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Universidade de Lisboa Faculdade de Ciências
Secção Autónoma de História e Filosofia das Ciências
Doutoramento em História e Filosofia das Ciências
Uma investigação sobre as implicações epistemológicas e ontológicas desta questão.
O que é um objecto quântico?
João Luís Cordovil
2011
Universidade de Lisboa Faculdade de Ciências
Secção Autónoma de História e Filosofia das Ciências
Doutoramento em História e Filosofia das Ciências orientado pelos professores doutores Olga Maria Pombo Martins e José
Nunes Ramalho Croca
Uma investigação sobre as implicações epistemológicas e ontológicas desta questão.
O que é um objecto quântico?
João Luís Cordovil
2011
PREFÁCIO
A presente Tese, apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor em História e Filosofia das Ciências, é o resultado de um trabalho de investigação iniciado em 2006, sob a orientação da Professora Doutora Olga Maria Pombo Martins e do Professor Doutor José Nunes Ramalho Croca.
À Professora Doutora Olga Maria Pombo Martins gostaria de deixar um agradecimento especial. Em primeiro lugar, agradeço-lhe por todo o seu o trabalho de acompanhamento das diversas fases da minha investigação, pelos seus atentos e agudos conselhos, sugestões e pistas, pela sua dedicada prática de comunhão de saberes, bem como pela sua generosidade, exigência e disponibilidade. Em segundo lugar, agradeço-lhe o imenso trabalho que tem desenvolvido no Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa. Trabalho onde radicam as condições materiais desta dissertação. Em terceiro lugar, agradeço-lhe ter-me dado a ver o que é a Filosofia. Por fim, agradeço-lhe ter-me apresentado ao Professor Doutor José Nunes Ramalho Croca.
Ao Professor Doutor José Nunes Ramalho Croca agradeço-lhe por todo o seu o trabalho de acompanhamento das diversas fases da minha investigação, agradeço-lhe a sua generosidade, paciência e disponibilidade, agradeço-lhe a sua vontade de partilhar saberes e as ideias que tão corajosamente defende. Agradeço-lhe, igualmente, o trabalho que tem desenvolvido no Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa, que tem permitido a existência de um grupo dedicado à Filosofia da Física.
Ao Doutor Gil Costa Santos agradeço-lhe os inúmeros diálogos que tivemos, bem como o seu trabalho de revisão e melhoramento deste texto.
Em todo o caso, devo sublinhar que tudo quanto se escreve e defende no texto deste trabalho é, evidentemente, da minha exclusiva responsabilidade.
À ‘Fundação para a Ciência e a Tecnologia’ agradeço a atribuição de uma bolsa de investigação
(SFRH/BD/21790/2005), sem a qual teria sido impossível levar a cabo este trabalho de investigação.
A todos, agradeço.
Ao meu Pai
À Sara
Índice
Introdução ..................................................... 1
1.Sobre a questão da Natureza dos Objectos Quânticos .......... 3
2.A Constituição da Mecânica Quântica ......................... 13
2.1. O Princípio da Correspondência ........................... 19
2.2.A hipótese de De Broglie .................................. 43
2.3.Doutrina da Indispensabilidade dos conceitos clássicos ... 48
2.4. As duas partículas puras da Física Clássica .............. 84
2.5.A Pentadoxia .............................................. 92
2.6.O Princípio da Correspondência: nível conceptual ......... 100
2.7. O “Princípio” da complementaridade ...................... 103
2.8.Os postulados da Mecânica Quântica ....................... 132
2.8.1,Léxico: Função de onda, Observáveis e Operadores ... 137
2.8.2.A Mecânica Quântica como uma generalização racional das teorias clássicas da Física .......................... 141
2.9.O Problema da Medição .................................... 156
2.9.1. O Problema da Completude .......................... 158
2.9.2.O Problema da Caracterização ....................... 163
2.10. Conclusão .............................................. 168
3. O que é um Objecto Físico ................................. 179
3.1. O conceito de objecto físico em Descartes ............... 181
3.1.1. Movimento ......................................... 207
3.1.2 conclusão .......................................... 216
3.2. O conceito de objecto físico em Newton .................. 218
3.2.1. Corpo ............................................. 219
3.2.2. Quantidade de Movimento ........................... 224
3.2.3. Os três tipos de força ............................ 227
3.2.4. Os conceitos de espaço, tempo, lugar e movimento .. 234
3.2.5. o conceito de tempo ............................... 235
3.2.6. o conceito de espaço ............................ 240
3.2.7. o conceito de movimento ........................... 244
3.2.8. conclusão ......................................... 249
3.3. O conceito de objecto físico em Kant .................... 254
3.3.1. Foronomia ......................................... 267
3.3.2. Dinâmica .......................................... 271
3.3.3. Mecânica .......................................... 276
3.3.4. Fenomenologia ..................................... 278
3.3.5. Conclusão ......................................... 279
3.4. Conclusão geral do capítulo ............................. 284
4. Elementos para uma concepção dinâmica e relacional de objecto físico ....................................................... 293
4.1. Objectos Físicos: entre as mónadas e os corpos .......... 295
4.2. Objectos Físicos como nós de relações ................... 314
5. Conclusão ................................................. 325
Bibliografia ................................................. 331
Introdução
O trabalho que aqui se apresenta pode-se afirmar que é
constituído por três partes: uma reconstrutiva, outra
descritiva, uma terceira interpretativa (ou especulativa).
Estas três partes não são, naturalmente, estanques. A
reconstrução do pensamento de um autor passa, também, pela
descrição e interpretação desse pensamento. A descrição
igualmente não é realizável sem a interpretação e sem ser,
em certo grau, uma reconstrução. E o mesmo se aplicará à
interpretação. Portanto, esta partição é mais tónica do que
categórica. (Como talvez seja o caso para todas as
partições.)
Na primeira parte, faz-se uma reconstrução do
pensamento de Bohr sobre a constituição da Mecânica
Quântica. Nesta tentar-se-á mostrar, através do movimento
interior ao pensamento de Bohr, a forma como a Mecânica
Quântica se constituiu como uma solução de compromisso da
tensão entre o que em termos deleuzianos pode ser designado
por uma imagem-pensamento sobre os objectos físicos e a
descoberta do domínio quântico. Ou seja, do confronto entre
um conjunto de pressupostos ontológicos implícitos onde a
Física sempre se fundou e a descoberta dos objectos
quânticos. A solução de Bohr, sobre a qual se edificou a
Mecânica Quântica, foi a de generalizar as teorias
clássicas da Física, num exercício de ilusionista, que
permitiu ocultar o problema da natureza dos objectos
quânticos. Problema que, como se tentará mostrar, ficou na
raiz das chamadas implicações filosóficas da Mecânica
Quântica.
Na segunda parte, far-se-á uma descrição dos
principais conceitos de objecto físico, em particular
aqueles que presidiram à constituição da Física. Ou seja,
os conceitos de objecto físico em Descartes, Newton e Kant.
Em particular, mostrar-se-á que, embora a Física seja a
ciência do movimento, não decorre do conceito de objecto
físico que este se movimente. Algo que se torna
problemático quando se tenta pensar os objectos quânticos.
Por fim, na última parte, a partir de uma
interpretação de alguns elementos da metafísica de Leibniz
e de Deleuze, ensaiar-se-ão os primeiros passos para uma
concepção de objecto quântico.
Antes do mais, será feita uma apresentação da questão
“O que é um Objecto Quântico?”, determinando-se o seu lugar
no que se tem designado por Filosofia da Mecânica Quântica.
3
1. Sobre a questão da Natureza dos objectos
quânticos.
O que é um objecto quântico?
A questão surge-nos, sem demora ou dificuldade, logo que
entramos do labiríntico domínio quântico. Domínio pleno de
becos sem saída, de lugares a que sempre se parece
retornar, de percursos tortuosos e desorientadores, mas que
para o qual, a meu ver, na literatura, seja esta filosófica
ou não, existem apenas três vias de acesso: a via formal, a
via historicista e a via conceptual.
A via formal passa pela apresentação dos postulados, do
formalismo e do elegante aparato matemático da Mecânica
Quântica. Esta é a via que encontramos, principalmente, na
literatura filosófica de inspiração analítica1. Esta será a
via mais rápida e, actualmente, mais comum de entrada nos
chamados problemas da medição e da não-localidade.
1 Veja-se, a exemplo, o livro de Pierter E. Vermass (1999), A philosopher’s understanding of quantum mechanics, Cambridge: Cambridge University Press, ou o capítulo de Michael Dickson (2007), “Non-relativistic Quantum Mechanics”, presente no livro Philosophy of Physics Part A, Amesterdam: Elsevier, pp. 275-415.
4
A via historicista, por seu turno, passa,
principalmente, pela narrativa do desenvolvimento da Física
das primeiras três décadas do século XX. Sendo que, em
muitos casos, recua até à Física do século XVII, fazendo-
nos recordar o velho debate sobre a natureza da luz para o
relacionar com a fundação da Mecânica Quântica. Esta é a
via que é percorrida, principalmente, na literatura
filosófica de inspiração francesa2.
Por fim, a via conceptual. Esta passa por fazer
confrontar quem a percorre com uma experiência de
pensamento. Usualmente, é escolhida, para esse efeito, a
chamada experiência de dupla fenda.3 Esta via é aquela se
encontra, principalmente, na literatura filosófica que, à
falta de melhor, designarei por empirista4.
2 Desde o livro de Bachelard, G. (1951), L’activité rationaliste de la physique contemporaine Paris: Presses Universitaires de France ao livro de Omnès, R. (1999), Understanding Quantum Mechanics, Princeton: Princeton University Press (cuja edição francesa surgiu um ano mais tarde: Comprendre la mécanique quantique, EdP Sciences (2000)), ou do mesmo Omnès. R. (2006), Les indispensables de la mécanique quantique, Paris: Odile Jacob.
3 Experiência que, como tantas vezes ocorre com as experiências de pensamento, já foi realizada em laboratório, tendo obtido os resultados esperados. Cf., por exemplo, Arndt, Markus; Nairz, Olaf e Zeilinger, Anton (2003), Quantum interference experiments with large molecules Am. J. Phys. 71 (4), October 2003, pp. 319-325.
4 Por exemplo, o livro de Osvaldo Pessoa Jr. (2003), Conceitos de Física Quântica, São Paulo: Livraria da Física, o texto do filósofo americano Richard F. Kitchener (1988), The World view of contemporary physics: does it need a new metaphysics?, ou mesmo os primeiros capítulos do volume III das Lectures on physics de Richard Feynman
5
Estas três vias, embora distintas, encaminham-nos no
sentido de uma mesma conclusão. A saber: um objecto
quântico é uma entidade com propriedades tanto das ondas,
como das partículas. Uma entidade sobre a qual, no já
distante ano de 1928, Lord Eddington afirmava:
“Podemos dificilmente descrever tal entidade como uma onda ou
como uma partícula; talvez como compromisso seja melhor chamá-la
de “ondícula””5.
Este compromisso proposto por Eddington, no entanto, não
teve, nem tem tido, qualquer eco na Filosofia da Física
Quântica. Porquê? A que se deve esta ausência? Ou como
coloca, embora com ironia, o filósofo Norueguês Arne Naess:
porque não aceitamos esta generosa oferta de Eddington?6
A resposta é-nos dada por Margenau. Em explícita recusa
às “ondiculas”, este afirma:
(1964) que embora seja um livro de Física é referenciando repetidamente em textos filosóficos. 5 “We can scarcely describe such an entity as a wave or as a particle; perhaps as a compromise we had better call it a "wavicle". Eddington, A. (1928), The Nature of Physical World, New York: The MacMillan Company, p. 201. (tradução nossa) 6 Cf. Arne Naess (2005), The Selected Works of Arne Naess, Dordrecht: Springer, p.62.
6
“Para clarificar o problema fazemos notar para começar que,
obviamente, as propriedades das ondas e das partículas são
incompatíveis; adicioná-las como se elas fossem meramente
diferentes não faz sentido. É apropriado dizer que um certo
animal é um cavalo e uma besta de carga, mas não que é um cavalo
e uma vaca.”7
Está implícito nestas palavras de Margenau que afirmar
que uma entidade possui o conjunto de propriedades de X,
não é outra coisa que afirmar que essa entidade é X. Ou
dito de outra forma, afirmar que uma entidade possui, por
exemplo, as propriedades das ondas, é afirmar que essa
entidade é uma onda. De igual modo, dizer que de uma
entidade possui o conjunto de propriedades das partículas,
é dizer que essa entidade é uma partícula. E, por
consequência, o mesmo sucederá com as entidades que
declaramos possuírem as propriedades das vacas, dos cavalos
ou das bestas de carga, onde diremos de cada uma delas, e
respectivamente, que é uma vaca, que é um cavalo ou que é
uma besta de carga.
7 “To clarify the problem we note to begin with that the obvious properties of waves and particles are incompatible; adding them together as though they are merely different does not make sense. It is proper to say that certain animal is a horse and a beast of burden, but not a horse and a cow”, Margenau, Henry (1977), The Nature of Physical Reality, p. 321. (tradução nossa)
7
Por outro lado, uma entidade poderá ser um cavalo e uma
besta de carga - como, de forma implícita, indica Margenau
- na medida em que as propriedades dos cavalos e das bestas
de carga, embora diferentes, são compatíveis. Nomeadamente,
esta entidade, que possui as propriedades tanto dos cavalos
como das bestas de carga, será um cavalo de carga. Tal como
aqueles cavalos que cartam com os turistas pelas curvas da
Serra de Sintra.
Contudo, no caso das vacas e dos cavalos, as suas
propriedades são incompatíveis e não meramente diferentes.
Como tal, uma entidade a que possuísse as propriedades dos
cavalos e das vacas – a que, e fazendo uso da mesmo lógica
de geração de neologismos de Eddington, poderíamos designar
por “vacalo”8 – tratar-se-ia de uma entidade com uma dupla
natureza. Seria vaca e cavalo. E poder-se-á afirmar o mesmo
das partículas e das ondas do que anteriormente afirmámos
das vacas e cavalos. Assim, tal como os “vacalos” aqui
congeminados, também as tais “ondículas” de que nos fala
Eddington seriam entidades com uma dupla natureza. Seriam
ondas e partículas. Ou seja, das palavras de Margenau
compreende-se que aceitar a “ondícula” seria aceitar que
8 Poderíamos imaginar, inspirados, por ventura, em As Viagens de Marco Polo, uma criatura metade vaca e metade cavalo. Por exemplo, com uma nobre cabeça de equídeo e uma vulgar traseira de bovino. Contudo, neste caso, teríamos um animal cuja cabeça identificaríamos com as dos cavalo e uma traseira que identificaríamos com as das vacas, mas não teríamos um animal que identificássemos integralmente tanto com os cavalos, como com as vacas. Tal criatura está, de resto, fora do alcance da imaginação.
8
uma entidade que fosse dupla na sua essência. Seria aceitar
uma identidade que fosse dupla. Ora, esta duplicidade
intrínseca ao termo “ondículas” contradiz a grande coluna
vertebral da lógica desde os Gregos. Portanto, aceitar as
“ondículas” seria tropeçar na lógica mais basilar e tombar,
de cabeça, de encontro ao mais robusto dos paradoxos.
É, pois, inteligível que na literatura sobre o domínio
quântico muito rareie o termo “ondícula”. Esta literatura,
ao invés de “ondícula” tem preferido fazer uso da expressão
“dualismo onda-partícula”. No entanto, esta preferência não
é, a meu ver, nem inocente, nem inócua. Ela revela um
deslocamento ontológico subtil mas decisivo. Um
deslocamento que se denuncia em afirmações como a seguinte,
do punho de Nikolic:
“Em livros introdutórios à Mecânica Quântica, […] o estranho
carácter conceptual da Mecânica Quântica é muitas vezes
verbalizado em termos da dualidade onda-particula. De acordo com
esta dualidade, os objectos microscópicos fundamentais, como os
electrões e os fotões, não são nem puras partículas, nem puras
ondas, mas tanto ondas como partículas. Ou mais precisamente, em
algumas condições eles comportam-se como ondas enquanto que em
outras condições eles comportam-se como partículas”9
9 “In introductory textbooks on QM,[…] a conceptually strange character of QM is often verbalized in terms of wave-particle duality. According
9
Na primeira parte desta citação Nikolic afirma-nos,
equivocamente, que, de acordo com o chamado dualismo onda-
partícula, os “objectos microscópicos fundamentais” são
entidades com uma natureza dupla, são “tanto ondas como
partículas”. Isto seria, no entanto, ir precisamente ao
encontro do que Eddington justamente proponha designar por
“ondículas” e do doloroso paradoxo que lhe está inerente.
Não haveria, então, qualquer diferença de significado entre
a expressão “dualismo onda-partícula” e o termo “ondícula”.
Porém, na segunda parte desta mesma citação, Nikolic emenda
a mão, e esclarece que, afinal, de acordo com o dualismo
onda-partícula, os ditos “objectos microscópicos
fundamentais”, cuja natureza agora não qualifica, são
entidades que se comportam ora à maneira das ondas, ora à
maneira das partículas.
Da primeira parte desta citação para a sua segunda,
verificamos um resvalamento do nível ontológico para um
nível que poderíamos considerar comportamental. Se na
primeira parte da citação, era suposto que os “objectos to this duality, fundamental microscopic objects such as electrons and photons are neither pure particles nor pure waves, but both waves and particles. Or more precisely, in some conditions they behave as waves, while in other conditions they behave as particles fundamental microscopic objects such as electrons and photons are neither pure particles nor pure waves, but both waves and particles. Or more precisely, in some conditions they behave as waves, while in other conditions they behave as particles.”, Nikolic, H. (2007), “Quantum Mechanics: Myths and Facts” in Foundations of Physics,37, p. 1567. (tradução nossa)
10
microscópicos fundamentais” tinham uma identidade dupla
(partículas e ondas), o que fica suposto na segunda parte é
que estes objectos têm uma única identidade susceptível de
um duplo comportamento.
Esta citação de Nikolic é exemplar pois, tal como nesta,
toda a literatura sobre o domínio quântico, por uma via ou
outra, inicialmente nos encaminha no sentido da conclusão
que um objecto quântico é uma entidade que possui as
propriedades das ondas e das partículas, que um objecto
quântico é uma ondícula. Porém, no momento seguinte, esta
mesma literatura desvia-se de tal dolorosíssima conclusão e
assume, somente, que um objecto quântico é uma entidade
que, de algum modo, ora se comporta como se fosse uma onda,
ora se comporta como se fosse uma onda. Os objectos
quânticos são então apresentados, qual Dr. Jekyll e Mr.
Hyde, como entidades físicas acometida por dupla
personalidade, por uma dupla natureza, no caso, um dualismo
onda-partícula.
Em suma, embora todos os caminhos da literatura nos
encaminham no sentido das paradoxais “ondículas”,
subitamente (e subtilmente) somos desviados em direcção à
ambígua expressão “dualismo onda-partícula” e sua
consequente indeterminação ontológica: um objecto quântico
não é nem onda, nem partícula e, muito menos, “ondícula”.
11
Eis que nos surge a questão: então, do que falamos
quando falamos de objectos quânticos? Afinal, o que é um
objecto quântico?
Trata-se, pois, de uma questão antiga e que já terá sido
por mais de mil vezes repetida. Contudo, trata-se
igualmente de uma questão sem bibliografia. O que será
compreensível pois, se ao seguir por qualquer uma das três
vias em que se divide a literatura sobre o domínio
quântico, chegamos a um lugar onde nos perguntamos pela
natureza dos objectos quânticos, perguntamos porque a
literatura dá-nos a sensação que julgamos já saber a
resposta. Uma resposta que, pela sua natureza paradoxal,
não conseguimos comportar, aceitar ou compreender. De certo
modo, seguindo a literatura, a resposta antecederia a
questão. Troca-se a resposta paradoxal pelo paradoxo de uma
questão, não retórica, que é antecedida pela sua resposta.
E de paradoxo em paradoxo chegamos à conclusão que a
questão da natureza dos objectos quânticos, embora seja uma
questão de natureza filosófica (pois perguntamos pelo
conceito) esta é, igualmente, uma questão esquecida pela
literatura filosófica. Literatura esta onde todas a suas
vias se têm focado, principalmente, no chamado problema da
medição10.
10 Isto mesmo é explicitamente afirmado por autores como Frank Arntzenius, Guido Bacciagaluppi, Chuang Liu, Brigitte Falkenburg,
12
Mas, se o problema da natureza dos objectos quânticos
ficou em aberto, como se pôde constituir uma teoria como a
Mecânica Quântica? Por outro lado, não será o problema da
medição fruto da forma como se constituiu a Mecânica
Quântica e, por consequência, do tal problema da natureza
dos objectos quânticos? E, por fim, não nos levará a actual
literatura filosófica, por algum encantamento com a
Mecânica Quântica, por maus caminhos, ou melhor, para um
lugar equivocado? Para um lugar afastado de um outro a
partir do qual se possa pensar a estranha natureza dos
objectos quânticos?
Comecemos pela primeira destas questões: como se pôde
constituir a Mecânica Quântica deixando em aberto o
problema da natureza dos objectos quânticos?
Steven French, Tim Maudlin, entre outros, no curioso Foundations and Philosophy of Physics editado John Symonns e Juan Ferrer, que ainda aguarda publicação e que me foi facultado por John Symonns, a quem agradeço.
13
2. A constituição da Mecânica Quântica.
A Mecânica Quântica constitui uma generalização racional
das teorias clássicas da Física. Esta é, a meu ver, a sua
essência. E esta é, igualmente, quanto a mim, a pedra
angular do pensamento de Bohr sobre a Mecânica Quântica11.
11 Assim parece ser, igualmente, a tese defendida por Peter e Alisa Bokulish no seu artigo, publicado em 2005, intitulado “Niels Bohr’s Generalization of Classical Mechanics” (in Foundations of Physics, Volume 35, Number 3, Springer, pp. 347-371). Digo que parece pois, embora todo o artigo se desenvolva no sentido de argumentar em favor de que, para Bohr, a Mecânica Quântica é uma generalização racional da Física Clássica, estes autores propõem-se mostrar “ the central role played by his [Bohr] thesis that quantum theory is a rational generalization of classical mechanics” (p. 347 - abstract). A diferença reside no facto de “Física Clássica” e “Mecânica Clássica” não serem sinónimos. O Electromagnetismo faz parte, igualmente, da chamada Física Clássica. Esta distinção pode parecer de menor importância, mas não o é. É uma distinção importante, em primeiro lugar, pela confusão que gera. Confusão que surge quando, no dito artigo, os mencionados autores não só não comentam esta distinção entre Física e Mecânica, como são corrigidos pela própria citação de Bohr que apresentam logo na segunda página, onde Bohr se refere, explicitamente, ao Electromagnetismo. A confusão criada pelos autores do referido artigo cresce quando dão como exemplo de conceito de Mecânica Clássica, na quinta página, o “electric field value”. Muito dificilmente um conceito da Mecânica. E, duvidosamente um conceito. Pois trata-se de um “valor”, uma quantidade, do campo eléctrico. A diferença entre “Física Clássica” e “Mecânica clássica” é importante, em segundo lugar, pois, como se tentará aqui mostrar, a Mecânica Quântica é fruto de uma generalização tanto dos conceitos do Electromagnetismo, como da Mecânica Clássica. Logo, ao não se cuidar da distinção entre Mecânica Clássica e Electromagnetismo Clássico percebe-se mal a constituição da Mecânica Quântica. Estas falhas de rigor são particularmente graves e estranhas. Não só porque surgem numa revista como a Foundations of Physics, mas, igualmente, pelo facto de Alisa Bokulish ser uma reputada Filosofa da Física, sendo inclusive a responsável pela entrada dedicada ao princípio da correspondência na stanford encyclopedia of philosophy. Portanto, embora semelhantes, a tese que aqui distingue-se da de Alisa e Perter Bokulish por eu defender que a essência do pensamento de Bohr passa
14
São duas teses que, porventura, podem causar alguma
surpresa a quem esteja familiarizado (mesmo que seja
distantemente) com a literatura filosófica, científica ou
histórica, dedicada à Mecânica dos quantas.
No caso da primeira tese, a surpresa virá porque é
comum enfatizar-se o carácter revolucionário da Mecânica
Quântica. Tão profundamente revolucionário que teria levado
à definitiva cisão da Física entre aquela que é Clássica, e
que contém, desde a Mecânica de Newton até às relatividades
de Einstein, passando pelo Electromagnetismo de Maxwell e a
Termodinâmica, e a outra que é Moderna. Que, em boa
verdade, até se poderia denominar por Física Quântica. Pois
a Física Moderna é constituída, na sua essência, pela
Mecânica Quântica e a sua descendente directa, a
Electrodinâmica Quântica. É como se existissem duas eras na
Física: antes da Mecânica Quântica; depois da Mecânica
Quântica.
A minha segunda tese – a que se refere à pedra angular
do pensamento de Bohr sobre a Mecânica Quântica – poderá
surpreender, por sua vez, porque é comum, mesmo na
literatura filosófica, atribuir-se esse estatuto ao que se
por este considerar a Mecânica Quântica como uma generalização racional das teorias clássicas da Física e não apenas da Mecânica Clássica.
15
designa, frequentemente, e talvez de forma imprópria12, por
princípio da complementaridade. No entanto, a meu ver, o
chamado princípio da complementaridade não será tanto o
pilar mas o pináculo do pensamento de Bohr sobre a Mecânica
Quântica, não aquilo que funda mas aquilo que fecha. Por
ocupar esse lugar de culminante a complementaridade será
mais visível e, talvez por isso, mais comentada. Contudo -
e prosseguindo com a metáfora arquitectónica – a meu ver, o
pensamento de Bohr sobre a Física Quântica conclui-se com a
complementaridade, mas tem o seu suporte e coesão
precisamente na tese de que a Mecânica Quântica é uma
generalização racional das teorias físicas clássicas.
Esta tese de Bohr percorre todo o seu trabalho sobre a
Mecânica Quântica. Encontramo-la, nas suas primeiras
aproximações, em textos ao longo na década de 2013. Em
particular, no próprio texto onde, pela primeira vez, surge
a tal “complementaridade”14. Ela, contudo, surge-nos com
maior frequência e de modo um pouco mais claro em textos do
12 Digo “talvez de forma imprópria”, pois Bohr nunca fez uso dessa expressão ao longo da sua obra. O físico dinamarquês fala apenas em “complementaridade”. Isto mesmo é realçado por Henry Folse em Folse, Henry (1985), The Philosophy of Niels Bohr: The Framework of Complementarity, Amsterdam: North-Holland, p. 18. 13 Conferir por exemplo, Bohr, Niels (1922), “The fundamental postulates of the quantum theory” in Niels Bohr Collected Works, Vol. 3: The Correspondence Principle (1918–1923), Nielsen, J. R. ed., Amsterdam : North-Holland, 1976, p. 356 ou Bohr, Niels (1923), idem, p. 588. 14 Conferir Bohr, N. (1928), “The Quantum Postulate and the Recent Development of Atomic Theory” in Nature, Volume 121, Issue 3050, p. 584.
16
final de vida de Bohr. Num desses textos, publicado em
1958, quatro anos antes da sua morte, o físico dinamarquês,
ao rever o processo que foi iniciando com descoberta do
quantum de acção por parte de Planck, afirma:
“O problema com que os físicos foram confrontados [perante a
descoberta de Planck] foi, como tal, o de desenvolverem uma
generalização racional da física clássica que permitisse a
incorporação harmónica do quantum de acção. Depois de uma
exploração preliminar da evidência experimental […] esta difícil
tarefa foi finalmente realizada.”15
A difícil tarefa realizada pelos físicos a que Bohr aqui
faz menção concretizou-se na Mecânica Quântica. É à
narração do processo de constituição desta teoria que ele
dedica esta parte do seu texto aqui citado. Assim, embora
Bohr não o diga, aqui, explicitamente, das palavras da
citação anterior conclui-se com naturalidade que, segundo o
físico dinamarquês, a Mecânica Quântica foi constituída
como uma generalização racional da física clássica. A
15 “The problem with which physicists were confronted was therefore to develop a rational generalization of classical physics, which would permit the harmonious incorporation of the quantum of action. After a preliminary exploration of the experimental evidence […] this difficult task was eventually accomplished”. Bohr, Niels (1958), “Quantum Physics and Philosophy” in Niels Bohr Collected Works, Vol. 7: Foundations of quantum physics II (1933-1958), Kalckar, J. ed., North-Holland: Amsterdam, 1996, p. 389. (Tradução minha)
17
questão parece então ser: o que quer dizer Bohr com
“generalização racional da física clássica”?
Ele não nos oferece uma resposta directa e clara. Tal é,
de resto, característico em Bohr. É o seu “estilo”, como
dirão alguns16. Contudo, julgo ser possível entende-lo
começando por atender, em primeiro lugar, ao que o próprio
afirma na seguinte passagem de um outro texto :
“Na procura de uma formulação de tal generalização [racional]
o nosso único guia foi apenas o chamado argumento da
correspondência.”17
O que aqui Bohr chama de “argumento da correspondência”
é, na verdade, aquilo que o próprio usualmente designava -
e é assim, de resto, que é conhecido na literatura em geral
- por princípio da correspondência. Princípio de que foi
autor e acerca do qual, no tal célebre texto onde pela
primeira vez surge a “complementaridade”, havia confessado:
16 Conferir, por exemplo, Bokulish, Alisa (2010), "Bohr's Correspondence Principle" in The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2010 Edition),Zalta, E.N.(ed.),(URL=http://plato.stanford.edu/archives/win2010/entries/bohr-correspondence/), p.15. 17 “In the search for the formulation of such a generalization, our only guide has just been the so-called correspondence argument”. Bohr, Niels (1939), “The causality problem in Atomic Physics” in Niels Bohr Collected Works, Vol. 7: Foundations of Quantum Physics II (1933–1958), Kalckar, J. ed., Amsterdam: North-Holland, 1996, p. 305. (Tradução minha)
18
“O propósito de olhar a teoria quântica como uma
generalização racional das teorias clássicas levou[-me] à
formulação do chamado princípio da correspondência.”18
Nas duas citações anteriores Bohr revela que a tese de
que a Mecânica Quântica é uma generalização racional da
Física clássica não é fruto nem de uma análise sobre o
processo histórico de que levou à constituição desta
teoria, nem de uma interpretação acerca dessa. Trata-se do
seu programa enquanto fundador da Mecânica Quântica. Foi
com o “propósito de olhar para a Mecânica Quântica como uma
generalização da Física clássica” que incorporasse o
quantum de acção “de” Planck, que Bohr criou e desenvolveu,
durante a gestação da teoria quântica actual, o princípio
da correspondência. E foi fazendo uso deste princípio,
tendo-o como “único guia”, como ferramenta privilegiada,
que procurou a tal generalização racional da Física
Clássica. Isto é, foi, pelo menos em parte, fazendo uso do
princípio da correspondência que Bohr procurou constituir a
Mecânica Quântica. Poder-se-á dizer que ele mesmo o
confessa, reforçando a nossa certeza do papel instrumental,
mas decisivo, que o princípio de correspondência
desempenhou na construção da Mecânica Quântica. Mas o que 18 “The aim of regarding the quantum theory as a rational generalisation of the classical theories led to the formulation of the so-called correspondence principle.” Bohr, N. (1928), “The Quantum Postulate and the Recent Development of Atomic Theory” in Nature, Volume 121, Issue 3050, p. 584. (Tradução minha)
19
afirma este instrumento da vontade de Bohr? Como se
constituiu a Mecânica Quântica a partir deste princípio? De
que modo o princípio da correspondência permite entender
que a Mecânica Quântica seja uma generalização racional da
Física Clássica?
2.1. O Princípio da Correspondência
O princípio da correspondência (“Korrespondenzprinzip”19)
tem a sua origem no contexto daquilo que se designa por
Teoria Quântica do Átomo ou Teoria Quântica Antiga (em
contraponto ao que seria, posteriormente, a nova teoria
quântica, isto é, a Mecânica Quântica). A Teoria Quântica
Antiga foi proposta por Bohr em 1913. Esta tinha como ponto
de partida o modelo atómico de Rutherford. Modelo que é
usualmente designado por modelo planetário do átomo. Pois,
à imagem dos sistemas planetários, o átomo seria formado
por um corpo central - o núcleo - de carga total positiva,
onde estaria concentrada a maioria da massa do átomo, em
redor do qual orbitavam corpos de menor massa e de carga
negativa – os electrões. Haveria assim uma analogia simples
e - talvez por isso - encantadora entre o mundo à escala do
19 Conferir, por exemplo, a obra Niels Bohr Collected Works, Vol. 3: The Correspondence Principle (1918–1923), Nielsen, J. Rud ed., Amsterdam: North-Holland, 1976, p.315.
20
ínfimo e o mundo à escala do astronómico, entre a escala
dos electrões e a escala dos planetas. Um à imagem de
outro, como se se espelhassem na figura, embora distintas
na escala.
A analogia imagética de Rutherford era certamente
sedutora. Pois trazia consigo a sensação de
inteligibilidade fácil que todas as coisas cujas feições
reconhecemos sempre transportam consigo. E o seu modelo
tinha igualmente a virtude de estar de acordo com os
resultados recentes – à época, entenda-se - das
experiências atómicas com radiação alfa. Contudo, como não
há “bela sem senão”, e tal como qualquer livro de história
da Física Moderna ensinará, o modelo de Rutherford tinha,
entre outros, o defeito fatal de ser incapaz de explicar a
estabilidade da matéria. Segundo o Electromagnetismo um
corpo electricamente carregado, como é o caso do electrão,
ao mover-se emite energia sob a forma de radiação
electromagnética. Por consequência, se os electrões dentro
do átomo estão em movimento, como o modelo de Rutherford
declarava, e se aceita o Electromagnetismo, isso
significava que os electrões intra-atómicos iriam perder,
progressivamente, energia. Por conseguinte, os electrões
dentro de um átomo, acabariam por perfazer orbitas cada vez
mais fechadas, cada vez mais próximas, numa espiral
vertiginosa que os levariam, rápida e inevitavelmente, a
21
colidir com o núcleo. A estabilidade dos átomos e, como
tal, de toda a matéria supostamente constituída por estes,
seria um incómodo mistério. Pelo menos, para quem quisesse
estar com o modelo de Rutherford.
Ora, era precisamente este o mistério que Bohr – que se
encontrava em Manchester a trabalhar com Rutherford - se
propunha solucionar. Com esse fim, na segunda metade de
1913, publicou, em três partes, o artigo “Sobre a
constituição dos átomos e das moléculas”20. Deste tríptico,
que curiosamente, pela intimidade que denota entre a
Ciência fundamental e Filosofia, foi publicado no
“Philosophical Magazine”21, constam os fundamentos da
chamada Teoria Quântica Antiga. Esta assentava
principalmente, como o próprio Bohr explicaria alguns anos
mais tarde, nos seguintes postulados:
“I. Um sistema atómico pode existir, de forma permanente,
apenas numa série de estados correspondentes a uma série
descontínua de valores de energia. E, por consequência,
qualquer alteração de energia do sistema, incluindo a emissão
e a absorção de radiação electromagnética, deve ter lugar
20 Conferir Bohr, N. (1913), “On the Constitution of Atoms and Molecules” in Niels Bohr Collected Works, Vol. 2: Work in Atomic Physics (1912-1917), Hoyer, Ulrish ed., Amsterdam: North-Holland, 1981, pp. 159-240. 21 A mesma revista onde entre, 1861 e 1862, Maxwell havia publicado “On Physical Lines of Force” trabalho seminal do Electromagnetismo.
22
como uma transição completa entre esses dois estados. Estes
estados serão designados por “estados estacionários” do
sistema.
II. A radiação absorvida ou emitida durante a transição entre
dois estados estacionários […] possui uma frequência ν, que é
dada pela relação E' — E" = h ν, onde h é a constante de
Planck e onde E' e E" são os valores da energia dos dois
estados considerados.” 22
Bohr aceita, como propunha Rutherford, que os electrões
no átomo se movimentam ao redor do núcleo em órbitas
circulares e periódicas23. São, como tal, órbitas descritas
pela Mecânica Clássica. Contudo, em contradição com
22 I. That an atomic system can, and can only, exist permanently in a certain series of states corresponding to a discontinuous series of values for its energy, and that consequently any change of the energy of the system, including emission and absorption of electromagnetic radiation, must take place by a complete transition between two such states. These states will be denoted as the "stationary states" of the system.
II. That the radiation absorbed or emitted during a transition between two stationary states […] possesses a frequency ν, given by the relation
E' — E" = h ν
where h is Planck's constant and where E' and E" are the values of the energy in the two states under consideration.”, Bohr, N. (1918), “On the Quantum Theory of Line-Spectra” in Vol. 3: The Correspondence Principle (1918–1923), Nielsen, J. Rud ed., Amsterdam: North-Holland, 1976, p.71. (Tradução minha)
23 Conferir Bohr, N. (1913), “On the Constitution of Atoms and Molecules” in Niels Bohr Collected Works, Vol. 2: Work in Atomic Physics (1912-1917), Hoyer, Ulrish ed., Amsterdam: North-Holland, 1981, p.162.
23
Rutherford (e com a Mecânica Clássica) Bohr propõe, através
do primeiro postulado, que os electrões não podem descrever
trajectórias arbitrárias ao redor do núcleo, como é o caso
dos corpos celestes do sistema solar. Apenas podem
descrever orbitas indexadas a um determinado estado
estacionário de energia. Isto é, os electrões distribuem-se
ao redor do núcleo atómico não em órbitas à imagem das
órbitas planetárias, que a Mecânica Clássica descreve como
um basculante jogo de equilíbrio entre as forças centrífuga
e de atracção gravítica, mas em órbitas fixas – também
chamadas de orbitais - relativas a uma série de estados
discretos de energia24: Os ditos “estados estacionários”.
Por consequência, num átomo não existem análogos nem aos
cometas, nem aos satélites.
Formalmente, a sucessão destas órbitas, desses estados
discretos de energia, é-nos dada pela série de números
naturais25, simbolizando-se por “n” o nível de um
determinado estado estacionário. O estado estacionário de
menor energia, também dito de fundamental, corresponde ao
24 Cada estado estacionário de energia pode, no contexto da Teoria Quântica Antiga, ser de igual forma descrita como um jogo entre Forças: a de atracção electromagnética e a centrípeta. Esta foi, aliás, a aproximação inicial de Bohr ao problema do átomo. Contudo, será um jogo onde o resultado é sempre um aborrecido empate para cada desses estados estacionários. Resultado identicamente estranho para as teorias físicas clássicas e, em particular, para a Mecânica Celeste. 25 Considera-se aqui que o “zero” não é um número natural. Terá sido uma opção de Bohr em conformidade com o que é tradicional em Física Clássica. Que, à margem do debate sobre a natureza do “zero”, tem considerado que o “um” é o primeiro dos naturais.
24
primeiro nível de energia e é representado por n=1. O
seguinte estado estacionário de energia, o segundo nível de
energia, é representado por n = 2 e assim por diante.
Por outro lado, e tal como se afirma no
Electromagnetismo, Bohr assume que a diminuição da energia
de um electrão tem como efeito a emissão de radiação de
equivalente valor quantitativo de energia. É uma
consequência do princípio da conservação da energia que
Bohr, aqui, assume por completo. Contudo, dado que, pelo
primeiro postulado, as órbitas atómicas são caracterizadas
pela quantidade de energia que lhe é correspondente, essa
emissão de radiação não pode ser causada pelo movimento dos
electrões em redor do núcleo. Assim, e agora em contradição
com o Electromagnetismo, Bohr propõe, no segundo postulado,
que a emissão (e a absorção) de radiação é causada apenas
pela transição electrónica entre estados estacionários de
energia. Dado que estes estados, por força do primeiro
postulado, são numericamente discretos, então o espectro da
radiação de um átomo é, necessariamente, descontínuo. Esta
consequência dos dois postulados contradiz o
Electromagnetismo, pois, segundo esta teoria, o movimento
do electrão seria a única causa da emissão da radiação e
esta apresentar-se-ia num espectro contínuo. Ou seja,
decorre desta teoria de Bohr que o espectro de um átomo não
é como um arco-íris, como seria de esperar pelo
25
Electromagnetismo, mas um conjunto de riscas separadas,
cada uma de sua “cor”, cada uma referente a um determinado
estado estacionário de energia. Mas o mais extraordinário é
que isto implica que um electrão, ao transitar de um estado
de energia para outro, de uma órbita para outra, fá-lo sem
passar por lugares intermédios. Um electrão, segundo a
Teoria Quântica Antiga, realizava uma espécie de salto – um
salto quântico, como ficou celebrizado, principalmente na
literatura científica – entre dois estados de energia.
Salto, tanto maior (ou menor) quanto a diferença de energia
da radiação emitida ou absorvida correspondente. Fica,
entretanto, por explicar a existência e distribuição
discreta dos tais estados estacionários. São postulados de
forma quase Ad-Hoc.
A primeira teoria quântica de Bohr, por muito bizarras
que fossem as suas consequências, tinha o mérito de
oferecer uma explicação tanto para estabilidade da matéria,
como para a sequência das descobertas sobre o espectro
atómico realizadas, principalmente, no início do século XX.
Ou seja, resolvia, em parte, os mistérios que o modelo
atómico de Rutherford havia libertado.
O preço a pagar pela resolução desses mistérios
pareceria ser um afastamento radical em relação à Física
26
Clássica. Porém, a teoria de Bohr era, na realidade, e tal
como escreve Andrade e Silva:
“[…] um fascinante monstro híbrido. Descreve os átomos como
minúsculos sistemas solares em que os electrões giram em torno
de núcleos segundo as leis da Mecânica de Newton. Mas, de todos
os movimentos classicamente possíveis, apenas retém um número
muito pequeno, ou seja, aqueles que respeitam a regra dos
quanta.”26
Como diz Andrade e Silva, a primeira teoria quântica de
Bohr era um “fascinante monstro híbrido”. Por um lado,
tinha sucesso onde os modelos “mais” clássicos do átomo
falhavam. Por outro, era o produto de um processo a que, de
modo pitoresco, pode ser descrito como “uma no cravo, outra
na ferradura”. Bohr, ora respeitava o fundamental das
teorias físicas clássicas, ora as transgredia.
Nomeadamente, através da imposição – via postulado - da
quantificação das órbitas. Tudo isto já na tentativa
habilidosa e esforçada de conseguir, de algum modo,
incorporar no modelo atómico de Rutherford a chamada
hipótese de Planck, ou postulado quântico de acção. Segundo
esta, e fazendo uso de palavras do próprio Bohr, “a energia
26 Andrade e Silva, João e Lochak, G. (1969), Quanta, grains et champs (tradução do francês por Manuel Pina, “Quanta, Grãos e Campos”), Lisboa: Instituto de novas profissões, pp.71-73.
27
radiada por um sistema atómico não sucede de uma forma
contínua, tal como é assumido pelo electromagnetismo, mas,
pelo contrário, sucede em emissões distintamente
separadas”27. Em suma, do ponto vista formal, a proposta de
Bohr compunha-se, como o próprio físico dinamarquês
reconhece, “na introdução nas leis [do movimento do
electrão] de uma quantidade estranha ao electromagnetismo
clássico, i.e. a constante de Planck ou, como é frequente
ser chamada, o quantum de acção elementar”28. E, por esta
razão, o modelo atómico de Bohr é, geralmente, classificado
como semi-clássico29.
Importa salientar que o valor numérico da constante de
Planck é mínimo30. Como tal, o quantum de acção elementar
só é quantitativamente significativo quando estão
envolvidas energias igualmente mínimas. Este é o caso das
energias correspondentes às transições entre os primeiros
estados estacionários. Contudo, este não é o caso para as
27 “the energy radiation from an atomic system does not take place in the continuous way assumed in ordinary electrodynamics, but that it, on the contrary, takes place in distinctly separated emissions”, Bohr, N. (1913), “On the Constitution of Atoms and Molecules” in Niels Bohr Collected Works, Vol. 2: Work in Atomic Physics (1912-1917), Hoyer, Ulrish ed., Amsterdam: North-Holland, 1981p.164 (Tradução minha)
28 “to introduce in the laws in question a quantity foreign to the classical electrodynamics, i. e. Planck's constant, or as it often is called the elementary quantum of action.”, idem, p. 162 (Tradução minha).
29 Conferir, por exemplo, Cushing, James T. (1998), Philosophical Concepts in Physics, Cambridge: Cambridge University Press, p. 278. 30 Actualmente, considera-se para a constante de Planck o valor h=6.62606896(33)×10−34 J.s
28
transições electrónicas nos estados estacionários de valor
“n” mais elevado. Deste modo, por um lado, não fará sentido
introduzir directamente o postulado da quantificação das
órbitas num sistema planetário, numa tentativa desesperada
de manter a analogia entre planetas e electrões. Através da
Teoria Quântica Antiga, tal não possível. Ela é apenas uma
Física dos átomos, uma Física Atómica.
Por outro lado, a progressiva perda de significância
quantitativa do quantum de acção elementar leva a que, à
medida que se percorrem os estados estacionários a
diferença de energia entre estes será progressivamente
menor. Como tal, por consequência do segundo postulado,
onde se afirma que a frequência31 é directamente
proporcional à diferença de energia, a diferença entre os
valores da frequência será, de igual forma,
progressivamente menor. Ou seja, o espectro, que é
marcadamente discreto nos primeiros níveis, vai tomando,
progressivamente, a figura de um espectro contínuo. Isto é,
aproxima-se, pouco a pouco, do tipo de espectro, dito de
“espectro clássico”, que é previsto pela Física Clássica.
31 Por comodidade de escrita, irá preferir-se aqui o termo “frequência” ao mais correcto “frequência temporal”. Assim, na falta de outro aviso, ao ler-se o primeiro deverá entender-se o segundo.
29
Neste sentido, na sucessão dos estados estacionários,
estatisticamente32, verifica-se uma aproximação
assimptótica nas previsões do valor da frequência, entre a
Teoria Quântica Antiga e o Electromagnetismo. Ou, dito de
outro modo, no limite dos estados estacionários de elevado
valor de “n”, isto é, no chamado limite clássico, existe,
estatisticamente, uma correspondência numérica entre a
frequência da radiação emitida num “salto quântico” e a
frequência resultante33 do movimento periódico do electrão
no estado estacionário de “partida”. Esta é, de resto, a
noção vulgar34 do princípio da correspondência.
