resenha confluenze - conceição evaristo

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  • 8/2/2019 resenha confluenze - conceio evaristo

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    CONFLUENZE Vol. 3, No. 1, 2011, pp. 258-260, ISSN 2036-0967, Dipartimento di Lingue e LetteratureStraniere Moderne, Universit di Bologna.

    Conceio Evaristo, Becos da memria, BeloHorizonte, Mazza, 2006.

    Anselmo Peres AlsINSTITUTO SUPERIOR DE CINCIAS E TECNOLOGIA DE MOAMBIQUE

    Nascida em Belo Horizonte (capital de Minas Gerais) em 1946, eresidente no Rio de Janeiro desde 1973, Conceio Evaristo umapersonalidade singular no campo da cultura afro-brasileira contempornea.Evaristo tem participado de vrios projetos culturais e de pesquisa em torno detemticas negras, como colaboradora do Criola (organizao de MulheresNegras do Rio de Janeiro), e do grupo literrio Quilombhoje , responsvel pelapublicao dos Cadernos negros , revista de divulgao literria com mais detrinta anos de circulao, e especializada na publicao de textos literrios deautores afro-brasileiros. Embora tenha iniciado suas experincias literrias noincio da dcada de 80, apenas em 1990 que publica seus primeiros poemas,no nmero 13 dos Cadernos negros. Evaristo vem marcando sua produoacadmica e literria com um posicionamento que busca privilegiar a suavivncia de mulher negra na sociedade brasileira. Em sua dissertao demestrado, cujo ttulo Literatura negra: uma potica da nossa afro-brasilidade (1996),ela faz um levantamento da produo literria afro-brasileira, tentando supriras lacunas sobre o tema na historiografia literria cannica. Somente aps osanos 2000, marcados pelo impacto da internet, pelo fantasma do bug do milnioe pelo advento da globalizao, que a escritora publica seu primeiro romance,Ponci Vicncio (2003). Trs anos depois, Conceio Evaristo publica Becos damemria (2006), obra que, segundo a prpria autora, j encontrava finalizadadesde 1988, momento em que inclusive foi cogitada a sua publicao pelaFundao Palmares, mas que deve de esperar quase vinte anos para encontrarseus leitores:

    Em 1988, Becos da memria seria publicado pela Fundao Palmares/MinC,

    como parte das comemoraes do Centenrio da Abolio, projeto que no foilevado adiante, creio que por motivo de verbas. Desde ento Becos da memriaficou esquecido na gaveta. Preciso ressaltar, entretanto, que em um dadomomento, bem mais tarde, em uma outra gesto, a Fundao Palmares colocou-se disposio para publicar o romance, mas o livro j havia se acostumado aoabandono. E s agora, quase 20 anos depois de escrito, acontece sua publicao(Evaristo, 2006, p. 9).

    O bug do milnio no aconteceu, a internet entrou no cotidiano de grandeparte dos brasileiros e a globalizao, ainda que no agrade a muitos, vem setornando a nova ordem mundial. Os romances de Conceio Evaristo,

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    entretanto, circulam na contracorrente do fluxo de informaes e da lgica docapital simblico do novo milnio. A voz narrativa construda pela autora nose pergunta sobre o futuro, ao menos no to insistentemente quanto sepergunta sobre o passado e seus efeitos, seus reflexos e suas refraes no

    presente. No af de trazer superfcie aspectos da histria brasileira que foramrasurados por trs sculos de patriarcalismo escravocrata, as narrativas deConceio Evaristo buscam, atravs das histrias orais de suas ancestrais, novosrecursos estticos e expressivos que dem conta da textualizao dasexperincias e das memrias do povo afro-brasileiro.

    Em sua busca pelo resgate da identidade de sujeitos sociais que foramrelegados a uma condio de cidadania de segunda categoria, e que ainda hojetm de lidar com a expropriao de suas prprias heranas afetivas, Evaristono ignora a importncia de suas antecessoras nas letras afro-brasileiras. Seuconhecimento das estticas literrias desenvolvidas por outras escritoras

    brasileiras, em especial Maria Firmina dos Reis e Carolina Maria de Jesus,permite que ela incorpore um dilogo com estas vozes na constituio de suaprpria voz autoral. Contra trs sculos de escravido, trs sculos deresistncia das mulheres negras materializam-se no projeto esttico da prosa deConceio Evaristo.

