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Cadernos de SadeSade na atualidade: por um sistema nico de sade estatal, universal, gratuito e de qualidadeOrganizadoras Maria Ins Souza Bravo Juliana Souza Bravo de Menezes

Setembro de 2011

Andes-SN Andes-SN

Central Sindical eePopular --Conlutas Central Sindical Popular Conlutas

Sade na atualidade: por um sistema nico de sade estatal, universal, gratuito e de qualidade

Rede Sirius Rio de Janeiro 2011

Uma publicaoAndes-SN Central Sindical e Popular - Conlutas

Seo Sindical dos Docentes da Universidade Federal do Rio de Janeiro do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituies de Ensino Superior

2011 - Projeto Polticas Pblicas de Sade UERJ/ Faculdade de Servio Social Adufrj - Seo Sindical dos Docentes da Universidade Federal do Rio de Janeiro do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituies de Ensino Superior

Todos os direitos reservados. permitida a reproduo parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte e os autores. Organizadoras: Maria Ins Souza Bravo Juliana Souza Bravo de Menezes Editora: Rede Sirius Rede Bibliotec. Adufrj - Seo Sindical dos Docentes da Universidade Federal do Rio de Janeiro do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituies de Ensino Superior Capa: Conferncia Nacional de Sade. Braslia, 2007. Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom-ABr Projeto grfico Douglas Pereira Impresso: WalPrint Tiragem: 8 mil exemplares Impresso no Brasil / Printed in Brazil

CATALOGAO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/NPROTEC S255 Sade na atualidade : por um sistema nico de sade estatal, universal, gratuito e de qualidade / Organizadoras, Maria Ins Souza Bravo, Juliana Souza Bravo de Menezes. 1. ed. Rio de Janeiro : UERJ, Rede Sirius, 2011. 76 p. ISBN 978-85-88769-43-4 Uma publicao do Projeto Polticas Pblicas de Sade da e da Adufrj Seo Sindical.

Faculdade de Servio Social/UERJ

1. Poltica de sade pblica Brasil. 2. Sistema nico de Sade (Brasil) I. Bravo, Maria Ins Souza. II. Menezes, Juliana Souza Bravo de. III. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Faculdade de Servio Social. Projeto Polticas Pblicas de Sade. IV. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Seo Sindical dos Docentes. V. Sindicato Nacional dos Docentes das Instituies de Ensino Superior (Brasil)

CDU 364.4:614(81)

Projeto Polticas Pblicas de Sade

SUMRIOApresentao Parte I Polticas Sociais, Sade e Participao na Atualidade 91.1. Financeirizao do Capital, Fundo Pblico e Polticas Sociais em Tempos de Crise 10 Giselle Souza da Silva 1.2. A Sade nos Governos Lula e Dilma: Algumas Reflexes 15 Maria Ins Souza Bravo e Juliana Souza Bravo de Menezes 1.3. Participao Popular e Controle Social na Sade 29 Maria Ins Souza Bravo e Juliana Souza Bravo de Menezes

Parte II Gesto na Sade: Relao Pblico X Privado 352.1. Gesto do SUS: O que fazer? 36 Francisco Batista Junior 2.2. Por que ser contra aos novos modelos de gesto do SUS? 43 Maria Valria Costa Correia 2.3. Fundaes Estatais: Projeto de Estado do Capital 50 Sara Granemann 2.4. Hospitais Universitrios Federais e Novos Modelos de Gesto: faces da contrarreforma do Estado no Brasil 56 Juliana Fiuza Cislaghi

Parte III Agenda para a Sade: Principais Desafios 643.1. Documento: Contra Fatos no h Argumentos que sustentem as Organizaes Sociais no Brasil 65 3.2. Agenda para a Sade 73

Fabio Rodrigues Pozzebom-ABr

APRESENTAO

sta coletnea pretende socializar as informaes e estimular o debate junto aos diversos sujeitos sociais preocupados com a questo sade, a democratizao do Estado e os modelos de gesto ressaltando os dilemas e os desafios para o fortalecimento do Sistema nico de Sade (SUS), da Reforma Sanitria e da Seguridade Social Pblica. Considera-se que os textos so importantes para alimentar as discusses nas Conferncias de Sade e na 14 Conferncia Nacional de Sade, a ser realizada nos dias 30 de novembro a 04 de dezembro de 2011, com o tema: Todos usam o SUS! SUS na Seguridade Social, Poltica Pblica, patrimnio do Povo Brasileiro. A coletnea est estruturada em trs partes, nas quais so apontadas algumas questes sobre as Polticas Sociais e a Poltica de Sade na atualidade, a Participao Popular e Controle Social, os Modelos de Gesto na Sade e a elaborao de uma Agenda para a Sade. A primeira parte, intitulada Polticas Sociais, Sade e Participao na Atualidade, apresenta trs artigos. O primeiro texto intitulado Financeirizao do Capital, Fundo Pblico e Polticas Sociais em Tempos de Crise, elaborado por Giselle Souza da Silva, fornece elementos de reflexo sobre o contexto atual de crise do capital e financeirizao da vida social. O segundo e o terceiro textos so de autoria de Maria Ins Souza Bravo e Juliana Souza Bravo de Menezes. O segundo faz uma anlise da Poltica de Sade na atual conjuntura, destacando os limites e os desafios da poltica de sade no governo Lula e a perspectivas com relao ao governo Dilma. No terceiro, as autoras apontam subsdios para o fortalecimento da participao popular, refletindo sobre os impasses e desafios vivenciados pelos conselhos, tendo como pressuposto central a importncia da organizao e mobilizao dos trabalhadores para a conquista do direito sade.

E

A segunda parte, intitulada Gesto na Sade: Relao Pblico X Privado pretende caracterizar as propostas alternativas de gerenciamento que ganharam visibilidade, a partir da dcada de 1990, no Brasil, e que tm relao com as contrarreformas ocorridas em diversos pases pautadas na poltica de ajuste e na relao pblico-privado. composta de quatro artigos. O primeiro, de autoria de Francisco Batista Junior, ressalta as enormes dificuldades de implementar o Sistema nico de Sade em nosso pas, apesar da sua conquista histrica. O autor aponta que possvel a implantao definitiva do SUS de forma sintonizada com os princpios da Reforma Sanitria no Brasil, desde que haja deciso poltica, controle social democrtico, prtica efetiva da democracia participativa e obedincia legislao vigente, sem a criao de qualquer outro instrumento jurdico. O segundo artigo de Maria Valria Costa Correia trata do processo de privatizao dos servios pblicos em curso no Brasil, atravs dos denominados novos modelos de gesto, dando nfase s Organizaes Sociais (OSs) por ser o modelo que tem se ampliado com maior fora no setor sade dos estados e municpios brasileiros. Expe argumentos e questionamentos com relao a essas propostas de privatizao e apresenta algumas lutas e resistncias existentes nacionalmente. O projeto de Fundao Estatal de Direito Privado proposto pelo governo Lula abordado no texto de Sara Granemann. A autora analisa a Fundao Estatal como um projeto de contrarreforma do Estado no mbito das polticas sociais que afeta os interesses e os direitos dos trabalhadores. A proposio para a sade transformar os hospitais pblicos em Fundaes Estatais, onde o regime seria de direito privado; a contratao dos trabalhadores de sade via CLT (acabando com o Regime Jurdico nico RJU); o Plano de Cargos, Carreira e Salrios seria por fundao (no considerando a luta por Plano de Cargo, Carreira e Salrios dos trabalhadores do SUS) e o controle social substitudo pelos conselhos curador ou administrativo, fiscal e consultivo social. Este projeto foi rejeitado pelo Conselho Nacional de Sade em reunio realizada em junho de 2007 e na 13 Conferncia Nacional de Sade realizada em novembro de 2007. Tal projeto foi analisado e criticado nos Seminrios sobre Modalidade de Gesto do Sistema nico de Sade promovidos pelo Conselho Nacional de Sade em 2007 e 2008. Juliana Fiuza Cislaghi problematiza sobre a situao dos Hospitais Universitrios Federais e os modelos de gesto propostos, relacionado com o processo de contrarreforma do Estado. Faz referncia ao Projeto de Lei 1749/2011 que cria a Empresa Brasileira de Servios Hospitalares (EBSERH) que bastante semelhante em contedo a MP (Medida Provisria) 520/10 que foi derrotada no Senado Federal no comeo de junho de 2011. Este projeto foi encaminhado em regime de urgncia e tem que ser votado em 45 dias, ou seja, at 14 de agosto de 2011.

Notas 1 Esta Frente foi criada em novembro de 2010, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro e composta por diversos movimentos sociais, e pelas seguintes entidades: ABEPSS (Associao Brasileira de Ensino e Pesquisa em Servio Social); ANDES-SN (Sindicato Nacional dos Docentes das Instituies de Ensino Superior); ASFOC-SN (Sindicato dos Trabalhadores da FIOCRUZ); CMP (Central de Movimentos Populares); CFESS (Conselho Federal de Servio Social); CSP-CONLUTAS (Central Sindical e Popular); CTB (Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil); Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina, Enfermagem e Servio Social; FASUBRA (Federao dos Sindicatos dos Trabalhadores das Universidades Pblicas Brasileiras); FENASPS (Federao Nacional dos Sindicatos de Trabalhadores em Sade, Trabalho, Previdncia e Assistncia Social); FENTAS (Frum das Entidades Nacionais de Trabalhadores da rea da Sade); Frum Nacional de Residentes; Intersindical (Instrumento de Luta e Organizao da Classe Trabalhadora e Instrumento de Luta, Unidade da Classe e de Construo de uma Central); MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra); Seminrio Livre pela Sade; os Fruns de Sade j existentes (Rio de Janeiro, Alagoas, So Paulo, Paran, Londrina, Rio Grande do Norte, Distrito Federal, Pernambuco, Minas Gerais, Cear, Rio Grande do Sul, Paraba); os setoriais e/ou ncleos dos partidos polticos (PSOL, PCB, PSTU, PT e PC do B); Consulta Popular e projetos universitrios (UERJ Universidade do Estado do Rio de Janeiro; UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro; UFF Universidade Federal Fluminense; UFAL Universidade Federal de Alagoas; UEL Universidade Estadual de Londrina; EPSJV/FIOCRUZ Escola Politcnica de Sade Joaquim Venncio da FIOCRUZ; CESTEH/ENSP/FIOCRUZ - Centro de Estudos da Sade do Trabalhador e Ecologia Humana da Escola Nacional de Sade da FIOCRUZ; UFPB Universidade Federal da Paraba; USP- Universidade de So Paulo). 2 Esses projetos so coordenados pela professora doutora Maria Ins Souza Bravo.

