituição estadual,exatamente para proibir a reeleição dopresidente do Estado. Se bons precedentesproliferam, evitam-se mudanças inesperadas eprejudiciais à segurança e ao aperfeiçoamentodas instituições jurídicas e políticas.

5. Transição interminávelNa atual conjuntura, a sobriedade nas

reformas institucionais é tanto mais indecli-nável porque, sobre serem exigidas medidas deordem econômica e social, corretivas dedisparidades injustas, ocorre que a Nação viveem transição de princípios básicos há 50 anos.

Sem dúvida, – já acentuamos noutro texto –com o fim da guerra, em 1945, ter-se-ia querestaurar a democracia, o que pressupunhamedidas legislativas e constitucionais renova-doras. Justificaram-se, naquele momento, osatos que asseguraram a convocação e ofuncionamento da Assembléia Constituinte, deque emanou a Constituição de 1946.

Promulgada essa Constituição, originária deórgão formado pela vontade popular, era naturalque a Nação esperasse largo período deestabilidade das instituições. Sobrevieram,porém, as crises. Primeiro, a cassação doregistro do Partido Comunista e a declaraçãode perda dos mandatos de seus representantes.Depois, a deliberação de impedimento de doispresidentes da República, em 1955, claramenteà margem da Constituição. Em 1961, com arenúncia do Presidente Jânio Quadros, e emface da objeção militar à posse do Vice-Presidente João Goulart, construiu-se o artifíciode transformar o regime presidencial em regimeparlamentar de governo. Sem preparo daopinião pública e pela vacilação do Parlamentodiante da determinação do presidente emexercício, o Ato Adicional nº 4 foi revogadoem 1963. E sem ter oportunidade de provar suasvantagens, o parlamentarismo foi abolido.Iniciou-se, então, um processo de transição,pelas incertezas que envolviam o mecanismodo regime. Ainda em 1961 foi promulgada aEmenda nº 5, que instituía nova discriminaçãode rendas em favor dos Municípios. Em 1963,a Emenda nº 6, ordenando que em caso deimpedimento ou vaga do Presidente e do Vice-Presidente da República, seriam chamados aoexercício dos cargos, sucessivamente, oPresidente da Câmara dos Deputados, oPresidente do Senado Federal e o Presidentedo Supremo Tribunal Federal. Já era manifesta,contudo, a debilidade das instituições.

Com o movimento militar de 1964, editadoo Ato Institucional, que se superpôs à Consti-tuição e instaurou o poder discricionário,reabriu-se, agravada, nova fase de transição. AConstituição de 1946 foi reiteradamentemodificada, como convinha ao domínioestabelecido.

5 BARBOSA, Rui. Anistia inversa. 2. ed. Riode janeiro : Typ. do Jornal do Comércio, 1896. p.120.

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Sob limites prescritos pelo Ato Institucionalnº 4, de 1966, o Congresso Nacional foi convo-cado extraordinariamente para elaborar “umaConstituição que, além de uniforme e harmô-nica”, representasse “a institucionalização dosideais e princípios da Resolução”. Adveio daía Carta de 1967, que consagrou quase todos osobjetivos do movimento militar, e também nãofoi obedecida e respeitada. Datada de 24 dejaneiro de 1967, sobre ela incidia, em dezembrode 1968, o Ato Institucional nº 5, que até pelaseqüência numérica indicava a continuidade ouo restabelecimento do mando sem peias. Era,pois, outro período de transição que seinaugurava, e durou até a posse do PresidenteJosé Sarney.

Por este convocada Assembléia Cons-tituinte, e eleita, foi elaborada a Constituiçãode 5 de outubro de 1988, que nessa data entrouem vigor. Diante da extensa fase de insegurançae sobressalto, a sociedade brasileira confiava,outra vez, em que havia chegado o instante deconvívio tranqüilo. Não o permitiu a situaçãoem que foi envolvido o governo do primeiropresidente eleito conforme o novo sistema.Apesar disso, os mecanismos constitucionaisforam acionados, e à base deles decretado oimpeachment do presidente. Se nem tudooperou regularmente, não houve desrespeitoindiscutível à soberania da Constituição, queassegurou a posse tranqüila do vice-presidente,para o término do mandato.

Por esses fatos e pela vitória soberanamenteobtida nas urnas, o novo presidente assumia ogoverno na expectativa geral de promotor daestabilidade, longamente perturbada. Consti-tuinte de relevo, não se lhe atribuía o propósitode reforma em grosso da Constituição, emboraadmitida a iniciativa de alguma emenda demaior urgência.

O intuito reiterado de modificações substan-ciais no texto recente, inclusive na ordemeconômica, segundo já salientado, significousurpreendentemente o prolongamento datransição, que continua.

De outro ângulo, com a reabertura ines-perada da transição, situações jurídicasconsolidadas, expectativas de direitos e deemprego são ameaçadas por emendas consti-tucionais e até por medidas provisórias. Se nemtudo que é objeto dos atos legislativos se revestede ilegitimidade, ou merece repulsa, neles hámuito de surpresa, inconciliável com amoderação democrática.

6. Lição de bom sensoO exemplo das democracias referidas é

prova, entretanto, de que transformaçõeseconômicas e sociais podem ser efetuadas semmutilação da estrutura constitucional. Espanhae Portugal, singularmente, são expressivasdessa situação: suas Constituições se incluementre as mais recentes, ambas de inspiraçãosocialista, prevendo obviamente a intervençãodo Estado no domínio econômico. Nenhumadelas suprimiu ou reduziu a autoridade do poderpúblico nesse campo. Não as violentou oneoliberalismo, nem a política de globalização.Embora nos dois Estados tenha havidoalternância de poder, de governo socialista paraconservador, governantes e legisladorescompreenderam a necessidade de evitar quetendências políticas e econômicas, variáveis pormotivos internos e externos, acarretassemruptura da unidade da ordem legal – base dodesenvolvimento democrático.

Destinadas a durar, as Constituições, semdesfigurar-se, devem ser receptáculos dos fatos,para os disciplinar, compatibilizando o racionalcom a realidade. Assim se impede ou se atenua“a revolta dos fatos contra os códigos”, ao tempoem que se mantém a autoridade destes,garantidora da submissão de todos à convi-vência regulada por provisões permanentes.

É oportuno lembrar que Rui Barbosa,quando tentou rever a Constituição de 1891,tendo sido seu principal elaborador, visavamantê-la, atualizando-a. Supria as deficiênciasverificadas. Na campanha presidencial de 1910,o que o inspirava era fortalecer o mecanismojurídico do Estado, para o que propugnava,entre outras medidas, a unificação do direitode legislar sobre processo, a previsão de leiconstitucional sobre o estado de sítio, ou aproibição de serem incluídas no orçamento“disposições estranhas aos serviços gerais daAdministração”. Na campanha de 1919, seuobjetivo essencial foi demonstrar a necessidadede inserção na Constituição dos novos direitossociais, nomeadamente os direitos dos traba-lhadores, que enumerou com impressionanteantecedência e amplitude6. Num como noutromomento, complementava o texto, não osubvertia. E discutia publicamente as emendas,expondo-as nos comícios.

6 Idem. Excursão eleitoral. Rio de Janeiro :MEC, 1967. p. 31-42 (Obras completas, v. 37, t. 1,1910); Campanha presidencial. Rio de Janeiro : MEC,1956. p. 85-108. (Obras completas, v. 46, t.1, 1919).

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7. Necessidade de mudança de rumoA Constituição brasileira, se contém normas

em demasia, também prevê, em múltiplascláusulas, a feitura de leis complementares. Pormeio delas, e à luz da interpretação inteligente,regras podem ser delimitadas, alargadas, ouesclarecidas. Há, pois, espaço extenso paraadaptações adequadas. É inútil a precipitaçãode elaborar continuamente novas normas,porque, como criação de uma época, o direitoestará sempre em atraso com os fatos, denascimento irrefreável. Por igual há deentender-se que ao prever a Constituição planose diretrizes para a ordem econômica, como nosarts. 48 e 174, não impede nem estrangula ainiciativa privada: condiciona seu proceder aointeresse coletivo. É que não há ordem legítima,do ponto de vista jurídico e ético, se interessesisolados ou de grupos preponderam sobredireitos da sociedade. Ademais, não são asnormas em si que promovem o desenvol-vimento, mas a energia e a argúcia dos que nelase inspiram e se arrimam para a construção dobem geral. A Constituição não impediu que seinstituísse o Plano Real, nem se adotassem asprovidências convenientes para conter ainflação.

Num denso livro de 1996, feito de obser-vações, de números, de comparação dediferenças e semelhanças, e de profundasreflexões, Henri Bartoli examina a crise docapitalismo e da sociedade contemporânea, emtodas as latitudes. Distanciado de dogmas,porém resolutamente, salienta que, apesar desucessivos documentos, da Carta do Atlânticode 1941 à Declaração das Nações Unidas de1948, e de outros textos, “os direitos sem cessarafirmados são alienados na sua existênciaquotidiana”. Como enunciou no pórtico doestudo, preconiza a necessidade de “umapolítica de civilização em que a economiareencontre seu sentido pleno de serviço da vidae do desenvolvimento humano”7. Equivale dizerque não basta mudar a expressão visível dodireito e da economia. É fundamental imprimirao sistema normativo o espírito e o vigor quefaçam dele instrumento a bem do homem, comoser e integrante da comunidade, e não nacondição de titular de privilégios grupais.

É mudança de rumo dessa natureza queexige o trato da Constituição brasileira, nãoaplicada com vigor e sujeita a reformasdissociadas de seu contexto. Extrair dela osprocedimentos compatíveis com seus fins e asnecessidades sociais e culturais, é dever dointérprete e aplicador, antes de pensar naalteração de sua letra. Não demonstrado, atépelo curto prazo de sua vigência, que aConstituição seja imprópria, urge dar-lheefetividade, corrigindo naturais falhas pelaexegese finalística. A alteração formal deve serreservada às hipóteses em que a interpretaçãonão possa suprir a deficiência. A Constituição,por exemplo, nos seus arts. 184 a 191, encerraas normas essenciais para que a reforma agráriase torne um programa social vigoroso, qual seimpõe, e não apenas um processo de assen-tamentos sem continuidade nem recursosdevidos. Quando, também, a Carta declara, noart. 207, que “as universidades gozam deautonomia didático-científica, administrativa ede gestão financeira e patrimonial, e obedecerãoao princípio de indissociabilidade entre ensino,pesquisa e extensão”, traça os pontos cardeaisda educação superior. Não é razoável ques-tionar, para rever, esse mandamento, queautoriza todo o desdobramento aconselhável emlei específica.

Insistir em novas emendas, em nome deindefinida modernidade, é desserviço à solidezdas instituições, a que se vêm retirandoelementos indispensáveis à sua eficaz atuação.Sejam quais forem as divergências ideológicas,a experiência revela imprescindibilidade doEstado jurídico e politicamente robusto, comofreio e fator de equilíbrio, diante das desi-gualdades sócio-econômicas e culturais.

No capítulo “compreender e governar”, desua obra altamente esclarecedora, Henri Bartoliindica subsídios valiosos à demonstração dacerteza dessa tese. Assinala que a lógica do livremercado é produzir “lucro”, e que o pobre nãotem senão “seu braço e seu modesto saberfazer”. Realça que “a política é de mais altonível que a economia”. Afirma que “o fim diretodo Estado é conduzir ao mais elevado grau asociabilidade humana, ordenando o bemcomum da sociedade inteira”. Em remate,acentua que o Estado reduz as “assimetriasnegativas”. E depois de comentar que lavra um“medo” do Estado pela recordação do regimetotalitário, conclui:

“Todo o problema hoje é restituir aoEstado sua legitimidade, reorganizá-lo

7 BARTOLI, Henri. L’economie, service de lavie : crise du capitalisme : une politique decivilisation. Presses Universitaires de Grenoble,1996. p. 49 e 23.

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e recompor a democracia, a fim de queele possa desempenhar, plenamente, seupapel na nova fase de desenvolvimentodo capitalismo em que ingressamos, naqual se trata de modificar-lhe o curso,em função do progresso do homem”8.

Dentro desses pressupostos irrefutáveis,cumpre restabelecer o conceito e o prestígio doEstado de Direito no Brasil, prejudicados comreformas sucessivas e intermináveis. Se seretifica o curso do capitalismo para fazê-lorespeitar o desenvolvimento humano, e se a estedesenvolvimento serve a Constituição de 1988,por seu manifesto conteúdo social e demo-crático, cumpre limitar as emendas às queforem consensualmente admitidas. Entrandoem eclipse o neoliberalismo, e reconhecido, jáque a globalização há de ser aceita segundo ascondições peculiares a cada povo, e se aConstituição tem amplitude modernizadorainegável, perseverar em mudanças impostasnão é aperfeiçoá-la, antes rejeitá-la.

Mas as Constituições ilegítimas, produto doarbítrio, é que podem ser renegadas. As deorigem democrática, provindas de assembléiapopular, como a nossa, devem ser obedecidas,até para sua alteração. Essa é a forma degarantir-lhes a estabilidade, que conduz aodesenvolvimento dentro da ordem.

Entre nós, a estabilidade institucional étanto mais relevante em face das contradiçõesnacionais.

“O Brasil – observa e resume comautoridade Celso Furtado, em estudorecente – o Brasil é uma sociedade emconstrução, que tem heterogeneidadesbrutais. Nesse caso, as responsabilidadesdo Estado, como fiscal da sociedade, sãomuito maiores. Ninguém pode corrigiras desigualdades que existem no Brasil,

senão por intermédio do Estado. Omercado não só não poderá fazê-lo, comotende a agravar as desigualdades sociais.Todo país subdesenvolvido tem que fazerum esforço ordenado para sair dosubdesenvolvimento por intermédio deuma política que assume a sua formamais acabada num plano, e só o Estadopode comandar esse processo”9.

Essa política de visão social, por ser contráriaa privilégios e a lucros desmedidos, só seráexeqüível, logicamente, na prática de umaConstituição democrática, fortalecida pelorespeito permanente às suas diretrizes básicas.Constituição dessa natureza repousa no Estado eo sustenta. Nele repousa por ser o mecanismopreeminente que impulsiona as políticas públicas.Sustenta-o porque legitima o procedimento dopoder organizado, fundado no direito.

A Constituição de 1988, sem embargo dealterações que resultem de consenso, tem taldimensão e atende literalmente a esses objetivossuperiores de uma política social esclarecida.

8. Reformar não é repudiarConferir-lhe estabilidade é do interesse do

País e de seu povo. Estabilidade não haverá,porém, sob o rolo incessante de emendascontrárias a seu sistema, e que não seenquadram no legítimo poder de reforma.

É preciso observar-se o princípio de saber eexperiência, defendido por Joaquim Franciscode Assis Brasil e relembrado por PauloBrossard, num livro de pesquisa e admiração:“Reformar não quer dizer repudiar”10.

A Constituição, porém, é objeto de repúdio,na sucessão de tantas emendas. Cumpredefendê-la, enquanto não a destrua o pragma-tismo.

8 Ibidem, p. 324, 335-336.9 FURTADO, Celso. A dívida social e a

degradação do Estado. Brasil Mais, n. 1, p. 5-9, cit.p. 8, jan. 1997.

10 BRASIL, Joaquim Francisco de Assis. Idéiaspolíticas de Assis Brasil. Organização de PauloBrossard. Brasília : Senado Federal; Rio de Janeiro :Fundação Casa de Rui Barbosa, 1990. v. 1, p. 201 :Estudo introdutório.

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1. IntroduçãoA temática ensino jurídico, envolvendo a

segunda profissão mais antiga do mundo,sempre será de irrecusável atualidade erelevância, pois dentre todos os cursossuperiores, o de Direito é o único que forma,com exclusividade, os integrantes de um dospoderes do Estado (o Judiciário), e trata damatéria-prima de outro poder (a lei, para oLegislativo). Configura-se, assim, a formaçãojurídica como essencial para moldar profis-sionais capazes de tornar menos iníquo e maishumano o perfil da sociedade brasileira, aotransfundir o Direito de um “saber de erudição”em “saber de aplicação”.

Longe de idolatrar as concepções legalistae de coerência lógico-formal da paisagemjurídica, não se pode descartar a perspectivatotalizadora e abrangente que estas propiciam.Com efeito, o Direito tem uma completude ouplenitude inalcançada por qualquer outra áreade estudos, dado que regula, sem exceção, todasas condutas humanas que sempre se cate-gorizam como proibidas ou então quadram-secomo permitidas, de forma expressa ouimplícita. Ou seja, não há conduta humanaalheia, indiferente ou refratária ao campojurídico. Registre-se, nesse passo, que no campodo Direito Público prevalece o postulado dalegalidade, em que só se pode fazer aquilo queestá expressamente previsto e autorizado emlei. Já na órbita do Direito Privado ressai o

Novos parâmetros educacionais para ocurso jurídico

ÁLVARO MELO FILHO

Álvaro Melo Filho é Diretor da Faculdade deDireito da UFC, Mestre e Livre-Docente em Direito,Advogado, membro das Comissões de EnsinoJurídico e de Exame de Ordem do Conselho Federalda OAB e autor de 22 livros da área jurídica.

SUMÁRIO

1. Introdução. 2. Autorização e reconhecimentode cursos jurídicos. 3. Diretrizes curriculares parao curso jurídico. 4. Avaliação institucional doscursos jurídicos.

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princípio da licitude em face do qual tudo quenão está proibido nem vedado em lei estápermitido.

Mesmo diante da magnitude do papel docurso jurídico e da dilargada amplitude doDireito, são persistentes e recorrentes as críticasque apontam para a crise de um ensino jurídicoque não forma, mas “deforma”, ou de umensino que não produz saber jurídico, masapenas o “reproduz”. Aliás, para que os cursosjurídicos elidam sua desfuncionalização, nãopodem ficar adstritos, por exemplo, aos direitosde 1ª geração (direitos civis e políticos) nosquais a liberdade é o valor-guia, nem delimi-tados aos direitos de 2ª geração (direitoseconômicos, sociais e culturais) que têm, naigualdade material, seu valor subjacente. Hão,por imperioso, de albergar também os direitoscategorizados como de 3ª geração (direitos dodesenvolvimento, de paz, do meio ambiente eda fraternidade) e os direitos concebidos peloProfessor Paulo Bonavides como de 4ªdimensão (direito à democracia, direito àinformação e direito ao pluralismo) que tendema se cristalizar neste final de século, fundados,respectivamente, nos valores da solidariedadee da participação.

Impõe-se, nesse contexto, que as quatrogerações ou dimensões dos direitos sejaminsculpidas e disseminadas nas matériasintegrantes da grade curricular mínima, únicaforma de ajustar os cursos jurídicos àscontingências do mundo contemporâneo parapropiciar novas formas de tratamento dasrelações humanas e dos problemas institu-cionais que hoje são significativamentediferentes. Por isso mesmo, não há mais habitatpara um ensino jurídico reduzido a categoriastradicionais, modelos fechados, posturasformalistas e soluções abstratas.

Outrossim, não se pode fazer tabula rasado pernicioso “pacto de mediocridade”, frutode uma indecorosa e sub-reptícia cumplicidadeentre professores que fingem ensinar e alunosávidos tão apenas pelo diploma. Nessa diretrizé preciso derruir o “faz-de-conta” e os “pontosde fuga” dos atores de um ensino jurídico que“se destaca pelo envelhecimento de seusesquemas cognitivos e pelo esgotamento de seusparadigmas”. De um lado não há mais locuspedagógico para os docentes de Direitoatrelados ao universo técnico-formal e porta-dores do vírus metodológico de dogmatizar suavisão dos problemas, difundindo-a como averdadeira, a melhor e a definitiva, criando,

assim, um terreno fértil onde brotam, porexemplo, a fantasia da segurança jurídica e asinonímia entre lei e Direito. De outra parte,não há mais ambiência para alunos de Direitojungidos ao “mito da norma pura, privada deconteúdo”, sem compreender, por exemplo, asrepercussões jurídicas dos processos deglobalização, deslegalização e desconstitucio-nalização que conduzem a uma sociedadefragmentada e individualista, sem limites nemregras, e onde a glorificação da lex mercatoriaacirra a competição, fortalece o egoísmo eesfacela os laços humanos.

São essas dissintonias metodológicas econteúdos petrificados os responsáveis maiorespor um “Direito que se Ensina Errado” (R. LyraFilho) e que se reflete num aprendizado tópico,superficial, acrítico e “preso a abstrações derealidades mortas, no comodismo da rotina eno temor da novidade”. Inobstante às mutaçõesocorridas na era “digital”, é visível o arcaísmodo ensino jurídico tanto pelo apego fetichista àretórica vazia, quanto pela predominância do“saber jurídico empacotado” responsáveis pelosimulacro de uma educação jurídica que nãoconduz o discente a “aprender a aprender”.Acentue-se que esta desarticulação do “queensinar” e do “como ensinar” ganha contornosmais nítidos quando, nas aulas de Direito,prevalece “no lugar dos fatos a versão, no lugarda teoria a opinião e no lugar do modeloepistemológico entroniza-se o mais deslavadosenso comum”.

Promana, então, da convergência destesanacrônicos e centenários problemas juspe-dagógicos a “desqualificação” e “descrédito”atribuídos a cursos jurídicos, não raro ridicu-larizados por um anedotário indicativo derealidades tragicômicas:

a) A um aluno foi perguntado qual adiferença entre furto e roubo.

Resposta: “O furto acontece de dia e o roubode noite”.

b) No Exame de Ordem, o candidatoindagado sobre o prazo para se interpormandado de segurança, apelação, embargosdeclaratórios, recurso extraordinário e açãorescisória deu a mesma e uniforme resposta atodas as perguntas: 24 horas.

O examinador disse-lhe que ele não sabiaprazo nenhum. E o examinado replicou: “Mastambém não perco nenhum prazo”. Foiaprovado.

Deixando a latere estas chacotas revela-doras das “doenças” e vícios pedagógicos que

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contaminam e afetam a qualidade dos cursosde Direito, atente-se para os aspectos maisrecentes da política educacional do GovernoFederal com reflexos diretos no ensino jurídico.

2. Autorização e reconhecimentode cursos jurídicos

Por força do art. 11 do Decreto nº 2.207, de15.04.97, a criação e o reconhecimento decursos jurídicos em instituições de ensinosuperior depende de prévia manifestação doConselho Federal da OAB.

Essa manifestação sobre a viabilidade, ounão, da criação ou reconhecimento de cursosjurídicos deve ser feita no prazo máximo de120 dias, e, o parecer da OAB, se favorável,dispensa a análise do Conselho Nacional deEducação, quando se tratar de criação de cursosjurídicos em universidades.

Acresça-se que é incogitável argüir-secorporativismo ou “reserva de mercado” doDireito (por meio do Conselho Federal daOAB), conquanto Medicina, Odontologia ePsicologia (por meio do Conselho Nacional deSaúde) têm idêntica prerrogativa legal paraautorizar, ou não, o surgimento de novos cursossuperiores nestas áreas, hipótese antes privativado Estado, mediante o antigo CFE, agoranominado de Conselho Nacional de Educação.Sinale-se, por oportuno, que a participação daOAB, como instância primeira dos processosde autorização e reconhecimento, exsurge comoinstrumento preventivo e inibidor de “nego-ciatas” na concessão de “carta patente” a cursosjurídicos. Percebe-se, assim, que além deassegurar um mínimo de transparência, a OABpassa a representar a própria sociedade nafiscalização, controle e busca da qualidade doensino jurídico.

No nosso País funcionam atualmente 250cursos e Faculdades de Direito entre autorizadose reconhecidos, enquanto os americanos têm71 cursos a menos, existem hoje 179 escolasde Direito nos EUA. Apesar da manifestasaturação da oferta de cursos jurídicos no Brasil,somente no 1º semestre de 1997, chegaram paraanálise da OAB federal nada menos que 504projetos para autorização e abertura de novoscursos de Direito. Desse conjunto, apenas seispedidos aguardam uma verificação in loco emais aprofundada, sendo que 498 foramrecusados, liminarmente, por não preencheremos parâmetros e critérios mínimos de qualidade

fixados pela Comissão de Ensino Jurídico daOAB federal, que exige comprovação de:

- necessidade social do curso;- qualidade do projeto pedagógico (número

máximo de 40 alunos em cada sala, gradecurricular, “novos direitos”, áreas de habilitaçãoespecífica, etc.);

- composição, regime de trabalho e quali-ficação docente;

- biblioteca jurídica atualizada;- atividades complementares integrando e

articulando ensino, pesquisa e extensãojurídicas;

- infra-estrutura para assegurar efetivaprática jurídica;

- critérios definidores da monografiajurídica final.

A sociedade clama por eficiência, produ-tividade e qualidade das instituições de ensinosuperior – inclusive na área de Direito –, daíporque qualquer projeto de novo curso jurídicodeve refletir uma proposta contemporânea,comprometida com o cenário nacional einternacional. Para isso é preciso exigirestrutura curricular flexível e amoldada àstransformações que ocorrem com velocidadecada vez maior, montar bibliotecas com acervosrepresentativos e atualizados e investir naqualificação de corpo docente, buscando umamaioria de mestres e doutores, além deresponder às demandas e necessidades docontexto social onde a instituição se insere.

Não se está aqui a defender a burocratizaçãodo processo de criação de novos cursosjurídicos, nem se tem em mira qualquerproposta de elitização do ensino jurídico, tantoque devem ser acolhidos aqueles projetos quesejam efetivamente inovadores ou de qualidadesuperior àqueles cursos já oferecidos.

O que se pretende é estabelecer, obje-tivamente, um padrão de qualidade e eficiênciaacima da média para a autorização ou reco-nhecimento de novos cursos jurídicos, con-quanto os atuais, anualmente, estão ofertando55.000 vagas de vestibular e “expelindo”, nomercado profissional, cerca de 31.000 novosbacharéis em Direito. Nesse passo, não há maisespaço pedagógico para expansão de novoscursos jurídicos sem o “selo de qualidade” ecujo investimento se reduza ao “cuspe e giz”.

Aliás, como o diploma de Direito tem tantovalor quanto a qualidade da formação jurídicarecebida, impõe-se, pelas renovadas vias deautorização e reconhecimento, detectar eobstacular os velados e nem sempre confes-sáveis interesses de cursos jurídicos emergentes,

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usando esta função credencialista estatal para“assegurar a isonomia de diplomas” e preveniro “estelionato educacional”.

Acresça-se, por oportuno, que a Lei nº9.131/95, mantida pela nova LDB, fixou anecessidade do recredenciamento periódico deinstituições, e, nessa linha, todos os reco-nhecimentos de cursos estão sendo dados porcinco anos e não de forma permanente e perene,como ocorria anteriormente. Esse mecanismoé salutar e de inescusável conteúdo pedagógico,pois vai impingir o aumento da eficiência e donível de responsabilidade social dos cursosjurídicos existentes, motivando-os a reformaras estruturas fossilizadas e compelindo-os apreparar profissionais de Direito para o mundoextremamente competitivo e exigente em quevivemos.

A par disso, o novo sistema de autorizaçãoe reconhecimento exsurge como instrumentovital para frear a mercantilização do ensinojurídico e tolher a proliferação massiva ,descriteriosa e criminosa de cursos jurídicosgeradores de bacharéis em Direito carentes deformação humanista, sem preparo crítico e comvisíveis deficiências técnico-profissionais.

3. Diretrizes curricularesdo curso jurídico

A Portaria nº 1.886/94 do MEC é o atonormativo onde estão explicitadas as novasdiretrizes e o conteúdo mínimo para o curso deDireito, vigente a partir do ano letivo de 1997.

Este novo “molde curricular” arquitetadosem preconceitos e sem mitos funda-se nosseguintes pressupostos:

a) romper com o positivismo normativista;b) desfazer a idéia de que só é profissional

do Direito aquele que exerce atividade forense;c) negar a auto-suficiência do Direito;d) superar a concepção de que só existe

educação jurídica em sala de aula;e) formar profissionais da área jurídica com

perfil interdisciplinar, teórico, crítico, dogmá-tico e prático.

Ressalte-se que a missão dos cursosjurídicos não se exaure apenas em formarprofissionais destros no manuseio e domíniodas normas vigorantes, das doutrinas consa-gradas e das jurisprudências predominantes.Impõe-se aos cursos jurídicos amoldar-se àsplúrimas, diferenciadas e globalizadas demandasda sociedade moderna, pois, no dizer de PauloLôbo, exige-se hoje do curso de Direito que

“informe e forme; que capacite o juristaa conhecer bem o sistema jurídicopositivo, em ato e potência, sem deifi-cá-lo; que estimule a produção de conhe-cimento novo através da pesquisa; quehabilite o profissional a transformar odireito em benefício do interesse de todaa sociedade e da emancipação dohomem”.

Nesse diapasão, o curso de graduação emdireito não pode mais limitar-se a ser merotransmissor exegético da codificação oficial,nem simples reprodutor de paradigmasjurídicos sedimentados, em prejuízo deatividades criadoras, das funções críticas e daprodução reflexiva e atualizada de conhe-cimento jurídico. É preciso “implodir” o ensinoarcaico e obsoleto que leva os futuros operadoresjurídicos a ver o direito unicamente na lei, amemorizar conceitos e clichês jurídicos, aextrair o direito tão apenas dos livros, aconfundir legalidade com legitimidade, asubstituir a ética no conteúdo do direito, a nãoenxergar o descompasso entre a teoria e apráxis, a superar o divórcio entre o jus conditum(direito estabelecido) e o jus condutum (direitoa estabelecer-se).

A Portaria do MEC nº 1.886/94 já estáproduzindo efeitos e compelindo a reconstruçãoe a alteração dos currículos jurídicos, tendocomo objetivos de maior realce:

a) tornar mais orgânicas, congruentes eflexíveis as grades curriculares, a fim de abrirperspectivas de tratamento interdisciplinar dojurídico, seja para derruir a concepção doDireito como fenômeno isolado, estanque edesconectado da realidade a que há de servir,seja para inibir a marginalização do jurídicono processo de mudança social;

b) equilibrar a antiga experiência humanistados anos 60 com a visão tecnicista em vigor nadécada de 70, sem a rigidez do currículotradicional e sem la libre configuración delcurriculum por el estudiante;

c) viabilizar a integração das atividades deensino, pesquisa e extensão na área jurídicapara que esta possa ser contemplada tanto nasua dimensão teórica (modo de conhecê-la),quanto na sua projeção técnica (modo de ope-rá-la);

d) concretizar a integração sistemática dasobrigatórias disciplinas jurídicas formativas einformativas, como também a ligação dosinstitutos jurídicos com suas tradições culturais,raízes econômicas e valores sociais;

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e) induzir o desdobramento das matériasprofissionalizantes em disciplinas cujaquantidade e carga horária estejam dimen-sionadas e compatibilizadas com os conteúdoscentrais e questões cardeais assecuratórias do“conteúdo mínimo” exigível para o cursojurídico;

f) enriquecer a grade curricular com ainclusão de disciplinas optativas, seja na áreadas fundamentais (Epistemologia Jurídica,Lógica Jurídica, História do Direito, Meto-dologia da Ciência do Direito, etc.), seja na áreadas profissionalizantes (Direito Econômico,Direito Bancário, Direito Previdenciário,Direito do Consumidor, Informática Jurídica,Técnica Legislativa, Crítica do DireitoSumular, etc.);

g) garantir flexibilidade e maleabilidade àmatriz curricular padrão, propiciando a ofertade, pelo menos, duas áreas de habilitaçãoespecífica ou especialização, que, sem com-prometer a visão global do Direito, incorporedisciplinas que atendam às exigências culturaisou regionais e estejam ajustadas às constantese variadas necessidades do mercado de trabalhoonde são ministradas;

h) assegurar que o Núcleo de PráticaJurídica exercite a função de verdadeirolaboratório no qual se vivencia o microcosmodos casos concretos, em sua dimensão técnicae em seu substrato sócio-político, elidindo apossibilidade de a formação profissional fazer-se tão apenas em salas de aula, até porque, nodizer de Holmes: The life of law has not beenlogic, it has been experience;

i) estimular a participação discente emconferências, debates, seminários, pesquisas,monitorias, projetos de extensão, bolsas deiniciação científica e matrícula em disciplinase temas interdisciplinares de outros cursos nabusca das interações e dos mecanismos comuns,computando-se tais atividades complementarescomo integrantes indissociadas da carga horáriae do currículo jurídico de cada aluno;

j) institucionalizar, pelo filtro da mono-grafia jurídica final, com defesa pública,autêntico “controle de qualidade” dos cursosjurídicos, motivando, paralelamente, a pro-dução científica discente.

Alie-se a estes aspectos curriculares aimperiosa necessidade de uma didática queconverta o aluno de espectador reverente empartícipe ativo do aprendizado, que se estimuleo raciocínio jurídico e a consciência crítica, paraque o discente seja um “engenheiro social” e

não um “robô jurídico” localizador do preceitonormativo para o varejo dos conflitos humanos.Outrossim, é preciso elidir o deletério ensino“nocionístico” e “cosmético” do Direito quegera somente “mutilados” formandos em“estado de indigência jurídica”, incapazes deequacionar problemas judiciais e de encontrarsoluções extrajudiciais harmônicas com asexigências de uma sociedade cada vez maisdiferenciada, complexa e competitiva.

Assim, as transformações provocadas pelaPortaria nº 1.886/94 não são apenas rotulares,semânticas ou epidérmicas, mas no próprioconceito de ensino jurídico, que, para seremancipatório, há de desempenhar tríplicepapel na modelagem de uma formação sócio-política, técnico-jurídica e prático-profissional,delineando um atualizado perfil para o bacharelde Direito do terceiro milênio, munindo-o dascondições mínimas e indispensáveis para fazera “desconstrução do velho e a construção donovo direito”.

4. Avaliação institucionaldos cursos jurídicos

A avaliação da qualidade do ensino ématéria que tem sede constitucional (art. 209,II) e suporte legal no art. 46 da nova LDB (Leinº 9.394/96) que prevê “processo regular deavaliação” para renovar a autorização oureconhecimento de cursos com prazos limi-tados, além do que a Lei nº 9.131/95, por forçada qual o MEC tem a competência para avaliare zelar pela qualidade do ensino, já foi declaradaconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal,na Adin nº 1.511-7-DF, relator Ministro CarlosVeloso, em sessão de 16.10.96.

É natural que o processo de avaliação sejarecebido com contestações e resistências peloscursos jurídicos, posto que, de avaliadoras –tanto do trabalho escolar dos discentes, quantoda atuação dos docentes e funcionários – asinstituições de ensino jurídico transfundem-seem avaliadas.

Como instrumento único da avaliação, o“provão” equipara-se, tão-só, a uma desfiguradafotografia, quando o processo avaliativo devecorresponder a um filme, propiciando umavisão contínua e multidimensional. Ademais,cometeu-se um erro estratégico ao transformaro “provão” num nocivo sistema de apenação,agravado pela inadequada e distorcida divul-gação, comprometendo, irremediavelmente, aimagem e reputação de bons cursos jurídicos.

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Isoladamente o “provão”, que verifica tão-só o desempenho dos alunos, além de ser umafalaciosa, limitada e incompleta avaliação doinstitucional pelo individual, não tem aptidãopara albergar a totalidade de variáveis queinfluem na qualidade do ensino, constituindo-senum diagnóstico de risível valor metodológicopara aferir as deficiências dos cursos, podendoaté ser configurado como uma mistificaçãoavaliativa, porque:

a) mede apenas os efeitos, mas não ascausas;

b) enfatiza uma avaliação monista, numasociedade pluralista;

c) busca quantificar a qualidade, ao invésde empenhar-se em qualificar a quantidade.

Agregue-se a estas fundadas críticas aconstatação de que, na seara do Direito, oprovão, de per si, não vai muito além daverificação do armazenamento de técnicasjurídicas, de respostas prontas ou mesmo deconceitos insculpidos na lei e na doutrina,transfigurando-se, assim, num paradoxal“vestibular de saída” ou “vestibular de final decurso”.

O “provão”, para os cursos de Direito, comquatro horas de duração, compõe-se de duaspartes:

- 40 questões objetivas;- 4 problemas ou casos jurídicos nas áreas

civil, penal, trabalhista e pública, entre os quaiso formando escolherá um deles para elaborarseu parecer.

A conceituação dos cursos jurídicos em facede seu desempenho no “provão” obedece àsseguintes etapas:

- a média de cada curso, individualmentemensurada, será o produto das notas obtidaspor todos os seus graduandos presentes ao“provão”;

- com base nos resultados obtidos no“provão” pela totalidade de cursos de Direito,e partindo-se da menor para a maior médiaaferida em cada curso, será elaborada umaescala para ordenação e posição percentual dasmédias;

- a seguir, será feito o enquadramento damédia individual do curso na escala, dondeexsurgirá sua posição relativa e correlacionadacom os resultados da totalidade de cursosjurídicos partícipes do “provão”.

Exauridas essas etapas, será possívelatribuir o conceito de cada curso jurídico no“provão”, conceito este que expressa sualocalização decorrente da inserção do resultado

comparativo em uma das cinco faixas depercentil, correspondentes a cinco grandesgrupos, de A a E:

A – curso cuja média situa-se acima de 88ºpercentil.

B – curso cuja média situa-se acima de 70ºe até 88º percentil, inclusive;

C – curso cuja média situa-se acima de 30ºe até 70º percentil, inclusive;

D – curso cuja média situa-se acima de 12ºe até 30º percentil, inclusive;

E – curso cuja média situa-se até 12ºpercentil, inclusive.

Deflui-se, assim, que foi criado umparâmetro de comparação entre os cursos quenão tem relação imediata com a nota (o conceitoA, por exemplo, não significa que o curso tirounota 10 ou 9 no “provão”, mas que se quadrano seleto grupo dos que obtiveram melhor notaque, em 1996, correspondeu a 12% dos cursos).

Por outro lado o “provão” (Exame Nacionalde Cursos), como se infere do Decreto nº 2.026,de 10.10.96, emerge como um (mas não oúnico) dos múltiplos instrumentos componentesda avaliação global, quer dizer, é parte de umprocesso mais amplo e diversificado deavaliação. E, com lastro neste Decreto nº 2.026/96, a Comissão de Especialistas do MECdesdobrou a avaliação dos cursos jurídicos emdois procedimentos autônomos e distintos:

a) avaliação externa contemplando indi-cadores pertinentes aos grupos Corpo Docente,Organização Didático-Pedagógica e Infra-Estrutura;

b) avaliação discente decorrente dosresultados obtidos no “provão”.

Convém destacar que os três (3) grupos deindicadores pertinentes à avaliação externaterão os seguintes pesos percentuais:

- Corpo Docente: 35% (para 14 indica-dores);

- Organização Didático-Pedagógica: 35%(para 5 indicadores e 33 subindicadores);

- Infra-Estrutura: 30% (para 3 indicadorese 30 subindicadores).

A atribuição de conceitos (A, B, C ou D)aos indicadores de cada grupo, multiplicadopelo peso de cada um deles, determinará a notaou classificação final da avaliação externa,observada a seguinte tabela:

A = 70% de conceitos A;B = 70% de conceitos A e B;C = 70% de conceitos A, B e C;D = menos de 70% de conceitos A, B e C.Havendo igualdade ou coincidência dos

conceitos resultantes das avaliações externa e

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discente (“provão”), a média é automáticaexpressando o conceito final e global alcançadopelo curso jurídico. Exemplo: AvaliaçãoExterna: B; Avaliação Discente (“Provão”): B;Conceito Final: B.

Se, todavia, houver divergência ou discre-pância entre os conceitos, como por exemplo,“C” na avaliação externa e “B” no “provão”,aplicar-se-á outra metodologia para deter-minação do conceito final e global, onde o“provão” coloca-se como um dos quatro (4)fatores, todos eles contribuindo com eqüitativospercentuais, a saber:

- Corpo Docente: 25%- Organização Didático-Pedagógica: 25%- Infra-Estrutura: 25%- “Provão”: 25%Após vincular o percentual de 25% ao

conceito já atribuído, em etapa anterior, a cadaum dos quatro (4) fatores mensurados, far-se-áo enquadramento dos resultados na mesmatabela adotada para a avaliação externa,chegando-se, assim, ao conceito final e globaldo curso jurídico. Exemplo: Corpo Docente: C(25%); Organização Didático-Pedagógica: B(25%); Infra-Estrutura: A (25%); “Provão”: B(25%). Conceito final: B (mais de 70% deconceitos A e B).

Esse modelo de “radiografia panorâmica”,dotado de múltiplos e contextualizados refe-

renciais do ensino jurídico, conjumina indi-cadores quantitativos e critérios qualitativospara que não resulte uma avaliação vesga,míope, unidimensional e incompleta. Impendenão desnaturar os objetivos da avaliação demodo a não convertê-la numa ferramentaperigosa, nem transformá-la em valorizadamoeda de troca na outorga de prestígio social e“acreditación profesional” a cursos jurídicos deduvidosa qualidade. Em conseqüência, além deabrangente e plural, deve ser o processo deavaliação entendido como tomada de cons-ciência e como instrumento de reflexão parasuperação de dificuldades e promoção damelhoria da qualidade do ensino jurídico.

Diante dos aspectos repontados, vê-se quea política do Governo Federal induz a um novomodo de pensar a educação jurídica compadrões elevados de qualidade. E, comoprelecionou Paulo Freire, em suas últimaslinhas escritas e não revisadas,

“se a nossa opção é progressista, seestamos a favor da vida e não da morte,da eqüidade e não da injustiça, do direitoe não do arbítrio, da convivência com odiferente e não de sua negação, não temosoutro caminho senão viver plenamentea nossa opção. É preciso encará-ladiminuindo, assim, a distância entre oque dizemos e o que fazemos”.

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1. IntroduçãoNo Brasil, o direito constitucional relativo

à liberdade do cidadão não é obedecido porgrande parte das autoridades que executam asprisões. As polícias judiciária e militar sãoconstituídas por pessoas despreparadas. Aignorância atinge tal monta que, muitas vezes,os seus executores pensam estar cumprindo alei. Sob a alegação de escassez de equipamentossofisticados no combate ao crime e a falta depessoal especializado, tais autoridadescometem as maiores atrocidades.

A Constituição Federal, em seu art. 5º, trazque

“Todos são iguais perante a lei, semdistinção de qualquer natureza, garan-tindo-se aos brasileiros e aos estrangeirosresidentes no País a inviolabilidade dodireito à vida, à liberdade1, à igualdade,à segurança e à propriedade...”

Sendo os agentes do Estado os maiores viola-dores da liberdade de ir e vir, como pode elequerer garantir essa liberdade? Pela nossaprática, qualquer resposta seria insatisfatória.Em verdade, existe um conflito entre a condutaestatal e a prescrita na lei. Por limitação depoderes, o Estado não pode restringir o direitode ir e vir de seus súditos. Em situações

RICARDO RODRIGUES GAMA

Ricardo Rodrigues Gama é ex-professor daUniversidade Estadual de Maringá-PR, Ex-professorda Universidade do Oeste Paulista-SP, Professor daFaculdade Anhangüera de Ciências Humanas-GO,Professor da Faculdade de Direito de Anápolis-GO,Professor da Universidade Católica de Goiás-GO,Parecerista, Articulista, Escritor Jurídico e Advo-gado.

A prisão no Brasil

SUMÁRIO

1. Introdução. 2. Espécies. 3. Autoridades. 4.Execução da pena. 5. Igreja Católica. 6. Recupe-ração de presos. 7. Criminalidade. 8. Legislador.9. Cadeias. 10. Presídios. 11. Literatura. 12.Conclusões.

1 Nosso grifo.

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especialíssimas, permite-se a prisão doindivíduo. Contrapondo a Constituição, existemmuitas prisões que fazem emergir o descaso doPoder Público com o segundo maior direitoinerente à pessoa humana, à liberdade. A vidaocupa o primeiro posto na importância dosdireitos individuais. Ao determinar o respeitoà liberdade, além de impor ao Estado a funçãode protetor desse direito, a Constituição limitaa sua atuação. Como legítimo escudeiro daliberdade, o Estado desenvolve a sua funçãocercado por suas próprias deficiências. Aproteção estatal à liberdade levou a crimina-lização das condutas a ela ofensivas, surgindoos crimes contra a liberdade individual. Entreesses delitos, o seqüestro e cárcere privadotornou-se muito popular nos grandes centros.E, com relação a esses crimes, tem-se tomadomuitas medidas de pouca eficiência. Narestrição de liberdade entre particulares, oEstado atesta o seu fracasso. No trato com aliberdade individual, o Estado, mais uma vez,mostra-se incipiente e despreparado. É precisomelhorar a própria imagem do Estado brasileiroperante seus governados. Não é possível acontinuidade da transgressão dos direitosinerentes ao ser humano, haja vista a ampliaçãoda insegurança entre os brasileiros e amanutenção do império da arbitrariedade.

Deveras, existem leis tratando do respeitoà liberdade dos indivíduos pela autoridadeestatal. A Lei nº 4.898, de 9 de dezembro de1965, regula o direito de representação e oprocesso de responsabilidade administrativa,civil e criminal, nos casos de abuso deautoridade. Essa lei, chamada de Lei de Abusode Autoridade, tem pouca aplicação. Naviolação da liberdade de locomoção, raramente,as vítimas representam as autoridades; ainda,quando fazem valer os seus direitos, ficamexpostas a outros constrangimentos. Essavulnerabilidade deve-se à péssima estruturaestatal, a qual não possui um aparato deproteção contra o possível insurgimento daautoridade representada. Assim, na atualconjuntura, depois de representada, a autori-dade pode optar pela forma de coação que vaiexercer sobre o seu representante. Isso causaindignação em qualquer mortal. Muitas vezes,buscando reparar um direito lesado, a vítimaperde um bem maior, a sua própria vida.

2. EspéciesA restrição à liberdade do indivíduo

constitui a maior transferência de poderes do

particular para o Estado. É o mais vultoso ônusda vida em sociedade. Por ser uma exceção àliberdade, a prisão não pode ser determinadaem qualquer caso. A sua ocorrência exige opreenchimento de alguns requisitos.

Via de regra, a realização da prisão deveestar acompanhada de uma ordem judicial;porém, a prisão pode dispensar o mandadojudicial quando o infrator estiver na flagrânciadelitiva. Na decretação da prisão, o magistradodeve constatar a presença dos requisitos legaisque a autorizam. As seguintes prisões decorremde decisão judicial: a) prisão preventiva; b)prisão temporária; c) prisão decorrente dasentença de pronúncia; d) prisão decorrente desentença penal condenatória sem o trânsito emjulgado; e) prisão decorrente de sentença penalcondenatória com o trânsito em julgado; f)prisão do devedor de pensão alimentícia2; g) aprisão do depositário infiel3; h) a prisão doretentor de título extrajudicial4; i) a prisão dosíndico ou do falido5.

Presente ou ausente o mandado judicial,toda e qualquer prisão reclama o preenchimentode vários pressupostos. A seguir, vamos daruma noção das exigências legais para asupressão da liberdade ambulatorial doindivíduo.

Como já se afirmou alhures, dispensando aordem judicial, a prisão só pode ser efetuadaquando o infrator encontrar-se em flagrânciadelitiva. A prisão em flagrante pode ser efetuadapor qualquer pessoa do povo, devendo ser opreso imediatamente entregue à autoridadepolicial, a qual formalizará o ato. Na realizaçãoda prisão, as dúvidas dos agentes do Estadosão as mais variadas. Muitas questões existema respeito das prisões indevidas, ilegais. Osinvestigadores, os escrivães da polícia civil,podendo ser incluídos muitos delegados, nãosabem quando o delinqüente encontra-se emflagrância delitiva. Grosso modo, não sabemquando efetuar a prisão. A situação é delicada,isso porque a dúvida leva para o xadrez muitaspessoas com direito à liberdade. Em quaissituações revela-se a flagrância delitiva? Nas

2 Art. 5º, LXVII, da Constituição Federal; art.22, da Lei nº 5.478, de 25 de julho de 1968; § 1º, doart. 733, do Código de Processo Civil.

3 Art. 5º, LXVII, da Constituição Federal; Leinº 8.866, de 11 de abril de 1994; § 1º, do art. 902 eart. 904, do Código de Processo Civil.

4 Art. 885, Código de Processo Civil.5 Arts. 37, 60, § 1º, 69, §§ 5º e 7º, todos do

Decreto-lei nº 7.661, de 21 de junho de 1945.

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quatro circunstâncias seguintes6: a) o infratorestá cometendo o crime ou a contravençãopenal; b) acaba de cometer a infração; c) éperseguido, logo após, pela autoridade, peloofendido ou por qualquer pesssoa, em situaçãoque faça presumir ser autor da infração; e d) éencontrado, logo depois, com instrumentos,armas, objetos ou papéis que façam presumirser ele autor da infração. Com relação às alíneasa e b, problemas existem, porém poucopreocupantes. Agora, as situações aventadaspelas alíneas c e d põem até inocente na cadeia.As questões de alta indagação estão nos sentidosatribuídos às locuções logo após e logo depois.Até que momento o perseguido e o portador deinstrumento ou produto do crime podem serpresos? Alguns membros da própria polícia eos meios de comunicação propalam umdeterminado número de horas ou o interstíciode um a dois dias. Informação totalmente opostaao sentido literal da lei. Primeiramente, éimportante frisar que a lei não fornece o espaçode tempo a ser considerado flagrante. No casoda perseguição, o executor da prisão encontrao infrator cometendo ou acabando de cometera infração, dando início à perseguição ininter-rupta, culminando com sua prisão. Para oinfrator portador de instrumento ou produto dainfração, não exige a lei um período de tempoentre a prática do crime e o encontro deste; oespaço de tempo não pode ser indeterminado,porque a lei exige que seja ele encontrado logodepois da prática do crime ou contravenção.

Na prisão preventiva, para o magistradoordenar a prisão são exigidos alguns requisitos.Estes devem ser entendidos como a existênciado crime, indícios suficientes de sua autoria eo atendimento a algumas circunstâncias.Contrariando a idéia equivocada de poder doleigo, o juiz precisa fundamentar a sua decisãode determinar a restrição da liberdade dapessoa; há exigência expressa da ConstituiçãoFederal7. Existindo o crime e indícios de suaautoria, as circunstâncias que autorizam aprisão preventiva são as seguintes8: a) falta degarantia da ordem pública ou econômica; b)inconvenientes da instrução criminal; e c)insegurança na aplicação da lei penal. Sobre a

duração da prisão preventiva, estabelece-se umvínculo entre a sua continuidade e a persistênciada circunstância que a determinou, nãopodendo este período ultrapassar o prazo paraa conclusão do processo judicial.

Na prisão temporária, em situações espe-ciais, a supressão da liberdade decorre tambémde mandado judicial9. Conforme registraFernando da Costa Tourinho Filho10, a Lei nº7.960, de 21 de dezembro de 1989, tem origemna França, onde as relações entre a polícia e oJudiciário são bem diferentes no Brasil. Comduração de cinco dias, prorrogável por maiscinco, a prisão temporária pode ser decretadapelo juiz nas seguintes circunstâncias: a)quando se fizer necessário para o desenvol-vimento das investigações no inquérito policial;b) na impossibilidade de identificação precisado indiciado ou quando este não possuirresidência fixa; e c) quando houver fundadasrazões, mais a materialidade e indícios daautoria ou participação do indiciado, nos crimesde homicídio doloso, seqüestro ou cárcereprivado, roubo, latrocínio, extorsão, extorsãomediante seqüestro, estupro, atentado violentoao pudor, rapto violento, epidemia comresultado morte, envenenamento de águapotável ou substância alimentícia ou medicinalqualificado pela morte, formação de quadrilhaou bando, genocídio, tráfico de drogas e crimescontra o sistema financeiro. Todos os casos deprisão temporária, sem exceção, poderiam serdecretados pelo juiz como prisão preventiva.Assim, conclui-se que a prisão temporária emnada inovou.

A prisão decorrente de sentença de pronún-cia está prevista pelo procedimento do tribunaldo júri. No Brasil, consumados ou tentados, sãojulgados pelo tribunal do júri os seguintescrimes: homicídio simples, privilegiado equalificado; induzimento, instigação ou auxílioa suicídio; infanticídio; aborto provocado pelagestante ou com seu consentimento; abortoprovocado por terceiro; aborto qualificado.Presentes a materialidade do crime e indíciosde sua autoria, ao proferir a sentença depronúncia, o juiz pode decretar a prisão doacusado reincidente com maus antecedentes11.

Quanto a prisão decorrente de sentençajudicial sem o trânsito em julgado, o seu6 Art. 302, do Código de Processo Penal.

7 Art. 93, inc. IX, da Constituição Federal. Nadecretação da prisão, a decisão judicial desprovidade fundamentação é nula. Ao exigir esta fundamen-tação, acertou o constituinte, pois uma decisão tãoimportante não poderia ficar ao arbítrio do juiz.

8 Arts. 311 e 312 do Código de Processo Penal.

9 Em 1989, com a lei 7.960, a prisão temporáriafoi introduzida no Direito Brasileiro.

10 Processo Penal. 12. ed. São Paulo : Saraiva,1990. v. 3, p. 348-52.

11 § 2º, art. 408, do Código de Processo Penal.

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objetivo é assegurar o cumprimento da penafixada pelo juiz enquanto tramita a apelaçãointerposta. Na fundamentação da decisãojudicial, certamente, deve constar a reincidênciae os maus antecedentes do acusado apelante.

Na prisão decorrente de sentença penal como trânsito em julgado, encontra-se a maior partedos problemas do sistema penitenciáriobrasileiro. Ao invés de cumprir a sua pena ereceber uma reeducação, o condenado encontraambiente propício e fértil para lições decriminalidade. A uniformidade nacional nasuperlotação dos presídios de todas as unidadesda Federação revela a inércia e o descaso dosadministradores para com a questão.

Em regra, nenhum indivíduo pode ser presopor não pagar as suas dívidas. Na verdade, háduas exceções previstas na ConstituiçãoFederal. Assim, o inciso LXVII do art. 5º daCarta Magna dispõe que

“não haverá prisão civil por dívida, salvoa do responsável pelo inadimplementovoluntário e inescusável de obrigaçãoalimentícia e a do depositário infiel”.

No processo de execução de pensãoalimentícia12, o devedor que não pagar ou deixarde apresentar uma justificativa razoável podeter a sua prisão decretada pelo prazo de um atrês meses. Indubitavelmente, a prisão doalimentando é por dívida e, por isso, cessa como pagamento do montante devido. A restriçãoda liberdade do devedor de alimentos tem ocaráter coercitivo; porém, se permanecer ainadimplência, o credor da pensão deveráutilizar-se da expropriação dos bens do devedorpara ver satisfeita a sua pretensão.

Ao exigir a devolução do bem dado emdepósito ou do seu valor em dinheiro, o autorda ação de depósito13 tem, em seu favor, apossibilidade da decretação da prisão do réupor um período máximo de um ano. Claramenteessa prisão tem por objetivo forçar o depositárioa cumprir a sua obrigação.

Considerando a grande utilidade dos títulosde crédito nas relações jurídicas patrimoniaise, por conseqüência, na circulação de riquezas,o legislador institui a prisão daquele queapreender injustamente a cártula que lhe foientregue para aceite ou pagamento. A prisãodecorre da apreensão injusta do título decrédito14 e, não, como poderia se pensar, darecusa em satisfazer o valor nele constante.

Por gerar empregos e arrecadar tributos, aempresa comercial ou industrial tem valorincalculável no meio social. Com o salárioobtido pelos serviços prestados, o indivíduoeleva a qualidade de sua vida e de sua famíliae, para o Estado, a receita tributária permite-lhe a melhoria da vida de toda a comunidade.O desenvolvimento dos países passa pelosnegócios de risco de seus empresários, os quaispodem obter êxito ou quebrar. Para evitar odescumprimento da lei de falência15 e a possívellesão aos credores da massa falida, o juiz podedecretar a prisão do falido e do síndico por atésessenta dias. Para efeito da decretação daprisão, os diretores, administradores, gerentesou liqüidantes são equiparados ao falido.

3. AutoridadesPara se expressar, o Estado utiliza-se de três

poderes: Legislativo, Executivo e Judiciário.Em nível federal, a representação é a seguinte:a) o Poder Legislativo é representado pelosDeputados e Senadores; b) o Executivo, peloPresidente da República; c) o Judiciário, pelosMinistros do Supremo Tribunal Federal.

A responsabilidade do Poder Legislativo éincomensurável, porque, para o Executivo, nãoexiste interesse político eleitoreiro na constru-ção de novas cadeias e novos presídios. Com adeterminação legal, o administrador deveexecutar a prescrição da lei. No Rio de Janeiro,em julho de 1997, o Presidente da Repúblicainaugurou o Bangu III, construída com recursosfederais, é a penitenciária mais moderna esegura da América Latina. Isso é prova da forçada Lei.

No Poder Executivo, o descaso pode serconstatado com as cadeias e penitenciáriassuperpopuladas. Pouco se tem feito paramelhorar a vida daquele que cumpre a sua penae busca o restabelecimento. Na segurançaconstitucional16, aos presos são assegurados orespeito à integridade física e moral. Comoevitar as lesões físicas e morais dos presos nosistema penitenciário atual? É uma questão dedifícil resposta. As presidiárias contam comtratamentos especiais, como permanência deseus filhos durante o período de amamentaçãoe a separação de estabelecimentos em virtudede seu sexo. Teoricamente, elas têm os direitos,

12 Arts. 732 a 735, do Código de Processo Civil.13 Arts. 901 a 906, do Código de Processo Civil.14 Arts. 882 a 887, do Código de Processo Civil.

15 Decreto-lei nº 7.661, de 21 de junho de 1945.16 Inc. XLIX, art. 5º, da Constituição Federal.

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os quais são desrespeitados em muitas regiõesdo Brasil.

Na atual Constituição Federal, ocorreu aextinção da prisão administrativa, quiçá tenhasido a maior inovação da novel Carta. Por meiodessa revogada modalidade de prisão, aautoridade administrativa tinha competênciapara decretar a ordem restritiva da liberdade.Com isso, a prisão poderia ser decretada peloMinistro da Fazenda ou pelos Diretores derepartições federais. As raízes da prisãoadministrativa no Brasil são os regimes dita-toriais, conforme a lição de Hélio Tornaghi17,poucos assuntos foram tão machucados na lei,na doutrina e na jurisprudência quanto esseda prisão administrativa. Por outro lado, apermanência da prisão militar, no nossoentender, foi necessária, haja vista que adisciplina e a hierarquia reclamam esteinstrumento18.

O descumprimento da Constituição Federalnão ocorre só por parte de seus executores. Asautoridades do Poder Judiciário ferem aConstituição Federal em muitos momentos.Inúmeros são os atos protelatórios. Ao disporque a prisão ilegal será imediatamenterelaxada pela autoridade judiciária, a própriaConstituição19 sofre uma considerável afronta.Aliás, se uma pessoa for presa por engano,como acontece, a prisão dura no mínimo cincodias. Isso é uma humilhação ao brasileiro e umademonstração da dimensão da crise doJudiciário. Nas varas de execuções penais, comfalta de decisões judiciais, existem presos quejá cumpriram as suas penas há mais de um ano;isso é um absurdo. O número de juízes éinsuficiente e, por falta de verbas e eficientesmeios de seleção, o direito sagrado à liberdadeé violado. Quanto às verbas, todos sabemos desua escassez, agora, reprovar quase todos oscandidatos de um concurso, ficando vagas aserem preenchidas, isso não é crível. Emconclusão, boa parte dos problemas sãoestruturais. Antes de prosseguir, é bom que sediga que a composição do Poder Judiciáriobrasileiro é, por demais, da mais alta qualidade;os Tribunais são compostos por juristas quealcançam o respeito e a admiração no meiojurídico nacional e internacional.

Nossa crítica busca somar esforços para daraos brasileiros o que lhes é de direito, o respeitoà sua liberdade.

4. Execução da penaNão é segredo que o legislador aumenta o

número de crimes a serem penalizados com arestrição da liberdade. A ação parece-nosinconseqüente, pois agem como se existissemvagas nos presídios.

Excluída a pena de morte, a lei oferta váriasoutras espécies a serem adotadas. Podem elasser privativas de liberdade, restritivas dedireitos e de multa. O maior número de penasé de reclusão e detenção, estando a revelar odomínio das penas privativas de liberdade nosistema penal brasileiro. Na restrição dedireitos, a decepção afasta qualquer boaintenção na diminuição da população carce-rária. A explicação é ilógica, ou seja, o nossosistema não adota a pena restritiva de direitosdiretamente, sendo aplicada somente emsubstituição. As penas de multa, como os pobresvisitam com mais freqüência a prisão, sãosempre combinadas com a pena restritiva daliberdade, logo a presença destas no sistemanão encontra justificativa plausível. Nascontravenções, registre-se, a pena de multa éutilizada com timidez. Assim não é possível,pois, como mostra o panorama carcerário,necessitamos de mudanças urgentes. Asdificuldades existem e, continuando como está,a tendência é piorar a cada dia. Ao invés depensar em impor a pena, o legislador devevoltar-se para a reeducação do criminoso,buscando, com leis precisas, devolver umverdadeiro cidadão à sociedade. Com a lei, oExecutivo pode ser pressionado a agir,enfrentando as suas obrigações com seriedade.

Num futuro próximo, esperamos sentirorgulho do tratamento dispensado aos afastadosda sociedade pela prática de infrações penais.Com a execução penal atual, a cada passagempelo sistema, o infrator volta a praticar outrasbarbáries de maior gravidade.

5. Igreja CatólicaAlguns setores da sociedade já apresentaram

a sua contribuição, repudiando o atualtratamento dispensado à execução da pena.

A sensibilidade da Igreja Católica, pelaassistência religiosa que presta aos presos,conduziu a mais uma Campanha da Frater-nidade: Cristo Liberta de Todas as Prisões. Em1997, A Fraternidade e os Encarceradosdemonstra o conhecimento da realidade dospresos, os quais são tratados de forma

17 Curso de Processo Penal. 4. ed. São Paulo :Saraiva, 1987. v. 2, p. 93.

18 Inc. LXI, art. 5º, da Constituição Federal.19 Inc. LXV, art. 5º, da Constituição Federal.

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desumana. As movimentações em favor dospresos são todas bem vindas, ainda, partindoda Igreja Católica, a recepção é, por demais,calorosa. Os apelos em favor dos presos trazemsentimentos de humanidade e respeito pelosnossos irmãos. Entre as assistências docondenado, está a religiosa, possibilitando orestabelecimento das suas relações com Deus20.Avulta a importância do auxílio religioso,devendo ser incentivado e preservado.

No retorno à sociedade, a integração docondenado não pode ser resumida na sualiberdade, senão na continuidade de seus laçoscom Deus.

6. Recuperação do condenadoPela Lei de Execução Penal, o condenado é

bem assistido, porém a verdade é outra.Cumprindo pena em cadeia pública, peniten-ciária, colônia, albergue ou hospital, todosestruturados de forma deficiente, a possibilidadede recuperação é nula. Não é drama, é a realidade.

Vejamos as assistências de direito doscondenados: a) material, consiste na boaalimentação, vestuário e instalações higiênicas;b) saúde, entendido o tratamento médico,farmacêutico e odontológico; c) jurídica,compreende a assistência judiciária gratuita; d)educacional, abrange a formação escolar eprofissional; e) social, responsável pelo preparodo preso para o retorno à sociedade; f) religiosa,consiste na participação de atividades reli-giosas, como missas e cultos; e h) egresso,entendido como a orientação e a instalação dopreso no retorno ao meio social. A demanda égrande e o poder público não procura vencê-la,proporcionando lesões de direitos irreparáveis.No alvo das conseqüências, não está somente ocondenado, mas, também, o cidadão que vaiser lesado em seu patrimônio, na sua integri-dade física...

Qual a medida a tomar? Será que podemoscontinuar com a presente enganação? Os níveisinsuportáveis de crimes, pelo menos nosgrandes centros, têm abonado a mudançaimediata.

7. CriminalidadeTipificadas pela lei, as infrações penais

assumem várias formas. No conjunto, os

infratores praticam crimes e contravençõespenais.

Na classe miserável brasileira, ao nascer, oindivíduo já tem o seu destino traçado. Nasfavelas, inúmeras crianças são colocadas aserviço do tráfico de drogas. A realidade éassustadora e, ao invés de educação, osiniciantes recebem armas e instruções paraatuar com eficiência na venda de substânciasentorpecentes. Tratando-se de respeito aospoderes da República, primeiro existe areverência à chefia do tráfico e, em segundoplano, como inimigo, está a organização doEstado. Sociologicamente falando, existemduas organizações dentro de uma única: ospoderes estatais e o respeito aos comandos docrime organizado. Como a inversão de valoresjá ocorreu, depois de serem reconhecidos comocidadãos, os favelados vão reclamar a passagempor um processo de reeducação, restabelecendo-se a exata valoração das instituições presentesno meio social. Pela experiência acumuladacom as ações policiais, fica claro que o seutrâmite é vagaroso e, depois de conquistada anormalidade, o trabalho de manutenção deveser uma constante. O descaso é a pior respostaà melhoria de vida do povo brasileiro. Acriminalidade toma novas dimensões e, comose vê, os índices apontam sempre para cima,aumentando a cada dia o número de pessoasinfratoras.

No Brasil, não sobra tempo para se estudaro criminoso, isso porque, por uma questãotalvez cultural, dá-se maior importância ao fatoque ao transgressor da lei. Por outro lado, adiminuição dos crimes praticados está direta-mente ligada a questões sócio-econômicas.

8. LegisladorCom as suas inovações, a Constituição

Federal de 1988 trouxe sonhos, os quais foramdeixados a cargo da legislação ordinária. Osdireitos dos condenados sofreram ampliaçõesconsideráveis. Com relação aos presos proviso-riamente, as conquistas foram desde a proibiçãoda incomunicabilidade até o fim da prisãoadministrativa. Por outro lado, de formainadvertida, o legislador começa a regredir comas leis ordinárias, as quais aumentam os tipospenais, principalmente na transformação dealgumas contravenções em crimes, comoocorreu com o porte de arma. A inovaçãoesperada é no campo das penas, precipuamente,nas restritivas de direitos.20 Art. 24, da Lei de Execução Penal.

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9. CadeiasA cadeia pública é o estabelecimento

destinado ao recolhimento de presos provi-sórios21. Na realidade, o preso tem os seguintesdireitos22: a) cela individual com dormitório,sanitário e lavatório; b) salubridade doambiente; c) área mínima de seis metrosquadrados. A lei mais uma vez não é cumprida,porque existem muitos presos sem espaço paradormir na própria cela por excesso de compa-nheiros. Pelo que se vê por todo o Brasil, a leidescreve um quarto de luxo para o preso nãocondenado. Lastimável é isso ser uma tremendainverdade. No caso de prisão provisória, apesarde inexistir sentença judicial condenatória como trânsito em julgado, o preso já começa a serpenalizado. Geralmente, a cadeia públicafunciona junto à delegacia de polícia e aprecariedade, por falta de tantas coisas, tomaproporções vergonhosas nesta e naquela.

Como a localização das cadeias públicas éno perímetro urbano, a população sofre com aconstante ameaça de fuga, o descaso dasautoridades e o aumento dos crimes punidoscom pena privativa de liberdade. Outrapreocupação é o cumprimento de pena nascadeias. A falta de vagas nas penitenciáriasjustifica a medida, mas a população convivecom um perigo constante de fuga.

10. Penitenciária e colôniaTratando-se de regime fechado, atribuído

aos crimes de maior gravidade, a pena vai sercumprida na penitenciária; agora, para o regimesemi-aberto, existem as colônias agrícolasindustriais ou similares.

Como estabelecimento para o cumprimentode pena em regime fechado, a penitenciáriadistancia-se do sonho de restabelecimento docondenado. As penitenciárias brasileiras sãoverdadeiros depósitos de criminosos, onde sãoamontoadas várias espécies de infratores da leipenal. As penitenciárias podem ser destinadas,separadamente, aos homens e às mulheres. ALei de Execução Penal23 determina que aspenitenciárias sejam construídas em locaisafastados dos grandes centros, sem prejudicar

a visitação. Para cada condenado, a celaconterá24: a) individualidade; b) dormitório; c)aparelho sanitário; d) lavatório; e) salubridadedo ambiente pela concorrência dos fatores deaeração, insolação e condicionamento térmicoadequado à existência humana; f) área mínimade seis metros quadrados; g) a seção de gestantee parturiente e a de creche. Caso fosse possívelno Brasil a citada penitenciária, sem dúvida,seria uma maravilha.

Destinada ao cumprimento de pena emregime semi-aberto, a colônia agrícola,industrial ou similar reserva alojamentoidêntico ao oferecido na penitenciária25. Narealidade, as colônias têm uma populaçãomenor, possibilitando a iniciação do preso emseu restabelecimento.

Existem, ainda, a casa do albergado para apena a ser cumprida em regime aberto e ohospital de custódia e tratamento psiquiátrico,pouco conhecidos pelo território nacional.

11. LiteraturaAs histórias da literatura a respeito da ação

da polícia e do comportamento do Judiciárioganham as páginas e despertam o prazer pelaleitura.

No erro judiciário dos Irmãos Naves26,ocorrido em Araguari, no Estado de MinasGerais, existe o relato fiel de erro do juiz eTribunal de Justiça mineiros que conduziramdois jovens irmãos para a cadeia para pagarempor um crime não ocorrido. Simplesmente,como não havia materialidade do crime, osuposto morto estava vivo e só foi encontradoquinze anos depois, quando um dos condenadosjá havia morrido na prisão. De todo o ocorrido,o impressionante é a absolvição por duas vezespelo Tribunal do Júri e a condenação prolatadapelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais emreforma à sabedoria do Júri Popular.

No Esquadrão da Morte, o então Procuradorde Justiça do Estado de São Paulo Hélio PereiraBicudo27, parlamentar na atualidade, relata a

21 Art. 102, da Lei de Execução Penal (Lei nº7.210/84).

22 Art. 88, da Lei de Execução Penal.23 Art. 90, da Lei nº 7.210, de 11 de julho de

1984 (Lei de Execução Penal).

24 Art. 88, da Lei de Execução Penal.25 Art. 92, da Lei de Execução Penal.26 ALAMY FILHO, João. O caso dos irmãos

Naves : um erro judiciário. 3. ed. Belo Horizonte :Del Rey, 1993.

27 BICUDO, Hélio Pereira. Meu depoimentosobre o Esquadrão da Morte. 4. ed. São Paulo :Pontifícia Comissão de Justiça e Paz de São Paulo,1977.

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atuação truculenta da polícia civil paulista. Umpouco depois da Revolução de 1964, a políciacivil paulista dava início ao Esquadrão daMorte, inicialmente, em perseguição aoscriminosos de alta periculosidade e, mais tarde,talvez já com o objetivo premeditado, aospolíticos contrários ao novo regime auto-ritário28. Instalou-se a pena de morte e, comisso, muitas vidas foram ceifadas e acobertadaspor razões obscuras e nada convincentes. Aoinvés de seguir o preceito legal, a polícia passoua fazer justiça (na verdade, injustiças).

Na Rota 66, o jornalista Caco Barcelos29

revela o lado negro da atuação da polícia militarna cidade de São Paulo. Como fruto dasocorrências policiais que o autor acompanhou,as histórias apavorantes ocupam todas aspáginas de seu nobre trabalho. Num ingênuo esimples pensamento, conclui-se que qualquerbrasileiro pode ser vítima da violência policial.Já não é mais segredo que a população carenteconhece a atuação policial desvirtuada comprofundidade; deveras, com isso, redobra-se omedo, por um lado, revelado na polícia e,noutro, presente na ação dos criminosos. Como relato das passagens do autor, os leitorespodem ter uma idéia do péssimo emprego dodinheiro do contribuinte. Com extrema frieza,a polícia militar paulista e, provavelmente, ade outros Estados, recrutam matadores parafazer a segurança pública.

Como se pode concluir, relatar a violaçãodos direitos humanos tem sucesso garantido nomeio literário. Embora não pareça, afrontar aliberdade e a integridade física dos desafor-tunados é uma realidade aflorada. Precisamosexercitar os nossos direitos e aprender asacrificar algum tempo em favor dos injus-tiçados, seja testemunhando ou prestandoqualquer espécie de ajuda. Por fim, deixamoso nosso registro de admiração e respeito pelacoragem dos citados escritores.

12. ConclusõesA deficiência estrutural do Estado e o

despreparo de seus agentes não podem justificarinjustiças praticadas em detrimento dosindivíduos.

Pelo Decreto Executivo nº 1.904, de 13 demaio de 1996, o Presidente da República instituio Programa Nacional de Direitos Humanos. PeloPNDH, a liberdade e a reeducação do preso nãotêm prioridade, porém, há uma preocupaçãocom a superlotação dos presídios e a indicaçãoda construção de novos estabelecimentosprisionais de pequeno porte, bem como aconversão das prisões nos regimes semi-abertoe aberto. A intenção do Executivo é muito boa,principalmente quando afirma que vai incen-tivar a agilização dos procedimentos judiciaisdos presos provisórios e, para os condenados,a criação de programas de reeducação erecuperação e de assistência à saúde. Comrelação à Casa de Detenção de São Paulo(Carandiru), a sua desativação a longo prazorealmente impressiona e merece aplausos.Deveras, é cediço que as penitenciárias sãoverdadeiras escolas de criminosos; somadas aessa agravante, servem como centrais decomandos das organizações criminosas. A atualsituação é insustentável, necessitando de váriasreformas e do apoio de todo o povo brasileiro.Aliás, como a criminalidade atinge um númeroindeterminado de pessoas, todos nós somosresponsáveis pelas melhorias do sistemapenitenciário nacional.

Por fim, as prisões provisórias e asdefinitivas devem ser repensadas. Não se devemudar somente a lei, senão, também, amentalidade dos juízes e seus executores. Adecretação e o relaxamento das prisõesdeveriam ser reformulados. Na execução daspenas, o reconhecimento da falência do sistemapenitenciário revela os perigos que acercam osgrandes centros, aprisionando os cidadãoscomuns em suas próprias casas.

28 A conclusão da perseguição política ficoupatente depois dos tempos de glória do Regime Mi-litar. Porém, após o término das investigações acom-panhadas por Hélio Bicudo.

29 BARCELLOS, Caco. Rota 66. 16. ed. SãoPaulo : Globo, 1993.

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1. IntroduçãoA necessidade de um Estado eficiente é hoje

uma das grandes questões discutidas no seiodo Governos de vários Estados países e dentrodestes, pelos mesmos, tanto de descentralizaçãopolítica (nos estados federados), como dedescentralizações administrativas. Desse modo,o movimento de reforma administrativa não éexclusividade do Brasil, como podemosverificar. Entretanto, são necessários critériospara que a reforma, como o próprio nomeindica, seja capaz efetivamente de dar uma novadefinição para função pública de modo atorná-la mais eficaz, transparente e demo-crática.

No Brasil, quando se fala em reformaadministrativa, a 1ª questão que surge dizrespeito à estabilidade dos servidores públicos.Toda crítica endereçada aos serviços públicosno Brasil, leia-se ineficientes, onerosos,clientelistas e até mesmo desnecessários,repercute na figura do funcionário público,aquele que recebe todas as vantagens enquantonão executa ou executa mal suas funções. Ecom esta justificativa, tem-se propalado que acausa de todos os males é a famigerada

Função administrativa, estabilidade eprincípio da neutralidade: algunsapontamentos sobre a reformaadministrativa

FABIANA DE MENEZES SOARES

Fabiana de Menezes Soares é Mestra em DireitoAdministrativo pela UFMG e Professora doDepartamento de Direito – UFV.

SUMÁRIO

1. Introdução. 2. Natureza jurídica da funçãopública. Princípios informadores da função públicae suas conseqüências sobre a atuação do agentepúblico, o regime jurídico da função pública. 3.Princípio da neutralidade (Administração eficientee Estado de Direito, notas de Direito Comparado).4. A boa execução da função pública (O princípioda profissionalização, a reforma administrativa emface da estabilidade relativa, o aperfeiçoamento ea formação do funcionário público). 5. Anexo.

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estabilidade dos servidores públicos. Entre-tanto, a estabilidade, como todo conceitonormativo, tem uma razão de ser que reside naimparcialidade e neutralidade no exercício dasfunções públicas.

A palavra de ordem é flexibilizar; mas seráque a estabilidade, como está hoje, é intangívelcomo muitos pensam? Ou será que já existemmecanismos para retirar o mau servidor públicodos quadros do serviço público? Quais seriamas práticas que deveriam ser adotadas pelaAdministração Pública de modo a elevar osserviços públicos a um patamar de maiorconfiabilidade? Essas questões e outras serãoabordadas com o objetivo de classificar algunsitens da reforma administrativa, aprofundandoa discussão sobre o tema.

2. Natureza jurídica da função pública.Princípios informadores da função públicae suas conseqüências sobre a atuação do

agente público, o regime jurídico dafunção pública

O termo função remete-nos a uma dimensãorelacional de algo que se realiza com subor-dinação. Assim é a função pública, ou seja, arealização de determinados fins e interesses daRepública por meio de agentes públicos. Oprincípio da legalidade e o complexo de normasque densificam o conteúdo do princípio Estadodemocrático de direito formam a moldura, ou“quadro normativo”, dentro do qual agem osoperadores da função pública. O caráter“funcional” do exercício do munus públicorevela-se exatamente pela sua subordinação aocomplexo de regras e princípios conformadoresdo Estado (Alexy).

A natureza pública de toda série (varia-díssima, diga-se de passagem) de atividadesdesenvolvidas pelo Estado conferem à suaexecução, aos seus fins e objetivos, umaqualidade de zelo acima da média concebidacomo zelo, ocorre em virtude do caráterconcreto e imediato de parte de suas funções.

Garrido Falla questiona se ao lado das trêsfunções clássicas do Estado (legislativa,judiciária e executiva) advindas da teoria dadivisão do poder estatal, não existiria umaquarta função, a administrativa. E mais, quepara qualificar a própria natureza da funçãoadministrativa, a teoria tripartite, já “referida”,não é capaz de distinguir a função executivada função administrativa, principalmente noque tange à escolha dos motivos justificadores

de um ato administrativo (nesse caso haveriaum desbordo da função executiva, tendo emvista o conceito de cada uma das três funçõesclássicas do Estado1). Continuando, sustenta opublicista espanhol que:

“Assim como os Poderes Legislativoe judiciário se formam com as compe-tências que foram arrancadas das mãosdo antigo monarca absolutista, por outrolado, o Poder Executivo é o que perma-nece em suas mãos (...) Deduz aqui ocaráter residual do Poder Executivo, quedeve ser levado em conta para compre-ender devidamente o tipo de funções quelhe correspondem”2.

A atividade administrativa é uma atividadenão-homogênea, porque possui o aspecto deexecução ao lado de atos de legislação (regula-mentos) e jurisdição, poderes administrativosinternos aos corpos administrativos, sendonecessariamente uma zona destacada peloPoder Executivo3. Esse, por sua vez, realiza atosdo seu domínio próprio, como ente político noexercício de suas funções de soberania (ato deEstado).

Assim, emerge a função administrativacomo quarta função do Estado, junto de suadiversificação e complexização. E mais, seucaráter de subordinação e de maior exigênciasobre o agente que intermedia a manifestaçãodo Estado administrador impõe a este agenteuma gama de deveres muito maior de queaqueles que realizam atividades no setorprivado.

O fim da função administrativa ultrapassaa esfera individual incidindo em realidades efins que concretizam interesses e metasindividuais de várias ordens (sociais, coletivos,difusos), mas não é só o fim que deve serconsiderado, os meios dos quais dispõe oagente, por si só, vinculam sua conduta. O localde seu trabalho, os meios materiais para suaconsecução, o patrimônio envolvido em suaatividade também demandam uma condutadiferenciada por parte do agente público.

Ou seja, “a atividade administrativa é aatividade de quem não é dono, mas de quemgere negócio alheio, o fim e não a vontade regetodas as formas de administração” (CirneLima).

Dada esta estreita ligação entre a funçãopública, no caso, a função administrativa e o

1 Tratado de Derecho Administrativo. v. 1, p.36-37.

2 Ibid. p. 39.3 Ibid. p. 39.

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agente que a desempenha, ou “as diversasformas como se manifesta a atividade domina-dora do Estado” e “as diferentes pessoas oucorpos públicos encarregados de desempenharas diferentes funções do poder” (Carré deMalberg), é que ambos possuem um regimejurídico, sob a égide do qual as relaçõesjurídicas decorrentes são regidas pelo DireitoPúblico.

O regime de Direito Público implicarelações baseadas numa posição de supremaciada Administração Pública em relação aosparticulares, aliados à estrita vinculação aoprincípio da legalidade; o que significa que aAdministração Pública faz o que lhe foiautorizado legalmente, ao contrário do regimede Direito Privado, que permite aos sujeitosfazerem tudo o que não esteja legalmentevedado.

A função administrativa divide-se em duaslinhas principais: uma, realizadora e concre-tizadora dos interesses públicos da comunidade;a outra, conformadora e ordenadora naprossecução dos interesses públicos dispostosna Constituição4. Suas atividades de atuaçãosão diversificadas, como os serviços clássicos,como política (ordem e segurança). A atividadeplanificadora e diretiva da economia, aatividade financeira e fiscal e pela atividadesocial e prestacional5.

A escolha dos interesses públicos priori-tários, constantes do Estado DemocráticoSocial, tem sua sede na Constituição. Ahierarquia dos mencionados interesses defineo raio de ação estatal e, por conseqüência, dafunção administrativa. A evolução estatal, nosentido pré-constitucional6 e por meio da

Constituição posta, revela as opções que oEstado fez para intervir na gestão econômica7.É desse modo que o conceito, hoje, de“atividades tipicamente estatais” é mais aberto.

No cerne de diversas atividades quecompõem a função administrativa reside anoção do quê, num dado momento, é conside-rado como serviço público. Desse modo, oconceito tradicional advindo do direito francês,que reduz a noção de serviço, não é suficientepara demonstrar o crescimento do leque deprestações públicas postas à disposição docidadão usuário (inclusive, em relação àsatividades de fomento), o que levou à crise naconceituação de serviço público8.

Assim, para cada atividade referente àfunção pública, há um agente público paradesempenhá-la. E é esse agente a referênciaprimeira e imediata que o cidadão usuário temdas atuações estatais administrativas. É por issoque a execução do serviço é o ponto maisrelevante da função pública no seu momentodinâmico. Para uma execução com respeito aoprincípio da legalidade e da impessoalidade(art. 37, caput), é necessário que o agentepúblico possa atuar com isenção.

Para Jesus Gonzales Perez, a função dosprincípios é dar sustentação para ordenamentojurídico na medida em que informam aorganização jurídica da nação9. Sustenta Alexyque os princípios são comandos de otimizaçãoreferentes às possibilidades jurídicas e fáticas,seu caráter implica máxima de proporcio-nalidade com seus três máximos parciais: aadequação, a necessidade (postulado do meiomais benigno) e da proporcionalidade nosentido estrito (postulado de ponderaçãopropriamente dito).

O princípio da moralidade tutelado pela CF/88 impõe à função pública um caráter deadequação com os valores sociais da hones-tidade, bons costumes, que se traduzem nautilização do aparelho estatal para fins públicose por meio de agentes com conduta proba.

O respeito aos princípios informadores doexercício da função administrativa submetetambém quem os executa, ou seja, os agentespúblicos, aqui considerados no seu sentido lato,isto é, agentes políticos, servidores públicos,empregados públicos e os concessionários de

4 CANOTILHO, J. J. Direito Constitucional. p.756.

5 Ibid.6 MÜLLER, F. Discours de la méthode juridique.

p. 144-145 – sobre os princípios de interpretação daConstituição “principe de L’unité de la constitution,ideé d’une ‘conception genérale préconstitutionelle’,conciliation des motifs fundamentaux et des réglesde compétence, in dubio prolibertate, insertion desdispositions à interpreter dans le contexte del’histoire des scien ces humaines et des idespolitiques, considérations a l’opportunité etquestiona relatives à la vérifiabilité des resultats del’interpretation autant d’aspects qui proviennontprincipalemente de la jurisprudence, d’une part;critéres; tirés de la constitution, de la pertinance despointes de vue liés aux problémes: critére de l’action,intégratrice, principe de l’unité de la constitution,principe de la concordance pratique, critére de laconection fonctionelle et point de vue de la forcenormative de la constitution, d’autre part.

7 FALLA, Garrido. op. cit., p. 330.8 Ibid. 331-333.9 SOARES, Fabiana de Menezes. Direito

administrativo de participação, cidadania, direito,município. p. 67.

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serviços públicos. Entretanto, para a análise doprincípio da neutralidade na execução dafunção administrativa, não contempla osagentes políticos que possuem um regime deum mandato político e que pela próprianatureza de suas atribuições (principalmentequanto aos agentes políticos do poder legis-lativo) é preponderantemente discricionária.Esta discricionariedade implica ponderação devalores que sofrem a influência de convicçãopolítica (e/ou partidária) ao agente.

A fruição do resultado ou exercício dafunção administrativa (e pública em geral)destina-se a todas as pessoas por força doprincípio da igualdade.

3. Princípio da neutralidade(Administração eficiente e Estado de

Direito, notas de Direito Comparado)O crescimento e diversificação das funções

públicas repercutem na Organização do Estado(devido aos fins do próprio Estado) no sentidode perseguir uma ação mais justa e conformeàs necessidades consideradas públicas numdado momento. Após a Primeira GuerraMundial, o Estado passou a intervir mais navida econômica e social, o que carretou umimpacto sobre a organização do Estado10.

A Conferência Mundial de AdministraçãoPública (Toluca, 1993)11 colocou em discussãoo perfil do Estado e conseqüentemente daAdministração Pública em face da “explosãode complexidade” das funções estatais, queabandonaram os modelos clássicos. A mudançado perfil passa por uma Administração Públicamais eficaz, transparente e democrática. Sóassim a credibilidade da função pública podeser restaurada, inclusive como forma deincentivo para que o funcionário público possasentir que seu trabalho é apreciado e reconhe-cido pela sociedade.

Um profundo estudo feito nos EUA e empaíses industrializados da Europa demonstrouque os cidadãos têm mais confiança na funçãopública do que nas grandes empresas pararesolver seus problemas12. A substituição da

estrutura estatal piramidal por uma estruturade rede é apontada como um novo paradigmade gestão pública.

O controle da função pública por parte doscidadãos, que terão acesso à AdministraçãoPública, uma participação real dos mesmos(democratização e descentralização por meiode processos participativos) e a eliminação dacorrupção são os pontos-chaves para osurgimento do “Estado inteligente”13.

A compreensão do sistema normativo comomeio de concretização destas mudanças éessencial para qualquer reforma, ou seja, quaisprincípios sustentam a função pública, bemcomo os importadores do seu exercício. Assim,a reforma administrativa logrará o êxito queambiciona sem quedar frente às ameaças deinconstitucionalidade e de nenhuma mudançano plano fático.

Para a manutenção da igualdade detratamento entre os cidadãos destinatários dasfunções públicas, a CF/88 concedeu maioresgarantias aos agentes públicos, se comparadosaos trabalhadores da iniciativa privada. Emvirtude disso, existe uma idéia comum, de queaquelas garantias (leia-se principalmente aestabilidade) são “privilégios” inconcebíveissob a égide do princípio da igualdade.

Esse raciocínio é canhestro por três motivos:estas garantias existem não em razão do agentepúblico em si, mas devido ao exercício dafunção pública; sua manutenção se justifica pelocaráter isonômico que a dita função deve terem face dos seus destinatários como condiçãode efetividade do princípio da igualdade; e aestabilidade não é absoluta, mas relativa,porque ela não pode ser utilizada paracontrariar os fins que justificaram sua inclusãono texto constitucional. Não há, pois, antinomiaentre a garantia da estabilidade e o princípioda igualdade14, muito pelo contrário: a

10 FORSTHOFF, E. Traité de Droit Administratifallemand. p. 622-623.

11 Rédefinir le profil de L’Etat en vue deschangements socio-econimiques Redacteur lnvitéBernardo Klicksberg. Revue Internationale desSciences Administratives, n. 2, jun. 1994.

12 PETERS, Guy B. Morale in the public service:a comparative inquiry. Revue Internationale desSciences Administratives, v. 57, n. 3, sept. 1991.

13 SOARES, op. cit., p. 118.14 Müller propõe um modelo de argumentação

para efetuar o controle do princípio da igualdade.Discours de la méthode juridique, p. 363. Caso n. 1.

1- há uma igualdade de situações de fatoconstitucionalmente pertinente? (se a resposta forsim, passemos à seguinte questão)

2- Estas situações de fato iguais são desigual-mente tratadas de uma maneira que seja consti-tucionalmente pertinentes? (se respondo sim, passoà próxima questão).

3- Há para esta desigualdade de tratamento desituações iguais uma razão objetiva (no sentido dajurisprudência dominante)? Caso a resposta seja não,há a violação do Princípio da Igualdade.

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estabilidade promove o exercício de uma funçãoadministrativa isenta.

Um tratamento legal que promova aefetividade do princípio da impessoalidade(traduzindo num exercício imparcial da funçãopública) e de um maior zelo no seu exercício égarantia do Princípio da Igualdade e tem sedeconstitucional em países com democraciasconsolidadas.

O art. 97 da Constituição da Itália dispõeque a Administração Pública se organizará demodo a garantir seu bom funcionamento eimparcialidade da Administração. O exercíciodas funções públicas de caráter permanentecabe aos funcionários públicos, cujas “relaçõesde serviço e fidelidade se assentam no DireitoPúblico” (art. 33-4 da Lei Fundamental Alemã).

Já a Constituição Francesa, em seu preâm-bulo, reconheceu o valor normativo daDeclaração dos Direitos do Homem e doCidadão. O art. 1º da Declaração consagra oprincípio da igualdade, dispondo que asdistinções sociais só podem estar fundadas nautilidade comum (grifo nosso). O art. 13 dispõesobre o caráter subordinado do Poder Público,ou seja, poder instituído em benefício de todose “não para a utilidade particular daqueles aquem é confiado”. No mesmo sentido, o art.15 dispõe sobre o dever que o agente públicotem de prestar contas. Por força do art. 34 daConstituição foi reservada à lei a disciplina dasgarantias fundamentais concedidas aosfuncionários civis e militares. Assim, o estatutogeral dos funcionários públicos é composto porquatro textos, a saber: a Lei de 13 de julho de1983 (Direitos e Deveres dos Funcionários –Regras e Princípios Comuns); a Lei de 11 dejaneiro de 1984 (Função Pública no Estado);Lei de 26 de janeiro de 1984 (Função PúblicaTerritorial), Lei de 9 janeiro de 1986, (FunçãoPública Hospitalar).

O estatuto garante o direito ao emprego pormeio da estabilidade, lembrando que na França,a relação de trabalho do funcionário nãoapresenta distinções como as que existem noDireito Brasileiro, entre cargo e empregopúblico, o “emprego” abrange nossa noção decargo. A estabilidade não se submete àsoscilações em virtude de um novo governo15.

A Constituição de Portugal consagra asubmissão ao princípio da legalidade dos órgãose agentes administrativos que, no exercício desuas funções, devem respeitar os princípios da

igualdade, da proporcionalidade, da justiça eda imparcialidade (art. 266). O item 2 do art.269 (Regime da Função Pública) dispõe que

“Os trabalhadores da AdministraçãoPública e demais agentes do Estado eoutras entidades não podem ser preju-dicados ou beneficiados em virtude doexercício de quaisquer direitos políticosprevistos na Constituição, nomeada-mente por opção partidária”.

O Código de Procedimento AdministrativoPortuguês (Decreto - Lei nº 6/96, de 31 dejaneiro de 1996) dimensiona os princípios daigualdade, proporcionalidade, imparcialidadee boa-fé, tendo em vista a prossecução dointeresse público nas relações da AdministraçãoPública com os seus particulares.

Em relação ao princípio da imparcialidade,o art. 6º (princípio da Justiça e Imparcialidade)dispõe: “no exercício da sua atividade, aAdministração Pública deve tratar de formajusta e imparcial todos os que com ela entremem relação”. A Constituição Espanhola, no seuart. 103, caput, numera os princípios aos quaisa Administração pública se submete:

“A Administração Pública serve comobjetividade aos interesses gerais e atuade acordo com os princípios de eficácia,hierarquia, descentralização, descon-centração e coordenação com a sub-missão plena à lei e ao Direito”.

O item 3 remete à lei ordinária o estatutodos funcionários públicos, delimitando osprincípios gerais, que devem ser obedecidospelo legislador infraconstitucional:

“...acesso à função pública de acordo comos princípios de mérito e capacidade, aspeculiaridades do exercício de seu direitode sindicalização, o sistema de incom-patibilidades e as garantias de impar-cialidade no exercício de suas funções”.

A Lei dos Funcionários (Decreto nº 315/64) dispõe no seu artigo 64 sobre o dever doEstado de proteger os funcionários no exercíciode seus cargos. O item 2 assegura aos funcio-nários de carreira (conhecidos por nós comoos efetivos) o direito ao cargo.

O Título quarto da Constituição do Méxicoregula as responsabilidades dos servidorespúblicos. O art. 109, inciso III, dispõe que serãoaplicadas sanções administrativas aos servi-dores públicos, que por atos e omissões,ofendam aos princípios da legalidade, hon-radez, lealdade, imparcialidade e eficiência noexercício de seus empregos, cargos ou comissões.

15 BEN SALAH, Tabrizi. Droit de la functionpublique. p. 11.

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A eficiência e transparência da funçãopública encontram como princípio informadorcorolário do princípio da imparcialidade. Oprincípio da neutralidade política da funçãopública, fundamento da garantia da estabilidadena função pública.

Repousa este princípio na satisfação deinteresses gerais por parte dos corpos adminis-trativos permanentes que não estão a serviçode um governo em particular. O governo possuium caráter temporário, enquanto que “osfuncionários simbolizam a permanência daadministração”. É por isso que o estatuto dosfuncionários deve protegê-los de eventuaispressões provenientes do governo16. Este direitoà proteção abrange proteção contra ameaças,violência, agressões, injúrias, difamação, ouqualquer ultraje que sofra o funcionário noexercício de suas funções, é a proteção penal(art. 11 da Lei de 13 de julho de 1983). Aproteção civil, refere-se ao dever de indenizaçãopor parte da Administração de qualquer danoque o funcionário venha a sofrer, danosmateriais de qualquer natureza e danos morais(art. 11, alínea 2, da Lei de 13 de julho de1983)17. São considerados formas de proteção,em face da Administração, o princípio dorecrutamento via concurso público, da pro-gressão na carreira, das garantias disciplinares(devido processo) o direito de acesso à sua fichafuncional. As garantias disciplinares visamevitar o abuso de poder da autoridade hierar-quicamente superior18.

Não se pode falar em Estado Democráticode Direito, se a cada mudança dos agentespúblicos políticos, os agentes públicos decarreira, ou efetivos, estiverem sem garantiaspara o exercício imparcial da função pública.

Garrido Falla apresenta duas faces doprincípio da neutralidade, a saber: a neutra-lidade política da Administração e a neutra-lidade administrativa do governo, ambospromovem a “eficácia indiferente”19. Conti-nuando, o ilustre publicista sustenta que nasdemocracias modernas surgiu a preocupação detornar “a função pública independente dosassuntos do governo determinados pelamutação dos partidos políticos no poder”.

A efetividade do princípio da igualdade detratamento para os cidadãos usuários possuiuma estrita conexão com a lealdade do

funcionário à Administração Pública-executoraconcreta de interesses metaindividuais.Entretanto, as relações entre o governo (comcaráter transitório e político) e a Administraçãopública (com caráter permanente e técnico) sãomarcadas por uma tensão no sentido de umpossível choque de interesses. Os interesses doaparelho estatal, muitas vezes, são antagônicoscom os interesses positivados na Constituiçãocomo os fins da República. Contudo, aConstituição já fez a escolha de quais são osinteresses superiores, e aqueles últimos, ouinteresses, que devem prevalecer sobre osinteresses secundários, ou interesses doaparelho estatal (Alessi).

A Administração Pública é uma instituiçãoque, quando atua com força própria, apropria-se dos fins os quais persegue, regendo-se pornormas próprias de comportamento que lhe dãoum caráter de subordinação. A Institu-cionalização da Administração Pública torna-a capaz de funcionar quando o governo faltar20.

Para Garrido Falla21, a neutralidadeadministrativa do governo é garantida peloprincípio da profissionalização da funçãopública cujo aceno é condicionado pelo méritoe capacidade (merit system). Dentro dasubordinação normativa da AdministraçãoPública, o princípio da profissionalização,interpretado sob a égide do princípio daigualdade, tem como resultado o princípio geralde acesso aos cargos, empregos e funções pormeio de concurso. A profissionalização écondição para uma função pública eficienteindependente do sujeito que dela usufrua(eficácia independente).

O princípio da imparcialidade da Adminis-tração Pública veda o tratamento desigual doscidadãos por parte dos agentes públicos e impõea “igualdade de tratamento dos direitos einteresses dos cidadãos por meio de umauniformidade de ponderação dos interessespúblicos (Canotilho). Ao lado de outrosprincípios como o da publicidade e o do acessoao Judiciário, o princípio da imparcialidade éprincípio fundamental22, fornecendo “diretivasmateriais de interpretação de normas consti-tucionais” e principalmente “vincula o

16 Ibid. p. 11.17 Ibid. p. 12, 200, 201.18 Ibid. p. 244.19 Ibid. 61.

20 FALLA, op. cit., p. 60-61.21 Ibid. p. 62.22 CANOTILHO, op. cit., p. 171. “Consideram-

se princípios jurídicos fundamentais os princípiohistoricamente objetivados e progressivamenteintroduzidos na consciência jurídica e que encontramuma recepção expressa ou implícita no textoconstitucional”.

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legislador, no momento legiferante, à luz dosprincípios gerais de Direito”23.

A ausência de garantias para os funcio-nários públicos compromete a estrutura dopróprio Estado,24 e “qualquer política quepersiga a designação dos funcionários públicos,entre os afins ao partido no poder, acaba com adestruição do Estado se Direto”.

No Canadá, a “Lei sobre o emprego nafunção pública”, que dispõe sobre o regimejurídico da função pública, no seu art. 33, proíbeo funcionário trabalhar a favor ou contra umcandidato; trabalhar a favor ou contra umpartido; ser candidato.

4. A boa execução da função pública (Oprincípio da profissionalização, a reforma

administrativa em face da estabilidaderelativa, o aperfeiçoamento e a formação

do funcionário público)A Constituição da República Federativa do

Brasil, em seu art. 37, caput dispõe que“A administração pública direta,

indireta e fundacional de qualquer dosPoderes da União, dos Estados do Dis-trito Federal e dos Municípios obedeceráaos princípios de legalidade, impes-soalidade, moralidade, publicidade”.

O inciso II consagra o princípio da profis-sionalização (merit system) por meio do acessoaos cargos, empregos e funções públicas (essasem sentido estrito) por concurso público deprovas e títulos (efetivação do princípio daigualdade)25.

E o art. 41 garante a estabilidade noemprego aos servidores de carreira nomeadosem virtude de concurso público.

A estabilidade, entretanto, não é umagarantia absoluta, nem poderia sê-lo, em virtudedo sistema normativo constitucional e infracons-titucional26, sob pena de subversão e ani-

quilamento da ordem jurídica do EstadoDemocrático de Direito.

O que ocorre no Brasil é uma cultura denão mais avaliar o servidor público após oestágio probatório, no qual tenha sido aprovado,como se essa avaliação determinasse adaeternum a capacidade, aptidão e eficiência doservidor público avaliado.

Como verificamos no item anterior, o DireitoComparado rege a função pública sob a égidede Direito Público, que traz consigo elementosinerentes às relações jurídicas produzidas nestequadro normativo, ou seja, princípio da estritalegalidade, supremacia do interesse público epotestade da Administração Pública.

O regime de Direito Público, derrogatóriodo Direito comum, traz a garantia necessáriaao exercício neutro, imparcial e igualitário dafunção pública. Desse modo, a proposta demodificação do art. 39, no sentido de adotarregimes jurídicos diferenciados para osservidores da União, Estados e municípios,além de minar a garantia de um serviço públicoeficiente, levará a Administração ao caos delegislação díspares com direitos e deveresdiferentes para servidores que executam amesma função, como ocorria antes da Cons-tituição de 1988.

A expressão regimes jurídicos diferentessignifica que ao lado de um regime jurídico (ouconjunto de normas que regula um instituto)de Direito Público, pode haver uma gama deregimes jurídicos de direito privado para afunção pública. Melhor seria se a proposta dereforma, a exemplo do que acontece em outrospaíses (França, por exemplo), dispusesse acercade estatutos diferenciados para determinadasfunções (universidades, hospitais, militares,etc.).

A suspensão da isonomia, disposta no § 1ºdo art. 39 do texto constitucional vigente, atentacontra o princípio da igualdade, pois preservasituações de profunda desigualdade. Umexemplo foi a decisão do STF condenando aUnião a pagar aos servidores civis o mesmoaumento dado aos servidores militares, umflagrante atentado ao princípio da igualdade.

Já a estabilidade consagrada no art. 41 sofreduas modificações iniciais:

a) aumento do estágio probatório para 5anos (caput);

23 Ibid. p. 172.24 FALLA, op. cit., p. 62.25 o legislador constituinte deixou margem para

adoção do spoil system , o critério de afinidadepolítica, quando no inciso V do art. 37 determinouque o acesso aos cargos em comissão e as funçõesde confiança (ambos com remuneração elevada namaioria dos casos) serão exercidos, preferen-cialmente, por servidores de carreira, o que nãoobriga efetivamente. O Projeto de Reforma poderiareservar um percentual desses cargos aos servidoresde carreira.

26 Lei nº 8.112/90 – Regime Jurídico dos Servi-dores Públicos Civis da União, Autarquias e dasFundações Públicas Federais; Lei nº 8.027/90 ou

“Código de Ética do Servidor Público”; Lei nº 8.026/90 que dispõe sobre a aplicação da pena de demissãoa funcionário público.

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b) desligamento do servidor por necessidadeda Administração Pública, visando a redução,ou restruturação de quadros, bem como a ade-quação destes aos limites fixados com base noart. 16927,observados os critérios de desliga-mento estabelecidos em lei complementar.

O fato de termos salientado as modificaçõesacima destacadas obedece à lógica do óbvio,ou seja, os incisos I, II, III já existem, seja naprópria Constituição ou em lei ordinária:

1º – a perda do cargo por sentença judicialtransitado em julgada (inciso I) está dispostano § 1º do art. 41 da CF/88, sendo que oprocesso administrativo disciplinar que lhe sejaassegurada os princípios do contraditório (art.5º LV) e da ampla defesa;

2º – a desídia e a improbidade (inciso II)são faltas graves, puníveis com demissão nostermos dos incisos IV e XIII do art.132 doRegime Jurídico Único (Lei nº 8.112/90);

3º – a insuficiência de desempenho noexercício das funções é uma forma de desídia,pois, conforme já dissertamos (item I - infra),o grau de eficiência para com o desempenhodo servidor público é maior do que para com amesma junção numa relação de trabalho sob aégide do Direito Privado. Ademais trata-se deviolação expressa dos incisos dos deveres doservidor dispostos no art. 116, especificamentenos incisos I e V.

Hodiernamente, tornou-se moda o discursoacerca da “flexibilização” da estabilidade doservidor público. A estabilidade positivada, ouseja, normativamente vigente é relativa, comodemonstramos acima. Não nos parece que aquestão de fundo acerca de uma maioreficiência, agilidade e transparência da funçãopública seja a tal “flexibilização,” e sim aaplicação das normas vigentes!

A questão reside no fato de que apesar doart.116, inciso XII, dispor que é dever doservidor a representação contra ilegalidade,omissão ou abuso de poder, o controle dodesempenho do servidor público é praticamentenulo.

Não há uma práxis pública no sentido deexigir do servidor uma conduta adequada, legal,para sermos mais exatos. Isto se deve muito àomissão da Administração Pública, que nãoforma no seu servidor uma consciência da

magnitude e extensão do que seja funçãopública.

Outros países, ao contrário, investem noaperfeiçoamento do funcionário público (aquiem sentido amplo), notadamente a França, quepossui a ENA (Escola Nacional de Admi-nistração), e a Espanha, que no art. 64 de suaLei de Funcionários (no Cap. II – Seleção,Formação e Aperfeiçoamento), dispõe ser deverdo funcionário assistir aos cursos de aper-feiçoamento.

No projeto de reforma não há um só artigoque disponha sobre formas mais efetivas decontrole do cumprimento das normas referentesà matéria (leia-se aplicação da norma), bemcomo de programas obrigatórios de formaçãoe aperfeiçoamento (inclusive vinculados aoestágio probatório).

A figura de um ombudsman administrativo,com conhecimento da matéria, como órgãoindependente, existente em cada unidadeadministrativa dos três poderes e das três esferaspolíticas (ou seja, em cada ministério,secretaria, universidade, escolas federais,hospitais, etc.), encarregado de apurar asdenúncias recebidas quando da violação dosdeveres e das vedações impostas ao funcionáriopúblico, encaminhando-as às autoridadeshierarquicamente superiores ao funcionáriodenunciado, e claro, atento ao processodisciplinar e ao seu resultado 28, seria umainovação importante para o controle.

Cumpre-nos perquirir acerca do motivo dea proposta de reforma alterar para cinco anos oprazo para aquisição da estabilidade. Como jáassinalamos, a estabilidade é relativa, aavaliação do cumprimento das normas quedispõe sobre os deveres e vedações do servidoré dever da autoridade hierarquicamentesuperior, ou poderia ser de uma comissãoespecífica, como acontece no Canadá (Comis-são da Função Pública)29. Parece-nos que doisanos são suficientes para a AdministraçãoPública conhecer o servidor que pretendeconsolidar seu ingresso na função pública.

Ademais, em função dos princípios daimparcialidade e neutralidade, cinco anos é umperíodo longo (maior que um mandato eletivo),

27 O art. 169 dispõe acerca da vedação da despesacom pessoal ativo e inativo da União, dos Estados,do Distrito Federal e dos Municípios não poderáexceder os limites estabelecidos na Lei Comple-mentar nº 82/95.

28 A figura do ouvidor, ombudsman ou mediateur,é consolidada em vários países, tendo concorridopara a melhoria da Administração Pública. Cf. nossoestudo desenvolvido no livro Direito Administrativode participação, cidadania, direito, município.

29 Loi sur l’emploi de la fonction publique –art. 3º.

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posto que o servidor exerce suas funções sem agarantia necessária para tal, o que o transformaem um alvo fácil do arbítrio em razão daameaça de não se tornar estável.

Se a Administração Pública visa a umamaior mobilidade, no sentido até mesmo deexonerar o funcionário em razão da preca-riedade do vínculo de trabalho, deveria planejarmelhor sua estratégia para recursos humanos,optando pela não-realização do concursopúblico mesmo porque trata-se de uma despesasignificativa.

O desligamento do servidor público pornecessidade da Administração Pública éinovação de monta introduzida no texto daproposta de reforma. O motivo legal queautoriza o desligamento (conforme o inciso IVno art. 41) é a redução e reestruturação dequadros, sendo assegurado ao servidor o direitoà indenização (na forma e graduação previstasem lei ordinária). O cargo do servidor desligadoserá considerado extinto, sendo vedada a viaçãode novo cargo para as mesmas funções duranteum período de quatro anos (§ 2º).

A exposição de motivos (E. E. Inter-ministerial nº 49/95) que antecede a propostade reforma administrativa (emenda à CF/88)elenca entre outros princípios a viabilizaçãodo federalismo administrativo30 por meio dacooperação dos serviços públicos, envolvendoUnião, Estados e Municípios, no sentido deremover obstáculos legais à transferência debens e de pessoal (grifo nosso).

As estatísticas referentes (Anexo I) àqualificação do servidor público, ao quantitativode servidores por ministério e da proporção denúmero de habitantes por servidor público noBrasil demostram que o servidor públicobrasileiro é, em geral, qualificado; e que aproporção de habitantes por servidor é alta secomparada à França. Considerando-se onúmero de servidores da Administração

Central, (2.200.000 distribuídos por órgãos dogoverno), subtraídos os servidores das coleti-vidades locais (departamentos, regiões,municípios) e os hospitais; a França conta comum servidor para 26 pessoas.

A média nacional, num país de dimensõescontinentais e com carência de serviçospúblicos, como o de saúde por exemplo, é de277 pessoas para um servidor. Desse modo nãonos parece que a regra geral para a redução ereestruturação dos quadros funcionais seja odesligamento. Se a proposta é de um federa-lismo administrativo, por que não a inclusãona emenda da reforma administrativa daaplicação do instituto da transferência doservidor para qualquer poder da Federação(União, Estado e município)?

Há carência de servidores públicos emvários quadros, e a própria AdministraçãoPública reconhece que no prazo de quatro anos,um dado cargo poderá ser consideradonovamente necessário, podendo ser criado, oque implica novo concurso público.

A justificativa da despesa (ou déficitpúblico) para a adoção do desligamento não sesustenta.

O país tem sido pródigo em escândalosfinanceiros de toda ordem, em remuneraçõesastronômicas para certas categorias, como osmembros do Legislativo; o que demostra que areceita é grande. A questão de fundo é a grandefacilidade de se desviar o dinheiro público, anecessidade de controles mais efetivos e amelhor administração da Receita Pública.

Em relação ao servidor em disponibilidade(§ 6º do art. 41 da Reforma Administrativa), asolução encontrada pelo Canadá foi a deter-minação legal de sua prioridade de nomeaçãopara outro posto, desde que haja qualificação;isso seria uma forma de aproveitamento.

A melhoria do serviço público brasileirodepende não só de medidas motivadas pelacontingência do momento nacional, mastambém do planejamento dos recursos humanos,de modo que haja uma política de qualificaçãopara o cargo, ao lado de outra para o aper-feiçoamento na função pública por meio doconhecimento dos seus fins e do seu exercícioeficiente e transparente. Além disso, surge umauniformização legal do procedimento adminis-trativo, principalmente o disciplinar, para umcontrole mais efetivo e uma maior celeridadedas decisões administrativas com respeito aosprincípios da publicidade, moralidade eimpessoalidade, ou seja, a consagração fáticado binômio imparcialidade/neutralidade.

30 A livre circulação de funcionários na UniãoEuropéia é garantida pelo art. 2º da Lei de 21 dejulho de 1991: “Les ressortissants des Etats membresde la communauté économique européenne autre quela France ont accès, dans les conditions prévenueson statut général, aux corps, cadres d’emploi etemplois dont les attributions soit sont séparables del’exercice de la souveraineté, soit ne comportentaucune prérogative de puissance de l’état ou desautres collectivités publiques (...)”, bem como, o art.49 da Lei de 16 de dezembro de 1996. “Lesfunctionnaires d’un Ètat faisant partie de lacommunauté européene pourront désormais êtredétachés dans la fonction publique française”.

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5. Anexo IEstatísticas da Função PúblicaBrasil/França*Mare-SiapeMinistére de la Fonction Publique

Alguns quadros são transcrições, outros foram feitos com base nos dados fornecidos pelosdois ministérios

Efetivos reais dos agentes titulares civis por ministério e por categoria 31/12/94

Ministérios Categoria Categoria Categorias Total de titulares A B C e D civis

Assuntos Estrangeiros 2490 1290 3791 7571Assuntos Sociais 4795 6162 10896 21853Agricultura e Pesca 11044 6163 10006 27213Veteranos Combatentes 155 329 1925 2409Cooperação 2916 141 436 3493Cultura 2890 1764 5160 9814Dom-Tom 324 273 1013 1610Economia e Finanças 37121 53978 94218 185317Educação Nacional 493107 287195 126014 906916Ensino Superior 66701 9342 24734 100777Transportes 13014 20357 63658 97029Indústria 2002 1094 2779 5875Interior 8255 25658 126217 160170Juventude e Esportes 4211 612 1660 6483Justiça 10724 12049 34002 56795Serviços do PrimeiroMinistro 328 177 736 1241

Total 660.717 7614 20352 31514

França

ISetor Público

Empresas Públicas 1.830.000Organismos de Seguridade Social 220.000Coletividades Locais e Hospitais 4.340.000Total 6.390.000

IIFunção Pública

Estado 2.200.000 sendo 200.000 não titulares e 80.000 empregados do estado.Coletividades Locais 1.300.000Hospitais 840.000Total 4.340.000

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III

Repartição do pessoal titular civil do Estado por categoriaCategoria A 660.000 41%Categoria B 430.000 27%Categoria C 510.000 32%

* Categoria A: Diploma de Ensino Superior(Especialização, Mestrado, Doutorado)Categoria B: Bacharelado e EquivalenteCategoria C: Sem condições de se diplomar, ou 1º grau ou 2º grau

Fonte: Ministério da Função Pública – França

Quantitativo de Servidores Civis Ativos do ExecutivoPosição de agosto/96

Estado Quantidade Participação % Prop. nº de hab./ no total de servidores servidor

Rio Janeiro 118.153 21,92 112Minas Gerais 44.758 8,30 370São Paulo 43.129 8,00 769Distrito Federal 42.129 7,83 41Mato Grosso Sul 7.279 1,35 263Sergipe 5.273 0,98 303Acre 3.012 0,56 101Tocantins 1.978 0,37 500Total em todo Brasil 546.558 100,00 277

fonte: SIAPE – SRH/MAREInclui os servidores civis da administração direta, autarquias e fundações da União

Distribuição dos servidores públicos civis ativosdo executivo e do setor privado

Escolaridade Privado(a) Público(b)Analfabeto 5,0% 0,9%1º grau incompleto 43,1% 16,6%1º grau completo 12,2% 10,8%2º grau incompleto 6,8% 4,9%2º grau completo 16,3% 26,8%Superior incompleto 4,3% 5,2%Superior completo 12,3% 34,8%Total 100,0% 100,0%

(a) Seade-Dieese, para o ano de 1995(b) SIAPE, posição de junho/95

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Quantitativo de pessoal por cargo e Ministério*Posição de agosto/96

Superior Intermediário Auxiliar TotalServidores % Servidores % Servidores % Servidores %

Previdência** 2.858 33 4.006 47 1.745 20 8.609 100EMFA 175 21 655 78 10 1 840 100Ex-Ministérios 1.158 37 1.913 61 67 2 3.138 100AGU 9 47 10 53 0 0 19 100Ex-Territórios 10.223 36 15.644 55 2.503 9 28.370 100Adm. Ref. Estado 335 30 745 66 45 4 1.125 100Aeronáutica 1.686 17 6.826 69 1.431 14 9.943 100Agricultura 4.552 26 11.249 64 1.815 10 17.616 100Ciências e 2.387 48 2.480 50 90 2 4.957 100tecnologiaComunicações 169 13 1.100 86 11 1 1.280 100Cultura 1.396 53 1.189 45 62 2 2.647 100Educação 80.777 48 68.638 41 18.494 11 167.909 100Esportes 30 28 75 70 2 2 107 100Exército 1.529 11 10.050 74 1.972 15 13.551 100Fazenda 9.274 33 17.830 64 676 2 27.780 100Ind. e Com. 732 34 1.351 63 62 3 2.145 100Justiça 1.838 8 20.415 90 511 2 22.764 100Marinha 1.709 14 8.509 70 1.984 16 12.202 100Meio-Ambiente 2.542 28 6.247 70 196 2 8.975 100Minas e Energia 695 32 1.435 66 58 3 2.188 100Planejamento 2.763 22 9.813 78 11 0 12.587 100Previdência 11.840 24 37.409 76 211 0 49.460 100Relações 1.589 56 1.228 44 5 0 2.822 100ExterioresSaúde 38.285 29 91.305 70 1.294 1 130.884 100Trabalho 4.083 49 4.218 50 56 1 8.357 100Transporte 1.216 20 4.875 79 78 1 6.169 100Total 183.850 34 329.215 60 33.389 6 546.454 100

Fonte: SIAEPE – MARE* Cargos Ocupados** Inclui a Vice-Presidência e a SAE*** Cargos Vagos.

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1. IntroduçãoA palavra improbidade vem do latim,

improbitas, atis, significando, em sentidopróprio, má qualidade (de uma coisa). Tambémem sentido próprio, improbus, i , que deu origemao vernáculo ímprobo, significa mau, de máqualidade. Da mesma forma, probus, i, emportuguês, probo, quer dizer bom, de boaqualidade. O sentido próprio dessas palavras,pois, não se reporta, necessariamente, ao caráterdesonesto do procedimento incriminado,quando se faz referência a “administradorímprobo”.

Administração ímproba quer significar,portanto, administração de má qualidade. Issoé importante para se alcançar o verdadeirosignificado legal e jurídico da expressão,levando, por conseguinte, primeiramente, auma distinção entre “probidade na admi-nistração” e “moralidade administrativa”.

2. Probidade e moralidade Há quem confunda probidade com mora-

lidade ou, correspondentemente, improbidadecom imoralidade.

Luiz Alberto Ferracini, por exemplo, nolivro Improbidade Administrativa (Julex, 1997.p. 16) preleciona:

Improbidade administrativa

FLÁVIO SÁTIRO FERNANDES

Flávio Sátiro Fernandes é Professor da Uni-versidade Federal da Paraíba e Conselheiro doTribunal de Contas do Estado.

Palestra proferida em 24 de julho de 1997, naabertura do I Ciclo de Palestras, realizado paraassinalar a inauguração do Auditório “ConselheiroJosé Braz do Rego”, no Tribunal de Contas do Estadoda Paraíba.

SUMÁRIO

1. Introdução. 2. Probidade e moralidade. 3.Agentes da improbidade administrativa. 4.Classificação dos atos de improbidade admi-nistrativa. 5. Das sanções aplicáveis ao agente daimprobidade. 6. Da declaração de bens. 7. Daprescrição. 8. Do procedimento administrativo e doprocesso judicial. 9. Conclusão.

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“Entende-se por ato de improbidademá qualidade, imoralidade, malícia.Juridicamente, lega-se ao sentido dedesonestidade, má fama, incorreção, máconduta, má índole, mau caráter”.

De Plácido e Silva, em seu VocabulárioJurídico, p. 431, trilhando o mesmo caminho,diz que:

“improbidade revela a qualidade dohomem que não procede bem, por nãoser honesto, que age indignamente, pornão ter caráter, que não atua comdecência, por ser amoral.”

Autores existem, por outro lado, que,distinguindo nitidamente as duas noções,entendem ser a moralidade o gênero do qual aprobidade seria uma espécie.

Tal é o entendimento de Marcelo Figuei-redo, em seu livro Probidade Administrativa(São Paulo : Malheiros, 1995. p. 21), quandoensina:

“Entendemos que a probidade éespécie do gênero ‘moralidade adminis-trativa’ a que alude, v. g., o art. 37, capute seu § 4º da CF. O núcleo da probidadeestá associado (deflui) ao princípio maiorda moralidade administrativa, verda-deiro norte à administração em todas assuas manifestações. Se correta estiver aanálise, podemos associar, como o faz amoderna doutrina do direito adminis-trativo, os atos atentatórios à probidadecomo também atentatórios à moralidadeadministrativa. Não estamos a afirmarque ambos os conceitos são idênticos. Aocontrário, a probidade é peculiar eespecífico aspecto da moralidade admi-nistrativa.”

De nossa parte, divergindo dos que assimpensam, entendemos: a) moralidade e probi-dade administrativas são noções bem clara-mente distintas, que se não podem confundirante os textos legais que, a partir da Cons-tituição Federal, a elas se referem; b) por essesmesmos textos, é forçoso reconhecer, comodemonstraremos a seguir, que a probidade é queé o gênero, do qual a moralidade é espécie, hajavista a maior amplitude e o maior alcanceemprestados à primeira, pela ConstituiçãoFederal e pela legislação ordinária.

De fato, examinando-se o que a Consti-tuição de 5 de outubro de 1988 e a legislaçãoinfraconstitucional contêm a respeito dosprincípios aqui aludidos, verifica-se queprobidade e moralidade administrativas são

conceitos que se não podem confundir, e que asegunda dessas noções está contida na primeira.

Repassemos os dispositivos que men-cionam, expressamente, os dois conceitos.

Ao tratar da administração pública,apontando-lhe os princípios fundamentais (art.37, caput), a CF indica, entre estes, amoralidade, sem referência à probidade:

“A administração pública direta,indireta ou fundacional, de qualquer dosPoderes da União, dos Estados, doDistrito Federal e dos Municípiosobedecerá aos princípios de legalidade,impessoalidade, moralidade, publicidadee, também, ao seguinte:”.

Já no § 4º do mesmo artigo 37, a CartaMagna alude à improbidade administrativa,sem aludir à moralidade, ao determinar que:

“Os atos de improbidade admi-nistrativa importarão a suspensão dosdireitos políticos, a perda da funçãopública, a indisponibilidade dos bens eo ressarcimento ao erário, na forma egradação previstas em lei, sem prejuízoda ação penal cabível.”

Em outro dispositivo da CF (art. 5º, LXXIII)está dito que:

“qualquer cidadão é parte legítima parapropor ação popular que vise a anularato lesivo ao patrimônio público ou deentidade de que o Estado participe, àmoralidade administrativa, ao meioambiente e ao patrimônio histórico ecultural, ficando o autor, salvo compro-vada má-fé, isento de custas judiciais edo ônus da sucumbência;”.

Definindo os crimes de responsabilidade doPresidente da República, a Lei Maior (art. 85,V) considera como um deles o ato daquelaautoridade que atentar contra a probidade naadministração.

A Lei nº 8.429/92, por sua vez, comple-mentando as disposições constitucionais,classifica os atos de improbidade administrativaem três tipos:

I) atos de improbidade que importamem enriquecimento ilícito;

II) atos de improbidade adminis-trativa que causam prejuízo ao erário;

III) atos de improbidade adminis-trativa que atentam contra os princípiosda administração pública.

Os dispositivos constitucionais e legaisacima apontados, a par de evidenciar adistinção que deve existir entre probidade e

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moralidade, servem para fundamentar o nossoentendimento, acima manifestado, de que aprobidade administrativa contém a noção demoralidade administrativa, ou seja, é conceitoamplo, de modo a abarcar em si o conceito demoralidade administrativa.

Senão, vejamos:No artigo 37, § 4º, da CF, está dito que os

atos de improbidade administrativa importarãoa perda da função pública. Perguntamos, então:será que os atos contra a moralidade adminis-trativa não ensejam, também, a perda da funçãopública? Evidentemente, sim. Se a violação atal princípio não está ali referido comodeterminante dessa sanção é porque, semdúvida, ela está compreendida entre os atos deimprobidade a que se reporta a disposição emreferência.

O mesmo podemos indagar em relação aoartigo 85, V, da CF, que prevê como crime deresponsabilidade o ato de atentar o Presidenteda República contra a probidade na adminis-tração. Será que os atos contra a moralidadeadministrativa, na medida em que revelam adesonestidade, a corrupção, a má-fé, nãoconfiguram crime de responsabilidade daquelaautoridade? Evidentemente, sim. Do mesmomodo que na situação anterior, se a violação àmoralidade administrativa não está indicada,expressamente, como tipificadora do crime deresponsabilidade, é porque tal conduta, comtoda certeza, está embutida na compreensão doque seja improbidade administrativa.

A evidência maior, porém, de que aprobidade administrativa abarca o princípio damoralidade está, sem dúvida, na maneira comoa Lei nº 8.429/92 define os atos de improbidadeadministrativa. De acordo com o mencionadodiploma legal, a improbidade na administraçãose verifica quando se praticam atos que ensejamenriquecimento ilícito, causam prejuízo aoerário ou atentam contra os princípios daadministração, definidos no artigo 37, § 4º, daCF, entre os quais está incluída a moralidade,ao lado da legalidade, da impessoalidade e dapublicidade, além de outros que, mesmo nãoapontados, explicitadamente, no citadodispositivo, mas distribuídos por todo o textoconstitucional, também se aplicam à conduçãodos negócios públicos.

Caberia, aqui, deixar clara a distinção entreuma e outra.

O ato de imoralidade – segundo a lição dosdoutos – afronta a honestidade, a boa-fé, orespeito à igualdade, as normas de conduta

aceitas pelos administrados, o dever delealdade, a dignidade humana e outros pos-tulados éticos e morais.

A improbidade, por sua vez, significa a máqualidade de uma administração, pela práticade atos que implicam enriquecimento ilícito doagente ou prejuízo ao erário ou, ainda, violaçãoaos princípios que orientam a pública adminis-tração.

Em suma, podemos dizer que todo atocontrário à moralidade administrativa é atoconfigurador de improbidade. Porém, nem todoato de improbidade administrativa representaviolação à moralidade administrativa.

3. Agentes da improbidade administrativaA Lei nº 8.429/92 define quais as pessoas

consideradas como passíveis de sanção pelaprática de atos de improbidade. Tais são:

a) Qualquer agente público, servidor ou não,em relação a atos de improbidade praticadoscontra a administração direta, indireta oufundacional de qualquer dos Poderes da União,dos Estados, do Distrito Federal, dos Muni-cípios, de Território, de empresa incorporadaao patrimônio público ou de entidade para cujacriação ou custeio o erário haja concorrido ouconcorra com mais de cinqüenta por cento dopatrimônio ou da receita anual, reputando-seagente público, para os efeitos da lei, todoaquele que exerce, ainda que transitoriamenteou sem remuneração, por eleição, nomeação,designação, contratação, ou qualquer outraforma de investidura ou vínculo, mandato,cargo, emprego ou função nas entidades acimamencionadas.

b) Qualquer pessoa que, mesmo não sendoagente público, induza ou concorra para aprática do ato de improbidade ou dele sebeneficie por qualquer forma direta ou indireta.

Vale observar que estão também sujeitos àssanções da lei os atos de improbidade praticadoscontra o patrimônio de entidade que recebasubvenção, benefício ou incentivo, fiscal oucreditício, de órgão público bem como daquelaspara cuja criação ou custeio o erário hajaconcorrido ou concorra com menos de cin-qüenta por cento do patrimônio ou da receitaanual, limitando-se, nestes casos, a sançãopatrimonial à repercussão do ilícito sobre acontribuição dos cofres públicos.

Como se vê, é amplíssimo o universo depessoas cujo procedimento pode ser apontadocomo ímprobo, desde que, servidores outerceiros, incidam nas situações apontadas pela

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lei. Exemplificativamente, estariam sujeitos àscominações legais membros de colegiados quenão são remunerados, dirigentes de entidadesprivadas, fornecedores, enfim todos os queconcorram para a prática dos atos previstosna lei.

Bastante largo é, também, o número deentidades cujo patrimônio se acha protegidopelas disposições legais em referência. Para seter uma idéia da amplitude do alcance da lei,basta observar que empresas que gozam deincentivos fiscais, a exemplo das empresasfavorecidas por intermédio da SUDENE, daSUDAM e de outros organismos nacionais ouestaduais, como o Fain, encontram-se prote-gidas pela legislação ora comentada, em relaçãoà conduta irregular de seus administradores,dolosa ou culposa, em que pese sua condiçãode empresas privadas.

Finalmente, é de se atentar para a circuns-tância relevante de que a obrigação de ressarciro dano, integralmente, dar-se-á sempre, sejaeste causado por ação ou omissão, dolosa ouculposa, pouco importa.

4. Classificação dos atosde improbidade administrativa

Como foi dito antes, a Lei nº 8.429/92conhece três tipos de atos ímprobos naadministração, a saber:

I) atos que importam em enri-quecimento ilícito;

II) atos que causam prejuízo aoerário; e

III) atos que atentam contra osprincípios da administração pública.

A primeira classe de atos de improbidadeadministrativa compreende os seguintes:

“a) auferir qualquer tipo de vantagempatrimonial indevida em razão doexercício de cargo, mandato, função ouemprego, ou atividades nas entidadesmencionadas no art. 1º desta Lei;

b) receber, para si ou para outrem,dinheiro, bem móvel ou imóvel, ouqualquer outra vantagem econômica,direta ou indireta, a título de comissão,percentagem, gratificação ou presente dequem tenha interesse, direto ou indireto,que possa ser atingido ou amparado poração ou omissão decorrente das atri-buições do agente público;

c) perceber vantagem econômica,direta ou indireta, para facilitar a

aquisição, permuta ou locação de bemmóvel ou imóvel, ou a contratação deserviços pelas entidades referidas no art.1º por preço superior ao valor demercado;

d) utilizar, em obra ou serviçoparticular, veículo, máquinas, equipa-mentos ou material de qualquer natureza,de propriedade ou à disposição dequalquer das entidades mencionadas noart. 1º desta Lei, bem como o trabalhode servidores públicos, empregados outerceiros contratados por essas entidades;

e) receber vantagem econômica dequalquer natureza, direta ou indireta,para tolerar a exploração ou a prática dejogos de azar, de lenocínio, de narco-tráfico, de contrabando, de usura ou dequalquer atividade ilícita, ou aceitarpromessas de tal vantagem;

f) receber vantagem econômica dequalquer natureza, direta ou indireta,para fazer declaração falsa sobre mediçãoou avaliação em obras públicas ou qual-quer outro serviço, ou sobre quantidade,peso, medida, qualidade ou característicade mercadorias ou bens fornecidos aqualquer das entidades mencionadas noart. 1º desta Lei;

g) adquirir, para si ou para outrem,no exercício de mandato, cargo, empregoou função pública, bens de qualquernatureza cujo valor seja desproporcionalà evolução do patrimônio ou à renda doagente público;

h) aceitar emprego, comissão ouexercer atividade de consultoria ouassessoramento para pessoa física oujurídica que tenha interesse suscetível deser atingido ou amparado por ação ouomissão decorrente das atribuições doagente público, durante a atividade;

i) perceber vantagem econômica paraintermediar a liberação ou aplicação deverba pública de qualquer natureza;

j) receber vantagem econômica dequalquer natureza, direta ou indire-tamente, para omitir ato de ofício,providência ou declaração a que estejaobrigado;

l) incorporar, por qualquer forma, aoseu patrimônio bens, rendas, verbas ouvalores integrantes do acervo patrimonialdas entidades mencionadas no art. 1ºdesta Lei;

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m) usar, em proveito próprio, bens,rendas, verbas ou valores integrantes doacervo patrimonial das entidades men-cionadas no art. 1º desta Lei.”

A segunda classe de atos de improbidade,na conformidade da disposição legal, é a dosque causam prejuízo ao erário, compreendendoas seguintes práticas:

“a) facilitar ou concorrer por qual-quer forma para a incorporação aopatrimônio particular, de pessoa física oujurídica, de bens, rendas ou valoresintegrantes do acervo patrimonial dasentidades mencionadas no art. 1º destaLei;

b) permitir ou concorrer para quepessoa física ou jurídica privada uti-lize bens, rendas, verbas ou valoresintegrantes do acervo patrimonial dasentidades mencionadas no art. 1º destaLei;

c) doar à pessoa física ou jurídica,bem como ao ente despersonalizado,ainda que de fins educativos ou assis-tenciais, bens, rendas, verbas ou valoresdo patrimônio de qualquer das entidadesmencionadas no art. 1º desta Lei, semobservância das formalidades legais eregulamentares aplicáveis à espécie;

d) permitir ou facilitar a alienação,permuta ou locação de bens integrantesdo patrimônio de qualquer das entidadesreferidas no art. 1º desta Lei, ou ainda aprestação de serviços por parte delas, porpreço inferior ao de mercado;

e) permitir ou facilitar a aquisição,permuta ou locação de bem ou serviçopor preço superior ao de mercado;

f) realizar operação financeira semobservância das normas legais e regu-lamentares ou aceitar garantias insu-ficientes ou inidôneas;

g) conceder benefício administrativoou fiscal sem a observância das forma-lidades legais ou regulamentares apli-cáveis à espécie;

h) frustrar a licitude do processolicitatório ou dispensá-lo indevidamente;

i) ordenar ou permitir a realizaçãode despesas não autorizadas em lei ouregulamento;

j) agir negligentemente na arreca-dação de tributo ou renda, bem como noque diz respeito à conservação dopatrimônio público;

l) liberar verba pública sem a estritaobservância das normas pertinentes ouinfluir de qualquer forma para a suaaplicação irregular;

m) permitir, facilitar ou concorrerpara que terceiro se enriqueça ilicita-mente; e

n) permitir que se utilize, em obraou serviço particular, veículos, máquinas,equipamentos ou material de qualquernatureza, de propriedade ou à disposiçãode qualquer das entidades mencionadasno art. 1º desta Lei, bem como o trabalhode servidor público, empregados outerceiros contratados por essas enti-dades.”

Finalmente, a terceira classe dos atos deimprobidade administrativa contempla os atosque atentam contra os princípios da admi-nistração pública, violando os deveres dehonestidade, imparcialidade, legalidade elealdade às instituições, e notadamente osseguintes:

“a) praticar ato visando fim proibidoem lei ou regulamento ou diverso daqueleprevisto na regra de competência;

b) retardar ou deixar de praticar,indevidamente, ato de ofício;

c) revelar fato ou circunstância de quetem ciência em razão das atribuições eque deve permanecer em segredo;

d) negar publicidade aos atos oficiais;e) frustrar a licitude de concurso

público;f) deixar de prestar contas quando

obrigado a fazê-lo; eg) revelar ou permitir que chegue ao

conhecimento de terceiro, antes darespectiva divulgação oficial, teor demedida política ou econômica capaz deafetar o preço da mercadoria, bem ouserviço.”

5. Das sanções aplicáveisao agente da improbidade

A Lei nº 8.429/92 não se preocupa emdefinir crimes. Os atos tipificados nos arts. 9º,10 e 11 não constituem crimes no âmbito dareferida lei. Muitas das condutas ali descritassão de natureza criminal, assim definidas,porém, em outras leis, a exemplo do CódigoPenal, do Decreto-Lei nº 201, da Lei nº 8.666/93 etc.

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Não sendo crimes, tem, contudo, umasanção de natureza política ou civil, cominadana lei sob comentário, independentemente dassanções penais, civis e administrativas previstasna legislação específica.

Assim, os atos de improbidade admi-nistrativa que importam em enriquecimentoilícito estão sujeitos às seguintes cominações:

“a) perda dos bens ou valores acres-cidos ilicitamente ao patrimônio;

b) ressarcimento integral do dano,quando houver;

c) perda da função pública;d) suspensão dos direitos políticos de

oito a dez anos;e) pagamento de multa civil de até

três vezes o valor do acréscimo patri-monial; e

f) proibição de contratar com o PoderPúblico ou receber benefícios ou incen-tivos fiscais ou creditícios, direta ouindiretamente, ainda que por intermédiode pessoa jurídica da qual seja sóciomajoritário, pelo prazo de dez anos.”

Na hipótese da prática de atos de impro-bidade que causem prejuízo ao erário, assanções aplicáveis são:

“a) ressarcimento integral do dano,se houver;

b) perda dos bens ou valores acres-cidos ilicitamente ao patrimônio, seconcorrer esta circunstância;

c) perda da função pública, suspensãodos direitos políticos de cinco a oito anos;

d) pagamento de multa civil de atéduas vezes o valor do dano; e

e) proibição de contratar com o PoderPúblico ou receber benefícios ou incen-tivos fiscais ou creditícios, direta ouindiretamente, ainda que por intermédiode pessoa jurídica da qual seja sóciomajoritário, pelo prazo de cinco anos.”

Finalmente, a prática de atos deimprobidade, que atentam contra amoralidade e demais princípios daadministração, acarreta como sanção:

“a) ressarcimento integral do dano;b) perda da função pública, suspensão

dos direitos políticos de três a cinco anos;c) pagamento de multa civil de até

cem vezes o valor da remuneraçãopercebida pelo agente; e

d) proibição de contratar com o PoderPúblico ou receber benefício ou incen-tivos fiscais ou creditícios, direta ou

indiretamente, ainda que por intermédiode pessoa jurídica da qual seja sóciomajoritário, pelo prazo de três anos.”

6. Da declaração de bensPara possibilitar uma fiscalização efetiva e

um acompanhamento eficaz da evoluçãopatrimonial dos agentes públicos, a Lei nº8.429/92 prevê a obrigação para todo agentepúblico de apresentar declaração de bens evalores que compõem seu patrimônio particular,quando de sua posse em qualquer cargo público.Tal declaração deverá ser atualizada anual-mente, bem como no momento em que o agentedeixar o exercício de mandato, cargo, empregoou função.

A legislação específica, Lei nº 8.730/93,estipula que as declarações em referência sejamentregues também aos Tribunais de Contas, aosquais caberá averiguar a respeito das situaçõese mutações patrimoniais ocorrentes, em relaçãoao patrimônio dos agentes públicos.

7. Da prescriçãoCumpre-nos referir ao prazo para ajuiza-

mento das ações destinadas a levar a efeito assanções previstas na Lei nº 8.429/92. Segundoessa, as mencionadas ações podem ser propostasaté cinco anos após o término do exercício demandato, cargo em comissão ou função deconfiança.

Nos casos de exercício de cargo efetivo ouemprego, devem as ações ser propostas dentrodo prazo prescricional previsto na lei específicapara faltas disciplinares puníveis com demissãoa bem do serviço público.

8. Do procedimento administrativoe do processo judicial

Questão da maior relevância é a que dizrespeito ao procedimento administrativo e aoprocesso judicial que devem ser seguidosvisando à apuração de atos de improbidade e àaplicação das sanções de que são merecedoresos respectivos agentes.

A lei prevê um procedimento adminis-trativo, que servirá de base para o processojudicial, visando à aplicação das sanções,notadamente a perda do cargo e suspensão dosdireitos políticos, de competência privativa doPoder Judiciário.

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Confere a Lei nº 8.429/92 a qualquer pessoaa capacidade para representar à autoridadeadministrativa competente para que sejainstaurada investigação destinada a apurar aprática de ato de improbidade. A comissão quefor designada para apurar a prática deimprobidade dará conhecimento de suainstauração ao Ministério Público e ao Tribunalde Contas, os quais poderão designar repre-sentantes para acompanharem o procedimentoadministrativo em referência.

Nessa fase, poderá ser solicitada pelacomissão, ao Ministério Público ou à Procu-radoria do órgão que seja requerida ao juízocompetente, o seqüestro dos bens do agente oude terceiro que tenha enriquecido ilicitamenteou causado dano ao erário.

E aqui cabe-nos tocar em ponto da maiorimportância relativamente às atribuições dosTribunais de Contas.

Como ficou assinalado, a lei prevê umprocedimento administrativo, conferindo podera qualquer pessoa para representar à autoridadeadministrativa competente, para que sejainstaurada investigação destinada a apurar aprática de ato de improbidade. Entendemos queos processos de prestação de contas dosdiferentes agentes públicos, cujo julgamentocabe ao Tribunal de Contas, valem como osprocedimentos administrativos a que se reportaa Lei nº 8.429/92. Em tais processos, dada aamplitude de suas atribuições, e graças aotrabalho de suas equipes técnicas, os Tribunaisde Contas verificam a legalidade das despesas;constatam a ocorrência de prejuízos aos eráriossob sua proteção; atestam a prática de violaçãoà moralidade administrativa, exercitada pordiferentes meios; certificam o desvio derecursos, em favor dos agentes ou de terceiros;demonstram a realização de aquisições oualienações viciosas de bens; comprovam ofavorecimento de terceiros em detrimento dopatrimônio público; evidenciam a omissão ounegligência do agente público; testemunhaminfrações aos princípios da legalidade, dalegitimidade, da economicidade; enfim,procedem a toda uma investigação que, ao final,revela-se capaz de autenticar a probidade ouimprobidade do agente público; inclusivemediante análise da evolução de seu patrimônioconforme atribuição dada aos mencionadosTribunais pela Lei nº 8.730/93. Além disso asinvestigações feitas no âmbito dos Tribunaisde Contas têm o acompanhamento diuturno doMinistério Público que, por imperativo

constitucional (arts. 73, § 2º, I e 130) atua juntoàquelas Cortes, exigência também feita pela Leinº 8.429/92. E mais: os agentes públicos, cujosprocedimentos são fiscalizados e cujas contassão julgadas pelos Tribunais, têm asseguradoem seu favor o contraditório e o exercício damais ampla defesa, podendo defender-sepessoalmente ou através de procurador ouadvogado, legalmente habilitado, e, em umoutro caso, requerer diligências, vistorias,inspeções, tudo de modo a tornar efetiva agarantia constitucional prevista no artigo 5º,LV, da Constituição Federal:

“LV – aos litigantes, em processojudicial ou administrativo, e aos acusadosem geral são assegurados o contraditórioe a ampla defesa, com os meios e recursosa ela inerentes;”

Ora, diante de investigação tão completa,quer do ponto de vista formal, quer do pontode vista material, parece-nos que outroprocedimento administrativo para apuração deimprobidade administrativa não teria cabi-mento ou sentido nenhum, representando, tão-somente, uma duplicidade de esforços e degastos financeiros.

Se isso ocorre em relação aos agentespúblicos comuns, com muito mais razão é dese compreender com referência aos chefes dePoderes, quer estaduais, quer municipais.

O artigo 14 da Lei nº 8.429/92 faculta aqualquer pessoa representar à autoridadeadministrativa competente, para que sejainstaurada investigação destinada a apurar aprática de improbidade. Ora, tomemos oexemplo do Prefeito-chefe do executivomunicipal. Se a representação a que se reportao mencionado dispositivo legal há de ser feitaà autoridade administrativa competente paraque seja instaurada a investigação, pergun-tamos: a que autoridade municipal seriaencaminhado o pedido, já que o Prefeito é, semdúvida, a maior autoridade local, no âmbitoexecutivo?

Aqui, socorre-nos a lição de ManuelGonçalves Ferreira Filho, para quem:

“A probidade é uma obrigaçãoelementar, a que todos, especialmente osque recebem, administram e aplicamdinheiro público, estão jungidos. OPresidente da República, evidentemente,não escapa a essa obrigação. Desse modotem de zelar para que toda a adminis-tração pública se atenha estritamente àsnormas de probidade, sobretudo finan-ceira.

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A prestação de contas é um dosaspectos principais por que se manifestaa probidade administrativa” (Comen-tários, Saraiva, v. 2).

A prestação de contas – já tive ocasião dedizer – é instrumento de transparência daadministração e é por meio dela que, na liçãodo renomado mestre, se revela a sua probidadeou a sua improbidade. Os Tribunais de Contas,no exame de contas tomadas por sua iniciativaou prestadas pelos administradores municipais,pondo em movimentação todo o procedimentotécnico-administrativo a que acima aludimos,têm condições de, à luz dos elementos contidosna Prestação de Contas ou por eles colhidos inloco, atestar o modo como se comportou oprefeito, ou qualquer outra autoridade à frentedos negócios públicos. As suas investigaçõessão, portanto, capazes de fazê-lo firmar juízode valor sobre a conduta proba ou ímproba do

agente público, competência reforçada com adisposição constitucional que confere às suasdecisões, no caso de imputação de débito ouaplicação de multa, a eficácia de títuloexecutivo.

9. ConclusãoEm conclusão do que vimos a respeito da

Lei nº 8.429/92, força é convir que esse diplomalegal representa valioso instrumento paraassegurar-se a probidade administrativa porparte de todos a quantos se acha entregue acondução dos negócios públicos nos entes a quese refere a mencionada lei, garantindo-se,assim, a incolumidade do patrimônio públicoe o respeito aos princípios da sã administração,mediante o ressarcimento ao erário, a puniçãodos culpados e sua retirada temporária dosquadros político-administrativos.

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A legislação penal extravagante dos últimosanos tem reprimido com rigor não apenas asonegação fiscal, aquela que comumente estáassociada a ato fraudulento, mas também a faltade recolhimento de tributos ou contribuições,sempre que ocorrente o fenômeno da reper-cussão, o que tem causado profundas diver-gências entre os hermeneutas e até mesmoperplexidade. Com efeito, sobre o assunto existecerto preconceito, aliás enraizado em nossacultura, de que os delitos praticados porpessoas bem situadas não são puníveis, aindamais quando a lesão atinge o patrimôniopúblico (Ari Pargendler, Apelação Criminalnº 94.04.45149-5/ RS, RTRF-4. Região, n.20, p. 202).

A propósito das contribuições previ-denciárias, a matéria vinha regulada peloDecreto-Lei nº 65/37, art. 5º , o qual jáequiparava ao crime de apropriação indébita afalta de recolhimento no prazo devido. A Leinº 3.807/60 dispôs, no art. 86, que

“Será punida com as penas do crimede apropriação indébita a falta derecolhimento, na época própria, dascontribuições e de quaisquer outrasimportâncias devidas às instituições deprevidência e arrecadadas dos seguradosou do público.

Parágrafo único – Para os fins desteartigo, consideram-se pessoalmenteresponsáveis o titular da firma indivi-dual, os sócios solidários, gerentes,diretores ou administradores das empresasincluídas no regime desta lei”.

Regulamentada pelo Decreto nº 72.771/73,art. 430, dispôs que:

“Constitui crime, nos termos dos arts.86 e 155 da Lei nº 3.807/60:

Apropriação indébita tributária?

RICARDO PERLINGEIRO MENDES DA SILVA

Ricardo Perlingeiro Mendes da Silva é JuizFederal no Rio de Janeiro, Professor Assistente daUniversidade Federal Fluminense, Mestre emDireito e Doutorando em Direito.

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II – de apropriação indébita nostermos da legislação penal:

a) deixar de recolher, na épocaprópria, as contribuições e outrasquaisquer importâncias arrecadadas dossegurados ou do público e devidos àPrevidência Social”.

Posteriormente, a CLPS (Decreto nº 89.312/84), art. 146, prescreveu que:

“A falta de recolhimento, na épocaprópria, de contribuição ou outraimportância devida à Previdência Sociale arrecadada dos segurados ou dopúblico, é punida com a pena do crimede apropriação indébita, considerando-se pessoalmente responsáveis o titular dafirma individual e os sócios solidários,gerentes, diretores ou administradores deempresa abrangida pela previdênciasocial urbana”.

A Lei nº 8.137/90, art. 2º, II, dispõe que:“Constitui crime da mesma natureza:

II – deixar de recolher, no prazo legal,valor de tributo ou de contribuição social,descontado ou cobrado, na qualidade desujeito passivo de obrigação e que deveriarecolher aos cofres públicos”.

Inicialmente aplicável a toda espécie detributo ou contribuição indireta, inclusive aoIPI e ICMS, veio ela a ser parcialmenterevogada pela Lei nº 8.212/91, art. 95, d, verbis:

“Constitui crime:d) deixar de recolher, na época

própria, contribuição ou outra impor-tância devida à seguridade social earrecadada dos segurados ou do público”.

