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RESPONSABILIDADE CIVIL E RESPONSABILIDADE SOCIAL:
INSTRUMENTOS PARA A CONSTRUÇÃO DE UMA NOVA ÉTICA POLÍTICA
Paulo César Manduca ∗
RESUMO
Este texto pretende refletir sobre diversos usos do termo responsabilidade, mas com o com
foco na Responsabilidade Civil - como instituto jurídico e como disciplina jurídica -, e na
Responsabilidade Social - como movimento político da sociedade civil – como
instrumentos da construção de padrão alternativo de sociabilidade.
A reflexão que se pretende é de cunho sociológico. A Sociologia é uma disciplina que
oferece instrumental científico para se observar as estruturas sociais e as relações sociais
decorrentes delas. O campo das relações jurídicas é aqui um objeto de estudo sociológico
que permite a observação de processos de transformação ou de manutenção de
determinados laços sociais.
Um estudo que associe dois temas aparentemente tão distantes só se justifica se houver uma
correlação entre os dois fenômenos. Nesta reflexão, elegeram-se alguns pontos de
intersecção que podem responder a esta questão. O primeiro é de ordem histórica, uma vez
que ambos os fenômenos estão associados à complexidade das sociedades modernas. O
outro se situa no campo político e ideológico sobre o qual pode-se dizer que, tanto a
Responsabilidade Civil quanto aos diversos matizes de Responsabilidade Social
(responsabilidade ambiental e responsabilidade política, por exemplo), estão condicionadas
por padrões éticos. Um apontamento decorrente deste último é o fato de que, como padrão
ético, elas estão vinculadas a um modelo de sociedade específico que se apresenta como
uma sociedade plural e democrática. As diferenças salientadas são de que, enquanto o
instituto jurídico é um instrumento no âmbito do Estado, as diversas manifestações de
Responsabilidade Social caracterizam-se como sendo uma rebelião de setores da sociedade
contra a crise ética atual. Portanto, no quadro da sociedade moderna em geral e em
particular no contexto da crise social brasileira de nossos anos, a Responsabilidade Civil e a
∗ UNIP e Unicamp
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Responsabilidade Social são dois instrumentos efetivos de construção, socialização e defesa
de um padrão ético que leva à sociabilidade e à cidadania.
PALAVRAS-CHAVE: RESPONSABILIDADE SOCIAL - RESPONSABILIDADE
CIVIL - SOCIABILIDADE - ÉTICA POLÍTICA
ABSTRACT
This text aims to discuss several usages of the term responsibility, giving a wide focus on
civil liability – as a juridical institute, as a juridical discipline – and social responsibility –
as political movement in civil society.
The aimed discussion has a sociological approach. Sociology is a discipline which offers a
scientific set of tools to observe social structures and social relations deriving from them.
Here, the field of juridical relations is an object of a sociological study that permits an
observation of processes of transformation or maintenance of certain social connections.
A sort of study that links two apparently distant themes is justified if there is a correlation
between these phenomena. In this discussion, some points of intersection have been elected
to answer to this question. The first one has a historical nature, once both phenomena are
linked to the complexity of modern societies. The other one is placed in the political and
ideological field, about which one can say that both civil liability and the different traces of
social responsibility (environmental responsibility and political responsibility, for instance)
are connected to ethical standards. A note deriving from the latter is the fact that, as a
ethical standard, they are linked to a specific model of society which is presented as a plural
and democratic one. The emphasized differences are that meanwhile the juridical institute
is a tool of the State, the various manifestations of social responsibility are delineated as a
rebellion of sectors of civil society against the present ethical crisis. Therefore, in the frame
of modern society in general and in the context of the actual Brazilian social crisis in
particular, civil liability and social responsibility are effective instruments for construction,
socialization and defense of an ethical standard which takes to sociability and to the
citizenship.
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KEYWORDS: SOCIAL RESPONSIBILITY - CIVIL LIABILITY - SOCIABILITY -
POLITICAL ETHICS.
Introdução
Este texto pretende refletir os diversos usos atuais do termo responsabilidade com
foco na Responsabilidade Civil, como instituto jurídico e como disciplina jurídica e na
Responsabilidade Social como movimento político da sociedade civil em função de um
padrão alternativo de sociabilidade que, por sua vez, condicione a prática política.
