revista de direito agrário n° 19

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  • 7/30/2019 Revista de Direito Agrrio n 19

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    REVISTA

    DE

    DIREITO AGRRIO

    Ministrio do Desenvolvimento AgrrioInstituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria

    Associao Brasileira de Direito Agrrio

    Ano 20, n 19

    2007

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    REVISTA

    DE

    DIREITO AGRRIO

    Ministrio do Desenvolvimento AgrrioInstituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria

    Associao Brasileira de Direito Agrrio

    Ano 20, n 19

    2007

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    Revista de Direito Agrrio / Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria. Ano 1 n 1

    (2 trimestre de 1973)- Braslia: Incra, 1973-

    Trimestral at 1980. Semestral a partir de 1981. Trimestral a partir de 2006.A part ir de 2000, co-edio do Ministrio do Desenvolvimento Agrrio.A partir de 2006, co-edio do Ministrio do Desenvolvimento Agrrio, Ncleo de Estudos Agrrios

    e Desenvolvimento Rural ; Associao Brasileira de Direito Agrrio.Interrompida [Ano 11 n. 11; jul. dez. 1986] ; [Ano 16 n. 13 1 semestre 2000].[Ano 10, n 12 ; 2 semestre 1994]. Edio especial. Estatuto da terra.

    Distribuio gratuita.Disponvel tambm em www.incra.gov.br ; www.nead.org.br ; www.abda.com.br.

    Descrio baseada em Ano 1 n. 1 (2 trimestre de 1973).

    1. Direito agrrio - peridico. I. Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrr iaII. Brasil. Ministrio da Agricultura. III. Brasil. Ministrio do Desenvolvimento Agrrio.IV. Associao Brasileira de Direito Agrrio.

    CDD 340. 05

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    REVISTADEDIREITO AGRRIO

    LUIZ INCIO LULA DA SILVAPresidente da Repblica

    GUILHERME CASSELMinistro de Estado do DesenvolvimentoAgrrio

    MARCELO CARDONA ROCHASecretrio-Executivo do Ministrio doDesenvolvimento Agrrio

    ROLF HACKBARTPresidente do Instituto Nacional deColonizao e Reforma Agrria

    ADONIRAN SANCHES PERACISecretrio de Agricultura Famil iar

    ADHEMAR LOPES DE ALMEIDASecretrio de Reordenamento Agrrio

    JOS HUMBERTO OLIVEIRASecretrio de Desenvolvimento Territorial

    CARLOS MRIO GUEDES DE GUEDESCoordenador-Geral do Ncleo de EstudosAgrrios e Desenvolvimento Rural

    ADRIANA L. LOPES

    Coordenadora-Executiva do Ncleo deEstudos Agrrios e Desenvolvimento Rural

    VALDEZ ADRIANI FARIASProcurador-Chefe da Procuradoria FederalEspecializada junto ao Instituto Nacional deColonizao e Reforma Agrria

    MARCELA ALBUQUERQUE MACIELConsultora jurdica do Ministrio doDesenvolvimento Agrrio

    JOAQUIM MODESTO PINTO JNIORCoordenador-Geral Agrrio, de Processos Judiciaise de Pesquisas Jurdicas - CGAPJP/Conjur/MDA

    MARIA CLIA DOS REISPresidente da Associao Brasileira de Direito Agrrio

    CONSELHO EDITORIALMDA:Titular:Marcela Albuquerque MacielSuplente: Joaquim Modesto Pinto Jnior

    INCRA:Titular: Valdez Adriani FariasSuplente: Gilda Diniz dos Santos

    NEAD:Titular: Adriana L. Lopes

    Suplente: Carlos Mrio Guedes de GuedesABDA:Titular: Maria Clia dos ReisSuplente: Hlio Roberto Novoa da Costa

    RENAP:Titular: Cleuton Csar Ripol de FreitasSuplente: rika Macedo Moreira

    PROFESSORES:Titular: Benedito Ferreira MarquesUniversidade Federal de GoisSuplente: Domingos Svio Dresch da SilveiraUniversidade Federal do Rio Grande do Sul

    JornalistasGilson Rodrigues de AfonsecaKelly Amorim

    RevisoAna Maria Costa

    Projeto Grfico e DiagramaoAna Paula Toniazzo Antonini

    Foto capa: Ubirajara Machado/MDA

    MINISTRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRRIO (MDA)www.mda.gov.br

    NCLEO DE ESTUDOS AGRRIOS E DESENVOLVIMENTO

    RURAL (Nead)www.nead.org.br

    INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAO E REFORMAAGRRIA (Incra)www.incra.gov.br

    ASSOCIAO BRASILEIRA DE DIREITO AGRRIO (ABDA)www.abda.com.br

    PUBLICAO EDITADA TRIMESTR ALMENTE

    PCT MDA/IICAApoio s Pol ticas e Participao Social no Desenvolvimento Rural Sustentvel .

    REPRODUO PERMITIDA DESDE QUE CITADA A FONTEDISTRIBUIO GRATUITA

    DISPONVEL NAS PGINAS (www.incra.gov.br, www.nead.org.br e www.abda.com.br)

    Ano 20 - Nmero 192007

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    SUMRIO

    EDITORIAL...........................................................................................................07

    ENTREVISTA.......................................................................................................11

    Procurador Federal/Incra/MG - LucianoDias Bicalho Camargos.............................................................................12

    RESENHA..............................................................................................................23Terra Vermelha...........................................................................................25

    Domingos Pellegrini

    ARTIGOS................................................................................................................27

    As ocupaes e a desapropriao para reforma agrria......................29 Manoel Lauro Volkmer de Castilho

    A questo agrria brasileira e a funcionalidade da propriedadesob uma tica progressista........................................................................49

    Gladstone Leonel da Silva Jnior

    Natureza do decreto presidencial que declara rea de interessesocial para fins de reforma agrria...........................................................67Cid Roberto de Almeida Sanches

    Oposio em possessria incidente em terras pblicas federais.........81Roberto lito dos Reis Guimares

    O calvrio do 2 do art. 1.276 do cdigo civil: vida e morte de ummalfadado dispositivo legal a partir de uma interpretaoconstitucional..............................................................................................103Cristiano Chaves de Farias

    Desapropriao por interesse social para fins de reforma agrria: oimpedimento do 6, do art. 2, da lei n 8.629/93, na redaodada pela medida provisria n 2.183-56/2001, e sua aplicao

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    na prxis jurisprudencial............................................................................123Francisco de Queiroz Bezerra Cavalcanti e Luciana de Medeiros Fernandes

    ARTIGO MULTIDISCIPLINAR.......................................................................155

    Licenciamento e recomposio ambiental em projetosde reforma agrria......................................................................................157

    Eliani Maciel Lima

    JURISPRUDNCIA...............................................................................................175

    Embargos de Divergncia em Resp N 722.808 - PR(2005/0185423-3).......................................................................................177

    Ministra Eliana Calmon

    PRODUO NORMATIVA...............................................................................207

    Lei N 4.947, de 06 de abril de 1966 (Histrica)....................................209

    Instruo Normativa/Incra/ N 32, de 17 de maio de 2006...............218

    Instruo Normativa/Incra/ N 33, de 23 de maio de 2006...............228

    Norma de Execuo/Incra/SD/N 35, de 25 de maro de 2004......239

    NORMAS DE PUBLICAO............................................................................249

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    EDITORIAL

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    EDITORIAL

    Ao registrar e divulgar diferentes produes, pensamentos e vises nasvariadas sees que se seguem, acreditamos continuar contribuindo para acapacitao e atualizao dos profissionais que atuam neste ramo das Cincias

    Jurdicas e que tm na Revista de Direito Agrrio uma importanteferramentapara

    subsidiar seu trabalho.Entretanto, importante destacar que alm da utilidade prtica para o

    dia-a-dia dos operadores do Direito, a Revista de Direito Agrrio se prope aestimular o debate de idias entre os diversos estratos sociais envolvidos coma questo, dedicando espao inclusive para abordagens transdisciplinares oumultidisciplinares, e a ser fonte de informao sobre o que est em discussoneste ramo do direito.

    O desenvolvimento terico do direito agrrio no poderia deixar de seracompanhado pelo paulatino e crescente interesse dos jusagraristas brasileiros notadamente da advocacia pblica especializada , de modo a realizar a necessriae fundamental conexo entre a teoria do Direito Agrrio e a prtica da atividadeque exercem.

    A Revista de Direito Agrrio busca, desse modo, servir de importante fontede subsdios interpretao da norma jurdica agrria, na perspectiva de subsidiara comunidade jurdica agrria com idias e pensamentos que incrementemessa atividade. Tal objetivo dos mais rduos, da a necessidade de constanteaperfeioamento. Desta forma, no demais frisar que o fim ltimo da publicaoda Revista antes de tudo impulsionar o Direito Agrrio no pas.

    Dentro desta perspectiva, esta edio d especial destaque pessoa e produo jurdica do procurador federal da Procuradoria Federal Especializadado Incra em Minas Gerais, Dr. Luciano Dias Bicalho Camargos, cuja atuao emprol da autarquia, embasada no seu exmio conhecimento em Direito Tributrio,

    reverteu decises judiciais anteriores que retiravam do Incra montante considervelde recursos provindos de uma contribuio fiscal que equivocadamente havia sidoconsiderada extinta.

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    Para aprofundar a discusso levantada pelo procurador Luciano, esta ediodedica a ele o espao da Entrevista e, na seo de Jurisprudncia, traz a ntegra dodocumento Embargos de Divergncia em Resp N 722.808 PR (2005/0185423-3), com a ementa, o acrdo, o relatrio, o voto da relatora - a ministra Eliana

    Calmon e as concluses.Entre os temas tratados nesta edio, constam trabalhos sobre limitaes na

    aplicao da Medida Provisria n 2.183-56, de 24 de agosto de 2001, que vetou a aodo Incra em propriedades ocupadas e um artigo dedicado questo das ocupaes,com enfoque na atuao histrica e poltica dos movimentos sociais. Entre outrascontribuies, esta edio apresenta em seu artigo multidisciplinar uma anlisesobre o licenciamento e recomposio ambiental em projetos de assentamento.

    Para encerrar esta curta apresentao, transcrevemos uma fala do procuradorLuciano Dias Bicalho Camargos, que a nosso ver, retrata tambm nossa intenode divulgar o conhecimento na temtica de que se ocupa a Revista:

    (...) a advocacia pblica pode e deve ser proativa. Ns podemos contribuire auxiliar o Poder Judicirio na anlise de questes que, por sua especificidade,demandam um estudo mais profundo com maiores esclarecimentos e subsdiospara que o julgador possa firmar seu entendimento.

    Boa leitura!

    Braslia, 2007.

    Conselho Editorial

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    ENTREVISTA

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    O sistema tributrio brasileiro deve serinstrumento de construo de uma cidadania plena e

    de reduo das desigualdades sociais e regionais.