No tocante ao recolhimento do Impostosobre Produtos Industrializados (IPI), atipificação penal, antes do advento da Lei nº8.137/90, decorria do Decreto-Lei nº 326/67,art. 2º, que encontrava-se assim redigido:

“A utilização do produto da cobrançado imposto sobre produtos industria-lizados em fim diverso do recolhimentodo tributo constitui crime de apropriaçãoindébita definido no art. 168 do CP,imputável aos responsáveis legais dafirma, salvo se pago o débito esponta-neamente, ou quando instaurado oprocesso fiscal, antes da decisão adminis-trativa de primeira instância”.

O delito de apropriação indébita consistena apropriação de coisa alheia móvel, de quemtem a posse e detenção (Código Penal, art.168). O preceito legal destina-se exclusiva-

mente a bens móveis infungíveis, isto porque,na realidade, qualquer negócio jurídico quetransfira, provisoriamente, a posse de bensfungíveis não obriga a devolução do mesmobem, mas sim de outro equivalente em espécie,qualidade e quantidade, tal como nos contratosde mútuo (Código Civil, art. 1.280 c/c arts.1.256/1.264), de modo que a transferência debens fungíveis implica sempre transferência depropriedade (direito real) e obrigação (direitopessoal) de restituir o equivalente. É impossívelque seja diferente e, ainda que o legislador digao contrário (Lei nº 8.866/94, art. 8º), nuncapoderá ser abstraída do depositário, em depósitoirregular relativo a bens fungíveis, a possibi-lidade de deles dispor como se fosse proprie-tário, ainda que de forma limitada (MIRANDA,Pontes de. Tratado de Direito Privado, 2. ed.Rio de Janeiro : Borsoi, 1963. v. 42, p. 368-369, 372-373, 383). Daí resulta que a retençãode valores devidos ao Fisco (Lei nº 8.137/91,art. 2º, II, e Lei nº 8.212/91, art. 95, d) consisteapenas no inadimplemento de obrigaçãotributária, ainda que o contribuinte sejalegalmente considerado depositário (Lei nº8.866/94, art. 1º), já que a propriedade dodinheiro (bem eminentemente fungível)permanece no seu patrimônio até que haja oefetivo pagamento. Nesse ponto vale registrara doutrina de Pontes de Miranda, que admite arestituição do bem, sob pena de prisão, mesmopara os depósitos irregulares (Op. cit. p. 363),e a de Sílvio Rodrigues, que é contra (DireitoCivil, 21. ed. São Paulo : Saraiva, 1993. v. 3,p. 291). Em suma, não há como se falar emapropriação indébita de bens que pertençam aopróprio agente.

No mesmo sentido, Hugo de Brito Machadopreleciona que:

“O não-pagamento de IPI, ou doImposto de Renda Retido na Fonte ou decontribuições de seguridade socialdescontadas de empregados, não corres-ponde à apropriação indébita, definidano art. 168 do Código Penal. O contri-buinte não se apropria, porque o dinheirolhe pertence, e não ao Fisco, que ésimplesmente credor”(Crimes contra aordem tributária. São Paulo : Revista dosTribunais, 1995. p. 125).

Ainda em prol dessa tese, de que a falta derecolhimento de tributo não é crime deapropriação indébita, vale registrar a doutrinade Carlos Alberto da Costa Dias, da qualdestaco a seguinte conclusão:

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“Os crimes de falta de recolhimentode contribuições sociais ou de falta derepasse de imposto sobre produtosindustrializados, inicialmente previstoscomo formas de apropriação indébita porsemelhança, são figuras típicas distintasdo crime de apropriação. Nesses crimesnão há que se falar de relação de depósitoem sentido estrito jurídico, em virtudede que não existe desconto, propriamentedito, de qualquer importância. Pordefinição legal, no entanto, constituemdepósito o não-recolhimento de contri-buições devidas por parte de empregadose IPI (Imposto sobre Produtos Indus-trializados). Esse conceito legal nãocondiz, todavia, em nosso entendimento,com a realidade econômica e jurídica doconceito da relação de depósito, uma vezque a entrega do dinheiro (pagamentopelo contribuinte de fato) não é simul-tânea e necessariamente dependente daconstituição do crédito tributário, no casodo IPI, e porque o desconto previ-denciário, por seu turno, se soma ao custoda mão-de-obra, já que o salário em sinão é geração de riqueza, mas custo daempresa sujeito às regras de mercado”(Apropriação indébita em matériatributária. Revista Brasileira de CiênciasCriminais, n. 11, p. 111).

A jurisprudência do Supremo TribunalFederal sobre o tema é antiga e está no RecursoExtraordinário nº 75.278 (DJU, 8 mar. 1974),que contém a seguinte ementa:

“Falta de recolhimento de contri-buições descontadas e devidas à previ-dência social – Inocorrência do crime deapropriação indébita – Inaplicabilidadedo art. 86 da Lei 3.807/60”.

Da mesma maneira, o Egrégio TribunalRegional Federal da 4ª Região, no RecursoCriminal nº 95.04.22078-9/SC, de que foirelatora a Juíza Tânia Escobar, deixouassentado que

“o delito capitulado no art. 95, letra d daLei 8.212/91, não é o de apropriaçãoindébita, prevista no art. 168 do CódigoPenal” (Revista Brasileira de CiênciasCriminais, n. 13, p. 371).

Dir-se-á que o então Tribunal Federal deRecursos rejeitou a argüição de inconsti-tucionalidade do art. 2º, caput, do Decreto-Leinº 326/67, sob o fundamento de que

“o caput da referida regra não criou novotipo penal, limitando-se a proibir que o

contribuinte empregue o produto doimposto em fim outro que não seja orecolhimento aos cofres da União e cujodescumprimento reúne em si os elemen-tos do crime definido no art. 168 doestatuto” (Rec. Crim. nº 544/SC. RelatorMinistro Torreão Braz. RTFR, n. 82,p. 1).

Dir-se-á, ainda, que, de igual sorte, oSupremo Tribunal Federal, em sede de habeascorpus, assim decidiu:

“Constitucionalidade do art. 2º ,caput, do Decreto-Lei nº 326/67, por-quanto, na realidade, não criou ele novamodalidade de apropriação indébita, masapenas estabeleceu – o que se situa dentrodo âmbito do direito tributário – aposição jurídica do responsável pelopagamento do tributo em face da coisafungível (produto da cobrança doimposto), vedando-lhe a utilização delapara outro fim que não o seu recolhi-mento aos cofres públicos na épocaprópria, que é requisito objetivo para que,com relação à coisa fungível, possaocorrer o crime de apropriação indébita,aos precisos termos do caput do art. 168do Código Penal, e não em decorrênciade modalidade nova desse delito”(Habeas Corpus nº 55.191. RelatorMinistro Moreira Alves. RTJ, nº 86, p.408).

De fato. Contudo, em nada abala osfundamentos deste estudo e tampouco colidecom o anterior posicionamento do STF, nocitado RE. nº 75.278 (DJU, 8 mar. 1974). Éque ambos os pronunciamentos (Rec.Crim. nº544/TFR e HC. nº 55191/STF) tiveram por basea conduta “utilização do produto da cobrançado imposto... em fim diverso do recolhimentodo tributo”, que, como muito bem lembradopelo E. Ministro Antônio Neder (RTJ, n. 86, p.422), visava justamente evitar a configuraçãodo mútuo, porque no direito brasileiro oempréstimo da coisa fungível, segundo o nossoCódigo Civil, transforma-se em contrato demútuo e o mutuário tem o direito de usar a coisaut dominus, como se fosse proprietário. Delese extrai ainda remissão a acórdão relatado porNelson Hungria, no qual se diz que a

“proibição é para utilização para fimdiverso, porque ao dinheiro, coisafungível entregue a alguém para deter-minado fim, não lhe pode esse alguémemprestar destino outro, qualquer que

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seja, porque essa entrega não lhe foi feitaut dominus”.

A legislação em voga, entretanto, contémo verbo deixar de recolher, o que é bemdiferente.

Trata-se, pois, de crime omissivo próprio ede mera conduta. A sua consumação dependeapenas do não-recolhimento. Não há descriçãono tipo penal de qualquer resultado (BALERA,Wagner. Crimes contra a ordem tributária. SãoPaulo : Revista dos Tribunais, 1995. p. 157).O dolo é a potencial consciência de não recolhero valor do tributo (AC. nº 95.01.14422-4/BA.Juiz Tourinho Neto. RTRF-1. Região, n. 8, p.264), pouco importando, nesse ponto, amotivação da conduta (pagamento de for-necedores ou proveito próprio) ou o contexto(estado de insolvência), que são circunstânciasjudiciais, ou ainda o arrependimento posterior(parcelamento do débito), que é atenuante dapena. O pagamento do tributo também nãoafasta o dolo, sendo hoje causa de extinção dapunibilidade, se anterior a denúncia (Lei nº9.249/96, art. 34).

O tipo penal em questão inadmite a formaculposa, e tampouco a responsabilidade penalobjetiva, de modo que é indispensável que oresponsável legal pela gestão da empresa(individual ou coletiva) tenha ao menosconhecimento do ilícito, possibilidade e deverde evitar o resultado, o que deve ser apuradoem regular processo judicial (Lei nº 8.137/90,art. 11, caput, c/c Código Penal, art. 13, capute § 2º).

Quanto ao parcelamento do débito, não mecausa mais qualquer perplexidade o de nãoreconhecê-lo como causa de exclusão do dolo.Muito menos a alegação de que seria incoerentepermitir o benefício do parcelamento e aomesmo tempo obrigar a confissão do crime. Éque o fato praticado pelo agente, de não pagartributos indiretos, produz seqüelas jurídicastanto na esfera civil quanto na criminal. Sãoconseqüências autônomas e distintas. A seqüelacriminal deve ser apurada e reprimida na formada legislação penal, que não tem o condão deafastar os efeitos civis do fato, persistindo odébito, que será cobrado consoante a legislaçãocivil, estando sujeito inclusive ao parcelamento(Lei nº 8.620/93). Na atual sistemática penal,o parcelamento implica apenas arrependimentoeficaz ou posterior.

A regularidade da escrita também não écausa de exclusão do dolo. O reconhecimentodo débito pelo contribuinte não afasta a sua

intenção de deixar de recolher a exação. Exigirpara a caracterização do delito que haja omissãoou irregularidades na escrita é o mesmo queadmitir a prática concomitante de dois delitos:o de deixar de recolher tributos e o de sonegaçãomediante fraude, que em última análiseabsorveria o primeiro. Dessa maneira decidiua 2ª Turma do Egrégio Tribunal RegionalFederal da 4ª Região, no Habeas Corpus nº95.04.12125-0/SC (RTRF-4. Região, n. 21, p.389), de que foi relatora a Juíza Tânia Escobar:

“É irrelevante, para fins penais, oprocedimento contábil da empresa, pornão tratar de sonegação fiscal. Ainexistência de fraude na contabilizaçãonão implica, necessariamente, a ausênciade falta de recolhimento das contri-buições previdenciárias descontadas dossalários dos empregados”.

A superveniência da Lei nº 8.866/94, quedispõe sobre a prisão do depositário infiel devalores pertencentes à Fazenda Pública, nãoteve o condão de revogar o tipo penal. Aocontrário, criou mais uma conseqüência para oinadimplemento do contribuinte, só que naesfera cível. Ademais, o Supremo TribunalFederal, na ADIN. nº 1.055-7, cautelarmente,suspendeu a vigência dos §§ 2º e 3º do art. 4ºdaquele diploma legal (HC. nº 95.04.16164-2/SC. Juiz Vilson Darós. RTRF – 4. Região, n.21, p. 408).

A culpabilidade, adequação do fato à normajurídica, inexiste por inexigibilidade de condutadiversa, se o contribuinte deixa de recolher aexação para, em comprovada situação deinsolvência, pagar salários dos trabalhadores,isto porque o próprio Código TributárioNacional e a Lei Falimentar dispõem que oscréditos tributários preferem aos trabalhistas(DIAS, op. cit.). Contudo, o pagamento defornecedores, v.g., mesmo em situação deinsolvência, não afasta a culpabilidade,podendo, quando muito, ser levado emconsideração por ocasião da fixação da penabase (Código Penal, art. 59).

A propósito, o então Juiz FernandoGonçalves, na Apelação Penal nº 94.01.21134-5, lembra que

“quem deixa de recolher contribuiçõesprevidenciárias descontadas dos saláriosde seus empregados está aproveitandorecursos públicos para finalidadesparticulares; não lhe servem de escusadificuldades financeiras, que são reme-diadas por empréstimos sempre one-rosos, nunca pelo expediente fácil de

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transformar recursos públicos em recursosprivados” (Revista Brasileira de Ciên-cias Criminais, n. 11, p. 309). No mesmosentido, os Juízes Ari Pargendler (AC.nº 94.04.4519-5/RS, RTRF – 4. Região,n. 20, p. 200) e Chalu Barbosa (AC. nº96.02.09958-5/RJ, DJU, 3 dez. 1996).

No tocante à pena privativa de liberdadeimposta pela atual legislação (Lei nº 8.137/90,art. 2º, II, e Lei nº 8.212/91, art. 95, d), valelembrar que a Constituição Federal, art. 5º,LXVII, dispõe que:

“não haverá prisão civil por dívida, salvoa do responsável pelo inadim-plementovoluntário e inescusável de obrigaçãoalimentícia e a do depositário infiel”.

Dívida é toda obrigação que consiste numaprestação de dar, fazer ou não fazer. A obrigaçãotem origem contratual ou legal, e o seudescumprimento enseja, regularmente, sançõescivis e administrativas. Ao contrário, a normapenal reprime, regularmente, fatos que ensejamdívidas. Tenha-se como exemplo a emissão decheque sem fundos, que enseja a obrigação depagar o valor representado pelo título, o que,contudo, uma vez não feito, não consiste emdelito penal autônomo. A norma penal reprimeo ato que enseja a dívida, mas dificilmente oato que deixa de pagá-la ou reparar o ilícito.

A obrigação tributária tem causa no seu fatogerador, sendo que a falta de recolhimento detributos é o mesmo que deixar de pagar umadívida, frise-se, já existente. A ConstituiçãoFederal, ao vedar a prisão por dívida, desejaque inexista sanção de prisão pela falta depagamento de dívida, oriunda de negóciojurídico ou dever legal. Em última análise,deseja a Carta Magna que a norma infra-constitucional não contenha instrumentos decoação, com limitação ao direito de liberdade,para o pagamento de dívidas. Porém, de nadaadiantaria tal proibição, se fosse permitido aolegislador penal aplicar a pena de prisão emsituação fática idêntica, de modo que amencionada vedação deve valer tanto para aprisão civil quanto penal.

Daí resulta a inconstitucionalidade parcialda legislação penal, que pune com pena dedetenção a falta de recolhimento de tributos oucontribuição previdenciária, o que, contudo,não impede a aplicação da pena de multa ou deprestação de serviços. Portanto, a falta derecolhimento de tributos indiretos à FazendaPública é fato típico, anti-jurídico e culpável,salvo se, no caso de insolvência, for destinado

ao pagamento de salários. A sua sanção seriaapenas por meio de pena de multa ou deprestação de serviços, ante a proibiçãoconstitucional de prisão por dívida.

Não obstante, a Lei nº 8.866/94, art. 1º,caput, dispõe ser

“depositário da Fazenda Pública, obser-vado o disposto nos arts. 1.282, I, e 1.283do CC, a pessoa a que a legislaçãotributária ou previdenciária imponha aobrigação de reter ou receber de terceiro,e recolher aos cofres públicos, impostos,taxas e contribuições, inclusive àseguridade social”.

Mais contundente é o seu art. 8º, queprescreve ser inaplicável à hipótese o art. 1.280do Código Civil, com o nítido propósito deinfungibilizar o dinheiro com o qual seria pagoo tributo e, portanto, tornar o depósito emregular, justificando a prisão civil do depo-sitário infiel. Ainda assim, entendo que o legis-lador ordinário não pode, indiscriminadamente,fixar o conceito de depositário infiel de modo aampliar as hipóteses de prisão civil (ou penalpor dívida), já que esta é uma exceçãoconstitucional. Entretanto, o Supremo TribunalFederal, por ocasião da ADIn nº 1.055/7 e emsede de liminar, manteve a expressão depo-sitário infiel contido no caput do art. 1º daquelalei. (Revista Brasileira de Ciências Criminais,n. 11, p. 105).

Dessa maneira, por ora, deve prevalecer oentendimento do Excelso Pretório, de que o fatotipificado como “deixar de recolher, no prazolegal, valor de tributo ou de contribuição social,descontado ou cobrado, na qualidade de sujeitopassivo de obrigação e que deveria recolher aoscofres públicos”, embora diverso do crime deapropriação indébita (RE. nº 75.278), portantode natureza omissiva própria e de meraconduta, é perfeitamente compatível com aproibição constitucional de prisão por dívida,já que o agente/contribuinte é consideradodepositário infiel (Lei nº 8.866/94, art. 1º caput,e ADIn. nº 1.055/7).

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1. As eleições diretas e indiretas no BrasilAs eleições no Brasil, para as Câmaras ou

Senados dos Municípios1, começaram aacontecer ainda nos tempos coloniais institu-indo o governo local dentro de um sistemaherdado das práticas portuguesas.

Mesmo durante a ocupação holandesa,tivemos escolhas eleitorais, não só no governolocal, como na Assembléia regional, convocadapelo Príncipe Maurício de Nassau2.

Eleições diretas e indiretas no Brasil

PALHARES MOREIRA REIS

Palhares Moreira Reis é Professor Adjunto deDireito Constitucional do Centro de CiênciasJurídicas (Faculdade de Direito do Recife) eProfessor Adjunto aposentado de Ciência Políticado Centro de Filosofia e Ciências Humanas daUniversidade Federal de Pernambuco. ProfessorVisitante da Universidade Moderna de Portugal.

SUMÁRIO

1. As eleições diretas e indiretas no Brasil. 2.As eleições para as Câmaras Municipais. 3. Aseleições para Intendente ou Prefeito. 4. As eleiçõespara os “Grandes Eleitores”. 5. As eleições para osConselhos e Assembléias Provinciais e Estaduais.6. As eleições para Governador e Vice-Governadorde Estado. 7. As eleições para deputados federais.8. As eleições para o Senado Federal. 9. A eleiçãodo Chefe do Executivo Nacional.

1 “O município era, e ainda é, a extensão territorial emque a Câmara, ou Senado, como também se denominava oconjunto de indivíduos eleitos pelo povo, exercia aadministração”. GARCIA, Rodolfo. Ensaio sobre a históriapolítica e administrativa do Brasil : 1500-1810. Rio deJaneiro : J. Olímpio, 1956. p. 91 obra póstuma.

2 Quando os holandeses ocuparam a área que hojecorresponde quase inteiramente ao Nordeste do Brasil,determinaram que ali se aplicasse a legislação holandesa. “Aessa nova organização ficavam sujeitos não só os holandeses,como também os portugueses vindos da Europa e os naturaisdo Brasil. Chegou-se até a admiti-los nas administraçõespúblicas como representantes do povo; tanto é verdade quenão foram poucos os portugueses e naturais que tomaramparte na Assembléia de 27 de agosto de 1640, composta detodas as Câmaras e Tribunais de Justiça, que fora convocadana cidade Maurícia para serem tratados assuntos necessáriosao bem público e à direção do Brasil holandês”. TRÍPOLI,César. História do Direito brasileiro. São Paulo : Revistados Tribunais, 1936. v. 1, p. 114. Época Colonial.

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“O certo é que o primeiro gosto de governodemocrático e largamente representativo,experimentaram-no os brasileiros durante odomínio holandês e sob a administração de umpríncipe alemão da Casa de Nassau, JoãoMaurício”3. Entenda-se, nesse caso, não ogoverno local, mas o de cunho regional, postoque largamente representativo.

Quando o Brasil ascendeu à categoria deEstado, dentro do Reino Unido, teve o ensejode ver seus cidadãos convocados para participarde uma Corte Constituinte em Portugal,com escolha pela eleição indireta.

A partir de sua independência política, comvariações em termos de época, de oportunidade,de regime político adotado e de nível desinceridade política, as eleições brasileiras paracargos executivos se revestiram, alternativa ousimultaneamente, da forma direta e da formaindireta. Em vários casos, também a compo-sição das Câmaras era oriunda de um processomisto, de eleições diretas e indiretas.

Houve, igualmente, uma época sem eleição,de nenhuma natureza, na História do Brasil: operíodo do Estado Novo, de 1937 a 1945,durante a ditadura de Getúlio Vargas.

Alguns cargos tiveram grande variação nosprocedimentos eleitorais para a escolha dos seusocupantes. Outros, porém, sempre obedecerama critérios que se perpetuaram na vida políticabrasileira.

Direta ou indireta a eleição, em clima dedemocracia, ou, incipientemente, de aberturapolítica, seu resultado, na maior parte dasvezes, aproximava-se da representação davontade do eleitor. No entanto, a quantidadeenorme de mecanismos adotados para deformar,legal ou ilegalmente, o resultado eleitoral, emmuitas e repetidas hipóteses, fizeram com quehouvesse discrepância entre a vontade políticado povo brasileiro e a expressão eleitoraldecorrente do processo adotado.

O presente estudo pretende tratar doscritérios formais das eleições brasileiras paracada um dos tipos de cargos ou mandatosdecorrentes da escolha pelo sistema represen-tativo e das deformações, institucionais ou deprática política, havidas no processo eleitoral,desvirtuando o resultado obtido nas urnas e nasvotações nominais do pretendido pela vontadepopular.

Nele figuram, igualmente, os elementoshistóricos relacionados com as outras escolhasdos governantes e com as eleições no períodoantecedente à independência, época em que oBrasil, ainda colônia, portuguesa, espanhola e,parcialmente, holandesa, já demonstrava aorientação política de um autogoverno deorigem popular.

2. As eleiçõespara as Câmaras Municipais4

Desde os tempos coloniais, até a atualidade,as eleições municipais para vereadores (e outroscargos das Câmaras) sempre ocorreram, namaior parte das vezes, pelo voto direto, excetodurante o Estado Novo, quando todas asCâmaras Municipais foram dissolvidas. E de1946 para cá, nunca se deixou de fazer eleiçãodireta para escolha dos vereadores dos, hoje,aproximadamente, cinco mil municípios.

Era a herança do município português, poisa nossa “organização municipal copiava ametrópole, com os vereadores, juízes ordinárioseleitos, procurador e oficiais. Os capitãesdonatários iam dando os forais às vilas; e ascâmaras elaboravam as suas posturas”5. Nesteimenso território colonial, era natural que osnúcleos isolados de povoamento lusitano, asvilas e cidades que se constituíram no início,adotassem “em tudo a legislação reinícola paraa sua organização, sem nenhuma instituiçãopeculiar que as distinguisse das munici-palidades portuguesas então vigentes”. Por isso,a nossa história da organização municipal tendea se confundir com a da legislação portuguesarelativa aos concelhos no mesmo período6.

Já no início do Reino de Portugal, ao ladodas 6 províncias ou comarcas, havia osmunicípios com um governo local eleito7.

A organização municipal, com suas atri-buições e processos de escolha dos dirigentes,foi estabelecida, pela vez primeira em Portugal,

3 FREYRE, Gilberto. Prefácio ao livro de José AntonioGonsalves de Mello, Tempo dos flamengos. 3. ed. aum.Recife : Fundação Joaquim Nabuco : Ed. Massangana, 1987.p. 14.

4 Cf. para esta e para a parte seguinte, Palhares MoreiraReis, As eleições para os cargos municipais. InformativoConsulex, Brasília, n. 39, p. 1142, 25 set. 1995. v. 9.

5 MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituiçãode 1946. 3. ed. rev. e aum. Rio de Janeiro : Borsoi, 1.960, v.1, p. 272.

6 GARCIA, loco. cit.7 “Nos municípios, os juízes, vereadores e outros

dignitários eram anualmente eleitos em pleitos cujasirregularidades levavam os monarcas a intervir, no sentidode sanear os males inerentes ao sistema dominante”.História geral da civili-zação brasileira, sob a direçãode Sérgio Buarque de Holanda. 7. ed. São Paulo : Difel,1985. v. 1, p. 23: A época colonial.

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pelas Ordenações Afonsinas de 1446. Eram osmunicípios portugueses “pequenos Estados noEstado”8. A organização do seu governo estavaali orientada: “as Câmaras Municipais seriamcompostas de juízes pedâneos, seus presidentesnatos, e de vereadores eleitos pelos homensbons, isto é, cidadãos que haviam ocupadocargos da municipalidade ou governança daterra”9, porém logo depois escolhido por umaespécie de sorteio10, voltando-se a um processode eleição indireta pelas Ordenações Manuelinas,de 151411. Depois, as Ordenações Filipinas, de1603, regularam, com suas modificaçõesposteriores, as organizações municipaisportuguesa e brasileira12, sem esgotar a matéria,pois deixava alguma coisa “a cargo doscostumes e forais, tanto das municipalidades,como dos senhores de terras”13.

Por essa herança portuguesa, na colôniabrasileira, em cada vila havia uma Casa daCâmara14. Compunham, normalmente, as

câmaras um ou dois juízes ordinários15, doisou mais vereadores, um procurador16 e umescrivão, todos eleitos entre e pelos homensbons da terra17, devendo os vereadores pertencer

8 Continua Rodolfo Garcia: “... repúblicas independentessob o protetorado do Rei, não esperavam que este lhes fizesserespeitar os foros, mas desagravavam-se, quando se sentiamofendidos, pelo direito de resistência armada que se arro-gavam – escreve A. Herculano, na História de Portugal, v.4, op. cit., p. 93.

9 GARCIA, loco cit.10 “A Carta Régia de D. João I (1391) é um exemplo do

cuidado dedicado pelo poder central a tais assuntos,introduzindo uma espécie de sorteio para a escolha dosdignitários municipais; atitude semelhante foi consagradapelas Ordenações Afonsinas, reservando-se às OrdenaçõesManuelinas possibilitar intervenção mais ativa no processoeleitoral. História Geral da Civilização Brasileira, loco cit.

11 “Antes de sua publicação, concedeu D. Manuel àscâmaras ou senados o direito de elegerem os juízesavindores ou concertadores de demandas, encarregadosde conciliarem as partes; mas esse direito foi omitido nasOrdenações”. GARCIA, loco cit.

12 CAVALCANTI, Themístocles Brandão. A Consti-tuição federal comentada, 3. ed. rev. Rio de Janeiro : Konfino,1956. v. 1, p. 344.

13 GARCIA, op. cit., p. 94.14 “Dentro do disciplinamento das Ordenações Filipinas,

é possível esquematizar, em linhas gerais – salvo modificaçõesresultantes de costumes ou de forais que a legislação deviarespeitar – a história dos velhos senados coloniais.

Compunham-se, em regra, dos seguintes membros –chamados genericamente oficiais ou camareiros:

a) um juiz de fora, presidente nato, que podia serletrado – o juiz de fora, de nomeação régia e pago peloscofres da Coroa – ou, mais usualmente, um juiz ordinário,cidadão privado, eleito pela comunidade. “Os juizesordinários, ensina Caio Prado, eram sempre dois, exercendoalternadamente suas funções em cada mês do ano; ao contráriodo juiz de fora, serviam sem remuneração”;

b) três vereadores – às vezes quatro – eleitos pelo povo;c) um procurador – “advogado natural da edilidade”–

defensor nato dos interesses da comunidade, também eleito;d) em alguns lugares, um escrivão e um tesoureiro;e) almotacéis, encarregados da fiscalização em geral,

especialmente no tocante ao preço dos gêneros, e cujo processo

de escolha seria aquele descrito na ata da Câmara de Salvadorde 26 de junho de 1628: “estando aí reunidos os oficiais daCâmara abaixo-assinados, por eles foi tomado juramento dosSantos Evangelhos... para bem e verdadeiramente votaremem seus homens, que servirão de almotacéis conforme el-Reimanda”, etc. PORTO, José da Costa. Nos tempos do visitador.Recife : Universidade Federal de Pernambuco, 1968. p. 94.

15 “O juiz ordinário era eleito pelos vizinhos do concelho,entre os homens bons, cujas listas eram previamenteampliadas e apuradas, e sua nomeação era confirmada peloCapitão e governador por si ou por seu ouvidor”. TRÍPOLI,op. cit., v. 1, p. 212.

“Em 1696 foram nomeados os primeiros juízes de fora,que teve o Brasil, para a Bahia, Rio de Janeiro e Pernambuco.Estes juízes, que deveriam ser letrados, eram os verdadeiroschefes de justiça e da administração nos seus respectivostermos, e substituíam o ouvidor da comarca, nos casos deausência ou impedimento. Eram nomeados pelo soberano eeram chamados de fora porque deviam ser de fora da terraou de fora do senado, pois os juízes ordinários faziam parteda Câmara e eram eleitos pelos vizinhos”. p. 245.

16 “O Título LXVI do Livro I das Ordenações Filipinas,bem como outras leis posteriores, regulam, até o Império, aorganização dos Municípios em Portugal e no Brasil (a insti-tuição das muni-cipalidades portuguesas é anterior à OrdemFilipina; encontra-se nas Afonsinas e Manuelinas, mas só maistarde transplantada para o Brasil).

As Câmaras Municipais, no Brasil, compreen-diam: umpresidente, três vereadores, um procurador, dois almotacéis eum escrivão, naquelas municipalidades que tinham juiz defora, sendo que este era o presidente.

Nas demais, serviam os juízes ordinários, em número dedois, eleitos com a Câmara. Algumas, além do síndico, tinhamum procurador e um tesoureiro.

O almotacel era eleito pela Câmara, ou era, como nasantigas Relações do Rio de Janeiro e do Maranhão, nomeadopelo juiz da Coroa”.CAVALCANTI, op. cit.

17 Em Portugal, as classes sociais, ou ordens, eram três:o clero (secular e regular), a nobreza (descendente da nobrezagoda e hispano-romana, bem como os que receberam mercêreal pelo seu esforço no exercício de profissões e funções) e opovo (a população não privilegiada, os vilãos livres, os servose semi-livres).

“Na classe popular havia diversas gradações: – oshomens bons, ou vizinhos, constituíam propriamente oelemento político dos concelhos.

“Os concelhos ou municípios eram o governo local dascidades e das vilas. A sua organização, que no início estavaconsignada nos respectivos forais, encontra-se regulada noprimeiro livro das Ordenações, onde se acham as normascompetentes relativas aos diversos órgãos da administraçãomunicipal. Cada cidade ou vila tinha, pois, o seu concelho,no qual se destacavam os homens bons e os vizinhos, queeram as pessoas habilitadas a tomar parte na administraçãopública; a Câmara, à qual competia o governo municipal, eque se compunha dos juízes ordinários, que eram os seuspresidentes natos, dos vereadores e do procurador do concelho,todos eleitos pelos vizinhos e independentes do poder régio.TRÍPOLI, op. cit. v. 1, p. 192 e sgs.

“Nem todos os moradores votavam, somente tendo o jussufragii os chamados homens bons, de princípio aqueles demaior classificação social e econômica, impedidos, entreoutros, os judeus, os mecânicos e todos quantos exerciam

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à classe dos fidalgos18. Os almotacéis, nasCâmaras existiam dois, eram eleitos por estas19.As primeiras vilas do Brasil, São Vicente eSantos, tinham essa organização20. EsclareceRodolfo Garcia que o número de vereadores seestabelecia segundo o foral ou costume da terra,que, nessa parte, foram respeitados pelasOrdenações Filipinas21.

O mecanismo de escolha era a eleiçãoindireta: os homens bons eram selecionadosdentro do povo da vila22, com a participação doCapitão Donatário, que tinha poderes, pela

Carta de Doação, de influir nessa escolha23 edepois escolhiam os camareiros mencionados(juízes, vereadores e procurador)24. Chegou aocorrer, no entanto, arrombamento da arca dospelouros, com substituição do rol por “palavrasdesonestas”25.

As substituições dos eleitos, nos casos deter ocorrido falecimento quando da oportu-

profissões não-nobilitantes. Em suma, os indivíduos maisrespeitáveis da vila, as pessoas gradas. Mais tarde, segundoCândido Mendes, homens bons seriam os que já houvessemexercido postos eletivos e de governança, muitas vezesdenominados, genericamente, repúblicos”. PORTO, J. daCosta, op. cit., p. 95.

18 TRÍPOLI, op. cit., v. 1, p. 221. Os moradores das vilaseram distinguidos em três classes, os fidalgos (os sesmeiros eaté a segunda metade do século XVI, quase sempre fidalgosmais ou menos arruinados), os peões (os colonos e oscriminosos degradados vindos de Portugal) e os gentios(índios escravizados ou submissos e os negros africanos,importados como escravos); p. 206.

“Foram as Câmaras privilégios dos nobres de então,sendo excluídos de qualquer participação nela os comer-ciantes, artífices, mecânicos, ou pessoas ligadas a quaisqueroutras atividades produtivas”. História nova do Brasil, op.cit., p. 79.

19 CAVALCANTI, loco cit.20 Em São Vicente, Martim Afonso de Souza teve a

iniciativa de convocar os homens bons da terra para ainstalação da primeira vereança brasileira. Cf. REIS, PalharesMoreira. Instituições políticas brasileiras da atualidade,Recife : Instituto de Ciências Políticas e Sociais, 1962. v. 2,p. 27; segundo César Trípoli, esta organização foi aper-feiçoada durante o período do regime do Governo Geral. op.cit., v. 1, p. 207.

21 GARCIA, op. cit., p. 97.22 O mecanismo de escolha era a eleição indireta. “O

processo de votação, complicado: ‘nas oitavas de natal’ decada ano, reuniram-se os homens bons em câmara, e o Presi-dente – ou o Ouvidor, se o houvesse, ou o juiz mais velho doano anterior, – mandava aos presentes que nomeassem ‘seishomens para eleitores, os quais serão nomeados secreta-mente,sem outrem ouvir o voto de cada um’. Apurados os votos –‘consertar as listas’– procla-mavam-se eleitos os seis maisvotados, os quais, em seguida, e depois de juramentados,apartavam-se ‘de dois em dois’, formando, assim, três turmasde dois eleitores cada uma delas, cada uma das quais,recolhida em cômodos isolados, indicava os nomes dos juízes,vereadores, escrivães e mais oficiais, para compor a Câmara,durante o triênio, cada turma escrevendo os nomes doscandidatos em ‘rol’, assinado pelos integrantes ou, no casode serem analfabetos, pelo juiz ou um vereador, em seu nome,prestando o juramento de segredo. Organizados os róis, oPresidente selecionava os mais votados, cujos nomesregistrava em folha especial – a ‘pauta’ –, tendo o cuidadode evitar servissem, conjuntamente, no mesmo ano, parentesaté o quarto grau, pelo direito canônico, o que se chamava‘apurar a pauta’. Assinadas, fechadas e seladas, as pautas seguardavam em compartimentos próprios, e, se, no fim do ano,depois de verificado se houvera alguma alteração, o Presidentepreparava seis listas – ‘pelouros’– três para os juízes e trêspara os vereadores. Pelouros de vereação eram as listas dos

nomes das pessoas escolhidas, assim denominadas por seremencerradas em bolas de cera com o feitio das balas de ferropara armas de fogo – pelouros. Em seguida, o Presidentemetia-as num saco, guardado em cofre de três chaves,entregues a três vereadores do ano, chamados claviculários.A lº de janeiro de cada triênio, em regra, novamente se reuniama Câmara e os homens bons, convocavam “hum moço deidade de seis annos” a “metter a mão no saco, revolver bemos pelouros e tirar hum delles”, e os nomes constantes da listaseriam os vereadores de cada ano. PORTO, J. da Costa, op.cit., p. 95. GARCIA, op. cit., p. 97 e sgs.

“Os juízes, com os vereadores, veriam o rol e escolheriampara eleitores os que mais votos tivessem.

“A esses seria ‘logo dado juramento dos SantosEvangelhos, que bem e verdadeiramente escolham para oscargos do Conselho as pessoas, que mais pertencentes lhepareceram, e que tenham segredo, e não digam que assimnomearam a outra pessoa alguma’. PORTO, Walter Costa.História eleitoral do Brasil. Brasília : Senado Federal, CentroGráfico, 1989. v. 1, p. 9: O voto no Brasil : da Colônia àQuinta República. GARCIA, op. cit., p. 99.

“Não se entendia, então, como lícita, a procura de votos,a cabala, ‘a campanha eleitoral’ hoje tão aceita. Função cujoexercício era mais um munus que um privilégio – obrigatório,não remunerado – esse oficialato da governança das vilas nãodeveria, por outro lado, ser entregue a quem não tivesse ‘partese qualidades para servirem’, como, por exemplo, ‘oficiaismecânicos’. PORTO, W. C. op. cit., p. 13.

23 Sobre os poderes do Capitão donatário, v. OswaldoTrigueiro, Direito Constitucional Estadual, Rio de Janeiro :Forense, 1980. p. 9 e sgs. Estranhamente, não trata o citadoautor das prerrogativas do donatário relativas ao processo deescolha dos governantes municipais.

Nas cartas de doação, os aquinhoados recebiam, alémdos títulos de capitão e governador, os direitos de fundar vilas,concedendo-lhes governadores, ouvidores, meirinhos, etc.; (...)apurar as listas dos homens bons incumbidos de eleger osjuizes e mais oficiais dos concelhos das vilas”. MARTINSJÚNIOR, J. Isidoro, História do Direito Nacional, Rio deJaneiro : Typographia da Empreza Democrática, 1895. p. 164.Cf. TRÍPOLI, op. cit., v. 1, p. 203, 208.

24 “A eleição não era direta, mas de ‘dois graus’ – sistemaque prevaleceu no Brasil até 1881; isto é, em vez de elegerdiretamente os camareiros, o povo escolhia um colégio devotantes e este, em seguida, elegia a Câmara. PORTO, J. daCosta, op. cit., p. 95.

25 ‘Na vila de São Paulo, em 1687, ocorreu o arrom-bamento da arca dos pelouros. Diz o termo, transcrito noRegistro Geral da Câmara de São Paulo, v. III, p. 522: Esendo feita a diligência, se abriu o pelouro na forma da lei, seachou o pelouro com palavras desonestas e vendo-se isto seabriu outro, se achou o mesmo’.

O Rei, tendo conhecimento do estranho caso, mandouaveriguar quem foi o autor dessa insolência, mas não éprovável que se chegasse a apurar quem fosse ele, ou pelomenos não o fizeram conhecido os documentos que chegaramaté nós. De outra vez houve um voto em branco”. GARCIA,op. cit., p. 99.

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nidade de se tirarem os pelouros, ou mesmoquando houvesse vaga durante o ano, eramprocedidas por eleição especial26.

Durante a dominação espanhola, havia oSenado da Câmara , o qual, além de exerceras funções administrativas que lhe erampróprias, passou “a exercer função política,especialmente nas vilas de maior impor-tância”27. Isso gerava, comumente, conflitosentre as Câmaras e as demais autoridades,não só nos casos de municípios já exis-tentes28, como em outros arraiais que, poriniciativa local e sem amparo em decisãorégia, levantavam pelourinho, o símbolo dacriação de uma vila29.

A criação do Estado do Maranhão, separadodo Estado do Brasil, em nada inovou nesseparticular, posto que as capitanias eramchefiadas pelos respectivos Capitães-Mores “e

localmente administradas pelas respectivasCâmaras ou Senados das Câmaras”30.

No Brasil holandês, o Governador, chefe degoverno, era de nacionalidade holandesa, e oConselho Supremo – Conselho Político – jávinha formado da Holanda, onde as grandesdecisões eram tomadas pelo Conselho dos XIX,em Middelburg, na Zelândia31. De cunho local,registra Trípoli, havia o Conselho da Justiça,que era uma espécie de tribunal de primeirainstância, e a Câmara dos Escabinos32, decunho municipal, com a participação dos locais,escolhidos entre a gente melhor, que corres-pondia aos homens bons da colônia portu-guesa33.

O regimento secreto de Heinrich Lonck, de1629, prescrevia que

“a autoridade suprema e a direção, emtudo que dissesse respeito aos negóciosde administração, de polícia e de finança,seriam delegadas a um colégio deconselheiros; outros documentos desig-nam esses conselheiros sob o nome deconselheiros políticos”.

26 “... a Câmara, com os homens bons da terra, elegia,por maioria de votos, ou vozes, como se dizia, quem osubstituísse... Os designados para servir em substituição eramchamados vereadores de barrete, para distingui-los dosoutros, que eram chamados de pelouro”. É de se deduzir quea eleição se fazia com um barrete servindo de urna. Ibidem,p. 101.

27 “O Senado da Câmara, que nos primeiros períodos davida colonial era um órgão municipal meramente admi-nistrativo, com funções apenas de ordem econômica e local,passou, muitas vezes, nos períodos seguintes, a exercer funçãopolítica, especialmente nas vilas de maior importância. Osseus atos e funcionamento não eram regidos só pela legislaçãoda metrópole, mas obedeciam muitas vezes a um sentimentode independência que começava a infiltrar-se no espírito daspopulações. Por este motivo, as câmaras se arrogavam muitasatribuições que eram da competência expressa dos gover-nadores, sem que esses protestassem, não obstante a metrópolenão cessasse de repetir ordens para as conter nos limites dajurisdição administrativa local”. TRÍPOLI, op. cit., v. 1,p. 226.

28 “Foi preciso muito tempo e energia da parte dos poderesgerais para se ir gradualmente forçando as câmaras acircunscrever-se na órbita de suas atribuições, marcadas nasOrdenações do Reino; e isto só se conseguiu mais ou menosno correr do século XVIII”. GARCIA, op. cit., p. 96.

29 Enquanto o povo de Campos, no Rio de Janeiro, em1673, “por um movimento espontâneo, levantou pelourinho,dando disso parte ao ouvidor da Comarca”, (Ibidem, p. 96),no Recife, a luta entre os da terra e os portugueses,normalmente excluídos dos cargos públicos municipais, fezcom que estes buscassem elevar o Recife à categoria de Vila,tendo sido a pretensão autorizada em 1710. Com isto nãoconcordaram os locais, daí se originando um processo de luta,conhecido como a Guerra dos Mascates, que mais adiantese encaminhou para a busca da autonomia republicana. Mas,no seu início, era contra o levantamento do Pelourinho,símbolo da autonomia municipal do Recife (“O Presidenteda Câmara de Olinda foi ter com o Governador e lançou oseu protesto, insinuando que quem soubera erguer umpelourinho também poderia arrancá-lo”). Cf. RIBEIRO, João.História do Brasil, 16. ed. ver. e compl. por Joaquim Ribeiro.Rio de Janeiro : Liv. São José, 1957. p. 240 e sgs.

30 TRÍPOLI, op. cit., v. 1, p. 235. Eram as de Salvador,Rio de Janeiro, São Luís e São Paulo. Cf. PORTO, WalterCosta, op. cit., p. 7.

31 Uma delas foi o Regimento Administrativo, maisdetalhado que o recebido por Lonck, como instrução secretapara a situação dos territórios a serem conquistados. “Esseregimento, compreendendo 69 artigos, foi submetido àaprovação dos Estados Gerais que, a 13 de outubro de 1629,fixaram o modo de governo para os territórios que aCompanha ia conquistar, tanto em relação à polícia como emrelação à justiça”. GARCIA, op. cit., p. 166.

32 “A Câmara dos Escabinos, de caráter estritamentemunicipal, vinha substituir os concelhos ou câmarasmunicipais existentes. Os seus membros eram chamadosescabinos e seu número variava segundo a importância daspovoações; parece, entretanto, que nunca excedia nove.Metade deles eram holandeses, e metade portugueses, mas opresidente era sempre holandês, chamado esculteto – deschout, espécie de magistrado.

A nomeação dos escabinos obedecia a uma espécie deeleição de três graus: – o Conselho de Justiça nomeava oseleitores entre a gente melhor (correspondia esta aos homensbons da organização dos concelhos); – os eleitores, por suavez, organizavam a lista dos indivíduos idôneos para o cargode escabino; – e, finalmente, o Conselho Supremo escolhiadessa lista os membros da Câmara, ou seja, os escabinos e oesculteto. Este, além de ser presidente da Câmara, eraencarregado da administração dos serviços e direção da políciado município; era exator da fazenda, e tinha até funções depromotor público do lugar, cumulando, portanto, em suapessoa, funções administrativas, fiscais e judiciárias”.TRÍPOLI, op. cit., v. 1, p. 238. Grifos do original.

33 “Em toda essa organização, deve-se referir à influênciaholandesa, que não obstante a superio-ridade evidente de seuregime de colonização, teve uma vida transitória”. CAVAL-CANTI, op. cit., v. 1, p. 345.

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Esses eram em número de nove, com apresidência renovada a cada mês34.

“Logo que Nassau chegou ao Recife,criou câmaras de Escabinos e uma novaautoridade: o escolteto, uma espécie deburgomestre. Os escabinos tinhamfunções semelhantes às dos membros dasCâmaras na colônia portuguesa. Aprimeira câmara de escabinos do Nor-deste foi a de Olinda, que tinha sob asua jurisdição o Recife e Antônio Vaz”.

“Os primeiros escabinos de Olinda –nomeados por um ano – foram escolhidospor Nassau de uma lista de nomesorganizada pelos eleitores de Olinda(para tal designados, entre os principaismoradores da jurisdição, pelo ConselhoPolítico)”35.

A Câmara de Olinda, a despeito daexistência do Governo holandês, permaneceuem função até 1637 e, mesmo depois da chegadade Nassau e antes da criação dos escabinos,negociava com o Príncipe como administradorada capital de Pernambuco, mesmo que ogoverno holandês tivesse a sua sede no Recife,lutando pela sua reconstrução e a restauraçãode sua cidade36.

O Conselho Político, bem como o Príncipee sua administração, sediavam no Recife. Noentanto, como era Olinda a capital de Pernam-buco, o Conselho Político achava que lá é quedeveria estar a sede do Governo, e, portanto,deveria a cidade ser reconstruída37, comopediam a Câmara e os moradores de Pernam-buco, e a fariam “mais bonita do que jamais

foi”38; mas, instado a se pronunciar, o Conselhodos XIX nada decidiu a respeito. Logo a seguir,porém, o governo holandês local deliberou,quanto à localização da sede administrativa,pelo Recife e Antônio Vaz, proibindo até quese efetuasse em Olinda qualquer construçãonova.

Para se ter uma idéia da importância quetinha, então, a Câmara dos Escabinos, bastaregistrar a repercussão do incidente causadopela determinação de que os seus membrosdeveriam residir e conceder audiência emOlinda.

Tal fato revoltou os habitantes do Recife,que, além de apresentar seus processos aoConselho Político no Recife (que os recebia,indevidamente, pois era a Câmara a primeirainstância judicial), lutaram pela transferênciada capital da Capitania de Olinda paraMaurícia, que compreendia o Recife e AntônioVaz.

Essa desavença gerou protesto peranteNassau, pois, diziam os membros da Câmara,os recifenses não queriam reconhecê-loscomo a primeira instância judicial. Mas oAlto-Conselho opinou no sentido de que,sendo o Recife a sua sede, os seus moradoresnão deveriam ir a Olinda acompanhar osprocessos e sim merecer a dignidade de “teros seus próprios juízes dentro das suasdefesas e redutos”. Os governantes holan-deses chegaram mesmo a sugerir que oRecife, Antônio Vaz e adjacências fossemdesmembrados de Olinda, passando a terjurisdição própria.

O Conselho dos XIX deliberou, afinal, sobrea questão e, em conseqüência, o Conde deNassau e o Conselho providenciaram atransferência da Câmara dos Escabinos deOlinda – e, portanto, também a condição decapital, – para a ilha de Antônio Vaz39, pois no

34 GARCIA, op. cit., p. 167. E mais: “A esse colégio eraadjunto um assessor, versado nas ciências jurídicas,encarregado da função de pensionário, de secretário e denotário”.

35 MELLO, op. cit., p. 64. Na nota 102, dá ele os nomesdos primeiros escabinos e de todos os que os substituíram atéa mudança de sede da Câmara dos Escabinos de Olinda paraAntônio Vaz.

36 Ibidem, p. 61. No mesmo sentido: “Considerando-seOlinda abandonada pelos seus primeiros moradores, deu-sepermissão a qualquer um de ali construir novas casas ourestaurar as arruinadas”. BARLAEUS, Gaspar. História dosfeitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil”.Recife : Prefeitura da Cidade do Recife, 1980. p. 47.

37 O movimento pela reconstrução de Olinda encontrouobjeções, não só daqueles que pretendiam a sede do Governono Recife, como os que achavam que a capital do Brasilholandês estivesse em Itamaracá. MELLO, op. cit., p. 58. NaHolanda já se falava com insistência nesta transferência dasede do Governo. “Significaram-lhes, porém, o Conde e osconselheiros a desvantagem e inutilidade daquela mudança(...) Por essas razões, continuaram na sua antiga sede oGovernador e os Conselheiros do Brasil. BARLAEUS, op.cit., p. 54.

38 Carta de Servaes Carpentier, médico da WIC,Conselheiro Político e depois assessor do mesmo Conselho.MELLO, op. cit., p. 59, nota 87 e p. 62, nota 96.

A beleza de Olinda era a base da simbologia heráldicada capitania. “Em outubro de 1638, Nassau, projetando osbrasões para as várias capitanias e principais povoações doBrasil holandês, idealizou o de Pernambuco, que é descritodo modo seguinte em uma Generale Missive: ‘A Capitaniade Pernambuco tem uma donzela que admira a própria belezaem um espelho, simbolizando a formosura da terra e a situaçãoe o nome de sua capital – Olinda – e tendo na mão uma cana-de-açúcar (p. 64).’”

39 BARLAEUS, op. cit., p. 69: “Em Pernambuco aadministração dos negócios políticos e dos interesses públicosocupava os governadores. Destinou-se dinheiro para seedificar a casa do Conselho”.

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Recife, os terrenos estavam todos ocupados40.Assim, com o desmembramento da área doistmo do Recife, da ilha de Antônio Vaz e deadjacências, foi erguida a cidade Maurícia,capital de Pernambuco e de toda a áreadominada pelos holandeses41.

Foi aumentado o número de membros daCâmara de Escabinos de cinco para nove, sendocinco holandeses e quatro da terra. E o títulodeixou de ser de “Escabinos de Olinda”, paraser, por decisão autorizativa do Conde e doConselho Político, “Escabinos da CidadeMaurícia e seu Distrito”42.

Olinda sempre foi ciosa de sua destacadaposição social, econômica e, sobretudo, políticana Colônia. A rivalidade com o Recife semprefoi grande e, mesmo depois do domínioholandês, novo exemplo de desentendimentoestá na Guerra dos Mascates, de 1710. Com a

elevação do Recife à categoria de vila, Olindaperderia, novamente, o poder de legislar sobreo povo e as atividades econômicas do Recife43.

Durante o período imperial e a épocarepublicana, até 1937, tivemos CâmarasMunicipais funcionando regularmente, comseus membros escolhidos pelos munícipes, emprocesso direto.

Após o já mencionado hiato de 1937-194544,em alguns momentos, de 1964 a 1979, muitasCâmaras Municipais foram postas em recesso(temporário), e mandatos de vereadores foramcassados.

Mas, sempre houve eleição direta para arenovação dos mandatos, nunca se tendoapelado para a escolha indireta dos represen-tantes do povo na Casa Legislativa dosMunicípios, desde a Independência.

3. As eleições para intendente ou prefeitoOs prefeitos municipais (dantes os presi-

dentes das Câmaras, os juízes ordinários oujuízes de fora, os escoltetos, ou os intendentes)podiam surgir pela via de conseqüência, comonos antigos casos da escolha holandesa doescabino ou o do vereador mais votado ser ointendente.

A eleição indireta para prefeito, no Brasil,é situação anômala. Constitucionalmente,somente foi prevista na Carta de 1934, de modopermissivo, alternando-se com a eleição direta,tudo de acordo com a Constituição de cadaEstado-membro.

No Estado Novo, a regra permanente erano sentido de ser o prefeito, sempre, de livrenomeação pelo Governador do Estado.

Voltando-se à normalidade constitucional,a partir de 1946, o prefeito municipal, como

40 MELLO, op. cit., p. 65 e sgs. Na nota 105, registrandouma Generale Missive ao Conselho dos XIX, de 5 de marçode 1639, está dito que “os Nobres Senhores ConselheirosPolíticos tiveram durante certo tempo divergências com osEscabinos da cidade de Olinda, a respeito de diversos pontos,alguns dos quais foram decididos por nós; entre os que nãoforam decididos está o concernente à jurisdição sobre o Recifee Antônio Vaz e seus moradores. Os escabinos de Olindapretendem que esses lugares e seus moradores estão, desdehá muito tempo, sob a competência da sua Câmara, pelo quea ela estão sujeitos em primeira instância. Os Nobres SenhoresConselheiros Políticos, pelo contrário, sustentam que osmoradores estão subordinados não aos escabinos, masdiretamente ao seu colégio e a ninguém mais, procurandobasear isto no art. 27 das Instruções Gerais, alegando quenão há razão alguma para que os moradores do Recife – queno Recife podem alcançar decisão nos seus pleitos – comgrandes gastos, às vezes em processos de pequena impor-tância, com perda do seu tempo e dos seus negócios, sejamobrigados a ir a Olinda para acompanhar as suas causas, commuitas outras razões alegadas por ambos os lados (...).

Essa disputa era sustentada com ardor: mas como se tratade um ponto de direito e que só pode ser decidido pelaautoridade Soberana, não quisemos entrar na questão;resolvemos deixá-la como estava até que, tendo submetido ocaso à apreciação de V.Sas., quisessem dispor a respeito noseu alto entender e sobre isto esperamos a sua resposta combrevidade.

Provisoriamente – considerando que os escabinos deOlinda, de um tempo para cá não vinham concedendoaudiência em razão da disputa – ordenamos que os moradoresdo Recife e Antônio Vaz só ficassem subordinados aosConselheiros Políticos, a não ser que algum quisesse,livremente, em primeira instância, levar o seu processo peranteos escabinos de Olinda. E que todos os moradores do interiorde Olinda só poderiam apresentar as suas causas, em primeirainstância, aos escabinos daquele lugar”.

41 A cidade assim criada foi denominada Cidade Maurícia(Stadt Mauritia), e posteriormente se restringiu ao atual bairrode Santo Antônio. Somente em 1645 é que, ao lado da CidadeMaurícia surgiu a Nieuw Mauritsstadt, ou nova CidadeMaurícia, indo até ao Forte das Cinco Pontas. Ibidem, p.85-89.

42 Ibidem, p. 85.

43 “A Guerra dos Mascates, em 1710, é significativoexemplo de choque entre o poder tradicional e um poder novoque, na Colônia, ensaiava seus primeiros passos. A luta entreos senhores de Olinda e os mascates e marinheiros (comoeram denominados pejorativamente os comerciantes) deRecife, representa, não só, como já foi observado, uma reaçãocontra o sentido de renovação ali contido, como demonstra oagravamento das relações entre o poder particular dos senhorese o poder metropolitano. A elevação do Recife à categoria devila retiraria a Olinda e, portanto, aos homens bons, o direitode legislar sobre o núcleo mercantil, ou sobre o povo doRecife.

Antes de ser compreendido como movimento nativista,o choque entre Olinda e Recife deve merecer análise queconsidere os aspectos gerais que o cercam. Aspectos queenvolvem classes diferentes com diferentes interesses nacolônia”. História nova do Brasil, loco cit.

44 Após a ditadura getuliana, somente com a aprovaçãoda Constituição Federal e das cartas estaduais, foi possível aeleição municipal direta, nos moldes estabelecidos, dentro dagarantia da autonomia; ou seja, por volta de 1947.

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regra geral, era decorrente de eleição direta,junto com seu vice-prefeito, com as exceçõesrelativas às prefeituras das capitais e dasestâncias hidrominerais. A autonomia dascapitais, obtida com muita luta, veio permitir aeleição direta dos respectivos prefeitos e vice-prefeitos.

Também aconteceram as hipóteses de ser oprefeito nomeado pelo Governador do Estado,com prévio assentimento da AssembléiaLegislativa ou, igualmente, também por este,mas com prévia anuência do Presidente daRepública, como ocorreu ainda mais recen-temente nas capitais dos Estados e nas estânciashidrominerais e, depois, nos municípiosdeclarados de interesse para a segurançanacional.

O Tribunal Superior Eleitoral, dirimindoquestões suscitadas a esse respeito, teve duasimportantes oportunidades de decidir, de mododivergente, porém, não discrepantes, sobre apossibilidade de eleição indireta para prefeito,sob o pálio da Constituição de 1946. Numaprimeira hipótese, em que havia prefeito e vice-prefeito, tendo renunciado o primeiro, mesmona segunda metade do seu mandato, o tribunalentendeu que somente poderia haver preen-chimento do cargo por eleição direta45.

Já na outra situação, com regra em que nãoaparecia a figura do vice-prefeito, em tendohavido, igualmente, renúncia na segundametade do mandato do chefe do executivomunicipal, o TSE acordou que a vaga do cargode prefeito se equivalia, pela inexistência dovice-prefeito, a uma dupla-vaga, determinandoque se fizesse a eleição pela via indireta46.

4. As eleições para os “grandes eleitores”Adota-se a denominação de “grandes

eleitores” para caracterizar os cidadãos aosquais as regras básicas existentes conferem amissão de representar a sua comunidade nospleitos indiretos.

São os integrantes dos Colégios Eleitorais,órgãos especialmente criados pela Supernormapara efeito de escolher os titulares de cargoseletivos de nível mais elevado, do PoderExecutivo respectivo.

Não se levam em conta, nesse particular,os integrantes de outros colegiados que,normalmente, têm entre suas atribuiçõesregulares, também a eleição indireta, exercidas,

porém, sem a participação de terceiros, masapenas por seus membros, na forma previstaconstitucionalmente (Assembléias Legislativas,Congresso Nacional, por exemplo).

Existem, na história recente, casos em queos Colégios Eleitorais eram compostos porórgãos como os acima referidos, completadospara a tarefa eleitoral por representantes deoutras instituições. Por exemplo, o ColégioEleitoral para a eleição do Presidente daRepública (Constituição de 1969) e o ColégioEleitoral para a eleição do Governador deEstado e de um representante no SenadoFederal (Emenda Constitucional nº 8, de 1977).Historicamente, no entanto, o predomínio deeleições em dois graus mostra que a figura doColégio Eleitoral ocorreu muitas vezes nalegislação brasileira.

O primeiro caso foi o estatuído na convo-cação dos deputados às Cortes Gerais Extraor-dinárias e Constituintes da Nação Portuguesa,pelo Decreto de D. João VI, de 7 de março de1821. Mandava ele que se aplicasse ao pleitodo Reino Unido as regras estabelecidas naConstituição Espanhola, de 1812, que tinhasido jurada pelo Monarca, para sua aplicaçãoprovisória no Reino.

Assim, para a representação, queria o Reique o número de Deputados não fosse menordo que 100, havendo, pois, para cada 30.000almas um Deputado. Pelo censo demográficode 1808, teria o Brasil 2.323.386 habitantes,correspondendo a 76 representantes, mas,desprezadas as frações em cada Província, oBrasil ficou com 72 deputados às Cortes deLisboa47.

Era uma eleição indireta, em quatro graus,com as dificuldades que lhe seriam inerentes48.De acordo com a Constituição espanhola, opovo, em massa, nomeava os compromissários;estes, por sua vez, escolhiam, imediatamente,os eleitores de paróquia, os quais, logo a seguir,designavam os eleitores de comarca, que eram

45 Acórdão nº 651, de 1951, sobre caso do Rio Grandedo Norte.

46 Acórdão nº 1.097, de 1954, caso da Bahia.

47 Nem todos os deputados, porém, chegaram a Lisboaou participaram efetivamente dos trabalhos constituintes.Depois de alertada do equívoco por Rio Branco, uma comissãodo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro “listou osdeputados eleitos, que somariam 68. Desses, não mais de 50chegaram a Lisboa; e somente 16 assinaram, em 23 desetembro de 1823, a Constituição ali aprovada”. Cf. PORTO,W. C. op. cit., p. 18-19.

48 Reconhecida a existência de tais óbices, uma circularde 23 de março seguinte permitiu que “os governadores dasprovíncias, cingindo-se, o mais possível, ao espírito do referidodecreto de 7 de março, fizessem, na matéria, as modificaçõesque achassem oportunas”. TRÍPOLI, op. cit., v. 2, p. 75.

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os que, finalmente, na capital da província,compareciam para a eleição dos deputados49.

Para essa eleição foram estabelecidas asjuntas eleitorais de freguesias ou paróquias,comarcas e províncias, isto é, para cada grauda sucessiva escolha.

O eleitorado-base, ou seja, os eleitores deprimeiro grau, em cada freguesia, era compostode todos os cidadãos domiciliados e residentesno respectivo território, e o número decompromissários era definido, em cada caso,pelo número de fogos existente em cadafreguesia50.

O eleitor (paroquial ou de grau maior)somente era elegível se fosse cidadão maior de25 anos, morador e residente na freguesia. Asjuntas eleitorais eram compostas de cidadãosnomeados ad hoc pelo presidente do ato, o JuizOrdinário, ou Juiz de Fora, para as eleiçõesparoquiais e pelo Corregedor, nas juntas dascomarcas. Com o ato eleitoral havia a Missado Espírito Santo, antes de iniciar a eleiçãoparoquial, ou após terminar o pleito indiretoda comarca, e ao término dessa, era feito umdiscurso alusivo ao ato51.

Sob o modelo, inaplicado, da Constituiçãode 1937, em que quase todas as eleições seriamindiretas, para a da Câmara dos Deputados osgrandes eleitores seriam dez cidadãos, eleitosna mesma oportunidade que os vereadores, coma incumbência de escolher os deputadosfederais.

Também grandes eleitores eram os esco-lhidos para o Colégio Eleitoral para eleição doPresidente da República, órgão que nunca sereuniu no período. Estes seriam oriundos das

Câmaras Municipais, do Conselho Nacional deEconomia, da Câmara dos Deputados e doConselho Federal.

Os primeiros, representando os Estados, emnúmero proporcional à população, sem ultra-passar de vinte e cinco em cada um deles. DoConselho Nacional de Economia, maiscinqüenta, 25 escolhidos entre empregadores e25 dentre os empregados. Outros cinqüenta, doParlamento, 25 designados pela Câmara dosDeputados e outros 25 pelo Conselho Federal,entre cidadãos de notória reputação. Semprecom a ressalva de que a designação para eleitordo Presidente da República não poderia recairem membros do Parlamento Nacional ou dasAssembléias Legislativas dos Estados.

Somente em 1969 voltou a funcionar,efetivamente, no Brasil, um Colégio Eleitoral,e novamente para eleição do Presidente daRepública. Este era a reunião dos membros doCongresso Nacional e de delegados indicadospelas Assembléias Legislativas dos Estados,escolhidos da seguinte maneira: três delegadosentre seus membros; e mais um por quinhentosmil eleitores inscritos no Estado, não podendonenhuma representação ter menos de quatrodelegados.

Estes delegados eram escolhidos, pelo textode 1969, por meio do voto de toda a AssembléiaLegislativa, sendo eleitos delegados os queobtivessem, em maioria simples, os maioresnúmeros de sufrágios, sendo suplentes os querecebessem quantidade menor de votos, naordem decrescente.

Pelo Pacote de Abril, – Emenda Consti-tucional nº 8, de 1977, a representação foimudada a primeira vez: cada AssembléiaLegislativa passava a indicar, entre os seusmembros, três delegados, como número fixo, emais um por milhão de habitantes, não podendonenhuma representação ter menos de 4delegados.

Em 1982, pela EC-22, a composiçãonovamente mudou, passando cada Estado a terseis delegados, mas agora todos eles indicadospela bancada do partido majoritário, entre osseus membros, e não mais escolhidos entretodos os parlamentares estaduais.

E, finalmente, para eleição presidencial de1985, a Lei Complementar disciplinadora doprocesso foi mudada, para resolver um casoconcreto: o empate em número de deputados,das bancadas de uma Assembléia Legislativa(Mato Grosso). Disse a nova norma adjetiva(Lei Complementar nº 47, de 22.10.1984):

49 MOREIRA, Colares. A Câmara e o regime eleitoralno Império e na República. In: Livro do centenário daCâmara dos Deputados. Rio de Janeiro : Brasil Editora,1928. p. 15; Cf. TRÍPOLI, op. cit., v. 2, p. 75.

50 “Para saber quantos compromissários seriam eleitos,era necessário conhecer, antes, quantos eleitores de paróquiaseriam eleitos pelos compromissários. O cálculo era feito pelonúmero de fogos de cada freguesia. Por fogo entendia-se acasa ou parte dela, em que habitasse independentemente umapessoa ou família, de maneira que um mesmo edifício podiater dois ou mais fogos”.

O cálculo era o de 1 eleitor para cada 200 fogos; depois,acima de 300 e menos de 400, 2 eleitores; acima de 500 emenos de 600, 3 eleitores e assim por diante, sem se ter notíciado limite máximo.

Naquela freguesia com mais de 150 fogos e menos de200, cabia também escolher 1 eleitor; e naquelas que nãochegassem a este número mínimo, “os seus moradores sejuntavam aos da freguesia imediata para nomear o eleitor oueleitores que lhe correspondiam”. BRAGA, Hilda Soares.Sistemas eleitorais do Brasil : 1821-1988. Brasília : SenadoFederal, 1990. p. 6; Cf. MOREIRA, loco cit.

51 Cf. BRAGA, op. cit., p. 7; PORTO, W. C. op. cit., p. 19.

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Cada Assembléia terá seis delegados, mais doissuplentes, indicados pela bancada do respectivoPartido majoritário. Se nenhum Partido formajoritário na Assembléia, às bancadasnumericamente iguais caberia a indicação, emproporção aos delegados.

Um outro caso de Colégio Eleitoral surgiuem 1977, pela Emenda Constitucional nº 8, doPacote de abril: os Colégios EleitoraisEstaduais, para escolha dos Governadores eVice-Governadores e de um Senador, naoportunidade de preenchimento dos 2/3 doSenado, o Senador Biônico.

Tal Colégio Eleitoral, em cada Estado, eracomposto pela reunião dos membros daAssembléia Legislativa e de delegados indi-cados pelas Câmaras Municipais dos respec-tivos Estados, escolhidos em cada uma delasentre seus membros, de acordo com os seguintescritérios: um delegado e mais um por duzentosmil habitantes do Município, não podendonenhuma representação ter menos de doisdelegados, porém admitindo-se o voto cumu-lativo.

5. As eleições para os Conselhos eAssembléias Provinciais e Estaduais.As Capitanias Hereditárias iniciais eram

dirigidas pelos Capitães Generais, sem que aseu lado existisse qualquer órgão colegiado,deliberativo ou mesmo consultivo. Com oaumento ou diminuição das donatarias (inclu-sive pelo retorno do seu domínio à CoroaPortuguesa), esta situação em nada se modi-ficou, a despeito da existência, então, degoverno local eleito.

Pouco antes da Independência, pela lei de1º de outubro de 1821, as Cortes Portuguesascriaram, no Brasil, duas categorias de capi-tanias, as de primeira ordem, governadas porcapitães-generais e juntas provisórias de setemembros52, e as de segunda ordem, que tinhamjuntas de cinco membros53.

Quando da Independência e da criação doImpério do Brasil, as 19 capitanias se trans-formaram em 19 províncias, cada uma delas

tendo, ao lado do presidente nomeado, oConselho Geral de Província.

Eram indiretas as eleições para os Con-selhos Gerais de Província, de mandatoquadrienal, com vinte e um membros nasprovíncias mais populosas e treze nas demais54.Quando da mudança prevista no Ato Adicional,o mandato dos membros das AssembléiasLegislativas Provinciais (nas quais se tinhamconvertido os Conselhos Gerais) passou paraapenas dois anos. Também foi modificado onúmero de seus membros, que variou de 36,como máximo, e 20, como mínimo55.

A partir da Constituição de 1891, asAssembléias Legislativas Estaduais (e SenadosEstaduais, onde os houve) passaram a ser eleitaspelo voto direto.

Na Constituição de 1937, de tendênciaunitária, o texto básico não tratava, de mododetalhado, da organização dos Estados, nem doDistrito Federal. As referências à AssembléiaLegislativa surgiram, apenas, quando a Cartadava a esta a competência de eleger osrepresentantes no Conselho Federal e esta-belecia a inelegibilidade de seus membros parao Colégio Eleitoral presidencial. De resto, estasregras nunca tiveram aplicação.

De 1946 para cá, as eleições para asAssembléias Legislativas sempre foram diretas,sem que tivesse havido qualquer tentativa deadoção de processo indireto.

6. As eleições para Governadore Vice-Governador de Estado

O chefe do Poder Executivo estadual, hojeeleito diretamente, é o sucessor do capitão-general, donatário hereditário e do presidenteda província, este nomeado pelo Imperador,normalmente pessoa de nascimento ou vidapolítica fora da província.

As eleições para os presidentes dos Estadossomente começaram a ocorrer a partir daConstituição de 1891, de acordo com o que fosseestipulado em cada uma das Constituiçõesestaduais. Levado aos extremos o princípio

52 Eram elas as do Pará, Maranhão, Pernambuco, Bahia,Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul, Mato Grossoe Goiás. Cf. ROURE, Agenor de. A Constituinte Republi-cana. Brasília : Senado Federal, Centro Gráfico : Univer-sidade de Brasília, 1979. p. 120.

53 Eram estas: Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte,Paraíba, Alagoas, Sergipe, Espírito Santo, Santa Catarina eCisplatina, depois tornada independente (O Amazonas eracomarca do Pará e o Paraná comarca de São Paulo). Ibidem.

54 As províncias mais populosas, como tal consideradasna Constituição, eram: Pará, Maranhão, Ceará, Pernambuco,Bahia, Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul (Art. 73).

55 Cada uma das assembléias legislativas provinciaisconstará de 36 membros nas províncias de Pernambuco,Bahia, Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo; de 28 nasdo Pará, Maranhão, Ceará, Paraíba, Alagoas e Rio Grandedo Sul; e de 20 em todas as outras. Este número era alterávelpor lei geral. Art. 2º da Lei nº 16, de 12-8-1834 (AtoAdicional).

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federativo, cada Estado organizava o seuGoverno, até mesmo o Direito Eleitoral paraeste fim era de cunho local, pois apenas erafederal, o estabelecido pelo Congresso Nacio-nal, que somente tinha competência para“regular as condições e o processo da eleiçãopara os cargos federais, em todo o país”56.

A partir da Constituição de 1934, passou aser privativa da União a competência legislativasobre matéria eleitoral57, e estabelecida arestrição eleitoral da temporariedade dasfunções eletivas. Quanto aos Governadores, olimite aos prazos de exercício os davacorrespondentes aos do Presidente da Repú-blica, que era de quatro anos, e a proibição dareeleição para o período imediato58.

A eleição dos Governadores para o períodoinaugural seria indireta pela AssembléiaLegislativa, consoante o disposto no art. 3º dasDisposições Transitórias.

O Texto Maior de 1934, como não tratavada existência do cargo de Vice-Presidente,serviu de parâmetro para que os Estadosigualmente não tivessem a figura do Vice-Governador.

Não houve a hipótese de renovação dequalquer mandato de Governador, sob o pálioda Constituição de 1934, por ter sido antecipadaa extinção do mandato antes de completado oquadriênio, com o Golpe de 1937.

A Constituição de 1937, em cuja vigênciasomente ocorreram eleições depois da deposiçãode Getúlio Vargas, tratou de alguns pontoseleitorais relativos aos municípios e ao DistritoFederal, mas não quanto aos Estados.

Nas Disposições Transitórias referiu-se aomandato dos Governadores dos Estados, osquais, se não fossem confirmados peloPresidente da República, seriam substituídospelos Interventores Federais, que teriam suasfunções asseguradas até a posse dos novosGovernadores59.

A regra das interventorias teve sua apli-cação, mas nunca houve posse dos novosGovernadores durante a vigência da Carta.

Do mesmo modo que no texto de 1934, aCarta Outorgada de 1937 não trazia a figurado Vice-Presidente e, por extensão, não secogitou de vice-governadores. Mesmo porquenão caberia se tratar de “vice-interventores”,com atividade regular. Na necessidade desubstituir o Interventor, ou o Governadorconfirmado, esse substituto seria designado pordecreto presidencial60.

Redemocratizado o País, com a Carta de1946, também o texto novo não disciplinouexpressamente a organização política dosEstados-membros. Apenas definiu algunsparâmetros que, se violados, autorizariam adecretação de intervenção federal.

Entre esses, repetindo a regra de 1934,tornou-se possível a intervenção para assegurara observância, entre outros, dos princípios datemporariedade das funções eletivas, limitadasa duração destas à das funções federaiscorrespondentes, ou seja, novamente, quantoaos Governadores, o limite máximo de mandatocorrespondente ao presidencial, que passava aser de cinco anos.

Assim, com o mandato presidencial decinco anos, diversos Estados adotaram regrasimilar para o período de seus Governadores,enquanto outros permaneceram na tradicionalregra do quadriênio. Não havia, em conse-qüência, a coincidência dos mandatos de todosos Governadores, havendo eleições para osnovos períodos em anos diferentes.

56 Art. 34, inciso 22.57 Art. 5º Compete privativamente à União: (...)XIX – legislar sobre:f) matéria eleitoral da União, dos Estados e dos

Municípios, inclusive alistamento, processo das eleições,apuração, recursos, proclamação dos eleitos e expedição dediplomas.

58 Art. 7º Compete privativamente aos Estados:I – decretar a Constituição e as leis por que se devam

reger, respeitados os seguintes princípios: (...)c) temporariedade das funções eletivas, limitada aos

mesmos prazos dos cargos federais corres-pondentes, eproibida a reeleição de Governadores e Prefeitos para operíodo imediato.

59 “Art. 176. O mandato dos atuais governadores dosEstados, uma vez confirmado pelo Presidente da República,

dentro de trinta dias da data desta Constituição, se entendeprorrogado para o primeiro período de governo a ser fixadonas Constituições estaduais, não podendo em caso algumexceder o aqui fixado ao Presidente da República.

Parágrafo único. O presidente da República decretará aintervenção nos estados cujos gover-nadores não tiverem oseu mandato confirmado. A intervenção durará até a possedos governadores eleitos, que terminarão o primeiro períodode governo fixado nas Constituições estaduais”.

Note-se que a regra não era permissiva (poderá decretar),mas cogente: “decretará a intervenção”.

Na prática, com exceção de Minas Gerais, onde BeneditoValadares continuava “Governador”, todos os demais foramtransformados em interventores. Na Bahia e em Pernambuco,Juraci Magalhães renunciou, e Carlos de Lima Cavalcantifoi deposto e substituído por Agamemnon Magalhães. Cf.DULLES, J. W. F. Getúlio Vargas, p. 185.

60 Pelo Decreto-Lei nº 1.202, de 8-4-1939, estabe-lecia-se que:

a) Os Interventores nomeados para os Estados na formado parágrafo único do art. 176 da Constituição exercerão suasfunções enquanto durar a intervenção, ou até que o Presidenteda República lhes dê substituto (parágrafo único do art. 3 º).

b) O substituto do Interventor, ou Governador, nos seusimpedimentos, será designado, em decreto, pelo Presidenteda República (art. 11).

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Persistia a proibição da reeleição para operíodo imediato do Governador (e do Vice-Governador).

No que tange ao Vice-Governador, estafigura foi contemplada em diversas Consti-tuições estaduais, seguindo o paradigmafederal, mas não em todas. Portanto, em muitosEstados, necessitou-se proceder a eleições parao provimento dos cargos de Vice-Governador,porque não havia tal instituição na OrdemPolítica anterior.

Logo depois da promulgação do AtoInstitucional (nº 1), de 1964, cassados váriosmandatos de Governadores e Vice-Gover-nadores, a eleição regular seguinte, em 1965,foi direta para alguns Estados, trazendo revezeseleitorais para o Governo militar que, logo emseguida, pelo Ato Institucional nº 3, de 1966,tornou indiretas essas eleições. O pleito eradeferido às Assembléias Legislativas e serealizaria em sessão pública e votação nominal.O Vice-Governador passava a ser consideradoeleito em decorrência da escolha dos titularesdos cargos de Governador com os quais fosseminscritos como candidatos.

De acordo com as regras da Constituiçãode 1967, a eleição de Governador e Vice-Governador deveria voltar a ser realizada pelavia direta e secreta, regra que se repetiu no textoda Emenda Constitucional nº 1, de 1969. Noentanto, para preparar a eleição de 1974, foinovamente alterada a regra, pela EC-2, de 1972,passando a escolha de Governadores e Vice-Governadores a ser feita pelas AssembléiasLegislativas, em sessão pública e votaçãonominal.

No pacote de abril, a EC-8, de 1977, aeleição do Governador e do Vice-Governadorde Estado passava a decorrer de um colégioeleitoral ampliado, composto dos membros daAssembléia Legislativa e de representantes dasCâmaras Municipais, escolhidos entre osmembros destas. Igualmente em sessão públicae por votação nominal para candidaturasvinculadas. Todos os Governadores e Vice-Governadores seriam eleitos no mesmo dia paraigual mandato de quatro anos.

A eleição indireta para Governador, quevinha desde 1965, desapareceu com a EC-15,de 1980, voltando a ser direta, por voto secretoe sufrágio universal, para mandato quadrienal.Em 1982, foi aplicada em sua plenitude a tesedo voto vinculado para todas as eleições, excetoa do Presidente e Vice-Presidente da República.Assim, todas as candidaturas eram vinculadas,exigindo-se registro completo da chapa pelo

partido político, agora não só de Vice-Governador com a do Governador, mas estascontinuavam sendo principal e acessória.

A eleição de 1986 seguiu a mesma regra.Depois de promulgada a Constituição de

1988, ocorreram as eleições de 1990 e 1994,todas elas pela regra nova, a do art. 28 dotexto vigente: sufrágio universal e voto diretoe secreto61, mandato de quatro anos, na formado art. 28, com a eleição do Vice-Governadordecorrente da eleição do candidato a Gover-nador. Ademais, exigência de maioria absolutanum primeiro turno e não atingida esta, novoturno entre os dois candidatos mais votados noprimeiro, exigida agora apenas a maioriasimples.

7. As eleições para Deputados FederaisOs atuais deputados federais, parlamentares

integrantes da Câmara dos Deputados daRepública, foram precedidos por outrosrepresentantes do povo, componentes daCâmara dos Deputados do Império, tambémchamados de Deputados.

Antes desses, havia os representantes locaisnum Conselho de Procuradores-Gerais dasProvíncias do Brasil, convocado pelo Príncipe-Regente D. Pedro, por sugestão de JoséBonifácio. Tal Conselho, órgão consultivocriado em fevereiro de 1822, foi, mais tarde,chamado de Conselho de Estado e dissolvidoem outubro de 1823, por ato da AssembléiaConstituinte, sob o fundamento de que somenteos seus membros eram os legítimos procu-radores da Nação.

Tanto o Conselho de Estado quanto aAssembléia Constituinte e Legislativa tinhamos seus membros escolhidos indiretamentepelos eleitores de província. Como erapermitido o voto ao analfabeto, desde que estepreenchesse os demais requisitos de parti-cipação no corpo eleitoral, o voto não poderiadeixar de ser aberto, ou público.

Dissolvida a Assembléia Constituinte,promulgada a Constituição Imperial, instaladosa Câmara dos Deputados e o Senado, as eleiçõescontinuavam, pela Norma Fundamental nova,a serem feitas de modo indireto, pelos eleitoresde província, já decorrentes das eleiçõesprimárias. O voto era censitário, com níveis derenda distintos para os eleitores de província,deputados e senadores.

61 “Art. 14. A soberania popular será exercida pelosufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igualpara todos...”

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Já na República, a Constituição de 1891estabelecia que a composição da Câmara dosDeputados decorreria de eleição direta, nosEstados e no Distrito Federal, garantida arepresentação da minoria. O voto não era maisconferido ao analfabeto, nem ao mendigo, entreoutras classes. Mas continuava aberto, oupúblico.

O texto de 1934 passa a adotar o sistemamisto, de representantes do povo, eleitosmediante sistema proporcional e sufrágiouniversal e direto, nos Estados e no DistritoFederal, e de representantes eleitos pelasorganizações profissionais, na forma indi-cada na Lei, estes escolhidos pela viaindireta. O voto do eleitor comum passava aser secreto, o alistamento e o voto eramobrigatórios para os homens e, no caso dosufrágio feminino, obrigatório apenas quan-do as mulheres exercessem função públicaremunerada. Eram as conquistas da Revo-lução de 1930, já constantes do CódigoEleitoral de 1932.

A eleição dos representantes das categoriasprofissionais, de empregados e empregadores,divididas em partes iguais para as relativasà lavoura e pecuária, indústria, comércio etransportes. Para a representação dasprofissões liberais e funcionários públicos,havia um grupo único. Esses grupos eramconstituídos de delegados das associações,de empregados e empregadores, eleitos,mediante sufrágio secreto, igual e indiretopor graus sucessivos.

Pela Constituição de 1937, a Câmara dosDeputados seria composta de representantes dopovo, eleitos indiretamente por um colégiocomposto pela Câmara dos vereadores, e mais10 cidadãos, eleitos com os vereadores,diretamente, no mesmo ato eleitoral para aCâmara municipal. Como a Constituiçãonunca foi aplicada, e tanto as Câmaras deVereadores quanto a Câmara dos Deputadosnunca foram convocadas, nunca houve pleitodessa natureza.

A Lei Constitucional nº 9, de 1945, poucoantes da queda do Ditador, alterou o processode escolha para a Câmara dos Deputados, quepassou a ser composta de representantes eleitospelo sufrágio direto.

Para a Câmara dos Deputados, da redemo-cratização de 1946 até os dias de hoje, a eleiçãosempre foi pela via direta, com pequenasalterações do texto constitucional, sem que fossemodificado o princípio.

8. As eleições para o Senado FederalA Segunda Câmara, em nível nacional,

somente teve sua existência iniciada peladeterminação constitucional de 1824. AAssembléia Geral tinha, ao lado da Câmara dosDeputados, a Câmara dos Senadores ou Senado.Os membros desta Casa eram escolhidos emato complexo, de duas etapas: primeiro, umaeleição indireta em cada uma das províncias;depois, a escolha imperial de um dos nomesdessa lista. Após a Lei Saraiva, continuouhavendo a eleição da lista tríplice, porém pelavia direta. As funções eram exercidas por todaa vida. O número de senadores era corres-pondente, em cada província, à metade darepresentação desta na Câmara dos Deputados,com arredondamento, variável, portanto62.

Com o advento da República, a Constituiçãode 1891 modificou composição, o número derepresentantes e o processo eleitoral dosmembros do Senado Federal. A segundaCâmara passou a ser representativa dasunidades da Federação, e com número igual deSenadores para todos eles: três senadores porEstado e três pelo Distrito Federal, commandato de nove anos, sendo cada repre-sentação renovável pelo terço, trienalmente,sempre por eleição direta.

Regra semelhante existiu na Constituiçãode 1934: somente dois senadores por Estado epelo Distrito Federal, com mandato de oitoanos, renovando-se a representação pela metadea cada quatro anos, conjuntamente com aeleição direta para a Câmara dos Deputados.

Excepcionou-se o período da Carta de 1937,pela qual o Conselho Federal seria compostode um representante de cada Estado (mas nãodo Distrito Federal), eleito indiretamente pelaAssembléia Legislativa, com a possibilidade deveto pelo Governador do Estado. A esses seaduziam mais 10 membros de livre nomeaçãopresidencial. Nunca ocorreram as eleições nemas nomeações e o Conselho Federal, como todasas demais casas legislativas, nunca foiinstalado.

62 Arts. 40 e seguintes da Constituição Imperial: membrosvitalícios, escolhidos em eleição provincial (art. 40);representação pela metade do número de deputados,arredondando-se para menor, quando for ímpar o númerodestes (art. 41), e quando a província tivesse apenas umdeputado, mesmo assim daria um senador (art. 42). As eleiçõespreparavam a lista tríplice, da qual o Imperador escolhia oterço (art. 43). Os requisitos de elegibilidade estavam no art.45: brasileiro, maior de 40 anos, com saber, capacidade evirtudes, e renda de 800$000 anuais.

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Com a volta do regime democrático pelaConstituição de 1946, reinstaurou-se omecanismo de representação de 3 senadores porEstado e pelo Distrito Federal, eleitos dire-tamente por oito anos, e com a representaçãorenovável por um terço e por dois terços a cadaquatro anos.

Essa foi a regra que permaneceu até aConstituição de 1967, quando o Distrito Federaldeixou de ter representação na Câmara Alta.O texto da Emenda Constitucional nº 1, de1969, não alterou a restrição ao Distrito Federal.Mas o processo eleitoral sofreu alteração, coma criação, pela EC-8, de 1977 – o pacote deabril – quando sofreu a alteração que permitiu,na renovação por dois terços, que uma das vagasfosse preenchida pela via indireta, pelo colégioeleitoral constituído para a eleição, tambémindireta, do Governador do Estado: é a figurado Senador Biônico.

No texto constitucional vigente, a regra de1946 foi restaurada: o Senado Federal écomposto por 3 representantes de cada Estadoe do Distrito Federal, com oito anos de duraçãode suas funções, e renovação por um terço epor dois terços a cada quatro anos, pela viaeleitoral direta.

9. A eleição do Chefedo Executivo Nacional

Os primeiros dirigentes de âmbito geral, noBrasil, foram os Governadores-Gerais, nome-ados pela Coroa Lusitana, da lista começadapor Tomé de Souza, mais adiante substituídospelos Vice-Reis. Eram, simplesmente, admi-nistradores, com a autoridade conferida peloRei de Portugal, sem maior dimensão políticana sua atividade.

A vinda da Família Real para o Brasil trouxea Corte e, com ela, a Rainha de Portugal e desuas colônias d’aquém e d’além-mar, D. MariaI e o Príncipe-Regente, mais tarde coroado Rei,D. João VI, do Reino-Unido de Portugal, Brasile Algarves. A este sucedeu na administraçãodeste Reino do Brasil o Príncipe-Regente D.Pedro, que, depois de proclamar a Inde-pendência, foi coroado Imperador. Em todosestes casos, a investidura tinha origemhereditária e duração vitalícia.

Com a abdicação de D. Pedro I, os negóciosdo Império passaram às mãos dos Regentes,primeiro os integrantes da Regência TrinaProvisória, depois a Regência Trina Perma-nente. E, logo a seguir, com a modificação

constitucional pelo Ato Adicional, em nomedo Imperador, passou a governar o País umRegente63, escolhido em eleição nacional,indireta, pelos eleitores das legislaturas de cadauma das províncias.

Na República, o Governo Provisóriopresidido pelo Marechal Deodoro da Fonsecafoi, de acordo com a Constituição de 1891,substituído pelo Presidente e pelo Vice-Presidente da República, eleitos diretamentepelo povo, por um período de quatro anos, semreeleição para o período imediato. Houveexceção à regra com a eleição indireta dosMarechais pela Assembléia Constituinte parao primeiro período64.

A mudança de 1930 também deu umGoverno Provisório chefiado por GetúlioVargas, que recebeu o poder das mãos de umtriunvirato militar que tinha deposto opresidente anterior. Tal Governo Provisórioficou no exercício até a promulgação daConstituição de 1934, sendo substituído pelopresidente eleito indiretamente para o primeiroperíodo, tendo recaído a escolha no mesmoGetúlio Vargas. A regra não contemplava afigura do Vice-Presidente da República.

Em 1937, com o golpe de Estado de 10 denovembro, Getúlio Vargas se manteve no poder,nos termos da Constituição outorgada (a qualigualmente não tinha vice-presidente), até suadeposição em 1945, período em que não houveeleição presidencial. O texto dava ao Presidenteum mandato de 6 anos e eleição por um colégioeleitoral composto de votantes oriundos dasCâmaras Municipais, do Conselho Nacional deEconomia, da Câmara dos Deputados e doConselho Federal. Nesta outra Constituiçãogetuliana, igualmente, não existia a figura dovice-presidente da República.

No fim daquele mesmo ano, após oafastamento do Presidente, houve eleição direta

63 A regência una foi exercida pelo paulista Padre DiogoAntonio Feijó e pelo pernambucano Pedro de Araújo Lima.

64 A eleição dos Marechais Manoel Deodoro da Fonsecae Floriano Vieira Peixoto, respectivamente para Presidente eVice-Presidente da República, foi a única que não resultouda voz das urnas.

Todos os demais Presidentes, de Prudente de Morais aWashington Luís, foram eleitos pela via direta. Nilo Peçanhasucedeu, como vice-presidente, a Afonso Pena, quando dofalecimento desse. Delfim Moreira, também vice-presidente,assume o cargo com a morte de Rodrigues Alves no seusegundo mandato, mas a precariedade de seu estado de saúdefaz que as tarefas de governo sejam conduzidas pelo Ministroda Viação, Afrânio de Melo Franco. Ficou no cargo até a possede Epitácio Pessoa, eleito num pleito antecipado para ummandato tampão e quando se encontrava no exterior.

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para o Presidente, juntamente com a dosmembros da Assembléia Nacional Constituinte.

A Constituição de 1946 restaurou a eleiçãodireta presidencial, diminuindo o período de 6para 5 anos, com a concordância do GeneralEurico Dutra, já empossado. A eleição doprimeiro Vice-Presidente da República foiindireta, pela Assembléia Constituinte.

A Emenda Constitucional nº 4 – o AtoAdicional parlamentarista – de 1961, esta-beleceu que o Presidente da República seriaeleito pelo Congresso Nacional. No entanto,essa regra nunca funcionou, foi revogada pelaEC-6, de 1963, plebiscito que determinou oretorno ao presidencialismo.

Pelo Ato Institucional de 9 de abril de 1964,a eleição do Presidente e do Vice-Presidente daRepública seria realizada pela maioria absolutados membros do Congresso Nacional, em sessãopública e votação nominal, tendo sido eleito oGeneral Castelo Branco. Não se cogitava, então,uma mudança de cunho permanente na normaeleitoral da presidência.

Em 22 de julho seguinte, a EC-9 alterava aregra do art. 81 do texto de 1946 paraestabelecer uma eleição presidencial direta, pelamaioria absoluta do eleitorado nacional, paraum mandato de quatro anos. Não sendo atingidaessa maioria, o Congresso Nacional homo-logaria o nome do mais votado no pleito diretocomo o novo presidente, pela maioria dos seusmembros. Não sendo atingida essa maioriaabsoluta, seria refeita a eleição direta entre osdois candidatos mais votados. Tal regra nuncachegou a ser aplicada. No entanto, o preceitodo § 4º , de que o Vice-Presidente seriaconsiderado eleito em virtude da eleição docandidato a Presidente da República com eleregistrado, passou a ser norma que prevaleceunas mudanças seguintes.

O Ato Institucional nº 2, de 1965, retomoua tese da eleição presidencial indireta, peloCongresso Nacional, pela maioria absoluta, emsessão pública e votação nominal, sendoinelegível o então Presidente Castelo Branco.Foi eleito por esta regra o General Costa e Silva.

Na Constituição de 1967, a regra passou adeterminar a eleição presidencial por umcolégio eleitoral, composto dos membros dasCasas do Congresso Nacional e de delegadosindicados pelas Assembléias Legislativas dosEstados. O sufrágio do colégio eleitoral passavaa ser exercido em sessão pública, mediantevotação nominal, exigindo-se maioria absolutade votos para a eleição. E o Vice-Presidente

seria considerado eleito com o Presidenteregistrado conjuntamente para um mandatoquadrienal.

Com a declaração de vacância dos cargosde Presidente e Vice-Presidente da República,em função da enfermidade do Presidente Costae Silva, a eleição para preenchimento destesvoltou à competência do Congresso Nacional,em sessão pública e votação nominal para ummandato – tampão, de 30 de outubro de 1969 a15 de março de 1974, ou seja 4 anos e 4 mesese meio, sendo escolhido Presidente o GeneralEmílio Médici.

A Emenda Constitucional nº 1, de 1969 –Constituição de 1969, outorgada pela JuntaMilitar, fazia a eleição voltar a ser dacompetência do Colégio Eleitoral, reunido emsessão pública e com votação nominal, para aescolha do Presidente e do Vice-Presidente daRepública para um mandato de cinco anos. OColégio Eleitoral seria composto pelosmembros do Congresso Nacional e repre-sentantes das Assembléias Legislativas dosEstados, escolhidos 3 entre seus membros emais 1 para cada 500 mil eleitores inscritos noEstado, não podendo nenhuma representaçãoter menos de 4 delegados, elegeria o Presidentepor maioria absoluta, considerando-se eleito ovice-presidente com ele registrado, comoocorreu com o General Ernesto Geisel.

Na EC-8, de 1977, foram alterados operíodo de funções, de cinco para seis anos, e arepresentação das Assembléias Legislativas,que passava a ser de 3 delegados escolhidosentre seus membros e mais 1 para cada ummilhão de habitantes do Estado, não podendonenhuma representação ter menos de 4delegados, tendo ocorrido assim a eleição doPresidente João Figueiredo.

Já em 1982, tendo sido revogados os AtosInstitucionais e Complementares desde janeirode 1979 pela EC-11, foi promulgada a EC-22,que, no concernente à eleição presidencial,alterava a composição dos delegados dosEstados, que passavam a ser 6, igualmente, nãomais eleitos pela Assembléia Legislativa, masindicados pela bancada do partido majoritário,entre seus membros. Essa foi a regra que elegeuTancredo Neves e José Sarney. A súbitaenfermidade do Presidente faz que o Vice-Presidente tome posse em 15 de março de 1985,o substitua até o seu falecimento e o suceda emseguida para terminar o mandato de seis anos.

Dois meses depois da posse do PresidenteSarney, o Congresso Nacional aprovou a EC-25,

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devolvendo ao povo brasileiro a eleição presi-dencial pela via direta. Sufrágio universal, votodireto e secreto, maioria absoluta de votos noprimeiro turno, maioria simples no segundo eeleição conseqüente do vice-presidente com eleregistrado.

A Constituição de 1988 reitera estasdisposições, porém reduz o mandato presi-dencial para 5 anos, com a concordância doPresidente Sarney, e mantém as mesmas regrasda eleição direta já proposta pela EC-25:

sufrágio universal, voto direto e secreto, maioriaabsoluta de votos no primeiro turno, maioriasimples no segundo, e eleição conseqüente dovice-presidente com ele registrado. Foi a regraque elegeu o Presidente Fernando Collor eItamar Franco, para Vice-Presidente. Essamesma regra elegeu, na época própria, e agorapara um período presidencial de 4 anos,conforme a Emenda Constitucional de Revisãonº 5, de 1994, o Presidente Fernando HenriqueCardoso e seu Vice-Presidente Marco Maciel.

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1. IntroduçãoA Constituição de 1988, ao ser promulgada,

estava destinada a ser o último modelo paraum Estado do Bem-Estar Social. No fim dadécada de oitenta, no momento em que outrospaíses estavam se desvencilhando ou já haviamse despojado de seus antiquados aparelhosestatais hipertrofiados, centralizadores, buro-cratizados, ineficientes e, sobretudo, insupor-tavelmente dispendiosos, o Brasil, guiado pelosconstituintes de 1988, enveredava pelacontramão da História. Recebia, então, o País,uma Carta Política longa, casuística e incom-pletamente negociada por meio de pequenoscompromissos recíprocos, fruto de umagenerosa dose de utopismo, de uma demagogiaauto-intitulada de progressista, de um corpo-rativismo militante dos grupos mais organi-zados, de um bem intencionado socialismo dosque ainda criam ser possível lograr distribuirriquezas sem produzi-las, do estatismosaudosista dos que não vêem como a sociedadepossa prescindir da tutela do Estado, dopaternalismo dos que têm o Governo como omunífico provedor de todas as necessidades, doassistencialismo dos que acreditam que a letrada lei converte-se automaticamente embenefícios, do fiscalismo dos despreocupadoscom as conseqüências desmotivadoras erecessivas das sobrecargas tributárias e, por fim,da xenofobia de tantos que, mesmo por elesfascinados, ainda temem os estrangeiros.

Revisão ConstitucionalSubsídios para o processo detransformação do Estado brasileiro

DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO

1. Introdução. 2. As reformas implantadas. 3.Avaliação. 4. O instituto da revisão. 5. Justificaçãoda proposta de Emenda Revisional. 6. Um texto deemenda oferecido para estudo.

SUMÁRIO

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O inevitável resultado da imposição dessacamisa-de-força, versão cisatlântica deconstituição dirigente, foi o fortalecimento daestrutura recebida do Estado autocrático que,paradoxalmente, se pretendia despedir, comtodo o seu desmedido peso financeiro, confis-catório de quase um terço do produto internobruto de toda Nação, para dispersá-lo entre maisde cinco mil unidades políticas, num festivalburocrático de baixíssimo retorno à sociedade.

Obsoleta para resolver os velhos problemaspendentes, a Constituição de 1988 muito menoshavia sido aparelhada para enfrentar osproblemas emergentes deste fim de séculosuscitados pela revolução das comunicações,como a globalização, a competição pormercados, por capitais e por cérebros, aresistência social ao aumento da tributação e ofenômeno do despertar das massas para umacrescente participação política. Toda essaarraigada origem estrutural da ingover-nabilidade não pode ser revertida senão pormeio de profundas e amplas reformas do Estadobrasileiro; isso porque, muito embora o direito,enquanto ordem positiva, pouco possa influircomo causa do desenvolvimento, sabe-se, porfarta experiência histórica, que é imenso o seupoder inibidor e destrutivo, mormente empaíses em vias de desenvolvimento, nos quaisse registra um abissal descompasso entre oproduto nacional, de um lado, e o custo-país,de outro, gerado por tributos escorchantes, porelevados déficits fiscais e por inúmerasprestações onerosas que ficam a cargo doEstado.

Não obstante os propósitos generosos, nosduzentos e quarenta e cinco artigos originaisda Carta de 1988, os sistemas político,econômico e social por ela instituídos mos-traram-se de tal modo emperrados, arcaicos,ineficientes e frustrantes das expectativaspopulares, nesses seus oito anos e meio deturbulenta vigência, que basta considerar-se onúmero de emendas (ou de remendos) promul-gadas, vinte e uma ao todo, quase com a médiade uma por quadrimestre, para constatar-seinequivocamente sua inadequação origináriaaos superiores reclamos do desenvolvimento doPaís, falha que hoje até mesmo seus subscritoresem maioria o reconhecem e abertamente odemonstram, sendo os primeiros a pugnar, noCongresso Nacional, por corrigir seus erros.

Ora, instituições políticas, quando sãoequivocadas, mas rigidamente constituciona-lizadas, como as responsáveis pelo delicadoequilíbrio entre Poderes, pela repartição

federativa de competências e de receitastributárias, pela representação eleitoral, pelosserviços e servidores públicos, e tantas outrasmais, exacerbam a ingovernabilidade. Domesmo modo, fragmentos ideológicos supérs-tites, cristalizados como dispositivos constitu-cionais, atrasam e dificultam a abertura daeconomia, obrigando o País a perder um tempoprecioso na corrida da competição global.Similarmente, as distintas políticas governa-mentais, também inflexivelmente constitucio-nalizadas, que foram imaginadas para ossistemas de educação, saúde, previdência,segurança pública, política urbana, rural eindigenista, não só já se revelaram anacrônicase falidas como respondem pela crescente ealarmante deterioração de vários serviçosprestados à população.

O legislador constitucional, ao que tudoindica, a julgar pelo demonstrado afã de tudoregrar nos mínimos detalhes e de reduzir osespaços da legislação infraconstitucional,desconfiava do legislador ordinário e quisassegurar-se de que suas iluminadas opçõesgovernativas prevaleceriam resguardadas pelasexigências materiais e formais estabelecidaspara o processamento das emendas. Não deixade ser realmente paradoxal que depois dereconquistadas as franquias democráticasplenas, interrompidas por mais de vinte anos,inclusive com a adoção de novos e promissoresinstrumentos de participação política, aConstituição se tivesse dedicado a reduzir,ponto por ponto, as oportunidades de utilizá-los em inúmeras questões vitais para oscidadãos, precisamente aquelas que, por suamutabilidade, são as que mais e permanen-temente demandam flexibilidade de respostasgovernamentais. Não é difícil convir, assim, queMiguel Reale tinha toda razão, em 1986, aindaquando os “Notáveis”, convocados por JoséSarney, preparavam o texto matriz onde osconstituintes de 1988 foram abeberar-se dadoutrina da Constituição dirigente, ao preverque o autoritarismo governativo acabaria sendosubstituído pelo totalitarismo normativo1, comoresultado de um lamentável conceito elitista epreconceituoso que acabou prevalecendo.

O previsível resultado desse anacronismo –o estatismo paternalista, patrimonialista,

1 REALE, Miguel. Razões de divergência. Folhade São Paulo, 29 jun. 1986. p. 3: “...quando o legis-lador se substitui ao povo, impondo-se normasrígidas e bloqueando o processo da livre construçãode seu próprio caminho”.

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assistencialista e corporativista – continuariaa prevalecer sobre a racionalidade na execuçãodas políticas públicas, mantido assim, com todoo vigor do velho e falido Welfare State duranteesses difíceis anos de vigência da “ConstituiçãoCidadã”, e, por isso, ficariam obstadas, portodos os modos elaboradamente amarrados naordem jurídica, as transformações que asociedade brasileira vem reclamando manifes-tamente já em duas eleições presidenciaisconsecutivas.

Para examinar as reformas implantadas eavaliá-las no contexto amplo do processo detransformação do Estado brasileiro, seguir-se-áo seguinte método: uma apresentação edescrição sucinta das emendas promulgadas nobiênio 95/96, com a avaliação preliminar doseu conteúdo e processo; um cotejo do que foiimplantado até o momento com as exigênciasdas transformações nos campos político,econômico e social; um estudo da problemáticada reforma das Constituições analíticascontemporâneas à luz das doutrinas e dasexperiências mais recentes e, à guisa deconclusão, uma sugestão de alternativainstitucional com vistas a superar as difi-culdades, que poderia substituir dezenas deemendas constitucionais por uma apenas.

2. As reformas implantadasEm agosto de 1995 foram retomadas as

reformas constitucionais por via de emendascom um bom ímpeto inicial. O País saía domarasmo e da frustração em matéria dereforma, pois as quatro primeiras emendasconstitucionais, promulgadas em 1992 e 1993,haviam tratado de temas políticos de quasenenhum impacto transformativo sobre o Estado,e o mesmo havia ocorrido com as seis emendasde revisão, que só apresentaram um pífioresultado, ao cabo de um processo tão impor-tante, tão debatido e tão aguardado.

As Emendas Constitucionais nºs 5, 6, 7 e8, distintamente das anteriores, deflagravamrealmente o processo de transformação. Comefeito, a E. C. nº 5, de 15 de agosto de 1995,eliminando os monopólios estaduais deexploração de gás canalizado, superava acrônica limitação de recursos dos Estados paracustosos investimentos industriais no setor; aE. C. nº 6, de mesma data, abrindo a pesquisae lavra mineral às empresas brasileiras emgeral, sem exigência de capital nacional,passava a atrair investimentos de risco e aformação de joint ventures num setor crítico

que vinha em alarmante declínio; a E. C. nº 7,também da mesma data, eliminando restriçõesxenófobas no transporte marítimo, promovia acompetitividade da produção nacional, e aE. C. nº 8, ainda daquela data, pondo fim aomonopólio estatal das telecomunicações,possibilitava a modernização do sistemaeconômico, além de atrair empresas, capitais etecnologia de ponta. Três meses depois, no finaldo ano, a E. C. nº 9, de 9 de novembro de 1995,levava adiante o processo, embora maistimidamente, flexibilizando o monopólio estataldo petróleo, em vez de aboli-lo, como seria dese esperar, mas, ainda assim, dando um passoadiante para modernizar esse setor de lentosavanços na economia nacional.

As três emendas constitucionais que seseguiram, nºs 10, 11 e 12, indicaram uma perdade impulso. A E. C. nº 10, de 4 de março de1996, criando um Fundo Social de Emergência,em nada contribuiu para a transformação doEstado, tendo, antes, características conjun-turais e casuísticas, do mesmo modo que coma E. C. nº 12, de 15 de agosto de 1996, insti-tuindo a contribuição provisória sobre movi-mentação ou transmissão de valores e decréditos e direitos de natureza financeira,apenas pretendia-se resolver problema conjun-tural e casuístico do Fisco. Em todo o período,somente a E. C. nº 11, de 3 de abril de 1996,possibilitando a admissão de professores,técnicos e cientistas estrangeiros nas univer-sidades e dando autonomia às instituições depesquisa científica e tecnológica, pode serconsiderada como um avanço dado às transfor-mações econômicas e principalmente sociais,ao pôr fim à inacreditável xenofobia científicaque nos criava a mais perversa das “cortinas”ideológicas: a cortina da ignorância.

As três últimas emendas constitucionais, denºs 13, 14 e 15, voltaram a introduzirimportantes transformações nos camposeconômico, social e político, respectivamente,encerrando o ano de 1996 e o elenco dasreformas até a data deste ensaio. A E. C. nº 13,de 22 de agosto de 1996, privatizando oresseguro, foi um importante fator de moder-nização do setor financeiro. A E. C. nº 14, de12 de setembro de 1996, destinando racio-nalmente recursos públicos à grande prioridadenacional da educação, tornou-se o maisimportante fator de transformação no camposocial. Por fim, a E. C. nº 15, de 13 de setembrode 1996, limitando a alarmante e impatrióticaproliferação de municípios, prodigalizada pelademagogia de 1988, submetendo-a à exigência

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de lei complementar federal para fixar o períodoem que as criações, incorporações, fusões edesmembramentos serão possíveis e pararealizar prévios estudos de viabilidademunicipal, veio somar-se como oportuníssimoinstrumento de racionalidade política.

Assim é que, numa avaliação preliminar,pode-se afirmar que das vinte e uma emendas,em total, apenas nove contiveram umaponderável contribuição para a transformaçãodo Estado brasileiro, mas como se exporáadiante, além de ser um esforço ainda inex-pressivo e, no caso de muito delas, tímido emseus resultados, todas demandaram umdemorado e extenuante processo político,extremamente desgastante para o Governo e suamaioria parlamentar, e decepcionante para opovo, este sempre à espera de resultados que seprocrastinam.

3. AvaliaçãoSe se considerar que no campo político as

transformações necessárias passam pelaracionalização da Federação, com a eliminaçãode incontáveis unidades parasitas, sejamEstados ou Municípios (art. 18); com a partilhade competências segundo regras lógicas desubsidiariedade (arts. 21, 22, 23, 24, 25 e 30);com a redefinição adequada de várias compe-tências concorrentes (art. 24); com a reativaçãodos territórios (art. 33); com a reformaadministrativa e da função pública, mas semsacrifício das necessárias garantias dosservidores (arts. 37 e ss.); com o aperfei-çoamento da representação política pela adoçãodo voto distrital misto ou sistema equivalente(arts. 44 e ss.); com o aprimoramento dacapacidade legiferante do Congresso Nacionalpor meio de Comissões Legislativas (arts. 48 ess.); com a redução, por via de conseqüência,da competência presidencial de editar medidasprovisórias com força de lei (art. 62); com asimplificação e participação social no controlefinanceiro-orçamentário dos entes públicos(arts. 70 e ss.); com a eliminação de órgãossupérfluos (arts. 89 e 91); com a simplificaçãoe racionalização do Poder Judiciário (arts. 92 ess.); com o reforço e garantia das funçõesessenciais à justiça (arts. 127 e ss.); com areestruturação do sistema de segurança públicanotoriamente ineficiente (art. 144) e com asimplificação do sistema tributário nacional,reduzindo seu peso sobre o setor produtivo edistribuindo as receitas segundo as reaisnecessidades de cada nível federativo (arts. 145

e ss.), a agenda reformadora mínima deman-daria nada menos que quatorze novas emendas,muitas delas tão extensas ou mais que a E. C.nº 3, a mais extensa das já promulgadas.

Do mesmo modo, se forem consideradas astransformações necessárias no campo eco-nômico, deverão ser repensados a presença doEstado na economia (art. 173); os monopóliosestatais remanescentes (art. 177); a autonomiado Banco Central e a fixação constitucional dastaxas de juros (art. 192), temas que acrescen-tariam, pelo menos, mais quatro textos aonúmero acima estimado.

Quanto ao campo social, espaço em que aCarta de 1988 mais incursionou para desdobrar-se em dezenas de regras e preceitos de somenosimportância, impor-se-ia, numa agendareformadora mínima do Estado, rever o seupapel na seguridade social, retirando-o daexecução para situá-lo na regulação geral e, porcerto, na fiscalização (arts. 194 e segs.);desconstitucionalizar o sistema de saúde,adotando as boas regras da subsidiariedade emreforço da atuação das unidades locais eregionais e, tanto quanto possível, das entidadesprivadas do setor (arts. 196 e segs.); privatizara Previdência Social, mantendo com o Estadoapenas a edição das regras gerais de segurançado sistema e a correspondente fiscalização (arts.201 e 202); definir e fomentar o ensino privadode interesse público (arts. 209 e segs.) ereexaminar o Estatuto do Índio à luz dasdesastrosas experiências provocadas pelosexcessos utopistas da atual Carta (arts. 231 e232). Aqui se teria mais um grupo de pelomenos cinco emendas.

A reforma não estaria terminada, porém,sem expungir uma cópia de dispositivosonerosos e vexatórios caracterizadamentecorporativistas disseminados nas DisposiçõesConstitucionais Gerais (arts. 233 e segs.), o quepoderia se tornar, afinal, o derradeiro e maisexigente teste de patriotismo e de determinaçãopara os legisladores-reformadores, possivel-mente ascendendo a mais dez, o número deemendas para tanto necessárias.

A estimativa total de trinta e três textos deemendas à Constituição é, contudo, muitoelástica, pois inexistem regras que disciplinemformalmente a abrangência que deveria ter cadauma delas. Essa contagem serve apenas comoreferencial para que se possa estimar quanti-tativamente o trabalho que se exigiria, daquipara a frente, para completar, por meio doprocesso reformador que se vale de emendasindividuadas, adotado pela Constituição de

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1988 em seu art. 60, uma razoável agenda demodernização do Estado brasileiro. Resta óbvioque uma estimativa qualitativa e satisfatóriadesse esforço só poderia vir a acrescer ou até amultiplicar esse número, sem contar com otrabalho concomitante ou adicional de descons-titucionalização de diversos temas elevadosdesnecessariamente ao texto da Lei Maior.

Num cálculo simplista, se vinte e umaemendas levaram oito anos e meio, trinta e trêslevariam dez anos e meio para estaremterminadas, ou seja, só no ano 2.008 o Brasilteria completado a reforma de que hojenecessita. Na melhor das hipóteses, se selograsse manter o ritmo alcançado nos doisúltimos anos, o que é pouco provável, prevendo-se paralisações em períodos eleitorais etrabalhos de comissões parlamentares deinquérito durante o percurso, poder-se-iaesperar ainda que no ano 2002 o Brasil estivesseenfim preparado para crescer e competir, naplenitude de sua potencialidade, numa socie-dade planetária em estádio bem mais avançadode globalização.

Mas para que pudesse ser viável essahipótese mais favorável, seria necessário que oprocesso político de tramitação e aprovação dasemendas constitucionais não se complicassepoliticamente além do que já vem juridicamentedificultado. Com efeito, o processo legislativode reforma por meio de emenda, previsto noart. 60 do corpo permanente da Constituiçãode 1988, aparentemente, pois pelo menos temsido assim considerado o único remanescentedepois de abortada a oportunidade de reformapor meio de revisão, instituída no art. 3º doADCT, não tem apresentado senão resultadosmodestos e arrastados, de todo insuficientespara devolver governabilidade ao País e, o queé politicamente relevante, quase sempreacompanhado de um grande desgaste políticopara o Governo, que patrocina as reformas, ede decepção para o povo, que continua cobrandoresultados.

Parece, por isso, cada vez mais evidente queessa promulgação de emendas constitucionaisno varejo, fragmentadas, segmentadas, emcertas ocasiões desfiguradas, penosamentevotadas em quatro turnos, em arrastadosprocedimentos bicamerais, exigindo trêsquintos dos votos em cada Casa Legislativa,tem um preço político extraordinariamente altopara o País. Todavia, no ensinamento da teoriaconstitucional clássica, se as reformas na Cartasó podem ser realizadas obedecendo àslimitações materiais e formais nela própriaprevistas, uma das quais é a observância do

processo ou dos processos de reforma admi-tidos, a solução há de ser buscada em seupróprio texto (explícita) ou a partir deleconstruída (implícita), pois não é admissívelque a nacionalidade seja suicida nem que aConstituição possa ser seu túmulo.

De pouco valerá termos logrado a “abertura”política se tivermos que nos sujeitar a umpermanente “fechamento” constitucional. Oimpasse que vem dificultando e, se prosseguir,pode obstar a reforma do Estado brasileiro,deve, portanto, ser juspoliticamente superado,na linha e do mesmo modo que se fez aoconvocar o povo, soberano nas democracias,pela Emenda Constitucional nº 26, de 27 denovembro de 1985, ou seja, sem rupturapolítica da ordem jurídica vigorante.

4. O instituto da revisãoAs Constituições, leis fundamentais dotadas

de supremacia normativa sobre todas as demais,são tradicionalmente classificadas em sintéticase analíticas; aquelas, limitando-se a estabeleceros princípios e preceitos essenciais à orga-nização do Estado, à declaração de liberdadese definição de direitos individuais e coletivos ea traçar as linhas programáticas para a ação doEstado, da sociedade ou de ambos2, e estas, asanalíticas, a desenvolver mais pormeno-rizadamente cada um desses conjuntos denormas.

Mais recentemente, os textos consti-tucionais passaram a receber toda espécie denormas que neles quisessem inserir os seusautores, definindo, por vezes à exaustão,quando não redundantemente, preceitos sobrequaisquer matérias, até mesmo as que sempreforam tratadas em nível regulamentar.

Por outro lado, observou-se também, nadécada de setenta, uma sobrevalorização docomponente ideológico-programático, tradu-zida na inserção, no Texto Maior, de inúmerase detalhadas definições de políticas gover-namentais destinadas a dirigir os futurospoderes constituídos, ou seja, estabelecer“tarefas de Estado”, na expressão de J. J. GomesCanotilho3.

2 Adotou-se a precisa classificação tripartite deLuis Roberto Barroso, em O Direito Constitucionale a efetividade de suas normas. Renovar, 1990. p.84-85.

3 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Rever ouromper com a Constituição dirigente ? Defesa deum constitucionalismo moralmente reflexivo.Cadernos de Direito Constitucional e CiênciaPolítica, v. 4, n. 15, p. 11, abr./jun. 1996.

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A tipologia clássica tornou-se, assim,insuficiente para explicar esses novos modelos,mas enquanto apenas o excesso de detalhes jábasta para descrever uma Constituiçãocasuística, pois ela seria uma patologia doanalítico, e como tal não encontra defensores,a regulação detalhista “autoritária” e “inter-vencionista”4 caracterizadora da Constituiçãodirigente, fez escola e lançou suas raízes noultramar, na Carta brasileira de 1988.

Necessariamente, essas variações teriam derepercutir sobre uma outra tradicional classi-ficação dicotômica, entre Constituições rígidase flexíveis, uma vez que a rigidez se compa-tibiliza sem dificuldades com os modelossintéticos, mas não tão facilmente com osmodelos analíticos. Essa incompatibilidade éque acabou se tornando aguda e problemáticana medida em que proliferavam os modeloscasuísticos e dirigentes, uma vez que por meiodeles um sem-número de exemplos de deci-sionismo constitucional acabaram protegidospor cláusulas pétreas, explícitas ou implícitas.

Confrontadas, de um lado, com a neces-sidade política de serem alteradas e, de outro,com o hibridismo antagônico rígido-analítico,formalmente implantado, explícita ou implici-tamente, as Constituições contemporâneasdesse tipo, como a brasileira de 1988, podemsuscitar dramáticos dilemas políticos queoscilarão entre a obediência a esquemasinflexíveis de reforma, com o risco de aluir seusfundamentos de legitimidade com o rompi-mento formal do sistema e todos os incon-venientes de insegurança jurídica decorrentes,e a busca de soluções criativas além daortodoxia positivista, como de fato vemocorrendo e a seguir se exporá.

A doutrina clássica teve sempre porassemelhados os processos de reforma consti-tucional, tanto o ordinário, por via de revisão,quanto o extraordinário, por via de emenda, àschamadas cláusulas pétreas, considerando-osimplicitamente imodificáveis. Mas, mesmo nopassado, quando o princípio democrático eramais tênue que hoje e a forma da democraciarepresentativa era plenamente dominante, essacláusula pétrea implícita, seja limitadora dopoder reformador competente, seja restritiva dotipo de procedimento a ser por ele seguido, járecebia temperamentos. Foi o que ocorreu noimportante precedente histórico da LeiConstitucional francesa, de 3 de junho de 1958,que inovou regras de reforma constitucional

na Constituição de 1946 para transferir o poderconstituinte derivado a Charles de Gaulle,submetendo-a a referendo popular legi-timatório, uma formalidade distintiva dademocracia participativa que começava suatrajetória ascencional no segundo pós-guerra5.

Mais recentemente, outro caso de mode-ração na interpretação do rigor formal decláusulas pétreas no Direito Constitucionalcontemporâneo, em hipótese de Carta aindamais analítica e de mais forte sentido dirigente,por sinal reputada como um dos modelos maisproximamente seguidos pelo constituintebrasileiro de 1988, deu-se com a segundarevisão da Constituição portuguesa de 2 de abrilde 1976.

A primeira revisão constitucional (LeiConstitucional nº 1/1982) já havia sidoconsiderada por seus comentaristas “extensa”e, em alguns domínios “profunda” mas, apesardisso, não teria chegado a lesar “a essência daConstituição” e nem romper “com a ordemconstitucional originária”, expressões queguardam sinonímia com o conceito auto-poiético, também moderníssimo, de identidadeconstitucional.

A segunda revisão constitucional (LeiConstitucional nº 1/89), porém, eliminoualgumas cláusulas pétreas, com o sentido depossibilitar no futuro a reforma das matériasconstitucionais que haviam sido por elasprotegidas, mas, não obstante esse surpre-endente rompimento da velha ortodoxia teórica,seus abalizados e insuspeitos comentaristas,como J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira,concluíram com acerto que “globalmenteconsiderada, portanto, a revisão não se traduziunuma solução de continuidade constitucional”6.Na verdade, essa construção doutrinária tinhao mérito de conciliar o pleno ingresso dePortugal na Comunidade Européia semrompimento de sua ordem jurídica.

O problema passou a se situar, assim, nãono valor absoluto de qualquer cláusula pétrea,explícita ou implícita que seja, mas naverificação da possibilidade de encontrar-se

4 Ibidem, p. 9.

5 Tem-se, com efeito, como um dos traçosmarcantes do direito público neste final de século, apressão popular por maior participação política emtodos os processos do poder, na legiferação, naadministração e na jurisdição. A respeito, nossamonografia Direito da participação política. Rio deJaneiro : Renovar, 1992.

6 CANOTILHO, J. J. Gomes, MOREIRA, Vital.Fundamentos da Constituição. Coimbra Ed. 1991.p. 291.

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uma forma legítima de evolução que preservea identidade constitucional originária. Emoutras palavras: o conceito de rigidez evoluipara passar a ser entendida como uma técnicasubstantiva de estabilidade voltada à manu-tenção dessa identidade, necessariamente comsentido material, seja este um valor autônomo,da própria Constituição, seja ele heterônomo,que se impõe por fora ou por cima dela,excluindo-se, assim, os limites meramenteformais, que não portam valores e, por isso,não apresentam referencial direto com alegitimidade.

Concluindo a apreciação da questão dadupla revisão, Canotilho e Vital Moreiratampouco vêem obstáculo jurídico intrans-ponível nos limites formais implícitos, ou seja,nos que não estão mencionados no própriosistema de revisão7.

No mesmo sentido manifesta-se na doutrinaitaliana Enrico Spagna Musso, afirmando que

“se num determinado ordenamentoestatal está previsto um processo derevisão constitucional sem a explícitaprevisão de limites à própria revisão, nãose pode sustentar a existência de limitesimplícitos em relação a dadas matérias”8.

No Brasil, tampouco, na experiênciaconstitucional recente, a existência de limitesformais implícitos de reforma, no caso pela viade emenda, foi invocada como impedimentopara que se promulgasse a Emenda Consti-tucional nº 26, de 27 de novembro de 1985,que transformou o Congresso Nacionalconstituído, em Assembléia Nacional Consti-tuinte “livre e soberana”9, ou seja, semsubmissão a quaisquer tipos de limitesinstituídos, como também se exigia na tradiçãodoutrinária nacional10.

Mas a despeito da doutrina contrariada,nenhuma violação de limites implícitos chegoua ser verberada, nem mesmo sob a pesadasuspeita de ilegitimidade do Congresso

Nacional, então composto por senadoresdesprovidos de investidura democrática pelovoto popular, nem mesmo, ainda, pelo ponde-rável argumento de que seria imprescindívelpara legitimar o processo que se o culminassecom um referendo, como foi brilhantementesustentado pelo saudoso jurista Geraldo Atalibae por Michel Temer11.

Com efeito, as clássicas concepçõesformalistas e juspositivistas do fenômenoconstitucional, como avivam os exemplosassinalados, parecem ter ficado superadas, como advento de novas vertentes teorético-dogmáticas que se mostraram mais adequadasao que hoje se espera de uma Constituição:menos comprometida com a manutenção dostatus quo, mais aberta a valores e, sobretudo,mais efetiva para garantir a estabilidade políticaque todos os povos almejam.

Com a ênfase axiológica, porém, não se estáprocurando, para escapar ao legalismo, retornarà ordem de valores (Wertordnung) weimariana,com suas referências antropológicas e meta-físicas reminiscentes de um romantismo tardio,mas, ao contrário, avançar para uma recons-trução dos valores democráticos fundantes(Grundwerte) sob formas jurídicas (Grundrechte)na formulação do que se tem denominadoapropriadamente de um “constitucionalismoadequado”12, para que não nos perguntemos,afinal, como Dworkin, “se o Direito Constitu-cional não foi construído sobre um erro”13.

Os valores, porém, enquanto conceitosantropo-axiológicos, recebem codificação paraingressar no mundo do direito e nele vir aestruturar os sistemas jurídicos por meio dadestilação e da organização nuclear de umcentro de identidade constitucional formado porprincípios, estando aqui, para Robert Alexy, adistinção fundamental entre ambos, valores eprincípios, a partir da qual se abre uma nova eampliada compreensão da Constituição comoum sistema aberto de preceitos e princípios14,em que a atividade subsuntiva e silogística,própria da visão piramidal kelseniana,conducente ao unidimensionalismo jurídico,

7 Ibidem, p. 300.8 MUSSO, Enrico Spagna. Diritto Costituzionale.

4. ed. Pádua : CEDAM, 1992. p. 121 (n/grifo).9 A expressão entre aspas está no art. 1º da

Emenda n. 26/85.10 José Afonso da Silva, por exemplo, apoiando-

se na excelente monografia de Nelson de SouzaSampaio, O Poder de Reforma Constitucional.Salvador : Progresso, 1954. p. 93, tem comoexcluídas do alcance de uma emenda as normasconstitucionais referentes à titularidade do poderreformador e ao processo da própria emenda ourevisão.

11 Apud PRADO. Razões das virtudes e víciosda Constituição de 1988. São paulo : Ed. Inconfi-dentes, 1994. p. 25.

12 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitu-cional. Coimbra : Ed. Almedina, 1991, 5. ed., p.174.

13 DWORKIN, Ronald. Law’s empire. Cambridge :Belknap Press, 1986, em epígrafe ao Cap. 10.

14 ALEXY, Robert. Theorie der grundrechte.Baden-Baden, 1985. p. 133.

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cede à atividade ponderativa e razoabilística,mais harmônica com a visão autopoiéticateubneriana, e, por isso mesmo, conducente aocircularismo auto-reflexivo do direito15.

Observe-se, porém, que o enclausuramentoautopoiético situa-se no plano puramentenormativo, da organização, onde se desenvolveo processo jurídico, ao passo que a estrutura,que sobre ela historicamente se desenvolve,abre-se para receber os influxos externos, daí areferência à obra de Niklas Luhmann, paraquem o sistema jurídico é normativamentefechado e cognitivamente aberto16.

Ao contexto cede o texto, de modo que,desde que não haja desfiguramento da identi-dade reflexiva da Constituição, permanecendointocados e até mesmo reforçados17 e revi-vificados os limites expressos substantivos, ouseja, aqueles que revelam valores e respectivosprincípios fundantes, a reforma constitucional,agora pensando na Carta brasileira de 1988,pode ser eficientemente realizada estendendoo instituto da revisão do corpo transitório, ondeparece restar inoperante, para o corpo perma-nente da Constituição, combinando-a com oemprego do princípio legitimatório fundante doreferendo, como condição de vigência.

5. Justificação da propostade Emenda Revisional

A Constituição de 1988 distinguiu e adotouos dois tipos de reforma usuais no consti-tucionalismo contemporâneo: a revisão e aemenda, prevendo-lhes processos distintos.Conferiu-se à emenda um sentido casuístico,pontual e extraordinário, mas permanente (art.60), ao passo que à revisão deu um sentidoamplo e obrigatório, não, porém, ordinário epermanente (art. 3º do ADCT).

Observe-se, ainda aqui, uma outra estra-nhável preocupação elitista do constituinte

originário, ao negar o caráter ordinário darevisão, tal como é encontrada nas Cartascontemporâneas analíticas tomadas em tantosoutros casos como modelo, para reduzi-la a umautilização singular e excepcional. Não obstante,imagine-se como compensação, tornou-amandatória, ou seja, não deixou sua realizaçãoao alvedrio do Congresso18.

Por ocasião da efetivação da revisãoprevista, nas circunstâncias políticas sobe-jamente conhecidas, o Congresso Revisordecidiu porém se autolimitar, fixando-se umprazo peremptório para concluir os trabalhos.Com esse expediente, estava criada umasubordinação indevida de um comandosubstantivo de nível constitucional para realizara revisão, a um limite temporal, um comandoformal, de hierarquia regulamentar (internacorporis), o que levou ao prematuro encer-ramento do processo revisor sem que sehouvesse esgotado, pelo menos, a pauta daRelatoria, que já tinha sido, por sua vez,minimizada com o intuito de atender ao referidoprazo.

É, portanto, perfeitamente sustentável quea revisão determinada pelo constituinte originalnão chegou a ser realizada, pelo menos com osentido e abrangência por ele previstos, que nãopoderiam ser considerados atendidos com apromulgação das discretas seis “emendas derevisão” produzidas, quase todas de relativapouca importância diante de um contexto totalde 318 artigos a serem revistos, sendo 245permanentes e 73 transitórios. Afinal, o objetivorevisional só poderia ter sido o de proceder-sea uma ampla reapreciação de todo o texto, comoé do próprio conceito do instituto, e não ter sidoadotado para produzir meia dúzia de emendassingulares, diferenciadas das demais apenaspelo rito.

Posto isso, pode-se retirar duas premissasque ora se submetem como justificação de umaproposta para instituir a revisão como espéciede reforma constitucional em caráter ordinário,permanente e periódico: primeiro, não se tratade um instituto estranho ao direito consti-tucional positivo brasileiro vigente e, segundo,o seu comando original, por não ter sidoesgotada a sua destinação, permanece eficaz,apto para que se reabra a sua execução, nãoobstante prematuramente interrompida.

15 João Carlos Simões Gonçalves Loureiro, empreciosa monografia, O procedimento administrativoentre a eficiência e a garantia dos particulares.Coimbra Ed. 1995, considerando a tese do “consti-tucionalismo adequado”, chama a atenção para o fatode que a ponderação não exclui a motivação, umavez que a descoberta, por aquela produzida, tem dedar lugar à justificação, pois a racionalidade é apedra angular do trabalho jurídico (p. 172).

16 Apud LOUREIRO, op. cit., p.173-174.17 Como é o caso do que adiante se propõe com

relação aos direitos adquiridos, hoje tempestuosa-mente subsumidos no inciso IV, do § 4º, da Consti-tuição.

18 A expressão do art. 3º do ADCT é inequívocaneste sentido: “A revisão constitucional será rea-lizada após cinco anos...” (n/grifo); não existefaculdade de realizá-la ou não; apenas se fixou uminterregno mínimo para concretizá-la.

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Uma emenda constitucional neste sentido,além de resgatar a vontade do constituinteoriginário, lesada em 1994, estaria perfei-tamente harmônica com o entendimento quese vem emprestando aos conceitos de limites,como acima se expôs, tornando perfeitamenteválida e apropriada essa transposição doinstituto para o corpo permanente da Cons-tituição, sempre que respeitadas as condiçõesde oportunidade (art. 60, § 1º) e de conteúdo(art. 60, § 4º) já estabelecidas para o processodas emendas.

Com efeito, inexistirá qualquer limiteimplícito formal oponível se, como tem aceitoa doutrina, se agravarem, em relação aodisposto originalmente, as formalidadesexigidas para a reforma; o que poderá seratendido submetendo-se a revisão, uma vezconcluída, ao referendo popular, que, por suavez, tampouco é um instituto estranho aoordenamento constitucional de 1988, inclu-indo-se, por sinal, na competência exclusivado Congresso Nacional (art. 49, XV), embora,como demonstra recente e bem conduzidoestudo de direito comparado, encontre-se aindamuito acanhado, com amplíssimo espaçojuspolítico para desenvolver-se19.

Restaria a definição do órgão revisor. Aquitampouco levanta-se um limite implícitooponível, principalmente se a escolha recairnuma convocação popular para a eleição deuma Constituinte Nacional Revisora exclusiva.Esse alvitre teria três vantagens indiscutíveis;pela ordem de importância: não paralisaria ostrabalhos da legislatura ordinária, não sepoderia acoimar a classe política de legislar emcausa própria e se estaria reforçando alegitimidade de todo o processo, além depossibilitar, periodicamente, uma utilíssimaconsolidação constitucional.

A revisão se incorporaria ao Texto perma-nente como um tipo ordinário e mais amplo,porém formalmente mais exigente de reforma,

conjugada ao referendo, inaugurando-sedestarte uma nova etapa do desenvolvimentodo direito político no Brasil. Em última análise,o rompimento do impasse político na trans-formação do Estado brasileiro se faria pelorecurso democrático ao detentor do podersoberano, absolutamente na mais elevada linhaprincipiológica sacralizada nos própriosdispositivos fundamentais da Constituição20.

Desse modo, o povo, que não foi consultadonem para a convocação da Assembléia NacionalConstituinte de 1987, esquecido pela EmendaConstitucional nº 26/85, nem para ratificar oproduto de seu trabalho, nem para apreciar osimulacro de revisão que o surpreendeu e ovexou em 1994, teria enfim a oportunidade deser chamado para decidir não apenas por quemquer ser governado, prerrogativa da demo-cracia representativa, mas como quer sergovernado, conquista da democracia parti-cipativa21. Afinal não há razão alguma, aocontrário, sobejam, para que não se devolva aopovo, o soberano nas democracias, neste finalde século e de milênio, o direito de decidir semintermediários sobre o seu futuro.

A comemoração do primeiro decênio daConstituição de 1988 não poderia ser maisapropriada e mais democrática que peladevolução ao povo, em caráter permanente eperiódico, da mais ampla decisão sobre seusdestinos. Como tantas vezes ocorreu na históriados povos, o referendo viria como solução áureapara romper antigos impasses políticos, renovaras relações entre os Poderes do Estado, aomesmo tempo que se estaria queimandoangustiantes etapas formais que ainda nos estãoseparando de uma era de desenvolvimentosustentado que nos inserirá na sociedade global,em intenso processo de integração política,econômica, social, científica, tecnológica,artística e cultural, tudo com a necessária esempre aspirada estabilidade constitucional: apermanência do essencial pela transformaçãodo acidental.

De resto, se a Carta de 1988 se assentousobre premissas que se revelaram falazes,utópicas e ilusórias, possivelmente porque a

19 V.,de ADRIAN SGARBI, O Referendo noBrasil, Itália e Suíça : uma análise comparativa.Cadernos de Direito Constitucional e CiênciaPolítica, v. 4, n. 16, p. 142-158, jul./set. 1996, dosquais se extrai a seguinte conclusão: “2. O referendo,como instrumento de participação ex populo, éimportante fonte de legitimação da esfera política,pois pode desempenhar o papel de colmatar eventualruptura entre representantes e representados, aomesmo tempo que transforma o cidadão, de meroespectador, em sujeito das relações sociaisdecisórias, trazendo-o ao exercício da democracia”.(p. 156).

20 Art. 1º, Parágrafo único. Todo o poder emanado povo, que o exerce por meio de representanteseleitos ou diretamente, nos termos desta Consti-tuição. (n/ grifo).

21 A referência é à conhecida indagação de JeanRivero no estudo À propos des métamorphoses del’administration d’aujourd’hui : démocratie etadministration, em Mélanges offerts à René Savatier.Paris : Dalloz, 1965. p. 827.

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participação popular foi então canalizada porsegmentos militantes e vozes corporativas, cabeagora à sociedade, como um todo, imprimir orealinhamento que deseja para o Estado nospróximos dez anos e assim sucessivamente,porque o ritmo de suas transformações seráprevisivelmente cada vez mais acelerado e apolítica, parafraseando Clemenceau, é dema-siado importante para ser entregue apenas apolíticos.

6. Um texto de emendaoferecido para estudo

A Emenda que se proporia, à guisa deconclusão deste trabalho, consolidando e dandocorpo a suas conclusões, seria substitutiva doatual art. 60, que conforma a subseção intituladaDa Emenda à Constituição, fundindo e tratandonum único e novo artigo, para evitar arenumeração de toda a Carta, os dois tipos dereforma: a revisão e a emenda.

Proposta de emenda“Art. 1º O art. 60 da Constituição

passa a ter a seguinte redação:“Art. 60. A Constituição poderá ser

reformada ordinariamente a cada dezanos de vigência, por revisão, ou,extraordinariamente, a qualquer tempo,por emenda, mediante proposta:22

I – de um terço, no mínimo, dosmembros da Câmara dos Deputados oudo Senado Federal;

II – do Presidente da República;III – de mais da metade das Assem-

bléias Legislativas das unidades daFederação, manifestando-se, cada umadelas, pela maioria relativa de seusmembros23.

§ 1º A Constituição não poderá serreformada na vigência de intervençãofederal, de estado de defesa ou de estadode sítio24.

§ 2º Não será objeto de deliberação aproposta de reforma tendente a abolir:

I – a forma federativa de Estado;II – o voto direto, secreto, universal

e periódico;III – a separação dos Poderes;IV – os direitos e garantias indi -

viduais;

V – os direitos adquiridos25.§ 3º A revisão será processada e

votada por uma Assembléia NacionalRevisora, convocada especialmente paraeste efeito, constituída de representantesdo povo eleitos pelos colégios eleitoraisdos Estados e do Distrito Federal,observada a rigorosa proporção aonúmero de habitantes do País.

§ 4º Os membros da AssembléiaNacional Revisora ficarão impedidos deconcorrer a mandatos eletivos nos dezanos subseqüentes ao encerramento dostrabalhos, salvo para uma nova revisão.

§ 5º O texto revisto e consolidado daConstituição será promulgado pela Mesada Assembléia Nacional Revisora esubmetido a referendo popular comocondição de vigência.

§ 6º Lei complementar disporá sobrea convocação da Assembléia NacionalRevisora, o número e as condições deelegibilidade de seus membros, o desen-volvimento de seus trabalhos e sobre oreferendo popular legitimatório.

§ 7º A proposta de emenda serádiscutida e votada em cada Casa doCongresso Nacional, em dois turnos,considerando-se aprovada se obtiver, emambos, três quintos dos votos dosrespectivos membros26.

§ 8º A emenda à Constituição serápromulgada pelas Mesas da Câmara dosDeputados e do Senado Federal, com orespetivo número de ordem27.

§ 9º A matéria constante de propostade emenda rejeitada ou havida porprejudicada não pode ser objeto de novaproposta na mesma sessão legislativa.28”

Art. 2º A Subseção II, da Seção VIII,do Capítulo I, do Título IV, denominada‘Da Emenda à Constituição’, passa aintitular-se ‘Da Reforma da Cons-tituição’.

Art. 3º Esta Emenda Constitucionalentra em vigor na data de sua publicação.

Brasília,...”

22 A redação do caput distingue e caracteriza asduas modalidades de reforma.

23 O três incisos foram mantidos ipsis litteris.24 Mantida a redação do atual parágrafo primeiro

substituindo-se “emendada” por “reformada”.

25 Mantida a redação do atual parágrafo quarto,substituindo-se “emenda” por “reforma” e acres-centando, para que não pairem dúvidas quanto aoalcance do inciso IV, um quinto inciso específicopara o resguardo dos direitos adquiridos em qualquercaso de reforma.

26 Mantido o atual parágrafo segundo, referidoao instituto da emenda.

27 Mantido o atual parágrafo terceiro.28 Mantido o atual parágrafo quinto.

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Por derradeiro, mas não com menorimportância, a incorporação do instituto darevisão ao corpo permanente do texto cons-titucional traria benéficos efeitos sobre anacionalidade ao ensejar, a cada dez anos, umamplo debate sobre valores, instituiçõespolíticas e rumos programáticos para o País,levando o povo a assumir, cada vez mais, aresponsabilidade de escolher seu futuro,desvencilhando-se da tutela elitista e tantasvezes preconceituosa que sempre se arrogou o

29 Roland Pennock, numa síntese das razõespelas quais advoga a intensificação da participaçãopolítica, refere-se à maior aceitabilidade e, portanto,ao mais fácil e fiel cumprimento das decisões degoverno (Democratical political theory, Princeton :University Press, 1979. p. 261).

direito de impor-lhe a vontade, produzindo-se,regular e periodicamente, um magno eventopolítico capaz de polarizar a vontade nacionalem torno de um projeto nacional de consenso,escolhido e não “outorgado”, aumentando, comisso, as probabilidades de êxito das políticaspúblicas que dele se derivem29.

Afinal, não há porque temer ouvir a voz dopovo, em última análise, destinatário, mastambém origem, tanto da legitimidade quantoda segurança jurídica.

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1. IntroduçãoFreqüentemente, o estudo da posse tem sido

dominado por uma atitude de pessimismo,quase fatalista, iniciando-se por advertências arespeito dos inúmeros obstáculos, aparen-temente insuperáveis, que oferece.

Afirma Ruggiero, por exemplo, ser“o conceito de posse [......] aquele emvolta do qual mais se cansaram, em todosos tempos, as mentalidades dos juristas;não há doutrina que, mais do que esta,apresente dificuldades em todos os seuspontos, a começar nas que respeitam àssuas origens históricas, ao fundamentoracional de sua proteção, à própriaterminologia, e assim por diante, até asua construção teórica, aos elementos quea compõem, ao objeto, aos efeitos, aosmodos como se adquire e se perde”1.

No mesmo tom, inicia Stolfi a sua obra:segundo ele,

“um dos temas mais tormentosos edifíceis da dogmática é sem dúvida aposse, o que deriva substancialmente deduas causas principais. Em primeirolugar, a diversidade dos conceitos quedela tiveram os vários legisladores: a

O fundamento da proteção possessória

CARLOS DAVID S. AARÃO REIS

Carlos David S. Aarão Reis é Juiz Federal(aposentado)

SUMÁRIO

1. Introdução. 2. O problema do fundamentoda proteção possessória. 3. As concepções deSavigny e de Jhering. 4. Apreciação crítica. 5. Aproteção da posse e a Friedenstheorie.

1 RUGGIERO, Roberto de. Instituições deDireito Civil. Tradução Ary dos Santos. São Paulo :Saraiva, 1958. v. 2, p. 597/598: Direitos de família,direitos reais e posse.

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posse do Direito Romano é bem diversadaquela acolhida no Direito Canônico edaquela dos códigos modernos. Emsegundo lugar, seja em razão de taldiversidade, seja porque as fontesromanas são amiúde contraditórias, sejaporque os escritores quiseram fazermetafísica, mais que ocupar-se dainterpretação das normas positivas,produziu-se uma variedade de doutrinas,tão complexas como conspícuas, quecertamente não contribuíram para pôrordem na matéria”2.

Os juristas italianos mencionados escre-veram no século XX, mas esse comportamentojá era corrente no final do século XVIII e iníciosdo século XIX. Por isso, ao começar sua célebremonografia, Savigny lembra que os autores, aose ocuparem da posse, começam geralmente porse queixar das dificuldades extremas apresen-tadas por essa matéria; alguns estão de boa-fée perdem completamente a coragem; namaioria, acrescenta (não sem uma dose deironia), é apenas um elogio antecipado de seutrabalho3.

Certamente, a posse é uma das questõesmais árduas e trabalhosas do Direito Civil. Seriaaté temerário insinuar tratar-se de um assuntotrivial, a ser resolvido com algumas consi-derações ligeiras. Tanto que um escritor alemãoa ela atribuía um caráter quase de adivinhação,um “enigma insolúvel” (unlosbares Rätsel),escrevendo que o problema do animus possi-dendi lhe parecia tão insolúvel como a quadra-tura do círculo4. Mas, por um lado, não existemproblemas científicos fáceis e, por outro, asdificuldades suscitadas pelo tema decorrem, emparte, da inclusão no seu estudo de noçõesestranhas ao Direito Civil propriamente dito.

Basta lembrar que a análise da proteçãopossessória judicial, a discussão sobre as açõesou interditos possessórios e seu procedimento,situa-se mais no âmbito do Direito Processual5.

Sobretudo, as teorias mais conhecidas sobreposse, as de Savigny e de Jhering, prova-velmente as concepções mais difundidas entretodas de Direito Civil, foram elaboradas comfundamento no Direito Romano. Ambos oscivilistas escreveram no século XIX e, à época,o Direito Romano era Direito Comum naAlemanha, em virtude da Recepção ocorridanos séculos XV e XVI6.

Mencione-se, ainda, que a disciplina daposse nos códigos civis atuais resulta de umalonga evolução histórica. Aos elementos deDireito Romano, juntaram-se os de DireitoCanônico e de Direito Germânico, no qual aGewere era conceito correspondente à possessioromana, mas não exatamente igual, com traçospeculiares. O Direito da Posse atual, escreveHeinrich Mitteis, continua sendo uma misturade idéias jurídicas romanas e alemãs, na qualpreponderam as últimas7.

2 STOLFI, Nicola. Il possesso e la proprietà.Torino : Unione Tipografico-Editrice Torinese, 1926.p. 1-4.

3 SAVIGNY, Frédéric Charles de. Traité de lapossession en droit romain . Traduit par HenriStaedtler sur la 7. ed. originale. 3. ed. rev. et corr.Bruxelles : Bruylant-Christophe, 1879. p. 1-2.

4 MEISCHEIDER apud FINZI, Enrico. IlPossesso dei Diritti. Ristampa della prima edizione.Milano : Giuffrè, 1968. p. 23 e nota 8.

5 O Código Civil continha disposições proces-suais a respeito dos interditos possessórios, mas issose explica pela situação constitucional da época. A

Constituição de 1891, vigente na ocasião da entradaem vigor do Código, atribuía às unidades daFederação o poder de legislar sobre matériaprocessual (art. 34, 23º). Dada a necessidade demanter alguma uniformidade na disciplina daproteção judicial possessória, algumas regras a elarelativas constavam da legislação civil, federal.

6 O Direito Romano vigia na Alemanha comoDireito subsidiário (v. WINDSCHEID, Bernhard.Lehrbuch des Pandektenrechts. 9. Afl. untervergleichender Darstellung des deutschenbürgerlichen Rechts bearbeitet von Theodor Kipp.2. Neudruck der Ausgabe Frankfurt am Main 1906.Aalen : Scientia, 1984. v. 1, p. 5, § 2º), constituindoa base comum da ciência jurídica alemã. Sobre aRecepção, v. BELOW, Georg von. Die Ursachen derRezeption des römischen Rechts in Deutschland.Neudruck der Ausgabe München 1905. Aalen :Scientia, 1964; KOSCHAKER, Paul. Europa y elDerecho Romano. Traducción Jose Santa CruzTeijeiro. Madrid : Rev. de Derecho Privado, 1955. p.217 e seg.; DAHM, Georg. Zur Rezeption des römisch-italienischen Rechts. Darmstadt : WissenschaftlicheBuchgesellschaft, 1960 e WIEACKER, Franz.História do Direito Privado moderno. TraduçãoA.M. Botelho Hespanha. Lisboa : Gulbekian, 1980.p. 97 e seg.

7 MITTEIS, Heinrich, LIEBERICH, Heinz.Deutsches Privatrecht : ein Studienbuch. Neubear-beitet von Heinz Lieberich. 5. durchgesehene undergänzte Afl. München : C.H. Beck, 1968. p. 76,cap. 26. Ao se referir a idéias jurídicas alemãs, quero autor mencionar as do Direito Germânico, não doDireito Positivo alemão. No mesmo sentido,FUNAIOLI, Carlo Alberto. La Tradizione. Padova :CEDAM, 1942. p. 117: “Norme di origine romana econquiste della pratica intermedia, di fronte ai nuovibisogni, e influssi germanici e canonistici sisobrappongo nel possesso moderno”. Sobre aGewere , a cujo respeito existe uma imensa

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Apesar dos obstáculos ou mesmo por suacausa, a posse tornou-se um dos conceitos maisdissecados do Direito Civil. Mesmo assim, seuexame sempre pode oferecer aspectos novos,desenvolvendo-se as noções já investigadas. Talcomo os estudos históricos, aos quais se referiaSavigny, questões científicas, dignas destenome, não se deixam esgotar nem resolver deuma maneira definitiva, até o ponto em quenão seja possível nenhum progresso, nem emmil anos8.

2. O problema do fundamento daproteção possessória

A posse sobre uma coisa é juridicamenteprotegida com abstração de seu fundamento,independentemente de qualquer relação jurídicaou direito subjetivo. Ao se defender a posse,não se indaga do título do possuidor, da razãode ser de sua posição, ela é protegida em simesma e por si mesma.

“Este estado de fato pode ou nãocorresponder a um direito da pessoa queexerce o poder sobre a coisa; é tomadoem consideração só por si e, sob deter-minadas condições, é por um ladotutelado pelo ordenamento jurídico eproduz, por outro lado, efeitos vários[......] a relação em que o homem estácom as coisas do mundo externo desti-nadas a satisfazer suas necessidades podeconceber-se por dois modos substan-cialmente diversos: a) como uma relaçãode poder geral ou particular, juridi-camente regulamentado [......] b) oucomo uma relação meramente de fato,na qual o homem se aproveita, no todoou em parte, da coisa posta sob seu poder,e que é protegido em si e por si, indepen-

dentemente da legitimidade objetivadaquele poder [......]”,

nas palavras de Ruggiero9.Dito de outra maneira, a proteção posses-

sória é conferida indistintamente a qualquerpossuidor, sendo irrelevante sua qualificaçãojurídica; protege-se o proprietário e o ladrão, olocatário e o usurpador.

