revista da livraria cultura

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WWW.REVISTADACULTURA.COM.BR EDIÇÃO 82 • MAIO DE 2014 EDIÇÃO 82 • MAIO DE 2014 • UMA PUBLICAÇÃO DA LIVRARIA CULTURA SEM DEFINIR SE É UM ATOR DE COMÉDIA OU DRAMA, LÁZARO RAMOS FALA DO GRANDE PRAZER QUE A LIBERDADE NA PROFISSÃO LHE PROPORCIONA S.O.S. SURREALISMO NEY MATOGROSSO • ELIAS ANDREATO • RONALDO FRAGA • DRICA MORAES • LYGIA CLARK QUANDO A CARETICE BATE À PORTA, O MOVIMENTO INICIADO HÁ 90 ANOS SE FAZ AINDA NECESSÁRIO PARA ESTIMULAR A LIBERDADE CRIATIVA NO MUNDO CONTEMPORÂNEO

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Edição de maio 2014

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Sem definir Se é um ator de comédia ou drama, LÁZARO RAMOS fala do grande prazer que a liberdade na profiSSão lhe proporciona

S.O.S. SURREALISMO

n e y m a t o g r o S S o • e l i a S a n d r e a t o • r o n a l d o f r a g a • d r i c a m o r a e S • ly g i a c l a r k

quando a caretice bate

à porta, o movimento iniciado há 90 anoS Se faz

ainda neceSSário para eStimular a liberdade

criativa no mundo contemporâneo

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Há duas constatações que faço com relação ao movimento surrealista, tema de nossa matéria de capa (pág. 52). A primeira é sobre a impor-tância dele, tanto pelo aspecto cultural quanto pela sua grande influência em diversas áreas, incluindo política e comportamento. Já são 90 anos desde o lançamento do Manifesto Surrea-lista pelo francês André Breton e, neste mês, o

público brasileiro receberá uma grande exposição de Salvador Dalí, que merece nossa atenção. A segunda constatação, infelizmente, não mantém o elogio feito na primeira: preocupa-me o desinteres-se de muitos de criar, de pensar algo novo para o país. Talvez fruto do descrédito nacional reinante e da educação que segue seu ca-minho ladeira abaixo. O que precisamos mesmo é de pessoas que permanecem abertas ao sonho e à imaginação e longe da mesmice de sempre, como tanto sugere o surrealismo. E entre esses criadores que, por sorte, mantêm a mente ativa e a produção constante, posso apontar um que é o entrevistado desta edição: Lázaro Ramos (pág. 16). Com filme previsto para estrear neste mês e pensamento voltado para o teatro também, o ator baiano conversou sobre questões que vão além da arte. Quero indicar ainda o ótimo perfil sobre a artista plástica brasileira Lygia Clark (pág. 34), que receberá uma grande ho-menagem no MoMa, em Nova York; e a reportagem sobre ingredien-tes da nossa biodiversidade (pág. 28), desconhecidos da maior parte da população, que vêm sendo trazidos à luz por meio de uma atitude criativa e decididamente empreendedora de alguns chefs. Boa leitura!

Pedro Herz

| editorial |

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46As caras e bocas de Ronaldo Fraga

rememorando a cultura brasileiraO obturador de João Correia Filho se

abre para o modernismo paulistano

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| sumário |

Os ares do Catete deixaram Drica Moraes

encantada com os mistérios da política

80Bem longe da mesmice, Miriam Leitão

corre para abraçar o desconhecido

Nada de brincar de estátua! Lázaro Ramos

gosta mesmo é da dança das cadeiras

16Não é a Ipiranga com a São João, mas a

arte está cheia de belos cruzamentos

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TAMBÉM NESTA EDIÇÃO

08 No mês das noivas, na dúvida entre casar e comprar uma bicicleta, leia o Drops!

33 A linha tênue entre drogas e medicamentos deixa Jairo Bouer de cabelo em pé

70 Segurando as velinhas que queimavam os dedos, Karina Buhr seguia a procissão

74 Fabio Gandour não vê a hora de vestir novas tecnologias para ampliar capacidades

86 Heeeei! Goiânia! No miolão do Brasil, a cidade exala cultura das boas

Os ventos do norte desvendam o mais

profundo de Ney Matogrosso a olho nu

66Evandro Alves, Rômolo d’Hipólito

e Lafa mais surreais do que nunca

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NOSSA CAPAA bailarina Ludmilla Tchérina, em cena com parceiro não identi�cado, no Théâtre Royal de la Monnaie em Bruxelas, 1961. O ballet teve cenário assinado por Dalí e música de Scarlatti. © Bettmann/CORBIS

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90 anos após o pontapé surrealista,

vertentes ainda bebem de suas águas

52Quem diria que por trás do bigodinho de

Dalí se encontrava uma imensa timidez

| expediente |

REDAÇÃOPublisher Pedro Herz Editor-chefe Gustavo Ranieri Diretora de arte Carol Grespan Editora Clariana Zanutto Redatora Mirian Paglia CostaAssistente de redação Lucas Rolfsen Estagiária de texto Renata VomeroRevisora Carina Matuda

COLABORAM NESTA EDIÇÃOTextoAdriana Terra, Ana Luiza Rodrigues, Ana Melo, Cristina Judar, Guilherme Bryan, Junior Bellé, Nina Raeh, Rita Tavares, Tuna DwekIlustraçãoEvandro Alves, Lafa, Marcelo Cipis, Mauricio Planel, Rômolo d’Hipólito, Samuel CasalFotografiaFelipe Manso, François Calil, Rodrigo Braga/ 3FilmGroup,Tomás RangelColunistas Elias Andreato, Fabio Gandour, Jairo Bouer, Karina Buhr

Produtora gráfica Elaine Beluco Projeto gráfico Carol GrespanImpressão PluralTratamento de imagens Daniel VasquesTiragem 41.800 exemplares

PublicidadeCaroline Zanã[email protected]

tel.: (11) 3170-4033 ramal 2391

Jornalista responsável Gustavo Ranieri | MTB 59.213

Contato [email protected]

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução sem autorização prévia e escrita. O conteúdo dos anúncios é de responsabilidade dos respectivos anunciantes. Todas as informações e opiniões são de responsabilidade dos respectivos autores, não re�etindo a opinião da Livraria Cultura. Preços sujeitos a alteração sem prévio aviso.

A novíssima galera do Atados empenhada

em tirar o comodismo da gaveta

90Entre dores e amores, Filipe Catto

cutuca a própria ferida para nos tocar

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Elias Andreato se perguntava o que queria

ser quando crescesse antes do Instagram

Mastigamos boas referências surrealistas

em busca de novas pirações culturais

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Lygia Clark sabia como os outros

poderiam sentir a arte à �or da pele

Baru, jambu e priprioca unidos contra

o bullying com os sabores tupiniquins

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Tradicionalmente em maio, o Museu da Imagem e do Som de São Paulo dedica o mês à apreciação de imagens e re�exão sobre a arte fotográ�ca. Por isso, até o dia 22 de junho, é possível visitar o projeto Maio Fotogra�a, que apresenta mostras de artistas singulares e fundamentais, como Gregory Crewdson, Josef Koudelka, Robério Braga e Valdir Cruz. Além disso, há a exposição Fotogra�a: um longo processo para a modernidade, elaborada a partir da extensa coleção de fotogra�as do acervo do museu, com cartões-postais, cartões de visita, cartões cabinet e autocromos produzidos no Brasil, junto com imagens estereoscópicas de países como França, Japão, Irlanda, Estados Unidos e Bélgica. Ainda dentro do projeto, a instituição organizou, em parceria com o Estúdio Madalena, o III Encontro Pensamento e Re�exão na Fotogra�a, que ocorre entre 22 a 25 deste mês. O evento conta com a união de pensadores da fotogra�a nacional e internacional para colocar em dia a re�exão sobre a criação fotográ�ca. (Clariana Zanutto)

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CLICAR PARA REFLETIR, REFLETIR PARA CLICAR

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Tendo como ponto de partida a cidade de Exu, onde Luiz Gonzaga nasceu, Céu de Luiz, parceria entre o fotógrafo Tiago Santana e o jornalista Audálio Dantas – que repete a fórmula de sucesso do premiado O

chão de Graciliano, lançado pela dupla em 2006 –, presta uma homenagem ao centenário do rei do baião, retratando o universo do artista a partir de sua identi�cação com o sertão, particularmente a região do

Pernambuco e do Cariri cearense, culturalmente uma das mais representativas do Nordeste. “O livro é um mergulho no universo de Luiz Gonzaga, uma interpretação livre e pessoal desse lugar onde ele cresceu, descobriu o mundo e que é a base de toda a sua obra. Seu som fez parte da minha infância e do lugar onde também dei meus primeiros passos na vida. Nasci no Crato, região do Cariri, que foi a cidade de

referência para o menino Luiz. Exu �ca na fronteira de Pernambuco com o Ceará, dividido pela imponente chapada do Araripe. Esse ensaio é também uma continuação da minha leitura sobre esse espaço que foi

tão forte para a minha formação pessoal e que me fez fotógrafo”, se emociona Tiago. (CZ)

O REINO DE GONZAGÃO

Confira a entrevista na íntegra com Tiago Santana no site

Um dos mais aclamados chefs da nova cozinha brasileira, o jovem paraense Thiago Castanho compartilha, em Cozi-nha de origem, receitas que celebram a tradição e a cria-tividade, segredos de família e delícias amazônicas, além de pratos de outras regiões do país. Utilizando ingredientes típicos como tucupi e farinha de tapioca, Thiago ensina a fazer desde comidinhas de boteco e de rua, passando por acompanhamentos, como farofas, paçocas e molhos de pimenta, pratos com peixes, carnes e aves, até pães e sobremesas. Entre as mais de 100 receitas, destacam-se o Torresmo de peixe com molho de açaí, a Moqueca de banana-da-terra, a Farofa de castanha-do-pará, a Coste-la de tambaqui na brasa e o Pato no tucupi com jambu. “Com tantas expressões regionais da culinária em um país tão grande, é muito difícil de�nir a culinária brasileira como uma só. Este livro apresenta a ‘minha culinária brasileira’, com uma perspectiva amazônico-paraense da comida na-cional. Os pratos são descritos em sua forma original. No entanto, em alguns casos, sugeri ingredientes alternativos para permitir que todos possam preparar as receitas usan-do peixes e legumes locais.” (CZ)

DO PARÁ PARA O MUNDO

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Leitura obrigatória para quem tem interesse em co-nhecer mais a fundo o holocausto e o Terceiro Reich, Joseph Goebbels: Uma biogra�a, do historiador Peter Longerich, revela toda a história do chefe do Minis-tério da Propaganda da Alemanha nazista, conheci-do por seu imenso poder de persuasão e vontade de conquistas. Com sua capacidade retórica, seu desejo de ser protagonista e sua absoluta lealdade a Adolf Hitler, Goebbels se tornou uma das mais im-portantes �guras do Terceiro Reich. Mas, por trás de tamanha imponência, escondia-se uma vítima de um grave transtorno de personalidade, narcisista e cada dia mais dependente de seu idolatrado Führer. Após ter acesso aos diários secretos de Goebbels, o his-toriador deparou com pensamentos, observações e acontecimentos capazes de traçar um retrato íntimo daquele que �cou conhecido como o “anão veneno-so”, por sua baixa estatura e andar manco. (CZ)

PURO VENENO

A segunda edição do Festival Internacional Sesc de Circo acontece entre o dia 23 deste mês

e 1º de junho, com uma visão sobre a necessidade de aproximar a plateia dos artistas que alegram nossa vida pelos picadeiros do mundo. A partir

da segunda metade do século 20, a preocupação em recuperar o público perdido com o surgimento da televisão e do vídeo fez surgir novas escolas

contemporâneas ao redor do globo. Grupos como o belga Ea Eo e o espanhol Ateneu Popular 9 Barris,

além dos paulistanos do Circo Zanni e dos cearenses do Grupo Fuzuê, entre outros, mostram que uma das mais antigas expressões artísticas no mundo é feita

de carne, osso e sonhos. (Lucas Rolfsen)

Chega aos cinemas o �lme que mais chocou a edição de 2013 do Festival de Cannes, gerando reações de entusiasmo a indignação, e que ganhou o prêmio de Melhor Diretor no mesmo festival. Jo-vem cineasta de 34 anos, Amat Escalante traz com Heli uma rea-lidade que, embora mexicana, poderia se situar em qualquer local onde impere o embate entre o narcotráfico, a corrupção policial e o cidadão comum, cuja inocência o cruel acaso se encarrega de comprometer, mostrando as consequências para quem desa-�a o crime organizado. O �lme começa com marcas de violência, sangue derramado e estradas embaçadas por poeira e vento. Por mais que o espectador se aventure a intuir o que antecede a cena, nada se compara ao que virá na sequência. Heli e seu pai traba-lham na montadora de veículos que provê trabalho aos habitantes da região e seu cotidiano se divide entre o emprego; a irmã ado-lescente, que faz seus deveres de casa entre os encontros com o escuso e ambíguo namorado; o �lho pequeno e a esposa, que há muito perdeu a libido e o sorriso. Um ato impensado arrasta Heli para uma teia de acontecimentos implacáveis, em que tra�cantes não poupam requintes de crueldade para mostrar os acertos de con-tas como lição para quem cruzar seu caminho. Mais chocantes do que as cenas de tortura explícita é a reação das crianças, que a tudo assistem, entorpecidas pela droga e pela indiferença. Desa�ando convenções e sem condescendência, a película constrói uma atmos-fera de claustrofobia em um mundo sem redenção. (Tuna Dwek)

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REAL E IMPIEDOSO

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RESPEITÁVEL PÚBLICO!

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LILY IS BACKApós quatro anos fora do jogo, a britânica Lily Allen volta com tudo em seu terceiro álbum de estúdio, Sheezus, intitulado em ho-menagem a Kanye West, que lançou ano passado o disco Yeezus. Com uma sonoridade pop bem provocativa que também �erta com o hip-hop, a cantora e compositora traz em suas letras áci-das uma mescla de experiências, desilusões, alegrias, estragos morais, dor, di�culdade e diversão. (CZ)

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MUNDOS SOMBRIOS

DA CRIAÇÃO

Qual a primeira preocupação quando se cria? Quando estou escrevendo, me preocupo em contar aquela história e me satisfazer como escritor e espectador, [pensando] o que eu acharia daquele �lme se estivesse vendo ou da-quele livro se estivesse lendo.

Onde você encaixa o medo como parte do processo de realização do ser humano? Talvez o medo me atraia. Todo mundo tem tendência a se desa�ar. Ou você se fecha ou enfrenta os seus limites.

INTRIGADO COM AS MULTIPLICIDADES DO COMPORTA-MENTO HUMANO, RAFAEL PRIMOT DIRIGIU SEU PRIMEIRO LONGA-METRAGEM, GATA VELHA AINDA MIA, QUE ENTRA EM CARTAZ NOS CINEMAS NO DIA 15 DESTE MÊS. ES-CREVER DEPOIS DE 17 ANOS NO OSTRACISMO E LIDAR COM A JOVEM JORNALISTA CAROL, INTERPRETADA POR BÁRBARA PAZ, REPRESENTAM DIFICULDADES EXISTEN-CIAIS PARA GLÓRIA POLK, PAPEL DE REGINA DUARTE. A ANGÚSTIA PELA BUSCA DA CRIATIVIDADE E PELA INEVI-TÁVEL PASSAGEM DO TEMPO, ALIADA AO ENFRETAMENTO DE NOSSOS IDEAIS CONSTRUÍDOS AO LONGO DOS ANOS, OFERECE AO ESPECTADOR UM MAR DE DÚVIDAS REVE-LADORAS AO INVÉS DE RESPOSTAS CONCRETAS. (LR)

Confira a entrevista completa no site

CURTIÇÃO E CANTORIA A Marina da Glória, na capital �uminense, vai misturar cinema, música e diver-são entre os dias 15 deste mês e 1º de junho. O Vivo Open Air 2014 navega por cenas artísticas tradicionais e independentes. O bairro, no Aterro do Flamengo, vai testemunhar, entre diversas atrações imperdíveis, a pré-estreia de O teo-rema zero, do diretor americano Terry Gilliam, a festa Do Leme ao Pontal, uma homenagem a Tim Maia, os instrumentais do Pife Muderno (com Carlos Malta), além dos indies escoceses do The Jesus and Mary Chain. (LR)

Um dos mais celebrados festivais de jazz do país chega a sua quarta edição, com shows em São Paulo, entre 29 de maio e 1º de junho, e Rio de Janeiro, de 30 de maio a 1º de junho. Consagrados nomes, como o do pia-nista Ahmad Jamal, do contrabaixista Dave Holland, do saxofonista Kenny Garrett e do cantor Bobby McFerrin, que também fará uma apresentação em Belo Horizonte no dia 3 de junho, são apenas algumas das atrações no line-up do evento. A técnica vocal de Bobby impressiona pela força comunicativa em uma ponte entre o timbre da voz e a utilização do corpo para a composição de ritmos instrumentais no jazz contemporâneo. O Brasil estará re-presentado pela recifense Spok Frevo Orquestra. (LR)

QUEBRADEIRA

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A arte de Isidro Blasco de remontar fotogra�as de cenas urbanas para se

transformarem em obras tridimensionais está sendo exposta em Curitiba, na SIM

Galeria, até 31 deste mês. O artista espanhol apresenta 25 obras que evidenciam o dia a dia de diversas cidades do mundo, e o

Brasil não �ca de fora: estão exibidas obras com imagens de São Paulo, Rio de Janeiro

e Curitiba, que devem atrair e chamar a atenção dos observadores. (RV)

FRAMES DO COTIDIANO

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Nem só de fama e beleza viveu um dos maiores astros do cinema de todos os tempos. Uma sequência de imagens da decadência de Marlon Brando, aliada a outras cenas piores ainda, protagonizadas por ele entre a adolescência, o auge da fama e o �m trágico, compõem o sinistro painel de histórias colhidas pelo biógrafo François Forestier em Marlon Brando: A face sombria da beleza. O autor, que também escreveu Marilyn e JFK, pretendeu desnudar a vida escandalosa desse ator sem igual, revelando o que considera a verdadeira face do ícone absoluto de Hollywood, que navegou durante toda a vida entre o auge e o abismo. (CZ)

A BELA FERA

SONZEIRA BOAOs fãs de rock e MPB não poderão perder a 13ª edição do Festival João Rock, que acontece no dia 31 deste mês em Ribeirão Preto, interior paulista. Os espectadores contarão com dois palcos cheios de boas atrações, entre elas, Nan-do Reis, Jorge Ben Jor, Paralamas do Sucesso, O Rappa, Nação Zumbi, Vanguart e muito mais. Os ingressos já es-tão à venda e variam de R$ 50 a R$ 280, mas para quem não puder ir, notícia boa: os shows serão transmitidos pelo canal Multishow. (Renata Vomero)

O duo The Black Keys se prepara para o lançamento, dia 13 des-te mês, de seu novo CD, o esperado Turn Blue. O oitavo álbum dos excelentes músicos vem seguindo a linha de sucesso de El camino, que foi muito bem avaliado pela crítica. Os artistas já lançaram o primeiro single do novo álbum, a música Fever, e de-vem disponibilizar o CD completo também em formato digital. A banda considera esse trabalho uma mistura de as�xia e tristeza. A turnê mundial de Turn Blue deve começar em junho. (RV)

ESPERADO SUFOCO

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UMA ODE À MULHERUma comédia, que não é somente

hilária, desvenda uma autobiografia em que, embora prevaleça o tom jocoso, es-tão presentes elementos dramáticos que lidam com a falta de aceitação pelos ou-tros e com a identidade. Em sua saborosa estreia como diretor, o surpreendente ator Guillaume Galliènne revisita sua história para traçar sua trajetória pessoal e artís-tica e, em última instância, declarar seu amor e admiração pela mãe, que o criou como menina. Sua tranquilidade com este fato estabelece um contraste com a rejei-ção pelo pai e pelos irmãos, que o tratam com truculência e sarcasmo. Gestos, pos-tura, atitudes, desejos, o universo feminino se descortina aos olhos de Guillaume, um menino passivo e submisso, que acaba se tornando ator. Vítima de bullying dos dois irmãos e dos colegas, Guillaume vai para internatos na Espanha e na Inglaterra,

passa pelo humilhante ritual de seleção do Exército e atravessa calvários emocionais até se encontrar. A alta qualidade narrativa gera a re�exão sobre o que somos e o que se espera de nós, tanto no trabalho quanto na família e nas relações amorosas. Fru-to de um insight em uma sessão de tera-pia em que o autor se recorda de como a mãe chamava os �lhos para a mesa, Eu, mamãe e os meninos não é um ajuste de contas com a progenitora, e sim uma ho-menagem que sai do clima de anedota. Guillaume transpõe para as telas a história primeiramente revelada no palco, de onde desponta seu talento. Ao interpretar a pró-pria mãe, ele mantém o mito durante boa parte do �lme e retoma o formato de mo-nólogo da peça original, enquanto os ou-tros personagens se desdobram e tomam vida. A�nal, Guillaume descobre sua real identidade por intermédio do amor. (TD)

Durante dez anos, o cineasta carioca David Perlov (1930-2003) viveu em Tel Aviv e �lmou seu cotidiano, sua família, seus amigos e suas viagens, especialmente para a França e para o Brasil. Lançada pelo IMS, a caixa Diário 1973-1983 reúne três DVDs que trazem seis episódios com cerca de 55 minutos cada um, além de um livreto com texto de Ilana Feldman. Ao �lmar seu dia a dia e os eventos políticos de Israel, como a Guerra do Yom Kippur, em 1973, ou a invasão do Líbano, em 1982, Perlov lan-ça uma nova maneira de olhar e um novo estilo de fazer do-cumentários: um cinema baseado na observação dos espaços – públicos e privados –, na captação de fragmentos do cotidia-no e na apreensão de pequenos gestos e expressões de rostos anônimos – situações ou instantes cuja riqueza está tanto nas experiências capturadas quanto no modo de olhar para elas. A produção fotográ�ca do cineasta também pode ser vista na nova edição da revista Zum, que traz uma série de imagens coloridas feitas por David Perlov em seus últimos anos de vida. (CZ)