    O procurador federal Luciano Dias Bicalho Camargos

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    PERFIL

    INFORMAES PESSOAIS

    NOME COMPLETOLuciano Dias Bicalho Camargos

    DATA DE NASCIMENTO07/09/1972

    LOCAL DE NASCIMENTOBelo Horizonte MG

    ESTADO CIVILCasado

    IDIOMASIngls

    ORIGEMServio Pblico

    REA DE ATUAOProcurador federal e professor

    REA DE ESPECIALIZAODireito Tributrio

    REPRESENTAO Entidades de classe

    Ordem dos Advogados do Brasil Seo Minas Gerais Comisso doExame de OrdemAssociao Brasileira de Direito Tributrio ABRADT

    Filiao partidriaNunca teve

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    14 Revista de Direito Agrrio, MDA|Incra|Nead|ABDA, Ano 20, n 19, 2007.

    RESUMO DA CARREIRA

    No servio pblico

    Procurador federal do Instituto Nacional de Colonizao e ReformaAgrria (1997 aos dias atuais)

    Magistrio Faculdade de Engenharia de Minas Gerais (1998 aos dias atuais); Centro Universitrio de Belo Horizonte (1999 aos dias atuais); Instituto de Educao Continuada da Pontifcia Universidade Catlica deMinas Gerais (2002 aos dias atuais); Centro de Estudos na rea Jurdica Federal (2002 aos dias atuais);

    INFORMAES ACADMICAS

    Graduao Direito, pela Universidade Federal de Minas GeraisTurma: 1996

    Ps-graduao Mestrado em Direito Tributrio, pela Universidade Federal de MinasGerais. Concluso: 2001 Doutorado em Direito Tributrio, pela Universidade Federal de MinasGerais. Concluso: 2005

    Principais obras

    O Imposto Territorial Rural, 2001 Da Natureza Jurdica das Contribuies para o Instituto Nacional deColonizao e Reforma Agrria Incra, 2006

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    ENTREVISTA

    Luciano Dias Bicalho Camargos

    Por

    Marlia de Oliveira Morais

    Conte-nos um pouco sobre sua relao com a carreira de procuradorFederal e com a Procuradoria Federal Especializada junto ao Incra, ondetem atuado por todos esses anos.

    Graduei-me em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais e ingressei,em 1997, mediante concurso, na carreira de Procurador Autrquico do Instituto

    Nacional de Colonizao e Reforma Agrria em Minas Gerais. Desde ento atuona Procuradoria do Incra, concentrando-me nas reas agrria e tributria.

    O senhor tem conseguido conciliar, de forma exemplar, a vida acadmicae a profissional. Como tem sido a rdua tarefa de desempenhar esses doispapis ao mesmo tempo?

    Na verdade, pude, dentro da Procuradoria do Incra, encontrar suporte e

    apoio para me dedicar aos estudos na rea do Direito Tributrio. Finalizei, em 2001,meu mestrado em Direito Tributrio na Universidade Federal de Minas Gerais,abordando o tema do Imposto Territorial Rural e Funo Social da Propriedade.

    Aps, em 2005, terminei o doutorado em Direito Tributrio, abordando o temada natureza jurdica das contribuies para o Incra, sempre sob a orientao daprofessora Misabel Abreu Machado Derzi. Dessa forma, desde a escolha dos temase o seu desenvolvimento, consegui vincular meu trabalho acadmico com minhaexperincia e atuao no Incra.

    Sem dvida. A propsito... a postura do estudioso no a mesma de umprocurador... no mbito acadmico, mesmo nas cincias sociais, ainda se

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    fala na busca pela imparcialidade ou neutralidade do pesquisador.Qual sua viso sobre essa contraposio? At que ponto o professor eestudioso faz-se presente no seu dia-a-dia na Procuradoria FederalEspecializada junto ao Incra e vice-versa?

    Sempre procurei, ao tratar dos temas que abordei nos estudos de mestradoe doutorado, faz-lo de forma correta e cientfica. Acredito que consegui,mantendo a necessria separao entre o trabalho de procurador e de estudiosode temas acadmicos.

    Sabemos que a questo agrria entrelaa-se com a vida de todos oscidados. Este um ponto que tem se mostrado bastante presente nas

    suas produes acadmicas. Poderamos dizer, ento, que o SistemaTributrio e a reforma agrria podem (e devem) estar interligados?

    Certamente. Os entes tributantes podem e devem reconhecer e utilizar aextrafiscalidade da tributao para interferir na realidade social e direcionar asociedade para uma postura mais consentnea com os princpios constitucionais,como a reduo das desigualdades regionais e a funo social da propriedade.No pode o Poder Pblico prescindir desta atuao. O sistema tributrio no visa

    somente a arrecadao, mas sim, deve ser utilizado como importante instrumentode atuao do Estado no domnio econmico, sempre tendo em vista os princpiosretores da Constituio Federal.

    O senhor tem demonstrado que o Imposto Territorial Rural poderia ser uminstrumento importante para a poltica agrria, ao lado da desapropriaopropriamente dita1. Como se daria o uso desse imposto, na modificaoda estrutura fundiria brasileira?

    O constituinte de 1988 claro ao atribuir ao Imposto Territorial Rural afuno de direcionar o cidado observncia da funo social da propriedaderural e portanto, de dar-lhe a devida destinao. V-se, portanto, que o Imposto

    Territorial Rural pode e deve ser, um instrumento de extrafiscalidade. Dever serutilizado, no s para fins meramente fiscais ou arrecadatrios, assim como parafins ordinatrios. Com este objetivo, as alquotas do Imposto Territorial Rural

    variam de acordo com o tamanho e ocupao do imvel, de modo a incidir de

    1 CAMARGOS, Luciano Dias Bicalho. O imposto Territorial rural e a funo social da propriedade. BeloHorizonte: Del Rey, 2001.

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    forma mais gravosa sobre aqueles proprietrios que no utilizem sua propriedadede acordo com os anseios da sociedade. A progressividade extrafiscal do Imposto

    Territorial Rural , por conseguinte, um dos instrumentos criados pela Constituiopara fazer atuar o princpio da funo social da propriedade.

    O que falta para tornar esse instrumento efetivo para a reforma agrriaem nosso pas?

    De fato, a utilizao do Imposto Territorial Rural como instrumento paraa consecuo da funo social da propriedade rural no tem merecido a devidaateno por parte dos doutrinadores e legisladores ptrios. O Imposto TerritorialRural deveria ser um instrumento de modificao da estrutura fundiria brasileira.

    Contudo, a sua aplicao na realidade no tem resultado em alteraes visveisem nossa estrutura fundiria anacrnica. A Unio, que tem a incumbnciaconstitucional de promover a arrecadao do Imposto Territorial Rural e a reformaagrria, no o utiliza de forma correta. A preocupao atual com o aumentoda arrecadao de tributos. Historicamente, o Imposto Territorial Rural no seconstitui em fonte de recursos expressiva. O governo relega, assim, a um segundoplano, a preocupao com a cobrana e fiscalizao do Imposto Territorial Rurale se concentra na cobrana de tributos com maior potencial de arrecadao

    como a CPMF, a Cofins e o IR. Esta postura governamental omissiva somentefaz perpetuar a estrutura fundiria brasileira impondo, a este mesmo governo, anecessidade de intervir diretamente nesta questo por meio das desapropriaespara fins de reforma agrria.

    No sei se o senhor concorda comigo, mas parece que grande parte dadoutrina tributria existente no Brasil desenvolve anlise terica voltadaapenas para a proteo ao contribuinte, para as limitaes constitucionaisao poder de tributar. Fica um pouco esquecida, digamos, a tributao,enquanto ferramenta transformadora, no enfoque que o senhor temdesenvolvido. Prevaleceria ento na nossa doutrina uma viso privatistado Sistema Tributrio?

    Realmente. Creio que a maioria dos autores, at mesmo em face da crescentecarga tributria, se preocupe mais com a abordagem de temas relacionados slimitaes ao poder de tributar. Poucos so os autores que se dedicam analise da

    tributao como instrumento de consecuo dos princpios constitucionais, taiscomo a funo social da propriedade. Por outro lado, com a crescente ampliao do

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    estudo das contribuies de interveno no domnio econmico, esta lacuna vemdiminuindo. Creio que cabe advocacia pblica, prdiga em grandes estudiosos dodireito tributrio, se fazer ouvir, com trabalhos cientficos em defesa de teses comas quais concordemos.

    Em sua obra mais recente2 o senhor trata, de forma aprofundada, dacontribuio destinada ao Incra. Apesar de haver um nmero considervelde aes judiciais pertinentes a essa contribuio, no havia, at omomento, nenhum estudo aprofundado sobre o tema. A que se deveriaessa lacuna na doutrina?

    Trata-se de uma contribuio muito antiga, com tortuosa evoluo legislativa,

    o que, no meu sentir, dificultava a sua anlise de forma mais cuidadosa. Digo quefoi uma grande surpresa, quando ingressei no Incra, saber que havia dentro dombito da procuradoria do Incra um tema tributrio to interessante e, ao mesmotempo, to pouco estudado. Havia uma confuso entre o Funrural e a contribuiopara o Incra, que so contribuies distintas, com finalidades distintas e que tmcomo nico ponto de contato a sua origem. Por outro lado, somente recentemente adoutrina nacional iniciou um trabalho mais cuidadoso de anlise das contribuiese de suas espcies, o que explica a relativa ausncia de estudos acerca do tema.

    Realmente, a evoluo legislativa da contribuio destinada ao Incra bastante tortuosa e a jurisprudncia sobre o tema foi oscilante durantelongo tempo. Poderia nos contextualizar, apontando os posicionamentosdos tribunais superiores a respeito dessa questo?

