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37 O que é o “Conhecimento”? Alexandre Meyer Luz* N este ensaio apresentamos uma introdução ao problema da de- finição de conhecimento proposicional. Mostramos, utilizan- do as ferramentas da análise conceitual, que uma definição em termos de crença, verdade e justificação é uma definição capaz de captar nossas intuições pré-teóricas em relação ao conceito, mas também mostramos que ela sucumbe diante de um severo ataque de contra-exemplos. Depois disso, exploramos as relações entre verdade e justificação, mostrando que os ataques à nossa capacida- de de obtenção de certezas não implica diretamente na aceitação do relativismo. Por fim, consideramos as implicações de uma epis- temologia não-esclarecida para áreas de interesse prático, como a educação. PALAVRAS-CHAVE: Teoria do Conhecimento; Justificação Epistêmica; Problema de Gettier; Epistemologia da Educação. Resumo Revista da Fapese, v. 2. n.2, p.37-52, jul./dez. 2006 * Doutor em Filosofia. Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Sergipe. E-mail: [email protected].

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O que é o “Conhecimento”?

Alexandre Meyer Luz*

Neste ensaio apresentamos uma introdução ao problema da de-

finição de conhecimento proposicional. Mostramos, utilizan-

do as ferramentas da análise conceitual, que uma definição

em termos de crença, verdade e justificação é uma definição capaz

de captar nossas intuições pré-teóricas em relação ao conceito, mas

também mostramos que ela sucumbe diante de um severo ataque

de contra-exemplos. Depois disso, exploramos as relações entre

verdade e justificação, mostrando que os ataques à nossa capacida-

de de obtenção de certezas não implica diretamente na aceitação

do relativismo. Por fim, consideramos as implicações de uma epis-

temologia não-esclarecida para áreas de interesse prático, como a

educação.

PALAVRAS-CHAVE: Teoria do Conhecimento; Justificação

Epistêmica; Problema de Gettier; Epistemologia da Educação.

Resumo

Revista da Fapese, v. 2. n.2, p.37-52, jul./dez. 2006

* Doutor em Filosofia. Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federalde Sergipe. E-mail: [email protected].

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Alexandre Meyer Luz

Introdução

O significado de um conceito pode ser estabe-lecido, em alguns casos, por apelo ao seu lugar emuma teoria. Este é o caso de conceitos como os de“gravidade” de “evolução” e de “paradigma”, con-ceitos que, ao menos inicialmente, revelavam a suautilidade apenas porque faziam parte de teorias quelhes conferiam significado. Assim, qualquer ten-tativa de explicação detalhada do conceito devefazer referência aos corpos teóricos estabelecidospor Newton, Darwin e Thomas Kuhn, respectiva-mente.

Há conceitos, porém, que não possuem paterni-dade clara, conceitos que não parecem vinculados aum corpo teórico em particular. Isto, todavia, não ésinônimo nem da falta de importância de tais con-ceitos, nem da impossibilidade de atingirmos algumesclarecimento sobre eles.

Exemplos desta espécie de conceitos podem serfacilmente apresentados. Não precisamos de qual-quer referência teórica, de qualquer tipo de forma-ção sofisticada para identificarmos que termos como“ético”, “conhecimento”, “belo”, etc. são termos querevelam apreciação positiva de algo. Podemos dis-cordar, por exemplo, sobre se algo é ou não belo, masnão discordaremos da idéia de que “belo” é um ter-mo de aprovação e da de que “feio” é um termo dereprovação.

Conceitos desta natureza não podem receber es-clarecimento sem apelo a estas intuições pré-teóri-cas. Uma explicação do significado de “belo” devepartir não de alguma teoria estabelecida, mas sim dapercepção de coisas como a afirmação de que se tra-ta de um termo de valor. Uma explicação que defen-da ou implique que “belo” é um termo de reprova-ção é uma explicação contra-intuitiva, e isto forneceum critério para o descarte da explicação. Nestemesmo sentido, o apelo às intuições pré-teóricaspermite também que regulemos o apelo à autorida-de, enquanto tais intuições são mais fortes do que otestemunho da autoridade.

Tais intuições pré-teóricas, todavia, são muito li-mitadas, em geral. Por exemplo, elas não nos reve-lam o que significa “comportar-se de modo ético”. Eelas não são sequer claras: freqüentemente encon-tram-se obscurecidas por maus hábitos lingüísticos,que precisam ser revelados e eliminados. Por exem-plo, concordamos todos que duas negações se anu-lam, produzindo uma afirmação, como na frase “eunão sou imortal”. Reconhecendo o prefixo “i” comoum prefixo de negação, parece-nos irresistível afir-mar enfaticamente que nosso interlocutor está afir-mando que morrerá, algum dia. A despeito desta fir-me convicção sobre o cancelamento da dupla nega-ção nós instituímos o hábito de declarar que “nãofizemos nada”, sem reconhecer as mesmas duasnegações que condenamos anteriormente. E,estranhamente, nos causa espanto a declaração deque alguém que diz que “não fez nada” (assim, semvírgulas) está a realizar uma declaração de culpa, nãode inocência. Mas, por mais que nossos maus-hábi-tos lingüísticos sejam aceitos pela nossa comunida-de, enquanto aceitamos que duas negações na mes-ma frase se anulam, somos obrigados a aceitar quenossos hábitos culturais estão, sob este aspecto, er-rados.

A suposição é, pois, a de que podemos imaginarcertos padrões universais ligados a conceitos (assimcomo supomos que existem padrões universais deraciocínio, explicitados pela Lógica e pela Matemáti-ca). Esta é uma tese que deve ser, ela mesma, tomadacom algum cuidado, como nós mesmos sugerimosacima. Tais padrões universais, manifestos através dasintuições pré-teóricas, devem ser tomados de formamodesta e devem ser constantemente reavaliados, afim de eliminar aquilo que é meramente um dadocultural tomado inadequadamente como algo univer-sal. Mas ela é uma tese que oferece uma alternativaaparentemente muito razoável tanto ao apelo à auto-ridade quanto ao relativismo desenfreado.

Dado isto, cabe lembrar que este trabalho de es-clarecimento conceitual é, desde há muito, um dostrabalhos da Filosofia. Ela procura fornecer, até oúltimo grau, explicações substanciais para o conteú-

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do de algumas espécies de conceitos, retirando-os,sempre que possível, do lusco-fusco no qual são fre-qüentemente abandonados, seja devido à impreci-são de nossa linguagem, seja devido à nossa poucapreocupação em relação ao rigor conceitual, seja de-vido às distorções provocadas pelo recorrente mauuso de certos conceitos.

O conceito de “conhecimento” é um dos concei-tos que tem ocupado a atenção dos Filósofos, ao lon-go de toda a história da Filosofia. Ele dispensa co-mentários sobre sua relevância. Nossas atividadescotidianas são em grande parte determinadas em fun-ção das nossas expectativas em relação àquilo que“sabemos”, em contraposição àquilo em relação aoqual “temos dúvidas”, ou “mera opinião”, etc. Eletambém é um conceito que carrega certas suposiçõespré-teóricas; nós certamente consideramos “conhe-cimento” como um termo de louvor, em contraposi-ção à “erro”, por exemplo (e não precisamos estudarfilosofia para percebermos tal coisa).