Projeto Polticas Pblicas de Sade

Por fim, a terceira parte desta coletnea, intitulada Agenda para a Sade: Principais Desafios, apresenta as principais questes e proposies para defesa do direito sade. Dessa forma, apresenta dois documentos elaborados pela Frente Nacional contra a Privatizao da Sade1: Contra Fatos no h Argumentos que sustentem as Organizaes Sociais no Brasil e a Agenda para a Sade. O primeiro consta de relatrio analtico de prejuzos sociedade, aos trabalhadores e ao Errio por parte das Organizaes Sociais (OSs). O segundo refere-se a Agenda para a Sade enfatizando as principais questes para a implantao do SUS e propostas para a garantia do direito sade. Esta a segunda vez em que os Projetos Polticas Pblicas de Sade e Sade, Servio Social e Movimentos Sociais2 da Faculdade de Servio Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e a Seo Sindical dos Docentes da Universidade Federal do Rio de Janeiro do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituies de Ensino Superior (Adufrj-Ssind) elaboraram uma produo na sade com o intuito de democratizar o conhecimento. A Adufrj-Ssind e os Projetos universitrios citados tm como objetivos a defesa dos direitos dos trabalhadores e das polticas sociais tanto por sua participao nas lutas como na produo de reflexes que possibilitem resistir aos ataques do capital e dos governos contra a classe trabalhadora. Consideramos, a partir de Gramsci, que a universidade pode contribuir com a anlise crtica da realidade atravs do pessimismo da razo e oferecer estratgias de luta, pautando-se no otimismo da vontade e na perspectiva da importncia do conhecimento para transformar a realidade. Espera-se que o contedo desta coletnea possa constituir em um instrumento de potencializao do debate e de defesa das polticas sociais pblicas, tendo como referncia a construo de uma sociedade sem dominao e explorao. Boa leitura a todos(as)! Rio de Janeiro, Setembro de 2011.Adufrj-SSindSeo Sindical dos Docentes da Universidade Federal do Rio de Janeiro do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituies de Ensino Superior

Maria Ins Souza Bravo e Juliana Souza Bravo de MenezesOrganizadoras

Parte I

Polticas sociais, sade e participao na atualidadeProjeto Polticas Pblicas de Sade

MOBILIZAO. Manifestao no Centro do Rio

1.1

FINANCEIRIZAO DO CAPITAL, FUNDO PBLICO E POLTICAS SOCIAIS EM TEMPOS DE CRISEGiselle Souza da Silva3

ApresentaoO estudo das polticas sociais e do capital financeiro na contemporaneidade exige-nos uma apreenso crtica, capaz de investigar as mltiplas determinaes que atuam no processo de financeirizao da vida social em tempos atuais. Tomamos como de extrema relevncia a desmistificao desta forma de capital, a superao de sua aparncia pela essncia e do fetiche inerente a ela que obscurece o processo real de produo de mais-valor no qual se ancora. O entendimento das modificaes na composio e na conduo das polticas sociais brasileiras na atualidade levanos ainda a um estudo histrico-crtico do desenvolvimento da fase madura do capitalismo. Nela, aps o amplo perodo de expanso das conquistas da classe trabalhadora naquilo que se chamou de proteo social, tem-se uma diminuio da apropriao de parte riqueza socialmente produzida por aqueles que a pro-

duzem, a classe trabalhadora. Em outras palavras, assistimos a um largo processo de desmonte das polticas sociais, sobretudo aquelas mais universais, destinadas a reproduo social da classe trabalhadora, alargando-se a apropriao privada de parte do fundo pblico pelos rentistas, donos do capital que porta juros. E os mecanismos estratgicos para tanto so a transferncia crescente de recursos sociais para a esfera financeira por meio das contra-reformas das polticas sociais e do repasse de recursos do fundo pblico para o pagamento da dvida pblica. Neste artigo, partimos da anlise da dinmica de organizao do capital que porta juros e seus desdobramentos na contemporaneidade, bem como dos impactos e determinaes impostas s polticas sociais em tempos de financeirizao do capital. Buscamos estudar a obra de Karl Marx, em especial a seo V do livro III dO Capital, como se configura o capital portador de juros na contemporaneidade, penetrando sua lgica em todos os mbi-

tos da vida social e reconfigurando as formas de proteo social ao redor do globo.

A financeirizao do capital sob a perspectiva da tradio marxistaO desenvolvimento das foras produtivas levou ao desenvolvimento de novas formas de capital. No avanado processo de circulao de mercadorias do capital industrial e tambm do capital de comrcio de mercadorias, o dinheiro passou a realizar movimentos puramente tcnicos e, autonomizados como funo de um capital especfico, torna-se esse capital o capital de comrcio de dinheiro. Do capital global surge uma forma especfica de capital, o capital monetrio, que tem a funo de executar as operaes de comrcio de dinheiro para toda a classe de capitalistas industriais e comerciais. Os movimentos desse capital monetrio so, portanto, por sua vez, apenas movimentos de uma parte autonomizada do

3 Assistente Social e Mestre em Servio Social, Doutoranda do Programa de Ps-Graduao em Servio Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Apoio Tcnico do Grupo de Estudos e Pesquisas do Oramento Pblico e da seguridade Social Gopss/UERJ (e-mail: [email protected])

capital industrial empenhado em seu processo de reproduo (Marx, 1983, p.237). O avano do processo de produo e reproduo capitalista faz com que o dinheiro em si torne-se mercadoria. Tratase, aqui, pois, de uma mercadoria especial que no pode ser comprada e vendida e por isso, adquire a forma de mercadoria dada em emprstimo. A essa forma, Marx chama capital portador de juros. Esta frao do capital tem a aparncia de ser autnoma e de valorizar-se na esfera financeira, mas essa apenas sua aparncia fetichizada. O capital que porta juros sempre existiu na histria, antes mesmo da sociedade capitalista de produo, na forma de capital usurrio. Mas na sociedade capitalista que esta forma de capital torna-se mercadoria especfica com valor de uso e valor. O valor de uso do capital que porta juros o de ser utilizado como capital, impulsionando a produo de valor por meio do capitalista funcionante. Este definido por Marx como o capitalista que investe diretamente no processo produtivo, que compra meios de produo e matriaprima e ao final do processo de produo obtm uma nova mercadoria, acrescida de valor por meio da mo do trabalhador, pois s o trabalho vivo cria mais valor. A atividade dos capitalistas funcionantes destina-se a extrair mais valor e o juro ou a remunerao do capital que se converte em mercadoria corresponde a uma parcela deste mais-valor extrado. Deste modo, os juros so uma parte do lucro, como define Marx: a parte do lucro que lhe paga chama-se juro, o que portanto nada mais que um nome particular, uma rubrica particular para uma parte do lucro, a qual o capital em funcionamento, em vez de pr no prprio bolso, tem de pagar ao proprietrio do capital (1983, p.256). Todo o movimento entre o emprstimo e a devoluo deste valor acrescido de dinheiro camuflado pelos liberais. Porm a mercadoria dinheiro (capital que porta juros) s pode retornar s mos do seu proprietrio acrescida de valor do contrrio no teria ele motivos para abrir mo dele e s se incrementa no processo de produo de mais-valia. O capitalista produtivo no poderia iniciar seu processo de produo sem tomar emprestado o dinheiro do capitalista monetrio, e este no poderia receber os juros sem que aqueleCadernos de Sade

investisse no processo produtivo4. Sob a forma dinheiro equivalente de troca que em si j meio alienante de equiparao de diferentes valores de uso, na qual se apagam todas as determinaes qualitativas o capital que porta juros parece no estar contaminado pelo processo de extrao de mais-valia. Como diz o autor, da mesma maneira que o crescimento pertence rvore, assim o produzir dinheiro pertence ao prprio capital nesta sua forma pura de [capital] dinheiro (Marx, 1982, p. 197). Assim, como capital que porta juros, o capital assume a forma mais pura de fetiche5. medida que cresce a concentrao deste capital monetrio nas mos de capitalistas que passam a dispor de grande massa de poupanas de outros milhares de capitalistas dispersos, estes montantes passam a ser colocados a disposio para emprstimo. Desenvolve-se assim em ampla escala o sistema de crdito, que para a Hilferding (1985, p. 170), a transferncia de dinheiro que o proprietrio deixou de empregar como capital a algum que pretende empreg-lo como capital; a transformao de capital monetrio ocioso em capital ativo. Atualmente o papel do crdito fundamental ao processo de valorizao do capital, pois permite a reduo do tempo de rotao do capital. Se no tempo de Marx o crdito era essencial para garantir a produo capitalista e era um recurso acessvel aos capitalistas funcionantes para o investimento produtivo atualmente sua funo est tambm em contrarrestar a superproduo e permitir a realizao do valor6. Seu acesso ao longo do sculo XX, fruto do desenvolvimento do capital bancrio, se estendeu classe trabalhadora, a qual passa tambm a depender em boa parte do crdito para a sua reproduo7. Quando o capital portador de juros passa a operar com a especulao, com a acumulao futura, descolada de sua base real, material dado o avano da financeirizao do capital como no caso dos ttulos pblicos, tem-se o capital fictcio, que se origina daquela forma de capital. O capital fictcio constitui-se na forma ilusria que adquirem os rendimentos que parecem provir do capital portador de juros. Neste caso, a emisso de papis, como nas sociedades por aes e os ttulos da dvida pblica (do qual trataremos mais adiante), so a forma ilusria, fictcia, que assume o

capital ao especular com o que Marx chama de valores imaginrios. O carter fictcio dos ttulos da dvida pblica muito maior, pois, como diz o autor [...] os ttulos de dvida pblica no precisam de forma alguma representar nenhum capital existente. O dinheiro emprestado pelos credores do Estado pode ter virado fumaa h muito tempo. Esses ttulos nada mais so do que o preo pago por uma participao nos impostos anuais que representam o rendimento de um capital inteiramente diferente do que foi gasto na poca de uma forma improdutiva (Hilferding, 1985, p. 114). Se este estudo j aponta os desdobramentos do desenvolvimento de capital portador de juros poca de Marx, esta forma de capital assume em nossos dias um novo papel no sistema monetrio, pois est organicamente associado ao capital industrial. Na era dos monoplios temos o capital financeiro, que segundo Lnin (2005), a fuso entre capital industrial e capital bancrio, em elevado grau de desenvolvimento do capital no qual a concentrao conduz aos monoplios capitalistas. Ao fundir-se com o capital industrial altamente concentrado e centralizado, submete-o a sua dinmica de atuao, na qual ganha destaque o capital fictcio. O capital financeiro cria a chamada oligarquia financeira, uma classe de rentiers que vive apenas dos rendimentos do capital financeiro, dos juros do capital monetrio e da especulao. Consequentemente, um pequeno e seleto nmero de Estados rentiers tornam-se prestamistas por excelncia e constituem-se em Estados parasitrios do capitalismo moderno, no qual o investimento monetrio d lugar ao investimento produtivo, criador de riqueza. Em tempos atuais, de mundializao do capital, esses rentistas daro a direo poltica e ideolgica ao Estado e requisitaro a atuao do fundo pblico diretamente a favor dos seus interesses a depender, claro, da correlao de foras presente na sociedade. Segundo Chesnais (1996), as finanas se alimentam por meio de dois mecanismos diferentes: da formao de capital fictcio e das transferncias de riqueza para a esfera financeira na qual um importante mecanismo o servio da dvida pblica. O capital monetrio ento passa a ditar o comportamento dossetembro de 2011 11

Estados e das empresas produtivas. Este processo de financeirizao do capital penetra os meios de reproduo social da classe trabalhadora, qual sejam as polticas sociais historicamente conquistadas.

