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ISSN 1982-2685 REVISTA ACADÊMICA DO CURSO DE LETRAS DA FACULDADE CCAA

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ISSN 1982-2685

REVISTA ACADÊMICA DO CURSO DE LETRAS DA FACULDADE CCAA

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Rio de Janeiro

2011

ISSN 1982-2685

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FACULDADE CCAA

Diretora Geral • Eliane Faial

Superintendente • Daniel Hoorn

Diretora de Legislação e Normas • Anna Maria Ernesto Ferreira Machado

Diretora Acadêmica • Marcia Moraes

Editores

Roberto Loureiro • Faculdade CCAA

([email protected])

Simone Meirelles • Faculdade CCAA

([email protected])

Conselho Consultivo

Peter McLaren • UCLA – EUA

Henry Giroux • McMaster University – Canadá

Marcia Paraquett • Universidade Federal da Bahia

Gilda Santos • Universidade Federal do Rio de Janeiro

Conselho Editorial da Faculdade CCAA

Luis Carlos de Morais Júnior

Marcos Freitas

Maria Lúcia Monteiro

María Paz Pizarro

Mariana Medeiros

Priscila Menezes

Ricardo Pinheiro

Ricardo Teixeira

Susan Kratochwill

Catalogação na fonte pela Biblioteca Brian McComish da Faculdade CCAA.

InterSignosInterSignos

Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA

INTERSIGNOS – Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA

V. 4, Out 2011, Rio de Janeiro, CCAA Editora, 2011.

pg. 116

Anual

ISSN: 1982-2685

1. Literatura. 2. Linguística.

CDD 800

Esta obra segue as normas estabelecidas no Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, que prevê a padronização do

idioma nos países lusófonos.

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Editoração e Impressão

CCAA Editora

Editora Gerencial

Sylene Matturo

Capa

Bruno Gomes

Projeto Gráfico

Juliana Andrade

Editoração Eletrônica

Paulo Aguiar de Souza

Revisão de Língua Portuguesa e Formatação de Texto

Rita Cyntrão • Roberto Loureiro • Simone Meirelles

Revisão Editorial

Luís Antônio Guimarães

Revisão de Língua Inglesa

Simone Meirelles

Revisão de Língua Espanhola

María Paz Pizarro

Faculdade CCAA

Curso de Letras

INTERSIGNOS

Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA

Periodicidade

Anual

Assinatura

R$ 40,00

Endereço para correspondência

Avenida Marechal Rondon 1.460 • Riachuelo

Rio de Janeiro – RJ • CEP 20950-202

Tel.: (21) 2156-5000

www.faculdadeccaa.edu.br

Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial.

Os textos assinados são de inteira responsabilidade de seus/suas autores/autoras.

A Revista INTERSIGNOS, publicação acadêmico-científica anual da Faculdade CCAA, tem

como objetivo publicar trabalhos acadêmico-científicos inéditos na área de Letras e afins, com

uma abordagem inter, multi e transdisciplinar. A proposta é oferecer à comunidade acadêmica um

espaço para a troca de conhecimentos, reflexões, experiências e informações.

INTERSIGNOS procura destacar os diversos temas que fazem parte do contexto da Língua

Portuguesa e das Línguas Estrangeiras e respectivas literaturas, dos estudos multiculturais, dos

cursos de licenciaturas, e a inserção das novas tecnologias no cenário linguístico-educacional,

trazendo reflexões que permitam oxigenar as discussões na área.

A Revista é uma publicação científica do Curso de Letras da Faculdade CCAA e publicada

pela CCAA Editora.

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Editorial

Medievalismo, cultura e língua galega na pesquisa de Maria do

Amparo Tavares Maleval

Nina Barbieri Pacheco • UERJ

Aflorar dos eus no texto clariceano

Angélica Castilho • Faculdade CCAA, Colégio Estadual

Visconde de Cairu

Primeiros europeus na América: a questão da alteridade

observada através dos relatos de viagem

Lêda de Carvalho • Faculdade CCAA, UNISUAM

Diálogo entre memória e História através da crônica andina de

Felipe Guaman Poma de Ayala

Helena Dias dos Santos Lima • Faculdade CCAA

McOndo e a estética do business plan : considerações sobre

a escrita pós-moderna e a lógica do mercado na

literatura hispano-americana

Rodrigo Fernández Labriola • Faculdade CCAA, UFF

Tendências contemporâneas na poesia brasileira

Rachel Fátima dos Santos Nunes • Universidade Estácio de Sá

Competências, cultura e competência (comunicativa) intercultural:

discussão de conceitos e breve reflexão acerca da adaptação

de material didático para o ensino de Língua Inglesa

Daniela Terenzi • UFSCar

Uma análise semântica de pegar + nome

Karen Sampaio Braga Alonso • UFRJ

Nalinle Costa Vaz • Faculdade CCAA

O admirável mundo de Guimarães Rosa: “Sequência”, o conto

Marlene Lessa V. Borges • FFLCH, USP

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99

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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 9

EDITORIAL

A revista InterSignos chega ao seu quarto volume mantendo o compromisso

com uma produção acadêmica relevante, em que procuramos apresentar

estudos que contemplem as necessidades de alunos e professores do Curso

de Letras.

São oito textos que abrangem poesia brasileira contemporânea,

Guimarães Rosa, Clarice Lispector, ensino de Língua Inglesa, Linguística e

artigos envolvendo temas voltados para os estudantes da Língua Espanhola

e Literatura Latino-americana. Os artigos do presente número passeiam por

variados temas de língua e literatura associados a importantes questões

culturais, históricas, filosóficas e didáticas.

Para além disso, a nossa entrevistada é a Professora Maria do Amparo

Tavares Maleval, renomada medievalista brasileira, fundadora da ABREM

(Associação Brasileira de Estudos Medievais) e artífice dos dois centros de

estudos de língua e cultura galegas no Estado do Rio de Janeiro – primeiro na

Universidade Federal Fluminense e, posteriormente, na Universidade Estadual

do Rio de Janeiro.

Outro ponto que nos traz grande satisfação é poder contar, neste número,

com estudos produzidos por pesquisadores da Universidade de São Paulo e

da Universidade Federal de S. Carlos. Esses artigos ampliam as fronteiras da

nossa revista e proporcionam uma troca científica e cultural entre estudantes

e professores que têm acesso à nossa publicação.

Gostaríamos de agradecer aos editores do volume três desta publicação

pelos conselhos que muito nos ajudaram; ao nosso Conselho Editorial, que

trabalhou com a presteza e o rigor necessários na análise dos artigos enviados;

aos membros do Conselho Consultivo, que nos honram com as suas

chancelas; à Direção da Faculdade CCAA, pelo apoio e pela cobrança

necessários para que esta publicação chegasse a bom termo; e a todos os

envolvidos no processo posterior ao nosso trabalho de editores, da revisão à

distribuição da revista.

Finalmente, esperamos que a presente edição da InterSignos proporcione

aos leitores um acréscimo importante aos seus estudos e que tenham todos

um largo incentivo para o prosseguimento das suas carreiras acadêmicas.

A todos, uma boa leitura.

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MEDIEVALISMO, CULTURA E LÍNGUA

GALEGA NA PESQUISA DE MARIA

DO AMPARO TAVARES MALEVAL

Nina Barbieri Pacheco

UERJ

Mestre em Literatura Portuguesa pela UERJ

contato: [email protected]

Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 11

Maria do Amparo Tavares Maleval é uma pesquisadora respeitada, Professora

Doutora especialista em Idade Média, pela USP, é, ainda, pioneira em estudos galegos

e divulgadora empenhada desta língua e cultura no Brasil.

A contribuição da professora para os estudos medievais e galegos é

impressionante. Maria do Amparo publicou diversos livros ao longo de sua vida

acadêmica. Fernão Lopes e a retórica medieval, pela Editora da UFF – universidade

da qual é professora aposentada – é a sua mais recente publicação (junho de 2011).

O livro é fruto de uma pesquisa extensa em Retórica no medievo.

Fundadora do núcleo de estudos galegos da UFF e da UERJ, promotora de

congressos, palestras e inúmeros eventos na área, a Professora Amparo é um

exemplo para colegas e alunos por sua paixão pela pesquisa e seu carinho em ensinar

e incentivar os estudantes a seguirem o caminho laborioso, mas gratificante, da

pesquisa acadêmica. As suas obras inspiram a um mergulho nas belezas da Idade

Média, na redescoberta de textos, culturas e, o mais importante, ensinam a pousar

novos olhares sobre as questões medievais.

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12 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4

Nina Barbieri Pacheco

O seu estudo acerca da Retórica, por exemplo, é elucidativo para que enxerguemos

de outra maneira questões políticas medievais. O último livro de Maleval, inclusive,

possibilita que o leitor perceba em Fernão Lopes a construção de um discurso retórico

que, por este mesmo motivo, não pode ser parcial como se pretende. Na verdade, os

recursos retóricos utilizados pelo autor demonstram que é tendencioso, apesar de

tratar de fatos históricos. O livro traz, ainda, um breve panorama da história da

Arte Retórica até o medievo e é uma leitura indispensável não só aos estudantes

e professores de Letras, mas também aos estudantes de História, professores e

historiadores em geral.

O livro de Maleval sobre o Códice Calixtino, As maravilhas de São Tiago: narrativas

do Liber Sancti Jacobi (Codex Calixtinus), traz uma edição bilíngue (latim/português)

do Códice e, ainda, uma leitura fantástica acerca do mito jacobeu. Infelizmente, o

Codex Calixtinus original foi roubado da Catedral de Santiago de Compostela em

julho de 2011, onde permanecia guardado por muitos séculos. A polícia galega

investiga o sumiço da obra, a que muito poucos tinham acesso. Entre nós fica

a angústia de ver um patrimônio espanhol, significativo para os católicos, para

os galegos, para os historiadores, para qualquer um que reconheça a imensa

importância de uma obra como esta. A professora Amparo também nos fala um

pouco sobre isso ao final desta instigante conversa.

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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 13

Medievalismo, cultura e língua galega na pesquisa de Maria do Amparo Tavares Maleval

A ENTREVISTA

1 Nina Barbieri – De onde surgiu o interesse pela Idade Média?

MALEVAL – Desde a época em que comecei as minhas atividades docentes no Instituto

de Letras da UFF, quando, interessada em fazer o curso de Doutorado na USP, escolhi

para o projeto a ser desenvolvido, tendo em vista a elaboração da tese, a obra de

Fernão Lopes, primeiro cronista-mor de Portugal e genial escritor do século 15 – portanto,

da Baixa Idade Média.

2 Nina Barbieri – Como a senhora vê a situação das pesquisas sobre o medievo no

Brasil? Que mudanças significativas pode apontar, desde a criação da ABREM

(Associação Brasileira de Estudos Medievais)?

MALEVAL – Tais pesquisas são fecundas principalmente nas áreas de História, Letras e

Filosofia. A ABREM surgiu como necessidade de divulgação dos estudos medievais e de

aproximação entre pesquisadores e professores de todo o território nacional, cumprindo

tais objetivos de forma expressiva, através, principalmente, de iniciativas editoriais

e de encontros internacionais e regionais, bem como do fomento à criação e

desenvolvimento de grupos vários de medievalistas.

3 Nina Barbieri – A senhora está estudando a Retórica na Literatura há alguns anos.

Que objetivos pretende alcançar nesta área tão pouco estudada nos cursos de

Letras?

MALEVAL – A Retórica, entendida aristotelicamente como disciplina que observa as

técnicas de persuasão nos discursos, vem sendo revalidada enquanto conhecimento

imprescindível, principalmente para as áreas de História e Letras, sem nunca ter sido

elidida do Direito etc. No caso específico de Letras, é a única orientação que focaliza

o discurso em seu todo, atentando para a sua construção e exegese e colocando em

relevo o receptor a quem o discurso se dirige. Portanto, o meu objetivo principal é

conhecer, e dar a conhecer, os elementos que permitem melhor conhecimento do texto

literário, nunca desvinculado do seu contexto de produção.

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4 Nina Barbieri – Quais são os pontos mais relevantes da sua última publicação,

Fernão Lopes e a retórica medieval?

MALEVAL – Além de atualizar dados sobre o cronista maior, apresenta um histórico,

embora resumido, do percurso da Retórica clássica até a sua assimilação pelo discurso

medieval em seus vários gêneros e nas artes praedicandi. Inclusive, comprova a

indiscutível relação da retórica com o discurso historiográfico, tão em evidência nas

reflexões dos historiadores em nossos dias.

5 Nina Barbieri – Foram os estudos em Idade Média que a levaram a se interessar

pela cultura galega?

MALEVAL – Sim. Lembro-me que a minha primeira ida à Galiza tinha por intuito

participar de um congresso promovido pela AGAL (Associação Galega da Língua),

onde apresentei trabalho sobre o substrato celtibero das cantigas de mulher no

Trovadorismo medievo galego-português. Foi então que conheci essa terra “meiga” e me

apaixonei ainda mais pela sua cultura.

6 Nina Barbieri – A língua e a literatura galegas, infelizmente, ainda são pouco

conhecidas no Brasil. No entanto, este panorama está mudando com a promoção

de diversas palestras e encontros tendo a Galiza como tema, muitos deles

organizados pela senhora. Por que essa dedicação em fazer emergir entre nós o

estudo de língua e literatura galegas?

MALEVAL – Inicialmente, com o intuito de relevar a importância da língua, da

literatura e da cultura galegas no medievo como heranças importantíssimas para a

constituição da nossa própria cultura brasileira. E posteriormente, pela luta identitária

assumida pelos (re)construtores da galeguidade, principalmente na fecunda literatura

que vem sendo produzida na Galiza e em galego, língua obscurecida por séculos devido

a interesses políticos dos reis da dominadora Castela no passado e da ditadura

franquista mais recentemente.

14 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4

Nina Barbieri Pacheco

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7 Nina Barbieri – Como funciona e quais são os objetivos do convênio que o PROEG

(Programa de Estudos Galegos) mantém com a Xunta de Galicia?

MALEVAL – O PROEG foi criado na UERJ por ato executivo do Reitor em 23 de julho de

1996. Tem por objetivos primordiais desenvolver e estimular atividades relativas ao

ensino e à pesquisa relacionadas com a língua, com a literatura e com a cultura

galegas em geral, bem como promover o intercâmbio cultural com a Galiza. Neste

sentido, foi criado um Leitorado para a docência de galego na UERJ, mantido por

convênio com o governo galego, que proporciona também meios para a realização

de eventos e publicações.

8 Nina Barbieri – Escrever em galego ainda é uma luta e uma forma de resistência?

O preconceito linguístico ainda impera na Espanha, em sua opinião?

MALEVAL – Sem dúvida. E o preconceito relaciona-se, inclusive, à sua condição de

língua minoritária. Desprestigiada por séculos, na Idade Média foi a língua da poesia

por excelência, usada por todos os poetas da Península Ibérica (e não só), inclusive pelo

próprio rei de Leão e Castela, Afonso X, o Sábio.

9 Nina Barbieri – A questão da identidade galega vem sendo muito discutida nos

últimos anos. Muitos galegos acreditam que o português pode ajudar a livrar o

galego da contaminação do espanhol e da situação de menosprezo social e cultural,

fortalecendo e enriquecendo a língua galega. O que a senhora acha da reaproximação

dessa cultura com as suas raízes galego-portuguesas?

MALEVAL – Acho que a reaproximação cultural é válida, mas a normatização do

galego é obviamente algo que só compete aos seus usuários estabelecer.

10 Nina Barbierii – Que benefícios ou problemas essa acolhida do galego na comunidade

lusófona poderia trazer para a Galiza?

MALEVAL – Isto é futurologia, sobre a qual prefiro não opinar.

Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 15

Medievalismo, cultura e língua galega na pesquisa de Maria do Amparo Tavares Maleval

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11 Nina Barbieri – Qual é a importância da literatura galega, hoje, para os estudos

literários brasileiros?

MALEVAL – A importância decorre, principalmente, da qualidade de muitos dos seus

escritores e obras, bem como do interesse, que deve ser incentivado, por uma literatura

expressa em língua irmã da nossa, decorrente de uma comum ancestralidade e de

um imaginário muito próximo do imperante no Brasil, povoado de crenças no outro

mundo, por exemplo.

12 Nina Barbieri – Através do seu livro As Maravilhas de São Tiago: narrativas do

Liber Sancti Jacobi (Codex Calistinus), os leitores brasileiros puderam entrar em

contato com um documento histórico importantíssimo, senão o mais importante

para a Galiza. Fale-nos um pouco a respeito deste livro.

MALEVAL – Além de coligir lendas sobre a transladação do corpo do Apóstolo Tiago

Maior da Palestina à Galiza, o livro apresenta também algumas narrativas sobre as

incursões de Carlos Magno à Espanha para liberação do santo sepulcro apostólico e de

milagres de São Tiago. Essa recolha de material do documentado no Códice Calixtino

é apresentada em latim (língua original do Códice) e em português. Na introdução,

busco historiar a formação do mito jacobeu e da peregrinação motivada pelo culto

sepulcral na Basílica de Santiago de Compostela. Tal tradição, cujo apogeu foi no

século 12, até hoje se mantém viva, como sabemos.

13 Nina Barbieri – No dia 05/07/2011, foi divulgado o roubo do Códice Calixtino

da Catedral de Santiago de Compostela. Sabemos do seu valor histórico, mas

gostaríamos de ouvir o que a senhora pode acrescentar sobre o valor literário da

obra e a perda que o roubo da mesma acarreta.

MALEVAL – É realmente uma perda inestimável, dado o valor do Códice, fundamental

não apenas para a história da religião, mas da música (já com exemplos polifônicos),

do teatro (através de ofícios dialogizantes), da literatura... – enfim, para a observação

do imaginário, da cultura, dos costumes vigentes nos primórdios do Ocidente cristão,

muitos dos quais ainda hoje observáveis como heranças fundacionais.

16 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4

Nina Barbieri Pacheco

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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 17

AFLORAR DOS EUS NO TEXTO

CLARICEANO

Angélica Castilho

Faculdade CCAA

Colégio Estadual Visconde de Cairu

Doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ

contato: [email protected]

Resumo: As personagens criadas por Clarice Lispector deparam-se com suas

existências de repente, em um processo epifânico. Elas mergulham e emergem de si

mesmas, em uma experiência dionisíaca. As descobertas advindas de tal processo

anunciam a condição clandestina da felicidade na obra da autora.

PALAVRAS-CHAVE: dionisíaco; existencialismo; Clarice Lispector.

Abstract: The characters created by Clarice Lispector encounter their existence

abruptly, in a epiphanic process. They dive and emerge out of themselves in a Dionysiac

experience. The discoveries that arise from this process announce the secret condition of

happiness in the author’s work.

KEYWORDS: dionysiac; existentialism; Clarice Lispector.

Resumen: Los personajes creados por Clarice Lispector se deparan de repente con

sus existencias en un proceso epifánico. Sumergen y emergen de sí mismos en una experiencia

dionisíaca. Los descubrimientos que surgen de tal proceso anuncian, en la obra de la

autora, la condición clandestina de la felicidad.

PALABRAS CLAVE: dionisíaco; existencialismo; Clarice Lispector.

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18 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4

Angélica Castilho

Em A escritura de Clarice Lispector, Olga de Sá (SÁ, 2000, p. 163-211) escreve um

capítulo destinado ao conceito de epifania vinculado à obra clariceana e, para tal, cita

alguns nomes representativos que contribuíram para ampliar o uso do termo e lançá-lo

no universo literário. Segundo a ensaísta, o termo “epifania” vem do grego e significa

manifestação, aparição. É uma palavra pertencente ao universo hebreu e consiste na

manifestação de Deus através de vozes, visões e mesmo contato físico, porém, sem

o vislumbre do divino em sua totalidade. São Tomás de Aquino faz uso do termo com

o sentido mítico-religioso para designar manifestações divinas. Em termos literários,

James Joyce (1882-1941) parte do conceito desenvolvido pelo religioso, todavia,

afasta-se significativamente do que existe de místico na revelação epifânica.

O escritor refere-se à palavra como relato de uma experiência aparentemente simples,

porém, que transforma a visão do eu sobre ele e o mundo.

O momento de revelação na obra de Clarice Lispector é nomeado de epifania por

alguns críticos. Vale ressaltar que a palavra “epifania” não surge na obra da autora

(SÁ, 2000), embora as duas concepções possam ser identificadas e ter um

enriquecedor alargamento de significado. Como bem ressalta Affonso Romano de

Sant’anna, na narrativa clariceana, o aspecto divino situa o homem no mesmo plano

de Deus por ser capaz de experimentar a eternidade que este representa, mesmo que

seja por instantes. (SANT’ANNA, 1997)

A epifania figura como uma forma de as personagens atingirem um esclarecimento

sensitivo de sua vida, e salienta, consequentemente, a ânsia por amenizar a sensação

de finitude de algumas delas: “[...] A nostalgia não é do Deus que nos falta, é a

nostalgia de nós mesmos que não somos bastante; sentimos falta de nossa grandeza

impossível – minha atualidade inalcançável é o meu paraíso perdido.” (LISPECTOR,

1995, p. 153)

Com isto, não se fecha o assunto nem se resume uma verdade. As personagens

que defendem o elemento divino da revelação o fazem com o mesmo fervor das que

não o defendem.

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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 19

Aflorar dos eus no texto clariceano

O termo “dionisíaco” é usado nesse texto para aludir ora aos momentos de

encontro da personagem com seus muitos eus e com o divino presente em seu

interior, ora aos momentos de encontro com a força da vida. Tal opção terminológica

para o “estado de graça” das personagens dá-se para reforçar o caráter arrebatador e

os movimentos de vida e de morte presentes no íntimo das personagens clariceanas.

Remetendo ao mito de Dioniso, a fim de compreender o teor dionisíaco que percorre

a escrita da autora, visto que esta efetivamente configura-se como “movimento puro” –

epígrafe do livro Água viva (1973) –, vale salientar que ele é essencialmente o deus da

metamorfose e, por isso, promove a mudança de quem toca sua essência. Por seu caráter

divino, não morre, mas renasce do próprio coração. Sua morte configura-se como uma

catábase, isto é, descida ao mundo inferior, seguida, logo depois, de uma anábase, volta

ao mundo dos vivos. Ele manifesta a vida e a morte conjuntamente, revelando que uma

está contida na outra. (BRANDÃO, 1990)

Dioniso é múltiplo, está em movimento constante, vai a todos os locais e acaba

por associar-se a divindades de naturezas diversas e contrárias, como ocorre em

relação a Apolo no teatro grego. Por ser tão plural, ele fascinava a todos na Grécia:

de camponeses a aristocratas. O deus está presente na embriaguez, na chegada dos

mortos, na mania – loucura sagrada –, no êxtase e no entusiasmo de comunhão com

qualquer deus. (KERÉNYI, 2002)

O termo “dionisíaco” dimensiona a iluminação vivenciada pelas personagens e o

desvendar do que existe de primordial no mundo e no homem. A força vivida é um

impulso para seguir adiante, mas, sobretudo, é um instante perigoso para vidas

sempre protegidas em um cotidiano mecanizado e rotineiro.

Em um trecho de Um sopro de vida, tal temática é abordada significativamente,

pois revela que o dionisíaco não aliena, mas sim, fomenta o surgimento de questões

inquietantes e mesmo sociais:

[...] Eu baseio minha vida no sonho-acordado. O que me guia é o

projeto de amanhã vir a ser amanhã. Minha liberdade? minha própria

liberdade não é livre: corre sobre trilhos invisíveis. Nem a loucura é livre.

Mas também é verdade que a liberdade sem uma diretiva seria uma

borboleta voando no ar. Mas nos sonhos dos acordados há uma

ligeireza inconsequente de riacho borbulhante e coerente. O estado de

ser. (LISPECTOR, 1994, p. 81)

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A sociedade atual também valoriza o racional, porém, de forma diferente da grega,

que se balizava nos conselhos de Apolo: “nada em excesso”, “conhece-te a ti

mesmo”. Vale ressaltar que o homo dionysiacus, através do êxtase e do entusiasmo,

liberta-se de condicionamentos e interditos de ordem ética, política e social,

tornando-se um perigo para a manutenção de regras (KERÉNYI, 2002). Cabe afirmar,

portanto, que as personagens configuram-se como eus tocados pelo dionisíaco e que

estão prestes a arrebentar as amarras.

A autora aborda a monotonia como uma ameaça à própria ordem; afinal, a

personagem pode ser arrebatada, quase sempre, através do olhar, por algo

aparentemente banal, mas capaz de provocar as perturbações mais violentas e

decisivas. Da abordagem do cotidiano nasce uma leitura que nega a hegemonia

do real e que revela ser possível o trânsito do homem entre o estar acordado e

sonhando, entre os fatos como são e a ilusão criada em torno destes.

Muitos eus habitam cada personagem e manifestam-se de diversas formas através

de máscaras, fantasias, loucura. No conto “A imitação da rosa”, de Laços de família

(1960), Laura foge ao padrão de normalidade, é considerada desequilibrada, mas a

palavra “loucura” não surge, é um tabu, por marcar a transgressão da ordem e da

racionalidade.

Buscando o ininteligível, as palavras incompreensíveis, Laura aproxima-se do

arquétipo do louco, pois fica à margem da sociedade, com suas regras de normalidade

e do que não é. As personagens estão, justamente, no mundo do sensível, e não do

racional. Elas passam pelo trágico e encontram-se em situações nas quais todas as

regras rompem-se e a realidade social anula-se.

O livro A imitação de Cristo, de Tomás de Kempis (1379-1471), surge como

referência de conduta para a personagem. O árduo, no entanto, não é a humildade,

é abdicar do belo; por isso, ela sucumbe à beleza das rosas. Desejar ter a beleza para

si a despertou para o esplendor da existência com toda a sua força e ímpeto. É uma

personagem que não racionaliza o que acontece, apenas atinge a experiência de

descobrir-se pelos sentidos: da visão, passa ao tato e, depois, ao olfato.

Mais uma vez, a transgressão está em a personagem desejar algo bom e não se

considerar merecedora. A felicidade de Laura é “clandestina”, como de muitas outras

personagens. A simplicidade de apenas existir torna-se um grande desafio e uma

grande tortura. Uma rosa é uma rosa, e isto fascina Laura, por ela não saber ao

menos quem ou o que ela é.

