revista barroco 20 · o poeta affonso Ávila pate r em visita ao escultor aleijadinho sebastião...

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    Depoimentos

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    Revista BaRRocoMelânia Silva de aguiar

    A criação e o lançamento do primeiro número da revista Barroco, em 1969, no Festival de Inverno de Ouro Preto, marcaria o nascimento de uma das mais bem-sucedidas revistas culturais do país, reunindo especialistas do Brasil e do Exterior, com ensaios notá-veis e, muitos deles, antológicos, sobre as manifestações artísticas do barroco em Minas e fora de Minas, nas mais diversas áreas: pintura, música, imaginária, arquitetura, literatura, etc. Chegando atualmente ao vigésimo número, a revista Barroco, dirigida por Affonso Ávila até 2005, e atualmente por sua filha, Cristina Ávila, tornou-se indissociável do nome de seu fundador. Falar em “barroco” é falar em Affonso Ávila, tal a dedicação e o empenho do escritor à causa da revista e a seu objeto central de estudo.

    o poeta affonso Ávila paRte em visita ao escultoR aleijadinho

    SebaStião nuneS

    Em 1974, topei um enorme desafio: transformar em livro os versos datilografados da “Cantaria Barroca”, de Affonso Ávila. O desafio não estava nos versos, mas na constru-ção dos poemas. Extremamente rigoroso, Affonso imaginou seu trabalho como um objeto, ao mesmo tempo, literário e visual, uma linguagem remetendo à outra e ambas se comple-tando. Dito assim, pode ser difícil de entender, mas a imagem que ilustra esta crônica explica melhor. O “&”, que está presente no livro inteiro, cria, no poema “Casa dos Contos”, uma diagonal de cima para baixo e da esquerda para a direita, do primeiro ao último verso.

    Desafio aceito - eu, no Rio, ele, em BH -, parti para a dura empreitada. Na época, ante-rior aos recursos da diagramação eletrônica, o maior avanço era a “Letraset”, conjunto de caracteres de tamanhos variados, cada folha com o alfabeto completo. As letras eram pressionadas sobre o papel, soltando-se do suporte plástico e fixando-se na folha. Trabalho vagarosamente artesanal, construído letra a letra.

    Foi um longo e difícil percurso. Para me ajudar na viagem, eu tinha as fotos de Maurício Andrés sobre os delírios do pedreiro Vado Ribeiro. Mas, principalmente, tinha a própria

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    poesia de Affonso a me conduzir e se autoexplicar, naquilo que se tornou o mais provei-toso aprendizado artístico de minha vida. Sim, então era assim que se fazia grande poesia! Diante de mim, verso após verso, lá estava um dos maiores, mais belos e mais lúcidos conjuntos de poemas brasileiros do século XX. Foi lançado em 1975, no centenário da publicação do delicioso “Elixir do Pajé”, de Bernardo Guimarães, joia preciosa, rara e quase clandestina de nossa poesia satírica.

    SURGE O GURU - Conheci Affonso no feliz-infeliz ano de 1964 quando, recém--chegado à faculdade de Direito da UFMG, ouvi sua palestra Iniciação Didática à Poesia de Vanguarda. Ele tinha 36 anos e eu, 25. Na prática, essa diferença de 11 anos era imensa. Enquanto eu mal sabia o que era poesia (sempre fui lerdo no aprendizado de sutilezas desse tipo), Affonso já estava maduro e trabalhando bastante, além de conhecer, ler e se corresponder com meio mundo literário. Vivendo em Belo horizonte, sua antena captava sinais luminosos não só do Brasil como da Europa. Estava sempre atualizado e compro-metido, numa via de mão dupla.

    Dois anos depois, passei a frequentar sua casa, em que ele e Laís, com a boa vontade mansa mas exigente dos gurus orientais, ensinavam a “meninada” a descobrir o caminho das pedras. Foi a partir daí que nossa turma, que se reunia no Suplemento Literário na Imprensa Oficial e se reencontrava à noite no Lucas, aprendeu o básico. E esse básico era não admitir limites para a criatividade. Nem fragilidade na construção poética.

    BARROCO - Muito cedo Affonso se interessou pelas raízes de nossa cultura, mais precisamente pelo barroco, produzindo em 1965 o monumental “Resíduos Seiscentistas em Minas”, publicado em 1967.