Ao se apresentar este texto, a intenção não é de realizar uma reflexão propriamente
jurídica. A reflexão que se pretende é de cunho sociológico. A Sociologia é uma disciplina
que oferece instrumental científico para se observar as estruturas sociais e as relações
sociais decorrentes delas. O campo das relações jurídicas é aqui um objeto de estudo
sociológico que permite a observação de processos de transformação ou de manutenção de
determinados laços sociais.
Um estudo que associe dois temas aparentemente tão distantes só se justifica se
houver uma correlação entre os dois fenômenos. Nesta reflexão, elegeram-se alguns pontos
de intersecção que podem responder a esta questão. O primeiro é de ordem histórica, uma
vez que ambos os fenômenos estão associados à complexidade das sociedades modernas. O
outro situa-se no campo político e ideológico sobre o qual pode-se dizer que tanto a
Responsabilidade Civil quanto as diversas matizes de Responsabilidade Social estão
condicionadas por padrões éticos. Um apontamento decorrente deste último é o fato de que,
como padrão ético, elas estão vinculadas a um modelo de sociedade específico que se
apresenta como uma sociedade plural e democrática. Portanto, no quadro da sociedade
moderna em geral e em particular no contexto da crise social brasileira de nossos anos, a
Responsabilidade Civil e a Responsabilidade Social são dois instrumentos efetivos de
construção, socialização e defesa de um padrão ético que leva à sociabilidade e à cidadania.
Desenvolvimento
Reflexão acerca da Responsabilidade Civil e da Responsabilidade Social
Duas situações que motivam e justificam esta reflexão. A primeira tem ver com a
emergente relevância da Responsabilidade Civil no quadro da ciência jurídica. Como o
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Direito é uma ciência intrinsecamente ligada à realidade, pode-se completar essa idéia
mostrando a importância de tal instituto para a realização da cidadania moderna uma vez
que a Responsabilidade insere-se fortemente na corrida por um padrão ético que se
contraponha ao despotismo e á corrupção tanto na esfera do Estado quanto nas demais
esferas da vida social. A Responsabilidade Civil assim é entendido como um mecanismo de
imposição de um padrão ético ao comportamento dos atores sociais mas em uma esfera na
qual as leis ou os outros institutos jurídicos consagrados não alcançam plenamente, uma
vez que os problemas em questão sobre o qual se aplica o instituto da Responsabilidade
Civil são direitos ou noções de direitos que geralmente estão na fronteira do novo no
tocante às relações sociais. Entre eles estão o direito das minorias, ou o direito de grupos
sociais ao acesso a direitos sociais ou mesmo o direito do meio ambiente (para além do
Direito ambiental propriamente dito está o direito de outros seres vivos independentemente
de seu potencial econômico para as próximas gerações).
Quando se fala de fronteiras do Direito, há dois exemplos interessantes a serem
apresentados neste contexto. O primeiro vem do movimento de consciência negra. Este
movimento entende que as leis anti-racismo não são suficientes para evitar o ostracismo da
cultura negra a medida que quando reivindicam visibilidade, a comunidade negra esbarra
em problemas que não estão relacionados aos marcos legais, mas a uma cultura que
sistematicamente os alija dos processos centrais de formação da cultura oficial. Por isso, há
uma ausência quase total dos negros na formação dos padrões de beleza e de consumo
socialmente aceitos. O outro exemplo é o do movimento de direitos dos homossexuais. No
Brasil este movimento segue os passos de seu congênere norte-americano. Inclusive a
designação “orgulho gay”. O orgulho gay, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil
funciona como uma bandeira para se contrapor ao discurso tradicionalmente difundido que
associa os homossexuais a um desvio de conduta e, portanto, motivo de vergonha. Também
aqui a questão da superação da discriminação de fato não pode ser realizada apenas nos
marcos legais atuais, ou seja, com as leis anti-discriminação. Ainda que as leis sejam
eficientes para evitar formas de discriminação, a ausência de personalidades homossexuais
no centro da formação da cultura, ainda faz por relegar esta categoria social ao status de
“marginal”. Em resumo, a não discriminação, ainda que assegurada na lei, não é suficiente
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para garantir o respeito às diferenças culturais, raciais, de comportamento sexual etc que
compõem a sociedade brasileira atual.
