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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE DIREITO PROGRAMA DE PÓS – GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS CRIMINAIS EDSON CARDOSO DE OLIVEIRA FILHO RETRATAÇÃO DA INJÚRIA: AGRAVAÇÃO DA OFENSA? Salvador - Bahia 2012

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE DIREITO

PROGRAMA DE PÓS – GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS CRIMINAIS

EDSON CARDOSO DE OLIVEIRA FILHO

RETRATAÇÃO DA INJÚRIA: AGRAVAÇÃO DA OFENSA?

Salvador - Bahia

2012

2

EDSON CARDOSO DE OLIVEIRA FILHO

RETRATAÇÃO DA INJÚRIA: AGRAVAÇÃO DA OFENSA?

Trabalho monográfico apresentado no Curso de Especialização em Ciências Criminais da Fundação Faculdade de Direito da UFBA, como requisito parcial para a sua conclusão.

Salvador - Bahia 2012

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EDSON CARDOSO DE OLIVEIRA FILHO

RETRATAÇÃO DA INJÚRIA: AGRAVAÇÃO DA OFENSA?

Trabalho monográfico de conclusão de curso apresentado à Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção de certificado de conclusão do curso de Especialização em Ciências Criminais.

COMISSÃO EXAMINADORA

____________________________________ Prof. Orientador: ____________________________________ Prof. ____________________________________ Prof.

4

DEDICATÓRIA

A Toda minha família, que de muitas formas me incentivou e ajudou para que fosse possível a concretização deste trabalho.

5

AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente a Deus por, mesmo eu tendo me afastado Dele na maior

parte de minha faculdade, Ele não ter se afastado de mim.

Agradeço ao meu pai, por absolutamente tudo. Cada um de seus atos foi uma

oportunidade que eu tive para crescer e me tornar o que sou. A toda minha família,

pelo apoio e amor incondicional e que felizmente posso dizer ser recíproco.

Aos meus queridos amigos, agradeço pelos grandes momentos de alegria e também

os de tristeza que compartilhamos.

Às minhas novas amizades concebidas na faculdade. Que elas durem tanto quanto

foram intensas.

6

RESUMO

A retratação da injúria e sua eventual admissibilidade é tema ainda pouco explorado entre os penalistas brasileiros e pelos manuais que tratam de justificar a imprevisão legal ao argumento da natureza do bem jurídico tutelado e da suposta agravação da ofensa. Por outro lado, a submissão do tema a uma abordagem apurada pela fixação de premissas principiológicas e pela aderência a uma interpretação sistêmica autoriza a exploração de lacunas e a inauguração de questionamentos que prometem rediscutir a soberania dos postulados discursivos sobre o assunto. O presente trabalho inicia o seu desenvolvimento com um breve estudo acerca da evolução histórica dos crimes contra honra, analisando o processo de criminalização do “insulto” desde a época do direito romano até os dias atuais. Em seguida, discorre sobre os princípios da intervenção mínima, lesividade e proporcionalidade em sentido amplo (e suas três acepções ou máximas: proporcionalidade-adequação, proporcionalidade-necessidade e proporcionalidade em sentido estrito), bem assim seus principais fundamentos, abordando também o conceito e as nuances do bem jurídico tutelado, bem como a tradicional classificação entre honra subjetiva e honra objetiva. Após, são analisados o conceito, a forma, a eficácia e a natureza jurídica da retratação, bem assim o papel do magistrado no controle de eficácia da retratação. É abordada também a previsão da retratação da injúria em outros ordenamentos jurídicos, citando-se o código penal argentino e espanhol. Finalmente, é examinado o tratamento da retratação conferido pela revogada Lei de Imprensa, quando ficam mais aparentes as antinomias e a inadequação teórica a qual o tema foi submetido. Palavras-chaves: Retratação. Injúria. Crimes Contra Honra.

RESUMEN La retractación de injuria e su eventual admisión es tema aún poco explotado entre los penalistas brasileños e por los manuales que tratan de justificar la imprevisión legal al argumento de la naturaleza del bien jurídico protegido e de la supuesta agravación del ofensa. Por otro lado, la sumisión del tema a una abordagen conscienciosa por la determinación de principios e por la adhesión a una amplia interpretación autoriza la explotación de brechas en la inauguración de cuestionamientos que prometen rediscutir la soberanía de los discursos acerca del asunto. El presente trabajo inicia su desenvolvimiento con un breve estudio acerca da evolución histórica de los crímenes contra el honor, analizando el proceso de criminalización de lo “insulto” desde la época del derecho romano ate los días actuales. En seguida, discurre sobre los principios de la mínima intervención, lesividad e proporcionalidad en sentido amplio (e sus tres acepciones o “máximas”: proporcionalidad-adecuación, proporcionalidad-necesidad e proporcionalidad en sentido estricto), bien así sus principiáis fundamentos, abordando también el concepto e lo alcance de lo bien jurídico tutelado, bien como la tradicional clasificación entre honor objetiva e honor subjetiva. Después, san analizados los conceptos, la forma, la eficacia de la naturaleza jurídica de la retractación, bien como

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lo papel del juez en lo controle de eficacia de la retractación. Es abordado también la previsión de la retractación de injuria en otros ordenamientos jurídicos, citando-se el código penal argentino e español. Finalmente, es examinado el tratamiento de la retractación conferido pela revocada Leí de Imprenta, cuando tornan más aparentes las antinomias e la inadecuación teórica la cual el tema fue sometido. Palabras-clave: Retractación – Injuria – Delito contra el honor

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ............................................................................................. 09 2 BREVE HISTÓRICO DA CRIMINALIZAÇÃO DO “INSULTO” ................... 11 3 PRINCÍPIOS PENAIS .................................................................................. 15 3.1 NOÇÕES GERAIS ..................................................................................... 15 3.2 INTERVENÇÃO MÍNIMA ............................................................................ 17 3.3 LESIVIDADE .............................................................................................. 20 3.3 PROPORCIONALIDADE ............................................................................ 24 3.3.1 Subprincípios ou “Máximas” da Proporcionalidade .......................... 27 4 O BEM JURÍDICO HONRA .......................................................................... 32 4.1 NOÇÕES GERAIS ..................................................................................... 32 4.2 CLASSIFICAÇÃO ....................................................................................... 35 4.3 REDEFININDO A TUTELA DA HONRA SUBJETIVA ................................ 37 5 A RETRATAÇÃO E O ARGUMENTO DA AGRAVAÇÃO DA OFENSA ..... 45 5.1 CONCEITO, FORMA E EFICÁCIA ............................................................. 46 5.2 A UTILIDADE DA RETRATAÇÃO .............................................................. 51 5.3 A NATUREZA JURÍDICA DA RETRATAÇÃO ............................................ 53 6 O PAPEL DO MAGISTRADO E AS ENTRELINHAS DA RETRATAÇÃO .. 61 7 O TRATAMENTO DA RETRATAÇÃO NA ANTIGA LEI DE IMPRENSA ... 65 8 CONCLUSÃO .............................................................................................. 69 9 REFERÊNCIAS ............................................................................................ 71

9

1 INTRODUÇÃO

O direito penal, em sua órbita positivista, tem sido submetido à incisiva busca

de aperfeiçoamento e adequação de seus postulados, o que não destoa do seu

peculiar propósito de pacificação social a justificar o contínuo processo de releitura.

Deste panorama não escapa a discussão em torno da tutela conferida aos

crimes contra a honra, notadamente ao delito de injúria que se destaca por assumir

tratamento diferenciado pelo legislador infraconstitucional.

A despeito da identidade compartilhada com as demais espécies, a injúria foi

concebida em literal desacerto com o instituto da retratação da ofensa, circunstância

que, pelo aumento das ocorrências em registros criminais ou pelo caráter

fragmentário do direito penal, estimula a análise por uma alternativa alheia à

repetição sistemática e irrefletida de preceitos normativos.

Nada obstante à opção legislativa, o empréstimo da eficácia extintiva da

retratação ao delito de injúria encontra resistência por considerada parcela da

comunidade jurídica, cuja desconfiança dogmática exige, afortunadamente, um

criterioso estudo em torno de um tema marcado pela complexidade e pela lacuna de

uma análise mais percuciente.

Insta advertir que o objetivo do presente trabalho não é o de defender ou

reafirmar a retratação enquanto causa extintiva da punibilidade, até porque a sua

natureza jurídica é desejo legal. O objetivo primordial é o de investigar as razões e

os motivos para a exclusão do referido efeito no crime de injúria, revisitando os

argumentos doutrinários que, usualmente, repousam sobre a tradicional

classificação do bem jurídico tutelado e sobre as consequências advindas da

retratação no caso concreto.

Nos capítulos de desenvolvimento, os referidos argumentos doutrinários

serão submetidos a um exame mais detido e pormenorizado, orientado não apenas

pelo necessário enfrentamento da matéria sob a ótica empírica, mas sobretudo pela

consideração aos posicionamentos teóricos que emanam de algumas vozes

altamente gabaritadas e que, invariavelmente, ecoam de forma uníssona entre as

demais.

10

O alcance dos princípios informadores do direito penal (intervenção mínima,

lesividade e proporcionalidade) será abordado de modo a subsidiar a militância pela

alteração legislativa, ademais do enfrentamento do valor jurídico da retratação e dos

principais argumentos de sua imprevisão ao crime de injúria, com o propósito

permanente de evidenciar as contradições existentes e a inadequação teórica à qual

o tema foi submetido.

A discussão instaurada, para além de um interesse teórico-acadêmico,

encontra razões na possibilidade de sopesar as opções de política criminal a partir

de um viés principiológico e interdisciplinar, proporcionado pela presença de fontes

estrangeiras e pela respeitável doutrina nacional, além da experiência emprestada

por renomados juristas e operadores do direito.

11

2 BREVE HISTÓRICO DA CRIMINALIZAÇÃO DO “INSULTO”

A proteção legal da honra é conhecida desde o antigo direito, especialmente

no romano, a partir do exercício de manifestações isoladas daqueles que

vislumbravam da ofensa verbal uma singular e substancial equiparação: honoris

causa et vita aequiparantur.

Em Roma, o termo iniuria assumia um alcance superior ao que

hodiernamente se infere, traduzindo significado genérico de ilicitude, o que,

entretanto, não retira da actio iniuniarum o título de precursora da tutela da honra.

Pelo conceito abrangente, a injúria apresentava aptidão para ofender a

personalidade sob os seus três prismas: o corpo, a condição jurídica e a honra.

A Lei das XII Tábuas também se ocupou, embora adstrita a um contexto

predominantemente sociológico, da previsão das modalidades de injúria,

concebendo-as a partir da preocupação em preservar o interesse comum, conservar

a ordem pública e evitar desavenças no meio social. Punia-se a injúria com 25 assis,

não obstante a miserabilidade dos infratores.

Ainda na antiguidade, o Código de Manu destacava-se por reservar capítulo

próprio para a retribuição das imputações injuriosas, prevendo sanções corporais

que, pela extremidade, indicavam a supervalorização do bem jurídico tutelado. No

capítulo XIV - Das Injúrias, previa-se desde a mutilação da língua à utilização de

estilete de ferro em brasa e óleo fervendo pela boca, quando não o pagamento de

multas para condutas consideradas menos gravosas.

Por outro lado, as idades média e moderna, influenciadas pela doutrina do

cristianismo, representaram período propício à (re) valorização dos fundamentos

morais do homem, cuja personalidade passava a se inserir no centro de incidência

do direito.

Aos poucos, a injúria passou a ser restringida nas legislações modernas,

apartando-se da genuína abstração romana para se associar à categoria dos crimes

contra a honra, o decoro e a reputação alheia.

A propósito da compreensão da funcionalidade dos processos de ofensas

verbais na Inglaterra do início do período moderno, observa o historiador Jim Sharpe

12

que as querelas poderiam ser conduzidas a dois tribunais específicos – the common

law courts ou the ecclesiastical courts – conforme a natureza da ofensa:

“Se as palavras ofensivas fossem de natureza espiritual, indicando pecados (puta, corno, adúltera, sodomita, etc.), o processo deveria ser aberto no tribunal eclesiástico. Se as ofensas tratassem de problemas temporais (ladrão, corrupto, canalha, etc.) deveria ser levado aos tribunais de justiça comum” 1.

Contudo, Sharpe pontua que as pessoas procuravam muito mais os tribunais

eclesiásticos, principalmente por acreditarem que esses tribunais ofereciam a elas

uma justiça mais satisfatória e também porque preferiam “se vingar” mais dos

ofensores com as penalidades humilhantes impostas pelas churchs courts do que

com os danos financeiros advindos da justiça comum.

Tal constatação corrobora os estudos de S. M. Waddams, ao afirmar que

“nenhum dano físico era aplicado aos condenados nos crimes de injúrias verbais.

Sofriam somente dos custos do processo e penas de humilhação pública”. 2

Em 1810, o Código Napoleônico destacou-se por suplantar a sinonímia até

então existente entre as diversas modalidades de lesão à honra a partir da

individualização das figuras típicas da calomnie e da injuriae, reservando àquela o

enquadramento pela atribuição de fatos delituosos ou difamatórios, enquanto esta se

resumia nas expressões ultrajantes e depreciativas dirigidas à pessoa visada.

Logo, o Código Penal francês passou a inspirar a subclassificação adotada,

como recorda o professor Luiz Regis Prado3, por grande parte das legislações

penais supervenientes, a citar o Código Penal alemão de 1870 que, embora

perseverante no título genérico de injúria, já contemplava a divisão em injúria

simples, difamação e calúnia.

1 CARNEIRO, Deivy Ferreira. Calúnia e Injúria: Uma análise historiográfica dos usos das ofensas verbais na pesquisa histórica brasileira e internacional. ‘Usos do passado’. XII Encontro Regional de História. ANPUH: Rio de Janeiro, 2006, pág. 6. 2 CARNEIRO, Deivy Ferreira. ob. cit., pág. 8. Calúnia e Injúria: Uma análise historiográfica dos usos das ofensas verbais na pesquisa histórica brasileira e internacional. ‘Usos do passado’. XII Encontro Regional de História. ANPUH: Rio de Janeiro, 2006, pág. 8. 3 PRADO, Luiz Regis Prado. Curso de direito penal brasileiro, vol. 2: parte especial: arts. 121 a 249. 7ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, pág. 232.

13

No Brasil, os Códigos Criminais do Império (1830)4 e da Velha República

(1890)5 ocuparam-se da “distinção à francesa” entre calúnia e injúria, exceto pela

compreensão da difamação neste último conceito, ao invés do primeiro.

Porém, o advento do vigente diploma criminal, no ano de 1940, logrou

privilegiar a máxima separação dos crimes em apreço, conferindo a necessária

autonomia para qualificação típica da difamação, até então confundida com as duas

subespécies.

Assim, as legislações modernas passaram a privilegiar a descrição analítica

dos crimes contra honra, separando-os por critérios doutrinariamente interpretados,

obedecendo as suas características próprias e graduando-os com penalidades que

muito não destoam entre si.

Ainda no Brasil, é possível vislumbrar a tipificação de crimes contra a honra

em diplomas como o Código Eleitoral (art. 324), a Lei de Imprensa (art. 20 a 22), o

Código Penal Militar (arts. 214 a 219), a Lei de Segurança Nacional (art. 26) e o

Código Brasileiro de Telecomunicações (art. 53, I).

Curiosamente, o processo de criminalização do insulto não parece ter

acompanhado pari passu a apuração do sentimento de honra, que passou a se

distanciar pela demanda de um sistema mais exaustivo ou, quiçá, satisfatório na

coação e prevenção dos delitos desta natureza.

A despeito do amadurecimento sob a égide criminal, a proteção contra as

agressões verbais começa a ser cultivada de forma mais incisiva na seara civilista,

em atenção aos reclamos pela compensação (e não somente punição) da ofensa ao

bom nome, à reputação e ao decoro alheio.