Contudo, como salienta Darrigol35, uma correspondência
semelhante entre físicas clássica e quântica pode ser
encontrada relativamente a outra grandeza física: a
intensidade. Neste caso a correspondência ocorre,
igualmente, no limite dos grandes números quânticos. Porém,
aqui a correspondência é entre o valor da probabilidade de
32 De acordo com o postulado quântico, a emissão de radiação electromagnética é feita em quantidade discretas - fotão a fotão. Já no caso da “radiação clássica” a emissão é feita por uma quantidade contínua. Logo, a aproximação assimptótica não é relativa a uma emissão individual, mas relativa ao um conjunto de emissões. 33 Note-se que segundo a electrodinâmica clássica, um electrão com um movimento circular e constante radia uma onda electromagnética com uma frequência temporal idêntica à frequência do movimento do electrão. 34 Conferir Bokulish, Alisa (2009), Three Puzzles about Bohr’s Correspondence Principle, (artigo disponível em: http://philsci-archive.pitt.edu/4826) p.1. 35 Conferir Darrigol, Olivier (2009), “A simplified genesis of quantum mechanics” in Studies in History and Philosophy of Modern Physics, 40, p. 115.
30
transição entre dois estados estacionários e a amplitude da
radiação.36
Na procura de um enunciado geral, que englobe estes dois
tipos de correspondência entre físicas clássicas e
quântica, e à falta de um que nos fosse concedido pelo
próprio Bohr, poder-se-ia dizer que o princípio da
correspondência afirma que, na zona onde o quantum de acção
é, quantitativamente, pouco significativo, isto é, no
limite clássico, a teoria quântica e as teorias clássicas
aproximam-se - qual Aquiles da tartaruga -
assimptoticamente nas suas previsões numéricas. Este é o
sentido do enunciado do princípio da correspondência que é
normal encontrar na literatura filosófica e que aparece,
por exemplo, em Murdoch, no seu Niels Bohr’s Philosophy of
Physics37.
Entendido deste modo, o princípio da correspondência
ofereceria uma referência, à imagem de um farol fiel,
resistente e luminoso, para a construção de uma qualquer
teoria quântica. Em particular, em conformidade com este
36 No Electromagnetismo assume-se que a radiação tem uma natureza ondulatória. Por conseguinte, a sua intensidade é determinada pela amplitude. Já no caso das teorias quânticas, a intensidade de uma linha espectral é determinada pela quantidade de fotões emitidas por uma frequência em particular. Assim, quanto mais provável for uma transição quântica de uma radiação em particular, mais fotões serão emitidos, ou seja, maior será a intensidade.
37 Conferir Murdoch, Dugald (1987), Niels Bohr’s Philosophy of Physics, Cambridge: Cambridge University press, p. 39.
31
entendimento do princípio da correspondência, as leis e as
equações de uma qualquer física quântica deveriam ser
construídas de tal forma que, no limite clássico, existisse
uma correspondência numérica aproximada entre as que são
quânticas e as que são clássicas. Isto mesmo é salientado
pelo físico Max Born:
“A ideia directriz (princípio da correspondência de Bohr)
pode descrever-se nas suas linhas gerais do seguinte modo.
Submetidas ao julgamento da experiência, as leis da física
clássica provaram brilhantemente em todos processos dinâmicos,
macroscópicos e microscópicos, incluindo o movimento dos átomos
considerados como um todo (teoria cinética da matéria). Deve,
portanto, estabelecer-se como postulado incondicionalmente
necessário que a nova mecânica, suposta ainda desconhecida,
deverá […] chegar aos mesmos resultados que a mecânica
clássica.”38
Assim entendido, poder-se-ia dizer que o princípio de
correspondência seria tão-somente um produto do que se pode
designar por “bom senso” dos físicos. Dado que a Física
Clássica tantas e tão repetidas vezes se mostrou válida,
então, seria apenas de “bom senso” que a nova Mecânica, a
38 Born, Max (1969), Atomic Physics (tradução do inglês de Egídio Namorado, “Física Atómica“), Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian (1986), p.114.
32
Mecânica Quântica, ou qualquer outra teoria quântica, no
limite dos grandes números quânticos chegasse,
aproximadamente, aos mesmos resultados da frequência e da
intensidade que a Física Clássica. Neste sentido, o
princípio de correspondência seria um princípio de
continuidade entre teorias, “incondicionalmente necessário”
por força do “bom senso”.
No entanto, esta necessária aproximação numérica entre
as teorias quântica e clássica, é a meu ver, e tal como
defende Alisa Bokulish, num texto de 2010, uma consequência
do princípio da correspondência e não uma enunciação deste.
Segundo Bokulish, o próprio Bohr, numa conversa com
Rosenfeld – um dos seus discípulos mais próximos –, terá
explicitamente rejeitado o entendimento do referido
princípio que surgiu na citação de Born:
“Léon Rosenfeld recorda a frustração de Bohr com o
continuado mau entendimento do seu princípio. Quando Rosenfeld
sugeriu a Bohr que o princípio da correspondência era sobre o
acordo assimptótico entre as previsões quânticas e clássicas,
Bohr enfaticamente protestou e respondeu: "[esse] não é o
argumento de correspondência. A exigência de que a teoria
quântica deve sobrepor-se à descrição clássica para baixos modos
33
de frequência não é de todo um princípio. É um requisito óbvio
para a teoria.”39
O pretenso enunciado do princípio da correspondência que
aparece na citação de Born, e que é tão popular,
especialmente entre os físicos, é claramente rejeitado por
Bohr. Não pelo seu conteúdo, mas por se tratar, a seu ver,
de um “requisito óbvio” da teoria e, como tal, nem sequer
precisar de ser explicitado sob a forma de um “princípio”.
Assim, igualmente para Bohr, a correspondência numérica
entre as teorias quântica e clássicas, no tal limite dos
grandes números quânticos, será uma mera questão de
aplicação do “bom senso”. Este sim, quase se poderia
designar por princípio pelo seu carácter de regra do
pensamento em geral. Ou seja, Bohr recusa o entendimento de
Born do princípio da correspondência por considerar que
esse entendimento é uma consequência óbvia de um princípio
de bom senso do pensamento aplicado à Física.
39 “Léon Rosenfeld recounts Bohr's frustration at the continued misunderstanding of his principle. When Rosenfeld off-handedly suggested to Bohr that the correspondence principle was about the asymptotic agreement of quantum and classical predictions, Bohr emphatically protested and replied, “It is not the correspondence argument. The requirement that the quantum theory should go over to the classical description for low modes of frequency, is not at all a principle. It is an obvious requirement for the theory”, Bokulich, Alisa (2010), "Bohr's Correspondence Principle" in The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2010 Edition), Edward N. Zalta (ed.),URL=http://plato.stanford.edu/archives/win2010/entries/bohr-correspondence/, pp 36-37.(Tradução minha)
34
Por outro lado, inferimos nesta posição de Bohr uma
indicação segundo a qual o princípio da correspondência tem
um outro sentido. Um sentido supostamente mais amplo e
profundo. Este, creio eu, pode ser encontrado, logo na
primeira vez que o físico dinamarquês dedica uma secção
explicitamente ao princípio da correspondência. Afirma
Bohr:
“Consideremos mais cuidadosamente esta relação entre os
espectros expectáveis com base na teoria quântica e a teoria
ordinária da radiação [isto é, o electromagnetismo]. As
frequências das linhas espectrais calculadas pelos dois métodos
concordam completamente na região onde os estados estacionários
estão pouco separados uns dos outros. […] Esta correspondência
entre as frequências determinadas pelos dois métodos deve ter um
significado mais profundo e nós somos conduzidos antecipar que
se aplicará também às intensidades. […] Esta relação peculiar
sugere uma lei geral para a ocorrência das transições entre
estados estacionários.”40
40 “Let us now consider somewhat more closely this relation between the spectra one would expect on the basis of the quantum theory, and on the ordinary theory of radiation. The frequencies of the spectral lines calculated according to both methods agree completely in the region where the stationary states deviate only little from one another[…] This correspondence between the frequencies determined by the two methods must have a deeper significance and we are led to anticipate that it will also apply to the intensities.[…]This peculiar relation suggests a general law for the occurrence of transitions between stationary states.” Bohr, N. (1920), “Essays II: On the Series
35
Nesta longa citação, onde, no tal estilo por vezes pouco
cuidado com a precisão das palavras, as teorias quântica e
electromagnética são apresentadas como “métodos”,
encontramos os dois tipos já referidos de correspondência
entre as físicas quântica e clássica: de frequência e de
intensidade. No entanto, a frase final, que o próprio Bohr
colocou em itálico, revela que estas correspondências
numéricas entre teorias sugerem uma lei geral. No caso, uma
lei geral para a ocorrência das transições quânticas. Esta
aparece-nos na seguinte passagem de um texto posterior:
“A demonstração do acordo assimptótico entre o espectro e o
movimento deu origem à formulação do "princípio da
correspondência", de acordo com o qual a possibilidade de cada
processo de transição relacionada com emissão de radiação é
condicionada pela presença de um componente harmónico
correspondente no movimento do átomo.”41
Spectra of Elements” in Niels Bohr Collected Works, Vol. 3: The Correspondence Principle (1918–1923), Nielsen, J. Rud ed., Amsterdam: North-Holland, 1976, pp. 249–250. (Tradução minha)
41 “The demonstration of the asymptotic agreement between spectrum and motion gave rise to the formulation of the "correspondence principle", according to which the possibility of every transition process connected with emission of radiation is conditioned by the presence of a corresponding harmonic component in the motion of the atom.”, Bohr, N. (1925), “Atomic Theory and Mechanics” in Nature, Volume 116, Issue 2927, p. 848. (Tradução minha)
36
Aqui, o princípio de correspondência surge, não como uma
mera aproximação numérica, mas como uma condição. É
condição de possibilidade de uma transição entre estados
estacionários, estados estes que correspondam a um
componente harmónico do movimento do electrão num estado
estacionário do átomo. Entende-se que Bohr se refira a esta
correspondência como uma “lei” geral da teoria quântica.
Pois, por um lado, essa correspondência aplica-se a todos
estados estacionários e não apenas aos do limite clássico.
Sendo, neste sentido, universal para os estados
estacionários de energia dos átomos. Por outro lado, essa
correspondência consiste na imposição de uma condição de
possibilidade das transições entre estados quânticos: uma
transição entre estados estacionários de energia, ou
transição quântica, é possível se e só se existir um
harmónico correspondente do movimento do electrão. Atente-
se que o movimento a que aqui se faz referência é o
movimento circular e periódico do electrão em redor do
núcleo. Estamos ainda dentro da imagem do átomo como um
minúsculo sistema solar.
Claro está que o enunciado anterior do princípio da
correspondência pode parecer de interesse meramente formal
e, por essa razão, ser muito específico da Física.
Estaríamos, afinal, longe da promessa de ter uma lei geral
37
de profundo significado. Contudo, em boa verdade, este
enunciado leva-nos num caminho, um pouco árido – talvez -,
mas onde, no final, julgo que se cumpre a promessa. Quando
Bohr descobriu esta relação de correspondência entre as
transições quânticas permissíveis e os harmónicos do
movimento do electrão, ele descobriu algo fundamental sobre
a teoria quântica.
Por um lado, é preciso notar que, em física, diz-se
“harmónico” o que é múltiplo inteiro de uma determinada
frequência. Esta última é denominada “frequência
fundamental”. Neste caso concreto, a frequência fundamental
será a frequência do movimento do electrão no estado
estacionário inicial. Ou seja, a quantidade de revoluções
por unidade de tempo do electrão em redor do núcleo.
Uma série particular de harmónicas facilmente
compreensível é, por exemplo, a das oitavas42. Onde dizer
primeira, segunda, terceira e quarta oitavas é o mesmo que
dizer segunda, quarta, oitava e décima sexta harmónicas, em
relação a uma determinada nota inicial. Ou seja, existe uma
42 Diz-se “oitava” a nota cuja frequência dista o dobro (oitava acima) ou a metade (oitava abaixo) em relação a uma outra. A título de exemplo, o dó de segunda tem uma frequência aproximada de 130,5 Hz. Logo, é uma oitava abaixo em relação ao Dó de 3, que tem uma frequência aproximada de 261,o Hz, e é uma oitava acima relativamente ao Dó de 1, a frequência fundamental desta série, que tem uma frequência aproximada de 62,25 Hz. Note-se que a frequência que é tripla da frequência fundamental é dita de terceiro harmónico do Dó de primeira, mas, no entanto, não é uma oitava mas uma quinta acima deste.
38
correspondência entre a diferença de frequências de notas
que distam uma oitava e uma sequência particular de
harmónicas da nota inicial. Assim sendo, as primeiras – as
oitavas - podem ser descritas, na totalidade, a partir das
segundas.
De forma similar, o princípio da correspondência, ao
enunciar-se como condição de que as transições quânticas só
podem ocorrer para harmónicos correspondentes do movimento
do electrão num determinado estado estacionário, leva a que
as primeiras – as transições quânticas - podem ser,
formalmente, descritas a partir das segundas – dos
harmónicos. Ou seja, Bohr determina que a Teoria Quântica
Antiga pode ser, em certa medida, descrita e desenvolvida
fazendo-se o uso das propriedades dos harmónicos43. Mas
como?
O princípio da correspondência impõe que uma “transição
relacionada com emissão de radiação” está condicionada pela
existência de “um componente harmónico correspondente no
movimento”. Isto significa, literalmente, que, neste caso,
um electrão só pode transitar para um estado estacionário
de tal forma que se multiplique, por um inteiro, a
frequência do seu movimento. Isto é, que a duplique,
triplique, quadruplique, etc. Seria o caso, análogo, da 43Em particular, através do desenvolvimento desta correspondência são estabelecidas as regras de selecção de transições quânticas que estão na génese da Química actual.
39
Terra, por exemplo, só poder transitar para uma órbita
planetária quando um ano fosse de 182 dias, 91 dias, 45
dias, etc. Estranho caso seria para um corpo como a Terra.
Contudo, caso normal será para uma onda periódica, como é
caso, idealmente, das ondas electromagnéticas44. Pois, esta
relação de condição entre transições de estados e
harmónicos lhes é característica. Quer isto dizer, e tal
como enfatiza Pringe ao longo da sua tese doutoral45, o
princípio da correspondência implica uma analogia formal
entre a frequência do movimento e a frequência da radiação
electromagnética. Mais especificamente, o referido
princípio pressupõe, formalmente, uma analogia entre as
transições de estados estacionários e as mudanças na
frequência de uma radiação electromagnética. Ou dito ainda
de outro modo, é como se, formalmente, um electrão, no que
respeita as alterações do seu estado de movimento, fosse
uma onda electromagnética.
Estamos perante uma analogia fundamental. Em primeiro
lugar, porque justifica e possibilita que a Teoria Quântica
Antiga possa ser desenvolvida fazendo uso das propriedades
dos harmónicos. Em segundo lugar, e mais importante,
porque, a partir desta analogia formal entre os dois tipos
referidos de frequência, é possível estabelecer uma
44 Conferir, a seguir, neste capítulo, página 87 e seguintes. 45 Conferir Pringe, Hernán (2007), Critique of the Quantum Power of Judgment, Berlin: De Gruyter.
40
correspondência formal entre a Teoria Quântica Antiga e o
Electromagnetismo.
Assim, por um lado, podemos afirmar que estamos, para
já, perante dois níveis do princípio da correspondência. O
que por si só é uma conclusão interessante. Pois, se a
literatura filosófica mais especializada no pensamento
Bohriano se tem dedicado a debater qual dos anteriores é
“o” princípio da correspondência46, a meu ver, a melhor
forma de compreender o pensamento de Bohr é entender que
existem vários níveis do referido princípio.
O primeiro nível será o nível numérico, que consiste
numa correspondência das previsões quantitativas da
frequência e da intensidade, no limite clássico, entre a
Teoria Quântica Antiga e o Electromagnetismo.
O segundo nível será o nível formal, que, por sua vez,
consiste numa correspondência entre os formalismos da
Teoria Quântica Antiga e do Electromagnetismo. Note-se que
através desta correspondência formal são deduzíveis as
correspondências numéricas. Pois, no limite clássico, a
frequência do movimento de um estado estacionário inicial é
numericamente equivalente à frequência da emissão entre
46 Conferir Bokulich, Alisa (2010), "Bohr's Correspondence Principle" in The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2010 Edition), Edward N. Zalta (ed.),URL=http://plato.stanford.edu/archives/win2010/entries/bohr-correspondence
41
estados estacionários próximos. Por essa razão, porque um
implica o outro, julgo que estamos perante dois níveis do
referido princípio e não duas (ou três) formulações
distintas. Note-se ainda que estas correspondências não
implicam que a Teoria Quântica Antiga seja deduzível do
Electromagnetismo. Sendo o inverso igualmente verdadeiro.
Não existe uma continuidade directa entre a Teoria Quântica
Antiga e qualquer uma das teorias físicas clássicas (ao
contrário do que sucede entre as Mecânicas Relativista e
Clássica), de tal modo que se possa transitar
despreocupadamente de uma para outra. A separar estas
teorias encontra-se a introdução do postulado quântico no
modelo atómico e a sua consequência: os estados
estacionários de energia, ou os estados quânticos. Porém,
se o postulado quântico as separa, como uma regra
gramatical separa duas linguagens, o princípio da
correspondência liga-as, como um tradutor. Em particular, o
princípio da correspondência permite que Teoria Quântica
Antiga seja entendida como resultante de uma revisão do
formalismo do Electromagnetismo de tal modo que incorpore o
postulado quântico. Revisão que, pela sua natureza formal,
só poderá ser realizada unicamente pela razão. Portanto, em
certa medida, pode-se tomar a Teoria Quântica Antiga como
uma generalização racional do Electromagnetismo clássico. A
este propósito afirma Bohr:
42
“Embora o processo de radiação não possa ser descrito com
base na teoria ordinária da electrodinâmica […] existe, no
entanto, uma correspondência de longo alcance entre os vários
tipos de possíveis transições entre os estados estacionários por
um lado e os vários componentes harmónicos do movimento, por
outro. Esta correspondência é de tal natureza que a teoria
actual dos espectros [teoria quântica antiga] pode ser num certo
sentido considerada como uma generalização racional da teoria
ordinária da radiação [isto é, o Electromagnetismo].47
Como é salientado por Darrigol48, Bohr usa a expressão
“num certo sentido”, pois a generalização é apenas de
natureza formal. É uma correspondência entre teorias
assente – recorde-se – na base de numa analogia
inteiramente formal entre a frequência da radiação
electromagnética e a frequência do movimento orbital do
47 “Although the process of radiation can not be described in the basis of the ordinary theory of electrodynamics […]there is found, nevertheless, to exist a far-reaching correspondence between the various types of possible transitions between the stationary states on the one hand and the various harmonic components of the motion on the other hand. This correspondence is of such a nature, that the present theory of spectra is in a certain sense to be regarded as a rational generalization of the ordinary theory of radiation.” Bohr, N. (1920), “Essays II: On the Series Spectra of Elements” in Niels Bohr Collected Works, Vol. 3: The Correspondence Principle (1918–1923), J. Rud Nielsen, ed. (North-Holland, Amsterdam, 1976), pp. 245–246. (Tradução minha)
48 Conferir Darrigol, Olivier (1992), From c-Numbers to q-Numbers, Berkeley: University of California Press, p. 138.
43
electrão. Não é a este nível, a meu ver, que Bohr considera
que a Mecânica Quântica é uma generalização racional das
teorias clássicas da Física. Entretanto, insinua-se já aqui
o terceiro nível, e o mais fundamental, do princípio da
correspondência: o nível conceptual. Porém, para o
descobrir há que recuar e realizar um outro movimento.
2.2. A hipótese de De Broglie: a descoberta do domínio
quântico.
É bem conhecido o teorema matemático segundo o qual a
série de harmónicos de um movimento periódico não é outra
coisa senão a sequência de termos do chamado
desenvolvimento de Fourier da posição. Isto é, cada um dos
harmónicos do movimento (e a frequência fundamental), tal
como toda a onda periódica, é uma onda plana sinusoidal.
Significa isto que é às ondas planas sinusoidais que Bohr,
no contexto da teoria quântica, se refere quando se refere,
formalmente, às ondas. Por consequência, um electrão intra-
atómico, no seu movimento, pode ser tomado, formalmente,
como se de uma onda plana sinusoidal (que também pode ser
designada por “onda de Fourier”) em propagação se tratasse.
44
Pode não parecer, mas esta conclusão é da maior
importância. Para já, por duas razões: em primeiro lugar,
por ser este o fundamento do nível formal do princípio da
correspondência. Formalmente, tanto a radiação, como os
electrões, no seu movimento são ondas sinusoidais em
propagação. E, por consequência, electrões e radiação são
formalmente idênticos. Em segundo lugar, porque significa
que estamos, de certa forma, muito próximos da proposta,
absolutamente decisiva, de De Broglie, de 192449. Segundo
esta proposta, no caso particular de um átomo, o movimento
de um electrão num estado estacionário é caracterizado por
ser ondulatório. Mais especificamente, por ser uma onda
estacionária. Este é o tipo de onda igualmente
característico, por exemplo, da oscilação de uma corda em
tensão. Assim, a proposta de De Broglie permite-se
identificar os estados estacionários com ondas
estacionárias. E, deste modo, podemos dizer que um átomo
quantificado é um pouco como um instrumento de cordas. Uma
ancestral harpa, por exemplo. Se esta é construída por um
conjunto de cordas vibrantes distribuídas segundo a antiga
lei pitagórica de que as frequências possíveis de uma corda
vibrante são múltiplos inteiros (harmónicos) de uma
49 Conferir o discurso de De Broglie de aceitação do prémio Nobel. De Broglie, L. (1929), The wave nature of the electron in "Louis de Broglie - Nobel Lecture". Nobelprize.org. 27 Sep 2011: http://www.nobelprize.org/nobel_prizes/physics/laureates/1929/broglie-lecture.pdf, p. 247.
45
frequência fundamental, de forma análoga, o átomo “de” De
Broglie é constituído por um conjunto de estados
estacionários distribuídos segundo a mesma lei. E se um é
caracterizado por um número discreto de cordas, cada uma
com a sua frequência bem determinada, o outro é
caracterizado por um número discreto de estados
estacionários, cada um com a sua frequência bem
determinada. Poder-se-ia dizer então que a quantificação do
átomo é análoga à quantificação das vibrações de uma corda
musical. É precisamente a partir desta analogia que Mário
Bunge chega mesmo a afirmar, curiosamente, que “o primeiro
a descobrir os quanta não foi Planck em 1900, mas Pitágoras
no século VI a.C.”50. Estamos, porém, ainda à volta de uma
analogia formal. Uma analogia que, contudo, se suporta em
algo mais significativo. A saber: segundo De Broglie, e
esta é a essência da sua proposta, da sua hipótese, os
electrões, tal como os fotões, são caracterizados por uma
cinemática ondulatória e uma dinâmica corpuscular. Ou dito
de outro modo, os electrões, tal como os fotões, tal como
todos objectos quânticos: propagam-se como ondas; interagem
como corpos.
Este é um momento decisivo. Em primeiro lugar, porque a
proposta de De Broglie permite explicar a existência e a
50 Conferir Bunge, Mário (2002), “Twenty Five Centuries of Quantum Physics” (trad. do inglês por Florbela Meireles, “Vinte e cinco séculos de Física Quântica”) in Gazeta de Física, vol. 25, 3, Julho de 2002, p.1.
46
distribuição dos estados estacionários. Os estados
estacionários não têm que ser tomados como uma mera, embora
habilidosa, imposição ad-hoc. Nem tão pouco o movimento dos
electrões “obedecem” às regras das ondas electromagnéticas
pela particularidade de fazerem parte de um sistema atómico
e lhes serem, formalmente, análogos. Todos os electrões
são, quanto ao seu movimento, tidas como ondas. Assim, a
proposta De Broglie permitia explicar o que era postulado
na Teoria Quântica Antiga. E, como tal, esta proposta
encontra-se na origem da transição da Teoria Quântica
Antiga para a Teoria Quântica Nova. Isto é, para a Mecânica
Quântica. Uma transição que implica que a teoria quântica
deixa de ser apenas uma teoria do átomo e dos seus
constituintes, ou seja, deixa de ser apenas uma
microfísica. A proposta de De Broglie não se cinge ao
domínio atómico, mas refere-se a todo o domínio físico. E
como assinala, por exemplo, Leblond “macroscópico não é
sinónimo de clássico”51.
Este é igualmente um momento decisivo, pois a proposta
de De Broglie consiste na atribuição, embora por analogia
conceptual, de uma dupla natureza aos objectos quânticos: a
das ondas na sua propagação; a dos corpos na sua
interacção. Emprego o termo “dupla analogia” pois diz-se
51 Conferir Lévy-Leblond, Jean-Marc (2003), “On the Nature of Quantons” in Science & Education 12, p. 499.
47
que os objectos quânticos, quanto à sua cinemática, são
como se fossem ondas. E quanto à dinâmica, são como se
fossem corpos materiais. Contudo, De Broglie não se
aventura a afirmar que, de facto, os objectos quânticos têm
a natureza das ondas e dos corpos.
Quer isto dizer que estamos de regresso à questão
original: “O que é um objecto quântico?”. O que não será
surpreendente, dado que havíamos dito que esta é a questão
que se encontra logo que se entra no labiríntico domínio
quântico. E, por consequência, encontra-se na génese da
Mecânica Quântica. Por esta via, regressamos igualmente à
questão lançada no final do capítulo anterior: “como se
pôde constituir a Mecânica Quântica deixando em aberto o
problema da natureza dos objectos quânticos?”
Por outro lado, no caminho que fizemos no sentido de
responder a estas questões, outras se juntaram. A saber: O
que quer dizer que a Mecânica Quântica é uma generalização
racional da Física Clássica?; o que entende Bohr por
generalização racional?; de que modo o princípio da
correspondência foi o instrumento para a construção da
Mecânica Quântica a partir das teorias físicas clássicas?;
o que se entende por “nível conceptual do princípio da
correspondência?”; de que modo este nível se relaciona com
os outros dois?; por que razão a Mecânica Quântica se
48
constituiu evitando responder à questão da natureza dos
objectos quânticos?
Para responder a estas questões pensamos ser preciso
tomar em atenção uma outra tese de Bohr sobre a Mecânica
Quântica. Esta tese, que a meu ver, é a basilar do
pensamento bohriano e, como tal, é mais fundamental que as
anteriores, é comummente designada na literatura de
relativa à Filosofia da Mecânica Quântica por “doutrina da
indispensabilidade dos conceitos clássicos”.
2.3. Doutrina da indispensabilidade dos conceitos
clássicos.
Não será totalmente pacifico o que Bohr entende como
“conceitos clássicos”. A meu ver, e aqui sigo o
entendimento geral dos exegetas dos escritos de Bohr ( como
Folse, Murdoch, Pringe, etc.), Bohr refere-se ao que se
considera serem os conceitos que constituem o léxico mais
fundamental da Física Clássica. Conceitos como “onda”,
“corpo”, “posição”, “momentum”, “campo”, “energia”,
“carga”, “massa” “frequência”, etc. No entanto, Don Howard
no seu artigo “What makes a Classical Concept Classical”,
de 1994, assumidamente opõe-se a esse entendimento. Don
Howard defende que, por “clássico”, Bohr quer dizer “uma
49
descrição em termos do que os físicos chamam de
misturas”52. Isto é, “um dispositivo formal que nos permite
proceder como se os sistemas físicos estivessem num estado
intrínseco bem definido”53.
O argumento de Howard não me parece porém convincente.
Pois, neste artigo, ao invés de expor uma análise dos
conceitos a que Bohr se refere quando se refere a conceitos
clássicos, Howard acaba por se centrar numa distinção, da
autoria do próprio, entre “descrições clássicas” e
“descrições quânticas” dos sistemas físicos. A distinguir
estas descrições estaria o facto, na terminologia de
Howard, de a primeira consistir nas tais “misturas” e a
segunda consistir na utilização de “termos puros”. Contudo,
em qualquer dos tipos de descrição, nada se afirma sobre se
os conceitos físicos usados são os mesmos ou não. Ou seja,
parece haver apenas uma distinção no tipo de descrição
(“puros” e “misturas”) em que os conceitos são utilizados
para descrever um determinado sistema físico, e não tanto
uma distinção entre os conceitos utilizados. Isto é, para
Howard, o mesmo conceito, o momento linear, por exemplo,
pode tomar o estatuto de clássico ou quântico conforme o
tipo de descrição do sistema. Porém, o argumento de Howard,
52 Conferir Howard, D. (1994), “What makes a classical concept classical? Towards a reconstruction of Niels Bohr’s philosophy of physics,” in Niels Bohr and Contemporary Philosophy (Boston Studies in the Philosophy of Science, Vol. 153), J. Faye and H. Folse, eds., Dordrecht: Kluwer, p. 203. 53 Idem, ibidem.
50
não só parece ser apenas de cariz nominalista, como acaba
por reforçar a tese que aqui se pretenderá defender que é
justamente pela insistência, por parte de Bohr, de se fazer
uso dos conceitos clássicos que, mesmo num sistema
quântico, os conceitos usados são, na sua essência, os
mesmos das teorias clássicas da Física.
Por outro lado, a seguinte afirmação do físico
dinamarquês parece dar aval à tese, que compartilho, de que
Bohr por “conceitos clássicos” refere-se aos conceitos que
pertencem à linguagem das teorias físicas clássicas:
“A interpretação, sem ambiguidades, de qualquer medição deve
ser essencialmente estabelecida em termos das teorias físicas
clássicas. E, neste sentido, deveremos dizer que a linguagem de
Newton e Maxwell será a linguagem dos físicos para todo o
sempre”54
Não parece haver margem para dúvidas que por “linguagem
de Newton e Maxwell” Bohr se refere à linguagem que é
constituída pelos conceitos da Mecânica Clássica e do
Electromagnetismo. Ou seja, ao que podemos denominar,
54 “We must, in fact, realize that the unambiguous interpretation of any measurement must be essentially framed in I terms of the classical physical theories, and we may say that in this sense the language of Newton and Maxwell will remain the language of physicists for all time.”, N. Bohr (1931), “Maxwell and modern theoretical physics” in Niels Bohr Collected Works, Vol. 6: Foundations of Quantum Physics I(1926–1932), J. Kalckar, ed. (North-Holland, Amsterdam, 1985), p. 360. (Tradução minha)
51
genericamente, por “conceitos da Física Clássica”. No
entanto, é impossível não notar como Bohr é categórico
quando afirma: “a linguagem de Newton e Maxwell será a
linguagem dos físicos para todo o sempre”. Não se trata,
certamente, de uma profecia. E assim sendo, em que se funda
esta certeza? Qual a razão pela qual para essa linguagem
será “para todo sempre”? Creio que Bohr adianta uma razão
na primeira parte da passagem citada. A saber: “a
interpretação de qualquer medição deve ser essencialmente
estabelecida em termos das teorias físicas clássicas”. Este
é, aliás, o sentido mais comum pelo qual se julgam os
conceitos clássicos como indispensáveis para Bohr.
Mas, o que quer dizer Bohr com “interpretação de
qualquer medição”? Uma medição, qualquer que ela seja,
consiste numa interacção entre dois sistemas físicos. O
sistema que é objecto da medição e o sistema que é agente
da medição, ou seja, o instrumento de medida. Como
consequência dessa interacção produz-se uma alteração do
estado físico do sistema que é agente da medição. Isto é,
produz-se um resultado da medida. Seja esse resultado
percebido como uma variação da posição de um ponteiro (como
no caso de uma antiga balança de pratos), seja esse
resultado percebido como uma variação dos dígitos presentes
num ecrã (como no caso de uma balança digital). Em qualquer
dos casos, uma medição passa, necessariamente, pela
52
percepção, por parte de um sujeito, da alteração do estado
– o resultado da medição - de um sistema físico
macroscópico – o instrumento de medida. Daí que uma medição
é seja sempre uma relação a três: o objecto da medida; o
instrumento da medida e o sujeito que percebe o resultado
da medida. Digo que “percebe”, pois não basta a percepção,
por parte do sujeito, de uma alteração do estado físico do
sistema medidor. É necessário que o sujeito estabeleça a
relação entre essa percepção e a alteração do estado físico
do objecto da medição. Sem se estabelecer essa relação
entre o objecto da medição, o instrumento de medida e o
sujeito não existe medição pois faltará um dos seus
elementos.
Note-se que, neste caso, o instrumento de medida é o
objecto da percepção directa do sujeito. E, como tal,
trata-se então, necessariamente, de um sistema físico
macroscópico. Daqui Bohr irá inferir que os instrumentos de
medida, porque são também eles sistemas físicos
macroscópicos, então são objecto das teorias físicas
clássicas. A meu ver, esta é uma das razões que Bohr
apresenta para defender a tese que a interpretação das
medições deve necessariamente ser estabelecida em termos
clássicos.
Logicamente, assim entendido, o argumento de Bohr é
circular e de cariz totalmente instrumentalista. Por um
53
lado, fica por justificar por que razão os objectos físicos
macroscópicos devem ser descritos para todo sempre pelas
teorias de Newton e Maxwell. Por que não poderá surgir uma
outra teoria, uma teoria não clássica, que descreva as
alterações de estado físico do instrumento de medida? Ou
mesmo, por que não podem esses estados do instrumento de
medida serem descritos pela Mecânica Quântica? Ao
considerar, sem apresentar justificação, que os objectos
macroscópicos são objectos exclusivos das teorias
clássicas, e dado que os aparelhos de medida são, em última
instância, objectos macroscópicos, Bohr, é conduzido à
conclusão de que a interpretação de qualquer medição deve
ser entendida em termos clássicos. Ou seja, conclui
simplesmente a sua própria hipótese de partida.
Por outro lado, o argumento de Bohr fixa-se apenas nas
variações de estado do agente de medida e, como tal,
suspende a referência à relação causal entre a alteração
dos estados do sistema agente da medida e do sistema que é
objecto da medida. Alteração de estado à qual é feita
corresponder a um valor quantitativo de uma grandeza física
determinada do objecto da medida. O que é a própria
essência do acto de medir.
No entanto, creio que a tese bohriana da
indispensabilidade dos conceitos clássicos pode ser
encontrada num outro sentido. Um sentido que é mais subtil,
54
mas mais profundo. E que, estranhamente, tem sido muitas
vezes subestimado, senão mesmo esquecido. Descobrimo-lo na
seguinte passagem:
“De acordo com a visão deste autor [Bohr], será um engano
acreditar que as dificuldades da teoria atómica [ou seja, da
Mecânica Quântica] podem ser contornadas por uma eventual
substituição dos conceitos da física clássica por novas formas
conceptuais […] Não me parece crível que os conceitos das
teorias clássicas sejam, alguma vez, supérfluos para a descrição
da experiência física. O reconhecimento da indivisibilidade do
quantum de acção e a determinação da sua magnitude depende, não
apenas da análise das medições serem baseadas em conceitos
clássicos, mas do facto de que somente uma aplicação desses
conceitos tornam possível relacionar o simbolismo da teoria
quântica com os resultados da experiência”55
Nesta citação é possível constatar que Bohr, num
primeiro momento, enfatiza que os conceitos clássicos são 55 “to the view of the author, it would be a misconception to believe that the difficulties of the atomic theory may be evaded by eventually replacing the concepts of classical physics by new conceptual forms. […] No more is it likely that the fundamental concepts of the classical theories will ever become superfluous for the description of physical experience. The recognition of the indivisibility of the quantum of action, and the determination of its magnitude, not only depend on an analysis of measurements based on classical concepts, but it continues to be the application of these concepts alone that makes it possible to relate the symbolism of the quantum theory to the data of experience.”, Bohr, Niels (1929), “Introductory survey to the Atomic Theory and the Description of Nature” in Niels Bohr Collected Works, Vol. 6: Foundations of Quantum Physics I(1926–1932), J. Kalckar, ed. (North-Holland, Amsterdam, 1985), p. 294. (Tradução minha)
55
essenciais para a interpretação das medições. É o sentido
da doutrina da indispensabilidade dos conceitos clássicos
que já nos havia surgido. Contudo, num segundo momento,
Bohr assinala que os conceitos clássicos são igualmente
necessários pois “somente uma aplicação desses conceitos
tornam possível relacionar o simbolismo da teoria quântica
com os resultados da experiência”. Ou seja, os conceitos
clássicos da física são essenciais para dar conteúdo
semântico ao formalismo da Mecânica Quântica. Assim, poder-
se-ia afirmar que, segundo Bohr, sem os conceitos clássicos
uma teoria quântica, qualquer que ela fosse, careceria
sempre de sentido.
Bohr reforça a posição anterior num artigo, que é pouco
discutido, onde desenvolve uma narrativa contrafactual da
historia da Física. Nesta, ele convida-nos a imaginar uma
história da física em que a Mecânica Quântica fosse
descoberta antes da Mecânica Clássica e do
Electromagnetismo:
“Imagine por um momento que as recentes descobertas
experimentais de difracção de electrões e efeitos fotónicos, que
cabem tão bem na mecânica quântica, fossem feitas antes do
trabalho de Faraday e Maxwell. Naturalmente, tal situação é
impensável, uma vez que a interpretação das experiências em
causa baseia-se essencialmente nos conceitos criados por esse
trabalho. Mas permitamo-nos, no entanto, ter uma visão de tal
56
fantasia e perguntemo-nos, em seguida, qual seria o estado da
ciência. Eu julgo que não seria dizer muito afirmar que
estaríamos mais longe de uma visão consistente das propriedades
da matéria e da luz do que Newton e Huygens estavam.”56
Ao considerar hipoteticamente que a Mecânica Quântica
poderia ter sido descoberta antes das teorias físicas
clássicas, Bohr imediatamente considera que isso seria
impossível. Impossível, pois – argumenta - a interpretação
das experiências que levou à descoberta da teoria quântica
requer o uso de conceitos clássicos, no caso apresentado,
dos conceitos do Electromagnetismo. Reconhece-se aqui o
primeiro sentido da doutrina de Bohr da indispensabilidade
dos conceitos clássicos. Bohr, no entanto, prescinde dessa
objecção e continua com a narrativa contrafactual para
chamar a atenção para o segundo sentido em que os conceitos
clássicos são, para ele, indispensáveis. E chega à
conclusão que a Mecânica Quântica por si só fornece uma
descrição menos adequada da luz e da matéria do que faz a
56 “Let us imagine for a moment that the recent experimental discoveries of electron diffraction and photonic effects, which fall in so well with the quantum mechanical symbolism, were made before the work of Faraday and Maxwell. Of course, such a situation is unthinkable, since the interpretation of the experiments in question is essentially based on the concepts created by this work. But let us, nevertheless, take such a fanciful view and ask ourselves what the state of science would then be. I think it is not too much to say that we should be farther away from a consistent view of the properties of matter and light than Kewton and Huygens were.”, Bohr, N. (1931), “Maxwell and modern theoretical physics” in Niels Bohr Collected Works, Vol. 6: Foundations of Quantum Physics I(1926–1932), J. Kalckar, ed., Amsterdam: North-Holland, 1985, p. 360. (Tradução minha)
57
Física Clássica. É uma conclusão surpreendente se julgarmos
(ou se julgássemos) a Mecânica Quântica como uma teoria
conceptualmente autónoma que superou as teorias clássicas
e, como tal, que poderíamos falar da primeira sem, mesmo
implicitamente, necessitar das segundas. Aqui, a tese de
Bohr é que a Mecânica Quântica sem a Física Clássica e os
seus conceitos seria uma teoria incompleta. Incompleta, não
no sentido do chamado debate EPR57 e do seu desenvolvimento
posterior – as relações de Bell - que tanta tinta têm feito
correr na literatura filosófica contemporânea sobre a
Mecânica Quântica. Isto é, incompleta porque existiria
algum elemento da realidade física que a Mecânica Quântica
deixa fora da sua descrição. Neste sentido, para Bohr, a
Mecânica Quântica é uma teoria completa. Sem dúvida.
Bastará recordar algum dos momentos da célebre
controvérsia58 que Bohr manteve durante cerca de trinta
anos com Einstein. A Mecânica Quântica é incompleta para
Bohr no sentido em que o significado do seu formalismo
depende dos conceitos da Física Clássica. No sentido em
que, sem os conceitos da Física Clássica, uma teoria
quântica, qualquer que ela seja, nada mais seria que uma
57 Refere-se aqui, obviamente, o debate que se gerou a partir da publicação, em 1935, do artigo “Is Quantum Mechanics complete?” de Einstein, Poldoski e Rose e da réplica de Bohr com um artigo homónimo, nesse mesmo ano de 1935. 58 Conferir O relato que o próprio Bohr faz dessa controvérsia em: Bohr, N. (1949), “Discussion with Einstein on Epistemological Problems in Atomic Physics” in Atomic Physics and Human Knowledge, New York: Kessinger Publishing.
58
muda construção matemática. Um corpo matemático carente de
significado físico. Como um monstro de Frankenstein,
imponente, eventualmente poderoso, mas sem alma. Ou seja,
uma teoria quântica, qualquer que ela seja, enquanto teoria
física, não é possível sem os conceitos clássicos que lhe
dão sentido, que a vivificam.
É precisamente nesta tese de Bohr sobre o estatuto dos
conceitos clássicos que, segundo Heisenberg, reside a
essência da chamada “Interpretação de Copenhaga”. Ela pode
ser enunciada de um modo lapidar:
“Os conceitos da física clássica formam a linguagem pela qual
descrevemos os arranjos experimentais e registamos os
resultados. Não podemos, nem devemos, mudar esses conceitos por
nenhuns outros […] não podemos, nem devemos, tentar melhorá-
los”59
É porque Heisenberg se assume aqui como porta-voz do
físico dinamarquês, que o seu tom adquire uma dimensão
inabitualmente peremptória: “não podemos, nem devemos,
mudar os conceitos” clássicos. Nem sequer “tentar melhorá-
los”. Estamos perante um quase imperativo ético. Um
mandamento: “não devemos”. Mas, por outro lado, trata-se de
59 “The concepts of classical physics form the language by which we describe the arrangement of our experiments and state the results. We cannot and should not replace these concepts by any others […] we cannot and should not try to improve them.” Heisenberg, Werner (1958), Physics and Philosophy, London: Penguin Books, p. 14. (Tradução minha)
59
uma condição prévia e imutável à da experiência, pois “não
podemos mudá-los por nenhuns outros”, nem tão pouco
“podemos melhorá-los”. Neste sentido, poder-se-ia dizer que
os conceitos clássicos da Física surgem com a força de um a
priori, de uma exigência transcendental. Pois esses
conceitos clássicos seriam prévios à experiência e,
simultaneamente, condição de possibilidade de descrição e
interpretação dos resultados desta. Algo que é, aliás, e
sem surpresa, muitas vezes assinalado por Heisenberg60.
Estamos perante um ponto de grande significado na exegese
dos textos de Bohr. Na verdade, é precisamente neste
sentido, isto é, tomando Bohr como um paladino do dito
carácter apriorístico dos conceitos clássicos, que diversos
filósofos da física como Pringe61, Falkenburg62, Bitbol63,
Petitot64, Honner65, Von Weizsäcker66, entre outros,
tentaram, e continuam a tentar, desenvolver ou encontrar
uma fundação transcendental para a Mecânica Quântica.
60 Conferir, por exemplo, Heisenberg, Wener (1959),” A descoberta de Planck e os problemas filosóficos da física atómica” in Discussione sulla física moderna (tradução para Português por Gita Guinsburg “Problemas da Física Moderna”), São Paulo: Perspectiva, p. 18. 61 Conferir Pringe, Hernán (2007), Critique of the Quantum Power of Judgment, Berlin: De Gruyter. 62 Conferir Falkenburg, Briggitte (2007), Particle Metaphysics: A critical Account of Subatomic Reality, Berlin: Springer. 63 Conferir Bitbol, M. (1998), “Some Steps Towards a Transcendental Deduction of Quantum Mechanics” in Philosophia naturalis, 35, pp. 253-280. 64Conferir Petitot, J. (1991). La philosophie transcendantale et le problème de l’objectivité. Paris: Osiris. 65 Conferir Honner, John (1987), The description of Nature: Niels Bohr and the Philosophy of Quantum Physics, Oxford: Clarendon press. 66Conferir Von Weizäcker, C. (1952), The world view of physics, Chicago: Chicago University Press.
60
Grande parte da literatura filosófica contemporânea sobre a
teoria quântica moderna navega nesse mar. Logicamente, de
um modo ou de outro, todos os filósofos da física referidos
tomam Bohr como um kantiano. Alguns, como Hooker67,
Honner68, Pringe69, Catherine Chevalley70 e Steen Brock71, e
recorrendo às palavras de Patrícia Kauark-Leite, “tentam
mesmo estabelecer um paralelo próximo entre o pensamento de
Kant e Bohr”72. Porém, e esta é uma dificuldade
consistente, Bohr nunca se reconheceu como membro de tal
família filosófica. Aliás, curiosamente, Bohr nunca se
refere a Kant em nenhum dos seus textos sobre Física
Quântica. Será uma estranha ausência pois Bohr era
conhecedor das obras do gigante filosófico de Königsberg.
Afinal, Christian Bohr, pai de Niels Bohr, leccionava Kant
na Universidade de Copenhaga. E é bem conhecida a
existência de uma proximidade pessoal e intelectual entre
Bohr e o neo-kantiano Harald HØffding73. Mas, a meu ver,
67 Conferir Hooker, C. A. (1972). “The nature of quantum mechanical reality”, in Paradigms and Paradoxes, Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, pp. 135-172. 68 Conferir nota de rodapé nº 65. 69 Conferir nota de rodapé nº 61. 70 Conferir Chevalley, C. (1991), “Glossaire”, in N. Bohr, Physique atomique e connaissance humaine. Paris: Gallimard, pp. 345-567. 71 Conferir Brock, S. (2003) Niels Bohr’s Philosophy of Quantum Physics, Berlin: Logos Verlag. 72 Conferir Patrícia Kauark-Leite (2010), “Transcendental Philosophy and Quantum Physics” in Revista Internacional de Filosofia, Campinas, v. 33, n. 1, jan.-jun de 2010, P.245. 73 Conferir, por exemplo, Faye, J. (1991), Niels Bohr: His Heritage and Legacy. An Antirealism View of Quantum Mechanics, Dordrecht: Kluwer; Moreira, Rui (2011), Contribuição para o estudo das origens do princípio da complementaridade, no prelo.