Tais afirmativas merecem reflexão porque,aparentemente, uma está em contradição coma outra. Como proteger, simultaneamente, otitular de um direito e seu violador? Naindagação de Jhering,

“[......] como o Direito, que condena oroubo e o furto, pode reconhecer eproteger seus frutos na pessoa de seusautores? Não significará isso promovere aprovar de um lado o que repele epersegue do outro?”10.

Não parecerá que a mão direita não sabe oque faz a mão esquerda?11 Objeto das mais vivascontrovérsias, tema considerado por vezesfilosófico e não jurídico, no particular Jheringestava certo, ao afirmar não ser

“o interesse da questão de modo nenhummeramente jurídico-filosófico ou deíndole legislativo-política, como poder-se-ia estar inclinado a acreditar àprimeira vista. (Ela tem) uma importânciadogmática considerável e, espero demons-trar adiante, que não apenas a corretacompreensão da teoria romana da possedepende inteiramente da resposta certa àquestão, mas também que ela mesmaconduz a resultados práticos”12.

Com efeito, mesmo abstraindo-se estaconseqüência, sem o entendimento da razão de

bibliografia, v. entre outros, o escritor alemão citado,PLANITZ, Hans. Principios de Derecho PrivadoGermanico = Grundzüge des Deutschen Priva-trechts. Traducción Carlos Melon Infante. Barcelona: Bosch, 1957. p. 154-161 e 180-181; AMIRA, Karlvon , ECKHARDT, Karl August. GermanischesRecht. 4. Afl. ergänzt von Karl August Eckhardt.Berlin : Walter De Gruyter, 1967. v. 2, p. 105, § 40e HÜBNER, Rudolf. Grundzüge des DeutschenPrivatrechts. 3. duchgesehene Afl. Leipzig : A.Deichert, 1919. p. 162-181, §§ 28 e 29, p. 351-353,§ 57. V. Também ALVES, J.C. Moreira. Posse :introdução histórica. Rio de Janeiro : Forense, 1985.p. 74 e seguintes.

8 SAVIGNY, Friedrich Carl von. Vom Berufunsrer Zeit für Gesetzgebung und Rechtswissens-chaft. 3. Afl. Heidelberg : Mohr, 1840, p. 122.

9 RUGGIERO, op. cit., v. 2, p. 598-599.10 JHERING, Rudolf. Jahrbücher für die

Dogmatik des heutigen römischen und deutschenPrivatrechts. Jena : Mauke, 1868. v. 9, p. 3: Beiträgezur Lehre vom Besitz. No mesmo ano, saiu emseparata, sem alteração de título e, no ano seguinte,sob o de Über den Grund des Besitzschutzes (Sobreo fundamento da proteção possessória), aumentadae com algumas modificações. Há uma traduçãofrancesa, nos Études complémentaires de L’espritdu Droit Romain – fondement des interditspossessoires. Traduit O. de Meulenaere. 2. ed. Paris.A. Maresq ed. MDCCCLXXXII (v. CÂMARA, JoséGomes Bezerra. Estudos Jurídicos e de História.Rio de Janeiro : Barrister’s, 1987. p. 155, onde secontém estudo sobre Rudolph von Jhering (p. 149-163).

11 “Mas, quando dás esmola, não saiba a tuaesquerda o que faz a tua direita”, Evangelho segundoSão Mateus, VI, 3.

12 JHERING, op. cit., p. 3-4.

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ser da proteção possessória, ela surge apenascomo produto do capricho individual, doarbítrio de um legislador ou do humor subjetivo.

O autor da conferência vienense Der Kampfum’s Recht agrupa as teorias, que procuramexplicar o motivo da proteção possessória, emduas classes, em relativas e absolutas. Asprimeiras encontram-no em noções estranhasà posse, as segundas no próprio instituto.Aquelas “procuram o fundamento da proteçãofora da posse, mesmo em instituições, princí-pios jurídicos, considerações de natureza geral,que a ela não somente servem, mas não lhe sãoparticulares”. Estas “vêem o fundamento daproteção possessória na própria posse. A possetem que ser protegida em virtude dela própria”13.

Entre as teorias relativas estão as de Savignye de Rudorff; entre as absolutas a do próprioJhering e somente estas serão examinadas nestetrabalho, dada a sua importância, pela suarepercussão. Pois muito embora tenham sidoformuladas a partir do Direito Romano,

“perderam seu caráter regional e histó-rico para universalizar-se, servindo defundamento à codificação moderna esuscitando adesões ou repulsas no terrenoda pura doutrina”,

importando menos o seu estudo à luz da fide-lidade ou erro diante daquele Direito14.

3. As concepções de Savigny e de JheringSavigny fundamenta a proteção da posse na

interdição da violência contra a pessoa, nadefesa da personalidade. Para ele, a posseconsiderada em si mesma é apenas um fato,mas fato produtor de conseqüências jurídicas,o jus possessionis. Assim ela seria ao mesmotempo fato e direito: em si mesma, um fato;pelos seus efeitos, assemelha-se a um direito15.Portanto,

“não constituindo em si mesma umdireito, a sua turbação não é, a rigor, aviolação de um direito; só poderia sê-loquando se violasse, ao mesmo tempo, aposse e um direito qualquer. Ora, é istoque acontece quando a turbação é resul-tado da violência: toda violência, comefeito, é contrária ao Direito, e é contraesta ilegalidade que se dirige o interdito”16.

Posteriormente, acrescentou algumas obser-vações sobre o assunto.

“Este motivo se encontra na relaçãoexistente entre o fato mesmo da posse ea pessoa que possui; a inviolabilidadedesta protege a posse contra qualquerturbação que tenha como efeito atingir,ao mesmo tempo, a pessoa. É a pessoacomo tal que deve estar ao abrigo detoda a violência, pois que em face delaa violência é sempre contrária aoDireito”17.

Na aparência, neste ponto específico,Savigny teria sido influenciado pelo perso-nalismo ético kantiano. Entretanto, no estadoatual das investigações, seria impossível afir-má-lo definitivamente18.

Já Jhering, mais prolixo, dada a conexãodesse tema com sua idéia da posse em si mesma,utiliza imagens militares para explicar aproteção possessória como se fosse umaprimeira linha de defesa da propriedade, umaespécie de sua posição avançada, uma trincheirana vanguarda, no perímetro externo de umcampo fortificado.

“A proteção da posse como exterio-rização da propriedade é o complementonecessário da proteção da propriedadedestinada a facilitar a prova (em favor) doproprietário, mas que necessariamentetambém serve ao não proprietário”19.

Ainda mais enfático, afirma que“a proteção da propriedade postula aproteção possessória, esta é o comple-mento indispensável do sistema romanode propriedade”20.

13 Ibidem, p. 4.14 NOVILLO CORVALAN. In: SALVAT,

Raymundo M. Tratado de Derecho Civil Argentino –derechos reales. 4. ed. actualizada por SofanorNovillo Corvalan. Buenos Aires : Tipografica Ed.Argentina, 1951. v. 1, p. 347, n. 404 a.

15 SAVIGNY, op. cit., p. 21, § 5.16 Ibidem, p. 6-7, § 2.

17 Ibidem, p. 33, acréscimo ao § 6.18 Landsberg pronuncia-se contra tal influência

em toda a teoria possessória de Savigny, lembrandomesmo a antipatia deste relativamente a Kant(LANDSBERG, Ernst. Geschichte der deutschenRechtswissenschaft. München und Berlin : R.Oldenbourg, 1910. 3. Abteilung, 2. Halbband, p. 96,nota 16: v. também para esta atitude do jovemSavigny, ZWILGMEYER, Franz. Die RechtslehreSavignys. Leipzig : Theodor Weicher, 1929. p. 40-41. Solari, que encontra traços kantianos em outrospontos do Recht des Besitzes, neste tema escreveque a justificação da proteção possessória mediantea defesa da personalidade era perfeitamente lógicanos jusnaturalistas e em Kant, mas mal se compre-ende em Savigny, para o qual ela tem valor de fato(SOLARI, Gioele. Storicismo e Diritto Privato. Torino: Giappichelli, 1971 (ristampa), p. 76-78.

19 JHERING, op. cit., p. 44. O autor não empregaa expressão “posição avançada”, encontrada natradução francesa (p. 42 desta).

20 Ibidem, p. 46.

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Pode-se designar a posse como uma“posição da propriedade”, como um fortim oubaluarte da propriedade. Não por causa delaprópria, mas sim por causa da propriedade. Naposse, defende-se o proprietário contra asprimeiras tentativas de ataque ao seu direito,nesse terreno não se trava uma batalha decisivasobre a propriedade, mas uma mera escara-muça, um combate em postos avançados, noqual, se posso prosseguir na comparação, nãose precisa de artilharia pesada, mas sim dearmas leves – contra ladrões e roubadores,ninguém se defende com canhões!21 Ainda comimagem tirada dos assuntos da guerra, escreveJhering: “A ação possessória mostra-nos apropriedade na defensiva, a ação petitória, apropriedade na ofensiva”22.

Dessa maneira, a proteção possessória podese voltar contra o proprietário, a quem buscabeneficiar, mas Jhering aceita e explica talefeito.

“Portanto, por causa da propriedadefoi introduzida a proteção possessória.Mas não se pode dispensá-la ao proprie-tário sem que, ao mesmo tempo, o nãoproprietário dela participe. Pois, redu-zindo-se a prova verdadeiramentenecessária da propriedade à demons-tração de sua mera exteriorização, estafacilitação probatória serve aquele quepode demonstrar este pressuposto na suapessoa. Com isso, a posse adquireautonomia e independência perante a

propriedade, que tornam possível, em vezde servir exclusivamente a esta, tambéminversamente volver-se contra ela. Estemesmo serviço, que a posse presta aoproprietário possuidor, protegê-lo demodo mais fácil contra o não possuidor,manifesta-se também (em favor) do nãoproprietário possuidor contra o proprie-tário não possuidor [......] Para osdefensores desta opinião, esta relação éa finalidade da posse, para mim umaconseqüência inevitável dela, o preço quea lei tem que pagar para proporcionarao proprietário a mencionada proteçãofacilitada da propriedade”23.

Enfim, trata-se de conseqüência involuntária,não desejada pelo legislador, embora inevi-tável24. Os efeitos desse gênero nos institutosjurídicos, os quais ultrapassam a finalidade,para a qual foram legalmente calculados,podem ser qualificados [......] como efeitosinconvenientes que o legislador tem quesuportar (como) a chuva, que (cai) sobreinjustos e em parte sobre justos25.

Como observa Windscheid, a teoria deJhering, mais que apresentar um novo funda-mento para a proteção da posse, deu-lhe apenasuma outra expressão26. Persiste nela a antigatendência de basear a proteção possessória emoutro direito subjetivo – o de propriedade –,apresentando semelhanças marcantes com aidéia dos glosadores da posse como imagodominii27 ou como presunção da propriedade,corrente entre escritores franceses anteriores eposteriores ao Código Napoleão. Para Domat,por exemplo, da ligação natural entre a posse ea propriedade resulta a presunção de que opossuidor é proprietário28. Zachariae e Crome,embora alemães, invocam Pothier e, com apoiono art. 2230 daquele Código29, sustentam que

21 Ibidem, p. 52. A publicação destas “Contri-buições” ocorreu em 1868, quatro anos depois dalibertação do Schleswig-Holstein (pela qual Jhering,nascido na Frísia oriental, se interessara intensa-mente, sacrificando por ela energia de trabalho ebens, WOLF, Erik. Grosse Rechtsdenker derDeutschen Geistesgeschichte. 3. neubearbeitete Afl.Tübingen : Mohr, 1951. p. 640), dois anos após aGuerra Austro-Prussiana e outros dois antes daGuerra Franco-Prussiana, culminando com aunificação alemã. Talvez o ambiente da épocafavorecesse esta espécie de comparação marcial.

22 JHERING, Rudolf von. Jherings Jahrbücherfür die Dogmatik des heutigen römischen unddeutschen Privatrechts. Jena : Gustav Fischer, 1893.B. 32: Der Besitz. (Neue Folge, XX B.), p. 59.Trata-se de verbete anteriormente escrito para oHandwörterbuch de Edgar Loening e reproduzidonos Jahrbücher, traduzido para o português com otítulo modificado de Teoria Simplificada da Posse,v. CÂMARA, José Gomes B., op. cit., p. 162. Apartir de agora, as obras de Jhering serão citadasentre parênteses, após o nome do autor, a primeiraabreviada Beiträge, a segunda, Besitz.

23 JHERING, op. cit., (Beiträge), p. 52-53.24 JHERING, op. cit., (Besitz), p. 62.25 Ibidem, p. 61. Embora a ele não se refira,

Jhering menciona neste trecho um versículo bíblico:“Deste modo sereis filhos do vosso Pai que está noscéus, o qual faz nascer o sol sobre maus e bons, emanda a chuva sobre justos e injustos” (Evangelhosegundo São Mateus, versículo 45).

26 WINDSCHEID, op. cit., v. 1, p. 744, nota6, § 148.

27 FUNAIOLI, op. cit., p. 125, nota 3.28 Apud ALVES, J.C. Moreira, op. cit., v. 1, p.

250, n. 39.29 “On est toujours présumé posséder pour soi,

et à titre de propriétaire, s’il n’est prouvé qu’on acommencé à posséder pour un autre”.

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a tutela possessória se funda sobre umapresunção de fato, sobre a probabilidade dodomínio ou do direito possuído30, frisando jáaparecer tal teoria entre os glosadores, tendosido reproduzida por Jhering31.

“O que a lei protege e garante é bemmenos a própria posse do que o direitoprovável de propriedade ou de servidão,do qual aquela faz supor a existência”,

escrevem Aubry e Rau32. O fato de possuir,assinala Folleville, sendo ordinariamenteatributo e manifestação do direito de proprie-dade, estabelece sempre uma presunçãofortíssima em favor da existência e dalegitimidade do direito daquele que possui33.

Mais recentemente, Finzi assinalou nãoserem originais os conceitos em Jhering, poisquando ele escreveu, a noção de aparência dedireito, de Gewere, estava sendo elaborada hámuito pelos germanistas e mesmo outrosescritores, como Windscheid, Goldschmidt eBekker empregavam expressões similares.

“Ser a posse a defesa avançada dapropriedade, uma defesa autônoma dapropriedade aparente, se entrelaçanecessariamente com os antecedentesgermânicos e sobretudo com a teoria deAlbrecht”34.

Considerando o teimoso modo de pensar domestre de Göttingen, que dificultava a aceitaçãode pensamentos alheios35, não é improváveltenha ele, ao menos inconscientemente, adotadoidéias já em voga no seu tempo.

4. Apreciação críticaA concepção de Savigny não pode ser aceita

porque genérica demais, excessivamente ampla.Afinal a própria existência da ordem jurídicafundamenta-se na necessidade de controlesocial independente do arbítrio subjetivo decada um. Impede-se, assim, a prática daviolência contra qualquer pessoa, mesmo quemediante a privação da posse de uma coisa.Dito de outra maneira, a teoria savignianaserviria como explicação do fundamento damaior parte dos institutos jurídicos. Se contémalguma verdade, permaneceu incompleta, delanão foram tiradas todas as conseqüências.

“Prescindindo do direito romano econsiderando a concepção de Savigny empura teoria, vê-se que, se não alcançoutoda a verdade, foi porque se detevedemasiadamente na arbitrariedade einjustiça à pessoa, e não na perturbaçãoda ordem social, motivo mais imperiosoda instituição dos interditos”36.

Só posteriormente, com Rudorff, ter-se-iao indispensável complemento da concepção.

Dado o utilitarismo de Jhering, a suapreferência por questões de importânciaprática37, a sua teoria pode ser explicada dessaperspectiva (aliás, ele próprio declara expres-samente não cuidar do fundamento jurídico-filosófico da proteção possessória, mas sim domotivo da proteção da posse no DireitoRomano)38. Certamente, ela tem o mérito deressaltar a utilidade prática da proteçãopossessória para a defesa da propriedade (comosua concepção de direito subjetivo teve o valorde sublinhar o conteúdo do direito, o interesseprotegido). De fato, na maioria das vezes, o

30 LINGENTHAL, Zachariae , CROME, Carlo.Manuale del Diritto Civile Francese di Zachariaevon Lingenthal rimaneggiato da Carlo Crome.Traduzione con note del Prof. Ludovico Barassi.Milano : Società Editrice Libraria, 1907. v. 1, p.425, § 157.

31 LINGENTHAL , CROME, op. cit., p. 425,nota 2.

32 AUBRY e RAU. Cours de Droit CivilFrançais. 5. ed. Paris : Imprimerie et LibrairieGénérale de Jurisprudence, 1897. v. 2, p. 108, § 177.

33 FOLLEVILLE, Daniel de. Traité de laPossession des Meubles et des Titres au Porteur. 2.ed. avec la collaboration de Jules Lonfier. Paris : A.Marescq, 1875. p. 2. Nas 3ª, 4ª e 5ª edições do Rechtdes Besitzes, Savigny chegou a admitir estapresunção, mas declara tê-la abandonado. Emaditamento à 7. ed. escrevia: “Cette présomptionn’est pas précisément erronnée en elle-même,puisque certes la majeure partie des possesseurs onteffectivement le droit pour eux” (SAVIGNY, op. cit.,p. 34, nota 1).

34 FINZI, Enrico, op. cit., p. 138-140 e 167.Windscheid referia-se à posse como tatsächlicheAbbild des Eigentums (“imagem de fato depropriedade”), op. cit., v. 1, p. 749, nota 5, § 149.Nesta edição o pandectista cita Scheurl (a posse é a“forma visível”, sichtbar Gestalt, da propriedade),mas não na 3. ed. de 1873 (v. WINDSCHEID,

Bernhard. Lehrbuch des Pandektenrechts. 3. Afl. 2.Abdruck. Düsseldorf : Julius Buddeus, 1873. v. 1,p. 408, nota 1, § 149).

35 WOLF, Erik, op. cit., p. 626.36 NOVILLO-CORVALAN, op. cit., p. 350.37 Em carta datada de 5 de abril de 1844, ele

escrevia: “Acolhi apenas dissertações que tem uminteresse prático”, apud WOLF, Erik, op. cit., p. 616,nota 17.

38 Na obra Scherz und Ernst in der Jurisprudenz,p. 323, como lembra WINDSCHEID, op. cit., v. 1,p. 743, § 148, nota 6.

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possuidor também é o proprietário, utilizando-se da proteção da posse – e não da específicada propriedade – por razões de conveniência.Mas, atualmente, a razão apontada por Jhering,facilitar a prova da propriedade, perdeu grandeparte de sua substância. Em matéria imobiliária,aquela prova não constitui mais uma probatiodiabolica com a existência do Registro deImóveis. Praticamente, escreve Hedemann comcerto exagero, mas também com alguma dosede verdade, a proteção possessória, especial-mente por via da ação, raramente tem umaimportância considerável: na grande maioriados casos, o possuidor é, ao mesmo tempo,proprietário e então lhe cabem paralelamenteos meios de defesa da propriedade, muito maisfortes que os da posse39. Mesmo em se cuidandode móveis, com a multiplicação dos registrosda propriedade mobiliária de bens dotados demaior valor econômico (navios, aeronaves), aprova tornou-se mais fácil para o proprietário.Portanto, a proteção possessória continuaservindo ao proprietário, mas com menorintensidade, nos casos de dificuldade de provada propriedade (o próprio Jhering sublinhavaa sua importância para a propriedade móvel)40

ou pela eficiência maior dos meios de defesada posse.

No entanto, se a concepção de Jhering estácorreta, é apenas do ponto de vista prático.Apontar uma finalidade prática de um institutojurídico ainda não é revelar o seu própriofundamento. Nada impede que o legislador,organizando melhor a proteção da propriedade,atribua maior eficiência aos meios de defesada propriedade. Mesmo assim, ainda queatendido esse aspecto prático, restará questãodo fundamento da proteção possessória. Mesmona hipótese de ser dotada a propriedade demeios mais eficientes de defesa, ainda assimpersistirá o problema da proteção possessória,que necessita de um fundamento ético-social enão meramente utilitário. Porque de qualquermodo é preciso proteger a situação fática,independentemente de qualquer direito

subjetivo para impedir a vingança privada,evitar as vias de fato, assegurando a paz social.

5. A proteção da possee a Friedenstheorie

Segundo Rudorff, o fundamento da proteçãopossessória não está na própria posse, mas simem outro fator. Conforme o aluno e colaboradorde Savigny, tal proteção foi uma das primeirastentativas feitas para impedir que se fizessejustiça pelas próprias mãos, ne cives ad armasveniant. Sua razão de ser consiste em evitarperturbações da ordem e da paz públicas. Comoé preciso impedir que essa perturbação alcanceseu objetivo, há necessidade de manter ou derestabelecer a posse41. A turbação da posse éum atentado contra a ordem jurídica42.

Posteriormente, a concepção de Rudorff foiretomada por outros civilistas alemães, com adenominada Friedenstheorie, teoria da paz. Ofundamento da proteção possessória, emprimeiro lugar, consiste no interesse dageneralidade das pessoas e do Estado naconservação da paz jurídica.

“O fundamento da proteção posses-sória encontra-se no interesse da socie-dade em que os estados de fato existentesnão sejam destruídos com o uso daprópria força, mas sim segundo as viaslegais, se contrariarem o Direito. Aproteção da posse é proteção da paz geral,reação contra a realização do própriodireito pelo lesado, não tolerada peloconvívio ordenado. Não se pode alcançaro Direito pelo torto”,

escreve Martin Wolff43.Contra a Friedenstheorie, alegou-se que ela

relegaria a posse ao campo do Direito Penal; aviolação dos direitos do Estado acarretaria umapena e não a restituição da coisa ao estadoanterior, observa Stolfi44. Embora admitindo aexistência de interesses públicos em evitarperturbações da posse, Heck vê seus efeitos nasnormas de Direito Público, de Direito Penal oude Direito Administrativo. Na proteção deDireito Privado da posse, os interesses dageneralidade das pessoas não participam tãointensamente como na proteção da propriedade.

39 HEDEMANN, J.W. Derechos Reales. Tra-ducción José Luis Diez Pastor e Manuel GonzalezEnriquez. Madrid : Rev. de Derecho Privado, 1955.p. 66.

40 JHERING, op. cit. (Besitz), p. 59: “[......] exigirtambém a prova da propriedade, na defensiva,significaria que todo aquele, que não está emsituação de apresentar prova daquela – acreditopoder dizer, em muitos casos, a maioria [em setratando] de coisas móveis – está fora da lei, qualquerum pode privá-lo de sua propriedade”.

41 Apud SAVIGNY, op. cit., p. 40, § 6.42 Apud JHERING, op. cit. (Beiträge), p. 5.43 WOLFF, Martin. Lehrbuch des Bürgerlichen

Rechts. 12/14 Afl. 4. Bearbeitung. Marburg : Elwert,1921. 2. B., 1 Abt. (Sachenrecht), p. 41-42, § 17.

44 STOLFI, op. cit., p. 34, n. 40.

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“O interesse imediatamente protegido é ointeresse privado do possuidor em conservar acoisa na sua própria esfera de interesses”45.

Ao se afirmar ser a proteção possessóriaindispensável à manutenção da ordem pública,da “paz jurídica”, não se conclui correspondera esse interesse um “direito” do Estado em punireventuais violações da posse. Trata-se deapontar o motivo legislativo daquela proteção,não de indicar o interesse juridicamenteprotegido. Por outro lado, se o interesse dopossuidor é manter a coisa na sua esfera, comoescreve Heck, tal interesse só pode ser satisfeitona medida da conservação da tranqüilidadepública. Se a paz social não for assegurada,desaparece a possibilidade de atender aointeresse do possuidor, ambos os interessesestão intimamente relacionados.

Entre interesses públicos e privados não háoposição irredutível, antes coordenação entreambos, pois não é possível opor uns contra osoutros, de um lado os da comunidade, de outro,os dos indivíduos46. Interesse coletivo oupúblico, lembra Alf Ross, designa umaconstelação de interesses individuais, experi-mentados sob certos pressupostos emotivos.Atribuir um interesse a um todo supra-individual é expressão metafórica, que indicaa experiência individual de uma comunhão deinteresses. Esses são “largamente conexos e seresolvem em uma cooperação que, por sua vez,aumenta a recíproca dependência”. Interessesindividuais e “sociais” são dois aspectos domesmo fenômeno, o particular e o geral47. Porexemplo, a proteção da propriedade peloordenamento jurídico visa também o interessecomum

“porque o gozo exclusivo dos bensmateriais por parte dos indivíduos é damáxima importância para o progresso dacivilização e assim para toda a comu-nidade e a propriedade tem por finalidadetornar possível e assegurar tal gozo”48.

O interesse pela propriedade é individual,mas o interesse do indivíduo (e de todos os

outros) a um ordenamento da propriedade é uminteresse social. “Qualquer tentativa de comporum catálogo de interesses ‘individuais’ e‘sociais’ em conflito e independentes édestinado ao insucesso [......] Se por exemplo,catalogamos entre os ‘interesses individuais’ ointeresse de A pela posse de objetos materiais,pela liberdade pessoal, pelo matrimônio e pelafamília, pela liberdade de contratar, a estescorrespondem os interesses sociais a umordenamento geral da propriedade, a umordenamento geral da paz, a um ordenamentogeral do matrimônio e da vida familiar, a umordenamento geral da liberdade contratual”49.

Compreendida a expressão “interessepúblico” desta maneira, não de um modo vagoe nebuloso, segue-se que, sem impedirperturbações da ordem e da paz pública, ointeresse particular do possuidor estaria privadode qualquer defesa, com exceção da sua própria.

Ora, na frase famosa de Max Weber, oEstado contemporâneo reivindica o monopóliodo uso legítimo da violência física.

“O Estado moderno é um agrupa-mento de dominação que apresentacaráter institucional e que procurou (comêxito) monopolizar, nos limites de umterritório, a violência física legítimacomo instrumento de domínio e que,tendo esse objetivo, reuniu nas mãosdos dirigentes os meios materiais degestão”50.

O exercício da coação cabe apenas aosindivíduos que exercem as funções de órgãos

45 HECK, Philipp. Grundriss des Sachenrechts.2. Neudruck der Ausgabe Tübingen 1930. Aalen :Scientia, 1970. p. 12-13, § 3, n. 6.

46 THON, August. Norma Giuridica e DirittoSoggettivo. Traduzione Alessandro Levy. 2. ed.Padova : CEDAM, 1951. p. 115, cap. 3.

47 ROSS, Alf. Diritto e Giustizia. TraduzioneGiacomo Gavazzi. 3. ed. Torino : Einaudi, 1965. p.342 e 344, § 84.

48 THON, August, op. cit., p. 115.

49 ROSS, op. cit., p. 344, § 84. O autordinamarquês faz uma distinção entre interessesindividuais e coletivos e interesses privados epúblicos. Estes últimos seriam interesses sociaisgerais (Ibidem, p. 345). Embora as citações do textodigam respeito aos interesses individuais e coletivos,são cabíveis para a distinção entre interessesprivados e públicos.

50 WEBER, Max. Ciência e política : duasvocações. Tradução L. Hegenberg e O.S. da Mota.São Paulo : Cultrix, 1970. p. 56: A política comovocação. (“Em nossa época, entretanto, devemosconceber o Estado contemporâneo como umacomunidade humana que, dentro dos limites dedeterminado território [......] reivindica o monopóliodo uso legítimo da violência física. É, com efeito,próprio de nossa época o não reconhecer, em relaçãoa qualquer outro grupo ou a indivíduos, o direito defazer uso da violência, a não ser nos casos em que oEstado o tolere: o Estado se transforma, portanto,na única fonte do “direito” à “violência”, (grifos dooriginal) e p. 62.

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do Estado (e dentro das limitações traçadas pelaordem jurídica e com os meios nela prescritos).A violência, em princípio, é vedada aoparticular; se, apesar da proibição, praticá-la,será violência antijurídica, ilícita.

“O Estado é o único autorizado aexercer o poder social de coação, seuúnico detentor – o direito de coagir émonopólio absoluto do Estado [......]Somente o Estado possui o monopólioda coação”,

são as igualmente célebres palavras deJhering51.

Para que a vida social não degenere emanarquia, para que não se abra a porta ao caos,só os órgãos estatais podem, licitamente,empregar a força. Caso contrário, o indivíduoforte, mas não titular de direitos, poderia delesprivar o indivíduo fraco, seu legítimo titular.Mais ainda: este não poderia obter qualquerreparação de uma lesão ao seu direito, cometidapor aquele. Se isso ocorresse, desapareceriaqualquer convivência social organizada,resumindo-se ela a meras relações de forçabruta. Ninguém pode fazer justiça pelaspróprias mãos: na sociedade atual, há orga-nismos próprios para defender e proteger odireito de cada um. Fosse possível despojaro possuidor, alegando um direito qualquer,fosse admissível esta alteração unilateral eviolenta do estado de fato, voltar-se-ia à erada vingança privada, estágio que o Direitoultrapassou, monopolizando para o Estadoo uso da força, no interesse de cada um e detodos os cidadãos.

A ordem da vida em comum exige aexclusão tanto da auto-ajuda como do uso daprópria força, são palavras de Rudolf Sohm: aproibição do uso da própria força, que apretensão possessória produz, completa-se coma vedação da auto-ajuda. Ela nasce de umprincípio fundamental de nosso Direito Público:o exercício da coação (exercício da violência),em princípio, é subtraído a uma pessoa privadae reservado ao Estado. Liberdade, no sentidoda época moderna, ele insiste, é ser livre dequalquer poder privado de coação, que não sejao poder familiar. Ser súdito do Estado éexpressão da liberdade; o poder de coação deuma pessoa privada é redução da liberdade. Porcausa da liberdade proíbe-se a auto-ajuda e por

causa da liberdade existe a pretensão posses-sória52.

Talvez, em uma situação de normalidade,essas considerações seriam antes acadêmicas,com interesse primordialmente intelectual.Mas, diante da decadência da norma jurídica –o instrumento mais seguro e calculável dedisciplina da vida social –, mais exatamente,do pouco caso e até desprezo manifestados porela (inclusive por alguns dos seus guardiães),do “crepúsculo da autoridade”53, ao qualcorresponde a aurora da desordem, de umprogressivo enfraquecimento da autoridade doEstado, com a erosão dos “diques de proteçãocontra a guerra civil”54, da ameaça latente decives ad arma veniant para solução de seusconflitos de interesses, elas se revestem deatualidade.

Bibliografia

(com exceção das obras citadasexclusivamente nas notas de rodapé)

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52 SOHM, Rudolf. Bürgerliches Recht. In:STAMMLER, R. et alii Systematische Rechtswis-senschaft. 2. Afl. (Die Kultur der Gegenwart, TeilII, Abteilung VIII, hsg. v. Paul Hinneberg), Leipzig ;Berlin : B.G. Teubner, 1913. p. 98.

53 Feliz expressão do escritor americanoNISBET, Robert A. O crepúsculo da autoridade.Diálogo, v. 3, n. 2, p. 59-64.

54 Como escreve FORSTHOFF, Ernst. Stato diDiritto in trasformazione. Traduzione L. Riegert eC. Amirante. Milano : Giuffrè, 1973. p. 305: Lo Statodi Diritto introverso e le sue deviazoni.

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Brasília a. 34 n. 136 out./dez. 1997 153

1. IntroduçãoA Administração Pública, considerada em

seu aspecto geral, englobando União, Estadose Municípios, ao contratar serviços ou adquirirbens, deve fazê-lo sob os auspícios do contratoadministrativo, precedido do procedimentolicitatório.

A habilitação dos interessados no processode licitação tem como característica serprecedida de uma verificação da idoneidadejurídica, técnica, financeira e fiscal, comorequisito para análise de seu mérito, ou seja, aanálise das propostas.

Entre a regularidade exigida, interessa-nosaquela relativa ao Fundo de Garantia do Tempode Serviço (FGTS) e aos demais direitostrabalhistas não contemplados.

Em minha atuação profissional, deparo-mecom uma situação que alarma: o inadim-plemento dos encargos trabalhistas dasempresas licitantes e firmadoras de contratosadministrativos.

Não raras vezes, somos chamados a atuarem empresas contratadas pelo ente público, nosmoldes do Direito Administrativo, pois osdireitos trabalhistas, assegurados por lei ou pornorma coletiva, estão sendo desrespeitados.

Pergunto, então: não haverá meio maiseficaz de se assegurar a efetivação dos direitostrabalhistas dessas pessoas? Qual a respon-sabilidade do ente público face a esse descum-

A comprovação da regularidadetrabalhista nas licitações: a proteção doempregado

BERNARDO LEÔNCIO MOURA COELHO

Bernardo Leôncio Moura Coelho é Especialistae Mestre em Direito Constitucional pela Univer-sidade Federal de Minas Gerais, ex-professor deDireito do Trabalho da Universidade Estadual dePonta Grossa e, atualmente, é Fiscal do Trabalho.

SUMÁRIO

1. Introdução. 2. As normas de proteção aotrabalho. 3. Do contrato com o ente público. 3.1.Cláusulas e condições do ajuste. 3.2. Das garantias.4. O inadimplemento das obrigações trabalhistas.5. Propostas.

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primento? Qual a validade do Certificado deRegularidade Fiscal emitido para as licitações?

A partir desses questionamentos delineareio breve estudo, não buscando respostas ao tema,mas tentando desenvolver propostas paragarantir a fruição desses direitos.

2. Normas de proteção ao trabalhoA prestação de trabalho humano por outrem

sempre se desenvolveu no decorrer da história,não podendo desvinculá-lo da própria evoluçãoda sociedade.

A relação de trabalho, como a concebemoshodiernamente, iniciou-se, em termos pre-cários, com a Revolução Industrial.

“As raízes do Direito do Trabalhosituam-se na transmudação do laborescravo para o trabalho livre, gerando osconflitos entre o capital, nas mãos doempregador, e o trabalho, forma desobrevivência do hipossuficiente1.”

No contexto dominado pela ideologialiberal, no qual o governo era visto como merointermediário entre o povo e a vontade geral àqual cabe dar cumprimento, com um mínimode interferência, havia um poder absoluto doempregador sobre o empregado.

Com o passar do tempo e com o Estadoassumindo papel preponderante, o indivíduopassa a ter maior importância na relaçãotrabalhista, iniciando-se, com a Constituiçãodo México de 1917, o movimento de Consti-tucionalismo Social, resgatando a valorizaçãohumana decorrente do trabalho.

A Encíclica Rerum Novarum, a respeito dotrabalho, diz que:

“[...] deve ser considerado, em teoria ena prática, não mercadoria, mas ummodo de expressão direta da pessoahumana. Para a grande maioria doshomens, o trabalho é a única fonte dosmeios de subsistência. Por isso, a suaremuneração não pode deixar-se à mercêdo jogo automático das leis do mercado;pelo contrário, deve ser estabelecidasegundo as normas de justiça e daeqüidade, que, em caso contrário,ficariam profundamente lesadas, aindamesmo que o contrato de trabalho fosselivremente ajustado por ambas as partes”.

A vigente Constituição Federal avançou noaspecto social ao colocar a valorização social

do trabalho como um de seus fundamentos,dirigente da ordem econômica2.

Seguindo-se essa valorização, o Direito doTrabalho adota o princípio da proteção, que lheé basilar, assim manifestando-se Plá Rodrigues:

“O princípio de proteção refere-se aocritério fundamental que orienta oDireito do Trabalho, pois este, ao invésde inspirar-se num propósito de igual-dade, responde ao objetivo de estabelecerum amparo preferencial a uma daspartes: o trabalhador.

Enquanto no direito comum umaconstante preocupação parece assegurara igualdade jurídica entre os contra-tantes, no Direito do Trabalho a preocu-pação central parece ser a de protegeruma das partes com o objetivo de,mediante essa proteção, alcançar-se umaigualdade substancial e verdadeira entreas partes3”.

Constituindo-se âmbito de competênciaprivativa da União legislar sobre Direito doTrabalho e manter a fiscalização do trabalho4,cabe a ela assegurar a aplicação do princípiode proteção destinado aos trabalhadores,promulgando normas que garantam a fruiçãodos direitos pelos trabalhadores.

3. Do contrato com o ente públicoA atividade da Administração Pública

submete-se a quatro princípios nucleares: alegalidade, a moralidade, a finalidade e apublicidade (art. 37, caput, ConstituiçãoFederal), juntando-se a esses a isonomia (art.5º, Constituição Federal).

Assentado em tais princípios, o ente públicodesenvolve suas atividades, relacionando-secom outros órgãos e entes públicos ou comparticulares (art. 3º, Lei nº 8.666/93).

Pelas razões invocadas, fixaremos nossoolhar na relação que se forma com o particular,mais especificamente quando se tem lugar ocontrato administrativo.

Seguiremos a orientação de Meirelles, quedefine o contrato administrativo como:

“ajuste que a Administração Pública,agindo nessa qualidade, firma comparticular ou outra entidade adminis-trativa, para a consecução de objetivos

1 FERNANDES, J. U. J. A terceirização noserviço público, p. 474.

2 Art. 170.3 PLÁ RODRIGUEZ, A. Princípios de Direito

do Trabalho, p. 28.4 Art. 22, I c/c art. 21, XXIV, da Constituição

Federal.

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de interesse público, nas condiçõesestabelecidas pela própria Adminis-tração5.”

Esse ajuste caracteriza-se pela participaçãoda Administração Pública com supremacia depoder, podendo fixar as condições iniciais doajuste, advindo daí a faculdade de utilizar-sedas “cláusulas exorbitantes” do DireitoComum, impondo condições que, nas relaçõesentre particulares, seriam fulminadas deinvalidade.

Tal como se dá no Direito do Trabalho,temos uma relação marcada pela hipos-suficiência de uma das partes, ou seja, aempresa que deseja contratar com o Estado devesujeitar-se às normas impostas pelo contratoadministrativo6. Porém, contrariamente ao queacontece no Direito do Trabalho, a proteção sedá para a parte “hipersuficiente”, pelaprevalência das normas públicas sobre asprivadas.

O contrato com o ente particular se dá nostermos da Lei nº 8.666, de 21.6.93, que instituiunormas para licitações e contratos da Admi-nistração Pública, regulamentando disposiçãoconstitucional (art. 37, XXI c/c art. 22, XXVII),que alcança “administração pública, direta eindireta, incluídas as fundações instituídas emantidas pelo Poder Público, nas diversasesferas de governo, e empresas sob seucontrole”.

3.1. Cláusulas e condições do ajusteDeverá o interessado, como primeira etapa

na licitação, comprovar sua regularidade fiscal,estando nesta incluída aquela referente aoFundo de Garantia por Tempo de Serviço(FGTS), nos termos do art. 29:

“Art. 29 – A documentação relativaà regularidade fiscal, conforme o caso,consistirá em:

I – prova de inscrição no Cadastrode Pessoas Físicas (CPF) ou no cadastroGeral de Contribuintes (CGC);

II – prova de inscrição no cadastrode contribuintes estadual ou municipal,se houver, relativo a domicílio ou sededo licitante, pertinente ao seu ramo de

atividade e compatível com o objetocontratual;

III – prova de regularidade para coma Fazenda Federal, Estadual e Municipaldo domicílio ou sede do licitante, ou outraequivalente, na forma da Lei;

IV – prova de regularidade relativa àSeguridade Social e ao Fundo de Garan-tia por Tempo de Serviço (FGTS),demonstrando situação regular nocumprimento dos encargos sociaisinstituídos por Lei”.

Cabe ressaltar que, na redação original doinciso IV, do art. 29, a regularidade dosdepósitos do FGTS não constava como item daregularidade fiscal, tendo sido incluídoposteriormente pela Lei nº 8.883/94.

Essa exigência da regularidade fiscal nãoafronta o princípio da isonomia, comodescrevemos a seguir, embasando-nos em CelsoAntônio Bandeira de Mello:

“O fundamento dessa exigência deregularidade fiscal encontra sua sede nofato da garantia da execução de umaobrigação, objetivamente considerado,pois um dos princípios básicos daAdministração Pública é a impes-soalidade; assim sendo, aquele que deveao Fisco corre um risco grande, nãorazoável que seja aceito, de não vir ahonrar as suas obrigações contratuais,mesmo porque poderá tornar-se insol-vente.

Assim, a exigência da regularidadefiscal é constitucional, pois não atentade forma alguma contra a isonomia”.7

A regularidade do FGTS, que nos interessa,será comprovada por meio do Certificado deRegularidade Fiscal (CRF), emitido pela CaixaEconômica Federal (CEF), conforme previstona Lei nº 8.036/90, em seu art. 7º, inciso V.

Para obter o Certificado de regularidade, oempregador deverá estar em dia com asobrigações para com o FGTS e com o paga-mento de prestação de empréstimos lastreadosem recursos do FGTS (art. 45, Decreto nº99.684/90).

A emissão do CRF deverá ser precedido daapresentação dos seguintes documentos:

– impresso de solicitação;– contrato social e alterações;– cartão CGC (matriz e filiais);

5 MEIRELLES, H. L. Direito Administrativobrasileiro, p. 187-8.

6 A jurisprudência tem abrandado algumasdessas normas, como no caso do exceptio nomadimplendi contractus, quando o particular poderáromper o contrato administrativo quando este passara criar um encargo extraordinário e insuportável.

7 SOARES, F. de M. Contribuições sociais : acertidão positiva de débito com efeito de negativaem face do § 3º do art. 195 da Constituição Federal.

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– declaração relacionando filiais existentes;– declaração mencionando não possuir

empregados, se for o caso;– GR’s a partir do mês anterior à emissão

do último CRF até o mês corrente;– em caso de primeira solicitação, as seis

últimas GR’s recolhidas;– CRF original vencido ou vencendo.A emissão desse certificado, em conjunto

com os demais documentos exigidos, devecercar-se de todas as cautelas necessárias, comcriteriosa análise dos documentos apresentados.

Havendo indícios ou suspeita de irregu-laridades na documentação, deve ser contatado,imediatamente, o Ministério do Trabalho, paraque, por meio de seu corpo fiscalizatório8, váin loco averiguar a regula-ridade e a veracidadedos fatos.

Tal procedimento é importante tendo emvista o alcance que terá o certificado emitido.

Constatado que a empresa está em débitocom o FGTS, nos termos da Lei nº 9.012/95,esta não poderá celebrar contrato de prestaçãode serviços ou realizar transação comercial decompra e venda com órgão público, não poderáparticipar de concorrência pública e ficaráproibida de conseguir empréstimos, finan-ciamentos, dispensa de juros, multa e correçãomonetária ou qualquer outro benefício junto àsinstituições oficiais de crédito.

Nos termos do § 2º do art. 1º, os pedidos deparcelamento de débito para com as instituiçõesoficiais de crédito serão concedidos mediantea comprovação da certidão negativa de débitopara com o FGTS. O problema que ocorre coma emissão do CRF é que ele comprova apenasque a empresa mantém depósitos regulares paracom o FGTS.

Suponhamos a seguinte hipótese: a empresaX mantém um corpo efetivo de funcionários,entre os quais alguns sem o devido registro.Decidindo concorrer numa licitação, solicita ocertificado de regularidade, apresentando asseis últimas guias de depósito, referente aos seusempregados registrados. A empresa obterá ocertificado, apesar de ela mesma burlar osistema do FGTS. A CEF não tem poderes pararealmente verificar a regularidade dos depósitospara com o FGTS, cabendo ao Ministério doTrabalho tal mister. Apesar disso, no impressodo certificado de regularidade, não há refe-

rência a crédito apurado pela fiscalização doMinistério do Trabalho.

3.2. Das garantiasA Lei de Licitações dispõe, em vários

artigos, sobre as garantias que compõem oprocedimento licitatório, como no art. 31, incisoIII, quando exige o oferecimento de garantia,limitada a 1% (um por cento) do valor estimadodo objeto da contratação, como um dosverificadores da idoneidade econômico-finan-ceira da empresa.

O § 1º do art. 56 enumera as modalidadesde garantia aceitas no processo, quais sejam,caução em dinheiro ou títulos da dívida pública,fiança bancária ou seguro-garantia9, entre asquais cabe ao contratado escolher.

Essas garantias não excederão a 5% (cincopor cento) do valor do contrato, podendo, noscasos previstos no § 3º ser elevadas para até10% (dez por cento) do valor do contrato.

Todavia, a legislação licitatória não tornouobrigatória a exigência da garantia, como sedepreende do inciso VI do art. 55:

“Art. 55 – São cláusulas necessáriasem todo contrato as que estabeleçam:

VI – as garantias oferecidas paraassegurar sua plena execução, quandoexigidas;” (grifos nossos).

4. O inadimplementodas obrigações trabalhistas

O que se verifica em alguns casos é que asempresas, após conseguirem os certificados deregularidade, não mais se preocupam emmanter as obrigações trabalhistas em dia.Chega-se ao extremo encontrarmos cons-truções, lastreadas em recursos do FGTS, nasquais temos empregados sem o devido registroem livro, desrespeitando primordial normatrabalhista e lesando o próprio sistema doFGTS, financiador daquela obra.

Nas contratações com o ente públicotambém acontecem tais casos, em totaldesrespeito ao inciso XIII do art. 55, queestipula como cláusula obrigatória em todocontrato:

“XIII – a obrigação do contratado demanter, durante toda a execução docontrato, em compatibilidade com as

8 A Lei nº 8.844/94 atribuiu ao Ministério doTrabalho a fiscalização e a apuração das contri-buições ao FGTS, bem como a aplicação de multase demais encargos devidos.

9 Definido no art. 6º como o seguro que garanteo fiel cumprimento das obrigações assumidas porempresas em licitações e contratos.

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obrigações por ele assumidas, todas ascondições de habilitação e qualificaçãoexigidas na licitação”.

Deparamos, durante a fiscalização, comcontratos administrativos que exigem, para opagamento das parcelas, apenas a regularidadepara com o INSS, não fazendo sequer referênciaao FGTS, apesar de firmados após a modi-ficação na lei de licitações10.

As empresas alegam que o atraso nopagamento dos haveres trabalhistas deve-se aoatraso com que o ente público libera ospagamentos devidos, em total desrespeito àsnormas e cronogramas estabelecidos nocontrato administrativo.

Mas, qual será a responsabilidade docontratante (ente público) nesses casos? Poderiaele ser acionado pelos empregados para aquitação desses direitos, postergados pelocontratado?

O art. 71 da Lei de Licitações estatui que:“Art. 71 – O contratado é responsável

pelos encargos trabalhistas, previ-denciários, fiscais e comerciais resul-tantes da execução do contrato.

§ 1º – A inadimplência do contra-tado, com referência aos encargosestabelecidos neste artigo, não transfereà Administração Pública a respon-sabilidade por seu pagamento, nempoderá onerar o objeto do contrato ourestringir a regularização e o uso dasobras e edificações, inclusive perante oRegistro de Imóveis”.

Os empregados das empresas contratadas,na hipótese da insolvência das segundas, têmacionado a Administração Pública paracobrança dos encargos trabalhistas, com baseno Enunciado nº 331, do Tribunal Superior doTrabalho, que possui a seguinte redação:

“Contrato de prestação de serviços –Legalidade – Revisão do Enunciado nº256.

I – a contratação de trabalhadores porempresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o tomadordos serviços, salvo no caso de trabalhotemporário (Lei nº 6.019, de 3.1.74);

II – a contratação irregular detrabalhador, através de empresa inter-posta, não gera vínculo de emprego comos órgãos da administração pública

direta, indireta ou fundacional (art. 37,II, da Constituição da República);

III – não forma vínculo de empregocom o tomador a contratação de serviçosde vigilância (Lei nº 7.102, de 20.6.83),de conservação e limpeza, bem como ade serviços especializados ligados àatividade-meio do tomador, desde queinexistente a pessoalidade e a subor-dinação direta;

IV – o inadimplemento das obri-gações trabalhistas, por parte doempregador, implica a responsabilidadesubsidiária do tomador de serviçosquanto àquelas obrigações, desde queeste tenha participado da relaçãoprocessual e conste também do títuloexecutivo judicial”. (grifos nossos).

Bollmann e Ávila, após análise dos casosde responsabilidade, concluem que é inaplicávelo § 1º do art. 71 da Lei nº 8.666, em se tratandode empresa prestadora de serviços que cumprecontrato de natureza administrativa, firmadocom a Administração Pública11.

Acentuam em seguida, de acordo com onosso pensamento, a ocorrência de culpa inelegendo.

Com razão, nos termos do Enunciado nº331, não há como admitir-se o vínculo destesempregados com a Administração Pública, quepoderá, todavia, conforme nosso entendimento,ser responsabilizada pelo pagamento dessesencargos.

Consideremos dois aspectos.O primeiro, relativo ao atraso de paga-

mento. A empresa firmadora do contratoapresenta sua proposta tomando em consi-deração todos os custos envolvidos na licitação,devendo, nos termos do art. 55, XIII, manteras condições exigidas para a licitação em todoo decorrer do contrato.

Ocorre que são comuns os atrasos depagamentos das faturas devidas pela Adminis-tração Pública, levando o contratado a um ônusnão previsível. Numa economia de mercado,as empresas operam com uma margem de lucroreduzida para enfrentarem a licitação, comcondições de serem ganhadoras e, com as taxasde juros praticadas, o capital de giro também éreduzido, retirando das empresas a sua liqüidezimediata.

10 Neste caso, em específico, a empresa pagavaem dia apenas as contribuições para com o INSS(pois dependia disso para o recebimento dasparcelas), estando em débito para com o FGTS.

11 BOLLMANN, D. D. A., ÁVILA, D. D.Inconstitucionalidade do art. 71, § 1º, da Lei deLicitações : responsabilidade da administraçãopública direta e indireta, inclusive empresas públicase sociedades de economia mista, à luz do enunciadon. 331, do C. TST.

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Como esses atrasos tornaram-se a regra,criou-se o círculo vicioso, no qual as empresassuperfaturam seus próprios preços, já incluindonos seus custos o previsível atraso no paga-mento e suas conseqüências: atrasos depagamento, de recolhimento de INSS e FGTS,entre os mais destacados.

O que ocorre, também detectável em nossaprática, é que as empresas, para reduzir seuscustos na proposta, não incluem aquelesreferentes às obrigações trabalhistas, optandopelo risco de contratarem os empregados semregistro, deixando-os à margem dos direitoslaborais, sem a contrapartida do empregadorquanto aos pagamentos sociais.

O segundo aspecto refere-se a quando aempresa não tem condições de solver suasobrigações trabalhistas por falta de habilitação.

Entendo que o ente contratante deve seresponsabilizar por essas obrigações.

Como asseveram Bollmann e Ávila:“[...] na hipótese de não-pagamento dasobrigações trabalhistas pela prestadorade serviços, conclui-se que a tomadorade serviços, ao contratá-la, descuidou-sede seu dever de averiguar a idoneidadefinanceira da referida, no que se refere àpossibilidade de solvência das obrigaçõestrabalhistas.

Na medida em que negligenciou suaobrigação, permitiu a empresa tomadorade serviços que o empregado da presta-dora de serviços trabalhasse em proveitode seus serviços essenciais, sem recebera justa contraprestação pelo esforçodespendido”12.

Neste momento, deve-se valer do princípioda proteção, já mencionado, para que oempregado tenha seus direitos trabalhistasassegurados, seja quando há atraso comoquando não haja solvência do contratado. Oempregado que, nos termos do art. 2º daConsolidação das Leis do Trabalho, não podeassumir os riscos da atividade econômica,poderá ver-se sem sua essencialidade narelação: sua verba de natureza alimentar.

Ao proclamar a instituição de um EstadoDemocrático fundado na harmonia social, aofundamentar a ordem econômica na valorizaçãodo trabalho humano e, cabendo à Uniãopromover o princípio da proteção, deve estaresponsabilizar-se por sua culpa.

O Tribunal Superior do Trabalho, quanto àprestação de serviços, assim decidiu:

“A culpa in elegendo por parte datomadora de serviços em virtude daidoneidade econômica da prestadora deserviços implica responsabilidadesubsidiária daquela em relação aosdireitos trabalhistas dos empregadosdesta e não responsabilidade solidária.”(TST-E-RR 0053073/92 – Ac. 5.841 –Rel Min. Vantuil Abdala – DJ 24.3.95,pág. 6.963).

A responsabilização da AdministraçãoPública decorre, também, da ConstituiçãoFederal, em seu art. 37, § 6º, que dispõe:

“As pessoas jurídicas de direitopúblico e as de direito privado pres-tadoras de serviços públicos responderãopelos danos que seus agentes, nessaqualidade, causarem a terceiros, assegu-rado o direito de regresso contra oresponsável nos casos de dolo ou culpa”.

Ao empregado prejudicado caberá a provada existência do contrato administrativo paraque se responsabilize o ente público.

“É que, a partir do momento em quea Administração Pública, ainda queatravés de processo licitatório, age comculpa in elegendo , e contrata pessoafísica ou jurídica inidônea finan-ceiramente, e, como se não bastasse,deixa de proceder à fiscalização daexecução do contrato, que lhe é impostapor lei, e permite a situação de insol-vência financeira da empresa contratada,fica obrigada a reparar os danos causadospela contratada a terceiros, no caso, osempregados da empresa contratada, quese derem na vigência e derivarem daexecução do contrato administrativofirmado entre as partes, por força nodisposto no art. 37, parágrafo 6º, daConstituição Federal”13 (grifo nosso).

Os autores mencionados concluem pelainconstitucionalidade do art. 71, § 1º, da Leinº 8.666, com o qual concordo, fazendoaplicação, ainda, do princípio da proteção doempregado.

Entendo que a fundamentação referente aoscontratos de prestadores de serviços amolda-seaos casos em que a inadimplência decorre deempresas contratadas, pelo procedimentolicitatório, para execução de obras e demaisconstruções, pois a responsabilização decorrerádos mesmos princípios enumerados.

12 Ibidem, p. 184. 13 Ibidem, p. 186.

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5. PropostasComo procurei demonstrar no sucinto

desenvolver deste trabalho, a proteção aosempregados não está suficientemente “legis-lada”. É preciso que as normas de proteçãosejam mais claras e facilmente aplicáveis.

Cabe à União, nos termos do art. 22, I, daConstituição Federal, e conforme demonstrado,prover aos trabalhadores a proteção que lhes édevida pelo Direito do Trabalho. A prevalênciados interesses públicos sobrepuja aos interessesindividuais, mas no atual estágio da sociedadena qual nos encontramos, quando os efeitosperniciosos da globalização e flexibilização dasnormas de proteção se fazem sentir cruelmente,a proteção aos que conseguem manter seusempregos transcende a questão de merosinteresses individuais para elevar-se a umaquestão pública.

Com base nas observações postas acima eprocurando amparar melhor os interesses dosempregados, trago a debate as seguintespropostas de alteração na legislação:

1. A alteração do art. 55, VI, da Lei nº8.666, que passaria a ter a seguinte redação:“as garantias oferecidas para assegurar suaplena execução”.

As garantias previstas na legislaçãoreferente às licitações não são de inclusãoobrigatória nos contratos firmados. Passariam,então, a ser obrigatórias em todas as contra-tações, e não mais dependeriam da motivaçãodo ente público, gerando, com isso, maiorproteção para o numerário público.

2. A alteração do art. 56 da Lei nº 8.666,que passaria a ter a seguinte redação: “Aautoridade competente deverá exigir a prestaçãode garantia nas contratações de obras, serviçose compras”.

Essa alteração decorre da proposta acima,de exigência obrigatória da garantia noscontratos administrativos.

3. A inclusão de parágrafo no art. 56 da Leinº 8.666: “As garantias oferecidas pelacontratada somente deverão ser liberadas apósverificação da quitação dos débitos de naturezatrabalhista, a cargo da fiscalização do Minis-tério do Trabalho”.

Quando o ente público contrata, deveanalisar seriamente os requisitos de quali-ficação da contratada. Caberia à fiscalizaçãodo Ministério do Trabalho, que são os agentespúblicos dotados de competência para averiguaro cumprimento das normas trabalhistas, efetuara comprovação a posteriori, já que a compro-

vação anterior à contratação é verificada naqualificação inicial – das normas de naturezatrabalhista.

Tal proposta, para ser aplicada, depende davontade política governamental para melhorprover os quadros da fiscalização do Ministériodo Trabalho, que encontra grande defasagemde pessoal, tanto quanto os quadros auxiliares.

A função do Fiscal do Trabalho é eminen-temente social e será grande auxiliar no atualprocesso de globalização e flexibilização,resguardando os direitos da classe trabalhadora.

4. A inclusão de parágrafo no art. 56 da Leinº 8.666:

“Quando a fiscalização do Ministériodo Trabalho atuar na contratada everificar o grave descumprimento denormas trabalhistas, deverá comunicarimediatamente ao ente público, sob penade responsabilidade, para que sejabloqueada a garantia dada para seucumprimento”.

Decorrência da atuação da fiscalização do Minis-tério do Trabalho trata-se garantir a solvênciados débitos trabalhistas apurados durante afiscalização. Sendo assim, evitar-se-ia a grandedemanda trabalhista contra os entes públicosdecorrente da não-aplicação das normastrabalhistas pela contratada.

Verificado pelos Fiscais do Trabalho,agentes públicos dotados de competência paraaveriguar o cumprimento das normas traba-lhistas, que há possibilidade de não-cumpri-mento de normas trabalhistas e que essedescumprimento decorre das condiçõesfinanceiras de insolvabilidade da contratada,os quais comunicarão ao ente público asituação, cabendo a este bloquear o pagamentofinal ou bloquear a garantia, obrigatória naslicitações, como propomos.

Caso o ente público descumpra o comu-nicado e efetue o pagamento final ou desonerea garantia dada, o responsável pelo pagamentoou desoneração será solidariamente responsávelcom o ente público pelo pagamento devido aosempregados.

5. A alteração do art. 12 da Lei nº 8.666,que passaria a ter a seguinte redação: “adoçãodas normas técnicas de saúde e segurança dotrabalho, previstas pelo Ministério do Tra-balho”.

Trata-se de especificar quais são as normastécnicas adequadas referidas no artigo, tendoem vista que a competência para normatizá-lasé do Ministério do Trabalho.

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Bibliografia

BOLLMANN, Desirré D. A., ÁVILA, DarleneDorneles. Inconstitucionalidade do art. 71, § 1º,da Lei de Licitações : responsabilidade da

Havendo órgão encarregado de normatizaras regras de saúde e segurança no trabalho, queno caso é o Ministério do Trabalho, que o fazpor meio das Normas RegulamentadorasUrbanas e Rurais, de pouca técnica será o termo“adequadas”, pois que essas normas são decumprimento obrigatório nas empresas quenelas se enquadrem.

administração pública direta e indireta, inclusiveempresas públicas e sociedades de economiamista, à luz do enunciado n. 331, do C. TST.Revista LTr, São Paulo, v. 61, n. 2, p. 183-187.

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1. O tempo e as relações jurídicasA vida do ser humano, nos seus mais

variados matizes, não prescinde da inter-mediação do fator tempo. Esse domina ohomem, quer na vida biológica, como nas suasrelações com a sociedade e no campo profis-sional. Mas não é só. As relações jurídicastambém não o dispensam.

A atuação do fenômeno temporal, no âmbitojurígeno, opera de maneira multifária. Inicial-mente, constitui nota demarcadora da aquisiçãode direitos, como no nascimento, fato geradorda personalidade, no implemento das maio-ridades civil, criminal e política; outras vezesestatui os limites de vigência das normas retorasde conduta, bem como da eficácia das avençasconvoladas entre os indivíduos (termos iniciale final); ainda se pode utilizá-lo como motivoda extinção de determinadas faculdadesjurídicas.

Daí se tem o fenômeno da prescriçãoextintiva1, consubstanciada na extinção do

Prescrição: decretação de ofício em favorda fazenda pública

EDILSON PEREIRA NOBRE JÚNIOR

Edilson Pereira Nobre Júnior é Juiz Federal,Professor da Universidade Federal do Rio Grandedo Norte, Professor da Escola Superior da Magis-tratura do Rio Grande do Norte e mestrando pelaUFPE.

1. O tempo e as relações jurídicas. 2. Noçõesgerais sobre prescrição. 3. A renúncia à prescriçãoe o art. 166 do Código Civil. 4. O interesse públicoe sua indisponibilidade. 5. Os arts. 166 e 219, § 5º,dos Códigos Civil e de Processo Civil, frente àindisponibilidade do interesse público. 6. Conceitode fazenda pública para afastar a incidência do art.166 do Código Civil. 7. Conclusões.

SUMÁRIO

1 Fora de abordagem a prescrição aquisitiva,típica dos direitos reais, apesar de se poder aduzirque, de maneira idêntica, dirige-se à extinção deum direito para o antigo proprietário, através dosurgimento de força criadora em prol do usucapiente.Também não cuidaremos aqui da decadência,

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direito de provocar o aparato jurisdicional parase restaurar a violação de um interessejuridicamente protegido, em virtude dapassagem do tempo.

2. Noções gerais sobre prescriçãoAo invés de representar pena ao inerte,

funda-se a prescrição no princípio da segurançajurídica, a reputar como atentatório da pazsocial que as relações jurídicas perdurem,insolúveis e definitivamente, no tempo.

A sua caracterização requer o concurso dosseguintes fatores: a) ocorrência de violação dodireito positivo, a ensejar uma ação exercitável2;b) situação de passividade do titular dapretensão pela não-dedução dessa perante oJudiciário; c) prolongamento dessa inércia porum lapso de tempo, previsto em lei, sem aocorrência de causas impeditivas, suspensivase interruptivas.

O Código Civil de 1916, ainda atual,procurou sistematizar algumas regras deabrangência genérica sobre o tema. Entre elasasseverou: a) a sua renunciabilidade, expressaou tácita, desde que consumada (art. 161); b) apossibilidade de sua alegação em qualquerinstância, pela parte a quem favorece (art.162)3; c) atingir os seus efeitos, igualmente, aspessoas jurídicas (art. 163); d) caber ação deregresso em favor das pessoas privadas deadministrar seus negócios e bens, a fim deresponsabilizar os seus representantes, legais

e convencionais, quando, por culpa lato sensu,concorrerem para a prescrição (art. 164)4; e)continuidade do curso de seu prazo emdetrimento dos sucessores (art. 165); f)aplicação da máxima accessorium sequiturprincipale (art. 167); g) descabimento de seuacolhimento pelo juiz sem a suscitação da partecujos efeitos aproveita (art. 166)5.

Nesta célere investigação, interessa-nos oalcance da última das regras citadas frente aointeresse público. Quer dizer: pode o juiz, emcumprimento ao art. 166 do Código Civil,ratificado pelo art. 219, §5º, do Código deProcesso Civil, abster-se de reconhecer, deofício, a prescrição que favorece ao entepúblico? Para responder a indagação, forçosaa análise da extensão da faculdade de renúnciaà prescrição, assunto intimamente ligado aopresente.

3. A renúncia à prescriçãoe o art. 166 do Código Civil

O art. 161, primeira parte, do Código Civil,dispõe com clareza:

“A renúncia da prescrição pode serexpressa ou tácita, e só valerá, sendofeita, sem prejuízo de terceiro, depois quea prescrição se consumar”.

De acordo com esse comando normativo, odireito a invocar o instituto da prescrição, comvistas a afastar o êxito de ação contra simanejada, pode ser renunciado. Para tanto,exige-se que o intervalo prescricional tenha seconsumado por inteiro. Não se admite abdi-cação de prescrição em curso, sob pena de secomprometer o seu fundamento de ordempública. Igualmente, a renúncia não poderáprejudicar direito de terceiro.

também identificada pelo designativo caducidade,em virtude da não-existência de texto legal queimpeça o seu reconhecimento sem provocação dointeressado.

2 Filiado à actio nata, influenciadora da maioriada doutrina, Agnelo Amorim Filho (Critériocientífico para distinguir a prescrição da decadênciae para identificar as ações imprescritíveis. RF, v.193, n. 691/693, p. 37) vê na lesão do direito o termoinicial do prazo prescricional, proclamando: “...é quea lesão dá origem a uma ação, e a possibilidade depropositura desta, com o fim de reclamar umaprestação destinada a restaurar o direito, é queconcorre para criar aquele estado de intranqüilidadesocial que o instituto da prescrição procura evitar”.

3 MELLO, Marco Aurélio Mendes de Faria.(Prescrição : momento propício à sua articulação,LTr, v. 49, n. 8, p. 909-11) advoga a existência deum limite procedimental para a argüição daprescrição, calcado nos recursos extraordinários(extraordinário propriamente dito, especial e derevista), porquanto o seu conhecimento se subordinaao pré-questionamento, nos graus jurisdicionaisordinários, do tema a ser decidido no inconformismo.

4 O preceito é dispensável, em face do art. 159do Código Civil impor a obrigação de indenizaràquele que, por dolo, negligência, imprudência ouimperícia, causar dano a outrem. Não obstante, opreceito do art. 164 do Código Civil, como advogouOswaldo Aranha Bandeira de Mello (Princípios deDireito Administrativo, p. 453), não diz respeitosomente aos incapazes, absolutos e relativos, masigualmente às pessoas jurídicas, de direito privadoe de direito público.

5 O modelo possui derivação alienígena. OCódigo Civil da França, no seu art. 2.223, dispõe:“Les juges ne peuvent supléer d’office le moyenrésultant de la prescription”. (Os juízes não podemsuprir de ofício o meio resultante da prescrição). Oart. 515 do Código Civil português ostenta diçãosemelhante: “Os juízes não podem suprir, de ofício,a prescrição, não sendo essa invocada pelas partes”.

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Quanto às modalidades em que a renúnciapoderá se materializar, haurimos, na literaturajurídica, duas. Inicialmente, temos a expressa,em que o prescribente, de maneira inequívoca,abre mão da prescrição existente em seu favor,declarando, oralmente ou por escrito, dessa nãoquerer se beneficiar. O outro tipo consiste natácita, ou implícita, cuja configuração se centrana prática, por aquele, de atos incompatíveiscom o desejo de se favorecer com a exceptio.

Miguel Maria de Serpa Lopes6, forte nadefinição do art. nº 2.937 do Código Civilitaliano, perfeitamente amoldável ao art. 161,segunda parte, do nosso Código Civil, exem-plifica, entre as hipóteses em que reputarenunciada uma prescrição, o fato de alguémapresentar-se, em concurso de credores(processo de execução coletiva), com um títuloprescrito sem sofrer impugnação pelos inte-ressados.

Ampliando a situações similares, o exemploilustrado pelo referido autor, o qual também seabeberara em aresto da 2ª Câmara do Tribunalde Justiça do Rio de Janeiro de 24-11-44, ajurisprudência vislumbra renúncia tácita no atodo executado que, durante os prazos para ainterposição de embargos à execução e àarrematação, queda-se inerte, sem invocarprescrição que lhe favorece7.

Fácil concluir, então, que a não-invocaçãoda exceção prescricional em contestação, ouação autônoma, como a de embargos àexecução, quando aquela beneficia o réu oudevedor, equivale à sua renúncia tácita, tendoem vista representar ato incompatível com oseu exercício.

Configurando tal comportamento verda-deira abdicação, segue-se que somente se podedeixar de alegar a prescrição nas situações emque o prescribente, por si ou por seu repre-sentante, possa renunciá-la.

Tecendo comentários ao art. 219, § 5º, doCódigo de Processo Civil, com o qual seamalgama com perenidade o art. 166 do CódigoCivil, Antonio Janyr Dall’Agnol Júnior8

assenta a renunciabilidade do direito como onorte conceitual da vedação ao conhecimento,sem qualquer provocação, da prescrição.Salientou, ainda, que o conhecimento, de ofício,do decurso do tempo como fator extintivo daproteção judicial de interesse jurídico dizrespeito somente àqueles de conteúdo não

patrimonial, onde tecnicamente se deve falarem decadência. Diz o mestre:

“Veda a lei que o juiz, ex officio,decrete a prescrição que diga comdireitos patrimoniais. A regra já seencontrava no art. 166 do Código Civil:‘O juiz não pode conhecer da prescriçãode direitos patrimoniais, se não invocadapelas partes’. A ratio legis é singela:tratando-se de direitos patrimoniais,porquanto renunciáveis, renunciáveltambém o é a alegação da prescrição (art.161 do Código Civil). Tratando-se deprescrição de direitos não patrimoniais,ou mais propriamente decadência, viávelo conhecimento de ofício pelo juiz,extinguindo-se o processo com julga-mento de mérito (art. 269, IV)”.

4. O interesse públicoe sua indisponibilidade

É pacífico competir ao organismo estatalcurar os interesses da coletividade e, somenteindiretamente, as aspirações individuais.Centrando-se tais interesses no bem comum,pertencem ao grupamento de indivíduos quehabitam a porção territorial do Estado.

Vê-se, portanto, que o interesse público, queà administração cabe proteger, a esta não lhepertence. Dele o administrador não é senhor.A expressão relação de administração, comobem explicita Rui Cirne Lima9, diverge da depropriedade. Relação de administração – ensinao mestre – é aquela estruturada à base de umafinalidade cogente, não disponível. Opõe-sediametralmente à relação jurídica fundada napropriedade. Restou clássico o seu dito de que:

“Na administração, o dever e afinalidade são predominantes; no domí-nio, a vontade”10.

Não pertencendo o interesse público,calcado no bem-estar da sociedade, ao gestoradministrativo, mas sim àquela, remata-se que,não sendo esse dono, dele não poderá, emnenhum instante, dispor.

Todo e qualquer ato de disposição, deliberalidade, somente poderá ser perpetrado seautorizado por lei – expressão da volontégénérale. Do contrário, será inválido.

Isso decorre da regra, basilar no direitoadministrativo hodierno, da indisponibilidade

6 Curso de Direito Civil, v. 1, p. 510-1.7 LEX RJTJESP, 119/209 e 106/333.8 1985, p. 297.

9 Princípios de Direito Administrativo, p. 51-2.10 op. cit., p. 52.

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do interesse público. Nesse sentido, há escóliolapidar de Celso Antônio Bandeira de Mello:

“A indisponibilidade dos interessespúblicos significa que sendo interessesqualificados como próprios da cole-tividade – internos ao setor público – nãose encontram à livre disposição de quemquer que seja, por inapropriáveis. Opróprio órgão administrativo que osrepresenta não tem disponibilidade sobreeles, no sentido de que lhe incumbeapenas curá-los – o que é também umdever – na estrita conformidade do quepredispuser a intentio legis”11.

Também ressaltando a importância doprincípio, Lúcia Valle Figueiredo:

“Ao investir a administração deprerrogativas especiais para tutela dedeterminados interesses, que houve porbem entender como prevalentes, anorma, em contrapartida, qualificou-osde inalienáveis. Com efeito, a conse-qüência da supremacia do interessepúblico é a indisponibilidade. Decorredaí que, mesmo ao delegar o exercíciode determinadas funções públicas aoutrem, a administração delas nãopoderá dispor”12.

Com essas razões, volto a frisar que o agenteda administração, quando de sua atuação, nãopode perder de vista o interesse públicoqualificado normativamente, acerca do qual lheé, grosso modo, vedado perpetrar qualquerconduta de disposição13.

5. Os arts. 166 e 219, § 5º, dosCódigos Civil e de Processo Civil, frente à

indisponibilidade do interesse públicoExpostas as considerações retro, aporto,

finalmente, no ponto crucial deste trabalho,voltado a perscrutar se o magistrado spontepropria tem poderes, nas lides em que aFazenda Pública é demandada, para o reconhe-cimento da prescrição ante o disposto no art.166 do Código Civil, corroborado pelo art. 219,§ 5º, do CPC, ao afirmar que o juiz não podeconhecer da prescrição de direitos patri-moniais, se não foi invocada pelas partes14.

11 Curso de Direito Administrativo, p. 23.12 Curso de Direito Administrativo, p. 34.13 No que tange à União Federal, suas autarquias,

fundações e empresas públicas federais, os arts. 1ºa 3º da recente Lei nº 9.469, de 10-07-97, sucessorada Lei nº 8.197, de 27-06-91, disciplinam o modo eas condições pelas quais os respectivos entes podemtransacionar, renunciando direitos. Dispõem taispreceitos: “Art. 1º O Advogado-Geral da União e osdirigentes máximos das autarquias, das fundaçõese das empresas públicas federais poderão autorizara realização de acordos ou transações, em juízo, paraterminar o litígio, nas causas de valor até R$50.000,00 (cinqüenta mil reais), a não-propositurade ações e a não-interposição de recursos, assimcomo requerimento de extinção das ações em cursoou de desistência dos respectivos recursos judiciais,para cobrança de créditos, atualizados, de valor igualou inferior a R$1.000,00 (mil reais), em queinteressadas essas entidades na qualidade de autoras,rés, assistentes ou oponentes, nas condições aquiestabelecidas. § 1º Quando a causa envolver valoressuperiores ao limite fixado no caput,o acordo ou a

transação, sob pena de nulidade, dependerá de préviae expressa autorização do Ministro de Estado ou dotitular da Secretaria da Presidência da República acuja área de competência estiver afeto o assunto, nocaso da União, ou da autoridade máxima daautarquia, da fundação ou da empresa pública. § 2ºNão se aplica o disposto neste artigo às causasrelativas ao patrimônio imobiliário da União. Art.2º O Advogado-Geral da União e os dirigentesmáximos das autarquias, fundações ou empresaspúblicas federais poderão autorizar a realização deacordos, homologáveis pelo Juízo, nos autos dosprocessos ajuizados por essas entidades, para opagamento de débitos de valores não superiores aR$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais), em parcelasmensais e sucessivas até o máximo de trinta. § 1º Osaldo devedor da dívida será atualizado pelo índicede variação da Unidade Fiscal de Referência (Ufir),e sobre o valor da prestação mensal incidirão os jurosà taxa de doze por cento ao ano. § 2º Inadimplidaqualquer parcela, pelo prazo de trinta dias, instaurar-se-á o processo de execução ou nele prosseguir-se-á,pelo saldo. Art. 3º As autoridades indicadas no caputdo art. 1º poderão concordar com pedido dedesistência da ação, nas causas de quaisquer valores,desde que o autor renuncie expressamente ao direitosobre que se funda a ação (art. 269, inciso V, doCódigo de Processo Civil).

14 Digno de nota a circunstância de que a letralegal, tomada em seu extremo rigorismo, implicatotal vedação ao conhecimento, pelo juiz, deprescrição não alegada pelas partes. Não se comenteque, nas causas em que não estiverem em jogodireitos patrimoniais, poderá o magistrado sanar ainércia dos litigantes . Como bem demonstraraAgnelo Amorim Filho (op. cit., p. 38), a prescrição,como instituto jurídico distinto da decadência, temo seu campo de ação restrito às ações condenatóriase somente a estas. Evoco novamente as palavras domestre: “ Por via de conseqüência, chegar-se-á,então, a uma segunda conclusão importante: só asações condenatórias podem prescrever, pois são elasas únicas ações por meio das quais se protegem osdireitos suscetíveis de lesão, isto é, os da primeiracategoria da classificação de Chiovenda”. Por sua

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Penso que a regra não é absoluta15. Com-porta temperamentos. Um deles é o queconcerne à capacidade das partes. Para avalidade da renúncia, como ato abdicativo,necessário se verificar a capacidade dorenunciador, ou seja, se este pode, validamente,praticar tal ato na vida civil. Precisa aadvertência de Caio Mário da Silva Pereira:

“Pode o devedor a ela renunciar,repetimos, subordinada a validade darenúncia à circunstância de estar orenunciante na livre administração deseus bens, pois envolve indiretamenteuma diminuição patrimonial, equipa-rável à alienação”16.

No campo do direito público, o vocábulocapacidade transmuda-se em competência,elementar do ato administrativo integralmentevinculada17. Assim, cabe à lei dispor qual oagente que possui o poder-dever de praticardeterminado ato e a forma de praticá-lo.

Configurando a renúncia tácita umamodalidade de ato de disposição, não se deveperder de vista o cânon da indisponibilidde dointeresse público, por pertencente à cole-tividade, sendo indispensável que o seu gestoresteja, para tanto, autorizado por lei específica.

Penso que a melhor exegese a ser legada aoart. 166 do Código Civil, é a de que a regra queenuncia – vedação do juiz reconhecer de ofícioprescrição – somente se dirige aos direitos cujotitular, ou representante, poderá dispor. Autilização da expressão patrimoniais, no lugar

de disponíveis, vocábulo mais apropriado,decorre do fato de, quase sempre, aqueles seconfundirem com o campo da disponibilidadejurídica.

Prova insofismável disso, o art. 1.035 doCódigo Civil afirma que a transação se cingeaos direitos patrimoniais de caráter privado,porquanto não os únicos suscetíveis de ampladisposição. Aqui observe-se que o legisladorfoi mais preciso, qualificando a patrimo-nialidade com a adição da díade direito privado.

Outra não fora a razão por que MiguelMaria de Serpa Lopes sustentara:

“Sobre a segunda regra, qual a de servedado ao juiz pronunciar-se sobreprescrição ex officio, a jurisprudêncianão tem oscilado na aplicação rígidadesse princípio. Os juristas, porém,têm-na entendido como suscetível deexceções. Assim, ao juiz é dado conhecerda prescrição ex officio, nos seguintescasos: a) quando fundar-se em motivosde ordem pública ou na necessidadesocial; b) em se tratando de ações deestado”18.

Nesse diapasão, há elucidativo acórdão doTribunal de Justiça de São Paulo na ApelaçãoCível nº 163.440, proclamando:

“PRESCRIÇÃO – Renúncia – OPoder Público pode renunciar a direitopróprio, mas esse ato de liberalidade nãopode ser praticado discricionariamente,dependendo de lei que o autorize. Arenúncia tem caráter abdicativo e em setratando de ato de renúncia por parte daadministração depende sempre de leiautorizadora, porque importa no despo-jamento de bens ou direitos que extra-vasam dos poderes comuns do adminis-trador público”19.

vez, as lides de conteúdo não patrimonial, direto oumediato, não se encontram no campo de atuação dasações condenatórias, não cabendo se cogitar deprescrição. De nenhuma utilidade a inclusão dovocábulo patrimoniais no texto legal.

15 Assim não pensa Ulderico Pires dos Santos:“A prescrição de ações relativas a direitospatrimoniais é meio de defesa pessoal do devedor esó ele, como beneficiário dessa exceção liberatória,pode argüi-la. Por isso, por mais evidenciada queesteja a prescrição, não pode, ao sabor de nossodireito positivo, ser declarada senão a pedido dequem se beneficia com a sua declaração. Conclusão:o juiz só pode conhecer da prescrição de açõesrelativas a direitos patrimoniais quando essa exceptiofor levantada pela parte a quem beneficia. Essa regraé intransponível, não comportando exceção, nemmesmo em favor do incapaz e ainda que a prescriçãoseja gritante”. (Prescrição : doutrina, jurisprudênciae prática, p. 15).

16 Instituições de Direito Civil, v. 1, p. 437.17 O liame, no direito público, entre capacidade

e competência, foi elucidativamente demonstradopor Oswaldo Aranha Bandeira de Mello (op. cit., p.493-6).

18 op. cit., p. 507.19 1ª Câmara Civil. Ac. un. Relator: Des. Pacheco

de Mattos. RJTJESP 05/133. Malgrado se dirigir oaresto à invalidação de despacho de secretário deestado que, em despacho proferido em processoadministrativo, renunciara a prescrição consumadaem favor do Estado de São Paulo, a sua motivação éaplicável como argumento a impulsionar o julgadora afastar parcialmente, nos casos concretos que lhesejam trazidos, o art. 166 do Código Civil. No votodo relator, há menção a ensinança de Hely LopesMeirelles, de manifesta atualidade, consoante a qual:“Em se tratando de renúncia por parte da Admi-nistração depende sempre de lei autorizadora, porqueimporta no despojamento de direitos que extravasamdos poderes comuns do administrador público”.(Direito Administrativo Brasileiro, p. 166).

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No que concerne à Administração PúblicaFederal, o art. 112 da Lei nº 8.112/90,encarnando o espírito da indisponibilidade dointeresse público, expressamente dispõe: “Aprescrição é de ordem pública, não podendoser relevada pela administração”. O preceito,por seu caráter genérico, espraia-se a toda equalquer relação da administração com os seusadministrados, não devendo ter a sua aplicaçãojungida aos liames Estado-servidor.

Forçoso ponderar, portanto, que, pelo menosno que concerne à União, suas autarquias efundações, os arts. 166 e 219, § 5º, do CódigoCivil e do Código de Processo Civil, encontram-se derrogados pela lex posterior, no caso a Leinº 9.469/97.

Sei que os tribunais pátrios, em iterativasdeliberações, vêm reformando, com arrimo noart. 219, § 5º, do Código de Processo Civil,decisões que de ofício reconheciam a prescriçãoem ações de execução fiscal20. Todavia, aquicabe um fundamental esclarecimento: noexecutivo fiscal, o titular do direito à prescriçãoera o contribuinte, de maneira que a argüiçãodo evento prescritivo poderia validamenteconfigurar renúncia tácita, haja vista que aabdicação em gozar das benesses da prescriçãoencontrava-se na sua esfera de normaldisponibilidade21. Interdito, destarte, ao

magistrado, contrariando a tácita manifestaçãode vontade do prescribente, reconhecer aprescrição da qual este não quer se beneficiar.Diferentemente, quando a prescrição favoreceo Poder Público, em virtude de que a renúnciadeste, pela omissão de seu representante emargüi-la, para ostentar validade, necessita deapoiar-se em espeque legal.

Tampouco serve para justificar a aplicação,detrimentosa para a administração, da regra deque a prescrição não pode manifestar-se depleno jure, mas sempre ope exceptionis, o fatodo representante judicial daquele poder serresponsabilizado, administrativa e civilmente,por sua omissão. É que o fato de tal respon-sabilidade se encontrar prevista em nossodireito positivo não serve para tornar disponívelum direito que, por sua natureza, é indisponível.

Igualmente, a distinção, forjada peladoutrina italiana, nessas plagas perfilhada nomagistério de Celso Antônio Bandeira deMello22, entre interesse público primário(interesses pertencentes à coletividade como umtodo) e secundário (decorrente da condição desujeito de direito do Estado, entre os quais estãoos direitos patrimoniais), não serve parafundamentar ponto de vista adverso ao aquiexposto. Em ambos os casos, há a indis-ponibilidade. A repulsa da distinção, para o fimde tornar o interesse secundário disponível, comcerteza granjeou o prestígio do legislador, pelomenos no âmbito da Administração Federal.Isto se comprova por toda e qualquer transaçãorelativa a direitos de cunho pecuniárionecessitar de preencher os requisitos esta-belecidos nos arts. 1º a 3º da Lei nº 9.469/97.

Mister um aclaramento: quando afirmo queo julgador pode reconhecer a prescrição, emface da existência de interesse público, nãoimponho uma obrigatoriedade. Esta vale parao representante judicial da Fazenda Pública, sobpena de responsabilização. Quanto ao julgador,há a faculdade de fazê-lo, tanto que, se sobreviercondenação com trânsito em julgado, não sevislumbra exitoso o ajuizamento de rescisóriapor tal motivo. É como prelecionou Pontes deMiranda, ao interpretar a contrario sensu odisposto no art. 219, § 5º, do Código deProcesso Civil:

“Se o direito, a que corresponde aprorrogação da pretensão e da ação, ou

20 STJ. 2ª Turma. Ac. un. Resp. 8.383 – RJ.Relator : Ministro Ilmar Galvão. DJU, p. 5.560, 6maio 1991; STJ. 1ª Turma. Ac. un. Resp. 46.058 –MA. Relator : Ministro Garcia Vieira. DJU , p.11.733, 16 maio 1994; TRF-1ª Região. 4ª Turma.Ac. un. AC 01.742 – TO. Relator : Juiz NelsonGomes da Silva. DJU , p. 15.363, 23 mar. 1995;TRF – 2ª Região. 3ª Turma. Ac. un. AC 14.557 –RJ. Relator : Juiz Celso Passos. DJU, 25 jun. 1991.Seção 2; TRF – 4ª Região. 2ª Turma. Ac. un. AC28.492 – RS. Relator : Juiz Teori Albino Zavascki.DJU, p. 4.568, 16 fev. 1994. Seção 2.

21 Ives Grandra da Silva Martins enfatiza ocolorido de disponibilidade do direito do contribuinteem não pagar tributo indevido, noção a que se pode,sem maiores facilidades, estender ao tributoprescrito: “Não entrarei a examinar a consti-tucionalidade ou não do IPTU lançado para oexercício de 1994. Refoge ao campo de indagaçãodo parecer. Examinarei, isto sim, o tipo de direitoque implica, ou seja, ao Município, o direito deexercer sua competência impositiva e ao munícipeo direito individual, disponível e divisível de sertributado nos termos da lei suprema e da leiordinária. Tal tipo de direito do cidadão é tipicamenteum direito divisível e disponível. Poderá ocontribuinte dele abrir mão se o desejar. Poderá, seentender que vale a pena pagar um tributo, que seja

inconstitucional, para ajudar a comunidade em quevive.” (Ação civil pública é veículo processualimprestável para proteção de direitos individuaisdisponíveis. RT, 707/24).

22 Op. cit., p. 22.

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só da ação, não é patrimonial, a leiatribuiu ao juiz o direito de decretar, deofício, a prescrição”23.

6. Conceito de fazenda pública paraafastar a incidência do art. 166 do

Código CivilAlfim, toca-me ainda tecer céleres comen-

tários quanto à abrangência da possibilidadede o magistrado, mesmo quando não suscitado,declarar a ocorrência da prescrição, ou seja,quais os entes políticos e administrativos quepodem usufruir da parcial exceção ao art.166do Código Civil.

Tomo, como ponto de partida, o art. 1º doDecreto nº 20.910, de 6-1-32, responsável porestatuir regime especial de prescrição em prolda fazenda pública. Esse binômio, nasprimícias, representativo do Estado em juízonas questões tributárias24, passou, com o evolverdos tempos, a significar o segmento daAdministração Pública custeado pelo erário(rectius, por tributos, ou receitas derivadas),abrangendo a Administração Direta, Autár-quica e Fundacional. Nesse sentido, de leituraobrigatória Nélson Nery Júnior:

“Vários são os sentidos em que éempregado o vocábulo fazenda pública.Pode significar o erário como instituidore arrecadador de impostos, o Estado emjuízo litigando genericamente sobreaspectos patrimoniais, ou simplesmentea administração pública por todos os seusórgãos da administração direta e enti-dades autárquicas, porque é seu erárioque suporta os encargos patrimoniais dademanda. Em oportuna síntese já sefirmou que o termo fazenda pública podeser compreendido em três acepções: a)como teoria do regime econômico doEstado; b) como instituição ou organismoadministrativo que gere o dinheiropúblico; c) como o patrimônio que odinheiro público constitui. Emboratecnicamente a locução fazenda públicadevesse indicar apenas e tão-somente oEstado em juízo com seu perfil finan-ceiro, na verdade se tem denominadodessa forma, tradicionalmente, a admi-

nistração pública por qualquer das suasentidades da administração direta(União, Estado e Município) e autár-quicas, irrelevante o tipo de demanda emque a entidade se vê envolvida”25.

A princípio, a locução não abrangeria associedades de economia mista e as empresaspúblicas. Não se pode olvidar que, poste-riormente, o Decreto-Lei nº 4.597, de 19-8-42,estendeu os ditames do Decreto nº 20.910/32às entidades paraestatais mantidas medianteimpostos, taxas ou quaisquer contribuições,exigidas dos particulares com fulcro em leifederal, estadual ou municipal. Essa extensão,embora pareça, não conflita com o discrímen,gizado constitucionalmente (art. 173, § 1º, CF),entre sociedades de empresas públicas esociedades de economia mista prestadoras deserviço público e exploradoras de atividadeeconômica, segundo o qual estas últimaspossuem regime obrigacional próprio, idênticoao aplicável aos particulares, mesclado porderrogações expressas encetadas por normaspublicísticas. Sendo assim, suas obrigações nãopoderiam estar sujeitas a prazo prescricionaldistinto dos constantes da legislação priva-tística, que são os estatuídos nos arts. 177 e178 do Código Civil.

Como os entes paraestatais que exercematividade econômica, de regra, são mantidoscom recursos próprios (receita originária), decolor não tributário (preços públicos), estariam,independentemente da prescrição magna, forado regime prescricional da administração,reforçando-se a compatibilidade vertical doDecreto-Lei nº 4.957/4226. A extensão dasdisposições prescricionais de direito públicodepende da manutenção da entidade porreceitas tributárias.

7. ConclusõesAo depois das considerações expostas,

pode-se rematar o seguinte:a) o direito à prescrição, como integração

do patrimônio do sujeito de direito, é suscetível

23 Comentários ao Código de Processo Civil. v.3, p. 260. Afigura-se-me incorreto Sérgio SahioneFadel (Código de Processo Civil, v. 1, p. 375), aoentender tratar-se a hipótese de dever judicial.

24 NUNES, Castro. A fazenda pública em juízo.1950. p. 304.

25 Princípios do Processo Civil na ConstituiçãoFederal, 1992. p. 48-49.

26 Bem destaca Maria Sylvia Zanella di Pietro aduplicidade de regimes jurídicos das entidadesparaestatais prestadoras de serviço público eexploradoras de atividade econômica, embora, emalguns casos, sujeitas ambas as espécies a institutoscomuns (Direito Administrativo, p. 281-294).Interessante também a leitura dos precedentes queinformaram a Súmula 39-STJ.

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de abdicação, que poderá assomar de maneiraexpressa ou implícita;

b) a renúncia tácita decorre da prática, peloprescribente, de comportamento inconciliávelcom a vontade de se alegar a prescrição, ao qualse equipara a sua não-invocação como matériade defesa, nos momentos processuais oportunos(contestação, embargos e apelação);

c) o ato de renunciar, como modalidade dedisposição de direito, requer a capacidade dorenunciante em dispor do direito abdicado;

d) no campo do direito público, os interessescurados pelo administrador, por pertencerem àsociedade, encontram-se afetados a umafinalidade legalmente prevista, não possuindoaquele capacidade, aqui denominada decompetência, para livremente praticar atos dedisposição, os quais somente emergirão válidosquando autorizados por lei específica;

e) a regra contida no art. 166 do CódigoCivil, secundada pelo art. 219, § 5º, do Códigode Processo Civil, não ostenta caráter absoluto,descabendo operar nas lides em que a fazendapública se faz presente, como demandada, tendoem vista que esta gera interesses da coleti-vidade, onde o campo de disposição é essen-cialmente vinculado.

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1. IntroduçãoA escolha do tema prende-se ao fato de as

relações pré-contratuais não estarem, de modogeral, reguladas na maioria dos sistemasjurídicos; por outro lado, a crescente utilizaçãodos contratos internacionais, devido a motivosvários, entre os quais avulta a globalização daeconomia. Nesses contratos a fase das nego-ciações contratuais assume grande destaque1 evem suscitando uma série de indagações com

Dano pré-contratual: uma análisecomparativa a partir de três sistemasjurídicos, o continental europeu, o latino-americano e o americano do norte

Palestra proferida no Congresso de Daños.Buenos Aires, 24 a 26 de abril de 1997.

Véra Jacob de Fradera é Mestre em Direito eProfessora na UFRGS – Brasil.

VÉRA JACOB DE FRADERA

SUMÁRIO

1. Introdução. 2. As reações ao comportamentoculposo na fase pré-contratual: as soluções francesae alemã. 2.1. A solução francesa: colocação delimites à liberdade contratual: a figura do abusode direito. 2.2. A proteção da confiança, reflexo danecessidade de segurança no tráfico jurídico. 2.2.1.Uma descoberta de von Ihering: a noção de culpain contrahendo. 2.3. Uma esperança frustrada:fundamento da responsabilidade pré-contratual nosistema da Common Law. 2.4. Aformação docontrato e a teoria dos jogos, uma técnica dasciências exatas. 3. Conclusão.

1 Noção das mais controvertidas, pois pode serestabelecida a partir de vários critérios, como oeconômico ou o jurídico. Para fins didáticos, podemosconsiderar que o contrato é internacional quando seuselementos constitutivos não estão, todos, vinculadosa um mesmo Estado, ou seja, ele apresenta umelemento de extraneidade. O chamado critérioeconômico para classificar um contrato comointernacional leva em consideração o fato de aoperação pôr em causa os interesses do comérciointernacional; o Professor Delebecque observa queesse critério é o mais utilizado para apreciação docaráter internacional de um pagamento. Cf.DUTILLEUL, DELEBECQUE. Contrats civils etcommerciaux. 2ème. ed. Dalloz, p. 20, nota 2.

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respeito à responsabilidade pelo rompimentodas tratativas neste plano internacional. Omesmo ocorre no âmbito das negociações queantecedem o contrato no plano nacional,constituindo fato notório a influência queexercem os mecanismos praticados na esferainternacional sobre aspectos do Direito interno,mormente na área dos contratos. Isso se deve,sem dúvida, à maior agilidade com que semovem os operadores do Direito na esferainternacional, flexibilizando e atualizandoformas de contratação que se mostram maisadequadas às necessidades do tráfico jurídico.Ainda que todas essas afirmativas sejamincontestáveis, a verdade é que não existeunanimidade a respeito das conseqüênciasjurídicas o que acarreta o rompimento injusti-ficado das tratativas do contrato, sendo parcasas manifestações por parte da Doutrina e dajurisprudência. Assim sendo, uma reflexãosobre a matéria, feita à luz do Direito Com-parado,pode resultar em aclarações úteis aojurista e ao magistrado.

Para bem introduzir o assunto que ocuparánossa atenção durante os próximos 20 minutos,devemos, antes de tudo, inserir o contrato,assim como as suas preliminares, nos sistemas2

jurídicos em cujos limites será esta temáticaanalisada,porquanto o conceito de contratodepende estreitamente do ordenamento em quese insere.

Em primeiro lugar, pois, serão examinadas,à vol d’oiseau, as características do sistemacontinental europeu, denominado romano-germânico, devido ao fato de ter sido desen-volvido e praticado nas Universidades européiasde origem latina e também nas de raizgermânica, a partir do século XII. Este sistematem, entre outras, as características daCodificação: a separação entre Direito materiale processual e a divisão do Direito privado emcivil e comercial.

Em segundo lugar, examinar-se-á o sistemade direito privado latino-americano, profun-damente marcado por influências européias. Aprimeira delas é representada pelas Ordenaçõesdo Reino vigorantes no período colonial, tantonas colônias espanholas, como no Brasil,colônia lusitana, e no caso brasileiro, aindamuito tempo depois da Independência, pois o

Código Civil, devido a motivos vários, tardoua ser publicado. A segunda influência naAmérica latina foi a francesa, cujos modelos,osCódigos civil de 1804 e comercial de 1808,foram adaptados ou servilmente imitados, emgrande parte, pelos legisladores nacionais.

Um terceiro modelo a ser referido é opandectista da Escola de Savigny, calcado noDigesto ou Pandectas3, e que mais tarde teriagrande influência na comissão elaboradora doBGB de 1900, ainda que Savigny fossecontrário à Codificação, por considerá-laprejudicial ao Direito, concebido comoelemento integrante da noção de cultura...

De tudo isso, resultaram, na AméricaLatina, legislações de cunho mais ou menosindependente, mas todas, inegavelmente,integrantes da família romano-germânica,porquanto já as antigas metrópoles delaparticipavam, da mesma forma que os modelosfrancês e pandectista, adaptados pelas repú-blicas sul-americanas.

É interessante observar que, entre aslegislações em vigor na América Latina, osistema jurídico do Brasil apresenta algunstraços que o distinguem dos demais, no sentidode ser nítida a presença da influência dasPandectas, sobretudo no âmbito do Direitocontratual. Em vista dessa particular perspec-tiva, tanto o contrato como as fases pré e pós-contratuais merecem um tratamento distinto doque é dado às mesmas questões, nos sistemasem que prepondera inspiração fundada no CodeNapoléon.

Outro aspecto a ser salientado, no Direitobrasileiro, é o de que a relação jurídicaobrigacional é concebida como um processo4,

2 Na linguagem jurídica corrente, o uso do termosistema para indicar o ordenamento jurídico écomum. V. a respeito, BOBBIO, Norberto. Teoriado ordenamento jurídico. Brasília : Ed. UnB; SãoPaulo : Polis, 1989.

3 É importante salientar que na Escola Pandec-tista, Pandektistik, precisamos distinguir diferentesperíodos: a Escola Histórica, durante a 2ª metadedo século XIX, a Jurisprudência dos Conceitos,Begriffsjurisprudenz, cujos inícios são registradosa partir de 1850, e as últimas décadas nas quaisvárias tendências se fizeram sentir. Um dos maisrenomados autores pandectistas, Bernard Windsheid,definia esta doutrina da seguinte maneira: compre-ende-se sob o nome de Pandectas a totalidade dodireito privado alemão de origem romana. Ver arespeito, IONESCU, Octavien. Le problème de laPartie Introductive du Code Civil. RIDC, n. 3, p.579 e segs. e COING , Helmuth. German Pandektistikin its relationship to the former ius commune.TheAmerican Journal of Comparative Law, v. 37, p. 09,winter 1989.

4 O divulgador dessa concepção da relaçãojurídica obrigacional no Brasil foi o renomado jurista

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destinado ao adimplemento, devendo, paratanto, transpor as partes etapas sucessivas,integradas por inúmeros deveres da maisvariada natureza, comportando-se, uma emrelação a outra como colaboradores e não comoindivíduos situados em posições antagônicas,sem comunicação entre si, como ocorre nossistemas em que predomina a influência doDireito Canônico5, afirmação que vale,sobretudo, para os ordenamentos francês,italiano e espanhol. A cooperação entre aspartes, devido à presença do pandectismo, éregida por princípios, destacando-se os daconfiança e o da boa-fé.

Constitui fato singular que estes princípiosde grande alcance e larga aplicação nas regiõesque hoje formam a Alemanha, desde épocasremotas, v.g., nos Tribunais das Ligas Hanse-áticas e também nas Repúblicas do Adriático6,tiveram grande impulso no período posterior à

Codificação alemã, intensamente marcadapelos princípios da Ética Protestante, sejamaplicados e interpretados no Brasil, à maneirados tribunais alemães, tal como o fazem juízese doutores inseridos nos ditames da moralprotestante7.

Por fim, o sistema do Common Law,dotado de características que lhe conferemum status especial em meio a todos os seuscongêneres, é um produto da História compouca ou quase nenhuma interferência delegislador nacional, considerado comoaberto, não baseado na lei8.

Sua concepção de contrato é bastantepeculiar, pois fundada em aspectos econômicos:além da troca de consentimentos, é acrescidoda consideration9, a contrapartida, sem a qualo contrato não se pode formar. Por não existiruma consideration no período que antecede a

Clóvis do Couto e Silva, em seus numerosos estudos,entre os quais merece destaque a obra A obrigaçãocomo processo. São Paulo : Bushatsky, 1976.Segundo o autor, a concepção da obrigação comoprocesso é, em verdade, somente adequada àquelessistemas nos quais o nexo finalístico tem posiçãorelevante. E segue: a obrigação vista como processocompõe-se, em sentido largo, do conjunto deatividades necessárias à satisfação do interesse docredor. p. 10 e 11.

5 A presença de elementos do Direito Canôniconos sistemas jurídicos da Família Romano-germânica remonta aos tempos da formação do juscommune, em Bolonha, ponto de encontro do CorpusJuris Civilis e do Corpus juris canonici. Diz-se quea mútua influência determinou uma cristianizaçãodo Direito Romano e uma tecnização do DireitoCanônico. Exemplos do canonismo em muitos dosordenamentos jurídicos ocidentais não faltam: aregulamentação do casamento, o respeito pela pessoa(pois, pelo batismo, todos tornamo-nos filhos deDeus), a boa-fé, que transforma a posse, o respeitoàs últimas vontades modifica aspectos dos testa-mentos, a noção moderna de personalidade jurídica,o valor do consentimento no contrato... SegundoRené David, o direito canônico constitui, semdúvida, tanto ou talvez mais que o direito romano, amais gigantesca tentativa de unificação do direitojamais empreendida, nos mais diversos setores.

V. o excelente trabalho de CAPARROS, Ernest.Les racines institutionnelles des droits occidentauxdans le Droit Ecclesiastique.in K.D. Kerameus (éd.)Rapports généraux présentés au XIV e CongrèsInternational de droit comparé, Athènes, juillet /août1994, 1995, p. 7 e s.

6 A este respeito, consulte-se a interessantemonografia de MEYER, Rudolf. Bona Fides undLex Mercatoria in der europäischen Rechtstradition.Wallstein Verlag Göttingen, 1994.

7 A presença de elementos da moral nos doisCódigos que maior influência exerceram no mundoocidental e, em parte, também no Oriente, é inegável,a ponto de Carbonnier, Jean, referir-se a umjansenismo jurídico, em relação ao Code Napoléon;quanto ao BGB de 1900, a moral protestante e osensinamentos de Kant explicam muitas das soluçõesescolhidas pelo Legislador e até mesmo certoscomportamentos da jurisprudência, por exemplo, adificuldade em sancionar civilmente os danospuramente morais ou fundar a responsabilidade civilno risco. Para melhor compreender o espírito dosprotestantes, ver, de Max Weber, L’éthiqueprotestant et l’esprit du capitalisme. PLON, 1964.

8 O Direito inglês é, por sua origem, um direitojurisprudencial, elaborado pelas Cortes deWestminster (Common Law) e pela Corte daChancelaria (equity). A lei, denominada statute,desempenhou um papel secundário na história doDireito inglês, limitando-se a contribuir comcorretivos ou complementações à obra da juris-prudência. Nos dias atuais, a lei e os regulamentos(delegated legislation) não mais são consideradosde nível secundário ou supletivo. Existem outrasfontes muito importantes, mesmo que não tenham omesmo valor da jurisprudência e da lei: o costume,a doutrina e a razão. Outro elemento importante é aregra do precedente. Ver, por todos, DAVID,SPINOSI, Les grands systèmes de droit contem-porains. Dalloz, 1992.

9 A noção clássica de consideration é a decontrapartida de um negócio: eu vendo meu carro, ocomprador deve transferir-me uma soma emdinheiro. Sua origem remonta ao século XVI, quandoo recurso denominado assumpsit transformou-se emrecurso geral em matéria contratual, o direito inglêsdecidiu que ele não seria admitido para toda equalquer forma de violação da promessa, excluindo,sobretudo, as promessas a título gratuito. Somente

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relação contratual, não admitem os juristasingleses, na fase dos pourparlers, um esboçode contrato e, em conseqüência, respon-sabilidade civil em caso de ruptura abusiva danegociação; outro elemento valioso paraidentificar os contornos tão peculiares dosistema contratual da Common Law é oliberalismo econômico, expresso na máximalatina caveat emptor, que representou, atépouco tempo, um obstáculo à adaptação dodireito inglês a muitas das diretivas da UniãoEuropéia, mormente as referentes à proteçãodos consumidores.

Uma corrente doutrinária, contrária àconsideration, liderada pelo Professor Atiah,inspirado por um artigo americano, de autoriade F. Kessler e E. Fine10, afirma que entre aspartes existe uma reliance, uma confiança, desorte que toda a responsabilidade seria fundadaem uma esperança frustrada, daí o direito àreparação.

Mais recentemente, o desenvolvimento daanálise econômica do Direito conduziu osjuristas norte-americanos a fundamentar aresponsabilidade pré-contratual com a utiliza-

ção da teoria dos jogos, a games theory, cujoembasamento se encontra, entre outroselementos, na aplicação de noções matemáticasàs relações sociais11.

O tema que nos cabe analisar, dano pré-contratual, presta-se, admiravelmente, a umaanálise de cunho comparatista, porquanto seutratamento depende da noção de contrato emcada sistema jurídico12.

Nesse sentido, o contrato, fundado noconsensualismo e no princípio da autonomiade vontade, é concebido à maneira canônicano sistema do Code Napoléon e nos ordena-mentos que dele se inspiraram, considerandoas partes antagônicas entre si, enquanto o BGBo define como uma relação cooperativa ,iluminada por princípios como a autonomiaprivada e a confiança legítima, dos quaisderivam uma série de outros princípiosnorteadores do tráfico jurídico, como o daconfiança e o da boa-fé objetiva.

O sistema da Common Law, como vimos,erigiu a consideration como elemento essencialà existência do contrato, daí, onde não houvercontraprestação, não haverá contrato, logo, nãohaverá responsabilidade civil.

A esta altura de nossa comunicação, já cabeuma pergunta:

Quais as formas de relacionamento pré-contratual admitidas no tráfico jurídico emgeral?

Ora, a resposta é difícil, pois este períodoque antecede o contrato é constituído por umconjunto de fatos, em que não existem regras

o autor que tivesse prestado uma consideration, istoé, o autor em estado de provar que ele tinha fornecido(ou iria fornecer) ao réu uma prestação, ou que, deacordo com um pedido expresso ou implícito dovendedor, tivesse confiado em uma promessa dele ehouvesse experimentado um prejuízo, poderia obtersatisfação com fundamento em um contrato.

A interpretação clássica do sentido da conside-ration é, há algum tempo, contestada nos EstadosUnidos e na própria Inglaterra, por Atiah, mas issonão quer significar que a concepção tradicional sejafalha, ou que tenha perdido validade. A discussãosuscitada pelo aparecimento dessa correte contráriaà consideration teve um resultado positivo,porquanto esclareceu diversos aspectos do direitodos contratos e suas relações com os demais ramosdos contratos. Ver, por todos, MARKESINIS, BasilS. La notion de consideration dans la common law:vieux problèmes : nouvelles théories. RIDC, n. 4, p.735 e segs., 1983.

10 No artigo intitulado Culpa in Contrahendo,Bargaining in Good Faith, and Freedom of Contract :A Comparative Study, publicado na, Harward LawReview, n. 77, p. 401-408, 1964, dada a analogiadas estruturas comerciais e industriais nassociedades ocidentais, não existe uma impos-sibilidade absoluta de recepção da doutrina da culpain contrahendo, de origem romano-germânica, noâmbito do direito anglo-americano. Os autores antesreferidos utilizaram como técnica de pesquisacomparatista, a praesumpsio similitudinis. V.ZWEIGERT, K., KOTZ, H. An introduction toComparative Law. Oxford, 1987. v. 1, p. 36.

11 A games theory é de origem germânica, e seusistematizador foi um matemático alemão, vonNeumann, in Zur Theorie der Gesellschaftsspiele,in Math. Annales, 1928. A teoria dos jogos refere-se ao jogo da estragégia que utilizam as partesquando entabulam negociações cujo objetivo échegar ao contrato. Sobre o assunto há inúmerasobras e artigos doutrinários. Ver, sobretudo, KATZ,Avery. The strategic structure of offer and accep-tance : game theory and the law of contractformation. Michigan Law Review, v. 89, nov. 1990,p. 215 e segs.; COSTANTINO, Michele. Regole digioco e tutela del più debole nell’approvazione delprogramma contrattuale. Riv. dir. civ., 1, p. 68 e segs.,1972.

12 Além disso, a utilização do método compa-rativo permite, muitas vezes, ao intérprete e aoaplicador, encontrar solução para uma situação nãoregulada no sistema onde está atuando. É o que vemocorrendo com o tema das tratativas pré-contratuais.V. por todos, ZWEIGERT, Konrad. Rechtsver-gleichung als universale Interpretationsmethode.Rabel’s Z., 1949/50, p. 5 e segs.

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pré-estabelecidas, e no qual as negociações sãosubmetidas à liberdade, que deriva do princípioda autonomia da vontade, fundamento dodireito dos contratos. Mas o que é sempreverdadeiro é que se trata de área circunscritaao chamado não direito, o non-droit dosfranceses, expressão tão ao gosto do juristasociólogo M. Jean Carbonnier.

Para outros juristas, como Couto e Silva, afase pré-contratual estaria adstrita ao terrenodo contacto social, no qual a proximidade entreas partes não é tão próxima como num contratojá constituído, mas onde, não obstante, já éexigido um comportamento pautado pelalealdade, pela confiança, logo, cooperativo.

É fase que corresponde ao âmbito doprojeto, das diversas formas de construção dofuturo contrato, elaborado pouco a pouco, emcamadas sucessivas, par couches successives,e que pode assumir denominações variadas, porexemplo, acordo de princípio, pourparlers,punctuação, intent letter, memorandum ofintent, engagement d’honneur ou gentlemenagreement, etc. com pouca ou nenhumadiferença entre si.

O que existe de comum em todas essashipóteses é o fato de as partes utilizarem aformação sucessiva do contrato, sem preocu-pação com a construção de uma vontade decontratar.

Outra observação a ser feita é a de que, nosdias atuais, a fase preliminar ao contrato édeveras importante, sobretudo se o contrato nãochega a tomar forma, tendo, contudo, existidouma negociação, um acordo de princípio, quesupõe uma possibilidade de reviravolta quandoa execução do acordo estiver melhor definidaou avaliada, mesmo não havendo previsão decondições. Assim, o terreno é sempre movediço,o acordo de princípio, seja qual for a deno-minação, pode significar uma futura aceitação,uma aceitação sob certas reservas ou ainda areserva de uma possibilidade de recusar ouaceitar o futuro contrato. Como se percebe, esteé um terreno caracterizado pela total ambi-güidade, o que não se coaduna com o direitoprivado em geral13.

Num estudo como este, ainda que dereduzidas dimensões, não se pode deixar dereferir a importância da fase pré-contratual naárea dos Contratos Internacionais, que têmcomo uma das suas características, justamente,o aspecto contraditório, se comparado com ocontrato analisado no plano interno; até oúltimo momento a prática que predomina, entreos negociadores internacionais, é a de nãoocorrer uma vinculação. E como as tratativasno âmbito do comércio internacional são,geralmente, mais extensas e duradouras, porenvolverem representativas somas de dinheiro,os danos que a falta de consideração à outraparte acarretem, podem ser de alguma monta.

Postas estas premissas, necessárias paraintroduzir o tema principal de nossa comu-nicação, devemos nos deter na questão daspossíveis sanções para a utilização abusiva dafaculdade de não contratar, a freedom not tocontract, regra liberalista da Common Law.

Para uma melhor perspectiva do problemaa ser aqui discutido, utilizaremos o métodocomparativo, tomando como exemplo, noDireito Continental europeu, os sistemasfrancês e alemão, que mais interessam a nós,latino-americanos, dada a recepção deles emnosso continente; no que tange ao direito nãocontinental, ou seja, a Common Law, ossistemas inglês e americano do norte.

De acordo, pois, com o que viemos escla-recer, dividiremos nossa comunicação em duaspartes: num primeiro momento, trataremos dassoluções oferecidas pelos dois grandes sistemascontinentais europeus para sancionar orompimento culposo das negociações preli-minares e em seguida, nos deteremos no sistemada Common Law, a título ilustrativo; numsegundo momento, analisaremos a questão apartir de um ponto de vista latino-americano.

2. As reações ao comportamentoculposo na fase pré-contratual:

as soluções francesa e alemãComo já foi antes referido, as reações às

violações na fase que antecede o nascimentodo contrato dependem da noção de contratovigente no sistema em foco e, sobretudo, dasinfluências doutrinárias, éticas e históricas quemarcaram o seu conceito. Nesse sentido,sabemos todos quão distintas são as concepçõesde contrato no âmbito do Code Napoléon e nodo BGB, elaborados, o primeiro sob inspiraçãoindividualista e liberal, e, no plano moral, à

13 Situação diversa ocorre quando constatamosa existência de um engagement d’honneur. Nessecaso, as partes estipulam, de antemão, que o acordode vontades não é obrigatório. A relação que seestabelece está situada no âmbito da moral, fora daárea de abrangência do Direito estatal e até mesmodas soluções arbitrais. A respeito do assunto,consulte-se o excelente trabalho de NAJJAR,Ibrahim. L’accord de principe. Dalloz, 1991. Ch.13, p. 57 e segs.

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luz do jansenismo, enquanto o segundo, umaconstrução artificial, eis que fundada nasPandectas, dominado por uma série deprincípios, dos quais o mais importante é o daconfiança, base de toda a estrutura elaboradapelos alemães, povo de vendedores que, paratornar seu comércio atrativo, dotaram o Direitoprivado de inúmeros mecanismos de segurançajurídica; no que diz respeito à moral, predo-minam os princípios originários da éticaprotestante.

Pois bem, para analisarmos as soluções quevisam o reconhecimento da responsabilidadepré-contratual, levaremos em conta estas duasdistintas concepções de contrato.

2.1. A solução francesa: colocaçãode limites à liberdade contratual:

a figura do abuso de direito

Nenhum legislador ocidental teve tãogrande preocupação com a liberdade contratualcomo o francês, autor do Code Napoléon, poisessa é uma conseqüência lógica do indivi-dualismo e do liberalismo em grau máximo,adotado pela França, no período pós-revo-lucionário. O indivíduo é livre, tanto paravincular-se, como para não se vincular. Nesseponto situa-se a análise que estamos a efetuar.Não há contrato, mas existiu o fato de terem aspartes contactado, discutido, tentado negociar,sem, contudo, chegar a um denominadorcomum, e se disso tudo resultou um prejuízo, euma culpa foi detectada, assim como umarelação de causalidade entre uma e outra,estaremos diante de uma hipótese de respon-sabilidade extracontratual ou delitual. Aaveriguação da simples culpa, ainda que semintenção de prejudicar, caracteriza a figura doabuso de direito, cujo critério é a noção deculpa, pois não basta, para impor-se obrigaçãode indenizar pelo exercício de um direito, quetenha havido prejuízo a outrem, assim, oexercício de um direito acarreta respon-sabilidade; ele é abusivo quando culposo.

Um outro embasamento para fundar aresponsabilidade pré-contratual resultou daatividade jurisprudencial em França. Comefeito, em várias oportunidades, os juízesreferiram a perda de uma chance14, noção

tradicional no terreno da responsabilidade civil,como base para uma responsabilização por danopré-contratual.

Exemplo: rompimento brutal e unilateraldos pourparlers já bastante avançados15

engendra responsabilidade.As mesmas jurisdições, contudo, afastam a

responsabilidade pela ruptura das tratativasquando ela é motivada por divergênciaseconômicas surgidas entre as partes, como ainterrupção das negociações tendo em vista aconclusão de outro contrato em condições maisvantajosas.

Por outro lado, a existência de umaobrigação geral de boa-fé (art. 1.135 do CodeNapoléon: “Les conventions obligent nonseulement à ce qui est exprimé, mais encore àtoutes les suites que l’équité,l’usage ou la loidonnent à l’obligation d’après sa nature”)exigível na fase da formação dos contratos, devereger o comportamento das partes durante asnegociações preliminares: uma negociaçãopode ser encerrada sem que haja contrato, poisessa faculdade decorre do princípio daautonomia de vontade; o que não se admite érompê-la após ter suscitado na outra parte aconfiança de que um contrato será concluído.Tal atitude acarreta a responsabilidade.

Tendo em vista nosso propósito inicial, derealizarmos este breve estudo em perspectivacomparatista, passemos a analisar outroordenamento jurídico, o alemão, também dafamília romano-germânica, mas dotado decertos traços que lhe são deveras peculiares.No ordenamento regulado pelo BGB, aresponsabilidade pré-contratual é mais facil-mente admitida, porque mecanismos jurídicossubjacentes permitem admitir a responsa-bilização por violação de deveres, ainda na fasepré-contratual.

14 São inúmeras as oportunidades em que alguémpode alegar perda de uma chance. Esta é uma criaçãojurisprudencial francesa e tem tido um grandedesenvolvimento no campo da responsabilidadecivil, a ponto de um autor ter afirmado que hoje há

um abuso da teoria da perda de uma chance. Deuma forma muito singela, pode-se dizer que a perdade uma chance ocorre quando uma situação, pordefinição vantajosa para a futura vítima, compor-tava uma álea e se, por causa do réu, esta áleadesapareceu, levando consigo as chances quepossuía o autor de conservar uma situação benéficaou de vê-la concretizar-se.Ver, a respeito, entreoutros, CHABAS, François. Leçons de droit civil :obligations. Montchrestien, 1991, v. 1, t. 2, p. 412 esegs.

15 Cf. decisão da Corte de Cassação francesa,datada de 20 de março de 1972:... rompu sansraisons légitimes, brutalement et unilatéralement lespourparlers avancés. Cit. por SCHMIDT, Joanna.La sanction de la faute précontractuelle. RTDCiv. ,v. 72, p. 46 e segs., 1974.

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2.2. A proteção da confiança, reflexo danecessidade de segurança no tráfico jurídico

É por todos sabido que o sistema de DireitoPrivado alemão é constituído por alguns pilares,sobre os quais se ergue a monumental cons-trução que é o BGB. O primeiro pilar, pois, éconstituído pelo princípio da autonomiaprivada (privat autonomie), expressão daautodeterminação de que é dotado todo oindivíduo capaz de agir no ordenamentojurídico e que pode estabelecer, pela vontade,efeitos jurídicos reconhecidos pela lei.

O segundo pilar está representado peloprincípio da confiança (Vertrauensgrundsatz),reflexo da moral social que, no dizer dos juristasalemães, irriga o seu Código Civil16. Esseprincípio da confiança, fonte de vários deveres,dos quais o mais importante é o de agirem aspartes, na relação contratual, com lealdade,pode ser desdobrado em dois aspectos distintos:

Em primeiro lugar, esse princípio, comoantes referido, reflete a moral social, e, assimcomo a autonomia de vontade, tem aplicaçãoquando os indivíduos participam, volun-tariamente, no tráfico jurídico; em segundolugar, o mesmo princípio da confiança pode tercomo fundamento a necessidade de segurançado tráfico jurídico , tão cara ao legisladoralemão, imbuído da preocupação de dotar osistema de direito privado germânico deelementos atrativos ao comércio, destacando-se dentre estes, como lógico, a segurança. Nessesentido, utilizam alguns autores a expressãoVertrauens – und – Verkehrsschutz (confiançae proteção do tráfico)17. Nessa perspectiva, oprincípio da confiança vem sendo invocado como objetivo de neutralizar certas cláusulascontratuais, bem como o exercício de direitossubjetivos de forma abusiva. Destarte, o prin-cípio da confiança se vincula à idéia deresponsabilidade pessoal, a Selbstverantwortung.

Ainda com relação aos princípios derivadosdo Vertrauensgrund, jurisprudência e doutrinaalemãs têm alargado o âmbito de aplicaçãodo princípio da boa-fé18 em sentido objetivo,de modo que esse tenha aplicação em todo odireito, não apenas no direito das obrigações.De acordo com essa interpretação extensiva,os direitos subjetivos em geral devem serexercidos dentro dos limites do princípio daboa-fé, o que torna o parágrafo 242 umexcelente instrumento também na luta contrao abuso de direito.

Inúmeras são, no Direito privado alemão,as manifestações da tutela da confiança noDireito dos contratos. Dadas as característicasdeste trabalho, nos deteremos em apenas duasdessas manifestações: a culpa in contrahendoe a proibição de venire contra factum propriumque podem servir de fundamento para aresponsabilização daquele que violou aconfiança da contraparte ainda na fase pré-contratual.

2.2.1. UMA DESCOBERTA DE VON IHERING:A NOÇÃO DE CULPA IN CONTRAHENDO

Deve-se a von Ihering, no ano de 1861, aformulação da teoria da culpa in contrahendo,inspirado no espírito que norteara o CorpusJuris de Justiniano, cuja análise permitiu-lheencontrar o fio condutor que reúne hipótesescomo a do contrato inválido ou aquele cujoobjeto é impossível, o erro unilateral, arevogação da proposta antes da aceitação, e,ainda, a incapacidade superveniente doproponente. O aparente âmbito restrito em quea teoria foi concebida por von Ihering nãoobstou que fosse qualificada como uma notáveldescoberta, pois abriu caminho para a soluçãode problemas outros, antes nunca analisados19.Destarte, a culpa in contrahendo passou a seradmitida como uma figura geral e em termos

16 São relacionados ao Vertrauensgrundsatz,algumas das mais importantes regras do Direitoprivado alemão, v.g., o princípio da boa-fé objetiva,previsto no parágrafo 242, a obrigação de inter-pretarem-se as declarações de vontade de acordo como horizonte do destinatário, a obrigação de serreparado o interesse negativo, quando se constateuma declaração de vontade fundada em erro (sit.prevista no parágrafo 122 do BGB)... e muitas outras.V. a respeito, LARENZ, K. Allgemeiner Teil,paragraph 2 IV; WITZ, Claude. Droit PrivéAllemand. LITEC, 1992, p. 109 e segs., PÉDAMON,Michel. Le Droit allemand. PUF, 1985.

17 V. WITZ, op. cit., p. 110, e nota 17.

18 De acordo com o parágrafo 242 do BGB, odevedor deve executar a prestação como o exige aboa-fé, levando em consideração os usos de tráfico,e, no original, Der Schuldner ist verpflichtet, dieLeistung so zu bewirken, wie Treu und Glauben mitRücksicht auf die Verkehrssitte zu erfordern.

19 O jurista brasileiro Couto e Silva consideravaa culpa in contrahendo uma notável descoberta nocampo da dogmática jurídica, pois graças à pesquisade von Ihering, novos e modernos conceitos foramtrazidos ao Direito das obrigações, como porexemplo, o de Quebra Positiva do contrato,resultado da pesquisa de Staub, inspirado deconceitos semelhantes, originários da tradiçãojurídica da Common Law.

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amplos, no sistema do BGB, graças aos esforçosda doutrina e jurisprudência germânicas.

A descoberta de von Ihering sobreviveu àCodificação de 1900, e a Doutrina interpretoua culpa in contrahendo à luz do BGB,fornecendo, logo após à publicação do CódigoCivil, elementos para a imposição de umaobrigação geral de correção nas tratativas20.

Como se percebe, é possível aplicarem-sedeveres decorrentes do princípio da confiançaque preside o direito dos contratos, a umasituação não contratual, como, por exemplo,em relação à fase das tratativas, pourparlersou punctuações...etc., e a responsabilidadedecorrente é extracontratual, mesmo que seadmita que a culpa in contrahendo derive deuma espécie peculiar de contacto social, o queprecede a fase contratual. Ainda assim, certosautores afirmam ser esta responsabilidadecontratual, mesmo não existindo, todavia,contrato, pois ela acarreta conseqüênciasdistintas das que defluem da responsabilidadedelitual. Somente para exemplificar, citaremosWolfang Fikentscher21, para quem existe umdireito costumeiro determinando a aplicação daresponsabilidade contratual às hipóteses daculpa in contrahendo. Segundo Couto e Silva,esta é uma construção artificial, reafirmando anatureza da responsabilidade pré-contratualcomo delitual22.

A doutrina alemã vem, há longo tempo,detectando casos que configuram exercício dedireito em desacordo com a boa-fé (treuwidrigeRechtausübung), mas reconhece que é impos-sível resumir, de maneira sintética, todas ashipóteses. Assim sendo, o exame da juris-prudência permitiu agrupá-los em categorias,os denominados Fallgruppen, e, entre eles,vamos destacar apenas um, o do venire contrafactum proprium, igualmente suscetível dedesdobramentos vários. Trata-se de um agir dotitular de um direito, que se põe em contradiçãocom a conduta anteriormente adotada e na

qual a contraparte havia confiado23. De acordocom esse entendimento, o fato de alguémportar-se dando a impressão de que agiria nosentido de contratar e bruscamente, sem motivoreal, pusesse um ponto final nas negociações,estaria configurada uma situação de venirecontra factum proprium, violação do princípioda boa-fé em sentido objetivo.

Prosseguindo nesta nossa análise compa-ratista, deslocaremos nosso foco de atenção parao sistema da Common Law.

2.3. Uma esperança frustrada: fundamento daresponsabilidade pré-contratual no sistema da

Common LawOs tribunais norte-americanos e ingleses

admitem, tradicionalmente, que as partesentrem em negociação (freedom of negotiation),sem o risco da responsabilidade pré-contratual,pois, de acordo com as regras da oferta e daprocura, não existe responsabilidade enquantoo contrato está em formação, ou seja, antes quea oferta receba uma aceitação.

Vigorou, até poucos anos, entre os norte-americanos concepção segundo a qual o períodopré-contratual é de natureza aleatória, podendoser interrompido a toda hora, por váriosmotivos: mudança de opinião, alteração dascircunstâncias, percepção de que não é um bomnegócio, ou mesmo sem nenhuma razão. Oúnico custo desse comportamento seria a perdaque a parte teria em seu próprio investimentonas negociações em termos de tempo, esforçoe dinheiro 24.

A natureza aleatória da fase pré-negocialseria um limite para a liberdade de negociar,desencorajando as partes a fazê-lo. Mas amaioria das decisões, a partir do período apósa Segunda Guerra Mundial, admite a existênciade uma promessa implícita de negociar de boa-fé, não exatamente uma promessa de contratar25.

20 O autor em questão era Franz Leonhard, cujoartigo intitulava-se Verschulden beim Vertrags-schlusse,1910; a decisão da Reichsgericht, inspiradade Leonhard, data de 7 de dezembro de 1911, 78ERGZ 239. Cit. por CARUSO, Daniela. La culpain contrahendo : l’esperienza statunitense e quellaitaliana. Giuffrè, 1993. p. 8 e segs.

21 Shuldrecht. Berlin, 1985. parágrafo 20, II, 4,p. 66.

22 V. Principes fondamentaux de la responsa-bilité civile en Droit Comparé brésilien et comparé.Paris, 1988. Inéd.

23 O comportamento vedado na regra do venire,é de origem romana, e semelhante vedação pode serencontrada em quase todos os sistemas jurídicos,até mesmo nos da Common Law, que o recebeu coma denominação de estoppel. A respeito, consultar,entre muitos outros, WITZ, Claude, op. cit., p. 525,WIEACKER, Franz. El principio general de labuena fé. Cuadernos Civitas, 1982. p. 60 e segs.

24 Sob este aspecto, é importante a leitura deHOLMES, Wendell H. The freedom not to contract.Tulane Law Review, v. 60, p. 751 e segs. 1986.

25 V. caso Hoffmann v. Red Owl Stores, 26 Wis.2 d 683, 133, W. 2 d 267(1965), em que nenhumaoferta concreta fora feita por Red Owl, de modo que

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Outras bases têm sido aventadas e utilizadascomo fundamento para demandas por responsa-bilidade pré-contratual: a misrepresentation, ounjust enrichment e a general obligation of fairdealing. Essa última base para ação emresponsabilidade pré-contratual não tem sidobem aceita, porquanto as Cortes americanasinvocam o Uniform Commercial Code (§ 1-203obligation in good faith in...performance orenforcement) e o Restatement (Second) ofContracts (§ 205 duty of good faith and fairdealing in...performance and enforcement), nosquais a obrigação geral de negociar comcorreção, fair dealing, e good faith não éestendida à fase pré-contratual.

Outras observações podem ser feitas sobreessa temática, como por exemplo, as formasencontradas pela doutrina e pela prática parasuperarem-se tais problemas, os denominadosregimes intermediários, pelos quais sãoestabelecidos acordos preliminares, entre osquais, agreements in principle, agreements tonegociate, heads of agreements, agreements ofopen terms, agreement to negociate...

Além dessas, outra possibilidade existe noDireito norte-americano de regular, juridi-camente o período que antecede o contrato, aTeoria dos jogos, a seguir examinada, aindaque de passagem.

2.4. A formação do contrato e a teoria dosjogos,uma técnica das ciências exatas

A teoria dos jogos constitui uma contri-buição do mundo das ciências exatas, ao mundodo Direito, sendo seu criador o matemático vonNeumann26. O extraordinário desenvolvimentoda teoria dos jogos deve-se, sem dúvida, àvariedade dos setores nos quais pode seraplicada, por exemplo, à economia, aos tributos,à sociologia e à análise estatística.

De acordo com o pensamento de Neumann,as relações sociais nada mais são do que

espécies de jogos, de sorte que a maioria dosproblemas resultantes do contacto social podeter solução pela aplicação de fórmulasmatemáticas, porquanto as regras do relacio-namento social são semelhantes a regras dejogos. É evidente que a teoria refere-se ao jogocomo uma estratégia, e não como atividaderegida pelo acaso, ou pelo azar. No jogoentendido como estratégia, o resultado dependedas decisões que os jogadores deverão tomardurante o seu desenrolar, isto é, durante a fasepreparatória do contrato. A teoria procuraexplicar de que maneira é possível estabelecera melhor estratégia para cada um dos jogadores:o ofertante e o provável comprador. Nessesentido, os jogos praticados em sociedadeconstituem um bom exemplo de jogos deestratégia, mas as aplicações vão muito maislonge no que concerne ao problema doprograma contratual; a teoria admite uma visãomais realística dos problemas econômicos quenão são percebidos na concorrência perfeita.Assim, é possível detectarem-se certas seme-lhanças, na relação negocial, com o compor-tamento de jogadores.

Essa teoria é hoje um dos vários métodossofisticados com os quais os norte-americanosvêm estudando as relações econômicas, bi ouplurilaterais, ainda não reguladas por meca-nismos jurídicos, nem relacionadas a umsistema de promessas legalmente coercíveis. Ateoria dos jogos traz um novo alento à análiseeconômica do direito dos contratos, poisenfatiza o comportamento estratégico das partesem uma negociação, entrando no jogo idios-sincrasias individuais, elementos de causa-lidade, aspectos temporais, e até mesmoimprevistos, como a morte. A análise feita àluz dessa teoria utiliza técnicas sofisticadas,como incorporar em estudos formais umnúmero impensável de variáveis e tentaraproximar sensivelmente os modelos abstratosà realidade27.

O jogo da aprovação do programa contra-tual, iniciado na fase das negociações pré-contratuais, consiste em uma proposta, quedeverá ser aceita pela outra parte; o destinatárioda proposta pode inverter as posições, fazendooutra proposta; nesse caso, o jogo recomeça. Adecisão do proponente exprime o ponto de vistadesse jogador em relação às circunstâncias nasquais ele se encontra e o fato de que o aceitante

foi impossível avaliar a expectativa perdida deHoffmann, e o que ele recobrou foi medido em razãode sua reliance, houve um direito a mensurar umaoportunidade perdida, porque o autor agiu em funçãoda confiança advinda da promessa. A decisãobaseou-se, pois, na consideração a uma promessaque não se concretizou, mas que havia gerado umaconfiança. Esta é uma decisão bastante interessante,mas que tem sido lembrada inúmeras vezes nosmanuais sobre contratos, mas pouco na Juris-prudência.

26 Autor da Zur Theorie des Gesellschaftsspiele,in Math. Annales, 1928.

27 Sobre uma visão resumida da teoria, consultarCOSTANTINO, Michele. Regole di Gioco e tuteladel piu’debole nell’approvazione del programmacontrattuale. Riv. Dir. Civ. , v. 1, p. 68 e segs. 1972.

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deva informar-se, demonstra que, na hipóteseem que a aprovação do programa contratualseja precedida de tratativas, vencerá o jogadorque fizer a primeira jogada ou movimento. Oconceito de circunstâncias em que se toma umadecisão é muito utilizado pelos adeptos dateoria dos jogos, identificando-o com atotalidade das informações sobre o andamentoprecedente do jogo que, naquilo que se refereàs regras, é utilizável pelo jogador no momentoem que deve tomar uma decisão. Assim sendo,na fase das tratativas, deve-se necessariamentepresumir que cada um dos contratantes estejaplenamente informado do real conteúdo docontrato, de sorte que é possível avaliar aestratégia seguida pelo jogador/perdedor, ou oque não obteve vantagens; deve igualmente serexaminada a possibilidade de valorar-se o planocompleto do comportamento que caracteriza aconduta do predisponente, pois as circuns-tâncias de que dependem a aprovação podemser previstas.

Na verdade, a função precípua do teóricoda teoria dos jogos é a de tentar antecipar asmanobras dos jogadores, empregando, paratanto, as informações iniciais, mesmo que elassejam, às vezes, reduzidas. Um importanteinstrumento de trabalho é o conceito dedensidade das probabilidades, pois ele permiteextrapolar a communis opinio e traduzir emcifras as informações relativas à distribuiçãode preços, ou prever a freqüência com queclientes de alto poder aquisitivo (e não apenasmodestos consumidores) responderão aos seusreclamos comerciais.

Enfim, para um melhor entendimento destatécnica aparentemente tão sofisticada, sinte-tizá-la-emos nos seguintes termos: ela servepara que o operador jurídico possa ser guiadoou conduzido, por meio de uma tipificação daesperteza ou da astúcia, obtida pelo empregode termos matemáticos-formais. Essa teoria,cujos contornos vimos apresentar, oferece umasérie de modelos de negociações, pautados porestratégias, cuja utilização deve permitiratingir-se o objetivo colimado, o de êxito nastratativas. É evidente que em espaço tão redu-zido, não é possível examinar a matéria com omerecido aprofun-damento.

Da extensa bibliografia sobre o tema,selecionamos algumas obras de leitura obri-gatória, para quantos quiserem penetrar nosmeandros dessa fascinante teoria dos jogos28.

Visto como é tratada a questão da respon-sabilidade pré-contratual em dois grandessistemas jurídicos, o romano-germânico e o daCommon Law, passaremos ao exame do temano âmbito latino-americano, restringindo nossaanálise a três ordenamentos, a Argentina, oBrasil e o Paraguai.

Nessa análise serão levados em conta osaspectos definidores da família romano-germânica, antes referidos, e que se ajustamaos sistemas latino-americanos, membros dessafamília por causa da colonização européia noCone Sul.

Dispõe o artigo 1.198 do CCA, los contratosdeben celebrarse, interpretarse y ejecutarse debuena fe y de acuerdo con lo que vero-símilmente las partes entendieron o pudieronentender, obrando con cuidado y previsión.

De acordo com o disposto no texto do art.1.198, podemos depreender que o dever de boa-fé estende-se à fase da negociação pré-contratual. Mas boa-fé em que sentido? Se otexto refere-se ao sentido objetivo, então aresponsabilidade pré-contratual, no sistemaargentino, teria como base a violação doprincípio da confiança legítima, base de todasas negociações, e alicerce da segurança jurídica,cuja expressão maior é o princípio da boa-fé,redigido no parágrafo 242 do BGB , nosseguintes termos: o devedor é obrigado acumprir a obrigação segundo exige a boa-fé,levando em conta os usos de tráfico . Sãojustamente os usos de tráfico que determinamcertos comportamentos, exigíveis já na fase pré-contratual29.

Com relação ao Brasil, embora o princípioda boa-fé não tenha tido acolhida expressa, emartigo do Ccb de 1916, é pacificamente aceitocomo categoria de princípio pré-positivo, istoé, existente antes de sua adoção por uma regrade direito. A aplicação desse princípioflexibiliza certas soluções, reputadas demasiadorigorosas.

28 Ver, por exemplo: KATZ, Avery. The StrategicStructure of offer and acceptance : game theory andthe law of contract formation. Michigan Law Review,

v. 89, p. 215 e segs. 1990; COSTANTINO, Michele.Regole di Gioco e tutela del piu’debole nell’appro-vazione del programma contrattuale. Riv. Dir. Civ. ,v. 1, p. 68 e segs. 1972; FERRI, G.B. Considerazionisul problema della formazione del contratto. Riv. Dir.Civ., v. 1, p. 187 e segs. 1969; CARUSO, Daniela.La culpa in contrahendo, l’esperienza statunitensee quella italiana. Giuffrè, 1993.

29 De acordo com a lição de Brebbia, deveriaocorrer uma aberta consagração do instituto daresponsabilidade pré-contratual na Argentina. V.BREBBIA, Roberto H. Responsabilidad precon-tratual. Rosario, 1957.

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A doutrina30 e a jurisprudência31 brasileirasestão abertas, em geral, à responsabilização pelaruptura das negociações, com base na aplicaçãodo PBF objetiva, se a ruptura ocorreu após ter-segerado uma certa confiança.

No âmbito do Direito paraguaio, não hámenção, no CC de 1987, de regulamentaçãoda fase pré-contratual e a referência ao PBFlimita-se a sua função de interpretação doscontratos. Ainda assim, acreditamos que épossível estender a exigência de comportamentoleal, de acordo com os usos de tráfico, no âmbitodo ordenamento privado paraguaio.

Como se vê, a regra sobre a qual repousa aregulação da fase pré-contratual é a do princípioda confiança, ao qual se relacionam outrosprincípios incidentes nas fases pré-contratuale contratual, como o da boa-fé em sentidoobjetivo, e o da proibição de venire contrafactum proprium.

Quais seriam, na prática, os deveres pré-con-tratuais de boa-fé, decorrentes dos usos de tráfico?

Estabelecer um elenco seria bastante difícil,pois ainda que o tráfico jurídico seja semelhanteem todas as partes, não é fácil elencarparâmetros de comportamento de acordo como tráfico jurídico. Tendo em vista essacircunstância, um renomado autor alemão,Hildebrandt32, sistematizou uma série de

deveres pré-contratuais, entre os quais: osdeveres de declaração (dever de informarexatamente sobre os fatos essenciais para aformação da vontade contratual da outra parte)e o dever de verdade, isto é, abstenção deproposições ou declarações inexatas sobre fatosessenciais.

3. ConclusãoEm todos os sistemas analisados, depa-

ramo-nos com uma zona de non-droit, ou docontato social mais remoto, e cada um delesreage distintamente e segundo suas carac-terísticas às violações da confiança geradas nafase das tratativas; é interessante lembrar quea confiança, neste caso específico, não é aquelatomada como expressão ou reflexo da moralsocial, mas sim a confiança reflexo dasegurança do tráfico jurídico (Vertrauens undVerkehrsschutz).

Outra importante observação a ser feita éque a autonomia privada, visualizada comoexpressão da autodeterminação dos indivíduos,é utilizada voluntariamente nas relações,enquanto a confiança, elemento relevante nasegurança do tráfico jurídico, carrega, inseridaem seu bojo, uma idéia de responsabilidadepessoal, cujas conseqüências jurídicasdecorrem ex lege e não ex voluntate.

Ao chegarmos ao final deste breve estudode Direito Comparado, analisadas as razões dasdiferenças entre os sistemas aqui examinados,verificamos que o resultado é semelhante emtoda a parte, pois todos acabam por atribuir umareparação pelo rompimento injustificado dasnegociações. Ao fazê-lo, os meios são distintosporque os sistemas e as influências sofridas pelolegislador não são idênticos.

A regra geral que comanda todas as soluçõesencontradas é a da boa-fé em sentido objetivo,tal como é percebida nos contratos de comércioem geral e no âmbito da lex mercatoria33.

30 Entre os autores que se detiveram no tema daresponsabilidade pré-contratual, no Brasil, podemoslembrar, MIRANDA, Francisco C. Pontes de.Tratado de Direito Privado : parte especial. Rio deJaneiro, 1972. v. 38; GOMES, Orlando. Contratos.12. ed. 1991. Mais recentemente, COSTA, JudithMartins. A incidência do princípio da boa-fé noperíodo pré-negocial. Revista Direito do Consumidor,v. 4, 1992; GONÇALVES, Corálio C. Obrigação eadimplemento. 1996. Inédito, datilografado, acervo dabib. da Faculdade de Direito da UFRGS.

31 V. Revista dos Tribunais, v. 289, acórdãoproferido em recurso de apelação, pelo Tribunal deAlçada do Estado de São Paulo, p. 630 e segs.,decisão bastante citada, por ter como protagonistaconhecida atriz do cinema brasileiro. Outrosexemplos: 5ª Câmara Cível. Apelação cível nº 591028 295. Relator: Des. Ruy Rosado de Aguiar Jr.Revista de Jurisprudência do TJERGS, n. 154, p.379-380, 1992; apelação cível nº 591 028 295.Relator: Des. Ruy Rosado de Aguiar Jr. Rev. doTJERGS, nº 154, p. 379, 1992; 5ª Câmara Cível.Apelação cível nº 591 045 737. Relator: Des. RuyRosado de Aguiar Jr. Revista de Jurisprudência doTJERGS, nº 154, p. 471, 1992; 5ª Câmara Cível.Apelação Cível nº 591 017 058. Relator: Des. RuyRosado de Aguiar Jr. Rev. do TJERGS, n. 152, p. 605;apelação Cível nº 592 044 101. Relator: Des. Arakende Assis. Rev. do TJERGS, n. 157, p. 298, 1993.

32 Em 1931, publicou a obra, intitulado

Erklärungshaftung : Ein Beitrag zum System desbürgerlichen Rechtes. Berlin ; Leipzig. O Professorportuguês, Mário Júlio de Almeida Costa, em suaexcelente monografia sobre Direito das obrigações.6. ed. Almedina, 1994, oferece um resumo da obrade Hildebrandt, no que se relaciona aos deveres dosnegociadores, à p. 246, nota 2.

33 A respeito da exigência de bona fides e confi-ança no tráfico jurídico, desde tempos bastante remo-tos, a partir dos Romanos, e antes da elaboração doBGB, v. a excelente monografia da autoria de MEYER,Rudolf. Bona Fides und lex mercatoria in der euro-päischen Rechtstradition.Wallstein Verlag : Göttingen,1994; e nosso comentário a respeito, em RevueInternationale de Droit Comparé, v. 1, p. 277, 1995.

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1. Compreendendo o problemaÉ de se fugir do lugar-comum e não menos

verdadeiro de que a violência (inclusive ainstitucional) marca indelevelmente nossaformação social. O mesmo se diga quanto àseletividade de nosso sistema penal que alcançamelhor e mais depressa pobres, negros enordestinos (migrantes depauperados) e quantoà arrogância e descaso de boa parte de nossaselites e governantes para com os direitos emgeral e especialmente os direitos humanos dasclasses subalternas. Os nossos negros, nordes-tinos (sobretudo fora do nordeste), índios,homossexuais, população de rua, estão, todos,de fato (e não de direito, é claro), à margem dacidadania e sofrem a violência da discriminaçãosocial, mais ou menos ostensiva, que vai desdea mera suspeita até julgamentos/condenações/execuções penais bastante influenciadas porpreconceitos e injustiças sociais. As cidadesfaveladas, quilombadas ou mocambadas quehoje se defrontam com nossas “cidadeseuropéias” (em potencial guerrilha urbana ) érealidade gêmea daqueloutra que tem relegado,não é de agora, a segurança pública, em todoPaís, a uma atuação autofágica (porque pobreem prevenção e seriedade política, mas rica emautodestruição) e portanto socialmente explo-siva (porque ao descomprometer até o merosoldado PM, profissionalmente subutilizado,sub-remunerado, compromete com o crimenovos contingentes de excluídos e explo-radores...).

Violência e crime, sociedade e Estado

SUMÁRIO

1. Compreendendo o problema. 2. Solução oualienação. 3. O que é polícia? 4. A polícia civil oumilitar? 5. Polícia em crise. 6. A polícia queprecisamos. 7. Repensando o tema.

LUIZ O. AMARAL

Luiz O. Amaral é Professor de Direito e ex-Chefedo Departamento de Direito da AEUDF. Já lecionouem Academias de Polícia (Acad. da PM/DF). Ex-assessor do Ministro da Justiça. Advogado militante.

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A violência e o crime (violência reprimidaformalmente pela lei), todavia, são compor-tamentos sociais inerentes à natureza humana;cada sociedade estabelece até que ponto há detolerar a violência. Assim, o limite à violêncianão é apenas legal, mas sobretudo social. Aexistência do crime é fato social normal(Durkheim), embora sempre abominável e logopunível seu autor; anormal e patologia social éo crime em taxas altas. O crime para a sociedadeé como a célula doente para o organismohumano, sempre há e haverá a célula malignaque é controlada e contida pela defesa orgânica,a doença estará caracterizada com a alta taxadessas unidades mórbidas, porém cada céluladoente merece, por si só, tratamento. Dir-se-ia, com precisão, que a violência, quandoguiada por valores éticos-sociais, não pode serdescartada, é pois um mal necessário e aindainerente ao nosso estágio evolucional.

Bem mais útil à reflexão é estarmos atentosao vácuo de padrões positivos, a anomia crônicaque tem prevalecido no Brasil (falta-nos, comonação, padrão moral), sobretudo com arepública. Com efeito, do presidente avereadores e até em eleições de clubes ediretórios estudantis a nossa democracia é maisindireta que outras, eis que perpassadas deodiosas interferências: “é dando que se recebe”,a regra do jogo eleitoral muda em meio o jogoe para aviar interesses imediatos (os biônicos,as retóricas de puro marketing, as sublegendas,só para eleger desavindo poderoso), “o Brasilnão é um país sério!”, tudo isso são, quiçá,traduções desta situação nacional de ausênciade normas e referenciais, de padrões e sentido.Enfim, não há perspectivas de comportamentosocialmente compensador, antes pelo contrário,a equação custo-benefício tem sido conselheirado mal. A consciência, primeira instânciapreventiva do crime, já não permite a nítidadistinção entre o bem e o mal. Todos nós temosmuita facilidade em explicar desrespeitos às leise aos direitos, em alguns casos parece até queas normas foram feitas só para os outros. Nestequadro geral (altamente criminogênico) o efeitodisciplinador dos padrões individuais/coletivosé por demais enfraquecido, gerando o fenômenocomportamental da adaptação, do conformismo(já que não tem jeito, o melhor é aproveitartambém) e logo dos desvios de condutas demuitos.

A onda crescente de violência, inclusivecriminal, é um complicado enigma do mundomoderno que não será bem decifrado se não

nos afastarmos da mera retórica, das rivalidadescorporativas ou científicas (“cientistas sociaise juristas”), do emocionalismo. Tanto quanto omal da Aids, o do crime exige, para seu eficazenfrentamento, consciência de que o problemaé multidisciplinar, de responsabilidadeprofissional de muitos (policiais, promotores,juízes, peritos) e responsabilidade social detodos, eis que os fatores do crime (melhor que“causas do crime”, segundo as últimastendências da criminologia) são múltiplos e devariada etiologia. Só a repressão não terá força,nem mesmo com maiores e bem armadaslegiões de policiais, para conter o crime.Conquanto indispensável e preventivo (emcertos casos) a punição é, no entanto, enfren-tamento apenas do efeito do problema. E dissojá percebera Beccaria, em 1775, quandoproclamou ser “mais fácil, mais útil, prevenirque reprimir”; tal inexcedível verdade, parece,longe de nossas consciências.

