ensaio sobre uma teoria do humanismo
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ISSN 1678 - 2933
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ENSAIO SOBRE UMA TEORIA DO HUMANISMO1
ESSAY ON A HUMANISM THEORY
Rafael Zanlorenzi2
RESUMO
O presente trabalho é a primeira parte de uma construção mais extensa, que pretende em
última instância configurar novos fundamentos para a teoria do Direito. Este escrito deseja
esclarecer o modo pelo qual se determina a formação de um método para as ciências do
humanismo, utilizando-o em exposições futuras como fundamento para uma regionalização
metodológica no Direito. Inicia tal exploração pela demonstração de que a construção de tal
método é uma formação auto-referente de conceitos. Essa formação se dá através da
reconfiguração simbólica das experiências comuns a todos os seres humanos, estabelecidas
para além de divergências culturais diante da ocupação física uniforme que se dá através da
fisiologia humana. As experiências da ligação física com o feminino e da morte seriam
exemplos dessas regiões comuns conformadoras da percepção a partir de um nível
inconsciente. A condição auto-referente tem, com isso, uma inclinação direta no sentido de
conformação da lei e do método que leva à sua compreensão. Mais especificamente, a
construção simbólica comum leva ao que nossa cultura jurídica estabeleceu como fundamento
principiológico do Direito, constante como substância ontológica dos princípios jurídicos.
Nesse sentido, os princípios realizam a formação dos fundamentos de sistemas jurídicos ao
absorverem os símbolos representativos comuns da experiência humana lançando-os como
conceitos ontologicamente comprometidos.
PALAVRAS-CHAVE: Escatologia - inconsciente – método - lei - linguagem - princípio -
significação - símbolo.
1 Artigo recebido em 02 de dezembro de 2010.
2 Especialista em Direito Securitário pela UFPR, mestre e doutor em Filosofia do Direito pela
UFPR, professor das Faculdades Integradas do Brasil – UNIBRASIL, professor dos cursos de pós-graduação do Instituto Brasileiro de Pós-graduação e Extensão – IBPEX. [email protected]
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ABSTRACT
The present work is the first part of a more extensive construction, which intends to configure
new fundaments to the Theory of Law. Through this writing we wish to clarify the way through
which the formation of a humanistic method is determined. It’s final purpose is to employ it in
future expositions as fundament for a methodological regionalization in Juridical sciences. It
begins it’s exploration through the demonstration that the construction of such method is a self-
referent construction of concepts. This construction is developed through a symbolic
reconfiguration of experiences that are common to all human beings, established beyond
cultural divergences, before the uniform physical occupation given by human physiology. The
experiences of birth and death would be examples of these common regions capable of conform
the intuition from an unconscious level. This self-referent condition has a direct inclination in
the sense of conforming the law and the method that leads to it’s comprehension. Specifically,
regular symbolic construction takes to what our juridical culture established as principiological
fundament of Law, constant as ontological substance of juridical principles. In this sense, the
principles build the formation of the fundaments of juridical systems by absorbing common
symbols, representatives of human experience, launching them as ontologically committed
concepts.
KEYWORDS: Method - language - law - principle - scatology - significance – symbol -
unconsciousness.
SUMÁRIO: Introdução; I. Conceito de Humanismo; II. Fundamentos para a determinação de
uma ciência; III. A ipseidade e o olhar sobre si mesmo; IV. A Cientificidade do Humanismo; V.
Ligação entre as duas dimensões significantes – unidade do signo; VI. A realidade relacional
humana; Conclusões; Referências.
SUMMARY: Introduction; I. Concept of Humanism; II. Fundaments for the determination of a
Science; III. The problem of ipseity and the perspective on the self (soi-même); IV. The
determination of the scientific perspective of humanism; V. Connections between two
significant dimensions – the unity of the sign; VI. The relational human reality; Conclusions;
References.
INTRODUÇÃO
O presente ensaio foi desenvolvido como parte de um trabalho maior. Seu objetivo é
apresentar de forma sucinta os elementos fundamentais de uma teoria do humanismo. Sua
função é servir como regime preparatório em sentido epistemológico para uma posterior
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reavaliação dos fundamentos da teoria do Direito e da teoria da justiça, tarefa que será realizada
em escrito posterior.
A proposta apresentada neste primeiro escrito é a de demonstrar a premissa de
constituição do humanismo para além de uma racionalidade apriorística. A experiência do
humanismo, como concebida nas linhas que se seguem, não tem um caráter definitivo, e por
isso mesmo escapa às definições clássicas do tema. Sua envergadura refaz os percursos do
Renascimento teórico do fim da Idade Média, mas apenas na medida de uma compreensão mais
sólida de seu significado. Sua preocupação escapa aos limites formais da produção artística do
período, tentando antes compreendê-la como representação simbólica de certas ansiedades.
Mais que isso, a presente forma de encarar o humanismo é representativa de uma releitura muito
posterior, oriunda do pensamento germânico do século XX, notadamente de JUNG e
GADAMER, que recompõem, talvez na forma de um humanismo fraco, o que pode ser
encarado como fundamentação de uma distinta ciência do humanismo.
Nossa hipótese é a de que a composição do humanismo, muito embora tenha sido
encarada segundo uma perspectiva racionalizante, tem de fato em seus fundamentos uma
racionalidade simbólica oculta. Aliás, a confluência racional criada pelas composições
humanistas só tem alguma cogência lógica na medida que se possa afirmar tais relações desde
certos ligares simbólicos, tidos como dados triviais para a construção do discurso lógico
moderno. Pretendemos oferecer uma demonstração ampla da validade de tal hipótese, de modo
a permitir a determinação mais sincera do humanismo a partir desse lugar simbólico. Da mesma
forma, pretendemos oferecer uma denominação específica do que seja esse lugar, de modo a
estruturar desde suas raízes o conceito de uma ciência do humanismo.
I. CONCEITO DE HUMANISMO
Nosso primeiro passo deve ser a definição clara do que seja humanismo. Entende-se
tradicionalmente o termo, através da história das idéias, como um conjunto de ações para a
construção cultural que compreendem a constituição humana como centro das explicações
universais. O que isso significa exatamente?
Essa compreensão tem, ao longo de variações possíveis do mesmo princípio em vários
autores, um fundamento. Refere-se a dois pontos diferentes, em essência. O primeiro deles diz
respeito à capacidade de compreensão do próprio ser humano, o que significa partir do
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pressuposto necessário de sua condição distintiva em relação a todos os demais objetos de
estudo possíveis, considerando-se que o humano é o único objeto portador da qualidade da
consciência. Significa isso que o ser humano é entendido, segundo o ponto de vista ortodoxo,
como único ser passível de observação consciente de sua própria existência ou da existência das
coisas que o cercam.
Disso deriva-se um segundo princípio. Estou consciente de mim mesmo, e minha
consciência me permite reconhecer os demais seres também como existentes. Sou o único que
manifestamente é capaz disso, enquanto todo o resto não é. Ou o restante está consciente da
existência e não pode dizer (opção adotada por GIORDANO BRUNO) ou não está consciente,
muito simplesmente. Significa, portanto, que somente o humano pode estar consciente e
demonstrar para além de si essa consciência. Daí tem-se o fundamento geral do humanismo: a
compreensão da realidade exige consciência e capacidade de expressá-la em linguagem (o logos
grego)3.