20 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4

Angélica Castilho

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Clarice Lispector prioriza a liberação de eus adormecidos em momentos de pura

descoberta da própria natureza como temas em sua obra. O conceito de “alegre” é

trazido em sua acepção original, “animado”, “vivo” (CUNHA, 1982, p. 28), e percebido

como a força pelas personagens, quando estas interagem com o mundo através de

seus olhares e de suas escolhas, como se nota em A cidade sitiada:

O que não se sabe pensar, se vê! A justeza máxima de imaginação neste

mundo era pelo menos ver: quem pensara jamais a claridade? Pelo

menos Lucrécia via e batia a pata.

Experimentando alegria tão exterior que já era a alegria dos outros que

ela sentia, deus impessoal para quem as nuvens fossem um modo dele

não estar na terra e as serras o modo dele estar mais longe. (LISPECTOR,

1992, p. 91)

A obra da autora é um espaço em que se representa caráter e vontade. Por isso,

não existe um caminho definido: a personagem possui desejos. Por ter visto o mundo

e a si mesmo com um novo olhar, a personagem sofre uma transformação em sua

percepção de mundo. Justamente por ter atingido outro estado de experimentação da

vida, entende o mundo como um conjunto de elementos integrados. Entre muitos

exemplos na obra da autora, segue um de Água viva:

Essa felicidade eu quis tornar eterna por intermédio da objetivação

da palavra. Fui logo depois procurar no dicionário a palavra beatitude

que detesto como palavra e vi que quer dizer gozo da alma. Fala em

felicidade tranquila – eu chamaria, porém, de transporte ou de levitação.

Também não gosto da continuação no dicionário, que diz: “de quem se

absorve em contemplação mística”. Não é verdade: eu não estava de

modo algum em meditação, não houve em mim nenhuma religiosidade.

Tinha acabado de tomar café e estava simplesmente vivendo ali sentada

com um cigarro queimando-se no cinzeiro. (LISPECTOR, 1993, p. 94)

Tal processo revela que é necessário o não entendimento sobre as coisas para

chegar ao mais primitivo do ser: “[...] Existir não é lógico.” (LISPECTOR, 1996, p. 34)

Os abalos vividos surgem das mais variadas fontes. Em “Amor”, conto de Laços

de família, a deficiência física e o sombrio do Jardim Botânico enfatizam a importância

da vida em ebulição e em todos os aspectos. O que interessa às personagens é o

êxtase de viver e experimentá-lo em todas as esferas. O que arrebata é a vida e a

morte, enquanto processos de integração do eu ao cosmos.

Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 21

Aflorar dos eus no texto clariceano

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Em Perto do coração selvagem (1943), Joana possui momentos de visões da

efervescência da vida. Ela valoriza esse instante de captura do que sempre havia

escapado, por permitir que ela se situe no mundo e se aproxime mais do seu interior:

[...] Assim, um cão latindo, recortado contra o céu. Isso era isolado, não

precisava de mais nada para se explicar... Uma porta aberta a balançar

para lá, para cá, rangendo no silêncio de uma tarde... E de repente, sim,

ali estava a coisa verdadeira. [...] Para se ter uma visão, a coisa não

precisa ser triste ou alegre ou se manifestar. Basta existir, de preferência

parada e silenciosa, para nela se sentir a marca. Por Deus, a marca da

existência... [...] (LISPECTOR, 1995, p. 54-55)

No romance A cidade sitiada (1949), é a incapacidade de ver a si e ao lugar onde

mora que deixa Lucrécia em reclusão nela mesma. Ela percorre o caminho inverso

de personagens de romances escritos anteriormente pela autora. Lucrécia não se

deixa seduzir pela sua natureza, todo seu movimento a impulsiona para o artificial.

A percepção da vida e do mundo ocorre acidentalmente para a personagem.

Embora sejam muitas as passagens que fazem referência às tomadas de consciência

das personagens, estas não ocorrem no plano da racionalidade. O entendimento dá-se

através do místico ou da experimentação de sentimentos desconhecidos, como se

nota no romance A paixão segundo G.H. (1964) e no conto “Onde Estivestes de

Noite” (1974):

Eu entrara na orgia do sabá. Agora sei o que se faz no escuro das

montanhas em noites de orgia. Eu sei! Sei com horror: gozam-se as

coisas. Frui-se a coisa de que são feitas as coisas, esta é a alegria crua

da magia negra. Foi desse neutro que vivi, o neutro era o meu verdadeiro

caldo de cultura. Eu ia avançando e sentia a alegria do inferno.

(LISPECTOR, 1995, p. 106)

[...] Olha o que era. Enfim, enfim, não havia símbolo, a “coisa” era!

A coisa orgíaca. Os que subiam estavam à beira da verdade.

(LISPECTOR, 1994, p. 55)

[...] O silêncio pululava de respirações ofegantes. A visão era de bocas

entreabertas pela sensualidade que quase os paralisava de tão grossa.

Eles se sentiam salvos do Grande Tédio. (LISPECTOR, 1994, p. 56-57)

O dia é o espaço do civilizado, e a noite é o do primordial; aquele, de uma claridade

racional, este, de uma sombra inebriante que oculta e apresenta possibilidades

variadas e distintas sobre um mesmo fato. A missa, durante o dia, não reverte os

efeitos da missa profana noturna. A última frase do conto demonstra o medo

22 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4

Angélica Castilho

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e o fascínio que o narrador tem do processo de conscientização de sentimentos e

pensamentos mais íntimos:

Epílogo:

Tudo o que escrevi é verdade e existe. Existe uma mente universal

que me guiou. Onde estivestes de noite? Ninguém sabe. Não tentes

responder, pelo amor de Deus. Não quero saber da resposta. Adeus.

A-Deus. (LISPECTOR, 1994, p. 72)

Em A paixão segundo G.H., a ascese mística ocorre no plano da matéria: a essência

da vida é simbolizada pela barata. O humano toca o divino e perde-se nele, voltando

modificado pela experiência e conferindo tragicidade à vida de G.H., pois, a partir de

então, ela percebe que ocupa o mesmo plano ontológico de todos os seres e que sua

vida anterior era inautêntica.

O momento de encontro do eu com ele mesmo nas narrativas surge ora claramente

ora metaforicamente, como através da fantasia de carnaval, em que o ato de se mascarar

é elemento revelador dos múltiplos eus habitantes de uma personagem e,

principalmente, do forte desejo de buscar e de reconhecer outras faces. Nos textos da

autora, as máscaras tanto são para esconder quanto para revelar, dependendo sempre

do momento de cada personagem. Um instante de reconhecimento é narrado no conto

“Restos de carnaval”, de Felicidade clandestina (1971):

E as máscaras? Eu tinha medo mas era um medo vital e necessário porque

vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano

também fosse uma espécie de máscara. (LISPECTOR, 1998, p. 26)

As personagens exemplificam a ânsia por entendimento de seus interiores, do

que existe de universal e de individual, de constante e de mutável. Tais personagens

não se encaixam em tipos psicológicos preestabelecidos, pois vivenciam situações

primordiais. Em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1969), a busca pela origem

é evidenciada: “A mais premente necessidade de um ser humano era tornar-se um ser

humano.” (LISPECTOR, 1998, p. 32)

Benedito Nunes (1929-2011) nomeia de teologia negativa tal lógica de atingir a

divindade: Deus não é compreendido por meio de qualquer coisa, está acima do ser

humano ou da existência, logo, Ele nada é. O nada comporta essa realidade negativa

de que só se pode falar por exclusão de todas as coisas (NUNES, 1989). G.H.

posiciona-se frente a Deus como frente ao nada e conscientiza-se que o enigma que

persegue o homem na figura de suas indagações é a própria pergunta. A personagem

Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 23

Aflorar dos eus no texto clariceano

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Ângela, através do êxtase sensual que o encontro lhe proporciona, expõe tal questão

em Um sopro de vida:

[...] Oh Deus dos desesperados, me ache, você tem poder para

distinguir a minha pequena parte nobre que mal faísca entre o comum

cascalho, me ache! Agora! Já! Ah... Ah... Ah... me achou... Como voa a

alma que acaba de ser libertada há instantes pelo encontro de mim!

Deus me ACHOU. ALELUIA! Aleluia! E achei Deus na minha mais

profunda inconsciência, na espécie de estado de coma em que vivo

eu consegui balbuciar a visão do Deus – em mim mesma! Eu, também

escolhida pela piedade divina. Que glória. Ah, mas que glória.

(LISPECTOR, 1994, p. 142)

[...] Abençoa-me, Deus: estou te estendendo uma boca arranhada pela

febre de uma longa sede, estou te estendendo minhas quatro patas

estraçalhadas até o sangue nessa minha procura de me agarrar a Ti. Vem

e plenifica-me toda com a tua grande luz sossegada, Amém, eu dona de

nada, enfim, bafejada enfim por um sono infantil, pela rósea saúde da

alma, que se emana de mim para mim mesma e enobrece meu modo

de existir, eu, vestal sagrada, drogada pela essência da eternidade, eu

bafejada pela sorte da penúria extrema que, por não se aguentar mais

como dar, se torna riqueza. Não preciso mais pedir: Deus dá. [...]

(LISPECTOR, 1994, p. 143-144)

Ângela está assumindo a sua animalidade para atingir o êxtase. O que chama de

Deus pode ser nomeado outro deus ou conceito que implique um mergulho em si em

busca do essencial e do primordial em sua natureza.

Segundo Benedito Nunes:

[...] o ascetismo é um método que visa fundamentalmente ao sacrifício

do eu, extirpando o senso de propriedade da criatura humana em

relação a si mesma. A ascese só se completa quando, pela ação

conjugada de suas técnicas de redução da sensibilidade, da inteligência

e da vontade que levam ao despojamento interior e aos diversos graus

de vida contemplativa, dá-se a superação das limitações egoístas que

separam o indivíduo da totalidade do real. Nesse sentido, a nudez

e o esvaziamento ascéticos constituíram uma antecipação da morte.

(NUNES, 1989, p. 102)

G.H. toca o divino em um movimento de descida que é ascensão de um eu

desconhecido e que não preenche o significado das iniciais do nome que até então

se identificava. Ao olhar para baixo de seu prédio, ao ver o quarto da empregada em

sua luminosidade, ao ter contato com a matéria em si, representada pela barata, a

personagem atinge os primórdios da vida. Da mesma forma, Ana, personagem do

conto “Amor”, observa na disposição de seres do Jardim Botânico uma possibilidade

24 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4

Angélica Castilho

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de entrar em contato com a vida em si. Todavia, não estabelece um contato mais

íntimo nem altera o curso de sua vida e, por fim, deixa-se levar pelas mãos do marido.

As personagens chegam ao divino através do grotesco, das manifestações de vida e

de morte conjuntamente.

A matéria viva desperta o interesse das personagens, aponta para um lado da vida

ignorado até então. O universo clariceano é escatológico no sentido do termo

enquanto estudo de excrementos, secreções, odores que animais produzem, pois a

narrativa não ignora e mesmo reforça que o homem é um animal, embora tente

esquecer todos os pontos de contato entre ele e as outras espécies. Trata-se

igualmente de um universo sexuado, pois a integração com o mundo atinge um

estado erótico (NUNES, 1989). Em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, Lóri

recebe em uma das suas “aulas” a lição de vivenciar a náusea de saber-se existindo:

[...] o forte cheiro sensual que o peixe cru tem. Lóri aspirou

profundamente o cheiro quase ruim, quase ótimo. [...] o cheiro de

maresia lembrava também o cheiro de um homem sadio, [...] Aspirou de

novo a morte viva e violentamente perfumada dos peixes azulados, mas

a sensação foi mais forte do que pôde suportar e, ao mesmo tempo que

sentia uma extraordinariamente boa sensação de ir desmaiar de amor,

sentiu, já por defesa, um esvaziamento de si própria: (LISPECTOR, 1998,

p. 99)

Os animais sempre presentes figuram como seres que suscitam o que existe em

comum entre todos os seres vivos. O eu que aflora é instintivo e primordial e ameaça

o eu social, como é exposto em Água viva:

Às vezes eletrizo-me ao ver bicho. Estou agora ouvindo o grito

ancestral dentro de mim: parece que não sei quem é mais a criatura, se

eu ou o bicho. E confundo-me toda. Fico ao que parece com medo de

encarar instintos abafados que diante do bicho sou obrigada a assumir.

(LISPECTOR, 1993, p. 54)

Existe uma integração entre humano e animal, ambos partilham do movimento de

vida e de morte.

A natureza opõe-se à rigidez do social. As personagens passam também pelo

momento de estranheza frente ao próprio elemento humano, o que proporciona

ainda mais a experiência dionisíaca. De acordo com Benedito Nunes, o que Jean-Paul

Sartre (1905-1980) chama de náusea é o instante de extremo descontínuo

contemplativo e mudo, o instante de revelação. Porém, esta circunstância na obra de

Clarice Lispector difere da náusea sartreana em um aspecto: o caminho percorrido

Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 25

Aflorar dos eus no texto clariceano

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pelas personagens é muitas vezes místico, pois explora o ininteligível, ao passo que

uma postura unicamente existencialista caminha para uma busca pela explicação do

processo de tornar-se um ser. (NUNES, 1989)

O mistério é aceito nos textos clariceanos. A busca é pela descoberta de si e do

mundo e, finalmente, o encontro é a esperança que orienta. O encontro é belo e,

momentaneamente, aplaca a carência humana. O olhar primeiro que revela dores e

angústias do caminho também descobre alegrias, mesmo que sejam “clandestinas”.

Clarice Lispector narra o processo que encaminha personagem, narrador e escritor

a esse despertar. A escrita é a via crucis de todos que a reconhecem como condutora

para a contemplação da situação do homem moderno. Porém, a descoberta possui

um preço: uma vez consciente, o eu não mais se ilude com “armadilhas” do cotidiano

que ocultam a fragilidade e a transitoriedade do homem.

Referências

• BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro grego: tragédia e comédia. 5ª. ed. Petrópolis:

Vozes, 1990. v. 1

• CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua

portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

• KERÉNYI, Karl. Dioniso: imagem arquetípica da vida indestrutível. Tradução de

Ordep Trindade Serra. São Paulo: Odysseus, 2002.

• KEMPIS, Tomás de. A imitação de Cristo. Tradução de Pietro Nassetti.

São Paulo: Martin Claret, 2001.

• LISPECTOR, Clarice. A cidade sitiada. 7ª. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves,

1992.

• ______. Água viva. 12ª. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993.

• ______. A hora da estrela. 24ª. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1996.

• ______. A paixão segundo G.H. 18. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.

• ______. Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

• ______. Laços de família. 28ª. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.

• ______. Onde estivestes de noite. 7ª. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994.

26 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4

Angélica Castilho

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• ______. Perto do coração selvagem. 16ª. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.

• ______. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

• ______. Um sopro de vida. 10. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994.

• NUNES, Benedito. O drama da linguagem: uma leitura de Clarice Lispector.

São Paulo: Ática, 1989.

• SÁ, Olga de. A escritura de Clarice. 3ª. ed. Petrópolis: Vozes; Lorena: Faculdades

Integradas Teresa D’Ávila, 2000.

• SANT’ANNA, Affonso Romano de. O ritual epifânico do texto. In: LISPECTOR,

Clarice. A paixão segundo G.H. São Paulo: Scipione Cultural, 1997.

Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 27

Aflorar dos eus no texto clariceano

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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 29

PRIMEIROS EUROPEUS NA AMÉRICA: A

QUESTÃO DA ALTERIDADE OBSERVADA

ATRAVÉS DOS RELATOS DE VIAGEM

Lêda de Carvalho

Faculdade CCAA / UNISUAM

Doutora em Linguística Aplicada pela Universidade Federal Fluminense

contato: [email protected]

Resumo: O presente artigo apresenta a experiência com a alteridade,

considerando o fato de que o conhecimento de uma cultura passa necessariamente pelo

de outras, e que este fenômeno de interação social leva à constatação das infinitas

possibilidades que a noção do outro e de seu universo podem oferecer como

contribuição para uma visão mais ampla do mundo do qual fazemos parte. Para ilustrar

a questão apresentada, utilizamos exemplos de textos conhecidos como relatos de

viagem, produzidos durante o período da conquista do território americano pelos

espanhóis.

PALAVRAS-CHAVE: alteridade; cultura; literatura de viagem.

Abstract: This article aims at presenting the experience with alterity considering

the fact that the knowledge of a specific culture suffers influence from others and that this

social interaction phenomenon leads us to believe in the endless possibilities that the notion

of oneself and its universe can offer as a contribution for seeing the world from a wider

perspective. To illustrate this issue, we have worked with texts known as travelling

accounts produced by the Spaniards during the conquest of the American territory.

KEYWORDS: alterity; culture; travelling literature.

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30 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4

Lêda de Carvalho

Resumen: Este artículo presenta la experiencia con la alteridad, considerándose el

hecho de que el conocimiento de una cultura pasa necesariamente por el de las demás y que este

fenómeno de interacción social conlleva a la identificación de las infinitas posibilidades que

puede ofrecer la noción del otro y su universo como forma de contribuir a una más amplia visión

del mundo del que formamos parte. Con el fin de ilustrar la cuestión presentada utilizamos

ejemplos de textos conocidos como crónicas de viaje, producidos durante el período de la

conquista del territorio americano por los españoles.

PALABRAS CLAVE: alteridad; cultura; literatura de viaje.

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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 31

Primeiros europeus na América: a questão da alteridade observada através dos relatos de viagem

Entre os chamados relatos de viagem escritos à época das primeiras visitas ao

continente americano por parte dos europeus, muitos são os aspectos interessantes

a serem observados, a partir do olhar do homem que chega ao Novo Continente no

século 16. Entre eles, destacamos a questão da alteridade, vista aqui não apenas no

sentido do conflito gerado a partir do contato com outro, neste caso, o indígena, o

não-europeu, o pagão, assinalando o não-reconhecimento de seu universo cultural,

mas através dos momentos em que ocorre uma identificação, por parte deste mesmo

europeu, com o indivíduo que vê como um “selvagem” e que, entretanto, apresenta

alguma coisa em comum com sua própria natureza humana.

Vale ressaltar que não consideramos, ingenuamente, que haja existido, naquele

momento histórico, uma profunda reflexão sobre a questão do outro, nos termos em

que se discute hoje em dia. O que, sim, nos parece digno de atenção é a ocorrência,

ainda que esporádica, de um lampejo dessa percepção e o registro que dela possa ter

sido feito.

Com base nos sentidos que Todorov atribui à alteridade, em sua obra A conquista

da América, escolhemos para realizar estas observações três relatos de viagem: o que

foi realizado pelo frei Gaspar de Carvajal junto à expedição capitaneada por Francisco

de Orellana ao percorrer o rio Amazonas; o de Antonio Pigafetta sobre a célebre

viagem de circunavegação, sob o comando de Fernão de Magalhães, e o do francês

Jean de Léry, que esteve ao lado de Villegaignon no Rio de Janeiro.

É fato conhecido a fascinação que nutriam os navegadores pelos mistérios e

maravilhas que podiam encontrar durante suas frequentemente árduas e longas

expedições, assim como seu afã por encontrar riquezas que pudessem não apenas

alimentar seus sonhos pessoais como, também, as ambições dos monarcas que

patrocinavam suas ousadas viagens. Contudo, raras vezes se observa uma reconhecida

identificação do forasteiro com o sujeito nativo, devido a encontrarem-se, ambos,

distanciados da compreensão de um universo estranho ao seu conhecimento.

Dessa forma, no momento em que projetamos nossa mente ao passado, nos

damos conta do quão difícil deve ter sido àqueles homens considerar hábitos tão

diversos dos seus. Não apenas hábitos, mas, sobretudo, crenças e concepções de

vida, já que as distâncias que os separavam eram difíceis de vencer e as formas de

comunicação eram de todo precárias. Os intercâmbios ocorriam dentro de estreitos

limites geográficos (considerando-se a vastidão dos territórios hoje conhecidos) e

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as notícias emitidas a respeito de povos distantes estavam sempre sujeitas à

interpretação dos poucos que conseguiam estabelecer contato. Há que se destacar,

também, a complexidade da sociedade europeia de então, que já trazia em seu seio

um acúmulo de vitórias e derrotas de inúmeras nações, como herança histórica de

vastos impérios e potências dominadoras em suas lutas de conquista. Acrescente-se,

ainda, um fator de peso indiscutível, a religião, e teremos à frente um quadro

bastante complicado para a mente do homem que, ao chegar à América, se

defrontava, inicialmente, com a imagem do paraíso, para, logo em seguida, ver essa

imagem transmutar-se em uma terra onde elementos desconhecidos e indivíduos de

aparência exótica lhes descortinam seus estranhos ritos, rodeados por uma natureza

agigantada, enigmática, formidável e, às vezes, hostil e incompreensível. Para esse

homem, a figura do nativo americano deve ter representado, ao mesmo tempo, uma

surpresa e um desafio. Não podia absorvê-lo. Sua cultura falava em dois grupos: os

dominadores e os dominados; teria, portanto, que escravizá-lo, caso contrário, se

submeteria a ele e isso era impensável. A religião dominante excluía, de forma

categórica, aqueles que fugissem a seus cânones e, dissimuladamente, a seu poder

tiranizador; o que reforçava a crença no direito natural de uns sobre outros. Tudo

isso contribuía grandemente para que aquele elemento europeu encontrasse sérias

dificuldades para enxergar o outro como um semelhante, ainda que diferente de si,

tornando ainda mais improvável que viesse a respeitar suas diferenças .

É exatamente neste ponto que reside a questão que nos propomos ressaltar.

Sem nos determos em divagações sobre conceitos subjetivos como certo/errado,

justo/injusto, bom/mau etc., tratamos de pontuar, nos referidos relatos, aqueles

momentos em que é possível identificar a semente de uma nova compreensão sobre

a alteridade, onde a dessemelhança não esteja fatalmente atrelada ao receio e a

variedade não tenha que ser combatida. Semente esta que, infelizmente, até nossos

dias, parece ainda não ter se aberto completamente à germinação.

Antes de estabelecer pontos comuns ou divergentes nos três textos relativos à

alteridade, convém, ainda, destacar uma observação: a religião predominante entre

os viajantes era Católica Romana e sob sua ótica estão os relatos de Pigafetta e

Carvajal. Jean de Léry, por outro lado, pertencia a um grupo de adeptos da Reforma,

em expansão na Europa àquele tempo. Este detalhe pincela com cores mais vibrantes

as anotações ressaltadas neste artigo, pois, apesar das divergências de credo, o

comportamento semelhante em muitos aspectos confirma que, do ponto de vista

32 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4

Lêda de Carvalho

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da cultura geral, o homem europeu se parecia mais do que diferia no tocante à

intolerância em relação a todo aquele que se comportasse de modo diverso do seu

ou que expressasse distinta maneira de pensar.

Iniciando pelo relato de Pigafetta, testemunha e relator da primeira viagem ao

redor do mundo, sob as ordens de Fernão de Magalhães, encontramos uma pálida

percepção do outro como elemento indicador de uma cultura que, embora estranha,

ocupava seu lugar no tempo e no espaço, uma vez que, guiados pela ânsia de

completar a volta ao redor do globo e obter, com isso, vantagem em relação aos

portugueses, seus concorrentes, os navegadores que cruzavam os mares sob os

auspícios da coroa espanhola, eram obrigados a travar sucessivos intercâmbios

com nativos de diferentes regiões do planeta. Naturalmente, foi a necessidade que

impulsionou este movimento de interação e permitiu àqueles homens captar alguns

detalhes da existência de outras comunidades humanas, com seus próprios sistemas

e recursos, ainda que sob a névoa de um estreito entendimento. Em seu relato,

além de fatos corriqueiros nesse tipo de aventuras, como a troca de objetos

e de informações de caráter superficial, Pigafetta deixa clara a importância que a

observação atenta dos hábitos e manifestações das diferentes comunidades que

encontravam pelo caminho constituía um fator indispensável para que se atingisse o

objetivo de concluir com êxito a complexa viagem.

É assim que, por trás do espanto inicial e das arraigadas críticas fixadas,

sobretudo, em conceitos de cunho religioso, surge, de parte dos navegadores, a

tentativa de compreender, de alguma forma, o modus vivendi desses povos, conforme

se depreende das palavras do relator ao descrever o modo de vida dos indígenas que

viviam próximo às Ilhas Marianas, em que deixa escapar uma certa admiração

pelos trabalhos das mulheres e pela construção de suas casas, classificando-os de

“belíssimos” e considerando-os como “um povo engenhoso, apesar de ladrão”

(PIGAFETTA, 1957, p. 34). O documento apresenta, também, um longo relato sobre

o conhecimento adquirido junto aos índios para aproveitamento das qualidades do

coco – que os navegadores não conheciam até então –, assinalando que a obtenção

dessas novas e detalhadas informações, fundamentais para a sua sobrevivência,

exigia, como pré-requisito, um tratamento cordial em relação ao povo local que os

obrigava a abandonar, momentaneamente, juízos e preconceitos. O próprio Pigafetta

declara que “aquela gente” havia adquirido grande familiaridade com eles (os

navegadores) e que não apenas procedimentos, mas nomes, termos, enfim,

Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 33

Primeiros europeus na América: a questão da alteridade observada através dos relatos de viagem

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vocabulário, passaram a ser objeto do interesse de todos. O relato ainda fala da

“educação” ou da “fineza” com que os nativos locais se dirigiam aos forasteiros.

(PIGAFETTA, 1957, p. 35)

Alguns outros detalhes sutis, presentes nos relatórios destinados à metrópole,

como a explicação sobre as hierarquias de certos povos, eram referidas através da

associação com títulos usados pela própria formação hierárquica europeia (tais

como: reis e príncipes), traçando um paralelo entre as culturas; a declaração de

Pigafetta de que se submetera a comer carne na sexta-feira santa, em companhia dos

nativos, por força das circunstâncias, e a forma elogiosa como descreve a postura e

a vestimenta dos senhores daquele povo também atestam o despertar, involuntário

que fosse, do reconhecimento a que nos referimos.

Outras referências do relato de Antonio Pigafetta mencionam os povos do

Oriente, aos quais atribui uma vida com justiça, de amor à paz e conhecimentos

dignos de consideração. Adiante, na propaganda que faz do trabalho de conversão

ao Cristianismo que realizavam junto a tais povos, refere-se à rainha local em termos

que expressam admiração, apesar do modo de vestir e enfeitar-se completamente

diverso dos que se aceitavam na Europa de então.