OLHAR CERTEIROPARA OUVIR

LENDOAutor de O pequeno livro do rock e O pe-queno livro dos Beatles e especialista em combinar quadrinhos e música, o francês Hervé Bourhis agora lança 45 rotações de rock, uma seleção ilustrada dos singles mais emblemáticos do rock de 1945 aos dias de hoje, que vão de Be-Bop-A-Lula, de Gene Vincent, a Heroes, de David Bowie, passan-do por Light My Fire, do The Doors, London Calling, do The Clash, e Love Will Tear Us Apart, do Joy Division. A seleção feita por Bourhis inclui também uma única banda bra-sileira: Os Mutantes, com o single Panis et circenses, de 1968. Em todas as 45 canções do livro, o autor explica o álbum e traz curio-sidades do período e da banda, fazendo li-gações com outras músicas e artistas. (CZ)

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Os últimos anos de vida do artista plástico Luiz Sacilotto são retratados na exposição Audácia Concreta: as colagens de Luiz Sacilotto, que acontece na Caixa

Cultural Brasília, de 21 de maio a 13 de julho. A colagem entrou na vida de Sacilotto quando ele, já idoso, tinha grandes di�culdades motoras para trabalhar. São 20

obras expostas ao longo da mostra, além de cinco estudos sobre o trabalho do artista e um documentário,

um dos últimos registros dele em vida. (RV)

AUDACIOSA INSPIRAÇÃO

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Compondo nas noites de terça-feira entre maio e dezembro do ano passado durante ensaios abertos ao público no Centro Cul-tural Rio Verde, em São Paulo, o grupo mu-sical Clube do Balanço botava a galera pra dançar o samba-rock ao mesmo tempo que dava origem ao mais recente trabalho, Me-nina da janela, que será lançado neste mês. Para captar a atmosfera dos bailes ofere-cidos ao público e eternizar a energia dan-çante das pessoas, o disco foi gravado ao vivo e com o mínimo possível de overdubs, em busca de uma sonoridade natural. (LR)

DANCE SEM PARAR

Em ritmo de thriller político, o escritor e historiador Jean-Paul Ber-taud reconstrói, em A queda de Napoleão: Um eletrizante relato dos três últimos dias de seu império, os momentos que selaram o �m do domínio do líder militar francês. Em meio a intrigas, jogos de poder e diálogos vividamente reconstituídos, o leitor é trans-portado para o centro dos acontecimentos, vendo se extinguir, naquele mês de junho de 1815, a chama do homem que, durante anos, garantiu para a França o domínio sobre a Europa. (CZ)

JOGUETES DO CORAÇÃO

O clássico do teatro contemporâneo Quem tem medo de Virginia Woolf?, de Edward Albee, chega

a São Paulo, no Teatro Raul Cortez, e �ca em cartaz até 27 de julho. A peça, dirigida por Victor

Garcia Peralta, conta a história de dois casais de gerações diferentes que se encontram após uma festa. Jorge (Daniel Dantas) e Marta (Zezé

Polessa) estão há 20 anos casados e se mostram descontentes com a relação, ao contrário de Nick

(Erom Cordeiro) e Mel (Ana Kutner). Os quatro acabam se envolvendo em joguinhos cruéis,

expondo as maiores (piores?) nuances de seus respectivos relacionamentos. (RV)

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LEMOS E GOSTAMOS

LIVROS!, DE MURRAY MCCAIN E JOHN ALCORNComo dizer a uma criança o que é um livro? No início da década de 1960, o escritor Murray McCain e o designer grá�co John Alcorn uniram forças para criar esta ode à leitura. Em uma declaração de amor ao poder que ela tem de nos encantar, a obra revela como os livros são feitos, para que servem e o que fazem conosco. Nesta era digital, Livros! nos lembra como a experiência de ter um exem-plar em mãos é insubstituível. (Clariana Zanutto)

O BOM LIVRO: UMA BÍBLIA LAICA, DE A. C. GRAYLINGApesar de ser ateu, o autor não fala que sua obra é contra a religião, e sim apenas um livro que diz que não há um só modo de viver a vida, incenti-vando os leitores a pensar e agir racionalmente. Estruturando citações de grandes pensadores e �lósofos conforme os capítulos, versículos e, até mesmo, a métrica da Bíblia, Anthony Clifford Grayling provoca seus leitores, instigando-os a pensar ativamente, não aceitando dogmas (e outras proposições) passivamente. Aceite a dica, questione e discu-ta seu conteúdo. (Carina Matuda)

MEU PRIMEIRO GOLPE DE ESTADO, DE JOHN DRAMANI MAHAMACom afeto por seu país e rigor histórico, o atual presidente de Gana relata as instabilidades sociais e políticas que marcaram sua terra e todo o continente africano entre os anos de 1960 e 1980. Momento conhecido como o das décadas perdidas para os povos africanos, esperança e realidade se fundem neste que foi o livro de estreia do líder ganês, um dos políticos mais populares da África. (Lucas Rolfsen)

SEM MEDO DE FALAR: RELATO DE UMA VÍTIMA DE PEDOFILIA, DE MARCELO RIBEIROAbusado sexualmente na infância pelo maestro do coral de uma igreja católica de Minas Gerais, o empresário é mais um caso de pedo�lia registrado na instituição. Marcelo conta sua história para se recuperar e prevenir que novos casos aconteçam dentro e fora da igreja. O pró-prio autor mescla o relato de sua história com diversas reportagens denunciando essa questão recorrente, mas também busca estender seus comentários para outros exemplos do crime. (Renata Vomero)

“ESCREVER ESTE LIVRO É PARTE DA MINHA CURA.”

“MAS NA ESPÉCIE HUMANA HÁ TAMBÉM A EXPERIÊNCIA, QUE É O QUE CRIA O BEM E SEU CONTRÁRIO, E NOS QUAIS A ESPÉCIE HUMANA PROCURA APREENDER O SENTIDO DAS COISAS.”

“DESEJEI E OBSERVEI ATÉ QUE NÃO HAVIA NADA A VER ALÉM DO CÉU E NADA A DESEJAR ALÉM DE SORTE.”

“O QUE É UM LIVRO? UM LIVRO PODE SER MUITAS COISAS, PELO MENOS DEZ MIL COISAS.”

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| entrevista | lázaro ramos

LÁZARO E SEU BICHO CARPINTEIROP O R A N A M E L O F O T O S T O M Á S R A N G E L

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Filho único de pais separados, nascido e criado em Salvador, Lázaro Ramos começou a atuar pro�ssionalmente aos 15 anos, no Bando de Tea-tro Olodum. E não teve chance de dar errado. “Ti-nha que dar certo, não tinha papai e mamãe que iam me sustentar e me deixar morando na casa deles até os 35 anos de idade, com tempo para estudar e fazer uma faculdade”, explica o ator, que hoje, aos 35 anos, ajuda a pagar as contas de parte da família que ainda mora na Bahia.

Descoberto ao lado de Vladimir Brichta e Wagner Moura pelo diretor de teatro João Falcão, que dirigiu o trio na peça A máquina, no ano 2000, Lázaro retornou aos tablados apenas duas vezes desde então. Em 2015, voltará ao teatro para encenar, ao lado de sua mulher, Taís Araújo, o último dia da vida de Martin Luther King na peça O topo da montanha. Junto com ela, e também na companhia de Murilo Benício e Luís Miranda, o baiano incorpora o guru Brian Benson em Geração Bra-sil, próxima novela das 7 da Rede Globo, que estreia no dia 5 deste mês.

As múltiplas posições que assume como diretor, ator, escritor e en-trevistador o têm alimentado bem até aqui. No cinema, atua em O ven-dedor de passados, com direção de Lula Buarque de Hollanda e estreia ainda neste mês, e em Acorda Brasil, gravado em 2011 pelo cineasta Sérgio Machado previsto para entrar em cartaz no segundo semestre deste ano. Além disso, está escrevendo um roteiro que pretende �lmar até o meio do ano que vem. Segundo ele, o longa tem uma pegada Into-cáveis – �lme francês lançado por aqui em 2012. No Canal Brasil, onde apresenta o programa Espelho, voltou a entrevistar personalidades para a nona edição da atração, que estreou no mês passado.

Com o “bicho carpinteiro” que assume ter em seu corpo, o artista sempre preferiu testar o novo a repetir velhas fórmulas de sucesso ga-rantido. “Quando estou muito em uma situação, não assumo, não conto pra ninguém, mas a cabeça diz: ‘Sai daí’.”

Frequentemente, Lázaro refere-se ao passado e às origens. O ator, que hoje mora no Rio de Janeiro, mantém um vínculo forte com a Bahia e volta para lá “mais do que imaginam e menos do que gostaria”. Suas antenas, de uns tempos para cá, estão bem sintonizadas na contem-poraneidade. Movimentos sociais, como as manifestações de junho; políticos, como o tratamento dedicado às áreas periféricas do Brasil; e econômicos, como a famigerada ascensão da classe C, têm composto o universo de suas recentes criações.

Durante a degustação de uma tradicional feijoada em uma quarta--feira de sol em São Paulo, Lázaro falou da pro�ssão, de injustiças, �loso�a, Copa do Mundo e dinheiro, tudo isso no �el de uma balança equilibrada, “para não ser por demais suicida nem por demais tolo”.A

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Qual critério você usa para escolher seus traba-lhos? Neste momento, pela primeira vez em toda a minha carreira, me veio, já faz uns dois anos, uma vontade de falar com o meu tempo, uma coisa muito sutil, uma vontade de pensar e re�etir o que está acontecendo agora. O vendedor de passados, no fundo, fala sobre nossa relação com o avanço tecnológico que a internet trouxe, e da insatisfação com o que somos ou o desejo de espelhar outra coisa. O �lme fala de pessoas que querem mudar o seu passado. O que são os fakes na internet? O que são as amizades de internet, de Facebook? O que são as pessoas que fazem cirurgia bariátrica? O que são as pessoas que fazem mudança de sexo? O que são as mulheres que fazem várias cirurgias estéticas para mudar os seus traços físicos? Tudo isso é muito agora! Quando o �lme chegou, encai-xou como uma luva. O Acorda Brasil, para mim, nada mais é do que um �lme que fala sobre essa tão comentada nova classe C. O que são esses jo-vens da periferia que estão chegando aí no mundo, buscando um novo espaço com novos valores.

Em que ponto você se funde com o mundo con-temporâneo? A gente vive uma época que é muito individualista, ponto. Não tem como fugir disso, né? Nas causas políticas de antigamente, os caras iam para a luta, porque eles queriam mudar o país mesmo, mudar o mundo por um bem coletivo. Claro que existiam exemplos de pessoas que esta-vam em uma luta mais individual, mas, no geral, as lutas eram mais coletivas. Hoje em dia, e é uma coisa que me fascina – porque eu também faço parte desse tempo, me assumo assim – quando ocorreram os protestos de junho do ano passado, era uma dispersão louca, cada um por sua causa. No primeiro momento, eu não entendi, mas, de-pois, falei: “Pô, isso também sou eu”. Hoje em dia, se for pensar, qual é a minha causa? É um mon-te de coisa, nem eu tenho uma causa só, tenho as minhas causas pessoais, da maneira como quero educar meu �lho, do que quero conquistar �nan-ceiramente e afetivamente para ter uma família.

Antigamente, havia tempo para assimilar cada demanda; agora, é tudo ao mesmo tempo e vem um sentimento de ansiedade... Fui cozido nessa panela, pro�ssionalmente e pessoalmente. Eu não tinha chance de dar errado, entendeu? Tinha que dar certo, não tinha papai e mamãe que iam me sustentar e me deixar morando na casa deles até os 35 anos de idade, com tempo para estudar e fazer uma faculdade, que é o que acontece muito aqui

em nosso país. Não estou nem fazendo juízo de va-lor, mas isso eu não tinha, não dava para não achar o meu caminho, ter uma chance de prolongar esse tempo de me alimentar. Teve uma coisa que desde cedo entendi muito. Primeiro: eu era responsável por mim mesmo. Com 16 anos de idade, saí de casa para cuidar da minha mãe, que estava doente. Apesar de ter um pai que poderia me dar uma vida melhor, eu não me sentia no direito de não cuidar da minha mãe. Depois, na pro�ssão, um ator com as minhas características. Não estou nem falando só de um ator negro, mas um ator fora do eixo Rio-São Paulo, que mora no Nordeste, iniciante. As di�culdades eram várias e, ao mesmo tempo, tinha alguns limites pelo fato de eu ser esse ator com esse sotaque, com essa cor de pele, vindo des-se lugar. Eu tinha que oferecer para o mundo, para as pessoas, algo novo. E o que encontrei para mim, esse algo diferente, foi tentar não me encaixar em nenhum rótulo, em nenhuma coisa. O tempo todo estava tentando me reinventar e buscar coisas no-vas. Às vezes, você tem características muito es-pecí�cas que podem fazer com que você entre em uma jaula, em uma classificação. Eu sou ator de que, de comédia ou de drama? Nem eu sei. Qual o caminho que tenho escolhido mais? Não sei, vou navegando. Acho que talvez seja o conceito do mó-bile, não dá muito pra gente ser rocha. A gente está o tempo todo em movimento, e o móbile vai sen-tindo o vento e vai reagindo junto com isso.

Você tem medo de ficar obsoleto e, por isso, investe nessa busca por mudança? Outro dia, estava falando com um amigo: eu podia ter uma vida tão mais segura. Depois que �z o Foguinho [na novela Cobras & Lagartos, exibida pela Rede Globo em 2007], podia ter feito um seriado e �-car fazendo por dez anos, e ir fazendo tranquilo, recebendo meu salariozinho. Mas todas as vezes em que vivi isso, me deu um bicho carpinteiro, que me fez ter um gesto suicida e largar tudo, porque, às vezes, passa isso pela minha cabeça. Quando estou muito em uma situação, não assumo, não conto pra ninguém, mas a cabeça diz: “Sai daí”. Pra que fazer cinema? Pra que fazer teatro? Poderia ser assim, certo? E eu não consigo fazer isso e não sei também por que, mas faz sentido para mim.

Você disse uma vez que tem medo de não sobre-viver como ator... Essa é uma careira muito ins-tável. Consigo ficar me movimentando o tempo todo, escrevo uma peça, dirijo um negócio, escre-vo um livro, é isso que me alimenta. Falando assim, LE

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MUDAR É O GRANDE PRAZER QUE A MINHA PROFISSÃO ME DÁ. POSSO SER TANTAS COISAS, POR QUE VOU SER UMA SÓ?

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parece que vou abandonar as pessoas no meio, pular do barco. Mas não! Sou muito ético nesse sentido, assumi um compromisso, vou até o �nal. Mas mu-dar é o grande prazer que a minha pro�ssão me dá. Posso ser tantas coisas, por que vou ser uma só? 

Mas não chega a te dividir essa vontade de estar o tempo todo mudando e ter uma esta-bilidade? Chega, mas sou bem responsável. O ímpeto é a chama que quero manter, mas sou bem responsável também nesse sentido. Res-ponsável e filho da época da inflação. Meu pai, nesse período, mudou para um banco que fosse perto do supermercado. Eu pegava o salário dele e corria para o supermercado, fazia a compra correndo para o preço não aumentar. Isso é uma coisa muito marcante na vida de uma pessoa. Uma segunda história: a calabresa estava cara pra caramba, comprávamos uma só e dividía-mos pra todo mundo, isso durante muito tempo. Quando fui morar no Rio, em 2000, e comecei a fazer compra sozinho pra minha casa, só com-prava uma calabresa. Um dia, no supermercado, pensei: gosto tanto de calabresa, por que não compro duas? Eu não entendia que você podia comprar duas. Ao mesmo tempo que tem esse aventureiro, tem também um passado que mar-ca, então, claro que hoje em dia não é a mesma coisa, não tenho a necessidade de correr por-que o preço vai aumentar; não que eu só possa comprar uma calabresa, mas essas sequelas fi-cam e marcam. É um jogo, um conflito que eu não quero resolver, quero que fique aqui: o filho da inflação e o aventureiro o tempo todo cami-nhando para um alimentar o outro, para não ser por demais suicida nem por demais tolo.

Tem algo mais na sua vida que você não queira resolver? Não saber que tipo de ator eu sou, isso é muito importante para mim. Estar ligado ao lugar de onde vim, do qual não faço parte mais hoje, por-que não vivo lá. Saber de onde eu vim é muito im-portante para saber para onde quero ir. Isso acho importante não perder. Teve uma fase da minha vida, depois do segundo ano em que estava moran-do no Rio, que era muito engraçada, porque come-cei a esquecer os rostos, os lugares que frequentava quando morava na Bahia. Aí, foi dando um vazio, sabe? Mas, por um lado, foi muito importante para abandonar algumas amarras, porque tem algu-mas prisões. Às vezes, não dá vontade de mudar.

Como é a sua relação com dinheiro? Sou prudente e procuro colaborar com a minha família. Não tem jeito, meu dinheiro é para ajudá-los e para dar uma força na minha turma lá de Salvador que precisa de um gasinho ainda. O que eles estão buscando agora? Faculdade. Dou uma ajudadinha, pago uma men-salidade ou outra, que é importante. Para mim, o dinheiro, hoje em dia, é para isso. Claro, dá prazer comer fora, viajar com a minha família, buscar uma educação de qualidade. Agora, tenho uma estabi-lidade, porque estou contratado pela Rede Globo, mas amanhã posso não estar, e não quero também �car dependendo de estar sempre com um empre-gador. Quantas pessoas já foram alguma coisa? Não dá para ter essa certeza. Meus primeiros ídolos são os atores de teatro da Bahia. Vários deles, agora, por falta de �nanciamento, de oportunidade, de traba-lho, pararam de fazer teatro. Tem gente que não mora mais em Salvador, teve que ir pro interior da Bahia para ter um custo de vida menor, atores que mereciam uma oportunidade. C

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O que você tem estudado? Muita �loso�a. O fato de eu não ter feito a faculdade que gostaria – meu curso de Bioquímica é incompleto – me faz sentir falta desse conhecimento. Gosto muito de �loso�a, não sou um conhecedor, não sei citar, nada disso, mas sempre tenho feito algumas aulinhas para mim. Já tinha lido algumas coisas do Bauman, mas �cava falando: a gente mudou muito as relações por causa da internet. Não, esse processo é ante-rior. Claro que tem algumas características que vão se agregando, mas isso aí é do humano. Teve uma época em que eu era puto com o Facebook. Agora, as pessoas têm uma câmera e �cam o tempo todo [postando] em vez de curtir uma paisagem. Agora, todo mundo é fotógrafo. Vai lá no Instagram, trata a foto, acha que é fotógrafo? Eu sou desses também (risos). Mas depois você começa a ver por outro lado, que é do humano, o mundo é esse, a gente tem que lidar. Tom Zé me falou uma coisa muito legal. Eu perguntei: “Tom Zé, o que você acha da internet?”. Ele falou: “Ô, meu �lho, se eu não fos-se gostar de novidade, eu não ia comer de garfo.

Quando nasci não existia garfo”. Esses cursos me ajudam também a matar o reacionário que está dentro de mim. Palavra forte, né? Porque eu tam-bém sou uma pessoa de opiniões. E esse exercício de você ser um pouquinho mais maleável e ver por outro ângulo, entender o geral, é ótimo.

O vendedor de passados é inspirado no livro do Agualusa. O que você acha de adaptação para cinema? Tem vontade de fazer algo assim? Tem um livro que quero fazer como ator, que é uma adaptação. Quero fazer um monólogo em cima desse livro, estou negociando os direitos. Vou chamar o próprio autor para adaptar para o tea-tro, vou fazer isso, que geralmente não fazem. Se não der certo, a gente vê se chama outra pessoa. Para esse tipo de adaptação, às vezes, �co achan-do que é melhor quase criar uma nova obra do que tentar ir seguindo o que está escrito, porque tem coisas que são para ser lidas, né? E tem coisa que acho que é só para ser livro, não vou citar que eu não sou bobo (risos), mas tem coisas que acho

NÃO SABER QUE TIPO DE ATOR EU SOU, ISSO É MUITO IMPORTANTE PARA MIM. ESTAR LIGADO AO LUGAR DE ONDE VIM, DO QUAL NÃO FAÇO PARTE MAIS HOJE PORQUE NÃO VIVO LÁ. SABER DE ONDE EU VIM É MUITO IMPORTANTE PARA SABER PARA ONDE QUERO IR.

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que são só pra ler, tem algumas histórias impossí-veis de adaptar, porque o cinema nunca vai con-seguir ser mais poderoso do que a imaginação.

Qual é a sua utopia, hoje em dia, pensando na indústria do cinema brasileiro? Gostaria que cada �lme conseguisse encontrar o seu público. Isso, para mim, seria a grande vitóra. Não é a gente ter apenas um formato de �lme. Tem um formato que é mais seguro e temos as ondas, né? A gente teve a onda do cinema biográ�co, a dos �lmes de violência urbana, a das comédias, que eu acho superlegal, fortalece a indústria, pois o que nos mantém fazendo cinema é ter essa mas-sa, esse público que vai buscar um estilo de �l-me. Mas tem alguns que acho lindos e que não tiveram tempo de encontrar com seu público. Por exemplo, Cinema, urubus e aspirinas [dirigido por Macelo Gomes e lançado em 2005], um �lme com nome esquisitíssimo. Geralmente, uma distribui-dora diria: “Primeira coisa, vamos mudar o nome desse filme. Vamos botar ‘Uma viagem muito louca’. Vamos botar um nome assim, que alcance logo o público” (risos). As pessoas vão buscando mecanismos para aproximar, para encurtar o ca-minho, né? Mas, depois que você assiste, faz todo sentido chamá-lo de Cinema, urubus e aspirinas, e é um �lme lindo, que não foi tão visto quanto merecia. O meu grande sonho era que o público que vai se identi�car com esse �lme tivesse acesso a ele, tivesse mais dias na sala de cinema para dar tempo de esse público chegar. Que a gente enten-desse, nós, atores, diretores, distribuidores, pes-soal do marketing, como acessar esse público, que é o nosso grande desa�o hoje em dia. Uma peça fundamental é alcançar esse público que não está indo ao cinema. O �lme que mais fez público foi Tropa de elite, com 14 milhões de espectadores, em um país com 190 milhões de pessoas.