    Em Becos da memria , a autora aborda diversas questes sociais,nomeadamente os ecos de uma tradio patriarcal e escravocrata, tradio estaresponsvel pelos processos de pauperizao, estigmatizao e subalternizaosocial das comunidades afro-brasileiras. No entanto, a autora esgueira-se demaneira a evitar as solues fceis reiteradamente utilizadas pelo mercadocultural contemporneo, que faz do morro um espao simblico de glamourescapa das solues fceis: no faz do morro territrio de glamour e fetiche,tampouco, investe na narrao da violncia de forma brutal, reduzindo seuimpacto transformando-a em simples objeto de escambo em uma sociedade deconsumo.

    Pode-se pensar na favela narrada por Evaristo em Becos da memria comoum desses lugares nos quais se torna possvel o refgio da memria. Entretanto,emerge um problema quando se constata que esta favela, tomada como umlugar de memria, no nada mais do que uma memria, desprendida dequalquer resduo de realidade referencial, pois, como afirma a escritora j nasprimeiras pginas de seu livro, em uma Conversa com o leitor que apresentada guisa de advertncia, em Becos da memria aparece a ambinciade uma favela que no existe mais. A favela descrita em Becos da memriaacabou e acabou. Hoje as favelas produzem outras memrias, provocam outros

    testemunhos e inspiram outras fices (Evaristo, 2006, p. 9).Impossvel evitar a associao da favela construda pelas memrias deConceio Evaristo com outras favelas j textualizadas na literatura brasileira.Esta favela traz reminiscncias da favela do Canind, na qual ambientada anarrativa de Quarto de despejo: dirio de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus,ou ainda da Vila Ilhota, espao das memrias de outra mulher favelada, Zeni deOliveira Barbosa, que a reconstitui em seu Ilhota: testemunho de uma vida (1993).Estas so favelas marcadas pela misria absoluta, por uma luta pelasobrevivncia, e em uma populao majoritariamente composta por afro-descendentes que abandonaram as zonas rurais buscando nas cidadesoportunidades de trabalho, ou simplesmente fugindo da fome. A repetio

    performativa do verbo acabar no pretrito perfeito do indicativo no se d de

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    maneira inocente: esta favela que povoa as reminiscncias da narradora deBecos da memria nada tem em comum com outras favelas, as contemporneas,que provocam outros testemunhos e inspiram outras fices (Evaristo, 2006,p. 9), dominadas pelo crime organizado, pela violncia banalizada e

    institucionalizada e pelo poder perverso do narcotrfico. Para continuar comum terminus comparationis do campo ficcional, a favela das reminiscncias deConceio Evaristo est muito distante das favelas dos morros cariocas, como aCidade de Deus do romance homnimo de Paulo Lins, publicado em 1997. Afavela narrada em Becos da memria subsiste apenas nas memrias de seusantigos moradores. Entre eles, a autora e as personagens retratadas no romance.

    Bibliografia

    BARBOSA , Zeli de Oliveira. Ilhota: testemunho de uma vida. Porto Alegre,Secretaria Municipal de Cultura, 1993.

    EVARISTO , Conceio. Literatura negra: uma potica da nossa afro-brasilidade. 1996.Dissertao (Mestrado em Literatura Brasileira). PPGL PUC-Rio. Rio de

    Janeiro, 1996.EVARISTO, Conceio. Ponci Vicncio. Belo Horizonte, Mazza, 2003.EVARISTO,Conceio. Conversa com o leitor: da construo de Becos em Becos

    da memria. Belo Horizonte, Mazza, 2006, p. 9.JESUS , Carolina Maria de. Quarto de despejo: dirio de uma favelada. 8 ed. So

    Paulo, tica, 2005.LINS, Paulo. Cidade de Deus. So Paulo, Companhia das Letras, 1997.