Se, contudo, no documento redigido pelo italiano em seu notável trabalho de

observação, as referências são vagas, no relato do frei Gaspar de Carvajal nota-se

maior abertura para esse longo percurso que leva à discussão sobre o tema da

alteridade.

Carvajal foi responsável pelo relato da viagem realizada ao longo do rio

Amazonas, sob o comando de Francisco de Orellana. O rio, até então desconhecido,

foi percorrido pela primeira vez em toda a sua extensão por ocasião desta aventureira

e arriscada jornada.

Diferenciando-se de outros relatórios de viagens de descobrimento, as notícias

que nos chegam através de Gaspar de Carvajal falam de uma travessia quase

acidental, cuja prioridade era a sobrevivência. Em outras palavras: a busca por

alimentos e meios para autopreservação superava, de forma definitiva, o interesse

por riquezas. Esta contingência motivou uma nova maneira de encarar a figura do

indígena. Naturalmente, não nos referimos a uma concepção avançada que superasse

as enormes distâncias culturais – o que beiraria o absurdo –, mas a uma, digamos,

renovada predisposição para encontrar valores naquele outro, tão diferente de si.

34 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4

Lêda de Carvalho

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Muito bem: se, na expedição que acompanhava Pigafetta, a luta pela

sobrevivência era inerente à meta a ser atingida, na de Orellana não havia nada mais

prioritário, pois a própria viagem pelo antigo rio Grande teria sua origem nessa luta.

Como religioso, Carvajal, naturalmente, preencheu seus comentários com o fervor de

sua crença e ressaltou os atributos dos seus compatriotas, atribuindo-lhes os mais

importantes feitos. Seu discurso é todo permeado pela certeza da atuação divina

em favor dos espanhóis e sua convicção é, como já se sabe, a de que estes eram

superiores naturais aos índios. Não difere, portanto, de outros tantos documentos

de mesmo cunho, neste particular. No entanto, ao longo de seu relato, por diversas

vezes, enaltece as qualidades dos índios de modo direto ou indireto e são essas

referências que o distinguem de alguns outros.

Inicialmente, um detalhe bastante frequente no texto é o emprego do título de

“senhor” atribuído aos chefes de grupos indígenas. A um deles o autor se refere,

inclusive, como sendo um homem de grande inteligência (CARVAJAL, 1992, p. 43).

Durante todo o relato do encontro com os índios, Carvajal expressa a preocupação

do capitão e de seus homens de evitar confrontos desnecessários – o que os obrigava

a manter o hábito da cordialidade e do respeito a determinados limites. Embora

forçosamente, poderíamos dizer que os comandados de Orellana eram comumente

levados a ter que reconhecer, em certa medida, o espaço e o direito dos índios,

mesmo quando impulsionados por razões de natureza pouco nobre.

Adiante, o frei apresenta situações em que menciona a boa vontade dos índios em

relação ao convívio com os europeus, o que possibilitava a todos compartilhar o

espaço em harmonia, acrescentando que aqueles sempre pediam licença antes de se

aproximarem. Enfatizando a questão da deferência e da cordialidade que requeriam,

também eles, para com seus costumes, chama a atenção dos leitores para o detalhe de

que o próprio capitão falava vários idiomas indígenas – condição que lhe outorgava

respeito e que teria salvo a vida de seus homens. (CARVAJAL, 1992, p. 45)

O que se vê, nesse fato, é a tentativa de uma adaptação à nova realidade que se

impunha, pois, na dura batalha pela vida, um pensamento era inquestionável: sem a

presença do índio, não haveria comida. Assim sendo, aqueles navegadores

intercalavam seus anseios de dominação e enriquecimento com o exercício da

contenção e as atitudes moderadas daqueles que reconhecem que compartilhar,

muitas vezes, é a única saída.

Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 35

Primeiros europeus na América: a questão da alteridade observada através dos relatos de viagem

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Voltando ao texto de Carvajal, encontramos a narração de alguns episódios em

que houve luta entre os espanhóis e os índios e, mesmo nessas situações, não é raro

o autor referir-se à bravura dos adversários ou à sua organização nos momentos de

ataque (CARVAJAL, 1992, p. 57-59-61-89). Adiante, o relator se declara maravilhado

com a distribuição das casas e das aldeias dos nativos em espaços mais ou menos

regulares e demonstra extrema admiração pela arte dos indígenas, sua sabedoria

e engenhosidade, chegando mesmo a comparar suas habilidades à dos romanos

(CARVAJAL, 1992, p. 65-99)

Ao escrever sobre as invasões que seu capitão ordenou contra duas aldeias,

aproximadamente na época da Santíssima Trindade, Carvajal cita novamente o vigor

e a determinação com que os índios as defenderam, recordando que a persistência

dos espanhóis se devia quase exclusivamente à fome desesperadora que sentiam.

Apesar disso, o capitão decidiu bater em retirada diante da resistência encontrada, o

que, nas palavras do relator, teria ocorrido com o fim de evitar que os espanhóis

não saíssem honrados do confronto. Neste particular, um pormenor curiosamente

assinalado, em relação às batalhas contra tribos hostis, é o de que a hostilidade dos

próprios espanhóis foi previsivelmente ignorada por estes, como se lhes coubesse

sempre o papel de vítimas. Se observarmos o aspecto sutil desta passagem, podemos

inferir que, de modo indireto, Carvajal deixa claro que os índios poderiam oferecer

resistência digna de atingir a honra dos espanhóis. Desse modo, os coloca,

inconscientemente, em condição superior à de meros seres primitivos, como

gostavam de considerá-los os conquistadores de suas terras.

Uma coisa que sempre causava repulsa entre os viajantes europeus era o feroz

costume que os índios mantinham de devorar seus inimigos. A antropofagia era uma

forma de caracterizar o que os homens do Velho Continente consideravam bárbaro e

servia de justificativa para muitos de seus atos violentos. A este respeito, vêm bem

a propósito alguns comentários sobre o relato realizado por Jean de Léry; porém, não

sem antes fazer uma pequena introdução sobre o trabalho que realizou.

Jean de Léry era francês e calvinista. A expedição da qual participou, portanto,

possui características distintas das outras duas mencionadas aqui. Vivendo no Brasil,

entre os caraíbas e sob a autoridade de Nicolas Durand de Villegaignon, Léry se

36 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4

Lêda de Carvalho

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expressa na condição de um homem instruído que se opunha não apenas a certas

condutas consideradas selvagens, provindas de um mundo que ainda mal conhecia,

mas também aos espanhóis, aos portugueses e à religião católica. Desse modo, sua

visão crítica revela uma postura mais abrangente, em especial quando contrapõe,

indiretamente, dois desses elementos.

Retomando a questão da antropofagia abordada no parágrafo anterior, podemos

acompanhar a pormenorizada exposição que Léry faz do ritual indígena que precedeu

a morte de um prisioneiro e que culminou quando este foi devorado pela tribo que o

derrotou. Suas palavras não escondem o espanto e o horror que tais espetáculos

lhe causaram. Contudo, ao final da exposição, ele se reporta à selvageria dos seus

compatriotas e de outros povos de seu “mundo civilizado” dissecando atos infames

e da mais profunda violência por eles praticados. Não é difícil concluir que seu

discurso representa um protesto político-religioso, uma manifestação de repúdio

à perseguição dos católicos aos protestantes; entretanto, não deixa de chamar a

atenção para as diferenças culturais como fatores de especial significação no

momento em que se pretende estabelecer um julgamento de valores.

Ao referir-se às características básicas dos indígenas, Léry discorre, também,

acerca da nudez das mulheres, das razões para a sua obstinação contra o uso

de roupas e do hábito de se banharem com muita frequência, confessando-se

maravilhado, ainda que surpreso. Em sua eloquência, que deixa entrever as

qualidades de futuro pregador religioso, convida aqueles que pretendessem condenar

com austeridade semelhantes hábitos a refletirem sobre a indecência do “vício

oposto”, ou seja, daqueles que, em seu meio social, se ocupavam apenas da

excessiva vaidade no vestir. Lembra o relator que a nudez das índias não estimulava

tanta malícia quanto os adornos provocantes das damas europeias, apesar de atribuir

àquelas a mesma beleza destas. Fala, ainda, do prazer que sentia em observar a

correria dos indiozinhos em contato com a natureza, com seus beiços furados, os

cabelos tosquiados e apresentando mais saúde que os meninos da sua terra natal.

Ao recordar o modo como os índios preparavam o cauim – sua bebida predileta –

e como realizavam as suas refeições, ele reafirma as particularidades que distinguia

essa sociedade daquela em que ele cresceu e foi educado. Ao mesmo tempo,

estabelece um paralelo entre elas para poder fazer-se entender mais claramente.

Por diversas vezes, Léry ressalta para o leitor que seu inicial espanto diante de um

determinado procedimento entre os índios terminava, não raro, sendo substituído

Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 37

Primeiros europeus na América: a questão da alteridade observada através dos relatos de viagem

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por uma assimilação natural. Em favor da mastigação de raízes, por exemplo, ele

contrapõe a feitura do vinho, proveniente da uva que foi pisoteada, e propõe que

se questione se um método poderia ser considerado menos higiênico que o outro.

(LÉRY, 1980, p. 133)

Seu relato é todo sinalizado com experiências inusitadas de maior ou menor

impacto, desde alguns fatos corriqueiros, como a adaptação ao sabor dos lagartos ou

a adoção de medicamentos naturais utilizados pelos índios, até a participação em

guerras entre tribos na qualidade de observador minucioso. Elogia a gratidão dos

índios e repudia os vícios da sociedade europeia, declarando que aqueles amavam as

pessoas alegres e liberais, não os avaros, neurastênicos ou taciturnos.

No tocante às concepções religiosas, apesar do esforço para entender a

descendência desses povos à luz da Bíblia, Léry desenvolve um pequeno discurso, em

que exorta o leitor a meditar sobre a fé e o materialismo, retirando bons exemplos da

conduta dos índios com seu desapego aos bens do mundo e sua confiança plena na

força da natureza. (LÉRY, 1980, p. 170).

Para finalizar esta despretensiosa e sintética investigação, não podemos deixar

sem registro certas passagens significativas do texto do relator que acompanhou a

chegada de Villegaignon ao Rio de Janeiro. Uma delas é a que descreve a poligamia

dos índios, mostrando-se encantado pela harmonia que imperava entre as esposas e

elucidando o leitor quanto à diferença de concepção que transformava, a seu ver, o

vício em virtude (LÉRY, 1980, pp. 223-224). Adiante, menciona o nascimento das

crianças e o modo de criá-las, considerando-o muito mais salutar do que os

procedimentos da chamada civilização (LÉRY, 1980, p. 226-227). Finalmente, a

música. Léry procura transcrever em notas musicais o ritmo que presidia algumas

cerimônias dos nativos, classificando-o como harmonioso, em consonância com o

canto e a dança que realizam.

Como se pode observar, nas cartas e relatórios abordados nestas páginas,

encontramos algumas expressões distintas daquilo que Todorov chamou de

“doutrina da desigualdade”, referindo-se à tendência, geralmente caracterizada

em tais documentos, de “apresentar os índios como imperfeitamente humanos.”

(TODOROV, 2003, p. 217)

38 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4

Lêda de Carvalho

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Nossa reflexão final considera que as relações entre europeus e indígenas, dentro

do processo histórico que se desenvolveu a partir do “Descobrimento da América”,

refletem questões sociais que se estendem até os dias de hoje e, dentro dessa

perspectiva, a visão, algo incomum, presente nos casos que assinalamos, se torna

precursora das discussões que contemplam a temática da diversidade e dos direitos

de igualdade, tão frequentes nas sociedades modernas.

Referências

• ARIAS LARRETA, Abraham. História de la literatura indoamericana:

Literatura colonial. Bonfield: Editorial Indoamérica, 1970.

• CARVAJAL, Gaspar de. Relatório do novo descobrimento do famoso Rio

Grande descoberto pelo capitão Francisco de Orellana. Brasília: Scritta

Editorial, 1992. Edição Bilíngue.

• DE LA VEJA, Garcilaso. El inca. Comentarios reales. Lima: Editorial

Universo, 1972.

• DE LAS CASAS, Bartolomé. Brevísima relación de la destrucción de las

Indias. México: Fondo de Cultura Económica, 1977.

• GIUCCI, Guilhermo. Viajantes do maravilhoso: o novo mundo. São Paulo:

Companhia das Letras, 1992.

• LÉRY, Jean de. Viagem à terra do Brasil. São Paulo: EDUSP, 1980.

• ORLANDI, Eni Pulcinelli. Terra à vista. Campinas: Editora da

UNICAMP, 1990.

• PIGAFETTA, Antonio. Premier viaje alrededor del mundo. In: AMÉRICA

en los grandes viajes (Biblioteca Indiana. Colección de textos anotados).

Madrid: Aguilar, 1957, p. 1094.

• PIZARRO, Ana. América latina: palavra, literatura e cultura. v. 1. São

Paulo: Memorial da América Latina/UNICAMP, 1995.

• POMA DE AYALA, Felipe Guaman. Nueva crónica y buen gobierno.

México: FCE, 1997.

• RODRIGUEZ MONEGAL, Emir. Notícias secretas y públicas de América.

Barcelona: Tusquets Editores, 1990.

• TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. São

Paulo: Martins Fontes, 2003.

Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 39

Primeiros europeus na América: a questão da alteridade observada através dos relatos de viagem

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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 41

DIÁLOGO ENTRE MEMÓRIA E HISTÓRIA

ATRAVÉS DA CRÔNICA ANDINA DE

FELIPE GUAMAN POMA DE AYALA

Helena Dias dos Santos Lima

Faculdade CCAA

Doutora em Literatura Comparada pela UFF

contato: [email protected]

Resumo: Este artigo tem por objetivo desvelar na obra Nueva Corónica y Buen

Gobierno, do índio peruano Felipe Guaman Poma de Ayala, o processo de recuperação

da memória histórica peninsular e andina. Evidenciamos no discurso escrito e no

iconográfico de Guaman Poma imagens formadoras da carta-protesto do cronista contra

a devastação colonial, a mestiçagem e a ausência de valores morais e religiosos por parte

dos espanhóis. Por outra parte, apresentamos o poder do discurso oral e do escrito,

assim como a dialética entre a imagem e o poder.

PALAVRAS-CHAVE: crônica; memória e História; poder da imagem.

Abstract: The purpose of this article is to unveil the process of recovery of the

Andean historical memory in the masterpieces Nueva Corónica y Buen Gobierno, by the

Peruvian Indian Felipe Guaman Poma de Ayala. In Guaman Poma’s text, the images that

form the chronicler’s letter of protest against the colonial devastation, the miscegenation

and the absence of moral and religious values performed by the Spaniards are highlighted

both in the written and in the iconographic discourse. On the other hand, not only is the

power of the oral and written discourse presented, but also the dialectic between image and

power.

KEYWORDS: chronicle; memory and History; the power of image.

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42 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4

Helena Dias dos Santos Lima

Resumen: Este artículo tiene por objetivo desvelar en la obra Nueva Corónica y

Buen Gobierno del indio peruano Felipe Guamán Poma de Ayala el proceso de recuperación

de la memoria histórica peninsular y andina. Evidenciamos en el discurso escrito y en el

iconográfico de Guaman Poma, imágenes formadoras de la carta protesta del cronista a la

devastación colonial, al mestizaje y a la ausencia de valores morales y religiosos por parte

de los españoles. Por otra parte, presentamos el poder del discurso oral y del escrito, como

también, la dialéctica entre la imagen y el poder.

PALABRAS CLAVE: crónica; memoria e Historia; poder de la imagen.

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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 43

Diálogo entre memória e História através da crônica andina de Felipe Guaman Poma de Ayala

O artigo que ora apresentamos consiste em uma pequena argumentação teórica

sobre o processo de reconstrução e recuperação da memória histórica andina. Para

conferirmos relevância às nossas apreciações sobre o tema aqui proposto, faz-se

necessário abordar questões sobre a memória individual, a coletiva e a histórica. Em

cumprimento aos nossos objetivos, analisamos a obra do cronista peruano Felipe

Guaman Poma de Ayala – Nueva Corónica y Buen Gobierno.

Traçamos como finalidade assinalar o poder que a escritura e a imagem exerciam

para a preservação e recuperação da memória histórica como expressão de um

indivíduo ou de uma coletividade. Consideramos um lugar no tempo e no espaço,

onde a escritura e a imagem são capazes de dominar o próprio tempo, utilizando-se

dos artifícios manipulados pela expressão humana. Desse modo, entendemos que

o estudo da memória abrange a Psicologia, a Biologia, a Psiquiatria, além de outras

ciências que dela se utilize.

Através da linha empírica da realidade do corpo humano, Aristóteles estabelece a

diferença entre a memória consciente e a memória inconsciente. Atribui à memória

consciente a capacidade de aflorar de maneira espontânea e de conservar o passado;

e a inconsciente como um ato voluntário de recordar esse passado.

La memoria tiene por objeto el pasado; nadie podría pretender recordar

el presente, mientras el es presente. [...] Toda memoria o recuerdo

implica, pues, un intervalo de tiempo. (ARISTÓTELES, 1962, p. 83)

As observações aqui propostas se fundamentam na teoria de que a memória é

a responsável por conservar e recuperar elementos de experiências individuais ou

coletivas, permitindo realizar operações mentais aproveitando-se das experiências

passadas. Dessa forma, podemos afirmar que escrever é um ato de recordar e fazer

memória. Literatura é memória; escrever, então, é um ato de transformar a memória

em uma expressão perene, porque informa valores sociais, culturais, políticos e

históricos, não deixando de constituir um campo de disputa pelo poder,

naturalmente associado a classes sociais e étnicas.

Tomando como referência as pesquisas de Jacques Le Goff, observamos que

o historiador afirma que a memória constituiu um pilar importante na luta pelo

poder conduzida por forças sociais, e acrescenta que se apoderar da memória e do

esquecimento é uma das grandes preocupações das classes sociais que dominaram e

ainda dominam as sociedades históricas. Para o historiador, a memória faz parte do

jogo do poder, e a História tem como norma a verdade.

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Dessa forma, apropriar-se da memória e do esquecimento é ter como objetivo a

aquisição e a manipulação do poder. Resulta que os esquecimentos e os silêncios da

História são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva.

Entendemos, assim, com Le Goff, que a memória faz parte do jogo de poder, é

a que autoriza manipulações conscientes ou inconscientes, devendo obedecer aos

interesses individuais ou coletivos. A memória passa a ser uma recordação de um

passado vivido ou imaginado, daí ser um fenômeno coletivo.

Tornar-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes

preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e

dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da

História são reveladores deste mecanismo de manipulação da memória

coletiva. (LE GOFF, 2003, p. 422)

A escrita, como afirma Le Goff, permitirá a essa memória a criação de um suporte

especialmente dedicado a ela: o documento. Passa a escrita a ser responsável por

armazenar informações e assegurar a passagem da esfera auditiva à visual.

[...] a escrita tem duas funções principais: ‘Uma é o armazenamento de

informações, que permite comunicar através do tempo e do espaço, e

fornece ao homem um processo de marcação, memorização e registro’;

a outra, ‘ao assegurar a passagem da esfera auditiva à visual’, permite

‘reexaminar, reordenar, retificar frases e até palavras isoladas’. (LE GOFF,

2003, p. 429)

Por conseguinte, trazemos as reflexões do sociólogo Maurice Halbwachs, defensor

da teoria de que toda memória é social, e a definição de Pierre Nora, da memória como

“instrumentalización del pasado en el presente” (NORA, 1985, p. 25), ou seja, o uso do

passado com fins políticos. A proposta de Halbwachs apresenta três hipóteses:

na primeira, o passado não se conserva, e sim se reconstrói a partir do presente; a

segunda hipótese estabelece que a memória individual existe, desde que participe

de uma memória social preexistente, quer dizer, a memória do grupo é condição

fundamental para a lembrança dos indivíduos; a terceira esclarece que o passado

serve para justificar as representações do presente. Entendemos, então, que a

memória coletiva é a condição para a existência das memórias individuais.

44 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4

Helena Dias dos Santos Lima

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A memória coletiva é um instrumento e objeto de poder, que permite estratégias

de indivíduos empreendedores a adaptar genealogias, legalizar vantagens históricas

e controlar tradições. Halbwachs fala da memória coletiva como um processo de

reconstrução de um passado vivido por um grupo ou por uma sociedade, inseridos

em marcos sociais, como o tempo e o espaço, e esclarece que, para recordar um fato,

não basta reconstruir peça a peça a imagem de um fato passado. Essa reconstrução

deve realizar-se a partir de dados que se encontram em nossa mente e nas mentes

dos demais que integram a mesma sociedade.

Observamos que recriar a história passada, por meio da literatura, é uma forma

de conceber e reviver determinadas ações que se perderiam ao longo do tempo,

entendendo, assim, que a História se alimenta de memória e a recuperação dessa

memória é o meio de combater o esquecimento. Desse modo, Eugenio Amaya, em

seu texto La búsqueda de la memoria y su traslación escénica en Tejas Verdes, afirma

que a recuperação da memória histórica deveria ser um ato de reflexão constante: “La

recuperación de la memoria histórica, en mi opinión, debería ser un continuo, una

reflexión permanente. Contemplar el presente para indagar en el pasado y viceversa”.

(AMAYA, 2007, p. 13)

Nesse sentido, a visão que Halbwachs apresenta sobre a memória coletiva

estabelece uma união entre passado e presente, assim como o indivíduo com o grupo

social ao qual pertence, produzindo um sentido de continuidade histórica. O passado

é reconstruído pela memória de acordo com os interesses, as crenças e as situações

geradas no presente, e a memória que teria por finalidade reforçar o sentido de

continuidade histórica com o passado exerce a função de reconstruir constantemente

o próprio passado. Essa visão apresentada por Halbwachs sobre a memória coletiva

leva-nos a entender que existe uma construção ideológica dando um sentido de

identidade atribuída ao grupo, a uma nação ou a uma comunidade, justificando o

fato de se inventar uma memória para conservar a continuidade histórica.

Em nossas considerações sobre a memória coletiva, percebemos que existe,

em todo esse conceito, uma preocupação por não confundir memória coletiva com

memória histórica. A memória histórica constrói uma parte da memória coletiva e

se caracteriza pela concepção crítica de um fato histórico de participação coletiva.

Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 45

Diálogo entre memória e História através da crônica andina de Felipe Guaman Poma de Ayala

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Dentro desse âmbito histórico, a recuperação da conquista andina se formaliza na

leitura da História ao recuperar a memória desse período de confronto, de imposição,

vivência entre expressões culturais tão diferentes.

José F. Colmeiro, em suas pesquisas sobre a recuperação da memória histórica,

afirma que: “La memória histórica se caracteriza, así pues, por su naturaleza

auto-reflexiva sobre la función de la memoria. Toda memoria histórica es por fuerza

coletiva, aunque se active de manera individual” (COLMEIRO, 2005, p. 18). Desse

modo, entendemos que toda memória é sempre resultado de uma construção social

e que tanto a memória individual quanto a coletiva deve integrar-se, pois uma não

existe sem a outra.

Nesse contexto, inserimos questões de caráter político-social como elementos

fundamentais para a representação do poder, mesmo porque a política sempre esteve

presente tanto nos discursos históricos como nos artísticos e, nessa esfera, citamos

a confluência entre teatro, História e memória. Incluímos, então, a política a essas

abordagens, até mesmo como forma de reler a história inerente à própria questão da

memória.

Deste modo, observamos que, no espaço colonial, Felipe Guaman Poma de Ayala

constrói a memória histórica do Peru dos incas, por meio da sua obra, apresentando

a crônica como um instrumento literário administrativo e portador de memórias.

O cronista apresenta, além do discurso escrito, o discurso oral onde insere 398

desenhos que dão mais realismo à sua narrativa.

A utilização de imagens como recurso para validar e testemunhar a memória da

conquista do Peru, na visão do indígena, será o artifício pelo qual Felipe Guaman

Poma de Ayala utilizar-se-á, juntamente à língua espanhola e o quéchua, para expor

em sua crônica peruana os fatos até então narrados apenas pelos espanhóis. Essa

leitura nos permite entender com Balandier que “o poder só se realiza e se conserva

pela transposição, pela produção de imagens, pela manipulação de símbolos e sua

organização em um quadro cerimonial”. (BALANDIER, 1982, p. 7)

Lembramos que, antes da escrita e sem o papel para armazenar informações, era

necessário treinar a memória. Nessa época, a memória era praticada de forma visual,

por meio das artes: da pintura, da arquitetura. A memória como arte da visualização

se centrava nas imagens e nas palavras. Ao pensarmos nos sentidos humanos, a

visão era o primeiro processo para a recuperação e a conservação de informações.

46 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4

Helena Dias dos Santos Lima

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Saímos da visão espanhola sobre o processo histórico da conquista para a visão

do indígena que a viu e a viveu. Cabe-nos dizer que a ótica adotada é a de um

peruano que vivenciou os momentos da conquista e sofreu os da colonização.

Apoiando-se na escrita como elemento de resgate e divulgador de sua cultura,

Guaman Poma será o protagonista e testemunho da própria história.

Em sua origem, a palavra “crônica” significava relato de acontecimentos que

sucediam em ordem cronológica, apresentando-se como um breve relato ou registro

de eventos, funções semelhantes às do livro. A crônica, de um modo geral,

apresentará as características de um relato, como assinala a própria origem da

palavra, reunindo dados históricos com uma narração poética. Não pretendemos

analisar a problemática gerada entre verdade poética e verdade histórica;

coincidiríamos com as teorias de Aristóteles, que analisava a História como

formadora de fatos reais e a poesia como formadora de fatos desejados:

Es manifiesto asimismo de lo dicho que no es oficio del poeta el contar

las cosas como sucedieron, sino como debieran o pudieran haber

sucedido, probable o necesariamente; porque el historiador y el poeta

no son diferentes por hablar en verso o en prosa (pues se podrían poner

en verso las cosas referidas por Herodoto, y no menos sería la verdadera

historia en verso que sin verso); sino que la diversidad consiste en que

aquél cuenta las cosas tales cuales sucedieron, y éste como era natural

que sucediesen. Que por eso la poesía es más filosófica y doctrinal que

la historia; (ARISTÓTELES, CAP. III, p. 41)

Nesse tipo de gênero, o cronista se assemelha ao historiador, por seu

comprometimento com a História, porém sem perder o caráter literário. Observamos

essas manifestações nas crônicas das Índias, que representam e se constituem do

gênero histórico e do literário, muito semelhante à literatura medieval, que incorporava

um caráter descritivo proveniente da narração dos grandes feitos realizados pelos

cavaleiros medievais. Walter Benjamin afirmará que

o cronista é o narrador da história [...] O historiador é obrigado a

explicar de uma ou outra maneira os episódios com que lida, e não

pode absolutamente contentar-se em representá-los como modelos da

história do mundo. (BENJAMIN, 1996, p. 209)

Entre as formas épicas, a crônica é aquela que apresenta os fatos históricos de

maneira incontestável, pois à medida que o historiador é obrigado a explicar de uma

ou outra maneira os episódios com que lida sem poder apresentá-los como modelos

Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 47

Diálogo entre memória e História através da crônica andina de Felipe Guaman Poma de Ayala

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da história do mundo, o cronista fica livre do ônus da explicação verificável, sendo

substituída pela interpretação, que não se preocupa com o encadeamento exato de

fatos, mas como o insere na narrativa.