Com efeito, a necessidade de consolidação da honra no plano ordinário da

responsabilidade civil passou a repercutir no direito constitucional contemporâneo,

4 A disciplina da injúria no Código Criminal de 1830 resumia-se ao disposto no artigo 236: “Julgar-se-ha crime de injúria: §1º. Na imputação de um facto criminoso não comprehendido no artigo duzentos e vinte e nove. §2º. Na imputação de vicios ou defeitos, que possão expôr ao odio, ou desprezo publico. §3º. Na imputação vaga de crimes, ou vicios sem factos especificados. §4º. Em tudo o que póde prejudicar a reputação de alguem. §5º. Em discursos, gestos ou signaes reputados insultantes na opinião publica”. 5 Em 1870, o Código Criminal Republicano preservou quase que ipsis litteris o anterior tratamento da injúria, assim descrita no art. 317: “Julgar-se-á injúria: a) a imputação de vicios ou defeitos, com ou sem factos especificados, que possam expor a pessoa ao odio ou desprezo publico; b) a imputação de factos offensivos da reputação, do decoro e da honra; c) a palavra, o gesto, ou signal reputado insultante na opinião publica”.

14

notadamente pela inclusão no rol dos direitos e garantias individuais6. A liberdade de

manifestar pensamento, inclusive através da imprensa, passa a conviver com a

proteção constitucional à intimidade, honra e imagem das pessoas, o que não

destoa do caráter relativo dos direitos fundamentais.

Todavia, a alternativa civilista para o tratamento das ofensas verbais não

parece disfarçar algumas antinomias que ainda teimam repousar sobre a não

excludente solução criminal.

A resposta que o Código Penal brasileiro sugere aos delitos contra a honra

começa a se submeter, ainda que de forma incipiente, a uma série de

questionamentos que, permeados por correntes abolicionistas e minimalistas,

prometem redefinir o alcance, o sentido e as condições da chancela penal.

6 De acordo com o artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal de 1988, “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

15

3 PRINCÍPIOS PENAIS

3.1 NOÇÕES GERAIS

Os princípios são concebidos no Direito como as normas gerais mais abstratas,

que orientam - expressa ou implicitamente - todo o sistema normativo.

Princípio penal pode ser concebido como mandamento nuclear de um

determinado ordenamento, cujos valores se irradiam a ponto de orientar a

interpretação e a compreensão de normas penais incriminadoras e não

incriminadoras, atribuindo lógica e racionalidade ao sistema normativo, conferindo-

lhe um sentido harmônico.

Antes de tudo, porém, é preciso enfatizar que o ordenamento jurídico é

composto por regras e princípios, espécies das quais as normas são o gênero. Esta

distinção ganhou relevo a partir dos estudos desenvolvidos por Ronald Dworkin e,

aqui abordado com maior ênfase, por Robert Alexy.

De acordo com os ensinamentos de Robert Alexy, a diferença principal entre os

princípios e as regras é qualitativa e não de grau. Os princípios são normas que

podem ser operadas com elasticidade, ao passo que as regras, por serem rígidas,

somente permitem emprego estrito.

Assim, insta anotar a definição de princípio atribuída pelo mencionado Autor

germânico:

“Princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. Princípios são sempre razões prima facie7.

7 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 90.

16

Em comparação, ainda na esteira de Robert Alexy, também convém registrar o

conceito de regras:

Já as regras são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então, deve se fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais, nem menos. Regras contêm, portanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível. Regras são, se não houver o estabelecimento de alguma exceção, razões definitivas8

Na notável definição de Robert Alexy, princípios podem ser compreendidos

como “exigências de otimização “, nos quais os direitos devem ser realizados da

forma mais plena e completa possível, permitindo uma maior abrangência e

elasticidade na interpretação de normas.

É importante enfatizar, diante da Teoria proposta por Robert Alexy, que é

sempre aceitável conferir peso aos princípios, na medida em que estes são

compreendidos como “mandados de otimização”, alcançáveis na máxima medida do

possível, diferentes das regras, que são definidas pelo caráter peremptório e

decisivo, porquanto com estas é no “tudo ou nada”, não havendo espaço para

exceções.

Nesse raciocínio, um princípio pode assumir variados níveis de concretização,

de acordo com as circunstâncias particulares do caso concreto a ser resolvido –

possibilidades fáticas.

Registre-se ainda que, de fato, os princípios representam uma orientação, um

rumo, uma diretriz para aquele que exerce a função jurisdicional. Porém, sua função

não se resume a isso, pois consiste também, e ao mesmo tempo, em uma limitação

ao arbítrio do julgador.

Os princípios gerais do direito atuam não apenas como meros critérios

diretivos, nem meramente como juízos de valor, mas como verdadeiras normas

jurídicas, em seu sentido substancial, haja vista que fixa e estabelece parâmetros de

conduta.

8 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 91.

17

Com efeito, o fundamento de positivação dos princípios reside na necessidade

de não precisar recorrer a uma fonte de direito, exterior ao sistema para resolver

questões não previstas no tipo legal.

A maioria dos princípios encontra expressa previsão legal. Todavia, outros são

extraídos a partir de uma análise sistemática do ordenamento jurídico. Apesar de

tácitos, esses princípios possuem vigência e aplicabilidade, tais quais os princípios

que se encontram expressos nos diplomas legais.

Os princípios, dentro do direito penal, possuem uma importância de enorme

destaque. Afinal, constituem verdadeiras garantias do cidadão perante o poder

punitivo estatal. A maioria desses princípios encontra previsão no artigo 5° da

Constituição Federal, sendo, portanto, cláusulas pétreas do ordenamento jurídico

brasileiro.

Dentro do universo de princípios que orientam e regulam o Direito Penal

Moderno, serão abordados neste trabalho os princípios da intervenção mínima, da

lesividade e da proporcionalidade, cuja leitura atenta permitirá o aprofundamento

das discussões em torno do instituto da retratação e sua aplicação ao crime de

injúria.

3.1 INTERVENÇÃO MÍNIMA

O advento do movimento iluminista e a propagação dos ideais da igualdade e

da liberdade representaram ambiente propício ao surgimento de um Direito Penal

menos recrudescedor, até então orientado pelos interesses e pelas intervenções do

Estado Absolutista sobre as liberdades individuais.

A emancipação de um Estado de Direito demandou, efetivamente, a fixação

de regras e princípios capazes de limitar a atividade punitiva estatal, o jus puniendi,

e que aos poucos foram influenciando o ordenamento jurídico e a constituição de

países essencialmente democráticos, de modo a consolidar um sistema

internacional de garantias e proteções aos direitos fundamentais do cidadão.

É nesse contexto histórico que se edifica o princípio da Intervenção Mínima,

previsto no artigo 8º da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão

de 1789, cujo mandamento estabelece que a lei deve impor penalidades estritas e

18

devidamente necessárias. Portanto, a norma jurídica penal deve obedecer aos

critérios da necessidade e utilidade para a sua aplicação.

Nessa perspectiva principiológica, o Direito Penal deixa de se ocupar e de

responder a determinados problemas comezinhos da vida social, suficientemente

resolvidos pelos outros ramos do Direito e meios alternativos de controle social,

operando dessa forma como ultima ratio do ordenamento jurídico, evitando o arbítrio

do legislador e a aplicação de normas penais desnecessárias e até mesmo inócuas

para alcançar o fim a que se destinam.

Ao versar sobre a objetividade jurídica, Rogério Greco destaca que o primeiro

princípio a ser observado deverá ser o da intervenção mínima, “coração, por assim

dizer, do chamado Direito Penal Mínimo” 9. E conclui o seu entendimento afirmando

que:

“Por meio dele, o legislador somente poderá fazer a escolha dos bens considerados de maior importância, devendo observar, ainda, a sua natureza subsidiária, ou seja, o entendimento em virtude do qual se chega à conclusão de que o Direito Penal deve ser sempre a ultima ratio, e nunca a prima ou solo ratio, uma vez que se os demais ramos do ordenamento jurídico forem fortes o suficiente na proteção de determinado bem jurídico, é preferível que o Direito Penal não intervenha, preservando-se o status libertatis do cidadão” 10.

Invariavelmente, o Princípio da Intervenção Mínima confere um caráter

subsidiário ao Direito Penal, à medida que passará a atuar apenas quando a ordem

jurídico-social não puder ser satisfatoriamente preservada pelos outros ramos menos

agressivos e invasivos na esfera de liberdade individual do cidadão. O caráter

fragmentário do Direito Penal também se evidencia na intervenção mínima, haja

vista que nem todas as condutas ofensivas a bens jurídicos lhe são relevantes, mas

apenas as condutas mais gravosas aos bens jurídicos de maior relevo.

Nessa discussão, torna-se forçoso concluir que a pena não é solução perfeita

e que só deve ser utilizada como recurso extremo, cuja legitimidade depende do

9 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial. Volume II: introdução à teoria geral da parte especial: crimes contra a pessoa. 3. ed. – Niterói, RJ: Impetus, 2007, p. 6. 10 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial. Volume II: introdução à teoria geral da parte especial: crimes contra a pessoa. 3. ed. – Niterói, RJ: Impetus, 2007, p. 7.

19

critério da necessidade da proteção, de modo a reduzir ao mínimo indispensável as

restrições de bens jurídicos decorrentes da aplicação do Direito Penal.

Onde caibam outros procedimentos mais sutis para preservação ou

restauração da ordem jurídica, o Direito Penal não está legitimado a intervir. Ao

revés, o bem jurídico restaria comprometido ao passo em que aumentaria o

coeficiente de violência social. Assim, não é suficiente a tutela do bem jurídico contra

ataques de terceiros, devendo está garantido também contra ataques do próprio

Estado, a pretexto da aplicação do Direito Penal.

Sem dúvidas a resposta penal é o meio mais violento de controle social, o que

significa dizer que ela não pode ser eleita prima ratio pelo legislador para a

composição de conflitos, pois o pretexto de proteger determinados bens jurídicos

pode ceder espaço a um efeito inverso, permitindo o “Estado criar, sob o manto da

reserva legal, tipos penais iníquos e cominar sanções cruéis e degradantes”.

Bitencourt (2006, p. 17)

De acordo com Luiz Regis Prado, este princípio “aparece como uma

orientação político-criminal restritiva do jus puniendi e deriva da própria natureza do

Direito Penal e da concepção material de Estado Democrático de Direito” 11. O

mesmo autor constata ainda que “o uso excessivo da sanção criminal não garante

uma maior proteção de bens; ao contrário, condena o sistema penal a uma função

meramente simbólica negativa” 12.

O raciocínio imposto pelo princípio ora estudado, notadamente por seu

caráter subsidiário, é de vital importância. O jurista italiano Luigi Ferrajoli, cotejando

as espécies de delitos, sustenta entendimento segundo o qual as contravenções

penais deveriam ser completamente revogadas, haja vista que, conforme a sanção

cominada em abstrato, que revela na verdade a gravidade da infração penal, as

contravenções penais propõem-se à proteção dos bens que não são considerados

tão relevantes a ponto de serem tutelados pelos tipos penais que preveem os

crimes, asseverando que melhor seria, em atenção ao princípio da intervenção

mínima, que todas fossem abolidas, sendo os bens nelas previstos protegidos por

11 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro – Parte Geral. v.1. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 143. 12 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro – Parte Geral. v.1. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 143..

20

outras ramificações do ordenamento jurídico, a citar por exemplo a esfera do direito

civil e administrativo.13

A abordagem do instituto da intervenção mínima ganha contornos especiais,

entretanto, quando combinada à análise dos crimes contra a honra. Neste contexto,

há muito se questiona acerca da eficiência do Direito Penal na tutela da honra

objetiva e subjetiva do ofendido, bem como acerca da necessidade de uma melhor

adequação ou aperfeiçoamento das disposições do Código Penal em vigor através

de uma política criminal voltada para a consagração da intervenção mínima.

E essa necessidade se torna mais latente quando se evidencia que a máxima

criminalização de condutas, proclamada pelos meios midiáticos, não favorece a

redução das ocorrências policiais ou da população carcerária.

O hodierno ambiente de insegurança, descrédito e fragilidade jurídica passa a

estimular, agora, a concretização do princípio da intervenção mínima, cujas nuances

devem ser consideradas não somente na seleção dos bens sujeitos à tutela penal,

mas também no cotidiano forense quando da aplicação do direito ao caso concreto.

Assim, a efetiva redução da criminalidade e da população carcerária são

preocupações do mundo contemporâneo que somente serão alcançadas através de

alternativas mais racionais, eficazes e menos interventivas.

Em resumo, da análise do princípio da intervenção mínima conclui-se que o

Estado, através do Direito Penal, não deve interferir em demasia na vida do

indivíduo, de forma a tirar-lhe a liberdade e autonomia, devendo assim fazer

somente quando efetivamente necessário.

Esse princípio, finalmente, pode ser compreendido sob dois prismas: apenas

os bens jurídicos mais significativos devem receber a tutela penal; b) apenas as

ofensas mais intoleráveis devem ser sancionadas pelo Direito Penal.

3.2 LESIVIDADE

O princípio da lesividade, também conhecido como princípio da

“ofensividade”, da “danosidade” ou da “exclusiva proteção de bens jurídicos”,

13 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomeret alii. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 575.

21

igualmente invocado pelo brocardo latino nullum crimen sine iniuria ou nulla

necessitas sine injuria, traz consigo a ideia de que só haverá crime quando houver

efetivamente a constatação de um dano.

Conquanto não previsto expressamente na Constituição Federal, o princípio

da lesividade possui embasamento constitucional – embora implícito – além de

possuir fundamento legal.

O artigo 13 do código penal brasileiro prevê que o resultado de que depende

a existência de um crime apenas é imputável a quem lhe deu causa. Isto é, não é

suficiente, para criminalizar, que haja desvalor na conduta, eis que se exige, por

força legal, desvalor do resultado. Noutras palavras, sem resultado, sem ofensa,

sem prejuízo a bens jurídicos – ainda que na forma de ameaça concreta – não há

delito.

A lesividade constitui princípio fundamental para a própria legitimidade do

direito penal no Estado Democrático de Direito. O principio da lesividade, por sua

fundamentação, atende a duas finalidades no Direito Penal: serve de limite ao poder

de punir do Estado, e orienta a fixação da pena.

Nessa ordem de considerações, vale mencionar que, para o jurista italiano

Luigi Ferrajoli, o princípio da lesividade tem desempenhado um papel essencial na

definição do moderno Estado de direito e na elaboração, quando menos teórica, de

um direito penal mínimo, facilitando uma “fundamentação não teológica nem ética,

senão laica e jurídica, orientando-o para a função de defesa dos sujeitos mais

frágeis por meio da tutela de direitos e interesses considerados necessários e

fundamentais” 14.

Corolário do princípio da intervenção mínima, a lesividade exige que o direito

penal deva punir o crime apenas se a conduta lesionar ou expuser à lesão um bem

jurídico penalmente tutelado, uma vez que não é finalidade do direito penal moderno

a condenação e a punição de condutas rotuladas pela sociedade como imorais ou

impuras, por exemplo, tampouco podendo tutelar concepções ideológicas ou mesmo

religiosas.

São múltiplas as condutas rotuladas como “desviadas” ou prejudiciais ao

padrão de convívio social. Porém, nem todas devem se submeter ao rigor do Direito

Penal, mas tão somente aquelas que afetem bens jurídicos imprescindíveis para a

14 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomeret alii. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 374

22

vida em sociedade, isto é, comportamentos sobre os quais apenas a incidência da

sanção penal permitiria o restabelecimento da normalidade.

O direito penal interessa-se apenas por comportamentos capazes de gerar

dano social relevante a bens jurídicos essenciais. Em face do princípio abordado,

não se pode incluir no processo de criminalização todas as condutas que

representem ataque a qualquer bem jurídico protegido, permitindo a criminalização

apenas daquelas ações que ofendem ou colocam em perigo de ofensa bens

jurídicos dignos de tutela pelo Direito. Assim, exige-se uma valoração da conduta,

privilegiando não somente o conceito forma de delito, mas também o conceito

material.

Sob outro ponto de vista, é possível deduzir ainda da análise referido princípio

que a tipicidade passa a contar com um novo pré-requisito, que é exatamente o da

ofensa ao bem jurídico: o resultado jurídico passa a compor a estrutura do fato

típico, não sendo concebível que o juízo de tipicidade se limite a uma constatação

puramente formalista ou literal.

Para além do plano de simples subsunção, o fato torna-se típico quando o

bem jurídico, traduzido pela norma de valoração, é concretamente ofendido por uma

lesão ou através de um perigo concreto de lesão.

