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    REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLTICA N 14: 173-194 JUN. 2000

    Este artigo analisa a obra clssica de M. Mauss, Ensaio sobre a ddiva, luz de desenvolvimentos recentesda Antropologia. Salienta como contribuio de Mauss o entendimento da dimenso poltica da troca deddivas, assim como a sugesto de sua universalidade, posteriormente demonstrada por Lvi-Strauss,

    constituir-se em princpio formal-abstrato, e no num fato emprico-concreto. A partir desse princpio, avaliaa tese segundo a qual a ddiva fundamento de toda sociabilidade e comunicao humanas, assim como suapresena e sua diferente institucionalizao em vrias sociedades analisadas por Mauss, capitalistas e no-capitalistas.

    PALAVRAS-CHAVE: Marcel Mauss; teoria da troca; reciprocidade; hierarquia.

    Marcos LannaUniversidade Federal do Paran

    RESUMO

    Rev. Sociol. Polt., Curitiba, 14: p. 173-194, jun. 2000

    NOTA SOBRE MARCEL MAUSSE OENSAIO SOBRE A DDIVA

    I. SOBRE MARCEL MAUSS

    O Ensaio sobre a ddiva, obra fundamentalde Marcel Mauss, um marco no desenvolvimento

    da sociologia durkheimiana. Esse desenvolvi-mento no sentido de uma Antropologia. Maussavana, em relao a Durkheim, ao aprofundaruma postura crtica em relao filosofia, ado-tando a etnografia, abrindo-se para as sociedadesno-ocidentais e assumindo cada vez mais acomparao. Talvez por isso mesmo, a obra deMauss se caracterize pela disperso, como eleprprio reconhece1. Mauss interessava-se pelasmanifestaes dos fenmenos humanos em quais-quer tempo e espao do planeta e sua obra aborda

    uma variedade vertiginosa de temas, para usaruma expresso de Gomes Jr. (1999). OEnsaio so-bre a ddiva reflete de modo evidente esses as-pectos, presentes tambm em outros trabalhos deMauss. Inicia-se com menes a questes de

    lngua norueguesa antiga e posteriormente abordaas mais variadas formas de organizao social, degrupos e regies os mais diversos celtas, ndia,China, Oceania, ndios do noroeste americano.

    A obra de Mauss tem recebido a mais favorvelaceitao por antroplogos contemporneos dasmais diversas inclinaes tericas. Ela presta-se,sem dvida, a interpretaes discrepantes, mlti-plas e divergentes, dentro e fora da Antropologia..A inspirao de Mauss aceita por socilogos (deG. Gurvitch a P. Bourdieu, passando pelo grupoque se autodenomina de vanguarda do Collgede Sociologie cf. JAMIN, 1992, p. 457),escritores ou filsofos (R. Callois, G. Battaille,

    entre outros), historiadores (F. Braudel e a escoladosAnnales) ou mestres da Antropologia inglesa(A. R. Radcliffe-Brown, E. E. Evans-Pritchard,R. Firth). A aceitao de Mauss geral: Guidieri(1984, p. 31) notou que Mauss recebe, de modobastante freqente, tratamento hagiogrfico.

    Mais recentemente, a Antropologia norte-americana ps Clifford Geertz (seja l comorotulemos suas diversas correntes interpretativista, ps-moderna, textualista etc.),preza em Mauss, de modo surpreendentemente

    geral, uma suposta averso noo de sistema,confuso inspirada e carter bomio (GOMESJR., 1999). Em The predicament of culture, de1988, James Clifford aproxima a obra de Maussdo que chama de etnografia surrealista, notando

    1 No estou interessado em desenvolver teorias sis-temticas [...] Trabalho somente meus materiais e se, aliou acol, aparece uma generalizao vlida, eu a estabeleoe passo a qualquer outra coisa. Minha preocupao princi-

    pal no elaborar um grande esquema geral que cubratodo o campo tarefa impossvel , mas somente mostraralgumas das dimenses do campo do qual apenas tocamosas margens [...]. Tendo trabalhado assim, minhas teoriasso dispersas e no sistemticas (apudFOURNIER, 1993,p. 106).

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    a presena constante de artistas surrealistas emsuas aulas.

    Seria possvel argumentar que um desenvolvi-

    mento pleno da obra de Mauss foi feito por trsde seus ex-alunos, que vm a ser os pais funda-dores do estruturalismo francs em Antropologia:Georges Dumzil, Claude Lvi-Strauss e LouisDumont. Mas isso seria assunto para um outrotrabalho: importa aqui realizar uma leitura doEnsaio sobre a ddiva. Para tanto, adotarei umapostura oposta de alguns apologistas contem-porneos de Mauss, como os citados ps-moder-nistas norte-americanos: no irei correlacionar umesprito no-dogmtico com a averso noo de

    sistema ou com o culto a uma confuso ins-pirada. Afinal, o prprio Mauss (1983, p. 139)definia-se como um cientista social positivista.

    Mauss pautou sua vida por um esforo paraseparar vida pessoal na qual ele inclua suasatividades como militante socialista e acadmica:em Mauss, cincia e poltica no se confundem(FOURNIER, 1993, p. 107). Mauss no deixarde publicar, entretanto, em 1924, uma Apreciaosociolgica do bolchevismo na Revue deMtaphysique et de Moralee em 1925, naRevue

    Slave, o artigo Socialismo e bolchevismo. Mausspublica ainda em jornais textos que classifica comopolticos, o primeiro dos quais sendo Lactionsocialiste, emLe Mouvement Socialistede 15 deoutubro de 1899. Essa dualidade ser discutidano decorrer deste artigo.

    O leitor encontrar em Fournier (1993, entreoutros) importante anlise sobre a biografia e apostura pessoal de Mauss, que tanto marcou seusalunos, como vrios deles j comentaram (LVI-STRAUSS, 1944; DUMONT, 1986). Um interes-sante contraste poderia ser feito, a este respeito,entre Mauss e o esprito extremamente metdicoe rigoroso de Durkheim, j descrito como dogm-tico por Lvi-Strauss (1944) ou cartesiano peloprprio Mauss (1983, p. 140). Talvez a posturapessoal de cada um explique o sucesso maior queteve Mauss em deixar discpulos, cultuadoresde sua memria, enquanto Durkheim nos deixacomo legado menos uma memria que a impes-soalidade de uma obra. Mas, cada qual ao seumodo, sobrinho e tio compartilhavam a mais com-pleta dedicao aos trabalhos da escola sociolgicaque fundavam.

    A contribuio de Mauss se caracteriza ainda,como ele mesmo notou, por um certo anonimato

    voluntrio (idem, p. 139) e auto-sacrifcio(idem, p. 140). Por exemplo, Mauss completou epublicou alguns estudos iniciados por compa-nheiros do grupo que se unia em torno da revista

    fundada por Durkheim, LAnne Sociologique,precocemente desaparecidos, como Henri Hubert,Robert Hertz (este durante a I Guerra Mundial) edo prprio Durkheim. Aps ter recusado um cargode professor em Bordeaux em 1893, Maussassume em 1901, em Paris, a cadeira de Histriada religio dos povos no-civilizados da 5a seodacole Pratique des Hautes tudes. Com a mor-te de Durkheim em 1917, conta com a ajuda de C.Bougl, G. Davy, P. Fauconnet e M. Halbwachspara retomar a publicao de LAnne Sociolo-

    gique.Paralelamente, intensa sua atividade como

    militante poltico. Com Lon Blum, a quem co-nhece desde a primeira dcada deste sculo, fielao socialismo de Jaurs. Mauss e Blum opem-se, no perodo entre guerras, criao do PartidoComunista Francs (cf. FOURNIER, 1993, p.104). Em 1904, Mauss participa da fundao doLHumanit , tornando-se posteriormente secre-trio de redao, mas bastante crtico em relao

    revoluo bolchevique2

    . Escreve ainda paraLePopulaire a partir de 1920 (cf. JAMIN, 1992, p.456). Simultaneamente, funda em 1925 com L.Lvy-Bruhl e P. Rivet o Institut dEthnologiedaUniversidade de Paris, onde a sua carga de aulasse acumula com a que tinha na cole. Quase notinha tempo para publicar seus prprios trabalhos,mas forma toda a primeira gerao de antro-plogos de campo franceses (G. Devereux, G.Dieterlen, M. Griaule, A. G. Haudricourt, M.Leiris, A. Mtraux, D. Paulme, A. Schaeffner, J.

