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CÂMARA MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO PROCURADORIA-GERAL Revista de Direito Rev. Direito Rio de Janeiro v. 12 n. 17 p. 1 - 240 jan. / dez. 2008 ISSN 1516-1374

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CÂMARA MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO

PROCURADORIA-GERAL

Revista de Direito

Rev. Direito Rio de Janeiro v. 12 n. 17 p. 1 - 240 jan. / dez. 2008

ISSN 1516-1374

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Revista de Direito / Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Procu-radoria-Geral – Vol. 1, n. 1 (ago. 1997) - .– Rio de Janeiro : A Câmara, 1997-

v. ; 22 cm.

ISSN 1516-1374 1. Direito – Periódico. 2. Parecer – Periódico. 3. Jurisprudência – Periódico. I. Rio de Janeiro (RJ). Câmara Municipal. Procuradoria- Geral.

CDD 340.05

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FUNDADORES Vereador Sami Jorge Haddad Abdulmacih Presidente da Câmara Municipal do Rio de Janeiro Dr. Paulo Aquino de Oliveira Lima Procurador-Geral

DIRETOR RESPONSÁVEL Procuradora-Geral: Drª Jania Maria de Souza

CONSELHO EDITORIAL Procuradores Drª. Jania Maria de Souza Dr. Flávio Andrade de Carvalho Britto Drª. Claudia Rivolli Thomas de Sá Dr. Sérgio Antônio Ferrari Filho

COORDENAÇÃO Luzinete Neves Ruas

PROJETO GRÁFICO Tânia Berriel Cardoso

DIAGRAMAÇÃO E EDITORAÇÃO E REVISÃO Cristiana do Amaral Crivano Machado

CATALOGAÇÃO NA FONTE e ÍNDICE Lucineide Costa Santos Luzinete Neves Ruas

IMPRESSÃO: Empresa Municipal de Artes Gráficas - Imprensa da Cidade

DISTRIBUIÇÃO: Joel Honório da Silva José Carlos de Oliveira Santos ENDEREÇO

Procuradoria-Geral da Câmara Municipal do Rio de JaneiroGrupo de Documentação e EventosPraça Floriano, 51 - 28º andar - Centro - 20031-050 - RJTel.Fax: (21)3814-1425 - 2283-1138 E-mail: [email protected]

A REVISTA DE DIREITO é uma publicação da Procuradoria-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Os trabalhos assinados são de exclusiva responsabilidade de seus autores. As opini-ões neles manifestadas não correspondem necessariamente às opiniões da Procuradoria-Geral.

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MESA DIRETORA

PresidenteVereador Aloisio Freitas

1º Vice-PresidenteVereador Jorge Pereira

2º Vice-PresidenteVereadora Pastora Márcia Teixeira

1º SecretárioVereador Luiz Carlos Ramos

2º SecretárioVereador Sebastião Ferraz

1º SuplenteVereador Dr. Jairinho

2º SuplenteVereador Stepan Nercessian

Adilson PiresAlexandre CerrutiAndrea Gouvêa VieiraArgemiro PimentelAspásia CamargoCarlo CaiadoCarlos BolsonaroCharbel ZaibChiquinho BrazãoCláudio CavalcantiCristiane BrasilDr. Carlos EduardoDr. Nelson FerreiraEliomar CoelhoJerominhoJoão CabralJorge FelippeJorge MauroJorginho da SOSLeila do FlamengoLiliam Sá

LucinhaLuiz André DecoLuiz GuaranáLuiz HumbertoMárcio PachecoNadinho de Rio das PedrasNereide PedregalPatrícia AmorimPaulo CerriPedro PorfírioRenato MouraRoberto MonteiroRogério BittarRosa FernandesRubens AndradeSami JorgeSilvia PontesTeresa BergherThéo SilvaVerônica CostaWanderley MarizWilson Leite Passos

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COLABORADORES

Luís Roberto Barroso

Professor titular de direito constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Mestre em Direito pela Yale Law School. Doutor e livre-docente pela UERJ. Diretor-Geral da Revista de Direito do Estado.

Marcos Juruena Villela Souto

Procurador do Estado do Rio de Janeiro; Professor de Direito Administrativo Econômico da Universidade Gama Filho; Doutor em Direito pela Universidade Gama Filho.

Arion Sayão Romita

Da Academia Brasileira de Letras Jurídicas. Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (aposentado). Professor titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (aposentado).

Kiyoshi Harada

Especialista em Direito Tributário e em Direito Financeiro pela FADUSP. Mestre em Direito Processual Civil pela UNIP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Membro do Conselho Superior de Estudos Jurídicos e Legislativos da Fiesp – Conjur. Membro da Academia Paulista de Letras Jurídicas - APLJ. Ex-Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

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Humberto Eustáquio César Mota Filho

Advogado do BNDES; Professor; Mestre em Direito pela UCAM; Pós-graduado em Direito da Economia e da Empresa pela FGV; Pós-graduado em Projetos Financeiros pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Aurélio Pitanga Seixas Filho

Professor Titular e Coordenador dos Cursos (Lato Sensu) de Direito Administrativo e de Direito Financeiro e Tributário da Universidade Federal Fluminense e dos mestrados em Direito da Universidade Cândido Mendes e da Faculdade de Direito de Campos

Arícia Fernandes Correia

Doutora em Direito Público e Mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Professora de Direito da Graduação e Pós-Graduação Lato Sensu da UERJ. Procuradora do Município do Rio de Janeiro.

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SUMÁRIO

ARTIGOS E ESTUDOS JURÍDICOS

Vinte anos da Constituição de 1988: a reconstrução democrática do BrasilLuís Roberto Barroso ............................................................................. p. 15

A solução do Rio de Janeiro para a polêmica do saneamento básico na região metropolitanaMarcos Juruena Villela Souto ............................................................... p. 33

Função social do tributoArion Sayão Romita ............................................................................... p. 49

Tratados sobre direitos humanos e a Emenda Constitucional nº 45/04Kiyoshi Harada ...................................................................................... p. 63

Direito e democracia nas sociedades complexasHumberto Eustáquio César Mota Filho ................................................ p. 73

Contribuição para iluminação públicaAurélio Pitanga Seixas Filho ............................................................... p. 101

Intangibilidade do poder local: um ensaio jusfilosófico sobre a descentralização do poder como condição necessária ao exercício da democraciaArícia Fernandes Correia .................................................................... p. 109

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PARECERES DA PROCURADORIA-GERAL DA CMRJ

DIREITO ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO

Requisitos para a concessão de título de utilidade públicaParecer nº 03/07 - Claudia Rivolli Thomas de Sá ............................... p. 151

O "crédito consignado" e seus aspectos jurídicosParecer nº 03/07 - Sérgio Antônio Ferrari Filho ................................. p. 155

Autonomia federativa e consolidação de informações contábeis públicasParecer nº 04/07 - Sérgio Antônio Ferrari Filho ................................. p. 164

DIREITO CONSTITUCIONAL

Descumprimento de lei pelo chefe do Poder ExecutivoParecer nº 04/07 - Claudia Rivolli Thomas de Sá ................................ p.171

Resolução de Secretária de Educação que estabelece o sistema de "aprovação automática" no ensino público municipal. Análise de constitucionalidade do decreto legislativo que o susta.Parecer nº 09/07 - Flávio Andrade de Carvalho Britto ....................... p. 178

DIREITO PARLAMENTAR E PROCESSO LEGISLATIVO

O Ministério Público e a liberdade do exercício de votos por parlamentarParecer nº 01/08 - Flávio Andrade de Carvalho Britto ....................... p. 189

DIREITO DE PESSOAL E PREVIDENCIÁRIO

Procedimentos para a compensação de débitos apurados em processos de aposentadoriaParecer nº 09/07 - Claudia Rivolli Thomas de Sá ............................... p. 195

Comunicação de acidente de trabalho ao INSSParecer nº 01/08 - Claudia Rivolli Thomas de Sá ............................... p. 201

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Aproveitamento de tempo estranho ao município do Rio de Janeiro na concessão de adicional por tempo de serviçoParecer nº 04/08 - Claudia Rivolli Thomas de Sá ............................... p. 205

Aposentadoria por invalidez. Reversão. O tempo decorrido entre a aposentadoria e a reversão não pode ser computado para o pagamento de vantagens pecuniárias.Parecer nº 04/07 - Jania Maria de Souza ............................................ p. 210

Direito atribuído a título de cargo público não pode ser estendido, sem lei que autorize, a titular de emprego público, sob pena de nulidade. Prescrição Parecer nº 01/08 - Jania Maria de Souza ............................................ p. 213

Auxílio doença deve ser pago a servidor que estiver licenciado para tratamento de saúde por período de 12 meses consecutivosParecer nº 02/08 - Jania Maria de Souza ............................................ p. 217

Conceitos de dia e mês no direito administrativoParecer nº 01/08 - Sérgio Antônio Ferrari Filho ................................. p. 220

ÍNDICE ...................................................................................... P. 229

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ARTIGOS E ESTUDOS JURÍDICOS

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Vinte anos da constituição de 1988: a reconstrução democrática do Bra-

sil

Luís Roberto BarrosoProfessor titular de direito constitucional da Universidade do

Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Mestre em Direito pela Yale Law School. Doutor e livre-docente pela UERJ. Diretor-Geral

da Revista de Direito do Estado.

Sumário: I. Introdução: da vinda da família real à Constituição de 1988. II. A ascensão e o ocaso do regime militar. III. Convocação e atuação da Assembléia Constituinte. IV. O sucesso institucional da Constituição de 1988. V. Um balanço preliminar. VI. O desempenho das instituições. VII. Conclusão.

Resumo: O presente estudo procura analisar os 20 anos de vigência da Constituição Federal de 1988. Os capítulos iniciais são dedicados à análise do contexto histórico em que se deu a convocação da Assembléia Constituinte, bem como o desenvolvimento de seus trabalhos e as múltiplas circunstâncias a que esteve sujeita. No restante do texto, empreende-se um balanço dos avanços e revezes do período, com destaque para o desempenho das instituições ao longo dessas duas décadas.

I. Introdução: da vinda da família real à Constituição de 19881

1 O presente texto é a versão condensada de artigo escrito por solicitação do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, intitulado Vinte anos da Constituição brasileira de 1988: o Estado a que chegamos, elaborado para integrar volume contendo a análise crítica das Cons-tituições brasileiras e para publicação na Revista de Direito do Estado, n. 10.

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Começamos tarde. Somente em 1808 – trezentos anos após o descobrimento –, com a chegada da família real, teve início verdadeiramente o Brasil. Até então, os portos eram fechados ao comércio com qualquer país, salvo Portugal. A fabricação de produtos era proibida na colônia, assim como a abertura de estradas. Inexistia qualquer instituição de ensino médio ou superior: a educação resumia-se ao nível básico, ministrada por religiosos. Mais de 98% da população era analfabeta. Não havia dinheiro e as trocas eram feitas por escambo. O regime escravocrata subjugava um em cada três brasileiros e ainda duraria mais oitenta anos, como uma chaga moral e uma bomba-relógio social. Pior que tudo: éramos colônia de uma metrópole que atravessava vertiginosa decadência, onde a ciência e a medicina eram tolhidas por injunções religiosas e a economia permaneceu extrativista e mercantilista quando já ia avançada a revolução industrial. Portugal foi o último país da Europa a abolir a inquisição, o tráfico de escravos e o absolutismo. Um Império conservador e autoritário, avesso às idéias libertárias que vicejavam na América e na Europa2e3.

Começamos mal. Em 12 de novembro de 1823, D. Pedro I dissolveu a Assembléia Geral Constituinte e Legislativa que havia sido convocada para elaborar a primeira Constituição do Brasil4. Já na abertura dos trabalhos constituintes, o Imperador procurara estabelecer sua supremacia, na célebre “Fala” de 3 de maio 2 Sobre o tema, v. LIMA, Oliveira. Dom João VI no Brasil, 1945; WILCKEN, Patrick. Impé-rio à deriva, 2005; GOMES, Laurentino. 1808, 2007; TORRES, Ricardo Lobo. A idéia de liberdade no Estado patrimonial e no Estado fiscal, 1991; FERREIRA, Waldemar. História do direito constitucional brasileiro, 1954; FRANCO, Afonso Arinos de Mello. Curso de direito constitucional brasileiro, 1960, v. 2; CAETANO, Marcelo. Direito constitucional, 1987, v. 1; ALBUQUERQUE, Manoel Maurício de. Pequena história da formação social brasileira, 1981; LEAL, Aurelino Leal. História constitucional do Brasil, 1915, edição fac-similar; e BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História constitucional do Brasil, 1991. 3 A crítica severa não nega, por evidente, o passado de glórias de Portugal e o extraordinário Império marítimo que construiu. Não desmerece, tampouco, o grande progresso trazido ao Brasil com a vinda da família real. Nem muito menos interfere com os laços de afeto e de afinidade que ligam os brasileiros aos portugueses.4 Curiosamente, a convocação da constituinte se dera em 3 de junho de 1822, antes mesmo da Independência, e fazia menção à união “com a grande família portuguesa”. A Independência veio em 7 de setembro, a aclamação de D. Pedro como imperador em 12 de outubro e a coro-ação em 1º de dezembro de 1822.5 “Como imperador constitucional, e mui principalmente como defensor perpétuo deste império, disse ao povo no dia 1º de dezembro do ano próximo passado, em que fui coroado e sagrado, que com a minha espada defenderia a pátria, a nação e a Constituição, se fosse digna do Brasil e de mim. (...) [E]spero, que a Constituição que façais, mereça a minha imperial aceitação...” (grifos acrescentados). V. A fala de D. Pedro I na sessão de abertura da constituinte. In: BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História constitucional do Brasil, 1991, p. 25.

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de 18235. Nela, manifestou sua expectativa de que se elaborasse uma Constituição que fosse digna dele e merecesse sua imperial aceitação. Não mereceu6. O Projeto relatado por Antônio Carlos de Andrada, de corte moderadamente liberal, limitava os poderes do Rei, restringindo seu direito de veto, vedando-lhe a dissolução da Câmara e subordinando as Forças Armadas ao Parlamento. A constituinte foi dissolvida pelo Imperador em momento de refluxo do movimento liberal na Europa e de restauração da monarquia absoluta em Portugal. Embora no Decreto se previsse a convocação de uma nova constituinte, isso não aconteceu. A primeira Constituição brasileira – a Carta Imperial de 1824 – viria a ser elaborada pelo Conselho de Estado, tendo sido outorgada em 25 de março de 1824.

Percorremos um longo caminho. Duzentos anos separam a vinda da família real para o Brasil e a comemoração do vigésimo aniversário da Constituição de 1988. Nesse intervalo, a colônia exótica e semi-abandonada tornou-se uma das dez maiores economias do mundo. O Império de viés autoritário, fundado em uma Carta outorgada, converteu-se em um Estado constitucional democrático e estável, com alternância de poder e absorção institucional das crises políticas. Do regime escravocrata, restou-nos a diversidade racial e cultural, capaz de enfrentar – não sem percalços, é certo – o preconceito e a discriminação persistentes. Não foi uma história de poucos acidentes. Da Independência até hoje, tivemos oito Cartas constitucionais: 1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967, 1969 e 1988, em um melancólico estigma de instabilidade e de falta de continuidade das instituições. A Constituição de 1988 representa o ponto culminante dessa trajetória, catalizando o esforço de inúmeras gerações de brasileiros contra o autoritarismo, a exclusão social e o patrimonialismo, estigmas da formação nacional7. Nem tudo foram flores, mas há muitas razões para celebrá-la.

II. Ascensão e ocaso do regime militar

O colapso do regime constitucional, no Brasil, se deu na madrugada de 31 de março para 1º de abril de 1964, quando um golpe militar destituiu o Presidente João Goulart. Veio o primeiro Ato Institucional – primeiro de uma longa série – e, na seqüência histórica, tornou-se inevitável a trajetória rumo à ditadura, que duraria mais de vinte anos. Em 1965, foram canceladas as eleições presidenciais e prorrogado o

6 CERQUEIRA, Marcello. A Constituição na história: origem e reforma, 2006, p. 387.7 Para uma densa análise da formação nacional, das origens portuguesas até a era Vargas, v. FAORO, Raymundo. Os donos do poder, 2001 (1. ed. 1957).

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mandato do Presidente Castelo Branco. Em 1966, foram extintos os partidos políticos. Em 1967, foi editada uma nova Constituição, votada por um Congresso pressionado e sem vestígio de soberania popular autêntica. Em 1968, baixou-se o Ato Institucional nº 5, que conferia poderes quase absolutos ao Presidente, inclusive para fechar o Congresso, cassar direitos políticos de parlamentares e aposentar qualquer servidor público. Em 1969, em golpe dentro do golpe, impediu-se a posse do Vice-Presidente Pedro Aleixo, quando do afastamento por doença do Presidente Costa e Silva, e uma nova Constituição foi outorgada pelos Ministros militares.

Nesse mesmo ano, indicado pelas Forças Armadas, toma posse o Presidente Emílio Garrastazu Médici. Seu período de governo, que foi de 30 de outubro de 1969 a 15 de março de 1974, ficou conhecido pela designação sugestiva de anos de chumbo. A censura à imprensa e às artes, a proscrição da atividade política e a violenta perseguição aos opositores do regime criaram o ambiente de desesperança no qual vicejou a reação armada à ditadura, manifestada na guerrilha urbana e rural8. A tortura generalizada de presos políticos imprimiu na história brasileira uma mancha moral indelével e perene9. A abertura política, “lenta, gradual e segura”, teve seu início sob a Presidência do General Ernesto Geisel, que tomou posse em 15 de março de 197410. Apesar de ter se valido mais de uma vez de instrumentos ditatoriais11, Geisel impôs sua autoridade e derrotou resistências diversas à liberalização do regime, que

8 V. GASPARI, Elio. A ditadura escancarada, 2002. Sobre a luta armada, v. tb. GABEIRA, Fernando. O que é isso companheiro?, 1979; PORTELA, Fernando. Guerra de guerrilha no Brasil: a saga do Araguaia, 1979; SIRKIS, Alfredo. Os carbonários, 1980.9 Sobre o tema da tortura, v. Brasil: nunca mais, 1985, publicado pela Arquidiocese de São Paulo, com prefácio de D. Paulo Evaristo Arns, ex-Cardeal Arcebispo de São Paulo e figura proeminente na defesa dos direitos humanos durante o regime militar.10 Em convenção nacional realizada em 23 de setembro de 1973, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) lançou como candidatos à Presidência e à Vice-Presidência Ulysses Gui-marães e Barbosa Lima Sobrinho, que se apresentaram como “anti-candidatos”. Sobre o tema, v. ABREU, Alzira Alves de et al. (Coords.).O dicionário histórico-biográfico brasileiro, v. 3, 2001, p. 2.709.11 Em abril de 1977, o Presidente decretou o recesso do Congresso Nacional e outorgou as Emendas Constitucionais nºs 7, de 13.04.1977, e nº 8, de 14.04.1977, que continham, respec-tivamente, uma reforma do Judiciário, medidas casuísticas que asseguravam a preservação da maioria governista no Legislativo e mantinham eleições indiretas para governadores. Além disso, ao longo do seu governo, Geisel cassou o mandato de vereadores, deputados estaduais e federais.

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vinham dos porões da repressão e dos bolsões de anticomunismo radical nas Forças Armadas12. A posse do General João Baptista Figueiredo, em 15 de março de 197913, deu-se já após a revogação dos atos institucionais, que representavam a legalidade paralela e supraconstitucional do regime militar14.

Figueiredo deu continuidade ao processo de descompressão política, promovendo a anistia15 e a liberdade partidária16. Centenas de brasileiros voltaram ao país e inúmeros partidos políticos foram criados ou saíram da clandestinidade. A derrota do movimento pela convocação imediata de eleições presidenciais – as Diretas já –, em 1984, após ter levado centenas de milhares de pessoas às ruas de diversas capitais, foi a última vitória do governo e o penúltimo capítulo do regime militar. Em 15 de janeiro de 1985, o Colégio Eleitoral elegeu, para a Presidência da República, a chapa contrária à situação, encabeçada por Tancredo Neves, que tinha como vice José Sarney17. O regime militar chegava ao fim e tinha início a Nova República, com a volta à primazia do poder civil. Opositor moderado da ditadura e nome de consenso para conduzir a transição pacífica para um regime democrático, Tancredo Neves adoeceu às vésperas da posse e não chegou a assumir o cargo, morrendo em 21 de abril de 1985. José Sarney, que fora um dos próceres do regime que se encerrava – mas que ajudou a sepultar ao aderir à oposição –, tornou-se o primeiro Presidente civil desde 1964.12 Sobre seu período na Presidência, v. o longo depoimento prestado pelo ex-Presidente em D’ARAÚJO, Maria Celina; CASTRO, Celso (Orgs.). Ernesto Geisel, 1997. V. tb. GASPARI, Elio. A ditadura derrotada, 2003; e A ditadura encurralada, 2004, em que relata a parceria entre Geisel – o “Sacerdote” – e Golbery – o “Feiticeiro” – na terminologia que cunhou.13 O MDB lançou como candidatos à Presidência e à Vice-Presidência o General Euler Bentes Monteiro e o Senador Paulo Brossard. Na eleição realizada em 15.10.1978, venceu a chapa da situação, integrada por Figueiredo e Aureliano Chaves, que obtiveram 355 votos contra 226.14 A Emenda Constitucional nº 11, de 13.10.1978, revogou todos os atos institucionais e os atos complementares que lhes davam execução.15 A anistia política foi concedida pela Lei nº 6.683, de 28.08.1979, que em seu art. 1º previa: “É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares”.16 Em 1979, foi reformulado o sistema partidário, com a extinção de MDB e ARENA e a im-plantação do pluripartidarismo.17 Por 480 votos a 180, Tancredo Neves, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), derrotou Paulo Maluf, candidato do Partido Democrático Social (PDS), que era o partido de sustentação política do governo militar, sucessor da Aliança Renovadora Nacional (ARENA).

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III. Convocação e atuação da Assembléia Constituinte

Cumprindo compromisso de campanha assumido por Tancredo Neves, o Presidente José Sarney encaminhou ao Congresso Nacional proposta de convocação de uma constituinte. Aprovada como Emenda Constitucional nº 26, de 27.11.1985, nela se previu que “os membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal” reunir-se-iam em Assembléia Nacional Constituinte, livre e soberana18. Instalada pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro José Carlos Moreira Alves, em 1º de fevereiro de 1987, a Assembléia Constituinte elegeu em seguida, como seu Presidente, o Deputado Ulysses Guimarães, que fora o principal líder parlamentar de oposição aos governos militares. Da constituinte participaram os parlamentares escolhidos no pleito de 15 de novembro de 1986, bem como os senadores eleitos quatro anos antes, que ainda se encontravam no curso de seus mandatos. Ao todo, foram 559 membros – 487 deputados federais e 72 senadores – reunidos unicameralmente. Não prevaleceu a tese, que teve amplo apoio na sociedade civil, da constituinte exclusiva, que se dissolveria após a conclusão dos seus trabalhos19.

A ausência de um texto que servisse de base para as discussões dificultou de modo significativo a racionalização dos trabalhos20, que se desenvolveram em três grandes etapas: (i) das Comissões Temáticas; (ii) da Comissão de Sistematização;

18 Emenda Constitucional nº 26, de 27.11.1985: “Art. 1º - Os Membros da Câmara dos Depu-tados e do Senado Federal reunir-se-ão, unicameralmente, em Assembléia Nacional Consti-tuinte, livre e soberana, no dia 1º de fevereiro de 1987, na sede do Congresso Nacional. Art. 2º - O Presidente do Supremo Tribunal Federal instalará a Assembléia Nacional Constituinte e dirigirá a sessão de eleição do seu Presidente. Art. 3º - A Constituição será promulgada depois da aprovação de seu texto, em dois turnos de discussão e votação, pela maioria absoluta dos Membros da Assembléia Nacional Constituinte”. 19 Relator da Proposta de Emenda Constitucional nº 43, de 1985, que previa a convocação da Assembléia Constituinte, o Deputado Flavio Bierrenbach apresentou substitutivo no qual propunha que, mediante consulta plebiscitária, o povo se manifestasse diretamente sobre dois pontos: (i) se delegava o poder constituinte originário a uma assembléia exclusiva ou ao Con-gresso Nacional; (ii) se os senadores eleitos em 1982 poderiam exercer funções constituintes. O substitutivo não foi aprovado. Sobre o tema, v. BIERRENBACH, Flavio. Quem tem medo da constituinte, 1986.20 Nem o Presidente da República, José Sarney, nem tampouco o Presidente da Assembléia Constituinte, Ulysses Guimarães, quiseram encampar o Anteprojeto elaborado pela “Comissão Afonso Arinos”.

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e (iii) do Plenário21. O processo constituinte teve início com a formação de oito Comissões Temáticas22, cada uma delas dividida em três Subcomissões, em um total de 2423. Coube às Subcomissões a apresentação de relatórios, que foram consolidados pelas Comissões Temáticas, surgindo daí o primeiro projeto de Constituição, que foi encaminhado à Comissão de Sistematização. Na elaboração do Projeto da Comissão de Sistematização, prevaleceu a ala mais progressista do PMDB, liderada pelo Deputado Mário Covas, que produziu um texto “à esquerda do Plenário”24: nacionalista, com forte presença do Estado na economia e ampla proteção aos trabalhadores. Em Plenário, verificou-se uma vigorosa reação das forças liberal-conservadoras, reunidas no “Centro Democrático” (apelidado de “Centrão”), que impuseram mudanças substantivas no texto ao final aprovado25.

Em 5 de outubro de 1988, após dezoito meses de trabalho, encerrando um processo constituinte exaustivo e desgastante, muitas vezes subjugado pela política ordinária26, foi aprovada, em clima de moderada euforia, a Constituição da República Federativa do Brasil. Aclamada como “Constituição cidadã”27 e precedida de um 21 V. AFONSO, José Roberto Rodrigues. Memória da Assembléia Constituinte de 1987/88: as finanças públicas. Disponível em: <http://www.bndes.gov.br/conhecimento/revista/rev1102.pdf>.22Para uma descrição detalhada dos trabalhos da Assembléia Constituinte, v. BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, op. cit., 1991, p. 449 e s.; V. tb. SAMPAIO, José Adércio Leite. Teoria e prática do poder constituinte: como legitimar ou descontruir 1988: 15 anos depois. In: ______ (Coord). Quinze anos de Constituição, 2004, p. 36. 23 No âmbito das Subcomissões realizaram-se incontáveis audiências públicas, com ampla participação de setores econômicos, movimentos sindicais e entidades de classe.24 JOBIM, Nelson de Azevedo. A constituinte vista por dentro: vicissitudes, superação e efetividade de uma história real. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord). Quinze anos de Constituição, 2004, p. 12.25 Enviado à Comissão de Redação, o Projeto ainda sofreria acréscimos de natureza material, que obrigaram a uma nova votação em Plenário, em dois turnos e por maioria absoluta.26 A Assembléia Constituinte, que teve a maioria de seus membros eleitos no embalo do sucesso temporário do Plano Cruzado, em novembro de 1986, teve o final dos seus trabalhos marcado pela disputa presidencial do ano de 1989 e pelos múltiplos interesses que ela engendrava.27 Constituição cidadã foi o título de discurso proferido por Ulysses Guimarães, na Presidên-cia da Assembléia Constituinte, em 27 de julho de 1988, onde afirmou: “Repito: essa será a Constituição cidadã, porque recuperará como cidadãos milhões de brasileiros, vítimas da pior das discriminações: a miséria”. V. íntegra do texto em http://www.fugpmdb.org.br/frm_publ.htm. A expressão tornou a ser por ele utilizada quando da promulgação da nova Carta, em 5 de outubro de 1988, em discurso intitulado Constituição coragem. Disponível em: <http://www.fugpmdb.org.br/frm_publ.htm>. Acessos em: 5 abr. 2008.

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incisivo Preâmbulo28, a Carta constitucional foi promulgada com 245 artigos, distribuídos em nove títulos, e setenta disposições transitórias.

IV. O sucesso institucional da Constituição de 1988

A Constituição de 1988 é o símbolo maior de uma história de sucesso: a transição de um Estado autoritário, intolerante e muitas vezes violento, para um Estado democrático de direito. Sob sua vigência, realizaram-se cinco eleições presidenciais, por voto direto, secreto e universal, com debate público amplo, participação popular e alternância de partidos políticos no poder. Mais que tudo, a Constituição assegurou ao país duas décadas de estabilidade institucional. E não foram tempos banais. Ao longo desse período, diversos episódios poderiam ter deflagrado crises que, em outros tempos, teriam levado à ruptura institucional. O mais grave deles terá sido a destituição, por impeachment, do primeiro presidente eleito após a ditadura militar, sob acusações de corrupção. Mas houve outros, que trouxeram dramáticos abalos ao Poder Legislativo, como o escândalo envolvendo a elaboração do Orçamento, a violação de sigilo do painel eletrônico de votação e o episódio que ficou conhecido como “mensalão”. Mesmo nessas conjunturas, jamais se cogitou de qualquer solução que não fosse o respeito à legalidade constitucional. Não há como deixar de celebrar o amadurecimento institucional brasileiro.

Até aqui, a trágica tradição do país sempre fora a de golpes, contra-golpes e quarteladas, em sucessivas violações da ordem constitucional. Não é difícil ilustrar o argumento. D. Pedro I dissolveu a primeira constituinte. Logo ao início do governo republicano, Floriano Peixoto, Vice-Presidente da República, deixou de convocar eleições – como exigia a Constituição – após a renúncia de Deodoro da Fonseca, permanecendo indevidamente na Presidência. Ao fim da República Velha, vieram a Revolução de 30, a Insurreição Constitucionalista de São Paulo, em 1932, a Intentona Comunista, de 1935, bem como o golpe do Estado Novo, em 1937. Em 1945, ao final 28 No texto do Preâmbulo, a fotografia, retocada pela retórica e pelo excesso de boas intenções, do momento histórico de seu nascimento e das aspirações de que deveria ser instrumento: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil”.

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de seu período ditatorial, Getúlio Vargas foi deposto pelas Forças Armadas. Reeleito em 1950, suicidou-se em 1954, abortando o golpe que se encontrava em curso. Eleito Juscelino Kubitschek, foi necessário o contra-golpe preventivo do Marechal Lott, em 1955, para assegurar-lhe a posse. Juscelino ainda enfrentaria duas rebeliões militares: Jacareacanga (1956) e Aragarças (1959). Com a renúncia de Jânio Quadros, em 1961, os Ministros militares vetaram a posse do Vice-Presidente João Goulart, levando à ameaça de guerra civil, diante da resistência do Rio Grande do Sul. Em 1964, veio o golpe militar. Em 1968, o Ato Institucional nº 5. Em 1969, o impedimento à posse do Vice-Presidente Pedro Aleixo e a outorga de uma nova Constituição pelos Ministros militares. A enunciação é meramente exemplificativa, mas esclarecedora.

A Constituição de 1988 foi o rito de passagem para a maturidade institucional brasileira. Nos últimos vinte anos, superamos todos os ciclos do atraso: eleições periódicas, Presidentes cumprindo seus mandatos ou sendo substituídos na forma constitucionalmente prevista, Congresso Nacional em funcionamento sem interrupções, Judiciário atuante e Forças Armadas fora da política. Só quem não soube a sombra não reconhece a luz.

V. Um balanço preliminar29

1. Alguns avanços

Em inúmeras áreas, a Constituição de 1988 consolidou ou ajudou a promover avanços dignos de nota. No plano dos direitos fundamentais, a despeito da subsistência de deficiências graves em múltiplas áreas, é possível contabilizar realizações. A centralidade da dignidade da pessoa humana se impôs em setores diversos. Para que não se caia em um mundo de fantasia, faça-se o registro indispensável de que uma idéia leva um tempo razoável entre o momento em que conquista corações e mentes até tornar-se uma realidade concreta. Nada obstante isso, no âmbito dos direitos 29 Vejam-se alguns balanços anteriores, aos dez e aos quinze anos da Constituição, em: CA-MARGO, Margarida Maria Lacombe (Org.). Uma década de Constituição: 1988 – 1998, 1999; MORAES, Alexandre de (Coord.). Os 10 anos da Constituição Federal, 1999; BULOS, Uadi Lammêgo. Decênio da Constituição de 1988. Revista de Processo, n. 98, p. 307, abr./jun. 2000; BARROSO, Luís Roberto. Dez anos da Constituição de 1988: (foi bom para você também?). Revista Forense, n.346, p. 113, 1999; SCAF, Fernando Facury (Org.). Constitucionalizando direitos: 15 anos da Constituição brasileira de 1988, 2003; ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. 15 anos da promulgação da Constituição Federal de 1988: comemoração. Palestras: ROCHA, Carmen Lúcia Antunes; BONAVIDES, Paulo; SILVA, José Afonso da; MENDONÇA, Paulo Roberto Soares. A Constituição de 1988: a globalização e o futuro. Revista da EMERJ, n. 25, p. 22, 2004.

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individuais, as liberdades públicas, como as de expressão, reunião, associação, e direitos como o devido processo legal e a presunção de inocência incorporaram-se com naturalidade à paisagem política e jurídica do país. É certo que ainda não para todos30. Os direitos sociais têm enfrentado trajetória mais acidentada, sendo a sua efetivação um dos tormentos da doutrina31 e da jurisprudência32. Nada obstante, houve avanços no tocante à universalização do acesso à educação, apesar de subsistirem problemas graves em relação à qualidade do ensino. Os direitos coletivos e difusos, por sua vez, 30 V. BARROSO, Luís Roberto. Discurso de despedida como Conselheiro do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, mimeografado, 2005: “O Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana é uma janela privilegiada de onde se avistam imagens de um Brasil real, tristemente real. Atávico, primitivo, violento. O Brasil dos excluídos. O País dos grupos de extermínio, de ponta a ponta, tolerados, incentivados; da violência policial – mas não de uma violência policial autônoma: a polícia serve os desígnios da sociedade –; o País das chacinas variadas, de índios, de crianças, de pobres em geral; o País do sistema penitenciário sórdido.[...] Desprestigiadas, desequipadas, mal-treinadas e mal-remuneradas, as forças policiais protagoni-zam, rotineiramente, espetáculos desoladores de truculência. São de triste e recente memória as chacinas do Carandiru, de Eldorado dos Carajás e de Vigário Geral, ocorridas na última década do século XX. E quando estes episódios começavam a se embotar na memória, a chacina de dezenas de pessoas nos Municípios de Queimados e de Nova Iguaçu, menos de um ano atrás, vieram nos lembrar, mais uma vez, que muitos brasileiros são vítimas daqueles que deveriam protegê-los. [...] Mas o Estado brasileiro tem faltado à causa dos direitos humanos não apenas por ação, mas também por omissão. Nas grandes cidades brasileiras, parcela da população encontra-se submetida ao arbítrio do tráfico de drogas. O Estado democrático de direito ainda não alcançou as partes do nosso território onde vivem os mais humildes. A exclusão social não se traduz apenas como privação de direitos econômicos e sociais. Implica também a privação dos direitos mais básicos, como a inviolabilidade do domicílio e a liberdade de locomoção. O que se nega aos favelados brasileiros não é só a igualdade. É também a liberdade, na sua dimensão mais nuclear”.31 V. TORRES, Ricardo Lobo. A jusfundamentalidade dos direitos sociais. Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro, n. 12, p. 1, 2003, e A metamorfose dos direitos sociais em mínimo existencial. In: SARLET, Ingo Wolfgang. Direi-tos fundamentais sociais: estudos de direito constitucional, internacional e comparado, 2003; SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, 1998; e Direitos fundamentais sociais e proibição de retrocesso: algumas notas sobre o desafio da sobrevivência dos direitos sociais num contexto de crise. Ajuris, n. 31, p. 103, 2004; BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídidica dos princípios: o princípio da dignidade da pessoa humana, 2002; KRELL, Andreas. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha, 2002; BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas, 1990; e GOUVÊA, Marcos Maselli. O controle judicial das omissões administrativas, 2003.32 V. LEAL, Rogério Gesta. A quem compete o dever de saúde no Direito brasileiro? Es-gotamento de um modelo institucional. Revista de Direito do Estado, n. 8, p. 91, 2007; e BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Interesse Público, n. 46, p. 31, 2007.

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como a proteção do consumidor e do meio ambiente, disciplinados por legislação específica, incorporaram-se à prática jurisprudencial e ao debate público33.

A Federação, mecanismo de repartição do poder político entre a União, os Estados e os Municípios, foi amplamente reorganizada, superando a fase do regime de 1967-69, de forte concentração de atribuições e receitas no Governo Federal. Embora a União tenha conservado ainda a parcela mais substantiva das competências legislativas, ampliaram-se as competências político-administrativas de Estados e Municípios, inclusive com a previsão de um domínio relativamente amplo de atuação comum dos entes estatais. A partilha das receitas tributárias, de outra parte, embora um pouco mais equânime do que no regime anterior, ainda favorece de modo significativo a União, principal beneficiária da elevadíssima carga tributária vigente no Brasil. De parte isto, ao longo dos anos, a União ampliou sua arrecadação mediante contribuições sociais, tributo em relação ao qual Estados e Municípios não têm participação, o que colaborou ainda mais para a hegemonia federal. A verdade inegável é que os Estados brasileiros, apesar da recuperação de sua autonomia política, não conseguiram, em sua grande maioria, encontrar o equilíbrio financeiro desejável. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, por sua vez, também seguiu, como regra geral, uma lógica centralizadora34. O reequacionamento do federalismo no Brasil é um tema à espera de um autor35.

A nova Constituição, ademais, reduziu o desequilíbrio entre os Poderes da República, que no período militar haviam sofrido o abalo da hipertrofia do Poder Executivo, inclusive com a retirada de garantias e atribuições do Legislativo e Ver o mesmo texto em http://www.migalhas.com.br/ostra_noticia_articuladas.aspx?cod=52582 e em http://conjur.estadao.com.br/pdf/estudobarroso.pdf. Sobre o mesmo tema, v. HENRIQUES, Fátima Vieira. O direito prestacional à saúde e sua implementação judicial: limites e possibi-lidades. Dissertação (Mestrado), UERJ, 2007. Mimeografado; OLIVEIRA, Fábio César dos Santos. Direito de proteção à saúde: efetividade e limites à intervenção do Poder Judiciário. Revista dos Tribunais, n. 865, p. 54, 2007.33 Questões envolvendo escolhas difíceis entre bens jurídicos protegidos pela Constituição, como o desenvolvimento nacional, de um lado, e a preservação do meio ambiente, de outro, estiveram presentes na imprensa e nos tribunais, como a transposição do Rio São Francisco e a construção de usinas hidroelétricas na Amazônia.34 O STF exige que os Estados-membros observem o modelo federal e o princípio da simetria na maior parte dos temas relevantes, aí incluídos, por exemplo, o processo legislativo e as regras de aposentadoria. 35 V. BARROSO, Luís Roberto. A derrota da federação: o colapso financeiro de Estados e Municípios. In: ______. Temas de direito constitucional, 2002, v. 1, p. 141 e s.

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do Judiciário. A nova ordem restaura e, em verdade, fortalece a autonomia e a independência do Judiciário, assim como amplia as competências do Legislativo. Nada obstante, a Carta de 1988 manteve a capacidade legislativa do Executivo, não mais através do estigmatizado decreto-lei, mas por meio das medidas provisórias. A Constituição, juntamente com suas emendas, contribuiu, também, para a melhor definição do papel do Estado na economia, estabelecendo como princípio fundamental e setorial a livre iniciativa, ao lado da valorização do trabalho. A atuação direta do Estado, assim na prestação dos serviços públicos (diretamente ou por delegação), como na exploração de atividades econômicas, recebeu tratamento sistemático adequado.

2. Algumas circunstâncias

O processo constituinte teve como protagonista uma sociedade civil que amargara mais de duas décadas de autoritarismo. Na euforia – saudável euforia – de recuperação das liberdades públicas, a constituinte foi um notável exercício de participação popular. Nesse sentido, é inegável o seu caráter democrático. Mas, paradoxalmente, essa abertura para todos os setores organizados e grupos de interesse fez com que o texto final expressasse uma vasta mistura de reivindicações legítimas de trabalhadores e categorias econômicas, cumulados com interesses cartoriais, reservas de mercado e ambições pessoais. A participação ampla, os interesses múltiplos e a já referida ausência de um anteprojeto geraram um produto final heterogêneo, com qualidade técnica e nível de prevalência do interesse público oscilantes entre extremos. Um texto que, mais do que analítico, era casuístico36, prolixo e corporativo37. Esse defeito o tempo não curou: muitas das emendas, inclusive ao ADCT, espicharam ainda mais a carta constitucional ao longo dos anos38.

Outra circunstância que merece ser assinalada é a do contexto histórico em que 36 Para uma visão crítica severa nessa matéria, v. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. A revisão constitucional brasileira, 1993, p. 5-6; e, tb., Organizações sociais de colaboração (descentralização social e Administração Pública não-estatal). Revista de Direito Administra-tivo, n. 210, p. 184.37 BARROSO, Luís Roberto. Dez anos da Constituição de 1988 (foi bom para você também?), Revista Forense, n. 346, p. 117-118: “A Constituição de 1988 convive com o estigma, já apontado acima, de ser um texto excessivamente detalhista, que em diversos temas perdeu-se no varejo das miudezas – seja no capítulo da Administração Pública, como no título da ordem tributária ou no elenco de mais de 70 artigos do Ato das Disposições Constitucionais Transitó-rias, para citar apenas alguns exemplos. Não escapou, tampouco, do ranço do corporativismo exacerbado, que inseriu no seu texto regras específicas de interesse de magistrados, membros do Ministério Público, advogados públicos e privados, polícias federal, rodoviária, ferroviária, civil, militar, corpo de bombeiros, cartórios de notas e de registros, que bem servem como eloqüente ilustração”.

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se desenrolaram os trabalhos constituintes. Após muitos anos de repressão política, o pensamento de esquerda finalmente podia se manifestar livremente, tendo se formado inúmeros partidos políticos de inspiração comunista, socialista, trabalhista e social-democrata. Mais organizados e aguerridos, os parlamentares dessas agremiações predominaram amplamente nos trabalhos das comissões, até a reação, de última hora, já narrada, das forças de centro e de direita. Ainda asim, o texto aprovado reservava para o Estado o papel de protagonista em áreas diversas, com restrições à iniciativa privada e, sobretudo, ao capital estrangeiro, aí incluídos os investimentos de risco. Pois bem: um ano após a promulgação da Constituição, caiu o muro de Berlim e começaram a desmoronar os regimes que praticavam o socialismo real. Simultaneamente, a globalização, com a interconexão entre os mercados e a livre circulação de capitais, impôs-se como uma realidade inelutável. Pelo mundo afora, ruíam os pressupostos estatizantes e nacionalistas que inspiraram parte das disposições da Constituição brasileira.

3. Alguns revezes

A Constituição brasileira, como assinalado, consubstanciou-se em um texto excessivamente detalhista e que, além disso, cuida de muitas matérias que teriam melhor sede na legislação infraconstitucional. De tais circunstâncias, decorrem conseqüências práticas relevantes. A primeira delas é que a constitucionalização excessiva dificulta o exercício do poder político pelas maiorias, restringindo o espaço de atuação da legislação ordinária. Em razão disso, diferentes governos, para implementar seus programas, precisaram reunir apoio de maiorias qualificadas de três quintos, necessárias para emendar a Constituição, não sendo suficientes as maiorias simples próprias à aprovação da legislação ordinária. O resultado prático é que, no Brasil, a política ordinária – i.e., a implementação da vontade das maiorias formadas a cada época – se faz por meio de emendas constitucionais, com todo o incremento

38 Em prática singularíssima, o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias foi tendo novos artigos e disposições acrescidos por emendas constitucionais, passando de 70 para 89 artigos (o art. 89 foi acrescentado pela EC nº 38, de 2002), sendo que muitos deles tiveram sua redação alterada igualmente por emenda (a EC nº 56, de 2007, prorrogava prazo previsto no art. 76 do ADCT). Sobre o ponto, v. CORRÊA, Oscar Dias. Os 15 anos da Constituição de 1988 (breves anotações). Revista da EMERJ, v. 6, n. 15, 2003, p. 19: “E foi o que se viu: o ADCT, ao invés de servir, como usual, de roteiro à passagem do regime velho para o novo, normas de transição, na verdade se transformou em espaço que passou a recolher todas as normas não transitórias que não encontrassem lugar no texto vigente, e servissem às conveniências da hora”.

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de dificuldades que isso representa.

Chega-se, assim, sem surpresa, à segunda conseqüência da constitucionalização excessiva e minuciosa: o número espantoso de emendas, que antes do vigésimo aniversário da Carta já somavam 56. Houve modificações constitucionais para todos os gostos e propósitos: limitação da remuneração de parlamentares, restrições à criação de Municípios, realização de reformas econômicas, administrativas, previdenciárias, do Judiciário, prorrogação de tributos provisórios, desvinculação de receitas, atenuação da imunidade parlamentar formal, contenção das medidas provisórias, redução do mandato presidencial, admissão da reeleição e daí por diante. Há risco de se perder o fôlego, a conta e a paciência. Tudo isso sem qualquer perspectiva de inversão de tendência. Naturalmente, essa disfunção compromete a vocação de permanência da Constituição e o seu papel de simbolizar a prevalência dos valores duradouros sobre as contingências da política.

VI. O desempenho das instituições

Cabe, antes de concluir, fazer uma breve anotação sobre aspectos relevantes associados ao funcionamento dos três Poderes ao longo dos vinte anos de vigência da Constituição. São examinadas, ainda que brevemente, algumas das mudanças constitucionais que repercutiram sobre a atuação de cada um deles, bem como o desempenho concreto de seus papéis constitucionais pelo Executivo, Legislativo e Judiciário.

No tocante ao Poder Executivo, o plebiscito previsto no art. 2º do ADCT, realizado em 21 de abril de 1993, manteve, por significativa maioria, o sistema presidencialista. Dentre as emendas constitucionais aprovadas, merecem registro a que reduziu o mandato presidencial de cinco para quatro anos39, a que passou a admitir a reeleição40 e a que criou o Ministério da Defesa, marco simbólico relevante da submissão do poder militar ao poder civil41. As medidas provisórias, concebidas como um mecanismo excepcional de exercício de competência normativa primária pelo Executivo, tornaram-se instrumento rotineiro de o Presidente legislar. A disfunção só veio a ser coibida, ainda que não integralmente, com a edição da Emenda

39 Emenda Constitucional de Revisão nº 5, de 9.06.1994.40 Emenda Constitucional nº 16, de 5.06.1997, que passou a permitir a reeleição, para um único período subseqüente, do Presidente, governadores e prefeitos.

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Constitucional nº 32, de 12.09.200142. Apesar da redemocratização, não se superou integralmente o presidencialismo hegemônico da tradição brasileira, que se manifesta em domínios diversos, inclusive e notadamente, no poder de contingenciar verbas orçamentárias.

Quanto ao Poder Legislativo, cabe assinalar a recuperação de suas prerrogativas após a Constituição de 1988, embora permaneça visível o decréscimo de sua importância na produção de leis. De fato, além das medidas provisórias já referidas, a maior parte dos projetos relevantes resultaram de iniciativa do Executivo. Nesse cenário, a ênfase da atuação do Congresso Nacional deslocou-se para a fiscalização dos atos de governo e de administração. O principal instrumento dessa linha têm sido as comissões parlamentares de inquérito (CPIs). Por outro lado, um problema estrutural da representação política no Brasil é a desproporcionalidade da composição da Câmara dos Deputados. De fato o número máximo de setenta deputados e o mínimo de sete, determinados pelo art. 45, § 1º da Constituição, provoca a sobre-representação de alguns Estados e a sub-representação de outros43. Por fim, a Emenda Constitucional nº 35, de 21.12.2001, introduziu modificação substantiva no regime jurídico da imunidade parlamentar, deixando de exigir prévia licença da casa legislativa para a instauração de processo criminal contra parlamentar.

O Poder Judiciário, por sua vez, vive um momento de expressiva ascensão política e institucional. Diversas são as causas desse fenômeno, dentre as quais se incluem a recuperação das garantias da magistratura, o aumento da demanda por justiça por parte de uma sociedade mais consciente, a criação de novos direitos e de novas ações pela Constituição, em meio a outros fatores. Nesse cenário, ocorreu entre nós uma expressiva judicialização das relações sociais e de questões políticas. O Supremo Tribunal Federal (STF) ou outros órgãos judiciais têm dado a últma palavra em temas envolvendo separação de Poderes, direitos fundamentais, políticas públicas, regimes jurídicos dos servidores, sistema político e inúmeras outras questões, algumas

41 Emenda Constitucional nº 23, de 3.09.1999.42 A EC nº 32, de 2001, prevê a vigência da medida provisória pelo prazo máximo de 60 dias, prorrogáveis uma única vez, por igual período, com trancamento da pauta até que haja delibe-ração sobre ela por parte de cada casa do Congresso Nacional.43 Sobre a questão, v. BÚRIGO, Vandré Augusto. Sistema eleitoral brasileiro: a técnica de representação proporcional vigente e as propostas de alteração: breves apontamentos. Revista de Informação Legislativa, n. 39, p. 177, 2002; SANTOS, Fabiano. Instituições eleitorais e desempenho do presidencialismo no Brasil. Dados, n. 42, p. 8, 1999.

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envolvendo o dia-a-dia das pessoas, como mensalidade de planos de saúde ou tarifa de serviço públicos. Essa expansão do papel do Judiciário, notadamente do STF, fez deflagrar um importante debate na teoria constitucional acerca da legitimidade democrática dessa atuação.

VII. Conclusão

1. O que ficou por fazer

A comemoração merecida dos vinte anos da Constituição brasileira não precisa do falseamento da verdade. Na conta aberta do atraso político e da dívida social, ainda há incontáveis débitos. Subsiste no país um abismo de desigualdade, com recordes mundiais de concentração de renda e deficit dramático em moradia, educação, saúde, saneamento. A lista é enorme. Do ponto de vista do avanço do processo civilizatório, também estamos para trás, com índices inaceitáveis de corrupção, deficiências nos serviços públicos em geral – dos quais dependem, sobretudo, os mais pobres – e patamares de violência que se equiparam aos de países em guerra44. Por outro lado, o regime de 1988 não foi capaz de conter a crônica voracidade fiscal do Estado brasileiro, um dos mais onerosos do mundo para o cidadão-contribuinte. Sem mencionar que o sistema tributário constitui um cipoal de tributos que se superpõem, cuja complexidade exige a manutenção de estruturas administrativas igualmente custosas.

Há, todavia, uma outra falha institucional, que, por sua repercussão sobre todo o sistema, compromete a possibilidade de solução adequada de tudo o mais. Nos vinte anos de sua vigência, o ponto baixo do modelo constitucional brasileiro, e dos sucessivos governos democráticos, foi a falta de disposição ou de capacidade para reformular o sistema político. No conjunto de desacertos das últimas duas décadas, a política passou a ser um fim em si mesma, um mundo à parte, desconectado da sociedade, visto ora com indiferença, ora com desconfiança. As repetidas crises 44 V. CARVALHO, Ilona Szabó de; ABRAMOVAY, Pedro. O custo da violência. O Globo, p. 7, 14 mar. 2008. Opinião. À época em que publicaram o artigo, os autores eram, respectivamente, Coordenadora do Programa de Segurança Humana do Viva Rio e Secretário de Assuntos Le-gislativos do Ministério da Justiça. Ao comentarem a Declaração de Genebra sobre Violência Armada e Desenvolvimento, averbaram: “O país perde cerca de 50.000 brasileiros por ano, vítimas de homicídio. Segundo o IPEA, as perdas econômicas para a nação com a violência são de mais de 90 bilhões de reais por ano. A maior concentração de violência ocorre nas peri-ferias das grandes cidades, locais de enorme desagregação social, sobretudo em conseqüência da ausência de políticas públicas consistentes para essas regiões”.

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produzidas pelas disfunções do financiamento eleitoral, pelas relações oblíquas entre Executivo e parlamentares, bem como pelo exercício de cargos públicos para benefício próprio têm trazido, ao longo dos anos, uma onda de ceticismo que abate a cidadania e compromete sua capacidade de indignação e de reação. A verdade, contudo, é que não há Estado democrático sem atividade política intensa e saudável, nem tampouco sem parlamento atuante e investido de credibilidade. É preciso, portanto, reconstruir o conteúdo e a imagem dos partidos e do Congresso, assim como exaltar a dignidade da política. O sistema político brasileiro, por vicissitudes diversas, tem desempenhado um papel oposto ao que lhe cabe: exacerba os defeitos e não deixa florescer as virtudes.

É preciso desenvolver um modelo capaz de resgatar e promover valores como legitimidade democrática, governabilidade e virtudes republicanas45, produzindo alterações profundas na prática política46. Há inúmeras propostas na matéria, apesar da pouca disposição para o debate. Uma delas defende para o Brasil, como sistema de governo, o semipresidencialismo, nos moldes de França e Portugal; como sistema eleitoral, a fórmula do voto distrital misto, que vigora, por exemplo, na Alemanha; e, como sistema partidário, um modelo fundado na fidelidade e na contenção da pulverização dos partidos políticos47.

45 A expressão “virtudes republicanas” é aqui utilizada para designar a preservação da integri-dade pessoal dos agentes públicos e a observância de padrões éticos de gestão da coisa pública, que levem à promoção do interesse público, e não dos interesses particulares dos governantes ou de terceiros identificados. Tais virtudes se expressam nos princípios constitucionais da moralidade, da impessoalidade e da finalidade pública na ação política e administrativa. A expressão também é freqüentemente empregada, no debate político, para denotar o exercício consciente e ativo da cidadania.46 Com efeito, é preciso: 1. em relação à legitimidade democrática: a) propiciar maior identifica-ção entre sociedade civil e classe política, com aumento da coerência entre discurso e prática, e maior visibilidade e controlabilidade da atividade parlamentar; b) conferir maior autenticidade programática aos partidos políticos, fomentando a fidelidade e mitigando a pulverização par-tidária; c) reduzir a influência do poder econômico no processo eleitoral, com o barateamento das campanhas, a limitação dos gastos e, eventualmente, o financiamento público; 2. em relação à governabilidade: a) facilitar a formação de maiorias de sustentação política do governo; b) institucionalizar as relações entre Executivo e Legislativo, com predomínio dos partidos e não do poder individual atomizado de cada parlamentar; c) criar mecanismos de superação de crises políticas, que impeçam a longa agonia de governos que perderam sua base de apoio no parlamento e na sociedade; 3. em relação às virtudes republicanas: a) eliminar o poder de barganha individual de cada parlamentar, gerador de mecanismos de troca de favores por votos; b) tornar o debate político mais programático e menos clientelista; c) esvaziar a necessidade de loteamento de órgãos públicos e de distribuição de cargos em troca de apoio.