A propósito, convém transcrever o pensamento do professor Luiz Flávio

Gomes:

“Em um Estado Constitucional que se define, com efeito, como democrático e de Direito, e que tem nos direitos fundamentais seu eixo principal, não resta dúvida que só resulta legitimada a tarefa de criminalização primária que recai sobre condutas ou ataques concretamente ofensivos a um bem jurídico, e mesmo assim não todos os ataques, senão unicamente os mais graves (fragmentariedade)” 15.

Esse princípio também proíbe a incriminação de atitudes internas,

pensamentos, intenções ou desejos – fase de cogitação do iter criminis – assim

como veda as inculpações de condutas que não superam o limite do próprio agente,

como os atos preparatórios de um crime.

Por outro lado, o princípio da lesividade é usualmente recorrido para

fundamentar críticas em torno dos crimes de perigo abstrato previstos na legislação

15 GOMES, Luiz Flávio. Princípio da Ofensividade no Direito Penal. Série as ciências criminais no século XXI. vol. 6. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais: 2002, p. 89.

23

penal, qualificados por muitos doutrinadores como inconstitucionais, na conjuntura

do Estado Democrático de Direito, partindo-se da premissa de que, conforme

apregoado pelo princípio da lesividade, as infrações penais devem representar um

real e efetivo dano ou perigo de dano a bens juridicamente tutelados.

Para contribuir na reflexão sobre o princípio em análise, torna-se imperioso

registrar as contribuições da teoria do garantismo penal para o esclarecimento do

sentido e do alcance do princípio da lesividade na aplicação do direito penal,

transcrevendo para tanto as lições de Luigi Ferrajoli:

“O princípio de lesividade tem o valor de critério polivalente de minimização das proibições penais. E equivale a um princípio de tolerância tendencial da desviação, idôneo para reduzir a intervenção penal ao mínimo necessário e, com isso, para reforçar sua legitimidade e credibilidade. Se o direito penal é um remédio extremo, devem ficar privados de toda relevância jurídica os delitos de mera desobediência, degradados a categoria de dano civil os prejuízos reparáveis e a de ilícito administrativo todas as violações de normas administrativas, os fatos que lesionam bens não essenciais ou os que são, só em abstrato, presumidamente perigosos, evitando, assim, a “fraude de etiquetas”, consistente em qualificar como “administrativas” sanções restritivas da liberdade pessoal que são substancialmente penais” 16.

Todavia, o princípio da ofensividade em sua fórmula garantista e material, até

o momento, não vem encontrando ressonância efetiva em todas as incriminações

existentes no sistema jurídico e tampouco foi reconhecido explicitamente nos

modernos e democráticos ordenamentos constitucionais. Porém, não menos

verdade é que, como princípio de garantia, com claro sentido político e limitador, a

lesividade conta, nas palavras do já citado professor Luiz Flávio Gomes, com força

suficiente para:

“constituir um ‘ponto de ruptura’ no circolus vitiosus da hermenêutica jurídico-penal, até porque nenhum sistema penal está legitimado a sacrificar a liberdade individual senão quando incrimina fatos significativamente ofensivos a bens jurídicos de relevância pessoal indiscutível” 17.

16 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomeret alii. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 383/384. 17 GOMES, Luiz Flávio. Princípio da Ofensividade no Direito Penal. Série as ciências criminais no século XXI. vol. 6. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais: 2002, p. 14.

24

Ante o exposto, e considerando as orientações do princípio da Lesividade,

estão proibidas as configurações de tipos penais nos quais não existam lesão grave

ou perigo concreto de lesão a bens tutelados juridicamente, assim como devem ser

afastadas condenações criminais nas quais haja adequação da conduta à norma

sem, contudo, estar presente ofensa a bem protegido pelo direito.

Assim, apenas podem ser colocadas na categoria de crime condutas que,

efetivamente, impeçam o satisfatório conviver em sociedade, e se for de tal

proporção que justifique a intervenção penal.

Confrontando o princípio da lesividade com a possibilidade da retratação da

injúria, dentro de uma visão constitucional-penal, Thiago Solon Gonçalves Albeche

assevera com propriedade que:

“Uma vez efetuado o pedido de desculpas, exteriorizado o reconhecimento do erro àquele que teve um dissabor íntimo pela ofensa ao sentimento que tem de si próprio, a sua autoestima, enxergamos verdadeiro limite à continuidade da persecução criminal, porque a conduta de se autopenitenciar perante o ofendido é suficiente para minimizar – senão muitas vezes aniquilar – a sensação de desvalor moral experimentada, e, por conseguinte, a própria lesividade da conduta. Assim, a ação inicialmente lesiva perde drasticamente seu conteúdo substancial pejorativo, o que a torna pouquíssimo lesiva – ou nada lesiva – determinando a extinção da punibilidade com base no acolhimento da retratação” 18.

Como se verá mais adiante, a utilidade e a eficácia da retratação são capazes

de esvaziar substancialmente o tipo penal da injúria, retirando a lesividade social da

conduta e consequentemente a legitimidade do Direito Penal.

3.3 PROPORCIONALIDADE

A proporcionalidade encontra-se em uma categoria de princípios cujo

conteúdo é mais facilmente compreendido do que definido ou conceituado. Diante

desta aparente dificuldade, atribuída talvez ao dinamismo que lhe é intrínseco, é

comum os autores recorrerem à origem etimológica da palavra na busca por uma

definição teórica, deparando-se quase sempre com o conceito relacional de

18 ALBECHE, Thiago Solon Gonçalves. A retratação no delito de injúria – possibilidades dentro de uma visão constitucional-penal. 1ª ed. Rio Grande do Sul: Nuria Fabris, 2009, p. 34/35.

25

proporção, conformidade e harmonia entre partes de um todo. Registre-se, a

propósito, os ensinamentos do professor Humberto Ávila:

Sua origem reside no emprego da própria palavra “proporção”. A ideia de proporção é recorrente na Ciência do Direito. Na Teoria Geral do Direito fala-se em proporção como elemento da própria concepção imemorial de Direito, que tem a função de atribuir a cada um a sua proporção. 19

Importando-se a referida noção etimológica para as ciências jurídicas, pode-

se afirmar que a proporcionalidade surge em face da necessidade de harmonização

e legitimação dos direitos fundamentais, baseando-se na relação de causalidade

entre o meio empregado e a finalidade da medida (relação de meios e fins).

Do mesmo modo como a intervenção mínima, o princípio da

proporcionalidade também se aperfeiçoou com a transição do Estado de polícia para

o Estado de direito, surgindo como uma forma de controle do excesso de poder dos

monarcas, que alcançavam os fins da forma que lhes aprouvessem, notadamente

através do uso desmedido e arbitrário dos meios disponíveis.

A proporcionalidade tornou-se uma exigência do Estado Democrático de

Direito, no sentido de consagrar a proteção do indivíduo contra intervenções estatais

desnecessárias, abusivas ou excessivas, capazes de gerar danos mais graves aos

cidadãos quando comparados ao indispensável para a consecução dos interesses

públicos.

Assim, as bases do princípio da proporcionalidade foram fixadas a partir da

conscientização de que existem direitos e liberdades individuais oponíveis aos

interesses – até então soberanos – da Administração. O princípio em comento surge

como uma forma de regular a ingerência do Estado na vida particular do cidadão,

cujos direitos somente seriam limitados quando um interesse coletivo superior

prevalecesse.

Embora o crédito pela implantação de suas bases seja comumente atribuído à

seara do direito administrativo, o princípio da proporcionalidade também encontra

terreno fértil no Direito penal. De acordo com o princípio da proporcionalidade, as

penas cominadas em abstrato devem guardar a devida proporção com a gravidade

19 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios, da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 112.

26

da conduta praticada, do fato delituoso, regulando desta forma a extensão da

resposta estatal aos delitos.

O Estado fica impedido, portanto, de prever em abstrato penas exacerbadas e

que não traduzam na mesma medida os anseios de retribuição da sociedade. Afinal,

como já asseverava o Barão de Montesquieu no século XVIII, é tirânica toda pena

que não derive da necessidade absoluta. Outra nuance do princípio da

proporcionalidade se refere à imposição concreta pelo julgador, sendo-lhe defesa a

aplicação de pena excessiva ao cidadão.

Diante do princípio ou da proporcionalidade, não parece ter sido propositada –

muito menos acertada – a impossibilidade de retratação em caso de injúria,

bastando observar e comparar, para tanto, que neste a penalidade atribuída é muito

menos severa do que na difamação e na calúnia.

Estas duas ofensas, para sua consumação, devem alcançam proporções que

necessariamente venham a repercutir na sociedade, o que, rigorosamente, torna o

dano mais acentuado, mas nem por isso o instituto da retratação deixou de ser

aplicado nestes casos.

Na injúria, porém, os efeitos “nocivos” são muito mais restritos, podendo não

ultrapassar a esfera de intimidade da vítima e não chegar ao conhecimento de

terceiros, o que seguramente torna o crime menos grave quando cotejado com a

publicidade das declarações proferidas no âmbito da difamação e da calúnia. Por

que então não aceitar a retratação em casos de injúria? Se é admitida a retratação

em crimes cujo resultado danoso é mais amplo, por que não admiti-la em caso de

menor monta?

A máxima latina “a maiori, ad minus” 20, sem dúvida, é raciocínio válido para a

resposta perquirida. Compartilhando de semelhantes premissas, o jurista argentino

Sebastian Soler inclinou-se a “admitir la retractación em toda modalidade de injuria,

por la simple razón de que mucho más grave que una bofetada es uma calumnia, y

es retractable”21.

O argumento da desproporcionalidade também foi apreciado pelo professor

Aloysio Carvalho Filho, em seus eternos comentários ao código penal: 20 Forma de argumentação jurídica, comumente utilizada para interpretações extensivas da Lei, que estabelece que o que é válido para o mais, deve necessariamente prevalecer para o menos, ou mais popularmente Cui licet quod est plus, licet utique quod est minus ("quem pode o mais, pode o menos"). 21 SOLER, Sebastian. Derecho penal argentino. Buenos Aires: Tipografica Editora Argentina, 1970, v.3, p. 261.

27

“Se o legislador pune a injúria com penas mais leves do que a difamação, e muito mais leves do que a calúnia, é, de certo, por considerar o injuriador menos perigoso do que o caluniador ou o difamador. E de fato é. Assim, seria contrassenso proporcionar aos delinquentes mais temidos e recusar aos menos o ensejo de se livrarem da pena, pela retratação” 22.

A linha de argumentação sustentada não pretende, de modo algum, reduzir a

importância da tipificação dos crimes de injúria, mas apenas adequá-la ao regime

estabelecido para as duas outras subespécies, conferindo mais proporcionalidade

entre a pena imposta e o fato gerador, consagrando tratamento idêntico aos

ofensores do mesmo bem jurídico (honra em sentido amplo), argumento que será

apresentado com maior profundidade no próximo capítulo.

3.3.1 Subprincípios ou “Máximas” da Proporcionalidade

Na atualidade, a princípio da proporcionalidade tem sido abordado sob

diversos aspectos pela comunidade acadêmica, que parece ter melhor

recepcionado, contudo, a compreensão do princípio a partir da classificação das

normas jurídicas apresentada por Robert Alexy em sua teoria dos direitos

fundamentais23, ao discorrer sobre a acepção da proporcionalidade, dividindo-a em

três planos ou definições: adequação, necessidade e proporcionalidade stricto

sensu.

De acordo com o Autor germânico, que prefere registrar a proporcionalidade

como “máxima” 24, a resolução para os conflitos e colisões entre direitos

fundamentais encontra-se nos critérios racionais de ponderação e fundamentação

válida, segundo os quais os valores devem ser sopesados conforme as

possibilidades jurídicas e fáticas que o caso concreto apresenta.

Dessa forma, o Autor propõe uma técnica de ponderação assentada nas três

máximas citadas, que permite a aferição da relação entre fins e meios de modo

22CARVALHO FILHO, Aloysio de. Comentários ao Código Penal. vol. IV, Arts. 102 a 120. Forense, Rio. 4ª ed. 1958, p. 288. 23 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2011. 24 Para Robert Alexy, a proporcionalidade não traduz propriamente um princípio, mas um dever derivado do efeito lógico do caráter das normas, razão pela qual assevera não ser possível determinar um fundamento positivo da proporcionalidade no texto constitucional.

28

escalonado, favorecendo inclusive a um melhor controle sobre as medidas

administrativas, judiciais e legislativas.

Neste mesmo sentido são os ensinamentos apresentados por Humberto

Ávila, ao melhor esclarecer, em tom de advertência, o conceito etimológico de

proporcionalidade inicialmente proposto:

O postulado da proporcionalidade não se confunde com a idéia de proporção em suas mais variadas manifestações. Ele se aplica apenas a situações em que há uma relação de causalidade entre dois elementos empiricamente discerníveis, um meio e um fim, de tal sorte que se possa proceder aos três exames fundamentais: o da adequação (o meio promove o fim ?), o da necessidade (dentre os meios disponíveis e igualmente adequados para promover o fim, não há outro meio menos restritivo do(s) direito(s) fundamentais afetados?) e o da proporcionalidade em sentido estrito (as vantagens trazidas pela promoção do fim correspondem às desvantagens provocadas pelo adição do meio?).25

A máxima da adequação (ou da idoneidade) reflete, como mandamento

parcial da proporcionalidade em sentido amplo, a idoneidade da correlação entre

meio e fim, impondo que as medidas adotadas pelo administrador, julgador e

legislador devem ser adequadas para alcançar a finalidade pretendida.

O que se examina nesta etapa é qual a conduta mais apropriada para a

realização da finalidade normativa, executiva ou judicial, sendo válido anotar ainda

que o subprincípio da adequação não despreza, nos dizeres de Humberto Ávila,

uma relação empírica entre os elementos fim e meio, ressaltando neste particular

que “o meio deve levar à realização do fim. Isso exige que o administrador utilize um

meio cuja eficácia (e não o meio, ele próprio) possa contribuir para a promoção

gradual do fim” 26.

Por sua vez, a máxima da necessidade reflete a indispensabilidade dos meios

empregados para alcançar o fim desejado, impondo a investigação sobre a possível

existência de alternativas ou medidas menos onerosas aos titulares dos direitos.

Dentre os meios disponíveis, a máxima da necessidade exige que seja eleito

pelo operador o meio que assegure o menor sacrifício e a maior otimização das

normas.

25 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios, da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 112. 26 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios, da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 116.

29

Todavia, ressalte-se que a análise acerca da eventual necessidade de

determinadas medidas não é tarefa das mais fáceis, sobretudo quando se considera

o grau de afetação dos direitos fundamentais coexistentes nas variadas relações

jurídicas.

Nesse sentido, colhe-se mais uma vez os ensinamentos de Humberto Ávila,

em estudo aprofundado sobre o tema:

O exame da necessidade não é porém, de modo algum singelo. Isto porque, como foi mencionado, a comparação do grau de restrição dos direitos fundamentais e do grau de promoção da finalidade preliminarmente pública pode envolver certa complexidade. Quando são comparados meios cuja intensidade de promoção do fim é a mesma, só variando grau de restrição, fica fácil escolher o meio menos restritivo. Os problemas começam, porém, quando os meios são diferentes não só no grau de restrição dos direitos fundamentais, mas também no grau de promoção da finalidade. Como escolher entre um meio que restrinja pouco um direito fundamental mas, em contrapartida, promove pouco o fim, e um meio que promove bastante o fim mas, em compensação, causa muita restrição a um direito fundamental.27

Finalmente, a máxima da proporcionalidade em sentido estrito reflete o

próprio juízo de ponderação sobre os direitos, interesses e objetivos, estabelecendo

que sejam sopesadas as medidas administrativas, judiciais e legislativas de acordo

com as particularidades do caso concreto, reduzindo o sacrifício dos bens e dos

valores em conflito.

Impõe-se, nessa perspectiva, a comparação entre os benefícios e os

malefícios da medida adotada, delimitando o nível de importância não somente dos

interesses legitimados pelos critérios de adequação e necessidade, mas também

valorando e sopesando a restrição que será imposta, em contrapartida, aos direitos

fundamentais afetados no caso concreto.

Noutras palavras, pode-se afirmar que a proporcionalidade em sentido estrito

de um processo decisório deve ser “examinada diante da comparação entre a

importância da realização do fim e a intensidade da restrição aos direitos

fundamentais” 28.