    Dois so os questionamentos bsicos apresentados em juzo: se devem asempresas urbanas pagar a contribuio para o Incra e se estaria ela revogada pelas

    Leis no 7.787/89 e/ou 8.212/91. O Supremo Tribunal Federal j pacificou a questoconstitucional, afirmando, de forma clara, que nenhum bice h a cobrana dacontribuio do Incra das empresas urbanas. Resta claro que a referibilidadedesta contribuio indireta, j que os valores arrecadados so utilizados peloIncra em suas funes. Com efeito, a exao em tela destinada a fomentar aatividade agropecuria, promovendo a fixao do homem no campo e reduzindoas desigualdades na distribuio fundiria. Conseqentemente, reduz-se o xodorural e grande parte dos problemas urbanos dele decorrentes. No pode ser negado

    2 CAMARGOS, Luciano Dias Bicalho. Da natureza jurdica das contribuies para o InstitutoNacional deColonizao e Reforma Agrria Incra. So Paulo: MP Editora, 2006

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    que a poltica nacional de reforma agrria instrumento de interveno no domnioeconmico, uma vez que objetiva a erradicao da misria, segundo o preceituado no 1o do art. 1o da Lei n. 4.504/64 Estatuto da Terra. Dessa forma, a referibilidade dascontribuies devidas ao Incra indireta, beneficiando, de forma mediata, o sujeito

    passivo submetido a essa responsabilidade. Caracterizadas fundamentalmente pelafinalidade a que se prestam e pela circunstncia intermediria que as legitimam, ascontribuies de interveno na atividade econmica, conforme j consagrado pelajurisprudncia, no exigem vinculao direta do contribuinte ou a possibilidadede auferir benefcios com a aplicao de recursos arrecadados. A evoluo doposicionamento do Superior Tribunal de Justia sobre as contribuies devidasao Incra longa e tortuosa e recentemente sofreu profunda alterao. O douto

    Tribunal reconheceu, recentemente, que as contribuies para o Incra e para o

    Funrural so distintas, com finalidades distintas e, especialmente, com naturezatributria distinta. Todas as decises emanadas, at o precedente fixado nosEmbargos de Divergncia em RESP n. 770.451 - SC (2005/0181717-5), do STJ,fossem favorveis ou contrrias exigncia das contribuies do Incra, partiamde um s pressuposto: as contribuies devidas ao Incra teriam natureza decontribuio previdenciria. Ora, desde sua vinculao aos rgos responsveis pelareforma agrria no Pas, deixaram de ter as mencionadas contribuies, quaisquercaractersticas previdencirias ou de seguridade social, uma vez que tais rgos jamais

    exerceram funes previdencirias, aqui caracterizadas como aquelas destinadas aassegurar aos seus beneficirios meios indispensveis de manuteno, por motivode incapacidade, desemprego involuntrio, idade avanada, tempo de servio,encargos familiares e priso ou morte daqueles que dependiam economicamente.Dessa forma, a jurisprudncia se erigiu sobre um pressuposto terico equivocado,maculando as decises de forma insupervel. Basicamente, cinco razes de decidir,at o EREsp n. 770.451 SC, j foram adotadas pelo Superior Tribunal de Justiaquando confrontado com a anlise das contribuies para o Incra: primeiro, de queno estaria sujeita contribuio empresa estranha ao mbito produtivo rural;segundo que a contribuio seria previdenciria, mas no teria sido revogada pelaLei n. 7.787/89; terceiro, que a contribuio seria inconstitucional, por ocorrersuperposio contributiva; quarto, que a contribuio teria sido extinta pela Lei n.8.212/91; e quinto, que a contribuio teria sido extinta pela Lei n. 7.787/89.

    Mas ento, com a classificao da contribuio como de interveno no

    domnio econmico, teriam cado por terra essas questes, no ?Sim, com certeza. Todos esses entendimentos somente fazem sentido quando

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    vinculados classif icao das contribuies em comento como previdenciria,o que equivocado. A Primeira Seo do STJ voltou a analisar a questo nosmencionados Embargos de Divergncia em EREsp n. 770.451 - SC, ensejandouma profunda mudana no entendimento do tribunal. Nos votos vencedores dos

    ministros Castro Meira, Eliana Calmon, Luiz Fux e Joo Otvio de Noronha ficaclara a concluso de que a contribuio para o Incra tem natureza de contribuio deinterveno no domnio econmico e que, portanto, no poderia ter sido revogadopela Lei n. 7.787. O entendimento enquadra a contribuio de 0,2% destinada aoIncra como contribuio de interveno no domnio econmico, que tem porfinalidade princpios elencados pelo art. 170 da Constituio Federal, dentre osquais se destacam a funo social da propriedade e a reduo das desigualdadesregionais e sociais (art. 170, III e VII). Por outra parte demonstra, a partir da

    evoluo legislativa, que a contribuio destinada ao Incra no possui destinaoprevidenciria e no foi revogada. Afinal, no tendo natureza previdenciria,no poderia a referida contribuio ter sido revogada, at mesmo tacitamente,pela lei n. 7.787/89 ou pela n. 8.212/91. Dessa forma, a contribuio para o Incrano foi revogada por nenhuma outra lei especfica, tendo sido recepcionada pelaconstituio de 1988, como contribuio de interveno no domnio econmico emantida pela legislao subseqente.

    O STJ ento mudou diametralmente sua posio... hoje est pacificado,portanto, que a contribuio destinada ao Incra no foi extinta... Mas, equanto ao outro questionamento: essa contribuio poderia ser cobrada,mesmo das empresas urbanas?

    Sim, como dito, fixada a natureza jurdica da contribuio como deinterveno no domnio econmico, nenhum bice h sua cobrana de empresasurbanas ou rurais, esse ponto j pacfico no Supremo Tribunal Federal. Por outro

    lado, no tendo natureza previdenciria, no poderia a referida contribuio tersido revogada, at mesmo tacitamente, pela lei n. 7.787/89 ou pela n. 8.212/91,de cunho absolutamente previdencirio.

    O senhor j defendia que a contribuio destinada ao Incra tem naturezade contribuio de interveno do Estado sobre o domnio econmico.Inclusive, esse um dos pontos abordados no trabalho com o qual obteveo grau de doutor em Direito Tributrio pela UFMG. Como ver, hoje, essatese refletida na jurisprudncia do Superior Tribunal de Justia? O senhoresperava que tivesse esse alcance?

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    Digo que me sinto orgulhoso, mas no posso deixar de registrar que omeu trabalho foi de copilar e sistematizar estudos esparsos que existiam dentroda Procuradoria do Incra e do INSS acerca do tema, que foram absolutamenteessenciais. Alm disso, parece-me importante registrar que a tese defendida na

    UFMG teve como pano de fundo, a anlise da natureza jurdica da contribuiopara o Incra, mas teve como principal aspecto a propositura de uma nova estruturada norma de incidncia tributria das contribuies de interveno no domnioeconmico, com a incluso de uma circunstncia intermediria de validade, qualseja a efetiva util izao dos recursos para as finalidades para as quais a contribuiofoi criada.

    Nessa mudana de perspectiva do Superior Tribunal de Justia sabemos

    que houve uma importante atuao da Procuradoria Geral Federal e daProcuradoria do Incra inclusive com a criao de uma comisso, da qualo senhor fez parte e tive o prazer de coordenar as atividades. Conte-nosum pouco como foi esse processo, de que forma o grupo contribuiu nessaevoluo da jurisprudncia?

    Sim, a Procuradora Geral Federal poca constituiu uma comisso paraestudar e atuar nesta questo, uma vez que a jurisprudncia do STJ vinha se firmando

    contrariamente aos interesses do Incra e, no nosso entendimento, sob premissasequivocadas. Esta comisso foi operacionalizada pela Procuradoria Geral do Incra,com o apoio irrestrito do procurador-chefe, Valdez Adriani Farias e coordenada porti, sendo composta por mim, pela procuradora do Incra, Maria de Lurdes FreitasDressler e pelo procurador do INSS e da coordenao tributria da PGF, GilbertoBatista dos Santos. Nosso trabalho foi primeiramente, de fixao da tese a serdefendida e posteriormente, um trabalho de convencimento dos ministros do STJ,com apresentao de memoriais, visitas aos gabinetes e sustentao oral perante

    a Primeira Seo do STJ. Aps todo o trabalho de convencimento, pudemos verprevalecer a tese defendida pelo Incra.

    Voltando um pouco sua carreira... at mesmo considerando essestrabalhos desenvolvidos, com a distribuio de memoriais e sustentaooral no STJ, como o senhor v, hoje, a inter-relao institucional entrea Advocacia Pblica e o Poder Judicirio? importante que haja umaatuao mais incisiva, mais combativa, por parte do advogado pblico?

    Certamente. O trabalho desenvolvido pela comisso foi muito gratificante,

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    demonstrando que a advocacia pblica pode e deve ser proativa, e que nspodemos contribuir e auxiliar o Poder Judicirio na anlise de questes que, por suaespecificidade, demandam um estudo mais profundo com maiores esclarecimentose subsdios para que o julgador possa firmar seu entendimento.

    E as perspectivas futuras? Quais so seus projetos no momento? Darcontinuidade aos estudos na rea de Direito Tributrio, pretendeaventurar-se em outras reas?...

    Bem, pretendo continuar aprofundando meus estudos sobre o DireitoTributrio j que h vrios temas que me so caros, especialmente a anlise datributao como instrumento extrafiscal, para que possamos ter no Brasil uma

    cidadania plena.

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    RESENHA

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    TERRA VERMELHADOMINGOS PELLEGRINI

    Terra Vermelha um romance assumidamente pico,que narra a histria de um casal, Jos e Tiana, e a colonizao

    de uma regio do Brasil, o norte do Paran, formando umpainel social e histrico de grandes dimenses, em 511pginas e meio sculo de ao narrativa.

    O norte do Paran foi uma das ltimas regies doBrasil a ser colonizada, por imigrantes de todo o mundo,num total de mais de 30 naes, entre elas a Alemanha.Como as terras eram oferecidas em pequenos lotes, compagamento parcelado, houve um acesso democratizado s

    propriedades, gerando uma civilizao multirracial, convivente e tolerante, que setornou exemplo para o mundo.

    Jos e Tiana so o eixo que interliga passagens histricas dessa colonizao, commuitos lances picos, entre passagens lricas e de grande densidade humana, que fizeramo crtico Wilson Martins, hoje o mais conceituado crtico brasileiro, declarar:

    O Brasil ainda no se deu conta de que temos no Norte do Paran um dosmaiores escritores brasileiros de todos os tempos, Domingos Pellegrini, autor de

    um idioma prprio e uma no menos prpria viso do homem.Apesar disso, o romance de Domingos Pellegrini vendeu lentamente a

    primeira edio, por ter sido, conforme o autor, ignorado pela grande imprensa epor ser volumoso e portanto de preo pouco acessvel num pas de poucos leitorese pouco poder aquisitivo.

    Os leitores de Terra Vermelha so entusiastas de sua leitura, entre elesincluindo-se gente idosa e jovens, pois o romance pleno de ao e de linguagem

    clara, embora muito pessoal. Dele escreveu o crtico Miguel Sanches Neto:Trata-se de uma obra-prima do gnero romanesco.

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    Para o editor e escritor Luiz Fernando Emediato, que participou, junto comPellegrini, nos anos 70, da luta pela redemocratizao do pas e de um movimentoliterrio especfico cujas caractersticas de grupo Pellegrini hoje no reconhece

    assim lembra aquela poca:

    Jovens, idealistas e ingnuos, ns acreditvamos, nos anos 70, que poderamoscriar uma literatura pica, guerreira, libertadora, que empurrasse o povo contra aditadura militar daqueles tempos e contra todos os regimes opressores de qualquerparte do mundo e em qualquer tempo presente ou futuro. claro que no conseguimos.Pellegrini, e s ele, vai chegando perto de nossa frustrada ambio.