Como veremos, porém, o conceito de “conheci-mento” é mais complexo do que costumamos supor.Tal complexidade faz necessária uma análise maisdetalhada. Só esta análise revelará o que se escondeem sua complexidade. E isto nos permitirá um usomais cuidadoso do conceito, afastando conseqüênci-as inadequadas provenientes de seu uso inadequado.

Pretendemos, aqui, oferecer uma primeira abor-dagem ao conceito de “conhecimento”, utilizando asferramentas da análise conceitual, assim como indi-car alguns problemas relacionados a este conceitocentral para a Filosofia e para a cultura como umtodo.

1. Três sentidos de “conhecer”

Um primeiro trabalho é o de verificar se “conhe-cimento” é um conceito unívoco. Não parece ser ocaso. Ao analisarmos nossos usos lingüísticos do ter-mo “conhecimento”, identificamos aquele uso queaparece em expressões como “Pelé sabe1 jogar fute-bol”. O que significa o verbo saber na expressão an-terior? A resposta é clara. “Saber” refere-se a umadada habilidade. Um equivalente da proposição ante-rior é a proposição “Pelé tem a habilidade de jogar fute-bol”. Não perderíamos qualquer conteúdo semânticose utilizássemos tal frase, a despeito da primeira.

O “conhecimento” a que nos referimos (e que Peléreconhecidamente possuía) é uma habilidade; comohabilidade, ela não é algo que possamos repassar2 aoutros indivíduos. Ela é algo que será desenvolvidaatravés do treinamento e da repetição. A este tipo de“conhecimento” denominaremos conhecimento como

habilidade.

Um tipo distinto de uso do termo “conhecimen-to” pode ser identificado quando utilizamos expres-sões como “o gato sabe o caminho para casa” e “obebê conhece Maria”. Parece não ser razoável inter-pretar o uso de “conhecimento” aqui como um usoque se refere à posse de habilidade pelo gato ou pelobebê. Podemos, por isso, distinguir aqui um novotipo de uso: “conhecer”, em tais frases, pode ser in-terpretado como se referindo a um certo elementopré-reflexivo, que se manifesta através de uma ação,a ação de distinguir algo dentre semelhantes. Nósexpressamos este elemento quando, diante de umapessoa na rua, afirmamos que “conhecemos tal pes-

1 Algumas pessoas defendem uma distinção entre os significados de “saber” e de “conhecer”. É evidente que podemosestabelecer, num dado contexto teórico, usos especializados para certos termos. Nossa questão aqui, porém, consisteem considerarmos se existe tal distinção em nossa linguagem cotidiana. Sendo assim, não creio que possamosencontrar, em nosso uso cotidiano dos termos, qualquer distinção significativa entre os dois conceitos. Algumaslínguas, como o inglês, utilizam um único verbo para o papel realizado pelos dois verbos na língua portuguesa, semprejuízo.

2 É evidente que podemos ensinar alguém a jogar futebol. Por melhores professores que sejamos, porém, não dependeapenas de nós que alguém aprenda a jogar futebol como Pelé jogava. Habilidades podem ser desenvolvidas, masdependem, certamente, de elementos intrínsecos ao indivíduo.

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soa”, num sentido que não está ligado ao saber seunome, onde mora, etc. Nós simplesmente percebe-mos que reagimos a tal indivíduo como se já o tivés-semos visto. A este uso do termo “conhecimento”denominaremos conhecimento por familiaridade oude trato.

Há, porém, um terceiro e último uso do termo“conhecimento”. Trata-se daquele uso que apareceem frases como “Eu sei que Pelé sabia jogar bem” ou“Pedro sabe que Maria conhece Antônio” ou “Antô-nio sabe que está chovendo”. O que estas frases têmde diferente em relação a frases como “Pelé sabe jo-gar futebol” e “o cão conhece seu dono”? Temos, ago-ra, uma frase que fala sobre um certo estado sobre

estas frases. O Objeto da frase “Antônio sabe que Pelésabia jogar futebol” não é a habilidade que Pelé pos-suía, mas uma certa, digamos, pretensão que Antô-nio supostamente pode manifestar em relação à in-formação de que Pelé sabia jogar futebol; Antônionão está em dúvida, nem tem uma mera opinião; elesabe que as coisas são assim. Do mesmo modo, quan-do dizemos que “Pedro sabe que Maria conhece An-tônio” estamos declarando que Pedro estaria dispos-to a (ou pelo menos em condições de) sustentar que“Maria conhece Antônio” não é apenas verdadeira,mas possui, adicionalmente, outras característicasque a colocam numa posição digna do título de “co-nhecimento”. A este tipo de uso do termo “conheci-mento” denominaremos conhecimento proposicional,já que se trata de conhecimento de proposições.3

2. Uma definição de conhecimentoproposicional

O conhecimento proposicional possui algumascaracterísticas que fazem dele algo de particularmen-te valioso para nós, humanos. Enquanto o conheci-mento como habilidade pode ser desenvolvido pelarepetição e o conhecimento por familiaridade pela

convivência, eles não podem, por exemplo, sertransmitidos à distância, através de livros ou ou-tros produtos culturais. O conhecimentoproposicional, devido exatamente ao seu caráterproposicional, garante-nos a estabilidade para aque-le tipo de análise detalhada que chamamos de “ci-ência”, “filosofia” etc.

Vamos nos deter, no que segue, no usoproposicional de “conhecimento”. Ao identificarmoso uso de um conceito em uma língua não estamos,ainda, explicando integralmente seu significado.Assim, nossa questão agora passará a ser “quandopodemos utilizar, em seu uso proposicional, o con-ceito de “conhecimento”?”. Uma forma ainda maisprimitiva de formular a questão é “o que significa,em seu sentido proposicional, “conhecer”?”

Em primeiro lugar, o conhecimento de uma pro-posição envolve uma certa atitude em relação à pro-posição: a atitude de crença. Imagine que Pedro, poruma razão qualquer, não acredita que o ornitorrincopertença à classe dos mamíferos. Esta razão pode sermuito ruim; digamos que ele não acredita nisto por-que detestava sua professora de Biologia, ou, pior,que ele simplesmente tem uma antipatia inexplicávelpelo desajeitado animal australiano. Esta razão podeser, por outro lado, aceitável; digamos que o fato dosornitorrincos colocarem ovos o faça crer que elespertencem a uma outra classe (o que, obviamente, ofaz descrer da possibilidade de ser um mamífero).Independente da qualidade das razões, porém, suadescrença, enquanto persistir, é suficiente para afas-tar Pedro do conhecimento. Assim, para que alguémsaiba uma dada proposição num instante, este alguémprecisa, antes de tudo, crer nesta proposição. Há duasalternativas à crença em algo: a descrença e a sus-pensão de juízo (alguém suspende o juízo quandoconsidera que é incapaz de decidir entre a crença e adescrença em uma proposição em questão); as duasalternativas, porém, não parecem permitir o conhe-cimento.