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2. O que se deve celebrar

O constitucionalismo democrático foi a ideologia vitoriosa do século XX. O imaginário social contemporâneo vislumbra nesse arranjo institucional, que procura combinar Estado de direito (supremacia da lei, rule of the law, Rechtsstaat) e soberania popular, a melhor forma de realizar os anseios da modernidade: poder limitado, dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais, justiça social, tolerância e – quem sabe? – até felicidade. Para evitar ilusões, é bom ter em conta que as grandes conquistas da humanidade levam um tempo relativamente longo para passarem do plano das idéias vitoriosas para a plenitude do mundo real. O curso do processo civilizatório é bem mais lento do que a nossa ansiedade por progresso social. O rumo certo, porém, costuma ser mais importante do que a velocidade.

O modelo vencedor chegou ao Brasil com atraso, mas não tarde demais, às vésperas da virada do milênio. Os últimos vinte anos representam, não a vitória de uma Constituição específica, concreta, mas de uma idéia, de uma atitude diante da vida. O constitucionalismo democrático, que se consolidou entre nós, traduz não apenas um modo de ver o Estado e o Direito, mas de desejar o mundo, em busca de um tempo de justiça, fraternidade e delicadeza. Com as dificuldades inerentes aos processos históricos complexos e dialéticos, temos nos libertado, paulatinamente, de um passado autoritário, excludente, de horizonte estreito. E vivido as contradições inevitáveis da procura do equilíbrio entre o mercado e a política, entre o privado e o público, entre os interesses individuais e o bem coletivo. Nos duzentos anos que separam a chegada da família real e o vigésimo aniversário da Constituição de 1988, passou-se uma eternidade.

47 V. BARROSO, Luís Roberto. A Reforma Política: uma proposta de sistema de governo, eleitoral e partidário para o Brasil. Revista de Direito do Estado, n. 3, p. 287, 2006.

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A solução do Rio de Janeiro para a polêmica do saneamento básico na

região metropolitanaMarcos Juruena Villela Souto

Professor do Mestrado em Direito da Universidade Gama Filho; Professor de Direito Administrativo Econômico da Uni-versidade Gama Filho; Doutor em Direito pela Universidade

Gama Filho

Ementa: Termo de reconhecimento de direitos e obrigações – exame da possibilidade de sua adoção para a gestão compartilhada de serviços públicos de distribuição de água e tratamento primário de esgotamento sanitário – legimitidade da interpretação de possibilidade de composição de conflitos quando não há definição judicial da competência constitucional para a prestação dos serviços públicos no âmbito da região metropolitana – o direito, não sendo ciência exata, comporta diversas interpretações, mas a dúvida impede que sejam executados os investimentos necessários ao atendimento de interesses primários da sociedade, diretamente ligados ao direito à vida, à saúde e ao meio ambiente equilibrado e protegido.

I

O Estado do Rio de Janeiro, a Companhia Estadual de Águas e Esgotos (CEDAE) e o Município do Rio de Janeiro firmaram “Termo de reconhecimento recíproco de direitos e obrigações”, tendo por objeto a viabilização da execução dos serviços de captação, tratamento, adução, distribuição de água potável, coleta, transporte e tratamento de esgotos, assim como a cobrança por tais serviços, tendo como base o território ocupado pelo MUNICÍPIO.

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O Termo partiu da premissa de que a persistência da incerteza jurídica acerca da titularidade dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário não pode prejudicar o atendimento à população da Cidade do Rio de Janeiro, sendo indispensável a segurança jurídica para a realização dos investimentos de grande monta necessários, em especial para garantir o direito à saúde e ao meio-ambiente ecologicamente equilibrado, buscando, inclusive, atender os princípios fundamentais do serviço público de saneamento básico, previstos no artigo 2º da Lei nº 11.445, de 5 de Janeiro de 2007, em especial a sua essencialidade, a universalização do acesso, a modicidade tarifária e a utilização de tecnologias apropriadas com a adoção de soluções graduais e progressivas.

Para conferir tal segurança jurídica, o ESTADO, a COMPANHIA e o MUNICÍPIO obrigam-se a respeitar e cumprir o TERMO, independentemente da futura decisão pelo Supremo Tribunal Federal acerca da competência, integral ou parcial, dos Estados ou dos Municípios para outorga dos serviços públicos de abastecimento de água e de esgotamento sanitário.

Pelo instrumento, a partilha de atribuições contempla que a CEDAE permanecerá sendo a prestadora dos serviços de captação, tratamento, adução e distribuição de água potável e coleta, transporte e tratamento adequado dos esgotos sanitários e cobrança pela prestação desses serviços no Município do Rio de Janeiro, exceto na Área de Planejamento 5 (AP5)1 e nas Áreas Faveladas, definidas no ANEXOS I e II, que, pelo instrumento, caberão ao Município.

O prazo de vinculação é de 50 (cinqüenta) anos, prorrogáveis por igual período, independentemente de notificação prévia.

1 Define-se a Área de Planejamento 5 (AP 5) como a área do território do Município do Rio de Janeiro ocupada pelos bairros de Deodoro, Vila Militar, Campo dos Afonsos, Jardim Sulacap, Magalhães Bastos, Realengo, Padre Miguel, Bangu, Gericinó, Senador Camará, Santíssimo, Campo Grande, Senador Vasconcelos, Inhoaiba, Cosmos, Paciência, Santa Cruz, Sepetiba, Guaratiba, Barra de Guaratiba e Pedra de Guaratiba, considerando a descrição do perímetro destes bairros constante do ANEXO I do instrumento. Já as Áreas Faveladas são as oriundas de ocupações irregulares, de uso predominantemente habitacional, caracterizadas por ocupação irregular de terra por população de baixa renda, normalmente dotadas de infra-estrutura urba-na e serviços públicos precários, vias estreitas e de alinhamentos irregulares, lotes de forma e tamanhos irregulares e construções não licenciadas pelo Poder Público. A identificação ou exclusão de qualquer área só se realizará mediante Termo Aditivo.

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A essência do instrumento se vislumbra na cláusula que prevê que as partes peticionarão ao SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL nos autos dos processos judiciais que tramitam sob os números 1842 e 1843 informando acerca da sua celebração, bem como a apresentação de pedido de desistência das ações envolvendo a discussão de competência para a prestação dos serviços.

Para tanto, se estabelece que o descumprimento dessas obrigações acarretará para a parte infratora o dever de pagar, integralmente em moeda corrente do país, todos os investimentos que a outra Parte tiver realizado nas respectivas áreas de atuação, acrescido da atualização monetária, autorizada a retenção, pela Parte lesada, dos ativos empregados na respectiva prestação até o pagamento integral desses valores.

No mais, são estabelecidas linhas gerais para os critérios de cessão e instalação de bens, de execução dos serviços, com vistas ao atendimento da Lei nº 11.445/07, que trata do novo marco regulatório dos serviços de saneamento ambiental, de critérios de faturamento, segregação de faturas e cobrança, obrigações sobre o licenciamento ambiental e de compromissos com técnicas de aprimoramento na redução de ações potencialmente causadoras de poluição.

Cada um dos envolvidos formará um processo administrativo na respectiva competência, cada qual com as suas formalidades e buscando a celeridade que atenda o cenário favorável de negociações políticas – há muito esperadas pela população em geral.

Pretende-se, pois, demonstrar a validade da opção juspolítica adotada.

II

1. O método

A preocupação central deste estudo é demonstrar a validade da forma jurídica adotada para a celebração do pacto. Ficam, pois, excluídos os aspectos técnicos e operacionais, que não ensejam, s.m.j., maiores discussões jurídicas, sendo pontos que podem ser objeto de negociação – situada no plano da discricionariedade política e administrativa, já que não está envolvida alienação de patrimônio, mas mera cessão, durante a vigência do instrumento, o que dispensaria, em princípio, autorização legislativa.

Aqui se tem um “Termo de reconhecimento recíproco de direitos e obrigações”,

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o que pode causar certa perplexidade inicial diante de um objeto que envolve uma forma de cooperação entre entidades federadas.

Isso porque, num primeiro momento, o formato ideal para esse tipo de pactuação envolveria o uso dos instrumentos previstos nos arts. 175 – concessão – ou 241 – convênio ou consórcio – da Lei Maior.

2. A legislação do Estado do Rio de Janeiro

No ano de 1995, na esteira de um conjunto de medidas constitucionais e legais que instituíram Programas de Reforma do Estado nos âmbitos federal e estaduais, foi editada, no Estado do Rio de Janeiro, a Lei nº 2470/1995, que instituiu o Programa Estadual de Desestatização - PED.

A norma contemplava autorização legal para que, mediante decreto, empresas sob controle acionário do Estado pudessem ser incluídas no programa e privatizadas, bem como serviços pudessem ser delegados à iniciativa privada mediante concessão ou permissão. Quando envolvidas empresas estatais prestadoras de serviços públicos, a lei prevê que, concomitantemente à privatização, dar-se-á a delegação do serviço ao vencedor da licitação na modalidade de leilão.

Assim, foi editado o Decreto que incluiu a Companhia Estadual de Águas e Esgotos – CEDAE no PED, ao que se seguiu a publicação do Edital de Licitação PED/ERJ nº 03/98, no Diário Oficial de 04.08.1998, fixando as condições de venda das ações representativas do controle acionário do Estado e para a delegação dos serviços de saneamento básico.

Mister se faz esclarecer que para se chegar a esse estágio, a Lei nº 2.470/95 exigia que se promovesse, mediante licitação, a contratação de consultorias para a definição da modelagem de desestatização, com a realização de audiências públicas e de road shows, além da abertura de salas de dados para o desenvolvimento de auditorias legais (due diligences).

Tudo isso já abria, transparentemente, o flanco para discussões judiciais, políticas e administrativas, que levaram aos impasses até hoje vivenciados.

Claro que para a delegação da prestação dos serviços públicos, havia necessidade de lei definidora dos critérios de sua prestação, editada no âmbito de cada entidade federada.

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Para os serviços de saneamento básico, no âmbito do território do Estado do Rio de Janeiro, foi editada a Lei nº 2.869/1997, em especial nos artigos 8º a 21, que dispõe sobre o regime de prestação do serviço público de saneamento básico.

3. O histórico do problema na Região Metropolitana do Rio de Janeiro

Com a tentativa de privatização da CEDAE e concomitante delegação dos serviços, surgiu, entre outras, a discussão sobre os limites de competência estadual para a execução das ações de saneamento básico. Isto porque a Lei Maior previu a competência dos Estados para a instituição de regiões metropolitanas, conforme se vê do seu art. 25, § 3º:

Art. 25 § 3º - Os Estados poderão, mediante lei complementar, instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes, para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum.

Para atendimento de tal comando, foi editada a Lei Complementar nº 87/97, do Estado do Rio de Janeiro, que “dispõe sobre a Região Metropolitana do Rio de Janeiro, sua composição, organização e gestão, e sobre a Microrregião dos Lagos, define as funções públicas e serviços de interesse comum e dá outras providências”.

Tal norma atribuiu aos Estados a competência para o desenvolvimento de todo o ciclo da água, a saber, a captação, o tratamento, o transporte e a distribuição, de modo semelhante ao que ocorreu, constitucionalmente, nos serviços de eletricidade e de telecomunicações, em que não houve partilha de competências (bem ao contrário do que ocorreu entre o transporte e a distribuição de gás canalizado, partilhado entre a União – CF, art. 177 – e os Estados – CF, art. 25, §2º).

Diante da inclusão dos serviços de distribuição da água aos destinatários finais, logo surgiu a alegação de usurpação de competências, em favor do Estado e em detrimento dos municípios que integram a Região Metropolitana do Rio de Janeiro.

Aduziu-se que tal norma representaria ofensa aos princípios democrático e do equilíbrio federativo, com violação da autonomia municipal e do princípio da não intervenção dos Estados nos respectivos municípios.

Foi, então, ajuizada a ADIn nº 1842/RJ, que teve como Relator o Exmo. Sr. Min. Maurício Corrêa.

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Desde 1998, ficou paralisada a tentativa de privatização da CEDAE e da delegação dos serviços por meio de concessão, e, o que é pior, a controvérsia afetou todas as entidades da Federação; afinal, aproximadamente, 85% da população vivem em regiões metropolitanas. Todas as entidades e os investidores ficaram em espera, para aguardar a definição sobre os limites da competência estadual em matéria de região metropolitana.

Havendo dúvidas sobre quem seria a parte legítima para firmar um contrato de concessão do serviço (nesse contexto de Reforma do Estado), os investimentos, simplesmente, deixaram de ocorrer por falta de credibilidade dos agentes financeiros e dos empresários especializados no ramo. Ninguém se meteria numa aventura de financiar ou se endividar para um contrato que poderia ser reputado nulo porque firmado por parte incapaz, não detentora da competência constitucional para delegar o serviço. Não é demais lembrar que um dos principais formatos de financiamentos de serviços públicos é o project finance, calcado nas receitas (recebíveis) que um projeto (serviço) pode gerar para satisfazer o direito de retorno dos investimentos (dos credores). Se o projeto não gerar receitas, porque o contrato não pode ser executado, se afasta, de plano, a chance de se obter o investimento.

Em 12.4.2004, pouco antes de passar à inatividade, o Exmo. Sr. Ministro Maurício Correa proferiu voto concluindo ser legítima a reunião de municípios territorialmente próximos pelo Estado-membro, cujo objetivo é o de facilitar a busca de soluções que atendam à coletividade da região, e não apenas a cada um dos municípios isoladamente considerados, por meio de ações conjuntas e unificadas, prestigiando-se a concretização do pacto federativo e os princípios da eficiência e da economicidade. Entendeu o relator que decisões de interesse dessas áreas devem ser compartilhadas entre os municípios que as compõem e o Estado, assumindo, este último, responsabilidade pela adequada prestação dos serviços metropolitanos.

Concluiu que a instituição de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões depende apenas de lei complementar estadual (ADI 1841/RJ, DJU de 20.9.2002), confirmando a legitimidade da atuação legislativa do Estado do Rio de Janeiro, bem como pela mitigação da autonomia municipal nas matérias que a lei complementar transferiu para o Estado.

Em sentido diverso votou o Exmo. Sr. Ministro Nelson Jobim, que, também às vésperas da inatividade, concluiu que as regiões metropolitanas não são entidades políticas autônomas; são entes com função administrativa sem competência política

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própria; a sua competência decorre do somatório de competências e atribuições dos municípios formadores; logo, as suas funções administrativas e executivas dependeriam de autorização e concessão dos municípios. Em matéria de região metropolitana, os Estados detêm competência procedimental para instituir a região, em função de identidade socioeconômica, observando a viabilidade técnica das atividades e bacias hidrográficas e a viabilidade econômica (admitido o uso de subsídios cruzados e de tarifas sociais), podendo os Estados prever sua organização e funcionamento, com a representação dos municípios, a eles cabendo a indicação dos membros, dotados de competência deliberativa, podendo ser adotada a proporcionalidade em função das condições socioeconômicas.

Como a Lei Complementar n 87/97 não preenchia tais requisitos, concluiu ser inconstitucional tal norma, bem como dispositivos da Lei nº 2.869/1997.

Também na linha da inconstitucionalidade da instituição de regiões metropolitanas atraindo competências municipais foi o voto do Exmo. Sr. Ministro Eros Grau, na ADIN nº 2.077-3-BA, entendendo que, na região metropolitana, a competência para a prestação dos serviços comuns permanece com os Municípios; os serviços têm caráter interlocal, reclamando administração intermunicipal, como preservação da autonomia municipal; nessa linha, o Estado só teria competência executiva se recebesse delegação do município.

O problema é que o julgamento da ADIn nº 1842 ainda não se concluiu e, com isso, se retarda a solução do problema do saneamento básico, que coloca em risco a saúde da população e a preservação do meio ambiente, valores estes constitucionalmente tutelados na Lei Maior.

O reconhecimento da competência estadual atenderia o princípio da economicidade, com a desnecessidade de construção de várias estações de distribuição, a serem remuneradas pelos usuários mediante pagamento de tarifa módica; ademais, a gestão regional viabiliza atendimento de municípios menos desenvolvidos e populações de baixa renda; até porque há necessidade de controle de perdas para evitar desabastecimento, que poderia representar uma imposição de gestão regional, especialmente diante do fato de que o sistema de dutos existente não obedece à divisão política de territórios, mas, sim, à lógica da bacia hidrográfica. Não se deveria descartar, ainda, o aspecto histórico que atraiu a competência dos Estados, por meio da execução do PLANASA, que forneceu os recursos para a criação das estatais de saneamento.

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Enfim, teses há para ambos os lados e, com isso, nada anda, em desproveito da população e do ambiente.

4. O modelo ideal

Foi nesse contexto de impasse que surgiram mecanismos adicionais de propositura de uma solução para o problema.

Além das concessões e permissões previstas no art. 175, CF, o art. 241 da Lei Maior, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 19/98, trouxe a seguinte redação:

Art. 241. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios disciplinarão por meio de lei os consórcios públicos e os convênios de cooperação entre os entes federados, autorizando a gestão associada de serviços públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos.

Em outras palavras, a Constituição da República prevê os “consórcios públicos” e os “convênios de cooperação” como instrumentos para a execução partilhada ou delegada de serviços públicos, tudo isso devidamente autorizado por lei.

Posteriormente a essa Emenda Constitucional nº 18, foi editada a Lei nº 11.107, de abril de 2005, que trata de disciplinar a celebração dos consórcios públicos, cuja mecânica para a celebração é a seguinte, devidamente explicitada no Decreto nº 6017, de 17 de janeiro de 2007, em especial, nos seus artigos 4º a 8º.

Inicialmente, é necessária prévia celebração de protocolo de intenções subscrito pelos representantes legais dos entes da Federação interessados. O protocolo deverá prever as condições para que o consórcio público celebre contrato de gestão, nos termos da Lei no 9.649, de 1998, ou termo de parceria, na forma da Lei no 9.790, de 1999, e, ainda, a autorização para a gestão associada de serviço público. O protocolo de intenções deverá ser publicado na imprensa oficial.

Com a ratificação, mediante lei, do protocolo de intenções, poderá ser, finalmente, celebrado o contrato de consórcio público, que adquirirá personalidade jurídica, de direito público, mediante a vigência das leis de ratificação, ou de direito privado, mediante o atendimento dos requisitos previstos na legislação civil.

O consórcio público será, então, organizado por estatutos cujas disposições, sob

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pena de nulidade, deverão atender a todas as cláusulas do seu contrato constitutivo e devem ser aprovados pela assembléia geral, para posterior publicação (que poderá dar-se de forma resumida, desde que a publicação indique o local e o sítio da rede mundial de computadores - internet em que se poderá obter seu texto integral).

Só aí o consórcio público poderá celebrar contrato de gestão, termo de parceria, ou contrato de programa para a gestão associada de serviço público.

Note-se, mais uma vez, que tudo isso leva tempo, enquanto a população não é atendida, agravando a situação, especialmente para as camadas de baixa renda, que o instrumento visa a atender. O tempo também põe em risco o bom clima de relações políticas que reina entre os signatários, ideal almejado pelo Federalismo cooperativo que concretiza as democracias.

Ademais, de sua parte, no plano jurídico, os Estados poderiam questionar a constitucionalidade de tal norma federal.

Afinal, a União invocou, para a edição da Lei, a competência privativa que lhe confere o art. 22, XXVII da Constituição Federal para legislar sobre normas gerais de contratações:

Art. 22 – Compete privativamente à União: [...]XXVII – normas gerais de contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios (Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

Ora, o conceito de norma geral pressupõe que a competência legislativa não se esgote, deixando alguma coisa a ser preenchida pelas demais entidades federadas, já que se trata de competência concorrente, que, para seu exercício, reclama uma lei complementar e não ordinária, consoante o art. 23, parágrafo único da Lei Maior:

Art. 23, Parágrafo único: Lei complementar fixará normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional.

Parece evidente que a União tentou obter no Legislativo a solução de um problema já submetido ao Judiciário: a competência das regiões metropolitanas – esvaziando os Estados, os municípios se consorciam e passam a resolver a gestão

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de problemas regionais. Para tanto, chegou a dar nova redação à Lei de Repressão à improbidade administrativa, (Lei nº 8249/91), instituindo um novo tipo: celebrar contrato ou outro instrumento que tenha por objeto a prestação de serviços públicos por meio da gestão associada sem observar as formalidades previstas na lei.

Ocorre que a ninguém aproveitaria a tese da inconstitucionalidade da lei, que buscou propiciar uma segurança jurídica às relações entre o consórcio e terceiros, não viabilizada pelos tradicionais convênios e consórcios administrativos, denunciáveis unilateralmente, sem previsão de cláusula penal.

Uma solução para tanto seria reconhecer a presunção de constitucionalidade, que poderia levar à interpretação de que o modelo de consórcio público não afasta o uso das demais formas de cooperação previstas na legislação dos Estados e Municípios. Apenas a União estaria obrigada aos comandos ali traçados. Logo, outros formatos poderiam ser previstos, como é o caso do presente termo.

5. A motivação para a não adoção do modelo ideal

Ora, descrito que o modelo ideal pressupõe uma autorização legislativa para a delegação ou gestão associada do serviço, qual seria o motivo de se adotar uma forma atípica, como o tal “Termo de reconhecimento recíproco de direitos e obrigações”?

A resposta é simples!

Tais formatos pressupõem que não haja qualquer dúvida sobre quem é o competente para prestar o serviço e que, diante de tal competência, poderia delegá-lo, total ou parcialmente, para outra entidade federada ou para particulares.

Isso, como visto, não ocorre na hipótese em exame, em que cada uma das entidades federadas se julga competente para a prestação dos serviços, invocando, para tanto, dispositivos constitucionais que estão sendo interpretados pelo Supremo Tribunal Federal.

Tal definição de competências parece ser questão de relevância secundária diante do bem jurídico maior que é a preservação da vida, da saúde e do meio ambiente. Foram estes os valores que se procurou reconhecer com a positivação de princípios orientadores das ações voltadas ao saneamento ambiental, consagrados no art. 2º da Lei nº 11.445, de 5.01.2007, que estabelece diretrizes nacionais para o saneamento básico e altera outras leis:

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Art. 2o Os serviços públicos de saneamento básico serão prestados com base nos seguintes princípios fundamentais:I - universalização do acesso;II - integralidade, compreendida como o conjunto de todas as atividades e componentes de cada um dos diversos serviços de saneamento básico, propiciando à população o acesso na conformidade de suas necessidades e maximizando a eficácia das ações e resultados;III - abastecimento de água, esgotamento sanitário, limpeza urbana e manejo dos resíduos sólidos realizados de formas adequadas à saúde pública e à proteção do meio ambiente;IV - disponibilidade, em todas as áreas urbanas, de serviços de drenagem e de manejo das águas pluviais adequados à saúde pública e à segurança da vida e do patrimônio público e privado;V - adoção de métodos, técnicas e processos que considerem as peculiaridades locais e regionais;VI - articulação com as políticas de desenvolvimento urbano e regional, de habitação, de combate à pobreza e de sua erradicação, de proteção ambiental, de promoção da saúde e outras de relevante interesse social voltadas para a melhoria da qualidade de vida, para as quais o saneamento básico seja fator determinante;VII - eficiência e sustentabilidade econômica;VIII - utilização de tecnologias apropriadas, considerando a capacidade de pagamento dos usuários e a adoção de soluções graduais e progressivas;IX - transparência das ações, baseada em sistemas de informações e processos decisórios institucionalizados;X - controle social;XI - segurança, qualidade e regularidade;XII - integração das infra-estruturas e serviços com a gestão eficiente dos recursos hídricos.

Não poderia tal lei federal solucionar o conflito, já que o problema da definição constitucional de competências é matéria atribuída ao Supremo Tribunal Federal.

A lei federal deve se limitar a definir “diretrizes”.

Daí ter o artigo 8º da norma explicitado o óbvio, que é o reconhecimento de que os titulares dos serviços públicos de saneamento básico poderão delegar a organização, a regulação, a fiscalização e a prestação desses serviços, nos termos do art. 241 da Constituição Federal e da polêmica Lei no 11.107, de 6 de abril de 2005.

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É bem verdade que o art. 14 da Lei nº 11.445/07 procurou se ocupar da prestação regionalizada, definindo a obrigatoriedade de um único prestador do serviço para vários Municípios, contíguos ou não, bem como uniformidade de fiscalização e regulação dos serviços, inclusive de sua remuneração, o que não é livre das grandes discussões sobre os limites da lei federal sobre o exercício das competências estaduais e municipais.

Aqui, mais uma vez, não se tem certeza jurídica sobre o titular da competência.

Como não pode adentrar na solução da polêmica, o art. 15 da Lei nº 11.445/07 prevê, também, o óbvio, no sentido de que as atividades de regulação e fiscalização poderão ser exercidas por órgão ou entidade de ente da Federação a que o titular tenha delegado o exercício dessas competências por meio de convênio de cooperação entre entes da Federação, obedecido o disposto no art. 241 da Constituição Federal ou por consórcio público de direito público integrado pelos titulares dos serviços.

Como o art. 16, I, da Lei nº 11.445/07 prevê que a prestação regionalizada de serviços públicos de saneamento básico poderá ser realizada por órgão, autarquia, fundação de direito público, consórcio público, empresa pública ou sociedade de economia mista estadual, do Distrito Federal, ou municipal, na forma da legislação, tranqüila a atribuição de poderes à CEDAE, que foi criada com autorização em lei para a personificação de tais serviços, o que não afasta, também, a alternativa de se delegar o exercício a empresa a que se tenham concedido os serviços. O instrumento prevê ambas as possibilidades, no âmbito de cada entidade federada.

Diante dos impasses e do dever de todos de zelarem por tais valores, é legítimo pretender compor litígios – e é disso que trata o “Termo de reconhecimento recíproco de direitos e obrigações”, para, assim, viabilizar que o serviço seja colocado à disposição da população em áreas ainda não atendidas adequadamente.

Poder-se-ia alegar que o prazo de cinqüenta anos é por demais longo para uma situação transitória, que pode, a qualquer momento, ser resolvida pelo Supremo Tribunal Federal.

Ocorre, no entanto, que é preciso que se faça um exame das potencialidades econômicas de tratamento da situação.

Num contexto de notórias dificuldades financeiras por parte de todos os poderes públicos, é imperioso, em função dos princípios da subsidiariedade e da

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economicidade, não só privilegiar o investimento privado (decorrência lógica do princípio da livre iniciativa – fundamento da República, como se vê do art. 1º, IV), como não alocar recursos públicos onde podem ser obtidos investimentos privados, para que os recursos públicos sejam afetados a situações onde o capital privado não é admitido ou nos setores onde não haja lucratividade a oferecer.

Só que para captar o capital privado, é fundamental oferecer não só segurança jurídica como um prazo adequado para a recuperação de um investimento, que, por sua vez, deve ser colocado à disposição da população a custos módicos.

Foi em nome dessa segurança que o artigo 10 da Lei nº 11.445/2007 vedou a utilização de instrumentos de natureza precária:

Art. 10. A prestação de serviços públicos de saneamento básico por entidade que não integre a administração do titular depende da celebração de contrato, sendo vedada a sua disciplina mediante convênios, termos de parceria ou outros instrumentos de natureza precária.

Daí se justificarem não só o prazo, neutralizador dessa precariedade, como o compromisso de preservar o termo e os contratos dele decorrentes, qualquer que seja a decisão do Supremo Tribunal Federal, encerrando os litígios já existentes, que estão ao alvedrio das partes compor.

Também é fundamental esclarecer que não se dá nem alienação ou renúncia, tanto de competências quanto de bens ou receitas. Há, frise-se, composição de conflitos, para viabilizar o serviço, cessão não definitiva de bens e atribuição do direito de auferir a receita a quem fizer o investimento (dentro do princípio de que não se abona o enriquecimento sem causa).

Como o instrumento prevê a possibilidade de aditamento, para o atendimento de outras especifidades que darão execução ao objetivo maior aqui traçado de composição de litígios para viabilizar o serviço, haverá espaço, ainda, para a sua complementação para atendimento de outros comandos da Lei de Saneamento Ambiental, como, por exemplo, os requisitos exigidos pelo seu art. 11:

Art. 11. São condições de validade dos contratos que tenham por objeto a prestação de serviços públicos de saneamento básico:I - a existência de plano de saneamento básico: II - a existência de estudo comprovando a viabilidade técnica e econômico-financeira da prestação universal e integral dos serviços, nos termos do respectivo plano de saneamento básico;

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III - a existência de normas de regulação que prevejam os meios para o cumprimento das diretrizes desta Lei, incluindo a designação da entidade de regulação e de fiscalização;IV - a realização prévia de audiência e de consulta públicas sobre o edital de licitação, no caso de concessão, e sobre a minuta do contrato.§ 1o Os planos de investimentos e os projetos relativos ao contrato deverão ser compatíveis com o respectivo plano de saneamento básico.§ 2o Nos casos de serviços prestados mediante contratos de concessão ou de programa, as normas previstas no inciso III do caput deste artigo deverão prever:I - a autorização para a contratação dos serviços, indicando os respectivos prazos e a área a ser atendida;II - a inclusão, no contrato, das metas progressivas e graduais de expansão dos serviços, de qualidade, de eficiência e de uso racional da água, da energia e de outros recursos naturais, em conformidade com os serviços a serem prestados;III - as prioridades de ação, compatíveis com as metas estabelecidas;IV - as condições de sustentabilidade e equilíbrio econômico-financeiro da prestação dos serviços, em regime de eficiência, incluindo:a) o sistema de cobrança e a composição de taxas e tarifas;b) a sistemática de reajustes e de revisões de taxas e tarifas;c) a política de subsídios;V - mecanismos de controle social nas atividades de planejamento, regulação e fiscalização dos serviços;VI - as hipóteses de intervenção e de retomada dos serviços.§ 3o Os contratos não poderão conter cláusulas que prejudiquem as atividades de regulação e de fiscalização ou o acesso às informações sobre os serviços contratados.§ 4o Na prestação regionalizada, o disposto nos incisos I a IV do caput e nos §§ 1o e 2o deste artigo poderá se referir ao conjunto de municípios por ela abrangidos.

Igualmente relevante é a previsão do art. 12 do mesmo diploma legal, que prevê que nos serviços públicos de saneamento básico em que mais de um prestador execute atividade interdependente com outra, a relação entre elas deverá ser regulada por contrato e haverá entidade única encarregada das funções de regulação e de fiscalização, a quem caberá definir as normas técnicas, econômicas e financeiras relativas às tarifas, aos subsídios e aos pagamentos por serviços prestados aos usuários e entre os diferentes prestadores envolvidos, garantia de pagamento de serviços

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prestados entre os diferentes prestadores dos serviços, mecanismos de pagamento de diferenças relativas a inadimplemento dos usuários, perdas comerciais e físicas e outros créditos devidos, quando for o caso, sistema contábil específico para os prestadores que atuem em mais de um Município.

O Estado do Rio de Janeiro dispõe de entidade reguladora dotada de autonomia administrativa e de independência técnica, que atende as diretrizes contidas no marco regulatório setorial, a saber, a Agência Reguladora de Energia e Saneamento do Estado do Rio de Janeiro – AGENERSA, autarquia criada pela Lei nº 4.556, de 06 de junho de 2005.

Igualmente poderá ser prevista a competência para os controles sociais, nos diversos âmbitos federativos, outra diretriz constante da Lei nº 11.445/07.

III

Por todo o exposto, pode se concluir no sentido de que não é livre de dúvidas e polêmicas que o instrumento a ser firmado possa ser outro que não o consórcio público ou o convênio de cooperação, devidamente precedidos de autorização legislativa.

No entanto, não é menos exato que é legítima a interpretação adotada na concepção do “Termo de reconhecimento recíproco de direitos e obrigações”, cujo objetivo maior é a composição de litígios judiciais. É esta composição que vai viabilizar o atendimento mais célere da população, colocando à sua disposição os serviços que não têm merecido maiores investimentos em função da insegurança jurídica que se instaurou por conta das discussões sobre a partilha constitucional de competências.

Como não há renúncia ao exercício de competências, que, de resto, ainda não foram confirmadas, nem, tampouco, alienação de bens ou direitos, é legítima a interpretação adotada, no sentido de possibilidade de celebração do termo sem prévia autorização legislativa, já que a competência para composição de conflitos seria tipicamente administrativa.

Claro que, frise-se, o Direito, não sendo ciência exata, pode comportar diversas interpretações e, de fato, estas têm convivido no cenário judicial, em desproveito da população, que não vê aportados novos recursos diante da dúvida que se pretende, aqui, amenizar, pelo menos entre os signatários.

Eram estas, pois, as considerações que poderiam ser apresentadas sobre a solução

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do Estado e do Município do Rio de Janeiro para o adequado tratamento ambiental em matéria de saneamento básico, modelo este que já serviu de base para outras operações entre o Estado e Municípios2.

2 Tema tratado no Parecer JAF nº 01/08, da lavra do ilustre Procurador do Estado Dr. Joner A. T. C. Folly, proferido no exercício da função de Assessor Jurídico da CEDAE, com visto da Procuradoria de Serviços Públicos, da lavra do seu ilustre Procurador-Chefe, Dr. Flávio de Araújo Willeman. O parecer, com os ajustes e ressalvas constantes do “visto”, foi favorável à celebração de convênio entre o Estado do Rio de Janeiro, a CEDAE e o Município de Belford Roxo, bem assim favoravelmente às cláusulas do referido ajuste. O citado Visto foi aprovado pelo Exmo. Sr. Subprocurador-Geral do Estado, Dr. Rodrigo Tostes de Alencar Mascarenhas, que houve por bem esclarecer que: “De todo modo, ainda nesta seara, é de se registrar que o que se pretende com o ajuste sob análise é distinto daquilo que foi feito em relação ao Mu-nicípio do Rio de Janeiro. Com efeito, no termo celebrado entre Estado, Município do Rio e CEDAE o Município passava a assumir a execução dos serviços de esgotamento sanitário, em parte de seu território (a chamada “AP 5”) e os serviços de esgotamento e de fornecimen-to de água nas “favelas”. No restante do território todos os demais serviços permaneceriam sendo de responsabilidade da CEDAE. Já o termo sob análise tem escopo bem mais amplo, envolvendo quase todas as atividades que constituem os serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário (tais como definidos pelo art. 3º, I “a” e “b” da Lei n. 11.445/07), em todo o território do Município em questão. Este objeto mais amplo não inviabiliza o ajuste mas, certamente, exige maior cuidado na demonstração de que seu conteúdo é o melhor para o atendimento do interesse público.” Fica, pois, registrada, com essas citações, a contribuição dada pela Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro para a solução desse impasse com vistas ao adequado tratamento do meio ambiente e da saúde pública.

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Função social do tributo

Arion Sayão RomitaDa Academia Brasileira de Letras Jurídicas Procurador de

Justiça do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (apo-sentado). Professor titular da Universidade do Estado do Rio de

Janeiro (aposentado).

1. Introdução

São conhecidas a função social da propriedade (Constituição, arts. 5º, inciso XXIII e 170, inciso III) e a função social do contrato (Código Civil, art. 421). Trata-se, agora, de estudar a função social do tributo.

Por função, neste contexto, entende-se o papel a desempenhar por um instituto e, por social, aquilo que concerne à sociedade, ao conjunto dos cidadãos. Função social do tributo significa, em conseqüência, o papel a desempenhar pelo tributo, no que diz respeito ao interesse da sociedade, ao conjunto dos cidadãos.

À luz deste conceito, a função social do tributo se explicita no papel a desempenhar quanto à realização dos direitos sociais, que são os direitos fundamentais do segundo grupo.

2. A indivisibilidade dos direitos humanos

Parte dos tributos arrecadados pelo Estado é utilizada na satisfação de direitos sociais. Enquanto os direitos do primeiro grupo atuam como direitos de defesa, obrigando o Estado a respeitar os direitos de qualquer indivíduo em face de investidas do próprio Poder Público, os direitos sociais exigem do Estado a realização de prestações em favor dos indivíduos ou da coletividade.

Mas, ao assegurar, por intermédio de prestações positivas, a realização dos direitos sociais, o Estado simultaneamente concretiza o império dos direitos fundamentais da primeira família, quais sejam, os direitos de liberdade.

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Os direitos fundamentais são indivisíveis e interdependentes, no sentido de que mesmo as liberdades negativas de matriz liberal só adquirem eficácia máxima quando concorrem os direitos econômicos, sociais e culturais. Seres necessitados não são seres livres. Por seu turno, o exercício dos direitos sociais depende do reconhecimento dos direitos de liberdade.

Um direito fundamental só alcança plena realização quando os demais direitos fundamentais são respeitados. A violação de um dos direitos fundamentais importa vulneração de algum ou de alguns dos outros. Não importa para a validade dessa assertiva que se trate de direitos civis ou políticos ou de direitos econômicos, sociais ou culturais: a realização de uns pressupõe a realização simultânea dos demais.

A explicação para o caráter de indivisibilidade dos direitos fundamentais é simples: a indivisibilidade vincula-se ao respeito da dignidade da pessoa humana. A dignidade humana é indivisível: se privada das liberdades públicas, a pessoa não desfruta direitos econômicos e sociais. Inversamente, sem o gozo dos direitos econômicos e sociais, torna-se inviável o reconhecimento da liberdade e da igualdade. Tome-se como exemplo a dicotomia igualdade jurídica/igualdade social. Essa dicotomia pode ser acolhida se se considera a primeira como igualdade jurídico-formal ou igualdade liberal, inspirada na idéia iusracionalista e a segunda como igualdade material, decorrente de uma posição crítica assumida em face da realidade social e econômica. Entretanto, a dicotomia já deve ser negada se se imagina que ela encerra duas noções opostas: a igualdade social como igualdade real, efetiva, material (a igualdade do homem concreto, situado) depende da realização da igualdade jurídico-formal, porque necessária à identificação de seu conteúdo pleno. A igualdade jurídica é condição da igualdade material, pois mesmo que a igualdade real preexistisse, ela não subsistiria sem a garantia do direito.

Como é cediço em doutrina, os direitos fundamentais formam um complexo uno e indivisível, uns dependendo dos outros para sua plena realização.

A realização dos direitos civis e políticos reclama também prestações do Estado e não apenas sua omissão, o que ocorre em determinadas hipóteses, mas não de forma absoluta.

Somente a efetivação dos direitos econômicos, sociais e culturais pode assegurar o gozo dos direitos civis e políticos. Por sua vez, sem o reconhecimento destes últimos, os direitos sociais carecem de significado.

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Ao aprovar, no ano de 1966, os dois Pactos Internacionais, um sobre os direitos civis e políticos e outro sobre os direitos econômicos, sociais e culturais, a Organização das Nações Unidas parecia apoiar a cisão entre os dois grupos ou famílias de direitos, estabelecendo uma separação, negada qualquer interdependência entre eles. Na verdade, a promulgação de dois pactos distintos não decorria de argumentos jurídicos. A necessidade da elaboração de dois diplomas separados surgiu por motivos de ordem político-cultural, e não jurídica.

3. Os direitos sociais

Enquanto os direitos fundamentais da primeira família descendem do primeiro termo da trilogia forjada pela Revolução Francesa de 1789 – liberté –, os do segundo naipe decorrem do segundo termo: égalité. São direitos que, sem negar a validade dos direitos da família precedente, pretendem superar a noção de igualdade meramente formal, preconizada pela concepção liberal, com a afirmação da igualdade material ou real. Surgiram como produto da chamada questão social, típica dos países industrializados da Europa, no século XIX. A pauperização de grandes massas populacionais, principalmente nas concentrações urbanas, determinou a necessidade de intervenção do Estado com o intuito de minorar os graves desajustes sociais que ameaçam a própria estabilidade do regime capitalista.

São chamados direitos sociais, porque não assistem ao indivíduo como tal, considerado abstratamente, mas sim à pessoa em sua vida de relação no grupo em que convive, ao indivíduo considerado em concreto, ao indivíduo situado. São os direitos pertinentes à teia de relações sociais formada pela pessoa no meio em que atua, como trabalhador, como membro de comunidades, como participante de coletividades sem as quais não poderia desenvolver suas potencialidades nem usufruir os bens econômicos, sociais e culturais a que aspira. São os direitos relacionados no art. 6º da Constituição brasileira de 1988: a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desempregados, a habitação. Os direitos sociais decorrem da sociabilidade do ser humano e têm em vista objetivos de promoção, de comunicação e de cultura.

Ao contrário dos direitos da primeira família, que preconizam a abstenção do Estado (ou que admitem a intervenção estatal apenas em caso de desrespeito aos direitos), os direitos fundamentais do segundo naipe exigem uma prestação positiva do Estado. Inspiram-se nos princípios de justiça social, que só o Estado tem condições

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de realizar, e pressupõem a implementação de políticas públicas aptas a tornar efetivo o gozo dos direitos do primeiro naipe. Estes pressupõem a liberdade, mas seres necessitados não são seres livres. A verdadeira liberdade exige o preenchimento de condições mínimas de existência, sem as quais de nada vale ser livre.

Comparando os direitos sociais com os assegurados pelas declarações clássicas de cunho individualista, pode-se asseverar que os direitos sociais configuram garantias positivas em favor dos cidadãos. O Estado abandona a posição negativa, de omissão em face da esfera individual de cada cidadão, para manifestar-se concretamente, intervindo em favor de realizações materiais, a fim de assegurar, pelo menos, a realização do mínimo existencial dos cidadãos.

Já que dependentes de prestações positivas do Estado, os direitos sociais não podem ser ilimitados. Sujeitam-se à existência de recursos previstos no orçamento e, em conseqüência, dependem da arrecadação de tributos.

Ainda que limitados, em última análise, à satisfação do mínimo existencial, importam custos a cargo do Estado que, para satisfazer as exigências daí decorrentes, depende dos tributos a cargo dos cidadãos.

Todo direito a uma prestação de outrem é um direito limitado. No caso dos direitos ditos sociais, trata-se de um direito de todos a prestações do Estado. Portanto, estamos diante de direitos cujos titulares são também os devedores, já que contribuintes, vale dizer, pessoas integradas no todo estatal. Um direito social já sofre, por força desta circunstância, evidentes limitações.

Da mesma forma que os direitos da primeira família, os direitos fundamentais da segunda não brotam de forma espontânea, da noite para o dia, nem são produto de um “fiat” de algum ente iluminado. Formaram-se lentamente ao longo da história e foram sendo conquistados, como obra de gerações, em muitas partes do mundo. As doutrinas socialistas são sua origem remota. Foram consagrados na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1793, na França e na Constituição francesa de 1848. Encontram espaço na encíclica Rerum Novarum, de 1891, do Papa Leão XIII, que inaugurou a doutrina social da Igreja Católica. O pensamento marxista influenciou o processo histórico de formação deste naipe de direitos, embora seja notória sua incompatibilidade com a positivação dos mesmos direitos, porque, uma vez ultrapassada a fase histórica caracterizada pela exploração do homem pelo homem, desnecessária se tornará a produção de normas jurídicas, pois estas só se justificam

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pela diferença de condição material de vida entre as classes sociais. Em decorrência da Revolução Soviética de 1917, sob a égide do marxismo-leninismo, foi proclamada a Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, de 1918, da então República Socialista Soviética da Rússia.

O constitucionalismo social abre um novo capítulo na evolução histórica dos direitos fundamentais. A primeira constituição a consagrar os direitos sociais foi a do México, de 1917, seguida logo pela da Alemanha, de 1919 (Constituição de Weimar). Após o término da Primeira Guerra Mundial, generalizou-se o acolhimento, no texto das constituições, dos direitos sociais.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, alberga os direitos sociais nos artigos XXII a XXVIII. Para especificar esses direitos, a Organização das Nações Unidas, mediante a Resolução nº. 2.200 A (XXI), em 16 de dezembro de 1966, aprovou o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que entrou em vigor no dia 30 de janeiro de 1976, por só nesta data ter sido alcançado o número necessário de ratificações. Este Pacto Internacional é lei interna vigente no Brasil, já que nosso país o ratificou. Ele foi promulgado pelo Decreto nº. 591, de 6 de julho de 1992.

Se os direitos fundamentais do primeiro naipe são típicos do Estado liberal, os do segundo o são do Estado de bem-estar social (Welfare State). Respondem às reivindicações de massas de despossuídos, que aspiram a participar das benesses que a sociedade acumula com o passar do tempo. São direitos de crédito do indivíduo, exercidos em face da coletividade. O titular desses direitos, como os do primeiro naipe, é o indivíduo, mas o sujeito passivo é o Estado, que assume o dever de satisfazê-los em nome da coletividade.

Vale observar, ainda, que a organização econômica do Estado de bem-estar se baseia na garantia dos direitos fundamentais econômicos e sociais. Embora não se negue sua interação para realização plena desses direitos, força é reconhecer que não são estes que resultam da organização econômica: os aspectos fundamentais dessa organização repousam sobre o respeito aos direitos da pessoa, não representam meros instrumentos organizatórios. A ênfase na garantia dos direitos fundamentais da segunda família constitui a viga mestra da constituição econômica, dependente sempre da racional aplicação dos tributos destinados à satisfação das demandas sociais. Daí a função social do tributo, que tem por objetivo a implementação das políticas sociais desenvolvidas pelo Estado intervencionista, com base nas finanças públicas.

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4. As finanças públicas

Pode haver Estado sem finanças? A pergunta envolve provavelmente uma anamorfose e, sem ocultar seu caráter puramente especulatório, conduz a uma pesquisa ucrônica. A resposta afirmativa (ausência de finanças) pressupõe uma variante maximalista em que o Estado se despojaria de todas as suas atividades de gestão e de prestações atribuindo-as ao setor privado, o que se revela manifestamente impensável em uma sociedade complexa como a que existe hoje em toda parte.

As funções públicas da época clássica, governadas pela ideologia liberal, caracterizavam-se pela centralização e por uma proteção social ainda embrionária.

A auxese do Estado, mercê da passagem do Estado liberal clássico para o Estado intervencionista nutrido por políticas keynesianas, determina a aplicação das finanças públicas além dos limites de pura manutenção da segurança interna e externa, administração da justiça, despesas com o pessoal.

A lógica abstrata preconizaria uma correspondência mecânica entre a natureza da receita e o destino da despesa: os serviços públicos administrativos seriam financiados pelos impostos, os organismos que atuam em prol do interesse geral econômico ou social pelas taxas parafiscais e a proteção social pelas contribuições.

A realidade, porém, encarrega-se de retificar as concepções puramente lógicas e, assim, no Brasil, os tributos se dividem em impostos, taxas e contribuições de melhoria. A partir da definição clássica de Gaston Jèze, segundo a qual o imposto é uma prestação pecuniária exigida do contribuinte pela autoridade do Estado, de acordo com sua capacidade contributiva, e sem contrapartida direta, a fim de assegurar a cobertura dos encargos públicos, define-se imposto como o tributo cuja obrigação tem por fato gerador uma situação independente de qualquer atividade estatal específica, relativa ao contribuinte. A taxa seria o tributo que tem como fato gerador o exercício do poder de polícia ou a utilização, efetiva ou potencial, de serviço público específico e divisível, prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição. A contribuição de melhoria é instituída para fazer face ao custo de obras públicas de que decorre valorização imobiliária, tendo como limite total a despesa realizada e como limite individual o acréscimo de valor que da obra resultar para cada imóvel beneficiado.

As definições legais integrantes do Sistema Tributário Nacional (Lei nº. 5.172, de 26.10.1966) foram recepcionadas pela Constituição de 5 de outubro de 1988 (art.

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145, com seus três incisos, cada qual destinado a um tributo), cabendo acrescentar as contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas (art. 149).

O intervencionismo estatal, de caráter econômico assim como financeiro, em toda parte, após a Segunda Guerra Mundial, intensificado durante os Trinta Anos Gloriosos, salientou o papel do orçamento e gerou o fortalecimento dos Ministérios da Fazenda ou das Finanças, além de suscitar o aparecimento do Ministério do Planejamento. O Estado Providência deve aparelhar-se para enfrentar os desafios dos novos tempos.

O direito desses novos tempos assume coloração social. Sofre transformações. A passagem do Estado liberal ao Estado social provoca uma revolução tão importante quanto a produzida por ocasião da passagem do direito feudal ao direito liberal.

O poder público passa a exercer, ao lado da função de regulação, uma função distributiva. A primeira se desenvolve por meio da edição de normas jurídicas, a segunda pela arrecadação e distribuição de recursos financeiros. O principal instrumento da primeira é a lei (além, naturalmente, de outros atos normativos, como os regulamentos, instruções normativas e atos administrativos em geral) e o principal instrumento da segunda é o orçamento.

É certo que a função de distribuição não se confunde com o controle público das finanças privadas. O poder público regula o funcionamento dos bancos e de outros agentes financeiros e dispõe sobre a quantidade de moeda em circulação (base monetária). Este controle das finanças privadas, embora com numerosos pontos de contato com a função de distribuição, dela não faz parte, integrando-se plenamente na função de regulação das atividades privadas. O poder público, no exercício da função de distribuição, não prescreve nem sanciona condutas: determina o fluxo dos recursos que influenciam o comportamento dos agentes econômicos públicos e bem assim dos particulares.

Desde o aparecimento, na cena política, do Estado moderno, sempre existiu uma função de distribuição do poder público. De um lado, a exação fiscal; de outro, a despesa pública. Esta se prestava ao pagamento dos militares e dos funcionários públicos, além de custear o funcionamento da máquina do governo. A característica desta função é seu recente crescimento. No começo do século XX, o montante das despesas públicas equivalia a 10% do produto interno bruto. Atualmente, gira em

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torno de 60%. Estes dados demonstram que a função de distribuição exercida pelo poder público não somente se tornou essencial ao Estado mas também se ampliou em ritmo acelerado e constante.

As causas da ampliação da função de distribuição residem, entre outros fatores, na necessidade crescente de igualdade social, que levou o poder público a multiplicar suas tarefas intervencionistas mediante o fornecimento de serviços como educação, saúde, segurança social, habitação, etc. Estes serviços absorvem recursos vultosos, provenientes do aumento crescente de tributos. O Estado se torna, em conseqüência, o principal agente financeiro, por arrecadar recursos de certos segmentos da sociedade e distribuí-los a outros. Ao lado da função de alocação interna de recursos, que pode ser denominada administrativa, amplia-se a função de alocação externa, de natureza social.

A regulação e a circulação dos recursos são de tal modo complexas que, em muitos países, a constituição dispõe sobre os princípios fundamentais que devem ser observados, a começar pela instituição de um orçamento anual (Constituição brasileira de 1988, arts. 165 e segs.). A aplicação de recursos é, também, em muitos casos, prevista pela constituição (ex.: Constituição brasileira de 1988, art. 212, em cujos termos a União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os estados, o Distrito Federal e os municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos na manutenção e desenvolvimento do ensino).

Outros instrumentos se agregam ao orçamento para atingir diversas finalidades, como por exemplo a limitação de despesas e as leis de responsabilidade fiscal. A atividade do Estado contemporâneo gira em torno das finanças públicas.

Para os fins deste trabalho, a pesquisa etimológica do vocábulo finanças não apresenta grande utilidade. De certa forma, porém, contribui para o entendimento do conceito por ele expresso. Em português, é certo que provém do fr. finance, este por seu turno derivado do baixo lat. finantia, que deu no fr. ant. finer, pagar. A raiz seria o lat. finis, fim, do qual derivou finare, por finire, terminar, concluir, daí o adj. finalis, final, que passou a significar prestação pecuniária, dinheiro vivo, pelo qual se definem em geral os negócios. O fr. fin significou fim, liquidação, composição, e, mais tarde, finance passou a designar recursos pecuniários, negócios em dinheiro, operações monetárias que sempre objetivam a consecução de um fim.

De finança distingue-se economia, porquanto o primeiro exprime dinâmica

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do dinheiro, ao passo que o outro designa riqueza produzida, em circulação, acumulada.

O produto interno bruto – soma de todas as riquezas produzidas pelo país – envolve a noção de renda nacional, aplicada na satisfação das necessidades dos habitantes. Para manter os serviços públicos e satisfazer as necessidades sociais, o Estado se vale de receitas para aplicá-las em benefício da comunidade.

Para o desempenho de suas atividades e realização de seus fins, o Estado necessita de meios financeiros, obtidos por atuação de natureza instrumental, que se concretiza numa função específica e independente, a saber, a função financeira. Os deveres que o Estado assume dependem, para seu cumprimento, de meios pecuniários suficientes, encontrados no campo da economia. O quadro dos deveres do Estado implica a realização de serviços e o oferecimento de prestações sociais que se exprimem em despesas. As proporções dos serviços e prestações se ajustam aos limites das possibilidades econômicas, que confinam com a capacidade tributária dos contribuintes. O aspecto econômico-social da atividade desenvolvida pelo Estado não pode ser descurado. A questão social é também questão econômica, ambas exigindo a atuação positiva do Estado.

A moderna doutrina assinala que a compreensão jurídico-objetiva assume fundamental importância no que diz respeito aos deveres do Estado, já que todos os poderes se vinculam ao respeito dos direitos fundamentais, envolvendo não só a obrigação negativa de não intervir nas áreas protegidas pelos direitos de defesa (primeira família) mas também a obrigação positiva de realizar os direitos sociais (segunda família). Valendo-se dos recursos advindos das finanças públicas, o Estado procura, nos limites do economicamente possível, realizar o socialmente desejável.

5. As relações entre o econômico e o social

O orçamento é atualmente visto como instrumento de realização dos valores éticos subjacentes aos princípios constitucionais que apontam na direção da justiça social. Com base nele, hão de ser cumpridas as políticas públicas de realização dos direitos fundamentais da segunda família, observada a função social dos tributos arrecadados. Lamentavelmente, não há no Brasil responsabilidade dos agentes políticos na execução do orçamento para cumprimento das tarefas e serviços sociais. É certo, porém, que a previsão orçamentária e seu cumprimento efetivo se movem

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em um universo fechado de recursos financeiros escassos e limitados. Cabe, em conseqüência, ponderar as exigências do socialmente desejável em face dos limites decorrentes do economicamente possível, vale dizer, urge esmerilhar as relações entre o econômico e o social.

O econômico se refere a tudo o que concerne à produção, à circulação e ao consumo das riquezas. O social é mais difícil de definir. Se se entender por este vocábulo tudo aquilo que concerne à sociedade, não haveria mais distinção, senão para observar que o econômico faz parte do social. Não obstante, entende-se de modo amplo por social o que se refere à organização das classes da sociedade, acrescentando-se a idéia de eqüidade e justiça na repartição da riqueza e a de promoção da pessoa humana em geral (não somente do trabalhador em particular).

Tudo o que se refere à economia tem repercussões sociais. É necessário produzir riquezas para reparti-las em seguida. Inversamente, a satisfação das exigências do social tem custos e conseqüências econômicas.