    Em 1969, organizou e lançou, no Festival de Inverno de Ouro Preto, o primeiro número da revista “Barroco”, editada pela UFMG. Daí em diante, se desdobrou entre criação poética - com forte influência das pesquisas em barroco - e o trabalho de ensaísta e de divulgador de nossas raízes. Em 1979, nova obra-prima, “Barroco Mineiro/Glossário de Arquitetura e Ornamentação”, em parceria com os arquitetos João Marcos Machado Gontijo e Reinaldo Guedes Machado, que diagramei e foi lançado numa coedição entre Fundação João Pinheiro e Fundação Roberto Marinho. Em 2005, finalmente, publica o número 19 da revista “Barroco”, comemorando 35 anos de sua criação.

    Além disso, incansável, organizou encontros nacionais e internacionais, com a presença de especialistas brasileiros e do exterior. E ainda teve tempo para palestras e outros traba-lhos de divulgação, sem contar a série de livros que continuou publicando sobre o tema e que o colocam, hoje, como o principal estudioso do barroco entre nós.

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    affonso, o sÁBioMaria eSther Maciel

    A melhor maneira de homenagear um poeta é ler a sua poesia. Foi o que fiz na manhã fria e ensolarada de domingo, ao retirar da estante o volume O homem ao termo – poe-sia reunida (1949-2005), de Affonso Ávila. Tendo acabado de chegar de uma viagem a São Paulo, e ainda sob o impacto da triste notícia da morte do poeta mineiro, pus-me a folhear o livro ao acaso, com uma renovada surpresa diante de cada poema lido. “Impressionante a originalidade e a força dessa poesia”, disse para mim mesma, reconfirmando o que já pensa-va sobre a obra densa e inventiva de Affonso – mestre e amigo de longa data. O mais interes-sante é que, à medida que fui percorrendo as páginas de forma descontínua, a grandeza do livro foi se avolumando diante dos meus olhos, sobretudo após a leitura de alguns poemas do início da trajetória do poeta, como os de O açude e Sonetos da descoberta, dos anos 1950.

    Quando conheci a obra de Affonso, ele era um poeta reconhecido principalmente pelo seu viés experimental, vanguardista. “O concretista mineiro”, diziam. Isso, por causa de seus vínculos com o movimento da poesia concreta a partir de meados do século XX, quando promoveu – ao lado de sua mulher, a também poeta Laís Corrêa de Araújo – uma inserção de Minas no cenário das vanguardas brasileiras do tempo. Aos poucos, porém, fui descobrindo outras faces do autor, como a do estudioso do barroco e da história de Minas. Seu livro O lúdico e as projeções do barroco foi uma de minhas referências dos tempos de faculdade, assim como O poeta e a consciência crítica, cujos ensaios muito iluminaram meus estudos sobre poesia moderna. Desde então, passei a ter uma enorme admiração pelo escritor e acompanhar sua trajetória. Logo percebi que seu trabalho não se circunscrevia aos princípios da poesia concreta, mas se abria também a diferentes dicções e estilos, com uma originalidade incomum. Vi que ele sabia, como poucos, aliar erudição, experimentação, humor e ironia para criar um universo poético próprio, singular. Do soneto ao poema expe-rimental, da lírica à sátira, da reflexão ensaística ao exercício criativo, ele conseguia exercitar todas as possibilidades de escrita, sem se fixar em nenhuma.

    Uma imagem do poeta me vem agora à memória. O ano é 2008. Affonso está em sua casa, rodeado de amigos e familiares, comemorando seus oitenta anos. Logo após o almoço, já no final da tarde, ele convida alguns presentes – Eneida Maria de Souza, Wander Melo Miranda, José Olympio Borges e eu – para conhecer sua biblioteca. É um momento especial da festa, uma espécie de ritual reservado para coroar o dia. Com um

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    entusiasmo incontido, próprio de quem sempre fez dos livros seu maior tesouro, Affonso abre armários e gavetas, percorre estantes e prateleiras, mostrando-nos as preciosidades bibliográficas que coleciona. Não apenas livros, mas também cartas, documentos, revistas, recortes de jornais, entre outros registros. Tudo compõe um grande arquivo literário que é também um arquivo de vida, de vidas. Ele conta histórias dessas coisas, descreve tudo com precisão, feliz por compartilhar com os amigos o seu bem mais precioso: o saber.

