retratos do concelho

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RETRATOS do concelho EM TERRA Se prepara a vida no mar FOTOGRAFIAS Rui Miguel Cunha TEXTO Vanessa Gouveia Edição n.º 01 Fevereiro 2011 Edição da Câmara Municipal de Sesimbra e Freguesias de Santiago, Quinta do Conde e Castelo

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RETRATOSdo concelho

EM TERRASe prepara a vida no mar

FOTOGRAFIAS Rui Miguel Cunha TEXTO Vanessa Gouveia

Edição n.º 01 Fevereiro 2011

Edição da Câmara Municipal de Sesimbra e Freguesias de Santiago, Quinta do Conde e Castelo

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extingue-se, a pouco e pouco, muito em consonância com o envelhecimento dos pescadores e a consequente perda de vigor da própria actividade que até aqui representava uma herança, que todos os homens e mulheres tinham, inevitavelmente, de cumprir. Os filhos de pescadores, que nasciam e viviam de peito feito ao mar, tinham-no como horizonte e futuro. As filhas de pesca-dores, haveriam, inevitavelmente, de casar com pescadores, vivendo cada dia na incerteza do pão na mesa, determinada pelos humores do tempo e do mar e, claro, do regresso dos seus homens. Mas há muito que não é assim.

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Há espaços que são capazes de preservar histórias, tradições e uma identidade, mesmo sem as

manter no frio ou as envolver em sal para as conservar.

Nas “lojas de companha”, espécie de arma-zéns onde se guardam e preparam os ape-trechos de pesca, autênticos marcos identitá-rios da antiga vila piscatória que ainda pulsa, cheira a isso tudo: ao sal do mar, à brisa fres-ca, mas também a redes e ao peixe. Cheira mais a passado do que a presente. E o que virá, pressente-se apenas, mas sem se pensar muito nisso. Qualquer pescador sabe que só se pode programar a pescaria de amanhã e não muito além disso. Da seguinte separa-o, afinal, um hiato enor-me onde cabe o tempo que faz, as correntes que sopram, as marés que nascem, os per-cursos dos cardumes, os quartos da lua.Se, há uns anos, as “lojas de companha” re-presentavam pequenos centros da activida-de económica local, a sua relevância e pre-sença no centro da localidade esmoreceu e

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De facto, não foi ele quem escolheu o desti-no do filho, mas também não decidiu o seu próprio. Pensando bem nas coisas da vida, a sua é feita de muitas opções que não tomou, limitou-se antes a seguir o caminho que o barco, em que seguia, naturalmente tomou, no enfiamento do rasto deixado pelos que seguiam à sua frente. Naquele tempo, o pai vivia para o mar, tal como o pai dele e o pai do pai dele. Não seguir aquele percurso não era opção. Além disso, a pesca era como um respirar, que fazia toda aquela terra passar de um dia ao seguinte. Era um simples existir. E ele só podia fazer parte dessa existência, de que dependia, e que dependia de si e de outros como ele.Com o seu filho já foi diferente. Passou-lhe as fartas sobrancelhas negras e o cabelo tin-gido, aqui e ali, de branco que teimam em atribuir às preocupações que a vida lhe dá, as orelhas compridas e largas, o nariz recurvo, os lábios finos e duros, e até o corpo esguio e o jeito de andar. Não lhe conseguiu pas-sar a inevitabilidade do trabalho no mar, nem a necessidade daquele sal para temperar e apaladar a vida ou a obrigação de se manter

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fisicamente próximo do oceano. Não fossem as semelhanças físicas e certamente muito lhe teria preocupado o facto de o filho preferir a carne ao peixe, os banhos de água doce em casa aos salgados na praia, e os passeios de ténis na areia aos que, descalço, lhe permitiam sentir a recon-fortante aspereza da areia fria na sola desprotegida dos pés. O velho não esconde que aquelas diferenças o preocuparam na altura, mas a mulher pacificou-o, fazendo-o ver que também os filhos mudam, como se lhe modificaram as feições e se lhe enrugou o peito, como mudou a televisão e o boletim meteorológico que agora só anuncia se chove ou faz calor, o que pouco im-

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aqui que residia a diferença: à medida que cada um destes jovens decidia virar as costas ao mar, a pesca, lentamente, deixava de fazer passar um dia ao seguinte na vila piscatória.Local de trabalho, ponto de encontro, espaço de convívio, a “loja de companha” é, sobretudo, um conjunto de pessoas que encerra muitas histórias com sal dentro. Mas não são, por isso, quaisquer pessoas. São marítimos. É quando o mau tempo ou a previsão de tempestades no mar impede os barcos de o desbravarem que as “lojas” se enchem, da mesma forma que as gaivotas se refugiam em terra, como determina o ditado. Ali há sempre trabalho, há sempre conversa, há

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Uns anos separam-nos agora dessa altura, em que a vida do

avô, em terra, se resumia a uma reduzida dúzia de passos, embora no mar se demorasse largas horas

em que percorria muitas milhas.

porta aos pescadores mais interessados nas direcções e força do vento e na altura das vagas. Da mesma forma mudaram os barcos com novos aparelhos que aliviam os braços dos homens, mudou o futebol, as ruas e até o mar. Afinal de contas, tudo se modificou e apenas o velho permanece igual, como que cristalizado na sua relação com o ofício e com o mar.Ao filho, a brisa que soprava do mar também lhe trouxe o cheiro de paisagens distantes, gentes desconhecidas, mas, mais do que des-pertar-lhe a curiosidade, empurrara-o ainda mais para o interior, para um escritório, onde quatro paredes o protegem das nortadas frias, das chuvadas inclementes e do sol abra-sador. O pai tinha as mãos grossas e possan-tes, enquanto as do filho eram finas e frágeis, como as dos demais colegas de escola. E era

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sempre discussões, há sempre novidades. E é também o mais próximo que estes homens conseguem estar do mar, quando não podem embarcar. Nem é preciso fechar os olhos ou puxar muito pela imaginação para sentir a presença e os cheiros do sal, da brisa, do pei-xe e das redes, numa mistura inigualável que já não lhes arde no nariz como a quem ali entra por acaso; os que não conseguem pas-sar-lhes à porta sem espreitar, atraídos pelas vozes fortes e ásperas que chegam do inte-rior, ou pela profusão de cores e coisas que os homens conseguem manter no espaço sempre exíguo onde se atarefam em torno dos apetrechos, entre baldes, bóias, cordas, fios de nylon ou “pitas”, selhas e lonas. E, ao fundo, há sempre um calendário pendurado. Até porque os dias e as horas na “loja” não passam ao sabor do andamento dos pontei-ros do relógio, mas sim do alternar entre o dia e a noite e a maré cheia e a maré vaza. É um tempo diferente, marcado por vivências fortes, fruto da proximidade e entrega quo-tidiana aos desígnios duma natureza que se aprende mais a respeitar do que a dominar para dela tirar proventos. É um tempo que aproxima os homens e os torna “camaradas”

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FICHA TÉCNICA

embarcar. Nem é preciso fechar os olhos ou puxar muito pela imaginação para sentir a presença e os cheiros do

sal, da brisa, do peixe e das redes, numa mistura inigualável que já não lhes arde no nariz como a quem ali entra

por acaso; os que não conseguem passar-lhes à porta sem espreitar, atraídos pelas vozes fortes e ásperas que

chegam do interior, ou pela profusão de cores e coisas que os homens conseguem manter no espaço sempre

exíguo onde se atarefam em torno dos apetrechos, entre baldes, bóias, cordas, fios de nylon ou “pitas”, selhas e

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