representações sociais e sociedade a contribuição de serge moscovici

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    evidente que se pode ser anti-racista semaceitar ou se integrar na polarizao racial, masentre essa perspectiva e a posio de que a de-finio estreita de negritude [] pode constituir

    um obstculo criao de um movimento amplopelos direitos civis que atraia pessoas de classes ecredos diferentes (p. 294) h uma longa distn-cia. Primeiro, tenho dvidas quanto possibilida-de real de existir um movimento amplo pelos di-reitos civis com definies estreitas ou amplasacerca da negritude; segundo, a polarizao, comtodos os seus efeitos, desenvolvida por uma mi-noria atuante, antes que um obstculo tem sido aresponsvel pela mudana desencadeada na rea-lidade poltica racial e social brasileira.

    Do ponto de vista acadmico, concordo coma perspectiva de Sansone a favor de uma curio-sidade etnogrfica capaz, sem apriorismos, deidentificar as caractersticas especficas da nossaconfigurao racial e cultural. Portanto, apoio in-teiramente sua proposta de um olhar brasileirosobre o Brasil, sem vergonha de aceitar a mesti-agem e a hibridez de nossa cultura, que semprecoexistiram com uma imensa injustia social. Ne-gritude sem etnicidademerece ser lido seja pelovasto contedo histrico, antropolgico e sociol-gico, respaldado nas investigaes do autor, seja

    pelas posies assumidas por ele. Com certeza, oleitor no ficar isento, pois, acima de tudo, trata-se de um livro que incomoda.

    Jeferson BACELAR professor do Departa-mento de Antropologia da UFBA e pesquisa-

    dor do Centro de Estudos Afro-Orientais.E-mail: [email protected]

    Representaes sociais e

    sociedades: a contribuio

    de Serge Moscovici

    Serge MOSCOVICI. Representaes sociais: inves-tigaes em psicologia social. Rio de Janeiro, Vo-zes, 2003. 404 pginas (trad. Pedrinho A. Guares-chi, a partir do original em lngua inglesa Socialrepresentations: explorations in social psychology

    [Gerard Duveen (ed.), Nova York, PolityPress/Blackwell Publishers, 2000]).

    Mrcio S. B. S. de Oliveira

    O romeno naturalizado francs Serge Mosco-vici dono de uma obra considervel, to impor-tante para a psicologia (seu campo de formao eatuao) como para a histria e as cincias sociais.Seus trabalhos e sua teoria das representaes so-ciais (TRS) tm influenciado ao longo das ltimasquatro dcadas pesquisadores tanto na Europacomo nas Amricas, incluindo o Brasil.1 curioso,assim, que entre sua vasta obra doze livros indi-

    viduais e quatorze que ele organizou ou escreveuem conjunto com outros autores , apenas dois te-nham sido traduzidos para o portugus, ambos

    com edies esgotadas.2 com prazer, portanto,que apresento ao leitor a traduo de Social re-presentations: explorations in social psychology,terceiro livro de Moscovici.

    O leitor no encontrar neste livro uma teseformalmente defendida. Ao contrrio, o que setem so captulos independentes. Contudo, a im-presso inicial de uma coletnea de um s au-tor logo se esvai. Isto porque Moscovici, desde ofinal dos anos de 1950 e incio da dcada de 1960,preocupa-se com os mesmos temas, retomadosem perspectiva ao longo dos seis captulos que

    compem a obra. Trata-se de temas como o pro-cesso social de produo de conhecimento, a de-finio de sociedade e a discusso em torno dasrepresentaes sociais. No interior das cinciassociais, sua obra pode ser inserida no campo dasociologia do conhecimento; e acredito que estaclassificao, embora reducionista, no desagra-daria ao autor. Reducionista porque Moscovici se

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    interessou no apenas em compreender como oconhecimento produzido, mas principalmenteem analisar seu impacto nas prticas sociais e

    vice-versa. Em suas prprias palavras, interessou-

    se no poder das idias de senso comum, isto ,no estudo de como, e por que as pessoas parti-lham o conhecimento e desse modo constituemsua realidade comum, de como eles transformamidias em prticas [] (Moscovici, apudDuveen,p. 8). Em sntese, preocupou-se em compreendercomo o trip grupos/atos/idias constitui e trans-forma a sociedade.