A financeirizao do capital e as polticas sociais na contemporaneidadeAs polticas sociais a partir do ltimo quartel do sculo XX passam por grandes transformaes provocadas pela reordenao do capital sob hegemonia das finanas. A entrada num perodo de estagnao do desenvolvimento do capital, iniciado nos anos 1970, apresenta novas condies de implementao das polticas sociais. A crise, que trouxe consigo o aumento do desemprego, as taxas altas de inflao, a queda do comrcio mundial, apresenta como forma de seu enfrentamento os chamados ajustes estruturais a serem realizados no mbito estatal. Assim, a crise do capital tem como consequncia uma reconfigurao do papel do Estado8 e graves conseqncias para as polticas sociais, o que quer dizer, para as condies de vida da classe trabalhadora ao redor do mundo. A reao burguesa crise do capital que trata-se de uma crise de superproduo (Mandel, 1982)9 passa pelo rompimento do pacto keynesiano-fordista, que garantia o pleno emprego e um conjunto de polticas sociais de desenho social-democrata. Enquanto o mundo viveu um intenso processo de mundializao do capital sob a gide do capital financeiro, os Estados nacionais passaram a operar um conjunto de contra-reformas para contornar a crise do capital, que se traduziram num conjunto de medidas e programas de austeridade de natureza deflacionista, os chamados ajustes estruturais e mais uma vez o Estado atuou como uma almofada amortecedora anticrise (Behring e Boschetti, 2007, p.116) Entra em cena ao redor do globo o chamado projeto neoliberal, cujos principais argumentos, contrapondo-se ao modelo keynesiano/fordista em vigor, so os de que o dficit estatal produzido neste perodo intrinsecamente negativo para a economia j que absorve poupana e reduz investimentos; a interveno estatal na regulao das relaes de trabalho12 setembro de 2011

tambm negativa, pois impede o crescimento econmico e a criao de mais empregos; e as polticas sociais redistributivas empreendidas pelo Estado Social so perniciosas, pois aumentam o consumo e diminuem a poupana da populao (Navarro, apud Behring e Boschetti, 2007). A chamada crise fiscal do Estado passa a ser o argumento para a defesa neoliberal do corte de gastos sociais, que esconde as reais intenes de diminuio dos custos com a fora de trabalho e o redirecionamento do fundo pblico para atender, em maior escala, as demandas do grande capital. Os direitos da classe trabalhadora so assim os primeiros a serem atingidos neste processo, o que quer dizer que as polticas sociais passaro por regressivas transformaes. Se no se pode falar em desmantelamento, inegvel que as reestruturaes em curso seguem na direo de sua restrio, seletividade e focalizao; em outras palavras, rompem com os compromissos e consensos do ps-guerra, que permitiam a expanso do Welfare State (Behring e Bochetti, 2007, p. 134). A supremacia do capital fetiche atinge todos os mbitos da vida social e a sede de lucratividade desta forma de capital se espraia para alm dos investimentos privados. As polticas sociais se tornam alvo de investimento do capital financeiro, na tentativa de solucionar o fenmeno da superacumulao. Este empurra para a privatizao (direta ou indireta) alguns setores de utilidade pblica como campo de inverso do lucro em servios de sade, de educao e de previdncia (Behring, 2008), caracterizando a supercapitalizao de que trata Mandel (1982). No Brasil as polticas sociais a partir da dcada de 1990, pouco depois da promulgao da Constituio de 1988, tambm passaram a sofrer ameaas por meio do projeto neoliberal, que impediu a plena implementao do texto constitucional. A recm criada Seguridade Social uma conquista no mbito da formao de um sistema de proteo social no Brasil ainda que limitado derruda pelos sucessivos governos neoliberais desde Fernando Collor de Melo, aprofundando-se com os governos de FHC e persistindo nos governos de Lula da Silva. As tendncias da Seguridade Social brasileira neste perodo esto relacionadas aos processos sociais gestados no capita-

lismo em sua fase monoplica. Segundo Mota (2005) se ancoram em dois vetores: nas mudanas no mundo do trabalho, quando a reestruturao produtiva supera o modelo fordista-keynesiano para firmar o modelo de acumulao flexvel, e nas mudanas na interveno do Estado, que assume novos papis e redefine os antigos em funo das necessidades de um novo momento na produo de mercadorias10. A partir dos anos 1990 vivemos um processo de desmonte de parte do aparato do Estado e de restrio das polticas sociais, que passam a ser organizadas sob a lgica do capital financeiro. O processo de contrarreforma do Estado vem acompanhado de uma srie de privatizaes do setor pblico estratgico. Alm disso, uma das principais consequncias da financeirizao para as polticas sociais tem sido a captura do fundo pblico para a alimentao direta do capital que porta juros, no qual o papel da dvida pblica tem sido central. A dvida pblica constitui-se em um dos principais instrumentos de dominao dos rentistas e do grande capital sobre os pases perifricos. Estes pases vm sendo orientados a conduzir sua poltica econmica para privilegiar o capital que porta juros em detrimento das polticas sociais desde a crise da dcada de 1970. Um dos mecanismos fundamentais utilizados para drenar recursos das polticas sociais brasileiras para o capital que porta juros a Desvinculao de Receitas da Unio (DRU) de 200011. A Seguridade Social a mais atingida por este mecanismo, tendo em vista que ele permite a desvinculao de 20% dos seus recursos. A DRU transfere os recursos do oramento da Seguridade Social para o oramento fiscal com a finalidade de facilitar a formao de supervits e pagar a dvida pblica. A DRU possibilitou o repasse de bilhes de reais das polticas sociais12 para o grande capital e por isso a classificamos como um tipo de programa de transferncia de renda para os rentistas (Antunes e Gimenez, 2007). Em outras palavras, isto significa a transferncia de recursos antes destinados classe trabalhadora para o pagamento de juros da dvida13, alimentando o mundo das finanas. Deste modo, o fundo pblico passa a ser canalizado de forma direta para alimentar o mercado financeiro. Alm da DRU, o capital se utiliza deCadernos de Sade

outros mecanismos para garantir a acumulao e valorizao de sua forma fetichizada14. Acrescentamos a esta forma de destinao do fundo pblico para o capital, os recursos dos oramentos das polticas sociais que remuneram o rentismo, direta e indiretamente. Referimos-nos remunerao do capital portador de juros para que operem e atuem na operacionalizao das polticas sociais. Esta remunerao acontece das mais diversas formas e atinge a quase totalidade das polticas sociais, que consideramos uma privatizao via financeirizao por dentro do Estado. Este tipo de transferncia um pouco mais difcil de ser desvelada, mas pode ser visualizada em diversos mbitos. Na sade, por meio da ampliao da atuao da iniciativa privada via planos de sade e a entrega de atividades administradas e financiadas pelo Estado organizaes sociais15; no mbito da previdncia, as contra-reformas realizadas pelos ltimos governos que desconstroem direitos e estimulam o crescimento da previdncia privada por meio dos fundos de penso16, e ainda a remunerao das instituies bancrias para operarem com o repasse das aposentadorias e benefcios previdencirios; e no mbito da assistncia, a desresponsabilizao do Estado com o repasse das aes assistenciais para o terceiro setor, e ainda a nfase nos programas de transferncia de renda, nos moldes propostos pelas agncias multilateriais, que tambm repassam recursos aos bancos para que operem com os benefcios17 (Silva, 2010). Existe assim uma tenso na disputa pelo fundo pblico na qual a classe trabalhadora luta pelo financiamento de suas necessidades e o capital busca a sua reproduo por meio de subsdios e participao no mercado financeiro (com a dvida pblica, por exemplo). Pela sua fora hegemnica e pela correlao de foras desfavorvel que vivenciamos, o capital tem conseguido cada vez mais se apropriar do fundo pblico e com maior fora a partir da entrada do projeto neoliberal no cenrio nacional.

colhe e reparte de forma desigual entre as classes sob diversas formas. Constituise de parte da riqueza socialmente produzida, ou seja, parte do trabalho excedente, mas tambm, e de forma majoritria em nosso tempos, pelo trabalho necessrio. De acordo com Behring (2010) no capitalismo monopolista, a puno do fundo pblico feita pelo sistema tributrio, o que quer dizer que o fundo pblico cada vez mais sustentado no e pelos salrios.O fundo pblico no se forma- especialmente no capitalismo monopolizado e maduro apenas com o trabalho excedente metamorfoseado em valor, mas tambm com o trabalho necessrio, na medida em que os trabalhadores pagam impostos direta e, sobretudo, indiretamente, por meio do consumo, onde os impostos esto embutidos nos preos das mercadorias18 (Ibdem, p. 6).

Fundo pblico em disputa em tempos de criseH ainda um dado fundamental a ser tratado: a composio do fundo pblico. O fundo pblico composto por impostos, taxas e contribuies da classe trabalhadora, do capital e do Estado que as reCadernos de Sade

No Brasil o sistema tributrio marcado pela regressividade19 que faz com que os trabalhadores paguem mais impostos que a burguesia, e consequentemente paguem pelo endividamento pblico. Isto porque no Brasil predomina a maior tributao por meio de impostos indiretos, que incidem de forma majoritria sobre a renda dos trabalhadores assalariados20. Assim, so os recursos dos trabalhadores que sustentam o fundo pblico que, por sua vez, capturado pelo capital que porta juros, scio privilegiado do fundo pblico, como diz Salvador (2010). O capital parasitrio utiliza-se dos mais variados mecanismos para capturar os recursos que por direito deveriam destinar-se to somente a melhoria das condies de vida da classe trabalhadora, j que so em sua grande maioria extrado dessa mesma classe. Atualmente vivemos em tempos de difcil disputa pela riqueza socialmente produzida. O fundo pblico tem sido cada vez mais capturado pelo capital que porta juros tanto pela dvida pblica que atinge os pases perifricos e usurpa grandes recursos advindos da classe trabalhadora, quanto pela incidncia de mecanismos de alimentao do capital financeiro no interior das polticas sociais. A lgica de financeirizao das relaes sociais atinge os recursos destinados reproduo social da classe trabalhadora e as polticas sociais transformam-se em alvo prioritrio de mudanas e ajustes, tanto nos pases centrais do capitalismo, como nos pases perifricos. O repasse de recursos