61
mais importante do que saber a razão da referida ausência,
interessa perguntar, novamente, pela razão da sua presença:
por que defende Bohr que os conceitos clássicos têm este
carácter que podemos classificar de apriorístico? por que
razão – regressando um pouco atrás - a linguagem dos
físicos será sempre a de Newton e de Maxwell? Ou, como diz
Schrödinger em carta dirigida a Bohr em 13 de Outubro de
1935:
“Devem existir razões claras e definidas que o levem [a
Bohr], repetidamente, a declarar que devemos interpretar as
observações em termos clássicos, de acordo com a sua própria
natureza. Sempre que você o afirma, fá-lo de forma tão clara e
definitiva, no indicativo, sem quaisquer reservas como
“provavelmente”, ou “pode ser”, ou “devemos estar preparados
para”, como se fosse a máxima certeza do mundo. Isso deve
pertencer à sua mais firme convicção – e eu não consigo entender
em que se baseia”74
74 […] there must be clear and definite reasons which cause you repeatedly to declare that we must interpret observations in classical terms, according to their very nature. Whenever you say that, you state it so definitely and clearly, in the indicative, without any reservations like “probably”, or “it might be”, or “we must be prepared for”, as if this were the uttermost certainty in the world. It must be among your firmest convictions - and I cannot understand what it is based upon” Carta de Schrödinger a Bohr datada de 13 de Outubro de 1935 in Niels Bohr Collected Works, Vol. 7: Foundations of Quantum Physics II (1933–1958), J. Kalckar, ed., Amsterdam: Elsevier (1996), p. 508. (Tradução minha)
62
A resposta directa de Bohr à questão de Schrödinger,
como assinalam75 os filósofos australianos Schlosshauer e
Camilleri, foi evasiva. Contudo, creio que podemos
encontrar a razão da certeza de Bohr e, indirectamente, da
perplexidade de Schrödinger, em passagens como a seguinte:
“[…] apenas com o auxílio das ideias clássicas é possível
atribuir um significado não ambíguo aos resultados da
observação.”76
Nesta passagem Bohr refere-se a “resultados da
observação” ao invés de “resultados da medição” ou
“resultados da experiência”. Trata-se, a meu ver de uma das
flutuações terminológicas habituais nos textos de Bohr e
até – creio que se poderá dizer – típicas em muitos físicos
embora estranhas aos olhos de um filósofo. Flutuação que é
compreensível se atendermos que, em Física, todas as
experiências e todas observações são medições77. E, como
75 Conferir Schlosshauer, Maximilian e Camilleri, Kristian (2008) The quantum-to-classical transition: Bohr’s doctrine of classical concepts, emergent classicality, and decoherence, pp. 25-26 (artigo on-line, em http://arxiv.org/abs/0804.1609v1). 76 “[…] only with the help of classical ideas is it possible to ascribe an unambiguous meaning to the results of observation.”, Bohr, N. (1929), “Introduction Survey to “Atomic Theory and the description of Nature”” in Niels Bohr Collected Works, Vol. 6: Foundations of Quantum Physics I(1926–1932), J. Kalckar, ed., Amsterdam: North-Holland, 1985, p. 295. (Tradução minha) 77 Segundo Max Jammer o filósofo inglês Norman Campbell terá leva ao extremo esta posição ao defender que a Física seria definível como a ciência da medição. Conferir Jammer, Max (1974), The Philosophy of Quantum Mechanics, New York: John Wiley & Sons, p. 471.
63
tal, “observação” e “experiência” podem ser aceitavelmente
tomados como sinónimos de “medição”. Por esta razão é,
usual, em Física, por um lado, referir-se o sujeito da
medição como “observador” e, por outro lado, vaguear-se
livremente entre os termos “observação”, “medição” e
“experiência” como se de sinónimos se tratasse.
Por outro lado, na passagem anterior encontramos o termo
“ideias clássicas” ao invés de “conceitos clássicos”. Será
tentador afirmar que também estamos perante mais uma
flutuação terminológica. Julgo, no entanto, que talvez
assim não seja. Mas, se esse não é o caso, então a que
ideias clássicas se refere Bohr? E que relação têm estas
com os conceitos clássicos? Em particular quando são usuais
as passagens nas quais Bohr afirma:
“[…] toda a experiência deve ser, em última análise, expressa
em conceitos clássicos”78
Creio pois ser legitimo afirmar que, segundo Bohr, tanto
a descrição física dos instrumentos, como a interpretação
dos resultados das experiências (ou medições, ou
observações), deve fazer uso dos termos clássicos. Já antes
havíamos encontrado, de certo modo, esta tese quando Bohr
dizia que “a interpretação, sem ambiguidades, de qualquer
78 “[…] all experience must ultimately be expressed in terms of classical concepts”, idem, p. 210. (Tradução minha)
64
medição deve ser essencialmente estabelecida em termos das
teorias físicas clássicas.”79. Contudo, nesta última, tal
como quando nos diz que “apenas com o auxílio das ideias
clássicas é possível atribuir um significado não ambíguo
aos resultados da observação”80, surge-nos a expressão
“não ambíguo”. E esta é, a meu ver, precisamente a chave
mestra (ou a palavra-chave) do pensamento Bohriano sobre a
Física dos Quanta. Em particular, permite-nos aceder ao
fundamento da doutrina da indispensabilidade dos conceitos
clássicos. Encontramos esta expressão, novamente, numa
passagem de Bohr onde este procura ser mais esclarecedor
relativamente à referida doutrina dos conceitos clássicos:
“[…] É decisivo reconhecer que, por mais que o fenómeno
transcenda o domínio das explicações da Física Clássica, a
descrição deve, evidentemente, ser expressa em termos clássicos.
O argumento é simplesmente que pela palavra “experimento”
referimo-nos a uma situação onde podemos dizer a outros o que
fizemos e o que aprendemos e, como tal, o relato do arranjo
experimental e dos resultados da observação deve ser expresso
numa linguagem não ambígua com a aplicação adequada da
terminologia da física clássica”81
79 Conferir página 50. 80 Conferir página 62. 81 […] “It is decisive to recognize that, however far the phenomena transcend the scope of classical physical explanation, the account of all evidence must be expressed in classical terms. The argument is simply that by the word “experiment” we refer to a situation where we can tell others what we have done and what we have learned and that,
65
Na primeira parte desta citação surge-nos, colocada em
itálico pelo próprio Bohr, de forma muito clara, a doutrina
da indispensabilidade dos conceitos clássicos: “a descrição
deve, evidentemente, ser expressa em termos clássicos”.
Porém, para além do simples enunciar da referida doutrina,
Bohr acrescenta aqui que esta se aplica “por mais que o
fenómeno transcenda o domínio das explicações da Física
Clássica”. Em particular, aplica-se ao domínio quântico.
Mas, mais importante que isso, enfatiza que os conceitos
clássicos são condição geral de descrição de um fenómeno82
físico qualquer. Ou seja, reencontramos aqui o alegado
carácter apriorístico destes conceitos.
Portanto, a primeira parte da citação anterior leva-nos
apenas a reencontrar alguns dos elementos essenciais da
referida doutrina. Mas o mesmo já não poderá ser dito em
relação à segunda parte. Nesta, Bohr acrescenta algo.
Nomeadamente que quando nos referimos a uma experiência
referimo-nos a “uma situação onde podemos dizer a outros o
therefore, the account of the experimental arrangement and of the results of the observations must be expressed in unambiguous language with suitable application of the terminology of classical physics” Bohr, N. (1949), “Discussions with Einstein on epistemological problems in atomic physics” in Atomic Physics and Human Knowledge, New York: Kessinger Publishing, p.39. (Tradução minha) 82 O termo “fenómeno” surge aqui, e daqui em diante, tal como é habitual no contexto da Física, não significando “o que aparece aos sentidos” ou o “objecto da percepção”, mas como “evento”. Por exemplo, a levitação magnética diz-se um fenómeno quântico macroscópico. Não porque observamos um corpo suspenso no ar, mas porque é uma situação física pela Mecânica Quântica
66
que fizemos e o que aprendemos”. Isto é, Bohr assinala que
a marca mais fundamental de uma experiência científica não
será tanto o confronto entre a teoria e a natureza, mas a
comunicabilidade do que foi realizado e dos seus
resultados. Não é surpreendente que assim seja. Afinal, a
Ciência é uma empresa necessariamente colectiva. Não só
dentro de uma geração, mas entre gerações.83 E, como tal,
só se efectiva quando é posto em comum o que foi
desenvolvido por um indivíduo ou um grupo de investigação.
A Ciência não é labor de eremitas abnegados. E é isto mesmo
que entendo que Bohr pretende aqui realçar: a
comunicabilidade é uma condição essencial à Ciência. Por
consequência, as experiências e os seus resultados têm de
ser expressos numa linguagem não ambígua. Requisito que,
para Bohr, dentro da Física, só pode ser cumprido com o
recurso aos conceitos clássicos desta ciência84. Só aí, no
83 Conferir, Pombo, Olga (2006), Unidade da Ciência: Programas, Figuras e Metáforas, Lisboa: Edições Duarte Reis, p.139. 84 Contrariamente a este entendimento do pensamento de Bohr, David Favrholdt (Conferir Favrhodt, David (1993), “Niels Bohr’s views concerning language” in Semiotica, Volume 94, Issue 1-2, pp. 5–34) argumenta que o uso necessário dos conceitos clássicos justifica-se com o facto destes, implicitamente, estabelecerem-se através de uma distinção entre o sujeito e o objecto. Entre quem diz e o que é dito. Seria este o sentido de uma comunicabilidade não ambígua. Por consequência, defende Favrholdt, “a solitary physicist on a desert island may communicate with himself by writing down experimental results to be read later, etc. The decisive point is not the situation of communication, but unambiguity. Therefore, we might as well write 'unambiguous thinking' where Bohr writes 'unambiguous communication' or 'description'” (p. 10 do referido artigo). A meu ver este argumento está errado por três razões. Em primeiro lugar, a estrutura sujeito-predicado não é garante de não ambiguidade do que é dito. Em segundo lugar, Favrholdt escamoteia o facto de Bohr, como surge na citação a
67
recurso aos conceitos clássicos, a linguagem da Física,
como vimos, ganha sentido. Só esse sentido pode fundar a
sua objectividade. E só essa objectividade pode garantir a
não ambiguidade da comunicação entre pares. Neste sentido,
assinala Howard:
“Bohr via a doutrina dos conceitos clássicos como uma
consequência directa da sua doutrina da objectividade que,
afirma que o uso dos conceitos clássicos é condição necessária
para uma comunicabilidade não ambígua.”85
Não deixa de ser surpreendente que o pensamento de Bohr
se alicerce numa tese sobre a objectividade. Ele que tantas
e repetidas vezes é acusado de ter introduzido o
subjectivismo na Física. Nomeadamente, por ser confundido
como afim com a solução de Von Neumann para o chamado
problema da medição86. Mas compreende-se a razão pela qual
que esta nota se refere, entender por experiência “uma situação onde podemos dizer a outros”. Se é a “outros”, então não fará sentido algum defender que a comunicabilidade é para si mesmo (salvo caso de esquizofrenia…). Terceira e última razão, esta interpretação de Favrholdt é contrária à própria “doutrina da indispensabilidade dos conceitos clássicos”. Pois, da relação sujeito-predicato nada obriga a um recurso necessário dos conceitos da Física Clássica. 85 “Bohr regarded the doctrine of classical concepts as a direct consequence of his doctrine of objectivity, holding that the use of classical concepts is a necessary condition for unambiguous communicability.” Howard, D. (1994), “What makes a classical concept classical? Towards a reconstruction of Niels Bohr’s philosophy of physics,” in Niels Bohr and Contemporary Philosophy (Boston Studies in the Philosophy of Science, Vol. 153), J. Faye and H. Folse, eds., Dordrecht: Kluwer, p. 207. 86 Voltaremos a este assunto, mais tarde, neste capítulo. Conferir página 138 e seguintes.
68
Bohr, neste aspecto, tem sido tantas vezes mal
compreendido. Para Bohr, a objectividade não passa
directamente pela relação sujeito-objecto. Ela supõe a
relação comunicativa entre sujeitos. Para ser mais preciso,
as condições de possibilidade da comunicabilidade não
ambígua da experiência. Só que, para essa comunicabilidade
não ambígua “o uso dos conceitos clássicos é condição
necessária”. Assim, como indicava Howard, Bohr “via a
doutrina dos conceitos clássicos como uma consequência
directa da sua doutrina da objectividade”. O que Howard não
explica é porquê? Por que razão exige Bohr este caminho
indirecto? Por que razão não funda Bohr a objectividade
directamente na comunicabilidade entre sujeitos? Por que
exige esse caminho mais longo que obriga á intervenção
mediadora dos conceitos clássicos?
A nosso ver, a razão deve ser procurada no facto de só
os conceitos clássicos, como atrás procuramos mostrar,
atribuírem sentido às teorias físicas. Ou seja, a nosso
ver, a objectividade possível tem o seu fundamento na
abertura semântica dos conceitos clássicos ao mundo que
eles descrevem. É porque os conceitos clássicos abrem a
teoria ao mundo que só eles conferem objectividade à
teoria, que eles constituem a condição necessária de uma
comunicação não ambígua. Aí se funda também a
comunicabilidade que faz da ciência algo mais do que uma
69
congeminação solitária, isto é, algo que a ergue ao
estatuto de património colectivo.
Mas, regressemos uma vez mais à questão fulcral que tem
vindo a percorrer estas páginas e à qual falta ainda dar
uma resposta: onde se funda este pretenso estatuto
privilegiado dos conceitos da física clássica? Por que
razão os conceitos clássicos são os que não sofrem de
ambiguidade e, como tal, segundo o físico dinamarquês, são
aqueles de que os físicos terão sempre de fazer uso? Onde
se funda, em última análise, a doutrina bohriana dos
conceitos clássicos? A resposta não é directa. Apenas
tortuosamente alcançável.
Em primeiro lugar, tal como David Favrholdt assinala na
sua introdução geral ao décimo volume das obras completas
de Bohr:
“[…] Ele [Bohr] repetidamente faz-nos recordar do facto de
que a física clássica é um refinamento do uso descritivo da
linguagem comum, isto é, que os conceitos fundamentais da física
clássica são desenvolvidos a partir dos conceitos que fazemos
uso na nossa descrição quotidiana do que nos rodeia.”87
87 “[…] He [Bohr] often reminds us of the fact that classical physics is a refinement of the descriptive use of ordinary language, i.e. that the fundamental concepts of classical physics are developed from the concepts we use in our everyday description of our surroundings.” Favrholdt, David (1999), “General Introduction” in Niels Bohr Collect
70
Para Bohr, a linguagem da Física Clássica está, sempre
esteve e sempre estará contida na linguagem que utilizamos
quotidianamente. Ela existe em termos que usamos
quotidianamente para dizer o que hoje dizemos com
“rapidez”, “peso”, “calor”, “localização”, entre outros.
Termos existentes nas línguas naturais desde tempos muito
anteriores a Maxwell ou a Newton. Termos que, segundo Bohr,
são o material, em estado impuro, a partir do qual se
constitui o léxico fundamental das teorias físicas
clássicas. E, como tal, a linguagem da Física Clássica não
é tanto uma linguagem nova, com conceitos que ela mesmo
teria gerado, mas o resultado de um refinamento da
linguagem vulgar.
A chave aqui é – claro está – a palavra “refinamento”.
Palavra que, como assinala Favrholdt, surge repetidamente
nos textos de Bohr nas passagens em que se refere à génese
da linguagem da Física Clássica. Mas Favrholdt não
esclarece as seguintes questões fundamentais: Para Bohr, de
onde provêm esses termos impuros que estão presentes nas
línguas naturais? E o que quer ele dizer com “refinamento”
da linguagem comum?
A resposta à primeira destas questões surge-nos numa
brevíssima passagem da conclusão de um texto de Bohr 1928:
Works, Volume 10: Complementarity Beyond Physics (1928-1962), David Favrholdt ed. Amesterdam: Elsevier, 1999, p. XXXVII (Tradução minha).
71
“[…] cada palavra da linguagem refere-se à nossa percepção
comum”88
Se habitualmente Bohr se move na penumbra, aqui coloca-
se numa posição clara. Todos os termos da linguagem natural
têm como referente algo que é dado na nossa percepção
comum. Mais precisamente, da nossa percepção comum do mundo
físico. É Estamos na presença de uma tese marcadamente
empirista. Poderíamos, até, imaginar Bohr a dizer com Hume
que “todos os materiais do pensamento são derivados da
sensibilidade”89. E, como tal, nada com sentido pode ser
dito sobre o mundo físico que não remeta, em última
análise, para uma percepção recordada deste. Claro está que
a tese de Bohr de uma relação necessária entre as palavras
e os elementos da percepção comum do mundo físico é
dificilmente sustentável. Bastará que nos recordemos de
termos como “nada” ou “infinito”. Que percepção temos nós
do “infinito”? Ou do “nada”? Bohr poderia replicar dizendo-
nos que não temos a percepção do infinito, que chegamos a
este por um processo de idealização, mas que, na base dessa
idealização, está uma percepção, necessariamente finita, do 88 “[…] every word in the language refers to our ordinary perception.” Bohr, N. (1928), Bohr, N. (1928), “The Quantum Postulate and the Recent Development of Atomic Theory” in Nature, Volume 121, Issue 3050, p. 590. (Tradução minha) 89 Hume, David (1748), Essays Concerning the Human Understanding ( trad. port. De Artur Morão “Investigações Sobre o Entendimento Humano”, Lisboa: Edições 70 (1989)), p. 25.
72
mundo físico. Mais difícil seria o termo “nada”. Pois,
logicamente, entendendo-se “nada” como referindo-se ao que
é uma ausência de percepção, então, é seria por um lado
contraditório falar-se da percepção do “nada” e, por outro,
difícil seria entender o “nada” como idealização a partir
de uma percepção, inexistente e, em rigor, impossível. O
facto é que Bohr, tanto neste caso como em geral, raramente
se confronta com as dificuldades que podem ser colocadas às
suas teses. Tal como nunca tematiza ou sistematiza o seu
pensamento sobre a Física Quântica. Em defesa de Bohr
poder-se-á dizer, simplesmente, que não o faz porque não é
um filósofo. É um físico a pensar sobre a Física. E os
físicos, tipicamente, pensam a física de forma “pré-
critica”,fazendo uso do seu bem conhecido pensamento
axiomático-dedutivo, partindo de um lugar pretensamente
seguro a partir do qual se vai deduzindo sucessivamente as
suas implicações. Talvez por isso, a Bohr baste que seja
evidente – e será isso que é importante aqui focar – que,
por mais distintas que as línguas naturais sejam nas suas
ortografias, nas suas regras de sintaxe e nos seus léxicos,
elas são todas atravessadas transversalmente por um
movimento de abertura ao mundo que nelas se diz e por elas
apenas se pode conhecer e pensar. Sem o saber, Bohr está a
ressuscitar a antiga tese leibniziana (ou se quiser ir
ainda mais longe, cratiliana) segundo a qual as línguas
73
naturais estão, desde a sua origem, marcadas por uma
irrecusável abertura ao mundo, ou, como diz Olga Pombo a
propósito de Leibniz, por “imperceptíveis laços que as unem
ao mundo por elas visado”90. Ora, é justamente porque, como
Leibniz, Bohr pensa as línguas naturais como a sede do
sentido que ele pode defender que a física não pode
dispensar os conceitos da física clássica, porque eles nada
mais são do que um “refinamento” dos termos da linguagem
natural, termos esses que, pelo seu lado, se referem sempre
ao mundo através da percepção em que se fundam, ou, por
outras palavras, porque “[…] cada palavra da linguagem
refere-se à nossa percepção comum”91. Em última análise,
porque a Física tem necessariamente que trabalhar com
termos que fazem parte da nossa descrição quotidiana do que
nos rodeia, como “rapidez”, “peso”, “calor”, “localização”,
entre outros.
No entanto, estes termos, no contexto da sua utilização
quotidiana, sofrem de ambiguidades. Por um lado, dizemos,
por exemplo, que “o ar está pesado” ou que “esta caixa é
pesada”, sem distinguir o sentido do termo “pesado” em
90 Pombo, Olga (1997), Leibniz e o Problema de uma Língua Universal, Lisboa: Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, p. 255. 91 “[…] every word in the language refers to our ordinary perception.” Bohr, N. (1928), Bohr, N. (1928), “The Quantum Postulate and the Recent Development of Atomic Theory” in Nature, Volume 121, Issue 3050, p. 590. (Tradução minha)
74
ambas situações92. Por outro lado, dizer “esta caixa é
muito pesada” tem significado apenas relativamente ao
sujeito que profere a frase e para o momento considerado.
Mais tarde, a mesmo pessoa pode considerar que é “leve” o
que antes dizia ser “pesado”. Ou, para um outro, a tal
caixa, no momento inicial, pode ser “pouco pesada”. No
primeiro caso, o termo “pesado” é ambíguo pois pode ser
entendido em diferentes sentidos. No segundo caso, a frase
será vaga de sentido, pois refere-se à qualificação de uma
sensação particular e momentânea. Quando se diz “muito”,
logo se pode perguntar: Mas quanto é “muito”? E neste
sentido, a frase será vaga, imprecisa.
Em qualquer destes casos não pode existir, para Bohr,
comunicabilidade efectiva. Pois, em ambas as situações não
existe objectividade no que é dito. Como recorda o físico
dinamarquês:
“Por objectividade entendemos uma descrição por meio de uma
linguagem comum a todos a partir da qual as pessoas podem
comunicar umas com outras no domínio relevante”93
92 Para um físico as duas situações são claramente distinguíveis. No primeiro caso é feita referência o termo “pesado” refere-se à pressão do ar. No segundo caso é refere-se ao peso gravítico da caixa. 93 "By objectivity we understand a description by means of a language common to all in which people may communicate with each other in the relevant field." Bohr, Niels (1953) citado de Favrholdt, David (1999), “General Introduction” in Niels Bohr Collect Works, Volume 10: Complementarity Beyond Physics (1928-1962), David Favrholdt ed. Amesterdam: Elsevier, 1999, p. XXXVII (Tradução minha).
75
Bem entendido, a doutrina da objectividade de Bohr é,
como será claro, uma doutrina da inter-subjectividade. Que
se realiza em dois planos. Por um lado, no plano da
comunhão entre sujeitos da percepção do mundo físico. Por
outro lado, na partilha de uma linguagem comum, isto é, de
uma linguagem vulgar, natural, aberta ao mundo, a partir da
qual a física pode, por um processo de “refinamento”,
construir a linguagem da física.
Entende-se, pois, que para Bohr a linguagem da Física
Clássica seja o produto refinado da linguagem vulgar, no
sentido em que teria sido purificada das ambiguidades que
caracterizam aquela. Tornando-se assim a ambígua
referenciação ao mundo físico que se verifica nas línguas
vulgares, numa referenciação unívoca a esse mundo. E, na
medida em que os conceitos da Física Clássica são o produto
acabado desse refinamento, dessa operação de conquista da
univocidade, apenas eles possibilitam que um físico na sua
comunicação com os seus pares seja perfeitamente
compreendido. Isto é, apenas os termos da linguagem vulgar
(enquanto sede do sentido) depois de sujeitos a uma
operação de refinamento que permite apurar a sua
univocidade, garante a comunicabilidade. E apenas essa
comunicabilidade garante a objectividade. Não se pode pois
dizer que, para Bohr, a objectividade repousa unicamente na
comunicabilidade, entendida esta enquanto inter-
76
subjectividade. A objectividade em Bohr tem uma dupla raiz.
Ela funda-se na comunhão de sentido que une os falantes de
uma mesma língua vulgar (porque ela se refere sempre ao
mesmo mundo) e no refinamento que permite o acesso à
fixação unívoca do significado.
Assim, será característica essencial dos conceitos
clássicos da Física, e sua condição de objectividade,
possuírem uma dupla faceta. Por um lado, terem como
referente elementos relativos à percepção comum do mundo.
Portanto, ser sempre possível ilustrá-los, isto é, produzir
uma imagem que lhes dê sentido. Ou seja, é ser sempre
possível tornar presente (por via da imaginação, como diria
Kant) uma situação física concreta correspondente ao seu
campo referencial. Seja recorrendo à memória, seja
imaginando-se essa situação física. Por outro lado, é
também condição da objectividade desses conceitos clássicos
da Fisica o facto de terem conquistado a sua univocidade,
isto é, de terem conseguido a fixação do seu sentido. Terá
sido esse o trabalho realizado, entre outros, por Newton e
Maxwell.
Desta forma, quando um físico utiliza o termo “momento
angular” na sua comunicação inter-pares, segundo Bohr,
todos sabem exactamente o que está a ser dito. Sabem-no,
por um lado, porque dominam a linguagem refinada da Física
Clássica. Sabem-no, por outro lado, porque o conceito de
77
“momento angular” pode ser ilustrado imaginando-se (ou
recordando-se) uma situação física concreta a que o
conceito se refere, isto é, como diria Kant, porque ao
conceito podemos fazer corresponder uma imagem, ou melhor
uma regra de produção de imagens94. No caso presente, por
“momento angular” entende-se a quantidade de movimento de
um corpo em rotação. Algo que podemos ilustrar imaginando
uma roda de bicicleta em movimento. Quanto maior a
tendência de uma roda de bicicleta manter-se em movimento,
maior o momento angular.
Logicamente, o mesmo poderia ser dito para qualquer
outro conceito da física clássica.
Resta acrescentar que esta tese bohriana de uma conexão
referencial necessária entre os conceitos da Física e os
elementos concretos do mundo físico que comummente
percepcionamos pressupõe a existência desse mundo físico.
Existência que será prévia à linguagem e, como tal,
independente desta. Neste sentido, acompanho Popper quando
este afirma:
“[…] Bohr era, basicamente, um realista. Mas a teoria
quântica foi para ele, desde o início, um enigma”95
94 É justamente essa a função da imaginação em Kant. Ela produz a imagem correspondente ao conceito, ou melhor, a regra de construção dessas imagens. 95 “[…] Bohr was, basically, a realist. But quantum theory had been, from the very start, a riddle for him.” Popper, Karl (1982), Quantum Theory and the Schism in Physics, London: Routledge, p. 9.
78
Será ainda cedo para classificar o tipo de realismo que
o pensamento de Bohr sobre a Mecânica Quântica envolve96.
Mas talvez seja desde já possível afirmar que “Bohr era,
basicamente, um realista”. Como serão, de um modo ou de
outro, a generalidade dos cientistas antes e depois de
Bohr. Porém, o facto de ser realista não impede, pelo
contrario potencia, que, tal como a generalidade dos
grandes físicos da sua época (ou mesmo desde a sua época),
Bohr seja um homem confrontado com um enigma. O mesmo que
se faz eco neste trabalho: qual a natureza dos objectos
quânticos97.
Toda a linguagem em Física, em particular da que é dita
clássica, radica nos conceitos de “onda” e “corpo”. Pois, é
presumido que os objectos físicos assim se distinguem na
sua natureza: ondas e corpos. Falar em “momentum”, “massa”,
“impenetrabilidade”, “amplitude”, “fase” ou “difracção” (só
para dar alguns exemplos de termos fundamentais que
constituem a linguagem da física clássica) é falar nas
propriedades ora dos corpos, ora das ondas. Neste sentido,
afirma Bohr:
96 Conferir página 153 deste capítulo. 97 Conferir, por exemplo, Murdoch, Dugald (1987), Niels Bohr’s Philosophy of Physics, Cambridge: Cambridge University press, p. 46.
79
“Não deve ser esquecido que apenas as ideias clássicas de
partículas materiais e ondas electromagnéticas têm um campo de
aplicação sem ambiguidades”98
Esta frase leva-nos ao âmago do pensamento de Bohr sobre
a Física. Mais, leva-nos até mesmo ao âmago da própria
Física. Contudo, para o alcançar, há que fazer, uma vez
mais, uma pequena, mas capital, digressão.
2.4. As duas partículas puras da Física Clássica.
É transversal a quase todos os estudos críticos sobre a
Mecânica Quântica, a dificuldade em distinguir de forma
muito clara e precisa os termos “corpúsculo” e “partícula”.
A consequência dessa tão instintiva indistinção leva a que
se imagine ou se julgue as partículas quânticas, como os
electrões, como se fossem pequenos corpos, como se fossem
esferas diminutas. Porém, como aqui já se mostrou o domínio
quântico – e essa é a sua condição de acesso – não é uma
espécie de Liliput. Gostaria, portanto, de contribuir para
98 “It must not be forgotten that only the classical ideas of material particles and electromagnetic waves have a field of unambiguous application”, Bohr, N. (1931), “Maxwell and modern theoretical physics” in Niels Bohr Collected Works, Vol. 6: Foundations of Quantum Physics I (1926–1932), J. Kalckar, ed., Amsterdam: North-Holland, 1985, p. 359. (Tradução minha)
80
a clarificação entre os termos “corpúsculos” e
“partículas”.
Por “corpúsculo” julgo que se deve entender “um pequeno
corpo”. Claro está que o termo “pequeno” é relativo e, por
consequência, o termo “corpúsculo” também o será. A Terra
enquanto corpo material é um corpúsculo em comparação com o
Sol. Mas uma bola de futebol será um corpúsculo em
comparação com a Terra. No entanto, reconhecendo embora a
relatividade que afecta este termo, parece legitimo afirmar
que uma molécula, um átomo ou um núcleo, a terem uma
natureza corpórea, são corpúsculos tendo os humanos como
referencial.
Por seu turno, o termo “partícula” remete para a noção
de “parte mínima”, sem que, necessariamente, se refira a
entidades com propriedades corpóreas. Ou seja, é possível
conceber partes mínimas de entidades não corpóreas. Por
exemplo, uma onda é, em geral, decomponível linearmente em
outras. Isto é, uma onda é, em geral, decomponível em duas
ou mais ondas que adicionadas por sobreposição entre si
resultam na primeira. Destas últimas direi que são partes
da primeira e, na medida em que essas partes de ondas são
por sua vez decomponíveis em partes cada vez menores.
Assim, uma onda, tal como um corpo, em geral, é passível de
ser decomposto num conjunto de partes mínimas, ou seja num
conjunto de partículas. Mas já não poderíamos dizer que uma
81
onda é composta por um conjunto de corpúsculos. Nesta
assimetria percebe-se a diferença entre corpúsculo e
partícula. De uma onda eu posso dizer que ela tem
partículas. Mas não posso dizer que ela tem corpúsculos.
Isto mostra que o conceito de corpúsculo esta
necessariamente ligado ao conceito de parte de um corpo.
Pelo contrario o conceito de partícula não obriga a
referência ao corpo. Um corpo pode ter partículas mas uma
onda jamais poderá ter corpúsculos. Portanto, enquanto o
termo “corpúsculo” nos remete necessariamente para a
natureza dos objectos físicos, o termo “partícula” remete
unicamente para a relação mereológica entre um todo e as
suas partes. Por consequência, posso dizer que uma onda
pode ter partículas sem que isso constitua uma contradição.
E, deste modo, não é verdadeira a oposição entre
“partícula” e “onda” que é tão vulgar encontrar na
literatura, em geral, sobre a Mecânica Quântica. A
oposição, de facto, far-se-á entre “corpo” e “onda”. Ou, em
particular, no caso de corpos pequenos, entre “corpúsculo”
e “onda”. Algo que só é cuidado em alguma da literatura
filosófica de inspiração francesa sobre a Mecânica
Quântica99. Serve esta distinção principalmente para tornar
99 Por exemplo, Bachelard ao longo da sua obra refere-se sempre a corpúsculos. O mesmo sucede, embora com flutuações em D'Espagnat (conferir D’Espagnat (2006), On physics and philosophy, Princeton: Princeton University Press.) Porém, nenhum dos dois estabelece a distinção entre corpúsculos e partículas.
82
claro que as ondas, tal como nos corpos admitem partes
sucessivamente mais simples. Ou seja, a relação mereológica
linear que atribuímos aos corpos, quando se afirma que um
corpo é o compósito aditivo de corpúsculos, tem o seu
paralelo nas ondas. Por outro lado, desta relação
mereológica é permitido pensar num processo de decomposição
sucessivo dos corpos ou das ondas, em partes cada vez mais
simples. Sucessão levada ad infinitum até se alcançar a
mais simples das partes de cada um deles. Isto é, aquela
que não pode ser decomponível, mesmo em pensamento. Algo a
que designarei por “partícula pura”, visto ser a parte sem
partes, uma entidade somente obtenível por um processo
mental pensável, isto é, uma entidade ideal ou uma ideia.
No caso dos corpos, essa partícula pura é a ideia de corpo
pontual. No caso das ondas, essa partícula pura é a ideia
de onda plana sinusoidal. Pois, como Fourier mostrou,
qualquer onda é decomponível em ondas planas sinusoidais.
Por fim, a meu ver, as teorias físicas são definíveis
como a procura de uma resposta precisa a um conjunto
determinado de questões fundamentais. A Mecânica Clássica
pode ser definida como a procura da resposta precisa a duas
questões dirigidas, obviamente, aos objectos físicos: onde
está?; para onde vai? (ou, de onde vem?) Na tal linguagem
vulgar que usamos descuidadamente para descrever o que nos
rodeia poderíamos dizer que perguntar “onde está” é
83
procurar saber a localização. E, perguntar “para onde vai é
procurar saber o movimento. Porém, “localização” e
“movimento” só nos permitem responder às questões
características da Mecânica de forma ambígua. Posso dizer
que um livro, por exemplo “A Crítica da Faculdade do
Juízo”, está na segunda prateleira entre a “A Crítica da
Razão Pura” e o “Opus Postumum” e assim dizer a sua
localização. Contudo, não estou a dizer precisamente onde
está. As páginas respeitantes à introdução não estarão,
precisamente, na mesma localização que as páginas que
constituem a conclusão. Isto é, por terem espessura, não
estarei em condições de dizer precisamente a distância
entre dois destes livros. A distância entre capas será
diferente da distância entre contracapas.
Poderei igualmente dizer que retirarei um desses livros
na direcção do cimo da única mesa da sala e assim dizer o
seu movimento desde a estante. Porém, não estarei a dizer
precisamente “para onde vai”. E, em particular, não estarei
em condições de dizer quanto tempo levará o livro no seu
percurso entre a estante e o cima da mesa.
Dizer precisamente “onde está” é dizer a posição. Dizer
precisamente “para onde vai” (ou “de onde veio”) é dizer o
momentum. Se a Mecânica se caracteriza pela procura da
resposta às referidas questões, então um sistema físico –
constituído por um objecto físico, por exemplo - para a
84
Mecânica Clássica, fica completamente definido sabendo-se-
lhe a posição e o momentum. O que é, de resto, um teorema
bem conhecido e que aqui é reencontrado, não pela via
formal, como é tradicional, mas por uma via que se poderá
considerar conceptual.
Por outro lado, é relativamente a pedras, livros ou
bolas que dizemos que estão e vão. Quer dizer, não as
pedras, os livros ou as bolas mas unicamente corpos
indiferenciados, abstractos, isentos de qualidades, de
diferenciações internas. Significa isto que a Mecânica tem,
como seu objecto privilegiado, os corpos. E, por essa via,
não admirará que a grande metáfora da Mecânica Clássica
seja o jogo de bilhar. No qual saber “onde” e “para onde” é
tudo o que um jogador tem a considerar. É como se todas as
bolas do bilhar fossem iguais, equivalentes. Corpos
inertes, como se fossem meros pontos matemáticos
suficientemente inchados para se deixarem tocar pelo
exterior. É por isso que, a partir deste jogo, quase os
todos os conceitos da Mecânica Clássica podem ser
ilustrados.
Pois, como bem sabem os jogadores de bilhar, mesmo a
bola tem que ser pensada na sua relação à posição. Se há
pintas brancas no pano verde do campo de jogo para indicar
a posição em que as bolas de bilhar devem colocadas, é
porque se pretende assinalar a bola, na sua posição, tem
85
que ser reduzida à condição de ponto. O jogo de bilhar pode
prolongar ainda o seu estatuto de metáfora se pensarmos que
o jogador tem como objectivo central a previsão precisa do
movimento das bolas de bilhar na sua quantidade e sentido.
Mas para esse movimento, de quantidade e sentido preciso,
não há na língua natural uma palavra especifica. Pelo
contrario o físico, depois de reduzir as pedras, os livros
e as bolas ao conceito de corpo e depois de reduzir esta a
um ponto material, possui ainda um termo técnico que
identifica com precisão o movimento e o sentido desse ponto
material: o momentum. Ou seja, a Mecânica constitui-se pala
redução dos seres concretos do mundo natural aos corpos
abstractos e indiferenciados e destes àquilo que, aqui,
proponho designar por “partícula pura dos corpos”. O que
em Newton surge como “partícula material” ou “massa
pontual”100. Por outras palavras, a mecânica faz-se pela
redução dos objectos na sua concretude (pedras, livros,
etc.) a entidades abstracta e inertes, isto é, a corpos.
Mas, o movimento dessa redução, a sua tendência por assim
dizer inercial, vai prolongar-se até que do corpo fiquemos
apenas com o ponto.
Por sua vez, a meu ver, o Electromagnetismo Clássico
pode ser definido pela procura da resposta precisa a uma
única questão: qual a flutuação do campo electromagnético?
100 Conferir, capítulo III, página 225.
86
Existe aqui uma assimetria na quantidade e no tipo de
questões fundamentais entre o Electromagnetismo e a
Mecânica Clássica. É uma assimetria relevante. Que, para
já, importa somente aqui indicar, sem ainda a explorar ou
desenvolver. A esta assimetria voltaremos no próximo
capítulo. No entretanto, importa para já assinalar que a
questão fundamental do Electromagnetismo pode ser
desdobrada em duas: ao longo de um determinado tempo,
quantas vezes a flutuação do campo electromagnético perfaz
um ciclo, ou seja, realiza uma oscilação completa?; Qual a
magnitude dessa oscilação?
Perguntar pela quantidade de ciclos ao longo do tempo
será procurar saber o ritmo da oscilação. Ou a sua
frequência, mas esta entendida de forma vaga. E perguntar
pela magnitude da oscilação será procurar saber o seu
tamanho. No entanto, “ritmo da oscilação” e “tamanho da
oscilação” são termos ambíguos. De uma corda a vibrar, isto
é, a oscilar entre dois “pontos” fixos, posso dizer que
pulsa com um ritmo maior ou menor. A corda do mais grave de
um violoncelo oscila menos vezes, num mesmo tempo, do que a
corda do mais agudo de um violino. Porém, não poderei dizer
precisamente o quão um oscila mais do que o outro. Por
outro lado, posso dizer que uma oscilação é grande ou
pequena de tamanho, tendo-me como referencial. Mas com o
87
termo “tamanho” não estou a dizer precisamente a magnitude
da oscilação.
Dizer precisamente “a quantidade de oscilações completas
num certo tempo” é dizer-lhe a “frequência temporal”. Isto
é, a quantidade de ciclos por unidade de tempo. Dizer
precisamente a “magnitude da oscilação” é dizer-lhe a
“amplitude”. Isto é, a distância entre o eixo da oscilação
e o seu ponto mais elevado. Portanto, o electromagnetismo
tem como objecto as ondas, pois é relativamente a estas que
perguntamos pelo seu ciclo oscilatório e pela sua
magnitude. E não admirará que a grande metáfora do
Electromagnetismo seja a flutuação da superfície de um
líquido. As águas ordeiras de um lago, por exemplo. O campo
electromagnético é, justamente, pensado na literatura
científica a partir da analogia com a superfície de um
líquido. Porém, só se pode dizer precisamente qual o ciclo
de algo se esse ciclo se repetir constante e eternamente. E
da mesma forma só se pode dizer precisamente a frequência e
a amplitude de uma onda se esta for uma onda plana
sinusoidal. Ou seja, também o electromagnetismo opera uma
redução semelhante àquela que, como vimos, a mecânica leva
a cabo na passagem do objecto concreto ao corpo e deste ao
ponto. Para o electromagnetismo, é necessário passar das
ondas em geral para a ideia de uma partícula pura das
88
ondas, que em Electromagnetismo toma a designação “onda
electromagnética”.
Ou seja, podemos pois dizer que o corpo pontual (ou
partícula material) e a onda plana sinusoidal (ou onda
electromagnética) são os arquétipos, respectivamente, dos
corpos e das ondas.
É certo que a palavra arquétipo remete para uma relação
entre algo mais rico (o arquétipo) e algo mais pobre (a
sombra, a coisa, a materialidade). Ora, neste caso, é o
corpo (mais rico) que é reduzido à partícula material (
mais pobre)e a onda (mais rica) que é reduzida à onda plana
sinusoidal (mais pobre). Neste sentido seriam os corpos e
as ondas os arquétipos e não o contrario. No entanto, ao
inverter esta ordem platónica que a palavra arquétipo
transporta nas suas entranhas, pretendo chamar a atenção
para o encontro da Física com a matemática que neste
particular se opera. É porque quer matematizar o mundo que
a Física o reduz. Num primeiro passo, a corpos e ondas. E,
num segundo passo, reduz estes corpos e estas ondas a
partículas puras (tanto de corpos como de ondas). Só assim,
com esta dupla redução, tem-se julgado que a Física está em
condições de poder matematizar o mundo. Surpreendentemente,
seria possível inverter os termos desta relação. Poderíamos
dizer que é porque a Física reduz os seres do mundo a
corpos e ondas e estes a partículas puras, que se coloca em
89
condições de iniciar a grande operação de matematização do
real. No primeiro caso, o motor do desenvolvimento da
física é a vontade de matematizar. É essa vontade que está
na origem da redução do concreto ao matemático. No segundo
caso, é porque já foi operada essa redução, porque o mundo
deixou de ser povoado por objectos coloridos, espessos,
preenchidos de qualidades que eu posso olha-los como puros
arquétipos.
Em qualquer dos casos, quando Bohr afirma que “apenas as
ideias clássicas de partículas materiais e ondas
electromagnéticas têm um campo de aplicação sem
ambiguidades”101, afirma-o, justamente, porque apenas
relativamente a estas se pode responder, precisamente, às
questões que caracterizam tanto a Mecânica, como o
Electromagnetismo. Só de um corpo pontual se poderá dizer
que possui uma posição precisa. Só de uma onda plana
sinusoidal se poderá dizer que possui uma frequência
temporal precisa. Isto é, só um corpo pontual e uma onda
harmónica plana possuem um valor numérico bem determinado
nas suas propriedades.
Recapitulemos. Para Bohr, como vimos, existe um Mundo
físico que comummente percepcionamos. Mundo físico a que
nos referimos quando falamos em “localização”, “movimento”,
“ritmo da oscilação”, “tamanho da oscilação”, etc. Termos
101 Conferir página 79, neste mesmo capítulo.
90
que são transversais às línguas naturais e é com os quais
verbalizamos a percepção do Mundo físico. Isto é, são os
termos com os quais dizemos as propriedades dos corpos e
das ondas. Contudo, como também vimos, os termos da
linguagem natural são ambíguos. E, em particular, não
permitem responder com precisão às questões que
caracterizam a Mecânica e o Electromagnetismo.
Neste sentido, a linguagem dos físicos resulta,
essencialmente, da transformação de termos como
“localização”, “movimento”, “ritmo da oscilação” ou
“tamanho da oscilação”, em termos que se referem
quantitativamente à “localização”, ao “movimento”, ao
“ritmo” e ao “tamanho”. Respectivamente, “posição”,
“momentum”, “frequência temporal” e “amplitude”. Esta
transformação é, como vimos, aquilo a que Bohr designa por
refinamento. Tornar um discurso que se refere às
propriedades, portanto, qualificativo, num discurso
referente à quantificação, ao quantitativo. E neste sentido
poder-se-ia afirmar que a linguagem da Física Clássica
obriga a passar da linguagem natural à linguagem
matemática. Enquanto esta (a linguagem natural) se refere à
realidade física que comummente experienciamos, aquela (a
linguagem da física) referir-se-ia unicamente à depuração
quantitativa dessa realidade.
91
Como consequência desta transformação, os conceitos
clássicos são representáveis por símbolos de valor numérico
variável. Ou simplesmente, por uma variável. Portanto, a
univocidade dos conceitos clássicos é assegurada pelo facto
de elas serem susceptíveis de tradução em formalismos
matemáticos e sistemas de equações.
Assim, os físicos sabem precisamente do que estão a
falar quando falam em “momento angular” porque existe uma
fórmula matemática que o define. No entanto, a
objectividade dos conceitos clássicos não se esgota na sua
univocidade, isto é, na sua possibilidade de tradução em
linguagem matemática. Essa objectividade, como também
vimos, está fundada na abertura ao mundo que caracteriza a
linguagem natural. Como vimos, é aí que os conceitos
clássicos encontram o seu sentido. Portanto, quando Bohr
afirma que “apenas as ideias clássicas de partículas
materiais e ondas electromagnéticas têm um campo de
aplicação sem ambiguidades” ele não está a referir-se ao
problema da objectividade dos termos da Física Clássica,
mas à sua univocidade. O que Bohr está a dizer é que toda a
linguagem da Física, ao querer-se (ao exigir-se) objectiva,
tem como referente, necessariamente, o representante ideal
dos corpos e das ondas: o corpo pontual e a onda plana
sinusoidal. Em, particular, as partículas materiais e as
ondas electromagnéticas. Na verdade, apenas estes
92
arquétipos garantem a univocidade dos conceitos clássicos.
Pois, a univocidade dos conceitos clássicos é assegurada
pelo facto das propriedades quantitativas serem traduzíveis
em símbolos matemáticos.
Por fim, se Bohr afirma que a linguagem de Newton e de
Maxwell será sempre a dos físicos, será porque julga que o
mundo físico, necessariamente, só pode ser descrito em
função ou das propriedades dos corpos, ou das propriedades
e das ondas. Pois, a Mecânica Clássica é a Física dos
objectos físicos com propriedades corpóreas. E, por outro
lado, o Electromagnetismo Clássico é a Física dos objectos
físicos com propriedades ondulatórias.
2.5. A Pentadoxia.
Do que acabamos de ver no paragrafo anterior resulta
que, a nosso ver, é legitimo afirmar que o pensamento de
Bohr sobre a Mecânica Quântica se funda em cinco
pressupostos. Pressupostos que Bohr não explicita nem
submete à critica, isto é, extraídos daquilo que o senso
comum julga serem os objectos físicos. Neles se suporta o
edifício da Mecânica Quântica e a generalidade das leituras
filosóficas que sobre ela tem sido propostas e que. em
93
geral, são designadas por "Filosofia da Mecânica Quântica".
Cinco pressupostos a que designarei por pentadoxia.
1) Os objectos físicos distinguem-se, quanto à sua
natureza, em ondas e corpos.
2) Todos os objectos físicos são detentores de
propriedades. E neste sentido, diz-se que são
substanciais.
3) Qualquer objecto físico é decomponível em partes
homeómeras, isto é, em partes cuja natureza é
idêntica ao todo de que são partes.
4) Todas propriedades quantitativas dos objectos físicos
têm, intrinsecamente, um valor bem determinado.
5) Quanto à sua modalidade, os objectos físicos,
enquanto possíveis, são idênticos aos objectos
físicos enquanto actuais. E, nessa actualização os
objectos físicos não alteram a sua natureza.
Estamos perante um conjunto de pressupostos que tem sido
admitidos como óbvios, isto é, que não tem sido objecto de
discussão critica, nem do lado dos produtores da mecânica
quântica, nem do lado daqueles que procuram pensar os
adquiridos da mecânica quântica. Percorrendo-se as páginas
da literatura filosófica sobre a Mecânica Quântica não
encontramos quem duvide que os objectos físicos são
94
distinguíveis quanto à sua natureza em ondas e corpos102.