3 Uma proposição (termo tomado, neste ensaio, como sinônimo de “enunciado”) é grosso modo uma descrição de algo,algo que tem a propriedade de verdade ou de falsidade.

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Imagine, agora, que estejamos a conversar sobreo último sorteio da Loto. Vamos supor que não háqualquer razão para que desconfiemos de algumamanipulação do sorteio, algo que de fato não ocorre.Alguém diz que “crê que o número cinco será sorte-ado”. O sorteio é feito e o cinco é sorteado, de fato.Seria adequado, neste caso, utilizarmos o termo “co-nhecimento” em uma proposição como “O ganhadorsabia que o número cinco seria sorteado”? Parecerazoável aceitar que este não seria um uso adequadodo termo. É significativo perguntarmos, porém, oporquê. Uma das formas da resposta apelaria parauma explicação do tipo “não há razões para imagi-narmos que o ganhador sabia que o número cincoseria sorteado. Tudo indica que foi apenas um palpi-te feliz, apenas um caso de sorte”.

Este caso nos faz perceber duas característicasimportantes do nosso uso cotidiano de “conhecimen-to” (de agora em diante sempre tomado em sentidoproposicional, salvo observação em contrário): pri-meiro, que o conhecimento é sempre oposto à sorte.Em segundo lugar, que o conhecimento, além da cren-ça do sujeito em uma proposição em questão, sem-pre exige um certo grau de mérito em relação à posseda crença (eu posso crer que o número sorteado seráo 50; isto não garante, porém, que eu saiba isto).

Esta tese é facilmente sustentável. Uma pessoaque acerta na Loto possuía uma crença (a crença deque é possível que seu número seja sorteado) que serevelou correta. Esta crença podia ser, inclusive,muito forte. Mas, num concurso sem trapaças, esta

pessoa não possui razões para sustentar sua crença.Ela pode ter sonhado com os números, mas sonhosnão são bons guias para nossas ações, como sabe-mos. Esta falta de mérito em relação à crença colocao vencedor numa posição inferior, do ponto de vistaepistemológico, em relação a quem acerta algo guia-do por boas razões. Aproveitando a metáfora, se euatiro a esmo e acerto o alvo acidentalmente, eu nãosou um bom atirador, mas um sortudo. Um bom ati-rador é aquele que acerta o alvo como resultado detreino, algo que lhe confere um tipo de mérito que osortudo não possui. Como o termo “conhecimento”expressa o grau superior4 de nossa vida intelectual,a definição de conhecimento deve incluir esta noçãode mérito. Isto é feito, habitualmente, através de umtermo especializado: a noção de justificação.

Um indivíduo está justificado em crer numa pro-posição quando esta crença é (vamos falar provisori-amente) devidamente sustentada por outras crençasde que ele dispõe5 . Alguém que estudou aritméticaé alguém que está justificado em crer que “7 + 4 =11”, já que ele poderia, por exemplo, oferecer razõespara sustentar sua crença. Esta pessoa é diferente deum papagaio que enuncia “7 + 4 = 11”. Um papa-gaio (ou, numa situação mais factível, alguém quenão teve qualquer contato com a aritmética) não dis-põe de razões para afirmar o que afirma6 . Note que opapagaio estava correto. Mesmo assim, não dizemosque ele sabe o que diz. O conhecimento não está re-lacionado apenas à correção. Quando conhecemos,nós acertamos com uma certa, digamos, estabilida-de. Alguém que sabe que “’7 + 4 = 11” é alguém quesabe isto por razões que permitem que digamos que

4 Podemos ser mais específicos aqui: o grau máximo que podemos imaginar é o conhecimento certo, ou seja, oconhecimento em que a justificação eqüivale à certeza.

5 E podemos imaginar aqui que estas outras crenças devem estar sustentadas por outras, e assim sucessivamente.Instala-se, deste modo, um bem conhecido regresso infinito de razões. Há três propostas de solução para este problema:o fundacionismo, a tese de que existem proposições cuja justificação não depende de outras crenças; o coerentismoholista, que defende que nossas crenças retiram justificação de sua coerência interna e o infinitismo, que defendeque o regresso não elimina a capacidade de fornecer razões de uma dada cadeia de crenças. Para mais sobre ocoerentismo veja Lehrer (2000); sobre o fundacionismo internalista, dentre muitos, Moser (1991) e Audi (1993);sobre o fundacionismo externalista um exemplo é Goldman (1986). Sobre o infinitismo, as melhores referências sãoos trabalho de Peter Klein, como, por exemplo Klein (1999).

6 Alguém poderia objetar, corretamente, que o papagaio sequer compreende o que declara e que, por isso, não formacrença sobre o que declara.

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ele também sabe outras proposições (por exemplo,que “5 + 6 = 11”, que “3 + 8 = 11”, etc.). Um papa-gaio que meramente repete “7 +4 = 11” não obterá omesmo êxito com outras proposições aritméticas.

Estabelecemos, a esta altura, duas condições ne-cessárias para que alguém conheça uma proposição:que ele possua uma crença e que esta pessoa possuaum certo grau de mérito em relação a esta crença, ouseja, que a pessoa esteja justificada em crer no quecrê. Isto não é, todavia, suficiente. Imagine indivídu-os que acreditavam numa dada proposição, digamos,“o Sol gira em torno da Terra”. Consideramos esta pro-posição falsa, dadas as informações de que dispomoshoje. Mas, num certo momento, os indivíduos queacreditaram nesta proposição possuíam boas razõespara nela crer (por exemplo, aquelas fornecidas porsua visão, que lhes relatava o movimento do Sol). Elespossuíam crença justificada, e não estavam sequer emcondições de imaginar que a sua crença era falsa.

Possuíam, tais indivíduos, conhecimento? A des-peito da qualidade da explicação a sustentar uma tese,se a tese é falsa, não parece ser razoável denominá-la “conhecimento”. Se eu, a despeito de haver con-sultado fontes normalmente confiáveis, creio e afir-mo que “está chovendo neste instante em Tóquio”, ese não está chovendo em Tóquio, então eu estou er-rado. Eu não sou um irresponsável, do ponto de vis-ta intelectual e, por isso, fui agraciado com a justifi-cação. De qualquer modo, eu não atingi o que nosmotiva para o conhecimento: a verdade. Eu não pos-so conhecer o que é falso (posso saber que algo é

falso, mas isto é algo diferente, isto é saber que “éverdade que ‘p é falsa’”); “conhecimento falso” é, nomáximo, uma corruptela para “erro” (para não dizerque é uma expressão sem sentido). A verdade é, pois,nosso objetivo epistêmico. Numa versão mais com-pleta, nosso objetivo é o de “atingir a verdade e evi-

tar o erro”. A justificação, por outro lado, é o nossoguia para a verdade. Mas voltaremos a este pontomais adiante.