    Soustelle, entre outros). Chega ao Collge deFranceem 1931.

    Como foi dito, Mauss (1983, p. 142) reconheceo carter descontnuo de sua obra. A unidadedesta deriva de um esforo para organizar nomeramente idias, mas antes de tudo fatos [...]tomados de civilizaes [ainda] no categori-zadas (idem, p. 143). Ou melhor, seu interesseno seria tanto pelos fatos em si, mas por grupos

    2 Como socilogos ingnuos, os bolcheviques acredi-taram poder construir uma sociedade a golpes de de-cretos, a golpes de violncia. um erro, pensa Mauss: aviolnci a es tri l em noss as sociedades modernas(FOURNIER, 1993, p. 111).

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    geogrficos de fatos; nesta passagem, Mauss citacomo exemplo de grupos geogrficos de fatosos sistemas religiosos africanos como [eles] seconstituem (MAUSS, 1983, p. 144). Avana ain-

    da que se trata de um estudo global sobre a noode civilizao (idem, p. 151). Mauss parececonsciente de que no era isso o que o pblicofrancs desejava, pois esse pblico ainda pordemais apegado metodologia sociolgica enossos estudantes e colegas por demais entrin-cheirados em reflexes filosficas (idem, p. 150).

    Ao contrrio de Durkheim, Mauss diz no tersido nunca um militante da sociologia (idem, p.142). Por outro lado, no s militava no Partido

    Socialista Francs, como doava a este parte de suasparcas economias (FOURNIER, 1993). Se Maussseparava sua atividade intelectual de sua militnciapoltica, a interpretao que farei aqui do Ensaiosobre a ddivano deixar de buscar entender essaaparente ruptura. Mas repito que no analisarei avida pessoal ou a militncia poltica de Mauss;remeto novamente o leitor interessado nestasltimas aos trabalhos de M. Fournier.

    II. A TESE GERAL DO ENSAIO SOBRE ADDIVA

    Se Mauss assume a descontinuidade de suaobra, ela tambm caracteriza o Ensaio sobre addiva. Um mesmo pargrafo doEnsaioapresentacomparaes entre vrias regies do globo.Publicado no tomo I do LAnne Sociologique(1923-24), um ano aps Os argonautas doPacfico ocidental, neste trabalho Mauss teve deconfrontar-se com o fato de, ao contrrio deMalinowski, nunca ter feito pesquisa de campo.Mauss no pde aproveitar uma das principaispossibilidades abertas por Malinowski: a realiza-o de pesquisas que buscassem uma maior con-textualizao dos dados, como propunha, na mes-ma poca, tambm A.R. Radcliffe-Brown, cujoAndaman islanders data igualmente de 1922.Mauss beneficia-se ainda, noEnsaio,das pesqui-sas de Franz Boas nos Estados Unidos, que tam-bm demonstravam desde o incio do sculo, aimportncia do trabalho de campo e da contextua-lizao. Boas, Malinowski e Radcliffe-Browntrabalhavam assim contra aquilo que este ltimodenominou histria conjetural. Poder-se-ia mos-trar que Mauss no se livrou totalmente destaltima. O Ensaio sobre a ddiva arrola umaquantidade impressionante de fatos, que s em ummomento posterior seriam melhor contextuali-zados pelas pesquisas de campo de inmeros

    antroplogos, alguns dos quais alunos de Mauss.

    Mas h um fio condutor noEnsaio: a noo dealiana. Como ficar evidente no trabalho de

    alunos de Mauss, a preocupao com a alianatorna-se uma caracterstica central da Antropologiafrancesa (DUMONT, 1971). Mauss demonstra noEnsaiocomo toda representao relao isto, funda-se sobre a unio de uma dualidade decontrrios (JAMIN, 1992, p. 456). Ora, o argu-mento central doEnsaio de que a ddiva produza aliana, tanto as alianas matrimoniais como aspolticas (trocas entre chefes ou diferentes cama-das sociais), religiosas (como nos sacrifcios, en-tendidos como um modo de relacionamento com

    os deuses), econmicas, jurdicas e diplomticas(incluindo-se aqui as relaes pessoais de hospita-lidade). Posteriormente, as pesquisas de inmerosantroplogos revelaram a amplitude j intudapor Mauss das noes de ddiva e de aliana.Entre eles, Lvi-Strauss (1949) fez dessas noeso fundamento das estruturas elementares do paren-tesco; P. Clastres (1978), da sociedade contra oEstado, e, muito modestamente, Lanna (1995) dadvida divina, implcita em relaes de compadrioe patronagem no Brasil.

    Mas Mauss j definia a ddiva de modo amplo.Ela inclui no s presentes como tambm visitas,festas, comunhes, esmolas, heranas, um sem-nmero de prestaes enfim prestaes quepodem ser totais ou agonsticas (incluindo-se, neste ltimo caso, como veremos, o potlatchdos ndios do noroeste americano MAUSS,1983, p. 147). Creio ser fundamental notar comoMauss entendia at mesmo os tributos como umaforma de ddiva. Esta uma de suas proposiesque aguardam futuros desenvolvimentos.

    Voltando tese principal do Ensaio: nele sepostula um entendimento da constituio da vidasocial por um constante dar-e-receber. Mostraainda como, universalmente, dar e retribuir soobrigaes, mas organizadas de modo particularem cada caso. Da a importncia de entendermoscomo as trocas so concebidas e praticadas nosdiferentes tempos e lugares, de fato que elas po-dem tomar formas variadas, da retribuio pessoal redistribuio de tributos. Mauss dedicava espe-cial ateno ao fato de algumas trocas serem prer-rogativas de chefias: receber tributo, por exemplo.Essas prerrogativas podem ser socialmente cons-trudas de modo diferente, como privilgios, obri-gaes etc. A isso Mauss associava o fato de que,freqentemente, da chefia emanam valores que se

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    extendem sociedade como um todo, generali-zando-se (um pouco como Marx mostrara ter amoeda capacidade para generalizar-se como valorcapitalista). Como foi posteriormente desen-

    volvido por P. Clastres (1978), a ddiva de pala-vras ou objetos freqentemente um dever dachefia, em um sentido ontolgico: mais que con-dio necessria da sua existncia, so manifes-taes particulares da chefia que se criam pordiferentes formas de troca. Citando o tomo II daEthnographie de Madagascar de Grandidier,Mauss (1974, p. 66) nos lembra que os betsimisa-raka nos contam que de dois chefes, um distribuatudo o que estava em sua possesso e o outro nodistribua nada e guardava tudo. Deus deu fortuna

    ao que era liberal e arruinou o avarento. Veremosa seguir como a chefia se define a partir de umaposio privilegiada em relao s trocas, centrali-zando-as nos sistemas antigos de redistribuio,como o dos Incas, imprios africanos ou asiticos,ou no caso de sociedades socialistas.