27 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios, da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 124. 28 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios, da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 124.

30

Assim, a despeito da eventual adequação e necessidade da via eleita, não

guardará proporcionalidade estrita a medida cuja carga de ônus seja muito mais

acentuada do que as benfeitorias derivadas dos discursos em torno das finalidades.

Nesse diapasão, os “ganhos” deverão superar as “perdas”.

Nesta ordem de considerações, é possível aprofundar as discussões em torno

do tema deste trabalho monográfico de acordo com os conceitos trazidos pelos

subprincípios da proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade

em sentido estrito), impondo as seguintes indagações: A imprevisão da retratação da

injúria é adequada para a tutela da honra? É necessária? É indispensável? Existem

meios alternativos? O bem jurídico tutelado justifica o sacrifício do instituto da

retratação?

Embora plenamente não convencido sobre a adequação da restrição da

retratação no delito de injúria, Thiago Solon Gonçalves Albeche admite essa faceta

da proporcionalidade ao considerar que “com a proibição do instituto despenalizador

o agente sentir-se-ia intimidado e não cometeria a infração” 29.

Todavia, o referido Autor não vislumbra o aspecto da necessidade,

asseverando a existência de solução menos gravosa para aquele que incorre no

crime de injúria e que, após, pretende a reparação do dano pela via da retratação:

“O tolhimento da retratação não é medida indispensável para se tutelar a honra do ofendido. O reconhecimento da culpa, do erro, de forma cabal e inequívoca, pode cumprir essa função: trazer menor gravosidade ao direito de igualdade do ofensor preservando o bem jurídico honra. A imposição de uma pena não é medida indispensável para a proteção da honra frente à possibilidade de se adotar um instituto que o faça com a mesma eficiência e menor prejuízo ao acusado” 30.

Desse modo, as razões apresentadas dão conta de que a opção legislativa

em torno da ineficácia da retratação ao crime de injúria encontra-se em

desconformidade com o princípio da proporcionalidade, notadamente no plano da

necessidade, não se revestindo tal opção da exigida indispensabilidade para a tutela

da honra do injuriado, máxime quando dispensável nas duas outras hipóteses em

29 ALBECHE, Thiago Solon Gonçalves. A retratação no delito de injúria – possibilidades dentro de uma visão constitucional-penal. 1ª ed. Rio Grande do Sul: Nuria Fabris, 2009, p. 35. 30 ALBECHE, Thiago Solon Gonçalves. A retratação no delito de injúria – possibilidades dentro de uma visão constitucional-penal. 1ª ed. Rio Grande do Sul: Nuria Fabris, 2009, p. 36.

31

que se tutela a honra do caluniado e do difamado, ou seja, em figuras típicas com

pena mais graves.

Ademais da utilidade da retratação, considerada por muitos doutrinadores

como mais vantajosa para o ofendido do que a própria aplicação da pena ao

ofensor, como será abordado nos próximos capítulos, saliente-se, por fim, a

existência da alternativa civilista para a tutela da honra do ofendido, como já

apregoado pelo princípio da mínima intervenção, o que reforça a “desnecessidade”

da pena de detenção em casos de retratação da injúria.

32

4 O BEM JURÍDICO HONRA

Como se sabe, o Código Penal brasileiro confere apenas ao agente da

calúnia e da difamação a possibilidade de se retratar cabalmente por suas ofensas,

nada dispondo acerca da terceira modalidade de crime contra honra. O silêncio nada

eloqüente31 do legislador infraconstitucional passou a demandar, evidentemente,

explicações que não se esgotam nas linhas do artigo 143 do Código Penal

Brasileiro.

Afinal, como ponderado pelo professor Paulo Roberto da Silva Passos, “se a

lei penal não autoriza expressamente a extensão da retratação à injúria, da mesma

forma, explicitamente, tal não veda”. 32

A doutrina pátria, na condição de fonte mediata de interpretação, costuma

justificar a apontada reticência legislativa através de dois argumentos que se

destacam pela insistente reprodução nas obras literárias.

O discurso doutrinário, que repousa, basicamente, sobre a tradicional

classificação do bem jurídico tutelado e sobre as consequências advindas da

retratação no caso concreto, submete-se neste capítulo a um exame mais detido e

pormenorizado, orientado não apenas pelo necessário enfrentamento da matéria

sob a ótica pragmática, mas sobremaneira pela consideração aos posicionamentos

teóricos que emanam de algumas vozes altamente gabaritadas e que,

invariavelmente, ecoam de forma uníssona entre as demais.

4.1 NOÇÕES GERAIS

O Bem pode abranger um sentido amplo, isto é, ser determinado como tudo

aquilo que se mostra necessário, valioso, útil. Percebe-se, contudo, que para o

31 A omissão deliberada do legislador, não casual, traduz a hipótese em que a doutrina alemã cunhou com a expressão “silêncio eloquente” (beredtes Schweigen), que é o silêncio que traduz que a hipótese contemplada é a única a que se aplica o preceito legal, não se admitindo, portanto, aí o emprego da analogia. A propósito, a exclusão não parece ter sido despropositada por parte do legislador, já que na exposição de motivos do código também se faz referência aos crimes de calúnia e difamação, no particular da retratação, silenciando-se sobre o de injúria. 32 PASSOS, Paulo Roberto da Silva. Da possibilidade de retratação em casos de injúria. Disponível em: <http://www.ibccrim.org.br> Acesso em 06 de setembro de 2011.

33

Direito o conceito de bem suplanta a mera concepção coisa material (útil,

necessária) ou imaterial (valiosa).

A busca pela definição do conceito de bem jurídico é impulsionada pela

necessidade de se compreender o próprio conteúdo material do injusto penal (ou

antijuridicidade material) e de descobrir, por conseguinte, a importância e a essência

dos valores que se encontram albergados pelas normas jurídicas, em especial pelas

normas jurídico-penais.

É comum a definição de que os bens jurídicos constituem valores ou

interesses protegidos pelo Direito na medida em que são pressupostos necessários

para que as pessoas desenvolvam sua vida social, podendo ser de natureza

individual (vida, liberdade, honra, etc.) ou comunitária (saúde pública, segurança do

Estado, meio ambiente, dentre outros) 33.

No entendimento de Hans Welzel, citado por Albeche, tem-se o bem jurídico

como sendo:

“um bien vital de la comunidade o del individuo, que por su significación social es protegido juridicamente. De acuerdo al substrato puede aprecer em las más diferentes formas: como objeto psicofísico o espiritual-ideal (por ejemplo, aquél, la vida – esto, el honor)”34

Certo é que, independentemente do conceito que se adote de bem jurídico,

ora enfatizando um bem juridicamente considerado, como é o caso da honra, ora

levando em consideração um bem de interesse coletivo ou social, a escolha deverá

recair somente sobre aqueles que gozarem da importância exigida pelo Direito

Penal, a fim de que o princípio da intervenção mínima, outrora abordado, seja

atendido 35.

Assim, é possível afirmar que nem todo bem é jurídico, da mesma forma que,

devido ao caráter limitado imposto pelo princípio da intervenção mínima, deve-se ter

33 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial. Volume II: introdução à teoria geral da parte especial: crimes contra a pessoa. 3. ed. – Niterói, RJ: Impetus, 2007. 34 ALBECHE, Thiago Solon Gonçalves. A retratação no delito de injúria – possibilidades dentro de uma visão constitucional-penal. 1ª ed. Rio Grande do Sul: Nuria Fabris, 2009, p. 15. 35 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial. Volume II: introdução à teoria geral da parte especial: crimes contra a pessoa. 3. ed. – Niterói, RJ: Impetus, 2007.

34

em mente ainda que nem todo bem jurídico se encontra sob a tutela do Direito

Penal.

Luigi Ferrajoli adverte, também, que não se pode conferir ao bem jurídico um

conceito exaustivo, haja vista que as teorias que o abordam servem, unicamente,

para oferecer uma série de critérios negativos de “deslegitimação”, realçando, assim,

sua função limitadora, cuja lesão é condição necessária, mas não suficiente, para a

proibição e punição 36.

No caso da honra, é importante frisar que se trata de um bem jurídico tutelado

constitucionalmente, cuja inviolabilidade encontra-se garantida pela previsão

expressa do artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal da República, no qual: “são

invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas,

assegurado o direito a indenização pelo dano material e moral decorrente da sua

violação”.

A honra, como bem jurídico, possui características muito especiais: trata-se

de um bem de valoração relativa, à medida que nem todas as pessoas julgam a sua

honra de igual modo.

Para algumas pessoas, sua honra vale mais que sua própria vida, de modo

que não hesitariam em sacrificar esta para defender aquela.

Outras pessoas dão, por sua vez, tão pouco valor à sua honra que não se

importam em sacrificá-la diante de qualquer vantagem patrimonial, por exemplo, que

a ocasião venha a lhe proporcionar.

Sobre a relatividade da honra, ressalta-se as preciosas considerações de

Muñoz Conde:

“A honra é um dos bens jurídicos mais sutis e mais difíceis de apreender desde o ponto de vista jurídico-penal. Isso se deve, sobretudo, a sua relativização. A existência de um ataque a honra depende das mais diversas situações, da sensibilidade, do grau de formação, da situação tanto do sujeito passivo como do ativo, e também das relações recíprocas entre ambos, assim como das circunstâncias do fato” 37

36 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomeret alii. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. 37 MUÑOZ CONDE, Francisco. Derecho penal – Parte especial. 14. ed. Valencia: Tiran lo Blanch, 2002.

35

4.2 CLASSIFICAÇÃO

Arthur Schopenhauer (1788-1860), filósofo do século XIX, afirmara certa feita

que a honra é, objetivamente, a “opinião dos outros” acerca do nosso valor, e,

subjetivamente, o “nosso medo dessa opinião”.

Na concepção do filósofo alemão, o conceito de honra está ligado

intimamente ao de consciência, tendo em vista o juízo de outros quanto ao

comportamento de seus semelhantes. A honra, nessa perspectiva filosófica, é a

consciência externa e a consciência vem a ser a honra interna.

A honra, como é possível compreender, não se forma somente a partir de

sentimentos internos (subjetivos), mas também em termos de reconhecimento

social, ainda que em grau mínimo, em que pese às observações de Schopenhauer

segundo o qual o homem não se deveria “importar tanto com as opiniões dos

demais”.

Isso porque a personalidade humana é construída tanto por sua

individualidade quanto por sua sociabilidade. A esse respeito, é salutar transcrever

os memoráveis esclarecimentos de Emiliano Borja Jiménez, citado por Rogério

Greco:

“A pessoa humana se caracteriza tanto por sua individualidade como por sua sociabilidade. Como ente social, o ser humano se integra na comunidade, se relaciona com seus semelhantes na família, na escola, no trabalho, nos centros de lazer etc. Essa abertura do sujeito até os demais leva acompanhado não somente seu reconhecimento pessoal pelo grupo, senão também que cada um dos indivíduos fique identificado por nosso trabalho, nossa capacidade, nossa bondade ou maldade, por nossa cultura, etc. Quer dizer, junto a nossa imagem física, que constitui o primeiro dado de nossa identidade que oferecemos à comunidade, e encontra nossa imagem social, que vem constituída por um conjunto de valorações sobre distintos aspectos de nossa personalidade e nosso comportamento. Quanto mais positiva seja essa imagem social, maiores condições terá o indivíduo para desenvolver livremente sua personalidade e ser mais feliz. E, vice-versa, quanto mais negativa seja dita imagem, maiores problemas encontrará o sujeito para levar

36

a cabo sua vida em comum com seus semelhantes, e possivelmente seja mais desgraçado”38

Por tais considerações, pode-se afirmar seguramente que o direito à honra

tutela tanto o sentimento valorativo interno que cada qual nutre de si mesmo como o

respeito, a consideração, a boa fama e a estima que a pessoa desfruta nas relações

sociais.

Assim, e sob o pretexto de melhor entender os crimes de injúria, calúnia e

difamação, a doutrina costuma subdividir o bem jurídico honra em dois aspectos:

subjetivo e objetivo.

A honra subjetiva, na qual se costuma compreender o crime de injúria, refere-

se portanto ao conceito que o sujeito nutre sobre si, aos valores que ele se auto

atribui.

Noutro quadrante, a honra objetiva, na qual se compreendem os crimes de

calúnia e difamação, perfaz-se pelo juízo que os demais possuem sobre a

personalidade do indivíduo, valorando-a negativamente quando maculada pela

conduta levada a efeito pelo ofensor.

A distinção entre as duas espécies de honra torna-se didática no estudo

isolado de um crime e outro, pois esses diferentes tipos de honra permitem distinguir

os crimes de calúnia e difamação (que atingem a honra objetiva) do crime de injúria

(que atinge a honra subjetiva do sujeito), sendo que esses crimes possuem penas e

regimes de cumprimento destas penas bem diferentes.

A classificação, como se verá com maiores detalhes posteriormente, ainda

encontra importância no esclarecimento do período da consumação do crime, já que

a calúnia e a difamação se perfectibilizam pelo conhecimento da ofensa por

terceiros, ao passo que a injúria se consuma no instante em que o próprio

destinatário da ofensa experimenta o incômodo.

Todavia, partindo-se de uma visão crítica sobre os crimes contra a honra, já

iluminada pela abordagem dos princípios da intervenção mínima, lesividade e

proporcionalidade, bem como pela compreensão do bem jurídico em sua acepção

38 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial. Volume II: introdução à teoria geral da parte especial: crimes contra a pessoa. 3. ed. – Niterói, RJ: Impetus, 2007, p. 415.

37

ampla, tornará forçoso registrar críticas em torno da concepção bipartida da honra,

revisitando os critérios que tradicionalmente definem a honra subjetiva e que lhe

impõe um regime diferenciado.

4.3 REDEFININDO A TUTELA DA HONRA SUBJETIVA

A injúria ocupa-se, primordialmente, da imputação de predicados que,

independente da repercussão objetiva, ostentam a aptidão de afetar a honra em seu

plano interno. A subjetividade do bem jurídico é franqueada pela imputação de

atributos, vícios ou defeitos relativos à pessoa do ofendido e, necessariamente, por

ele suportados.

Encarregando-se da antecipação do conteúdo material da injúria, o texto legal

delimitou o bem jurídico ao eleger dois conceitos que quase se confundem pela linha

tênue que os separa: a dignidade e o decoro.

O primeiro conceito costuma ser associado ao valor social que o próprio

indivíduo nutre sobre sua pessoa, resumindo-se em todo e qualquer atributo de

cunho moral definidor da personalidade. O decoro, a seu turno, compõe-se pelas

qualidades de ordem física e intelectual construtoras da autoestima.

A distinção não parece digna de notas, já que o autossentimento de

honorabilidade (dignidade) e de respeitabilidade (decoro) são nada mais que faces

de uma mesma moeda, a denominada honra subjetiva.

Não apenas para fins didáticos, a honra latu sensu passou a ser seccionada

em dois planos teóricos, como já visto, que acabam repercutindo e muito na

aplicação do direito penal e, não raro, cedendo espaço para dúvidas e

questionamentos no caso concreto.

A classificação dogmática, predominante inclusive na doutrina internacional,

tem excluído da injúria a configuração por fatos determinados como criminosos ou

desonrosos, reservando-os ao plano de tipificação da calúnia e da difamação,

respectivamente, por sua suposta objetividade.

Mas ao que tudo indica a imputação de fatos ultrajantes, por exemplo,

também pode repercutir sobre o aspecto interno da honra, assim como a atribuição

38

de predicados ofensivos ao indivíduo pode causar desprestígio social quando

presenciada, divulgada ou propalada por terceiros.

Nesse mesmo sentido, exemplifica com propriedade o professor Rogério

Greco:

“Uma palavra que pode ofender a honra subjetiva do agente também poderá atingi-lo perante a sociedade da qual faz parte. Chamar alguém de mau-caráter, por exemplo, além de atingir a dignidade do agente, macula sua imagem no meio social” 39.

Logo, as subespécies de crime contra honra parecem se definir mais pelo

objeto da mensagem do que pela classificação tradicional que paira sobre o bem

jurídico.

Noutras palavras, a subjetividade e a objetividade da honra são aspectos que

podem ser atingidos simultaneamente por qualquer das modalidades, não

guardando com estas um caráter exclusivo, mas somente determinante.