    Luiz Fernando Emediato

    Jornalista e editor da Gerao Editorial

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    ARTIGOS

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    AS OCUPAESEADESAPROPRIAOPARAREFORMAAGRRIA

    MANOEL LAURO VOLKMER DE CASTILHO

    Consultor-geral da Unio

    As ocupaes de imveis rurais e o sentido de seu significado

    I

    O programa oficial de reforma agrria, cuja principal ferramenta adesapropriao por interesse social para fins de reforma agrria a cargo dasinstituies federais principalmente o Instituto Nacional de Reforma Agrria(Incra) tem convivido com o fato social das ocupaes de terras particulares eat pblicas por grupos de trabalhadores rurais sem-terra, organizados ou noem atividade espontnea ou mediante aes concertadas e previamente planejadas.

    A magnitude deste virtual confronto, pois que as duas iniciativas buscam omesmo resultado embora por caminhos distintos, indica que o regime jurdicoda desapropriao agrria estatal tem de ser compreendido conjugadamente comos movimentos sociais, sua lgica e suas normas geradas na informalidade masdecorrentes de necessidades concretas. Assim, se por um lado o Estado tem de sedesincumbir da obrigao constitucional de desapropriar para atender o ideal dedistribuio igualitria da propriedade3, de outro as iniciativas sociais cumprem afuno de agentes da assim chamada sociedade civil na provocao das providnciasnecessrias. Essa idia mostra, portanto, que as ocupaes por iniciativa no oficiale a ao estatal de desapropriao se orientam logicamente pelo mesmo objetivo,

    3 A afirmao do princpio da igualdade previsto no art. 5 da Constituio, conjugada com o respeitoaos compromissos fundantes da organizao nacional (art. 1, III e IV da Constituio) e aos objetivosfundamentais da Repblica (art. 3, I, II, III e IV da Constituio), levam seguramente demonstraode que obrigatria a ao do Estado em prol da distribuio igualitria dos bens particulares, nosentido de que se a alguns dado possuir mais que outros e isso importar em excluso ou diminuioda dignidade pessoal e da justia social, cabe ao Estado intervir para equilibrar a distribuio dariqueza. Alis, j tramitam no Congresso Nacional diversos projetos legislativos (inclusive proposta eemenda constitucional) visando limitar a propriedade, cuja constitucionalidade assim parece bvia.

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    devendo ambas, por esta circunstncia, serem entendidas como legitimadas pelamesma causa eficiente.

    Para a adequada compreenso de cada uma delas vale uma abordagem desuas mais conhecidas caractersticas.

    As ocupaes de terras como instrumento de presso social em favor deiniciativas de desapropriao se desenvolveram, sobretudo nos ltimos vinte anos4,principalmente no sul do pas como resposta minifundiarizao da propriedadee a falta de opo das geraes que se sucediam sem perspectiva real de acesso propriedade rural.

    A organizao dos movimentos de trabalhadores rurais sem-terra foi umaresultante natural desse quadro tanto em face da necessidade de racionalizar as

    iniciativas sociais quanto de alcanar o melhor efeito poltico-administrativo possveldiante das autoridades estatais e a simpatia da opinio pblica. No por outra razoque os programas de reforma agrria oficiais se incrementaram severamente depoisdos anos 1980, em larga poro a reboque do impacto sociopoltico das ocupaes.

    As ocupaes mostraram ainda a fragilidade da propriedade e seu regimede proteo jurdica em face dos movimentos sociais, pois que no havia defesasuficiente exceto o discurso retrico de intocabilidade da propriedade e a invocao

    do poder judicirio e suas medidas possessrias amparadas por fora policial comoobjeo dos proprietrios para retirada dos ocupantes5. Muitas das ocupaes,alis, nem poderiam ser atacadas por medidas possessrias porque no constituamrigorosamente esbulho ou turbao, j que o propsito nem sempre era possessrioseno poltico, e isso desmoralizava os instrumentos processuais e o aparato estatalalm de criar jurisprudncia literalmente equivocada6.

    4 As ocupaes na verdade j na metade do sculo passado aconteciam por todo o pas, comdiferentes graus de espontaneidade e organizao, principalmente no Nordeste, Sudeste e Sul, por

    fora da crescente conscientizao popular das massas pobres pela reforma agrria, tomando impulsosobretudo com a grande ofensiva pela reforma agrria do governo Joo Goulart, mas no Centro-Oestee Norte as ocupaes na imensa maioria eram preferentemente de fazendeiros e especuladores porsimples apropriao de terras pblicas.5 A esse respeito, vale referir precedente do Superior Tribunal da Justia ao conceder habeas corpusaintegrantes do movimento dos sem-terra reconhecendo a inocorrncia do crime de esbulho (HC 4399-SP Rel. Vicente Cernichiaro; no mesmo sentido HC 5574-SP Rel. para o acrdo Vicente Cernichiaro)6 De fato, uma interpretao rigorosa da Constituio leva concluso lgico-sistemtica de que spode ser objeto da defesa possessria a propriedade ou a posse que atenda sua funo social, pois aposse que merece proteo jurdica aquela que, nos termos do Cdigo Civil, seja justa, de boa f, e aquela que, emrazo da Constituio da Repblica e das leis que regulamentam a matria, recaia sobre terras que cumpram a funosocial em todos os elementos (econmico, ambiental e social), escapando da possibilidade de servir Reforma Agrria...,sendo ilegal a utilizao dos institutos da legitima defesa da posse e do desforo imediato quando se tratar de preservao

    de terras que no cumpram com sua destinao constitucional. (Carta de Ribeiro Preto pela Reforma Agrria,em defesa do Meio Ambiente. Concluses aprovadas pelos Membros do Ministrio Pblico Estaduale Federal no Seminrio Meio Ambiente e Reforma Agrria, realizado em 13 de dezembro de 1999, nacidade de Ribeiro Preto, Estado de So Paulo, inhttp://www.mst.org.br/setores/dhumanos/legitimi/legitimi4.html capturado em 19.08.2005).

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    As consideraes iniciais expostas desse modo convergem para a idiaprincipal de que a reforma agrria s tm sentido se os cidados forem efetivamenteos destinatrios do resultado desses propsitos constitucionais. Ou seja, a disciplinafundiria, como modo de proteger e prover a fruio igualitria das terras e dos

    bens da natureza, e a implantao da reforma agrria como maneira de aplicaodemocrtica dos valores da igualdade patrimonial rural, s tm sentido se com issose alcanar padres de felicidade, ou, pelo menos, padres de dimenso materialsobre os quais parte dela se funda, j que tambm preciso satisfazer na vida realdeterminadas necessidades geradas pela prpria vida material, a dizer com issoque a garantia da distribuio igualitria da felicidade material seguramente umaresponsabilidade da sociedade e do Estado.

    Nesse pressuposto, so dois os objetos especficos: de um lado, mostrar que asquestes e conflitos, especialmente os derivados do uso e posse da terra, podem serencarados de um ponto de vista diferentepor parte dos agentes do processo judiciale dos encarregados de dar em juzo efetiva aplicao aos resultados do trabalhojudicial, particularmente sublinhando a necessidade de dar ateno aos valoresconstitucionais mais enfticos; de outro, demonstrar que essa tarefa perfeitamentecompatvel com o estado atual de desenvolvimento das instituies jurdico-processuais do pas e que para tanto se exige apenas um esforo de interpretao e a

    firme disposio de encontrar o exato sentido das regras constitucionais.A primeira idia a de que preciso sempre examinar os princpios jurdicos

    das coisas da terra a partir da Constituio. E mesmo que algum sustentasse que aperspectiva tcnico-jurdica secundria, em face da natureza superestrutural doDireito e das concepes jurdicas mais ou menos determinadas pelas condieseconmicas da sociedade em que operam, convm lembrar que, a despeito disso, nesse ambiente, que as discusses atualmente se passam.

    Em outras palavras, mesmo que a perspectiva tcnico-jurdica no seapresente como a mais relevante para quem est privado da terra, de qualquermodo preciso entender adequadamente a Constituio para dela poder extrairno s a viso dominante como perceber as contradies do sistema jurdico-social,a partir de cujas constataes ser possvel reconstruir a correta proposio dassolues para as coisas da terra, sem precisar propor grandes e trabalhosas reformasconstitucionais, ainda que tais expectativas no se excluam necessariamente numdado momento histrico.

    Ora, a Constituio um sistema jurdico-poltico-social-econmico que renedisposies relativas a cada uma destas dimenses da realidade nacional e que tempor propsito estabilizar as relaes respectivas no objetivo comum de permitir,

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    com isso, a mais justa organizao das formas sociais nacionais e a busca do bem-estar e da felicidade de todos e de cada um.

    Para identificao do regime constitucional, no que respeita localizao dosubsistema das terras rurais e seu uso, a Carta deixou entrever, na redao das regras,o teor dos seus subentendidos pressupostos. De incio, disciplinando-as na ordemeconmica ao invs de faz-lo no captulo dos Direitos e Garantias Individuais ouSociais, sugere ela claramente que para o constituinte a funo mais importante daterra a econmica, de produzir lucro, gerar excedente e garantir remunerao ouacumulao para o proprietrio, revelando a suas indisfaradas origens capitalistas,mais ou menos liberais conforme sejam a intensidade e a importncia das reaessociais. Depois, ao regulamentar a Reforma Agrria, limitou-se a estabeleceralgumas regras sobre desapropriao e outras tantas sobre a aplicao das terrasassim adquiridas, opondo propriedade e expropriao deixando de traar qualquerpadro preciso de comportamento que prevenisse a inviabilizao ou a distoroda concretizao de seus preceitos.

    Desse quadro resulta, como se mostra evidente, a tenso entre os regramentosde nvel constitucional, derivada justamente da difcil conciliabilidade de seustermos pelos quais manifesta-se o enfrentamento de proprietrios e sem-terra.Este impasse, a indicar a necessidade de uma nova dogmticaconstitucional, pode

    por enquanto ser resolvido por aplicao dos princpios da proporcionalidade e darazoabilidade, em que a conciliao tem de se dar pela finalidade constitucional.

    E assim deve ser, pois a contradio material entre a propriedade e a no-propriedade, se j no propusesse uma questo lgica de raiz filosfica porqueno h nenhuma justificativa defensvel para que cidados iguais (e juridicamenteamparados pelo mesmo pressuposto terico de direito) tenham realidades materiaisto distintas de fato empurra para dentro do Direito a necessidade de ter deresolver, tambm do ponto de vista jurdico, tal dilema.

    Os juristas sabem que a Constituio garante a propriedade de qualquerpessoa, mas tambm sabem que o texto no dispe que todos os cidados tenhamde ser proprietrios. Sabem igualmente os juristas que todos os cidados tmdireito incondicional vida digna, sade, educao, moradia, ao trabalho,ao lazer e, enfim, a desenvolver tantas dimenses da atividade e personalidadehumanas quantas lhes sejam prprias; mas igualmente se sabe que a Constituiono impede que alguns cidados se apropriem dos recursos materiais para isso

    necessrios mais do que outros, no mais das vezes inviabilizando a esses ltimos oacesso mnimo a qualquer direito elementar.