    Mas, evidentemente, o aspecto generativo oucriador de sociabilidade da ddiva no se limita poltica. J a epgrafe doEnsaioexprime uma dia-ltica inerente ddiva: ao receber algum estou

    me fazendo anfitrio, mas tambm crio, terica econceptualmente, a possibilidade de vir a ser hs-pede deste que hoje meu hspede. A mesma trocaque me faz anfitrio, faz-me tambm um hspedepotencial. Isto ocorre porque dar e receber impli-ca no s uma troca material mas tambm umatroca espiritual, uma comunicao entre almas. nesse sentido que a Antropologia de Mauss umasociologia do smbolo, da comunicao; aindanesse sentido ontolgico que toda troca pressupe,em maior ou menor grau, certa alienabilidade. Ao

    dar, dou sempre algo de mim mesmo. Ao aceitar,o recebedor aceita algo do doador. Ele deixa, aindaque momentaneamente, de ser um outro; a ddivaaproxima-os, torna-os semelhantes. A etnografiada troca d ainda um novo sentido s etiquetassociais. Por mais que estas variem, elas semprereiteram que, para dar algo adequadamente, devocolocar-me um pouco no lugar do outro (porexemplo, de meu hspede), entender, em maiorou menor grau, como este, recebendo algo de mim,recebe a mim mesmo (como seu anfitrio).

    To prximo da ideologia da generosidade edo altrusmo, o ato de dar, mostra-nos Mauss, no um ato desinteressado. Isso no se limita prticados chefes. O ato de dar pode assim se associarem maior ou menor grau a uma ideologia da gene-

    rosidade, mas no existe a ddiva sem a expecta-tiva de retribuio. Ofree giftde Malinowski, estesim, pura ideologia; o altrusmo puro umamistificao. Mauss, escrevendo com Hubert o

    Ensaio sobre a natureza e funo do sacrifcio, jmostrara, em 1898, que esta abnegao e essasubmisso no deixam de ter um lado egosta.Para Mauss, a ddiva um ato simultaneamenteespontneo e obrigatrio. O estudo da ddivapermitiria sociologia a superao relativa dedualidades profundas do pensamento ocidental,entre espontaneidade e obrigatoriedade, entreinteresse e altrusmo, egosmo e solidariedade,entre outras3. Este ponto importante porque aconcluso do Ensaio ir criticar a generalizao

    da noo de interesse individual implcita nasociedade burguesa e no pensamento liberal, queiro opor radicalmente aquilo que a ddiva une.

    Um dos representantes do pensamento liberalno Brasil, Delfim Netto (1999), notou recen-temente que tal preocupao em propor alter-nativas tica do mercado valeu o Prmio Nobelde Economia de 1998 ao indiano Amartya KumarSen4 . Talvez at porque conhece por dentrouma civilizao da ddiva, como a indiana, pde

    Sen reconhecer que o desejo egosta do lucro nos incapaz de fundar qualquer sociedade, mastende, justo ao contrrio, a inviabiliz-las. ComoMauss, os estudos de Sen debruam-se sobre

    3 Um dos pareceristas anminos da Revista de Sociologiae Poltica lembra haver distino entre superar e me-diar antinomias, o que me parece rigorosa e filoso-ficamente correto. Para uma argumentao que buscamostrar que Mauss realmente promoveria uma supera-o das mencionadas dualidades, cf. Caill (1998). A meuver, a posio de Mauss, como a de Lvi-Strauss, realmenteacena mais para uma mediao que para uma supera-o dessas antinomias. Por outro lado, eu proporia queMauss nos ensina ainda que a mediao a superaopossvel. Esta parece ser a concluso de Viveiros de Castro(1996) um autor que acredito representar bem os desen-volvimentos recentes dessa eminente linhagem , a res-peito de outras antinomias, correlatas quelas que mencio-nei, como cultura/natureza e razo prtica/razo simbli-ca. Quando uso assim superao relativa, eu talvez de-vesse deixar mais clara minha prpria posio, no sentidode que trata-se realmente mais de mediao do que desuperao. Para uma anlise a respeito da mediaoentre as categorias de sujeito e objeto na obra de C.Lvi-Strauss, cf. Lanna (1999).

    4 Digo pensamento liberal, mas evidentemente, foi outraa prtica desse que foi um tirano de nossa economia.Como indica outro parecerista da Revista de Sociologia ePo l ti ca , paradoxal (e tragicamente irnico, eu

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    Polinsia no Captulo I, das Ilhas Andaman, noOceano ndico, Melansia e do noroeste americanono Captulo II, das chamadas sociedades antigas

    (Roma, ndia, povos germanos) no Captulo IIIe da Europa moderna na Concluso.

    As maiores contribuies do Ensaio talvezsejam:

    1) mostrar que fatos incluindo-se aqui tantoa prtica da troca como a reflexo sobre ela das mais diferentes civilizaes nos re-velam que trocar mesclar almas, permi-tindo a comunicao entre os homens, ainter-subjetividade, a sociabilidade. A An-tropologia o estudo desta comunicao edas regras que a estabelecem;

    2) essas regras manifestam-se simultanea-mente na moral, na literatura, no direito, nareligio, na economia, na poltica, na orga-nizao do parentesco e na esttica de umasociedade qualquer. Podemos isolar o aspec-to econmico de uma troca, mas ela implicasempre tambm um aspecto religioso (quese evidencia nos sacrifcios, nas ddivas depalavras das rezas etc.), poltico (que se evi-

    dencia nas trocas mal-sucedidas queredundam em guerra , na troca de violnciaou ainda no desequilbrio entre o que trocado6 e na assimetria temporal implcitaem qualquer redistribuio cf. BOUR-DIEU, 1996), ou mesmo esttico (a confec-o dos objetos, o modo de oferecimentoetc.). A troca assim um fato social total.Ela o ainda no sentido de manifestar-se

    historicamente em cada indivduo7;

    3) as trocas so simultaneamente voluntriase obrigatrias, interessadas e desinteressa-

    das, como eu dizia, mas tambm simultanea-mente teis e simblicas. Mauss enfraquecea dicotomia smbolo/morfologia presente naobra de Durkheim. Desde Formas primi-tivas de classificao, publicado em 1903 eescrito em parceria com este ltimo, Maussj nos mostrava como a morfologia socialtambm um fato simblico;

    4) Mauss prope um mtodo comparativo quepressupe uma sociologia. Se no chega arealizar trabalho de campo e por vezes re-produza generalizaes tpicas da chamadahistria conjectural, Mauss difere dos evo-lucionistas da poca, como James Frazer,em cuja comparao tudo se confunde ena qual as instituies perdem toda cor locale os documentos seu sabor (MAUSS, 1974,p. 43). Por outro lado, ao contrrio dacomparao anti-evolucionista de Radcliffe-Brown, o mtodo de Mauss no exclui ahistria. Esta contribui e enriquece suascomparaes. Mauss indica no Ensaio ,assim como no texto sobre a noo depessoa, escrito 15 anos mais tarde, que fazhistria social, sem distinguir esta dasociologia terica, nem das conclusesde moral [e] de prtica poltica e econmica(idem, p. 42-43).

    Nesse momento do texto, Mauss pergunta-sequal a regra que estipula a retribuio, concluindoque cada sociedade tem a sua. Posteriormente,Lvi-Strauss (1949), propor haver algo de

    universal por trs da diversidade no nvel dos fatos,formalizando o princpio de reciprocidade.Mauss entender a generalidade da retribuiopor meio de um nmero de fatos, sua anlisepermanecendo assim no nvel das instituiesparticulares. Muitos dos crticos atuais da noode troca de Lvi-Strauss reduzem a troca a umainstituio (VIVEIROS DE CASTRO, 1998), oque revelaria que eles se acham na mesma situa-o intelectual de um sculo atrs (LVI-STRAUSS, 1998).