Na Europa, particularmente na Espanha, a crônica surgiu como uma das

derivações do gênero épico. Tinha como característica a exaltação de ações de

príncipes e monarcas, mas logo é tomada pelo espírito da ética espanhola, assume

características didáticas, passando a ser exemplo para bons governantes como

espelho da verdade e exemplo de doutrina, como afirma Gonzalo Fernández de

Oviedo:

Historiadores y cronistas son en la real casa oficio muy prominente, y el

mismo título dice qué tal debe de ser, y de qué discursos de las personas

reales y sucesos de los tiempos, con la verdad y limpieza que se

requiere. Oficio es de evangelista, y conviene que esté en persona que

tema a Dios, porque ha de tratar de cosas muy importantes, y tanto

arrimándose a la elocuencia y ornamento retórico; cuanto a la puridad

y al valor de la verdad, llanamente y sin rodeas ni abundancia de pues

es notorio que sin el que lleva salario de tal oficio. (OVIEDO, 2006,

p. 162)

Durante o processo de conquista do Peru, alguns soldados de Francisco Pizarro

assumem a figura de escrivães e iniciam a tarefa histórica de narrar as peripécias e as

aventuras dos espanhóis na América.

Afirmam algumas escrituras que os cronistas das Índias passam a ser os olhos e

o coração da História, pois a viram e a sentiram; são testemunhos diretos da História.

No entanto, nem todos viram, alguns apenas ouviram, fato que questiona o grau de

fidelidade. Oviedo, em sua crônica (1549), nos alerta a desconfiar dos cronistas que

escrevem seguindo a relação de olhos que não são os do cronista:

[...] Solamente quiero deçir ó dar un aviso al letor contra la maliçia de

algunos historiales [historiadores] que hablan en Yndias sin verlas; y es

que atienda el letor en dos cosas: la una desde dónde escribe el que lo

diçe; é la otra que no debe dexar de considerar que hallará algunos

passos [pasajes], que yo he escripto y essostros remiendan, mudando

las palabras, porque parezca que[e]s suyo lo cuentan, é van à dar de piés

en lo que de mi tractados han hurtado; é tal ha avido que casi á la letra

en partes diçe lo que he dicho. (OVIEDO. T. IV 3ª parte, p. 592)

48 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4

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A crônica de Guaman Poma se reveste de uma narração histórica e abre espaço

para escrever a história dos incas, passando a assumir a função de historiador.

À medida que escreve para um determinado destinatário, o rei Felipe III, o cronista

assume uma voz coletiva, de denúncia, que exterioriza sua relação contra o sistema

colonial de seu tempo.

Por se tratar de uma denúncia do poder centralizador na figura do conquistador,

apresentando Francisco Pizarro como o responsável pelo extermínio cruel da

população andina, Nueva Corónica y Buen Gobierno teve sua condenação marcada

pelo anonimato por três séculos. Guaman Poma tinha como projeto denunciar ao

monarca espanhol Felipe III dados da violência e cobiça dos que ocupavam postos

administrativos na colônia, além de defender os andinos como cristãos civilizados e

apresentar os espanhóis como pecadores desviados da fé. O cronista transmite as

imagens de um mundo “al revés”, em desordem.

O reverso da conquista é apresentado pelo cronista em defesa dos indígenas,

destituídos de respeito. A história da conquista, como afirma Todorov, estaria

marcada, ao mesmo tempo, pela revelação e pela recusa da alteridade humana.

A concepção de mundo que apresenta Guaman é percebida através da magia do

mito, entre “arriba y abajo”. Aída Marcuse, em seu livro de contos míticos sobre os

incas, explica que, para os povos das serras do sul do Peru, o mundo está dividido

entre “Hanan Pacha, el mundo de arriba, y Ukhu Pacha, el mundo de abajo”.

(MARCUSE, 1999, p. 21)

Ao citar a topologia do Peru, quando a referência era a parte alta de Cuzco,

denominava Hanan Cuzco. A parte baixa era Lurin Quzco ou o sinônimo Hurin

Cuzco. No tocante à postura do cronista, é importante observar que Guaman Poma,

através dos seus desenhos, apresenta a rigorosa ordem hierárquica que concebia o

mundo andino, e esta busca do passado mítico recupera as tradições baseadas nas

dualidades “arriba-abajo” (Hanan-Hurin), já comentadas antes.

Desta forma, são atribuídos valores hierárquicos à disposição de cada desenho,

sempre confrontando as dualidades: mundo superior e mundo terreno, esquerda e

direita, masculino e feminino. Estas relações operam no plano gráfico, propiciando

um diálogo permanente com o leitor.

Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 49

Diálogo entre memória e História através da crônica andina de Felipe Guaman Poma de Ayala

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Para o entendimento deste diálogo, o pesquisador deve familiarizar-se com a

geografia andina, voltada para a estruturação do Tahuantinsuyo (as quatro partes

do mundo andino). Era um império que possuía mais de quatro mil quilômetros,

equivalente hoje ao Peru, Bolívia, Equador, nordeste da Argentina, sul da Colômbia

e parte do Chile. Dividido, segundo a língua quéchua, em: Chinchaysuyo (norte),

Antisuyo (leste), Collasuyo (sul) e Cuntisuyo (oeste). O território que correspondia

ao Chinchaysuyo era mais importante que Antisuyo; fazem parte de Hanan (arriba).

Por outro lado, Collasuyo é mais importante que Cuntisuyo, situado em Hurin (Urin,

Lurin) (abajo).

No início do século 16, o Tahuantinsuyo era governado pelo Inca Huayna Capac.

Após sua morte, o império entrou em crise pela sucessão do incanato. Os irmãos

Atahualpa e Huáscar lutaram pela posse do império. O primeiro contava com o apoio

das famílias elitistas do Hanan, e Huáscar, apoiado pelos sacerdotes do Hurin, se

proclamou o novo Inca.

Guaman Poma interpreta o Peru como todo o universo, segundo as categorias de

Acima e Abaixo. Na imagem ou desenho de número 42, as Índias estão situadas na

parte mais alta do mundo, portanto, mais próxima do sol. Castela está na parte

baixa. O cronista explica que a proximidade do mundo inca com o sol é interpretada

como as terras que sempre estão com a presença do sol, sempre é dia claro, “en el

dia” “in dias”, como explica a citação abaixo:

Estaua esta tierra en más alto grado, ací lo llamaron Yndias. Quiere dezir

tierra en el día, como le pucieron el nombre tierra en el día, yndias, no

porque se llamase los naturales yndios de yndias rrodearon yndios el

qual esta tierra está en más alto que todo Castilla y las demás tierras

del mundo. El primer bocablo fue el Mundo Nuebo; este título y

uerdadero nombre tiene y se llama naturales. (GUAMAN POMA, 1993,

p. 342)

O relato ao monarca espanhol apresenta a relação da sociedade andina desde os

começos dos tempos até o reinado dos incas, informando que a profunda crise em

que se encontram os incas é resultado da colonização e conquista dos espanhóis.

Ao longo da sua crônica, descreve as tradições, os hábitos, costumes e crenças dos

incas, recompõe o passado e recupera a memória individual, que será o suporte da

memória coletiva, correspondendo à memória dos membros da cultura inca e de seus

descendentes.

50 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4

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Denomina sua crônica como “Nueva Corónica”, cujo objetivo é apresentar-nos

uma nova versão da história pré-colombiana e da conquista, até então não conhecida

pelos que se inteiraram da história do Peru somente por meio do discurso europeu.

Apresenta, detalhadamente, a cosmogonia inca e a compara ao modelo da história

cristã. Para preservar seu ponto de vista, Guaman Poma escreve um longo texto

em prosa, em espanhol e em quéchua, e, para completar seu texto, intercala 398

desenhos que ilustram sua posição e argumento sobre seu ponto de vista,

particularmente sobre o abuso contra a população nativa, além de ser o modo mais

direto de comunicar suas ideias ao rei e persuadi-lo a intervir na colônia.

Descrever características culturais, narrar os valores de um povo, resgatar

tradições são algumas das ações que rememoram e conferem um significado à

imagem que se descreve, se narra e se resgata. Manter viva a imagem do império inca

é um dos objetivos da crônica de Guaman Poma. Nada escapa às suas descrições dos

hábitos e costumes dos incas. Na crônica, atua a memória coletiva, construída por

meio da memória histórica.

As narrativas centradas em uma visão puramente europeia não tomariam por

defesa a divulgação dos valores das populações dominadas. Caberia ao nativo a

narrativa desses testemunhos, que, como proprietários da cultura, da terra e dos

costumes, recuperariam a memória anterior à conquista e a transformariam em juízo

para a posteridade. Assim atuará a crônica de Guaman Poma.

Em Nueva Corónica y Buen Gobierno, o cronista se identifica como príncipe, filho

de don Martín Guaman Mallqui de Ayala, descendente dos grandes senhores incas,

e sua mãe, Curi Ocllo, filha do décimo inca Topa Ynga Yupanqui. A ascendência nobre

de Guaman legitima sua condição política de luta pela preservação da cultura do

seu povo e a recuperação da sua história. Durante quase trinta anos, Guaman Poma

percorreu o território peruano extraindo informações sobre a conquista e a

colonização para serem acrescentadas à sua crônica:

EL PRIMER COMIENZO: la historia donde se comensó a escribirse este

dicho libro, Primer corónica y de buen uiuir de los cristianos, que es la

historia y uida y cristiandad que pasaron seruiendo a Dios los dichos

don Martín de Ayala, segunda persón del Topa Ynga Yupanque, y su

muger, doña Juana Curi Ocllo, coya [reina], hija de Topa Ynga Yupanque,

y de sus hijos. (GUAMAN POMA, 1992, p. 11)

Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 51

Diálogo entre memória e História através da crônica andina de Felipe Guaman Poma de Ayala

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A primeira parte é dedicada à genealogia inca. O relato apresenta, passo a passo,

segundo seus preceitos religiosos, como começou Deus a criação do mundo. O autor

divide a origem do mundo em idades: a criação do mundo europeu e a do mundo

inca. Idades caracterizadas: a primeira pela cronologia bíblica e a segunda pelas

idades andinas.

Essas idades correspondiam às gerações de tribos indígenas dos Andes e, com

elas, o autor traça um paralelo com as idades europeias. O conceito de descendência,

de linhagem ou de casta, para Guaman Poma, serve para distinguir as quatro

primeiras idades andinas da dinastia dos Incas. As idades, segundo Guaman Poma,

se distribuem da seguinte forma:

Observamos que a representação da criação do mundo segue as tradições das

narrativas bíblicas, tendo como fio condutor a fé cristã, na obra atuando como elo

moral no discurso do autor. Nesse caso, os instrumentos de resistência utilizados

por Guaman foram a fé, a escrita e a imagem. Sua representação é a de que o andino

não difere das demais raças, sempre fez parte da família comum a todos os homens,

de forma que somos todos descendentes de Adão e Eva. Em outro momento, após o

dilúvio, os descendentes de Noé repovoaram o mundo, onde se insere, também, a

região andina.

Guaman, por meio dos desenhos que ilustram o seu texto, resgata e perpetua a

história do imenso império inca, o Tahuantinsuyo. Cada uma das partes do império

possuía um senhor, de casta principal, que a governava e fazia parte do conselho

real. A memória histórica do Peru inca é recuperada à medida que todo o sistema

EDADES ANDINAS EDADES EUROPEAS

1 – Uari Wiracocha runa

2 – Uari runa

3 – Purun runa

4 – Auca runa

5 – Inca runa

6 – España en Indias

1 – Adán y Eva

2 – Noé

3 – Abrahán

4 – David

5 – Jesucristo

52 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4

Helena Dias dos Santos Lima

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organizacional desse povo é submetido à apreciação do leitor dessa imensa carta

destinada a ser a memória de uma nação: “Estos señores prencipales uirreys y príncipes

y capac apo, apo, curaca, allicac y otros caualleros estauan y rrecidían en la gran

ciudad del Cuzco”. (GUAMAN POMA, 1993, p. 337)

A escrita e os desenhos conferem e legitimam os valores da cultura inca, e essa

consonância do diálogo estabelecido entre as imagens e o texto nos conecta aos

mitos, à religião, à política, à arte e às tradições do império inca. Guaman Poma

transita pelo período colonial por meio de suas imagens, adequando sua

ancestralidade inca à nova realidade cristã. A cultura dos incas é apresentada como

modelo a ser seguido; os crimes, traições, roubos, adultério são punidos com

severidade, nada escapa à justiça do imperador e dos senhores principais.

A chegada do conquistador espanhol ao Peru foi o encontro com um Estado

organizado, com um amplo sistema de leis, uma arquitetura significativa, forte

produção de alimentos que abastecia a comunidade inca, templos religiosos, códigos

de preservação de conduta e respeito. O momento da chegada dos espanhóis

coincide com os tempos de tensão provenientes da guerra civil, provocados pela

morte de Huayna Capac e o fator que desencadeará os conflitos entre os irmãos

Huáscar e Atahualpa. Enfim, elementos que contrastam com a visão veiculada pelos

cronistas europeus. O resgate das tradições e a preservação da riqueza cultural dos

incas são o eixo que organiza e imortaliza a memória desse povo.

Para os espanhóis, a memória da conquista se perpetua por meio das inúmeras

crônicas, informando a visão unilateral espanhola dos fatos, e por meio da

construção da imagem dos conquistadores. Para os peruanos, a conquista, na visão

de Guaman Poma, representa a destruição de uma sólida estrutura, fragmentada pela

cobiça, pela inveja e pela violência. Os espanhóis contaminam o Tahuantinsuyo com

os vícios e a falta de virtudes. Nessa exposição, a inversão transcorre no sentido de

que os indígenas serão os verdadeiros cristãos, tementes a Deus, e os espanhóis os

homens de pouca fé.

A crônica pomiana é um ir e vir de informações sobre o Peru colonial, trazendo

reminiscências desde a criação do mundo. Foi escrita com muitos propósitos:

testemunhar os fatos acontecidos antes, durante e depois da chegada dos espanhóis,

exigir justiça e a reforma da administração real espanhola. O cronista, como herdeiro

da cultura inca, utiliza-se dos meios do próprio conquistador, a fé e a escrita, para

perpetuar a memória das tradições do seu povo e suas constantes transformações.

Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 53

Diálogo entre memória e História através da crônica andina de Felipe Guaman Poma de Ayala

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A memória, como antes comentamos, é a presença viva do passado no presente,

e o discurso de Guaman caminha para a objetividade do discurso histórico,

procurando afirmar como verdadeira a composição do relato. A memória coletiva se

constrói, na crônica, à medida que envolve as inúmeras vozes do vencido na sua

narrativa. A própria História analisa as vozes do conquistado como a do vencido, do

dominado, do subalterno. Guaman não se permite ser identificado como uma voz

subalterna. Sua apreciação dos fatos é a de crítico consciente do seu valor e do valor

de sua cultura. O poder se encontra em mãos inimigas, e esse inimigo não é superior,

mas sim o mais bem equipado em termos bélicos.

Guaman deixa em seu relato a história e a memória do império inca e quéchua.

A voz de um povo que trouxe para o presente, como resgate daquela memória, a certeza

de que entre seus antepassados não havia fome e miséria, havia ética, honra e verdade.

Referências

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del griego y prólogo de Francisco de P. Samaranch. Caracas: Monte Ávila,

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54 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4

Helena Dias dos Santos Lima

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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 55

Diálogo entre memória e História através da crônica andina de Felipe Guaman Poma de Ayala

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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 57

McONDO E A ESTÉTICA DO BUSINESS

PLAN: CONSIDERAÇÕES SOBRE A

ESCRITA PÓS-MODERNA E A LÓGICA

DO MERCADO NA LITERATURA

HISPANO-AMERICANA

Rodrigo Fernández Labriola

Faculdade CCAA / UFF

Doutor em Literatura Comparada pela UERJ

contato: [email protected]

Resumo: Na literatura dos anos 1990, sobreveio um movimento autodenominado

McOndo. Integrado por um grupo de jovens escritores hispano-americanos, tratava de

uma proposta estética influenciada pela mídia, pelo mercado editorial e pela política

neoliberal. Através dos prólogos de duas antologias e em outros textos diversos,

McOndo tinha como ponto fundamental a rejeição do realismo mágico – gênero que

caracterizara quase hegemonicamente a literatura do continente a partir dos anos 1960.

Este artigo avalia as relações desse movimento com alguns elementos da literatura

pós-moderna presentes na atualidade, e também com os discursos da indústria cultural

que apelam ao mercado para legitimar sua proposta estética.

PALAVRAS-CHAVE: McOndo; Fuguet; pós-modernidade.

Abstract: Back on 90’s literature, a movement so-called McOndo broke forth. Its

members were part of a young Hispanic writers group, broaching the aesthetical proposal

influenced by the media, the editorial market and the neoliberal politics. Throughout two

anthologies’ prologues and other several texts, McOndo had its basis upon a rejection of

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58 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4

Rodrigo Fernández Labriola

magical realism – a genre that almost defined Latin-American literature since the 60’s. This

article analyses the dialogue between this movement and some postmodern literature

elements that are present nowadays, likewise the culture industry speeches that appeal to

the market in order to legitimate its aesthetical proposal.

KEYWORDS: McOndo; Fuguet; postmodernity.

Resumen: En la literatura de los años 90 sobrevino un movimiento autodenominado

McOndo, integrado por un grupo de jóvenes escritores hispanoamericanos, alrededor de

una propuesta estética influenciada por los medios masivos, por el mercado editorial y por

la política neoliberal. A través de los prólogos de dos antologías y en otros textos dispersos,

McOndo defendía como punto fundamental el rechazo al realismo mágico que había

caracterizado casi hegemónicamente a la literatura del continente a partir de los años 60.

Este artículo evalúa las relaciones de ese movimiento con algunos elementos de la literatura

posmoderna presentes en la actualidad y con los discursos de la industria cultural que

apelan al mercado para legitimar su propuesta estética.

PALABRAS CLAVE: McOndo; Fuguet; posmodernidad.

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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 59

McOndo e a estética do business plan: considerações sobre a escrita pós-moderna e a lógica

do mercado na literatura hispano-americana

INTRODUÇÃO

Os anos 1990 presenciaram múltiplas transformações no âmbito da literatura

latino-americana, e muitas delas ainda não parecem analisáveis sem recorrermos a

uma tendência que surge tanto das dificuldades da contemporaneidade quanto da

irrupção na literatura, em geral, dos sintomas mais característicos da globalização.

Essa tendência subjacente, quase que hegemônica hoje, é a de ver uma ruptura

qualitativa entre as obras literárias de décadas passadas e a produção dos novos

textos “literários” do período que se denominou pós-modernismo. Por um lado,

existe um certo gesto vanguardista em uma grande porção das obras

contemporâneas, tentando se afastar violentamente da tradição letrada (os livros)

em prol de uma espécie de genealogia bastarda e tecnológica ao mesmo tempo,

composta pelos produtos do cinema, da TV, da informática e da indústria discográfica

pop. Essas obras literárias pós-modernas, porém, são publicadas no formato livresco

e, claro está, recebem toda a aura “culta” dos âmbitos letrados. Por outro lado,

pareceria que essa tendência a pensar numa ruptura seria coerente com as mudanças

radicais que sofreu a crítica literária nas últimas décadas: os estudos culturais

abriram o campo disciplinar para além do cânone e a literatura foi assimilada

rapidamente pelas produções da indústria cultural (a ponto de se tornar, ela própria,

um objeto difuso no contexto das “culturas híbridas”). A ideia de um cânone, porém,

estaria longe de ser abandonada, se por cânone entendermos um conjunto de textos

legitimados com o rótulo de literatura pela pesquisa acadêmica e pelo sistema de

publicações.

O presente artigo se propõe a problematizar essa suposta ruptura com a análise

de um movimento? / grupo? / estética? que foi um dos primeiros a apresentar essas

características dentro da literatura hispano-americana. Trata-se do autodenominado

grupo McOndo, que surgiu e cresceu na década de 1990, mas cujos procedimentos

discursivos, objetivos estéticos e efeitos na crítica literária se prolongam de diversas

maneiras até hoje, mesmo na prática intelectual de autores que já não formariam

parte dele. Para isso, tomaremos alguns dos prólogos e artigos escritos pelo

representante mais expoente de McOndo, o chileno Alberto Fuguet, seguindo as

linhas que o professor André Trouche pesquisou nesses textos no final de sua vida,

procurando avaliar o novo McOndo como signo genérico e eixo de uma construção

identitária substitutiva àquela anterior referência estética e política que formara

o campo intelectual hispano-americano do século passado: o Macondo de García

Márquez.

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É importante mencionar que a originalidade da pesquisa iniciada por Trouche,

infelizmente inconclusa, residia na análise dos procedimentos discursivos dos

McOndos em relação a seus objetivos estéticos e aos efeitos sobre a crítica literária.

Assim, essa escolha, que deixava deliberadamente fora as obras, estava motivada

pela hipótese de que existiria uma lógica de mercado, extraliterária (no sentido

tradicional do que é especificamente literário), e visível somente nesses textos de tipo

programático ou metaficcionais, sendo preciso trabalhar nas margens discursivas

do que já está sendo fixado como “texto literário” antes mesmo de ser publicado

ou ainda escrito. Isto é: propondo uma tendência teórica alternativa àquela do

par ruptura/continuidade na hora de pensar as novas configurações da literatura

latino-americana. Sem pretender demonstrar tal hipótese em sua totalidade, é

preciso explicitá-la previamente para considerar a análise que se segue como uma

série de possíveis apontamentos para tentar cercá-la e aplicá-la.

PÓS-MODERNISMO E DISCURSO PUBLICITÁRIO

Na América Latina, a “moda do pós-modernismo” (num sentido amplo) já não é

nova, tampouco o era quando chegou à escrita literária por volta de 1989, com uma

forte influência de autores americanos como Charles Bukowski e John Fante (no

conto), ou Bret Easton Ellis e Douglas Coupland (no romance), além de autores de

culto (cult) como Thomas Pynchon (que, em 1973, escreveu O arco-íris da gravidade,

uma obra cheia de referências à cultura de massa), entre outros. Naquela época, a

literatura latino-americana estava vivendo um certo apogeu que, se bem era menor

do que aquele do boom dos 1960 e 70, deu fama mundial a autores tão heterogêneos

como Isabel Allende, Antonio Skármeta ou Laura Esquivel. Todos eles poderiam ser

incluídos no final do que Donald Shaw (1999) denomina Pós-boom, mas é preciso

indicar que suas características diferem, em parte, das de outros autores da transição

boom/pós-boom, tais como Manuel Puig, Severo Sarduy, Mario Benedetti, Juan José

Saer ou David Viñas, todos mencionados em maior ou menor medida por Shaw.

Assim, enquanto os últimos tinham participado dos debates estéticos em torno do

realismo mágico, do lugar da experimentação e do comprometimento político, já em

1989 os anteriores acharam esse debate quase que enclausurado. E ainda há mais,

pois talvez poder-se-ia dizer que o sucesso editorial dos romances de Allende, de

Esquivel, de Skármeta e de outros autores da mesma época ajudou a fechar esses

debates. As causas disso parecem múltiplas e uma rápida revisão iria desde o possível

esgotamento da fonte de temas literários que deu origem ao boom, até o impulso

60 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4

Rodrigo Fernández Labriola

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dos departamentos de estudos latino-americanos da academia dos Estados Unidos.

As consequências foram mais claras: o realismo mágico foi fixado como padrão da

literatura do continente, a experimentação foi abandonada em prol de uma narrativa

linear e ausente de obstáculos estilísticos para o leitor médio, e o comprometimento

político ficou reduzido, quando muito, ao testemunho de uma práxis política quase

mítica no período das ditaduras militares das décadas anteriores.

Nesse contexto, aparecem os primeiros textos que consideram o problema da

pós-modernidade e a globalização na América Latina. Merece uma especial menção

o ensaio de García Canclini, que propõe o conceito de culturas híbridas. Publicado

em 1989, consideramos que ainda não foi avaliado o forte impacto desse texto sobre

o que depois seriam as chamadas obras literárias pós-modernas. Mas, certamente, é

possível encontrar traços da “hibridez” tanto no posterior discurso de Fuguet, por

exemplo, quanto de seus críticos. Voltaremos a isso no percurso do nosso trabalho,

mas, por enquanto, basta indicar que, por volta de 1989, o tema do pós-modernismo

era, principalmente, um problema relevado nos ensaios. Ele começava apenas a ser

representado numa escrita literária oculta, de tipo urbana e jovem, e mais ligada ao

mundo da comunicação do que à instituição literária (academia, prêmios, editoriais,

cadernos culturais).

O termo McOndo surge apenas em 1996, como título de uma antologia de uma

parte daquela produção literária “pós-moderna”, publicada por Mondadori e

compilada por Alberto Fuguet e Sergio Gómez. No prólogo, Fuguet menciona como

antecedente histórico outra antologia, Cuentos con walkman, publicada pela

espanhola Planeta em 1993. Não é, porém, o único antecedente. A partir de 1991, a

editora inicia uma agressiva política de expansão comercial com a criação da coleção

Biblioteca del Sur, cujos textos são escolhidos e editados pelas próprias filiais da

editora na Argentina, no Chile e no México. Entre 1991 e 1996, autores como Fuguet

e os argentinos Rodrigo Fresán e Martin Rejtman são publicados nessa coleção. Mas

tais autores estavam longe de serem desconhecidos. Apesar de não serem massivos,

todos eles tinham conexões bem fortes com dois âmbitos: a mídia (cadernos jovens

dos jornais, programas de rádio, música rock) e a academia (as novas cadeiras de

Literatura Comparada, Estudos Culturais e a carreira de Comunicação).