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    Essas situaes, quando verificadas, acabam por conduzir conclusoobrigatria de que para a adequada compatibilizao do regime constitucional,mesmo sem dizer, fica pressuposta logicamente a necessidade de limitar o acessoaos bens materiais, independentemente da capacidade de adquirir porque falta

    fundamento lgico-sistemtico, e pois jurdico-constitucional, para garantir adesigualdade material entre os cidados e, na expresso final, para uns possuremmais do que outros.

    A propriedade, por isso, e sem nenhum esforo especial de interpretaoconstitucional, afigura-se essencial e ontologicamente limitvel, o que ademaispode ser explicado por uma razo to elementar quanto simples vinculada suaprpria justificao axiolgica, que o direito de todos os cidados igualdade.

    Voltando premissa inicial e em termos bem simples: os limites da propriedadeparticular se definem e se justificam pela necessidade de limites da satisfaoda felicidade pessoal dos cidados, e, a, o que ultrapassar os limites materiaisnecessrios para a satisfao dessa justa expectativa individual injustificvelcomodireito e como pretenso proteo ou garantia e prescinde, por conseqncia, dequalquer mecanismo ou tcnica que o socorra.

    Posta nesses termos a questo, o conflito pela posse de terra entre proprietriose sem-terra desde logo sugere que os institutos jurdicos, mesmo na forma em quese apresentam na feio atual, sujeitam-se a dois enfoques: o de que devem serinterpretados semprede modo a produzir o resultado ltimo querido pelo sistema; eo de que para isso devem ser utilizadas tcnicas de interpretao e aplicao da leiadequadas a esse propsito.

    Nada obstante, para a perfeita compreenso dos dados desse raciocnio preciso ter presente os efeitos do fenmeno muito comum gerado pelo modocapitalista de pensar7- o qual resultante do modo capitalista de produzir e que

    condiciona os valores utilizados pelo intrprete principalmente aquele que faz aleitura das leis sem o cuidado de desprender dos textos essa marca capitalista -embora tanto a Constituio como as leis do pas tenham sido orientadas por umaperspectiva predominantemente capitalista que se revela por inteiro no tema depropriedade e posse de terras rurais e suas limitaes.

    Mesmo prestigiando a iniciativa privada e a apropriao de bens como valor,a Constituio todavia no determinouque se adotasse regime de produo dessetipo e por isso possvel comear a livrar as tcnicas de interpretao e aplicaodo Direito desse desvio, se e quando, do ponto de vista da igualdade, ficarem

    7 v.Souza Martins. Jos de, Sobre o modo capitalista de pensar, Hucitec, 3 ed., p. IX XIV.

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    comprometidos os resultados buscados pela Constituio, j que como visto ainiciativa privada e a propriedade conquanto livres devem necessariamentelimitar-seno ponto em que comecem a aniquilar ou suprimir os direitos de outros cidadosou a iniciativa e a propriedade de outrem, bem assim a expectativa de qualqueroutro

    cidado de a elas tambm ter acesso em idnticascondies.

    II

    Se a Constituio autoriza expressamente a desapropriao de imveisrurais que no estejam cumprindo a sua funo social, do mesmo modoestabeleceu logicamente que a propriedade da terra rural no ou mal aproveitada

    constitucionalmente desvaliosacomo direito e perde a proteo do sistema ainda queno tenha sido formalmente desapropriada8.

    verdade que sempre se poder alegar que no h como afirmarobjetivamente a m utilizao ou a no-utilizao da terra porque no planodas coisas humanas a regra a relatividade. Em face do princpio da igualdade,entretanto, se a acumulao ou o poder sobre a coisa no serve, serve mal, ouno serve mais ou desnecessria busca da felicidade pessoal do titular e de sua

    famlia, termina por prejudicar ou impedir a de outrem com o que a objeo aoslimites da propriedade encontra resposta no seu prprio enunciado.

    E quem questionar a respeito do contedo da felicidade a alcanar com osditos bens pode-se dizer que da razo mdia das necessidades materiais humanasque se extrair o limite, e a acumulao individual poder ser to extensa quanto oexigirem o bem-estar, a sade, a dignidade, a educao e a igualdade na razo entretodos os cidados.

    Essa, de resto, a descrio feita no artigo 186 da Constituio, no qualse definem os requisitos da propriedade que cumpre a funo social, muitoparticularmente ao exigir aproveitamento racional e respeito ao meio ambiente, edignidade do trabalho e bem-estar de proprietrios e trabalhadores.

    A realidade das atuais relaes econmico-sociais, contudo, no deixaespao para a converso ou catequese espontneas dos proprietrios e asdemandas dos interessados em busca de seus direitos de igualdade acaba, viade regra, por exigir dos rgos estatais encarregados de dirimir controvrsias

    8 Nesse sentido a Medida Provisria n 1577 estabeleceu a excluso dos juros compensatrios quandoa propriedade estivesse inaproveitada, porventura obedecendo a esse mesmo fundamento.

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    soluo para as splicas dos que se sentem excludos ou prejudicados. E asiniciativas desse tipo, como parece evidente, exigem por sua vez dos juzes,promotores e advogados, pblicos e privados, o exerccio quotidiano dasconsideraes antes desenvolvidas, porque, em termos institucionais, por

    proposio e requerimento destes ltimos, so os juzes os que vo medir a felicidadepara poder medir a propriedade.

    Essa uma tarefa para a qual se deve prestar ateno muito especial, j que a formao da convico do juiz - derivada em grande parte de sua experincia,

    vivncia, formao intelectual e opes polticas - que, em ltima anlise, informaro direito das partes e a adequao lgica de sua sentena.

    A respeito desse tema fascinante alguns estudos pesquisaram a formao da

    convico do julgador sobre a qual naturalmente operam as diferentes expressesdos condicionamentos de sua classe social ou profissional. No desconhecidoo fato de que a sentena judicial incorpora valores e categorias de raciocnioextraprocessuais dos juzes, na maioria das vezes sem controle das partes ou doprocesso, mas exercendo papel relevante na definio do seu contedo.

    Algumas estatsticas apresentadas por especial istas estrangeiros9 revelamque os juzes so recrutados predominantemente na classe mdia urbana, soeconomicamente remediados e sua formao intelectual e social tpica da dosintegrantes desse nvel. As pesquisas que se realizaram no Brasil vo no mesmosentido10, e mostram que o juiz brasileiro de um modo geral branco, jovem, culto,oriundo da classe mdia e de origem urbana e seus valores tm normalmente raizna ideologia prpria desse segmento social, do mesmo modo como a intelignciadas leis tm origem e destinao ideolgica. Alis, nem necessrio emitir juzode valor sobre a funo dessas categorias ideolgicas, bastando que se reconheaa sua influncia na operao de julgamento. Em certo sentido apesar dasafirmativas dogmticas de que o juiz imparcial (e at, vulgarmente, neutro) ela claramente percebida pelo cidado comum quando faz suas apreciaes crticasacerca das decises judiciais envolvendo classes sociais economicamente diferentesou antagnicas.

    9 v. Bergalli. Roberto, Critica a la criminologia, Themis, p. 245 e Estado Democratico y cuestion judicial,

    Depalma, p.59 e ss10 v. Conselho da Justia Federal/Centro de Estudos Judicirios, Estudo da demanda de informao eaperfeioamento do Juiz Federal, 1993, p. 29 e ss;SADEK, Maria Tereza et. al. A crise do judicirio e a visodos juzes, Revista USP 21/35; Corpo e Alma da magistratura, AMB, Luiz Werneck Sodr e outro ; Perfil do

    Juiz Federal de primeiro e segundo grau na 4 Regio, RTRF 4, 29 e ss.

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    III

    Por isso, tendo presente que a Constituio quando assentou a igualdadeimplicitamente fixou padres de felicidade, materialmente aferveis e regras de

    comportamento entre segmentos do poder econmico e social bem assim valorescuja proteo garantiu institucionalmente, a realidade do campo deve ser repensadanesta perspectiva especfica como objeto de aplicao da lei civil ou administrativae se podem alcanar resultados socialmente significativos.

    De outra parte, havendo ocupaes at agora consideradas, pela legalidadevigente, como contra a ordem e a lei apresenta-se ao intrprete uma situao dedesafio. Alis, convm reafirmar que o esforo de interpretao aqui propostobusca to-s demonstrar que possvel compatibilizar as regras vigentes de

    controle judicial com os comportamentos dos titulares de direito, e da extrair asprovidncias mais justas que o sistema atual oferece ou pode propiciar.

    Por isso, se determinado imvel vem a ser ocupado por trabalhadores ruraissem-terra que nele ingressam, seja com o nimo de nele se fixarem e nele trabalharemde modo a transform-lo em imvel produtivo seja para nele manifestarem suainconformidade com a falta de distribuio de terras, e se ao proprietrio faltarposse no sentido da Constituio, no parece possvel o exerccio das medidas

    possessrias usualmente pleiteadas.Na mesma medida em que a ocupao de bens particulares sem a necessria

    autorizao ou ressarcimento tem sido largamente utilizada pela Administraono intento de suas finalidades pblicas, o que muito comum, por exemplo, nasapropriaes para fins rodovirios, para fins ecolgicos ou de proteo ambiental,entre outras, que, assim, importam em fenmeno juridicizante e legitimadorde conduta antijurdica, a ocupao por terceiros de imvel rural, no ou malaproveitado, constitui ato que acaba substituindo uma conduta prpria do

    Estado e que a Constituio lhe determina, estando-se, ento, igualmente, diantede caso tpico de desapropriao indireta, que sujeita o proprietrio s mesmasconseqncias que algum suporta quando a entidade estatal, no interesse pblico,atravessa suas terras com uma rodovia.

    Por isso, do mesmo modo pblico o interesse, qui pblica a obrigao, deassentar trabalhadores sem-terra se o imvel no est servindo s suas f inalidadescomo manda a ordem jurdica constitucional. Se o assentamento informal de

    trabalhadores rurais em terras de terceiros na viso tradicional constitui ato ilcitotal qual a ocupao para construo de estradas e igualmente irreversvel pelaafetao administrativa que o acompanha -- e pode eventualmente ser objeto de

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    composio de perdas e danos ou indenizao a ser apurada tendo em vista asua efetiva funo social -- no to desarrazoado reconhecer a uma hiptesede desapropriao para fins de reforma agrria indiretacomo decorrncia jurdicado fato da ocupao por integrantes dos sem terra, bastando levar s ltimas

    conseqncias o mesmo raciocnio que protege a propriedade particular contra aAdministrao, j que a desapropriao agrria tambm ato estatal.

    O processo judicial de desapropriao e as ocupaes

    I

    De modo geral convencionou-se atribuir ao Movimento dos TrabalhadoresRurais Sem Terra (MST) a responsabilidade pelas ocupaes de propriedadesparticulares ou prprios pblicos, talvez porque tenha sido a organizao socialmais visvel ou de atuao mais difusa pelo pas afora. Bruno Konder Comparato,na sua dissertao de mestrado cuja verso resumida foi publicada na Revista SoPaulo em Perspectiva11, mostra que a ao poltica do MST se desenvolveu emdiferentes frentes mas que o MST no o nico movimento de luta pela reforma agrria.