Neste tema talvez o único determinismoplausível seja o fato de que o crime é produçãosociocultural, ou seja, seus elementos condi-cionantes têm esta etiologia. Com efeito, ocomportamento agressivo gerador da crimi-nalidade deriva de fatores inerentes à perso-nalidade e de fatores situacionais, tais como:frustrações, influência de modelos agressivos,o efeito modelador da permissividade sobretudonos meios de comunicação e na família, orelativismo moral e o declínio da normatividadeíntima (independente de juízos valorativos) dareligião, tudo isso se não é determinante, porcerto, é fortemente condicionante. Com taisfatores presentes, a convivência social já estarápotencialmente ameaçada. A situação se agravaquando as estruturas sociais e éticas sãoabaladas por políticas injustas (apesar dos“marketeiros”, que tudo doiram), por atos daelite social e política contrários ao padrãocomportamental exigido (ostentação agressivade poder e opulência, variadas fraudes ecorrupção de tantos valores sociais, crimes/impunidades de ricos e poderosos) que quandonão “dignificados”, restam livres de reprimendamodeladora e preventiva daquelas poten-cialidades ameaçadoras do convívio social.

Assim, a relação que pode haver entre essescomportamentos da elite (inclusive dasestruturas sociais iníquas) e a violência ecriminalidade que grassam (individual ouorganizadamente) nas camadas sociais infe-riores é que a primeira, se não provoca, estimulae encoraja e muito a segunda (e para alguns,

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até a “justifica”(?): delinqüência Hobinhoodi-ana). Não bastassem as nossas velhas mazelassociais: fome, miséria, falta de educação e desaúde – indigência sócio-econômica – já por sisuficientes para desencadear a violência, háainda todo este caldo de subcultura criminógenaa encorajar atitudes anti-sociais dos que jáperderam a esperança. Contudo, um só crimedo colarinho branco acarreta à sociedade danos(materiais e psicossociais) mais sérios quecentenas de furtos e roubos.

Atualmente tem-se classificado os crimesem três tipos básicos : crimes patológicos(derivam de doenças do corpo ou da mente, oude ambos); crimes passionais (forte e violentatensão que pressiona o agir do criminoso);crimes por opção (decorrem da franca falênciado poder intimidatório do Direito Penal, eis queo agente elege a alternativa da infringência dasregras penais). É nesta última classe de crimesque se encontra a maioria dos delitos que nosassustam nos dias correntes.

2. Solução ou alienaçãoHá no contexto geral desta discussão alguns

“buracos negros” que atraem e consomem aclarividência. Assim é de destaque, nesteaspecto, por exemplo, a chamada ideologia dalei e da ordem e já agora seu insurgentemovimento de opinião pública, que buscasolucionar a crise da criminalidade a partirsenão exclusivamente, pelos menos preci-puamente do Direito Penal e daí a esquizofrenialegislativa penal, com edição de leis com penasseveras e duradouras, desorganizando a dosi-metria penal e até mesmo flexibilizando-segarantias individuais de natureza político-jurídica, tais como o princípio da legalidade eda tipicidade penal.

Conquanto o Direito Penal, de fato, careçade cuidadosa modernização, seria ingenuidadedanosa pensarmos (fazermos pensar) que a lei,a polícia e o Estado enfim, possam, ainda quecom a melhor das técnicas, impor ordem numasociedade que em boa parte dela cultua valoresincompatíveis com o baixo índice de violênciae criminalidade1. Por outro lado, pouco

adiantaria uma legislação penal avançada(crimes econômicos complexos, de infor-mática...) se a polícia não estiver também aptaa tal modernidade. Enquanto todo o espectrocriminal apresenta hoje uma dinâmica moder-nizante a polícia em geral está perdendo emuito em tecnologia, recursos humanos e finan-ceiros para a criminalidade atual. O abranda-mento das penas como “solução” dos anos 70para o problema da superpopulação prisional,por exemplo, precisa ser revisto porqueenfraquece o poder intimidatório e não reduzaquele problema.

O Direito Penal que sempre foi forte naintimidação enquanto remédio derradeiro,agora é, e por questões “mercadológicas”,panacéia de nossa endemia nacional: acriminalidade. É que o mercado aceita maisfacilmente, desde que bem promovido, umremédio (ilusório) de ação imediata apenassobre os efeitos, a um de eficácia causal, masnão-imediata. É a solução da realidade virtual,só que de problemas concretos!

Outro lugar-comum que turva a boacompreensão do problema é o argumento,ahistórico, de que nossa violência temexplicação nos governos militares. Com efeito,bem avaliava já Machado de Assis, emMemórias Póstumas de Brás Cubas2, o quãoenraizada em nossa cultura a violência. Veja-se, também, a excelente interpretação da obramachadiana feita por Roberto Schwarz (Osentido histórico da crueldade. Novos EstudosCebrap, São Paulo, n, 17, 1987). Não é de sedescartar, por certo, que a violência política

1 ‘É dando que se recebe’; “antes esperto quehonesto’; lei de gerson; a banalização de valores(pilares de qualquer boa convivência grupal, taiscomo a vida, a virtude de caráter, amor, justiça...)Boa parte de nossos meios de comunicação,sobretudo a TV (concorrente desproporcional daescola, que em termos de formação do brasileiro saisempre perdendo), tem sido potente dissolvente

daqueles princípios de sanidade social, porqueinfundem, franca ou subliminarmente, no povo, arelativização daqueles valores. Entre nós a maiorrede TV, a nossa quase “alma nacional”, poderiacontribuir muito mais com nossas criançasesperanças se incorporasse e liderasse, efetiva eafetivamente, em sua programação diária acampanha ‘por uma TV mais ética e saudável”.Aliás, é estranho que tenhamos desenhos animadosna madrugada (na TV comum) e sexo, violência,banalização dos fundamentais valores da sociedade,de forma implícita e explícita e em qualquer horário.O grotesco e a truculência televisivas, em concursocom outros muitos fatores criminógenos (e temossenão todos, o bastante), comprometem qualquerexcelente política criminal. É interessante notar quea publicidade já melhorou bastante, após o novoreferencial trazido pelo Código do Consumidor (e aauto-regulamentação).

2 Na passagem em que o moleque e ex-escravoPrudêncio surra outro negro mais fraco só para “sedesfazer das pancadas recebidas...”

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daquela recente quadra de nossa históriaacrescentou fortes temperos ao caldeirão daviolência e criminalidade que nossa sociedadecozinha há longos anos.Temos, pois, umextenso histórico de violência (física, econô-mica, social, moral, psicológica e até religi-osa...) e violentados que conseqüentemente sãoviolentos.

Por outro lado, a síndrome da vitimizaçãoe da violência como resposta ao crime (odiscurso sensacionalista e cientificamenteingênuo da “lei e da ordem” e/ou da truculênciaem torno de crimes hediondos) engendrada poruma predileção, socialmente mórbida, de certossetores da imprensa e da polícia só fomentaaquela esquizofrenia legislativa e a belicosidadegeral e recíproca (grupos dos maus contragrupos “bons”, sociedade contra sociedade,incluídos contra excluídos). Nada disso temsequer produzido menor efeito positivo naquestão.

Vale dizer, nenhuma das leis (mais simbó-licas e promocionais que eficazes), eflúviodaquela mentalidade, logrou reduzir a crimina-lidade (assim, por exemplo, a chamada lei doscrimes hediondos e outras do gênero); con-trário, as prisões e delegacias de polícias estãoabarrotadas dessas “soluções”, como tambémos fóruns. E haja construções de enormes ecaros complexos prisionais (verdadeiros barrisde pólvora a ameaçar a vizinhança) que exigemprofissionais qualificados, reciclados e bempagos na razão direta daquela enormidade; eisaí o ponto crítico de nossas grandes obraspúblicas (CEPAIGO dos anos 70, em Goiânia;CIEPs no RJ...), ou seja, construir não é tãodifícil quanto manter qualidade do serviço àaltura da obra festivamente inaugurada.Teremos Bangu e Papuda I, II, III, IV, adinfinitum (para depois termos de enfrentar oproblema da desativação, como o Carandiru/SP, o Frei Caneca/RJ...)?

Temos no Brasil, segundo as últimasestatísticas, 70 mil vagas onde se amontoam150 mil presos e 200 mil mandados de prisão aserem cumpridos. Providências eficazes ou não,como baixar a idade de imputabilidadecriminal, prolongar as penas e acrescer novose necessários crimes, tudo isso agravará aindamais a questão prisional; que já está a exigir aintervenção direta do governo federal, quiçá,construindo e mantendo dois ou três complexosprisionais (com hospital inclusive psiquiátrico)em ilhas (navios adaptados) para presos de altapericulosidade (líderes do crime organizado,reincidentes...). Porém, nada será suficiente se

não enfrentarmos, com eficácia e seriedade, ascausas e fatores da violência e da criminalidade.Isto, aliás, é obrigação de toda a sociedade,liderada pelo governo e meios de comunicaçãode massa. O imobilismo aqui é outro fatorfavorável ao crime. Cumpre registrar que aconsciência revoltada (e reforçada muitas vezespela irresponsabilidade do noticiário) com ainsegurança cotidiana, amiúde, é cega para asverdadeiras causas do mal e complacente comos atos e omissões dos responsáveis peloimobilismo político-econômico que reina noassunto.

3. O que é polícia?Originariamente polícia era conjunto de

funções necessárias ao funcionamento e àconservação da cidade-Estado (polis grega, daía etimologia de polícia e civita romana, daícivil, isto é, inerente à civita). Civil era poisderivação de cidade (conceito político e nãourbanístico) e logo Direito Civil (o Direito dosnascidos na Civita romana); cidadão (aquele aquem é dado o direito de influir na gestão dacoisa pública, da civita (daí república : res(coisa) + publica).Militar era (e é) antíteseconceitual de civil, no sentido primitivo os quese domiciliavam na cidade (os civis) e os queestavam fixados fora da civita (os militares).Assim, os corpos militares (as legiões romanas)eram sediadas fora dos limites da cidade paradefendê-la dos invasores (os bárbaros) e nãopodiam adentrá-la sem permissão do governo.Dentro das civitas, só bem depois (já final doimpério romano) é que vai ocorrer o fenômenodo pretorianismo, militarização transitória dedeterminadas funções estatais ligadas àsegurança pública (cessada a excepcionalidaderetornava-se à normalidade civil) e amiúdeusado como instrumento de conquista, manu-tenção e exercício forçado do poder (que jáperdera muito de sua força sobrenatural quetanto fortaleceu as cidades-Estados). Isto vemexplicar o fenômeno político, já histórico,denominado militarismo (degeneração profis-sional que culmina com o controle da vida civilpelos especialistas da defesa externa e hoje,também, interna, mas neste caso apenas porexceção e requisição do supremo magistradocivil).

Como se vê a expressão polícia civil épleonástica e polícia militar, pior ainda, écontraditória.Vale dizer que polícia do exército,por exemplo, não passa, tecnicamente, deorganização militar de guarda, de vigilância ou

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correição interna corporis (como há nas igrejase demais corporações) sem, entretanto, qualquerfunção atinente ao binômio individual-grupalversus público-social (este no sentido de civita/Estado) que é a essência da polícia. Polícia é,então, a organização administrativa (vale dizerda polis, da civita, do Estado = sociedadepoliticamente organizada) que tem poratribuição impor limitações à liberdade(individual ou de grupo) na exata (mais seráabuso) medida necessária à salvaguarda emanutenção da ordem pública. Assim, hápolícia sanitária, de posturas urbanas, aérea,rodoferroviária, marítima, ambiental, dediversões públicas, de segurança e etc. Todasessas atividade (policiais) administrativasatuam no dificílimo e exíguo espaço existenteentre os direitos e interesses individuais ougrupais e o interesse público, social, ou seja, ointeresse senão de todos, pelo menos damaioria, que jamais pode ser confundido como dos governantes ou poderosos.

No entanto, a polícia mais visível a todos éa de segurança pública (a força – do Direito –armada interna, municipal/local, não fosse adebilidade de nossos municípios) e por issomesmo, metonimicamente, todos tendemos aconfundi-la, enquanto parte, com o todo.Confunde-se, também, polícia-função (sentidooriginal) com polícia-corporação (sentidousual).Modernamente e na medida em que ostradicionais meios de controles do homem (ofreio mítico da antigüidade politeísta, o docristianismo medieval...) desapareceram ouperderam força e novos fatores anti-sociaissurgiram, a polícia se especializa e, hoje seapresenta com duas funções: a tradicionalpolícia preventiva (administrativa, para alguns),de proteção individual e coletiva e a modernapolícia judiciária, ou seja, atividade policialrepressiva (judicial) ao crime e de auxílio àjustiça penal (investigação científica doscrimes). Confunde-se também a necessidade depolícia fardada (e até de disciplina e hierarquia)com a necessidade de ser militar a sua formação(cultura) profissional.

4. A polícia civil ou militar?É naquela função-polícia (a preventiva) que

o mundo moderno vem impondo uma segmen-tação (jamais divisão, duplicidade), ou seja, apolícia fardada, ostensiva (policiamento modu-lar, controle e de tumultos...). Este segmentopolicial fardado, existente no mundo inteiro,tal sua necessidade hodierna, contudo nada tem

que ver com as Forças Armadas (forças armadaspara a defesa externa), salvo o controle doquantitativo de armas e homens, por motivosóbvios (não de natureza policial).Os militaressão por destinação histórica, profissional elegalmente, voltados para a guerra (ruptura daconvivência pacífica entre nações), daí porqueo vocábulo militar (do latim militare=comba-tente na guerra) é incompatível com o conceitode polícia (função ou corporação) e mais queisso, a vocação e o adestramento (máxime opsicossocial) profissionais de um policial hãode ser antíteses das do militar.

A violência bélica (não há guerra semviolência, nem as ditas “santas”), o tipo deconfronto, essencialmente de muita mortan-dade, eis que o extermínio do inimigo é o meioda vitória militar (daí seu treinamento paraessas situações limites), tudo isso distancia aárdua missão profissional do militar do ofíciopolicial, cujo mister é prevenir e reprimir (nãoo homem, mas o crime do homem), exatamentepor estar inserido em contexto diametralmenteoposto ao do militar, violências em geral e ocrime em especial, atuando necessariamente epor princípio profissional entre dois parâ-metros: o máximo respeito aos direitoshumanos de todos do espectro social e menortaxa de conturbação (descrição operacional) aoderredor e de risco a sua própria segurança (abravura aqui não é a mesma do militar,simplesmente porque não há guerra, sequer porforça de expressão).

É bem por isso que a polícia só estáautorizada a usar da violência como últimorecurso dos muitos que a habilidade profissionalpode lhe garantir. Nem mesmo em regimesonde a pena de morte é legalizada, pode-seimaginar o policial (cuja opção profissional éde enfrentar o crime, tanto quanto o médico adoença com todos os riscos a isso inerente)como agente exterminador do criminoso, senãodo crime; este sim o alvo imediato e principaldo policial, de vez que o criminoso só o ésubseqüente e derivadamente. Mesmo nosregimes penais mais cruéis, menos civilizados,sempre se abandonou a violência, quando sealcançou a convicção de que a criminalidadenão se reduzia por tais meios. É urgente, pois,acabar-se com a cultura militar da polícia, eisque todos os chamados atributos militares quedevem estar no policial não são exclusividadesdo militar: hierarquia/denominação dos postos,disciplina, vigor físico, fardamento, mobilidadeoperacional/ordem unida...). Assim, o escoteiro,a guarda noturna de antanho, a polícia

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rodoviária, entre outras instituições, sempreusaram fardas e buscaram, mais ou menos,aquelas demais características organizacionais,sem jamais se confundirem com militar.

O policial é um profissional do Direito,tanto quanto o juiz, o advogado, o promotor dejustiça, jamais um profissional da guerra. Nãose trata de extinguir, senão as impropriedadesque vão desde as denominações até a culturacorporativa, mas eliminar a causa (e não o meroefeito) da incompatibilidade, da divisãoredutora de potencial. Não é, pois, simples casode comando único (o governador é hoje ocomandante único), trata-se de reforma maistécnica e eficiente, ainda que menos cômoda.

Bem se vê, que tanto a atual ConstituiçãoFederal como as leis regentes da matériacarecem de firme decisão política de carátertécnico-reorganizacional, que não pode sedeixar influir por interesses corporativos (nestecaso sempre muito fortes). Não há razão(sensata razão), senão argumentos só aparen-temente úteis, para a estratégia militar interferirno âmago da estratégia policial, a ponto dedeterminar a existência de uma “polícia”militar. Em regime democrático, sob o impériodo Estado de Direito, não há espaço para estedesvio profissional, ainda tão sedimentado entrenós, agora já mais por incúria administrativaque por razões políticas.

O despropósito gerencial é tão grandequanto a entrega do comando de um batalhãode infantaria (Batalhão de Polícia do Exército,por exemplo) a um delegado de polícia, comoo é também a entrega da secretaria da segurançapública não a um profissional do ramo (umdelegado). A confusão (con+fusão) entresegurança pública e a segurança nacional(menos da nação ou do Estado e mais degovernos insustentáveis politicamente) gerouuma polícia sem vocação policial e perigo-samente deturpada (porque desvinculada desuas razões jurídico-sociais); daí as chacinaspoliciais que emergiram somente agora (ebasicamente em SP e RJ) e graças a um trabalhode extrema utilidade pública da TV Globo, masque sempre existiram, mais ou menos comosubcultura, por todo o país (é a insegurançanacional direcionada para certos segmentos dasociedade brasileira).

Por outro lado, o Decreto-Lei nº 667, de02/07/69 e o Decreto nº 88.777, de 30.9.83, aoque parece recepcionados pela nova ordemconstitucional, apresentam, no mínimo,duvidosa orientação técnica específica quando

estabelecem que a PM é “responsável pelopoliciamento ostensivo, fardado, planejadopelas autoridades policiais competentes...” equando neste último Decreto especifica estestipos de policiamento: “ostensivo geral, urbanoou rural; de trânsito, florestal e de mananciais,rodoviário e ferroviário, nas estradas estaduais;portuário; fluvial e lacustre; de radiopatrulhaterrestre e aérea; de segurança externa dosestabelecimentos penais do Estado...”, ora nãohá qualquer eivo de atividade militar neste rolde segmentos da polícia.

Com efeito, temos polícias rodoviárias eferroviárias (estaduais e federais, art.144, §§2º e 3º CF/88), fardadas e de atuação ostensivae que são organizadas a partir da disciplina eda hierarquia (traços marcantes também demuitas organizações absolutamente civis) e, porcerto, modeladas a partir das Forças Armadase que, inobstante, não são corporações militares.Ademais, exigem revisão os §§ 4º e 5º, do art.144, da CF/88, também resultado da maternalacolhida de todos e tudo na gestação da nossaCarta Magna. Misturou-se, ali, afazeresinstitucionais do segmento fardado da polícia,o policiamento ostensivo e de preservação daordem pública – funções essas eminentementecivis, porque policiais por natureza – comafazeres excepcionais (excedentes da funçãopolicial) das tropas militares.

Vale dizer, convivemos com os conflitosquando impossível a unidade e onde isto épossível acabamos por gerá-los porquedividimos. É sintomática a concorrência, osconflitos (até no DF, reconhecidamente comboas “polícias”, já tivemos há anos tiroteio entrepolícia militar e civil) ou quando menos umasubliminar malquerença entre as “polícias”(civil e militar). Todavia o controle de grandesdistúrbios e tumultos que superem a capacidadeoperacional da polícia local (em seu segmentofardado especializado), inclusive e sobretudoos que envolvam a própria polícia (corpoarmado) serão afazeres, manu militari,excepcionais e sempre por solicitação dosgovernos locais, das forças federais (guardanacional/federal, brigada federal, a partir dafederalização das PMs, ou partes delas)vinculadas ao Ministério Militar (ou maisadequadamente ao da Defesa).Todavia aconveniência geral recomenda que tais forçasfederais não sejam direta e imediatamente asForças Armadas, mas sim tropas de choques(quiçá a PM de choque de hoje, como alter-nativa àquela federalização total), que assim

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são mais militares que policiais (como aGendarmerie/Min.Defesa francês; os Carabi-neiros, arma pertencente ao Exército italiano,ambas com núcleos nas grandes provín-cias).Esta missão já é militar, como vimos,desde Roma (pretorianismo) e ultrapassa oconceito preciso de polícia (restrição dedireitos...) e é bem a caráter das tropas desegurança das Forças Armadas.

O tênue equilíbrio entre ambas corporaçõespoliciais (civil e militar), cujas atribuições nãosão cindíveis, é, na melhor das hipóteses, eternoexercício de delicada tolerância mútua e desublimação de conflitos. Um PM em sua missão“exclusiva” de policiamento ostensivo e depreservação da ordem pública (função policiale não militar) terá quase sempre que encerrartal missão não no seu batalhão, mas nadelegacia policial, onde encontrará um civil (deformação profissional bem diversa) que comoautoridade policial (na processualística penal)poderá não satisfazer aos anseios deste militarcondutor do preso (muitas vezes às duraspenas); formalizar ou não o flagrante; tipificarou não um fato como este ou aquele crime; ouo que é mais belicoso dar voz de prisão a umPM (e até o inverso é perigoso). Numa academiade polícia é bem sensível, sobretudo para oprofessor de fora dessas corporações, a deletériaconcorrência (quem é mais autoridade?; quemé mais polícia?) entre “as polícias”.

Só a duplicidade de recursos gastos já seriaforte argumento à unidade de serviço públicotão sensível à paz social. Teríamos, assim, umasó polícia estadual, suprimindo-se os impró-prios adjetivos civil e militar, gerando no povoe nos policiais nova mentalidade de eficiênciaprofissional. É patético constatarmos, em meioa nossa penúria de recursos em geral, quetemos, em cada Estado, três academias (da PM,da Polícia Civil e do Bombeiro), dois hospitais(quase sempre deficitários), dois comandos damesma segurança pública (o chefe/diretor depolícia civil e o Comandante geral da PM e atéjá vimos dois secretários de Estado) idemquanto ao armamento, às viaturas e aoshelicópteros; enquanto isso falta, até na capitalpaulista, material de escritório nas delegacias.

5. Polícia em criseA questão econômica que envolve a polícia

e os policiais não pode e não deve ser resolvida,por ambas partes (governos e policiais), comose tal atividade pública fosse equiparável às

demais; sucede que para além da essencialidadedo serviço, há um diferencial radical que é opoder das armas (greve ou movimento reivin-dicatório de policiais soa, quase sempre, comocoação armada) e a própria autojustificaçãoinstitucional : quando os mantenedores daordem e da segurança geram, ainda que porjusta motivação, a desordem e a insegurança,já perdem, desde já, a razão de existir.

Por outro lado, só a rígida disciplinacastrense, por certo, não será suficiente paraconjurar o perigo da polícia em desatino, eisque o desamparo material da família deses-tabiliza até quem está desempregado, que diráum estressado policial, tal quadro é psicossociale institucionalmente preocupante. Em face dadelicada atuação social, pesa sobre o policialum permanente ônus pessoal de correção ético-profissional, por isso mesmo ele carece desegurança econômica, psicológica e técnico-profissional, sendo assim a tranqüilidade detodos e cada um, proporcional encargoindividual e social. Até porque uma sociedadeque não pode (ou não quer, ou não sabe) custearserviço tão essencial, cuidar de reduzir e deprevenir a violência e o crime, não estarásuficientemente apta a guardar suas riquezas esua paz social e individual.

O alto índice de vitimização (fatal oumenos, da polícia e até dos delinqüentes) notrabalho da polícia é sério sintoma de defi-ciência profissional. É alarmante o alto índicede baixas entre os policiais, máxime entre osPMs cujas agruras da atividade policial sãoagravadas pelas do regime militar (que não deveser formação prioritária de polícia alguma, sómesmo da “polícia” das polícias: o Exército) eoutras mazelas (escalas apertadas, salários,moradias perigosamente promíscuas) geramestresse profissional e suicídios. Em qualquerinstituição esse sombrio quadro é preocupante,todavia na polícia a todos deveria incomodar.A frustração profissional e familiar, a baixaauto-estima, a subvalorização social são fatoressempre deletérios, contudo quando se trata depolicial, por razões óbvias, são potencialmenteperigosos: o descontrole mental de um policialdesarmado já é alarmante; quando armado é anegação da razão de ser da polícia.

O Policial de nossos dias, mais queadestramento militar (ordem unida, farda-mento, preparo físico) que deve ser apenasparte da boa habilitação básica (com reci-clagens periódicas) de todo e qualquer policial,carece de melhor formação (não informação

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como ocorre hoje) jurídico-humanística (IED,Dir. Constitucional, Criminologia, D. Penal eProcesso Penal, Medicina Legal, Cidadania edireitos humanos...), além das demais disci-plinas necessárias (básica ou de complemen-tação). Essas disciplinas jurídicas deveriam sercursadas, no caso de policial em formação denível superior, em faculdades oficiais (estaduaisou federais, até por serem gratuitas) de Direitojuntamente com os alunos regulares destas, atéporque, hoje, é muito comum que os formadospor academias policiais busquem as faculdadesde Direito para se graduarem e no mais dasvezes aproveitando (como já cursadas naquelasacademias) muitas disciplinas jurídicas nemsempre concluídas com o mesmo nível deexigência (“aqui forma-se policiais, nãoadvogados !...”).

6. A polícia que precisamosO estágio de desenvolvimento (inclusive do

crime) do país não mais permite disfunções ereforço na equação custo-benefício subjacenteda criminalidade. A globalização do crimeparece ser, entre todas, a mais efetiva eameaçadora; daí porque é urgente uma reformaséria e profunda (não apenas maquiagem comoaté aqui) no setor da segurança pública, que,aliás, só é tarefa da polícia enquanto efeito, eisque os muitos fatores determinantes daviolência e da criminalidade são direta ouindiretamente atribuição de muitas outrasagências estatais, das empresas, dos meios decomunicações, da sociedade em geral. Convémreafirmar que num Estado de Direito a atividadepolicial deve ser coordenada e executada porprofissionais do Direito, que em sua dimensãoimediata é operado pelo juiz, promotor,advogado e policial (estes dois últimosrepresentam a ponta sensível do Estado deDireito em funcionamento).

Policial bem preparado deve estar conscien-tizado disso e da dignidade e importância deseu trabalho, é, pois, urgente que se logreresgatar a boa imagem da polícia. Já por ser oexercício da função policial um eterno ônusético-profissional que pesa sobre cada policial,ela não é ocupação para qualquer um e menosainda de superficial e rápida formação básica(estágio em que se deve aproveitar traços dainstrução militar: adestramento físico, farda-mento, ordem unida, conjugada com o ele-mentar preparo jurídico-humanístico) tal comocostuma ocorrer entre nós (por exemplo 60 diaspara o recruta policial). O policial prepotente

(quase sempre mais a favor do meliante rico queda vítima pobre, negra, gay...), espalhafatoso eque troca a inteligência pela força bruta (aquié melhor o respeito que o temor) reforça a baixaestima social de sua nobilíssima profissão. Sea força muscular houvesse de ser relevantenessa função estatal, o melhor recrutamentopolicial seria feito dentre os estivadores.

7. Repensando o temaNas últimas décadas a inteligência humana

vem sendo desafiada a dar solução não ao crimee à violência, mas sim ao exagero de seusíndices. Assim, desde a Comissão dos Padrõese Fins da Justiça Criminal (EUA, final dos anos60), passando pelo Relatório Peyreffite (França/1976) busca-se aquele objetivo e com certa taxade êxito. Já em nosso País, vimos discutindodesde 1979, vide relatórios dos grupos decientistas sociais e dos juristas que se reuniram(em que pese dois relatórios), pioneiramenteno Brasil, para estudar a “crescente onda decrime e violência que lavra nos centrospopulosos do País” (Port. MJ 791, 14.8.79). Demesma forma e mais recentemente, as reco-mendações aprovadas no 9º Congresso da ONUsobre Prevenção do Crime e Tratamento doDelinqüente (Cairo, maio/95) e reafirmadaspelas Resoluções 8 e 9 do Congresso da ONUde Caracas (1980) apresentam conclusões esugestões muitas aqui estampadas.

Assim, parece-nos transparente a ineficácia(a reincidência é maior entre os ex-detentos) ea inviabilidade (geração de vagas infinitamentemenor que demanda) de penas privativas deliberdade, que devem ser tidas como últimoremédio (só para condenados de alta periculo-sidade e crimes graves), preferindo-se o lequemais amplo de penas alternativas (para osdelitos de trânsito, por exemplo). Faz-se neces-sária a aproximação, no tempo, entre crime econde-nação; assim como, melhor consideraçãoincentivadora da colaboração eficaz (delaçãopremiada). É impositivo melhor definiçãodentro das delegacias dos setores específicosde polícia judiciária (apurações/investigaçõesde crimes), de policiamento velado nas viaspúblicas e de patrulhamento ostensivo e fardadoe cujas equipes (de constituição constante, omáximo possível, para favorecer o entro-samento com a comunidade: o policial doquarteirão, da quadra...) se renderiam, aosturnos, na delegacia. A abertura da delegaciapolicial, tanto quanto da escola e do centro

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social, à comunidade circundante, sob aliderança do delegado (que depois poderia serescolhido de forma co-participada: comunidadee chefe de polícia), é fator preponderante damelhoria da imagem da polícia.

Outras sugestões: repensar um melhoraproveitamento para o inquérito policial;federalizar certos crimes, para melhor enfrentá-los (livre de interferências locais), tais comoaqueles contra os direitos humanos e outros quesão objeto de tratados internacionais; promo-ções de soldado a capitão (talvez último postona nova polícia) por meio de cursos interme-diários (necessariamente em convênio com asuniversidades: para enriquecer, nobilitar eentrosar o policial) e seleção por merecimento

(dentro da nova mentalidade) profissional einterstícios temporais mínimos de exercíciosprofissionais; o estabelecimento de um fundofinanceiro de emergência, a partir de umpercentual mínimo do orçamento de cadaEstado, com duração preestabelecida (3 a 5anos) e para aplicação exclusiva (condicionadoà liberação de verbas federais...) em segurançapública; criação de órgão federal coordenador,modernizador, centralizador das pesquisas/estatísticas, informações criminais. Criação deouvidorias (ombudsman) externas, com amplospoderes e recursos para a correição de desviosem todas as organizações policiais, sugestãoesta que apresentamos já 1979, naqueleencontro pioneiro.

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Desde a entrada em vigor da ConstituiçãoFederal de 1988, o debate sobre a conveniênciae a oportunidade da reforma agrária para o Paísparece ter dado mais atenção aos objetos do queaos sujeitos dessa forma de desenvolvimento.

Uma das principais razões para isso resideno fato de o art. 185, II, da referida Carta terprevisto como imune à desapropriação, parafins de reforma agrária, a chamada “proprie-dade produtiva”, numa clara confirmação daanálise que Norberto Bobbio já fizera da históriadesse direito1.

Pelo que se depreende do estudo de LuizEdson Fachin e José Gomes da Silva, Comen-tários à Constituição Federal (Rio de Janeiro :Ed. Trabalhistas, 1991. p. 56), a simplescompreensão do que possa ser enquadradocomo um espaço rural adequado à hipóteseprevista constitucionalmente envolve asuperação de ambigüidades quase invencíveis.

A reforma agrária como modalidade deconcretização dos direitos econômicos,sociais, culturais e ambientais

Síntese da contribuição do autor à ConferênciaNacional de Exigibilidade dos Direitos Econômicos,Sociais, Culturais e Ambientais, Rio de Janeiro, abrilde 1997.

JACQUES TÁVORA ALFONSIN

Jacques Távora Alfonsin é Professor.

SUMÁRIO

1. Legitimidade ativa dos agricultores sem terra.Direitos e interesses que lhe são próprios, extensivosa terceiros, no processo de reforma agrária. 2.Legitimidade passiva. A responsabilidade pelaimplementação de políticas públicas protetivas dosDesca, do tipo reforma agrária, é somente doEstado? 3. Abrangência do objeto. A nunca demaislembrada diferença entre o valor de uso (terra detrabalho) e o valor de troca (terra de exploração).

1 “O reconhecimento gradual das liberdadescivis, para não falar da liberdade política, é umaconquista posterior à proteção da liberdade pessoal.Quando muito, pode-se dizer que a proteção daliberdade pessoal veio depois do direito depropriedade. A esfera da propriedade foi sempremais protegida do que a esfera da pessoa” (A erados direitos, p. 123)

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Não só pelo fato de a Constituição ter referidopropriedade (denominação mais apropriada aodireito do que ao imóvel) como pelo fato deque, conforme os mesmos autores, a Consti-tuição “introduziu o conceito de “propriedadeprodutiva”, não diferenciando se o adjetivo“produtiva” refere-se à produção em concreto(estar produzindo) ou à produção em abstrato(poder produzir). O texto do parágrafo únicodo art. 185 induz ao absurdo que é a últimahipótese (produção em potencial)”.

Ainda que essa exegese possa ser cogitada,porém, eles não hesitam em dissipar o nevoeirobaixado pela falta de clareza do texto,advertindo:

“Todavia, o teor do art. 184, que abreo capítulo, é taxativo: o imóvel rural quenão esteja cumprindo sua função socialé desapropriável para fins de reformaagrária. Logo, embora a Constituiçãotenha previsão de “tratamento especial”à “propriedade produtiva”, quando esta,mesmo que potencialmente produtiva,não esteja produzindo e cumprindo todosos requisitos da sua função social (art.186 da CF), pode ser tida como desa-propriável”.

Se um tal raciocínio encontra apoio numainterpretação sistemática da CF, para a qualainda pode ser lembrado o capítulo dos direitose garantias individuais e coletivos, em que sedispõe que “a propriedade atenderá a sua funçãosocial” (art. 5º, XXIII), ele também parece maisafinado com os próprios fundamentos do nossoordenamento constitucional que os arts. 3º e4º pretenderam explicitar.

Ali se determina que, entre os “objetivosfundamentais da República Federativa doBrasil” estão os de “garantir o desenvolvimentonacional”, “erradicar a pobreza e a margi-nalização e reduzir as desigualdades sociais eregionais” (incisos II e III do art. 3º) ; aRepública Federativa do País, de outra parte,rege-se, nas suas relações internacionais, peloprincípio da “prevalência dos direitos huma-nos” (inciso II do art. 4º), entre outros.

Assim, parece indispensável que se en-frente, antes do mais, algumas perguntas dedifícil resposta que estão implicadas naexigibilidade dos Desca, particularmenteaqueles que “dependem” da reforma agrária.Esse tipo de política pública, como meio dedesenvolvimento, gera algum tipo de direito?

Todas as disposições constitucionaisrelacionadas com políticas públicas, metas

programadas para o futuro, especialmenteaquelas que visam diminuir as desigualdadessociais, têm merecido atenção redobrada dequantos se dedicam ao seu estudo e procuramentender as razões históricas da sua pouca ounenhuma eficácia.

É claro que os Desca, aqui entendidossegundo a extensa compreensão que lhes dá oDireito Internacional e, por exemplo, aResolução 2.200-A, da Assembléia Geral dasNações Unidas de 16 de dezembro de 1966,ratificada pelo Brasil em 24 de janeiro de 1992,estão envolvidos na implementação de taispolíticas – a reforma agrária entre elas –existindo base jurídica para que, além dosdireitos e garantias fundamentais do Título IIda Constituição Federal (arts. 5º/17), e de todoo capítulo dedicado à dita reforma (arts. 184/191), a sua exigibilidade ganhe poder de maiorrespeito e operacionalidade, também sob adisciplina dos compromissos que o Paísassumiu, solenemente, em suas relaçõesjurídicas externas.

Seja num processo administrativo queprepare uma desapropriação de latifúndio rural,seja numa ação judicial relacionada com amesma desapropriação, com a posse ou apropriedade agrárias, é sabido que nem sempreo ordenamento jurídico interno e específico doPaís, para a matéria em discussão, está equipadopara preencher todas as lacunas e vencer todasas antinomias, particularmente em se consi-derando que as urgências sociais já nemquestionam por décadas, mas quase que pormeses, leis que entraram em vigor pararealidades superadas.

No que toca aos Desca, por exemplo, talveznão se tenha valorizado, suficientemente, oparágrafo segundo do art. 5º da ConstituiçãoFederal de 1988, o qual amplia, significati-vamente, o campo de cogitação das normasjurídicas aplicáveis em tais casos:

“Os direitos e garantias expressosnesta Constituição não excluem outrosdecorrentes do regime e dos princípiospor ela adotados, ou dos tratadosinternacionais em que a RepúblicaFederativa do Brasil seja parte”.

Alguns dos instrumentos jurídicos inter-nacionais, ratificados pelo Brasil, como aResolução supralembrada, pode melhorgarantir a exigibilidade daqueles direitos, e demaneira expressa, num contexto de reformaagrária. Note-se o que dispõe o art. 11 da mesmaResolução:

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1. Os Estados-partes no presentepacto reconhecem o direito de todapessoa a um nível de vida adequado parasi próprio e para sua família, inclusive àalimentação, vestimenta e moradiaadequadas, assim como uma melhoriacontínua de suas condições de vida. OsEstados-partes tomarão medidas apro-priadas para assegurar a consecuçãodesse direito, reconhecendo, nessesentido, a importância essencial dacooperação internacional fundada nolivre consentimento.

2. Os Estados-partes no presentepacto, “reconhecendo o direito funda-mental de toda a pessoa de estar prote-gida contra a fome, adotarão, indivi-dualmente e mediante cooperaçãointernacional, as medidas, inclusiveprogramas concretos, que se façamnecessários para”:

a) melhorar os métodos de produção,conservação e distribuição de gênerosalimentícios pela plena utilização dosconhecimentos técnicos e científicos,pela difusão de princípios de educaçãonutricional e “pelo aperfeiçoamento oureforma dos regimes agrários”, demaneira que se assegurem a exploraçãoe a utilização mais eficazes dos recursosnaturais;

b) assegurar uma repartição eqüi-tativa dos recursos alimentícios mundiaisem relação às necessidades, levando-seem conta os problemas tanto dos paísesimportadores quanto dos exportadores degêneros alimentícios.

Pode-se pôr em dúvida, mesmo assim, osefeitos jurídicos de uma tal disposição, em favordos Desca implicados na reforma agrária, sobo argumento de que o parágrafo segundo doart. 5º da CF não fala em resolução e sim emtratado internacional.

O estudo do Dr. Antonio Augusto CançadoTrindade, sobre A proteção internacional dosdireitos humanos (São Paulo : Saraiva, 1991)oferece resposta a uma tal impugnação, sob luzdificilmente questionável, já que é a condiçãode vítima do desrespeito aos direitos humanos,o critério decisivo para a solução de um talimpasse2.

Para quem não ignora, portanto, as urgên-cias sociais que estão à espera da reformaagrária, é pouco convincente, argumentar-seque as vítimas da não-realização da reformaagrária não sejam, num primeiro plano, osagricultores pobres sem terra, os margi-nalizados, os excluídos pela concentração doespaço rural ocioso, e, num segundo momento,por via de conseqüência, a população toda doPaís, privada de uma produção maior e maisadequada às suas necessidades básicas, de umacirculação de produtos agrícolas menosgravosa, e de um consumo mais barato esocializado.

Se ainda remanescer alguma dificuldade,assim, para se reconhecer a realização dareforma agrária como parte integrante de umdireito coletivo ao desenvolvimento, os efeitosjurídicos imediatos daquelas disposiçõesconstitucionais supralembradas e dos pactosinternacionais assinados pelo Brasil, direta ouindiretamente ligados à questão, têm de serrespeitados, quando menos, como eficáciageradora de titularidade subjetiva dos direitoshumanos (aí incluídos os Desca), em favordessas mesmas vítimas (1 e seguintes, infra).

Aí elas podem e devem ser reconhecidascomo os verdadeiros sujeitos desse “direito àfunção social” (!) sabidamente não cumpridapor grande parte dos latifundiários brasileiros.O conhecimento, a identificação precisa e orespeito devido a tais titulares de direitos, comotentar-se-á justificar a seguir, fazem parteintegrante da sustentação política e dalegitimidade jurídica da reforma agrária, comoforma do desenvolvimento nacional impedidoou retardado pela histórica violação daquelemesmo princípio constitucional.

Os Desca implicados nos esforços deresposta a uma tal iniciativa que, a par de lhesinteressar diretamente, se reflete no abaste-

2 A despeito de sua diversidade, constitui traçodistintivo do rationale dos tratados e instrumentosde direitos humanos o de que se dirigem eles àproteção de seres humanos e de que a solução de

reclamações neste campo deve assim ser guiada ebasear-se no respeito aos direitos humanos. Naimplementação desses tratados e instrumentos,dirigidos à proteção da parte ostensivamente maisfraca (as supostas vítimas), o elemento do “interessepúblico” comum ou geral ou ordre public exerce umpapel proeminente. Esses mecanismos se comple-mentam uns aos outros no desempenho de suasfunções e na realização de seu propósito comum deassegurar uma proteção eficaz e cada vez maisextensa dos indivíduos lesados. O foco de atençãoprincipal transfere-se assim da questão tradicionalda delimitação de competências à do grau ouqualidade da proteção a ser estendida às pessoasvitimadas. (p. 3, grifos do autor).

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cimento de produtos alimentícios para todo opaís, como já se lembrou acima, exigeminvestigação criteriosa das titularidadessubjetivas correspondentes, hoje mal iden-tificadas nos muitos acampamentos e assenta-mentos patrocinados por esses sujeitos dedireitos – seja de direitos subjetivos, seja deinteresses legítimos, seja de destinatários dafunção social das propriedades alheias ou daspolíticas públicas relacionadas com a terra ( 2e 3 infra).

A exigibilidade de tais direitos, assim,impõe-se analisada, ainda que de maneiramuito superficial, sob três linhas principais deabordagem: a da legitimidade ativa dessessujeitos de direito em participarem dosprocessos de planejamento, execução eavaliação da política de reforma agrária; a dalegitimidade passiva de todo esse processo, aícompreendida a responsabilidade do Estado ea do chamado “livre mercado”; a da abran-gência do objeto de desenvolvimento perse-guido pelo mesmo processo.

1. Legitimidade ativa dos agricultores semterra. Direitos e interesses que lhes são

próprios, extensivos a terceiros, noprocesso de reforma agrária

Algumas questões processuais ligadas àpresença de grupos humanos, não neces-sariamente pessoas jurídicas, e à sua repre-sentação perante Poderes Públicos, inclusive emJuízo, têm aparecido, com freqüência, nas açõesreivindicatórias e possessórias de grandenúmero de réus, como ocorre, freqüentemente,quando em disputa de latifúndios rurais ouurbanos.

O MST, sabidamente, não tem perso-nalidade jurídica. Isso não tem impedido muitasliminares e sentenças deferidas contra gruposde agricultores sem terra, de serem executadascontra os “integrantes do MST”, sem outrapreocupação maior com a identidade, o númeroou a qualificação dos RR., salvo para enquadrarcriminalmente algumas das suas lideranças,conforme o caso.

Se ao Movimento referido se atribuilegitimidade passiva, há que se explicar a razãoda resistência que ele sofre quando, em vez deréu, é autor.

Um exemplo bastante expressivo de soluçãodesse problema – e a favor da legitimidadeativa do MST – ocorreu na Justiça Federal emSanta Maria, no Rio Grande do Sul, em açãocautelar de produção antecipada de prova

relacionada com o tipo de propriedade exercidonuma tal “Fazenda Alvorada”, sob a jurisdiçãoe competência daquele Juízo. Nessa ação, oMST requereu que fosse admitido comoassistente do Incra. Parte do despacho do juizparece conveniente ser transcrita:

“Efetivamente, no caso em pauta, épossível admitir-se a existência deinteresse jurídico de parte do MST,representado pelos requerentes (a decisãoestá se referindo a alguns agricultoressem terra que se afirmavam represen-tantes do MST interessados em assistiro Incra, no feito), no sentido de que oprocesso em tela tenha solução favorávelao Incra. Assim sendo, capaz de vislum-brar-se, a figura do assistente, lembran-do-se, a propósito, que tal assistênciarefere-se a este processo que trataespecificamente da Produção Antecipadade Prova Pericial. Obviamente, o MST,representado pelos requerentes, admitidocomo assistente, recebe o processo noestado em que se encontra, de sorte queo técnico por eles indicado acompanharáa perícia, a partir de agora, como auxiliardo assistente técnico do Incra. Intimem-se, inclusive, o Perito e os assistentestécnicos da admissão do assistentetécnico do Incra. Intimados os reque-rentes, representantes do MST, deverãoeles comunicar tal admissão ao enge-nheiro-agrônomo que indicaram, quepoderá, se quiser, acompanhar ostrabalhos do Perito e dos assistentestécnicos, na qualidade de auxiliar doAssistente Técnico do Incra. SantaMaria, 16 de outubro de 1995. HermesSiedler da Conceição Junior. JuizFederal”.

É coisa para se estranhar, pois, que oprotagonismo das políticas públicas de reformaagrária ainda seja visto sob tanta reserva,quando ele é reivindicado pelos principaisinteressados nela, ou seja, os próprios agricul-tores sem terra.

Essa questão, a rigor, nem é nova; que otestemunhem os interesses difusos, para selembrar uma analogia mais à mão. Pontes deMiranda já chamava a atenção para essapossibilidade3.

3 Grupo de pessoas não-organizado de modo acompor pessoa jurídica, pode ter interesses. Osistema jurídico seria falho se não visse esse fato davida social e, pelo menos em espécies maisrelevantes, não tutelasse esses interesses (e.g., art.1669, verbis “em favor dos pobres”, “estabele-

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A indeterminação “jurídica” (!) do sujeito,portanto, parece não poder se constituir emobstáculo igual ao de se proibir o acesso àJustiça de direitos e interesses que, compro-vadamente, não são adjudicáveis prima facie apessoas determinadas e, como o ensinamentosupra dá a entender, não é somente sobreinteresses difusos que tal legitimidade pode serreconhecida.

Wilson de Souza Campos Batalha, no seuestudo sobre Direito processual das coleti-vidades e dos grupos (l991), classifica osinteresses passíveis de proteção pela viajudicial, em vários tipos que, sem dúvida,comportam indeterminação, mesmo queprovisória, dos sujeitos4. Lembrando lição deFrancesco Carnelutti, o mesmo autor situa aconjuntura sob a qual pode-se dar a instruçãoprocessual dos conflitos submetidos a juízo5.

Entre os interesses grupais (associativos,comunitários), o Dr. Batalha localiza aquelesque se enquadrariam nos incisos XVII a XXIIdo art. 5º da CF, em moldura na qual sãovisíveis as possibilidades de se integrarem tantopessoas jurídicas como até, na expressão dopróprio autor, “grupos inorganizados”..., o queparece abrir espaço para um tipo mais próximode classe, como, por exemplo, “pobre” ou“excluído”.

É precisamente nesse contexto que os Descaaqui estudados parecem encontrar a sua melhorfonte, não só de compreensão, como delegitimidade. Tais direitos derivam de situaçõeshumanas limites, para as quais a lei, por maissábia e adequadamente baixada, nunca encontraresposta plenamente satisfatória. Estamos nosreferindo aos estados de necessidade, sejam osindividuais, sejam os sociais.

Uma necessidade vital não satisfeita, do tipopão e casa, por exemplo – coisa tão tragica-mente comum neste final de milênio –, nãoquestiona apenas o ordenamento jurídico. Elapõe em causa o Estado, a sociedade civil, aeconomia, o mercado, a cultura, a “realidade”de se viver num espaço e entre pessoascivilizadas. Ela nega, por si só, a dignidade dapessoa humana e, conseqüentemente, a suaprópria condição de cidadania.

A esse propósito, Maria José Añon Roig,em artigo de doutrina que integra a coletâneade estudos reunida por Jesús Ballesteros sob otítulo Derechos Humanos (Madri : Tecnos,1992), insiste em advertir sobre a pouca atençãoque se dá ao truísmo de que o reconhecimentoda dignidade humana não ganha nenhumsentido sem a satisfação efetiva das suasnecessidades vitais6.

cimentos de caridade”, “de assistência pública”). Aatribuição de direitos ora é a todos referidos, ora aalguns entre eles; de modo que, algumas vezes, háapenas elipse (“estabelecimentos de caridade”, emvez de “os estabelecimentos de caridade da vila tal”)ou outra indeterminação transitória (disposiçãotestamentária a favor de pessoa incerta cujaidentidade fique por se averiguar, art. 1667, II; legadoalternativo. (Rio de Janeiro : Borsoi, 1970. p. 168)

4 O direito de ação é vinculado ao interesse e ointeresse comporta a seguinte classificação genérica:

– interesses individuais, interesses gerais(políticos, sociais, econômicos), – interesses cole-tivos (sindicais), – interesses grupais (associativos,comunitários), – interesses populares (pertinentes acidadãos, pessoas físicas), – interesses difusosprotegidos por ações civis públicas. (São Paulo :LTR, 1991. p. 38).

5 ...pode ocorrer que a pretensão ou a resistênciaafetem, ao invés de um único conflito de interesses,a uma série indeterminada de conflitos semelhantes;nesse caso, fala-se em lide coletiva ou lide decategoria. O quid novi da lide coletiva consiste,portanto, na relação da pretensão ou da resistênciacom uma categoria de conflitos, ao invés de umconflito singular. Os conflitos de categoria sempreexistiram; não obstante, para que esses conflitos setransformem de potenciais em atuais e adquiramaspecto de lide é necessário que a categoria revistauma certa organização, de maneira que uma ou maispessoas administrem seus interesses e mantenhamassim uma pretensão para tutela daqueles, ouoponham uma resistência. A lide coletiva é umfenômeno que se manifestou e se desenvolveuquando, desviando-se os conflitos dos indivíduos àscategorias, primeiramente no campo das relaçõesde trabalho, começou o movimento de organizaçãodestas e se realizaram atos de pretensão ou deresistência dirigidos à tutela de toda uma categoriade interesses”. (Ibidem, p. 39-40).

6 reconhecer, exercer e proteger um direito básicosignifica, em última instância, que se pretendesatisfazer uma série de necessidades, entendidascomo exigências que se considerem ineludíveis parao desenvolvimento de uma “vida digna”; – Nãoelegemos nossas necessidades e elas não são algosobre o que possamos ter uma atuação positiva ounão; – Não temos porque justificar nossas neces-sidades com razões, para dizer que uma necessidadeexiste – Elas nos colocam em relação direta com anoção de dano, privação ou prejuízo grave para apessoa – ...o prejuízo, ou grave detrimento manter-se-á exatamente nas mesmas condições, salvo o casode a necessidade ser satisfeita, cumprida ourealizada, pois não há nenhuma possibilidadealternativa para se sair dela – ... assim, (nanecessidade) não se trata de contratempos,problemas ou prejuízos passageiros, mas sim de uma“degeneração” permanente da qualidade de vida

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Pela relevância dessa análise, a busca dalegitimidade, capaz de fundamentar asgarantias de eficácia para as normas jurídicasque pretendam sustentar os direitos implicadosna satisfação das necessidades vitais, exigetratamento interdisciplinar ou, para pesar dospositivismos estritamente formais, meta-jurídico. É o que parece concluir a mesmaautora7:

Para a reivindicação imperativa de umdireito desse tipo, Roig aponta dois passos que,a rigor, nem necessitam de justificação; segundoela própria, o primeiro, que a existência de umanecessidade implica diretamente a suasatisfação e o segundo, que essa satisfaçãoconstitui um direito. (...) Pode-se caracterizaruma necessidade como aquilo que, pordefinição, “tem um direito à sua satisfação”(...) e os direitos humanos como exigênciasprecisas para a satisfação de necessidades.(idem, p. 109).

Como se observa, a exigência (?) dapersonalidade jurídica para um determinadogrupo de pessoas, portadoras de direitos e, ouinteresses, protegidos pela CF no Capítulo Dosdireitos e deveres individuais e coletivos e porela previstos como objetivos da própriaRepública ou de políticas públicas específicas,previstos também em convenções ou pactosinternacionais assinados pelo Brasil, não podemais barrar o acesso coletivo de tais pessoasaos Poderes Públicos, aí incluído o Judiciário.

2. Legitimidade passiva. A responsabilidadepela implementação de políticas públicasprotetivas dos Desca, do tipo reforma

agrária, é somente do Estado?Quem deve respeito, efetivamente, aos

direitos humanos, os Desca entre eles? contraquem tais direitos podem ser “cobrados”? Existemesmo uma completa impossibilidade de ochamado livre mercado ser responsabilizado

pela violação dos Desca? Não existe nenhum“interesse difuso” que, em vez de ser protegidocomo autor, possa ser perseguido como réu?

Por mais estranhas que possam pareceralgumas dessas questões, elas estão por trás demuitas decisões administrativas e de muitassentenças que somente não reconhecem comoadjudicáveis determinados direitos porque aresponsabilidade que eles geram está tãoescondida no tecido social e é tão trabalhoso oesforço indispensável à sua imputação, que asaída mais à mão é a do seu “não-conheci-mento”.

Em todo o caso, mesmo sob visível redu-cionismo, há que se aproximar a lentecompreensiva de exigibilidade dos Desca, emmatéria de reforma agrária, daqueles espaçosjurídicos de difícil demarcação nos quais osdireitos humanos em geral perdem densidadereivindicatória, exatamente por uma culturainterpretativa do direito positivo, poucointeressada em aprofundar conceitos e funda-mentos que, a partir dele próprio, devem sedesdobrar.

Não faltam advertências a respeito, algumasestreitando, outras alargando a rede deabrangência do ordenamento jurídico positivo,em relação aos direitos humanos. Mesmo queas dificuldades, aí, sejam grandes, até mesmono que concerne àqueles que já obtiveramingresso em capítulos constitucionais do tipo“direitos e garantias individuais” e “direitossociais”, como testemunham alguns dosdispositivos constantes dos artigos 5º e 6º daConstituição Federal, elas têm de ser enfren-tadas.

Bobbio, aqui já lembrado, reluta até emnominar como “direitos” os ainda “nãoconstitucionalizados”, entre os quais seencontram muitos dos Desca voltados para ofuturo (preservação dos direitos de gerações queestão por vir, onde a proteção do meio ambiente,por exemplo, está longe de consultar apenas osinteresses imediatos de hoje). Ele prefere apalavra “exigências”8, expressão que Maria J.A. Roig também usa, como já se viu acima,embora em contexto no qual o poder jurídicodo sujeito ao qual ela se refere seja bem maior.

humana que há de manter-se até que se obtenha umasatisfação (p. 102-103, tradução livre, nossa).

7 Quando confrontamos os direitos com arealidade (...) põe-se em relevo muitas variáveis que,desde logo, não são somente éticas, mas tambémeconômicas, políticas, culturais ou sociais. Essaperspectiva relacional ou contextualizada exigetomar como ponto de referência, para compreendero desenvolvimento desses direitos e sua razão deser, a tríplice esfera na qual eles têm lugar: a jurídica,a moral e a econômico-política; seu fundamento,portanto, somente pode situar-se no vigamentodesses três âmbitos. (Ibidem, p. 106).

8 “Pode-se sugerir aos que não querem renunciarao uso da palavra “direito” mesmo no caso deexigências naturalmente motivadas de uma proteçãofutura, que distingam entre direito em sentido fracoe um direito em sentido forte, sempre que nãoquiserem atribuir a palavra “direito” somente àsexigências ou pretensões efetivamente protegidas”(op. cit., p. 79).

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Jean Carbonnier, depois de distinguir osmotivos históricos das diferenças entre o direitode propriedade e o direito à propriedade,sublinha o fato de a última expressão ter sidousada, exatamente, pela Declaração Universaldos Direitos do Homem, o que permiteentender-se como sendo o acesso a um taldireito aquilo que o constituiria como direitohumano. A conclusão que ele tira daí, porém,no que se refere à exigibilidade de um taldireito, não deixa de ser irônica9.

São testemunhos da complexidade inerenteao exercício de direitos que, queira-se ou não,somente alcançam eficácia num ambiente“adjetivado” por outros direitos – o assimchamado livre mercado.

A obviedade de que nem de reforma agrária,todavia, como urgência imposta pela maiselementar justiça social, estar-se-ia tratando,hoje, se não fossem os efeitos desse tipo onerosode distribuição do espaço rural, serve quandomenos de advertência para o fato de que um talquestionamento precisa ser levado adiante, sobpena de se prosseguir considerando comofatalidade o perverso princípio de que overdadeiro “governo” do Estado e das leis é ode reparar os excessos e estragos que a tal“liberdade” desencadeia, seja contra o direito,seja contra a economia, seja contra a sociedade,seja contra o ambiente.

Antonio-Luiz Martinez Pujalte, na mesmacoletânea de estudos sobre direitos humanos,acima referida, faz expressa menção aosmodernos esforços que se estão desenvolvendono sentido de se operacionalizar a defesa dessesdireitos, não somente “frente ao Estado”, mastambém “frente ao mercado”10 e, pela inalie-

nabilidade característica de tais direitos, suadefesa, inclusive, perante o próprio titular deles.

É por aí, também, que parece transitar aopinião de José Joaquim Gomes Canotilho,quando ele aborda o problema da eficácia dosdireitos fundamentais “e direitos análogos”,segundo a sua própria expressão, não somentequando eles estejam implicados em relações“verticais” – cidadão frente ao Estado – mastambém em relações “horizontais”, de indi-víduo-indivíduo, nessa última hipótesevinculando entidades privadas. (DireitoConstitucional. Coimbra : Almedina, 1993. p.595 e segs.).

Pregando “a necessidade de soluçõesdiferenciadas”, conforme a causa e o caso,adverte o autor existirem três respostasfundamentais para bem se interpretar ochamado “efeito externo” dos direitos funda-mentais. A primeira desconhece qualquereficácia externa dos direitos, liberdades egarantias fundamentais, em relação a entidadesprivadas; a segunda, reconhece eficácia externamediata em relação a terceiros, de que dáexemplo a atuação legiferante dos órgãosestatais; a terceira, que reconhece eficáciaexterna imediata em relação às mesmasentidades privadas.

Separando os efeitos desses direitos,liberdades e garantias, por grupos, segundo asua possível capacidade vinculativa “hori-zontal”, Canotilho designa o quinto grupo comoaquele que compreende “poderes privados”frente àquela eficácia11.

9 A Declaração Universal dos Direitos doHomem afirma, em seu artigo 17, que toda a pessoatem direito à propriedade. Essa afirmação temprovocado sorrisos e se tem censurado a ONU pelofato de ter reconhecido um direito de crédito sem esta-belecer um devedor que o satisfaça (Derecho flexible.Madri : Tecnos, 1974. p. 244, tradução livre, nossa).

10 Nos últimos anos, está adquirindo um relevoparticular na bibliografia sobre os direitos humanosa ênfase na inalienabilidade, como uma dascaracterísticas definitórias de tais direitos. Inclusive,sublinhada por Jesús Ballesteros, para quem “ocaráter inalienável dos direitos seria precisamentea nota específica do modo de pensar post moderno,intimamente derivado do paradigma da “qualidadede vida”. Com efeito, agora do que se trata não étanto de defender os direitos frente ao Estado, comono caso da “liberdade dos modernos”, ou direitos daprimeira geração, mas sim de defendê-los frente aomercado, e inclusive frente a própria vontade

individual do sujeito dos mesmos (p. 86, traduçãolivre, nossa). 11 As categorias “poder privado” ou“poder social” não são juridicamente assimiláveis a“poderes públicos” e não oferecem contornosjurídicos para se transformarem em categoriasoperacionais no âmbito da problemática daDrittwirkung (esta palavra, segundo o autor, refe-re-se à eficácia externa ou eficácia dos direitosperante terceiros). Todavia: 1º) os direitos,liberdades e garantias não protegem apenas oscidadãos contra os poderes públicos; as ordensjurídicas da liberdade de profissão e da liberdadede empresa, por exemplo, podem também serperturbadas por forças ou domínios sociais (Bachof);2º) a função de proteção objetiva dos direitos,liberdades e garantias não pode deixar de implicara eficácia desses direitos no âmbito de relaçõesprivadas caracterizadas pela situação desigualitáriadas partes; 3º) conseqüentemente, as leis e ostribunais devem estabelecer normas (de conduta e dedecisão) que cumpram a função de proteção dosdireitos, liberdades e garantias (p. 599, grifos doautor).

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Mais adiante, o mesmo autor, examinandoos direitos subjetivos públicos e privados, erespondendo à pergunta sobre se eles “têmeficácia nas relações civis”, não duvida emresponder que sim12. No fundo de toda essaquestão, como se observa, o que volta a secolocar em causa, como tema recorrente emtorno da exigibilidade dos Desca, é a força doseu garantismo jurídico-social, sua eficáciafrente aos poderes determinados ou indeter-minados que os constrangem ou violam, sejameles entidades privadas, sejam públicas.

Trata-se, em última análise, de toda acomplicada questão inerente à medida decompatibilidade que deve existir entre oexercício das liberdades e as responsabilidadesà elas inerentes. Onde se encontra a linha deinterseção, para usar uma imagem cara a Pontesde Miranda, entre liberdades de diferenteorigem e natureza, que titulam diferentessujeitos de direito, onde começa a lesão àliberdade alheia, o abuso da própria, a injustiça,enfim; onde vai se estabelecer a garantia deque a liberdade não será gozada sem responsa-bilidade e de que o seu gozo não servirá depretexto para violar a liberdade alheia.

Em posição um tanto diferente da deCanotilho, Jorge Miranda não chega a afirmarque os direitos, liberdades e garantias são, hoje,iguais a direitos subjetivos, mas contribui,significativamente, para distinguir-lhes osconceitos, e os seus efeitos, em oportunacomparação com os direitos sociais (DireitoConstitucional. Coimbra : Almedina, 1993)13.

No passado, em pleno desenvolvimento deum direito predominantemente privado, nãoteria sido essa mesma dinâmica comparativa ainspiradora dos efeitos jurídicos que seretiraram, por exemplo, da chamada “responsa-bilidade sem culpa”? Retorne-se à lição dePontes de Miranda14.

Se isso valia para possíveis gozos eexercícios do direito de propriedade, nãonecessariamente derivados da vontade doproprietário, hoje a validade dessa configuraçãojurídica se desloca para os novos (e graves)efeitos que tais poderes podem provocar porvontade do proprietário.

A liberdade de iniciativa econômica, porexemplo, fundada nessa propriedade privada eno livre-mercado, encontra naqueles subsídiosoutros pilares de sustentação para a funçãosocial que deve cumprir. A relação do proprie-tário com o seu bem, especialmente quando eleé de produção, como acontece com a empresa,não acha mais base jurídica legitimadora, nomomento em que, de domínio da coisa, passa ase constituir em domínio – mesmo oculto –sobre outras pessoas.

Há de se objetar que uma tal linha deraciocínio está direcionada para uma crítica àpropriedade privada quase coincidente à danegação do direito adquirido.

Independentemente de todo o esforçomoderno que se está desenvolvendo em tornodo direito adquirido – do qual a afirmaçãojurisprudencial de que ele não vale, por

12 Em primeiro lugar, os direitos, liberdades egarantias são hoje direitos subjetivos, indepen-dentemente do caráter público ou privado; emsegundo lugar, não se deduzem, com base emconcepções imperativísticas, das normas legais. Porisso nada impede que eles valham como direitossubjetivos públicos na sua aplicação ao direito civil,se esta caracterização lhes trouxer uma maiordimensão prática.

Desde logo, há de fundarem o direito de acessoaos tribunais para defesa desses mesmos direitos ehá de exigirem a aplicação dos princípios consti-tucionais materiais, como exemplo, os princípios daexigibilidade e da proporcionalidade. Na falta deinstrumentos jurídicos concretizadores adequados,podem transferir-se para aqui os instrumentos dodireito civil... (p. 600).

13 Os direitos, liberdades e garantias são direitosde libertação do poder e, simultaneamente, direitosà proteção do poder contra outros poderes (como sevê, quanto mais não seja, nas garantias deintervenção do juiz no domínio dos atentados àliberdade física por autoridades administrativas). Os

direitos sociais são direitos de libertação danecessidade (o autor lembra Roosevelt) e, ao mesmotempo, direitos de promoção. O conteúdo irredutíveldaqueles é a limitação jurídica do poder (lembrançade Jellinek), o destes é a organização da solida-riedade. Liberdade e libertação não se separam, pois;entrecruzam-se e completam-se; a unidade da pessoanão pode ser truncada por causa de direitos desti-nados a servi-la e também a unidade do sistemajurídico (lembrança de Georges Vlachos) impõe aharmonização constante dos direitos da mesmapessoa e de todas as pessoas (p. 98-99, grifos doautor).

14 “A responsabilidade sem culpa aparece emespécies que se inspiram nos seguintes princípios(secundários): a) o princípio do interesse maisrelevante, pelo qual se permite a invasão da esferajurídica de outro, fundada em razão de interesse,público ou privado, de mais relevância, – o quesupõe, aqui como alhures, escala de interesses; b) oprincípio do perigo correlativo ao interesse, que é oda responsabilidade da atividade conforme o direito,mas em si mesma provável causadora de danos;”(Idem, v. 2, p. 386-387).

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exemplo, contra a Constituição, pelo fato deesta emanar do poder soberano do povo, é umsignificativo exemplo – parece oportunolembrar-se em que medida o próprio conteúdodesse direito subjetivo, como “extensão depoder”, especialmente quando ele envolveimóveis, tem sido redimensionado. FranzWieacker, por exemplo, criticado em nota aopé de página do famoso Tratado de direito civilalemão (Enneccerus, Kipp e Wolff, traduzidopara o espanhol, Tomo III, Derecho de Cosas,Barcelona, Bosch, p. 327) chega a afirmar que,na propriedade imobiliária, não há mais do que“uma atribuição de administração fiduciária”(tradução livre e grifos nossos).

A urgência de um tal redimensionamentonão é feita somente de fora para dentro, comoseria de se esperar, por aqueles que estãopleiteando o acesso (eficácia) ao direito humanode propriedade. Surpreende que, em época deglobalização dos mercados, com todos osreconhecidos efeitos anti-sociais que elacomporta, Antonio Lattuada, em coletânea deestudos sob o sugestivo título de Fora domercado não há salvação? (Petrópolis : Vozes,1997), noticie iniciativas empresariais quevisam, não só garantir nova configuraçãojurídica ao exercício e gozo de um tal direito,como, até, nova configuração ética15.

Como se observa, tanto o Estado, quanto ochamado livre-mercado, quanto a sociedadecivil, quanto os próprios titulares dos Desca (!)são deles devedores e, por eles, responsáveis(direitos-deveres). Se a forma de uma tal“legitimação passiva” encontra dificuldade deser perseguida, perante o Poder Público, oJudiciário especialmente, isso não constituinovidade, pois todos os direitos humanossempre encontraram embaraço ao seu reconhe-cimento, exatamente, no fato de, com a maisrespeitosa vênia, o chamado devido processolegal ainda funcionar com muito maior eficácia,“para coar o mosquito do que para barrar ocaminho do elefante”. Que o testemunhe o custohistórico de algumas construções jurídicaspenosamente construídas por doutrina ejurisprudência, do tipo sociedade de fato,responsabilidade civil objetiva, lesão noscontratos e outras.

3. Abrangência do objeto. A nunca demaislembrada diferença entre o valor de uso(terra de trabalho) e o valor de troca

(terra de exploração)Pode-se considerar o latifúndio rural como

“provável causador de dano”, em contexto noqual Pontes de Miranda colocou a respon-sabilidade sem culpa? Eis-nos retornando aoscomentários iniciais deste estudo, a respeito dotipo de relações jurídicas que nascem do imóvelpelo só fato de ele se constituir em bem deprodução, situado no meio rural.

Sujeito de direito, objeto do direito, uso,gozo, disposição, exclusão da ingerência deterceiros, tudo isso ganha, aqui, contornos quenão aparecem no exercício de outros (!) direitosde propriedade.

Se a resposta àquele questionamento, assim,ficar circunscrita ao espaço puro e simples,ocupado pelo proprietário, ou tão-somentetitulado por ele, parece que as medidas do “graude utilização da terra” e do “grau de eficiênciana exploração” são suficientes para afastarqualquer cogitação de ameaça ou mesmoviolação do direito alheio.

Não é aqui a hora nem o lugar de seperquirir, contudo, se GUT e GEE são índiceshábeis para medir a função social da proprie-dade.

Importa considerar, todavia, que as críticasa registros públicos e outros recursos deidentificação dos imóveis rurais são muitoantigas, exatamente pelo fato de eles serem

15 Em assonância com a palavra inglesastockholder, que indica o acionista ou detentor deuma cota do capital de uma empresa, foi com efeitocunhado o termo stackholder, para designar toda apessoa cujos interesses ou direitos são de certo modoatingidos pelas atividades de uma empresa.Obviamente o recurso ao termo stackholder não seesgota em um artifício linguístico, mas tem comopropósito superar a concepção privatista da empresaque privilegia o interesse do proprietário – isto é, amaximização dos lucros – e promover, ao invés, umarepresentação que dê adequado reconhecimento aopapel, com os correspondentes direitos e deveres,dos inúmeros sujeitos que deste ou daquele modo“tomam parte” no funcionamento de uma empresaeconômica. Neste sentido, são stackholders daempresa, além dos acionistas, também os dirigentesou managers nos diversos níveis, os trabalhadoressubordinados à empresa, os clientes ou consu-midores, os fornecedores, as outras empresasconcorrentes, a comunidade local em cujo territórioatua a empresa, toda a sociedade civil. A utilizaçãodo conceito de stackholder reflete portanto uma visãomais abrangente da empresa, representando-a comoampla rede de relações muitas vezes tambémconflitivas: a justa composição dos conflitos exigeque nenhum legítimo interesse seja arbitrariamenteignorado ou menosprezado, e todavia deixe espaçopara ordens de prioridade, conforme o caso,diferentes (p. 113).

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pouco ou nada transparentes no que toca aouso que dos bens registrados se faz. Uso, aindamais o uso “produtivo” exigido pela próprialetra constitucional, é coisa que não se confere,senão, por verificação empírica e, por maioresque sejam os esforços do Incra, a respeito, numpaís das dimensões do Brasil, há de ser quaseimpossível, pelo menos com os recursos atuais,que o referido ente público consiga fiscalizar,efetivamente, a correspondência de que osregistros relacionados com os espaços rurais,informados pelos respectivos proprietários oupossuidores, guardam com a realidade.

Luis de Lima Stefanini lamenta (A proprie-dade no Direito Agrário. São Paulo : Revistados Tribunais, 1978), entre outras coisasrelacionadas com as limitações próprias dosregistros públicos, a importante diferença entreo título de propriedade agrária e os demaistítulos desse direito, que não pode ser detectadapela só visão dos tais registros16.

Esse título de propriedade “publicístico”, nafeliz expressão do autor, dá bem idéia dasdiferenças substanciais que existem entre odireito de propriedade sobre bens de uso e odireito de propriedade sobre os bens deprodução, ao qual se dedica, praticamente, todoo direito agrário; embora ambos, pelas próprias“leis” do mercado, possam se transformar emmercadoria, os segundos, pelo só fato de“frutificarem” (uma obviedade tão poucoconsiderada no julgamento dos conflitosagrários), reclamam disciplina que não permitaao poder privado do seu titular ignorar osdireitos humanos, especialmente os Desca, queconvergem sobre os tais objetos, seja pelaprópria força de exigibilidade deles, acimaresumida em 2, seja pelo cumprimento dafunção social.

Se um determinado título é publicístico,salvo melhor juízo, isso equivale dizer que, paraele, as regras comuns sobre os efeitos jurídicosdo direito ao qual se refere e aquelas derivadasdo seu registro, oriundas dos ordenamentos

voltados, predominantemente, para o DireitoPrivado, perdem muito, senão toda a força dasua vigência.

Se o sentido do conceito de “público” podepassar, sem maior exame, como coisa própriado Estado, a sua referência obrigatória – que odiga o primeiro artigo da Constituição Federal –não pode esquecer os direitos do povo todo(público no sentido de “comum”) em funçãodo qual esse mesmo Estado existe.

Muito antes das disposições da CF de 1988,assim, direta ou indiretamente relacionadascom os Desca e a reforma agrária, já haviasustentação jurídica mais que suficiente para asimples certidão do Registro de Imóveis,vinculando um determinado espaço agrário aum determinado nome, não servir mais comoprova inquestionável de domínio, pelo menosde domínio que estivesse cumprindo com aobrigatória função social exigível pelas simplesextensão e localização do bem.

Nem é somente na doutrina jurídica que autilidade ou produtividade do imóvel rural sãopregadas como de necessária investigação, acada dúvida, ou a cada conflito que se estabeleçaem torno do seu domínio ou posse.

Além das inúmeras análises agronômicas,geográficas e sociológicas já existentes arespeito nos documentos sociais da Igreja doBrasil, uma tal necessidade se refletiu, como ésabido, na denominação, por eles preferida, de“terra de trabalho” e “terra de exploração”,justamente no sentido de acentuar a predo-minância ético-social da primeira sobre asegunda, independentemente do título depropriedade que registre uma ou outra.

A questão ganha vulto bem maior, ao finaldeste milênio, na exata medida em que sobre aconstrução do espaço segundo o uso, hoje, oEstado parece ter perdido o controle, nãosomente para forças do mercado internoconhecidas, mas até para forças do mercadoexterno desconhecidas, como nos adverteMilton Santos17.

16 “O proprietário de imóveis rurais é detentorde um título jurídico sui generis, porquanto é um‘título publicístico’, e não se separa do caráter socialque o legitima (p. 101). O titular de um domínioagrário é obrigado a coordená-lo para consecuçãode gerar outros bens, que o grupo societário quer terà disposição, de acordo com a potencialidade do solode gerá-los. Não basta que se concretize a produção,mas faz-se necessário que o cultivo da terra produtivase realize racionalmente e de forma harmônica comos padrões aceitos, justos na produção e convenientesna economia dos mercados” (p. 102).

17 Nunca, como nos tempos de agora, houvenecessidade de mais e mais saber competente, graçasà ignorância a que nos induzem os objetos que noscercam, e as ações de que não podemos escapar. Édessa forma que na superfície da terra, na crosta deum país, no domínio de uma região, nos limites deum lugar – seja ele a cidade – reorganiza-se o espaço,recriam-se as regiões, redefinem-se as diferenciaçõesregionais. É dessa maneira que se estabelecem novasdinâmicas regionais, criando, sobretudo nos paísesonde as desigualdades sociais são grandes, aquelasáreas que são apenas regiões do fazer, do fazer sem

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Entendendo o espaço “como um conjuntoindissociável de sistemas de objetos e desistemas de ações” (p. 90), o autor nos chamaa atenção para a importância que, aí, representaa informação. Numa época em que ela éessencial para que a sociedade civil e o Estadoconheçam, efetivamente, todos os fatoresrelacionados com o espaço físico da nossaconvivência, o seu próprio uso nos é impostosem que possamos saber de onde, ou por quemele nos é imposto.

Note-se em que medida os desafios dodiscurso competente – o jurídico entre eles –está em discernir, diariamente, o grau depersuasão e as direções transformadoras queuma poderosa informação a serviço das forçasdo mercado interno e externo, paradoxalmentebaseadas, como a mídia testemunha napublicidade das suas vantagens, podemprovocar no espaço18.

Tais questões não interessam ao direito? Seo mundo do direito se encontra naquele que sepode chamar de “respostas”, parece impossíveldizer que não, pois, na exata medida dosdireitos que estão implicados num processo dereforma agrária, elas se inserem, justamente,na responsabilidade que tem o discursocompetente interpretativo e aplicador doordenamento jurídico, de identificar tais forças,poderes ou energias que, presentes nos direitosque reclamam respeito frente àquela políticapública (aparentemente ou não, efetivamenteou não), favorecem ou desfavorecem a concretarealização desta, e têm, ou não, densidadejurídica suficiente para sustentar tal favor outal resistência.

O que parece inadmissível é colocar todosos não-proprietários na condição de contri-buintes de um tributo privado, de causa eorigem desconhecidas.

O problema maior, como se depreende detodas essas lições e é inerente ao próprio sistemaeconômico capitalista, se situa no fato de que,ao poder de exclusão “contra todos” doproprietário, não corresponde, em nível demercado, nenhum poder da sociedade contraele. Se consideramos como eficaz uma normaque, descrevendo determinados pressupostos,verificados os quais, se seguem efetivamenteconsequências nela previstas, não há como seafastar a hipótese de que o movimento demercado tem essa eficácia independente da lei,coisa que não acontece quando os efeitos anti-sociais desse movimento devam ser prevenidosou corrigidos. Ao poder de apropriaçãocapitalista de acumular sem limites, em favorde um, contra o qual não existe qualquer tipode controle jurídico eficaz, não corresponde umpoder prévio de proteção, em favor de todos,do mau uso ou do uso abusivo que o proprietáriopoderá fazer da coisa adquirida.

Jean Carbonnier, no mesmo trabalho aquijá referido, chama atenção para o fato: não hácomo se considerar abuso, por exemplo, o“poder de adquirir propriedade”19.

Por aqui se observa em que extensão teriasido útil ao país a inclusão, no texto consti-tucional de 1988, da famosa emenda popularde reforma agrária, proposta por movimentos

o reger. O fundamento etimológico da palavra regiãoé perdido, na medida em que há regiões que sãoapenas regiões do fazer, sem nenhuma capacidadede comando. (Técnica, espaço, tempo : globalizaçãoe meio técnico-científico organizacional. São Paulo :Hucitec, 1996. p. 92, grifo do autor).

18 Se, no passado, os nexos que definiam aorganização regional eram nexos de energia, cadavez mais, hoje, esses nexos são nexos de informação.Por isso, as segmentações e partições presentes doespaço sugerem, pelo menos, que se admitam doisrecortes espaciais a que chamaríamos, proviso-riamente, de horizontalidades e verticalidades. Deum lado, há espaços contínuos, formados de pontosque se agregam sem descontinuidade, como nadefinição tradicional de região. São as horizon-talidades. De outro lado, há pontos no espaço que,separados uns dos outros, asseguram o funcio-namento global da sociedade e da economia. São asverticalidades. O espaço se compõe de uns e deoutros desses recortes, inseparavelmente. (...)Horizontalidades são áreas produtivas: regiõesagrícolas, cidades, os conjuntos urbano-rurais.Verticalidades são os sistemas urbanos. (...) Ainformação, sobretudo ao serviço das forçaseconômicas hegemônicas e ao serviço do Estado, éa grande regedora das ações definidoras das novasrealidades espaciais. Um incessante processo deentropia desfaz e refaz contornos e conteúdos dossubespaços, a partir das forças dominantes. Nasáreas de agricultura moderna, as cidades são o pontode interseção entre verticalidades e horizontalidades.As verticalidades são vetores de uma racionalidadesuperior e de seu discurso pragmático, criando umcotidiano obediente. As horizontalidades são tantoo lugar da finalidade imposta de fora, de longe e decima, quanto a contrafinalidade, localmente gerada(...) Nesse sentido, as cidades regionais podem

tornar-se o locus de um novo tipo de planejamento,que desafie as verticalidades que as sociedades locaisnão podem comandar e imponham contrafinalidades,isto é, “irracionalidades”do ponto de vista daracionalidade que lhes é sobreposta. (Ibidem, p. 94).

19 op. cit., p. 231.

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sociais da mais diversificada base e ideologia,com mais de um milhão de assinaturas, que,ao lado do módulo rural já vigente (parcela-mento da terra em medida não comprometedorado mínimo de sua exploração, suficiente paraa família que, dele, retira o seu sustento), previaum “módulo máximo”, acima do qual ninguémpodia concentrar propriedade.

A função social da propriedade, assim, antesde preventiva, tem sido corretiva e, diga-se depassagem, com insignificante eficácia.

Não é de admirar, portanto, que os Desca,implicados na política de reforma agrária,estejam tendo a sua eficácia muito melhorpatrocinada pelos seus próprios titulares, do quepela ação do Estado.

Talvez aqui se situe uma das principaisrazões jurídicas (!) de sustentação das “contra-finalidades” e “irracionalidades” detectadas porMilton Santos, capazes de se introduzirem nospróprios planejamentos públicos (!) que, senãoneutralizam, pelo menos diminuem o poderdaquelas “racionalidades sobrepostas”, cujaconvicção de estarem presentes, efetivamente,na lei, é gerada muito mais pelo caldo de culturaideológico que impõem (informação!) do que,propriamente, pela hermenêutica da lei e dodireito.

Da “contra-informação” à essa propaladaracionalidade, exercício retórico de que dásingelo exemplo o Dr. Stefanini, com ainquestionável demonstração das outras lógicasque estão presentes na própria titulação dodireito de propriedade agrária, depende oreconhecimento da eficácia concreta dos Desca.Sem necessidade de mexer em uma vírgula dodireito positivo, aquele jurista prova que asensibilidade ética e técnica do intérprete fazmais pela justa aplicação da lei do que pelaadesão acrítica a postulados sem outraconsistência do que a de terem, em passadoremoto, adquirido foro de certeza e segurançaperpétuos.

É o que propomos à consideração dos maiscapazes, não sem antes buscar o oportunosocorro de John K. Galbraith, lembrado pelo

Dr. Roger Raupp Rios, em Desapropriação ereforma agrária (Porto Alegre : Livraria doAdvogado, 1997. p. 49) para servir de rematea tudo quanto acima ficou dito, com a vênia dequantos entendem o contexto sócio-político dalei, como coisa estranha ao direito: Quando sediz que alguma ação pode ser boa mas époliticamente inviável, entenda-se que esse éo modelo comum para proteger um interessesocialmente adverso.

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1. IntroduçãoA escolha do tema da presente monografia,

apresentada no Curso de Pós-graduação oferecidona Fundação Escola Superior do MinistérioPúblico do Distrito Federal e Territórios(FESMPDFT) no ano de 1996, adveio de suaatualidade e de uma acentuada necessidade deaprofundar no estudo do Direito Constitucional,ainda mais acrescida em face da experiênciabrasileira no que se refere aos atos de urgênciaconstantes das duas derradeiras Constituições,os quais se mostram cada vez mais necessários –os decretos-leis e as medidas provisórias.

As constantes reedições dessas últimas –“mais de uma por dia”, no dizer do Exmo. JuizTourinho Neto1 – têm fragilizado seus requisitos

Medidas Provisórias – sua especificidadeprecária e a infringência de direitosadquiridos

VÂNIA FERNANDES DINIZ

Vânia Fernandes Diniz é Bacharela em Direitoe Oficiala de Gabinete do Juiz Cândido Ribeiro doTribunal Regional Federal da 1ª Região.

SUMÁRIO

1. Introdução. 2. O modelo italiano – prov-vediment provvisori com forza di legge. 3. Dodecreto-lei à medida provisória – alteraçõessignificativas. 4. Medida provisória e lei – institutosdiferenciados. 5. O exame jurisdicional. 6.Relevância e urgência – delimitações. 7. Rejeiçãoparlamentar – posições diferenciadas. 8. Reediçãode medida provisória – óbice da competência –fragilidade de seus requisitos ensejadores. 9.Suspensão da eficácia e, não, revogação. 10. Medidaprovisória e direito adquirido. 11. Direito adquiridoe reedição de medida provisória. 12. Outrashipóteses ocorrentes a partir de reedições demedidas provisórias. 13. O poder revogatórioaparente de medida provisória sobre ato da mesmaespécie. 14. Vigência da medida provisória reeditadaconvertida ou não em lei – surgimento dos direitosadquiridos decorrentes da ordem jurídica inaugural.15. Conclusões.

1 A Constiuição na visão dos tribunais :interpretação e julgados artigo por artigo. Brasília :TRF – 1ª Região; São Paulo : Saraiva, 1997.

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ensejadores – a relevância e a urgência, e, viade conseqüência, o seu caráter de excepcio-nalidade, colocando em evidência que quemlegisla hoje no Brasil é o Poder Executivo,fazendo com que o nosso Parlamento mais seidentifique com um mero homologador dasdecisões do Presidente da República do que comum porta-voz dos anseios populares.

Não se pode deixar de constatar que taismecanismos colocados ao alcance do Chefe doExecutivo têm propiciado, de uma certa forma,a permanência da chama do poder ditatorial quese reflete ao longo de nossa história. Os decretos-leis são uma prova inconteste de tal fato.

No entanto, tais provimentos de urgênciasão necessários, principalmente em países emfranco desenvolvimento como é o Brasil, a todomomento envolvido em crises econômicas esociais. A par disso, a Assembléia Constituintede 1987/1988, objetivando não extirpá-los daordem jurídica, substituiu os antigos decretos-leis pelas medidas provisórias que, emboraaparentemente ilimitadas materialmente, sãodotadas de eficácia temporal de apenas 30(trinta) dias, podendo retroagir caso não seconvertam em lei. Tais limitações conferem aosatuais atos provisórios maior precariedade, oque lhes retira a pretensão de definitividadecaracterística das leis.

Porém, a experiência brasileira temdemonstrado que esses limites ainda não estãobem utilizados, ou não bem esclarecidos, vezque a história se repete. As constantes reediçõesde medidas provisórias infringem a todoinstante direitos fundamentais do cidadão.Exemplo maior desse fato é a “contribuiçãosocial sobre os proventos dos aposentados”,criada pela MP nº 1.415/96, reeditada inúmerasvezes, que já foi, inclusive, objeto de projeto delei rejeitado pelo Congresso Nacional. Mesmoassim, o Presidente da República teima emdescontar dos parcos estipêndios dos inativostal contribuição.

Dividimos nosso trabalho em dois capítulos.No primeiro deles, procuramos fazer um estudodas medidas provisórias comparando-as com oseu modelo italiano, com os antigos decretos-leis, bem como com a própria lei. A par dessasdiferenças, pudemos extrair algumas conclu-sões, as quais evidenciam que o nosso atual atoprovisório representou uma grande evoluçãoconstitucional.

Uma pesquisa na doutrina e jurisprudênciamotivou-nos a demonstrar a importância doPoder Judiciário na solução da crise provocada

pela prática abusiva de medidas provisórias, oqual tem sido compelido a intervir a fim demanter o equilíbrio e harmonia entre os Poderesda República.

No segundo capítulo, penetramos no campodo Direito Civil, principalmente no estudo doconflito de leis no tempo, a fim de demonstrarque a medida provisória não tem o condão derevogar atos legislativos pretéritos, mas tão-somente força de lei capaz de suspender seusefeitos. Nesse desiderato, aprofundamos notema da reedição de atos provisórios e ainfringência de direitos adquiridos e atosjurídicos perfeitos advindos de normasanteriores.

Ao final desta monografia, apresentamos,sinteticamente, as conclusões a que pudemoschegar, sem, contudo, deixar de alertar quenosso trabalho não tem a pretensão de esgotara matéria, ao contrário, tem ele o objetivo tão-somente de trazer à baila teses jurídicas jábastante discutidas em sede doutrinária ejurisprudencial.

2. O modelo italiano – provvedimentiprovvisori com forza di legge

Sucedânea do antigo decreto-lei, a medidaprovisória foi introduzida no Direito brasileiropor intermédio da Constituição de 1988.

Inspirou-se o constituinte originário nomodelo italiano, constante da Carta de 1948,que prevê a iniciativa do Governo em adotar,em hipóteses excepcionais de necessidade eurgência, sob sua responsabilidade, provve-dimenti provvisori com forza di legge, os quaisdeverão ser imediatamente apresentados aoParlamento para serem examinados, perdendoa eficácia retroativamente caso não sejamconvertidos em lei no prazo de 60 (sessenta)dias. Estabelece a Constituição italiana que asrelações jurídicas poderão ser reguladas pelasCâmaras na hipótese de não-conversão dodecreto-lei2.

2 Diz o art. 77 da Carta Magna da Itália: “IIgoverno no può senza delegazione delle Camere,emanare decreti che abbiano valori di leggeordinaria. Quando, in casi straordinari di necessetàe d’urgenza, il Governo adotta, sotto la suareponsabilità, provvedimenti provvisori com forzade legge, deve il giorno stesso presentarli per laconversione alle camere che, ache sciolte, sonoappositamente convocaate e si riuniscono entrocinque giorni. I decreti perdono efficacia sindallïnizio, se non convertiti in legge entro sessanta

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É de se ver que o similar brasileiro traduzquase que ipsis litteris o modelo italiano,diferenciando apenas no que tange ao prazoeficacial de 60 (sessenta) dias, bem comoquanto à regulação das relações jurídicasoriundas dos atos provisórios não convertidosem lei pelo Parlamento. Enquanto que o art.77 da Carta da Itália estabelece que essaspoderão ser disciplinadas pela Câmara, a nossaConstituição determina a sua regulação pelosparlamentares. Em ambos os modelos, adisciplina far-se-á mediante ato legal.

A faculdade outorgada pela Carta italianaao Parlamento, quando se utiliza do vocábulopoderá, evidencia que o decreto legge, durantesua vigência, mostrou-se com normatividadeplenamente eficaz, donde se conclui que os atospraticados sob a égide do provimento provisóriopodem ser revalidados.

Quer isso dizer que os atos praticadosdurante a vigência do decreto legge não podemser eliminados instantaneamente em qualquerhipótese, ou seja, não é pelo simples fato denão terem os mesmos sido convertidos em leique se pode suprimi-los, ficam eles dependentesdo regime jurídico cumprido quando estiveramem vigor.

A par do que vimos de expender, tem-seque a precariedade de que se reveste o modeloitaliano, se comparada ao seu similar nacional,é mais densa, vez que as situações jurídicascriadas em decorrência do ato provisóriotendem a permanecer, ou seja, se mostram maissólidas, passíveis de adquirir definitividade.

A contrario sensu, as relações jurídicasoriundas da eficácia temporal limitada damedida provisória não podem ser confirmadas,pois o ato excepcional foi rejeitado peloCongresso Nacional. Tem este o poder-deverde disciplinar as relações jurídicas concre-tizadas, ou seja, o texto constitucional, emhipótese alguma, possibilita a revitalização dosatos praticados durante a vigência da medidaexcepcional.

As situações jurídicas decorrentes demedidas provisórias não podem ter a pretensãode serem definitivas, sob pena de causar danode difícil reparação.

Giovanni Pitruzzella, em estudo sobre dosdecretos-leis italianos, ressalta que a validade do

“decreto legge decorre do Texto Consti-tucional, não sendo possível afirmar queos atos praticados sob a vigência daqueledecreto legge que não foi revitalizadoinexistam, vez que, dessa forma, quali-fica-se-o como originariamente invá-lido”3.

O projeto de lei de conversão do decretolegge é passível de sofrer emendas peloParlamento, tanto modificativas como supres-sivas. Seus efeitos, no entanto, podem serdiversos. “Para Constantino Mortati, a emendasupressiva opera efeitos ex tunc, enquanto aemenda aditiva contém efeito ex nunc. Já paraPaolo Biscareti Di Ruffia, a emenda supressivapode ser vista, conforme a situação, tanto comonegação da conversão e, portanto, efeito ex tunc,ou como ab-rogação contemporânea à lei deconversão, operando, nessa hipótese, efeito exnunc”4.

No que pertine ao similar nacional, prevê aResolução nº 1, de 2 de maio de 1989, commodificações introduzidas pela de nº 2, que oprojeto de conversão da medida provisória podetambém sofrer emendas, cujos efeitos são exnunc, vez que procedentes do CongressoNacional, estando, por conseguinte, sujeitas àsanção ou veto presidencial; os artigosmodificados perdem eficácia retroativamente5.

A doutrina e a jurisprudência italianasadmitem a reedição de provimentos provisóriosquando transcorrido in albis o prazo devalidade, sob o fundamento de que os requisitosde urgência e relevância podem protrair-se notempo6.

No que tange à medida provisória, posicio-nou-se o Supremo Tribunal Federal pelaimpossibilidade de sua reedição somentequando da ocorrência de rejeição expressaoperada pelo Congresso Nacional7. Parte denossos doutrinadores diverge do entendimentoesposado pela Suprema Corte.

giorni dalla loro pubblicazione. Le Camere possonotuttavia regolare com legge i rapporti giuridici sortisulla base dei decreti non convertiti. (Apud TÁCITO,Caio. As Medidas Provisórias na Constituição de1988. Revista Forense, v. 85, p. 15, jan./mar. 1989).

3 Apud BARROS, José Fernando Cedeño de.Disciplina das relações jurídicas decorrentes demedida provisória não convertida em lei no sistemaconstitucional brasileiro. Revista de InformaçãoLegislativa, v. ano 29, n. 115, p. 207, jul./set. 1992.

4 Apud SOUSA, Leomar Barros Amorim de.Medidas provisórias : a experiência brasileira.Brasília : TRF – 1ª Região, p. 21. (Cartilha Jurí-dica, 46).

5 Ver jurisprudência da p. 53.6 PALADIN, Livio. apud ADIn 293/DF. Relator:

Ministro Celso de Mello. RTJ, n. 146, p. 717.7 Ibidem, p. 717-722.

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Em ambos os sistemas, a posição doutri-nária majoritária é no sentido de que não há,em princípio, discriminação material para aedição de atos provisórios, sofrendo limitaçãoapenas na avaliação dos requisitos da urgênciae da relevância8.

3. Do decreto-lei à medida provisória –alterações significativas

A Constituição brasileira de 1937, outor-gada por Getúlio Vargas, previu, pela primeiravez, os decretos-leis, nos seus artigos 12, 13,14 e 180, os quais estabeleciam que o Presidenteda República estava autorizado pelo Parlamentoa expedi-los nos limites e condições estabe-lecidas no ato de autorização. A Carta de 1946extirpou-os do texto magno, em face de seu usoabusivo pelo Chefe do Executivo no EstadoNovo.

Na Carta de 1967, com a Emenda nº 1/69,foram eles novamente introduzidos para seremadotados em casos de urgência ou de interessepúblico, desde que não acarretassem aumentode despesas, sofrendo limitações materiais,quais sejam: segurança nacional; finançaspúblicas, inclusive normas tributárias; e criaçãode cargos públicos e fixação de vencimentos9.

A uma comparação com o seu ato substi-tutivo – as medidas provisórias – 4 (quatro)características distinguem os dois modelos:

– a contrario sensu dos decretos-leis, asmedidas provisórias não sofrem limitaçõesmateriais expressas, estando autorizadas apenaspela presença dos requisitos da urgência erelevância;

– os decretos-leis, na ausência de delibe-ração parlamentar no período de 60 (sessenta)dias, eram tidos como tacitamente aprovados;as medidas provisórias, em hipótese seme-lhante, perdem eficácia retroativamente;

– a rejeição parlamentar expressa, nahipótese dos decretos-leis, não possibilita anulidade dos atos praticados durante a suavigência; no entanto, as medidas provisórias,expressamente rejeitadas, perdem eficácia extunc, sendo desconstituídos os atos praticadosenquanto eficazes, cabendo ao CongressoNacional disciplinar as relações jurídicasadvindas do ato provisório rejeitado;

– os decretos-leis não podiam ser emen-dados10, contrariamente à medida provisória,que pode sofrer modificação no seu textooriginário.

A par das diferenças explicitadas, é de sever que a nossa Constituição, implicitamente,impõe um distanciamento maior entre a lei –ato do Parlamento, e a medida provisória – atodo Executivo, diferentemente do regimeanterior.

É que a perda da eficácia ex tunc, tanto nahipótese da rejeição tácita quanto expressa11,evidencia a natureza precária deste instituto,sujeito não só a uma eficácia temporal menor(trinta dias), como também à nulidade dos atospraticados durante a sua vigência. Acrescente-se, ainda, a possibilidade de emendas quandodo processo de conversão. Quis o constituinteoriginário, desse modo, ressaltar a importânciado Poder Legislativo que, de modo algum, podeser subjugado à condição de mero homologadorde atos do Presidente da República, como seapresentava no disciplinamento dos decretos-leis na Constituição passada.

4. Medida provisória e lei –institutos diferenciados

Como o próprio nome revela, medidaprovisória não é lei. Tem caráter de excepcio-nalidade, contrário à essência da lei, quepressupõe definitividade. Esta última nasceupara se perpetuar em respeito ao princípio dasegurança jurídica. Perpetuidade no sentido devivência consentânea com a própria evoluçãoda sociedade, que não é estanque. Porém, essaaparentemente paradoxal definitividadetransitória, porquanto tendente a acompanharas mudanças inerentes ao corpo social, de formaalguma pode ser igualada à transitoriedade dasmedidas provisórias.

Caio Mário da Silva Pereira nos ensinaque12:

“Da própria noção conceitual temosque a lei é uma ordem permanente, o queimplica na dedução de sua continuidade,mas não traduz obviamente eternidade,incompatível que seria esta com anatureza contigente da obra humana. Tal

8 A respeito do tema, sugerimos a leitura da tesede mestrado apresentada pelo Juiz Federal, Dr.Leomar Barros Amorim de Sousa, na Universidadede Lisboa, cuja obra citamos na nota 4.

9 Ibidem, p. 14.

10 Ibidem, p. 15.11 Remetemos o leitor para o tópico “Rejeição

parlamentar – posições diferenciadas”, destetrabalho.

12 Instituições de Direito Civil. 2. ed. Rio deJaneiro : Saraiva, 1991. p. 87.

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qual na física, a lei da inércia afirma que,uma vez impulsionado e posto emmovimento, o corpo assim se mantém atéque uma força contrária lhe imponha orepouso, também no mundo jurídico, alei em vigor permanece vigente, até queuma força contrária lhe retire a eficácia”.

A medida provisória assemelha-se à lei, nãoé lei.

“É parassimétrica a esta, guarda comela algumas conexões analógicas, masum modelo não se transfunde noutro”13.

Celso Antonio Bandeira de Mello14 apontaseis importantes diferenças entre os dois atosnormativos, a saber:

1) emanam de órgãos distintos, vez que amedida provisória procede do Poder Executivo;

2) as medidas provisórias correspondem auma forma excepcional de regulação dematérias, ao passo que a lei é a via ordinária dediscipliná-las;

3) são efêmeras, de vida curtíssima, acontrario sensu das leis que, além de perdu-rarem normalmente por tempo indeterminado,quando temporárias têm seu prazo por elasmesmas fixado. As medidas provisórias, porsua vez, têm duração máxima, já preestabe-lecida no texto constitucional, de trinta dias;

4) as medidas provisórias possuem caráterprecário, vez que podem ser invalidadas peloCongresso Nacional no termo prefixadoconstitucionalmente, enquanto que a lei tem suapermanência dependente do próprio órgão quea emanou;

5) a eficácia da medida provisória nãoconfirmada é ex tunc (desde o início),diferentemente da lei que, ao ser revogada, seusefeitos são dali para frente, ou seja, ex nunc;

6) a medida provisória, para ser expedida,depende da presença de pressupostos especí-ficos – relevância e urgência; ao passo que, paraa edição de lei, a relevância da matéria não épressuposto, até porque passa a ser de direitorelevante tudo o que a lei houver estabelecido.O requisito da urgência inexiste, porquanto alei deve ser amadurecida, a fim de que tenhadefinitividade, pois representativa dos anseiospopulares.

Por fim, diz o Ministro Celso de Mello:

“...As medidas provisórias confi-guram espécies normativas de naturezainfraconstitucional, dotadas de força eeficácia legais. Não se confundem,porém, com a lei, embora transito-riamente se achem investidas de igualautoridade. A cláusula “com força de lei”empresta às medidas provisórias osentido de equivalência constitucionalcom as leis...” (ADIn 293/DF, RTJ, v.146, p. 707).

A par das diferenças inerentes aos dois atosnormativos, adverte-nos o Professor Bandeirade Mello que incorreríamos em erro gravíssimose fôssemos analisá-las como leis expedidaspelo Executivo e, em conseqüência, “atribuir-lhes regime jurídico ou possibilidades norma-tizadoras equivalentes às das leis”15.

É importante salientar que não se trata deconferir ao Executivo uma opção de regulaçãode matérias, ou seja, podendo o mesmo escolherentre o procedimento normal de iniciativa dasleis estabelecido no art. 61 e aquele constantedo dispositivo 62 da Constituição Federal. Pelocontrário, as características imanentes dessesatos provisórios revelam que só são possíveismediante o processo excepcional e célereimposto no último dispositivo mencionado.

É de se ver que as propostas dos doisinstitutos – definitividade das leis e proviso-riedade das medidas provisórias – terão de sercompatíveis com os processos pelos quais sãosubmetidos quando de sua feitura.

O iter percorrido para a elaboração de umalei é demorado e longo, porém necessário, vezque esta deve refletir a vontade popular, acontrario sensu das medidas provisórias quedemandam processo célere, pois em face dequestões relevantes e de urgente suprimento.

De qualquer sorte, trata-se, a medidaprovisória, de provimento oriundo da Adminis-tração Pública para preservar um interessepúblico violado ou ameaçado, de nítido carátercautelar, que a Constituição, por meio dacondição de posterior ratificação parlamentar,confere força de lei pelo prazo de trinta diastão-somente.

A propósito do tema, cite-se, mais uma vez,pronunciamento do Exmo. Ministro Celso deMello, do Supremo Tribunal Federal, in verbis:

“...O que justifica a edição demedidas provisórias é a existência de umestado de necessidade, que impõe aoPoder Executivo a adoção imediata de

13 FIGUEIREDO, Fran. As medidas provisóriasno sistema jurídico-constitucional brasileiro. Revistade Informação Legislativa, n. 110, p. 146, abr./maio1991.

14 Curso de Direito Administrativo. 5. ed. SãoPaulo : Malheiros, 1994. p. 62-63. 15 Ibidem, p. 63.

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providências de caráter legislativo,inalcançáveis segundo as regras ordi-nárias de legiferação, em face do própriopericulum in mora que certamentedecorreria do atraso na concretização daprestação legislativa...” (1ª Turma. RE166349-9/DF. Decisão de 31 de maio de1994. DJ, p.32.312, 25 nov. 94. Seção 1).

5. O exame jurisdicional Dispõe o caput do art. 62 da Constituição

da República:“Em caso de relevância e de urgência,

o Presidente da República poderá adotarmedidas provisórias, com força de lei,devendo submetê-las de imediato aoCongresso Nacional, que, estando emrecesso, será convocado extraordinaria-mente para se reunir no prazo de cincodias”.

Relevância e urgência são conceitos“vagos”, “fluidos”, “imprecisos”, no dizer deCelso Antônio Bandeira de Mello16, os quaisnecessitam, para a sua interpretação, de umjuízo discricionário17 por parte do PoderPúblico.

Para Rudolf Laun18 o poder discricionáriopode ser assim entendido:

“Quando podemos admitir que,segundo a vontade da lei, suas possibi-lidades entre si contrapostas são igual-mente conformes ao direito, e a autori-dade, portanto, pode optar por A ounão-A, sem agir contrariamente aodireito em qualquer das alternativas,então temos... poder discricionário”.

Tal comportamento, transposto para ahipótese do exame dos pressupostos dasmedidas provisórias, configura-se quando, porinúmeras vezes, surgirão situações duvidosas,que a uma primeira análise, não se poderá dizer,com certeza, se refletem ou não hipótesescorrespondentes à previsão abstrata constantedo art. 62. No entanto, juntamente com elas,ocorrerão outras tantas situações em que será“induvidoso inexistir relevância e urgência ou,pelo contrário, induvidoso que existem.”19

Saulo Ramos20 assevera que a avaliação dospressupostos específicos da medida provisóriasubmetem-se ao juízo político e à avaliaçãodiscricionária do Presidente da República,porém é de opinião que tal juízo é vedado aoPoder Judiciário, cabendo tão-somente aoLegislativo reavaliá-los quando da conversãoem lei.

Cita, inclusive, jurisprudência do SupremoTribunal Federal no mesmo sentido, in verbis:

“Decreto-lei no regime da Consti-tuição de 1967.

1. A apreciação dos casos de urgênciaou de interesse público relevante, a quese refere o art. 58 da Constituição de1967, assume caráter político e estáentregue ao discricionarismo dos juízosde oportunidade ou de valor do Presi-dente da República, ressalvada apre-ciação contrária e também discricionáriado Congresso...” (RTJ, v. 44, p. 54).“...os pressupostos de urgência e rele-vante interesse público escampam aocontrole do Poder Judiciário...” (RTJ, v.62, p. 819).

“...A urgência e o interesse públicorelevante são aspectos políticos entreguesao discricionarismo (e não ao arbítrio)do Presidente da República e do Con-gresso Nacional” (RDA, v. 125, p. 89).

Tal entendimento não é compartilhado porCelso Antônio Bandeira de Mello21, que

16 São conceitos que comportem densidademínima, ou seja, designam algum conteúdodeterminável. “Se não houvesse significado algumrecognoscível”, diz o autor, “não haveria palavra,haveria um ruído... De qualquer deles se pode dizerque compreendem uma zona de certeza positiva,dentro na qual ninguém duvidaria do cabimento daaplicação da palavra que os designa e uma zona decerteza negativa em que seria certo que por ela nãoestaria obrigada. As dúvidas só tem cabida nointervalo entre ambas. Isto significa que em inúmeroscasos será induvidoso que uma situação é, exempligratia, urgente, ou que seguramente não o é; que háum interesse público relevante ou que certamentenão há...”. (Grifos do autor).

17 É importante salientar que não se há deconfudir discricionariedade com arbitrariedade, sobpena de enfraquecimento dos alicerces do Estadode Direito, o qual pressupõe que a atuaçãoadministrativa e jurisdicional tenham comosupedâneo a autorização legal. No tema sob comento,a edicão exagerada de medidas provisórias mais secompraz com uma atitude arbitrária que com umaatitude discricionária, pois demonstra um extrava-samento dos limites impostos pelo constituinteoriginário.

18 Apud ENGISH, Karl. Introdução ao pensa-mento jurídico. Tradução de J. Baptista Machado.6. Ed. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, p.216-217.

19 MELLO, op. cit., p. 66-67.20 Parecer nº SR-92, publicado no Diário da

Justiça do dia 23.6.89, p. 10.181-182.21 MELLO, op. cit., p. 66.

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assevera não sair o Judiciário de sua finalidadeespecífica, tampouco invade discrição adminis-trativa, quando verifica se estão presentes ospressupostos normativamente estabelecidos naConstituição para impor limites a determinadacompetência. É que a Constituição só admitemedidas provisórias em face de situaçãorelevante e urgente, com o que se deduz queambos são, cumulativamente, requisitosindispensáveis para a invasão da aludidacompetência, ou seja, não estando elespresentes, inexistirá poder para editá-las.

“Se a Carta Magna tolerasse ediçãode medidas de emergência fora dessashipóteses não haveria condicionado suaexpedição à pré-ocorrência destessupostos normativos. Segue-se que têmde ser judicialmente controlados, sobpena de ignorar-se o balizamento consti-tucional da competência para editarmedidas provisórias. Com efeito, serelevância e urgência fossem noções sóaferíveis concretamente pelo Presidenteda República, em juízo discricionárioincontrastável, o delineamento e aextensão da competência para produzirtais medidas não decorreriam da Consti-tuição, mas da vontade do Presidente,pois teriam o âmbito que o Chefe doExecutivo lhes quisesse dar. Assim, aoinvés de estar limitado por um círculode poderes estabelecido pelo Direito, eleé quem decidiria sua própria esferacompetencial na matéria, idéia anti-nômica a tudo que resulta do Estado deDireito”.

O Ministro Celso de Mello, do SupremoTribunal Federal, conforme se constata pelaleitura dos excertos abaixo, admite o controlepelo Poder Judiciário da competência legife-rante excepcional do Executivo, quando se fizernecessário, mediante o exame dos pressupostosespecíficos da medida provisória. Diz S. Exa.:

“O Chefe do Executivo da Uniãoconcretiza, na emanação das medidasprovisórias, um direito potestativo, cujoexercício – presentes razões de urgênciae relevância – só a ele compete decidir....Essa circunstância, contudo, não subtraiao Judiciário o poder de apreciar evalorar, até, se for o caso, os requisitosconstitucionais. A mera possibilidade deavaliação arbitrária daqueles pressu-postos, pelo Chefe do Executivo, cons-titui razão bastante para justificar ocontrole judicial.

O reconhecimento de imunidadejurisdicional, que pré-excluísse deapreciação judicial o exame de taispressupostos – caso admitido fosse –implicaria consagrar, de modo inacei-tável, em favor do Presidente da Repú-blica, uma ilimitada expansão de seupoder para editar medidas provisórias,sem qualquer possibilidade de controle,o que se revelaria incompatível com onosso sistema constitucional...” (ADIn293/DF. RTJ, n. 146, p. 707). (grifos doautor). No mesmo sentido: ADIn 162.14 de dezembro de 1989. RelatorMinistro Moreira Alves, e ADIn 628/DF.Relator: Sepúlveda Pertence, RTJ, v. 10,p. 101.

Vê-se que hoje, de uma certa forma, nossostribunais têm penetrado nesse particular, emface das reedições constantes de medidasprovisórias, colocando em evidência que quemlegisla é o Poder Executivo. Até porque, comosalientado pelo Ministro Celso de Mello, cabeao Judiciário, como órgão fiscalizador dasnormas, obstaculizar essa prática legiferanteque, embora excepcional, tem-se tornadoordinária, controlando sua compatibilidade como que preconiza o texto magno.

Se se edita e reedita medidas provisóriassobre o mesmo tema, o seu caráter de urgênciae relevância está se fragilizando. Mesmo queperdure o estado emergencial, não cabe maisao Executivo tentar saná-lo com a reedição doato provisório. Cabe ao Legislativo certificar-se se a utilização daquele instituto resolve aquestão ou pode ser resolvida de outra forma.Se o Congresso Nacional a rejeita, expressa outacitamente, a solução já não mais pertence aojuízo discricionário do Executivo.

Acreditamos que se o Poder Executivoextrapola de seu poder constitucionalmentegarantido, fazendo com que o juízo discri-cionário passe a ser um juízo arbitrário, pondoem fragilidade os alicerces que dão sustentáculoa um Estado Democrático de Direito, nada mais“urgente e relevante” que haja por parte doPoder Judiciário interferência nesse exame“discricionário”, averiguando os limites dacompetência legiferante excepcional outorgadaao Poder Executivo.

Até porque ao Congresso Nacional tem sidoobstado indiretamente esse exame político, vezque o prazo conferido ao mesmo para o examedos projetos de conversão é exíguo, e a ediçãode atos provisórios tem sido uma constante. Não

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há como se conceber que as atividades doLegislativo tenham que estar sempre voltadaspara o exame de medidas provisórias.

É de se atentar, nesse particular, se o temorconstante das palavras de Fran Figueiredo22 nãoestá sendo concretizado, quando disse:

“O uso desenfreado, genérico eabusivo dessas medidas pode provocaruma alteração completa no regimeinstitucional, desequilibrando mesmotoda a estrutura levantada pela Consti-tuição, com base no princípio da sepa-ração de poderes. Essa prática excessivaproduziria a reversão do processolegislativo, criando um tipo novo deordem constitucional, onde o PoderLegislativo (logo o mais alto na esferade competência) sofreria uma espécie decapitis diminuto, relegado à posição deórgão homologatório das decisões doPoder Executivo”.

A propósito do exame discricionário, cite-se jurisprudência oriunda do Tribunal RegionalFederal da 1ª Região, da lavra do Exmo. JuizCândido Ribeiro, quando da apreciação deagravo de instrumento versando matériareferente à contribuição previdenciária sobreos proventos dos aposentados, instituída pelaMP nº 1.415/96, verbis:

“... Se há, por um lado, o fumus boniiuris reclamado pela agravante, de queas medidas provisórias já nascem comforça de lei, está ele presente tambémpara os agravados no fundamento de quea conversão em lei é imprescindível,porquanto fluido se tornou seu caráterde excepcionalidade. Por que tantaurgência e relevância se até hoje osaposentados permaneceram com suasrendas intactas, tendo, inclusive, incor-porado tal imunidade a sua rendalíquida?

Ademais, autorizando o Poder Judi-ciário ante tempus o desconto dacontribuição previdenciária, propiciaráum dano maior aos inativos, pois terãode se valer da repetição do indébito, que,sabe-se lá quando obterão a quantiadescontada. Sem contar nas dificuldadespor que passarão tendo a sua rendadiminuída, pois não têm como compen-sá-la com outros rendimentos. Noentanto, a União, com certeza, terá meios

muito fáceis, céleres e eficazes paracobrar o que lhes é devido” (Ag.96.01.38251-6/DF. DJ, 25 mar. 1997, p.17.577).

No AgRegSS 96.01.28715-9/DF do TRF-1ª Região, também sobre a mesma matéria,assim se pronunciou o Juiz Catão Alves:

“...não vejo como a suspensão dos efeitosdessa Medida Provisória possa trazeralguma ameaça à segurança e à ordempúblicas, principalmente, porque se, atéagora, não vinha sendo cobrada essacontribuição, sem que a ordem e asegurança públicas tivessem sofridoalguma lesão, o simples fato de ficar oPoder Público mais algum tempo semcobrá-la, ou seja, até o julgamento domérito, vai causá-la?

Desse modo, não vejo nenhumacondição de haver grave lesão. Aocontrário, a suspensão pode trazer umaperturbação à ordem pública porque háquase dois anos estão os funcionários semreajuste, a inflação crescendo e elessubmetidos, abruptamente, a mais umdesconto de 12%, ou seja, à diminuiçãode 12% em seus parcos estipêndios”.

Perfilhando igual entendimento, a posiçãodo Juiz Aloísio Palmeira Lima, no mesmoagravo regimental citado, verbis:

“...Trata-se de contribuição que nãoexistia e que teve existência a partir daedição da Medida Provisória. O Governonão está deixando de arrecadar aquiloque arrecadava antes; está simplesmentedeixando de arrecadar o que pretendiaarrecadar. Assim, também por esseaspecto, não vejo a grave lesão àeconomia pública, em virtude tambémdaquele outro argumento, segundo o qualaté agora a economia pública não foiafetada pela falta de cobrança ou dearrecadação dessa contribuição” (Rel.para o acórdão o Juiz Nelson Gomes daSilva).

Pelos arestos transcritos, pode-se concluirque, pelo menos o requisito da urgência estásendo apreciado.

Em 1991, quando da elaboração de textodoutrinário, o Procurador do Estado do Rio deJaneiro Fernando Lemme Weiss, na mesmalinha de pensamento esposado pelo ProfessorCelso Antônio Bandeira de Mello, e do que temsido constatado pela jurisprudência acimatranscrita, já preconizava que o Poder Judiciário

22 FIGUEIREDO, op. cit., p. 149 (grifos doautor).

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poderia adentrar, pelo menos, no exame dorequisito da urgência, quando disse23:

“...Quanto à urgência, parece-meincontestável que pode ser aferida emmuitos casos.

As MPs editadas no começo do atualgoverno, apesar de terem redundado emfracasso, eram urgentes. Não caberia aoJudiciário discordar da solução dada.

Mas a questão dos aluguéis é crônicae não conjuntural. Denúncia vazia, coma Lei nº 6.649/79.

É evidente que não se trata de umaemergência. Nesse caso as MPs sãoincabíveis e inconstitucionais em decor-rência”.

Voltando ao mérito dos julgados apresen-tados, não é de se questionar, então, se nãopoderia a contribuição social, objeto dessasdemandas, passar pelo iter normal de criaçãodas leis para então ser exigida do contribuinte24?

Tem-se que o Judiciário, no exercício docontrole difuso, pode, de uma certa forma,impedir a atividade legiferante do PoderExecutivo, concedendo liminares – a dependerda hipótese concreta – no sentido de obsta-culizar sua efetiva concretização25 –, poster-gando o exame do mérito das demandasajuizadas para só após a conversão da medidaprovisória em lei, vez que, a partir dessemomento, o Congresso Nacional já procedeuao exame da admissibilidade do ato do PoderExecutivo.

É de se salientar que o controle jurisdicionaldas medidas provisórias, de uma certa forma,vem-se mostrando “deficiente e problemático”,no dizer do Juiz Leomar Amorim26, vez que oSupremo Tribunal Federal tem julgadoprejudicado o julgamento das ADIns nashipóteses de medida provisória não convertidaem lei no prazo de trinta dias ou quando

reeditada, e a anterior não tenha sido exami-nada (ADIn 162-/DF, relativa à MP 111/89).

Adotando o posicionamento antes sugerido,estará o Judiciário provocando um pronun-ciamento por parte do Legislativo, no sentidode rejeitar ou ratificar a medida excepcional,ao mesmo tempo em que estará protegendodireitos garantidos constitucionalmente queporventura possam estar sendo infringidos27.

Registre-se, a propósito do tema, a lição doMinistro Celso de Mello, a saber:

“...As recíprocas interferências dospoderes do Estado, uns nos outros, nashipóteses constitucionalmente autori-zadas, não provocam a ruptura dosistema. Esta ocorrerá, no entanto,sempre que qualquer dos Poderes – oExecutivo, exemplificativamente –exercer, com expansão desordenada,atribuições que lhe não são próprias, ou,então, prejudicar, por atos que refogemà ortodoxia constitucional, o normaldesempenho, pelos demais Poderes doEstado, de funções que lhes são inerentes,como a prática, em plenitude, daatividade legislativa pelo CongressoNacional” (ADIn 293/DF, p. 721-722).

De outra parte, uma delimitação dosconceitos de relevância e urgência faz-senecessário, vez que se dotados de cargasignificativa maior, mais fácil se tornará seuexame pelo Legislativo como órgão deratificação e, de qualquer forma, propiciará umcontrole maior por parte do cidadão.

23 Medidas provisórias, reedição, responsabi-lidade do Executivo, recusa no processamento,descumprimento. Revista de Direito Público, v. 25,n. 99, p. 140, jul./set. 1991.

24 Ver comentários à p. 31.25 De certa forma, é exatamente isso o que vem

acontecendo nas hipóteses das contribuições sociaissobre os proventos dos aposentados, bem como dasubstituição da sistemática adotada para a cobrançado PIS (MP nº 1.212/95 e suas sucessivas reedições).Ver Ag 96.01.38252-6/DF. Relator: Juiz CândidoRibeiro. DJ, p. 17.577, 25 mar. 1997, e Ag.96,01,38383-2/MG. Relator: Juiz Tourinho Neto. DJ,p. 94.805, 9 dez. 1996.

26 SOUSA, op. cit., p. 44.

27 Em 20 de maio de 1997, O Correio Braziliensepublicou reportagem na qual se concretiza a atuaçãodo Judiciário no sentido de paralisar a atividadelegiferante do Poder Executivo, vez que a decisãodo Conselho de Administração do Superior Tribunalde Justiça reduziu a alíquota de 12% para 6%recolhido a título de contribuição para a PrevidênciaSocial, por não ter sido a medida provisória que amajorou convertido em lei. Cite-se trecho dareportagem: “O STJ salienta que ‘inexistem decisõesjudiciais de natureza definitiva que contrariem oentendimento adotado’... ‘não existe lei que amparea pretendida exigência... eis que, havendo somenteuma sucessão de medidas provisórias, nenhumadelas até hoje foi convertida em lei’(...) ‘A leianterior, que determinava o desconto de 12% paratodos os servidores públicos... tinha eficáciaprovisória determinada no próprio texto, até 30 dejunho de 1994’ (p. 2). Infelizmente o SupremoTribunal Federal suspendeu, retroativamente, aResolução do Superior Tribunal de Justiça (Adin1.610/DF. Relator: Sydney Sanches. InformativoSTF, n. 73, p. 4).

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Ademais, adotando-se limitações legais aospressupostos dos atos provisórios, propiciar-se-á, por via transversa, um alcance maior docontrole por parte do Judiciário, vez que, dessemodo, estará ele procedendo ao exame dalegalidade do ato, e, não, da discricionariedadedo mesmo.

6. Relevância e urgência – delimitaçõesA par dessas considerações, podemos ter

como relevante tudo aquilo que tem porfinalidade proteger ou resguardar o interessepúblico mais geral, que necessita de um cuidadoespecial e imediato por parte do PoderExecutivo.

Adverte-nos Celso Antônio Bandeira deMello,

“que não é qualquer espécie de interesseque lhes pode servir de justificativa, poistodo e qualquer interesse público é ipsofacto ‘relevante’. Donde – e como nema lei nem a Constituição têm palavrasinúteis – há de se entender que a mençãodo art. 62 à ‘relevância’ implicou atribuiruma especial qualificação à natureza dointeresse cuja ocorrência enseja autilização de medida provisória. É certo,pois, que só casos graves, ante interessesinvulgarmente importantes, justifica-sea adoção de medidas provisórias”28.

É importante frisar que a relevância dizrespeito à situação social, ou seja, às neces-sidades e interesses da sociedade. Diz CarmemLúcia Antunes Rocha29:

“...Não se considerará jamais caso derelevância aquele que se traduza eminteresses, ainda que sérios e impor-tantes, de governo, de partidos, degovernantes, mesmo que o caso ofereçariscos para a permanência de um grupoou algo que a isso se equipare. Somentepara a sociedade deverá ser relevante ocaso, e é apenas em face dela e para elaque será apurada a ocorrência objetivade tal qualidade das circunstânciasalegadas. Grupos particulares ou inte-resses, ainda que partidários, não seenquadram na hipótese prevista consti-tucionalmente...”.

A relevância, portanto, é a gravidade docaso, cuja ocorrência enseja dano sério para asociedade, podendo ser situada no meio termoentre uma situação comum e outra excepcionalque enseja crise, vez que a Constituição, naúltima hipótese, oferece-nos mecanismos paracombatê-las e, na primeira delas, estabelece oprocedimento ordinário de criação legislativa.

Entende-se por urgente qualquer fato quedemanda ação imediata, incontinenti por partedo Chefe do Poder Executivo, ou seja, aquiloque não pode aguardar o decurso do temponormalmente, vez que o objeto pretendidopoderá vir a não ser atingido ou até mesmo odano que se deseja evitar acabe por se consumarou, no mínimo, existam sérios riscos de quesobrevenham efeitos desastrosos em caso dedemora.

A urgência, diz o Exmo. Juiz TourinhoNeto30

“é a iminência do risco ou do dano, operigo imediato, (...) O mal está prestesa ocorrer. Uma pronta solução, portanto,se exige. Há imperiosa necessidade deque se faça alguma coisa”.

É inconcebível que se caracterize comourgente aquilo que vem sendo empregadoreiteradamente durante anos. Qualquermodificação nesses casos, com certeza, serámediante o processo ordinário de criação deleis. Medidas provisórias que alterem artigosdo Código de Processo Civil, como é o caso daMP nº 1.570/97, são impertinentes sem sombrade dúvida.

A respeito do pressuposto da urgência, valea pena transcrever o pensamento do JuizLeomar Amorim:

“...para fazer-se a ponderação do que sejaurgência referida no art. 62 da Cons-tituição e dar-lhe uma certa densidadeobjetiva, cumpre realizar duas operaçõeslógicas dentro do sistema: a) admitir queo processo legislativo ordinário é ineficazpara obviar a situação que reclamaatuação legislativa do governo; b)afastada essa hipótese, avaliar se asituação pode ainda ser equacionada peloprocesso sumário ou abreviado, previstonos §§ 1º e 2º do art. 64 da CF, queautorizam o Presidente da República asolicitar urgência na apreciação deprojetos de sua iniciativa sobre os quais28 MELLO, op. cit., p. 64.

29 Pressupostos constitucionais da MedidaProvisória. Enfoque Jurídico, n. 6, p. 30-31, abr./maio 1997, suplemento do Informe, editado pelaDivisão de Comunicação Social do TRF – 1ª Região.

30 Medidas provisórias inconstitucionais.Correio Braziliense, Brasília, 5 maio 1997. CadernoDireito & Justiça, p. 5.

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a Câmara dos Deputados e o SenadoFederal deverão manifestar-se no prazode 45 dias”31.

É importante ressaltar que os pressupostosda relevância e da urgência têm existênciaconcomitante, até mesmo para evidenciar ocaráter cautelar – excepcional – da medidaprovisória. Mais uma vez, é de se relembrar aspalavras de Celso Antônio Bandeira de Mello:qualquer interesse público ipso facto érelevante, daí por que ser possível a adoção demedidas provisórias ante casos graves,invulgarmente importantes, e que demandamuma providência urgente, sob pena de causargrave lesão ao interesse público.

Sugere-nos, inclusive, Carmem LúciaAntunes Rocha32 que o texto do art. 62constitucional seja lido da seguinte forma: “emcaso de relevância e quando esse caso derelevância for urgente”, vez que podem existirsituações urgentes que, no entanto, não sãorelevantes, do mesmo modo que podem ocorrercasos relevantes que não necessitam deimediato suprimento, podendo ter o trâmite de“urgência” de um projeto de lei (quarenta ecinco dias).

7. Rejeição parlamentar –posições diferenciadas

O Congresso Nacional, ao receber a medidaprovisória, pode aprová-la ou rejeitá-la,contudo, terá de pronunciar-se no prazoimprorrogável de trinta dias, contado da datade sua publicação.

Entendem eminentes juristas que a rejeiçãopode ser expressa, quando decorrente devotação desfavorável à medida, ou tácita, emrazão da sua não-aprovação por omissãoparlamentar, ou seja, quando o CongressoNacional deixar transcorrer in albis o trintídioeficacial sem qualquer pronunciamento.

Segundo o Supremo Tribunal Federal, arejeição parlamentar só pode ser expressa.Entendem os Ministros da Suprema Corte quequando há o silêncio parlamentar, o exame damedida provisória adstringiu-se aos seuspressupostos de cabimento, visto que essespoderão protrair-se no tempo, o que legitima,em face de sua permanência, a renovação doato cautelar33. Tal entendimento poder-nos-iaconduzir à posição de que, tacitamente, estariao Congresso Nacional concordando tempo-

rariamente com o ato excepcional, porperdurarem seus requisitos ensejadores –relevância e urgência.

Por outro lado, é possível adotar-se, para amesma hipótese, raciocínio diametralmenteoposto, o qual se coaduna com o pensamentode Damous Filho 34, ao lecionar que se oCongresso se absteve de deliberar, “é porqueentendeu, tacitamente, não estar configuradamatéria urgente e relevante, salvo se a abstençãotenha outro motivo calcado em força maior ouem atentado às normas constitucionais eregimentais que regulam o processo legisla-tivo”.

Já quando o Congresso Nacional expres-samente delibera pela não-conversão da medidaprovisória em lei, é porque adentrou no méritodo próprio ato, e o extirpou do ordenamentojurídico, o que impossibilita sua reedição. Dizo Ministro Celso de Mello:

“...O juízo negativo, de exclusão,emanado da instância legislativa, porenvolver o próprio mérito da medidaprovisória, exterioriza vontades descoin-cidentes na esfera político-jurídica: deum lado, a do Presidente, que deduziupretensão sujeita a confirmação parla-mentar e, de outro, a do Legislativo, quese recusou, soberanamente, a transformarem lei a medida afinal não convertida.

Essa circunstância reveste-se degrande significação, pois o pronuncia-mento contrário do Congresso Nacionalsobre o próprio conteúdo da medidaprovisória extingue, em caráter defini-tivo, o procedimento de conversão, einibe o Chefe do Poder Executivo dereeditar a medida rejeitada, ainda quepresente o mesmo contexto cuja realidadejustificou a edição do ato não convertido”(ADIn 293/DF).

A doutrina, contudo, não é unânime a esserespeito, entendendo muitos deles – como ditoanteriormente – que há rejeição parlamentartambém na hipótese de ocorrência do silênciodo Congresso Nacional.

Na esteira do pensamento expresso pelaSuprema Corte tem-se Saulo Ramos35, TércioSampaio Ferraz Jr.36, Caio Tácito37, Manoel

31 SOUSA, op. cit., p. 31.32 ROCHA, op. cit., p. 31.

33 ADIn 293/DF. Relator: Ministro Celso deMello. RTJ, n. 146, p. 717.

34 Apud, SOUSA, op. cit., p. 32.35 RAMOS, op. cit., p. 1.084-85.36 ADIn 293/DF, p. 718.37 Idem, p. 718-719.

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Gonçalves Ferreira Filho38, entre outros. Emsentido oposto, Hugo de Brito Machado39, FranFigueiredo 40, Celso Antônio Bandeira deMello41, Fernando Lemme Weis42 etc.

Aqueles que se posicionam no sentido deque ambas as hipóteses (silêncio parlamentare deliberação expressa) configuram rejeição damedida provisória alicerçam seu ponto de vista,sustentando que foi essa a mens constitucionalisquando se expressou no parágrafo único do art.62 que se não forem convertidas em lei no prazode 30 dias, as medidas provisórias perderão aeficácia retroativamente.

Ou seja, a pena – perda dos efeitos ex tunc –para o ato expressamente não aprovado peloCongresso Nacional é a mesma para a medidaprovisória que não for convertida em lei notrintídio consagrado constitucionalmente, o queimplica dizer que o Congresso Nacional nasegunda hipótese, manifestou-se contraria-mente à permanência do ato precário – mesmoque somente no campo eficacial – no ordena-mento jurídico.

Diz o Professor Lucas Rocha Furtado:“...o silêncio legislativo pode ser tidocomo forma válida de manifestação devontade do Congresso Nacional. Emrelação à formação da vontade política,no âmbito do Poder Legislativo, édescabido falar que a ausência demanifestação constitua ausência devontade política. A inércia do CongressoNacional, no tocante à reiterada reediçãode medidas provisórias, ao contrário,deve ser interpretada como inequívocavontade política, o que afasta, destarte,a hipótese de omissão constitucional...”43.

Qualquer que seja o entendimento adotado,o que se coloca em fragilidade na presentequestão é se pode perdurar por períodos tãolongos a situação de emergência sustentada peloPoder Executivo implicitamente confirmadapelo Congresso Nacional. Se tais espaços sãoelastecidos de forma exarcebada, concretiza-seo abuso de poder, o que vem a infringir oprincípio da separação de poderes, o qual sesobrepõe à vontade parlamentar.

Ademais, se o Congresso Nacional, deforma implícita, aprova o ato provisório, por

que então a pena da perda da eficácia ex tuncestabelecida peremptoriamente no parágrafoúnico do art. 62 da Constituição? Teria amedida provisória força suficiente parapermanecer surtindo efeitos por período maiorque o permitido constitucionalmente?

Inclinamo-nos no sentido de que a vontadedo legislador constitucional foi de que hárejeição parlamentar nas duas hipóteses, o quenos permite responder negativamente à últimaquestão apresentada.

De qualquer sorte, pautados em quaisquerdos entendimentos esposados, a reedição demedida provisória não obsta a que sejamadquiridos direitos em face da norma jurídicapretérita que teve sua eficácia suspensa, vez quea medida provisória não convertida em lei nãotem o condão de revogar um ato emanado doCongresso Nacional – que é a norma legal.

8. Reedição de medida provisória – óbiceda competência – fragilidade de seus

requisitos ensejadoresA contrario sensu do contido no parecer de

Saulo Ramos44, que preconiza a possibilidadede reedição de medida provisória sobre a mesmamatéria, a Constituição Federal, na opinião dejuristas de escol45, implicitamente, veda talprocedimento pelos motivos a seguir expostos.

O primeiro deles diz respeito a um princípiomais lógico do que jurídico, no dizer de FranFigueiredo46. Diz o autor:

“É que admitida a reedição de medidaprovisória rejeitada (expressa ou tacita-mente), iríamos descambar numa espéciede paralelismo legislativo. Ou seja, oPoder Executivo as reeditaria quantasvezes fosse necessário para atingir seusobjetivos políticos, no espaço e no tempo,frustrada assim qualquer forma decontrole político ou judiciário dessesatos”.

38 Idem, p. 719.39 Idem, p. 719.40 FIGUEIREDO, op. cit., p. 151-52.41 MELLO, op. cit., p. 65.42 WEISS, op. cit., p. 140.43 FURTADO, op. cit., p. 86.

44 “...A rejeição parlamentar... não possuieficácia extintiva das razões de necessidade,urgência e relevância que justificaram a edição demedida provisória, sendo, por isso mesmo,insuficiente para inibir, em face da própriaConstituição, o exercício dessa extraordináriacompetência presidencial. A deliberação congressualnegativa não opera, por si só, a descaracterizaçãode um possível estado de urgência perdurante, ajuízo, inicial, do Presidente da República...” (p.10.185).

45 Ver notas 35 a 42.46 FIGUEIREDO, op. cit., p. 151.

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Tal ilação pareceu-nos mais uma adver-tência, ou até mesmo uma premonição, vez que,embora redigido o texto doutrinário em 1991,hoje, em 1997, temos que o Poder Executivotem-se tornado um novo Poder legiferante, emface da reiterada edição de medidas provisórias,“mais de uma por dia”, nas palavras do JuizTourinho Neto47, quando da apresentação daobra A Constituição na Visão dos Tribunais,verbis:

“...o Governo também não respeita oLegislativo, ao editar e reeditar centenasde medidas provisórias (mais de uma pordia). Na verdade, hoje, no Brasil, quemlegisla é o Poder Executivo, ante umLegislativo fraco, omisso”.

No mesmo sentido, o entendimento doadministrativista Celso Antônio Bandeira deMello, a saber48:

“...posto que a Constituição as deno-minou ‘provisórias’ e as colocou, tão logopublicadas, ao inteiro líbito do Con-gresso; posto que estabeleceu, ainda, umprazo máximo de trinta dias para quesuas disposições adquiram caráterpermanente, “se convertidas em lei”, oupara que percam a eficácia desde o iníciose lhes faltar este aval parlamentar,resulta cristalinamente claro que a faltadele implica repúdio à medida expedida.Reeditá-la corresponderia, então, a umaafronta ao Poder legislativo e a ummanifesto extravasamento da compe-tência do Presidente. É que, dessarte, umato que foi definido como subalterno àapreciação do Congresso estaria sendosobreposto ao juízo dos legisladores... Oimpediente, como é obvio, tanto concerneà reprodução do teor original da medidaquanto à sua reedição, seja em termossimilares, seja em termos muito distintos,pois, vencida sua vigência, o assuntoescapa da alçada do Executivo já que,por força do silêncio ou da rejeição, oCongresso assume, como é normal, asenhoria exclusiva sobre a questão”.

De igual modo pronunciou-se o Exmo.Ministro Celso de Mello:

“...– A edição de medida provisóriagera dois efeitos imediatos. O primeiroefeito é de ordem normativa, eis que amedida provisória – que possui vigênciae eficácia imediatas – inova, em caráter

inaugural, a ordem jurídica. O segundoefeito é de natureza ritual, eis que apublicação da medida provisória atuacomo verdadeira provocatio ad agendum,estimulando o Congresso Nacional ainstaurar o adequado procedimento deconversão em lei.

– A rejeição parlamentar de medidaprovisória – ou de seu projeto deconversão –, além de desconstituir-lheex tunc a eficácia jurídica, opera umaoutra relevante conseqüência de ordempolítico-constitucional, que consiste naimpossibilidade de o Presidente daRepública renovar esse ato quase-legislativo, de natureza cautelar...”(ADIMC 293/DF. DJ, 16 abr. 1993).

É importante salientar que a posição doMinistro Celso de Mello diz respeito à reediçãoquando a medida provisória não for convertidaem lei por deliberação expressa do CongressoNacional, vez que é entendimento do SupremoTribunal Federal que o transcurso do prazo detrinta dias sem pronunciamento parlamentarnão configura rejeição por parte do mesmo doato cautelar.

De qualquer sorte, em havendo a usurpaçãoda competência legislativa em detrimento doCongresso Nacional, a reedição da medidaprovisória infringe o princípio da separação depoderes e o postulado do Estado Democráticode Direito, os quais, no dizer do Ministro Celsode Mello, são

“subjacentes à própria organização doEstado brasileiro e que repudiam – porcontrários aos valores políticos e jurí-dicos que os informam – todos os atosestatais e comportamentos institucionaisque objetivem afetar a prática, peloCongresso Nacional, da sua típica funçãoorgânica – o exercício do Poder Legis-lativo”49.

A Constituição da República, em seu art.67, apresenta-nos outro óbice à reedição demedida provisória quando diz que a matériaconstante de projeto de lei rejeitado somentepoderá constituir objeto de novo projeto, namesma sessão legislativa, mediante propostada maioria absoluta de seus membros dequalquer das Casas do Congresso Nacional.

Tal regra, no entendimento de ManoelGonçalves Ferreira Filho, “Visa poupar o

47 TOURINHO NETO, op. cit.48 MELLO, op. cit., p. 65. 49 ADIn 293, p. 720.

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Legislativo da reapreciação fútil de projetosinviáveis”50.

Sobre o tema e a respeito da contribuiçãosocial instituída sobre os proventos dosaposentados, salientam Rosa Maria Brochadoe Heloísa Mendonça que a matéria disciplinadapelo art. 7º da Medida Provisória em comentojá foi objeto do Projeto de Lei nº 914/95, deiniciativa do Poder Executivo, rejeitada pormaioria de votos pelo Plenário da Câmara deDeputados na sessão realizada em 17 de janeirode 1996. A edição de medida provisória namesma sessão legislativa, em que rejeitadoprojeto de lei do mesmo teor, é expressamentevedada pelo art. 67 da Lei Maior51.

Infelizmente, o Supremo Tribunal Federal,pelo seu Plenário, entendeu que a medidaprovisória em questão não fora editada namesma sessão legislativa em que o Congressorejeitara projeto de lei versando a matéria.

Ademais, a reedição de medidas provisóriaspõe em evidência a fragilidade de seusrequisitos essenciais, que são a relevância e aurgência. É impossível que um País permaneçaconstantemente em estado de grave situaçãoemergencial, como quer fazer crer o PoderExecutivo.

Oportuna a transcrição de trecho do votodo Exmo. Juiz Tourinho Neto, exarado no Ag.1997.01.00.001826-0-MG, cujo mérito tambémse relaciona com a MP nº 1.415/96 (contri-buição social sobre os proventos dos aposen-tados), a saber:

“ Não se pode, no entanto, deixar deatentar que, em agosto de 1995, o PoderExecutivo encaminhou projeto de leiinstituindo a contribuição em estudo, em17 de janeiro de 1996, por 306 a 124votos, a Câmara Federal o rejeita, e trêsmeses depois, o Poder Executivo editamedida provisória para instituir a mesmacontribuição que o Povo, por seusrepresentantes, tinha rejeitado. Provamaior não pode existir de ter esseGoverno índole ditatorial”.

Quanto à sistemática de contribuição parao PIS, ocorre o mesmo fato, pois a MP nº 1.212/95, já reeditada várias vezes, foi adotada peloPresidente da República, em razão da inconsti-tucionalidade dos Decretos-Leis nºs 1.445/88

e 2.449/88, que já tiveram sua eficácia suspensapelo Senado Federal. Atualmente, a matéria éregida pela MP nº 1.495-11, de 1º-10-1996.

Outro óbice à reedição de medidas provi-sórias diz respeito à infringência de direitosadquiridos durante a vigência da medida nãoconvertida, vez que a sua não-conversão – emface da perda da eficácia ex tunc – tornariainválido o direito então emergente, fazendorestabelecer o direito antes regulado. Somentea partir da conversão em lei, a nova disciplinacomeçaria a viger, a qual inovaria definiti-vamente a ordem jurídica.

É que a reedição de atos provisóriosversando sobre a mesma matéria implicaria umelastecimento do período eficacial de apenastrinta dias consagrado constitucionalmente.Qualquer alteração nos dispositivos da medidaprovisória anterior, que não ensejasse mudançade conteúdo, consubstaciaria burla por parte doPoder Executivo.

A partir dos ensinamentos de juristaseminentes, propomo-nos a elucidar a questãoconcernente à impossibilidade de revogação delei mediante medida provisória e a infringênciade direitos adquiridos, que é o objetivo principaldo presente trabalho.

9. Suspensão da eficácia e, não, revogaçãoDispõe o parágrafo único do art. 62 da

Constituição:“As medidas provisórias perderão

eficácia, desde a edição, se não foremconvertidas em lei no prazo de trinta dias,a partir de sua publicação, devendo oCongresso Nacional disciplinar asrelações jurídicas delas decorrentes”.

É de ver-se que o legislador constituinte de1988 estabeleceu um recurso de eficáciatemporal – 30 dias – em prestígio à salvaguardada segurança jurídica vigente, em face daexcepcional competência do Poder Executivo.

Se o Congresso Nacional não se pronunciarnesse interregno ou se rejeitar a medidaprovisória, esta perderá seus efeitos desde oinício – ex tunc –, cabendo àquele disciplinaras relações jurídicas “dela decorrente”.

O parágrafo único, ora em comento, temensejado grandes debates no que tange aosefeitos da legislação anterior à medidaprovisória editada, e que com ela sejamincompatíveis, trazendo à baila a questão davalidade ou não das sucessivas reedições demedidas provisórias – prática hoje rotineira doPoder Executivo – e, via de conseqüência, da

50 Apud A Constituição..., op. cit., v. 2, p. 612.51 Contribuição social sobre os proventos dos

aposentados : Medida Provisória nº 1.415/96.Enfoque Jurídico, n. 2, p. 15, suplemento doInforme, editado pela Divisão de ComunicaçãoSocial do TRF – lª Região.

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possibilidade de uma medida provisória revogaros efeitos de uma legislação pretérita.

A doutrina constitucionalista pátria, namaioria das vezes acompanhada pela jurispru-dência de nossos tribunais, posicionou-se nosentido de que existe uma “suspensão temporalda eficácia da legislação anterior atingida pormedida provisória”, nunca a sua revogação,porquanto esta necessita de lei em sentidoestrito.

A título de esclarecimento, serão transcritosabaixo as opiniões de juristas de escol a respeitoda matéria.

Saulo Ramos“A medida provisória, enquanto

equivalente constitucional da lei, possuivigência e eficácia imediatas, sem quedisso decorra, no entanto, a revogaçãodos atos legislativos com ela incompa-tíveis. Por dispor de eficácia temporallimitada (trinta dias), enquanto não seder a conversão, em lei, da medidaprovisória, este somente paralisará osefeitos das leis a ela anteriores e com elaconflitantes, iniluindo-as completamenteem seu conteúdo eficacial”52 (grifosnossos).

Manoel Gonçalves Ferreira Filho“...A derrogação ou revogação da lei

anterior por uma medida provisóriaseria apenas aparente. (...) Note-se queesta solução se coaduna com o texto doart. 62, parágrafo único, primeira parte:(...) Perder eficácia desde a edição,retroatividade, é fazer como se a medidaprovisória não tivesse tido eficácia,portanto, não tivesse tido a força dederrogar ou revogar leis53” (grifosnossos).

Caio Tácito“...Todavia, como a eficácia desta fica

pendente da confirmação pelo Con-gresso, sem a qual ficam anulados, apartir de seu início, todos os seus efeitos,a doutrina tende a uma solução decompromisso: até ser convertida em lei(o que lhe confere definitividade), amedida provisória não revoga a leianterior, mas apenas suspende-lhe avigência e eficácia....”54 (grifos nossos).

Hugo de Brito Machado“...Editada a medida provisória que

entra em vigor imediatamente, as normascom ela incompatíveis ficam revogadascondicionalmente. A revogação opera-se sob condição resolutória, consistentena conversão da medida provisória emlei. Não ocorrida a condição, isto é, nãoaprovada a medida provisória, a revo-gação deixa de existir, tal como se umanova lei houvesse revogado a medidaprovisória.

A única diferença é que, não setratando propriamente de revogação demedida provisória, mas de sua não-consolidação, as normas que haviam sidopor ela revogadas voltam a ter vigência.Não se pode fazer de conta que elasnunca tenham saído do ordenamentojurídico. Elas saíram. Foram revogadas.Voltam como normas novas55” (grifosnossos).

Pinto Ferreira“A medida provisória possui vigência

e eficácia imediatas, mas destas nãoresulta a revogação dos atos legislativoscom ela conflitantes ou incompatíveis.Ela possui eficácia temporal limitada detrinta dias, tendo efeitos paralisantes enão revogatórios em face das leis quelhe são anteriores e conflitantes.

Caso não se opere a conversãolegislativa, fica restaurada a eficáciajurídica dos diplomas legislativossuspensos, afetados pela medida provi-sória.

Tal restauração da eficácia não seidentifica nem se confunde com repris-tinação; será ex tunc, isto é, desde a datada medida provisória não convertida56”(grifos nossos).

Ministro Moreira Alves“...Na realidade, temos uma revo-

gação sob condição resolutiva. Essacondição resolutiva – como acontece comas condições em geral, quando elasocorrem – tem eficácia, e, conseqüen-temente, a lei que fora revogada revivecomo se jamais tivesse sido revogada. Eé exatamente o mesmo fenômeno queocorre quando a lei revogadora é52 RAMOS, op. cit., p. 10.182.

53 Do processo legislativo. 3. ed. São Paulo :Saraiva, 1995. p. 295.

54 Medidas provisórias na Constituição de 1988.Revista de Direito Público, São Paulo, n. 90, p. 50/56, abr./jun. 1989.

55 Efeitos da Medida Provisória rejeitada. RT, n.700, p. 46-47.

56 Comentários à Constituição brasileira. SãoPaulo : Saraiva, 1992. v. 3.

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declarada inconstitucional, desde que oordenamento jurídico admita que adeclaração de inconstitucionalidadeopera ex tunc, o que significa dizer quea lei se considera, no caso da incons-titucionalidade, como inválida ab ovo,ou seja, desde o início. E, por via deconseqüência, é como se jamais tivesseexistido a lei revogadora, é óbvio que alei aparentemente revogada, em verdade,jamais foi revogada57” (grifos nossos).

De qualquer sorte, qualquer que seja aexpressão utilizada pelos eminentes juristas, ocerto é que uma medida provisória, por si só,não é capaz de revogar uma norma anterior,porquanto revogação pressupõe lei em sentidoestrito, vez que só ela é capaz de extinguir umcomando normativo pretérito e, via deconseqüência, inovar definitivamente a ordemjurídica. Sendo assim é condicio sine qua nonque a medida provisória se converta em lei.

Diz o Exmo. Ministro Celso de Mello:“A medida provisória constitui

espécie normativa juridicamente ins-tável. Esse ato estatal dispõe, em funçãodas notas de transitoriedade e deprecariedade que o qualificam, deeficácia temporal limitada, na medida emque, não convertido em lei, despoja-se,desde o momento de sua edição, daaptidão para inovar o ordenamentopositivo...” (ADIQO 293/DF, DJ, 18 jun.93, p. 12.109).

Ora, a revogação e a inovação do orde-namento jurídico estão intimamente ligados,vez que, em se tratando de comandos norma-tivos sobre a mesma matéria, um deles há deprevalecer. Obviamente que se procederá àextinção da norma anterior. Não há fundamentojurídico capaz de sustentar a coexistênciasimultânea de normas incompatíveis perti-nentes ao mesmo assunto, no mesmo sistemajurídico. É patente que em tal ocorrendo,reinaria a insegurança nas relações jurídicas.

Se é assim, é de se concluir que uma normarevogadora há de ter todas as suas condiçõesde validade obedecidas. No caso das medidasprovisórias, faz-se mister que se converta emlei, o que só ocorrerá após a chancela do PoderLegislativo, conforme se depreende do textoconstitucional.

