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Representatividade feminina nos parlamentos nacionais da América Latina Ana Késia de Araújo Frederico dos Santos Araújo Patricia Basilio Teles Stabile Introdução O último levantamento global realizado em 2010 pela Organização das Nações Unidas sobre a distribuição da população mundial por sexo indicou que, percentualmente, a diferença entre homens e mulheres, na média geral, é mínima: 50,4% e 49,6%, respectivamente. Em alguns panoramas regionais, inclusive, esta medida não se repete. É o caso, por exemplo, de algumas partes do continente asiático, nas quais se observa uma quantidade consideravelmente maior de homens em relação a mulheres, assim como em algumas regiões especícas do continente europeu, nas quais o maior percentual de habitantes pende para o sexo feminino (UNITED NATIONS, 2010). Aquele mesmo estudo também foi categórico em apontar que justamente a representatividade feminina na política, bem como a participação das mulheres em processos decisórios governamentais ainda se encontram muito aquém de reetir a proporcionalidade parelha entre os sexos observada na média global. De fato, apesar de existirem movimentos sociais e iniciativas públicas e privadas em todo o mundo com o intuito de aprimorar o em

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Representatividade feminina nos parlamentos nacionais da América Latina

Ana Késia de AraújoFrederico dos Santos AraújoPatricia Basilio Teles Stabile

Introdução

O último levantamento global realizado em 2010 pela Organização das Nações Unidas sobre a distribuição da população mundial por sexo indicou que, percentualmente, a diferença entre homens e mulheres, na média geral, é mínima: 50,4% e 49,6%, respectivamente. Em alguns panoramas regionais, inclusive, esta medida não se repete. É o caso, por exemplo, de algumas partes do continente asiático, nas quais se observa uma quantidade consideravelmente maior de homens em relação a mulheres, assim como em algumas regiões específicas do continente europeu, nas quais o maior percentual de habitantes pende para o sexo feminino (UNITED NATIONS, 2010).

Aquele mesmo estudo também foi categórico em apontar que jus‑tamente a representatividade feminina na política, bem como a partici‑pação das mulheres em processos decisórios governamentais ainda se encontram muito aquém de refletir a proporcionalidade parelha entre os sexos observada na média global.

De fato, apesar de existirem movimentos sociais e iniciativas pú‑blicas e privadas em todo o mundo com o intuito de aprimorar o em‑

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poderamento das mulheres nas mais diversas esferas de atuação, dentre as quais a política e a governamental, ainda assim vê‑se que é enorme a distância para que a representatividade feminina possa condizer com a realidade da distribuição de gênero da população mundial.

Neste sentido, estudos desenvolvidos pela Inter-Parliamentary Union, uma organização internacional composta por 166 países‑mem‑bros voltada para o diálogo parlamentar em nível global e para a esta‑bilização da democracia representativa, corroboram a assertiva acima ao indicar que a média mundial da presença feminina nos parlamentos nacionais é de apenas um quinto do total de sua composição.

A Figura 1 abaixo ilustra a média mundial da participação de mu‑lheres nos parlamentos nacionais de acordo com o levantamento reali‑zado em dezembro de 2014 pela Inter-Parliamentary Union. Na feitura do estudo, foram consideradas as duas casas políticas no caso dos países com sistemas bicamerais. Assim, chegaram à quantidade de 34.828 par‑lamentares homens e de 9.757 parlamentares mulheres, números que indicam que apenas 21,9% do total de parlamentares no mundo são do sexo feminino.

Figura 1 ‑ Média mundial de mulheres nos parlamentos nacionais.

Fonte: Disponível em: <http://www.ipu.org/wmn‑e/arc/world011214.htm>. Acesso em: 15 jan. 2015.

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Esta diferença representa uma condição ainda bastante desfavo‑rável de sub‑representatividade do gênero feminino no campo político. Com isso, as discussões políticas também são afetadas. No seminário Mulheres na Política, Mulheres no Poder, realizado no Congresso Na‑cional Brasileiro no ano de 2000, a cientista política norte‑americana Mala Htun defendeu a ideia de que a participação feminina no poder ocasiona a implementação de novos itens na agenda política, ainda que isto não signifique necessariamente na aprovação de novas legislações (HTUN, 2000).

Neste sentido, há uma crescente atenção para a questão do em‑poderamento feminino na esfera política como mecanismo de transfor‑mação social. Já na IV Conferência da Organização das Nações Unidas Sobre a Mulher, realizada em 1995, em Beijing, capital da China, evento que marcou o discurso sobre a promoção dos direitos das mulheres, esta preocupação constou na Declaração adotada pelos países ao final da conferência, em conformidade com os termos de seu 13o item:

O fortalecimento das mulheres e sua plena participação, em condições de igualdade, em todas as esferas sociais, incluindo a participação nos processos de decisão e acesso ao poder, são fundamentais para o alcance da igualdade, desenvolvimento e paz (UNITED NATIONS, 1995).

Logo após aquela conferência, uma série de países passou a im‑plementar mecanismos afirmativos de cotas com o propósito de possi‑bilitar um aumento na participação feminina na política. Na América Latina, algumas iniciativas daquela natureza representaram um ganho considerável de representatividade, como foi o caso de Argentina e El Salvador. Em outros países, no entanto, a implantação de legislações eleitorais de cotas não significou em aumentos expressivos na composi‑ção do parlamento, como foi o caso de Brasil e Venezuela.

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Abordagem metodológica

Este trabalho busca explorar a evolução ou não da participação feminina nos parlamentos nacionais de países da América Latina, utili‑zando como espaço de analise da pesquisa: a Argentina, Brasil, Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, El Salvador, Guatemala, Hondu‑ras, México, Nicarágua, Paraguai, Panamá, Peru, República Dominica‑na, Uruguai e Venezuela.

Foram avaliados os dados referentes às duas últimas eleições dos parlamentos nacionais, considerando‑se a câmara e o senado nos países que adotarem o sistema bicameral. Nesse sentido, foram enumerados dados referentes os congressistas eleitos, separados por gênero mascu‑lino e feminino, posteriormente calculados o percentual de mulheres em cada parlamento. A partir destes dados, foram elaborados gráficos demonstrativos do acréscimo ou diminuição de mulheres na composi‑ção parlamentar.

A coleta de dados priorizou as informações obtidas junto aos órgãos judiciais eleitorais responsáveis pela apuração eleitoral nos paí‑ses pesquisados. Não sendo possível o levantamento dos dados a par‑tir daquelas fontes, buscou‑se os registros nos sites dos respectivos parlamentos.