Estamos prontos para, agora, apresentarmos umadefinição prévia de “conhecimento”, em seu sentidoproposicional, uma definição que parece ser compa-tível com nossas intuições pré-teóricas relacionadasao conceito. Ela é seguinte:

(Definição 1): Um indivíduo qualquer, S,

sabe (ou conhece) uma proposição, P, num

instante t, se e somente se 1) ele crê nesta

proposição, 2) ele possui algum tipo de

mérito intelectual (justificação) em relação

a esta crença e 3) P é verdadeira.7

3. Conhecimento é crença verdadeirajustificada?

Definir conhecimento como crença verdadeirajustificada é, todavia, pelo menos incompleto. Istofoi mostrado de modo contundente em 1963, PorEdmund Gettier. Em Is Justified True Belief

Knowledge? (Gettier, 1963) ele sugeriu dois contra-exemplos à definição 1, que inauguraram o Proble-ma de Gettier8 , o problema da formulação de umadefinição de conhecimento resistente ao ataque decontra-exemplos como o que segue:

(G1) Com novo emprego e dez moedas nobolso: Smith tem forte evidência para crer -

e crê - na seguinte conjunção, d: ‘Jones será

indicado para o emprego e tem dez moedas

no bolso’, da qual deduz a proposição e: ‘O

homem que será indicado para o emprego

tem dez moedas no bolso’. Acontece que,

sem que Smith o saiba, ele é que será o in-

7 Esta definição é denominada definição tripartite ou definição socrática de conhecimento, sendo comumente atribuídaa Platão, podendo ser identificada no Ménon (Platão, 1993, p. 97-98) e no Teeteto (Platão, 1973, p. 201).

8 Uma discussão detalhada sobre o Problema de Gettier foi realizada em Luz (1998).9 Esse é o exemplo esquemático de um dos casos propostos por Gettier, apresentado em Shope (1983, p. 23).

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dicado para o emprego e, coincidentemen-

te, tem dez moedas no seu bolso.9

Temos, aqui, por definição:

d = Ej & Mj: Jones será indicado para o

emprego e tem dez moedas no bolso.

e = ∃x( Ex & Mx): existe um homem que

será indicado para o emprego e que tem

dez moedas no bolso.

Eis o problema: existe uma proposição justificadapara Smith, d, sustentada por “forte evidência”, daqual ele deduz uma nova proposição, e, que tambémestá justificada para ele, já que foi obtida através deuma dedução válida. Acontece, porém, que a propo-sição original d é, de fato, falsa, mas a deduzida, e, éverdadeira, por um golpe de sorte.

O problema posto através do exemplo é, agora, facil-mente detectável: Smith possui uma crença verdadeirae justificada, e não satisfaz à intuição que desejamosmanifestar através do conceito de conhecimento, aque-la intuição básica que consiste em considerar o conhe-cimento como algo que envolve, de algum modo, méri-to, e não sorte. A idéia de que conhecimento envolvemérito é algo que nos soa tão razoável que podemosadmitir que, entre uma intuição deste quilate e umadefinição como a Definição 1, ficamos com a intuição.

Além de destruir a idéia de que conhecimento éapenas crença verdadeira e justificada, o artigo deGettier trouxe inúmeras conseqüências indiretas10 .Por exemplo, ele condenou de vez a pretensão queacompanhava grande parte da epistemologia anteri-or: a de que uma cadeia bem formada de razões po-

deria nos levar infalivelmente ao conhecimento.Como podemos imaginar, nada em uma cadeia derazões pode garantir que não estejamos vitimados,em um determinado momento, por uma situaçãoparecida com a descrita no exemplo (G1). A noçãode justificação será compreendida, em tempos pós-gettierianos, por conta da possibilidade de ocorrên-cia de uma situação gettierizada, de um modofalibilista. É consenso, na epistemologia pós-gettieriana, que qualquer cadeia (ou conjunto) derazões a sustentar uma crença sobre a empiria estarásujeita àquele par de eventos que compõe um casode tipo-Gettier11 (a falsidade daquilo que o sujeitoconhecedor toma como verdadeiro e um evento, des-conhecido do sujeito conhecedor, que torna – nãopelas razões que o sujeito conhecedor está a consi-derar - uma proposição derivada verdadeira).

Os casos propostos por Gettier vão, pois, consistirem ataques mortais à antiga definição tripartite deconhecimento proposicional, acertando-a no coração:na noção-chave de justificação12 . Gettier nos mostrouque, mesmo que estejamos justificados, que mesmoque estejamos na melhor posição para saber, dispon-do das melhores evidências, estaremos sempre sujei-tos a uma conjunção de fatores externos a nós e quenos afastam daquela situação que desejamos, a daverdade atingida com mérito (como vimos, os casosde Gettier forneciam, exatamente, casos em que a ver-dade era atingida, mas por sorte). A questão, pois, estámais além da mera suposição de que dispor de justifi-cação para uma crença talvez não seja algo freqüente-mente realizável, dadas nossas limitações. Gettiermerece os méritos por ter apontado para algo de novona história da epistemologia: a busca pela evidênciaque garanta a verdade é, de fato, em vão. Podemosestar, como vimos, justificados e, mesmo assim, atin-

10 Dentre as quais a principal é a retomada das investigações sobre o conceito de justificação epistêmica. O artigo deGettier é freqüentemente apontado como o marco de início da Teoria do Conhecimento contemporânea.

11 Há inúmeros exemplos de situações semelhantes à (G1) na literatura, pensados para atacar aspectos de teorias doconhecimento formuladas como alternativa à Definição 1. Veja, por exemplo, Luz (1993) e Shope (1983).

12 Consideramos a noção de justificação como central em (DT) porque, dado nosso objetivo epistêmico de atingir averdade e evitar a falsidade, tanto a noção de verdade quanto a de crença mostram-se estéreis: se a verdade é nossoobjetivo, ela nada diz sobre o como atingi-la; mera crença, por sua vez, é cega para distinguir o verdadeiro do falso.

13 Veja que os casos de Gettier não se constituem, eles mesmos, em argumentos céticos. Eles não atacam a possibilidadedo conhecimento ou mesmo da posse de crença justificada. A possibilidade de estarmos em uma situação gettierizadaé algo que pode, porém, ser utilizada pelo Cético, certamente.

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girmos a verdade sem mérito algum (não possuindo,pois, conhecimento).13

A tarefa dos epistemólogos passa a ser, então,desde 63, a de elaborar uma nova definição de co-nhecimento proposicional. Esta nova definição devesatisfazer nossas intuições acerca do conhecimentoe deve prever o que não deve ocorrer, externamenteao sujeito conhecedor; em outras palavras, uma de-finição adequada de conhecimento deve garantir quesó atribuamos o conceito de conhecimento àquelasproposições que de fato não estão sujeitas àquelaconjunção de fatores que caracteriza os exemplos deGettier (e toda uma classe de contra-exemplos deno-minados de tipo-Gettier)14 .

4. Verdade e justificação

A definição 1, mesmo que incompleta, é capaz defornecer alguma luz sobre o conceito de conhecimen-to. Vamos retomar, por isso, com um pouco mais decuidado a análise das relações entre os três concei-tos mais básicos de uma definição de conhecimento,aqueles explicitados pela definição 1. Comecemostomando a noção de “crença”. A manifestação dacrença em relação a uma proposição qualquer, P, pa-rece não ter relação necessária nem com a posse dejustificação nem com a verdade de P. Parece muitorazoável aceitar que a manifestação da crença em algonão implica necessariamente a posse de justificaçãoe não implica necessariamente a verdade da crença.Um fanático é alguém que possui alto grau de con-vicção em suas crenças, mas nem por isso conside-ramos que suas crenças constituem, por isso, casosde conhecimento. Assim:

P está justificada para S se S dispõe, em t,

de evidências para P e não dispõe de con-

tra-evidência decisiva contra P15.