Esse fundamento conceitual, reforçado sobretudo no pensamento cartesiano, estabeleceu
como direcionamento geral um sentido mais tarde considerado como ideológico. HEIDEGGER
criticaria essa postura como presente desde o pensamento grego, determinante de uma formação
cultural que teria se estabelecido como controle do homem sobre a natureza. Paralelamente
ouviríamos as críticas do pensamento marxista como determinação de uma inclinação
ideológica sobre a construção moderna do humanismo (aquela que ficou, aliás, consagrada
como tal). Nisso, o humanismo deixa de ser uma preocupação do humano sobre a natureza
humana e passa a uma determinação universalizante.
Isso acontece em conseqüência da universalização necessária que se deriva da
construção de uma racionalidade em torno de um homem consciente de sua existência, como
acabamos de mencionar. O caso é que, em sentido estrutural, o problema nos arrasta para
interpretações desse tipo.
3 Para um melhor esclarecimento, devemos entender que a constituição do pensamento vem
sempre atrelada à produção de uma linguagem, Compreender é colocar um nome e alocar esse nome dentro de uma construção de nomenclaturas apropriadas. Por isso mesmo, a compreensão depende de consciência da existência de algo (para nomear e, com isso, identificar) e da capacidade de trabalhar lingüisticamente esse nome (torná-lo sintaticamente empregado e empregável, além de conceder-lhe um significado lingüístico mediante suas qualidades). Esse raciocínio fundamenta o próprio método cartesiano, como veremos em críticas posteriores. A ligação lógica que se estabelece, portanto, é que a compreensão deriva da consciência verbalizada de algo. Como os demais seres não têm consciência verbalizada, não compreendem.
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O verdadeiro problema reside numa camada interior da construção dessa racionalidade.
O humanismo colocado como tal é, antes de tudo, preocupação que participa de toda a história
do pensamento, inclusive dos dois eixos críticos da contemporaneidade (notadamente a nova
esquerda e o pensamento pós-metafísico). Assim sendo, o humanismo não trata de uma
explicação universal a partir do humano, mas antes da determinação do humano em virtude do
universal. É portanto regionalização do pensamento.
É o caso dizer que toda regionalização do pensamento é por necessidade exclusivista e
universalizante. Não se admite, sob qualquer forma de constituição científica regionalizada, a
produção de princípios que lhe sejam avessos. E por isso mesmo resta sempre a impressão de
uma determinação universalizante, que contudo não se permite a permanência como
preocupação científica única no que diz respeito ao universo de compreensão. Submete outros
elementos ao seu princípio, mas apenas na medida da compreensão propriamente dita de seu
objeto.
A questão passa a ser portanto a que atrela nossa produção intelectual a uma premissa
da construção metodológica e epistemológica, passa a determinar como se resolve a
regionalização do pensamento humanista sem uma uniformização errônea das configurações
gerais da pesquisa científica. Passemos portanto à exploração específica das condições de
fundamentação da ciência do humanismo.
II. FUNDAMENTOS PARA A DETERMINAÇÃO DE UMA CIÊNCIA
A operatividade de uma ciência se dá na construção de um jogo de elementos que
devem ser estudados e na compreensão desses elementos dentro de um conjunto de regras
lógicas. Esse arcabouço é compreendido pela teoria da ciência como fundamento da construção
de um método e de uma epistemologia regionalizada, e por isso mesmo serve como duplo
fundamento para a determinação do conhecimento científico.
A produção de métodos regionalizados considerada em duas frentes. A primeira delas
diz respeito a um estudo meticuloso dos processos mentais através dos quais podemos
estabelecer a cognição do objeto, estabelecendo um suporte lógico derivado dos processos de
dedução. Aqui entende-se que a preocupação é antes a do labor sobre os princípios essenciais
que regem o objeto de estudo e o aparato conceitual empregado para sua compreensão. Esse
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setor foi chamado por HUSSERL4 de campo das ciências ontológico-essencialistas. Esse
conjunto de ciências serve como zona de formulação de juízos sobre a essência do objeto, e por
isso mesmo têm caráter afirmativo e ontológico. A carga epistemológica gerada tenta aqui
demonstrar como a produção de condições específicas de observação do objeto levam a uma
formação conceitual de caráter eidético.
Por outro lado, podemos igualmente seguir as considerações de HUSSERL e estabelecer
o conjunto de fundamentos das ciências para a incorporação de aplicações práticas. Como ele
mesmo diz, essas aplicações práticas não são independentes dos juízos estabelecidos em sentido
ontológico-essente, mas ao mesmo tempo não pertencem à produção epistemológica pura. Aqui
temos as chamadas ciências de fato.
Essa descrição da estrutura do pensamento científico permite uma divisão refinada do
que significa efetivamente o processo de cognição. O reconhecimento de algo se dá, como
HUSSERL coloca, por meio da percepção, e em ocasiões se desenvolve enquanto intuição. O
desdobramento intuitivo em sentido próprio é reflexivo dos momentos nos quais não podemos
estabelecer a generalização necessária para a classificação do objeto por meio de qualidades que
lhe sejam internas. Assim descreve por exemplo a percepção da cor, reproduzida simplesmente
em sua dimensão percebida-intuída. Aqui as regionalizações propostas pelo autor fazem pleno
sentido, eis que podem ser verificáveis através de condições empíricas e permitem uma visão
clara da distinção entre os enunciados construídos.
Mas essa base empírica só opera como espaço de verificabilidade porque HUSSERL
estabelece a constituição do pensamento a partir de considerações hiléticas. As teorias hiléticas,
notadamente a husserliana, determinam a disposição do objeto desde o seu fundamento material.
Diante disso, a própria constituição abstrata do eidos se torna mero resultado dessas relações
constantes, e portanto pode ser compreendida como ilusória no sentido específico da produção
de um objeto de estudo. Aqui começa nosso problema: e as ciências que não têm objetos de
fundamentação hilética por natureza?5
4 Ver HUSSERL, Edmund. Idéias para uma Fenomenologia Pura e para uma Filosofia
Fenomenológica. Introdução Geral à Fenomenologia Pura. Aparecida, SP: Idéias & Letras, 2006. 5 A solução fácil foi tomada no pensamento grego pós-socrático, notadamente em Platão e no
retorno hilético dos estóicos. Em ambos os casos há uma compreensão rudimentar de que a constituição do pensamento se dá através de uma matéria de apreensão própria. A intelecção mesma passa a ser entendida como sentido comparável aos demais. O problema que essa tese compõe é reconhecido posteriormente como uma limitação desnecessária das dimensões de construção do pensamento, inclusive com a geometrização denunciada por BACHELARD (que mencionamos adiante).
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O problema ganha uma dimensão ainda maior quando passamos à compreensão do
humanismo enquanto edificação científica. A base efetivamente hilética da constituição humana
pode ser encontrada entre certas correntes da psicologia (sobretudo na tendência psicologista à
procura constante de causas para as relações comportamentais, como afirma BACHELARD6),
ou então através de certas composições biológicas. Tais teses podem explicar como se
processam reações físicas para certos estímulos emocionais, ou então podem determinar até
certo ponto causas da história individual ou coletiva que consolidem a motivação da ação
humana, mas não conseguem determinar a realização de atos na amplitude de opções. A
condição fundamental do arbítrio é espaço que relaciona a ausência de todas as causas e
determina antes de tudo uma vinculação da ação à percepção do que é o humano e de como ele
instancia a sua própria reconstituição.