    O tema da relao entre grupos, atos eidias (ou imagens) est presente desde sua tesede doutorado publicada em 1961, com reedio

    revisada em 1976,Psychanalyse, son image et sonpublique. Resgatando o conceito de representa-es coletivas (RC), inicialmente proposto pormile Durkheim e, de alguma forma, esquecidopor seus contemporneos,3 o autor estudou, ento,as diversas maneiras pelas quais a psicanlise erapercebida (representada), difundida e propagan-deada ao pblico parisiense. Pela discusso prof-cua sobre a relao entre linguagem e representa-o, as concluses deste trabalho fizeram escola.Podemos sintetiz-las em trs pontos fundamen-tais: 1) entre o que se acreditava cientificamente

    ser a psicanlise e o que a sociedade francesa en-tendia por ela existia um intermedirio de peso, asrepresentaes sociais; 2) essas representaes noeram as mesmas para todos os membros da socie-dade, pois dependiam tanto do conhecimento desenso comum (ou popular), como do contexto so-ciocultural em que os indivduos estavam inseri-dos; e 3) no caso de novas situaes ou diante denovos objetos, como, por exemplo, a psicanlise,o processo de representar apresentava uma se-qncia lgica: tornar familiares objetos desco-nhecidos (novos) por meio de um duplo mecanis-

    mo ento denominado amarrao amarrar umbarco a um porto seguro, conceito que logo evo-luiu para sua congnere ancoragem , e objeti-vao, processo pelo qual indivduos ou gruposacoplam imagens reais, concretas e compreens-

    veis, retiradas de seu cotidiano, aos novos esque-mas conceituais que se apresentam e com osquais tm de lidar.

    A reflexo de Moscovici, contudo, no paroua. Ele quis compreender como a produo de co-nhecimentos plurais constitui e refora a identida-de dos grupos, como influi em suas prticas e

    como estas reconstituem seu pensamento. O autorinsistiu sobre este assunto em dois outros livros.Em Psychologie des minorits actives,4 mostroucomo os processos de mudana social so influen-ciados no apenas por grupos majoritrios, mastambm por grupos minoritrios (ou minorias); jemA mquina de fazer deuses (La machine fai-re de dieux,1988), chamou a ateno para o es-quecimento da dimenso psicolgica por partedas teorias sociolgicas tradicionais. Em ambos oslivros, Moscovici trabalhou pelo reconhecimento

    de processos de mudana social levemente aut-nomos do sistema social e mais dependentes dasaes de indivduos e grupos (mesmo minorit-rios) e de suas situaes sociais.

    Representaes sociais: investigaes em psi-

    cologia social retoma essas grandes questes.Constitui-se dos principais ensaios extrados deum corpo bem maior de trabalho, e finalizadocom uma longa entrevista de Moscovici a IvanaMarkov, momento privilegiado em que se podeobservar como o autor explica seus conceitos nos em relao poca em que foram escritos,

    como tambm da perspectiva de quem estudoudiversas formas pelas quais sua obra foi recebida.

    O conjunto desses ensaios/captulos forneceuma clara idia do caminho intelectual trilhadopelo autor e retoma o permanente dilogo manti-do com as cincias sociais. No obstante poderemser lidos na ordem que se desejar, uma certa lgi-ca os fundamenta. Comento-os sem respeitar suaordem numrica, buscando reconstruir a identida-de terica que os anima.

    O captulo 2 Sociedade e teoria em psico-logia social , para aqueles pouco afeitos ao jar-

    go da psicologia, bastante informativo. O autorapresenta como a psicologia social de origem euro-pia se encontra numa situao de redescoberta deseu campo, tendo em vista as contribuies dosnorte-americanos nesta rea,5 as quais, segundo oautor, no foram propriamente de ordem terica oumetodolgica, mas se deram em um plano mais es-pecfico e concreto da realidade daquele pas. Ou