Pelo contrário, esta distinção é sempre tomada como ponto
seguro de partida. Ao dizer-se, como se disse no capítulo
anterior, que todas vias existentes na literatura
filosófica sobre a mecânica quântica se reportam
directamente ao labiríntico dualismo onda-corpúsculo, isto
é, o dão como condição de acesso ao próprio domínio
quântico, é porque, precisamente, todas essas vias
pressupõem que os objectos físicos se distinguem, quanto à
sua natureza, em ondas e corpos. O que é deveras
surpreendente. Como se explica uma aceitação tão acrítica e
tácita que os objectos físicos não possam ser concebidos
senão como ondas ou como corpúsculos? Por que não se
encontra uma procura por uma concepção de objectos físicos?
De forma igualmente surpreendente, todos os
especialistas desta área parecem saber o que é um corpo e
o que é uma onda. Dois conceitos que nunca se encontram
analisados, embora constantemente evocados.
É igualmente assumido103 que a distinção entre onda e
corpo reside numa clara distinção entre as propriedades
destes dois tipos de objectos físicos. É defendido, amiúde,
que os corpos são entidades que possuem a propriedade da
102 Conferir, por exemplo, Epperson, Michael (2004), Quantum Mechanics and the Philosophy of Alfred Whitehead, Nova Iorque: Fordham University Press, p. IX. 103 Conferir, por exemplo, Aerts, Diederik (1998), “The Entity and Modern Physics” in Interpreting Bodies (Ed. Elena Castellani), Princeton: Princeton University Press, p.226.
95
localização enquanto as ondas são entidades que possuem a
propriedade de interferência à distância, seja com outras
ondas, seja consigo mesmo. Em resumo, esta presumível e
clara diferença entre corpo e onda nunca é tematizada. Ela
é apresentada como se todos soubessem claramente em que
consiste.
De forma ainda mais radical, é presumido que ondas e
corpos são entidades detentoras de propriedades, isto é,
que são substâncias. Sendo que, por substancia é
invariavelmente suposto aquilo que subjaz às qualidades,
aquilo que as suporta, o suporte metafísico das
qualidades104. Trata-se de uma identificação demasiado
rápida que passa ao lado, e aparentemente ignora, que o
conceito de substância é um dos mais antigos e trabalhados
conceitos da filosofia. Como explicar este esquecimento?
Como compreender este quase recalcamento? Duas razões
podem, a meu ver, ser apresentadas. Uma tem a ver com a
História da Física, nomeadamente com a forma como Newton
incorporou o conceito de substância na Física, como se verá
no próximo capítulo. Uma segunda ordem de razões tem a ver
com o facto de o conceito de substância como suporte de
propriedades ser aquele que mais frontalmente é desafiado
pela mecânica quântica. Pois, como foi visto no capítulo
104 Conferir, por exemplo, Falkenburg, Brigitte (2007), Particle Metaphysics, Berlim: Springer, p. 120, p.331.
96
anterior, a dupla natureza dos objectos quânticos desafia
esse conceito de substância.
Assume-se, igualmente, que o todo é decomponível em
partes cuja sua natureza é a igual à natureza do todo de
que essas partes são parte. E como tal, numa aproximação
quase inevitável às teses atomistas, podemos pensar num
processo de decomposição continuada até que cheguemos à
ideia de uma parte sem partes. Isto é, a parte simples ou o
que designei por partícula pura. Nesta ordem de ideias,
havendo duas espécies de objectos físicos, haverá duas
espécies de partículas puras ou arquétipos: nos corpos, a
partícula material ou corpo pontual; nas ondas, a onda
plana sinusoidal.
Mas, ao dizer-se que a parte tem a mesma natureza do
todo, então temos que admitir que as propriedades são as
mesmas tanto para o todo como para a parte. E neste
sentido, o todo surge como um mero agregado de partes.
Assim, é porque se assume que a parte é da mesma natureza
do todo, que podemos dizer a velocidade do todo indicando a
velocidade da parte. Deste modo, o todo pode ser
representado pela parte. Em particular, pela partícula pura
uma vez que só estas podem dar resposta, sem ambiguidades,
às questões que caracterizam cada uma das teorias físicas.
Ainda por outro lado, ao caracterizar-se a Física como a
procura de resposta precisa a questões como “onde está?”,
97
assume-se105 que esta questão terá uma resposta. Isto é,
que, intrinsecamente, num dado momento, um objecto físico
terá uma posição e um momentum ou uma frequência e uma
amplitude bem determinadas. Ou seja, que a cada instante,
os objectos físicos possuem valores bem determinados nas
suas propriedades quantitativas.
Por fim, quanto à modalidade, na extensão de se aceitar
que a cada instante os objectos físicos são completamente
determinados nos valores das suas propriedades
quantitativas aceita-se que as propriedades manifestadas
num acto de medição existem, antes desta, em potência no
objecto. E, como tal, caracterizando-se os corpos e as
ondas pelas propriedades que são detentores, assume-se que
na actualização de uma dessas propriedades não existe
alteração da natureza. O corpo actualizado é idêntico, isto
é, tem a mesma natureza, do corpo enquanto possibilidade.
Em conclusão, os conceitos clássicos da Física e, como
tal, a própria Física desde Newton, radicam nestes cinco
postulados extraídos de um “senso comum” sobre a natureza
dos objectos físicos. Senso comum que, como vimos,
encontramos com espanto e choque na textura onde se suporta
grande parte da literatura filosófica sobre a Mecânica
Quântica. Especialmente quando esta se centra, como
105 Conferir, por exemplo, Rae, Alastair (2004), Quantum Physics: illusion or reality?, (2ed) , Cambride: Cambridge University Press, p. 106.
98
veremos, no chamado problema da medição106 e nos decorrentes
debates sobre as interpretações, o realismo ou a violação
das relações de Bell. Senso comum que em Bohr é
transcendentalizado. Pois, como já vimos, ao entender-se
por experiência o que é comunicável, e ter como a condição
prévia da comunicabilidade a utilização dos conceitos
clássicos, então este senso comum torna-se a própria
condição de possibilidade da experiência em geral. Por esta
via creio que o pensamento de Bohr sobre a Mecânica
Quântica deve ser classificado de “transcendentalista”.
Contudo, e como bem ressalva Kauark-Leite107, Bohr não é um
kantiano. Afinal, embora os conceitos clássicos da física
possuam um carácter apriorístico, não são puros. Pois, na
sua génese, são extraídos da experiência. De uma
experiência comum do mundo físico. Uma experiência que
Newton e Maxwell conceptualizaram na construção das suas
teorias, fixando-lhes uma semântica unívoca.
Considerando que todo pensamento de Bohr sobre a
Mecânica Quântica é suportado, no seu mais fundamental, na
pentadoxia dos objectos físicos da Física desde Newton,
percebe-se agora que a doutrina dos conceitos clássicos não
é nada mais que a expressão dessa ontologia implícita. E
por via desta última os conceitos clássicos da física são
106 Conferir, neste capítulo, página 156. 107 Conferir Patrícia Kauark-Leite (2010), “Transcendental Philosophy and Quantum Physics” in Revista Internacional de Filosofia, Campinas, v. 33, n. 1, jan.-jun de 2010, P.249.
99
os únicos objectivos. São os únicos que podemos conhecer de
forma clara e distinta. Para Bohr, os físicos só sabem
precisamente do que estão a falar quando falam em posição,
velocidade, momentum, massa, frequência temporal, amplitude
e todos aqueles que se derivam destes. E, consequentemente,
alicerçando-se na pentadoxia dos objectos físico, para Bohr
é inescapável concluir que a linguagem dos físicos será
sempre a linguagem da Física Clássica.
No entanto, podemo-nos perguntar: E o que sucede com
conceitos da Física Quântica como, por exemplo, “spin”? A
realidade é que, segundo Bohr, não sabemos exactamente do
que estamos a falar quando falamos de “spin”. O mais
compreensível que podemos dizer é que se trata de algo
análogo ao momento angular. Isto é, é que se refere à
quantidade de movimento de algo a rodar sobre si mesmo.
Como um pião. Ou uma bola. Seriamos assim tentados a
imaginar que um electrão seria esférico e sentir que
estamos a compreender o que dizemos por “spin”. Apenas para
sermos desiludidos quando constatamos que, segundo a
Mecânica Quântica, os valores possíveis do spin para um
electrão seriam ½ ou – ½. Isto é, que o electrão dá uma
volta completa sobre si mesmo quando roda 180º. Uma frase
sem sentido. Neste sentido, quando falamos de “spin” Bohr
dir-nos-á que não sabemos realmente do que falamos. Apenas
podemos estabelecer uma analogia com algo que sabemos o que
100
é, como o “momento angular”. Ou seja, o conceito quântico
de spin, como todos conceitos da Mecânica Quântica são
generalizações de conceitos da Física Clássica. No conceito
de presente, do conceito de “momento angular”. Esta é a
função do nível conceptual do princípio da correspondência.
Esta é a via pela qual a Mecânica Quântica constitui uma
generalização da Física Clássica. E, por esta razão, o
princípio da correspondência tem um carácter instrumental.
Poderemos agora fazer o caminho inverso e observar o
princípio da correspondência em toda a sua extensão.
2.6. Princípio da correspondência: nível conceptual
Como já aqui foi visto, se é possível estabelecer uma
correspondência geral entre a Mecânica Quântica e as
Teorias Físicas Clássicas, é-o, principalmente, pelos
conceitos de onda e corpo. O conceito de onda no caso da
correspondência entre a Mecânica Quântica e o
Electromagnetismo. O conceito de corpo no caso da
correspondência entre a Mecânica Quântica e a Mecânica
Clássica. Portanto, por um lado, podemos tomar a
correspondência formal como resultante da existência de uma
correspondência conceptual a que esse formalismo se refere.
101
Por outro, podemos entender que o princípio da
correspondência estabelece uma correspondência entre
linguagem da Física Quântica e a linguagem da Física
Clássica. Correspondência esta que atinge apenas todo o seu
alcance no contexto da Mecânica Quântica.
A doutrina da indispensabilidade dos conceitos clássicos
revela-nos que, mais do que uma referência numérica lá no
limite onde a constante de Planck pode ser “ignorada”, e
mais do que uma analogia parcial entre formalismos, o
princípio da correspondência estabelece como condição, a
priori, que uma qualquer teoria física, e a Mecânica
Quântica em particular, tem de ser constituída de modo a
que os seus conceitos tenham correspondência com os
conceitos da Física Clássica. Pois, só através destes
últimos o formalismo de uma teoria física poderá adquirir
significado. Só através destes haverá objectividade. Esta
mesma leitura do princípio é nos dada por Bohr na seguinte
afirmação:
“[…] a necessidade de fazer um uso extensivo […] dos
conceitos clássicos, dos quais depende, em última análise, a
interpretação de toda a experiência, deu origem à formulação do
chamado princípio da correspondência, que expressa os nossos
102
esforços de utilizar todos os conceitos clássicos dando-lhes uma
adequada reinterpretação quantum-teórica” 108
Ou dito na forma que surge com mais frequência nas suas
obras:
“O princípio da correspondência expressa a tendência de se
fazer uso, durante o desenvolvimento sistemático da teoria
quântica, de todas as características das teorias clássicas numa
transcrição racional apropriada ao contraste fundamental entre o
postulado quântico e as teorias clássicas”.109
Através desde entendimento do princípio da
correspondência, a que poderemos chamar de nível conceptual
do Princípio da Correspondência, Bohr recusa que a Mecânica
Quântica possa ser aplicada ao domínio das teorias
clássicas ou mesmo que as possa vir a substituir. Pelo
108 “[…] the necessity of making an extensive use, nevertheless, of the classical concepts, upon which depends ultimately the interpretation of all experience, gave rise to the formulation of the so-called correspondence principle which expresses our endeavours to utilize all the classical concepts by giving them a suitable quantum-theoretical re-interpretation.” Bohr, N. (1929), “Introductory Survey to ”The Atomic Theory and the description of Nature” in Niels Bohr Collected Works, Vol. 6: Foundations of Quantum Physics I (1926–1932), J. Kalckar, ed., Amsterdam: North-Holland, 1985, p. 286. (Tradução minha) 109 “The correspondence principle expresses the tendency to utilise in the systematic development of the quantum theory every feature of the classical theories in a rational transcription appropriate to the fundamental contrast between the postulates and the classical theories.”, Bohr, N. (1925), “Atomic Theory and Mechanics” in Niels Bohr Collected Works, Vol. 5: The Emergence of of Quantum Mechanics (Mainly 1924–1926), Stolzenburg, Klaus ed., Amsterdam: North-Holland, 1984, p. 277. (Tradução minha)
103
contrário, o que defende é que a Mecânica Quântica deve ser
entendida como uma teoria que se afasta o mínimo possível
das teorias físicas clássicas. Ou melhor, que a Mecânica
Quântica é, de algum modo, uma generalização das teorias
clássicas da física. Como se defende aqui, que a Mecânica
Quântica é uma generalização racional das teorias
clássicas.
Mas se as teorias físicas clássicas se constroem no
suposto implícito que os objectos físicos são ondas ou
corpos, como continuar a ser “clássico” se os objectos
quânticos não são nem ondas, nem corpos? É este o dilema
que consumiu Bohr durante os anos de 1926 a 1928. E é com o
propósito de lhe dar resposta que Bohr propõe o seu
“princípio” da complementaridade.
2.7. O “Princípio” da Complementaridade.
O chamado “princípio” da Complementaridade encontra-se
estabelecido, nas suas linhas directoras, no já mencionado
artigo de Niels Bohr crismado de “The Quantum Postulate and
the Recent Development of Atomic Theory”, de Abril de 1928.
No final do primeiro parágrafo desse artigo, Bohr afirma
sobre a constituição da teoria quântica:
104
“[…] a sua essência pode ser expressa no chamado postulado
quântico que atribui a qualquer processo atómico uma
descontinuidade essencial […] completamente estranha às teorias
clássicas e simbolizada pelo quantum de acção de Planck”110.
Importa recordar que o chamado postulado quântico (ou
hipótese quântica de Planck) encontra-se na génese da
Teoria Quântica Antiga. Consistindo na postulação, por
parte de Planck, que a energia radiada por um sistema
atómico não sucede de forma contínua mas em emissões
descontínuas111. Postulado a partir do qual (e do modelo
atómico de Rutherford) Bohr concebeu o modelo quântico do
atómico. Inaugurando-se, assim, a Teoria Quântica Antiga.
Por sua vez, é uma consequência do postulado quântico
que, ao nível atómico, qualquer interacção entre dois
sistemas não pode ser minimizada de um modo contínuo até um
valor tão arbitrariamente pequeno quanto se pretenda. Mesmo
que os tomemos como sistemas físicos ideais. Isto é, como
parcelas do mundo físico isoladas e constituídas por
110 “[…] its essence may be expressed in the so-called quantum postulate, which attributes to any atomic process an essential discontinuity […] completely foreign to the classical theories and symbolized by Planck’s quantum of action”, Bohr, N. (1928), “ The Quantum Postulate and the Recent Development of Atomic Theory” in Nature, Volume 121, Issue 3050, p. 580. (tradução minha) 111 Conferir página 30 deste mesmo capítulo.
105
partículas puras. Pois, afirma Bohr, pelo dito postulado é
atribuído a “qualquer processo atómico uma descontinuidade
essencial”. As interacções entre sistemas atómicos podem
apenas ser minimizadas de um modo descontínuo, por unidades
discretas, degrau-a-degrau, quanta por quanta, até ao valor
limite de um quantum. Ou seja, até ao valor do quantum de
acção de Planck. E nunca menos que este. Valor que, como já
foi aqui referido, embora seja quantitativamente mínimo é
tremendamente significativo à escala das interacções
atómicas e subatómicas.
Por outro lado, é preciso ter presente dois aspectos.
Em primeiro lugar, qualquer observação de um fenómeno
atómico só é possível por intermédio de um instrumento. A
que Bohr, neste artigo, designa por “agente de observação”.
Mas que em, rigor, deveria designar por “instrumento de
medição”. Pois o termo “observação” pode, erroneamente,
entendido como se referido a algo visualizável. A
distinguir ambas está a distinção entre “ver” (visualizar)
e “ver que” (observar)112. Os “fenómenos” atómicos, pela sua
intrínseca pequenez estarão para além do nosso limite
óptico. Seja da sensibilidade visual directa. Seja,
construindo-se um hipotético (e idílico) microscópico
112 Distinção que é trazida do trabalho de Ribeiro, Cláudia (2009), Electrões inobserváveis e estrelas invisíveis, Lisboa: Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa – colecção Thesis, p. 112.
106
óptico que servisse como um fiel ampliador da nossa
acutilância visual. Não há como visualizamos um fenómeno
atómico. São-nos invisíveis. Tal como nos são inodoros,
insonsos, inaudíveis e intangíveis. Podemos, no entanto,
medir os fenómenos através de um instrumento de medida.
Como, por exemplo, um microscópio de varrimento de
electrões. E dos resultados da medição dizer que
observamos. Isto é, dar uma interpretação aos resultados da
medida. Portanto, observação de um fenómeno atómico
corresponde, na verdade, a uma medição (ou um conjunto de
medições) de um sistema atómico. Se existisse um gato à
escala atómica – um nano-gato, por exemplo – ele só por nós
seria observado se se medissem as posições das suas partes
e lhe traçássemos a figura, como fazem as crianças com os
desenhos de unir os pontos. Não nunca o veríamos. Em suma,
Bohr não está a entender por “observação” o que é
visualizável, mas o que é mensurável. E, por isso, em
rigor, por “agente de observação” deveremos entender de um
“instrumento de medida”.
Em segundo lugar, qualquer medição consiste na
coincidência, tanto espacial como temporal (espácio-
temporal, em terminologia importada da Relatividade de
Einstein), entre o sistema medidor – o instrumento – e o
objecto de medida. Então, somos facilmente conduzidos a
concluir, com Bohr, que:
107
“o postulado quântico implica que qualquer observação de
um fenómeno atómico envolve uma interacção com o agente de
observação que não pode ser negligenciada”113.
Em razão do postulado quântico, não é possível, mesmo
idealmente, tomar uma medição (ou, como lhe chama Bohr, uma
observação) de um fenómeno atómico como um acto passivo e
neutral. E, como tal, não é possível uma medição em que o
estado físico do sistema objecto da medida seja
imperturbado pela presença do instrumento de medida. Medir
é perturbar. É claro que se poderá dizer tal sempre foi
sabido. Um termómetro colocado numa sala irá trocar calor
com esta. Um amperímetro irá absorver parte da energia do
circuito eléctrico. Uma régua colocada junto a folha de
papel irá atrai-la graviticamente. Em qualquer dos casos, o
valor medido não corresponderá exactamente ao valor antes
da medida. Contudo, em qualquer dos casos a perturbação é
de um valor tão diminuto, muito menor que a própria escala
dos instrumentos de medida, que não é numericamente
significativa. Por outro lado, a história da Física desde
Newton foi acompanhada pelo desenvolvendo uma teoria de
erros de medida. Isto é, um corpo teórico que permitia
113“[…] the quantum postulate implies that any observation of atomic phenomena will involve an interaction with the agency of observation not to be neglected”, Idem, ibidem. (tradução minha)
108
explicar e prever os erros afectos à medição por
imperfeições, desvios às condições instrumentais ideais da
medição. Como tal, classicamente é concebível engendrar uma
diminuição contínua da interacção entre o sistema medidor e
o sistema medido. Em limite, podemos idealizar um acto de
medida em que essa interacção seja nula. E, deste modo,
afirmar que o resultado da medida corresponde ao valor
quantitativo da propriedade do sistema físico objecto da
medição. Nestas condições ideais, uma situação física onde
o termómetro indicasse, a exemplo, -273,15 K, esta seria a
temperatura do sistema medido.
Portanto, do postulado quântico resulta, segundo Bohr,
que medir é sempre perturbar. Não é idealizável uma medição
em que o sistema medido seja indiferente à presença do
sistema medidor. Daqui seguiria que, à escala atómica, o
resultado de uma medida não reflecte o valor quantitativo
da propriedade do sistema físico objecto da medição. O
resultado de uma medida reflecte, necessariamente, a
interacção entre sistema medido e sistema medidor. Assim,
não é concebível um termómetro que meça objectivamente a
temperatura, um amperímetro que meça a corrente eléctrica
ou uma régua meça o tamanho de um sistema atómico. E, por
conseguinte, esvaziar-se-ia de algum sentido expressões,
como por exemplo, “a temperatura do átomo é de”. Ou “a
dimensão do átomo é”.
109
Do postulado quântico resulta uma subjectividade
inevitável associada ao acto de medir. E, como tal, de
observar. Subjectividade inevitável que leva Bohr ao
seguinte raciocínio:
“Por um lado, a definição de um estado de um sistema
físico, como é ordinariamente entendido requer a eliminação de
todas as perturbações exteriores. Mas, neste caso, de acordo com
o postulado quântico, qualquer observação será impossível e,
acima de tudo, os conceitos de espaço e tempo perderão o seu
sentido imediato. Por outro lado, se permitirmos que existam
interacções com os apropriados agentes de medida, isto de forma
a ser possível a observação, então uma definição não ambígua do
estado do sistema não é, naturalmente, possível, e não pode
haver qualquer causalidade no sentido ordinário da palavra”114.
A definição do estado de um sistema físico, segundo a
Mecânica Clássica, é completamente estabelecido pela
atribuição de um valor bem determinado às propriedades
posição e momentum. É responder precisamente às questões
114 “On one hand, the definition of the state of a physical system, as ordinarily understood, claims the elimination of all external disturbances. But in that case, according to the quantum postulate, any observation will be impossible, and, above all, the concepts of space and time lose their immediate sense. On the other hand, if in order to make observation possible we permit certain interactions with suitable agencies of measurement, not belonging to the system, an unambiguous definition of the state of the system is naturally no longer possible, and there can be no question of causality in the ordinary sense of the word.”, Idem, ibidem (tradução minha)
110
“onde está?”, “para onde vai?”. Porém, somente será
possível falar de valores bem determinados destas
propriedades se se tomar como isolado o sistema físico
considerado. Isto é, se se considerar o sistema ausente de
interacções físicas com o que lhe é exterior. Atribuir um
valor bem determinado à velocidade de uma bola de bilhar
implica que, para além de representável por um corpo
pontual, não está a ser golpeada nem a exaustar-se em
atrito. Pois se assim fosse, a posição e o momentum não se
conservariam no sistema considerado e, por consequência,
não lhes poderíamos atribuir valores bem determinados. Como
tal, a definição de um sistema físico “requer a eliminação
de todas as perturbações exteriores”. Contudo, pelo
postulado quântico a observação de um sistema atómico
qualquer envolve uma interacção de valor não nulo com o
instrumento de medida, então de um sistema atómico isolado
“qualquer observação será impossível”. Um sistema atómico
isolado é como uma caixa negra. Um território sempre por
cartografar. Uma resposta sempre adiada as questões que
caracterizam as teorias físicas clássicas.
Por outro lado, se se pretende responder a estas
questões, então, necessariamente, ter-se-ão permitir
interacções entre o sistema objecto da medição e o sistema
agente da medição. Porém, por consequência do postulado
quântico, essa interacção, mesmo idealmente, não terá um
111
valor nulo. A medição alterará o valor numérico da
propriedade medida. E, como tal, “uma definição não ambígua
do estado do sistema não é, naturalmente, possível”. Ao
medir o sistema atómico – um electrão, por exemplo -
podermos responder à questão “onde está?”. Mas,
simultaneamente, introduzimos uma perturbação tal que nos
impossibilitará de responder precisamente, para esse
sistema, à questão “para onde vai?”. Assim, por
consequência da perturbação intrínseca ao acto de medir,
não será possível definir a evolução causal do sistema. Ou
nas palavras de Bohr, “não pode haver qualquer causalidade
no sentido ordinário da palavra”. Daqui, conclui:
“a própria natureza da teoria quântica força-nos a
considerar a co-ordenação espácio-temporal e a asserção da
causalidade, união que caracteriza as teorias clássicas, como
aspectos complementares mas exclusivos da descrição […]”115.
Esta passagem assinala a primeira vez em que surge o
termo “complementaridade” nos trabalhos publicados de Bohr.
E constitui, igualmente, o enunciado do primeiro tipo
115 “The very nature of the quantum theory thus forces us to regard the space-time co-ordination and the claim of causality, the union of which characterizes the classical theories as complementary but exclusive features of the description, symbolizing the idealization of observation and definition respectively” Idem, ibidem (Tradução minha)
112
complementaridade: a que podemos designar por
“espaciotemporal-causal”.
De seguida, Bohr enfrenta-se com o problema da
natureza dos objectos quânticos. Tanto para o caso da
radiação luminosa como para o caso dos constituintes
atómicos da matéria.
No caso da radiação luminosa, Bohr relembra que a sua
propagação é adequadamente descrita pela teoria
electromagnética de Maxwell. Teoria onde – recorde-se - se
concebe a luz como uma flutuação de um meio contínuo: o
campo electromagnético. Ou seja, onde se toma a luz como
uma entidade com uma natureza ondulatória. Contudo, a
conservação da energia e de momentum durante as interacções
entre a luz e a matéria, como no caso do efeito
fotoeléctrico, por exemplo, é adequadamente descrita, tal
como mostrou Einstein116, concebendo a luz como uma entidade
constituída não por uma ondas, mas por corpos de dimensões
físicas ínfimas, por corpúsculos de luz. Ou seja, por
fotões. Assim, por um lado, somos levados a dizer que a luz
tem uma natureza ondulatória no que concerne à sua
propagação. E, por outro lado, com a mesma confiança,
dizemos que a luz tem uma natureza corpórea (ou
116 Conferir Einstein, Albert (1905, "On a Heuristic Viewpoint Concerning the Production and Transformation of Light" in Annalen der Physik 17: 132–148.
113
corpuscular) no que respeita à alteração do estado físico
por consequência da sua interacção com a matéria.
O caso da natureza dos constituintes atómicos da
matéria, segundo Bohr, é análogo ao da radiação
electromagnética. Por um lado, na propagação diz-se que um
electrão é uma onda. Por outro lado, no que diz respeito à
interacção, seja com a luz, ou seja com outros
constituintes atómicos, somos levado a dizer que um
electrão tem a natureza dos corpúsculos.
Portanto, tanto para a luz, como para os constituintes
mínimos da matéria, somos conduzidos a dizer que se
propagam como uma onda e, no entanto, interagem como
corpúsculos. Tanto a luz, como as fracções atómicas da
matéria, somos seduzidos a dizer que possuem uma dupla e
contraditória natureza. Ora corpúsculo, ora onda. O que
constitui o já conhecido paradoxo da natureza dos objectos
quânticos. Reaparece, uma vez mais a questão: o que é um
objecto quântico? Aparentemente, tão insolúvel como
inevitável. Mas agora é o momento em que Bohr enfrenta
directamente. É um dos momentos decisivos da constituição
da Mecânica Quântica. Diz-nos o físico dinamarquês:
114
“[…] nós não estamos a lidar com imagens contraditórias
mas complementares, que apenas juntas oferecem uma generalização
natural dos modos clássicos de descrição”117.
A terminologia de Bohr derrapa uma vez mais. Como
sempre parece suceder em momentos decisivos. Agora surge-
nos o termo “imagem”. No entanto, creio que por “imagem”
Bohr está simplesmente a entender uma representação visual
dos conceitos de onda e de corpo. A sua ilustração. Como
tal, se este esclarecimento permite controlar a derrapagem,
penso que é entendível das palavras de Bohr que devemos
considerar as ondas e os corpos não como entidades com
naturezas contraditórias, mas como entidades com naturezas
complementares. Tal como se nos dissesse que não devemos
considerar a luz e a sombra, a vida e a morte, o cheio e o
vazio não como contraditórios, mas como complementares.
Algo que, de algum modo, nos faz recordar o Tao Te Ching
(ou Dao De Jing) de Lao Tzu. Quando neste se insiste na
complementaridade dos opostos Yin e Yang. Onde um evoca
sempre o outro. O sábio procura não marcar a oposição, mas
o estado de equilíbrio, de harmonização, entre eles. Talvez
tenha sido esta proximidade que tenha levado Bohr a
117 “We are not dealing with contradictory but complementary pictures of the phenomena, which only together offer a natural generalization of the classical mode of description” Idem, ibidem. (tradução minha)
115
escolher o tão conhecido diagrama T’ai-chi T’u como seu
brasão de armas.
Mas seja qual tenha sido a influência orientalista no
pensamento de Bohr, importa regressar à citação anterior. E
podemos interpretar esta entendendo que Bohr nos diz que
“onda” e “corpo” embora mutuamente excludentes, por serem
contrários, ambos são necessários, de forma complementar, à
descrição completa dos sistemas quânticos. Em particular,
dos sistemas atómicos. Temos assim o segundo tipo de
complementaridade: a complementaridade onda-corpúsculo.
Não é claro ao logo deste artigo de Bohr de 1928, tal
como nunca ficou claro ao longo da sua obra, se existe uma
interligação intrínseca entre estes dois tipos de
complementaridade. Uma articulação fundamental. Ou mesmo se
estes são apenas dois casos particulares da aplicação de um
princípio comum: o tal princípio de complementaridade.
Termo este, no entanto, que, como já aqui se afirmou118,
Bohr nunca terá utilizado. Na realidade, como assinala,
entre outros, Max Jammer119, Bohr nunca oferece uma
definição clara do que seja a “complementaridade”. Segundo
este autor o mais próximo que Bohr esteve de nos conceder
118 Conferir Folse, Henry J. (1985), The Philosophy of Niels Bohr, New York: Elsevier S.P., p. 18. 119 Conferir Jammer, Max (1974), The Philosophy of Quantum Mechanics, New York: John Wiley & Sons, p.95.
116
uma definição de “complementaridade” terá surgido em 1929,
quando declara:
“A indivisibilidade do quantum de acção [isto é, o
postulado quântico] […] força-nos a adoptar um novo tipo de
descrição designado por complementaridade, no sentido que
qualquer aplicação dos conceitos clássicos pressupõe o uso
simultâneo de outros conceitos clássicos que, numa conexão
diferente, são igualmente necessários para a elucidação do
fenómeno”120.
Na realidade, a afirmação “qualquer aplicação dos
conceitos clássicos pressupõe o uso simultâneo de outros
conceitos clássicos” para uma elucidação do fenómeno,
acrescenta pouco ou nada em relação ao que já
característico na Física Clássica. Em Mecânica Clássica,
recordemos, a exemplo, a elucidação de um fenómeno requer a
utilização simultânea e conjunta dos conceitos de posição e
momentum. Neste sentido estas palavras de Bohr não serão,
por si só, especialmente esclarecedoras. No entanto, Bohr
acrescenta “numa conexão diferente”. E deste modo, embora
120 “The indivisibility of the quantum action […] force us to adopt a new mode of description designed as complementary in the sense that any given application of classic concepts precludes de simultaneous use of other classic concepts which in a different connection are equally necessary for the elucidation of the phenomena” Idem, ibidem (Tradução minha).
117
de forma pouco segura, poder-se-á entender que a
complementaridade é para Bohr “um novo tipo descrição”,
cuja tipologia particular caracteriza-se pelo uso de
simultâneo de conceitos clássicos que se contradizem com
vista à “elucidação do fenómeno”.
Por outro lado, da citação anterior é notório que Bohr
percebe a complementaridade como consequência do postulado
quântico. Como algo que é forçado por este. E, por essa
via, seria forçado, para Bohr, pela própria essência da
teoria quântica. Pois, recordemos, para o físico
dinamarquês, a essência da teoria quântica encontra a sua
expressão no postulado quântico. Logo, a complementaridade
deve ser tida não como uma interpretação da Mecânica
Quântica, nomeadamente do seu formalismo, mas como condição
da constituição desta. Como condição de possibilidade de
constituição de qualquer teoria quântica, poderia avisar-
nos Bohr. Porém, a meu ver, a complementaridade não é uma
consequência inescapável do postulado quântico, e muito
menos uma condição de possibilidade de teorias quânticas em
geral. A complementaridade é consequência da perseverança
da pentadoxia sobre os objectos físicos e da sua face
visível, a doutrina dos conceitos clássicos, perante a
aparente a questão da natureza dos objectos quânticos. É-o,
antes de mais, porque todo o argumento da complementaridade
pressupõe, de forma implícita, a tese que não podemos
118
descrever os fenómenos físicos senão através dos conceitos
da física clássica. E, vemo-lo em passagens, como na
citação anterior, em que se afirma à guisa de definição de
complementaridade que “qualquer aplicação dos conceitos
clássicos pressupõe o uso simultâneo de outros conceitos
clássicos”.
Na verdade, as teses centrais do artigo de 1928 - e
talvez do próprio pensamento Bohriano - encontram-se
expostas logo nas duas primeiras linhas do primeiro
parágrafo. Linhas sobre as quais não se têm escrito
suficientes páginas de filosofia. Afirma-se:
“A teoria quântica é caracterizada pelo reconhecimento
de um limite fundamental das ideias da física clássica quando
aplicadas aos fenómenos quânticos. Esta situação assim criada é
de uma natureza peculiar, dado que a nossa interpretação das
experiências reside essencialmente em conceitos clássicos.”121
Desta citação de Bohr, em primeiro lugar, é
reconhecível a referida doutrina quando nos afirma “a nossa
interpretação das experiências reside essencialmente em
121 “The quantum theory is characterized by the acknowledgment of fundamental limitation in the classical physical ideas when applied to atomic phenomena. The situation thus created is of a peculiar nature, since our interpretation of the experimental material rests essentially upon the classical concepts”, idem, p. 580.
119
conceitos clássicos”. E encontramo-la presente nos dois
tipos de complementaridade. No primeiro tipo – a
complementaridade espaciotemporal-causal – de forma um
pouco arrevesada. Pois, sem o justificar, Bohr refere-se
tanto ao espaço-tempo, como à causalidade, como conceitos
clássico da física. E, nesta medida, no primeiro tipo de
complementaridade é pressuposto que a representação
espácio-temporal e causalidade sejam conceitos necessários
para a descrição dos fenómenos físicos.
Encontramos, igualmente, a presença da doutrina dos
conceitos clássicos no caso do segundo tipo de
complementaridade. Pois esta ao fazer-se a partir da
oposição entre os conceitos de onda e de corpúsculo, faz-se
pressupondo que essas são as duas únicas concepções
possíveis dos objectos físicos.
Seja num caso ou noutro, os conceitos clássicos são
apresentados, no quadro da complementaridade, como
condições necessárias à descrição dos fenómenos físicos em
geral, e por conseguinte, dos fenómenos atómicos em
particular. Deste modo, uma correspondência necessária
entre o modo de descrição dos fenómenos macroscópicos e
atómicos, entre os conceitos de física clássica e os
conceitos de física atómica. Assim, encontramos igualmente
120
a presença, em ambos tipos de complementaridade, do
princípio da correspondência.
No entanto, da doutrina dos conceitos clássicos e a
aplicação do princípio da correspondência não decorre, por
si só, a complementaridade. Pois, por um lado, se a
natureza de todos objectos físicos fosse inteiramente
corpórea, toda Física seria, em última análise, Mecânica.
E, como tal, toda situação física poderia ser explicada
através da ideia de corpo pontual, dos conceitos clássicos
da Mecânica e ilustrada através de um jogo de bilhar. Em
particular, uma física do átomo seria nada mais que uma
generalização da Mecânica para o domínio do ínfimo. Tal
como a Mecânica celeste é uma generalização da Mecânica
para o domínio do astronómico. Existindo uma consequente
correspondência entre os conceitos de uma e de outra. Esse
era o projecto de Heisenberg, que pretendia construir uma
teoria atómica unicamente corpuscular. O que o conduziu à
Mecânica Matricial122. Esta, porém, nunca conseguiu dar
conta da propagação de um sistema quântico. E, por
consequência, de aspectos como a difracção da luz, para se
dar um exemplo.
Por outro lado, se a natureza de todos objectos físicos
fosse inteiramente ondulatória, toda a Física seria algo
122 Conferir, por exemplo, Cushing, James T. (1998), Philosophical Concepts in Physics, Cambridge: Cambridge University Press, p. 284.
121
semelhante ao Electromagnetismo. E, como tal, quase toda
situação física poderia ser explicada através dos conceitos
clássicos do Electromagnetismo e ilustrada através da
flutuação de águas de um lago. Em particular, uma física do
átomo seria nada mais que uma generalização do
Electromagnetismo. Esse era o projecto de Schrödinger, que
pretendia construir uma teoria atómica unicamente
ondulatória123. O que o conduziu, depois de entrar em
contacto com o trabalho de De Broglie, à Mecânica
Ondulatória. E que está na origem da actual interpretação
estocástica da Mecânica Quântica. Esta, porém, nunca
conseguiu dar conta satisfatoriamente, por exemplo, da
interacção, ao nível atómico, entre a radiação e a matéria.
A verdade é que Bohr sempre rejeitou tanto o projecto
de Heisenberg, como o de Schrödinger. E se o encontramos na
citação anterior a defender o uso necessário dos conceitos
clássicos, encontramo-lo, igualmente, logo na primeira
frase, a afirmar que a característica das teorias quântica
é “o reconhecimento de um limite fundamental das ideias
clássicas”. Nomeadamente, das ideias de partícula material
e onda electromagnética. Um limite que é sinalizado pelo
postulado quântico. Um limite que tem, no entanto, a sua
razão na questão da natureza dos objectos quânticos. O
123 Conferir, Schrödinger, Erwin (?), “What is an Elementary Particle?” in Interpreting Bodies, Elena Castellani ed. (1998), Princeton: Princeton University Press, pp 197-210.
122
postulado quântico é, na verdade, uma desta consequência
desta. Um seu corolário. É claro que será estranho dizer
que um postulado é um corolário. No entanto, essa transição
é apenas fruto da própria evolução histórica da teoria
quântica. É um anacronismo de Bohr. O postulado quântico
surge, recorde-se, no contexto da teoria quântica antiga.
Onde era realmente a postulação que a radiação
electromagnética interagia com a matéria por quantidades
discretas. Porém, na mesma medida que a transição entre a
Teoria Quântica Antiga e a Mecânica Quântica se dá por
razão da hipótese de De Broglie, o postulado quântico de
Planck é integrado na nova teoria quântica como um
corolário. Pois, dado que o problema da natureza dupla dos
objectos quânticos consiste – recorde-se – no facto que
estes propagarem-se como ondas e interagirem como
corpúsculos, então será um corolário do referido dualismo
dizer que a interacção entre sistemas atómicos, que são
sistemas quânticos particulares, se realiza de forma
descontínua, isto é, corpuscularmente. E, em particular,
que qualquer processo atómico envolve uma descontinuidade
essencial. O que nada mais é justamente a definição que
Bohr no artigo de 1928 dá de “postulado quântico”.
Como tal, a meu ver, Bohr compreende bem que é a
própria natureza dos objectos quântica a impor um limite à
aplicação das ideias clássicas. E, por consequência,
123
limitar, igualmente, a aplicabilidade dos conceitos
clássicos. Limite que é expresso no postulado quântico. E
que como tal, no seu entender, é forçosamente uma
característica de uma qualquer teoria quântica. Pois não
existindo tal limite a teoria atómica, por exemplo, seria
naturalmente incorporada numa generalização de uma das
teorias clássicas. Compreende-se então o dilema de Bohr, o
mesmo que se encontra na génese da constituição da Mecânica
Quântica: como dar conta da natureza quântica sem deixar de
ser fiel à concepção clássica dos objectos físicos? Ou como
será a formulação mais próxima de a de Bohr: “como integrar
o postulado quântico nas teorias clássicas?”. E do segundo
tipo de complementaridade compreende-se a solução de Bohr:
os conceitos de corpo e de onda, quando aplicados ao
domínio quântico, não devem tomados como contraditórios
entre si, mas complementares. E, por consequência, o mesmo
ocorrerá para os conceitos que se reportam ora aos corpos,
ora as ondas.
Creio ser, neste momento, entendível o movimento de
Bohr. Movimento derradeiro e decisivo para a constituição
da Mecânica Quântica. Como o que não tem solução
solucionado está, e perante a persistente e aparente
irresolubilidade da questão da natureza dos objectos
quânticos, Bohr decide evitá-la. Retira-se estrategicamente
do campo da ontológica e coloca-se no domínio da
124
epistemologia. Pois ao afirmar que a complementaridade
consiste na aplicação conjugada dos conceitos de corpo e
onda, Bohr, no fundo, esquiva-se de enfrentar a
perturbadora natureza dos objectos quânticos, de responder
à questão “o que é?”, focalizando-se na questão “como
descrever os fenómenos quânticos fazendo uso dos conceitos
clássicos?”. Como se dissesse que, por vezes, a coisa
quântica deve ser descrita como ondulatória e
conjugadamente, nas outras vezes, deve ser descrita como
corpuscular, sem nunca se dizer que “coisa” é essa. A
complementaridade é o acordo possível no desacordo
insanável entre a pentadoxia e a questão da natureza dos
objectos quânticos. Contudo, não é uma resposta a esta
última. É uma forma hábil de a evitar. De lhe fugir. De a
ignorar. Se os objectos quânticos fossem ornitorrincos e
Bohr não um físico mas um biólogo, a sua reacção perante a
célebre aparição do ornitorrinco seria defender que não
importa se este animal é um Mamífero ou é um Réptil. Nem,
muito menos, ousar-se repensar as categorias de Mamífero ou
de Réptil. A reacção de Bohr seria, julgo, afirmar que
devemo-nos salvar do tormentoso paradoxo que esse animal
nos oferece dizendo apenas que nuns aspectos pode ser
descrito como Mamífero, e noutros como Réptil. Tomemos
Mamífero e Réptil não como contrários, mas como
complementares.
125
Este ardiloso desviar da nossa atenção da ontologia
para a epistemologia, da questão da natureza dos objectos
quânticos, para a questão de como descrever os fenómenos
quânticos, é um gesto de ilusionista que parece fazer
desaparecer o obstáculo principal, mas que, contudo, não é
realizado sem gravíssimas consequências. Aliás, a meu ver,
é a raiz de todas maleitas filosóficas da Mecânica
Quântica.
Um conjunto de implicações mais directas encontra-se
expresso no primeiro tipo de complementaridade:
complementaridade espácio-temporal/causal. Ao descreverem-
se os fenómenos quânticos fazendo uso conjugado dos
conceitos de corpo e onda, por um lado, e dado a
incapacidade de qualquer um destes conceitos agarrar a
natureza dos objectos quânticos, resulta que a descrição é
sempre incompleta. Quanto melhor os descrevemos na sua
propagação, fazendo uso do conceito de onda, pior os
descrevemos na sua interacção como corpúsculos. Ou seja,
quanto melhor sabemos onde está, pior sabemos para onde
vai, ou de onde veio. E o inverso. O que é justamente o que
Heisenberg nos diz nas suas relações de incerteza: quanto
melhor sabemos o momentum (e, por consequência, a
velocidade), pior sabemos a posição; quanto melhor sabemos
a posição, pior sabemos o momentum. O que, no fundo, é o
que é dito por Bohr no primeiro tipo de complementaridade.
126
Se sabemos a espaciotemporalidade do objecto quântico,
deixamos de saber a sua evolução causal. E vice-versa.
Estas relações de incerteza, que estão contidas no
primeiro tipo de complementaridade, têm três implicações.
Em primeiro lugar, se os conceitos clássicos da física
forem entendidos com um estatuto de conceitos a priori,
significa isto que, em termos kantianos, existirá uma
complementaridade entre a sensibilidade (algo que aparece
no espaço-tempo) e o entendimento (categoria da
causalidade). E, por conseguinte, os fenómenos quânticos
seriam epistemologicamente indetermináveis. Seriam objectos
de conhecimento de experiência eternamente incompletos. Ou
para se ser fiel a Kant, nem objecto124 seriam, pois,
justamente, não seriam algo que aparece aos sentidos e é
determinável pelo entendimento. Apenas seriam, ou aparição
de algo aos sentidos, ou pura especulação da razão.
Portanto, o primeiro tipo de complementaridade assinala o
limite inultrapassável da capacidade de conhecimento.
Limite esse que é expresso, matematicamente, nas relações
de Heisenberg. Este seria então o âmago do primeiro tipo de
complementaridade: Assinalar que a própria natureza dos
objectos quânticos marca o limite da capacidade legisladora
do sujeito transcendental. A complementaridade é como uma
124 No capítulo seguinte analisámos o conceito de objecto físico em Kant.
127
placa que indica o fim do mundo conhecível. E, por
conseguinte, daqui decorreria que a Mecânica Quântica seria
a última teoria da Física. É a tese, como refere Popper, do
“fim do percurso”125 da Física.
Em segundo lugar, da nossa limitação transcendental na
descrição dos fenómenos quânticos decorre que não é
possível determinar o resultado de uma medida a não ser
probabilisticamente.
Em terceiro lugar percebe-se a conexão entre os dois
tipos de complementaridade. A primeira, que até aqui
chamámos de espácio-temporal/causal, a que, como salienta
Murdoch126, também poderíamos ter chamado de
cinemática/dinâmica, pois estabelece-se entre a evolução no
espaço-tempo e a interacção física, é uma complementaridade
epistemológica. Enquanto a segunda é uma complementaridade
ontológica. São tipos de complementaridades distinto na
justa distinção que existe entre esses campos filosóficos.
Compreende-se assim que Bohr nunca os tenha formulado como
um “princípio” geral e uno. Ou que um pode ser reduzido a
outro. A relação entre os dois tipos de complementaridade é
a relação entre epistemologia e a ontologia. E, como tal, a
meu ver, a complementaridade espácio-temporal/causal não é
125 Conferir Popper, Karl (1982), Quantum Theory and the Schism in Physics (tradução do Inglês por Nuno Ferreira da Fonseca, “A Teoria dos Quanta e o Cisma na Física”), Lisboa: Dom Quixote, p. 27. 126 Conferir Murdoch, Dugald (1987), Niels Bohr’s Philosophy of Physics, Cambridge: Cambridge University press, pp. 58-60.
128
derivável da complementaridade onda/corpúsculo, mas é
consequente.
Por outro lado, do já referido deslocamento da
ontologia para a epistemologia resulta que a Mecânica
Quântica constitui-se como uma teoria carente de ontologia.
Mário Bunge, um dos poucos a compreender bem a importância
e gravidade da questão da natureza dos objectos quânticos,
defende que a Mecânica Quântica é uma teoria à procura do
seu referente127. Aponta, justamente, para esta ausência
como o coração da debilidade filosófica da Mecânica
Quântica. E para suprir esta carência avança com distinção
entre objectos físicos clássicos, a que designa por
classões e objectos quânticos, a que designa por
quantões128. A Física Clássica referia-se aos primeiros. A
Mecânica Quântica aos segundos. Os objectos clássicos
teriam como propriedades a posição e o momentum. Os
objectos quânticos teriam como propriedades a quasição e o
quasimomentum. A meu ver, se Bunge acerta na questão, não
alcança a solução. Não posso compartilhar da sua proposta
pois esta consiste, no fundo, na postulação Ad-Hoc de
entidades – os quantões – detentoras das bizarras
propriedades quânticas da dispersão de posição – quasição –
e dispersão de momentum – quasimomentum – sem que Bunge
127 Conferir Bunge, Mario (1982), Filosofia de la Fisica, Barcelona: Ariel, pp. 110. 128 Conferir, idem, pp 118-121.
129
diga o que são os quantões (ou objectos quânticos). Ou,
para se ser mais preciso e justo, o que é isso de uma
entidade com uma dispersão de posições e momentum? Por
outro lado, a proposta de Bunge levanta outros problemas
como a relação entre quantões e classões ou o que sucede
numa medição.