Nesta perspectiva, questiona-se se as convenções que pairam sobre os

crimes contra a honra seriam suficientes para impedir o concurso formal dos crimes

de calúnia e injúria, por exemplo, derivados de uma única afirmação falsa de crime

que penalize emocionalmente e moralmente a vítima, em sua sagrada esfera de

subjetividade.

Há quem entenda, inclusive, que a mera alusão a fatos genéricos e abstratos

desencadeia no crime de injúria. Com razão, pois enunciar de modo vago e

impreciso que alguém costuma praticar crimes sem, contudo, especificá-los pela

espécie, pelo sujeito passivo e pelas circunstâncias, é nada mais que atribuir o

predicado negativo de “criminoso” com outras palavras.

Se se diz que alguém não paga as suas contas, injuria-se da mesma forma.

Nessas ocasiões, não se pode recusar a abrangência da injúria sobre factos40, ainda

que genericamente enunciados ou subentendidos.

39 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial. Volume II: introdução à teoria geral da parte especial: crimes contra a pessoa. 3. ed. – Niterói, RJ: Impetus, 2007, p. 417. 40 Eis um dos elementos objetivos do crime de injúria tipificado pelo artigo 181º, 1, do Código Penal português, substanciado necessariamente no plural para diferenciar-se da espécie circunvizinha da difamação: “Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou

39

Nesse mesmo sentido tem sido o entendimento do Supremo Tribunal Federal

(RT 820/490):

Calúnia, difamação e injúria: distinção - STF: Para a caracterização dos crimes de calúnia e difamação requer-se que a imputação verse sobre fato determinado. Embora desnecessário maiores detalhes, essencial é que o fato seja individualizável, tenha existência histórica e possa, assim, ser identificado no tempo e no espaço. Se for criminoso, poderá haver calúnia e, em caso contrário, difamação. Ausente a determinação, configura-se apenas o delito de injúria. Situação concreta em que o denunciado atribuiu qualidades negativas ao ofendido, relacionadas a fatos vagos e imprecisos, o que afasta a possibilidade de enquadramento da conduta como difamação, restando a viabilidade de qualificar a hipótese como crime de injúria (...)

Cogitando a não remota existência de dúvidas sobre a atribuição de fato ou

qualidade negativa, o professor Cezar Roberto Bitencourt recomenda ao intérprete a

preferência pela injúria, asseverando se tratar da “figura menos grave das três que

lesam a honra, mas especialmente por ser a mais abrangente, pois toda calúnia ou

difamação injuriam o destinatário, mas nenhuma injúria o calunia ou o difama” 41,

recomendação da qual se vislumbra uma acertada homenagem ao princípio da

tipicidade.

Com efeito, a visão fragmentada da honra tem sido utilizada com frequência

para justificar a inadmissibilidade da retratação no delito de injúria. A honra objetiva,

por contemplar o conceito da sociedade sobre o indivíduo, restaria pacificamente

compatível com o instituto da retratação do agente, mesmo porque expressamente

consignada em lei.

Ao revés, à honra subjetiva fora aplicada uma espécie de antídoto dogmático

que a torna imune e indisponível aos efeitos da retratação.

Nas palavras de Aníbal Bruno apud Cezar Roberto Bitencourt, na injúria

haveria só a “ofensa da palavra ou do gesto, que ninguém pode retirar” 42, não

dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até três meses ou com pena de multa até 120 dias”. 41 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, 2: parte especial: dos crimes contra a pessoa. 9ª ed. – São Paulo: Saraiva, 2009, p. 319. 42 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, 2: parte especial: dos crimes contra a pessoa. 9ª ed. – São Paulo: Saraiva, 2009, p. 355.

40

tendo, em uma primeira análise, o condão de desagravar a vítima tampouco de

requalificar o seu crédito social.

Ou seja, como na injúria o agravo não repousa especificamente sobre fatos

submissos ao conceito da sociedade em relação ao indivíduo, mas sobre o conceito

dele próprio, o “amor-próprio”, não haveria desdito ou desmentido que pudesse

contornar as palavras outrora proferidas.

O raciocínio acima mencionado restringe a manifestação da injúria às

expressões ou atitudes insultantes e que não concretizam acusações, o que retiraria

do tipo penal o conteúdo ideológico necessário e capaz de ensejar os efeitos da

retratação.

Por ofender a honra subjetiva, inerente à pessoa, restaria prejudicada a

avaliação sobre a extensão dos danos causados à vítima. A subjetividade da honra

acabaria operando de tal modo que, fixado por razões político-criminais, retiraria do

agressor a possibilidade de retratar-se ou, em assim procedendo, de autodeterminar

seu arrependimento pela produção de efeitos jurídicos.

Em que pese a inexistência de uma thema probandum no crime de injúria,

pondera o professor Edgar Magalhães Noronha apud Paulo Roberto da Silva Passos

não ser isso razão bastante, advertindo em sua clássica obra que:

“o arrependimento não é privativo de quem imputa um fato, e a retratação não é ensejada apenas pela falsidade – que, aliás, não existe na difamação – mas também pelo comportamento leviano ou apressado. É sempre uma confissão de meo culpa. Considere-se, por fim, que as vezes a injúria envolve fatos, embora genericamente enunciados ou subentendidos”43.

Em apertada síntese, mas rompendo a uniformidade e o estado de letargia

com que o assunto vinha sendo tratado nos manuais de direito penal, o professor

Julio Fabbrini Mirabete insurgiu-se a favor da retratação da injúria ao sustentar com

suas próprias palavras que:

43 PASSOS, Paulo Roberto da Silva. Da possibilidade de retratação em casos de injúria. Disponível em: <http://www.ibccrim.org.br> Acesso em 06 de setembro de 2011.

41

“não nos parece justificável, entretanto, a exclusão da isenção quanto à injúria. Embora nesta não haja um fato definido a ser desmentido, na retratação há um pedido de desculpas e uma confissão de erro que reparariam o mal praticado” 44

Por sua vez, Basileu Garcia já investigava em seu tempo as razões e

supostas diretrizes tomadas pelo Código ao excetuar a injúria da ingerência da

causa que extingue a punibilidade, asseverando que nem por isso se deve apoiá-la,

justificando-se da seguinte maneira:

“Porque a retratação não traduz, apenas, a confissão de uma falsidade. Visa, de modo geral, manifestar o arrependimento ativo do ofensor pelo agravo irrogado, o reconhecimento de que, com ou sem a positivação de fatos desmoralizadores, a sua conduta foi injusta. Tal atitude, de apreço à verdade, é perfeitamente possível ao injuriador. Não só ao caluniador e ao difamador” 45.

A propósito, ao sustentar as suas razões, o professor Basileu Garcia

observara que, diante de expressões obscuras ou ambíguas, o ofensor pode não

apenas por difamação ou calúnia, como também por injúria, proceder a uma espécie

de retratação indireta ao prestar explicações ao ofendido, a pedido deste, nos

termos do artigo 144 do Código Penal. “Esse dispositivo, na prática, às vezes

possibilita, vantajosamente, a indireta e eficaz retratação do injuriador, realizada a

título de esclarecimentos” 46.

Mas não se deve confundir a retratação com as explicações em juízo, haja

vista que nestas, uma vez dadas como satisfatórias, impossibilita o exercício da

ação penal, notadamente porque, em consequência delas, não existiu ofensa

punível.

Embora reconhecendo as diferenças conceituais entre “retratação” e

“explicação em juízo”, o professor Edgar Magalhães Noronha não duvida de que “se

44 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal, volume 2: Parte especial, Arts. 121 a 234-B do CP. 27ª ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2010, p. 139. 45 BASILEU GARCIA, Instituições de Direito Penal. vol. I, Tomo II, 3ª edição (revista e atualizada)Max Limonad: São Paulo, 1956, p. 686. 46 BASILEU GARCIA, Instituições de Direito Penal. vol. I, Tomo II, 3ª edição (revista e atualizada)Max Limonad: São Paulo, 1956, p. 686.

42

poderá, em caso de injúrias equívocas, chegar-se a idêntico resultado” 47, mesmo

porque nada impede que, na hipótese de explicações insuficientes, sobrevenha uma

retratação eficaz e capaz de encerrar o processo.

Decerto, a diferenciação entre honra objetiva e subjetiva encontra relevo

especial para o esclarecimento do momento de consumação do crime, já que é

inteiramente alheio à configuração do tipo penal da injúria o conhecimento do agravo

por terceiros, somente se perfectibilizando pela assimilação e consequente dissabor

experimentado pela vítima.

Nesse aspecto, torna-se forçoso reconhecer a repercussão prática da

classificação.

No mesmo tom de reconhecimento, o advogado Thiago Solon Gonçalves

Albeche acrescenta outra contribuição da visão bipartida do bem jurídico honra para

o crime de injúria, notadamente no que tange à compreensão sobre a

incompatibilidade com o instituto da exceção da verdade, “pois desejar provar que a

ofensa é verdadeira quando se refere ela a atributos negativos da pessoa, nada

mais é do que reforçar a ofensa” 48.

Mas apesar da pontual importância teórica e da larga aceitação acadêmica, a

classificação da honra não pode ser apreendida com passividade, já que a

importância e as repercussões de ordem empírica reclamam uma postura reflexiva

para o debate, que do contrário tornar-se-ia sem sentido.

Conferindo um viés abstrato sobre o conceito de honra, o professor Cézar

Roberto Bitencourt contrariou em sua obra a diferença fixada pela doutrina entre

honra objetiva e subjetiva:

“devido a sua extensão, é inadequado e impreciso distinguir a honra em objetiva e subjetiva, pois essas conceituações são adjetivos limitados, imprecisos e superficiais, porque a essência do bem jurídico protegido nos crimes contra a honra é a pretensão ao respeito da própria personalidade, ou seja, tutela a dignidade da

47 NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal, vol 1, introdução e parte geral. 35ª edição atualizada, Saraiva: SP. 2000, p. 377. 48 ALBECHE, Thiago Solon Gonçalves. A retratação no delito de injúria – possibilidades dentro de uma visão constitucional-penal. 1ª ed. Rio Grande do Sul: Nuria Fabris, 2009, p. 24.

43

pessoa humana, direito natural da pessoa, fundamental para a sua própria existência” 49.

Heleno Cláudio Fragoso, dissertando sobre o assunto, também já contrariava

a concepção bipartida sobre o bem jurídico, não sendo demasiado transcrever as

suas duradouras lições:

“Na identificação do que se deva entender por honra, a doutrina tradicionalmente distingue dois diferentes aspectos: um subjetivo, outro, objetivo. Subjetivamente, honra seria o sentimento da própria dignidade; objetivamente, reputação, bom nome e estima no grupo social. Essa distinção conduz a equívocos quando aplicada ao sistema punitivo dos crimes contra a honra: não proporciona conceituação unitária e supõe que a honra, em seu aspecto sentimental, possa ser objeto de lesão. Como ensina Welzel, § 42, I, 1, o conceito de honra é normativo e não fático. Ela não consiste na fatual opinião que o mundo circundante tenha do sujeito (boa fama), nem na fatual opinião que o indivíduo tenha de si mesmo (sentimento da própria dignidade)” 50

Com efeito, impende observar que os crimes de calúnia, difamação e injúria

são espécies de um mesmo gênero (ou bem jurídico): a honra, direito

personalíssimo, atributo humano, usualmente definido como a soma das qualidades

físicas, sociais, jurídicas, éticas, morais, intelectuais e profissionais da pessoa

humana.

Eis a equivalência lógica dos crimes mencionados, que franqueia a tese de

que todas as espécies de crimes contra a honra devem compartilhar das mesmas

garantias e dos mesmos benefícios, quer de índole material, quer de índole

processual, devendo ainda comungar de semelhantes limites para a intervenção

jurídico-estatal, pois se tratam de formas substancialmente semelhantes de controle

social.

Nesse ponto de vista, não se pode permitir a condução da clássica lição às

últimas consequências, negligenciando o traço em comum ou o chamado “conceito

49 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, 2: parte especial: dos crimes contra a pessoa. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 277. 50 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal – Parte especial (arts. 121 a 160, CP). 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 184.

44

único” 51 que aproxima os crimes rotulados como contra honra objetiva (externa) e

contra honra subjetiva (interna), esta que, de forma desarrazoável e ao revés da

similitude que resguarda, apresenta-se indiferente ao autorreconhecimento da culpa

pelo ofensor e ao seu pedido voluntário de desculpas.

A contrario sensu, valendo-se do argumento da subjetividade, o Estado elege

como indisponível a honra atingida pela injúria, passando a valorá-la em um nível

que impede o direito “subjetivo” do ofensor em reconhecer a inconveniência de sua

conduta típica.

Especialmente nos crimes contra honra, em que a retratação efetivamente

reduz ou aniquila o poder lesivo da conduta, é evidente que “esse desejo de se

adequar ao que é correto deve ser reconhecido e valorizado pelo Estado, mormente

quando já o faz em dois delitos de idêntica natureza e mais graves do que a injúria” 52.

51 Expressão cunhada por Rogério Greco, ao meditar sobre a classificação do bem jurídico honra, expondo o seu ponto de vista: “Na verdade, embora sirva a distinção, como afirmamos anteriormente, para melhor visualizarmos o momento de consumação de cada crime contra a honra previsto no Código Penal, não podemos com ela radicalizar. Isso porque honra subjetiva e honra objetiva são conceitos que se interligam, gerando, na verdade, um conceito único. Embora possamos identificá-los levando em consideração a relação de precipuidade, ou seja, onde a honra subjetiva, precipuamente, afeta o conceito que o agente faz de si mesmo, e a honra objetiva, também precipuamente, atinge a reputação do agente em seu meio social, não podemos considerá-las de forma estanque, completamente compartimentadas. (...) Dessa forma, somente podemos considerar a distinção entre honra objetiva e subjetiva para identificar a classificação da figura típica, bem como para poder apontar, com mais segurança, o momento de consumação da infração penal pretendida pelo agente” in GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial. Volume II: introdução à teoria geral da parte especial: crimes contra a pessoa. 3. ed. – Niterói, RJ: Impetus, 2007, p. 417. 52 ALBECHE, Thiago Solon Gonçalves. A retratação no delito de injúria – possibilidades dentro de uma visão constitucional-penal. 1ª ed. Rio Grande do Sul: Nuria Fabris, 2009, p. 23.

45

5 A RETRATAÇÃO E O ARGUMENTO DA AGRAVAÇÃO DA OFENSA

A explicação mais corriqueira para a restrição legislativa, entretanto, repousa

sobre a forma e os cogitados efeitos negativos da retratação, na medida em que

poderiam importar para o ofendido um suposto agravamento da ofensa

anteriormente perpetrada pela injúria.

A chamada retratação sarcástica ou antônima, por exemplo, pode ou deve ser

assimilada com muito mais humilhação do que a injúria original, haja vista que esta

reconsideração acaba maculando ainda mais a dignidade e o decoro da vítima,

repercutindo de forma negativa e, logicamente, não havendo desdito que possa

modificar a situação agravada.

O professor Damásio de Jesus, sustentando o argumento de ordem empírica,

esclarece que “se o ofensor diz que a vítima é ignorante, afirmando depois que é

sábio, não repara o dano, podendo causar ofensa maior” 53.

Embora em sentido diametralmente oposto, Solon ratifica a estranheza da

retratação em outro exemplo: “Imagine-se se no delito de injúria racial a retratação –

se fosse permitida – exigisse que o ofensor desmentisse a afirmação, dizendo o

contrário. Seria absurdo admitir essa hipótese e magistrado algum aceitaria tamanha

aberração” 54.

Com a devida vênia, o argumento de que a retratação redundaria em

consequências mais danosas ao ofendido merece ser analisado com ressalvas,

senão com olhar crítico, posto que as exemplificações em que se apoia não

transparecem a forma adequada de se desdizer, o modus operandi da retratação,

que raramente deve ser aceita como a afirmação do contrário, tampouco com ares

de zombaria. Aloysio de Carvalho Filho adverte, ainda, que a retratação “não é

panegírico ao ofendido, exaltação dos seus merecimentos e das suas virtudes: é a

53 JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal: parte especial dos crimes contra a pessoa e dos crimes contra o patrimônio. 25 ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 234. 54 ALBECHE, Thiago Solon Gonçalves. A retratação no delito de injúria – possibilidades dentro de uma visão constitucional-penal. 1ª ed. Rio Grande do Sul: Nuria Fabris, 2009, 26.

