resenha bibliográfica · 2014. 9. 9. · uma nova tentativa de "redescobri mento" do...

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resenha bibliográfica Miranda, Ricardo & Pereira, Carlos Alberto. Televisão; as imagens e os sons: no ar, oBra- sil. São PauJo, Brasiliense, 1983. 129 p. Um livro sobre televisão constitui por si um evento cultural impor- tante. dado o desinteresse, descuido ou desprezo talvez tudo isso ao mesmo tempo) de intelectualidade brasileira sobre aquilo que é para a grande maioria da população deste país fonte quase única de bens cultu- rais e também de lazer. Eu aposto que o leitor não é capaz de se lembrar de qualquer obra sobre qualquer aspecto da televisão brasilei- ra e imagino que alguns estarão fa- zendo um muxoxo pela simples con- sideração da TV como um bem cul- tural da maior relevância, um dos sa- dios pontos de partida dos autores. A estranheza pela carência de es- tudos nessa área aumenta se conside- rarmos que o maior difusor de ideo- logia e o maior formador de opinião pública no Brasil ainda não mereceu a devida atenção de cientistas poll- ticos, sociólogos e antropólogos, e a televisão está por aqui mais de 32 anos . A enfase do livro está na dimensão cultural do fenômeno televisivo e faz pàrte de uma coleção da Editora Bra- siliense dedicada ao Nacional e o Popular na Cultura Brasileira, englo- bando textos sobre artes plásticas, I i- teratura, música, cinema e teatro, além de um seminário ' teórico sobre os conceitos de nacional e popular. Ouçamos os próprios autores defi- nindo o objetivo central da obra: "Assim, neste seu processo de comu- nicação com o 'grande público'. a TV. 'superando' a diversidade interna deste mesmo público, institui uma re - presentação deste público enquanto 'Povo-nação'. (. .. ) Desta forma, é este processo de comunicação/instí- tu ição que pretendemos analisar" (p. 15). 54 O retrato do Brasil e do povo bra- sileiro (o nacional-popular) construí- do pela televisão aparece efetivamen- te na segunda metade do livro, quan- do Ricardo Miranda e Carlos Alberto Pereira descrevem, interpretando, al- guns programas de grande audiência. A primeira parte, denominada O texto televisivo, constitui um conjun- to, um pouco desordenado; de in- formações e dados referentes a aspec- tos técnicos, econômicos, pol (ticos e jur(dicos que condicionam a televi- são, apresentados de maneira exces- sivamente genérica. A abrangência e ao mesmo tempo a superficialidade dessa análise con· duz a obviedades do seguinte tipo : "Mas ao lado desta dimensão indus- trial da televisão está seu caráter de empreendimento comercial. Assim, seus diversos horários são vendidos - e a bom preço - aos anunciantes que colocam então no ar ·suas mensa- gens de propaganda, maneira espe- cialmente atraente e eficaz de se diri- gir a uma enorme parcela de posslveis consumidores ou de falar com eles- no caso. os te! espectadores" ( p. 20}. Mas o livro vale, e muito, quando aparece (a partír da p. 34) o Brasil na TV. E ai a imagem é um globo e o som é o famoso blim-blím. Com toda a razão, os autores alertam imediata- mente o leitor qúe, dado o quase mo- nopólio da Rede Globo, freqüente- mente se confunde televisão com aquilo que ela nos oferece. Se uma emissora concentra apro - ximadamente 75% do público no ho· rário nobre (tabela na p. 54), o que significa que cerca de 45 milhões de pessoas assistem, por exemplo, ao Jornal nacional, evidentemente isso justifica um maior foco de análise di- rígido para a programação dessa emis- sora. É o que fazem os autores, co- meçando por uma caracterização do que é o "padrão Globo de qualidade", por oposição ao estilo televisivo das demais emissoras. Em suma, esse pa- drão é associado ao gosto e aos cri- térios estético/intelectuais da afluen- te classe média ,brasileira dos tempos do milagre econõmíco. Pelo fato de configurarem uma de- terminada representação do Brasil e dos brasileiros e assim constitulrem uma certa concepção de nacional e Rio de Jane\ro, 24 (1): 54-60 popular, os autores selecionaram para análise os seguintes programas: os se- ríados brasileiros (Malu mulher, Car- ga pesada, Plantão de po/(cía e O bem--amado), O homem do sapato branco, Aqui e agora, O povo na TV, Nosso domingo, Fantástico, o show da vida, Buzina do Chacrinha, Discoteca do Chacrinha, O planeta dos homens, Os trapalhões e Jornal nacional. A produção dos seriados nacio- nais, que ocupariam um espaço talmente dominado pelos "enlata· dos" estrangeiros, começou em 1979 e o livro relaciona esse fato com a abertura pol{tica que possibilitou uma nova tentativa de "redescobri- mento" do Brasil. Quanto aos programas "popula- res", o livro desmascara brilhante· mente a manipulação ideológica que implicam, dissecando os mecanismos pelos quais um suposto assistencialis- mo e uma suposta expressão de de- mandas e reivindicações populares constituem na realidade formas de imposição de valores, comportamen- tos e atitudes às classes populares. A leitura feita do Fantástico é a mais longa porque · ocupa maior nú- mero de páginas, mas é a mais curta porque é gostosa de ler, é criativa, é inteligente. Demonstra, principalmen- te, como o programa opera uma m is- tificação do conhecímento científi - co e transfigura o humanismo num assistencialismo piegas. Quanto às conclusões, seleciono o que me parece o essencial da fala dos autores: "Em uma entrevista de Cae- tano Veloso, ele afirma o seguinte : 'Eu sou nacional e popular até onde não se pode mais ser.' Caso o entre- vistado fosse a TV, o que vale como suposição, ela, parodiando o famoso cantor popülar e talvez até com mais direito, certamente afirmaria o mes- mo" (p. 129). o Maria Cecilia Spina Forjaz Professora titular na Escola de Administração de Empresas de São Paulo, da Fundação Getulio Vargas mestre em sociologia.e doutora em ciAncis poJitícs pela Universidade de São Paulo; autora dos seguintes livros: Tenentismo e pol(tica; renentismo e camadas mddias urbanas na crise da Primeira República {Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977) e Tenentismo s Aliança Liberal ISBo Paulo, Pólis, 1978}. Revista de Administração de Empresas