O primeiro grande paradoxo para a formação do humanismo surge portanto da própria
tentativa de desvelamento ontológico-essente do humano enquanto tal. Nisso, o paradoxo que se
forma emerge como letal para qualquer produção de fundo metodológico.
A isso acrescenta-se um segundo problema, qual seja, o da insuficiência de consistência
material para a objetivização do humanismo. Precisaremos necessariamente, a exemplo das
diversas ciências humanas, de uma delimitação de certos aspectos da existência humana para
que possamos em seguida desenvolver um método adequado à sua exploração. No entanto, essa
saída é desde logo dirigida, eis que forma um discurso determinado para condições específicas e
com finalidades delineadas. Significa dizer que cada ciência, composta como está, pode sofrer
uma posterior redução ao infinito por uma sobreposição de níveis discursivos, constituindo uma
opção relativa de epistemologia fundante.
A questão passa a ser como oferecer uma definição total e específica para esse objeto, a
qual não consista numa representação dada pela subjetividade em suas opções de abordagem ou
que, mesmo que constitua uma tal opção, ainda assim ofereça o fechamento dessa possível
redução ao infinito.
Falemos inicialmente do método, e do motivo pelo qual a problemática se forma de todo
modo, apesar do esforço em entender como a mente se debruça sobre o problema da condição
humana. O método para o humanismo é o seu próprio momento de construção científica. Um
6 Ver BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
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olhar sobre o olhar-se só se realiza, como informa GADAMER7, a partir de um jogo auto-
referente e fechado, o qual se aplica no momento em que tenta compreender-se.
Agora, a definição de um objeto está localizada em que instância? Ele se dá por si, ou
ele se desvela para a mente por conta de sua própria preocupação? Se considerarmos as diversas
possibilidades de disposição de nós mesmos como sujeitos de uma dada relação fenomênica,
poderemos observar ao menos três possibilidades diferentes: enxergamos um objeto que
inventamos, enxergamos um objeto dado ou enxergamos um objeto dado por perspectivas
pessoais. Para além disso, podemos tornar ainda mais complexa a questão, se considerarmos
que podemos relacionar objetos dados a objetos dados, objetos dados a objetos inventados e
objetos inventados a objetos inventados, mesclando assim os diversos pontos de vista. De todo
modo, tais relações enveredam para as primeiras visões. Pois seria suficiente dizer que, quando
cruzamos invenções e objetos reais dados, estamos de fato buscando visões concedidas pela
nossa imaginação sobre objetos dados, e com isso caímos na segunda opção oferecida
anteriormente. E da mesma forma, num circuito de objetos meramente inventados, estaremos
dentro do círculo de uma visão puramente subjetiva, assim como, num circuito exclusivamente
posto por objetos dados, estaremos desde logo aferrados à percepção de dados que nos são
oferecidos.
De certo modo, pode-se dizer que a preocupação científica tem sido a tarefa de separar
objetos dados de objetos inventados, alocando-os cada qual em sua esfera. A ciência realizada,
contudo, sobre objetos inventados, pode ser considerada como uma objetivização dos canais
pelos quais nós os inventamos, e portanto tem em si um caráter de separação severa entre o
criado e o entregue. Para além disso, o próprio resultado da invenção é ruminado como
pernicioso. Ele é parte da ilusão do mundo, do véu, é insidioso e afasta da verdade, ao menos
segundo uma perspectiva ortodoxa.
Agora, se levarmos isso em consideração, teremos uma visão exata do que o discurso
científico se tornou com o passar do tempo, sobretudo na disseminação do aviltamento das
conclusões obtidas do senso comum. O engano da ciência produzida até aqui foi o de confundir
os termos “ciência” e “cultura”, tornando as observações obtidas do senso comum, do
animismo, das explicações míticas e das esferas do imaginário como infrutíferas para uma
compreensão sólida da realidade e da condição humana. Há uma diferença crucial entre esses
dois termos. Falar em ciência demonstra a representação de observação progressiva da natureza
7 Ver a obra capital do autor, Verdade e Método, sobretudo no primeiro capítulo de seu primeiro
volume. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2004. 2 v.
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de algo em si mesmo. O imaginário, o inventado, o mítico e o anímico têm naturezas próprias, e
portanto podem ser cientificamente compreendidos. Conceber algo cientificamente representaria
o ato de tomar ciência desse algo, que precisa por isso mesmo dar-se em si, portar a qualidade
da ipseidade8.
Isso ligaria a natureza à percepção científica, diante da qualificação do que é natural
como aquilo que é dado, criado por mãos não humanas ou simplesmente manifestado de forma
intocada pelo humano. Aquilo que vem das projeções humanas poderia ser re-moldado pela
própria mente e pela vontade, o que significaria dizer, comparativamente, que o observador que
entende o moldado como verdade estaria aquém de uma preocupação efetiva. Aquele que molda
conhece intimamente. Aquele que observa o resultado conhece apenas o que o reformulador
deseja colocar como visível, exceto na condição de estudar o processo de reformulação e, com
isso, o próprio objeto em estado natural.
A cultura, por sua vez, carrega em si a percepção dessa re-acomodação, desse re-
formatar. Por isso mesmo, não pode coincidir com a concepção de ciência, ainda que a
contenha, ou pelo menos dependa de alguma forma dela.
Uma preocupação que emerge em HEIDEGGER9, acusação levantada contra a
produção do pensamento grego, determina que a concepção ocidental de cultura dificilmente
buscou uma abordagem que tivesse o mero sentido de compreensão. Antes, a compreensão
esteve desde sempre voltada para o controle do natural, e portanto para sua conversão em um
estado cultural. Com isso, depõe contra a própria divisão entre natureza e cultura, defendendo
assim um método de compreensão que transcenda os limites da antecipação e que permita a algo
dar-se por si enquanto si próprio. De fato, grande parte da discussão heideggeriana se mostra
antes de tudo uma discussão de método, uma defesa de um método ontológico de percepção da
realidade, que uniformize o dado e o criado.
Devemos, contudo, desviar-nos dessa percepção. A questão é que há, de fato, uma
diferença essencial entre o dado e o criado, qual seja, a condição de que o que é dado persiste
como mistério (para resgatar uma vez mais a proposição de RICOEUR10
). O criado guarda
8 A respeito desse conceito, uma exposição extremamente lúcida pode ser encontrada em
HEIDEGGER. Ver HEIDEGGER, Martin. História da Filosofia de Tomás de Aquino a Kant. Petrópolis: Vozes, 2009. 9 Ver HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 2004. Destacam-se os cinco
primeiros capítulos, que oferecem uma visão dos fundamentos de formação metodológica da filosofia e demarcam as bases de produção do conhecimento ocidental. 10
Ver RICOEUR, Paul. Philosophie de la Volonté. Paris: Éditions Points, 2009. 2 v. Destacaria aqui a discussão estabelecida ao longo do primeiro volume para a formação da culpa como categoria essencial da ação humana. Antes de atingir essas observações, o autor lança noções
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segredos apenas na medida de uma ligação primordial com o dado. Ainda assim, fender a
relação entre natural e cultural parece exagerado. Há elementos culturais firmemente baseados
em dados, e dificilmente poderiam ser qualificados como naturais, considerando as formas pelas
quais o passado oculta suas origens e impede seu conhecimento pleno. Há mistério na cultura,
tanto quanto há na natureza, e talvez essa tenha sido a preocupação inicial em HEIDEGGER,
ainda que divirja de visões que teorizam sobre a preocupação cultural (notadamente a visão de
CASSIRER, considerado um opositor filosófico ao que então era considerado um novo espírito
heideggeriano nos territórios germânicos).