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    seja, eles inscreveram suas anlises no contextosocial que as viu nascer, enquanto os europeus talvez mais empenhados na luta para afirmar seuprprio campo cientfico se afastaram de seus

    problemas sociais cotidianos. Em conseqncia,aos psiclogos europeus, diferentemente do queocorreu em relao aos socilogos, no foi cobra-da uma posio crtica ou de mudana em relao sociedade, uma vez que passaram a ser conside-rados administradores de resistncias. Moscovicimostra os perigos sociais e os limites cientficosdessa postura e clama por uma maior interao dapsicologia indicando inclusive os psiclogos quemais tm contribudo para isso com todas ascincias sociais, em especial a sociologia, para a

    qual as noes de mudana, conflito e poder socentrais. O autor repassa, enfim, estudos sociopsi-colgicos pouco conhecidos entre ns talvez por-que tenham sido autoclassificado como comporta-mentais e no como sociais. Mas isso era apenasuma estratgia em relao aos fundos de pesquisa;na verdade, esses estudos podem ser vistos comode aplicao da psicologia sobre fenmenos de so-ciedade. Portanto, muito teis s cincias sociais.

    O captulo 5 Caso Dreyfus, Proust e a psi-cologia social um belo ensaio sobre a impor-tncia da psicologia social como ferramenta de an-

    lise. O autor analisa aqui o caso Dreyfus6 athoje uma referncia quando se pensa em socieda-de partida, dilacerada, mas procura de um outroarranjo social. Proust tambm levanta essa discus-so em sua obra literria, o que torna muito perti-nente Dreyfus e Proust estarem juntos neste en-saio. O caso Dreyfus, ao revelar uma sociedadeem busca de um novo ideal, torna-se, em Mos-covici, um excelente motivo no s para resgatara original noo durkheimiana de conscincia co-letiva (ou foras coletivas), mas tambm paratestar os limites explicativos da noo de padro

    geral de comportamento que atua sobre o con-junto da sociedade, independentemente das inser-es e das trajetrias sociais. A discusso em tor-no desse conceito durkheimiano est presentetambm no captulo 3, A histria e a atualidadedas representaes sociais.

    Neste captulo, o leitor encontra uma discus-so refinada (esboada j no primeiro captulo) so-

    bre pensamento primitivo, senso comum e cincia.Qualquer uma dessas prticas mentais (e sociais),afirma o autor, sempre uma forma de representa-o. No so realidades, mas representaes dela.

    Portanto, segundo Moscovici, em funo das re-presentaes (e no necessariamente das realida-des) que se movem indivduos e coletividades. Sa-ber como se formam ou como operam essasrepresentaes onde se misturam a um s tempopensamento primitivo, senso comum e cincia tece a trama da discusso apresentada.

    Retornando s reflexes presentes em As for-mas elementares da vida religiosa (Durkheim,1912), o autor mostra, primeiro, como o pensa-mento cientfico da mesma natureza ( o corol-

    rio) dos outros dois pensamentos (primitivo e sen-so comum). Segundo, mostra como todas essasprticas mentais tm origem na sociedade, ou seja,so categorias sociais de pensamento. Mas isto oprprio Durkheim j havia afirmado. A diferenaoperada que o autor quer descobrir, tambm ematos psquicos (ou francamente individuais), ori-gens sociais. Para tanto, prope uma continuidadeentre representaes individuais e coletivas, recor-rendo a Levy-Bruhl e a Vygotsky (autores tambmretomados no captulo 6). Moscovici comea porafirmar que no obstante a tese durkheimiana so-

    bre a separao entre representaes individuais ecoletivas estar correta, o problema encontra-se nosdetalhes, nas singularidades, ou seja, no fato deque as representaes coletivas tratam de fenme-nos gerais e os relacionam a prticas ou realida-des que no o so (p. 184). Esse dilema retoma-do no captulo 6. Vejamos.