À primeira vista, essa relação tripla entre mídia, academia e editoras poderia

parecer um resultado feliz de aglutinação cultural: num continente em franca carreira

de privatização e entusiasmo neoliberal, surge uma primavera literária com juízo

crítico e dando conta da vitalidade cultural do continente. Mas também poderia ser

Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 61

McOndo e a estética do business plan: considerações sobre a escrita pós-moderna e a lógica

do mercado na literatura hispano-americana

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contemplado outro panorama. Por um lado, um deslocamento dos acadêmicos para

a mídia, mas sem abandonar suas cadeiras: a proverbial crise de orçamento das

universidades latino-americanas torna esse movimento ainda mais complexo do que

uma simples consequência dos novos objetos de estudo cultural. Por outro lado,

a designação como editores de alguns desses novos acadêmicos midiáticos ou,

diretamente, de personagens da mídia com reconhecimento entre o público jovem

urbano. Mais complexo se torna o quadro se constatarmos que os autores

publicados excedem a mera conexão com a mídia, a academia e as editoras, e eles

mesmos trabalham como editores e diretores de cadernos jovens, além de estar

vinculados com as universidades. Temos, então, que a primeira sensação de uma

grande quantidade de autores “descoberta” pela indústria cultural é apenas um

reduzido grupo de letrados (recortado do universo só um pouco menos reduzido dos

letrados totais) que possuem o controle quase monopólico dos meios de produção

de livros de literatura e de sua difusão através da mídia e da academia. A isso,

deveríamos acrescentar a sua participação nos processos de seleção de prêmios,

bolsas e subsídios estatais. Até aqui, estamos só constatando fatos contextuais que

nada têm a ver com uma estética nem com um tipo de escrita, tampouco com a

tradição literária. Mas a história do McOndo se encontra indissoluvelmente ligada

a esses avatares “curriculares”, o caminho no mercado do trabalho intelectual dos

1990, e que talvez poderia ser analisada em extenso como uma transformação

contemporânea daquilo que Angel Rama (1994) denominou “a Cidade Letrada”.

A pertinência do breve racconto se deve ao paradoxo que significa o apagamento

dessa história no prólogo de McOndo, ao contrário do que acontece no final de vários

romances dos McOndos. Os nomes da história, não é preciso citar aqui, encontram-se

agradecidos, por exemplo, nas últimas páginas de Por favor rebobinar, de Fuguet, ou

de Mantra, de Fresán. O estilo é similar ao de uma confraria, com reminiscências

new age: “a la hermandad cósmica...”, “sincronia digna de considerarse mágica...” etc.

O uso das metáforas astrológicas é interessante, porque confere uma maquiagem às

relações concretas de poder nas quais avança a história. Mas, no prólogo de McOndo,

essas relações são visíveis apenas de forma indireta. Fuguet esclarece, em termos de

“registro histórico”, que a antologia do ano 1993 foi compilada a partir dos trabalhos

dos assistentes nas oficinas literárias do Zona de Contacto, o caderno juvenil

do jornal El Mercurio (Santiago de Chile), mas não indica que ele próprio era o

responsável pelo caderno. Em outro parágrafo, ele diz: “Casi todos los autores aquí

incluidos son absolutos desconocidos fuera de su país. Y muchos son apenas conocidos

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Rodrigo Fernández Labriola

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en su propia casa”, mas também acrescenta que tiveram que rejeitar alguns autores

porque “teníamos muchos representantes de ese país (Argentina, México, España)”;

países que são, precisamente, aqueles onde apareceram as primeiras publicações

daquela literatura urbana antes mencionada, e cujos autores já eram bem conhecidos

ao serem publicados na antologia intitulada McOndo.

As causas do apagamento da história, talvez não seja necessário procurá-las nas

formulações ideológicas ou políticas, tais como as referências ao individualismo, ao

neoliberalismo ou ao pós-modernismo, como fazem a maioria das posições críticas

em relação a Fuguet e seus McOndos, por exemplo, Diana Palaversich. Por isso,

gostaríamos de colocar aqui pelo menos outras duas causas possíveis, tendo em

vista aquela lógica do mercado exposta na introdução.

A primeira causa estaria apoiada na necessidade de um discurso publicitário

coerente. McOndo foi publicada pela Mondadori, uma editora do grupo

Grijalbo-Mondadori, mistura dos cansados capitais espanhóis da Grijalbo com a

injeção de novos capitais italianos (dos quais era parceiro o neoliberal Silvio

Berlusconi). A ideia de marketing é evidente: a Planeta tinha aproveitado um mercado

de leitores jovens, universitários e urbanos através da Biblioteca del Sur, mas só

em poucos países latino-americanos. Por que não estender o negócio ao resto do

continente? A meu ver, o impacto dessa operação de marketing sobre o universo

de alguns escritores latino-americanos foi tremendo, de uma eficiência medonha, e

talvez o caso do boliviano Edmundo Paz Soldán seja o mais patético de todos, antes

e depois dos contos de seu primeiro livro, intitulado Dochera.

É importante destacar, porém, que acreditamos nas palavras de Fuguet, quando

ele conta, no prólogo, que a ideia não teria surgido da editora, mas de David Toscana

(representante do México em Iowa), e que:

Como em todo ato criativo, o mais divertido (e cansativo) foi coordenar

e achar os autores que entrariam no cânone preestabelecido. O primeiro

desafio, dos muitos que a gente teve, foi conseguir uma editora que

confiasse em nós, que oferecesse infraestrutura e redes de comunicação

e, sobretudo, que tivesse certeza absoluta de poder fazer uma

distribuição por toda América Hispânica, para assim tentar apagar as

fronteiras; o que tornou esta antologia não apenas uma compilação,

mas também uma viagem de descoberta e conquista. (FUGUET; GÓMEZ,

1996, p. 6, tradução nossa)

Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 63

McOndo e a estética do business plan: considerações sobre a escrita pós-moderna e a lógica

do mercado na literatura hispano-americana

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O parágrafo anterior não tem desperdício; voltaremos sobre outras partes dele mais

adiante. Para os fins de nossa argumentação, agora, mencionaremos apenas o tripé

infraestrutura-comunicação-distribuição. A ideia de marketing estava pronta antes de

qualquer departamento de marketing editorial entrar no jogo. A lógica da empresa,

afirmava Gilles Deleuze, permeia todos os níveis da sociedade de controle. A

visão míope dos sofridos compiladores não conseguiria enxergar para além da

caracterização de seu projeto como “acto creativo”, porque seria a mesma palavra

“creativo” que foi tomada pela lógica da empresa. Não se trataria, pois, de uma

elucubração maquiavélica de Fuguet contra a literatura, nem de uma marca de

ideologia de direita. Hoje, com ou sem McOndos, essa lógica parece atravessar o

universo da literatura, e assim a constrói como instituição artística e até redefine

suas categorias mais específicas (como o cânone ou os gêneros), ou bem inutiliza

politicamente a nova crítica dos Estudos Culturais. Da literatura como criação,

poder-se-ia dizer a mesma coisa que Deleuze diz sobre a filosofia enquanto criadora

de conceitos:

De provocação em provocação, a filosofia enfrentaria seus rivais cada

vez mais insolentes, cada vez mais calamitosos que Platão, ele mesmo,

não teria imaginado em seus momentos mais cômicos. Enfim, o fundo

do poço da vergonha foi atingido quando a Informática, o Marketing,

o Design, a Publicidade, todas as disciplinas da Comunicação

apoderaram-se da própria palavra conceito e disseram: é nosso negócio,

somos nós os criativos, nós somos os conceituadores! (DELEUZE, 1992,

p. 19)

Apagar a história “curricular” no prólogo de McOndo faz parte de um discurso

publicitário que, por um lado, procura delimitar seus “prospectos” ou consumidores-alvo

(na gíria do marketing), e que, por outro, deve se apresentar como uma mercadoria

nova. Curiosamente, ou nem tanto assim, o primeiro objetivo se baseia numa espécie

de experimentação de campo do conceito de culturas híbridas, proposto por García

Canclini. Em palavras de Fuguet:

Existe uma parte da academia e da inteligentsia que quer vender para o

mundo não apenas um paraíso ecológico (a polução de Santiago de

Chile?), mas uma terra de paz (Bogotá? Lima?). Aqueles que são mais

ortodoxos acreditam que o latino-americano é o indígena, o folclórico,

o esquerdista. Mercedes Sosa seria latino-americana, Pimpinela, não.

Cadê o que é bastardo, o híbrido? (FUGUET; GÓMEZ, 1996, p. 7,

tradução nossa)

64 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4

Rodrigo Fernández Labriola

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A seguir, desencadeia-se uma enumeração caótica (e, neste caso, caótica mesmo,

apesar das reservas borgianas sobre as enumerações “falsamente caóticas” da

literatura) que inclui Ricky Martin, as telenovelas, “El condor pasa”, Sting, Machu

Picchu, Cantinflas, Puig, Onetti, Corin Tellado, a MTV Latina, e inumeráveis etcéteras.

E Fuguet acrescenta: “Temerle a la cultura bastarda es negar nuestro propio

mestizaje”.

De fato, o que seria mais interessante aqui é observar a maneira com que

Fuguet sobrepõe toscamente o popular e o massivo (BARBERO, 1991), e liga

irremediavelmente a ideia de mestiçagem com a de hibridez (KOKOTOVIC, 2000). No

entanto, questionar a exatidão conceitual de Fuguet não adianta: seria morder a isca

da “academia” e da “inteligentsia” discutindo as imagens identitárias da América

Latina. A palavra-chave do parágrafo é “venderle”. Mais adiante, Fuguet repete a

mesma estratégia discursiva: “Vender un continente rural cuando, la verdad de las

cosas, es urbano [...] nos parece aberrante, comodo e inmoral”. Do que se trata, em

última instância, é de vender algo. Por isso, a mistura de produções culturais referida

por Fuguet não tem a intencionalidade de conformar uma comunidade de leitores

(como seria o caso dos manifestos do século 20) nem uma sociedade de cidadãos

(o gênero discursivo das proclamações no século 19), mas uma definição

operativamente efetiva de um mercado de consumidores que, nesse caso, eram

latino-americanos, e, no caso da seguinte antologia (Se habla español, publicada pela

Alfaguara em 2000, e em Miami), era a enorme massa de hispânicos nos Estados

Unidos.

Assim, deveríamos procurar o modelo discursivo dos prólogos de McOndo e de

Se habla español em outro campo disciplinar, fora da estética, fora da política, e talvez

também fora da literatura, inclusive considerada em seu sentido mais amplo. Esse

modelo se conhece no mundo dos negócios como business plan.

BUSINESS PLAN E REALISMO VIRTUAL

O segundo ponto interessante em relação ao apelo do discurso publicitário, e

àquele apagamento da história que mencionamos no início de nosso trabalho, teria

a ver com uma estratégia primária de marketing: a definição do produto. Deste ponto

de vista, a coerência e o sucesso do discurso publicitário dependem, em grande

medida, de que o produto seja apresentado como “novo”.

Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 65

McOndo e a estética do business plan: considerações sobre a escrita pós-moderna e a lógica

do mercado na literatura hispano-americana

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No contexto inócuo de um pós-boom residual cheio de estereótipos do realismo

mágico (a meu ver, condimentado com receitas de cozinha artesanal, além do

testemunho de sofrimentos e lutas sociais em prol de uma “democratização”

politicamente correta do continente), não é estranho que a atitude do grupo McOndo

estourasse com uma força e como um gesto que poderiam lembrar as vanguardas.

Para Adorno (1993), o experimento está ligado sempre ao novo, instaura o gesto do

imprevisível para questionar a tradição; tal seria a atitude vanguardista. No entanto,

se considerarmos o aspecto claramente neoliberal (cativo e complacente com o

sistema) da proposta exposta por Fuguet, McOndo se afastaria grandemente das

vanguardas clássicas (se o oximoro é tolerável, Borges dixit), caracterizadas tanto

pela ruptura dentro da instituição literária quanto fora dela, devido a seu

comprometimento político (BÜRGER, 1987). A novidade da “experimentação” formal

de McOndo, pois, entraria no quadro do que Peter Bürger (1983) denomina como

“modernização literária”.

Achamos, porém, que vale a pena considerar a possibilidade de que McOndo

represente algum tipo de ruptura, mas, se fosse assim, talvez essa ruptura não se

encontrasse já no campo da estética nem da teoria literária... Damos, a seguir, nossas

razões.

A proposta da suposta ruptura mcondiana tem um nome (uma grife?): o realismo

virtual, que pareceria propor uma estética literária, cujos pontos fundamentais são

rejeitar o realismo mágico (considerado falso e folklórico) e assimilar a cultura de

massa (cinema, TV, rock, etc.) ao universo representacional da ficção. Esse postulado

básico de McOndo só pode ser formulado a partir da superposição do pós-boom com

a poética do boom, numa continuidade que iria do realismo mágico de fundação

dos 1960 até a sua banalização no mercado editorial literário dos 1990. Não

aprofundaremos aqui todas as possíveis nuances do realismo mágico e do boom que

se poderiam inferir das leituras desse fenômeno realizadas por Rodríguez Monegal,

José Donoso e Angel Rama. Também deixaremos de lado a continuidade

boom/pós-boom estudada por Shaw (que, em parte, apoiaria os pressupostos

mcondianos), e os questionamentos de Palaversich quanto a jogar no mesmo saco

os autores “maestros del género” (?) e os “emuladores tipo Isabel Allende o Laura

Esquivel, quienes astuta y cinicamente explotan el gênero, cocinando best-sellers

que arrojan excelentes dividendos”. O que nos interessa destacar, ao contrário, é que

a operação discursiva realizada por Fuguet é extremamente lúcida para além da sua

consideração literária. Isto é: McOndo vê os traços gerais de uma mudança de lógica

66 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4

Rodrigo Fernández Labriola

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na instituição literária, que vai da estética e da política para o marketing e a

economia.

Quando Fuguet qualifica de “kitsch” o realismo mágico dos 1990, não está se

referindo a uma categoria estética – mas a um certo profile de mercado, que consome

essa mercadoria. A estética é deslocada da obra artística para o consumidor, definido

por variáveis, uma das quais seria sua “estética”, seus gostos literários. O produto

McOndo, ao contrário, instalar-se-ia na fissura paradoxal do cult, que tem um rosto

bifronte como Janus: é bastardo, mas também é distinguido; é midiático, sem ser

popular; é tecnológico, mas também é artístico; é massivo, pelo seu apelo à difusão,

mas sem ser intencionalmente bem-sucedido em vendas (best-seller); é apolítico,

sem deixar de ser capitalista; uma confraria de iniciados que fala de muitos, para que

muitos admirem a confraria que fala deles, mas estando fora.

A faixa da quarta edição de Cuentos con walkman está incluída no prólogo

de McOndo: “Una nueva generación literaria que es post-todo: post-modernismo,

post-yuppie, post-comunismo, post-babyroom, post-capa de ozono. Aquí no hay

realismo mágico, hay realismo virtual”. Assim, o discurso publicitário entra na

definição supostamente estética não como um recurso retórico, mas como uma

maneira de conceituar. Em nenhum momento McOndo esclarece seus slogans, porque

a lógica em jogo não é a de esclarecer – mas a de repetir, acumular, redundar

em fórmulas publicitárias (por exemplo, as comparações com a MTV Latina ou as

remissões a outros produtos da indústria cultural: “McOndo é como tal ou qual

filme [...]”, “O filme X ou a música X é McOndo [...]”, de maneira semelhante ao que

acontece nos cartazes ou nas capas de DVD dos filmes quando se menciona “Fulano

de Tal, ator de um outro filme X”). Para a definição do produto McOndo, só é

necessário construir o profile do realismo virtual por oposição ao realismo mágico, e

para isso basta opor o mundo contemporâneo da globalização à redução de uma

estética baseada no cotidiano fantástico e regional. Por isso, tampouco se insiste em

elucidar a intertextualidade com o realismo sujo da pós-modernidade para além

dos previsíveis modelos da narrativa americana. O realismo mágico dialoga com um

conceito de realismo amadurecido durante séculos no seio da literatura europeia;

o realismo virtual, ao contrário, dialoga com a fixação do realismo mágico em um

perfil de consumo. Realismo mágico e realismo virtual não seriam, pois, categorias

comparáveis; elas pertencem a universos conceituais diferentes.

Em resumo, o trabalho de Fuguet junta essas categorias heterogêneas para definir

um produto grifado McOndo segundo uma lógica de consumo de massa que poderia

Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 67

McOndo e a estética do business plan: considerações sobre a escrita pós-moderna e a lógica

do mercado na literatura hispano-americana

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remontar às estratégias do mercado de oferta a partir dos anos 1950. O modelo

discursivo utilizado é o do business plan. O prólogo de McOndo segue escrupulosamente

os passos ou os objetivos desse tipo de escritos: definição de produto, definição

do mercado, estratégia da campanha publicitária, orçamento e logística etc.;

são os “quatro Ps” do marketing: produto, ponto de venta, publicidade, perfil do

consumidor (as marcas disso podem ser procuradas no prólogo de Fuguet com

facilidade). O original, em McOndo, não se encontraria no realismo virtual, mas na

explicitação ao velho modo de uma Estética, uma lógica de mercado que teria invadido

a literatura. A ruptura/continuidade que nós, como críticos literários, poderíamos

avaliar, então, pareceria estar na passagem discursiva da proclamação para o

manifesto, e daí para o business plan.

De novo, a palavra-chave é vender. Se, para Fuguet, o “realismo mágico” é aquilo

que caracteriza o produto do concorrente que “vende um continente rural”, o mais

curioso é verificar que a mesma lógica permeia a crítica de Palaversich quando,

ingenuamente, desqualifica o best-sellerismo de Allende e Esquivel como uma

exploração maquiavélica, cheia de cinismo e astúcia. É um sintoma. O que seria

considerado literatura, hoje? A resposta pareceria mostrar uma produção textual,

cuja condição de possibilidade não estaria sustentada numa discursividade apoiada

em três pés estratégicos: a indústria editorial, o jornalismo cultural e a academia.

Aparentemente divergentes, todas elas estariam ancoradas na mesma lógica do

mercado: só aqueles textos que obtêm a legitimação nos três níveis conseguem

decolar da informe multidão de publicações para levar a etiqueta correspondente à

mercadoria literária. Simultaneamente, a crítica literária sofreu mudanças radicais: os

estudos culturais abriram o campo disciplinar para além do cânone e a literatura foi

assimilada rapidamente pelas produções da indústria cultural (a ponto de se tornar,

ela própria, um objeto difuso no contexto das culturas híbridas). McOndo deu como

resultado a produção de contos e romances heterogêneos, quase sempre

ambientados num continente atravessado pela globalização política e o

neoliberalismo econômico; mas qual seria, hoje, seu valor literário? A pergunta

parece anacrônica. Mas ao constatar, por exemplo, a obsolescência rápida do

romance Por favor rebobinar (no qual os aparelhos tecnológicos já parecem peças de

museu e o título faz uma referência ao vídeo que logo foi abandonado pelo DVD), não

posso deixar de me perguntar, de novo, pelo lugar da literatura na cultura atual. Essa

pergunta, porém, se estende à perplexidade que pareceria surgir de uma academia

que abriu o campo de literatura, mas não consegue se prevenir contra a fraqueza da

68 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4

Rodrigo Fernández Labriola

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apreciação estética. Os estudos sobre McOndo na academia são já suficientes como

para dizer que McOndo entrou na literatura. Um jogo de simulacros: Fuguet ataca o

protocolo do politicamente correto com um jeito de ruptura filo-vanguardista, mas

precisa da academia “aberta” dos estudos culturais para legitimar seu produto.

O business plan é redigido, pois, visando à instauração de um novo cânone, um

cânone fugaz, talvez digital, talvez absurdo para o antigo conceito do “valor

literário”, mas com a mesma relação legitimadora com o poder, seja ela qual for.

Mais uma perplexidade. Alberto Fuguet, que, ao se referir à “postura ante la

literatura” dos McOndos, diz: “El mundo se empequeñeció y compartimos una

cultura bastarda similar, que nos ha hermanado irremediablemente sin buscarlo.

Hemos crecido pegados a los mismos programas de televisión, admirado las mismas

películas y leído todo lo que se merece leer, en una sincronía digna de considerarse

mágica”. Sem dúvida, é possível ver a mesma TV. Também é possível, ainda que mais

difícil, ter assistido a todos os filmes que merecem ser vistos. Mas, como possuir a

certeza de ter lido todos os livros que merecem ser lidos, inclusive num cânone

literário já fechado definitivamente?

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McOndo e a estética do business plan: considerações sobre a escrita pós-moderna e a lógica

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70 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4

Rodrigo Fernández Labriola

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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 71

McOndo e a estética do business plan: considerações sobre a escrita pós-moderna e a lógica

do mercado na literatura hispano-americana

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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 73

TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS NA

POESIA BRASILEIRA

Rachel Fátima dos Santos Nunes

Universidade Estácio de Sá

Doutora em Letras (UFF)

contato: [email protected]

Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar as tendências da poesia

contemporânea a partir dos estudos da chamada poesia concreta, poesia marginal e poesia

pós-moderna. Teremos como apoio teórico os conceitos de poesia e visualidade pensados

por Ítalo Moriconi e Celia Pedrosa. O trabalho propõe investigar os dilemas da poesia atual

em torno da poesia ligada às novas tecnologias e à arte pop e a subversão da linguagem

tradicional e o uso do verso livre. As ideias centrais de que trataremos no artigo a seguir

estão associadas à marca da subjetividade da poesia atual, à valorização das novas mídias

para o fazer poético e à busca de elementos pós-modernos na estética poética atual.

PALAVRAS-CHAVE: visualidade; novas tecnologias; subjetividade.

Abstract: This article aims at analyzing the contemporary poetry trends based

on the studies of the so-called concrete poetry, outside poetry and post-modern poetry. The

concepts of poetry and view thought by Ítalo Moriconi and Celia Pedrosa are the basis for

this research. This paper intends to look over the contemporary poetry dilemmas linked to

the new technologies, to the pop art and to the conventional language subversion, and the

use of free verse. The ideas that will be approached in the following article are associated

with: the subjectivity present in current poetry, the valorization of the new-media related to

the poetic doing and the quest for postmodern elements in the present-day poetical esthetic.

KEYWORDS: view; new technologies; subjectivity

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74 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4

Rachel Fátima dos Santos Nunes

Resumen: El objetivo de este artículo es analizar las tendencias de la poesía

contemporánea, a partir de los estudios de las llamadas poesía concreta, poesía marginal

y posmoderna. Tendremos como apoyo teórico los conceptos de poesía y visualidad

pensados por Ítalo Moriconi y Celia Pedrosa. El trabajo se propone investigar los dilemas

de la poesía actual en torno a la poesía ligada a las nuevas tecnologías y al arte pop, así

como la subversión del lenguaje tradicional y el uso del verso libre. Las ideas centrales que

trataremos en el artículo a seguir están asociadas a la marca de la subjetividad y de la

poesía actual, a la valorización de las nuevos medios de comunicación para el hacer

poético y a la búsqueda de elementos posmodernos en la estética poética actual.

PALABRAS CLAVE: visualidad; nuevas tecnologias; subjetividad.

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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 75

Tendências contemporâneas na poesia brasileira

Este artigo nasceu da necessidade de se repensar a poesia contemporânea, tendo

como foco as vertentes históricas da poesia dos anos 1950 e 1970, respectivamente

o movimento concretista, o neoconcretista e a chamada poesia marginal. Pretende-se

fazer uma análise das vertentes estéticas pelas quais a poesia contemporânea

se desenvolveu, e como a relação entre poesia, visualidade e mídias digitais se

estabeleceu no contexto da atualidade.

Assim, traçando um panorama da poesia contemporânea, não podemos deixar de

mencionar a importância do movimento de vanguarda denominado Concretismo.

Este movimento da década de 1950 foi marcado pela instauração da poesia concreta

traduzida na intenção de criar um poema que fosse um objeto/mensagem, inscrito

no contexto das vivências das transformações da época. Está caracterizado,

principalmente, por poemas realizados dentro das estruturas próprias e visuais, com

formas de geometrização, antagônicas aos recursos poéticos tradicionais de então.

Os três poetas paulistas que fundaram o movimento da poesia concreta foram

Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari.

De acordo com Ítalo Moriconi (2002), o fundamento do poema concreto está no

cartaz, no outdoor, no dazibao. O poema torna-se objeto de contemplação visual

instantânea. Outra característica do poema concreto, dentro das possibilidades de

uma estética da palavra-imagem, é que ele é geometrizante, simétrico, explorando

dualidades contrastantes de sentido: luxo/lixo; beba/babe etc. Através dessas formas

sintéticas, desses minipoemas, genuínas versões pop-midiáticas do epigrama satírico

vão conceituando aspectos da sociedade de consumo:

Os concretistas buscaram transcender a página do livro como espaço

próprio da criação poética. Saíram de uma estética da literatura para

uma estética da comunicação. Na linha evolutiva do pós-concretismo,

temos o poema-videoclipe, o poema holográfico, o poema sonorizado

em CD ou digitalizado em CD-ROM. (MORICONI, 2002, p. 110)

O Concretismo foi um movimento de vanguarda dos anos 1950, marcado,

principalmente, pela intenção de criar um poema que fosse um objeto/mensagem

inscrito no contexto das vivências das transformações da época. Está caracterizado

por poemas realizados dentro de estruturas próprias e visuais, como formas de

geometrização, antagônicas aos recursos poéticos tradicionais. Participaram do

movimento Décio Pignatari, os irmãos Haroldo e Augusto de Campos e Ferreira

Gullar.

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A ousadia da poesia concreta, sua posição no poema, e agregando sua

significância visual, desarticulava o verso ortodoxo com fragmentação para uma

representação vivenciada, com uma correspondência às três dimensões da palavra:

semântica, sonora e gráfica, estabelecendo na arte o conceito de obra aberta:

O movimento neoconcreto rompeu com a relação passiva do espectador

em face da obra, fazendo-o participar de sua explicitação; criou um novo

tipo de obra aberta, que se caracterizou por essa participação direta

do ex-espectador, ao contrário de outro tipo de obra cuja abertura

se refere não ao espectador, mas apenas à estrutura da própria obra.