Por fim, vale ressaltar ainda que a Responsabilidade Civil como instituto jurídico é
um esforço civilizador no âmbito do Estado ainda com uma oportuna especificidade.
Através desse instituto cria-se a expectativa é de reparação de um dano causado seja ele
material ou não.
Nas duas situações acima citadas o Estado não apenas pune, mas propõe uma
restauração à situação antes do dano e isso tem um efeito civilizador muito diferente do que
a simples imposição de uma pena.
A segunda vertente refere-se à Responsabilidade Social. Responsabilidade Social
esta sendo tratada como um termo genérico de um conjunto de outras responsabilidades que
apresentam alguns pontos em comum: a) são movimentos no âmbito da sociedade, b) são
movimentos de divulgação, convencimento ou imposição de padrões éticos alternativos e c)
são movimentos delineados em reação a uma crise de valores éticos.
Antes de apontar algumas manifestações desse movimento, vale definir os
contornos do que está sendo tratado como crise de valores e padrão de sociabilidade.
Apontamentos sobre o padrão de ética e de sociabilidade no Brasil
Um parênteses necessário que se faz aqui é sobre o entendimento do Direito. Duas
das mais importantes correntes de pensamento sociológico apontam visões completamente
distintas a função do Direito para as sociedades modernas. Refiro-me ao Pensamento
Liberal e à Teoria Crítica de inspiração marxista.
Em uma abordagem superficial, uma vez que não é o tema do trabalho, pode-se
dizer que as diferenças entre as duas visões apontam para o fato de que o direito representa
para o Pensamento Liberal como a consolidação de determinados direitos que alicerçam
todas as formas de relações sociais, seja no plano da política – Estado/cidadão – seja no
plano das relações privadas – cidadão/cidadão. No pensamento liberal, ao se consolidar este
conjunto de direitos, está se apontando para uma única igualdade: a igualdade perante a lei.
Toda outra ordem de desigualdade tem a ver com as diferenças e com a diversidade
inerente à própria sociedade, sejam elas no plano econômico, no plano das iniciativas, no
das vontades ou no plano das idéias.
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A tradição marxista associa o direito ao status quo. As visões mais ortodoxas desta
corrente entendem o direito como o instrumental da classe proprietária (a burguesia) no
sentido de atribuir e sedimentar a noção de legitimidade associada à propriedade privada.
Ora, como negar a importância do “direito à propriedade” no quadro geral do direito? E
como negar que ela de fato estabelece e consolida a desigualdade proprietário/não
proprietário como sendo algo natural?
Ao apontar visões completamente diferentes sobre as desigualdades e sobre as
liberdades, as duas teorias na verdade apontam para éticas completamente distintas.
Enquanto o Liberalismo aceita as diferenças em função dela ser corolário das liberdades (de
empresa etc.), o Pensamento Critico sobrepõe a igualdade econômica à liberdade. Na teoria
isso seria passageiro uma vez que, extinta a propriedade privada uma nova ética emergira
trazendo consigo um quadro geral de liberdade. Vale dizer que nenhuma experiência
socialista até então ultrapassou o ponto do cerceamento das liberdades.
Ainda que os marcos da formação política social brasileira tenham inspiração no
Liberalismo, não se verificou aqui uma completa e maciça adesão ao liberalismo na
organização do Estado brasileiro.
Na Europa, ou na parte dela em que o Liberalismo havia fincado raízes e havia
consolidado a democracia e fortalecido a sociedade civil, a emergência dos partidos de base
operária, levou ao surgimento do que ficou conhecido como Estado do bem estar social.
Este processo ocorreu precocemente na Escandinávia e depois pela Europa continental
ocidental e na Inglaterra. Ora, o Welfare State que, se não foi o abandono completo da ética
liberal, como era a proposta política dos partidos operários, pelo menos ele consolidou uma
ordem jurídica que levou a uma ruptura de um dispositivo essencial do pensamento liberal,
qual seja: o da contenção do Estado em relação à esfera econômica (que é uma esfera
privada). Isso foi especialmente importante para que fosse atribuído ao Estado o distinto
papel de promotor do bem estar e da redução das desigualdades econômicas e sociais
através de políticas públicas.