    6 A ltima estrofe da epgrafe do Ensaio(de nmero 145),por exemplo, indica que nunca se d demais a um superior,seja ele chefe ou o deus, pois o ato de dar gera semprecerta superioridade, poltica e religiosa. A epgrafe indicatambm que o fato de no se retribuir adequadamente, aavareza (que pode ser entendida como uma manipulaoda troca), gera o medo. Sugere-se assim algo que ser repe-tidamente indicado por Mauss: basta haver uma prestaounilateral, um oferecimento e uma aceitao para haverddiva e essa prestao unilateral para se gerar valor; isto, uma tica impe-se mesmo queles que no a retribuem,

    ainda que isso ocorra diferentemente em cada caso espe-cfico. Isso importante porque, a meu ver (LANNA,1996), quando se fala em ddiva, no de troca que sefala; trata-se de uma prestao unilateral, na qual h simul-taneamente o ato de dar (por um sujeito A) e o de rece-ber (por um outro sujeito B).

    7 A noo de indivduo de Mauss, enquanto unidadefisiopsicolgica, apresentada em textosconhecidos de Sociologia e Antropologia.

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    Mauss aponta ainda para outra questoimportante, o fato de que cada sociedade faz suahierarquia entre as esferas sociais. Posteriormente,

    Godelier (1981), entre outros autores, retoma estatarefa fundamental de entender a hierarquia entreas esferas sociais de cada sociedade. Para Godelier,a esfera fundamental, fosse ela qual fosse,funcionaria sempre como relao de produo(economia no capitalismo, religio na ndia,poltica no final do feudalismo europeu, paren-tesco na Austrlia etc.).

    Em um debate que at hoje retomado entreMarx e Mauss, este ltimo faz outra contribuiofundamental ao salientar, com base nos dados de

    Malinowski, que a produo dos objetos kula, osvaygua,no parece ser to relevante quanto suatroca (Mauss, 1974, p. 86). Ou, por outra, asrelaes de produo so nas Ilhas Trobrianddeterminadas pela ddiva, assim como a produodos vaygua subsumida na sua condio deddiva fundamental.

    Ainda a partir da etnografia de Malinowski,Mauss retoma as diversas formas de ddivastrobriandesas (inicial, de fechamento, convite, deretorno etc.) interpretando-as como formasprimitivas de classificao10. Corretamente, nod ateno (re)classificao malinowskiana destaclassificao trobriandesa. Sugere futuras pes-quisas sobre o lugar do indivduo no generosono kula, infiel aos seus parceiros, e conclui queo kulano passa, ele prprio, de um momento, omais solene, de um vasto sistema de prestaes econtra prestaes que parece englobar a totalidadeda vida econmica e civil dos trobriandeses poisele concretiza e rene muitas outras instituies(idem, p. 83). O kula assim um fato fundamentalda vida trobriandesa, englobando no s o queMauss chama de vida civil e econmica (in-cluindo aqui a poltica e a diplomacia intertribal)como tambm os mitos, a religio, a magia, as

    prticas funerrias e a moral (Mauss, 1974, p. 86).

    Fiz alhures (Lanna, 1992) uma discusso sobreeste aspecto englobante do kula, apontando para

    um fato no salientado por Mauss: a produo e atroca de bens no-kula, aqueles excludos da esferade troca dos vaygua,so funo das relaes deparentesco. Ou mais precisamente, nas IlhasTrobriand, a troca de mulheres funda uma relaode vassalagem, denominada urigubu, na qual odoador de mulheres recebe prestaes de inhames s quais tanto Mauss como Malinowski sereferem como tributos. Os chefes trobriandesesarrebanham vassalos distribuindo suas filhascomo esposas. Mauss (1974, p. 87) lembra como

    importante a redistribuio, feita pelo chefe, dosobjetos trazidos por uma expedio kula aosgrupos que prestaram servios ao chefe ou ao seucl. Se o urigubu um mecanismo endgeno decriao do poder do chefe, no kulatudo se passacomo se este poder se fizesse de fora para dentro,ao trazer valores kulado exterior. nesse contextoque deve ser entendida a afirmao de Mauss deque a troca kula organiza todas as relaes dogrupo, inclusive as internas.

    Vimos que o kulaenvolve diversos gruposmelansios e que Mauss interpreta como moedacertos objetos melansios que so a devidarecompensa ao oferecimento de cantos, mulheres,servios (MAUSS, 1974, p. 90). interessanteque tambm no potlatchhaja a troca de cantos,mulheres e servios pelos cobres e pelas peles(SAPIR, 1994). Como os objetos melansios, co-bres e peles da costa noroeste americana realmentese assemelham moeda que representam valoressociais centrais. Sugerem ainda a idia de casa-mento por meio da compra, mas Mauss j indicavaser imprpria essa expresso, pois esse casamentona verdade compreende prestaes em todos ossentidos, inclusive os da famlia da mulher, isto, h uma superposio de diversos circuitos detroca.

    Mauss conclui sua observaes sobre osmelansios negando que eles sejam menos evo-ludos, mas simplesmente no tm nem a idiada venda [...] e contudo fazem operaes jurdicase econmicas que tem idntica funo (idem, p.

    91). Lembra ainda que eles so uma parte dahumanidade, relativamente rica, laboriosa ecriadora de excedentes importantes (idem, p. 92).Diz o mesmo dos ndios da costa noroeste daAmrica, que desenvolveram uma rica civilizao

    10 Mauss, entretanto, ora reconhece o refinamento(1974, p. 89) intelectual das classificaes trobriandesas,ora as toma como pueril (idem, p. 88). Mas sua anliseno deixa de relacionar as classificaes nativas das trocas

    morfologia de cada grupo. A troca pode, assim, envolverem cada caso mais ou menos os chefes, cls, fratrias econfrarias (idem, p. 104), ou um potlatch que tem comocausa um funeral pode ser, em um dado grupo, distinguidode outros tipos de pot latch (idem, p. 114), e assim pordiante.

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    material e espiritual, como demonstram, por exem-plo, suas esculturas, mas, curiosamente, no co-nheciam nem a agricultura nem a cermica. Aps

    o contato com os brancos, esses ndios no smantiveram como desenvolveram o pot latch .Vimos que, em relao aos sistemas de ddivasdo Pacfico sul, os ndios da costa noroesteapresentam maior rivalidade e um certo elementode violncia, a guerra de propriedade; outradiferena relevante, salientada por Mauss, seria ade terem elaborado mais a noo de crdito aprazo (idem, p. 96).

    O fato de trocas do tipo potlatchobedecerema um crescendo foi entendido por Boas como uma

    manifestao daquilo que concebemos comoemprstimos a juros: deve-se sempre dar mais doque se recebeu em um potlatch anterior. Mausssugere substituir os termos dvidas, pagamento,reembolso e emprstimo, mas mantm o de juros chega a falar em taxas (idem, p. 112).Argumentei, ao contrrio, a favor de mantermoscomo universal a noo de dvida, mas no a dejuros (LANNA, 1995). Em todo caso, no po-demos jamais tomar a noo de crdito como sinalde uma evoluo, como supem alguns histo-

    riadores econmicos e o prprio Mauss, na parteIII do Ensaio, como veremos a seguir.

    O potlatch sugere a Mauss outros insights,como o de que o jogo e a aposta, mesmo entrens, so formas depotlatch: neles empenha-se ahonra e o crdito [e], no obstante faz-se circulara riqueza. Mauss supe ainda haver umaassociao universal (evidentemente queinstitucionalizada diferentemente em cada caso)entre troca e sacrifcio (MAUSS, 1974, p. 99); odar seria associado vida e o receber morte.Fica a impresso de que essa tendncia se enfra-queceria no capitalismo. No potlatch, muitoclaramente, o receber e no o destruir que associado morte. Destruir seria uma forma dedar, uma forma muito especfica exatamenteporque evita a retribuio (idem, p. 100). Do pontode vista do doador, dar j destruir, um sa-crifcio, logo um modo de dar vida, de regeneraosocial. Ao se destruir, tira-se a vida do objeto, masrecria-se a vida do doador. Freqentemente, nonoroeste da Amrica a destruio pode ser pelofogo (queimam-se casas do prprio grupo) ouatiram-se os cobres ao mar. Alternativamente,quebram-se os cobres em pedaos (o que, por sinal,no implica necessariamente que eles deixem de

    circular).