Vi que você se manifestou no Twitter sobre o caso da Cláudia, arrastada e morta no Rio em março deste ano. O que mais te deixa irritado? O caso da Cláudia foi mais extremo. No primei-ro momento, achei absurdo que as pessoas não falavam o nome dela, era “a mulher arrastada”, e parecia um número, um caso isolado. As autori-dades não podem não responder com vigor a um caso desses. Não é assim, dizer “uma pena”. As nossas autoridades, quando é uma coisa que in-teressa diretamente a elas, vão lá e falam, protes-

tam. Aquela favelada lá tem que ser tratada com o mesmo vigor que vai ser tratado um parceiro seu de política. Isso me deixa muito puto neste país. Como é que a gente pode “naturalizar” al-gumas questões? Isso não é natural e não é natu-ral a gente não se indignar com isso, a maneira como tratam a educação. Não é natural não ser prioridade, a educação vai ser a sexta prioridade? Como assim? Saúde no país não ser prioridade? Isso é um absurdo.

Como você lidou com a polêmica sobre o sorteio da Copa do Mundo? Acho sempre importante a gente discutir em nosso país o que é que usamos para nos representar, né? Quais são as caras que a gente escolhe para nos representar. E essa discus-são, independente de Copa do Mundo, de qualquer coisa, se for pensar na publicidade, nas produções culturais, tudo isso ia ser uma re�exão importan-tíssima, porque acho que vai naquele cerne funda-mental para o nosso país. A gente vive em um país tão diverso, que tem tantas caras, tantas línguas, tantos sotaques, tantas culturas, o que eu acho que é o nosso maior valor, tanto é que encanta muito os estrangeiros quando chegam aqui. A gente aceitar esse valor é o que vai nos fazer mais fortes. Mas, com relação à Copa do Mundo, não tenho o que falar, porque nunca recebi nenhum convite o�cial e, de toda maneira, é uma instituição que tem seu histórico e suas escolhas.

Existe algum tipo de engajamento em seu traba-lho? É possível. Acho que não é uma obrigação de todo ator, todo artista; é uma opção, cada um es-colhe a função que quer ter. Gosto muito, procuro fazer isso de uma maneira equilibrada, mas acho que a gente tem que estar embasado. Não é sobre tudo que ator sabe falar, não é de tudo que artista entende. Tem coisas que, se você me perguntasse, eu não ia te responder, porque sei que não sei falar, não vou mentir.

Do que você não saberia falar? Liberação de ma-conha. Não sei falar sobre isso, não sei se quero que libere ou não, não sei responder. Não �co pen-sando todos os dias, ouço um monte de opinião, mas não tenho resposta pra isso, e é muito impor-tante, é libertador inclusive. E também tem coisa de que não quero falar; por exemplo, sobre o corte de cabelo da Deborah Secco! Não sou cabeleireiro, não tenho a menor opinião sobre o corte dela.

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E do que saberia? Ou que pelo menos eu me pro-ponho a aprender. Do que eu sei falar? Muitas das coisas que �zeram parte da minha origem, procu-rei me informar. Quando falo da minha origem, falo do teatro que eu fazia, das questões sociais com relação à população negra, de humor, adoro falar sobre esses assuntos. Não sou um especialista, mas me sinto mais à vontade para falar, ou provo-car. Tem coisa que, às vezes, o falar não é expor com conhecimento total, mas provocar. Às vezes, só o fato de provocar, perguntar, basta.

É o que você tenta fazer quando assume o papel de entrevistador? Uma coisa que procuro manter até hoje, no Espelho, é sempre trazer assuntos que são pouco falados na televisão, trazer pessoas que aparecem bastante, mas que não falam geralmente sobre esses assuntos. Poucas vezes eu arroto conhe-cimentos meus, falo muito pouco no programa. Quero manter o olhar da curiosidade para ter sem-pre o frescor, e isso é o poder que o microfone dá. Tem pessoas que me falam coisas que me deixam absolutamente emocionado, tem histórias do Espe-lho que, às vezes, as pessoas nem sabem, são mui-to marcantes. Por exemplo, tem uma psicanalista chamada Neusa Santos Souza (1948-2008), que es-creveu nos anos 1970 um livro chamado Tornar-se negro, ó que nome, As vicissitudes do negro brasilei-ro em ascensão social. Escreveu esse livro, que virou uma bíblia para os movimentos sociais e movimen-tos negros. Ela, depois que escreveu, falou durante muito tempo e depois parou 25 anos de falar sobre esse assunto, não falava com ninguém, não explica-va nada. Fiquei tentando vários anos e depois, no terceiro ano, ela aceitou fazer essa entrevista, que foi linda, em que ela se abriu, falou que muitas das coisas sobre que escreveu ela mudou de opinião e, por isso, parou de dar entrevistas, de falar sobre esse livro. Ela tinha repensado as pesquisas dela, deu essa entrevista linda, me arrepio todo contando essa história. Eu mandei depois um convite pra ela assistir a uma peça do Bando [de Teatro Olodum], o grupo estava no Rio, a história termina trágica. Ela se matou um mês depois dessa entrevista, foi o último depoimento dela, e ela escolheu o Espelho para falar antes de morrer. E com o bilhete dela de suicídio tinha os dois ingressos que mandei para ela assistir à peça, e escrito no bilhete assim: “Não deu mais pra mim”. E ela escolheu o Espelho para falar isso. O que essa mulher achou que esse programa representava para ela?  c

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A ARTE DO ENCONTRO

VÁRIAS SÃO AS CONTROVÉRSIAS RELACIONADAS AO CROSSOVER, QUE PODE SE TORNAR UM EXEMPLO DE CRIATIVIDADE E INOVAÇÃO OU UM MERO RECURSO CAPAZ DE AUMENTAR A POPULARIDADE DE DETERMINADA OBRA,

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A união de personagens vindos de universos completamente dife-rentes em uma única obra ou produto cul-tural com um resulta-do que promete “dar samba”, favorecer a

visibilidade, estimular o público e, con-sequentemente, alavancar as vendas. Foi assim que nasceu Simpsorama – como o próprio nome sugere, se resume ao fruto originário da junção entre as animações Simpsons e Futurama –, episódio lançado neste mês e que faz parte da 25ª temporada de Os Simpsons.

Nesse cenário de incontáveis cruza-mentos, interações, encontros (e, por que não, desencontros), muito se especula so-bre a dor e a delícia, as honrarias, deprecia-ções, os sucessos e fracassos da prática do crossover – técnica que reúne dois ou mais personagens, cenários ou acontecimentos de diferentes origens em uma mesma cria-ção artística – de maneira mais especí�ca,

na área dos quadrinhos, do cinema de ani-mação, dos games e da literatura.

Em nossa cultura, não faltam exemplos que ilustram como o crossover foi e ainda é utilizado, e com os mais variados fins: como estratégia de marketing pura e sim-ples, para dar nova vida a trabalhos que perderam popularidade, para atingir di-versos tipos de público de uma única vez, para garantir frescor à trama, ou, simples-mente, para realizar o sonho de criadores que gostariam de reunir suas personagens prediletas em um só trabalho.

A começar pelos quadrinhos norte--americanos, logo vem à mente um dos mais bem-sucedidos exemplos de crosso-ver: A liga extraordinária, de Alan Moore. Lembramos ainda as inúmeras páginas de revistas e livros de HQ nas quais ocorreram encontros notórios entre personagens da DC Comics e da Marvel Comics, que envol-vem nomes tão fortes como Super-Homem, Batman, Homem-Aranha, Mulher Mara-vilha, Hulk, Quarteto Fantástico, X-Men. Isso para citar apenas alguns exemplos.

“Para Batman, Wolverine e companhia não é nenhuma novidade uns aparecerem nas histórias dos outros. O que seria a saga Os vingadores senão a execução mais coor-denada de um crossover na história do cinema? Alinhar tantos personagens é um imenso esforço já reconhecido pelo públi-co. Mas este é um exemplo extremamente popular. No mundo da fan�ction, existem milhares, alguns tão indecorosos que não merecem ser citados aqui. Basta visitar as dezenas de comunidades em torno da saga Star Wars para comprovar isto”, salienta o roteirista e professor Leandro Maciel.

SÍTIO DO PICAPAU AMARELO?

E, ao olharmos para a nossa realidade, mais precisamente para a literatura bra-sileira, seria ousado demais afirmar que Monteiro Lobato, quando incluiu perso-nagens da mitologia grega, da história e da literatura mundial nas narrativas do Sítio do Picapau Amarelo, já fazia crossover? O editor, crítico literário e poeta Reynaldo

Página dupla do gibi The Simpsons Futurama Crossover Crisis; na página ao lado, cena de episódio da 25ª temporada

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Damazio responde: “Forçando um pouco a barra, podemos considerar Monteiro Lo-bato um pioneiro do crossover entre nós, com a mistura de grandes mitos e persona-gens ilustres, como Dom Quixote, nas tra-mas do Sítio do Picapau Amarelo. Mas não havia essa intenção. Nesse sentido, pode-mos considerar as narrativas mitológicas ancestrais como as fundadoras do gênero, como Ilíada e Odisseia. Só que, neste caso, o cruzamento de personagens e mitos era parte do imaginário literário e cultural da época, não um artifício, digamos assim. Lobato soube aproximar grandes narrati-vas do leitor jovem, recontando e tradu-zindo para uma linguagem mais acessível um material literário so�sticado”.

O assunto ganha ainda mais força quando falamos de games, especialmente pelo fato de ser bastante comum os joga-

dores se afeiçoarem a um determinado jogo ou personagem durante uma fase específica de sua vida. Para esse fato, o crossover pode ser uma excelente estraté-gia para reavivar o interesse do público. É o que a�rma Sérgio Nesteriuk, doutor em Comunicação e Semiótica e pesquisador nas áreas de audiovisual, games e anima-ção. “Ao levarmos em conta a evolução tec-nológica dos consoles e dos próprios jogos, e até mesmo a faixa etária do jogador – alguém pode gostar de Mario quando é criança e, depois, na adolescência, já não ter tanta conexão –, alguns personagens tendem a ser considerados obsoletos ou nostálgicos. O crossover permite resgatar e atualizar não apenas o personagem, mas o próprio universo daquele jogo. Assim, aumenta-se a popularidade e sua própria vida útil, o que é sempre um grande desa-

�o em uma indústria que vive em constan-te transformação.”

UNIÃO DE PRÓS E CONTRAS Embora sejam várias as vantagens em

relação ao que o crossover traz como resul-tado, muitos podem ser os problemas e as di�culdades surgidos durante esse proces-so complexo de encontros e cruzamentos, tanto para as empresas, quanto para os pró-prios pro�ssionais envolvidos.

“Quando se abre mão de algo, ou se condiciona o processo de criação a qual-quer demanda externa que não seja a pró-pria criação, o trabalho com a linguagem, a inquietação do artista com o texto e sua relação com o mundo, entramos na esfera do negócio, do publicitário, ou do marke-ting. Se houver bons artistas envolvidos, certamente o resultado poderá transcen-

Abaixo, cena de gibi em que a Liga da Justiça, da DC, enfrenta os Vingadores, da Marvel; acima, versão desta última para o cinema, que reúne Viúva Negra, Thor, Capitão América, Gavião Arqueiro, Hulk e Homem de Ferro

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der o jogo de cena ou a estratégia. Pensan-do no exemplo dos quadrinhos, se o rotei-ro do crossover for escrito por Alan Moore ou Neil Gaiman, para citar dois autores conhecidos, a obra será algo mais do que um produto comercial, ainda que tenha a finalidade de alavancar vendas”, enfatiza Reynaldo Damazio.

Segundo ele, o crossover tem a seu favor a possibilidade de gerar um roteiro original, provocador, que proponha a releitura de personagens e de suas características. Mas, se realizado de maneira irresponsável, sem o cuidado necessário, o tiro pode sair pela culatra. “O problema é o vale-tudo, a ape-lação, o empobrecimento da personagem e de sua trajetória, duramente construída, em favor de uma proposta mercadológica imediata, ou modismo”, completa.

A questão dos direitos autorais é outro ponto a ser discutido. “Como o crossover costuma acontecer entre obras muito po-pulares, uma dura rodada de negócios vai acontecer em algum momento. Basta ima-ginar que estas demandas interessam aos executivos, que costumam olhar para o todo e almejar resultados em certo prazo. Isso tudo para que o processo criativo não vire judicial...”, destaca Leandro Maciel.

Sérgio Nesteriuk também faz suas con-siderações sobre os aspectos legais: “Se os universos não pertencerem a um mesmo dono – não necessariamente um mesmo criador –, a coisa pode não acontecer. Em termos estratégicos, é preciso considerar que seja um bom negócio para as partes envolvidas, tanto em termos qualitativos quanto de oportunidades”. c

MONIKAHLO: HOMENAGEM MÚTUA

Em comemoração ao aniversário de 50 anos da personagem mais famosa do cartunista brasileiro Mauricio de Sousa, as ruas do Brasil estão sendo ocupadas pela Mônica Parade: intervenção urbana que conta com os trabalhos de 50 artistas, convidados a criar versões customizadas para a Mônica – neste caso, representada por uma escultura de �bra de vidro com 1,60 metro de altura.

Um dos participantes da edição realizada em São Paulo, no �nal do ano passado, foi o artista plástico Reynaldo Berto, que, apaixonado pela cultura mexicana e pela obra de Frida Kahlo, deu origem à Monikahlo. “Em termos estéticos, foi uma experiência fantástica. Tive o cuidado de não descaracterizar a Mônica, mas, sim, de promover a fusão entre duas personalidades tão fortes. Um dos resultados mais grati�cantes desse trabalho foi o fato de, por intermédio de uma personagem bastante popular no Brasil, levar muitas pessoas, que nunca tinham ouvido falar sobre Frida Kahlo, a conhecê-la.”

Capa do gibi A Liga Extraordinária,

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Prato com DNa brasileiro

chefs De PrestigiaDos restauraNtes estimulam a ProDução De iNgreDieNtes

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Quando o biólogo Douglas Bello co-meçou o plantio de árvores frutí-feras nativas em Paraibuna (SP), imaginou que atrairia o interesse de pro� ssionais de turismo ou do meio ambiente, já que recuperaria espé-cies da Mata Atlântica. Errou. Hoje, seus grandes incentivadores são os chefs de cozinha em busca de produ-tos novos e de qualidade. Se as frutas forem desconhecidas ou esquecidas, como baru e cambuci, melhor ain-

da, porque o resgate dá um diferencial aos pratos e até ao restaurante.A demanda crescente fez com que sitiantes vizinhos passassem a

valorizar árvores, como a jabuticabeira, e mesmo a plantar espécies na-tivas, como pés de uvaia. Bello fornece mudas, ensina como cuidar da planta e dá garantia da compra. Na colheita, vende as frutas processadas, como polpa congelada ou geleia, produzidas no próprio sítio. “É uma discussão do Brasil pela gastronomia. Não vejo isso acontecer com tanta força em outros setores”, diz o biólogo, que já plantou 6 mil árvores de 50 espécies.

Histórias semelhantes estão acontecendo com muitos pequenos produtores que trabalham afinados com o pessoal das cozinhas. Quando dá uma garfada em algo desconhecido ou desprezado, o cliente pode estar resgatando um elemento da cultura nacional. A jabuticaba, por exemplo, aparece na Carta de Pero Vaz de Caminha. E o cambuci deu nome a um bairro paulistano, uma vez que o lugar era repleto dessa fruta muito suculenta, que matava a sede de quem vencia longas travessias.

Até a industrialização, o brasileiro comia sem problemas carnes sil-vestres, como queixada e paca. Mas os hábitos mudaram e o paladar também. Na última década, no entanto, cresceu a produção em cativei-ro desses animais e, novamente, o pilar de sustentação foram os chefs. Ao servir esses pratos, os restaurantes estão, obviamente, vendendo um produto, mas atuando também como agentes de um resgate cultural.FO

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PÉROLAS SERTANEJASNo Recife, o chef Claudemir Barros, do Wiella

Bistrô, criou um cardápio de degustação com plan-tas e frutas do sertão, mas não havia quem forne-cesse os ingredientes. O sertanejo tem vergonha dessas espécies, que foram ou são consumidas em tempos de seca e associadas à miséria. Nasceu, as-sim, o projeto Plantar Ação, em que Claudemir in-centiva o plantio, indo periodicamente a algumas regiões para contatos e palestras. Outra iniciativa, a do Projeto Quintais, ajudou a reforçar a lista de fornecedores.

“Existem pérolas na terra seca para a gastrono-mia brasileira”, afirma o chef, que oferece, na degus-tação, um prato que leva facheiro – espécie de cacto destinada à alimentação do gado no Nordeste. Mas usada pelo sertanejo para fazer um doce que tem gosto semelhante ao do mamão. O chef só fala que é facheiro depois que o cliente já comeu. “Do con-trário, não aceitariam. O preconceito é grande”, ex-plica. Mas no Chile e no México, come-se facheiro.

No ano passado, os chefs Ana Luiza Trajano, do Brasil a Gosto, e Alex Atala, do D.O.M, lan-çaram, respectivamente, os livros Cardápios do Brasil e Redescobrindo ingredientes brasileiros, em que apresentam ingredientes que a maioria de nós nunca ouviu falar. Falam de priprioca (raiz), bacuri (fruta) e jambu (folha), entre outros. Há seis anos, um chef de Brasília apresentou aos co-legas do Sudeste a baunilha do cerrado goiano – vulgo baunilha de macaco. Foi um furor, já que po-deria substituir as favas importadas, caríssimas. Até hoje continua sendo apenas um sonho, porque não ocorreu sequer a domesticação da planta selvagem.

Em compensação, o Instituto Socioambiental e a Organização Indígena da Bacia do Içana (AM) conseguiram estruturar, no ano passado, a produ-ção da Pimenta Baniwa Jiquitaia – uma “farinha de pimentas” com sal, feita por mulheres Baniwa. É uma recuperação importante, já que o sistema de roçados indígenas do Rio Negro foi tombado como patrimônio cultural.

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Mas nem sempre o chef vai atrás de um sabor desconhecido da Amazônia ou do Cerrado para re-novar sua cozinha. Roberta Sudbrack, cujo restau-rante no Rio de Janeiro leva seu nome, explora, a cada ano, um ingrediente novo (a maioria prosaico), mas elaborado com refinamento e técnica. Muitos clientes nunca tinham comido quiabo, por exemplo, e pediram para conhecer o legume. Nessa viagem de redescobertas, ela sempre diz que os fornecedores devem ser reverenciados.

VINAGRE DE CANA“Sou um produto do campo”, atesta o chef Alberto

Landgraf, do premiado restaurante paulistano Epice. Tempos atrás, ele quis trocar o vinagre importado pelo nacional, mas não havia bons substitutos. Lem-brou-se de uma fábrica em Assis (SP) que tinha lhe oferecido mais de 30 versões, mas nenhuma atendia às suas necessidades de um vinagre com pouca acidez.

Ao procurar quem apoiaria o desenvolvimento de um bom vinagre nacional, Landgraf pensou na Retra-tos do Gosto. A empresa, que nasceu de uma parceria de Atala com alguns sócios, valoriza o pequeno pro-dutor. Desde o �nal de 2013, o projeto está sob o co-mando exclusivo do chef e, agora, também do instituto ATÁ, que, entre muitas metas, busca incentivar a es-truturação e a pesquisa de produtores com potencial.

Após um ano de trabalho e muitos encontros entre chefs e o produtor, nasceram dois tipos de vinagre: o de cana-de-açúcar e o de mel, que são feitos com ingre-dientes de fácil acesso e sazonalidade, o que dá garan-tia de produção contínua e preço acessível. Enquanto comandava esse trabalho, Landgraf visitou o Nordic Food Lab, na Dinamarca, que é focado em alimentos, e trocou ideias sobre o vinagre em produção aqui.

“O mais difícil foi encontrar equilíbrio: ou era áci-do em excesso ou doce demais”, relata. Em breve, o produto deve chegar às prateleiras, mas já está sendo usado no Epice. Para isso, Landgraf tem parcerias só-lidas com os fornecedores, cujos nomes são listados no site do seu estabelecimento. “Todos os restaurantes deveriam mostrar de quem compram os ingredientes.”

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FUBÁ DA INFÂNCIAAssim como fez com o vinagre, a Retratos �rmou

parcerias para outros produtos: Atala é o padrinho do miniarroz de Pindamonhangaba (SP) e Heloisa Ba-cellar, do Lá da Venda, é madrinha das farinhas de milho e das granolas. “O chef apadrinha o produto, emprestando a imagem dele e certi�cando a qualida-de”, resume Bruno Labegalini Zucato, coordenador do trabalho da Retratos. Ele age para vencer a “distância abissal” entre mundos distintos, o do chef de cozinha e o do produtor rural, e resgatar identidades perdidas.