O Brasil foi fortemente influenciado pela experiência européia. O problema é que
esta influência chegou aqui tardiamente, afinal, como poderia surgir um Welfare State em
um país que não havia passado pelo processo de incorporação dos valores Liberais, dentre
os quais a democracia e o respeito às liberdades públicas e o conseqüente fortalecimento da
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sociedade civil? Com um histórico de sucessão de regimes autoritários a sociedade
brasileira chegou ao final do século XX com pouquíssima experiência democrática.
Foi a partir da emergência dos movimentos sociais e da crise da ditadura militar que
o Estado entrou em seu período de reforma dos anos 80. Neste processo, particularmente na
Assembléia Nacional Constituinte, que se manifesta a tentativa de se espelhar no modelo do
Welfare State europeu. Porém houve limitações muitas claras. A primeira tem a ver com a
herança política dos períodos anteriores. As marcas de tantos anos do autoritarismo e a
herança do patrimonialismo oligárquico são um fardo pesado para serem superados. Essa
herança se perpetua a medida em que as práticas políticas corruptas e clientelistas se
reproduzem indefinidamente e não se verifica de fato uma alternância da elite no poder.
Nos setores em que a democracia permite a renovação dos quadros políticos, o
corporativismo e outras mazelas acabaram por contaminar largos setores da nova política.
O outro aspecto crucial daquela herança nefasta é a atrofia da sociedade civil. Onde a
sociedade civil é atrofiada, cabe ao Estado a construção da cidadania. Por paradoxal que
isso pareça, cabe ao Estado criar uma sociabilidade, mas quando o faz talvez ele perpetue a
situação de dependência da sociedade em relação ao Estado. Isso explica em grande medida
o fato de que os partidos políticos e os sindicatos – duas instituições eminentemente da
sociedade civil - sejam regidos e sustentados pelo Estado.
Ora, a sociedade civil é a parte organizada da sociedade. Nas sociedades em que o
Liberalismo foi um marco real da formação social e política, a sociedade civil é
preponderante, pois ela se organizou em contraposição às forças de intervenção do Estado.
Assim, sindicatos, associações e partidos políticos representam um instrumental da
sociedade no sentido de domar, controlar e moldar o Estado segundo às feições dessa
sociedade, melhor dizendo, segundo a correlação de forças na sociedade em questão. A
tradição brasileira é um inverso. A parte organizada da sociedade civil, em sua maior parte,
foi criada pelo próprio Estado e sempre esteve sob seu controle. Isso deu lugar a uma
simbiose perversa entre lideranças políticas (na situação de agentes de Estado) e lideranças
da esfera da sociedade civil. Os sindicatos são exemplo disso. Eles surgiram
clandestinamente nos anos de 1910 e 1920 sob inspiração do movimento anarquista para,
em seguida passarem para a esfera ideológica e pragmática do movimento socialista
internacional que a partir de 1922 foi capitaneado pelo PCB, para, logo em seguida, serem
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controlados pelo Estado protofascista de Vargas. Esta relação de dependência e tutela (no
sentido sociológico o termo) se manifesta quase inalterada até nossos dias. A despeito de
as lideranças do sindicalismo brasileiro apresentarem comportamento diverso, a estrutura
sindical jamais se livrou do Estado, inclusive pelo fato de que ele permitiu o surgimento de
uma “casta” de lideranças sindicais que se beneficiam amplamente de recursos e de
proteção do Estado. Dois dispositivos ainda presentes neste sentido são a unicidade sindical
(a falta de liberdade de filiação) e o imposto sindical obrigatório.
A herança do regime autoritário para a nascente democracia brasileira foi cruel. Nos
marcos de um Estado centralizador, extremamente interventor e de altíssimo grau de
corrupção, associado a uma grave crise social e o ambiental. Lembre-se que nos anos 80 a
pressão de ambientalistas era tratada como que interferência na soberania brasileira e eram
rechaçados intempestivamente particularmente pelos militares como iniciativas de
internacionalização da Amazônia. Algumas frases tornaram-se comuns na boca de
expoentes do antigo regime ao se contrapor a pressões de conservacionistas estrangeiros
como, por exemplo: “eles queimaram a florestas deles [dos países desenvolvidos] e agora
querem que paralisemos o nosso desenvolvimento para conservarmos as nossas”. Lembre-
se também de como os “esquadrões da morte” tornaram-se opção de segurança pública ou
de como o trabalho infantil e o trabalho semi-escravo ainda estão presentes nas relações
trabalhistas no interior do país.
