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Historia y culturaTRANSCRIPT
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DERRIDA REVOLUCIONA A HISTRIA?
Eduardo Gusmo de Quadros Universidade Estadual de Gois UEG
Apliquemos o bom mtodo: compliquemos o que parece ser demasiado simples.
Lucien Febvre
RESUMO: A dicotomia entre pensadores modernos e ps-modernos criou no Brasil uma srie de leituras equivocadas, marcadas pelo preconceito. Aqueles que foram classificados como ps-modernos acabaram interpretados, muitas vezes, mais politicamente do que epistemologicamente. Isso aconteceu com a compreenso do pensamento de Jacques Derrida, que estudado apenas em alguns guetos acadmicos, em particular, ligados aos Estudos Literrios. Mas um pensador que constituiu sua obra num intenso combate com a metafsica no teria algo a ensinar aos historiadores? Este texto pretende, ento, abordar alguns dos conceitos propostos pelo eminente filsofo argelino. A nosso ver, eles podem contribuir decisivamente para a renovao do conhecimento histrico atual. PALAVRAS-CHAVE: Hermenutica Historiografia Ps-estruturalismo Derrida. ABSTRACT: The dichotomy between moderns and pos-moderns thinkers bears in Brazil many trouble readings. They were characterized trough of prejudice views. It was happen with the understanding of Jacques Derridas thought, that it had been studied only in academic ghettos, in particular, in the literary studies area. Would not have a thinker who constituted its work in intense combat with metaphysic world something to teach for historians? This text approach some concepts created by famous African philosopher. We defend that they can contribute decisively to renewal of historical knowledge. KEYWORDS: Hermeneutic Historiography Pos-struturalism Derrida.
Revoluo um tema clssico em histria. Nossos programas de ensino esto
eivados delas: Francesa, Gloriosa, Cubana, Industrial, Cientfica, de 30... Uma palavra
recorrente recobrindo fenmenos de diferentes tipos e com formas de denominao
Doutor em Histria pela Universidade de Braslia (UnB) e professor da Universidade Estadual de Gois
(UEG).
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diversas. Ao retomarmos o termo no ttulo, queremos explorar essa variao semntica e
histrica. A revoluo que Jacques Derrida pode motivar tambm possui vrios
sentidos. Colocamos quatro em destaque1.
No sculo XV, o termo era utilizado basicamente no campo da Fsica. Com
esse sentido astronmico ou astrolgico, como se queira denominar a cincia da poca,
a palavra indicava o movimento lento e cclico dos corpos celestiais. Foi, por exemplo,
estudando essas revolues planetrias, que Copernico chegou ao modelo heliocntrico,
to importante no processo de derrocada da cosmoviso medieval e incio do
pensamento moderno.
De forma semelhante, sugerimos que necessrio olhar para fora da Histria,
para o celestial mundo das idias filosficas2, se quisermos perceber melhor a
situao de nossa rea. No fcil, confessamos, perceber com nitidez os conceitos ali
propostos. A exegese filosfica, o modo de comentrio, to comum, nos causa
estranheza. Outrossim, o costume de generalizar, de atingir compreenses num nvel
considerado demasiado abstrato pelos historiadores de ofcio. Mas at quando ficaremos
presos ao suposto empirismo ou aos pr-conceitos herdados da Escola Metdico-
positivista? E qual de comprovatividade deste denominado nvel emprico? As
invenes e renovaes metodolgicas bastariam ou no seria mais profcuo aprofundar
as categorias que condicionalizam o fazer historiogrfico?
Derrida considerado um dos mais influentes pensadores da atualidade. As
tradues e a divulgao planetria de suas obras o comprovam. Assome-se a
circulao ininterrupta de lugares em que se comprometia a estar para debater suas
idias. Verdade que nem sempre estas so expressas de maneira fcil. Sua escrita
cheia de circunvolues. O carter elptico dos raciocnios derridadianos com
frequncia afastam os leitores, estorvados na percepo de seu movimento.
Tais idas e vindas remetem, talvez, ao segundo significado do termo revoluo,
que remetia em meados do sculo XVII busca de uma restaurao social, ao retorno
para uma ordem anterior. Jacques Derrida reinsere na filosofia certa dialtica socrtica,
ou seja, um conjunto de problemas circunscritos pelo o ser, o dizer e o conviver. Algo
1 Para essa histria do conceito de revoluo, consultar a obra de ARENDT, Hannah. Da revoluo.
Traduo de Fernando D. Vieira. So Paulo: tica, 1988. 2 Uma ironia febvriana de seus combates por uma histria transdisciplinar. (Cf. FEBVRE, Lucien.
Combates pela histria. Lisboa: Edies Presena, 1977.)
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semelhante poderia ser (pro)posto em relao ao conhecimento histrico, pois os
delineamentos feitos por Herdoto entre verdade, narrativa e mito continuam instveis.
Foi explorando limites como esses que o pensador argelino retraou os quadros
epistemolgicos das Cincias Humanas.
Os conceitos-chave elaborados por Derrida, ento, so constantemente
retomados em sua obra, como num ritornelo musical. As palavras voltam com pequenas
mudanas, restries, nuances e aplicaes. Um texto acaba remetendo a outro (so
comuns as citaes de si mesmo) e uma entrada pode seguir por diversas vias.
Essa insistncia faz parte da estratgia que estabeleceu no difcil combate
contra a Metafsica. Desde ao menos a Revoluo Francesa que sabemos no haver
revoluo poltica sem violncia. Os conflitos tornaram-se inevitveis na sua carreira
intelectual, at com aqueles a quem admirava: Levi-strauss, Althusser, Foucault,
Lacan... Pensadores importantes, amigos s vezes, que justamente pelo amor foram
submetidos ao crivo da desconstruo3. Com isso, Derrida indicava as grandes
contribuies dadas, a riqueza de suas obras, tentando simultaneamente retirar
elementos falogocntricos que tais pensadores ainda apresentavam.