No caso das farinhas, Heloisa procurava derivados de milho com alta qualidade – item em falta no merca-do. Quando a Retratos foi a campo, à procura de uma alternativa sugerida pela chef, localizaram a fecularia Nossa Senhora das Brotas, em Lindóia (SP), que faz um produto artesanal a partir de milho cultivado na região desde 1959. “Minha avó usava essa marca de farinha e fubá”, recorda-se Zucato, referindo-se às re-ceitas feitas na casa de uma família numerosa, na cida-de de Monte Sião, no sul de Minas. A partir daí, a em-presa de Atala lançou quatro produtos: farinha de milho, fubá, fubá de milho branco e canjica. Os dois primeiros já eram vendidos, os outros dois, não. No livro do chef do restaurante D.O.M, também consta o miniarroz, único no mundo, produzido pela Ruzene, expert em arroz especial de vários tipos. A partir da constatação de que o cultivo do tipo agulhinha, o mais consumido no Brasil, era mais produtivo no Sul do país do que em São Paulo, o engenheiro Francisco Ru-zene se voltou para alternativas. Começou com o arroz preto. Depois, vieram o vermelho e outros mais. Até chegar na produção do miniarroz, que, como o nome sugere, é o menor grão do mercado e, segundo os che-fs, é ideal para ser preparado ao dente (durinho). Ape-sar da resistência inicial, muitos agricultores da região partiram para o mesmo caminho e a tendência é de que os rizicultores do Vale do Paraíba (SP) abandonem o agulhinha. c

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Farinha de milho

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O que é uma droga e o que é um remédio? Que propriedades de-finem, de fato, qual é a função de uma determinada substância? O limite entre essas categorias é, muitas vezes, mais nebuloso do que se imagina. Talvez o exemplo

mais recente dessa inde�nição seja uma droga cada vez mais usada nas baladas, com riscos para muitos usuá-rios, que se revelou um promissor recurso no arsenal para tratar casos graves e refratários de depressão.

A quetamina, inicialmente desenvolvida como um anestésico (tranquilizante) para ser usado em equinos, acabou “escapando” para a noite e conquistando popu-laridade na cena dos clubes noturnos da Europa e dos EUA. Agora, no último mês, um novo estudo realizado pela Universidade de Oxford, no Reino Unido, mostrou que ela conseguiu reverter (pelo menos temporaria-mente) casos complicados de depressão, que resistiam aos tratamentos mais modernos e potentes disponíveis.

Os investigadores queriam saber, também, se o uso da droga (em doses mais baixas do que as usadas na noite) traria riscos de dependência, perdas cognitivas, piora da memória ou paralisia da bexiga. Apesar de al-guns efeitos colaterais, a droga se mostrou segura e seu resultado foi considerado bom e duradouro em pelo menos 30% das pessoas tratadas. É esperar para ver se novos estudos con�rmam mesmo todo esse poder terapêutico. Perceba a trajetória: um remédio para ca-valos, que virou droga de recreação e de abuso, e pode se tornar, no futuro, um tratamento para depressão.

Na contramão desse caminho está outra droga da moda: o ecstasy (MDMA). Desenhado em laboratório para ser um remédio usado contra depressão e ansie-dade, ele trazia como efeitos colaterais uma euforia e alterações sensoriais difíceis de serem evitadas. Acabou sendo abandonado como possibilidade terapêutica! Mas demorou alguns anos para que alguém escapasse com a ideia (e talvez com alguns comprimidos) e levas-se o malsucedido remédio a se tornar a droga que virou protótipo de uma nova categoria (drogas sintéticas), ga-nhando forte apelo entre muitos jovens, frequentadores da noite e das intermináveis raves. Remédios que pas-sam a ser usados, indevidamente, como drogas existem aos montes. Muitos deles, facilmente encontrados nas prateleiras das farmácias, com e sem receita médica.

| coluna | jairo bouer

JAIRO BOUER ACREDITA NA NECESSIDADE DE POLÍTICAS MAIS MODERNAS E ÁGEIS NO QUE DIZ RESPEITO ÀS DROGAS E NAS ESTRATÉGIAS DE REDUÇÃO DE DANOS, QUE ACONTECEM HOJE NO BRASIL E NO MUNDO

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QUE DROGA É ESSA?

A partir daí, a história vai �cando cada vez mais confusa. Maconha, por exemplo, que era vendida como “cigarro indígena” nas ruas do Brasil no início do século 20, acabou ganhando a classi�cação de droga de risco em uma con-venção internacional, teve seu uso proibido por décadas mundo afora e, hoje, já começa a ter sua colocação revista por muitos especialistas em vários países (vide o caso do Uruguai, que a legalizou).

Mas, mesmo se considerarmos a maconha exclusivamente como uma dro-ga, no sentido mais “estreito” do termo, não se pode negar que ela também tem seus efeitos medicinais. Alguns pacientes com glaucoma, câncer, esclerose múltipla, convulsões de difícil controle, caquexia (fraqueza generalizada), ina-petência, náusea provocada por quimioterapia, entre outras indicações, pare-cem se bene�ciar muito do uso desta erva e seus derivados.

Esse trânsito de muitas substâncias entre saúde (tratamentos, benefícios, suporte) e doença (dependência, riscos, abuso, perdas cognitivas) deveria ser repensado, talvez, de uma forma menos categórica e menos rígida do que mui-ta gente parece fazer hoje. Essa �uidez de conceito poderia trazer mais infor-mação, impactos positivos e mudanças nas políticas públicas utilizados hoje na questão das drogas. c

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| perfil | lygia clark

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GRANDE RETROSPECTIVA NO MOMA, EM NOVA YORK, REFAZ TRAJETÓRIA DA ARTISTA PLÁSTICA BRASILEIRA, QUE, NA CORDA

BAMBA DA PSIQUE HUMANA, TRANSPÔS CONSCIENTEMENTE AS PERTURBAÇÕES E ALEGRIAS DA MENTE PARA SUAS CRIAÇÕES

P O R A N A L U I Z A R O D R I G U E S E G U I L H E R M E B R Y A N

Escultura Relógio de sol (1960); na página ao

lado, Lygia Clark usando Máscara abismo com

tapa-olhos (1968)

No dia 10 deste mês, o salão principal do Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), um dos mais importantes do mundo, abrirá pela primeira vez suas portas para outra referência global: a artista plástica brasi-leira Lygia Clark (1920-1988). Em cartaz até 24 de agosto e intitulada Lygia Clark: The Abandonment of Art, 1948-

1988, será a mais completa retrospectiva sobre a obra da artista que ajudou a mudar o panorama da arte brasileira e rompeu as

fronteiras entre arte e psicanálise. “A vivência para ela era a forma de sentir a arte. Ela se satisfazia ao conseguir que os outros in-

gressassem no seu interior e curtissem sem as invasões do mundo exterior”, a�rma Álvaro Clark, �lho da artista carioca e presidente

da associação cultural O Mundo de Lygia Clark, que há 13 anos divulga e preserva o acervo de sua mãe.

A mostra nova-iorquina reunirá cerca de 300 trabalhos organi-zados em três partes: abstração, neoconcretismo e abandono. Entre

eles estão as séries Superfície modulada, Obra mole e Abrigo poético. Trata-se de um momento único, na opinião de Eduardo Clark, também �lho da artista plástica, e a “sacralização de Lygia Clark

no templo da arte”, nas palavras de Álvaro.Lygia Clark estabeleceu novos rumos para sua arte quando, no

início da década de 1970, entrou em contato com o estudo da psi-que humana, ao ser convidada a ministrar o curso de comunicação

gestual na Faculté d’Arts Plastiques et Sciences de l’Art, na Sorbon-ne, em Paris. Transformou sua casa em uma sala de aula ampliada,

na qual promovia exercícios que envolviam a memória coletiva. Os alunos vivenciavam memórias sobre a infância e a relação com os

pais, por exemplo. Lygia se inspirava no método de relaxamento indutivo desenvolvido pelo psiquiatra russo Michel Sapir (1915-

2002). “Quem comandava o tratamento dizia: ‘Vai chover hoje’. E a pessoa deitada imaginava que estava andando sobre a grama

e ia relaxando”, explica a psicóloga Gina Ferreira, que conheceu a artista por meio da cabeleireira do salão do hotel Copacabana Pa-

lace, no Rio de Janeiro, e acabou se tornando sua pupila e amiga.A partir dessas experiências psicanalíticas e de novos estudos,

Lygia Clark desenvolveu a técnica de “Estruturação do Self ”, que consiste no trabalho com o “arquivo de memórias” dos pacientes,

por meio do estímulo das sensações. “O paciente deita em uma su-perfície que ofereça o mínimo de resistência ao corpo, na qual ob-

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| perfil | lygia clark

jetos contendo elementos de naturezas opostas são posicionados no corpo dos pacientes. Ao término da sessão, a pessoa entra em um profundo processo de interiorização, absorvendo no corpo as sensações trazidas pela experiência sensorial, e perdendo a noção de tempo e espaço”, explica o psicanalista e artista plástico Lula Wanderley, que colaborou com a artista.

TERRA, ÁGUA, FOGO E ARO ator, cantor e compositor Jards Macalé foi “salvo” por Lygia

quando a artista retornou ao Rio de Janeiro, em 1976, depois de cinco anos lecionando em Paris, e transformou seu apartamento, em Copacabana, em uma espécie de ateliê-consultório, onde rece-bia de prostitutas a celebridades. “Quando soube do trabalho te-rapêutico de Lygia, aderi à experiência. Devo a ela minha salvação psíquica”, enfatiza Macalé, que teve consultas durante dois anos.

“Ao entrar em contato com Lygia, ouvi que só aprenderia a Estruturação do Self quem vivenciasse a experiência. Foi mara-vilhoso. Foram oito meses em que realmente conheci um corpo que não conhecia. O método te leva a uma interiorização surpre-endente, porque você não está dormindo. Está acordado, mas não tem noção de tempo e nem de espaço. O dentro e o fora se juntam e você não sente mais o objeto”, conta, emocionada, Gina Ferrei-ra, que herdou os pacientes e objetos que a artista usava em suas consultas. O marido desta, o psicanalista e artista plástico Lula Wanderley, foi outro que se encantou com o método da artista e foi convidado por ela para ajudá-la nas pesquisas. “Em princípio, eu fazia as coisas exatamente como ela; depois, achei que deve-ria seguir um caminho próprio e trabalhar o método com pes-soas portadoras de distúrbios psiquiátricos, carentes”, comenta.

CONSTRUÇÃO DO SER E DA ARTEA relação de Lygia Clark com o estudo da psique humana tor-

nou-se um dos pilares de sua obra. “Lygia Clark utilizava o corpo como suporte para os seus trabalhos, seja de maneira metafórica seja real”, explica Felipe Scovino, um dos curadores da exposição Lygia Clark: Uma retrospectiva, realizada no Itaú Cultural, no Rio de Janeiro, em 2012.

Para a psicanalista Cibele Prado Barbieri, autora da tese Da vida à arte e de volta à vida: O sujeito em Lygia Clark – defendi-da no Círculo Psicanalítico da Bahia, em 2008 –, a manifestação artística era uma forma de extravasar suas angústias existenciais, pois a extensão de seus con�itos internos era grave, profunda-mente dolorosa e difícil de suportar, impedindo que fosse dona de si mesma. “Podemos encontrar em seus diários relatos precisos de como os seus processos associativos, de descoberta das fantasias, sentimentos, con�itos inconscientes, encontravam no registro da criação artística uma transcrição satisfatória, apaziguadora, e�-caz para gerar um novo modo de ser, uma identidade própria. Dessa imersão, ela pôde, então, ressurgir, emergir de volta à vida, estabelecer novas formas de laço afetivo e social”, descreve.

Em um trecho do diário, escrito em 25 de dezembro de 1968, Lygia Clark refletia justamente sobre os limites de vida e arte:

As obras Óculos, de 1968, e Ping-pong, de 1966, em uso

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“Gostaria de pegar todos os meus cadernos de apontamentos e fazer uma ligação com a obra que fazia no momento de cada so-nho ligando a obra, a realidade e os sonhos como processo de

toda essa minha luta de integração de tudo”. Em outro trecho, sem data precisa, ela parecia completar: “Como poderia escrever meu

livro? Me pergunto todos os dias e vejo a di�culdade. Seria de como saí da loucura para a vida através da arte e depois como saí

para a vida através da arte, deixando de fazê-la. Esse é o esquema, mas entram todas as vivências na arte, a percepção das mesmas

na vida, os sonhos que formularam muitas vezes o processo da conscientização. Sem ilustrar o processo, sem tempo linear”.

Eduardo Clark conta que a mãe ia todos os dias ao psiquiatra. Era a forma de tentar manter certo equilíbrio no mundo contur-

bado que vivia. “Ela acordava, sentava à mesa do café da manhã e não conversávamos. Eu notava seu olhar perdido nas abstrações

da sua grande paixão que foi a arte. Lembro um dia em que entrei em seu quarto e ela estava chorando, quase uivando. Me assus-

tei, achando que era algo seríssimo. Para ela, era. Ela apontava as revistas de arte e dizia, aos berros: ‘Já �zeram tudo! Não há nada

que eu possa fazer de novo!’”, lembra.Lygia Clark foi uma mulher à frente de seu tempo. Estudou

arte, no Rio de Janeiro, com mestres como Roberto Burle Marx (1909-1994) e Zélia Salgado (1904-2009). Começou como pinto-ra, passando à escultura. Depois, se tornou uma das propulsoras

da Body Art. A artista já contestava o�cialmente as plataformas tradicionais de exposição da pintura desde 1954, quando ajudou

a fundar o grupo Frente. Em 1959, ao participar da I Exposição da Arte Neoconcreta, defendeu que a pintura não se sustentava

mais em seu suporte tradicional, abrindo assim uma discussão acerca dos limites espaciais da arte. Com a série Bichos, esculturas

feitas em alumínio, com dobradiças simulando as articulações das diferentes partes que compõem seu “corpo”, Lygia Clark tornou-se

uma das pioneiras na arte participativa mundial. “Uma pessoa extremamente diferente das pessoas, com aspec-

to muito frágil, mas, ao mesmo tempo, extremamente forte; um aspecto de burguesa, porque ela se vestia muito bem, e, ao mesmo

tempo, extremamente revolucionária. Ela tinha essas dualidades muito interessantes. Era uma mulher extraordinariamente inteli-

gente. Uma das grandes brasileiras do século passado”, a�rma Lula Wanderley, responsável pelo projeto Lygia Clark, realizado pelo Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, com o objetivo de cata-

logar e preservar os registros das propostas sensoriais da criadora. Para Álvaro Clark, era indivisível a relação vida-arte-vida de

Lygia Clark: “Os �lhos não tiveram escolha. Tiveram que abdicar da mãe para que ela tivesse, como foi sua vontade, total liberdade

de criação. No �m, teve que pagar o preço”. O irmão, Eduardo Clark, conclui: “Costumo dizer que nós to-

dos vivemos em um grande palco e interpretamos os mais diver-sos papéis na vida. Somos �lhos, empregados, pais, netos, traba-

lhadores, maridos, esposas. Para mim, agora, com esse grande distanciamento dela, por sua morte em 1988, pude perceber que

ela tinha uma missão: ser uma grande artista”. c

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AUTOR DE ‘LISBOA EM PESSOA’ E ‘À LUZ DE PARIS’,

JOÃO CORREIA FILHO SE DEBRUÇA SOBRE A CAPITAL PAULISTA COM A ÓTICA DOS

MODERNISTAS E OUTROS GRANDES ESCRITORES EM

‘SÃO PAULO, LITERALMENTE’, NOS CONVIDANDO A

CONHECER A CIDADE DE MANEIRA REFLEXIVA E SEM

PRESSA DE ACABAR

Inaugurado em 1954, juntamente com o Parque Ibirapuera, o Monumento às Bandeiras, criado por Victor Brecheret, representa os bandeirantes, suas diversas etnias e a força que tinham para desbravar o país

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ENTRE O CAOS E A CALMA

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Acima, localizado na Barra Funda, o Theatro São Pedro, quando fundado em 1917, foi considerado o mais moderno e luxuoso da cidade, totalizando um espaço cultural para 1000 pessoas; abaixo, forno da padaria São Domingos, que comemorou seu centenário em 2013 e participou de inúmeros momentos históricos da capital; na página ao lado, instalado em outubro de 2008, o piano de cauda pode ser utilizado por qualquer transeunte que circula pelo hall da Estação da Luz

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Turismo e literatura, razões recorrentes para o foto-jornalista João Correia Filho, �zeram o ganhador do Prêmio Jabuti de 2012 (categoria turismo e hotela-ria), com Lisboa em Pessoa – Guia turístico e lite-rário da capital portuguesa, se debruçar sobre as relações entre o movimento modernista na capital paulista e suas atrações turísticas, proposta do seu mais recente guia, São Paulo, literalmente.

Depois de ter retratado a capital portuguesa sob a ótica de Fernando Pessoa e a Cidade das Luzes se valendo de escritores em sua maioria franceses, chegou a vez de Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Guilherme de Almeida, além de outros intelectuais e escritores que enxergam a cidade por meio das palavras, como José de An-chieta, Monteiro Lobato, Luiz Ruffato, Marçal Aqui-no e Ferréz, de conduzir os turistas e moradores pela metrópole de agora e de ontem.

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O destaque dado aos modernistas ocorre por eles terem eternizado a história que viam acontecer de ma-neira intensa nos primeiros anos do século 20. O ar pro-vinciano cedia espaço para a mudança no cotidiano dos paulistanos. “A modernização foi cruel, mas ainda há muita coisa escondida”, diz o autor de 42 anos, que se preocupa com o “como ver” uma atração turística e en-xerga na literatura a possibilidade de puxar o leitor para histórias e mais histórias sobre a cidade. Quanto mais se conhece determinado lugar, mais há para conhecer. Natural de Leme, no interior paulista, ele acredita que mais vale conhecer três ou quatro atrações “bem” do que visitar muita coisa sem se aprofundar.

Em vários momentos, percebemos o aspecto rude dessa cidade que se diz plural e acolhe a todos. Ima-ginar-se turista ou morador nessas condições corres-ponde ao próprio espírito da capital paulista. Quando fez os guias de Lisboa e Paris, ele se recorda de uma atmosfera diferente, na qual o potencial turístico das duas capitais europeias resultou em livros menos duros quando comparados ao seu mais recente trabalho. O uso da “narrativa em primeira pessoa permite contar a história de maneira mais afetiva”, esclarece João, que enxerga no recurso a tentativa de humanizar a metrópo-le. A intenção é diminuir um possível impacto negativo que, à primeira vista, as pessoas possam ter.

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Interior da locomotiva da década de 1960 que faz o passeio turístico a Paranapiacaba, partindo da Estação da Luz. A tradicional vila de arquitetura inglesa, localizada no município de Santo André, fez parte de uma importante fase de expansão da tecnologia ferroviária no Brasil na segunda metade do século 19; na página ao lado, instalado em 1950 ao lado da torre da Estação da Luz, este relógio, além de ser um dos cartões postais da cidade, já serviu de referência para o acerto de relógios dos moradores de São Paulo

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Di�culdades para terminar o projeto também não faltaram. Uma impressão que se tem é a de que em alguns momentos os entornos não aparecem tanto quanto em Lisboa e Paris, fruto talvez da degradação gerada pela desigualdade social. Uma observação que vai de encontro à tentativa de diminuir um pouco os possíveis impactos negativos. São Paulo, literalmente tem na literatura o alento para admirarmos tudo o que existe de melhor aqui: as palavras, as pessoas e as paisagens urbanas que transitam entre o caos e a calma. c

O Beco do Batman, viela no bairro da Vila Madalena, ganhou fama por reunir em

seus muros gra�tes em uma galeria a céu aberto

Noturna da cidade vista do metrô Sumaré, localizado em uma das regiões mais altas de São Paulo, chamada de Espigão da Paulista

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O tradicional centro histórico paulistano abriga a maior parte

dos prédios que retratam os fatos marcantes da terra da garoa, como o Edifício Altino

Arantes, o Banespão, à direita 45rev is tadacul tura.com.br

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Foi em Minas Gerais que o talento para o desenho a�orou em Ronaldo Fraga; a moda seria apenas uma consequência feliz do acaso. “Era épo-ca do �m da ditadura e eu era extremamente militante, só lia literatura política. Então, como o Senac �cava longe, pensei que nenhum amigo iria descobrir que eu estava estudando desenho de moda e eu tam-bém não iria contar.” Do acaso nasceu o ofício realizado com bastante satisfação e reconhecimento. Aos 46 anos, o mineiro, natural de Belo Horizonte, acaba de ser eleito um dos sete estilistas mais inovadores do mundo pelo Design Museum de Londres. “Pensei: ‘Por que eu? Já já

tenho que pagar alguma coisa!’ (risos)”. No museu está exposta a sua coleção Carne Seca, que retrata a caatinga brasileira. “O que acho legal é que na minha geração, quando eu era jovem, quando comecei nos anos 1990, era improvável que um brasileiro estivesse naquele lugar.” A humildade que carrega vem dos anos de trabalho e de autocobrança, já que, para ele, “o suces-so é o canto da sereia”. O reconhecimento é consequência de um trabalho na moda que busca abarcar a cultura por meio de diversas frentes: literatura, artes plásticas, esporte, política e músi-ca são apenas alguns exemplos de suas inspirações. As criações do estilista são marcadas por tantas referências que, no �m, seu trabalho se mostra como um incrível vetor de rememoração da cultura brasileira, ajudando a construir e revelar a identidade do povo. Em março passado, Ronaldo participou do SPFW com uma coleção inspirada nas obras do pintor Candido Portinari, e agora ele assina os desenhos do clássico Mary Poppins, que será lançado neste mês. As ilustrações feitas para o livro eram enviadas para Stella Guimarães e sua equipe de bordadeiras de Itabira, no interior de Minas, que trabalham há um bom tempo com o estilista. Dos bordados foram feitas as imagens para a publicação. “Ele foi todo ilustrado em 40 dias, o pessoal da edi-tora tinha urgência. Eram 15 desenhos que, quando foram feitos, ganharam muita importância.” Os bordados serão expostos no lançamento do livro, mas não existe a pretensão de que os desenhos se transformem em uma nova coleção. “Tenho muitas outras histórias para contar.”