    Existem atualmente dezenas de outros movimentos inspirados no MST ou dissidncia dele, como

    os prprios nomes sugerem, por exemplo, o MAST (Movimento dos Agricultores Sem Terra),ligado Social Democracia Sindical, o MLST (Movimento de Libertao dos Sem Terra),ligado a segmentos da esquerda, e o MUST (Movimento Unido dos Sem Terra), ligado ForaSindical. Os dados reunidos por Bernardo Manano Fernandes [A formao do MST no Brasil,Petrpolis, Vozes,1999] mostram que o MST o responsvel por apenas um tero das ocupaesde terras realizadas no Brasil desde 1996, e representa aproximadamente dois teros das famliasacampadas desde aquele ano. Esses outros movimentos de luta pela terra disputam, portanto, omesmo espao poltico que o MST. A leitura cotidiana do noticirio poltico revela, contudo, que

    o maior adversrio do governo nesse campo o MST.Por conta desse significado extrajurdico e extrajudicial das aes de ocupao,

    como estratgia poltica de sensibilizao e presso em face das autoridadesadministrativas encarregadas da poltica de reforma agrria e da opinio pblica,acabou por introduzir-se no processo judicial de desapropriao por interessesocial para fins de reforma agrria (Lei n 8.629, de 25 de fevereiro de 1993) umcomponente inesperado e no previsto na Constituio.

    11 v. So Paulo em Perspectiva, v. 15 n. 4 So Paulo out/dez 2001, acessado em 20/7/2005 em http://scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-88392001000400012&ing.

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    38 Revista de Direito Agrrio, MDA|Incra|Nead|ABDA, Ano 20, n 19, 2007.

    Esse elemento estranho Constituio aproibio de vistoria, avaliaoou desapropriao do imvel objeto de esbulho possessrio ou invasomotivada por conflito agrrio ou fundirio de carter coletivo, nos dois anosseguintes desocupao12.

    Em virtude dessa peculiaridade legislativa, a noo de ocupao (ou invasocomo o vis ideolgico dos proprietrios logo se encarregou de sublinhar parajustificar sua pesada reao) tem enorme importncia como j foi assinalado antese agora o momento de se dar a devida ateno tcnico-jurdica a esse aspecto.

    O fato da invaso ou ocupao de terras de terceiros por trabalhadores ruraissem-terra j era, antes dessa alterao legislativa, objeto de diferentes consideraes.Com efeito, foram muitas, e ainda so, as alegaes dos proprietrios de que a

    verificao da produtividade e do cumprimento da funo social da propriedadeficam prejudicados se o imvel tiver sido invadido no perodo objeto da vistoria,surgindo da uma reiterada jurisprudncia que leva em considerao tal fato. Por isso,mesmo antes do regime da MP 2183-56 o Supremo Tribunal Federal j assentaraque a invaso capaz de descaracterizar a apurao da funo social inviabilizava a

    vistoria e por conseqncia tambm a desapropriao anulando o decreto13.

    desse tempo, alis, o Decreto n 2.250, de 11 de junho de 1997, cujo art.4 assim dispunha Art. 4. O imvel rural que venha a ser objeto de esbulho no servistoriado, para fins do art. 2 da Lei n 8.629, de 24 de fevereiro de 1993, enquanto nocessada a ocupao, observados os termos e as condies estabelecidos em Portaria do Presidentedo Instituto Nacional de Colonizao e reforma Agrria Incra. Como bem de ver odecreto no poderia impedir a aplicao dos preceitos da lei e era manifestamenteilegal, mas forneceu durante bom perodo, argumento para a discusso da invaso/ocupao por trabalhadores rurais sem-terra, embora o Tribunal de certa formafugindo da declarao de invalidade do decreto tivesse desenvolvido entendimentode que a ocupao ou invaso tida por ilegal, na verdade impedia a vistoria e adesapropriao por que se constitua em fator defora maiorna forma prevista no

    12 Art. 2. A propriedade rural que no cumprir a funo social prevista no art. 9 passvel de desapropriao, nostermos desta lei, respeitados os dispositivos constitucionais. ..... 6. O imvel rural de domnio pblico ou particularobjeto de esbulho possessrio ou invaso motivada por conflito agrrio ou fundirio de carter coletivo no ser vistoriado,avaliado ou desapropriado nos dois anos seguintes sua desocupao, ou no dobro desse prazo, em caso de reincidncia;e dever ser apurada a responsabilidade civil e administrativa de quem concorra com qualquer ato omissivo ou comissivoque propicie o descumprimento dessas vedaes. (redao dada pela Medida Provisria n2.183-56, de 24 deagosto de 2001, com vigncia mantida pelo art. 2da Emenda Constitucional n32, de 11.09.2001

    DOU 12.09.2001. A esse respeito, de se assinalar que foi a Medida Provisria n2.027-38, de 4 demaio de 2000 que alterou o art. 2da Lei n8.629/93 acrescentando-lhe os pargrafos cuja expressofinal deu-se com a edio da MP 2.109-52, de 24 de maio de 2001, por fim reeditada at a EmendaConstitucional n32, com a MP n 2.183-56, de 24 de agosto de 2001).13 v. nota 16, adiante.

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    7 do art.6 da mesma Lei n 8.629/199314.

    Uma vez editada a Medida Provisria n 2.027-38, de 2000, abriu-se espaoformal para a contestao direta das providncias de desapropriao, com base emlei (de discutvel constitucionalidade) e no mais com fundamento em decreto porsua vez de duvidosa legalidade. Assim, o Tribunal, enfrentando as mais variadasalegaes construiu precedentes que passaram a constituir nessa matria verdadeiradoutrina judicialda desapropriao por interesse social para fins de reforma agrria.

    II

    A anlise dos precedentes do Supremo Tribunal Federal, o qual seguidas

    vezes tem sido chamado a se pronunciar sobre essa matria, pode oferecer ocasiode adequada reflexo e rica informao sobre ela.

    Dando como certo que essa proibio constitucional, pois assimpredominou no resultado das discusses durante o julgamento na Ao Direta deInconstitucionalidade n 2.213/DF Medida Cautelar (relator min. Celso de Mello,julgada em 4 de abril de 2002)15, o que, no entanto, foi francamente contestadopelo voto do ministro Seplveda Pertence que no reconhecia no 6 do art. 2da Lei n 8629/93 legitimidade para erigir hiptese de proibio de desapropriaono prevista na Constituio16, a questo que resta interpretar sistematicamente

    14 Eis o texto: Art. 6. Considera-se propriedade produtiva aquela que, explorada econmica e racionalmente, atinge,simultaneamente, graus de utilizao da terra e de eficincia na explorao segundo ndices fixados pelo rgo federalcompetente. 1. [....]. 7. No perder a qualificao de propriedade produtiva o imvel que, por razes de fora maior,caso fortuito ou de renovao de pastagens tecnicamente conduzida, devidamente comprovados pelo rgo competente,deixar de apresentar, no ano respectivo, os graus de eficincia na explorao, exigidos para a espcie.15 Com efeito, a discusso no STF na ADIn n 2213 que na verdade dizia respeito MP 2.027-38/2000,que dava nova redao ao texto do 6, do art. 2, da Lei n 8.629/93, que era ainda distinto do 7 oqual depois se lhe incorporou -- sobre a constitucionalidade da proibio de vistoria quando o imveltiver sido invadido ou esbulhada a posse do titular, revelou a disposio da Corte de decididamente

    adotar uma postura proprietarista a despeito das eruditas ressalvas do relator quanto nova dimensoconstitucional da propriedade. Prevaleceu o entendimento de que ...a exigncia de inocorrncia de ocupaoilcita identificada, esta ltima, pelo esbulho possessrio no institui um novo tipo de propriedade imune desapropriao

    para fins de reforma agrria, mas, isso sim, qualifica-se como requisito de ordem negativa, a ser constatado no procedimentoque visa a aferir o atendimento, pelo imvel rural a ser vistoriado, da funo social que lhe inerente, por efeito de expressadeterminao constitucional. E que essa vistoria administrativa ditada pela necessidade de garantir, ao proprietrio, aobservncia da clusula constitucional do devido processo legal, sob pena de configurao de vcio radical, apto a projetar-sesobre todas as fases subseqentes do procedimento de expropriao [... ...] em ordem a gerar, por ausncia de base jurdicaidnea, a prpria invalidao do decreto presidencial consubstanciador de declarao expropriatria (RTJ 190/177-178).

    Tal, segundo o relator, consiste uma autolimitao do Poder Executivo da Unio (id. p. 185). No mesmosentido, MS 22.478-PR (DJ 26.09.1997) e MS 23.312-PR (DJ 25.02.2000).16 Disse o ministro Pertence: Por outro lado, [... ...] trata-se a meu ver, essa imunidade temporria , dobrada emcaso de reincidncia do esbulho possessrio ou da invaso decorrente de conflitos agrrios, segundo o 6, de uma estranha

    sano: uma sano difusa, uma sano por classe social. No se sancionam os partcipes da invaso. Sancionam-se todosos excludos da propriedade rural que reivindicam acesso a terra mediante um prmio ao proprietrio, por menos que a suapropriedade seja produtiva, por mais distante que esteja essa propriedade do cumprimento de sua funo social, condioconstitucional de sua proteo. Premia-se o proprietrio com a imunidade e se pune difusamente a quem quer que possa ter aexpectativa da expropriao desta propriedade morta, socialmente morta, para fins de reforma agrria.(RTJ 190/207).

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    essa vedao em linha de conformidade com a Constituio.

    O texto do dispositivo tal como hoje se apresenta (MP 2.183-56, 24.08.2001)tem a seguinte redao: Art. 2. A propriedade rural que no cumprir a funo social

    prevista no art. 9 passvel de desapropriao, nos termos desta lei, respeitados os dispositivosconstitucionais. 1 [... ...] 6. O imvel rural de domnio pblico ou particular objeto deesbulho possessrio ou invaso motivada por conflito agrrio ou fundirio de carter coletivo noser vistoriado, avaliado ou desapropriado nos dois anos seguintes sua desocupao, ou no dobrodesse prazo, em caso de reincidncia, e dever ser apurada a responsabilidade civil e administrativade quem concorra com qualquer ato omissivo ou comissivo que propicie o descumprimento dessasvedaes. O art. 9, em resumo, estabelece que a funo social da propriedade cumprida quando atende simultaneamente aproveitamento racional e adequado; utilizaoadequada dos recursos naturais disponveis e preservao do meio ambiente; observncia dasdisposies que regem as relaes de trabalho; explorao que favorea o bem-estar dos proprietriose dos trabalhadores.