Antes de examinar as relações entre o econômico e o social, vale perquirir o que os distingue. A diferença reside principalmente nas políticas e nas finalidades.

Política, neste contexto, deve ser entendida como um conjunto de normas e atos voltados para a realização de determinado objetivo. E política pública – aquela que mais interessa – seria a conduta da Administração Pública tendente à realização prática de programa ou meta previstos em norma constitucional ou legal, sujeita a controle no alusivo à eficiência dos meios empregados e à avaliação dos resultados alcançados. As políticas econômicas não se confundem com as políticas sociais. Os domínios são diferentes: a política econômica diz respeito à organização dos mercados, à regulação da concorrência e da base monetária, ao controle dos preços, das tarifas públicas e dos juros; já a política social concerne à distribuição da renda e, sobretudo, ao reconhecimento e cumprimento dos direitos individuais e sociais.

No tocante à diferença entre as finalidades, salienta-se que a economia busca antes de tudo a eficácia, o que não significa seja o social ineficaz. Sem dúvida, a eficácia do social se situa em outro domínio, utiliza meios diversos. O econômico tende a incrementar a produção das riquezas, ao passo que o social busca o estabelecimento de equilíbrios mediante a redução das diferenças de rendas entre indivíduos, entre profissões e mesmo entre regiões.

As relações entre o econômico e o social, do ponto de vista da intervenção do

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Estado e da função social do tributo, exigem o exame das políticas públicas (visão macroeconômica), abrangendo o funcionamento das empresas e o direito econômico e social a elas aplicável (visão microeconômica).

Todo Estado, no capitalismo maduro ou avançado (y compris o Brasil) tem uma política econômica e uma política social, mas os modos de intervenção não são idênticos. O Brasil ostenta uma tradição centralizadora, em que a hegemonia do Estado se exerce de forma autoritária, mediante a edição de normas jurídicas de ordem pública, procedimentos rígidos de controle, etc., sem embargo da influência de certas idéias neoliberais recentemente postas em prática.

A intervenção do Estado no domínio econômico e no social se evidencia na responsabilidade que ele assume quanto a ambos, mas realçando sua preeminência na satisfação dos direitos sociais, sobretudo no que diz respeito à proteção social e à observância dos direitos enumerados no art. 6º. da Constituição de 1988: educação, saúde, trabalho, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados, moradia.

O legislador utiliza técnicas que privilegiam o econômico em relação ao social e vice-versa. Assim, por exemplo, o econômico foi privilegiado mercê da redução da alíquota da contribuição para o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço para 2%, quando celebrado contrato de trabalho por tempo determinado nos termos da Lei nº. 9.601, de 2.11.1998 e quando a empresa admite aprendiz a seu serviço (Lei nº. 8.036, de 11.5.1990, art. 15, § 7º); além disso, foram reduzidas, por sessenta meses a contar da vigência da Lei nº. 9.601, a 50% do seu valor as contribuições devidas ao chamado Sistema S e bem assim ao salário-educação (Lei nº. 9.601, art. 2º, I). Por seu turno, o social é privilegiado quando ocorrem os reajustamentos periódicos do salário mínimo, aptos a preservarem seu poder aquisitivo (Constituição, art. 7º, IV) e os reajustamentos dos valores dos benefícios previdenciários (Lei nº. 8.213, de 24.7.1991, art. 41). Também foi privilegiado pela instituição do benefício de prestação continuada hoje regulado pela Lei Orgânica de Assistência Social, que consiste em um benefício mensal devido à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção (Lei nº. 8.742, de 7.12.1993, art. 2º, V c/c art. 20).

Também são previstas técnicas que harmonizam o econômico e o social, como o tratamento jurídico diferenciado que deve ser dispensado às microempresas e às empresas de pequeno porte pela União, pelos estados e pelos municípios, visando

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a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas, tratamento este preconizado pelo art. 179 da Constituição da 1988. Tais medidas são reguladas pelo chamado Estatuto da Microempresa (Lei nº. 9.317, de 5.12.1996, alterada pela Lei nº. 11.196, de 21.11.2005).

Certas técnicas promovem a interferência entre o econômico e o social. Trata-se de técnicas de disfarce, que inspiram medidas de finalidade econômica sob veste social, e vice-versa.

Muitas medidas são alardeadas como de caráter social, mas, na realidade, perseguem objetivo econômico, com alcance que ultrapassa o incremento do consumo, efeito de resto elementar. Incentivos ao programa de habitação popular favorecem o investimento na indústria de construção civil. Facilidades concedidas à criação de creches permitem que as mulheres se candidatem à obtenção de empregos, aumentando a possibilidade de recrutamento por empresas em certos setores. Diante do avanço do desemprego, o poder público reage com a adoção de medidas de diversificada feição. Muitas vezes, elas não beneficiam diretamente os desempregados mas, sob forma de subvenções ou redução de encargos sociais, beneficiam as empresas, que devem admitir novos empregados mediante celebração de contratos de trabalho por prazo determinado, suspensão temporária do contrato de trabalho, etc. É duvidoso que tais medidas promovam de fato a criação de postos de trabalho, sendo certo que muitas vezes aliviam os custos trabalhistas das empresas e, outras vezes, promovem o rejuvenescimento de seu pessoal. Seja como for, tais medidas são úteis, porque o fechamento de algumas empresas agravaria o problema de desemprego. O social provoca, nestes casos, um efeito estabilizador nas crises econômicas. Certos serviços são instituídos para fazer face as necessidades sociais. Conselhos comunitários, oficinas protegidas para pessoas portadoras de necessidades especiais, etc., são estimulados para atender a crianças e adolescentes assim como a deficientes físicos.

A conjugação do econômico e do social pode ocorrer no âmbito da empresa, bastando lembrar a participação dos trabalhadores nos lucros e nos resultados, desvinculada da remuneração, o que gera isenção de contribuições sociais (Constituição de 1988, art. 7º, XI; Lei nº. 10.101, de 19.12.2000, art. 3º).

O exame das relações entre o econômico e o social, assim no plano macro como no seio das empresas, evidencia que o tributo exerce função social, o que resulta não só da utilização que dele se faça para satisfazer direitos sociais como educação, saúde,

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assistência social, moradia, etc. mas também em sentido negativo, mediante a técnica dos incentivos fiscais e das renúncias tributárias, em benefício das empresas encaradas como fonte de emprego. Neste último aspecto, assumem relevo tanto a criação de postos de trabalho como a conservação dos atuais, evitando que a crise econômica provoque o fechamento de muitas delas, agravando o problema do desemprego.

6. À guisa de conclusão: a responsabilidade social do Estado e a exigibi-lidade em juízo dos direitos sociais

No capitalismo maduro ou avançado, o Estado assume responsabilidade social: não é apenas Estado democrático de direito mas se torna Estado social (Estado social de Direito). Obriga-se a respeitar os direitos fundamentais da primeira família (os direitos da liberdade, ou liberdades públicas) mas também assume o ônus de cumprir os deveres decorrentes do respeito aos direitos fundamentais da segunda família (os direitos sociais). Se, no cumprimento da primeira tarefa, sua atividade se exerce mediante aplicação de recursos destinados às atividades essenciais (manutenção da ordem, segurança pública, forças armadas, administração da justiça e diplomacia), no cumprimento da segunda depende da inversão de verbas específicas. Num como noutro caso, os tributos são arrecadados e aplicados para satisfação das necessidades sociais. Daí a função social do tributo.

No desenvolvimento de sua atividade, o Estado assume, em conseqüência, responsabilidade social. O Estado democrático de direito de coloração social é o Estado da responsabilidade social. Ele assume uma responsabilidade que o Estado liberal estava longe de querer assumir. Nos tempos atuais, o Estado não pode declinar dessa responsabilidade, a qual justifica, de certa forma, sua própria existência.

Onde há responsabilidade, surge em contrapartida a exigibilidade do cumprimento dos deveres inerentes à função social exercida. Se os tributos são arrecadados para possibilitar o cumprimento das tarefas que lhe incumbem como devedor das prestações sociais, o Estado há de dar conta da destinação adequada dos recursos tributários, em primeiro lugar mediante o planejamento realista e eficiente de políticas públicas destinadas à satisfação dos referidos direitos; em segundo lugar, pela distribuição orçamentária dos recursos, na verdade escassos, mas que devem tornar-se suficientes em face da conjuntura econômica; em terceiro lugar, pelo cumprimento das obrigações daí decorrentes, mediante aplicação escorreita das verbas orçamentárias.

Se o Estado falhar no cumprimento desses deveres, qualquer que seja a faceta

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pela qual eles se apresentam, a responsabilidade desponta. O inadimplemento de qualquer dessas obrigações acarreta a responsabilidade do Estado, abrindo espaço para a postulação em juízo do respectivo cumprimento.

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Tratados sobre direitos humanos e a Emenda Constitucional nº 45/04

Kiyoshi HaradaProfessor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Mem-bro do Conselho Superior de Estudos Jurídicos e Legislativos

da Fiesp – Conjur.

Sumário: 1. Introdução. 2. Direitos e garantias fundamentais. 3. O § 2º do art. 5º da Constituição Federal. 4. O § 3º do art. 5º da Constituição Federal acrescido pela EC nº 45/04. 5. Conclusões.

1. Introdução

A formulação da ordem constitucional no mundo atual está a exigir especial atenção à normatização internacional tendo em vista a universalização de problemas de toda ordem, como decorrência da globalização, onde predomina o econômico sem fronteiras.

Afirma José Joaquim Gomes Canotilho com habitual sapiência:

A globalização internacional dos problemas (‘direitos humanos’, ‘proteção de recursos’, ‘ambiente’) aí está a demonstrar que, se a ‘constituição jurídica do centro estadual’, territorialmente delimitado, continua a ser uma carta de identidade política e cultural de uma mediação normativa necessária de estruturas básicas de justiça de um Estado-Nação, cada vez mais ela se deve articular com outros direitos, mais ou menos vinculantes e preceptivos (hard law), ou mais ou menos flexíveis (soft law), progressivamente forjados por novas ‘unidades políticas’ (‘cidade mundo’, Europa comunitária’, ‘casa européia’, ‘unidade africana’).1

A Constituição Federal de 1988 caminhou em direção a um sistema de cooperação com outros povos e harmonização de seus textos com os princípios e regras de direito internacional, incorporando normas transnacionais, como se vê do 1 Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1993, p. 18.

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art. 4º, IX e parágrafo único, bem como do art. 5º, § 2º da CF:

Art. 4º - A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:[...]IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade.Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.Art. 5º, § 2º:Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

Pode-se afirmar que o Brasil abriga em seu ordenamento jurídico global um micro sistema jurídico composto de normas de tratados e convenções internacionais de que participa.

No presente estudo procuraremos situar a posição hierárquica dos tratados internacionais que versam sobre os direitos humanos mediante o confronto dos §§ 2º e 3º do art. 5º da CF.

2. Direitos e garantias fundamentais

Prescreve o art. 5º da Constituição Federal:

Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:[...]LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.

Esse art. 5º está inserido no Capítulo I, concernente aos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, do Título II referente aos Direitos e Garantias Fundamentais.

O que são direitos individuais? São prerrogativas instituídas aos indivíduos em contraposição ao poder político do Estado, ou para se contrapor aos interesses dos

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demais indivíduos.

O que são garantias? São institutos que visam a manutenção e a efetividade dos direitos. As garantias atuam no plano da prevenção, ao contrário dos remédios constitucionais que operam no plano da repressão.

O conceito de direitos fundamentais encontra dificuldades a começar pela existência de inúmeras expressões designativas: direitos dos homens, direitos humanos, direitos naturais, direitos individuais, direitos públicos subjetivos, direitos fundamentais do homem, liberdades públicas etc.

A doutrina majoritária adota a expressão Direitos Fundamentais do homem significando a delimitação de uma área de atuação autônoma do indivíduo, onde ao Estado não é dado intervir. Nessa área delimitada o Estado só pode atuar negativamente. Por isso, direitos fundamentais não são apenas aqueles enumerados no art. 5º da CF como, aliás, ressalvados no seu § 2º. Tudo que representar um “NÃO” ao poder político do Estado configura direito fundamental.

Os incisos XXXV a LXXVIII do art. 5º da CF contêm, ao mesmo tempo, a declaração do direito e a respectiva garantia. A violação desses direitos fundamentais implica, ipso fato, desrespeito ao sistema de garantia, ensejando o uso de remédio constitucional para restabelecimento do direito consagrado pela Constituição Federal e protegido por cláusula pétrea (habeas corpus, habeas data, mandado de segurança, mandado de injunção, direito de petição e ação popular).

3. O § 2º do art. 5º da Constituição Federal

Para perfeita compreensão da matéria é conveniente examinar o § 2º, do art. 5º da Carta Política vigente em confronto com o § 36 da ordem constitucional antecedente.

Art. 5º, § 2º da CF de 1988:Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.Art. 153, § 36 da CF de 1967-69:A especificação dos direitos e garantias expressas nesta Constituição não exclui outros direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios que ela adota.

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A diferença de redações salta aos olhos. Dúvida não pode haver de que a parte final daquele § 2º procedeu à incorporação, ao rol dos direitos e deveres individuais e coletivos previstos no caput do art. 5º, dos direitos e garantias decorrentes de tratados e convenções internacionais de que o nosso país seja parte. Atribuiu a esses direitos e garantias a mesma hierarquia de norma constitucional. Os direitos e garantias fundamentais decorrentes de tratados são, portanto, igualmente protegidos pela cláusula pétrea (art. 60, § 4º, IV da CF).

É verdade que se trata de preceito constitucional de natureza aberta, a não permitir vislumbrar, de pronto, quais seriam esses direitos e garantias fundamentais.

Porém, é certo que a unanimidade dos constitucionalistas reconhece a existência de três grupos de direitos individuais albergados pela Constituição: (a) direitos individuais expressos, elencados nos diferentes incisos do art. 5º; (b) direitos individuais implícitos, que são aqueles subentendidos por decorrerem do regime e dos princípios adotados pela Constituição; e (c) direitos individuais que derivam de tratados internacionais subscritos pelo Brasil.

Portanto, esse caráter aberto do último grupo de direitos e garantias individuais em nada afeta a sua natureza de norma constitucional protegida por cláusula pétrea.

Todos os tratados e convenções internacionais firmados pelo nosso país e aprovados pela forma prevista na Carta Magna então vigente foram recepcionados pela Constituição Federal de 1988 com a hierarquia de norma constitucional.

Oportuna a lição de Canotilho, neste particular:

O programa normativo-constitucional não pode se reduzir, de forma positivística, ao ‘texto’ da Constituição. Há que se densificar, em profundidade, as normas e princípios da constituição, alargando o ‘bloco da constitucionalidade’ a princípios não escritos, mas ainda reconduzíveis ao programa normativo-constitucional, como formas de densificação ou revelação específicas de princípios ou regras constitucionais positivamente plasmadas2.

Esses tratados e convenções internacionais aprovados até a vigência da Constituição de 1988, porém, antes da EC nº 45/04, adiante examinada, são

2 Op. cit., p. 982.

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materialmente constitucionais, compondo o bloco de constitucionalidade.

Contudo, a doutrina majoritária orientou-se no sentido de que os tratados internacionais têm a mesma hierarquia de lei ordinária geral, com a conseqüente aplicação da regra de direito intertemporal, segundo a qual, lei posterior revoga lei anterior que seja com ela incompatível.

Essa teoria da natureza infraconstitucional dos tratados, para alguns autores, é extraída da interpretação do art. 102, III, “b” da CF, que confere ao STF a competência para julgar, mediante recurso extraordinário, “as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal”.

Assevera Flávia Piovesan que “à luz deste dispositivo, uma tendência da doutrina brasileira passou a acolher a concepção de que os tratados internacionais e as leis federais apresentavam mesma hierarquia jurídica, sendo portanto aplicável o princípio ‘lei posterior revoga lei anterior que seja com ela incompatível’”.3

Há duplo equívoco nessa linha de raciocínio.

Primeiramente, a competência do Supremo Tribunal Federal para julgar definitivamente quanto à constitucionalidade de leis e de tratados decorre da sua condição de guardião da Constituição. Se o Congresso Nacional, inadvertidamente, aprovar um tratado inconstitucional é dever do Supremo Tribunal Federal, quando provocado, declarar a sua inconstitucionalidade, ou, ao reverso, julgar constitucional, quando for o caso, o tratado que tenha sido declarado inconstitucional em instâncias ordinárias.

Como se pode notar da precisa lição de Oscar Tenório, o conflito de normas se limita entre as normas constitucionais e as de tratados:

Pela natureza do sistema constitucional brasileiro, o tratado perde sua força quando colide com a Constituição Federal. Todavia, modernas correntes doutrinárias sustentam a supremacia dos textos convencionais. Numa colisão entre o texto da Constituição e o tratado, dá-se preferência a este. As regras convencionais anteriores a uma Constituição continuam em vigor, ainda que o Poder Constituinte tenha adotado princípios incompatíveis

3 Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 4. ed. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 81.

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com os tratados em vigor. E vão além, afirmando que tratados celebrados posteriormente à Constituição são válidos, ainda que suas regras colidam com o texto constitucional. São os adeptos da supremacia do direito internacional que defendem esses princípios. Campo de pura doutrina, em contraste com o direito positivo interno. Tratados inconstitucionais no Brasil, sendo a inconstitucionalidade decretada pelo Judiciário, não obrigam. E o Estado contratante estrangeiro não encontrará, na órbita jurídica brasileira, meios coativos para o cumprimento de direito convencional inconstitucional. A matéria cai no âmbito da responsabilidade internacional, sujeita às medidas e aos remédios que o direito das gentes possuem.4

Sabemos que a nossa Corte Suprema jamais aceitaria a tese da supremacia dos dispositivos de tratados em relação aos textos constitucionais.

Em segundo lugar, não há que se falar em aplicar aos tratados as regras de direito intertemporal, porque eles são sempre atos de governo, não uma lei em sentido estrito, tanto é que o Congresso Nacional não legisla, limitando-se a aprová-los por meio de Decreto Legislativo (art. 49, I c.c. art. 59, VI da CF).

De fato, dispõe a Carta Política:

Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:I – resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional.

Ora, o verbo “resolver” é incompatível com o ato de legislar. Aprovar o tratado é assunto que se insere no âmbito de exclusiva competência do Congresso Nacional. E ao aprovar o tratado, por meio de Decreto Legislativo, o Congresso não legisla em caráter de norma geral e abstrata, limitando-se a editar normas individuais de natureza concreta. Aliás, quando o texto constitucional prescreveu que compete ao Congresso Nacional “resolver” definitivamente sobre tratados, à toda evidência, quis o legislador constituinte que a vontade do Estado, parcialmente expressada pelo Poder Executivo, fosse completada com a final manifestação do Poder Legislativo, dentro do princípio da independência e harmonia dos Poderes, que representa um sistema de freios e contrapesos, de sorte que nenhum dos Poderes pode fazer o que bem entender sem que os demais Poderes intervenham. Afinal, assinar tratado é o

4 Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro. Rio de Janeiro: Borsoi, 1955, p. 86.

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mesmo que assinar contrato. Envolve manifestação volitiva do Estado, expressa pelos Poderes Executivo e Legislativo.

Por isso, diz com habitual propriedade Manoel Gonçalves Ferreira Filho:

[...]. Ora, sobre as matérias de competência exclusiva do Congresso arroladas na atual Constituição pelo art. 49, não cabe a normatividade abstrata característica de lei propriamente dita.De fato, os itens do art. 49 atribuem ao Congresso o ‘resolver’, o ‘autorizar’ ou ‘permitir’ ou ‘aprovar’ ou ‘sustar’, o ‘mudar’, o ‘fixar’, o ‘julgar’, o ‘deliberar’, e só a menção desses verbos já mostra que se está em face de questões sobre as quais o constituinte quis deixar a decisão última ao Congresso, especialmente como forma de fiscalização do Poder Executivo. Somente os itens VII e VIII sobre a fixação da remuneração, respectivamente, de Deputados e Senadores e do Presidente e Vice-Presidente da República é que dão azo à edição de normas gerais. As outras individuais não é matéria considerada como pertencente ao ‘processo legislativo’, nem ao ‘processo normativo’, em sentido estrito5.

Inaplicável, portanto, o disposto no art. 2º e parágrafos da Lei de Introdução ao Código Civil, Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942.

O tratado vigora até que seja extinto por uma das seguintes hipóteses:

a) execução integral;

b) expiração do prazo previsto;

c) verificação de uma condição resolutória;

d) acordo mútuo;

e) denúncia (renúncia unilateral);

f) impossibilidade de execução.

4. O § 3º do art. 5º da Constituição Federal acrescido pela EC nº 45/04

A posição majoritária da doutrina e da jurisprudência em torno da hierarquia dos tratados, equiparando-os à lei ordinária genérica na linha do decidido no RE nº

5 Curso de direito constitucional. 30. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 214.

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200.385-RS6, onde restou proclamada a prevalência do diploma legal específico, o Decreto Lei nº 911/697, sobre o Pacto de São José da Costa Rica, que proíbe a prisão por dívidas, ao que pensamos, levou o Congresso Nacional a promulgar a EC nº 45, de 8 de dezembro de 2004, acrescentando o § 3º ao art. 5º da Constituição Federal, nos seguintes termos:

§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

Conferiu-se o status de emenda constitucional aos tratados que versarem sobre direitos humanos, desde que aprovados por meio do processo legislativo próprio para aprovação de emendas.

Outrossim, essa Emenda veio à luz para contornar a dificuldade na aplicação do § 2º do art. 5º da CF que implica mudança constitucional por maioria simples (art. 49, I c.c. art. 59, VI da CF). De fato, o art. 7º, cláusula sétima do Pacto de São José da Costa Rica aprovado pelo Decreto Legislativo de nº 27, de 25 de setembro de 1992, e promulgado pelo Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992, que proíbe a prisão do infiel depositário, dentro de uma interpretação literalista, teria revogado o inciso LXVII, do art. 5º da CF que possibilita essa prisão. Todavia, a tese da prevalência de normas convencionais não tem guarida entre nós tendo em vista o princípio da supremacia da Constituição sobre atos normativos internacionais de que não abre mão o Pretório Excelso Nacional.

Pode-se afirmar, contudo, que a legislação infraconstitucional – o Decreto-Lei nº 911, de 1º de outubro de 1969, e o art. 652 do Código Civil – que prescreve a prisão de depositário infiel deixou de ter eficácia com a adesão do Brasil ao Pacto de São José da Costa Rica. Em outras palavras, não há mais base legal para a aplicação da parte final do inciso LXVII, do art. 5º da CF, e nem poderá vir a ter enquanto não denunciado o Tratado por meios próprios. Vale dizer, o próprio texto constitucional perdeu aplicabilidade, o que na prática equivale a uma revogação.

Como vimos, os tratados em geral, inclusive sobre os direitos humanos, aprovados anteriormente à EC nº 45/04 em nada foram afetados. Continuam

6 RE nº 200.385-RS. Relator: Min. Moreira Alves, j. em 2-12-97, DJU de 6-2-98, p. 38.7 Permite a prisão de depositário infiel.

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sendo materialmente constitucionais, independentemente do “quorum” qualificado estabelecido pela Emenda nº 45.

Certamente, esse § 3º, acrescido pela EC nº 45/02, trará muitas discussões doutrinárias e jurisprudenciais. Afasta-se, contudo, desde logo, a interpretação no sentido de que os tratados sobre direitos humanos firmados e aprovados antes da EC nº 45/04 teriam sido recepcionados como leis federais. Interpretação nesse sentido afronta o que está expresso na parte final do § 2º do art. 5º da CF que inclui no bloco de constitucionalidade os direitos e garantias decorrentes de tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Tratados anteriores têm, portanto, status de norma constitucional do ponto-de-vista material.

Há quem sustente que esse § 3º tem natureza de uma lei interpretativa para encerrar as controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais acerca do § 2º do art. 5º da CF. Mas, também, comporta interpretação no sentido de que a EC nº 45/04 veio agravar o processo de aprovação de tratados internacionais, que versam sobre os direitos humanos, impondo-se a observância de “quorum” especial para merecerem a hierarquia constitucional.

O que se pode sustentar com razoabilidade é que esse § 3º veio conferir aos tratados que versam sobre direitos humanos o status de norma constitucional, material e formalmente ao serem aprovados por “quorum” qualificado. Isso não significa que outros tratados que versem sobre outras matérias (acordos para evitar bitributação, negociação de tarifas específicas etc.) devem submeter-se para sua aprovação ao processo legislativo próprio de uma Emenda Constitucional, ou seja, aprovação em dois turnos com votos de três quintos em cada uma das Casas do Congresso Nacional.

Por isso, forçoso reconhecer que vigoram atualmente duas espécies de tratados: (a) os tratados tradicionais de cunho comercial ou tributário, aprovados por maioria simples, gozando de status constitucional; e (b) os tratados sobre direitos humanos aprovados por “quorum” qualificado tendo a mesma hierarquia de preceito constitucional se aprovados em dois turnos por três quintos de votos em cada uma das Casas do Congresso Nacional, salvo se aprovados antes do advento da EC nº 45/04.

Conseqüentemente, com a introdução do § 3º ao art. 5º da CF passaram a coexistir duas categorias de tratados que versam sobre direitos humanos: os materialmente

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constitucionais por força do § 2º do art. 5º, e os material e formalmente constitucionais, na dicção do § 3º do art. 5º da CF, equivalentes às emendas constitucionais.

A Emenda nº 45/04 teve o mérito de suscitar maior reflexão sobre a hierarquia dos tratados internacionais na doutrina e na jurisprudência. No Supremo Tribunal Federal há uma tendência de revisão da tese que admite a prisão do depositário infiel, conforme oito votos já proferidos no RE nº 466.343-SP, Rel. Min. Cezar Peluso. O voto proferido pelo eminente Min. Celso de Melo foi no sentido de aplicar não o § 3º, mas o § 2º do art. 5º da CF8.

5. Conclusões

1. Os tratados sobre direitos humanos aprovados até o advento da EC nº 45/04, por maioria simples, tem status de norma constitucional. Por força do § 2º do art. 5º da CF, eles integram o bloco de constitucionalidade material.

2. Os tratados sobre direitos humanos aprovados após a EC nº 45/04, observado o “quorum” especial, são material e formalmente constitucionais.

3. Tratados e convenções internacionais de natureza comercial ou tributária podem ser aprovados por maioria simples mesmo após o advento da EC nº 45/04, tendo a hierarquia de norma constitucional do ponto-de-vista material.

4. A partir da vigência da Constituição de 1988, a legislação infraconstitucional prevendo prisão de depositário infiel perdeu aplicabilidade em face da adesão do Brasil ao Pacto de São José da Costa Rica em 1992, circunstância que restou reafirmada com o advento da EC nº 45/04.

5. Em conseqüência do afirmado no item anterior, a parte final do inciso LXVII, do art. 5º da CF perdeu suporte legal, que não poderá ser restabelecido enquanto em vigor o Pacto de São José da Costa Rica.

8 O oitavo voto proferido recentemente pelo Min. Celso de Mello foi no mesmo sentido de voto que ele proferira anteriormente no HC nº 87.585-8/Tocantins, onde ficou assentada a tese de que o “Pacto de São José da Costa Rica foi incorporado, em 1992, ao direito positivo interno do Brasil, como estatuto revestido de hierarquia constitucional, por efeito do § 2º do art. 5º da Constituição da República”.

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Direito e democracia nas sociedades complexas

Humberto Eustáquio César Mota Filho

Advogado do BNDES. Mestre em Direito pela UCAM; Pós-graduado em Direito da Economia e da Empresa pela FGV;

Pós-graduado em Projetos Financeiros pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Introdução

As sociedades complexas do fim do século XX e início do séc. XXI, representadas, em sua grande maioria, pelas comunidades democráticas ocidentais de economia capitalista, tem demandado, cada vez mais, uma resposta teórica e prática do direito, no sentido de um equacionamento das perplexidades, angústias e paradoxos do homem pós-moderno.

O papel do direito e a sua legitimidade nas democracias ocidentais pós-modernas é questão fundamental que se coloca aos interessados em construir ou reconstruir uma autonomia e uma independência do direito e em investigar as possibilidades deste campo do conhecimento humano.

O direito ou a ciência do direito, suas relações com a política e a sociedade, tem sido estudado, teorizado e problematizado por autores como Kant, Kelsen, Luhmann, Habermas. Cada um desses autores, a seu tempo e segundo suas preocupações específicas, nos fornecem importantes contribuições no sentido de melhor compreender o papel do direito na sociedade.

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O presente trabalho objetiva, a partir do destaque das contribuições teóricas de Kant, Kelsen, Luhmann e Habermas para a filosofia do direito, para a teoria do direito e para sociologia do direito, traçar, em linhas gerais, um quadro do papel do direito, da sua legalidade e da sua legitimidade no Estado Democrático de Direito.

No primeiro capítulo são abordados, sucintamente, a lei universal do direito de Kant, a Teoria Pura do Direito de Kelsen, a Teoria dos Sistemas de Luhmann, a Teoria do Discurso de Habermas, de modo a fixar algumas das contribuições fundamentais desses autores no estudo do direito. Já na segunda parte, procura-se analisar qual tem sido a resposta do Estado Democrático de Direito diante dos desafios da crise da modernidade.

1. Direito, modernidade e pós-modernidade

1.1. Teoria, filosofia e ideologia

Qual o sentido em diferenciar teoria, filosofia e ideologia? Fala-se que o conhecimento pode se apresentar como teoria, doutrina ou ideologia. Como isto se dá?

Parte-se do pressuposto de que a doutrina procura explicar, por exemplo, um fenômeno do mundo da vida e para tanto insiste na resposta e apresenta uma crença nessa resposta fornecida. Nesse sentido, diz-se que as doutrinas aproximam-se mais das explicações religiosas do que as teorias.

Por sua vez, as teorias muitas das vezes concentram-se na importância das constantes indagações e questionamento de certezas estabelecidas na direção da compreensão de um problema, aproximando-se de um conhecimento científico. A resposta teórica aos problemas propostos deve ser construída e será de antemão incompleta e insuficiente, mas nem por isto deve-se deixar de considerar os resultados alcançados e insistir na busca dessa resposta.

Na pós-modernidade, mesmo o conhecimento teórico não é mais visto como desvinculado de compromissos ou interesses, velados ou não. Nesse contexto, qualquer esforço teórico que se pretenda desinteressado ou descompromissado de algum contexto histórico, cultural ou social já passa a ser considerado suspeito das suas reais intenções científicas.

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Já em Descartes, percebe-se que a possibilidade do conhecimento passa pela percepção do sujeito e não apenas pelo objeto. Uma das grandes questões sempre foi como estender os conhecimentos aos objetos metafísicos.

Para Kant, o ser humano tem faculdades que permitem o conhecimento, uma capacidade transcendental de conhecer. Mas também há limites à capacidade do conhecimento. Assim, por exemplo, a liberdade, como fenômeno, não como essência, pode ser estudada pela metafísica.

Não é absurdo dizer que a modernidade apresentou a técnica e a ciência como ideologia, ao tomar como certo os benefícios e o progresso contínuo da sociedade através da ciência e somente pela ciência. O projeto da modernidade admite a exclusão da religião e inaugura o antropocentrismo, pelo qual natureza e o meio ambiente deveriam sempre servir ao homem.

São criadas as bases para a construção de um novo conhecimento que foi novamente questionado no séc XX, por conta, em grande parte, das guerras mundiais e dos embates sociais da chamada “luta de classes”. No séc XX a pluralidade de ideologias pode estar relacionada com a própria incerteza do conhecimento.

Em se tratando de uma ciência social como o direito, há um postulado de neutralidade axiológica importado das ciências sociais que precisa ser apreciado, para ser afirmado ou refutado.

Se, atualmente, as próprias ciências biológicas e físicas têm sua neutralidade axiológica questionada, seja a partir da escolha do objeto a ser estudado, das motivações do sujeito observador e mesmo das diferenças apresentadas nas reações daquilo que se observa (física quântica), como defender a neutralidade axiológica das ciências sociais?

Na seara do direito, é preciso questionar se a doutrina do positivismo jurídico se aplica pura, exclusiva e indistintamente a qualquer direito ou em qualquer sociedade ou se no estágio atual das sociedades complexas há outra alternativa, ou mesmo uma nova interpretação do positivismo jurídico.

O direito, ontologicamente, não surge para garantir o Estado, mas sim para estabelecer um equilíbrio ou uma sustentabilidade entre pessoas e coisas. Assim, se numa abordagem filosófica indaga-se qual é o fundamento ou essência das coisas, na abordagem filosófica do direito, indaga-se qual é o fundamento do direito. Se,

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por outro lado, se quisesse saber qual é o fundamento do estado, partir-se-ia para a teoria geral do estado.

As ideologias, longe de se preocuparem com a essência das coisas, podem até possuir um fundamento filosófico, mas mesmo assim elas não se confundem com a filosofia, pois se aquelas buscam explicar o funcionamento das sociedades segundo uma crença, essa procurar explicar a essência das coisas.

Já na Grécia Antiga, o direito criado na Polis deveria ter uma baliza de valores que o referenciaria na sua aplicação. A repartição de bens não seria então arbitrária, ela seria informada por valores de justiça.

Numa abordagem aristotélica, teleológica ou do telos das coisas, pode-se afirmar que a base da ciência jurídica ou o seu pressuposto encontra-se na sua finalidade ou essência e não em formas preestabelecidas.

Os consensos sobre o que seja justiça ou igualdade em dada sociedade ou comunidade são históricos, influenciáveis pelas ideologias, mas os valores ou as finalidades do direito são deduzidos de uma abordagem filosófica.

Questionamentos filosóficos permitiram que a dialética dos gregos (Aristóteles) fosse usada pelos romanos, na experiência jurídica, na criação dos institutos do direito e permitiu a busca do senso comum (experiência) e a criação de máximas, depois conhecidas como princípios. Após, o conhecimento dialético conheceu um importante resgate, na obra hegeliana, já na modernidade.

Esse conhecimento dialético, resgatado na filosofia hegeliana, foi aproveitado por Marx, no desenvolvimento das suas teses e ideologias classistas, sobre o funcionamento da sociedade capitalista do séc XIX, no esquema da tese, antítese e síntese.

Em função disso, é possível dizer que a busca do conhecimento da essência da justiça e da igualdade é uma busca filosófica e não ideológica. Nem por isso se diga que a filosofia afasta ou exclui a ideologia, pois elas atuam em campos diferentes de justificativa.

1.2. A lei universal do direito de Kant

Se entendermos a modernidade cultural segundo a caracterização de Weber, “é possível pensar a filosofia kantiana como sendo a expressão filosófica da

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modernidade.”1

Kant separava rigorosamente as esferas da moral, do direito e da política em sua filosofia. Assim, a filosofia kantiana se adequa à modernidade, pois, segundo Weber, “o processo de modernização na cultura se dá pela diferenciação de esferas de valor.”2 Nesse sentido, a modernidade quebra a articulação que havia entre o saber, a ética e o direito.

A modernidade expressa na filosofia de Kant influenciou os domínios da moral e do direito. A elaboração de princípios de conduta, tanto morais, quanto jurídicos, independentes da religião, da ciência e das artes, levou Kant à seguinte pergunta: “como é possível fundamentar de maneira independente a ética e o direito?” E, indo mais além, como a moral pode valer universalmente? Ou, para fins do presente estudo, que critérios poderiam ser adotados para fundamentar um direito universal?

Na visão kantiana, nem a moral, muito menos o direito podem ser justificados pela religião, pois dessa maneira seus fundamentos residiriam em Deus e na revelação divina, interpretada pela Igreja, e não na própria esfera moral. A moral e o direito também não podem se fundar na tradição, pois esta varia de comunidade para comunidade, e não se pode garantir a universalidade pretendida.

Para superar tais obstáculos, Kant constrói a noção de imperativo categórico, que comanda absolutamente, conforme se nota da Fundamentação da Metafísica dos Costumes3:

Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal.

Para Kant a máxima será moral quando for universalizável e o imperativo categórico é o procedimento para testar as regras subjetivas que possam ser formuladas genericamente. Daí se falar em moral kantiana como moral procedimental.

A moral kantiana é procedimental, pois atende a uma forma para testar qualquer princípio moral, independentemente do seu conteúdo. Pelo imperativo categórico, trata-se de uma moral que independe das esferas culturais e religiosas.

1 TERRA, Ricardo R. Kant e o direito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004, p. 9.2 Ibid., p. 9.3 KANT apud TERRA, p. 9.

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As leis ou regras de condutas que são formuladas, seja na moral ou no direito, devem ser obedecidas, não pela força da tradição ou pela imposição da revelação divina, mas porque foram elaboradas por nós, que como seres racionais e livres assim escolhemos.

Aplicando o raciocínio kantiano no âmbito do direito, pode-se afirmar que as leis não devem ser cumpridas pelos cidadãos apenas pela possibilidade de coerção estatal por meio do uso da força ou poder, mas porque num Estado de Direito os comandos legais são racionais.

A lei universal do direito kantiana também é formulada em termos universais, consubstanciando-se em mais uma máxima:

Age exteriormente de tal maneira que o livre uso de teu arbítrio possa coexistir com a liberdade de cada um, segundo uma lei universal.4

Nesse sentido, a racionalidade condiciona a liberdade e o ordenamento jurídico supõe a racionalidade do comando legal. Assim, o Estado só pode ser objeto de obediência se seus comandos forem racionais.

Para Terra5 a noção kantiana de governo republicano e de constituição republicana, por confirmarem um compromisso com princípios fundados na razão e em instituições duradouras, é mais significativa do que as idéias de democracia direta e democracia representativa. Essas idéias de democracia, por sua vez, não conteriam o elemento essencial previsto na constituição republicana, que diferenciara um governo republicano e um Estado liberal de um governo arbitrário e um Estado despótico:

A constituição republicana é aquela que se funda primeiramente no princípio da liberdade dos membros de uma sociedade (como homens); em segundo lugar, no princípio da dependência de todos em relação a uma legislação única e comum (como súditos); e em terceiro lugar, na lei da igualdade de todos (como cidadãos) – é a única que provém da idéia do contrato originário, sobre o qual deve ser fundada a legislação jurídica de um povo.

Ao comentar as idéias de Kant sobre a constituição republicana, Terra6 deixa

4 Ibid., p. 9.5 Ibid., p. 46.6 Ibid., p. 9.

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transparecer as influências da filosofia kantiana na constituição do Estado Liberal:

A constituição republicana é uma idéia da razão ligada à do contrato originário, reafirmando a liberdade civil, a igualdade dos homens, além de sua sujeição a um sistema legal, válido para todos, e que se origina na vontade unida do povo. Corresponde à idéia do direito dos homens e à da justiça, é uma constituição que garante a realização do direito, devendo para isso ser representativa.

Portanto, a razão livre dos homens expressa na constituição republicana é capaz de corresponder à realização do direito, correspondendo à idéia de igualdade e de justiça, e por isso deve ser obedecida.

Assim, idealmente, a razão é o caminho da justiça. Essa construção da racionalidade remonta aos gregos que “inventaram” a idéia de razão como um pensamento que segue princípios e regras de valor universal.7

Entretanto, o imperativo categórico kantiano não deu conteúdo às idéias de justiça e igualdade no estado republicano. O direito kantiano, assim como a moral, também demonstrou ser procedimental, dando importância crucial à forma das máximas, mas desconsiderando seu conteúdo.

As máximas universais de Kant para o direito possibilitaram a justificação do estado republicano e mesmo liberal, nos quais os direitos à liberdade e à igualdade eram formais.

A própria concepção de justiça no Estado moderno seria influenciada pelas formulações kantianas, mais uma vez privilegiando o caráter universal das leis e das regras de condutas em detrimento do seu conteúdo ou da materialidade dos comportamentos.

1.3. A Teoria Pura do Direito kelseniana

O normativismo jurídico de Kelsen retoma o positivismo jurídico do séc XIX, fortemente influenciado pelo racionalismo kantiano, mas supera algumas lacunas desse racionalismo que fragilizavam a aplicação do direito.

7 BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n.59, out.2002. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?.id=3208 >. Acesso em 20 set. 2004.

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Para Kelsen o direito vai existir enquanto manifestação do poder político da autoridade estatal. E o ordenamento jurídico será composto de normas jurídicas emanadas pelo Estado, dispostas de maneira escalonada (“pirâmide de Kelsen”).

Em Kelsen, a ordem normativa é um dever ser, mas nem por isto ela deixa de ser. O dever ser é algo que se apresenta ao mundo pelo sujeito, nesse sentido é fenomenológica, ou seja, se desaparecer a sociedade, desaparece o direito.

A causalidade explica o mundo do ser, da natureza. Mas o mundo do dever ser, o universo das vontades não pode ser atribuído a outros seres animados, mas somente ao ser humano. A vontade permite que se adotem diferentes condutas, que por sua vez possibilitam um agir diferenciado dentre as possibilidades do agir.

Assim, tudo passa a ser explicado a partir da norma, sob a ótica da norma ou ainda sob a normatividade específica. Pode-se dizer que a norma funciona como um esquema de interpretação.

Na visão kelseniana, a norma fundamental é a matriz do ordenamento jurídico e pressuposto de validade das normas. Cada norma retira o seu fundamento de validade da norma que lhe é imediatamente superior. Em Kelsen, pode-se afirmar ainda, que a norma fundamental é verdadeira ou falsa, caso se apresente ou não como expressão do poder vigente.

O modelo de ciência de direito adequado para Kelsen implica a adoção de uma esfera abstrata, ideal e não sensível regida pelo princípio de imputação descrito no esquema:

Se A é, B deve ser

É um modelo de ciência do direito como “dever ser”. Mas nem por isto Kelsen confunde os comandos da moral com as normas do direito. Assim como Kant, há uma separação entre as esferas da moral e do direito.

Kelsen visa ao estabelecimento de uma teoria pura do direito, aplicada a qualquer sistema jurídico, numa tentativa de universalização de um conhecimento que também encontra paralelo na busca de Kant.

A partir da Teoria Pura do Direito, concebe-se um campo próprio e bem delimitado para a investigação do direito, não passível de interferências estrangeiras, fundada no caráter hierárquico e na autoprodução do direito.

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Ao conferir ao Direito um campo próprio de investigação, Kelsen conclui ser a normatividade o elemento específico dessa investigação. A partir daí desenvolve-se uma metodologia própria para a análise do direito, enquanto ciência diferente das demais ciências.

Contudo, Kelsen não vai estender o conceito de norma até os chamados princípios de direito, pois o descumprimento dos princípios não é sancionado, e portanto estes não podem ser considerados como normas, em sentido kelseniano, mesmo porque se um determinado fato não estiver sancionado por norma, ele será permitido. O reconhecimento dos princípios como norma é ir além de Kelsen, como se dá em Alexy.

Pode-se dizer que, uma vez que a norma jurídica, produzida segundo a hierarquia da pirâmide de normas kelseniana, esteja formalmente de acordo com os procedimentos legislativos, essa norma será considerada válida no sistema do seu respectivo ordenamento jurídico, não importando quaisquer outras considerações adicionais sobre a justiça ou injustiça dessa norma, por exemplo.

Na Teoria Pura do Direito não há espaço para conceitos indeterminados e cambiáveis de sociedade para sociedade ou de cultura para cultura. A justiça e a igualdade são decisões políticas e que uma vez delineadas pelo poder político não interferem na moldura jurídica proposta por Kelsen, em forma de pirâmide.

Assim, para Kelsen, a diferença existente entre um ladrão qualquer e o Estado de Direito, é que o último expropria patrimônio alheio, pela cobrança de tributos, a partir do pressuposto de uma norma fundamental que lhe deu poder e autoridade suficiente para tanto, enquanto que o primeiro por não ter poder ou autoridade para alterar essa norma fundamental está sujeito a uma ordem jurídica que o condena por furto ou roubo.

Por seu turno, preocupações como a justiça e a igualdade, por estarem sujeitas ao campo autônomo da política, apesar da sua importância, não podem ser consideradas para integrar as preocupações do estudo da ciência do direito.

No pensamento kelseniano, traçada a moldura de um ordenamento jurídico coerente, as considerações acerca da justiça e da igualdade deverão ser postas pelos políticos ou pelos cientistas sociais, mas não pelo estudioso da ciência do direito, pois o campo do conhecimento deste último não abarcaria essas preocupações.

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Barroso8 reúne algumas das principais características desse direito puro e idealizado, tal como foi compreendido pelos liberais: a) caráter científico; b) emprego da lógica formal; c) pretensão de completude; d) pureza científica; e) racionalidade da lei e neutralidade do intérprete. Essa lista de características bem demonstra a significativa influência do pensamento kelseniano na construção do pensamento jurídico liberal.

A Teoria Pura tem o seu lugar no Estado de Direito, o papel representado pela teoria analítica conceitual é amplamente reconhecido, inclusive por vários críticos de Kelsen.

Ao formular sua Teoria Pura do Direito, Kelsen não está buscando necessariamente a coerência do direito, mas sim a coerência ou super-coerência da sua teoria. Que pode ou não ser empregada na construção do direito.

Assim, a partir do século XIX, para os liberais, o Direito estava voltado à produção da ordem e da justiça formais, com equilíbrio e igualdade formais, pela revelação do comando geral e abstrato da lei.

A grande utopia kelseniana foi tentar construir uma teoria que pudesse dar sustentação a uma estrutura sistêmica para ser aplicada em qualquer sociedade. Contudo, essa construção teórica foi usada pelos nazistas, para subjugar os judeus e todos os seus inimigos políticos de forma arbitrária e injusta, o que demonstra a insuficiência da forma para o direito.

Ao não comportar elementos éticos ou morais, a Teoria Pura do Direito foi vítima de seus próprios méritos, pois a neutralidade científica, aplicada ao direito, abriu caminho para as arbitrariedades e as injustiças do regime nazista, que perseguiu o próprio Kelsen.

Nas palavras de Guerra Filho9, a insuficiência da teoria de Kelsen residiria no seu apego excessivo à perspectiva normativa,

sendo a norma, segundo ele, o “prisma explicativo” (Deutungschema) da realidade jurídica, quando a conduta é que instaura as significações cristalizadas das normas, e é ela que se deve tomar em consideração para compreender, adequadamente, as modificações por que passa um sistema normativo, sem por isso deixar de ser o mesmo sistema.

8 BARROSO, op. cit. 9 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Ensaios de teoria constitucional, p. 56.

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Assim, para Guerra Filho10, Kelsen teria cuidado predominantemente de questões “relacionadas à sintaxe, deixando de lado aquelas atinentes à pragmática do discurso normativo.” Contudo, é preciso que se diga, Kelsen não ignorou a relação entre valores e normas, os quais adquirem para ele um “sentido objetivo ao serem consagrados positivamente pelas primeiras”.

A coerência da Teoria Pura do direito kelseniana, levada às últimas conseqüências, ao pretender construir um sistema dedutível, sem contradições, contribuiu para a ciência do direito, mas desconsiderou que o direito, como ciência social, apresenta contradições e imperfeições, que ao invés de serem ignoradas, também podem ser assumidas e problematizadas.

O sujeito que observa e estuda a ciência do direito também é observado por ela. O direito traz um conteúdo cognitivo em seu conjunto de normas que consagram valores de forma relativa.

Após a Segunda Grande Guerra foi preciso reavaliar as idéias e teses que informaram o campo do direito no século XX, quanto a sua autonomia e cientificidade absolutas ou quase absolutas.

Na segunda metade do século XX, a necessidade urgente da reconstrução de valores morais e éticos, nas condutas e no agir humanos, levou à afirmação do Estado Democrático de Direito, nas civilizações ocidentais mais desenvolvidas e na rediscussão da autonomia do saber, da ética e do direito, o que significou rediscutir a própria modernidade, na sua concepção weberiana.

O postulado da neutralidade axiológica, conscientemente pretendido por Kelsen ao tratar da sua teoria pura do direito, não esgotou os paradoxos e os problemas do direito nas sociedades complexas.

1.4. A Teoria dos Sistemas de Luhmann

Luhmann11 interessa-se pela compreensão da complexidade da sociedade moderna. O postulado da neutralidade axiológica, conscientemente pretendido por 10 Ibid., p. 56.11 NEVES, Clarissa Eckert Baeta; SAMIOS, Eva Machado Barbosa (Orgs.). Niklas Luhmann: a nova teoria dos sistemas. Porto Alegre: UFRGS, Goethe-Institut/ICBA, 1997, p. 11.

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Kelsen ao tratar da sua teoria pura do direito, não esgotou os paradoxos e os problemas do direito nas sociedades complexas.

Para entender a complexidade da sociedade e seus sistemas e subsistemas, Luhmann identifica a necessidade de uma abordagem igualmente complexa.

Na visão desse filósofo, o principal traço característico do sistema social é a comunicação. Porém, a visão do fenômeno da comunicação em Luhmann difere substancialmente da visão de Habermas.

Luhmann12 se dedica ao estudo dos sistemas sociais como auto-referentes, autopoiéticos, compostos de comunicação:

O conceito de comunicação em Luhmann é um processo de seleção que sintetiza informação, comunicação e compreensão. Como um processo auto-referente, comunicação não exclui consenso nem dissenso. Na comunicação pode haver consenso, mas isso não significa que as pessoas estejam mais próximas umas das outras. Cabe aqui observar que Habermas compreendia comunicação como ação comunicativa, isto é, um processo de compreensão intersubjetiva que visa um consenso motivado racionalmente. Comunicação transforma-se, para esse autor, num conceito normativo: é razoável chegar a um consenso.

Se em Kelsen pode-se afirmar que a norma fundamental é verdadeira ou falsa, caso se apresente ou não como expressão do poder vigente, já em Luhmann a norma fundamental é válida ou não. O pensamento luhmaniano já não retira das teorias positivistas do direito todas as respostas.

Em Luhmann a função dos sistemas do direito apresenta um sentido chave, pois o direito existe em função de si, mas ainda assim ele presta um serviço à sociedade. Desse modo, fala-se em função do direito.

Essa função a ser desempenhada pelo sistema do direito se dá através de um acoplamento estrutural entre o sistema fechado, tomando-se por base sua autonomia e sua autopoiese (produção e reprodução) e sistema aberto, no aspecto cognitivo, com os outros subsistemas.

Na visão luhmaniana o sistema é operativamente fechado e cognitivamente aberto. Assim, se o direito for feito a partir da religião ou da economia, não haverá a 12 Ibid., p. 16.

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autopoiese, ou seja, a autoprodução do direito.

Um sistema não está subordinado ao outro. A economia não pode ser gerenciada pelo direito e vice-versa. Porém o sistema não é fechado para a cognição de outros sistemas. Isto significa que há um potencial crítico ao pensamento que não é conformista.

O pensamento luhmaniano não é etnocêntrico, o humanismo seria uma fonte importante do problema da humanidade, no sentido particular de contrapor o homem com a natureza, quando aquele se utiliza do valor atribuído ao homem para se servir da natureza.

Não se deve perder de vista que Luhmann realiza um analise sociológica, ou seja, trata-se de um estudo objetivo das relações que surgem e se reproduzem com base na coexistência de diferentes sistemas em uma sociedade complexa, bem como das normas conscientes ou inconscientes que estas relações tendem a gerar na sociedade, na produção do conhecimento.

Assim, se Adam Smith dizia que a mão invisível das leis da economia age sobre o mercado, ao explicar as relações de trocas econômicas, Luhmann diz que a mão invisível age sobre os sistemas sociais, ao explicar as relações de troca de comunicação nas sociedades complexas.

Cada sistema realiza a autoprodução e a reprodução da comunicação que lhe é própria, com autonomia em relação aos demais sistemas. E, cada sistema, ao cumprir suas funções, com mais eficácia, proporcionará um funcionamento mais eficaz à sociedade.

Avançando-se na metáfora da mão invisível de Adam Smith, aplica-se à Teoria dos Sistemas a metáfora da orquestra sem maestro. Por meio dessa imagem, percebe-se que quanto melhor os integrantes da orquestra tocarem, melhor será o desempenho final. Assim sendo, quanto melhor os sistemas desempenharem suas funções de auto-produção e reprodução da sua comunicação, melhor será o desempenho final da sociedade.

A autopoiese ou autoprodução é uma idéia recolhida das ciências biológicas e foi amplamente usada para a compreensão de sistema vivos ou de pesquisas cibernéticas e que com Luhmann passa a ser usada para a compreensão da sociedade.

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O papel do direito deve ser o de redutor das complexidades, em outras palavras, o direito deve agir como um redutor de complexidades pela diferenciação funcional. E a legitimidade do direito será obtida pelo procedimento adotado.

Se a religião proporciona garantias de expectativas post mortem, o direito proporciona ou pelo menos pretende proporcionar o cumprimento das expectativas em vida. Então, na modernidade, a importância dessa função do direito ganha relevância, quando a fé na religião passa a perder terreno para a fé na ciência, e a confiança no progresso científico e na infalibilidade da racionalidade adquire ares definitivos.

Contudo, ao vivenciarmos a pós-modernidade e o conseqüente questionamento dos valores da modernidade, passa-se a questionar, igualmente, a confiança absoluta no progresso científico e na infalibilidade da racionalidade, que tanto embasou o projeto do positivismo jurídico e as teorias gerais do direito e do estado.

Luhmann não ficou alheio aos questionamentos da pós-modernidade, ele propõe a transcendência a partir de dentro. Se a linguagem apresenta uma materialidade, o direito é um agente de racionalização e, ao mesmo tempo, é um paciente da comunicação e da fixação de sentido comum numa determinada sociedade.

Mesmo assim, na visão luhmaniana o direito não é capaz de tudo, na auto-observação interna ao sistema do direito, cabe ao próprio direito a função de dizer ou definir o que é direito e o que não é direito.

Numa concepção tipicamente pós-moderna, pode chegar-se à conclusão de que o direito é a possibilidade de oferecer à sociedade a garantia do cumprimento de expectativas anteriormente oferecidas pela religião.

Mesmo numa concepção pós-moderna do direito, é preciso se valer da racionalidade do discurso. É dizer, a racionalidade já está posta na própria linguagem do discurso.

Ainda no contexto da teoria dos sistemas é razoável indagar qual o papel do estado, entendido como estado de direito. Será que ele se confunde com a função do sistema de direito?

Aparentemente não é esse o caminho seguido por Luhmann. Para esse autor, o estado não forma um sistema em si, mas está presente no acoplamento estrutural, que por sua vez não se confunde com um conceito de interdependência. Assim, diz-se

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que o estado se relaciona com os sistemas pelo acoplamento estrutural. Visto dessa forma, fica mais fácil entender que o que é central num sistema pode ser periférico em outro sistema.

Dados esses elementos fundamentais da Teoria dos Sistemas, é possível antever o potencial crítico dessa teoria e a sua predileção pela investigação dos problemas ao invés da formulação de respostas prontas ou pré-anunciadas. E, por estas razões, pode-se considerar a Teoria dos Sistemas digna desse nome, e não apenas apreciá-la como uma ideologia ou doutrina do discurso do direito.