(COUTINHO, 2009, p. 241)

O Neoconcretismo, de acordo com Afrânio Coutinho (2009), foi o movimento de

arte de vanguarda, de arte concreta, não figurativa (1959-1961), com a reconsideração

dos conceitos de espaço, tempo e estrutura na obra de arte, compreendendo a

realização da obra artística em todo o espaço real, com a incorporação de todos os

seus componentes não como suportes, mas como parte integrante do produto ou

sua elaboração. Historicamente, encontra-se o registro do movimento neoconcreto

em 1957, como resultante de dissidência no movimento concretista, com o

rompimento do poeta Ferreira Gullar com o grupo de poetas concretos de São Paulo,

e tendo como participantes iniciais artistas plásticos como Lígia Clark, Lígia Pape,

Hélio Oiticica e outros. A poesia neoconcreta espelhava-se nas artes plásticas de

idêntica nomeação, com mútuas influências.

O salto da poesia neoconcreta se dá exatamente quando se procura superar a

problemática ótico-mecanicista: os neoconcretos encaram o espaço brando da

página como o avesso da linguagem, isto é, como silêncio, e consideram que a

utilização do reverso da página, cortada em tamanhos e formas diferentes, permitiria

criar o poema como forma visual e possibilitaria a participação mais efetiva do leitor

na formação dele: isto é, o passar das páginas seria um ato de construção do poema

cuja forma final nasceria dessa ação do leitor, pela acumulação gradativa das palavras:

assim nasceu o livro-poema:

A etapa seguinte foi a criação de um poema espacial (não objeto),

o primeiro dos quais se compunha de duas palavras brancas, uma

quadrada e outra triangular em cima, ligadas entre si e móveis: a placa

triangular, levantada, deixava ver uma palavra escrita no seu verso.

(COUTINHO, 2009, p. 242)

76 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4

Rachel Fátima dos Santos Nunes

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Em 1962, surgiu a Poesia Práxis, com a publicação do livro Lavra-lavra, de Mário

Chamie. O primeiro documento teórico da instauração da práxis é o “Manifesto

Didático”, escrito em 1961, e lançado como posfácio de Lavra-lavra. O efeito desse

documento foi colocar em crise o formalismo mecanicista da então chamada

“vanguarda velha”. O Concretismo – que sustentava ser o conteúdo de um poema

sua própria estrutura – insistia numa reificação da linguagem e do texto. O poema-práxis

é definido no manifesto como aquele que organiza e monta, esteticamente, uma

realidade situada, segundo três condições: a) o ato de compor; b) a área de

levantamento; c) o ato de consumir.

O que se desejava nos três movimentos de vanguarda da poética modernista era

a libertação da poesia das fórmulas e dos temas acadêmicos, para que se fizesse

atual. Isso redundaria na procura de novos assuntos ou na destruição dos assuntos

poéticos, em novos princípios de composição do poema e em novas formas de

expressão. O denominador comum: o desejo de libertação. A poesia brasileira estava

fadada, por assim dizer, ao moderno e ao antitradicional, forçosamente posicionada

contra o que parecia estorvo colonial. Assim afirmava Mário Pedrosa no fim dos

anos 1950: “Estamos, pela fatalidade mesma de nossa formação, condenados ao

moderno”. A atualização concretista nesses anos criou uma ideia de vanguarda

diretamente vinculada à mitologia da nova era industrial e tecnológica do pós-guerra,

com suas invenções científicas, planejamento racional, novos meios de informação e

comunicação.

De acordo com Ítalo Moriconi (2002), ao longo das décadas subsequentes,

mesmo depois que o Concretismo, como movimento doutrinário, já se encerrara,

seu trio de protagonistas manteve-se fiel ao projeto experimentalista, buscando

combinar a arte da palavra à exploração das formas visuais possibilitadas pela

evolução das tecnologias comunicacionais. No entanto, o poema concreto como

fonte de uma poética multimídia não esgota a presença no cenário nacional dos

irmãos Campos e de Décio Pignatari. A intervenção concretista tem, também, um

lado forte de erudição literária, muito influente na formação da geração de leitores e

autores de poesia que surgiu entre fins dos anos 1960 e início dos 1970. O nome

emblemático dessa geração é Paulo Leminski, mas uma parte dos poetas marginais

cariocas também entrou para a poesia pela porta da cartilha concretista.

Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 77

Tendências contemporâneas na poesia brasileira

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De acordo com Roberto Corrêa dos Santos (2005), a poesia marginal corporifica

os seguintes traços: estar entre a arte e a vida, tematizar vivências cotidianas e fatos

corriqueiros, ser a escrita da e de circunstância (histórica e pessoal), privilegiar o

poema curto, a coloquialidade, a anotação do instante vivido, manifestar descrença

em relação a grandes projetos literários ou sociais, refletir o apego ao corpo, traduzir

um dramático sentimento do mundo, praticar a psicografia do absurdo cotidiano etc.

O autor questiona por que esse tipo de poesia é/foi tão mal visto ou, simplesmente,

não é/foi tido como válido por grande parte dos críticos. Por que esses traços

parecem corporificar, então, uma marginalidade literária? Por que há um consenso tão

forte no sentido da invalidação desses procedimentos usados pela poesia marginal

como procedimentos literários? Qual é o conceito de poesia em que se aplica o

conceito do qual a poesia marginal é desviante?

O teórico também aponta em seu texto o critério persistente de “quantidade de

eu” na poesia marginal, como já mencionou Luiz Costa Lima. Roberto Corrêa não

consegue ver na poesia marginal a prática de tal idolatria. O teórico faz a seguinte

pergunta provocativa: Que espaço maior se tinha naquela época que o espaço

individual, circunscrito ao próprio corpo? Não eram os anos de sufoco, do

cerceamento da liberdade, da censura, do confinamento? O “apego ao corpo” de que

fala Ítalo Moriconi, como um dos traços a serem lidos na poesia marginal, reflete uma

questão espacial concreta, mensurável.

A pergunta colocada pela poesia marginal sobre ela ser ou não ser literatura como

potência de sua estetização; a dupla construção – do poema e do poeta – contida no

poema; a insistente presença do eu e de seu pequeno universo como recurso poético

da repetição, não parecem fornecer provas para Roberto Corrêa de condenação da

poesia marginal, mas, pelo contrário, parece constituir o principal desafio de pensá-la

criticamente.

Ítalo Moriconi ainda diz que Leminski, poeta trickster, mediador, faz elo entre

todas as vertentes surgidas no panorama poético pós-pop brasileiro. Na meteórica

carreira de Leminski, cruzam-se uma apressada e irrequieta erudição literária e as

virtudes e vícios de toda uma geração de poetas drogados, cujos sobreviventes

chagaram à meia-idade na última década do século 20. O suicídio, a overdose, a

loucura e a AIDS não foram incomuns como final triste e precoce de muitos poetas

formados nesse caldo pop-contracultural. Basta lembrarmos os nomes de Leminski,

de Torquato Neto, de José Agripino de Paula, de Cacaso e de Ana Cristina César.

Segundo Moriconi, o subjetivismo dos poetas brasileiros pós-68 não pode ser

78 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4

Rachel Fátima dos Santos Nunes

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reificado como um bloco homogêneo e ingênuo, pois, na civilização hedonista, é

da ferida narcísica que a poesia fala. Em boa parte dos melhores casos (como Ana

Cristina César, Chico Alvim e outros) há, na verdade, distanciamento em relação à

posição de um sujeito pleno e presente de si. A questão do sujeito é colocada para

ser desestabilizada.

Na perspectiva dos anos 1970, em conformidade com os princípios popularizados

pela contracultura, erotismo e afirmação individual, constituem reações antitéticas

ao que é definido (e rechaçado) como universalismo totalitário dos centramentos na

linguagem e no social. O hedonismo pode, portanto, desembocar numa política

do corpo e fornece o solo que explica a presença dionisíaca na poesia brasileira

contemporânea.

Celia Pedrosa (2005) aponta em seu ensaio “Poesia, contemporaneidade e

experiência” a sobrevida destes poetas dos anos 1970. Segundo a teórica, Ana Cristina

César encena uma tensão entre vida e linguagem que se desdobra na configuração

discursiva dos seus textos, sempre no limiar de prosa e poesia, diário, carta,

literatura, interioridade e exterioridade, isolamento e comunicabilidade. Já o olhar

do poeta Cacaso desliza da poesia para a crítica e permite revelar um contexto

desconjuntado, heterogêneo, em que se modaliza toda a afetividade. Como percebera

Leminski, as certezas inaugurais estavam sendo substituídas pelo talvez. A guerrilha,

grande signo da inserção utópica no momento presente, se transforma, sob a ótica

da relação entre experiência e linguagem, em lugar de batalhas nunca decisivas,

vitórias sempre confusas, com desdobramentos imprevistos, em que signos geram

signos por cissiparidade, por hibridismo, por mutação.

Celia Pedrosa (2005) ainda diz que, ao longo dos anos 1980, de forma breve, mas

intensa, Ana Cristina César, Cacaso e Leminski tomaram posse dessa herança de vida

e de morte e indicaram a possibilidade de transformar a porta fechada em segredo e

promessa, o assassinato em sobrevida, entre o coração e a palavra, o dentro e o fora,

o corpo e a memória, na corda bamba.

Além da análise feita por Celia Pedrosa, é preciso apontar, em termos históricos,

que a poesia, ao sair do centro da cena cultural, cede lugar a outras manifestações

capazes de lidar com as contradições daquele momento de maneira mais interessante

e com maior alcance comunicativo, tais como o cinema, o teatro e a música popular.

Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 79

Tendências contemporâneas na poesia brasileira

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Sinalizando a mudança de estatuto cultural da poesia, o movimento seguinte,

surgido nos anos 1970, chamar-se-á “poesia marginal”, a bem dizer um movimento

de jovens poetas que pretendiam, com rebeldia e irreverência, reagir ao autoritarismo

da ditadura militar criando alternativas às formas de produção e de consumo de

poesia. Do lado da renovação editorial, eles imprimiam e financiavam os próprios

livros, vendendo-os em portas de cinemas, bares e teatros, buscando sensibilizar

o leitor mais jovem para uma experiência artística que não possuía equivalente

industrial. Do lado estilístico, os poetas marginais restauravam as principais armas

de choque da tradição modernista, tais como a piada, a poesia-minuto, o coloquialismo,

a espontaneidade e o humor:

Tais minipoemas, destinados e apreendidos num golpe só de visão,

vinham acompanhados de manifestos doutrinários, em que categorias

tradicionais de crítica literária eram substituídas por novos termos

técnicos, extraídos de uma cornucópia de teorias sobre a estética da

linguagem. (MORICONI, 2002, p. 113)

De acordo com Marcos Siscar (2005), o poeta visual Luis Dolhnikoff, vinculado

à linhagem do Concretismo brasileiro, exprimiu seu descontentamento em relação à

discussão sobre poesia contemporânea, argumentando que ela deixa de ser a “verdadeira

contraposição” de tendências poéticas pelas quais passou o Brasil: uma, visualista e

outra, verbalista. Marcos Siscar diz que a tradição poética, desde o evento histórico

da ruptura concretista, se dividiria entre os que acreditavam que a tradição do verso

estava superada e aquela que apostava em suas potencialidades futuras. Em suma, a

divisão, logo, a escolha colocada à poesia brasileira, foi entre poesia visual e poesia

verbal.

Segundo o poeta Dolhnikoff (2009), do Concretismo para cá o estado da relação

entre verbal e visual mudou sensivelmente. O autor acredita que houve o abandono

de uma das opções, a visualista, juntamente ao esgotamento das vanguardas.

Nenhum dos muitos nomes mais conhecidos da poesia contemporânea é um poeta

visual. O poeta dá, assim, sua versão para a ausência de “grandes questões poéticas”

que alguns críticos atribuem ao contemporâneo. Para ele, a poesia brasileira teria

dado passos para trás, retornando ao verso “por inércia”. A prática do verso estaria

ligada, para o autor, não ao resultado de um labor, mas ao abandono da criatividade

e da inteligência, qualidades que seriam o apanágio da vanguarda e, de forma

específica, da poesia visual.

80 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4

Rachel Fátima dos Santos Nunes

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Por fim, a pedagogia concretista, alicerçada sobre um programa de superação do

verso, interpretado como anacronismo, teve sua importância histórica. O novo, neste

momento, significava a liberação das repressões, das insatisfações, dos valores morais,

familiares e institucionais – como se, no âmbito da intimidade e da subjetividade,

estivesse a resposta que poderia enfrentar o autoritarismo. O desespero inocente desse

lirismo poderia então dizer, nas palavras poéticas de Chacal: “Meu amor se esparrama

na grama/meu amor se esparrama na cama/meu amor se espreguiça/meu amor deita e

rola no planeta.”

Já nos anos 1980, pergunta-se o que ocorre com a tríade autor-texto-leitor

quando o suporte deixa de ser o papel e o poético e vai se entranhando nas novas

mídias, em especial nos formatos digitais.

Um trabalho pioneiro no Brasil, na perspectiva da tradução intersemiótica, é a

Vídeo Poesia – Poesia Visual, encabeçado por Ricardo Araújo, juntamente aos irmãos

Campos, Décio Pignatari e Arnaldo Antunes. O trabalho “Nome”, de Arnaldo Antunes,

assim como em Ricardo Araújo, funda-se sobre conceitos da hibridização de linguagens

e na postura questionadora acerca de conceitos e ideias predeterminadas, como por

exemplo, em “Pessoa” – um videopoema alicerçado no desencontro de leituras,

pois é marcado pela rasura do texto que atravessa a tela pela leitura morfológica e

sintática feita, em vez da convencional.

Temos, portanto, nos anos 1980, o nascimento da poesia digital, que necessita

operar com as linguagens do meio computacional. Percebe-se que a poesia digital

caminha em direção à valorização da participação ativa do espectador, ou seja, a

relação da poesia com a interação com os meios eletrônicos e os usuários destes

meios.

Sucedem-se experimentos formais com novas plataformas, cujo resultado

mais recente encontramos exemplificado em uma denominada nanopoesia, com a

inserção, em um substrato na medida de 1milionésimo de fio de cabelo, onde inseriu-se

uma palavra, “Infinitozinho”. O caminho experimental da literatura está aberto a

novas possibilidades, mas subsiste, como no mencionado nanopoema de Arnaldo

Antunes, a palavra, ainda que invisível aos olhos.

Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 81

Tendências contemporâneas na poesia brasileira

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Finalizando, verificamos que a atual tendência da poesia brasileira contemporânea,

após ter buscado na fonte dos concretistas e dos neoconcretistas, assim como

na poesia marginal, está atualmente voltada para as relações entre mídia e meios

eletrônicos, ou seja, a poesia hoje está antenada com as tecnologias digitais, seguindo

uma nova tendência: a de associar a poesia à era da imagem midiática e da virtualidade

das redes sociais.

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82 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4

Rachel Fátima dos Santos Nunes

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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 83

COMPETÊNCIAS, CULTURA E

COMPETÊNCIA (COMUNICATIVA)

INTERCULTURAL: DISCUSSÃO DE

CONCEITOS E BREVE REFLEXÃO ACERCA

DA ADAPTAÇÃO DE MATERIAL DIDÁTICO

PARA O ENSINO DE LÍNGUA INGLESA

Daniela Terenzi

Universidade Federal de S. Carlos

Mestre em Linguística

contato: [email protected]

Resumo: Este artigo apresenta uma discussão sobre a possibilidade de

adaptação de um material didático considerando a competência intercultural. Para

tanto, utilizaremos apontamentos teóricos já feitos acerca de competência, competência

comunicativa e intercultural por autores como Chomsky, Hymes, Almeida Filho e Aguilar.

Além disso, consideraremos também concepções de cultura (nos estudos de Geertz e

Thompson, por exemplo) e escolha e/ou elaboração de material didático para o ensino

de língua estrangeira (Leffa). Por fim, discutiremos um exemplo de adaptação de atividade

que visou a contemplar a proposta de desenvolvimento da competência intercultural

dos aprendizes.

PALAVRAS-CHAVE: cultura; competência intercultural; material didático.

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84 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4

Daniela Terenzi

Abstract: This paper aims at presenting a discussion about the possibility of

adapting didactic materials considering the intercultural competence. In order to do that,

we will use theoretical considerations about competence, communicative and intercultural

competence before made by authors like Chomsky, Hymes, Almeida Filho and Aguilar.

Besides that, we will also consider cultural concepts (according to Geertz and Thompson,

for example) and design of teaching materials (Leffa). Finally, we intend to discuss an

example of adapted activity that was designed to develop the learners’ intercultural

competence.

KEYWORDS: culture; intercultural competence; teaching material.

Resumen: El artículo presenta una breve discusión acerca de la posibilidad de

adaptación de un material didáctico considerando la competencia intercultural. Para ello,

utilizamos apuntes teóricos ya realizados sobre competencia, competencia comunicativa e

intercultural por autores como Chomsky, Hymes, Almeida Filho y Aguilar. Consideramos

también algunas concepciones de culturas (en los estudios de Geertz y Thompson, por

ejemplo) y discusiones acerca de la elaboración de materiales didácticos para la enseñanza

de lengua extranjera (Leffa). Al final, presentamos la discusión de un ejemplo de

adaptación de actividad que tenía como objetivo estar adecuada a la propuesta de

desarrollo de la competencia intercultural de los aprendices.

PALABRAS CLAVE: cultura; competencia intercultural; material didáctico.

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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 85

Competências, cultura e competência (comunicativa) intercultural: discussão de conceitos e

breve reflexão acerca da adaptação de material didático para o ensino de Língua Inglesa

INTRODUÇÃO

Há décadas, Noam Chomsky (1965) estabeleceu a dicotomia entre competência

e desempenho, definindo competência como o conhecimento que o falante-ouvinte

tem de sua própria língua.

Posteriormente, Hymes (1972) propôs o conceito de competência comunicativa,

a qual é subdividida em outras competências e se refere não apenas ao conhecimento,

mas também à habilidade de utilizar esse conhecimento. Ao acrescentar comunicativo

ao termo competência, demonstrou claramente estar preocupado com o uso da

língua (SILVA, 2004).

Canale e Swain (1980) e Van Ek (1986) desenvolvem a ideia da competência

comunicativa, também considerando suas subdivisões, em que há aquela relacionada

aos aspectos socioculturais ou, diante de alguns pontos de vista, relacionada à cultura.

Portanto, a concepção de cultura é importante nesse âmbito, principalmente a de

Thompson (1995), que a considera como formas simbólicas em contextos estruturados,

contextos esses diretamente ligados ao uso de uma língua.

Byram (1997), após considerar três possíveis situações de comunicação entre

falantes de diferentes línguas maternas e aspectos culturais de cada um trazidos na

interação, defende a integração do ensino para a comunicação intercultural no sistema

educacional. Tal proposta é o modelo para a competência comunicativa intercultural.

Diante dessas considerações, a discussão de uma abordagem comunicativa

intercultural se faz relevante, sobretudo acerca da tentativa de respeitar os pressupostos

de tal modelo ao planejar aulas de línguas e/ou elaborar materiais didáticos que

contemplem essa competência.

1. Objetivos e organização do artigo

Visando a instigar a reflexão sobre uma abordagem de ensino de línguas que

desenvolva nos aprendizes a competência intercultural, disponibilizaremos exemplos

de atividades e ponderações acerca das mesmas após explicitação dos pressupostos

teóricos que orientam nossa discussão.

Apresentaremos inicialmente, e de maneira breve, a discussão sobre as concepções

de competência e suas subdivisões, considerando os autores tidos como os mais

importantes nessa área, para assim focalizar a competência intercultural. Porém,

para considerarmos a competência cultural, acreditamos que se faz necessária uma

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descrição e reflexão sobre o conceito de cultura, para que então, em seguida,

possamos pensar sobre atividades desenvolvidas na tentativa de contemplar

aspectos de interculturalidade.

2. Conceito de competência e suas subdivisões

Chomsky considera a criatividade linguística, a capacidade que o falante-ouvinte

tem de produzir e entender sentenças originais e lançou, então, a sua tese inatista da

aquisição da linguagem, segundo a qual o ser humano nasce dotado de uma faculdade

biológica da linguagem. Através dos dados provenientes do meio ambiente linguístico

onde cresce, a criança desenvolve essa faculdade e se torna competente em termos

linguísticos, independentemente de mecanismos behavioristas (SILVA, 2004).

Em seu estudo de 1965, Chomsky lança um dos seus principais trabalhos: Aspectos

da teoria da sintaxe, em que estabelece a dicotomia entre competência e desempenho,

definindo o primeiro como o conhecimento que o falante-ouvinte possui da sua língua

e o segundo termo como o uso da língua em situações verdadeiras.

O conceito de competência proposto por Chomsky é também chamado de

competência linguística, pois o autor se atém ao conhecimento gramatical, estrutural

da língua, apesar de não deixar de considerar a competência pragmática, ao falar em

desempenho.

Algum tempo depois, Hymes (1979) discute as questões relativas à competência

e incorpora o aspecto social ao conceito e, demonstrando sua preocupação com o

uso da língua, acrescenta comunicativo ao termo competência. Para o estudioso,

o indivíduo precisa não só ter o conhecimento, mas usá-lo comunicativamente.

Após esse momento, outros autores buscam redefinir o conceito de competência

comunicativa, entre eles Canale e Swain (1980), Almeida Filho (1997) e Van Ek

(1986), sobre os quais discutiremos a seguir.

Canale e Swain (1980) dizem que a competência comunicativa é entendida como

sistemas subjacentes de conhecimento e habilidades requeridas para comunicação.

O modelo proposto pelos autores inclui quatro tipos de competências: competência

gramatical (habilidade em relação ao código linguístico); competência sociolinguística

(conhecimento das regras sociais que norteiam o uso da língua, compreensão do

contexto social no qual a língua é usada); competência discursiva (conexão de uma

das orações para formar um todo significativo) e competência estratégica (recursos

usados para compensar eventuais imperfeições por falta do conhecimento das regras

ou para complementar o que está sendo dito).

86 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4

Daniela Terenzi

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Ao conceituar competência comunicativa, Almeida Filho (1997) retoma discussões

anteriores, a de Hymes, por exemplo, como observamos em suas palavras: Um

conhecimento abstrato subjacente e a habilidade de uso não só de regras gramaticais

(explícitas ou implícitas) como também de regras contextuais ou pragmáticas

(explícitas ou implícitas) na criação de discurso apropriado, coeso e coerente. Esse

conceito de competência comunicativa é, para alguns teóricos, distinto do conceito

de desempenho comunicativo (HYMES, 1972), mas o tomamos aqui como

englobando tanto competência como desempenho efetivo.

Considerando os estudos e definição de Hymes, Van Ek (1986) também apresenta

um modelo de competências, descritas a seguir.

1. Competência linguística – habilidade de produzir e interpretar elocuções de

acordo com as regras da língua.

2. Competência sociolinguística – capacidade de escolha das formas

considerando o cenário, relações pessoais, intenção; relação entre símbolos e

seus significados no contexto.

3. Competência estratégica – utilização de estratégias para o entendimento ou

complementação, como reformulações e solicitação de explicações.

4. Competência sociocultural – familiaridade com o contexto para uso adequado

da língua.

5. Competência social – habilidade para interagir com o outro, envolvendo

motivação, atitude, empatia e habilidade para lidar com situações sociais.

As especificações de Van Ek (1986) são bastante similares àquelas apontadas por

Canale e Swain; porém, a maior diferença dos estudos do autor é a incorporação de

outros dois pontos de vista: o social e o cultural.

É exatamente nesse ponto que a discussão proposta aqui se justifica. Podemos

inferir que as questões culturais eram consideradas dentro da competência social

pelos teóricos que iniciaram as descrições e especificações das competências.

Todavia, nos deparamos, no modelo de Van Ek (1986), com a menção explícita de

uma competência em que se leva em consideração a cultura. E, posteriormente, é

proposto (por Byram, 1997) um modelo de competência comunicativa intercultural,

colocando a cultura não só como uma subcompetência, mas como algo macro,

pertencente diretamente ao conceito de competência e não só a uma de suas partes.

Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 87

Competências, cultura e competência (comunicativa) intercultural: discussão de conceitos e

breve reflexão acerca da adaptação de material didático para o ensino de Língua Inglesa

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Considerando que o aspecto cultural é o foco da discussão, propomos um melhor

entendimento do mesmo. Assim, apreciaremos diferentes conceituações do que seja

e do termo cultura, bem como as diferentes percepções apresentadas por estudiosos.

3. Definições e considerações sobre cultura

Discutiremos, neste item, as possíveis definições de cultura, considerando desde

já se tratar de um termo polêmico e que tem sido definido por inúmeros estudiosos,

sem que tenham chegado a um consenso ou a uma definição satisfatória.

Para chegarem à definição, estudos buscaram responder à pergunta: O que é cultura?

E, nessa tentativa, há, provavelmente, mais de trezentas respostas que se assemelham

ou se diferem, variando de acordo com o campo de estudo (ROZENFELD, 2008).

Assim, faremos uma breve discussão, considerando algumas concepções do termo.

Uma das definições mais difundidas é aquela proposta por Geertz (1989).

Kumaravadivelu (2008) retoma o que fora postulado pelo autor, sendo cultura um

padrão de significados transmitidos historicamente, incorporado em símbolos;

um sistema de concepções herdadas, expressas em formas simbólicas, por meio das

quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas

atividades em relação à vida.

Compartilhando a ideia de Geertz, Thompson (1995) propõe uma de suas quatro

concepções de cultura: a simbólica, a qual define cultura como o padrão de significados

incorporados nas formas simbólicas, que inclui ações, manifestações verbais e

objetos significativos de vários tipos, em virtude dos quais os indivíduos se comunicam

e partilham suas experiências, concepções e crenças.

No entanto, apesar de reconhecer a importância da formulação do conceito que a

obra de Geertz oferece, Thompson apresenta algumas críticas que apontam fraquezas

no trabalho, como a inconsistência do termo e visão da natureza.

Além dessa, o autor ainda caracteriza cultura como processo de desenvolvimento

das faculdades humanas, facilitado pela assimilação de trabalhos acadêmicos e

artísticos e ligado ao caráter progressista da era moderna, na concepção clássica.