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No último SPFW, sua coleção foi inspirada na arte de Cândido Portinari. Mas, em outros momentos, você também já se valeu do trabalho de Athos Bulcão, mergulhou no universo do sertão nordestino e, agora, acaba de assinar as ilustrações de um clássico da literatura, Mary Poppins. O que tudo isso diz sobre os seus anseios? Existem valores que, de tempos em tempos, nós perdemos, reinventamos ou reconstruímos e resgatamos. Claro que, nesta época, temos valores que foram pelo ralo. Vivemos tempos extremamente pouco afetuosos, pouco generosos. Então, são valores de afeto, de generosidade e de carinho que procuro investigar. Foi o que me levou para São Borja [no Rio Grande do Sul] para trabalhar a crina de cavalo com senhorinhas. É algo característico do artesanato andino, o que é as pessoas fazerem tricô com crina de cavalo? E aí, muito mais do que o produto em si, é a história por trás desse produto. Vivemos tempos desmemoriados e não queremos consumir coisas mudas. Então, nesse novo cenário, as coisas precisam falar. Quando elas falam, se tornam muito mais interessantes, ga-nham mais valor. Quando você olha uma peça e por trás dela vê uma história inteira, é muito interessante. Fiz uma coleção ano passado em um curtume do semiárido em Petrolina [no es-tado de Pernambuco]. Quando cheguei lá, o dono do curtume mostrou as peles, o que eles fa-ziam, vi um monte de pele de boi empilhada e ele disse que tinha defeito, que elas trazem a mar-ca da vida do boi. Os de Petrolina trazem a marca dos espinhos da vegetação. Isso não é defeito, é atestado de procedência, em um momento no qual o couro é sintético. Além dos tempos des-memoriados, vivemos em tempos míopes. O que vai se fazer com tanta pele? Ninguém vai pa-rar de comer carne. O couro vegetal polui muito mais do que o couro normal. Até na produção.

Quais elementos da sua ilustração deram um tom de contemporaneidade ao clássico escrito há 80 anos? O que foi delicioso e ótimo é que eu não tinha visto o �lme e não tinha lido o livro. Primeiro, a Cosac Naify mandou o texto em inglês e eu enlouqueci, é maravilhoso. Ainda bem que eles �zeram isso, porque o �lme da Disney, fui ver depois, é um lixo. A personalidade da Mary é uma coisa impressionante. Fora o �lme da Disney, a história nunca foi ilustrada. A primeira versão só tinha o desenho dela �utuando na capa. Foi uma costura de impressões minhas e do pessoal da editora. O que a Mary tem que eu gosto muito é aquele humor inglês, e é uma história universal, atemporal, ela te provoca e te transforma em qualquer lugar. Eu poderia ter trazido todo o cenário de São Paulo para ela, mas aí teríamos que mexer no texto, que não foi publicado no Brasil ainda e é cheio de referências a prédios que ainda existem por lá. Então, você vai passear nos parques de Londres e imaginar que pode entrar em um quadro, assim como Mary fez. Procurei trazer isso para o desenho. Sugeri que fossem em preto e branco, porque o texto já é imagético, ele já te traz cheiro e cor, e eu quis que cada um colorisse a Mary como quisesse. Então, eu trouxe o Brasil por meio do bordado, que a Stella Guimarães fez com a equipe de borda-deiras lá de Itabira, uma equipe que trabalha comigo há muito tempo. Era para eu fazer 15

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desenhos, �z 55. Eu fazia o desenho, que ia para a Stella, e ela mandava seu trabalho pra cá. O desenho era bordado em �os, porque era como se o vento leste e o oeste estivessem no livro. Quando ele traz a Mary e quando ele a leva embora, tem essa coisa do des�ado, também a questão do �o da história. Logo no início do livro, Mary Poppins e seu amigo vão para um mundo fantástico de dentro do quadro dele. A forma como eles mudaram para um local longe de preocupa-ções e cheio de harmonia é marcada pela mudança de roupas desses personagens. Você acredita que as pessoas já compreenderam o real poder de transformação, externa e interna, que uma roupa pode causar? Acho que isso demanda cultura e entendimento. E a grande maioria das pessoas não tem noção de que a roupa existe para isso. Do contrário, estaríamos envoltos em pele até hoje. A Mary Poppins é uma �gura extremamente inteli-gente e segura, muito bem desenhada, e ao mesmo tempo fascinada por roupas. A única coisa que joga ela no chão é quando ela passa na vitrine e para pra se arrumar. Esse femi-nino também é muito interessante nessa história, é nesse ponto que justi�cou a escolha da Cosac por um estilista para ilustrar, e não um designer grá�co.

Outro ponto do livro é que Mary é uma mulher segura de si e independente. É para esse tipo de mulher que a moda se revela? A moda é um vetor de comunicação, de transformação do olhar, principalmente de quem veste. Como a literatura é um vetor de transformação, o cinema, en�m. Neste caso, a Mary usa a moda da forma como ela tem que ser usada. Se ela tiver que fazer mágica com um acessório, ela vai fazer. Acho que não é para uma mulher segura, acho que a moda é um vetor que pode dar segurança para as pessoas. É um superauxílio na construção diária de uma personagem.

E até que ponto você acredita que a mulher se vê representada nas passarelas? O homem precisa de modelos a seguir, e a indústria do consumo tenta te convencer de que aquela blusa de oncinha que a Gisele usa na vitrine da C&A pode te transformar um pouco na Gisele. Tanto que tudo o que ela veste, segundo dizem por aí, é o que acaba imediatamente. Isso tem muito mais a ver com o grupo precisar de um modelo a seguir, e esse modelo não é um modelo espelho, é o modelo que ele não vai ser. É por isso que a modelo vai continuar magra, com as pernas longas. E o modelo de beleza do mundo é o modelo anglo--saxão. Apesar de a Gisele ter um borogodó brasileiro, ela tem uma beleza anglo-saxônica.

Como você enxerga o caminho da moda em relação à inclusão dos diversos tipos de corpos femininos e masculinos? A moda, historicamente, nunca foi tão democrática

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quanto nos nossos dias. Alguns dizem que é apenas mais uma face de uma ditadura, por-que ela cobra das pessoas algo que elas não sabem: escolher. Já ouvi jornalista e editor fa-lando “para com esse negócio de liberdade, é muito difícil”. Essa liberdade de escolha não é só da moda, é do mundo moderno, é mais um estímulo ao consumo. Daí vem a moda plus size, a moda evangélica. Eu gostaria que a moda estivesse trazendo uma conquista da liberdade real, mas só o tempo vai dizer.

Recentemente, uma pesquisa polêmica do Ipea divulgou que um grande número de en-trevistados acreditavam que mulheres com roupas curtas mereciam ser abusadas sexual-mente. O que isso revela sobre o campo da moda? Volto naquele ponto que falei anterior-mente: para entender a moda demanda-se cultura e entendimento. O resultado dessa pesquisa revela um país ignorante, medieval, uma sociedade medieval. Esse entendimento cultural, de cultura e educação, não é só na moda, isso se re�ete no que as pessoas estão comendo, por exemplo. Estamos extremamente mal-educados. Este Brasil novo-rico revela uma face muito esquisita, acho que muito perigosa. Por outro lado, dizem que um consumidor bem infor-mado, educado e culturalmente bem suprido consome menos, não consome enlouquecida-mente, como o mercado vem pedindo. Então, para eles, é muito bom que continue assim.

Você sente algum estranhamento no universo da moda manifestado por outros criado-res quando você mergulha em artes tão profundas e importantes? Acho que já foi pior, já me colocaram em uma prateleira, dizendo: “Esse menino é isso”. Já me compartimentaram. No início era uma coisa de as pessoas se sentirem ofendidas, tanto a imprensa quanto os colegas. “Isso que ele fez não é moda, é samba-enredo.” Não era comum. As pessoas atiravam para todos os lados e diziam que aquilo era a inspiração delas. A questão da polêmica acerca do bombril usado como peruca das modelos evidencia o preconceito e o desentendimen-to que as pessoas têm com a moda. O alcance delas vai até onde a moda é uma passarela branca, com um bando de gente afetada de óculos escuros, com uma mulher loira bem magra andando pra lá e pra cá e tocando música eletrônica. Isso pra mim tinha passado há muito tempo. A moda é um vetor de comunicação poderosíssimo. Não sou eu quem fala, os últimos 30 anos mostram isso. Sinaliza o tempo que o Brasil está passando, um momento muito perigoso de uma intolerância de todas as formas. É um momento de linchar e depois a gente pergunta, se pergunta, e vem de pessoas de todos os níveis. Sofri de pessoas de todos os níveis, até de apresentadora de TV, e �co imaginando: “Acho que ela pensa”. Por parte dos próprios colegas, tem uma desarticulação muito grande, por isso a crise.

Tudo isso evidencia um público consumidor de moda conservador? A palavra não é con-servador, a palavra é ignorante. A gente está vivendo uma época de cegueira total, estamos importando o pior dos países. O pior da cultura americana. Está sendo despertado um ra-cismo que nunca tivemos. Ao invés da construção de uma terceira via que é a grande expec-tativa. As pessoas têm cada vez mais medo de se expressar, de falar, e isso as torna apáticas.

Você enxerga essa situação como uma regressão em nossa evolução? Se fosse regressão, ainda estava bom. Estamos caminhando para um lugar de cegueira absoluta. O Portinari morre em 1962 e logo na sequência, com o golpe de 1964, ele entra em um ostracismo de 20 anos invisível na cultura brasileira. A direita o considerava de esquerda por motivos óbvios, já que ele era comunista, e a esquerda o associava ao governo, por suas obras estarem nos prédio públicos. Certa vez, vi uma entrevista do Ferreira Gullar em que ele dizia ser um dos que bravamente ‘queimaram’ o Portinari, e ele diz que isso foi importante, porque a sua geração precisava negar a geração anterior para construir algo novo. É isso que o Brasil faz até hoje: nega a geração anterior para poder inventar a roda novamente. Dessa negação, a gente não chega a lugar nenhum, porque não existe apropriação. Apro-prie e depois veja o que você vai fazer para não cair no lugar ridículo de achar que você é o inventor da roda.

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Você vai contra essa negação do antigo para tra-zer o novo. O que suas referências revelam sobre quem você é? Entrei na moda pelo desenho, quase por acaso. Venho de uma família de cinco irmãos que perderam os pais muito cedo. Meu sonho era que alguém pagasse pra mim um curso de desenho, mas nunca ninguém pagou. Então, fazia qualquer desenho; se tivesse alguém pra ensinar a desenhar, eu ia. Um dia, encontrei uma amiga que estava com uma pasta de desenhos de moda. Ela estava fazendo o curso no Senac e era gratuito. E fui sem preten-são de nada, eu era adolescente, era época do �m da ditadura e eu era extremamente militante, só lia literatura política. Então, como o Senac �cava longe, pensei que nenhum amigo iria descobrir e eu tam-bém não iria contar. E aí o setor de colocação pro-�ssional da instituição me chamou para oferecer um emprego em uma loja de tecidos. Iam me pagar, foi o meu primeiro emprego. Pensei: “Gente, vou dese-nhar o dia inteiro e vão me pagar”.

Sonho, né? Pesadelo, né? Quando abriu a porta, ti-nha umas 30 mulheres com rolos de tecidos, baixa, alta, gorda, magra, pobre, rica. Eu não tinha voca-bulário, não entendia de costura, estraguei muito tecido, mas, ao mesmo tempo, comecei a ouvir, aprendi a ouvir o outro para trazer para o papel algo que a pessoa não sabia fazer. Depois, �z facul-dade, fui para Nova York e Londres e, quando voltei para o Brasil, entendi que essa experiência foi de-terminante para o caminho que construí em minha carreira, que era ouvir histórias de todo mundo.

Você tem uma relação com a criação de Zuzu An-gel, que é homenageada atualmente em São Paulo e era uma mulher da moda que carregava as pró-prias indignações para os croquis. O quanto disso toca no seu trabalho? Li o livro Brasil: nunca mais, de Jaime Wright, Paulo Evaristo Arns e Henry Sobel e foi ali que conheci sobre a Zuzu Angel e pensei em como ela era incrível e poderia ter sido minha tia costureira. No entanto, ela pega o que tinha nas mãos e, de uma forma brilhante, denuncia a tortura que havia no Brasil. Esse meu encantamento virou uma coleção anos depois. Eu acho muito sério o ofí-cio que você escolhe, porque muito mais do que pa-gar as contas, é o seu canal de comunicação com o seu tempo. Seja essa indignação política seja emo-cional, com o espaço da moda, maior ou menor, seu ofício pode ser um canal de comunicação muito poderoso. O meu trabalho é isso, a moda não pode perder essa essência. Tento colocar as minhas indig-nações no meu trabalho. c

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90 anos após o primeiro manifesto

surrealista, ainda é

possíveldetectar seus

fragmentos em meio a

debates, reflexões e ideias do

universo das artes

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“Tamanha é a cren-ça na vida, no que a vida tem de mais precário, bem entendido, a vida real, que a�-nal esta crença se perde. O homem, esse sonhador definitivo, cada dia mais desgos-

toso com seu destino, a custo repara nos objetos de seu uso habitual, e que lhe vieram por sua displicência, ou quase sempre por seu esforço, pois ele aceitou trabalhar, ou, pelo menos, não o repugnou tomar sua decisão (o que ele chama decisão!). Bem modesto é agora o seu quinhão: sabe as mulheres que possuiu, as ridículas aventuras em que se meteu; sua riqueza ou sua pobreza para ele não valem nada, quanto a isso, continua recém--nascido, e quanto à aprovação de sua consciência mo-ral, admito que lhe é indiferente.”

Foi com tais palavras que o francês André Breton (1896-1966), à época um escritor de tão somente 28 anos, abre o parágrafo inicial do I Manifesto Surrealista, lançado em 15 de outubro de 1924. Apesar de a bebe-deira não ser o fator central, o porre que Breton e seus confrades deram ao mundo da arte por meio deste texto foi de tal maneira profundo que presenteou a todos com uma ressaca inesquecível. Quiçá eles desejassem liquefa-zer no álcool as memórias de uma Europa pós-guerra, ou a crescente intuição de que outra ainda pior se anun-ciava. O fato é que aqueles jovens tiveram a pachorra de esculhambar os cânones estéticos. Ou talvez isso não seja exatamente verdade. “Ainda há pouco, o grande decano do surrealismo em Portugal, Artur Cruzeiro Seixas, nas-cido em 1920, dizia que o surrealismo era uma aventura ética, e não um modelo estético”, pondera António Cân-dido Franco, professor do Departamento de Linguística e Literaturas da Universidade de Évora, em Portugal.

Já Fiona Bradley, no livro Surrealism (Movements in Modern Art), diz que o surrealismo foi, a princípio, um “empenho de caráter literário”. “Não se havia estabelecido nenhuma linha de ação para os artistas visuais do surrea-lismo até que Breton escreveu O surrealismo e a pintura, em 1925, e não existiu nenhuma exposição especí�ca até que se inaugurou a Galeria Surrealista, em 1926”.

É importante ressaltar que, nesta época também, Freud não estava simplesmente vivo, mas revolucioná-rio. Ele alçara a psicanálise ao protagonismo das investi-gações sobre as entranhas mais sutis dos seres humanos. O impacto desse avanço do inconsciente nos surrealistas foi irrecuperável. Por meio da arte, eles buscavam o que

nomearam de “O Maravilhoso”, ou ao menos uma soleira na qual pudessem escorar-se e admirar este novo mundo, que entendiam estar na comunicação com o irracional, com o ilógico. Pretendiam, assim, orientar o consciente a partir das bases irreconhecíveis do inconsciente. Daí a pai-xão por temas como o estado de sono, pelos sonhos, pela liquidez do tempo e pelo fantástico. A ideia era que tudo ocorresse de modo natural, nas brechas ainda não impreg-nadas pela razão, o que os levou a compor obras em torno da infância, da loucura, da insônia, da alucinação e das drogas que levam aos estados alterados de consciência.

O DNA As preocupações do surrealismo entre 1924 e 1929 –

ano de lançamento do II Manifesto Surrealista –, quando ele ainda tateava em busca de reconhecimento, giravam

em torno da “função psíquica da arte”. A�nal, “a psicaná-lise deixou uma marca fortíssima no código genético da nascença do surrealismo e não mais deixou de in�uir no desenvolvimento da sua vida”.

Não à toa, assim Breton de�niu a si mesmo e a seus correligionários no I Manifesto: “Surrealismo. S.m. Auto-matismo psíquico puro, por meio do qual alguém se pro-põe a expressar – verbalmente, utilizando a palavra escrita,

André Breton, retratado por Man Ray em 1930; na página ao lado, o tríptico Yesterday, Today, Tomorrow, fotografado em 1924 pelo mesmo artistaFO

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ou qualquer outra maneira – o verdadeiro funcionamen-to do pensamento, na ausência do controle exercido pela razão, livre de qualquer preocupação estética ou moral”.

Esta herança antirracionalista é o que alça o surrea-lismo ao con�ito com outras tendências artísticas, como os construtivistas e os formalistas, que floresceram na Europa após a 1ª Grande Guerra. Pela gênese francesa, o surrealismo emparelha-se com similares em proposta, porém não em método e resultado, como o cubismo, for-talecido pela volta dos romantismos francês e alemão. Até compartilhava valores com o simbolismo e a pintura me-tafísica, mas é especialmente com o viés dessacralizador e emputecido do dadaísmo que sempre conversou mais. António lembra que “o empenho político do surrealismo

e dos surrealistas fez-se em torno de questões como a li-nha antiarte e a tradição revolucionária do movimento dadaísta”. Além do mais, muitos surrealistas se escolaram naquela corrente, inclusive Breton, que rompeu com o dadaísmo apenas em 1922. Ambos promoviam uma crí-tica severa à racionalidade burguesa e saudavam O Ma-ravilhoso, o universo fantástico e os domínios do onírico.

Para concretizar este anseio em uma obra de arte, pintores surrealistas testavam métodos para criar ima-gens de maneira automática, testavam colagens e assem-blages, assim como os escritores lançavam-se à escrita automática, ao monólogo interior e às demais técnicas experimentais. Nome importante durante essa primeira fase do movimento, o poeta Jacques Prévert (1900-1977) destacou-se pelo uso de construções literárias novas, como os absurdos quebra-cabeças e enigmas descabidos. Todos esses métodos de criação artística, empregados para dar vazão ao inconsciente, são um legado perma-nente deixado pelos surrealistas, que, apesar de não te-rem inventado a maioria deles, foram, sem dúvida, os que melhor apropriaram, estudaram e ampli�caram seu uso.

De acordo com a pesquisadora em Estudos Lite-rários da Universidade Estadual Paulista, Adriana Rodrigues Simões, que estuda a obra de Prévert, “ele participou do grupo surrealista por cinco anos, de 1925 a 1930. É interessante notar que, durante esse pe-ríodo, ele não publicou quase nada, exceto uma letra de música e outros dois textos. Um deles foi o Mort d’un monsieur, que marcou seu rompimento com o surrealismo e o que ele julgava como autoritarismo de Breton. Os anos que permaneceu no grupo foram de gestação de grande parte dos poemas do livro Paroles,

Sem ideias ou composições preconcebidas, André Masson realizava seus desenhos automáticos (à esquerda): deixava a caneta �uir livremente sobre o papel, sem controle consciente sobre o processo. Quase sempre, o desenho �nal era deixado intacto, mas, às vezes, ele reforçava os elementos �gurativos que haviam emergido do abstrato. Por re�etirem o inconsciente, são frequentemente usados como ponto de aceitação das artes visuais e da ruptura com o dadaísmo. Em 1925, os surrealistas começaram a fazer desenhos coletivos e poemas com uma técnica chamada Cadavre Exquis (imagens do meio e da direita). Praticamente um jogo, o nome deriva da frase formada no primeiro: “Le cadavre exquis boira le vin nouveau.” (“O cadáver requintado beberá o vinho novo”). Dobrava-se um papel, um artista desenhava (ou escrevia) em um pedaço, dobrava novamente a folha, escondendo seu desenho (ou frase), e outro artista dava continuidade sem ver o trabalho anterior. Faziam isso sucessivamente e, quando abriam o papel, o resultado eram �guras ou poemas com combinações aparentemente aleatórias de elementos, já que cada parte tinha sido feita por uma pessoa diferente. Além de ser usado até hoje por artistas, essa técnica in�uenciou, por exemplo, o cut-out na escrita de William Burroughs, cujos princípios se assemelham bastante ao Cadavre Exquis.

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publicado em 1946, também colaborando enorme-mente para seu estilo e toda a sua obra posterior”.

Adriana aponta que é possível perceber a heran-ça surrealista no estilo satírico e até no humour noir de Prévert, “tanto que, anos depois, após fazerem as pazes, Breton incluiu o primeiro poema de Paroles em sua An-thologie de l’humour noir, por considerá-lo �el ao espírito surrealista. Em sua linguagem e em seu modo de com-posição poética são notáveis as influências, como nos estarrecedores jogos de palavras”.

Algumas das técnicas mais interessantes da poesia de Prévert, como colar imagens etimológicas, porém apenas aparentemente desconectadas, é, ou poderia muito bem ser, uma importação que fez de sua atividade como ro-teirista. Não foi apenas Luis Buñuel (1900-1983), talvez o mais conhecido dos cineastas surrealistas, quem mudou os rumos da sétima arte. Prévert foi o escritor francês que mais diretamente in�uenciou o cinema entre as décadas de 1930 e 1950, escrevendo roteiros clássicos, a maioria para o diretor Marcel Carné (1906-1996), os quais alicer-çaram o que �cou conhecido como o Realismo Poético francês. Essa escola inspirou diretamente o cinema noir norte-americano, decisivo para a criação do neorrealis-mo italiano e, apesar das divergências, sem ele não have-ria a nouvelle vague como a conhecemos.