    Conscincia social e sua histria um en-saio sobre Jean Piaget (1896-1980) e Liev Vygotsky(1896-1934), escrito em 1996, data do centenriodo nascimento desses autores. Moscovici situa nabase da mentalidade humana o ambiente natural

    da sociedade e as representaes (individuais e co-letivas) em seu contexto histrico. Retoma, assim,a discusso iniciada no captulo 3, acrescida agorapor outras interrogaes, como, por exemplo, seh continuidades ou descontinuidades entre as di-

    versas formas individuais e coletivas de ser e de re-presentar? Para responder, Moscovici resgata tantoa evolutiva noo de representaes coletivas de

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    Durkheim como as inconciliveis formas mentaisdo socilogo francs Lucien Levy-Bruhl (1857-1939), traando um paralelo com as obras de Pia-get e Vygotsky. A anlise a um s tempo simples

    e profunda. Piaget teria seguido o caminho pro-posto por Durkheim: h evoluo nas formas derepresentao; j Vygotsky, em desconfortvel re-lao com o marxismo sovitico de ento, teria se-guido Levy-Bruhl: uma mesma cultura pode gerardistintas representaes, no havendo emprsti-mos ou substituies entre elas, mas eventualmen-te saltos ou revolues. O autor contextualizaeste debate sobre o carter universal ou evolucio-nista das representaes nos anos de 1920 e emplena polmica marxista-leninista em torno do

    controle da conscincia social e do destino nicodas sociedades europias. As possibilidades hist-ricas de ento tanto o marxismo como o nazis-mo, como bem demonstrou Karl Mannheim fo-ram igualmente mortferas, abreviando assim odebate que se iniciava.

    Embora o captulo 6 retome o dilema apresen-tado no captulo 3, fica-se sem saber quem teria ra-zo, se Piaget ou Vygostky. Em outras palavras,Moscovici no diz se as mltiplas representaescoletivas ou individuais so ou no interdependen-tes. No captulo 3, o autor sugere que outros epis-

    temlogos com mais tempo que [ele] se interessempor essa particular relao [entre os dois autores esuas teorias] (p. 193), fechando o elo que une es-tes captulos.

    Como os captulos no so seqenciais, asreflexes elaboradas nos captulos 3 e 6 partem deum contedo desenvolvido nos captulos 1 e 4.Nesses ltimos, contudo, o autor apresenta umahiptese relativamente diferente daquela que sem-pre seguiu. Ele afirma que, embora sociais e histo-ricamente localizveis, as representaes indivi-duais e coletivas podem guardar um sentido geral

    que ultrapassa a sociedade que as viu nascer. Estesentido atende pelo nome conceitual de themata.

    Vejamos em detalhe.Em O fenmeno das representaes sociais

    (captulo 1), Moscovici apresenta as diferenas, orasutis ora bem evidentes, entre seu conceito e o deDurkheim a respeito das representaes sociais. Du-

    veen, editor do original ingls, na apresentao da

    obra afirma que a distino operada por Durkheimentre representaes individuais (objeto da psicolo-gia) e representaes coletivas (objeto da socio-logia) est na origem de certa dificuldade em se

    definir a psicologia social como cincia e tam-bm de certa incapacidade de os psiclogos con-siderarem a dimenso social presente nos atos in-dividuais. Esta a razo de Duveen considerarDurkheim um ancestral ambguo (p. 13). Quan-do Moscovici prope seu novo conceito, conti-nua Duveen, ele quer no apenas se distanciarde seu mestre, mas tambm explorar a variaoe a diversidade das idias coletivas nas socieda-des modernas (p. 15).

    A substituio do termo coletivas por so-

    ciais marca, assim, a original diferena estabele-cida em relao a Durkheim. A pedra de toque doargumento foi, de um lado, o estabelecimento dasfraturas existentes nas foras coletivas e, de ou-tro, a maneira pela qual essas fraturas impactamdiversamente o cotidiano de grupos e indivduos.De fato, no incio de sua obra, Moscovici pareciaoscilar entre reconhecer ou no a autonomia dasidias (ou do universo ideolgico) e seu impactosobre o comportamento coletivo. Parecia, pois, os-cilar entre um pensamento primitivo que confor-ma realidades e um pensamento cientfico que

    conformado pela realidade (p. 29). Entre 1961 e1976, o autor aponta uma soluo para o proble-ma, ao afirmar que representar um processo deproduo de conhecimento que funciona comoque rolando por sobre estruturas sociais e cog-nitivas locais (e populares), sendo, portanto, so-ciovarivel. Com esta atitude, ele parece romperdefinitivamente com a idia durkeimiana de for-as coletivas ou de ideais que apenas cimentame conferem sentido s sociedades justamentequando delas se libertam para assumir uma outranatureza, isto , quando se reconhece que elas