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Page 1: resenha bibliográfica · 2014. 9. 9. · uma nova tentativa de "redescobri mento" do Brasil. Quanto aos programas "popula res", o livro desmascara brilhante· mente a manipulação

resenha bibliográfica

Miranda, R i cardo & Pereira, Carlos Alberto. Televisão; as imagens e os sons: no ar, oBra­sil. São PauJo, Brasiliense, 1983. 129 p.

Um livro sobre televisão constitui por si só um evento cultural impor­tante. dado o desinteresse, descuido ou desprezo (é talvez tudo isso ao mesmo tempo) de intelectualidade brasileira sobre aquilo que é para a grande maioria da população deste país fonte quase única de bens cultu ­rais e também de lazer.

Eu aposto que o leitor não é capaz de se lembrar de qualquer obra sobre qualquer aspecto da televisão brasilei ­ra e imagino que alguns estarão fa­

zendo um muxoxo pela simples con­sideração da TV como um bem cul­tural da maior relevância, um dos sa­dios pontos de partida dos autores.

A estranheza pela carência de es­tudos nessa área aumenta se conside­rarmos que o maior difusor de ideo­logia e o maior formador de opinião pública no Brasil ainda não mereceu a devida atenção de cientistas poll­ticos, sociólogos e antropólogos, e a televisão já está por aqui há mais de 32 anos .

A enfase do livro está na dimensão cultural do fenômeno televisivo e faz pàrte de uma coleção da Editora Bra­siliense dedicada ao Nacional e o Popular na Cultura Brasileira, englo­bando textos sobre artes plásticas, I i­teratura , música, cinema e teatro, além de um seminário 'teórico sobre os conceitos de nacional e popular.

Ouçamos os próprios autores defi­nindo o objetivo central da obra: "Assim, neste seu processo de comu­nicação com o 'grande público'. a TV. 'superando' a diversidade interna deste mesmo público, institui uma re­presentação deste público enquanto 'Povo-nação' . (. .. ) Desta forma, é este processo de comunicação/instí­tu ição que pretendemos analisar" (p. 15).

54

O retrato do Brasil e do povo bra­sileiro (o nacional-popular) construí­do pela televisão aparece efetivamen­te na segunda metade do livro, quan­do Ricardo Miranda e Carlos Alberto Pereira descrevem, interpretando, al­guns programas de grande audiência.