As revolues contemporneas, obviamente, apontam para o futuro. por
acreditar na possibilidade do impossvel, na ruptura geradora da novidade, numa
histria por-vir, que Derrida se engajou em causas poltico-sociais. Defendeu aqueles
que sofrem injustias4. Esse trao messinico de seu pensamento revela, no fundo, uma
noo de temporalidade do ato de conhecer comumente desconsiderada nas operaes
cientficas. Inscreve ainda na investigaes uma agenda tico-poltica (a)diante de todos
aqueles que tratam da Humanidade.
ORIGINALIDADES
Como se sabe, o ttulo deste artigo no original. Fora retomado do conhecido
ensaio de Paul Veyne Foucault revoluciona a histria, publicado originalmente em
1978. Neste texto, encontramos um historiador comentando a obra de um filsofo. Um
3 DERRIDA, Jacques; ROUDINESCO, Elisabeth. De que amanh... Dilogo. Traduo de Andr
Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2004, p.6
4 Escreveu, por exemplo, uma defesa do lder do MST Jos Rainha quando este foi preso violentamente e submetido a um julgamento forjado. DERRIDA, Jacques. Papel-mquina. Traduo de Evandro Nascimento. So Paulo: Estao Liberdade, 2004, p. 301-305.
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filsofo diferente, que dedicou boa parte de suas investigaes Histria. Ento, temos
um encontro, ou melhor, um encontro que comenta outro: o das reflexes foucaultianas
com os objetos histricos. Na empolgao da descoberta, Veyne chega a retificar a
identidade nunca negada por Foucault (ou o inverso, lhe atribui uma nunca assumida), a
de um historiador acabado, pleno, o primeiro historiador a ser completamente
positivista.5 (destaque nosso)
O termo positivista aparece na ltima frase como um elogio. essa a revoluo
epistmica provocada pelas pesquisas foucaultianas, um verdadeiro radicalizador do
historicismo. E ao radicalizar, ele teria concebido um novo modo de considerar os temas
histricos. Estes no seriam mais fixos, transcendentes s pocas e sociedades.
Poderiam ser vistos em sua raridade, em sua positividade, ao serem enquadrados
como uma criao efetiva das prticas e discursos.
A primeira revoluo est, pois, voltada para o objeto. O mtodo elaborado por
Foucault possibilita precisar a especificidade de uma idia ou ao porque so
detectadas em sua descontinuidade. O corte no somente epistemolgico, mas traado
pela conjuntura, por uma poca, por rostos singulares e irrepetveis:
Em resumo, em uma certa poca, o conjunto de prticas engendra, sobre tal ponto material, um rosto histrico singular em que acreditamos reconhecer o que chamamos, com uma palavra vaga, cincia histrica, ou ainda, religio; mas em uma outra poca, ser um rosto particular muito diferente que se formar no mesmo ponto e, inversamente, sobre um novo ponto, se formar um rosto vagamente semelhante ao precedente6.
Esse vagar vagamente - uma deriva, talvez - das imagens, palavras e prticas
caracteriza o que poderamos denominar ainda de processo histrico. Processo que no
possui uma meta predeterminada. No tendo origem, no tem tambm um fim.
Nenhuma lgica h na Historia. Evitem-se, portanto, todas as leituras teleolgicas
reincidentes da historiografia.
A causalidade, nesta perspectiva, mais uma correlao, uma interao, uma
interdependncia casual. As prticas interagem inventando, destruindo e recriando os
objetos, que muitas vezes parecem comandar a histria (e a pesquisa histrica). Veyne
objetou explicitamente: Os objetos parecem determinar nossa conduta, mas
5 VEYNE, Paul. Como se escreve a Histria e Foucault revoluciona a histria. Traduo de Alda
Baltar e Maria A. Kneipp. Braslia: Editora da UnB, 1982, p.151. 6 Ibid, p.172.
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primeiramente nossa prtica determina esses objetos.7 A prtica , assim, esse
conceito-limite que possibilita a travessia entre real e ideal. Ela no tem fundamento,
no um motor ou instncia ltima; aparece e simplesmente atua. Estaria mais para
um quase-conceito, negando-se como tal ao ser aplicado. Afinal, no foram das prticas
que emergiram os conceitos e o prprio conceito de conceito?
Veyne pde, ento, afirmar que as representaes e os enunciados fazem parte
da prtica.8 Ambos, prticas e discursos, so as armas para destruir a vigorosa iluso
idealista da existncia dos objetos naturais. Temos, assim, a montagem de um
dispositivo analtico articulado para garantir a objetividade do objeto. No fundo, fora
sugerida uma nova epoch, uma espcie de fenomenologia historicista sem a carga da
metafsica husserliana9. Sim, porque o combate metafsica j est colocado na
primeira revoluo, como dissemos atrs, a do objeto.
Mais de quinze anos depois, Franois Dosse redigiu um artigo anunciando que
Paul Ricoeur revoluciona a histria10. Novamente, um historiador encontrando
solues epistmicas no pensamento filosfico. Mas, bem diferente de Foucault,
Ricoeur nunca escreveu livros propriamente de Histria. Apenas a tomou como um
tema de reflexo, tratando do que poderamos chamar de uma filosofia da Histria.
Esse era um tpico em voga na filosofia analtica inglesa dos anos cinqenta e
sessenta. As questes da narrativa, da cientificidade, da possibilidade de leis e da
comprovao emprica foram discutidas por diversos autores desta vertente. Nessas
anlises de carter eminentemente filosfico, o dilogo com a historiografia realmente
praticada era quase nulo11. Por outro lado, Ricoeur adota a via hermenutica alem
7 VEYNE, Paul. Como se escreve a Histria e Foucault revoluciona a histria. Braslia: UnB, 1982,
p.159. 8 Ibid., p.161.