Passemos à noção de justificação, para depoisavaliar suas relações com os conceitos de crença deverdade. Ao contrário de “crença”, que é um termomeramente descritivo, “justificação” é um termo queexpressa valor. Conceder que uma crença P estájustificada, para alguém, significa conferir à crençauma certa aprovação. Qual aprovação? Na visão maistradicional, a aprovação que decorre da percepçãode que as crenças do crente em questão conferemforça para a crença P, força que nenhuma outra cren-ça disponível para tal indivíduo é capaz de cancelar.

Habitualmente, ao longo da história da Filosofia,esta noção de aprovação tem sido expressa pelo con-ceito de certeza. A única justificação que legitima-mente poderia conduzir ao conhecimento seria aque-la de grau máxima, aquela absolutamente imune aoataque de evidências contrárias. Um exemplo bemconhecido desta pretensão pode ser encontrado nasobras de Descartes. Por ora, vale perguntar porque anoção de certeza é tão preciosa. A resposta é clara:ela liga dois conceitos que nos são caros: o de justifi-cação e o de verdade.

O conceito de verdade não é um conceitoepistemológico. A despeito da tentação, parece nãoser razoável identificar “verdade” com “aquilo emque acreditamos por boas razões e sem evidênciasem contrário”, ou seja, não parece razoável chamarde “verdadeiro” àquilo que nos parece ser verdadei-ro. Isto por uma razão simples: nossa decisão sobreo que nos parece ser verdadeiro só pode estar basea-da nas evidências atualmente disponíveis; mas te-

14 O trabalho de elaboração de uma definição precisa de “conhecimento” não chegou ao seu termo. A literaturacontemporânea oferece muitas definições alternativas, e nenhuma delas goza de ampla popularidade.

15 Esta não é uma definição nem completa nem detalhada. Além disso, ela é típica de uma certa visão sobre ajustificação epistêmica, o internalismo epistemológico, que não é a única atualmente disponível. O externalismo,defendido, por exemplo, em Goldman (1991), Alston (1989), Greco (2000), Plantinga (1993) e Sosa (1991), ofereceuma visão alternativa, que não considera a evidência como a fonte única de justificação ou seuqer necessária, mas,antes, toma a confiabilidade de nossos processos cognitivos como elemento central.

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mos uma larga experiência no que diz respeito aosurgimento inesperado de novas evidências, evidên-cias por vezes contrárias às nossas crenças atuais.Parece que não temos controle direto sobre nossascrenças, e que elas são causadas por eventos que nãodependem de nossa vontade. Por isso, o conceito deverdade, antes de pertencer ao campo das investiga-ções epistemológicas, é normalmente classificadocomo um conceito do campo da metafísica.

Numa apresentação muito simplificada da posi-ção mais popular, verdade é uma relação, uma rela-ção de correspondência entre uma proposição e algoque ela descreve. Assim, o enunciado “a neve é bran-ca” é verdadeiro quando existe algo que tem tais etais propriedades, tais como ser neve e ser branca16 .

Note que esta apresentação da noção de verdadeé problemática, no que diz respeito aos nossos inte-resses em epistemologia, já que ela em nada contri-bui para o nosso interesse de saber quais proposi-ções são verdadeiras. Considerações como a de que,por exemplo, nos enganamos com freqüência nosmostram que usamos certos meios para tentar atin-gir a verdade, sem ter um acesso direto, imediato àverdade. Quando estes meios para atingir a verda-de nos parecem bons nós nos sentimos confiantes aponto de sustentar que o que afirmamos é, de fato,verdadeiro. Todavia, sempre que somos desafiadosa garantir que tais métodos garantem de fato a ob-tenção da verdade, nós nos vemos diante de gravesproblemas. Percebemos que nossos sentidos porvezes nos enganam, que a ciência erra, etc. etc. En-tão, já que se pudermos atingir a verdade em algumtópico, isto se dará pelo uso de certos processoscognitivos, cabe avaliar o status epistemoloógico detais processos.

5. Justificação epistêmica

São consideradas, tradicionalmente, quatro pos-síveis fontes de conhecimento: introspecção, memó-ria, raciocínio e percepção. A introspecção consistenaquela capacidade de “olhar para si mesmo” e per-ceber a ocorrência de eventos mentais, como perce-ber algo, crer, duvidar, etc. Ela parece ser infalívelem si mesma, e esta qualidade tem sido utilizada parasustentar certas proposições como “A=A”, “nenhu-ma proposição pode ser verdadeira e falsa, ao mes-mo tempo e sob o mesmo aspecto”, etc. Mas ela élimitada no que diz respeito ao nosso conhecimentodo mundo externo17 . O raciocínio, quando exercidoapenas com deduções válidas, é preservador-de-ver-dade (num raciocínio válido, para premissas verda-deiras, a conclusão é necessariamente verdadeira),mas não é capaz, sozinho, de estabelecer a verdadedas premissas (e é, além disso, limitado, já que a va-lidade se aplica a raciocínios dedutivos). Por fim, nema memória nem a percepção são garantidoras de ver-dade, algo amplamente corroborado por nossas ex-periências cotidianas.

Mesmo que reconheçamos a inviabilidade datese que requer a garantia da verdade para o conhe-cimento empírico, mesmo que reconheçamos a nos-sa falibilidade, dado nosso interesse de atingir a ver-dade, algo ainda nos caberá; mesmo quando reco-nhecemos que nossos sentidos podem nos enganar,inclusive de um modo massivo, nós reconhecemosque há uma diferença significativa entre aquilo quenos parece verdadeiro e aquilo que nos parece fal-so, depois de uma análise cuidadosa das evidênci-as e contra-evidências disponíveis. Já que o cético éalguém que, em boa parte dos casos, não afirma quea alternativa cética é verdadeira, mas antes alguém

16 Para uma introdução à discussão sobre as teorias da verdade veja Haack (2002).17 A história da Filosofia acompanha, desde a modernidade, um violento debate sobre a nossa capacidade de conhecer

proposições de modo a priori.

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que simplesmente apresenta um desafio que nosparece insuperável (como o de garantir que nestemomento nós não estamos ligados a um computa-dor que nos induz percepções, do modo sugeridono filme Matrix), o cético não paralisa nossa vidamental. É possível, do ponto de vista lógico, que osol não nasça amanhã; esta mera possibilidade im-pede que eu possa garantir que o sol nascerá ama-nhã18 ; mas ela não impede que eu creia racional-mente que o sol nascerá amanhã, depois de anali-sar as evidências atualmente disponíveis. Eu nãoposso, diante da alternativa cética, afirmar que sei

que o sol nascerá amanhã; mas eu posso mostrarque sou racional quando afirmo que o sol nasceráamanhã, já que disponho de forte justificação paratal, justificação robusta frente outros ataques quenão o ataque cético. É falsa a tese corriqueira deque a impossibilidade de certeza implica emrelativismo: mesmo dada a possibilidade de quenossas crenças sobre o mundo sejam falsas, somosobrigados a admitir que algumas nos parecem ver-dadeiras e outras não, que algumas nos parecemmais prováveis do outras, etc.