A saída através de um Estado do Bem Estar Social, ainda que acertada nas intenções
sofreu também muitos reveses. Primeiro pelo o fato de que o modelo original do Welfare
State já estava em crise na Europa e segundo pelo o fato de que no Brasil foi atribuída ao
Estado uma enorme gama de obrigações em um período de grave endividamento, de
recessão econômica e de paralisia política. Logicamente instituir o Estado de Direito, sanar
as finanças e proceder a reforma do Estado representa uma gama de trabalho hercúleo que
consumiu quase toda a agenda política dos anos 80 e 90 desde a democratização.
Não há motivos para o ceticismo em relação às possibilidades de avanço. Afinal,
nada impediu a sensível modernização da sociedade brasileira. Vale dizer que o termo
modernização está sendo utilizado aqui da mesma forma com que foi absorvido no resto do
mundo, portanto, fique claro, que é um termo carregado de valor, todo ele definido em
função da adesão abertura comercial, ao engajamento das reformas do Estado e na
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consolidação da democracia e dos Direitos Humanos. Apesar das divergências ideológicas
que esta modernização suscita, há um fator que deve ser consensual: a conclusão de que o
Estado tem sua importância, mas é a sociedade que, de fato dever ser o fator preponderante
na definição dos rumos dos rumos da História.
É neste contexto em que se insere o tema da Responsabilidade Social. Esta espécie
de movimento político de linguagem pretensamente não ideológica e de ação direta
(portanto ainda não contaminada pelas práticas corruptas no interior do Estado) apresenta
diversas manifestações. Originalmente a Responsabilidade Social decorre de um
movimento surgido nas grandes corporações empresariais que a parir dos anos 70 passaram
incluir nos balanços das empresas atividades direcionadas ao campo assistencial e
ambiental mas esse movimento acabou assumindo características de movimento social e
deu origem a uma enorme quantidade de organizações não governamentais. Aparentemente
a lógica disso centrou-se na reversão de uma série de malefícios que são subprodutos da
própria atividade econômica. Esse fenômeno se espalhou e passou a contar com uma
enorme e diversificada rede de instituições do terceiro setor. Assim, ocorreu também uma
ampliação dos espectros de ação associadas à idéia de Responsabilidade Social. A
Responsabilidade Social incide sobre o tema da assistência a comunidades carentes,
proteção a categorias sociais em risco, defesa de direitos de animais ou de ecossistemas, ao
combate a práticas antiéticas seja no mundo do trabalho seja no mundo da política.
Portanto, é como uma espécie de rebelião no seio da sociedade e de setores da
sociedade civil no sentido de impor uma ética alternativa àquela corrente. Sendo que, a
ética corrente é a ética do “jeitinho”, da não solidariedade, do lucro à todo custo. Essa ética
é fruto e da crise social brasileira, mas também seu principal combustível. Neste sentido, ao
se adotar um comportamento alternativo, o que se está buscando é romper o círculo vicioso
que permite a reprodução dessa ética da crise em vários setores da vida social.
A política é um campo fértil para a discussão sobre novos parâmetros éticos. Neste
campo essencial das sociedades mais complexas, verificam-se três níveis de inserção do
problema ético associado à política.
a) A política como definidor dos rumos do Estado, sobretudo no que se
refere a criação de mecanismos jurídicos para o condicionamento do
comportamento das pessoas. Neste item inserem-se as leis de defesa das
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minorias. Assim, a qualidade das leis bem como a disposição dos agentes
de Estado no seu cumprimento é o parâmetro para a classificação do grau
de ética associado a esse estado. Vale ressaltar que apesar de muito ainda
por ser feito, observa-se um esforço de agentes de Estado nessa direção.
b) A política como prática estatal de defesa da cidadania. Neste item estão
as políticas públicas direcionadas para a distribuição de direitos sociais.