De outra sorte, foram avaliadas também as composições das co‑missões permanentes, sendo que, para os países que adotarem o sistema bicameral, foram avaliadas apenas as comissões permanentes das câ‑maras dos deputados, por uma questão de simplificação metodológica.

Os dois tipos de informações foram cotejadas entre si (composi‑ção do parlamento e composição das comissões permanentes), com o propósito de avaliar a existência ou não de alguma relação entre a com‑posição dos parlamentos e a composição das comissões permanentes, mormente em razão da importância daquelas comissões para o exercí‑cio das atividades parlamentares.

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Por fim, também foram analisadas iniciativas legislativas de co‑tas de inclusão de mulheres como instrumento de aperfeiçoamento do corpo político. Esta análise primou enfocar principalmente sobre a exis‑tência ou não de ganhos consideráveis de representatividade feminina a partir da implementação das cotas.

Democracia e participação política feminina

A representatividade feminina é um aspecto relevante para a ca‑racterização de uma democracia? Que limites de participação política de mulheres poderiam indicar a força ou a debilidade de um regime democrático?

Estas são perguntas cujas respostas são de difícil consenso. His‑toricamente, o caminho político percorrido pelas mulheres é bastante recente. Em que pese a longa trajetória da democracia desde tempos remotos na Grécia antiga, apenas em 1893, na Nova Zelândia, é que se iniciou o processo de extensão do direito ao voto para mulheres em um país democrático. A partir de então, lentamente, outros países passa‑ram a incluir em suas agendas políticas alterações legislativas possibili‑tando o sufrágio feminino. Robert Dahl abordou esta problemática em sua obra Poliarquia, servindo‑se do exemplo da Suíça, um regime que poucos contestariam como não sendo democrático, mas que apenas em 1971 passou a permitir o voto feminino (DAHL, 1997).

Em uma primeira abordagem, esta situação se apresenta como um contrassenso à própria ideia democrática, pois como pensar a de‑mocracia sem considerar uma parcela tão significativa para o conjunto social como o universo feminino? Nada obstante, é necessário ter em conta que as abordagens sobre a democracia vêm sendo aperfeiçoadas de maneira contínua no decorrer do tempo e é neste processo de la‑pidação que se encaixam os recentes esforços de inclusão feminina no campo político.

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O ideal é que a análise sobre a evolução democrática de um povo não deixe de considerar aspectos diretamente a ela vinculados, como sua evolução cultural, social, econômica e política. Schumpeter abor‑dou esta questão de maneira bastante pragmática, expondo a natureza discricionária da estipulação de critérios para se caracterizar a plena ci‑dadania em regimes democráticos. Assim, convencionar a capacidade de voto dos indivíduos seria uma questão de opinião e grau (SCHUM‑PETER, 1961), relacionada ao momento histórico de uma sociedade.

Sobre este prisma, a maior parte das democracias atuais vem dan‑do sinais da busca por uma maturidade política na qual não caibam mais certos tipos de discriminação, como, no caso, o de se convencionar a capacidade civil por critérios como sexo, raça ou religião.

Por outro lado, uma percepção ainda maior vem se desenvolven‑do nas mais diversas regiões do mundo: a de que não basta a possibilida‑de do voto feminino, mas é fundamental também a efetiva participação das mulheres na política, nos governos e nos processos decisórios. Nes‑te sentido, a consciência da necessidade do empoderamento feminino evolui continuamente.

A relevância do tema foi destacada no estudo intitulado The World’s Women 2010 - Trends and Statistics, no qual restou bastante evi‑dente que, para a Organização das Nações Unidas, o acesso e a partici‑pação das mulheres na esfera política tornou‑se uma condição necessá‑ria para o funcionamento apropriado da própria democracia:

The Universal Declaration of Human Rights recognises the right of every individual to take part in the government of her or his country. Equal access to power, decision ‑ making and leadership at all levels is a necessary condition for the proper functioning of democracy. Ensuring women’s freedom to participate in politics, both as voters and as representatives, has been central to international, regional and national efforts aimed at more inclusive and democratic governance. These freedoms and rights are not limited to politics but extend to

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participation and leadership in public life, the private sector and civil society in general (UNITED NATIONS, 2010, s/p).

Na mesma direção, na Declaração Universal Sobre Democracia adotada pelo Conselho da Inter-Parliamentary Union também pode ser observada a importância dada à questão da participação feminina nas decisões governamentais:

The achievement of democracy presupposes a genuine partnership between men and women in the conduct of the affairs of society in which they work in equality and complementarity, drawing mutual enrichment from their differences (INTER‑PARLIAMENTARY UNION, 1997, s/p).

Participação política feminina nos parlamentos nacionais da América Latina

Apesar do número de congressistas mulheres em parlamentos nacionais estar em visível dissonância com o percentual feminino da população, o continente americano ainda consegue se destacar entre os demais continentes neste quesito, alcançando uma média de 25% de participação contra 20% no restante do mundo, em conformidade com estudos realizados pela Inter-Parliamentary Union (1997).

Especificamente no caso dos países latino‑americanos, podem ser vislumbrados cenários bastante promissores, como, por exemplo, os parlamentos nacionais da Argentina, México, Equador, Costa Rica e Nicarágua, todos apresentando uma taxa média de representatividade feminina acima de 30%.

De outra sorte, as taxas de representatividade de países como Bra‑sil, Uruguai e Guatemala puxam a média regional para baixo, porquanto não conseguem alcançar sequer o percentual de 15% de participação de mulheres na média de seus parlamentos.