da Seguridade Social para o rentismo, a extenso do crdito aos aposentados, a remunerao de instituies financeiras para operacionalizao de benefcios assistenciais, a expanso dos fundos de penso, a criao das Fundaes Estatais de Direito Privado, etc; por meio desses e outros mecanismos o capital portador de juros incide sob a reproduo social da classe trabalhadora e a transforma em meios de valorizao altamente lucrativos. Nos tempos atuais, vivemos em meio a uma crise do capital que, de acordo com Katz (2010), irrompeu na rbita financeira, mas se relaciona s tenses geradas pelos capitais superacumulados, pela superproduo e pelos intercmbios desproporcionais. Para o autor, a crise est relacionada no s esfera financeira, mas realizao do valor e valorizao do capital, causadores das crises capitalistas em todos os tempos, porm apresenta especificidades relacionadas ao modelo neoliberal vigente nas ltimas dcadas21. Nesse contexto, o papel do Estado, como almofada amortecedora da crise, e do fundo pblico foi e fundamental para garantir as condies de acumulao, valorizao e do capital e de superao de suas crises. Os recursos utilizados para tanto, so aqueles extrados do mundo do trabalho, do que seria destinado melhoria das condies de vida dos trabalhadores, que ao contrrio, posto a disposio do capital portador de juros. Em tempos difceis, no deixa de ser menos necessria a luta e disputa pela riqueza socialmente produzida, pelo Estado e pelo fundo pblico. Muito pelo contrrio. fundamental persistirmos na desmistificao e superao da ordem burguesa, dado que sem a apreenso da realidade concreta e dos rebatimentos da organizao do capital para a classe na atualidade, no possvel modific-la nem transform-la.Notas 4 Quanto a esta observao, tomamos por referncia neste captulo apenas o estudo presente no captulo XXI dO Capital de Marx. A expanso do capital que porta juros para toda a vida social, do crdito, incidindo tambm sobre a classe trabalhadora, tornando-a tambm sua mutuaria trataremos mais a frente. 5 Sobre capital fetiche, cf. tambm Iamamoto (2007). No primeiro captulo deste livro a autora faz uma consistente anlise marxista dos movimentos contemporneos do capital tendo como base o Livro Terceiro dO Capital e desvenda o fetiche presente na configurao atual setembro de 2011 13

do capitalismo, iluminando o debate sobre o Servio Social em nossos tempos. 6 Exemplos do papel central do crdito neste sentido so a indstria automobilstica e o setor imobilirio e de turismo, que operam de forma massiva por meio do crdito. 7 O que dizer ento do crdito consignado que se expande em nossos dias e empurra para o endividamento boa parte da classe trabalhadora? Ao capital garantida a realizao do valor pela obrigatoriedade do pagamento descontado do salrio dos trabalhadores. O trabalho necessrio alimenta diretamente a esfera financeira sem que seja dado ao trabalhador o direito de contestar este processo. 8 Vale ressaltar que o Estado sempre atendeu de forma desigual aos interesses contraditrios em disputa. Em que pese a correlao de foras presente em cada contexto scio-histrico, o Estado manteve ao longo de todo o desenvolvimento capitalista seu carter de classe, a favor dos interesses da burguesia, embora no deixe de abarcar as lutas e reivindicaes da classe trabalhadora. 9 Sobre isto Behring e Boschetti nos esclarecem: A crise [...] tem a funo de se constituir como meio pelo qual a lei do valor se expressa e se impe. Ela a consolidao de dificuldades crescentes de realizao da mais-valia socialmente produzida, o que gera superproduo, associada superacumulao (2007, p. 117). 10 A discusso sobre a cultura da crise da Seguridade Social encontrada no livro de mesmo nome da autora (2005). 11 Criada anteriormente sob a forma de Fundo Social de Emergncia (1994) e depois Fundo de Estabilizao Fiscal (1997) e a partir de 2000 reformulada com a denominao de Desvinculao de Receitas da Unio. 12 Em 2009 a DRU desvinculou do oramento da Seguridade Social um total de 39,1 bilhes de reais (Inesc, 2010). 13 Segundo Filgueiras e Golalves (2007), os Cardoso e Lula pagaram mais de R$ 1 trilho em juros da dvida pblica e os supervits acumulados no mesmo perodo foram de R$ 489,8 bilhes de reais. 14 Inclumos ainda Lei de Responsabilidade Fiscal, de 2000 que preceitua determinados contedos para a lei de diretrizes oramentrias e para o oramento e, na medida em que prioriza o pagamento das dvidas pblicas, acarreta o deslocamento de recursos das polticas sociais para tanto. Tal medida de ajuste fiscal a aplicao prtica do princpio neoliberal de reduo do Estado para o mundo do trabalho e seu alargamento para ateno dos interesses do capital. 15 Como as Organizaes Sociais (OSs), as Organizaes da Sociedade Civil de Interesse Pblico (OSCIPs) e mais recentemente as Fundaes Estatais de Direito Privado, todas elas formas de privatizar o Estado e descentralizar com a mera transferncia de responsabilidades as polticas sociais; projeto este em con14 setembro de 2011

sonncia a lgica do capital que porta juros. 16 Para maior aprofundamento sobre o estudo da previdncia privada e capital portador de juros, cf. Granemann (2006). 17 Quanto aos programas de transferncia de renda, Cf a dissertao de mestrado defendida recentemente (Silva, 2010) que mostra-nos os recursos destinados aos bancos (chamados de agentes pagadores) para operacionalizao dos benefcios do Programa Bolsa Famlia (PBF), do Benefcio de Prestao Continuada (BPC) e da Renda Mensal Vitalcia (RMV), uma forma direta de remunerao do capital portado de juros. 18 Fabrcio de Oliveira (apud Salvador, 2005) chama este processo de fetiche do imposto, no qual o empresrio nutre a iluso de que arca com o nus do tributo, mas na verdade este integra a estrutura de custos da empresa, sendo repassado aos preos das mercadorias e/ou servios, por isso so indiretos. 19 Para diferenciar a progressividade e a regressividade de um imposto preciso avaliar sua incidncia: se sobre renda, propriedade, produo, circulao e consumo de bens e servios. Conforme a base de incidncia os tributos so considerados diretos ou indiretos. Os tributos diretos incidem sobre a renda e o patrimnio porque, em tese, no so passveis de transferncias para terceiros. Esses so considerados impostos mais adequados para a questo da progressividade. Os indiretos incidem sobre a produo e o consumo de bens e servios sendo passveis de transferncia para terceiros, em outras palavras, para os preos dos produtos adquiridos pelos consumidores. Eles que acabam pagando de fato o tributo, mediado pelo contribuinte legal: empresrio produtor ou vendedor (Salvador, 2005, p. 3). 20 Segundo Salvador (2010), no Brasil, quem ganha at dois salrios mnimos gasta 26% de sua renda no pagamento de tributos indiretos, enquanto o peso da carga tributria para as famlias com renda superior a 30 salrios mnimos corresponde apenas a 7% . A tributao sobre renda e patrimnio (impostos diretos) extremamente baixa no pas e assim a burguesia paga cada vez menos impostos. Com isso o sistema tributrio brasileiro tem agravado a concentrao de renda no pas. 21 Os resultados j se vem nos noticirios. A Europa padece com as graves conseqncias da crise, que atinge primeiramente os pases perifricos no seu interior, dos quais Grcia, Espanha e Portugal j so submetidos s brutais exigncias de ajuste dos pases do centro europeu. A crise enfatizou a polarizao existente entre pases europeus comercialmente excedentes e deficitrios. E os desdobramentos desta crise no estaro no retorno do Welfare State, de um suposto capitalismo humano, nem mesmo sua soluo est no controle da especulao. Um sistema assentado na explorao do homem pelo homem no pode ser humanizado, j que vulnera o princpio bsico da convivncia entre indivduos (Katz, 2010, p.34).

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Cadernos de Sade

1.2

A sade nos governos Lula e Dilma: algumas reflexes22

Maria Ins Souza Bravo23 Juliana Souza Bravo de Menezes24

ApresentaoEste texto pretende analisar a Poltica de Sade na atual conjuntura, fazendo, num primeiro momento, uma abordagem geral, com nfase nas polticas sociais, e, no segundo, enfocando a Poltica de Sade nos dois mandatos do presidente Luiz Incio Lula da Silva e, em seguida, apresenta algumas reflexes com relao ao governo Dilma Roussef. Nesta direo, vai-se ressaltar as propostas e reformas defendidas pelo governo Lula, aps o seu primeiro governo, que do seqncia contrarreforma do Estado iniciada na gesto de Fernando Henrique Cardoso (FHC), encolhendo o espao p-

blico democrtico dos direitos sociais e ampliando o espao privado - no s nas atividades ligadas produo econmica, mas tambm no campo dos direitos sociais conquistados. Posteriormente, destaca-se a eleio de Dilma Roussef que chega ao poder com a mstica de ser a primeira mulher eleita ao cargo presidencial do pas. A atual presidente venceu as eleies devido popularidade do presidente Luis Incio Lula da Silva que a apoiou durante toda a campanha, uma vez que alguns petistas que tiveram seus nomes cogitados para a eleio perderam a possibilidade de serem candidatos por diversos motivos entre eles, a sucesso de escndalos que os envolvia,

na maioria, por denncias de corrupo. O artigo vai abordar tambm as manifestaes dos movimentos sociais, da Frente Parlamentar da Sade, do Frum da Reforma Sanitria e a criao de Fruns de Sade e da Frente Nacional contra a Privatizao da Sade. Para finalizar, so levantadas algumas consideraes que destacam as proposies de diversos sujeitos fiis as lutas e aos princpios da Reforma Sanitria brasileira construda nos anos oitenta. So ressaltadas a agenda poltica aprovada pelo Conselho Nacional de Sade e a criao dos Fruns de Sade e da Frente Nacional contra a Privatizao da Sade e suas proposies.