Não compartilho do optimismo reservado de Bunge quando
ainda julga tratar-se de um problema da interpretação do
formalismo e não da teoria em si. De tratar-se saber a quem
a Mecânica Quântica se refere. A meu ver a situação é mais
grave e fundamental. Digo que a Mecânica Quântica carece de
ontologia e julgo que sempre assim será pois essa é a sua
essência. E afirmo-o pois o seu processo de constituição
passa, justamente, por não se referir aos objectos
quânticos, mas apenas aos resultados de medições. É fá-lo
porque a sua ontologia de partida é incompatível com a
natureza das entidades à qual uma genuína Mecânica dos
Quanta dever-se-ia referir. Na Mecânica Quântica não há um
objecto que se concebe, mas apenas um sujeito que organiza
a sua experiência sensível de acordo com um conjunto de
categorias inamovíveis. A Mecânica Quântica coloca-se quase
totalmente do lado do sujeito, pois o objecto é tido como
incognoscível.
130
Neste sentido, a Mecânica Quântica uma teoria que,
contrariamente a todas teorias científicas, não explica,
não descreve, não nos dá a ver o que se passa. A Mecânica
Quântica é, a meu ver e como a seguir pretendo ilustrar
através da análise dos seus postulados, uma pura máquina de
previsão de resultado de medições. Como se tratasse de um
modelo teórico de previsão probabilística de resultados de
uma roleta ou das cartas de um baralho. Ela prevê, mas não
explica. Ela capacita-nos para antecipar o conjunto de
resultados possíveis de uma medição, mas não nos oferece
uma cosmovisão ou mundivisão do domínio dos quanta. Por
esta razão e se, como afirma Popper, “toda a ciência é
cosmologia”129 poder-se-ia até dizer, de forma muito
cautelosa, mas, igualmente, num assumo de grande
atrevimento, que é duvidoso que a Mecânica Quântica seja
uma teoria científica. Deixemos, no entanto, em aberto tão
herética questão que não é, de momento, a nossa.
O problema da Mecânica Quântica é, tal como Popper bem
intuiu, fundamentalmente, um problema de compreensão130. Não
do seu formalismo e como trabalhá-lo. O que tem sido
realizado com inegável sucesso. Mas no sentido que a teoria
quântica nova constitui-se negligenciando, ou melhor,
recusando a possibilidade de uma compreensão do domínio 129 Conferir Popper, Karl (1982), Quantum Theory and the Schism in Physics (tradução do Inglês por Nuno Ferreira da Fonseca, “A Teoria dos Quanta e o Cisma na Física”), Lisboa: Dom Quixote, p. 23. 130 Idem, ibidem.
131
sobre o qual versa. Recusa fundada na sua incondicional
impossibilidade de se responder, ou sequer dar sentido, à
questão: o que é um objecto quântico? E, como tal – e sem
surpresa - toda tentativa ou cedência à tentação de
ontologizar esta teoria só nos leva a enganos e múltiplas
confusões.
É deste movimento de malabarista entre os pressupostos
ontológicos que estão na raiz dos conceitos clássicos, a
indispensabilidade destes e da sua incapacidade de dar
conta da natureza dos objectos quânticos, que se que se
constitui a Mecânica Quântica.
Assim, de uma análise aos postulados da Mecânica
Quântica, revelar-se-ão dois aspectos fundamentais:
Em primeiro lugar, que a Mecânica Quântica é, na sua
essência, uma generalização racional das teorias clássicas.
Isto é, uma extensão dos seus formalismos. Como veremos a
seguir os objectos quânticos são descritos formalmente na
sua propagação como ondas. Isto é, são tomados por ondas de
Fourier, sem no entanto que isso corresponda a uma entidade
que ondule. Os objectos quânticos são descritos formalmente
na sua interacção como corpos (ou corpúsculos). Isto é, são
tomados por partículas pontuais, sem no entanto que isso
corresponda a uma entidade corpórea. A uni-los encontra-se
o chamado “delta de Dirac”, que permite, formalmente,
132
considerar as partículas pontuais como uma sobreposição
infinita de ondas de Fourier. Uma espécie de instrumento
formal da complementaridade.
Em segundo lugar, que é esta incompreensão sobre a
natureza da Mecânica Quântica, isto é, do não
reconhecimento que esta é uma generalização racional das
teorias clássicas e, por consequência, que é uma teoria que
não tem como referentes os tais objectos quânticos, é, a
meu ver, a razão de ser das labirínticas complicações em
que se perde parte da Filosofia da Mecânica Quântica.
2.8. Os postulados da Mecânica Quântica.
A Mecânica Quântica, que tantas e tantas vezes, e
pelos mais insuspeitos autores, é também designada por
Física Quântica, como se a Física e Mecânica fossem
claramente sinónimos131, pode ser apresentada a partir de um
conjunto de postulados. Tal é, de resto, comum a todas
teorias em Física. E tal como é comum a todas teorias em
Física os postulados da Mecânica Quântica são expressos
131 Se fossem sinónimos então o Electromagnetismo e o Electrodinâmica Quântica teriam de ser reduzíveis à Mecânica, o que está longe de ser claro que assim o seja.
133
segundo um determinado formalismo matemático. Porém, no
caso particular da Mecânica Quântica, os seus postulados
conhecem diversas formulações. Como a Mecânica Matricial de
Heisenberg, ou a Mecânica Ondulatória de Schrödinger. Estes
formalismos, no entanto, tal como Dirac demonstrou e é bem
conhecido, são matematicamente equivalentes entre si132. O
formalismo mais presente tanto na literatura filosófica,
como na literatura científica, que se dedicam à Mecânica
Quântica é aquele que foi proposto por Von Neumann, em
1932, na sua célebre obra Mathematical Foundations of
Quantum Mechanics. Esta formulação fundamental da Mecânica
Quântica surge-nos, por exemplo, no sempre referenciado The
Philosophy of Quantum Mechanics de Max Jammer:
“Axioma I. A cada sistema corresponde um espaço de Hilbert
H cujos vectores (vectores de estado, funções de onda) descrevem
completamente os estados do sistema.
Axioma II. A cada observável P corresponde unicamente um
operador auto-adjunto A de acção em H.
Axioma III. Para um sistema no estado φ, a probabilidade
probA(λ1,λ2|φ) que o resultado de uma medição do observável P,
representado por A, se encontre entre λ1 e λ2, é dada por ║(Eλ2 -
Eλ1)φ║2, onde Eλ é a resolução da identidade pertencente a A.
132 Conferir Dirac, P.A.M (1935), The Principles of Quantum Mechanics, London: Clarendon Press.
134
Axioma IV. O desenvolvimento temporal do vector de estado
φ é determinado pela equação Hφ=iℏ𝜕φ/𝜕t (equação de Schrödinger)
onde o hamiltoneano H é o operador evolução e ℏ é a constante de
Planck dividida por 2π.
Axioma V. Se a medição de um observável P, representado por
A tiver um resultado dentro do intervalo entre λ1 e λ2, então o
estado do sistema imediatamente após uma medição é uma função
própria de (Eλ2 - Eλ1)“133
Trata-se, como é bem patente, de um formalismo de uma
apreciável sofisticação (e elegância) matemática. De
assinalável valor para o labor do físico. Mas, no entanto,
não é a mais adequada expressão dos postulados da Mecânica
Quântica para o labor filosófico. Não o é, em primeiro
133 “Axiom I. To every system corresponds a Hilbert space H whose vectors (state vectors, wave functions) completely describe the states of the system.
Axiom II. To every observable P corresponds uniquely a self-adjoint operator A action in H.
Axiom III. For a system in state φ, the probability probA(λ1,λ2|φ) that the result of a measurement of the observable P, represented by A, lies between λ1 and λ2 is given by ║(Eλ2 - Eλ1)φ║2, where Eλ is the resolution of the identity belonging to A.
Axiom IV. The time development of the state vector φ is determined by the equation Hφ=iℏ𝜕φ/𝜕t (Schrödinger equation), where the Hamiltonian H is the evolution operator and ℏ is Planck’s constant divided by 2π.
Axiom V. If the measurement of the observable P, represented by A, yields a result between λ1 and λ2, then the state of the system immediately after the measurement is an eigenfunction of (Eλ2 - Eλ1), Jammer, Max (1974), The Philosophy of Quantum Mechanics, New York: John Wiley & sons, p. 5. (Tradução minha).
135
lugar, porque o labor filosófico não se faz pelo uso de
formalismos matemáticos sofisticados, como é caso do
formalismo de Von Neumann. O labor filosófico faz-se pelo
uso das palavras e a sofisticação dos conceitos. Porque
preferem, então, os filósofos o formalismo de Von Neumann?
Talvez porque seja esse o da preferência dos físicos. O que
pode ser encontrado com mais facilidade nos manuais de
física. Ou talvez porque o filósofo que prefere o
formalismo de Von Neumann é de inspiração analítica e
estará em desacordo que o seu labor não se faça
acentuadamente pelo formalismo. Ou ainda porque talvez o
filosofo creia que os postulados quânticos não se podem
apresentar senão de forma matemático-formal. Como veremos,
já de seguida, tal não é o caso.
Em segundo lugar, digo que o formalismo de Von Neumann
não é o mais indicado para o labor filosófico pois trata-
se, na realidade, de um meta-formalismo. Isto é, de um
formalismo construído, deliberadamente, para englobar os
formalismo de Heisenberg e Schrödinger numa unidade. Tal é
explicitamente assumido pelo próprio Von Neumann no
Mathematical Foundations of Quantum Mechanics134. Esta
operação de unificação formal, que muito útil é para o
134 Conferir Neumann, J. Von (1932), Mathematische Grundlagen der Quantenmechanik. Berlin: Springer (Tradução em inglês de Robert T. Beyer, “Mathematical Foundations of Quantum Mechanics”, Princeton: Princeton University Press, 1955), p. 351
136
físico, a meu ver, afasta o filósofo da questão fundamental
da Mecânica Quântica. Obscurece-a, pois a tão decisiva
relação entre a constituição da Mecânica Quântica e o
problema da natureza dos objectos quânticos fica como por
detrás de um pano, como uma sombra chinesa. Passamos a ver
coelhos onde há dedos. Assim, os postulados da Mecânica
Quântica que a seguir apresento, apresento-os de forma,
quase totalmente, discursiva e baseando-me na formulação
rigorosa, clara e inspirados que surge na Introdução à
Física Moderna de Andrade e Silva135.
Posto isto, a meu ver a Mecânica Quântica pode ser
enunciada, no seu essencial, a partir dos cinco postulados
que se seguem:
Primeiro Postulado da Mecânica Quântica: o estado de
um sistema quântico136, para um dado instante, é
completamente definido por uma função de onda Ψ(q1,q2,q3,t).
135 Conferir Andrade e Silva, J. (1997), Introdução à Física Moderna, Lisboa: Associação dos Estudantes da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, pp. 113-117. 136 Note-se que, em sentido estrito, os sistemas quânticos distinguem-se dos sistemas físicos clássicos apenas de forma nominal. Isto é, a distinção entre sistemas clássicos e quânticos reside unicamente no facto dos primeiros serem constituídos por objectos físicos clássicos e os segundos por objectos quânticos. Por seu turno, os sistemas físicos, sejam eles clássicos, sejam eles quânticos, podem ser individuais, quando constituídos por um único objecto, ou compostos, quando constituídos dois ou mais objectos.
137
Segundo postulado da Mecânica Quântica: A cada
observável O corresponde um operador linear Ô. Os
resultados possíveis de uma medida de um observável O são
os valores próprios do operador linear correspondente.
Terceiro postulado da Mecânica Quântica: a
decomposição espectral da função de onda permite calcular a
probabilidade respectiva de cada um dos resultados
possíveis de uma medição.
Quarto postulado da Mecânica Quântica: a evolução da
função de onda é, em geral, descrita pela equação de
Schrödinger.
Onde H é o operador Hamiltoniano.
Quinto postulado da Mecânica Quântica: Quando se
efectua uma medição sobre o sistema a que a função de onda
transforma-se, imediatamente, numa das funções próprias do
observável correspondente à medição.
2.8.1. Léxico: Função de Onda, Observáveis e
Operadores.
A compreensão destes postulados exigem, como é fácil
de entender, passa por uma compreensão do seu léxico. Em
138
particular dos termos “função de onda”, “observáveis” e
“operadores”.
Uma função de onda é, tal o próprio nome assim o
indica, uma função matemática em a projecção das suas
soluções no espaço desenha a figura de uma onda. No caso da
Mecânica Quântica a função de onda tem, em geral, a forma
de uma onda harmónica plana. Uma onda de extensão infinita
e de frequência temporal constante. À função de onda Ψ
atribui-se igualmente a designação de “função de estado” do
sistema, pois, segundo o primeiro postulado, a função
define, por completo, o estado de um sistema quântico num
instante determinado.
Em Mecânica Quântica designam-se de “observáveis” as
propriedades dos objectos quânticos que se podem medir. O
que se justifica pois – recorde-se - em Mecânica Quântica,
os termos “medição” e “observação” são usados,
frequentemente, como sinónimos. Sucedendo o mesmo com os
termos “aparelho de medida”, “instrumento de medida” e
“agente de observação”. Por outro lado, considera-se que
dos sistemas quânticos só são mensuráveis as propriedades
físicas que possam sofrer alterações, na sua quantidade,
por razão de um processo físico. Este tipo de propriedades
toma, em Física, a designação de “grandezas físicas
dinâmicas”. Assim, pode-se igualmente definir por
139
“observáveis” como as grandezas físicas dinâmicas dos
objectos quânticos. Este não é o caso, por exemplo, do
tempo, da massa ou da carga, que não se alteram na sua
quantidade por razão de um processo de medição. Mas este é
o caso, por exemplo, da posição, da velocidade, do momentum
ou da energia. E, deste modo, posição, velocidade, momentum
e energia são ditos de observáveis dos sistemas quânticos.
Por fim, por operador linear entende-se, em geral, um
objecto matemático que quando aplicado a uma função opera
uma transformação de tal forma que a adição do conjunto de
resultados dessa transformação é igual à função sobre a
qual se aplicou o operador. No caso particular da Mecânica
Quântica, os operadores lineares são aplicados à função de
onda que define um dado sistema quântico produzindo uma
decomposição linear em outras funções chamadas de “funções
próprias do operador”. Por sua vez, cada uma dessas funções
próprias define, por completo, um dos estados possíveis de
ser obtido numa medição do observável correspondente ao
operador em questão. Ou seja, define o resultado de uma
medição. Ao valor quantitativo associado a uma função
própria, ou seja, aquilo que é o resultado numa medição
designa-se por “valor próprio do operador”. Ao conjunto dos
valores próprios atribui-se o nome de ”espectro do
operador”.
140
Fazendo uso de uma analogia, um operador linear em
Mecânica Quântica actua como se de um prisma se tratasse.
Tal como um prisma decompõe linearmente, isto é, em que a
composição das partes é aditivamente equivalente ao todo,
a luz emitida pelo Sol nas cores possíveis de serem
observadas, um operador decompõe linearmente a função de
onda nas funções próprias desse operador. Ou seja, nos
estados possíveis de serem observados da propriedade
dinâmica considerada.
Tal como se considera que a luz do Sol é composta pela
sobreposição linear de todas cores possíveis, considera-se
que a função-de-onda é composta pela sobreposição linear do
conjunto completo das funções próprias de um dado operador.
E, finalmente, tal como o que se observa da luz operada
pelo prisma são as cores, e ao conjunto destas se designa
por “espectro”, o que se observa de um sistema quântico são
os valores próprios de um dado operador, e o conjunto
destes constitui o “espectro do operador”.
Por último, é preciso esclarecer o termo “corresponde”
que surge no segundo postulado. De acordo com este diz-se
que a cada observável corresponde um operador. Significa
isto que em Mecânica Quântica, uma grandeza física dinâmica
é representada matematicamente por um operador. Portanto, e
de forma literal, o observável “momentum” é representado
matematicamente pelo operador “momentum”, o observável
141
“posição” é representado matematicamente pelo operador
“posição”, o observável “energia” representado pelo
operador “energia”, e assim por diante. De forma que cada
observável seja representado matematicamente por um
operador linear correspondente.
Clarificado o léxico, creio que agora é possível –
finalmente – esclarecer de que forma a Mecânica Quântica é,
na sua essência, uma generalização racional das teorias
clássicas da Física.
2.8.2. A Mecânica Quântica como generalização racional
das teorias clássicas da Física.
Da leitura dos postulados da Mecânica Quântica dois
aspectos fundamentais, a meu ver, surgem de imediato:
1) O tema central da Mecânica Quântica é a medição.
2) A linguagem dos primeiros quatro postulados é uma
linguagem relativa a ondas, enquanto o quinto é
relativo a corpos.
Comecemos pelo primeiro ponto. A Mecânica Quântica
distingue-se radicalmente de todas as outras teorias
físicas ao dedicar-se exclusivamente à medição. Não, é
142
claro, porque a medição não tenha sido sempre um aspecto
importante em Física. Já aqui o assinalámos anteriormente.
Mas, ao contrário de qualquer outra teoria em Física, em
Mecânica Quântica a medição é, não só incorporada na
própria constituição da teoria, como é o seu tema central.
A medição, na Mecânica Quântica, não tem o estatuto de
simples concretização das previsões de uma teoria. Algo de
que sempre sucedeu nas teorias físicas clássicas e por essa
razão jamais mereceu ser referida nos seus postulados,
jamais mereceu honras de constar na sua construção
axiomática das teorias físicas. A medição sempre se pode
delicadamente ignorar em Física Clássica. Seja porque o
próprio aparelho de medida pode ser objecto de descrição
das teorias físicas clássicas. Seja porque as teorias
físicas aos serem fundadas na pentadoxia sobre os objectos
físicos pressupõem que, idealmente, isto é, num limite onde
a interacção entre sistema medidor e medido praticamente
nulo, um processo onde a intervenção do aparelho de medida
é irrelevante.
A relevância da medição da Mecânica Quântica é
particularmente notória no segundo postulado desta teoria,
quando se afirma que a cada observável corresponde um
operador linear. Pois isto significa que cada grandeza
física dinâmica é formalmente representada, não por uma
variável, como em todas outras teorias físicas, mas, em
143
geral, por uma função diferencial. Isto é, por um objecto
matemático que é aplicada à função de estado (ou função de
onda) decompondo-a linearmente em funções próprias do
observável a que corresponde. Funções matemáticas estas que
representam, um resultado possível da medição. Ou seja, e
dito de uma forma mais clara, um operador é, no contexto da
Mecânica Quântica, um objecto matemático que representa
formalmente a acção (ou operação) de medição de uma
determinada grandeza física. Portanto, no segundo
postulado, ao estabelecer-se que a cada observável
corresponde um operador, inscreve-se na lei fundamental da
Mecânica Quântica que esta refere-se, não às propriedades
do sistema, que seriam representadas formalmente por uma
variável, mas refere-se aos resultados da operação da
medida das propriedades. A Mecânica Quântica não se refere,
por exemplo, à posição de um objecto quântico mas à medição
da posição dessa entidade. Este é, quanto a mim, um dos
pontos crucial: a Mecânica Quântica não se refere às
propriedades características dos objectos físicos, mas à
operação de medição das propriedades que se enquadram na
categoria de grandezas físicas. A Mecânica Quântica não tem
como referente as propriedades como a posição, o momentum
ou a energia (e, portanto, dentro de uma perspectiva
substancialista, não se refere a entidade que possua essas
propriedades) mas à operação de medição da posição, do
144
momentum ou da energia. E, neste sentido, a Mecânica
Quântica constitui-se por uma alteração das questões que
caracterizam a Mecânica. Se esta última se pergunta “onde
está?” e “para onde vai?”, a Mecânica Quântica pergunta
“quais são os resultados possíveis da medição da posição?”
e “quais são os resultados possíveis da medição do
momentum?”.
Portanto, a meu ver, a Mecânica Quântica nada afirma
sobre um estado de um sistema físico antes da medida.
Apenas prevê o conjunto de resultados possíveis e suas
probabilidades respectivas de uma medição. A Mecânica
Quântica é, pois, como uma teoria estatística dos
resultados de uma roleta. E tal como numa roleta nos
podemos perguntar pela probabilidade de sair um dado
número, de sair uma dada cor, de sair um número par (ou
impar), na Mecânica Quântica podemos perguntar pela
probabilidade de um determinado resultado da posição, do
momentum, da energia, etc. O terceiro postulado enuncia
justamente a forma de encontrar a probabilidade de cada
resultado da medição a partir da função de estado.
Por outro lado, a distribuição de resultados e as suas
probabilidades respectivas são dependentes do contexto
experimental. Se a roleta em causa for do tipo americana e
145
não do tipo europeia137, ou se bloquearmos o número 13 já
depois do lançamento da esfera da sorte, por exemplo, isso
implica uma modificação dos resultados possíveis e das suas
probabilidades respectivas. A equação de Schrödinger serve,
justamente, dar conta das variações que decorrem da
inclusão de elementos que modifiquem as condições iniciais
do sistema. Ou seja, da evolução das previsões dos
resultados de medida em função da evolução das condições do
sistema.
No entanto, contrariamente a uma roleta, a estatística
segundo a qual se constitui a Mecânica Quântica é
ondulatória. É particularmente claro, em especial, quando
se acede ao domínio quântico por via da chamada
“experiência da dupla fenda” que o coração da Mecânica
Quântica habita na frase “distribuição estatística
ondulatória de resultados”. Como tal, é sem surpresa que se
constata que ao longo dos quatro postulados iniciais – os
que se referem à probabilidade e estatística de resultados
da medição - é clara a presença de termos que se referem
às ondas. Logo no primeiro postulado, pois neste se define
a função de estado de um sistema quântico como uma função
de onda. Função de onda que, pelo segundo postulado, é
decomposta linearmente por um operador em funções próprias,
137 As roletas distinguem-se na sua tipologia em americanas e europeias pela inclusão de mais um número – o 00 – nas primeiras em relação as primeiras.
146
tal como a luz é decomposta linearmente por um prisma em
cores. E, desta forma, tal como a luz pode ser entendida
como o composto linear de todas as cores observáveis, a o
estado do sistema quântico num dado instante, pode ser
entendida como o composto de uma sobreposição linear de
estados possíveis de serem resultados de uma medida. Por
sua vez, no terceiro postulado é estabelecida a relação
entre a probabilidade de cada um desses resultados
possíveis de uma medição e a amplitude da função de onda
que os descreve. E, por fim, a equação que dá conta da
evolução – a equação de Schrödinger - da expectativa dos
resultados de uma medida sobre o sistema físico é uma
equação típica de ondas.
Ondas e probabilidades dos resultados possíveis de uma
medição cruzam-se nos primeiros postulados. Corpo e
resultado da medida cruzam-se no quinto e último postulado.
Pois se a estatística é ondulatória, cada resultado
individual é a fixação de valor determinado para a posição,
para o momentum, para energia, etc. Ou seja, para as
propriedades corpusculares.
Esta é a forma extremamente habilidosa, trama subtil
de equilíbrio delicado, urdida principalmente por esse
génio dinamarquês, obstinado mas polido, que se constituiu
a Mecânica Quântica.
147
Por um lado, a Mecânica Quântica constitui-se
aceitando a imposição da Natureza física que os objectos
quânticos se propagam como ondas e interagem como corpos.
Não haveria uma teoria quântica se não houvesse anuência à
imposição da Natureza física. Não haveria uma teoria
quântica sem uma certa dose de realismo. Sem algo da
própria Natureza física a decepcionar a nossa concepção
clássica.
No entanto, por outro lado, trata-se de uma aceitação
condicionada pela pentadoxia dos objectos físicos. Isto é,
sem prescindir que os objectos físicos só podem ser
concebidos tal qual o são nas teorias clássicas da física.
Ou seja, sem prescindir que os objectos físicos se
distinguem exclusivamente em ondas ou corpos; que são
substanciais; que as suas partes têm a mesma natureza do
seu todo; que as suas propriedades quantitativas possuem
valores bem determinados; que a actualização sucede sem
alteração de natureza do que é actualizado. E, por
extensão, sem prescindir do primado dos conceitos
clássicos. Porém, afirmar que não se admite outra concepção
de objectos físicos senão a da pentadoxia, não significa
que uma teoria física os tenha que incluir integralmente.
Pode incluir esses elementos de um modo formal e ser-se
ausente nas referências ontológicas. É o caso da Mecânica
Quântica.
148
Assim, encontramos a presença dos elementos da
pentadoxia dos objectos físicos quando encontramos,
implicitamente, as partículas puras dos corpos e das ondas
ao longo dos postulados. Pois quando há pouco se afirmou
que a Mecânica Quântica transforma, por exemplo, a questão
“onde está?” para “quais os resultados possíveis (e
respectivas probabilidades) de uma medição da posição?”,
implica que a Mecânica Quântica refere-se às partículas
pura dos corpos, isto é aos corpos pontuais, pois são as
entidades que possuem uma posição bem determinada. Porém,
os corpos pontuais surgem aqui não como representações
ideais dos corpos, como arquétipos deste, mas como os
únicos elementos aos quais a teoria quântica nova se
refere. Numa autonomização absoluta do representante face
ao representado.
Por sua vez, ao identificar-se a função de onda como
as funções de estado isto implica que as ondas a que se
refere a Mecânica Quântica são infinitamente extensas e de
frequência temporal (e por consequência, de energia) bem
determinada. Isto é, a Mecânica Quântica refere-se
formalmente às partículas puras das ondas – as ondas
sinusoidais planas ou ondas de Fourier.
Se a Mecânica é a Física dos corpos e o
Electromagnetismo é a Física das ondas, a Mecânica Quântica
é a Física das partículas puras dos corpos e das ondas. Ou
149
seja, na Mecânica Quântica a referência as ondas se cingem
à estatística dos resultados, não a qualquer entidade
física que possuam propriedades ondulatórias. E a
referência aos corpos cinge-se à verificação de um valor
bem determinado nas medições. Deste modo, a Mecânica
Quântica integra a imposição da natureza dos objectos
quânticos por um lado, a constituir-se com uma estrutura
dual. Isto é, tendo a parte cinemática dos postulados
referentes a ondas; e a parte dinâmica referente a corpos.
Por outro lado, a imposição da natureza dos objectos
quânticos é integrada considerando-a apenas de maneira
formal. A Mecânica Quântica constitui-se não como uma
teoria que se refere aos objectos quânticos, pois estes
são, pela sua natureza, incompatíveis com a Física
Clássica. A Mecânica Quântica constitui-se como uma teoria
que se refere somente aos resultados de uma medição. Pois
este é a única forma de trazer o domínio quântico para o
domínio clássico. De certa forma, de integrar o quântico no
clássico.
É, portanto, notório que o propósito de Bohr sempre
foi o de conciliar as teorias clássicas com a bizarra
natureza quântica num todo consistente. Ou mais
precisamente, e como o próprio afirmou (que aqui se
recorda) “O problema com que os físicos foram confrontados
[perante a descoberta de Planck] foi, como tal, o de
150
desenvolverem uma generalização racional da física clássica
que permitisse a incorporação harmónica do quantum de
acção.”138
Ao assinalar que a Mecânica Quântica é uma
generalização racional da física clássica, Bohr está a
afirmar que a Mecânica Quântica foi constituída, não
através da introdução de novos conceitos ou de uma nova
linguagem em relação à Física clássica, mas através de uma
revisão racional dos conceitos e modos de descrição já
presentes na Física Clássica. Num equilíbrio difícil entre
manter-se o mais próximo da Física Clássica e querer
estende-la de forma a incorporar o postulado quântico. E
esta é esta, a meu ver, a essência da Mecânica Quântica:
não tanto uma profunda revolução, mas uma resposta, quase
desesperada, do “espírito” da Física Clássica que se
caracteriza pela pentadoxia dos objectos físicos, por via
da razão, à perturbação causada pela descoberta do domínio
quântico. Assim, se as teorias clássicas têm como elementos
fundamentais do seu formalismo as variáveis posição,
momentum, energia, etc., que representam propriedades
quantitativas, a Mecânica Quântica tem como elementos
formais fundamentais os operadores posição, o operador
momentum, o operador energia, etc., elementos que actos de
medida das propriedades quantitativas. As segundas – os
138 Conferir nota de rodapé º 5 deste capítulo.
151
operadores - são uma construção puramente formal das
primeiras – as variáveis. Construção formal que integra,
como é claro, o valor do quantum de acção. Deste modo, os
conceitos clássicos são integrados na mecânica quântica por
via de uma generalização racional.
Neste sentido a Mecânica Quântica é, na sua essência,
a meu ver e estando aqui em acordo com Bohr, uma
generalização racional das teorias clássicas da Física.
Porém, a Mecânica Quântica ao constituir-se como uma
generalização racional das teorias clássicas perde contacto
com as entidades que deveria descrever. A Mecânica Quântica
não tem como referentes os objectos quânticos, mas um dado
conjunto de medições que são realizadas. A Mecânica
Quântica constitui-se por recusa de se enfrentar com a
questão da natureza dos objectos quânticos. Recusa que, por
sua vez, leva ao vazio de sentido de questões como: “o que
existia antes da medida?”. Aceitar a Mecânica Quântica e,
no entanto, colocar a questão sobre o que nos diz esta do
que existe, realmente, antes da medida, é o mesmo que
aceitar o Big Bang e procurar resposta na Teoria do Big
Bang à questão “o que existia antes do Big Bang?”. Ambas
teorias constituem-se fora do âmbito dessas questões.
No entanto, boa parte da literatura filosófica sobre
a Mecânica Quântica conhece a sua motivação numa certa
152
tentação de ter um discurso ontológico sobre esta teoria
quântica. Esta tentação de ontologizar concretiza-se na
atribuição à função de onda do estatuto de função de estado
do sistema antes da medida. Ou seja, como se a função de
onda de um sistema representasse, efectivamente, de algum
modo, o estado do sistema antes da medição e não fosse
relativo apenas e só à expectativa de resultados. A
diferença será subtil mas creio que pode ser elucidada
regressando ao exemplo da roleta. Imagine-se que esta é
viciada de tal forma que a distribuição de ocorrência dos
números (resultados de uma roleta) – lançamento a
lançamento – configurasse não o perfil estatístico
corpuscular, que seria uma recta, mas um perfil estatístico
ondulatório. Isto é, uma curva (uma normal, por exemplo). O
perfil estatístico de tão demoníaca roleta poderia ser,
formalmente, tomado como o resultado da sobreposição linear
de um conjunto de ondas, cada uma relativa a cada número de
sair em sorte. Ou seja, nesta roleta cada resultado
possível é descrito, formalmente, por uma onda. Contudo,
trata-se de um sistema mecânico plenamente clássico, de uma
esfera e um conjunto de “caixas” pintadas com um número. E,
como tal, a função de estado deste sistema é uma função de
onda. Porém, esta função traduz somente a expectativa de
resultados e de, nenhum modo, representa o sistema físico
antes da medição.
153
Essa cedência à tentação de ontologizar a Mecânica
Quântica nunca a encontramos em Bohr. Nem poderíamos
encontrar, a meu ver. Pois para ele será bem claro que a
Mecânica Quântica não se refere ao domínio quântico, mas ao
resultado das medições. E, como tal, não fará sentido algum
falar-se do estado do sistema quântico antes da medida. É
em Von Neumann que encontramos, em certa medida, o início
deste movimento de cedência à tentação, este cair num
discurso ontologizante, ainda que insípido, sobre a função
de onda. Encontramo-lo exactamente na mesma obra, de 1932 e
que já foi aqui referida, onde tratou de axiomatizar a
Mecânica Quântica. Assinala-se Von Neumann, como muitos
outros o farão posteriormente, que conforme os quatros
primeiros postulados, um sistema quântico antes de uma
medição é, em geral, composto por uma sobreposição linear
de estados possíveis de uma medição. Cada um destes
definidos por uma função própria do operador correspondente
à medição. Ou seja, como se esses estados possíveis de uma
medida existissem, de algum modo, em sobreposição. A tão
famosa “sobreposição quântica”. E deste modo afirma-se que
antes da medida, relativamente, por exemplo, à sua energia,
um sistema quântico encontra-se num estado de sobreposição
dos estados de energia possíveis de virem a ser medidos.
De seguida acrescenta-se que a equação de Schrödinger
permite determinar completamente o estado do sistema, num
154
instante qualquer, a partir do conhecimento da função de
onda num instante qualquer anterior. Ou seja, que é uma
equação determinista. O que tem duas consequências. Por um
lado significa que considerando-se apenas os quatro
primeiros postulados, a Mecânica Quântica é uma teoria
determinista. E, por outro lado, dado que se considera que
o sistema evolui de forma determinística, então, essa
sobreposição linear de estados possíveis permanece
perfeitamente definida enquanto sobreposição ao longo do
tempo. (O que, em boa verdade, não é surpreendente. Por um
lado, pois essa “evolução do estado do sistema” trata-se
tão somente uma evolução da expectativa dos resultados de
uma dada medição. Como a expectativa dos resultados de uma
roleta. Expectativas esta que também evoluem de formal
determinista. Por outro lado, trabalha-se com uma
estatística ondulatória e, como tal, pode-se representar a
função de onda como o produto de um sobreposição linear de
outras ondas).
No entanto, de uma medição não resulta uma
sobreposição de estados, mas apenas um estado particular
bem determinado. Por exemplo, da medição de um electrão
resulta um valor determinado para a sua posição, para o seu
momentum, para a sua energia, etc. Nunca se observa um
electrão, simultaneamente, em duas ou mais localizações, ou
com duas ou mais energias, por exemplo.
155
Assim, no último capítulo da referida obra de Von
Neumann, este assinala existência dos dois tipos de
evolução dos sistemas quânticos139: Uma evolução continua,
determinista, linear e reversível, que decorre ao longo do
tempo e antes de ser efectuada uma medição no sistema; e
uma outra evolução, esta descontínua, indeterminista, não-
linear e irreversível, que ocorre quando uma medição sobre
esse sistema é efectuada.
Interpretando-se a função de onda como se referisse a
algo antes da medida, coloca-se, logicamente, a questão:
como relacionar o que existe antes da medida com o que
resulta da medida? Como relacionar os dois regimes da
evolução dos sistemas quânticos?
Para dar conta desta transição entre regimes de
evolução dos sistemas quânticos que Von Neumann propõe o
quinto e último postulado da Mecânica Quântica, onde se
promove que no instante em que se realiza a medição há uma
transformação, um colapso, da função de onda numa das
funções próprias do sistema. Este postulado ficaria
celebrizado com a designação de “postulado do colapso da
função de onda”. Como é por demais conhecido, a celebridade
é deste postulado decorre do facto de ser a partir deste
que resulta o emaranhado de problemas que têm ocupado
139 Conferir Neumann, J. Von (1932), Mathematische Grundlagen der Quantenmechanik. Berlin: Springer (Tradução em inglês de Robert T. Beyer, “Mathematical Foundations of Quantum Mechanics”, Princeton: Princeton University Press, 1955), p. 351.
156
grande parte da literatura filosófica da Mecânica
Quântica140. Emaranhado este a que se tem dado a designação
geral de “problema da medição”.
2.9.O Problema da Medição
O chamado "problema da medição" surge, segundo a
literatura filosófica especializada141, como já aqui foi
visto, da oposição entre a evolução determinista descrita
pelos primeiros quatro postulados e a evolução
indeterminista descrita pelo postulado do colapso. Mais
propriamente, o problema geral da medição pode ser
enunciado a partir da seguinte questão: como, por
consequência de uma medição, um sistema que se encontra em
"sobreposição quântica" se transforma, por acção de uma
medição, num sistema em que os seus estados não se
sobrepõem?
140 Conferir Primeiro capítulo deste trabalho, página 9. 141 Conferir Busch, Paul e Lahti, Pekka (2009), “Measurement Theory” in Greenberger, Daniel; Hentschel, Klaus e Weinert, Friedel, Compendium of Quantum Physics, Berlim: Springer-Verlag, p. 375.
157
Segundo Osvaldo Pessoa Jr.142, o problema geral da
medição pode, por sua vez, ser decomposto em dois outros
problemas:
i) Problema da "caracterização": se o postulado do
colapso se aplica sempre quando é realizada uma medição
sobre um sistema quântico, então o que caracteriza uma
medição?
ii) Problema da "completude": poderia o processo de
medição que está na origem do postulado do colapso ser
explicado pela própria Mecânica Quântica e, por
conseguinte, esta ser completa sem necessitar do quinto
postulado?
Embora distintos, estes dois problemas não são
independentes. Pois se houver uma resposta positiva para o
problema da completude então o problema da caracterização
também terá sido resolvido, porque o quinto postulado
desapareceria. Analisemos separadamente ambos, começando
pelo segundo (visto que é a condição do primeiro).
142 Pessoa Jr., Osvaldo (1992), “O problema da medição em mecânica quântica: Um exame atualizado” in Cadernos de História e Filosofia da Ciência (série 3) 2(2), jul-dez 1992, p. 183.
158
2.9.1. O problema da Completude
Na literatura sobre os fundamentos da Mecânica
Quântica existem, em geral, três tipos de resolução do
problema da completude.
O primeiro tipo de resolução do referido problema foi
proposto pelo próprio Von Neumann. Este faz uso da hipótese
segundo a qual o aparelho macroscópico de medida poderia
ser descrito como um sistema quântico143. Objecto quântico
medido e aparelho de medida formariam assim um sistema
quântico composto. Contudo, tal não resolveria o problema
da completude, pois o estado deste sistema é um estado em
sobreposição. O sistema teria, por sua vez, que ser medido
por outro aparelho de medida e, como tal, retornar-se-ia à
situação inicial. Logo, desta forma, entrar-se-ia numa
cadeia infinita de aparelhos de medida que se medem,
sucessivamente, uns aos outros. E, como tal, nunca haveria
um valor da medição. O acto de medição nunca se concluiria.
Como mais à frente144 se verá, Von Neumann tenta responder a
esta objecção a partir da sua resposta ao problema da
caracterização.
Um outro tipo de proposta de resolução do problema da
completude da Mecânica Quântica encontramos a sua génese da
143 Conferir Jammer, Max (1974), The Philosophy of Quantum Mechanics: The Interpretations of Quantum Mechanics in Historical Perspective. New York: Wiley-Interscience, p. 475. 144 Conferir página 163.
159
já referida145 tese de Schrödinger de considerar que os
objectos quânticos têm uma natureza totalmente ondulatória,
isto é, são ondas, que são representadas pela função de
onda. E, como tal, no acto de medição não haveria um
colapso abrupto da função de onda mas o produto da
interacção física entre a matéria do aparelho de medida e
objecto quântico. Exactamente que processo é este é matéria
para o problema da caracterização de uma medição. Por essa
razão, mais frente voltaremos a esta tese.
Por fim, o terceiro tipo de teses em defesa da
completude da Mecânica Quântica sem o quinto postulado é
designado por Pessoa Júnior de criptodeterminista146.
Criptodeterminista já que os sistemas quânticos possuiriam
continuamente um valor bem determinado das suas
propriedades. Os sistemas quânticos cumpririam com a
pentadoxia sobre os objectos quânticos e, como tal, seriam
ontologicamente bem determinados. Contudo, seriam
epistemologicamente indeterminados. Isto é, existiria uma
impossibilidade de prever deterministamente os resultados
de medições individuais. Essa indeterminação seria fruto do
conhecimento necessariamente limitado a respeito do estado
inicial dos sistemas considerados.
145 Conferir página 121. 146 Conferir Pessoa Jr., Osvaldo (1992), “O problema da medição em
mecânica quântica: Um exame atualizado” in Cadernos de História e
Filosofia da Ciência (série 3) 2(2), jul-dez 1992, p. 184.
160
Uma das formulações do criptodeterminismo passa por
defender que indeterminismo da evolução de um sistema
quântico no momento da medição dever-se-á a uma limitação
do conhecimento do estado físico do observador. E, como
tal, dado que o estado do observador antes da medição não é
conhecido de maneira exacta seria impossível prever
deterministicamente os resultados da interacção entre os
sistemas objecto da medida, aparelho da medida e
observador. Tal como não sabemos prever de forma
determinada o resultado de uma colisão entre duas bolas
bilhar (ou entre duas ondas) se desconhecermos, por
exemplo, a força com que impulsionamos uma delas. E deste
modo, no acto de medida não haveria um misterioso colapso
da função de onda, mas tão-somente a revelação do valor da
propriedade objecto da medida. Tal como se poderia medir a
velocidade de cada uma das bolas de bilhar depois da
colisão e assim saber, a posteriori, o resultado da
colisão. Contudo, esta tese conhece diversos problemas. Por
um lado, teria no perfil estatístico ondulatório da medição
um mistério insondável. E, por essa razão, a atribuição de
função de estado à função de onda seria completamente
injustificada. Por outro lado, implicaria que o observador,
enquanto sistema físico era, simultaneamente, sistema
quântico observado e agente de observação. Seria,
simultaneamente, parte do sistema medido e parte do sistema
161
medidor. O que seria, por um lado, inconsistente com a
definição de estado de um sistema físico, que é parte
fundadora da Mecânica Quântica, no sentido que esta se
constitui a partir da complementaridade de Bohr. Ou seja,
seria incoerente com a própria Mecânica Quântica. Por outro
lado, levar-nos-ia novamente para o caso de sistemas que se
medem uns a outros numa cadeia infinita.
Existe, no entanto, um outro conjunto de propostas do
tipo criptodeterminista. Estas, no entanto, defendem que a
Mecânica Quântica não é uma teoria completa. Este tipo de
cripodeterminismo consiste na tese de que o indeterminismo
do acto de medida, que na axiomática da Mecânica Quântica –
recorde-se - aparece na transição abrupta entre os
primeiros quatro postulados e o quinto postulado,
reflectiria apenas uma insuficiência da Mecânica Quântica.
Isto é, haveria pelo menos uma variável que não estaria a
ser considerada. Este conjunto de teses é conhecida por
“tese das variáveis escondidas” e foi avançada, em
diferentes formulações e em diferentes momentos, por
Einstein147, De Broglie148, Popper149, Bohm150, entre outros.
147 Conferir Bohr, N. (1949), “Discussions with Einstein on epistemological problems in atomic physics” in Atomic Physics and Human Knowledge, New York: Kessinger Publishing. 148 Conferir De Broglie, L. e Andrade e Silva, J.L. (1971), La Réinterprétation de la Mécanique Ondulatoire, Paris: Gauthier-Villards. 149 Conferir Popper, Karl (1982), Quantum Theory and the Schism in Physics, London: Routledge.
162
Estas teses implicam que a função de onda não definiria,
por completo, o estado de um sistema quântico. Ou seja,
estas teses apontam para irresolubilidade do problema da
completude dentro do contexto da Mecânica Quântica, por
razão da incompletude desta. Como tal, apontam para teorias
quânticas alternativas à Mecânica Quântica. Esta é a origem
da linhagem das teorias quântica de De Broglie: a teoria de
De Broglie (ou teoria da dupla solução); a teoria De
Broglie-Bohm (ou Mecânica Bohmiana) e a teoria De Broglie-
Croca. Quanto a estas será preciso ter claro dois aspectos.
Em primeiro lugar, a família de teorias de De Broglie não
formam um grupo de interpretações sobre a Mecânica
Quântica. São teorias quânticas alternativas à Mecânica
Quântica. Em segundo lugar, é preciso ter claro que as
teorias de De Broglie, de De Broglie-Bohm e de De Broglie-
Croca, como veremos mais tarde151, têm justamente como
essência o apelo a um novo conceito de objecto físico. Algo
no entanto que só surge no contexto da última e é a razão
pela qual, a meu ver, as duas primeiras são inconsistentes.
Encontramos em Von Neumann uma recusa clara das teses
de “variáveis escondidas”. Recusa que surge,
simultaneamente, com a proposta de um teorema que,
pretensamente, demonstra que qualquer “tese de variáveis
150 Conferir Bohm, David (1980), Wholeness and the Implicate Order, London: Routledge. 151 Conferir capítulo V, página 329.
163
escondidas” é inválida152 para a Mecânica Quântica. Teorema,
designado por “no-go” e que até aos meados dos anos 50 do
século XX dominou o panorama dos fundamentos de Mecânica
Quântica. Isto, até ao advento da teoria de De Broglie-
Bohm.
Em conclusão, em relação ao problema da completude
existem na literatura sobre os fundamentos da Mecânica
Quântica dois caminhos opostos: por um lado, a família de
teorias de De Broglie defendem que o quinto postulado
assinala incompletude da Mecânica Quântica; por outro lado,
outros – como Von Neumann e Schrödinger - remetem a
resolução do problema da completude para o contexto do
problema da caracterização.
2.9.2 O problema da Caracterização
Na já aqui referida obra de Von Neumann de 1932, este
assinala153 que uma característica fundamental de uma
medição é a existência de um acto perceptivo de um sujeito.
Uma medição é uma relação a três, como aqui já foi
afirmado. Porém, esta não fica completamente caracterizada
considerando-se apenas a interacção física entre o objecto
152 Conferir Neumann, J. Von (1932), Mathematische Grundlagen der Quantenmechanik. Berlin: Springer (Tradução em inglês de Robert T. Beyer, “Mathematical Foundations of Quantum Mechanics”, Princeton: Princeton University Press, 1955), pp. 439. 153 Conferir Idem, pp. 419-420
164
de medida e o aparelho de medida. Para se completar é
preciso que exista um sujeito que tome consciência do
resultado da medida. Isto é, da alteração de estado físico
do aparelho de medida. Neste sentido, Von Neumann defende
que a transformação irreversível do estado do sistema
medido seria devida ao conhecimento que o observador tem do
seu próprio estado, permitindo que ele corte a cadeia de
aparelhos de medida que se medem sucessivamente. Ou seja,
em última análise, seria a consciência do sujeito da
medição que levaria ao colapso da função de onda154.
Esta tese de Von Neumann seria mais tarde radicalizada
por Wigner, levando esta a afirmar que “o Universo não
existia ‘realmente’ antes da vida inteligente” 155.