    Essa disciplina alm de discutvel do ponto de vista sistemtico legislativoporque transforma um pequeno obstculo procedimental em impedimento deum imperativo de ordem constitucional, tambm contm uma incongrunciainsupervel. Ou seja, a propriedade que no cumpre a funo social est sujeita desapropriao mas s se pode saber se ela no cumpre a funo social

    constitucional se for possvel vistori-la, o que fica proibido em caso de invasoou esbulho. Essa insuscetibilidade desapropriao s se legitima se a propriedade produtiva, o que exclui a desapropriao imediatamente com ou sem invaso,no havendo porque proibir a vistoria, e, se no mesmo produtiva no h razoconstitucional lgica para evitar a desapropriao, fator que tambm no poderiaser deslindado na ao de desapropriao ou no mandado de segurana, descabendoassim medidas liminares contra o ato presidencial. As eventuais ocupaes quedescaracterizassem a condio de imvel produtivo, sim, poderiam ser valorizadas

    na vistoria, alis, destinadas exatamente a esse fim e que poderiam apontar quandoe como ou quanto a produtividade decaiu em face da ocupao. O que no parecerazovel a excluso a priorida vistoria pelo fato da invaso, quando essa vedaoinfraconstitucional poderia estar a encobrir uma situao de imvel no produtivocontra a permisso (ou obrigao) constitucional de desapropriar. Parece, pois,evidente que a proibio de vistoria nessas condies no tem correlao lgicacom o propsito enunciado e se revela apenas como medida de represso a umamanifestao social, conforme bem percebido pelo ministro Pertence, e nesse

    ponto afrontosa da Constituio.A jurisprudncia assim acabou s avessas por construir uma hiptese em que,

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    sem poder apreciar questo de fato, presumiu, ao no descaracteriz-la, o cumprimentoda funo social e passou a deferir ordem de proibio de desapropriao.

    III

    Presente essa cautela, cuja discusso sempre pode ser renovada, so asseguintes as situaes em que a invaso foi examinada pela jurisprudncia: hcasos em que a invaso anterior vistoria e outros em que posterior; h outrosem que a invaso anterior lei nova e outros em que posterior a ela. H, ainda,outros em que a invaso no ficou provada no sentido da jurisprudncia, e haqueles em que a invaso nfima e incapaz de descaracterizar objetivamente a

    produtividade ou improdutividade do imvel. Duas questes ainda mereceram aateno da jurisprudncia, a necessidade de prvia notificao para a realizao da

    vistoria e acompanhamento pelo proprietrio e a pessoalidade da notificao.

    Quanto a estas ltimas, vale referir que a notificao tida pelo Tribunal comoformalidade essencial para a validade da vistoria (MS 23.370-2/GO, DJ 28.04.2000)apesar da ressalva do ministro Pertence17, e a notificao pessoal no significatenha de ser de ambos os cnjuges (MS 23.311-2/PR, DJ 25.02.2000) valendo

    se s um deles o for, como no necessrio que todos os condminos o sejam(MS 24.110-1/DF, DJ 28.03.2003) bastando o inventariante ou at administrador erepresentante deles no imvel (MS 23.598-5/DF, DJ 27.10.2000). A esse respeito,o Supremo Tribunal Federal teve ocasio de discutir longamente o tema no MS24.547-6/DF (DJ 23.04.2004, Caso Southall), em caso em que a notificao haviasido regularmente efetuada mas por empecilhos no se realizara a vistoria na dataaprazada (aparentemente os prprios proprietrios haviam obstrudo a estradapara impedir os trabalhos), vindo a realizar-se sem nova notificao alguns

    dias depois sem o acompanhamento do proprietrio. Assentou-se, ento, que indispensvel que a notificao prevista no pargrafo 2 do art. 2, da Lei n 8.629/93 sejafeita com antecedncia, de modo a permitir a efetiva participao do proprietrio, ou de seu prepostopor ele designado, nos trabalhos de levantamento de dados que tem por objetivo a determinao daprodutividade do imvel.

    Que a vistoria tenha de ser prvia, tambm no h dvida, pois a lei dao proprietrio a oportunidade de acompanhar os trabalhos e eventualmente

    17 Da ementa: Ainda que, na l inha do entendimento majoritr io do tribunal, se empreste notificao prvia davistoria prvia do imvel expropriando, prevista no art. 2, 2, da Lei n 8.629/93, as galas de requisito de validadeda expropriao subseqente, no se trata de direito indisponvel: no pode, pois, invocar a sua falta, o proprietrio, que,expressamente, consentiu que, sem ela, se iniciasse a vistoria.

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    fornecer elementos que auxiliem os vistores, de modo que a notificao srecebida depois da vistoria (MS 23.855-1/MS, DJ 23.02.2002 e MS 22.965-9/SP,DJ 31.08.2001) ou que no refere data de incio ou perodo certo de realizaopode importar em nulidade (MS 24.110-1/DF citado). A notificao de que

    cuida a lei tem por objetivo dar ao proprietrio a oportunidade real de acompanhar ostrabalhos de levantamento de dados, fazendo-se assessorar por tcnicos de sua confiana, paraapresentar documentos, demonstrar a existncia de criaes e culturas e fornecer os esclarecimentosnecessrios a eventual caracterizao da propriedade como produtiva e, portanto, isenta dadesapropriao-sano, diz-se no precedente referido (MS 24.547-6/DF), e ofundamento constitucional sublinhado no voto do ministro Gilmar Mendes que essa notificao indispensvel no devido processo legal administrativopreparatrio da ao de desapropriao para reforma agrria, sendo a previedade

    essencial para a utilidade do devido processo legal, pois o proprietrio tem odireito de ver suas alegaes levadas em conta e, se no o forem, de seremfundadamente refutadas.

    A Administrao definiu operodo de comprovao do cumprimento da funosocial como o ano imediatamente anterior (entendimento que o STF admitiu noMS 23.523-3/SC, DJ 14.02.2003, idem no MS 22.193) de maneira que a apuraoda produtividade s poderia ser afetada se a invaso fosse relacionada com esse

    perodo de apurao. Assim, a invaso que no prejudica o perodo de apuraoda produtividade no tem qualificao para afastar a desapropriao, tal qual ainvaso posterior vistoria. (MS 23.872-1/DF, DJ 18.02.2005; MS 24.933-1/DF,DJ 17.12.2004; e MS 24.136-5/DF, DJ 08.11.2002, entre outros).

    Quando a invaso aconteceu antes da proibio legal no se pode invoc-la contra a Administrao pelo princpio da anterioridade da lei, embora, comoreferido, o Tribunal por outra vertente considerasse a invaso um fator de foramaiorcapaz de alterar a feio do imvel e, se compatvel em extenso e intensidade,

    impedir a desapropriao18.

    18 Nessa linha so os seguintes precedentes: MS 24.133-1/DF (DJ 06.08.2004) vistoria anteriora MP 2.027-38/2000, invaso de parte mnima e afastamento da fora maior; MS 23.857-7/MS (DJ13.06.2003) invaso de menos de 1% e afastamento da fora maior; MS 23.737-6/SP (DJ 20.06.2003)

    invaso anterior MP, fora maior reconhecida; MS 23.241-4/PR (DJ 12.09.2003) invaso anterior MP e ao Dec. 2250/97, fora maior reconhecida; MS 23.818-6/MS (DJ 22.0.2002) invasoanterior MP e vistoria anterior ocupao, segurana indeferida; MS 23.018-3/MS (DJ 07.06.2002)

    ocupao anterior MP e alguns dias anterior vistoria, segurana concedida por aplicao do Dec.2250/97; MS 23.054-0PB (DJ 04.05.2001) ocupao anterior MP na vigncia do Dec. 2.250/97 e

    improdutividade do imvel rural de buclica virgindade mal bulida pelos arrendatrios que seria risvel atribuir, attulo de fora maior, ocupao por sem-terra, uma semana antes da vistoria, de frao diminuta de latifndio.; MS23.563-2/GO (DJ 27.02.2004) imvel invadido por trs vezes em 1996, aps a vistoria mas na pocado plantio, caracterizando fora maior: segurana concedida contra o voto do relator; MS 23.754-6/

    AL (DJ 31.10.2001) caso anterior MP, de invaso aps a vistoria: segurana denegada.

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    A invaso posterior MP n 2.027-38/2000 submete-se, desde ento, forada redao nova do art. 2, 2 da Lei n 8.629/1993. A jurisprudncia, nesse passo,consolidou-se no sentido de que as ocupaes posteriores medida provisriareferida submetem-se ao seu regime formalmente tanto que a simples invaso

    do imvel, exceto se em poro mnima, torna invivel a vistoria. So desse perfilos demais precedentes nos quais se discutiu a prova da invaso ou ocupao19 ea extenso dela20. Essa invaso nfima, isto aquela cuja expresso no capazde alterar a forma e o conjunto do aproveitamento do imvel de acordo com ajurisprudncia predominante, deixa assim de constituir obstculo para a vistoria edesapropriao, embora no exista nos precedentes um padro claro de refernciapara a identificao da poro mnima, o que pode, portanto, variar de acordo comas circunstncias e caractersticas do imvel.

    Consideraes oportunas

    vista dessa panormica da jurisprudncia j se pode reler o art. 2 e, maisadiante, o seu pargrafo 6 da Lei n 8.629/93: Estabelece o Art. 2. A propriedaderural que no cumprir a funo social prevista no art. 9 passvel de desapropriao, nos termosdesta lei, respeitados os dispositivos constitucionais. Com efeito, logo na primeira referncia

    o dispositivo sugere questo da maior envergadura. Fala-se em propriedade rural queno cumpre a funo social retomando a expresso que a Constituio consagrou(art. 186) e a dizer que o imvel ruralque deve cumprir a funo social descritano diploma constitucional e na lei, pena de desapropriao que cabe Unio (art.184 CF e art. 2, 1 Lei n 8.629/93). A despeito de rduas discusses, parece,portanto, indiscutvel que imvel rural e propriedade rural, embora no se

    19 A prova da ocupao ou invaso foi objeto de discusso nos seguintes casos: MS 23.872-1/DF

    (DJ 18.02.2005) alegao de fato superveniente impetrao no comprovado; MS 23.523-3/SC (DJ14.02.2003) falta de prova nos autos das alegadas invases do imvel pelos sem terra; MS 23.260-9/AL (DJ11.10.2001) falta de prova de alegada invaso, mas deferimento da segurana ante a incongrunciadas consideraes do Incra com as provas e pareceres por ele mesmo referidas; MS 24.911-1/DF (DJ01.10.2004) motivo de fora maior no demonstrado (Lei n 8.629/93, art. 6, 7).20 Ocupao mnima no justifica a proibio de vistoria: MS 25.006-2/DF (DJ 17.12.2004) aocupao da rea, tomada como mnima e mesmo assim excluda dos levantamentos verificados, aconteceu antes da leique obstaculizou a feitura de vistoria; MS 24.133-1/DF (DJ 06.08.2004) ...invaso de parte mnima da glebarural por integrantes do Movimento dos Sem Terra no induz, por si s, ao reconhecimento da perda de produtividade doimvel em sua totalidade. ; MS 23.857-7/MS (DJ 13.06.2003) a invaso de menos de 1% do imvel (20 hectaresde um total de 2.420 hectares) no justifica, no caso, seu estado de improdutividade do imvel...; MS 23.054-0/PB(DJ 04.05.2001) ...vale insistir: dos 982,28 ha- rea total da Fazenda Ing fazia oito dias, nada mais que 30 hateriam sido invadidos... ... suficiente isso para, claramente, no se aplicar o precedente... . No recente julgamento

    do MS 24.764-9/DF, Relator p/ acrdo o ministro Gilmar Mendes, entretanto, ficou assentado, pormaioria, que, mesmo diminuta a invaso, quando ela pode perturbar a atividade na propriedade deveser considerada, especialmente se... a invaso ocorre em reas onde haja gua, passagens ou caminhos...Superao da

    jurisprudncia do STF firmada no MS n 23.054-PB e MS n 23.857-MS, segundo a qual a nfima extenso da reainvadida, no justifica a improdutividade de imvel.