Um primeiro ponto a ser destacado, portanto, é que o método se apresenta como
observação cuidadosa dos caminhos empregados pela mente para a compreensão de algo dado.
Algo que não é dado poderia ter um caminho semelhante ao método, mas seria antes o percurso
de sua reprodução, e não de seu controle. Falaríamos então em ritos, rituais ou procedimentos.
O método é, contudo, confundido em larga escala com o ritual, quando na verdade potencializa,
a partir da compreensão de algo em sua ipseidade, a formulação ritual da sua reprodução.
Agora, no que diz respeito à condição humana, devemos ter em mente, como já
mencionamos antes, que se trata de uma demanda peculiar. Nela, estamos olhando para nós
mesmos com uma ciência que tenta responder para nós mesmos o que somos em “nossa”
ipseidade. Isso levanta uma segunda questão: o método define o objeto do humanismo, ou ele é
dado, ou então estamos no limiar de misturas entre dado e criado? A resposta imediata é a de
que, no sentido específico da compreensão humana, temos dados e elementos criados a serem
compreendidos uniformemente nas condições que os fazem todos dados de alguma forma. Isso,
contudo, não afasta o problema de um estudo do humano em sua ipseidade e a partir dela. Nosso
olhar sobre nós mesmos, como colocou HEGEL, se desdobra a partir de uma capacidade de
distanciamento, que os existencialistas colocariam como uma abstração que não nos remete a
campos efetivamente existentes do transcendental, mas que nos permitem a sensação de
transcender (HEIDEGGER e sobretudo SARTRE11
). Essa capacidade de afastamento é
necessária. Pensemos da seguinte maneira: um objeto pode ser definido de duas formas
gerais sobre a preocupação do humano consigo mesmo, e eleva a possibilidade de considerar tais preocupações como o Mistério (em sentido absoluto) dado pela religião. Nossa visão não difere da percepção de RICOEUR, ainda que não se concentre apenas na formação da vontade em diálogo com a fundamentação da culpa. Ao contrário, pretende enveredar pelo sentido oposto, como veremos mais adiante. 11
Em suas duas obras capitais. Ver HEIDEGGER, Martin. Op. Cit., sobretudo no quinto capítulo. Ver igualmente SARTRE, Jean-Paul. O Ser e o Nada. 16 ed. Petrópolis: vozes, 1997. Ao longo da obra, o autor dedica consideráiveis palavras para demonstrar a sensação de trans-cender em uma ligação essencial com a possibilidade de atravessar-se para além da matéria e no sentido do pensamento ou da intuição adequada do arranjo fenomênico de um dado instante.
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diferentes. Primeiramente, pode ser percebido, e por isso mesmo individuado. Uma vez
individuado, pode ser estudado e explorado dentro de suas fronteiras individuais. Outro ponto é
o da criação. A criação pode ser confusa e pouco delineada inicialmente, mas exigirá, logo, uma
distinção clara em relação a outros objetos, caso desejemos observações concisas sobre o que
observamos. Em ambos os casos, o caráter espacial de organização de nossa espécie é um fator
determinante da construção desses delineamentos. Em outras palavras, tendemos a organizar
espacialmente mesmo as idéias, que teoricamente não precisariam passar por essa limitação, eis
que não estão presentes em regras espaciais. A identidade é, portanto, uma condição
eminentemente espacial, depende da observação física e, de alguma forma, de certas qualidades
ortodoxas de geometria (talvez incentivando com isso a paixão pela matemática desenvolvida
em setores do humanismo ao longo da construção do pensamento moderno).
Restam-nos com isso duas opções. A primeira é a de forçar sobre o objeto criado essa
divisão. Isso é dado pelo método e pela sua exigência. A própria definição etimológica do termo
(caminho) dá essa idéia. É um percurso próprio da mente, nesse sentido. Precisa de conceitos
fundamentais, precisa ao menos discernir sobre um mesmo objeto (a humanidade, por exemplo)
qual aspecto desejamos enfatizar em um determinado discurso, para que então possa elaborar
um discurso de fundações epistemológicas apropriadas e dirigido a determinado fim, mesmo
que esse fim seja a compreensão aberta do objeto em questão.
A segunda opção é a de trabalhar com a abertura oferecida pelo objeto em questão.
Neste caso, temos em mãos um pesadelo epistemológico. Significa dizer que, para além dos
tons discursivos oferecidos por um método (que certamente revisitarão a concepção grega de
logos, eis que não se pode falar de algo sem saber o que é este algo) precisaremos lidar com
vários discursos ao mesmo tempo, harmonizando-os e admitindo contradições necessárias entre
uns e outros, levados a explicar tais contradições a partir de princípios epistemológicos
diferenciados e por meio de particularizações nos momentos apropriados.
Seria como estudar a condição humana a um tempo por meio da raiz epistemológica do
fato social e do inconsciente coletivo, por exemplo. As diversas visões de fato social têm seus
olhares cravados na relação causa-conseqüência, para falar de uma sociologia ortodoxa, e em
contrapartida o discurso da psicologia de massas tem as suas condições firmemente gravadas em
torno dos símbolos geradores de uma inconsciência comum, culturalmente herdada.
A primeira opção tem seu valor no sentido da produção, mas não poderia servir para
uma completa teoria do humanismo, e por isso mesmo viria em prejuízo, no ponto que mais nos
interessa, para a criação de uma ciência do Direito capaz de completar um ciclo de explicações
sobre os fundamentos essenciais da razão normativa (por assim dizer). Por isso mesmo, para
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que sigamos um tom efetivamente científico - o tom de tomar ciência de algo - enveredaremos
pela segunda rota, tentando harmonizar, ainda que em termos gerais, as distinções entre
discursos que geram a ansiedade de não saber como explicar a condição humana como um todo.
Seria o mesmo que dizer que pretendemos a criação de um metadiscurso humanista, o que pode
ser uma saída viável ou, no final, apenas a criação de outra ilusão.
III. A IPSEIDADE E O OLHAR SOBRE SI MESMO
Gostaria de começar a exploração retornando por um momento ao problema do método
em GADAMER. Sua afirmação geral é a de que o tato, a capacidade de relacionar-se
socialmente em diversos níveis, é o fundamento a ser estudado para a compreensão da condição
humana. Mas não é exatamente o caso dizer que a substância da ciência humana é ainda
incompreendida e parte do tato. É o caso dizer que a substância dessa ciência, antes de pedir por
um método, é o seu próprio método, como o próprio autor afirmou, ainda que tenha insistido em
algum momento na tentativa de esclarecer discursivamente esse método.
Começamos, então, com esse problema, essa dificuldade em conhecer-se, num sentido
universal do humano enquanto tal.