    [...] tm por causas prximas outras representa-es coletivas e no esta ou aquela caractersticada estrutura social.7 Ora, para Moscovici, as re-presentaes nunca seriam de outra natureza:elas seriam da natureza mesma dos grupos sociaisque as criam, e sua eficcia tanto prtica comosimblica dependeria dessa insero, e no po-deria jamais ter um sentido universal. Com este

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    argumento, Moscovici acabou por demonstrarque as representaes no derivam de uma nicasociedade, ultrapassando-a, como insistiu Dur-kheim, mas das diversas sociedades que existem

    no interior da sociedade maior, e, portanto, nopodem ultrapass-la.

    Entretanto, como discuti em outro artigo,8

    h pouca diferena substantiva entre os termoscoletivas e sociais, pois ambos revelam a di-menso plural das associaes humanas e a pre-sena das idias gerais (ou foras coletivas) noseio da sociedade, alm de indicarem a necessi-dade do estudo de seu impacto nos atos cotidia-nos e mesmo nas mudanas histricas. Moscovi-ci, no captulo 7 (Entrevista), parece concordarcom isso: No espere que eu jamais seja capazde explicar a diferena entre coletivo e social(p. 348). Trocando um termo por outro, o autorafirma ter desejado apenas enfatizar a idia dediferenciao, de redes de pessoas e suas intera-es (Idem). O leitor pode ficar com uma idiaum pouco confusa ou talvez se sinta aliviado em relao mudana (evoluo?) na maneiracomo o autor encara aqui sua maior inovaoconceitual. Mas se poderia perguntar se essestermos so agora intercambiveis.

    A ttulo meramente especulativo, acredito

    que, no mais insistindo na diferena entre cole-tivas e sociais, o autor quer mostrar que asidias, embora cotidianas e sociovariveis, podemtambm ser universais porque se perdem na nuitdes temps das sociedades elas pr-existem

    vida; so um ambiente social e cultural, segun-do Moscovici. Em conseqncia, tm certa auto-nomia e se descolam da estrutura social e mate-rial, o que faz o autor retornar clebre frmuladurkheimiana. foroso reconhecer, assim, umainflexo no pensamento de Moscovici presenteem Representaes sociais. Essa inflexo atende

    inclusive por um novo nome themata, e uti-lizada para descrever o conjunto desses pensa-mentos-ambientes relativamente autnomos edescolados da estrutura social.

    O ttulo do quarto captulo O conceito dethemata , como dizem os franceses, tout unprogramme. Mas, o que vem a ser themata? Comoo radical latino thema, cuja traduo mais literal

    o que est colocado ou o que , o termo talcomo empregado, um desdobramento terico-epistemolgico do conceito de representaes so-ciais. O autor inicia sua anlise afirmando que as

    representaes sociais necessitam do referencialde um pensamento preexistente (p. 216). Em se-guida, levanta a questo sobre como se pode pas-sar do microssociolgico ao macrossociolgico,ou, ainda, sobre qual teoria [poderia] garantir al-guma concordncia entre esses dois nveis (p.221). Tem-se a uma reflexo de flego. De fato, oprincipal problema de qualquer teoria em cinciashumanas justamente generalizar a partir de ob-servaes locais. A discusso proposta pelo autor to ou mais importante quando se sabe que estu-

    dos empricos no campo da teoria das representa-es sociais apresentam certa incapacidade de pas-sar da micro macrosociedade. Depois demape-las, esses estudos deixam a desejar ao ten-tar qualificar as representaes. A prtica sociolgi-ca, por vezes, padece do mesmo mal. No entanto,refugia-se sabiamente em suas referncias clssicas(Marx, Simmel, Durkheim, Weber, Pareto, entre ou-tros). Aqueles que, da filosofia antropologia, tra-balham com a noo de imaginrio encontram-senessa mesma sintonia relutam em aceitar um ex-cessivo relativismo cultural. Procuram, pois, senti-