Esse histórico de in�uenciações não é desproposita-do. Cinema e surrealismo admiram um no outro a ob-sessão pela imagem e pelo sonho. De acordo com a pes-quisa de Fernando Mendonça, da Universidade Federal de Pernambuco, intitulada Sonho surrealista no cinema, “se ligarmos a importância da imagem ao fato de o sur-realismo ter adotado o processo cubista de colagem, che-garemos rapidamente à conclusão de que o cinema é um dos meios mais e�cazes e genuínos para a transmissão

Os questionamentos propostos por René Magritte exerceram in�uência sobre várias gerações de artistas. Acima, Les valeurs personnelles (1952) inspira a mudança de escala no pente gigante de Vija Celmins (1970); abaixo, a re�exão sobre a forma de representação e a relação arbitrária entre objetos e imagens proposta em Les charmes du paysage (1928) dialoga com Canvas (1956), de Jasper Johns, e Stretcher frame (1968), de Roy Lichtenstein

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da arte surrealista.” Para Mendonça, a imagem é um dos objetos mais funcionais para a antilógica do movimento, e ela foi avançando até mesmo no sacro terreno das pala-vras: “Um bom exemplo é a escrita automática, que não se importa somente com o sentido que seu texto pretende passar (isso, quando pretende algo), mas se preocupa até em maior escala com a aparência/imagem, ou seja, a for-ma plástica de suas palavras.” Não bastasse isso, o cinema ainda possuía a “característica peculiar” de poder “imitar a articulação dos sonhos”, ou seja, forjar o tão buscado Maravilhoso. Sussurrar na orelha da psicanálise.

A concepção de Um cão andaluz, maior expoente do cinema surrealista, nasceu de um sonho de Buñuel e outro de Dalí. O primeiro sonhou com uma nuvem cortando a Lua, o último, com uma mão repleta de

formigas. Foi no roteiro desse �lme que os espanhóis testaram uma técnica nova de automação da escrita, que nada mais era que um jogo de assemblagens. Eles o chamaram de “Cadavre Exquis”, ou algo como “cadáver requintado”. A ideia, segundo Buñuel, era justamente “não aceitar nenhuma ideia, nenhuma imagem que pu-desse dar lugar a uma explicação racional, psicológica ou cultural. Abrir todas as portas ao irracional.” A rup-tura com o enredo tradicional, a invenção de uma novi-dade em técnica de construção de trama, e a recusa da linearidade, de tempo ou de espaço, são cicatrizes per-manentes que o �lme, lançando em 1928, deixou não só para o cinema, mas para toda a arte narrativa.

Um sujeito que, sem a menor dúvida, assistiu a esse filme atende pelo nome de David Lynch. De acordo com Rogério Ferraraz, na tese O veludo selvagem de David Lynch: a estética contemporânea do surrealismo no cinema ou o cinema neo-surrealista, muitas carac-terísticas apresentadas em Um cão andaluz podem ser encontradas no cinema contemporâneo, e a obra de Lynch, que dialoga intimamente com seu tempo, é a prova cabal, a evidência, o corte, o talho. E ele foi feito usando as mesmas facas: a beleza compulsiva que acon-tece no choque entre duas realidades distintas, o amor louco normalmente representado na mulher, o humor negro e a valorização do mistério, e o acaso objetivo como uma concepção �losó�ca. E isso não é recente, descende de Eraserhead, seu primeiro longa, de 1972, feito com apenas US$ 20 mil. Segundo o famoso crítico de história de cinema, Claude Beylie, Lynch “provou, desde (...) Eraserhead, pesadelo experimental nascido de um cruzamento de Frankenstein com Um cão anda-luz, que deveríamos contar com a sua poesia tenebrosa”.

A parceria entre Buñuel e Dalí ainda renderia outro clássico, L’Âge d’or, que décadas depois emprestaria suas imagens a pintores, seus delírios a poetas e o título a uma célebre canção do Legião Urbana: “Lá vêm os jovens gi-gantes de mármore / Trazendo anzóis na palma da mão / Não é belo todo e qualquer mistério? / O maior segredo é não haver mistério algum”. Foi durante a produção deste �lme que os jovens espanhóis, já gigantes do surrealismo, começaram a se desentender. Mas é importante pontuar que Dalí não abandou o gosto por este método de traba-lho quando se dedicava ao cinema. Inesquecível também sua colaboração posterior com Hitchcock – quem esque-ce a sequência do sonho em Quando fala o coração, no original intitulado Spellbound, de 1945?

II MANIFESTODe acordo com o professor José Niraldo de Farias,

da Universidade Federal de Alagoas, é a partir do se-gundo manifesto que o surrealismo passa a investigar mais a si mesmo, com o intuito de resolver suas contra-

DESEMBARQUE NA AMÉRICA LATINAJosé Niraldo conta que é na segunda fase do surrealismo que acontece a

internacionalização da poesia de Breton. E a América Latina é parte fundamental desse processo. Um dos fatores primordiais foi a viagem de Breton, em 1938, ao México, como parte de um comitê do governo francês que promovia uma conferência em parceria com a Universidade Nacional Autônoma do México. Lá ele conheceu pessoalmente Trotsky, que o convidou a uma viagem até Erongarícuaro, uma espécie de refúgio de intelectuais, entre os quais estavam Frida Kahlo e Diego Rivera. Foi nesta viagem que o histórico Pour un art révolutionnaire indépendent foi escrito por Breton e Trotsky, ainda que, por questões de segurança, a assinatura do bolchevique tenha sido substituída pela de Diego Rivera.

Além desta proximidade, que venceu a geogra�a, o surrealismo expandiu-se até os ares latinos através da presença de alguns escritores em Paris. Esse era o caso de Octavio Paz (1914-1998) e Vicente Huidobro (1893-1948). No Brasil, quem mais bebia da efervescência europeia era o poeta alagoano Jorge de Lima (1895-1953), que, em 1930, �ncou residência no Rio. Rapidamente, seu ateliê tornou-se ponto de encontro de intelectuais, entre os quais estavam Drummond (1902-1987) e Murilo Mendes (1901-1975), grupo que logo incorporaria outro importante poeta, João Cabral de Melo Neto (1920-1999). Murilo se tornou grande amigo e parceiro de letras de Jorge, e é notório o impacto que ambos tiveram sobre a produção poética e literária brasileira, seja por suas obras, seja pela in�uência que exerceram sobre seus pares. Mesmo sendo o an�trião, Jorge teve seu legado obscurecido pelas seguidas recusas da Academia Brasileira de Letras (ABL) de dar-lhe uma cadeira e pela crítica a seu catolicismo.

Aliás, de acordo com José Niraldo, este era um ponto crucial na diferença entre o surrealismo francês e sua interpretação brasileira, cujo impacto em nossa literatura foi mediado especialmente por Jorge de Lima e Murilo Mendes: “Em ambos, há muitos aspectos que se chocam frontalmente com algumas ideias postas no manifesto. Uma delas é a religiosidade. Mas esse assunto também é problemático em Jorge de Lima. A crítica se equivocou ao estigmatizá-lo como um escritor católico. Evidentemente, como um escritor brasileiro, não há nenhuma prova de que ele tenha percebido o movimento surrealista como uma estética a ser seguida �elmente. Ele é um poeta de múltiplas �liações. Bebeu em muitas fontes, mudando sempre. Na realidade, as alterações são importantes para a manutenção do legado. Somos surrealistas antes do surrealismo”.

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dições no que concerne à função social da arte: “Essa preocupação percorre o movimento por inteiro, e ele é permeado por incessantes debates, tensões, contradi-ções e até desavenças pessoais. O fato é que Breton não se conformava com uma possível oposição entre a vida interior e o mundo dos fatos. Por isso, foi bastante criti-cado por Pierre Naville [1903-1993], Sartre [1905-1980] e Camus [1913-1960]. No manifesto de 1924, ele detona com o realismo e atribui valor poético ao materialismo, segundo ele, congruente com a elevação do pensamen-to”. O movimento passa, a partir de então, a dialogar mais intimamente com a política. A�nal, a Revolução Espanhola batia à porta, assim como faria pouco depois a 2ª Guerra Mundial. Havia uma necessidade imperati-va que impelia os surrealistas a se posicionar.

Foi durante esse período, propriamente em 1927, que Breton �liou-se ao Partido Comunista Francês, ao mes-mo tempo que proclamava, no manifesto, a libertação da arte em relação a qualquer dogmatismo enclausurante. A poesia seria a única saída para a libertação. É claro que isso lhe rendeu sérios problemas com o PCF, do qual foi expulso em 1933. Sua relação com o marxismo só seria retomada em sua viagem ao México, em 1938, quando conheceu pessoalmente Leon Trotsky (1879-1940).

Apesar da aparente simbiose com o ex-líder bolche-vique, sua lua-de-mel não durou muito. O motivo da dis-córdia tinha nome: Revolta de Kronstadt. Breton escreve, em seu artigo mais enfático no Le Libertaire, periódico da Federação Anarquista Francesa, de 11 de janeiro de 1952, intitulado A clara torre: “(...)O que se pode con-siderar como triunfo da Revolução Russa e a realização de um Estado operário provocava uma grande mudança de visão. A única sombra do quadro – que se precisaria como mancha indelével – residia no esmagamento da in-surreição de Kronstadt, em 18 de março de 1921. Nunca os surrealistas conseguiram passar por cima disso. (...)”

O que Breton chama de “esmagamento da insurrei-ção” foi um ataque incessante, sob ordens de Trotsky, que durou em torno de dez dias e contou com mais de 50 mil homens do Exército Vermelho. O número de mortos jamais foi contado, estima-se em milhares. “A verdade”, segundo José Niraldo, “é que a proposta sur-realista sempre foi, desde o início, incompatível com qualquer corrente partidária. A proposta libertária do movimento é muito mais abrangente; o poético buscava englobar o político”.

Talvez essa volatilidade ideológica de Breton tenha um viés mais sensível, a�nal ele sabia que tinha sua própria trincheira a defender e domínios a avançar. Para António Cândido, “o surrealismo tem a sua pró-pria revolução a fazer, de tipo ético ou psíquico, e só algo lateralmente, e sempre com alguma decepção, se interessou pela revolução dos outros”. Ele sugere que

L’Âge d’or (no alto), de Buñuel e Dalí, é um exemplo das in�uências surrealistas em obras de cineastas como David Lynch. No centro, cena de Eraserhead e, acima, a desconcertante imagem da orelha em Blue Velvet, ambos do diretor americano

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este foi o caminho que levou o surrealismo a cruza-mentos posteriores com o situacionismo e o �uxus. “Mas o cruzamento que me parece mais profícuo e natural é o que diz respeito ao anarquismo. Ainda há pouco, o poeta brasileiro Sérgio Lima, que tanto tem feito desde a década de 1960 pelo movimento surrea-lista no Brasil, dizia que o surrealismo tinha hoje a anarquia por horizonte.”

De acordo com Breton, no mesmo artigo A clara torre, este era o horizonte desde o início: “Foi no negro espelho do anarquismo que o surrealismo reconhe-ceu-se pela primeira vez, bem antes de de�nir-se a si mesmo”. De acordo com o pesquisador Pietro Ferrua, em seu prefácio ao livro Surrealismo e anarquismo, a relação entre ambos foi oficializada em 12 outubro de 1951, data da publicação da Declaração Prévia, assinada por Breton e outros 16 surrealistas. Naquele dia, eles inauguraram sua coluna periódica no veículo o�cial de uma federação anarquista, colaboração que durou 15 meses. Durante as décadas seguintes, indivi-dualmente, os surrealistas seguiram escrevendo para outras publicações. Ferrua sugere que não foi à toa que pichações com slogans surrealistas, como “A imagina-ção no poder” e “Sonhe o impossível” apareceram nos muros de Paris em maio de 1968.

BEBENDO EM SUAS ÁGUASHá uma série de “ismos” que beberam diretamente

na fonte surrealista, seja na arte, seja na política. Além dos já mencionados, há, por exemplo, o expressionis-mo abstrato e a pop arte estadunidense, que por si só se tornaram inspiração para incontáveis movimentos ar-

REVISTAS DE ARTE O fato de a primeira fonte na qual beberam os surrealistas ter sido a literatura,

explica um pouco o que António Cândido chama de “vocação do surrealismo francês de se fazer através de revistas”. Ainda em 1919, Breton, Soupault e Aragon fundaram a Littérature, que logo se tornou referência e uma espécie de estágio obrigatório para muitos daqueles que depois encamparam o surrealismo. Ela se transformou no veículo certo para o tipo de experimentação que, em 1924, se consolidaria no surrealismo propriamente dito. A revista só morreu com a chegada da La Révolution Surréaliste, o primeiro veículo especi�co do movimento.

Existiram ainda, posteriormente, muitos outros títulos. Entre eles estão a SASDLR (Le Surréalisme au Service de la Révolution; 1930-1933); a Minotaure (1933-1938), editada por Albert Skira; VVV (1942-1944), concebida por Breton no exílio em Nova York; e La Main à Plume (1941-1944), lançada pelos dissidentes do surrealismo francês. A vocação a que se refere António não era uma exclusividade de Breton. Depois de sua morte, em 1966, o surrealismo seguiu expondo-se em revistas, como a Supérieur Inconnu, fundada por Sarane Alexandrian (1927-2009), que resistiu até 2011. Existiu também a Phases (1954-1975), fundada por Edouard Jaguer, que fora colaborador do La Main à Plume.

Mesmo o contato efetivo com artistas visuais se deu por mediação literária, e, claro, de uma revista: a primordial Littérature, a qual o artista Max Ernst, então de braços dados com o dadaísmo, lia na Alemanha. Por intermédio de Breton, em 1921, ele promoveu sua primeira exibição em Paris, cidade que em outubro de 1928, no Studio 28, projetaria pela primeira vez Un chien andalou (Um cão andaluz), escrito por ele em parceria com Dalí e Buñuel. Antes disso, ainda em 1925, a conexão surrealista com outras artes já havia se intensi�cado, quando Breton comprou um quadro de André Masson (1896-1987) e, poucos meses depois, o conheceu pessoalmente. Foi Masson quem o apresentou a seu então vizinho de estúdio, com o qual a intimidade era tamanha que ambos resolveram abrir um rombo na parede que os dividia, a �m de facilitar a comunicação. Seu vizinho chamava-se Joan Miró.

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tísticos subsequentes. As técnicas de colagem comparti-lhadas por elas são semelhanças notáveis, assim como a assanhamento nostálgico com o dadá e o engajamento político travado desde a fronteira artística. Essa proxi-midade germinou até estéticas mistas, como o setentis-ta lowbrow, ou surrealismo pop, um bem bolado entre ambas somado a outras esquisitices deveras bacanas que o pessoal da Califórnia andava transando naqueles tempos. Um dos catalisadores dessa conversa segura-mente foram as obras de Max Ernst e René Magritte.

Este último, nascido no pequeno município de Lessi-nes, na Bélgica, autor de quadros que marcaram, calci�-caram e constituíram o mais puro da genética surrealista. Magritte doou ao movimento os contornos por onde se reconhecer e seguir. Entre suas mais notórias obras es-tão Os amantes, de 1928, O espelho falso e A traição das imagens, ambas de 1929, e A condição humana, de 1933. Com isso, o belga se tornou um dos mais in�uentes de sua geração, sendo reverberado intensamente na indús-tria cultural e alcançando assim público e reconhecimen-to massivo. A canção de Paul Simon, René and Georgette Magritte With �eir Dog A�er the War, não está solitária nestas referências e iluminações. Tampouco Tom Stop-pard, quando escreveu a comédia A�er Magritte.

“Um dos movimentos literários franceses que posso citar é o OuLiPo [Ouvroir de Littérature Potentielle], que em comum com o surrealismo possui a proposta de li-bertação da literatura, mesmo que sob a forma de rígidas regras, além da fundação e participação do ex-membro do grupo surrealista, Raymond Queneau [1903-1976]”, analisa Adriana. Mas, para ela, o que mais impactou a arte foi “sua aposta no sonho, a abertura para caminhos inexplorados e a renovação de sua linguagem tradicional”.

Pontualmente, é possível ver marcas surrealistas no trabalho de artistas bastante divergentes, como Alberto Giacometti (1901-1966), Alexander Calder (1898-1976), Hans Arp (1886-1966), Henry Spencer Moore (1898-1986), Roberto Matta (1911-2002) e uma in�nidade de outros. No Brasil, é notável o eco surreal em Ismael Nery (1900-1934) e Cícero Dias (1907-2003).

Não seria diferente em Portugal, país que confor-mou corrente surrealista própria. Segundo António, a década de 1960 proporcionou ao surrealismo português suas maiores reverberações, “como o abjeccionismo e o surreal-abjeccionismo, que resultaram da chegada de uma nova geração, mas o mais marcante do trajeto sur-realista em Portugal vem das duas décadas anteriores, do período que vai de 1947 a 1953.” Para António, mesmo com o regresso do sentido orientando o horizonte de boa parte da arte contemporânea, “mesmo com a imposição de um rumo preciso”, nós seguiremos carentes de um território virgem, um lugar “onde se inscrevam o sonho e o sem sentido. É essa a atualidade do surrealismo”. c

Na página ao lado, é inegável a similaridade entre a colagem Amapola (1999), do chileno Roberto Matta, e Coquilles Fleurs, pintura feita em 1929 por Max Ernst. Mark Ryden (1963) e Tim Biskup (1967) são dois renomados artistas que fazem parte do movimento lowbrow, iniciado nos anos 1970 na Califórnia

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EXPOSIÇÃO TRAZ AO BRASIL 150 TRABALHOS DO ARTISTA A PARTIR DESTE MÊS. ÍCONE DO SURREALISMO, O CATALÃO SE TORNOU CONHECIDO TANTO PELA OBRA VASTA QUANTO

PELA HABILIDADE DE SE AUTOPROMOVER. ESPECIALISTA NO LEGADO DO ESPANHOL, A CURADORA MONTSE AGUER

APONTA UM “GRANDE TÍMIDO” ALÉM DO EXTRAVAGANTE: “DALÍ SE ESCONDIA ATRÁS DA TEATRALIDADE, DO EXAGERO”

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O INQUIETO UNIVERSO

DE DALÍ

Diariamente, o imenso Teatro--Museu construído por Sal-vador Dalí (1904-1989) em sua cidadenatal, a pequena Fi-gueras, na Catalunha, recebe uma multidão ansiosa para ter contato com o trabalho do ar-tista. Intercalados por estatue-tas douradas, os ovos gigantes

alinhados no telhado do edifício já dão uma pista do que encontrar em seu interior. É proveniente deste complexo, criado para ser o maior objeto surrealista do mundo, boa parte da exposição que chega ao Rio de Janeiro dia 29 deste mês e a São Paulo em outubro, 25 anos após a morte do criador.

A ideia é mostrar a trajetória de Dalí em sua obra e vida, duas coisas dissociáveis. De adolescente com talento para a pintura a um jovem provocador, expulso da Academia de Artes, Dalí casou-se cedo com Gala (Éluard, 1894-1982), sua musa e empresária ao longo da vida. Teve experiências no impressionismo, no da-daísmo e no cubismo, até se situar no movimento sur-realista, em Paris, da década de 1920. Foi para os EUA, onde conheceu Andy Warhol e colaborou com Alfred Hitchcock. Desenhou joias, roupas, objetos de decora-ção. Atraiu a atenção para si em diversos momentos, seja ao dar uma festa na qual o jantar era servido em sapatos, seja ao participar de um popular programa de TV. Atraiu também fúria e ironia de André Breton ao se declarar simpatizante do ditador espanhol Francis- FO

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co Franco, o que causou sua expulsão do movimento surrealista – fato que ele ignorou, a�rmando ser o pró-prio surrealismo. Em sua controversa postura política, dizia-se anarquista e monarquista.

“A mostra é uma viagem pela trajetória artística e de vida de Salvador Dalí”, diz Montse Aguer, curado-ra da exposição e especialista na obra do catalão, com quem trabalhou no �m da vida. “Queríamos mostrar o Dalí surrealista, mas também o que se antecipa a seu tempo e o provocador, que defende a liberdade de imaginação e de criação do artista”, explica.

UM GRANDE TÍMIDOA despeito da sagacidade midiática que tornou

Dalí famoso, a curadora enxerga no artista um pouco conhecido homem tímido. “Dalí se escondia atrás da teatralidade, do exagero, que eram a sua carta de apre-sentação e proteção para a intimidade que ele queria preservar”, diz ela. “Sua aparição constante e progra-mada na mídia lhe permitia continuar com sua total dedicação à arte – esta silenciosa, sagrada –, às horas de criação em seu ateliê, fosse o de sua casa em Port Lligat, fosse nas diferentes suítes de hotéis, em Paris ou Nova York, para citar duas cidades-chave em sua trajetória”, defende.

Autor de obras em diversos suportes, frutos de parcerias artísticas variadas, Dalí era fascinado pelo novo. Empolgou-se com a oportunidade de levar seu trabalho para a animação, no �m da década de 1940, a convite de Walt Disney – o resultado pôde ser visto �nalizado apenas em 2003, no curta Destino. Desen-volveu interesse por temas tecnológicos e cientí�cos, que estão em boa parte de sua obra.

Além disso, nos anos 1980, o seu Teatro-Museu de Figueras foi sede de um congresso com estudiosos que debateram cosmologia, inteligência arti�cial e teoria das catástrofes. Soa familiar ao universo do artista.