A medida provisória, em que pese ser atonormativo incapaz de integrar o sistema

jurídico definitivamente, possui eficácia(mesmo que temporária), vez que esse fenô-meno ocorre por si só. A eficácia não atua nocampo da validade das normas, a revogaçãosim. Desse modo, temos que o comando do art.62 e seu parágrafo único refere-se tão-somenteà eficácia da medida provisória, o que nos levaa crer que o que existe em relação à normapretérita é suspensão eficacial, nunca a suarevogação. A medida provisória não tem forçapara revogar a legislação anterior com elaincompatível, mas tem tão-somente força delei capaz de suspender seus efeitos. Não podeum ato do Executivo revogar um ato doLegislativo.

Oportuna a transcrição dos ensinamentosde Caio Mário da Silva Pereira58:

A “Competência para revogar a lei éreservada à fonte de onde ela promana:cuius est instituere, efus est abrogare.Se a lei se revoga por outra lei, ao Podera quem pertence votá-la é que cabecassar-lhe a força obrigatória. Por issomesmo, ao Poder Judiciário, não cabe aatribuição de abolir uma lei, de vez quetem competência é para aplicá-la, nemao Poder Executivo pode revogá-la,porque sua competência não podeultrapassar a faculdade de regulamen-tá-la...”.

Ademais, ao disciplinar a edição de medidasprovisórias, quis o legislador constitucionalapenas se referir à eficácia temporal limitadadesse instituto normativo, até mesmo para quepossa produzir efeitos não conflitantes comnormas de igual conteúdo já existentes. Suaatitude foi de prevenir situações que possampôr em desequilíbrio o ordenamento jurídicocomo um todo.

A ação do Presidente da República épermitida pela norma constitucional em facetão-somente do exame discricionário que lhe éinerente como Chefe do Poder Executivo,quando relevante e urgente interesse público,demanda um ato incontinenti por parte deste.

A jurisprudência trazida à colação, da lavrado eminente Ministro Celso de Mello, beminterpreta a mens constitucionis:

“A plena submissão das medidasprovisórias ao Congresso Nacionalconstitui exigência que decorre doprincípio da separação de poderes. Oconteúdo jurídico que elas veiculamsomente adquirirá estabilidade norma-57 Apud SANTOS, Brasilino Pereira dos. As

Medidas Provisórias no Direito Comparado e noBrasil. São Paulo : Ltr, 1994. 58 Instituições... op. cit., v. 1, p. 93.

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tiva a partir do momento em que –observada a disciplina ritual do proce-dimento de conversão em lei – houverpronunciamento favorável e aquiescentedo único órgão constitucionalmenteinvestido do poder ordinário de legislar,que é o Congresso Nacional.

Essa manifestação do Poder Legis-lativo é necessária, é insubstituível e éinsuprimível...” (ADIQO 293/DF. DJ, 18jun. 93, p. 12.109).

Desse modo, não há como entender que umamedida provisória, dotada apenas de eficáciatemporal, vez que não é ato normativo bastantepara preencher definitivamente o sistemajurídico, possa extirpar do mesmo um atoemanado do Congresso Nacional, único órgãolegitimado para agir em nome da sociedade.

Não fosse esse argumento de conteúdo tãoabrangente, vez que infringente do princípioda separação de poderes, colocando emfragilidade o postulado do Estado Democráticode Direito, é de se registrar os ensinamentoscontidos no texto doutrinário de autoria doProfessor da Universidade de Brasília LucasRocha Furtado abaixo transcritos.

Principia o autor por explicar o conceito dederrogação, dizendo que essa

“pode ser explícita, quando de comandolegal conste expressamente a supressãoda validade de outra norma. Seráimplícita, quando a supressão da vali-dade de outra norma decorra da incompa-tibilidade entre as duas disposições.Nesse último caso, frente à regraestabelecida no § 1º do art. 2º da Lei deIntrodução ao Código Civil, a leiposterior revoga a anterior (lex posteriorderogat priori).

Além de agir no âmbito de validadedas normas, a norma derrogante explí-cita, ou mesmo a função derrogante denorma posterior genérica (derrogaçãoimplícita), tem como característicaintrínseca o caráter instantâneo de suaatuação em relação à norma cuja validadesuprimiu. Derrogado o direito pretérito,a norma derrogante esgota sua atuação,não podendo mais ser derrogada. Afinal,por imperativo lógico, ou mesmo peloenunciado do § 3º do art. 2º da Lei deIntrodução ao Código Civil, afasta-se ahipótese de repristinação automática.

..........................................................Fica claro, portanto, que, por sua

atuação instantânea no plano da validadeda norma anterior, qualquer norma

derrogatória eventualmente contida emmedida provisória produziria conse-qüência jurídica definitiva – a extirpaçãodo ordenamento positivo da normapretérita, ou, alternativamente, a perdade sua validade.

Dessa forma, admitida, por absurdo,a presença de norma derrogante emmedida provisória, a disposição contidano parágrafo único do art. 62 da Cons-tituição, que alude à perda de eficácia extunc da medida provisória não convertidaem lei pelo Congresso Nacional, perderiaqualquer significação jurídica, pelosimples fato de que uma vez vigente, etendo produzido seu efeito precípuo – ode derrogar outra norma –, a normaderrogante torna-se imune a qualquertentativa de derrogação ou, com maisrazão, de supressão de eficácia, mesmoque operando retroativamente na data dapublicação.

Há aqui evidente paradoxo lógico,vinculado à esfera temporal de validadedas normas: a perda de eficácia desde apublicação da medida provisória temcomo pressuposto a própria entrada emvigor da medida derrogante contida namedida provisória. Mas a norma derro-gante, uma vez em vigor, não pode maisser derrogada, ou, de outro modo, ter suaeficácia suprimida.

É de se concluir, portanto, que, deforma a afastar a incongruência lógica,as medidas provisórias não podem conternormas explicitamente derrogantes.Caso contrário, até que sejam convertidasem lei, devem ser tidas como não escritas,porque inconstitucionais. É a únicaforma de manter íntegra a molduraconstitucional da medida provisória”59.

Acrescenta, ainda, o autor, que“Além da incompatibilidade lógica

existente entre o efeito derrogatório e anatureza precária da medida provisória,no plano da eficácia, é de registrar ainaplicabilidade, in casu, do dispositivocontido no § 1º do art. 2º da Lei deIntrodução ao Código Civil, uma vez quenorma infraconstitucional não pode tero condão de infirmar a natureza precária

59 Medida Provisória : limites de sua atuação –impossibilidade de convalidação de atos pretéritos.Revista dos Estudantes de Direito da Universidadede Brasília, Brasília, p. 89-90, 1996.

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da medida provisória, estabelecida emsede constitucional (art. 62)60.”

Pode-se resumir seu pensamento da seguinteforma:

- a derrogação só opera no campo davalidade das normas, pois extingue doordenamento jurídico a norma pretéritaincompatível;

- a norma derrogante (implícita ou explícita)tem caráter instantâneo;

- se derrogado o direito pretérito, a normaderrogante esgota sua atuação, porque oordenamento jurídico pátrio não permite arepristinação automática – só expressa (§§ 1º e3º do art. 2º da LICC).

- se permitida a derrogação de normaanterior mediante medida provisória, ocomando do parágrafo único do art. 62, quealude à perda da eficácia ex tunc da medidaprovisória, perderia sua razão de ser, vez queadmitiria a derrogação de norma derrogante,pela norma antes derrogada.

Outro fator de reforço à tese da impos-sibilidade de revogação de ato pretérito pormedida provisória advém do princípio dacontinuidade das normas legais, que se traduzna persistência e permanência das mesmas noordenamento jurídico até o surgimento de forçacontrária à sua vigência. Força essa emanadasomente de outra lei. É o que preceitua oenunciado da regra de que “não se destinandoà vigência temporária, a lei estará em vigoraté que outra a modifique ou revogue (art. 2ºda Lei de Introdução ao Código Civil). (grifosnossos).

A conclusão de que a medida provisória nãopode revogar direito pretérito, mas tão-somentea suspensão de sua eficácia – pode ser aindasustentada a partir da idéia de que “nãoconvertida em lei no prazo de 30 dias, os efeitosda lei anterior se restauram”, fazendo valer amens constitutionis constante do art. 24, § 4º,da Constituição Federal, quando diz que “asuperveniência de lei federal sobre normasgerais suspende a eficácia da lei estadual, noque lhe for contrário”. Se revogação houver,não há como restaurar os efeitos da lei anterior,vez que a repristinação automática é inadmitidapelo ordenamento jurídico pátrio. No entanto,em havendo apenas suspensão, a lei pretéritacontinua vigendo normalmente, como se amedida provisória nunca tivesse existido, vistoque foi rejeitada ou transcorreu in albis operíodo de 30 dias para sua apreciação peloCongresso Nacional.

Se ocorrer a revogação da lei federal quesuspendeu a norma estadual, os efeitos dalegislação suspensa retornam, não havendo dese falar em repristinação, vez que se trata deefeitos tão-somente.

10. Medida provisória e direito adquiridoComo dito anteriormente, a não-conversão

da medida provisória em lei no prazo esta-belecido constitucionalmente (trinta dias) fazcom que a legislação anterior se restabeleça,conseqüentemente, passe a produzir efeitosjurídicos como se nenhum instituto jurídicohouvesse suspendido sua eficácia.

Tal fenômeno ocorre em obediência aoprincípio da obrigatoriedade das leis e seuconsectário lógico – o da continuidade,porquanto não convertida em lei a medidaprovisória, é como se jamais tivesse existido,não chegando a ingressar no sistema defini-tivamente.

O Exmo. Ministro Moreira Alves faz umacomparação desse fenômeno com o da decla-ração de inconstitucionalidade. Diz S. Exa.:

“...é exatamente o mesmo fenômeno queocorre quando a lei revogadora édeclarada inconstitucional, desde que oordenamento jurídico admita que adeclaração de inconstitucionalidadeopera ex tunc, o que significa dizer quea lei se considera, no caso da incons-titucionalidade, como inválida ab ovo,ou seja, desde o início. E, por via deconseqüência, é como se jamais tiveraexistido. E, conseqüentemente também,se jamais existiu a lei revogadora, é obvioque a lei aparentemente revogada, emverdade, jamais foi revogada61”.

Ora, se não mais opera a suspensão dalegislação anterior, esta continuará sendoaplicada como era anteriormente, o que implicadizer que a norma “aparentemente revogada”,no dizer do Ministro Moreira Alves, incide,inclusive, no período da vigência da medidaprovisória não convertida em lei, num processocontínuo como quer o constituinte originário(parágrafo único do art. 62) e o legisladorinfraconstitucional (art. 2º da LICC).

Em sendo assim, nada obsta que durante operíodo de suspensão da norma anterior possamter ocorrido atos jurídicos perfeitos e direitosadquiridos, os quais teriam se concretizado comsupedâneo nessa legislação pretérita, que se

60 Ibidem, p. 90. 61 Apud SANTOS, op. cit., p. 358-39.

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tornou ineficaz temporariamente (30 dias) emdecorrência da medida provisória, e teve, emconseqüência, sua eficácia restabelecida.

11. Direito adquirido e reedição demedida provisória

Concretizados direitos adquiridos e atosjurídicos perfeitos, nem mesmo uma leiposterior editada pelo Congresso Nacionalpoderá incidir retroativamente para atingi-los,a teor do que preceitua o art. 5º, XXXVI, daConstituição e o art. 6º da Lei de Introdução aoCódigo Civil.

Desse modo, não há por que uma medidaprovisória – ato privativo do Chefe doExecutivo – que sequer passou pelo crivo doPoder Legislativo, possa infringir tal princípioimposto constitucionalmente.

Se é assim, é de se concluir, também, queuma possível reedição de medida provisória jáinexistente no mundo jurídico, não poderáretroagir para prejudicar os direitos adquiridose os atos jurídicos perfeitos que se concre-tizaram sob a égide da legislação anterior, vezque aquele interregno de 30 dias já passou,tendo sido computado para completar o suportefático dos direitos protegidos.

Assim nos ensina a jurisprudência:“...A reedição de uma medida provi-

sória não restabelece a eficácia daanterior, pelo contrário, a antiga medidaprovisória desaparece do mundo jurídico,vindo a existir aquela que ocupou o seulugar que, por sua vez, só terá eficáciaplena se transcorrido o prazo de 30(trinta) dias estipulado pelo art. 62constitucional. Caso contrário, tambémdesaparecerá, o mesmo ocorrendo com asreedições sucessivas” (Ag. 96.0138252-6/DF. Relator Juiz Cândido Ribeiro. DJ,25 mar. 1997. p. 17.577).

De igual modo, ementa originária domesmo TRF da 1ª Região:

“...I – Para que possam servir deinstrumento hábil à criação das contri-buições sociais previstas no art. 195 eparágrafos, da CF/88, as medidasprovisórias deverão se converter em leino prazo de trinta dias, sob pena de,perdendo a eficácia e saindo do mundojurídico, não viabilizarem o vigornecessário às contribuições sociais, poisestas somente o adquirem após trans-curso do prazo de 90 (noventa) dias

contados da publicação da lei (ou medidaprovisória) que as houver instituído.

II – A reedição de uma medidaprovisória não tem o condão de repris-tinar aquela que perdeu a eficácia, pois,somente o Congresso Nacional podedisciplinar as relações jurídicas decor-rentes das medidas provisórias que nãose converteram em lei no prazo de trintadias...”. (Ag. RegSS 96.01.28715/DF.Relator Juiz Nelson Gomes da Silva.Plenário. DJ, 7 out. 1996, p. 74.894).

Tem-se, portanto, que a republicaçãosucessiva de medidas provisórias não tem ocondão de interromper a formação de direitosadquiridos após o decurso dos trintídiosrespectivos in albis, é apenas capaz desuspender o período de aquisição dessesdireitos. Uma medida provisória regulando amesma matéria pode ser editada inúmerasvezes. Isso não alterará o seu prazo eficacial deapenas trinta dias.

Um exemplo elucidará a questão.O Governo edita uma medida provisória

extinguindo uma vantagem pecuniária em 1ºde janeiro de 1996, em 25 de janeiro do mesmoano e mês, objetivando postergar a eficácia damedida anterior, vez que o Congresso não sepronunciou sobre ela, o Poder Executivo editanova medida provisória, acrescentandodispositivos que em nada alteram o conteúdoda matéria ventilada.

Mesmo que a medida provisória maisrecente possa ser considerada derrogatória damedida anterior na parte em que houveacréscimo dos dispositivos, a medida anteriorsó terá vigência por mais cinco dias naquiloque não foi alterado. Os artigos modificadospassarão a ter vigência a partir de 25 do mesmomês, porque considerados atos novos. Aplica-se, in casu, analogicamente, o art. 1º § 4º daLei de Introdução ao Código Civil, que diz: “Ascorreções a texto de lei já em vigor consideram-se lei nova”62.

Se se considerar que não houve alteraçãosubstancial, as duas medidas são iguais, o quenos leva à conclusão de que se computar operíodo da eficácia da medida posterior, avigência da medida anterior estará sendoelastecida por mais trinta dias, vez que nãohouve pronunciamento do Poder Legislativo.E assim por diante. A edição de uma medidaprovisória de igual conteúdo é como se nãohouvesse existido. Não se pode contar para cada

62 Ver jurisprudência da p. 50.

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edição, um período de mais trinta dias. Operíodo é um só.

Passado o trintídio da primeira medidaprovisória, a legislação pretérita começa a viger,vez que a medida provisória não convertida emlei perdeu sua eficácia ex tunc. Se a novamedida provisória passar a produzir efeitos,estará produzindo-os juntamente com a normalegal anterior. Não há fundamento jurídicocapaz de sustentar tal fenômeno de eficáciatemporal.

Ademais, não pode um ato do PoderExecutivo prevalecer em face de uma lei que éoriunda do Congresso Nacional.

12. Outras hipóteses ocorrentes a partirde reedições de medidas provisóriasA par das considerações a respeito da

reedição de medidas provisórias e a formaçãode direitos adquiridos, é de se registrar, ainda,que mais duas hipóteses podem ocorrer, pondoem evidência a problemática a respeito do inícioda criação do direito novo, ou seja, da ordemjurídica inaugural.

A primeira delas diz respeito à reedição demedida provisória sobre a mesma matéria coma pretensão de retroagir seus efeitos na data dapublicação da medida anterior que fora rejeitadapelo Congresso Nacional. Um exemplo trazidopor Manoel Adam Lacayo Valente63 elucida aquestão. Apresenta-nos o autor:

“No primeiro dia de um determinadomês, uma medida provisória, adotadapelo Presidente da República, extinguevantagem pecuniária de servidorespúblicos, cuja aquisição se faz pelotranscurso do tempo a termo legal. Atéo trigésimo dia desse mesmo mês, amedida provisória em questão não éconvertida em lei. Como passo seguinte,no primeiro dia do mês subseqüente, oChefe do Poder Executivo faz editar novamedida provisória, como reedição daanterior, com a pretensão de considerarextinta a mesma vantagem pecuniária exfacto temporis, a contar do primeiro diado mês anterior, como o fizera a ante-cedente medida provisória...”.

É patente a eiva de inconstitucionalidadetrazida por esse dispositivo, porquanto aquelamedida anterior desapareceu do mundo

jurídico, restabelecendo a norma pretérita queconsagrava tal vantagem pecuniária. Sendoassim, o ato normativo novo não pode conterem seu bojo norma retroativa para prejudicar odireito já adquirido pela legislação antiga.

Tal norma, com certeza, infringe frontal-mente o comando inserto no art. 5º, XXXVI,da CF/88 e art. 6º da LICC.

Outra hipótese diz respeito à norma insertaem nova medida provisória que convalida atospraticados no período de eficácia da medidaanterior rejeitada pelo Congresso Nacional.Exemplifica o mesmo autor:

“Em outra situação, um poucodistinta da anterior, nova medidaprovisória, editada como reedição,propõe a extinção da vantagem pecuni-ária citada, a contar da sua vigência, mas,em outro artigo, preconiza a conva-lidação dos atos praticados sob a égideda anterior medida provisória, o queimportaria, no entendimento de seusidealizadores, na impossibilidade daconquista, como direito adquirido, damesma vantagem pecuniária, tambémextinta, no trintídio antecedente pelanorma provisória já ineficaz64.”

Melhor seria dizer, norma provisóriainexistente, vez que, se não foi convertida emlei, é ela incapaz de ensejar atos válidos. Daípor que ser impossível a segunda medidaprovisória convalidá-los. Só se convalida aquiloque existiu.

“O ato inexistente, e mesmo o atonulo, não tem eficácia, pois eficácia, emmomento algum, advém do nada ou donulo, pois o ato nunca pode ser comple-tado, somado, pela simples razão de quenão existe. Não é65.”

Se não tem eficácia, como expresso notrecho acima, validade também não tem capazde convalidar atos pretéritos.

Ademais, como salientado pelo autor, nãopode a medida provisória conferir ultra-atividade legal à anterior medida provisória,elastecendo um período eficacial de 30 diasdeterminado constitucionalmente. O atonormativo anterior – que sequer ato seria mais –não tem mais eficácia. A medida provisóriaeditada com prazo eficacial limitado não podeser elastecida por mais trinta dias, que foiquando a medida começou a ter eficácia – 60

63 Cláusula de convalidação em medidasprovisórias. Revista de Informação Legislativa, v.33, n. 30, p. 39, abr./jun. 1996.

64 Ibidem.65 Ibidem.

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dias ao todo. Não é o que permite o textoconstitucional.

Se assim ocorresse, o parágrafo único doart. 62, mais uma vez seria inócuo, poisdetermina que a não-conversão da medidaprovisória produza efeitos ex tunc.

Acrescente-se, ainda, que cabe ao Con-gresso Nacional regular as relações jurídicasdecorrentes da medida provisória rejeitada, enão o Poder Executivo (art. 62, parágrafoúnico). Há, portanto, in casu, flagrante invasãode competência legislativa.

“...Com isso, não é de admitir asubstituição, por unilateral declaração devontade do Presidente da República, dopróprio Congresso Nacional, que, a partirdas cláusulas de convalidação referidas,vê-se afastado do exercício de umacompetência que, nessa matéria, somentea ele a Constituição defere...” (ADIn 365-8/600. Relator: Ministro Celso de Mello.DJ, 5 out. 1990, p. 10.718).

Há, também, na hipótese, inconstitucio-nalidade formal, visto que a regulação dasrelações jurídicas decorrentes de medidaprovisória não convertida em lei perfazem-semediante procedimento legislativo adequado,em caráter definitivo, e, não, por meio demedidas provisórias.

Ensina-nos Manoel Gonçalves FerreiraFilho66 que

“A situação, (...) muito se asseme-lharia à que a Constituição anteriorprevia, no art. 55, § 2º, em relação aosdecretos-leis não aprovados. Entretanto,como se trata de uma exceção, apenasem deliberação expressa, por via de lei,poderá o Congresso Nacional reconhecervalidade a ato praticado com base emmedida provisória não aprovada...”.

Importante salientar que norma conva-lidadora desse jaez implicaria conferir umcaráter de definitividade à medida provisóriapróprio das leis, o que é contrário à espe-cificidade precária desse instituto, conformedesejou o constituinte originário.

A respeito do assunto, assim se pronunciouo Ministro Celso de Melo, verbis:

“...A rejeição de medida provisóriadespoja-a de eficácia, destituindo devalidade todos os atos praticados comfundamento nela. Essa mesma conse-qüência de ordem constitucional deriva

do decurso in albis do prazo de 30 (trinta)dias, sem que, nele, tenha havidoqualquer expressa manifestação decisóriado Congresso Nacional. A disciplina dasrelações jurídicas formadas com base noato cautelar não convertido em leiconstitui obrigação indeclinável do PoderLegislativo da União, que deverá regrá-las mediante procedimento legislativoadequado. O exercício dessa prerrogativacongressional decorre, fundamental-mente, de um princípio essencial denosso sistema constitucional: o princípioda reserva de competência do CongressoNacional. A disciplina a que se refere aCarta Política em seu art. 62, parágrafoúnico, tem, na lei formal, de exclusivaatribuição do Congresso Nacional, seuinstrumento jurídico idôneo.

Os atos regulamentares de medidasprovisórias não convertidas em lei reside,de modo direto e imediato, o seu própriofundamento de validade e de eficácia. Aausência de conversão legislativa operaefeitos extintivos radicais e genéricos, demodo a afetar todos os atos que estejam,de qualquer modo, casualmente vin-culados à medida provisória rejeitada ounão transformada em lei, especialmenteaqueles que, editados pelo próprio poderpúblico, com ela mantinham ou deveriammanter – estritas as instruções norma-tivas” (AGRADI 365/DF, DJ, 15 mar.1991. p. 2.645).

Conclusivamente, temos que as cláusulasde convalidação constantes de medidasprovisórias são inconstitucionais, vez queimprimem caráter de validade a atos que nãopodem subsistir em face de sua dependênciahierárquico-normativa com os provimentosprovisórios não transformados em lei.

Ademais, é competência privativa doCongresso Nacional disciplinar as relaçõesjurídicas decorrentes de medidas provisóriasnão convertidas em lei, cujo regramento se fazmediante norma legal.

Assim, temos que as duas hipótesesapresentadas, ou seja, medida provisóriacontendo norma retroativa à data da medidaprovisória anterior e contendo cláusulaconvalidadora, padecem de vício de inconstitu-cionalidade, devendo tais dispositivos seremconsiderados nulos de pleno iuri e, via deconseqüência, perdendo seus efeitos retroa-tivamente.66 FERREIRA FILHO, op. cit.

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13. O poder revogatório aparentede medida provisória sobre ato

da mesma espécieSe não é possível a revogação de lei

mediante medida provisória, vez que tal atoincide sobre o campo de validade da norma, omesmo raciocínio se pode ter quando se tratade medida provisória revogando outra medidaprovisória.

Não importa de que terminologia se utilize –se revogação ou se suspensão da eficácia –, ofato é que uma medida provisória podesubstituir uma outra medida provisória duranteo período restante de sua eficácia tão-somente.

Em que pese aos atos originarem-se domesmo poder, o que ocorre é também umasuspensão da eficácia, vindo a ser revogatóriada medida anterior se a condição de futuraconversão ocorrer. É que a extirpação doordenamento jurídico só se operará após aapreciação pelo Congresso Nacional. Assim,se o Presidente da República reedita umamedida provisória ab-rogatória, a eficácia damedida anterior, tal qual a lei como já ventilado,ficará suspensa, vindo a medida posterior atomar o seu lugar pelo período restante. Noentanto, se a medida ab-rogatória não vier aser convertida em lei, o ato anterior passa aviger pelo período que lhe falta.

In casu, não se trata de elastecer a eficáciada medida anterior, vez que este estará apenassuspenso. Vindo o ato ab-rogante a serconvertido em lei, a medida provisória torna-se ineficaz retroativamente.

A jurisprudência do Supremo TribunalFederal, da lavra do Exmo. Ministro Néri daSilveira, assim se pronuncia, in verbis:

“...4 – O Presidente da Repúblicapode expedir medida provisória revo-gando outra medida provisória, ainda emcurso no Congresso Nacional. A medidaprovisória revogada fica, entretanto, comsua eficácia suspensa até que hajapronunciamento do Poder Legislativosobre a medida provisória ab-rogante. Sefor acolhida pelo Congresso Nacional amedida provisória ab-rogante, e transfor-mada em lei, a revogação da medidaanterior torna-se definitiva; se for,porém, rejeitada, retomam seu curso osefeitos da medida provisória ab-rogada,que há de ser apreciada, pelo CongressoNacional, no prazo restante à suavigência (ADIn 1205-3/DF. Plenário.

DJ, p. 41.718, 1º dez. 1995, Seção 1).(grifos nossos).

No mesmo sentido:“...Orientação assentada no STF no

sentido de que, não sendo dado aoPresidente da República retirar daapreciação do Congresso Nacionalmedida provisória que tiver editado, é-lhe, no entanto, possível ab-rogá-la pormeio de nova medida provisória, valendotal ato pela simples suspensão dos efeitosda primeira, efeitos esses que, todavia, oCongresso poderá ver restabelecidos,mediante a rejeição da medida ab-rogatória...”. (ADIn 1314-9/DF, RelatorMinistro Ilmar Galvão. DJ, p. 30.590,22 set. 1995).

A par do que foi expendido, o que se podeconcluir é que medida provisória pode tambémsuspender a eficácia de medida provisóriaanterior, porém, somando-se os dois períodos,tem-se que o trintídio consagrado constitucio-nalmente terá de ser obedecido.

14. Vigência da medida provisória reeditadaconvertida ou não em lei – surgimento dosdireitos adquiridos decorrentes da ordem

jurídica inauguralCertos de que medida provisória não tem o

condão de revogar uma lei, pois revestida decaráter precário, algumas indagações podemsurgir em face da reedição constante de medidasprovisórias, o que vem a colocar em dúvida apartir de quando se inicia a vigência da normajurídica inaugural.

Concluímos, primeiramente, que medidaprovisória reeditada, sem, no entanto, ter sidotransformada em lei, é como se jamais tivesseexistido, estando, portanto, vigendo a legislação“aparentemente revogada”, ou, melhor dizendo,que teve sua eficácia suspensa. Os direitos delaemergentes estão em pleno vigor, donde sededuz que se o período de aquisição dessesdireitos tenha sido completado, são elesadquiridos, podendo o seu titular exercê-loslivremente.

Pode ocorrer, no entanto, que, não obstanteàs vedações constitucionais a respeito dareedição de medidas provisórias, seja uma delas“um dia” convertida em lei. Surge, daí, então,o questionamento acerca de quando começaráa vigência da ordem jurídica inaugural, se apartir da publicação da medida provisóriaconvertida em lei ou se a partir da publicaçãoda lei convertida?

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Preceituando o texto constitucional que aeficácia da medida provisória é de apenas trintadias, o termo inicial de sua vigência será a partirda data da publicação da última medidaprovisória convertida em lei.

É que a medida provisória rejeitada (tácitaou expressamente), de acordo com o parágrafoúnico do art. 62 constitucional, perde eficáciaretroativamente, vindo a legislação pretérita ater vigência. Nesse caso, mesmo que apósnoventa ou mais dias, vindo uma nova medidaprovisória ser convertida em lei, sua vigênciapassará a ser de quando publicada, vindo a darcontinuidade à vigência do comando normativoanterior, pois não mais se trata de atoprovisório, mas de ato legal, vez que ratificadopelo Congresso Nacional.

Exemplificadamente, temos:Uma medida provisória foi publicada em

10 de janeiro de 1994, transcorridos in albisseu período de eficácia, em 10 de fevereiro foieditada nova medida provisória sobre a mesmamatéria, vindo, novamente a ser rejeitadatacitamente. Em 10 de março, o Governo editanova medida provisória, vindo esta a serconvertida em lei. Nesse caso, como a perda daeficácia das medidas rejeitadas é ex tunc, apartir de 10 de janeiro de 1994 recomeça a vigera legislação pretérita, continuando até 10 demarço, quando passa a ter vigência a ordemjurídica inaugural – a última medida provisóriaconvertida em lei.

Diz a jurisprudência:“...I – A Lei nº 8.128, publicada no

Diário Oficial de 30.8.91, converteu aMedida Provisória 298, publicada em30.7.91, dentro do prazo do parágrafoúnico do art. 62 da Constituição Federalde 1998.

II – A lei de conversão tem eficáciaex tunc. Retroage à data da entrada emvigor da medida provisória, que é espéciepeculiar de processo legislativo...” (TRF– 4ª Região. MS 93.04.24036/PR.Relator Juiz Fábio B. da Rosa. DJ, p.35.329).

O Tribunal Regional Federal da 1ª Regiãotambém já se pronunciou a respeito, conformese constata da leitura da seguinte ementa:

“...III – Somente quando a MedidaProvisória 1.415, que vem sendo reedi-tada mensalmente, se converter em lei éque serão criadas, validamente, as contri-buições sociais sobre os proventos dosaposentados e, então, poderão ser exigidas

após o decurso do prazo nonagesimalcontado da data da publicação da últimamedida provisória convertida em lei”(Ag. RegSS 96.01.28715-9/DF. DJ, p.74.894, 7 out. 1996). (grifos nossos).

Pode ocorrer, também, que a medidaprovisória sofra, em seu texto originário,emendas. Nesse caso, passam elas a ter eficáciaex nunc, pois consideradas lei nova, emobediência ao art. 1º, § 4º, da Lei de Introduçãoao Código Civil.

O Supremo Tribunal Federal, no julgamentodo RE 166.857, assim entendeu, verbis:

“...O fato de o Congresso Nacional,na apreciação de medida provisória,glosar certos dispositivos não a prejudica,no campo da eficácia temporal, quantoaos que subsistirem. A disciplina dasrelações jurídicas, prevista na parte finaldo parágrafo único do art. 62 da Consti-tuição Federal, diz respeito à rejeiçãototal ou parcial quando autônoma amatéria alcançada...” (RE 166.857/DF,Relator Ministro Marco Aurélio, RTJ, v.151, p. 649).

15. Conclusões1. As medidas provisórias revestem-se

quase que das mesmas particularidades dosdecreti legge italianos, diferenciando-se apenasno período eficacial mais curto (trinta dias) ena regulação das situações jurídicas peloParlamento na hipótese de sua não-aprovação.Enquanto que o art. 77 da Constituição italianaestabelece que aquelas poderão ser disci-plinadas pelo Parlamento, a nossa Constituiçãodetermina a sua regulação pelo Poder Legis-lativo, donde se conclui que os atos praticadossob a égide do provimento provisório italianopodem ser revalidados a contrario sensu dosdecorrentes de medidas provisórias rejeitadas.O Congresso Nacional tem o poder-dever dedisciplinar as relações jurídicas concretizadas,vez que o texto constitucional em hipótesealguma possibilita a revitalização dos atospraticados durante a vigência da medidaexcepcional.

2. No que tange às diferenças existentesentre o antigo decreto-lei e as medidasprovisórias, são elas mais significativas. Aperda da eficácia ex tunc e a conseqüentenulidade dos atos praticados durante a vigênciada medida provisória não convertida, bem comoa possibilidade de emendas, evidenciam anatureza ainda mais precária deste instituto.Desejou o constituinte originário ressaltar a

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importância do Poder Legislativo, não permi-tindo que este seja subjugado à condição demero homologador dos atos do Presidente daRepública, como se apresentava no disci-plinamento dos decretos-leis na Constituiçãopassada.

3. A medida provisória não é lei. Temcaráter de excepcionalidade, contrário àessência da lei que pressupõe definitividade,não podendo ser analisada como lei expedidapelo Executivo e, em conseqüência, atribuir-lhe regime jurídico ou possibilidade normati-zadora equivalente à da lei. O iter percorridopelos dois institutos evidencia suas diferenças.O processo de elaboração de uma lei édemorado, vez que traduz um anseio popular;as medidas provisórias demandam processocélere, pois em face de questões relevantes e deurgente suprimento.

4. Em que pese às divergências acerca dapossibilidade ou não de apreciação do juízodiscricionário do Presidente da República peloPoder Judiciário quando da adoção de atos deurgência, hoje, mediante os excertos jurispru-denciais trazidos à colação no presente trabalho,o que se verifica é que pelo menos o requisitoda urgência está sendo examinado. É que asconstantes reedições de medidas provisóriaspelo Poder Executivo têm colocado emevidência a fragilidade de seu caráter deexcepcionalidade, legitimando a interferênciado Poder Judiciário na verificação dos limitesda competência legiferante excepcionalestabelecida no texto magno.

5. Os conceitos de relevância e urgência,por condensarem pouco conteúdo significativo,são de difícil delimitação. Pode-se ter porrelevante o meio termo entre o comum e oexcepcional, que, por ser grave, enseja danosério para a sociedade. A urgência pode seraferida quando a situação, mesmo em regimede urgência (art. 64 da CF), não pode seracudida satisfatoriamente, merecendo, ainda,um tratamento especial.

6. Entendem juristas de escol que a rejeiçãoparlamentar do ato provisório pode serexpressa, quando decorrente de votaçãodesfavorável à medida, ou tácita, em razão dasua não-aprovação por omissão do CongressoNacional. Por outro lado, permanece a posiçãode que somente a deliberação expressa dosparlamentares constitui de fato rejeição damedida. Porém, por entender que a não-conversão por si só enseja a perda da eficáciaex tunc, inclinamo-nos no sentido de que oCongresso Nacional manifestou-se contra-riamente à permanência do ato provisório

mesmo quando não houve deliberação expressapor parte deste.

7. A reedição de medidas provisóriasconstitui usurpação da competência legislativaem detrimento do Congresso Nacional, o queconfigura infringência ao princípio da sepa-ração de poderes e, via de conseqüência, dopostulado do Estado Democrático de Direito.Somente a lei oriunda do Congresso Nacionalé capaz de regular as situações jurídicasoriundas da medida não convertida.

8. A eficácia não atua no campo da validadedas normas, a revogação, sim, pois extinguedo ordenamento jurídico a norma pretérita comela incompatível, o que nos leva a crer que sóapós ser convertida em lei, a medida provisóriapode revogar a norma anterior. Antes disso, sóé capaz de suspender por trinta dias a eficáciado comando pretérito. Se revogação houvesse,não haveria como restaurar os efeitos da leianterior, vez que a repristinação automática éinadmitida pelo ordenamento jurídico, tor-nando inócuo, por conseguinte, o comando doparágrafo único do art. 62 constitucional e os§§ 1º e 3º da LICC. No entanto, em havendoapenas suspensão, após esgotada, a lei pretéritacontinuaria surtindo efeitos normalmente,como se a medida provisória nunca tivesseexistido, em respeito ao princípio da obriga-toriedade e continuidade das leis estabelecidono art. 2º da LICC.

9. A partir do raciocínio de que a medidaprovisória não convertida em lei não poderevogar direito pretérito, mas tão-somente suasuspensão, concluímos que nada obsta quedurante esse período possam ter ocorrido atosjurídicos perfeitos e direitos adquiridos, os quaisteriam se concretizado com supedâneo nessalegislação pretérita. Se é assim, é de se concluir,também, que uma possível reedição de medidaprovisória já inexistente no mundo jurídico, nãopoderá retroagir para prejudicar os direitosadquiridos e os atos jurídicos perfeitos que seconcretizaram sob a égide da legislaçãoanterior, vez que aquele interregno de trintadias já passou, tendo sido computado paracompletar o suporte fático dos direitosprotegidos. Não se pode contar para cadaedição, mais um trintídio; o período é um só.Se a nova medida provisória passar a produzirefeitos retroativamente, estará produzindo-osjuntamente com a norma anterior, fazendo-seprevalecer em detrimento de uma lei oriundado Congresso Nacional.

10. Adotando-se o mesmo raciocínio, temosque medida provisória reeditada contendoexpressamente norma de vigência retroativa à

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data da medida provisória anterior, é incons-titucional, porquanto aquele ato em desapa-recendo do mundo jurídico, restabeleceu anorma pretérita. Sendo assim, o ato normativonovo não pode conter em seu bojo normaretroativa para prejudicar o direito já adquiridopela legislação anterior. Do mesmo modo,temos que as cláusulas de convalidação de atospassados constantes de medidas provisóriasposteriores são também inconstitucionais, vezque lhe imprimem caráter de validade impos-sível de subsistir em face de sua dependênciahierárquico-normativa com os provimentosprovisórios não transformados em lei.

11. Uma medida provisória não poderevogar outra medida provisória, pode apenassuspender a eficácia da medida anterior naquiloque lhe for incompatível pelo período que lheresta, vindo a ser revogatória da medida anteriorse a condição de futura conversão ocorrer.Assim, se o Presidente da República reeditauma medida provisória totalmente incompatívelcom a anterior, esta ficará suspensa, vindo amedida posterior a tomar o seu lugar peloperíodo restante. Se, porém, a medida maisrecente não vier a ser convertida em lei, o atoanterior passa a ter eficácia pelo período quelhe falta. Donde se conclui que o prazo eficacialnão ultrapassou a trinta dias.

12. Em que pese às vedações constitucionaisapresentadas a respeito da reedição de medidasprovisórias, pode ocorrer que uma delas – “umdia” – venha a ser convertida em lei. Sendoassim, a par do que até aqui foi expendido, tem-se que o início da vigência da norma jurídicainaugural dar-se-á a partir da publicacão daúltima medida provisória convertida em lei,dando continuidade ao comando legal pretérito,suspenso e restaurado a cada período de 30 dias,vez que agora se trata de ato ratificado peloCongresso Nacional.

13. Na hipótese de ocorrência de emendasoriundas do Poder Legislativo, passam elas ater eficácia ex nunc, pois consideradas lei nova,conforme preceitua o art. 1º, § 4º, da LICC; osartigos não afetados têm efeito ex tunc, ou seja,retroagem à data da publicação da medidaprovisória.

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1. IntroduçãoEm artigo publicado no Jornal do Brasil

de 17 de agosto deste ano, criticando a emendaconstitucional que institui, em casos específicosdas decisões do Supremo Tribunal Federal, ochamado “efeito vinculante”, o ex-Ministro eex-Procurador-Geral da República, EvandroLins e Silva, lembrou que, “em nosso sistemajurídico, a fonte primária do direito é sempre alei, a norma geral e abstrata emanada do Podercompetente que é, no regime democrático, opróprio povo, diretamente, ou seus repre-sentantes legitimamente eleitos, ou seja, o órgãoestatal legislativo”. Ao condenar a emendaaprovada em primeiro turno pelo Senado, oeminente jurista a comparou aos “assentos daCasa da Suplicação” do regime colonial,expressão que, por sinal, dá título ao seu eruditotexto jornalístico.

Sob o ponto de vista jurídico, não há reparosque possam ser oferecidos à opinião do ilustreex-Ministro do STF. A questão da justiçaespecificamente e a mais ampla da eficiênciade nosso sistema judiciário, porém, não seresumem a um tema de interesse dos advogadose magistrados, mas envolvem um problema queé, em sua substância, de natureza política.Considerada em termos ainda mais amplos,embora possa estar relacionada com a ciênciado direito, diz respeito mais de perto à própriafilosofia do direito do que ao âmbito do direitocomo ciência social aplicada.

Voluntarismo jurídico e desafio institucional

SUMÁRIO

OCTACIANO NOGUEIRA

1. Introdução. 2. Origens do constitucionalismo.3. Normas de conduta e normas de organização. 4.Estado constitucional e Estado de direito.

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O viés político do tema se resume a umaconstatação cuja resposta é inquestionável: Estáa sociedade brasileira satisfeita com o seusistema judiciário? É claro que não, e a respostanão reside apenas nas tentativas semprefrustradas e constantemente adiadas desucessivas reformas do Poder Judiciário, que étema recorrente da política brasileira, desde aConstituição de 1824. Essa pergunta poderiaser, inclusive, formulada de uma outra maneira:O Poder Judiciário no Brasil é uma instituiçãodotada de credibilidade e de confiabilidade?Dificilmente se responderá afirmativamente. Eo que o demonstra, não é esta ou aquelapesquisa de opinião pública, mas, ao contrário,todas as que têm sido feitas ao longo dos últimosquinze anos, em que o Judiciário e a justiçaaparecem entre as instituições políticas de piorcotação.

Considerado sob ambos os aspectos, oproblema da justiça no Brasil é muito maisgrave, amplo e desafiador do que uma simplesquestão de opinião. É um problema de posição,de crença, de convicção que transcende atémesmo conotações ideológicas para se situarno campo da Antropologia social. Ele está, emúltima análise, sintetizado na afirmação doeminente ex-Ministro e brilhante advogado queidentifica o direito com a lei. Posição, aliás,partilhada por 10 em cada grupo de 10 juristasbrasileiros. Isso é o resultado de uma duplafatalidade histórica, por um lado, decorre denossa herança colonial portuguesa, firmementefincada na cultura ibérica de raízes latinas, epor outro se liga à circunstância de sermosherdeiros diretos do positivismo jurídico doséculo XIX, em que ficamos independentes edo qual progressivamente nos afastamos semque consigamos dele nos livrar. E enquantopersistirmos em manter essa herança e cultuaressa escola, com sua autoritária justificaçãoética, não teremos, por mais tribunais que secriem e por mais juizados que se instituam, umajustiça rápida, barata, eficiente e capaz desuperar os enormes desafios com que há quasedois séculos nos defrontamos.

Essa cultura jurídica decorre da nossaprópria cultura política. Com essa concepção,estamos cada vez mais próximos das sociedadestotalitárias em que, segundo Carl Friedrich1, “a

lei se converte meramente em um instrumentoem mãos dos dirigentes políticos, porque ajustiça, como valor autônomo, desaparece”. E,à medida que a lei se transforma num único evoluntarioso ato de imperium de maioriasocasionais, a justiça terminou-se tornandorefém da política. O constitucionalismo doséculo XIX, calcado no positivismo jurídico,tal como foi concebido por seus principaisformuladores, terminou deturpado, desvirtuadoe deformado. Vejamos como e por quê.

2. Origens do constitucionalismoO constitucionalismo do fim do século XIX

tem duas vertentes principais. A americanainicia-se em 1776, com a declaração deindependência, e se consuma em 1787, com aratificação do primeiro documento consti-tucional escrito da história. A segunda é aeuropéia, de extração francesa, cujo principaldocumento não é a efêmera Constituiçãodecretada em 13 de setembro de 1791, mas sima Declaração Universal dos Direitos do Homeme do Cidadão aprovada em 26 de agosto de 1789e nessa mesma data aceita pelo rei. A pequenarelevância jurídica e política dos sucessivosdocumentos constitucionais revolucionários sededuz da simples circunstância de que nos 12anos do período revolucionário, até a instituiçãodo império, foram proclamadas, editadas eaprovadas nada menos de cinco diferentesConstituições.

A Constituição americana de 1787 nãopossui, como se sabe, nenhuma declaração dedireitos, só mais tarde incorporada ao seu texto,por meio das dez primeiras emendas. Ela é,originalmente, apenas um instrumento queelaborou a engenharia institucional do país. Enesse sentido, seguiu a tradição inglesa. Oschamados “documentos constitucionais” daGrã-Bretanha não tratam dos direitos doscidadãos. Mesmo antes da grande inovação queconstituiu a distinção entre o direito público eo direito privado, os ingleses adotaram umadesignação diferente para os direitos doscidadãos, a Common Law, criada e aplicadapelos juízes, e a que antigamente se chamava aStatutory Law, ou simplesmente Law, asdisposições adotadas pelo Parlamento esancionadas pelo rei. Os diferentes direitosindividuais conquistados pelo povo inglês,portanto, não foram, necessariamente, leisoriundas do Parlamento, mas, desde a suaorigem, cartas e petições endereçadas aosoberano, a que o rei dava o seu assentimento,

1 Die Philosophie das Rechts in Histo-rischer Perspektive. Berlin : Spronger-Verlag,1955. Cf. trad. em espanhol, México : Fondode Cultura Económica, 1964. p. 315.

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ou atos por ele baixados em sua supremacia,ainda não contestada pelo Parlamento. Estãonesse caso, tanto a “Magna Carta” de 1215 esuas diferentes e sucessivas versões, quanto osConfirmation Acts ou a Petition Acts, de 1610e 1628. Incluem-se, da mesma forma, oHabeas-Corpus Act, de 1679, o Bill of Rights,o Munity Act e o Toleration Acts, todos de 1689,assim como Act of Settlement, que é de 1701.O que a Glorious Revolution de 1688 fez, narealidade, não foi impedir o direito do soberanode legislar, mas, ao contrário, o de legislar semo consentimento do Parlamento. Nisto consisteo sistema de rule of law, cuja tradução seconsuma na máxima The King in the Parliament.Como se vê, segundo o princípio constitucionalinglês, a origem do poder político do Parla-mento não é o de fazer a lei, mas sim o deimpedir que ela seja feita, de forma arbitrária,por uma só pessoa, sem o seu consentimento,mesmo que se trate do rei. Isso explica por quê,na convenção da Filadélfia, a idéia de umadeclaração de direitos não logrou ser incor-porada à Constituição.

A tradição constitucional, na Europa conti-nental, de extração francesa, é rigorosamentediversa. Ela se assenta, não na construção e nalimitação do poder do Estado, isto é, não tratade sua engenharia política, mas, ao contrário,cuida fundamentalmente dos direitos docidadão. Essa concepção é positiva, em relaçãoà inglesa que é negativa, na medida em queprescreve o que o rei e o Parlamento não podemfazer, trata de tutelar, proteger, assegurar edefender os direitos individuais. Isso se provanão apenas pela circunstância de que o próprioprincípio da separação de poderes, não está emnenhuma das Constituições revolucionárias,mas exatamente no art. 16 da Declaração dosDireitos do Homem e do Cidadão, expressanestes termos: “Uma sociedade em que agarantia dos direitos não está assegurada e aseparação de poderes não está definitivamentedeterminada não tem uma Constituição”.

A precedência dos direitos é tão clara,definitiva e incontroversa, que o próprioBenjamin Constant, escrevendo em 1815,afirmava: “Digo já há algum tempo que, talcomo uma constituição é a garantia da liberdadede um povo, tudo o que pertence à liberdade éconstitucional, ao mesmo tempo em que nadahá de constitucional, no que não lhe dizrespeito”. No seu livro mais famoso Cours dePolitique Constitutionelle, que foi publicadoentre 1820 e 1822, ele persiste na mesma

convicção, muito embora, como é sabido, tenhadedicado ao princípio da separação dos poderesa maior parte de sua obra. Ele achava, como sededuz de toda a estrutura de seu monumentaltrabalho, que a solução inglesa levava ine-vitavelmente ao conflito, sempre que o reidiscordasse do Parlamento, ou este se confron-tasse com o monarca. Daí a sua famosa“invenção” do chamado poder neutro, o PoderModerador, cuja principal finalidade eraexatamente arbitrar os conflitos entre ospoderes. Essa foi a fórmula adotada no Brasilpela Constituição de 1824, ainda que aqui setenha cometido o excesso de se investir, numasó pessoa – no caso o imperador – dois dosquatro poderes, o Executivo e o Moderador.Assinale-se, a propósito, que foi a únicaaplicação prática do modelo teórico deBenjamin Constant, em todo o mundo.

Desde que as Constituições francesas,subseqüentes aos documentos constitucionaisrevolucionários de 1789, receberam e adotarama prática de incluir em seus textos, tanto adeclaração de direitos, quanto os princípios deseparação e delimitação dos poderes, e à medidaque, a partir da primeira legislatura de 1791, aConstituição americana incorporou as emendasdos direitos individuais, tanto o modeloconstitucional francês, quanto o saxão, quer daInglaterra, quer dos Estados Unidos, conver-giram entre si, tanto na concepção, quanto nafórmula adotada. Fórmula, por sinal, queconstou expressamente do art. 178 da Consti-tuição de 1824, elaborada após a publicação daobra de Benjamin Constant na França:

“É só constitucional o que dizrespeito aos limites e atribuições respec-tivas dos poderes políticos e aos direitospolíticos e individuais dos cidadãos; tudoo que não é constitucional pode seralterado, sem as formalidades referidas,pelas legislaturas ordinárias”.

Assim se escreveu e assim se cumpriu. A recri-ação do Conselho de Estado, a lei de inter-pretação do Ato Adicional, e a própria LeiSaraiva, que instituiu o voto direto, em 1881, adespeito da Constituição determinar o contrá-rio, foram reformas consumadas, sem que fossepreciso alterar o texto constitucional.

Pode-se, portanto, afirmar que esta foi,mansa a pacificamente, a doutrina consti-tucional, tanto saxônica, quanto européia. Umainspirada no Direito Natural, outra no DireitoPositivo. Na França mesmo, a ampliação dosdireitos e garantias individuais continuou a ser

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feita pela legislação ordinária, de que é o maiseloqüente exemplo, a universalização do direitode voto, adotada, pioneiramente, em 1848.Tanto a Constituição não-escrita da Grã-Bretanha, quanto o texto escrito da Constituiçãoamericana, emendada segundo o mesmo ritoprevisto em 1787, e interpretada pela CorteSuprema, são as duas práticas constitucionaismais antigas do mundo. Em matéria de filosofiado direito, isso significou uma extraordináriacoincidência entre os fundamentos do DireitoNatural, prevalecente desde a origem naInglaterra, e as concepções do positivismojurídico, preponderante na Europa.

No Brasil, este modelo funcionou comeficiência, sob o ponto de vista da estabilidadeinstitucional, virtualmente até 1930. AConstituição de 1824, que ao ser revogada em1889 era a terceira Constituição escrita maisantiga do mundo, e a própria Constituiçãorepublicana de 1891 tinham a mesma estruturae o mesmo padrão. As mudanças mais signifi-cativas, como a separação entre a Igreja e oEstado, a secularização dos cemitérios e docasamento, e a instituição do registro civil,foram consumadas por decreto do Executivo e,em seguida, incorporadas ao texto consti-tucional. Até mesmo a única novidade quemudou a engenharia política, a adoção dofederalismo nos moldes americanos, foi apenasincorporada à Constituição. Juntando-se operíodo de vigência das duas, foram 106 anos,nos quais cada um dos textos foi emendadoapenas uma vez.

Os modelos de estabilidade institucional dosEstados Unidos e do Brasil podem, porexemplo, ser proveitosamente cotejados com avida constitucional de um país como a Espanhaque, tendo iniciado sua trajetória políticaconstitucional antes do Brasil, com a Consti-tuição de Cádiz de 1812, teve, somente noséculo XIX, ou mais precisamente entre 1812e 1876, nada menos que nove conflitivasConstituições!

O modelo conflitivo de constituições quetudo regulam, no século XX, teve início com aConstituição de Weimar, sabidamente aprimeira que rompeu com o modelo dualistade estrutura do Estado x direitos individuais,para incluir em seu texto, além dos direitossociais, um modelo político parlamentaristacujos resultados são conhecidos, dramáticos eestão convenientemente descritos na obra deCarl Schmitt, antes de sua adesão ao nacional-socialismo.

O que distingue as duas correntes filosóficasda concepção do Direito, em relação à práticaconstitucional? Façamos, antes, um breveretrospecto das duas grandes escolas depensamento que virtualmente foram predo-minantes durante mais de três séculos.

3. Normas de condutae normas de organização

Sumariamente, como ensina Kelsen, umconjunto de normas pode formar um sistema,ou seja, um conjunto unitário de normas, deduas maneiras diferentes. No primeiro caso, (a)desde que as várias normas que o constituemsejam todas as que puderem ser deduzidas apartir de uma norma fundamental, que contémum postulado ético com a mesma função de umpostulado, num sistema de proposições teóricas.No segundo caso, (b) desde que as normas doconjunto derivem umas das outras, por meiode sucessivas delegações de poder, de talmaneira que, partindo da norma emanada daautoridade inferior, para aquela emanada daautoridade imediatamente superior, chegue-sea uma norma fundamental que constitui a basede validade de todas as normas dos sistemas eque não é, por sua vez, baseada em nenhumaoutra.

De acordo com Bobbio,“é na distinção entre esses dois tipos desistemas normativos que se situa agrande controvérsia filosófica entre éticaracionalista e ética voluntarista e, no quese refere ao mais restrito âmbito doDireito, entre naturalismo jurídico epositivismo jurídico”.

Vale a pena acompanhar o restante de seuraciocínio:

O racionalista ético, ou naturalista jurídico,é aquele que procura construir um sistema éticoou jurídico com base na razão pura, preten-dendo, no final, ter construído uma ética “maisgeometricamente demonstrada”; o voluntaristaético, ou positivista jurídico, é aquele queencontra a unidade do sistema normativoremontando à autoridade máxima da qualpodem derivar, tanto por ordem direta, comopor delegação, as normas que o constituem,desaparecendo quando consegue encontrar opoder acima do qual não existe nenhum outroque é, precisamente, o poder soberano. Essasduas formas de lançar um fundamento éticoestão destinadas a não se encontrarem: para oracionalista, a lei, ainda que seja ditada pela

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autoridade soberana, não é lei, se não estiverde acordo com a razão, ou seja, se não puderser deduzida do postulado ético que ele tomoucomo base do sistema (non lex, sed corruptiolegis); para o voluntarista, a lei deduzida darazão pura não é lei se não for ditada, ou dealguma forma reconhecida pela autoridadesoberana (dura lex, sed lex). Não se encontramsequer no vértice. A pergunta de Eutífrone “Éjusto o que é de agrado dos deuses ou aos deusesagrada aquilo que é justo?” tem permanecidoao longo dos séculos sem resposta, e continuasem resposta porque ambas são legítimas, cadauma no seu âmbito.

A teoria pura do direito de Kelsen, aindaque uma inestimável contribuição à sistema-tização da ciência do direito, não superou nemsequer resolveu o problema de suas basesfilosóficas (nem esse era o seu intento) e, porconseqüência, dos fundamentos éticos doDireito. A grande criação do constitucionalismodo século XIX é que, ao convergirem, as duasgrandes vertentes de suas origens históricastransformaram os limites do delineamentomaterial das Constituições em um fundamentoque faz dos textos constitucionais, ao mesmotempo, tanto uma fonte legítima sob o pontode vista voluntarista, quanto do ponto de vistaracionalista. Como lei das leis, que não podeser criada ou alterada senão pela vontade quese sobrepõe aos interesses circunstanciais detodos os poderes, isto é, por delegação popular,ela se torna a ordem soberana do sistemajurídico acima do qual não existe nenhumaoutra norma superior, tendo em vista que põelimites a todos os poderes do Estado, indis-tintamente, cumprindo o critério voluntarista.E à medida que garante, protege, defende,preserva e torna intocáveis os direitos indi-viduais de todos os cidadãos, supre o funda-mento ético racionalista, que é o bem geral detoda a nação e de cada cidadão, pela preservaçãode seus inalienáveis direitos e garantias.

Sob o ponto de vista da engenhariaconstitucional, resta a questão vital doarbitramento dos conflitos entre os poderes. Nosmodelos constitucionais de maior êxito ou demaior durabilidade, como é o caso dos EstadosUnidos, essa tarefa foi competentementeatribuída pelos pais da Constituição à CorteSuprema que só se pronuncia sobre matériaconstitucional e não decide, por conseqüência,as demais questões da Common Law, a não serque delas resultem implicações de naturezaconstitucional. Nos países europeus, que não

seguiram o modelo saxão, esse papel dearbitramento foi atribuído, nas Constituiçõesmais duradouras do pós-guerra, como é o casoda Lei Fundamental de Bonn, às cortesconstitucionais que pairam acima dos demaispoderes, não têm caráter vitalício e procuramrefletir, em sua composição, as diversascorrentes políticas e as diversas instituições doEstado. Modelo que está hoje disseminado namaioria das Constituições européias, inclusiveda Rússia pós-soviética.

O modelo constitucional do século XX, quetem sua origem na Constituição de Weimar,rompeu com esse esquema de dupla legiti-mação. Em sua origem, está a mudança radicalda própria filosofia política do Estado, queterminou influenciando a cultura política desteséculo, depois de 1917. Não se trata só de umaquestão ideológica, como veremos em seguida,em sua origem estão, indistintamente, todos ossistemas políticos totalitários, sejam eles dedireita, como é o caso do nazismo alemão oudo fascismo italiano, tanto quanto de esquerda,como é o comunismo leninista ou o socialismomarxista, seja ele da ex-União Soviética, daChina ou da ex-Alemanha Oriental. A distin-ção, sob o ponto de vista de suas conseqüênciasjurídicas, em relação à ordem constitucional,foi formulada por Hayek, em 1966, em sua obraThe principles of a liberal social order, aopropor a classificação das normas jurídicas noque ele mesmo denominou de “normas deconduta”, em contraposição às “normas deorganização”.

As “normas de conduta” são aquelas quepermitem que os indivíduos usem a sua própriadiligência para perseguirem os fins por eleslivremente escolhidos. As “normas de orga-nização” são aquelas que impõem determinadosfins, em lugar de outros. Nelas reside adiferença entre as Constituições pré-Weimar eas pós-Weimar. Exemplos das primeiras são asConstituições do século XIX que sobrevivem etêm sido eficazes na preservação da ordem, dagovernabilidade e da normalidade institucional,de que é exemplo a dos Estados Unidos, e asdo Brasil de 1824 e 1891, ou a sueca de 1816.Entre os últimos, estão os textos constitucionaiscomo os do Brasil a partir de 1934 até hoje, amaior parte das Constituições latino americanasdeste século e algumas européias.

Cabe, portanto, indagar a causa dessaverdadeira “degradação” ou “involução” dateoria constitucional, cujos resultados maisvisíveis foram, como em nosso caso, a

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instabilidade institucional, a ingovernabilidadee o aumento da conflitualidade política, paranão falar dos casos notórios das doutrinaspolíticas radicais e das ideologias totalitárias,de cujo confronto com a ordem democráticaresultaram golpes de estado, deposições,suicídio, renúncias, regimes autoritários e todasas formas de autocracias, estudadas, de formaincomparável por Hanah Arendt. Mas, paraisso, temos que passar da filosofia do direito edas concepções doutrinárias da ciência dodireito para a prática constitucional, emconfronto com a realidade política.

4. Estado constitucionale Estado de direito

A extraordinária contribuição de Hayek, aocriar as categorias de “normas de conduta” e“normas de organização”, serve para distinguiros sistemas democráticos dos totalitários, queKant chamou de “eudomonológicos”. Nosprimeiros, o indivíduo é livre para perseguiros seus próprios fins ou, segundo Kant, para“aspirar à própria felicidade” com a únicacondição de que sua ação não interfira com abusca dos demais cidadãos de seus próprioscaminhos e objetivos. Nisso consiste ainviolabilidade, a supremacia e a primazia dosdireitos, liberdades e garantias individuais,sobre as quais o Estado não pode legislar,dispor, constranger ou reprimir, a não ser emcasos excepcionalíssimos, como os de guerraexterna ou sublevação da ordem e da segurançainternas. No caso dos regimes autoritários (emtodas as suas diferentes modalidades), é aoEstado que cabe zelar pela felicidade de seussúditos, como diz Bobbio, “tal como um bompai de família zela pela felicidade de seus filhosmenores”. Mesmo que, para a realização dosfins por ele estabelecidos, ele tenha deconstranger e ultrapassar os limites da liberdadeindividual, em favor da felicidade coletiva. Quepode variar das ambições arianas de Hitler àditadura do proletariado de Lênin.

Ora, de que maneira o Estado faz isso nocampo das normas jurídicas, ou seja, na práticaconstitucional da ordem política? Estabe-lecendo esses fins constitucionalmente, não sósob a forma de prescrições imperativas, mastambém e sobretudo sob a forma de prescriçõesdesiderativas, de que estão prenhes as Cons-tituições pós-Weimar. São direitos objetivos esubjetivos, estabelecidos de forma aleatória,cuja efetividade depende mais da ação dosorganismos do Estado do que de sua mera e

simples enumeração em belas promessas deorigem constitucional. São os textos cons-titucionais que Karl Loewenstein, em seuPolitical Power and Government Process,chamou de “semânticas” e que Giovani Sartoridenomina “constituições nominais”. Suaprincipal característica, ensina Sartori, é que“seu ponto delicado não afeta a circunstânciade algumas de suas disposições caírem emdesuso, devido a seu anacronismo, senãoaquelas normas que não foram postas em vigorpela falta de vontade ou inércia do PoderLegislativo ou do Poder Executivo”. Convémcompletar com o nosso edificante exemplo de88, por mais que o seu próprio texto preveja, oinstituto jurídico do “Mandado de injução, éutópico e inaplicável”.

O resultado dessa profusão de disposiçõesdesiderativas, meras promessas, as mais dasvezes imaterializáveis, é o quadro que, commuita propriedade e concisão, traça o incom-parável Sartori:

“... as Constituições contemporâneas –em geral – são más constituições,tecnicamente falando. Encontram-senelas deslumbrantes profissões de fé, porum lado, e um excesso de detalhessupérfluos, por outro. Algumas delas sãojá tão ‘democráticas’, que já não sãoconstituições”.

Parece, até, inspirado em nosso caso eexemplo...

Aqui é preciso voltar às lições de filosofiado direito dos dois Friedrich, Carl e Hayek.

O que justifica a proliferação dessasdeslumbrantes profissões-de-fé e esse excessode detalhes supérfluos a que alude Sartori? É atranscendência das normas de conduta sobreas normas de organização que faz prevaleceremas utopias ideológicas, sobre a lógica jurídica,o direito, a lei e a justiça, como instituições decunho ético e de finalidades igualmente éticas.A forma, ou o formalismo, terminam preva-lecendo sobre a natureza ética dessas insti-tuições. Ou, como lembra Nozick, faz com quea instituição e sua estrutura terminem preva-lecendo sobre as suas próprias finalidades. Éisto que permite que, “mesmo as ditadurastotalitárias, possam manter e de fato o fazem,os formalismos de um governo de direito” ou,inclusive, de um aparente Estado de Direito,conforme assinala Carl Friedrich. Seja ele dedireita, como o do General Pinochet, ou deesquerda, como o de Stálin. O que os distinguenão é o ordenamento jurídico ou a Constituiçãoque os rege, que podem ser formalmente

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idênticas ao de um Estado democrático, emboramaterialmente diversas e opostas, porque sebaseiam numa razão superior e não numfundamento ético. Isso explica porque se tornouinsuficiente a afirmação de Paine: “Um Estadoque não tem uma Constituição não é um Estadodemocrático”. Estados democráticos e Estadostotalitários podem ter constituições formal-mente semelhantes, embora um continue a seruma democracia e o outro continue a ser umaditadura. A diferença é que num não se limitamos poderes do Estado, nem se respeitam osdireitos e garantias dos cidadãos, enquanto oque caracteriza o outro é a limitação explícitae rigorosa dos poderes do Estado e a garantiada inviolabilidade dos direitos individuais. Osdois postulados são, essencialmente, osfundamentos éticos, morais, jurídicos e políticosde um sistema democrático. Tal como ensinouhá quase dois séculos Benjamin Constant ecomo lembrou, neste século, o mestre CarlJoachim Friedrich:

“Assim, pois, a Constituição deveráentender-se como o processo pelo qualse limita a ação política e ao mesmotempo lhe dá forma. A Constituição temuma função definida no corpo político.A garantia dos direitos básicos e aseparação dos poderes, seja funcional ouespacial (federalismo), têm servido comolimites”.

A propósito, vale lembrar que o regimemilitar brasileiro, entre 64 e 85, configuravaum Estado de direito, caracterizado não poruma, mas por várias constituições, centenas deemendas e milhares de leis aprovadas peloCongresso. Circunstância, aliás, que permitiaao General Geisel criar a categoria de“democracia relativa”. Mas dificilmente poderáser identificado com a democracia.

É conveniente notar, em primeiro lugar, queCarl Friedrich fala em separação e não emindependência de poderes, conceito que, entrenós, funciona como uma aberração consti-tucional, quer sob o ponto de vista político, quercomo realidade jurídica. Poderes que sãoindependentes são poderes que não podem sercontrolados. E poderes não submetidos acontrole democrático são poderes totalitários.Supor que a democracia se limita a eleiçõesperiódicas de quatro em quatro anos, é, de saída,um bom começo e uma porta aberta para atransição na rota dos regimes autoritários.

Em segundo lugar, vem a outra advertênciado mesmo autor, já referida no início desteartigo: “A função do Direito muda totalmente

em uma sociedade totalitária. A lei se convertemeramente em um instrumento em mãos dosdirigentes políticos por que a justiça, como umvalor autônomo despareceu”. Neste ponto,convém voltar à afirmação do ex-MinistroEvandro Lins e Silva, que a fonte do direito é alei. Identificar o direito com a lei significa omesmo que igualar o direito à justiça e, porconseqüência, a justiça à lei. Em outraspalavras, faz desaparecer a Justiça como umvalor autônomo. Pois é exatamente isto quecaracteriza os autoritarismos modernos. São osordenamentos jurídicos que se baseiamexclusivamente na lei. E como a lei e todas asleis (inclusive a Constituição) podem sermudadas, sem limitações que não sejam asmeramente formais de quorum e outrosprocedimentos idênticos, inclusive para limitar,suprimir e alterar direitos individuais que sãoo substrato ético de toda e qualquer Constituiçãodemocrática, já não há como falar em demo-cracia.

A lição de Sartori, a esse respeito, é não sóprecisa e concisa, como também ilustrativa eedificante:

“O sentido originário de todo oedifício constitucional a que ainda hojenos referimos é o de impedir a arbi-trariedade na criação da lei; e, portanto,por esta via, chegar conscientemente aum Estado de direito em que os gover-nantes estejam submetidos às leis. Seestas eram as intenções, hoje os fatos sãoadversos: a) a lei absorveu todas asdemais fontes de criação do direito; b)portanto, os parlamentos se senteminvestidos da tarefa de ‘criar o direito’;c) nossos parlamentos não freiam senãoque, ao contrário, produzem umainflação na legislação; d) a afirmação deuma concepção voluntarista do direito –implícita na promiscuidade entre legislare governar – volta a reinsertar umelemento peculiar de arbítrio no processolegislativo; e) em geral, o governo da leifoi substituído pela realidade bemdistinta do governo dos legisladores.

O significado dessas diferenças, quecom freqüência são verdadeiras eparticulares inversões, não é difícil deperceber. O ideal último e a própria razãode ser do constitucionalismo, resumem-se na fórmula proteção da lei. E opressuposto da proteção da lei é asubordinação dos governantes às leis.

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Entende-se que, em última análise, sãosempre os homens que fazem as leis.Porém isto não significa que o ideal dogoverno das leis, não governo doshomens, dê lugar a uma distinção irreal.A distinção subsiste com duas condições:que aqueles que fazem as leis não seidentifiquem totalmente com os deten-tores do poder do governo e que, emgeral, a modificação e a criação das leisse converta em relativamente lenta edifícil. Portanto, o estado de direito nãoé (a menos que se entenda como umasimples tautologia) o estado que cria aseu alvedrio um novo direito, mas sim oestado em que o exercício do poder estálimitado por vínculos jurídicos precisos.Disto se depreende que a práxis de‘governar legislando’ está esvaziando,concretamente, o Estado de direito.Ainda que se continue invocando ogoverno da lei, o certo é que estamos nosaproximando cada vez mais do ponto emque temos, simplesmente, um governode homens, em nome da lei. E, que fiqueclaro que, quando os governantes podemfazer e desfazer todas as leis que desejam,a proteção da lei já não existe.”

Neste ponto, é pertinente lembrar o que estáocorrendo no Brasil, em que a Constituição,decorrido o prazo de carência de cinco anos, járecebeu nada menos de 21 emendas em 10 anos.Ou, para sermos ainda mais explícitos, acircunstância que, tal como foi concebido eestá sendo praticado o texto constitucional,uma só medida provisória poder ter vigênciapor quatro anos, sendo reeditada 48 vezespela suspeita cumplicidade entre o excessode dinamismo do Executivo e a notóriainércia do Legislativo.

Parece-me fora de dúvidas que a diminuiçãoda conflitividade política, o abrandamento dainstabilidade institucional e o aumento dasegurança jurídica, numa sociedade demo-crática, não passam, singularmente, pelaaceitação passiva de que a lei, em seu sentidomaterial e formal, deva ser a fonte de tododireito, nem que o direito, por si só, impliqueconsumação do ideal da justiça. Aqui, sim, épreciso insistir não na independência e sim naautonomia dos poderes. Da mesma forma, épreciso reinstaurar, não a autonomia, mas aindependência dos julgamentos dos juízes etribunais, não jungidos à lei que a todo

momento muda e arbitrariamente se altera,calcada na livre convicção de cada um, narealização do ideal ético da justiça como umvalor autônomo que precisa ser restabelecido.A função do Parlamento deve continuar sendoa de fazer a lei, mas não a de criar o direito queem sua origem, sempre esteve nas mãos dosmagistrados, pois esta era a única forma deproteger, contitucionalmente, os direitos docidadão, contra o arbítrio do poder e da política.Nisto reside a importância da distinçãoestabelecida desde as origens do consti-tucionalismo, entre a Law função dos Parla-mentos, e a Common Law, prerrogativa dosmagistrados e tribunais.

Um juiz ou um tribunal, escravos da lei,que muda segundo o arbítrio do poder, sãomagistrados e tribunais arbitrados pelopoder.

Isso só será possível se, abandonando aconcepção autoritária do voluntarismo jurídico,voltarmos a entender que o fundamento da leié a justiça, ou seja, só é lei se for justa. Não épossível continuar identificando justiça com lei,como querem Hobbes e os positivistas. Pois elessão, com os céticos e os relativistas, osresponsáveis pela decadência da filosofia dodireito, quando dizem que não tem sentidoespecular filosoficamente. Prática que os levoua abandonar o fundamento ético de toda ciência,a começar pela ciência do direito.

O complemento indispensável é que asConstituições voltem a ser o que sempre foram:a carta de garantias dos direitos do cidadão,por um lado, e uma barreira ao exercício dopoder arbitrário, por outro. Sem esses doisrequisitos, não são Constituições, mas comoadverte Sartori, “deslumbrantes profissões-de-fé, por um lado, e um excesso de detalhessupérfluos, por outro”.

Quando nos convencermos dessa realidade,poderemos nos conscientizar de que não será oefeito vinculante, ou a sua falta, que vão resolvero problema da justiça no Brasil. O problema,como se viu, é outro. E por sinal, bem maiscomplexo. Mas, nem por isso, podemos deixarde insistir. Mesmo porque, não há porquêdesistir, quando o desafio, ao contrário, éexatamente o de persistir na busca de governosdemocráticos e não apenas de formalismos queimpedem a democracia. Instituições, algumasdemocráticas, nós já temos. O que nos falta,exatamente, é democracia. E, para conquistá-la, é preciso, antes de mais nada, democratizarao mesmo tempo o direito, a justiça e a lei.

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1. A Cédula de Produto RuralO artigo 1º da Lei nº 8.929/94 institui a

Cédula de Produto Rural (CPR) como sendo“representativa de promessa de entrega deprodutos rurais, com ou sem garantia cedular-mente constituída”. O artigo 2º disciplina alegitimidade para emissão de CPRs (“oprodutor rural e suas associações, inclusivecooperativas”), e o artigo 3º detalha os seusrequisitos.

Já o artigo 4º do mesmo diploma legaldetermina que “a CPR é título líquido e certo,exigível pela quantidade e qualidade de produtonela previsto”. O artigo 10, por sua vez, mandaque se apliquem à CPR “no que forem cabíveis,as normas de direito cambial”, com certasalterações especificadas nos três incisos que seseguem.

O artigo 15 da mesma Lei nº 8.929/94disciplina que “para cobrança da CPR, cabe aação de execução para entrega de coisa incerta”.

O artigo 19 e seus parágrafos, por fim,autorizam a negociação de CPRs nos mercadosde bolsas e de balcão, mediante registro emsistema de registro e liquidação financeira –tipo Cetip – e definem o título como ativofinanceiro.

Ora, há muito que a circulação da riqueza,por meio do crédito, está intimamente ligada àpossibilidade de sua transferência, rápida esegura. As regras formais quanto às cessões

Do regime legal da Cédula de ProdutoRural (CPR)

ARNOLDO WALD

Arnoldo Wald é Advogado em São Paulo,Professor Catedrático da Universidade do Estado doRio de Janeiro e Presidente do Grupo Brasileiro daAssociation Henri Capitant para a Cultura JurídicaFrancesa.

SUMÁRIO

1. A Cédula de Produto Rural. 2. O aval. 3. Asgarantias reais cedulares. 3.1. Introdução. 3.2. Daalienação fiduciária. 3.3. Do penhor. 3.4. Dahipoteca. 3.5. Do regime legal das garantiascedulares. 4. Conclusões.

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ordinárias de obrigações e créditos em geral,exigindo-se contratos escritos, notifi-cações dosenvolvidos e medidas de publicidade paraconhecimento de terceiros, sempre forammotivo de entrave à efetiva circulação decréditos.

Com a criação dos títulos de crédito e,notadamente a partir da Idade Média, com odesenvolvimento da letra de câmbio, a circula-ção eficaz e intensa dos créditos tornou-sepossível, alavancando significativamente asatividades econômicas e o comércio em geral1.

Com efeito, seguindo-se a tradicionaldefinição de Vivante, o título de crédito é umdocumento necessário para o exercício dodireito, literal e autônomo, nele mencionado.O direito (crédito) é incorporado ao documento,abstratamente, e passa a não mais depender doselementos externos que propiciaram a suacriação.

Assim sendo, mobiliza-se o crédito,possibilita-se a sua circulação pela pura esimples transmissão do título, por endosso, oupor mera tradição em se tratando de título aoportador, e impede-se que o devedor oponha,ao legítimo portador (credor), quaisquerexceções pessoais decorrentes da relaçãojurídica original que ensejou a emissão dotítulo.

Como corolário da segurança jurídica dostítulos de crédito, as legislações costumamreconhecê-los como títulos aptos a cobrança pormeio de procedimentos mais simplificados erápidos2.

O desenvolvimento da economia e aconstante atualização do Direito fizeram comque inúmeros tipos de diferentes títulos decrédito fossem criados ao longo do tempo e,hoje, no Direito brasileiro, conhecemos dezenasde espécies distintas3.

Para o presente estudo nos interessa,primordialmente, o fenômeno da criação daschamadas “cédulas”, títulos de crédito queforam incorporados paulatinamente ao nossoordenamento jurídico.

Nessa categoria, podemos citar a Cédula deCrédito Industrial (hoje regida pelo Decreto-Lei nº 413, de 9.1.67), a Cédula de CréditoComercial (Lei nº 6.840, de 3.11.80), a Cédulade Crédito à Exportação (Lei nº 6.313, de16.12.75), e as Cédulas de Crédito Rural, nassuas diversas modalidades (Decreto-Lei nº 167,de 14.2.67).

Cada um destes instrumentos serve comomeio de facilitação e estímulo ao crédito emsuas respectivas áreas (indústria, comércio etc.),permitindo ao agente econômico que, porintermédio de sua emissão, possa obter finan-ciamento junto ao Sistema Financeiro.

As cédulas, além das características geraisdos títulos de crédito, que permitem a suacirculação e cobrança eficazes, como aventadoacima, normalmente possibilitam a vinculaçãode uma garantia real “cedularmente consti-tuída”.

Os títulos de crédito, via de regra, repre-sentam um direito de crédito pessoal contra oemitente (e, eventualmente, contra os endos-santes) e comportam a garantia pessoal deterceiros mediante o aval aposto à cártula. Aobtenção de uma garantia real com relaçãoàquele crédito, porém, demanda a sua consti-tuição pelos métodos e meios tradicionais,alheios às regras puramente cambiais, o quepraticamente inviabiliza a circulação de taisgarantias.

Com a possibilidade de constituição dasgarantias reais por meio de regras específicas,“cedulares”, tais garantias aderem e incor-poram-se ao título (cédula), e com ele circulamfácil e livremente, independentemente dequalquer outro documento. Obviamente, quantomais “garantido” for o título, maiores serão osseus atrativos e a sua aceitação no mercado,ensejando o acesso de seus emitentes afinanciamentos em melhores condições.

As Cédulas Rurais, como concebidas noDecreto-Lei nº 167/67, artigo 9º, dividem-seem quatro tipos diferentes: cédula rural pigno-ratícia, cédula rural hipotecária, cédula ruralpignoratícia e hipotecária, e nota de créditorural. A diferença principal, como se depreendeda própria nomenclatura, é quanto às garantiasreais constituídas na cédula (penhor, hipoteca,ambas ou nenhuma, respectivamente).

1 REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comer-cial. 16. ed. Saraiva, 1986. v. 2, p. 298; MARTINS,Fran. Títulos de crédito. 9. ed. Forense, 1994. v.1. p. 5.

2 No Brasil, o inciso I do artigo 585 do Códigode Processo Civil confere eficácia de título executivoextrajudicial às letras de câmbio, notas promissórias,duplicatas, debêntures e aos cheques; o inciso VIIdo mesmo artigo, por sua vez, estende esta eficáciaa “todos os demais títulos, a que, por disposiçãoexpressa, a lei atribuir força executiva”. As leisregulamentadoras dos diversos títulos de créditocostumam dar-lhes, sempre expressamente, estaforça executiva, tal como feito no já mencionadoartigo 15 da Lei nº 8.929/94, a respeito da CPR.

3 REQUIÃO, Rubens. op. cit., p. 310-311;MARTINS, Fran. op. cit., p. 30-31.

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Em qualquer das modalidades, as cédulasde crédito rural caracterizam-se como “pro-messa de pagamento em dinheiro” (art. 9º,caput), e destinam-se à concessão de finan-ciamento rural, por órgãos integrantes dosistema nacional de crédito rural, a pessoasfísicas ou jurídicas, incluindo cooperativasrurais, seus associados e filiados (art. 1º).

Os artigos 2º a 8º do citado Decreto-Lei nº167/67 disciplinam minuciosamente a apli-cação dos recursos obtidos mediante financia-mento por emissão de cédula de crédito rural,que devem obedecer ditames pré-estabelecidosentre a instituição financiadora e o financiado.

Outras regras do diploma legal buscamreforçar a segurança no procedimento decobrança desses títulos, seja mediante aatribuição de rito executivo especial, seja pelasimplificação na constituição das garantiasreais e pelas preferências conferidas ao créditocedular em hipótese de concurso de credores.

Em resumo, o emitente toma dinheiroemprestado contra a promessa de pagamento,dadas as garantias constantes do título. Apromessa de pagamento é em dinheiro, e hácompromisso de utilização dos recursos naforma e para os fins pactuados, tratando-se,pois, de um crédito vinculado ou afetado a umadeterminada finalidade.

Este modelo já há algum tempo vinha semostrando um tanto esgotado, não satisfazendonenhuma das partes envolvidas (produtoresrurais e instituições financeiras fornecedorasde crédito rural).

Do lado dos financiadores, havia a crençaem que as garantias reais passíveis deconstituição cedular, na forma do Decreto-Leinº 167/67, não eram suficientes, reivindicando-se a possibilidade de emprego da alienaçãofiduciária em garantia, além da sujeição deoutros bens, antes não cogitados, ao penhor e àhipoteca cedulares4.

Do lado dos tomadores, por sua vez, umadas grandes dificuldades consistia em seprometer o pagamento em dinheiro. O agri-cultor e o pecuarista tendem a não raciocinar,no seu dia-a-dia, em termos de unidadesmonetárias, mas sim em referenciais de suaprodução (por exemplo: sacas ou toneladas decafé, açúcar, soja ou outro produto, cabeças degado etc.). Diante das oscilações do mercado eda eventual defasagem dos preços agrícolas eda inflação, o produtor rural não se sente

confortável em contrair uma obrigação detantos mil reais, cujo risco lhe é de difícildimensionamento. Uma obrigação de entregartantas sacas de seu produto, por sua vez, lheparece muito mais próxima e palpável, e muitomenos arriscada.

A promessa de entrega futura de produtosrurais, porém, embora já fosse conhecida naprática do mercado, só se viabilizava emcomplexos instrumentos jurídicos, muitas vezescaros e sem a devida segurança para oscontratantes5.

Dentro desse contexto surge a Lei nº 8.929/94, criando a Cédula de Produto Rural (CPR),que, como dissemos no início do presenteestudo, consiste numa “promessa de entrega deprodutos rurais.” Dessa forma, o emitente nãose obriga a pagar determinada quantia, mas aentregar uma certa quantidade de produtosconforme a descrição constante do título.Ademais, não há restrições quanto à pessoa docredor ou quanto ao uso dos recursos dofinanciamento, que engessavam as operaçõescom as Cédulas Rurais do Decreto-Lei nº167/67.

Esse novo título de crédito admite, comogarantias cedulares, a hipoteca, o penhor e,também agora, a alienação fiduciária, emcondições que examinaremos mais adiante (Leinº 8.929/94, art. 5º).

Como a lei não faz restrição alguma,qualquer tipo de produto rural pode ser objetode emissão de uma CPR, bastando que constemdo título as devidas indicações e especificaçõesde qualidade e quantidade, conforme for o caso(Lei nº 8.929/94, art. 3º, IV). Não vemosrestrição alguma ao uso de CPRs por produtoresde açúcar e/ou álcool, típicos produtos rurais.Vale o dito latino: ubi lex non distinguit necnos distinguere debemus.

Neste particular, podemos lembrar a liçãosempre valiosa de Carlos Maximiliano:

“Quando o texto dispõe de modoamplo, sem limitações evidentes, é deverdo intérprete aplicá-lo a todos os casosparticulares que se possam enquadrar nahipótese geral prevista explicitamente;não tente distinguir entre as circuns-tâncias da questão e as outras; cumpraa norma tal qual é, sem acrescentar

4 MARTINS, Fran. Títulos de crédito. 7. ed.Forense, 1994. v. 2. p. 256.

5 SANTOS, Theophilo de Azeredo. A Cédula deProduto Rural. novembro de 1994, item 1. Parecerdatilografado.

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condições novas, nem dispensar nenhumadas expressas”6.

Seguindo o princípio, não vemos razãoplausível para se excluir o açúcar e/ou o álcoolda incidência das CPRs. Embora eles soframprocesso de beneficiamento ou transformação,a partir da extração da cana, o próprio sensocomum os classifica como produtos rurais7.

Aliás, os juristas que até agora manifes-taram-se sobre as CPRs não tiveram a preo-cupação de definir quais seriam os produtosrurais passíveis de promessa de entrega futurana forma da Lei nº 8.929/94. Como exemplo,Paulo Salvador Frontini 8 usa por vezes aexpressão “produto agropecuário”, ao passo queWaldirio Bulgarelli9 limita-se a repetir o termoempregado na lei, ou seja, “produto rural”.

Se formos às definições de Aurélio Buarquede Holanda Ferreira10, veremos que “produto”é “aquilo que é produzido pela natureza(produto vegetal, produto mineral)”, e também“resultado de qualquer atividade humana –física ou mental (o produto da colheita, umproduto da imaginação)”. A palavar “rural”,por sua vez, é definida como “pertencente ourelativo ao, ou próprio do campo”11.

Assim, podemos concluir que, dentro daexpressão “produto rural”, estaria inserido “oresultado de uma atividade humana relativa aocampo”. O açúcar e o álcool certamente seenquadram nessa categoria, pois são o resultadodireto do aproveitamento da cana colhida.

Por outro lado, não se pode negar que a CPRé um novo instrumento no sistema de créditorural, em sentido amplo, pois se destina,evidentemente, a estimular a produção ruralnacional. Partindo desta noção, podemostranspor para a CPR alguns conceitos cristali-zados na Lei nº 4.829, de 5 de novembro de1965, que institucionalizou o crédito rural.

Entre os objetivos declarados do sistema decrédito rural, o inciso I do artigo 3º da Lei nº4.829/65 especifica o de

“estimular o incremento ordenado dosinvestimentos rurais, inclusive paraarmazenamento, beneficiamento aindustrialização dos produtos agrope-cuários, quando efetuados por coope-rativas ou pelo produtor na sua proprie-dade rural”.

O inciso IV do artigo 9º, por sua vez, tratados financiamentos para “industrialização deprodutos agropecuários, quando efetuada porcooperativas ou pelo produtor na sua proprie-dade rural”.

A Lei da CPR (Lei nº 8.929/94), no seuartigo 2º, legitima “o produtor rural e suasassociações, inclusive cooperativas”, para aemissão dos títulos.

Como a própria legislação que institucio-nalizou o crédito rural teve o cuidado de incluiro armazenamento, o beneficiamento e a indus-trialização dos produtos agropecuários dentrodo seu âmbito de incidência, em especialquando efetuados por cooperativas, tais comoa consulente, não temos dúvida em classificaro açúcar e o álcool por ela produzidos comopassíveis de promessa de entrega medianteemissão de CPR.

Por outro lado, na forma do artigo 4º dareferida Lei nº 8.929/94, a característica depromessa de entrega de produtos não retira daCPR a condição de título líquido e certo,exigível de acordo com as quantidades equalidades do produto nela especificadas.

Não obstante, como os produtos rurais sãofungíveis por sua própria natureza, nada maiscerto que o disposto no artigo 15 da Lei nº8.929/94, porquanto o rito apropriado para oda cobrança judicial da CPR é o da execuçãopara entrega de coisa incerta (Código deProcesso Civil, arts. 629/631).

Com efeito, faz-se a citação do devedor paraentregar os produtos prometidos, nas quali-dades e quantidades consignadas no título, sobpena de busca e apreensão (CPC, art. 625, c/cart. 631). Em não se encontrando os produtos,a relação se resolve em perdas e danos, nospróprios autos (CPC, art. 627 c/c art. 631).

Note-se, por outro lado, que em se tratandode produtos rurais, altamente perecíveis, e tendocomo traço marcante a sazonalidade, com asconseqüentes flutuações de seu preço demercado, o credor não pode ser obrigado areceber o produto antes do avençado, o que

6 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica eaplicação do Direito. 9. ed. Forense, 1984. p. 247.

7 Por exemplo, o fato da carne ser objeto de corte,limpeza, eventual congelamento, embalagem etc.,não pode, a nosso ver, afastar a sua característicaintrínseca de produto pecuário, e portanto rural. Omesmo raciocínio se aplica, assim, aos derivadosdiretos da cana de açúcar.

8 FRONTINI, Paulo Salvador. Cédula de ProdutoRural. RDM, n. 99, p. 121-126.

9 BULGARELLI, Waldirio. A Cédula de ProdutoRural. RDM, n. 97, p. 114-118.

10 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda.Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2. ed. NovaFronteira, 1986. p. 1397.

11 Ibidem, p. 1528.

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poderia lhe causar prejuízos significativos (Leinº 8.929/94, art. 13).

Reforça a segurança do título, ainda, o fatode ser inoponível, pelo devedor, o caso fortuitoou a força maior. É dele, devedor, o risco daprodução rural, de uma eventual quebra de safrapor más condições climáticas ou outro problemado gênero. Do contrário, o título seriaextremamente arriscado para o credor. O riscodeste se resume ao do próprio mercado rural,pois não poderá recusar o recebimento dosprodutos, na época avençada, na hipótese deseu preço de mercado ter caído.

Por último, saliente-se que a eventualnegociação de CPR em mercados de bolsas ede balcão, com seus registros em sistemas tipoCetip, implica sua desmaterialização, tal comoocorreu, por exemplo, com os CDBs, CDIs,letras hipotecárias e outros títulos. O documentofísico, o papel, é substituído por um registroem banco de dados computadorizado.

Tal fato, por si, não tem o condão de retirarda CPR, a nosso ver, a natureza de título decrédito. Embora ainda haja vozes discordantes,a tendência moderna é do reconhecimento daviabilidade da existência de títulos de créditoimateriais, nos quais o documento-suporte docrédito é substituído por um registro infor-mático idôneo12.

Embora o Brasil não tenha legislaçãoespecífica sobre a matéria, como ocorre porexemplo na França13, já existem exemplosespecíficos sobre títulos de crédito imateriais.

O mais conhecido é a ação escritural (artigos34 e 35 da Lei nº 6.404/76), que não comportaemissão de certificado, ficando apenasregistrada junto a uma instituição “depositária”,e que nem por isso deixa de ser título decrédito14.

A nova legislação criou, assim, um interes-sante tipo de ativo financeiro, negociável nosmercados de bolsa e de balcão, cujo pagamentonão está atrelado à moeda, mas à entrega deprodutos rurais de qualquer espécie. Essanegociabilidade ampla deve servir comoestímulo à difusão da CPR como título definanciamento de atividades rurais.

2. O avalVistas, em linhas gerais, as principais

características da CPR, passamos agora a umaanálise mais específica das garantias que a elapodem se vincular, iniciando pela garantiapessoal típica dos títulos de crédito, o aval.

O aval é instituto de direito cambiário,consistente na garantia do pagamento do títulode crédito. O avalista torna-se devedorsolidário, porém de maneira autônoma,passando a sua obrigação a independer darelação obrigacional garantida, entre o devedor-avalizado e o credor, cujas eventuais exceçõesde pagamento não lhe dizem respeito e por elenão podem ser invocadas15.

Como o avalista é normalmente um terceiro,sem proveito direto resultante da dívidacontraída, as regras de direito cambiário dão a

12 No Brasil, já nos anos 70 o Professor NelsonAbrão demonstrava a desnecessidade da existênciafísica da cártula para a circulação ou a cobrança dostítulos cambiários (Cibernética e títulos de crédito.RDM, n. 19, p. 95); no mesmo sentido, maisrecentemente, LUCCA, Newton de. A cambial-extrato. RT, 1985, concluiu que “o título não vaimais circular materialmente” (p. 28), bastando aapresentação do extrato dos registros eletrônicos paraa efetivação da cobrança, pois “a vontade cambia-riamente suficiente poderia ser expressa em outromaterial que não o papel” (p. 74).

13 A Lei Francesa de 30 de dezembro de 1981,em vigor a partir de 3 de novembro de 1984, tratade desmaterialização dos valores mobiliários emgeral, e de seus registros junto ao Sicovam, o sistemalocal ao qual se assemelham os nossos Cetip e Selic.Como salienta a doutrina, a desmaterialização é umfenômeno geral e mundial de direito empresarial,na medida em que a gestão informática é mais leve,rápida e segura, além de mais barata do que os tradi-cionais sistemas baseados em papéis (GAVALDA,Christian, e STOUFFLET, Jean. Droit Bancaire. 2.ed. 1994. Paris : Litec, p. 403).

14 Ver, a respeito, PEDREIRA, José LuizBulhões. A natureza de título de crédito da açãoescritural. In: LAMY FILHO, Alfredo, PEDREIRA,José Luiz Bulhões. Lei das S.A. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1996. v. 2, p. 46 e segs. Os autores doprojeto da Lei das Sociedades Anônimas salien-taram, na exposição de motivos, que os registrosescriturais proporcionavam maior segurança,facilidade na circulação e redução dos custos queenvolviam a emissão dos certificados. O comercia-lista argentino KENNY, Mario Oscar. Las accionesescriturales. Revista del Derecho Comercial y de lasObligaciones. Depalma, n. 103 e 104, abr. 1985,cita o Brasil ao lado da Dinamarca, França, EstadosUnidos, Áustria e Suécia como países que adotaramo sistema escritural para títulos com cotação embolsa (p. 116), salientando que sendo o registro feitopor pessoas responsáveis, detentoras da confiançado mercado, e graças ao desenvolvimento dainformática, la certeza en la existencia del derechoy su titularidad puede alcanzarse por ese medio sinnecesidad de objetivarlo en título alguno (p. 129).

15 REQUIÃO, op. cit., p. 349-351.

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ele o direito de, pago o débito, sub-rogar-se nosdireitos do credor e se fazer reembolsar peranteo devedor originário, seu avalizado. Nãoobstante, perante o credor – o legítimo portadorda cártula – o avalista ocupa a mesma posiçãodo avalizado, sendo idêntica a obrigação depagamento16.

É importante ressaltar que, embora seadmita o aval parcial, ou seja, a garantia deapenas parte da dívida, a natureza da obrigaçãodo avalista é sempre idêntica à do avalizado,ou seja, é aquela constante do título. Se o títuloestabelece uma obrigação pecuniária, de pagar,esta será também a obrigação do avalista.

Embora o diploma legal criador da CPR nãotenha disposições expressas sobre a concessãode avais, não pode restar dúvida quanto àpossibilidade e à legalidade de tal prestação degarantia.

O artigo 3º da Lei nº 8.929/94 disciplina,nos seus oito incisos, todos os requisitosessenciais que deverão obrigatoriamenteconstar do título. Apesar de inexistir qualquermenção ao aval, o § 1º do mesmo artigo é claroao dispor que, “sem caráter de requisitoessencial, a CPR poderá conter outras cláusulasem seu contexto”, entre as quais, a nosso ver,não haveria razão para se excluir o aval.

Ademais, o artigo 10 manda aplicar, àsCPRs, “no que forem cabíveis, as normas dedireito cambiário”, com as modificações queseguem nos três incisos. Ora, o aval é um dosmais importantes institutos de direito cambi-ário, e não há motivo para considerá-lo incom-patível com a CPR.

Finalmente, o inciso III do citado artigo 10menciona, como exceção às regras cambiáriasgerais, a dispensa do protesto cambial “paraassegurar o direito de regresso contra avalistas”.Ora, a lei não usa palavras inúteis, e se há regrasobre direitos em face de avalistas, é porque otítulo em tela comporta a concessão de aval,como uma de suas cláusulas não-essenciais.

É importante ressaltar que, como vistoacima, a natureza da obrigação do avalista éidêntica à do avalizado. Assim, aquele queavalizar uma CPR estará assumindo a obrigaçãode entrega de produtos rurais, da mesma formaque o emitente ou o eventual endossatário17.

De qualquer forma, nada impede que oavalista seja qualquer pessoa, mesmo alguémdesvinculado da produção rural. Na hipótesede vir a ser executado o aval, não só o avalistapode adquirir os produtos no mercado paraentregar ao devedor como, pelas regrasprocessuais da execução para entrega de coisaincerta, já analisadas acima, sua obrigaçãoacaba se convertendo em perdas e danos(pecuniárias) na ausência dos produtos paraentrega.

Assim, mesmo em se tratando de obrigaçãode entrega de produtos rurais, não há razãoplausível para a recusa de aval prestado porqualquer pessoa idônea, física ou jurídica.

3. As garantias reais cedulares

3.1. Introdução

A par do aval, já discutido acima, a CPRcomporta a constituição de garantia realcedular, que pode ser hipotecária, pignoratíciaou de alienação fiduciária (Lei nº 8.929/94,artigo 5º). A redação do diploma legal, a nossover, restringe as garantias cedulares a estastrês18. É cláusula essencial do título a descriçãodos bens “cedularmente vinculados emgarantia” (Lei nº 8.929/94, art. 3º, VI).

A hipoteca e o penhor já podiam ser objetode garantia cedular nas antigas Cédulas Ruraisdo Decreto-Lei nº 167/67, sendo certo, porém,que seu escopo foi agora ampliado. Já aincorporação da alienação fiduciária comoespécie de garantia cedular é novidade saudávelda recente legislação.

3.2. Da alienação fiduciáriaJá há bastante tempo defendemos a utili-

zação da alienação fiduciária em garantia comoinstrumento de estímulo aos financiamentos naárea imobiliária, por exemplo, tendo em vistaa sua grande aceitação no crédito ao consu-midor19. A alienação fiduciária “cedular”, porsua vez, já é conhecida do Direito brasileiro,sendo expressamente prevista como garantiapossível nas Cédulas de Crédito Industrial(artigo 19, II, do Decreto-Lei nº 413/69).

16 MARTINS, op. cit., v. 1, p. 219.17 A Lei nº 8.929/94 estabeleceu regras bastante

peculiares no tocante aos endossos, só admitindo-osde forma completa, e liberando os endossantes daobrigação principal, de entrega do produto,respondendo eles apenas pela existência daobrigação (artigo 10, I e II).

18 O artigo 5º da Lei nº 8.929/94 diz que “agarantia cedular poderá consistir em:”, e lista, nostrês incisos, de maneira numerus clausus, a hipoteca,o penhor e a alienação fiduciária, não deixandomargens para outros tipos de garantias cedulares.

19 WALD, Arnoldo. Novos instrumentos para oDireito Imobiliário : estudos e pareceres de DireitoComercial. RT, 1972. v. 1, p. 222-223.

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A alienação fiduciária em garantia é onegócio jurídico em que uma das partes(fiduciante) aliena a propriedade de uma coisamóvel ao financiador (fiduciário), até que seextinga o contrato pelo pagamento ou pelainexecução. O credor passa a deter a proprie-dade resolúvel do bem (que volta ao devedorquando paga a obrigação), gravada com oencargo de, em caso de inadimplemento, vendê-la a um terceiro, pois com ela não pode ficar (éproibido o pacto comissório)20.

Um dos grandes atrativos da alienaçãofiduciária é o fato de a posse continuar com ofiduciante. A propriedade do bem é transferidapara o fiduciário, pelo constituto possessorio,também o é a posse indireta. A posse direta,porém, continua com o alienante, ainda que nãomais a título de proprietário, e sim defiduciante, podendo permanecer na fruição dobem21.

Para o garante (que não é necessariamenteo devedor principal, pois pode ser um terceiro),a vantagem reside em poder continuar na possedo bem. Já o fiduciário não tem despesas deconservação e não corre os riscos inerentes àcoisa. E ainda tem ação de busca e apreensãodos bens (art. 3º do Decreto-Lei nº 911/69),convolável em ação de depósito quando estesnão forem encontrados (artigo 4º do mesmodiploma legal). No caso da CPR, a busca eapreensão não impede o ajuizamento daexecução, inclusive com relação às outrasgarantias (hipoteca e penhor), podendo atémesmo ser o título desentranhado dos autospara tal fim (artigo 16 da Lei nº 8.929/94).

A jurisprudência dominante vem aceitandoa prisão civil do fiduciante como depositárioinfiel no caso de desaparecimento do bemalienado fiduciariamente (e na falta decorrespondente indenização), mesmo no regimeda Constituição de 198822. Independentemente

de qualquer juízo de valor, a pressão exercidacontra o garante, sob ameaça de prisão, costumaser extremamente eficaz para a satisfação dosdireitos do credor, que se sente muito maisprotegido e disposto a conceder o finan-ciamento.

Assim, no caso da CPR, o credor do títuloreceberá a propriedade (resolúvel) de deter-minados bens, identificados na cártula, e emcaso de inadimplemento poderá – e deverá –vendê-los para satisfazer o seu crédito (quantiaequivalente ao valor de mercado dos produtosrurais prometidos à entrega mais perdas edanos – CPC, art. 627). O garante – deposi-tário – fica em princípio sujeito até mesmo àprisão civil em hipótese de inadimplemento.

O artigo 8º da Lei nº 8.929/94, por sua vez,estabelece que “a não-identificação dos bensobjeto de alienação fiduciária não retira aeficácia da garantia, que poderá incidir sobreoutros do mesmo gênero, qualidade e quanti-dade, de propriedade do garante”. A redaçãonão é das mais felizes, até por conter aparentecontradição com o disposto no inciso VI doartigo 3º23.

O termo “não-identificação” parece com-portar duas interpretações: ou a deficiência naprópria descrição do bem, ou a sua não-localização por ocasião da execução. Dequalquer forma, a solução dada na parte finaldo artigo (incidência sobre outros bensequivalentes) parece voltada aos bens fungíveise consumíveis (ou comerciáveis), do tipoestoques de mercadorias ou produtos, quecomportam comparação em termos de “gênero,qualidade e quantidade”24.

20 Idem. Obrigações e contratos. 12. ed. RT,1995. p. 270-271. A alienação fiduciária em garantiaestá regida hoje, basicamente, pelo Decreto-Lei nº911, de 1-10-69, que deu também nova redação aalguns dispositivos da Lei nº 4.728/65 (Lei deMercado de Capitais).

21 GOMES, Orlando. Alienação fiduciária emgarantia. RT, 1970. p. 75.

22 Ver, a este respeito, vários acórdãos do STJ;HC nº 4.318-SP, Relator Ministro Assis Toledo.DJU, p. 21.498, 17 jun. 1996; RHC nº 5.313-SP,Relator Ministro Cid Flaquer Scartezzini, DJU, p.21.499, 17 jun. 1996, e HC nº 4.712-7-SP, RelatorMinistro Jesus Costa Lima, RT, n. 727, p. 102.Embora tenha havido também alguns acórdãos em

sentido contrário, entendendo a prisão civil emmatéria de alienação fiduciária incompatível com aordem constitucional de 1988 e com a Convençãoda Costa Rica sobre direitos humanos, ratificada peloBrasil, o Plenário do Supremo Tribunal Federal jáse manifestou pela sua validade (HC nº 72.131-RJ,Relator Ministro Moreira Alves, julgado em 22 nov.1995). Ressalva-se, porém, a hipótese de roubo semculpa do fiduciante, quando não se caracteriza asituação de depositário infiel (STF, HC nº 67.397-0-RJ, Relator Ministro Sydney Sanches, RT n. 645,p. 202).

23 Ali se estabelece a regra de que a descriçãodos bens dados em garantia cedular é requisitoessencial do título.

24 Se o dispositivo legal se destinasse a um bemsimplesmente fungível, porém identificável, do tipoautomóvel, por exemplo, teríamos uma situação umtanto absurda; ou o bem não teria sido descritocorretamente, e aí o título cairia numa imperfeiçãoformal com relação aos seus requisitos essenciais

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Assim, é lícito concluir que o dispositivolegal buscou assegurar a possibilidade deextensão da alienação fiduciária a bensfungíveis em geral, de qualquer espécie, assuntoque é dos mais discutidos na jurisprudência.

O Supremo Tribunal Federal aceitava aalienação fiduciária de bens fungíveis econsumíveis25 e o Superior Tribunal de Justiça,depois de idas e vindas, reverteu a situação epassou a não mais considerá-la válida26.

Cumpre verificar, daqui em diante, se otexto da Lei nº 8.929/94 fará com que, no casoespecífico da CPR, a alienação fiduciária dequaisquer bens móveis, mesmo que fungíveis econsumíveis, será aceita em razão da redaçãodo seu artigo 8º. A própria natureza do título(promessa de entrega de produto rural) justificaque, em garantia, sejam dados bens asseme-lhados (outros produtos rurais, por exemplo).

Como a obrigação principal é de entregade bens fungíveis e consumíveis, nos pareceque a alienação fiduciária de bens de mesmanatureza deve ser aceita em garantia daquela.

Faça-se a ressalva, porém, de que ajurisprudência do Superior Tribunal de Justiçase consolidou quanto à impossibilidade destetipo de alienação fiduciária depois de intensosdebates, e é possível que tal posicionamentocontrário continue, embora haja, agora, no casoda CPR, um texto legal expresso, que, ao menosao que parece, pretendia dar nova regula-mentação legal à matéria. Acresce que, no caso,é pacífico o entendimento do STJ, de que taltipo de operação configura hipótese de depósitoirregular, sujeito às regras do mútuo nos termos

do artigo 1.280 do Código Civil, não ensejandoa ação de depósito, pois aí sim estaria violadoo princípio constitucional que veda a prisão pordívida27.

Assim, embora o artigo 8º da Lei nº 8.929/94 torne, a nosso ver, a operação juridicamentepossível, há riscos de que o Poder Judiciárionão chancele esta validade, o que serialamentável.

Nada impede, por outro lado, a alienaçãofiduciária de “bens futuros”, ou seja, bens que,no momento de outorga da garantia, nãopertençam ao garante (seja por pertencerem aterceiros, seja por não existirem ainda). Ahipótese é prevista expressamente no § 2º doartigo 66 da Lei nº 4.728/65, com a redaçãodada pelo Decreto-Lei nº 911/69, o qualestabelece que

“se, na data do instrumento de alienaçãofiduciária, o devedor ainda não forproprietário da coisa objeto do contrato,o domínio fiduciário desta se transferiráao credor no momento da aquisição dapropriedade pelo devedor, indepen-dentemente de qualquer formalidadeposterior”.

Trata-se de modalidade de alienaçãofiduciária sob condição suspensiva, qual seja,a de que o referido bem seja efetivamenteadquirido pelo garante-fiduciante. Apesar detemporariamente vazia, a garantia real já seencontra previamente constituída, consoli-dando-se no momento do implemento dacondição, independentemente de qualquerformalidade28. Se o bem nunca vier a seradquirido, a dívida em si não é afetada, pois éapenas a garantia real que não terá seaperfeiçoado, em nada sendo atingido o crédito,de natureza pessoal, em face do devedor.

Por fim, outro assunto polêmico na jurispru-dência, em matéria de alienação fiduciária,

(art. 3º, VI), ou se permitiria que, na ausência doautomóvel indicado, o credor pudesse apreender umoutro pertencente ao garantidor que se caracterizassede modo idêntico.

25 RE n. 86.541-RJ. RTJ, nº 81, p. 306. O nossoentendimento coincide com o do Supremo TribunalFederal, como se verifica em Arnoldo Wald,Obrigações e Contratos. p. 275-276.

26 Como exemplo da discordância, podemos citaros acórdãos publicados na JSTJTRF, nº 20, p. 168 enº 23, p. 68, aceitando a alienação fiduciária de bensfungíveis e comerciáveis ou consumíveis. A matériase pacificou em sentido contrário no julgamento dosEmbargos de Divergência no REsp nº 19.915-MG,Relator Ministro Sálvio de Figueiredo, DJU, p.24.207, 17 dez. 1992. Seção 2. A jurisprudência éhoje considerada consolidada no particular, comose verifica, por exemplo, nos acórdãos dos REsp nº81.799-RS, Relator Ministro Nilson Naves. DJU,p. 17.869 27 maio 1996 e REsp nº 44.175-7-SC.Relator Ministro Waldemar Zveiter. RSTJ, nº 65, p.444. Em sede doutrinária, podemos destacar o

posicionamento de Orlando Gomes, op. cit., p. 54,que só admite a alienação fiduciária em se tratandode bens “duráveis”, segundo a sua terminologia.

27 O assunto está bem exposto no acórdão, jácitado, publicado na RSTJ, nº 65, p. 444, além deter sido abordado, em matéria de penhor mercantil(que teoricamente também enseja ação depósito) debens fungíveis – no caso remédios – no REsp nº86.305-MG. Relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar.DJU , p. 16.719, 20 maio 1996. O aresto éesclarecedor, ademais, em vista da regra do § 7º doart. 1º do Decreto-Lei nº 911/69, segundo o qualcertas regras do penhor são aplicáveis à alienaçãofiduciária.

28 RESTIFFE NETO, Paulo. Garantia fiduciária .RT, 1975. p. 112.

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dizia respeito à eventual obrigatoriedade de queo bem dado fosse o mesmo cuja aquisição forafinanciada pelo fiduciário, ou se a garantiapodia ter como objeto qualquer outro bempreviamente pertencente ao fiduciante. Nesteparticular, o Superior Tribunal de Justiçadefiniu-se mais rápida e uniformemente.

Com efeito, é hoje manso e pacífico que obem dado em alienação fiduciária pode jápertencer anteriormente ao garante, não sendoobrigatória qualquer relação entre a suaaquisição e o crédito garantido29. Não obstante,essa discussão, que poderia fazer sentido emmatéria de crédito direto ao consumidor, seriaaté mesmo ilógica em se tratando de CPR, postoque o financiamento não é para aquisição deum bem, mas para investimento em produçãorural. Não há que se falar, assim, em bemadquirido por meio do financiamento garantido(a não ser, eventualmente, o próprio produtoprometido no título), como condição de validadeda alienação fiduciária.

Vale ressaltar, por último, que a oponi-bilidade da alienação fiduciária a terceiros estásujeita ao registro junto ao Cartório de Registrode Imóveis do domicílio do emitente, nostermos do artigo 12 da Lei nº 8.929/94, alémdo arquivamento em Registro de Títulos eDocumentos (§ 1º do artigo 66 da Lei nº 4.728/65 com a redação dada pelo Decreto-Lei nº 911/69), cuja exigência não foi afastada pelodiploma que rege a CPR. Fica mantida atradição jurídica pátria de se dar publicidadeaos atos com eficácia real.

No caso de falência, o credor poderá pedira restituição do bem alienado fiduciariamente,nos precisos termos do art. 7º do Decreto-Leinº 911, de 1.10.69.

3.3. Do penhorOutro tipo de garantia cedular admitida pela

Lei nº 8.929/94 é o penhor. Muito embora openhor cedular seja conhecido há muito noDireito brasileiro, houve a significativainovação de se contemplar especificamente openhor de títulos de crédito, do qual não cogitao Decreto-Lei nº 167/67, que trata das CédulasRurais em geral, inclusive as pignoratícias30.

O caput do artigo 7º da Lei nº 8.929/94tem redação ampliativa, permitindo que sejamobjeto de penhor cedular, em CPR, quaisquerbens suscetíveis de penhor rural, mercantil oucedular (de outros tipos de cédulas). O textofoi redigido de tal forma que não há bemempenhável que não tenha sido coberto.

Assim, cabe, na CPR, o penhor sobrequaisquer coisas móveis (inclusive direitosincorpóreos31), e/ou sobre aqueles imóveis poracessão cuja lei prevê a possibilidade de penhor,como as máquinas fixadas no solo ou ascolheitas agrícolas32. Em se tratando de penhor,não há que se discutir quanto à naturezafungível e consumível do bem33.

O § 3º do dito artigo 7º estende ao penhornas CPRs as regras gerais sobre penhormercantil, cedular e rural, salvo no quecolidirem com a própria Lei nº 8.929/94 (asregras específicas e excepcionais estãodisciplinadas nos dois primeiros parágrafos).Assim, tendo em vista o disposto no artigo 271do Código Comercial, o penhor vinculado àCPR se prova por escrito e consiste na entrega,ao credor, de coisa móvel, em segurança egarantia da dívida, pelo próprio devedor ou porterceiro.

Tal entrega pode ser simbólica, não seexigindo a efetiva tradição, a teor do dispostono artigo 274 do Código Comercial. Admite-se o emprego do constituto possessorio. Aliás,se a CPR comporta a alienação fiduciária comeste tipo de transferência de posse, não haveriamotivo para restrição em matéria de penhor.

Dessa forma, o bem empenhado tanto podecontinuar na posse direta do garante, operando-se a mera tradição ficta34, como pode ser

29 Neste sentido, a título de exemplo, os arestospublicados nas JSTJTRF, nº 18, p. 131, nº 20, p. 90e RT, nº 660 , p. 211.

30 Como salienta Fran Martins, op. cit., v. 2, p.256, a possibilidade de penhor de títulos de créditoem operações de crédito rural é antiga reivindicaçãodo mercado. O Decreto-Lei nº 413/69 (artigo 20,

IX) já admitia o penhor cedular de títulos de créditonas operações de crédito industrial.

31 Como anota Orlando Gomes, Direitos Reais.9. ed. Forense, 1985. p. 354, “o penhor não recaiapenas em coisas, mas, também em direitos. Ao ladodos bens móveis corpóreos, podem ser gravados como ônus pignoratício os bens incorpóreos.”

32 WALD, Arnoldo. Direito das Coisas. 10. ed.RT, 1995. p. 223.

33 O artigo 273 do Código Comercial permite openhor de mercadorias (bens fungíveis e consumíveispor excelência), além do penhor sobre quaisquerpapéis negociáveis em comércio. Mesmo em matériade penhor civil a lei prevê (artigo 770 do CódigoCivil) expressamente o penhor de coisas fungíveisem geral, bastando que lhes seja declarada aquantidade e a qualidade.

34 REsp nº 10.494-0-SP. Relator Ministro BarrosMonteiro. RSTJ, n. 46, p. 160.

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Revista de Informação Legislativa246

entregue a um terceiro, um guardião escolhidode comum acordo pelas partes, não havendonecessidade de que seja efetivamente entregueao credor35.

Aliás, já em matéria de Cédula RuralPignoratícia, o artigo 17 do Decreto-Lei nº 167/67 estabelecia que os bens apenhados conti-nuassem na posse direta do proprietário-garante(o próprio devedor ou terceiros). A regra foirepetida no § 1º do artigo 7º da Lei nº 8.929/94, fixando-se o princípio de que os bensapenhados continuam na posse direta doprestador da garantia, salvo na hipótese detítulos de crédito. De qualquer forma, estabeleceo § 2º que, sendo o garante um terceiro, oemitente da cédula responderá solidariamentepela guarda e conservação da coisa.

O diploma normativo confere ao garante –possuidor direto do bem – os ônus de fieldepositário (§ 1º do artigo 7º da Lei nº 8.929/94), sujeitando-o, com isso, à prisão civil nocaso de desaparecimento do bem. Também comrelação ao penhor, a jurisprudência recentecontinua admitindo a prisão do garante36, muitoembora não a aceite em matéria de bensfungíveis37.

A exceção a tais regras gerais (posse diretamantida com o garante) é a hipótese de penhor,também conhecido como caução, de títulos decrédito. Continua, no particular, a existir aexigência de entrega dos títulos ao credorpignoratício (ou a terceiro, de acordo comconvenção), vedada a posse pelo própriogarante.

Com efeito, enquanto no penhor de direitosou créditos, por si só, não há materialização dagarantia, que se concretiza mediante meranotificação dos devedores cedidos, na cauçãode títulos há a efetiva entrega dos mesmos aocredor pignoratício38. No caso contrário, ogarante poderia simplesmente receber direta-mente os créditos de seus devedores, esvaziandoo penhor sobre os títulos.

De fato, é da essência da caução de títulosde crédito que o credor pignoratício pode

praticar pessoalmente (ou por procurador) todosos atos necessários para a conservação davalidade e eficácia dos créditos caucionados,inclusive perante os obrigados na cártula(Código Comercial, artigo 277).

Por outro lado, embora não haja na Lei nº8.929/94 nenhuma regra expressa quanto àpossibilidade de penhor de bens futuros, tal tipode garantia nos parece perfeitamente viável.Aliás, o Supremo Tribunal Federal já aceitou avalidade de penhor agrícola de safra futura,ainda não colhida, em matéria de Cédula RuralPignoratícia39.

As reações contrárias à possibilidade depenhor de bens futuros (tanto aqueles que aindanão existem, quanto aqueles que apenas nãopertencem ainda ao garante) costumam advirda visão tradicional do penhor, vinculada àdescrição minuciosa da coisa no contrato e àsua tradição física do proprietário para o credorpignoratício. Porém, como já se demonstrou,inclusive na doutrina estrangeira, a aceitaçãose impõe em função das imensas utilidadespráticas do instituto, e das facilidades de créditoque proporciona40.

Ademais, admitindo-se a alienação fidu-ciária de bens futuros, como visto, não haveriarazão para impedir-se a constituição de penhorassemelhado.

Por fim, é de se considerar que a oponi-bilidade, a terceiros, deste penhor cedular, estávinculada às medidas de publicidade do artigo12 e seu § 1º da Lei nº 8.929/94, ou seja, àinscrição da CPR no Cartório de Registro deImóveis do domícilio do emitente, e à averbaçãonaquele da localização dos bens apenhados.

Aplica-se à garantia pignoratícia da CPR,pela disposição do § 3º do artigo 7º, a regra do§ 1º do artigo 43 do Decreto-Lei nº 167/67,segundo a qual os bens dados em garantia, umavez penhorados, podem ser desde logo ven-didos, e o produto, levantado pelo credor, noslimites de seu crédito, mediante a prestação decaução idônea.

É verdade que um acórdão do SuperiorTribunal de Justiça entendeu que esse dispo-sitivo, editado à época do Código de Processo35 REsp nº 5177-SP. Relator Ministro Cláudio

Santos, RSTJ, n. 21, p. 421.36 STF. HC nº 73.058-2-SP, Relator Ministro

Maurício Correa. DJU, p. 15.133, 10 maio 1996.37 Sobre a matéria, há o acórdão do STJ já citado

acima, no REsp nº 86.305-MG. Relator MinistroRuy Rosado de Aguiar. DJU, p. 16.719, 20 maio1996, no qual decidiu-se que o depósito (em penhor)de coisas fungíveis é regulado pelas regras do mútuo,não ensejando a chamada “ação de depósito”.

38 GOMES, Orlando. op. cit., p. 355-356.

39 Acórdão já citado acima (HC nº 73.058-2-SP.Relator Ministro Maurício Correa. DJU, p. 15.133,10 maio 1996). No caso, aceitou-se a validade dopenhor da safra futura. A possibilidade de prisãocivil decorrente de ação de depósito fica nadependência de prova de que a safra foi efetivamentecolhida.

40 MESTRE, Jacques. Le gage des chosesfutures. Recueil Dalloz Sirey, 1982, p. 144.

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Civil de 1939, estaria prejudicado desde 1973,com a edição do novo diploma processual, e aatribuição de efeito suspensivo aos embargosdo devedor41. Noutro, do Tribunal de Justiçade Goiás, decidiu-se que o art. 41, § 1º, doDecreto-Lei nº 167/67, não tinha qualquerincompatibilidade com o atual Código deProcesso Civil, mas que fora derrogado pelaConstituição de 198842.

Por outro lado, o 1º Tribunal de AlçadaCível de São Paulo já aceitou a possibilidadeda venda antecipada, mas limitou-a aos bensmóveis, considerando-a inadmissível para osimóveis43. Já o Tribunal de Alçada Cível do Riode Janeiro, noutra oportunidade, aplicou odispositivo sem qualquer limitação44, posiçãoque consideramos a mais correta.

A lei especial prevalece sobre a geral (Leide Introdução ao Código Civil, art. 2º, § 2º), ese a legislação específica das garantiascedulares admite o procedimento de vendaantecipada, não vemos razão para que essaregra seja afastada em virtude de dispositivosgenéricos que não tratam especificamente docaso. De qualquer forma, não se admite a vendaantecipada sem a prestação de caução idônea,o que assegura o ressarcimento de eventuaisdanos causados ao devedor e/ou ao garante.

3.4. Da hipotecaO último tipo de garantia cedular é a

hipoteca. Embora a legislação em geral admitaa hipoteca sobre determinados bens móveis(normalmente de grande valor, do tipoembarcações ou aeronaves), a Lei nº 8.929/94a restringiu aos casos típicos de imóveis, tantorurais como urbanos (artigo 6º).

A publicidade para oponibilidade a terceirosestá vinculada às mesmas regras já mencio-nadas, do artigo 12 e seu § 1º, da Lei nº 8.929/94, ou seja, à inscrição no Cartório Imobiliáriodo domicílio do emitente e à averbação namatrícula do próprio imóvel hipotecado. Ahipoteca vinculada à CPR não tem outras regrasespecíficas, aplicando-se-lhe os preceitos gerais

sobre o instituto (§ único do artigo 6º da Lei nº8.929/94).

Assim, trata-se de direito real, garantia quesubmete uma coisa determinada ao pagamentode dívida, com exclusividade, e sem desapos-samento da mesma. É oponível erga omnes,conferindo direito de seqüela ao credor, o qualtem o poder de excutir o bem hipotecado epagar-se preferencialmente com o produtoarrecadado na hasta pública45.

Na forma dos artigos 21 e 22 do Decreto-Lei nº 167/67, a hipoteca cedular (inclusive,portanto, a da CPR) abrange todas as cons-truções, aparelhos, maquinários e benfeitoriasde qualquer espécie, anteriores ou posterioresà emissão da cédula, e que só podem serretirados do imóvel com a anuência do credor.

Da mesma forma como ocorre com openhor, a excussão do bem hipotecado cedular-mente é facilitada, podendo ocorrer antes definda a execução, levantado o produto do leilãomediante o oferecimento de caução idônea (§1º do artigo 41 do Decreto-Lei nº 167/67).

Como já salientamos, é da maior impor-tância o entrosamento do instituto da hipotecacom os títulos de crédito, em especial as cédulas,e seria recomendável uma revisão e atualizaçãolegislativa da matéria46. Por enquanto, utilizam-se os meios existentes, sendo certo que o espíritoda legislação regente da hipoteca cedular é demenor formalismo e maior agilidade do que asregras tradicionais do Direito Civil.

3.5. Do regime legal das garantias cedularesEncerrando o tema das garantias cedulares,

cabe comentar o texto dos artigos 17 e 18 daLei nº 8.929/94, aplicáveis às CPRs de modogeral, independentemente do tipo de garantiaconstituída.

O artigo 17 configura como crime deestelionato a declaração falsa ou inexata acercados bens oferecidos em garantia cedular. Regrasemelhante já havia no Decreto-Lei nº 167/67(§ único do artigo 21), restrito aos imóveisdados em garantia de Cédula Rural Hipotecária.

A extensão do crime às inexatidões relativasa quaisquer bens é tentativa clara de deses-timular as fraudes, dando ainda maiorsegurança ao credor-financiador. Sem dúvidaque as fraudes serão menos numerosas,especialmente em virtude do receio de implica-ções criminais que terão os devedores.

41 STJ. 4ª Turma. REsp nº 22.486-3-GO. RelatorMinistro Sálvio de Figueiredo. RT, n. 694, p. 202.

42 TJGO. 1ª Câmara Civil. AI nº 6.911. RelatorDes. Sebastião de Oliveira Castro Filho. RT, n. 701,p. 137.

43 TACSP. 1º. 3ª C. AI nº 439.943-3. RelatorJuiz André Mesquita, RT, n. 667, p. 122.

44 TACRJ. 4ª C. AI nº 1.350/94. Relatora JuízaMariana Pereira. COAD–Jurisprudência 39/95, p.620, ementa 71000.

45 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituiçõesde Direito Civil. 7. ed. Forense, 1987. v. 4, p. 249.

46 WALD, Arnoldo. op. cit., p. 242-244.

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Já o artigo 18 do diploma legal confereprivilégio especial aos credores garantidos deCPRs, pois estabelece que os bens a elasvinculados “não serão penhorados ou seqües-trados por outras dívidas do emitente ou doterceiro prestador da garantia real”, cabendo aestes comunicar tal vinculação a quem é dedireito.

É verdade que, se a “outra dívida” foranterior à emissão da CPR, a própria consti-tuição da garantia real poderá ter resultadonuma fraude contra credores, numa fraude aexecução, ou mesmo numa garantia real desegundo grau, se outra já houvesse. Em taishipóteses, a garantia cedular poderá serdesconstituída ou declarada ineficaz pelas viascabíveis, ou mesmo simplesmente se esvaziar(no caso de uma segunda hipoteca, nãosobrando recursos depois de paga a primeira).

Do contrário, o privilégio é dos maisamplos, configurando hipótese de impenho-rabilidade por outras dívidas. A impenhora-bilidade não pode ser considerada absoluta, talcomo naqueles casos do artigo 649 do Códigode Processo Civil, pois os bens são penhoráveispela própria dívida decorrente da CPR. Trata-se, assim, de impenhorabilidade relativa.

Em tese, não obstante, tendo em vista ostermos do artigo 184 do Código TributárioNacional, que reconhece os privilégios especiaisinstituídos por lei sobre determinados bens, osbens vinculados à CPR não responderão pordívidas tributárias dos garantes (ressalvadas,eventualmente, as hipóteses aventadas acima,de dívidas anteriores à constituição dagarantia).

Ocorre, porém, que muitos juízes têminterpretação favorável ao Fisco, na medida emque acreditam resguardar, dessa forma, ointeresse coletivo. Assim, não podemos garantirque o nosso entendimento será predominantena jurisprudência.

Embora não tenhamos conhecimento dedecisões em matéria de CPRs, há julgados sobretítulos de crédito industrial e rural, que possuemregras assemelhadas às do art. 18 da Lei nº8.929/94. De fato, no âmbito do SupremoTribunal Federal já se decidiu que os bens dadosem penhor industrial (Decreto-Lei nº 413/69)respondem por dívida fiscal47. No SuperiorTribunal de Justiça, da mesma forma, já seafastou a impenhorabilidade de bens vinculados

à cédula de crédito industrial quando se tratade cobrança de dívida tributária48.

Ocorre, porém, que tais decisões, datamaxima venia, parecem-nos afastadas damelhor hermenêutica da lei.

O artigo 184 do Código Tributário Nacio-nal, já mencionado acima, tem a seguinteredação:

“Art. 184.Sem prejuízo dos privi-légios especiais sobre determinados bens,que sejam previstos em lei, responde pelopagamento do crédito tributário atotalidade dos bens e das rendas dequalquer origem ou natureza, do sujeitopassivo, seu espólio ou sua massa falida,inclusive os gravados por ônus real oucláusula de inalienabilidade ou impenho-rabilidade, seja qual for a data daconstituição do ônus ou da cláusula,excetuados unicamente os bens e rendasque a lei declare absolutamente impenho-ráveis”.

A questão se resume em saber, portanto, seos bens dados em garantia real vinculada à CPRse encaixam na definição de absolutamenteimpenhoráveis por lei, ou se de meramentegravados com ônus real, privilegiado.

O Código de Processo Civil, no art. 649 eseus incisos, define os bens que consideraabsolutamente impenhoráveis, em qualquertipo de execução49. Como salientamos, nahipótese dos bens vinculados à CPR há umaimpenhorabilidade relativa, na medida em queos bens respondem pela própria dívida da CPR.Não obstante, com relação às demais dívidas,a impenhorabilidade passa a ser absoluta.

47 STF. 1ª Turma. RE nº 74.856-SP. RelatorMinistro Oswaldo Trigueiro. RTJ, n. 66, p. 263.

48 STJ. 1ª Turma. REsp nº 39.800-2-SP. RelatorMinistro Humberto Gomes de Barros. RSTJ, n. 73,p. 287; STJ. 4ª Turma. REsp nº 3.227-ES. RelatorMinistro Athos Carneiro. DJ, 22 abr. 1991, apudTEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. Código deProcesso Civil anotado. 5. ed. Saraiva, 1993. p. 387.

49 Aí já se verifica uma imprecisão do texto doart. 184 do CTN. O inciso I do art. 649 do CPCconsidera absolutamente impenhoráveis os bens“declarados, por ato voluntário, não sujeitos àexecução”; não obstante, tais bens foram expres-samente considerados como sujeitos à execuçãofiscal, muito embora se incluam na exceção da partefinal do art. 184 do CTN. Assim, a “absolutaimpenhorabilidade” deve ser entendida comtemperamentos. A nosso ver, a intenção da lei é deexcluir os bens cuja impenhorabilidade legal sejaproveniente de interesse público relevante, tais comosalários, pensões, pequenas propriedades rurais etc.,e não apenas de interesse particular, tal como ogravame individual com cláusula de impenho-rabilidade ou inalienabilidade.

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O saudoso Aliomar Baleeiro50, comentandoo disposto no artigo 184 do Código TributárioNacional, bem lembrou que, consoante a partefinal do texto legal, qualquer lei ordináriapoderá declarar a impenhorabilidade de bens erendas, afastando-os da penhora em executivofiscal. Assim, concluímos que não se podeentender que a exclusão se limitaria aos bens erendas listados no artigo 649 do Código deProcesso Civil. Também aqui vale a lição deque o intérprete não deve fazer distinções nãocontempladas na legislação.

Na realidade, o que se busca com oprivilégio do Fisco, expresso no artigo 184 doCódigo Tributário Nacional, é evitar que odevedor, por ato meramente voluntário, de seuexclusivo interesse, afaste bens ou rendas doraio de abrangência da execução fiscal. O quese quer é impedir uma fraude dissimuladacontra o credor tributário, voluntária ou mesmoacidental.

A deliberação individual de gravar o seupatrimônio, tornando-o impenhorável e/ouinalienável, não pode gerar, para o devedor doFisco, o resultado de liberá-lo dos efeitos daexecução.

Assim, a boa doutrina entende que aimpenhorabilidade “absoluta” a que se refere oartigo 184 do Código Tributário Nacional é aimpenhorabilidade legal, em oposição àimpenhorabilidade por simples vontadeindividual. É a impenhorabilidade por interessepúblico e não por interesse particular.

Nesse sentido leciona Hugo de BritoMachado:

“Impenhorabilidade é a qualidadedaquilo que não pode ser penhorado.Pode resultar da lei ou da vontade. Seresulta da vontade, é inoperante, em facedo credor tributário. Prevalecerá, porém,se resulta da lei. O fundamento dadistinção é evidente: respeitar a impe-nhorabilidade legal, mas evitar que osinteressados, por simples ato de vontade,retirem seus bens do alcance do credortributário”51.

Idêntico entendimento é esposado por CelsoRibeiro Bastos52, salientando que o legisladorteve o evidente propósito de sujeitar aoexecutivo fiscal os bens gravados de inalie-nabilidade por vontade do devedor, mas excluiraqueles declarados como impenhoráveis por lei,tais como os do artigo 649 do Código deProcesso Civil, de outras leis específicas, oumesmo outros que tenham esta característicaem razão de entendimento doutrinário ejurisprudencial.

Ora, ocorre que os próprios tribunaisreconhecem que os bens dados em garantiacedular industrial ou rural (e por extensão,aqueles vinculados à CPR) são impenhoráveisem virtude de lei, ou seja, do interesse públicode estimular essas modalidades de crédito.

Em matéria de cédula de crédito rural,notável acórdão do 1º Tribunal de Alçada Cívelde São Paulo teve o ensejo de afirmar que “osbens objeto de penhor ou de hipoteca consti-tuídos por cédula de crédito rural são absolu-tamente impenhoráveis e representam verda-deira garantia exclusiva do credor”53.

O Supremo Tribunal Federal, por sua vez,em acórdão mais recente que o citado no item112 acima, afirmou a taxatividade do comandolegal do Decreto-Lei nº 167/67, no sentido deque os bens objeto de penhor ou hipotecacedular rural não se sujeitam a penhora pornenhuma outra dívida54. O Relator, MinistroFrancisco Rezek, citando acórdão anterior dalavra do Ministro Moreira Alves, sustentou comtodas as letras que “a lei é imperativa no sentidoda impenhorabilidade dos bens dados emgarantia hipotecária ou pignoratícia mediantecédula de crédito rural”55.

Em aresto ainda mais recente, o SupremoTribunal Federal esclareceu muito bem anatureza deste tipo de impenhorabilidade, bemcomo as razões que a justificam. Vale o destaquea alguns trechos do acórdão, em especial daementa:

50 BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributáriobrasileiro. Forense, 1970. p. 536.

51 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de DireitoTributário . 5. ed. Forense, p. 151. Na páginaseguinte, o autor repete a afirmação de AliomarBaleeiro, no sentido de que qualquer lei ordináriafederal pode declarar a impenhorabilidade dedeterminados bens, retirando-os do alcance dasexecuções fiscais.

52 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de DireitoFinanceiro e de Direito Tributário. Saraiva, 1991.p. 225; dentre os bens impenhoráveis por enten-dimento meramente jurisprudencial o autor cita,como exemplo, os direitos do adquirente fiduciárioem execução movida contra este, ou os exemplaresda bandeira nacional não destinados ao comércio.

53 TACSP. 1º 5ª C. AI nº 445.425-7, Relator JuizAlberto Tedesco. RT, n. 668, p. 111 - grifamos.

54 STF. 2ª Turma. RE nº 107.790-5-SP. RelatorMinistro Francisco Rezek. Juriscível do STF, n. 167,p. 84.

55 op. cit., p. 86.

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Revista de Informação Legislativa250

“Contrato de Financiamento. Bemdado em garantia mediante cédulas ruralpignoratícia e hipotecária e de créditoindustrial. Impenhorabilidade.

Providência que visa ao êxito dapolítica de desenvolvimento de ativi-dades básicas, ao assegurar maior fluxode recursos para o setor, por meio doreforço da garantia do retorno doscapitais nele investidos.

O princípio de que o patrimônio dodevedor constitui a garantia de seuscredores não é absoluto, encontrandoinúmeras limitações, fundadas em razõesde ordem social, econômica e jurídica,e mesmo de eqüidade.

O privilégio que resulta da garantia,em favor do credor cedular, consiste nodireito de prelação, concretizado no fatode pagar-se prioritariamente com oproduto da venda judicial do bem objetoda garantia excutida, em face de insol-vência ou de descumprimento do con-trato, destinado eventual sobejo aosdemais credores, que a ele concorrerãopro rata, caso em que o tratamento legaldiscriminatório não pode ser apodado deantiisonômico, já que justificado”56.

Embora nenhum dos acórdãos acima tenhatratado especificamente da questão dos créditostributários, parece-nos incoerente que aconclusão desprezasse os princípios aí ex-pressos, ou seja: (a) a impenhorabilidadedecorre da lei, formalmente capacitada paracriá-la; (b) refere-se a quaisquer outroscréditos57; e (c) decorre de interesse público.

Note-se, por sinal, que noutros casos olegislador teve o cuidado de especificar oscréditos tributários que poderiam proporcionara penhora de um bem a priori impenhorável.É o caso da Lei nº 8.009/90, por exemplo, quetrata da impenhorabilidade da residência

familiar (bem de família), e que no seu art. 3ºdefiniu ser a impenhorabilidade oponível emqualquer processo fiscal (caput), salvo aquelesdecorrentes de impostos, taxas ou contribuiçõesdevidas em função do próprio imóvel (inciso IV).

Se a Lei nº 8.929/94 criou uma impe-nhorabilidade geral, sem ressalvas, a interpre-tação deve ser ampliativa. Aliás, os princípiosdos artigos 107 a 113 do Código TributárioNacional consagram a interpretação literal, emais benéfica ao contribuinte, das normasfiscais de um modo geral.

Por último, não se diga que a impenhorabi-lidade dos bens dados em garantia cedular seriavoluntária, e não legal, por envolver um atopessoal de constituição do ônus por parte dogarante, ao oferecer os bens ao credor.

A parte voluntária do ato é a constituiçãoda garantia real, que por si só não tem o condãode gerar a impenhorabilidade. Esta, indubita-velmente, decorre da lei, e só dela.

Voltando ao exemplo da Lei nº 8.009/90(impenhorabilidade do bem de família),podemos imaginar a situação na qual o imóvelestava alugado a um terceiro, e o proprietáriodecide despejá-lo para lá passar a morar. É apartir da fixação da residência no imóvelpróprio, ato estritamente voluntário, quepassará a existir a impenhorabilidade, mas nempor isso ela deixa de ser absoluta e legal, por serevestir de flagrante interesse público.

Também nos casos dos incisos do artigo 649do Código de Processo Civil podemos inden-tificar bens que se tornam absolutamenteimpenhoráveis, ex vi legis, a partir de um atovoluntário de uma ou mais pessoas58.

Assim, como a impenhorabilidade, no caso,decorre do interesse público no desen-volvimento das atividades rurais, comoidentificado pelo Ministro Ilmar Galvão, doSupremo Tribunal Federal, entendemos que oart. 18 da Lei nº 8.929/94 é um caso de“impenhorabilidade absoluta” para os fins doartigo 184 do Código Tributário Nacional,embora salientemos, uma vez mais, que estepoderá não ser o entendimento predominantede nossas Cortes.

56 STF. 1ª Turma. RE nº 140.437-0-SP. RelatorMinistro Ilmar Galvão. RT, n. 717, p. 297 - grifamos.

57 Aliás, no caso do artigo 18 da Lei nº 8.929/94, o texto diz simplesmente “não serão penhoradosou seqüestrados por outras dívidas”, sem fazerqualquer ressalva às dívidas fiscais. Não só podemosrepetir que o intérprete está impedido de fazerrestrições inexistentes na lei, como o próprio critériocronológico favorece a interpretação por nósdefendida (a Lei nº 8.929/94 é posterior ao CTN).Ademais, trata-se de lei específica (CPRs), queprevalece sobre outra de caráter geral (CTN -créditos tributários de qualquer natureza), emobediência às regras do artigo 2º da Lei de Introduçãoao Código Civil.

58 Seria, por exemplo, o caso do anel nupcial(inciso III). O anel, por si, é um bem como outroqualquer, mas a partir do momento em que setransforma em nupcial, pela vontade dos nubentes,passa a ser impenhorável. Da mesma formapoderíamos achar inúmeros outros exemplos, comoo dos instrumentos ou utensílios úteis ao exercícioprofissional (inciso VI), que dependem, para a suaimpenhorabilidade, do desempenho da profissãorespectiva pelo seu proprietário.

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Quanto às dívidas trabalhistas, o artigo 769da CLT, combinado com o artigo 648 do Códigode Processo Civil, leva a crer que a solução éidêntica. Os bens tampouco responderão portais dívidas59.

Essa impenhorabilidade configura mais umestímulo ao emprego da CPR, pois uma vezmais o legislador teve a nítida preocupação deresguardar o credor, reforçando a segurança desuas garantias.

O art. 18 da Lei nº 8.929/94 se refere àimpenhorabilidade dos bens vinculados à CPRe à impossibilidade de serem seqüestrados, masnão esclarece o que acontece no caso de falênciado devedor ou garantidor. Pode, assim, serentendido que, no caso de falência, a situaçãojurídica de credor dependerá da garantiaespecífica da cédula, passando, no caso, aincidir a lei falimentar.

Se em vez de excluir qualquer efeito dafalência sobre a Cédula de Produto Rural – oque nos parece a melhor solução – entender-seque deve haver a conciliação e aplicaçãocombinada dos dois diplomas legais (Lei nº8.929/94 e Decreto-Lei nº 7.661/45, com assuas modificações posteriores), a melhorsolução seria a do credor cuja CPR é garantidamediante alienação fiduciária que enseja arestituição dos bens no caso de falência (art. 8ºdo Decreto-Lei nº 911/69). Efetivamente,diferentes são as repercussões da falência sobreo penhor e a hipoteca, considerados comodireitos reais de garantia, em relação aos quaishá preferência dos credores trabalhistas e dos

credores da massa (art. 102 da Lei Falimentar,com a sua redação atual).

5. ConclusõesDe todo o exposto, podemos concluir que a

CPR se apresenta como importante instrumentode estímulo ao crédito rural. Sua característicabásica, de promessa de entrega de produtosrurais, revela a sua natureza sui generis, detítulo de crédito sem obrigação pecuniáriaoriginal.

A hipoteca, o penhor e a alienação fiduciáriapodem ser constituídos cedularmente, semmaiores burocracias, bastando que se façam osregistros cabíveis para que adquiram eficáciaerga omnes. Tal prática possibilita a circulaçãodo título, com as garantias a ele atreladas, comgrande facilidade.

As regras processuais foram adequadamenteapontadas pelo legislador, sendo, dentro douniverso processual do ordenamento jurídicobrasileiro, razoavelmente céleres.

Sendo assim, acreditamos que a CPR possaser instrumento hábil ao fortalecimento dosistema de crédito rural, de fundamentalrelevância para o desenvolvimento equilibradoe sadio do país.

Os seus riscos são decorrentes de se tratarde instrumento inovador, em relação ao qualainda não se conhece a reação dos tribunais,embora, em geral, a jurisprudência brasileiratenha sido esclarecida e construtiva naaplicação dos novos institutos.

59 Acresce, no particular, que o § 1º do artigo449 da CLT apenas fala em privilégio do créditotrabalhista em matéria de falência, mas não nasexecuções em geral. Também aí, porém, nãopodemos garantir que os tribunais terão este mesmoentendimento.

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Desde que promulgada, a Constituição de1988 esteve na mira de poderosas forçaspolíticas e econômicas, no sentido de nãocumpri-la e de reformá-la, especialmente noque concerne aos direitos por ela reconhecidos.A idéia de que é causa de ingovernabilidade doPaís tornou-se moeda corrente, acriticamenteproclamada aos quatro ventos pelos meios decomunicação de massa. Reduzir direitos sociaise diminuir aqueles conferidos ao funcionalismopúblico são apresentados como algumas dasmedidas a serem tomadas, para efeito dasalvação nacional.

Em vista da predominância desse discurso,não se discutem questões como a ineficiênciados governantes, o desperdício do dinheiropúblico e a corrupção, a par da incapacidadeempresarial para competir no mercado, sem oapoio maciço do Estado. Na mesma linhaopressiva de argumentação, o Poder Judiciário,elevado pela Carta Magna a uma posição decapital importância, em vista das significativasfunções atribuídas para a concretização doplano constitucional, também é submetido acorrosivos ataques. Em vez de se pensar naadoção de meios para lhe dar condições de atuarcom maior eficácia, é proposto o seu controleexterno, de modo a reduzir sua autonomia e,com isso, interferir nas suas decisões. Qualquerato judicial que desagrade os detentores deparcelas do poder é, de logo, objeto de azedoscomentários, bem reveladores da pouca

O Poder Judiciário e a Constituição

SÍLVIO DOBROWOLSKI

Sílvio Dobrowolski é Juiz aposentado doTribunal Regional Federal da 4ª Região, Professordos Cursos de pós-graduação em Direito da UFSCe da Univali e da Escola Superior da Magistraturado Estado de Santa Catarina.

SUMÁRIO

1. Crise de legalidade. 2. A crise do EstadoSocial. 3. A crise da soberania. 4. A soluçãoaventada. 5. Crítica das posições pós-modernas eneoliberais. 6. A indispensabilidade do Estado e daConstituição. 7. O Judiciário e as crises.

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paciência dos irresignados e de seu menosprezopela instituição.

A exposição a seguir, que, a rigor, deve serconsiderada uma glosa de idéias de LuigiFerrajoli e de J.J. Gomes Canotilho, buscaexaminar essa crise constitucional e avaliar osremédios propostos, bem como refletir sobre osignificado atual da Constituição e o papel aser atribuído ao Poder Judiciário para a efetivarealização de um Estado Democrático deDireito.

1. Crise de legalidadeAssiste-se, no momento atual, a um quadro

de corrupção generalizada. Em toda a parte, etambém no Brasil, nele se envolvem empre-sários, funcionários da Administração públicae políticos. Com freqüência são descobertosesquemas tentaculares para transferências,inclusive para o exterior, de polpudas quantias,objeto de transações ilícitas, compreendendomembros do Parlamento, e ainda setores daadministração, das finanças e da economia.

A par dessas atividades extralegais,promovidas pelos que deviam ser consideradoscomponentes das elites do País, o crimeorganizado dissemina suas atividades, sem queem relação a ele, da mesma forma como paraos primeiros, o sistema de controle jurídicodemonstre eficiência.

Essa falta de resultados alcança as regrasdo jogo institucional, com a ocorrência dapersonalização do poder, transmudando-se alegitimidade, de constitucional em pessoal.Aprova-se, por isso mesmo, emenda à LeiMaior, introduzindo, contra a tradição repu-blicana do País, a possibilidade de reeleição doschefes do Executivo em todos os níveis daFederação.

O Congresso é relegado a papel secundário –e, pior, se acomoda a essa situação –, vindo alegislação a ser produzida por meio de medidasprovisórias, interminavelmente repetidas,denotando evidente desprezo pelo sentidorazoável do Texto Maior, que só autoriza suaedição em situações especiais.

A Carta Magna, outrossim, é apontadacomo causa de ingovernabilidade, por seconstituir em entulho de regras e promessasimpossíveis de serem cumpridas, a merecerprofunda e imediata revisão, a fim de desca-racterizá-la, de modo a transformá-la em outra,que reflita os desejos do Governo, de suatecnocracia e dos grupos econômicos efinanceiros que os acompanham.

O desapreço pela Constituição revela-se nosconflitos entre o Poder Executivo e o PoderJudiciário, porque aquele não suporta aindependência do segundo, ao dizer que este,por aplicar a Lei Maior, desserve interessesnacionais. O freqüente descumprimento dedecisões judiciais, causando o acúmulo deprecatórios não pagos, demonstra bem a erosãodo valor das regras que regulamentam asrelações entre esses poderes.

2. A crise do Estado SocialOutro aspecto a ser destacado, é o que se

convencionou chamar de crise do Estado Social.Como solução, se propugna restaurar, semmaiores ponderações, o figurino do Estadoliberal. Cabe, a propósito, referir que oliberalismo atribuía ao Estado função queconsistia, maiormente, em não invadir a esferareservada aos indivíduos pelas declarações dedireitos, em especial o campo de sua atividadeeconômica.

A crise sob enfoque atinge os direitossociais, para cuja realização se exigemprestações positivas do Estado, que, à mínguade garantias jurídicas apropriadas, terminamficando ao alvedrio dos detentores do poder.Em consequência, ocorre no País o enormecrescimento da dívida social, a absurda desi-gualdade na distribuição de renda, a elevaçãodo nível de desemprego e o aumento do atrasodas regiões menos desenvolvidas.

Enquanto instrumentos processuais refi-nados tutelam a propriedade e a liberdade –principalmente em favor dos estratos sociaismais aquinhoados –, problemas de alimentação,moradia, saúde e educação dos menos favo-recidos restam sem solução, descumpridas aspromessas consignadas nos direitos sociais.

A título de efetivá-los, o pêndulo do poderfixa-se no Executivo. Os reclamos das tecno-cracias e dos grupos habituados a extrairproveito dos cofres públicos geram inflaçãolegislativa, a desvalorizar a norma jurídica, queperde em abstração e generalidade. A ordemlegislada deixa de ser fonte de certeza e desegurança, para se transmudar em instrumentode arbítrio e de corrupção.

Em virtude da inefetividade dos direitossociais, são apresentadas propostas para reduzi-los e mesmo para sua supressão, em grandeparte. Pretende-se deixar a economia e asrelações entre as classes sociais sob o comandodo mercado. Essa é a bandeira dos setoresneoliberais, esquecidos das crises do capi-

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talismo, que justificaram a presença ativa eregulatória da instituição estatal na ordemeconômica. Também se combate a expansão doEstado – que, em verdade, necessita ser contidae reduzida para maior eficácia da atuação dopoder político. Todavia, os mais ardentesdefensores dessas idéias pensam antes emvantagens pessoais e lucros fáceis, como, àguisa de exemplo, assim podem ser iden-tificados os resultantes das privatizações pagascom moedas podres ou a preços ínfimos, ouainda, segundo é proposto para algumasrodovias, a sua reparação e modernização porconta dos cofres governamentais ou medianteempréstimos obtidos pelo Estado, e a suasubseqüente entrega à iniciativa privada, a fimde que esta proceda à exploração das mesmas,sem prévio desembolso de recursos próprios.