9 Paul Veyne, j prevendo essa interpretao, discute em um rpido pargrafo o mtodo de Husserl. Nele escreve que a fenomenologia no peca por ser um 'idealismo', mas por ser uma filosofia do cogito. [...] O erro da fenomenologia no o de no explicar as coisas, j que jamais teve a pretenso de explic-las; seu erro descrev-las a partir da conscincia considerada como constituinte e no como constituda (VEYNE, Paul. Como se escreve a Histria e Foucault revoluciona a histria. Traduo de Alda Baltar e Maria A. Kneipp. Braslia: Editora da UnB, 1982, p.179). A nosso ver, a ilusria crena na capacidade da conscincia fora denunciada atravs das histrias escritas por Foucault e por Veyne, mas as nfases na positividade do nvel objetal, no mtodo descritivo e na relacionalidade, bem prximas s noes da fenomenologia francesa, permaneceram valorizadas.
10 DOSSE, Franois. A histria prova do tempo: da histria em migalhas ao resgate do sentido. Traduo de Ivoni C. Benedetti. So Paulo: Editora UNESP, 2001, p. 71-101.
11 Uma boa coletnea desses autores encontra-se na obra de GARDINER, Patrick. Teorias da Histria. Traduo de Vitor de S. Lisboa: Fundao Caloustre, 1974.
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como principal eixo de suas propostas. A historicidade e a temporalidade, ao menos
desde Heidegger, so questes fundamentais desta vertente. Assome-se, por fim, um
gosto pessoal do pensador francs pelos livros de histria, trao que diferenciar o
enfoque de suas pesquisas. Paul Ricoeur tomou a srio em suas reflexes tanto a
historiografia, quanto as obras sobre metodologia histrica produzida pelos
historiadores12.
Conforme Dosse, a habilidade da sntese, de assumir uma posio mdia numa
srie de opes valorizando os pontos positivos de cada uma, seria a caracterstica
principal do pensamento ricoeurano. Ele soube valorizar as mediaes imperfeitas
constituintes da pesquisa histrica, entre o explicar e o comepreender, entre a
subjetividade e a objetividade, entre a narratividade e o seu referente, entre uma
arqueologia do saber e uma teleologia histrica, entre uma ideografia e uma
nomottica.13 A historiografia estaria entrando, ento, numa espcie de idade
interpretativa.
A hermenutica foi o campo da filosofia que habilitou a costura de tais
mediaes. Dosse chega a identificar as duas disciplinas, escrevendo com todas as letras
que a histria uma hermenutica.14 Ao relacionar to intimamente essas duas reas,
emerge como ncleo dos estudos histricos a questo do sentido. Por isso, os
acontecimentos devem ser captados no jogo de significaes a que so submetidos pela
experincia e pela narrativa. Esto, assim, lanadas as bases de uma semntica
histrica.15 Se j temos bases, porque o autor projeta uma nova historiografia a ser
construda:
Esse novo momento convida a seguir as metamorfoses do sentido nas mutaes e deslizamentos sucessivos da escrita histrica entre o prprio acontecimento e a posio presente. O historiador interroga-se ento sobre as diversas modalidades de fabricao e percepo do acontecimento a partir da trama textual. [...] Por meio da renovao historiogrfica e memorativa os historiadores assumem o trabalho de
12 Desde o incio da carreira, como se v no admirvel comentrio que redigiu acerca da Introduo
Histria de Marc Bloch (RICOUER, Paul. Histria e verdade. Rio de janeiro: Forense Universtria, 1968.) Uma anlise dos manuais de metodologia histrica mais recentes, publicados na Frana, encontrado na ltima obra de Ricoeur sobre Histria (RICOUER, Paul. La memoire, lhistoire, loubli. Paris: ditoins du Seuil, 2000.).
13 DOSSE, Franois. A histria prova do tempo: da histria em migalhas ao resgate do sentido. So Paulo: Editora UNESP, 2001, p. 72.
14 Ibid, p. 79. 15 Ibid, p. 90.
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despedir-se do passado em si e do sua contribuio para o esforo reflexivo e interpretativo atual nas cincias humanas16.
O esforo reflexivo defendido indica a importncia que o sujeito cognitivo
tomou nos ltimos anos. A revoluo apontada por Dosse resgata esse papel da
subjetividade, sem, claro, abandonar a objetividade do referente discursivo. Mesmo
com a ressalva, bom lembrar que aquela objetividade do objeto destacada por Veyne,
para ele no existe. A subjetividade opera intermitente por todo o processo
interpretativo17 . A objetividade incompleta que atingida, nica possvel na histria,
seria fruto de uma atividade metdica, crtica, exercida pelos historiadores18 . Tal
perspectiva vem como conseqncia direta do peso que foi dado posio do
pesquisador, centro da captao dos sentidos e do prprio crculo hermenutico. A
segunda revoluo, destarte, est na subjetividade do sujeito.
A (im)possvel revoluo a ser motivada atravs de Jacques Derrida no rejeita,
nem se ope s duas anteriores. Pelo contrrio, as assume como uma bem-aventurada
herana. At porque, seguir prximo das rbitas traadas pelos pensadores j citados.
O roteiro que as faz aproximar est em certa base fenomenolgica comum. Tanto
Foucault quanto Ricoeur, relidos respectivamente por Veyne e Dosse, tratam do saber
histrico a partir de uma relacionalidade fundante. Seus textos abordam o primado da
relao19 e as mediaes, conexes, vias de passagem [...] necessrias e
rigorosas na pesquisa da verdade20.
Derrida explorar justamente os limites dessas relaes necessrias e
primordiais. S que ao explorar seus limites, acaba por tentar ir alm. Ou seja, no ir se
preocupar com a comprovao da objetividade do objeto e da subjetividade do sujeito,
mas do prprio jogar (jetum) entre eles. O ob e o sub estariam, nessa perspectiva,
implicando-se mutuamente, construindo-se, inventando-se dentro da intermediao.
Neste meio intermedirio, perdem-se o substrato dos extremos. O saber pode ento,
talvez, circular sem princpio nem fim.
16 DOSSE, Franois. A histria prova do tempo: da histria em migalhas ao resgate do sentido. So
Paulo: Editora UNESP, 2001, p. 92. 17 Ibid., p. 78. 18 Ibid., p. 77. 19 VEYNE, Paul. Como se escreve a Histria e Foucault revoluciona a histria. Braslia: Editora da
UnB, 1982, p. 179. 20 DOSSE, 2001, op. cit.; p. 77.