Esta espécie de subjectivismo ontológico que emana de
Von Neumann e Wigner atravessa toda a literatura filosófica
sobre a Mecânica Quântica. Em particular, surge quando se
analisa a celebre experiência de pensamento que Schrödinger
apresentou, num conjunto de artigos publicados156 em 1935,
e que ficou conhecido como o "paradoxo do gato". Paradoxo
que configura a formulação mais famosa do problema da
154 Conferir Jammer, Max (1974), The Philosophy of Quantum Mechanics: The Interpretations of Quantum Mechanics in Historical Perspective. New York: Wiley-Interscience, pp. 481-482. 155 Citado de Schomers, W. (1987), “Evolution of Quantum Theory” in Quantum Theory and pictures of reality, Schomers (ed), Berlim: Springer, p. 35. 156Shrödinger, Erwin (1935), "Die gegenwärtige Situation in der Quantenmechanik" in Naturwissenschaften 23: pp.807-812; 823-828; 844-849.
165
caracterização e, simultaneamente, a primeira reacção
contra a tese de Von Neumann. Aqui se apresenta:
Considere-se que um gato é fechado dentro de uma
câmara de aço. Dentro desta encontra-se uma substância
radioactiva que tem uma probabilidade 1/2 de fazer accionar
um detector dentro de um certo intervalo de tempo. Ligado a
este detector há um "dispositivo assassino" que funciona de
tal maneira que se o detector for disparado, o gato será
morto. Por outro lado, se nenhuma radiação for detectada no
intervalo de tempo considerado o gato permanece vivo. A
Mecânica Quântica descreve o estado do átomo radioactivo
como uma sobreposição de estados de emissão e de não-
emissão. Qual será, então, o estado do sistema como um todo
ao final do intervalo de tempo aqui considerado?
De acordo com a interpretação de Von Neumann, seria
uma sobreposição de estados - gato vivo e gato morto - até
que uma observação fosse efectuada por um observador.
Momento no qual dar-se-ia um colapso do estado ou para gato
vivo ou para gato morto. Pois, todas as medições levam à
percepção de um estado singular. Ou seja, seria a
consciência do observador que faria o sistema colapsar e,
por consequência, matar ou salvar o pobre animal. Esta
solução leva à tão famigerada conclusão que os objectos
quânticos são ontologicamente determinados pelo acto de
observação. Conclusão que é absurda para Schrödinger e por
166
essa razão terá crismado de “paradoxo” a experiência de
pensamento descrita. Em alternativa, o físico austríaco
propôs que num acto de medição, de algum modo, houvesse um
processo físico que levasse a uma compressão das ondas. A
proposta de Schrödinger era essencialmente isso: “uma
proposta”. Porém, é a proposta que está na origem da actual
tese da decoerência157. Onde, justamente, uma medição de um
sistema quântico é caracterizado por um processo físico de
interacção rápidas mas contínua entre o objecto de medida,
o aparelho e o “ambiente” de tal modo que o estado em
sobreposição quântica é transformada num estado clássico.
Contudo, esta tese passa necessariamente pela introdução do
tal parâmetro “ambiente”. Ou seja, por uma variável que é
exterior à Mecânica Quântica. E, por essa razão, a meu ver,
embora pretenda ser fiel à Mecânica Quântica acaba por se
aproximar da família das teorias de variáveis escondidas.
A meu ver do “paradoxo” do gato de Schrödinger
resultam uma de três hipóteses relativamente ao problema da
medição:
Primeira hipótese. Aceitar o colapso da função de onda
por acção de uma consciência proposta por Von Neumann e
Wigner e a sua consequente subjectividade ontológica. O que
157 Conferir, por exemplo, do filósofo francês Ómnes, Roland (1990), Understanding Quantum Mechanics, Princeton: Princeton Univesity press, pp. 224-234.
167
me parece ser conduzir a um claro absurdo, pois a Mecânica
Quântica surge, justamente, para dar conta de uma realidade
que não é conceptualizável pelas teorias clássicas. E como
tal, como poderia haver necessidade de responder a uma
realidade estranha e simultaneamente ela ser
ontologicamente dependente das nossas consciências? Por
outro lado, esta tese de Von Neumann e Wigner conduzem a um
sem número de paradoxos. Por exemplo, se estiverem dois
observadores a observar simultaneamente uma medição, qual
deles é o responsável pelo colapso?
Segunda hipótese. Aceitar que a Mecânica Quântica não
é uma teoria completa, tal como defendem os proponentes das
teorias das variáveis ocultas. E, assim sendo, não fará
sentido ter da função de onda dentro da Mecânica Quântica
como uma função que descreve o estado do sistema antes da
medida.
Terceira hipótese. Aceitar que a Mecânica Quântica
necessita do quinto postulado, tentando no entanto
interpretar o seu formalismo e, em particular, o estatuto
ontológico da função de onda, sem cair no subjectivismo
ontológico da tese de Von Neumann. Ou seja, entramos no
campo prolífero das interpretações da Mecânica Quântica.
Existe um leque enorme de opções. Porém, em comum a todas
percorre o problema da medição sempre insatisfatoriamente
resolvido. Em comum a todas atravessam os problemas que
168
decorrer de cair na tentação de considerar que a função de
onda se refere ao estado do sistema quântico antes da
medida. Aliás, o panorama dos fundamentos de Mecânica
Quântica da das últimas décadas tem sido, em parte,
dominado pelo aparecimento de um conjunto de teoremas “no-
go”, estes já não sobre a tese das variáveis escondidas,
mas sobre a irresolubilidade do problema da medição158. O
que é, a meu ver, indicativo que a Mecânica Quântica
constitui uma generalização racional das teorias clássicas
da Física e como tal não têm como referente o domínio
quântico mas o resultado de medições sobre este.
2.10. Conclusão
Quatro teses fundamentais percorrem este capítulo:
1) Tanto a Mecânica Quântica, como grande parte da
literatura filosófica sobre esta, pressupõem
158 Conferir, por exemplo, Brown, H. (1986) “The Insolubility Proof of the Quantum Measurement Problem”, Foundations of Physics 16, pp. 857-870; Fine, A. (1970) “Insolubility of the Quantum Measurement Problem”, Physical Review D2, pp. 2783-2787 ou Busch, P. e Shimony, Abe (1996), “Insolubility of the Quantum Measurement Problem for Unsharp Observables”, Studies in History and Philosophy of Science Part B 27 (4), pp. 397-404.
169
implicitamente um conjunto de cinco teses sobre os
objectos físicos - a pentadoxia.
2) As teorias físicas são caracterizáveis por uma questão
ou um conjunto de questões determinadas.
3) O domínio quântico não é conceptualizável pela
pentadoxia.
4) A Mecânica Quântica é uma generalização racional das
teorias físicas clássicas.
Tanto a maioria da literatura filosófica sobre a
Mecânica Quântica, como esta teoria, assenta,
implicitamente, num conjunto de aparentes certezas acerca
dos objectos físicos: Que os objectos físicos se dividem em
corpos e ondas; que os objectos físicos são divisíveis em
partes cuja natureza é igual ao do todo de que são partes;
que os objectos físicos possuem propriedades; que as
propriedades quantitativas têm um valor bem determinado;
que os objectos físicos se actualizam sem modificação das
suas propriedades. Este conjunto de cinco aparentes
certezas são extraídas de uma opinião geral sobre a
natureza dos objectos físicos e por isso designei-as de
pentadoxia. Opiniões, pois elas entranham-se em nós com tal
facilidade, fruto da sua tão suposta evidência, que são, em
geral, aceites de um modo acrítico. Por isso, só as
170
encontramos implícitas, mesmo na literatura filosófica
dedica à Mecânica Quântica. São como um senso comum a
partir do qual podemos começar a pensar com segurança.
Afinal, quem, mesmo dentro do contexto da Filosofia da
Física, duvida que a matéria se divide em sólidos e
fluidos? Ou seja, que se dividem em corpos e ondas? Que da
divisão de uma maçã resultam duas partes de maçã e que
estas também maçã são? Que os livros, a água ou o fumo têm
cor, forma, cheiro, etc.? Ou seja, que são portadores de
propriedades? Que automóveis, tal como todos os objectos
físicos que nos rodeiam, têm um valor bem determinado da
altura, do peso ou da velocidade? Que uma nota de cinco
euros é, conceptualmente, idêntica esteja ela possivelmente
ou actualmente na minha mão?
Seguros nesta pentadoxia sobre os objectos físicos
fundam-se as teorias clássicas da Física. A Mecânica como
física dos corpos. O Electromagnetismo como física das
ondulações do campo electromagnético. E se dos corpos
perguntamos pela sua localização e pelo seu movimento, ou
seja, perguntamos “Onde?” e “Para onde?”, então estas
questões são a impressão digital da Mecânica. E se das
ondas perguntamos pelo seu ciclo e pela sua magnitude,
estas questões são a impressão digital do
Electromagnetismo. Porém, a Física, em geral, caracteriza-
se, igualmente, pela procura de uma resposta precisa, de
171
uma resposta quantitativa, de uma fixação momentânea do
estado da coisa física. Assim, a Mecânica procura saber a
quantificação da localização, isto é, a posição e procura
saber a quantidade de movimento, isto é, o momentum. Por
sua vez, o Electromagnetismo procura saber a quantificação
do ciclo, isto é, a frequência temporal e procura saber a
quantificação da magnitude da oscilação, isto é, a
amplitude.
Estas duas teses – as duas primeiras teses do conjunto
de quatro que percorrem este capítulo - encontram a sua
síntese nas partículas puras dos corpos e das ondas. Pois,
por um lado, a pentadoxia leva-nos até essas entidades como
arquétipos dos corpos e das ondas. Por outro lado, apenas
relativamente às partículas puras podemos falar de
“posição”, “momentum”, “frequência temporal”, etc. Ou seja,
é primeiramente a estes arquétipos, aos representantes
ideais dos objectos físicos, que se referem os conceitos
clássicos. Por outro lado, só chegamos às partículas puras
de ondas e corpos, partindo da pentadoxia. E, assim,
podemos dizer que aquelas – as partículas puras de corpos e
ondas - são a expressão maior desta – a pentadoxia.
Aceitando as duas teses anteriores, Bohr considera a
linguagem da física clássica como um refinamento da
linguagem comum que se refere ao mundo físico. Refinamento
172
pois, por um lado, a linguagem da Física toma como ponto de
partida essa linguagem comum. Aquela que se refere ao mundo
físico que comummente experienciamos com termos como
“localização”, “movimento”, “ritmo”, etc. Ou seja, aquela
que se refere ao mundo físico que se divide em corpos e
ondas. Porém, ao contrário da linguagem natural, a
linguagem da Física pretende ter como referente, não os
corpos e as ondas, mas os representantes arquétipos destes.
E, a partir desse deslocamento transformar a linguagem
comum, que se referem as qualidades, como “movimento”, numa
linguagem que se refere à quantificação dessas qualidades,
como “quantidade de movimento ou momentum”. Ou seja,
transformar o discurso ambíguo sobre o mundo físico num
discurso matemático, formal, objectivo. Neste sentido, Bohr
defende que a linguagem da Física clássica é a única que
garante a comunicabilidade efectiva entre Físicos. Pois é
aquela que é objectiva e constrói-se a partir dessa divisão
entre corpos e ondas. Não havendo outras naturezas dos
objectos físicos, não haverá outras Físicas que não a
Clássica. E, como tal, Bohr defende a indispensabilidade
dos conceitos clássicos. Outorgando-lhes quase um estatuto
de um a priori transcendental, pois convocam em si as
condições de possibilidade de se conceber um objecto
físico. Na realidade, trata-se, a meu ver, de uma
transcendentalização da pentadoxia dos objectos físicos.
173
Deste modo, a doutrina dos conceitos clássicos de Bohr
implica que qualquer teoria física é uma generalização das
teorias clássicas. Em particular, uma qualquer teoria
atómica deveria resultar de uma generalização natural das
teorias físicas. Isto é, um caso particular destas. Como o
é, por exemplo, a Termodinâmica relativamente à Mecânica.
Contudo, algo da realidade do mundo quântico invalida todos
os modelos clássicos do átomo, como o de Rutherford. Algo
da natureza dos objectos quânticos escapa aos conceitos
clássicos. Escapa à pentadoxia dos objectos físicos. Algo
da realidade do domínio quântico não se deixa enformar.
Bohr compreendeu esta insubmissão da realidade do
domínio quântico como ninguém, ao compreender que os
objectos quânticos não se deixam conceber como ondas ou
corpos. Se não houvesse essa realidade, aqui compreendida,
tal como propõe Brigitte Falkenburg, como a capacidade de
algo contrariar as nossas expectativas159, de nos desiludir,
não haveria Mecânica Quântica. E, neste sentido, Bohr é,
sem dúvida, um realista. Realismo que será difícil de
classificar, mas que o permite ter bem clara a tensão entre
essa “realidade quântica” e a doutrina dos conceitos
clássicos. E na medida que esta última nada mais é que a
expressão da pentadoxia, foi intenção do físico dinamarquês
159 Falkenburg, Brigitte (2007), Particle Metaphysics, Berlim: Springer, p. 19.
174
encontrar uma forma de integrar harmoniosamente a estranha
natureza dos objectos quânticos na concepção clássica do
mundo físico.
Esta integração realiza-se começando por se
estabelecer, como princípio orientador da própria
constituição da Mecânica Quântica, que esta deve ter,
logicamente, uma relação de correspondência com as teorias
clássicas da Física. Uma correspondência, em primeiro
lugar, entre previsões numéricas no limite onde a natureza
quântica perde significado físico prático. Ou seja, no tal
limite dos grandes números quânticos. Uma correspondência,
em segundo lugar, entre os formalismos. E, em terceiro
lugar, uma correspondência entre conceitos.
Por fim, o culminar da incorporação consistente e
harmoniosa da estranha natureza quântica nas teorias
clássicas, reside na determinação da aplicabilidade dos
conceitos clássicos.
A tese fundadora da Teoria Quântica Nova foi a de De
Broglie que consiste na afirmação que objectos quânticos se
propagam como ondas e interagem como corpos. Para De
Broglie tal tese implicava que, de algum modo, teríamos que
encontrar um conceito apropriado para os objectos
quânticos. Em De Broglie existe uma abertura para a
questão: “o que é um objecto quântico?”. Em Bohr existe uma
renúncia total a tal tipo de questão ontológica. De De
175
Broglie, Bohr retira a lição que nenhum conceito clássico
não pode ser aplicado a todas etapas necessárias à
descrição completa de uma determinada situação experimental
relativa a um sistema quântico. Da doutrina dos conceitos
clássicos é claro que os objectos quânticos só podem ser
concebidos exclusivamente como ondas ou corpos. Mas se
fossem ondas ou corpos não haveria necessidade de uma
teoria quântica. Bohr foge do labirinto a que a tese de De
Broglie nos conduz, retirando deste apenas a ilação que os
conceitos clássicos devem ser aplicados formalmente e de um
modo complementar. Aos objectos quânticos continuam a ser
aplicados os conceitos de ondas e de corpos. Porém, não se
referem à natureza destes, mas ao padrão de resultados de
uma medição sobre estes. A onda não se refere à natureza
dos objectos quânticos, mas à estatística de resultados de
medida. E neste movimento, a posição é substituída pelo
operador posição. O momentum é substituída pelo operador
momentum. A energia é substituída pelo operador energia. A
Mecânica Quântica não é uma teoria que se refere ao estado
físico dos objectos quânticos, mas apenas e só ao cálculo
probabilístico de uma medição sobre eles. A Mecânica
Quântica constitui-se, assim, como, essencialmente, uma
generalização racional das teorias clássicas da Física.
Compreende-se pois que não seja aplicável aos objectos
quânticos, dentro do contexto da Mecânica Quântica, o
176
conceito de trajectória. Pois isso significaria uma
assumpção ontológica sobre essas entidades quânticas. Sobre
uma sucessão de posições. Nem tão pouco lhes será aplicável
o conceito de energia, ou momentum, ou massa, ou qualquer
outro. Se se refere, por exemplo, à posição dos objectos
quânticos é apenas por enorme simplicidade. Na realidade,
no contexto da Mecânica Quântica, deveríamos apenas falar
em medições de posição e suas probabilidades. Neste
sentido, todo discurso ontologizante sobre a função de
onda, sobre o cair na tentação de perguntar “o que havia
antes da medição?” querendo ser fiel à Mecânica Quântica, é
uma pura quimera. E, por consequência, parte do debate
sobre as implicações da Mecânica Quântica são, a meu ver,
sem sentido.
Por outro lado, se se fala em propriedades dos
objectos quânticos como o spin é apenas por não se ter
presente que essas supostas propriedades são puras
construções formais a partir de propriedades dos objectos
clássicos, tal como o spin é do momentum angular.
E se a Física de Partículas se faz falando em
electrões, neutrinos, protões ou outros objectos quânticos,
imaginadas como corpúsculos que se movem, no anel
subterrâneo do CERN, a alta velocidade, quase como se
fossem bolas de bilhar lançadas dentro um tubo gigante, é
177
apenas como assinala Brigitte Falkenburg160, porque a Física
de Partículas se constitui a partir de um conjunto de
conceitos operacionais de partícula. Portanto, em
habilidosas transgressões à Mecânica Quântica. O mesmo
poderia ser dito, a meu ver, da Electrodinâmica Quântica,
com o seu conceito operacional de “campo nulo flutuante”,
ou da Química Quântica, com o conceito operacional de
“distribuição de electrões”. Em todas elas, em todas as
linhas de investigação da Física Quântica da segunda metade
do século XX, sente-se a vontade de ontologização na
referência ao domínio quântico. O mesmo que a Mecânica
Quântica se recusa fazer qualquer referência ontológica,
pois os objectos quânticos não podem ser concebidos sem
ferir as entranhadas convicções sobre a natureza dos
objectos físicos que percorre toda a Física. Assim, a
questão não é verdadeiramente “o que é um objecto
quântico?”. Pois essa questão já manifesta a nossa
estranheza em relação à sua natureza. Já, de certo modo,
manifesta a nossa vontade de tornar clássico o quântico. Já
nos conduz pelo caminho trilhado por Bohr que só nos leva a
uma Mecânica Quântica, rica na produção de previsões de
resultados, mas ontologicamente vazia. A questão que o
domínio quântico levanta, a meu ver, não é pois “o que é um
objecto quântico?” mas: “o que é um objecto físico?”.
160 Idem, p. 221.
178
179
3. O que é um objecto físico?
Num artigo que, ainda se pode considerar como recente,
o norteamericano Ned Markosian assinala:
“Apesar da sua óbvia importância nas discussões
filosóficas, o conceito de objecto físico tem recebido,
surpreendentemente, pouca atenção. Em particular, a questão “O
que é um objecto físico?”, isto é, “qual é a análise correcta do
conceito de objecto físico?” tem sido praticamente ignorada pela
maioria dos filósofos.”161
O conceito de objecto físico é, necessariamente, de
vital importância para a Filosofia da Física. Para qualquer
Física. Não fora esta, justamente, a ciência que tem por
objecto os objectos físicos. Contudo, aceitando o que
assinala Markosian, estranhamente, a análise deste conceito
tem estado muito pouco presente na Filosofia contemporânea.
161 “Despite its obvious importance in philosophical discussions, the concept of a physical object has received surprisingly little attention. In particular, the question What are physical objects?, i.e., What is the correct analysis of the concept of a physical object?, has been all but ignored by most philosophers.” Markosian, Ned (2000), “What are Physical Objects?”, in Philosophy and Phenomenological Research, 61, pp. 375-376. (tradução minha)
180
E se assim é para a Filosofia em geral, é-o, logicamente,
para a Filosofia da Física. O que será, particularmente
surpreendente, pois não só é um conceito fundamental, por
definição da própria Filosofia da Física, como se afirmou
no inicio deste parágrafo, mas porque, como pretendeu
mostrar o capítulo anterior deste trabalho, a questão “o
que é um objecto físico?” é crucial para a Filosofia da
Mecânica Quântica. Porém, se o conceito de objecto físico
tem estado arredado da literatura filosófica actual, ele
foi manifestamente um dos epicentros da ontologia dos
séculos XVI e XVII – época do início tanto da Filosofia
Moderna, como da Física Clássica. Por isso, a meu ver,
qualquer investigação sobre o conceito de objecto físico,
que se pretende relacionar com a Física actual, terá que
começar por essa época. Mais especificamente, por
Descartes. Tanto mais que Markosian, no referido artigo,
defende uma concepção de objecto físico muito aproximada da
apresentada por Descartes.
181
3.1. O Conceito de Objecto Físico em Descartes
Dentro da bibliografia de Descartes, é nos “Princípios
de Filosofia” que encontramos uma especial e desenvolvida
atenção à Metafísica da Física. Atenção essa que tem o seu
foco no conceito de objecto físico e como a partir deste se
ergue a própria Física. Nos “Princípios de Filosofia”, tal
como nas “Meditações”, Descartes apresenta uma ontologia
constituída por três substâncias. Substâncias que se
distinguem em dois tipos, cada um dos quais correspondente
um sentido ligeiramente diferente do conceito de
substância. Isto mesmo é assinalado por Descartes no título
do parágrafo 51 da primeira parte dos “Princípio de
Filosofia”, onde se pode ler “O que é a substância: um nome
que não se pode atribuir a Deus e às criaturas no mesmo
sentido”. O primeiro desses sentidos do conceito de
substância pode ser encontrado, no referido parágrafo dos
“Princípios de Filosofia”, na bem conhecida afirmação de
Descartes:
182
“Quando concebemos a substância, concebemos uma coisa que
existe de tal maneira que só tem necessidade de si própria para
existir.”162
A substância surge aqui como o que existe
independentemente de qualquer outra coisa. O que quer dizer
que, por um lado, o que é substância subsiste enquanto
existente, isto é, mantém-se como existente, pela sua
própria natureza. E, por outro lado, significa que o que é
substância tem em si mesma, na sua natureza, a razão da
génese da sua existência.
Porém, como salienta logo o próprio Descartes, “só
Deus é assim”163. Só Deus necessita apenas de si mesmo para
permanecer como existente e só Ele tem a razão da sua
existência completamente fundada na sua natureza. Pois, em
primeiro lugar, Descartes assinala que de Deus temos a
ideia de um “Ser omnisciente, todo-poderoso e extremamente
perfeito, isto é, um Ser todo perfeito”164. Ou seja, de Deus
temos a ideia de um Ser infinitamente poderoso. Ora, 162 “Lorsque nous concevons la substance, nous concevons seulement une chose qui existe en telle façon qu’elle n’a besoin que de soi-même pour exister.” Descartes, René (1644), “Les Principes de la Philosophie” in Oeuvres Philosophiques de Descartes, Tome III, Paris: Garnier Frères (1973), p. 121 ( Parte I, Parágrafo 51) (tradução minha a partir da tradução para português de João Gama, “Princípios de Filosofia”, Lisboa: Edições 70 (2006)), p.45).
163 “[…] il n’y a que Dieu qui soit tel” Idem, ibidem.
164 “[…] d’un être tout-connaissant, sout-puissant et extrêmement parfait” Idem, (Parte I, parágrafo 14) p. 32.
183
naturalmente a existência de tal Ser não pode depender da
existência de outra coisa qualquer, pois seria uma
contradição um Ser ser infinitamente poderoso e depender de
outra entidade qualquer. E sendo o único Ser infinitamente
poderoso, só Deus pode ter em si mesmo a razão da sua
existência. Como tal, “só pelo facto de se aperceber de que
a existência necessária e eterna está compreendida na ideia
de um Ser perfeito”165, então esse Ser só “pode ser
concebido como tendo existência necessária”166. O que
significa, segundo Descartes, por um lado, e não
mergulhando nas profundezas do chamado “argumento
ontológico”, que se temos em nós essa ideia de um Ser
perfeito então é porque ele existe. E, por outro lado,
significa, igualmente, que somente Deus existe
necessariamente pela sua própria essência. Só Deus existe
independentemente de qualquer outra coisa. Só Deus será,
então, substância.
Porém, se só Deus cumpre com a condição de substância
então isto significará que tudo é Deus? Se assim fosse ser-
se-ia levado a dizer que, verdadeiramente, existe apenas
uma única substância – a de Deus. Dir-se-ia, então, que
165 “[…] de cela Seul qu’elle aperçoit que l’existence nécessaire et éternelle est comprise dans l’idée qu’elle a d’un être tout parfait, elle doit conclure que cet être tout parfait est ou existe”, Idem, ibidem.
166 “[…] parce qu’elle ne peut être conçue qu’avec une existence nécessaire.” Idem, p. 100 (Parte I, Parágrafo 14) (p. 33)
184
Descartes é, no fundo, um monista. E, como tal, todas as
coisas, os objectos físicos em particular, seriam algo como
partes, manifestações ou modos particulares de Deus. Esta
conclusão colocaria Descartes muito próximo de Espinosa
(ou, do ponto de vista cronológico, colocaria Espinosa
muito próximo de Descartes). Pois, justamente, para
Espinosa, da conclusão que apenas Deus corresponde com o
conceito de substância como algo que existe apenas si
mesmo, resulta que “afora Deus, não pode ser dada nem
concebida nenhuma substância”167. Tudo o que existe é, de
algum modo, Deus. Distinguindo, então, o filósofo holandês,
a Natureza em duas: a Natureza naturante, que é “[…] o que
existe por si e é concebido por si […], isto é, Deus,
enquanto é considerado como causa livre; e a Natureza
naturada que é o conjunto de “[…] todos os modos dos
atributos de Deus, enquanto são considerados como coisas
que existem em Deus e não podem existir nem ser concebidas
sem Deus”168. Em Espinosa a Natureza é uma substância única.
E, em particular, os objectos físicos, que no caso são
apenas os corpos, são entendidos como “[…] um modo que
167 Espinosa, Bento de (1677), Ethica, (tradução portuguesa de Joaquim de Carvalho, Joaquim Ferrreira Gomes e António Simões, Ética, Lisboa: Relógio d’Água (1992), p. 121.
168 Idem, pp.150-151.
185
exprime, de maneira certa e determinada, a essência de
Deus”169.
Porém, para Descartes, contrariamente a Espinosa, da
consideração que a substância é única, no sentido que só
Deus depende de si mesmo para existir, não resulta que
todas as coisas não são outra coisa que modos ou
manifestações de Deus. Não resulta que as coisas não possam
ser concebidas sem Deus. Em Descartes Deus não está em
todas coisas. Deus é o criador de todas coisas.
Porém, se tudo foi criado por Deus isto não significa
que todas coisas criadas tenham o mesmo estatuto quanto à
sua existência:
“[…] entre as coisas criadas algumas são de tal natureza
que não podem existir sem outras, distinguimo-las daquelas que
só têm necessidade do concurso ordinário de Deus, chamando
substâncias a estas e qualidades ou atributos das substâncias
àquelas.”170
Se Deus é a única coisa cuja existência decorre
unicamente da sua natureza, e por isso é única coisa que
169 Idem, p.197.
170 Idem, ibidem.
186
cumpre integralmente com a definição de Descartes de
substância, outras coisas há cuja existência depende
unicamente de Deus, coisas que para existirem “só têm
necessidade do concurso ordinário de Deus”. Como tal estas
são, na sua existência, completamente independentes de
todas outras criadas por Deus. E neste sentido, Descartes
considera-as igualmente como substâncias, embora num
sentido ligeiramente diferente relativamente a Deus.
Por seu turno, se estas substâncias apenas necessitam
de Deus para existirem, então todas as outras coisas
dependem destas para existirem. Não serão substâncias, pois
não dependem unicamente de Deus para existirem, mas são
“qualidades ou atributos” das substâncias. Sendo mais
específico, afirma Descartes:
“A principal distinção que observo entre as coisas
criadas é que umas são intelectuais, isto é, substâncias
inteligentes, ou então propriedades que pertencem a tais
substâncias; as outras são corpórea, isto é, corpos ou
propriedades que pertencem ao corpo.”171
171 “Et la principale distinction que je remarque entre toutes les choses créés est que les unes sont intellectuelles, c’est-à-dire sont des substances intelligentes, ou bien des propriétés qui appartiennent au corps.” Descartes, René (1644), “Les Principes de la Philosophie” in Oeuvres Philosophiques de Descartes, Tome III, Paris: Garnier Frères (1973), p. 119 ( Parte I, parágrafo 48) tradução minha a partir da tradução para português de João Gama, “Princípios de Filosofia”, Lisboa: Edições 70 (2006)), p.44)
187
Nesta passagem, Descartes esclarece que as substâncias
criadas se dividem entre aquelas que são substâncias
intelectuais (a que Descartes igualmente designa por
substâncias pensantes ou almas) e as que são substâncias
corpórea ou corpos. O que significa, em primeiro lugar, que
existem para Descartes três substâncias. A de Deus, que
existe independente de tudo, e as que a foram criadas por
Deus e cuja existência depende unicamente Dele: a
substância corpórea e a substância que pensa.
Em segundo lugar, dentro das coisas criadas, para além
das substâncias, existem as propriedades que pertencem à
substância que pensa e as propriedades que pertencem as
substâncias corporais. O que, segundo Rodriguez-Pereya172,
actual professor de Metafísica na Universidade de Oxford,
constitui um segundo conceito de substância em Descartes:
Substância é uma entidade detentora de propriedades. Mas
será que estamos perante, não de um segundo conceito de
substância, mas de um corolário do conceito de substância?
Isto é, será que da afirmação que a substância é uma
entidade detentora de propriedades decorre da concepção da
172 Conferir Rodriguez-Pereya, Gonzalo (2008), “Descarte’s Substance dualism and His Independence Concept of Substance” in .Journal of the History of Philosophy, vol. 46, no. 1, p. 69.
188
substância como o que existe independente de qualquer outra
coisa?
Se se afirma que algo, chamemos-lhe “A”, não é
substância pois a sua existência depende directamente de
outra coisa, chamemos-lhe “B”, logo se coloca a questão: e
“B”, a sua existência depende exclusivamente de Deus ou
depende de outra coisa ainda, a que podemos chamar de “C”?
Se depende exclusivamente de Deus, “B” é substância e “A”
uma sua propriedade. Mas se a existência de “B” depende de
“C”, então, por um lado, conclui-se que “B” não é
substância e, por outro lado, regressamos à questão
anterior, mas agora dirigida a “C”: a existência de “C”
depende exclusivamente de Deus ou depende de outra coisa
ainda, a que podemos chamar de “D”? E, eventualmente,
depois de realizado o mesmo movimento, regressamos à
questão anterior, mas agora relativo a um “D”, do qual
dependeria a existência de “C”, e um “E” relativamente à
existência de “D”, e assim sucessivamente num encadeamento
de existências dependentes. Por conseguinte, a interrogação
sobre se existem dois ou mais conceitos de substância no
“Princípios de Filosofia” de Descartes transforma-se na
seguinte questão: uma qualquer cadeia de existências
dependentes sucessivamente termina, necessariamente, numa
substância?
189
Se sim, então, em última instância, todas as coisas
criadas ou são substâncias, pois dependem apenas de Deus
para existirem, ou são coisas que dependem, directa ou
indirectamente, das substâncias criadas para existirem. E
neste sentido, tudo o que existe ou é substância, ou é,
necessariamente, uma propriedade destas. E, por
conseguinte, o conceito de substância como portador de
propriedades é um corolário do conceito de substância
enquanto coisa que existe independentemente de qualquer
outra coisa que não seja a substância de Deus. Portanto,
não estaríamos perante dois conceitos de substância, como
afirma Rodriguez-Pereya, mas de apenas um.
Creio, aliás, que esta seja a interpretação mais fiel
a Descartes. Pois a hierarquia das substâncias e das suas
propriedades seria como uma árvore: uma folha de uma árvore
depende do ramo onde se encontra para existir; o ramo
depende do tronco da árvore para existir; e o tronco
depende da raiz a qual funda a existência da árvore, pois
não há árvores sem raízes. Em sentido metafórico, e não se
lhe exigindo demasiado, Deus seria a raiz e o mundo criado
a árvore, pois se uma árvore só existe se existir uma raiz,
uma raiz existe sem necessidade de árvore. No tronco
estariam as substâncias e partir deste as suas
propriedades, como ramificações e folhagens.
190
Porém, regressemos à questão anterior, ainda deixada
em aberto, de saber se existem nos “Princípios de
Filosofia” dois conceitos distintos de substância. E, em
especial, regressemos à questão: uma qualquer cadeia de
existência dependentes sucessivamente termina numa
substância? Seria possível responder negativamente a esta
questão? Sim, seria. Pois é possível conceber que uma
entidade “A” depende na sua existência de uma entidade “B”
que, por sua vez, depende de uma entidade “C” que, por fim,
depende de “A”. Portanto, nesta caso de circularidade de
dependências, nem “A”, nem “B”, nem, ainda, “C”,
individualmente consideradas, são substâncias no sentido de
algo que existe independente de qualquer coisa. Mas seriam
substâncias no sentido que são detentoras de propriedades.
Porém, neste caso, “A”,”B” e “C” teriam um estranho
estatuto. Pois, ao se afirmar que pela sua relação mútua de
dependências, “A” seria propriedade de “B”, “B” seria
propriedade de “C” e “C” seria propriedade de “A”, seria
afirmar que, neste sentido, “A”, “B” e “C” seriam, por um
lado, substâncias no sentido que seria portadores de
propriedades, mas por outro lado seriam propriedades. O que
constituiria uma contradição. Contradição que se supera se
entender que, neste caso, nem “A”, nem “B”, nem “C”,
individualmente considerados, são substâncias, mas
propriedades co-dependentes. Contraponhamos à imagem da
191
árvore, a imagem do rizoma ou do coral. A este assunto
voltaremos no próximo capítulo. Porém, importa aqui
assinalar que esta possibilidade de existirem propriedades
sem substância é explicitamente rejeitada por Descartes,
como se verá, mais à frente, quando se referir a natureza
da distinção entre “extensão” e “substância extensa”.
Rejeitando-se esta última possibilidade, conclui-se que do
conceito de substância como portador de propriedades é
corolário do conceito de substância como o que tem em si
mesmo a razão da sua existência. E, portanto, não creio que
estejamos perante, nos “Princípios de Filosofia”, de dois
conceitos de substância
Regressando agora à passagem onde Descartes afirma que
as coisas criadas se distinguem em duas categorias: as
substâncias - a pensante e a corpórea - as propriedades que
pertencem a estas, perguntemos: se Descartes afirma que só
existem duas substâncias entre as coisas criadas, em que se
distinguem a substância corpórea e a pensante? Como podemos
saber que são estas as únicas substâncias criadas? E se
estas substâncias são apenas possíveis na sua existência,
pois só Deus existe necessariamente, como sabemos que
existem realmente as substâncias corpóreas e pensante? A
resposta a estas questões pode ser encontrada a partir da
seguinte passagem de Descartes:
192
“[…] [para cada uma das substâncias criadas] há um atributo
que constitui a sua natureza e a sua essência e do qual todos os
outros atributos dependem. A saber, a extensão em comprimento,
largura e altura constitui a natureza da substância corporal, e
o pensamento constitui a natureza da substância que pensa. Com
efeito, tudo quanto pode ser atribuído ao corpo pressupõe a
extensão e não passa de dependência do que é extenso.
Igualmente, todas as propriedades que encontramos na coisa
pensante são diferentes maneiras de pensar.”173
Nesta passagem Descartes afirma que as substâncias
criadas distinguem-se entre si por possuírem um atributo
que lhes é essencial. Da substância que pensa, o seu
atributo principal é o pensamento. Da substância corpórea o
seu atributo principal é a extensão.
Assim, por um lado, em função do pensamento e da
extensão, sabemos, respectivamente, que tanto a substância
pensante, como a substância corpórea realmente existem,
173 “[…] il y en toutefois un en chacune qui constitue sa nature et son essence, et de qui tout les autres dépendent. A savoir, l’étendue en longueur, largeur et profondeur, constitue la nature de la substance qui pensé. Car tout ce que d’ailleurs on peut attribuer au corps présuppose de l’étendue, et n’est qu’une dépendance de ce qui est éstendu; de même, tout les propriétés que nous trouvons en la chose qui pensé ne sont que des façons différentes de penser“ Descartes, René (1644), “Les Principes de la Philosophie” in Oeuvres Philosophiques de Descartes, Tome III, Paris: Garnier Frères (1973), p. 123 ( Parte I, Parágrafo 53) (tradução minha a partir da tradução para português de João Gama, “Princípios de Filosofia”, Lisboa: Edições 70 (2006)), p.46).
193
pois, segundo Descartes “[…] logo que encontramos algum
atributo podemos concluir que é o atributo de alguma
substância, e que tal substância existe”174. Não há em
Descartes a possibilidade de atributos ou propriedades sem
existir um sujeito, isto é, uma substância, que as possua.
Por outro lado, a distinção entre substâncias opera-se
ao nível da distinção entre atributos principais.
Distinguimos os atributos principais, a extensão e o
pensamento, segundo Descartes, pois concebemos clara e
distintamente extensão sem o pensamento e pensamento sem
extensão. Ou seja, em tudo o que concebemos e podemos
conceber sobre a extensão em nada precisamos do pensamento
enquanto entidade (pois, naturalmente, só através do
pensamento podemos conceber algo. Porém, aqui entende-se
pensamento enquanto faculdade de conceber e não como
entidade ou substância). Sendo o contrário igualmente
verdadeiro. Para concebermos os corpos apenas necessitamos
da extensão e, como tal, esse é o atributo – único - que
lhes essencial, é esse atributo que constitui a sua
natureza. Argumenta Descartes que podemos verificar que só
concebemos clara e distintamente os corpos pela extensão,
corpos como o que é extenso recorrendo um exemplo a que
hoje se chamaria de “experiência de pensamento” e que é
174 “lorsqu’on en rencontre quelqu’un [attribut], on a raison de conclure qu’il est l’attribut de quelque substance, et que cette substance existe.“, Idem, p. 123 (Parte I, Parágrafo 52) (p. 46)
194
semelhante ao famoso exemplo da vela, apresentado nas
“Meditações”, mas que nos “Princípios de Filosofia”, é
revisitado na seguinte passagem:
“Tomemos por exemplo uma pedra e retiremos-lhes tudo o que
sabemos que não pertence à natureza do corpo. Primeiramente
retiramos-lhe a dureza, e nem por isso deixará de ser corpo;
depois a cor, já que alguma vezes temos visto pedras tão
transparentes que não têm cor; tiremos o peso, porque também o
fogo, ainda que muito ténue, nem por isso deixa de ser um corpo;
tiremos-lhe o frio, o calor e todas as qualidades deste género,
pois não pensamos estejam todas as outras qualidades deste
género, pois não pensamos que estejam na pedra ou que a pedra
mude de natureza porque umas vezes nos parece quente e outras
fria. Depois de assim termos examinado esta pedra descobrimos
que a verdadeira ideia que nos faz conceber que é um corpo que
consiste unicamente em nos apercebemos distintamente de que é
uma substância extensa em comprimento, largura e altura”175
175 “Nous prenons pour exemple une pierre et en ôtons tout ce que nous saurons ne point appartenir à la nature du corps. Otons-en donc premièrement la dureté, parce que, si on réduisait cette pierre en poudre, elle n’aurait plus de dureté, et ne laisserait pas pour cela d’être un corps; ôtons-en aussi la couleur, parce que nous avons pu voir quelquefois des pierres si transparentes qu’elles n’avaient point de couleur; ôtons-en la pesanteur, parce que nous voyons que le feu, quoiqu’il soit très léger, ne laisse pas d’être un corps; ôtons-en le froid, la chaleur, et toutes les autres qualités de ce genre, parce que nous ne pensons point qu’elles soient dans la pierre, ou bien que cette pierre change de nature parce qu’elle nous semble tantôt chaude et tantôt froid. Après avoir ainsi examine cette pierre, nous trouverons que la véritable idée que nous en avons consiste en cela seul que nous apercevons distinctement qu’elle est une substance étendue en longueur, largeur et profondeur”, Idem, pp. 156-157 (Parte II, Parágrafo 11)(p.64).
195
Defende então Descartes que o que conhecemos dos
corpos através das impressões sensíveis, conhecemo-lo
apenas de uma forma confusa e indistinta. Confusa, pois das
impressões sensíveis temos a sensação de cor, cheiro,
dureza, calor, etc. Sensações que associamos aos corpos e
somos levados a dizer, por exemplo, que um dado corpo é
azul ou que é quente. Porém, segundo Descartes “conhecemos
clara e distintamente a dor, a cor e outras sensações
quando as consideramos simplesmente como pensamentos”176. Ou
seja, só sabemos, por exemplo, o que é a cor quando a
tomamos como algo da substância pensante e, por
consequência, como algo completamente distinto da
substância corpórea. Portanto, todas essas coisas que as
nossas impressões sensíveis nos oferecerem como cor,
cheiro, dureza ou calor só confusamente os poderemos
associar aos corpos, pois são elementos não destes mas do
pensamento. Por essa razão, os corpos não mudam a sua
natureza consoante a sua cor, cheiro, dureza ou calor.
Retirando do conjunto de atributos do corpo tudo aquilo que
é da sensação, apenas resta a extensão. Mas se retirarmos a
extensão não há corpo. Podemos conceber uma pedra incolor,
176 “[…] nous connaissons clairement et distinctement la douleur, la couleur et les autres sentiments, lorsque nous les considérons simplement comme des pensées », Idem, p. 136 (Parte I, Parágrafo 68) (p. 53).
196
inodora, sem peso, mas não podemos conceber, segundo
Descartes, de forma alguma, um corpo sem extensão.
Chegamos, então, à conclusão que a ideia que temos dos
corpos é a ideia de uma coisa extensa, de uma res extensa.
Pois ao se eliminar sucessivamente todos as propriedades
que atribuímos aos corpos, alcançamos a única da qual não
se pode prescindir na concepção de corpo: a extensão em
comprimento, largura e altura.
Assim, para Descartes, só concebemos clara e
distintamente uma substância pensante pelo pensamento.
Pois, se por um lado, não é inteligível uma substância
pensante sem pensamento, por outro lado apenas precisamos
do pensamento para conceber a substância que pensa. Da
mesma forma, só concebemos clara e distintamente uma
substância corpórea pela extensão. Pois, por um lado, não é
inteligível um corpo sem extensão, por outro lado, apenas
precisamos da extensão para conceber o corpo.
Por seu turno, dado que todas as coisas que conhecemos
são referentes ou ao pensamento ou à extensão e sendo estes
os atributos que constituem, distinta e respectivamente, a
essência da substância que pensa e da substância corpórea,
então sabemos que não existirem outras substâncias criadas
para além da Alma e do Corpo. Havendo dois atributos
197
principais sabemos que existem apenas duas substâncias
criadas.
Regressando aos corpos como conceito, não será
surpreendente que extensão possua um estatuto essencial
relativamente à sua natureza. É de senso comum que os
corpos têm volume e têm uma localização. Aliás, ao
argumentar por eliminação, isto é, ao tentar mostrar que a
essência dos corpos é extensão nas três dimensões do espaço
físico por recurso à eliminação de todos os outros
presumidos atributos, Descartes remete para o senso comum
sobre os corpos, onde, naturalmente, se inclui a noção que
os corpos têm comprimento, largura e altura (aliás, na sua
argumentação Descartes pressupõe que é, igualmente, de
senso comum o que seja comprimento, largura e altura). Na
caracterização dos corpos, o que é fulcral e particular,
tal como assinala Garber177, em Descartes é a afirmação que
a natureza dos corpos seja exclusivamente a extensão. Ou
seja, que um conjunto de propriedades que vulgarmente
atribuímos aos corpos, como a temperatura, o peso, a cor,
nem quaisquer outras que julguemos, não pertencem realmente
a estes. Afirma, pois Descartes:
177 Garber, Daniel (1992), Descartes’ Metaphysical Physics, Chicago: University of Chicago Press, p. 77.
198
“[…] a natureza do corpo em geral não consiste em ser uma
coisa dura, pesada ou colorida, ou que afecta os sentidos de
qualquer outra maneira, mas que é apenas uma substância extensa
em comprimento, largura e altura”178
Os corpos conhecemos confusamente através dos
sentidos, ao misturar a sua extensão com cores, cheiros,
propriedades tácteis, etc. Os corpos conhecemos clara e
distintamente como extensão e apenas como extensão. Por
essa razão é tão fundamental em Descartes a separação
radical e completa entre a substância pensante e corpórea.
Pois, permite estabelecer uma radical separação entre o
sujeito que conhece o mundo físico - o sujeito que pensa -
e o objecto desse conhecimento - o corpo. Permitindo que
aquilo que seja determinado para os corpos seja objectivo,
isto é, que pertence somente ao objecto.
Por outro lado, como coisa puramente extensa, os
corpos, os objectos físicos, na sua natureza e propriedades
são afins com os objectos geométricos. Como tal, a partir
da sua concepção de corpo, Descartes pode fundar
178 “[…] la nature de la matière, ou du corps pris en général, ne consiste point en ce qu’il est une chose dure, ou pesante, ou colorée, ou qui touche nos sens de quelque autre façon, mais seulement en ce qu’il est une substance étendue en longueur, largeur et profondeur.” Descartes, René (1644), “Les Principes de la Philosophie” in Oeuvres Philosophiques de Descartes, Tome III, Paris: Garnier Frères (1973), p. 149 (Parte II, Parágrafo 4) (tradução minha a partir da tradução para português de João Gama, “Princípios de Filosofia”, Lisboa: Edições 70 (2006)), p.60).
199
solidamente na matemática uma ciência dos objectos físicos,
isto é, uma Física. Porém, a Física que Descartes pode
fundar é uma Física geométrica, uma Física das proporções e
não uma Física das quantidades, uma Física com uma álgebra
funcional. E, como tal, não é a Física como a reconhecemos,
que se inicia com Newton.
Porém, se todo o corpo é, pela sua essência, extenso,
então, poderá haver extensão sem corpo? Para Descartes, nos
“Princípios de Filosofia”, não. Pois, tal como já foi aqui
referido, Descartes não considera a possibilidade da
existência de uma propriedade que não seja senão uma
propriedade de uma substância determinada. A cor existe na
medida que é uma propriedade da substância pensante. A
extensão existe na medida que é uma propriedade da
substância corpórea. Descartes é muito claro quando afirma:
“[…] só distinguimos pensamento e extensão do que pensa e é
extenso como as dependências da própria coisa de que dependem, e
conhecemo-las tão clara e distintamente como a sua substância
desde de que não pensemos que subsistem por si próprias, mas que
são somente as maneiras ou dependências daquelas substâncias”179
179 “[…] nous ne distinguons la pensé et l’étendue de ce qui pensé et ce qui est étendu que comme les dépendances d’une chose, de la chose même dont elles dépendent; nous les connaissons aussi clairement et aussi distinctement que leurs substances, pourvu que nous ne pensions point qu’elles subsistent d’elles-mêmes, mais qu’elles sont seulement
200
Se distinguimos “extensão” da substância que é
extensa, fazemo-lo apenas por via do pensamento, pois não
corresponde a uma distinção real. Pois se fosse uma
distinção real, então teríamos que considerar que
“extensão” subsistiria si mesma, o que não é aceitável para
Descartes, pois equivaleria a afirmar que a “extensão” era
uma substância.