Para o fim de lançar luz na teia de complexidade das sociedades pós-modernas e de seus sistemas, diz-se que o pensamento luhmaniano apresenta-se policêntrico e sem hierarquia, o que reforça seu potencial crítico e sua identificação com o campo das teorias.

1.5. Habermas e a Teoria do Discurso

Na Teoria do Discurso há uma pragmática transcendental como condição de possibilidade de conhecimento para orientar as ações. Como se diria numa terminologia kantiana, são um a priori da comunicação. Assim, a Teoria do Discurso apresenta como pressuposto as condições do discurso, o entendimento do discurso, que pré-determina aquilo que será válido, o que é imposto, o que é conveniente e assim por diante. Em outras palavras, a Teoria do Discurso parte da pressuposição do consenso, ou melhor, parte da pressuposição da universalização do consenso a partir do dissenso.

A técnica e a ciência podem estar mais uma vez sendo usadas como ideologia. E, para alguns, a nova teoria habermasiana poderia se tratar de uma nova forma de imperialismo.

De outro lado, a obtenção do consenso também pressupõe um procedimento, e nesse procedimento Habermas reconhece o elemento legitimador do poder, ou seja, através do exercício do poder segundo um procedimento, o próprio exercício desse poder é legitimado. Portanto o simples fato da investidura ou da constituição de poder não é suficiente para legitimar as ações e o exercício do poder em si.

Segundo Habermas13, os conceitos básicos da filosofia “não constituem mais um 13 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. 2. ed. Tradução Flávio Bueno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, v. 1, p. 9. Prefácio.

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sistema capaz de tudo incorporar: eles não passam de simples meios para a apropriação reconstrutiva de conhecimentos científicos.”

Preliminarmente à análise da teoria habermasiana do discurso, é prudente lembrar que o pensamento deste autor se direciona preferencialmente às sociedades norte-atlânticas, mas se amoldando às sociedades arcaicas.

Entre o velho e o novo Habermas há uma evidente revisão do papel do direito na sociedade, ele partiu de uma visão do direito como opressão e, com o tempo, foi modificando-a até passar a compreender o direito como possibilidade de libertação da opressão.

Habermas se põe em contraposição ao pensamento da pós-modernidade, no sentido de que ao aceitar-se a pós-modernidade admite-se que o projeto da modernidade se esgotou, que este projeto não é mais possível. Desse modo, perde-se a oportunidade de melhor analisar certas questões ainda pendentes da modernidade.

Habermas afasta-se do “pessimismo” dos críticos da modernidade e adota, em contraposição, um pensamento “otimista”, na direção da formação do consenso social.

Ao deslocar o eixo da filosofia da razão prática kantiana para a razão comunicativa, propondo uma visão intersubjetiva e comunicativa do Direito, Habermas14 pretende superar as dificuldades postas pela tradição metafísica e subjetivista do Direito e com isso explicar adequadamente o nexo interno entre autonomia privada e pública e, daí, o surgimento da legitimidade na legalidade do Direito.

A determinação do conceito de liberdade coletiva poderá ser aceita mais facilmente desde que o sujeito da liberdade individual participe da sua criação. Esse conceito, segundo Zilveti15, introduz a discussão sobre a questão da vontade geral, determinante da regra de conduta amoldada pela liberdade e igualdade política.

Para Costa16, os direitos humanos tem que ser interpretados, desde sempre, como direitos jurídicos intersubjetivos. Não devemos interpretar direitos constitucionais 14 COSTA, Regenaldo. In: CHRISTOPHE, Jean; MOREIRA, Luiz (Orgs.). Direito e legitimi-dade. Tradução Claudio Molz e Tito Lívio Cruz Romão. São Paulo: Landy, 2003, p. 38-39.15 ZILVETI, Fernando Aurélio. Princípios de direito tributário e a capacidade contributiva. São Paulo: Quartier Latin, 2004, p. 43.16 COSTA, op. cit., p. 48.

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fundamentais positivados como se fossem apenas normas morais ou programáticas. Por isso, insiste Costa, pela teoria do discurso de Habermas os discursos jurídicos são o próprio critério legitimador das normas.

O princípio do discurso parte de uma concepção intersubjetiva ou comunicativa do direito e propõe resolver o problema da legitimidade das leis. O legítimo só pode ser estabelecido pela mediação do discurso. O princípio do discurso torna possível examinar de forma intersubjetivamente válida a legitimidade das ações em geral.

Na concepção habermasiana, a interpretação dos direitos fundamentais à luz da teoria do discurso é a única que possibilita efetivar a legitimidade, o Direito e a democracia, pois só a formação discursiva da opinião e da vontade geral tem essa capacidade nos sistemas constitucionais democráticos.

A partir desse quadro, fundamenta-se um sistema de direitos para atender a autonomia privada e pública dos cidadãos, sendo o princípio da democracia o núcleo do sistema de direitos e a gênese lógica desses direitos.17

Para alguns críticos da Teoria do Discurso, Habermas quer se apropriar da teoria contemporânea do direito para justificativa da sua particular visão política. Assim, para esses críticos, ao invés de propor um discurso da ética Habermas deveria se pautar pela ética do discurso.

A teoria do discurso de Habermas padeceria de um vício original ao apresentar uma pré-concepção de como deve ser o mundo social, ou seja, o seu esforço de compreensão já nasceria contaminado com preconceitos do que deve ser ou como se dará o consenso social, antes da investigação científica, propriamente dita. Em outros termos, a “hipótese básica” habermasiana acerca do discurso do direito já nasceria plenamente comprovada e conteria os elementos para a sua justificativa, sem os necessários questionamentos exigidos para creditar-se como teoria científica, se aproximando mais de uma ideologia.

Em síntese, seria preciso conhecer melhor o problema ou os problemas do direito na crise da modernidade, para melhor aparelhar a teoria do discurso de elementos científicos que pudessem, a partir do conhecimento do problema, sugerir caminhos novos.

17 Ibid., p. 48.

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1.6. O paradoxo da pós-modernidade e as sociedades complexas

Na pós-modernidade percebe-se o que o conhecimento científico moderno não é capaz de solucionar todos os problemas e os paradoxos, mesmo que sejam aqueles relacionados ao campo do direito.

De acordo com o paradigma da modernidade certas pretensões deveriam ser cumpridas, assim, conforme sintetizado por Camargo18, a modernidade traria:

a) constância e linearidade de pensamento, sob a idéia de universalidade; b) controle e previsibilidade da ação social e c) interpretação sistemática oriunda de conceitos previamente concebidos, a partir do método axiomático-dedutivo, a verdade é aquela capaz de ser extraída do desdobramento correto, isto é, sem falhas sob o ponto de vista lógico. Ocorre que este tipo de raciocínio, demonstrativo, não se mostra condizente com o pensamento que escolha suas premissas, dentre outras opções também possíveis. É quando a doxa (a opinião), em caráter de verossimilhança, pode ser tomada como ponto de partida para o raciocínio.

A modernidade prometia o fim da exclusão econômica entre os homens, com os avanços da técnica científica e o progresso gerado por ela. No direito, a modernidade era apresentada como segurança jurídica e a estabilidade dos contratos, a certeza e a objetividade do direito garantiriam a paz social e o bem comum.

Na modernidade, o direito liberal acabou por criar a exclusão por dentro, a exclusão na inclusão (paradoxo). As noções abstratas de indivíduo e cidadão, apesar de criadas para abolir as noções de status dos estamentos absolutistas, não foram suficientes para abolir a idéia de classe, nas sociedades modernas, tão exploradas pelos filósofos marxistas.

A mobilidade ou liberdade política e social prometida pelo contrato social, por meio dos direitos subjetivos civis e políticos acabou por converter-se em imobilidade, ao não traduzir satisfatoriamente sua força libertária para os direitos coletivos sociais e econômicos.

O influxo da modernidade, no direito, vem mesmo despertar a retomada da noção de status, não no sentido da antiguidade clássica ou dos escamentos absolutistas, mas na concepção de Torres, ao tratar da cidadania fiscal. 18 CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica plural: possibilidades jusfilosóficas em contextos imperfeitos. In: BOUCAULT, Carlos Eduardo de Abreu; RODRIGUEZ, José Rodrigo (Org.). Hermenêutica plural. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 377.

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Nas sociedades contemporâneas ou complexas há uma profusão de expectativas e o direito encarado ou como a subsunção ou imputação de um fato a uma norma ou, visto como normatividade específica, não pode fazer frente às expectativas colocadas num Estado Democrático.

A multiplicidade de expectativas gera um paradoxo no sistema jurídico, que estava ordenado ou programado para responder a relações ou a acontecimentos que se apresentassem como fato subsumido ou imputado a alguma norma.

A própria racionalidade do legal ou do ilegal, uma vez que só se admitam esse critérios no ordenamento jurídico, seria insuficiente para tratar da multiplicidade de expectativas nesse ordenamento.

Se duas possibilidades são válidas entra-se num paradoxo, que se apresenta em nível social. Ao transportarmos o problema do paradoxo para o direito, percebe-se que não há instrumentos que possam responder satisfatoriamente à lógica do paradoxo no sistema jurídico formalista ou positivista.

Ou seja, se duas possibilidades são válidas, é o mesmo que dizer:

A pode ser B, mas também pode ser C.

No ordenamento jurídico seria o mesmo que admitir que para o mesmo fato ou para a mesma expectativa seria possível a aplicação ou a incidência de duas normas (possibilidades) diferentes.

A lei, seja ela uma lei kantiana, racionalmente posta, ou seja uma lei hierarquicamente válida na pirâmide kelseniana, não resolve o problema do paradoxo, presente na sociedade democrática contemporânea. Se duas possibilidades normativas são válidas para o mesmo problema legal, uma norma não exclui a outra. Entretanto, o ordenamento jurídico pensado por Kelsen não admitia essa hipótese, renegado pela existência de uma hierarquia.

Leis universais não lidam com a questão posta na ordem do dia das sociedades democráticas: como equacionar a profusão geométrica de expectativas criadas pelos direitos constitucionais, com as normas de um sistema jurídico positivista hierarquizado?

Alguns apregoam que o direto deve superar a lei e ir ao encontro de decisões que atendam as expectativas democráticas. Outros ainda falam em ponderação de

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interesses e nos postulados ou princípios da razoabilidade e da proporcionalidade como elementos capazes de traduzir, em concreto, a substância das relações entre as pessoas e o Estado, sua igualdade e justiça.

Nesse contexto, não basta mais explicitar uma legalidade formal, é preciso explicar o surgimento da legitimidade a partir da legalidade.

A lógica analítico-formal demonstrou ser insuficiente no atendimento das expectativas nas sociedades democráticas. Abre-se espaço para uma lógica jurídica material.

As sociedades contemporâneas, mais especificamente, as democracias ocidentais do mundo chamado desenvolvido, são consideradas, por grande parte da literatura sociológica, como sociedades complexas. Assim, ao se pretender investigar o papel do direito nas sociedades complexas, o pensamento teórico e a pragmática devem ser capazes de acompanhar a complexidade que envolve essas sociedades.

A complexidade da sociedade pós-moderna se deve, em grande parte, à pluralidade de valores considerados numa mesma comunidade, à pluralidade de expectativas dos atores dessa comunidade e à pluralidade de possibilidades interpretativas de um mesmo caso ou hipótese na solução dos conflitos surgidos no seio dessa comunidade, em decorrência da aparente incompatibilidade desses valores, dessas expectativas e dessas interpretações.

No contexto de toda essa pluralidade de valores, expectativas e interpretações, verificada nas sociedades complexas, o papel do direito é questionado e as certezas do modelo positivista são postas em cheque.

Assim, diz-se que o positivismo jurídico e o sistema da lógica formal-analítica serviram ao projeto da modernidade e com a crise desse projeto e a vivência de uma pós-modernidade, já se fala na superação do positivismo jurídico pelo pós-positivismo jurídico.

Contudo, não é dado confundir o que se chama de pós-positivismo com a negação ou a antítese do positivismo. A proposta do pós-positivismo consiste na superação de uma forma determinada de conhecimento do Direito, para alguns uma superação dialética do modelo positivista, assim como se dá com a superação da própria modernidade.

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A segurança e a certeza jurídicas impressas nas fórmulas abstratas da lei e o controle judicial clássico já não oferecem todas as respostas buscadas pela sociedade. A própria noção de sociedade como um organismo homogêneo e único não parece resistir aos movimentos históricos e sociais.

1.7. Direito, modernidade e pós-modernidade

Guerra Filho19 em ensaio sobre a teoria constitucional comenta a superação do positivismo jurídico, dada a complexidade do meio social atual:

As teses utilitaristas foram rebatidas com grande sucesso por autores recentes, dentre os quais se destaca J. Rawls, enquanto o positivismo jurídico, cujo principal representante atual é o próprio Hart, foi mortalmente vitimado pelas críticas que contra sua doutrina move aquele que o sucedeu na cátedra em Oxford, R. Dworkin. Essas críticas são motivadas pela constatação (pragmática) de que a concepção positivista do direito como sistema de regras (rules) resulta em um modelo que não é fiel à complexidade e sofisticação de sua prática, especialmente quando se ocupa dos chamados “hard cases”, nos quais se torna evidente o recurso a outras fontes, igualmente normativas, os “standards”. Esses, tanto podem ser princípios éticos, enquanto “a requirement of justice or fairness or some other dimension of morality”, quanto imposições para atingir melhorias econômicas, políticas ou sociais, em dada comunidade, o que se denomina “policy”.

A crença na racionalidade infalível do positivismo jurídico e no seu modelo de ordenamento jurídico não resistiu aos acontecimentos históricos do séc. XX (guerras mundiais, terrorismo, fome e miséria global). Na pós-modernidade, ou para outros, no período de crise da modernidade, a tônica da discussão sobre a teoria do direito e a aplicação do direito não é dada apenas pela lógica-formal de análise do sistema normativo.

Como observa Guerra Filho20, na crise da modernidade ou na pós-modernidade, como queiram, a tônica da discussão é:

...dada pela perspectiva de mútua fertilização entre os procedimentos lógico-formais de análise da estrutura do sistema normativo e os estudos (pragmáticos) de sua funcionalidade em determinado contexto, o que leva

19 GUERRA FILHO, op. cit., p. 44.20 Ibid., p. 45.

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ao desenvolvimento de uma teoria da argumentação jurídica, capaz de assegurar a racionalidade (prática) do processo de aplicação do direito.

Nessa nova tônica de discussão do direito, não mais se vislumbra “a possibilidade do direito vir a estabelecer um sistema metodológico de diretrizes, capaz de levar a conclusões de acerto indubitável sobre cada caso.”21

Como já observado por Guerra Filho, a discussão sobre a teoria ou a aplicação do direito na pós-modernidade não implica o abandono da racionalidade analítica, mas importa no reconhecimento da existência de várias posições ou de várias possibilidades no sistema do direito, em reconhecimento da complexidade da sociedade na qual o direito é teorizado e aplicado. Essas várias posições sobre um mesmo caso ou hipótese serão fundamentadas em critérios argumentativos adotados “a fim de que se possa avaliar sua razoabilidade.”22

Importa notar, ainda, que a variedade de posições é dada pela pluralidade de valores considerados no meio das sociedades complexas, muitos dos quais conflitantes. A mera subsunção dos fatos às normas não atende a complexidade social e a pluralidade de valores, significa dizer, o direito não cumpre sua função social.

O pós-positivismo é a designação provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem a definição das relações entre valores, princípios e regras, aspectos da chamada nova hermenêutica e a teoria dos direitos fundamentais.

Para compreensão dos direitos e garantias fundamentais do Estado Democrático é bastante útil a adoção da perspectiva polidimensional do direito, quadridimensional na visão de Nogueira.23

A visão polidimensional do direito permite compreender melhor quais as linguagens dos princípios e das regras.

Segundo Bandeira de Mello, os princípios são derivados dos valores e constituem o núcleo de um sistema jurídico:

Princípio é o mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas,

21 Ibid., p. 45.22 Ibid., p. 45.23 NOGUEIRA, Alberto. Direito constitucional das liberdades públicas. Rio de Janeiro: Re-novar, 2003, p. 364-365.

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compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico.24

Os princípios e as normas, apesar de se tratarem de linguagens diferentes, podem se comunicar, mantendo, contudo, sua língua própria.

Como nem o sistema de princípios nem o sistema normativo são fixos, no Estado Democrático de Direito, é preciso verificar a elasticidade ou plasticidade dos mesmos.

A terminologia da regra e da exceção é normativa. A norma precisa seguir as condicionantes da juridicidade e da hierarquia, ela pode ser criada ou revogada.

Já a principiologia tem uma perspectiva diferente da abordagem normativa. Com o avanço do estudo dos princípios constitucionais, a visão meramente integradora dos princípios foi superada.

Na linguagem principiológica há várias técnicas de manejo dos princípios constitucionais. Pelo uso dessas técnicas, o princípio pode incidir sobre determinadas realidades apesar da norma.

Os princípios, além da função integrativa, de iluminar e aprofundar o conteúdo da norma, também devem compor o sistema. Não há hierarquia de princípios ou exceções a sua aplicação, eles não são revogados ou instituídos, mas revelados ou descobertos.

Exatamente por estarem sujeitos a uma linguagem especial, os princípios são tão indicados ao manejo das questões constitucionais.

2. Direito e democracia nas sociedades complexas

2.1. Democracia, legalidade e legitimidade

O nascimento do Estado Democrático resulta de um longo processo histórico, iniciado nos primórdios do Estado Liberal e desenvolvido ao longo do Estado Social, entretanto não corresponde ao simples somatório das conquistas históricas previamente 24 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Elementos de direito administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p. 230.

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alcançadas.

É preciso compreender a axiologia proposta pelo Estado Democrático, a fim de evitar reducionismos imprecisos, assim é que nos dizeres de Silva:

O Estado Democrático de Direito não significa apenas unir formalmente os Conceitos de Estado Democrático e Estado de Direito. Consiste, na verdade, na criação de um conceito novo que leva em conta os conceitos dos elementos componentes, mas os supera na medida em que incorpora um componente revolucionário de transformação do status quo. (...) O democrático qualifica o Estado, o que irradia os valores da democracia sobre todos os elementos constitutivos do Estado, e, pois, também sobre a ordem jurídica. O Direito, então, imantado por esses valores, se enriquece do sentir popular e terá que se ajustar ao interesse coletivo.25

Se no Estado Social procurava-se levar os benefícios da intervenção estatal para o maior número possível de pessoas, no Estado Democrático muitos apontam a cidadania participativa como caminho para este fim, através da construção de consensos legitimados.

Ferreira26 enumera como pressupostos da cidadania:

a) ontologicamente, ela não é um “em si”, pois tem por fim a identidade social dos indivíduos na relação com um determinado Estado;b) seu determinante histórico-social é a existência da sociedade de classes e do Estado; como categoria histórica, a cidadania é dinâmica, refletindo, portanto, as condições econômica, política e sociais da sociedade na qual foi forjada;

As visões do papel do cidadão na democracia vêm mudando, de uma postura passiva ou de chancela, para uma postura ativa, de uma aceitação de um poder para a possibilidade de contestação desse poder e, mais além, para a afirmação da soberania popular enquanto fonte primária efetiva e legitimadora desse poder.

O centro da normatividade se desloca dos Códigos para a Constituição, que retoma seu lugar de proeminência como centro irradiador de validade do ordenamento jurídico.

25 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 5. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989, p. 105. 26 FERREIRA, Nilda Teves. Cidadania: uma questão para a educação. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p. 21.

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Porém, agora não basta que a norma fundamental tenha como pressuposto a validade, o sistema constitucional também precisa ser legítimo para cumprir com o valor do sistema democrático.

Os atores da cena democrática, amalgamados na visão redefinida de cidadão, de uma sociedade complexa e de massas, não se contentam com a existência formal de direitos fundamentais, é preciso efetivá-los para dar concretude aos valores democráticos.

Nenhum sistema de regras tem condições de cobrir todo o conjunto de decisões a serem tomadas na sociedade complexa e de massas das democracias ocidentais modernas.

A cidadania participativa irá complementar o sistema constitucional de direitos fundamentais, para lhe dar concretude. O idéia de democracia participativa implica uma espécie de controle permanente de todos os cidadãos sobre os atos do poder:

...os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas. 27

A linguagem jurídica deve aclarar o direito reivindicado e o direito protegido, contextualizados no processo histórico:

A linguagem dos direitos tem indubitavelmente uma grande função prática, que é emprestar uma força particular às reivindicações dos movimentos que demandam para si e para os outros a satisfação de novos carecimentos materiais e morais; mas ela se torna enganadora se obscurecer ou ocultar a diferença entre o direito reivindicado e o direito reconhecido e protegido.

28

Nossa carta constitucional de 1988 é expressa ao reconhecer o Estado brasileiro como um Estado democrático de Direito, tendo como fundamentos, dentre outros, a soberania, a cidadania e a dignidade da pessoa humana.29

27 BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade: para uma teoria geral da política. Tradução Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 5. 28 Ibid., p.10. 29 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. art.1º, caput e incisos I, I, III. Brasília: Senado Federal, 1988.

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E, nesse passo, as constituições democráticas modernas, assim como a brasileira, não permitem mais uma dissociação entre ética e direito.

Em busca de um ordenamento jurídico democrático, o discurso político, ético ou moral, ao invés de desqualificar ou enfraquecer a juridicidade das normas, agrega legitimidade às mesmas, quando a vontade geral é expressa numa convergência das liberdades individuais e coletivas, negociada em regras de conduta.

Ao tomar-se como guia a Carta de 1988, percebe-se uma grande mudança na compreensão da pessoa humana como elemento central da ordem jurídica. Essa mudança também terá seus reflexos no Direito constitucional. A substância das relações entre o indivíduo e Estado, em todos dos campos do direito, passa a importar ao Direito constitucional, abandona-se a ótica legal formal positivista do Estado liberal.

3. Conclusão

A correta compreensão do papel e das funções das teorias, da filosofia e das ideologias permite lançar um olhar mais profundo no estudo do direito, na sua evolução histórica, na sua autonomia em relação às demais ciências sociais e nas suas formas de produção e reprodução.

A Teoria Pura do Direito de Kelsen, a Teoria dos Sistemas de Luhmann, a Teoria do Discurso e do Agir Comunicativo de Habermas e a Teoria da Justiça de Rawls nos revelam, cada qual a seu modo e segundo suas preocupações específicas, a evolução do papel do direito na sociedade.

As máximas universais de Kant para o direito possibilitaram a justificação do estado republicano e mesmo liberal, nos quais os direitos à liberdade e à igualdade eram formais.

A própria concepção de justiça no Estado moderno seria influenciada pelas formulações kantianas, mais uma vez privilegiando o caráter universal das leis e das regras de condutas em detrimento do seu conteúdo ou da materialidade dos comportamentos.

No pensamento kelseniano, traçada a moldura de um ordenamento jurídico coerente, as considerações acerca da justiça e da igualdade deverão ser postas pelos políticos ou pelos cientistas sociais, mas não pelo estudioso da ciência do direito, pois o campo do conhecimento deste último não abarcaria essas preocupações.

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Ao não comportar elementos éticos ou morais, a Teoria Pura do Direito foi vítima de seus próprios méritos, pois a neutralidade científica, aplicada ao direito, abriu caminho para as arbitrariedades e as injustiças do regime nazista, que perseguiu o próprio Kelsen.

Na segunda metade do século XX, a necessidade urgente da reconstrução de valores morais e éticos, nas condutas e no agir humanos, levou à afirmação do Estado Democrático de Direito, nas civilizações ocidentais mais desenvolvidas e na rediscussão da autonomia do saber, da ética e do direito, o que significou rediscutir a própria modernidade, na sua concepção weberiana.

No Estado Democrático de Direito, o reconhecimento da dignidade da pessoa humana não está vinculado ao reconhecimento do indivíduo como membro de um determinado status jurídico, ou destinado apenas às pessoas de determinada classe, nacionalidade ou etnia, mas a todo e qualquer indivíduo, pelo simples fato de pertencer à espécie humana. Agora, diz que o ser humano é concebido com o centro de referência da ordem jurídica.

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Contribuição para iluminação pública

Aurélio Pitanga Seixas Filho Professor Titular e Coordenador dos Cursos (Lato Sensu) de Direito Administrativo e de Direito Financeiro e Tri-butário da Universidade Federal Fluminense e dos mestrados

em Direito da Universidade Cândido Mendes e da Faculdade de Direito de Campos

A iluminação pública, custeada em inúmeros municípios através de uma taxa, obteve autorização pela Emenda Constitucional nº 39 de 2002 para ser remunerada por uma contribuição a ser cobrada na fatura de consumo de energia elétrica.

A razão de ser dessa emenda constitucional foi a exaustiva jurisprudência dos Tribunais, confirmada pelo Supremo Tribunal Federal, no sentido de carecer a prestação desse serviço público de especificidade e divisibilidade, impossibilitando, assim, a identificação de cada contribuinte, 1 sendo a sua base de cálculo identificável à de um imposto, ou suscetível de ser custeada somente por via do produto dos impostos gerais. 2

O alcance de serviço específico e divisível está bem definido no artigo 79 do Código Tributário Nacional, sendo serviço específico aquele que possa ser destacado em unidade autônoma de intervenção, de utilidade ou de necessidade pública, e divisível quando suscetível de utilização, separadamente, por parte de cada um dos seus usuários.

A iluminação pública, realmente, não constitui uma prestação de serviço com caráter de especificidade, porque não pode ser ou estar conectada a um imóvel em particular, não sendo possível, assim, medir a quantidade da luz distribuída nos logradores públicos que lhe pode ser diretamente afetada, bem como sua utilidade

1 Recurso Extraordinário n° 360.585-2. Revista Dialética de Direito Tributário, n. 89, p. 222.2 Recursos Extraordinários n° 100.729 e n° 234.605. Revista Dialética de Direito Tributário, n. 90, p. 67-68.

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pública não pode ser destacada em uma unidade autônoma.

A iluminação pública tem a função de clarear as ruas, avenidas, estradas e demais logradouros públicos, sendo, então, os beneficiários desse serviço público aqueles que transitam livremente por essas vias abertas a toda e qualquer pessoa. Conseqüentemente, são as pessoas que passam por esses logradouros que poderiam custear essa despesa dos municípios através de um sistema do tipo do pedágio.

Clareando melhor o assunto, a especificidade ou conexão da iluminação pública somente tem pertinência com as pessoas que usam as vias públicas, que, portanto, são aquelas que devem remunerar o seu custeio, dividido em proporção à quantidade de usuários, em algum momento de sua passagem pelo logradouro iluminado pagando um pedágio, se isso for possível.

A classificação dos serviços públicos em “uti universi” e “uti singuli” já é bastante antiga, sendo apropriada e pertinente ao caso em exame, a seguinte lição de Hely Lopes Meirelles:

“Serviços “uti universi” ou gerais: são aqueles que a administração presta sem ter usuários determinados, para atender à coletividade no seu todo, como os de polícia, iluminação pública, calçamento e outros dessa espécie. Esses serviços satisfazem indiscriminadamente a população, sem que se erijam em direito subjetivo de qualquer administrado à sua obtenção para seu domicílio, para sua rua ou para seu bairro. Estes serviços são indivisíveis, isto é, não mensuráveis na sua utilização. Daí por que, normalmente, os serviços uti universi devem ser mantidos por imposto (tributo geral), e não por taxa ou tarifa, que é remuneração mensurável e proporcional ao uso individual do serviço.” 3 O grifo não é do original.

Não sendo possível, assim, cobrar diretamente dos beneficiados pela iluminação pública, através de um pedágio, só resta uma alternativa para a remuneração dessa despesa que é a autoridade municipal, a cada ano, destacar uma dotação orçamentária para tal.

Como visto, foge a qualquer lógica querer remunerar um serviço público genérico ou universal através de tributos, como a taxa e a contribuição, ou preço público ou tarifa, que somente se prestam a custear serviços públicos específicos ou singulares.

3 Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1992, p. 297.

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Caso venha a ser cobrada a iluminação pública nas faturas de consumo individual de energia elétrica, tendo como base de cálculo esse consumo particular, cada unidade imobiliária contribuirá de uma forma que nenhuma proporção terá com a iluminação dos logradouros públicos.

Ao examinar a tributação da prestação de serviço público tive a oportunidade de esclarecer:

“A taxa de iluminação pública e a taxa de conservação de calçamento ainda podem ter alguma viabilidade fática, em razão de serem tributos municipais, e como tais, passíveis de serem exigidos em conjunto e como adicionais do imposto predial, se tiverem a mesma base de cálculo, isto é, a metragem do imóvel urbano. Como ocorre no município do Rio de Janeiro, com a Taxa de Iluminação Pública e com a Taxa de Coleta de Lixo e Limpeza Pública, a integração com o Imposto Predial é total, pois são cobrados no mesmo carnê e com o pagamento unificado, não sendo nem o caso de imposto denominado de taxa, nem de adicional do imposto predial, e sim, cobrança de um único tributo, o imposto predial, com sua arrecadação destinada a duas atividades específicas, iluminação pública e coleta de lixo e limpeza pública (Comlurb), e uma genérica, o Tesouro Público, para distribuição, via autorização orçamentária.” 4

É verdade que a jurisprudência em geral tem inquinado de inconstitucional toda e qualquer taxa que tenha base de cálculo de imposto, com apoio no parágrafo 2º do artigo 145 do texto constitucional, através de uma interpretação meramente literal do dispositivo, não distinguindo, entretanto, quando é hipótese de bitributação, isto é, invasão de competência tributária, do “bis in idem”.

Nada impede que o titular da competência de criar um imposto institua mais de um tributo sobre o mesmo fato gerador, denominando um deles de taxa, sabendo todos que o nome dado ao tributo é absolutamente irrelevante para caracterizar a sua natureza jurídica, conforme é a lição elementar do Código Tributário Nacional, pelo inciso I do seu artigo 4°.

O fenômeno do “bis in idem” na tributação foi muito bem explicitado por Aliomar Baleeiro em seu festejado livro de Introdução à Ciência das Finanças:

“Se a mesma pessoa jurídica de direito público, competente para a decretação de imposto, incorre em “bis in idem” ou na pluritributação,

4 Taxa: doutrina, prática e jurisprudência. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 46.

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em regra geral, não há problema, salvo se forem violados dispositivos constitucionais que, por acaso, fixem limite máximo à tributação.”“Ora, se um governo é competente para exigir um imposto e não está contido nos limites da sua aplicação senão em alguns casos previstos em algumas Constituições, nada lhe impede de decretá-lo uma ou várias vezes, segundo as conveniências administrativas ou critérios de técnica fiscal que lhe pareçam mais adequados. Certo que a cobrança do mesmo imposto, sob diferentes formas e vários momentos, pode infringir cânones clássicos de economia e de comodidade. Mas aí há apenas a considerar assuntos de técnica e política financeiras, suscetíveis de crítica parlamentar ou por outros modos de manifestação do pensamento, para compelir o legislador a reformas, sem que seja dado ao contribuinte meios jurisdicionais de evadir-se à tributação incômoda ou talvez inepta.”“Aliás, como pondera Allix, muitas vezes o emprego de impostos “bis in idem” pode corresponder consciente e deliberadamente a regras técnicas de tributação ou a diretrizes de política fiscal. Pode ser um adicional a um imposto com o fim de aplicar-se especialmente a determinado fim, que é o caso de “justaposição”. Pode ser a “superposição” de um gravame a outro idêntico para discriminar certos elementos da matéria tributável, como, por exemplo, o complementar progressivo, que no nosso imposto brasileiro de renda gravou mais fortemente certos contribuintes em função de sua maior capacidade contributiva; ou, alhures, recaindo sobre o capital, distingue os rendimentos dele oriundos, tratando-se mais severamente. Pode ser meio de evitar ou compensar os males sociais de absenteísmo, nos adicionais que se aplicam ao imposto “causa mortis” quando os herdeiros residem no estrangeiro.”“Nenhuma restrição, pois, se pode opor à constitucionalidade da tributação dupla, ou múltipla, quando exercida pelo mesmo governo competente, desde que não exceda limites expressos fixados na carta política. Em geral, o poder de impor é exercido sempre de modo a conservar a fonte tributável, salvo os casos de aplicação de impostos com objetivos extra-fiscais.” 5

Algum tempo depois, provavelmente com base em sua experiência no Supremo Tribunal Federal e nos novos textos legais reguladores de competência tributária, modificou seu entendimento para o seguinte:

“A Constituição, inspirada no propósito de pôr o ponto final em tais abusos, que burlavam os principais pontos cardeais do sistema tributário e multiplicavam litígios, estabeleceu a regra do § 2° do art.18: taxa não pode ter a mesma base de cálculo que tenha servido para incidência de 5 Uma Introdução à ciência das finanças. 15. ed., atual. por Dejalma de Campos. Rio de Janeiro:

Forense, 1997, p. 238.

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impostos. Embora não fosse inconstitucional, no regime anterior, a taxa em disfarce de imposto da competência da Pessoa de Direito Público que a exigisse, a prática era irracional e contraproducente. Hoje, por efeito desse § 2° do art.18, há inconstitucionalidade ainda quando a taxa, na realidade, representa duplicata de imposto compreendido na competência do governo que a decreta. Não se aplica aí, cremos, o art. 4° do Código Tributário Nacional. Com maior razão se o imposto mascarado configura invasão de competência de outra Pessoa de Direito Público.” 6

Antônio Theodoro Nascimento também seguiu a opinião de Baleeiro, lembrando, entretanto, o entendimento anterior favorável ao bis in idem da Suprema Corte:

“Às vezes acontecia configurar imposto da própria competência, caso em que não passaria de múltipla tributação, constitucionalmente permitida, como alguns reconheceram ocorrer na Taxa de Estatística do Estado da Bahia..... Assim, já não é possível haver taxa com fato gerador idêntico ao de imposto, nem mesmo quando configure bis in idem, isto é quando a entidade que a cria nada mais faça do que cobrar, sob essa denominação, um imposto de sua competência.” 7

Prefiro ficar com a lição do Professor Baleeiro à interpretação literal do texto constitucional do Ministro Baleeiro, pois se o “bis in idem” pode ter algum defeito técnico e/ou formal, em substância, o novo imposto denominado de taxa, se se contiver dentro da competência tributária autorizada pela Constituição, não invadindo competência de outra unidade federativa, pode perfeitamente ser tolerado.

A transformação da taxa de iluminação pública em contribuição de iluminação pública, por via constitucional, veio acrescentar, mais uma vez, grave deformação e distorção no sistema tributário brasileiro.

Como bem lembrou Ives Gandra da Silva Martins, a nova contribuição não se encaixa em nenhuma das espécies previstas no texto da Constituição, pois não intervém no domínio econômico, não tem função social, nem remunera alguma categoria profissional.8

Não se pode entender como pode caber num Sistema Tributário (rigidamente

6 Direito tributário brasileiro. 11. ed., atual. por Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 551. 7 Preços, taxas e parafiscalidade. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 150 e 155.

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regulado no texto constitucional, em que os impostos são distribuídos específica e exaustivamente para cada unidade federativa, e a criação de taxas e novos impostos é rigorosamente regulada) a existência de uma figura exótica que, desde que apelidada de contribuição, pode contrariar todos os seus princípios diretores.

As contribuições de intervenção no domínio econômico, cujo fato gerador é o mesmo previsto para os impostos, uma expropriação monetária do contribuinte, isto é, incidência num fato indicativo de capacidade econômica, além de servir, em regra geral, para socializar o prejuízo e privatizar o lucro de um determinado setor da economia, têm, também, invadido (bitributação) a competência tributária distribuída aos Estados (caso do Adicional ao frete para renovação da marinha mercante) e distorcido o princípio da unidade orçamentária, violando a proibição constitucional de vinculação da receita dos impostos em favor da constituição de fundos, despesas e órgãos (entenda-se: autarquias).

O abuso do legislador na criação de todo tipo de contribuição faz lembrar situação semelhante, assim comentada por Alfredo Augusto Becker, em um livreto, sintomaticamente denominado de Carnaval Tributário:

“Nos últimos anos, a quantidade e variedade de tributos mascarados de “empréstimos” é tão grande que formam um bloco carnavalesco: “Unidos da Vila Federal”. O Presidente da República e o seu Ministro da Fazenda são os “abre-alas”. O ritmo é dado pelo fêmur dos contribuintes, que também forneceram a pele para as cuícas. O Presidente e seus Ministros lançam ao público os confetes de nossos bolsos vazios e as serpentinas de nossas tripas. No Sambódromo conquistaram, por unanimidade, o prêmio: “Fraude contra o Contribuinte”.” 9

A situação carnavalesca do direito tributário, para Alfredo Augusto Becker, nada mais foi que uma progressão de uma anterior situação demencial, relatada em seu festejado livro sobre a Teoria Geral do Direito Tributário:

“No Brasil, como em qualquer outro país, ocorre o mesmo fenômeno

8 A atual contribuição não é, entretanto, contribuição. Tem o perfil de uma taxa, mas com insuficiência que demonstrarei adiante. Não representa qualquer intervenção no domínio eco-nômico, nem é cobrada no interesse das categorias, nem tem qualquer função social. É pura e simplesmente tributo destinado a cobrir prestação de serviço, nem se furtando, o desajeitado constituinte, a reconhecer que sua cobrança “é para o custeio do serviço de iluminação pública”. Revista Dialética de Direito Tributário, n. 90, p. 63-64, mar. 2003.9 Carnaval tributário. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 4.

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patológico-tributário. E mais testemunhas são desnecessárias, porque todos os juristas que vivem a época atual – se refletirem sem orgulho e preconceito – dar-se-ão conta que circulam nos corredores dum manicômio jurídico tributário....E a mais confusa e ridícula das mentalidades pseudojurídicas é a que predomina no Direito Tributário; neste campo “há burrices que de tão humildes chegam a ser pureza e têm algo de franciscano. Outras há, porém, tão vigorosas e entusiásticas, que conseguem imobilizar por completo o nosso espírito para a contemplação do espetáculo” 10

As conclusões que podem ser retiradas do exposto são as seguintes:

A iluminação pública é um serviço público genérico ou universal, não sendo possível, portanto, ser custeado especificamente por alguém.

A iluminação pública das cidades é um ônus que cabe à Municipalidade, devendo, assim, ser custeado, ordinariamente, através de recursos orçamentários.

A vinculação da receita de impostos para financiar despesas específicas da administração pública, como órgãos, fundos, etc., é proibida pela Constituição (artigo 167, inciso IV), pois sendo a receita pública insuficiente para atender todas as necessidades sociais, a vinculação permanente de uma parcela dessa receita a alguma despesa específica retira do governo a possibilidade de, a cada ano, alocar recursos para necessidades mais importantes, prementes e, conseqüentemente, prioritárias naquele momento.

Os princípios da unidade, universalidade e anualidade que regem o Direito Orçamentário, constantes do texto constitucional, não são compatíveis, assim, com a vinculação permanente das receitas dos impostos a despesas específicas, somente sendo possível essa vinculação, portanto, como uma absoluta exceção.

A generalização da vinculação de impostos a despesas específicas, seja com esse nome, seja com o nome de contribuição, é um fenômeno aberrante, que deforma e distorce os princípios fundamentais do direito constitucional financeiro-tributário, constituindo, como reclamou justificadamente Becker, um manicômio carnavalesco tributário.

O financiamento da iluminação pública por uma taxa ou contribuição, desde que sua base de cálculo seja a mesma do imposto predial, pode ser aceitável, apesar

10 Teoria geral do direito tributário. São Paulo: Saraiva, 1963, p. 6.

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das restrições expostas anteriormente, como uma hipótese de “bis in idem”.

Já a contribuição para financiar a iluminação pública cuja incidência seja o consumo singular ou particular de iluminação, além de não ser compatível com os princípios constitucionais de direito financeiro, colide também com princípios constitucionais tributários, por invadir competência privativa de um imposto estadual, já que as contribuições de intervenção no domínio econômico nada mais são que impostos destinados a despesas fixas.

O consumo individual de iluminação já é o parâmetro para incidência do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços, não sendo cabível, portanto, que o mesmo fato gerador seja distribuído a uma outra unidade federativa, mesmo por uma Emenda Constitucional, quando o princípio constitucional de maior valor é o de rigidez e exclusividade na distribuição de competência tributária.

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Intangibilidade do poder local: um ensaio jusfilosófico sobre a descentralização do poder

como condição necessária ao exercício da democracia

Arícia Fernandes CorreiaDoutora em Direito Público e Mestre em Direito da Cidade

pela UERJ. Professora de Direito da Graduação e Pós-Gradua-ção lato sensu da UERJ. Procuradora do Município do Rio de

Janeiro.

1. Notas breves sobre os primórdios da organização política local 2. A precedência do Município sobre o Estado Absoluto e o Estado de Direito. 3. O federalismo e a necessidade de descentralização do poder. O Município brasileiro antes da república até a entrada na federação. 4. Algumas antíteses relacionadas ao poder local: a Fratria e a Cidade (Fustel de Coulanges); o Jardim e a Praça (Nelson Saldanha); Autonomia Pública e Autonomia Privada (Benjamim Constant). Uma síntese possível: a aplicação da teoria discursivo-democrática habermasiana, do princípio da subsidiariedade e do federalismo como valor do plural ao espaço público municipal. 5. Intangibilidade do poder local (rectius, da máxima descentralização do poder): 5.1 Sob a ótica positivista: o Município como “cláusula pétrea” da federação brasileira 5.2 Sob a ótica pós-positivista: a descentralização vertical do poder como “cláusula superconstitucional” 6. Por uma teoria procedimental e material do Município como institucionalização constitucional do poder local no Brasil. 6.1 Município e procedimentalismo. 6.2 Município e substancialismo. 7 Últimas palavras sobre a intangibilidade do poder local como vetor democrático na direção do direito comparado. 7.1 Home rule versus Dillon´s rule. 7.2 Teoria da seara substancial. 8. Ao menos uma certeza positiva sobre o núcleo duro do pacto federativo brasileiro em matéria de poder local

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1. Notas breves sobre os primórdios da organização política local

Segundo Fustel de Coulanges, “cidade e urbe não foram palavras sinônimas entre os antigos. A cidade era a associação religiosa e política das famílias e das tribos; a urbe, o lugar de reunião, o domicílio, o santuário desta sociedade.” 1 Com o passar dos tempos, a cidade acabou se tornando centro político de poder, muitas vezes tomando as proporções de uma verdadeira cidade-Estado, como na Grécia Antiga 2, vindo depois a novamente se fragmentar como sede político-administrativa de um poder eminentemente local.

O Município atual, como organização política descentralizada, dotada de autonomia em relação ao poder central e destinada à gestão dos interesses e serviços locais, teria surgido somente em Roma, no final da República, quando “foram instituídas assembléias nas cidades, que votavam os seus estatutos e elegiam os magistrados locais para um conselho, com funções similares às do Senado romano.”

3 Segundo Costa, a feição definitiva do Município teria sido delineada com a célebre Lex Julia Municipalis, “que estendeu este sistema de governo local para as colônias romanas da Itália e, depois, para os países conquistados [...], concedendo-lhes inclusive direitos para se auto-governarem, naquelas matérias de interesse local”. 4

Na descrição de Hely Lopes Meirelles,

Os vencidos ficavam sujeitos, desde a derrota, às imposições do Senado, mas, em troca de sua sujeição e fiel obediência às leis romanas, a República lhes concedia certas prerrogativas, que variavam de simples direitos privados (jus connubii, jus commercii etc) até o privilégio político de eleger os seus

1 COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 145.2 Acerca da vasta bibliografia sobre o conceito de cidade-Estado e sua evolução, cf., por todos: MORRIS, I. The early polis as city and state. In: RICH, John; WALLACE-HADRILL, Andrew (Eds.). City and country in the ancient world. Londres: Routledge, 1991.3 COSTA, Nelson Nery. Curso de direito municipal brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 3. 4 Ibid., p. 4. Etimologicamente, munus corresponderia à dádiva, ao privilégio e, ao mesmo tempo, ao encargo recebido pelos povos conquistados e capere, verbo latino que significa receber. Neste sentido, Município seria aquela entidade que recebera privilégios; in casu, o privilégio de uma certa autonomia na gestão dos interesses locais, desde que obedecidas as leis de Roma. Para Ataliba Nogueira, no entanto, “o nosso Município, do romano, só tem o nome, nada mais.” (NOGUEIRA, Ataliba. Teoria do município. Revista de Direito Público, v. 6, p. 8, out./dez. 1968.

5 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasi-

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governantes e dirigir a própria cidade (jus suffragii). As comunidades que auferiam essas vantagens eram consideradas Municípios (municipium), e se repartiam em duas categorias (municipia caeritis e municipia foederata), conforme a maior ou menor autonomia que desfrutavam dentro do direito vigente (jus italicum). 5

Na Idade Média, com a queda do Império Romano e a invasão visigótica, a organização administrativa dos Municípios – então conhecidos como Comunas – manteve suas principais características, embora influenciada por modificações de inspiração árabe, “tais como o pagamento de tributos pelos munícipes (monera) e a criação dos cargos de alcaides, alvazis e almotacéis.” 6

O enfraquecimento da vida urbana e a concentração de poder nas mãos dos senhores feudais, todavia, durante o período do feudalismo, acabou redundando no enfraquecimento do Município como instituição política local 7, que só mais tarde, com o desenvolvimento do comércio e a expansão das cidades na Europa, voltaria a se estabelecer, muitas delas como formas de autarquias locais, “de origem natural e formação independente do Município romano” 8, como no caso de Portugal, por exemplo.

A rigor, despiciendas foram quaisquer sofisticadas teorias contratualistas para que as regras locais, inicialmente costumeiras por excelência, e a entidade Município – enquanto sede político-administrativa da Cidade ou da Comuna –, se espraiassem, espontaneamente, pelo tecido social, como prova inequívoca de uma imanente necessidade do homem de melhor se organizar politicamente no espaço de maior proximidade de seus interesses pragmáticos e existenciais e de permanente desfrutar da própria vida: a cidade, o governo local, a comuna. 9

5 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tri-bunais, 1977, p. 1-2.6 Ibid., p. 3.7 A propósito do tema, cf. GODOY, Mayr. A Câmara Municipal: manual do vereador. 2. ed. São Paulo: Livraria e Editora Universitária de Direito – LEUD, 1990. O autor demonstra que também no período feudal, a concessão de “cartas de foral’”, pelos senhores feudais, aos ha-bitantes do feudo sob seu domínio, com os mesmos direitos dos burgueses e cidadãos, serviria de inspiração para o sistema foraleiro adotado por Portugal após a expulsão dos árabes de seu território, não só na terra pátria, como, mais tarde, na ocupação do território brasileiro. A respeito da história do Município no Brasil, cf., por todos: LAXE, João Batista Cortines. Regimento das Câmaras Municipais. Rio de Janeiro: B.L. Garnier, 1885. 8 NOGUEIRA, op. cit., p. 8. 9 Embora aqui utilizados com uma certa fungibilidade, certo é que o conceito de Município não

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2. A precedência do Município sobre o Estado Absoluto e o Estado de Direito

Ao contrário desta abstração chamada “Estado”, carente de toda uma justificativa ideológico-contratualista oitocentista – primeiro, diante da imprescindibilidade de se evitar: através do Soberano Absoluto, a guerra do homo homini lupus (Hobbes) 10; depois, a pujança do Governo sobre o Indivíduo (Locke) 11; e, finalmente, o capricho do Príncipe contra a volonté (em tese) general do povo (Rousseau) 12 –, a Cidade, o Município, as Comunas brotaram espontânea e desideologizadamente do seio social. Segundo Bonavides:

A tensão entre o município e o ordenamento estatal propriamente dito tem (...) profundas raízes históricas. Em verdade, o município, tanto quanto a

se confunde com o de cidade: aquele é forma de organização político-administrativa do poder-local, que engloba áreas urbanas e rurais. Somente com a Modernidade, as cidades paulatina-mente vão se tornando – pelo seu grau de urbanização e densidade demográfica – as povoações centrais dos Municípios. A título meramente ilustrativo, no ordenamento jurídico brasileiro, o imposto sobre a propriedade territorial rural é de competência da União (artigo 153, VI, da CR) e sobre a propriedade predial e territorial urbana é dos Municípios (artigo, 156, inciso I, da CR), devendo a zona urbana, definida por lei municipal, conter, para este fim, de acordo com o Código Tributário Nacional, dois dentre os seguintes melhoramentos, construídos ou mantidos pelo Poder Público: I - meio-fio ou calçamento, com canalização de águas pluviais; II - abastecimento de água; III - sistema de esgotos sanitários; IV - rede de iluminação pública, com ou sem posteamento para distribuição domiciliar; V - escola primária ou posto de saúde a uma distância máxima de 3 (três) quilômetros do imóvel considerado. (artigo 32, §1º, do CTN), afora a hipótese excepcional criada no §2º do mesmo preceito normativo, segundo o qual a lei municipal pode considerar urbanas as áreas urbanizáveis, ou de expansão urbana, constantes de loteamentos aprovados pelos órgãos competentes, destinados à habitação, à indústria ou ao comércio, mesmo que localizados fora das zonas definidas nos termos do parágrafo anterior. 10 Hobbes seria o ideólogo do Estado Absoluto, cuja existência se justificaria diante da natureza beligerante do ser humano, que deveria ceder poder ao Soberano sob pena de a espécie huma-na soçobrar diante de uma eterna luta do homem contra o lobo do homem, ou seja, contra si mesmo. (HOBBES, Thomas. O Leviathan or the matter, form and power of a commonwealth ecclesiasticall and civil. Oxford: Basil Blackwell, 1946)11 John Locke também concebe que o indivíduo abdique de parcela de seu poder para fins de celebração de um contrato social, desde que seus direitos naturais, convolados em civis, possam ser opostos ao próprio Estado, sem o quê este não estaria legitimado a existir. (LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. Tradução Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2004) 12 Rousseau defende que, se as leis – a serem produzidas pelo Estado – são fruto da vontade geral, ninguém estaria abdicando da própria soberania, na medida em que obedecer à lei seria obedecer a si mesmo. (ROUSSEAU, J.J. Do contrato social: princípios do direito político. Trad. e coment. de J. Cretella Junior e Agnes Cretella. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002)

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família ou tribo, antecede o Estado: é um prius, um valor dotado de mais ancianidade. 13

Pela teoria sociológico-histórica, o Município nasce não como fruto de um pacto ou como pessoa jurídica criada pela lei, mas como sociedade politicamente organizada de forma espontânea, com regras próprias e meios peculiares de organização e satisfação dos interesses locais. 14 Mais tarde, todavia, o direito local precisou ceder, com suas regras costumeiras, esparsas e pontuais à pretensão de univocidade e monopólio da produção normativa que só a figura monolítica e ambiciosa daquele Estado – a princípio, Absoluto e, depois, de Direito – poderia concentrar. 15 De fato, com o Absolutismo, “o Estado passou a ser a única fonte do direito” 16, negando, assim, a espontaneidade do direito costumeiro.

A rigor, o princípio da legalidade, baluarte do Estado Moderno, surgiu justamente

13 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 314.14 Segundo Nogueira, conforme se verificará logo adiante, “também no Brasil se formou na-turalmente o Município. (...) É ele sociedade natural. Não foi criação do Estado, menos ainda circunscrição por ele instituída. Brotou com a maior naturalidade da vida social e da povoação da terra. Associaram-se os vizinhos em certo momento em volta da capela. A capela é a ori-gem do Município e o seu desenvolvimento – capela, curato, freguesia ou paróquia – dá-nos precisamente o desenvolvimento da vida associativa que redundou no município brasileiro. Tal a lição histórica nos séculos de quinhentos e seiscentos. (...) Imperava o direito costumei-ro, fora da fiscalização do reino e de seus agentes. O poder municipal era a fonte do direito” (NOGUEIRA, op. cit., p. 3; 10) 15 Nos dias atuais, os Municípios são criados por leis, de acordo com as regras previstas na Constituição, prevalecendo, após o Estado Moderno, a Escola Legalista da Teoria do Município, que o reputa criatura da lei, dotado de personalidade jurídica de direito público. No ordenamento jurídico brasileiro, note-se, todavia, que, levando em conta a criação/incorporação espontâneas de Municípios, a despeito das inúmeras exigências constitucionais previstas no artigo 18, §4º, da CR (i) lei complementar federal, ii) lei estadual de criação, iii) estudo de viabilidade municipal e iv) consulta plebiscitária prévia dos munícipes envolvidos), o Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade de reconhecer a existência fática de Municípios – ou de incorporação de parte de um a outro –, em nome do princípio da segurança das relações jurídicas, assinando prazo para que, editada a lei complementar federal exigida pela norma constitucional, seja reconhecida a existência consolidada do Município ou de faixa de fronteira a ele já há razoável período de tempo anexada, desde que as leis estaduais de criação e incorporação, respectivamente, respeitem os parâmetros federais exigíveis. (ADI 3689 / PA e ADI 2240/BA), numa tentativa de conciliação entre as teorias sociológica e legalista de surgimento dos Municípios. 16 NOGUEIRA, op. cit., p. 12.

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para substituir normas costumeiras pulverizadas em ordenamentos setoriais por comandos genéricos, abstratos e universais: as leis estatais. 17 Segundo Zagrebelsky, “el Estado liberal de derecho era um Estado legislativo que se afirmava a si mesmo através del principio de legalidad” 18, legalidade esta advinda exclusivamente do direito proclamado pelo Estado.

Neste sentido, Nelson Nery Costa esclarece que

O surgimento dos Estados Nacionais e o fortalecimento do poder dos Reis voltaram a enfraquecer o Município, que teve sua esfera de poder encampada pelo centro político, reduzindo-lhes os privilégios e a liberdade das instituições políticas. 19

A inauguração do Estado Moderno, se, por um lado, enfraqueceu a figura do Município, por outro institucionalizou uma forma exemplar de descentralização do poder do próprio Estado soberano: a Federação.

3 O nascimento do federalismo nos EUA e a necessidade de descentrali-zação do poder. O Município brasileiro antes da República até a entrada na federação.