Este texto uma verso revista e ampliada pelas autoras do artigo Poltica de Sade no Governo Lula: Algumas Reflexes. In: Movimentos Sociais, Sade e Trabalho. Organizadores, Maria Ins Souza Bravo [et al.]. Rio de Janeiro: ENSP/FIOCRUZ, 2010.22

Assistente Social, doutora em Servio Social (PUC/SP) e ps-doutora em Servio Social pela UFRJ, professora aposentada da UFRJ, professora adjunta da Faculdade de Servio Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), coordenadora dos projetos Polticas Pblicas de Sade: o potencial dos movimentos sociais e dos conselhos do Rio de Janeiro e Sade, Servio Social e Movimentos Sociais. Integrante do Frum de Sade do Rio de Janeiro e da Frente Nacional contra a Privatizao da Sade (e-mail: [email protected]).23

Especialista e mestre em Sade Pblica (ENSP/FIOCRUZ), assistente social do Hospital Federal de Bonsucesso/Ministrio da Sade. Integrante do projeto Polticas Pblicas de Sade: o potencial dos movimentos sociais e dos conselhos do Rio de Janeiro da Faculdade de Servio Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Integrante do Frum de Sade do Rio de Janeiro e da Frente Nacional contra a Privatizao da Sade (e-mail: [email protected]).24

A Conjuntura e as Polticas SociaisA eleio de Luiz Incio Lula da Silva significou um marco poltico na histria do pas, pois foi a primeira vez que se elegeu um representante da classe operria brasileira com forte experincia de organizao poltica (Braz, 2004, p. 49). A consagrao eleitoral foi resultado da reao da populao contra o projeto neoliberal implantado nos anos de 1990. Isto , pela primeira vez venceu o projeto que no representa, em sua origem, os interesses hegemnicos das classes dominantes. Apesar das dificuldades do cenrio internacional, com a presso dos mercados e do capitalismo financeiro, acreditavase que, no Brasil, estaria se inaugurando um novo momento histrico em que se enfrentaria as polticas de ajuste. No se esperava transformaes profundas, diante dos acordos ocorridos, mas havia expectativas com relao s polticas sociais e participao social. A legitimidade expressa nas urnas, para exercer um governo orientado para mudar o Brasil numa direo democrtico-popular (Netto, 2004, p. 13) e para uma poltica econmica direcionada ao mercado interno de massas, articulada a uma poltica social mais ousada (BEHRING, 2004), no foi levada em considerao. A anlise realizada por Behring (2004), explicita que, no plano econmico, todos os parmetros macroeconmicos da era FHC foram mantidos, permanecendo intocveis: o supervit primrio; a Desvinculao de Receitas da Unio (DRU)25; taxas de juros parametradas pela Selic; apostas na poltica de exportao, com base no agronegcio; o inesgotvel pagamento dos juros, encargos e amortizaes da dvida pblica; e o aumento da arrecadao da Unio. Essas orientaes econmicas tm impactos nas polticas sociais. De acordo com Soares (2004), a tese central do governo que a soluo no est na expanso do gasto social, e sim na focalizao. Continua-se com polticas focais, em detrimento da lgica do direito e da Seguridade Social universalizada. Para Marques & Mendes (2005), as polticas sociais no governo Lula esto estruturadas em trs eixos que fundamentam a concepo de proteo social16 setembro de 2011

utilizada. O primeiro o Projeto Fome Zero, que ficou basicamente concentrado no programa Bolsa-Famlia; o segundo, a contrarreforma da Previdncia Social; e o terceiro refere-se ao trato dado pela equipe econmica aos recursos da Seguridade Social. A ao mais importante na rea social o programa de transferncia de renda Bolsa Famlia, criado em 2003, com o desafio de combater a misria, atravs da unificao de todos os programas sociais e a criao de um cadastro nico de beneficirios. Apesar dos avanos nas condies de vida de milhes de brasileiros, importante destacar que o Bolsa Famlia no se constitui um direito, pois trata-se de uma poltica de governo, fruto de uma deciso do Executivo federal. No sendo uma poltica de Estado, pode ser extinto a qualquer momento. Ressalta-se que o combate pobreza no se d apenas por polticas de transferncia de renda, mas preciso que estas estejam associadas a outras polticas sociais. Isto , no contexto de uma poltica de universalizao da proteo social, a garantia de renda seria compreendida como um direito. E o seu avano no abandonaria a idia de universalizao das polticas sociais, ou seja, no seria acompanhado com a implantao de um Estado mnimo nos outros ramos da proteo social26 (Marques & Mendes, 2005, p. 169). A contrarreforma da Previdncia Social, ocorrida no governo Lula, realizou, no mbito do servio pblico, aes restritivas de direitos que haviam sido derrotadas durante a gesto FHC27. H uma reduo de direitos do mundo do trabalho, a privatizao dos recursos pblicos e a ampliao dos espaos de acumulao do capital. Granemann (2004) destaca que a especulao financeira, promovida pelos fundos de penso, atinge o Estado por meio dos investimentos em renda fixa que tm como importantes fontes de suas aplicaes os ttulos pblicos. A autora ressalta ainda que essas medidas nos reservam, como futuro, uma necessidade inarredvel de endividamento pblico, posto que partes significativas das contribuies previdencirias da fora de trabalho estatal e privada foram cedidas aos fundos de penso e s previdncias abertas (2004, p. 32). Nesta perspectiva, o endividamento estatal agravado e a emisso de ttulos

pblicos colocada como soluo e, entre seus compradores, esto os fundos de penso. Dessa forma, as contra-reformas do Estado, que tinham como objetivo solucionar as crises fiscais, so os seus principais elementos geradores. Em sntese, a contrarreforma previdenciria do governo Lula caracteriza-se por ser antidemocrtica, anti-republicana e ainda por promover uma redistribuio de renda s avessas, entre os servidores e o capital financeiro (Marques & Mendes, 2005, p. 150-151)28. Em 2009, no segundo mandato, o governo apresenta Cmara dos Deputados a proposta de Reforma Tributria (Projeto de Emenda Constitucional - PEC 233/08), na qual prope profundas alteraes no sistema tributrio nacional, com vistas sua simplificao e desburocratizao, eliminao da guerra fiscal, desonerao parcial da tributao sobre a folha de salrios, eliminao de distores e cumulatividade e aumento da competitividade econmica. Tal proposta traz graves conseqncias ao financiamento das polticas sociais no Brasil, ameaando de forma substancial as fontes exclusivas que do suporte s polticas de Seguridade Social (Previdncia, Sade e Assistncia Social), Educao e Trabalho29. Esse projeto, se aprovado na forma atual, subtrai recursos e quebra salvaguardas constitucionais de benefcios e programas sociais e servios pblicos, atualmente protegidos pelo art. 195 da Constituio Federal de 1988. Desconstruda a capacidade de financiamento da Seguridade Social, a construo e a efetividade de direitos declarados em vrias partes do texto constitucional ficam inviabilizadas. A Reforma Tributria no interessa somente aos setores representativos do empresariado nacional ou aos governadores e prefeitos. um tema que interessa a toda a sociedade. A carga tributria, o financiamento do Estado, os tributos recolhidos incidem sobre toda a populao, 2/3 das receitas arrecadadas advm de tributao sobre consumo e sobre a renda dos trabalhadores. Nessa direo, necessria uma reforma que no apenas racionalize o sistema tributrio, mas tambm o torne menos regressivo, ou seja, mais justo e redistributivo. Ao mesmo tempo, preciso ter claro que as mudanas propostas afetaro profundamente toda a Seguridade Social, colocando em risco as grandes conquistasCadernos de Sade

sociais da Constituio Federal de 198830. Esse breve balano das polticas sociais mostra que, apesar de algumas inovaes, a agenda da estabilidade fiscal muito forte e, conseqentemente, os investimentos so muito reduzidos, no apontando na direo de um outro projeto para o pas. Com relao participao social, segundo Moroni (2009) houve a ampliao de canais de participao, mas tambm houve um desrespeito autonomia da sociedade civil. Na maioria dos espaos participativos criados ou reformulados quem determina a representao da sociedade o governo. O que se constata que ocorre uma multiplicidade de espaos de interlocuo, mas no h uma poltica de fortalecimento do sistema descentralizado e participativo e, muito menos, ampliao dos processos democrticos. A participao ficou reduzida estratgia de governabilidade31. Vai-se fazer em seguida, algumas reflexes com relao aos seis meses iniciais do governo Dilma. Aps a vitria de Dilma, houve algumas especulaes com relao as linhas gerais de seu governo. Algumas temticas so centrais nesta anlise: poltica econmica, poltica externa, combate s desigualdades, postura com relao aos temas polmicos como a legalizao do aborto, regulao social do monoplio dos meios de comunicao. No incio do governo, algumas aes mereceram preocupaes como cortes oramentrios, restrio de investimentos, medidas de carter privatista como a abertura do capital da Infraero, a privatizao de aeroportos e a nova rodada de leiles do petrleo do Pr-Sal (Medeiros, 2011). Como ocorreu no governo Lula, a maior parte do oramento da unio para 2011 ser destinado rolagem da dvida pblica. A proposta que R$678,5 bilhes sejam destinados a pagar os juros e a amortizao da dvida. Este valor representa mais de um tero do total do oramento que chegar em 2012, a R$2,07 trilhes. H tambm a previso da manuteno do supervit primrio em 3,1% do PIB, com a previso de cortes de at R$ 60 bilhes, o que equivale a todos os gastos do Ministrio da Sade (Medeiros, 2011). Todas estas medidas demonstram que o governo Dilma no enfatizar mais o social do que o anterior mas, pelo contrrio,Cadernos de Sade

as posies assumidas nesses seis meses apontam um governo mais privatista e comprometido com a manuteno do atual modelo econmico. O corte de R$ 60 bilhes no oramento atingiu basicamente a rea social, a saber: reduo de gastos com pessoal, incluindo congelamento dos salrios (R$ 3,5 milhes); corte de R$ 5 bilhes no Programa Minha Casa Minha Vida; no Ministrio da Reforma Agrria houve reduo de R$ 929 milhes; na Educao corte de R$ 3,1 milhes; na Sade R$ 578 milhes; nos Desportos R$ 1,5 milhes; no Meio Ambiente R$ 400 milhes e no Transporte R$ 2,3 milhes (Domingues, 2011). Com relao ao combate s desigualdades, a primeira medida do governo Dilma nesta rea foi solicitar uma nova definio da linha da misria e da pobreza sendo o nico critrio o da renda per capita da famlia. O que se verifica a subordinao da lgica social lgica econmica, com belas frmulas para combater a misria (Moroni, 2011). Um aspecto importante que os primeiros meses do governo demonstraram a crescente insatisfao de grupos sociais. Vrias manifestaes ocorreram cabendo destacar (Costa, 2011): A dos estudantes e trabalhadores em protesto contra a elevao da passagem dos nibus em vrias cidades do Brasil; Fruns Populares em todo pas debatem a situao da sade e da educao pblica, organizando mobilizaes contra o processo de privatizao; Trabalhadores da construo civil reagem s condies de super explorao impostas pelas empreiteiras empresas multinacionais como a Odebrecht, Camargo Correa, Queiroz Galvo, Mendes Junior e outras nas obras do PAC (Programa de Acelerao do Crescimento) que um dos maiores programas de transferncia de verbas pblicas para as mos do grande capital. Mais de 80 mil trabalhadores j fizeram greve nas obras espalhadas pelo Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Ressalta-se como exemplos, a Usina de Jiro (Rondnia) onde a massa em revolta incendiou nibus, veculos e escritrios; na Hidroeltrica So Domingos (Mato Grosso) os trabalhadores incendiaram os alojamentos; no complexo do SUAPE que rene a Refinaria Abreu e Lima e a Petroqumi-

ca, 30 mil operrios entraram em greve; na Termeltrica de Pecm (Cear), 6 mil trabalhadores ficaram parados; na Ponte sobre o Rio Madeira (Rondnia) houve 300 grevistas. Em diversas regies, o Programa Minha Casa Minha Vidas sofre paralisaes com sete mil operrios da construo civil recusando-se a trabalhar nas condies impostas. Os servidores pblicos fizeram trs marchas em Braslia e houve a greve dos servidores das universidades. Em agosto, foi convocada uma Jornada Nacional de Lutas para unificar essas diversas manifestaes. Aps essa anlise mais geral dos governos, vai-se ressaltar a poltica de sade nos mesmos.