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SISTEMA BICAMERAL

PAÍSPENÚLTIMA

ELEIÇÃOSENADO

ÚLTIMA ELEIÇÃOSENADO

VARIAÇÃOPENÚLTIMA

ELEIÇÃOCÂMARA

ÚLTIMAELEIÇÃOCÂMARA

VARIAÇÃO

BRASIL 12,96% 18,52% 5,56 Pontos positivos 8,77% 9,94% 1,17 Pontos positivos

CHILE 11,76% 19,05% 7,29 Pontos negativos 14,17% 15,83% 1,66 Pontos positivos

URUGUAI 13,33% 3,00% 10,33 Pontos negativos 13,13% 13,13% Não houve

PARAGUAI 15,56% 20,00% 4,44 Pontos positivos 12,50% 15,00% 2,50 Pontos positivos

ARGENTINA 37,50% 37,50% Não houve 36,92% 34,65% 2,27 Pontos negativos

BOLÍVIA 3,70% 47,22% 43,52 Pontos positivos 16,92% 24,39% 7,47 Pontos positivos

COLÔMBIA 16,67% 23,53% 6,86 Pontos positivos 12,12% 19,51% 7,39 Pontos positivos

MÉXICO 14,84% 32,81% 17,97 Pontos positivos 28,00% 37,00% 9,00 Pontos positivos

REPÚBLICA DOMINICANA

6,25% 12,50% 6,25 Pontos positivos 19,10% 20,22% 1,12 Pontos positivos

A partir dos dados colhidos nas páginas dos tribunais eleitorais, das casas parlamentares nacionais ou de outras fontes abertas, como, por exemplo, da Universidade de Salamanca, foram construídas algu‑mas planilhas e gráficos que demonstram a diferença na composição dos parlamentos entre os países latino‑americanos, ao passo em que também indicam a evolução da representatividade feminina entre as duas últimas eleições nacionais:

SISTEMA UNICAMERAL

PAÍS PENÚLTIMA ELEIÇÃO ÚLTIMA ELEIÇÃO VARIAÇÃO

PERU 28,33% 20,77% 7,56 Pontos negativos

VENEZUELA 15,76% 16,46% 0,70 Pontos positivos

EQUADOR 30,65% 40,88% 10,23 Pontos positivos

COSTA RICA 38,60% 33,33% 5,27 Pontos negativos

NICARÁGUA 18,48% 41,76% 23,28 Pontos positivos

GUATEMALA 12,66% 13,92% 1,26 Pontos positivos

HONDURAS 17,19% 25,78% 8,59 Pontos positivos

PANAMÁ 9,86% 18,33% 8,47 Pontos positivos

EL SALVADOR 20,24% 27,38% 7,14 Pontos positivos

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Da análise das tabelas indicadoras da variação do percentual de parlamentares femininas nas duas últimas eleições nacionais percebe‑se que, com pouquíssimas exceções, houve um aumento na taxa de re‑presentação de mulheres nos parlamentos nacionais da América Latina entre as duas últimas eleições nacionais.

Sobre este aspecto, algumas situações foram sobremodo signi‑ficativas. Por exemplo, na eleição para o mandato de 2005 a 2010, na Bolívia foi eleita uma única senadora, de um total de 27 representantes. Na eleição seguinte, para o mandato de 2010 a 2015, o número total de senadores foi alterado para 36, dos quais 17 eleitos foram mulheres. Per‑centualmente, o aumento da representatividade feminina subiu de 3,7% para 47, 22% (UNIVERSIDADE DE SALAMANCA, 2014a).

No Senado do México e na Assembleia Nacional da Nicarágua também ocorreram aumentos consideráveis. Neste sentido, podemos observar que nas eleições nacionais mexicanas de 2006, de um total de 128 senadores, apenas 19 mulheres foram eleitas. Na eleição seguinte, de 2012, o número de mulheres eleitas aumentou para 42, o que signi‑ficou um crescimento de 17,97 pontos percentuais (MÉXICO, 2015). Da mesma forma, na Assembleia Nacional da Nicarágua, o número de mulheres eleitas nas eleições de 2007 foi de apenas 17 deputadas. Já nas eleições de 2012, a quantidade de deputadas eleitas subiu para 38, o que representou um acréscimo de 23,28 pontos percentuais (UNIVERSI‑DADE DE SALAMANCA, 2014b).

Análise sobre a composição de comissões permanentes

As comissões permanentes desempenham um papel substan‑cial no processo de produção legislativa nos parlamentos. Comumente delimitadas por tópicos específicos, elas têm função preparatória, de análise de proposições e projetos, bem como de discussão e deliberação prévia sobre determinados assuntos. Sua importância é tamanha que, dependendo da natureza da matéria em pauta, suas decisões podem ter,

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inclusive, caráter terminativo, evitando que a decisão seja submetida ao plenário da respectiva casa.

Conforme ora citado, este trabalho também direcionou seu foco para uma análise da composição das comissões permanentes, conside‑rando, para tanto, apenas as comissões das câmaras de deputados nos países que adotam o sistema parlamentar bicameral. Os dados obtidos na pesquisa possibilitaram a elaboração de planilhas e gráficos indica‑dores da participação feminina também nas comissões, os quais estão a seguir:

PARTICIPAÇÃO MÉDIA ATUAL DE MULHERES NAS COMISSÕES PERMANENTES DAS CÂMARAS DE DEPUTADOS OU PARLAMENTOS DE SISTEMAS

UNICAMERAIS NA AMÉRICA LATINA

PAÍS PARTICIPAÇÃO MÉDIA

NICARÁGUA 42,44%

EQUADOR 41,14%

MÉXICO 38,33%

COSTA RICA 36,88%

ARGENTINA 36,58%

BOLÍVIA 27,91%

EL SALVADOR 23,59%

PERU 22,51%

REPÚBLICA DOMINICANA 21,50%

PANAMÁ 21,28%

COLÔMBIA 17,56%

CHILE 16,48%

PARAGUAI 15,88%

VENEZUELA 15,85%

GUATEMALA 14,47%

URUGUAI 12,25%

BRASIL 9,63%

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A identificação destes dados teve sua importância principalmen‑te por evidenciar que, de forma geral, existe uma paridade significativa entre a representatividade feminina na composição do parlamento e a representatividade feminina na composição das comissões permanen‑tes, ou seja, são bem próximas as taxas de representatividade geral de mulheres nos parlamentos com as taxas de representatividade de mu‑lheres nas comissões permanentes.

PAÍS ÚLTIMA ELEIÇÃO MÉDIA COMISSÕES

ARGENTINA 34,65% 36,58%

BOLÍVIA 24,39% 27,91%

BRASIL 9,94% 9,63%

CHILE 15,83% 16,48%

COLÔMBIA 19,51% 17,56%

COSTA RICA 38,60% 36,88%

EL SALVADOR 20,24% 23,59%

EQUADOR 30,65% 41,14%

GUATEMALA 12,66% 14,47%

HONDURAS 17,19% 0,00%

MÉXICO 37,00% 38,33%

NICARÁGUA 18,48% 42,44%

PANAMÁ 9,86% 21,28%

PARAGUAI 15,00% 15,88%

PERU 28,33% 22,51%

REPÚBLICA DOMINICANA 20,22% 21,50%

URUGUAI 13,13% 12,25%

VENEZUELA 15,76% 15,85%

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Os dados referentes à composição das comissões permanentes foram cotejados com os dados relativos à composição geral, elaboran‑do‑se então um diagrama indicando a taxa da representatividade femi‑nina na última eleição (para a câmara dos deputados, no caso de países bicamerais) e a taxa da representatividade feminina atual das comissões permanentes.