A justificação epistêmica é, pois, o primeiro ob-jeto de investigação da epistemologia. Voltaremosnossa atenção, por conta disso, para tal conceito.Uma primeira investigação nos mostra que a justi-ficação pode ser medida em graus. O ganhador daLoto possui mérito epistêmico em grau zero ou pró-ximo a ele (dizemos apenas que ele teve ‘sorte’). Ummédico que realiza um determinado diagnósticopossui (esperamos!) um grau de mérito superior:ele possui certas informações (como as que cons-tam nas revistas de medicina) que sustentam seudiagnóstico, e estas informações dão a ele uma basemais sólida, concederíamos, do que aquele palpite

que guiou o feliz ganhador da Loto. Dois médicosdiferentes podem, por sua vez, dispor de graus dis-tintos de mérito em relação aos seus diagnósticos.Eles podem, por exemplo, ter lido as mesmas revis-tas, mas o segundo médico, mais habilidoso, jun-tou as informações lidas a uma relevante informa-ção que havia recebido numa longínqua aula de ana-tomia.

Isto revela um elemento de caráter individual,

interno da justificação epistêmica: uma proposiçãodisponível para um sujeito pode se tornar evidênciapara uma outra proposição, para tal indivíduo, e issopode não ocorrer para outra pessoa. Um indivíduopode carecer, por exemplo, de alguma habilidadenecessária para que possa sustentar uma proposiçãotendo por base outra; estas habilidades podem sermatemáticas ou lógicas, por exemplo. Ou ele podesofrer com seu caráter intelectual; digamos, ele podeser intelectualmente tímido ou preguiçoso. Informa-ção, apenas, não leva à justificação. Esta informaçãoprecisa ser usada como evidência para uma proposi-ção em questão. E mais, é apenas perspectiva do in-

divíduo que a justificação se estabelece. É ele que,do seu ponto e vista, julga se ele mesmo está ou nãojustificado.

Isto, porém, não significa que o que parece, paramim, justificado (depois de uma análise cuidadosadas evidências e contra-evidências que disponho parauma dada tese) será reconhecido pelos demais comoestando justificado. Como vimos, pessoas diferentesfreqüentemente têm perspectivas diferentes, já quedispõem de um conjunto de evidências diferentes.Mas isto não significa, também, que alguém não possamudar de perspectiva, diante de novas evidências.Nós supomos que, diante de tais e tais evidências,

18 Há uma distinção importante aqui: uma coisa é a posse de conhecimento. Por exemplo, digo que meu carro está nagaragem e, digamos, o carro de fato lá está; minha memória e o testemunho de meu filho fornecem justificação paraminha afirmação; não ocorre um cenário de tipo-Gettier; neste caso eu possuo crença verdadeira justificada “sem-Gettier” e, sendo assim, possuo conhecimento. Se eu quero garantias, isso não basta. Eu preciso mostrar que eupossuo conhecimento. Eu preciso mostrar que a minha justificação é adequada (ou seja, tenho que estar meta-justificado) e tenho que mostrar que a crença em questão é, de fato, verdadeira, para daí postular que “eu sei queeu sei”, para mostrar que eu possuo metaconhecimento ou conhecimento de segunda ordem.

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um indivíduo tiraria tais e tais conclusões. Nós su-pomos que existem padrões comuns a guiar nossasinferências e que diante das mesmas evidências doisindivíduos devem chegar a uma dada conclusão. Masesta é uma tese delicada. Primeiro porque garantir aexistência de padrões universais de inferência é algodeveras problemático; segundo porque quando fala-mos de padrões universais de inferência, corremos orisco de tomarmos de modo dogmático certasinferências como universais. Por exemplo, a maioriadas pessoas em nossa cultura aceitaria como eviden-te a inferência “podemos conceber graus de perfei-ção; deve existir algo que é absolutamente perfeito.Logo, Deus existe”; a despeito da popularidade destatese, ela não é aceita pelos que a submetem a umaanálise mais cuidadosa. Não se trata, pois, de esta-belecer como aceitáveis inferências são aceitas pelamaioria, pura e simplesmente. Aqui talvez possa-mos sugerir um meio-termo: temos padrões comunsde reconhecimento de evidências, mas muito limi-tados, que englobam o reconhecimento de certasdeduções simples. De um modo ainda mais proble-mático, talvez possamos sugerir que dispomos depadrões comuns para o julgamento de certasinduções.19

A postulação de tais padrões comuns de inferêncianão faz parte na análise da noção de justificaçãoepistêmica, já que a justificação parece ser algo, comovimos, sempre individual. Mas evita um relativismoradical. Apesar daquele que busca a verdade não teroutra opção além de buscá-la da sua perspectiva,esperamos que a justificação egocentricamente obti-da sobreviva ao teste do confronto com outras teses,do confronto com outras informações, que não fo-ram ainda consideradas e que podem reduzi-la a pó.Parece razoável supor que o comportamento de doisseres humanos, diante das mesmas evidências seria

o mesmo. Por exemplo, diante da evidência “se A,então B” e diante da evidência de que A é o caso,esperamos que todos indivíduos reconheçam que Bé o caso. Parece razoável imaginar que os processosintelectuais de dois seres humanos devem seguir,quando guiados pelo interesse de atingir a verdade,os mesmos padrões lógicos.

6. A certeza, o cético e os graus de justificação

Imagine que alguém considere que só devemosaceitar uma crença como justificada se ela for cer-

ta20, ou seja, se não pudemos imaginar sequer umasituação em que ela seja falsa. Esta tese é muito difí-cil de ser sustentada, pelo menos quando falamossobre crenças derivadas dos nossos sentidos. Alguémque leu Descartes ou que assistiu Matrix, por exem-plo, é alguém que pode facilmente imaginar que épossível que o mundo que nos rodeia seja, digamos,uma ilusão gerada por um computador. Se este é ocaso, então boa parte de nossas crenças são falsas, aíincluídas crenças como “há um livro diante de mim”.A despeito desta possibilidade, nós aceitamos, emmuitos casos, que a crença na presença de livros eoutros objetos revelados por nossos sentidos é acei-tável; melhor dizendo, aceitamos que estas são cren-ças justificadas. Nós não podemos ter certeza21 , nosentido mais forte do termo, da verdade de crençasempíricas. Mas podemos estabelecer que justifica-ção em patamares menos elevados do que o da certe-za é suficiente, para tais e tais propósitos. Esta idéiaé compatível com nosso comportamento cotidiano:quando vamos ao médico, por conta de uma gripe,nós não nos preocupamos em buscar uma segundaopinião. Quando vamos por conta de uma cirurgiadelicada, buscamos corroborar o diagnóstico, comoutras opiniões.