    Ao analisar o potlatch Mauss nota ainda aassociao entre troca e circulao de nomes11.

    D-se um potlatchpara ganhar, manter ou recu-perar um nome, geralmente nome de linhagem.Ganha-se assim reputao. Obviamente os insightsde Mauss no se limitam ao potlatch. O estudodas trocas permitem-no relacionar o mana poli-nsio e melansio ao homem largo da costa no-roeste da Amrica e autoridade romana. Nos trscasos trata-se da associao entre honra e magia,prestgio e riqueza. Mauss (1974, p. 102) nota queo mesmo ocorre nas tribos realmente primitivas,como as australianas.

    Ao mesmo tempo, perder um potlatch podegerar escravido (idem, p. 105), ou ainda, d-seumpotlatchpara se resgatar cativos (idem, p.107). Em resumo, opotlatchindica como a ddivapode se ligar simultaneamente ao sacrifcio, aonome e escravido. Isso implica, entre outrascoisas, sua relevncia para o entendimento dasmais variadas sociedades, dos indgenasamaznicos Roma antiga. A autoridade assimum conceito romano que no apenas ou nofortuitamente lembra o de mana: h em torno deambos semelhantes arcabouos institucionais.Assim, o nexum (idem, p. 112) um conceitoromano que lembra a escravizao por dvidada costa noroeste; em ambas empenha-se onome.

    Mauss est consciente que apenas iniciacomparaes possveis a partir da noo de ddiva.As comparaes que faz so bastante intuitivasmas tambm bastante ousadas. Sugere que opotlatch nos permite repensar o feudalismo

    europeu. H entre os tsimchian, por exemplo, doistipos de potlatchs, o dos chefes e os de vassalos(idem, p. 107, nota 170). Mas, mais comumente,o potlatch se liga confederao de tribos,estabelecendo uma hierarquia entre chefes. Elestm entre si relaes vassalo/suserano; perder umpotlatch tornar-se ora escravo, ora vassalo. Emalguns casos, estabelece-se que para vencer um

    11 A anlise de Mauss a meu ver muito mais sugestivaque certos desenvolvimentos da Antropologia da Mela-

    nsia, que associam a circulao de nomes em trocas dotipo kula noo de fama e no onomstica ou distribuio de ttulos (cf. MUNN, 1986; WEINER, 1976,entre outros).

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    potlatch, tornar-se suserano, deve-se antes terperdido, ter sido vassalo, recebido bens que seriamfuturamente dados (idem, p. 105). Por outro lado,

    o que um chefe recebe nopotlatchde outro chefe, necessariamente por ele redistribudo interna-mente (idem, p. 107). O chefe que perde umpotlatchno perde totalmente sua autoridade, pois um intermedirio; ele est ento em condiesde passar adiante algo da alma, da identidade, doser do vencedor. O perdedor tem assim duaspossibilidades: a primeira seria, a partir dos valoresque recebe e de outros que pode vir a acumular,tentar ganhar outro potlatchno futuro; a segundaseria passar a ser um representante do vitorioso,

    ainda que tendo seu prestgio diminudo em re-lao a este.

    Neste momento do texto (o sub-item do Cap-tulo II, intitulado A fora das coisas), Maussadota o conceito de manapara explicar fatos dacosta noroeste americana. famosa a crtica deLvi-Strauss (1974) a esta passagem, que tem sidoentendida como uma censura ao fato de Mausstomar a teoria nativa como teoria antropolgica.A meu ver, o problema dessa passagem no s ofato de Mauss generalizar uma noo particular, a

    de mana, como aponta Lvi-Strauss, mas tambmaproximar categorias nativas muito distantes,romanas, samoanas e kwakiutl. De modo seme-lhante, evidentemente errnea a afirmao deMauss de que opotlatchexiste na Melansia. Hojesabemos que o que geral o princpio dereciprocidade, formalizado por Lvi-Strauss(1949), a partir do prprioEnsaio sobre a ddiva.Por outro lado, Mauss (1974, p. 121) encontra nanoo de logwa, da costa noroeste, um equivalenteao mana. Ambas teriam uma virtude produtora

    (ibidem). como se houvesse uma funcionalidade(ou efi-ccia?) de uma ideologia, ou melhor, deum prin-cpio mgico e religioso da posio e daabundn-cia (idem, p. 121-122), isto , noexatamente de um princpio poltico-econmico.

    Como j disse, Mauss nota que, em toda parte,distinguem-se bens mais ou menos inalienveis,e que os segundos so sempre os mais valiosos mulheres, privilgios que se passam a um genroou nomes a um filho. Da mesma forma, distin-guem-se, em toda parte, como entre ns, osalimentos ricos das simples provises. ParaMauss, seria mais correto falarmos no em trocamas sim em emprstimos entre bens inalien-veis. Os ttulos, como o de xam ou de titular dedanas em uma confraria (idem, p. 118) podem

    ser tidos como bens inalienveis. So coisas dafamlia (idem, p. 119). No caso da costa noroesteamericana, casas, portas, talheres, mantas, caixas,

    pratos, canoas, cachorro seriam, neste sentido,semelhantes s nossas coisas da famlia. Elasso, como todas as ddivas, individualizadas;como cada um dos objetos kula, cada uma destascoisas da famlia identificada por um nome etem sua histria prpria.

    Exatamente por sua inalienabilidade Mauss(1974, p. 121-122) tambm associa os cobertoresda costa noroeste s esteiras polinsias, por serembens essenciais de circulao bastante estrita,cuidadosamente repartidos entre os cls e as fam-

    lias dos chefes. Eles seriam ainda semelhantes acertos objetos kula, tambm bens de circulaorestrita a uma esfera de troca e s ocasies solenesde kula. Mauss nota que um cobre que j foidestrudo e depois reconstrudo, isto , j passoupor vriospotlatch, tem mais valor (idem, p. 125).Mas Mauss nota ainda que os kwakiutl distinguemduas espcies de cobres, distino feita com basena maior ou menor alienabilidade (ibidem). Isto, h cobres que no saem da famlia e que nodeixam de ter grande valor, equivalente ao da

    famlia. O valor mximo seria ento o de um co-bre-de-famlia-nobilrrima-que-circulou que reali-za a sntese entre inalienabilidade e alguma aliena-bilidade. Essa interpretao se refora pelo fatode que os cobres secundrios no podem ser que-brados e refundidos; so satlites dos primeiros,exatamente porque so definidos, de antemo,como mais alienveis.

    VI. DIREITOS E ECONOMIAS ANTIGAS

    O ttulo do Captulo III doEnsaio Sobre-

    vivncia desses princpios nos direitos antigos enas economias antigas. Como se sabe, a noode sobrevivncia foi cara aos evolucionistas. Tam-bm a noo de antigidade sugere um estgioentre a modernidade e o primitivismo. Sugeriacima que as comparaes de Mauss esto de certaforma entre Boas e Frazer, dirigindo-se para aperspectiva mais etnogrfica do primeiro sem abrirmo da pretenso para encontrar traos universaisdo pensamento humano que caracterizava osegundo. O ttulo do Captulo III indica que

    Mauss no se livrou totalmente de influnciasevolucionistas. No segundo pargrafo deste ter-ceiro captulo, Mauss fala em comparao (Frazer)e explicao histrica (Boas), de certo modoconfundindo ambos os mtodos. A meu ver, como

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    seu ttulo indica, este o captulo mais evolu-cionista do Ensaio, justamente porque tambm aquele com mais pretenses histricas. A histria

    de Mauss difere assim da de Boas por no perderuma obsesso com a noo de origens. Esse evolu-cionismo no , entretanto, a caracterstica centraldo texto, nem invalida inmeras de suas con-tribuies.