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O SMEN SEMNTICO DO CULTURAL
Assim, adentramos nas correntes epistemolgicas em voga de crtica aos
essencialismos. A escola filosfica que a havia intudo de alguma forma foi a
Fenomenologia. Derrida publicou seus primeiros textos assumindo uma filiao a tal
mtodo. J havia boa aceitao das idias de Husserl na Escola Normal de Paris, onde
se formara. Mas seu modo de apropri-las e critic-las trazia, desde cedo, alguns pontos
originais. Destaca-se a nfase que sua interpretao conferiu temporalidade.
Encontramos, portanto, no incio de sua carreira intelectual, uma crtica metafsica da
presena que permanecer vigorosa nas obras que se seguiro.
Isso pode ser visto na anlise que realizou do problema do signo. A
fenomenologia Husserliana afastou a esfera da significao da coisa significada,
retirando assim sua substancialidade. O que determinaria a viabilidade heurstica dos
signos seria sua possibilidade de repetio.21 Duas implicaes imediatas decorrem, a
nosso ver, para a pesquisa histrica. Primeiro, que h um ritmo, um tempo, na fixao
do que consideramos ser a realidade. Isso abre o caminho tanto para a historicizao da
ontologia quanto do campo metafsico que marca o pensamento ocidental, ao menos,
desde os gregos. Em segundo lugar, em razo da estrutura originalmente repetitiva do
signo do signo em geral, h todas as possibilidades de que a linguagem efetiva seja to
imaginria quanto o discurso imaginrio, ou o inverso. Tanto faz22. Ento, a noo
bsica do que seja o real, no apenas submetida a uma historicizao radical, mas
nossa prpria relao com tal realidade passada, presente e futura - torna-se
problematizada.
As conseqncias destacadas nos levam diretamente questo da cultura. Esse
termo de carter to abstrato, aplicado a tantas coisas distintas, poderia ser melhor
compreendido se tratado em sua raiz repetitiva. No dissera Guattari que toda cultura
reacionria?23 A re-petio motiva a ao; pede certa modalidade de atuar, certa
21 DERRIDA, Jacques. A voz e o fenmeno. Traduo de Lucy Magalhes. Rio de Janeiro: Zahar, 1994,
p. 12. 22 Ibid., p. 60.
23 GUATTARI, Felix. Micropolticas: Cartografias do desejo. Rio de Janeiro: Vozes, 1986, p.15. Analisamos essa afirmao em outro texto, onde tentamos delinear melhor como compreendemos o conceito de cultura, com argumentao um pouco diferente. (Cf. QUADROS, Eduardo G. O devir
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formalidade de perceber, enquanto impede outras. Da todo fenmeno cultural envolver
certo grau de tradio. Tal habilidade de transmisso e comunicao, processos
socialmente complexos, envolvendo os limites do subjetivo e do coletivo, depende
efetivamente do registro das lembranas24.
Temos a memria, portanto, atuando de maneira intermitente, no sendo
somente um tema a mais a ser pesquisado. Ela sempre pessoal e sempre social,
delimitaes conceituais correntes que resultam inteis em qualquer anlise
aprofundada. A memria, assim considerada, institui as bases tanto do vnculo social
como da cognio, ou seja, garante de alguma forma a passagem para o humano. Essa
humanizao do universo, sua simbolizao, a aventura da atribuio vital de sentidos,
ou mais simplesmente, o nascimento semntico-cultural torna-se algo, ao mesmo tempo,
ilocalisvel e fundante25.
A repetio remete ainda relao com a morte. Para Derrida, o fim (ou sua
possibilidade) que coloca os signos em operao. No deixa de ser curioso como os
historiadores tem esquecido (recalcado?) algo to importante na sua perspectiva de
conhecimento. Talvez seja realmente difcil enxergar os pilares de suas construes
historiogrficas, mas todos certamente sabem que estudam o que no existe mais.
Michel de Certeau foi um dos poucos a chamar a ateno para o tema. Para ele,
a morte tambm gera a linguagem e, por conseguinte, todas as formas de saber26. No
caso particular da escrita da histria, ela realiza um trabalho de luto, no sentido
psicanaltico da expresso, sempre retomado nas vivncias coetneas. Os mortos e seus
fantasmas bastando lembrar de Michelet27 - fariam os historiadores escreverem.
potico das devoes: esboo de uma teoria diferencial. Fragmentos de Cultura, 16, n. 3/4, p. 289-305, 2006.
24 DERRIDA, Jacques. A voz e o fenmeno. Rio de Janeiro: Zahar, 1994, p. 74.
25 O mesmo poderia ser dito para o interminvel processo de inveno das tradies, indelimitvel objetivamente, em que pesem as belas pesquisas feitas sob sua invocao.
26 CERTEAU, Michel de. A escrita da historia. Traduo de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1982, p.314.
27 Que escreveu no prefcio da Histria da Frana: Nas galerias solitrias dos arquivos, por onde eu errei por vinte anos, nesse profundo silncio, os murmrios vinham, no entanto, aos meus ouvidos. Os sofrimentos longnquos de tantas almas sufocadas nas suas velhas idades queixavam-se em voz baixa... Com que te divertes? Sabes tu que os nossos mrtires depois de quatrocentos anos te esperam? ... Foi na firme crena, na esperana na justia, que eles deram a vida. Teriam o direito de dizer: Histria conta conosco!. MICHELET apud FEBVRE, Lucien. Michelet e a Renascena. So Paulo: Scritta, 1995, p.115.
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Fantasmas so fices28. Os signos, que no deixam de ter algo de espectral,
atuam nessa relao de ausncia-presena. Por requisitarem a repetio no nvel da
idealidade, eles terminam se afastando do campo acontecimental. Esto noutro tempo e,
at, pretendem uma relativa constncia. Conforme Derrida, o objeto idealizado
independente do hic et nunc dos acontecimentos e dos atos da subjetividade emprica
que o visa, pode ao infinito ser repetido, continuando sempre o mesmo.29 Essa
pretenso de a-historicidade afasta a representao da realidade. Mas o nvel sgnico
teria mesmo tal poder de eternizao? A infinitude atribuda ao saber, principalmente o
cientfico, no seria intil num mundo eminentemente instvel?