    dos gerais.A resposta de Moscovici, neste momento de

    sua carreira e obra, no deixa de ser intrigante einstigante. Para algum que construiu toda sua re-flexo em torno do tema da diversidade das so-ciedades, como pensar em themata, ou seja,como pensar na existncia de temas gerais queabracem e confiram sentidos a toda pluralidadesocial? Por meio de esquemas explicativos comconceitos e um esquema que em nada deixamdever ao melhor da lgica cientfica francesa, Mos-covici demonstra progressivamente como isso se

    materializa, ou seja, como o themata opera equal seu impacto na dinmica social. De maneiracorajosa o autor afirma: Na Sociologia e na Antro-pologia, os temas ou anlises temticas expressamuma regularidade de estilo, uma repetio seletivade contedos que foram criados pela sociedade epermanecem preservados pela sociedade. Contu-do, [...] a noo de tema indica que a possibilida-

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    de efetiva de sentido vai sempre alm daquilo quefoi concretizado pelos indivduos, ou realizado pe-las instituies (p. 224). Uma regularidade de es-tilo, um sentido que ultrapassa indivduos e insti-

    tuies? Deve-se, portanto, olhar as regularidadeshistricas como o fez Weber? Sim, afirma o autor.Entretanto, no momento de explicar essa regula-ridade de estilo (o themata), h mais percursoque chegada, mais vontade que materialidade. Istoporque, como salienta cautelosamente o autor,[...] seria perigoso tentar e apresentar como umresultado comprovado algo que, para o momento, apenas um horizonte (223). E Moscovici prati-camente aborta a sua reflexo.

    No quero me arriscar a completar um racio-

    cnio que no meu, nem h espao para isso. Noentanto, parece-me que o conceito de themata re-toma o central debate em torno da autonomia douniverso ideolgico. As idias (individuais ou co-letivas) teriam como pressuposto outras idiassociais. Em linguagem sociolgica, s fatos sociaispodem explicar fatos sociais. Assim, depois de tra-balhar arduamente na insero social das idiasem grupos e prticas historicamente determinadas,Moscovici volta seu interesse para o debate emtorno da antigidade e da permanncia de certostemas no cotidiano das relaes sociais. Detm-se,

    assim, na generalidade flutuante dos temas ge-rais, pouco importando se eles se manifestam emindivduos ou em coletividades.

    Em sua carreira, o autor inclinou-se ora emdireo generalidade, ora em direo singula-ridade. Ora para a continuidade dos temas ge-rais, ora para a particularidade irredutvel dosatos individuais. Isso porque, para ele, h sempreindivduo e sociedade. No que se refere, contudo, polmica entre os termos coletivas e sociais,o autor afirma de maneira no menos cautelosa:no se deve multiplicar conceitos sem necessida-

    de (p. 348). Nesse sentido, pouco importaria seas representaes so coletivas ou sociais, poistodo o problema residiria em saber, ento, se elasrevelam ou no a presena de themata.

    Algumas interrogaes podem agora fazer oofcio de sntese desta resenha. Vejamos: Institui-es coercitivas totais ou diversidade de associa-es sociais? Dinmicas sociovariveis ou sistemas

    unificadores? Sociedade global ou localidades aserem narradas? Talvez essas aparentes antteses(ou antinomias) estejam por detrs do conceitode themata. Este seria, assim, a resposta-sentido

    que nos permite ver o detalhe e a generalidadeem cada investigao particular, sem perder de

    vista a dimenso social presente em ambos. Emresumo, temos, de um lado, a impossibilidade derenunciar generalizao e, de outro, a necessi-dade do paciente trabalho de descrio das parti-cularidades. Que a reflexo de Moscovici seja umconvite para retomarmos o prazer sociolgico deolhar o todo sob o abrigo da milenar pacincia daconstruo do detalhe. a isto, acredito, que estaobra nos incita.

    NOTAS

    1 Desde 1998, foram organizadas, somente no Brasil,trs jornadas internacionais sobre representaessociais, a ltima delas no Rio de Janeiro em 2003.

    2 A Representao social da psicanlise(Rio de Janei-

    ro, Zahar, 1978 [1961/1976]) e A mquina de fazerdeuses(Rio de Janeiro, Imago, 1990).