Mas dessa vez, ao invés de repetirmos a análise que já fizemos acima, vamos inverter a
coisa toda. Partamos do pressuposto de que efetivamente nos conhecemos plenamente. O que
adviria disso? Paz de espírito, talvez, em primeiro lugar, uma sensação perene de saber-se em
seu lugar, e de saber o lugar individual, e certamente o saber lidar com a individualidade em
seus tons peculiares, assim como conhecer de todo modo a posição individual perante o todo.
Não haveria nisso, talvez, motivo ou disposição para questionar-se em seu papel ou em sua
própria essência, estando isso desde logo determinado, e sendo o todo orquestrado para essa
determinação. Chamemos isso de plenitude.
Devemos notar que, na inversão que apresentamos, não é preciso desdobrar a aporia da
soma de teses entre a individualidade e a coletividade (como colocam ELIAS, CAMPBELL e
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CASSIRER12
). Deixaremos esse tema para mais adiante. Por hora, importa compreender esse
arranjo como logicamente possível.
Nessa visão de bem-aventurança conquistada há, por implicação direta, uma ordem. E
se algo vai contra ela, por disposições humanas, então ou essas disposições revelam uma
compreensão mais profunda do humano, ainda não atingida (o que derrubaria a hipótese inicial
de atingimento de compreensão plena) ou seria uma ilusão a ser desfeita. A primeira determina
que a natureza mesma dessa condição de elevação é a mudança ou persiste enquanto mudança.
Se é mudança, então não há uma unidade plena, mas um jogo de diversas condições de
plenitude. Por outro lado, a mudança que converte o que não é pleno para o que é pleno exibe
que algo não pode ter sido pleno antes. Não há pleno e mais pleno. O pleno é condição absoluta.
Assim sendo, temos em mãos apenas duas opções. Ou a oposição é ilusão, ou então é ela
própria participante ativa da plenitude, como ensejam as teses dialéticas em suas diversas
formas.
Se considerarmos a plenitude como estática, ou seja, como única e perene em sua
forma, então estaremos querendo dizer que todos conhecem os sentidos de suas existências, bem
como os sentidos existenciais do humano. E por isso mesmo nenhuma ação ou pensamento é
sem propósito, e tampouco será o indivíduo sem sentido.
Da mesma forma, o fortuito ganha outra dimensão. Sempre presente, mas apenas sobre
o que a visão não alcança, e pertencente a limites para além da esfera de observação do humano,
eis que o humano está desde logo mapeado.
Desde tal pólo, a construção da vida como tal se desdobra através de uma ordem
revelada, uma organização que conjuga ação e vontade, necessidade e anseio (e até mesmo
desejo).
Se considerarmos, por outro lado, a plenitude como mutável, então teremos alcançado a
compreensão de que a mudança em si é condição essencial para sua formação. Uma tal
plenitude representa o conhecimento exatamente conforme àquilo que corresponde à verdade
sobre si. O que, então fomentaria a mudança? Se temos um estado pleno, sustentado por si
mesmo, e presente perante condições estáticas, o afastamento seria apenas para novas condições
plenas. Do contrário, seria perda, queda, afastamento da perfeição. Para não haver um
12
Em três obras capitais. Ver ELIAS, Norbert. A Sociedade dos Indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1994. Ver também CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o Homem – Introdução a uma filosofia da cultura humana. São Paulo: Martins Fontes, 1994. Ver ainda CAMPBELL, Joseph. Mito e Transformação. São Paulo: ágora, 1998. Cada qual exibe, sob sua própria perspectiva, um afastamento entre as realidades individual e coletiva.
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afastamento seria preciso, então, dissecar a própria atitude do homem pleno sobre a plenitude, e
novamente chegamos à premissa gadameriana.
Neste ponto, devemos ter em mente que um indivíduo em condição plena de conhecer-
se é capaz igualmente de reconhecer a necessidade de transformação de sua própria visão. Essa
transformação poderia advir de transformações em sua disposição para o mundo, ou então de
um novo arranjo do mundo mesmo. O fortuito e o contingente seriam as duas representações de
uma demanda externa de mudança, e portanto a plenitude demandaria um conhecimento do
instante em que se faz preciso mudar. De forma análoga, a mudança de sua própria disposição
precisaria ao menos ser reconhecida, e permitiria assim um novo arranjo pleno, segundo
processos de acomodação de tais disposições.
É fácil observar, aqui, como a compreensão plena do humano termina por enveredar
sem dificuldades para uma demanda de compreensão da mundanidade do mundo e para a
superação do próprio espaço individual. Uma vez mais repete-se a questão da posição do
homem, que gradativamente deixa de ser um resultado do conhecimento de si e passa a ser
premissa para a concretização desse conhecimento. O ponto de quebra está exatamente na
capacidade de agir. Aquele que se conhece plenamente precisa ao menos admitir que conhece
imediatamente as condições que o transformam, e ao mesmo tempo as contingências que
exigem dele uma transformação, ao menos para saber como reagir a elas. Da mesma forma, a
sua própria condição de auto-conhecimento se converte em uma condição de conhecimento do
arranjo pleno.
Em outras palavras, será sempre preciso falar em um jogo de circunstâncias mínimas
que precisam ser compreendidas para que aflore a própria compreensão plena de si. Mais que
isso, essa compreensão plena avança para um meta-discurso que explica elementos ligados à
condição humana num sentido geral de implicações diretas e indiretas, e portanto se torna uma
compreensão humana da mundanidade do mundo.
Para que exercitar essa hipótese?
Ao longo dela, somos obrigados a pensar como seria nossa realidade uma vez vencidas
todas as barreiras de compreensão do humano. Não defendemos com isso uma proposta
positivista de cumprimento de tal promessa. Apenas interessa ver em que pontos da existência
humana uma tal percepção deitaria suas influências.
E disso obtemos uma prática que até certo ponto representa a preocupação com a
continuidade do humano enquanto gênero, a preocupação com a preservação da individualidade
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em sentido material e conceitual e de forma geral o conjunto de necessidades que advêm dessas
duas preocupações centrais. A auto-preservação e a preservação da espécie são os dois aspectos
essenciais dessa primeira incursão.
O caso é que essas preocupações, num sentido especificamente racional, não estão
desvinculadas umas das outras. São a mesma preocupação. A cisão entre individual e coletivo é
uma fabricação. Mais adequada é a observação de RICOEUR sobre DESCARTES13
, dizendo
que a cisão é efetivamente a que reside entre alma e corpo, mencionando que os corpos
precisam se relacionar para que se compreendam. Mais que isso, corpos se compreendem.
Falam através de necessidades e operam como ferramentas capazes de supri-las, já sempre
ligados. A intrusão que RICOEUR levanta é a intrusão do inconsciente, que desorganiza esses
estímulos, uma intrusão marcadamente individual (num primeiro momento) e incerta, dada a
incompreensão do terreno inconsciente.
A divisão entre individual e coletivo é herdeira dessa incompreensão. Ela se restaura no
momento em que percebemos que uma compreensão plena de nós mesmos é a compreensão
plena de nossas próprias ações no mundo. Estamos inclinados a abrir mão da capacidade de
perceber claramente os fenômenos individuais graças às condições únicas que assumem. Isso
não significa, contudo, que não guardem em si as sementes para uma estranha forma de
objetividade, em momento algum destituidora da individualidade.