    De um ponto de vista metodolgico, o evolu-cionismo do captulo expressa-se ainda pelo fatode Mauss apoiar-se no na lingstica porm simna filologia. Mas o prprio Mauss (1974, p. 147)parece consciente dos limites deste procedimento,quando indica que no ir aprofundar sua

    tentativa de reconstruo por etimologia. Tam-bm na parte dedicada aos fatos indianos, Maussmostra-se consciente dos limites de sua preocupa-o com origens (p. 143-144), afirmando a seguirque nossa demonstrao atual no nos obriga adosar estas mltiplas origens e a reconstituirhipoteticamente o sistema completo (idem, p.147). Conclui, como faramos hoje, que a simplesdescrio ser bastante demonstrativa (idem, p.148). Quanto identificao entre comparaoantropolgica e trabalho histrico, est claro que

    ela se limita a algumas passagens do texto, pois,como vimos, h no Ensaio inmeras passagensonde a comparao prescinde a abordagemhistrica, fundamentando-se no prprio fato datroca de ddivas, pressupondo assim mais a anlisesociolgica que a histrica.

    ainda no Captulo III que surge a idia deque entre ns, isto , na sociedade capitalista, addiva se enfraquece, ao opor-se obrigao e prestao no-gratuita (idem, p. 132). Mauss(1974, p. 143-144) supe neste captulo que, doponto de vista moderno, a moral da ddiva seriaenvelhecida e acidental, e demasiado dispen-diosa e sunturia, assoberbada por consideraespessoais, incompatvel com o desenvolvimento domercado e da produo.

    Ao mesmo tempo, ao abordar a instituio ro-mana do nexum, Mauss nota que ela fundaria asnoes de crdito e penhor, estando a meiocaminho entre a economia capitalista e a da ddiva.Mauss no chega a reproduzir o erro dos historia-

    dores econmicos que critica (Mauss, 1974, p. 98)por suporem ser o crdito uma conquista daevoluo da humanidade, mas sua abordagem nodeixa de ser evolucionista. Como j disse a respeitodas interpretaes de Mauss sobre a moeda, ao

    contrrio de Marx, Mauss parece confundirevoluo lgica com a histrico-factual. De todomodo, Mauss (1974, p. 134) mostra que, no nexum

    romano, o credor se vincula ao devedor como orecipiente de uma ddiva ao seu doador: em umarelao de emprstimo, o indivduo que recebeua coisa ele mesmo, ainda mais que comprado,aceito pelo emprstimo; ou ainda, o mero fatode ter aceito algo de algum torna o indivduoobrigado (ibidem).

    Em Roma no teramos ainda, num primeiromomento, a compra e a venda, mas sim a entregade um basto (de cobre) junto com a coisa empres-tada. Esse basto foi posteriormente substitudo

    pela moeda, representando um ttulo que em-penhava o gado das gentes, e que tinha cunhadasua face. A moeda teria sido ento antes um pe-nhor, depois um valor12. Essa sugesto parecefactvel para o caso romano. De qualquer modo,ainda que as generalizaes histricas de Mausspossam ser criticadas, fica a sugesto genial, aindaque apoiada na etimologia e na intuio socio-lgica: venderefoi originariamente venum-dare(idem, p. 142).

    Mencionamos que a noo de contrato tem,para Mauss, carter universal. Coerentemente,para ele o nexumseria, como opotlatche o kula,um contrato, implicando algo mais que um vnculomgico, religioso e jurdico o que alis j eranotado pelos romanistas da poca. Mauss (1974,p. 136) sugere associarmos esses aspectos do vn-culo (ou nexum), isto , sua semelhana com opotlatchou o kula, ao fato de a famlia romanaincluir os escravos e as coisas. Estas coisas sedividiam em res mancipie res nec mancipi, isto, alienveis ou no. Mauss afirma que a pecnia,o gado, que se tornou moeda, peclio, era o bemalienvel por excelncia, isto , o que menos re-presentava a famlia e a casa. Segundo a classifi-cao romana, ele estaria, mais do que qualqueroutro bem da famlia, prximo das coisas quepassam, comerciveis.

    Mauss nota a associao entre essas coisasque passam e a idia de tradio. A raiz dessapalavra a mesma da palavra que significacomrcio em ingls (trade). A idia que as

    12 interessante notar que a noo de valor no seriapara Mauss universal. Dumont, ao contrrio de seu mestreMauss, generaliza a noo de valor, mas no a de moeda.

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    coisas criam vnculos espirituais: tradio. Nestesentido, a tradio o que fica daquilo que passa.Mauss nota que os romanos no tinham outra

    palavra alm de dare, dar, para designar todosesses fatos que consistem na traditio (idem, p.142). No h assim novidade na sugesto, feitapor certos cientistas sociais anglo-saxes, quecertamente leram mal Mauss, de que as tradiesso dinmicas ou inventadas.

    Por mais que se possa criticar Mauss por fazercomparaes intuitivas, sem distinguir perfeita-mente as conexes lgicas das histricas, suaanlise revela claramente a importncia do estudoda ddiva para entendermos os direitos romano e

    germnico. Por exemplo, Mauss nota que a nooromana de ru, antes de assumir o sentido deculpado, indicava o homem possudo pela coisa.A inferioriedade espiritual que caracterizariaaquele que recebe algo seria uma quase culpa(idem, p. 140).

    Em seguida Mauss aborda o direito hindu cls-sico, do qual h numerosas fontes escritas, verda-deiras epopias da ddiva, at hoje extrema-mente populares na ndia (idem, p. 144-145).Como o direito germnico, o hindu teria conser-vado um sistema moral fundado na ddiva querepresentaria uma etapa anterior (lgica e histo-ricamente) aos direitos grego e romano. Mauss(1974, p. 145) espera poder revelar, atravs dateoria das ddivas elaborada pelos prprios hin-dus, uma continuidade entre estes direitos e a mo-ralidade crist.

    Havia na ndia a prescrio de se dar aos br-manes, superiores hierrquicos. Nesse caso, Maussno chega a falar em tributos. Essas prestaes

    religiosas eram claramente sacrificiais e retribudaspelos brmanes com servios religiosos. Os br-manes encarregariam os deuses de retribuir ospresentes feitos a eles. Mauss fala em uma sriede presentes aos deuses, sem descrev-la pre-cisamente, praticada tanto por brmanes comopelo comum dos mortais. Aparentemente, trata-se de repastos funerrios. Mauss afirma quefaltam dados e que no haveria necessidade deesses fatos serem especificados com preciso emum trabalho de comparao (idem, p. 148).

    Tratar-se-ia de um direito que esteve em vigorna prtica do sc. 8 a. C. at o 3 d. C., mas quesobrevive at hoje na lei brmane (ibidem). OMahabarata a histria de um gigantescopotlatch[...] torneio e escolha de noivas (idem, p. 147). A

    ndia antiga teria sido um pas depotlatch (idem,p. 145), de prestaes totais de cls e aldeias,apesar de j conhecer o mercado, o mercador, o

    preo, a moeda, a venda. Mauss fala em rituaisda venda, que se associariam aos princpios dehospitalidade (idem, p. 146).

    Mauss comenta que uma ddiva produz sempresua recompensa. No caso hindu, essa recompensapode ocorrer nesta ou em outra vida. A ddivano perdida, reproduz-se (idem, p. 148), voltade alguma forma ao doador inicial. Assim, um ava-ro renasce em uma famlia pobre ( idem, p. 148).Trata-se assim de uma teologia jurdico-econ-mica (idem, p. 149) presente nas leis e na prtica

    crist. Entre os brmanes, como entre os cristos,prega-se que o verdadeiro lucro implica renn-cia de si (idem, p. 149).