46

negativa das faltas e dos defeitos atribuídos, restituindo o conceito moral a quem se

viu despojado dele pela invectiva improcedente” 55.

É evidente que a retratação irônica, gravosa, inadequada e desproporcional

não fará jus à recepção pelo magistrado, sendo dignas de reconhecimento apenas

as idôneas à reparação do dano.

Imaginemos que certo jornal tenha publicado em seu editorial que 50% dos

senadores eram corruptos, e que, após processado e condenado a negar a

afirmação, tenha publicado em semelhante proporção que 50% dos senadores não

eram corruptos. Evidente que nesta hipótese, se não ocorreu a agravação da

ofensa, houve ao menos a reafirmação da ofensa com outras palavras, o que

inviabiliza a produção dos efeitos da retratação, cuja forma não se afigurou

adequada tão quanto fosse anotada a seguinte assertiva: “não é verdade que 50%

dos senadores são corruptos”.

5.1 CONCEITO, FORMA E EFICÁCIA

O conceito de retratação, desde os seus primórdios56, não parece ser tão

restrito a ponto de resumi-la à afirmação em contrário, ou mesmo à negativa geral,

portanto. Entende-se por retratação o ato de desdizer-se, de retirar o que foi dito,

desculpar-se, cuidando-se de medida de politica criminal destinada à solução

consensual dos conflitos.

Em exaustivo estudo sobre o tema, Emeric Levai concluiu ser “pressuposto da

retratação o reconhecimento de uma afirmação que se confessa errada”.57 Ao

desdizer-se, o agente admite que errou, não importando em retratação a confissão

do agente quando do seu interrogatório. Nem mesmo a negativa do fato, pois “negar

tal fato não é retratar-se” (RT, 429:457). Deve o agente expressar o seu erro, a sua

55CARVALHO FILHO, Aloysio de. Comentários ao Código Penal. vol. IV, Arts. 102 a 120. Forense, Rio. 4ª ed. 1958, p. 284. 56 Em comentários ao código penal, Aloysio Carvalho Filho ressalta que a retratação “Nasceu por artes dos primeiros poetas, volúveis de pensamento e de sentimento, e por isso dados a contrariar, em odes incendidas de louvor, os remoques e ultrajes de cantos anteriores. Com a palinódia, buscavam eles, e alcançavam, recuperar perdidas graças” in ALOYSIO DE CARVALHO FILHO, Comentários ao Código Penal. vol. IV, Arts. 102 a 120. Forense, Rio. 4ª ed. 1958, p. 284 57 LEVAI, Emeric. Retratação Penal. Revista de Processo, 1981, p. 21.

47

irreflexão, admitindo-a, voltando atrás naquilo que declarou, retirando

completamente aquilo que afirmara.

Sobre o assunto, exemplifica mais uma vez e de maneira didática Thiago

Solon Gonçalves Albeche:

Assim, quando o ofensor na injúria for se retratar, ele não dirá “tu não és um idiota”, “tu não és um alemão batata” ou “tu não és um negro”. Isso é contra a natureza da retratação e não defendemos aqui qualquer espécie de anomalia para justificar o que cremos ser um direito. Em verdade, o ofensor dirá “peço desculpas pelo que disse”, “não deveria dizer o que disse”, “estava de cabeça quente e me excedi”, “faltei-lhe com o respeito”, “reconheço meu erro”, “estava num dia ruim e hoje não teria dito”, ou coisa que o valha (...)” 58

Por outro lado, a doutrina costuma satisfazer-se com a voluntariedade do ato,

considerando “irrelevantes a espontaneidade da declaração, bem como os motivos

que a fundaram”. 59 Como é sabido, voluntária é a retratação livre de vícios de

consentimento, de coação, de imposição, sendo realizada de modo consciente, com

facultatividade, mas nem sempre livre de sugestões ou estímulos, como por exemplo

a aceitação da proposta de colaboração e convivência pacífica por parte do Órgão

do Ministério Público. A espontaneidade, porém, revela com melhor nitidez a

sinceridade, o modo íntimo que demonstra arrependimento, sentimento gerenciado

pelo próprio ofensor e independente de provocações de terceiros.

Além de voluntária, a retratação nos crimes contra a honra deve ser cabal,

isto é, completa, plena, inteira, irrestrita, incondicional, satisfatória, sem evasivas,

sem ambiguidades, sem deixar margens a dúvidas sobre a não-veracidade da

imputação feita, não podendo ser reticente, dubitativa ou com “meias-palavras”. O

querelado deve ser categórico no desdizer, de modo a elidir a mínima suspeita que

possa repousar ou persistir sobre a honra do querelante.

A retratação cabal é, assim, aquela que não deixa resquícios da ofensa e que

não admite interpretação sobre a nobreza do propósito de quem se retrata. Como já

amplamente assentado na jurisprudência, “a retratação, para produzir efeito extintivo

58 ALBECHE, Thiago Solon Gonçalves. A retratação no delito de injúria – possibilidades dentro de uma visão constitucional-penal. 1ª ed. Rio Grande do Sul: Nuria Fabris, 2009, p. 26. 59 PRADO, Luiz Regis Prado. Curso de direito penal brasileiro, vol. 2: parte especial: arts. 121 a 249. 7ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 242.

48

da punibilidade, deve ser clara, precisa, completa, sem reticências ou tentativas de

explicações amenizadoras” (TJSP: RJTJSP 129/459).

Ainda sobre o modo da retratação, a doutrina esclarece não haver exigência

de maiores formalidades para a validade do ato, sendo de bom alvitre o seu registro

nos autos do processo, devendo ser reduzida a termo pelo juiz na hipótese de

retratação oral, em audiência, podendo inclusive ser feita através de procurador com

poderes especiais para o ato:

“É suficiente que seja por escrito, nos autos; deve ser completa, cabal, isto é, abrangendo tudo o que o ofensor disse contra o ofendido, e incondicional. Sua incondicionalidade justifica-se por ser ato unilateral e produzir efeitos independentemente da aceitação da vítima. Pode ser feita pelo próprio ofensor ou por seu procurador com poderes especiais para esse fim”. 60

Assim, a retratação pode ser feita pelo próprio querelado ou por procurador

com poderes especiais. Como há um nítido interesse do legislador em que a

retratação seja feita, em vez de buscar a condenação do querelado, tal ato não está

sujeito a formalidades especiais ou fórmula sacramental, podendo inclusive ser feita

através de petição nos autos da ação penal, devidamente assinada pelo querelado e

por seu procurador, ou, como já ressaltado, feita mediante termo nos autos.

Demais disso, deve ser feita coram judice e ocorrer antes da publicação da

sentença de primeiro grau proferida no processo em que o ofensor ou querelado foi

chamado a responder.

Logo, haverá oportunidade para a retratação durante todo o trâmite

processual, inclusive enquanto os autos estiverem ainda conclusos com o julgador

para que possa prolatar sobre o feito a sua sentença, desde que, evidente, esta não

tenha sido publicada em cartório.

Obviamente que após a sentença a retratação ficaria sem objeto na medida

em que o ofensor ou querelado teria sido condenado ou absolvido. Na primeira

hipótese a retratação não teria o condão de retirar a eficácia da sentença, tampouco

60 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, 2: parte especial: dos crimes contra a pessoa. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 356.

49

o de mitigar os seus comandos judiciais, e o querelante, por sua vez, já teria obtido o

título para reparação moral do dano sofrido.

Por outro lado, se absolvido fosse, o querelante não teria do que se retratar

uma vez que sua imputação não teria sido caluniosa, difamatória ou mesmo

injuriosa.

O outro requisito para a eficácia da retratação é que seja pública, posto que

não se compreende uma retratação em particular e que possa produzir os efeitos

esperados, sobretudo nas hipóteses de ofensa notória, propagada de modo a

alcançar terceiros. Ao contrário das explicações em juízo, a retratação deve exprimir

mais que uma mera satisfação ou transação entre as partes, devendo de algum

modo repercutir perante a opinião pública.

Mas diferentemente do código penal argentino61, o legislador brasileiro optou

por tornar implícita a condição da publicidade. Ademais, e como já amplamente

ressaltado, não se verifica - na parte geral e especial do código - nenhuma

formalidade específica ou critério objetivo para o ato de retratação.

Entretanto, convenhamos que a publicidade da retratação deva ser

proporcional à notoriedade da ofensa, de modo que em alguns casos a retratação da

ofensa em audiência pública pode parecer insuficiente; noutros, a publicação na

imprensa por determinação judicial pode se afigurar providência excessiva,

principalmente naqueles crimes em que se tutela “predominantemente” a honra

subjetiva.

Por força da unilateralidade, o instituto da retratação prescinde do beneplácito

ou do aceite do ofendido para isentar de pena o ofensor, tratando-se, pois, de

isenção de caráter exclusivamente pessoal, não se comunicando aos demais

coautores (circunstância incomunicável prevista no artigo 30 do Código Penal).

Nesse particular, portanto, não se confunde com o instituto do perdão do

ofendido, que é ato jurídico bilateral, não ficando a eficácia do ato de retratar-se

subordinada à manifestação da parte adversa.

Assim, não compete à vítima relevar, resistir ou mesmo opinar sobre o

desagravo prestado pelo acusado, bastando que este tenha demonstrado a firme

61 A publicidade é requisito explícito da retratação, como preceitua o artigo 117 do Código Penal Argentino, no qual o acusado deve se “retractare publicamente”.

50

convicção de reparar o mal a que deu causa, agindo com a esperada “boa-fé com

que os homens de bem reconhecem os próprios erros, para que a retratação ocorra” 62.

Logo, não se propõe com a retratação judicial atender ao sentir daquele que

se considera ofendido, inclusive injuriado, mas ao ânimo daquele que se arrepende

honestamente da ofensa outrora proferida e assim tenta voluntariamente afastá-la

ou, pelo menos, reduzi-la. Nesse diapasão, o arrependimento e a índole honesta de

quem se retrata faz com que a pena perca a sua finalidade, esvaziando-a do ponto

de vista preventivo e sobretudo repressivo.

Como a retratação prescinde do beneplácito do ofendido, este poderá,

entretanto, reivindicar a competente indenização nos termo da legislação civil, caso

não venha a se sentir suficientemente desagravado com as palavras imerecidas à

sua boa fama, mesmo porque a retratação implica em reconhecimento de culpa, ou

seja, reconhecimento da prática do ilícito.

Porém, a retratação representa solução de continuidade para a persecução

criminal, vez que, como já abordado em capítulo anterior, a Constituição federal

apenas preconiza de forma expressa a necessidade de reparação dos danos de

natureza civil, ao assegurar em seu art. 5º, inciso X, o “direito a indenização pelo

dano material e moral decorrente de sua violação”.

Na conformidade desse pensamento, a retratação teria sim o condão de

garantir a reparação dos danos morais, jamais retirando essa possibilidade do

ofendido, somente que perante o Juízo cível, através de ação indenizatória, com

fulcro na sentença absolutória motivada pela confissão do fato criminoso perpetrado

pelo agente ativo, uma vez apurado, no processo criminal, que foi aquele agente que

praticou a conduta criminosa e que a vítima foi concretamente ofendida em sua

sagrada esfera de moralidade.

Mas o criminoso somente não foi condenado, pois confessou o crime antes da

decretação da sentença condenatória. Ressalta-se que, na circunstância

supramencionada, a vítima não poderá utilizar da sentença absolutória para ajuizar

uma ação de execução, pois resta na referida decretação a característica de

executividade, pois o réu não foi condenado a indenizá-la. 62 PASSOS, Paulo Roberto da Silva. Da possibilidade de retratação em casos de injúria. Disponível em: <http://www.ibccrim.org.br> Acesso em 06 de setembro de 2011.

51

Poderia acontecer se não se retratasse e, após, fosse condenado com, por

exemplo, a pena restritiva de direitos, prevista no artigo 43, inciso I, do Código

Penal, que é a prestação pecuniária.

5.2 A UTILIDADE DA RETRATAÇÃO

Embora resistente à aplicação perante o crime de injúria, outra parcela da

doutrina há muito vislumbra na retratação uma excelente medida de política criminal,

que tanto beneficia a sociedade, como o ofensor e o ofendido. A sociedade, porque

elimina o conflito, acaba com um foco de atrito e de desavença. O ofensor, porque

demonstra espírito de grandeza, reconhecendo seus próprios erros, sua precipitação

ou mesmo sua paixão, que o fez agir de maneira intempestiva e irrefletida, e que,

através dessa providência judicial, fica livre do processo e da ameaça de uma

condenação. Finalmente o ofendido, que se sentirá desagravado, recomposto em

sua honra e dignidade. Para ele, o reconhecimento pelo próprio agressor, que agiu

injustamente, tem muito mais significação e é bem mais valioso do que a própria

sentença judicial. 63

Ato de penitência, que é, a retratação não compromete, não desonra, nem

humilha a quem a profere. Ao contrário, liberta o acusado não somente da pena,

mas sobretudo dos sentimentos negativos, que sucumbem quando a serenidade e a

reflexão retornam ao espírito, momentaneamente conturbado.

Em tempos pretéritos, Nelson Hungria já constatava que a retratação revela,

da parte do agente, o propósito de reparar o mal praticado, o intuito de dar uma

satisfação cabal ao ofendido, a boa-fé com que os homens de bem reconhecem

seus próprios erros, o arrependimento64 de um ato decorrente de momentânea

irreflexão. Numa perspectiva utilitarista, torna-se forçoso reconhecer que o dano, se

não é todo apagado, é significativamente minorado. A retratação é “mesmo mais útil

63 ROSA, Antônio José Miguel Feu. Direito Penal: parte especial. Editora Revista dos Tribunais, 1995, p. 262-263. 64 Nelson Hungria associa o conceito de retratação a uma espécie de arrependimento eficaz. Ousamos discordar do mestre apenas neste aspecto, pois no arrependimento eficaz o delito situa-se em etapa de tentativa, ainda que perfeita e acabada, ao passo em que na retratação o delito já se consumou. Da análise do iter criminis, é possível cogitar, todavia, a retratação como espécie de arrependimento posterior que, conquanto previsto na parte geral (art. 16), se faz presente na parte especial do Código.

52

ao ofendido do que a própria condenação penal ao ofensor, pois esta, perante a

opinião geral, não possui tanto valor quanto a confissão feita pelo agente, coram

judice, de que mentiu”. 65

De fato, a retratação revela o impulso honesto em declarar a leviandade da

imputação, que não se deveria ter falado, sendo para a vítima melhor essa

reparação do que a própria sentença, que não tem o mesmo valor, conforme as

circunstâncias, sendo muito mais ampla.

Ora, a iniciativa voluntária do acusado-injuriador de comparecer à presença

da autoridade judicial no sentido de apresentar de forma adequada e proporcional as

suas escusas, submetendo-se ao ônus das reprimendas legais, reconhecendo a sua

culpa, exteriorizando o seu arrependimento e manifestando o propósito de adequar-

se socialmente, é circunstância que não pode ser desprezado pela ciência jurídica,

ocasião em que a própria retratação já passa a assumir os contornos de uma

autêntica e verdadeira medida penal que, por sua feição estritamente pedagógica,

parece ser suficiente para legitimar o denominado direito penal de mínima

intervenção.

Assim, o alicerce da retratação está em que o acusado, com seu desmentido,

reconhece a insensatez de seu gesto irrefletido e demonstra a intenção de dar

satisfação à vítima e reparar o dano; e, com esse proceder, o agente revela a

competência de emendar os próprios erros, transparecendo o sintoma de índole

honesta na qual, como disse Basileu Garcia, “a pena já não teria finalidade para ele” 66.

Em verdade, o que tem potencialidade de causar a agravação da ofensa é a

confissão do crime, ou mesmo a pretensão de provar a verdade (exceptio veritatis) 67, esta sim uma hipótese absolutamente incompatível com a injúria, como

ponderado outrora.