IV. A CIENTIFICIDADE DO HUMANISMO
Revista a questão da auto-referência, é ainda preciso refazer a composição do objeto do
humanismo enquanto ciência. Talvez aqui tenhamos certa dificuldade, considerando sobretudo
que os objetos de ciências formuladoras de fundamentos anankásicos (tais quais a física e a
biologia) exibem traços de objetos definidos pela própria percepção. Há, no que consideramos
como núcleo sólido do pensamento científico a partir das concepções gerais do positivismo,
uma convergência entre a phronesis e a noesis, o que significa que a percepção dá desde logo
um eidos do objeto a ser estudado e impede que o pensamento em si contrarie esse eixo.
O humanismo, por sua vez, parece ter a necessidade constante de lidar com o que
PLATÃO definia como distinções entre eidos e eidola. A observação do pensamento dirigido
13
RICOEUR, Paul. Op. cit.
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diretamente pela percepção não é necessariamente a única via, podendo haver uma abertura
geral para as origens imaginárias das idéias.
Daí temos uma conseqüência grave: o objeto de estudo do humanismo em geral não está
definido de antemão. Sua constante redefinição pode se dar desde um lugar aparentemente
errático, que busca fundamentos abertos e que não precisa ser definido objetivamente. Essa
distinção é o ponto de divergência que HUSSERL não acomoda adequadamente na exploração
científica, quando trata da formação do ontológico-essente e do factual na produção científica.
Essa condição imaginária é melhor exibida por um parentesco rústico entre as ciências
humanas e as suas contrapartes anankásicas14
. Enquanto as ciências humanas se concentram em
construir um fundamento objetivo através de processos de significação (espalhados desde já
para além dos limites dados pela filosofia da linguagem e pela hermenêutica) as ciências de
tonalidades anankásicas concentram-se em buscar explicações noéticas para os retratos obtidos
a partir da percepção. É interessante observar, contudo, que os dois grupos, em fundamento,
operam a partir de condições analógicas de construção do pensamento puro. Assim como os
signos obtidos são representações da linguagem e pretendem uma harmonia reprodutiva de
relações vislumbradas em relações significantes mais profundas e pretensamente objetivas, as
ciências de fundo anankásico buscam uma acomodação analógica entre as conjunturas
percebidas e observadas e as formulações específicas da quadratura noética. É somente pela
demonstração analógica de uma falha na quadratura noética estabelecida que se permite uma
reconstrução teórica no âmbito anankásico. Seria como dizer, por exemplo, que uma tese sobre
o movimento dos corpos celestes não funciona de tal forma porque certos comportamentos
permanecem sem explicação segundo a conjuntura noética apresentada.
No campo das ciências humanas, contudo, uma tal verificação poderia levar a uma
transformação em qualquer nível. Tanto a quadratura noética quando o conjunto de relações
significadas para a construção de tal quadratura poderiam ser transformados diante de uma
suposição de incoerência. Daí a dificuldade em estabelecer um objeto propriamente dito para o
humanismo, eis que sua inconstância permite uma fixação de teses não simplesmente por meio
de comprovações efetivas, mas igualmente segundo outros critérios, tais como a funcionalidade,
a utilidade da tese esboçada, a crença na validade do sistema significante apresentado ou ainda a
própria condição de preocupação científica com o tema a ser debatido.
14
O conceito de anankásico fica claramente definido por VON WRIGHT em suas especulações a respeito da lógica jurídica. Ver VON WRIGHT, Georg Henrik. Norma y Acción – Una Investigación Lógica. Madrid: Tecnos, 1970.
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Aí temos portanto um jogo de condições gerais para a formação de um conjunto de
ciências humanas em seu caráter distintivo em relação ao universo anankásico. Resta-nos agora
estabelecer mais especificamente o que é essa diferença, como se dá a semelhança analógica
entre uma e outra realidade, e como por fim poderíamos estabelecer uma rota efetiva para a
construção das ciências humanas.
Deveríamos começar pela diferenciação mais pontual desses níveis de formação de
teses, entendidas aqui como quadros noéticos capazes de explicar um determinado objeto
(entendemos noese como a produção do pensamento puro, como a totalidade de processos de
pensamento que levam, pela racionalidade, a jogos de explicações coerentes no sentido de uma
lógica qualquer). O ponto essencial está já no momento em que a hipótese é levantada, seja ela
qual for. No caso no universo anankásico, temos de início uma inclinação para hipóteses que se
lançam da quadratura visível para um resultado futuro, ou talvez para a explicação de certas
formas de repetição. O processo de comprovação terminará se debruçando cedo ou tarde sobre a
composição empírica, e por isso mesmo exigirá um retorno ao jogo de condições materiais que
informam a hipótese e permitem comprovar o percurso noético como válido.
No que diz respeito ao humanismo, uma hipótese levantada provém de uma realidade
igualmente observada, seja ela concreta ou imaginária. O caso é que, no momento em que uma
hipótese é levantada, estamos dispondo necessariamente de uma divisão muito similar à que
encontramos dada na formulação das teses anankásicas. Contudo, aqui a subjetividade
influencia profundamente a observação e transforma as condições gerais do objeto observado.
Isso significa que, enquanto a realidade anankásica está ligada a um sistema de significações
previamente estabelecidas, o humanismo depende do acolhimento individual dos signos e do
valor depositado sobre esses mesmos signos.
Isso não significa, contudo, que o humanismo não encontre, na construção de seu
objeto, certos critérios de objetividade. O posicionamento inicial de um determinado sistema de
signos como objeto é desde logo uma determinação objetiva, resultante da estrutura fenomênica
que permeia todo o processo de cognição. Para além disso, temos uma preocupação nova, qual
seja, a de determinar se o objeto delimitado estabelece um ponto objetivo de convergência a
partir do qual podemos estabelecer uma ou mais teses. A pergunta que surge daqui é se a
subjetividade estabelecida diz antes respeito à cadeia de relações conjugada na formação de uma
tese sobre um determinado corpo de signos ou se provém do corpo de signos em si.
Sobre a questão da objetividade de signos, devemos primeiramente observar as suas
diversas qualidades e os vários comportamentos possíveis a seu respeito. A primeira qualidade
de signos reside no que consideramos compor a linguagem, reduzindo-se à condição de
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significantes. Nesse estágio, a composição de signos tende a ser mais precisa, permitindo, salvo
em casos extremos, uma redução de definições ao próprio nível de linguagem, tornando o
esquema auto-referente. Essa composição tende a lidar com a arquitetura lingüística como
princípio de remissão analógica aos objetos apreendidos por meio da percepção.
Mesmo nas situações observáveis por meio de dubiedades de significado, podemos
determinar ainda assim uma relação direta entre significante e múltiplos significados.
V. LIGAÇÃO ENTRE AS DUAS DIMENSÕES DE SIGNOS – UNIDADE DO
SIGNO.
Das teses de VIGOTSKY15
, por outro lado, temos que a associação de palavras e
imagens serve à memória como repositório para seu funcionamento saudável. Isso tem uma
ligação profunda com o que a pedagogia compreende como processos de cognição, os quais
estão por sua vez ligados à condição individual de adequação do indivíduo através de seus
sentidos. A expansão de todas essas três linhas de pensamento oferecem a oportunidade de
observar a memória, liame de sustentação de uma dada linguagem, como formulação da
lembrança.