A partir da ilustração acima, é possível perceber que, excetuando‑se os casos da Nicarágua e do Panamá, os quais apresentaram grandes diferenças entre as taxas de representatividade, assim como no caso de Honduras, no qual não foi possível identificar a composição das comis‑sões, nos outros países as taxas de representatividade tanto dos parla‑mentos quanto de suas comissões foram bastante próximas.

É certo que a similitude na composição desses dois colegiados não será uma vantagem quando a representatividade feminina geral no parlamento for baixa. Não obstante, a conformidade entre essas duas taxas de representatividade significará uma garantia para a participação feminina em um importante aspecto do processo legislativo nos parla‑mentos em que as mulheres já tiverem conseguido uma maior inserção.

Uma característica que também ficou bastante evidente da análise da composição das comissões foi que, de forma geral, a participação fe‑

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minina é muito mais forte em comissões voltadas para tópicos de cunho social, como direitos humanos, infância e família, ao passo que nas co‑missões relacionadas a temas como defesa nacional, finanças, energia, comunicação e transporte a participação masculina é preponderante.

Outra particularidade a ser destacada é o fato de que os parla‑mentos da Argentina, Peru, Colômbia, Costa Rica, Nicarágua, Gua‑temala, Panamá e El Salvador apresentam comissões específicas para tratar sobre matérias diretamente relacionadas às mulheres. Em sen‑tido similar, o parlamento da República Dominicana possui uma co‑missão permanente própria para a questão da igualdade de gêneros. Também merece destaque a circunstância de que, excluindo‑se os par‑lamentos da Venezuela, Equador e Panamá, todos os demais possuem comissões permanentes exclusivas para tratar sobre o tema dos direi‑tos humanos.

Políticas de cotas na América Latina

Dentre as ações políticas afirmativas, a criação de legislações eleitorais para o estabelecimento de cotas de gênero pode representar um importante mecanismo para aprimorar o acesso de mulheres tanto aos parlamentos, como aos órgãos executivos de processos decisórios. Depois da Conferência de Beijing, os países passaram a ser influencia‑dos a adotarem medidas daquela natureza, o que, de certa forma, surtiu efeitos significativos no continente latino‑americano.

As iniciativas dessa natureza na América Latina foram objeto de um extenso estudo do Internacional Institute for Democracy and Electo-ral Assistance, uma organização intergovernamental integrada por paí‑ses de todos os continentes, que apresentou o workshop report “A Imple‑mentação de Cotas: Experiências Latino‑americanas”, em um congresso realizado em Lima, Peru, no ano de 2003. Naquele documento, foi con‑signado o fortalecimento da percepção sobre a utilização de cotas como uma importante medida política para o aprimoramento da participação

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feminina na composição de instituições decisórias na América Latina (IDEA, 2003).

Marcela Ríos Tobar explica que há três tipos fundamentais de co‑tas de gênero: as que buscam reservar assentos em determinadas insti‑tuições para que sejam ocupados exclusivamente por mulheres; as que estabelecem uma quantidade determinada de candidaturas femininas; e as cotas partidárias, geralmente voluntárias, adotadas pelos partidos po‑líticos ao preencher seus órgãos diretivos ou listas de candidatos (TO‑BAR, 2008).

Atualmente, são treze os países da América Latina que modifi‑caram suas legislações eleitorais com a inclusão de cotas para aprimo‑rar a igualdade de gêneros na política: Argentina, Bolívia, Brasil, Costa Rica, El Salvador, Equador, Honduras, México, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana e Venezuela. Em outros países do continente, como Chile e Nicarágua, verifica‑se iniciativas voluntárias de cotas partidárias.

Contudo, esta expressiva quantidade de países que passaram a adotar cotas eleitorais de gênero, muitas dessas iniciativas não produ‑ziram resultados relevantes, por diferentes razões. Neste sentido, Mala Htun considera quatro fatores determinantes para o sucesso na aplica‑ção de cotas: 1 – a natureza da lista partidária, se aberta ou fechada; 2 – a posição competitiva na lista partidária; 3 – o tamanho da circunscrição eleitoral; e 4 – o compromisso partidário (HTUN, 2000).

Assim, países que adotam o sistema de lista partidária fecha‑da tendem a ser mais exitosos na implementação de cotas de gênero. Em sentido análogo, a estipulação de regras de ordenamento em que o nome das candidatas femininas sejam incluídos nas primeiras posi‑ções nos sistemas de listas fechadas também é uma medida de grande importância.

Por outro lado, o tamanho do colégio eleitoral também influencia o resultado da aplicação de cotas. Neste sentido, circunscrições menores tenderiam a dificultar esse mecanismo, posto que a disputa pela vaga

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seria mais acirrada que em um sistema no qual existam mais eleitores e, consequentemente, mais vagas.

Conclusão

Sob certas perspectivas, as relações sociais são fortemente in‑fluenciadas por padrões históricos nos quais o poder masculino é pre‑dominante. Em sua obra A Dominação Masculina, o sociólogo francês Pierre Bourdieu aborda a questão de gênero na sociedade, analisando a relação desigual de poder que caracteriza as diferenças entre os sexos. Para este autor, a sociedade seria organizada em dualismos construídos a partir da distinção entre o masculino e o feminino, nos quais a hege‑monia masculina seria constantemente confirmada pela ordem “natu‑ral” das coisas. De acordo com sua teoria,

A divisão entre os sexos parece estar “na ordem das coisas”, como se diz

por vezes para falar do que é normal, natural, a ponto de ser inevitável:

ela está presente, ao mesmo tempo, em estado objetivado nas coisas

(na casa, por exemplo, onde as partes são todas “sexuadas”), em todo

o mundo social e, em estado incorporado, nos corpos e nos habitus

dos agentes, funcionando como sistemas de esquemas de percepção, de

pensamento e de ação (BORDIEU, 2012).