Ora, a Constituição de 1988 estabeleceu as diretrizes neste campo. O
problema vem sendo o volume de recursos sempre aquém das
necessidades. Isso nos leva ao terceiro ponto que está inter-relacionado
com este.
c) E por fim, a política entendida como administração do bem público. Neste
item estão relacionadas à forma com que os agentes públicos lidam com
os cargos, com os recursos disponíveis, sejam eles materiais ou
financeiros. Este é um setor do problema no qual os ocupantes de cargos
públicos conseguiram estabelecer uma zona de exclusão à medida que os
políticos e os partidos políticos conseguem manter fora do debate os
montantes gastos com cargos, salários e benefícios associados ao
exercício dos mandatos. Com efeito, observa-se no Brasil uma verdadeira
sangria de recursos públicos destinados aos políticos, gabinetes e
partidos, em contrapartida aos recursos escassos e oscilantes destinados
aos programas de modernização e ampliação dos serviços públicos. O
corporativismo político suprapartidário tem sido eficiente em impedir que
se discuta a reforma das instituições e que se promova a modernização e
a racionalização dos gastos. Uma simples comparação com o sistema
político norte-americano já seria razoável para demonstrar o descompasso
dos gastos do sistema político brasileiro quando comparado com as suas
atribuições. Fiquemos apenas no item quantidade de parlamentares no
Congresso Nacional. Enquanto nos Estados Unidos há 435 parlamentares
(deputados e senadores) para 300 milhões de habitantes, no Brasil são
594 parlamentares para menos de 200 milhões de habitantes. Se levarmos
em conta a renda per capita em cada país (US$ 41,600 e US$ 8,300
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respectivamente) poderemos concluir pelo o custo relativamente mais
alto do sistema político no Brasil do que nos Estados Unidos. De forma
que os cortes orçamentários extremamente comuns nos ajustes
orçamentários no Brasil em qualquer nível da administração pública recai
apenas sobre os serviços públicos e sobre às política públicas. As outras
esferas do legislativo bem como a enorme quantidade de minúsculos
municípios criados nos últimos 15 anos completa o quadro descrito.
Pois bem, a reação ao quadro decorrente dessas mazelas todas que concorrem para
deixar o Estado incapaz de dar conta de todas as sua atribuições, vem sendo realizada sob a
bandeira da Responsabilidade Social por diversos setores da sociedade civil.
Para melhor esclarecer este aspecto pode-se recorrer a alguns exemplos de uma
enorme gama de bons exemplos disponíveis:
O primeiro exemplo vem do setor de supermercados no qual duas das principais
redes atuantes no país incorporaram critérios ligados à Responsabilidade Social no que se
refere ao trabalho semi-escravo. Isso significa dizer que tal setor estabeleceu um
procedimento de fiscalização por conta própria em relação à de utilização de uma forma de
exploração do trabalho considerado antiética. Isso potencializa a capacidade de fiscalização
disponível até então, pois todos os fornecedores de produtos para tais redes ficam
condicionados a fiscalizarem toda a cadeia produtiva às quais pertencem. Ora, tal rede de
fiscalização não concorre com o sistema oficial, mas, antes, colabora para a massificação da
ética da não exploração de mão de obra degradante. No mesmo contexto está o exemplo
que vem do setor dos brinquedos, no qual a Fundação ABRINQ exerce um papel
preponderante na divulgação de valores associados à proteção da criança. O caso em que
mais se destaca é o combate ao trabalho degradante infantil.
Por fim deve-se destacar o comportamento que vem se tornando padrão de gestão
empresarial. É um fenômeno internacional, nos últimos 20 anos muitas empresas incluíram
aspectos da Responsabilidade Social nas definições dos padrões éticos das atividades da
empresa, o que por si só tende gerar um novo patamar nas relações sociais com base ética,
dado a abrangência que este tipo de ação contem.