A Sade no Governo LulaVai-se abordar as aes na sade desenvolvidas nos dois mandatos do governo Lula. A Sade no Primeiro MandatoA Poltica de Sade apresentada no programa de governo do primeiro mandato como direito fundamental e explicita-se o compromisso em garantir acesso universal, equnime e integral s aes e servios de sade. A concepo de Seguridade Social no assumida na perspectiva na Constituio Federal de 1988. Havia uma expectativa, entretanto, de que o governo fortalecesse o Projeto de Reforma Sanitria na sade. Para a anlise, vai-se utilizar dois autores que escreveram sobre a temtica: Bravo (2004 e 2006), Paim et. al. (2005) e Paim (2008). Para Bravo (2004 e 2006), o Ministrio da Sade, no incio do governo, vai sinalizar como um dos desafios a incorporao da agenda tico-poltica da Reforma Sanitria. Entretanto, tem-se percebido a manuteno da disputa entre os dois projetos: Reforma Sanitria e Privatista. Em alguns aspectos, o governo procura fortalecer o primeiro projeto e, em outros, o segundo. A autora ressalta como aspectos de inovao da poltica de sade que poderiam fortalecer o primeiro projeto: o retorno dasetembro de 2011 17

concepo de Reforma Sanitria que, nos anos noventa, foi abandonada; a escolha de profissionais comprometidos com a luta pela Reforma Sanitria para ocupar o segundo escalo do ministrio; as alteraes na estrutura organizativa do Ministrio da Sade32; a convocao extraordinria da 12 Conferncia Nacional de Sade (CNS)33 e a sua realizao em dezembro de 2003 e a escolha de representante da Central nica dos Trabalhadores (CUT) para assumir a secretaria executiva do Conselho Nacional de Sade. Como continuidade da poltica de sade dos anos noventa, destaca-se a nfase na focalizao, na precarizao, na terceirizao dos recursos humanos, no desfinanciamento e a falta de vontade poltica para viabilizar a concepo de Seguridade Social34. Como exemplo de focalizao, destaca-se a centralidade no Programa Sade da Famlia, sem alterao significativa, para que o mesmo se transforme em estratgia de reorganizao da ateno bsica, em vez de ser um programa de extenso de cobertura para as populaes carentes (Bravo, 2004 e 2006). Paim et. al. (2005) realizou um estudo, no primeiro ano do primeiro mandato, em que avaliou a Poltica de Sade a partir das seguintes temticas: Ateno Bsica; Atendimento Hospitalar e Alta Complexidade; Programas Especiais; Vigilncia Epidemiolgica e Sanitria; Assistncia Farmacutica; Assistncia Mdica Suplementar e Controle Social. As aes referentes ateno bsica assinalam um compromisso do governo com a ampliao e o fortalecimento do Programa Sade da Famlia, atravs do aumento do financiamento e da ampliao de equipes de sade da famlia (Paim et. al., 2005). Para a ateno hospitalar e de alta complexidade, os autores ressaltam o fortalecimento dos vnculos dos hospitais universitrios (HUs) com o Sistema nico de Sade (SUS), atravs de algumas medidas, a saber: recomposio dos quadros de servidores desses hospitais; nova forma de financiamento dos HUs. Outras aes nesta direo: a estruturao do servio de emergncia, com o lanamento do Programa Nacional de Ateno Integral s Urgncias e a criao do Servio de Atendimento Mvel de Urgncia (SAMU); o estmulo e apoio criao de Centrais de Regulao Regionais das Urgncias.18 setembro de 2011

Salienta-se, entretanto, segundo Masson (2007), que o grupo de trabalho interministerial, institudo no mbito do Ministrio da Educao em 2006, ao produzir parecer tcnico sobre a gesto e financiamento dos HUs vinculados s Instituies Federais de Ensino Superior (IFES), vai destacar, principalmente, o problema de gesto. A poltica de criao de indicadores para credenciamento e qualificao dos HUs, apesar de conter aspectos importantes, proporcionou oportunidade para o governo elaborar um diagnstico das condies de desempenho dessas unidades. Este diagnstico, por sua vez, forneceu dados para a implantao da proposta de contrarreforma da natureza jurdica (Fundaes Privadas) e da funo social dos HUs. O relatrio enfatiza que o problema dos HUs reside no desperdcio por conta das deficincias de gesto, planejamento e integrao entre as esferas de governo. No se enfatiza a questo central, que a insuficincia de recursos. Com relao aos Programas Especiais, foram mantidos os de combate ao Tabagismo e AIDS. No que diz respeito sade da mulher, houve um esforo para enfrentar a mortalidade materna e formular uma poltica especfica. Quanto ao Programa de Tuberculose necessrio garantir a cobertura da ateno. Apesar das aes sobre as doenas infecto-contagiosas, o perfil epidemiolgico do pas indica que outras enfermidades e agravos merecem a ateno da Vigilncia em Sade, tais como a violncia e as doenas crnico-degenerativas (Paim et. al., 2005). Sobre a Assistncia Farmacutica, o governo buscou a ampliao de laboratrios oficiais e criou as farmcias populares35; aumentou a fiscalizao e o controle dos medicamentos. Os autores ressaltam que um aspecto que no foi enfrentado, apesar do Conselho Nacional de Sade (CNS) ter apontado como desafio para o SUS, refere-se subordinao das agncias reguladoras s instncias gestoras pblicas, mesmo se tratando de autarquias especiais: esta a situao da Agncia Nacional de Sade Suplementar. O governo tem-se posicionado de forma tmida em relao regulao e ao controle da sade suplementar. Em relao ao Controle Social, explicitado como avano pelos dois autores a criao da Secretaria de Gesto Estratgica e Participativa, que tem como com-

petncia fortalecer a participao social e a realizao de diversas conferncias em articulao com o Conselho Nacional. Entre as conferncias realizadas, destaca-se a 12 Conferncia Nacional de Sade, em 2003, em carter extraordinrio, com o tema Sade: um direito de todos e dever do Estado. A Sade que temos, o SUS que queremos, e as seguintes Conferncias Temticas: 3 Conferncia Nacional de Sade Bucal e 2 Conferncia Nacional de Cincia, Tecnologia e Inovao em Sade (2004); 3 Conferncia Nacional de Sade do Trabalhador (2005); 3 Conferncia Nacional de Gesto do Trabalho e da Educao na Sade e 3 Conferncia Nacional de Sade Indgena (2006)36. Outro aspecto importante foi a eleio do presidente do Conselho Nacional de Sade, em 2006, pela primeira vez em 70 anos de existncia37 (Radis 53). Um dos aspectos centrais da Poltica de Sade refere-se aos trabalhadores de sade, que foram terceirizados nos anos de 1990. Nesta direo, algumas propostas tm sido defendidas e foram objeto de discusso na 3 Conferncia Nacional de Gesto do Trabalho e da Educao na Sade, como a implantao do Plano de Carreira, Cargos e Salrios (PCCS) para o SUS; educao permanente; proteo social do trabalhador e regulao pblica das especialidades a partir das necessidades de sade da populao e do SUS; desprecarizao do trabalho; implementao da Norma Operacional Bsica de Recursos Humanos (NOB/RH-SUS), aprovada como Poltica Nacional, por meio da Resoluo n 330, em 2004. As aes necessrias para a viabilizao da poltica, entretanto, no foram efetivadas. A partir das contribuies dos autores, pode-se identificar que a poltica de sade sofreu os impactos da poltica macroeconmica. As questes centrais no foram enfrentadas, tais como a universalizao das aes, o financiamento efetivo, a Poltica de Gesto do Trabalho e Educao na Sade e a Poltica Nacional de Medicamentos. Na atual conjuntura, desafios esto colocados para os defensores do Projeto de Reforma Sanitria com relao democratizao da sade. importante destacar que o movimento sanitrio, formulador do Projeto de Reforma Sanitria e do SUS, durante a dcada de 1990, ficou em posio defensiva, apenas resistindo aosCadernos de Sade

ataques ao SUS. Em junho de 2005, foi realizado, na Cmara dos Deputados, o 8 Simpsio sobre Poltica Nacional de Sade, com o tema SUS o presente e o futuro: avaliao do seu processo de construo. Este simpsio reuniu mais de oitocentos participantes, entre eles, representantes da Frente Parlamentar de Sade, diversas entidades da sade e representantes da populao usuria, dos trabalhadores da sade, dos prestadores de servios e dos gestores. Ao final do encontro, foi lanada a Carta de Braslia, que destaca propostas afirmando o compromisso com o direito universal e integral sade, com o Sistema nico de Sade, com o Projeto de Reforma Sanitria e com a Seguridade Social, a saber: Definio de uma Poltica Nacional de Desenvolvimento; Defesa da Seguridade Social como poltica de proteo social universal; Defesa intransigente dos princpios e diretrizes do SUS; Retomada dos princpios que regem o Oramento da Seguridade Social, mas, imediatamente, regulamentar a Emenda Constitucional n 29; Cumprimento da Deliberao N 001, de 10 de maro de 2005, do Conselho Nacional de Sade, contrria terceirizao da gerncia e gesto de servios e de pessoal do setor sade38; Avanar no desenvolvimento de uma poltica de recursos humanos em sade, com eliminao de vnculos precrios; Estabelecimento de Plano de Cargos, Carreiras e Salrios para o SUS de maneira descentralizada, sem a incidncia dos atuais limites de gastos da Lei de Responsabilidade Fiscal; Avanar na substituio progressiva do sistema de pagamento de servios por um sistema de oramento global integrado, alocando recursos baseados nas necessidades de sade da populao; Reviso da lgica de subsdios e isenes fiscais para operadores e prestadores de planos e seguros privados de sade, redirecionando esses recursos para o sistema pblico de sade; Avanar no debate do projeto de lei que trata da Responsabilidade Sanitria, no sentido de se retomar o cerne da discusso para a garantia do direito sade;Cadernos de Sade

Garantir a democratizao do SUS, com o fortalecimento do controle social; Definio de uma poltica industrial, tecnolgica e de inovao em sade e garantir assistncia farmacutica integral; Desenvolvimento de aes articuladas entre os Poderes (Executivo, Legislativo e Judicirio) para a construo de solues relativas aos impasses na implementao do SUS; Recriao do Conselho Nacional de Seguridade Social. Aps esse encontro, observou-se a iniciativa de viabilizao das entidades em torno das bandeiras da Reforma Sanitria. Surge, em seguida, o Frum da Reforma Sanitria, formado pelas seguintes entidades: o Centro Brasileiro de Estudos da Sade (Cebes)39, a Associao Brasileira de Ps-Graduao em Sade Coletiva (Abrasco), a Associao Brasileira de Economia da Sade (Abres), a Rede Unida e a Associao Nacional do Ministrio Pblico em Defesa da Sade (Ampasa). Este frum lana o seu primeiro manifesto, no dia 23 de novembro de 2005, em ato pblico realizado na Cmara dos Deputados, com vistas defesa da aprovao da Emenda Constitucional n 29 e ampliao de mais recursos no oramento da sade, em 2006. Este manifesto, intitulado Frum da Reforma Sanitria Brasileira: reafirmando compromissos pela sade dos brasileiros, defende a Reforma Sanitria e apresenta uma agenda para a sade dos brasileiros. O frum lanou mais dois documentos, um sobre os gastos pblicos em sade Gasto em Sade no Brasil: muito ou Pouco? e outro que foi apresentado aos candidatos eleio de 2006 O SUS pra valer: universal, humanizado e de qualidade. O Frum da Reforma Sanitria, com a iniciativa do Cebes, organizou, em dezembro de 2006, o Encontro Nacional de Conjuntura e Sade, na Escola Nacional de Sade Pblica Srgio Arouca (ENSP/ FIOCRUZ). Este encontro teve como objetivo discutir uma agenda de debates para a reconstruo de um campo poltico da Reforma Sanitria que d feio a um projeto mais geral para o pas e articule as diversas lutas do setor sade, como o financiamento e a alterao do modelo assistencial (Radis 53). Segundo Paim (2008), entre os temas discutidos no encontro, destacam-se o movimento sanitrio e a mdia, a ampliao da agenda, o

retorno da militncia e as propostas dos candidatos para a sade. Este ltimo tema foi considerado central diante da proximidade das eleies. Neste caso, como aspectos relevantes, pode-se salientar que as plataformas de sade dos candidatos no eram conhecidas pela sociedade, a sade no era prioridade para os partidos polticos e que, nos programas de sade divulgados, no havia diferena entre as propostas dos candidatos. No final do primeiro mandato, foi apresentado o Pacto pela Sade (2006), com o objetivo de rediscutir a organizao e o funcionamento do SUS e avanar na implementao dos seus princpios. Entretanto, at o momento, este pacto no tem sido debatido amplamente40.