Em pleno advento do Estado de Direito, uma das Revoluções Liberais, a Americana (1776), depois de longas discussões entre os federalistas, que pugnavam pela abdicação da soberania dos Estados Confederados da América do Norte a favor de um governo central forte o bastante para impedir o esfacelamento do Novo Mundo, e os anti-federalistas, que duvidavam de uma repartição do poder que, afinal, haviam, de forma aguerrida, conquistado em relação ao Velho Mundo 20, optou pela formação de um Estado do tipo composto: o Federal, formado pela união indissolúvel de entidades 17 Na lição de Sérvulo Correia, de acordo com a concepção contratualista de John Locke acer-ca de soberania, os homens só abdicariam de uma liberdade total, limitada apenas pelas leis da natureza, se houvesse uma garantia de que sua vida, sua liberdade e, principalmente, sua propriedade teriam uma garantia sólida: a lei. (CORREIA, José Manuel Sérvulo. Legalidade e autonomia contratual nos contratos administrativos. Coimbra: Almedina, 1987, p. 21) 18 ZAGREBELSKY, Gustav. El derecho dúctil: ley, derechos, justicia. Tradução Marina Gascòn. São Paulo: Lael, 1999, p. 24. Grifamos.19 COSTA, op. cit., p. 6. 20 Em 1776, as treze colônias inglesas da América iniciaram sua guerra por independência, organizando-se sob a forma de uma Confederação de Estados soberanos, cujos artigos só foram promulgados em 1777. Diante da fragilidade institucional da Confederação, convocou-se, em 1787, uma convenção, com delegados dos Estados, para que fossem revistos os Artigos da Confederação, o que acabou provocando a criação de uma pioneira forma de Estado: a

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políticas regionais, os Estados-Membros, sem prejuízo de um poder central forte e unívoco, adotado com a Constituição de 1787.

Daí em diante o federalismo viverá, segundo Garcia Pelayo, exatamente desta eterna “unidade dialética de duas tendências contraditórias: a tendência à unidade e a tendência à diversidade” 21, a qual se verificará não somente na divisão dual de competências entre a União e os Estados-Membros, mas, também, na relação de subsidiariedade entre estes e as instituições locais, especialmente as comunas, que Tocqueville já identificara, no início do século XIX, como condição fundamental ao pleno florescimento da democracia nos Estados Unidos da América. No seu livro clássico, o autor afirma, tomando como exemplo um dos governos locais norte-americanos, que:

[...] é nas leis de Connecticut, como em todas as da Nova Inglaterra, que se vê nascer e desenvolver essa independência comunal que, ainda hoje em dia, constitui como que o princípio da vida e da liberdade americana. Na maior parte das nações européias, a existência política começou pelas regiões superiores da sociedade e se comunicou, pouco a pouco, e sempre de maneira incompleta, às diversas partes do corpo social. Na América, pelo contrário, pode-se afirmar que a comuna antes do condado, o condado antes do Estado, o Estado antes da União. 22

Neste viés, pode-se afirmar que a instituição do federalismo, através da

federal, instituída através da Constituição de 1787. Na luta pela ratificação da Carta foi que se iniciaram os debates entre os federalistas, que publicaram uma série de artigos jornalísticos nos principais jornais de Nova York, liderados por Alexander Hamilton, James Madison e John Jay e os anti-federalistas, cujos “membros mais conhecidos, Richard Henry Lee, Patrick Henry e Mercy Warren, muito embora descritos por muitos como provincianos, desprovidos de visão continental, eram, em realidade, os velhos revolucionários de 1776, que defendiam o poder popular e, não raro, associavam o governo à tirania.” (ZIMMERMAN, Augusto. Teoria geral do federalismo democrático. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999, p. 257) A propósito do tema, é obrigatória a leitura dos federalist papers: HAMILTOM, Alexander; JAY, John; MADISON, James. Os artigos federalistas, 1787-1788. Tradução de Maria Luíza Borges. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. Para uma ampla análise dos argumentos anti-federalistas, cf.: CORNELL, Saul. The other founders: anti-federalism and dissenting tradition in America, 1788-1828. Virginia: University of North Carolina Press, 1999.21 GARCIA PELAYO, Manuel. Direito constitucional comparado. Madrid: Revista do Oci-dente, 1967, p. 18. 22 TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. Livro I: Leis e Costumes. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 39-40.

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Constituição dos Estados Unidos da América de 1787, foi o primeiro passo rumo ao resgate do poder local 23 após a tentativa de sua concentração total nas gananciosas mãos do Estado-Nação, modelo de Estado este (o federal) que passou a inspirar, desde então, o mundo ocidental. 24

Por sua vez, na história brasileira, “as comunas representavam, na época colonial, os grandes centros de decisão política.” 25 É que, também no Brasil, a organização municipal, uma herança lusitana, precedeu a própria instituição do Estado: enquanto nascia em 1532 a Vila de São Vicente, somente em 1824 se inaugurava, do ponto de vista jurídico, o Estado Brasileiro, essencialmente Unitário, e apenas em 1889, com a República, se passava a admitir a divisão do poder entre a União e os Estados-Membros. 26 De acordo com o Decreto nº 1, de 15 de Novembro de 1889, as Províncias do Império foram transformadas em Estados da República, ganhando

23 Observe-se que os Estados Unidos não incluem as organizações político-administrativas locais no pacto federativo federal, na medida em que a autonomia municipal depende da delegação de poderes por parte do Estado-Membro. A afirmação de que o federalismo ressuscitaria o poder local está em evitar a univocidade do direito do Estado soberano sobre todo o território nacional, sem levar em conta peculiaridades, assimetrias e pluralismos que somente se compadecem de regulamentações específicas e gestões locais próprias.24 A concepção da União Européia como uma nova forma de “federação internacional”, em que os Estados-Nação não abdicam da respectiva soberania, mas muitas vezes promovem reformas constitucionais para se ajustarem às normas comunitárias, escapa ao exame desta reflexão, muito embora demonstre a força daquela dialética federativa entre unidade e diversidade de que já se tratou em relação do federalismo em seu sentido clássico. A rigor, divide-se a doutrina em três principais correntes sobre a natureza jurídica da União Européia: i) de nova confederação de Estados soberanos; ii) de uma federação internacional, em que a autonomia dos Estados se mantém em grau superior ao dos entes que compõem as federações internas e iii) um tertium genus, com suas especificidades do ponto de vista político e econômico ainda em franco estágio de definição, mas de cunho nitidamente neofederal. 25 TORRES, Silvia Faber. O princípio da subsidiariedade no direito público contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 241. A respeito da história do Município no Brasil, cf., por todos: LAXE, op. cit. 26 “O ideal federativo é no Brasil tão antigo quanto a reivindicação de independência. Obtida esta, houve quem postulasse a implantação de uma estrutura federativa, mais condizente com a diversidade de condições regionais e com os meios de comunicação da época, do que a centrali-zação. A Constituição de 1824 deu, todavia, ao Brasil a forma de Estado unitário descentralizado. [...] A Federação chegou ao Brasil ao mesmo tempo que a República, formalizadas ambas pelo Decreto nº 1, de 15 de Novembro de 1889.” (FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 56-57. Grifamos)

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autonomia, sendo constitucionalmente institucionalizada a Federação na Constituição Brasileira de 1891.

Ao contrário de uma federação por agregação (ou centrípeta), como a americana, em que Estados soberanos abdicaram de sua soberania a favor de um governo central 27, malgrado a proeminência das instituições municipais no Brasil-Colônia 28, certo é que o federalismo, nominalmente adotado com a instituição da República Brasileira, se deu por caminho inverso: o da desagregação (ou federação centrífuga), com o governo central, representado, à época do Império, pela Coroa, abrindo mão de parcela de sua soberania a favor das entidades regionais (as províncias, transformadas em Estados) a fim de evitar a fragmentação político-territorial que acabou por ocorrer com os países latinos vizinhos, no período pós independência, em relação à metrópole espanhola.

Após períodos alternados de ampliação e retração do poder conferido pelos Estados-Membros aos Municípios29 para a disciplina de matérias e organização de 27 Segundo Stepan, haveria três modelos de federação surgidos no século XIX: i) o modelo coming-togehter: aquele pelo qual Estados previamente independentes “juntaram-se” para somar forças, que seria típico dos Estados Unidos e que não se repetiu em outras federações; ii) o modelo holding-together, próprio de países com múltiplas etnias em sua composição populacional e que decidiram tornar-se federações porque os Estados unitários previamente existentes estavam ameaçados de disrupção (no qual se incluiria o caso brasileiro); e iii) o modelo putting-together, através do qual se dá um pesado esforço coercitivo por parte de um poder não-democrático centralizado, cujo objetivo seja “unificar” um Estado baseado em diferentes etnias e nacionalidades, das quais apenas algumas estejam organizadas previamente em Estados independentes (caso da Rússia). Segundo o cientista político, no segundo modelo, as unidades subnacionais não eram Estados cuja soberania prévia lhes conferia um poder de barganha tal que pudesse ser comparado à trajetória dos Estados norte-americanos, o que im-plicou que os governos regionais tivessem menos soberania e menos poder de negociação em relação ao governo central (STEPAN, A. Para uma nova análise comparativa do federalismo e da democracia: federações que restringem ou ampliam o poder da demos. Dados, v. 42, n.2, p. 197-251, 1999), o que explicaria a gênese de um federalismo que, embora dotado de diversos instrumentos de cooperação, ainda seja, no caso brasileiro, extremamente centralizado.28 Na descrição de Hely Lopes Meirelles, “o Município português foi transplantado para o Brasil-Colônia com as mesmas organizações e atribuições políticas, administrativas e judiciais que desempenhava no Reino. [...] No período colonial, a expansão municipalista foi restringida pela idéia centralizadora das capitanias, afogando as aspirações autonômicas de povoados que se fundavam e se desenvolviam mais pelo amparo da Igreja que pelo apoio dos donatários. Mesmo assim, as municipalidades de então tiveram inegável influência na organização política que se ensaiava no Brasil, arrogando-se, por iniciativa própria, relevantes atribuições de governo, de administração e de justiça.” (MEIRELLES, op. cit., p. 4-5). 29 Para um exame acurado dos Municípios no Brasil-Colônia e a autonomia municipal nas várias Constituições brasileiras que antecederam a Constituição de 1988, confira-se o escólio de MEIRELLES, op. cit., p. 3-22.

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serviços de seu peculiar interesse, de acordo com o escopo de autonomia municipal definido nas Cartas e Constituições brasileiras, alternância esta coincidente com os períodos de totalitarismo e democracia pela qual passou o país, só com o advento da Constituição-Cidadã, como medalha sempre ostentada pelos municipalistas, o Município adquire o status político-administrativo que já lhe era devido desde o Império 30: o de ente integrante da Federação Brasileira. 31

Antes de cuidar da intangibilidade do poder local (rectius, da descentralização máxima do poder) à luz do ordenamento jurídico-constitucional brasileiro, mister conhecer, do ponto de vista jusfilosófico, a relevância da comuna, do município, da cidade para o pleno desenvolvimento daqueles que são seus verdadeiros “titulares”: os cidadãos.

4. Algumas antíteses relacionadas ao poder local: A Fratria e a Cidade (Fustel de Coulanges); o Jardim e a Praça (Nelson Saldanha); Autonomia Pública e Autonomia Privada (Benjamim Constant). Uma síntese possível: a aplicação da teoria discursiva habermasiana, do princípio da subsidia-riedade e do federalismo como valor do plural no espaço público local.

“Direito à ocupação, sim; direito à cidade, não.”30 Com relação à Carta de 1824, note-se que “antes da outorga do Imperador, foi submetida à aprovação das Câmaras Municipais do país, cujo pronunciamento favorável foi valorizado no preâmbulo da mesma, como representativo das aspirações do nosso povo” (COSTA, op. cit., p. 42), na nossa versão tupiniquim, guardadas as devidas proporções, à luta norte-americana pela ratificação da Convenção da Filadélfia pelos Estados, que gerou todas as discussões entre federalistas e anti-federalistas, cujo resultado foram páginas inolvidáveis de lição política e constitucional sobre os mais variados temas, entre os quais, por óbvio, o do federalismo. Cf., a propósito: HAMILTOM; JAY; MADISON, op. cit. 31 Cumpre mencionar que Hely Lopes Meirelles já defendia a posição dos Municípios como entes integrantes da Federação brasileira desde a Constituição de 1946, “que erigiu o Municí-pio em entidade estatal de terceiro grau, integrante e necessária ao nosso sistema federativo.” (MEIRELLES, op. cit., p. 18 e seg.) Em posição diametralmente oposta, José Afonso da Silva entende que nem sob a égide da Constituição de 1988 o Município teria se tornado ente federativo. Segundo o renomado constitucionalista, “o Estado federal brasileiro está constitu-cionalmente concebido como a união indissolúvel dos Estados, Municípios e Distrito Federal (art. 1º). Foi equívoco do constituinte incluir os Municípios como componente da federação. O Município é divisão política do Estado-membro. E agora temos uma federação de Municípios e Estados, ou uma federação de Estados? Faltam outros elementos para a caracterização de federação de Municípios. A solução é: o Município é um componente da federação, mas não entidade federativa.” (SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 103)

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(Ermínia Maricato)

A necessidade de organização político-administrativa do cotidiano local remonta, conforme se verificou quando da análise histórico-evolutiva dos Municípios, a tempos imemoriais.

A legitimação do poder local parece ter nascido – e se sofisticado –, de fato, sob o signo da dualidade: ou a devoção egoística e religiosa à reunião das famílias em torno da fratria 32 ou a participação da vida política na arena pública da Ágora 33; ou o epicurismo, com sua contemplação bucólica do “eu” ou a abnegação socrática ao ideal holístico de vida; ou o recanto aconchegante e privado do jardim ou o espaço coletivo e solidário da praça 34; a autonomia pública de uma liberdade dos antigos, dirigida, como os girassóis à procura do sol, para a coletividade ou a autonomia privada de uma liberdade dos modernos, circunscrita à introspecção da auto-determinação liberal e egocêntrica do indivíduo 35; ou o liberalismo com sua máxima intransigência para com o self ou o comunitarismo com sua subserviência ao todo ou à parte deste que nos interessa neste latifúndio: o Município e seu poder local.

Esta dualidade entre a autonomia privada e o espaço público permite uma

32 “Várias famílias formaram a fratria, várias fratrias a tribo, e diversas tribos a cidade. Família, fratria, tribo, cidade são, portanto, sociedades perfeitamente análogas e nascidas umas das outras por uma série de federações.” (COULANGES, op. cit., p. 138) Segundo o autor, ”o homem ingressa em diversas épocas nas quatro sociedades [...] [Por volta dos dezesseis ou dezoito anos, ele jura respeitar a religião da cidade.] A partir deste dia está iniciado no culto público e torna-se cidadão.” (COULANGES, op. cit., p. 139-140).33 Ágora era a praça pública onde os gregos se reuniam para suas deliberações políticas, no exer-cício da democracia direta, a fim de decidir o destino da polis (cidade). “A agora, o mercado-lugar de reunião, é o domínio no qual os indivíduos encontram-se livremente, discutem, contratam entre si, publicam e compram livros, etc.” (CASTORIADIS, Cornelius. As encruzilhadas do labirinto IV: a ascensão da insignificância. São Paulo : Paz e Terra, 2002, p. 265). 34 Para um belíssimo contraponto entre o público e o privado ao longo dos tempos, cf.: SAL-DANHA, Nelson. O jardim e a praça: o privado e o público na vida social e histórica. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1993. 35 A respeito da dicotomia entre liberdade individual ó liberdade pública; autonomia privada ó participação; direito ó democracia, cf, por todos, CONSTANT, Benjamin. Da liberdade dos antigos comparada a dos modernos. In: Filosofia política. Tradução Loura Silveira. Promoção conjunta do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e do Departamento de Filosofia da Universidade de Campinas: L&PM, s.d., p. 16.

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inusitada correlação com outro paralelo da ciência política e do direito constitucional: a tensão entre direitos fundamentais, cujo palco inicial teria sido o liberalismo político do nascimento do Estado Moderno, e soberania popular, de que a arena pública democrática – e, mais precisamente, o espaço público local – seria, nestas linhas, o cenário exemplar.36

Habermas apresenta uma síntese para a suposta conflituosidade entre constitucionalismo e democracia: a co-originalidade entre direitos fundamentais, de tutela dos indivíduos – e das minorias – contra a opressão estatal (em seu sentido lato) e democracia, com sua intransigência para com a vontade da maioria, de forma que não se opõem, porquanto se complementem. Para Habermas,

Direitos subjetivos não estão referidos, de acordo com seu conceito, a indivíduos atomizados e alienados, que se entesam possessivamente uns contra os outros. Como elementos da ordem jurídica, eles pressupõem a colaboração de sujeitos, que se reconhecem reciprocamente em seus direitos e deveres, reciprocamente referidos uns aos outros, como membros livres e iguais de direito. 37

Cláudio Pereira de Souza Neto sintetiza, com maestria, o pensamento habermasiano:

Na [referida] obra de Habermas, a autonomia privada é entendida como necessária à manutenção da autonomia pública, na medida em que somente a autonomia privada pode garantir a necessária liberdade de igual participação do processo político democrático. Direitos como a liberdade de expressão possuem um papel fundamental na formação discursiva das decisões políticas. 38

Desta forma, a adoção da teoria do discurso na arena política local permitiria a 36 Santiago Nino trata do delicado “equilíbrio entre vontade geral (lei) e interesse do indivíduo (protegido pelo direito fundamental)” quando examina o controle de constitucionalidade das leis. A propósito, cf.: SANTIAGO NINO, Carlos. Los fundamentos del control judicial de constitucionalidad. In: Cadernos y debates. Fundamentos y alcances del control judicial de constitucionalidad. Madri: Centro de Estudios Constitucionales, 1991, p. 97. Neste ensaio, a democracia que se entende exsurgir da vida local não repousaria tanto na teoria democrática representativa, com vistas à edição das leis por representantes eleitos pelo povo, mas na teoria de-mocrática discursiva, voltada à tomada coletiva de decisões concernentes ao interesse local.37 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Tradução Flávio Beno Siebenrichter. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, v. 1, p. 121. 38 SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Jurisdição constitucional, democracia e racionalidade prática. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 303.

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todos os munícipes a coparticipação no destino de sua Comuna, a partir da liberdade de traçado de seu próprio devir, que acaba se entrelaçando, no coletivo, com o dos demais.

Por outro lado, de acordo com a aplicação do princípio da subsidiariedade à ciência política e, mais especificamente, à teoria federativa, o ideal é que o indivíduo possa resolver por si mesmo os problemas cuja solução esteja sob sua alçada (autonomia privada), somente recorrendo às organizações políticas mais complexas, para subsidiá-lo (quiçá pelo exercício de sua autonomia pública), quando absolutamente necessário, sendo que, para tanto, escolhendo, em primeiro lugar, de preferência, um órgão intermediário existente e, não sendo isto possível, se reportando à órbita de poder mais próxima, o governo local, só passando às instâncias superiores, como a regional e a nacional, sucessivamente, dependendo do grau de esgotamento da capacidade atributiva das demais.39

Neste sentido, embora não apresente a autonomia privada e o possível valimento do espaço público (e, quiçá, da autonomia pública) para o exercício de um direito individual como “co-originários”, ao contrário, como “sucessivos no espaço e no tempo” (primeiro, espaço privado; segundo, espaço público), o princípio da 39 O princípio da subsidiariedade consiste, na lição de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, “em deixar ao homem o que ele pode fazer por si; em nível mais alto, às comunidades, o que podem estas realizar; aos grupos, inclusive empresas, no plano da economia, saúde, da assistência, o que lhes está ao alcance; à sociedade, o que somente esta pode atender; ao Estado, o que não pode ser bem feito pelos círculos menores. E, no âmbito deste, ao Poder Local, o que este pode desempenhar, apenas dando ao poder mais alto o que não pode ser conduzido a não ser por ele.” (FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Constituição e governabilidade. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 129) Por uma interpretação do princípio da subsidiariedade como implícito no princípio federativo e, no caso brasileiro, com fortalecimento do Município para o trato das matérias de interesse local, confira-se, na doutrina nacional, a obra já citada de Silvia Faber Torres. Também na doutrina nacional, cf.: BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O princípio da subsidiariedade: conceito e evolução. Rio de Janeiro: Forense, 1996. Acerca das origens e desdobramentos do princípio da subsidiariedade, cf.: MILLON-DELSOL, Chantal. Le principe de subsidiarité. Paris: Presses Universitaires de France. 1993, para quem a idéia de subsidiariedade, cuja ex-pressão, com seu sentido atual, seja do século dezenove, remonte a Aristóteles, conforme se verifica da seguinte passagem da obra: “La societé décrite par Aristote se compose de groupes emboîtés lês uns dans lês autres, dont chacan accomplit dês taches spécifiques et pourvoit à sés besoins propres. La famille est capable de suffire aux besoins de La vie quotidienne, et Le village, à ceux d’une vie quotidienne élargie. Mais seule La cite, organe proprement politique, est capable d’atteindre l’autarcie, la pleine suffisance de tout, et c’est ainsi qu’elle se définit: par l’autosuffisanse, synonyme de perfection.” (MILLON-DELSOL, op. cit., p. 9).

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subsidiariedade, ínsito ao federalismo, posiciona o poder local (espaço público) como a primeira instância estatal à qual deve recorrer o indivíduo naquilo que não possa resolver por si próprio (autonomia privada). E esta subsidiariedade tanto será mais necessária quanto mais abrangente – ou multiplicável – seja o problema, de forma a potencialmente envolver outros munícipes em idêntica situação, a ser resolvida de maneira uniforme, de preferência, através do exercício da autonomia pública na órbita local [numa aplicação da teoria discursiva ao Estado (rectius, ao Município) subsidiário].

Nesta linha de raciocínio, aplicando-se a teoria habermasiana do discurso e o princípio da subsidiariedade federativa ao espaço público municipal, com sua forte inclinação para o exercício inaugural de uma democracia discursiva, poder-se-ia construir uma ponte apta a ligar o jardim à praça: ora, é este o papel da Cidade! É este o desiderato do exercício democrático e, co-originalmente, tutelar das liberdades do cidadão: tornar complementares, coletivos, projetos homogeneamente individuais de vida para os quais seja necessária a intervenção estatal, de preferência, local, naquilo que puder ser resolvido na instância de poder mais próxima ao cidadão.

Ademais, o federalismo encerra, mais que uma forma de organização burocrática do poder, um compromisso com o pluralismo: aquela dialética entre a unidade, nas questões nacionais, e a diversidade, com efetivo respeito ao que seja plural e peculiar às coletividades regionais/locais. Na arguta observação de Martins:

Se lembrarmos que o pluralismo é composto pelos valores da integração, autodeterminação, tolerância e participação, perceberemos sua intrínseca relação com o princípio democrático, e se o federalismo é um fenômeno que tem por fim concretizar o pluralismo, chegamos à conclusão de que o destino natural do federalismo é estabelecer uma sociedade democrática e libertária 40,

na medida em que, “el razionamento federalista consiste em que el pluralismo puede, de um modo u de outro, constituir-se em salvaguardia de la liberdad.” 41

40 MARTINS, Cristiano Franco. Princípio federativo e mudança constitucional: limites e pos-sibilidades da Constituição brasileira de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 37.41 BURGESS, Michel; GAGNON, Alain-G. Comparative federalism and federation. Toronto: University of Toronto, 1993, p. 7.

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Graças à teoria discursiva habermasiana 42, ao princípio da subsidiariedade como bússola de direção da resolução de inúmeros conflitos de competência que envolvem matérias de interesse local e à concepção política do federalismo não como forma de Estado tout court, mas, essencialmente, como valor democrático em si mesmo, o melhor locus para se estabelecer o diálogo entre indivíduos iguais, racionais e dignos da mesma consideração seria – pela maior proximidade entre governantes e governados, ou melhor, entre parceiros políticos – o espaço público local, cuja sede de poder político-administrativo é justamente o Município.

Neste sentido, federalismo e democracia seriam instituições políticas eminentemente dependentes da máxima descentralização – vertical (via federação), horizontal (via separação dos poderes) e diagonal (via democracia discursiva) – do poder, perfazendo-se, com tais linhas cruzadas de configuração, uma verdadeira malha de liberdade de autodeterminação: tanto individual, multiplicada na proporção inversa à da máxima divisão do poder 43, quanto coletiva, pela possibilidade de todo indivíduo ser ouvido na arena pública com igual dignidade e distinção.42 Segundo a teoria discursiva de Habermas, os cidadãos, numa democracia discursiva, devem ter condições de participar do espaço público e de interferir nas decisões públicas que os afetem, sendo sua participação levada em consideração em igualdade de condições para com os demais participantes do diálogo democrático. (HABERMAS, op. cit., v. 1 e 2). 43 A moderação de poder que inspira o ideal montesquiniano da divisão horizontal do poder entre órgãos distintos (o Executivo, o Legislativo e o Judiciário) em sua célebre obra sobre o espírito das leis (MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de la Brède et de. De l´esprit des lois. Paris: Éditions Garnier Frères, 1956) pode ser aplicada, mutatis mutandis, à divisão vertical de poder que o federalismo traduz: tem também por finalidade evitar que o excesso de poder leve à tirania e que, repartindo-se-o, se garanta maior liberdade aos cidadãos. Ob-serve-se, todavia, que, para os cientistas políticos norte-americanos contemporâneos, que se dedicam ao tema do federalismo, o princípio democrático que lhe deve ser ínsito estaria mais na pluralidade partidária dos diferentes centros de poder do que na sua descentralização em si. Ao contrário da interpretação aqui adotada, de que a descentralização fortalece o federalismo, protege o pluralismo e, assim, viabiliza melhor a democracia, Ricker defende que a centraliza-ção de poder no governo central é que impede o esfacelamento da federação e que o principal mecanismo institucional que evita sua convolação num Estado unitário seria a descentralização não das órbitas de poder, mas do sistema partidário. “Quanto maior a probabilidade de que um mesmo partido controle simultaneamente o governo central e os Estados-membros e, ainda, quanto maior a disciplina partidária dos partidos nacionais, mais fortes seriam as tendências à centralização. Alternativamente, o multipartidarismo, partidos disciplinados de base regional, a possibilidade efetiva de alternância no poder funcionariam como uma espécie de contrapeso às inevitáveis tendências centralizadoras derivadas do desenho institucional das modernas federações.” (ARRETCHE, Marta. Federalismo e democracia no Brasil. São Paulo em Pers-pectiva, v. 15, n. 4, out./dez. 2001) Portanto, para Riker (RIKER, W. Federalism. In: GREENS-TEIN, F.; POLSBY, N. (Eds.). Handbook of political science. Massachusetts, Addison-Wesley

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Segundo Grotti,

A descentralização é, sem dúvida, uma grande arma a favor da democracia e das liberdades públicas e só será possível mediante a existência de uma forma de Estado federativa, onde os entes regionais atuem de modo independente e autônomo, propiciando ao povo real participação no exercício do poder. 44

Neste viés, comprovar-se-á que, de acordo com a Constituição Brasileira vigente, o Município, na acepção positivo-legalista, e o poder descentralizado (in casu, o local), na pós-positivista-axiológica, enquanto valor, podem ser tidos como intangíveis, sendo a tridimensionalidade das órbitas de poder – federal, estadual e municipal – ínsita ao pacto federativo nacional brasileiro, uma “cláusula pétrea”, para o positivismo, e/ou uma “cláusula superconstitucional”, mesmo no novo paradigma doutrinário do pós-positivismo.

5. Intangibilidade do poder local (rectius, da máxima descentralização do poder)

Diante daquele modestíssimo apanhado histórico inicial acerca da organização político-administrativa local das cidades e, no cenário nacional, da inclusão dos Municípios, sede jurídica das Comunas (com suas áreas urbanas e rurais), no rol dos entes integrantes da Federação Brasileira, bem como da digressão empreendida

Publishing Company, v. 5, 1975), é a descentralização do sistema partidário, e não o Senado, como instituição representativa dos Estados-membros, que garantiria a independência dos ní-veis de governo. Afora a questão do multipardidarismo como condição necessária à realização do princípio federativo, em relação à qual a doutrina brasileira não discrepa [Ferreira Filho p.ex. realça que “hoje, na maioria dos Estados federais, os senadores estão presos a partidos e não propriamente aos Estados em que se elegem” (FERREIRA FILHO, op. cit., p. 52)], a diferença de visões – uma, primando pela descentralização do poder, outra considerando a centralização premissa de existência do federalismo – estaria na origem das federações norte-americana e brasileira: aquela efetivamente dependente do fortalecimento de um governo central então inexistente e esta dependente de uma maior garantia de competências próprias às ordens jurídicas parciais. 44 GROTI, Museti. Perspectivas para o federalismo. In: BASTOS, Celso Ribeiro (Org.) Por uma nova federação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 150.

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acerca da estreita correlação existente entre federalismo e democracia em países com dimensões territoriais continentais, como no caso emblemático dos Estados Unidos da América e do Brasil, há que se perquirir sobre a efetiva intangibilidade do poder local no ordenamento jurídico nacional: tanto sob o prisma positivista, de primado purista da lei, quanto sob a ótica pós-positivista 45, de reaproximação entre Moral e Direito e todos os aportes jusfilosóficos que o restabelecimento deste elo suscitam, inclusive o resgate “fundamentalista” dos princípios, entre os quais estaria, justamente, o do federalismo.

Partir-se-á, para tanto, das principais objeções doutrinárias a esta intangibilidade do Município e/ou da descentralização máxima do poder até o nível local na Constituição Brasileira vigente: no primeiro caso, formulada por Castro e, no segundo, por Vieira, com posterior desvendamento analítico das réplicas que lhes podem ser opostas.

5.1 Sob a ótica positivista: o Município como “cláusula pétrea” da Fede-ração Brasileira

Castro, mediante lógica cartesiana, afirma que sem Estado-membro não há Federação – cuja composição compreende justamente a união indissolúvel dos entes regionais –, mas que, mesmo desprovido de Municípios, o Estado Federal remanesce íntegro. Afirma o autor, de forma peremptória:

Inegavelmente, a teoria geral do federalismo não pressupõe o Município como entidade federada. Os únicos entes federativos são o Estado Federal e os Estados-membros ou federados [...] Sem Estados-Membros, não há que se falar em Federação. Sem Municípios não se pode afirmar o mesmo,

45 Ao pós-positivismo não basta uma interpretação sistêmica das leis segundo os métodos clás-sicos de interpretação, que remontam a Savigny, porquanto num ambiente de plena constitucio-nalização dos direitos e de abundância de princípios, que seriam os núcleos condensadores dos valores que subjazem à constituição da sociedade, a hermenêutica das leis deve se fundamentar não apenas na ciência pura do direito (Kelsen), mas também nos critérios éticos e morais que devem inspirar, se não o legislador, o intérprete do Direito (e não estritamente das leis). Na doutrina nacional, sobre o conceito de pós-positivismo, confira-se, por todos: BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro: (pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). Rio de Janeiro: Saraiva, 2003. Post Scriptum.46 CASTRO, José Nilo de. Direito municipal positivo. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 57-58.

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evidentemente. 46

Neste caso, o caminho da refutação é, também, linear.

Ora, a configuração constitucional do federalismo tridimensional típica e pioneiramente brasileiro implica incontestável inclusão dos Municípios na Federação 47, conforme dispõem os artigos 1º e 18, caput, da Constituição da República, entre vários outros dispositivos constitucionais que cuidam dos pilares sobre os quais a autonomia municipal se assenta: capacidade de autoconstituição, auto-administração, autogoverno e auto-suficiência financeira.

Com efeito, na Lei Maior Brasileira, ao Município concedeu-se poder de: i) autoconstituição, para se organizarem política e autonomamente, através de 47 Ao contrário dos Estados Unitários descentralizados ou dos Estados Regionais, que não che-gam a configurar uma espécie de federação, porquanto os entes descentralizados e as Regiões não gozem da capacidade de autodeterminação, protegida pela própria Constituição, no Estado Federal Brasileiro (constitucionalmente descentralizado e insuscetível de reforma constitucional, ao contrário, respectivamente, dos Estados Unitários descentralizados e dos Estados Regio-nais, afora a capacidade de auto-organização dos entes regionais e locais), não só os Estados-Membros, como, também, os Municípios têm assegurada, na própria Lei Maior, a garantia da autoconstituição, pela edição, pelos respectivos Parlamentos (Assembléias Legislativas e Câmaras dos Vereadores), exclusivamente, das Constituições dos Estados e das Leis Orgânicas dos Municípios. Segundo G. Alan Tarr, ao contrário da lição repetida de forma uníssona em todos os manuais de direito constitucional e administrativo, o Brasil não seria mais a única federação dotada de três órbitas autônomas de poder, a federal, a estadual e a municipal: para o autor, “essa vocação para configurar constitucionalmente o federalismo como um sistema de governo de três níveis é bastante comum nas constituições federais recentes – alguns exemplos seriam a Constituição do Brasil de 1988, a da Rússia de 1993 e a da África do Sul de 1996. Estas constituições federais tendem a garantir a existência de governos locais, definindo suas estruturas e poderes, além de estabelecerem uma área no interior da qual as administrações locais estarão livres de interferência dos níveis federal ou estadual (...).” (TARR, G. Alan. O Constitucionalismo americano e o governo local. Revista de Administração Municipal, ano 49, n. 247, p. 17, maio/jun. 2004). Um estudo mais aprofundado acerca da afirmação de G. Alan Tarr – sobre se tratar de Estados que apenas configuram constitucionalmente uma terceira órbita de poder ou que lhas garantem efetivamente o poder de autoconstituição, em igualdade de condições com a União e os Estados-Membros – fica, todavia, para uma outra oportunidade. 48 Segundo Regina Maria Ferrari Macedo, a natureza das Leis Orgânicas seria de Constituição por duas razões de ordem formal: i) sua natureza rígida, na medida em que, se: i.a) o devido processo legal federal deve ser copiado, por regra de “reprodução obrigatória” (HORTA, Raul Machado. Estudos de direito constitucional. Belo Horizonte, Del Rey, 1995, p. 78 e seg.), pelos poderes constituintes derivados decorrentes, i.b) as leis complementares são votadas por maioria absoluta (artigo 69 da CR) e as ordinárias, maioria simples (artigo 47 da CR), e i.c) as leis orgânicas gozam de um procedimento mais solene e dificultoso de elaboração – votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal (artigo 29 da CR) – do que será o destinado, por simetria, à elaboração

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Leis Orgânicas Municipais (verdadeiras Constituições Municipais 48), votadas e promulgadas no âmbito das próprias Câmaras de Vereadores (artigo 29, caput, da CR c/c artigo 18, parágrafo único, do ADCT), e de todo o ordenamento jurídico municipal infraconstitucional, desde que obedecido o devido processo legislativo federal, em virtude do princípio da simetria; ii) auto-administração, para o exercício de suas competências próprias, a organização de seus serviços, a disciplina de seu pessoal e a gestão de seu patrimônio; iii) autogoverno, através da eleição dos representantes do Executivo (Prefeito e Vice-Prefeito) e do Legislativo (Vereadores) locais; e iv) auto-suficiência financeira, mediante arrecadação de tributos de sua competência, bem como de repasses de verbas dos outros entes de uma federação constituída de forma cooperativa.

Não há dúvidas, portanto, de que os Municípios integram a organização político-administrativa brasileira na qualidade de entes integrantes da Federação.

Cogitar da impossibilidade de uma emenda constitucional vir a excluir os Municípios do condomínio federativo adotado originalmente pelo constituinte decorre de um silogismo singelo, a seguir demonstrado:

i) premissa maior: A Federação Brasileira é formada pela união

do direito municipal infraconstitucional, é porque se está diante de uma rigidez da Lei Orgânica Municipal somente compatível com sua natureza constitucional, de Lei Maior do Município; e ii) sua promulgação pelo próprio Parlamento Local, sem oitiva do Chefe do executivo, como é próprio das Constituições. (FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Elementos de direito municipal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993) Em sentido oposto, para Sérgio Ferrari, nem mesmo as Constituições Estaduais deveriam ser tidas, no conteúdo, como verdadeiras Constituições, fruto de um poder constituinte autônomo, tamanhas são as simetrias ao modelo federal criadas pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que ele deve, obrigatoria-mente, reproduzir. (FERRARI, Sérgio. Constituição Estadual e federação. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003) Em artigo mais recente, o autor dá ênfase à autonomia local, desprezando a observância, pelas leis municipais, às disposições das Constituições do Estado que desbordem a capacidade de auto-organização municipal, aí incluída a autolegislação local. (FERRARI, Sérgio. A (In) submissão dos municípios ao ordenamento jurídico estadual: o caso do § 2º do art. 112 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro e a evolução da jurisprudência do TJRJ. Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro, v. 19, 2008. Federalismo.

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indissolúvel de Estados-Membros, Distrito Federal e Municípios (Federação Brasileira = União + Estados + Distrito Federal + Municípios); ii) premissa menor: A forma federativa de Estado constitui limite material expresso ao poder de emenda à Constituição, conforme o disposto no artigo 60, §4º, I, da Lei Maior49; e iii) síntese: Os Municípios são “intocáveis” pelo poder constituinte reformador.

Dito de outra forma, sob a égide da Constituição de 1988 não se pode cogitar de uma emenda constitucional que exclua o Município do pacto federativo brasileiro originalmente concebido, nem mesmo que se lhe retirem competências de tal forma a descaracterizar todas as notas típicas que lhe conferem, no conjunto, a condição de entes federativos. 50

Com efeito, a mencionada crítica de Castro em relação à prescindibilidade das entidades municipais para a existência da forma composta de Estado procede em relação ao modelo clássico de federalismo, inaugurado com o arquétipo norte-americano, mas não no que se refere ao figurino peculiar à tríade governamental 49 Assim dispõe o artigo 60, §4º, I, da CR:“Art. 60 – in omissis; §4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I. a forma federativa de Estado.” 50 Em matéria tributária, Ricardo Lodi defende que eventual emenda constitucional não poderia subtrair dos entes federativos os tributos que – por significarem maior fonte de receita para cada unidade federativa: IR, para a União, ICMS, para Estados e ISS, para Municípios – lhes garantem autonomia financeira para o exercício de suas competências constitucionais, porquanto a medida implicaria uma tendência à abolição do pacto federativo inicialmente concebido (RIBEIRO, Ricardo Lodi. Pacto federativo e reforma tributária. Revista de Direito Administrativo, n. 222, p. 87-96, out./dez. 2000), também proibida pelo artigo 60, §4º, da Constituição. 51 O Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento da ADI 2024 MC/DF, teve opor-tunidade de se manifestar neste mesmo sentido, conforme excerto da ementa do respectivo julgado que a seguir se transcreve: “1. A “forma federativa de Estado” – elevada a princípio intangível por todas as Constituições da República – não pode ser conceituada a partir de um modelo ideal e apriorístico de Federação, mas, sim, daquele que o constituinte originário concretamente adotou e, como o adotou, erigiu em limite material imposto às futuras emendas à Constituição; de resto as limitações materiais ao poder constituinte de reforma, que o art. 60, § 4º, da Lei Fundamental enumera, não significam a intangibilidade literal da respectiva disciplina na Constituição originária, mas apenas a proteção do núcleo essencial dos princípios e institutos cuja preservação nelas se protege.” Certamente que a inclusão dos Municípios na Federação Brasileira consta do núcleo essencial do princípio federativo adotado na Consti-tuição de 1988.

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federativa brasileira 51: três órbitas distintas de poder autônomo em torno de qualquer indivíduo, em qualquer parte do território brasileiro, salvo no Distrito Federal. 52

Neste sentido, pode-se afirmar que a existência mesma dos Municípios – e do plexo de regras e princípios que lhe garantem autonomia – se encontra, sob a égide da vigente Constituição, protegida de eventual extinção pela via da reforma constitucional, caracterizando-se, de fato, ainda que por uma relação de continência em relação ao princípio federativo, uma “cláusula de pedra” da Federação Brasileira.

5.2 Sob a ótica pós-positivista: a descentralização vertical do poder como “cláusula superconstitucional”

Oscar Vilhena Vieira, por somente identificar legitimidade nas cláusulas insuscetíveis de reforma – que denomina “superconstitucionais” 53 – que constituam verdadeiros pressupostos ao exercício da democracia, evitando-se, assim, o pré-comprometimento dos novos anseios das gerações atuais para com os das gerações 52 De acordo com o artigo 32 da Constituição, é vedada a divisão do Distrito Federal em Municípios.53 VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e sua reserva de justiça: um ensaio sobre os limites materiais ao poder de reforma. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 20-21. 54 De acordo com Vieira, as normas pétreas, porque “cravadas na pedra”, que ele batiza de “cláusulas superconstitucionais”, constituem uma limitação à democracia, na medida em que obstam que a soberania popular se manifeste no futuro através do poder constituinte derivado, razão por que elas necessitam de uma justificativa racional forte, principalmente em tempos de resgate da racionalidade prática no discurso jurídico, se se pretendem legítimas. Na metáfora sobre o referido pré-compromisso utilizada originalmente por Jon Elster (ELSTER, John. Ulys-ses and the Sirens. Cambridge: Cambridge University Press, 1979) e encampada por Vieira, assim como, na obra homérica, Ulisses que, com as mãos deliberadamente atadas ao mastro da embarcação em que navegava e com os ouvidos propositalmente tapados com cera em razão da advertência quanto ao perigo iminente, logra resistir ao canto mortal das sereias a fim de seguir sua viagem, os limites materiais ao poder de reforma constitucional, quando legítimos, atando as mãos do constituinte reformador, impedem que, por paixões momentâneas, venha a naufra-gar o destino constitucional inicialmente traçado através de cláusulas de pretensa eternidade. As cláusulas superconstitucionais, para não representarem, todavia, a tirania de uma geração sobre aquela que a sucederá, não podem prescindir de um fundamento axiológico de validade: o substrato ético capaz de justificar sua existência. Em resumo: para Vieira, a legitimidade da limitação material ao exercício do poder constituinte derivado repousará na preservação da igualdade e da dignidade humana: a autovinculação somente será legítima na medida em que servir de instrumento à realização do princípio democrático; a contrario sensu, serão ilegítimas as cláusulas superconstitucionais que representem um “instrumento de bloqueio absoluto de mudanças, de proteção de privilégios ou do status quo”, com a ofensa ao princípio democrático: à capacidade de cada geração de se autogovernar.

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pretéritas 54, desqualifica, a princípio, a forma federativa de Estado como pacto intocável pelo poder constituinte reformador, na medida em que ela não constituiria um valor ético necessário ao aprimoramento de um projeto democrático da sociedade e, por conseguinte, coloca a instituição municipal (rectius, a descentralização do poder ao máximo sobre o território nacional brasileiro, até o nível municipal) à mercê da (nova) vontade das maiorias.

Mister se faz conferir seus argumentos:

O princípio da federação, por exemplo, prima facie, não possui valor moral em si. Diversas são as nações que se organizam de forma unitária sem que isso signifique uma ordem injusta ou autoritária. [...] [E, em caso de conflitos entre o federalismo e os direitos fundamentais], “como a Federação não é um valor em si, mas uma simples forma de organização do Estado, esta deve ceder em nome dos direitos fundamentais. 55 56

Desta feita, a vereda que se toma para a refutação apresenta lá suas sinuosidades...

Vários autores, com suas teorias, nos conduzem, porém, sem perigo de naufrágio, a um porto seguro. Vejamos:

Tocqueville já ressaltava, à sua época, a relevância da existência do poder local para o exercício das liberdades como pressuposto à efetiva existência da democracia. Segundo célebre passagem da obra do autor,

[...] é na comuna que reside a força dos povos livres. As instituições comunais estão para a liberdade assim como as escolas primárias estão para a ciência: elas a colocam ao alcance do povo, fazem-no provar seu uso tranqüilo e habituam-no a empregá-la. Sem instituições comunais

55 VIEIRA, op. cit., p. 241-242.56 A rigor, não há tantos conflitos entre direitos fundamentais e federalismo entre si e sim con-flitos de competência entre os entes federativos na eventual disputa pela proteção – ou pela restrição – aos direitos fundamentais. Há um exemplo paradigmático em que a disputa restou encampada pela solidariedade das três órbitas de poder quanto à responsabilidade de execução de uma política pública: a de saúde. Acerca do tema, há vasta bibliografia e jurisprudência, que, por sua magnitude, merece um enfrentamento específico. 57 TOCQUEVILLE, op. cit., p. 71.

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uma nação pode se dotar de um governo livre, mas não possui o espírito da liberdade. 57

Por sua vez, a teoria da subsidiariedade, uma vez aplicada à forma federativa de Estado, acabou, num primeiro momento, a exaltar o exercício da autonomia privada como forma de autodeterminação do indivíduo, mas, num segundo, se rendeu ao prestígio, em caráter subsidiário, do valimento das instituições formais da vida pública, a começar através do poder local. 58

Contra a prática funesta – e antidemocrática – de um federalismo centralizador, assim pondera Zimmermann:

O Estado centralizador não facilita o exercício da democracia. [...] Para o caso específico da Federação brasileira, a aplicação do princípio da subsidiariedade contribuiria para a reformulação do confuso universo político-institucional deste País. Almejaria operar, pois, uma prática mais realista do nosso universo de pluralidades naturalmente existentes, com a necessidade da sua recepção, como concepção teórica propensa à elaboração do modelo democrático de Estado federal. 59

Note-se que tanto a proximidade democrática do indivíduo ao poder local, em Tocqueville, quanto a possibilidade de exercício da autonomia pública do cidadão, pela busca subsidiária à instância formal local em Zimmermann, demonstram o íntimo relacionamento entre democracia e descentralização do poder.

Mas não é só isso. A Federação pode ser mera forma de organização do poder sobre o território, mas o federalismo, enquanto valor plural que encerra, pode ser considerado um determinante ético na divisão do poder sobre um território coberto por uma miríade de interesses, realidades, culturas e relações sociais, políticas e econômicas as mais díspares o possível, como no caso brasileiro, o que torna a descentralização máxima do poder um instrumento de realização da própria democracia, garantindo maior liberdade ao cidadão, até para, se quiser, influir no destino da coletividade a que pertence.

58 Silvia Torres traça um significativo paralelo entre o princípio da subsidiariedade e a rele-vância democrática da valorização das instâncias locais, in casu, municipais, para a realização dos direitos fundamentais, como, por exemplo, saúde e educação. (TORRES, Silvia Faber. Federalismo e subsidiariedade. Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro, v. 19, 2008. Federalismo). 59 ZIMMERMANN, op. cit., p. 212.60 Ao contrário, a história constitucional, em especial a brasileira, mostra que nos períodos de ditadura, a concentração excessiva de poderes nas mãos do Executivo Federal fez do federalismo

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Neste viés, o federalismo deve ser tido não como modelo ocidental de organização do poder sobre o território, não como simples regra posta nominalmente na Constituição, não como teoria de descentralização de poder que em tese se aplica tanto a Estados Democráticos como Ditatoriais 60, não como mero modelo de organização do poder – premissa da qual equivocadamente estaria Vieira partindo –, mas, sim, como valor 61, como princípio e, daí, necessariamente, como condição que se pode reputar indispensável ao exercício dos próprios direitos fundamentais e de realização do ideal democrático.

Martins, por sua vez, correlaciona o pluralismo, que qualquer teoria democrática, ainda que procedimental, procura resguardar, com o federalismo enquanto valor, de forma a estabelecer novo diálogo entre democracia, pluralismo e federação. Segundo este autor:

O federalismo, por sua vez, é expressão ideológica desse valor complexo chamado pluralismo. É, portanto, o fenômeno sociopolítico que estabelece, ou pretende estabelecer, um sistema de integração política eficiente numa comunidade plural. 62

Somente nesta linha de argumentação teórica, pode-se conceber, não o formato federal constitucionalmente pré-concebido – nem necessariamente a existência de Comunas, como na França, Countries, como em alguns dos Estados-membros dos Estados Unidos, ou Municípios, como no Brasil –, mas a descentralização vertical de poder que dele exsurge como uma “cláusula superconstitucional” na exata acepção que lha dá o próprio jurista Vieira: como condição necessária ao aprimoramento da própria democracia, inserindo-se, aí sim, sua expressão máxima, que seria, no caso de um país de dimensões geográficas continentais e desigualdades abissais como o brasileiro, o poder local, sob qualquer roupagem institucional que se lhe queira dar.

Esta afirmação – de que, no Brasil, a descentralização ao máximo do poder, até o nível local, é uma condição necessária ao aprimoramento da democracia – é uma

um mero simulacro de descentralização político-administrativa do poder e não um valor ético preservado e exercido em sua plenitude.61 A concepção do princípio federativo como valor ético protetor do federalismo e não como forma de organização do poder foi objeto de análise no item 4.62 MARTINS, op. cit., p. 32.

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conclusão alcançada por força das realidades política, sociológica, institucional e jurídica brasileiras, o que autoriza que se vislumbre uma teoria procedimental, mas que se adote outra, material, de Município, como institucionalização constitucional do poder local, no contexto do ordenamento jurídico nacional.

6. Por uma teoria procedimental e material do Município como institu-cionalização constitucional do poder local

Destas considerações deriva a aplicabilidade das teorias processuais e substantivas da Constituição 63, enquanto pedra fundamental da organização estatal, sobre o instituto Município, na medida em que, nestas plagas, representativo do poder autonômico local.

6.1 Município e procedimentalismo

Do ponto de vista procedimental, a descentralização federativa do poder até o nível subsidiário mais próximo ao indivíduo, que é o local, seria condição necessária, pela garantia que fornece ao exercício das liberdades – sempre privilegiadas quando da fragmentação do poder estatal –, ao amadurecimento da democracia.

Levando-se em conta que o procedimentalismo somente concebe a Constituição como forma de organização do poder destinada, num contexto necessariamente pluralista, à manutenção de práticas democráticas livres – e não à sua pré-substanciação 63 Sobre o debate entre as teorias procedimentais e substantivas no direito constitucional con-temporâneo, veja-se, por todos: STRECK, Lênio. Jurisdição constitucional e hermenêutica. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 147-196. Note-se que a adoção, neste ensaio jusfilosófico, da teoria do discurso de Habermas, supostamente procedimentalista (embora fundada em pre-missas que configuram valores substantivos) não colide com uma “teoria substancialista do Município”, antes torna esta não a antítese, mas a pré-condição daquela, ao menos no que toca aos mínimos existenciais necessários a uma vida digna a partir da órbita local. 64 O procedimentalismo pugna por Constituições mais enxutas, que se dedicam prioritariamente à organização do Estado e à institucionalização dos canais pelos quais a democracia deve escoar, deixando decisões sobre direitos fundamentais às instâncias democráticas clássicas. Nesta linha procedimentalista, há os que, de lege lata, defendem que se limite a jurisdição constitucional ao exame da manutenção dos instrumentos democráticos de decisão (é o caso de Ely (ELY, John Hart. Democracy and distrust. Cambridge: Harvard University Press, 1980) e os que, de lege ferenda, contra uma Constituição totalizante, apta a jurisdicizar por completo a política, defendem, hoje em dia, uma “Constituição-Moldura”, capaz de manter sob controle apenas os limites do poder por ela estabelecidos, enquanto o desenho dos direitos fundamentais ficaria para ser preenchido pelas decisões parlamentares majoritárias no processo legisla-

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ao talante constitucional 64 –, a institucionalização de procedimentos destinados ao livre exercício do poder local equiparariam-no, p.e., ao conceito jusfilosófico de Habermas de espaço público dialógico ou de legitimação da participação do indivíduo na vida pública por procedimentos locais.

Conselhos Municipais formados com representantes do governo e da sociedade, sem voto de minerva, seriam, p.e., espaços hábeis à consagração, pela via procedimental do diálogo igualitário, da teoria discursiva habermasiana. A institucionalização de procedimentos destinados à participação popular, através de Audiências Públicas, na definição de Políticas Públicas, como no caso exemplar do Orçamento Participativo e do Estatuto da Cidade, seriam, também, exemplos de legitimação do poder local como pressuposto da vida democrática comunal. 65

tivo ordinário. Segundo Vírgilio Afonso da Silva, “a judicialização da constituição seria a conseqüência do que aqui se chamou de constituição-fundamento ou constituição total. Se todo o ordenamento jurídico é meramente um desenvolvimento do texto constitucional, o caminho para um Estado Judiciário estaria aberto, pois ao legislador, como mero intérprete e concretizador da Constituição, não sobraria nenhuma liberdade de conformação e a atividade jurisdicional, como forma de garantir a constituição-fundamento, passaria a primeiro plano.” (SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 117. Grifamos) Também em defesa da Constituição-Moldura proposta por Böckenförde, com amplos espaços de conformação destinados primordialmente ao legislador ordinário – e, neste caso, principalmente em matéria de direitos fundamentais sociais –, cf. também o magistério de Ricardo Lobo Torres, para quem parece haver uma correlação entre o paradigma pós-positivista e a doutrina da fundamentali-dade de todos e quaisquer direitos sociais e não apenas daqueles que correspondem ao Mínimo Existencial: TORRES, Ricardo Lobo. A constitucionalização do direito financeiro. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel (Orgs.) A constitucionalização do direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 977 e segs. 65 Exemplos, no plano constitucional, da íntima ligação entre federação e democracia estão: i) na consulta plebiscitária à população local quando da criação, fusão ou desmembramento de Municípios (artigo 18, §4º, da CR), na medida em que o plebiscito é uma forma de exercício direto de poder pelo povo (artigo 14, inciso I, da CR); ii) no regime democrático como princípio “sensível” da Federação, cujo vilipêndio implica sua mais drástica medida de auto-defesa: a intervenção federal (artigo 34, VII, “a”, da CR); iii) nos mais variados preceitos que cuidam da divisão de competências entre os entes federativos (União, Distrito Federal, Estados Membros e Municípios) como mecanismo de moderação do poder. No plano infraconstitucional, os artigos 43 e 45 da Lei Federal nº 10.257/2001 (Estatuto da Cidade) são eloqüentes exemplos da rele-vância da fragmentação do poder até o nível local para o pleno desenvolvimento da democracia num país de dimensões territoriais e desigualdades abissais como o brasileiro. Confira-se:Lei Federal nº 10.257/2001Art. 43. Para garantir a gestão democrática da cidade, deverão ser utilizados, entre outros, os seguintes instrumentos:I – órgãos colegiados de política urbana, nos níveis nacional, estadual e municipal;

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Ocorre que a legitimação pelo procedimentalismo constitucional – e, no nosso ensaio, mutatis mutandis, municipal – se, por um lado, privilegia democraticamente o pluralismo, por outro, não garante ao indivíduo condições básicas, de conhecimento e mesmo de sobrevivência, para que possa efetivamente ter voz neste diálogo supostamente encetado por indivíduos merecedores, na célebre concepção dworkiama, de igual dignidade e distinção.

Neste sentido, na realidade estatal brasileira, não logra a garantia constitucional e legal do exercício da democracia através do poder local se firmar apenas por suportes formais-procedimentais; há que haver substância – leia-se, garantia de direitos fundamentais previamente definidos pela própria Constituição –, como a oferta estatal de condições mínimas de existência.