Isso leva Derrida a colocar a questo da diferena entre significao e
existncia. Seria necessrio, defende, reconhecer a limitao do sentido ao saber, do
logos objetividade, da linguagem razo.30 Pensar esses limites reconsiderar as
condies da semiose, ou ainda, do processo de semiognese inerente ao cultural. O
signo ficaria melhor compreendido como estranho a essa presena a si, fundamento da
presena em geral.31
A presena se d no presente. Num nvel ideal, ela conformaria a experincia e
atribuiria uma certeza. Mas o sentido que capta o presente-que-, simultaneamente, leva
sua perda na idealidade do prprio sentido. O tempo da re-presentao desenvolve,
assim, outros tempos:
V-se logo que a presena do presente percebido s pode aparecer como tal na medida em que ela se compe continuamente com uma no-presena e uma no percepo, isto , a lembrana e a espera primrias (reteno e propenso). Essas no-percepes no se acrescentam, no acompanham eventualmente o agora atualmente percebido; elas participam indispensvel e essencialmente da sua possibilidade32.
Tal o peso da temporalizao no pensamento derridadiano. A verdade posta
em movimento, no momento do mover. Surge de um antes, visa um aps. Tradio e
inovao, destarte, no esto opostas. Complementam-se para suplementar. O alm do
28 Deixamos a frase assim, dogmtica, Entretanto para evitar confuso esclarecemos que no estamos
tratando do conceito de espectro proposto por Derrida. O termo fantasma a relaciona-se fantasia e ao desejo, como na tradio psicanaltica.
29 DERRIDA, Jacques. A voz e o fenmeno. Rio de Janeiro: Zahar, 1994, p. 86. 30 Ibid, p. 111. 31 Ibid, p. 68. 32 DERRIDA, 1994, op. cit., p. 74.
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futuro passa a compor plenamente o cultural. Seu carter reacionrio, afinal, no
poderia sobrevir sem o teleolgico.
Com essa abertura para o inaudito, Derrida coloca em xeque o fechamento do
saber absoluto. Se algo assim existisse, afirma, a histria estaria encerrada33. A semente
semntica da diferensa precisa germinar.
(Di)Ferindo a referncia
Comeamos o item anterior abordando a repetio e conclumos tratando da
diferena. O pensamento de Derrida costuma ser compreendido, inclusive, como uma
das filosofias da diferena34. Mas o que seria diferencial se no houvesse a mquina
reprodutiva do cultural? So justamente os mecanismos da reproduo que nos
conduzem ao encadeamento da desconstruo.
O princpio da desconstruo, se que podemos cham-lo assim, j estava
indicado nas suas leituras de Husserl, mesmo que no nomeado. Fazemos a ressalva
porque princpio a no tem o sentido de algo externo a ser aplicado ou comprovado,
mas de algo que simplesmente surge, que est acontecendo. Remete ao nascimento, a
eventualidade do evento, ao desenrolar da varivel que fissura e retarda a presena,
submetendo-a, ao mesmo tempo, diviso e ao prazo originrios35. Novamente o peso
de temporalidade. Talvez por isso, Derrida tenha dito, bem mais tarde, que a
desconstruo clama por uma atitude intensa de historiador.36
A desconstruo comea com os estudos fenomenolgicos, j que Derrida
tomou por desafio pensar o signo. Mas ao rever essa noo bsica da metafsica,
descobre que seria muito difcil pensar o que possibilita o prprio pensamento. Em
outros termos, ele termina colocando a aporia de construir metafisicamente uma arma
contra a metafsica. A desconstruo, para ser essa arma, no deveria ser, ento, anti-
metafsica? Poderia ser ps-metafsica? E por que no pr-metafsica? Um pensamento
fora do logos seria realmente possvel?
33 DERRIDA, Jacques. A voz e o fenmeno. Rio de Janeiro: Zahar, 1994, p. 115. 34 Cf. LARUELLE, Franois. As filosofias da diferena. Traduo de Antonio A. Magalhes. Lisboa:
Editora Rs, s/d. 35 DERRIDA, 1994, op. cit., p. 99. 36 A conferncia sobre a fenomenologia que estvamos analisando fora publicada em 1967. A entrevista
que agora citamos foi dada em 1990 para um livro sobre literatura. DERRIDA, Jacques. Acts of literature. New York: Routledge, 1992, p.55.
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Cremos que Derrida tentou por diversas vias jogar a razo contra a razo. Isso
explorar seus limites, e no ser irracionalista. Alis, uma coisa que ele nunca foi, em
que pese as interpretaes vigentes37. Muito menos um relativista, termo que tinha
ojeriza38. O problema no a razo em si, ou a Razo (com maiscula), mas o que ele
chamou de logocentrismo.
Com o termo, o filsofo argelino retoma uma equao platnica reproduzida ad
infinitum posteriormente. Trata-se exatamente da identidade da essncia, da razo
fundante (e no fundada), do logos originrio, daquilo que exteriorizado pela
aparncia. Pode-se dizer que todo o pensamento cientfico foi constitudo nessa busca
da verdade sem condies. Essa relao do ser com a presena, expressa pela fala, que
nos levou persistente tentativa de dizer aquilo-que-39.
Afirmar o que no implica no apagamento de outros traos do ser? Talvez a
prpria construo da afirmao apague os rastros do que a fez diz-la. Evidente que
aquilo que s poderia ser captado numa rede de relaes, de diferenciaes, muitas
vezes, at, oposies. Ora, a reflexo herdeira do platonismo opera a epistemologia
atravs da lgica formal. A=A, e se A for verdadeiro, ~A falso. At que ponto tal
formalismo seria vlido o que est sendo posto em questo. Pensar as conseqncias
da disseminao lgico-metafsica em tantas reas do pensamento foi a tarefa
empreendida pela critica derridadiana da escritura40.