Já na concepção descritiva é o conjunto de crenças, costumes, ideias e valores

adquiridos pelo indivíduo enquanto membro de um grupo ou sociedade.

Ao repensar a cultura, como o subtítulo do capítulo nos diz, Thompson (1995)

formula a concepção estrutural da cultura, com a qual corroboramos e acreditamos

ser a que melhor responde à indagação sobre o que é cultura.

88 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4

Daniela Terenzi

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Segundo o autor, nessa concepção há ênfase tanto no caráter simbólico dos

fenômenos culturais como no fato de tais fenômenos estarem sempre inseridos em

contextos sociais estruturados (destaque do autor). Podemos, então, focar na definição

de que fenômenos culturais são formas simbólicas em contextos estruturados.

Entendemos, assim, que a língua é uma forma simbólica e é utilizada em contextos

estruturados, o que nos leva a relacioná-la diretamente à cultura.

Nesse raciocínio, nos deparamos com o estudo de Mendes (2002), em que há a

concepção de língua-cultura, ou seja, um conjunto potencial de estruturas, forças e

símbolos que assume posições, formas e cores diferentes, a depender dos matizes

impressos pelo mundo à sua volta e de sua interpretação por aqueles que interagem

através dela. E é neste ponto acerca da interação que o foco de nossa discussão se

encontra, considerando o contato de indivíduos provenientes de diferentes culturas

– interculturalidade – que estabelecem uma comunicação por meio de uma língua em

comum, sendo que essa língua pode ser uma LE.

Chegamos, então, a algumas indagações: considerando que o campo de ensino de

línguas estrangeiras é cada vez maior e que questões acerca da cultura devem ser

levadas em consideração: devemos ensinar a cultura da LE? Seria a cultura uma nova

competência a ser desenvolvida (competência cultural)? Como trabalhar (ou ensinar?)

cultura em sala de aula?

Diante desses questionamentos, estabeleceremos a seguir uma discussão acerca

da competência (comunicativa) intercultural e o ensino de LE.

4. Competência (comunicativa) intercultural e o ensino de LE

Aguilar (2002) apresenta em seu estudo um resumo do modelo de competência

comunicativa intercultural proposta por Byram (1997), cujas características são:

conhecimento de si e do outro e da interação individual e social; habilidade de

interpretar e relacionar-se com educação, educação política e sensibilidade cultural

crítica. Além disso, há a relativização de si e valorização do outro.

Levando em consideração tais características do componente intercultural,

discutimos, teoricamente, em que âmbito esse elemento pode ser inserido.

O autor que acabamos de mencionar o classifica como um desenvolvimento da

competência comunicativa, ou seja, algo a posteriori, como uma evolução dessa

competência, considerando a interculturalidade um elemento importante, a ponto de

permear todas as competências que compõem a comunicativa. Porém, ao analisarmos

Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 89

Competências, cultura e competência (comunicativa) intercultural: discussão de conceitos e

breve reflexão acerca da adaptação de material didático para o ensino de Língua Inglesa

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detalhadamente as competências propostas por outros autores, como Canale e Swain

(1980) e Van Ek (1986), podemos inferir que o elemento intercultural está inserido na

competência sociolinguística ou, ainda, na competência sociocultural, considerando as

características e definições de cada uma.

Acreditamos, diante da importância da interculturalidade no ensino de línguas,

que essa competência possa ser incluída nas subdivisões da competência comunicativa,

ou seja, além dos tipos de competências já propostos (como a competência gramatical;

a competência discursiva e a competência estratégica, por exemplo), teríamos a

competência intercultural.

Analisando aquelas propostas por Van Ek (1986) e apresentadas neste estudo,

sugerimos que a competência sociocultural e a competência social sejam mescladas

e redefinidas como competência intercultural, considerando a habilidade de ser

sensível e crítico em relação à cultura do outro e à sua própria, e como competência

social, ou seja, capacidade de levar em consideração o contexto para uso da língua,

além de habilidade em interagir em diferentes situações sociais.

Diante dessas considerações, professores de línguas são instigados a pensar sobre

a competência intercultural ao desenvolverem suas aulas e elaborarem atividades.

Embora Byram (1997) admita que esses fatores possam ser adquiridos por meio de

experiências e reflexão, a ideia de integrar ensino para uma comunicação intercultural

no sistema educacional é apoiada.

Rozenfeld (2008) apresenta o ponto de vista de vários autores acerca da cultura

no ensino de LE, dentre eles, Moita Lopes (1996), o qual aponta para a importância

dos estudos da cultura na formação geral do aluno, e Viana (2003), que focaliza a

dimensão cultural da/na interação e as implicações de tal dimensão para os processos

de aprendizagem de LE. O referido autor ainda considera que elementos da

perspectiva de exterioridade (como clima, tradições e gastronomia, por exemplo) são

insuficientes para a conscientização sobre a dimensão cultural da/na interação.

Ponderamos, assim, que o objetivo do professor não deve ser ensinar cultura,

apresentando curiosidades ou diferenças dos falantes da língua-alvo, mas buscar

conscientizar os aprendizes de que as pessoas utilizam diferentes ferramentas e

meios para se expressar e que muitas dessas estratégias são provenientes da cultura

de cada indivíduo.

90 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4

Daniela Terenzi

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Leffa (2003), ao discutir a produção de material didático, postula que, para sobreviver

no mundo real, o aluno precisa ser preparado pela escola; e para ser preparado, de modo

que a aprendizagem faça sentido, o aluno precisa conhecer o mundo real, o que, a nosso

ver, é coerente com a proposta de sensibilização acerca das culturas que interagem em

uma comunicação.

No mesmo estudo, nos deparamos com a seguinte afirmação.

A produção de materiais de ensino é uma área essencialmente prática.

A teoria é importante na medida em que fornece o suporte teórico

necessário para justificar cada atividade proposta, mas subjaz à

atividade, podendo ou não ser explicitada. Quem prepara o material

precisa ter uma noção bem clara da fundamentação sobre a qual se

baseia, mas vai concentrar todo seu esforço em mostrar a prática, não

a teoria. A teoria trabalha nos bastidores; a prática é o que aparece

no palco. Um bom trabalho de bastidores dá segurança ao que é

apresentado, permitindo inovações e até ousadias. (LEFFA, 2003)

Dessa maneira, já tendo discutido teoricamente as questões acerca da competência

intercultural, trataremos da elaboração ou adaptação de material didático para ensino de

língua inglesa como LE, almejando contemplar o desenvolvimento de tal competência.

5. Competência intercultural e a elaboração/adaptação de material didático

Há diversos materiais didáticos disponíveis cuja proposta abrange elementos da

interculturalidade, e cabe ao professor julgar e escolher aquele que lhe parece adequado.

Alem disso, não podemos descartar as possibilidades de elaboração ou adaptação

de materiais no processo de ensino-aprendizagem de uma LE para contemplar a

competência intercultural.

Visamos, neste item, a exemplificar e brevemente discutir acerca da adaptação de

duas atividades propostas em livro didático. O livro é destinado ao ensino de inglês

como LE para aprendizes brasileiros, cujo nível é pré-intermediário.

O tema da primeira unidade didática é “nome” (Name) e, após uma atividade de

compreensão auditiva em que as pessoas falam sobre seus nomes, há a proposta de

discussão acerca do mesmo tema, orientada pelas perguntas: 1. Quais nomes são

típicos em seu país? 2. Qual nome é o mais incomum? 3. Qual nome você mais

gosta?

Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 91

Competências, cultura e competência (comunicativa) intercultural: discussão de conceitos e

breve reflexão acerca da adaptação de material didático para o ensino de Língua Inglesa

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Acreditamos que a proposta é bastante interessante no que diz respeito a uma

reflexão sobre a cultura do aprendiz, mas não oferece oportunidade de conscientização

a respeito de outros costumes em relação ao nome das pessoas. Assim, sugerimos

uma adaptação desse material, em que outra discussão poderia ser proposta em

sequência, orientada por perguntas como: 1. Quais são os nomes típicos em outros

países? 2. Quais nomes são comuns em diferentes países? 3. Como é o processo da

escolha de nomes em seu país e em outros países?

O professor, então, ofereceria aos aprendizes a possibilidade de refletir sobre a

questão do nome das pessoas em diversos países e em seu próprio, podendo, assim,

deixá-los sensíveis ao fato de que esse elemento é cultural e assim, pode ser diferente

daquilo a que eles estão acostumados.

Tal adaptação tem o potencial de desenvolver, além da competência cultural, as

competências linguística e/ou discursiva (VAN EK, 1986/CANALE; SWAIN, 1980)

por meio da discussão em língua inglesa, o que é um dos objetivos do processo de

ensino-aprendizagem de línguas.

Posteriormente, na mesma unidade e ainda baseada no mesmo tema, uma atividade

de compreensão de texto, intitulado “Como lembrar nomes em festas” (How to remember

names at parties) solicita aos alunos que relacionem cada subtítulo ao parágrafo

correspondente e, em seguida, três perguntas orientam uma nova discussão: 1. Quais

das técnicas você já utilizou para lembrar nomes? 2. Quais dessas técnicas poderiam

lhe ajudar a lembrar novas palavras em inglês? 3. Em quais outras maneiras você pode

pensar para ajudá-lo a lembrar e aprender novas palavras em inglês?

Além dessa discussão, o professor tem a possibilidade de solicitar aos alunos

que pesquisem sobre como os nomes são utilizados em diferentes situações sociais,

como, por exemplo, em festas, em reuniões de uma empresa ou em sala de aula,

e em diversos países. A pesquisa e o posterior compartilhamento das informações

facilitarão a compreensão de mal-entendidos e poderão deixar os aprendizes mais

atentos em relação ao uso de nomes ao se depararem com indivíduos de diferentes

culturas.

CONCLUSÃO

Retomando conceitos valiosos que definem competência, competência

comunicativa, cultura e interculturalidade, discutimos o termo competência

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Daniela Terenzi

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comunicativa intercultural, argumentando que nos parece que não seria ideal ir

um passo além da competência comunicativa, discordando do apontado por Aguilar

(2002). Porém, enfatizamos a importância da inclusão de aspectos interculturais nas

aulas de línguas, principalmente no ensino de línguas estrangeiras, o que nos leva a

objetivar o desenvolvimento da competência intercultural.

Com base nos exemplos apresentados, alertamos para o fato de que cultura não

deve ser ensinada, mas o professor pode criar oportunidades para que os aprendizes

reflitam e se sensibilizem acerca das características, costumes, concepções e

interpretações de formas simbólicas do outro para que assim melhor os interpretem

e também melhor compreendam seus próprios.

Referências

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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 93

Competências, cultura e competência (comunicativa) intercultural: discussão de conceitos e

breve reflexão acerca da adaptação de material didático para o ensino de Língua Inglesa

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94 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4

Daniela Terenzi

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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 95

UMA ANÁLISE SEMÂNTICA DE

PEGAR + NOME

Karen Sampaio Braga Alonso

UFRJ

Doutora em Linguística pela UFRJ

Nalinle Costa Vaz

E. M. Pracinha João da Silva

Licenciada em Letras (Português-Inglês) pela Faculdade CCAA

contato: [email protected] / [email protected]

Resumo: O objetivo deste trabalho é analisar o papel das expressões idiomáticas

na língua a partir da descrição dos usos da estrutura pegar + nome. Mais especificamente,

pretende-se mostrar que não há uma oposição discreta (absoluta) entre idiomaticidade

e composicionalidade, mas que as estruturas linguísticas, de modo geral, encontram-se

em um continuum que vai do mais idiomático ao mais composicional, dependendo do

contexto de uso.

PALAVRAS-CHAVE: expressões idiomáticas; idiomaticidade e composicionalidade;

pegar.

Abstract: The aim of the present work is to analyse the role of idiomatic expressions

in language from the descriptions of the use of the structure ‘pegar’ + noun (take, catch +

noun). More specifically, the intention is to show that there is not an opposition between

idiomaticity and compositionality, but that the linguistic structures as a whole are in a

continuum that goes from the most idiomatic to the most compositional meaning,

depending on the context of use.

KEYWORDS: idioms; idiomatic and compositional expressions; ‘pegar’.

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96 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4

Karen Sampaio Braga Alonso & Nalinle Costa Vaz

Resumen: El objetivo del presente trabajo es analizar el papel de las expresiones

idiomáticas en portugués desde la descripción de los usos de la estructura ‘pegar’ + sustantivo

(tomar, coger + nombre). Más específicamente, la intención es mostrar que no hay una

oposición entre idiomaticidad y composicionalidad, sino que las estructuras lingüísticas

en su conjunto están en un continuo que va desde las más idiomáticas hasta las más

composicionales en función del contexto de uso.

PALABRAS CLAVE: expresiones idiomáticas; idiomaticidad y composicionalidad;

‘pegar’.

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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 97

Uma análise semântica de pegar + nome

INTRODUÇÃO

Neste artigo, será discutida a questão em torno da dicotomia clássica idiomaticidade X

composicionalidade. Para tanto, serão analisados os diferentes usos da estrutura

pegar + nome na língua portuguesa, procurando defender a existência de um

continuum em vez de uma distinção rígida entre esses dois fenômenos de integração

sintaxe-semântica.

Em um primeiro momento, será feita uma breve discussão em torno do escopo da

semântica e do da pragmática – em que se procura refletir sobre propostas teóricas

que aproximam ou diferenciam esses campos. Dentro dessa mesma perspectiva, o

texto contempla uma pequena descrição acerca das abordagens formal e funcional da

linguagem, a qual será importante para justificar a análise da estrutura pretendida.

Após essas reflexões iniciais, será apresentada a análise do verbo pegar a partir

de uma análise de suas acepções nos diferentes usos da estrutura pegar + nome, com

exemplos de frases retiradas do site corpus do português, procurando, assim, demonstrar

que não há uma oposição absoluta entre idiomaticidade e composicionalidade,

mas que as palavras atualizam seu sentido de acordo com o contexto em que são

empregadas.

O ESCOPO DA SEMÂNTICA E DA PRAGMÁTICA: DIVERGÊNCIAS E

CONVERGÊNCIAS

A semântica mais clássica está vinculada em grande sentido à filosofia de Platão

e Aristóteles, para quem o significado carregava um sentido básico, estável. Segundo

essa perspectiva, a Semântica tem como objetivo descrever o “significado” das

palavras e das sentenças através da referência e sentido (MUSSALIN, 2003). Neste

caso, a referência seria a relação estabelecida entre uma expressão linguística e um

objeto.

Assim, à Semântica caberia estudar a relação entre forma e sentido. Mas, o que

fazer com o contexto? A Semântica não trataria de fenômenos envolvendo a situação

comunicativa? Pois bem, em uma ótica mais tradicional, esse seria o objeto de análise

da Pragmática – a ciência das palavras em uso.

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98 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4

Karen Sampaio Braga Alonso & Nalinle Costa Vaz

Há, porém, um outro caminho que se pode traçar no entendimento da fronteira

entre Semântica e Pragmática, que estabelece uma aproximação entre as duas áreas

dos estudos linguísticos. De fato, sob determinadas perspectivas teóricas, o sentido

não pode ser tomado independente do uso. Desse modo, foge-se da teoria clássica

de tratamento do significado, pois o sentido das palavras muda o tempo todo, de

acordo com a situação em que elas estão inseridas.

A relação entre estrutura e contexto de uso é classicamente compreendida como

o escopo da Pragmática, mas tendo em vista que o sentido está sempre no uso que

se faz dele, Semântica e Pragmática se confundem ou se fundem para a análise do

significado das formas de uma língua.

ESTRUTURALISMO E FUNCIONALISMO

Tomando a discussão de modo bastante geral, seria possível entender dois

caminhos básicos para a análise da estrutura das línguas: o formalismo (cujo foco

está na forma, e a análise semântica se faz da forma mais clássica) e o funcionalismo

(cujo foco está no uso da língua, e a análise dos dados leva em conta a aproximação

entre Semântica e Pragmática).

Assim, considerando o estruturalismo formalista de Saussure (1969), por

exemplo, pode-se entender que a composicionalidade – em que o todo é a soma das

partes –, por exemplo, de que o significado de uma palavra é exatamente a soma dos

sentidos dos morfemas que a compõem – é o mecanismo central da busca do sentido

das formas linguísticas.

Nesse sentido, para entender a proposta composicional, deve-se partir do

princípio de que uma determinada forma linguística pode ser normalmente dividida

em unidades menores: por exemplo, em porta-retrato, é possível dividi-la em porta e

retrato; já a palavra geralmente pode ser dividida em geral e mente. Sendo assim, partir

de uma análise semântica composicional aplicada a esses casos é dizer que o sentido

de porta-retrato é o sentido de porta mais o sentido de retrato; da mesma forma, o

sentido da palavra geralmente seria o sentido de geral mais o de mente.

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A abordagem composicional se molda no princípio de que as palavras (e frases)

carregam um sentido relativamente estável, o qual pode ser revelado pelo mecanismo

da composição que acabou de ser comentado. Algumas palavras, e até mesmo

sentenças, inteiras apresentariam, assim, uma previsibilidade semântica, a qual

dependeria basicamente do conhecimento individual do sentido dos morfemas da

palavra ou dos vocábulos que compõem a frase.

Isso significa dizer que a aposta composicional se ligará mais fortemente às

correntes de estudos linguísticos mais relacionadas ao chamado paradigma

formalista, que procura concentrar suas forças na estabilidade, na previsibilidade das

formas, aplicando esse princípio, inclusive, ao nível semântico.

Entretanto, tomando dois exemplos de Salomão (2000) e fazendo uma

comparação de base funcionalista das palavras prisioneiro e carcereiro, conclui-se que

as duas possuem a mesma estrutura base + o sufixo -eiro. Dessa maneira, em uma

lógica mais formalista, entende-se que o sentido de carcereiro é a soma do sentido

de cárcere mais o sentido de -eiro, assim como o sentido de prisioneiro é a soma do

sentido de prisão mais o sentido de -eiro.

Como as palavras prisão e cárcere têm basicamente o mesmo significado (cadeia),

as palavras prisioneiro e carcereiro também deveriam ser sinônimas, já que,

composicionalmente, ambas possuem uma base de sentido próximo e um mesmo

elemento sufixal. Só que isso não acontece: carcereiro é o guarda de cárcere e prisioneiro

é o homem privado da liberdade, preso. Isto é, carcereiro é o contrário de prisioneiro,

no sentido relativo à posição de cada um na penitenciária. Como não o são, entende-se

que há um sentido não-composicional, ou melhor, não imediatamente inferível dos

morfemas componentes de cada uma das palavras. Na comparação entre o sentido

de carcereiro e de prisioneiro, depreende-se um valor que foge à mera decomposição

da palavra em sentido da base + sentido do sufixo. Essa conclusão parece rever o

tratamento composicional, uma vez que demonstra que nem sempre o sentido final

da palavra ou da frase está nas suas partes componentes. Essa nova perspectiva,

que entende o sentido de uma forma linguística como indo além da análise

parte-por-parte, é chamada de idiomaticidade, em que o todo não é a mais

exclusivamente a soma das partes, mas é também relativo ao contexto de uso em que

a forma está sendo empregada.

Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 99

Uma análise semântica de pegar + nome

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100 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4

Karen Sampaio Braga Alonso & Nalinle Costa Vaz

Exemplos desse tipo mostram a fragilidade da descrição linguística, especialmente

semântica, quando se adota uma perspectiva formal de análise dos dados. Assim

também se entende que o caminho mais interessante e rico para o tratamento da

semântica e para a discussão do tema proposto é uma abordagem mais funcionalista,

em que se relacionam palavra (ou frase) e contexto de uso, em que o sentido de uma

forma (seja em nível mais lexical ou frásico) é instável, uma vez que depende de onde

e quando ela é ou passa a ser empregada pelos falantes.

O funcionalismo é uma corrente da Linguística que, em oposição ao formalismo,

preocupa-se em estudar a relação entre a estrutura gramatical das línguas e os

diferentes contextos comunicativos em que ela é usada, ou seja, foca exatamente a

relação deixada em segundo plano pelo formalismo – sentido e uso.

Sendo assim, acredita-se que os manuais de Português, como dicionários,

gramáticas, apostilas, entre outros, deveriam abordar a língua levando em

conta os diferentes usos que se fazem de suas formas. É dentro da perspectiva

pragmático-funcional que o texto analisará a estrutura pegar + nome, a partir dos

diferentes sentidos que pegar assume nesse contexto.

AS ACEPÇÕES DE PEGAR

Já foi comentado que o sentido de uma palavra – assim como uma sentença ou

uma expressão – pode variar de acordo com o contexto em que ela for empregada.

O exemplo clássico são as expressões conhecidas como idiomáticas (por exemplo,

Maria vai com as outras, tirar água do joelho etc.), que, se interpretadas como soma

dos significados de suas partes, soariam estranhas, na maioria das vezes.

Aprofundando a discussão, o que se está defendendo é o fato de que as palavras ou

expressões apresentam graus de idiomaticidade distintos que nem sempre são levados

em consideração, como no caso de algumas expressões formadas por verbos, que,

por serem muito comuns no nosso vocabulário, não são vistas como idiomatismos, mas

como estruturas composicionais – haja vista os exemplos carcereiro e prisioneiro.

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Tratando mais diretamente do tema do artigo, vejamos algumas acepções do

verbo pegar na estrutura pegar + nome, retirados do site corpus do português:

Tabela 1: Resultados com pegar + nome

Nessa tabela, observa-se que foram encontrados 63 exemplos de pegar dentro

de pegar + nome. Dentre esses exemplos, os sentidos encontrados foram: contrair,

buscar, selecionar, capturar, conseguir, receber, colher ou coletar, roubar, incendiar,

tomar ou embarcar e ir com calma.

Tratando mais especificamente da análise da tabela anterior, tem-se que, com

relação aos exemplos referentes a pegar + nome no sentido de contrair, foram

encontradas nove ocorrências. Essas ocorrências se mostraram bastante produtivas

em contextos que envolvem doença e possibilidade de se adquirir ou desenvolver

algum mal. Para ilustrar casos desse tipo, observe os exemplos a seguir e suas

respectivas análises:

(1) “Quando se está apaixonado, não passa pela cabeça a possibilidade de pegar

AIDS!”

Sentido Ocorrências

Conseguir 2

Receber, ganhar 7

Colher, coletar 3

Roubar 4

Incendiar 3

Tomar, embarcar 2

Ir com calma 1

Total 63

Sentido Ocorrências

Pegar, alcançar com as mãos 7

Contrair, adquirir 9

Buscar, ir a busca de 7

Selecionar 7

Capturar 11

Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 101

Uma análise semântica de pegar + nome

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102 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4

Karen Sampaio Braga Alonso & Nalinle Costa Vaz

Neste exemplo, o informante toma pegar no sentido de contrair algo. Para tanto,

ele faz uso da combinação pegar + nome; no caso, pegar AIDS. Este é um exemplo

que pode ser entendido como idiomático, na medida em que não há alguém pegando

fisicamente nada, mas sim desenvolvendo alguma doença que, em geral, é passada

de uma pessoa para outra. Esse é um uso de pegar + nome mais abstrato, metafórico.

Portanto, mais idiomático e menos composicional.

Com relação aos exemplos referentes a pegar no sentido de buscar ou ‘ir buscar X’

foram encontradas sete ocorrências. Essas ocorrências são também formadas pelo

verbo pegar + nome. Vejamos o seguinte exemplo:

(2) “Delfino saiu com as chaves, desceu as escadas do Santuário e foi ao hotel pegar

Adriano.”

No exemplo 2, pegar + nome tem o sentido de buscar, ato de locomoção até uma

pessoa com a intenção de leva-lá para outro lugar. Este exemplo também apresenta

um sentido idiomático, uma vez que a pessoa não pega a outra com as mãos, apenas

busca, acompanhando essa pessoa de um lugar para o outro.

No exemplo a seguir, encontramos outro sentido para a estrutura em questão:

(3) “Gosto de pegar poemas dramáticos como Dom Perlimplin.”1

No exemplo 3, o informante trata de pegar + nome com o sentido de selecionar,

escolher criteriosamente. Pode-se observar que nesta ocorrência o sentido do verbo

também é idiomático, porque apesar da possibilidade de pegar poemas com as mãos,

uma vez que ele esteja em um papel (também idiomático: não se pega o poema e sim

o papel), o informante não pega qualquer poema, apenas os que lhe agradam, por

isso ele seleciona.

Já no exemplo seguinte, encontra-se um outro sentido para pegar + nome:

(4) “[...] matando lagartixas a baladeira ou fazendo arapucas para pegar rolinhas.”

1

Amor de Dom Perlimplim com Belisa em seu jardim é uma peça de teatro escrita pelo dramaturgo espanhol Federico García Lorca

em 1928. A peça estreou em 1933, em Madrid. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Amorde_Dom_Perlimplim_com_

Belisa_em_seu_Jardim.

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Nesta ocorrência, o ato de pegar rolinhas é, na verdade, o ato de deter ou capturar

rolinhas. Nesse caso, o verbo pegar adquire uma acepção distinta das anteriormente

comentadas, o que mostra que o uso da língua relativiza a ideia da idiomaticidade,

em que pegar manteria sempre o mesmo significado básico, ao qual se somaria a

noção de rolinha. Esse é mais um caso em que se pode demonstrar que o significado

não é estável, mas sim pragmaticamente/discursivamente construído.

Nos exemplos a seguir, vê-se o verbo em questão com o sentido de conseguir em

dois contextos diferentes. Observe:

(5) “[...] gente correndo para chegar primeiro aos vagões e pegar lugar sentado...”.

Neste exemplo, o informante tem o objetivo de conseguir um lugar para se sentar

e não o de apanhar com as mãos. Sendo assim, este sentido apresenta um grau

maior de idiomaticidade, pelo fato de que o lugar, neste caso, é abstrato por não ser

específico nem concreto.

Agora, observe o outro exemplo com o mesmo sentido:

(6) “[...] não queria correr o risco de pegar taxista com pouco dinheiro.”

No exemplo 6, o sentido do verbo é o de conseguir ou encontrar um taxista com

pouco dinheiro, e que não seja capaz de dar troco ao passageiro. Observa-se aqui,

também, uma certa idiomaticidade, pois, assim como nos exemplos anteriores, não

há o ato de apanhar com as mãos, mas sim conseguir ou encontrar.

Já nos exemplos abaixo, encontra-se o sentido de receber/ganhar. Vejamos:

(7) “Entre fazer Piano e fazer Letras, se é pra pegar dinheiro, vou fazer Direito, pôxa.”