6.2 Município e substancialismo

E a instância local – e, no nosso contexto constitucional, o Município – é, de fato, o locus ideal para a garantia, pelo Poder Público, do assim denominado mínimo existencial, ainda mais quando, na obra de Barcellos, p.e., numa proposta de concretização, dois de seus quatro principais elementos, saúde e educação básica, estariam umbilicalmente ligados às competências municipais, não se podendo furtar a Comuna à efetivação de direitos fundamentais respeitantes ao princípio da dignidade

II – debates, audiências e consultas públicas;III – conferências sobre assuntos de interesse urbano, nos níveis nacional, estadual e munici-pal;IV – iniciativa popular de projeto de lei e de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano;V – (VETADO)Art. 44. No âmbito municipal, a gestão orçamentária participativa de que trata a alínea f do inciso III do art. 4o desta Lei incluirá a realização de debates, audiências e consultas públicas sobre as propostas do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e do orçamento anual, como condição obrigatória para sua aprovação pela Câmara Municipal.Art. 45. Os organismos gestores das regiões metropolitanas e aglomerações urbanas incluirão obrigatória e significativa participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade, de modo a garantir o controle direto de suas atividades e o pleno exercício da cidadania.

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da pessoa humana. 66

Pode-se mesmo cogitar de um contributo essencialmente local para a contemporânea etapa de aperfeiçoamento dos direitos fundamentais, que, na célebre classificação de Bobbio 67, reproduzida por Peces-Barba 68, teria se iniciado com sua positivação, posteriores generalização e internacionalização até se chegar à fase atual da especificação.

Em tempos de globalização, é na arena local, mormente – e não contraditoriamente –, que muitas demandas específicas, de grupos “situados” e de minorias olvidadas são apresentadas e estão a reclamar direitos fundamentais específicos 69, como no direito à circulação urbana por parte dos portadores de deficiência física, na questão da moradia favela versus asfalto, na feliz imagem-síntese de Ventura de uma cidade

66 BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 247 e segs. A respeito da íntima relação entre o poder local e o desenvolvimento das políticas sociais após a vigência da Constituição de 1988, cf. a obra de Sônia Fleury, em especial: FLEURY, Sônia. Políticas sociais e poder local. Revista de Admi-nistração Municipal, ano 49, n. 246, p. 4.67 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.68 PECES-BARBA, Gregório. Curso de derechos fundamentales. Madrid: Universidad Carlos III de Madrid, 1995.69 Numa análise dos efeitos sociológicos da globalização, “uma outra característica do novo modelo é que o desenvolvimento das cidades e regiões, antes pensado como simples parte de uma matriz de insumo-produto nacional, adquiriu importância crescente, na medida em que, na ordem econômica internacional hoje hegemônica, regiões e cidades tornam-se atores tão significativos quanto os estados nacionais. Os governos centrais, em um mundo cujo dinamismo é liderado por empresas globais que decidem onde e como investir, reconfigurando os espaços territoriais segundo suas necessidades, precisam cada vez mais suas funções, antes bem defi-nidas, de construtores de nações unificadas e homogêneas, em termos econômicos e culturais, para assumir o papel de agentes reguladores, parceiros e estimuladores do desenvolvimento endógeno das sociedades regionais e locais.” (COSTA, Frederico Lustosa da; CUNHA, Augusto Paulo Guimarães. Pensar o desenvolvimento a partir do local: novo desafio para os gestores públicos. In: CORREA, Vera Lúcia de Almeida; VERGARA, Sylvia Constant (Orgs.) Propostas para uma gestão pública municipal efetiva. São Paulo: FGV, 2003, p. 71) 70 VENTURA, Zuenir. A cidade partida. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

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partida 70, no direito difuso a um meio-ambiente saudável, com lixo reciclável e desenvolvimento sustentável. 71

Neste viés, sob todos os enfoques, positivistas e pós-positivistas, quer através de teorias procedimentais de viabilização do desiderato democrático, quer pela via (menos primeiro-mundista e mais país-em-desenvolvimento) substantivista, de garantia do “mínimo existencial”, pode-se asseverar que restam proscritas emendas constitucionais que expurguem não exatamente o Município do pacto federativo ou que eliminem o mero arquétipo de Federação aprioristicamente idealizado pelo constituinte, mas, sim, a descentralização do poder que advém da forma federativa do Estado Brasileiro e da qual deriva a garantia de aprimoramento das instituições democráticas, entre as quais a de um espaço público local dialógico, próximo ao cidadão e apto a canalizar não só demandas específicas, como, também, a proteger minorias dignas, por muitas vezes, justamente da defesa contra a “tirania das maiorias”

71 Mais do que o reconhecimento, pelo Supremo Tribunal Federal, de que os serviços funerários são de competência local (ADIn 1.221-RJ, Relator: Min. Carlos Velloso, 9.10.2003), o princípio da subsidiariedade, ínsito ao federalismo, deveria favorecer o reconhecimento, na competência para que os Municípios tratem de matérias de interesse local (artigo 30, inciso I, da CR), de uma atribuição própria, “inicial”, para cuidar da vida dos munícipes: do ensino fundamental, da saúde básica, do ordenamento do solo urbano e de todas as mazelas relativas ao exercício, muitas vezes, irregular do direito de moradia que lhe são inerentes, na coleta e reciclagem do lixo, na imposição de posturas que não usurpam, p. ex., competência federal para a disciplina da liberdade econômica, mas que garantem um mínimo de condições dignas de sobrevivência no espaço territorial das Comunas. Recorde-se, por oportuno, que o famoso caso do arremes-so de anão, pelo qual o Prefeito da cidade francesa de Aix-em-Marseille proibiu que a livre iniciativa se colocasse acima do princípio da dignidade da pessoa humana, “embutindo-a” no conceito de ordem pública – proibindo a exploração vexatória do anão, arremessado de um canto a outro de uma discoteca –, se deu no exercício do poder de polícia de espetáculos, de natureza local. O texto do julgado pode ser encontrado na AJDA (L‘Actualite Juridique: droit administratif, 1995, p. 942 e segs.). Cf., outrossim, a análise do artigo em: GOMES, Joaquim B. Barbosa: O poder de polícia e o princípio da dignidade da pessoa humana na jurisprudên-cia francesa. ADV, Seleções Jurídicas, n. 12, 1996. Para Marçal Justen Filho, tal decisão é um marco para o direito administrativo, que separa um início marcadamente autoritário para uma evolução em direção a uma Administração Pública comprometida com a efetivação dos direitos fundamentais. (JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 388-389) 72 Por uma questão de lealdade científica, deve-se mencionar que, curiosamente, na opinião de Maria Arretche, à luz dos cientistas políticos contemporâneos, o federalismo brasileiro apresen-taria vários mecanismos institucionais que dificultam sobremaneira a manifestação, justamente, das maiorias. “As instituições [políticas brasileiras] produzem um excesso de pontos de veto. Segundo Ames, “este excesso não é apenas uma questão do número de partidos necessários para produzir maiorias legislativas. Em termos mais amplos, o destrutivo federalismo brasileiro, que constrange a vontade da maioria, combinado com presidencialismo

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(Tocqueville) 72 e que, devidamente tuteladas, possam eventualmente extrair do federalismo, como valor, todas as potencialidades democráticas e de prestígio ao pluralismo que lhe são inerentes.

7. Últimas palavras sobre a intangibilidade do poder local como vetor democrático na direção do direito comparado

Note-se, apenas a título de curiosidade, que, também, no direito comparado, há uma tendência contemporânea à proteção do poder local no esquema da organização político-administrativa do Estado.

7.1 Home Rule versus Dillon´s rule

A Constituição dos Estados Unidos não faz nenhuma menção ao governo local, contemplando, desde a origem, um federalismo de dois níveis, com as competências expressas da União e as residuais aos Estados- Membros.73

No direito norte-americano, a Dilon´s rule 74, pela qual “se a lei estadual é silente sobre um determinado poder local, a presunção é de que o órgão local não tem essa competência” [ou seja], “o Município somente terá aqueles poderes que lhe foram expressamente concedidos pelo Estado” 75, sofreu sérios temperamentos rumo à chamada home rule, que propugna por uma preferência à tomada de decisões locais como forma de aprimoramento de um Estado que historicamente sempre se pretendeu moderado e que sempre fora dotado de prósperos governos locais. Segundo Wikesell,

Several states have altered Dillon´s rule by granting home-rule charter

73 O artigo I, seção 6, da Constituição outorga poderes legislativos específicos ao Congresso Federal, sendo que os Estados retêm implicitamente todos os poderes não transferidos para o Governo Federal, aspecto este explicitado na Emenda Constitucional nº 10. 74 Este princípio foi definido pelo Juiz J. F. Dillon, do Estado de Iowa, no julgamento do caso City of Clinton versus Cedar Rapids and Missouri Railroad Company, em 1868. 75 ROCHA, Adriana de Lacerda. Autonomia legislativa municipal: no direito brasileiro e es-trangeiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 38.

e com as regras eleitorais da nação, criam este excesso.” (AMES, B. The deadlock of democracy in Brazil. University of Michigan Press, 2001, p. 267 apud ARRETCHE, Marta. Federalismo e democracia no Brasil. São Paulo em Perspectiva, v. 15, n. 4, out./dez. 2001).

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powers to particular local governments. [...] The special conditions of such large cities can be handled by providing them home-rule charterpower to govern their own affairs. State law can thus proceed without being clutered by numerous special enactements for the large units. When charter powers have been provided, local governments can act in all areas unless state law specifically prohibits those actions. 76 77

As home rule provisions geraram, todavia, uma sensação de parcialidade dos Estados em relação a determinados Municípios em especial. Por esta razão, “desde o final do século XIX, os autores das constituições estaduais vêm procurando contornar o problema, proibindo legislações especiais ou locais e exigindo que a legislatura estadual adote leis gerais e não especiais, sempre que possível” 78, restrição esta que acabou sendo contornada por um outro artifício: normas estaduais de delegação para categorias de municípios (com população superior a um determinado número de habitantes, por exemplo), “de forma que, sem que nenhum Município seja mencionado, a lei é válida apenas para alguns poucos”. 79

Longe de uma competência própria do governo local para a disciplina de matérias de seu interesse, passível de reconhecimento, pelo Judiciário, em caso de conflito 76 WIKESSEL, John L. apud ROCHA, op. cit., p. 39-40 Muitos Estados têm alterado o princípio de Dillon através da outorga de cartas de poderes locais a determinados governos municipais. [...] As condições especiais dessas grandes cidades podem ser atendidas concedendo-lhes uma carta com poderes para governarem seus próprios interesses. Assim, as leis estaduais podem ser editadas sem ficarem demasiadamente extensas pela inclusão de dispositivos relativos aos grandes centros. Quando estas cartas de poderes são outorgadas, o governo local pode agir em todos as áreas de seu interesse, exceto naquelas que tiverem sido expressamente proibidas pela lei estadual. (tradução livre) 77 Note-se que estes dispositivos de autonomia (home rule provisions) previstos nas Constituições Estaduais, conferindo ampla autonomia aos Municípios para decidir as questões locais, remon-tam ao final do século XIX e em muito se assemelham ao artigo 30, inciso I, da Constituição Brasileira. A diferença está em que, de acordo com a ordem constitucional norte-americana, o poder legislativo do governo local não exclui o estadual em caso de conflito. 78 TARR, op. cit., p. 19.79 Ibid., p. 20. Privilegiando um federalismo assimétrico no Brasil, em razão das desigualdades socioeconômicas e culturais dos Estados-Membros (que, permite-se acrescentar, se aplicaria também aos Municípios, no que cabe), Zimmermann critica que “esquecendo-se a assimetria de fato, o sistema federativo brasileiro insiste num contra-fático construtivismo centralizador, destarte a representatividade das partes, tanto do povo quanto dos territórios, no legislativo federal, ser injustamente desproporcional, e, mais especificamente, estarem os Estados-membros em igualdade jurídica pela arrogância centralista insensível à desigualdade natural de uns com os outros, seja em densidade democrática, dimensão territorial ou desenvolvimento econômico.” (ZIMMERMAN, op. cit., p. 63).

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com a legislação estadual e federal, como no Brasil, fato é que, ainda que por normas genéricas de delegação, os Estados, na América, lograram reverter a dillon’s rule quando do reconhecimento de que o locus ideal de resolução dos problemas locais é o próprio governo local, o que teria sofrido certo retrocesso em razão da dificuldade “da definição do que são assuntos de interesse local” 80, algo não muito distante deste país da América do Sul de onde se fala.

7.2 Teoria da seara substancial

A Federação Alemã – como forma de se livrar da dominação totalitária do Reich e para evitar nova centralização de poderes – acabou se dividindo, no período pós Segunda Guerra Mundial, em três níveis de governo: federal (a União, o Bund), estadual (os Estados, Lander) e municipal (as Municipalidades, Gemeiden), com competências executivas, legislativas e judiciais próprias. As municipalidades alemãs,

80 Ibid., p. 19. A propósito da existência de duas Regiões Autônomas em Portugal, a doutrina lusitana concebeu uma nova modalidade de reserva de administração: em contraposição à clássica, horizontal, que diz respeito à “separação dos poderes” e que permite ao Executivo impedir que o legislador edite atos formalmente legislativos, mas materialmente administrativos e que o Judiciário substitua, ao julgar, o papel do Administrador Público, concebeu a vertical, própria às assim denominadas autarquias regionais, que gozariam do poder de auto-gestão nas matérias concernentes aos seus peculiares interesses, apresentando, pois, índole federativa. A propósito da reserva de administração vertical do poder autárquico, Marcelo Rebelo de Sousa realça que: “Tem pleno cabimento, para efeitos da determinação do sentido e alcance de tal reserva de administração, aplicar à autonomia autárquica o conceito de conteúdo essencial ou de núcleo essencial. Daí resultará que o legislador ordinário não pode comprimir de qualquer modo o caráter representativo dos órgãos autárquicos nem predeterminar, em termos taxativos, enumerando-as limitativamente, as matérias de ´interesse próprio´ que constituem atribuições reservadas das autarquias locais. Delas constarão obrigatoriamente todos aqueles assuntos que sejam de natureza exclusivamente local e, nessa medida, traços identificadores das próprias autarquias locais. Será, pois, inconstitucional, a limitação legislativa que mutile ou torne irre-conhecível a identidade das mesmas.” (SOUSA, Marcelo Rebelo de. Parecer sobre distribuição pelos municípios de energia eléctrica de baixa tensão. Colectânea de jurisprudência. Lisboa, 1989, p. 30) Há, portanto, também no direito português, uma busca de proteção às regiões autônomas, acima tratadas como autarquias locais, como forma de resguardar a autonomia e o pluralismo que lhes são ínsitos em relação às leis nacionais do governo central infensas a tais especificidades, melhor geridas no âmbito local o que, em tudo e por tudo, se aplicaria às municipalidades brasileiras. Acerca do tema da reserva de administração vertical como reserva de administração estadual ou municipal, tratou-se com mais detalhes em outra oportunidade: CORREIA, Arícia Fernandes. Por uma releitura dos princípios da legalidade administrativa e da reserva de administração. 2008. Tese (Doutorado) - Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2008. Não publicada.

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gozam, pois, de capacidade de autogestão, para os negócios da comunidade81, devendo, também, executar políticas federais e estaduais.

Também no direito tedesco, Krell noticia que, pela teoria da seara substancial, os municípios alemães estariam protegidos de eventuais mudanças constitucionais em relação à organização da Bundesrepublik. Segundo assevera o autor:

A liberdade dos Municípios alemães, garantida pela Lei Federal nº 1949 (art. 28), desde os anos 50 vem sendo fortalecida pelo Tribunal Constitucional Federal, que desenvolveu a sua ‘teoria da seara substancial´ ou do ´mínimo intangível´, que proíbe a supressão da autonomia municipal como instituição por parte do Estado ou da União, bem como qualquer restrição que atinja o seu ´conteúdo essencial´ (Wesensgehalt). Segundo este entendimento, a garantia do direito de auto-determinação dos Municípios, na sua essência, significa que os Estados não devem regulamentar matérias anteriormente locais ou assumir serviços públicos de uma forma que fiquem reduzidas substancialmente as formas de atuação e influência das prefeituras e que, em decorrência, o Município veja alterados a sua imagem, a sua estrutura e o seu tipo tradicionalmente característicos. 82

8. Ao menos uma certeza positiva sobre o núcleo duro do pacto federativo brasileiro em matéria de poder local

Pelos caminhos tomados, pode-se chegar a uma tentativa de delimitação do que se poderia denominar o núcleo duro do pacto federativo efetivamente protegido pela vigente Constituição em matéria de poder local: se não a existência do Município, numa 81 LFAArtigo 28 [Garantia Federal para as Constituições do Estado e do autogoverno municipal] (1) in omissis(2) Municipalidades devem ter garantido o direito a regulamentar todos os negócios locais sob sua própria responsabilidade, dentro dos limites estabelecidos pelas leis. Dentro dos limites de suas funções designadas por lei, associações de municípios também devem ter o direito de se autogovernar de acordo com as leis. A garantia de governo próprio deve ser estendida até as bases da autonomia financeira; estas bases devem incluir o direito das municipalidades a fontes de retorno de impostos baseados na habilidade econômica e no direito de estabelecer percentuais em relação aos quais estas fontes devam ser taxadas. (3) A Federação deve garantir que a ordem constitucional dos Estados (Länder) estejam de acordo para com os direitos básicos e as previsões dos parágrafos (1) e (2) deste artigo. 82 KRELL, Andréas Joaquim. Subsídios para uma interpretação moderna da autonomia muni-cipal na área da proteção ambiental. Interesse Público, n. 10, p. 31, 2001.

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interpretação estritamente positivista, a certeza da intangibilidade da descentralização máxima do poder como condição necessária ao exercício da democracia na Federação Brasileira.

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PARECERES DA PROCURADORIA

GERAL DA CMRJ

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Direito Administrativo e Financeiro

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Requisitos para a concessão de título de utilidade pública

Parecer no 03/2007-CRTS

Ementa: Título de Utilidade Pública. Requisitos para a concessão. Lei nº 91, de 28 de agosto de 1935. 1. Entidade sem fins lucrativos. Caracterização. Uma instituição sem fins lucrativos é aquela em que os cargos de diretoria não são remunerados de qualquer forma e não há distribuição de lucros, bonificações ou vantagens a dirigentes, mantenedores ou associados sob qualquer pretexto (Decreto Federal nº 50.517/1961). Não perde essa qualidade a entidade que produz lucro e é remunerada pelos serviços que presta, desde que esses lucros revertam para a própria entidade. 2. Prestação graciosa de serviços à coletividade. A instituição não poderá cobrar dos administrados pelos serviços prestados, mas pode e deve ser remunerada pelo ente público a quem prestou o serviço. 3. Ausência de impeditivos legais a esse tipo de concessão.

Senhora Procuradora-Geral,

Cuida-se de processo instaurado pela Ilma. Sra. Vereadora ... com o fim de obter esclarecimentos acerca dos requisitos para a concessão de títulos de utilidade pública no Município do Rio de Janeiro.

Segundo ela, encontra-se em tramitação nesta Casa Legislativa o Projeto de Lei nº 1.095/2007, que concede o título de utilidade pública ao Centro Integrado de Estudos e Programas de Desenvolvimento Sustentado – CIEDS, instituição que mantém com o Município do Rio de Janeiro uma série de convênios onerosos pelos quais é remunerada mediante taxas de administração variadas.

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Indaga, assim, a autora, se tal circunstância não descaracterizaria a finalidade não lucrativa que a lei exige para a concessão do título de utilidade pública.

É esse o objeto do presente parecer.

Fundamentação

A Lei nº 120, de 20 de setembro de 1979, que disciplina a concessão de títulos de utilidade pública pelo Município do Rio de Janeiro, dispõe em seu art. 3º, caput:

“Art. 3º - Só poderão receber o Título de Utilidade Pública as entidades e associações cuja finalidade expressa seja a prestação de serviço à coletividade, feita de forma graciosa e sem finalidade de captação de lucros ou caracterização comercial.”

Vale dizer, somente instituições sem fins lucrativos poderão receber do município o título de utilidade pública.

A concessão desse título dá às entidades assim reconhecidas pelo Poder Público, na forma da lei, precedência na destinação de subvenções ou transferências à conta do orçamento municipal ou de outros auxílios de qualquer natureza (art. 153, da Lei Orgânica), devendo ser acompanhada de indispensável cautela.

Em que consiste a finalidade não lucrativa de que se devem revestir essas entidades?

A melhor resposta a essa questão é dada pelo Decreto Federal nº 50.517/1961, que regulamenta a Lei nº 91/1935, dispondo sobre a declaração de utilidade pública no âmbito federal.

De contornos bem mais precisos que a legislação municipal (Lei nº 120/1979), essa norma inclui dentre os requisitos para o pedido de declaração de utilidade pública “que não sejam remunerados, por qualquer forma, os cargos de diretoria e que não distribua lucros, bonificações ou vantagens a dirigentes, mantenedores ou associados, sob nenhuma forma ou pretexto” (art. 2º, ‘d’).

Não descaracteriza sua finalidade não lucrativa a produção de lucro pela instituição. Essas entidades podem e devem ser remuneradas pelos serviços que prestam, mas o lucro assim produzido não será distribuído entre os associados, e, sim, revertido à própria instituição para a satisfação das suas finalidades públicas.

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A lei municipal exige, ainda, que o serviço prestado à coletividade seja feito de forma graciosa, ou seja, a entidade não poderá cobrar dos beneficiários (administrados) por seus serviços.

Isso não significa, absolutamente, que a instituição não possa ser remunerada pelo ente público pelos serviços a ele prestados. Do contrário, essas entidades, a que a própria lei reconheceu um valor especial para a coletividade, não seriam nunca auto-sustentáveis.

Por fim, é de se dizer que o Centro Integrado de Estudos e Programas de Desenvolvimento Sustentável – CIEDS goza, hoje, do título de utilidade pública federal (Portaria 228/2002, do Ministério da Justiça)1, sujeito a requisitos mais estritos que o título municipal.

Conclusão

Assim sendo, não há a priori impedimentos legais para a concessão de título de utilidade pública a entidades remuneradas pelo ente estatal por serviços a ele prestados.

Cabe, contudo, observar que o processo de concessão desses títulos (apresentação de documentos) pelo Poder Executivo e sua posterior fiscalização (relatórios bienais etc.) devem ser objeto de rigoroso e constante acompanhamento, podendo o poder público, a qualquer tempo, cassá-lo, se verificadas quaisquer irregularidades.

Portanto, se a Comissão Parlamentar de Inquérito de que faz parte a autora, ou qualquer outro procedimento investigativo desta Casa vier a apurar fatos ou circunstâncias que desqualifiquem a entidade de utilidade pública, seu título deverá ser cassado.

É o parecer, sub censura de V. Exª.

Rio de Janeiro, 23 de outubro de 2007.

Claudia Rivolli Thomas de SáProcuradora da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

1 Informação colhida no site http://www.cieds.org.br/quemsomos.

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Visto. Aprovo o Parecer nº 03/2007-CRTS, retro/supra.

Encaminhe-se à consideração do Excelentíssimo Senhor Presidente.

Em 24 de outubro de 2007.

Flávio Andrade de Carvalho BrittoSubprocurador-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

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O "crédito consignado" e seus aspec-tos jurídicos

Parecer nº 03/07-SAFF

Ementa: Direito Administrativo. Servidor Público. “Crédito consignado”. A expansão dessa modalidade de crédito e seus custos econômico e social. Os custos administrativos (geração de despesa pública para regular uma relação entre particulares). Limites da interveniência do Poder Público na relação creditícia entre o servidor e a instituição financeira. Parecer pela parcial regularidade dos procedimentos noticiados na inicial, sem prejuízo da sugestão de aprimoramentos.

Senhora Procuradora-Geral

Cuida o presente processo de consulta da zelosa Diretoria de Pessoal, a respeito da execução de Convênio firmado entre esta Câmara Municipal e determinada instituição bancária, para oferecimento de empréstimos aos servidores, com pagamento mediante desconto em folha de pagamento.

1. Histórico e Objeto da Consulta

No Ofício n° 029/07 (fls. 02), o ilustre Diretor de Pessoal desta Casa Legislativa narra a visita que efetuou, na companhia de outros dois servidores daquele Órgão, à agência de um Banco com o qual a Câmara Municipal mantém Convênio para oferecimento de empréstimos aos seus servidores.

Tal visita foi motivada pelo fato de que, ao analisar alguns dos processos relativos ao tema, a Diretoria encontrou algumas práticas que estariam em desacordo com o

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Convênio, especialmente:

- diferenças entre as taxas de juros cobradas de cada servidor e

- concessão de empréstimos acima do limite permitido.

Solicitou, assim, fosse ouvido o órgão jurídico do Legislativo. Submetido o processo, sucessivamente, ao Diretor-Geral de Administração (fls. 03) e ao Sr. Primeiro Secretário (fls. 04), este determinou a manifestação da Procuradoria-Geral.

Recebendo os autos (fls. 04,v.), determinei a juntada do texto do Convênio n° 008/05 (fls. 05-14).

Passo a opinar.

2. Comentários preliminares

A prática do chamado “crédito consignado”, isto é, a celebração de contratos de mútuo (empréstimo), para pagamento através de descontos em folha de pagamento, tem crescido exponencialmente no Brasil, especialmente para servidores públicos e segurados da Previdência Social.

A interpretação de normas e contratos sobre esse tema, tal como é solicitada neste processo, não pode prescindir da prévia consideração de como se coloca o interesse público na questão.

Os contratos de mútuo sempre estiveram disponíveis ao público, na rede bancária, caracterizando uma contratação privada entre o banco e o particular, seja ou não servidor público. O que diferencia o “crédito consignado” do mútuo comum é a interveniência do Poder Público, que procede ao desconto, na remuneração do servidor, das parcelas de pagamento do mútuo (amortização, juros e encargos), entregando-as diretamente ao banco.

Assim, embora o contrato de mútuo seja privado, celebrado entre particulares (o servidor e o banco), na modalidade de “crédito consignado”, este jamais se completaria sem a concordância e a ativa participação do Poder Público, que utiliza sua estrutura administrativa para fazer chegar ao banco o valor que este tem a receber a título de amortização e juros.

Explicado, de forma extremamente resumida, o funcionamento do “crédito

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consignado”, pode-se analisar os interesses de cada um dos envolvidos.

Para o banco, a vantagem do “crédito consignado” é enorme, porque se reduz praticamente a zero o risco de inadimplência, principal variável a ser considerada no mercado de crédito. Para o servidor, ao menos em tese, haveria a vantagem do acesso ao crédito em melhores condições de prazos e juros (embora nem sempre ocorra na prática), exatamente pela garantia representada pelo desconto em folha de pagamento.

Qual seria, então, o interesse do Poder Público ao participar dessa operação? Em princípio, nenhum. Há quem diga que haveria o interesse de oferecer um “benefício” ao servidor. Se realmente se puder entender o acesso ao crédito como um “benefício”, necessário seria mensurar o real custo dessa operação, para avaliar a legitimidade da participação do Poder Público nesse tipo de contratação.

Quatro pontos merecem referência.

O primeiro deles está relacionado exatamente a esse questionamento sobre o caráter de “benefício”. Em geral, o oferecimento do “crédito consignado” é anunciado como algo benéfico, como um “favor” do Poder Público para o servidor. Trata-se de grave equívoco. Sob o ponto de vista das finanças pessoais, o crédito significa, a médio e longo prazo, um aumento progressivo da participação dos juros na despesa, com uma conseqüente diminuição do poder de compra do salário. Em geral, com o refinanciamento, essa situação se agrava, levando a uma significativa diminuição da renda pessoal líquida (após o desconto dos juros).

O segundo ponto é exatamente a repercussão econômica do primeiro: o crédito só traz benefícios para a atividade econômica quando utilizado para investimentos (atividades produtivas), ou aquisição de bens duráveis (que impulsionam, também, a atividade produtiva). O crédito para financiamento do consumo equivale a uma “poupança negativa”. Seus efeitos, a médio e longo prazo, são negativos, tanto para o servidor, individualmente considerado, quanto para a economia do País. Dada a dimensão que o “crédito consignado” tomou no Brasil, oportuno seria um estudo econométrico – não muito difícil – de quanto foi retirado do consumo e da poupança em favor do pagamento de juros.

O terceiro ponto é a repercussão social do primeiro, já noticiado aqui e ali pela Imprensa. É cada vez mais comum, especialmente entre idosos, a situação do

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chamado “superendividamento”, em que uma pessoa assume tantos compromissos de empréstimos que o valor das prestações supera a própria receita, levando a um estado de verdadeira insolvência pessoal. O aumento do número de pessoas em tal situação cria uma pressão sobre as famílias e os órgãos públicos (especialmente de saúde e previdência social), com conseqüências socialmente negativas.

Por fim, o quarto ponto é relativo exatamente à participação do Estado. Embora tais convênios sejam ditos gratuitos, geram despesas para o Poder Público, que mobiliza recursos humanos e materiais para a rotina de desconto das prestações e repasse do valor aos bancos. Essa rotina inclui modificações nos sistemas informatizados das folhas de pagamento, geração de documentos e lançamentos contábeis, mobilização de pessoal e, também, o controle de todas estas operações. A que título o Estado assume essa despesa? Qual o interesse público perseguido nessas operações? No fundo, a atividade de “consignação” do empréstimo, total ou quase totalmente custeada pelo Poder Público, substitui a atividade de “cobrança” do banco, que, nada gastando para cobrar, tem um significativo aumento na margem de lucro com a operação de empréstimo.

No presente caso, como se vê do item 5.3 do Anexo do Convênio, foi estipulado um valor de R$ 1,00 (um real) por linha impressa de contracheque de servidor que contrair empréstimo. Não se tem notícia de como se chegou a esse valor, ou se chegou a se cogitar de uma licitação para apurar qual banco ofereceria a melhor remuneração por esse serviço. Em todo caso, como este ponto não faz parte do objeto da consulta, deixo de aprofundar a análise, sem prejuízo da recomendação de que essa questão seja reapreciada, oportunamente, à luz dos princípios da economicidade e da eficiência.

3. Apreciação do objeto da consulta

3.1 Diferenças nas taxas de juros praticadas

O item 2.1 do Anexo do Convênio diz apenas: “Taxa: 2,65% (dois inteiros e sessenta e cinco centésimos por cento) ao mês, mais IOF”. De pronto, observa-se que tal taxa representaria juros anuais de, no mínimo (dependendo da forma de capitalização e formação das parcelas), 31,80%, o que se mostra extremamente elevado, em especial quando se tem uma garantia quase absoluta contra a inadimplência.

Uma interpretação literal do dispositivo, por certo, poderia levar à conclusão de

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que estaria vedada a cobrança de juros maiores ou menores que os ali estipulados.

No que tange à cobrança de juros maiores que 2,65% ao mês, não se tem dúvida de que tal prática seria vedada pelo Convênio.

Entretanto, no que diz respeito a taxas de juros menores que 2,65%, a conclusão é diversa. Se o banco concorda em cobrar juros menores (e tem suas razões de mercado para fazê-lo), não há nenhum prejuízo, nem para o servidor, nem para a Câmara Municipal. Faltaria a esta Casa Legislativa a necessária legitimidade para se insurgir contra tal cobrança a menor, exatamente por que o eventual “prejuízo”, com relação a uma interpretação literal do Convênio, seria suportado apenas pelo banco.

Também não se vê qualquer lesão ao princípio da isonomia. Lembre-se, como já constatado na parte introdutória, que o mútuo é uma relação jurídica privada, havida entre particulares (o servidor e o banco). Desse modo, é natural que o banco estabeleça distinções entre os clientes, de acordo com o perfil de crédito de cada um (patrimônio, histórico de inadimplência, etc.). Essas distinções são corriqueiras, e praticadas diariamente no mercado de crédito. E, exatamente por se tratar de uma relação privada, entre partes maiores e capazes, a rigor sequer seria necessária a fixação de uma taxa máxima ou a estipulação de outras condições contratuais. O servidor público não é um incapaz, que precise ser tutelado pelo Estado em suas manifestações contratuais de vontade. Nada obstante, mesmo sendo lícita tal fixação de parâmetros, há que se interpretar restritivamente a possibilidade de interveniência do Poder Público nessa relação privada, prestigiando, onde não houver vedação expressa, a autonomia da vontade.

A única distinção vedada seria, exatamente, a cobrança de juros maiores que o limite de 2,65% ao mês. Se algum servidor tivesse um perfil de crédito ruim (com um histórico de inadimplência, por exemplo), o banco poderia até recusar o empréstimo, mas jamais cobrar uma sobretaxa em razão do risco agravado.

Desse modo, conclui-se não haver irregularidade na cobrança de taxas de juros menores que a estipulada no item 2.1 do Anexo I do Convênio. Nada obstante, recomenda-se que, na renovação ou celebração de outro convênio, seja especificada apenas uma taxa máxima de juros, deixando a fixação da taxa efetiva para a liberdade contratual das partes.

3.2 Limites individuais de empréstimo e de comprometimento da remu-neração

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Outra louvável preocupação da Diretoria de Pessoal diz respeito a casos de servidores que teriam contraído empréstimos em valor superior ao permitido.

Os itens do Anexo I que têm relação com este ponto são os seguintes:

2.4 Valores de empréstimo: mínimo de R$ 400,00 (quatrocentos reais) e máximo de R$ 30.000,00 (trinta mil reais), de acordo com a margem consignável disponível.2.5 Valor da prestação: mínimo de R$ 30,00 (trinta reais) e máximo de R$ 2.400,00 (dois mil e quatrocentos reais)2.6 Quantidade de empréstimo por servidor: de acordo com a normatização da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

Neste passo, há que se distinguir entre dois conceitos distintos:

a) o valor máximo do mútuo, por contrato e por servidor (quando este tem mais de um contrato simultaneamente) e

b) o máximo do comprometimento da renda do servidor.

Quanto ao item “a”, o Anexo do Convênio é suficientemente minucioso para não permitir outra interpretação: cada contrato, unitariamente considerado, não pode ter valor superior a R$ 30.000,00, mas o Convênio não proíbe que um mesmo servidor tenha mais de um empréstimo, que, somados, venham a ultrapassar esse valor.

Assim, a primeira conclusão é de que a celebração de contratos com valor superior a R$ 30.000,00 (trinta mil reais) é irregular, devendo a Diretoria de Pessoal deixar de consignar os descontos relativos a contratos que, por esta razão, não atendam ao Convênio.

A segunda conclusão é que, caso o Colegiado Superior desta Casa Legislativa entenda necessário tutelar a vontade do servidor, quanto a este ponto, limitando o valor total do empréstimo por servidor (e não por contrato), sequer será necessário alterar o Convênio: bastará fazer uso da faculdade contida no item 2.6, baixando ato que defina a quantidade máxima de empréstimos que um servidor pode contrair simultaneamente, podendo inclusive limitá-la a um único empréstimo.

Desde logo, cabe observar que, caso se decida por editar regulamento com tal conteúdo, este só terá aplicação aos empréstimos contraídos a partir da sua publicação, não retroagindo para desconstituir situações em que servidores já tenham mais de um empréstimo, por serem atos jurídicos perfeitos, protegidos constitucionalmente.

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Quanto ao item “b”, há regulamento específico nesta Casa Legislativa. A Resolução de Mesa Diretora (RMD) nº. 735, de 1984, regulou os descontos em folha de pagamento através de consignação, estabelecendo que estas somente se poderiam fazer em favor de entidades sem fins lucrativos e reconhecidas como de utilidade pública (art. 2º), bem como determinando um limite máximo de 30% da remuneração líquida do servidor para consignações, que poderia ser elevado a até 70% caso o servidor sofresse descontos em razão de financiamento imobiliário ou pagamento de aluguel. O valor resultante desse percentual é conhecido, na prática administrativa, como “margem consignável”.

Posteriormente, a RMD 4187, de 2000, acrescentou um parágrafo ao art. 2º da RMD 735, permitindo que, a critério da Mesa Diretora, fosse autorizada a consignação em favor “de instituições financeiras autorizadas a funcionar pelo Banco Central”, dispensando o requisito da ausência de fins lucrativos.

Finalmente, a RMD 4764, de 2003, elevou as “margens consignáveis” para 50% (limite geral) e 75% (limite específico para os servidores que tivessem desconto de aluguel ou financiamento imobiliário).

Aqui, ao contrário do que ocorre com o valor máximo do empréstimo (definido por contrato, e não por servidor), o valor das prestações, quando somado a outras consignações, não poderá superar a “margem consignável” do servidor. Assim, o servidor não poderá contrair um segundo empréstimo, se o primeiro já esgota o limite previsto na RMD 4764. Tampouco poderão ser feitas “renegociações” que ignorem estes mesmos limites.

Assim, conclui-se que, enquanto não sobrevier ato da Mesa Diretora que limite a quantidade individual de empréstimos, será possível ao servidor contrair mais de um empréstimo simultaneamente, desde que:

a) o valor do empréstimo, por contrato, não seja superior a R$ 30.000,00;

b) o valor das prestações (considerados todos os empréstimos), por servidor, quando somado às demais consignações, não ultrapasse os percentuais definidos na RMD 4764, de 2003.

4. Conclusões

De todo o exposto, concluo que:

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a) os contratos de mútuo para pagamento mediante desconto em folha (“crédito consignado”) consubstanciam relações entre particulares (servidores e bancos), em que o Poder Público atua apenas como agente repassador de recursos;

b) não há interesse público a ser resguardado nessa atuação do Governo, que, desse modo, deve ser adequadamente remunerado pela atividade administrativa que exerce no exclusivo interesse de particulares;

c) também por se tratar de relação privada, as cláusulas que dispõem sobre a interveniência do Poder Público nos contratos, mesmo quando tutelando interesse de servidores, devem ser interpretadas restritivamente, evitando-se a limitação desnecessária da autonomia da vontade;

d) por outro lado, a Mesa Diretora tem ampla faculdade para propor às instituições bancárias a alteração dos convênios respectivos, para melhor atender às questões aqui suscitadas pela Diretoria de Pessoal, devendo tais alterações se aplicarem somente aos contratos futuros;

e) nos termos do Convênio ora em vigor, é possível ao banco estipular taxas de juros diferentes, de acordo com o perfil do servidor, desde que respeitado o limite máximo estabelecido no item 2.1 do Anexo I;

f) ainda nos termos do mesmo Convênio, enquanto a Mesa Diretora não exercer a faculdade prevista no item 2.6 do Anexo I, será permitido ao servidor contrair mais de um empréstimo simultaneamente, respeitado o limite, por contrato, previsto no item 2.4 do mesmo Anexo (R$ 30.000,00) e o limite, por servidor, do valor das prestações (considerando a soma de todos os empréstimos e demais consignações), de acordo com a sua “margem consignável”.

É o parecer, submetido à elevada consideração de Vossa Excelência.

Rio de Janeiro, 10 de setembro de 2007.

Sérgio Antônio Ferrari FilhoProcurador da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

Visto. Aprovo o Parecer nº 03/2007-SAFF, retro-supra.

Encaminhe-se à consideração do Exmº. Sr. Primeiro Secretário.

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Em 10 de setembro de 2007.

Jania Maria de SouzaProcuradora-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

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Autonomia federativa e consolida-ção de informações contábeis públi-

cas

Parecer nº 04/07-SAFF

Ementa: Direito Administrativo e Financeiro. Envio, por meio eletrônico, de relatórios exigidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal, ao sistema federal que consolida os dados de todos os entes da Federação. É legítima a imposição, por órgão centralizador federal, do envio de demonstrativos por órgãos municipais, desde que apoiada em Lei Complementar Federal, como ocorre na hipótese, e desde que não viole a autonomia administrativa do Município quanto à sua própria contabilidade (Parecer nº 10/01-SAFF). Parecer pelo atendimento à solicitação da Caixa Econômica Federal.

Senhora Procuradora-Geral

Trata o presente processo de procedimentos sugeridos, pela Caixa Econômica Federal, aos órgãos contábeis desta Casa Legislativa, relativamente ao envio de relatórios que subsidiarão a consolidação das contas nacionais, pelo órgão federal centralizador dos dados.

1. Histórico e Objeto da Consulta

Através do memorando de fls. 02, o Chefe do Serviço de Controle Contábil, da Divisão de Contabilidade, encaminhou cópia parcial da “cartilha do novo usuário

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do SISTN” e do Ofício 0740/2007/SR da Caixa Econômica Federal, juntados às fls. 03-05. No referido ofício, informa-se que a CEF firmou Convênio com a Secretaria do Tesouro Nacional (STN) com a finalidade de, através de suas agências, orientar órgãos municipais no preenchimento dos anexos estabelecidos pela Lei Complementar n° 101/00 (Lei de Responsabilidade Fiscal – “LRF”).

Na cópia da Cartilha (fls. 03), está especificado que o único demonstrativo que deve ser encaminhado diretamente por esta Casa Legislativa (e não através do Poder Executivo) é o Relatório de Gestão Fiscal (“RGF”).

Às fls. 06, a ilustre Diretor de Finanças sugere a oitiva desta Procuradoria-Geral, para “orientação quanto aos procedimentos que devam ser adotados pela Divisão de Contabilidade/Serviço de Controle Contábil”, o que foi acolhido pelo Sr. Primeiro Secretário às fls. 08.

Os “procedimentos a serem adotados” são exatamente aqueles definidos na cartilha e no ofício enviados a esta Câmara Municipal. Assim, o objeto da consulta, certamente, envolve a análise da juridicidade da exigência feita pela CEF, bem assim eventuais implicações jurídicas (notadamente quanto às autonomias do Município e do Poder Legislativo).

O presente Parecer, portanto, estará cingido à análise desse ponto, não adentrando especificamente nos procedimentos descritos, os quais, obviamente, não envolvem matéria jurídica.

Passo a opinar.

2. Apreciação

A Lei Complementar Federal nº 101/00 (“Lei de Responsabilidade Fiscal”, ou simplesmente “LRF”) deu forma jurídica a um antigo anseio de economistas e administradores públicos, consistente na possibilidade de consolidação das contas nacionais.

Assim, ao lado de prever vários demonstrativos que devem ser publicados pelos entes federativos (e, inovando neste ponto, também por seus órgãos legislativos e judiciários), a Lei instituiu também um sistema de consolidação de diversos dados das finanças públicas, a cargo da União, especificamente da Secretaria do Tesouro Nacional (STN).

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Neste sentido é o art. 51 da LRF:

Art. 51. O Poder Executivo da União promoverá, até o dia trinta de junho, a consolidação, nacional e por esfera de governo, das contas dos entes da Federação relativas ao exercício anterior, e a sua divulgação, inclusive por meio eletrônico de acesso público.

Essa disposição é legítima e, por si só, não viola a autonomia dos entes federativos. A consolidação das contas nacionais, para fins de informação, é instrumento essencial ao planejamento das políticas públicas e gestão fiscal.

Quanto à exigibilidade do relatório de gestão fiscal (“RGF”), diretamente desta Casa Legislativa, é decorrência natural do fato de que a elaboração do referido demonstrativo também é atribuída, pela própria LRF, ao órgão diretor do Poder Legislativo. Confira-se:

Art. 54. Ao final de cada quadrimestre será emitido pelos titulares dos Poderes e órgãos referidos no art. 20 Relatório de Gestão Fiscal, assinado pelo: I - Chefe do Poder Executivo;II - Presidente e demais membros da Mesa Diretora ou órgão decisório equivalente, conforme regimentos internos dos órgãos do Poder Legislativo;

Assim, se, por um lado, a elaboração do relatório é obrigatória para o Poder Legislativo, e por outro, é legítima a exigência do envio de dados para consolidação das contas nacionais, é fácil concluir que também é legítima a exigência, por parte de órgão centralizador da União, diretamente a esta Casa Legislativa, do envio do referido demonstrativo.

Aqui, porém, uma distinção deve ser feita: a disposição de dados dos entes federativos, para fins de consolidação, não se confunde com a prescrição de normas contábeis, sem fundamento em lei, para Estados-membros e Municípios. Assim, embora a União possa – devidamente autorizada em lei – exigir dos demais entes federativos que encaminhem quadros demonstrativos para fins de elaboração das contas nacionais, daí não decorre que possam se imiscuir na elaboração da própria contabilidade desses entes federativos, sob pena de violar sua autonomia administrativa, que tem status constitucional.

A respeito, já tive oportunidade de me manifestar no Parecer nº. 10/01-SAFF:

Nota-se que o legislador foi cuidadoso na preservação das autonomias

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locais, não só ao utilizar a expressão “normas gerais”, mas principalmente por atribuir a competência a um órgão administrativo da União apenas no que diz respeito à “consolidação da contas públicas”. Vale dizer: cada ente federativo é autônomo para dispor sobre sua escrituração contábil da forma que melhor lhe aprouver, desde que respeitadas as disposições da lei.

Assim, embora o Município (e especificamente esta Câmara Municipal) esteja obrigado a enviar os demonstrativos necessários à consolidação das contas nacionais, nos formatos e prazos estipulados pela União, daí não decorre que deva alterar sua contabilidade interna para atender a estas exigências.

Finalmente, poderia haver algum questionamento quanto ao fato de o envio do demonstrativo estar sendo exigido por uma empresa pública federal, a Caixa Econômica Federal, e não pelo órgão designado para a consolidação das contas (Secretaria do Tesouro Nacional). Como se encontra noticiado nos autos, foi efetuado um convênio entre a CEF e a STN, para que a instituição bancária desenvolvesse sistemas informatizados e se responsabilizasse pela coleta dos dados junto aos Municípios. Não há qualquer irregularidade nesse procedimento. Ao contrário, dada a extensão territorial do Brasil, e a grande diversidade dos seus Municípios, parece que a CEF, com agências espalhadas em todo o País, notadamente nas pequenas cidades, tem realmente melhores condições de efetuar essa tarefa.

3. Conclusões

De todo o exposto, concluo que é legítima a exigência de envio, por esta Câmara Municipal, à Caixa Econômica Federal, do relatório de gestão fiscal, nos prazos e formatos estipulados, sem que, no entanto, esteja esta Casa Legislativa obrigada a modificar sua contabilidade interna.

É o parecer, submetido à elevada consideração de Vossa Excelência.

Rio de Janeiro, 11 de outubro de 2007.

Sérgio Antônio Ferrari FilhoProcurador da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

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Procuradora-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

Visto. Aprovo o Parecer nº 04/07-SAFF, retro-supra.

Encaminhe-se à consideração do Exmº. Sr. Primeiro Secretário.

Em 15 de outubro de 2007.

Jania Maria de Souza

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Direito Constitucional

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Descumprimento de lei pelo Chefe do Poder Executivo

Parecer no 04/2007-CRTS

Ementa: Direito Constitucional. Descumprimento de lei pelo Chefe do Poder Executivo. Medidas cabíveis. 1. É ilegítimo o descumprimento de lei pelo Poder Executivo sem a necessária provocação judicial. 2. A negativa de execução de lei presumidamente válida, nessas condições, constitui violação à competência legislativa da Câmara Municipal e ao próprio Princípio da Separação dos Poderes. 3. Medidas cabíveis. 3.1. Pedido de informações ao prefeito, sob pena de incidir em infração político-administrativa. 3.2. Crime de Responsabilidade. 3.3. Infração político-administrativa. 3.4. Intervenção Estadual.

Senhora Procuradora-Geral,

A presente consulta tem por objeto a solicitação constante do Ofício nº 28/GVCB/2007 (fl. 02), encaminhado à Presidência desta Casa pelo Ilmo. Sr. Vereador ..., no sentido de “determinar à Procuradoria desta Câmara para que a mesma acione a Prefeitura desta Cidade para que se faça cumprir a Lei nº 4.636, de 26/09/2007 (...), promulgada por esta Casa de Leis e não cumprida pelo Executivo”.

A referida lei, de autoria do nobre edil, “institui normas para proteção ao motorista que trafega nas vias pertencentes aos Lotes 1 e 2, onde será instalada a fiscalização eletrônica de avanço de sinal e parada sobre a faixa de pedestre”, e, até a presente data, não foi objeto de qualquer impugnação por parte do Poder Executivo.

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Descumprimento pelo Poder Executivo de Lei ou Ato Normativo

O Estado de Direito se define pela submissão de todos à ordem jurídica. Particulares e Poder Público têm a sua atuação pautada na lei, permitindo-se àqueles tudo o que esta não vede e a este, somente o que ela determine.

O ato normativo validamente editado vincula positiva e negativamente a Administração Pública, devendo ser cumprido.

É tese consolidada na doutrina como na jurisprudência brasileira a de que ao Chefe do Poder Executivo é dado descumprir norma que repute flagrantemente inconstitucional, bem como expedir determinação àqueles submetidos a seu poder hierárquico para que procedam da mesma forma.

Caberia, assim, ao administrado prejudicado, o ônus de levar ao Poder Judiciário a questão, no caso concreto, fixando, esse órgão, a sua posição quanto àquela norma.

Esse entendimento, firmado anteriormente à Carta de 1988, quando a legitimidade para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade restringia-se ao Procurador-Geral da República1, sofreu temperamentos com a promulgação da atual Constituição, que estendeu essa legitimidade ao Presidente e aos Governadores, entre outros.

Hoje, ainda se admite a possibilidade de descumprimento de lei flagrantemente inconstitucional pelo Chefe do Poder Executivo, mas ela está sujeita a limites precisos.

O primeiro deles é a definição do sujeito. Essa é uma faculdade dada apenas ao Chefe do Poder Executivo, que poderá deixar de aplicar a lei que repute inconstitucional, bem como determinar aos seus órgãos que procedam igualmente.

O segundo é a motivação. A deliberada inexecução de legislação vigente deve ser precedida de uma mínima formalidade, para dizer o menos, possibilitando, eventualmente, legitimar a atuação da administração. É como leciona Hely Lopes Meirelles:

Nivelados no plano governamental, o Executivo e o Legislativo praticam atos de igual categoria e com idêntica presunção de legitimidade. Se assim

1 O Chefe do Poder Executivo não dispunha, então, de nenhum outro meio para provocar o exame judicial da questão constitucional.

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é, não se há de negar ao chefe do Executivo a faculdade de recusar-se a cumprir ato legislativo inconstitucional, desde que por ato administrativo formal e expresso (decreto, portaria, despacho etc) declare a sua recusa e aponte a inconstitucionalidade de que se reveste.Nessa atitude do Executivo não há rebeldia à lei, mas obediência à Constituição da República, que é a lei suprema. O essencial é que o prefeito, ao negar cumprimento a uma lei inconstitucional, justifique o seu ato e ingresse no Judiciário, se for titular de ação, para obter o pronunciamento de inconstitucionalidade pelo Poder que tem competência para fazê-lo. (Direito municipal brasileiro. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 1998).

O terceiro requisito que deve, necessariamente, ser preenchido em hipóteses como a presente é o exame da questão pelo Poder Judiciário.

Todos os Poderes da República interpretam a Constituição e têm o dever de assegurar o seu cumprimento, mas é o Poder Judiciário que detém a primazia da interpretação final dos seus comandos.

A lei (ato legislativo), como o ato administrativo e o ato judicial, reveste-se da presunção de legitimidade. A lei promulgada presume-se válida, legítima e conforme a Constituição.

Só ao Poder Judiciário cabe, em última análise, afastar essa presunção.

Assim, para que a decisão do Chefe do Poder Executivo de negar cumprimento a determinada lei que considere, fundamentadamente, inconstitucional seja legítima, ela deverá, necessariamente, ser acompanhada da competente provocação judicial, sob pena de violação ao Princípio da Separação dos Poderes.

Violação ao Princípio da Separação dos Poderes

A deliberada e ostensiva inexecução de legislação vigente constitui frontal violação ao Princípio Constitucional da Separação dos Poderes e ao próprio Estado de Direito.

Como se disse, a lei promulgada presume-se constitucional, devendo ser cumprida por todos, inclusive a Administração Pública.

Quando um órgão ou agente público deliberadamente e sem qualquer justificativa nega execução à lei, ele está, em última análise, desconhecendo a própria competência do Poder Legislativo.

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Zelar pela preservação de sua competência é um dever que se impõe a todas as Casas Legislativas (art. 49, XI, da Constituição Federal).

Instrumentos de Preservação da Competência das Casas Legislativas

São crimes de responsabilidade os atos do prefeito que atentem contra a Constituição da República, a Constituição do Estado, a Lei Orgânica do Município e, especialmente CONTRA O CUMPRIMENTO DAS LEIS e decisões judiciais (art. 112, da Lei Orgânica).

As normas de processo e julgamento, bem como a definição desses crimes, são as estabelecidas pela legislação federal (art. 112, parágrafo único, da Lei Orgânica).

Essa legislação é o Decreto-Lei nº 201/67, recepcionado pela Constituição Federal, que dispõe em seu artigo 1º, XIV:

Art. 1º- São crimes de responsabilidade dos Prefeitos Municipais, sujeitos ao julgamento do Poder Judiciário, independentemente do pronunciamento da Câmara dos Vereadores:... omissis ...XIV- negar execução a lei federal, estadual ou municipal, ou deixar de cumprir ordem judicial, sem dar o motivo da recusa ou da impossibilidade, por escrito, à autoridade competente;

A condenação definitiva nesses crimes acarreta a perda do cargo e a inabilitação, pelo prazo de cinco anos, para o exercício de cargo ou função pública, sem prejuízo da reparação civil do dano causado ao patrimônio público ou particular (art. 1º, § 2º, do decreto-lei).

Qualquer interessado pode requerer a abertura de inquérito policial ou a instauração da ação penal pelo Ministério Público, bem como intervir, em qualquer fase do processo, como assistente da acusação (art. 2º, § 1º, do decreto-lei).

Assim também a Câmara Municipal, por dois terços dos seus membros.

Como órgão colegiado que é, esta Casa está sujeita a normas internas de apuração da sua vontade coletiva.

Para a deflagração de processo criminal contra o prefeito, a Lei Orgânica exige o quorum de dois terços dos membros da Câmara (art. 45, XXVII). O mesmo quorum está previsto no art. 354, do Regimento Interno.

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Vale dizer, qualquer vereador, individualmente considerado, pode requerer a abertura de inquérito policial ou a instauração da ação penal pelo Ministério Público e a Câmara Municipal poderá fazê-lo por decisão de dois terços dos seus membros.

O ato em questão – negativa de execução a lei municipal – também configura infração político-administrativa, definida no mencionado decreto-lei em seu art. 4º, VII:

Art. 4º- São infrações político-administrativas dos Prefeitos Municipais sujeitas ao julgamento pela Câmara dos Vereadores e sancionadas com a cassação do mandato:... omissis ...VII- praticar, contra expressa disposição de lei, ato de sua competência ou omitir-se na sua prática;

Essas infrações são processadas e julgadas pela própria Câmara Municipal e sujeitam o seu autor à perda do mandato, pelo voto de dois terços dos seus membros (art. 116, da Lei Orgânica).

A Hipótese dos Autos

Retomando os argumentos até aqui desenvolvidos, temos que: i) o ato normativo validamente editado vincula a Administração, que deve, necessariamente, cumpri-lo; ii) ao Chefe do Poder Executivo é dado descumprir lei que, motivadamente, repute inconstitucional, desde que submeta a questão ao Poder Judiciário; iii) o deliberado e ostensivo descumprimento de lei pelo prefeito, fora desses casos, constitui violação à competência legislativa da Câmara Municipal e ao próprio Princípio da Separação dos Poderes, incidindo o seu autor em infração político-administrativa, bem como crime de responsabilidade.