19 São bem conhecidas, desde os trabalhos de David Hume (Hume, 1973), as dificuldades de se desenvolver umaexplicação para as inferências indutivas.

20 Parece fazer parte do imaginário popular a idéia de que as teses científicas possuem este caráter.21 Podemos falar de dois sentidos de ‘certeza’ (ao menos): um sentido “psicológico” e outro “evidencial”. No primeiro

sentido, falamos de uma crença exacerbada (que pode ocorrer mesmo sem que tenhamos justificação para ela); nosegundo, de uma crença com uma justificação que não pode ser destruída.

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É claro que o comportamento desejável, do pon-to de vista ideal, é o de buscar o grau de justificaçãomais elevado (que é o grau da certeza). O problema,porém, é que nem sempre cumprimos com as condi-ções necessárias para a obtenção de justificação emníveis mais altos. O ponto fica, porém, estabelecido:um indivíduo que confia em um diagnóstico médicosobre gripe não é um indivíduo que será julgado comoirresponsável, do ponto de vista epistêmico, em nos-sa comunidade, dado o mundo como é hoje. Em ou-tros termos, nossa comunidade considera que tal in-divíduo está justificado em crer no diagnóstico, mes-mo que reconheça que o diagnóstico não é nem podeser certo.

Mas por que devemos nos contentar com menos?Por que aceitarmos como justificadas crenças que nãosabemos certas? Bem, infelizmente porque a certezaestá relacionada à verdade, e a verdade é algo que denós se esconde, como vimos. Nossa experiência mos-tra que, muitas vezes, aquilo que num determinadomomento acreditamos ser verdadeiro passa a ser con-siderado uma falsidade, num instante posterior. Istopode ser exemplificado por enganos, digamos, cor-riqueiros, como a crença que formamos pela supostaobservação de um colega na livraria, colega que,descobrimos depois, estava viajando pelo interiordo Amazonas no mesmo instante. Mas estes enga-nos podem ser imaginados de um modo mais sofis-ticado. Eles podem ser pensados, por exemplo, nocampo da Ciência. Uma teoria pode nos parecer ver-dadeira num dado instante, mas podemos, certa-mente, vir a mudar de opinião num momentoposterior22 .

Isto não quer dizer que “a verdade não existe”(uma corruptela para “nenhuma de nossas crenças éverdadeira”) nem que nossas teorias não podem serverdadeiras, nem que a verdade é “relativa”23 . Istosignifica, apenas, que entre aquilo em que cremos ea verdade não há conexão necessária. Teorias cientí-ficas são o que de melhor podemos produzir. Elasocupam o topo de nossa escala de justificação. Issonão garante que tais teorias sejam verdadeiras, mastambém não é pouca coisa; estar no topo de nossacadeia de justificação significa ditar uma parte sig-nificativa do modelo de comportamento intelectualpara os seres humanos24 .

A separação entre justificação e verdade se dá porconta daquilo a que se refere cada um destes concei-tos. “Verdade” é um conceito com caráter metafísico,como vimos: uma proposição é verdadeira ou falsaindependentemente da nossa vontade (o autor desteensaio gostaria que assim não o fosse) 25 . Uma pro-posição está justificada, ao contrário, devido a ele-mentos que estão na esfera da nossa racionalidade.A verdade tem, pois, um caráter objetivo, algo quenão ocorre com a justificação. A justificação depen-de de qualidades das razões que dispomos para falarsobre tal objeto. E as razões podem estar, no máxi-mo, ligadas aos dados fornecidos por nossos senti-dos. Como vimos, porém, nossos sentidos podem nosenganar26.

Vejamos isto com um caso mais sofisticado. Ima-gine que, diante de algo que aparece para mim comouma árvore de copa verde, eu afirme que “(eu seique) a árvore é verde”. Digamos que eu não afirmei

22 E isto num sentido que não precisa estar comprometido com a idéia de que a Ciência se aproxima paulatinamenteda verdade.

23 Pelo contrário, a verdade parece ser sempre absoluta; se a proposição “está chovendo em tal e tal lugar em tal e talmomento” descreve de fato um evento que chamaríamos de chuva, então a proposição - com os devidos marcadoresde tempo e lugar, será para sempre verdadeira.

24 Em outras palavras: entre o que a melhor teoria científica disponível tem a dizer sobre um determinado assunto equalquer outra afirmação sobre o assunto (que não seja parte de uma nova e melhor teoria), fique com a primeira,

25 Há diferentes teorias da verdade, que podem ser conferidas, por exemplo, em Haack (2002). Nenhuma delas,porém, sustenta que a verdade é algo de subjetivo.

26 Há, certamente, outras razões para que cometamos enganos, e muitas delas não estão relacionadas à falhas emnossos órgãos sensoriais.

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isso baseado em más razões. Eu não fiz tal afirmaçãoporque sonhei com árvores verdes, ou porque a Bí-blia diz que todas as árvores são verdes. Eu afirmeique a árvore é verde porque a tenho diante de mim eela é verde, até onde meus sentidos me permitemavaliar. As pessoas que me rodeiam atestam que háuma árvore verde ali. Estou, neste caso, a fazer umaafirmação bem sustentada (e, por isso, digna de mé-rito) e, aparentemente, verdadeira. Apelando parauma concessão27 e supondo que a proposição é, defato, verdadeira, diríamos que neste caso eu sei quea árvore é verde.

Vamos imaginar agora, para fins de nossa investi-gação, que estamos numa curiosa situação. Somosvítimas de uma experiência de um cientista loucoalienígena. Nosso cérebro foi retirado de nosso cor-po e, sem que o percebêssemos (o cientista loucoalienígena dispõe de uma tecnologia avançadíssima!),foi conectado a um poderoso computador que o ma-nipula, nele induzindo sensações de todo idênticasàs proporcionadas anteriormente por nossos finadossentidos. Ou seja, a árvore de copa verde não passade uma ilusão induzida, e estamos, de fato, em umlaboratório altamente sofisticado em um planeta dis-tante, desprovido de árvores.28

Este caso pode iluminar algumas questões interes-santes. Primeira: quando afirmávamos, em pleno la-boratório, que aquilo que víamos (na verdade uma ilu-são induzida) era uma árvore de copa verde, tínha-mos conhecimento? Do ponto de vista do cientistaalienígena, com certeza não. Sabendo de nossa situa-ção pouco privilegiada de cérebro em uma cuba, ocientista provavelmente rir-se-ia de nossas pretensõesde conhecimento. Nos congressos de cientistas lou-cos ele bradaria nosso geral e irrestrito engano em re-lação àquilo que nós, cérebros em uma cuba, cremossobre o “mundo exterior”. O cientista, nem tão loucoassim, sabe que todas as nossas crenças sobre o “mun-

do externo” são falsas e, por isso, não temos conheci-mento algum sobre o mundo que nos rodeia. A moralda história é bem conhecida: já que não temos acessodireto à realidade, sobre ela podemos especular.