De fato, há diversas particularidades sociais que representam árduos obstáculos a serem superados pelas mulheres. Culturas ma‑chistas, tabus e preconceitos relacionados ao sexo, violências e abusos, falta de acesso à educação, discriminação profissional e remuneratória, responsabilidade exclusiva pela manutenção familiar, assédios físicos e psicológicos, entre tantos outros desafios, que precisam ser enfrenta‑dos rotineiramente em todas as partes do mundo. O estudo realizado pela Organização das Nações Unidas em 2010 foi categórico em apontar todas essas questões como sérios problemas relacionados ao contexto feminino (UNITED NATIONS, 2010).

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Neste sentido, o empoderamento feminino reveste‑se de notável relevância como um instrumento para a correção de distorções históri‑cas e culturais fortemente enraizadas em diversas sociedades.

A consecução deste objetivo precisa ser uma prioridade das na‑ções e não deve se limitar a temas pontuais. Pelo contrário, deve abarcar a maior escala possível de matérias. Assim, é imprescindível considerar o empoderamento feminino em contextos sociais, familiares, conjugais, legais, profissionais, educacionais e, principalmente, políticos.

A Organização das Nações Unidas está atenta a esta demanda e, por meio de órgãos específicos de sua estrutura, procura incentivar os países a adotarem medidas para enfrentar a desigualdade de gêneros:

Gender inequality, despite much progress, remains among the greatest challenges of our times. Fed by deeply embedded discrimination against women and girls, it is wrong and costly, whether it interrupts economic progress, undercuts peace or restricts the quality of leadership. Ending it should be foremost among global and national goals (UNITED STATES, 2014, s/p).

Em específico, na América Latina, um número considerável de iniciativas voltadas para o aprimoramento da representatividade femi‑nina na política vem sendo adotadas. O êxito de algumas, como no caso de Argentina, México e Nicarágua, são promissores. No entanto, ou‑tras iniciativas foram completamente frustradas por diferentes motivos, como no caso do Brasil.

Certo é que, de um modo geral, as atuais taxas de representação de mulheres nos parlamentos nacionais ainda apresentam uma signifi‑cativa desarmonia com as taxas censitárias conhecidas, as quais apon‑tam uma divisão entre os gêneros bastante igualitária. Existe, portanto, uma necessidade premente de que a sociedade civil, os Estados e os or‑ganismos internacionais intensifiquem os esforços direcionados para a redução das desigualdades de gênero e o consequente empoderamento feminino na política.

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A mulher e o custo das expectativas estéticas sociais: uma crítica econômica às

restrições do direito de vir a público sem constrangimento

Douglas Antônio Rocha Pinheiro

Introdução

No final de 2013, a francesa Alexandra Sophie produziu uma série fotográfica intitulada Winter, em que uma modelo não depilada era flagrada de roupas íntimas em poses sensuais. Em editorial, Sophie explicou que sua intenção era a de recordar uma realidade evidente, porém esquecida: mulheres têm pelos, e isso “não é feio, nem sujo, nem incompatível com a feminilidade, mas sim um sinal de maturidade física”. No Brasil, na mesma época, o coletivo Além, composto por Nubia Abe e Mateus Lima, ganhou destaque com o projeto Pelos pelos, por meio do qual, depoimentos e fotos de mulheres nuas que haviam optado por não se depilar eram divulgados.

A reação ao trabalho de Sophie, segundo a própria fotógrafa, foi diversa: enquanto América do Norte, Europa e Austrália produziram manifestações encorajadoras, a maioria dos comentários provenientes da Ásia e da América do Sul foram de repugnância. A opinião do colu‑nista da Revista Veja, Rodrigo Constantino, publicada em 16 de julho de 2014, além de confirmar tal estatística, é bastante representativa do senso comum nacional:

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[...] para as feministas, mulher de verdade é uma tremenda de uma mocreia mal‑cuidada que tenta se parecer cada vez mais com um homem peludo? Tony Ramos é o novo ideal de aparência da mulher moderna? [...] Felizmente acredito que essa modinha ridícula não vai pegar. A maioria das mulheres deseja ser... uma mulher bonita, atraente. E, normalmente, os homens não curtem essa coisa de mulher peluda, que cada vez mais tenta se parecer com o próprio homem.

Infelizmente, porém, a falta de percepção de que o abstrato con‑ceito de liberdade também alcança a materialidade dos corpos femi‑ninos não é observada apenas em relação aos pelos. O padrão estético socialmente partilhado exige das mulheres uma série de outros proce‑dimentos antinaturais, como andar sobre sapatos de salto, pintar unhas, tingir cabelos e maquiar o rosto. O ataque mais óbvio a tal padronização questionaria o processo de condicionamento corporal pelo poder. Este capítulo, no entanto, pretende tratar a questão sob um viés econômico, munindo o discurso do empoderamento feminino de conceitos bastan‑te correntes nos debates sobre desenvolvimento: o de capacidades e o de pobreza.

Para tanto, o texto resgatará: (i) o direito de vir a público sem so‑frer constrangimentos, cuja primeira intuição já pode ser percebida na obra de Adam Smith; (ii) a perspectiva de que o desenvolvimento deve ser visto como um processo de expansão das liberdades reais desfruta‑das pelas pessoas, conforme os estudos de Amartya Sen; e (iii) os dados concretos levantados pelo Banco Mundial no começo desta década em sua pesquisa sobre a eficácia econômica da igualdade de gênero.

Por fim, este trabalho supera o clássico entendimento econômico de que equidade e eficiência sejam grandezas mutuamente excludentes, segundo o qual políticas públicas de redistribuição de riqueza compro‑metem os índices de crescimento econômico (OKUN, 1975), e adere a uma compreensão mais recente de que tais vetores podem efetivamente ser complementares (BRUNO; RAVALLION; SQUIRE, 1996). Afinal, a

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percepção de que as exigências estéticas sociais colocam a mulher numa condição de maior pobreza pode contribuir para a proposição de uma nova dinâmica de equiparação econômica, com ganhos reais e efetivos para toda a coletividade.

De Smith a Sen

Em 1776, ao esclarecer o conceito econômico de necessidade, Adam Smith indicou que considerava como tal não apenas toda e qual‑quer mercadoria indispensável à manutenção da vida, mas também aquela que, segundo o costume da época, fosse considerada inerente a toda pessoa de bem. Como exemplo, Smith mencionava a camisa de linho, um bem claramente dispensável para a sobrevivência. Porém, embora gregos e romanos tivessem vivido confortavelmente sem tal produto, em grande parte da Europa do século XVIII ela se converteu num item fundamental para que o trabalhador fosse considerado digno perante seus concidadãos. Aparecer em público sem tal peça significava sujeitar‑se à vergonha, expor um grau de miserabilidade a que, presu‑mivelmente, não se chegava sem uma conduta extremamente ruim. Na Inglaterra, em particular, os sapatos de couro gozavam de igual fama, o que demonstrava como os costumes locais podiam ampliar o parâmetro mínimo de dignidade (SMITH, 1776, p. 351‑352).