3. A crise da soberaniaTambém deve ser objeto de consideração, a

real perda de substância do poder soberano doEstado, com a ascensão de novas fontes deprodução jurídica. Em nível externo, ofenômeno das integrações regionais exclui dacapacidade decisória da organização estataldiversos tópicos, que passam a ser regidos pormeio de acordos internacionais.

A globalização, por outro lado, implica opontilhamento das fronteiras. Não apenas asrelações comerciais e financeiras se regulamem consonância com exigências externas, masigualmente assuntos como direitos humanos,políticas sociais e questões ambientais sãoobjeto de pressões oriundas do exterior. Assim,a Constituição de 1988, em seu artigo 5º, § 2º,assegura a integração no rol dos direitosfundamentais daqueles “decorrentes (...) dostratados internacionais em que a RepúblicaFederativa do Brasil seja parte”. A cláusula éinterpretada por alguns no sentido de bastar,para essa incorporação, a adesão do País aotratado, desnecessária qualquer medida internapara sua inserção no ordenamento jurídicopátrio.

O exemplo europeu da criação de um direitocomunitário subtraído do controle parlamentar,ou de vínculos constitucionais, ilustra, de modoconveniente, a afetação da soberania dosEstados, tratando-se de fenômeno que muitoem breve será reproduzido na esfera doMercosul.

No âmbito interno, o poder do Estado vê-seem frente a interlocutores das ordens eco-nômica, social e cultural, como as poderosas

organizações sindicais, os grandes aglomeradoseconômicos, os grupos religiosos influentes ouos movimentos sociais reivindicatórios comelevada capacidade de militância, cada um delesbuscando conformar a ordem jurídica estatal,ou apresentando normas de sua produção, parasuplantar o Direito do Estado.

Esse pluralismo de fontes de produçãojurídica dotadas de autonomia e eficácianormativa própria indica que a soberania perdea unicidade, um dos atributos a ela reconhecidospela teoria política clássica. O Estado deixa deser o centro produtor exclusivo ou maisimportante do Direito. Torna-se impossívelconter os poderes dispersos pelos sistemassociais, assim como se opor às imposiçõesexternas. A independência transforma-se emvã retórica; a condição estatal de poder maisalto no interior torna-se em partilha ou, até,inferioridade em face dos macropoderes sociais.

4. A solução aventadaA crise do Direito, nos aspectos antes

expostos, corre o risco de se transformar emcrise da democracia, porque esta se apóia nospilares do Estado de Direito e da soberaniapopular, que somente subsistem quando ospoderes se sujeitam à lei, na sua compreensãode artefato normativo publicamente produzidoe igualmente aplicado a todos os cidadãos. Nodizer de Ferrajoli, a crise do princípio dalegalidade “permite a reprodução, no seio dosnossos ordenamentos, de formas neo-abso-lutistas de poder público, isentas de limites ede controles e governadas por interesses fortese ocultos” (Ferrajoli, 1997, p. 91).

Em nível de Constituição, ocorre a perdado sentimento constitucional, da “vontade deConstituição”, na terminologia de KonradHesse, com a concomitante queda de sua forçanormativa, escancarando-se a porta do arbítrio,o que aponta para o possível esmagamento dasliberdades e o desprezo pelos direitos sociais.

Alguns autores falam em perda da capa-cidade reguladora do Direito, em vista daelevada complexidade da sociedade contem-porânea. Apontam eles, para uma crescenteincoerência, incompletude, opacidade eineficácia do sistema jurídico.

Direito e Estado, para essa visão, estariamesgotados, incapazes de realizar de formasatisfatória as funções para que foram ideali-zados, em especial a de organizar racio-nalmente as relações sociais. Günther Teubnerpropõe um “direito reflexivo” em que a este e

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ao Estado caberá o papel de guia, e não adireção, da sociedade, procedendo-se a outorga,aos diferentes subsistemas sociais, da faculdadede auto-regulação dos seus problemas internos,com acentuada autonomia de atuação.

Essa corrente doutrinária se liga aopensamento pós-moderno, que critica a idéiade unidade da razão, adotada pela filosofiailuminista, em cujo seio foram gerados o Direitoe o Estado constitucional modernos, que agorasão postos em causa. Os arautos do pós-modernismo rejeitam a razão universalizante,em prol de um saber fragmentado e contextual,limitado no espaço e no tempo, próximo dodoméstico e do cotidiano. Daí, a importânciaque emprestam ao pluralismo jurídico e àtransnacionalização, para afastar a idéia daunidade do Direito e a validade da afirmaçãode que o Estado é o centro monopolizador daviolência física legítima. Os pensadores destacorrente colocam em dúvida a capacidadereguladora do Direito e disseminam a idéia deperda de confiança na razão jurídica (Pardo,1996, p. 20-22).

Com respeito à Constituição, diz-se que nãomais pode ser considerada como centro de umconjunto normativo finalístico e diretivo dasociedade. O Direito Constitucional passa a servisto como voltado a estabelecer processos deinformação e mecanismos de redução dasinterferências entre os sistemas sociais, tidoscomo autônomos (v.g., jurídico, econômico,social e cultural). A Constituição pós-modernanão deve conter diretivas para uma açãotransformadora da sociedade. É mero direitoprocessual, não substantivo, ecológico e medial.

Segundo David Wilson de Abreu Pardo(1996, p. 24), um estatuto constitucional dessaespécie adapta-se, com perfeição, a umindivíduo que é um pós-sujeito, personagemincapaz de criar projetos existenciais e que sedeixa levar por acontecimentos e por sistemas,não passando de mero espectador indiferente.

5. Crítica das posiçõespós-modernas e neoliberais

O constitucionalismo pós-moderno servepara pessoas iguais ao simpático mas lastimávelpersonagem cinematográfico Forrest Gump,que, na aguda observação de Luiz AlbertoWarat, “corre pelo mundo sem objetivos”, “é ohomem condenado a não investir; o repre-sentante de um tipo humano absolutamenteacomodado às circunstâncias, que por ele

resvalam” (Warat, 1996, p. 80 e 84). Um tipoassim é capaz de aceitar a dominação por meiode sistemas que se auto-regulam, e viver suaexistência tangido pelos fatos, sem pensar emmodificá-los, sem tentar melhorar a suacondição e a de seus semelhantes, e dar umsentido à própria vida, para deixar um rastrode sua passagem no planeta.

Neoliberais e pós-modernos propõem odesmonte do Estado Social e o fim da norma-tividade da Constituição, sem apresentarqualquer alternativa humana, oferecendo, emvez disso, entidades abstratas como o “mercado”e a autopoiesis sistêmica. Em última análise,suprimem os problemas detectados, deixandode lhes dar solução, na ingênua crença de queas coisas, na vida social, ajustam-se por simesmas, independente de esforço conscientedos homens.

As posições pós-modernas apontam paraum Direito sem Estado, e a disseminação dopoder em uma multiplicidade de sistemasdotados de autonomia e indiferentes entre si.Uma sociedade constituída desse modorepresentaria uma forma neofeudal de orga-nização, com a grave conseqüência de que adispersão dos focos decisórios resultaria, comcerteza, na dominação pelos detentores dopoderio econômico, inclusive pelo capitalinternacional, ou por potentados locais, livresde todo o controle por parte do poder público,da regulação pela sociedade como um todo.

Ilegalidade generalizada, pluralidade defontes e caos normativo estão presentes no dia-a-dia, como indicadores do mau funcionamentoda ordem jurídica. A medicação oferecida, quese pode resumir na drástica redução do Direitoestatal, compreendendo, inclusive, a retiradade elementos substantivos da Constituição, nãose apresenta, no entanto, como adequada.

Assim é, porque o diagnóstico se funda emuma falácia que Luigi Ferrajoli denomina denaturalística ou determinista, consistente nopressuposto de que “os nossos sistemas jurídicosseriam como são porque não poderiam ser deoutra maneira” (Ferrajoli, 1997, p. 92). Se épreciso, prossegue esse autor, evitar o errooposto, de caráter normativista, em que seconfunde o Direito com a realidade, passar domundo do ser, dos fatos, para o dever-ser étambém grave defeito de raciocínio. Aineficácia dos direitos, a violação habitual dasregras jurídicas pelos ocupantes de cargospúblicos, a proliferação normativa e a confusãode fontes não constituem algo “deterministica-mente necessário” nem “sociologicamente

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natural”. O Direito é uma realidade artificial,construída pelos homens, cabendo aos juristasexcogitar meios capazes de pôr cobro àsdeficiências, ao invés de aderir à soluçãosimplista de adotar uma postura desvinculadada racionalidade, e consistente em uma soluçãosistêmica, desprovida dos mínimos parâmetrosde racionalidade.

É necessário, sem dúvida, ter em conta asdeficiências do funcionamento efetivo doDireito e do Estado, para proceder às readap-tações indispensáveis. O que não se pode, emvista dessas falhas funcionais, é desacreditar,desde logo, da capacidade da razão jurídica.

6. A indispensabilidade do Estadoe da Constituição

A constatação de que as instituições nãofuncionam com a eficácia desejável, de modoalgum justifica, que se pense em descartá-las,na linha sugerida pelas propostas sistêmica eneoliberal. Isso equivale a desprezar aexperiência duramente acumulada no curso daHistória, e na base da qual se formou acivilização ocidental. Os equívocos da razãonão bastam para afastá-la da direção dasrelações humanas. Ao contrário, é precisoreconhecer os erros e tentar corrigi-los, em vezde assumir posturas anti-racionais e, com issodar azo à ocorrência de males muito piores efora de qualquer controle.

É preciso aperfeiçoar a ordem jurídica,mondar os excessos e reparar as falhas doEstado Social, e proceder, ainda, à adaptaçãoda Constituição às realidades da nossa época,preservando a sua força regulatória. Emparticular, nos países de Terceiro Mundo, taisinstrumentos não podem ser dispensados, se oque se deseja é, sob algum prisma, diferente dapermanência no subdesenvolvimento e dasubmissão a interesses estrangeiros ou a outros,internos, eticamente descompromissados e, até,portadores de pretensões subalternas, comoserve de exemplo a dominação dos traficantessobre as favelas cariocas (Pardo, 1996, p. 26).

A fragmentação do poder em instânciasdesligadas de um centro diretivo não servirápara impedir essas ocorrências indesejadas.Pelo contrário, permitirá que venham aacontecer, em razão da falta de uma estruturaorganizacional adequada para combatê-las. Porenquanto, inexiste instrumento capaz desubstituir o Estado e sua ordem jurídica, para aefetivação de uma convivência social em quese respeite a dignidade humana.

Podem-se adiantar algumas característicasda organização estatal, a fim de adequá-la àsnecessidades do tempo presente. Assim, oEstado:

1º) deve continuar como centro nacional deidentidade cultural;

2º) terá de buscar maior articulação comoutras entidades da mesma natureza, em vistade uma desejada integração regional;

3º) precisa efetuar uma abertura para aglobalização, quanto a problemas cujo trata-mento ultrapassa as fronteiras estatais, comoos direitos humanos, a preservação de recursosnaturais e do meio ambiente;

4º) no seu interior, tratará de conviver emum tom menos autoritário, talvez quase-contratual, com os outros poderes sociais, nointuito de formular políticas e decisões emconsonância aos legítimos interesses coletivose também dos grupos envolvidos, cabendorepassar a estes as tarefas que possam realizar,com alívio da estrutura e das atividades estatais;

5º) deverá permitir soluções informais deproblemas, desde que sejam conforme aosvalores e princípios expressos na Constituição.

Com relação a esta, cumpre atualizá-la,valendo referir algumas das sugestões preco-nizadas por J. J. Gomes Canotilho, em palestrana qual defendeu um constitucionalismomoralmente reflexivo. Para ele, é precisoabandonar a idéia soviética da Constituição,plano e balanço, que resultou da “má utopia dosujeito projectante”, e transformou a Lei Maiorem “caminho de ferro social e espiritual (...)onde a propriedade estatal dos meios deprodução se misturava em ditadura partidáriae coerção moral e psicológica” (Canotilho,1996, p. 9).

Um segundo ponto versado pelo ilustreconstitucionalista luso diz respeito à diminuiçãodo molde estatizante, para admitir o empregode “modelos regulativos típicos da subsi-diariedade, isto é, modelos de autodireção socialestatalmente garantidos até os modelosneocorporativos, passando pela forma dedelegação conducente a regulações descen-tradas e descentralizadas” (Ibidem, p. 9).

O abandono do “autismo nacionalista epatriótico”, com abertura para a interna-cionalização e, no caso brasileiro, igualmentepara a integração sul-americana, é outro aspectosugerido por esse autor, “para a transformaçãodas ordens jurídicas nacionais em ordensjurídicas parciais, nas quais as Constituiçõessão relegadas para um plano mais modesto de‘leis fundamentais regionais’”(Ibidem, p. 10).

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Doutra parte, além dos fins básicosimanentes ao Estado, que são a preservação dapaz e da segurança, cabe à Constituiçãoestipular tarefas estatais, todavia sem fazê-lode forma esgotante, nem de modo a implicarno monopólio do desempenho delas pelo Estado(Ibidem, p. 12). A Carta Magna não pode serum mero processo tecnocrático útil parapermitir o funcionamento autônomo desistemas sociais. Deve preocupar-se com sualegitimidade, e por isso traçar as pautasmínimas de convivência, que se compõem do“complexo de direitos e liberdades definidoresdas cidadanias pessoal, política e econômicaintocáveis pelas maiorias parlamentares”(Ibidem, p. 14).

Não se deve perder de vista a advertênciaconsignada por Canotilho, de ser necessáriauma atitude responsável do constituinte, emordem a ser parcimonioso na outorga deconcessões, sob pena de haver grandiloqüênciade palavras e nulidade de resultados. Os direitosprometidos precisam ter virtualidade deconcretização, para não se tornarem geradoresde crises, em vista de seu descumprimento,muitas vezes resultante da ausência de meiosmateriais para efetivá-los (Ibidem, p. 14).

À Constituição descabe, de certo, descer aparticularismos com o uso de regulaçõesexcessivamente minuciosas e a perda daindispensável generalidade de suas normas,causando o conseqüente engessamento dasopções políticas. Impropriedades dessa espéciepodem ser identificadas na Constituição de1988:

a) a proibição do pluralismo sindical (art.8º, II);

b) a estipulação de prazo prescricionaltrabalhista (art. 7º, inciso XXIX);

c) a proteção especial do Estado aosgarimpeiros (art. 174, § 3º);

d) o turismo como objeto de promoção eincentivo (art.180);

e) a gratuidade do ensino público em todosos graus e indistintamente para qualquerpessoa, sem consideração sobre sua concretasituação econômica (art. 206, inciso IV).

7. O Judiciário e as CrisesAs crises do Estado e do Direito apresen-

tam-se como perfeitamente administráveis pelarazão jurídica, mesmo porque esta enfrentou,com êxito, problemas muito mais difíceis,erigindo “esse singular e extraordinário

paradigma teórico e normativo que é o Estadode Direito” (Ferrajoli, 1997, p. 92). Como expõeLuigi Ferrajoli:

“A situação do direito própria doancien régime era bastante mais ‘com-plexa’, irracional e desregulada do quea de hoje. A selva das fontes, o pluralismoe a sobreposição dos ordenamentos, ainflação normativa e a anomia jurídicados poderes que os clássicos do jusna-turalismo e do Iluminismo, de Hobbes aMontesquieu e a Beccaria, tiveram deenfrentar, formavam um quadro segu-ramente mais dramático e desesperantedo que aquele que surge aos nossosolhos.” (Ibidem, p. 92.)

Para o jurista peninsular, o desafio atual nãoé mais difícil do que o enfrentado há doisséculos. Hoje, a razão jurídica dispõe de uminstrumento decorrente do progresso doconstitucionalismo, e que consiste no fato deque o Direito é “construído como um sistemaartificial de garantias constitucionalmente pré-ordenado à tutela dos direitos fundamentais”(Ibidem, p. 93).

A Constituição, em nossos dias, não traçaapenas preceitos sobre as formas proce-dimentais de criação das leis, mas inclui normassubstanciais vinculantes do Poder Legislativo,que lhe impõem ou vedam determinadosconteúdos legais.

Esses vínculos de substância compreendemos direitos fundamentais, tanto as liberdades,os direitos sociais, quanto os direitos coletivose difusos. Em conseqüência, a validade doDireito não depende, conforme entendia onormativismo formalista, apenas da legiti-midade formal. É preciso, além disso, que sejaobservada a legitimidade material, com arealização da ordem de valores fundamentaisencarnada no Texto Maior.

Entre as garantias de sua concretizaçãosobressai a função tutelar dos direitos, que éatribuída ao Poder Judiciário. Destacam-se,então, as técnicas jurídico-processuais quebuscam assegurar a máxima efetividade dessesvalores fundamentais, pela intervenção judicial.Quando se trata dos direitos individuais, elasfuncionam para anular os atos do poder que ostenha violado. Para os direitos sociais,compreendem instrumentos de coerção ousanção contra a omissão de medidas que osconcretizem. Aqui, situam-se o mandado deinjunção, a ação de inconstitucionalidade poromissão, e, em certos casos, as ações civil

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pública e popular. Os outros remédios compre-endem o habeas corpus, o habeas data, omandado de segurança, a argüição de inconsti-tucionalidade por via de exceção e a ação diretadeclaratória de inconstitucionalidade.

Com esses meios, busca-se proteger e fazerrealizar uma Constituição que estabelece asamarras de uma democracia substancial, emque se cuida não somente das regras formaisdo jogo, mas também dos preceitos materiaisque devem presidir a vida em coletividade.Ressalta que a tarefa de verificar a confor-midade dos atos normativos aos preceitosconstitucionais, bem ainda a regularidade daatuação administrativa frente aos direitosfundamentais, cabe à jurisdição, pelo que estarecebe considerável reforço na relevância de seupapel na distribuição das funções estatais,cumprindo-lhe fiscalizar os demais poderes.Torna-se mais forte a legitimação do PoderJudiciário, indispensável para efetivar o planoda Lei Magna, e reafirma-se a necessidade desua independência, para bem cumprir com suasatribuições.

O Poder Judiciário exerce o papel deguardião dos direitos fundamentais e da própriaConstituição, ainda mais porque cabe-lhe dizerda constitucionalidade dos atos normativos.Toca-lhe, por isso, controlar os outros poderes,para mantê-los dentro dos limites traçados pelasnormas constitucionais. Desse modo, se oJudiciário não se legitima por meio do votopopular, o faz pelo seu desempenho, porquantosua legitimação provém da própria LeiFundamental, que atribui direitos a todos e acada um em particular, mesmo contra a maioria.Como é assim, a proteção desses direitos exige,consoante assinala Luigi Ferrajoli, a presençade um juiz imparcial e independente, “subtraídode qualquer vínculo com os poderes assentesna maioria, e em condições de poder censurar,como inválidos ou ilícitos, os atos praticadosno exercício desses poderes” (Ibidem, p. 101).A legitimidade e a independência judiciais sãodemocráticas porque decorrem, conformeexposto, da função de garantia dos direitosfundamentais, sobre os quais se baseia ademocracia substancial da Constituição.

Na atividade de verificação da compa-tibilidade das leis e dos atos com os preceitosda Carta Magna, o Judiciário como intérprete

desta deverá promover o desenvolvimento daConstituição, realizando o diálogo entre suasnormas e a realidade social em constantemudança. O Texto Maior compõe um sistemaaberto de valores, princípios e normas,permitindo que a definição do sentido de taiselementos possa ser efetuado em consonânciacom as idéias e expectativas sociais ocorrentesem determinado momento histórico.

Ressai, também por esse motivo, a impor-tância da função judicial, encarnando o juiz,como intérprete da Lei Magna, a razão jurídicaque ideou a democracia constitucional. Cabe-lhe evidente papel de relevo para atenuar, emboa parte, a crise da Constituição e do EstadoSocial. É necessária uma atuação conscienteda importância do papel desempenhado pelainstituição judiciária, em face das tremendasameaças à ordem jurídica. Para tanto, haveráque arrostar a má vontade dos outros poderesestatais e de setores dos poderes sociais, quebuscam, a todo o custo, alcançar resultadosfavoráveis em sua atuação, ainda que para issotenham de pisotear a lei e os direitos. Compre-endem-se, assim, os constantes ataques àindependência judicial, orquestrados por inter-médio dos meios de comunicação social,buscando destruí-la, a fim de transformar aJustiça em mero instrumento dos detentores depoder. A luta democrática, de momento, épreservar essa autonomia do Poder Judiciário,por sua ligação com a garantia dos direitos e,por isso mesmo, com a defesa da dignidade dohomem e da Constituição.

BibliografiaCANOTILHO, José Joaquim Gomes. Rever ou

romper com a Constituição dirigente? Defesa deum constitucionalismo moralmente reflexivo.Cadernos de Direito Constitucional e CiênciaPolítica, n. 15, p. 7-17, Ab./Jun. 1996.

FERRAJOLI, Luigi. O Direito como sistema degarantias. Tradução de Eduardo Maia Costa. In:OLIVEIRA JÚNIOR, José Alcebíades (Org.). Onovo em Direito e política. Porto Alegre :Livraria do Advogado, 1997. p. 89-109.

PARDO, David Wilson de Abreu. Caminhos doconstitucionalismo no Ocidente. Florianópolis :UFSC, 1996. Policopiado.

WARAT, Luiz Alberto. Por quien cantan las sirenas.Joaçaba : UNOESC, 1996.

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1. IntroduçãoO trabalho do legislador, o do juiz, o do

administrador, o do intérprete e o do jurista emgeral têm como instrumento comum a palavra.Saber o significado e o sentido das palavras dalei é parte integrante do mundo do jurista: semo descobrimento do alcance das palavras e dasexpressões presentes no mundo jurídico inexistea possibilidade de sua aplicação.

Com o advento em nosso País da redemo-cratização, a aplicação do Direito Público,especialmente as normas que compõem oRegime Jurídico-Administrativo, passou a tervital importância para a sobrevivência da ordemjurídica, que possui na relação da administraçãocom os administrados um de seus alicerces, umavez que num Estado de Direito o administradorestá adstrito à lei e não poderá desviar-se delapara garantia de interesses e fins que não sejamaqueles prescritos pelas normas.

Durante o regime militar que se instaurouno Brasil por mais de vinte anos, cristalizou-sea prática de que cabe ao administrador exercercompetência discricionária para determinar osignificado de expressões vagas presentes noRegime Jurídico Administrativo. Se assim era,impossível ao Judiciário questionar a inter-pretação: tratava-se de uma escolha designificado feita pelo administrador. Com a

A interpretação da linguagem do RegimeJurídico Administrativo

JETE JANE FIORATI

WILSON FIORATI JUNIOR

Jete Jane Fiorati é Professora de DireitoInternacional da UNESP, Mestre e Doutora emDireito.

Wilson Fiorati Junior é Bacharel em Direito ePesquisador Autônomo.

SUMÁRIO

1. Introdução. 2. A linguagem do Direito e suainterpretação. 3. A interpretação do Direito e amoderna lingüística. 4. O Regime JurídicoAdministrativo. 5. A linguagem do Regime JurídicoAdministrativo e a interpretação dos conceitosindeterminados. 6. Conclusões.

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volta ao Estado de Direito, necessário se faz oabandono desta prática, que se entrechoca como regime democrático, uma vez que não é pormeio do exercício da competência discricionáriaque se determina a significação de umaexpressão vaga. Essa determinação é possívelpor meio da interpretação, que não se cinge àcompetência discricionária, mas configura-senuma atividade vinculada à lei e, portanto,passível de exame judicial, tal como ocorre nosdiversos Estados democráticos de direitoinstalados no Ocidente.

É necessário, portanto, dotar o Brasil de umsistema jurídico administrativo cujas normassejam aplicadas pelo administrador segundosua significação objetiva e atual e não segundosignificado subjetivo que lhe é dado peloadministrador, cuja impossibilidade de reexamejudicial poderia levar a abusos contra a própriaordem jurídica.

2. A linguagem do Direitoe sua interpretação

Durante o processo de evolução dasespécies, um fator essencial diferenciou ohomem de todas as outras espécies: a comu-nicação por intermédio de palavras. Só oshomens utilizam a palavra como meio decomunicação: por meio da expressão dopensamento e do raciocínio, foi possível aelaboração de uma forma socializada dedesignação dos objetos e das idéias expressapor intermédio dos signos (símbolos e signi-ficados).

O uso da palavra pelos homens fez com queestes abandonassem a convivência instintivaassentada na idéia de sobrevivência e perpe-tuidade da espécie para que constituída fosseuma sociedade humana organizada, de caráternitidamente finalístico, visando à realização deprojetos, objetivos e idéias comuns.

Surgida a comunicação por palavras, asociedade também se disciplinou por meiodelas. A linguagem tornou-se o instrumento dalei e da concretização da norma como padrãode conduta exigível de todos os membros dasociedade indistintamente. Na vida cotidiana,os homens utilizam as palavras para diversosfins e o Direito, como norteador de condutas,deve procurar fazer uso de uma linguagemcoerente com os fins que disciplina.

Nestes muitos milênios de existência, asociedade humana tornou-se complexa,estratificada e especializada em diversos

campos: o Direito como disciplinador dasrelações sociais sofreu idêntico processo deespecialização e estratificação, mas nuncaperdeu seu caráter genérico norteador dascondutas humanas. Se assim é, para sercompreendido e respeitado, o Direito semprefez uso de palavras de todos conhecidas, ou seja,a linguagem do Direito é expressa por meiocomum a todos os membros de uma dadasociedade.

Imprescindível também a observação de queas normas possuem uma função prescritiva,impondo padrões mínimos de conduta para queseja possível à sociedade humana organizada aconcretização de seus fins. Como nem todas asnormas são observadas por todos os membrosda sociedade, é necessário a existência de umpoder, que represente abstratamente a organi-zação da sociedade, encarregado de adequar asnormas, genéricas e abstratas, aos casosconcretos e específicos, e de verificar seu efetivocumprimento. É o poder quem cria e concretizaa norma.

Os diversos acontecimentos muitas vezesnão estão em conformidade com as prescriçõescontidas nas normas. As normas, por sua vez,também descrevem fatos, tidos por conformesou contrários à ordem jurídica. Os fatos da vidasocial e as normas que os regulamentam comocondutas institucionalizadas não são categoriasseparadas. Unem-nas o valor. Sobre os fatos,incidem valores diversos, mas apenas algunsdeles, por serem valores aceitos na sociedadecomo representativos de seu caráter, serãonormatizados e constituirão regras obrigatóriasde conduta.

Fruto de longa evolução histórica, oprocesso atual de elaboração, interpretação,execução e aplicação das leis começou a possuira feição atual no século XVIII, quando asRevoluções Americana e Francesa firmaram oprincípio da separação dos poderes de fazer,executar e aplicar as leis em detrimento dopoder absoluto do rei, anteriormente repre-sentante exclusivo do Estado, forma deorganização social e de exercício do poder. Coma separação dos poderes e das funções do Estadoe a institucionalização do princípio dalegalidade, também o Estado, especialmente osórgãos que têm a função de geri-lo, executandoas leis, ou seja, a Administração Pública,tornaram-se submissos à lei, feita peloLegislativo, que representa a sociedadeorganizada.

Com o advento do Welfare State, no qual oEstado, além de provedor da segurança e justiça

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públicas, tornou-se também o responsável pelamelhoria das condições de vida das pessoas,por meio da oferta de bens e serviços públicos,as suas funções tornaram-se mais complexas,especialmente no que se refere à administraçãoda res publica. Se assim é, houve necessidadeda elaboração de um corpo orgânico deprincípios e leis que tivessem por objetivo adisciplina jurídica, a fixação de direitos, deveresobjetivos, atividades, meios e limites doexercício da Administração Pública. Destecorpo orgânico de normas constitui-se o RegimeJurídico Administrativo.

Se o Estado representa a forma moderna deorganização da sociedade, detendo o exercíciodo monopólio da violência, e cabe à Adminis-tração Pública gerenciá-lo, segundo os critériosestabelecidos em lei, é possível afirmar quetambém a linguagem utilizada na confecção doregime jurídico administrativo é uma lingua-gem natural, que possibilita aos cidadãos oexercício da fiscalização das atividades daAdministração Pública no cumprimento de suasfunções e das determinações legais.

Assim, se a linguagem do Direito como umtodo, disciplinador das condutas dos súditos eda Administração Pública, é a linguagemnatural dos homens, cumpre aprofundá-la pormeio de estudos que problematizem a “passa-gem” e a mutação do caráter da norma: degenérica e abstrata – quando descrita ouprescrita em lei, ela torna-se concreta eespecífica – quando executada pelo adminis-trador ou aplicada a um caso concreto. Nesteprocesso a interpretação das palavras, no qualsão expressas as normas, desempenha um papelcrucial: elas serão o ponto de partida ebalizamento para aplicação da norma ao casoconcreto.

Se a linguagem é o instrumento de expres-são do Direito, que, por sua vez, constitui-sena disciplina de condutas humanas na socie-dade organizada, fundamental é compreendero significado das palavras da lei e suainterpretação, seja individualmente (interpre-tação gramatical ou literal), seja em conjuntocom outras palavras formando um texto oucomando (interpretação lógica), seja avaliandoa inter-relação deste conjunto de palavras comoutros textos presentes no ordenamento jurídico(interpretação sistemática), seja cotejando estetexto com a vida social no presente e no passado(interpretação histórica), ou seja, enfim,examinando as finalidades deste texto legal(interpretação teológica).

Signos e significados foram definidos peloarbítrio dos homens, uma vez que as palavrassão signos que representam a realidade e nãopossuem uma relação de causa e efeito com oobjeto representado. Para iniciarmos o processode interpretação da lei é essencial verificarmosque estas palavras podem simbolizar realidadesdiversas, especialmente quando são analisadoso seu conteúdo semântico, ou seja, a sua funçãodentro do processo de comunicação, e suareferência a objetos, o seu uso e o sujeito quedelas faz uso.

Estabelecer uma diretriz para a inter-pretação afirmando que as palavras possuem omesmo significado pode fazer sentido no quese refere à linguagem técnica da matemáticaou das ciências da natureza (Química, Física eBiologia) onde impera a univocidade própriado convencionalismo científico. Assim, quandodeterminado elemento químico é indivi-dualizado na natureza ele recebe um nomecientífico, pelo qual será conhecido em toda acomunidade científica. O convencionalismocientífico é expresso e unívoco, sendo que aspalavras possuem cada qual um único signi-ficado.

Já a linguagem do Direito, uma vezconstituir-se o Direito na “conduta humanaobjetivada”1, é uma linguagem natural comtodas as imperfeições e múltiplos significadosdela decorrentes. Sua função é dar expressãoàs normas que direcionam condutas e compor-tamentos; e há necessidade de que suasprescrições sejam compreendidas para seremobedecidas. As palavras da qual se compõem alinguagem natural são fundadas num conven-cionalismo tácito e na arbitrariedade designificados, que variam conforme sua posiçãodentro do processo de elaboração da lei,conforme seu uso e o agente que dela fazutilização.

Na linguagem natural as palavras possuemsignificados equívocos, que se modificamconforme o uso que delas se faz. A palavradireito, por exemplo, possui diversos signi-ficados e pode ser utilizada como substantivoou adjetivo. Se utilizada como substantivopoderá significar:

a) Direito é o justo ou o correto (Direitoigual à Justiça);

b) Direito é o conjunto de normas jurídicasvigentes num país (Ordenamento Jurídico);

1 RECASÉNS SICHES, L. La nueva filosofiade la interpretacion del Derecho. 2. ed. México,Porrúa, 1973. p. 33.

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c) Direito é faculdade que a lei concede aalguém para praticar ou não um determinadoato ou prerrogativa concedida por lei (DireitoSubjetivo);

d) Direito é uma ciência das normasobrigatórias que disciplinam a vida do homemem sociedade, utilizando-se de métodospróprios e possuindo princípios próprios (aCiência do Direito);

e) Direito é o complexo de normas de caráterobrigatório impostas pelo Estado e quecompreende as normas do Direito Costumeiroe do Direito Escrito (Direito Positivo);

f) O Direito pode ainda ser definido comouma grande árvore que possui diversos ramos:direito processual, direito civil, direitoadministrativo, direito internacional, entreoutros;

g) Direito é prerrogativa, privilégio ouregalia.

Quando usado como adjetivo direito poderásignificar, ao conferir uma qualidade a algo oua alguém:

a) destro;b) que segue a mesma direção, reto;c) que não é curvo;d) que é aprumado ou ereto;e) honesto, probo, honrado, justo;f) leal, franco, sincero.Vê-se, portanto, que a linguagem natural é

uma linguagem de textura aberta, ou seja, aspalavras e expressões nela contidas possuemsignificados vagos e ambíguos. O Direito serve-se dessa linguagem natural para atingir suasfinalidades de nortear e disciplinar condutassociais. As leis devem ser adequadas à realidadedos homens, e esta nem sempre é única e igual:ao contrário, há a necessidade de defini-la atodo momento. Assim também o direito tem anecessidade de redefinição a todo momento deseus conceitos e significados, haja vista que alei expressa-se na mesma linguagem darealidade cotidiana, e esta linguagem compõe-se de palavras que carecem de um significadounívoco.

Segundo Genaro Carrió, as palavras têmdupla função: “denotam o conjunto de objetose conotam as características e propriedadesdestes mesmos objetos”2. Para o mesmo autoras palavras são conotadas porque seu signi-ficado é aferido em função do contextolingüístico e da situação humana a que seaplicam, já que as palavras muitas vezes

possuem usos emotivos ou metafóricos. E sãodenotadas quando se tem dúvida por imprecisãode uso da mesma, uma vez que ela podedesignar genericamente fenômenos qualitativose continuativos. Nesse sentido, acentua aindaCarrió “todas as palavras da lei são poten-cialmente vagas”3.

Para Christiano José de Andrade “Avagueza é pertinente à extensão e a ambi-güidade à intensão”4. Neste sentido semprehaverá necessidade de redefinição do seuconteúdo, e tendo em vista a potencialvaguidade das palavras da lei, conclui-se quetodas as palavras da lei carecem de inter-pretação.

Compreende-se o Direito como um produtoderivado do pensar e do fazer do homem emsociedade. Fato, valor e norma integram-se ecompletam-se constituindo o Direito comosistema de regulamentação da vida social.Surgido da sociedade o direito a ela retorna paradisciplinar suas inter-relações. Esta compre-ensão da função do Direito é fruto do desenvol-vimento da Ciência do Direito nestes últimosdois séculos.

Durante a Idade Média, o Direito eraidentificado com a vontade de Deus e tanto avida religiosa quanto a vida cotidiana estavamsubmetidas às mesmas normas religiosas. Como advento do absolutismo monárquico, o Direitopassou a ser elaborado pelos reis, governantespor direito divino, e por eles mesmos aplicado.No século XVIII os filósofos do Iluminismo,especialmente Rousseau e Montesquieu,afirmavam que o Direito tinha por objeto adisciplina da vida do homem em sociedade, eeste mesmo Direito passou a constituir-se objetoda razão humana: os homens fazem as leis porintermédio de seus representantes eleitos,cabendo aos administradores realizá-lasintegralmente e aos juízes a função de aplicá-las aos casos em litígio.

Igualmente defensores da tese de que cabiaao administrador e ao juiz serem escravos dalei, fazendo um silogismo ao enquadrar o casoconcreto à lei, foram os juristas francesesfiliados à Escola da Exegese, à Escola AnalíticaInglesa e à Pandectas da Alemanha. Pandec-tistas, analíticos e exegéticos acreditavam “serpossível estabelecer clareza e segurançaabsolutas por meio de normas rigorosamente

2 CARRIÓ, G. Notas sobre Derecho y lenguage.Buenos Aires : Abeledo-Perrot, 1979. p. 27.

3 Ibidem, p. 36.4 ANDRADE, C. Hermenêutica jurídica no

Brasil. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1991. p.158.

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elaboradas, e especialmente garantir umaabsoluta univocidade a todas as decisõesadministrativas e judiciais”5. Estas concepçõesderam origem no final do século XIX aoPositivismo Jurídico.

Para o Positivismo Jurídico, que teve comoseu maior sistematizador Hans Kelsen, juristaaustríaco que viveu neste século, o ordenamentojurídico configura-se num sistema fechado,tendo sua validade fundada numa hierarquiade normas jurídicas que se assemelha a umapirâmide jurídica. Desta forma, as normas quese situam na base da pirâmide retiram suavalidade daquelas que estão em patamarsuperior e assim sucessivamente, concluindo-se que todas as leis tiram sua validade daConstituição e esta da norma hipotéticafundamental, que possui caráter metanormativoe que num sistema democrático poderia serexpressa pelo poder constituinte.

Não cabe ao juiz ou ao administradorperquirir o processo de elaboração das normase sua veiculação por intermédio de leis, massim executarem-nas sem deixar que nestaexecução interfiram valores ou concepçõesextrajurídicas. Neste sentido o modelo norma-tivo preconizado por Kelsen e pelos positivistasassemelha-se a um modelo matemático ondecada fato tem seu correspondente numa norma,sendo que o conjunto de normas, que seconfigura no ordenamento jurídico abarca atodos os fatos, atos e condutas humanos. Comoum sistema fechado, o Direito possuiria umalinguagem com termos próprios, suficien-temente claros para esclarecer eventuaisdúvidas do administrador na execução denormas e do juiz na sua aplicação aos casosconcretos.

Com o passar dos tempos, essas concepçõessofreram modificações: a ascensão de Rudolfvon Ihering e sua doutrina de interesses e fins,a Escola da Livre Pesquisa de François Geny, aEscola do Direito Livre de Stammler eKantarovikz, a Escola Sociológica Francesa, oRealismo Jurídico Norte-Americano deMarshall e Pound, o realismo Escandinavo comAlf Ross à frente, a Escola Egológica de CarlosCóssio, a Escola Culturalista de Miguel Realee a Lógica do Razoável de Rawls e RecasénsSiches, bem como a Tópica de Viehweg,Engisch, Carrió e Tércio Sampaio Ferraz. Essas

Escolas do pensamento jurídico passaram àdefesa de uma maior liberdade do juiz e doadministrador em relação à lei, seja porque nemsempre a lei é precisa e suficiente para serexecutada cotidianamente ou aplicada aos casosconcretos, nem é possível que abarque todosos casos novos e as rápidas modificações darealidade, seja porque se entende que o sentidodas normas deva evoluir segundo a realidadesocial e esta muda.

Daí nos tempos atuais falarmos em inter-pretação da lei e não escravidão à lei numprocesso rígido de subsunção silogística queatrelava administrador e juiz à norma. Assim,cabe ao administrador na execução do regimejurídico administrativo e ao juiz durante a suaaplicação aos casos concretos interpretarem-nosegundo um prisma de valores atualizados.

3. A Interpretação do Direitoe a moderna lingüística

Na clássica definição de Carlos Maxilianoa interpretação “é um sistema de princípiosutilizados pelos juristas para determinar osentido e o alcance das expressões do Direito”6.Já nos tempos do Direito Romano a inter-pretação era muito utilizada e muito contribuiupara a evolução do Direito, seja a hermenêuticados jurisconsultos, seja a aplicação dos pretores.A decadência ocorrida no período do BaixoImpério fez com que os poderosos do temporestringissem as atividades dos juristas à buscado sentido e alcance da lei cujas palavras quenão fossem claras. Cunhou-se o brocardo inclaris cessat interpretatio. Em nossos dias estaposição doutrinária é isolada, visto que alinguagem possui aspectos que, embora claros,dificultam a interpretação e o entendimentoda lei.

Segundo Karl Larenz: “Objeto da Inter-pretação é o texto legal”. Por interpretação deum texto entendemos a exposição, o esclare-cimento do sentido nele encerrado. Daí não sesegue que só num texto particularmenteobscuro, difícil de entender ou impreciso, hajacarência de interpretação. Pelo contrário, anecessidade de interpretação de todos os textosderiva, como vimos antes, de a maioria dasrepresentações gerais e dos conceitos dalinguagem corrente terem ‘contornos impre-cisos’. Acresce que o uso lingüístico muitas5 ENGISCH, K. Introdução ao pensamento

jurídico. Tradução de João Baptista Machado.Lisboa : Fundação Caloueste Gulbenkian, 1969. p.272.

6 MAXIMILIANO, C. Hermenêutica e aplicaçãodo Direito. 12. ed. Rio de Janeiro : Forense, 1990.p. 01.

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vezes oscila e que o significado de uma palavrapode variar segundo a posição na frase, aacentuação ou o contexto do discurso. Mesmoonde o legislador definiu para seu uso umconceito, delimitou-o portanto em pormenor,eis que a definição quase sempre contém denovo elementos que precisam de uma avaliaçãomais pormenorizada. Quando o Código Civilalemão faz saber, por exemplo, que a expressãoimediatamente significa o mesmo que semdemora culposa, é agora preciso a interpretaçãopara saber quando é culposa a demora. Umaexatidão completa da delimitação só se podealcançar quando, como é o caso das marcaçõesde prazos, se pode trabalhar com númerosexatos ou quando se trata de um conceitoindividual como República Federal Alemã”7.

Definir e determinar o alcance da lei e seusentido no tempo atual é interpretar. Interpretaré, portanto, definir novamente, é conceituaratualmente. Para Luís Alberto Warat “inter-pretar a lei implica sempre a produção dedefinições eticamente comprometidas e, porisso, persuasivas”8, visando convencer oreceptor a compartilhar o juízo de valorpostulado pelo intérprete. Interpretar é produzirdefinições persuasivas que implicam a préviarealização de um processo redefinitório,alterando as características de relevância de umtermo, permitindo ou provocando uma mu-dança em sua denotação, utilizando-se para istode critérios axiológicos ou valorativos.

Casos de redefinição são as imprecisõesexpressas na vagueza e ambigüidade dostermos. Nos casos de vagueza e definição éaclaratória produzindo na realidade umaredefinição de termos. Nos casos de ambi-güidade as palavras têm múltiplos significados,cabe ao juiz redefinir, confrontando os signi-ficados ao caso concreto, qual deles tem maiorrelação de significância com a situaçãoconcreta. Para Genaro Carrió “formular umadefinição persuasiva é recomendar um ideal,modificando o significado descritivo de umapalavra, uma vez que os juízos valorativos estãoencobertos por definições empíricas, objetivase neutras, pois se consubstanciam de palavrasque possuem forte conteúdo emotivo”9. Estes

juízos de valor encobertos não se ocultamsomente sobre a aparência de prescrições, mastambém de descrições de fatos.

A lingüística ao estudar os signos estabe-leceu três dimensões ligadas ao grau deliberdade de uso: a dimensão sintática, onde ossignos são avaliados em sua relação com outrossignos; a dimensão semântica, onde se avaliaos signos em relação a objetos e a dimensãopragmática, onde os signos são avaliados emrelação ao usuário, intérprete ou destinatário.A linguagem do Direito é uma linguagemnatural imprecisa ou dúbia e esta dubiedade ouimprecisão manifestam-se nos diversos usos dalíngua.

A ambigüidade reflete uma imprecisãosemântica: a mesma palavra pode ter váriossignificados diferentes, conotando as proprie-dades do objeto de forma diversa. São exemplosde ambigüidade: manga, trabalho, ciência,repouso noturno, adultério. Estas imprecisõesfazem com que o intérprete redefina o conceitoa cada aplicação que dele faça no caso prático,utilizando como referencial o caso concreto aoqual aplicará o conceito, buscando entre elesuma relação de significância.

Também pode surgir ambigüidade nasintaxe, embora sua manifestação ocorra emmenor grau e sempre ligada ao uso deconectivos como e/ou e às palavras poder edever. Na lição de Alípio Silveira, interpreta-se a palavra poder como dever se a condutaestiver ligada a procedimento da AdministraçãoPública: “O Estado pode oferecer univer-sidades” deve ser interpretado como o “Estadodeve oferecer universidades”, segundo ainterpretação usualmente observada em nossosTribunais, conforme enfatiza o mesmo autor10.

Já a vagueza está ligada à imprecisão designificados no que tange à sua extensão: apalavra é fluída e incerta em sua denotaçãocomo calvo, culpa, mulher honesta, interessepúblico, local adequado, motivo justo, motivorelevante e urgente. A vagueza está ligada aoque se chamaria de conceitos indeterminados,sejam eles naturalísticos ou jurídicos. PhilippHeck distingue nos conceitos jurídicos um“núcleo conceitual” e um “halo conceitual”.Para o mesmo Heck nos conceitos naturalísticostem se sempre a noção clara da extensão doconceito quando se está no núcleo, iniciando-se as dúvidas quando se está no halo. Cita como

7 LARENZ, K. Metodologia da Ciência doDireito. Tradução de José de Sousa e Brito e JoséAntônio Veloso. Lisboa : Fundação CalouesteGulbenkian, 1969. p. 355-356.

8 WARAT, L. A. Mitos e teorias na interpretaçãoda lei. Porto Alegre : Síntese, 1979. p. 93.

9 CARRIÓ, op. cit., p. 104. nota 2.

10 SILVEIRA. A. Hermenêutica no Direitobrasileiro . São Paulo : Revista dos Tribunais,1968. p. 103.

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exemplo a palavra noite: é noite às vinte equatro horas, quando domina a escuridão, massurgem dúvidas quando se afirma que é noiteàs dezoito horas, no momento do crepúsculo11.Igual exemplo pode ser dado quando se tratade conceitos normativos cujo sentido seencontre preenchido por uma valoraçãointerpretativa, como é o caso de expressõescomo ato vil, interesse público, mulher honesta.

A “teoria do halo” de Phillip Heck é tratadatambém por Genaro Carrió com o nome de“teoria da penumbra”. Segundo Carrió “todasas palavras são potencialmente vagas”12. Paraeste jurista argentino “há um foco de inten-sidade luminosa onde se agrupam exemplostípicos, aqueles frente aos quais não se duvidaque a palavra é aplicada; há uma mediata zonade obscuridade circundante onde se sabe que apalavra não se aplica e entre as duas há umazona de penumbra sem limites precisos ondese tem dúvidas sobre o emprego da palavra”13.Na “zona de penumbra” situam-se os conceitoscomo o de mulher honesta, interesse público,pequeno prejuízo ou pequeno valor.

Cabe ao intérprete descobrir o significadodas palavras tendo como ponto de partida aexpressão como um todo, porque o que se visaé determinar o significado da expressão.Portanto a interpretação semântica não ésilogística, mas uma redefinição do conceitoque é por natureza vago ou ambíguo. No mundodo direito onde impera a linguagem natural, asexpressões jurídicas, até mesmo as tecno-jurídicas, são relativas e incertas porquereferem-se ao que é genérico na sociedadehumana, referência esta decorrente da próprialei, que tem natureza genérica e abstrata. E ogenérico e o abstrato nunca têm o mesmosignificado para todas as pessoas em todos oscontextos. Por isso são grandes as divergênciasjurisprudenciais no que tange à interpretaçãodas palavras da lei.

Além das dimensões sintática e semânticada interpretação, há necessidade de se levar emconta a sua dimensão pragmática, ou seja, acompreensão da relação entre o intérprete, odestinatário e o usuário. Trata-se do “estudodo ato de falar enquanto uma relação entreemissor e receptor na medida em que é mediadapor signos lingüísticos”14. Conclui-se portanto

que a dimensão pragmática do símbolo secompõe do estudo da interação entre o receptore o emissor, tendo por objeto um discursodogmático, onde prevalecerá a opiniãoescolhida pelo emissor entre todas as opiniõespossíveis, num processo de metacomunicação(a comunicação do intérprete sobre a comu-nicação da lei) que, por sua vez, será impostaao receptor. Dessa forma, todo discursonormativo “revela uma violência simbólica,enquanto imposição, por um poder arbitrário,de um tipo de relação comunicativa que impõeo significado do relato”15. Por isso se vê que oaspecto pragmático da interpretação está ligadoa uma interação de valores pressupostos.

Como as palavras são vagas e ambíguas eveiculam valores, observa-se que a unifor-mização de seu sentido liga-se à normatizaçãopelo poder, à violência simbólica, “o podercapaz de impor significações como legítimas,dissimulando as relações de força que estão nofundamento da própria força16. É um arbítrioque reforça o significado socialmente aceito,uma vez que “ a variedade e diversidade dossentidos decorrem também da multiplicidadedos pontos de vista dos atores sociais: váriasopiniões, vários sentidos; é preciso, pois,produzir consenso... A organização dossímbolos apóia-se num processo de neu-tralização de outros agentes, os terceiros, sociaisque são, assim, uniformizados e, como tais,tomados como ponto de referência. A unifor-mização dos sentidos pela neutralização deopiniões dos outros é obtida por regraspragmáticas de controle social e, isto requer,de novo, uma forma de poder de violênciasimbólica: o poder liderança... Por fim avariedade e diversidade dos sentidos decorremtambém da multiplicidade dos símbolos e suaconseqüente vaguidade e ambigüidade. Fazmister neutralizar o próprio símbolo conferindodenotação e conotação razoavelmente precisasaos seus conteúdos. A uniformização, nestecaso, requer também uma forma de poder deviolência simbólica: o poder reputação,enquanto controle do repertório simbólico”17.

Neste sentido tanto Warat quanto Carrióenfatizam que interpretar significa produzirdefinições persuasivas que decorrem de argu-mentos valorativos, escondendo juízos de valorsob a aparência de definições pretensamente

11 HECK, apud ENGISCH, op. cit., p. 173.nota 5.

12 CARRIÓ, op. cit., p. 33, nota 2.13 Idem, p. 35.14 FERRAZ JR., T.S. Introdução ao estudo do

Direito. São Paulo : Atlas, 1991. p. 04.

15 Idem, p. 175.16 Ibidem, p. 251.17 Idibidem, p. 225.

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empíricas, objetivas ou neutras18. Não se pode,no entanto, afirmar que: pelo fato de os signoslingüísticos serem convencionais, aceitos ecompreendidos por emissores e receptores numprocesso intermediado pela violência simbólica,o intérprete tinha total liberdade para esta-belecer o nexo entre o significante e o signi-ficado. Esta negativa se dá porque a língua éuma convenção recebida e transmitida porherança, e o intérprete não pode fazer o quequiser com o signo porque a sua significaçãotem um caráter institucional, social e ideo-lógico. No dizer de Christiano de Andrade:

“Após a convenção a língua entranum processo de institucionalização, queescapa ao nosso controle. Essa institu-cionalização limita o intérprete, que nãopode trocar os significados das palavrasà vontade. Também essa institucio-nalização regula as relações sintag-máticas e associativas que, por sua vez,limitam o intérprete. Todavia, este do seulado, tem certa liberdade que depende deseu grau de capacidade ou habilidade demanipular, no seu nível institucional, asassociações possíveis”19.

Desenvolve-se a interpretação literal comouma paráfrase da linguagem normativa, ondehá uma explicação e uma reformulação do textocom a eliminação dos defeitos e incoveniências,obtendo-se um substitutivo expressivamentemais claro e formulado em termos maisconvenientes e o parafraseado é o sentidomesmo da expressão, objeto da interpretação.“A paráfrase permite alterar o contexto verbaldo discurso sem modificar seu significado; éuma técnica retórica capaz de aumentar aeficácia comunicativa da linguagem, funcio-nado como um aperfeiçoamento em relação aotexto parafraseado”20. A função da paráfrase écriar uma motivação para a linguagemnormativa num claro exemplo de violênciasimbólica.

Já se afirmou que a interpretação resultano arbitrário socialmente aceito, que é obtidopor intermédio de decisões, legislativas oujudiciais, que exigem critérios interpretativospróprios na sua elaboração. Estes critériosquando confrontados com a ambigüidade evagueza resultam na impossibilidade desubsunção através de silogismo e evidenciam a

existência de elementos valorativos quepermitem a aplicação das normas aos casosconcretos. Estes critérios são igualmente vagos:o bem comum, o interesse geral, o interessepúblico, a paz social e outros. Ao decidir, o juiznecessita da cooperação das partes e, portanto,deverá revelar esta decisão por meio de umdiscurso que implica comunicação e esta se dádurante todo o processo, com a possibilidadede argumentação entre as partes. Assim opensamento jurídico opõe-se ao pensamentodemonstrativo e universal, constituindo-se numraciocínio persuasivo e axiológico válido paradeterminadas pessoas e situações. É umraciocínio dialético que parte de um casoconcreto e não de uma norma a interpretar.

Theodor Viehweg compreende o raciocíniojurídico como raciocínio argumentativo oudialético, porque parte de opiniões geralmenteaceitas, sendo que estas opiniões podem serdefinidas como aquelas admitidas por todos21.Segundo Tércio Ferraz Júnior, “os conceitos eproposições básicos dos procedimentos dialé-ticos constituem-se não axiomas nem postuladosde demonstração, mas sim fórmulas variáveisno tempo e no espaço, de reconhecida forçapersuasiva no confronto de opiniões”22,configurando-se pois numa prática (ou práxis)de argumentação aplicável ao exercício retórico.

Como estilo ou modo de pensar, a tópicaparte de um caso particular procurando acoplá-lo a princípios e conceitos sem se ater aprocedimentos rigorosamente verificáveis, massim utilizando-se de argumentos dialéticos, quetêm como ponto de partida valores do sensocomum como Estado de direito, direitoshumanos, legitimidade, justiça, buscando obterde alguém um consenso para uma tese proposta.É um pensamento indutivo que tem comopremissas opiniões, possíveis e factíveis.

Tópica foi a jurisprudência romana naargumentação dos jurisconsultos, homensnotáveis, cujos pensamentos e opiniõestornaram-se argumentos de autoridade. Nestesentido a jurisprudência configura-se numatécnica que é colocada a serviço da solução deum problema e corresponde à tópica, que é umatécnica do pensamento problemático. Para KarlEngisch a tópica seria a “teoria da arte dadescoberta e da utilização de pontos de vista ede argumentos no tratamento de problemas que

18 WARAT, op. cit., p. 93, nota 8.CARRIÓ, op. cit., p. 104, nota 2.19 ANDRADE, op. cit., p. 197, nota 4.20 Idem, p. 173.

21 VIEHWEG, T. Tópica e jurisprudência.Tradução de Tércio S. Ferrar Jr. Brasília : ImprensaNacional, 1979. p. 36.

22 FERRAR JR, op. cit., p. 298, nota 14.

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se recusam a uma solução rigorosamentededutiva”23. Como a tópica constitui-se numpensamento que trabalha com juízos de valor,utiliza-se de uma lógica e teleológica.

Para finalizar é possível verificar que Joséde Oliveira Ascensão enfatiza que a tópica e aretórica são importantes no nosso mundoporque este é pragmático e opera por meio dafuncionalidade, que valoriza o argumento, oselementos formais e a opinião em detrimentoda verdade24. Se assim é, impossível pensar oDireito como um sistema fechado, comlinguagem própria, sem lacunas e semobscuridades, como queriam os positivistas.

4. O Regime Jurídico AdministrativoO Direito Administrativo Brasileiro como

ramo do Direito Público possui em seu conteúdoum conjunto de normas e princípios cogentesde aplicabilidade imediata que regulam econtrolam a atividade administrativa do Estadono que se refere aos atos praticados pelo PoderPúblico por meio de seus agentes. RegimeJurídico Administrativo é a denominação dadaa este conjunto de princípios que compõem umaunidade lógica que confere identidade aoDireito Administrativo e constitui o alicercepara toda sistematização posterior das normasque o compõem. Segundo Vedel “entende-sepor regime jurídico administrativo as regrasessenciais que dominam a atividade admi-nistrativa, isto é, os princípios fundamentaisdo Direito Administrativo”25.

O Regime Jurídico Administrativo temcomo princípios fundamentais a supremacia dointeresse público sobre os interesses privados ea indisponibilidade pela administração públicados interesses públicos. São estes doisprincípios que lhe conferem o caráter de direitopúblico e as suas especificidades, bem comosua natureza jurídica. Determinar a naturezajurídica significa qualificar determinadasrelações existentes na vida social fazendoincidir sobre elas o Direito. Segundo JacobDolinger,

“A qualificação ou natureza jurídicaé um processo tecno-jurídico semprepresente no direito, pelo qual se classificaordenadamente os fatos da vida relativa-

mente às instituições criadas pela Lei oupelo Costume, a fim de bem enquadraras primeiras nas segundas, encontrando-se assim a solução mais adequada eapropriada para os diversos conflitos queocorrem nas relações humanas”26.

Se assim é a realidade com a qual sedefronta o Direito Administrativo refere-se àregulamentação das atividades e da essência oucaráter da administração pública que seexteriorizam em seus poderes e deveres para arealização dos interesses públicos, que, porserem públicos, estão em patamar de superio-ridade em relação a interesses privados e àimpossibilidade da administração pública dedesviar-se dos interesses públicos. Nessesentido podemos dizer que o Direito Adminis-trativo assenta-se sobre as prerrogativas epotestades da administração pública, cujaessência e caráter ligam-se à titularidadeexclusiva da dicção do interesse público, e ointeresse e os direitos do administrado frenteàs prerrogativas desta mesma administraçãopública.

Para que o Regime Jurídico Administrativoesteja configurado é necessário um examepormenorizado de seus princípios, que lheconferem caráter orgânico e sistematizado. Sãoprincípios do Direito Administrativo, além dosdois princípios básicos que lhe definem anatureza jurídica, que se manifestam pelasupremacia do interesse público sobre ointeresse privado e a indisponibilidade dointeresse público pela administração, princípioda legalidade, princípio da finalidade, princípioda razoabilidade, princípio da proporcio-nalidade, princípio da motivação, princípio daimpessoalidade, princípio da publicidade,princípio da moralidade administrativa,princípio do controle judicial dos atos adminis-trativos e princípio da responsabilidade doEstado por atos administrativos.

Princípio da supremacia do interesse públicosobre o interesse privado

Na moderna sociedade democrática cons-titui-se dogma a afirmação de que o interesseda coletividade prevalece sobre o interesse doparticular. Nesse sentido é possível a afirmaçãode que os órgãos públicos gozam de supremaciafrente aos particulares em virtude de teremcomo obrigação a persecução do interessepúblico, possuindo alguns privilégios, como a

23 ENGISCH, op. cit., cap. 8, nota 5.24 ASCENSÃO, apud ANDRADE, op. cit., p.

206, nota 4.25 VEDEL, apud MELLO, C.A. Bandeira de.

Curso de Direito Administrativo. São Paulo :Malheiros, 1993. p. 19.

26 DOLINGER, J. Direito Internacional Privado.Rio de Janeiro : Renovar, 1994. p. 307.

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presunção de legitimidade dos atos adminis-trativos, a inversão do ônus da prova nasdemandas em que a administração estiver nacondição de ré, bem como prazos maiores naprática de atos processuais.

Por outro lado, como a administração estáem situação de supremacia, de comando frenteaos particulares, pode impor por meio da práticade atos administrativos, unilateralmente aosparticulares, a prática de atos independen-temente do acordo dos mesmos e exigir deles oseu cumprimento, configurando o requisito daexigibilidade dos atos administrativos. Comoa administração encontra-se em posição desupremacia frente aos particulares, poderáretirar o ato a qualquer tempo por motivos deconveniência ou oportunidade (revogação doato) ou decretar a sua nulidade quandocontrários ao ordenamento jurídico (anulaçãodo ato administrativo). Todas estas prerro-gativas são concedidas à Administração, tendoem vista o fato de constituir-se ela na guardiãdo interesse público. Aos poderes que lhe sãoconcedidos correspondem deveres de atendi-mento ao interesse público.

Princípio da indisponibilidadedo interesse público

O interesse público é indisponível, o queequivale dizer que a persecução do interessepúblico constitui uma obrigação, um dever paraa Administração e não faculdade que se inscreveno domínio da vontade. Rui Cirne Lima afirmaque “Na administração o dever e a finalidadesão predominantes, no domínio da propriedadeindividual a vontade”. Se assim é “a Adminis-tração é atividade do que não é senhorabsoluto”27 e deve estar adstrita às finalidadeslegais.

Princípio da legalidade

O princípio constitucional da legalidade,presente nos arts. 5º, II, 37, caput, e 84, IV,tem como pressuposto fundamental a idéia deque somente é possível a prática de um atoadministrativo quando houver previsão legalanterior.

O princípio da legalidade decorre direta-mente da noção de que o interesse público éindisponível para o administrador, motivo peloqual a atividade administrativa é balizada pelalei. O princípio da legalidade é o princípio que

norteia o Estado de Direito, sujeitando toda aatividade administrativa aos ditames da lei, eimpondo ao administrador o dever de não seafastar dela sob pena de responsabilidadedisciplinar, civil, penal, dentre outras. HelyLopes Meirelles enfatiza que “Na administraçãopública não há liberdade pessoal. Enquanto naadministração particular é lícito fazer tudo oque a lei não proíbe, na administração públicasó é permitido fazer o que a lei autoriza”28.Seabra Fagundes diz que “a legalidade naadministração não se resume à ausência deoposição à lei, mas pressupõe autorização dela,como condição para sua ação. Administrar éaplicar a lei de ofício”29.

Princípio da finalidadeA administração pública no exercício de

suas funções sempre tem em vista um objetivoou finalidade específicos. O princípio dafinalidade está contido no princípio dalegalidade, pois cabe à lei o dever de fixar afinalidade dos atos. Dar cumprimento aoprincípio da legalidade, pois cabe à lei o deverde fixar a finalidade dos atos. Dar cumprimentoao princípio da finalidade, significa igualmentecumprir o princípio da legalidade, uma vez quea finalidade legal é sempre vinculada e seconfigura na persecução do interesse público.Caso o administrador deixe de cumprir o fimlegal do ato, enquadrar-se-á no desvio de poder,que se configura na antítese do princípio dafinalidade.

Princípio da razoabilidadeDurante a execução da lei pelo adminis-

trador ele se depara muitas vezes com anecessidade de utilizar-se de critérios interpre-tativos para determinar a finalidade legal,definindo assim o interesse público a serperseguido. Estes critérios deverão serrazoáveis, fundados na razão e na práxiscotidiana da administração. Assim poderiamser consideradas condutas inválidas, tanto pelaadministração quanto pelo Judiciário, porquecontrárias ao interesse público aquelas açõesou omissões adotadas pelos agentes públicosque se configurassem incongruentes com asfinalidades pré-determinadas pela lei. Como seobserva, o princípio da finalidade encontra-seem harmonia com o princípio da legalidade.

27 LIMA, Rui C. Princípios de Direito Admi-nistrativo. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1954.p. 63.

28 MEIRELLES, Hely L. Direito Administrativobrasilieiro. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1964.p. 66.

29 FAGUNDES, A. Seabra. Controle juris-dicional dos atos administrativos. Rio de Janeiro :Forense, 1979. p. 4.

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Muitas vezes a lei faculta ao administradoruma certa margem de liberdade no que se refereao procedimento administrativo, cabendo a estedeterminar por meio de sua vontade, comfundamento em critérios de conveniência eoportunidade, qual a conduta a adotar dentrode uma série de condutas possíveis e igualmenteprevistas. Trata-se da discricionariedadeadministrativa, e esta margem de escolhatransbordará para ilegalidade, quando aconduta escolhida for desarrazoada ou nãoestiver comportada na lei que estabelece apossibilidade de que seja levada a cabo umaescolha dentro de uma série possível e previstade opções.

Princípio de proporcionalidadeEste princípio transmite uma idéia de

proporção, de medida, para que, quando daaplicação da lei no campo do Direito Adminis-trativo, as conseqüências e os resultados deladecorrentes não estejam imbuídos de exagero.Segundo este princípio entende-se que oadministrador, no uso de suas funções admi-nistrativas de dar cumprimento às leis, deveráater-se à justa medida para que os atos alcancemseus objetivos validamente previstos e naproporção em que seja demandada pela situaçãojurídica. Assim o ato do administrador nãodeverá ultrapassar, seja em intensidade ouextensidade, o necessário para atingir ointeresse público. Caso contrário, este ato seráconsiderado inválido por incongruência àfinalidade legal, cabendo a sua anulação peloPoder Judiciário. Assim, o princípio daproporcionalidade decorre do princípio darazoabilidade.

Princípio da motivaçãoO princípio da motivação tem como

corolário o princípio da legalidade, que impõeà administração o dever de fundamentar o atopraticado, expondo as razões de fato e de direitoque determinaram a sua expedição. Ausente amotivação, o ato é nulo, especialmente se forato advindo do exercício de competênciadiscricionária, onde se reputará razoável,conforme a lei, ou obediente à finalidade, ounão, a escolha feita pelo administrador dentrode uma série de opções que a lei lhe possibilitase este explicar as razões que o levaram a adotaraquela conduta e não outra. Nos casos em queo ato for praticado no exercício de competênciavinculada, a motivação já está embutida no ato,

porque se trata de ato praticado de formaautomática em estrito cumprimento da lei.

Princípio da impessoalidadeA prática dos atos administrativos deve

obedecer aos critérios de imparcialidade eimpessoalidade, proibida a utilização decritérios que levem ao favorecimento dedeterminadas pessoas ou ao direcionamento daprática de atos para beneficiar indiretamentedeterminadas pessoas, procurando sim umaequiparação entre os administrados. Na suaatuação o administrador deverá pautar-se pelaisonomia dos administrados perante a adminis-tração, considerando-se nulos os atos queestabeleçam desigualdades ilegais entre osadministrados. Um dos atos administrativos quese regem pelo princípio da impessoalidade é ainstituição de concurso público para provimentodos cargos e funções administrativas.

Princípio da publicidadeTodos os atos praticados pelos agentes

públicos no exercício da função administrativadevem ser dotados de transparência, permitindoaos administrados cientificarem-se de que aadministração pauta-se pela persecução dointeresse público. Em garantia ao princípio dapublicidade a Constituição Federal prevê orecurso judicial do habeas data cuja titularidadeé concedida ao administrado para cientificar-se sobre informações de seu interesse de caráterpúblico que lhe forem negadas. A publicidadedos atos administrativos somente será suspensaquando o silêncio for imprescindível àsegurança da sociedade e do Estado, seautorizado pela lei.

Princípio da moralidade administrativaFunda-se tal princípio nos denominados

princípios de lealdade e de boa-fé, queprescrevem aos agentes públicos atuarem deacordo com princípios éticos, permeando seusatos de sinceridade e veracidade, proibindo-sequalquer comportamento de má-fé visandoconfundir, dificultar ou minimizar o exercíciode direitos por parte dos cidadãos. Parainvalidar tal ato o cidadão tem o remédiojudicial da ação popular.

O princípio do controle judicialdos atos administrativos

É possível comparar a expressão controle,aqui mencionada, com a expressão monopólio,

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uma vez que, como é princípio constitucionalda unidade de jurisdição que se consubstanciana possibilidade de submissão de qualquerquestão de direito ao controle judicial –inclusive os litígios entre a administraçãopública e os administrados – assim detém oPoder Judiciário a universalidade de jurisdição,podendo anular ou tornar nulo quaisquer atosda administração que afrontem a ordemjurídica.

O princípio da responsabilidade do Estadopor atos administrativos

Prescreve o texto constitucional em seu art.37, § 6º:

“As pessoas jurídicas de DireitoPúblico e as de direito privado presta-doras de serviços públicos responderãopelos danos que seus agentes, nestaqualidade, causarem a terceiros, assegu-rado o direito de regresso contra oresponsável nos casos de dolo ou culpa”.

Nesse sentido é possível a afirmação de queo Estado no exercício da atividade adminis-trativa é objetivamente responsável por todosos atos que venham a ser praticados pelosagentes públicos que tragam prejuízos aterceiros, assegurado o direito de regresso doEstado contra o funcionário que tenha agidocom dolo ou culpa. As concessionárias oupermissionárias, empresas privadas queprestam serviços públicos, obrigam-se domesmo modo que o Estado, ou seja, também aempresa responsabiliza-se objetivamente pelaação do seu funcionário que cause dano ouprejuízo a terceiros.

Enfatizar-se-á que a responsabilizaçãoobjetiva do Estado em virtude de danoscausados a terceiros, relacionados à realizaçãoda atividade pública, somente ocorre em casoscomissivos, ou seja, quando o agente públicoestava obrigado a executar uma atividade e naexecução prejudicou o particular. Nos casos deconduta omissiva, quando o agente estavaobrigado a atuar para evitar o dano e, podendofazê-lo, não o fez, ou o fez de forma deficiente,a responsabilidade é subjetiva, porque estáconfigurada a culpa de serviço.

O Regime Jurídico Administrativo, que seconfigura num sistema integrado de normasoriundas do direito público, compreende umavasta quantidade de normas que tem por funçãodisciplinar a constituição da administraçãopública, seus poderes e principalmente a suarelação com os administrados. Ocorre que a

linguagem na qual se expressam as normas doRegime Jurídico Administrativo não é umalinguagem inteiramente formalizada, compostade palavras de sentido unívoco, mas umalinguagem natural, de textura aberta, dominadapela indeterminação dos conceitos que motivamum renovar permanente da ordem jurídica, pormeio da permanente redefinição de expressõeslegais. Estas palavras vagas são conhecidas emDireito Administrativo como conceitosindeterminados. Vaguezas e ambigüidadessurgem durante todo o processo de aplicação einterpretação do Direito.

O Direito Administrativo é pródigo emconceitos jurídicos compostos por palavrasvagas, situadas na “zona de penumbra”:interesse público, notável saber, reputaçãoilibada, finalidade pública, bem comum, motivojusto, motivo relevante e urgente e inúmerosoutros cuja definição se faz após processointerpretativo removedor da indeterminação.Como se vê, a própria razão de ser do RegimeJurídico Administrativo expressa-se porintermédio de uma expressão vaga: a pros-secução do interesse público. Como definir ointeresse público? Nesse processo de definiçãodo interesse público é necessária apenas ainterpretação do conceito vago ou incidetambém a discricionariedade do administrador?Segundo Queiró, entende-se a discriciona-riedade como “uma outorga de liberdade, feitapelo legislador à administração, numa inten-cional concessão de poder de escolha, ante oqual se legitimam, como igualmente legais,igualmente correta de lege lata, todas asdecisões que couberem dentro da série, maisou menos ampla, daquelas entre as quais aliberdade da ação administrativa foi pelolegislador confinada”30.

5. A linguagem no Regime JurídicoAdministrativo e a interpretação dos

conceitos indeterminadosComo já observado, o Regime Jurídico

Administrativo apresenta-se eivado de expres-sões de conteúdo indeterminado que necessitamde determinação no momento de sua aplicação.

Os chamados conceitos indeterminadosestão enquadrados na categoria das expressõesatípicas, situadas nos limites da “zona depenumbra”31 de que fala Carrió ou no “halo

30 QUEIRÓ, A. Rodrigues. Estudos de DireitoAdministrativo. Coimbra : Atlândida, 1968. p. 09.

31 CARRIÓ, op. cit., p. 35, nota 2.

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conceitual” de Philipp Heck32. Dessa forma, oscasos atípicos derivam dos equívocos causadospela ignorância do real significado da regra emrelação aos fatos. Para solucionar estes casos,cabe ao juiz conhecer critérios valorativos dacomunidade no seu estágio atual, que funda-mentarão a redefinição da norma, num processode reconhecimento e de interpretação da regrae não de criação do Direito.

Cabe ao administrador, intérprete e desti-natário da norma, defini-la no momento de suaaplicação. Os conceitos indeterminados ounormativos somente são perceptíveis aoraciocínio quando conectados aos valoreshumanos, que os tornam compreensíveis a seusfins. Somente a finalidade poderá dar signi-ficação às realizações e comportamentoshumanos. Segundo concluí de Recaséns Siches,o fim é criador de todo o Direito, não há normajurídica que não deva sua origem a um fim, aum propósito33. Partindo deste pressuposto, amoderna doutrina alienígena, citando-se KarlEngisch, Karl Larens, Genaró Carrió, AfonsoQueiró, André Gonçalves Pereira, EduardoGarcia de Enterria, Theodor Vieweg e entrenós, com algumas restrições Celso A. Bandeirade Mello, afirmam que a vagueza exigirá doadministrador-intérprete a denotação doconceito para que seja fixada a sua extensão eassim satisfeito o interesse público. Para estesdoutrinadores não há discricionariedade, oupossibilidade de escolha, na definição dosconceitos vagos, mas sim interpretação daexpressão no momento de sua aplicação. Oconceito é indeterminado abstratamente, maspassível de determinação quando confrontadocom uma situação da vida prática ao qual deveráser aplicado.

Interpretar é descobrir o alcance e o sentidoda lei; é denotar e definir o conceito à luz decritérios valorativos objetivos e atuais vigentesna comunidade; exercer competência discri-cionária é escolher, motivando o ato, entre duasou mais opções, que lhe são dadas por lei, aque melhor se adapta ao caso concreto.

Nesse sentido, imprescindível a citação daspalavras de Afonso Queiró:

“O poder discricionário, consiste, porsua vez, numa outorga de liberdade feitapelo legislador à administração, numaintencional concessão do poder deescolha, ante o qual se legitimam, comoigualmente legais, igualmente correta de

lege lata todas as decisões que couberemdentro de uma série, mais ou menosampla, daquelas entre as quais a liber-dade de ação administrativa foi pelolegislador confinada. Não se trata,portanto, de uma simples, mais ou menosineliminável ou mais ou menos inten-cional, deficiência de formulação dalinguagem legislativa, corrigível ao fimdo trabalho interpretativo; não se tratade acrescentar a um pensamento maltransmitido, mal expresso, aquelamargem de clareza que lhe falta, ante ofato de o legislador não ter levado, ounão ter podido levar até o fim, ondeseria, tudo somado, possível o seuempenho de comunicar aos órgãos daadministração um pensamento deconteúdo possível . Trata-se, sim, detransferir à administração o encargo deeleger a medida ou o procedimento maisidôneo à prossecução de uma finalidadepública cuja realização é reputadanecessária pelo legislador. Este não sereputa, freqüentemente, na melhorposição para comandar em todos osaspectos e pormenores a atividadeadministrativa. A sua planificação destaatividade não é, em geral – nem convémque seja –, completa”34 (grifos nossos).

Portanto, a discricionariedade surge quandoo legislador defere ao administrador o poderde, com sua vontade, determinar entre duaspossibilidades diversas qual a ideal para dar aexecução do ato, ou seja, o administradorutilizará, entre as diversas possibilidades, umaque atenda com exclusividade e perfeição a fina-lidade da lei. Expõe Celso A. Bandeira de Mello:

“o administrador está, então, nos casosde discricionariedade, perante o deverjurídico de praticar não qualquer atodentre os comportados pela regra, mas,única e exclusivamente aquele queatenda com absoluta perfeição a fina-lidade da lei”35.

Eduardo García de Enterría diz ser o ato deinterpretar diverso do exercício de competênciadiscricionária pelo administrador, uma vez quea discricionariedade implica opção outorgadaao administrador em lei, permitindo-lhe aescolha de dois critérios distintos e claramentediferenciados para resolver a questão de fato,

32 HECK, apud ENGISCH, op. cit., p. 173,nota 5.

33 RECASÉNS SICHES, op. cit., p. 223, nota 01.

34 QUEIRÓ, op. cit., p. 9-10, nota 30.35 MELLO, C. A. Bandeira de. Discriciona-

riedade administrativa e controle jurisdicional. SãoPaulo : Malheiros, 1992. p. 33.

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numa complementação à lei. Assim, a deno-tação do conceito é um ato redefinitório,portanto, de caráter interpretativo, e não visa acomplementar a lei, apenas aclará-la, uma vezque os conceitos fluídos somente se apresentamvagos quando abstratamente considerados,ganhando determinação quando confrontadoscom os casos concretos36.

No Brasil, os Tribunais e os administradorespúblicos em geral consideram que os conceitosfluidos estão sujeitos ao exercício de compe-tência discricionária na sua definição, ou seja,caberia ao agente “escolher” o significado doconceito vago. Além de um engano, estaposição revela uma ofensa ao princípio dalegalidade, uma vez que, ao “escolher” osignificado para o conceito indeterminado, oagente poderia invadir o campo das leis quegarantem direitos e liberdades dos cidadãos,bem assim lhes impõem direitos e obrigações,dando-lhes uma interpretação subjetivaimprópria.

Trata-se de questão relevante, tendo emvista o fato de que se fizermos como a ModernaLingüística e Filosofia do Direito, quecompreendem a determinação dos conceitosindeterminados como resultado decorrente doprocesso de interpretação, concluiremos que oadministrador age em exercício de competênciavinculada, suscetível de avaliação posterior peloJudiciário; enquanto que se considerarmos que adefinição do significado deste conceito indeter-minado configura-se exercício de competênciadiscricionária, estaremos diante da impossi-bilidade de avaliação posterior pelo Judiciário.

Um exemplo bastante controvertido podedemonstrar as diferenças entre a interpretaçãoe a discricionariedade. Trata-se do art. 62 daConstituição Federal, estabelecendo que emcasos de relevância e urgência poderá oPresidente da República propor medidaprovisória ao Congresso. Urgência e relevânciasão conceitos vagos, sujeitos à interpretação tão-somente ou ao exercício de competênciadiscricionária?

A relevância da expedição da medidaprovisória se justifica perante a gravidade e aimportância da questão a ser submetida àdisciplina da medida provisória, notadamenteligada ao perecimento de algum interessepúblico, como por exemplo a tranqüilidadepública, a confiança no sistema monetário e apropriedade dos cidadãos, garantida pelo art.

5º, caput, da Constituição. Já a urgência implicaa impossibilidade de retardamento sob pena deque, quando a normatização for elaborada jáhaver perecido o interesse público. Assim, nãoserá urgente a disciplina jurídica de uma dadasituação de fato que puder aguardar o proce-dimento legislativo do Congresso Nacional,sem afrontar o interesse público.

Segundo Celso A. Bandeira de Melo, cabeao Judiciário, no caso o Supremo TribunalFederal, verificar se houve urgência e relevânciana edição de medidas provisórias, porqueafirmar que relevância e urgência são conceitosdiscricionários equivale deixar ao arbítrio doadministrador a decisão e este poder utilizar-se de medidas provisórias para qualquer assuntoque, ao seu talante, for urgente e relevante,mesmo que contrário à própria significação daspalavras37.

Conclui-se pois que os conceitos indeter-minados são passíveis de interpretação e podemter seus significados aferidos, objetiva eatualisticamente, segundo as situações fáticasnas quais são defrontados e não passíveis deuma valoração subjetiva, tal qual têm consi-derado nossos tribunais ao se recusarem a julgardemandas contra a administração que envolvama interpretação de conceitos indeterminados,alegando que se trataria de invasão à compe-tência discricionária do administrador.

6. ConclusõesA sociedade moderna organiza-se por

intermédio de normas, que são sistematizadase se exteriorizam por intermédio de palavras,frases e textos. Visando disciplinar as condutashumanas em sociedade, o Direito utilizapalavras e expressões oriundas da linguagemcomum, que possuem ambigüidades e vaguezas,não empregando uma linguagem técnica, quecontém palavras unívocas.

Inegável a necessidade da interpretação,uma vez que a norma jurídica é constituída porpalavras características da linguagem naturale esta nem sempre é clara, derrubando assim omito do legislador racional e conseqüentementea possibilidade de exclusividade de inter-pretação literal.

A interpretação literal difere da interpre-tação lingüística, uma vez que a primeira visaesclarecer o sentido das palavras da lei,enquanto que a segunda visa problematizar oseu significado conforme o contexto cultural e

36 GARCÍA DE ENTERRÍA, E. Curso deDerecho Administrativo. 4. ed. Madrid : Civitas,1983. p. 420 e segs.

37 MELLO, C. A. Bandeira de. Curso de DireitoAdministrativo. São Paulo : Malheiros, 1993. p.62-67.

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valorativo em que se inserem as normas,mostrando a plurivocidade da linguagemnatural.

Por configurar-se o sistema jurídico numsistema aberto que apresenta indeterminaçõesque se manifestam na ambigüidade, na vaguezadas palavras e no uso delas feito no processode comunicação por sujeitos diferentes, segundouma escala de valores ditada pela argumentaçãoretórica e pelo juízo eqüitativo, é necessário queo juiz ou o administrador, dentro de umprocesso de redefinição da lei feito no momentode sua aplicação aos casos concretos, deter-minem, perante a situação fática em questão, oalcance e o significado das normas.

Nesse sentido a interpretação funcionacomo paráfrase, visando eliminar os incon-venientes da linguagem para torná-la clara ecomunicativa, onde o intérprete, juiz ouadministrador, se coloca entre o emissor-legislador e o receptor-súdito, esclarecendo edecodificando a mensagem por meio dadescrição-redefinição dos possíveis conteúdosnormativos enunciados.

O Regime Jurídico Administrativo que sebaliza por princípios e normas próprios comoos princípios da supremacia da Administraçãosobre os particulares, da indisponibilidade dointeresse público e da legalidade, por constituir-se em parte desta grande árvore que é o Direito,também se exterioriza por meio de palavras ori-undas da linguagem natural, possuindo uma sériemuito grande de conceitos indeterminados.

Cabe ao administrador interpretar osconceitos indeterminados da lei, procurandoredefinir seu conteúdo à luz de critériosobjetivos e valores atuais vigentes na vidasocial. Ao executar a interpretação dosconceitos indeterminados, o administrador atuaem exercício de competência vinculada,passível de verificação posterior pelo Judiciário.

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É o objetivo deste trabalho examinar aaplicabilidade da Lei Complementar nº 64, de18 de maio de 1990, que “estabelece, de acordocom o art. 14, § 9º, da Constituição Federal,casos de inelegibilidade, prazos de cessação edetermina outras providências”, diante daceleuma que foi criada no meio político com apromulgação da Emenda Constitucional nº 16,de 1997, que introduziu o princípio da reeleiçãopara os chefes do Poder Executivo no Brasil.

A polêmica que se instalou na vida político-eleitoral desde então refere-se à aplicação daregra de desincompatibilização da Lei deInelegibilidade aos Governadores e Prefeitos.

Com o intuito de participar desse debate,elaborei estas breves anotações, deixando delado as considerações teóricas sobre o institutoda reelegibilidade, para centrar a minha análiseno conteúdo da Lei nº 64, de 1990, diante danova ordem constitucional estabelecida pelaEmenda Constitucional nº 16, de 1997.

Inicialmente, torna-se necessária a obser-vação de que essa questão só poderá serdefinitivamente deslindada após o pronuncia-mento do Supremo Tribunal Federal, medianteprovocação em um eventual julgamento de açãodireta de inconstitucionalidade da Lei deInelegibilidade ou de suas partes que estejam,porventura, em conflito com o texto constitu-cional emendado, pois cabe ao Supremo aúltima palavra sobre interpretação constitu-cional. Desse modo, qualquer previsão sobre aposição a ser firmada pela Corte Suprema seriamera especulação.

Todavia, em que pese a doutrina consultadasobre a matéria para elaborar este estudo seja,a meu ver, consistente e racional, não se podedescartar a possibilidade de que aquela Cortepossa ter outro entendimento a respeito da

A Recepção da Lei Complementar nº 64,de 1990 (Lei de Inelegibilidade), pelaEmenda Constitucional nº 16, de 1997

PAULO HENRIQUE SOARES

Paulo Henrique Soares é Consultor Legislativodo Senado Federal e Mestrando em Direito e Estadona Faculdade de Direito da UnB.

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matéria. No nosso sistema jurídico-constitu-cional não está o STF vinculado nem mesmoàs suas decisões. Ademais, a Constituição é umestatuto político de natureza aberta e polis-sêmica, que permite diversas “leituras” quepodem variar ao longo do tempo, adaptando-se às mudanças que ocorrem na sociedadepolítica nacional, não estando o Supremo imunea tais fatores.

Não obstante tais considerações, entendoque a modificação político-eleitoral introduzidapela Emenda Constitucional nº 16/97 revogadispositivos da Lei Complementar n º 64/90 queconflitam com o texto constitucional recém-modificado.

É o caso de seu art. 1º, III, a, e IV, a, quepermite uma interpretação literal para impor adesincompatibilização de Governadores ePrefeitos de seus cargos, seis meses antes dopleito eleitoral, para concorrerem ao mesmocargo. No texto constitucional revogado pelaEC nº 16/97 a inelegibilidade dessas auto-ridades para os mesmos cargos era absoluta,não havendo, por conseguinte, como admitiragora, diante da nova regra constitucional, queo citado dispositivo possa ser invocado paraobrigar o afastamento das referidas autoridadesde seus cargos na hipótese de disputarem umsegundo mandato.

É evidente que essa interpretação da LC nº64/90 é equivocada, pois pretende utilizar regrade dispositivo legal que foi aprovada peloCongresso Nacional em 1990, justamente paradisciplinar a Constituição Federal quanto àscondições de inelegibilidade, inclusivereproduzindo suas normas para proibir que osdetentores de cargos de Chefe do Executivopudessem disputar o mesmo cargo no períodosubseqüente.

Por conseguinte, é insustentável a inter-pretação de que a EC nº 16/97 recepcionou asuposta previsão de desincompatibilização dosGovernadores e Prefeitos da LC nº 64/90, coma finalidade de ficarem desimpedidos paradisputarem a renovação do mandato para operíodo imediatamente seguinte, em razão denunca ter existido essa possibilidade em faceda proibição constitucional contida no § 5º doart. 14, que prevalecia antes da promulgaçãoda referida Emenda.

A Lei Complementar nº 64/90 adota umatécnica complexa de remissões que trazdificuldade de leitura e, às vezes, superposiçãode normas, que torna sem sentido práticodeterminados dispositivos. Em apenas um

artigo – art. 1º – dispõe longamente sobre todosos casos de inelegibilidade, tomando comoreferência principal a inelegibilidade relativapara Presidente da República, disposta numaexaustiva lista composta de 16 itens, quetambém é remetida, em cadeia, para a inelegi-bilidade de Governadores e Prefeitos.

A LC nº 64/90 estabelece, verbis:“Art. 1º São inelegíveis:I - para qualquer cargo:...........................................................II – para Presidente e Vice-Presidente

da República:a) até 6 (seis) meses depois de

afastados definitivamente de seus cargose funções:

10 – os Governadores de Estado, doDistrito Federal e de Territórios;

...........................................................13 – os Prefeitos Municipais;...........................................................III – para Governador e Vice-

Governador de Estado e do DistritoFederal:

a) os inelegíveis para os cargos dePresidente e Vice-Presidente da Repú-blica especificados na alínea “a” doinciso II deste artigo e, no tocante àsdemais alíneas, quando se tratar derepartição pública, associação ou empre-sas que operem no território do Estadoou do Distrito Federal, observados osmesmos prazos;

...........................................................IV – para Prefeito e Vice-Prefeitoa) no que lhe for aplicável, por

identidade de situações, os inelegíveispara os cargos de Presidente e Vice-Presidente da República, Governador eVice-Governador de Estado e do DistritoFederal, observado o prazo de 4 (quatro)meses para a desincompatibilização;

................................. ” (grifos nossos)A remissão prevista no art. 1º, inciso III, a,

ao inciso II, a, item 10, do mesmo artigosupracitado, da LC nº 64/90, que “prevê” oafastamento, seis meses antes do pleito, doGovernador e Vice-Governador de Estado e doDistrito Federal para concorrer ao mesmocargo, é completamente destituída de conteúdojurídico em razão de, até o advento da EC nº16/97, a Constituição Federal proibir acandidatura das citadas autoridades ao mesmocargo para o período subseqüente.

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Sob a mesma argumentação, não se podeadmitir a aplicação da regra de desin-compatibilização prevista na LC nº 64/90 paraPrefeito e Vice-Prefeito que queiram concorrerao mesmo cargo para o período subseqüente,recorrendo-se à remissão, ainda que nãoexpressa, do art. 1º, inciso IV, a, ao inciso II,a, item 13, do mesmo artigo da citada lei.

A interpretação que se impõe nesses casosde remissão a uma lista aplicável especifi-camente ao cargo de Presidente e Vice-Presidente da República é excluir tudo aquiloque é incompatível com a Constituição ou como sentido lógico objetivado pela norma legal.A própria Constituição traz esse tipo deimpropriedade quando permite, em seu art. 22,parágrafo único, que “Lei complementar poderáautorizar os Estados a legislar sobre questõesespecíficas das matérias relacionadas nesteartigo”, entre as quais se encontram, porexemplo, nacionalidade, cidadania e natura-lização (inciso XIII); emigração e imigração,entrada, extradição e expulsão de estrangeiros(inciso XV); comércio exterior e interestadual(inciso VIII); competência da polícia federal edas polícias rodoviária e ferroviária federias(inciso XXII); defesa territorial, defesaaeroespacial, defesa marítima, defesa civil emobilização nacional (inciso XXVIII), todasde caráter eminentemente nacional, nãopodendo ser tratadas por legislação estadual.Portanto, em caso de enumeração deve-seaplicar apenas o que for pertinente e nãoconflitante com o conteúdo intrínseco e materialda lei.

Se a EC nº 16/97 permite a reeleição paraos chefes do Poder Executivo nos três níveis daFederação, sem prever expressamente adesincompatibilização dessas autoridades paraque possam concorrer aos mesmos cargos parao período subseqüente, não poderá a LC nº 64/90 ser invocada para preencher qualquer lacunado texto constitucional, porque à legislaçãoinfraconstitucional é vedado estabelecerrestrição de direito político que a própriaConstituição não estabelece.

Restrição de direito deve ser expressa, nãopode ser presumida, e somente disposiçãoconstitucional expressa pode restringi-lo;sequer a lei ordinária poderá fazê-lo. Para JeanClaude Masclet, citado por Mônica Caggiano(Reeleição. São Paulo : CEPS, 1997. 9 f. f. 4),“as inelegibilidades não se presumem. Inves-tindo contra direito fundamental, vinculado aoexercício da soberania, elas devem resultar deum texto expresso”.

O supracitado autor põe em destaque“a conotação excepcional que devemanter toda restrição imposta à liberdadepública fundamental, consubstanciada napossibilidade de acessar mandatoseletivos” (op. cit., f. 3).

Também José Afonso da Silva conclui:“A explicitação do objeto [por parte

da Constituição], quanto às inelegi-bilidades a serem criadas pela leicomplementar era necessária, porque,configurando elas restrições a direitospolíticos, importa sejam delimitadas aosobjetos e fundamentos claros e expres-samente indicados. Por serem restritivasde direitos fundamentais (direitos àelegibilidade), é que a técnica semprerecomendou que fossem disciplinadasinteiramente em dispositivos constitu-cionais”. (Curso de Direito Consti-tucional Positivo. 8. ed. São Paulo :Malheiros, 1992. p. 340) (grifos nossos).

Ainda é José Afonso da Silva que, aoexaminar a eficácia das normas sobre inelegi-bilidades, cita Argemiro de Figueiredo, nodebate sobre a matéria na Constituinte de 1946:

“se já estatuímos, em dispositivos jávotados, todos os casos de ‘elegibilidade’,com maior razão devemos incluir,expressamente, em nossa Carta Magnaos de ‘inelegibilidades’, por que estes sãomais importantes, visto como significamrestrições ao direito político do cidadão.O mesmo poder que cria o direito é ocompetente para impor limitações. Seriaerro de técnica, e perigoso mesmo,deixarmos matéria de tamanha impor-tância para o legislador ordinário”. (op.cit., p. 340).

É induvidoso, portanto, que, ao afastar dotexto constitucional a proibição de reeleição, oconstituinte derivado nada mais faz queremover a exceção constitucional que estabeleceincompatibilidade eleitoral absoluta para osatuais Chefes do Poder Executivo, concedendo-lhes o direito, que é de todos os cidadãos, decandidatarem-se ao mesmo cargo na eleiçãoseguinte, assegurando-lhes, assim, a plenitudedo exercício de seus Direitos Políticos, os quaissão fundamentais e inerentes ao homem.

É pacífica, portanto, a regra hermenêuticade que a restrição de direito fundamental, comoé o caso do direito político, deve estar expres-samente prevista no texto constitucional, nãosendo admissível ao intérprete recorrer a

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quaisquer outros métodos exegéticos que venhama reduzi-los, mas somente para ampliá-los.

Trata-se de um princípio geral do Direitosobre o qual não há divergências doutrináriasou jurisprudenciais, e que integra o patrimôniojurídico da humanidade, sendo observado emtodos os Estados democráticos de direito.

O § 9º do art. 14 da Constituição prevê que“lei complementar estabelecerá outros casos deinelegibilidade”. Esta lei, já em vigor, é a LeiComplementar nº 64/90 que, no entanto, deveráconformar-se ao texto constitucional vigente,ficando, assim, revogados todos os seusdispositivos que forem incompatíveis com a ECnº 16/97. Desse modo, não poderá ser aplicadaa referida lei para impor a obrigatoriedade dedesincompatibilização aos Chefes do PoderExecutivo, em qualquer um de seus três níveisfederativos, que queiram concorrer à reeleição,a não ser que esta condição esteja expres-samente prevista no texto constitucional apro-vado.

O supracitado dispositivo, ao determinarque “lei complementar estabelecerá outros casosde inelegibilidade”, não está, obviamente,pretendendo tratar dos casos de inelegibilidadedo Presidente da República, Governadores ePrefeitos, já expressamente estabelecidos naConstituição. Essa interpretação é inevitável emrazão de o art. 14 tratar de casos de inelegi-bilidade nos parágrafos precedentes, inclusivea relativa às citadas autoridades, não restandodúvida, portanto, que os outros casos sãoaqueles que foram omitidos pelo texto consti-tucional. Por conseguinte, a expressão outroscasos compreende o complemento dos casosmencionados.

Em que pese à incoerência lógico-jurídicada EC nº 16/97 contida na fórmula de que, paraconcorrer a outros cargos, o Presidente daRepública, os Governadores e Prefeitos devamrenunciar a seus cargos seis meses antes daseleições (o que não é previsto para os mesmoscargos), não se pode extrair daí, no entanto,

uma interpretação que colida com aquilo que oconstituinte derivado impôs, em decorrência daretirada da expressão “...seis meses anterioresao pleito”, deixando de prever, assim, adesincompatibilização.

Há quem discorde dessa interpretação,inclusive juristas renomados, alegando que asinelegibilidades estabelecidas pela Constituiçãodevem ser entendidas sistemicamente, ou seja,como um todo, tendo em vista o princípio damoralidade pública. Entendemos que essa visãonão se aplica a um sistema que prevê o institutoda reeleição e altera profundamente asconcepções prevalecentes até agora, em razãode serem a reeleição e a desincompatibilizaçãoidéias inconciliáveis do ponto de vista dosistema eleitoral. Não é por outra razão quenão se conhece experiência que as combinemem outros países.

Por último, como já afirmamos anterior-mente, entendemos que, com a vigência da ECnº 16/97, suprimindo do texto do § 5º do art.14 da Constituição a expressão Governadores ePrefeitos, não haverá obstáculo à candidatura detais autoridades à reeleição, pois somente ex-pressa proibição constitucional poderia fazê-lo.

Não poderia, também, nesse caso, seraplicada a LC nº 64/90, que determina adesincompatibilização seis meses antes dopleito, sendo exigida apenas em face do dispostono § 6º do referido artigo, que impõe adesincompatibilização dessas pessoas paraoutros cargos. Portanto, não pode legislaçãoinfraconstitucional impor inelegibilidade paraPresidente da República, Governador e Prefeitoquando não prevista no próprio texto consti-tucional. Por conseguinte, não pode a leicomplementar, prevista no § 9º do art. 14, tratardesses casos, mas apenas de outros casos.

Concluímos, portanto, que qualquerrestrição de direito, inclusive o político, que éde suma importância para o exercício dademocracia, deverá ser expressamente referidano texto constitucional.

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1. IntroduçãoA busca de uma solução para o problema

da morosidade da prestação jurisdicionalremonta a tempos imemoriais. Todos ossistemas jurídicos contemporâneos, seja depaíses desenvolvidos ou em desenvolvimento,recebem, num maior ou menor grau, críticasquanto à falta de celeridade no andamento dosprocessos. O sistema brasileiro não é exceção.

Dentro desse contexto, e partindo-se dapremissa de que o processo de conhecimento,nos moldes tradicionais, já não se mostravaadequado a assegurar a tutela jurisdicionaldentro dos parâmetros de celeridade exigidospor determinadas situações e ainda imbuído dosideais de constante aprimoramento da legis-lação, sob o pálio das novas exigências doDireito Processual Civil moderno, é que olegislador ordinário fez introduzir no ordena-mento a ação monitória.

A finalidade última dessa ação, comopreleciona Ada Pellegrini Grinover, é “exata-mente acelerar a formação do título executivojudicial sem as complicações e as demoras doprocesso ordinário de conhecimento”1.

Essa nova espécie de ação, também deno-minada de “procedimento monitório”, foi

Ação monitória contra a Fazenda Pública

ROGÉRIO MARINHO LEITE CHAVES

Rogério Marinho Leite Chaves é Advogado eProcurador do D.F.

SUMÁRIO

1. Introdução 2. Origem 3. Características 4.Ação monitória contra a Fazenda Pública 5. Óbicesao uso da monitória nas ações movidas contra aFazenda Pública. 5.1. Imprescindibilidade desentença judicial 5.2. Duplo grau de jurisdição 5.3.Precatório. 5.4. Indisponibilidade do Direito – não-incidência dos efeitos da revelia. 6. Conclusão.

1 Ação monitória. Revista Jurídica Consulex, v.1, n. 6, p. 24/28, 1997.

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introduzida pela Lei nº 9.079/95, que alterou oCódigo de Processo Civil, estando disciplinadano artigo 1.102, a, b e c.

2. OrigemConquanto a monitória se apresente como

uma novidade entre nós, é certo que sua origemé secular. Suas raízes remontam ao períodomedieval, com o mandatum de solvendo cumclausula justificativa, do antigo direito italiano,mandado esse que, como lembra MoacyrAmaral Santos, era expedido sine cognitione esem prévia citação do devedor. Se o réu não sedefendesse no prazo estipulado, dava-seexecução ao mandatum2.

Sob a influência do ius comune na PenínsulaIbérica, foi introduzido no Direito Português,a partir das Ordenações Manuelinas, novo tipode procedimento denominado “ação deassinação de dez dias”, que se lastreava emescrituras públicas e alvarás particulares. Combase nele, o réu era citado para pagar, apresentarprova da quitação ou opor embargos, no prazode 10 dias, findo o qual seria condenado porsentença a pagar ao autor (OrdenaçõesManuelinas, 3.16; Ordenações Filipinas,3.25)3.

Modernamente, a ação monitória é disci-plinada no ordenamento de vários países. NaItália, a ação é denominada de “Procedimentid’ ingiuzione”; na Alemanha, “Mahnverfahren”(sistema puro) e “Urkundenprozess” (sistemadocumental); na Áustria, “Mandatsverfahren”;na França, “Injontion de payer”4.

O uso preferencial da ação monitória emlugar dos meios ordinários justifica-se por trêsmotivos, de acordo com Proto Pisani5. Primei-ramente, evita-se o custo do processo decognição plena. Em segundo lugar, efetiva-sea tutela adequada à relação jurídica de direitomaterial subjacente. Por último, evita-se o abusode direito de defesa do demandado, sem lhesuprimir as garantias constitucionais.

3. CaracterísticasTipo especialíssimo de ação, a monitória

reúne a um só tempo características do processo

de conhecimento e execução. Para Chiovenda,a monitória era espécie de processo “compredominante função executiva”6.

Cuida-se de ação destinada à rápidaformação do título executivo, caracterizada pelainexistência ou, para alguns, pela sumariedadede conhecimento, onde é expedido o mandadoinitio litis para pagamento ou entrega da coisa,cuja eficácia está condicionada à atitudeprocessual do devedor de impugná-lo, ou não.

A doutrina conhece dois tipos distintos deprocesso monitório: o puro e o documental. Noprimeiro modelo, não há necessidade de se fazerprova documental da obrigação, enquanto nosegundo tal prova é imprescindível.

Por razões de maior segurança processual,o sistema brasileiro assenta-se no modelodocumental, exigindo prova escrita da obri-gação, consoante se vê do disposto no art. 1.102,a do CPC, in verbis:

“Art. 1.102, a. A ação monitóriacompete a quem pretender, com base emprova escrita sem eficácia de títuloexecutivo, pagamento de soma emdinheiro, entrega de coisa fungível ou dedeterminado bem móvel”.

Sua característica marcante é, segundoCarnelutti, a eventualidade de contraditório.Para Calamandrei7, o que predomina é ainversão da iniciativa do contraditório, cabendoao réu instaurá-lo.

O réu é citado para cumprir a obrigação noprazo constante do “mandado de pagamentoou de entrega da coisa” (CPC, art. 1.102, b).Poderá fazê-lo voluntariamente ou oferecerimpugnação à pretensão do autor, o que é feitopor meio de “embargos” (CPC, art. 1.102, c).Se não cumprir a obrigação nem oferecerimpugnação no prazo, o mandado inicialconverte-se, pleno iure, em título executivo,independentemente de sentença ou qualqueroutra formalidade.

Em análise à natureza do mandado decitação, Sérgio Bermudes assinala compropriedade que “Trata-se a meu sentir desentença condenatória condicional, proferidaem forma de despacho”8. Isso porque, essadecisão passa a gozar de eficácia executiva

2 Das ações cominatórias no Direito brasileiro.4. ed. Max Limonad, 1969. V.1 p. 147. pag. 147.

3 TUCCI, José Rogério Cruz e. Ação monitória,2. ed. Revista dos Tribunais, 1997. p. 36.

4 SANTOS, op. cit., p. 151; José EduardoCarreira. ALVIM, Procedimento monitório. 2. ed.Juruá, 1997. p. 42.

5 TUCCI, op. cit., p. 17.

6 apud CHIOVENDA SANTOS, op. cit., p. 144.7 El procedimento monitório. Editorial Biblio-

gráfica Argentina, p. 24.8 Ação monitória : primeiras impressões sobre

a Lei nº 9.079 de 14.7.95. Revista de Direito doTribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, v.26, p. 64, jan./mar. 1996.

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plena e imediata, quando não interpostos osembargos.

Embargada, no entanto, a demanda, hácomo que uma suspensão da eficácia domandado inicial9. Nesse caso, o processamentoda demanda dar-se-á em consonância com orito ordinário (CPC, art. 1.102, c, § 2º).

4. Ação monitória contraa Fazenda Pública

Ao contrário do que ocorre com o processoexecutivo, para o qual a legislação dedicacapítulo exclusivo (CPC, art. 730), a norma queintroduziu a ação monitória entre nós foiabsolutamente omissa quanto à possibilidadede ser deduzido este tipo de ação contra aFazenda Pública; e não são poucos os problemascausados por essa omissão do legislador.

O primeiro e mais importante deles é a faltade sintonia da doutrina quanto à questão. Numaanálise dos trabalhos doutrinários que sefizeram acerca do procedimento monitório, oque se vê é uma profunda divergência.

Juristas de renome como Ada PellegriniGrinover10, Cândido Rangel Dinamarco11, J. E.Carreira Alvim12, Sérgio Bermudes13, entreoutros, advogam a admissibilidade da monitóriacontra a Fazenda.

Outra corrente, formada por não menosdestacados processualistas como HumbertoTheodoro Júnior14, Ernani Fidelis dos Santos15,José Rogério Cruz e Tucci16, Vicente GrecoFilho17, além de outros, entendem-na incabívelem face da Fazenda Pública.

Por outro lado, tendo em vista a recentidadedas inovações processuais que culminaram naintrodução em nosso ordenamento da açãomonitória, ainda não há jurisprudência firmadaa esse respeito.

Embora substanciosos os argumentos deuma e outra corrente, razões há que, a meu

sentir, inviabilizam de forma definitiva o usoda ação monitória, tal como hoje inserida nalegislação, contra a Fazenda Pública.

O ponto de partida para a solução doproblema colocado, causa da dicotomia deentendimento doutrinário, passa pela herme-nêutica legislativa. Sob a ótica do princípio daunidade do ordenamento jurídico, lembrado porHesse18, cujas premissas visam evitar anti-nomias, os dispositivos que tratam da açãomonitória não comportam uma leitura isolada.

Ao contrário, como ocorre a todo dispositivolegal, devem ser cotejados não só com outroscomandos legais inseridos na mesma norma –no caso as normas do próprio Código deProcesso Civil – como também com outrosdispositivos legais existentes, especialmenteaqueles que tenham assento constitucional.

Nesse sentido é que, cotejados os dispo-sitivos legais que tratam do procedimentomonitório com outros inseridos na legislaçãoordinária e constitucional, atinentes aosprivilégios materiais e processuais da FazendaPública, exsurgem diversos óbices ao uso damonitória contra os entes públicos, que serãotratados a seguir.

5. Óbices ao uso da monitória nas açõesmovidas contra a Fazenda Pública

5.1. Imprescindibilidade de sentença judicial

Como se deixou consignado acima, uma vezinterpostos embargos, a ação monitória segueo rito ordinário. Ao final, será proferidasentença de mérito, acolhendo ou rejeitando osembargos. Dessa decisão, caberá recurso deApelação19, que deverá ser recebido no seuduplo efeito. Essa hipótese não traz maioresdificuldades, uma vez que haverá sentença,sendo facultado ao Tribunal o reexame damatéria.

No entanto, não se pode partir do pressu-posto de que, uma vez deduzido o pleitomonitório, a Fazenda irá sempre apresentarembargos, como bem acentuou Cruz e Tucci20.

É perfeitamente admissível, até por razõesde falta de recursos humanos suficientes, que aFazenda Pública deixe de apresentar embargosou os apresente fora do prazo.

9 DIAS, Francisco Barros. Ação monitória.RTJE, v. 150, p. 22, jul. 1996.

10 GRINOVER, op. cit.11 DINAMARCO apud TUCCI, op. cit., p. 75.12 ALVIM, op. cit.13 BERMUDES, op. cit.14 As inovações no Código de Processo Civil.

Forense, 1996.15 Procedimento monitório. Revista de Processo,

n. 81, p. 24-31, jan./mar. 1996.16 TUCCI, op. cit.17 Considerações sobre a ação monitória. Revista

de Processo, n. 80, p.155-158, out./dez. 1995.

18 Escritos de Derecho Constitucional. Traduçãoespanhola. Madrid : Centro de Estudios Consti-tucionales, 1983, p. 57.

19 Nesse sentido, ALVIM. op. cit., p. 122.20 op. cit., p. 76.

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Nesse caso, a lei processual prevê que, nãointerpostos embargos, “constituir-se-á de plenodireito o título executivo judicial, convertendo-se o mandado inicial em mandado executivo”(CPC, art. 1.102, c). O mesmo ocorre quandoos embargos forem interpostos fora do prazo21.Assim, o mandado de citação se converte, plenojure , sem maiores formalidades, em títuloexecutivo, sem que seja proferida sentença demérito, transformando-se em coisa julgadamaterial, segundo posição de Ada PellegriniGrinover22.

No entanto, com relação à Fazenda Públicaprevalece o princípio da nulla executio sinetitulo. Isto é, não pode haver execução sem aformação do título judicial pelo meio apro-priado, que se dá pela sentença de mérito23.

A Lei Maior, em seu artigo 100, deixaexpresso que os precatórios só serão pagos emvirtude de sentença judicial. In verbis:

“Art. 100. À exceção dos créditos denatureza alimentícia, os pagamentosdevidos pela Fazenda Federal, Estadualou Municipal, em virtude de sentençajudiciária, far-se-ão exclusivamente naordem cronológica de apresentação dosprecatórios...”.

Tendo-se em conta a possibilidade deformação de título executivo, na ação monitória,sem sentença, pela simples conversão de plenodireito do mandado de pagamento ou entrega,apura-se a inadequação desse procedimento nasações movidas contra a Fazenda.

5.2. Duplo grau de jurisdiçãoComo já dito, na monitória, quando não

interpostos embargos, há conversão domandado de pagamento em título executivo,independentemente de sentença (CPC, art.1.102, c). A conseqüência disso é a formaçãoimediata da coisa julgada, sendo irrecorrível adecisão24.

Assim é que, em face dos dispositivos quetratam da ação monitória, é perfeitamentecabível a formação de título executivo noprimeiro grau de jurisdição, e mais, semsentença. Não poderia ser diferente, pois oprocedimento monitório foi instituído justa-mente para ser usado nos casos em que se requerceleridade processual.

Esse modelo não se amolda aos privilégiosprocessuais da Fazenda, que demandam nãosó um julgamento de mérito, como tambémcondicionam a eficácia da decisão condenatóriaao reexame da matéria pelo tribunal ad quem.

Nesse sentido o comando legal inserido noart. 475, II, do CPC, in verbis:

“Art. 475. Está sujeita ao duplo graude jurisdição, não produzindo efeitosenão depois de confirmada pelo tribunala sentença:

II - proferida contra a União, o Estadoe o Município”.

Carreira Alvim e Ada Pellegrini Grinover,que defendem o uso da monitória contra aFazenda, procuram superar o problemaaduzindo que, quando a Fazenda figurar nopolo passivo da demanda, poderá haverreapreciação pelo Tribunal25.

Ora, admitindo-se, como faz a renomadaprofessora Ada Pellegrini, a necessidade de seoutorgar o prazo privilegiado para embargos(CPC, art. 188) e ainda estando a decisão sujeitaao duplo grau de jurisdição, essas alteraçõesteriam um efeito de tal ordem na ação monitóriaque esta perderia sua principal característica,sua razão de ser, que é a celeridade.

Seria muitas vezes preferível – até porquestão de rapidez – lançar mão do ritosumário, se presentes às hipóteses do art. 275do CPC, em vez dessa nova “modalidade” demonitória, com prazo em quádruplo paraembargar e recurso obrigatório, visto que muitopouco teria de diferente da ação ordináriaconvencional.

Mesmo dotada de recurso ex officio, ocabimento da monitória contra a Fazenda seriapouco provável. Isso porque, quando o Códigode Processo Civil fala em “duplo grau dejurisdição”, quis se referir ao reexame de méritoda lide. Ocorre que na monitória o meritumcausae não é apreciado quando não sãointerpostos embargos.

21 ALVIM, op. cit., p. 118 e GARBAGNATI,Edoardo. I procedimenti di ingiunzione e sfratto,Milano : A. Giuffre, 1951, p. 100.

22 GRINOVER, op. cit., p. 26.23 Nesse sentido a lição de Humberto Theodoro

Júnior, para quem, “a Fazenda não se sujeita aprecatório sem prévia sentença”. (op. cit., p. 80).No mesmo sentido, Vicente Grego Filho: “enten-demos descaber a ação monitória contra a FazendaPública, contra a qual deve haver título sentencial,com duplo grau de jurisdição para pagamento pormeio de ofício requisitório” (op. cit., p. 158).

24 Cf. lição de Carreira Alvim, para quem“Inexistindo sentença, não existe, conseqüen-temente, apelação, sendo tal decisão irrecorrível”(op. cit., p. 121).

25 Ada Pellegrini aduz “Tratar-se-á somente deobservar as prerrogativas da Fazenda Pública noprocedimento monitório: benefício de prazo paraembargar (contestar) e talvez, a garantia do duplograu de jurisdição quando a sentença condicionalse consolidar” op. cit., p. 28 (grifamos).

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Na realidade, o que se devolverá ao tribunalserá não o mérito da causa, mas apenas o examedas formalidades necessárias à propositura daação monitória, o que, permissa venia, éincompatível com o princípio do reexamenecessário a que estão sujeitas as decisõesproferidas em detrimento da coisa pública.

5.3. PrecatórioTendo em vista a natureza injuntiva da ação

monitória, o juiz, recebendo a inicial, expedeordem provisória, sob condição suspensiva,para que o réu, no prazo de 15 dias, pague odébito ou cumpra a obrigação de fazer, ordemessa que ganha foros de definitividade uma veznão interpostos os embargos.

Ora, se, como lembra Antônio RaphaelSilva Salvador26,

“não se pode, nem mesmo em exe-cução por título judicial contra aFazenda, exigir o pagamento em vinte equatro horas ou mesmo a penhora debens, havendo execução especial naforma dos arts. 730 e ss. do Código deProcesso Civil, como então, exigir-se opagamento por mandado ou a entrega decoisa antes de sentença judicial e antesde execução especial a que tem direito aFazenda?... como poderíamos aceitar queo mandado expedido initio litis jádeterminasse à Fazenda que fizesse umpagamento que não poderia fazer pordepender de orçamento e de destinaçãoapropriada da quantia, tudo a exigirprecatório?”.

Arremata o autor, aduzindo, com proprie-dade, que “não pode haver ordem de pagamentocontra a Fazenda Pública”, cujos débitossomente serão quitados em obediência aosistema de precatório previsto no artigo 730 doCPC e no art. 100 da Lei Maior.

Os autores que defendem o uso da açãocontra a Fazenda argumentam que, quandomovida contra ente público, a monitória serviriaapenas como meio de obter-se o título executivo.Obtido o título, a execução dar-se-ia emobservância do disposto no art. 730 do CPC27.

A prevalecer esse entendimento, entendoque haveria uma deturpação – não prevista pelolegislador – da ação monitória, que perderia

por completo sua principal característica, queé a injuntividade, na medida em que já nãohaveria o “mandado para pagamento” típicodo procedimento monitório, porquanto, comose disse, um tal mandado seria inviável contraa Fazenda Pública, porque contra ela éinadmissível uma ordem para pagamento e seusbens não são susceptíveis de penhora.

Cruz e Tucci, analisando essa possibilidade,também mostrou-se contrário a aplicaçãodeturpada da monitória, in verbis:

“Mesmo então que se admitisse aação monitória em face da FazendaPública, a decisão preambular, traduzidana injunção de pagamento, jamaisgozaria de eficácia executiva plena eimediata, circunstância essa que des-natura, ex radice, o procedimentomonitório”28.

Sob outro prisma, é preciso que se tenhaem conta que, em momento algum, a normalegal prevê essa aplicação descaracterizada daação monitória, onde o mandado de pagamentonada tem de injuntividade. Daí porque entendonão ser lícito ao intérprete deturpar a normapara “adequá-la” às ações movidas contra aFazenda Pública.

Nesse sentido é que eventual ação monitóriadeduzida contra a Fazenda Pública deve serrepelida, devendo ser decretada a carência deação por impossibilidade jurídica do pedido,como acentuou Eduardo Talamini 29, porinadequação do instrumento processualutilizado.

5.4. Indisponibilidade do Direito – nãoincidência dos efeitos da revelia

Outro elemento a indicar a insuscepti-bilidade do uso da ação monitória contra aFazenda Pública reside no fato de que, nessetipo de procedimento, não interpostos embargosno prazo legal, há confissão ficta da obrigação,convertendo-se o mandado inicial de paga-mento em título executivo (CPC, art. 1.102, c).

Isto é, não apresentando embargos, o réuconfessa a dívida determinando a lei que se lheapliquem os efeitos da revelia. Nessa linha, oentendimento de Carreira Alvim para quem

“A ausência de embargos não geraapenas a confissão quanto a matéria defato, mas reconhecimento tácito dopróprio direito material do credor”30.26 SALVADOR apud TUCCI, op. cit., p. 74.

27 DIAS, op. cit., p. 24 e Novély Vilanova daSilva Reis, em artigo publicado no SuplementoDireito e Justiça do Correio Braziliense de 28.8.95,p. 3, apud Dias, op. cit.

28 TUCCI, op. cit., p. 78.29 TALAMINI apud TUCCI, op. cit., p. 78.30 ALVIM, op. cit., p. 128.

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Contra a Fazenda Pública, entretanto, nãoprevalece a regra da confissão, aplicável às lidesentre particulares, uma vez que o direito doEstado é indisponível, o que faz incidir a regrado art. 320, II, do CPC, vazada nos seguintestermos:

“Art. 319. Se o réu não contestar aação, reputar-se-ão verdadeiros os fatosafirmados pelo autor.

Art. 320. A revelia não induz,contudo, o efeito mencionado no artigoantecedente:

(...)II - se o litígio versar sobre direitos

indisponíveis”.Não incidindo sobre a Fazenda os efeitos

da revelia, não pode o mandado inicial serconvertido, pleno jure, em título executivo. Daíporque, não havendo presunção da veracidadedos fatos, ainda que não contestados, ou, nocaso, não embargados, sobre eles o autor deveráfazer prova, cabendo ao juiz a cognição plenadessa prova, pouco importando se já existeprova escrita. Até porque essa prova está, emtese, sujeita a vícios e irregularidades dediversas ordens, não sendo incontrastável. Nãose pode admitir, com efeito, que toda provaescrita seja sempre imaculada, mormentequando se sabe que se trata aqui de documentosem eficácia de título executivo.

Nesse sentido, conclui-se pela inapli-cabilidade da monitória contra a Fazenda,porque esse tipo de procedimento prevê, para ocaso de não serem interpostos embargos, aconfissão ficta e a conversão, sem julgamento,do mandado de pagamento em título executivo,o que é inviável em se tratando de direitosindisponíveis, conforme inequívoco preceitocontido no art. 320, II, do CPC.

6. ConclusãoO legislador quando quis disciplinar o uso

do processo executivo contra a Fazendainstituiu todo um Capítulo para esse fim,dotando-o de particularidades próprias (CPC,art. 730).

Se, ao disciplinar a ação monitória – cujacaracterística é mais de natureza executiva doque cognitiva –, omitiu-se em fazer disposiçõesespecíficas atinentes às ações propostas contraa Fazenda Pública, tudo indica que, inten-cionalmente, quis limitar o seu uso às lideshavidas entre particulares.

Por outro lado, em face das inúmeraspeculiaridades do ordenamento jurídico

brasileiro, no que concerne aos privilégios dedireito material e processual da FazendaPública, como o princípio do reexame neces-sário, da imperiosidade do precatório, dainexistência de confissão ficta, e da impenho-rabilidade dos bens públicos, torna-se inviávela pretensão de se deduzir contra ela a açãomonitória.

Mesmo os autores que defendem o seu usocontra o ente público, de um modo geralconcordam que o procedimento monitóriodeveria sofrer alterações procedimentais paraadequar-se aos privilégios processuais emateriais do Estado.

No entanto, como se deixou claro, essasalterações, além de não previstas nem admitidaspela Lei nº 9.079/95, que introduziu a açãomonitória, seriam de tal ordem que a açãoperderia por completo sua característica deinjuntividade.

É de todo recomendável, que, nas demandasmovidas contra a Fazenda, faça-se o uso da açãode conhecimento, especialmente quando puderser empregada em seu rito sumário, pois é quasecerto que, em razão dos muitos obstáculosprocessuais, eventual ação monitória, aindaquando admitida, consumiria mais tempo paraser julgada do que uma ação de conhecimento.

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1. IntroduçãoPodemos pensar a história como um

processo civilizatório por meio do qual ahumanidade aprende a viver em sociedade, aresolver seus conflitos e a definir os direitos eobrigações de seus membros. Ou então comoum processo de desenvolvimento econômicopor meio do qual esta mesma humanidadeaprende a trabalhar em conjunto, a dividir otrabalho e alocar recursos, a cooperar naprodução e competir pelo produto social. Noprimeiro caso, a resolução dos problemas deação coletiva passa pela institucionalização doEstado e a criação do Direito; no segundo, pelainstitucionalização dos mercados. Nos doiscasos, por um processo de distribuição de poder,de riqueza e de renda entre participantes quesatisfaça minimamente os objetivos políticosmaiores de ordem, bem-estar, liberdade e ajustiça social. Uma sociedade será tanto maiscivilizada quanto mais equilibrada e plena-mente se aproximar desses objetivos.

Neste trabalho vou me concentrar noprocesso civilizatório mais geral, de naturezapolítica, por meio do qual homens e mulheresvêm buscando a ordem, a liberdade e a justiçasocial. Para isso, partindo da proposta básicade Marshall, examinarei o desenvolvimento daidéia de cidadania a partir da afirmação,primeiro, dos direitos civis, segundo, dos

Cidadania e res publica: a emergênciados direitos republicanos

LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA

Luiz Carlos Bresser Pereira é Professor daFundação Getúlio Vargas, São Paulo, e Ministro daAdministração Federal e Reforma do Estado.

SUMÁRIO

1. Introdução. 2. Direito, Estado e os direitos.3. Cidadão, Direito e direitos. 4. O público e oprivado. 5. Os direitos republicanos e os interessesdifusos. 6. Direito à coisa pública. 7. Positivaçãodo direito à res publica. 8. Defensores e adversários.9. Conclusão.

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direitos políticos, e terceiro, dos direitos sociais.Na medida, entretanto, em que esses direitos,ainda que não tenham sido efetivamenteassegurados, já foram razoavelmente bemdefinidos e incorporados nas Constituições enas leis dos países civilizados, argumentareineste artigo que, no último quartel do séculoXX, um quarto direito de cidadania – os direitospúblicos ou, mais precisamente, os direitosrepublicanos –, está sendo definido e precisaser melhor positivado e efetivamente garantido.Definirei os direitos republicanos como osdireitos que todo cidadão tem que o patrimôniopúblico – seja ele o patrimônio histórico-cultural, seja o patrimônio ambiental, seja opatrimônio econômico ou res publica estritosenso –, seja efetivamente público, ou seja, detodos e para todos. E procurarei, especialmente,entre os direitos republicanos, propor umadefinição para o direito à res publica, entendidaesta, de forma restrita, como o estoque de ativose principalmente o fluxo de recursos que oEstado e as entidades públicas não-estataiscontrolam. Em um século em que essa respublica tornou-se muito grande, representandoentre um terço e a metade de toda a renda dasnações, a cobiça de indivíduos e grupos emrelação a ela aumentou muito, tornando-sehistoricamente imperativa sua proteção. Estemesmo século, entretanto, foi também o séculoda afirmação da democracia em todo o mundo.E a democracia implica um desenvolvimentocrescente do conceito de cidadania, que seafirma à medida que a tensão entre o privado eo público, entre os direitos individuais e oscoletivos, encontra soluções.

2. Direito, Estado e os direitosO Direito geralmente é definido como sendo

o conjunto de normas dotadas de poderinstitucionalizado de coerção que regulam avida social1. Uma outra forma de entender oDireito, que para os objetivos deste trabalho émais interessante, é pensá-lo como o conjuntode direitos e obrigações dos cidadãos e daspessoas jurídicas que o Estado reconhece eassegura. Em qualquer das duas hipóteses,podemos pensar o Direito ou como criação doEstado, ou, inversamente, o Estado como

criatura do Direito. Por paradoxal que pareça,as duas afirmações estão corretas. Não háDireito sem Estado nas sociedades modernas,já que não haverá norma jurídica se não houvera correspondente possibilidade de sanção peloEstado. Podem existir normas costumeiras,tradicionais, mas não chegam a se constituirem Direito no sentido estrito do termo. Por issopode-se afirmar que o Estado – a organizaçãocom poder de legislar e tributar a população deum determinado território –, cria o Direito. Maso inverso também é verdadeiro. Não é possívelfalar em Estado sem o Direito. O Estado sedefine a partir da norma constitucional. Surgeum Estado quando um conjunto de indivíduosse afirmam como cidadãos ao formularem edarem vigência ao conjunto de normas queconstitui o Estado. Nesse sentido o Direito criao Estado.

Na verdade, conforme observou Celso Lafer(1988: 72), o Estado no mundo contemporâneoé mais um mediador dos conflitos existentesna sociedade do que ente soberano semprepronto a fazer valer a positividade da lei. Nessesentido

“a unidade do Estado e do Direito não éum ponto de chegada, à maneira docontratualismo clássico na sua expli-cação da origem da sociedade, do Estadoe do Direito no paradigma do Direitonatural; nem um pressuposto não-problemático da dogmática jurídica, nalinha do positivismo, mas sim umprocesso contínuo e aberto”.

O positivismo jurídico tem pouco a oferecernas explicações das relações entre Estado eDireito, na medida em que unifica as duasinstituições2. Mais iluminadoras são as teoriasde caráter histórico e as de natureza lógico-dedutiva sobre as origens do Estado e doDireito. Na primeira acepção podemos explicaro Estado, segundo a tradição de Aristóteles,Hegel e Marx, como a conseqüência de umprocesso histórico por meio do qual os gruposou classes com maior poder institucionalizaramesse poder, estabeleceram a ordem na sociedadee garantiram para si a apropriação do excedente

1 Bobbio (1958, p. 111-113) enfatiza o caráterinstitucionalizado da garantia da norma jurídica.Para ele o que caracteriza a norma jurídica é o poderde coerção externo, desde que institucionalizado,distinguindo-se, assim, dos poderes de tipo mafioso,que também são dotados de coercibilidade.

2 Vale observar que esta posição é muitodiferente da de Kelsen (1934, p. 378-385) para quemo Estado é simplesmente um tipo de ordem jurídica,desta forma subordinando o Estado ao Direito.Segundo ele, “aquilo que se concebe como forma deEstado é apenas um caso especial de forma do Direitoem geral... o Estado é uma ordem jurídica”. OEstado, para Kelsen, é a personificação da ordemjurídica.

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econômico. Na segunda, podemos vê-lo comoo resultado de um contrato social entre oscidadãos, ou seja, como um resultado racio-nalmente necessário para os homens escaparemao estado de natureza, como o fizeram osjusnaturalistas de Hobbes a Rousseau e Kant3.

No primeiro caso a cidadania só surgehistoricamente, na medida em que os indi-víduos vão se investindo de direitos – maisprecisamente direitos e obrigações que vãoconstituir o Direito. No segundo, o Estado é oresultado de uma escolha ou de um contrato,que, a rigor, já se pressupõe a existência docidadão: um cidadão detentor de direitos –direitos naturais ou valores morais básicos –que ele cede parcialmente ao Estado paragarantir a ordem social. No primeiro caso, aidéia de justiça e os direitos e deverescorrespondentes vão surgindo à medida que asociedade vai se tornando capaz de efetivá-los;no segundo, a justiça das instituições básicasda sociedade e de suas leis é deduzidalogicamente a partir da maximização dasatisfação que elas proporcionam, como queremos utilitaristas, ou é o resultado de princípiosmorais básicos a que chegariam consen-sualmente homens e mulheres hipoteticamenteiguais entre si ao estabelecerem o contrato socialoriginal entre si, e, em conseqüência, a estruturabásica da sociedade, definida pelas instituiçõesbásicas da sociedade que distribuem os direitose deveres fundamentais e determinam a divisãodas vantagens da cooperação social, como querRawls (1971: 1-22). Nos dois casos, Estado,Direito e cidadania são termos intrinsecamenteinterdependentes. Estado e Direito são duasinstituições básicas da sociedade por meio dasquais esta estabelece a ordem, garante aliberdade para seus membros e manifesta suaaspiração de justiça4. A cidadania surge dainteração dessas três conquistas sociais. Nesseprocesso, conforme enfatiza Habermas, a moralnão tem precedência sobre o Direito, comoquerem os jusnaturalistas, nem este é indepen-

dente da moral, como pretenderia o positivismo:na verdade, são complementares5.

Nesse sentido, Estado e Direito não passamde criaturas e instrumentos da sociedade. Sãoinstituições sociais cujas características variarãoem função das mudanças que estiveremocorrendo na estrutura da sociedade. Dasmudanças que estiverem ocorrendo na distri-buição dos quatro atributos que conferem poderaos indivíduos e grupos: a força material oucapacidade de coerção, a riqueza, a hegemoniaideológico-religiosa e o conhecimento técnicoe organizacional. Quando esses quatro ele-mentos estiverem muito concentrados emgrupos com capacidade de organização, teremossociedades autoritárias, Estados correspon-dentemente autoritários e o Direito a serviçodos poderosos. Os direitos estarão limitados auma minoria. Na medida, entretanto, que odesenvolvimento econômico ocorre, as socie-dades tornam-se mais complexas, a educaçãose generaliza, passa a ocorrer um crescenteprocesso de equalização social e portanto dedesconcentração daqueles quatro atributos, e acapacidade de organização política da sociedadecomo um todo aumenta. Aos poucos os regimespolíticos autocráticos vão dando lugar a regimesdemocráticos, sistemas sociais baseados emestamentos quando não no regime de castas dãolugar a classes sociais e estas a camadas ouestratos sociais.

Este processo ganha um extraordinárioimpulso com o surgimento do capitalismo e damais-valia capitalista. Nesse momento aapropriação do excedente econômico deixa deser o resultado do uso da força por meio docontrole direto do Estado e passa a ser oresultado de uma troca de equivalentes nomercado. Abre-se, então, a possibilidade dosurgimento das democracias modernas, nasquais a cidadania finalmente se afirmará. Emum primeiro momento a força material cedelugar para a riqueza como fonte de poder, e as

3 Ver a respeito Bobbio (1979, p. 49-58), BresserPereira e Tadeu Lima (1996). Nas ciências sociais ésempre possível adotar predominantemente um ououtro método, resultando daí teorias aparentementeconflitantes, mas que na verdade são ou podem sercomplementares.

4 Além do Estado e do Direito, as outras duasinstituições básicas da sociedade são o mercado e asociedade civil. Por meio delas os “arranjoseconômicos e sociais”, na terminologia de Rawls(1971, p. 7), se constituem, a ordem econômica esocial é definida.

5 Nas palavras de Habermas (1992, p. 106):“Uma ordem legal só pode ser legítima se nãocontraditar princípios morais básicos. Em virtudedos componentes de legitimidade que fundamentama validade da lei, a lei positiva tem uma referênciamoral nela inscrita. Mas essa referência moral nãonos deve levar à confusão de colocar a moral acimada lei, como se existisse uma hierarquia de normas.A noção de uma lei maior (isto é, de uma hierarquiana ordem legal) pertence ao mundo moderno. Aoinvés, a moralidade autônoma e a lei positiva quedepende de justificação apresentam-se em umarelação de complementaridade”.

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classes sociais substituem as castas como formade organização social. Em um segundomomento, já neste século, a riqueza começa aceder espaço para o conhecimento técnico eorganizacional, e a estrutura social passa secaracterizar cada vez mais por camadas ouestratos ao invés de classes sociais. Por meiodesse processo, força, riqueza e conhecimentotécnico e organizacional vão pouco a pouco sedesconcentrando, viabilizando o surgimento desociedades plurais, nas quais o Estado sedemocratiza, os direitos se afirmam, e o Direitose transforma em instrumento da cidadania6.

3. Cidadão, Direito e direitosCidadão é o membro do Estado-Nação

dotado de direitos e capaz de interferir naprodução do Direito. Este, por sua vez, é oconjunto dos direitos dos cidadãos – e daspessoas jurídicas por eles instituídas. Acidadania se expande e se afirma na sociedadeà medida que os indivíduos adquirem direitose ampliam sua participação na criação dopróprio Direito. Logo, os direitos estão nocentro das idéias de Direito, Estado e cidadania.

Os direitos que constituem a cidadania sãosempre conquistas, são sempre o resultado deum processo histórico por meio do qualindivíduos, grupos e nações lutam por adquiri-los e fazê-los valer. Ninguém foi mais enfáticoe inspirado em afirmar tal fato do que Ihering(1872: 15):

“todo e qualquer direito, seja o direitode um povo, seja o direito de umindivíduo, só se afirma através de umadisposição ininterrupta para a luta”.

Bobbio (1992: XVI) caminha na mesma linha.Para ele, que adota uma posição firme contra aidéia dos direitos naturais, os direitos nascemquando devem e podem nascer. São direitoshistóricos, que nascem de lutas que se travamatravés do tempo, gradualmente. Que nascemem circunstâncias determinadas, relacionadascom a defesa de novas liberdades. Desta forma:

“Certas demandas nascem quandosurgem determinadas necessidades.Novas necessidades nascem em corres-pondência às mudanças das condiçõessociais, quando o desenvolvimentotécnico permite satisfazê-las. Falar de

direitos naturais, ou fundamentais, ouinalienáveis, ou invioláveis é usarfórmulas de linguagem persuasiva quepodem ter uma função prática em umdocumento político para dar mais forçaà demanda, mas não têm qualquer valorteórico, e portanto são completamenteirrelevantes em uma discussão sobre ateoria do direito”.

A luta pelo direito e pela afirmação dacidadania é, em um primeiro momento, umaluta da burguesia ou da classe média. No séculoXX, entretanto, tornou-se uma luta muito maisampla, em que os pobres tornavam-se nãoapenas cidadãos formais, com direito a voto,mas cidadãos de fato7. Para isso, dois fatoresassumiram um papel relevante de caráterinformativo: a educação e uma imprensa livre.Por outro lado, a cidadania é uma prática. Porisso, sociólogos e antropólogos salientaram aimportância crescente dos movimentos sociaispara a construção da cidadania por meio daafirmação de direitos sociais8. Essa prática,entretanto, pode se realizar mediante defesa dedireitos civis, particularmente da afirmação dodireito do consumidor. Por meio da sua defesao consumidor assume o caráter de cidadão9.

Os direitos historicamente afirmados sãoassegurados pelo Estado a favor do cidadão econtra algo ou alguém: primeiro temos osdireitos civis e políticos: são direitos contra umEstado autoritário e oligárquico; em seguida,temos os direitos sociais: são os direitos contra

6 Examinei estes temas em Estado e Subde-senvolvimento Industrializado (1977), A SociedadeEstatal e a Tecnoburocracia (1981) e Estado,Sociedade Civil e Legitimidade Democrática (1995).

7 Chamei de “contradição da cidadania” oproblema político resultante da existência no Brasilde um número muito grande de cidadãos com direitoa voto, mas sem consciência de seus direitos e deverespolíticos e sociais. Ver Bresser Pereira (1996a).

8 Conforme observa Ruth Cardoso (1994, p. 90):“A cidadania não apareceu do nada, ela tem umahistória, está referida a um conceito preciso. É esseconceito que não está mais dando conta do queacontece agora porque está baseado na idéia de queexistem direitos individuais e, hoje, através da lutados movimentos sociais, há um reconhecimentopleno de que existem direitos coletivos”. Ver arespeito também Durham (1984), Dagnino (1994) eSilva Telles (1994).

9 Segundo observa Letícia Schwarz (1997, p. 14),a oposição entre cidadão e consumidor é falsa. Pormeio da defesa dos seus direitos enquanto consu-midor a pessoa vai se transformando em cidadão: “otiro de largada é dado pelo conhecimento dos direitosdo consumidor, muitas vezes de forma totalmenteequivocada, os conflitos e negociações são o percursoe, se a faixa de chegada é rompida, muitos sentem asua dignidade civil resgatada”.

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os ricos ou poderosos; e finalmente, conformeprocuraremos enfatizar neste trabalho, temosos direitos republicanos: são os direitos contraos aproveitadores ou privatizadores da respublica10.

Nos termos da análise clássica de Marshall(1950) sobre a afirmação histórica da cidadania,primeiro foram definidos os direitos civis,depois os direitos políticos e finalmente osdireitos sociais. Os primeiros dois direitosconquistados pelos cidadãos e assegurados peloEstado foram direitos contra o Estado, ou, maisprecisamente, contra um Estado capturado ouprivatizado por oligarquias ou aristocracias queo tornavam despótico11. No século XVIII oscontratualistas e as cortes inglesas definiramos direitos civis, que serviriam de base para oliberalismo; no século XIX os democratasdefiniram os direitos políticos. Esses doisdireitos estabeleceram as bases das democraciasliberais do século XX. Por meio dos direitoscivis os cidadãos conquistaram o direito àliberdade e à propriedade, em relação a umEstado antes opressor ou despótico; por meiodos direitos políticos os cidadãos conquistaramo direito de votar e ser votado, de participar,portanto, do poder político do Estado, contraum Estado antes oligárquico. Finalmente, nasegunda metade do século XIX os socialistasdefiniram os direitos sociais, que, no séculoseguinte, foram inscritos nas Constituições enas leis dos países12.

O fato de os direitos civis terem sidoestabelecidos contra o Estado não deixa de serparadoxal: como o Estado pode assegurardireitos contra ele próprio? O paradoxo, porém,se resolve se observarmos que: quando novosdireitos são definidos, mudam as relações depoder dentro do Estado e da sociedade, já quenovos direitos são novas pautas de compor-tamento entre os indivíduos que definem opróprio Estado. Segundo o paradoxo deRousseau, o cidadão, ao alienar sua liberdadeao Estado mediante um contrato social, vêgarantida pela lei do Estado, que exprime avontade geral soberana, sua liberdade13. OEstado contra quem se afirmam esses novosdireitos, é um Estado no qual o Governo – aelite dirigente do Estado – era “antes” despóticoou oligárquico; depois que os direitos sãoafirmados, os governantes perdem poderrelativo em relação aos cidadãos, o Estado deixade ser despótico e oligárquico: a cidadaniacomeça a se constituir14.

Esta perspectiva, entretanto, é uma pers-pectiva lógico-dedutiva, própria do pensamento

10 Está claro para mim o risco de utilizar a idéiade direitos “contra” o Estado, ou contra oscriminosos, ou contra os ricos e poderosos. Naperspectiva jurídica clássica, os direitos sãopostulados “perante” o Estado-Administração ouEstado-Juiz. Assim os direitos civis, os direitossociais e os direitos republicanos. O sujeito passivoda obrigação/condenação é que pode variar: outroscidadãos e o próprio poder público, ou apenas um enão o outro. Quando, entretanto, usamos essa idéiade direitos “contra”, queremos destacar o sujeitopassivo da obrigação, sujeito, aliás, que de “passivo”pouco tem se abandonarmos a terminologia jurídica.

11 A rigor, os direitos civis não são apenas direitoscontra o Estado. São também de cada cidadão contraoutros cidadãos que o roubam ou o agridem. ODireito Penal, enquanto direito público, está voltadopara garantir os direitos civis dos cidadãos contraos criminosos. Ou, mais amplamente, para garantiros direitos de cidadãos, empresas e do próprio Estadocontra a ação criminosa.

12 Esta notável análise de Marshall tem sidoobjeto de críticas dos mais variados tipos. Talvez amais significativa seja aquela que, seguindo a linhade Klaus Offe, vê na afirmação dos direitos sociais

e “no welfare state o caráter de necessidade funcionaldo próprio capitalismo... as práticas relativas àpolítica social, ao invés de representarem algo comoum colorido adicional e de alguma forma acidentaladquirido pelo Estado num processo de desen-volvimento capitalista cuja lógica de mercado lhesseria alheia, na verdade constituem um contraponto‘não-mercantil’ inerente a essa lógica mesma”,(Wanderley Reis, 1990, p. 7 – sublinhado do autor).Não há, entretanto, na análise de Marshall caráter“acidental”, e o fato de os direitos sociais seremfuncionais para o capitalismo, como Offe (1984)muito bem assinalou, não lhes tira o caráter deconquista nem a qualidade de representarem umavanço no processo democrático. Uma outradiscussão é a da relativa perda de funcionalidadedesses direitos desde o momento em que o Estadodo Bem-Estar entrou em crise.

13 Por meio do contrato social, que estabelece asbases para o poder soberano ou para o Estado,segundo Rousseau (17–, p. 244), “cada um dando-se a todos não se dá a ninguém; e como cadaassociado adquire o mesmo direito que ele cede,ganha-se o equivalente a tudo quanto se perde, emais força para se conservar o que já se tem”.

14 Conforme observou Ferreira Filho (1972, p.74): “Traduz o Estado de Direito a experiênciaimemorial de que o poder tende ao abuso, e queeste só é evitado, ou, ao menos, dificultado, quandoo próprio Estado obedece à lei e está enquadradoem um estatuto jurídico a ele superior”. Os direitoscivis estabeleceram as bases para os regimes liberais,os direitos políticos, para o regime democrático, osdireitos sociais, para os regimes social-democráticos.

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contratualista e hegeliano, segundo o qual oEstado é o ponto culminante da história. Ocontratualismo nasceu com Hobbes, que era umconservador preocupado com a ordem, passoupor Locke, que fundou o liberalismo, passoupor Rousseau, que fundou no contrato umateoria radical de democracia, e terminou comHegel, que fez a transição de uma abordagemlógico-dedutiva para uma abordagem históricado Estado. Apesar do conservadorismo de seufundador, Hobbes, o contratualismo terminoupor servir de base revolucionária para oliberalismo e a democracia ao basear alegitimidade do príncipe em um contratolivremente pactado por cidadãos e não natradição. No momento, entretanto, em que essaconcepção de Estado se torna vitoriosa com asrevoluções burguesas e o predomínio do modode produção capitalista e da ideologia liberal,renasce com Saint Simon e Marx a abordagemhistórica, agora com uma conotação revolu-cionária de crítica do Estado enquantoinstrumento de dominação. E de fato o caráterracional do Estado, definido pelos contra-tualistas e que Hegel levou ao paroxismo, é umanotável construção teórica que não impede queos governos, em nome do Estado, continuem apraticar atos autoritários e no interesse de umaminoria15. Por isso a afirmação dos direitos docidadão é um problema permanente. E, comoviram os liberais e em seguida os democratasmodernos, que têm sua origem no contra-tualismo, a defesa da cidadania depende dapermanente luta pela garantia dos direitos civise políticos.

Assegurados – pelo menos em tese –, osdireitos dos cidadãos contra o Estado, entre-tanto, surge o problema adicional de assegurá-los também contra os outros cidadãos: os ricose/ou os poderosos. Os direitos sociais têm essanatureza. Os direitos sociais podem serentendidos, de forma estrita, como direitoscontra outros cidadãos, se pensarmos nosdireitos dos trabalhadores em relação a seusempregadores. Quando, entretanto, pensamosnos direitos sociais, como o direito à sobre-vivência digna, à educação, à cultura, à saúde,esses são direitos dos cidadãos contra a

sociedade civil – na medida em que esta é asociedade organizada, em que os pesos dosdiversos poderes econômicos e sociais se fazemsentir –, e o respectivo Estado que a representa16.Se a sociedade dispõe de recursos materiais paragarantir estas necessidades, elas se trans-formam em direitos – direitos que não podemser assegurados na medida em que os recursossociais estejam excessivamente concentradosnas mãos de um grupo reduzido de capitalistase de altos burocratas públicos e privados.

No último quartel do século XX, entretanto,um quarto tipo de direitos está surgindo: osdireitos dos cidadãos de que o patrimôniopúblico seja efetivamente de todos e para todos.Este trabalho concentrar-se-á na análise dessesnovos direitos, que estamos propondo chamarde direitos públicos ou de “direitos republi-canos” – direitos dos cidadãos contra aquelesque buscam capturar privadamente os bens quesão ou devem ser de todos –, e particularmentea uma categoria desses direitos: o direito à respublica ou ao patrimônio econômico público17.Poderíamos dizer, a partir de uma perspectivaa-histórica, que esses direitos sempre existiram.No plano da história, entretanto, esses sãodireitos que só recentemente começaram aganhar contorno definido entre os interessesdifusos. São direitos que cada vez mais deverãomerecer a atenção de filósofos políticos ejuristas.

Antes de examinarmos mais detidamente odireito à coisa pública, é necessário, porém,situar os direitos republicanos entre os demaisdireitos não apenas do ponto de vista histórico,mas também lógico.

4. O Público e o PrivadoHabermas (1992: 78) observa que a análise

do conceito de cidadania realizado por

15 Em seu comentário à versão preliminar destetrabalho, Rosenfield, que escreveu sua tese dedoutorado sobre Hegel, (1982) fez uma observaçãoque merece ser aqui reproduzida: “Hegel jamaisidentificou o Estado empiricamente existente com aracionalidade... O Estado é, para ele, a expressãopolítica da racionalidade sob a condição de ser aconcretização efetiva da idéia da liberdade”.

16 Geralmente pensamos na sociedade civil emoposição ao Estado. Essa oposição, entretanto, sófaz sentido quando o governo que ocupa a liderançado Estado perde legitimidade. Normalmentesociedade civil e Estado caminham juntos: o governorepresenta a sociedade civil no Estado.

17 Devo a Guillermo O’Donnell a sugestão dedenominar estes direitos de “republicanos” ao invésde públicos. Inicialmente pensei usar a expressão“direitos públicos”, a qual se distinguiria daexpressão “direito público” (em oposição a direitoprivado) na medida em que seria sempre usada noplural. Esta expressão, entretanto, pode levar aconfusões, enquanto que a expressão “direitosrepublicanos” é nova, permitindo identificar direitosque também são novos.

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Marshall, definindo sucessivamente trêsdireitos (aos quais estamos aqui acrescentandoum quarto, os direitos republicanos) “faz parteda ampla tendência que os sociólogos chamamde ‘inclusão’. Em uma sociedade cada vez maisdiferenciada, um número cada vez maior depessoas adquire direitos cada vez maisinclusivos de acesso a, e de participação em,um número crescente de subsistemas...”, Masadverte, fiel a sua teoria da ação comunicativaem que a democracia desempenha um papelcrucial, que se trata de uma análise linear, quenão acentua o papel crucial dos direitospolíticos na cidadania, colocando-os no mesmonível dos demais:

“De fato, apenas os direitos departicipação política servem de base parao posicionamento legal auto-referenciadodo cidadão reflexivo. Liberdades nega-tivas e direitos sociais podem, emcontraste, ser garantidos por umaautoridade paternalista. Em princípio, oEstado constitucional e o Estado do Bem-Estar são possíveis sem democracia”(1992: 504).

Na segunda metade do século XX, direitoscivis, direitos políticos e direitos sociais foramunidos sob o nome direitos do homem oudireitos humanos. A Declaração Universal dosDireitos do Homem, de 1948, declarou avalidade universal desses direitos, que, assim,foram positivados em nível internacional.Pensados em termos abstratos, direitoshumanos e direitos do homem são sinônimos:abrangem todos os direitos. Entretanto, sepensarmos em termos históricos, veremos quea idéia dos “direitos humanos” aparece comforça nos anos 70, identificada principalmentecom os direitos civis, como uma reação contraos regimes autoritários que se tornam domi-nantes nos países em desenvolvimento. Desdeos anos 30 a grande ênfase fora transferida paraos direitos sociais, na medida em que seimaginava que os direitos civis e políticosestavam assegurados, ou então que eramdireitos “formais”, produto de uma “democraciaformal” que só se tornaria real ou substantivaquando os direitos sociais estivessem tambémdefendidos. Esta era a posição clássica daesquerda até os anos 60. Entretanto, quando,nos anos 60 e 70, regimes autoritários de direitaassumem o poder em um grande número depaíses, principalmente na América Latina, epassam a violentar os direitos civis e políticos,a esquerda é obrigada a rever sua posição.Diante da violência estatal e privada contra ospolíticos de esquerda, muitos dos quais

pertencentes à classe média, diante da torturae do assassinato, tornou-se essencial revalorizaros direitos políticos, expressos na democracia,e os direitos civis, agora ampliados para ascamadas mais pobres da população18.