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    confundam, para os fins da reforma agrria, no se distinguem, ou pelo menos essa indistino a nica maneira de compreender adequadamente a disciplinaconstitucional, sobretudo porque as excees ou o regime de insuscetibilidade desapropriao so definidos pela pequenapropriedade; pela mdiapropriedade21,

    desde que seu proprietrio no possua outra22; e pela propriedadeprodutiva23, sendoqualquer dessas caractersticas suficiente para o afastamento da desapropriao.

    Afuno socialque a propriedade deve respeitar aquela definida na Constituioe reproduzida no dito art. 9 da mesma lei, sendo certo que precisa obedecer sexigncias do art. 186 (I a IV) simultaneamente, alm de critrios e graus de aproveitamentoestabelecidos em lei. Assim, os critrios de definio da produtividade da Lei n8.629/93 esto apoiados na autorizao constitucional referida24.

    Havero de ser, todavia, sempre respeitados os dispositivos constitucionaise essaressalva do caput do art. 2se estende aos pargrafos respectivos, sendo, portanto,de dar-lhe integral ateno na aplicao do 6aqui objeto de estudo.

    Eis o texto: 6. O imvel rural de domnio pblico ou particular objeto de esbulhopossessrio ou invaso motivada por conflito agrrio ou fundirio de carter coletivo no servistoriado, avaliado ou desapropriado nos dois anos seguintes sua desocupao, ou no dobro desse

    prazo em caso de reincidncia e dever ser apurada a responsabilidade civil e administrativa de quemconcorra com qualquer ato omissivo ou comissivo que propicie o descumprimento dessas vedaes.

    Analisando o preceito, v-se que agora j se fala em imvel rurale, portanto, de ser tido como correspondente propriedade rural pblica ou particulare que tenha sido objeto de esbulho possessrio ou invaso. O esbulho possessriosobre imvel pblico na verdade constitui um ilcito administrativo que deve ser

    21 A jurisprudncia do STF assentou que a pequena e a mdia propriedade so imunes desapropriaoainda quando se mostrem improdutivas, o que parece inteiramente inadequado em razo danecessidade de uma interpretao conjugada da Constituio de suas regras com seu esprito. Paraexata atuao do art. 5, XXIII (a propriedade atender sua funo social) no h como admitir

    uma pequena ou mdia propriedade que no cumpra a funo social e possa ser considerada imune desapropriao-sano. Ver, contudo, o j citado MS 21.919 em que o relator ministro Celso deMello desenvolveu longa argumentao pela imunidade to s pela extenso, da para frente no maispersistindo divergncia. V. tambm MS 22.022-8/ES (DJ 04.11.1994)22 Convm deixar assinalado que a jurisprudncia do STF tem afirmado que a prova da propriedadedo outro imvel (ou outra propriedade) cabe ao Incra (ou ao expropriante) j que figura prova negativaque no se pode atribuir ao proprietrio. Essa questo foi muito debatida no MS 21.919-0/PE jreferido, mas voltou a ser discutido no MS 22.478-9/PR (DJ 26.09.1997), parecendo aqui que aresponsabilidade pela prova tocaria ao proprietrio, embora no caso existisse nos autos prova de outrapropriedade. V. tambm MS 22.022-8/ES j referido.23 Cabe referir a jurisprudncia consolidada do Tribunal no sentido de que a produtividade no podeser aferida em mandado de segurana sendo inmeros os precedentes sempre reiterados: MS 21.982-3/SP (DJ 28.04.1995), com indicao de farta jurisprudncia; e MS 22.164-0/SP (DJ 17.11.1995), tambm

    com indicao de grande nmero de precedentes.24 O Supremo Tribunal Federal sempre repeliu as argies de inconstitucionalidade do art. 6da Lei n 8.629/93 assentando que tarefa do Poder Executivo a definio desses parmetros deprodutividade: MS 22.302-2/PR (DJ 19.12.1996); MS 22.478-9/PR (DJ 26.09.1997) e MS 23.312-9/PR(DJ 25.02.2000).

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    reprimido com o aparato administrativo e se forem terras pblicas que no tenhamoutra finalidade ou afetao devem ser destinadas reforma agrria, em razo doque o mencionado esbulho deve ser encarado com cuidado e sem as inf luncias dodireito civil.

    Sobre terras particulares, o esbulho (e, note-se, s o esbulho, pois a simplesturbao no obstculo legal compreendido na clusula em questo) submete-seao regime civilista, mas preciso considerar que tambm a posse tem de revelaratendimento funo social nos moldes constitucionais25, de modo que aoproprietrio se reconhece de fato poderes de proteo possessria contra o esbulho,mas no se dispensa de cumprir com tais deveres, pena de lhe ser recusada a proteopossessria que o texto referido lhe garante no pressuposto de que a sua posse conforme. O mesmo se diga quanto invaso, cuja expresso tem contedo legalcerto, em especial quando sobre terras da Unio: Invadir terras da Unio, com intenode ocup-las, crime punido com pena de deteno de seis meses a trs anos26, mas essencial para a tipificao da conduta, seja sobre terras particulares seja sobreterras pblicas, que seja evidente a vontade de ocupar e essa ao de ocupar estejarevestida da vontade de permanecer e assentar-se nelas com nimo definitivo,pois do contrrio no se cuidar de invaso mas de mero ilcito administrativoou ilcito civil diverso da invaso. Por tais termos, as condutas capazes de

    fazer restringir as vistorias, e de conseguinte a avaliao e a desapropriao deimveis (logicamente neste ltimo caso sobre propriedades particulares), precisamtecnicamente ser caracterizadas como esbulho ou invaso em sentido estrito para queno se frustrem o preceito constitucional da reforma agrria e o regime de funosocial da propriedade.

    Mas, no s. O esbulho ou invaso, com as caractersticas anteriormentedefinidas, deve ainda ser produto de conflito agrrio ou fundirio carter coletivo, adizer que essencial que existaprvio conflito agrrio ou fundirio sobre as terras em

    questo, pois que ao imvel rural a ser vistoriado que se refere a vedao e noteria sentido opor restrio vistoria de um imvel se o conflito agrrio se referea outro. Embora a lei no designe os casos de conflito agrrio ou fundirio, sabe-se que tais conflitos so de regra motivados pela posse da terra, seja para obt-la,seja para no perd-la, seja para recuper-la. E ento haver conflito sempre quese instalar disputa sobre a posse de terras rurais, mas preciso que se evidenciemas respectivas caractersticas fundirias ou agrrias. Se a invaso manifestar-secomo protesto ou reivindicao no constituir conflito agrrio ou fundirio em

    25 v. Zavascki, Teori Albino, in Reconstruo do Direito Privado, org. Judith Mart ins Costa, RT26 v. Lei n 4.947, de 06 de abril de 1.966, Artigo 20. Invadir terra pblica com a inteno de ocup-las. Pena

    seis meses a trs anos de deteno.

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    sentido estrito ainda que coletivo, mais uma vez cumprindo a dar exataateno restrio excepcional a qual invoca expressamente a disciplina constitucional a serescrupulosamente seguida.

    Cuidado tambm se deve ter com o carter coletivo do conflito posto queessa categoria parece exigir um grau elevado de conflituosidade no bastandosimples agrupamento de trabalhadores rurais ocasionalmente insatisfeitos ouespontaneamente reunidos por motivos variados. Parece necessrio que para aexistncia de conflito agrrio ou fundirio de carter coletivo seja necessrio queos integrantes do grupo coletivo tenham idntica motivao e interesses de modoa revelar-se coletivamente. Do contrrio, multidudinrio, o conflito no se mostracoletivo no sentido da lei, isto , coletivo no sentido de luta pela posse da terra parafins agrrios e de distribuio da propriedade improdutiva.

    A proibio de vistoria e de avaliao poderia sugerir que o presidente daRepblica no ficaria impedido de editar o decreto de desapropriao que uma prerrogativa presidencial prpria na forma do art. 184, 2 da Constituio -embora a lei tambm impea logicamenteo presidente da Repblica de faz-lo porqueprobe a (ao de) desapropriao para a qual sempre essencial a edio do decreto.O Supremo Tribunal Federal por vrias vezes (MS 22.164-0/SP, por exemplo)assentou que a invaso impede a vistoria sem a qual h vcio insupervel apto a

    projetar-se sobre todas as fases subseqentes do procedimento de expropriao, contaminando-as,por efeito de repercusso causal, de maneira irremissvel, gerando, em conseqncia, por ausncia debase jurdica idnea, a prpria invalidade do decreto presidencial consubstanciador de declaraoexpropriatria, sendo que o Tribunal tambm tem como assente que o procedimentoadministrativo27 de preparao para a desapropriao a primeira fase, a ser seguidapela desapropriao judicial perante o juzo competente federal28.

    A peculiaridade que a prerrogativa presidencial deriva de comandoconstitucional expresso e no poderia ser limitada por lei infraconstitucional, demodo que a invalidao dos atos posteriores projetada pelo defeito da vistoriaproibida pela invaso anterior teria de ser compatibilizada com essa ressalva dodecreto, embora pudesse permanecer proibida a ao judicial de desapropriaoa cargo da entidade federal at o levantamento da proibio. que o decreto

    27 Ao qual se aplicaria a disciplina da Lei n 9.784, de 29 de janeiro de 1999 que regula o processoadministrativo. Caso em que se discutia se o recurso administrativo do proprietrio tinha ou noefeito suspensivo e o Tribunal aceitou que o recurso no suspende os demais atos necessrios

    desapropriao. A referncia no explcita quanto a todo o procedimento administrativo embora leve a essailao, mas extremamente relevante ter presente que essa disciplina tem de ser relativizada e levadaem linha de considerao em face das peculiaridades do processo de desapropriao (MS 24.163-2/DF, DJ 19.09.2003).28 v. MS 23.744-9/MS (DJ 17.08.2001).

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