O argumento de Smith, quase duzentos anos depois, ainda per‑manece apto para inspirar reflexões sobre o conceito de pobreza e de dignidade social. No início da década de 1950, o descompasso entre a afirmação presunçosa do governo britânico de que teria erradicado a pobreza e a percepção social de que várias necessidades básicas ainda estavam longe de serem atendidas levaram uma série de estudiosos a se debruçar sobre a pertinência de uma noção absoluta da pobreza. Peter Townsend, por exemplo, questionando o critério oficial de elaboração da linha da pobreza, afirmava que, no início da década de 1960, pelo menos um em cada sete ingleses ainda era pobre. Para ele, não bastava

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utilizar um elenco rigoroso e fixo de necessidades cuja alteração levasse em conta apenas a variação dos preços; era necessário, também, consi‑derar as novas obrigações e expectativas dos indivíduos, o que relativi‑zaria a definição da pobreza (TOWNSEND, 1962, p. 218‑219; 1979, p. 17‑18; SEN, 1983, p. 154).

A partir da provocação de Townsend, outras visões relativistas vieram à tona. Fiegehen, Lansley e Smith, por exemplo, ao defenderem as vantagens de um critério móvel de pobreza, alegavam que ele sempre indicaria, em dado contexto histórico, os membros relativamente mais prejudicados do grupo social, por auferirem renda abaixo da média. Miller e Roby, em outro sentido, entendiam que a questão da pobreza deveria estar adstrita ao debate sobre a desigualdade; nesta perspectiva, mais importante que estabelecer uma linha arbitrária distintiva de po‑bres e não‑pobres, seria mensurar comparativamente a diferença exis‑tente entre os vinte por cento mais pobres de uma dada sociedade em relação ao restante de seus membros (SEN, 1983, p. 156‑157).

Como reação a tal crescente defesa de um conceito relativo de pobreza, Amartya Sen acabou adotando uma dupla postura desconstru‑tiva e propositiva. Assim, embora ele partilhasse da crítica em relação ao parâmetro então politicamente construído de linha da pobreza, por estar sujeito aos interesses do poder, várias foram as divergências por ele apontadas quanto aos demais argumentos relativistas. Contrariamente a Townsend, para Sen a defesa de um critério absoluto de carestia não sig‑nificava necessariamente a crença numa inalterabilidade das necessida‑des da vida. Uma linha da pobreza sempre seria construída em função de algumas variáveis, o que não impediria que tais variáveis mudassem no decorrer dos anos (SEN, 1983, p. 155).

Quanto às ideias de Fiegehen, Lansley e Smith, Sen apontou que elas significariam o fracasso de qualquer programa antipobreza, já que, de modo comparativo, sempre existiriam indivíduos em situação mais desfavorável que outros, o que não implicaria necessariamente carestia caso tal sociedade apresentasse um nível bastante alto de satisfação das

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necessidades de seus membros. Por fim, questionando a confiabilida‑de de aferição da proposta de Miller e Roby, Sen lembrava que a razão de desigualdade numa sociedade próspera pode ser a mesma quando, num dado momento futuro, essa mesma coletividade enfrentar um mo‑mento de crise econômica – embora, em termos absolutos, a situação seja claramente mais desfavorável neste segundo período (SEN, 1983, p. 156‑157).

Sen, no entanto, não se limitou a rebater os relativistas. Recupe‑rando Adam Smith e o exemplo da camisa de linho, ele vai recordar que o direito de vir a público sem sofrer constrangimentos (to go about without shame), o que poderia ser traduzido como o padrão mínimo de condições de vida, somente seria alcançado pela obtenção de algumas mercadorias, cujo rol variaria de acordo com os costumes e as regras culturais de dada sociedade. Haveria, assim, uma natureza social na re‑lação estabelecida entre mercadoria e capacidade, entre o meio material e o padrão de vida por ele garantido, o que, segundo Sen, demonstraria que Smith não se preocupava apenas em incrementar a maximização da riqueza, mas também em evitar sua concentração (SEN, 1985, p. 23).

Vê‑se, assim, em tal debate a introdução de uma categoria nova: a de capacidade. Para explicá‑la e distingui‑la dos conceitos de merca‑doria, característica e utilidade, Sen utilizou uma imagem ao mesmo tempo lúdica e didática: o ato de pedalar. Enquanto a bicicleta corres‑ponderia à mercadoria, o transporte seria uma de suas principais ca‑racterísticas. Aquele que a possui, passaria a dispor de uma capacidade, qual seja a de se mover de um lugar a outro, o que lhe causaria uma reação mental de utilidade, de satisfação por seu uso. De tais catego‑rias, a que melhor corresponderia à noção de padrão de vida seria a de capacidade, na medida em que ela trataria da habilidade de fazer várias coisas pelo uso dos bens ou de suas características (SEN, 1983, p. 160).

Ao aplicar tal categoria ao debate da carestia travado com Town‑send e os demais relativistas, Sen vai complexificá‑lo por afirmar que a pobreza é uma noção absoluta no campo das capacidades, mas que

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geralmente apresenta uma forma relativa no campo das mercadorias ou das características. Voltando ao exemplo de Smith, enquanto o direito de vir a público sem sofrer constrangimento seria uma capacidade, a camisa de linho e os sapatos de couro seriam as mercadorias necessárias para isso. Assim, ao mesmo tempo em que no campo da capacidade a superação da pobreza se apresenta como uma noção absoluta, vinculada ao padrão mínimo de vida esperado, no campo das mercadorias a veri‑ficação de tal objetivo só é possível pela aquisição de bens relativamente considerados de acordo com o contexto social historicamente dado no tempo e no espaço.

Desse modo, o direito de vir a público sem sofrer constrangimen‑tos ou, em outras palavras, a capacidade de compor a esfera pública e participar de suas atividades pode exigir, em comunidades menos de‑senvolvidas, um rol restrito de bens, provavelmente vinculados às ne‑cessidades básicas de alimentação, vestuário, moradia e saúde. Por outro lado, em comunidades mais desenvolvidas, em que tais necessidades já foram adequadamente atendidas, as demandas exigidas para a partici‑pação social podem corresponder a um elenco mais numeroso, incluin‑do, por exemplo, o acesso às novas mídias. Em ambas as comunidades, porém, a privação relativa de um bem – um calçado na primeira, um tablet na segunda – acabaria conduzindo à privação absoluta de uma capacidade (SEN, 1983, p. 161‑162).