(8) “[...] poderá pegar suuspensão de até seis partidas.”

Nos dois exemplos (7 e 8), há sentidos parecidos. No primeiro, o sentido de

ganhar dinheiro através de uma profissão (formação), o que é abstrato, uma vez

que não se trata do contato direto do dinheiro com as mãos, mas sim do fato de que,

tendo a formação pelo curso de Direito, uma pessoa ganha, recebe mais dinheiro do

que “fazendo Piano” ou “fazendo Letras”, por exemplo.

No segundo exemplo (8), trata-se de receber ou ganhar uma suspensão como

punição por um ato incorreto. Nesse caso, também não há o contato físico ou ato

de pegar, isto é, o sentido é também idiomático.

Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 103

Uma análise semântica de pegar + nome

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104 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4

Karen Sampaio Braga Alonso & Nalinle Costa Vaz

Já no exemplo 9, a seguir, encontra-se o sentido de colher, coletar:

(9) “O próprio Gabeira, que fez todo um trabalho de idas e vindas, de pegar comida,

botar as mensagens..”

Neste exemplo, entende-se que o sentido de pegar + nome é o de coletar,

ou arrecadar comida, por exemplo. Esse sentido também carrega uma certa

idiomaticidade. Pode-se pegar a comida com as mãos, porém há duas possibilidades:

a comida pronta, cozida etc. (que não parece ser o caso do exemplo anterior)

ou a comida na embalagem – nesse caso, a pessoa não tem o contato direto com a

comida, mas sim com a própria embalagem.

Nos exemplos 10 e 11, veremos o verbo pegar com o sentido de roubar:

(10) “Ninguém mais vai acusar ninguém de pegar dinheiro do governo.”

(11) “Outra boa é pegar turista pelo Corcovado e na Vista Chinesa.”

No primeiro exemplo, tem-se o sentido de roubar diretamente, alguém rouba algo

de alguém; nesse caso, dinheiro. Esse exemplo apresenta um grau idiomático menor,

por haver uma relação direta com o verbo pegar. Já no segundo exemplo, o sentido

do verbo é o mesmo do primeiro, roubar, porém indireto, uma vez que alguém pega

os turistas para roubá-los, mas sabe-se que algo é roubado de alguém, toma-se à

força, e não se rouba alguém (no sentido literal da expressão).

Já nos próximos exemplos, aparecem três contextos diferentes com o sentido de

acender, incendiar:

(12) “[...] tinha medo da lamparina pegar foogo na varanda.”

(13) “[...] já há muita gente de isqueiro na mão para ver mais esse circo pegar fogo.”

No primeiro exemplo, o sentido do verbo é o sentido literal de incendiar, inflamar,

ou seja, há uma relação real com fogo. Porém, este sentido também é idiomático,

uma vez que o fogo não é concreto.

Já no exemplo 13, a expressão pegar fogo tem o sentido conotativo e significa

que uma situação ficará complicada, difícil, e que algo pode dar errado. Este sentido

é ainda mais idiomático, por não ter nenhuma relação com fogo, é apenas uma

metáfora, em que se associa fogo, coisas quentes, com perigo, enfim.

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Nos exemplos 14 e 15, tem-se que o sentido de pegar + nome é o de embarcar,

tomar:

(14) “Nem por sonho tentem pegar ônibus na Rodoviária.”

(15) “Para quem começou a pegar onda em o tempo de as monoquilhas.”2

No primeiro exemplo, o sentido é o de embarcar, com o complemento expresso

por nome indicativo de veículo: ônibus, trem, avião etc. Esse sentido é também

metafórico, por não haver o ato real de pegar com as mãos.

Já no segundo exemplo, o verbo pode se referir à expressão “embarcar na onda”,

ao fato de “ir junto”, ser transportado por ela, que não é um objeto concreto como

ônibus, porém carrega o mesmo sentido e se mostra mais idiomático pelo fato de

também ser abstrato.

O último dos exemplos é um dos que se mostra mais idiomático:

(16) “Por enquanto, o partido decidiu pegar leve com o governador [...].”

No exemplo 16, o sentido em questão é de ir com calma, devagar. Neste caso,

tem-se um dos mais idiomáticos de todos os exemplos. Assim como pegar fogo (uma

situação complicada), por não haver ligação nenhuma da expressão (pegar leve) com

o real sentido do verbo pegar, apanhar, tomar para si alguma coisa, nem com nenhum

dos outros indicados na tabela.

A partir desta análise, pode-se perceber que a estrutura verbo + nome é também

uma forma de expressão idiomática, pelo simples fato de não podermos analisar

as duas palavras separadamente, mas apenas em um contexto, do qual emergem

sentidos os mais variados.

A seguir, encontra-se um esquema que procura ilustrar o fato de que os diferentes

usos de pegar + nome atualizam o sentido de pegar e que, ainda, esses sentidos

apresentam laços semânticos entre si.

Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 105

Uma análise semântica de pegar + nome

2

Monoquilha: Prancha de uma quilha só, muito usada até alguns anos atrás. Atualmente só as pranchas grandes, as longboards e

as guns, são monoquilhas. Disponível em: http://ricosurf.globo.com/pagina_escolinha/glossario_surf.htm

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106 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4

Karen Sampaio Braga Alonso & Nalinle Costa Vaz

APROXIMAÇÃO SEMÂNTICA ENTRE OS EXEMPLOS

Pegar

Capturar com

critério

Pegar

Capturar

Pegar

Alcançar com as

mãos e trazer

para si

Pegar

Beneficiário

Pegar

Contrair,

desenvolver,

adquirir

Esquema 1: sentidos de pegar + nome.

Analisando o esquema 1, é possível entender que há um sentido de pegar mais

central – o de apanhar algo com as mãos e mantê-lo em sua guarda. Nas setas para

cima, por exemplo, o sentido de capturar está diretamente ligado ao fato de que

pegar envolve apanhar algo com as mãos e o sentido de capturar com critério está

relacionado diretamente ao de apanhar e, através desse, ao de pegar em si (relação,

portanto, indireta com pegar).

Pegar

Deslocamento. Seguir

em uma direção

Pegar

Meio de

transporte

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Nas setas para baixo, o sentido de beneficiário, de pegar algo de outra pessoa

(pegando emprestado ou roubando) está diretamente ligado ao de tomar algo para si

e indiretamente ligado a contrair, desenvolver alguma doença.

Com relação às setas para a direita, tem-se o sentido de pegar diretamente

associado ao de deslocamento, uma vez que o próprio ato de pegar, como ação, envolve

deslocamento das mãos em direção do objeto. A esse sentido de deslocamento, liga-se

o de meio de transporte, que também envolve locomoção (que se liga indiretamente

a pegar, em si).

Assim, entende-se que os sentidos de pegar + nome mantêm relações entre

si, entendendo que essa é a maneira mais adequada de tratamento das formas

idiomáticas da língua: leva em conta a situação comunicativa, sofisticando a análise

semântica de uma expressão e contribuindo para o próprio conhecimento acerca de

como os seres humanos fazem sentidos do mundo à sua volta.

CONCLUSÃO

Pode-se concluir, a partir da análise de exemplos de expressões com o verbo

pegar + nome, que uma descrição linguística que leve em conta a língua em uso

contribui para a discussão em torno da dicotomia composicionalidade/idiomaticidade.

Passa-se, então, a partir da ótica funcionalista, a entender que nem sempre o todo

é o resultado cego da soma das partes, como foi visto no par carcereiro/prisioneiro e

como pode ser demonstrado a partir das várias acepções assumidas pelo verbo pegar,

as quais dependiam do contexto em que pegar era empregado.

A respeito da discussão do tratamento composicional dado pelas abordagens

ditas formalistas, o artigo mostrou que a interpretação semântica de pegar é

fortemente condicionada por fatores de ordem pragmático-discursiva e que o

entendimento de um sentido básico para pegar que se mantém como tal,

independente do uso desse verbo, é insustentável quando se passa à análise

de dados. Vê-se, por outro lado, que pegar + nome é uma estrutura altamente

polissêmica e, portanto, com graus de idiomaticidade e composicionalidade. Em

outras palavras, entende-se que as formas linguísticas não devem ser analisadas

fora de contexto, mas devem ser compreendidas dentro de um continuum que vai do

(+) idiomático ao (+) composicional.

Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 107

Uma análise semântica de pegar + nome

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108 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4

Karen Sampaio Braga Alonso & Nalinle Costa Vaz

Conclui-se, assim, que o contexto é um fator importante na avaliação semântica das

formas e que, a cada novo uso, vários sentidos podem ser revelados. Em consequência,

defende-se que se trabalhar com a ideia de um contínuo, a partir de uma noção

prototípica, como aquela que foi atribuída ao verbo pegar dentro de pegar + nome, por

exemplo, não apenas auxilia, como dá mais coerência ao tratamento dos dados reais da

língua.

Referências

• BORBA, Francisco da Silva. Dicionário gramatical de verbos do português

contemporâneo. São Paulo: UNESP, 1991.

• DAVIES, M.; FERREIRA, M. J. Corpus do Português. Disponível em:

<http://www.corpusdoportugues.org>. Acesso em: 21 dez. 2009.

• HOUAISS, Antônio. Dicionário eletrônico Houaiss de língua portuguesa.

Versão 1.0. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. CD-ROM. Não paginado.

• MUSSALIN, F.; BENTES, A. C. Introdução à linguística: domínios e fronteiras.

São Paulo: Cortez, 2003.

• MATERLOTTA, Mário Eduardo. Manual de linguística. São Paulo: Contexto,

2008.

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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 109

O ADMIRÁVEL MUNDO DE GUIMARÃES

ROSA: “SEQUÊNCIA”, O CONTO

Marlene Lessa V. Borges

FFLCH / USP

Mestranda do Programa de Letras Clássicas da Universidade de São Paulo FFLCH/USP

contato: [email protected]

Resumo: Por meio do conto “Sequência”, o leitor tem a oportunidade de

adentrar ao mundo mágico de Guimarães Rosa, em que as ações humanas podem

receber um sentido oculto e transcendente. Uma busca aparente pode ocultar outra,

muito mais profunda e, talvez, inconsciente.

PALAVRAS-CHAVE: mito; transcendência; mistério.

Abstract: The reader can delve into the magic world of Guimarães Rosa through

his short story “Sequência” (Sequence), in which human actions can bear a hidden,

transcendent meaning. A simple search can hide another far deeper or even unconscious

one.

KEYWORDS: myth; transcendence; mystery.

Resumen: Mediante el relato “Sequência” (Secuencia), el lector puede adentrarse

en el mundo mágico de Guimarães Rosa, en el cual las acciones humanas pueden entrañar

un sentido oculto y trascendente. Una búsqueda aparente puede ocultar otra, mucho más

profunda y, quizás, inconsciente.

PALABRAS CLAVE: mito; transcendência; misterio.

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110 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4

Marlene Lessa V. Borges

Integrando a obra Primeiras Estórias, de Guimarães Rosa, o conto “Sequência”

apresenta um enredo que se organiza a partir de um fato simples, banal e corriqueiro

na vida do sertanejo: uma vaca que foge, um vaqueiro que sai em sua perseguição.

Esse é o fato aparente, mas, em se tratando de Guimarães Rosa, o que importa

mesmo não é o fato, e sim o que está por trás do fato. Para ele, todo acontecimento

é um milagre, entendido no sentido originário do termo do latim miraculum:

maravilha, prodígio, que causa admiração. É o que ele diz no início do conto

“O espelho”: “Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a

ausência deles. Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que não estamos

vendo” (ROSA, 2001, p. 119). O que ocorre neste conto não é diferente: o vaqueiro

parte em busca da rês fugitiva, mas, sem o saber, parte em busca do amor, fato que

só ao final lhe será revelado.

O relato do conto se estrutura como uma narrativa mítica, em que um

acontecimento da realidade humana é interpretado mediante uma conexão com o

mundo transcendente. O narrador do conto quer mostrar que há forças mágicas

atuando sobre o mundo, as quais conferem um sentido oculto às ações humanas.

O homem tem a impressão de ter em suas mãos as rédeas do próprio destino, mas

a verdade é que ignora as surpresas que lhe estão reservadas no caminho.

Este é um tema caro a Guimarães Rosa, escritor que atualiza em sua literatura

uma inusitada dimensão mágico-espiritual do regionalismo. O autor optou por uma

literatura regionalista muito particular. Não praticou o regionalismo social militante

dos anos 1930, desprovido de metafísica, que primava por documentar a

problemática do homem em relação ao seu ambiente social. Também não abraçou

com exclusividade o movimento contrário, ou seja, a reação espiritualista, que

defendia que a literatura devia expressar o mundo transcendente e sondar a

interioridade do sujeito, e não se ater ao mundo material. Guimarães Rosa vai, a

seu modo, utilizar elementos de uma e de outra tendência, procurando representar

o homem rústico em seu contexto social e, também, perscrutar-lhe a alma e o

inconsciente. O cenário que se repete em suas obras é o do sertão de Minas Gerais,

região que conhece bem, porque ali viveu sua infância e sua juventude. A paisagem

é sempre a de extensas pastagens, altos morros, rios e brejos e, de raro em raro,

alguns pequenos povoados. Neste conto, “Sequência” (1969, reeditado em 2001), o

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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 111

O admirável mundo de Guimarães Rosa: “Sequência”, o conto

espaço em que ocorre a ação tem referências vagas, como a “estrada das Tabocas”, a

“fazenda Pãodolhão” e a “fazenda Pedra”, mas a região descrita se parece com muitas

outras de suas obras.

O relato do conto se dá em terceira pessoa, por meio de um narrador onisciente

e onipresente, que alterna o foco narrativo entre os dois personagens, a vaca e o

vaqueiro. O tempo de duração da narrativa é de um dia de sol mais algumas horas

da noite. O tempo é dado por sinais da natureza, o que confere um efeito espontâneo

e poético ao relato, como por exemplo: “a vaquinha se fugira, da Pedra,

madrugadamente, entre o primeiro canto dos melros e o terceiro dos galos – [...]”(ROSA, 2001, p. 114). Para designar o avanço das horas, o narrador menciona as

cores que o céu vai adquirindo no transcorrer do dia. Para significar a madrugada,

diz que o céu era quase da cor da vaquinha vermelha (“num céu quase da sua cor”)

(ROSA, 2001, p. 114); para significar o meio-dia, diz que “o dia era grande, azul e

branco, [...] O sol, inteiro” (ROSA, 2001, p. 115). Para representar o final da tarde,

diz “o céu também em amarelo” (ROSA, 2001, p. 116); e ainda, “o ouro esboço do

crepúsculo” (ROSA, 2001, p. 117). Desse modo, percebe-se um narrador totalmente

integrado à natureza e comprometido com a cultura rústica do personagem, pois

essa é a maneira pela qual o sertanejo percebe a passagem do tempo, ou seja, através

das mudanças que constata no céu que o recobre.

A narrativa tem início in medias res, ou seja, quando a vaquinha já está em plena

marcha de retorno para sua antiga “querência” (ROSA, 2001, p. 114). “Na estrada

das Tabocas, uma vaca viajava” (ROSA, 2001, p. 113). O narrador descreve o afã da

vaquinha para regressar ao lar atribuindo-lhe sentimentos humanos, tais como amor,

saudade, e qualidades humanas, como “sonsa” (ROSA, 2001, p. 114), “querençosa”

(ROSA, 2001, p. 115), “uma malícia” (ROSA, 2001, p. 117), “três vezes esperta”

(ROSA, 2001, p. 115). É o mesmo procedimento que o autor já adotara ao

caracterizar o “sábio” burrinho do conto “O burrinho pedrês”. Depois de descrever

os esforços da vaquinha no primeiro momento da fuga, o narrador regressa algumas

horas no tempo para contar as circunstâncias em que ela fugira. O fato era que a

“vaquinha vermelha”, que fazia parte de um rebanho recém-chegado à fazenda Pedra,

do “seo Rigério”, tomada de saudades do seu antigo lar, fugira de madrugada em

direção às terras do seu antigo dono, Major Quitério, da fazenda Pãodolhão. Ao

amanhecer, dado o alarme da fuga na fazenda Pedra, um dos filhos de “seo Rigério”

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se oferecera para ir resgatar a “rês fujã”. Neste ponto, o narrador deixa bem claro ao

leitor que não havia necessidade alguma de que tal fato se desse, isto é, que o rapaz

tomasse para si aquele encargo, pois havia muitos vaqueiros para tal serviço: “Seus

vaqueiros, postos, prontos. Esse seu Rigério tinha os filhos diversos, que por em

volta se achavam. Nem deles, para o quê, havia necessidade.” (ROSA, 2001, p 114)

O narrador julga, portanto, e faz entender ao leitor, que alguma força oculta

impulsionara o jovem a abraçar aquela missão. E introduz, então, uma ponta de

mistério e suspense, ao dizer a respeito do jovem: “Soubesse o que por lá o botava,

se capaz.” (ROSA, 2001, p. 114)

Montado no seu “bom cavalo”, o rapaz toma então a mesma direção que a

vaquinha já tomara mais de duas horas antes. Fazem o mesmo caminho, mas com

diferentes estados de ânimo, pois ela sabe por onde e para onde vai (“Seguia, certa;

por amor, não por acaso”) (ROSA, 2001, p. 114), já ele não sabia a que parte aquela

busca o levava: “ia desconhecidamente” (ROSA, 2001, p. 114). O amor move o

esforço da vaquinha, o brio, o dele. Mas, sendo o amor mais forte, a vaca não arrefece

o ânimo diante dos tantos obstáculos do caminho. Já o moço, depois de muito

cavalgar, exausto pela busca cega, chega a pensar em desistir: “Desanimadamente,

ele, malandante, podia tirar atrás. Aonde um animal o levava?” Mas o orgulho o

impede de fazê-lo (“voltasse sem ela, passava vergonha”). (ROSA, 2001, p. 115)

Ocorre que os dois personagens estão em situações antagônicas entre si. A vaca

está ameaçada pela perseguição do vaqueiro: “O inimigo já vinha perto”, diz o

narrador, ao relatar o fato sob o ponto de vista da vaca. E, a respeito do rapaz, que

sentia o ridículo da situação em que a vaca o colocava, dirá: “Ele agora se irritava”

(ROSA, 2001, p. 115). A longa e sacrificada viagem representa uma grande travessia

para os dois viajantes. Para a vaca, esse desafio tinha um significado: “levantar o

desterro” (ROSA, 2001, p. 116). Para o rapaz, tudo aquilo era um enigma, e pensou:

“Seja o que seja.” (ROSA, 2001, p. 116)

A travessia costuma constituir uma simbologia na obra de Guimarães Rosa.

Significa uma passagem, uma transformação na vida das personagens que se dá

mediante a superação de obstáculos. Neste conto, há outra travessia dentro da

travessia principal: a travessia de um rio, que os dois personagens são obrigados

a empreender a nado. São dois momentos de intenso lirismo no relato. Sobre a

112 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4

Marlene Lessa V. Borges

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travessia da vaca, o narrador dirá, com delicada poesia: “Foi uma mexidinha figura

quase que mal os dois chifres nadando – a vaca vermelha o transpondo, a esse rio,

de tardinha” (ROSA, 2001, p. 116). Sobre a travessia do rapaz, desconstruindo e

invertendo o léxico para intensificar o sentido das palavras, diz o narrador: “E entrou

de peito feito. Àquelas quilas águas trans – às braças” (ROSA, 2001, p. 117). Em

ambos os casos e com recursos diferentes, o autor consegue criar uma vívida imagem

da cena da travessia do rio na imaginação do leitor. Ressalte-se que o rio, aqui, é um

símbolo que separa as duas fases da vida daqueles que o cruzam.

Causa estranheza ao vaqueiro a descomunal resistência física da vaquinha, pois,

ao anoitecer, seu cavalo, que o narrador já chamara de “bom cavalo” – começa a

bambear as pernas. De onde viria tamanha força? Tudo parece ter uma aura mágica.

De fato, a vaquinha é tratada pelo narrador como uma figura quase sagrada.

Basta ver a maneira sublime como ele a descreve saltando uma cerca que lhe impedia

a passagem: “E além se sumia a vaca vermelha, suspensa em bailado, a cauda

oscilando” (ROSA, 2001, p. 115). Ou no trecho em que o vaqueiro, por um instante,

divisa a vaquinha na linha do horizonte de um morro ao longe, e o narrador diz,

de modo a dar duplo sentido às suas palavras: “Aí, se afundou para o de lá, e se

escondeu de seus olhos. Transcendia ao que se destinava” (ROSA, 2001, p. 116).

Com “transcender”, o narrador pode designar tanto o movimento da vaca de ir para

além do morro, de ultrapassá-lo, indo em busca do seu destino, como também pode

significar que a vaquinha se elevava a um patamar sagrado, ao executar um plano

arquitetado pelo destino. São muitas as sutilezas desse poético e sapiencial narrador.

Tendo atravessado todo o dia e uma parte da noite escura, chegam, enfim, a

vaquinha seguida do vaqueiro, à fazenda Pãodolhão. Numa roda de quatro moças,

filhas do Major Quitério, o olhar do rapaz se encontra com o da segunda filha. O

encantamento acontece e ele sente que está defronte daquela que sempre buscara.

De repente, tudo começa a lhe fazer sentido. Então era o amor! O amor dava sentido

a tudo: à obstinação da vaquinha, ao impulso cego que o movia. O narrador, para

traduzir o êxtase desse instante, poupa as palavras e dá vazão à emoção: “Da vaca,

ele a ela diria: ‘É sua’. Suas duas almas se transformavam?”, pergunta. E conclui:

“E tudo à sazão do ser” (ROSA, 2001, p. 118), expressão de caráter ontológico e

universal que, na opinião de Bosi (1988, p. 30), “faz pensar que o narrador crê

Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 113

O admirável mundo de Guimarães Rosa: “Sequência”, o conto

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em uma harmonia preestabelecida”. Nesse surpreendente final, o conflito anterior é

apaziguado, os antagonismos desaparecem e tudo se harmoniza no amor, a grande

mola propulsora para a realização dos desejos, mesmo os inconscientes.

A busca narrada neste conto remete à busca mítica que Fernando Pessoa narra

em seu poema “A lenda de Eros e Psiquê”. Também ali o poeta retrata uma busca

inconsciente e cheia de obstáculos, a busca do Amor (Eros) pela Alma (Psiquê). Eis um

pequeno trecho:

Longe o Infante, esforçado,

Sem saber que intuito tem,

Rompe o caminho fadado.

Ele dela é ignorado.

Ela para ele é ninguém.

No poema, o despertar da Alma por meio do Amor faz com que este se descubra

e perceba que são um só ser. É uma metáfora para a busca do eu e para o encontro

com o outro, processo que implica dor e superação. No conto de Guimarães Rosa, o

jovem, ainda que por um percurso inconsciente, realiza uma busca que é ao mesmo

tempo pela sua alma e pela alma do outro. Ao descobrir a alma da amada, ele

encontra a sua, e o mundo ao seu redor passa a fazer sentido.

Referências

• BOSI, Alfredo. Céu, inferno. São Paulo: Ática, 1988, p.11-32.

• PESSOA, Fernando. Poemas. 9 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 49.

• RÓNAI, Paulo. Art. “Os vastos espaços”. In: Primeiras estórias. 15 ed., 3ª imp.

Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 14-48.

• ROSA, João Guimarães. “Sequência”. In Primeiras Estórias. 15 ed., 3ª imp.

Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 113-118.

• ______. O burrinho pedrês. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1996.

114 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4

Marlene Lessa V. Borges

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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 115

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2. A Revista INTERSIGNOS aceita publicar trabalhos nos seguintes formatos discursivos:

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de pesquisa (entre 5 e 10 páginas). A Revista também publica, a cada edição, uma

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116 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4

Estrutura dos trabalhos:

1. Elementos pré-textuais:

a) Título: primeira linha, caixa-alta, conciso, objetivo e claro. Se houver subtítulo, deve

vir na linha seguinte, também em caixa-alta;

b) Nome e identificação do autor: duas linhas abaixo do título, alinhados à margem

esquerda. Após o nome do autor, indicar formação acadêmica, instituição à qual

está vinculado e e-mail para contato;

c) Resumo do trabalho: três linhas abaixo da identificação do autor; entre 5 (cinco)

e 10 (dez) linhas; versão em português, inglês e espanhol; colocar a palavra

RESUMO em caixa-alta, seguida de dois-pontos; texto justificado, espaço simples;

texto objetivo, conciso e claro, redigido de acordo com as normas de formatação

textual da ABNT;

d) três palavras-chave que expressem os conceitos centrais do texto, em português,

inglês e espanhol.

2. Elementos textuais:

a) Alinhamento: justificado em todo o texto;

b) Espaçamento: 1,5 (um e meio) entre linhas e parágrafos, duplo entre partes do

texto (citações diretas longas, tabelas, ilustrações, etc.);

c) Citações:

i) citação indireta (paráfrase): no corpo do texto, indicando-se o ano de

publicação da obra, entre parênteses, após a menção do nome do autor;

ii) citação direta: no corpo do texto, até 3 linhas, entre aspas. Acima de 3 linhas,

fora do corpo do texto, em parágrafo separado, com um recuo de 4cm a partir

da margem esquerda, espaço entre linhas simples e em corpo 10. Após as

citações, indicam-se, entre parênteses, nome do autor em caixa-alta, ano de

publicação da obra e número da página onde se encontra a citação.

3. Elementos pós-textuais:

a) Referências: somente aquelas efetivamente mencionadas no texto, e conforme

normas da ABNT.

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ISSN 1982-2685

9 7 7 1 9 8 2 2 6 8 1 5 3

ENSINO PERSONALIZADO

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Aflorar dos eus no texto clariceanoAngélica Castilho

Primeiros europeus na América: a questão da alteridade observada através dosrelatos de viagemLêda de Carvalho

Diálogo entre memória e História através da crônica andina de Felipe GuamanPoma de AyalaHelena Dias dos Santos Lima

McOndo e a estética do business plan: considerações sobre a escrita pós-modernae a lógica do mercado na literatura hispano-americanaRodrigo Fernández Labriola

Tendências contemporâneas na poesia brasileiraRachel Fátima dos Santos Nunes

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Uma análise semântica de pegar + nomeKaren Sampaio Braga Alonso & Nalinle Costa Vaz

O admirável mundo de Guimarães Rosa: “Sequência”, o contoMarlene Lessa V. Borges