Mesmo tendo apenas crenças falsas em relaçãoao mundo exterior, o cérebro na cuba ainda podecumprir a tarefa de classificar suas crenças confor-me o mérito (ou seja, conforme o grau de justifica-ção). Terá, pois, um organizado estoque de crençassobre o que ele julga ser o mundo exterior, sobre a“realidade”. Algumas são crenças originadas de so-nhos, e ficam guardadas bem embaixo no armário.Outras crenças, um pouco mais acima, são crençassurgidas em momentos em que ele estava bêbado,outras, mais acima ainda, são crenças apoiadas pelodepoimento de testemunhas fidedignas e assim pordiante. Todas falsas. Mas há algo melhor para o cé-rebro fazer em relação a suas crenças do queorganizá-las em graus, de acordo com a base dispo-nível para cada uma delas, segundo os nossos pa-drões? Ao contrário, o cérebro, a despeito de suamiserável condição é, um indivíduo virtuoso, dirí-amos.

Bem, podemos trazer esta discussão para maispróximo de nós. Pensemos na ciência. Ela postulafalar sobre o mundo, sobre a realidade, e é algo deque não pretendemos abrir mão, simplesmente por-que ela é a melhor forma que dispomos para formar-mos um quadro coerente e aparentemente fidedignodo mundo. Porém, a história da ciência nos mostraque teorias se sucedem, por vezes de modo muitorápido, ou seja, teorias que eram tomadas como ver-dadeiras descem ao limbo. Porque devemos, diantedisto, confiar nas nossas teorias atuais? Pelas mes-mas razões pelas quais o cérebro na cuba deve confi-ar nas suas percepções sobre o mundo: elas são oque de melhor ele pode fazer, da sua perspectiva. Háespeculações adequadas e outras inadequadas. As

27 A concessão de ignorar o Problema de Gettier, ao qual nos referiremos mais adiante.28 Isto remete ao argumento do sonho, proposto por Descartes (veja a primeira meditação em Descartes (1983)). A

versão “cérebros numa cuba” foi popularizada por Putnam (1981).

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adequadas satisfazem critérios como coerência, ca-pacidade explicativa, base evidencial, resistência àcontra-evidências, testabilidade, etc. Não podemosgarantir que nossas teorias sobre o mundo são ver-dadeiras; mas podemos, com tais critérios, classificá-las de modo racional.

7. Considerações finais

O conceito de conhecimento é central para a nos-sa cultura. Já Aristóteles afirmava que “o homem tempor natureza desejo de conhecer”. Todavia, temos sidoforçados a reconhecer nossas limitações nesta área. Aepistemologia contemporânea, pós-Gettieriana, reco-nhece os constrangimentos teóricos que limitam onosso direito de postular conhecimento, assim comoas dificuldades que acompanham a tarefa da elabora-ção de uma definição adequada do termo.

Nós não negamos, aqui, a possibilidade do co-nhecimento. Pelo contrário, a despeito de reconhe-cer a dramaticidade do desafio cético e as dificulda-des estabelecidas pelo Problema de Gettier, nós ad-mitimos a possibilidade de que alguém possua, numdeterminado instante, uma crença verdadeirajustificada e que este alguém não esteja em uma si-tuação de tipo-Gettier. Como vimos, todavia, isto nãoelimina as dificuldades de passar da posse de crençaverdadeira justificada-não-gettierizada para a certe-za, ou seja, para o saber que sabe tal e tal coisa. Issonos leva a centrar nossas preocupações na busca decrenças justificadas. O trabalho pretensioso de cons-truir conhecimento é substituído pelo trabalho mo-desto de obtenção de crenças justificadas.

Como vimos, este não é um trabalho nem inteira-mente individual nem exclusivamente social. O in-divíduo deve realizar o trabalho egocêntrico de orga-nização das informações de que dispõe, num mo-mento. Mas ele deve também estar aberto a novasinformações e deve organizar suas evidências demodo tal que a força das evidências seja reconheci-da pelos outros indivíduos. Assim, teses como as quesustentam que “fulano deve construir seus própriosconhecimentos” devem ser tomadas com cautela.

A epistemologia, como parece evidente, fornecesubsídios indispensáveis para as todas as outras dis-ciplinas científicas, em geral, e a disciplinas comoas teorias da educação. Uma compreensão mais ade-quada do conceito de conhecimento é chave para umacompreensão mais adequada de outros conceitoscaros ao discurso pedagógico, como os conceitos decriticidade e de racionalidade. Uma abordagem su-perficial destes conceitos tem como conseqüência aadoção de epistemologias ingênuas, que sustentarãouma prática educacional problemática.

Apenas uma posição esclarecida em relação aoconceito de conhecimento – seja tomado referindo-se à empiria ou às teorias científicas – é capaz defornecer o referencial conceitual para a compreen-são adequada do campo epistemológico em que sedesenvolve o indivíduo crítico. Esta posiçãoesclarecida confronta-se com aquilo que vamos de-nominar de “a epistemologia de senso comum”. Aocontrário da posição esclarecida, que percebe a rele-vância primordial do conceito de justificação, a epis-temologia de senso comum deita sua ênfase no con-ceito de verdade, retirando importância ou mesmoeliminando a noção de justificação.

Uma epistemologia que enfraquece a noção dejustificação aproxima-se do dogmatismo; a ênfase naverdade leva-nos a ignorar o problema, já aventado,da inexistência de fontes absolutamente privilegia-das no que toca o fornecimento de verdades sobre omundo exterior. É esta posição inicialmente poucoprivilegiada que nos leva a busca de evidências emfavor de nossas crenças e à manutenção de uma ati-tude de abertura frente à nova informação (que, comovimos, é capaz de modificar o quadro de justificaçãode uma crença ou teoria científica).

A epistemologia de senso comum é, com grandefreqüência, a epistemologia que acaba por fundamen-tar as ações educacionais de inúmeros professores.A frouxidão no uso do conceito de conhecimento éum dos indicadores desta epistemologia naïf. A ati-vidade de sala de aula passa, com freqüência, a sertomada como “produtora de conhecimento”, como

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se fosse um fim em si mesma e não como o que de-veria ser - um conjunto de exercícios para o forta-lecimento da habilidade de encontrar razões parauma crença. Isto leva ao desaparecimento da co-nexão entre o local do aprendiz – a sala de aula – eo local onde as mesmas proposições encontramsustentação em grau mais elevado – a comunida-de científica29 .

A sala de aula torna-se, pois, fim em si mesmo.Enquanto retira-se o foco da problemática da susten-tação das crenças sob análise passa-se a focar sobre ainformação, atividade alimentada pela crença ingê-nua e dogmática de que estas informações, veicula-das nos livros, é verdadeira. Isto, obviamente, encon-tra-se muito distante da efetiva investigação científi-ca, de um espírito epistemologicamente saudável.

29 Nós reconhecemos que, muitas vezes, cabe ao aprendiz, em primeiro lugar aprender procedimentos, e que isso sedá e deve se dar, em muitos momentos, de modo acrítico. Parece razoável que alguém entenda, primeiramente,para só depois discutir. Mas não é este nosso ponto. O objeto da nossa crítica é uma visão epistemologicamentepobre, que não pensa, de modo cuidadoso, no lugar para a atividade crítica nos curricula de cada grau de formação.

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