Obviamente, tal visão estabelece um parâmetro comparativo re‑velador de distintos padrões de vida entre países com maior ou menor desenvolvimento. Não sem motivo, Amartya Sen vai defender que o de‑senvolvimento, ao invés de ser pensado na perspectiva de crescimento do Produto Interno Bruto, de aumento individual de rendas ou de in‑cremento da industrialização, precisa ser fundamentalmente percebido como um processo de expansão das capacidades humanas e das liber‑dades efetivamente desfrutadas pelas pessoas (SEN, 2000, p. 17‑18‑25). Todavia, para além de uma análise entre Estados, tal arcabouço teórico permite desvelar a lógica de exclusão interna ao próprio Estado. Sobre

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isso, e especialmente sobre a exclusão sofrida pelas mulheres, trata o próximo item.

Da exclusão ao empoderamento

Se a capacidade de participação na esfera pública, como gran‑deza absoluta, requer uma série de mercadorias – grandezas relativas e variáveis segundo usos, costumes e tradições de cada sociedade –, uma primeira condição da igualdade é que todos possam ter acesso a tais bens. Na perspectiva específica dessa pesquisa, é preciso que homens e mulheres tenham igual direito de acesso às mercadorias, segundo a exigência social, o que significa uma superação da diferença como desi‑gualdade e um avanço no sentido da igualdade como identidade. Embo‑ra já tenham sido verificadas várias conquistas nesta dimensão da igual‑dade, com o aumento da expectativa de vida para mulheres, chegando a 71 anos globalmente em 2007, com a busca da paridade de gênero no número de matrículas no ensino fundamental, alcançada por dois ter‑ços dos países, com a maior participação das mulheres no mercado de trabalho, significando mais de 40% da força de trabalho global em 2008, ainda há muito a avançar (WORLD BANK, 2011, p. 8‑10).

Apenas a título de exemplo, o aumento da participação da mulher no mercado de trabalho não foi acompanhado por uma equalização das oportunidades de emprego e das remunerações. Em quase todos os paí‑ses, é maior a probabilidade de que as mulheres desempenhem ativida‑des consideradas de baixa produtividade, obtenham um emprego fami‑liar assalariado ou um trabalho no setor informal, gerenciem empresas menores ou de setores menos produtivos, além de auferirem renda in‑ferior aos homens quer como assalariadas, quer como empreendedoras – nesse caso, pela dificuldade de acesso a insumos e crédito (WORLD BANK, 2011, p. 16‑18).

De qualquer modo, a primeira condição da igualdade entre mu‑lheres e homens, mesmo que efetivamente consolidada, não seria su‑

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ficiente para garantir capacidade isonômica entre ambos, sendo, pois, necessário incorporar uma segunda condição, na qual a igualdade pas‑sasse a ser percebida não só como identidade, mas também como dife‑rença (ROSENFELD, 2003, p. 47‑79). A falta de sensibilidade às parti‑cularidades das mulheres, decorrentes quer de fatores biológicos quer de convenções sociais, poderia fazer com que, mesmo tendo acesso aos mesmos produtos disponibilizados aos homens, elas tivessem suas ha‑bilidades de integração à esfera pública e de participação claramente reduzidas em relação a eles. Nessa perspectiva, por exemplo, sem acesso a bens específicos, como o direito de afastamento laboral, a mulher teria que abdicar da maternidade e dos cuidados com o recém‑nascido para manter chances de empregabilidade equivalentes às masculinas (SEN, 1990, p. 116).

Por isso, a noção de capacidade deve levar em conta uma certa variabilidade de parâmetro na relação entre os bens disponibilizados e as oportunidades que eles garantem. Do contrário, ao invés de res‑guardar aos indivíduos o direito de vir a público sem constrangimentos, tal categoria reforçaria os laços de exclusão gerados pelos mais diversos motivos, tais como heterogeneidade física e/ou cognitiva entre as pes‑soas, desigualdades decorrentes de condições ambientais e de padrões culturais (SEN, 2005, p. 154).

Diante disso, a manifestação das mulheres contrárias à depila‑ção parece estabelecer uma terceira condição de igualdade, que decor‑re de uma crítica orientada não mais para a disponibilização dos bens, mas sim para a visão cultural que elege quais dentre tais bens existentes são considerados necessários à digna exibição em público. Tal noção de igualdade como multiculturalidade parece não admitir a naturaliza‑ção dos usos, costumes e tradições, nem a exclusão de outras visões de mundo. Segundo essa nova perspectiva, se o costume de determinada comunidade cria para a mulher custos extras para vir a público sem constrangimento, tais como os vinculados a procedimentos de depila‑ção, maquiagem ou tingimentos, a capacidade plena não decorrerá de

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um acesso facilitado a tais bens, mas da possibilidade de se questionar o próprio padrão cultural que exclui um outro habitus possível.

Tal problematização acaba revelando como essas expectativas estéticas socialmente cristalizadas em relação à mulher envolvem três tipos de custos. Primeiramente, o custo contábil, ou seja, o valor do or‑çamento feminino efetivamente comprometido com o atendimento de tais exigências, tanto de modo direto, como, por exemplo, o pagamento de serviços de depilação ou a compra de sapatos de salto, quanto de modo indireto, como, consequentemente, os cremes hidratantes para a pele irritada pela extração de pelos e o tratamento médico dos danos causados em articulações, tendões e coluna pelo uso frequente desses sapatos.

O segundo custo é o de oportunidade, que corresponde ao seu valor em melhor uso alternativo. As mulheres, ao arcarem com os gastos estéticos, acabam abrindo mão de outros usos possíveis de tal capital, o que inclui a aquisição de outros bens de maior utilidade pessoal, dentre os quais os capazes de possibilitar uma participação mais qualificada na esfera pública. Por fim, há o custo social, grandeza que considera os efeitos laterais das decisões econômicas tomadas pelos indivíduos. Já se sabe que o maior controle feminino sobre a renda da família gera uma externalidade positiva, na medida em que ele promove um maior inves‑timento no capital humano das crianças. “Evidências de uma série de países (tais como Bangladesh, Brasil, Costa do Marfim, México, África do Sul e Reino Unido) mostram que aumentar a parcela da renda fa‑miliar controlada por mulheres, (...) muda os gastos de uma forma que beneficia as crianças” (WORLD BANK, 2011, p. 5).