A questão do signo é basicamente a mesma. Imagens e palavras associadas a imagens e
palavras absorvidas pelo inconsciente, capazes de gerar reações emocionais específicas no
indivíduo. Há circuitos publicamente dispostos como tal, como podemos observar nas
linguagens codificadas formais, e há ao mesmo tempo um contexto de substituições feitas no
âmbito privado.
De todo modo, no âmbito público temos a exposição de tais conexões através de uma
geração uniformizada de signos e de deslizamentos formalmente adequados. Daí poder-se
afirmar que o signo tem um comportamento próprio, qual seja, o de associações que seguem
uma lógica peculiar, ditada por lugares conceituais dados pela individualidade em suas
demandas naturalmente originais.
A apresentação realizada por VIGOTSKY vem ao encontro de observações elaboradas
tanto por CASSIRER quanto por CAMPBELL, em momentos diferentes de suas obras. Ainda
15
VYGOTSKY, Lev Semenovich. Pensamento e Linguagem. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991
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que a descrição de CASSIRER16
sobre a linguagem retenha inclinações propriamente
lingüísticas, abandonando a progressão que poderíamos ver mais tarde em DERRIDA17
no
tocante a um entrelaçamento profundo entre mito e linguagem, ainda assim conseguimos
observar um percurso claro, que coloca a questão da significação como inevitavelmente ligada à
condição mnemônica de constituição do lingüístico.
Aqui, a situação passa a ser ressaltada de forma mais clara por CAMPBELL18
, e elucida
por que inclinamos nossas preocupações para o âmbito de significação. A experiência humana
de forma geral depende dessa condição significante, e por isso mesmo reforça o caráter de uma
produção mnemônica. Repetir a palavra é o ato de evocar algo, e portanto de significar esse algo
por meio do uso da palavra. Ao mesmo tempo, tudo que vemos precisa de uma versão
significante no espaço da mente, e por isso mesmo só pode ser representado na medida que a
relação seja lembrada, tanto para essa linguagem mentalmente interior quanto para a
exteriorização lingüística elaborada entre indivíduos.
CAMPBELL tem a sensibilidade de perceber tal condição, e trata dessa questão a partir
da percepção do simbólico (em maneira muito aproximada àquela esboçada por CASSIRER).
Nessa situação, afirma que a questão simbólica pode representar a um tempo a continuidade de
uma condição que se reproduz através do tempo e insiste em retornar às origens (a memória de
algo) ou na preocupação com a reformulação participativa de uma dada realidade (a condição
futura). O tempo que ambos os autores esboçam como tempo do símbolo e do mito é o tempo
que encontra a transcendência no próprio instante em que a consciência do transcender atinge o
homem.
Na verdade, a questão da significação lança um dos fundamentos para o elenco de
preocupações do estudo da condição humana. Nosso primeiro passo é o compreender, e o
significar é um sintoma da compreensão realizada. Essa compreensão assume formas, o que
poderíamos qualificar, a exemplo de HEIDEGGER, como modos de ser do humano. E nosso
primeiro modo de ser diz respeito a essa qualidade de observar passado e futuro, o retornar e o
seguir adiante.
16
CASSIRER, Ernst. Op. cit. Ver o capítulo VIII, na parte II, com especial atenção à descrição técnica dos elementos pós-saussureanos dos estudos da linguagem. 17
Ver DERRIDA, Jacques. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 2008. 18
Ver CAMPBELL, Joseph. Op. cit. Ver também CAMPBELL, Joseph. As Máscaras de Deus. São Paulo: Palas Athena, 1994. 3 v. Notar em especial a apreciação feita do tocante à mitologia ocidental, a qual ressalta essa circunstância geral de composição da linguagem mítica a partir das condições gerais de reprodução arquetípica das idéias e narrativas. Da mesma forma, ver CASSIRER, Ernst. A Filosofia das Formas Simbólicas. São Paulo: Martins Fontes, 2004. 2 v. Ver em especial a trajetória sobre o pensamento mítico traçada no segundo volume, com destaque para o conceito mítico de tempo.
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Para além disso, devemos ter em mente que tudo o que começa tem um fim, e que
temos, de todo modo, consciência do fim individual humano. Aqui, percebemos que o modo de
ser que olha para o passado procura a origem e, por isso, mesmo, um sentido para a existência
humana. Na reflexão completa de todos os detalhes de um dado objeto, desde sua aparição até
seu termo, temos a possibilidade de realizar a condição maior da sua construção de sentido, ou
pelo menos essa é nossa crença.
Da mesma forma, só poderíamos oferecer uma visão completa sobre o sentido da vida
humana diante de sua condição completa. Assim teríamos em vista todos os desdobramentos
concretizados de suas relações e existências, e com isso uma formação mais sólida do objeto
que avaliamos. Isso nos leva à máxima aristotélica de que um homem só pode ter sua vida
avaliada como vida feliz depois de tê-la concluído. Na verdade essa observação tem um tom
mais geral. Não se trata de um julgamento sobre a adequação da vida em relação à eudemonia.
É, antes, o fundamento para a oferta de um atributo condizente com o próprio objeto que se
observa. Não posso descrever uma condição sobre um objeto completo vendo apenas parte dele.
Só posso descrevê-lo e predicá-lo em parte.
Bem, daqui podemos obter duas correntes fundamentais de observação. Além da
origem, estamos também já sempre obcecados com o fim. No caso do indivíduo, o fim é
designado pela morte. Em CASSIRER e CAMPBELL, vemos sucessivas afirmações de como
os mitos, entendidos como explicações da realidade, envolvem a questão da morte. As mesmas
observações podem ser encontradas igualmente em ELIADE. Em alguns casos, trata-se apenas
de uma exploração geral do termo morte, e em como encaramos nosso próprio fim (o que seria,
grosso modo, como estudar um sapo olhando apenas suas pernas). HEIDEGGER é o grande
exemplo sob esse ponto de vista: ao afirmar que vivemos para a morte (o que não é de todo
irreal) reforça o caráter relevantíssimo do fim.
Contudo, é de CASSIRER e CAMPBELL, de ELIADE19
e ECO20
, que tiramos uma
lição ainda mais forte. Esses autores reforçam, em diversas passagens de suas obras, uma
ligação imemorial da morte. É um truque muito bem orquestrado, do qual HEIDEGGER
também se serve. Nesses casos, a morte é entendida como força vivificadora. Vive-se da morte,
como diz CAMPBELL, e a morte representa um recomeço, como insistem em repetir as cartas
de tarô e os estudos da filosofia oculta. Essa informação é valiosíssima, porque é uma nova
forma de lançar o indivíduo para a alteridade. O que morreu não é o que vive em seguida desde
19
Ver ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 2006. 20
ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. São Paulo: Perspectiva, 2006.
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essa morte. Ou, como nos disse HEIDEGGER, a morte que experimentamos é sempre a morte
do outro.
Isso significa que a vida decorre da morte de um outro, mesmo que esse outro seja o
próprio indivíduo, lançado para o espaço da memória. O vivo, esse é lançado para o porvir. E,
nisso, a perspectiva de morte é, antes de tudo, a impossibilidade de burlá-la uma vez mais, é um
acabar-se para tornar-se um novo indizível e não passível de ser previsto, ou para tornar-se
nada.