    É essa imagem que me virá sempre aos olhos quando eu estiver com um livro de Affonso Ávila nas mãos.

    silÊncio... carloS Ávila

    Silêncio na Rua Cristina, 1300. O poeta partiu digno e íntegro, como sempre viveu - simples e complexo. Bem-humorado e melancólico. Barroco e vanguardista. Tímido, mas também bom conversador. Delicado, mas firme. Rigoroso, mas generoso. Contido, mas amoroso.

    “A cavalo de galope a cavalo de galope a cavalo de galope lá vem a morte chegando.A cavalo de galope a cavalo de galope a morte numa laçada vai levando meus amigos”.

    Assim mesmo, “de galope”, como escreveu Drummond, a morte chegou à Rua Cristina, 1300. Inacreditável! Pensávamos todos que a “indesejada das gentes” nunca alcançaria esse endereço, tradicional endereço onde tanta coisa foi pensada e criada, onde tanta gente foi recebida e a amizade cultivada; onde, por muitos, muitos anos, o poeta viveu ao lado da sua amada, também poeta. Onde o poeta viveu ao lado dos filhos e netos; dos muitos amigos e companheiros de trabalho e luta cultural.

    Silêncio na Rua Cristina, 1300. Silêncio na “casa dos Ávilas/solar de poesia”, como definiu aquele endereço o seu amigo e poeta Haroldo de Campos. “Casa de mineiro”, de

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    pequena e sóbria fachada, mas comprida e grande quando a adentramos, como observou outro poeta, também amigo, Emílio Moura. Casa atapetada de livros e de afeto. Casa de muitas conversas e ideias; de almoços e jantares, de festas e Natais memoráveis. Casa de artistas, de amores e valores, de encontros e descobertas.

    “O homem velho deixa a vida e morte para trás Cabeça a prumo, segue rumo e nunca, nunca mais...”.

    Assim mesmo, como canta o Caetano, o poeta seguiu. Nunca mais... A casa ficou deserta, silêncio na Rua Cristina, 1300. O poeta partiu. Seis anos depois da sua querida Laís - “flor de seda”, num antigo soneto. Companheira de toda a vida, de amor e poesia. Se algum silêncio já havia com a ausência dela, agora, com a falta dele, o silêncio é total: “affonso celso barros de ávila e silva/affonso celso barros de ávila e silêncio/affonso celso barros de ahs! e silêncio/affonso celso barroco de ahs! e silêncio/affonso excelso barroco de ahs! e silêncio/à fronte: excelso barroco e ahs! e silêncio”.

    Silêncio na Rua Cristina, 1300. Silêncio em Minas. Silêncio em mim.

    Bão Balalão...eduardo coSta Ávila

    Bão balalão, Senhor Capitão, espada na cinta, ginete na mão...” Essa foi uma das canções que mais ouvimos (nós primos) nas inúmeras noites que embalavam nossa infância. Essa entre outras várias que se perdiam entre o fato de não querer dormir cedo, o cansaço das brincadeiras e enfim o sono profundo.

    Não me lembro de quando comecei a ouvir tais músicas, e nem quando parei de ouvi-las. Lembro-me sempre da mesma voz pausada e pacata que nos embalava com elas. A voz de uma pessoa que dedicou a vida às letras e palavras apenas nos livros e textos, mas que toda sexta-feira à noite, com muito prazer, fazia questão de cantar para os netos. Era um ritual, uma obrigação, um prazer inesgotável de andar de um lado para o outro no quarto escuro da velha casa chegando perto de cada um e sentindo nossa respiração. Talvez não pensando em nada, talvez pensando no futuro, no nosso futuro, nos nossos próximos passos.

    Enfim, fica a memória, ficam as fotos e fica a saudade. A saudade de uma voz que deve-ria ter sido gravada naquelas ocasiões (ai então eu até me lembraria das outras músicas)

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    para que pudéssemos tocá-la repetidamente à noite e voltássemos à infância sempre antes de dormir.