65 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, Vol. VI, Arts. 137 a 154. Editora Forense, 4ª ed, Rio de Janeiro: 1958, p. 126. 66 BASILEU GARCIA, Instituições de Direito Penal. vol. I, Tomo II, 3ª edição (revista e atualizada)Max Limonad: São Paulo, 1956, p. 687. 67 A exceptio veritatis é admissível em casos muito limitados e expressamente previstos pelas diferentes legislações. Assim, por exemplo, o Código Penal argentino expressa no seu artigo 111:“El acusado de injuria, en los casos en los que las expresiones de ningún modo estén vinculadas con asuntos de interés público, no podrá probar la verdad de la imputación salvo en los casos siguientes: 1) Si el hecho atribuido a la persona ofendida, hubiere dado lugar a un proceso penal. 2) Si el querellante pidiera la prueba de la imputación dirigida contra él. En estos casos, si se probare la

53

Contudo, o mesmo não se pode afirmar acerca da retratação, da qual não se

vislumbra qualquer prejuízo social se aplicada ao crime de injúria. Pelo contrário,

confere uma máxima consagração aos princípios da lesividade, intervenção mínima

e da proporcionalidade.

Assim, não se vislumbra uma razão séria a justificar a retratação, como causa

extintiva da punibilidade, nos crimes de calúnia e difamação, e de proibi-la quando

tiver como objeto o crime de injúria.

Afinal, como amplamente ressaltado, bons motivos não faltam para se

estimular, na lei, a reparação da ofensa nos crimes de injúria. Cessado o interesse

repressivo, a concórdia costuma então regressar nas relações entre as partes, não

cedendo espaço para a intervenção do Estado, em matéria que é, a rigor, de ação

privada.

5.3 A NATUREZA JURÍDICA DA RETRATAÇÃO

Diferentemente dos diplomas de 1830 e 1890, o vigente Código Penal

brasileiro relaciona no artigo 107, inciso VI, a retratação como causa de extinção da

punibilidade, sendo esta, por taxatividade, a sua natureza jurídica. A disposição do

texto legal compreende a retratação-extintiva, a qual aniquila radicalmente o nexo

jurídico entre o crime e a pena.

Conforme ressaltado alhures, a retratação nos crimes contra a honra é

unilateral e opera-se de modo impassível diante da discordância ou resistência

eventualmente apresentada pelo ofendido. A extinção da punibilidade deve ser

compreendida como uma consequência necessária, ainda que desprezadas as

escusas pelo seu destinatário.

Não obstante a existência de um interesse originariamente particular na

defesa da honra, exercida via de regra através da ação penal privada, o Estado

subtrai no curso do processo a faculdade do ofendido de aceitar ou não a retratação.

verdad de las imputaciones, el acusado quedará exento de pena. (Artículo sustituido por art. 3° de la Ley N° 26.551 B.O. 27/11/2009)”.

54

O aparente paradoxo é justificado, entretanto, pela autoridade de um

argumento típico do Estado Democrático de Direito: a proibição da vingança privada.

Com razão, não se pode deixar sob o encargo do particular a escolha acerca

da extinção da punibilidade do acusado, que passa a vislumbrar na retratação de

suas palavras um direito subjetivo quando preenchidos o pressuposto legal da

tempestividade (art. 143) e os já amplamente discorridos critérios doutrinários da

proporcionalidade e adequação.

As razões e o conteúdo da retratação tornam-se imperativos por si mesmos,

não se submetendo ao alvedrio e à discricionariedade da vítima. Afinal, nas

preciosas palavras do poeta baiano Castro Alves (1847-1871), “que vale a vingança

pobre amigo. Se na vingança a honra não se lava?”.

Nessa linha de intelecção, ao contrário da necessária bilateralidade do

instituto da conciliação entre as partes, a firmeza da retratação judicial não poderia

ficar refém dos eventuais “caprichos” ou do “juízo apaixonado” do ofendido, cujo

interesse particular, caso persista, e como já argumentado, poderá ser exercido na

prima ratio da esfera cível, em franca homenagem ao princípio da intervenção

mínima.

Resguardadas as devidas proporções, semelhante sistemática ocorre no

instituto das explicações em juízo, por ofensas tidas como equívocas, que não se

sujeita ao juízo do ofendido, mas ao critério do julgador.

E a doutrina é constante. Na ótica processualista, ensina no mesmo sentido o

professor Fernando da Costa Tourinho Filho, com bastante propriedade:

Logo, a retratação – o retractare dicta – deve ser plena, perfeita, completa, satisfatória. Pouco importa que o querelante a recuse. Ela independe do seu placet. “Basta que o Juiz a tenha por cabal reparação do mal causado, para que o Estado se desinteresse da punição do querelado”. Nem teria sentido que a eficácia da retratação dependesse da boa ou má vontade do querelante68.

Além do mais, caso a extinção da punibilidade através da retratação se

sujeitasse à boa ou má vontade do ofendido, nenhum ofensor se retrataria sem 68 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 16. ed., rev., atual., v.1, São Paulo: Saraiva, 1994, p. 533.

55

antes estar completamente seguro de que suas desculpas seriam aceitas. Nesse

contexto, complementa o processualista Hidejalma Muccio em seu Curso de

Processo Penal:

Trata-se de ato unilateral de arrependimento do agente, considerado pela lei como forma cabal de reparação do mal causado; daí por que o Estado, verificada a retratação, se desinteressar da punição do infrator, independentemente da vontade da vítima. Não cogitar, pois, da aceitação do querelante (ofendido). Nem podia ser diferente. Dependesse da aceitação da vítima, o autor do fato só se retrataria se tivesse certeza do placet daquela69.

Acerca da possibilidade de extinção da punibilidade ex oficio, arremata mais

uma vez o ilustre professor Fernando da Costa Tourinho Filho em suas preciosas

lições:

“Sentindo o Juiz, e apenas ele, ter sido a retratação eficaz e inequívoca, percebendo ele o propósito de o agente reconhecer a sua maldade, de se arrepender sinceramente do seu proceder leviano e inconsiderado, outra alternativa não lhe resta senão a de decretar extinta a punibilidade, de ofício, nos termos do art. 61 do CPP”70.

Em que pese a expressa previsão legal do código vigente, continua não

sendo pacífico entre a doutrina, porém, a eficácia da retratação aplicada aos crimes

contra a honra.

Em tempos pretéritos, o silêncio dos códigos de 1830 e 1890 acentuava mais

ainda as dissidências sobre o assunto entre os Tribunais e comentadores da época:

escusa penal ou atenuante?

Muitos se questionavam se a retratação seria suficiente para suprimir todos

os efeitos perniciosos da ofensa a justificar a libertação da pena, uma vez que,

convém admitir, a notícia da retratação nem sempre alcança a todos aqueles que

presenciaram de alguma forma a ofensa, remanescendo muitas vezes um número

69 MUCCIO, Hidejalma. Curso de processo penal. vol. 1, 1ª edição - Bauru, São Paulo: EDIPRO, 2000, p. 756. 70 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 16. ed., rev., atual., v. 1, São Paulo: Saraiva, 1994, p. 534.

56

indeterminado de pessoas sugestionadas pelas palavras dirigidas à honra do

ofendido.

Contemporâneo ao Código Republicano, e reportando-se sobre o dissenso

doutrinário da época, o notável jurista Viveiros de Castro apud Aloysio Carvalho

Filho destacou-se em memoranda sentença, instituindo um paradigma

consubstanciado no aspecto temporal, valorando a eficácia da retratação de acordo

com a sua espontaneidade:

“Compreende-se bem que feita a imputação caluniosa e pouco depois espontaneamente retratada, o agente dá prova inequívoca de reconhecer o êrro em que laborava e de seu amor pela verdade, restabelecendo-a. Ao contrário, quando a retratação se faz depois de iniciado o procedimento do ofendido pela apresentação de queixa, não pode ela ser considerada uma circunstância dirimente da criminalidade. O agente não obedeceu a um movimento natural, o desejo digno de restabelecer a verdade, de reparar o mal que causou, procura escapar à pena do crime que cometeu, é um expediente de defesa, que não deve iludir o juiz.” 71.

Talvez a retratação perfeita fosse aquela em que o agente a fizesse no

mesmo instante, ou logo após, da ofensa perpetrada, e perante todos aqueles que a

tivessem escutado. Por outro lado, poderia ainda vislumbrar uma retração “quase

que perfeita”, ao menos, naquela promovida antes de a demanda atingir os seus

subsequentes trâmites processuais, de modo a prevenir a publicidade e o strepitus

judicii 72.

Todavia, é certo que a paixão, a cólera e outros sentimentos intensos, às

vezes incutidos pelo próprio comportamento da vítima no “calor das emoções”,

podem perfeitamente conduzir o indivíduo ao extremo de expressões injuriosas e

que, não raro, tardam a ser contornadas.

Nesse ínterim, a pessoa que se julga ofendida acaba exercendo o seu direito

de queixa logo em seguida, mesmo porque sujeita ao decurso de um prazo

decadencial. 71 CARVALHO FILHO, Aloysio de. Comentários ao Código Penal. vol. IV, Arts. 102 a 120. Forense, Rio. 4ª ed. 1958, p. 286. 72 O “barulho ou escândalo” do processo (strepitus judicii), em determinados casos, sobretudo naqueles com repressão midiática, pode se tornar um incômodo maior para a vítima do que a própria impunidade do ofensor.

57

Dessa forma, a retratação quase sempre se opera no curso do processo,

após a citação do ofensor, lhe retirando o caráter de espontaneidade, embora este

não seja requisito essencial para a sua configuração, conforme já amplamente

ressaltado, não lhe servindo mais de parâmetro nos dias atuais, apenas a

voluntariedade.

Exigir que a retratação se opere antes da propositura da queixa, ou assim

condicionar a produção de seus efeitos jurídicos, não parece ser o melhor

entendimento, portanto; com a proximidade do fato, os ânimos ainda permaneceriam

embaraçados, não havendo tempo hábil para o restabelecimento da “paz de

espírito”.

Nesse raciocínio, o momento mais propício ou oportuno para a retratação

parece ser mesmo depois de recebida a querela, notadamente no instante da

apresentação da defesa ou do interrogatório do réu.

A própria contestação, pelos seus termos, em muitas ocasiões já reflete a

retratação. Então, como indagado por alguns, “por que não marcar neste ponto, em

que ofensor e ofendido se defrontam, perante a justiça, a ocasião para que o ofensor

se retrate?” 73.

De qualquer modo, e como já reportado em capítulo anterior, o artigo 143 do

código penal é categórico ao satisfazer-se com a retratação no curso do processo,

apenas prevendo como termo final o momento da sentença (de primeiro grau),

quando a partir de então repousariam sérias dúvidas acerca da sinceridade do

desagravo e do merecimento dos seus efeitos legais.

Inobstante o desejo legal, a retratação ainda é vista por muitos como mera

causa atenuante, sem ressalvas para se antes da queixa do ofendido ou se quando

pronunciada após a deflagração do processo.

Doutrinando neste sentido, o professor Damásio de Jesus é um dos que,

hodiernamente, ponderam que a retratação, quando muito, serve apenas de

circunstância atenuante:

73 CARVALHO FILHO, Aloysio de. Comentários ao Código Penal. vol. IV, Arts. 102 a 120. Forense, Rio. 4ª ed. 1958, p. 292.

58

“a retratação deveria constituir causa de diminuição da pena e não de extinção de punibilidade... Por mais cabal que seja a retratação, nunca poderá alcançar todas as pessoas que tomaram conhecimento da imputação ofensiva. Não havendo reparação total do dano à honra da vítima, não deveria a retratação extinguir a punibilidade, mas permitir a atenuação da pena” 74.

A retratação-atenuante proposta pela doutrina acima citada divide opiniões,

até mesmo as dos mais renomados juristas.

Sem discordar totalmente dos argumentos do consagrado doutrinador, Cezar

Roberto Bitencourt mais uma vez atribui a eficácia extintiva às razões puramente de

politica criminal que influenciaram a opção legislativa de 1940, admitindo ainda o

clássico (e já ressalvado) entendimento segundo o qual a retratação é uma espécie

de arrependimento eficaz (art. 13) que se opera após o eventus sceleris75.

Observa-se, inclusive, que quando a ofensa é dirigida em desfavor de

presidente da República, chefe de governo estrangeiro ou funcionário público, em

decorrência de suas funções, a eventual retratação não mais operará como causa

de extinção da punibilidade, mas como circunstância judicial (art. 59).

Por outro lado, a chamada retratação extemporânea, feita a posteriori da

decisão de primeiro grau, na hipótese desta já ter sido publicada, somente se

revestirá do efeito atenuante (art. 65, III, b) 76.

De qualquer forma, ad argumentandum tantum, não pode o eventual

desacerto das razões político criminais, bem assim a relevância das críticas em

torno do efeito elisivo da retratação, comprometer a tese ora sustentada da

aplicabilidade da retratação ao crime de injúria.

Quer como causa excludente de punibilidade, quer como atenuante, a

retratação não pode ser negada ao crime de injúria.

No direito comparado, os códigos vigentes disciplinam diferentemente o

instituto. O Código Penal espanhol adotou a retratação-atenuante da calúnia e da

74 JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal: parte especial dos crimes contra a pessoa e dos crimes contra o patrimônio. 25 ed. São Paulo: Saraiva, 2003,p. 619 75 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, 2: parte especial: dos crimes contra a pessoa. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 245. 76 Art. 65 - São circunstâncias que sempre atenuam a pena: [...] III - ter o agente: [...] b) procurado, por sua espontânea vontade e com eficiência, logo após o crime, evitar-lhe ou minorar-lhe as consequências, ou ter, antes do julgamento, reparado o dano.

59

injúria através da imposição de pena inferior à cominada em abstrato, admitindo

apenas a possibilidade de extinção da punibilidade para a pena de inhabilitación de

empregos e cargos públicos:

“Artículo 214. Si el acusado de calumnia o injuria reconociere ante la autoridad judicial la falsedad o falta de certeza de las imputaciones y se retractare de ellas, el Juez o Tribunal impondrá la pena inmediatamente inferior en grado y podrá dejar de imponer la pena de inhabilitación que establece el artículo anterior”.

“El Juez o Tribunal ante quien se produjera el reconocimiento ordenará que se entregue testimonio de retractación al ofendido y, si éste lo solicita, ordenará su publicación en el mismo medio en que se vertió la calumnia o injuria, en espacio idéntico o similar a aquel en que se produjo su difusión y dentro del plazo que señale el Juez o Tribunal sentenciador”.

Menos comedido, o Código Penal argentino optou pela retratação da injúria e

da calúnia enquanto causa de extinção da punibilidade, que para tanto deverá ser

operada antes da contestação da querella, não significando aceitação de

culpabilidade pelo acusado:

“Artículo 117 - El acusado de injuria o calumnia quedará exento de pena si se retractare públicamente, antes de contestar la querella o en el acto de hacerlo. La retractación no importará para el acusado la aceptación de su culpabilidade”.

Inclinamo-nos ao critério conservado pelo código argentino, notadamente

porque se não há propriamente o afastamento por completo do dano praticado em

virtude da retratação da injúria, ao menos haveria uma redução substancial e

significativa da lesão, cujos fragmentos não seriam dignos da tutela penal em face

do princípio da lesividade.

Enfim, o argumento doutrinário de que a retratação não acomoda a reparação

total do dano pode ser confrontado com a sustentabilidade da tese bipartida sobre o

respectivo bem jurídico.

60

Admitindo-se a fragmentação do bem jurídico às últimas consequências,

ainda assim a retratação se afiguraria, a nosso ver, muito mais completa e exaustiva

se aplicada ao crime de injúria, já que a retratação pode ser muito mais bem

direcionada à suposta subjetividade deste do que à difusa e descentralizada

objetividade dos crimes de calúnia e difamação, cujos destinatários são de difícil ou

impossível individualização.

61

6 O PAPEL DO MAGISTRADO E AS ENTRELINHAS DA RETRATAÇÃO

A retratação não pode se traduzir em expediente ou recurso defensivo do

ofensor para tão somente acautelar-se do risco da imposição da pena, o que decerto

esvaziaria a finalidade e a utilidade social a que a medida se propõe, tornando-a

trivial.

Evidente que a retratação que se opera unicamente sob a perspectiva do

temor ou da expectativa da pena, que a desenvoltura do processo tornou certa, não

atende aos interesses do ofendido e compromete o prestígio da Justiça.