Por sua vez, se a extensão só pode ser considerada
como propriedade da substância corpórea, então não pode
haver extensão sem corpo. Mais concretamente, toda a
extensão, isto é, todo o espaço físico, está
necessariamente preenchido por corpo. Ou seja, do conceito
de corpo de Descartes resulta que o mundo físico é um
plenum.
Uma das consequências imediatas do plenum do espaço
físico é, claro está, a não existência de vazio em
Descartes. Como assinala o próprio:
“Quanto ao vazio, no sentido em que os filósofos tomam esta
palavra, isto é, como um espaço onde não há nenhuma substância,
é evidente que tal espaço não existe no universo, porque a
les façons ou dépendances de quelques substances.” Idem, pp. 133-134 (Parte I, Parágrafo 64) (p.51).
201
extensão do espaço ou do lugar interior não é diferente da do
corpo”180.
Porém, se a natureza da “extensão do espaço ou lugar
interior não é diferente da do corpo” como podemos
distinguir, pois todo o espaço é corpo, como podemos
distinguir os vários corpos no espaço? Afinal, é da
percepção sensível comum que os corpos são vários no espaço
e não apenas um, isto é, que são finitos, que Descartes
chega à conclusão que a natureza dos corpos é a pura
extensão. Se percebemos o espaço físico como um plenum, não
poderíamos chegar, por eliminação, como faz Descartes no
exemplo da pedra à qual vamos retirando sucessivamente
atribuições, à noção de largura, altura e comprimento e,
como tal, que os corpos são coisa extensa. Se falamos numa
pedra que tem uma largura, uma altura e um comprimento, é
porque é finita e o que a rodeia é-lhe, de alguma forma,
distinto. Mas se o espaço é um plenum essa distinção não
pode ser relativamente à natureza do que o rodeia, como
seria o caso do vazio. E, como tal, só pode residir na
diferença na composição das partes do corpo – no caso, a
180 “Pour ce qui est du vide, au sens que les philosophes prennent ce mot, à savoir, pour un espace où il n’y a point de substance, est évident qu’il n’y a point d’espace en l’univers qui soit tel, parce que l’extension de l’espace ou du lieu intérieur n’est point différente de l’extension du corps.” idem, p. 161 (Parte II, Parágrafo 16) (p.66).
202
pedra – e o que o rodeia. O que imediatamente rodeia um
corpo particular, a sua superfície, é designado por
Descartes de lugar exterior desse corpo particular. E,
logicamente, a figura dessa superfície, que é o
consideramos ser a figura do corpo é apenas um modo da
extensão. Desta forma, a diferença entre um corpo
particular e o que o rodeia, que também é corpo, reside na
diferença entre as partes que constituem esse corpo
particular e as que o rodeia. Mais especificamente:
“[…] só há uma matéria em todo o universo e só a conhecemos
porque é extensa. Todas as propriedades que nela apercebemos
distintamente apenas se referem ao facto de poder ser dividida e
movimentada segundo as suas partes.”181
Desta passagem assinala-se, em primeiro lugar, que
surge o termo “matéria”. Esta matéria não é outra coisa que
a substância corpórea entendida como plenum. Isto é, com a
totalidade da extensão. E por isso, “[…] a Terra e os céus
são feitos de uma mesma matéria, […] cuja natureza consiste
181 “Il n’y a donc qu’une même matière en tout l’univers, et nous la connaissons par cela Seul qu’elle est étendue; pour ce que toutes les propriétés que apercevons distinctement en elle, se rapportent à ce qu’elle peut être divisée et mue selon ses parties”, Idem, p. 168 (Parte II, Parágrafo 23) (p.69).
203
unicamente em ser coisa extensa”182. Ao identificar a
matéria com o plenum da substância do mundo físico, ou
seja, o espaço, Descartes, por um lado, afasta-se de
Aristóteles quando no filósofo grego o mundo físico é tido
como constituído por cinco matérias (água, ar, fogo, terra
e éter), havendo apenas uma matéria. Por outro lado, a
identificação da matéria com o plenum permite que se
distinga quando estamos a falar de um corpo particular do
conjunto total de corpos que constitui a plenitude do mundo
físico.
Em segundo lugar, na passagem anterior, Descartes
assinala que dado que a natureza dos corpos é a extensão,
então estes são divisíveis em partes. E, como tal, embora
toda a matéria seja constituída por partes, os corpos ou
objectos físicos particulares distinguem-se entre si pelas
diferenças entre essas partes que os constituem. A saber:
nos seus tamanhos e nos seus movimentos.
Relativamente ao tamanho, nessas partes em que os
corpos se podem dividir há umas tão pequenas que nos
escapam à visão e assim temos a falsa percepção de um vazio
e, por contraste de um corpo particular, como uma pedra
182 “[…] la Terre et les cieux sont faits que d’une même matière […], dont la nature consiste en cela seul qu’elle est une chose étendue”, Idem, p. 167 (Parte II, Parágrafo 22) (p.68).
204
rodeada de ar. Isso mesmo é referido explicitamente por
Descartes quando afirma que:
“[…] considero que em cada corpo há muitas partículas que
são tão pequenas que não podem ser sentidas”183
Significa isto, por um lado, que um corpo como o ar de
uma sala é constituída, essencialmente, por partículas tão
pequenas que não podem ser sentidas. Não as vendo somos
levados a concluir erradamente que não existem e falamos em
vazio quando esse vazio está cheio. Até, numericamente,
mais cheio que uma pedra. Mas por outro lado Descartes
afirma que não só os fluidos, como o ar, são constituídos
por partículas corpóreas ou corpúsculos tão pequenos que
não podem ser sentidos. Todos os corpos o são. Afinal, se
estes são extensos, então podem ser divididos em partes,
progressivamente, cada vez mais pequenas. Porém:
“Por mais pequenas que as suas partes sejam, todavia, e
porque é necessário que sejam extensas, pensamos que não há
sequer uma de entre elas que não possa dividir-se em duas ou
183 “[…] je considère plusieurs parties en chaque corps qui sont petites qu’elles ne peuvent être senties“, Idem, p. 516 (Parte IV, Parágrafo 201) (p.272).
205
noutras ainda mais pequenas; donde se segue que são
divisíveis.”184
Por mais pequenos que sejam os corpúsculo a cada
divisão, não é pensável uma qualquer sequência de divisões
até se alcançar uma parte tão ínfima do corpo que seja
última e absolutamente simples. Isto é, algo como um átomo,
entendido no sentido do que denominei no capítulo anterior
de partícula pura dos corpos. Pois considerar que um átomo,
no sentido de um corpo sem divisibilidade, seria considerar
um corpo sem partes. Logo, seria, igualmente, considerar um
corpo sem extensão. O que constituiria uma contradição com
a própria concepção do corpo como extenso. Descartes
afirma-se assim, claramente, contrário ao atomismo, no
sentido que este defende a existência de corpúsculos
indivisíveis e imutáveis na sua extensão e figura. Contudo,
para Descartes, tal como para os atomistas, tudo no mundo
físico é apenas composto por corpúsculos. Corpúsculos que,
para Descartes, como já foi referido, são concebidos, não
184 “D’autant que, si petites qu’on suppose ces parties, néanmoins, parce qu’il faut qu’elles soient étendues, nous concevons qu’il n’y en a pas une entre elles qui ne puisse être encore divisée en deux ou plus grand nombre d’autres plus petites, d’où il suit qu’elle est divisible.” Idem, p.166 (Parte II, Parágrafo 20) (p.68).
206
como entidades infinitamente pequenos, mas como entidades
incontáveis e de extensão indefinida185.
Mas regressando um pouco atrás, segundo Descartes os
corpos individuais distinguem-se não só pela dimensão das
suas partes, mas igualmente pelo movimento destas. É assim
que Descartes, entre os parágrafos 54 e 63 da segunda
partes dos “Princípios de Filosofia”, estabelece a
diferença entre sólidos e líquidos. Em que, resumidamente,
neste últimos as suas partes, para além de serem mais
pequenas, movem-se mais facilmente e, por isso, oferecem
menos resistência à divisão.
Mas mais importante que a distinção entre sólidos e
líquidos, interessa assinalar que, em Descartes, do mesmo
modo que da nossa experiência do mundo extraímos a noção
que os corpos têm figura, extraímos a noção que os corpos
se movem. O movimento, tal como a figura, não é algo que
decorre necessariamente da concepção de corpo como coisa
extensa. Um corpo poderia ser sem fim definido e, como tal,
ser sem contorno e, pois está, sem figura. E os corpos
poderiam ser eternamente estáticos. Figura e movimento são
para Descartes modos de ser extenso. Isto é, não fazem
parte da sua natureza, mas são maneiras diferentes da
extensão existir. São, em linguagem escolástica, acidentes,
185 Conferir, Idem p.181 (Parte II, Parágrafo 34) (p. 74)
207
neste caso, da extensão. Mas, o que é o movimento em
Descartes? Como conceber movimento num plenum? E se não é
parte da sua natureza, por que se movimentam os corpos?
3.1.1 Movimento.
O conceito de “movimento” é apresentado por Descartes
nos “Princípios de Filosofia” em dois tempos. Primeiro,
Descartes apresenta o conceito de senso comum de
“movimento”, a que apelidada de impróprio. Depois, em
oposição a este, Descartes apresenta o seu conceito de
movimento. O primeiro, o impróprio:
“[…] o movimento, de acordo com o senso comum, é a acção
pela qual um corpo passa de um local para outro”186
Este é o conceito de movimento como de mudança de
lugar. É o conceito de movimento que nos parece mais
intuitivo e por isso Descartes designa-o de “senso comum”.
Descartes, rejeita-o. Pois, como o próprio logo assinala,
186 ”[…] le mouvement, selon qu’on le prend d’ordinaire, n’est autre chose que l’action par laquelle un corps passe d’un lieu en un autre.” Idem, p.169 (Parte II, Parágrafo 24).
208
este senso comum sobre o movimento leva-nos a cair numa
imensa dificuldade. Afirma Descartes, segundo o conceito de
senso comum sobre o movimento:
“[…] uma vez que se pode afirmar que uma coisa muda e não
muda de lugar ao mesmo tempo, também podemos dizer que se move e
não se move ao mesmo tempo. Por exemplo, quem está sentado na
popa de um barco impelido pelo vento crê que se move quando se
fixa apenas na margem donde partiu e a considera imóvel; e não
crê que mover-se quando se fixa somente no barco em que se
encontra, porque não muda de localização relativamente às suas
partes.”187
Claramente a questão aqui é o que se designa,
geralmente, por relatividade de Galileu, onde a definição
do estado de movimento de um objecto físico particular é
relativo a um referencial arbitrário. No caso, o movimento
de um passageiro num barco relativo à popa do barco que o
transporta ou à margem donde partiu. E, por consequência,
desta relatividade do estado movimento de um objecto físico
187 ”[…] qu’une même chose en même temps change de lieu et n’en change point, de même nous pouvons dire qu’e même temps elle se meut et ne se meut point. Car celui, par exemple, qui est assis à la poupe d’un vaisseau que ce vent fait aller, croit se mouvoir, quand il ne prend garde qu’au rivage duquel il est parti et le considère comme immobile, et ne croit pas se mouvoir, quand il ne prend garde qu’au vaisseau sur lequel il est, parce qu’il ne change point de situation au regard de ses parties.”, idem, ibidem.
209
particular em relação a um referencial arbitrário, existe
uma indeterminação sobre o estado de movimento verdadeiro,
pois podemos dizer, simultaneamente, tal como salienta
Descartes, que um mesmo corpo está em repouso e em
movimento. O que só nos pode levar a concluir que o
movimento não é algo, de facto, das coisas extensas. Seria,
talvez uma atribuição do pensamento. O movimento seria
talvez uma sensação. O que para Descartes é inaceitável,
entre outras razões, pois contradiz a noção de movimento
como modo da extensão, isto é, como modo de ser extenso. E,
por conseguinte, levaria à contradição com o próprio
conceito de corpo como pura extensão, avançado por
Descartes.
Contrariamente a esta concepção de senso de comum do
movimento, Descartes considera que propriamente dito:
“[…] o movimento é translação de uma parte da matéria ou de
um corpo da proximidade daqueles que lhe são imediatamente
contíguos – e que consideramos em repouso – para a proximidade
de outros”188
188 “[…] [mouvement] est le transport d’une partie de la matière, ou d’un corps, du voisinage de ceux qui le touchent immédiatement, et que nous considérons comme en repos, dans le voisinage de quelques autres.“ Idem, p. 169 (Parte II, Parágrafo 25) (p.69).
210
Descartes procura resolver o problema do relativismo
do movimento, fixando como referência do movimento a
vizinhança contígua do corpo que se move. Assim, Descartes
assegura que de um corpo podermos dizer apenas que está em
translação com a sua vizinhança contígua ou em repouso em
relação a esta, mas nunca, simultaneamente, em ambos
estados de movimento.
Contudo, o conceito de movimento cartesiano é, por si,
um mar de problemas. Em primeiro lugar, pois este conceito
de movimento é ainda relativista. Afinal, o estado de
movimento de um corpo particular é relativo a uma
vizinhança que arbitrariamente se afirma encontrar-se em
repouso. Ou seja, na verdade, o movimento, em Descartes,
aparece apenas como uma diferença relativa entre dois
corpos: a vizinhança e o corpo que se diz em movimento. Aos
corpos não lhes é atribuída propriedades características do
movimento como a celeridade, a velocidade ou a aceleração.
Dentro do conceito de movimento de Descartes, poder-se-ia
até dizer que não é o corpo que se move e que não é a sua
vizinhança contígua que se encontra em repouso, mas o
inverso.
O segundo problema com o conceito de movimento em
Descartes é que, como assinala Garber189, nos conduz a uma
189 Garber, Daniel (1992), Descartes’ Metaphysical Physics, Chicago: University of Chicago Press, p. 178.
211
circularidade. Pois, na sequência da apresentação do seu
conceito de movimento, Descartes afirma sobre os corpos:
“Por corpo ou parte da matéria entendo aquilo que é
transportado conjuntamente, ainda que seja composto de várias
partes que [com a sua acção] desencadeiam outros movimentos”190
Ora, ao conceber corpo com o “o que é transportado
conjuntamente”, quando antes, concebeu movimento como a
“translação de um corpo”, Descartes entra numa
circularidade entre “corpo” e “movimento”. Pois, se
“movimento” é concebido em função de “corpo” (como uma
translação deste), já “corpo” em concebido em função do que
é transportado, ou seja, do que é transladado, isto é, do
que se movimenta. Esta circularidade pode ser, em certa
medida, rompida atendendo que este conceito de corpo em
função do movimento é naturalmente consistente com o
conceito de corpo como coisa extensa, dado que a afirmação
“composto de várias partes” implica dizer que é extenso.
190 “Par un corps, ou bien par une partie de la matière, j’entends tout ce qui est transporté ensemble, quoiqu’il soit peut-être composé de plusieurs parties qui emploient cependant leur agitation à faire d’autres mouvements.“ Descartes, René (1644), “Les Principes de la Philosophie” in Oeuvres Philosophiques de Descartes, Tome III, Paris: Garnier Frères (1973), p. 170 (Parte II, Parágrafo 25) (tradução minha a partir da tradução para português de João Gama, “Princípios de Filosofia”, Lisboa: Edições 70 (2006)), p.170).Idem, p. 170.
212
Note-se que o inverso não é necessariamente verdadeiro,
pois ser extenso não significa necessariamente ser composto
de várias partes, como é exemplo o conceito de átomo de
Demócrito. Daqui resulta igualmente claro – se dúvidas
houvesse – que o conceito de corpo como o que é extenso, em
Descartes, é primeiro, é primordial, relativamente a este
conceito de corpo como “o que é transportado
conjuntamente”. E, como tal, “corpo” é, em Descartes,
claramente concebido independentemente de “movimento”. Como
aqui já se disse, o Universo físico de Descartes poderia
ser eternamente estático. Porém, dizer que um corpo é coisa
extensão não nos faz o entender o que é o movimento, isto
é, não nos faz sair da circularidade relativamente à
definição de “movimento”. Pois, ao se afirmar que movimento
é “translação de um corpo”, ou seja, é a translação de uma
coisa extensa então movimento é definido em função da
translação. Mas o que será a translação senão um movimento?
O terceiro problema com o conceito de “movimento” de
Descartes decorre de ser um movimento num plenum. Um corpo
que se movimenta num espaço plenamente preenchido tem como
consequência que o movimento seja, necessariamente local,
tal como Descartes pretendia, porém implica, igualmente,
que não pode existir um movimento sem contacto. E, por
conseguinte, qualquer movimento de um corpo leva ao
“desencadear de outros movimentos”. Contudo, isto só poderá
213
levar à conclusão que quando um corpo se move, só o pode
fazer em função de todos os corpos que o rodeiam. Descartes
tenta resolver este problema indicando que “tem de haver
necessariamente um círculo de matéria ou de corpos que se
movem em conjunto ao mesmo tempo; e de tal maneira que
quando um corpo deixa o seu lugar para que outro o
preencha, vai ocupar o do outro e assim sucessivamente até
ao último que nesse instante ocupa o lugar deixado pelo
primeiro. E facilmente verificamos que isto é um círculo
perfeito”191. O centro deste circulo será, logicamente,
comum a todos corpúsculos que estão em movimento. O que
levará Descartes ao conceito de turbilhão ou vórtice.
Porém, como é fácil de verificar imaginando três rodas
dentadas, embora os seus dentes se disponham de modo a que
se movam circularmente, fazendo mover as outras que lhe são
contíguas, se estas três rodas estiverem simultaneamente
interconectadas não há possibilidade de existir movimento
algum. É condição de possibilidade de movimento deste pleno
de corpúsculos contíguos a existência uma harmonia
necessária entre todos as partículas corpóreas, ou
corpúsculos, que compõem o plenum. Harmonia que em
191 “[…] qu’il y ait toujours tout un cercle de matière ou anneau de corps qui se meuvent ensemble en même temps ; en sorte que, quand un corps quitte sa place à quelqu’autre qui le chasse, il entre en celle d’un autre, et cet autre en celle d’un autre, et ainsi de suite jusques au dernier, qui occupe au même instant le lieu délaissé par le premier. Nous concevons cela sans peine en un cercle parfait.“ Idem, pp. 179-180 (Parte II, Parágrafo 33) (p.73).
214
Descartes não é justificada. Terá sido pré-estabelecida por
Deus no momento da criação da substância extensa? Descartes
não nos responde reconhecendo, aliás, não saber como se
compunha o universo no momento da criação192. Mesmo que Deus
tivesse composto harmonicamente as partes físicas do
Universo no acto de criação, teria ainda que calcular o
desgaste ao longo do tempo de cada corpo. Isto é, a
decomposição por fricção das partes em contacto de que nos
fala Descartes no parágrafo 50, na terceira parte dos
“Princípios de Filosofia”. Decomposição por fricção que
leva a que os corpúsculos tendam a ser redondos e evoluírem
para uma extensão cada vez menor.
Por outro lado, dado que o conceito de corpo não
decorre a necessidade destes se moverem, então a quantidade
de movimento total não poderá diminuir ou aumentar ao longo
do tempo. Pois uma variação da quantidade de movimento
significaria que os corpos teriam absorvido ou doado
movimento, o que contradiz a sua natureza, segundo
Descartes. Mas se os corpos se movem, e o movimento não é
consequência da sua natureza, então algo, isto é, Deus no
momento da criação, não só distribuiu os corpúsculos de
modo a que os movimentos individuais fossem compatíveis no
plenum de que fazem parte, como deu o impulso inicial que
192 Conferir p. 250 (Parte III, Parágrafo 47) (p.111).
215
fez o mundo físico mover-se. Deus é o criador da matéria e
a primeira causa do movimento193.
Outro problema com o conceito de movimento de
Descartes decorre dos corpos serem concebidos como o
simples agregado de corpúsculos individuais. Isto é, os
corpúsculos que compõem um corpo não estão ligados entre
si194. Nada os une pois se alguma coisa houvesse teria ser
substância extensa e, como tal, corpuscular. Então, por um
lado, o movimento do corpo é a coincidência do movimento,
digamos, empático, das suas partes. Por outro lado, um
corpo é consistente na medida que as suas partes
constituintes estão em relativo repouso umas com outras.
Porém, como assinala Edward Slowik195,não havendo nada que
force os constituintes dos corpos a estarem unidos, como
explicar que uma colisão não leve à desintegração de um
corpo?
193 Conferir Idem, p. 182 (Parte II, Parágrafo 36) (p.75).
194 Conferir Idem, p. 206 (Parte II, Parágrafo 55) (p.85).
195 Conferir Slowik, Edward (2009), “Descartes’ Physics” in Standford Encyclopedia of Philosophy, (http://plato.standford.edu/archives/fall2009/entries/descartes-physics), p. 11.
216
3.1.2. Conclusão
O conceito de objecto físico, ou corpo, surge em
Descartes, como um produto do seu método de dúvida
metódica. Duvidemos de tudo que julgamos saber sobre os
corpos, como que estes têm cor, peso, dureza, etc, até que
cheguemos ao único atributo que não podemos negar ao corpos
sob pena de não os podermos conceber. Esse atributo é a
extensão. Assim, conclui Descartes, que a única coisa que
não podemos duvidar sobre os corpos é que estes são coisa
extensa. Ou dito de outro modo, os corpos têm como natureza
ou propriedade essencial, a extensão.
Concebendo os objectos físicos apenas como coisa
extensa, Descartes permite que estes sejam representados
fielmente como objectos geométricos. Assim, pode-se
edificar uma ciência dos corpos, uma Física escrita em
linguagem matemática, liberta das amarras da subjectividade
inerente à atribuição aos corpos daquilo que é da sensação,
isto é, do pensamento. Concebendo os objectos físicos como
coisa extensa e apenas como coisa extensa, todos os
fenómenos físicos e suas leis poderiam ser deduzidos do
mesmo modo e com a mesma segurança como se deduzem os
teoremas da geometria a partir dos seus postulados. Isto é,
217
fazendo apenas uso recto da razão. A Física seria uma pura
teoria da razão.
Porém, o universo físico em Descartes, concebido
apenas como uma espécie de tangram, não encontra em si, na
sua natureza, nenhuma razão para existir movimento. Tudo do
mundo físico, em Descartes, poderia ser estático. É preciso
então assumir que Deus para além de criar os corpos deu-
lhes movimento. As três leis de movimento que Descartes
deduz, e que serviram de inspiração a Newton, são,
essencialmente, leis da tendência da conservação do
movimento, isto é, são, essencialmente, leis de inércia.
Contudo, como aqui se pretendeu mostrar, a concepção
cartesiana de objecto físico torna-se dificilmente
consistente (ou mesmo compatível) com a atribuição aos
corpos do movimento como algo que lhes é próprio. E, por
outro lado, através de Descartes mostra-se a inconsistência
de uma Mecânica fundada num conceito de corpo como coisa
extensa.
218
3.2. O conceito de objecto físico em Newton.
Como é sabido, o Philosophiae Naturalis Principia
Mathematica, ou como é usualmente tratado, Principia,
constitui tanto a magnus opus de Newton, como o livro
fundador da Física tal como hoje ainda a reconhecemos.
Publicada quatro décadas depois dos “Princípios de
Filosofia” de Descartes, os Principia tomam-lhe,
possivelmente, a sua inspiração tanto no título, como na
concepção mecanicista e matemática da realidade física.
Pois, tanto numa obra, como na outra, a Terra, o Mundo em
geral, são descritos, de certo modo, como fossem “apenas
uma máquina onde só há que considerar as figuras e os
movimentos das respectivas partículas”196.
Os Principia podem ser divididos, a meu ver, em
quatro partes principais: “Definições e Axiomática”, o
“Movimento dos Corpos” (Livros I e II), o “Sistema do
Mundo” (Livro III) e o “Escólio Geral”. A parte que
interessa aqui focar é a primeira, pois é onde se encontra
196 Conferir Descartes, René (1644), “Les Principes de la Philosophie” in Oeuvres Philosophiques de Descartes, Tome III, Paris: Garnier Frères (1973), p. 503 (Parte IV, Parágrafo 188) (tradução minha a partir da tradução para português de João Gama, “Princípios de Filosofia”) Lisboa: Edições 70 (2006)), p.265. Não o será assim estritamente em Newton, pois, como se verá, a figura corresponde à delimitação espacial da matéria que constitui um corpo. Portanto, claramente, tanto em Newton como Descartes, o mundo físico é como uma máquina. Contudo, no caso do físico inglês, é uma máquina onde há considerar, para além da figura e movimento, a quantidade de matéria.
219
exposta a ontologia sobre o mundo físico (ou o conjunto de
assumpções ontológicas) de Newton. Uma ontologia que é
constituída por três elementos fundamentais: Corpo, Espaço
e Tempo.
3.2.1. Corpo
O início da primeira das partes referidas dos
Principia é composta por oito definições, cada uma
acompanhada por um comentário. Estas definições constituem
os pilares da Física Newtoniana, numa estrutura claramente
inspirada nos Elementos de Euclides. Isto é, numa estrutura
axiomática-dedutiva. E dado que o tópico de estudo da
Filosofia Natural, aquela em que Newton quer estabelecer os
princípios matemáticos, são os objectos físicos, então não
será surpreendente que a primeira dessas definições
(Definição I) se refira, justamente, aos corpos.
No comentário à Definição I, Newton afirma que por
“corpo” ou “massa” deveremos entender o mesmo que
entendemos por “quantidade de matéria”. Logicamente
entendido estabelece-se aqui um mero jogo de equivalências
entre estes três termos. O que em pouco esclarece sobre
exactamente o que é um “corpo” ou “massa”. Contudo,
percebe-se logo aqui que para Newton, um corpo é uma certa
220
quantidade. Um compósito de uma quantidade de matéria. Mas
o que é “quantidade de matéria”? Pois, é justamente sobre
esta última que Newton dedica a Definição I. Nesta, Newton
afirma entender por “quantidade de matéria” simplesmente o
produto da densidade pelo volume. Trata-se, numa primeira
leitura, de uma definição insatisfatória, tal como
assinalaram, entre outros, Mach197 e James Cushing198.
Insatisfatória pois Newton ao definir “quantidade de
matéria” em função da densidade apenas nos conduz a uma
questão: então, o que é “densidade”? Questão que nos
Principia fica no vazio, pois Newton nunca lhe dá resposta.
Assim, a insatisfação relativamente à definição de
“quantidade de matéria” encontra aqui parte da sua
justificação, pois se esta nos conduz à questão sobre a
“densidade” e esta fica por responder, então ficamos sem
saber o que isso da “quantidade de matéria”. Pior, se por
“densidade” se entender, como é usual em Física, o
quociente entre a massa e o volume de um corpo, então a
Definição I é circular. Se para fugir desta circularidade
devemos entender o termo “densidade” com outro sentido,
Newton nunca o indica expressamente.
197 Conferir Mach, Ernst (1901), Die Mechanik in ihrer Entwickelung historisch-kritisch dargesiellt (trad. ingle. de Thomas J. McCormack, “The Science of Mechanics: a Critical and Historical Account of its Development “) La Salle: Open Court Publishing Co. (1960), p.194)
198 Conferir Cushing, James T. (1998), Philosophical Concepts in Physics, Cambridge: Cambridge University Press, p. 98.
221
Porém, julgo que sendo justos com Newton podemos
entender tanto a razão porque este não nos dá outra
indicação sobre o que é densidade e constatar que a sua
definição de quantidade de matéria não é nem circular, nem
vazia.
Ao afirmar que por “quantidade de matéria” entende o
produto entre a densidade e o volume, Newton evoca, para a
compreensão da definição de “quantidade de matéria”, por um
lado, um senso comum sobre o que é o “volume” e, por outro
lado, remete para uma certa experiência comum da densidade.
Experiência, por exemplo, de um tão típico nevoeiro inglês,
onde quanto mais partículas de água houver suspensas no ar,
mais denso é. Experiência de uma cidade, que quanto mais
habitantes tem dentro do seu espaço, maior será a sua
densidade populacional. Experiência, portanto, de que uma
coisa mais densa é aquela que tem maior quantidade de
elementos num determinado volume. Assim, ao definir corpo
ou quantidade de matéria através da densidade, Newton evita
a circularidade pois no fundo faz simplesmente apelo à
experiência comum do mundo. Em particular, à experiência da
densidade. Mas igualmente importante, esta definição de
corpo remete, implicitamente, para a existência de unidade
de matéria. Pois se um corpo (ou “quantidade de matéria”) é
definido através da densidade, então essa definição toma
como implícito um conjunto de elementos que preenchem esse
222
volume. Portanto, a “densidade” deve ser aqui entendida,
como afirma Cohen como a “medida do grau de concentração de
um número de partículas fundamentais que compõem toda a
matéria”199. Deste modo, a matéria ou um corpo material pode
ser definido como o composto da adição de um conjunto de
elementos materiais discretos ou partículas materiais. Ou
seja, na primeira definição dos Principia Newton, por um
lado, faz apelo à nossa experiência comum do mundo físico,
mas por outro lado, introduz implicitamente uma concepção
atomista desse mundo. Portanto, logo na primeira definição
ficam bem marcados dois traços fundamentais do pensamento
de Newton: o empirismo e o atomismo.
Da Definição I dos Principia resulta, então, que
Newton concebe o corpo como o agregado de uma certa
quantidade de elementos últimos da matéria, isto é: átomos.
E, como tal, quanto mais átomos houver, para o mesmo
volume, maior a quantidade de matéria. Portanto, para
Newton, um corpo é isto mesmo: uma certa quantidade de
átomos que ocupam um dado volume. E ao definir corpo como a
adição de partes, isto é, de partículas materiais, Newton
estabelece estas entidades como referentes de tudo quanto
vai tratar nos Principia. Ou seja, a meu ver, os Principia,
e por consequência a Mecânica Clássica, constitui-se, na
199 Cohen, Bernard (2002), “Newton Concepts of force and mass” in The Cambridge Companion to Newton, Cohen, Bernard e Smith, George E. (ed.), Cambridge: Cambridge University Press, p. 59.
223
sua essência, como a Física das partículas materiais. Ou
mais especificamente, dado que estas partículas se tratam
de átomos materiais, poderia até ser dito que a Física de
Newton é, na sua essência ontológica, uma Física Atómica.
Que, no entanto, se concretiza como Física dos corpos, isto
é, dos compostos das partículas materiais, dado que, por um
lado, é a esses que temos acesso empírico e, por outro
lado, por que, para Newton, a natureza e a qualidade dos
corpos é igual à natureza e à qualidade das partículas
materiais. E, portanto, as leis físicas dos átomos
materiais serão as mesmas que para os corpos compostos, em
particular, dos macroscópicos.
Ainda no comentário à Definição I, Newton assinala
que a quantidade de matéria pode ser sempre determinada
através de experiências com pêndulos, pois é proporcional
ao peso. A essência desta relação entre peso e massa será
esclarecida posteriormente nos Principia. Esta pequena
indicação é relevante pois significa o afastamento de
Newton relativamente à concepção Galilaica de corpo, onde
neste o corpo é concebido como o que tem peso. Como Newton
irá mostrar nos Principia, “peso” decorre da acção de uma
força sobre um corpo material, mas não é parte da essência
destes corpos. Se só existisse uma partícula material no
Universo, não haveria “peso”, apenas matéria.
224
Por fim, ao assinalar que cada corpo é, na sua
natureza, o agregado aditivo de um conjunto discreto de
unidades últimas de matéria, os átomos, Newton colocando-se
em clara oposição a Descartes. Pois, ao contrário deste,
Newton rejeita que a natureza dos corpos seja a sua
extensão e, por conseguinte, que o espaço seja um plenum
material. Ao ter o atomismo como fundamento ontológico, a
Mecânica de Newton, a Mecânica Clássica, está, de certo
forma, nas antípodas da Mecânica de Descartes.
Assim, embora a Definição I dos Principia nos pareça,
num primeiro olhar, circular e insatisfatória, creio que um
olhar mais atento percebe nela o núcleo da caracterização
ontológica dos objectos físicos e desta a anunciação de
tudo o resto que se seguirá nos Principia.
3.2.2. Quantidade de Movimento
A segunda definição (Definição II) que nos surge nos
Principia refere-se à “quantidade de movimento”. Esta é
estabelecida como o produto do valor da velocidade pelo
valor da quantidade de matéria. Aqui, como em diversas
ocasiões ao longo dos Principia, tal como salienta Bernard
Cohen, por “movimento” deve-se entender o mesmo que
225
“quantidade de movimento”, algo que, por sua vez, é
actualmente designado por “momentum”200. Ou seja, e esse é
aspecto fundamental, Newton estabelece que a linguagem da
Mecânica se faz quantitativamente e não qualitativamente.
Isto é, ao transformar o termo “movimento” em “momentum”,
Newton faz-nos mover de uma descrição qualitativa sobre o
mundo físico, onde dizemos que as coisas se movem mais ou
menos, para uma linguagem, que doravante será a da Física,
em que a descrição do mundo se faz apenas pela quantidade.
No caso do movimento, pela sua quantidade ou seja, o
momentum. Assim, Newton ao estabelecer como fundamental uma
quantidade na caracterização do movimento, faz pressupor
que os corpos possuem valores bem determinados do
movimento. E, deste modo, completa o movimento iniciado na
primeira definição afastando-se de uma concepção geométrica
do movimento, ou seja, da concepção de Descartes. Movimento
em Newton não é um modo de ser extenso. Movimento é, como a
seguir se verá, uma quantidade de progresso no espaço e no
tempo de um corpo.
Por sua vez, no comentário que acompanha a Definição
II, Newton acrescenta que “o movimento do todo é a soma dos
200 Cohen, I. Bernard (1999), “A guide to Newton’s Principia” in Cohen, I. Bernard e Whitman, Anne, The Principia. Mathematical Principles of Natural Philosophy, A New Translation, Berkeley and Los Angeles: University of California Press (1999), p. 96
226
movimentos da totalidade das partes”201. Deste comentário de
Newton decorre, então, que a soma do momentum de todas as
quantidades de matéria é igual ao momentum da quantidade
total de matéria. Logo, se a quantidade total de matéria
for invariável, invariável será igualmente o momentum
total. Ou seja, na sequência da concepção atomista da
Definição I, Newton estabelece que o momentum de um todo é
equivalente à adição linear dos momentum das suas partes,
ou mais precisamente, das partículas materiais que
constituem o corpo. Portanto, por um lado, se o todo é
igual à soma das partes, no caso, no que respeita à
quantidade de matéria e, por outro lado, se cada uma das
partes que constitui esse todo, isto é, o corpo, pode
possuir um momentum distinto, então, só se poderá falar em
momentum de um corpo se o reduzirmos a uma unidade mínima,
isto é, àquilo a que designei, no capítulo anterior, por
partículas puras dos corpos. Estabelece-se aqui, uma vez
mais, um diferença radical com Descartes. Pois ao conceber-
se um corpo como aquilo que é extenso, seria um absurdo
aceitar que, mesmo formalmente, esse corpo pudesse ser
reduzido a algo pontual.
201 “The motion of the whole is the sum of the motions of all the parts” Newton, Isaac (1726), Philosophiae Naturalis Principia Mathematica (trad. ingle. de Cohen, I. Bernard e Whitman, Anne, “The Principia. Mathematical Principles of Natural Philosophy, A New Translation”) [Principia - ed. Cohen], Berkeley and Los Angeles: University of California Press (1999), p. 404
227
Apesar destas clivagens com Descartes, tanto neste
último como em Newton, o movimento não é parte da natureza
dos corpos. Tudo poderia estar em repouso no universo
Newtoniano, pois os objectos físicos são apenas quanta
material. Porém, os objectos físicos movem-se. Têm, na
linguagem estabelecida por Newton, momentum. Assim, há
agora que explicar o movimento. O que em Newton é feito
através do conceito de força. Não será, então,
surpreendente que Newton depois de ter definido “momentum”
e “corpo”, necessite agora de definir “força”. Logo, as
seis definições restantes, do grupo de oito que constituem
a primeira parte dos Principia referem-se à caracterização
de diferentes tipos de forças. Estas podem ser
categorizadas em três tipos: a inerente, a aplicada e a
centrifuga.
3.2.3. Os três tipos de Força
A primeira tipo de força (Definição III) reporta-se à
“força inerente”202 (vis incita) da matéria. Esta é definida
202 Usualmente o termo “vis insita” é traduzido por “inate force”. Este é o caso, por exemplo, da tradução em língua inglesa realizada por Andrew Motte, que foi publicada em 1729. Este não é, contudo, o caso da tradução, também para língua inglesa, de Bernard Cohen, publicada em 1999, e que aqui serve de referência. Nesta última, o termo “vis insita” é traduzido por “inherent force” (cf. Newton, Isaac (1726),
228
como “[…] um poder de resistência pelo qual cada corpo, por
quanto de si depender, preservar o seu estado de repouso ou
de movimento rectilíneo e uniforme”203. Esta capacidade, que
é “sempre proporcional à quantidade de matéria”204, ou seja,
à massa, é designada, por Newton, por “força de inércia”205.
Quanto maior a quantidade de matéria, maior a tendência de
um corpo manter o seu estado de repouso ou de movimento.
Assim, a força de inércia é uma força intrínseca, própria,
inerente aos corpos e que nestes se encontra latente
enquanto uma outra força não lhes for aplicada. A força de
inércia é, tal como assinala o próprio Newton no seu
comentário à Definição III, responsável tanto por um corpo
ser impelido quando não lhe é aplicada qualquer força, como
é responsável pela resistência que este oferece a uma força
que lhe seja aplicada. É devido à força da inércia que
corpo algum altera, por si só, o seu estado de movimento
(rectilíneo ou não) ou de repouso. Não é, no entanto,
justificado por Newton por que razão os corpos mantém o seu
Philosophiae Naturalis Principia Mathematica (trad. ingle. de Cohen, I. Bernard e Whitman, Anne, “The Principia. Mathematical Principles of Natural Philosophy, A New Translation”), Berkeley and Los Angeles: University of California Press (1999), p. 404) 203 “[…] a power of resisting, by which every body, as much as in it lies, endeavors to persevere in its present stale, whether it be of rest, or of moving uniformly forward in a right line.”, Idem, p.404 204 “This force is ever proportional to the body”, Idem, ibidem.
205 No comentário a esta definição, Newton escreve: “Because of the inercia of matter, every body is only with difficult put out of its state either of resting or of moving. Consequently, inherent force may also be called by the very significant name of force of inercia” (cf Idem, p. 404.
229
estado de movimento na ausência de uma acção exterior. Isto
é, não é apresentada nenhuma razão que explique porque é
que todos os corpos possuem inércia, nem que explique em
que se funda a existência dessa força intrínseca nos
corpos, cuja natureza é a materialidade. Numa palavra, em
Newton fica por explicar a relação conceptual entre matéria
e inércia.
Por seu turno, a força que, ao actuar sobre um corpo,
é responsável por modificar o estado de repouso ou de
movimento rectilíneo e uniforme deste, é chamada “força
aplicada” (vis impressa) e é assim definida na Definição IV
dos Principia. Contrariamente ao caso da força de inércia,
a força aplicada não permanece nos corpos se a acção
termina. Ela tem um carácter efémero. A força aplicada não
é algo próprio dos corpos, mas é uma acção exterior
exercida sobre estes, que “são de diversas fontes, como a
percussão, a pressão e a força centrípeta”206.
A força centrípeta é, precisamente, o assunto da
Definição V. Por força centrípeta Newton entende: “[a
força] pela qual os corpos são puxados ou impelidos, ou de
206 “Impressed forces are of different origins as from percussion, from pressure, from centripetal force”, Newton, Isaac (1726), Philosophiae Naturalis Principia Mathematica (trad. ingle. de Cohen, I. Bernard e Whitman, Anne, “The Principia. Mathematical Principles of Natural Philosophy, A New Translation”), Berkeley and Los Angeles: University of California Press (1999), p.405.
230
qualquer outro modo tendem, em direcção a um ponto como
centro”207.
As três definições finais (Definições VI, VII e VIII)
dizem respeito às quantidades absoluta, acelerativa e
motriz da força centrípeta. É notório que, embora no
comentário à Definição IV a força centrípeta surja apenas
como uma das fontes de força aplicada, em igualdade com a
pressão ou a percussão, tal como assinala Max Jammer,
“parece que Newton olhava para a força centrípeta como uma
força de maior importância que todas as outras”208.
Descobre-se, no entanto, a razão desta atenção particular
quando se repara na abertura ao comentário à Definição V,
onde Newton declara que “[Uma força] deste tipo é a
gravidade”209. Tal como esta passagem, boa parte do conteúdo
dos comentários às Definições V, VI, VII e VIII, são
dedicados à gravidade. Assim, embora Newton não o
explicite, este conjunto de definições conotados com a
força centrípeta referem-se, fundamentalmente, à gravidade.
São caracterizações da gravidade. E terá sido este o motivo
pelo qual Newton deu, nos Principia, destaque acrescido à
207 “A centripetal force is that by which bodies are drawn or impelled, or any way tend, towards a point as to a centre.” Idem, ibidem. 208 Jammer, Max (1957), Concepts of Force, New York: Dover (1999), p. 122
209 “Of this sort is gravity“, Newton, Isaac (1726), Philosophiae Naturalis Principia Mathematica (trad. ingle. de Cohen, I. Bernard e Whitman, Anne, “The Principia. Mathematical Principles of Natural Philosophy, A New Translation”), Berkeley and Los Angeles: University of California Press (1999)
231
força centrípeta, em detrimento de outros tipos de força.
Pois, um dos temas centrais dos Principia é a relação entre
o peso e a massa. Ou melhor, a distinção entre peso e
massa. Distinção que lhe permite fugir à subjectividade
inerente à concepção de corpo como aquilo que é pesado,
como faz Galileu. Isto porque, enquanto o peso varia com a
altitude e como tal não poderá ser exclusivamente atribuído
ao corpo, a quantidade de matéria é invariável. A
quantidade de matéria de um determinado corpo é a que é em
função apenas do corpo considerado.
Por outro lado, no comentário a esta Definição, Newton
afirma existir uma relação de proporcionalidade entre a
massa de um corpo e o seu peso. Proporcionalidade esta que
é, alegadamente, provada através de experiências descritas
na proposição 6 do Livro III dos Principia. Ou seja, para a
qual é dada uma prova empírica. Mas qual é a essência desta
relação? O que distingue “peso” de “massa”? No comentário à
Definição V, Newton afirma que a gravidade (ou força
gravítica) é uma força centrípeta. Em particular, como
acrescenta na introdução à secção 11 dos Principia, a
gravidade é a força centrípeta que resulta da atracção
mútua entre dois corpos, quaisquer que estes sejam. A
gravidade é, para Newton, tanto a força pela qual os
232
objectos celestes são mantidos na sua orbita210, como é a
força pela qual os corpos tendem para o centro da terra211.
A gravidade é, portanto, uma força universal a todos
corpos, cuja quantidade, a quantidade de atracção entre
corpos, designada por “peso”212. O peso é, como tal, é uma
relação entre massas, entre corpos, mas não parte da sua
essência. Dois corpos, independentemente da distância a que
se encontram, atraem-se de forma gravítica, ou dito por
outras palavras, causam peso um no outro. Assim, a massa
está associada à gravidade e, neste sentido, é designada
por “massa gravítica”. Contudo, na Definição III, Newton já
havia relacionado a “massa” com uma força - a força de
inércia. O termo “massa” aparece, deste modo, associada a
duas forças distintas: “massa gravítica” e “massa
inercial”. Respectivamente, a força com que os corpos se
atraem e a força com que um corpo tende a manter o seu
estado de movimento. Mas se na massa, ou quantidade de
matéria, residem, de algum modo, as forças de inércia e
gravítica, Newton não o esclarece. Ou seja, ele nunca
clarifica de que modo a “massa” tem tanto esse poder
atractivo sobre outras massas, como tem esse poder de
manutenção do seu estado de movimento, nem, por fim,
210 Conferir Idem, p. 806.
211 Conferir Idem, p. 405.
212 Conferir Idem, p. 407, (comentário à Definição VIII).
233
esclarece qual a relação entre esses dois “poderes” da
massa. Algo que será o assunto principal da relatividade de
Einstein.
Em segundo lugar, Newton não esclarece, precisamente,
o que entende por “força”. Procura, apenas associar certos
efeitos sensíveis relacionados com o movimento dos corpos à
existência de uma grandeza que designa por “força”. A força
é simplesmente identificada ora como causa dos diferentes
estados de movimento (repouso, movimento uniforme,
movimento não uniforme), ora como razão da coesão da
matéria, onde ao contrário de Descartes, os constituintes
dos corpos possuem uma propriedade – a gravidade – que os
força a manterem-se próximos.
Poderíamos ler no segundo axioma, ou segunda lei do
movimento, uma definição formal de força. Nesta bem
conhecida lei, Newton relaciona a força aplicada com a
variação temporal do momentum. Isto é, Newton apresenta a
relação entre “força” e “momentum”, identificando a “força”
como a variação, ao longo do tempo, do momentum de um corpo
ou de um conjunto de corpos. Deste modo, desta lei do
movimento(ou axioma, como designa Newton), poderemos dizer
que “força” em Newton é apenas a medida da variação da
quantidade de movimento de um corpo. E, em verdade, do
ponto vista formal, por meio deste axioma, poder-se-ia
234
constituir toda a Física apresentada por Newton nos
Principia dispensando o conceito de força, substituindo-o
pelo conceito de momentum. O que significa, como já o
havíamos referido no capítulo anterior, que em Mecânica o
estado de um sistema é completamente caracterizado através
da sua posição e do seu momentum. Contudo, se a natureza
dos corpos é apenas o de serem uma certa quantidade de
matéria, então não resulta do conceito de corpo o facto
deles se moverem.
3.2.4. Os conceitos de “Espaço”, “tempo”, “lugar” e
“movimento”: o escólio da primeira parte dos Principia
Ao corpo de definições segue-se um escólio dedicado
aos conceitos de “espaço”, “tempo”, “lugar” e “movimento”.
Curiosamente, Newton não se propõe definir estes conceitos,
pois, segundo afirma estes “já [são] do conhecimento de
todos”213. Ou seja, dado que entende que estes conceitos são
do conhecimento de todos, Newton remete, por um lado, para
um certo senso comum e, por outro lado, indica que não vai
introduzir novos elementos terminológicos. No fundo, esta é
a grande diferença entre a parte das definições e o escólio
213 Conferir Idem, p. 408.
235
que lhes segue: enquanto na primeira parte Newton introduz
um conjunto de termos novos, como “quantidade de matéria”,
“momentum” e “força gravítica”, na segunda parte, vai fazer
alusão a termos que são da linguagem natural, mas à qual
vai dar o significado que é mais conveniente aos Principia
e que, doravante, constituirá a linguagem da Física. Assim,
Newton anuncia que o propósito deste escólio não é definir
mas esclarecer as noções de “Espaço”, “Tempo”, “Lugar” e
“Movimento”, pois “noto que estas são popularmente
concebidas apenas em relação aos objectos da percepção
sensível. E daí resultarem de certos preconceitos”214. No
sentido de eliminar estes “preconceitos”, Newton considera
“conveniente distinguir estas quantidades em absoluto e
relativo, verdadeiro e aparente, matemático e comum”215.