Diante disso, cumpre-nos examinar, em atendimento à consulta proposta, os instrumentos de que dispõe esta Câmara Municipal para assegurar suas competências constitucionais. Vejamos.

Faltam aos autos elementos que configurem o descumprimento da lei pelo prefeito.

Para caracterizá-lo, a Câmara Municipal poderá lançar mão de outro mecanismo político constante da Lei Orgânica: a solicitação de informações sobre assuntos referentes à Administração (art. 45, XXIV).

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A esta Casa é dado questionar o prefeito acerca das providências adotadas em relação à Lei nº 4.636/2007, para o seu efetivo cumprimento.

As informações solicitadas deverão ser prestadas no prazo de trinta dias (prorrogável por igual período), sob pena de incidir o prefeito em infração político-administrativa2, ensejando, também, a intervenção estadual (art. 45, § 2º).

Diante disso, o prefeito poderá posicionar-se favoravelmente à lei, comprometendo-se a cumpri-la, ou explicitando o seu propósito de descumpri-la, incidindo, assim, em crime de responsabilidade e infração político-administrativa.

A negativa de execução a lei municipal enseja, por fim, a intervenção estadual, na forma do art. 55, IV, da Constituição Federal:

Art. 35- O Estado não intervirá em seus Municípios, nem a União nos Municípios localizados em Território Federal, exceto quando:... omissis ...IV- o Tribunal de Justiça der provimento a representação para assegurar a observância de princípios indicados na Constituição Estadual, ou para prover a execução de lei, de ordem ou de decisão judicial.

A decretação da intervenção, nessa hipótese, deverá ser requerida pelo Poder Legislativo ao Tribunal de Justiça do Estado (art. 36, I), podendo, o decreto de intervenção, limitar-se a suspender a execução do ato impugnado, se essa medida bastar ao restabelecimento da normalidade (art. 36, § 3º).

São essas as medidas de que dispõe a Câmara Municipal do Rio de Janeiro para preservar sua competência legislativa diante de eventual descumprimento da Lei nº 4.636/2007 pelo Poder Executivo.

Observe-se que todas elas são providências de natureza política, que dependem de deliberação do Plenário e do prudente arbítrio dos seus membros, não podendo ser manejadas por esta Procuradoria-Geral.

É o parecer, sub censura de V. Exª.

2 “São infrações político-administrativas do Prefeito aquelas definidas em lei federal e tam-bém:... omissis ...V- desatender, sem motivação justa, às convocações da Câmara Municipal e seus pedidos de informações, sonegar informações ou impedir o acesso às informações;”

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Rio de Janeiro, 10 de dezembro de 2007.

Claudia Rivolli Thomas de SáProcuradora da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

Visto. Aprovo o Parecer nº 04/2007-CRTS, retro/supra.

Encaminhe-se à consideração do Excelentíssimo Senhor Presidente.

Em 11 de dezembro de 2007.

Jania Maria de SouzaProcuradora-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

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Resolução de Secretária de Edu-cação que estabelece o sistema de "aprovação automática" no ensino

público municipal. Análise de consti-tucionalidade do decreto legislativo

que o susta.

Parecer nº 09/07-FACB

Ementa: - Consulta formulada por Vereador acerca da constitucionalidade de Decreto Legislativo que susta Resolução de Secretária Municipal que estabelece, no âmbito das escolas públicas municipais, o sistema chamado de “promoção automática”.

- A Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro conferiu ao Conselho Municipal de Educação competência para formular e implantar a política de educação de âmbito público, possuindo caráter deliberativo, normativo e fiscalizador.

- A Lei Federal n. 10.172/2001 instituiu o Plano Nacional de Educação que impõe aos municípios planos de metas, que deverão observar programas de aceleração da aprendizagem e de recuperação paralela ao longo do curso como formas de superar problemas de evasão escolar e repetência, fazendo excluir qualquer possibilidade de se aceitar a instituição isolada de sistema de promoção automática.

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- Estabelecidos tais parâmetros, conclui-se que a Secretaria Municipal de Educação usurpou as atribuições do Conselho Municipal, bem como extrapolou a competência municipal para legislar sobre educação.

- Parecer pela conformidade do Decreto Legislativo com a Constituição Federal.

Excelentíssimo Senhor Presidente,

Trata-se de consulta formulada pelo Excelentíssimo Senhor Vereador ..., que solicita desta Procuradoria-Geral, em caráter de urgência, manifestação acerca do Ofício PG/GAB nº 284, da lavra do Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral do Município, Doutor Júlio Rebelo Horta acerca da suposta inconstitucionalidade do Decreto Legislativo nº 618, de 13 de junho de 2007, desta Casa Legislativa.

Rememore-se, ainda que brevemente, a hipótese: a Secretária Municipal de Educação editou, em 25 de abril de 2007, a Resolução SME nº 946/2007, através da qual busca estabelecer “diretrizes para a avaliação do sistema municipal do ensino da cidade do Rio de Janeiro”, instituindo, no âmbito das escolas públicas municipais, a chamada “promoção automática”.

Por entender que a medida veio a extrapolar seus limites regulamentares, esta Casa Legislativa aprovou o Decreto Legislativo nº 618, de 13 de junho de 2007, que susta os efeitos da referida Resolução SME nº 946.

Agora, fez-se publicar no Diário Oficial do Município, edição do dia 27 de agosto de 2007, manifestação do Senhor Procurador-Geral do Município através da qual Sua Excelência assevera, basicamente, o seguinte:

O Sistema Jurídico brasileiro prescreve a plena soberania da Constituição Federal em relação aos demais diplomas normativos e como a Resolução SME nº 946, de 25 de abril de 2007, expedida por esta prestigiosa Secretaria de Educação, além de estar apoiada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.395/96), apenas regulou a maneira de avaliação do aprendizado dos alunos matriculados na rede de ensino gerida pelo Poder Executivo Municipal, matéria de índole eminentemente administrativa, bem caracterizada fica a flagrante inconstitucionalidade do Decreto Legislativo nº 618, de 13 de junho de 2007, ante a tentativa de intromissão do Poder Legislativo Municipal em ato de mera gestão desta Secretaria Municipal.

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Com base em tais considerações, Sua Excelência recomenda que “sejam aplicados os termos da Resolução SME nº 946/07 nos competentes Conselhos de Classes operacionalizados nas escolas da Rede Municipal de Ensino desta Cidade”.

É, pois, sobre o conteúdo de tal manifestação que se requer o posicionamento urgente desta Procuradoria-Geral. Por conta de tal solicitação, faço já, preliminarmente, a ressalva de que a presente manifestação buscará abordar a questão essencialmente à luz dos dispositivos legais vigentes.

Passo, pois, a opinar.

Partindo-se do exame da manifestação do Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral do Município, podemos afirmar que linha de raciocínio lá desenvolvida não se sustenta por razões de fundo e de forma, como será visto a seguir.

Entendo, data venia, que suas premissas são equivocadas e sua conclusão não se coaduna com a ordem jurídica vigente.

Chama, de pronto, a atenção a determinação de Sua Excelência que a Administração ignore por completo decreto legislativo vigente, regularmente aprovado por esta Casa Legislativa.

É dizer, em outras palavras: ainda que o Decreto Legislativo nº 618/07 fosse flagrantemente inconstitucional – e não é, como será visto adiante –, não pode a Administração arvorar-se a dizer a última palavra acerca da validade de atos legislativos, ignorando às inteiras a presunção da sua constitucionalidade e a própria competência do Poder Judiciário.

Pode-se ir além: mesmo aceitando que o Poder Executivo possa, efetivamente, deixar de cumprir norma que entenda flagrantemente inconstitucional, há que se ponderar que a determinação de descumprimento – por suposta inconstitucionalidade – aos termos da norma inconstitucional deve ser precedida de uma mínima formalidade, apta a legitimar a atuação da administração. Colha-se aqui a lição Hely Lopes Meirelles:

Nivelados no plano governamental, o Executivo e o Legislativo praticam atos de igual categoria e com idêntica presunção de legitimidade. Se assim é, não se há de negar ao chefe do Executivo a faculdade de recusar-se a cumprir ato legislativo inconstitucional, desde que por

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ato administrativo formal e expresso (decreto, portaria, despacho, etc) declare a sua recusa e aponte a inconstitucionalidade de que se reveste.Nessa atitude do Executivo não há rebeldia à lei, mas obediência à Constituição da República, que é a lei suprema. O essencial é que o prefeito, ao negar cumprimento a uma lei inconstitucional, justifique o seu ato e ingresse no Judiciário, se for titular de ação, para obter o pronunciamento de inconstitucionalidade pelo Poder que tem competência para fazê-lo1.

Esse o procedimento correto e adequado: vislumbrado vício de inconstitucionalidade em norma vigente, deverá o Chefe do Poder Executivo expedir ato solene e motivado que afaste a aplicação de norma manifestamente inconstitucional, sem prejuízo da concomitante adoção das medidas judiciais que estiverem ao seu alcance. Não o fazendo, estará o Executivo, de uma penada, colocar-se em posição de afronta ao Poder Legislativo – que fez aprovar a norma – e ao Poder Judiciário – detentor da palavra final sobre constitucionalidade das leis.

No caso, não ocorre nem uma coisa nem outra. Nem foi o Chefe do Poder Executivo que, motivadamente, declara afastar a aplicação da norma supostamente inconstitucional, nem o Poder Judiciário fez chancelar sua tese; ao contrário, a Justiça acaba de indeferir de plano – conquanto o tenha feito por motivos de ordem processual – mandado de segurança impetrado contra o Decreto Legislativo nº 618/072.

Esse, portanto, o primeiro vício da manifestação ora examinada.

Examine-se, agora, a higidez do Decreto Legislativo em face do regime constitucional vigente.

Não há dúvida – afirme-se de plano – quanto à competência detida pelo Poder Legislativo para sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem o poder regulamentar ou dos limites da delegação legislativa, consoante regra expressa contida no art. 49, V, da Constituição Federal e reproduzida, por simetria, no art. 45, X, da Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro.

Veja-se que, in casu, a digna Secretaria Municipal de Educação editou, em

1 Direito municipal brasileiro. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 1998.2 Mandado de Segurança nº 2007.001.118801-0. A Juíza da 3a Vara de Fazenda Pública, Dra. Milena Angélica Drumond Morais, indeferiu sua inicial.

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meados de abril – ou seja, no curso do ano letivo, e para aplicação imediata – ato que inova, às inteiras, todo o sistema de avaliação escolar no âmbito do Município do Rio de Janeiro. Longe de se tratar de ato meramente administrativo, a deliberação interfere em mecanismos sensíveis de aferição da qualidade do sistema de ensino.

Cumpre, pois, perquirir se o sistema normativo deste Município delega à ilustre Secretaria tamanha atribuição. Para tal, será útil fazer uma breve incursão na estrutura da gestão da educação no País e, mais especialmente, no âmbito do Município.

A Constituição Federal dedica uma generosa Seção à Educação (arts. 205 a 214), e a erige como direito de todos e dever do Estado e da família, devendo ser promovida e incentivada “com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (art. 205).

Dentre os princípios centrais do ensino no País encontram-se a igualdade de condições para acesso e permanência na escola (art. 206, I), a gestão democrática do ensino público (art. 206, VI) e garantia de padrão de qualidade (art. 206, VII).

As metas do ensino público são, igualmente, claras, devendo a lei estabelecer o plano nacional de educação (art. 214), de duração plurianual, apto a fazer o Poder Público buscar i) a erradicação do analfabetismo; ii) universalização do atendimento escolar; iii) melhoria da qualidade do ensino; iv) formação para o trabalho e v) promoção humanística, científica e tecnológica do País.

No âmbito da Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro (LOMRJ) o tema “educação” é, por igual, tratado com bastante destaque. Para o que aqui interessa, importa destacar a marcada preocupação com a gestão democrática do ensino. Vale citar, por todos, o art. 336 que impõe ao Prefeito a convocação, a cada dois anos, de conferência municipal de educação, “com ampla representação da sociedade”, com o objetivo de avaliar “a situação educacional do Município e fixação das diretrizes gerais do plano municipal de educação”.

Aliás, afirme-se uma das notas marcantes da Lei Orgânica carioca é a marcada preocupação com a gestão democrática. Uma das formas de democratização do processo de tomada de decisões é a instituição de Conselhos, sendo certo que, no âmbito deste Município, constituem eles “órgãos de assessoramento à administração pública”, a teor do que prescreve o art. 126 da Lei Orgânica, sendo-lhes assegurada,

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ademais, “a participação das entidades representativas da sociedade civil” (art. 126, Parágrafo Único da LOMRJ).

Tais Conselhos têm por finalidade “auxiliar a administração pública na análise, planejamento, formulação e aplicação de políticas, na fiscalização das ações governamentais e nas decisões de matéria de sua competência” e terão caráter exclusivamente consultivo, “salvo quando a lei lhes atribuir competência normativa, deliberativa ou fiscalizadora” (art. 127 da LOMRJ).

Pois bem: de tão relevante, não quis o legislador orgânico deixar ao legislador ordinário estabelecer as competências do Conselho Municipal de Educação (CME) que, àquela altura, já estava criado. Bem ao contrário, quis ele próprio que o CME tivesse justamente caráter deliberativo, normativo e fiscalizador. Confira-se a inteligência do art. 130 da Lei Orgânica Municipal:

“Art. 130 - Ao Conselho Municipal de Educação, criado pela Lei nº 859, de 5 de junho de 1986, caberá formular e implantar a política de educação de âmbito público e privado, mediante a fixação de padrões de qualidade do ensino, além de outras atribuições definidas em lei.Parágrafo único - O Conselho Municipal de Educação terá caráter deliberativo, normativo e fiscalizador, com representação paritária do Poder Público e da sociedade civil”.

Vale dizer, portanto, que no âmbito do Município do Rio de Janeiro, o Conselho Municipal de Educação não tem um caráter meramente consultivo, como detém a grande maioria dos demais Conselhos3. Em nossa cidade, pois, o Conselho deve interferir direta e preventivamente na formulação e implantação da política de educação de âmbito público e privado, mediante a fixação de padrões de qualidade do ensino. É, ao menos, que o determina o legislador ao lhe atribuir competência deliberativa, normativa e fiscalizatória.

Também à exceção dos demais Conselhos, cujos integrantes não são remunerados, os integrantes do CME fazem jus à remuneração, a teor do disposto no art. 133, Parágrafo Único da Lei Orgânica Municipal. Cumpre ao CME, também, aprovar os currículos escolares (art. 332, 1o da LOMRJ).

3 O art. 127, § 3o, da Lei Orgânica previu a criação de, pelo menos, mais 8 Conselhos: de Direitos Humanos; de Defesa do Consumidor; de Desenvolvimento Econômico, de Ciência e Tecnologia; de Defesa da Criança e do Adolescente; de Cultura; de Saúde; de Desporto e Lazer; de Política Urbana; de Meio Ambiente.

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Mais não precisa ser dito, portanto, acerca da relevância das funções do CME.

Voltando à hipótese em exame, o fato é que não há informação de que as deliberações contidas na Resolução SME nº 946 tenham sido submetidas – sob qualquer forma – ao Conselho Municipal de Educação. E, nem se diga, como faz o acatado Procurador-Geral do Município, que a matéria tratada no referido ato seria de mera gestão, e que estaria de acordo com os termos da Constituição Federal e da Lei nº 9.394/96.

Ao que parece, contudo, não é bem assim.

O art. 24, IX, da Constituição Federal confere à União, aos Estados e ao Distrito Federal competência para legislar concorrentemente sobre “educação, cultura, ensino e desporto”. Em seu cumprimento, editou-se a Lei nº 9.394/96, a chamada “Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional”, norma que, segundo o Procurador-Geral do Município, lastreou a Resolução SME nº 946.

Não obstante, examinando com vagar a referida Lei de Diretrizes e Bases, mais especialmente no Título “Da Organização da Educação Nacional” (art. 8o, §1o), bem se vê que à União compete “a coordenação da política nacional de educação”, sendo a ela atribuído o múnus de “elaborar o Plano Nacional de Educação, em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios” (art. 9o, I). Tal Plano Nacional de Educação, como já citado acima, tinha já sua implementação prevista no art. 214 da Constituição Federal, e veio a ser aprovado através da Lei nº 10.172/2001, em confessada sintonia com a Declaração Mundial sobre Educação para Todos (art. 87 da Lei nº 9.394/96), assinada no âmbito da UNESCO.

Trata-se, em verdade, de um complexo e minucioso Plano Decenal, cuja moldura deverá – ou ao menos, deveria – ser seguida pelas demais unidades federativas, compelidas que estão a instituir planos de idêntica duração, buscando, como assevera seu art. 6º, “a progressiva realização de seus objetivos e metas, para que a sociedade o conheça amplamente e acompanhe sua implementação”.

A leitura do Plano Nacional de Educação é de grande valia para uma adequada compreensão do sistema de ensino que se busca implantar, em grandes linhas, no país. 4 O texto fala literalmente: “O turno integral e as classes de aceleração são modalidades ino-vadoras na tentativa de solucionar a universalização do ensino e minimizar a repetência”.

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Assim, conquanto o Plano detecte o atraso “no percurso escolar resultante da repetência e da evasão”, em nenhum instante o projeto toca no tema da aprovação automática como forma de se alcançar metas de ensino. Ao contrário, há explícita menção à necessidade de se minimizar a repetência, especificamente, através da implantação de turno integral e classes de aceleração4.

No ensino fundamental, a meta, no que diz respeito ao tema desta manifestação, é clara:

3. Regularizar o fluxo escolar reduzindo em 50%, em cinco anos, as taxas de repetência e evasão, por meio de programas de aceleração da aprendizagem e de recuperação paralela ao longo do curso, garantindo efetiva aprendizagem.

No fio desse raciocínio, em tudo destoa, com o devido acatamento, a Resolução SME n. 946, ora examinada. Não é crível que se queira fazer prevalecer um ato isolado de uma Secretária Municipal de Educação, que – a despeito de sua inequívoca incompetência, como já visto – vai na contramão da própria legislação federal, que detecta o problema da repetência e da evasão escolar, mas que acena como solução diversa – e impositiva aos municípios – a instituição de programas de aceleração da aprendizagem e de recuperação paralela ao longo do curso.

Por conta de tais fundamentos, entendo que o Decreto Legislativo n. 618, editado por esta Câmara Municipal, acha-se em perfeita consonância com o sistema constitucional pátrio, constatada a circunstância de a Resolução SME n. 946/07 haver usurpado competências próprias do Conselho Municipal de Educação, atribuídas pela Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro. Ademais, como visto, o ato, órfão, está em desacordo com o Plano Nacional de Educação, vindo a lume pela Lei Federal n. 10.197/2001, de cumprimento compulsório por todas as unidades da federação.

À superior consideração.

Rio de Janeiro, 5 de setembro de 2007.

Flávio Andrade de Carvalho BrittoSubprocurador-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

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Direito Parlamentar e

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O Ministério Público e a liberdade do exercício de votos por parlamentar

Parecer nº 01/08-FACB

Ementa: - Consulta do Vereador Presidente da Comissão de Justiça e Redação acerca das eventuais implicações jurídicas em caso de aprovação de “prorrogação da delegação referente ao transporte coletivo de ônibus vigente em nossa cidade”.

- Conquanto digna de se levar em alta conta, a eventual desaprovação conceitual quanto à constitucionalidade de certo projeto legislativo, externada pelo Ministério Público, não tem o condão de inibir o Parlamentar a votar o projeto apresentado de acordo com sua consciência. A única implicação jurídica de aprovação de norma que se supõe inconstitucional será o posterior embate perante o Poder Judiciário.

Excelentíssimo Senhor Vereador Presidente,

Trata-se de consulta formulada pelo Excelentíssimo Senhor Vereador ..., Presidente da Comissão de Justiça e Redação, do seguinte teor:

Em face de expediente encaminhado pelo douto Ministério Público à esta Câmara Municipal (Ofício 2º PJTCDC n. 487/08, datado de 28/05/2008), conforme publicado no DCM n. 94, página 7, vimos perante V. Excia. requerer a manifestação da douta Procuradoria Geral desta Casa de Leis a respeito do teor da referida correspondência, indagando: a) quais as implicações jurídicas se esta CMRJ entender em aprovar a prorrogação da delegação referente ao transporte coletivo de ônibus vigente em nossa cidade?

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b) Existe decisão transitada em julgado no que tange à inconstitucionalidade da prorrogação?

Faz Sua Excelência expressa menção ao Oficio “2º PJTCDC 487/08”, oriundo do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro que dá ciência a esta Câmara Municipal de que propôs, no ano de 2003, junto à 4ª Vara de Fazenda Pública da Capital do Estado do Rio de Janeiro, 49 ações civis públicas tendo no pólo passivo o Município do Rio de Janeiro e as empresas de ônibus delegatárias do serviço de transporte coletivo de passageiros na cidade do Rio de Janeiro. “As ações do MP”, segundo consta do referido Ofício, “questionam exatamente a prorrogação de tais delegações sem a realização de licitação, mesmo que através de legislação municipal”. Sustenta incidentalmente o Parquet, ademais, a inconstitucionalidade da Lei Complementar Municipal n. 37/98.

Em verdade, o debate acerca da constitucionalidade da Lei Complementar n. 37/98 iniciou-se no próprio ano de 1998 com o ajuizamento de Representação por Inconstitucionalidade pelo Partido dos Trabalhadores (Representação por Inconstitucionalidade n. 55/98), questionando alguns de seus artigos. Posteriormente, também o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (RI n. 19/02) e o Prefeito do Município do Rio de Janeiro (RI n. 05/01) ingressaram com ações declaratórias de inconstitucionalidade com idêntica finalidade. Tais ações foram julgadas extintas, sem julgamento do mérito, entendendo o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que os dispositivos atacados constituíam normas de efeito concreto, indenes, pois, de controle abstrato de constitucionalidade.

Dentre todas essas ações não se registra uma só que tenha já transitado em julgado. Ainda assim, é importante repisar que tais ações fazem referência, tão somente, a dispositivos da Lei Complementar n. 37/98.

É evidente que a advertência efetivada pelo Ministério Público através do Ofício acima referido – amplamente divulgado no âmbito desta Casa Legislativa – deve constituir uma relevantíssima contribuição aos Parlamentares no instante do complexo exame que envolve as proposições legislativas que versem sobre a permissão e/ou concessão das linhas de transportes de passageiros.

Não se pode, contudo, deixar de afirmar que o entendimento do Ministério Público não tem o condão de vincular – ou mesmo inibir – a atuação parlamentar no exame e na votação de qualquer dos projetos legislativos sobre o tema. Esta Câmara Municipal, no curso das representações por inconstitucionalidade acima referidas,

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formulou defesa em prol da constitucionalidade dos dispositivos da Lei Complementar n. 37/98. Tal defesa – por óbvio – também não tem o condão de vincular o Parlamentar que deverá votar de acordo com suas convicções pessoais.

Rememore-se, por oportuno, o antigo entendimento do Supremo Tribunal Federal de descabimento de controle jurisdicional de constitucionalidade dos projetos legislativos:

O Poder Judiciário não pode intervir no processo de elaboração das leis. Sem dúvida, incumbe-lhe dizer se uma lei é constitucionalmente válida ou não. Mas não lhe é permitido ordenar ao Poder Executivo que sancione determinado projeto (RTJ, 48/192, Rel. Min. Oswaldo Trigueiro, j. em 29.10.68)

Por tais fundamentos, pode-se afirmar, em resposta, às indagações formuladas no Ofício de fls. 2:

a) Quais as implicações jurídicas se esta CMRJ entender em aprovar a prorrogação da delegação referente ao transporte coletivo de ônibus vigente em nossa cidade?

Eventual inconstitucionalidade – total ou parcial – do texto normativo a ser aprovado poderá ser argüida pela via judicial própria e pelos entes legitimados.

b) Existe decisão transitada em julgado no que tange à inconstitucionalidade da prorrogação?

Não consta haver qualquer decisão transitada em julgado que questione tópicos da Lei Complementar n. 37/98.

É o parecer, sub censura.

Rio de Janeiro, 10 de junho de 2008.

Flávio Andrade de Carvalho BrittoSubprocurador-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

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Direito de Pessoal e

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Procedimentos para a compensação de débitos apurados em processos de

aposentadoria

Parecer no 09/2007-CRTS

Ementa: Direito de Pessoal. Sistemática de concessão de aposentadorias na Câmara Municipal do Rio de Janeiro. 1. Ato de aposentadoria e fixação de proventos. O ato de aposentadoria (e a sua publicação) marca a passagem do servidor à inatividade, com todos os seus consectários. O valor apurado na fixação dos proventos deve retroagir ao momento jurídico da publicação do ato de aposentadoria. 2. Débitos e compensação. Eventuais débitos assim apurados deverão ser devidamente compensados no contracheque do inativo, observando-se o valor consignável de cada servidor, o titular do crédito (Câmara ou Previ-Rio) e a operacionalização desse tipo de compensação.

Senhora Procuradora-Geral,

Cuida-se de processo instaurado pela diligente Divisão de Pagamento de Pessoal, com o fim de obter esclarecimentos acerca dos procedimentos de concessão de aposentadoria no âmbito desta Casa e eventuais débitos neles apurados.

De acordo com esse órgão,

Atualmente, antes da conclusão final do processo de aposentadoria de um servidor desta Casa de Leis, acontecem duas etapas:

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1 - da data da publicação da aposentadoria até a data em que ele é efetivamente implantado no sistema do PREVI-RIO, período em que o servidor continua a fazer parte da Folha de Ativos, percebendo as verbas a que fez jus até então, inclusive auxílio-saúde, auxílio-transporte e indenização de alimentação;2 - no caso de aposentadoria proporcional ou compulsória, da data em que ele é implantado no sistema do PREVI-RIO, com valores integrais, à data em que, após a fixação da aposentadoria, são implantados no PREVI-RIO os valores proporcionais ou o valor do provento único (conf. art. 1º, da Lei Federal nº 10.887, de 18/06/2004 e nos termos da Orientação Normativa nº 03/04).Considerando que a duração de ambas as etapas é de meses, indagamos:1- que débitos, caso haja, o servidor tem com esta Casa de Leis no período mencionado na etapa “1”?2 - que débitos podem ser cobrados do servidor relativos ao período mencionado na etapa “2”?

É este o objeto da presente consulta.

O processo de concessão de aposentadoria na Câmara Municipal do Rio de Janeiro

Os processos de concessão de aposentadoria deflagrados pelo servidor ou pela própria Administração (nos casos de aposentadoria compulsória – art. 40, II, da Constituição Federal), envolvem uma extensa seqüência de atos que se desenrolam em meses ou mesmo anos até sua final conclusão, com o registro no Tribunal de Contas.

Em meio a tantos atos, é fundamental que se defina os seguintes momentos jurídicos: i) aquele em que o servidor reúne os requisitos para a aposentadoria; ii) o ato de aposentadoria; e iii) a fixação dos proventos.

O primeiro deles, em regra, anterior ao próprio processo de aposentadoria, determina o seu regime jurídico (lei aplicável). O segundo marca a passagem do servidor à inatividade (com todos os seus consectários). No terceiro, de grande importância prática, mas significado jurídico menor, se estabelece os valores devidos ao servidor a título de proventos.

A solução das questões propostas envolve o ATO DE APOSENTADORIA e a FIXAÇÃO

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DOS PROVENTOS, bem como outras peculiaridades da praxe administrativa desta Casa Legislativa. Vejamos.

O processamento da folha e o pagamento dos servidores inativos da Câmara Municipal do Rio de Janeiro vêm sendo executados, desde o ano de 2002, pelo Instituto de Previdência e Assistência do Município do Rio de Janeiro – PREVI-RIO, na forma de dois sucessivos convênios firmados entre esta Casa e a autarquia previdenciária.

O segundo deles, publicado no DCM de 15 de agosto de 2002, prevê em suas cláusulas segunda à quarta:

CLÁUSULA SEGUNDA (DA PASSAGEM PARA A INATIVIDADE) – O servidor que fizer jus ao direito à aposentadoria deverá requerê-lo através de processo específico a ser iniciado e autuado na CMRJ, conforme os critérios da legislação em vigor. Que tendo o seu pedido deferido, terá que ter Portaria ou Resolução de Aposentadoria publicada no Diário Oficial da CMRJ, cujo original do respectivo documento (ATO DE APOSENTADORIA), com o autógrafo da autoridade competente, precisará ser inserido no processo para ter prosseguimento. Após a devida publicação, o processo será enviado à Divisão de Pagamento de Pessoal da CMRJ para cálculo das verbas que comporão a APOSTILA DE FIXAÇÃO DE PROVENTOS, sendo o servidor implantado no Sistema de Pagamento de Inativos, nesta etapa, como beneficiário da CMRJ.CLÁUSULA TERCEIRA (DO ENVIO DO PROCESSO DO SERVIDOR INATIVO PARA O TCMRJ) – Após o cálculo dos valores efetuado pela Divisão de Pagamento de Pessoal da CMRJ e confecção da APOSTILA DE FIXAÇÃO DE PROVENTOS pela Divisão de Assistência Social da CMRJ, esta encaminhará o processo de inatividade à autoridade competente, mais uma vez, para que seja dado novo autógrafo, desta vez na apostila, e a publicará no Diário da Câmara Municipal. Após, o processo será encaminhado ao Tribunal de Contas do Município do Rio de Janeiro para a homologação da Apostila de Fixação de Proventos da aposentadoria.CLÁUSULA QUARTA (DO PAGAMENTO DO SERVIDOR INATIVO) – O servidor inativo passará a receber desde o momento da sua inclusão no Sistema de Pagamento de Inativos, inclusão esta feita pela Divisão de Pagamento de Pessoal da CMRJ, vinculada através de rede ao gerenciador do sistema, que é o PREVI-RIO, o qual se compromete a emitir espelho de pagamento mensal para conferência e arquivamento na CMRJ. Mesmo o processo do servidor não tendo sido devolvido pelo TCMRJ, com a devida homologação, o pagamento do servidor estará sendo processado desde a implantação, com os valores fixados anteriormente pela autoridade competente na Apostila

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de Inatividade. Havendo algum óbice por parte do TCMRJ, manifestado através de diligância ao processo do inativo, a Divisão de Assistência Social da CMRJ promoverá a devida correção na apostila do servidor, republicando-a no Diário da Câmara Municipal, cabendo à Divisão de Pagamento realizar a respectiva alteração no Sistema de Pagamento e, só então, devolverá a diligência atendida ao TCMRJ, com fulcro de obter a homologação da Apostila de Fixação de Proventos. Em sendo concedido pelo TCMRJ o VOTO DE LEGALIDADE do processo de aposentadoria, os autos deverão retornar à CMRJ para guarda e arquivamento, disponibilizando os referidos processos sempre que o PREVI-RIO necessitar.

Esse convênio define as atribuições e as responsabilidades da Câmara Municipal do Rio de Janeiro e do PREVI-RIO no processamento das aposentadorias dos servidores do Poder Legislativo.

Como se tem desse instrumento, muitos são os atos administrativos que separam o ato de aposentadoria da fixação definitiva dos respectivos proventos. E é, precisamente, nessa falta de coincidência temporal entre um e outro ato jurídico que residem todas as questões propostas.

O ato de aposentadoria (com a sua publicação) marca a passagem do servidor à inatividade. A partir desse momento não há exercício ou vencimentos. O servidor aposentado passa a ser remunerado na forma de proventos, calculados de acordo com a sua situação jurídica.

O valor desses proventos, independentemente dos cálculos efetuados até a sua fixação, é devido desde essa data, ou seja, O VALOR APURADO NA FIXAÇÃO DOS PROVENTOS DEVE RETROAGIR AO MOMENTO JURÍDICO DA PUBLICAÇÃO DO ATO DE APOSENTADORIA.

De acordo com as informações prestadas pela diligente Divisão de Pagamento de Pessoal, os servidores aposentados da Câmara Municipal do Rio de Janeiro percebem, da data da publicação da aposentadoria até a sua inserção no sistema de inativos do PREVI-RIO, valor igual ao que recebiam quando em atividade, mantendo as verbas vinculadas ao exercício como o auxílio-saúde, o auxílio-transporte e a indenização de alimentação.

Nos casos de aposentadoria com proventos proporcionais, a proporcionalização somente tem lugar após a fixação dos proventos (até esse momento, o inativo continua a receber proventos integrais).

Essa distorção entre os valores que deveriam ser pagos ao servidor desde a

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publicação da aposentadoria e aqueles efetivamente percebidos por ele (a maior) até a publicação da apostila de fixação dos proventos decorre da própria sistemática adotada pela Casa para a concessão de aposentadorias.

Não se trata de falha ou erro da Administração, tampouco de critério jurídico por ela adotado, mas de contingência do próprio sistema, a ser oportunamente aperfeiçoado com vistas a uma maior eficiência.

Os débitos assim apurados devem, portanto, ser devidamente compensados.

Nessa compensação serão observados três fatores: i) o valor consignável de cada servidor (limite de desconto mensal); ii) o titular do crédito e iii) a operacionalização desse tipo de quitação.

As diferenças correspondentes ao período compreendido entre a publicação do ato de aposentadoria e a inserção do servidor no sistema do PREVI-RIO foram pagas pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro e representam um crédito desta Casa. Todos os valores pagos a maior após essa data têm por credor o próprio PREVI-RIO.

Esses débitos devem ser compensados mês a mês no contracheque do inativo até o limite consignável, cabendo à autarquia previdenciária repassar à Câmara Municipal a parcela que lhe cabe, ou compensá-la com outros valores por ela devidos ao PREVI-RIO.

Por fim, considerando-se a abrangência e o alcance desse procedimento, que envolve, ao menos em parte, todos os processos de aposentadoria da Casa e configura débitos muitas vezes bastante significativos, sugiro a inclusão da seguinte advertência nos atos de aposentadoria:

"São provisórios os valores pagos a qualquer título ao servidor aposentado desde esta data até a publicação da apostila de fixação dos proventos, estando sujeitos a compensação os débitos correspondentes."

É o parecer, sub censura de V. Exª.

Rio de Janeiro, 26 de dezembro de 2007.

Claudia Rivolli Thomas de SáProcuradora da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

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Visto. Aprovo o Parecer nº 09/07-CRTS, retro/supra.

Encaminhe-se à consideração do Excelentíssimo Senhor Primeiro Secretário.

Em 26 de dezembro de 2007.

Jania Maria de SouzaProcuradora-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

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Comunicação de acidente de traba-lho ao INSS

Parecer no 01/2008-CRTS

Ementa: Acidente de Trabalho. Comunicação ao INSS. Art. 22 da Lei nº 8.213/91. 1. A comunicação de acidente de trabalho ao Instituto Nacional do Seguro Social é ato administrativo de importantes conseqüências jurídicas, devendo ser praticado com cautela. O empregador informa à Previdência Social um fato por ele apurado e, ao fazê-lo, atesta a sua ocorrência e as condições em que ocorreu. 2. Impossibilidade de apuração na hipótese dos autos. Não há nenhum registro do acidente no serviço médico da Casa ou qualquer de seus órgãos. Não tem o condão de suprir essa lacuna atestado médico fornecido três dias após o suposto acidente. 3. Parecer pelo indeferimento do solicitado.

Senhora Procuradora-Geral,

A consulta encaminhada a este órgão pelo Exmo. Sr. Primeiro Secretário tem por objeto o pedido formulado pelo interessado de comunicação de acidente de trabalho ao Instituto Nacional do Seguro Social.

Segundo relato do servidor, “quando em serviço no dia 01/06/07 sofri tombo de escada entre o 10º e o 9º andar do prédio da Câmara, desde então venho tendo problemas de não conseguir andar sem sentir fortes dores no joelho direito, solicito comunicação de acidente de trabalho junto ao INSS”.

Constam dos autos dois atestados médicos fornecidos por hospitais do Município nos dias 04/06/07 e 18/07/07 (fls. 04 e 05, respectivamente).

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O interessado é servidor comissionado desta Câmara Municipal, figurando, nessa qualidade, como contribuinte e beneficiário do Regime Geral de Previdência Social, nos termos do art. 11, I, ‘g’, da Lei nº 8.213/91, norma pela qual se rege.

De acordo com essa lei, “acidente do trabalho é o que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço da empresa ou pelo exercício do trabalho dos segurados referidos no inciso VII do art. 11 desta Lei, provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte ou a perda ou redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho.” (art. 19)

O acidente de trabalho deve ser comunicado pelo empregador à Previdência Social “até o 1º dia útil seguinte ao da ocorrência e, em caso de morte, de imediato, à autoridade competente, sob pena de multa variável entre o limite mínimo e o limite máximo do salário-de-contribuição, sucessivamente, aumentada nas reincidências, aplicada e cobrada pela Previdência Social.” (art. 22)

O contribuinte que é vítima de acidente de trabalho faz jus à percepção do auxílio-acidente, pago pelo INSS, nos termos e condições do art. 86:

Art. 86 - O auxílio-acidente será concedido, como indenização, ao segurado quando, após consolidação das lesões decorrentes de acidente de qualquer natureza, resultarem seqüelas que impliquem redução da capacidade para o trabalho que habitualmente exercia. (Redação dada pela Lei nº 9.528, de 10.12.97)§ 1º O auxílio-acidente mensal corresponderá a cinqüenta por cento do salário-de-benefício e será devido, observado o disposto no § 5º, até a véspera do início de qualquer aposentadoria ou até a data do óbito do segurado. (Redação dada pela Lei nº 9.528, de 10.12.97)§ 2º O auxílio-acidente será devido a partir do dia seguinte ao da cessação do auxílio-doença, independentemente de qualquer remuneração ou rendimento auferido pelo acidentado, vedada sua acumulação com qualquer aposentadoria. (Redação dada pela Lei nº 9.528, de 10.12.97)§ 3º O recebimento de salário ou concessão de outro benefício, exceto de aposentadoria, observado o disposto no § 5º, não prejudicará a continuidade do recebimento do auxílio-acidente. (Redação dada pela Lei nº 9.528, de 10.12.97§ 4º A perda da audição, em qualquer grau, somente proporcionará a concessão do auxílio-acidente, quando, além do reconhecimento de causalidade entre o trabalho e a doença, resultar, comprovadamente, na redução ou perda da capacidade para o trabalho que habitualmente exercia. (Parágrafo restabelecido, com nova redação, pela Lei nº 9.528,

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de 10.12.97)”

É esse o contexto normativo em que se insere a postulação do servidor.

Como se pode perceber, a comunicação de acidente de trabalho ao INSS é ato administrativo revestido de importantes conseqüências jurídicas e deve ser praticado com cautela.

A empresa – nesse caso, a Câmara Municipal – comunica à Previdência Social um fato por ela apurado e, assim fazendo, atesta sua ocorrência e as condições em que ocorreu.

Na hipótese destes autos tal apuração resta de todo inviável.

Segundo o interessado, no dia 01/06/07, ele levou um tombo na escada do prédio da Câmara, entre o 9º e o 10º andares, que lhe causou dificuldades de locomoção e fortes dores no joelho direito.

Não obstante, nada se tem de concretamente apurável além dos atestados médicos, fornecidos nos dias 04/06/07 e 18/07/07, três dias após a suposta ocorrência (o primeiro deles).

Não há nenhum registro do acidente pelo serviço médico da Casa ou qualquer dos seus órgãos, nada se podendo atestar além do fato de que, no dia 04/06/07, o servidor foi atendido pela ortopedia de um hospital da prefeitura, tendo-lhe sido indicado repouso de 10 (dez) dias.

Do atestado não consta – como não poderia constar – quando, onde e em que circunstâncias o paciente se acidentou.

Ele poderia ter se acidentado em qualquer lugar e em qualquer momento, não tendo, a Câmara Municipal, condições de, legitimamente, atestar a ocorrência do acidente noticiado pelo servidor.

É o que ocorre, a título de comparação, com os acidentes de carro.

Para que a vítima do acidente possa ser indenizada pelo causador do acidente não basta o laudo mecânico demonstrando os danos do carro, é necessário o boletim de ocorrência, que descreve o que ocorreu.

O laudo mecânico só atesta que o carro está danificado, ele não informa quando

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e em que circunstâncias os danos ocorreram.

Da mesma forma, não têm os laudos médicos apresentados pelo interessado o condão de atestar o acidente por ele noticiado.

Assim sendo, opino pelo indeferimento do solicitado.

É o parecer, sub censura de V. Exª.

Rio de Janeiro, 02 de janeiro de 2008.

Claudia Rivolli Thomas de SáProcuradora da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

Visto. Aprovo o Parecer nº 01/2008-CRTS, retro.

Encaminhe-se à consideração do Exmo. Sr. Primeiro Secretário.

Em 02 de janeiro de 2007.

Jania Maria de Souza

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Aproveitamento de tempo estranho ao município do Rio de Janeiro na

concessão de adicional por tempo de serviço

Parecer no 04/2008-CRTS

Ementa: Direito de Pessoal. Aposentadoria. Gratificação adicional por tempo de serviço. Tempo estranho ao Município. Aproveitamento. Norma em vigor no momento da aquisição do benefício. 1. O servidor aposentado pleiteou e obteve o direito à gratificação adicional por tempo de serviço, servindo-se de tempo estranho ao Município, sob a vigência do § 5º do art. 126 da Lei nº 94/79, na redação dada pela LC nº 26/95, que permitia o aproveitamento de tempo de serviço público federal, estadual e em outros municípios para efeito de percepção do benefício. 2. Essa norma não fazia menção aos requisitos de similitude e equivalência entre os cargos exercidos, criados posteriormente pela LC nº 34/97. 3. Verba devidamente concedida, à luz da legislação então em vigor. 4. Parecer pela manutenção do benefício.

Senhora Procuradora-Geral,

A consulta submetida a esta Procuradoria-Geral pelo Exmo. Sr. Primeiro Secretário tem por objeto a diligência fixada pelo Egrégio Tribunal de Contas do Município neste procedimento de aposentadoria, atinente à verba de ‘triênio’, que integra os proventos do servidor interessado.

Introdução

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206 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 12, n. 17, jan./dez. 2008

O inativo conta em seus proventos com uma parcela de ‘triênio’ igual a 60% (sessenta por cento), dos quais 50% (cinqüenta por cento) foram obtidos com base em tempo de serviço público estranho ao Município do Rio de Janeiro.

O Estatuto dos Servidores Públicos do Município do Rio de Janeiro disciplina a questão nos seguintes termos (artigo 126, § 5º, na redação dada pela Lei Complementar nº 34/97):

Art. 126 – A gratificação adicional por tempo de serviço é a vantagem calculada sobre o vencimento do cargo efetivo a que faz jus o funcionário por triênio de efetivo exercício no Município.... omissis ...§ 5º - O tempo de serviço público federal, estadual e em outros municípios, prestado na Administração Direta, Indireta ou Fundacional, será também computado para efeito de percepção de gratificação adicional por tempo de serviço, desde que o cargo de provimento efetivo ou emprego permanente, anteriormente ocupado, guarde natureza similar ou equivalente ao cargo em que o servidor se encontrar provido no Município do Rio de Janeiro, nos termos regulamentares. (sem grifos no original)

Visando à adequada aplicação dessa norma, determinou a nobre Corte de Contas do Município que esta Casa “emitisse ato de conteúdo decisório acerca da concessão da vantagem ao inativo” (fls 216/218).

Em termos mais simples, cabe a esta Câmara Municipal examinar os documentos apresentados pelo servidor, verificar se os mesmos logram demonstrar a similaridade e equivalência entre os cargos ocupados fora do Município e aquele que ensejou sua aposentadoria e conceder ou não o aproveitamento pretendido.

É este o objeto do presente parecer.

Fundamentação

Constam dos autos, às fls. 140/211, inúmeros documentos apresentados pelo interessado no propósito de demonstrar a ‘similaridade e equivalência’ das funções exercidas na Administração Federal e aquelas próprias do cargo de Analista de Planejamento e Orçamento, em que se aposentou.

Em requerimento formulado às fls. 212 e 213, o servidor assinala a imensa dificuldade em obter documentos e dados concretos em relação a essas funções, tendo em vista a extinção do Banco Nacional de Habitação e a privatização da Companhia

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Siderúrgica Nacional, e traz à baila um novo argumento para justificar a manutenção da vantagem em questão.

Segundo ele, trata-se de ato jurídico perfeito, praticado à luz da legislação então em vigor.

Essa legislação é o próprio § 5º, do artigo 126, da Lei nº 94/79, em sua redação anterior à Lei Complementar nº 34/97:

§ 5º - O tempo de serviço público federal, estadual e em outros municípios, prestado na administração direta, indireta ou fundacional, será também computado para efeito de percepção da gratificação adicional por tempo de serviço.

Como se disse, a gratificação adicional por tempo de serviço é disciplinada pela Lei nº 94, de 14 de março de 1979, em seu artigo 126, que na sua redação original não contemplava qualquer outro período que não o tempo de efetivo exercício no Município do Rio de Janeiro.

A Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro, publicada em 05 de abril de 1990, trata do benefício em termos mais amplos, permitindo o aproveitamento do tempo de serviço público federal, estadual e municipal, na administração direta, indireta e fundacional:

Art. 204 – O tempo de serviço público federal, estadual e municipal, na administração direta, indireta ou fundacional, será computado integralmente para efeitos de aposentadoria, disponibilidade, adicional por tempo de serviço e licença especial. (grifos nossos)

Essa norma foi objeto de Representação por Inconstitucionalidade (RI nº 22/94) proposta pelo Poder Executivo e teve a sua execução suspensa pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro em 10 de março de 1994.

Em 28 de junho de 1995 foi publicada a Lei Complementar nº 26, que acrescentou o § 5º ao artigo 126 do estatuto, voltando a permitir o aproveitamento de tempo de serviço público estranho ao Município para fim de concessão de adicional por tempo de serviço.

O referido dispositivo teve a sua redação alterada em 01.12.1997, pela Lei Complementar nº 34, que estabeleceu os requisitos de ‘similitude e equivalência’ para o aproveitamento desse tempo:

§ 5º - O tempo de serviço público federal, estadual e em outros municípios,

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prestado na administração direta, indireta ou fundacional, será também computado para efeito de percepção de gratificação adicional por tempo de serviço, desde que o cargo de provimento efetivo ou emprego permanente, anteriormente ocupado, guarde natureza similar ou equivalente ao cargo em que o servidor se encontrar provido no Município do Rio de Janeiro, nos termos regulamentares.” (sem grifos no original)

Com base nessas informações, podemos definir o tratamento jurídico da questão de 1979 até a presente data: i) de 14.03.1979 até 05.04.1990, não se permitia o aproveitamento de tempo estranho ao Município; ii) de 05.04.1990 até 10.03.1994, permitia-se o aproveitamento, sem quaisquer outros requisitos; iii) de 10.03.1994 até 28.06.1995, não se permitia o aproveitamento; iv) de 28.06.1995 até 01.12.1997, admitia-se o aproveitamento, sem requisitos e v) a partir de 01.12.1997 admite-se o aproveitamento de tempo de serviço público estranho ao Município, desde que cumpridos os requisitos de ‘similitude e equivalência’ entre os cargos.

Conclusão

Conforme se tem do anexo processo nº 5248/97, o interessado pleiteou a concessão de ‘triênio’, servindo-se de tempo de serviço público federal prestado ao extinto Banco Nacional de Habitação e à Companhia Siderúrgica Nacional, em 24.06.1997, obtendo o benefício em 21.07.1997 (fl. 12).

Aplica-se-lhe, portanto, a norma constante do artigo 126, § 5º, da Lei nº 94/79 em sua redação dada pela Lei Complementar nº 26/95, que permitia o cômputo de tempo de serviço público federal, estadual e em outros municípios para efeito de percepção da gratificação adicional por tempo de serviço, sem quaisquer outros requisitos.

O benefício foi, assim, devidamente concedido, em estreita consonância com a legislação então em vigor.

Sob tais fundamentos, opino pela ratificação da decisão administrativa proferida à fl. 12, do anexo processo nº 5248/97, mantendo-se a gratificação adicional por tempo de serviço na porcentagem indicada em sua apostila de fixação de proventos (sessenta por cento).

É este o parecer que submeto à elevada consideração de V. Exa.

Rio de Janeiro, 17 de abril de 2008.

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Claudia Rivolli Thomas de Sá Procuradora da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

Visto. Aprovo o Parecer nº 04/2008-CRTS, retro/supra.

Encaminhe-se à consideração do Exmo. Sr. Presidente.

Em 18 de abril de 2008.

Jania Maria de SouzaProcuradora-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

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210 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 12, n. 17, jan./dez. 2008

Aposentadoria por invalidez. Re-versão. O tempo decorrido entre a

aposentadoria e a reversão não pode ser computado para o pagamento de

vantagens pecuniárias.

Parecer nº 04/07-JMS

Ementa: Aposentadoria por invalidez. Reversão. Procedimento regular. O tempo que perdurou entre a aposentação por incapacidade laborativa e a reversão não pode ser computado para o pagamento de vantagens pecuniárias.

Exmo. Sr. Primeiro Secretário

O Ilmo. Sr. Diretor da Divisão de Benefícios da Diretoria de Pessoal desta Casa solicita, à fl. 02, orientação quanto à contagem de tempo para a concessão de benefícios ao servidor ... durante o período em que esteve aposentado por invalidez até a sua reversão ao serviço público.

A Assessoria Jurídica se pronunciou sobre o tema, à fl. 04, opinando pelo pronunciamento desta Procuradoria-Geral, o que foi determinado por V. Exa., à fl. 07. Nesse sentido, passo a opinar.

A hipótese

O servidor ... teve a sua invalidez permanente declarada para o serviço público e, por essa razão, foi aposentado com validade de 16/02/06 (fl. 02). Em 06/06/07 foi declarado apto para o trabalho, tendo sido expedida a Resolução “P” nº 1018/07 (cópia da publicação à fl. 05), revertendo-o ao quadro de pessoal desta Casa de Leis. Assim,

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a questão posta nestes autos cinge-se a saber se os efeitos patrimoniais dessa reversão permitem que se aproveite o período em que o servidor se encontrava aposentado, para fins de pagamento de vantagens pecuniárias.

Fundamentação

A reversão, disposta nos arts. 57 de ss. da Lei nº 94/7, é a possibilidade de um servidor aposentado por invalidez permanente retornar ao serviço público. Com efeito, o instituto da reversão atende a moralidade administrativa, porquanto insubsistindo a incapacidade laborativa, não há causa jurídica para que o servidor deixe de prestar o serviço inerente a sua função como contraprestação aos seus ganhos.

A aposentadoria por invalidez é modalidade compulsória de passagem à inatividade. Portanto, o servidor deixa de estar em atividade, não por opção, mas por imposição da lei que o considera inapto para o serviço público.

Não se vislumbra nos autos nenhuma ilegalidade ou irregularidade no procedimento de aposentação do servidor que pudesse assegurar o aproveitamento do tempo em que esteve afastado de suas funções para o pagamento de quaisquer vantagens.

Desse modo, pode-se afirmar que o motivo que levou à incapacidade laboral do servidor perdurou até que fosse declarada a sua aptidão para retornar ao trabalho.

Nesse contexto, deve ser feita a suspensão da contagem de tempo para fins de pagamento de vantagens, de 16/02/06 até a data em que o servidor tomou posse em seu cargo, em virtude da reversão, retomando-se a contagem, assim, a partir do dia em que ocorreu o efetivo retorno do servidor ao serviço público.

Conclusão

Pelas razões acima expostas, conclui-se que, não havendo quaisquer irregularidades ou ilegalidades no procedimento de aposentadoria do servidor, o tempo que perdurou a sua aposentação por inaptidão para o serviço público não deve ser computado para fins de pagamento de vantagens pecuniárias.

É como me parece. À consideração de Vossa Excelência.

Rio de Janeiro, 25 de setembro de 2007.

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Jania Maria de SouzaProcuradora-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

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Direito atribuído a título de cargo público não pode ser estendido, sem

lei que autorize, a titular de emprego público, sob pena de nulidade. Pres-

crição

Parecer nº 01/08-JMS

Ementa: Direito atribuído a titular de cargo público não pode ser estendido, sem lei que autorize, a titular de emprego público. Ato administrativo que concede direito previsto na Lei nº 94/79 a empregado regido pela Consolidação das Leis do Trabalho deve ser anulado, por falta de fundamento legal. Prescrição de direito. A inércia do servidor, por mais de 20 (vinte) anos, ao não reclamar direito violado, fez nascer o instituto da prescrição.

Exmo. Senhor Primeiro Secretário

Cuida-se de processo do servidor ... , no qual a Diretoria de Pessoal solicita orientação quanto à contagem em dobro de férias não usufruídas pelo interessado, no período de 1982/1983 e 1985, uma vez que à época o servidor mantinha vínculo empregatício com esta Casa, sob a égide da Consolidação das Leis do Trabalho (fl. 44).

A Assessoria Jurídica se pronunciou sobre o tema, à fl. 45, sugerindo a oitiva desta Procuradoria-Geral, o que foi determinado por V. Exa. à fl. 47. Nesse sentido, passo a opinar.

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Breve histórico

De acordo com o Mapa de Tempo de Contribuição, às fls. 16/19, o servidor foi contratado pela Prefeitura Municipal de Engenheiro Paulo de Frontin e colocado à disposição desta Casa a partir de 12/01/82. Em 1985 optou pelo emprego de Auxiliar do Legislativo na Câmara Municipal, nos termos da Lei nº 709/85. No ano de 1987 foi investido no cargo de Assistente Legislativo, a teor da Lei nº 951/87.

Segundo o que consta nos autos, o servidor deixou de usufruir dois períodos de férias, referentes aos anos de 1982/1983 e 1985 (fl. 08). Tendo sido constatado esse fato pela Diretoria de Pessoal, foi solicitada a contagem em dobro daqueles períodos não gozados (fl. 13), o que foi deferido à fl. 14.

Fundamentação

1. Empregado público que deixou de usufruir férias

As férias constituem direito fundamental de todo servidor público – art. 7º, XVII c/c 39, § 3º da Constituição Federal), seja ele titular de cargo ou emprego público. Na hipótese dos autos, até 16/05/87 o servidor era titular de emprego público, regido pela CLT. Após aquela data o servidor foi investido em cargo público, sendo que durante o pacto laboral deixou de usufruir férias, referentes a dois períodos aquisitivos.