TEATRO DA MEMÓRIACom orçamento de R$ 9 milhões, a exposição que

chega ao Brasil tem jeito de retrospectiva, mas é diferente das mostras que atraíram grandes públicos em Paris (800 mil pessoas) e Madri (730 mil) nos últimos dois anos. Conta com obras vindas das mesmas coleções, principais detentoras do trabalho de Dalí – a espanhola Fundação Gala-Salvador Dalí, que coordena o museu em Figueras; o norte-americano Museu Salvador Dalí, da Flórida; e o Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, de Madri –, porém é mais focada na fase surrealista e tem um nú-mero menor de trabalhos. Nas retrospectivas europeias, à seleção se somavam obras de outros museus, como a famosa A persistência da memória, que é parte do acervo do MoMA em Nova York.

No Brasil, Salvador Dalí terá 150 trabalhos, entre pin-turas (como Figuras tumbadas en la arena, tela de 1926 de in�uência cubista), gravuras (incluindo desenhos fei-tos para uma edição de Alice no País das Maravilhas, em 1969), fotogra�as, vídeos (Um cão andaluz e Spellbound estão na seleção) e objetos (uma reprodução da notória instalação Mae West Room). A maior parte da seleção é composta por gravuras e desenhos, somando 80 obras. Já as pinturas são 30, e incluem telas que datam desde a década de 1920, in�uenciadas pelo impressionismo e pela luz de Port Lligat, o vilarejo na costa catalã em que Dalí passava as férias na infância e onde construiu a casa na qual viveu com Gala, atual Casa-Museu.

ESCULTURAS EXPOSTAS EM BRASÍLIADesde o dia 16 de abril, está

em cartaz em Brasília outra mostra, menor, dedicada ao

surrealista. São 26 esculturas de tamanhos variados – três delas

com mais de 3 metros de altura – feitas por Dalí entre 1970 e 1981,

vindas da Coleção Clot, de Madri. As obras podem ser vistas até 15

de junho na Caixa Cultural. Depois, seguem para Fortaleza e Recife.

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O CCBB, que sedia a exposição na capital �umi-nense, estima meio milhão de visitantes no período de mostra, entre 29 de maio e 22 de setembro, época de Copa do Mundo. De outubro a dezembro, a exposição �ca em São Paulo no Instituto Tomie Ohtake, ideali-zador do projeto, que levou cinco anos de negociações para ser fechado, como conta Ricardo Ohtake.

Se, por um lado, a apreciação por milhares parece ser exatamente o que um vaidoso Dalí queria, o lado mais recluso citado pela curadora Montse Aguer �ca evidente no fim da vida do espanhol. Após a morte de Gala, deprimido, Dalí mudou-se para o Castelo de Púbol, comprado para sua musa, mas não viveu ali por muito tempo. Seu quarto pegou fogo, em evento cuja causa nunca foi esclarecida. Já debilitado pelo Mal de Parkinson, passou a habitar o interior de sua última grande obra, onde seu corpo foi sepultado: o Teatro--Museu de Figueras. “É um teatro da memória, de vi-sita imprescindível para entender toda a cosmogonia daliniana. Foi também sua última grande ilusão, na qual projetou seus sonhos e pensamentos”, diz Montse.

Construído entre as décadas de 1960 e 1970, o edi-fício foi erguido sobre as ruínas de um teatro do século 19 e tem público diário de 6 mil pessoas, sendo hoje um dos museus privados mais visitados (e rentáveis) do globo. Na saída do complexo, não há sinal das cha-teações do �m da vida do artista: um retrato mostra um Dalí contemplativo, com uma taça de vinho na mão. E a curadora resume: “Ele sabia que tinha conse-guido êxito e fama. Havia lutado arduamente para isto: queria ser imortal”. c

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ISExterior do Teatro-Museu de Figueras; acima, a instalação Mae West Room exposta no museu espanhol, e que será reproduzida nas mostras brasileiras; à direita, paisagem surreal de Sense of Speed, pintura de 1931

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POR UM MUNDO MAIS SURREALEVANDRO ALVES, RÔMOLO D’HIPÓLITO E LAFA

MERGULHARAM NA OBRA DE DALÍ E COMPANHIA PARA VIAJAR EM SEUS PENSAMENTOS MAIS PIRADOS

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O c a n t o r N e y Matogrosso é de Bela Vista, Mato Grosso do Sul, e, des-de 1966, vive no Rio de Ja-neiro. Como ele, o diretor d e c i n e m a Jo e l P i z z i n i

também cresceu no Centro-Oeste, na cidade de Dourados, retornando ao Rio, sua cidade natal, somente em 2003. Ney sabe que, de al-guma forma, está preso a esse passado, não o renega, mas de nada sente saudade. Já Pizzini lembra o tempo em que vivia perto da fron-

teira com o Paraguai, da infância subindo em pé de abacate, brincando no quintal, e acredita que a liberdade de criança define ainda hoje seu trabalho – uma procura constante pelo cinema lírico e que almeja, antes de tudo, o prazer estético.

Juntos, os dois retornaram recentemente à região de origem. Foram a Bela Vista para gravar parte das cenas que integram Olho nu, documentário sobre Ney, assinado por Pizzini. Não foi a primeira vez que estiveram reunidos em terras sul-mato-grossenses. Conhecidos de longa data, chegaram a gravar um curta--metragem em 1988. Caramujo-Flor narra o itinerário do poeta Manoel de Barros, tendo Ney como protagonista de imagens em com-pleta integração com a natureza. Para o proje-

EM ‘OLHO NU’, DOCUMENTÁRIO SOBRE NEY MATOGROSSO ASSINADO POR JOEL PIZZINI, DIRETOR E PERSONAGEM RELUTAM

PARA CHEGAR A UM ACORDO, MAS ACABAM SE ENTENDENDO

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to de 21 minutos, realizado em película, Pizzini chegou a gravar cinco horas. E, mesmo Ney, que não é de se ater ao passado, ressentiu-se da falta das cenas excluídas pela montagem. Sentiu tanto que, quando convidou Pizzini para dirigir um documentário a seu respeito, um dos pri-meiros questionamentos foi sobre o que havia acontecido com as sobras de Caramujo-Flor.

Olho nu, com estreia prevista para este mês, resgata parte dessas imagens. Elas se tor-naram uma espécie de fio condutor do filme. A essas cenas, juntam-se também outras ra-ridades, como algumas imagens do show Ho-mem de Neanderthal e reuniões entre amigos captadas em super-8. Para realizar o projeto, Pizzini teve acesso a um extenso material, re-gistros e entrevistas que o próprio cantor acu-mulou em 40 anos de trajetória. Alguns deles sequer tinham sido vistos, como o depoimen-to do pai militar que, após estranhar o com-portamento transgressor de Ney, confessava--se um fã. Ao assistir às fitas, o cineasta teve a impressão de que o intérprete havia dado uma única entrevista durante toda a vida, tamanha a lógica de ideias. “Acho que sou coerente por-que me dou o direito de mudar de raciocínio. Não sou uma rocha, tento ser flexível, mas, de fato, tenho personalidade”, diz Ney.

TRISTE E SOLITÁRIOQuando Ney mostrou a Paulo Mendon-

ça, do Canal Brasil, a quantidade de arquivos que possuía em casa, os dois pensaram ime-diatamente em transformar o material em um documentário para a televisão. A entra-da de Pizzini, pouco depois, contribuiu para que a ideia migrasse para o cinema. O filme, como outros trabalhos do cineasta, prioriza aspectos sensoriais, sem se fixar em uma li-nha temporal. O nome de Pizzini surgiu, em parte, porque o cantor acreditou que alguém mais próximo de sua vida, com quem já tivesse trabalhado, poderia compreendê-lo melhor. A tensão entre eles, no entanto, foi uma constan-te do trabalho.

Desde o início, Pizzini insistiu em levar Ney a Bela Vista para recriar uma memória de infância. O cantor relutava. Disse inclusi-ve que, ao entrar na casa do avô, onde costu-mava brincar ainda criança, não sentiu nada, nenhuma nostalgia. “Eu insisti muito, porque ainda que o Ney diga que não é preso ao pas-sado, está sempre voltando a esse universo. A bisavó dele, por exemplo, era índia, e ele usa elementos da cultura indígena nas suas cria-ções, nas maquiagens”, explica Pizzini.

O cineasta chegou a colocar a música Ho-mem de Neanderthal em uma tentativa de inspirar memórias. Ney entendeu que Pizzini queria uma atuação, impacientou-se, mas ce-deu. “Eu estava ali como ser humano, e não como ator. Falei tudo isso ao Joel, nós temos intimidade, somos muito amigos. Em alguns momentos, fazia umas performances pra ele ficar satisfeito”, explica.

Mas, quando os dois sentaram para assistir ao primeiro corte do filme, Ney não gostou de alguns momentos em que atuava e não se sentia totalmente representado; pediu mu-danças. Sentiu a ausência dos anos 1980, pe-ríodo considerado por ele o de maior extrava-gância e quase inexistente no documentário; conseguiu a inserção de uma ou outra cena. Reclamou da falta de músicas completas; não houve jeito – Pizzini fincou o pé que isso era condição para um DVD, e não para o cinema. Ney brigou por Toquinho, gostava dos dois cantando e flertando, sorridentes, sem que os olhares representassem qualquer ameaça; é uma bela cena do documentário. Preocupou--se também com a imagem de homem triste e solitário que via na tela. “Eu não sou essa pessoa”, argumentou, conseguindo, depois, amenizar a impressão.

ÂNGULO DISTANTENa visão de Pizzini, o filme é um eterno

retorno de Ney a suas origens, com o objeti-vo de recriar o espaço mítico que o intérprete ocupa. Existe sempre uma metamorfose entre FO

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o palco e a vida, o artista e o homem – a si-tuação fica explícita no momento em que o cantor aparece no espaço privado com figu-rinos de espetáculo. “O Ney incorpora vários personagens, é um ator de uma história que é maior que ele”, explica.

Nesse recorte, o cineasta buscou eleger o que via de mais potente na trajetória artísti-ca do intérprete. A década de 1970, sem dú-vida, representa uma de suas escolhas – é o período que ganha maior destaque durante as quase duas horas de filme. Há também ele-mentos que dizem mais respeito ao criador do que à criatura: Pizzini explorou aspectos de sua vida pessoal, de quem acompanhou a trajetória do retratado por um ângulo distan-te, ouvindo junto com pai e mãe muitas das canções que seriam mais tarde interpretadas por Ney. Por esse motivo, referências a Ângela Maria e Emilinha Borba estão presentes. O cantor, entretanto, estranhou ao deparar com a imagem de Orlando Silva ocupando a tela; revelou que não havia muita relação entre ele e o carioca. “Mas tem a ver comigo”, respon-deu Pizzini. E a cena permaneceu.

Há também uma passagem em que Ney interpreta Chalana ao lado do músico cam-po-grandense Almir Sater. “São sequências ligadas à minha infância. Vivi anos em Dou-rados, perto da fronteira, ouvindo guarânia, que é um gênero musical paraguaio, e sei que o avô do Ney também ouvia. Se fosse outro realizador, as opções provavelmente seriam diferentes.”

Entre os amigos que já assistiram ao docu-mentário está a cantora e compositora Lucina, de quem Ney é próximo e já gravou inúmeras composições. Para Pizzini, ela afirmou que o resultado nada mais é do que a representação do cantor que conhece. “Ela é uma das melho-res amigas do Ney e seu comentário me passa, sim, uma tranquilidade”, diz. Apesar das res-salvas, Ney não discordou: “No fim das con-tas, chegamos a um acordo. Acho que estou ali, sem filtros, sem enganação”. c

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KARINA BUHR, NA ESCOLA, HASTEAVA BANDEIRA E FORMAVA FEITO SOLDADO, SEM SABER POR QUÊ. ERA ANTES DE 1985. TWITTER @KARINABUHR

Minha escola era católica e mezzo hippie, tinha aula de expressão corporal, de que eu e mais uns três da turma gostávamos. Dormia horrores.

Um tempo desse tinha catecismo. Fui expulsa do catecismo. Graças a Deus. Na escola não lembro se aprendi golpe ou revolução. Perguntei pra meus companheiros de classe e os poucos que lembravam que aprendemos golpe. Graças a Deus. Lembro que estudamos trocas de presidentes, mas onde aprofundei o tema foi em casa, com minha mãe e minhas tias.Com meu pai também, mas isso foi depois. Era estranho o que chamavam de folclore nas festas de escola. Orixá lá é folclore! Oxalá tenha dó. O presidente era Figueiredo, um cara de quem eu tinha medo.Tanto medo quanto o que sentia dos caras da bíblia, que eu adorava ler, até pelo medo mesmo, o mesmo arrepio de quando assistia a Simbad, o marujo, na Sessão da Tarde. Antes dos programas da TV, tinha o aviso da censura, mas soava normal. Minha mãe me explicou que alguém que era muito fã de John Lennon tinha matado ele. E também que a bomba de Hiroshima matou as pessoas, mas �caram as sombras delas.Matutei esses fenômenos por muito tempo. E chorava ouvindo Ney cantar as “feridas como rosas cálidas”.Em Recife, morava na casa do meu avô e minha avó, ele alemão, ex-seminarista, quase padre, tocava piano lindo. Ela brasileira, descendente de índios, dona de casa, cantava e pintava lindo demais, católica.Lembro que nunca gostei de como a bíblia falava das mulheres. Nem nunca entendi porque eles �ngiam que Maria era virgem. Mas ia com minha avó pra procissão no bairro, Iputinga, segurando as velinhas que queimavam os dedos e acompanhava encantada o passeio da imagem de Nossa Senhora pelas casas.

Uma luz azul, meio alienígena, muitas �ores, minha avó e as outras mulheres cantando lindo e um conforto quentinho no coração. E ainda podia dormir tarde.“Da seiva nasceu a rama, da rama brotou a �or, da �or nasceu Mariiiia, de Maria o Salvador...”.Até hoje sou meio romeira. Eu gostava desse tal de menino Jesus. Na minha casa nunca teve Papai Noel.Eu era de outra cidade e tinha um sotaque muito louco que variava conforme fosse férias ou aulas. Quando morava em Salvador ia pra Recife nas férias e quando morava em Recife as férias eram em Salvador. Mudava de sotaque a cada 3 meses. Era bom, mas sofria. Mas aí cada qual com seu cada qual. Gostava que sempre dava pra eu me esconder aqui e ali, por entender um pedacinho daqui que o dali não entende e um dali que o de cá não compreende.Pai e família em Salvador e interior da Bahia, mãe e família em Recife, na Paulista e espalhados pela Alemanha, pra cá e pra lá do muro.Abre parênteses. Conheci o lado de lá do muro um pouco antes de ele cair (e estava lá quando caiu). Fui com a turma da escola onde “estudei” nos sete meses que morei em Lägerdorf, no norte da Alemanha, não aparece em qualquer mapa.Eu adolescente, com um bando de adolescentes alemães vendo a RDA pela primeira vez. Com todas as histórias que eu colecionava da minha tia indo e voltando, do meu avô querendo ver o irmão e o irmão querendo ver ele.Eu achei lindo atravessar. Tremia o corpo com a emoção de tanta história derretendo pelos olhos. Mas os carrinhos eram lindos sim, pareciam de papelão. Meus colegas achavam tudo cinza e era mesmo. A principal diferença a olho nu e o primeiro impacto era de cores. Tudo cinza e marrom. Fecha parênteses.“De Salvador?! Não parece!”. “Descendente de alemão? Pigmeus alemães?”. Eu não falava “foda-se”, eu era obediente.Tinha Bichos escrotos, dos Titãs, minha primeira banda paixão rock and roll. Mas eu não cantava o “vão se fuder”, morria de vergonha.Fiquei treinando em casa até ter coragem. Hoje tenho bastante.

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Eu me demorava com mais cuidado e deli-cadeza no cotidiano da minha existência. Eu saía para a rua e olhava nos olhos das pessoas e tomava cuidado com as palavras para poder seduzir ou me deixar ser arre-batado por elas e por tudo. O diafragma das minhas retinas guardava os meus me-lhores momentos. Sempre que eu me apai-

xonava, queria que fosse eterno enquanto durasse...Não tinha a ansiedade de dividir com mais ninguém além

da pessoa amada. Eu saía do cinema ou do teatro só com a lembrança das imagens que despertassem minha curiosida-de ou estimulassem meu querer saber, como se eu fosse um grande �lósofo e pensador da alma humana.

Quantas vezes adormeci com a provocação de Felli-ni, Buñuel, Visconti, Godard, Shakespeare e Orson Welles; quando as lágrimas ou o riso inundavam o meu rosto.

Eu só tinha o espelho como possibilidade de registro para eternizar as minhas angústias ou dúvidas de querer ser um ser humano melhor.

Eu olhava para mim mesmo, cara a cara no espelho do ba-nheiro, e dizia: “O que você vai querer ser quando crescer?”.

Eu não tinha amigos no Face. Eu queria amigos face to face para encostar a cabecinha no ombro e chorar.

Eu fumava, bebia, transava, estudava, trabalhava e ainda sonhava em transformar o mundo. Eu me indignava com a miséria, a fome, a ignorância, o preconceito e a corrupção.

Agora, tudo mudou. Não olho para mais nada. Sou o centro de tudo.

Eu me basto na solidão do meu iPhone 4, 5, 6... Me tornei um artista maior. Registro tudo, para poder provar que estive lá. Sem me importar se a minha poesia se tornou menor. O que conta não é mais a qualidade, e sim a quantidade de imagens e como sou visto, seguido e por quantos.

Estou bombando!Invento o personagem que eu quiser. Sou o roteirista do

meu próprio �lme e ainda faço o meu fundo musical. Minha ilha de edição é fenomenal. Lanço o meu produto no mer-cado mostrando o meu melhor. É por isso que sou amado e invejado!

É verdade que, às vezes, não tenho mais opinião sobre o que está ocorrendo no planeta. Não entendo o que estão dizendo nos livros, nos jornais e nas revistas.

Só gosto das minhas fotogra�as. Perdão, dos meus sel�es!Os velhos que me perdoem, o que importa é estar na moda!Ontem, tive um sonho antigo onde eu dizia baixinho:“Ai que saudade de mim!”. c

QUANDO O INSTAGRAM NÃO EXISTIA

| coluna | elias andreato

ELIAS ANDREATO É ATOR, DIRETOR E ESTÁ, NO MOMENTO, COM DOIS ESPETÁCULOS TEATRAIS SOB SUA DIREÇÃO EM CARTAZ EM SÃO PAULO: FLORILÉGIO MUSICAL 2 – NAS ONDAS DO RÁDIO E MYRNA SOU EU

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O homem nasce nu. Mas, desde sempre, é logo coberto por algo que o proteja, a começar pelo calor e pelo carinho da mãe. A caminho da proteção do corpo, surgiram as roupas e, para elas, a tecnologia foi fundamental. Sem algo que cortasse e costurasse os tecidos feitos com novas �bras, talvez a gente ainda estivesse enrolado em pele de animais. É a tecnologia que vai produzindo os tecidos adaptados a usos especiais e os que irão se desfazer na terceira lavada para te dar chance

de considerar aquela roupa já descartável e poder disfrutar do prazer de com-prar outra. Ou você pensava que não era a tecnologia a responsável pelo furo que apareceu na sua blusinha quase nova?!

Ligado a esse conceito de proteger o corpo com uma vestimenta, lá pelo ano 1250, aparece outro conceito: ampliar alguma capacidade individual, limi-tada por qualquer razão. Aparece um objeto que não era de vestir – os óculos –, mas que era capaz de aumentar a capacidade de enxergar.

Passados mais de 750 anos, estamos diante de mais uma convergência tec-nológica tão estranha quanto útil: a possibilidade de “vestir” engenhos que não só ampliem capacidades do corpo humano, mas que também ajudem a superar limitações. Essa convergência deu uma boa acelerada quando os com-putadores deixaram de ser trambolhos enormes e passaram a ser algo que dava para carregar embaixo do braço, incluindo a fonte de energia elétrica para fazê-los funcionar. Aí surgem os “wearable computers” que, em uma tra-dução literal, são “computadores de vestir”. E aí está a base do que hoje chama-mos de “wearable technologies” ou “tecnologias de vestir”.

Apesar de serem vestíveis e, em alguns casos, até se parecerem com roupas, elas estão muito mais orientadas para aumentar alguma capacidade do corpo humano do que para protegê-lo do frio na noite de inverno. Esta parece ser a onda da vez, aquela que entra sem pedir licença. Fique bem ligado, porque, em breve, deve aparecer uma dessas tecnologias que será “vestida” por um terráqueo com uma séria limitação de locomoção e nós vamos assistir à barreira da imobilidade causada por acidentes ser ultrapassada ou, pelo menos, contornada. E aí, acabou a cadeira de rodas.

Em tecnologias de vestir, a grande expectativa está mesmo no que se pode colocar na frente dos olhos. Tal como aconteceu há quase 800 anos, esses engenhos, ain-da chamados de óculos, vão aumentar a realidade das coisas. Assim: hoje, você olha para uma roupa e vê a roupa. Sua forma, a estampa, as cores. A realidade da

| coluna | fabio gandour

FABIO GANDOUR É CIENTISTA-CHEFE DA IBM RESEARCH E “VESTE” ÓCULOS DESDE QUE SE ENTENDE POR GENTE. DEVE CONTINUAR VESTINDO NOVAS TECNOLOGIAS. IL

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roupa. Mas essa realidade pode ser aumentada se, através dos óculos com que você vê a roupa, você também veja informações sobre a �bra do te-cido, a fábrica onde ela foi feita e, de repente, até um videozinho da ope-rária que ajudou a dar o acabamento naquela peça, te desejando sucesso com o uso da roupa! Notou como a realidade do traje �cou muito maior através dos óculos? E a tecnologia já está prontinha para aumentar a rea-lidade de tudo. Agora, imagina você na balada, olhando um cara e vendo que, de fato, a realidade aumentada do cara mostra que ele não é bem aquilo que está na sua frente... Surge um outro conceito de nu. É o �m do nu do jeito que você sempre conheceu.