A Sade no Segundo MandatoO Plano de Governo 2007-2010 divulgado pelo candidato Lula no apresenta um compromisso com a Reforma Sanitria, uma vez que no menciona alguns eixos considerados centrais, a saber: controle dos planos de sade, financiamento efetivo e investimentos, ao intersetorial e poltica de gesto do trabalho (Paim, 2008). Na composio do segundo governo Lula, escolhido para ministro da Sade um sujeito poltico que participou da formulao do Projeto de Reforma Sanitria dos anos de 1980. Em seu discurso de posse, o ministro Jos Gomes Temporo afirma que h uma tenso permanente entre o iderio reformista e o projeto real em construo, assim como aspectos culturais e ideolgicos em disputa, como as propostas de reduo do Estado, de individualizao do risco, de focalizao, de negao da solidariedade e banalizao da violncia. Um dos possveis caminhos de superao deste conflito certamente passa pelo reconhecimento da sociedade de pensar a sade como um bem e um projeto social. necessrio, portanto, retomar os conceitos da Reforma Sanitria Brasileira, que no se limitam construo do SUS, mas ao aumento da capacidade para interferir crescentemente na determinao social da doena. E os sujeitos deste processo so os usurios e os profissionais de sade. Sem eles, o projeto ser derrotado. O ministro, no primeiro ano de sua gesto, levantou para o debate questessetembro de 2011 19

polmicas como a legalizao do aborto, considerado como um problema de sade pblica41; a ampliao das restries publicidade de bebidas alcolicas e a necessidade de fiscalizar as farmcias. Tomou tambm algumas medidas, entre elas, a de maior impacto foi a quebra de patente do medicamento Efavirenz (Stocrin), da Merk Sharp & Dohme, elogiada amplamente pelas entidades de combate AIDS (Revista poca, 14/05/2007). O Ministrio da Sade, entretanto, no tem enfrentado algumas questes centrais ao iderio reformista construdo desde meados dos anos setenta, como a concepo de Seguridade Social, a Poltica de Recursos Humanos e/ou Gesto do Trabalho e Educao na Sade e a Sade do Trabalhador. Apresenta, por outro lado, proposies que so contrrias ao projeto, como a adoo de um novo modelo jurdico-institucional para a rede pblica de hospitais, ou seja, a criao de Fundaes Estatais de Direito Privado. A proposio mais preocupante a criao das Fundaes Estatais, cujo debate est mais avanado na sade42 , mas pretende atingir todas as reas que no sejam exclusivas de Estado, tais como sade, educao, cincia e tecnologia, cultura, meio ambiente, desporto, previdncia complementar, assistncia social, entre outras43. Algumas questes podem ser levantadas com relao a esta proposta, tendo por referncia a sade: as fundaes sero regidas pelo direito privado; tem seu marco na contra-reforma do Estado de Bresser Pereira/FHC; a contratao de pessoal por CLT, acabando com o RJU (Regime Jurdico nico); no enfatiza o controle social, pois no prev os Conselhos Gestores de Unidades e sim Conselhos Curadores; no leva em considerao a luta por Plano de Cargo, Carreira e Salrio dos Trabalhadores de Sade; no obedece as proposies da 3 Conferncia Nacional de Gesto do Trabalho e Educao na Sade, realizada em 2006; fragiliza os trabalhadores atravs da criao de Planos de Cargo, Carreira e Salrio por Fundaes. Os movimentos sociais tm reagido a esta proposio. Em 2007, o Conselho Nacional de Sade se posicionou contrrio na sua reunio do ms de junho44. Neste ano, foram realizadas Conferncias Estaduais em todos os estados brasileiros20 setembro de 2011

e a 13 Conferncia Nacional de Sade maior evento envolvendo a participao social no pas. Em todas estas conferncias a proposta de criao das Fundaes de Direito Privado foi rejeitada. A 13 Conferncia Nacional de Sade teve como tema central Sade e Qualidade de Vida: Poltica de Estado e Desenvolvimento. O Conselho Nacional de Sade entendeu que era importante para a sociedade brasileira definir diretrizes para o avano e a garantia da sade como direito fundamental no desenvolvimento humano, econmico e social, bem como apontar estratgias para fortalecer a participao social no enfrentamento dos desafios atuais, para assegurar o Sistema nico de Sade como poltica de Estado. Dois temas foram centrais na 13 Conferncia: o projeto de Fundao Estatal de Direito Privado no mbito da sade e a descriminalizao do aborto. O projeto foi reprovado no somente em todos os grupos, mas tambm na plenria final. Marcou, desta forma, um posicionamento claro do movimento da sade contrrio ao modelo de gesto proposto pelo governo federal, que retoma, com novo flego, a contrarreforma do Estado, iniciada no governo Fernando Henrique Cardoso (FHC) por Bresser Pereira (Bravo, 2008). Os delegados do maior evento da sade pblica brasileira apontaram como propostas para as questes vivenciadas pelo SUS o aprofundamento das polticas universalistas, o cumprimento da legislao brasileira sobre a gesto do trabalho e da educao na sade para o SUS e a aprovao do PLP 01/2003 da Cmara dos Deputados, atualmente PLC n 89/2007 (no Senado Federal), que regulamenta a Emenda Constitucional 29, que se refere ao financiamento. Quanto descriminalizao do aborto, a conferncia posicionou-se desfavoravelmente. A tradio cultural brasileira e a influncia da Igreja Catlica pesaram acentuadamente na escolha poltica dos delegados com relao a esse tema. O desafio colocado avanar e aprofundar esse debate, relacionando-o a uma questo de sade pblica. Um aspecto importante evidenciado na 13 CNS diz respeito autonomia do Conselho Nacional de Sade em relao ao governo, o que s foi possvel em decorrncia do presidente ter sido eleito pelos conselheiros e ter legitimi-

dade na plenria. A conferncia s foi realizada em 2007 face determinao do Conselho Nacional de Sade, apesar das dificuldades enfrentadas e do pouco envolvimento do Ministrio da Sade, com exceo da Secretaria de Gesto Estratgica e Participativa. A questo preocupante aps a 13 CNS o fato do ministro da Sade no aceitar a deciso da mesma com relao ao projeto de Fundao Estatal de Direito Privado, continuando a defend-lo e a mant-lo no Programa Mais Sade, conhecido como PAC Sade, apresentado nao e ao Conselho Nacional de Sade no dia 5 de dezembro de 2007. O Programa Mais Sade apresenta quatro pilares estratgicos, a saber: Promoo e Ateno - Envolve aes de sade para toda a famlia, desde a gestao at a terceira idade. Gesto, Trabalho e Controle Social Qualifica os profissionais e gestores, forma recursos humanos para o Sistema nico de Sade (SUS) e garante instrumentos para o controle social e fiscalizao dos recursos. Neste item, a proposta central a criao da Fundao Estatal de Direito Privado. Ampliao do Acesso com Qualidade - Reestrutura a rede, cria novos servios, amplia e integra a cobertura no SUS. Desenvolvimento e Inovao em Sade - Trata a sade como um importante setor de desenvolvimento nacional, na produo, renda e emprego. Nesta conjuntura ficou a indagao de como ampliar a participao social se um de seus mecanismos, como os conselhos e conferncias, foram banalizados e suas propostas no foram respeitadas. A expectativa que se tem num Estado democrtico de direito que os ministros sejam exemplares no respeito aos princpios e normas constitucionais e no acolhimento s decises democrticas (Dallari, 2007). A proposta de Fundao Estatal de Direito Privado foi aprovada em diversos Estados, a partir de 2007. O Rio de Janeiro foi o primeiro a aprovar a Lei que regulamenta a mesma em dezembro de 2007 (Lei n 5164, de 17 de dezembro de 2007). Outros Estados da federao tambm aprovaram em seguida a proposta de Fundao de Direito Privado, a saber: Bahia,Cadernos de Sade

Sergipe, Pernambuco, Acre, Tocantins. Em 2009, a proposta das Fundaes Pblicas de Direito Privado reapresentada ao Congresso Nacional, em carter de urgncia, na contramo do que o Conselho Nacional de Sade tem defendido, revelando a inteno-ao do governo de esvaziar o controle social democrtico na sade, de implementar a lgica privatista, de controlar o movimento dos trabalhadores, com o fim da estabilidade do RJU subjugando trabalhadores s intencionalidades dos gestores. A proposta descaracteriza o SUS Constitucional nos seus princpios fundamentais e todas as proposies que o Movimento Popular pela Sade e o Movimento de Reforma Sanitria sonharam construir em suas lutas desde meados dos anos setenta. Substituise o interesse pblico por interesses particularistas numa privatizao perversa do Estado brasileiro, o que infelizmente no novidade na cena pblica nacional. Todas essas modificaes, entretanto, so ancoradas em valores que foram ressignificados, como a democracia, a qualidade, a transparncia, a eficincia e a eficcia. A anlise que se faz aps os dois mandatos do governo Lula que a disputa entre os dois projetos na sade existentes nos anos de 1990 continuou. Algumas propostas procuraram enfatizar a Reforma Sanitria, mas no houve vontade poltica e financiamento para viabiliz-las. O que se percebe a continuidade das polticas focais, a falta de democratizao do acesso, a no viabilizao da Seguridade Social e a articulao com o mercado. Alguns autores ao analisar as prioridades da agenda federal da sade identificaram quatro polticas prioritrias (Machado, Baptista e Nogueira, 2011 e Bahia, 2010): Estratgia Sade da Famlia (ESF) que persiste na agenda de sucessivas gestes ministeriais e anteriores ao governo Lula e as que foram salientadas pelo governo - Brasil Sorridente, SAMU (Servio de Atendimento Mvel de Urgncia) e Farmcia Popular. Segundo Machado, Baptista e Nogueira (2011), o Brasil Sorridente uma poltica de ampliao da ateno em sade bucal em todos os nveis, inclusive no atendimento de maior complexidade. Prev a expanso de equipes de sade bucal junto sade da famlia, define a implantao de centros de especialidades odontolgicas de referncia alm da implanCadernos de Sade