No Brasil, por exemplo, a renda feminina, auferida por ganhos próprios ou por transferência de renda, gerou um impacto positivo na altura das filhas. Na China, aumentou‑se a sobrevida de meninas em 1%. Na Índia, assim como também na China, elevou‑se o número de anos de escolarização de crianças de ambos os gêneros. Lendo os dados a contrapelo, vê‑se que o comprometimento dos ganhos da mulher com

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gastos estéticos exigidos socialmente para sua permanência na esfera pública acaba diminuindo a possibilidade de incremento das condições de desenvolvimento de seus filhos, o que impacta a coletividade como um todo.

Deve‑se, porém, lembrar que a reivindicação das mulheres é pela liberdade de escolha. A insurgência atual é contra a obrigatoriedade de sujeição a certos procedimentos estéticos, o que retiraria da mulher o poder de disposição sobre o próprio corpo. Segundo Sen, quando al‑guém é obrigado a fazer algo que não faria caso pudesse optar, há viola‑ção da liberdade na sua dimensão de oportunidade substantiva; porém, mesmo quando alguém é obrigado a fazer algo que teria igualmente feito caso não fosse coagido, ainda assim há violação de liberdade – só que em sua dimensão processual (SEN, 2005, p. 153). Desse modo, se o costume social exige um parâmetro específico para a mulher vir a pú‑blico, há um ataque à sua liberdade, mesmo que essa seja coincidente‑mente sua vontade.

Por isso, numa perspectiva de desenvolvimento como expansão das liberdades, é preciso garantir às mulheres a tripla possibilidade de superação da exclusão: pela igualdade de condições de acesso a bens dis‑ponibilizados aos homens, pelo direito a bens específicos que, ao mes‑mo tempo, resguardem suas diferenças naturais e garantam a plenitude de sua capacidade geral e, por fim, pelo reconhecimento da pluralidade de visões de mundo, rompendo o padrão único de legitimação dos bens relativamente exigidos como requisitos à participação na esfera pública sem constrangimentos, a fim de que nenhuma camisa de linho se con‑verta em camisa de força.

Considerações finais

Espelhando‑se nas reflexões de Amartya Sen, Diego Reyles pro‑curou estabelecer um critério internacional de aferição de aspectos es‑pecíficos de vergonha e humilhação que fossem considerados relevantes

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em relação ao direito de vir a público sem sofrer constrangimentos. Para tanto, utilizou como ponto de partida algumas das conclusões obtidas por diversas organizações, tais como o Centro Internacional de Pesquisa sobre a Mulher (ICRW), em estudos sobre a exclusão sofrida por porta‑dores de HIV/AIDS. Segundo tais pesquisas, o estigma social costuma se materializar em, pelo menos, quatro dimensões: na recusa de contato com o estigmatizado, na valoração negativa de sua conduta, na discri‑minação propriamente dita e na exposição pública de sua pessoa (REY‑LES, 2007, p. 5‑6).

A partir desses e de outros indicadores, Reyles propôs os seus próprios. Em relação à vergonha, ele sugeriu a análise de dois aspectos: o retraimento associado à pobreza, em razão dela ser indevidamente vinculada à preguiça, à incompetência ou à criminalidade, e a predis‑posição de se sentir envergonhado diante da ocorrência de eventos ne‑gativos, tendência que normalmente inclina tal indivíduo à amargura, à raiva ou à hostilidade (REYLES, 2007, p. 8‑10).

Em relação à humilhação, Reyles diferenciou a experiência ex‑terna, que leva em conta o aspecto relacional, da interna, que se baseia em processos de autoavaliação. A experiência externa de humilhação estaria relacionada à percepção por parte do estigmatizado de ter re‑cebido das demais pessoas um tratamento ou desrespeitoso, ou parcial ou preconceituoso – e se isso, de algum modo, prejudicou seu acesso a empregos, a serviços públicos ou à educação. Por fim, a experiência in‑terna de humilhação consideraria dois aspectos: o impacto do acúmulo de humilhações relativas a situações pretéritas e o medo de novamente ser humilhado (REYLES, 2007, p. 11‑15).

Não é objetivo deste trabalho fazer ilações sobre os traumas psico‑lógicos sofridos por mulheres em razão da sujeição às expectativas esté‑ticas sociais. Porém, os indicadores elencados por Reyles – ao revelarem a complexidade do direito de vir a público sem sofrer constrangimento e ao estabelecerem chaves de verificação do estigma que constrange – acabam demonstrando como na visão de mundo predominantemente

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masculina, ainda muito presente no mundo e no Brasil, as mulheres que divergem do costume tradicionalmente cristalizado têm sua capacidade de inserção na esfera pública dificultada ou, até mesmo, comprometida.

Não sem motivo, na busca da igualdade como multiculturalidade, muitas mulheres têm exacerbado ao máximo o estigma com o intuito de desconstruí‑lo: ao exibirem nas redes sociais fotos de seus corpos com pelos, como tem feito o Hairy Legs Club (2014), ao denunciarem o pre‑conceito naturalizado e ao questionarem a censura social a uma opção meramente estética, elas buscam conscientemente garantir a liberdade de escolha e, talvez, sem clareza de intenção, acabar com uma exigência social fomentadora de desigualdade quanto às condições de competição econômica entre homens e mulheres.

No mesmo dia, 16 de julho de 2014, horas após a primeira ma‑téria ter gerado as mais distintas reações, o colunista da Revista Veja, Rodrigo Constantino, voltou a postar um outro artigo, desta vez referin‑do‑se às mulheres contrárias à depilação como “feminazis”. Um de seus leitores, no intuito de ratificar a opinião do articulista, afirmou duvi‑dar se tais mulheres teriam coragem de comparecer em “uma entrevista de emprego sem maquiagem, depilação ou perfume”, já que “por mais competentes que fossem em suas áreas de atuação” dificilmente confia‑riam “nesses ideais absurdos na hora de disputar uma vaga no mercado de trabalho”. Porém, é curioso perceber como que, no impulso de criti‑car tais mulheres, o comentarista parece não perceber como as legitima em sua luta – afinal, comparecer por vontade própria em uma entrevista de emprego com pelos e sem pintura não é apenas uma questão de cora‑gem: é uma questão de economia, de justiça e de direito.

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