Deve, ao revés, resumir-se por atitude consciente e voluntária do agente,

inequívoca, reveladora de erro e de sincero arrependimento, inspirada no franco

desígnio de elidir as proporções assumidas pelo agravo lançado, cuja danosidade

passa a ser devidamente reconhecida por um processo de autorreflexão.

Sobre o assunto ora abordado, o jurista e mestre argentino Sebastian Soler

adverte que “no puede considerarse como retractación la manifestación que no

importe um amplio reconocimiento del hecho imputado, y aun de la culpabilidad em

que por esa manifestación se há incorrido”77

Por conseguinte, a mera alteração das palavras injuriosas proferidas não

constitui retratação, tampouco se reveste de idoneidade para afastar a punibilidade.

Deve-se, pelo bom senso judicial, observar a tentativa de desdizer ou desculpar-se

para então acolher ou refutar a extinção da punibilidade, sendo certa a última

solução quando constatada a tênue alteração da ofensa.

Versando sobre a importância imensurável do juiz dentro do processo penal,

e partindo da premissa de que o juiz é um agente atento e perceptivo aos atos

processuais praticados diante da sua presença, Albeche destaca a sensibilidade dos

magistrados de, na instrução do feito e no contato com as partes envolvidas,

“apreender as entrelinhas e os sentimentos expostos em audiência, sejam do réu,

77 SOLER, Sebastian. Derecho penal argentino. Buenos Aires: Tipografica Editora Argentina, v. 3, 1970, p. 259.

62

sejam das testemunhas. É por meio da bagagem sensitiva angariada no processo

que se chega a uma conclusão sobre os rumos de uma decisão”. 78

Nesse sentido, a aplicação do instituto da retratação deve ser precedida

sempre pelo prudente e acurado exame judicial na medida em que “ficará à análise

ponderada do magistrado constatar se, conforme o modo com que foi feita a

retratação, seria benéfico para a paz social considerar extinta a punibilidade” 79.

Manifestando-se sobre o assunto, Fernando da Costa Tourinho Filho ensina,

com seguridade, que:

“(...) cabe ao Juiz, e apenas ao Juiz, com circunspecção, constatar se a revocatio do agente foi plena, completa, se implicou, realmente, o desejo de reconhecer o erro cometido num momento de irreflexão, ou se foi um gesto natural de defesa, um ato de covardia para conseguir a impunidade” 80.

Embora questionado em outras perspectivas, o princípio da busca da verdade

real – ainda vigente do ponto de vista formal em nosso ordenamento – pode ser

invocado para demonstrar o papel do magistrado na identificação do alcance e do

ajustamento da retratação.

Como se extrai do artigo 156 do Código de Processo Penal, ao magistrado é

dada a prerrogativa de diligenciar e de perquirir os elementos de prova para a

formação do seu livre convencimento motivado sobre a lide, deixando de ser inerte e

mero expectador da verdade formal, como ocorre no processo cível, por exemplo,

gerido tão somente pelas provas produzidas pelas partes.

E o pedido de desculpas à vítima (e à Justiça) só pode ser complementado

pela manifestação da verdade dos fatos, necessariamente. Certo é que, partindo-se

da premissa de um processo penal concebido a partir do ideal da verdade real dos

fatos, a retratação deve ser estimulada não somente pelo que representa o pedido

de desculpas, como também pela revelação da verdade após a consumação do

78 ALBECHE, Thiago Solon Gonçalves. A retratação no delito de injúria – possibilidades dentro de uma visão constitucional-penal. 1ª ed. Rio Grande do Sul: Nuria Fabris, 2009, p. 25. 79 VIEIRA, Vanderson Roberto. A retratação do agente – causa de extinção da punibilidade prevista no art. 107, inc. VI, do Código Penal. Disponível em: <http://www.faimi.edu.br> Acesso em 12 de março de 2012. 80 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 16. ed., rev., atual., São Paulo: Saraiva, 1994. v.1, p. 534.

63

delito, assumindo justamente por tal motivo um papel importante nessa perspectiva

de processo criminal, que valoriza mais o restabelecimento da verdade do que a

própria condenação do acusado, para segurança da Justiça.

Aliás, o próprio Código processual penal, dispondo, em capítulo próprio, sobre

o processo e julgamento dos crimes de calúnia e injúria, confere ao Juiz singular a

análise preliminar da possibilidade de reconciliação entre as partes antes de receber

a queixa, assumindo a posição de mediador entre querelante e querelado, ouvindo a

ambos isoladamente, sem a presença dos seus advogados, e, após, conjuntamente,

caso se lhe afigure possível o entendimento em audiência prévia. Veja-se:

Art. 520. Antes de receber a queixa, o juiz oferecerá às partes oportunidade para se reconciliarem, fazendo-as comparecer em juízo e ouvindo-as, separadamente, sem a presença dos seus advogados, não se lavrando termo. Art. 521. Se depois de ouvir o querelante e o querelado, o juiz achar provável a reconciliação, promoverá entendimento entre eles, na sua presença.

Obtida a conciliação entre as partes por tentativa do magistrado, em virtude

do artigo 520 do Código de Processo, retrata-se o acusado das ofensas, desiste o

querelante da queixa, e o processo é arquivado por atingir a sua finalidade precípua

que é pax social. O processo não redefine o conflito, nessa hipótese, mas

efetivamente o soluciona através da importante participação do magistrado.

Mas não se deve confundir retratação com conciliação, se bem que comum a

consequência de extinguir a ação. Diferentemente da retratação, a conciliação é ato

bilateral, é congraçamento, e depende do beneplácito do ofendido, ao contrário do

caráter unilateral da retratação judicial.

Enfim, pode-se afirmar que a retratação deve se submeter sempre ao bom

senso judicial, que decorre das regras de experiência comum e técnica do Juiz no

processo de subsunção da realidade do caso concreto ao modelo normativo,

inserindo-o na respectiva hipótese e depois extraindo a sua conclusão.

A conveniência para o reconhecimento da eficácia da retratação deve ser

regulada pela sensibilidade do juiz, por sua proximidade das provas produzidas e

64

por sua aptidão de aferir a necessidade do acautelamento do meio social e da

credibilidade da própria Justiça.

E é essa sensibilidade, marca da atividade judiciante, que torna o Juiz um

agente de transformação, desprendido do tecnicismo legal, lhe proporcionando o

desempenho de um papel ativo na busca pela solução mais ajustada ao caso

concreto.

65

7 O TRATAMENTO DA RETRATAÇÃO NA ANTIGA LEI DE

IMPRENSA

Dispondo sobre a liberdade de manifestação do pensamento e informação, a

Antiga Lei de Imprensa (Lei nº. 5.250/67) disciplinou com peculiaridade os crimes

contra honra praticados através dos meios de informação e de divulgação.

Embora revogada por decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na

Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº. 130-7/DF, ato

publicado em 11 de maio de 2009, a Lei de Imprensa nunca esteve tão presente

diante da relevância que seu diploma representa, pelo menos em termos

argumentativos, à compreensão do tema em debate.

Ademais da cominação de penas mais gravosas81, a Antiga Lei de Imprensa

despertava a atenção pela previsão expressa da retratação ao crime de injúria,

assim como na Legislação anterior82, admitindo-a antes de iniciada a ação penal, e

até mesmo depois, como se verifica pela remissão que o art. 26 da referida Lei faz

ao art. 22:

“A retratação ou retificação espontânea, expressa e cabal, feita antes de iniciado o procedimento judicial, excluirá a ação penal contra o responsável pelos crimes previstos nos arts. 20 a 22”. §1º. A retratação do ofensor, em juízo, reconhecendo, por termo lavrado nos autos, a falsidade da imputação, o eximirá de pena...”

Dessa forma, durante os quarenta e dois anos de vigência do referido diploma

legal no ordenamento jurídico brasileiro, a retratação foi devidamente aplicada aos

crimes de injúria praticados no seio das relações de imprensa, não sendo debalde 81 Enquanto o Código Penal Brasileiro prescreveu em seu artigo 140, caput, uma pena de detenção de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa, para a injúria, a Lei de Imprensa cominou ao mesmo tipo penal um preceito sancionador de detenção de 1 (um) mês a 1 (um) ano, ou multa de 1 (um) a 10 (dez) salários mínimos da região. A diferença de apenação é facilmente explicada, já que é maior a gravidade dos crimes praticados por intermédio da imprensa, considerando que o meio utilizado na propagação da ofensa é infinitamente mais amplo e ruinoso para a vítima. 82 A Lei nº. 2.083, de 12 de Novembro de 1953, já conservava em seu art. 16 a hipótese de retratação como causa de extinção da punibilidade, sem fazer, todavia, qualquer distinção entre as espécies de crimes contra a honra: “A retificação espontânea, feita antes de iniciado o procedimento judicial pelo jornal ou periódico, onde saiu a imputação, excluirá a ação penal contra os responsáveis. O mesmo acontecerá-se se fizer em juízo a retratação”.

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anotar a ultratividade dos efeitos legais desta aplicação aos crimes praticados antes

da decisão de mérito do Supremo, em harmonia com o critério tempus regit actum.

De todo modo, a ab-rogação do texto legal não inibe a reflexão em torno de

possíveis contradições sobre o assunto, mormente porquanto a ratio decidendi da

inconstitucionalidade de maneira alguma repousou sobre o artigo 26, e notadamente

por causa da ventilada eficácia ultrativa, o que, afortunadamente, estimula a

investigação acerca de eventual diferença entre a injúria regulada pelo Código Penal

e aquela outrora consubstanciada na Lei de Imprensa, com vistas à superação do

aparente conflito normativo.

Com efeito, a injúria tutelada pela Lei de Imprensa contrasta-se com a

prevista na Lei Substantiva especificamente pelos mecanismos de difusão da ação

delitiva, que atinge o destinatário da ofensa e, por via oblíqua, a coletividade que

acessou o meio de informação.

Evidente que, nesta hipótese, o insulto assume proporções mais significantes,

o que até justifica a redefinição em abstrato das penas, sem o condão, porém, de

deslocar o momento consumativo do crime, que permanece inalterado e indiferente

ao conhecimento do agravo por terceiros até que o próprio ofendido obtenha ciência

inequívoca.

Sem maiores digressões, a repercussão externa da injúria é insuficiente para

justificar, per si, a exclusividade da retratação no âmbito da imprensa. Como

criticado por Thiago Solon Gonçalves Albeche, “se o bem jurídico tutelado na injúria

é a honra subjetiva, ela segue sendo subjetiva no delito de injúria previsto na Lei de

Imprensa e, portanto, não deveria permitir retratação à injúria naquele diploma legal”. 83

E do contrário, admitindo-se a promiscuidade do bem jurídico quanto aos

planos subjetivos e objetivos, deveria ser natural a admissibilidade da retratação aos

crimes de injúria quando, independente da especialidade da fonte normativa, aptos a

gerar o amplo conhecimento da ofensa por meios que não necessariamente o

jornalístico ou literário, como por exemplo a propagação do insulto em um auditório

de congressistas ou mesmo em uma sala de aula repleta de alunos.

83 ALBECHE, Thiago Solon Gonçalves. A retratação no delito de injúria – possibilidades dentro de uma visão constitucional-penal. 1ª ed. Rio Grande do Sul: Nuria Fabris, 2009, p. 32.

67

Ademais, um questionamento consubstanciado no princípio da

proporcionalidade stricto sensu se impõe:

“Se na injúria da Lei de Imprensa, em que a pena é mais grave, é admitida a retratação, qual o motivo para não admiti-la na injúria do Código Penal que, com base nesses critérios, revela um conteúdo do injusto mais brando?” 84

Eis uma pergunta retórica que revela nada mais que a inadequação com que

o instituto da retratação tem sido empregado no sistema jurídico-penal. Essa

estranheza também é compartilhada pelos processualistas, a citar mais uma vez o

entendimento do professor Hidejalma Muccio:

“Trata-se de caso de gritante incoerência legislativa: previsão de tratamento mais severo (proibição da retratação) a crime menos grave (injúria comum), e tratamento mais benigno a crime de maior gravidade (injúria na imprensa)” 85.

O próprio autor da pergunta esclarece não ser a especialidade ou

generalidade da norma suficiente para modificar a natureza do bem jurídico

protegido e, por conseguinte, justificar a retratação na Lei extravagante, concluindo

pela analogia in bonam partem aos crimes de injúria do Código Penal, haja vista se

tratar de norma penal não incriminadora. Compartilhando de semelhantes

questionamentos, o professor Paulo Roberto da Silva Passos também concluiu pela

analogia favorável ao agente ao asseverar que:

“por uma questão de lógica – e principalmente de isonomia – assim, se na norma especial se contempla a injúria com a possibilidade de retratação, não há porque tal se negar em sede da lei genérica. Destarte, também por esse ângulo, o da analogia favorável ao agente, o artigo 143 do Código Penal deve ser melhor interpretado, para que se estenda a retratação a todos os crimes contra a honra”86.

84 ALBECHE, Thiago Solon Gonçalves. A retratação no delito de injúria – possibilidades dentro de uma visão constitucional-penal. 1ª ed. Rio Grande do Sul: Nuria Fabris, 2009, p. 32/33. 85 MUCCIO, Hidejalma. Curso de processo penal. vol. 1, 1ª edição - Bauru, São Paulo: EDIPRO, 2000, p. 756. 86 PASSOS, Paulo Roberto da Silva. Da possibilidade de retratação em casos de injúria. Disponível em: <http://www.ibccrim.org.br> Acesso em 06 de setembro de 2011.

68

Discordamos apenas da conclusão. Ademais da supressão do diploma

paradigma do universo jurídico, a invocação ou o acolhimento da analogia restaria

comprometido em se tratando de norma excepcional, que representa uma

interrupção na projeção lógica de uma norma penal, como nas causas de exclusão

da antijuridicidade, culpabilidade e, sem dúvidas, nas causas de natureza elisiva da

punibilidade.

Por sua natureza jurídica, entendemos que a retratação deve ser considerada

como eximente de caráter excepcional e, portanto, limitada aos casos nela

especificados pelo princípio da taxatividade.

Mais que a aplicação analógica, é indispensável a alteração legislativa para

fazer incluir a retratação no rol dos crimes de injúria previstos no Código Penal por

expressa disposição, providência que, aliás, já deveria ser implantada na reforma de

1984 ou, mais recentemente, quando das alterações atribuídas pela Lei Federal nº.

12.033/09.

69

8 CONCLUSÃO

Como argumentado no decorrer do trabalho, a visão estritamente

fragmentada sobre os crimes contra a honra propiciou o surgimento de verdades

rotuladas como oficiais, quase que absolutas, e que acabaram sendo

retroalimentadas pela reprodução invariável em manuais que traduzem o chamado

pensamento científico-penal predominante.

Todavia, a irradiação dos princípios da lesividade, intervenção mínima e

proporcionalidade formou a mola propulsora para a fixação de um contraponto

teórico, consubstanciado no traço comum que aproxima as espécies de crime contra

honra, qual seja o próprio bem jurídico tutelado.

As razões para a suposta incompatibilidade da retratação ao crime de injúria

não se afiguraram tal como obstáculos intransponíveis. Por seu caráter relativo, a

subjetividade da honra não nos parece ser argumento suficiente para motivar a

ineficácia da retratação da injúria, em que pese o atendimento da classificação aos

fins didáticos.

Considerando a equivalência lógica dos crimes contra honra, qual seja o

próprio bem jurídico, conclui-se que não há diferença substancial entre honra

objetiva e subjetiva capaz de justificar a impossibilidade de aplicação da retratação

ao crime de injúria.

Noutro quadrante, a retratação da injúria não fomenta a agravação da ofensa

quando observado, pelo bom senso judicial, o correto modus operandi para a

produção de seus efeitos. Desse modo, em atenção ao título atribuído ao trabalho, a

retratação da injúria não provoca a agravação da ofensa.

Não negamos a relevância dos argumentos doutrinários e jurisprudenciais

voltados, de um modo geral, à explicação da opção politico-criminal de 1940 em

torno da retratação dos crimes contra honra.

Contudo, preferimos revisitar estas orientações perfazendo-as pelo atual

contexto jurídico-social, alinhando e estabelecendo novos argumentos que

esperamos tenham sido suficientemente convincentes para superar a fórmula

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conceitual de incriminação da injúria pelo Código Penal, orientando e estimulando a

necessária e, quiçá, não tardia alteração legislativa.

71

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