Considerações finais
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Todos esses fatores são importantes para se contextualizar a discussão sobre
sociabilidade no Brasil atual, ainda mais quando se trata de uma sociabilidade no plano
ideal, em construção. A despeito de qualquer crise e apesar de a velocidade ter sido
diferente da de países europeus, inclusive do leste europeu, mas também do Chile, da
Argentina e do México, a sociedade e a economia brasileiras acompanharam a
modernização do mundo. Neste sentido, tanto o acesso informações quanto a produtos e
inovações (por exemplo a internet) chegaram por aqui. O processo de privatização e de
reforma do Estado no geral apontou para a superutilização de agentes privados (não só
agentes do mercado, mas também do terceiro setor) como intermediários no fornecimento
de serviços públicos. Isso abriu um campo vastíssimo de conflitos de interesses para o qual
tanto a sociedade civil quanto o Estado precisam se preparar. Em outras palavras, é preciso
se estabelecer uma plataforma ética de atuação desses agentes todos para que a sociedade
não seja penalizada em relação ao acesso aos bens e serviços que compões a cesta básica de
direitos sociais.
Dadas as dimensões das funções do Estado, o processo de transferência de
atividades e recursos para outros agentes eleva o tema da responsabilidade para um patamar
muito além das aplicações nas teorias dos contratos e das questões consumeristas. Ela
incide diretamente sobre a cidadania no seu aspecto mais moderno, o de acesso aos direitos
sociais.
Um outro aspecto da modernização está relacionado à modernização dos valores e
da convivência. Os anos 80 marcam o fim da Guerra Fria e a extinção da experiência
soviética, o pensamento de esquerda teve que se readequar aos novos tempos e a
democracia como valor universal ganhou adeptos; a crise ambiental global era inconteste
apesar de ainda não ter gerado até então, políticas globais de contensão. O Brasil já
contabilizava verdadeiros desastres ambientais com a poluição das bacias hidrográficas
urbanas, início de racionamento na região metropolitana de São Paulo, o assoreamento dos
rios, os problemas dos lixões e a poluição do ar. A modernização dos costumes abre espaço
para o “politicamente correto” nas questões raciais, de gênero, de orientação sexual e em
relação a portadores de necessidades especiais. Como se percebe, a própria linguagem
acerca dessas categorias sociais se transformou para não ferir suscetibilidades. Por isso,
hoje em dia o termo “aposentado por invalidez” não é mais usado.
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Portanto, estamos saindo do campo da relação Estado cidadão e abarcando a relação
intercidadão, pois que esse é também é uma seara em que um padrão ético é sinalizador de
bom espaço de sociabilidade. E quanto maior a diversidade das diversidades dentro de uma
sociedade tanto maior o desafio de construção desse padrão. Por outro lado, as sociedades
democráticas avançadas, são ainda mais avançadas e ainda mais democráticas na proporção
da diversidade que ela comporta. Daí decorrem todas as reivindicações das chamadas
minorias. E não basta extinguir a discriminação no tratamento das mulheres, dos negros e
dos homossexuais. Isso já é fase vencida no processo de desenvolvimento social no
Ocidente. Atualmente todos os grupos exigem o direito ao exercício de sua diferença. Isso
significa que as bonecas infantis não podem refletir apenas os padrões de beleza os brancos.
Há que se produzir bonecas que reflitam os padrões de beleza dos negros. Causa espanto a
ausência da mulher em posições de mando nas empresas e nas Forças Armadas, a ausência
dos negros na comunicação de massa assim como é estranho que o beijo homossexual em
novelas seja ainda motivo de vetos. A convivência de tantas práticas e costumes arcaicos no
Brasil demonstra que ainda há muito para se fazer. E, sem desqualificar a importância que o
Estado tem (e vem tendo) neste processo, a transição completa não pode ser feita apenas
através do Estado. Daí a importância da sociedade civil através de movimentos como o de
Responsabilidade Social.
Referências
Danich, Victor Alberto Uma contribuição à gestão empresarial socialmente
responsável fundamentada no comportamento ético das organizações. Dissertação de
mestrado, UFSC. Florianópolis: 2003.
Guimaro Junior, Orlando Elementos formadores da Responsabilidade Civil
Disponível em http://www.ufac.br/ensino/cursos/curso_direito/docs/ufac_artigo_e12.doc Acesso em
10/10/2006
Ribeiro, Tânia soledade da silva conceito de Responsabilidade Social sob a ótica
dos dirigentes da agencia de fomento do estado da Bahia – desembahia dissertação de
Mestrado UFBA. Salvador: 2003.
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Oliveira, Janice M de. Responsabilidade Civil no código civil de 2002 comparativo
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Przeworski, A. Capitalismo e Social-Democracia. São Paulo: Cia das Letras, 1991.
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