    Mauss lembra ainda ser bastante geral a crenade que aquele que consome sem dar (isto , semser consumido) tido como algum que consomeveneno. H, assim, tambm na ndia, a equaoj mencionada acima, entre dar e viver. Associadoao viver, o dar pensado no caso indiano comoqualidade natural: tudo que se dado so seresvivos, com os quais se dialoga e que tomam parteno contrato (idem, p. 149). Ou ainda: da natu-reza da comida ser partilhada (idem, p. 150). Seo entesouramento associado morte, o dar associado vida e noo, fundamental na ndia(DUMONT, 1992), de pureza.

    Mauss nota que tal a interpretao ao mesmotempo materialista e idealista que o bramanismodeu para a caridade e a hospitalidade (idem, p.150). Do ponto de vista da organizao social epoltica, o sentido da riqueza ser dada aos

    brmanes. H dois modos de destruio: um, anti-social, associado avareza; o outro, do sacrifciobrmane, associado ao seu oposto, a generosi-dade divina. Ao mesmo tempo em que vivem dasddivas, os brmanes fingem recus-las; so rece-bedores na prtica, mas definidos ideologicamente(num sentido forte) como doadores, encarnandoos valores mximos daquela sociedade. Receben-do algo de toda a sociedade, inclusive dos reis (oskshatriyas, em relao aos quais so superiores),os sacerdotes a encarnam: cada um d um pouco

    de si e o todo se representa no brmane.J a civilizao germnica, segundo Mauss,

    no teria teorizado tanto sobre a ddiva como ahindu, mas no teria deixado de pratic-la.Diferiria ainda da hindu por ser essencialmente

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    feudal e camponesa e desprovida de mercados(idem, p. 156). Analisando os germanos, Maussnega a tese da existncia de uma economia fe-

    chada, tese esta que viria a se tornar incrivelmentecomum nas cincias sociais do segundo ps-guerra, tanto nos desenvolvimentos dos trabalhosdo prprio Mauss feitos pela chamada Antro-pologia econmica como, por exemplo, noschamados estudos de comunidade, de inspiraonorte-americana. Mauss (1974, p. 156) mostracomo toda sociedade tem suas formas de exo-gamia, suas trocas de mulheres, bens, ritos etc.Apresentando um argumento posteriormentedesenvolvido por Lvi-Strauss (1952, entre

    outros), Mauss indica que, ainda que possa havercerto isolamento, ele sempre relativo, restrito,por exemplo, no caso da civilizao germnica, auma certa poca do ano. Mauss (1874, p. 157)nota que as famlias, tribos, chefes e reis germ-nicos se comunicavam atravs de festas, alianas,penhores, hospedagens e presentes to grandesquanto possvel. Batismos, comunhes, noivadose casamentos incluam banquetes nos quais osconvidados poderiam ser todo um povoado. Umcasamento real germnico lembraria o caso br-

    mane: o casal real recebe no em nome da avarezamas do seu oposto, sua fertilidade sendo aquelade todo o reino; este, por sua vez, representadopela soma das ddivas recebidas pelos nobresnoivos. Como no caso dos tributos, os bens possi-bilitam ao rei representar o todo.

    Mas no s em casamentos reais a genero-sidade das ddivas um penhor da fertilidade dojovem casal. Por isso mesmo, refletir sobre ainstituio do casamento nos ajuda a entender osignificado do penhor. Evitamos assim pensar os

    fatos econmicos como se fossem fatos puramenteeconmicos. Mauss (1974, p. 157) fala que casa-mento e penhor so instituies de mesma ori-gem, havendo a necessidade do penhor em todasas espcies de contratos germnicos. Este penhorteria dado origem prpria noo de salrio(wadium, wage): o penhor aceito permite aos con-tratantes do direito germnico agir um sobre ooutro, pois um possui algo do outro (idem, p.158). O penhor era em geral um objeto pessoal,de pequeno valor, como uma luva, uma moeda ou

    uma faca. Aquele que o entregava empenhava asua honra, ficando em uma posio inferior at aquitao do contrato. H assim um perigo em dare em receber, seja uma ddiva, seja um penhor.Lembrando uma representao que vimos estar

    presente na ndia, nas lnguas germnicas a palavragifttem o duplo sentido de ddiva e de veneno. Otema da ddiva funesta comum no folclore

    germnico.Tambm a civilizao chinesa reconhece o

    vnculo entre o doador e o bem dado, mesmo hojeem dia (idem, p. 161). Tambm l aceitar umpresente perigoso. Mauss se aproxima dasreflexes de Karl Polanyi (1980) a respeito damercantilizao da terra, quando observa que nahistria humana a venda definitiva da terra muitorecente sendo por isto normal que a terra escapeao direito e economia do capital (1974, p. 161,nota 125). Isso explicaria em parte, a meu ver, a

    fora do movimento comunista chins e da nossaprpria idia de reforma agrria: nada menoscapitalista do que uma ddiva do Estado. Dis-tancio-me assim de J. T. Godbout (1998, p. 44),quando este afirma que entende-se por ddivatudo o que circula na sociedade que no est ligadonem ao mercado nem ao Estado (redistribuio)nem violncia fsica. Quanto relao entreddiva e violncia fsica, remeto o leitor, entretantos outros, ao texto de Carneiro da Cunha &Viveiros de Castro (1985). Ao contrrio de

    Godbout (1998, p. 47), penso que, para Mauss, addiva no seria fundamentalmente diferente domercado e do Estado13. Quanto a este ponto,Mauss difere significativamente de Polanyi, dequem Godbout parece adotar uma trade cara aosevolucionistas: ddiva, redistribuio e mercado.Sem chegar, entretanto, a negar a diferena entrea dvida mercantil e a dvida da ddiva, mostrareia seguir que a redistribuio parece oferecer algoque, por falta de termo melhor, denominareiforma geral dos Estados14.

    VII. SOCIEDADES MODERNAS

    Na Concluso do Ensaio , Mauss estendesuas observaes para as nossas sociedades.Para ele, como para Marx, estas se definem pelopapel central das relaes de compra e venda. Ao

    13 Conseqentemente, discordo das afirmaes deGodbout segundo as quais o mercado e o estado so duasinstituies neutras, que no alimentam nossas relaessociais, porque so exteriores aos laos com as pessoasque nos so caras (GODBOUT, 1998, p. 48).

    14 Evito conscientemente a noo lvi-straussiana deestrutura; estamos aqui no nvel da instituies e node uma forma abstrata universal e intemporal.

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    mesmo tempo, como para Lvi-Strauss (1952), oque Mauss denomina nossas sociedades tambmse define, de um ponto de vista quantitativo, pela

    multiplicao das relaes de troca. Uma primeiraconcluso: o estudo da circulao de riquezas,atravs da ddiva, oferece uma base para umacomparao inicial entre diferentes sociedades epermite uma passagem entre o estudo da nossasociedade e o das outras. Para Mauss, a ddiva,nas sociedades modernas, estaria embutida nacompra e venda, e no paralela ou independentedesta. Mauss minimiza a importncia das relaesde pura ddiva no capitalismo, eximindo-se deuma anlise de momentos como o do Natal, o das

    festas e das relaes de hospitalidade na modernacivilizao ocidental.

    Nas suas referncias sociedade germnica,Mauss sugere ter ocorrido, nesta sociedade, umcerto desenvolvimento histrico, da ddiva aomercado. Mas a Concluso do Ensaio nega aexistncia dessa linha contnua e da passagemsupostamente universal. Mauss ambgo quantoa esse ponto: ora a presena do mercado enfra-quece a ddiva, ora no, o mercado carregando algica da ddiva dentro de si. Em todo caso, sua

    posio na Concluso deixa de ser aquela, cla-ramente evolucionista, implcita no Captulo III,de que h um contnuo (lgico e histrico) daddiva ao mercado. Mas, como vimos, mesmo nodecorrer do Captulo III, em suas observaessobre a ndia antiga, Mauss indicava haver con-vivncia entre ddiva e mercado.