    Aquela voz que nos esforçamos para tentar reproduzir na memória, a voz quase que obrigatória, que embalava as cantigas de sexta à noite e que deixou muitas lembranças e muita saudade. A voz do nosso Vô Fonka.

    discuRso da Revelação do poetanathalia duarte

    Meu avô sempre foi um desses avôs exemplares. Quando criança, eu adorava ir pra casa dele e ficar jogando baralho por horas e horas. Foi ele que me ensinou a jogar Escopa, até hoje um dos meus jogos de cartas prediletos. Era sempre assim, de noite íamos pra cama dele, enquanto minha vó assistia televisão na sala, e jogávamos Escopa, ou Memória, ao som do futebol no rádio. Meu vô é americano, mas sempre apoiou os netos na torcida pelo galo. Depois do final de qualquer jogo do atlético, meu primo sempre liga-va pro meu avô, e lembro de ouvir atentamente ao debate sobre o jogo que tinha acabado de acontecer. Talvez isso explique a minha paixão atual por futebol...

    Mas dentre as muitas coisas boas da infância na casa do meu avô – como a coleção de tampinhas, o futebol de botão, a coleção de carrinhos e a pelada com os primos no quintal – a que mais se destacava era a preparação pro Natal. Era sem dúvida a época mais empol-gante da minha infância, já que eu auxiliava meus avós com todos os preparativos. Com a minha avó eu decorava a árvore e com meu avô eu montava o presépio – um presépio lindo e enorme, cuja construção sempre rendia bons papos acompanhados de enormes aprendizados de todos os tipos. Mas o que não dá mesmo pra esquecer é do carinho com o qual ele sempre tratou seus filhos e netos. Ainda me encho de alegria ao lembrar da sua recepção sempre amorosa quando eu chegava em sua casa, com um beijo na testa e um sonoro “ôôô netinha querida do vô”. Houve épocas em que eu tinha, inclusive, o título de neta predileta – agora o divido com outras duas lindezas.

    Enfim, no meio dessa infância ótima passada em grande parte em companhia do meu avô, sempre ouvia dizer que ele era poeta. Pra mim ele era simplesmente meu avô e, de todo jeito, eu sempre fui mais de prosa do que de poesia. Já depois dos 18 anos, no entanto, uma curiosidade pela obra dele coincidiu com o lançamento de sua poesia reunida “Homem ao Termo”. Abri então o meu exemplar e comecei a entender porque é

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    que sempre elogiavam tanto meu avô. Li de cabo a rabo e fiquei totalmente impressionada com a qualidade de sua poesia – não porque eu entendesse alguma coisa do assunto, mas justamente porque eu nunca tinha me interessado por poesia e mesmo assim a sua conse-guiu me atingir com sua crítica finíssima, com sua ironia mais do que sofisticada, e com sua habilidade fora do normal com as palavras. Foi aí que redescobri meu avô como mais do que um avô sensacional, mas como um dos mais reconhecidos poetas de vanguarda do país, esse Affonso Ávila sobre o qual todo mundo falava e que agora eu conseguia entender o porquê.

    Agora esse super avô e super poeta está no hospital e infelizmente a distância me impede de ir visitá-lo, mas queria deixar aqui o meu desejo de rápidas melhoras e junto a isso o mais sincero agradecimento por todo o seu amor e por todos seus ensinamentos e minha profunda admiração por sua inteligência e sua obra. Afinal de contas, eu não poderia jamais escrever um discurso da difamação do poeta. Definitivamente não desse.

    Égloga da maçã - uma leituRathaiS guiMarãeS

    A maçã de Affonso Ávila é a expressão sonora do desejo, se projeta além do signo bíblico, fruto proibido, e se estende pelo território do feminino apossado de si.Maçã que se tateia no escuro em total claridade, no gozo mais puro da linguagem, lida

    pelos dedos de um cego em cada reentrância.Alimento da fome que consome pelos dias, pelos anos, e como instância plena de vida

    se consuma no ato, amoroso mistério que se busca pelo olfato, pelo gosto, pelo olhar, que vai do paraíso ao inferno, do inferno ao jardim das delícias na terra.

    Maçã transgressora, sábia, possibilidade de êxtase na singularidade de uma poesia que revela e oculta.

    Ávila capta a maçã, rapta a maçã, a desconstrói em sua forma bruta para alcançar-lhe polpa, sumo, mel, ambrosia, no deleite da fruta aberta a escorrer entre os lábios, néctar.

    Maçã concreta – enigma e morada – que na língua afiada do poeta, se liberta e home-nageia a mulher numa metáfora luminosa.

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    Ilustrações de Sérgio Luz para o livro Égloga da Maçã de Affonso Ávila