tao de laboratrios de rtese e prteses dentrias. O programa se efetiva dezessete anos aps a I Conferncia Nacional de Sade Bucal. O SAMU constitudo por uma central de regulao mdica, uma equipe de profissionais e um conjunto de ambulncias, de abrangncia municipal ou regional (Machado, Baptista e Nogueira, 2011). A quarta poltica priorizada, segundo as autoras citadas, o programa Farmcia Popular. Foi lanado como proposta na campanha eleitoral para a Presidncia de 2002. Esta poltica objetiva o aumento do acesso das pessoas a medicamentos de baixos preos para as famlias com subsdios do governo federal, sendo uma estratgia de co-pagamento entre usurios e o Estado. Baseava-se inicialmente na abertura de farmcias estatais geridas pela Fundao Oswaldo Cruz ou por meio de parcerias com estados e municpios. Em 2008, ultrapassa 450 unidades no pas. Nos casos de parcerias, o governo federal oferece incentivo para a instalao das farmcias e os estados e municpios ficam com parte dos custos de manuteno e pagamento de pessoal. As farmcias disponibilizam para a venda subsidiada pelo Ministro da Sade mais de setenta medicamentos referentes s doenas cardiovasculares, infecciosas, sistema endcrino e anticoncepcionais orais que so vendidos diretamente s pessoas com receita mdica e o usurio paga 10% do valor e o governo federal arca com 90%. Uma segunda vertente do programa cresce a partir de 2006, havendo o credenciamento de farmcias privadas cuja expanso se d de forma acelerada nos anos subsequentes, alcanando mais de seis mil estabelecimentos em 2008 (Machado, Baptista e Nogueira, 2011). O programa Farmcia Popular introduziu, na prtica, o co-pagamento na aquisio de medicamentos o que colide com as diretrizes do SUS que prev atendimento integral sade, incluindo a assistncia farmacutica. Outro problema a parceria pblico-privado, com a estratgia utilizada a partir de 2006, com o Estado subsidiando as farmcias privadas, reforando o carter privatista da sade. Com relao ao movimento sanitrio, o Centro Brasileiro de Estudos de Sade (CEBES), a partir de 2008, tem procurado debater alguns eixos temticos que considera importantes para a atualizao da

agenda da Reforma Sanitria brasileira. O primeiro evento foi realizado no Rio de Janeiro, em junho de 2008, com o tema Sade e Democracia: participao poltica e institucionalidade democrtica. O segundo tema, Seguridade Social e Cidadania: desafios para uma sociedade inclusiva, foi objeto de Seminrio Internacional, realizado em setembro de 2008 no Rio de Janeiro. Em 2009, dois grandes temas foram escolhidos para aprofundamento: o Pblico e o Privado na Sade seminrio que ocorreu em So Paulo, em abril de 2009 e a Questo da Determinao Social da Sade, com elaborao de um documento de referncia. Ressalta-se a amplitude dos debates e a nfase na divulgao dos resultados dos eventos atravs de publicaes e boletins informativos. Identifica-se, entretanto, a modificao do referencial terico que foi hegemnico nos anos oitenta. A proposta de Reforma Sanitria teve como grande influncia terica o marxismo, primordialmente atravs das elaboraes de Gramsci e de um de seus seguidores Berlinguer, autor principal da Reforma Sanitria Italiana, que teve grande repercusso no movimento brasileiro. Na atualidade, a direo do CEBES tem destacado que o marxismo apenas uma das mltiplas teorias crticas que permitem ter uma posio politicamente comprometida com a mudana social. Argumenta que a crise do pensamento e do movimento marxista profunda e ocorre em escala planetria. A direo da entidade reconhece como legitimas todas as correntes do pensamento que tm em comum o fato de salientarem os aspectos da autonomia da ao do sujeito, da tica e da intersubjetividade comunicativa e como autores relevantes so apontados: Heller, Arendt, Habermans, Bourdier, Taylor, Giddens, Rorty, entre outros (Cebes, 2009). Na nossa anlise, o que se evidencia com esta posio que h a defesa do pluralismo, mas sem hegemonia da teoria social crtica, o que pode levar ao ecletismo45. Esta posio vai influenciar na direo social da Reforma Sanitria, que passa a ser orientada pela social-democracia, perspectiva dos autores referidos que nosetembro de 2011 21

tem como preocupao a superao do capitalismo. A concepo anterior, construda a partir de meados dos anos setenta, tinha como horizonte a emancipao humana, que s seria alcanada com o socialismo. Percebe-se tambm, em outras publicaes da Sade Coletiva, vinculadas academia, a nfase no cotidiano, sem referncia perspectiva de totalidade social, e s categorias de luta de classes e historicidade. Outra questo que se evidencia tambm nas produes a nfase em algumas temticas, como a promoo da sade, cuidado e auto-cuidado, humanizao, estilo de vida. Percebe-se, em algumas anlises, a responsabilizao do indivduo pela sua sade e as estratgias tm sido estimular os sujeitos a encontrarem alternativas fora do sistema de sade, ou seja, fora do Estado atravs do fortalecimento da sociedade civil. O conceito de determinao social da sade e da doena tambm est sendo reduzido a fatores sociais que promovem a sade ou causam as doenas. O que retorna a cena o pressuposto positivista da epidemiologia tradicional. A publicao dos relatrios sobre determinantes sociais da sade pela OMS (Organizao Mundial de Sade) e pela Comisso Nacional, em 2008, segue esses referenciais. Os fatores socioeconmicos e os de ordem biolgica e ambiental so colocados num mesmo plano de importncia epistemolgica46. Destaca-se, entretanto, que alguns sujeitos coletivos tm sido mais crticos com relao privatizao da sade. . O Conselho Nacional de Sade tem divulgado diversos documentos que denunciam o retrocesso que a sade pblica brasileira e o SUS vem sofrendo nos ltimos anos, colocando-o definitivamente em risco, em decorrncia de aes do governo federal. A Plenria Nacional de Conselhos de Sade, em reunio extraordinria ocorrida em Braslia, em maio de 2009, especifica como principais questes: A desestruturao da rede de ateno primria sade, privilegiando os procedimentos especializados e de alto custo; A no regulamentao da Emenda Constitucional n 29, implicando no subfinanciamento da sade pblica a partir do22 setembro de 2011

no cumprimento dos percentuais mnimos de investimento pela Unio, maioria dos estados e parte dos municpios; Avano da privatizao do SUS em detrimento do servio pblico eminentemente estatal, atravs da desestruturao, sucateamento e fechamento dos servios pblicos e ampliao da contratao de servios privados, numa flagrante violncia aos ditames constitucionais; Precarizao dos servios pblicos e das relaes de trabalho, com baixa remunerao dos trabalhadores e enormes discrepncias salariais sem definio de uma poltica de um plano de cargos, carreiras e salrios para os profissionais do SUS. A plenria se posicionou contrria proposio do Projeto de Lei n 92/07, que cria as Fundaes Pblicas de Direito Privado, considerando que o mesmo descumpre o artigo 37 da Constituio Federal e configura um golpe final na desconstruo terica, prtica e poltica do SUS, que dispe da legislao reconhecida como a mais avanada do mundo e nunca cumprida em sua totalidade, com reflexo em vrias outras reas do servio pblico do pas. Em maio de 2010, surgiu a Frente Nacional Contra as Organizaes Sociais (OSs) e pela Procedncia a Ao Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 1.923/98, como resultado de uma articulao dos Fruns de Sade dos estados de Alagoas, Paran, Rio de Janeiro, So Paulo e do municpio de Londrina em torno da procedncia da referida Ao Direta de Inconstitucionalidade (ADI), contrria Lei 9.637/98 que cria as Organizaes Sociais (OSs), que tramitava no Supremo Tribunal Federal (STF) para julgamento, desde 1998. Em novembro de 2010, no Rio de Janeiro, foi realizado o Seminrio Nacional 20 anos de SUS, lutas sociais contra a privatizao e em defesa da sade pblica e estatal. Inicialmente, pensado para cerca de 100 pessoas, atraiu inmeras entidades do pas inteiro contando com a participao de mais de 400 lutadores da sade. Este foi considerado um marco na retomada de um movimento de sade com base popular e dimenso nacional. Esta Frente tem realizado diversas aes e mobilizado a criao de Fruns de Sade em outros estados e municpios 47.

O Governo Dilma e a Sade: Balano InicialA consolidao do Sistema nico de Sade (SUS) apontada no discurso de posse da presidente Dilma como grande prioridade do seu governo. Ressalta que ir utilizar a fora do governo federal para acompanhar a qualidade do servio prestado e o respeito ao usurio. Destaca tambm que vai estabelecer parcerias com o setor privado na rea da sade, assegurando a reciprocidade quando da utilizao dos servios do SUS. Esta afirmao preocupante com relao a defesa do SUS, construdo nos anos 1980. Para Ministro da Sade indicado o ex-ministro da Secretaria de Relaes Institucionais da Presidncia da Repblica do governo Lula e ex-diretor nacional de sade indgena da Funasa, entre 2004 e 2005, o mdico Alexandre Padilha, vinculado ao Partido dos Trabalhadores (PT). O Ministro da Sade, em seu discurso de posse, sinaliza que uma das suas prioridades de gesto e objetivo principal do ministrio ser garantir o acesso, o atendimento de qualidade populao, em tempo real, adequado para a necessidade de sade das pessoas. Alexandre Padilha props a definio de um indicador nacional sobre qualidade do acesso aos servios de sade e a definio de um mapa nacional das necessidades em sade, que auxiliasse o monitoramento da situao em todo o pas. Alm disso, Padilha defende que a sade ocupe lugar no centro da agenda de desenvolvimento. O novo ministro se compromete em participar ativamente do Conselho Nacional de Sade (CNS), sendo eleito por aclamao para a presidncia do mesmo, no dia 16 de fevereiro de 2011. Desde 2006, o presidente do Conselho Nacional de Sade tem sido eleito, sendo este cargo ocupado por um representante do segmento dos trabalhadores de sade. O que foi muito importante para garantir a autonomia do Conselho do Ministrio da Sade. Antes do processo eleitoral para a presidncia do CNS, o presidente nato era o Ministro da Sade. Considera-se que a eleio do ministro um retrocesso pois concorda-se com vrias avaliaes que a presidncia do Conselho de Sade deveria ser ocupada por um representante do segmento dos usurios ou dos trabalhadores de sade pois foi um avano a eleio do presidente, em 2006.Cadernos de Sade

Alguns