    Parece-me que, mais importante do que avaliara incipiente presena do mercado nas outrascivilizaes, devemos considerar em profundidadea presena da ddiva na nossa. Isto , por maisque, como Marx e outros nos ensinaram, a socie-dade ocidental moderna se caracterize por umdesenvolvimento, sem precedentes na histriahumana, das relaes mercantis, por outro ladoMauss (1974, p. 163) nos lembra que no temosapenas uma moral de comerciantes. No apenaso hbito de presentear, oferecer hospitalidade oudar festas que permanece entre ns, mas toda umamoral, derivada da intersubjetividade que estasrelaes implicam. Se, em determinados con-textos, h conflito entre as lgicas da ddiva e damercadoria, em outros pode haver complemen-taridade. H instncias onde cada uma dessasidias opostas se verificam, a mercadoria ora pres-supondo ora destruindo a ddiva (Lanna, 1995).

    Mas na Concluso do Ensaio Mauss nopensa em um paralelismo entre ddiva e merca-doria. Sua idia, cuja importncia, a meu ver, ainda

    no foi devidamente avaliada, a de que, namodernidade, a ddiva est de certo modo em-butida na compra e venda. Isto , essas lgicasno se excluem porque as coisas vendidas temuma alma (Mauss, 1974, p. 164). Neste momentodo texto, Mauss faz uma defesa do socialismo.Haveria para ele um resqucio da moralidade daddiva no fato de os trabalhadores , denominadospor ele produtores , terem vontade de seguira coisa que produziram e a sensao aguda deque seu trabalho revendido sem que tomem parte

    no lucro. Mas Mauss assume algo, a meu ver,falso e no demonstrado em momento algum doEnsaio: que tambm os nativos das sociedades nocapitalistas tenham esse desejo de seguir as d-divas que fazem. Os inmeros exemplos etnogr-ficos do Ensaiomostram exatamente o contrrio,a saber:

    a) que os desejos no organizam nem a pro-duo nem a distribuio no capitalista;

    b) que, ao contrrio do que ocorre no capitalis-mo, a produo pode ser determinada pelatroca;

    c) que o fato de o doador ir, ele mesmo, comas ddivas que faz mesmo que ele no astenha produzido, mas tenha sobre elas algumdireito ( irmo da esposa do produtor, nocaso do urigubu trobriands, ou o sobri-nho uterino do produtor, no caso fijiano etc.) algo profundamente diferente do argu-mento psicologizante segundo o qual o tra-balhador quer seguir as mercadorias que

    produz.A sugesto da Concluso doEnsaio a de

    que o trabalho sempre uma ddiva, em qualquersociedade, capitalista (onde ele tambm umamercadoria) ou no. Essa tese segue a tradio daescola de Durkheim de se opor s anlises de Marxda sociedade capitalista, pois, se verdadeira,implicaria a possibilidade de o operrio ser elemesmo o agente simultaneamente voluntrio einvoluntrio (dada a brilhante e indiscutvel ca-racterizao da ddiva pelo prprio Mauss) daentrega de uma parte de si mesmo ao industrial. Aposio marxista, quanto a isso, seria a de quesemelhante entrega no deixa de ocorrer, mas nose trataria de ddiva e sim de algum tipo de apro-priao, que talvez merecesse ser tida como

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    REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLTICA N 14: 173-194 JUN. 2000

    1) a defesa dos mecanismos de legislaosocial e de redistribuio estatal, da impor-tncia da arrecadao de tributos (que, como

    tento argumentar alhures Lanna 1995 ,no deixam de ser prestaes totais, asse-melhados assim s ddivas);

    2) um pedido ingnuo para os ricos teremboa-f, sensibilidade e generosidade noscontratos de aluguel, ou caridade, solida-riedade, reconhecerem o interesse queexiste no dar e o fato de que, se recebemdos trabalhadores bens e almas, que voltema considerar-se como espcies de tesoureirosde seus concidados; apela-se inocen-

    temente para que os ricos voltem s pr-ticas de despesa nobre (MAUSS, 1974,p. 167). Note-se que h aqui uma visoaristocrtica da burguesia enquanto classedominante: ela , de certo modo, associadaaos chefes primitivos, enquanto benefi-cirios por excelncia da ddiva. Mas, comopara Marx, para Mauss as massas teriammelhor que os dirigentes o sentido dointeresse comum, enquanto os ricos teriamapenas o sentido do seu prprio interesse;

    3) o argumento de que os grupos devem agir,isto , os sindicatos devem, enquanto asso-ciao voluntria, defender seus interesses(MAUSS, 1974, p. 168), devem participardo progresso, da lgica individualista. Damesma forma, os artistas devem assumir seudireito posse de suas criaes, estas nosendo apenas ddivas, mas algo que podeser vendido. H uma defesa da arte; ela noperderia seu valor mgico se se tornasse,cada vez mais, tambm mercadoria16.

    4) uma defesa da previdncia privada e de queo custo da segurana trabalhista fizesseparte das despesas gerais de cada indstria

    em particular (idem, p. 166). Alis, este ar-gumento talvez fosse mais liberal do quesocialista, mas se liga percepo de que

    os trabalhadores merecem mais do que osalrio.

    Mauss enfatiza ainda que o estudo da ddivaimporta tambm para a gesto da sociedade mo-derna. Essa gesto administrativa seria importantedemais para se informar apenas pelo utilitarismo.Como Polanyi, Mauss indica a importncia doestudo comparado das vrias formas de economiae lamenta que os economistas pouco se dedicarama essa questo, equivocando-se, alis, quandotentaram (idem, p. 171). A meu ver, esse estudo

    se iniciaria com o reconhecimento da univer-salidade da noo de valor (com Dumont) e dossignos de riqueza (Saussure) e da especificidadeda noo de valor mercantil (Marx).

    Mauss (1974, p. 171) lembra que seu Ensaiosegue a sugesto de Durkheim de uma origemreligiosa da noo de valor econmico, j que nassociedades no-capitalistas as diversas atividadeseconmicas so impregnadas de ritos e mitos eguardam um carter cerimonial obrigatrio.Haveria, nessas atividades, um hbrido entre liber-dade e obrigao, interesse e liberalidade. Maussnos ensina a no associar o econmico circulaodo til. H instituies econmicas, como adiviso do trabalho, mesmo em sociedades infi-nitamente menos evoludas (idem, p. 173). Mas,como nos ensina Dumont (1977), nem por issodevemos supor a inexistncia de uma esfera daeconomia com um desenvolvimento caracteristi-camente moderno: o mercado.

    Critiquei aqui Mauss por adequar, de modo

    precipitado, valores no-capitalistas moedacapitalista. Vimos ainda que, em outros momentos,Mauss (1974, p. 174) assimila rpido demais ochefe trobriands ou tsimshian ao capitalista.Vimos que, se valores, como os cobres dopotlatch,so signos de riqueza e meios de troca (ibidem),eles, ao contrrio do dinheiro capitalista, circulamem esferas. Ao contrrio do dinheiro, seu valorno se generaliza da mesma maneira. Um vaygua(colares ou braceletes kula) um valor supremono enquanto valor econmico, pois no pode ser

    trocado por quaisquer outras mercadorias; o quese generaliza seu significado hierrquico, reli-gioso inclusive, dada sua imerso especfica noconjunto da gramtica da sociedade trobriandesa.Quanto questo dos valores em relao, alis,

    16 Esse entendimento da arte como ddiva foi desen-volvido por Hyde (1979), que analisa, por exemplo, omito da musa criadora. Permito-me aqui, muito mo-destamente, divergir de Mauss: o momento (ps-mo-derno?) quando a arte ocidental deixa se conceber como

    ddiva e se assume como mercadoria aquele no qual elase revoluciona de tal modo que praticamente deixa deexistir (penso, por exemplo, no anncio da morte da tra-dio musical ocidental, aps Stravinsky, com o surgi-mento do dodecafonismo e da msica concreta, feito porLvi-Strauss na Ouverture das Mythologiques).

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