37 Por exemplo, as anlises de CARDOSO, Ciro. Um Historiador fala de teoria e metodologia. So
Paulo: EDUSC, 2005. Kevin Passmore, parecendo desconfiar do equvoco, afirma que talvez Derrida no tenha afirmado certas coisas que lhe atribuem, mas o que importa para este autor o fato de muitos crticos da histria terem-no interpretado assim. (PASSMORE, K. Poststructuralism and history. In: BERGER, S.; FELDNER, H.; PASSMORE, K. Writing history: theory and practice. London: Arnold Publishers, 2003, p. 118-141). Ele repete, ento, as interpretaes erradas!. H tambm leituras simpticas que defendem esse suposto irracionalismo e relativismo, a exemplo de JENKINS, Keith. Why history? Ethics and postmodernity. New York: Routledge, 1999.
38 Ao responder, por exemplo, s acusaes da obra Imposturas intelectuais, ele escreve que no h rastro dela (da palavra relativismo) em minha obra. Nem uma crtica da Razo e das Luzes (DERRIDA, Jacques. Papel-mquina. So Paulo: Estao liberdade, 2004). Note-se as maisculas utilizadas nos dois termos.
39 Id. Gramatologia. Traduo de Miriam Schnaiderman e Renato J. Ribeiro. So Paulo: Perspectiva, 1973, p. 14.
40 Portanto, Derrida no est ligado ao formalismo estruturalista, semitico ou outros. O epteto de ps-estruturalista, to comum nas obras que se referem a ele, particularmente nas de matriz anglo-saxnica, induz a graves problemas de compreenso. O surgimento desta classificao equvoca num evento norte-americano encontra-se relatado em DOSSE, Franois. Histria do estruturalismo 2: O canto do cisne. Traduo de lvaro Cabral. So Paulo: Ensaio, 1994.
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Tentar romper com o logocentrismo nos ajuda, destarte, tanto a dinamizar o
ato de conhecer quanto a perceber melhor o elemento conhecido. Algo somente
sendo e no-sendo, no instante momentneo da existncia. A e ~A no esto em
contradio na realidade da vida. Alm disso, ao simbolizar o mundo, induzimos uma
ausncia na captao de toda presena. Volta-se diferensa geneticamente formadora
do cultural.
Por meio da diferensa, os elementos so identificados como o que so.
Entretanto, ao percebemos como eles so, o diferir j executou seu trabalho. Ento, o
diferir viria antes. Contudo, ele continua atuando na identificao. Por conseguinte, a
diferensa estaria sempre presente. Porm, depois ela permanecer no registro
lingstico.
Todas essas adversativas so vlidas, porque ao diferir as trs temporalidades
operamos com a lgica do ou... ou.... Hoje, comum se criticar esses raciocnios
exclusivistas, buscando-se substitu-los por uma lgica do e... e.... Os raciocnios de
Derrida costumam ir na direo oposta, operando com o nem... nem.... Da Laruelle
dizer que a diferena uma sintaxe41, e para ns ela ser at um pouco mais: uma
quase-sintaxe da sintaxe.
O sin, afinal, no opera buscando o idntico? A ordenao taxonmica no
rene semelhanas? Derrida prefere ir por outra via, enfatizando outro sim, o sim
idiossincrasia. Afirma o lugar da ferncia, veculo para que surja a re-ferncia. Foi,
inclusive, atravs deste final levemente modificado que ele delimitou sua
conceituao42.
Conceito? Talvez um quase-conceito, por sua natureza indefinvel e incaptvel.
A diferensa desafia a pensar na relao em relao43. A diferena a articulao.44
Aproxima-se da khora platnica, referindo-se a alguma coisa que no uma coisa, mas
que insiste em sua unicidade to engimtica, que se deixa ou se faz interpelar sem
41 LARUELLE, Franois. As filosofias da diferena. Lisboa: Rs s/d, p.16. 42 Em francs, ele escreve differnce ao invs de diffrence, palavras que soam iguais, apesar da escrita
diferente. Na lngua portuguesa, costuma-se traduzir por diferncia, ficando melhor optar, a nosso ver, pela colocao do s no final para dar o mesmo efeito que em francs.
43 DERRIDA, Jacques. Positions. Paris: Editins de Minuit, 1972, p.17. 44 Id. Gramatologia. So Paulo: Perspectiva, 1973, p.80.
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responder, sem se dar a ver, conceber, determinar.45 Da a diferensa no pertencer
nem histria, nem estrutura, o que no quer dizer que seja etrea46.
Se ela assim to difcil de ser concebida, como Derrida conseguiu demarcar
sua importncia? Isso ocorreu pelos rastros que sempre deixa. A diferena entre um e
um s ou entre um e e um a - possibilita a identificao das palavras. Pode tambm
impedir sua compreenso. Por outro lado, essa diferensa surge no texto, mas no na
fala. O logocentrismo do pensamento ocidental, ou seja, o paradigma fontico da
compreenso da linguagem, trs o apagamento de suas prprias origens47. O rastro seria
aquilo que est resistindo ao apagamento.
A idia de rastro pode, a princpio, parecer de fcil entendimento para os que
trabalham com histria. Seria atravs deles que construmos o saber histrico. Na pena
de Derrida, todavia, a palavra tem algumas peculiaridades, por relacionar-se exatamente
com a diferensa e com o logos. Numa entrevista, concedida em 2000, o pensador
argelino definiu-a como um movimento no qual a distino do espao e do tempo
ainda no sobreveio: espaamento, devir-espao do tempo e devir-tempo do
espao....48 O rastro tambm movimento, est no movimento, no sendo exatamente
um documento que encontramos tranquilamente repousando nas prateleiras dos
arquivos. Remetendo sempre ao outro, ele escapa a qualquer apreenso, a qualquer
monumentalizao, at mesmo a qualquer arquivamento. Captamos somente seus
efeitos do resto, os efeitos de uma presena que passou num momento fugaz49.