Ao regulamentar o direito a férias, dispõem os arts. 129 e ss. da CLT:

art. 129 – Todo empregado terá direito anualmente ao gozo de um período de férias, sem prejuízo da remuneração.Art. 130 – Após cada período de 12 (doze) meses de vigência do contrato de trabalho, o empregado terá direito a férias, na seguinte proporção:I – 30 (trinta) dias corridos, quando não houver faltado ao serviço mais de 5 (cinco) vezes;Art. 134 – as férias serão concedidas por ato do empregador, em um só período, nos 12 (doze) meses subseqüentes à data em que o empregado tiver adquirido o direito.Art. 135 – A concessão de férias será participada, por escrito, ao empregado, com antecedência de, no mínimo, 30 (trinta) dias. Dessa participação o interessado dará recibo.Art. 136 – A época da concessão das férias será a que melhor consulte os

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interesses do empregador.Art. 137 - Sempre que as férias forem concedidas após o prazo de que trata o art. 134, o empregador pagará em dobro a respectiva remuneração.§ 1º - Vencido o mencionado prazo sem que o empregador tenha concedido as férias, o empregado poderá ajuizar reclamação pedindo a fixação, por sentença, da época de gozo das mesmas.

Como se pode verificar, relativamente ao período aquisitivo que compreendeu de 12 de janeiro de 1982 a 12 de janeiro de 1983, o servidor deveria ter usufruído férias nos 12 (doze) meses subseqüentes (até 13 de janeiro de 1984). Com relação ao período aquisitivo do ano de 1985, o servidor deveria tê-las usufruído no ano de 1986. Os períodos de férias deveriam ter sido concedidos pela Câmara Municipal (art. 134) e comunicados por escrito ao interessado, com antecedência mínima de 30 (trinta) dias (art. 135). A Câmara Municipal deveria ter concedido o direito a férias ao servidor no período que melhor lhe conviesse (art. 136). Contudo, nada disso ocorreu.

Com efeito, quando um direito subjetivo do empregado é violado – no caso, o direito a férias – ele deve ser reclamado, seja no curso do pacto laboral, seja quando este já tenha sido extinto, de acordo com o art. 7º, XXIX da Constituição Federal que dispõe:

Art. 7º - São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:XXIX - ação, quanto aos créditos resultantes das relações de trabalho, com prazo prescricional de cinco anos para os trabalhadores urbanos e rurais, até o limite de dois anos após a extinção do contrato de trabalho.

Assim, o direito violado poderia ter sido reclamado em 5 (cinco) anos, enquanto estava em curso o contrato de trabalho ou em 2 (dois) anos após o término deste.

Nesse contexto, a inércia do servidor ao não reclamar um direito seu que foi subtraído pela Câmara Municipal, durante tanto tempo, fez incidir a prescrição. Desse modo, nenhum direito assiste ao servidor, no que tange à não fruição de férias nos anos de 1983 e 1986, em virtude da ocorrência da prescrição.

2. Extensão de direito de titular de cargo público a empregado público

Os servidores desta Casa de Leis, titulares de cargos públicos, são regidos pela Lei nº 94/79, que lhes confere direitos e obrigações, sendo que um desses direitos é a possibilidade de contar em dobro os períodos de férias não gozados (art. 65, VII

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do Estatuto Municipal1). Esses direitos e obrigações não podem ser estendidos aos empregados públicos – titulares de emprego público – sem que lei autorize. Dessarte, o direito a contagem em dobro de férias não gozadas, deferido ao servidor à fl. 14, não encontra respaldo na lei.

Tendo em vista que a Administração pode anular seus próprios atos quando eivados de vícios que os tornem ilegais, pois deles não se originam direitos (Súmula nº 473 do Supremo Tribunal Federal), deve o ato da autoridade administrativa que concedeu o direito à contagem em dobro ser anulado, por falta de amparo legal.

Conclusão

Posto isso, conclui-se que:

1 – as férias não gozadas pelo servidor, nos anos de 1983 e 1985, e não reclamadas em época própria, foram alcançadas pela prescrição.

2 – O art. 65, VII da Lei nº 94/792 é direito atribuído a servidor público, titular de cargo público. Por essa razão, não pode, sem que lei autorize, ser estendido para alcançar período em que o servidor era empregado público, regido pelas regras trabalhistas. Desse modo, deve ser anulado o ato administrativo que autorizou a contagem em dobro daqueles períodos de férias não gozadas, pois não encontra fundamento legal.

É como me parece. À consideração de Vossa Excelência.

Em 04 de janeiro de 2008.

Jania Maria de SouzaProcuradora-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

2 Ver nota 1.

1 Dispositivo revogado pelo art. 40, § 10 da Constituição Federal (Emenda Constitucional nº 20/98).

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Auxílio doença deve ser pago a servi-dor que estiver licenciado para tra-tamento de saúde por período de 12

meses consecutivos

Parecer nº 02/08-JMS

Ementa: Direito de Pessoal. Auxílio doença. Faz jus o servidor a receber auxílio doença quando estiver em licença para tratamento de saúde por período de 12 (doze) meses consecutivos – art. 144 da Lei nº 94/79.

Não se pode somar diversos períodos de licença para exigir-se a ratificação, por junta médica, dos respectivos boletins concessivos. Parecer pelo deferimento.

Exmo. Senhor Primeiro Secretário

Cuida-se de auxílio doença solicitado pelo servidor ... .

A Diretoria de Pessoal informa, à fl. 04, os períodos em que o servidor esteve de licença médica para tratamento de saúde e anexa aos autos cópias dos Registros de Afastamento Concedidos (fls. 05/13).

A Assessoria Jurídica se pronunciou sobre o tema, à fl. 17, sugerindo o encaminhamento dos autos à Gerência de Acompanhamento à Saúde do Servidor, da Secretaria Municipal de Administração, para que as licenças concedidas fossem ratificadas por junta médica, nos termos do art. 90 da Lei nº 94/79, afirmando que essa é a “base do entendimento firmado pela Douta Procuradoria Geral desta Casa de Leis em seu Parecer nº 11/03 de 16.06.03.”

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218 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 12, n. 17, jan./dez. 2008

O processo foi encaminhado à Coordenadoria de Valorização do Servidor – Gerência de Acompanhamento à Saúde do Servidor, onde foram tecidos comentários sobre a manifestação da Assessoria Jurídica desta Casa, a respeito da necessidade de ratificação – por junta médica – de licença para fins de auxílio doença, concluindo pela desnecessidade da reclamada ratificação (fls. 21/22).

Houve novo pronunciamento da Assessoria Jurídica, à fl. 24, que opinou fosse ouvida esta Procuradoria-Geral, o que foi determinado por V. Exa. à fl. 26. Nesse sentido, passo a opinar.

Fundamentação

A Lei nº 94, de 14 de março de 1979, disciplina a licença para tratamento de saúde nos arts. 88 e seguintes. Com efeito, a teor dos Registros dos Afastamentos Concedidos (fls. 05/13), as licenças deferidas ao servidor tiveram por base o art. 88 do Estatuto Municipal, que dispõe:

Art. 88 – A licença para tratamento de saúde será concedida ex-officio ou a pedido do funcionário, ou de seu representante quando o próprio não possa fazê-lo.

De acordo com aqueles mesmos registros (fls. 05/13), as licenças tiveram prazo de 30, 60, 90, 20, 30, 30, 60, 90 e 60 dias, respectivamente, totalizando 370 (trezentos e setenta) dias, até 14/03/08.

Como se pode perceber, nenhuma licença teve período superior a 90 (noventa) dias, hipótese em que a lei dispõe ser necessária inspeção, a ser realizada por junta médica, nos termos do art. 90 da Lei nº 94/79.

Desse modo, não há que se falar em ratificação, por junta médica, das licenças já concedidas ao interessado, por terem sido todas deferidas por períodos de, no máximo, 90 (noventa) dias.

É bem de ver que não é concebível que se queira somar todos os períodos de licença concedidos ao interessado para atrair a incidência do art. 90 da Lei nº 94/79. A hipótese disposta nesse dispositivo se refere a um único período de licença, superior a 90 (noventa) dias.

Nesse contexto, para ter direito ao auxílio doença basta que o servidor permaneça licenciado por 12 (doze) meses consecutivos, aí sim, somando-se todos os períodos

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de afastamento para tratamento de saúde, na esteira do art. 144 da Lei nº 94/79.

Do Parecer nº 11/03-CRTS

A Assessoria Jurídica desta Casa entendeu que ao caso que se apresenta nestes autos deveria ser aplicado o Parecer nº 11/03 – CRTS, da lavra da ilustre Procuradora Dra. Cláudia Rivolli Thomas de Sá, o qual foi publicado na Revista de Direito da Procuradoria-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, nº 12, páginas 227/232.

Com efeito, naquele parecer foi analisada a situação funcional de servidor que se encontrava de licença para tratamento de saúde por mais de 4 (quatro) anos, sendo que diversos períodos de licença haviam sido concedidos por mais de 90 (noventa) dias, sem que os boletins de inspeção tivessem sido firmados por junta médica, conforme preceitua o art. 90 da Lei nº 94/79.

Assim, pode-se afirmar que o caso destes autos em nada se assemelha àquele que foi objeto de análise no Parecer nº 11/03 – CRTS, sendo totalmente equivocada a pretensão de se estender o entendimento lá firmado ao caso ora em apreço.

Conclusão

Posto isso, conclui-se que faz jus o servidor ao auxílio doença requerido, uma vez que se encontra de licença para tratamento de saúde há mais de 12 (doze) meses consecutivos, na esteira do que estabelece o art. 144 da Lei nº 94/79, não tendo que se falar, na hipótese, em ratificação de boletins de inspeção por junta médica.

É como me parece. À consideração de Vossa Excelência.

Em 21 de maio de 2008.

Jania Maria de SouzaProcuradora-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

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Conceitos de dia e mês no direito ad-ministrativo

Parecer nº 01/08-SAFF

Ementa: Direito Civil e Financeiro. Divisão do mês civil em dias, para fins de cálculos relacionados ao Direito de Pessoal, como desconto de faltas ou substituição eventual. A remuneração do servidor público tem base mensal e, por isso, o valor do dia deve ser sempre considerado como a fração de 1/30 da remuneração mensal, em consonância com o conceito cultural de mês e com o princípio da isonomia. Só se considera, porém, completo o exercício de um mês, quando o servidor trabalha no último dia do mês-calendário, qualquer que seja ele. A gratificação de substituição eventual deve sempre ser contada em dias, não em meses, observando-se o período mínimo de 30 dias, previsto na Lei 94/79.

Senhora Procuradora-Geral

Trata o presente processo de consulta formulada pela Diretoria de Pessoal, a respeito de procedimentos de cálculo para pagamento de pessoal.

1. Histórico e Objeto da Consulta

Através do ofício de fls. 02, a Diretora da Divisão de Pagamento de Pessoal formula indagação ao Diretor de Pessoal, a qual se transcreve integralmente a seguir:

Tendo em vista as duas formas possíveis de se considerar um mês, para efeitos financeiros, a saber:a) todos os meses do ano como tendo 30 dias;b) cada mês tendo exatamente o número de dias a ele referente;

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1) Que forma devemos adotar para os cálculos desta Divisão? Exemplo: se convencionarmos na forma do item (a), o valor de uma falta no mês de março/08 seria [Vencimentos]/30 e se adotarmos a forma do item (b) o valor da falta seria [Vencimentos]/31.2) No caso de adotarmos a forma do item (a):2.1) Um servidor exonerado com validade do dia 31 de determinado mês tem ou não um débito de 1 dia? Analogamente, um servidor nomeado com validade do dia 31 de determinado mês tem ou não um crédito de 1 dia?2.2) Como devemos calcular o valor a ser percebido pelo substituto eventual de um servidor que ficou ausente por um mês e 10 dias, no caso de um mês de 31 dias:[valor da substituição por um mês] + [valor da substituição por 10 dias] ou[valor da substituição por um mês] +[valor da substituição por 11 dias]?

Encaminhado o feito à Assessoria Jurídica (fls. 03), aquele ilustrado órgão sugeriu a oitiva desta Procuradoria-Geral (fls. 04), o que foi determinado pelo Sr. Primeiro Secretário às fls. 06.

Passo a opinar.

2. Apreciação

Embora outras formas de contagem de tempo, como o calendário lunar, já tenham sido utilizadas na História, o mundo moderno adota, em quase todas as culturas, o calendário instituído em 24/02/1582, pelo Papa Gregório XIII e, por isso, chamado de Calendário Gregoriano. Em notável estimativa, para aquela época, calculou-se que o ano solar durava 365 dias, 5 horas e 49 minutos.

Este calendário contém meses com diferentes quantidades de dias, tendo o mês de fevereiro 28 dias e os demais 30 ou 31, o que permite acomodar a divisão inexata entre o número total de dias (365) e a quantidade de meses (12). Ainda, a período regulares, o mês de fevereiro tem 29 dias (nos chamados anos bissextos) e, a cada 400 anos, deixa-se de aplicar, por uma vez, a regra do ano bissexto. Estes ajustes levam a uma admirável correspondência entre a contagem de tempo feita pelo Homem e a duração dos fenômenos astronômicos adotados para medir o dia (rotação da Terra) e o ano (translação da Terra).

O Direito, como instrumento de organização das sociedades, não pode prescindir da consideração do tempo, ao regular as relações humanas. Assim é que o ordenamento

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jurídico é repleto de prazos e outras disposições baseadas no tempo, utilizando quase todas as unidades adotadas para sua medição (minutos, horas, dias, meses e anos). Exatamente por isso, logo se impôs a necessidade de definir, juridicamente, os efeitos da contagem do tempo sobre as relações jurídicas. Nas palavras do civilista Francisco Amaral:

O tempo é o fato jurídico natural de grande importância nas relações jurídicas pela influência na gênese, exercício e perda dos respectivos direitos.1

Por razões evidentes, o Direito Civil foi o primeiro a dispor sobre o tema. Neste particular, vigoram ainda as definições da Lei 810, de 06/09/1949, que, pela sua objetividade, merece ser integralmente transcrita:

Art. 1º Considera-se ano o período de doze meses contado do dia do início ao dia e mês correspondentes do ano seguinte. Art. 2º Considera-se mês o período de tempo contado do dia do início ao dia correspondente do mês seguinte. Art. 3º Quando no ano ou mês do vencimento não houver o dia correspondente ao do início do prazo, êste findará no primeiro dia subseqüente. Art. 4º Revogam-se as disposições em contrário.

Note-se que essa Lei trata da contagem de interstícios, ou seja do “período de um ano” ou do “período de um mês”, e não da definição ou adoção de um determinado calendário, que, como já dito, é fenômeno cultural e, essencialmente, pré-jurídico.

Tanto isto é verdadeiro que, para fins de remuneração, tanto no Direito Público (Administrativo) quanto no Direito Privado (do Trabalho2), a remuneração tem como referência o mês, recebendo os trabalhadores e servidores uma determinada remuneração (vencimentos, para o primeiro, e salário, para o segundo) mensal, que é igual para os meses de fevereiro e março, por exemplo. Nestes casos, obviamente, não se está considerando o mês em seu conceito jurídico, tal como definido no art. 2º

1 AMARAL, Francisco. Direito civil brasileiro: introdução. Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 614.2 Não se está aqui tomando partido na acesa e interminável controvérsia sobre a posição do Direito do Trabalho no quadro da Ciência Jurídica, dado que seus estudiosos resistem a classificá-lo como direito privado, preferindo alguns falar de um terceiro gênero, o “Direito Social”. A referência é apenas para diferenciar a relação jurídica privada, que se estabelece entre o empregador e o empregado, da relação jurídica pública, entabulada entre o servidor e o Estado.

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da Lei 810/49, mas o mês como conceito cultural e pré-jurídico, porém, juridicizado pela legislação administrativa ou laboral. É dizer: no nosso Direito, a remuneração tem sempre o referencial no mês, ou seja, uma base mensal, excetuados os casos de profissionais liberais, que sejam remunerados por dia ou hora, mas sem vínculo empregatício ou estatutário.

A diferenciação é mais clara quando se toma o conceito de dia, que é o mesmo na acepção jurídica e na comum. As férias têm definição legal de 30 dias, ou seja, não correspondem necessariamente a um mês do calendário.

Estas diferenças, radicam, em última análise, no princípio da igualdade. O servidor não pode ser beneficiado ou prejudicado, pelo só fato de o dia de falta ou o período de férias ocorrerem em diferentes meses do calendário, que possam ter diferentes números de dias. Foi o que, com sua rara visão, averbou o Professor Celso Antônio Bandeira de Mello:

As coisas é que residem no tempo. O tempo não se aloja nos fatos ou pessoas. Portanto, o tempo não é uma diferença que neles assiste. Deste ponto de vista, pessoas, fatos e situações são iguais. Por isso se disse que o tempo é neutro. Se o tempo não é uma inerência, uma qualidade, um atributo próprio das coisas (pois são elas que estão no tempo e não o tempo nelas), resulta que em nada diferem pelo fato de ocorrerem em ocasiões já ultrapassadas. Todas existiram. E se existiram do mesmo modo, sob igual feição, então, são iguais e devem receber tratamento paritário.3

Assim, a resposta aos questionamentos formulados na inicial deve ter em conta o princípio da igualdade, o bom senso e, especialmente, a cautela na diferenciação dos conceitos jurídicos e culturais de dia e mês, tal como delineado acima.

De plano, pode-se dizer que não há como escolher, em abstrato, entre as alternativas “a” e “b” da consulta, pois cada situação demandará uma resposta. Assim, exemplificativamente, para fins de remuneração, em geral, pode-se considerar a alternativa “a” como correta (meses sempre de 30 dias), e, para férias, a alternativa “b”.

Quanto ao primeiro exemplo, concernente ao valor a ser descontado em caso de falta, deve-se considerar sempre o quociente entre os vencimentos e o número 3 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 34.

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trinta. Isto porque a remuneração do servidor público (e também dos trabalhadores que recebem salário fixo) é expressa em valores mensais, sem uma correlação real entre os valores e os dias efetivamente trabalhados. Assim, há meses de 22 dias úteis, outros com 23 e alguns que podem ter até bem menos, dependendo da combinação de feriados e dias de ponto facultativo. Além disso, fatores subjetivos, como licença médica ou de nojo, não interferem no valor da remuneração.

Exatamente por isso, deve-se adotar o conceito de “remuneração diária” (apenas para fins de cálculo) como a divisão dos vencimentos por 30.

Assim, quanto ao primeiro questionamento, o valor da falta deve ser, sempre, “vencimentos/30”.

Quanto ao questionamento 2.1, o servidor exonerado no dia 31 terá o débito de um dia, pois não completou o mês, dentro do conceito já visto acima de mês, isto é do mês-calendário, e não o mês civil definido na Lei 810/49.

Ressalte-se, porém, que, neste caso, o valor do débito será de 1/30 e não de 1/31 da remuneração. Embora possa parecer incoerente tal resposta (pois, matematicamente, “a conta não fecha”), se deve ao fato de trabalharmos com dois conceitos diversos: a “remuneração diária” tem um valor fixo (correspondente a 1/30 da remuneração mensal), porque é decorrência da “remuneração mensal”, que também se baseia, por ficção jurídica, num mês de duração fixa; e o “mês” que, para fins de efetivo exercício, deve considerar sempre o mês completo, inclusive quando tem 31 dias.

Os mesmos conceitos se aplicam ao questionamento 2.2. Deve-se calcular, primeiro, o valor da “remuneração diária”, correspondente a 1/30 dos vencimentos do cargo em que se deu a substituição (ou da diferença, quando o substituto já percebe remuneração por cargo em comissão ou função gratificada) e, em seguida, multiplicar o valor assim obtido pelo número efetivo de dias em que se deu a substituição.

Assim, não se trata de usar o “valor da substituição por um mês”, como consta da consulta, mas 1/30 desse valor, multiplicando-o, em seguida, pelo número efetivo de dias de substituição.

Neste passo, vale lembrar que a Lei Municipal nº. 94/79 (Estatuto do Servidor Público do Município do Rio de Janeiro), no art. 33 § 3º, só permite a remuneração do substituto eventual quando a substituição se der por período igual ou superior a 30 dias.

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Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 12, n. 17, jan./dez. 2008 225

3. Conclusões

De todo o exposto, concluo na forma das proposições a seguir:

a) para fins de cálculo de remuneração, o mês deve sempre ser considerado como sendo de 30 dias, de modo que a “remuneração diária” seja determinada pela divisão da remuneração mensal por 30;

b) o desconto relativo a falta deve corresponder a uma “remuneração diária” por falta, na forma do item anterior;

c) para fins de crédito e débito relativos à exoneração de cargos em comissão, devem ser considerados os dias que faltavam para que o servidor completasse o mês, considerando-se, neste caso, o mês-calendário, ou seja, o exercício no dia 28, 29, 30 ou 31, conforme o caso, todavia, o valor diário será sempre de 1/30 da remuneração mensal;

d) para fins de substituição eventual, o cálculo do valor devido deverá levar em conta o número de dias de efetiva substituição, a ser multiplicado pela “remuneração diária”, não importando o mês-calendário em que ocorreu a substituição.

Reitero, como de hábito, que outras situações, que não aquelas que foram estritamente o objeto da consulta, deverão ser dirimidas, em caso de dúvida, através de novas consultas a esta Procuradoria-Geral.

É o parecer, submetido à elevada consideração de Vossa Excelência.

Rio de Janeiro, 21 de julho de 2008.

Sérgio Antônio Ferrari FilhoProcurador da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

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Visto. Aprovo o Parecer nº 01/08-SAFF, retro.

Encaminhe-se à consideração do Exmo. Sr. Primeiro Secretário.

Em 21 de julho de 2008.

Flávio Andrade de Carvalho BrittoSubprocurador-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

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ÍNDICE

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Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 12, n. 17, jan./dez. 2008 229

Acidente de trabalho – Comunicação – INSS – Servidor público municipal – Cargo em comissão – Contribuinte – Regime Geral de Previdência Social – Auxílio acidente – Pagamento – Atestado médico – Apresentação – Insuficiência – Serviço médico – Registro – Inexistência Parecer nº 01/08 – Claudia Rivolli Thomas de Sá .............................................. p. 201

Adicional por tempo de serviço – Servidor público municipal – Aposentadoria – Proventos – Fixação – Triênio – Percentagem – Tempo de serviço – Administração federal – Con-cessão – Cargo público – Exercício – Requisitos – Benefício – Manutenção – Aplica-ção da lei – Vigência Parecer nº 04/08 – Claudia Rivolli Thomas de Sá .............................................. p. 205

Administração municipal – Município – Descentralização – Federalismo – Federação – Au-tonomia municipal – Princípio da subsidiariedade – Democracia – Constituição federal Intangibilidade do poder local: um ensaio jusfilosófico sobre a descentralização do poder como condição necessária ao exercício da democracia. Arícia Fernandes Cor-reia ..................................................................................................................... p. 109

Aposentadoria – Concessão – Servidor público municipal – Câmara Municipal – Procedi-mento – Conclusão – Prazo – Termo final – Ato administrativo – Proventos – Fixação – Folha de pagamento – Processamento – Convênio – PREVI-RIO – Remuneração – Valor – Apuração – Publicação – Apostilamento – Débito – Cobrança – Desconto – Consignação – Limitação Parecer nº 09/07 – Claudia Rivolli Thomas de Sá .............................................. p. 195

Aposentadoria – Servidor público municipal – Proventos – Fixação – Triênio – Adicional por tempo de serviço – Percentagem – Tempo de serviço – Administração federal – Concessão – Cargo público – Exercício – Requisitos – Benefício – Manutenção – Aplicação da lei – Vigência Parecer nº 04/08 – Claudia Rivolli Thomas de Sá .............................................. p. 205

Aposentadoria por invalidez – Reversão – Servidor público municipal – Serviço ativo – Retorno – Período – Aposentado – Contagem – Aproveitamento – Tempo de serviço – Vantagens pecuniárias – Pagamento – Descabimento Parecer nº 04/07 – Jania Maria de Souza .......................................................... p. 210

Assembléia Constituinte – Constituição federal – História – Regime militar – Direitos e garantias fundamentais Vinte anos da Constituição de 1988: a reconstrução democrática do Brasil. Luís Ro-berto Barroso ..................................................................................................... p. 15

Associação sem fins lucrativos – Utilidade pública – Título – Concessão – Requisitos – Di-retoria – Pagamento – Inadmissibilidade – Lucro – Reversão – Prestação de serviço – Comunidade – Gratuidade – Beneficiário – Cobrança – Inocorrência Parecer nº 03/07 – Claudia Rivolli Thomas de Sá .............................................. p. 151

Autonomia municipal – Município – Descentralização – Federalismo – Federação – Ad-ministração municipal – Princípio da subsidiariedade – Democracia – Constituição federal

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230 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 12, n. 17, jan./dez. 2008

Intangibilidade do poder local: um ensaio jusfilosófico sobre a descentralização do poder como condição necessária ao exercício da democracia. Arícia Fernandes Cor-reia ..................................................................................................................... p. 109

Auxílio doença – Pagamento – Servidor público municipal – Licença para tratamento de saúde – Um ano – Afastamento – Período – Noventa dias – Prazo superior – Junta médica – Ratificação – Exigência – Desnecessidade Parecer nº 02/08 – Jania Maria de Souza .......................................................... p. 217

Bancos – Instituição financeira – Convênio – Servidor público municipal – Empréstimo – Consignação em folha de pagamento – Contrato de mútuo – Crédito – Órgão público – Participação – Relação jurídica – Particular – Prestação mensal – Taxa de juros – Diferença – Autonomia da vontade – Remuneração – Fração – Limitação – Compro-metimento Parecer nº 03/07 – Sérgio Antônio Ferrari Filho ............................................... p. 155

Barroso, Luís Roberto Vinte anos da Constituição de 1988: a reconstrução democrática do Brasil ...... p. 15

CEDAE ver Companhia Estadual de Águas e Esgotos

Cidadania – Direito – Democracia – Sociedade – Globalização da economia – Legalidade – Legitimidade – Modernidade – Positivismo – Teoria do direito – Filosofia do direito – Sociologia jurídica – Cidadania – Ética – Direitos e garantias fundamentais – Ponde-ração de interesses – Estado democrático de direito Direito e democracia nas sociedades complexas. Humberto Eustáquio César Mota Filho ................................................................................................................................. p. 73

Competência municipal – Serviço de iluminação pública – Iluminação pública – Contri-buição especial – Taxas – Serviços públicos – Recursos orçamentários – Constituição federal – Emenda constitucional Contribuição para iluminação pública. Aurélio Pitanga Seixas Filho ............. p. 101

Consignação em folha de pagamento – Convênio – Bancos – Instituição financeira – Servi-dor público municipal – Empréstimo – Contrato de mútuo – Crédito – Órgão público – Participação – Relação jurídica – Particular – Prestação mensal – Taxa de juros – Diferença – Autonomia da vontade – Remuneração – Fração – Limitação – Compro-metimento Parecer nº 03/07 – Sérgio Antônio Ferrari Filho ............................................... p. 155

Consórcio – Termo de reconhecimento de direitos e obrigações – Estado do Rio de Janeiro – CEDAE – Município do Rio de Janeiro – Saneamento básico – Distribuição de água – Região Metropolitana – Serviços públicos – Poder público – Setor privado – Convê-nio de cooperação – Constituição federal – LEI 11.107/05 – LEI 11.445/07 A Solução do Rio de Janeiro para a polêmica do saneamento básico na Região Metro-politana. Marcos Juruena Villela Souto ............................................................. p. 33

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Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 12, n. 17, jan./dez. 2008 231

Constituição federal – História – Regime militar – Assembléia Constituinte – Direitos e garantias fundamentais Vinte anos da Constituição de 1988: a reconstrução democrática do Brasil. Luís Ro-berto Barroso ..................................................................................................... p. 15

Constituição federal – Município – Descentralização – Federalismo – Federação – Autono-mia municipal – Administração municipal – Princípio da subsidiariedade – Democracia Intangibilidade do poder local: um ensaio jusfilosófico sobre a descentralização do poder como condição necessária ao exercício da democracia. Arícia Fernandes Cor-reia ..................................................................................................................... p. 109

Constituição federal – Serviço de iluminação pública – Iluminação pública – Contribuição especial – Taxas – Serviços públicos – Competência municipal – Recursos orçamentá-rios – Emenda constitucional Contribuição para iluminação pública. Aurélio Pitanga Seixas Filho ............. p. 101

Constituição federal – Termo de reconhecimento de direitos e obrigações – Estado do Rio de Janeiro – CEDAE – Município do Rio de Janeiro – Saneamento básico – Distribui-ção de água – Região Metropolitana – Serviços públicos – Consórcio – Poder público – Setor privado – Convênio de cooperação – Constituição federal – LEI 11.107/05 – LEI 11.445/07 A Solução do Rio de Janeiro para a polêmica do saneamento básico na Região Metro-politana. Marcos Juruena Villela Souto ............................................................. p. 33

Constituição federal – Tratado – Direitos humanos – Emenda constitucional – Pacto de São José da Costa Rica – Depositário infiel – Prisão civil Tratados sobre direitos humanos e a Emenda Constitucional nº 45/04. Kiyoshi Harada ............................................................................................................................. p. 63

Contabilidade pública – Lei de Responsabilidade Fiscal – Demonstrativo – Relatório de ges-tão fiscal – Consolidação – Contas nacionais – Poder Legislativo – Câmara Municipal – Autonomia administrativa – Registro contábil – Remessa – Exigência – Legitimidade Parecer nº 04/07 – Sérgio Antônio Ferrari Filho ............................................... p. 164

Convênio – Bancos – Instituição financeira – Servidor público municipal – Empréstimo – Consignação em folha de pagamento – Contrato de mútuo – Crédito – Órgão público – Participação – Relação jurídica – Particular – Prestação mensal – Taxa de juros – Diferença – Autonomia da vontade – Remuneração – Fração – Limitação – Compro-metimento Parecer nº 03/07 – Sérgio Antônio Ferrari Filho ............................................... p. 155

Convênio de cooperação - Termo de reconhecimento de direitos e obrigações – Estado do Rio de Janeiro – CEDAE – Município do Rio de Janeiro – Saneamento básico – Dis-tribuição de água – Região Metropolitana – Serviços públicos – Consórcio – Poder público – Setor privado – Constituição federal – LEI 11.107/05 – LEI 11.445/07 A Solução do Rio de Janeiro para a polêmica do saneamento básico na Região metro-politana. Marcos Juruena Villela Souto ............................................................. p. 33

Correia, Arícia Fernandes

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232 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 12, n. 17, jan./dez. 2008

Intangibilidade do poder local: um ensaio jusfilosófico sobre a descentralização do poder como condição necessária ao exercício da democracia ........................... p. 109

Decreto legislativo – Sustação – Resolução – Secretaria Municipal de Educação – Escola pública – Avaliação – Promoção automática – Ato legislativo – Constitucionalidade – Validade – Ato administrativo – Poder regulamentar – Competência legislativa – Conselho Municipal de Educação – Competência funcional – Política educacional – Elaboração – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Plano Nacional de Educação – Divergência Parecer nº 09/07 – Flávio Andrade de Carvalho Britto ..................................... p. 178

Democracia – Direito – Sociedade – Globalização da economia – Legalidade – Legitimidade – Modernidade – Positivismo – Teoria do direito – Filosofia do direito – Sociologia jurídica – Cidadania – Ética – Direitos e garantias fundamentais – Ponderação de inte-resses – Estado democrático de direito Direito e democracia nas sociedades complexas. Humberto Eustáquio César Mota Filho ................................................................................................................................. p. 73

Democracia – Município – Descentralização – Federalismo – Federação – Autonomia muni-cipal – Administração municipal – Princípio da subsidiariedade – Constituição Federal Intangibilidade do poder local: um ensaio jusfilosófico sobre a descentralização do poder como condição necessária ao exercício da democracia. Arícia Fernandes Cor-reia ..................................................................................................................... p. 109

Depositário infiel – Tratado – Direitos humanos – Constituição federal – Emenda constitu-cional – Pacto de São José da Costa Rica – Prisão civil Tratados sobre direitos humanos e a Emenda Constitucional nº 45/04 ............ p. 63

Descentralização – Município – Federalismo – Federação – Autonomia municipal – Ad-ministração municipal – Princípio da subsidiariedade – Democracia – Constituição Federal Intangibilidade do poder local: um ensaio jusfilosófico sobre a descentralização do poder como condição necessária ao exercício da democracia. Arícia Fernandes Cor-reia ..................................................................................................................... p. 109

Dia – Mês – Tempo – Contagem – Trinta dias – Remuneração – Pagamento – Desconto – Cálculo – Fração – Férias – Falta – Exoneração – Substituição – Cargo em comissão – Exercício Parecer nº 01/08 – Sérgio Antônio Ferrari Filho .............................................. p. 220

Direito – Democracia – Sociedade – Globalização da economia – Legalidade – Legitimidade – Modernidade – Positivismo – Teoria do direito – Filosofia do direito – Sociologia jurídica – Cidadania – Ética – Direitos e garantias fundamentais – Ponderação de inte-resses – Estado democrático de direito Direito e democracia nas sociedades complexas. Humberto Eustáquio César Mota Filho ................................................................................................................................. p. 73

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Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 12, n. 17, jan./dez. 2008 233

Direitos e garantias fundamentais – Constituição federal – História – Regime militar – As-sembléia Constituinte Vinte anos da Constituição de 1988: a reconstrução democrática do Brasil. Luís Ro-berto Barroso ..................................................................................................... p. 15

Direitos e garantias fundamentais – Direito – Democracia – Sociedade – Globalização da economia – Legalidade – Legitimidade – Modernidade – Positivismo – Teoria do direito – Filosofia do direito – Sociologia jurídica – Cidadania – Ética – Ponderação de interesses – Estado democrático de direito Direito e democracia nas sociedades complexas. Humberto Eustáquio César Mota Filho ................................................................................................................................. p. 73

Direitos e garantias fundamentais – Tributo – Função social – Direitos sociais – Políticas públicas – Estado – Responsabilidade social Função social do tributo. Arion Sayão Romita .................................................. p. 49

Direitos humanos – Tratado – Constituição federal – Emenda constitucional – Pacto de São José da Costa Rica – Depositário infiel – Prisão civil Tratados sobre direitos humanos e a Emenda Constitucional nº 45/04. Kiyoshi Harada ...........................................................................................................................................p. 63

Direitos sociais – Tributo – Função social – Direitos e garantias fundamentais – Políticas públicas – Finanças públicas – Estado – Responsabilidade social Função social do tributo. Arion Sayão Romita .................................................. p. 49

Distribuição de água – Termo de reconhecimento de direitos e obrigações – Estado do Rio de Janeiro – CEDAE – Município do Rio de Janeiro – Saneamento básico – Região Metropolitana – Serviços públicos – Consórcio – Poder público – Setor privado – Con-vênio de cooperação – Constituição federal – LEI 11.107/05 – LEI 11.445/07 A Solução do Rio de Janeiro para a polêmica do saneamento básico na Região Metro-politana. Marcos Juruena Villela Souto ............................................................. p. 33

Emenda constitucional – Serviço de iluminação pública – Iluminação pública – Contribuição especial – Taxas – Serviços públicos – Competência municipal – Recursos orçamentá-rios – Constituição federal Contribuição para iluminação pública. Aurélio Pitanga Seixas Filho ............. p. 101

Emenda constitucional – Tratado – Direitos humanos – Constituição federal – Pacto de São José da Costa Rica – Depositário infiel – Prisão civil Tratados sobre direitos humanos e a Emenda Constitucional nº 45/04. Kiyoshi Harada ...........................................................................................................................................p. 63

Estado – Tributo – Função social – Direitos sociais – Direitos e garantias fundamentais – Políticas públicas – Finanças públicas – Responsabilidade social Função social do tributo. Arion Sayão Romita .................................................. p. 49

Estado democrático de direito – Direito – Democracia – Sociedade – Globalização da eco-

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234 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 12, n. 17, jan./dez. 2008

nomia – Legalidade – Legitimidade – Modernidade – Positivismo – Teoria do direito – Filosofia do direito – Sociologia jurídica – Cidadania – Ética – Direitos e garantias fundamentais – Ponderação de interesses Direito e democracia nas sociedades complexas. Humberto Eustáquio César Mota Filho ................................................................................................................................. p. 73

Estado do Rio de Janeiro – Termo de reconhecimento de direitos e obrigações – Município do Rio de Janeiro – Saneamento básico – Distribuição de água – Região Metropoli-tana – Serviços públicos – Consórcio – Poder público – Setor privado – Convênio de cooperação – Constituição federal – LEI 11.107/05 – LEI 11.445/07 A Solução do Rio de Janeiro para a polêmica do saneamento básico na Região Metro-politana. Marcos Juruena Villela Souto ............................................................. p. 33

Ética – Direito – Democracia – Sociedade – Globalização da economia – Legalidade – Legitimidade – Modernidade – Positivismo – Teoria do direito – Filosofia do direito – Sociologia jurídica – Cidadania – Direitos e garantias fundamentais – Ponderação de interesses – Estado democrático de direito Direito e democracia nas sociedades complexas. Humberto Eustáquio César Mota Filho ................................................................................................................................. p. 73

Federação – Município – Descentralização – Federalismo – Autonomia municipal – Ad-ministração municipal – Princípio da subsidiariedade – Democracia – Constituição federal Intangibilidade do poder local: um ensaio jusfilosófico sobre a descentralização do poder como condição necessária ao exercício da democracia. Arícia Fernandes Cor-reia ..................................................................................................................... p. 109

Federalismo – Município – Descentralização – Federação – Autonomia municipal – Ad-ministração municipal – Princípio da subsidiariedade – Democracia – Constituição federal Intangibilidade do poder local: um ensaio jusfilosófico sobre a descentralização do poder como condição necessária ao exercício da democracia. Arícia Fernandes Cor-reia ..................................................................................................................... p. 109

Férias vencidas – Contagem em dobro – Servidor público regido pela CLT – Gozo de férias anuais remuneradas – Reclamação – Prazo – Prescrição – Servidor público municipal – Cargo público – Benefício – Extensão – Descabimento – Ato administrativo – Auto-rização – Anulação Parecer nº 01/08 – Jania Maria de Souza .......................................................... p. 213

Filosofia do direito – Direito – Democracia – Sociedade – Globalização da economia – Le-galidade – Legitimidade – Modernidade – Positivismo – Teoria do direito – Sociologia jurídica – Cidadania – Ética – Direitos e garantias fundamentais – Ponderação de interesses – Estado democrático de direito Direito e democracia nas sociedades complexas. Humberto Eustáquio César Mota Filho ................................................................................................................................. p. 73

Finanças públicas – Tributo – Função social – Direitos sociais – Direitos e garantias funda-

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Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 12, n. 17, jan./dez. 2008 235

mentais – Políticas públicas – Estado – Responsabilidade social Função social do tributo. Arion Sayão Romita .................................................. p. 49

Fiscalização eletrônica – Trânsito – Lei municipal – Promulgação – Poder Executivo – Descumprimento – Poder judiciário – Análise – Princípio da separação dos poderes – Poder Legislativo – Câmara Municipal – Competência legislativa – Crime de respon-sabilidade – Infração político-administrativa – Medidas legais – Natureza política Parecer nº 04/07 – Claudia Rivolli Thomas de Sá .............................................. p. 171

Função social – Tributo – Direitos sociais – Direitos e garantias fundamentais – Políticas públicas – Finanças públicas – Estado – Responsabilidade social Função social do tributo. Arion Sayão Romita .................................................. p. 49

Globalização da economia – Direito – Democracia – Sociedade – Legalidade – Legitimidade – Modernidade – Positivismo – Teoria do direito – Filosofia do direito – Sociologia jurídica – Cidadania – Ética – Direitos e garantias fundamentais – Ponderação de inte-resses – Estado democrático de direito Direito e democracia nas sociedades complexas. Humberto Eustáquio César Mota Filho ................................................................................................................................. p. 73

Harada, Kiyoshi Tratados sobre direitos humanos e a Emenda Constitucional nº 45/04 ............. p. 63

História – Constituição federal – Regime militar – Assembléia Constituinte – Direitos e garantias fundamentais Vinte anos da Constituição de 1988: a reconstrução democrática do Brasil. Luís Ro-berto Barroso ..................................................................................................... p. 15

Iluminação pública – Serviço de iluminação pública – Contribuição especial – Taxas – Ser-viços públicos – Competência municipal – Recursos orçamentários – Constituição federal – Emenda constitucional Contribuição para iluminação pública. Aurélio Pitanga Seixas Filho ............. p. 101

Legalidade – Direito – Democracia – Sociedade – Globalização da economia – Legitimidade – Modernidade – Positivismo – Teoria do direito – Filosofia do direito – Sociologia jurídica – Cidadania – Ética – Direitos e garantias fundamentais – Ponderação de inte-resses – Estado democrático de direito Direito e democracia nas sociedades complexas. Humberto Eustáquio César Mota Filho ................................................................................................................................. p. 73

Legitimidade – Direito – Democracia – Sociedade – Globalização da economia – Legalidade – Modernidade – Positivismo – Teoria do direito – Filosofia do direito – Sociologia jurídica – Cidadania – Ética – Direitos e garantias fundamentais – Ponderação de inte-resses – Estado democrático de direito Direito e democracia nas sociedades complexas. Humberto Eustáquio César Mota Filho ................................................................................................................................. p. 73

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236 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 12, n. 17, jan./dez. 2008

Lei municipal – Promulgação – Fiscalização eletrônica – Trânsito – Poder Executivo – Descumprimento – Poder judiciário – Análise – Princípio da separação dos poderes – Poder Legislativo – Câmara Municipal – Competência legislativa – Crime de respon-sabilidade – Infração político-administrativa – Medidas legais – Natureza política Parecer nº 04/07 – Claudia Rivolli Thomas de Sá .............................................. p. 171

Licença para tratamento de saúde – Servidor público municipal – Um ano – Afastamento – Período – Noventa dias – Prazo superior – Junta médica – Ratificação – Exigência – Desnecessidade – Auxílio doença – Pagamento Parecer nº 02/08 – Jania Maria de Souza .......................................................... p. 217

Mês – Dia – Tempo – Contagem – Trinta dias – Remuneração – Pagamento – Desconto – Cálculo – Fração – Férias – Falta – Exoneração – Substituição – Cargo em comissão – Exercício Parecer nº 01/08 – Sérgio Antônio Ferrari Filho .............................................. p. 220

Modernidade – Direito – Democracia – Sociedade – Globalização da economia – Legalidade – Legitimidade – Positivismo – Teoria do direito – Filosofia do direito – Sociologia jurídica – Cidadania – Ética – Direitos e garantias fundamentais – Ponderação de inte-resses – Estado democrático de direito Direito e democracia nas sociedades complexas. Humberto Eustáquio César Mota Filho ................................................................................................................................. p. 73

Mota Filho, Humberto Eustáquio César Direito e democracia nas sociedades complexas ............................................... p. 73

Município – Descentralização – Federalismo – Federação – Autonomia municipal – Ad-ministração municipal – Princípio da subsidiariedade – Democracia – Constituição federal Intangibilidade do poder local: um ensaio jusfilosófico sobre a descentralização do poder como condição necessária ao exercício da democracia. Arícia Fernandes Cor-reia ..................................................................................................................... p. 109

Município do Rio de Janeiro – Termo de reconhecimento de direitos e obrigações – Estado do Rio de Janeiro – CEDAE – Saneamento básico – Distribuição de água – Região Metropolitana – Serviços públicos – Consórcio – Poder público – Setor privado – Con-vênio de cooperação – Constituição federal – LEI 11.107/05 – LEI 11.445/07 A Solução do Rio de Janeiro para a polêmica do saneamento básico na Região Metro-politana. Marcos Juruena Villela Souto ............................................................. p. 33

Pacto de São José da Costa Rica – Tratado – Direitos humanos – Constituição federal – Emenda constitucional – Depositário infiel – Prisão civil Tratados sobre direitos humanos e a Emenda Constitucional nº 45/04. Kiyoshi Harada ...........................................................................................................................................p. 63

Poder público – Termo de reconhecimento de direitos e obrigações – Estado do Rio de Janeiro – CEDAE – Município do Rio de Janeiro – Saneamento básico – Distribui-ção de água – Região Metropolitana – Serviços públicos – Consórcio – Setor privado

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Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 12, n. 17, jan./dez. 2008 237

– Convênio de cooperação – Constituição federal – LEI 11.107/05 – LEI 11.445/07 A Solução do Rio de Janeiro para a polêmica do saneamento básico na Região Metro-politana. Marcos Juruena Villela Souto ............................................................. p. 33

Políticas públicas – Tributo – Função social – Direitos sociais – Direitos e garantias funda-mentais – Finanças públicas – Estado – Responsabilidade social Função social do tributo. Arion Sayão Romita .................................................. p. 49

Ponderação de interesses – Direito – Democracia – Sociedade – Globalização da econo-mia – Legalidade – Legitimidade – Modernidade – Positivismo – Teoria do direito – Filosofia do direito – Sociologia jurídica – Cidadania – Ética – Direitos e garantias fundamentais – Estado democrático de direito Direito e democracia nas sociedades complexas. Humberto Eustáquio César Mota Filho ................................................................................................................................. p. 73

Positivismo – Direito – Democracia – Sociedade – Globalização da economia – Legalidade – Legitimidade – Modernidade – Teoria do direito – Filosofia do direito – Sociologia jurídica – Cidadania – Ética – Direitos e garantias fundamentais – Ponderação de inte-resses – Estado democrático de direito Direito e democracia nas sociedades complexas. Humberto Eustáquio César Mota Filho ................................................................................................................................. p. 73

Princípio da subsidiariedade – Município – Descentralização – Federalismo – Federação – Autonomia municipal – Administração municipal – Democracia – Constituição Federal Intangibilidade do poder local: um ensaio jusfilosófico sobre a descentralização do poder como condição necessária ao exercício da democracia. Arícia Fernandes Cor-reia ..................................................................................................................... p. 109

Prisão civil – Tratado – Direitos humanos – Constituição federal – Emenda constitucional – Pacto de São José da Costa Rica – Depositário infiel Tratados sobre direitos humanos e a Emenda Constitucional nº 45/04. Kiyoshi Harada ...........................................................................................................................................p. 63

Projeto de lei – Prorrogação – Delegação – Transporte coletivo – Transporte de passageiro – Ônibus – Ministério Público – Ofício – Licitação – Exigência – Lei complementar municipal – Ação civil pública – Representação de inconstitucionalidade – Extinção de processo sem julgamento do mérito – Trânsito em julgado – Atuação parlamentar – Votação Parecer nº 01/08 – Flávio Andrade de Carvalho Britto ..................................... p. 189

Promoção automática – Decreto legislativo – Sustação – Resolução – Secretaria Municipal de Educação – Escola pública – Avaliação – Ato legislativo – Constitucionalidade – Validade – Ato administrativo – Poder regulamentar – Competência legislativa – Conselho Municipal de Educação – Competência funcional – Política educacional – Elaboração – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Plano Nacional de Educação – Divergência

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238 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 12, n. 17, jan./dez. 2008

Parecer nº 09/07 – Flávio Andrade de Carvalho Britto ..................................... p. 178

Recursos orçamentários – Serviço de iluminação pública – Iluminação pública – Contri-buição especial – Taxas – Serviços públicos – Competência municipal – Constituição federal – Emenda constitucional Contribuição para iluminação pública. Aurélio Pitanga Seixas Filho ............. p. 101

Região Metropolitana – Termo de reconhecimento de direitos e obrigações – Estado do Rio de Janeiro – CEDAE – Município do Rio de Janeiro – Saneamento básico – Distribui-ção de água – Serviços públicos – Consórcio – Poder público – Setor privado – Convê-nio de cooperação – Constituição federal – LEI 11.107/05 – LEI 11.445/07 A Solução do Rio de Janeiro para a polêmica do saneamento básico na Região Metro-politana. Marcos Juruena Villela Souto ............................................................. p. 33

Regime militar – Constituição federal – História – Assembléia Constituinte – Direitos e garantias fundamentais Vinte anos da Constituição de 1988: a reconstrução democrática do Brasil. Luís Ro-berto Barroso ..................................................................................................... p. 15

Relatório de gestão fiscal – Contabilidade pública – Lei de Responsabilidade Fiscal – Demonstrativo – Consolidação – Contas nacionais – Poder Legislativo – Câmara Municipal – Autonomia administrativa – Registro contábil – Remessa – Exigência – Legitimidade Parecer nº 04/07 – Sérgio Antônio Ferrari Filho ............................................... p. 164

Responsabilidade social – Tributo – Função social – Direitos sociais – Direitos e garantias fundamentais – Políticas públicas – Finanças públicas – Estado Função social do tributo. Arion Sayão Romita .................................................. p. 49

Reversão – Aposentadoria por invalidez – Servidor público municipal – Serviço ativo – Retorno – Período – Aposentado – Contagem – Aproveitamento – Tempo de serviço – Vantagens pecuniárias – Pagamento – Descabimento Parecer nº 04/07 – Jania Maria de Souza .......................................................... p. 210

Romita, Arion Sayão Função social do tributo ..................................................................................... p. 49

Saneamento básico – Termo de reconhecimento de direitos e obrigações – Estado do Rio de Janeiro – CEDAE – Município do Rio de Janeiro – Distribuição de água – Região Metropolitana – Serviços públicos – Consórcio – Poder público – Setor privado – Con-vênio de cooperação – Constituição federal – LEI 11.107/05 – LEI 11.445/07 A Solução do Rio de Janeiro para a polêmica do saneamento básico na Região Metro-politana. Marcos Juruena Villela Souto ............................................................. p. 33

Seixas Filho, Aurélio Pitanga Contribuição para iluminação pública ............................................................... p. 101

Serviço de iluminação pública – Iluminação pública – Contribuição especial – Taxas – Ser-viços públicos – Competência municipal – Recursos orçamentários – Constituição

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federal – Emenda constitucional Contribuição para iluminação pública. Aurélio Pitanga Seixas Filho ............. p. 101

Serviços públicos – Serviço de iluminação pública – Iluminação pública – Contribuição especial – Taxas – Competência municipal – Recursos orçamentários – Constituição federal – Emenda constitucional Contribuição para iluminação pública. Aurélio Pitanga Seixas Filho ............. p. 101

Serviços públicos – Termo de reconhecimento de direitos e obrigações – Estado do Rio de Janeiro – CEDAE – Município do Rio de Janeiro – Saneamento básico – Distribuição de água – Região Metropolitana – Consórcio – Poder público – Setor privado – Convê-nio de cooperação – Constituição federal – LEI 11.107/05 – LEI 11.445/07 A Solução do Rio de Janeiro para a polêmica do saneamento básico na Região Metro-politana. Marcos Juruena Villela Souto ............................................................. p. 33

Servidor público municipal – Aposentadoria – Proventos – Fixação – Triênio – Adicional por tempo de serviço – Percentagem – Tempo de serviço – Administração federal – Concessão – Cargo público – Exercício – Requisitos – Benefício – Manutenção – Aplicação da lei – Vigência Parecer nº 04/08 – Claudia Rivolli Thomas de Sá .............................................. p. 205

Servidor público municipal – Aposentadoria por invalidez – Reversão – Serviço ativo – Retorno – Período – Aposentado – Contagem – Aproveitamento – Tempo de serviço – Vantagens pecuniárias – Pagamento – Descabimento Parecer nº 04/07 – Jania Maria de Souza .......................................................... p. 210

Servidor público municipal – Câmara Municipal – Aposentadoria – Concessão – Procedi-mento – Conclusão – Prazo – Termo final – Ato administrativo – Proventos – Fixação – Folha de pagamento – Processamento – Convênio – PREVI-RIO – Remuneração – Valor – Apuração – Publicação – Apostilamento – Débito – Cobrança – Desconto – Consignação – Limitação Parecer nº 09/07 – Claudia Rivolli Thomas de Sá .............................................. p. 195

Servidor público municipal – Cargo em comissão – Acidente de trabalho – Comunicação – INSS – Contribuinte – Regime Geral de Previdência Social – Auxílio acidente – Pa-gamento – Atestado médico – Apresentação – Insuficiência – Serviço médico – Regis-tro – Inexistência Parecer nº 01/08 – Claudia Rivolli Thomas de Sá .............................................. p. 201

Servidor público municipal – Licença para tratamento de saúde – Um ano – Afastamento – Período – Noventa dias – Prazo superior – Junta médica – Ratificação – Exigência – Desnecessidade – Auxílio doença – Pagamento Parecer nº 02/08 – Jania Maria de Souza .......................................................... p. 217

Servidor público regido pela CLT – Férias vencidas – Contagem em dobro – Gozo de férias anuais remuneradas – Reclamação – Prazo – Prescrição – Servidor público municipal – Cargo público – Benefício – Extensão – Descabimento – Ato administrativo – Auto-rização – Anulação

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Parecer nº 01/08 – Jania Maria de Souza .......................................................... p. 213

Setor privado – Termo de reconhecimento de direitos e obrigações – Estado do Rio de Janeiro – CEDAE – Município do Rio de Janeiro – Saneamento básico – Distribuição de água – Região Metropolitana – Serviços públicos – Consórcio – Poder público – Convênio de cooperação – Constituição federal – LEI 11.107/05 – LEI 11.445/07 A Solução do Rio de Janeiro para a polêmica do saneamento básico na Região Metro-politana. Marcos Juruena Villela Souto ............................................................. p. 33

Sociedade – Direito – Democracia – Globalização da economia – Legalidade – Legitimidade – Modernidade – Positivismo – Teoria do direito – Filosofia do direito – Sociologia jurídica – Cidadania – Ética – Direitos e garantias fundamentais – Ponderação de inte-resses – Estado democrático de direito Direito e democracia nas sociedades complexas. Humberto Eustáquio César Mota Filho ................................................................................................................................. p. 73

Sociologia jurídica – Direito – Democracia – Sociedade – Globalização da economia – Le-galidade – Legitimidade – Modernidade – Positivismo – Teoria do direito – Filosofia do direito – Cidadania – Ética – Direitos e garantias fundamentais – Ponderação de interesses – Estado democrático de direito Direito e democracia nas sociedades complexas. Humberto Eustáquio César Mota Filho ................................................................................................................................. p. 73

Souto, Marcos Juruena Villela A Solução do Rio de Janeiro para a polêmica do saneamento básico na Região Metro-politana .............................................................................................................................p. 33

Taxas – Serviço de iluminação pública – Iluminação pública – Contribuição especial – Taxas – Serviços públicos – Competência municipal – Recursos orçamentários – Constitui-ção federal – Emenda constitucional Contribuição para iluminação pública. Aurélio Pitanga Seixas Filho ............. p. 101

Tempo – Mês – Dia – Contagem – Trinta dias – Remuneração – Pagamento – Desconto – Cálculo – Fração – Férias – Falta – Exoneração – Substituição – Cargo em comissão – Exercício Parecer nº 01/08 – Sérgio Antônio Ferrari Filho .............................................. p. 220

Teoria do direito – Direito – Democracia – Sociedade – Globalização da economia – Legali-dade – Legitimidade – Modernidade – Positivismo – Filosofia do direito – Sociologia