Tornou-se em seguida claro para os setoresdemocráticos da sociedade que não eram apenasos direitos humanos dos contestadores políticosque estavam em jogo. Era também precisodefender os direitos civis dos fracos e opri-midos: adolescentes infratores assassinadosbarbaramente por esquadrões-da-morte, dosbandidos torturados e assassinados pela polícia,dos índios, dos posseiros sem-terra, das jovensmulheres pobres levadas à prostituição, dosnegros que sofrem discriminação, dos homos-sexuais vítimas de todos os abusos19. Para adefesa dos direitos civis ou mais amplamentedos direitos humanos, tanto dos contestadorespolíticos quanto dos fracos e oprimidos, a IgrejaCatólica desempenhou na América Latina umpapel decisivo nos anos 70 e 8020. Ao mesmotempo a sociedade civil organizada, sob a formade instituições públicas não-estatais, passou ater um papel cada vez mais importante nadefesa dos direitos humanos21, enquanto aimprensa assumia um papel cada vez maisestratégico nessa matéria22. Nesses termos,

18 Segundo Jelin e Hershberg (1996, p. 3):“Enquanto era um lugar comum distinguir os direitoscivis dos políticos e dos sociais, e definir cidadaniaprincipalmente em termos de direitos sociais, nosanos 80 direitos humanos e civis básicos não podiammais ser relegados a segundo plano ou assumidoscomo garantidos. De fato, tornaram-se o centro doativismo político e da preocupação intelectual”.

19 Segundo, por exemplo, o ouvidor da políciade São Paulo, Benedito Domingos Mariano, “avítima da tortura em geral é homem, negro, pobre emora na periferia” (Folha de S. Paulo, 1.1.1997).

20 Para o Brasil o documento fundamental arespeito é o da Arquidiocese de São Paulo (1985)Brasil : nunca mais. Ver também Paulo SérgioPinheiro e Eric Braun (1986).

21 As instituições públicas não-estatais sãoimpropriamente chamadas de ONGs (organizaçõesnão-governamentais) uma tradução da denominaçãoamericana, NGOs (non-governamental organi-zations). Impropriamente porque na tradição anglo-saxônica, Estado e Governo são confundidos, eporque além de afirmar que é não-estatal, é precisodizer que a instituição é pública – pertence a todos,não tem proprietários individuais ou coletivos.

2 2 Neste plano os trabalhos de GilbertoDimenstein, a partir de A Guerra dos Meninos(1990), são essenciais. Estes trabalhos foramreunidos e sintetizados em Dimenstein (1996). Oprefácio deste livro, escrito por Paulo SérgioPinheiro, tem um título significativo: “O Passadonão Está Morto: nem Passado é Ainda”.

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embora continuasse a existir um fundamentoautoritário em parte considerável da populaçãodos países, principalmente dos países em queas democracias são recentes e as estruturassociais gravemente heterogêneas23, os direitoshumanos, enquanto essencialmente direitoscivis dos fracos e oprimidos, enquanto direitoem primeiro lugar à vida, foram novamentevalorizados, ao mesmo tempo que os valoresdemocráticos eram reafirmados. Os direitossociais continuaram importantes, mas deixavade se justificar a quase exclusiva ênfase neles,que se originava ou no pressuposto equivocadode que os direitos civis já eram uma conquistade todos – quando o eram apenas para aselites –, ou na visão enviesada segundo a qualos direitos civis só estariam garantidos quandoos sociais também o estivessem24.

No conceito de direitos humanos existe umaespécie de unificação de todos os direitos.Entretanto, embora os direitos possam serconsiderados consistentes entre si e portantocomplementares, eles também são contra-ditórios. Os direitos sociais são consistentescom os civis na medida em que, conformeobserva Reis (1996: 121),

“se a desigualdade social é manifesta, opoder será distribuído desigualmente, oque inevitavelmente minará as perspec-tivas do pleno gozo dos direitos civis epolíticos por todos”.

Em muitos casos os direitos civis, políticos esociais são contraditórios, impondo-se com-pensações (trade-offs) entre eles. Isto seráespecialmente verdade, se salientarmos ocaráter individualista e egoísta dos direitoscivis, na medida em que eles foram histori-camente implantados nos quadros do indivi-

dualismo utilitarista do século XVIII. Por issoReis (1995), apoiando-se na distinção feita porKelly (1979), enfatiza a diferença entre direitoscivis e direitos cívicos. Nos direitos civis oelemento dominante é o do direito à liberdadee à propriedade. O cidadão é cidadão, segundoessa concepção clássica ou liberal de cidadania,na medida em que tem esses direitos garantidos.Já os direitos cívicos envolvem a idéia dedeveres do cidadão para com a sociedade. Ocidadão é cidadão na medida em que, além deter seus direitos egoístas garantidos, assumeresponsabilidades, em relação ao interessepúblico, que podem estar em contradição comseus interesses particulares. Segundo Reis(1995: 128):

“A tensão entre as duas dimensões, eentre os valores afirmados em cada umadelas, é tão severo que freqüentementeelas aparecem contraditórias. Se a esferaprivada, de mercado, civil é a esfera daautonomia, é também do egoísmo e doparticularismo; e se a esfera cívica é ondea solidariedade ocorre, é simultanea-mente a esfera da dependência”.

Não existe solução simples para essatensão25. A convivência social nas democraciasmodernas é o resultado dos compromissosnecessários entre essas duas esferas – a doprivado ou civil e a do público ou cívico –, eentre os quatro direitos básicos: civis, políticos,sociais e republicanos26. Enquanto os direitoscivis são direitos freqüentemente considerados“negativos”, no sentido de que o que se quer,

23 Este fundamento autoritário expressa-se nafalta de indignação em relação aos atos de violênciacontra os direitos humanos dos setores excluídos oumesmo no apoio a estes atos por setores consi-deráveis da sociedade. Nancy Cardia (1994), a partirde uma pesquisa sobre a falta de rejeição contra asviolências da polícia e forças parapoliciais contraos excluídos, vê o problema como um caso de“exclusão moral de grupos considerados à margemda sociedade”, em um contexto de ausência de poderdos governados sobre os governantes, de alienaçãodo processo de produção de leis, de desconhecimentodo significado dos direitos civis e políticos, e de faltade canais de acesso dos grupos excluídos à proteçãoda lei.

24 O debate entre os direitos individuais e ossociais, entretanto, continua vivo, por meio dadiscussão dos ideais de justiça e de solidariedade.Ver a respeito Cardoso de Oliveira (1996).

25 Enquanto os social-democratas procuramampliar a esfera pública, os liberais assinalam osriscos envolvidos. Conforme observa Giannnetti daFonseca (1993, p. 126), “a tensão entre moralidadecívica e pessoal – entre as normas sociais deconvivência pacífica e os desejos de valores de cadaindivíduo – é um traço permanente da existênciahumana... Existem sérios limites e riscos associadosao predomínio excessivo da autoridade política e damoralidade cívica em detrimento da moralidadepessoal”.

26 A expressão direitos cívicos poderia serpensada como uma denominação alternativa adireitos republicanos, embora Kelly e Reis a usemem um contexto diferente, para salientar aimportância, para o conceito de cidadania, dapreocupação de cada cidadão com o interessepúblico – preocupação que não está clara – quandonão é negada – quando o pensador liberal se refereaos direitos civis. Nos direitos republicanos, comonos cívicos, ainda que o cidadão esteja defendendoo seu direito, ele tem necessariamente que estarpreocupado com o interesse público.

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principalmente em relação aos direitos civis, éque a liberdade e a propriedade do cidadão nãoseja ferida, no caso dos direitos políticos e dosdireitos sociais é necessária uma ação “positiva”do Estado. O conceito negativo de liberdadeestá associado aos direitos civis e ao liberalismo,enquanto que o conceito de liberdade positiva,associada à democracia no caso dos direitospolíticos, ao socialismo, no caso dos direitossociais, e à cidadania plena, no caso dos direitosrepublicanos. A liberdade negativa é umaliberdade “de”, enquanto a positiva é umaliberdade “para”. O cidadão tem a liberdadenegativa de não sofrer restrições ou inter-ferências em relação a seus desejos legítimos;tem a liberdade positiva para participar dogoverno, partilhar a riqueza social, e garantir queo que foi decidido ser público de fato o seja.

Essa distinção que na sua formulaçãocontemporânea se deve a Isaiah Berlin (1958),embora atrativa, é, na verdade, relativa27. Parase garantir os direitos civis é também necessáriauma ação positiva do Estado, implicandoinclusive custos administrativos: afinal, todo oaparato clássico do Estado – Poder Legislativo,Poder Judiciário, polícia, forças armadas –existe para garantir positivamente os direitoscivis, da mesma forma que o aparato social doEstado, expresso nos ministérios da educação,da saúde, da cultura etc., além do PoderJudiciário e do Poder Legislativo, existem paragarantir os direitos sociais28. Talvez maissignificativo seja o fato de que enquanto osdireitos civis são direitos individuais, no sentidoque protegem cada indivíduo que se pode suporegoísta, voltado para a defesa exclusiva dos seusinteresses, os direitos republicanos são direitoscoletivos, no sentido que protegem a coleti-vidade, que seria também capaz de agir coletivae solidariamente em função do interesse comumou público. Se pensarmos em uma escala quevai do privado para o público, do interesseindividual para o coletivo, teríamos os direitos

políticos e os direitos sociais entre os direitoscivis e os republicanos. Todos são funda-mentais, não existe uma hierarquia entre eles,mas a tensão entre o civil e o cívico, entre ocidadão que protege seus interesses e o cidadãoque protege os interesses gerais, é permanente.

Essa distinção entre direitos individuais ecoletivos é naturalmente relativa, já que osinteresses individuais só podem ser garantidosdentro de uma sociedade em que a ação coletivade fato ocorre, cria o Estado e as instituiçõesliberais e democráticas, e assim garante essesdireitos, enquanto que os direitos coletivos, cujadefesa exige diretamente, a ação coletiva e emúltima análise solidária dos prejudicados, sãotambém direitos de cada cidadão indi-vidualmente.

É difícil senão impossível pensar emcidadania a partir apenas de direitos civis e doconceito de liberdade negativa, como queremos liberais radicais modernos, neoliberais.Nossa premissa é a de que a democracia é umregime político historicamente em construção,que vai sendo aperfeiçoado na medida em queos quatro direitos de cidadania vão sendoafirmados, ao mesmo tempo que os políticossão responsabilizados perante os eleitores. Ademocracia não é apenas um ideal, um conceitoabstrato. É uma realidade política histórica. Osfilósofos gregos preferiam a monarquia e aaristocracia à democracia, embora soubessemque a corrupção da primeira era a tirania e a dasegunda, a oligarquia, porque viam a demo-cracia como eminentemente instável. Ademocracia só se tornou historicamentedominante a partir do momento em que odesenvolvimento econômico e social tornouesse tipo de regime mais estável do que osregimes autoritários de caráter monárquico ouaristocrático.

Na idéia de democracia, desde que ela foiconcebida na Grécia, existe sempre a idéia deinteresse público. Conforme observa Abranches(1985: 7):

“Na política clássica grega, tanto odemos como a Polis tinham um signi-ficado coletivo e eram organizadospoliticamente. O governo e o Estadorepousavam no fato mais abrangente dacidadania. A politeia representava aunidade dos cidadãos, não apenas a somados indivíduos – que é a noção (liberal)de sociedade civil –, mas uma comu-nidade viva”.

Para o cidadão grego a política entendidacomo interesse público era o bem maior.

27 Berlin escreveu seu ensaio sobre os doisconceitos de liberdade em 1958, no auge do conflitoideológico entre liberais e marxistas. Emborasabendo que os trade offs entre os dois tipos deliberdade são necessários, como representante doliberalismo, fez o elogio da liberdade negativa eenfatizou radicalmente os riscos da liberdadepositiva, que, “em certos momentos não é outra coisasenão um hábil disfarce para mais brutal tirania”(1958, p. 131).

28 Para uma crítica da teoria classificando osdireitos segundo envolvam prestações positivas ounegativas, ver Lindgren Alves (1994).

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Cidadão era aquele que participava da Polis.Era esta participação plena, era esta prioridadedo público sobre o privado, do coletivo sobre oindividual, que definia concepção de cidadaniaentre os gregos. A idéia de cidadania desen-volvida na Grécia antiga só iria ressurgir,embora parcialmente, no século XVIII, com aafirmação dos direitos civis e do liberalismo.O modelo liberal de sociedade, entretanto,distanciar-se-á do modelo grego. Está baseadoem três postulados: um filosófico – a concepçãoabstrata e absoluta do indivíduo racional,voltado para seus interesses, como centro detudo; um político – a legitimação do Estado edo seu poder a partir de um contrato sociallivremente aceito pelos indivíduos-cidadãos,estabelecendo-se, em conseqüência, uma rígidaseparação entre a esfera pública e a privada; eum econômico – no plano da produção edistribuição de renda, desde que o Estadogaranta o funcionamento dos mercados, se cadaum defender seu próprio interesse, o interessegeral será automaticamente garantido.

Este modelo, que permitiu a afirmação dosdireitos civis de liberdade e propriedade para aclasse burguesa então emergente, emborapudesse ser visto como um retrocesso emrelação ao ideal grego, representou um grandeavanço em relação aos sistemas aristocráticose autoritários. A partir do século XIX,entretanto, passou a ser sistematicamentedesafiado, primeiro pelos democratas, por meioda afirmação dos direitos políticos, e, emseguida, pelos socialistas, por intermédio daluta pelos direitos sociais. Da mesma forma,porém, que o liberalismo identificou-seinicialmente com a burguesia, a ideologiasocialista, embora pretendesse exprimir osinteresses do “proletariado”, afinal traduziu osinteresses e a visão de mundo da classeburocrática emergente a partir da segundametade do século XIX29. E, a partir desse fato,pretendeu, em um certo momento, negar todosos valores liberais, estabelecendo uma oposiçãoradical entre o socialismo e o liberalismo.

O socialismo radical, não apenas de carátermarxista, mas principalmente de naturezaburocrática e autoritária, só foi absolutamentedominante nos países em que os partidoscomunistas tomaram o poder político. Uma

versão moderada, social-democrática, entre-tanto, do socialismo, foi dominante entre osanos 30 e os anos 60 no mundo capitalista, nosquadros do Estado do Bem-Estar ou EstadoSocial, permitindo o avanço dos direitos sociaisem combinação com os direitos civis e osdireitos políticos.

Os liberais, que permaneceram na defensivanesta última fase, retomam a iniciativa nos anos70, quando o Estado Social – nas suas trêsversões, o Estado do Bem-Estar, o EstadoDesenvolvimentista e o Estado Comunista –afinal entrou em crise30. O novo liberalismo –o neoliberalismo – terá uma inspiração anteseconômica do que política, partirá do indivi-dualismo metodológico e de uma radicaldescrença na possibilidade de ação coletiva(Olson, 1965). Nos termos da teoria da escolharacional, que então passa a prosperar, oindivíduo racional será um ser estritamenteegoísta, voltado apenas para seus interessespessoais. No campo da teoria política, porexemplo, toda a literatura está baseada nopressuposto de que o político se motivará apenaspela busca de rendas ou pela vontade de serreeleito, fazendo trade offs entre esses doisobjetivos. A idéia de que este seja o maupolítico, e que existe um segundo tipo depolítico que se motiva pela vontade de serreeleito e pelo interesse público, fazendo tradeoffs entre eles, é alheia ao novo conservado-rismo neoliberal que então se afirma31.

Contraditória e significativamente, porém,é nos quadros desse neoconservadorismo,

29 Examinei extensamente o problema daemergência da classe burocrática (ou da tecno-burocracia, ou da nova classe média, ou da classemédia assalariada – expressões sinônimas) emBresser Pereira (1981).

30 O liberalismo moderado e democrático, quedialogava e criticava a perspectiva social-demo-crática de Bobbio e Habermas, será representado,entre outros, por Ralf Dahrendorf e Raymond Aron.Embora conflitantes, estes autores conduzem a umaperspectiva social-liberal. Já o neoliberalismo terácomo expoentes Hayek, Friedman, Olson, Buchanan,Lucas. No Brasil José Guilherme Merquior foi talvezo mais representativo expoente do liberalismomoderado, social-liberal. Para uma ampla eatualizada resenha do pensamento liberal verMerquior (1991).

31 Não estou, com estas afirmações, diminuindoa importância da escola da escolha racional nem areduzindo a uma perspectiva liberal ou neoliberal.Existem cientistas políticos social-democratas, comoAdam Przeworski, que têm utilizado o instrumentalda escolha racional de forma criativa e politicamenteprogressista. Por outro lado, conforme deixarei claroem seguida, a contribuição dos intelectuaisconservadores ligados à escola da escolha racionalpara a emergência dos direitos republicanos éfundamental.

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apesar dele e, em parte, graças a ele, que a idéiados direitos republicanos e particularmente odireito à res publica vão se firmar. A visãonegativa da natureza humana levará à convic-ção na inevitabilidade do rent-seeking. OEstado será sempre objeto da apropriaçãoprivada. Por outro lado, à descrença correlatana possibilidade de ação coletiva para grandesgrupos conduzirá à certeza de que o Estado nãoterá capacidade de se opor ao rent-seeking, e àproposta do Estado mínimo. Entretanto, a tesedo Estado mínimo é apenas uma visãoirrealista, meramente lógico-dedutiva, de comodeve ser a política. Não corresponde à realidadedo capitalismo contemporâneo, não respondeàs necessidades efetivas da sociedade, sejamelas deduzidas logicamente, sejam avaliadasempiricamente. No Reino Unido, por exemplo,dezoito anos de um governo conservador, queadotou explicitamente o ideário neoliberal,resultaram em reformas importantes, mas nãopermitiram a redução do Estado em sentidoestrito: a carga tributária em relação ao produtointerno bruto é praticamente a mesma dezoitoanos depois32. Mas, ao mesmo tempo que setornava clara a inviabilidade da redução doEstado ao mínimo, ficava claro também oquanto esse Estado estava sendo ameaçado, oquanto as atividades de rent-seeking distorciama ação estatal, eram ineficientes e injustas. Paraisso a crítica dos neoliberais foi extremamenteimportante, somando-se à crítica da novaesquerda, que, desvinculando-se crescente-mente da burocracia, fazia a crítica da priva-tização do Estado não apenas pelos capitalistas,mas também pela classe média e particular-mente pela burocracia estatal.

Com a definição dos direitos republicanosneste último quartel do século XX, a visão decidadania ligada à idéia de interesse público ede valores cívicos, que foi ameaçada pela visãoneoliberal, afinal ganhou novas forças. Foi setornando claro que a cidadania só se completaquando os cidadãos têm a consciência dointeresse público. Quando o cidadão luta porseus direitos civis, políticos e sociais, ele o fazcomo membro de uma sociedade cujos inte-resses coletivos ele sabe que estão acima dos

seus interesses particulares. No individualismoclássico, liberal, cada um está voltado para seuauto-interesse, mas não de uma forma egoístae cega como pretende o neoconservadorismocontemporâneo. O individualismo liberal de umLocke, de um Tocqueville ou de um Mill é umindividualismo iluminado, que, sem dúvida,conta com o mercado e a concorrência paraassegurar o interesse geral, mas que contatambém com o espírito público de cada cidadão.

A idéia de uma cidadania plena se completaquando acrescentamos aos direitos civis,políticos e sociais os direitos republicanos.Nesse momento o cidadão é obrigado a pensarno interesse público explícita e diretamente. Sóassim terá condições de defender o patrimôniopúblico em geral – cultural, ambiental, eeconômico. Nesse momento surge a indignaçãocívica contra as violências que sofre a respublica . Indignação que Denis Rosenfield(1992: 13) expressou no Brasil, quando, dianteda onda de corrupção que assolava o País nogoverno Collor, afirmou:

“O público é colocado em questão.Trata-se de um processo de cartelizaçãoda política, reduzida a um mero jogo deforças, onde os vencedores são aquelesque se apropriam, às expensas dos outros,da maior parte do ‘butim’, figura esta aque se viu reduzida a ‘coisa pública’. Suaexpressão é a luta corporativa entre osque são detentores de força... Assim, asdemandas corporativas, provenientestantos dos setores mais ricos da sociedadequanto dos sindicatos de funcionários oude operários, terminam por prevalecersobre o interesse coletivo”33.

Direita e esquerda, liberais e social-democratas têm se esgrimido ao longo dostempos em torno do conceito de cidadania e daênfase que direitos civis ou direitos socaisdevem ter. Na verdade esse debate faz poucosentido quando fica claro que os direitos civissão também direitos humanos fundamentais dosmais pobres, e que sem os direitos socais nãohá possibilidade de um sistema capitalistaeficiente e de um governo legítimo. Por outrolado, que sem os direitos políticos não há a

32 Houve uma diminuição do tamanho do Estadose consideramos o Estado em sentido amplo comoenvolvendo as empresas estatais. Estas foramprivatizadas. A rigor, porém, não constituem oEstado, cujo tamanho deve ser medido princi-palmente pela carga tributária ou pela despesapública em relação ao produto.

33 Em termos mais gerais, Rosenfield (1996, p.40) entende que o Estado só se realiza plenamente“por intermédio da discussão, que é realizada noespaço público”. O problema democrático funda-mental é assim “resgatar a função do Estado em seucaráter público, isto é, que não se torne refém desuas próprias corporações, e responda pelacoletividade”.

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garantia democrática de que esses direitos serãoassegurados estavelmente, e que sem os direitosrepublicanos garantidos não há segurança deque o Estado possa realizar as tarefas que lhesão inerentes. Na verdade, os inimigos dosdireitos de cidadania não são os liberais nemos socialistas, mas os autoritários, os patrimo-nialistas, os corporativistas, e os simplesmentecorruptos34.

5. Os Direitos republicanose os Interesses Difusos

A emergência dos direitos republicanos estárelacionada com o processo de democratizaçãoque se tornou dominante em todo o mundo. Ademocracia transformou-se “em um valoruniversal” (Coutinho, 1980), exigindo docidadão uma crescente preocupação pelos temaspúblicos. Assim, ao mesmo tempo que a lutapelos direitos humanos ganhava nova dimen-são, nesta segunda metade do século XX surgiauma profusão de novos direitos. As NaçõesUnidas, que patrocinaram a DeclaraçãoUniversal dos Direitos Humanos, passou a falarem “direitos de terceira geração”, que inclui-riam direitos à solidariedade, à paz, aodesenvolvimento econômico 35. Entretanto,conforme observou Bobbio, (1992: XIV) essesdireitos “constituem uma categoria aindademasiado heterogênea e vaga”. São maisaspirações do que direitos.

Entre os interesses de terceira geração,alguns novos direitos vão ganhando especi-ficidade na medida em que apresentam apossibilidade de serem positivados, transfor-mados em lei. São os interesses difusos ou, maisespecificamente, o que chamaremos de direitosrepublicanos. Entendemos como direitosrepublicanos os direitos que cada cidadão temde que os bens públicos – os bens que são detodos e para todos – permaneçam públicos, não

sejam capturados por indivíduos ou grupos deinteresse. Da mesma forma que o cidadão temo direito à liberdade e à propriedade (direitoscivis), a votar e a ser votado (direitos polí-ticos), à educação, à saúde e à cultura (direi-tos sociais), ele tem o direito de que o patri-mônio do Estado – seja ele constituído pelopatrimônio ambiental, seja pelo patrimôniocultural, seja pela res publica – continue a serum patrimônio a serviço de todos ao invés deser apropriado por grupos patrimonialistas oucorporativistas que agem dentro da sociedadecomo livre-atiradores.

A ameaça aos direitos republicanos origina-se na perspectiva patrimonialista do Estado –que confunde o patrimônio público com o doindivíduo ou de sua família – ou na perspectivacorporativista, que confunde o patrimônio doEstado com o dos grupos de interesse corpo-rativamente organizados. Patrimonialistas ecorporativistas são livre-atiradores, indivíduosque, contando que a maioria não faça o mesmo,não hesitam – individualmente no caso dopatrimonialismo, coletivamente, no caso docorporativismo – em privatizar o Estado, emcapturá-lo. O criminoso, o violentador dedireitos é sempre um livre-atirador. Ele conheceas leis que organizam a vida social, sabe que setodos as transgredirem elas perdem eficácia ea desordem se generaliza. Como, entretanto, amaioria obedece às leis, ele sabe que existeespaço para sua ação danosa ou criminosa.

Podemos pensar em três direitos repu-blicanos fundamentais: o direito ao patrimônioambiental, o direito ao patrimônio histórico-cultural e o direito ao patrimônio econômicopúblico, ou seja, à res publica estrito senso ou“coisa pública”. O patrimônio econômicopúblico é principalmente patrimônio estatal,embora a cada dia cresça a importância da respublica não-estatal. Nos três casos falamos debens públicos, porque são ou devem ser de todose para todos. Na medida em que são bens detodos e para todos, tendem a ser mal defendidose por isso estão permanentemente ameaçados.

A ameaça ao patrimônio ambiental e aopatrimônio cultural é principalmente a daviolência contra eles. No caso da res publica,que é constituída principalmente pela receitado Estado obtida por meio de impostos, oproblema é o da sua apropriação privada. Adiferença entre a ameaça aos bens privados eaos bens públicos está no fato de que o detentordo bem privado é um indivíduo permanen-temente atento, pronto para defender suapropriedade, enquanto que o detentor do bem

34 Nestes termos a proposta de distinguir umaabordagem liberal de uma abordagem histórica noconceito de cidadania faz pouco sentido (Wiener,1992). Metodologicamente podemos usar prefe-rencialmente o método lógico-dedutivo ou o métodohistórico-indutivo, mas daí não se segue que umconceito ideológico de cidadania seja de grandeajuda.

35 Os direitos de primeira geração seriam os civise os políticos, e os de segunda, os direitos sociais.Ferreira Filho (1995), em seu estudo sobre os direitoshumanos fundamentais, prefere chamar os direitosde terceira geração de direitos de solidariedade.

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público é a sociedade, é a nação, é o conjuntodos cidadãos organizados coletivamente nopróprio Estado. Ora, sabemos como sãolimitadas as possibilidades da ação coletiva.

Os direitos republicanos são geralmentedireitos coletivos ou pluriindividuais, namedida em que seus titulares são principalmentegrupos de pessoas, mas fazem parte do direitode cada cidadão. Seu surgimento constitui umsinal do avanço da cidadania. Na teoria doDireito não se fala, geralmente, em direitosrepublicanos, mas em interesses difusos.Conforme observa Antunes (1989: 21-22) aemergência dos interesses difusos é umaconseqüência inevitável do amadurecimentocívico do cidadão em um momento históricoem que o Estado ainda não deu coberturanormativa adequada a uma vasta área deinteresses. Nesse sentido, afirma Antunes, os“interesses difusos são interesses públicoslatentes, eventualmente fragmentados”. Não éfácil defini-los: “de modo geral, a figura dointeresse difuso pode aplicar-se a muitosdireitos sociais e culturais e a muitas normasprogramáticas de nossa Constituição”. Dessaforma, os interesses difusos ou os direitosrepublicanos assumem um caráter tão amploque acabam se esvaziando de conteúdo.

Os direitos republicanos são mal definidose pior defendidos. Por isso os juristas, pruden-temente, falam em interesses e não em direitos,e os qualificam como “difusos”. Falam tambémem interesses ou “direitos coletivos”. Sãodireitos coletivos quando sua titularidade seexpressa coletivamente, como direito de umaclasse ou categoria de sujeitos36. Mas os direitosrepublicanos são um direito subjetivo individualna medida em que os cidadãos são delesdetentores. Os juristas também falam em“direitos republicanos subjetivos” para designarde forma ampla todos os direitos dos indivíduosem face ao Estado: direitos que obrigam oEstado a não fazer (não atentar contra aliberdade, principalmente) ou fazer (parti-cularmente os direitos sociais a serem garan-

tidos pelo Estado). Os direitos republicanospoderiam ser incluídos nessa categoria, mas aodefinir assim direitos republicanos estaríamosampliando excessivamente o conceito e, afinal,invertendo o seu significado. Quando nosreferimos a direitos republicanos não nosinteressam os direitos dos cidadãos contra oEstado – esses são os direitos civis –, mas osdireitos dos cidadãos reunidos no Estado contraos indivíduos e grupos que querem capturar opatrimônio público.

Embora baseados em princípios moraisgerais senão universais, os direitos surgem paradar resposta a problemas concretos de umadeterminada sociedade quando esta sociedadese convence de que tem condições mínimas deresolvê-los. A defesa sistemática do patrimôniohistórico-cultural das nações é uma conquistada primeira metade deste século. A consciênciada existência dos direitos sobre o patrimôniohistórico-cultural vem ganhando força paula-tinamente, mas em nenhum momento assumiucaráter dramático ou emergencial. Já os direitosao patrimônio ambiental emergiram emconseqüência da grande ameaça que a indus-trialização estava impondo ao meio ambiente.Tornaram-se universalmente reconhecidosdepois da grande reunião sobre o meio ambienteorganizada pelas Nações Unidas em Estocolmo,em 1972. A partir daí a defesa do meioambiente, que era o objeto da luta de grupos“verdes” radicais, de esquerda, passou a ser umapreocupação geral.

A defesa da res publica já está presente, demuitas maneiras, em todo o direito público,especialmente no direito penal quando esteprevê penas para quem se apodera do patri-mônio público de forma corrupta ou ilegal, eno direito administrativo quando este afirma aprioridade do interesse público e procuraproteger o Estado contra sua subordinação ainteresses privados37. Os direitos republicanosem geral e o direito à res publica, em particular,entretanto, só ganharam amplitude que os tornaum direito à parte, distinto dos demais, nesteúltimo quartel do século XX. A causa maisgeral dessa preocupação nova com a coisa

36 Antunes inclui entre os interesses difusos osdireitos do consumidor. Este é um direito que podeser coletivo, na medida em que seu titularfreqüentemente é um grupo, categoria ou classe depessoas ligadas entre si. Mas não é um direitorepublicano. É um direito civil, é um direitosubordinado ao direito de propriedade. O direito doconsumidor, embora possa ser visto como coletivo,é no fundo um direito privado: expressa o direito docomprador de bens de consumo de não ser enganadona sua compra.

37 A rigor é possível, no direito administrativo,distinguir o interesse público do interesse do Estado.É o que faz Bandeira de Mello (1995), quandodistingue o interesse público primário do Estado,que se identifica com o interesse público propria-mente dito, do interesse secundário, que pode serum mero interesse da instituição estatal em conflitocom o interesse público. No plano do ser (não no dodever ser) essa distinção faz todo sentido.

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pública está no enorme crescimento do Estadoneste século, com a proteção ao patrimônioambiental, os efeitos danosos da indus-trialização contra ele.

Estou entendendo, aqui, a res publica nãocomo regime político, nem como espaçopúblico, nem como bem comum, muito menoscomo espaço estatal, mas como patrimônioeconômico público, de todos e para todos38.Enquanto regime político a república é osistema de poder político legitimado pelo povoe no seu interesse exercido39. O conceito dosdireitos republicanos deriva antes do conceitode res publica do que do de república, emboraambos estejam intimamente relacionados. Hojerepública confunde-se com democracia; nopassado, quando ainda não haviam surgido asmonarquias parlamentares, opunha-se àmonarquia ou aos principados, podendo,segundo Maquiavel, assumir a forma tanto deuma república democrática quanto aristo-crática. A rigor, conforme observou Vico, arepública originalmente não tem nada dedemocrática, nasce aristocrática: foi a primeiraforma civil de governo, originando-se da reaçãodas famílias aristocráticas contra a revolta dosservos40.

Enquanto conceito mais geral de espaçopúblico, a res publica ou “o público” inclui tudoo que é público, que é do povo, que é de todos epara todos, que é manifesto e portanto dotadode publicidade, e que é garantido ou afirmadopor meio do Direito Público 41. Enquantoconsubstanciação do bem comum ou dointeresse público a res publica assume umcaráter valorativo. Os cidadãos serão tanto maiscidadãos quanto menos forem meros espec-

tadores e maior for seu compromisso com o bemcomum ou com interesse público42. Essas trêsacepções de coisa pública são fundamentais. Naverdade, é impossível defender a coisa públicase não existir a república e se os cidadãos nãotiverem claros para eles a noção de espaçopúblico e de bem comum ou de interessepúblico.

Inaceitável porque limitadora e, em últimainstância, enganadora, é a identificação da respublica com o Estado, ou do público com oestatal. Existe um patrimônio e um espaço queé público, mas não-estatal. E tudo que é estatalsó é público em termos de dever ser. Em termosde ser, conforme enfatizaremos neste trabalho,a propriedade estatal é freqüentementeapropriada privadamente.

Enquanto patrimônio econômico público,a res publica ou a coisa pública é constituídapelo estoque de ativos públicos e principalmentedo fluxo de recursos públicos que o Estado e asorganizações públicas não-estatais realizamperiodicamente. Este fluxo de recursos tem umaimportância fundamental porque é muitogrande e porque é muito vulnerável, muito maissujeito à apropriação privada do que o estoquede ativos públicos. À medida que, neste século,cresciam de forma extraordinária o Estado e asinstituições públicas não-estatais, à medida queaumentavam a carga tributária do Estado e asreceitas e contribuições voluntárias dasentidades públicas sem fins lucrativos, ou seja,à medida que crescia o patrimônio público,crescia a cobiça dos grupos de interesse por ele,e tornava-se imperativa sua proteção43.

38 Conforme observa Canotilho (1991, p. 492),“num velho e amplo sentido, a República significava‘coisa pública’ (é este o sentido que lhe dão, porexemplo, Bodin e Kant)”. Nesse sentido repúblicaou coisa pública identifica-se com “o público”, oespaço público, que inclui o regime republicano epatrimônio público.

39 Segundo a definição de Geraldo Ataliba(1985:IX), “república é o regime político em que osexercentes das funções políticas (executivas elegislativas) representam o povo e decidem em seunome, fazendo-o com responsabilidade, eleti-vamente, mediante mandatos renováveis periodi-camente”. Para uma resenha do conceito de repúblicana filosofia política clássica e no pensamento jurídicobrasileiro, ver Cármen Lúcia Antunes Rocha (1997).

40 Esta observação sobre o pensamento de Vicoencontra-se em Bobbio (1976, p. 124).

41 Ver a análise de Smend (1934) sobre oproblema do público e da coisa pública.

42 Segundo Janine Ribeiro (1994, p. 34), “quantomais os cidadãos forem reduzidos a público, aespectadores das decisões políticas, menor será ocaráter público das políticas adotadas, menor o seucompromisso com o bem comum, com a res publicaque deu nome ao regime republicano”.

43 Não existe uma estimativa deste fluxo derecursos se incluirmos as receitas das entidadespúblicas não-estatais. Se tomarmos, entretanto,apenas a carga tributária, sabemos que esta, nospaíses desenvolvidos, aumentou de cerca de 5 a 10por cento, no início do século XX, para 30 a 50 doproduto interno bruto atualmente. A rigor, dever-se-ia incluir no conceito de res publica o conjuntode renúncias fiscais do Estado em benefício dedeterminados grupos. Trata-se de uma coisa públicapotencial, cuja inclusão na res publica se justificana medida em que a receita que o Estado deixa derealizar não beneficia toda a sociedade, nãocorresponde a uma redução geral de impostos, masum benefício a determinados grupos.

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A preocupação de proteger a res publica sópassou a ser dominante na segunda metade doséculo XX. Não por acaso, nos anos 70, umcientista político progressista no Brasil(Martins, 1978) pela primeira vez escreveusobre o fenômeno da “privatização do Estado”,do uso do Estado para atender a interesses degrupos, enquanto uma economista conser-vadora nos Estados Unidos (Krueger, 1974),em um texto que abriu novos caminhos para ateoria econômica, definiu o processo de rent-seeking – de busca de rendas extramercado pormeio do controle do Estado. Ambos se referiamao mesmo problema: percebiam que eranecessário proteger a res publica contra aganância de indivíduos e grupos poderosos.

À medida que a proteção aos direitosrepublicanos passava a ser um tema dominanteem todo o mundo, foi-se tornando cada vez maisclaro que era preciso “refundar a república”;que a crise do Estado tornara sua reforma umanova prioridade; que a democracia e aadministração pública burocrática – as duasinstituições criadas para proteger o patrimôniopúblico – tinham de mudar: a democracia deviaser aprimorada para se tornar mais participativaou mais direta; e a administração públicaburocrática devia ser substituída por umaadministração pública gerencial. Neste processorefundacional uma coisa parece certa: aproteção dos direitos republicanos e, parti-cularmente, do direito à coisa pública, é umatarefa essencial. Para protegê-los, especial-mente o direito à res publica, no qual vamosnos concentrar a seguir, entretanto, é precisoalcançarmos uma conceituação mais clara doque seja esse novo direito que está surgindo nahistória.

6. Direito à coisa públicaSó é possível definir com clareza o direito

à res publica se tivermos uma noção clara dointeresse público. Isto não é essencial quandoestamos diante de ofensas óbvias à coisa públicacomo a corrupção e o nepotismo. Poderíamoschamar de direitos “clássicos” à res publica osdireitos do cidadão contra a corrupção nascompras públicas, contra a sonegação deimpostos e contra o nepotismo. O direito contraa corrupção nas compras públicas está previstono direito penal. Procura-se evitar o nepotismopor meio de instituições do direito adminis-trativo, principalmente o concurso público paraadmissão de servidores.

Existem, entretanto, outras violências tãoou mais graves contra o direito à res publica,que não são tão óbvias ou clássicas. Todas sãorelacionadas a políticas de Estado quepretendem ser políticas públicas, mas que naverdade atendem a interesses particulares eindefensáveis.

Neste caso temos, em primeiro lugar, aspolíticas econômicas ou “políticas industriais”,que, sem uma justificativa econômica baseadano interesse geral, protegem indevida eexcessivamente determinadas empresas ouindivíduos, beneficiando-os com subsídios,renúncias fiscais e proteção contra a concor-rência. Embora seja difícil distinguir astransferências legítimas das ilegítimas, noBrasil tivemos abusos evidentes, casos-limite,como os empréstimos sem correção monetáriaou com correção monetária limitada em épocade alta inflação, os subsídios recorrentes ausineiros de açúcar no Nordeste quando estaatividade é claramente antieconômica naregião etc.

Em segundo lugar temos as políticaspretensamente sociais, mas que protegemindevidamente indivíduos e grupos, princi-palmente membros da classe média, que detêmmaior poder eleitoral. Novamente casos-limitedesse tipo de violência foram as vantagensconcedidas aos mutuários do sistema financeirode habitação no final dos anos 80 e as vantagensque gozam os pensionistas dos fundos fechadosdas empresas estatais; nos dois casos osprejuízos do Tesouro do Estado foram enormes.

Em terceiro lugar temos as políticasadministrativas que protegem indevida edesequilibradamente ou todos os funcionáriospúblicos, ou determinados grupos de servidorespúblicos, inviabilizando que se cobre delestrabalho e remunerando-os de forma despro-porcional à sua contribuição ao Estado. Aestabilidade rígida garantida aos servidores pelaConstituição de 1988 e os profundos desequi-líbrios existentes nas suas remunerações sãoexemplos desse tipo de violência contra o direitoà res publica. Políticas previdenciárias paraservidores públicos, que lhes garantemprivilégios de uma aposentadoria integral eprecoce, totalmente desvinculada das contri-buições previdenciárias que realizaram, sãooutra forma de violência aos direitos repu-blicanos.

Esse tipo de violência contra a res publicaapresenta, entretanto, uma grande dificuldade.Afinal o que é o interesse público? Como dizerse determinada política do Estado consulta o

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interesse público, defende a res publica, ou, aocontrário, privilegia grupos especiais deinteresse? Evidentemente não é possívelidentificar o Estado e as políticas do Estadocom a racionalidade absoluta, com o interessepúblico em abstrato, como sugeriu Hegel, damesma forma que não é possível cair no errooposto de transformar o Estado em agenteexclusivo das classes dominantes, como fizeramMarx e principalmente Engels. Neste ponto,análises lógico-dedutivas do tipo adotado porHegel são de pouca utilidade. A visão históricade Marx e Engels, por sua vez, tem valorlimitado na medida em que o avanço, nestesúltimos cento e cinqüenta anos, da democraciae dos direitos de cidadania vão aos poucos seencarregando de refutá-la.

Na verdade, nas democracias social-liberaiscontemporâneas, marcadas pela representaçãopolítica dos mais variados grupos de interesses,por coalizões de classe de todos os tipos,ninguém tem o monopólio da definição dointeresse público. Cada grupo, cada classepretende representar corporativamente ointeresse público, de forma que nos deparamoscom uma heterogeneidade de “interessespúblicos” conflitantes. Isto, entretanto, nãosignifica que o interesse público não exista, quea defesa da res publica em nome do interessepúblico não possa ser realizada. Não significatambém que o interesse público só possa serdefendido indiretamente por meio da defesa doauto-interesse, dos interesses egoístas, coorde-nados pelo mercado, como pretende o libera-lismo radical, neoliberal. Significa apenas queo interesse público não existe de forma absolutae portanto autoritária. Existe, sim, de formarelativa, por meio do consenso que aos poucosas sociedades civilizadas vão formando sobreo que o constitui, e, mais amplamente, sobre oque constitui uma moral comum.

Esse consenso parte de uma distinção entreo auto-interesse o os valores civis, como fatoresdeterminantes da motivação humana. Seaceitarmos, como se tornou corrente entre oseconomistas e cientistas políticos neoliberaisda escolha racional e das expectativas racionaisneste final de século, que os indivíduos só semotivam pelo auto-interesse, a idéia de umconsenso em torno do interesse público torna-se contraditória, como se torna contraditória aidéia de cidadania44. Conforme observa Souza

Santos (1995: 255), “o regresso ao princípiodo mercado nos últimos vinte anos representaa revalidação social e política do ideário liberalem detrimento da cidadania”. Entretanto, seincluirmos na motivação humana, ao lado dosinteresses egoístas de cada indivíduo ou grupoos valores cívicos – os valores que permitem apaidea dos gregos, podemos pensar naformação de um consenso sobre o interessepúblico ou sobre os valores cívicos por meio,principalmente, da educação como umacaracterística fundamental das sociedadescivilizadas. Conforme nos dizem Davidson eDavidson, criticando o pensamento conser-vador moderno, que supõe como única moti-vação humana o auto-interesse (1996: 1-20):

“As nações são construídas sobreduas forças motivadoras: o auto-interessee os valores cívicos... A sociedadecivilizada requer a cooperação públicacom base nos ideais de eqüidade e justiçana busca do auto-interesse e da efi-ciência”.

A sociedade civilizada e a constituição deum consenso sobre o interesse público são frutoda racionalidade substantiva, orientada parafins. Mesmo, porém, quando a racionalidadeinstrumental se torna dominante, tornando abusca da eficiência ou do desenvolvimentoeconômico um valor fundamental do mundomoderno, os valores cívicos que constituem ointeresse público e permitem a cooperação oua ação coletiva são essenciais. Por meio delesse forma um consenso civilizado sobre ointeresse público, que, em seguida, se trans-forma em direito de cada cidadão: transforma-se nos direitos republicanos que merecem tantaproteção quanto mereceram no passado econtinuam a merecer hoje os direitos civis, osdireitos políticos e os direitos sociais.

Existe naturalmente o conceito positivistade interesse público (interesse resguardado nalei aprovada pelos representantes do povo). Parair além dele esse consenso social é importante.A partir dele será possível identificar a violaçãodo interesse público toda vez que, exposta amatéria à publicidade, ela provoca escândaloou reação coletiva de desprezo ou revolta. Atransparência efetiva da coisa pública e de sua

44 Observe-se que, da mesma forma que ocidadão dos filósofos políticos é uma construçãosocial e histórica, o indivíduo dos economistas

liberais operando livremente no mercado, apesar daabstração radical envolvida no conceito, é tambémuma construção histórica, estando ambos referidosao Estado que abriga o indivíduo econômico e ocidadão político. Sobre o caráter socialmenteconstruído do indivíduo ver Paulani (1996).

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gestão é a garantia mais concreta da democraciaparticipativa contra a violação dos direitosrepublicanos e a privatização da res publica.

A caracterização da violência à coisapública depende da clareza existente nasociedade em relação ao que ela entende porinteresse público. Podemos identificar três tiposde violência, classificados pela facilidade de suaidentificação. Em primeiro lugar temos asformas clássicas e bem definidas de violênciaà coisa pública: a corrupção, o nepotismo e asonegação fiscal. Em segundo lugar, o ganhode causa em ações judiciais injustas ouinfundadas contra o Estado45. Finalmente,temos as formas “modernas” e mal definidasde exercício de violência contra a coisa pública:as transferências indevidas a capitalistas, àclasse média e aos funcionários em nome depolíticas pretendidamente públicas.

Além da corrupção, a sonegação fiscal éuma violência que em países civilizados já foiincluída no direito penal46. O nepotismo ou,mais amplamente, o uso do cargo público nointeresse pessoal não é geralmente consideradocrime, mas, por meio dos concursos públicos paraadmissão de funcionários e de outros princípiosde direito administrativo, procura-se evitá-lo47.Em situação semelhante encontra-se o uso debens públicos de forma privada.

As vitórias em ações judiciais injustas ouindevidas contra o Estado, movidas porindivíduos privados e por funcionários, aquelespedindo indenizações absurdas em funçãoprincipalmente de desapropriações, ou livran-do-se da cobrança de impostos, estes solicitandovantagens indevidas que acabam desequili-brando todo o sistema remuneratório público,violentam a res publica. Nesses episódios, queenvolvem freqüentemente enormes prejuízospara o Tesouro, revela-se com freqüência o fato

de que o sistema jurídico ainda não logrou selivrar de seu viés liberal anti-estatal. O PoderJudiciário comporta-se, nessas ocasiões, comose ainda estivéssemos diante do problemaliberal de defender o cidadão contra um Estadotodo-poderoso e oligárquico. Todo o avanço dademocracia, nestes dois últimos séculos, teve osentido de garantir os direitos individuais. Umavez, entretanto, alcançada uma razoávelgarantia desses direitos, o problema da defesada res publica assumiu uma importânciafundamental que os sistemas jurídicos contem-porâneos não foram ainda capazes de dar conta,que não estão preparados para enfrentar oproblema, não dispondo muitas vezes doscritérios para distinguir as transferênciasdevidas das indevidas e as ações judiciaisabusivas das legítimas, nem está suficien-temente alertado da violência para com acidadania envolvida. A derrota judicial doEstado em ações dessa natureza, em certoscasos, deriva simplesmente da corrupção, masna maioria deles, é conseqüência do fato de queo direito administrativo, ainda que preocupadocom o interesse público, não tem cuidado deperceber a gravidade desses novos modos dedano à coisa pública. Por outro lado, sórecentemente vem ficando claro para osadministrativistas que a preocupação primeirado direito administrativo deve ser a defesa dacoisa pública, não apenas contra o adminis-trador corrupto, mas também senão princi-palmente contra o usurpador de fundospúblicos48.

Finalmente temos as formas “modernas” decaptura privada da coisa pública: as transfe-rências e renúncias fiscais em nome de políticaspúblicas distributivistas, ou de promoção dodesenvolvimento econômico. Esta é uma áreacinzenta, mal definida por natureza. É a áreaonde no passado atuavam as forças patrimo-nialistas e hoje atua o corporativismo. O patri-monialismo era mais direto: confundia o patri-mônio público com o privado abertamente –enquanto o corporativismo é mais sutil: defende

45 Obviamente não é fácil distinguir o que sejam“ações injustas contra o Estado”. Em muitos casoselas são fruto da má-fé do autor e só logram êxito sehouver corrupção do juiz ou de membros do poderjudiciário. Para uma ação ser injusta, entretanto, nãosão necessárias estas duas condições-limite.

46 O Brasil, por meio da Lei nº 4.729, de 14 dejulho de 1965, que definia o crime de sonegaçãofiscal, incluiu-se entre esses países. Essa lei,posteriormente, foi derrogada pela Lei nº 8.137, de27 de dezembro de 1990, que define os crimes contraa ordem tributária, econômica e contra as relaçõesde consumo.

47 Embora não considerado crime, o nepotismoé geralmente definido como “ato de improbidade”,podendo gerar responsabilidade civil se provado.

48 Na verdade, o direito administrativo vive hojeuma crise derivada de sua origem estritamenteburocrática, baseada na lei napoleônica de 1800.Enquanto o mundo passava por uma revoluçãotecnológica e gerencial, o corpo comum do direitoadministrativo continuava intocado. Uma crisedesencadeia-se então, a partir dos anos 60, queMedauar (1992, p. 226) analisa, para concluir que“ante as transformações da sociedade e do Estado,torna-se necessário fazer uma espécie de controlede validade das concepções tradicionais”.

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os interesses grupais sempre em nome dointeresse público. E o problema está no fato deque, ao contrário do que pretende o pensamentoneoliberal, uma parte dessas transferências énecessária, principalmente em nome dasolidariedade social. Distinguir as trans-ferências devidas das indevidas é um desafiofundamental das democracias modernas. Ocorporativismo é parte da democracia contem-porânea. O interesse público se define por meiode um complexo processo de negociações entregrupos corporativos intermediados peloEstado. Em muitos casos, entretanto, oresultado não é a afirmação do interessepúblico, mas o dos interesses privados. Nessemomento o Estado contemporâneo e o seurespectivo regime político, a democracia,entram em crise: o Estado em crise fiscal ede governança, a democracia em crise degovernabilidade49.

7. Positivação do Direito à res publicaO grande problema com os direitos repu-

blicanos e particularmente com o direito à respublica está no fato de que não é fácil identificaras violências “modernas” e mesmo as “violên-cias intermediárias” aos direitos republicanos.Todas elas implicam apropriação privada doEstado ou sua captura por particulares. Todaselas envolvem um enorme prejuízo para asociedade não apenas em função das transfe-rências indevidas que envolvem, mas tambémporque implica uso de uma enorme quantidadede trabalho improdutivo: a busca de rendasextramercado com apoio no Estado (rent-seeking).

O Direito fez pouco, até agora, na definiçãoe positivação dos novos direitos republicanos.Estão positivados os direitos republicanosclássicos: fundamentalmente o direito à coisapública contra as diversas formas de corrupção.Na lei brasileira, por exemplo, o Código Penalde 1941 não apenas tipifica como crime a

corrupção passiva, como o crime de empregoirregular de verbas ou rendas públicas,concussão (exigir vantagem indevida) e aadvocacia administrativa. Adicionalmente, aLei da Improbidade, de 1992, ampliou oconceito de improbidade administrativa,incluindo entre eles: (a) os atos lesivos ao erário;(b) os atos que importam em enriquecimentoilícito do agente público, acarretem ou nãodanos ao erário; (c) os atos que atentem contraos princípios da administração, acarretem ounão lesão ao erário ou enriquecimento ilícito.Nesses casos o problema é o da efetiva defesados direitos republicanos correspondentes.

Por outro lado, entre os novos direitosrepublicanos, o direito ao patrimônio ambientale o direito ao patrimônio cultural vêm tambémsendo afirmados pela lei. Na própria Cons-tituição brasileira o direito ao meio ambiente(art. 225) e o direito ao patrimônio histórico-cultural (art. 216) são explicitamente afirmados.Além disso, a Lei de Ação Civil Pública de 1985deu, de forma pioneira, instrumentos aoscidadãos para cobrar responsabilidade pordanos causados ao meio ambiente, ao consu-midor e a bens e direitos de valor artístico,estético, histórico, turístico e paisagístico.

Finalmente, no art. 5º da Constituiçãobrasileira, um rol de direitos republicanos éelencado e a ação popular é assegurada aqualquer cidadão para anular ato lesivo aopatrimônio público, ao meio ambiente e aopatrimônio histórico e cultural. Se esses direitosnão estão adequadamente garantidos é porquefalta operacionalizar a fiscalização, a ordenaçãode provas dos fatos violadores dos direitosrepublicanos e o aparelhamento adequado dosórgãos incumbidos de fiscalizar e cobrarresponsabilidades pela violação dos direitosrepublicanos. O Judiciário, por definição, époder inerte e, quando acionado, exige provasdas acusações e não meras narrativas de queviolações ocorreram.

Já em relação ao direito à res publica estritosenso, ao patrimônio econômico público, poucofoi feito para sua positivação. Esses são direitosnovos, sobre os quais a própria sociedade nãofoi ainda capaz de tomar consciência clara. Ora,a positivação dos direitos pelos legisladores, esua conceituação e interpretação pelos juristas,só ocorre historicamente quando essa tomadade consciência já ocorreu por parte dasociedade. Definir melhor esses direitos,caracterizar melhor as formas e modos de suatransgressão, transformá-los em normas

49 Devo esta observação a Denis Rosenfield, queem seus comentários à versão preliminar desteartigo, escreveu: “Há formas de ação particularmentedanosas para a res publica que são não apenas legaismas correspondem ao modo de funcionamento deum tipo de sociedade democrática. Na minhaperspectiva, tenderia a dizer que não se trata de umdisfuncionamento da democracia, mas talvez de suacrise, pois a atuação política e jurídica docorporativismo, de apropriação privada do público,é reveladora de uma determinada forma de exercíciocontemporâneo da política”.

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eficazes é, portanto, o grande desafio do Direito,principalmente do direito administrativo doséculo XXI.

Sob muitos aspectos, entretanto, o direitoadministrativo ainda está preso às suas origens:ao século XIX. Neste século o direito adminis-trativo surgiu como disciplina jurídica epreocupou-se com três problemas funda-mentais, que, a rigor, estão na base dos direitosrepublicanos: a afirmação do poder ou dasoberania do Estado e da supremacia dointeresse público sobre o privado50; a defesa doEstado contra a corrupção e o nepotismo e aregulamentação da administração pública e dasua burocracia. Ao mesmo tempo, entretanto,e fiel ao liberalismo que lhe deu origem,preocupava-se, no plano dos direitos, com agarantia dos direitos civis contra o Estadodespótico; no século XX, com a emergência doEstado Social, acrescentou à sua agenda osdireitos sociais.

Nesse processo o direito administrativo seviu imerso em uma contradição básica.Afirmava a supremacia do interesse público,mas acabou descurando-se dos novos direitosrepublicanos, decorrentes do aumento da respublica em fluxo representada pela cargatributária. Ao invés, concentrou-se em defenderos direitos civis e os direitos sociais em face aoEstado. Ora, esses direitos, se entendidos deforma desmedida, podem facilmente entrar emconflito com o direito à res publica. Enquantoa democracia liberal não estava definida eassegurada, a prioridade para os direitos civise políticos era inevitável. Da mesma forma,enquanto a desigualdade e a injustiça mar-cavam as relações sociais, a importância dosdireitos sociais era essencial. Nos paísesdesenvolvidos, o primeiro problema foiadequadamente resolvido, nos países civi-lizados, o segundo também51. Por isso, parasociedades que somam desenvolvimento e

civilização, o problema dos direitos repu-blicanos tornou-se essencial.

Nos países em desenvolvimento, entretanto,o problema dos direitos republicanos é tambémfundamental. Esses países, apenas neste últimoquartel do século XX, parecem ter alcançado ademocracia de forma razoavelmente estável, eestão ainda muito longe de um sistema socialeqüitativo. Entretanto, sabemos que o subdesen-volvimento é caracterizado pela sobreposiçãode fases históricas. Esta é uma fonte de confusãoconceitual para os analistas, mas é também umaoportunidade que as sociedades em desenvol-vimento mais criativas podem aproveitar.

No século XXI, o grande desafio para odireito administrativo será proteger o Estado,ou mais precisamente, a res publica, para, dessaforma, proteger o cidadão. Cidadão-contri-buinte, que paga impostos e tem direito que osserviços prestados pelo Estado sejam eficientes,custem o mínimo necessário. Cidadão-usuário,que recebe serviços e tem direito que eles sejamde boa qualidade. Cidadãos-cidadãos, que têmdireito à res publica. Nos séculos anteriores, oDireito, por meio dos direitos civis e políticos,afirmou a liberdade e protegeu os cidadãosdiretamente contra a opressão, e por meio dosdireitos sociais, afirmou a igualdade e protegeuos cidadãos em grupo contra a desigualdade,no século XXI, afirmará a prioridade dointeresse público e, por meio dos direitosrepublicanos, protegerá adicionalmente oscidadãos contra a captura do Estado pelosinteresses privados.

Na Constituição brasileira, existe umainstituição que assinala a problemática dapositivação e da defesa dos direitos repu-blicanos: a ação popular. Por meio dela cadacidadão pode exigir que a coisa pública nãoseja violentada. Além disso, nesse mesmoestatuto, há a previsão, entre as funçõesinstitucionais do Ministério Público, a de“promover o inquérito civil e a ação civilpública, para a proteção do patrimônio públicoe social, do meio ambiente e de outros interessesdifusos e coletivos”. Nesse sentido, houve umavanço no sentido da defesa da res publica. Ostribunais, entretanto, têm uma grande difi-culdade em julgar as ações populares na medidaem que os direitos republicanos estão muitasvezes mal definidos, ou então porque, no Direitobrasileiro, o sistema processual de tal formaprotege o réu que, da mesma forma que ocorrenos crimes comuns, se o ofensor contar comum bom advogado, torna-se quase impossívelcondená-lo. Por outro lado, quando a Consti-

50 Conforme Bandeira de Mello (1995, p. 17),“todo o sistema do Direito Administrativo, a nossover, se constrói sobre os mencionados princípios dasupremacia do interesse público sobre o particulare indisponibilidade do interesse público pelaAdministração”.

51 Um país desenvolvido não é necessariamentecivilizado, dependendo do conceito de civilizaçãoque adotemos. Um país civilizado não é apenas umpaís rico, mas também justo. Przeworski (1995)definiu um país civilizado como aquele em quemenos de 10 por cento da população está abaixo dalinha de pobreza. De acordo com essa definição osEstados Unidos não são civilizados.

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tuição de 1988 retirou a advocacia do Estadodo Ministério Público, que passou a serexclusivamente um defensor da cidadaniacontra as ações criminosas, a idéia foi distinguirtermos dois órgãos defendendo a res publica,sendo um independente do Executivo. E, defato, as atribuições do Ministério Públicocresceram na parte cível e de defesa dacidadania e da coisa pública. O MinistérioPúblico foi fortalecido, transformando-sepraticamente em um quarto poder, e conservouseu papel de combater os crimes contra oscidadãos e o Estado. Mas, na medida em queas violências contra a res publica não sepositivam ainda como crimes, ou não foramainda plenamente identificadas com as figurastípicas existentes, não está suficientementeclaro que seu papel fundamental, como defensordo interesse público, é defender a res publicano sentido que estamos utilizando aqui, nosentido de patrimônio econômico público,contra as violências contra ela. As violênciascivis contra o Estado passaram a ser objeto daAdvocacia Geral da União, enquanto oMinistério Público acentuava seu papel dedefensor da cidadania clássica e do patrimônioambiental e cultural, deixando, em segundoplano, a defesa do patrimônio econômicopúblico. Ora, na defesa da cidadania clássica,o Estado aparece mais freqüentemente comoagente violentador do que como violentado.

Para a defesa da res publica, uma instituiçãointeressante, no Estado francês, é o Conseild’Etat. Seu papel é claramente o de defensorda res publica na medida em que, além deconselheiro do governo, este órgão se constituiem tribunal de última instância, embora decaráter administrativo, em relação às açõespatrimoniais contra o Estado. No julgamentodas ações contra o Estado, o Conseil d’Etatadota uma perspectiva de proteção do interessepúblico que, nos países em que não existe umainstituição desse tipo, se torna mais difícil, jáque, na tradição liberal dos direitos civis, osinteresses dos cidadãos são vistos como opostosaos do Estado, embora, contraditoriamente, seassuma que o Estado represente o interessepúblico. A contradição de certo modo sedissolve com a distinção entre o público que oEstado representa e os interesses momentâneosdo Governo ou da Burocracia. Quando osdireitos civis defendidos são legítimos, suasatisfação atende o interesse público, emborapossa não estar atendendo o interesse doaparelho estatal ou do governo que o dirige.

8. Defensores e AdversáriosA conscientização, positivação e garantia

do direito à res publica, ocorrerá lentamente, àmedida que a sociedade se aperceba da suaexistência. Precisamos, entretanto, ter claroquem são seus principais defensores oupropugnadores, e quem são seus principaisinimigos. A definição dos principais defensoresé sempre arbitrária. Para cada direito temos umnúmero enorme de defensores, que tende a seampliar à medida que o direito se afirma.Podemos, entretanto, distinguir historicamentealguns defensores especiais para cada um dosdireitos.

Os direitos de cidadania anteriores tiveramcada um um defensor principal diferente. Osdireitos civis tiveram como campeões no séculoXVIII as cortes inglesas e os filósofos ilu-ministas, em busca de um mundo mais livre;os direitos políticos se afirmaram no século XIXa partir da superação do liberalismo econômicopelos políticos democráticos comprometidoscom as causas populares52; os direitos sociaisforam fruto direto da luta dos socialistas. Osdireitos republicanos terão defensores depen-dendo da natureza dos mesmos: os direitos aopatrimônio cultural têm como principaisdefensores os artistas; os defensores dopatrimônio ambiental são protegidos princi-palmente pelos biólogos e ambientalistas; e odireito à res publica , finalmente, tem noseconomistas seus patronos mais diretos, emboradeva caber sempre aos juristas e filósofos adefinição desses direitos, e aos juristas a suaimplementação. Na definição dos limites entreas políticas econômicas e sociais legítimas eilegítimas os economistas teóricos, com seuinstrumental baseado nos conceitos de benspúblicos, poder monopolista, externalidades ede custos de transação, já vêm dando umacontribuição importante. Por outro lado, oseconomistas e os gestores públicos localizadosnos ministérios das finanças dos diversos paísessão os profissionais mais diretamente respon-sáveis pelo equilíbrio das contas fiscais e,portanto, pelo veto ao mau uso de recursospúblicos. Entretanto, o papel decisivo dedefinição e implementação do direito repu-blicano à res publica caberá sempre aos juristassituados fora e dentro do Estado. Fora doEstado, será a partir do debate filosófico ejurídico que poderão ser melhor definidos osdireitos republicanos. Dentro do Estado, são

52 Ver a respeito Thereborn (1977) e Bobbio(1988).

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defensores por excelência da res publica, poruma questão profissional, os advogados doEstado, o Ministério Público, e, mais generica-mente, o Poder Judiciário e o Poder Legislativo.Os advogados protegem juridicamente o Estadonas questões civis tradicionais em que o Estadoé réu ou autor: questões tributárias, desa-propriações, questões trabalhistas. Ao Minis-tério Público cabe especificamente a defesa dosdireitos republicanos; na prática, as açõesprovocadas por entidades ligadas ao meio-ambiente quase sempre acabam iniciadas peloMinistério Público; provavelmente as ações,protegendo o patrimônio econômico públicotenderão a ser no futuro próximo cada vez maisfreqüentes. Ao Poder Judiciário caberá julgaras ações a partir dos critérios que o PoderLegislativo procurará definir em lei, mas quedependerão em grande parte da própriajurisprudência que aos poucos for sendodefinida. Na medida, porém, em que não hádireito positivo definido para as violências àres publica relacionadas com as políticaseconômicas e sociais do Estado, nem critériospara julgar o que é abusivo e o que é legítimonessa área, o trabalho de definição desta áreado Direito será necessariamente o resultado dotrabalho conjunto de economistas, filósofospolíticos e sociais, e juristas.

Constituindo-se principalmente de um fluxode receitas tributárias, a res publica é um bemeconômico comum fundamental. Os econo-mistas, apesar de todo o seu individualismo,que os leva freqüentemente a desacreditar dapossibilidade de ação coletiva, estão profis-sionalmente voltados para a utilização ótimade recursos escassos. Sua permanente tentaçãoestá em acreditar que os mercados sejamcapazes de realizar autonomamente essa tarefa.Entretanto, quando a intervenção do Estado semostra inevitável, os economistas – e nãoapenas os que trabalham para o Estado –dispõem do instrumental para desenvolvermétodos razoavelmente rigorosos de avaliaçãodas políticas públicas por meio dos quaisprotegem o patrimônio econômico público.Logram assim critérios para distinguir qual éa intervenção do Estado no econômico e nosocial, que é legítima, e qual não é53. Os critérioseconômicos que adotam para justificar aintervenção do Estado – externalidades

positivas e negativas, ganhos de escala, poderde monopólio, assimetria de informações,mercados incompletos – são, naturalmente, dedifícil aplicação nos casos concretos. Como,entretanto, as violências contra a coisa públicasão geralmente grosseiras, estes critérios, se nãosão suficientes, ajudam muito na avaliação doproblema.

Aos critérios econômicos é necessário,porém, acrescentar os critérios morais relacio-nados com os direitos sociais ou, maisamplamente, com os direitos humanos. Quandoo Estado garante saúde de forma universal, oueducação de primeiro grau, ou um sistema deprevidência básico, seus gastos podem ter umajustificativa econômica, mas estão respondendoessencialmente a imperativos de ordem moral.Da mesma forma, entretanto, que pode haverabuso, apropriação privada da coisa públicacom justificativas de ordem econômica, maisfacilmente podem ser apresentadas justifi-cativas de ordem social e moral. Saber criticaressas justificativas é uma tarefa fundamental aque economistas, filósofos e juristas terãocrescentemente que se dedicar.

Os critérios econômicos e os morais quedistinguem a intervenção estatal legítima daapropriação privada da coisa pública sãosempre fortemente influenciados por fatores deordem ideológica. Neste momento, a visão deesquerda e de direita volta a entrar em conflitoe a tornar irracional o debate. Apesar, de umlado, do colapso do comunismo ter eliminadoa alternativa utópica da esquerda de umaeconomia coordenada pelo Estado ao invés domercado, e, de outro, dos recorrentes fracassosneoliberais em implantar a utopia oposta doEstado mínimo, existe ainda um grande númerode pessoas que afirma a legitimidade daintervenção estatal a partir das suas preferênciaspessoais pela esquerda ou pela direta54. Naverdade, haverá sempre indivíduos e gruposmais de direita ou mais de esquerda, na medidaem que priorizem respectivamente a ordem oua justiça social, mas não terão, para isto, queadotar uma posição mais ou menos inter-vencionista. A história registra posições dedireita altamente intervencionistas, favoráveis

53 A literatura a respeito é imensa. Ver parti-cularmente Lane (1985), Santos (1988, cap. 2),Stiglitz (1989, 1994), Przeworski (1990, 1995),Rapaczynski (1996).

54 Para uma crítica do uso do critério intervençãodo Estado para distinguir esquerda de direita, verBresser Pereira (1996b). Nesse trabalho proponhocomo critérios universais para distinguir esquerdade direita a ordem e a justiça social. Emboravalorizando estes dois objetivos políticos funda-mentais, a direita prioriza a ordem, a esquerda, ajustiça.

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a políticas industriais agressivas, enquanto hojetornam-se freqüentes postulações de esquerdalimitativas da intervenção do Estado no planodas políticas de promoção do desenvolvimentoeconômico.

Quando é adotada uma posição conser-vadora e liberal-radical (neoliberal), como é ocaso dos economistas da escolha racional,imagina-se que a melhor alternativa paradefender a coisa pública é diminuí-la aomínimo. Na medida, entretanto, que falta a estaalternativa qualquer viabilidade prática, já queas sociedades contemporâneas continuam aexigir do Estado um papel ativo na promoçãodos direitos sociais e dos direitos republicanos,não resta outra possibilidade senão defender ares publica.

Dado seu equipamento teórico de quedispõem e sua missão específica, quandoocupam funções no Estado, de defesa doTesouro, os economistas são candidatos naturaisà proteção da res publica. Entretanto, esta éuma tarefa muito maior do que aquela quepodem eles realizar. Precisam da contribuiçãocrítica e atuante de cientistas sociais, de juristas,de filósofos sociais, de administradores públicose de políticos. A tarefa não é apenas a de definircritérios. É principalmente a de denunciar osviolentadores da coisa pública.

Quem são eles? Sob certos aspectos, somostodos nós. Afinal Hobbes postulava para oshomens a “cobiça natural”. Podemos, entre-tanto, ser mais específicos. Historicamente aapropriação da coisa pública ocorreu por meiodo mecanismo patrimonialista, embora, a rigor,enquanto não havia a clara separação entre opatrimônio público e o privado, não se pudessefalar em res publica, nem em sua apropriaçãoprivada. A partir do século XVIII, porém, coma afirmação do capitalismo, e, em seguida, noséculo XIX, com a progressiva introdução dosregimes democráticos, o patrimonialismo e suasformas contemporâneas – o clientelismo e ofisiologismo – passaram a se constituir noinimigo a ser combatido. A democracia, comuma imprensa livre e uma oposição políticaatuante, e a introdução da administraçãopública burocrática foram os dois instrumentosfundamentais de combate ao nepotismo e àcorrupção patrimonialista.

No século XX, entretanto, surgiu uma novaforma institucionalizada de apropriação privadada coisa pública: o corporativismo. Enquantono patrimonialismo se confunde o patrimôniopúblico com o da família, no corporativismo o

patrimônio público é confundido com opatrimônio do grupo de interesses ou corpo-ração. Estou entendendo aqui corporativismonão como uma forma de regulação socialassociado ao Estado do Bem-Estar, mas comouma forma de representação de interesses queé, ao mesmo tempo, legítima e perversa55. Élegítima porque faz parte da lógica política docapitalismo contemporâneo que os grupossociais se façam representar politicamente edefendam seus interesses. É perversa porqueesses grupos, ao invés de admitir que estãodefendendo interesses particulares, tendem aidentificar seus interesses particulares com ointeresse público. Quando alguém ou algumgrupo defende explicitamente seus interessesjunto ao Estado, esta ação é absolutamentelegítima. Deixa de sê-lo, entretanto, quando aargumentação usada esconde ou minimiza osinteresses particulares representados, preten-dendo afirmar os interesses gerais. Neste casoa probabilidade de que esteja havendo umprocesso de privatização da coisa pública émuito grande.

9. ConclusãoA esfera econômica é definida por um

processo de produção e distribuição de riquezae renda, a política, pela produção e distribuiçãode poder. Estas duas esferas são interde-pendentes. Da mesma forma que quando asempresas exercem poder de monopólio, elasestão incluindo no mercado um elemento depoder, quando o Estado assume o papel dedistribuidor de renda por meio das transfe-rências que realiza, a distribuição de rendapassa a ter um caráter eminentemente político.Neste momento a res publica entra em jogo, eevitar que ela seja apropriada de forma privadatorna-se um problema político fundamental dassociedades civilizadas.

O avanço da cidadania e da civilização nomundo tem ocorrido historicamente por meioda afirmação de direitos. A definição eintrodução nas leis dos países dos direitos civismarcou o início do regimes políticos liberais; aafirmação dos direitos políticos permitiu osurgimento das democracias liberais; adefinição dos direitos sociais, a emergência dassocial-democracias. A afirmação dos direitosrepublicanos completará esse ciclo histórico deafirmação da cidadania.

55 Para uma conceituação de corporativismocomo modo de regulação social ver Schmitter (1974),Cawson (1985).

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Cada um desses direitos constrói-se sobre oanterior. Os dois primeiros afirmaram direitosindividuais; os dois últimos, direitos coletivos.Mas os direitos individuais só são viáveis noplano de uma polis em que o público temprecedência sobre o privado. Da mesma formaque o interesse público só é atendido quandoos direitos individuais estão assegurados.

Todos esses direitos são direitos do homem,são direitos humanos. Direitos que os homensvêm afirmando e procurando positivar nestesúltimos três séculos. Sua definição e suaintrodução nas leis dos países foi uma grandeconquista civilizatória, mas é apenas uma etapade sua afirmação mais geral. Esta depende dasua efetiva proteção, da garantia de que ela seestenda a toda a sociedade. Embora não acrediteno desenvolvimento linear das sociedades,acredito que a tendência ao progresso e àcivilização é dominante. Quando os direitoscivis e políticos se transformaram, nestasegunda metade do século XX, em “direitoshumanos”, o que estava acontecendo era a buscasistemática de estendê-los às camadas maispobres da população. Quando os direitosrepublicanos começam a ser definidos nestefinal de século, o que vemos é a busca de umnível mais alto de democracia e de integraçãodo público e do privado.

Definir os direitos republicanos – o direitoao patrimônio histórico-cultural, ao patrimônioambiental e ao patrimônio econômico comuns– não é fácil. A dificuldade é especialmentegrande em relação ao patrimônio econômico,que neste trabalho identificamos com a respublica . Esta coisa pública é representadaprincipalmente pelo fluxo de impostos que oEstado coleta todos os anos. Dependendo daforma segundo a qual esses recursos estiveremsendo gastos, estará havendo um uso públicoou uma apropriação privada da res publica.

Muitos são os privatizadores da coisapública. No passado, eram representados pelopatrimonialismo, no presente pelo corpo-rativismo. Por outro lado, muitos são oscandidatos a defensores da res publica. Tudoindica, entretanto, que cabe aos economistasum papel estratégico nesse processo, na medidaem que sejam capazes de definir os critériosque permitam distinguir a despesa públicalegítima da ilegítima. Não há dúvida, entre-tanto, que esta é uma tarefa que supera de muitoa capacidade dos economistas. É um desafiode toda a sociedade que além de democráticase quer civilizada.

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1. Reforma administrativa e reformana mentalidade administrativa –

o papel dos juristasA reforma administrativa do aparelho do

Estado no Brasil tem na introdução e alteraçãode normas no âmbito da Constituição daRepública e das leis do País uma de suas etapasnecessárias. Porém, a eficácia da reformaadministrativa está condicionada ainda a umaconcomitante reforma na mentalidade dosagentes públicos. É indispensável para a efetivaimplementação da reforma pretendida que osagentes administrativos superem o tradicionalvezo burocrático que vem convertendo aAdministração, nas palavras de Dromi, numacara “máquina de impedir”, fiel ao que o mesmoautor batizou como o “código do fracasso”, quedispõe: “artigo primeiro: não pode; artigosegundo: em caso de dúvida, abstenha-se;artigo terceiro, se é urgente, espere; artigoquarto, sempre é mais prudente não fazer nada”(1995:35).

A reforma administrativa iniciada no Brasilguarda semelhança com outras reformas doEstado ocorridas em várias partes do mundo,conforme se pode observar nas experiênciasrelatadas por Palazzo, Sésin e Lembeye no livroLa Transformación del Estado (1992).

Reforma administrativa e marco legal dasorganizações sociais no BrasilAs dúvidas dos juristas sobre o modelo das organizaçõessociais

Texto apresentado no II Congresso Intera-mericano sobre a Reforma do Estado e da Admi-nistração Pública promovido pelo CLAD – CentroLatinoamericano de Administración para elDesarrollo, realizado na Ilha de Margarita,Venezuela, em outubro de 1997. Um esboçopreliminar do texto foi preparado para uma reuniãode trabalho com a Assessoria Jurídica da Casa Civilda Presidência da República em 1.2.1996.

PAULO MODESTO

Paulo Modesto é Assessor Especial do Ministroda Administração Federal e Reforma do Estado doBrasil, Professor de Direito da Universidade Federalda Bahia, Membro do Instituto Brasileiro de DireitoAdministrativo, do Ministério Público e do Institutode Advogados do Estado da Bahia.

SUMÁRIO

1. Reforma administrativa e reforma namentalidade administrativa – o papel dos juristas.2. As dúvidas dos juristas sobre as organizaçõessociais. 2.1.1. Organizações sociais e entidadesprivadas de utilidade pública. 2.1.2. Serviçosprivados de interesse público e serviços públicos.2.1.3. Organizações sociais e terceirização: o casodo Sistema Único de Saúde (SUS). 3. Conclusão.

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De fato, são aspectos comuns às diversasreformas contemporâneas do Estado:

a) aplicação de novas técnicas de coor-denação de serviços e atividades entre esferaspolíticas diversas (consórcios intergover-namentais, acordos-programas, convênios dedelegação ou descentralização);

b) estímulo à privatização de serviçoseconômicos competitivos sustentáveis emregime de mercado;

c) transferência de funções do poder centralpara entes intermediários e locais;

d) ampliação dos controles de produtividadee de economicidade, vale dizer, do resultadodo trabalho administrativo (controles deeficiência);

e) fortalecimento da autonomia das enti-dades personalizadas da administração indireta;

f) incentivo à gestão direta pela comunidadede serviços sociais e assistenciais, fora doaparato burocrático do Estado, porém comapoio direto dele e com sua assistênciapermanente (organizações não-governa-mentais, associações de utilidade pública,escolas comunitárias);

g) estímulo ao pessoal administrativo nodesenvolvimento de atividades-fins, com aconcomitante diminuição ou terceirização deatividades-meio, acompanhada de valorizaçãodas carreiras exclusivas de Estado, inclusivemediante adequação do padrão remuneratórioao mercado de trabalho;

h) capacitação de pessoal dirigente e cri-ação de carreiras específicas para altos gestores;

i) elaboração do conceito de planejamentoestratégico e fortalecimento dos setores admi-nistrativos responsáveis pela formulação depolíticas públicas;

j) consolidação e simplificação de proce-dimentos e processos no interior da adminis-tração;

l) estímulo ao desenvolvimento de habi-litações gerenciais flexíveis do pessoaladministrativo, fator a ser considerado nopróprio recrutamento, mediante a ampliação dograu de generalidade das atribuições contem-pladas nos cargos públicos;

m) definição de novas formas de responsa-bilização dos agentes públicos pela gestãoadministrativa;

n) adoção de programas de desregulamen-tação ou de simplificação da legislação(consolidação e codificação legislativa);

o) ampliação dos mecanismos de parti-cipação popular na atividade administrativa ede controle social da administração pública.

Essas tarefas, apenas mencionadas paraformação de um quadro simplificado dereferência, permitem também inferir osobjetivos práticos que servem de base finalistaaos projetos mais conhecidos de Reforma doEstado:

a) objetivo econômico: diminuir o “déficit”público, ampliar a poupança pública e acapacidade financeira do Estado para con-centrar recursos em áreas em que é indis-pensável a sua intervenção direta;

b) objetivo social: aumentar a eficiência dosserviços sociais oferecidos ou financiados peloEstado, atendendo melhor o cidadão a um customenor, zelando pela interiorização na prestaçãodos serviços e ampliação do seu acesso aos maiscarentes;

c) objetivo político: ampliar a participaçãoda cidadania na gestão da coisa pública;estimular a ação social comunitária; desen-volver esforços para a coordenação efetiva daspessoas políticas no implemento de serviçossociais de forma associada;

d) objetivo gerencial: aumentar a eficáciae efetividade do núcleo estratégico do Estado,que edita leis, recolhe tributos e define aspolíticas públicas; permitir a adequação deprocedimentos e controles formais e substituí-los, gradualmente, porém de forma sistemática,por mecanismos de controle de resultados.

É manifesto que este amplo quadro detarefas e objetivos somente é alcançável com aação cooperativa dos envolvidos no processode implementação das reformas, em especialcom a colaboração dos juristas, responsáveisimediatos pela interpretação do direitoreformado.

Nesse sentido, recorde-se Pontes deMiranda:

“Fez-se cânon da Crítica modernaser-lhe indispensável a simpatia.

Interpretar a lei não é só criticá-la: éinserir-se nela, e fazê-la viver. Aexigência, portanto, cresce de ponto, emse tratando de Constituição. Com aantipatia não se interpreta, – ataca-se;porque interpretar é pôr-se do lado quese interpreta, numa intimidade maior doque permite qualquer anteposição,qualquer contraste, por mais consen-tinte, mais simpático, que seja, dointérprete e do texto. Portanto, a própriasimpatia não basta. É preciso compe-netrar-se do pensamento que esponta nasregras jurídicas escritas; e, penetrando-se nelas, dar-lhes a expansão doutrinária

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e prática, que é o comentário jurídico.Só assim se executa o programa dojurista, ainda que, de quando em vez, selhe juntem conceitos e correções de legeferenda” (1987: 5)(Grifo nosso).

Com efeito, parece possível interpretar erefletir sobre o que representa o programa dasorganizações sociais para a redefinição do modode intervenção do Estado no âmbito socialapenas se adotarmos uma atitude de abertura,de ânimo desarmado, negação da mentalidadeburocrática antes referida, que desconfia donovo e o renega de plano, adulterando o seusentido próprio a partir de antigos esquemasconceituais.

Na verdade, a atitude aposta à de abertura,a atitude de bloqueio a priori, é impensável einaceitável entre juristas, que são profissionaisdo diálogo , acostumados a tratar cotidia-namente com novas demandas político-sociais.

O saber dos juristas é um saber de prota-gonistas, pois mediante o discurso dos juristassão estabelecidas decisões ou condições paraa tomada de decisões jurídicas. Enquanto amaior parte das ciências opera com um objetodado, que o cientista pressupõe como umaunidade estável, o objeto do jurista é um objetolingüístico, socialmente condicionado, que seelabora e apresenta ao domínio públicomediante a decisão interpretativa, amplamenteinfluenciada pelo instrumental elaborado pelaciência do direito. Esta é a razão de se dizer,não sem algum exagero, que o objeto do saberdo jurista não é algo dado ao seu conhecimento,mas o resultado do seu labor.

Essa interferência da doutrina jurídica nadefinição e avaliação do direito vigente aumentaa responsabilidade social da dogmática jurídicae dos próprios juristas individualmente. Dadogmática jurídica, pois cabe-lhe estabeleceros limites do conhecimento jurídico válido (ascondições de validação científica do labor dosjuristas), restringindo o arbitrário interpre-tativo, estabelecendo métodos de trabalho queneutralizem ao máximo as puras inclinaçõessubjetivas ou pessoais. Dos juristas, pois comoagentes sociais que monopolizam o discursotécnico sobre as normas da coletividade, têmcondições de antecipar as conseqüênciasnegativas e positivas da aplicação das normasjurídicas aprovadas, propor novas pautas desolução de conflitos, bem como capacidade deenquadrar de forma argumentativa os novosconflitos no interior do direito já existente,enfraquecendo ou eliminando temporariamente

conflitos. Sobre tema da função social dadogmática jurídica, v. Ferraz Jr. (1994, p.280-1; 1980, p. 149 e ss.).

O desafio de pensar juridicamente asorganizações sociais faz crescer em importânciaa vocação de protagonista dos juristas, pois estessão convidados a co-participar da constituiçãodesta nova “figura jurídica”, sem reservas e semtemor de pensar o novo.

2. As dúvidas dos juristas sobre asorganizações sociais

São basicamente duas as dúvidas levantadaspelos juristas durante o processo de discussãodo modelo de organizações sociais apresentadopelo Ministério da Administração Federal eReforma do Estado do Brasil. A primeira, decaráter geral, diz respeito à própria identi-ficação do que sejam as organizações sociais eao papel que cumpririam perante a adminis-tração pública. Em termos técnicos, ao fim eao cabo, esta primeira indagação diz tambémsobre a possibilidade e a natureza jurídica dasorganizações sociais. Discute-se aqui se asorganizações sociais desenvolveriam atividadesde serviço público ou atividades privadas, seconstituiriam formas de privatização de entespúblicos, bem como quais os traços diferenciaisque as apartariam das tradicionais entidadesprivadas de utilidade pública. Na segundaquestão, de caráter especial, indaga-se se serácabível a exigência de realização de processolicitatório para a cessão de bens e recursospúblicos às entidades reconhecidas comoorganizações sociais, o regime jurídico do apoioque lhes emprestará o Poder Público, bem comoo que as distinguirá das entidades privadas queprestam serviços à Administração Públicamediante contratos de terceirização.

2.1. Organizações sociais e entidadesprivadas de utilidade pública

Não existe ainda uma definição legal dasorganizações sociais no plano federal no Brasil.O projeto elaborado pelo Poder ExecutivoFederal, em vias de ser enviado ao CongressoNacional, conquanto não tenha ainda sidoformalmente apresentado, foi copiado e tornadolei em diversos Estados da Federação (v.g. Pará,Lei nº 5.980/96; Bahia, Lei nº 7.027/97). Éimportante saber que o projeto federal ao longodo tempo sofreu reformulações, de conteúdo eforma, que lhe alteraram profundamente a

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compostura, sem embargo de uma continuidadefirme nos propósitos básicos. A última versãodo projeto, apresentado em anexo a estetrabalho, servirá de fundamento para asdefinições e afirmações adiante expostas.

Uma definição operacional das organi-zações sociais pode ser formulada nos termosseguintes. As organizações sociais são pessoasjurídicas de direito privado, sem fins lucrativos,voltadas para atividades de relevante valorsocial, que independem de concessão oupermissão do Poder Público, criadas poriniciativa de particulares segundo modeloprevisto em lei, reconhecidas, fiscalizadas efomentadas pelo Estado.

Em sentido abrangente, as organizaçõessociais representam uma forma de parceria doEstado com as instituições privadas de finspúblicos (perspectiva ex parte principe) ou, soboutro ângulo, uma forma de participaçãopopular na gestão administrativa (perspectivaex parte populi).

No aspecto da parceria, as organizaçõessociais definem-se como instituições do terceirosetor (pessoas privadas de fins públicos, semfins lucrativos, constituídas voluntariamentepor particulares, auxiliares do Estado napersecução de atividades de relevante interessecoletivo), pois possuem o mesmo substratomaterial e formal das tradicionais pessoasjurídicas privadas de utilidade pública. Não sãoum novo tipo de pessoa jurídica privada nementidades criadas por lei e encartadas naestrutura da administração pública. São pessoasjurídicas estruturadas sob a forma de fundaçãoprivada ou associação sem fins lucrativos. Serorganização social, por isso, não significaapresentar uma estrutura jurídica inovadora,mas possuir um título jurídico especial,conferido pelo Poder Público em vista doatendimento de requisitos gerais de constituiçãoe funcionamento previstos expressamente emlei. Esses requisitos são de adesão voluntáriapor parte das entidades privadas e estãodirigidos a assegurar a persecução efetiva e asgarantias necessárias a uma relação deconfiança e parceria entre o ente privado e oPoder Público.

A denominação organização social é umenunciado elíptico . Denominam-se sinte-ticamente organizações sociais as entidadesprivadas, fundações ou associações sem finslucrativos, que usufruem do título de orga-nização social.

Essa qualidade jurídica conferida peloPoder Público faz incidir sobre as instituições

reconhecidas um plexo de disposições jurídicasespeciais, que asseguram vantagens e sujeiçõesincomuns para as tradicionais pessoas jurídicasqualificadas pelo título de utilidade pública.Em qualquer dos dois títulos referidos, porém,dá-se um plus à personalidade jurídica dasentidades privadas, que passam a gozar debenefícios especiais não extensíveis às demaispessoas jurídicas privadas (benefícios tribu-tários e vantagens administrativas diversas). Atodo rigor, portanto, nenhuma entidade éconstituída como organização social. Serorganização social não se pode traduzir em umaqualidade inata, mas em uma qualidadeadquirida , resultado de um ato formal dereconhecimento do Poder Público, facultativoe eventual, semelhante em muitos aspectos àqualificação deferida às instituições privadassem fins lucrativos quando recebem o título deutilidade pública.

De fato, as organizações sociais sãojuridicamente entidades bastante semelhantesàs tradicionais entidades privadas declaradasde utilidade pública, mas com elas não seidentificam de modo completo. São traçoscomuns às duas entidades:

a) a iniciativa privada voluntária na suacriação e na sua constituição;

b) a existência de limites gerais à livreconstituição e funcionamento dos órgãos dedireção ou gerência como requisito para oexercício de ato posterior de reconhecimentoou qualificação;

c) a afetação a uma finalidade de interessepúblico ou socialmente relevante;

d) o recebimento de favores especiais,subsídios, isenções e contribuições do Estado;

e) a submissão a uma vigilância especial ea limitações de ordem administrativa que vãoalém do simples poder de polícia exercido sobreas demais pessoas privadas;

f) sujeição ao controle do Tribunal deContas;

g) a necessidade de reconhecimento formalpor parte do Estado, segundo um procedimentoespecial regulado em lei;

h) a destinação legal do patrimônio sociala outra entidade de mesma natureza, em casode extinção da entidade, não sendo permitidoseja o patrimônio repartido entre os membrosda instituição;

i) a submissão ao regime jurídico daspessoas de direito privado, com derrogações dedireito público.

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As organizações sociais, no entanto,apresentam também características especiaisque as distinguem de modo parcial dastradicionais entidades privadas declaradas deutilidade pública. Em resumo, os traçosdiferenciais básicos são os seguintes:

a) os seus estatutos devem prever e adotardeterminado modelo de composição para osseus órgãos de deliberação superior, inclusiveprevendo a participação necessária derepresentantes do Estado, como requisito parapermitir o ato posterior de qualificação peloPoder Público;

b) o trespasse de bens e recursos públicosnelas está condicionado à assinatura decontratos de gestão com os órgãos competentesda administração pública federal;

c) o estatuto deve prever, também como umrequisito da qualificação, sujeição da entidadeà publicação anual no Diário Oficial da Uniãodo relatório de execução do acordo ou contratode gestão (relatório gerencial das atividadesdesenvolvidas, apoiadas pelo Poder Público, enão apenas do relatório formal da contabilidadeda entidade);

d) o estatuto deve prever, como requisito dequalificação, regras rígidas de reforma dasfinalidades sociais, bem como regras para adefinição impessoal das regras a serem adotadaspara a remuneração do pessoal da entidade epara o sistema de compras;

e) o estatuto ainda deve prever que aentidade estará sujeita a controle externo deresultados, periódico e a posteriori, realizadopor comissão de avaliação composta porespecialistas de notória qualificação, espe-cialmente destinado à verificação do cumpri-mento do contrato ou acordo de gestão firmadocom o Poder Público;

f) as entidades poderão utilizar bensmateriais e recursos humanos de entidadesextintas do Estado, desde que a extinção tenhasido realizada por lei específica;

g) as entidades poderão também absorveratividades e contratos de entidade extintas,também quando autorizados por lei, bem comoos seus símbolos designativos, desde que estessejam seguidos obrigatoriamente do símbolo OS.

As diferenças e semelhanças entre as duasentidades são manifestas, mas indicam tambémser possível identificá-las como entidades damesma espécie, ainda que inconfundíveis. Asorganizações sociais são entidades de utilidadepública qualificadas por maiores restrições emaior vigilância do Estado, no mesmo passo

em que podem receber deste maiores benefíciose vantagens incomuns – embora não vedadosàs atuais entidades privadas de utilidadepública.

Algumas vantagens têm surpreendido osjuristas, em especial a possibilidade previstade haver absorção, pelas entidades qualificadas,de atividade e recursos de entidades estataisextintas por lei específica (ex vi art. 37, XIX,da Constituição Federal e do princípio da“paridade das formas”). Os bens de entidadeextinta de ordinário revertem ao patrimônio daUnião, mas poderá haver permissão de uso paraas organizações sociais que recebam auto-rização legal especial para assumirem ativi-dades e compromissos do ente extinto. Aindaque a vantagem dependa de fato duplamenteeventual (a extinção do ente público e a faltade definição na lei específica de outro destinopara o patrimônio ou os bens da entidadeencerrada, por exemplo, doação a Estados eMunicípios), alguns juristas têm retirado dahipótese duas conclusões contrapostas oucontraditórias. Para alguns, trata-se debenefício revelador de que as organizaçõessociais não passarão de entidades estatais deadministração indireta, encobertas sob a formade pessoas privadas, mas na verdade veículosexpressivos do Poder do Estado. Para outros,trata-se de demonstração de que as organizaçõessociais nada mais são do que uma nova formade privatização, de dissolução do patrimôniopúblico, em detrimento do interesse coletivo.O equívoco é duplo.

As organizações sociais, no modeloproposto, não serão autarquias veladas, nemtitularizarão qualquer espécie de prerrogativade direito público. Não gozarão de prerro-gativas processuais especiais ou prerrogativasde autoridade. Não estarão sujeitas à super-visão ou tutela da administração pública diretaou indireta, respondendo apenas pela execuçãoe regular aplicação dos recursos e bens públicosvinculados ao acordo ou contrato de gestão quefirmarem com o Poder Público. Não serãoinstituídas por lei nem custeadas na suaintegridade, de modo necessário, pelo PoderPúblico. Serão entidades privadas reconhecidaspelo Estado, à semelhança das atuais entidadesde utilidade pública, devendo sua constituiçãojurídica à iniciativa voluntária de indivíduos.Não serão criaturas do Estado, nem sucessorasnecessárias de entidades públicas extintas.Podem ser reconhecidas ou qualificadas comotais independentemente da extinção de

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qualquer ente público existente. Quando foremautorizadas a assumirem, porém, atividades eprédios anteriormente ocupados por entidadesextintas – benefício incomum hoje, mas nãoinconcebível para as próprias instituiçõestradicionais de utilidade pública –, medianteautorização legal específica, nem por issodeixarão de ser ou agir como pessoas privadaspara transformarem-se em entes do Estado.Exemplo: suponha-se que uma Santa Casa deMisericórdia, instituição tradicionalíssima noBrasil de prestação de serviços de saúde eassistência social, aceite adaptar os seusestatutos ao modelo de constituição e demaisobrigações previstas na lei, recebendo poste-riormente o título de organização social, bemcomo a permissão de uso de prédio públicoocioso anteriormente utilizado por hospitalpúblico, recursos públicos de apoio ou fomentoetc., desde que assumisse metas e compromissosde realizar atividades especificadas num acordode gestão com o Poder Público. Essa entidadeestaria, por isso, transformada em mais umaautarquia, uma fundação pública, uma repar-tição burocrática? Não, é certo. Do mesmomodo que permaneceria com a mesma perso-nalidade jurídica uma universidade privadaque, mesmo sem receber benefício algum dequalquer ente público extinto, atendesse aosrequisitos da lei das organizações sociais,recebesse o título, assumindo compromissos deatuação com o Poder Público com objetivo deobter uma inversão mais intensa ou regular derecursos públicos de fomento para atividadescomunitárias que pretenda ampliar. O PoderPúblico teria novos instrumentos para afiançara boa utilização dos recursos investidos naatividade social ampliada e a entidade privada,novos meios de planejamento a longo prazo dasatividades que realiza.

As organizações sociais tampouco serãoforma de privatização de entes públicos.Privatização pressupõe uma transferência dedomínio, isto é, o trespasse de um ente dodomínio estatal para o domínio particularempresarial, uma transação de naturezaeconômica e uma retração do Poder Públicoem termos de inversão de recursos e em termosquantitativos de pessoal. No modelo dasorganizações sociais esses pressupostos nãocomparecem. Primeiro, porque o ato dequalificação de uma entidade como organizaçãosocial independe de qualquer extinção préviaou posterior de ente público. Segundo, porquequando as entidades qualificadas recebemprédios ou bens públicos como forma de apoio

ou fomento por parte do Estado não hátransferência de domínio, mas simples permis-são de uso, continuando os bens a integrar opatrimônio da União. Terceiro, porque oscontratos ou acordos de gestão que o Estadofirmar com as entidades qualificadas não terãonem poderão ter finalidade ou naturezaeconômica, convergindo para uma finalidadede natureza social e de interesse público, cujarealização obrigatoriamente não pode objetivaro lucro ou qualquer outro proveito de naturezaempresarial. A relação entre as organizaçõessociais e o Poder Público deve ter fundamentonuma ética da solidariedade e numa ética doserviço. Quarto, porque o Estado não apre-sentará qualquer retração financeira, patri-monial ou de pessoal quando vier a qualificarou permitir o uso de bens públicos pororganizações sociais. A instituição qualificada,pelo contrário, demandará do Poder Públicoapoios e subvenções, tendo em vista o objetivocomum de persecução do interesse público. Omodelo das organizações sociais, assim, realiza-se como estratégia em tudo oposta à deprivatização, assumindo claramente uma opçãode recusa à aplicação da lógica do mercado nasatividades de natureza social.

Tanto as organizações sociais quanto asatuais entidades de utilidade pública podem serdescritas como entes privados que colaboramcom a Administração, mas que com ela não seidentificam. Fala-se então em “descentralizaçãopor colaboração” (Ferreira, 1972, p. 62) e em“descentralização social da administração”(Moreira Neto, 1989, p. 98). Com estasexpressões, enfatizam os autores que essasentidades, conquanto privadas, possuematuação “pública”, “pública não estatal”,“paraestatal”, “de interesse coletivo”, “derealização do bem comum”, que as aproximam,como parceiras privilegiadas, da administraçãopública.

Moreira Neto (1989, p. 98), já ao lume daConstituição Brasileira de outubro de 1988,averbava:

“A descentralização social consisteem retirar do Estado a execução diretaou indireta de atividades de relevânciacoletiva que possam ser cometidas aunidades sociais já existentes, perso-nalizadas ou não, como a família, obairro, as agremiações desportivas, asassociações profissionais, as igrejas, osclubes de serviço, as organizaçõescomunitárias etc., mediante simples

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incremento de autoridade e institucio-nalização jurídica adequada, de modo aque possam promover, elas próprias, suaexecução.

Essas unidades, também deno-minadas de entidades de cooperação,receberiam tais atribuições a partir de leisespecíficas e de atos administrativosconcretos de reconhecimento, moda-lidade assemelhada à autorização e àpermissão. Tratam-se de institutos aindaem desenvolvimento, mas que têm seulugar garantido numa sociedade dinâ-mica e participativa” (Grifo nosso).

As organizações sociais, em verdade, podemser percebidas pela Administração Públicacomo entidades privadas de cooperação, masdivergimos, com respeito e temor, de qualificá-las como forma de “descentralização”. Nistomodificamos entendimento que tambémsustentamos no passado. A rigor, tecnicamente,fala-se em descentralização ou, mais preci-samente, descentralização por colaboraçãoquando o particular atua em atividadesreservadas ou exclusivas do Poder Público, sobo regime jurídico público. No domínio destasatividades, algumas podem ter sua execuçãodelegada ao particular, sob as formas deconcessão, permissão ou autorização deserviço (art. 175 da Constituição da República).No entanto, nas áreas ou atividades em que aatuação do Poder Público é expressa pelosimples “poder de polícia”, uma vez que aConstituição da República reconhece a açãoautônoma e em nome próprio dos particulares(ensino, saúde, pesquisa, desporto, pesquisaetc.), parece descabido falar em delegação,descentralização ou transferência de execuçãode atividade. Não faz sentido falar-se emtransferência de funções, doutrina Cassagne,nas atividades exercidas por particulares de iureproprio (1994, p. 24).

As organizações sociais, por todo o exposto,são organizações especialmente vocacionadasa travar parcerias com o Poder Público paraatividades de interesse coletivo. A idéia deparceria, como se sabe, é uma idéia-força destefinal de século. Fala-se em parceria atualmenteem quase todos os ramos do direito. No direitointernacional, as nações fortalecem laçosestratégicos, econômicos e políticos, firmandoparcerias regionais (Mercosul, Nafta, UniãoEuropéia); no direito do trabalho, mecanismosde participação dos empregados nos lucros daempresa dão os primeiros passos no que se tem

denominado parceria entre empregadores eempregados; no direito administrativo,renascem as concessões e permissões de serviçopúblico como formas de parceria dos parti-culares com o Estado em áreas estratégicas denatureza econômica. Fora da esfera da ordemeconômica, inclusive no âmbito dos direitossociais, a parceria entre particulares e o Estadoaté o momento ressente-se de melhor institucio-nalização e aperfeiçoamento.

A insuficiente institucionalização damatéria tem como um dos seus principaisfundamentos o caráter excessivamente lacônicoda legislação básica sobre declaração deutilidade pública no Brasil. A legislação vigenteno plano federal, por exemplo, trata indi-ferentemente todos os diversos tipos deassociações e fundações sem fins lucrativos.Não diferencia o que denominados entidadesde fins mútuos (dirigidas a proporcionarbenefícios a um círculo restrito ou limitado desócios, inclusive mediante a cobrança decontribuições em dinheiro, facultativas oucompulsórias) e as entidades de fins comu-nitários (dirigidas a oferecer utilidadesconcretas ou benefícios especiais à comunidadede um modo geral, sem considerar vínculosjurídicos especiais, quase sempre de formagratuita). A ambas, confere o título, autorizandoum tratamento mais benéfico por parte daAdministração (renúncia fiscal, previsão desubvenções sociais, contratação direta etc.),deixando ainda de prever qualquer forma maisefetiva de controle de resultados. (PereiraJúnior, 1973, p. 90; Oliveira, 1996, p. 64-8).Esse caráter indiferenciado da referência àsentidades e a debilidade do sistema de controletem estimulado abusos importantes e fomentadoa desconfiança em atividades e relações deparceria em que este é um valor fundamental(exemplo: escândalo do orçamento). Consi-deramos, porém, que o modelo das orga-nizações sociais é uma das respostas possíveisa este impasse, pois apenas estimula a criaçãode entidades de fins comunitários, auto ehetero-limitadas para a persecução objetiva defins coletivos (exigência de regras impessoaispara compras e plano de salários; existência decolegiado superior composto por fundadores,personalidades da comunidade e representantesdo poder público; previsão de auditoriasgerenciais e controle de resultados; fomentopúblico condicionado à assinatura de contratoou acordo de gestão com o Poder Público,definidor de metas e tarefas a cumprir;

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responsabilização direta dos dirigentes pelaregular utilização dos recursos públicosvinculados ao acordo de gestão, entre outrasgarantias atualmente não exigidas para odeferimento do título de utilidade pública paraas entidades privadas sem fins lucrativos).

De outra parte, vale insistir que essas formasde cooperação privada e parceria com o PoderPúblico, de importância crescente na sociedadecomplexa dos nossos dias, estão diretamentevinculadas à idéia de participação popular naesfera pública. São “fórmulas cooperativas departicipación”, na expressão sintética deEnterría e Fernandes (1989, p. 78 e seg.). Estesautores, dissertando sobre o tema, afirmam sereste modo de atuação participativa mais intensodo que os demais conhecidos, uma vez que “nose refiere a actuaciones aisladas sino aconductas permanentes institucionalizadas”,realizadas “mediante la creación por losciudadanos de organizaciones especiales”,vocacionadas a “fines de interés general” (1989,p. 86). Trata-se de modalidade de participaçãopopular consentânea com o princípio funda-mental da cidadania (art. 1º, II, da Constituiçãoda República), fundamento do Estado demo-crático de direito. Entre os dispositivosconstitucionais que a contemplam diretamentepodemos indicar os seguintes:

“Art. 199. A assistência à saúde élivre à iniciativa privada.

§ 1º As instituições privadas poderãoparticipar de forma complementar dosistema único de saúde, segundo dire-trizes deste, mediante contrato de direitopúblico ou convênio, tendo preferênciaas entidades filantrópicas e as sem finslucrativos.

“Art. 204. As ações governamentaisna área da assistência social serãorealizadas com recursos do orçamentoda seguridade social, previstos no art.195, além de outras fontes, e organizadascom base nas seguintes diretrizes:

I – descentralização político-adminis-trativa, cabendo a coordenação e asnormas gerais à esfera federal e a coorde-nação e a execução dos respectivosprogramas às esferas estadual e muni-cipal, bem como a entidades beneficentese de assistência social;

“Art. 205. A educação, direito detodos e dever do Estado e da família, serápromovida e incentivada com a cola-boração da sociedade, visando ao plenodesenvolvimento da pessoa, seu preparo

para o exercício da cidadania e suaqualificação para o trabalho.

“Art. 213. Os recursos públicos serãodestinados às escolas públicas, podendoser dirigidos a escolas comunitárias,confessionais ou filantrópicas, definidasem lei, que:

I – comprovem finalidade não lucra-tiva e apliquem seus excedentes finan-ceiros em educação;

II – assegurem a destinação de seupatrimônio a outra escola comunitária,filantrópica ou confessional, ou ao poderpúblico, no caso de encerramento desuas atividades.

“Art. 216 (...)§ 1º O poder público, com a cola-

boração da comunidade, promoverá eprotegerá o patrimônio cultural brasi-leiro, por meio de inventários, registros,vigilância, tombamento e desapro-priação, e de outras formas de acaute-lamento e preservação. (...)

“Art. 227. É dever da família, dasociedade e do Estado assegurar àcriança e ao adolescente, com absolutaprioridade, o direito à vida, à saúde, àalimentação, à educação, ao lazer, àprofissionalização, à cultura, à digni-dade, ao respeito, à liberdade e àconvivência familiar e comunitária, alémde colocá-los a salvo de toda forma denegligência, discriminação, exploração,violência, crueldade e opressão.

§ 1º O Estado promoverá programasde assistência integral à saúde da criançae do adolescente, admitida a partici-pação de entidades não-governamentaise obedecendo aos seguintes preceitos:(...)” (grifos nossos).

Outras disposições constitucionais referemde forma reflexa esta mesma forma decolaboração de entidades particulares com aadministração pública, a saber: (1) igrejas (arts.19, I – colaboração, de interesse público, coma União, Estados, Distrito Federal e Municí-pios; art. 226, § 2º, celebração do casamentoreligioso com efeito civil; art. 213, escolasconfessionais); (2) instituições privadas deeducação (art. 150, VI, c – imunidadetributária, desde que sem fins lucrativos); (3)instituições de assistência social beneficentesou filantrópicas (art. 150, VI, c – imunidadetributária, desde que sem fins lucrativos; art.195, § 7º – isenção de contribuição para a

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seguridade social); (4) terceiros e pessoasfísicas e jurídicas de direito privado na áreada saúde (arts. 197 – declaração de relevânciapública das ações e serviços de saúde pelosmesmos executados); (5) organizações repre-sentativas da população (art. 30, X – coope-ração no planejamento municipal; art. 58, II –participação de audiências públicas de comis-sões do Poder Legislativo); (6) serviçosnotariais e de registros (arts. 236, e §§ –serviços privados mas por delegação do poderpúblico); (7) entidades privadas em geral (art.74, II – cabe ao sistema de controle internointegrado dos Poderes Legislativo, Executivoe Judiciário a comprovação da legalidade eavaliação dos resultados, também quanto àeficácia e eficiência, da aplicação de recursospúblicos por entidades de direito privado).

Essas disposições revelam a extensão quetomou a cidadania participativa e a parceriapúblico–privado na Constituição de 1988,assinalando ainda algumas das diversasmodalidades de estímulo utilizadas pelo Estadopara atrair e premiar a colaboração de entidadesprivadas em atividades de acentuada relevânciasocial: (a) imunidade tributária (art. 150, VI,c, art. 195, § 7º e art. 240); (b) trespasse derecursos públicos (art. 204, I; art. 213; art. 216,§ 3º, art. 61, ADCT); (c) preferência nacontratação e recebimento de recursos (art.199, § 1º, in fine).

A mesma orientação foi seguida pelalegislação ordinária. A Lei nº 8.666, de21.6.93, por exemplo, reza no seu art. 24,verbis:

“Art. 24. É dispensável a licitação:(...)XIII – na contratação de instituição

nacional sem fins lucrativos, incumbidaregimental ou estatutariamente dapesquisa, do ensino ou do desenvol-vimento institucional, científico outecnológico , desde que a pretensacontratada detenha inquestionávelreputação ético-profissional;

(...)XX – na contratação de associação

de portadores de deficiência física, semfins lucrativos e de comprovada idonei-dade, por órgãos ou entidades daAdministração Pública, para a prestaçãode serviços ou fornecimento de mão-de-obra, desde que o preço contratado sejacompatível com o praticado no mercado”(grifo nosso).

A Lei Orgânica da Assistência Social, Leinº 8.742, de 7.12.1993, dispõe sobre amplomecanismo de cooperação dos particulares nosprojetos prioritários de assistência social,reconhecendo expressamente no art. 26 trêscategorias participantes do sistema de coope-ração: organismos governamentais, não-governamentais e da sociedade civil, verbis:

“Art. 26. O incentivo a projetos deenfrentamento da pobreza assentar-se-áem mecanismos de articulação e departicipação de diferentes áreas gover-namentais e em sistema de cooperaçãoentre organismos governamentais, não-governamentais e da sociedade civil”.

Nesta nova ordem de idéias, tem-se que oEstado não deve nem tem condições demonopolizar a prestação direta, executiva, dosserviços públicos e dos serviços de assistênciasocial de interesse coletivo. Estes podem sergeridos ou executados por outros sujeitos,públicos ou privados, inclusive públicos não-estatais, como associações ou consórcios deusuários, fundações e organizações não-governamentais sem fins lucrativos, sempre soba fiscalização e supervisão imediata do Estado.Poderão ainda ser operados em regime de co-gestão, mediante a formação de consórciosintergovernamentais ou entre o poder públicoe pessoas jurídicas privadas. O Estado devepermanecer prestando-os diretamente quandonão encontre na comunidade interessados queos efetivem de modo mais eficiente oueconômico ou quando razões ponderáveis dejustiça social ou segurança pública determinemsua intervenção. Não prover diretamente nãoquer dizer tornar-se irresponsável perante essasnecessidades sociais básicas. Não se trata dereduzir o Estado a mero ente regulador. OEstado apenas regulador é o Estado mínimo,utopia conservadora insustentável ante asdesigualdades das sociedades atuais. Não é esteo Estado que se espera resulte das reformas emcurso em todo o mundo. O Estado deve serregulador e promotor dos serviços sociaisbásicos e econômicos estratégicos. Precisagarantir a prestação de serviços de saúde deforma universal, mas não deter o domínio detodos os hospitais necessários; precisa asseguraro oferecimento de ensino de qualidade aoscidadãos, mas não estatizar todo o ensino. Osserviços sociais devem ser fortemente finan-ciados pelo Estado, assegurados de formaimparcial pelo Estado, mas não neces-sariamente realizados pelo aparato do Estado.Nesse contexto, crescem em importância os

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denominados entes “públicos não-estatais”.(Bresser Pereira, 1996, p. 285-87; 1997, p. 25-31; Cunil Grau, 1996, p. 126-137).

A palavra público vem utilizada nestaexpressão no sentido teleológico como todaatividade que alcança, afeta ou interessa a todosou à maioria, e não no sentido de um deter-minado regime jurídico. É público, ainda nessesentido material, a atividade ou o produto daatividade que é tornada acessível à maioria. Poroposição, privado é o que é destinado a poucosou a um só, reservado a poucos, inacessível àmaioria. (Bobbio, 1987, p. 13-31).

Na doutrina internacional do direitoadministrativo vem se acentuando o empregoda palavra público nesta acepção – semembargo de sua utilização técnica para referiro regime jurídico próprio do Estado e de seusdelegados. Exemplo disto vemos em Dromi(1991, p. 6):

“La administración es pública. No essolamente ejecutiva ni únicamenteestatal, sino que es más que estatal. LaAdministración Pública es el género y laestatal una de las especies. Lo públicono está solamente en manos del Estado.El Estado no es el único dueno y soberanode lo público, pues en la ‘administraciónde lo público’ deben participar, también,los cuerpos intermedios que comprendena las corporaciones profesionales, lossindicatos, los consorcios públicos, lascooperativas públicas, los concesionariosde servicios públicos, las universidadesprivadas y otros modelos organizativosque crea la sociedad, en función delpluralismo social, para que detenten ladefensa del interés de algunos que, juntoal de los demás, es el interés de todos”.

Para este autor, a atuação de particularesem atividades de fins públicos deve serestimulada intensamente na denominada“democracia participativa”, uma vez ultrapas-sada a fase da democracia meramente represen-tativa:

“No se puede pretender que el Estadomonopolice la atención de todas lasnecesidades colectivas. El crecimientocuantitativo y cualitativo de las mismas,propio de la complejidad vital moderna,requiere una participación más activa delos cuerpos intermedios en el quehacerde la Administración Pública. (...) Lademocracia, como forma civilizada devivir, aspira a la realización plena del

hombre en libertad, para ello exige una‘participación integral’, no sólopolítica ni política simplementeelectoralista, sino también admi-nistrativa, económica y social. Elhombre debe ser ‘partícipe’ de lagestión pública en sus distintos nivelesinstitucionales”. (1995, p. 82).

Não há, portanto, impedimento consti-tucional algum à assunção por particulares detarefas e missões de interesse social emcolaboração com a administração pública.Desde que cumpridos requisitos de salva-guarda do interesse público, mais intensos eonerosos quanto mais ampla for a transferênciade encargos e recursos, a cooperação é lícita eaté mesmo estimulada pela Constituição daRepública.

Sem embargo do exposto, essa forma deatuação direta dos particulares, ou de entesprivados, na gestão direta de serviçosofertados ao público, alguns até prestadosconcomitantemente pelo Estado, não nosdeve levar a confundir duas situaçõesjurídicas completamente distintas, a saber,a dos serviços privados de interesse públicoe a dos serviços públicos.

2.1.2. SERVIÇOS PRIVADOS DE INTERESSE

PÚBLICO E SERVIÇOS PÚBLICOS

Não basta prestar serviços ao público,inclusive sem objetivo de lucro, para ingressarna categoria jurídica de serviço público.

Bandeira de Mello (1995, p. 418) ensinacom precisão:

“Dentre o total de atividades ouserviços suscetíveis de serem desen-volvidos em uma sociedade, alguns sãopúblicos e outros privados.

Para separar uns dos outros, identi-ficando aqueles que o Estado podecolocar debaixo do regime de direitopúblico (serviços públicos), temos quenos valer de duas ordens de indicaçõescontidas no Texto Constitucional.

A primeira delas é a de que certasatividades a própria Carta Constitucionaldefiniu como serviços públicos: algunsdeles em todo e qualquer caso e outrosdeles apenas quando prestados peloEstado; pois ou (a) entregou-os expres-samente à responsabilidade privativa doEstado, ora devendo ser prestadosexclusivamente por ele ou por empresasob controle acionário estatal, caso dos

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arrolados no art. 21, X e XI, ora cabendosua prestação quer ao Estado, quer aterceiro, mediante autorização, conces-são ou permissão, caso dos previstos noinciso XII do mesmo art. 21; ou então(b) previu-os como serviços incluíveis nacategoria de serviços públicos, quandoprestados pelo Estado. É o caso dosserviços: (I) de saúde, conforme previsãodo art. 196 (“dever do Estado”), os quais,entretanto, também estão entregues àlivre iniciativa, como estabelece o art.199 (“A assistência à saúde é livre àiniciativa privada”), sendo de todo modoqualificados como “serviços de rele-vância pública” (art. 197, primeiraparte), e (II) educação, ex vi do art. 205(“dever do Estado”), inobstante tambémeles estejam entregues à livre iniciativa,a teor do art. 209 (“O ensino é livre àiniciativa privada, atendidas as seguintescondições: I - cumprimento das normasgerais da educação nacional; II -autorização e avaliação de qualidade peloPoder Público”).

Estes últimos, de conseguinte, nãoserão serviços públicos quando desem-penhados por particulares, uma vez quea Carta Magna não limitou a prestaçãodeles ao Estado ou a quem lhe faça asvezes. Segue-se que o Estado jamaispoderia pretender outorgá-los em conces-são a alguém, sob pena de ferir os direitosde prestá-los que assistem às demaispessoas que preencham os requisitoslegais necessários à comprovação de suashabilitações”. (Grifos do Autor).

Segue-se que não podem ser nomeadas comoserviço público atividades desempenhadas porparticulares ou por pessoas de direito privado,ainda quando afetem relevantes interessescoletivos, se não foram reservadas pelaConstituição da República ou por leis ordináriasao Estado ou aos seus delegados.

Como referido, algumas atividades sãoexercidas sob o regime próprio do serviçopúblico apenas quando “prestadas pelo Estado”(exemplo: saúde, educação, pesquisa científica,defesa do patrimônio ambiental). Exercidas porparticulares, com ou sem fins lucrativos, nãose sujeitam ao regime do serviço público, masao regime típico das pessoas privadas, o quemuitas vezes lhes confere maior agilidade oupresteza no atendimento dos seus objetivossociais.

2.1.3. ORGANIZAÇÕES SOCIAIS E TERCEIRIZAÇÃO: OCASO DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE

As organizações sociais também não seconfundirão com entidades que prestamserviços para a administração segundo o regimeque se convencionou denominar terceirização.A disciplina constitucional e legal do SistemaÚnico de Saúde (SUS) permite uma demons-tração dessa afirmação.

Como se sabe, a Constituição brasileiraassegura que a saúde é um direito de todos eum dever do Estado (art. 196). Ao prever tratar-se de um dever do Estado obriga o estatutomaior a que o Estado garanta o direito à saúdee não que ofereça diretamente e de formaexclusiva o atendimento a todos os brasileiros.Por isso, logo adiante, a lei fundamentalenuncia que “são de relevância pública as açõese serviços de saúde, cabendo ao poder públicodispor, nos termos da lei, sobre sua regula-mentação, fiscalização e controle, devendo suaexecução ser feita diretamente ou por meio deterceiros e, também, por pessoa física oujurídica de direito privado” (art. 197). Aassistência à saúde é declarada expressamenteatividade livre à iniciativa privada (art. 199,caput).

As ações e serviços públicos de saúde,integrados em termos nacionais, recebem adenominação de Sistema Único de Saúde(SUS), (art.198). No entanto, mesmo o SistemaÚnico de Saúde não repele a ação privada naexecução de ações e serviços, prevendo,expressamente, a participação da iniciativaprivada, em caráter complementar, compreferência para as entidades filantrópicas eas sem fins lucrativos (art. 199, § 1º, daConstituição; art. 4º, § 2º, da Lei nº 8.080, de19 de setembro de 1990).

A participação da comunidade é tambémprincípio expresso do Sistema Único de Saúde(art. 198 da Constituição; art. 7º, VIII, da Leinº 8.080, de 19 de setembro de 1990). Essaparticipação privada, porém, não pode dizerrespeito a formas de parceria exercidasmediante concessão ou permissão de serviçopúblico por duas razões já mencionadas. Emprimeiro lugar, porque as ações e serviços deassistência à saúde são livres à iniciativaprivada (art. 199, caput, da Constituição daRepública), não constituindo atividade exclu-siva de Estado, passível de delegação executivaem sentido próprio. Em segundo lugar, porquea concessão e permissão de serviço incidemsobre atividades econômicas, onerosas,financiadas pelos próprios particulares-usuários

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mediante tarifas (art. 175 da Constituição). NoSistema Único de Saúde as ações e serviços nãoapresentam natureza econômica e são ofere-cidos de forma universal e gratuita.

Ora, a Constituição Federal prevê que “asinstituições privadas poderão participar deforma complementar do Sistema Único deSaúde, segundo diretrizes deste, mediantecontrato de direito público ou convênio, tendopreferência as entidades filantrópicas e as semfins lucrativos” (grifo nosso). Contrato econvênio são ambos acordos de vontade,distinguindo-se basicamente pela natureza dosinteresses de ambas as partes. No contrato, osinteresses são de regra antagônicos oucontraditórios; no convênio, os interesses sãocomuns ou convergentes. É evidente que aConstituição da República, na norma referida,pretendeu distinguir entre dois modos deprestação de serviços de saúde por particulares.No primeiro, mediante a referência ao instru-mento do contrato, admite a terceirização, valedizer, a contratação de particular-empresário,com vistas ao desempenho de atividades-meiona área de saúde financiada pelo Estado. Estaprestação de serviço revestida de caráterempresarial e lucrativo, exige prévia licitação.No segundo modo, mediante a referência aoinstrumento do convênio, admite a Lei Maiora colaboração de entidades sem fins lucrativos,com interesses coincidentes com a adminis-tração pública, não sendo cogitada remuneraçãopela gerência do serviço nem reciprocidade deobrigações e, portanto, de licitação (Di Pietro,1996, p. 109 e 117). Na hipótese de contrato,pelo caráter próprio da terceirização, não háprestação global do serviço de saúde, mas simatuação em simples atividades operacionais ouancilares (serviços de vigilância, manutenção,limpeza, transporte, seguro etc.). Na hipótesede convênio, o que se pode estender tambémpara a figura de acordo impropriamentedenominada “contrato de gestão”, não háimpedimento à execução global do serviço peloparticular, pois trata-se de atividade livre à açãoprivada, fomentada ou financiada pelo Estado,mas não titularizada por ele. Pode-se, portanto,a partir da própria Constituição, apartar as duasfiguras referidas, evitando mais uma espéciede incompreensão.

3. ConclusãoAs organizações sociais representam uma

nova estratégia de estimular parcerias deentidades privadas sem fins lucrativos com o

Poder Público em serviços sociais livres à açãoprivada, fomentando a participação cidadãvoluntária na esfera pública. Não podem sersuperestimadas nem subestimadas comorespostas conseqüentes à crise do aparelho doEstado no âmbito da prestação dos serviçossociais. O Estado com elas não se despede daresponsabilidade de assegurar e garantir osdireitos sociais básicos. O Estado continuaráregulador e promotor de serviços sociais,contando porém com mecanismos de parceriarenovados, ampliando a sua capacidade de,direta ou indiretamente, assegurar a fruição dosdireitos sociais fundamentais.

As organizações sociais não consistirão emum novo tipo de pessoa jurídica, pois serãoconstituídas segundo as mesmas formas deconstituição formal das tradicionais fundaçõesou associações sem fins lucrativos. Masrepresentarão uma “inovação institucional”,porquanto desencadearão um marco legalamplamente inovador quanto ao modo derelacionamento entre o Estado e as instituiçõessem fins lucrativos de relevância social. Estemarco legal, referido em detalhe no corpo dotrabalho, vincula as organizações sociais anormas que, por um lado, estabelecem umregime de maiores restrições e maior vigilânciado Estado se comparado ao atual regimejurídico aplicável às tradicionais entidadesprivadas de utilidade pública e, por outro,assegura-lhes também maiores benefícios evantagens. Esse fato revela que a denominaçãoorganização social é um enunciado elíptico.Denominam-se sinteticamente organizaçõessociais as entidades privadas, fundações ouassociações sem fins lucrativos, que usufruemdo título de organização social. Este título éconferido por um ato formal de reconhecimentodo Poder Público, semelhante em muitosaspectos à qualificação deferida às instituiçõesprivadas sem fins lucrativos quando recebem otítulo de utilidade pública.

As organizações sociais contribuirão aindapara o preenchimento de uma grave lacuna dalegislação referente à concessão de títulos deutilidade pública, pois permitirão pela primeiravez uma diferenciação nítida entre entidadessem fins lucrativos dirigidas ao atendimentode demandas sociais de forma comunitária eimpessoal e entidades de favorecimento mútuo(clubes, agremiações), sem fins lucrativostambém, mas orientadas ao oferecimento devantagens ou benefícios exclusivos a gruposdelimitados de sócios ou clientes.

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A polêmica suscitada com o modelo dasorganizações sociais produziu uma série deconceitos equívocos e mal fundamentados sobrea própria natureza jurídica das entidadesqualificadas. Esta identificação equívoca dasorganizações sociais pode produzir danosirreversíveis ao modelo, pois dela depende oreconhecimento do próprio regime jurídico aque se submeterão essas entidades. O texto tentademonstrar o erro de confundir, por um lado,as organizações sociais com os entes daadministração indireta do Estado e, por outro,com mecanismos de privatização ou tercei-rização de serviços públicos. Nesse esforço declarificação, foram tratados temas diversos,como a distinção entre serviços privados deinteresse público e serviços públicos, bem comoreferidas diversas normas constitucionaisbrasileiras relacionadas ao tema da parceria doEstado com as entidades sem fins lucrativos.Em todos esses temas, porém, os juristas sãoconvocados a interferir como protagonistas, co-participando da tarefa de construção de umanova mentalidade administrativa. Espera-seque doravante com alguma maior simpatia, poiscomo enuncia Pontes de Miranda, em trechocitado neste trabalho, “com a antipatia não seinterpreta, – ataca-se”.

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ANEXOMINUTA DE ANTEPROJETO DE LEI

PROJETO DE LEI Nº , DE DE DE 1997.Dispõe sobre a qualificação de enti-

dades como Organizações sociais, a criaçãodo Programa Nacional de Publicização edá outras providências.

O Congresso Nacional decreta:

CAPÍTULO IDAS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS

SEÇÃO IDA QUALIFICAÇÃO

Art. 1º O Poder Executivo poderá qualificar comoorganizações sociais pessoas jurídicas de direitoprivado, sem fins lucrativos, cujas atividades sejamdirigidas ao ensino, à pesquisa científica edesenvolvimento tecnológico, à proteção e preser-vação do meio ambiente, à cultura e à saúde,atendidos os requisitos previstos nesta Lei.Art. 2º São requisitos específicos para que asentidades privadas referidas no artigo anteriorhabilitem-se à qualificação como organização social:

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I - comprovar o registro de seu ato constitutivo,dispondo sobre:

a) natureza social de seus objetivos relativos àrespectiva área de atuação;

b) finalidade não-lucrativa, com a obriga-toriedade de investimento de seus excedentesfinanceiros no desenvolvimento das própriasatividades;

c) previsão expressa da entidade ter, como órgãosde deliberação superior e de direção, um Conselhode Administração e uma Diretoria, definida nostermos do Estatuto, assegurado àquele composiçãoe atribuições normativas e de controle básicasprevistas nesta Lei;

d) previsão de participação, no órgão colegiadode deliberação superior, de representantes do PoderPúblico e de membros da comunidade, de notóriacapacidade profissional e idoneidade moral;

e) composição e atribuições da Diretoria daentidade;

f) obrigatoriedade de publicação anual, no DiárioOficial da União, dos relatórios financeiros e dorelatório de execução do contrato de gestão;

g) em caso de associação civil, a aceitação denovos associados, na forma do estatuto;

h) proibição de distribuição de bens ou deparcela do patrimônio líquido em qualquer hipótese,inclusive em razão de desligamento, retirada oufalecimento de associado ou membro da entidade;

i) previsão de incorporação integral do patri-mônio, dos legados ou das doações que lhe foramdestinados, bem como dos excedentes financeirosdecorrentes de suas atividades, em caso de extinçãoou desqualificação da entidade, ao patrimônio deoutra organização social qualificada no âmbito daUnião, da mesma área de atuação, ou ao patrimônioda União, dos Estados, do Distrito Federal ou dosMunicípios, na proporção dos recursos e bens porestes alocados;

II - ter a entidade recebido aprovação em parecerfavorável, quanto à conveniência e oportunidade desua qualificação como organização social, doMinistro ou Titular de órgão supervisor ou reguladorda área de atividade correspondente ao seu objetosocial e do Ministro da Administração Federal eReforma do Estado.

SEÇÃO IIDO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO

Art. 3º O Conselho de Administração deve estarestruturado nos termos que dispuser o respectivoestatuto, observados, para os fins de atendimentodos requisitos de qualificação, os seguintes critériosbásicos de composição e funcionamento:

I - ser composto por:a) vinte a quarenta por cento de membros natos

representantes do Poder Público, definidos peloestatuto da entidade;

b) vinte a trinta por cento de membros natosrepresentantes de entidades da sociedade civil,definidos pelo estatuto;

c) até dez por cento, no caso de associação civil,de membros eleitos entre os membros ou osassociados;

d) dez a trinta por cento de membros eleitos pelosdemais integrantes do Conselho, entre pessoas denotória capacidade profissional e reconhecidaidoneidade moral;

e) até dez por cento de membros indicados oueleitos na forma estabelecida pelo estatuto;

II - os membros eleitos ou indicados para comporo Conselho devem ter mandato de quatro anos,admitida uma recondução;

III - os representantes de entidades previstos nasalíneas “a” e “b” deverão compor mais de cinqüentapor cento do Conselho;

IV - o primeiro mandato de metade dos membroseleitos ou indicados deve ser de dois anos, segundocritérios estabelecidos no estatuto;

V - o dirigente máximo da entidade deveparticipar das reuniões do Conselho, sem direito avoto;

VI - o Conselho deve reunir-se ordinariamente,no mínimo, três vezes a cada ano, e extraordinaria-mente, a qualquer tempo;

VII - os conselheiros não receberão remuneraçãopelos serviços que, nesta condição, prestarem àorganização social, ressalvada a ajuda de custo porreunião da qual participe o conselheiro;

VIII - os conselheiros eleitos ou indicados paraintegrar a Diretoria da entidade devem renunciar aoassumirem as correspondentes funções executivas.Art. 4º Para os fins de atendimento dos requisitosde qualificação, devem estar inclusas entre asatribuições privativas do Conselho de Adminis-tração:

I - fixar o âmbito de atuação da entidade, paraconsecução do seu objeto;

II - aprovar a proposta de contrato de gestão daentidade;

III - aprovar a proposta de orçamento da entidadee o programa de investimentos;

IV - designar e dispensar os membros daDiretoria;

V - fixar a remuneração dos membros daDiretoria;

VI - aprovar e dispor sobre a alteração dosestatutos e a extinção da entidade por maioria, nomínimo, de dois terços de seus membros;

VII - aprovar o regimento interno da entidade,que deve dispor, no mínimo, sobre a estrutura, ogerenciamento, os cargos e as competências;

VIII - aprovar por maioria, no mínimo, de doisterços de seus membros, o regulamento própriocontendo os procedimentos que deve adotar para acontratação de obras e serviços, bem como paracompras e alienações, e o plano de cargos, saláriose benefícios dos empregados da entidade;

IX - aprovar e encaminhar, ao órgão supervisorda execução do contrato de gestão, os relatóriosgerenciais e de atividades da entidade, elaboradospela Diretoria;

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X - fiscalizar o cumprimento das diretrizes emetas definidas e aprovar os demonstrativosfinanceiros e contábeis e as contas anuais daentidade, com o auxílio de auditoria externa.

SEÇÃO IIIDO CONTRATO DE GESTÃO

Art. 5º Para os efeitos desta Lei, entende-se porcontrato de gestão o instrumento firmado entre oPoder Público e a entidade qualificada comoorganização social, com vistas a formação de umaparceria entre as partes para fomento e execução deatividades relativas às áreas relacionadas no art. 1º.Art. 6º O contrato de gestão, elaborado de comumacordo entre o órgão supervisor e a organizaçãosocial, discriminará as atribuições, responsa-bilidades e obrigações do Poder Público e daorganização social no desempenho das ações a cargodesta.

Parágrafo único. O contrato de gestão deve sersubmetido, após aprovação pelo Conselho deAdministração da entidade, ao Ministro de Estadoou autoridade supervisora ou reguladora da áreacorrespondente à atividade fomentada.Art. 7º Na elaboração do contrato de gestão devemser observados os princípios da legalidade,impessoalidade, moralidade, publicidade, economi-cidade e, também, os seguintes preceitos:

I - constar a especificação do programa detrabalho proposto pela organização social, aestipulação das metas a serem atingidas e osrespectivos prazos de execução, bem como previsãoexpressa dos critérios objetivos de avaliação dedesempenho a serem utilizados, mediante indica-dores de qualidade e produtividade;

II - a estipulação dos limites e critérios para adespesa com a remuneração e vantagens de qualquernatureza a serem percebidas pelos dirigentes eempregados das organizações sociais, no exercíciode suas funções.

Parágrafo único. Os Ministros de Estado ouautoridades supervisoras, observadas as peculia-ridades de suas áreas de atuação, devem definir asdemais cláusulas necessárias dos contratos de gestãode que sejam signatários.

SEÇÃO IVDA EXECUÇÃO E FISCALIZAÇÃO

DO CONTRATO DE GESTÃO

Art. 8º A execução do contrato de gestão celebradopor organização social será fiscalizada peloMinistério da área correspondente, permitida adelegação ao órgão da Administração diretamentevinculado à atividade desenvolvida.

§ 1º O contrato de gestão deve permitir ao PoderPúblico requerer a apresentação pela entidadequalificada, ao término de cada exercício ou aqualquer momento, conforme recomende o interessepúblico, de relatório pertinente à execução docontrato de gestão, contendo comparativo específico

das metas propostas com os resultados alcançados,acompanhado da prestação de contas correspondenteao exercício financeiro.

§ 2º Os resultados atingidos com a execução docontrato de gestão serão analisados, periodicamente,por comissão de avaliação, indicada pelo Ministrode Estado ou pelo titular mencionados no caput desteartigo, composta por especialistas de notóriaqualificação, que emitirão relatório conclusivo, a serencaminhado ao instituidor da comissão, ao órgãode governo responsável pela supervisão ou regulaçãoda atividade e aos órgãos de controle interno eexterno da União.Art. 9º Os responsáveis pela fiscalização daexecução do contrato de gestão, ao tomaremconhecimento de qualquer irregularidade ouilegalidade na utilização de recursos ou bens deorigem pública por organização social, dela darãociência ao Tribunal de Contas da União, sob penade responsabilidade solidária.Art. 10. Sem prejuízo da medida a que alude o artigoanterior, quando assim o exigir a gravidade dos fatosou o interesse público, havendo indícios fundadosde malversação de bens ou recursos de origempública, os responsáveis pela fiscalização repre-sentarão ao Ministério Público ou à Procuradoriado órgão para que requeira ao juízo competente adecretação da indisponibilidade dos bens da entidadee o seqüestro dos bens dos seus dirigentes, bem comode agente público ou terceiro, que possam terenriquecido ilicitamente ou causado dano aopatrimônio público.

§ 1º O pedido de seqüestro será processado deacordo com o disposto nos arts. 822 e 825 do Códigode Processo Civil.

§ 2º Quando for o caso, o pedido incluirá ainvestigação, o exame e o bloqueio de bens, contasbancárias e aplicações mantidas pelo demandado noexterior, nos termos da lei e dos tratados inter-nacionais.

§ 3º Até o término da ação, o Poder Públicopermanecerá como depositário e gestor dos bens evalores seqüestrados ou indisponíveis e velará pelacontinuidade das atividades sociais da entidade.

SEÇÃO VDO FOMENTO ÀS ATIVIDADES SOCIAIS

Art. 11. As entidades qualificadas como organizaçõessociais ficam declaradas como entidades de interessesocial e utilidade pública para todos os efeitos legais,inclusive tributários.Art. 12. Às organizações sociais poderão serdestinados recursos orçamentários e bens públicosnecessários ao cumprimento do contrato de gestão.

§ 1º Ficam assegurados às organizações sociaisos créditos previstos no orçamento e as respectivasliberações financeiras, de acordo com o cronogramade desembolso previsto no contrato de gestão.

§ 2º Poderá ser adicionada aos créditosorçamentários destinados ao custeio do contrato de

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gestão parcela de recursos para compensardesligamento de servidor cedido desde que hajajustificativa expressa da necessidade pela orga-nização social.

§ 3º Os bens de que trata este artigo serãodestinados às organizações sociais, dispensadalicitação, mediante permissão de uso, consoantecláusula expressa do contrato de gestão.Art. 13. Os bens móveis públicos permitidos parauso poderão ser substituídos por outros de igual oumaior valor, condicionado a que os novos bensintegrem o patrimônio da União.

Parágrafo único. A permuta de que trata o caputdeste artigo dependerá de prévia avaliação do beme expressa autorização do Poder Público.Art. 14. Fica facultado ao Poder Executivo a cessãoespecial de servidor para as organizações sociais,com ônus para a origem.

§ 1º Não será incorporada aos vencimentos ou àremuneração de origem do servidor cedido qualquervantagem pecuniária que vier a ser paga pelaorganização social.

§ 2º Não será permitido o pagamento devantagem pecuniária permanente por organizaçãosocial a servidor cedido com recursos provenientesdo contrato de gestão, ressalvada a hipótese deadicional relativo ao exercício de função temporáriade direção e assessoria.Art. 15. A Administração Pública Federal direta,autárquica e fundacional ficam dispensadas deprocessos licitatórios para celebração de contratosde prestação de serviços com as organizações sociais,qualificadas no âmbito da União, para atividadescontempladas no objeto do contrato de gestão.Art. 16. São extensíveis, no âmbito da União, osefeitos dos arts. 11, 12, § 3º e 15, para as entidadesqualificadas como organizações sociais pelosEstados, Distrito Federal e Municípios, quandohouver reciprocidade e desde que a legislação localnão contrarie os preceitos desta Lei e a legislaçãoespecífica de âmbito federal.

SEÇÃO VIDA DESQUALIFICAÇÃO

Art. 17. O Poder Executivo poderá proceder adesqualificação da entidade como organização socialquando constatado o descumprimento das dispo-sições contidas no contrato de gestão.

§ 1º A desqualificação será precedida deprocesso administrativo, assegurado o direito deampla defesa respondendo os dirigentes daorganização social, individual e solidariamente,pelos danos ou prejuízos decorrentes de sua ação ouomissão.

§ 2º A desqualificação importará reversão dosbens permitidos e dos valores entregues à utilizaçãoda organização social, sem prejuízo de outras sançõescabíveis.

CAPÍTULO IIDAS DISPOSIÇÕES FINAIS E TRANSITÓRIAS

Art. 18. A organização social fará publicar, no prazomáximo de noventa dias contados da assinatura docontrato de gestão, regulamento próprio contendoos procedimentos que adotará para a contratação deobras e serviços, bem como para compras comemprego de recursos provenientes do Poder Público.Art. 19. A organização social que absorver atividadesde entidade federal extinta no âmbito da área desaúde deverá considerar no contrato de gestão,quanto ao atendimento da comunidade, os princípiosdo Sistema Único da Saúde, expressos no art. 198da Constituição Federal e no art. 7º da Lei nº 8.080,de 19 de setembro de 1990.Art. 20. Será criado, mediante decreto do PoderExecutivo, o Programa Nacional de Publicização –PNP, com o objetivo de estabelecer diretrizes ecritérios para a qualificação de organizações sociais,a fim de assegurar a absorção de atividadesdesenvolvidas por entidades ou órgãos públicos daUnião, que atuem nas atividades referidas no art.1º, por organizações sociais, qualificadas na formadesta Lei, observado os seguintes princípios:

I - ênfase no atendimento do cidadão-cliente;II - ênfase nos resultados, qualitativos e

quantitativos nos prazos pactuados;III - controle social das ações de forma

transparente.Art. 21. A extinção de órgãos públicos federais e aabsorção de suas atividades e serviços pororganizações sociais, qualificadas na forma destaLei, observarão os seguintes preceitos:

I - os servidores integrantes dos quadros daentidade e dos órgãos públicos cujas atividadesforem absorvidas pelas organizações sociais terãogarantidos todos os direitos decorrentes do respectivoregime jurídico e integrarão quadro em extinção doMinistério correspondente ou do Ministério daAdministração Federal e Reforma do Estado, quandonão existir vinculação direta a Ministério, sendofacultada à Administração a cessão do servidor paraa organização social, em caráter irrecusável paraaquele, com ônus para a origem;

II - a desativação da entidade e dos órgãos serárealizada mediante inventário simplificado de seusbens imóveis e de seu acervo físico, documental ematerial, bem como dos contratos e convênios; coma adoção de providências dirigidas à manutenção eao prosseguimento das atividades sociais a cargo doórgão ou entidade em extinção, com sub-rogação naorganização social, nos termos da legislaçãoaplicável em cada caso;

III - os recursos e as receitas orçamentárias dequalquer natureza, destinados aos órgãos e à entidadea que se refere o artigo anterior, serão utilizados noprocesso de extinção e para a manutenção e ofinanciamento das atividades sociais durante oinventário simplificado, devendo parcela deste ser

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reprogramada, mediante crédito especial a serenviado ao Congresso Nacional no prazo de 15 dias,para os órgãos ou entidades supervisoras doscontratos de gestão a serem firmados com asorganizações sociais que houverem absorvido asatividades, para o fomento destas, assegurada aliberação periódica do respectivo desembolsofinanceiro em seu favor, nos termos dos contratosde gestão;

IV - encerrados os processos de inventáriosimplificado, os cargos efetivos vagos e os emcomissão serão considerados extintos;

V - a organização social que tiver absorvido asatribuições da entidade ou órgão extinto poderáadotar os símbolos designativos destes, seguidos daidentificação “OS”.

§ 1º Serão instaurados, com a supervisão doMinistério da Administração Federal e Reforma doEstado, processos de inventário simplificado, a cargodos Ministérios ou do órgão a que estavamvinculados os órgãos e a entidade extinta.

§ 2º A absorção pelas organizações sociais dasatividades dos órgãos ou entidade extintos efetivar-se-á mediante a celebração de contrato de gestão,na forma dos arts. 6º e 7º desta Lei.

§ 3º Poderá ser adicionada às dotações orça-mentárias referidas no III deste artigo, parcela dosrecursos decorrentes da economia de despesa incorridapela União com os cargos e funções comissionadosexistentes na entidade ou nos órgãos extintos.

Art. 22. Esta Lei entra em vigor na data de suapublicação.Brasília, de de 1997; 175º da Independênciae 108º da República.

Abstract

O modelo brasileiro das organizações sociaisrepresenta uma das respostas possíveis à crise doaparelho do Estado no âmbito da prestação dosserviços sociais. Essas entidades são percebidascomo uma forma de parceria do Estado com asinstituições privadas de fins públicos (perspectivaex parte principe) ou, sob outro ângulo, uma formade participação popular na gestão administrativa(perspectiva ex parte populi). No texto sãotematizadas as diferenças e semelhanças entre omarco legal das organizações sociais e das entidadesde utilidade pública no Brasil, as notas distintivasentre a disciplina dos serviços privados de interessepúblico e dos serviços públicos, bem como o quedistingue juridicamente o modelo das organizaçõessociais de processos de privatização e terceirização.Em todos esses temas os juristas aparecem comoprotagonistas na determinação dos limites do modelodas organizações sociais, evidenciando queprocessos de reforma normativa exigem, para seremeficazes, uma concomitante reforma na mentalidadedos agentes públicos.

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1. IntroduçãoDentro do estudo dos princípios da tribu-

tação podemos destacar o princípio dacapacidade contributiva como aquele que maisse aproxima do conceito de justiça tributáriaentendida sob o ponto de vista econômico-jurídico.

A distribuição da carga tributária de acordocom a capacidade contributiva dos indivíduosnos traz a idéia de que os tributos, tendo comoescopo final o bem comum, devem amoldar-seàs situações individuais, de modo a propiciaruma posição isonômica dos contribuintes noque se refere ao seu sacrifício individual emprol do interesse coletivo. A máxima de RuiBarbosa no que se refere à isonomia, qual seja,tratar desigualmente os desiguais à medida quese desigualam acaba por se concretizar nesteprincípio quando efetivamente posto emprática.

Dessa forma, neste estudo traremos à bailaalgumas considerações que reputamos rele-vantes sobre o princípio da capacidadecontributiva, tecendo, ao final, algumasconsiderações sobre sua estrutura tal como seencontra em nossa Carta Magna.

2. Capacidade contributiva –origem e evolução

A expressão capacidade contributiva é tão

O princípio da capacidade contributiva

JOSÉ RICARDO MEIRELLES

José Ricardo Meirelles é Procurador daRepública em São Paulo, Mestrando em RelaçõesInternacionais pela Universidade de São Paulo eProfessor de Direito Internacional Público e ProcessoPenal em curso preparatório para concursos.

SUMÁRIO

1. Introdução. 2. Capacidade contributiva –origem e evolução. 3. Conceito. 4. Capacidadecontributiva no direito comparado e brasileiro. 4.1.A expressão sempre que possível. 4.2. Capacidadecontributiva e impostos indiretos. 4.3. Capacidadecontributiva e isenções. 5. Conclusão.

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antiga quanto a ciência das finanças, tendo comesta uma relação direta e imediata.

Os ideais de justiça distributiva formuladospor filósofos gregos já continham em seusfundamentos as bases do princípio de que osindivíduos deveriam concorrer para as neces-sidades da coletividade na medida de suasforças econômicas. Existem registros, emAtenas, de uma contribuição para o custeio damarinha nacional, devida por todo cidadão cujafortuna atingia dez “talentos”; escrevendo-senum registro a importância com que cadacidadão era obrigado a contribuir, observando-se as faculdades de cada um1.

Na Idade Média Santo Tomás de Aquinoaduzia que cada indivíduo deveria pagar ostributos secundum facultatem ou secundumequalitem proportionis, acentuando a existênciade impostos justos e impostos injustos,conforme a obediência a esse critério. Outros-sim, a locução capacidade contributiva foiusada em diversas leis tributárias, tais comona Inglaterra, na Elizabethen poor law2. Nasobras de Niccolò Machiavelli, podemosencontrar referências ao princípio da capa-cidade contributiva, quando este trata darepartição das despesas públicas entre oscidadãos e tece considerações acerca dos valorese defeitos do acúmulo de bens móveis eimóveis3.

Como bem destaca Conti, outra referênciaao princípio da capacidade contributiva veminserida na Declaração dos Direitos do Homeme do Cidadão (1789), que em seu art. 13estabelece:

“Para a manutenção da força públicae para as despesas da administração éindispensável uma contribuição comum;esta deve ser repartida por igual entretodos os cidadãos, tendo em conta as suaspossibilidades”.

Já naquela época, o princípio da capacidadecontributiva disseminou-se em várias Consti-tuições (v.g. República Romana – 1798;Piemonte – 1820, Francesa – 1848 etc.) e maismodernamente tornou-se um corolário neces-

sário à maioria, senão à totalidade, dos orde-namentos jurídicos estatais.

Na realidade, a expressão capacidadecontributiva em sua origem foi genericamenteconsiderada como sinônimo de riqueza ou depatrimônio, indicando as forças econômicasindividuais que propiciavam o pagamentodiferenciado dos tributos. A carga tributáriaseria então proporcional à riqueza ou aopatrimônio acumulado.

Sobre esta relação, Emilio Giardina4 coloca:“Il canone della contribuzione in

ragione delle forze economiche espri-meva l’esigenza comunemente avvertitadi una trasformazione in senso reale degliordinamenti tributari allora vigenti. Lefranchigie e i privilegi che caratte-rizavano le imposte personali del tempocostituivano una patente violazione delprincipio della generalità dei tributi edella giustizia distributiva. Concepen-dosi la capacità contributiva in sensooggetivo, si veniva a porre l’accento suibeni e sulle sostanze economiche deisingoli, e si faceva astrazione dallequalità personali e dalle posizioni socialidi ciascuno...”

Não obstante o sentido objetivo do princípiotal como colocado inicialmente, a evolução dadoutrina trouxe algumas modificações. Com oaprofundamento do estudo das categoriaselementares da riqueza, o elemento basilar dacapacidade contributiva passou a ser entendidopela noção de produto e renda, em contra-posição aos conceitos genéricos de patrimônioe bens.

Ao mesmo tempo em que se entendia queum sistema tributário justo seria aquele fundadona taxação proporcional à renda, entendeu-sepor bem impor uma limitação, baseada noconceito do mínimo para a existência. Assim,os bens necessários à satisfação das neces-sidades elementares da vida deveriam serexcluídos da imposição tributária, conside-rando-se que aquela parte destinada àsnecessidades elementares do indivíduo eramconsideradas como despesas de produção, nãosujeitas à tributação.

Na realidade não se tratava de um conceitonovo, eis que já aplicado na Idade Média noque concerne aos tributos incidentes sobre oconsumo. Não obstante, sua retomada apre-sentou-se necessária sob o ponto de vista da

1 CONTI, José Maurício. Princípios tributáriosda capacidade contributiva e da progressividade.São Paulo : Dialética, 1996. p. 37.