O rastro nunca est inteiramente presente, mas torna-se legvel. Suas marcas
so captveis idealmente, atravs, por exemplo, da iterao. A iterabilidade constituinte
da linguagem possibilita o vislumbre do outro na repetio que o esconde e impede de
captar a presena imediata50. Percebe-se que algo feriu, mas h uma pretenso de cura
45 DERRIDA, Jacques. Khra. Traduo de Nsia Bonatti. Campinas: Papirus, 1995, p. 23. 46 Id. A escritura e a diferena. Traduo de Maria B. N. e Silva. So Paulo: Perspectiva, 1971, p.50. 47 Id. Gramatologia. So Paulo: Perspectiva, 1973, p. 4. 48 Id. Papel-mquina. Traduo de Evandro Nascimento. So Paulo: Estao liberdade, 2004, p. 346. 49 Ibid, p. 347. 50 Essa questo do outro demasiado importante e no seria o caso de desenvolv-la aqui. Mas
ressaltamos que em Derrida a alteridade menos metafisicamente absoluta do que em outros autores coetneos.
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sem que se deixe cicatriz51. Assim seria o rastro, diferensa que abre o aparecer e a
significao, relacionando-a de algum modo ao tempo e ao espao de uma
experincia52.
A questo do movimento, do espao e do tempo, enfim, da historicidade,
retornam insistentemente no pensamento derridadiano. Sua tentativa de elaborar uma
teoria da linguagem aberta, dinmica, coaduna-se mais com a epistemologia histrica do
que as vertentes estruturalistas, semioticistas ou, o que pior e facilmente encontrvel, a
reproduo de noes do senso comum. A Gramatologia proposta por Derrida - estudo
da elaborao e da interpretao dos traos escritos (gramma) seria, assim, uma
ferramenta para sair do empirismo pr-cientfico.53
O TEMPORAL
A escritura documental no fala por si, nem d acesso ao tempo passado. Alis,
podemos nos perguntar se haveria um tempo inerente escrita. Pensar, escrever e ler
nos parecem operaes sequenciais. Nesse sentido, a escrita seria sempre posterior ao
real, haveria um retardo intransponvel com o que foi descrito. J a leitura inverteria o
mecanismo, atingindo o extra-textual a ser denotado.
Essa percepo linear possui certa racionalidade, entretanto, devido a
metafsica que acarreta, trs graves problemas interpretativos. O antes do texto
acessvel somente atravs do texto. A leitura do texto, por sua vez, abre perspectivas
para o futuro e para a ao. A expectativa de compreenso antes de tomar o texto em
mos tambm pr-direciona a significao e o uso das informaes. Mas o texto precisa
estar (no) presente. Em suma, diz Derrida que a escritura no possui nenhum desses
tempos, nem passado, nem presente, nem futuro.54
Romper as delimitaes cronolgicas da escrita e da leitura, no quer dizer,
bvio, que sejam a-histricas. Pelo contrrio, radicaliza-se a complexa historicidade
51 Lembramos como Derrida explora o poder farmacolgico das palavras. O pharmakn lingstico , ao
mesmo tempo, veneno e meio de cura para o pensamento. Cf. DERRIDA, Jacques. A farmcia de Plato. Traduo de Rodrigo Costa. So Paulo: Iluminuras, 1997.
52 DERRIDA, Jacques. Gramatologia. So Paulo: Perspectiva, 1973, p. 80. 53 Id. Positions. Paris: Editins de Minuit, 1972, p. 48. 54 Id. Dissmination. Paris: Editins Du Seuil, 1972, p. 13.
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sempre presente nessas aes55. Como o filsofo argelino a compreende? Primeiro
preciso dizer que Derrida era um apaixonado pela histria. Certa vez, comentou: Ao
contrrio do que as pessoas crem, ou tem um interesse em fazer crer, eu me considero
um pleno historiador...56. Mas ele apressa-se em esclarecer que o conceito de histria
que geralmente temos em mente carregado de uma metafsica insuspeita. Duas
dcadas antes, j afirmava que desconfiava demasiadamente da idia corrente de
histria devido s noes coadjuvantes que inclua: a linearidade, a acumulao, a
tradicionalidade, a teleologia e a verdade.57
Deveramos levar mais a srio a tarefa de desconstuir a herana do historicismo
alemo, aconselhava numa nota de rodap58 . Isso no reneg-lo, nem abandon-lo, j
que a des-construo no um trabalho apenas negativo. A construo inerente
anunciada, que nunca de algo totalmente novo, ter de utilizar da matria encontrada e
disponvel. Isso levaria, em outros termos, a incorporao da rica herana que nos foi
deixada, utilizando-a de maneira pessoal e intensivamente criativa59.
Um dos elementos do historicismo muito valorizados no pensamento
derridadiano a singularidade. Mas o singular seria incaptvel em si mesmo. Ele s
percebido encadeado na iterabilidade. Isso significa que ele reduzido, preso a um
contexto e que, simultaneamente, mantem traos de sua especificidade. A histria, para
Derrida, composta da iterabilidade60.
Qual tipo de histria? A ambigidade que marca o termo desde os gregos
uma riqueza que no deveria ser desfeita. A histria acontecida (Historie), a trama
narrativa dos eventos (Geschichte) e a histria pretensamente verdadeira que contada
(historia rerum gestarum) so nveis distintos, mas que no podem ser claramente
55 impossvel apagar da escrita a marca da historicidade , ele afirmou , rompendo com o mtodo da
crtica literria formal-estruturalista. DERRIDA, Jacques. Acts of literature. New York: Routledge, 1992, p. 55.
56 Id. Acts of literature. New York: Routledge, 1992, p. 54. Destaque nosso. 57 Id. Positions. Paris: Editins de Minuit, 1972, p. 77. 58 Ibid., p. 79. 59 Tratando do marxismo, Derrida coloca-se nessa posio de herdeiro, ressaltando o cuidado a que o
recebimento de uma herana nos convida. Mas cuidar no reproduzir, o que seria impossvel: a herana nunca um dado, mas uma tarefa. DERRIDA, Jacques. Spectres de Marx. Paris: Galile, 1993, p. 94.