Aqui temos efetivamente o conflito que nos importa para a observação da epistemologia
e para a formação do método de compreensão do humano no momento de seus conceitos
fundantes. Epistemicamente temos a vida e a morte entrelaçadas, ambas como visões parciais da
condição humana, e portanto falhas no sentido de demonstrar inteiramente o que é o humano.
Em seguida, ligamos ambas, demonstrando que a questão humana é concretamente cíclica e que
se alimenta do estado de morte. Por isso mesmo, a condição humana é a condição que usurpa a
morte do que é seu, e que persiste pela não persistência de outro algo. Daí, a dialética.
Nesse entrelaçamento temos a impressão de uma completude de objeto, mas isso é só
uma impressão, de fato. Nosso método nos dirigiria então de volta para o início de nossas
observações. Antes colocamos um perigo na condição plena de existência do homem, qual seja,
o perigo de sua dependência necessária de uma compreensão das circunstâncias que informam a
sua própria existência. Ora, já encaixamos, por esse raciocínio, a composição plena que nos
espera: tudo o que nos é circunstancial muda e, portanto, acaba, acabando com nossa condição
plena e nos forçando a uma nova direção transcendental, que permita a reconstrução da
plenitude em um novo arranjo. Isso, contudo, exclui automaticamente o campo das hipóteses, e
por isso mesmo força a condição humana a uma historicidade material empobrecedora (que não
é a historicidade material de MARX, a qual demanda essa capacidade imaginativa e o trabalho
de possibilidades abertas).
Em outras palavras, mesmo que tentemos completar nosso objeto através de uma
previsão de coisas futuras, estaremos ainda sob o problema geral da existência de possibilidades
que não concretizamos e não concretizaremos em nossas vidas. Isso significa que ainda veremos
os objetos de forma completa. A crença religiosa na possibilidade de reencarnação é uma forma
de abertura para esse problema: através dela, todas as possibilidades humanas seriam
eventualmente concretizadas.
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É claro que aqui estamos enfatizando a concepção individual humana. Agora, como é
que essa individualidade se liga à questão de sociedades de indivíduos, e portanto, em última
instância, à condição humana como uma totalidade?
VI. A REALIDADE RELACIONAL HUMANA
A questão da formação de uma sociedade ou um grupo está intimamente ligada a esse
jogo de unificação entre vida e morte, e à construção de possibilidades. Primeiramente, um
indivíduo se torna automaticamente circunstância do outro, na medida que influencia de forma
contingente, num primeiro momento, sua própria existência. O passo que nos leva a ciências de
caráter agregador, ciências que estudam o corpo de indivíduos, representa uma elevação das
preocupações que pretendem determinar e superar esse caráter contingente. Se compreendemos
plenamente a totalidade de indivíduos, então ao menos nesse aspecto deixam de ser contingentes
as ações de uns perante os outros. Retornamos, assim, aos mesmos princípios lançados
anteriormente pelas condições de plenitude esboçadas acima.
Nesse caso, elevamos o mesmo problema que encontramos anteriormente. O caso é que
a compreensão plena só pode advir de um jogo total de possibilidades, para que possamos
converter nossas variações de comportamento, ação, condição, percepção de mundo e assim por
diante num discurso de modo de ser. E com isso chegamos ao mesmo circuito, que ECO
elabora: para que tenhamos uma visão completa das circunstâncias humanas, seria antes preciso
descobrir início e fim. A ligação fundamental que encontramos re-visita a concepção de uma
escatologia, da qual resulta uma percepção de integração humana (como nos coloca ECO).
Novamente se coloca o duelo vida-morte.
Assim sendo, o método em questão se torna automaticamente dependente de dois
elementos essenciais: primeiramente, de todas as correntes teóricas capazes de prever o que
poderá vir a ser ou não. Em segundo lugar, torna-se necessariamente dependente das teses de
possibilidade21
.
21
Referimo-nos aqui às correntes da lógica que defendem ser a possibilidade lógica uma reprodução de certas condições da física em uma espécie de mundo paralelo, em que só a
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O caráter do possível parece ser o mais grave dos dois, eis que, mesmo com uma
completa história da humanidade, seria impossível elaborar todo o jogo de possibilidades
possíveis (estou ciente do pleonasmo). Nesse caso, tudo o que temos é um progressivo
afastamento de nossa própria realidade pela condição variável de certos elementos. Não
tratamos aqui, é claro, apenas do variável lingüístico. Antes, falamos de um variável existencial,
que remete a um segundo nível discursivo de variáveis, qual seja, o da variação de posições
variáveis. Isso envereda para o percurso da mudança de comportamentos, para a mudança de
leis da física, e assim por diante.
Em outras palavras, a compreensão plena da condição humana é a um tempo a
compreensão universal plena, como preconizam as religiões de diversas formas, colocando a
compreensão do sagrado como um duelo constante e inexplicado entre o divino-universal e o
humano-particular.
Segundo esse sentido, retornamos à mais arcaica das promessas: o método de estudo da
condição humana é, por implicação necessária da raiz conceitual da qual parte, um estudo dos
fundamentos da condição humana como jogos anankásicos, eis que precisam ser posicionados
como vias-de-regra, como leis universais que não são colocadas como opção para a ação
individual.
CONCLUSÕES
O estágio preparatório da compreensão das ciências do humanismo opera uma
conformação objetiva das condições de formação do pensamento. Isso significa partir de um
campo de representações semióticas para um universo simbólico, estruturado enquanto resposta
a experiências empíricas comuns, derivadas das formas de ocupação mundana comuns aos
indivíduos.
As experiências comuns abordadas operam a construção de extremidades referenciais,
posicionadas simbolicamente entre o início (nascimento) e o fim (morte). Essa temporalização
simbólica da totalidade determina a construção categorial da individualidade e da coletividade
perante um espaço de hiância, a constituição ontológica do humano desde uma consolidação
inconsciente que instancia todas as produções epistemológicas conscientes.
hipótese em questão se modifica. Quanto mais distantes formos, mais teremos modificado, até que, em determinado ponto, poderemos mesmo modificar as leis da física em sentido geral.
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Tal fundamento servirá adiante como zona de formulação de uma metafísica, de uma
teoria da ciência e de uma consolidação ontológica adequadas à produção de um humanismo
propriamente engajado, permitindo uma identificação mais adequada dos fundamentos de uma
teoria do Direito unificada à experiência humana como um todo.
REFERÊNCIAS
BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes,
2008.
CAMPBELL, Joseph. As Máscaras de Deus. São Paulo: Palas Athena, 1994. 3
v.
___ . Mito e Transformação. São Paulo: ágora, 1998.
CASSIRER, Ernst. A Filosofia das Formas Simbólicas. São Paulo: Martins
Fontes, 2004. 2 v.
___ . Ensaio sobre o Homem – Introdução a uma filosofia da cultura humana.
São Paulo: Martins Fontes, 1994.
DERRIDA, Jacques. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 2008.
ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. São Paulo: Perspectiva, 2006.
ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 2006.
ELIAS, Norbert. A Sociedade dos Indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
editor, 1994.
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