Resummary: as tecnologias de vestir, “wearable technologies”, em inglês, devem se popularizar muito. E aqui, você começa a entender o que é isso.

Escrwitter: aqui http://humanityplus.org/ tem uma turma que leva essa onda com uma pegada de �loso�a de vida. c

O FIM DO NU

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BEM MASTIGADO

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A COMBINAÇÃO DO ABSTRATO, DO IRREAL E DO INCONSCIENTE, MISTURADOS À ATIVIDADE CRIATIVA, DEU VIDA AO SURREALISMO NA DÉCADA DE 1920. JUNTAMOS TUDO O QUE SABÍAMOS (E O QUE DESCOBRIMOS NESTA EDIÇÃO DA REVISTA) SOBRE O MOVIMENTO E SUAS INFLUÊNCIAS E CHEGAMOS À CONCLUSÃO DE QUE O SURREAL ESTÁ MAIS PRESENTE EM NOSSA VIDA DO QUE IMAGINAMOS. DE VINHETAS COM MENSAGENS SUBLIMINARES A ANIMAÇÕES QUE NOS LEVAM A MUNDOS NUNCA IMAGINADOS, PASSANDO POR IMAGENS QUE ILUSTRAM SONHOS, TUDO PROVA DE QUE A BUSCA POR NOVAS PIRAÇÕES ARTÍSTICAS NÃO PARAM NUNCA!

PERTURBAÇÕES ADOLESCENTESAcredito que todos que estão nos seus 20 e tantos anos passaram boa parte de sua adolescência assistindo à MTV. O canal era uma boa representação dos nossos anseios e dilemas. Marca de suas produções eram as suas vinhetas bastante surreais, cheias de colagens, luzes, movimentos e mensagens subliminares. Lembro-me de vê-las e sentir uma perturbação muito grande. Acredito que elas davam uma sensação parecida com a ideia do famoso slogan: “Desligue a TV e vá ler um livro”. (Renata Vomero – Estagiária)

JANELAS MÁGICASDiretor das incríveis animações Coraline e o mundo secreto, James e o pêssego gigante e O estranho mundo de Jack, Henry Selick é mestre em construir universos cheios de re-ferências surreais, com elementos que nos transportam a tramas baseadas em realidades alternativas. Em todos os seus �lmes, Selick consegue nos conduzir a viagens atra-vés das sombras, sempre com um tom sobrenatural, e ao mesmo tempo se dedica a demonstrar as íntimas emoções de seus personagens. Devido à parceria com Tim Burton em diversos projetos, a obra de Selick muitas vezes acaba sen-do comparada – quando não confundida – com a de seu colega. Mas temos que reconhecer que ambos trabalham excessivamente bem a mescla do surrealismo com o terror em seus �lmes. (Clariana Zanutto – Editora)

AS IMAGENS DOS SONHOSGrete Stern, fotógrafa alemã formada pela Bauhaus e radicada em Buenos Aires no entre-guerras, fez uma série de fotocolagens para coluna El psicoanálisis le ayudará, da revista Idilio, no período de 1948 a 1951. As imagens ilustravam uma seção em que lei-toras escreviam cartas narrando seus sonhos e estes eram interpretados por psicanalistas. Exposta em instituições como o Museu Lasar Segall (SP), o Instituto Moreira Salles (RJ) e o Malba, na capital argentina, a série Os sonhos traduz com dinamismo os anseios, medos e agonias dessas mulheres enclausuradas por uma sociedade machista. O universo onírico de Greta dialoga explicitamente com obras de Max Ernst, Dalí e Magritte e pode ser conferi-do no livro Os sonhos de Grete Stern. (Carol Grespan – Diretora de arte)

CLARO QUE AQUI TEMMário de Andrade, que considerava as técnicas surrealistas “perigosas”, ren-deu-se à collage em 1939: “É tão empol-gante que em pouco tempo vira vício”. Falava sobre as colagens de seu acervo, reunidas em 1987 no livro hoje raríssi-mo O poeta insólito – Fotomontagens de Jorge de Lima, publicação do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, que é peça relevante na velha discussão sobre se houve ou não surrealismo no Brasil. So-bre isso, vale consultar ensaios dos poe-tas Floriano Martins, Sérgio Lima – autor do livro Collage, outra raridade, de 1984 – e Claudio Willer. Este último apresenta, para quem quiser entrar no debate, uma visão geral no portal Cronópios. Mas quem quiser só curtir um surrealista brasileiro, que se refestele com a poesia de Manoel de Barros e a prosa de Cam-pos de Carvalho. (Mirian Paglia Costa – Redatora)

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QUESTÃO NACIONAL

RETRATAR MOMENTOS MARCANTES DA POLÍTICA BRASILEIRA NÃO É FÁCIL, MAS DRICA MORAES ACEITOU O DESAFIO DE

INTERPRETAR ALZIRA VARGAS, FILHA DE GETÚLIO VARGAS, NO FILME GETÚLIO, DE JOÃO JARDIM. O LONGA, QUE ESTREIA DIA PRIMEIRO DESTE MÊS, MOSTRA OS ANOS FINAIS DO MANDATO

DO EX-PRESIDENTE, INTERPRETADO POR TONY RAMOS; DESDE O ATENTADO A CARLOS LACERDA (ALEXANDRE BORGES) ATÉ O SEU

SUICÍDIO. “NOSSO FILME NARRA A CRISE POLÍTICO-MILITAR DO BRASIL DE 1954, AO MESMO TEMPO QUE CRIA UM PONTO

DE VISTA INTERNO, COMO SE QUISÉSSEMOS VER POR DENTRO O QUE SE PASSAVA COM GETÚLIO.” PODER ENTRAR EM CONTATO

COM UMA HISTÓRIA TÃO RICA PARA O PAÍS TAMBÉM AJUDOU DRICA A COMPREENDER MELHOR QUESTÕES NACIONAIS.

“A POLÍTICA É ALGO MULTIFACETADO. HOJE, PROCURO DIVERSIFICAR AS FONTES DE INFORMAÇÃO. TER OPINIÃO

FECHADA E ELEGER UM SÓ VEÍCULO COMO FONTE É A PIOR ALIENAÇÃO.” ALÉM DE CONTRACENAR FIGURAS LENDÁRIAS DE NOSSA HISTÓRIA, A ATRIZ SE ENCANTOU COM OS AMBIENTES POLÍTICOS EM QUE SE REALIZARAM

AS GRAVAÇÕES: “FILMAR NO PALÁCIO DO CATETE FOI VIVER UM MISTÉRIO FANTÁSTICO!”. (RENATA VOMERO)

| preferidas | drica moraes

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MUSEU DA REPÚBLICA (PALÁCIO DO CATETE), NO RIO DE JANEIRO “Pela beleza e austeridade da arquitetura e do mobiliário.”

OLGA, DE FERNANDO

MORAIS “Drama humano situado em meio

à guerra nazista e à ditadura da América

Latina. Lado sanguinário da Era Vargas.”

CASABLANCA, DE MICHAEL CURTIZ“O �lme tem um ótimo equilíbrio entre uma emocionante história de amor e o retrato político e social de uma época.”

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OS SAMBAS DE CARMEM

MIRANDA “Partiu para os Estados Unidos em 1939, com

o status de maior cantora

da época, legitimando

o samba como marca cultural

do Brasil.”

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ESCREVER É UMA PAIXÃO TÃO GRANDE NA VIDA DA JORNALISTA MIRIAM LEITÃO QUE SEU OFÍCIO ABRIU ESPAÇO PARA A LITERATU-RA. AUTORA DE DOIS LIVROS INFANTIS, MIRIAM AGORA SE COLO-CA EM TERRENO DESCONHECIDO: A FICÇÃO PARA ADULTOS. ELA ASSINA O ROMANCE TEMPOS EXTREMOS, QUE NARRA A HISTÓRIA DE UMA JOVEM QUE ENTRA EM CONTATO COM DOIS PERÍODOS MARCANTES DA HISTÓRIA DO BRASIL: A ESCRAVIDÃO E A DITADU-RA MILITAR DE 1964. “GOSTO DE SAIR DA MINHA ZONA DE CON-FORTO, JÁ FAÇO ISSO DENTRO DO JORNALISMO. GOSTO DE DE-SAFIOS. SONHO DESDE OS 10 ANOS EM SER ESCRITORA.” APESAR DO NOME FAMOSO E DOS ANOS DE CARREIRA, MIRIAM CONFESSA SENTIR MEDO SEMPRE QUE DEPARA COM ALGUMA NOVIDADE. E DESSA VEZ NÃO É DIFERENTE: “ESTOU PARECENDO UMA ADOLES-CENTE, COM UMA ANSIEDADE TERRÍVEL”. O NOVO GERA EM MI-RIAM UM SENTIMENTO DE REJUVENESCIMENTO. “ESCREVER TEM O PODER DE FAZER EU ME SENTIR JOVEM. É O ENFRENTAMENTO DE MUNDOS NOVOS.” (RV)

| preferidas | miriam leitão

BLACK IS THE COLOR OF MY TRUE LOVE’S HAIR, NINA SIMONE

“A família da personagem do livro é muito musical, alguns tocam violão,

violino. Então, a música é muito presente na narrativa. E essa canção

da Nina Simone é muito marcante para a personagem.”

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CENTRO DO RIO DE JANEIRO“É importante passar por onde foi o mercado de escravos, também no Cais do Valongo, que é o local em que os escravos desembarcavam. Esse lugar foi redescoberto por causa das construções da Copa. Outro lugar interessante é o Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos, um cemitério dos negros que morriam ao chegar aqui. Ele foi reformado agora, �cando mais organizado, mas antes dava para ver muito do que foi aquele lugar, um horror.”

DE VOLTA PARA O FUTURO

UMA PARISIENSE NO BRASIL, DE ADÉLE TOUSSAINT-SAMSON “Também traz um olhar contemporâneo para a situação brasileira do período da escravidão. Adéle �cou bastante tempo no país, podendo ter muito contato com a nossa cultura. Para ela, foi um choque.”

DIÁRIO DE UMA VIAGEM AO BRASIL, DE MARIA GRAHAM“Maria Graham foi uma escritora inglesa que veio ao Brasil no período colonial e trouxe sua visão contemporânea a respeito da escravidão, uma visão de horror.”

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BATE CORAÇÃO

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O TIMBRE ÚNICO E AS COMPOSIÇÕES RASGADAS DE SENSAÇÕES SÃO SÓ UM POU-CO DO QUE NOS REVELA FILIPE CATTO, CANTOR E COMPOSITOR INTEGRANTE DO NOVO CENÁRIO DA MPB. “ACHO QUE VIVEMOS UM MOMENTO MUITO RICO NA MÚSI-CA BRASILEIRA, COM MUITAS POSSIBILIDADES, MUITA COISA SE TRANSFORMANDO. A INTERNET TROUXE ISSO, ESSA ABERTURA PARA QUE A GENTE PUDESSE FALAR DIRETAMENTE COM O PÚBLICO.” CATTO ENTRA AGORA EM TURNÊ PARA DIVULGAR SEU ÚLTIMO ÁLBUM, ENTRE CABELOS, OLHOS & FURACÕES, CHEIO DE REFERÊNCIAS DE DIVERSOS RITMOS, O QUE CONFERE AO CANTOR UMA IDENTIDADE SINGULAR. “SEMPRE OUVI DE TUDO, GOSTO DE MUITA COISA. SOU FRUTO DE UMA INFINIDADE DE SONS. CRESCI OUVINDO RÁDIO FM E ASSISTINDO À MTV, ALÉM DE OUVIR O QUE MEUS PAIS GOSTAVAM. ENTÃO VAI DE MILTON A VELVET UNDERGROUND.” TODOS OS DIFERENTES ESTILOS QUE CERCAM O TRABALHO DO COMPOSITOR SÃO COSTU-RADOS PELO FIO DO AMOR. “O AMOR, SEMPRE, DE TODAS AS FORMAS. O SEXO, A PAIXÃO, A DOR DE COTOVELO, A VOLTA POR CIMA. GOSTO DE TOCAR NAQUILO QUE É MAIS SECRETO DENTRO DE MIM, QUE ACABA SENDO UNIVERSAL.” (RV)

| preferidas | filipe catto

QUE ISSO FIQUE ENTRE NÓS, PÉLICO

“Um dos retratos mais sensíveis e sinceros sobre o amor (e o desamor) que eu

já ouvi. Eu cantaria todas as músicas deste disco. São

canções corajosas, arranjos preciosos para palavras e

sentimentos tumultuados.”

O FIO DA NAVALHA, EDMUND GOULDING “Versão cinematográ�ca do livro de Somerset Maugham. É um �lme poético, que traz à tona um questionamento importante sobre o que vale a pena na vida. O personagem principal é um buscador, totalmente deslocado dos valores, interesses e politicagens do jogo social ao seu redor, e que vai atrás do que acredita. Um clássico.”

O DIÁRIO DE FRIDA KAHLO: UM AUTORRETRATO ÍNTIMO“Este livro é de chorar de tão especial. É quase como uma violação, de tão íntimo, tão sincero. Desenhos, pensamentos, cartas, esboços que nos levam muito perto do coração de Frida.”

TO BRING YOU MY LOVE, PJ HARVEY“Este é um disco avassalador e apaixonado. É um dos meus preferidos de todos os tempos. Amo a PJ Harvey, porque ela não tem medo de mudar totalmente de pele de um trabalho para o outro. Neste, houve uma tremenda ruptura da crueza dos discos anteriores para uma sonoridade mais exuberante.”

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| cultura você vive | goiânia | por françois calil

O professor e poeta KAIO BRUNO DIAS, em calma e aconchego no Evoé, local que mistura livros e café, lia o romance grá�co A arte de voar, de Antonio Altarriba, relato biográ�co com fortes cargas emocionais. “O livro transita entre o épico e o histórico, mostrando a realidade e a dura vida de Antonio, homem que esteve presente durante os primeiros períodos de transição sociocultural da Espanha e da França.”

A fotógrafa CAROLINE DE SOUZA FERREIRA, clicada com sua �lha Elisa, escolheu a Praça Universitária, em um tranquilo �nal de tarde, para narrar à peque-nina a história de O livro dos bichos malucos, de Va-léria Belém. “Sempre gostei de ler e agora leio para minha �lha também. Quero passar para ela o prazer e os benefícios que a leitura proporciona.”

O produtor cultural, jornalista e compositor CARLOS BRANDÃO, que atualmente dirige o Teatro Goiânia, lia, em frente ao lugar, o livro Teatro Goiânia: histó-ria e estórias. “As pessoas fazem perguntas sobre curiosidades do teatro e acabo tendo que recorrer a este livro, do historiador Gilson Borges, para sanar as dúvidas.”

A empresária e estudante de Ciências Sociais GIOVANA BELEM OGAN-DO SANTANA, que relia Todos os homens são mortais, de Simone de Beauvoir, gosta de ouvir o silêncio do Parque dos Buritis, onde foi fo-tografada. “É sempre bom encontrar lugares no meio da cidade, onde se pode ter um momento calmo e de proximidade com a natureza.”

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| internet |

| ONDE ENCONTRAR A REVISTA DA CULTURA | SÃO PAULO/SP | Conjunto Nacional | Av. Paulista, 2.073 | Tel.: (11) 3170-4033 | Shopping Villa-Lobos | Av. Nações Unidas, 4.777 | Tel.: (11) 3024-3599 | Market Place Shopping Center | Av. Dr. Chucri Zaidan, 902 | Tel.: (11) 3474-4033 | Bourbon Shopping São Paulo | Rua Turiassu, 2.100 | Tel.: (11) 3868-5100 | Shopping Iguatemi | Av. Brg. Faria Lima, 2232 | Tel.: (11) 3030-3310 | CAMPINAS/SP | Shopping Iguatemi | Av. Iguatemi, 777 | Tel.: (19) 3751-4033 | RIBEIRÃO PRETO/SP | Shopping Iguatemi | Av. Luiz Eduardo de Toledo Prado,900 | Tel.: (16) 3602-5240 | RIO DE JANEIRO/RJ | Shopping Fashion Mall | Estrada da Gávea, 899 | Tel.: (21) 2730-9099 | Cine Vitória | Rua Senador Dantas, 45 | Tel.: (21) 3916-2600 | CURITIBA/PR | Shopping Curitiba | Av. Brigadeiro Franco, 2.300 | Tel.: (41) 3941-0292 | PORTO ALEGRE/RS | Bourbon Shopping Country | Av. Túlio de Rose, 80 | Tel.: (51) 3028-4033 | BRASÍLIA/DF | CasaPark Shopping Center | SGCV / Sul, Lote 22 | Tel.: (61) 3410-4033 | Shopping Iguatemi | CA 4, Lote A – Loja 101 | Lago Norte | Tel.: (61) 2109-2700 | RECIFE/PE | Paço Alfândega | Rua Madre de Deus, s/nº | Tel.: (81) 2102-4033 | Shopping Rio Mar Recife | Av. República do Líbano, 251 | Tel.: (81) 3256-7500 | FORTALEZA/CE | Varanda Mall | Av. Dom Luís, 1.010 | Tel.: (85)4008-0800 | SALVADOR/BA | Salvador Shopping | Av. Tancredo Neves, 2.915 | Tel.: (71) 3505-9050

NOS DIAS 10 E 11 DESTE MÊS O CENTRO CULTURAL BAN-CO DO BRASIL DE SÃO PAULO SEDIA O FESTIVAL CCBB DE MÚSICA URBANA, UMA HOMENAGEM AO ROCK DE BRASÍ-LIA, QUE ACONTECERÁ NO VALE DO ANHANGABAÚ COM ENTRADA FRANCA. O EVENTO REUNIRÁ NOMES COMO NANDO REIS (À DIREITA), ULTRAJE A RIGOR, PLEBE RUDE (À ESQUERDA), VESPAS MANDARINAS E OS EX-LEGIÃO UR-BANA DADO VILLA-LOBOS E MARCELO BONFÁ, CANTANDO MÚSICAS QUE FIZERAM HISTÓRIA COM SUAS LETRAS POLI-TIZADAS. CONFIRA NA SEÇÃO ENTREVISTAS UM BATE-PAPO COM O INSTRUMENTISTA E PRODUTOR CARLOS TRILHA, UM DOS RESPONSÁVEIS PELA PRODUÇÃO DO EVENTO.

SÓ NO SITECONFIRA ALGUNS DESTAQUES DESTE MÊS EMWWW.REVISTADACULTURA.COM.BR

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ENCONTRO DE GERAÇÕES

SALVE-SE QUEM PUDEREstreia neste mês o novo remake de Godzilla, dirigido por Gareth Edwards. Desta vez, a trama mostrará o monstro due-lando com outras criaturas malévolas por território, além de ameaçar a nossa própria existência. Fizemos um apanhado de outros �lmes que retratam forças terríveis da natureza contra os seres humanos e o resultado você confere em Reportagens.

O PODER DO SPRAYRomance, gra�te, skate, referências sobre música e arte são apenas alguns dos elementos do romance Graf�ti Moon, um livro sensível sobre o amadurecimento e a busca de signi�cados na vida dos personagens criados pela australiana Cath Crowley. Leia os melhores momentos da conversa que tivemos com a autora em Entrevistas.

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| novíssimos | atados

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Cinco amigos que se conheceram no curso de adminis-tração da USP já tinham empregos em grandes empre-sas quando sentiram que não estavam satisfeitos com suas vidas pro�ssionais. Daniel Morais Assunção, Luiz Henrique Madaleno, Bruno Tataren Sepulcri, João Pa-dula e André Cervi decidiram fazer um site no qual as

pessoas pudessem postar tudo de que precisassem e, dessa ideia, surgiu o Atados, em 2012. O projeto era a criação de uma rede so-cial que juntasse voluntários e ONGs que precisam de auxílio. “Pre-paramos uma apresentação e fomos até as ONGs perguntar o que elas achavam. Aí foi quando a gente mais se animou. Conhecemos as pessoas das organizações e do mundo social e conversamos com programadores para fazer o site, já que não tínhamos conheci-mento desse mundo”, revela Daniel Morais.

De maio a novembro daquele ano, foram 70 ONGs visitadas, fa-zendo com que os meninos adentrassem cada vez mais no universo do trabalho social. O encantamento os levou a largar seus empregos formais e para que se dedicassem exclusivamente ao projeto.

Assim que o site foi lançado, houve muita procura de candidatos a voluntários e, com o tempo de trabalho e pesquisa, os fundado-res perceberam que precisavam auxiliar as ONGs em muitos outros

aspectos além do voluntariado. “Pensamos que um site resolveria todos os problemas, mas, visitando cada uma das ONGs, vimos que o site era só uma ponta do que deveríamos fazer. Então, percebe-mos que poderíamos ajudar no gerenciamento dos voluntários, na formação de parcerias, na forma de trazer recursos, na comunica-ção, na procura de voluntários e muitas outras demandas”, comenta Daniel. A iniciativa fez o Atados ganhar diversos prêmios do meio social, além de reconhecimento.

Começou, então, o trabalho dos rapazes nas empresas que gos-tariam de oferecer aos funcionários a oportunidade de fazer trabalho voluntário. “O que a gente tenta atacar nas empresas é como os lí-deres podem apoiar os funcionários que querem fazer voluntariado.”

Agora, com 220 ONGs cadastradas no site e uma equipe fixa de 14 pessoas, além de um núcleo em Curitiba e outro em Brasília, o Atados lança o projeto Da Gaveta pra Rua, com o objetivo de convidar publicitários e criativos a disponibilizar suas ideias enga-vetadas para as ONGs. “Quem deu a sugestão é quem deve correr atrás da viabilização do projeto. Nosso trabalho é o de estimular essas pessoas, ajudando a fazer dar certo. Recebemos muitos e-mails de pessoas que querem auxiliar na produção das ideias,” esclarece Daniel. c

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