60 DERRIDA, Jacques. Acts of literature. New York: Routledge, 1992, p. 64. Iter significa o que pode ser repetido, o re-itervel. Mas Derrida relaciona o termo tambm com itara, a alteridade na lngua grega.
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separados. Os trs formam de maneira dinmica o conceito de histria e a histria desse
conceito61.
A tenso com o novo constitui outro lado da noo derridadiana de Histria.
Afinal, o saber histrico trata da acontecimentalidade. Jacques Derrida radicaliza a idia
da concretrude do acontecimento, colocando-o alm da idia. O verdadeiro acontecer
sempre revolucionrio, excede todo horizonte possvel, todo horizonte do possvel.62
Mas como pensar o novo assim em sua novidade? Seria realmente possvel romper com
a previso e a expectativa?
Acontece que Derrida considera o esperado, o calculvel, como um efeito
maqunico. A escrita da histria tem muitas vezes funcionado como uma mquina-
textual que encadeia o acontecer. Ao ser descrito, o evento parece pr-visto, lgico,
conseqncia de um ato volitivo. Tal histria maquinal constitui uma forma de tornar
pensvel a eventualidade. Contudo, importante ter em mente que o adventcio surge de
maneira normalmente incalculvel e isso que sustenta a liberdade.
Em seus ltimos textos, o filsofo trabalhou muito com a expresso
possibilidade impossvel. Isso estaria prximo do que o acontecer. Quando o
impossvel se faz possvel, o acontecimento tem lugar (possibilidade do impossvel).63
A nosso ver, essa concepo decorre do esforo de conceber os tempos na diferensa que
os institui. Os tempos tradicionalmente operados no so considerados em sua
especificidade, mas enquanto presente-do-pretrito ou, ento, futuro-do-presente. Por
que no considerar o passado em sua passadidade e o futuro como o que ainda no se
sabe? Muitos impossveis, certamente, tornaram-se possibilitados atravs dos tempos
histricos...
O aparente paradoxo, destarte, fica melhor compreendido dentro da dimenso
temporal. Mas as coisas no so assim to simples. O tempo destri as tenses ou
fruto de uma tenso? Ambos? Nem um nem outro? Derrida afirma que o temporal se d
na troca, enquanto h troca64. O prprio desejo de trocar exige a temporalizao. Trocar
61 DERRIDA, Jacques. History of lie: prolegomena. In: Rand, Richard (Org.). Futures of Jacques
Derrida. California: Standford Press, 2001, p. 69. 62 DERRIDA, Jacques; ROUDINESCO, Elisabeth. De que amanh... Dilogo. Traduo de Andr
Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2004, p. 104. 63 DERRIDA, Jacques. Papel-mquina. Traduo de Evandro Nascimento. So Paulo: Estao
liberdade, 2004, p. 279. 64 Id. Donner le Temps. Paris: Galile, 1991, p. 44.
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o que? No se sabe. Qualquer coisa. Talvez, at os sujeitos que esto engajado no
processo. Mas uma coisa certa, o tempo est na constituio do entregar e receber: na
estrutura do presente.
De maneira original, a temporalidade pensada como uma economia. Envolve
questes do guardar (reteno, memria) e do perder (protenso, expectativa). Todavia,
a lgica do dom escapa ao controle. O dado que pode tambm ser emprico - deixa de
s-lo quando adentra num circuito de intenes. No existe troca perfeita. O sistema de
trocas, como afirmam os estudos antropolgicos, compe uma estratgia de domnio65.
O tempo, para Derrida, no um elemento, nem uma coisa, nem um algo a
mais a ser atribudo. Por sinal, ele seria sem medida66. Mas como fica o discurso
histrico, to acostumado a medir o tempo das coisas? A histria conta, narra as coisas
da vida explorando suas condies. As condies do eventual, entretanto, so
impossveis de serem apreendidas, assim como o dom deve passar pelo incondicional.
Ao ser condicionada, a ddiva no deixa de ser ddiva? O evento e o presente s podem
ocorrer sob certo grau de incondicionalidade, o que perturba a ordem e o circuito das
causalidades atribuveis.
O discurso histrico promoveria, enfim, a temporalizao do tempo para
evitar as perdas do esquecimento67. Desta perspectiva, seria um saber de aspecto
conservador. Todavia, quem o exerce sabe ser impossvel a possvel permanncia do
presente, tendo por condio a prpria dico da mudana. Assim, o temporal que irriga
o nascimento do novo, do tempo diferensiado do passado, leva tambm construo de
barricadas para proteo e segurana. O princpio (arch) do arquivamento o mesmo
que abre as (com)portas ao inesperado68. Entre a tradio e a revoluo um historiador
por vir, quem sabe, possa nascer.
H REVOLUO?
Teremos exagerado enxergando alguma promessa revolucionria na escritura
derridadiana? Ele possivelmente discordaria da interpretao que demos nessas pginas
65 DERRIDA, Jacques. Donner le Temps. Paris: Galile, 1991, p. 25. 66 Ibid., p. 46. 67 Ibid, p. 27. 68 DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impresso freudiana. Traduo de Claudia M. Rego. So
Paulo: Relume Dumar, 2001, p. 17.
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e criticaria qualquer pretenso de refundar uma ordem do saber, a exemplo da
historiografia. Da deixarmos a questo em aberto, ao contrrio do que fizeram os
predecessores de ttulo semelhante.
Tentando compreender alguns dos conceitos enunciados por Jacques Derrida
vislumbramos, entretanto, um pensamento que complexifica operaes que nos
parecem, geralmente, demasiado simples. Coisas aprendidas e repetidas meio que
maquinalmente no cotidiano da pesquisa. Portanto, a tentativa de pensar a partir da
diferensa e como a investigao da mudana poder prescindir dela? - torna-se mesmo
fundamental, principalmente se quisermos, com radicalidade, projetar a prpria histria
ao infinito.69 Advindo a revoluo, ou no.
69 DERRIDA, Jacques. A universidade sem condio. Traduo de Evandro Nascimento. So Paulo:
Estao Liberdade, 2001, p. 68.