2 CANNAN. The history of local rates inEngland in relation to the proper distribution of theburden of taxation. 2nd ed. London, 1912. p. 22.

3 GARINO CANINA. Problemi de finanzafacista. Bologna, 1937. p. 161 e ss: Il pensierofinanziario di Niccoló Machiavelli.

4 Le basi teoriche del principio della capacitácontributiva. Milano : Giuffré, 1961. p. 12-13.

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justiça tributária, sintetizada na definição deRau acerca da capacidade contributiva, como:

“La possibilità, fondata sulle condi-zioni patrimoniali di una persona, dipagare le imposte senza pregiudizio dellasoddisfazione dei bisogni più urgenti”5.

Essa nova noção de tributação justa fundadasobre a renda encontrou respaldo no pensa-mento de Adam Smith6, que sustentou que

“os súditos de cada estado deveriamcontribuir para a manutenção do governotanto quanto possível em proporção àssuas capacidades, ou seja, em proporçãoà renda a qual respectivamente usufruemsobre a proteção do Estado...”.

Outros autores, sob o prisma do direitopúblico, passaram a entender a capacidadecontributiva como expressão da influência dosbenefícios públicos gozados pelos contri-buintes.

Lindahl, um dos expoentes desta corrente,sustentava que o princípio geral da tributaçãoera do benefício. A tributação estaria direta-mente correlacionada com a utilidade dasdespesas estatais aos indivíduos e a valoraçãodessa utilidade emergiria dos fatores quedeterminariam a estimação das vantagenspúblicas, vantagens essas de dois gêneros –objetivo e subjetivo.

As vantagens objetivas consistiriam noaumento da renda e do patrimônio do indivíduodecorrentes daquela atividade estatal. Asvantagens subjetivas consistiriam no interesseàquele serviço público e na capacidadecontributiva.

A medida da capacidade contributiva seriadeterminada pela utilidade e vantagensdecorrentes das despesas públicas.

Outrossim, após o desenvolvimento do novoconceito de finança pública, o qual negava anatureza comutativa da relação intercorrenteentre o contribuinte e o fisco, ressaltando acaracterística obrigacional da prestaçãotributária, o princípio da capacidade contri-butiva passou a ser intimamente relacionadoao conceito de sacrifício.

Contudo, em razão de sua insuscetibilidadede determinação objetiva, o conceito desacrifício acabou sendo considerado inadequadopara constituir o fundamento do imposto justo.

Muito embora as nuances verificadas, oconceito de que a capacidade contributiva

estaria intimamente ligado ao conceito de rendaacabou por ressurgir na doutrina, que tambémtrouxe a discussão para o campo das neces-sidades individuais.

Segundo Pescatore7, a renda poderia serdividida em três partes:

“A despesa, com a qual se faz frenteàs necessidades absolutas e relativas davida do indivíduo e de sua família; apoupança, que serve para aumentar ocapital para a melhoria das condições dafamília e os meios, a faculdade que cadaum tem de contribuir para a sociedade”.

Assim, a capacidade contributiva seria umavariável dependente da necessidade de pou-pança e da despesa. O fato de os mais ricospoderem destinar ao consumo uma parterelativamente menor de sua renda seria umaconseqüência da menor urgência de suasnecessidades individuais.

Verificamos, portanto, em breves consi-derações, que o conceito de capacidadecontributiva acabou por sofrer mutações nabusca daquilo que mais se aproxima daalmejada justiça tributária.

3. ConceitoNo que se refere a uma definição do que

seja “capacidade contributiva”, pelo quepudemos depreender, os conceitos de patri-mônio, renda, utilidade, sacrifício e necessi-dade são conceitos estreitamente correlacio-nados, que guardam uma relação de interdepen-dência entre si.

Dessa forma, a doutrina e a jurisprudênciaacabaram por convencionar que a conceituaçãode capacidade contributiva pressupõe areferência a uma forza economica complessiva.

Buscando na ciência econômica os indíciosde capacidade contributiva , procurou-sedelimitá-los como sendo os seguintes: oconjunto de rendimentos; o conjunto patri-monial; o conjunto de despesas; os incrementospatrimoniais e os incrementos de valor dopatrimônio.

Qualquer desses fatos ilumina uma parteda situação econômica do sujeito e todos emconjunto compõem a situação econômicacomplexa do indivíduo.

A capacidade contributiva seria, portanto,um conjunto de forças econômicas embasadoem alguns indícios parciais que, enquanto tais,representam manifestação direta de uma certa5 GIARDINA, op. cit., p.14.

6 Pesquisa sobre a natureza e as causas dariqueza das nações. Lisboa, 1950, p. 753. 7 La logica delle imposte. Torino, 1867. p. 18.

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disponibilidade econômica limitada e manifes-tação indireta da disponibilidade econômicacomplexa.

Um outro fator, o qual já mencionamosanteriormente, apresenta-se-nos de extremavalia no que se refere à conceituação proposta.

Com efeito, para que o concurso doindivíduo para com as despesas públicas sejaadequado à sua capacidade contributiva, énecessário, além de atingir todos os ganhosdecorrentes dos indícios mencionados, ter emconta sua situação pessoal e familiar.

Há, portanto, que se proceder a uma isençãono que se refere à quota necessária ao mínimovital pessoal e familiar, eis que a atitude deconcorrer às despesas públicas começa somenteapós a satisfação das necessidades pessoais efamiliares dos contribuintes. Isto, além decorresponder a um evidente critério lógico,harmoniza-se com o caráter solidarístico dodever tributário.

Outrossim, o mínimo vital deve corres-ponder ao mínimo necessário para umaexistência digna e livre, levando-se em conta asituação familiar do indivíduo.

Verificamos, portanto, que do conceito decapacidade contributiva resulta, de imediato, ailegitimidade dos impostos que não têmqualquer ligação com a força econômica docontribuinte.

Importante assinalar que muito embora acapacidade contributiva pressuponha a capa-cidade econômica, com esta não coincidetotalmente. No conceito de capacidade contri-butiva está implícito um elemento de juízo, umavaloração sobre a idoneidade para concorrer àsdespesas públicas.

Moschetti8, citado por Hugo de BritoMachado, entendia que:

“a capacidade econômica é apenas umacondição necessária para a existência dacapacidade contributiva, posto que estaé a capacidade econômica qualificada porum dever de solidariedade, quer dizer,por um dever orientado e caracterizadopor um prevalente interesse coletivo, nãopodendo considerar a riqueza do indi-víduo separadamente das exigênciascoletivas”.

Ademais, importante assinalarmos que hojea maioria dos Estados modernos acabam porutilizar o tributo como forma de intervenção

do domínio econômico e social, em plenoexercício de extrafiscalidade. Essa intervençãofiscal com fins sociais pode dar-se de doismodos: favorecendo as situações econômicasque necessitam de proteção ou agravando o pesotributário naquelas situações de particularfortuna.

Sobre a extrafiscalidade já havia sepronunciado Wagner9, sustentando que ostributos, além dos objetivos estreitamentefiscais, deveriam ter também objetivoscorretivos da estrutura social.

Finalizando o presente tópico, importanteainda que se ressalte que a capacidadecontributiva pressupõe o alcance tributário demanifestações econômicas reais, efetivas e nãomeramente fictícias ou hipotéticas, até mesmocomo corolário de princípio de lógica impo-sitiva.

Assim, dentro da árdua tarefa de conceituarcapacidade contributiva, temos que pode serela considerada como a força econômicacomplexa e materializada do indivíduo, idôneaa concorrer com as despesas públicas, à luzde exigências econômicas e sociais funda-mentais, respeitando-se o mínimo vital parauma existência pessoal e familiar digna e livre.

4. A capacidade contributiva no direitocomparado e brasileiro

Como já ressaltamos anteriormente, acapacidade contributiva como princípio seencontra presente nas Constituições de umgrande número de países, tais como: naConstituição da República Portuguesa – 1967,que sobre ela dispõe no art. 106 – “o sistemafiscal será estruturado por lei, com vistas àrepartição igualitária da riqueza e dosrendimentos”; na Constituição da Espanha –1978, em seu artigo 31, afirmando que

“todos contribuirão para as despesaspúblicas de harmonia com a sua capa-cidade econômica, mediante sistematributário justo, inspirado nos princípiosde igualdade e progressividade, que emcaso algum terá alcance confiscatório”;

na Constituição da República Italiana, no art.53, que estabelece que

“tutti sono tenuti a concorrere alle spesepubbliche in ragione della loro capacità

8 MOSCHETTI, Francesco. El princípio dacapacidad contributiva . Madrid : Instituto deEstudios Fiscales, 1980. p. 279.

9 WAGNER, Adolf. Finanzwissenschaft.tradução Francesco Moschetti. Berlim, 1880. p.287-292.

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contributiva. Il sistema tributário einformato a criteri di progressività”10.

Podemos destacar ainda as Constituições doChile, Argentina, México, Grécia, Venezuela etc.

No Brasil, tem-se que a primeira mençãoao princípio da capacidade contributiva estavainserida na Constituição de 1824, no seu art.175, parágrafo 15, que dispunha “ninguém seráisento de contribuir para as despesas do Estadoem proporção de seus haveres”. Na Cons-tituição de 1946 o princípio da capacidadecontributiva veio expresso em seu art. 202, queprevia “os tributos terão caráter pessoal,sempre que isso for possível, e serão graduadosconforme a capacidade contributiva docontribuinte”. Não obstante, esse princípio foirevogado pelo art. 25 da Emenda Consti-tucional nº 18 de 1965, não tendo figurado deforma expressa na Constituição de 1967, etampouco na Emenda nº 01, de 1969, muitoembora muitos juristas entendessem que oprincípio continuava a existir, desde que sefizesse um trabalho de hermenêutica constitu-cional sistemática.

A Constituição de 1988 retomou de formaexpressa este princípio em seu art. 145, § 1º,que dispõe “sempre que possível, os impostosterão caráter pessoal e serão graduados segundoa capacidade econômica do contribuinte...”11.

Nota-se que inclusão do princípio dacapacidade contributiva em nosso ordenamentojurídico nacional acabou variando de acordocom o momento político histórico, demons-trando de forma insofismável seu caráterdemocrático.

4.1. A expressão sempre que possívelTal como definido em nosso direito pátrio,

o princípio da capacidade contributiva vemensejando algumas interpretações divergentesno que se refere ao seu alcance. A expressãosempre que possível diz respeito ao caráterpessoal dos impostos ou à observância doprincípio da capacidade contributiva?

Sobre esta questão Ives Gandra12 sustentaque

“a melhor interpretação do mencionadodispositivo, não obstante sua impro-

priedade redacional, é no sentido de quea ressalva, sempre que possível, só dizrespeito ao caráter pessoal dos impostos,não se aplica no que diz respeito àobservância do princípio da capacidadecontributiva”.

Roque Antonio Carrazza13 faz uma análisejurídica do tópico sempre que possível,consignando:

“... A nosso ver, ele não está fazendo– como já querem alguns – merarecomendação ou um simples apelo parao legislador ordinário. Em outraspalavras, ele não está autorizando olegislador ordinário a, se for de seuagrado, graduar os impostos que criar,de acordo com a capacidade econômicados contribuintes.

O sentido desta norma jurídica émuito outro. Ela, segundo pensamos,assim deve ser interpretada: se for daíndole constitucional do imposto, eledeverá obrigatoriamente ser graduado deacordo com a capacidade econômica docontribuinte. Ou melhor: se a regramatriz do imposto (traçado na CF)permitir, ele deverá obrigatoriamenteobedecer ao princípio da capacidadecontributiva...”.

O mestre Alberto Xavier14 leciona nomesmo sentido:

“É certo que o § 1º do art. 145condiciona à ressalva ‘sempre quepossível’ a imperatividade do caráterpessoal dos impostos e a sua graduaçãosegundo a capacidade contributiva. Masesta ressalva constitucional deve serinterpretada no sentido de que apenasnão estão submetidos aos referidoscomandos os impostos cuja natureza eestrutura com eles sejam incompatíveis.O IOF e o ICM são exemplos de impostosque não seria possível submeter aoprincípio do caráter pessoal. Já porém,no que concerne ao princípio da gra-duação, segundo a capacidade econô-mica, não encontramos nenhum caso –entre a lista de tributos previstos naConstituição – cuja natureza e estrutura

10 MACHADO, Hugo de Brito. Temas de DireitoTributário. Revista dos Tribunais, 1993. p. 10.

11 Sobre evolução deste princípio no direitobrasileiro ver CONTI, op. cit., p. 38-41.

12 MARTINS, Ives Gandra da Silva. Sistematributário na Constituição de 1988. Saraiva, 1989.p. 76-78.

13 Curso de Direito Constitucional Tributário.4. ed. Malheiros, 1993. p. 60-61.

14 Inconstitucionalidade dos tributos fixos porofensa ao princípio da capacidade contributiva. SãoPaulo : Separata. RDT, 1991. p. 119. V CongressoBrasileiro de Direito Tributário.

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com ele não se acomode, valendo pois areferida ressalva para eventuais impostoscriados ao abrigo da competênciaresidual da União, regulada no art. 154”.

Das considerações elencadas depreende-seuma inequívoca obrigatoriedade de aplicaçãodo princípio da capacidade contributiva aosimpostos cuja índole constitucional permita.

4.2. Capacidade contributiva

e impostos indiretos

Outra questão que normalmente surge emse tratando do princípio da capacidadecontributiva é a possibilidade de sua aplicaçãono que se refere aos impostos indiretos. Comefeito, é sabido que os impostos indiretos sãoaqueles que embora a obrigação de pagar recaiasobre determinado indivíduo, chamado decontribuinte de direito, a carga tributária érepassada a outra pessoa, ou seja, ao contri-buinte de fato, devido ao fenômeno darepercussão. Considerando assim que ascondições pessoais do sujeito passivo na maioriadas vezes não podem ser mensuradas, cria-se adificuldade de aplicar este princípio.

Pois bem, em se tratando de impostosindiretos, temos possível a aplicação doprincípio da capacidade contributiva, relem-brando as lições de Aliomar Balleeiro15:

“a natureza da mercadoria vale pre-sunção de seu destino a pessoas dehábitos requintados, largas posses ou quedispõem de recursos outros além dosestritamente necessários à satisfação dasnecessidades fundamentais”.

Com efeito, como já ressaltamos ante-riormente, a capacidade contributiva deve serverificada de acordo com critérios que,analisados conjuntamente, possibilitem suamensuração, respeitando-se o limite do mínimovital. Assim, a utilização de critérios degraduação de alíquotas proporcional à essencia-lidade do produto apresenta-se como fatorproporcionador da mensuração da capacidadecontributiva.

A própria Constituição Federal, ao se referirao Imposto sobre Produtos Industrializados,determina que seja seletivo em função daessencialidade dos produtos. Tal determinaçãoacaba espelhando o próprio princípio dacapacidade contributiva, à medida que ao serseletivo em função da essencialidade o IPI

acaba gravando de forma mais onerosa aquelesprodutos menos essenciais e vice-versa,incidindo no contribuinte na medida de suacapacidade contributiva, dentro de sua realsignificação conceitual.

Elizabeth Carrazza, em sua obra IPTU eprogressividade, p. 60, aduz neste sentido:

“Sem dúvida, nos chamados impostossobre o consumo, o repasse da cargaimpositiva tributária é um fato eco-nômico presente. Nesta medida, quandoa Constituição Federal menciona aseletividade em razão da essencialidadedos produtos, está, de um lado, buscandoproteger os menos favorecidos e, deoutro, instrumentalizando o princípiogenérico da igualdade”.

Henry Tilbery16 com precisão esclarece:“Recapitulando o princípio básico,

focalizado nas presentes considerações,já definido antes no sentido de que aimposição feita pelo Estado, sobre osrecursos financeiros das pessoas, paracobrir as necessidades públicas, devedeixar intactos os recursos dos indivíduospara a satisfação das suas necessidadesessenciais e considerando que a obser-vância do critério da capacidade contri-butiva se concretiza: no imposto direto(sobre rendas) – pela isenção do mínimode subsistência; no imposto indireto(sobre vendas) – pela aplicação docritério da essencialidade de bens;chegamos à conclusão de que a faixa dedispêndios, a serem atingidos pelosimpostos indiretos, é o excedente dosgastos dos consumidores, após satisfeitasas necessidades básicas individuais”.

Portanto, outra conclusão não pode ser queaquela no sentido da possibilidade de aplicaçãodo princípio da capacidade contributiva no quese refere aos impostos indiretos, face aexistência de instrumentos para sua aferição.

4.3. Capacidade contributiva e isenções

Outra questão que suscita dúvidas: a lei queconcede isenção fere o princípio da capacidadecontributiva consagrado na Constituição?

Entendemos, em breves considerações, quea resposta dependerá da índole do imposto, naesteira do raciocínio do mestre Hugo de Brito.

15 Limitações do poder de tributar. 6. ed.Forense, 1955. p. 301.

16 Direito Tributário atual. São Paulo : ResenhaTributária : IBDT, 1990. p. 2.994. v. 10: O conceitode essencialidade como critério de tributação.

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Em se tratando de imposto cuja hipótese deincidência não seja necessariamente umindicador de capacidade contributiva docontribuinte, a lei que concede isenção não fereo princípio em estudo, não havendo que se falarem inconstitucionalidade. Não obstante, em setratando de imposto cuja hipótese de inci-dência espelhe a capacidade contributiva (v.g.imposto sobre patrimônio), a concessão deisenção pode ferir o princípio, dependendo damotivação. É certo que em relação à imunidadeo problema não alcança relevância, por se tratarde hipótese prevista na Constituição, como umaexceção àquele princípio.

5. ConclusãoApós as considerações elencadas, veri-

ficamos que de fato o princípio da capacidadecontributiva apresenta-se não somente como umeficaz instrumento de justiça fiscal, mastambém como um corolário lógico do princípioda igualdade, básico em todo e qualquer regimedemocrático de direito.

O princípio da igualdade pressupõe umtratamento desigual dos indivíduos que seapresentem em situações desiguais, de modo apropiciar uma coincidência de tratamentos. Nocampo tributário não pode ser diferente. Oscontribuintes devem repartir entre si o ônustributário na medida de suas desigualdades ede suas necessidades individuais particulares.

A igualdade tributária, espelhada noprincípio da capacidade contributiva, deve seruma realidade palpável nos regimes demo-cráticos, em contraposição aos regimesautoritários onde normalmente alguns são maisiguais que outros, e por certo a verdadeirajustiça fiscal importa em igualdade desacrifícios, dentro de uma máxima política. Suaobservância, pois, é imperativa, de modo queas palavras de Stuart Mill17 não se percam novazio:

“...distribuir a contribuição de cadapessoa para as despesas do governo detal forma que ela não sinta nem mais nem

menos incômodo com a cota que lhe cabepagar, do que qualquer outra sente,pagando a dela”.

17 Princípios da economia política. Cultural,1983. p. 290. (Os Economistas).

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1. IntroduçãoCom a Constituinte de 87, os eminentes

agraristas, cônscios da necessidade de umajustiça agrária para o país, intensificaram a lutapara ver a sua previsão na Constituição Federal.Vários trabalhos e estudos sobre o assuntoforam publicados, entre os quais merecedestaque o do professor Otávio Mendonça: “AJustiça Agrária na constituinte de 87”1. Com afinalidade de apresentar propostas aceitáveispela Constituinte, ele focaliza fatos impul-sionadores da implantação da justiça agráriano Brasil, para suscitar o debate das alternativascapazes de obtê-la, o mais rápido e o menosimperfeito possível.

A primeira proposta de criação da justiçaagrária em 1969, da Comissão do Ministérioda Agricultura presidida pelo ilustre OctavioMello Alvarenga, previa uma estruturacompleta de um órgão autônomo do Judiciário,com 1ª e 2ª instâncias e um Tribunal SuperiorAgrário. As sucessivas rejeições e arquiva-mentos contribuíram para que o último projeto,do Deputado José Sarney Filho, em 1985,previsse apenas o Juiz Agrário.

Todos os projetos, porém, localizavam ajustiça agrária na esfera federal.

O eminente professor, ante a Constituinte,ressaltava a importância da criação da justiçaagrária, ainda que não possuísse uma formatão técnica2. Assim, Octávio Mendonça sugeria

A justiça agrária na Constituição Federal

VALÉRIA AROEIRA B. D. FERREIRA

A. MARCOS DA S. DE JESUS

Valéria Aroeira B. D. Ferreira é Professora deDireito da UFV, Mestra em Direito Agrário pelaUFG, Coordenadora da pesquisa “Justiça Agrária”,financiada pela FAPEMIG.

A. Marcos da S. de Jesus é Acadêmico de Direitoda UFV, bolsista do PIBIC do CNPq/UFV.

SUMÁRIO

1. Introdução. 2. Art. 126 da CF/88. 2.1. Art.126, caput. 2.2. Parágrafo único. 3. Conclusão.

1 R. Inf. Legisl., a. 24, n. 93, p. 229-242, 1987.2 Ibidem, p. 235.

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que a OAB propusesse: a criação da justiçaagrária, como órgão autônomo do PoderJudicário, com TSA, TRA’s e juízes agrários,ou dentro da justiça federal, como um setorespecializado, com seções, turmas e varasespecializadas e privativas. E, em qualquercaso, com a justiça estadual substituindo-a noslugares em que ainda não estivesse funcio-nando.

Nota-se, nessa proposta, que mesmo naalternativa de ser um setor especializado,haveria 1ª e 2ª instâncias e a competência seriafederal. E, finalmente, discutindo a alternativade localização desse ramo na justiça estadual,“embora imperfeita”, o faz com a existência devaras e turmas específicas, em primeira esegunda instâncias.

2. Art. 126 da CF/88A resposta da Constituinte de 87 veio com

um artigo apenas.“Art. 126. Para dirimir conflitos

fundiários, o Tribunal de Justiça desig-nará juízes de entrância especial, comcompetência exclusiva para questõesagrárias.

Parágrafo único. Sempre que neces-sário à eficiente prestação jurisdicional,o juiz far-se-á presente no local dolitígio”.

Um artigo confuso, mal redigido e semnenhuma alteração significativa no orde-namento jurídico, essa é a definição que podeser feita do art. 126.

Vitor Barboza Lenza3 atesta que“havia uma grande esperança dosjusagraristas brasileiros, quanto à efetivacriação de uma justiça agrária no Brasil(...) nos moldes assemelhados à Justiçado Trabalho, com Tribunal SuperiorAgrário, Tribunais Regionais Agráriose Juízes e Junta de Conciliação eJulgamento Agrário. Contudo, os consti-tuintes adotaram essa solução paliativa,deslocando a competência federal dessajustiça especializada para a justiçaestadual, resultando no retumbanteinsucesso dessa idéia”.

Feliz é a constatação do respeitávelprofessor Paulo Tormin Borges:4

“tal dispositivo é anêmico, não satisfazà necessidade de uma justiça agrária”.

E prossegue o professor:“considero, porém, péssimo que aConstituição não tenha instituído aJustiça Agrária. Isto de Varas espe-cializadas ou entrâncias especiais, ‘comcompetência exclusiva para questõesagrárias’ (CF, art. 126), é engodo. Nãoresolve nem ajuda”.

2.1. Art. 126, caputO constituinte de 87 não resgatou nenhuma

das propostas anteriores. O art. 126 – caput –tem vários aspectos que podem e devem sercriticados.

a) Estabelece a competência estadualDas propostas dos agraristas, a Constituição

Federal só absorveu o que era imperfeito –admitido pelos próprios proponentes – e deveriaser acessório ou transitório na instituição dajustiça agrária.

O último projeto de justiça agrária previajuízes agrários de primeira instância, mas naesfera federal e, apenas transitoriamente, aatuação da justiça estadual nas comarcas ondeinexistissem aqueles. Outrossim, o professorOtávio Mendonça5, tendo em vista as óbicesorçamentárias, chega a admitir em tese a justiçaestadual como alternativa válida, emboraimperfeita. Ainda assim, com “varas e turmasespecíficas, em primeira e segunda instâncias”.Porém, mais tarde, o mesmo professor adverteque “existem inconveniências muito maisgraves, quanto à justiça comum do que quantoà federal. Antes de tudo a sua extremafragilidade da estrutura”.

Essa competência é residual. Pois, pelaprópria Constituição, a competência será dosjuízes federais quando os conflitos fundiáriostiverem a União, entidade autárquica ouempresa pública federal como autoras, rés,assistentes ou oponentes, além das ações dedesapropriações por interesse social para finsde reforma agrária – arts. 109, I e 184 da CF.José Pedro do Couto6 estende a exclusão aoslitígios relacionados com o domínio, posse, uso,exploração e conservação das terras situadasnas áreas declaradas de interesse social para finsde desapropriação – art. 8º da Lei nº 7.595/87.

3 Juizados Agrários, JA. Goiânia : AB, 1995.p. 5.

4 Institutos básicos do Direito Agrário. 9. ed.rev. e ampl. São Paulo : Saraiva, 1995. p. 65.

5 MENDONÇA, op. cit., p. 238.6 Estruturação do juízo agrário estadual, segundo

exegese do art. 126 da Carta Política. Julgados daJustiça de Rondônia, Porto Velho, v. 7, n. 8, p. 103,dez. 1992.

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“Transferiram-se aos tribunaisestaduais a organização e a manutençãode uma justiça que sabemos que é dacompetência federal”.

A questão agrária no Brasil tem importânciarelevante. É interesse nacional a sua resolução.Complexa e envolvendo poderosos, deveria serapreciada por um judiciário de expressividadetambém federal. Aliás, federal já é a compe-tência para determinadas questões agrárias, nãosendo recomendável essa descentralização.

b) Competência restritaAlém de dividir a sua competência com a

justiça federal – competência residual –, o textoconstitucional determina que a designação dosjuízes só será para “dirimir conflitos fundi-ários”, e não todos os conflitos agrários, gênerodaqueles.

O anteprojeto de Foro Agrário do Ministérioda Justiça7, denominado pela Revista da ABRAde Projeto Laranjeira , em homenagem aoprofessor Raymundo Laranjeira, em seu art. 4ºfaz uma clara definição de conflitos fundiários.

“Art. 4º Os conflitos fundiários dizemrespeito à disputa do solo, seus acessóriosnaturais e benfeitorias, e constituemespécie de que são gênero as questõesagrárias referidas no art. 126 da Consti-tuição Federal”.

Fundiário é um termo surgido de fundus,ou seja, bem de raiz, empregado com relação amatéria ou a questões de terrenos ou imóveis8.

Infere-se que a designação do art. 126 é tão-somente para dirimir conflitos relacionadoscom o domínio e a posse do solo e seusacessórios. Exclui-se, portanto, as outrasquestões agrárias, os litígios decorrentes doexercício da atividade agrária e dos negócioscom os bens agrários9.

c) Juiz agrárioA designação será de juízes de entrância

especial. Não há referência à criação de VarasAgrárias, como pensam alguns. Significa, noentendimento de José Pedro do Couto10, “quenão haverá juízo agrário, e sim juiz agrário

itinerante”. De forma que o juiz agrário sedirigirá até a Comarca que é abrangida por suajurisdição e na qual ocorre o conflito e utilizarátodas as suas instalações, como se fosse um juizdaquela Comarca.

Para o juiz Couto, inexistindo a criação deVaras Agrárias, há um obstáculo tambémconstitucional:

“a garantia constitucional da inamovi-bilidade (art. 95, II, CF), de que goza omagistrado, caso este não concorde emcumular sua jurisdição preexistente, coma Justiça Agrária, de caráter itinerante,que obviamente lhe afastaria de suasfunções nas quais foi legalmente inves-tido”.

Não menos importante é o alerta domagistrado paulista Antonio Jurandir Pinoti11

feita ao art. 126 da Constituição Federal. Poisum juiz pode ser designado para dirimirdeterminados conflitos fundiários e outros não,numa mesma comarca ou região.

“Vale dizer, as partes ficam sujeitasa critérios exclusivamente subjetivos dacúpula dos Tribunais de Justiça dosEstados, no que concerne à designaçãodos juízes que irão exercer a jurisdiçãoagrária”.

Assim, esse artigo não se coaduna com oprincípio do juiz natural, pois o juiz competentedeve preexistir ao conflito, e o texto consti-tucional não garante que a designação seráanterior a este. Ele ainda cita a formaencontrada pela Constituição do Estado de SãoPaulo – art. 86, § 4º – que, visando a garantir aseriedade e a transparência das nomeações,

“determina que a designação só pode serrevogada a pedido do próprio juizdesignado ou por deliberação da maioriaabsoluta do Órgão Especial do Tribunalde Justiça”.

2.2. Parágrafo únicoO parágrafo único do art. 126 da CF está

dentro da moderna doutrina de Direito Agrário.Com ele, o princípio da mobilidade foi elevadoa nível constitucional.

Fazendo uso desse princípio, o juiz terá umcontato direto com os conflitos, conhecerá asverdades que não chegaram aos autos e, deforma menos vacilante, estará apto a decidircom justiça.

7 O anteprojeto de Foro Agrário tendo em vistaa disposição do art. 126 da CF, foi elaborado poruma Comissão nomeada pelo Ministério da Justiça.Ela era composta por Raymundo Laranjeira, OtávioMendonça e Octavio Mello Alvarenga. Esse trabalhofoi publicado no DOU em setembro de 1989.

8 SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. Ed.universitária. Rio de Janeiro : Forense, 1993.

9 São outras questões agrárias previstas noanteprojeto de Foro Agrário do Ministério da Justiça.

10 COUTO, op. cit., p. 95.

11 Proposta de alteração do art. 126 da Consti-tuição Federal. Decisão, v. 8, n. 9, p. 48-49, ago.1993.

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Mas não é nenhuma novidade jurídica,trata-se da inspeção judicial prevista no CPC,arts. 440-443. Pela qual o juiz pode, de ofícioou por requerimento, em qualquer faseprocessual, inspecionar pessoas ou coisas, a fimde se esclarecer sobre fato que interesse adecisão da causa. O juiz dará ciência às partesda diligência, ficando autorizadas a participar,prestar esclarecimentos e fazer observações. Dadiligência, lavrar-se-á auto circunstanciado. É,enfim, um meio direto de prova utilizado pelojuiz para formar a sua convicção.

Virgílio Campos, procurador da FazendaNacional, citado por José Pedro do Couto12,declara:

“...Mais que um juiz, sentado no altode sua cadeira pretoriana, ele deverá sertécnico voltado para a solução deurgentes problemas sociais e econômicos.Nada de ações divisórias e possessóriasapreciadas e julgadas na penumbra dosgabinetes: elas hão que ser decididas nolocal dos fatos, na visualização clara doconflito em concreto, nunca através deum pálido e distorcido retrato trazido àspáginas incolores de autos amorfos”.

Para o autor,“a presença do juiz agrário no local dofato se daria nas fases mais importantesdo processo, ou seja, em todas asaudiências e na fase executória dasentença”.

Caracterizado o litígio e feita a provocação dojudiciário, o juiz agrário se deslocará para olocal do fato, obtendo a visualização clara doconflito em concreto, dirimindo-o com celeri-dade e objetividade13.

Entretanto, o disposto nesse parágrafo únicoé uma faculdade do juiz agrário. Ele não se farápresente no local do litígio em todos os conflitosagrários, ou sempre que for provocado, masquando ele próprio, o juiz, julgar necessário,quando entender que a sua presença in loco énecessária para uma eficiente prestaçãojurisdicional.

O § 2º, do art. 107, da Constituição doEstado do Paraná, seguindo essa orientação daConstituição Federal, deixando latente a quempertence o alvedrio, assim dispõe:

“sempre que entender necessário àeficiente prestação jurisdicional, o juizirá ao local do litígio” (grifo nosso).

O juiz é quem irá ao local e é quem tomaesta decisão.

Cuida o parágrafo único de uma itinerânciadiscricionária e não compulsória do julgador.Norma copiada do art. 442, I do CPC que deigual modo determina que o juiz assim agiráquando julgar necessário; faculdade reconhe-cida na jurisprudência14.

A decisão do juiz de não ir ao local do litígiosignificará maior celeridade e economiaprocessual, tratando-se de um conflito agráriosimples, bem instruído e de fácil decisão. Poroutro lado, essa mesma decisão pode trazerprejuízos à parte em se tratando de litígioscontrovertidos e complexos, cuja presença dojulgador in loco apontaria outra decisão. Nessecaso, a parte prejudicada, se fez o requerimentoda inspeção, poderá atacar essa decisão judicialpor meio de agravo – art. 522 do CPC.

3. ConclusãoO art. 126 da Constituição Federal veio

pulverizar ainda mais a competência para asquestões agrárias. Aumenta-se a confusão daspartes na hora de propor uma ação agrária.Agora há a competência da Justiça Federal –arts. 109, I e 184 da CF –, a competênciaestadual dos juízes agrários de entrânciaespecial, para dirimir os conflitos fundiários –art. 126 da CF – e a competência estadual daJustiça Ordinária, qualquer que seja a entrân-cia – para todas as questões agrárias, ressal-vados os casos anteriores.

Assevera o professor Raymundo Laranjeira15

que:“nesse caso, seria até preferível falar emforo agrário, mas nunca em JustiçaAgrária, como tal, que pressupõe aentidade judicante ímpar, mais abran-gente, sem a dispersão de competência eque é, sobretudo, organismo dotado dereconhecimento constitucional”.

A forma estabelecida no art. 126 é vazia eineficaz. Os estados que desejarem a compo-sição dos litígios agrários por um órgãoespecífico, melhor será fazê-lo por meio dacriação de Varas Agrárias, cuja competênciade proposta pertence ao Tribunal de Justiça –art. 96, I, d. Pois assim, a competência não serárestrita e só estará dividida entre a justiça

12 COUTO, op. cit., p. 77-78.13 Ibidem, p. 107.

14 “A inspeção judicial é outra faculdadeconferida ao prudente arbítrio do juiz”. RT, n. 521,p. 266.

15 MORAES, Sônia. O “Projeto Laranjeira” paracriação de uma justiça agrária. Revista da ABRA, v.19, n. 3, p. 87.

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federal e as Varas Agrárias estaduais, quepodem ser melhor aparelhadas, além de nãoocorrerem os inconvenientes apontados pelosilustres juízes.

O Estado do Pará, onde militam incansáveisjusagraristas do porte de Otávio Mendonça,Benedicto Monteiro e Alcyr Gursen deMiranda, saiu na frente e já na sua Constituiçãode 89, art. 167, definiu o perfil de juízo agrárioadequado à realidade daquele Estado; elatambém exige, para o ingresso como juizagrário, a aprovação em curso de especializaçãode Direito Agrário, ministrado aos candidatos.

Já o Estado do Ceará (LOJ – Lei nº 12.342,de 28.7. 94, art. 106, XVI e XVII) criou apenasuma Vara de entrância especial de processosde conflitos fundiários e uma de processo dedanos e crimes ecológicos lesivos ao meioambiente e recursos hídricos.

A peleja pela criação da justiça agráriacontinua. Pois a realidade do campo é diversada realidade da cidade; os valores do homemrurícola nem sempre são iguais aos do citadino.Continua porque não são poucos os problemasda agricultura e as necessidades de reformaagrária. E a violência, toda espécie de conflitoagrário, a verificação do cumprimento dafunção social da terra etc. devem ser apreciadoscom uma mentalidade agrarista, por meio deprocedimentos informais, gratuitos, rápidos eao mesmo tempo seguros; por um Judiciárioforte e sensível à dura realidade dos quetrabalham a terra e retiram ou querem retirardela o seu sustento e o da sociedade.

Os entraves e as rejeições de projetos deJustiça Agrária não devem anuviar a convicçãonem esmorecer aqueles que anseiam pela justadistribuição de justiça no campo e a garantiade uma eventual reforma agrária.

Por isso, pugnamos por uma justiça agráriade verdade. Como um órgão autônomo doJudiciário, na esfera federal, com competênciacentralizada para todas as questões agrárias,em duplo grau de jurisdição e um tribunalsuperior: Juízes Agrários, TRA’s e TSA.Atualmente o projeto do Senador Romero Jucá –PEC 47/95, em tramitação no CongressoNacional, criando esse órgão especializado,prevê essa estrutura, no que merece nossosaplausos.

BibliografiaBORGES, Paulo Tormin. Institutos básicos do

Direito Agrário. 9. ed. rev. ampl. São Paulo :Saraiva, 1995.

COUTO, José Pedro do. Estruturação do juízoagrário estadual, segundo exegese do art. 126da Carta Política. Julgados da Justiça deRondônia, Porto Velho, v. 7, n. 8, p. 73-111, dez.1992.

JUCÁ, Romero. Discursos : coleção 6. Brasília :Senado Federal, Centro Gráfico, 1995.

LENZA, Vitor Barboza. Juizados Agrários, JA.Goiânia : AB, 1995.

MATOS NETO, Antonio José de. A justiça agráriano estado do Pará. Revista de Direito Civil,Imobiliário, Agrário e Empresarial, [S.l.] v.15,n. 57, p. 68-70, jul./set. 1991.

MENDONÇA, Otávio. A Justiça Agrária naConstituinte de 87. R. Inf. Legisl. Brasília, v.14, n. 93, p. 229-242, jan./mar. 1987.

MORAES, Sônia. O “Projeto Laranjeira” paracriação de uma justiça agrária. Revista da ABRA,v. 19, n. 3, p. 86-94, dez.1989/mar. 1990.

PINOTI, Antonio Jurandir. Proposta de alteração doart. 126 da Constituição Federal. Decisão, v. 8,n. 9, p. 47-50, ago. 1993.

SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. Ed.Universitária. Rio de Janeiro : Forense, 1993.

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É preciso avançar. Quer tenhamos umaposição contrária ou favorável à globalização;a ciência e o crescimento dos canais deinformação, tal qual a atmosfera, envolvem todoo planeta, e se ficarmos inertes a essa situação,a história nos reservará o lugar dos omissos.

Por mais que a nossa realidade de TerceiroMundo nos coloque um pouco distantes decertos avanços tecnológicos, é necessário quepensemos urgentemente sobre eles, se nãodominando toda a linguagem desse novosaber, ao menos buscando situá-lo no campoaxiológico.

Se admitirmos a teoria da tridimensiona-lidade do Direito, onde a norma é resultante dainteração entre o fato e o valor, observaremosque a ciência está a nos colocar os fatos. E quaisrespostas axiológicas a ética e a moralapresentam a estes fatos? E quais normasteremos como resposta do Estado a estassituações?

O mundo mal se adaptou à idéia dainseminação artificial (dos bebês de proveta eda barriga de aluguel), nem mesmo o Direitonormalizou tal situação, já nos deparamos coma questão do estoque de óvulos fecundados emlaboratórios. E não paramos aí; o que podemosdizer sobre a clonagem, que ora sabemos tão-somente fora realizada com ratos e ovelhas, masque, sem dúvida alguma, poderá estar sendotestada em seres humanos? E ainda, o que dizerdos úteros artificiais criados no Japão ou sobrea introdução de genes humanos em animais,como recentemente o mundo científico foiinformado da possibilidade de cabras e vacasproduzirem leite humanos a partir da alteraçãogenética. Será que tais alterações ficarão apenasneste nível?

A inércia jurídica e os avanços tecno-científicos

PEDRO SÉRGIO DOS SANTOS

Pedro Sérgio dos Santos é Mestre em DireitoPenal pela Faculdade de Direito do Recife – UFPE.Professor da Universidade Federal e PontifíciaUniversidade Católica de Goiás, Advogado emembro do Conselho Penitenciário do Estado deGoiás.

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Endeusado pela cultura dos bacharéis doséculo passado, o Direito já não representa coma mesma força de outros tempos a resposta certaaos anseios sociais. Não que outra forma desaber lhe tenha invadido as fronteiras episte-mológicas provocando qualquer descaracte-rização de sua natureza, mas o fardo pesado daburocracia estatal, principalmente dos casu-ísmo, omissões e inoperância do PoderLegislativo, sua principal fonte normativa,estão a colocar um freio na velocidade dosavanços que urgem diante do progresso técnico-científico.

O caso brasileiro é um dos exemplos maiscaóticos dessa realidade. Não podemos dizerque um Código Civil de 1916 e um CódigoPenal de 1940 (em sua parte especial) contem-plem as necessidades legais de um país dedimensões continentais e com diversidadecultural e de problemas como a que se tem noBrasil. Até mesmo indagações profundasaparecem a todo o instante sobre a nova partegeral do Código Penal, que sendo de 1984, jádemonstra defasagem operacional.

Os fatos não esperam que a norma osantecipe e os valores por sua vez estãoarraigados à cultura, estando ou não esta emconsonância com as leis. Portanto, o Estado,como fonte de leis, deve estar atento à produçãotecnológica e científica, sob pena de ver suasestruturas jurídicas tão obsoletas, ao ponto deserem inoperantes e ineficazes.

Dessa forma, se de um lado nossa legislaçãodeixa a desejar em virtude das inúmeras falhasjá apontadas, por outro lado, outros países jábuscam alternativas no campo legal, alterna-tivas estas que vão ao encontro dos interessessociais e do gênero humano enquanto espéciee enquanto ser privilegiado e responsável pelanatureza.

Elaborado, com o cuidado de escutar osdiversos setores da sociedade, bem como acomunidade científica, o Código Penal daEspanha (Lei Orgânica nº 10/1995, de 23 denovembro) tipifica em seus artigos 159 a 162as condutas delituosas relativas à manipulaçãogenética. Verificamos que tal postura legalrepresenta já uma resposta positiva do EstadoEspanhol às condutas criminosas que possamsurgir no meio médico-científico. Nessesentido, vejamos o que diz a exposição demotivos:

“En la elaboración del proyecto sehan tenido muy presentes las discusionesparlamentarias del de 1992, el dictamen

del consejo general del Poder Judicial,el estado de la jurisprudencia y lasopiniones de la doctrina científica. Se hallevado a cabo desde la idea, profun-damente sentida, de que el Código Penalha de ser de todos y de que, por consi-guinte, han de escucharse todas lasopiniones y optar por las soluciones queparezcan más razonables, esto es, poraquéllas que todo el mundo debería poderaceptar”.

O artigo 159 proíbe a alteração do genótipohumano por meio da manipulação genética,impondo pena de prisão de dois a seis anos aosinfratores que agirem dolosamente e aindaa impossibilidade de exercerem a profissãopor período entre sete a dez anos. Tal artigoprevê ainda punição de multa e impedimentoprofissional de um a três anos para o casode ação criminosa dentro da modalidadeculposa.

Por sua vez, o artigo 160 pune com pena deprisão de três a sete anos a utilização daengenharia genética para a fabricação de armasbiológicas que venham exterminar a espéciehumana, impondo também ao agente criminosoa proibição do exercício profissional por umperíodo de sete a dez anos.

A fecundação de óvulos humanos paraqualquer outro fim que não seja o da procriação,e ainda prática de clonagem, são punidos noartigo 161 com pena de prisão de um a cincoanos, estando também sujeito o infrator àproibição da atividade profissional por tempoque varia de seis a dez anos.

Por fim, a prática de reprodução assistidaem uma mulher, sem o seu consentimento, serápunida com pena de prisão de dois a seis anos,estando o agente inabilitado para emprego oucargo público e exercício da profissão por tempode um e quatro anos.

Por mais que se possa levantar questio-namentos e críticas a estes dispositivos, semdúvida alguma o Poder Legislativo da Espanhadeu um passo de significativa importância parao Direito Penal frente às possíveis situaçõescriminosas surgidas no seio da comunidadecientífico-tecnológica.

A legislação penal espanhola há de nosservir de exemplo para possíveis e necessáriasmudanças em nosso diploma penal, que hoje,infelizmente, não atende aos anseios sociais emergulha o Estado no mar do descrédito dianteda impunidade que campeia solta, sem rédea,atingindo tão-somente o pobre e o desvalido.

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A recente Lei estadual nº 6.075, de 2 deoutubro de 1997, ao dispor sobre normas deproteção à imagem de presos, vítimas etestemunhas, trouxe à ordem do dia umadiscussão que ganha relevância para o direitoconstitucional contemporâneo e que vem sendomuito discutida nos meios acadêmicos. Trata-se do problema da colisão ou conflito de direitosfundamentais, bastante evidenciado pelodiploma legal em análise.

É certo, porém, que, ao largo dessa questão,a referida lei tem provocado um polêmicodebate, não menos apaixonante que o tema dacolisão de direitos fundamentais, centrado naquestão de sua constitucionalidade formal.Nesses termos, a despeito da justificativaconstante do projeto de lei levado a debate naAssembléia Legislativa do Estado do Pará, deque a matéria objeto de proposta se inclui noâmbito da competência concorrente da União,Estados e Distrito Federal por se tratar de direitopenitenciário (art. 24, I, CF) – segundo areferida justificativa, portanto, dispor sobrenormas de proteção à imagem de presos,vítimas e testemunhas é matéria referente adireito penitenciário! –, suspeita-se que essaCasa legislativa tenha adentrado em matériade lei federal em face do disposto no art. 220, §3º, II c/c art. 221, IV, ambos da ConstituiçãoFederal1 e 2.

Confirmar tal suspeita, entretanto, cabeprecipuamente ao STF, que deverá pronunciar-se no caso de ser provocado acerca do assunto.Justamente por isso, a opção metodológica aser adotada neste trabalho implicará um corteepistemológico no sentido de deixar de lado aquestão da inconstitucionalidade formal da Lei

Colisão de direitos fundamentais a partirda Lei nº 6.075/97: o direito à imagem depresos, vítimas e testemunhas e aliberdade de expressão e de informação

LÉO FERREIRA LEONCY

Léo Ferreira Leoncy é Aluno do 10º período doCurso de Direito da UFPa e Monitor da DisciplinaDireito Processual Civil. Notas ao final do texto.

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nº 6.075/97 em função de uma possível invasãode reserva de competência legislativa federal.A análise a ser aqui encaminhada terá comoobjeto, portanto, apenas aquele problemainicialmente mencionado, qual seja, o dacolisão de direitos fundamentais.

A questão da colisão de direitos funda-mentais suscitada pela referida lei pode seresboçada do seguinte modo: ocorre colisão dedireitos fundamentais quando o exercício de umdireito fundamental por parte do seu titularconflita com o exercício do mesmo ou de outrodireito fundamental por parte de outro titular.Como fica evidente, ocorre um verdadeirochoque de direitos (cf. Canotilho, 1993, p. 643).

No caso em questão, a Lei nº 6.075/97coloca em evidência a colisão existente entre odireito à imagem de presos, vítimas e teste-munhas, de um lado, e a liberdade de expressãoe informação, de outro; e o faz ao estabelecerque os presos

“não poderão ser constrangidos aparticipar, ativa ou passivamente, deatos, entrevistas, ou qualquer outraprogramação reproduzida por órgãos decomunicação de massa, entendidos comoemissoras de rádio e televisão e porjornais, vedada, especialmente, suaexposição compulsória a fotografias eimagens” (art. 1º, caput)

e ao dispor que“a autoridade competente, em cada caso,assegurará, dentro dos parâmetros legais,que as informações sobre a vida, aintimidade e a imagem, de vítimas etestemunhas, dentro dos órgãos pelosquais são responsáveis, sejam preser-vadas, a partir de solicitação dasmesmas” (art. 3º, caput).

Noutros termos: ao preservar a inviolabilidadeda imagem dessas pessoas (art. 5º, X, CF),restringiu a liberdade de expressão e deinformação (art. 5º, IV, XIV, CF), esta, aliás,condição do livre exercício de trabalho, ofícioou profissão relacionados à área de comuni-cação social (art. 5º, XIII, CF).

Em vista dessa restrição acima delineada,surge a seguinte dúvida: é possível a uma lei, atítulo de garantir um direito constante docatálogo dos direitos fundamentais (Título II,CF), legitimamente limitar o exercício de outrodireito fundamental constante desse mesmocatálogo?3 E mais: fazendo parte tais direitos,como realmente fazem, do catálogo de direitos(fundamentais) individuais (Capítulo I, Título

II, CF) e, portanto, constituindo verdadeiracláusula de intangibilidade constitucional(cláusula pétrea, limite material ao poder dereforma – art. 60, § 4º, IV, CF) (cf. Dantas,1997, p. 45; Mendes, 1994b, p. 249 e ss.),seriam eles próprios passíveis de restrição? Aresposta a tais questões não parece fácil.

A literatura jurídica nacional ainda está adever uma sistematização do regime geral dosdireitos fundamentais, que, tomando por basea Constituição, exponha os princípios e regrasdo disciplinamento constitucional de taisdireitos. Existem algumas contribuições derelevo (Dantas, 1997; Mendes, 1994; Piovesan,1996; Garcia, 1994; Bonavides, 1994; Barroso,1996), mas que tratam apenas de questõespontuais da matéria. Considerando-se, todavia,a produção doutrinária existente na literaturanacional, e a esta se acrescendo os estudos dateoria constitucional estrangeira (a portuguesa,principalmente: Canotilho, 1993; Canotilho eMoreira, 1991), é possível oferecer algunssubsídios para o desenvolvimento da discussãoe, circunstancialmente, para a análise da Leinº 6.075/97, objeto de comento neste trabalho.

Nesse sentido, cabe observar inicialmenteque a Constituição não prevê de modo algumuma cláusula geral que possibilite a restriçãoao exercício de direitos fundamentais. Por contadisso, toda e qualquer restrição há de serprevista de forma expressa ou decorrerdiretamente dos princípios e regras adotadospela Constituição. Assim é que, em algunscasos, previu expressamente a reserva de leirestritiva, ensejando com isso o estabelecimentode limites legais ao exercício de direitosfundamentais específicos4. É o caso porexemplo da restrição à inviolabilidade daintimidade nos casos em que, por ordemjudicial, em sede de investigação criminal ouinstrução processual penal, se permite ainterceptação de dados e das comunicaçõestelefônicas (art. 5º, X, XII, CF). Trata-se aquide reserva legal prevista expressamente pelaConstituição5.

Em outros casos, embora a Constituição nãopreveja expressamente a reserva de leirestritiva, a limitação legal de um direitofundamental torna-se possível em função deque, se assim não fosse, o seu exercício pelotitular inviabilizaria o exercício de direitofundamental de outro titular (haveria, pois,colisão, conflito, choque de direitos funda-mentais). De outro modo, estar-se-ia a afirmarque a ausência de reserva legal expressa

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implicaria ter a Constituição assegurado umdireito fundamental de forma ilimitada, o quenão se coaduna com um regime democrático(que implica previsão constitucional deresponsabilidade dos cidadãos e de deveresfundamentais). Dessa forma, a possibilidade derestrição resta implícita e, de todo modo,fundamentada na própria Constituição.

Em ambos os casos (possibilidade expressaou implícita de restrição), deve-se proceder àconcordância prática dos direitos colidentes,viabilizando o sacrifício mínimo de ambos osdireitos de modo a eliminar (ou pelo menosamenizar) o estado de tensão mútua existenteentre eles. Tal concordância prática, verdadeiroprincípio de interpretação constitucional, nodizer de Konrad Hesse, consiste em que

“los bienes jurídicos constitucionalmenteprotegidos deben ser coordinados de talmodo en la solución del problema quetodos ellos conserven su entidad. Allídonde se produzcan colisiones no sedebe, a través de una precipitada‘ponderación de bienes’ o inclusoabstracta ‘ponderación de valores’,realizar el uno a costa del outro” (Hesse,1992, p. 45).

Pode-se dizer, portanto, que os bensjurídicos constitucionalmente asseguradosdevem ser coordenados de modo a que todoseles possam conservar sua identidade (cf.Barroso, 1996, p. 186).

No processamento dessa concordânciaprática dos direitos fundamentais comomecanismo adequado à solução de tensões entrenormas, deve o intérprete valer-se da chamadaponderação de bens ou valores jurídicosfundamentais expressos em normas constitu-cionais. A questão da ponderação desses bensou valores fundamentais não passou desper-cebida a Luís Roberto Barroso, que sobre elase pronunciou nos seguintes termos:

“Trata-se de uma linha de raciocínioque procura identificar o bem jurídicotutelado por cada uma delas, associá-loa um determinado valor, isto é, aoprincípio constitucional ao qual sereconduz, para, então, traçar o âmbitode incidência de cada norma, sempretendo como referência máxima asdecisões fundamentais do constituinte”(Barroso, 1996, p. 185).

Nesse sentido, o juízo de ponderação a serfeito deve necessariamente obedecer osparâmetros constitucionais, que em linhas

gerais sugerem que ao sacrifício de um direitofundamental deve corresponder a salvaguardade outro direito fundamental, sob pena deinconstitucionalidade. Há que se compreenderportanto a conformação, a implicação mútuade tais direitos no âmbito interno da própriaConstituição6.

No caso da liberdade de expressão einformação, viu-se que a sua previsão constitu-cional (art. 5º, IV, XIV, CF) conta com umstatus de constitucionalidade reforçada, nãopodendo ser objeto de deliberação a propostade emenda tendente a aboli-la (art. 60, § 4º,IV, CF). A despeito disso, e conforme já seadiantou, tais direitos podem sofrer restriçãolegal desde que seja no intuito de salvaguardaroutros direitos fundamentais. Assim é que aLei Fundamental brasileira previu expressa-mente que

“a manifestação do pensamento, acriação, a expressão e a informação, sobqualquer forma, processo ou veículo nãosofrerão qualquer restrição, observado odisposto nesta Constituição” (grifosnossos) (art. 220, caput, CF).

Fica evidente, portanto, que o exercício de taisdireitos há de levar em conta as limitaçõesdelineadas no próprio texto constitucional(entre as quais, como se verá, a observância dodireito à imagem de presos, vítimas e teste-munhas).

Numa outra cláusula constitucional, ahipótese teórica desenvolvida neste trabalho(qual seja, a possibilidade de restrição de direitofundamental para salvaguardar outro direitofundamental) ganha mesmo respaldo e legitimi-dade constitucionais. Trata-se da cláusulaconstante do § 1º, art. 220, do Texto Magno,segundo a qual

“nenhuma lei conterá dispositivo quepossa constituir embaraço à plenaliberdade de informação jornalística emqualquer veículo de comunicação social,observado o disposto no art. 5º, IV, V, X,XIII, XIV” (grifos nossos).

Tem-se aí previsão expressa de reserva delei restritiva, que muito bem poderá limitar oexercício da liberdade de expressão e deinformação (art. 5º, IV, XIV, CF) parasalvaguardar outros direitos fundamentais,dentre os quais o direito à imagem de presos,vítimas e testemunhas (art. 5º, X, CF)7.

Nesse sentido, pode-se afirmar, em sínteseconclusiva, que a Lei nº 6.075/97, ao restringira liberdade de expressão e informação, o fez

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na tentativa de salvaguardar outros direitosfundamentais constitucionalmente assegurados,no caso o direito à imagem de presos, vítimas etestemunhas. Quanto à sua possível inconsti-tucionalidade por afronta a reserva de leifederal, – questão da qual se quis afastar aquidesde o início, por demandar outro nível dereflexão – a referida lei por certo será objeto dediscussão em foro jurisdicional competente,tendo em vista os setores profissionais por elaafetados. Aguarda-se, desse modo, a provocaçãodo STF pelos interessados, quando então estaCorte poderá pronunciar-se sobre as questõesem jogo, inclusive aquelas esboçadas no bojodeste trabalho.

Essas as reflexões que se pretende provocar.

BibliografiaBARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação

da Constituição : fundamentos de uma dog-mática constitucional transformadora . SãoPaulo : Saraiva, 1996.

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PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o DireitoConstitucional internacional. São Paulo : MaxLimonad, 1996.

Notas de Rodapé1 O § 3º, II, do art. 220, da Constituição Federal,

estabelece que “compete à lei federal: (...)estabelecer os meios legais que garantam à pessoae à família a possibilidade de se defenderem deprogramas ou programações de rádio e televisão quecontrariem o disposto no art. 221 (...)” (grifos

nossos). Já o art. 221, no seu inciso IV, também daConstituição, estipula que “a produção e aprogramação das emissoras de rádio e televisãoatenderão aos seguintes princípios: (...) respeito aosvalores éticos e sociais da pessoa e da família”(grifos nossos). Desse modo, se se considerar que aproteção da imagem de presos, vítimas e teste-munhas, matéria objeto da Lei nº 6.075/97, é meiolegal de garantia dos valores éticos e sociais dapessoa e da família contra a produção e a progra-mação que os violem (art. 221, IV), então estáconfigurada a inconstitucionalidade formal dareferida lei, por invasão de reserva de competênciade lei federal (art. 220, § 3º, II).

2 A Lei nº 6.075/97 parece apresentar ainda umoutro vício de inconstitucionalidade. Em seu art. 3º,parágrafo único, estipula que: “Art. 3º A autoridadecompetente, em cada caso, assegurará, dentro dosparâmetros legais, que as informações sobre a vida,a intimidade e a imagem, de vítimas e testemunhas,dentro dos órgãos pelos quais são responsáveis,sejam preservadas, a partir da solicitação dasmesmas. Parágrafo único. O estabelecido nesteartigo se aplica também às autoridades judiciais,assegurando-se necessário, em todas as fases datramitação processual” (grifos nossos). Como se vê,no parágrafo único, o legislador estadual parece tertratado de matéria pertinente a direito processual,cujo disciplinamento legal é da competênciaprivativa da União (art. 22, I, CF).

3 Denomina-se catálogo de direitos e garantiasfundamentais a parte sistemática da Constituiçãodedicada ao enunciado de direitos e garantiasfundamentais (cf. Canotilho e Moreira, 1991, p. 107).

4 No dizer do Gomes Canotilho (1993, p. 605),fala-se em direitos sujeitos à reserva de lei restritivaquando “nos preceitos constitucionais se prevêexpressamente a possibilidade de limitação dosdireitos, liberdades e garantias através de lei”. Nessesentido, normas legais restritivas são aquelas que“limitam ou restringem posições que, prima facie,se incluem no domínio de proteção dos direitosfundamentais” (Canotilho, 1993, p. 633).

5 Regulamentando a interceptação telefônica, aLei federal nº 9.296, de 24 de julho de 1996.

6 A tarefa de conformação dos direitos funda-mentais é própria da atividade legislativa. Nãosignifica que o legislador possa dispor deles, masapenas que existe a necessidade de a lei garantir oexercício dos direitos fundamentais. Nesse sentidoé que se fala que as normas legais conformadoras“completam, precisam, concretizam ou definem oconteúdo de proteção de um direito fundamental”(Canotilho, 1993, p. 633).

7 Sobre a problemática aqui abordada e numsentido semelhante, Luís Roberto Barroso jáanunciava: “Um lance de olhos sobre a Consti-tuição brasileira revela diversos pontos de tensãonormativa, isto é, de proposições que consagramvalores e bens jurídicos que se contrapõem e quedevem ser harmonizados pelo intérprete. No

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campo dos direitos individuais, a Lei básicaconsigna a liberdade de manifestação dopensamento e de expressão em geral (art. 5º, IVe X). Tais liberdades públicas, todavia, hão de

encontrar justos limites, por exemplo, no direitoà honra e à intimidade, que a Constituiçãotambém assegura (art. 5º, XI)” (Barroso, 1996,p. 183 e ss.).

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1. Delimitação do objetoObjetiva o presente ensaio, sem pretensões

de esgotamento do tema – o que demandariauma monografia –, analisar a (im)possibilidadedo Chefe do Executivo recusar a aplicação delei, ao argumento de inconstitucionalidade, sobo prisma do direito positivado no Brasil.

Por conseguinte, apenas esporadicamenterecorreremos ao direito comparado, sendo certoque o nosso enfoque terá sempre em mira odireito brasileiro, motivo pelo qual neces-sariamente incursionaremos no papel doSupremo Tribunal Federal e a evolução docontrole de constitucionalidade.

Em um momento no qual é evidente ahipertrofia do Poder Executivo, que já exerceinequívoca atividade legiferante1 mediante leisdelegadas, edição e reedição de medidasprovisórias, a análise do presente tema parece-nos ainda mais relevante.

A recusa à aplicação de lei peloExecutivo, sob o juízo deinconstitucionalidade

PETER JOHN ARROWSMITH COOK JUNIOR

Peter John Arrowsmith Cook Junior é assessordo TJRN.

SUMÁRIO

1. Delimitação do objeto. 2. Evolução docontrole de constitucionalidade. 2.1. A EmendaConstitucional nº 16/65: a aferição da constitu-cionalidade em abstrato e a recusa à aplicação delei pelo Chefe do Executivo. Antecedentes. 3. Aampliação da legitimação para a Adin na Carta de1988 e as repercussões sobre o tema. Doutrina. 4.A impossibilidade do Chefe do Executivo recusar aaplicação de lei. O controle de constitucionalidadee os limites de seu exercício pelos Poderes. 5.Conclusão.

1 NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. Indepen-dência dos poderes no regime democrático e asexigências da sociedade hodierna. Revista do Cursode Direito da Universidade Federal do Rio Grandedo Norte, v. 1, n. 1, p. 58, jul. 1996.

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2. Evolução do controlede constitucionalidade

A aferição de constitucionalidade inexistiaao tempo do império no Brasil, emboracoubesse ao Poder Legislativo “velar na guardada Constituição” (art. 15, 9º).

Com o Decreto nº 848, de 11.10.1890, quetrazia em seu bojo a Constituição Provisóriada República, implicitamente já se atribuía aoPoder Judiciário, de forma incidental, o controlede constitucionalidade2 das leis.

Na Constituição de 1934, instituiu-se aRepresentação de Inconstitucionalidade parafins de intervenção – com legitimação exclusivaao Procurador-Geral da República, que nestemúnus exercia a representação judicial daUnião –, o princípio da reserva de plenário –pelo qual os Tribunais, somente por maioriaabsoluta de seus membros, poderiam declarara inconstitucionalidade das leis ou atosnormativos – e a atribuição do Senado Federalpara suspender a aplicação das leis declaradasinconstitucionais pelo Supremo TribunalFederal.

Com a Constituição de 1937, sob a égidedo Estado Novo, o controle de constitucio-nalidade passou por significativa modificação,ao permitir que o Congresso Nacional, por doisterços de seus membros, validasse as normasjulgadas inconstitucionais pelo ExcelsoPretório, a requerimento do Presidente daRepública3.

Seguindo a democrática Constituição de1946, não mais prosperou a faculdade doCongresso Nacional validar norma julgada emafronta à Lei Maior pelo STF, tal qual a votaçãode uma emenda constitucional a posteriori.

Durante este período, sempre fundado naexperiência norte-americana, reconheceu-se aoPresidente da República, bem assim aos demaischefes de executivo, a possibilidade de negar aaplicação de lei, sob o argumento de inconstitu-cionalidade4.

2.1. A Emenda Constitucional nº 16/65:a aferição da constitucionalidade em

abstrato e a recusa à aplicação de lei peloChefe do Executivo. Antecedentes

Promulgada a Emenda Constitucional nº16, de 26 de novembro de 1965, que entre nóscriou o controle em abstrato da constitucio-nalidade das leis e atos normativos federais eestaduais5, em face da Carta Magna, aquelepoder-dever do Chefe do Executivo passou asofrer objeções, registradas em votos vencidosno v. Supremo Tribunal Federal, tendoprevalecido, então, o entendimento de quepermanecia o Executivo autorizado a negar aaplicação de lei por inconstitucionalidade.

Ainda nesse sentido, era a posição firmadano eg. Tribunal de Justiça de São Paulo,conforme se dessume da ementa proferida emsede de mandado de segurança: “Ao executara lei, cumpre ao Executivo verificar a suaconstitucionalidade. Isso porque lei incons-titucional é nula”6.

Ultrapassada a Constituição de 1967 e a suaEmenda nº 1, de 1969, sem grandes inovaçõesneste campo7, veio a Carta de 1988 a conferirampla legitimação à provocação do Supremo

2 VELLOSO, Carlos Mário da Silva. Temas deDireito Público. Belo Horizonte : Del Rey, 1993. p.131: O controle da constitucionalidade das leis naConstituição Brasileira de 1988.

3 ALVES, José Carlos Moreira. Garantias docidadão na justiça. São Paulo : Saraiva, 1993. p. 3:A evolução do controle da constitucionalidade noBrasil.

4 Registra Mauro Cappelletti a existência, naItália, de controle político da constitucionalidade dasleis pelo Presidente da República que, conquantotenha o dever de promulgar as leis aprovadas peloParlamento, pode, “quando o julgue oportuno

suspender esta promulgação, pedindo às Câmaras,com mensagem motivada, que submetam o textolegislativo a uma nova deliberação”. Uma veznovamente aprovada a proposição de lei, ficaria oPresidente obrigado a promulgá-la. Nada obstante,destaca o apontado mestre, valorosa doutrinasustenta “que, se o texto legislativo é julgadoinconstitucional pelo Presidente, ele não estáobrigado a promulgá-lo, ao contrário, está obrigadoa recusar-lhe a promulgação”. (O controle judicialde constitucionalidade das leis no Direito Compa-rado. Tradução de Aroldo Plínio Gonçalves. 2. ed.Porto Alegre : Fabris, 1992. p. 31).

5 Não havia a fiscalização da constitucionalidadedas leis municipais, em face da CF, senão por viaincidental, facultada à lei estabelecer a fiscalizaçãoem abstrato para fins de resolução de antinomiascom a Constituição Estadual, perante os Tribunaisde Justiça.

6 RIO GRANDE DO NORTE. Tribunal deJustiça. Primeira Câmara Civil. MS 156.451.Orlando de Freitas e outros e o Governador doEstado. Relator: Desembargador Martins Ferreira.Revista dos Tribunais, n. 384, p. 91.

7 “A Emenda Constitucional nº 1, de 1969,admitiu o controle de constitucionalidade de leimunicipal, a ser feito pelos Tribunais de Justiçaperante os princípios sensíveis indicados nasConstituições estaduais, para fins de intervenção doEstado no Município”, cf. José Carlos Moreira Alves(op. cit., p. 6).

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Tribunal Federal, para fins de controle deconstitucionalidade em abstrato, mediante açãodireta, Adin8.

3. A ampliação da legitimação para a Adinna Carta de 1988 e as repercussões

sobre o tema. DoutrinaA despeito da ampla legitimação para a

propositura de ações diretas de inconstitu-cionalidade, conferida pela Carta de 1988,valorosa doutrina capitaneada por RonaldoPoletti continua a reconhecer ao Chefe doExecutivo a prerrogativa de negar aplicação aleis, por inconstitucionalidade.

Aduz o eminente Jurista que:“Todos os Poderes da República são

guardas da Constituição. O zelo pelaintangibilidade do regime não constituiprivilégio ou exclusividade do PoderJudiciário, ele apenas diz a últimapalavra sobre a constitucionalidade dasleis9” .

Afirma, com apoio em Miguel Reale, ademais,que o Executivo

“Não somente pode (...) recusarcumprimento à disposição emanada doLegislativo, mas evidentemente incons-titucional, como é de seu dever zelar paraque não tenha eficácia na órbita adminis-trativa”10.

Ainda no sentido de suas palavras, cita escóliosdos eminentes Adroaldo Mesquita da Costa,Themístocles Brandão Cavalcanti, MirandaLima, Vicente Ráo e Frederico Marques.

Clèmerson Merlin Clève11, na mesma linhade pensar de Ronaldo Poletti, e com espequeno art. 23, I, da atual CF, assevera caber a todosos Poderes da República a guarda da Consti-tuição, razão por que se afigura legítima anegativa à aplicação de lei pelo Executivo, aoargumento de inconstitucionalidade, ressalvada

uma possível aferição de constitucionalidadedaquela lei pelo v. STF, hipótese em que sesujeitaria o Chefe do Executivo ao impeachment.

A firmeza dos argumentos dos apontadosmestres, muitos dos quais apoiados em decisõesdo Supremo Tribunal Federal, sem dúvida,confirmam a autoridade intelectual dos seusdefensores. Entretanto, entendo que a razão seencontra com os vencidos na Excelsa Corte, jásob a inovação da Emenda Constitucional nº16/65.

4. A impossibilidade do Chefe do Executivonegar aplicação à lei. O controle de

constitucionalidade e os limites de seuexercício pelos Poderes

O Ministro Victor Nunes, em voto12 profe-rido no Excelso Pretório, bem analisou aquestão, nos termos seguintes:

“Realmente, a ampla representaçãode inconstitucionalidade, que o nossodireito constitucional agora abriga, põea questão sob uma nova luz, que me levaa não insistir nos votos proferidosanteriormente (...).

Teremos, (...), um mecanismo coorde-nado e harmônico, no que respeita àinconstitucionalidade das leis. O Presi-dente da República manifestará o seuentendimento através do veto e, se estefor rejeitado, poderá reiterá-lo através derepresentação de inconstitucionalidade,a ser formulada pelo Procurador-Geral,titular de sua imediata confiança13. OCongresso, por sua vez, dará o seupronunciamento, primeiro, quando votaro projeto e, depois, quando tiver deapreciar o veto. Finalmente, o Judiciário,guarda do equilíbrio dos poderes,solucionará a controvérsia, pela voz doSupremo Tribunal Federal, ao julgar arepresentação.

Se é conclusiva, nessa matéria, adecisão do Supremo Tribunal, o lógico éque essa decisão seja provocada antes dese descumprir a lei. Anteriormente àEmenda Constitucional nº 16/65, não

8 Com a edição da Emenda Constitucional nº 3,de 17 mar. 1993, foi introduzido no sistema dafiscalização concentrada da constitucionalidade dasnormas, a ação declaratória de constitucionalidadede lei ou ato normativo federal, com legitimaçãorestrita ao Presidente da República, à Mesa doSenado Federal, à Mesa da Câmara dos Deputadose ao Procurador-Geral da República.

9 Controle de constitucionalidade das leis. 2.ed. Rio de Janeiro : Forense, 1995. p. 132 e ss.

10 Op. cit., p. 135.11 A fiscalização abstrata de constitucionalidade

no Direito brasileiro. São Paulo : Revista dosTribunais, 1995. p. 166.

12 DISTRITO FEDERAL. Tribunal Pleno. MS15.886. RTJ, n. 41, p. 669.

13 Nota do autor: a este tempo, a Procuradoria-Geral da República acumulava as funções minis-teriais típicas e a representação judicial da União,esta confiada pela Constituição de 1988 à Advocacia-Geral da União (CF, art. 131, LC nº 73/93 e Lei nº9.028/95).

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podíamos chegar a essa conclusão porvia interpretativa, porque não havia ummeio processual singelo e rápido queensejasse o julgamento prévio do SupremoTribunal. Mas esse obstáculo estáarredado, porque o meio processual foiagora instituído no próprio texto daConstituição”.

A seguir, o eminente Ministro utiliza-se denovo forte argumento:

“Essa interpretação, aliás, dá novovigor à presunção de constitucionalidadedas leis, que já fora reforçada pelo art.20014 da Constituição, que remonta àConstituição de 1934, e pelo qual osTribunais só podem declarar a inconstitu-cionalidade pelo voto da maioria de seusjuízes”.

De outra parte, como bem disse o entãoMinistro Evandro Lins no mesmo julgamento:

“o não cumprimento da lei15 podeconstituir crime de responsabilidade, deacordo com a Lei nº 1.079. Ora, não étarefa do Presidente da República, nematividade sua, nem atribuição sua julgarda constitucionalidade das leis”16.

Registre-se, no esteio deste entendimento,que o atual art. 85, da Carta Magna, elencaentre os crimes de responsabilidade doPresidente da República os atos que atentemcontra “o cumprimento das leis e das decisõesjudiciais”.

A meu pensar, tais argumentos já seriamsuficientes para recusar-se ao Chefe do PoderExecutivo a prerrogativa de negar aplicação aleis que entendesse inconstitucionais.

Nada obstante, com o advento da Consti-tuição Federal de 1988, que reconheceuinclusive aos Governadores de Estado – masnão apenas ao Presidente da República17 – alegitimação para a propositura de ação diretade inconstitucionalidade, observada a temáticada lei impugnada, parece-me incompreensívelpermitir-se ao Chefe do Executivo18 lançar mão

de verdadeira autotutela do Direito Constitu-cional.

Demais disso, há muito o RegimentoInterno do Supremo Tribunal Federal prevê apossibilidade de concessão de medida cautelarem ação direta de inconstitucionalidade19, o queafasta a adequação-necessidade do simplesrepúdio pelo Chefe do Executivo ao cumpri-mento de lei20.

Não se diga ser óbice a tal entendimento aassertiva de que “a todos os Poderes compete aguarda da Constituição”.

Ora, é inequívoco que aos Poderes Públicoscompete o dever de zelar pela Constituição,porém dentro de seus limites. Assim, aoSupremo Tribunal Federal, guardião daConstituição, v.g., não será permitido declarara inconstitucionalidade de lei sem provocação.O Poder Legislativo exercerá o controlepreventivo da constitucionalidade em suascomissões e mesmo em deliberação plenáriaquando da apreciação de projetos de lei. Damesma forma, poderá o Congresso Nacional“zelar pela preservação de sua competêncialegislativa em face da atribuição normativa dosoutros Poderes”21 – o que me afigura singelaforma de controle de constitucionalidade dosatos normativos, a posteriori, pelo Legislativo.O Poder Executivo, por sua vez, exercerá afiscalização de constitucionalidade preventivapor meio do veto22.

Assim, não prospera o argumento de que oPresidente da República, o Governador doEstado ou mesmo o Prefeito podem recusar aaplicação de lei por inconstitucionalidade, sob

14 Nota do autor: correspondente ao art. 97 daatual Constituição da República, que mantém oprincípio da reserva de plenário.

15 Nota do autor: pelo chefe do Executivo.16 Nesse sentido, confira-se o Trabalho “Inconsti-

tucionalidade de lei : Poder Executivo e repúdio delei sob a alegação de inconstitucionalidade”, deAlexandre Camanho de Assis, RDP, n. 91, p. 117.

17 Entre outros legitimados no art. 103, da CRFB.18 No que concerne aos Prefeitos, seria absurdo

facultar-lhes a prerrogativa de repúdio a uma leifederal não declarada inconstitucional pelo PoderJudiciário.

19 Adverte Ronaldo Poletti que possibilidade deconcessão de medida cautelar em Adin “decorre dopróprio exercício” da jurisdição do STF (op. cit., p.94). Clèmerson Merlin Clève, a seu turno, acrescentaestarem superadas todas as controvérsias acerca dapermissibilidade à concessão de liminares em açãodireta, desde o advento da Emenda Constitucionalnº 7, de 13 de abril de 1977 (op. cit., p. 159).

20 Gilmar Ferreira Mendes, na excelenteJurisdição Constitucional (São Paulo : Saraiva,1996. p. 133), neste exato sentido, afirma: “Se oPresidente da República – ou, eventualmente, oGovernador do Estado – está legitimado a propor aação direta de inconstitucionalidade perante oSupremo Tribunal Federal, inclusive com pedido demedida cautelar, não se afigura legítimo que deixede utilizar essa faculdade ordinária para valer-se derecurso excepcional, somente concebido e tolerado,à época, pela impossibilidade de um desate imediatoe escorreito da controvérsia”.

21 CRFB, art. 48, XI.22 CRFB, art. 84, V.

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a justificativa de que esta é nula, ou melhor,inexistente, simplesmente por não lhe tocar aaferição de sua validade após a sanção (ou veto,rejeitado pelo Poder Legislativo)23.

Todavia, aferida previamente a inconsti-tucionalidade de lei na via de controleincidental24 pelo Supremo Tribunal Federal25 –ou pelo órgão judiciário competente para afiscalização em abstrato da mesma norma –,ficam o Presidente, os Governadores e osPrefeitos autorizados a negar aplicação à ditalei, por mera extensão dos efeitos da coisajulgada.

23 Acrescente-se, ainda, que a experiência norte-americana em conferir ao Chefe do Executivoprerrogativa desta natureza não se afigura comoexemplo a ser seguido, por não contarem os EstadosUnidos com os instrumentos aqui existentes.

24 Nos casos em que a inconstitucionalidade édeclarada por via direta, os efeitos da decisão, porsi, já excluem a possibilidade de aplicação da normapelo Chefe do Executivo.

25 Dispensada, na hipótese, a suspensão da leipelo Senado da República.

5. ConclusãoEm vista dessas razões, tendo-se em

principal conta a evolução dos instrumentos docontrole da constitucionalidade das leis e atosnormativos, acreditamos deva ficar superado oentendimento até então majoritário no v.Supremo Tribunal Federal, negando-se, por viade conseqüência, ao Chefe do Executivo aprerrogativa de repúdio à lei, por inconsti-tucionalidade, ressalvada a existência deanterior decisão nesse sentido, editada peloExcelso Pretório ou pelo órgão judiciáriocompetente para a sua fiscalização em abstrato.

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1. IntroduçãoEste trabalho se presta a uma abordagem

preliminar da ação monitória, a rigor, proce-dimento monitório, que por meio da Lei nº9.079, de 14 de julho de 1995, publicada noDiário Oficial do mesmo ano, foi introduzidona nossa legislação, se integrando ao Livro IV,Título I, que trata dos procedimentos especiaisde jurisdição contenciosa, instrumento proces-sual de larga utilização na Europa, especial-mente na Alemanha e Itália.

Conquanto não seja o objetivo deste trabalhoexaminar com profundidade todos os aspectose polêmicas que envolvem este novo procedi-mento, como, por exemplo, a sua naturezajurídica, tentaremos, dentro do possível,demonstrar seus principais posicionamentosdoutrinários sem perdermos de vista, talvez, oúnico consenso acerca da quaestio, qual seja,que o objetivo do legislador foi, indubita-velmente, dotar a nossa legislação de mais ummeio importante para busca da tão almejadaefetividade processual.

Assim, em que pese ser passível deavaliações diversas, se a intenção do legislador,na prática, efetivar-se-á, se este poderia ou nãoser mais ousado na recente reforma, não há, anosso juízo, como deixar de reconhecer, não sóem relação ao novel procedimento monitório –vide a tutela antecipatória, 273 do CPC –, comoem relação aos demais institutos, a preocupação

Do procedimento monitório

ORLANDO VENÂNCIO DOS SANTOS FILHO

Orlando Venâncio dos Santos Filho é Professorde Processo Civil da Unisinos/RS e Advogado.

SUMÁRIO

1. Introdução. 2. Conceito. 3. Natureza jurídica.4. Objeto e admissibilidade. 5. Do mandado inicial.6. Acatamento do mandado monitório. 7. Dosembargos monitórios. 8. Da execução provisória.9. Conclusão.

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de, atendendo ao clamor social, dotar oscidadãos de instrumentos processuais quepossibilitem uma justiça mais célere, sinto-nizada com uma sociedade em que o cotidianoda vida moderna torna o fator tempo elementode importância crucial.

Nesse sentido o posicionamento de um dosarquitetos da reforma, Ministro Sálvio deFigueiredo Teixeira, membro da comissãoelaboradora dos diversos anteprojetos dereforma do Código de Processo Civil, posterior-mente, convertidos em lei, para quem, somenteprocedimentos rápidos e eficazes têm o condãode realizar o verdadeiro escopo do processo.Daí a imprescindibilidade de um novo processo:ágil, seguro e moderno, sem as amarrasfetichistas do passado e do presente, apto aservir de instrumento à realização da justiça, àdefesa da cidadania, a viabilizar a convivênciahumana e a própria arte de viver.

Destarte, cabe aos operadores do Direito odever de aperfeiçoamento dos diversos e novosinstrumentos disponibilizados pela reforma,entre eles, a ação monitória, sem jamais olvidarque uma prestação jurisdicional tardia não éjustiça, é sim, a mais profunda injustiça que secomete contra a cidadania e o próprio Estadode direito, comprometendo a própria demo-cracia.

2. ConceitoSegundo nosso mais famoso filólogo,

Aurélio Buarque de Holanda, a palavramonitória significa advertência, repreensão,admoestação.

No Direito, o seu significado não é muitodiferente, ao que tudo indica, tendo origem naexpressão latina, como observa Plácido e Silva:do latim monitio, de monere (advertir, avisar),na significação jurídica, e em uso antigo, era oaviso ou o convite para vir depor a respeito defatos contidos na monitória. A monitória,assim, era a carta de aviso ou a intimação paradepor. Monição, na terminologia do DireitoCanônico, é a advertência feita pela autoridadeeclesiástica a uma pessoa, para que cumpracerto dever ou não pratique um ato, a fim deevitar a sanção ou a penalidade a que estásujeita, pela omissão ou ação indicadas.

A rigor, a nossa prática processual jácontemplou procedimento semelhante, qualseja, a ação de assinação de dez dias, por forçadas Ordenações Filipinas, título 25 do livro IIIe pela Consolidação das Leis do Processo Civil,

arts. 719 e seguintes, e, outrossim, regulamento737, que continha procedimento monitório,adotado na maioria dos códigos estaduais (sãoexemplos os códigos de São Paulo e Bahia),eliminado, entretanto, pelo Código de ProcessoCivil de 1939. Razão bastante, segundo algunsdoutos, para ver na Lei nº 9.079/95, não algode novo na nossa prática processual, mas, oretorno de instrumento processual outrorautilizado, só que agora, com nova roupagem.

Entretanto, embora não tenha contempladoa ação de assinação de dez dias, não podemosolvidar que o código de 1939 regulava as açõescominatórias, que como assinala HumbertoTheodoro Júnior, se prestavam a exigirobrigações de fazer, adotando um procedimentopróximo ao monitório europeu, porquanto omandado inicial não era citação para que o réuse defendesse, contendo mandamento parao cumprimento da prestação de fato, no seuart. 303.

De qualquer sorte, a exemplo do proce-dimento monitório, as ações cominatórias nãoforam contempladas no CPC de 1973.

Pois bem, agora com a Lei nº 9.079/95,voltamos a ter um procedimento de naturezainjuncional, que se bem utilizado pelosoperadores do Direito, será mais um instru-mento a colaborar para uma prestação jurisdi-cional mais célere.

3. Natureza jurídicaNa precisa identificação da natureza

jurídica da ação monitória, residem as maiorespolêmicas doutrinárias acerca do instituto.

Segundo Edilton Meireles, três correntes seapresentam:1ª) – com fundamento em classifi-cação de Chiovenda e Doutrina de Carnelutti,propugna ser mista a sua natureza, porquanto,ação de cognição com força executiva; noBrasil, adotam este posicionamento CândidoDinamarco e Humberto Theodoro Júnior, entreoutros; 2ª) – advoga ter pura natureza deprocesso de cognição a ação monitória; assimpensam Sérgio Bermudes, Carreira Alvim,Orlando de Assis Corrêa, entre outros; 3ª) – aação monitória tem natureza executiva; posiçãodefendida por Vicente Greco Filho, ErnaniFidélis dos Santos e o próprio Edilton Meireles,que o faz, de forma convincente.

Vê-se, pois, que a quaestio é bastantepolêmica, estando a sua natureza intrinsi-camente ligada a sua finalidade; ou seja, paraos que entendem ser procedimento misto e decognição, a sua finalidade é permitir a busca

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mais célere de um título executivo, diversa-mente dos que defendem sua natureza exe-cutiva.

Para o insigne processualista HumbertoTheodoro Júnior, o juiz exerce no procedimentomonitório uma cognição sumária, transfor-mando-se, só eventualmente, o procedimentoinjuncional em contencioso acerca da relaçãoobrigacional em juízo deduzida, sendo a suafinalidade dá vida com maior celeridade do quese possa conseguir no procedimento ordinário,a um título executivo.

Conforme se verifica, o mestre mineirosegue a lição de Carnelutti, para quem oprocedimento monitório tem uma estruturaparticular em virtude da qual, se aquele contraquem se propõe a pretensão não embarga, ojuiz não procede a uma cognição mais quesumária, e em virtude dela, emite provimentoque serve de título executivo à pretensão e, dessemodo, autoriza, em sua tutela, a execuçãoforçada.

Merece considerações, por ser um posicio-namento diametralmente oposto e ousado, adefesa da natureza executiva da ação monitória.

O Magistrado Edilton Meireles, ao defendera natureza executiva da ação monitória, observaque, em não havendo embargos, a constituiçãodo mandado injuntivo em título executivojudicial não é aspecto a ser considerado paradefinição da natureza da ação monitória. Issoporque a decisão do juiz que ordena a expediçãodo mandado injuntivo não põe termo aoprocesso (art. 162, § 2º, CPC), não podendo,assim, ser considerada uma sentença. E seassim fosse, estaríamos diante de uma leiplenamente inconstitucional, pois se estaria emflagrante desrespeito aos princípios docontraditório e da ampla defesa. O devedor,consoante essa tese, seria condenado sem sequerter sido chamado a juízo.

Observa, ainda, que essa tese seria obastante para se adotar o posicionamento,segundo o qual, a ação monitória tem naturezaexecutiva. Rebatendo eventual argumentocontrário, sob alegação de que o juiz namonitória exerce cognição, decidindo conflitode interesse, advoga que, mesmo timidamente,na execução há cognição, trazendo, entreoutras, a lição de Liebman, lecionando quevários casos podem ocorrer, que dentro daprópria execução surjam os assim chamadosincidentes, isto é, questões duvidosas tãoimportantes que, para resolvê-las, se tornenecessário recorrer aos meios e garantias do

processo de cognição: abre-se então, verdadeiroprocesso de cognição, em que se observam erespeitam regras e princípios próprios dessaespécie de processo.

Advoga o douto magistrado que afora ostítulos executivos judiciais, os demais o são,por conveniência política do legislador,exemplificando que um documento particularassinado pelo devedor não é considerado títuloexecutivo; entretanto, se confirmado por duastestemunhas, terá força executiva. Igualmente,se for levado para registro público, assinandoo devedor o seu termo, o documento adquiriráforça executiva. Sustenta, então, que o órgãoque produz o documento público, desde queassinado pelo devedor, exerce uma função deacertamento.

Em outras palavras, o notário irá dar aodocumento levado a registro público a certezada obrigação assumida pelo devedor.

Conclui, então, que a prova escrita,submetida ao crivo do juiz, pode converter-seem título executivo, exercendo este, no caso,uma primeira função, meramente adminis-trativa equiparada à do escrivão do cartório deregistro de títulos e documentos, e posterior-mente, uma segunda função, esta sim, jurisdi-cional, que consiste em apreciar o pedido desua execução.

Enfim, o título monitório, representado naprova escrita fornecida pelo autor, nãoassumiria caráter executivo por força de lei (opelegis), como ocorre com aqueles elencados noart. 585 do CPC, mas, sim, ope iudicis, isto é,por força da deliberação do juiz. A este, pois, alei reservou a atribuição de dar ou não caráterde certeza à obrigação negocial alegada peloautor. Lembra ainda que essa conclusão não énovidade no nosso ordenamento jurídico. Bastalembrar, para tanto, que os créditos dointérprete, perito ou tradutor, quando aprovadospor decisão judicial, constituem-se em títulosexecutivos extrajudiciais (art. 555, V, do CPC).

Assim, vaticina, ao lado dos títulosexecutivos já conhecidos e enumerados no art.584 do CPC, e dos extrajudiciais definidos noart. 585 do mesmo Códex e, em diversas outrasleis esparsas, agora temos os títulos executivosmonitórios, formados a partir da “prova escrita”referida no art. 1.102a do CPC.

Entretanto, os títulos monitórios só serevestiriam de caráter executivo a partir dadeliberação do juiz, quando do exame da petiçãoinicial da ação monitória.

Em que pese a veemência com que édefendida a tese da natureza executiva da ação

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monitória, que, indubitavelmente, merecereflexões, o certo é que a maioria da doutrina,capitaneada por Chiovenda e Carnelutti, adotaa tese de que a ação monitória tem natureza decognição sumária, com força executiva, poisnão possui a liquidez, certeza e exigibilidadeinerente aos títulos executivos.

Verifica-se, portanto, que a polêmica acercada natureza da ação monitória está apenascomeçando entre nós, reservando aos opera-dores do Direito, grandes debates.

4. Objeto e admissibilidadeO objeto da ação monitória resta contido,

na sua essência, no seu art. 1.102a: A açãomonitória compete a quem pretender, com baseem prova escrita sem eficácia de títuloexecutivo, pagamento de soma em dinheiro,entrega de coisa fungível ou de determinadobem móvel.

Observa-se, prima facie, que o legisladorpátrio, por razões perfeitamente compre-ensíveis, em face da nossa realidade cultural eprática comercial, optou, a exemplo dalegislação processual italiana, pelo proce-dimento monitório documental, ao contrário daAlemanha e Áustria que admitem, também, oprocedimento monitório puro, onde simplesalegações unilaterais do credor, sem neces-sidade de quaisquer provas, motivam omandado judicial de pagamento que, entre-tanto, cai por terra, em virtude da simplesoposição do devedor desnecessitada demotivação, levando à extinção da açãomonitória pura, restando ao pretenso credor oprocesso de cognição para buscar a suapretensão.

Impende esclarecer, ainda, que no processocivil austríaco o procedimento monitório purose presta, tão-somente, para créditos de pequenovalor, caso em que é afastada a exigência deprova documental.

Na nossa legislação, consoante explicitado,é necessário que o credor de obrigação possuaprova escrita de seu crédito, verdadeiracondição de admissibilidade do nosso proce-dimento monitório.

Questão relevantíssima, portanto, mor-mente, após a nova redação do art. 585 do CPC,que ampliando o elenco dos títulos executivosextrajudiciais, restringe, embora não substan-cialmente, a ponto de enfraquecer a aplicaçãodo procedimento monitório. José Rogério Cruze Tucci chega a afirmar que o dispositivo oraem comento acabou esvaziando a eventual

importância da ação monitória, na medida emque se propõe a tutelar obrigações fundadas emprova material diversa do título executivo.

É pois de fundamental importância naimpossibilidade de definir o que seja provaescrita, pelo menos, traçar seus limites eparâmetros, pena de, eventualmente, seingressar, com monitória com prova inapta,embora escrita, ou calcada em título executivoextrajudicial, o que se configuraria, para alguns,em pedido juridicamente impossível.

Assim, como o legislador esquivou-se dessatarefa árdua de balisar o que seja prova escrita,esse papel caberá ao intérprete da norma.

Parece-nos fora de dúvida que documentodo próprio punho do devedor, escrito porterceiro e por si chancelado diretamente, oumediante procuração, onde este reconheceobrigação de pagar dívida líquida ou entregarcoisa fungível ou determinado bem móvel, étítulo hábil a aparelhar a ação monitória.

Entretanto, quando partimos para osdocumentos formados unilateralmente e/ouemitidos mediante processos mecânicos emagnéticos ou trasmitidos por meios informa-tizados, a quaestio se torna mais complexa.

Carreira Alvim define prova escrita, comotodo escrito que, emanado da pessoa contraquem se faz o pedido, ou de quem a represente,o torna verossímil ou suficientemente provávele possível. Se no entanto, essa convicçãorelativamente ao escrito depende de provasubsidiária ou complementar, que o complete,consistente em prova oral (testemunha, porexemplo) – que o procedimento monitório nãoadmite na primeira fase – deverá o credorbuscar a tutela para o seu eventual direito emsede ordinária.

Se o conceito do insigne jurista não éperfeito, inegavelmente, ao afastar a possibi-lidade do autor de buscar a convicção relativaao seu documento escrito em prova subsidiária,estabeleceu um parâmetro extremamentevalioso a ser observado; indubitável instru-mento para que o intérprete, inclusive,atendendo aos avanços tecnológicos, por meioda hermenêutica jurídica, adapte o texto legalàs novas realidades que se apresentam.

Assim, por exemplo, quando a sociedadenão mais se sentir insegura, quanto à utilizaçãoda telemática, e sejam superados aspectosrelativos à segurança das comunicações etransações on-line, será possível, em breve, tercomo documento apto a ensejar ação monitória,e-mail do devedor, remetido à caixa postal

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eletrônica do credor, comprobatório de relaçãonegocial, no qual reconhece dívida líquida eexigível.

Ainda quanto à admissibilidade da açãomonitória, há que se observar alguns requisitos.Se o credor busca pagamento de soma emdinheiro, o valor deve ser líquido, inexistindoespaço para discussão do quantus debeatur navia injuncional.

Em se tratando de coisa fungível, art. 50 doCódigo Civil, qual seja, aquele móvel que podeser substituído por outro da mesma espécie,qualidade e quantidade, por ser típico direitoobrigacional, se adequa, perfeitamente, aoprocedimento monitório.

Quanto à entrega de bem móvel, merecemenção a lição de Satta, observando que, nocaso, a tutela recai sobre a relação obrigacional,e não sobre a propriedade, não passível deproteção por decreto.

Conforme Sérgio Bermudes, apud EdiltonMeireles, devem ser incluídos entre os bensmóveis, os semoventes, consoante previsto noart. 47 do Código Civil, bem como direitos reaissobre objetos móveis.

Quanto à inicial, observam-se os arts. 282e seguintes do CPC, no que couber, particu-larmente o art. 283, determinando que a petiçãoinicial será instruída com os documentosindispensáveis à propositura da ação.

No caso, a prova escrita que chancela apretensão do autor (art. 1.102a do CPC),verdadeiro requisito de admissibilidade que,acaso não observado, ocasiona o indeferimentoda petição inicial e extinção do processo,consoante rezam os artigos 284 e 267, I do CPC.

5. Do mandado inicialA inicial apta e que esteja devidamente

instruída com a prova escrita da obrigação,permitirá ao juiz expedir o mandado depagamento ou entrega da coisa no prazo de 15dias (art. 1.102b do CPC).

Por óbvio, o comando judicial deve integraro mandado de citação, situando-se numa faixaintermediária entre o mero despacho e a decisãode uma liminar.

Enfim, com a citação do devedor, angula-riza-se a relação processual, dando início aocontraditório no procedimento monitório.

Quanto à forma de fazer a citação do réu,não há consenso entre os processualistas,entendendo alguns que pode ser feita pelocorreio, atualmente regra legal (arts. 221, I e222), bem como por oficial de justiça. Há,

entretanto, quem defenda a inaplicabilidade doart. 222 no procedimento monitório, porque acitação por mandado é mais adequada aocomando judicial emanado.

Os que defendem ser a ação monitória umaação executiva, por sua vez, advogam a citaçãopelos mesmos meios previstos no processo deexecução, ou seja, por oficial de justiça ou edital.

O posicionamento supra é combatido porErnani Fidélis, para quem o procedimentomonitório não admite citação ficta, edital e horacerta, porque, de alguma forma, para aceitaçãoda formação do título por omissão de defesa,há mister da efetiva manifestação de vontade,que está além dos poderes de atuação docurador... Na impossibilidade, pois, de citaçãodireta ao credor, só resta o processo deconhecimento.

A nosso juízo, pela natureza da ordemjudicial emanada, há que se observar a citaçãopessoal, por oficial de justiça, que melhoratende ao princípio do contraditório, bem comoao próprio cumprimento do comando judicial,porquanto o réu é citado não para integrar alide, mas, efetivamente, para cumprir mandadode pagamento ou entrega de coisa.

Quanto à contagem do prazo para interpo-sição de embargos pelo devedor, parece lógicoque se deverá aplicar analogicamente o incisoI, art. 738 do CPC, ou seja, será de quinze diaso prazo para embargos, contados da junta aosautos do mandado monitório, devidamentecumprido.

6. Acatamento do mandado monitórioCumprindo o devedor o mandado moni-

tório, ficará isento do pagamento de custas ehonorários advocatícios (§ 1º, art. 1102c doCPC).

A nosso ver, o texto legal não deixa dúvidas;a essa isenção, só faz jus o devedor se cumprira obrigação na fase injuntiva, ou seja, dentrodo prazo de quinze dias, contado a partir dajuntada aos autos do mandado de citação epagamento, devidamente, cumprido.

Prima facie, impende observar que o nossoCPC adota o princípio da sucumbência, ondeas despesas processuais cabem ao vencido, pelofato objetivo da derrota, com raras exceções;entretanto, observa-se que esse princípio, noprocedimento monitório, foi no mínimoamainado.

Destarte, questão que já suscita contro-vérsias doutrinárias é saber quem arcará com oônus referente às taxas judiciárias, honorários

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advocatícios do patrono do autor e demaiscustas processuais.

No que respeita às taxas judiciárias,despesas de natureza tributária, caso cumpra omandado, fica o devedor isento de recolhê-las;entretanto, é óbvio, não pode o credor arcar comtal obrigação.

Ora, se o próprio Estado deu isençãotributária a quem cabia quitar a obrigaçãotributária, não pode imputar ao credor tal ônus,sob pena de cometer uma ilegalidade.

Nesse caso, se o credor realizou algumadespesa tributária, poderá postular a repetiçãode indébito junto à Fazenda Pública.

Aliás, em se tratando de matéria tributária,não cabe ao legislador federal estabelecerisenção de taxa judiciária instituída pelosEstados (art. 151, III da CF/88), pena deinconstitucionalidade; entretanto, nos feitosenvolvendo Justiça Federal e do Trabalho, talisenção é plenamente constitucional.

Com relação aos honorários advocatícios edemais despesas processuais suportadas pelocredor, conquanto decorra de política legislativaa desobrigação concedida ao devedor, a questãoé passível de discussão, inclusive quanto ao seuaspecto constitucional.

Ora, a lei desobriga o devedor de arcar comtais despesas processuais, acarretando aocredor, que teve sua pretensão reconhecida, oônus do seu pagamento, provocando, indubi-tavelmente, diminuição no seu patrimônio, tão-somente, por ter ingressado em juízo paradefender o seu direito, aliás, reconhecido,previamente, pelo devedor que deu causa àação.

Analisando a quaestio, o processualistaSérgio Bermudes advoga que o credor, ao optarpelo procedimento monitório, ao invés doordinário, onde se ressarciria das despesasprocessuais efetuadas, estará, iniludivelmente,renunciando ao direito de ser ressarcido de tudoquanto despendeu com a propositura dessaação.

Entretanto, se tais despesas foram objeto decontrato, onde o inadimplente se obrigou apagá-las, acaso fossem necessárias à satisfaçãoda obrigação, inexistindo vício de vontade noinstrumento negocial, não há como o devedornão honrá-las, pena de ferimento ao ato jurídicoperfeito – art. 5º, XXXVI da ConstituiçãoFederal.

Impende ressaltar, entretanto, que o maisimportante efeito do acatamento da ordemmonitória, resta evidente, é a extinção do feito.

7. Dos embargos monitóriosO Direito de defesa do réu, em quaisquer

procedimentos judiciais, é consagrado pelosprincípios constitucionais do devido processolegal, do contraditório e da ampla defesa ( art.5º, incisos LIV e LV da CF/88).

Destarte, não poderia ser diferente noprocedimento monitório, no qual ao réu quediscordar do postulado pelo credor, é dado odireito de oferecer embargos monitórios,conforme art. 1.102c, caput, que, aliás, nãorevoga, mas tão-somente suspende a eficáciado mandado monitório. Reza o § 2º do art.1.102c que tais embargos independem de préviasegurança do juízo, sendo processados nospróprios autos, o que contribui à celeridade doprocedimento buscada pelo legislador.

Questão polêmica diz respeito à naturezajurídica dos embargos, entendendo parte dadoutrina se tratar de ação de conhecimentosemelhante aos embargos do devedor; outros,por advogarem ter a ação natureza cognitiva,propugnam serem os embargos monitóriosmera contestação.

Tal polêmica, pela sua magnitude, não seráobjeto de análise deste trabalho; entretanto, anosso juízo, têm os embargos monitóriosnatureza de ação constitutiva negativa.

Em tais embargos, o rito a ser seguido é oordinário (§ 2º do art. 1.102c), podendo amatéria de defesa do devedor ser a mais amplapossível, não havendo, portanto, quaisquerlimitações ao processo de cognição. Estremede dúvidas que a sentença proferida nosembargos, apreciando a pretensão de direitomaterial posta em juízo, é sentença de mérito,alcançando a res judicata , na sua carga deeficácia declaratória, tendo, entretanto, cargade eficácia, predominantemente, constitutiva,negativa ou positiva, conforme seja declaradaa inexistência ou existência do crédito, nessecaso, portando, outrossim, carga condenatória.

Enfim, seu efeito maior será o de tornarcoisa julgada material a pretensão deduzida emjuízo, objeto de sentença de mérito.

8. Da execução provisóriaQuestão de importância crucial para o novo

procedimento monitório é a definição, peladoutrina e jurisprudência, dos efeitos em quedeve ser recebida eventual apelação contrasentença de improcedência dos embargosmonitórios.

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Conquanto o legislador tenha sido omissoao inserir o procedimento monitório no CPCimpende observar, entretanto, que o art. 520do CPC, já preexistia à criação desse proce-dimento.

Destarte, não parece lógico, tampoucosintonizado com o espírito do novo proce-dimento que o legislador pretendeu célere, demodo a possibilitar ao credor a rápida satisfaçãode sua pretensão, conceder à apelação deimprocedência dos embargos, o efeito suspen-sivo.

A nosso juízo, se por esses caminhos trilhara jurisprudência, estar-se-á ferindo de morte onovel procedimento, tornando-o mais uma peçapouco útil no nosso Processo Civil.

Ora, se o legislador criou um procedimentocélere, fundado em título quase executivo, paranão obrigar o credor ao périplo do processo deconhecimento puro, com base na veros-similhança do seu direito, consubstanciada emprova escrita, ao ponto de facultar ao juizexpedição de mandado de pagamento ouentrega de coisa, quando devidamente instruídaa exordial (art. 1102b), seria ilógico, numaanálise sistemática da nossa legislaçãoprocessual, não restringir ao efeito somentedevolutivo eventual apelação do julgamento deimprocedência dos embargos monitórios.

Aliás, nunca é demais lembrar que a minutade projeto para alterar a redação do art. 15 daLei nº 5.474, de 18 de julho de 1968, dispondosobre a duplicata, que instituía procedimentomonitório para duplicatas sem aceite (§ 1º, art.15), estabelecia no seu § 15: Da sentença quejulgar os embargos caberá apelação sem efeitosuspensivo.

Entretanto, com o advento da Lei nº 6.458,de 1.11.77, outorgando à duplicata sem aceiteo caráter de título executivo, restou superado oproblema que o legislador de outrora pretendiasolucionar com as mudanças no art. 15 da Leinº 5.474/68.

De qualquer sorte a quaestio já foi discutidaem nosso Direito, nos parecendo não havercaminho diverso a trilhar, do recebimento, sóno efeito devolutivo, de eventual apelação deembargos julgados improcedentes, exceto emprejuízo da utilização e efetividade do novoprocedimento monitório e, quicá, do próprioProcesso Civil brasileiro, que se está oxige-nando e tomando novos rumos.

Nesse sentido, é imperioso salientar que nasegunda etapa da reforma do CPC, passível deextensão, inclusive, à legislação especial,

conforme noticia o Ministro Sálvio de FigueiredoTeixeira, indo ao encontro da efetividadeprocessual por todos almejada, altera-se aredação do art. 520 do CPC, que passaria a tera seguinte redação:

“Art. 520 – Ressalvadas as causasrelativas ao estado e capacidade daspessoas, e as sujeitas ao duplo grau dejurisdição (art. 475), a apelação terásomente efeito devolutivo, observado odisposto no parágrafo único do art. 558.

Parágrafo único – Poderá o juiz, emdecisão irrecorrível, atribuir à apelaçãotambém efeito suspensivo, nos casos emque, sendo relevante a fundamentação,possa da demora resultar lesão grave ede difícil reparação”.

Portanto, estaremos na contramão doprocesso de evolução do nosso Direito Proces-sual Civil, caso não restrinjamos o recebimentode apelação contra sentença que julgouimprocedentes os embargos monitórios, aoefeito meramente devolutivo, que, a nosso juízo,deve ser a regra, podendo ser excepcionada pelodisposto art. 558 do CPC, aplicável, subsi-diariamente, à apelação, por força do seuparágrafo único, conforme nova redação da Leinº 9.139, de 30 de novembro de 1995.

Ademais, o Código de Processo Civilitaliano, no qual se inspirou nosso proce-dimento monitório, admite, é verdade, emalguns casos – arts. 642 e 648 –, a execuçãoprovisória de sentença fundada no mandado depagamento, quando o crédito se lastreia emdeterminados documentos, ou ainda, havendopresunção de dano irreparável, e desde querequerida pela parte, caso em que é concedidaem decisão irrecorrível.

Destarte, propugnamos pelo recebimento deeventual apelação de embargos julgadosimprocedentes, como regra, no seu efeitodevolutivo e, só excepcionalmente, consoanteart. 558 do CPC, aplicável subsidiariamente àapelação, no efeito suspensivo.

9. ConclusãoEste breve trabalho teve, pois, o objetivo de

contribuir para a discussão e amadurecimentodo novo procedimento monitório, cujo sucessodepende, inegavelmente, do bom e adequadouso que dele fizerem os operadores do Direito,não se olvidando, que não só a introdução desseprocedimento, como toda reforma, teve oobjetivo de tornar o processo mais célere eefetivo.

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Não é demais lembrar que uma sociedade étanto mais democrática e civilizada, quanto ágile célere for a prestação jurisdicional entreguepelo Estado aos seus cidadãos; e mais, que ademora do processo, via de regra, só beneficiaaos poderosos, experts na sua utilização paraprotelar seus acertos com a justiça, porquantodispõem de bons advogados a defender seusinteresses, certos dos benefícios que esseretardamento lhes traz.

Assim, pode a ação monitória ser mais uminstrumento a serviço da composição da lide,mediante rápida prestação jurisdicional,disponibilizado aos cidadãos, desde que, osoperadores do direito tenham claro que justiçatardia, em regra, é injustiça.

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1. O precedenteA Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990,

constitui ponderável avanço na disciplina legaldo problema do menor e do adolescente noBrasil.

Diploma legal de equilíbrio, o Estatuto daCriança e do Adolescente, em percepção globale integrada, articula o filho à família, e esta,por sua vez e circunstância, à sociedade global,concedendo a todas as partes do processofaculdades e responsabilidades, em seguidaevidenciadas.

A Lei nº 8.069/90 concede ao filho o direitode ser criado no ambiente familiar, comliberdade, respeito e dignidade, protegendo,entretando, a família sem condições materiaisde cumprir o seu dever geral, na medida emque o Estado admite suplementar a necessidadeem evidência, por meio da ação pública deatendimento, que enseja programas de assis-tência social.

Se o Estatuto da Criança e do Adolescenteresguarda os interesses do filho e da família,punindo a violação de direitos, cerca asociedade e o Estado de graves mecanismos deproteção, que vão desde a internação, que émedida de privação da liberdade da criança edo adolescente, até a perda ou destituição do

Uma controvérsia jurídica: aremuneração dos conselheiros tutelares

JOSÉ ROSSINI CAMPOS DO COUTO CORRÊA

José Rossini Campos do Couto Corrêa é Bacharelem Direito, Bacharel em Ciências Sociais, Mestreem Sociologia e Doutor em Ciências Sociais, comSeminários Pós-Doutorais em Política Internacionale Comparada, Consultor sênior e Professoruniversitário em Brasília.

“Mas os sonhos sustentam a ousadia deenfrentar a todos os combates e aportar na ilha dautopia”.

Antônio Carlos Osório

SUMÁRIO

1. O precedente. 2. O problema. 3. A solução.

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Revista de Informação Legislativa370

pátrio poder, podendo ser este o caminho paraa colocação do filho em família substituta.

A máxima expectativa do Estatuto daCriança e do Adolescente, de fato, é aaproximação, com eficácia, do legal com osocial, por meio da força de intervenção da Leino centro dos dramas e dos problemas docotidiano comunitário. Daí a fixação legal emtorno da instalação e do funcionamento dosConselho Tutelares.

2. O problemaOs Conselhos Tutelares, segundo a precei-

tuação legal, são órgãos permanentes eautônomos, não-jurisdicionais, aos quais asociedade encarrega, deles exigindo zelo evigilância, de garantir o cumprimento dosdireitos da criança e do adolescente.

A investidura na condição de ConselheiroTutelar é por mandato eletivo de um triênio,permitida uma reeleição, havendo a exigênciaoriginal de requisitos, para que cidadãos locaispossam sufragar quaisquer nomes: reconhecidaidoneidade moral, idade superior a vinte e umanos e residência no município. É admitida aeventual remuneração dos membros eleitos paraos Conselhos Tutelares, uma vez que a funçãoexige dedicação exclusiva. É límpido, nessesentido, o Estatuto da Criança e do Adolescente,no art. 134,

“Parágrafo único - Constatar na leiorçamentária municipal a previsão dosrecursos necessários ao funcionamentodo Conselho Tutelar.”

O Conselho DCA/DF remeteu propostaorçamentária para o exercício de 1996 àSecretária de Governo, provendo os recursosindispensáveis à implantação e instalação dosConselhos Tutelares. Técnicos da Secretaria daFazenda discordam quanto ao valor daremuneração de cada conselheiro tutelar, fixadoem R$ 574.00 – (quinhentos e setenta e quatroreais), em virtude de diverso entendimento doart. 19 da Lei nº 234/92. Preocupado com amatéria, o Presidente do Conselho DCA/DFoficiou nos seguintes termos ao Secretário deAdministração:

“Senhor Secretário,O Conselho dos Direitos da Criança

e do Adolescente do Distrito Federalencaminhou, através da Secretaria deGoverno, a sua proposta orçamentáriapara o exercício de 1996.

Dita proposta prevê os recursosnecessários à implantação dos ConselhosTutelares (um em cada Região Admi-nistrativa).

A Lei nº 234/92, que dispõe sobre osConselhos Tutelares, determina, em seuart. 19, que a remuneração de seusconselheiros corresponderá a 30% (trintapor cento) do Padrão três da ClasseEspecial do Cargo de AdministraçãoPública do Distrito Federal.

Com efeito, o entendimento desteConselho é de que o percentual emreferência incide sobre o total daremuneração e não apenas sobre ovencimento como, informalmente,técnicos da Secretaria da Fazenda têmse posicionado.

Cumpre ressaltar que, prevalecendoesse posicionamento, que ao nosso vercontradiz a inteligência do dispositivoem questão, estar-se-á inviabilizando aimplantação desses Conselhos, namedida em que o valor que o conselheiroperceberá será muito insuficiente frenteàs atribuições que o cargo lhe confere, e,sobretudo, diante do fato que lhe seráexigida dedicação exclusiva”.

Para dirimir a controvérsia, foi solicitadoparecer jurídico à Secretaria de Administração,que não tardou a ser lavrado pela assessoraCNRH/SRH/SEA, Rita de Cássia Barbosa, coma anuência e o acordo do subsecretário deRecursos Humanos, Senhor Jacy BragaRodrigues. Quanto ao mérito, a manifestação éconcordante com a exegese legal já manifestadapelos técnicos da Secretaria da Fazenda esumariada na argumentação jurídica oratranscrita:

“Quanto ao pedido, cabe esclarecerque o pagamento da remuneração dosConselhos Tutelares foi autorizado deacordo com o que determina o referidoart. 19 da Lei nº 234/92, abaixo trans-crito:

Art.19 - O Conselheiro perceberáremuneração equivalente a 30% (trintapor cento) do Padrão 03 (três) da ClasseEspecial do Cargo de Analista deAdministração Pública do DistritoFederal, salvo se sob licença”.

Conforme se infere do artigo supra-transcrito, o percentual de 30% (trinta porcento) deverá incidir sobre o valor correspon-dente ao Padrão 03 (três) da classe especial do

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cargo de Analista de Administração Pública doDistrito Federal que equivale a R$ 491,01(quatrocentos e noventa e um reais e umcentavo); dessa forma, a remuneração dosconselheiros deverá ser de R$148,20 (cento equarenta e oito reais e vinte centavos).

Segundo o disposto no art. 41 da Lei nº8.112, de 11 de dezembro de 1990, “remune-ração é o vencimento do cargo efetivo, acrescidodas vantagens pecuniárias permanentesestabelecidas em lei”.

Ressalte, não se verifica na lei em comentoque o pagamento devido aos conselheirostutelares será sobre a remuneração do analistade administração que se encontre no PadrãoIII. Mesmo porque, nessa remuneração, estãoinseridas vantagens pessoais (de acordo com oart. 41 da Lei nº 8.112/90), as quais sãovariáveis, impossibilitando um cálculo exato dopagamento devido. Não foi essa intenção dolegislador.

Embora seja ínfima a remuneração devidaaos conselheiros tutelares, a AdministraçãoPública só pode agir dentro dos limitespermitidos em lei, em consonância com osprincípios da legalidade e da moralidade no art.37 da Carta Magna.

Esta é a natureza do problema a serresolvido.

3. A soluçãoComo o direito repousa no princípio do

contraditório, há legitimidade, venia concessa,na discordância jurídica ora expressa, com oentendimento manifestado pelas Secretarias daFazenda e da Administração, quanto à inteli-gência do art. 19 da Lei nº 234/92.

Leciona a melhor técnica hermenêutica nãohaver na lei vontade do legislador a ser apurada.Superada pelo processo dinâmico do Direito, arecorrência à intenção do legislador, queinspirou a parecerista da Secretaria daAdministração, foi substituída por compreensãosuperior, de que à interpretação compete adeterminação objetiva (e não subjetiva) davontade do Estado (e não do legislador). É oprincípio do objeto da interpretação, trazido àcolação por Francesco Ferrara, no Tratatto deDiritto Civile Italiano:

“a) a finalidade da interpretação é deter-minar o sentido da lei, a visac potestaslegis. A lei é expressão da vontade doEstado, e tal vontade persiste de modoautônomo, destaca do complexo dos

pensamentos e das tendências queanimaram as pessoas que contribuírampara a sua emanação;

b) o intérprete deve apurar o conteúdoda vontade que alcançou expressão emforma constitucional, e não já as voliçõesalhures manifestadas ou que não chega-ram a sair do campo intencional. Poisque a lei não é o que o legislador quis ouquis exprimir, mas tão-somente aquiloque ele exprimiu em forma de lei;

c) o ponto diretivo nesta indagaçãoé, por conseqüência, que o intérpretedeve buscar não aquilo que o legisladorquis, mas aquilo que na lei apareceobjetivamente querido: a mens legis e nãoa mens legislatoris.”

Enfim: voluntas legis, non legislatonis.Onde está a mens legis, a voluntas legis do

art. 19 da Lei nº 234/92?A vontade do Estado, fixada na Lei nº

8.069/90, é a de viabilizar (e não inviabilizar)os Conselhos Tutelares. Eis a razão por querevestiu de dignidade a relevante função deconselheiro tutelar.

Obediente à lei federal, a norma distritalpara viabilizar os Conselhos Tutelares estatuiua questão da remuneração, que não está fixadaapenas no caput do art.19 da Lei nº 234/92.Trata-se da exigência de exegese orgânica, enão atomizada, do dispositivo legal. Orgânicoé o todo. Atomizada é a parte.

Eis o todo:“Art. 19 - O conselheiro perceberá

remuneração equivalente a 30% (trintapor cento) do Padrão 3 (três) da ClasseEspecial do Cargo de Analista deAdministração Pública do DistritoFederal, salvo se sob licença.

§ 1º – Quando em substituição, oconselheiro suplente fará jus ao subsídiodo titular.

§ 2º – Quando escolhido para oConselho Tutelar o serviço do DistritoFederal, de suas fundações, autarquiasou empresas deverá optar entre o seuvencimento e a remuneração do con-selheiro, ficando vedada a acumu-lação”.

Será que é mens legis, voluntas legis, que,nos termos do art. 19, § 2º, da Lei nº 234/92,servidor em situação apenas mediana – paraesquecer o fim de carreira – de fundações,autarquias e empresas, em detrimento dos seus

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Revista de Informação Legislativa372

vencimentos, possam optar pela remu-neração de conselheiro tutelar, de exata-mente R$ 148,20 (cento e quarenta e oitoreais e vinte centavos)?

A vontade do Estado, expressa em Lei, éexatamente o contrário. No intuito de viabilizaros Conselhos Tutelares, estabeleceu, estranhoa todo e qualquer absurdo e em atitudecompatível com os princípios constitucionaismais rigorosos, 30% (trinta por cento) do totalda remuneração do Padrão 3 (três) da classeespecial do cargo de Analista de AdministraçãoPública do Distrito Federal, como a remu-

neração devida aos Conselheiros Tutelares, cujafunção constitui serviço público relevante.

Percebeu com muita propriedade o Presidentedo Conselho DCA/DF, o Senhor ArchimedesMachado Cunha, a vontade real do Estado:viabilizar os Conselhos Tutelares e colocá-losem funcionamento com o mínimo eticamenteadmissível para o efetivo exercício da funçãode Conselheiro Tutelar – a remuneração fixadaem Lei, de R$ 574,00 (quinhentos e setenta equatro reais), quando mais não fosse, peloensinamento da heurística legal de que, nadúvida, deve prevalecer o efeito mais benéfico,que outro não é senão este.

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1. IntroduçãoNa forma do art. 22, da Lei Complementar

nº 64/90,“Qualquer partido político, coligação,

candidato ou Ministério Público Eleitoralpoderá representar à Justiça Eleitoral,diretamente ao Corregedor-Geral ouRegional, relatando fatos e indicandoprovas, indícios e circunstâncias e pedirabertura de investigação judicial paraapurar uso indevido, desvio ou abuso dopoder econômico ou do poder de autori-dade, ou utilização indevida de veículosou meios de comunicação social, embenefício de candidato ou de partidopolítico (...)”.

Por meio da representação acima aludida,poder-se-á, mediante um procedimento deíndole jurisdicional, apurar, no âmbito dosTribunais Regionais Eleitorais e do TribunalSuperior Eleitoral, conforme o caso, o eventualuso indevido, desvio ou abuso do podereconômico ou do poder de autoridade, ou,ainda, a utilização indevida de veículos ou meiode comunicação social, em benefício decandidato ou agremiação político-partidária.

Convém acrescentar que essa representaçãoeleitoral possui, nos dizeres de Joel JoséCândido,

“(...) um duplo efeito: 1) a produção deprova judicial, para eventual uso futuroe que será produzida sob o crivo do

Do prazo para o ajuizamento darepresentação eleitoral(Art. 22, da Lei Complementar nº 64/90)

I’TALO FIORAVANTI SABO MENDES

I’talo Fioravanti Sabo Mendes, é ProcuradorRegional da República, Mestre em Direito e Estadopela Universidade de Brasília e Professor de DireitoProcessual Civil da Universidade de Brasília – UnB.

SUMÁRIO

1. Introdução. 2. Do termo inicial para oaforamento da representação eleitoral. 3. Do termofinal para o ajuizamento da representação eleitoral.4. Das conclusões.

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contraditório, mais a declaração dainelegibilidade do candidato; e 2) adecretação da cassação do registro de suacandidatura”1.

A representação eleitoral, portanto, cons-titui instituto de grande importância para oprocesso eleitoral, pois poderá servir de basepara a produção dos elementos probatórios queirão embasar eventual recurso contra aexpedição de diploma (art. 262, incisos I a IV,do Código Eleitoral), ou mesmo a ação deimpugnação de mandato eletivo ajuizada nostermos previstos no art. 14, § 10, da Consti-tuição Federal.

Além do mais, a representação eleitoral,julgada procedente pelos Tribunais RegionaisEleitorais ou, eventualmente, pelo TribunalSuperior Eleitoral, se for de sua competência,poderá acarretar a cassação do registro decandidaturas a cargos públicos eletivos.

Impõe-se argumentar, também, que, porforça do que dispõe o art. 22, inciso XIV, daLei Complementar nº 64/90, a procedência darepresentação eleitoral acarretará a inelegi-bilidade da parte representada, e daqueles que,reconhecidamente, hajam contribuído para aprática do ato impugnado.

Deve ser, ainda, considerado que a inelegi-bilidade acima cogitada abrangerá as eleiçõesque se realizarem nos três anos subseqüentesao pleito eleitoral em que ocorreu o eventoapontado como violador da lisura e dalegitimidade das eleições.

Por isso, apresenta-se de fundamentalimportância a delimitação do lapso em quepoderá ocorrer o ajuizamento da representaçãoeleitoral.

2. Do termo inicial para o aforamento darepresentação eleitoral

Acerca do seu termo inicial, é de se admitira possibilidade de a representação eleitoral serajuizada a partir do deferimento do registro decandidatura da parte representada, pois, pelospróprios objetivos que buscam atingir esseinstituto do Processo Eleitoral, está ele apressupor a existência de uma candidaturabeneficiária do evento que ensejou a suapropositura.

E nem poderia ser diferente, pois, docontrário, estar-se-ia a pressupor a existênciade uso indevido, desvio ou abuso do poder

econômico ou do poder de autoridade, além dautilização indevida de veículos ou meios decomunicação social, sem um beneficiárioespecífico, o que conduziria a um “absurdojurídico”, mormente quando se verifica o teordo art. 22 da Lei Complementar nº 64/90, queexige que o fato causador da representaçãoocorra em benefício de candidato ou de partidopolítico.

Poder-se-ia, então, indagar: por que não seadmitir o cabimento da representação judicialanteriormente ao registro da candidatura doeventual representado?

Ora, data venia de eventual entendimentoem contrário, não se pode cogitar na admissi-bilidade da representação eleitoral em momentoanterior ao registro das candidaturas pelacircunstância de que somente se pode falar emcandidato após o deferimento do respectivoregistro da candidatura.

Além do mais, deve ser também ressaltadoque o benefício ao partido político, de que cogitao art. 22 da Lei Complementar nº 64/90,encontra-se também diretamente vinculado aopleito eleitoral, que, no seu aspecto jurídico-formal, somente tem o seu início na fase doregistro das candidaturas.

Por isso, pode, efetivamente, a represen-tação eleitoral ser ajuizada a partir dodeferimento do registro da candidatura dorepresentado.

3. Do termo final para o ajuizamento darepresentação eleitoral

Fixado o dies a quo para o aforamento darepresentação eleitoral, é de se examinar, então,o termo final para a sua propositura, o quemotiva a seguinte indagação: até que instantedo processo eleitoral se apresenta cabível oajuizamento da mencionada representaçãoeleitoral?

O egrégio Tribunal Superior Eleitoral, aojulgar o Recurso nº 11.524 – Classe 4ª –Agravo – SC, em que foi relator o eminenteMinistro Torquato Jardim, prolatou acórdãoassim ementado:

“Abuso de poder econômico. Repre-sentação do artigo 22 da Lei Comple-mentar nº 64/90.

É intempestivo o ajuizamento darepresentação após as eleições. Passadoo pleito, cabem ou a ação de impugnação(Constituição, art. 14, § 10) ou o recursocontra a expedição de diploma.

Recurso conhecido e provido”.1 CÂNDIDO, Joel José. Direito eleitoral

brasileiro. Bauru : Edipro, 6. ed. 1996. p. 128.

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Verifica-se, assim, que o Tribunal SuperiorEleitoral posicionou-se, então, no sentido deser cabível o ajuizamento da representaçãoeleitoral até a data das eleições, sendo, emconseqüência, intempestiva a sua proposituraposteriormente ao pleito eleitoral.

A acima transcrita decisão do TribunalSuperior Eleitoral, todavia, não perquiriu oefetivo alcance do art. 22 da Lei Complementarnº 64/90, mormente quando se constata que emmomento algum essa norma estabeleceuqualquer limite de natureza temporal para oajuizamento da aludida representação.

Ora, é bem verdade que não se pode admitira inexistência de prazo para a propositura dessarepresentação, mesmo porque seria concederprivilégio maior a um procedimento de naturezainfraconstitucional, como é o caso da repre-sentação eleitoral, em detrimento da açãoconstitucional de impugnação de mandatoeletivo, que, prevista no art. 14, § 10, daConstituição Federal, tem o prazo de quinzedias contados da diplomação, para o seuaforamento.

No entanto, a fixação da data das eleiçõescomo o limite máximo para o ajuizamento darepresentação estabelecida no art. 22 da LeiComplementar nº 64/90, não parece sertambém o mais acertado na hipótese, pois delaestariam a salvo todas as modalidades deabuso ocorridas no dia da eleição, ocasião emque podem ocorrer situações dessa natureza.

Não se diga que tais abusos podem vir a serapurados e, eventualmente, reprimidos porocasião do recurso contra a diplomação, oumesmo na ação de impugnação de mandatoeletivo, pois tais providências estariamcondicionadas à eleição do beneficiário doabuso que se afirma ter ocorrido. E se não tiverele sido eleito, ficaria livre da sanção dedeclaração de inelegibilidade? E aqueles que oauxiliaram, não sendo candidatos, estãotambém fora do alcance da norma consignadado art. 22 da Lei Complementar nº 64/90?

A resposta às indagações acima é eviden-temente não, pois o sentido do acima referidoart. 22 da Lei Complementar nº 64/90 é o deapurar e, eventualmente, sancionar com ainelegibilidade, o uso indevido, desvio ou abusodo poder econômico ou do poder de autoridade,ou a utilização indevida de veículos ou meiosde comunicação social, em benefício decandidato ou de partido político, não apenasaté a véspera do pleito, mas inclusive na própriadata das eleições.

Do contrário, ter-se-ia restrição aos abusosdurante a campanha eleitoral, mas a sualiberação no dia das eleições, pelo menos emrelação àqueles candidatos não eleitos ou aterceiros.

Obviamente, não é esse o sentido do art. 22da Lei Complementar nº 64/90.

Por outro lado, não se pode deixar deconsiderar que há a necessidade de se estabe-lecer um termo para o ajuizamento da repre-sentação prevista no art. 22 da Lei Comple-mentar nº 64/90, pois é despido de lógicajurídica o entendimento no sentido de nãoexistir limite temporal ao aforamento dessarepresentação e a fixação deste na data daseleições corre o risco de inviabilizar a aplicaçãodo dispositivo legal acima mencionado.

Em conseqüência, é perfeitamente plausívelo posicionamento no sentido de se admitir oajuizamento da representação do art. 22 da LeiComplementar nº 64/90 até a diplomação doseleitos, considerando que, após essa data, há apossibilidade da utilização do recurso contra aexpedição de diploma e a ação de impugnaçãode mandato eletivo.

Dessa maneira, o melhor entendimentoparece ser aquele que vislumbra não serintempestiva a representação do art. 22 da LeiComplementar nº 64/90, se ajuizada até adiplomação dos eleitos.

E, exatamente dentro dessa ótica, o TribunalSuperior Eleitoral alterou o seu posicionamentoanterior – consubstanciado no acórdão profe-rido ao julgar o Recurso nº 11.524, Classe 4ª –Agravo – SC (ementa anteriormente transcrita)–, para admitir que possa a representaçãoeleitoral prevista no art. 22 da Lei Comple-mentar nº 64/90 ser aforada até a diplomaçãodos candidatos eleitos.

Assim é que já decidiu o Tribunal SuperiorEleitoral:

“Abuso de poder econômico. Repre-sentação do artigo 22 da Lei Comple-mentar nº 64/90. A representação para aapuração de abuso de poder econômico,prevista no artigo 22 da Lei Comple-mentar nº 64, de 18 de maio de 1990,pode ser ajuizada até a data da diplo-mação dos candidatos eleitos no pleitoeleitoral.

Recurso conhecido, mas a que se negaprovimento”. (Proc. REsp. nº 12.531.Relator: Ministro Ilmar Galvão; Acórdãonº 12.531. DJ, p. 27.524, de 1º set. 1995).

“Representação. Alegação de ofensaao art. 22 da LC 64/90.

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Termo final – Validade do seuoferecimento até a diplomação.

Enquanto não principia a fluência doprazo para o recurso contra a diplomaçãoe a ação constitucional impugnatória, arepresentação tem cabimento em tese.

Necessidade de proteção de lisura dospleitos.

Recurso conhecido e provido”.(REsp. nº 12.603. Relator: MinistroDiniz de Andrada. Acórdão nº 12.603.DJ, p. 28.474, 8 set. 1995).

“1- Representação por abuso de podereconômico (Lei Complementar nº 64/90,art. 22): pode ser ajuizada até a data dadiplomação dos candidatos eleitos.Precedentes: Rec. 12.531, relator Minis-tro Galvão. DJU, 1º set. 1995; Rec.12.603, relator Ministro Andrada, DJU,8 set. 1995.

2- Recurso Especial conhecido eprovido para desconstituir o acórdãotanto no que tange a representaçãoajuizada após a diplomação, quanto noque decidido nos recurso contra adiplomação (art. 262, I, Cod. EI.) que atomaram por referência”. (REsp. nº11.994; Relator Ministro TorquatoJardim. Acórdão nº 11.994; DJ, p. 3.045,16 fev. 1996).

Dessa forma, respaldado nos fundamentosteóricos da representação eleitoral e nos

precedentes mais recentes do Tribunal SuperiorEleitoral acerca da matéria (ementas acimatranscritas), pode-se afirmar que, efetivamente,o termo final para o ajuizamento da repre-sentação eleitoral em análise é a data dadiplomação dos candidatos eleitos.

4. Das conclusõesEm síntese, apresenta-se possível extrair do

presente estudo sobre a representação eleitoralprevista no art. 22 da Lei Complementar nº64/90, as seguintes conclusões:

1) é a representação eleitoral instituto doDireito Processual Eleitoral de enorme valia,para a apuração do uso indevido, desvio ouabuso do poder econômico ou do poder deautoridade, ou utilização indevida de veículosou meios de comunicação social, em benefíciode candidato ou de partido político;

2) para o processamento e julgamento daacima referida representação eleitoral, apresen-ta-se de fundamental importância a delimitaçãodo lapso de tempo em que poderá ser elaajuizada;

3) o termo inicial para a propositura darepresentação eleitoral é a data do deferimentodo registro da candidatura do representado; e

4) o termo final para o aforamento daaludida representação eleitoral é a data dadiplomação dos candidatos eleitos.

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1. É no meio social, como alude HermesLima1, que “o direito surge e desenvolve-se”para consecução dos objetivos buscados pelasociedade, como, por exemplo, a manutençãoda paz, a ordem, a segurança e o bem-estarcomum; de modo, a tornar possível a convi-vência e o progresso social. Assim, o direito éfruto de uma realidade social.

O direito, decorrente da criação humana, édirecionado de acordo com os interessesimpostos pela sociedade. Tal fato torna-odinâmico, exigindo que ele, à cada época,acompanhe os anseios e interesses da sociedadepara qual foi criado.

Deste modo, verifica-se, concretamente,constante mutação dos significados dosinstitutos jurídicos, como manifesta PauloNader2:

“As instituições jurídicas são in-ventos humanos, que sofrem variaçõesno tempo e no espaço. Como processode adaptação social, o direito deve estarsempre se refazendo, em face da mobi-lidade social. A necessidade de ordem,paz, segurança, justiça, que o direito visaa atender, exige procedimentos semprenovos. Se o direito se envelhecer, deixade ser um processo de adaptação, poispassa a não exercer a função para qualfoi criado. Não basta, portanto, o ser dodireito na sociedade, é indispensável oser atuante, o ser atualizado. Os proces-sos de adaptação devem-se renovar, poissomente assim o direito será um instru-

O direito como meio de controle socialou como instrumento de mudançasocial?

JORGE RUBEM FOLENA DE OLIVEIRA

Jorge Rubem Folena de Oliveira é Mestrandoem Direito na Faculdade de Direito da UFRJ eAdvogado no Rio de Janeiro.

1 Introdução à Ciência do Direito. 29. ed. Riode Janeiro : Freitas Bastos, 1989. p. 23.

2 Introdução ao estudo do Direito. 4. ed. Rio deJaneiro : Forense, 1987. p. 23.

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mento eficaz na garantia do equilíbrio eharmonia social”3 (nossos grifos).

Portanto, como o direito decorre da criaçãohumana, isto é, da vontade da sociedade emauto-regulamentar-se, ele manifesta-se comocontrolador do homem social4 ou como sistemade controle social.

2. Sob este prisma, o direito é utilizadocomo instrumento de dominação5 da sociedade,pois esta submete-se, em grau de obediência,às regras de controle instituídas para organizara sua convivência.

Nesse processo de dominação, os que detêmo poder político em suas mãos controlam aorganização social, porque impõem a suavontade. Isso pode-se verificar com facilidadenos processos legislativos, como manifestaEduardo Novoa Monreal6, in verbis:

“outro aspecto que se deve levar em contaé que a lei, a que se torna como umaconcreção da vontade geral de um povoque, fazendo uso de seu poder soberano,impõe, por meio de seus representantes,as regras de vida social que devemimperar em uma sociedade, geralmenteque se limita a expressar os interesses easpirações do grupo social que, de fato,exerce o domínio sobre ela...” (nossosgrifos).

Sendo assim, os detentores do poderpolítico7 valem-se da figura do Estado, como

instituição política, para desenvolver seusinteresses e manifestar o seu poder de controlesocial8.

A título de exemplificação, nesse sentidopôde-se verificar a ação da burguesia ao longodas várias fases da história: 1. Durante a IdadeModerna, a burguesia valeu-se do poder do rei –o qual era por ela sustentado – para desen-volver seus nascentes negócios comerciaisapoiados pela política econômica do mercan-tilismo, onde era primordial a participaçãoestatal, por meio de suas armas e barreirasalfandegárias, que facilitaram as exportaçõesde produtos, contribuindo para acumulação demetais preciosos e a manutenção de alimentosdentro do território nacional. 2. Na IdadeContemporânea, com a derrubada do poderabsolutista dos reis promovida pela burguesia,esta valeu-se do Estado para lhe garantir amplaliberdade comercial, naquilo que ficouinstituído como a “mão invisível”, onde omercado seria regulado naturalmente pelas leisda oferta e da procura, como sustentado porAdam Smith9. 3. No final do século XIX e iníciodo século XX, o capitalismo passou por suaprimeira crise, após o desenvolvimento daRevolução Industrial, em decorrência da grandeconcentração econômica, o que levou aburguesia, mais uma vez, a contar com a figurado Estado para manter seus negócios, com aintervenção deste em atividades comerciais eindustriais, próprias da iniciativa privadacombalida pela crise enfrentada pelo capita-lismo.

Então, é por meio da figura do Estado queos detentores do poder político exercem seupoder de dominação sobre a sociedade orga-nizada, sendo tal poder de dominação do Estadoexercido por meio da violência ou poder desanção de que ele dispõe, como assevera MaxWeber10, in verbis:

3 Nesse sentido, ENGISH, Karl. Introdução aopensamento jurídico. Tradução de J. BaptistaMachado. 6. ed. Lisboa : Fundação CalousteGulbenkian, 1983. p. 16, cita Julius V. Kirchmannque manifesta o seguinte acerca da evolução dodireito em relação aos fenômenos naturais: “o sol, alua, as estrelas brilham hoje da mesma forma quehá milhares de anos; a rosa desabrocha ainda hojetal como no paraíso; o direito, porém, tornou-sedesde então diferente. O casamento, a família, oEstado, a propriedade, passaram pelas maisdiversas configurações” (nossos grifos).

4 GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução aoestudo do Direito. 15. ed. Rio de Janeiro : Forense,1992. p. 35.

5 WEBER, Max. Economia e sociedade.Tradução de Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa.3. ed. Brasília : Ed. Unb, 1994, v. 1. p. 139, chama“dominação a probalidade de encontrar obediênciapara ordens específicas (ou todas) dentro dedeterminado grupo de pessoas...”

6 O Direito como obstáculo à transformaçãosocial. Tradução de Gérson Pereira dos Santos. PortoAlegre : S. A. Fabris, 1988. p. 49.

7 Cabe realçar que não nos referimos, aqui, aosdetentores do poder político sob o aspecto

meramente formal, que seria “o povo”; mas, sim,aqueles que lideram e controlam a sociedade pormeio da força econômica de que dispõe.

8 KARAM, Maria Lúcia. De crimes, penas efantasias. 2. ed. Rio de Janeiro : Luam, 1993. p. 95,manifesta que “ é o Estado o centro do exercício dopoder político da classe ou classes que exercemdominação sobre as outras e suas funções,naturalmente, vão corresponder aos interessesespecíficos dessas classes dominantes”.

9 SMITH, Adam. As riquezas das nações, livroIV. Fundação Calouste, Gulbenkian, 1993. Cap. 7.

10 Ciência e política : duas vocações. Traduçãode Leonidas Hegemberg e Octany Silveira Mota. SãoPaulo : Cultrix, 1993. p. 57.

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“Tal como todos os agrupamentospolíticos que historicamente o proce-deram, o Estado consiste em umarelação de dominação do homem sobreo homem, fundada no instrumento daviolência legítima (isto é, da violênciaconsiderada como legítima). O Estadosó pode existir, portanto, sob condiçãode que os homens dominados se sub-metam à autoridade continuamentereivindicada pelos dominadores”(nossos grifos).

Dessa forma, o Estado é uma forte arma deque se valem os detentores do poder políticopara exercerem sua força de dominação sobrea sociedade; sendo que o direito, manifestadopela vontade estatal legislativa (isto é, as leiselaboradas nos parlamentos), é utilizado pelosdetentores do poder político para pôr em práticaeste sistema de controle social, seja parabeneficiá-los, como manifestado por meio denormas de conteúdo patrimonial/econômica, asquais lhes convêm em suas relações; comotambém sobre as normas de penalização eafastamento da sociedade dos “homens bons” –in casu eles, “os poderosos” – daqueles que sãorotulados como “maus”11 e os inconvenientesao seu meio.

A propósito, são incontáveis tais situações,entre estas podemos citar a referida porFernando de Moraes12 quanto ao Decreto-Leinº 4.737, de 24.9.1942, que regulamentava oreconhecimento de filhos naturais, criado peloPresidente Getúlio Vargas, para satisfazer osinteresses pessoais do Sr. Assis Chateaubriand,e, mais recentemente, a Lei nº 8.985, de7.2.1995 (DOU, de 8.2.1995), que anistiou osilícitos eleitorais praticados pelo SenadorHumberto Lucena.

Portanto, a figura do Estado, principalmenteo Estado-legislador, é fundamental para aexecução da dominação praticada pelosdetentores do poder político, e, neste contexto,o direito está colocado a serviço dos poderosos.

3. Este poder de dominação, exercido pelos“poderosos”, apresenta-se revestido de formas“legitimadoras” de cunho meramente formal13,

não decorrente da real vontade da sociedade,que, especificamente no caso do direito,Eduardo Novoa Monreal14 refere-se como“direito formalmente imposto”; isto é, segundoo autor chileno em questão, “o que a autoridadeestatal tenta impor, mediante promulgação deregras obrigatórias de conduta”; contrariamentedaquilo que ele chama de “direito socialmenteimperante”, cuja aplicação é merecida no meiosocial por decorrer da vontade legítima dasociedade.

Com efeito, sob este prisma, constata-severdadeiro confronto entre as normas legaisvigentes – impostas pelo poder de dominação –e sua eficácia ou força legitimadora; sendo taisnormas despidas, em seu conteúdo e caráter,de legitimidade. A legitimidade ora referida éaquela que decorre da verdadeira vontade damaioria na sociedade politicamente organizada,ou seja, a vontade do povo, das massas, dasmaiorias.

Ademais, “os poderosos” valem-se deverdadeiros aforismos jurídicos, provenientesda vitória do liberalismo durante as revoluçõesdos séculos XVII e XVIII, desprovidos deconteúdo legitimador e tomados de forteessência formalista como acima anunciado,para justificar suas práticas. Como exemplospodemos citar os “princípios da legalidade” eda “igualdade de todos perante a lei” – esteúltimo verdadeira “fantasia” utilizada paraencobrir interesses outros que não o daigualdade; justificando, por vezes, a prática dedesigualdades sociais, como manifesta PauloBonavides15, in verbis:

“Mas, como a igualdade a que searrima o liberalismo é apenas formal, eencobre, na realidade, sob seu manto deabstração, um mundo de desigualdadesde fato – econômicas, sociais, políticase pessoais –, termina a apregoadaliberdade, como Bismarck já o notara,numa real liberdade de oprimir osfracos, restando a estes, afinal de contas,tão-somente a liberdade de morrer defome.

(...)Estes morriam de fome e de opressão,

ao passo que os mais respeitáveistribunais do Ocidente assentavam asbases de toda sua jurisprudênciaconstitucional na inocência e no lirismo

11 Aqui, a referência a homens “bons” e “maus”está no sentido manifestado por Louk Hulsman,Penas perdidas. Tradução de Maria Lúcia Karam.Rio de Janeiro : Luam, p. 56-57: O sistema penalem questão.

12 Chatô o rei do Brasil. Rio de Janeiro :Companhia das Letras, 1994. p. 409.

13 ZAFARONI, Eugênio Raúl. Em busca daspenas perdidas. Tradução de Vânia Pedrosa e AmirLopes da Conceição. Revan, 1991. p. 16 e segs.

14 NOVOA MONREAL, op. cit., p. 23.15 Do Estado liberal ao Estado social. 6. ed.

São Paulo : Malheiros, 1996. p. 61.

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daqueles formosos postulados de que‘todos os homens são iguais perante alei...’” (nossos grifos).

Portanto, é assim que o direito, em nossosociedade, está posto – ou melhor, positivadopor meio das leis – como sistema de controlesocial.

4. No entanto, acreditamos que o direitopode ir além disso, sendo utilizado tambémcomo instrumento de mudança social, de modoa tentar inverter o quadro de dominação acimacitado.

Nota-se que, em nosso meio, o direito nãose manifesta apenas por meio das leis – esta é asua principal fonte –; há outras fontes de carátersecundário, porém de grande relevância, quesão a doutrina e, acima de tudo, a jurispru-dência.

É por meio dessas fontes auxiliares que odireito se manifesta ou se realiza, seja por meiodos pareceres dos juristas, ou dos contratosformulados pelos advogados, ou pelas sentençasproferidas pelos magistrados.

Cumpre realçar que a sentença é a leiconcreta16, é o momento em que o Estado-juizsoluciona, pacífica ou põe a verdade para aspartes litigantes, sejam ricos ou sejam pobres.

Desse modo, a magistratura, por meio daformação de sua jurisprudência, ao aplicar e inter-pretar as leis – dizendo o sentido e o alcancedestas, como salienta Carlos Maximiliano17 –tem o papel relevante de fazer com que o direitoseja instrumento de mudança social, na cruzadacontra a dominação exercida pelos donos dopoder político18.

Independentemente do salientado por MariaLúcia Karam19, acreditamos que no Judiciáriopoderá residir o ponto de resistência contra adominação exercida pelos donos do poderpolítico. Assim, o direito poderá ser utilizadocomo instrumento de mudança social, istoporque cabe aos juízes, no mister de se aplicaras normas jurídicas, estar comprometidos comos pressupostos de uma “verdade real”20 e “nãomeramente formal”, procurando almejar, deforma incansável, a justiça – tanto para ospobres como para os ricos – que atenda osanseios da maioria da sociedade21.

Vale registrar que assim têm se posicionadoalgumas vozes nos tribunais superiores de nossopaís, in verbis

“...a melhor interpretação da lei é a quese preocupa com a solução justa, nãopodendo o seu aplicador esquecer queo rigorosismo na exegese dos textoslegais levará injustiças.”22

“...Ao examinar a lide, o magistradodeve idealizar a solução mais justa,considerada a respectiva formaçãohumanística. Somente após, cabe recor-rer à dogmática para, encontrado o indis-pensável apoio, formalizá-la”23.

“O direito, como fato cultural, éfenômeno social histórico. As normasjurídicas devem ser interpretadasconsoante o significado dos aconte-

16 LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e auto-ridade da sentença e outros escritos sobre a coisajulgada. Tradução de Alfredo Buzaid e BenvidoAires. 2. ed. Rio de Janeiro : Forense, 1981. p. 123,expõe que “a coisa julgada, como ato autoritativaditado por um órgão do Estado, reivindicanaturalmente, perante todos, seu ofício de formularqual o comando concreto da lei ou, mais gerne-ricamente, a vontade do Estado, para um casodeterminado...”

17 Hermenêutica e aplicação do Direito. 4. ed.Rio de Janeiro : Freitas Bastos, 1947. p. 13.

18 GENRO, Tarso. Lições de Direito alternativo.São Paulo : Acadêmica, 1991. p. 21: Os Juízes contraa lei, comentando acerca do fetiche da legalidade,manifesta que “é evidente que a previssibilidade dosistema é uma necessidade para a garantia dosdireitos individuais e coletivos, mas ela não querdizer estagnação normativa, nem exige que o juizseja jogado para fora do processo de criação dodireito, no qual o Judiciário é ou pode ser uma peçachave”.

Destacamos a citação acima, não com opropósito de os juízes se colocarem contra a lei,mas, sim, para salientar a importância deles na“criação do direito”, como aludido pelo autorreferido, ao aplicá-lo concretamente.

19 De que “a magistratura, na sociedadecapitalista, é integrada predominantemente porindivíduos de atitudes conservadoras, imbuídos deuma visão dogmática e acrítica do direito, queencobre aqueles seu papel de mutação e reproduçãodas relações de dominação em que se baseiam aformação social capitalista”. (KARAM, op. cit.,p. 102)

20 a expressão “verdade real” é por nós orautilizada no sentido de alcançar-se os anseioslegítimos da vontade social.

21 Os magistrados ao aplicarem as leis deverãoempregá-la conforme os fins sociais a que elas sedirigem e as exigências do bem-comum, como, aliás,encontra-se disposto no art. 5º da Lei de Introduçãoao Código Civil Brasileiro.

22 Ementa do Recurso Especial nº 299-RJ.Relator: Ministro Sálvio de Figueiredo. RSTJ, n. 4,p. 1.555.

23 STF. Ementa de julgamento. Relator: MinistroMarco Aurélio. RDP, n. 100, p. 75 e citado por HugoBrito Machado. RT, n. 714, p. 25.

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cimentos, que, por sua vez, constituema causa da relação jurídica. O códigode processo penal data do início de 40.O país mudou sensivelmente. A comple-xidade da conclusão dos inquéritospoliciais e da dificuldade da instruçãocriminal são cada vez maiores...”24.

“...Essa matéria sobre ser possível ounão a incidência da correção monetárianão pode inibir o julgador de, adequandosua interpretação à realidade social oueconômica, entregar a prestar a quefaz jus o jurisdicionado ...”25 (nossosgrifos).

24 STJ. Ementa do Recurso de Habeas Corpusnº 1.453-RJ. Relator: Ministro Vicente Cernicchiaro.

25 Ementa do Recurso Especial nº 7.229-Rs.Relator: Ministro Waldemar Zveiter.

5. Portanto, a magistratura, caso queiraassumir o seu verdadeiro papel, poderá, pormeio de seu decisum, ser uma das forças deresistência contra os detentores do poderpolítico26, que impõem sua vontade sobre asociedade organizada. Assim sendo, o direito,aplicado concretamente por meio das sentençasjudiciais, servirá como base no processo demudança social, pois por meio delas poderãoser reconhecidos e preservados os interesses damaioria; levando, por conseguinte, a sociedadea conscientizar-se da importância de tais fatorestão distantes dos olhos descrentes dos seusmembros.

26 A exemplo do manifestado pelos magistradositalianos, na luta contra a corrupção existente nasinstituições políticas e contra a máfia.