    3 A esse respeito, ver Mrcio de Oliveira, Represen-

    tao social e simbolismo: os novos rumos da ima-ginao na sociologia brasileira, Revista de Cin-cias Humanas, 7/8: 173-193, Curitiba, Editora daUFPR, 1999.

    4 Paris, PUF, 1979/1996.

    5 A esse respeito, ver o excelente livro de AmalioBlanco Abarca, Cinco tradiciones en la psicologia

    social(Madri, Morata, 1994).

    6 Alfred Dreyfus (1859-1935), capito do Estado-

    Maior Geral do Exrcito francs foi acusado de terentregado Alemanha documentos referentes de-

    fesa francesa. Dreyfus foi julgado, condenado a pri-so perptua em 1894 e deportado para a Ilha doDiabo (Guiana Francesa). Foi finalmente libertadoem 1906, quando se provou sua inocncia. Como

    Dreyfus era judeu e o julgamento inconsistente, ocaso provocou uma forte onda de anti-semitismo,dividindo a opinio pblica francesa. Emile Zola e

    Emile Durkheim, entre outros, foram partidrios deDreyfus.

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    7 Cf. E. Durkheim, Sociologia e filosofia (So Paulo,cone, 1994, p. 50). Sobre o debate em torno da na-tureza das representaes coletivas e suas diferen-as em relao s representaes individuais, ver,

    ainda, os prefcios da primeira e da segunda ediodo livroAs regras do mtodo sociolgico. So Paulo:Companhia Editora Nacional, 1977 [1895] e StevenLukes, Bases para a interpretao de Durkheim,em Conh, G (org.), Para ler os clssicos (Rio de Ja-neiro/So Paulo, Livros Tcnicos e Cientficos, 1977,pp. 15-46).

    8 Representaes sociais: uma teoria para a sociolo-gia? III JIRS, Rio de Janeiro, 2 a 5/9/2003. Este tex-to, revisado e ampliado, ser publicado no prximonmero da Revista de Estudos de Sociologia, daUFPE.

    MRCIO S. B. S. DE OLIVEIRA doutor emSociologia, professor e coordenador do Pro-grama de Ps-graduao em Sociologia do

    Departamento de Cincias Sociais da UFPR.E-mail: [email protected]

    Tendncias contemporneas

    nos estudos da emigrao

    brasileira para os Estados

    Unidos e Canad

    Ana Cristina BRAGA MARTES e Soraya FLEIS-CHER (orgs.). Fronteiras cruzadas: etnicidade,gnero e redes sociais. So Paulo, Paz e Terra,2003. 300 pginas.

    Clmence Jout-Pastr

    Ao reunir autores de diferentes disciplinas,afiliaes tericas e nacionalidades, Ana Cristina

    Braga Martes e Soraya Fleischer fazem uma impor-tante contribuio no s aos estudos da emigra-o brasileira, mas tambm aos estudos dos fluxosmigratrios internacionais.

    Os captulos do livro esto fortemente vincu-lados, uma vez que examinam as mudanas nascorrentes migratrias e a formao de novos per-fis dos cidados brasileiros residentes nos EstadosUnidos e no Canad sob as perspectivas da etni-cidade, do gnero e das redes sociais. Como v-rias pesquisas j indicaram (Margolis, 1994; Sales,1999; Martes, 2000), no incio da emigrao brasi-

    leira em grande escala meados dos anos 1980 ,os emigrantes tendiam a vir para os Estados Uni-dos a fim de permanecer no pas por um curtoperodo de tempo, apenas o suficiente para fazeralgumas economias e voltar ao Brasil com a espe-rana de ter uma vida melhor. Os autores deFronteiras cruzadasapresentam diversas evidn-cias que apontam que a populao brasileira nosEstados Unidos e no Canad est se transforman-do, passando de transiente a estvel.

    No captulo de abertura, Christopher Mitchellusa o conceito de transnacionalismo para estudara populao brasileira imigrante. Comparando-acom a mexicana, a dominicana, a haitiana, a sal-

    vadorenha e a guatemalteca, Mitchell conclui queos brasileiros apresentam um ndice bastante bai-xo de transnacionalismo, ou seja, ainda no estobem desenvolvidos os laos interfronteirios querequerem redes sociais fortes nos pases emissorese receptores, bem como o xito de uma organi-