A primeira parte, denominada O texto televisivo, constitui um conjun­to, um pouco desordenado; de in­formações e dados referentes a aspec­tos técnicos, econômicos, pol (ticos e jur(dicos que condicionam a televi­são, apresentados de maneira exces­sivamente genérica.

A abrangência e ao mesmo tempo a superficialidade dessa análise con· duz a obviedades do seguinte tipo : "Mas ao lado desta dimensão indus­trial da televisão está seu caráter de empreendimento comercial. Assim, seus diversos horários são vendidos - e a bom preço - aos anunciantes que colocam então no ar ·suas mensa­gens de propaganda, maneira espe ­cialmente atraente e eficaz de se diri­gir a uma enorme parcela de posslveis consumidores ou de falar com eles­no caso. os te! espectadores" ( p. 20}.

Mas o livro vale, e muito, quando aparece (a partír da p. 34) o Brasil na TV. E ai a imagem é um globo e o som é o famoso blim-blím . Com toda a razão, os autores alertam imediata­mente o leitor qúe, dado o quase mo­nopólio da Rede Globo, freqüente­mente se confunde televisão com aquilo que ela nos oferece.

Se uma emissora concentra apro­ximadamente 75% do público no ho· rário nobre (tabela na p. 54), o que significa que cerca de 45 milhões de pessoas assistem, por exemplo, ao Jornal nacional, evidentemente isso justifica um maior foco de análise di­rígido para a programação dessa emis­sora. É o que fazem os autores, co­meçando por uma caracterização do que é o "padrão Globo de qualidade", por oposição ao estilo televisivo das demais emissoras. Em suma, esse pa­drão é associado ao gosto e aos cr i­térios estético/intelectuais da afluen­te classe média ,brasileira dos tempos do milagre econõmíco.

Pelo fato de configurarem uma de­terminada representação do Brasil e dos brasileiros e assim constitulrem uma certa concepção de nacional e

Rio de Jane\ro, 24 (1): 54-60

popular, os autores selecionaram para análise os seguintes programas: os se­ríados brasileiros (Malu mulher, Car­ga pesada, Plantão de po/(cía e O bem--amado), O homem do sapato branco, Aqui e agora, O povo na TV, Nosso domingo, Fantástico, o show da vida, Buzina do Chacrinha, Discoteca do Chacrinha, O planeta dos homens, Os trapalhões e Jornal nacional.

A produção dos seriados nacio-nais, que ocupariam um espaço t~­talmente dominado pelos "enlata· dos" estrangeiros, começou em 1979 e o livro relaciona esse fato com a abertura pol{tica que possibilitou uma nova tentativa de "redescobri­mento" do Brasil.

Quanto aos programas "popula­res", o livro desmascara brilhante· mente a manipulação ideológica que implicam, dissecando os mecan ismos pelos quais um suposto assistencialis­mo e uma suposta expressão de de­mandas e reivindicações populares constituem na realidade formas de imposição de valores, comportamen­tos e atitudes às classes populares.

A leitura feita do Fantástico é a mais longa porque · ocupa maior nú­mero de páginas, mas é a mais curta porque é gostosa de ler, é criativa, é inteligente. Demonstra, principalmen­te, como o programa opera uma m is­tificação do conhecímento científi ­co e transfigura o humanismo num assistencialismo piegas.

Quanto às conclusões, seleciono o que me parece o essencial da fala dos autores: "Em uma entrevista de Cae­tano Veloso, ele afirma o seguinte : 'Eu sou nacional e popular até onde não se pode mais ser.' Caso o entre­vistado fosse a TV, o que vale como suposição, ela, parodiando o famoso cantor popülar e talvez até com mais direito, certamente afirmaria o mes­mo" (p. 129). o

Maria Cecilia Spina Forjaz

Professora titular na Escola de Administração de Empresas

de São Paulo, da Fundação Getulio Vargas,· mestre em

sociologia . e doutora em ciAncis poJitícs pela Universidade de São Paulo; autora dos seguintes livros: Tenentismo e pol(tica; renentismo e camadas mddias urbanas na crise

da Primeira República {Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977) e Tenentismo s Aliança Liberal

ISBo Paulo, Pólis, 1978}.

Revista de Administração de Empresas