3.2.5. O conceito de tempo
A primeira destas “quantidades” é o tempo. A cerca
deste, Newton afirma:
214 “I must observe, that the vulgar conceive those quantities under no other notions but from the relation they bear to sensible objects. And thence arise certain prejudices”, Idem, ibidem 215 “it will be convenient to distinguish them into absolute and relative, true and apparent, mathematical and common.” Idem, ibidem.
236
“Tempo absoluto, verdadeiro e matemático, por si mesmo e da
sua própria natureza, sem referência com qualquer coisa externa,
flui uniformemente e por outro nome é chamado de duração. Tempo
relativo, aparente e comum é alguma medida sensível e externa
(precisa ou imprecisa) que é obtida através do movimento; tal
medida – por exemplo, uma hora, um dia, um mês, um ano – é
comummente usada ao invés do tempo verdadeiro”216.
Na primeira frase desta passagem encontramos o
conceito de “tempo” caracterizado como uma substância, no
sentido que é algo que existe independente de qualquer
outra coisa, que existe “por si mesmo e da sua própria
natureza, sem referência com qualquer coisa externa”.
Encontramos aqui o segundo elemento da ontologia de Newton,
depois dos corpos materiais, o tempo. O tempo a que Newton
designa por “tempo absoluto” é o tempo verdadeiro, é o
tempo que existe enquanto substância, que existe fora do
domínio das existências das coisas materiais, isto é, dos
corpos. Tempo que Newton caracteriza de matemático. Ou
seja, cuja sua natureza – do tempo – é a passagem,
sucessiva, perfeitamente ritmada, de instante a instante.
216 “Absolute, true and mathematical time, in and of itself and of its own nature, without reference to anything external, flows uniformly and by another name is called duration. Relative, apparent, and common time is any sensible and external measure (precise or imprecise) of duration by means of motion; such measure – for example, an hour, a day, a moth, a year – is commonly used instead of true time.”, Idem, p. 408.
237
Por este ser o tempo verdadeiro, aquele que é por si mesmo,
poderemos denominá-lo ontológico.
Em contraponto, existe um outro tempo, relacionado com
este, mas que é apenas uma sua sombra, é aquele que
percebemos, que medimos, que é da nossa experiência comum.
O tempo a que Newton denomina por “tempo relativo”.
Este tempo relativo é, para Newton um tempo que é
medido através da periodicidade de um certo movimento.
Quando falamos em anos, meses, dias, horas, minutos,
segundos, etc, falamos em unidades de medida de um certo
movimento. Um ano é a medida de tempo do movimento de
translação da Terra em redor do Sol. Um mês é a medida de
tempo do movimento de translação da Lua em redor da Terra.
Um dia é a medida do tempo da rotação da Terra. Uma hora,
um minuto ou um segundo, é a medida do tempo do movimento
do mecanismo de um relógio. Contudo, nenhum destes
movimentos é uniforme. Os dias não são todos iguais, como
não são iguais todos os minutos, todos os meses, todos os
anos ou todos os segundos. Dois intervalos de tempo,
tomados neste sentido, não são necessariamente iguais.
Assim, não é possível determinar, de forma objectiva, nem a
duração de, por exemplo, a velocidade de uma esfera a rolar
num plano inclinado, nem o tempo em que cada corpo se
encontra. E, em particular, através de um mecanismo de
238
medição do tempo não é possível afirmar que dois corpos
compartilham o mesmo tempo ou que se encontram no mesmo
tempo, isto é, que são simultâneos.
Porém, assinala Newton:
“Tempo absoluto, em astronomia, é distinguido do tempo
relativo, pela equação do tempo aparente. Porque os dias
naturais são de fato desiguais, apesar de serem comummente
considerados como iguais e usados como uma medida do tempo. Os
astrónomos corrigem essa desigualdade, para que possam medir os
movimentos celestes por um tempo mais verdadeiro. É possível que
não exista um como movimento uniforme de onde o tempo possa ter
uma medida exacta. Todos os movimentos podem ser acelerados e
retardados, mas o fluxo do tempo absoluto não é passível de
mudanças. A duração ou perseverança da existência das coisas é a
mesma, sejam os movimentos rápidos ou lentos ou nulos; portanto,
a duração é justamente distinguida das suas medidas sensíveis
[…]”217
217 “In astronomy, absolute time is distinguished from relative time by the equation of common time. For natural days, which are commonly considered equal for the purpose of measuring time, are actually unequal. Astronomers correct this inequality in order to measure celestial motion on the basis of truer time. It is possible that there is no uniform motion by which time may have a exact measure. All motion can be accelerated and retarded, but the flow of absolute time cannot be changed. The duration or perseverance of the existence of things is the same, whether their motions are rapid or slow or null; accordingly, duration is rightly distinguished from its sensible measures […]” Idem, p. 410.
239
Se todos os tempos medidos são relativos a um
movimento escolhido para servir de referência, o tempo
passa e o homem envelhece qualquer que seja o relógio que o
acompanhe. O tempo, em verdade, para Newton, não é
referente a movimento algum. Como afirma o próprio, “a
duração ou a perseverança da existência das coisas é a
mesma, quer os seus movimentos sejam rápidos ou lentos ou
nulos”. O tempo verdadeiro, absoluto, matemático, flui por
si mesmo, de forma uniforme, constante e imperturbável.
Apenas referente a si mesmo, a sua medida é absoluta e
objectiva. O “fluxo do tempo verdadeiro não é passível de
mudanças”. Logo, a verdadeira duração dos eventos é dada
pelo lapso de tempo absoluto e não pelos procedimentos de
medição. Dado que flui de forma uniforme, as partes do
tempo absoluto são iguais e ordenadas de maneira imutável,
formando uma série. Por sua vez, os eventos são ordenados
objectivamente no tempo em virtude dos lugares no tempo
absoluto em que eles ocorrem. O tempo ao que os conceitos
da Física, como momentum ou força, são relativos é o tempo
verdadeiro. O tempo da prática da Física é o tempo
relativo. E por isso, é ao tempo verdadeiro que se referem
as leis Físicas.
Portanto, a simultaneidade, a duração e, por
consequência, o movimento, existem verdadeiramente para um
tempo absoluto. Substância que, pela sua própria natureza,
240
marca permanentemente os compassos, sem hesitações ou
enganos, de todas as coisas. O tempo verdadeiro não é algo
dos corpos, da mente ou eventualmente do espaço (como será,
de certa forma, para Einstein). É uma coisa em si mesma, à
qual temos acesso por via da comparação de um movimento que
se repete. Numa espécie de sombra do tempo verdadeiro. E,
logicamente, é para este tempo – o verdadeiro - que são
válidas as leis do movimento, que é válida a Física de
Newton.
3.2.6. O conceito de espaço
Sobre o espaço, escreve Newton:
“Espaço absoluto, na sua própria natureza, sem referência a
nada que lhe seja exterior, permanece sempre homogéneo e
inamovível”218.
Da mesma forma que relativamente ao tempo, o espaço é
caracterizado como uma coisa que existe por si, como
qualquer coisa “sem referência a nada que lhe seja
218 “Absolute space, in its own nature, without regard to anything external, remains always similar and immovable.” Idem, pp. 408-9.
241
exterior”. Ou seja, o espaço aparece, em Newton, igualmente
como uma substância. Completando-se assim a trindade das
substâncias da Física de Newton (e, de certo modo, da
Física desde Newton): partículas materiais, tempo e espaço.
Se o espaço absoluto é homogéneo, imutável e
indiferenciado, então:
“[…] partes do espaço não podem ser vistas, ou
distinguidas umas das outras através dos nossos sentidos,
portanto em seu proveito usamos as suas medidas sensíveis. Como
tal, definimos todos lugares com base nas posições e distâncias
das coisas a um corpo qualquer considerado como imóvel, e então,
com respeito a tais lugares, estimamos todos os movimentos,
considerando os corpos como que transferidos de um daqueles
lugares para outros. E assim, em vez de espaço e movimento
absolutos, usamos os relativos […]”219.
A nossa relação imediata com o espaço tem como
referente o nosso próprio corpo. Tendo-nos como referência,
determinamos os lugares, os movimentos e as distâncias, em
219 “[…] these parts of space cannot be seen and cannot be distinguished from one another by our senses, we use sensible measures in their stead. For we define all places on the basis of the positions and distances of things form some body that we regard as immovable, and then we reckon all motions with respect to these places, insofar as we conceive of bodies as being changed in position with respect to them. Thus, instead of absolute places and motions we use relative ones […]” Idem, p. 410.
242
qualquer medida sensível (pés, passos, polegadas, etc), a
que se encontram outros corpos. Assim, o nosso corpo
define, segundo Newton, um espaço relativo. Poderíamos, no
entanto, tomar como referência outro corpo qualquer e cada
corpo define um espaço relativo distinto. Estes espaços,
contudo, são móveis e cada uma dessas medidas é relativa ao
corpo que é tomada como origem. Como tal, qualquer medida
espacial referida a estes espaços é temporária e
subjectiva. Ou seja, através da escolha de um referencial
arbitrário, não é possível indicar objectivamente a
distância entre dois corpos ou o estado de movimento de um
corpo. Para um determinado referencial um corpo poderá
estar em movimento acelerado e para outro estar em repouso.
Regressamos à questão da objectividade do movimento que já
havíamos encontrado em Descartes. E, em particular,
regressamos às concepções relativistas de Galileu e
Descartes. Em resposta a estes, no que concerne à
arbitrariedade da escolha do referencial espacial, Newton
afirma:
“[…] em dissertações filosóficas devemo-nos abstrair dos
nossos sentidos e considerar as coisas em si mesmas, distintas
daquelas que são somente as nossas medições sensíveis. Pois é
243
possível que não exista um corpo verdadeiramente em repouso ao
qual todos os lugares e movimentos possam ser referidos”220.
Ou seja, os corpos, na caracterização objectiva do seu
movimento, só podem referir-se a um espaço imóvel e
imutável no qual reside o sistema de eixos absoluto. Porém,
tal espaço está para além da nossa percepção. Não porque
não exista, segundo Newton, tal espaço, mas porque estamos
sempre restringidos a uma região muito limitada desse
espaço e, como tal, do que dele temos acesso não
encontramos “um corpo verdadeiramente em repouso ao qual
todos os lugares e movimentos possam ser referidos”.
Podemos no entanto, através de um exercício de abstracção,
pensar o espaço relativo que nos tem como referente como
uma parcela de um espaço absoluto, um espaço que podemos
construir racionalmente como a adição de todos espaços
relativos possíveis. O espaço, enquanto coisa em si mesma
considerada, o espaço verdadeiro não é pois o que medimos
ou que temos noção a partir da nossa experiência do mundo
físico, mas é o todo do qual todos os relativos são parte.
É a esse espaço verdadeiro, absoluto e – acrescenta Newton
220 “[…] but in philosophical disquisitions, we ought to abstract from our senses, and consider things themselves, distinct from what are only sensible measures of them. For it may be that there is no body really at rest, to which the places and motions of others may be referred” Idem, p.411.
244
– matemático, que são referentes e válidas as leis do
movimento dos corpos.
3.2.7. O conceito de movimento
No final do Escólio, Newton distingue entre movimento
absoluto e relativo. Afirma Newton:
“Movimento absoluto é a translação de um corpo de um lugar
absoluto para outro; e movimento relativo é a translação de um
lugar relativo para outro.”221.
O movimento relativo ou aparente, aquele que nos lança
dúvidas se é real ou não, distingue-se do movimento
verdadeiro, aquele que é de facto, apenas e só em função do
referencial espacial. Isto é, os primeiros referem-se ao
espaço relativo e os segundos referem-se ao espaço
absoluto. Porém, em ambos os tipos de movimento, movimento
é concebido, simplesmente, como a mudança de lugar de um
corpo. O movimento é função do lugar e sobre este último
afirma Newton: 221 “Absolute motion is the translation of a body from one absolute place into another; and relative motion, the translation from one relative place into another.” Idem, p. 409.
245
“Lugar é uma parte do espaço que ocupa um corpo e é, de
acordo com o espaço, ou absoluto ou relativo. Digo, uma parte do
espaço e não a situação, nem a superfície exterior do corpo.
Para sólidos iguais os seus lugares são sempre iguais; mas suas
superfícies, com as suas figuras diferentes, muitas vezes são
desiguais.”222
Desta passagem fica claro que, em razão de existirem,
para Newton, dois tipos de espaço – o relativo e absoluto –
haverá dois tipos de lugares: o relativo e o absoluto.
Porém, seja qual for o tipo, por “lugar” Newton entende a
parte do espaço ocupada por um corpo. Ou mais precisamente,
o volume do espaço que é preenchido por um corpo. Neste
sentido, tal como em Descartes, um corpo tem extensão.
Porém, ao contrário de Descartes, para Newton a extensão
não é a essência dos corpos. Isto é, enquanto para
Descartes um corpo é uma substância extensa, em Newton um
corpo é uma substância material que, uma vez que está no
espaço, pela própria natureza deste, recebe a propriedade
de ser extenso. Portanto, em Newton, por um lado, podemos
pensar um corpo como um pedaço de matéria sem ainda lhe
222 “Place is a part of space which a body takes up, and is according to the space, either absolute or relative. I say, a part of space ; not the situation, nor the external surface of the body. For the places of equal solids are always equal; but their superficies, by reason of their dissimilar figures, are often unequal.” Idem, ibidem.
246
atribuir extensão alguma. Por outro lado, podemos ter do
espaço como pura extensão, em nada sendo corpóreo. Isto é,
podemos ter espaço sem matéria, podemos conceber, em
Newton, um espaço vazio.
Deste modo, se Newton concebe o movimento como mudança
de lugar, conceito que, justamente, Descartes havia
considerado de senso comum e impróprio, fá-lo resistindo,
por um lado, a ser derrubada pela crítica de Descartes a
essa concepção de movimento e, por outro lado, evitando
cair nas dificuldades sem fim que o conceito de corpo de
Descartes traz consigo. Resiste à crítica de Descartes ao
conceito de movimento como mudança de lugar, pois se este
objecta que tal concepção nos faz enredar no relativismo,
pois não sabemos se foi o corpo que se moveu ou se foi um
outro que utilizámos, arbitrariamente, como referencial, ao
conceber o espaço e não os corpos como substância extensa,
onde a relação das suas partes é sempre idêntica, Newton
assegura que os movimentos dos corpos se referem a algo
exterior aos corpos que é extenso e imutável, ou seja, que
os movimentos de todos os corpos se referiram a um
referencial absoluto. É para este que o movimento é
concebido como mudança, absoluta e verdadeira, de lugar de
um corpo.
247
Por outro lado, ao ter uma concepção atomista, como já
aqui foi visto, Newton é levado a ter o espaço como uma
substância puramente extensa. O que em Descartes
corresponde ao conceito de corpo e, por consequência, leva-
o a considerar que toda a extensão é corpórea, isto é, que
o espaço é um plenum. Porém, em Newton, dado que os corpos
são substância material, o espaço enquanto coisa extensa,
não é um plenum mas um vazio. Isto é, Newton concebe a
existência possível de um espaço sem corpos, um espaço como
substância e não como atributo, e por conseguinte, evita
enredar-se pelo plenum. O espaço não é corpo, mas
recipiente onde se colocam os corpos, numa relação entre
substâncias como uma fosse o interior de uma garrafa vazia
e o outro o líquido que irá ocupar esse espaço.
Por outro lado, ao ter uma concepção atomista, em
Newton, um corpo é um composto de partículas, de
corpúsculos e, como tal, o movimento de um corpo é, na
verdade, o movimento solidário entre as suas partes. Isto
é, o movimento de um corpo é o movimento de um todo em que
as suas partes se movem de forma, mais ou menos, coerente
entre si. Esta solidariedade entre as partes que compõem um
corpo é explicável, em Newton, pela consistência interna
dos corpos, isto é, como o resultado das interacções
gravíticas e das distâncias entre as partes que constituem
esse corpo.
248
Por fim, à extensão do espaço que um corpo ocupa
Newton denomina de “lugar”. Dado que esta extensão, em
comprimento, largura e altura, é o volume do corpo, então
poder-se-á afirmar que por “lugar” em Newton pode-se
entender o mesmo que em Descartes se entende por “lugar
interno”. Porém, dado que para Newton os corpos são
compostos por partes materiais, então podemos pensar numa
decomposição sucessiva de um corpo até ao limite de uma
partícula material última. Que será uma partícula pura dos
corpos materiais, ou seja, um corpo material pontual.
Assim, estas partes últimas, estes representantes ideais
dos corpos já não podemos dizer que ocupam um lugar, pois,
como são pontuais, não têm extensão. Mas sendo ainda uma
entidade no espaço e dado que este, além de absoluto e
verdadeiro, é matemático, ou seja, preenchido plenamente de
pontos, então podemos pensar nesse corpo material pontual
como algo que se encontra numa dada posição do espaço.
Estabelece-se assim uma distinção entre a localização
e a posição. Distinção que é pertinente pois, as leis do
movimento, as leis que fundam a Mecânica Clássica, são
referentes a essas entidades últimas, isto é, as partículas
puras dos corpos. Quero com isto dizer que se deve entender
que as leis newtonianas do movimento, a Mecânica Clássica,
não se referem à transição de lugares de um corpo no espaço
249
relativo, mas à a variação da posição de uma partícula pura
dos corpos, naturalmente, no espaço absoluto.
3.2.8. Conclusão
No comentário à sua “terceira regra do raciocínio em
Filosofia”, Newton escreve:
“Dado que apenas conhecemos as qualidades dos corpos
através de experiências, nós podemos assumir por universal todas
as que universalmente concordam com as experiências. […] Nós não
sabemos a extensão dos corpos senão pelos nossos sentidos, nem
que esta alcança todos os corpos senão porque percebemos a
extensão em tudo que é sensível, portanto, inscrevemo-la
universalmente em todos os [corpos]. Que a abundância dos corpos
é dura, nós aprendemos pela experiência e como a dureza do todo
resulta da dureza das partes, nós, como tal, justamente
inferimos a dureza das partículas indivisíveis não apenas dos
corpos que sentimos de todos os outros. Que os corpos são
impenetráveis, nós recolhemos não da razão, mas da sensação. Os
corpos com que lidamos são tidos como impenetráveis e daí
concluímos a impenetrabilidade como uma propriedade
universal[…]. A extensão, a dureza, a impenetrabilidade, o
movimento do todo, resulta da extensão, da dureza, da
250
impenetrabilidade, do movimento das partes e daí concluímos que
as partículas últimas de todos os corpos serão igualmente
extensas, duras, impenetráveis e móveis […]. E esta é a fundação
de toda Filosofia.”223
Nesta longa passagem ficam bem expostos, pela pena do
próprio Newton, os elementos fundamentais do seu pensamento
sobre os objectos físicos. E sem surpresa reencontramos o
que designámos no capítulo anterior por pentadoxia.
Segundo Newton a experiência que comummente temos do
mundo físico, em que encontramos mesas, pedras, bolas de
bilhar, etc, ensina-nos, pois assim será evidente, que este
– o mundo físico - é constituído por os objectos físicos
que têm extensão, dureza, impenetrabilidade e que são
possibilidade de se moverem. O diverso dessas coisas do
mundo, mesas, pedras, bolas de bilhar, etc, será o diverso
223 “For since the qualities of bodies are only known to us by experiments, we are to hold for universal all such as universally agree with experiments; […] We no other way know the extension of bodies than by our senses, nor do these reach it in all bodies, but because we perceive extension in all that are sensible, therefore, we ascribe it universally to all others also. That abundance of bodies are hard, we learn by experience, and because the hardness of the whole arises from the hardness of the parts, we, therefore, justly infer the hardness of the undivided particles not only of the bodies we feel but of all others. That all bodies are impenetrable, we gather not from reason, but from sensation. The bodies which we handle we find impenetrable, and thence, conclude impenetrability to be an universal property of all bodies whatsoever. […] The extension, hardness, impenetrability, mobility, of the whole, result from the extension, hardness, impenetrability, mobility, . . . of the parts; and thence we conclude the least particles of all bodies to be also all extended, and hard and impenetrable, and moveable […] And this is the foundation of all philosophy”, Idem
251
de formas de um mesmo que é a matéria. A matéria será,
então, o que subjaz a todos corpos e, por conseguinte, será
o que possui as propriedades da extensão, da dureza, da
impenetrabilidade, da possibilidade de movimento.
A partir desses elementos empíricos, Newton realiza
duas generalizações de sentido contrário. Uma da parte para
o todo. A outra do todo para a parte.
O primeiro tipo de generalização sucede no caso do
espaço e do tempo. Cada um de nós ocupa, com o nosso corpo,
uma parte do espaço. Mas o espaço da sensação, em
particular o que nos é dado pela visão e pela audição, é
mais amplo que o espaço que é o ocupado pelo nosso corpo. O
espaço do nosso corpo está dentro de outro espaço, o dos
nossos sentidos exteriores. E este por sua vez, bem
sabemos, está dentro de um outro, como uma sala dentro de
um edifício. E este ainda é um espaço no interior de um
outro. E assim sucessivamente, num jogo de caixas chinesas,
que só terá fim se pensarmos que, no limite, todos esses
espaços são interiores de um outro que é absoluto, pois
nenhum espaço lhe será exterior. Esse será então o espaço
verdadeiro, objectivo.
Do mesmo modo, segundo Newton, a duração da nossa vida
sabemo-la precedida pela duração de outras, a dos nossos
pais. Durações de vida, estas últimas, cada uma delas, que
252
sabemos, por sua vez, precedidas e antecipadas por outras,
a dos nossos avós e a nossa. A duração medimo-la por
relógios ou outros registos de repetições de um movimento.
Porém este tempo é função do movimento que escolhemos e
recolhemos da experiência, segundo Newton, que será
contestado por Einstein, que o tempo, o verdadeiro tempo,
decorre inexorável e insensível a qualquer movimento
particular. Ou seja, o tempo que temos acesso empírico é
uma parte de um tempo absoluto, isto é, que não é relativo
a qualquer movimento que não seja o seu próprio.
Portanto, da experiência comum que os corpos estão no
espaço e no tempo, portanto, da existência de espaço e
tempo relativos, Newton generaliza-os chegando à ideia de
um espaço e tempo absolutos que são, no entanto, na sua
natureza iguais ao espaço e tempo relativos (o espaço é
ainda extensão; o tempo é ainda um movimento periódico
constante).
A outra generalização, que é do todo para a parte, é
relativa aos corpos. Cada corpo, como é extenso, é
divisível em corpos mais pequenos, em corpúsculos. Porém,
como são ainda corpos, então, segundo Newton, deverão
possuir as mesmas propriedades do todo de que eram parte.
E, como tal, esses corpúsculos são ainda divisíveis em
outros e assim sucessivamente até ao limite de um átomo,
253
isto é, de um corpúsculo último, de uma partícula pura,
pois é uma parte sem partes. Contudo, aqui Newton cai,
necessariamente, em contradição. Pois, como Descartes havia
percebido, se todos os corpos têm a propriedade da
extensão, então não é concebível um corpo indivisível (pelo
menos em pensamento).
Encontramos aqui em Newton, todos os elementos do que,
no capítulo anterior, designamos por pentadoxia. Ou seja,
de uma espécie de ontologia quase espontânea, sugerida
directamente pela nossa experiência comum do mundo físico.
Assim, Newton não hesita em afirmar que os objectos físicos
são corpos, isto é, parcelas unitárias e finitas de
matéria. Os objectos físico são substâncias, pois esses
corpos, essas parcelas de matéria, possuem propriedades e é
através destas que os conhecemos. Nos objectos físicos as
suas partes são homeómeras, razão pela qual Newton infere
que os corpúsculos terão necessariamente a mesma natureza
que um corpo. As propriedades quantitativas dos corpos são
bem determinadas, e por isso o corpo pode ser tratado como
algo que possui uma determinada quantidade de movimento,
uma determinada quantidade de matéria, uma determinada
posição. Por fim, um objecto físico é conceptualmente
idêntico enquanto possível e enquanto actual.
254
3.3. O Conceito de Objecto Físico em Kant
Nas linhas de abertura dos Princípios Metafísicos da
Ciência da Natureza, Kant afirma que a palavra Natureza
pode ser tomada em dois sentidos: formal e material. Por
Natureza, em sentido formal, entende-se o conjunto das
determinações necessárias para constituir o conceito de um
ser particular. Isto é, a sua essência. E, neste sentido,
“utiliza-se esta palavra [Natureza] adjectivamente”224, por
exemplo, quando afirmamos querer saber qual a natureza dos
objectos físicos.
Por Natureza em sentido material Kant entende “como a
soma total de todas as coisas, enquanto estas podem ser
objecto dos nossos sentidos”225. Isto é, o conjunto de todos
os fenómenos possíveis. Identifica-se, assim, a Natureza,
num sentido, como o conjunto de todas as coisas pensáveis
e, num outro sentido, como o conjunto de todos os objectos
da experiência. Pese embora esta diferença, em qualquer um
224 Conferir Kant (1781), Kritik der Reinen Vernunft, (trad. port. de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão, “Crítica da Razão Pura” [CRP], Lisboa: Gulbenkian (2001)), nota de rodapé, B447
225 “[…] but as the sum total of all things, insofar as they can be objects of our senses.” Kant (1786), Metaphysische Anfangsgründe der naturwissenschaft (tradução para inglês de Michael Friedman, “Metaphysical Foundations of Natural Science” [MFNS]), Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p.3. (tradução minha)
255
dos casos é condição de ser coisa da Natureza a sua
determinabilidade, por pensamento ou por experiência, pelo
sujeito transcendental, numa característica transformação
de um conceito mais comum de Natureza enquanto o conjunto
das coisas em si mesmo consideradas, para um conceito de
Natureza enquanto o conjunto das coisas pelo sujeito
transcendental consideradas.
Por sua vez, dado que os nossos sentidos se dividem,
segundo Kant, em sentido interno e sentidos externos,
existem duas espécies de objectos na Natureza: A alma, que
é o objecto do sentido interno; e os corpos, que são os
objectos dos sentidos externos226. Logicamente, o complexo
dos primeiros – os objectos do sentido interno – constitui
a Natureza Pensante, enquanto o complexo dos objectos dos
sentidos externos constitui a Natureza Corpórea227, ou seja,
a Natureza Física. Assim, em Kant, tal como em Descartes,
existe um dualismo claro das coisas da Natureza. Isto é,
uma distinção fundamental e completa das coisas da Natureza
entre aquelas que são elementos da Natureza Corpórea e as
outras que são elementos da Natureza Pensante.
Distinguindo-se a Natureza em duas partes – a
exterior e a interior – ao sujeito transcendental, e
226 Conferir, [CRP], B400.
227 Idem, B875.
256
atendendo a que podem haver tantas ciências da natureza
quantas as coisas especificamente diversas que existem228
então, para Kant, são possíveis, em princípio, duas
Ciências da Natureza: a Ciência da Natureza Pensante e a
Ciência da Natureza Corpórea. Em Kant, a primeira toma o
nome de Psicologia229 e tem como seu objecto as almas, isto
é, o que tem uma natureza pensante. A segunda dessas
possíveis Ciências da Natureza recebe a designação de
Física230 e tem como seu objecto os corpos. Portanto, para
Kant, no seu chamado período critico231 a Física é definida
completamente como a Ciência dos corpos. Mas, um vez aqui
chegados, logo se pergunta, em primeiro lugar, o que é a
Ciência, para Kant? E em segundo lugar: o que é um corpo,
para Kant? Ou, por que será equivalente em Kant: o que é um
objecto físico? Comecemos pela primeira destas duas
questões.
228 “[…] there can be as many different natural sciences as there are specifically different things” [MFNS], P.3. (tradução minha)
229 [CRP], B400.
230 Idem, B875.
231 Faço a ressalva que esta é a definição é validade para o período critico, pois a questão da transição da Metafísica para a Física, que é o assunto central dos Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza, é igualmente o objecto do Opus Postumum. E, em particular, a questão da natureza da Física será um dos aspectos centrais desta última obra, sendo repetida exaustivamente, numa persistente procura de uma outra forma de definir Física. Conferir Immanuel, Kant, Opus Postumum (tradução para inglês de Förster, Eckart e Rosen, Michael “Opus Postumum”), Cambridge: Cambridge University Press (1993).
257
Nos “Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza”,
Kant define Ciência como um todo do conhecimento ordenado
segundo princípios232. Princípios esses que sintetizam o
diverso da experiência sensível numa unidade de
conhecimento, de modo a que este todo de conhecimento
constitua um sistema233 e não uma simples colecção de factos
ordenados234, ou um mero agregado de conhecimentos.
Porém, se estes princípios forem meramente empíricos,
isto é, se os princípios que sintetizam o diverso da
experiência sensível derivarem, igualmente, da experiência,
por exemplo, por indução, então estes “não carregam consigo
nenhuma consciência da sua necessidade (não são
apodicticamente certas)”235, pois será impossível demonstrar
a sua validade. Isto é, será impossível demonstrar que
esses princípios seriam inferidos a partir de qualquer de
experiência possível. Por consequência, se uma Ciência for
fundada em princípios meramente empíricos, então as leis da
Natureza que lhe subjazem são apenas leis de experiência e
esse todo do conhecimento será um conhecimento fundado em
leis arbitrárias e indemonstráveis. Será um conhecimento
232 Conferir [MFNS], p. 4.
233 [CRP], B860.
234 O que para Kant constituiria uma doutrina histórica da Natureza. Conferir [MFNS], p.4.
235 “[…] they carry with them no consciousness of their necessity (they are not apodictally certain) [MFNS], ibidem. (tradução minha)
258
contingente, incerto e passível de ser revisto. Um
conhecimento, portanto, que só impropriamente poderá ser
considerado genuinamente como saber. Só impropriamente,
para Kant, poderá ser considerada como Ciência da Natureza.
Ciência, propriamente dita, só se pode chamar aquela
cuja certeza é apodíctica236. Só pode chamar-se aquela onde
o conhecimento é necessário e universal. Ou seja, só pode
chamar-se aquela onde “as leis fundamentais da Natureza que
lhe subjazem são conhecida a priori e não são simples leis
de experiência”237. Pois, como Kant já havia mostrado na
Crítica à Razão Pura238, verdadeira universalidade e
rigorosa necessidade só podem ser estabelecidas a priori.
O conhecimento a priori que é totalmente independente
da experiência, recebe, em Kant, o nome de conhecimento
puro. Por conseguinte, “a ciência da natureza deve derivar
a legitimidade desta designação unicamente da sua parte
pura – nomeadamente, aquela que contém os princípios a
priori de todas as restantes explicações da natureza - e só
236 Conferir [MFNS], ibidem.
237 “[…] the fundamental natural laws therein are cognized a priori, and are not merely laws of experience” [MFNS], Ibid. (tradução minha)
238 Conferir [CRP], p.38.
259
em virtude desta parte pura uma ciência natural pode ser
ciência em sentido próprio”239.
Portanto, para Kant, o traço fundamental de uma
ciência da natureza é esta legitimar-se, não em leis de
experiência, mas em princípios puros a priori. E, por esta
razão, então “toda a ciência natural propriamente dita
precisa, pois, de uma parte pura, na qual se deve fundar a
certeza apodíctica que a razão nela busca”240.
Por sua vez, essa parte pura, a parte que nada toma da
experiência mas que é condição de possibilidade do
conhecimento empírico, é a Metafísica. Pois é na Metafísica
que o objecto se considera apenas segundo as disposições do
pensar241, sem pedir nada da experiência, portanto,
puramente a priori. Por esse motivo, é apenas na Metafísica
que o objecto de conhecimento, não estando refém de um
qualquer conjunto de experiências particulares, pode ser
pensado e determinado para qualquer experiência possível.
Se toda a genuína Ciência da Natureza se funda e legitima
na parte que contém puros princípios a priori, e se estes
239 “[…] natural science must derivate the legitimacy of this title only from its pure part – namely, that which contains the a priori principles of all other natural explications – and why only in virtue of this pure part is natural science to be proper science” [MFNS], p.4 (tradução minha)
240 “All proper natural science therefore requires a pure part, on which the apodictic certainty that reason seeks therein can be based.” idem, p.5. (tradução minha)
241 Conferir Idem, pp. 9-10.
260
apenas podem ser encontrados na Metafísica, isto significa
então que toda a ciência natural genuína pressupõe uma
metafísica da natureza242. Metafísica essa que se divide em
duas partes: transcendental e particular. A parte
transcendental trata “das leis que tornam possível o
conceito de uma natureza em geral, mesmo sem relação a
qualquer objecto determinado da experiência e, como tal,
indeterminado a respeito da natureza disto ou daquilo do
mundo sensível”243. Portanto, sem qualquer relação aos
objecto dos sentidos, mas somente ao modo como poderemos
ter conhecimento destes244. Esta parte também toma a
designação, em Kant, de Ontologia245. Por sua vez, a parte
particular da metafísica da natureza versa somente sobre os
princípios que fundam os conceitos empíricos pertencentes a
uma das Naturezas particulares: à Natureza dos corpos
(Física), ou à Natureza da alma (Psicologia)246.
Em resumo, para Kant, existem três condições de
ciência da natureza, em geral: em primeiro lugar, a
constituição de uma unidade de conhecimento obtido por
242 Conferir idem, p. 5.
243 “[…] treat the laws that make possible the concept of a nature in general, even without relation to any determinate object of experience , and thus undetermined whit respect to the nature of this or that thing in the sensible world” idem, ibidem. (tradução minha)
244 Conferir [CRP], B25.
245 Conferir idem, B873.
246 Conferir [MFNS], p.5.
261
sistematização (ou ordenação) de factos; em segundo lugar,
essa sistematização sintáctica tem de ser regulada por
princípios racionais; em terceiro lugar, esses princípios
têm que ser conhecidos a priori com certeza apodíctica.
Por conseguinte, para Kant, só pode tomar
legitimamente a designação de Física, aquela em que os seus
conceitos encontrem o seu fundamento em princípios
metafísicos da Ciência da Natureza Corpórea. E, estes, por
seu turno, por serem princípios que tornam possível uma
ciência da natureza particular, devem encontrar o seu
fundamento nos princípios que tornam possível uma ciência
da natureza em geral, ou seja, em princípios
transcendentais.
Por seu turno, dado que uma teoria racional acerca da
Natureza dos objectos físicos só pode ser considerada
genuinamente como Física se, e só se, for fundada em
princípios puros a priori e, como, a Física tem como seus
os objectos dos sentidos exteriores, isto é, segundo Kant,
os corpos então, importa saber qual a natureza dos corpos.
Dado que se trata de algo que é objecto dos sentidos
exteriores, será necessariamente algo intuído no espaço e,
por conseguinte, de natureza extensa247. Pois ser extenso
decorre da própria condição formal de ser objecto dos
247 Conferir idem, p. 3.
262
sentidos exteriores, isto é, da forma da intuição do que é
exterior ao sujeito de conhecimento. Assim, conhecer o
conceito de corpo apenas enquanto possibilidade, isto é,
conhecer a priori, exige que se dê a priori a intuição
correspondente a esse conceito “isto é, que o conceito seja
construído. Ora o conhecimento racional mediante a
construção de conceitos é matemático”248. Portanto, conclui
Kant, que uma teoria da natureza dos corpos, uma Física, só
é possível por meio da Matemática249.
Porém, a possibilidade de coisas naturais determinadas
não pode conhecer-se somente a partir de conceitos, pois “a
partir destes pode, certamente, conhecer-se a possibilidade
do pensamento, mas não do objecto enquanto coisa natural, a
qual pode ser dada (como existente) fora do pensamento”250.
Este existente fora do pensamento é o que no fenómeno
corresponde à sensação, isto é, o que Kant dá o nome de
matéria251. Assim, os corpos são matéria extensa.
Por conseguinte, os princípios metafísicos que fundam
uma Física genuína terão necessariamente de ser os
248 “[…] that is, that the concept be constructed. Now rational cognition through construction of concepts is mathematical. Idem, p.6. (tradução minha)
249 Conferir idem, ibidem.
250 “[…] for from these the possibility of thought can be certainly be cognized, but the possibility of the object as a natural thing that can be given outside the thought (as existing)” Idem, ibidem. (tradução minha)
251 Conferir [CRP], B34.
263
princípios metafísicos que estabelecem as condições de
possibilidade da aplicação da matemática ao conceito de
matéria. Isto é, serão os “princípios de construção dos
conceitos que pertencem à possibilidade da matéria em
geral”252.
Importa então saber onde encontrar o fundamento desses
princípios formais. Ora, como toda a “verdadeira Metafísica
é tirada da própria essência da faculdade de pensar e de
nenhum modo ela é inventada na medida que não é tomada de
empréstimo da experiência”253, então será somente através
dos conceitos e dos princípios mais puros do pensamento que
será possível encontrar objectivamente todas as
determinações a priori de qualquer conceito e, em
particular, do conceito de matéria. Por sua vez, dado que
não há – em Kant - conceitos mais puros do entendimento do
que as próprias categorias, então terá de ser a partir
dessas mesmas categorias (grandeza, qualidade, relação e
modalidade) que se poderá obter todas as determinações do
conceito de uma matéria em geral.
252 “[…] principles for the construction of concepts that belong to the possibility of matter in general.”, [MFNS], p. 8. (tradução minha)
253 “All true metaphysics is drawn from the essence of the faculty of thinking itself, and is in no way fictitiously invented on account of not being borrowed from experience”, idem, ibidem. (tradução minha)
264
Está então assim traçado o programa de Kant, nas suas
linhas mestras, para os “Princípios Metafísicos da Ciência
da Natureza”. Como afirma Michael Friedman:
“Por um lado, os Principia de Newton representam a
realização dos princípios transcendentais dispostos na primeira
Crítica. Como tal, fornece ao sistema kantiano um “exemplo in
concreto”, que confere “sentido e significado” aos conceitos e
princípios abstractos da filosofia transcendental. […] Por outro
lado, Kant vê a ciência newtoniana como necessitada de uma
análise critica ou metafísica, uma análise que revele as origens
e o sentido dos seus conceitos e princípios.”254
A Física inaugurada pelos Philosophie Naturalis
Principia Mathematica, tal como Newton a constituiu, só
impropriamente pode tomar a designação de Física, pois, tal
como se mostrou anteriormente, é um sistema fundado em
princípios, leis e conceitos extraídos da experiência. O
conceito de corpo como uma substância material com
propriedade de ser extenso, duro, impenetrável, que pode
ter movimento, é retirado da experiência comum do mundo. E,
por sua vez, os conceitos de espaço e tempo verdadeiros,
absolutos e matemáticos surgem como uma generalização
254 Friedman, Michael (1992), Kant and the Exact Sciences, Cambridge: Harvard university press, pp. 136-137.
265
racional da experiência comum de espaço e de tempo.
Portanto, a Física de Newton apresentada nos Principia é
fundada simplesmente em elementos retirados a posteriori da
experiência. Como tal não tem em si o carácter necessário
dos seus princípios e leis. Logo, não pode ser considerada
como saber efectivo sobre a Natureza.
Deste modo, Kant propõe-se, através de uma análise
completa do conceito de matéria estabelecer os princípios
metafísicos da Física em geral e que serão, por
consequência os da Mecânica newtoniana, em particular.
Mostrando, por um lado, sob que condições esta última pode
ser legitimada como genuína ciência da Natureza. Isto é,
como conhecimento efectivo e objectivo sobre a Natureza dos
corpos. Por outro lado, ao efectuar nos “Princípios
Metafísicos da Ciência Natural” um transitar da Filosofia
Transcendental para uma Ciência da Natureza particular,
Kant faz da Física de Newton um lugar de concretização, de
exemplificação, da Filosofia Transcendental.
Assim, os “Princípios Metafísicos da Ciência da
Natureza” tem como propósito o de realizar uma análise
completa ao conceito de matéria, aplicando-lhe, uma a uma,
as categorias. Como tal, é claro que o conceito de matéria
é o conceito central desta obra. Porém, o que é matéria?
266
Na Crítica da Razão Pura, Kant afirma que a matéria é
o que é extenso, impenetrável e sem vida255. Assim
entendida, o mundo físico, o que é constituído por corpos
materiais, poderia ser estático. Pois, da simples extensão,
impenetrabilidade e ausência de vida, ou seja, do simples
conceito de matéria não decorre que esta se movimente.
Porém, Kant afirma que “a ciência natural é uma doutrina
pura ou aplicada do movimento”256. Ou seja, tal como em
Descartes e Newton, em Kant o movimento, embora não seja
propriedade essencial dos corpos, é a matriz de uma
qualquer Física. Não haveria Física se o mundo físico fosse
totalmente estático. Portanto, o movimento surge como uma
propriedade atribuída aos corpos em função da nossa
experiência do mundo físico, como uma propriedade empírica.
Isso mesmo é salientado por Kant quando afirma que:
“[…] visto que a mobilidade de um objecto no espaço não se
pode conhecer a priori sem o ensinamento da experiência e,
precisamente por esta razão, não a pude incluir, na Crítica da
Razão Pura, entre os puros conceitos do entendimento; e que este
conceito, enquanto empírico, só podia encontrar o seu lugar numa
ciência da natureza que, enquanto metafísica aplicada, se ocupa
255 Conferir [CRP], B876.
256 “[…] natural science […] is either a pure or a applied doctrine of motion” [MFNS], p. 12. (tradução minha)
267
de um conceito fornecido pela experiência, embora segundo
princípios a priori.”257
Assim, para estabelecer os Fundamentos Metafísicos da
Ciência da Natureza corpórea não basta submeter o conceito
de matéria às categorias. É preciso acrescentar ao conceito
de matéria, como sua determinação adicional e primeira, o
movimento. Portanto, o conceito de matéria que irá submeter
às categorias é o conceito de uma matéria móvel. E assim,
estabelece: uma Foronomia; uma Dinâmica; uma Mecânica e uma
Fenomenologia.
3.3.1. Foronomia
A Foronomia, ou Cinemática, é a teoria da matéria
móvel enquanto quantidade (ou seja, submetido à categoria
da quantidade). Deste modo, importa aqui tratar a matéria
unicamente enquanto coisa que possui um certo grau de
movimento. Porém, o que é o movimento? Kant define-o assim:
257 “since the mobility of an object in space cannot be cognized a priori, and without instruction through experience, I could not, for precisely this reason, enumerate it under the pure concepts of the understand in the Critique of Pure Reason; and that this concept, as empirical could only find a place in natural science, as applied metaphysics, which concerns itself with a concept given through experience, although in accordance whit a priori principles”, idem, p. 17. (tradução minha)
268
“Movimento de uma coisa é a modificação das suas condições
exteriores em relação a um espaço dado”258
Entendida desta forma o movimento é da ordem da
relação entre um corpo, que é sujeito de movimento, e um
determinado espaço. Em particular, dado que o espaço é, em
Kant, uma forma da sensibilidade, o movimento de um corpo é
da ordem da relação desse corpo com o espaço da percepção
de um sujeito de conhecimento. No entanto, na medida que
este é igualmente móvel, o seu espaço de percepção móvel
igualmente o é. A este espaço que é móvel, que é o caso do
espaço da nossa percepção do mundo físico, Kant designa por
espaço relativo. E, por consequência, afirma, então, Kant
que “todo o movimento que é objecto de experiência é
meramente relativo”259. Isto é, da experiência directa não
podemos afirmar a objectividade do movimento de um corpo
que julgamos perceber, mas apenas que este se move em
relação a um outro (ou a nós). Neste sentido, o conceito de
movimento de Kant é, de alguma forma, devedor do conceito
258 “Motion of a thing is the change of its outer relations to a given space” idem, p. 17. (tradução minha)
259 “[…] all motion that is an object of experience is merely relative” idem, p.16. (tradução minha)
269
cartesiano de movimento como uma relação de um dado corpo
com o que lhe é vizinho.
Porém, assinala Kant, se o espaço relativo é móvel,
então sê-lo-á relativamente a um outro que lhe é exterior e
alargado. Por sua vez, “este pressupõe um outro e, assim
por diante, até ao infinito”260. Sendo esse espaço último e
infinito, então somente esse não será móvel relativamente a
nenhum outro e, por conseguinte, é o único que permite
julgar objectivamente os movimentos dos corpos, movimentos
que lhe são relativos. Logo, tal como em Newton, é neste
espaço, no espaço absoluto, que “se deve pensar todo o
movimento”261.
No entanto, ao contrário de Newton, este espaço
absoluto não é um objecto de percepção, ele “nada é, pois,
em si, não é um objecto, mas significa somente todo o
espaço relativo que, para mim sempre posso pensar além do
espaço dado”262.
Portanto, ao recusar que o espaço absoluto seja algo
que seja da mesma natureza que o espaço relativo, Kant
afasta-se de Newton, onde o espaço absoluto é uma
substância do qual só temos acesso a uma parte. Mas se se
260 “[…] this latter presupposes […] yet another; and so on to infinity” idem, ibidem. (tradução minha)
261 “[…] that in which all motion must finally be thought”, idem, p.15. (tradução minha)
262 “[…] is thus in itself nothing, and no object at all, but rather signifies only any other relative space, which I can always think beyond the given space”, idem, p.16 (tradução minha)
270
afasta de Newton relativamente à natureza do espaço, a
verdade é que o conceito de movimento de Kant é próximo do
(ou pelo menos, compatível com o) conceito de movimento de
Newton, em que se entende movimento como a mudança de lugar
de um corpo. Argumenta Kant que para se determinar a
distância da Terra à Lua – exemplo que elege – “escolhe-se
a linha mais curta desde o centro de uma ao centro da
outra, por conseguinte, apenas um ponto destes corpos é que
constitui o seu lugar”263. Isto é, do facto que só podemos
falar precisamente da distância entre dois corpos se os
reduzirmos a pontos localizados no espaço Kant retira a
ilação que o “lugar de todo o corpo é um ponto”264. Ou seja,
só podemos falar com propriedade da distância entre dois
corpos se estes tiverem uma posição espacial bem
determinada. Neste sentido, conceber movimento como mudança
de lugar (ou seja, posição) corresponde, se esse movimento
for apenas de translação, ao conceito de movimento como a
alteração da relação do corpo móvel com o que lhe é
exterior. Porém, a concepção kantiana permite uma
determinação adicional à concepção newtoniana (e
cartesiana) de movimento: ter a rotação como movimento no
mesmo sentido que o é a translação. Pois, a Terra na sua
263 “[…] chooses the shortest line form the central point of the one to the central point of the other, so that for each of these bodies there is only one point constituting its place”, Idem, pp. 17-18. (tradução minha)
264 “For the place of any body is a point“ idem, p.17 (tradução minha)
271
rotação é um corpo que altera a sua relação com o que lhe é
exterior, porém não mudar de lugar e, no entanto, move-se.
Neste sentido, a concepção de movimento de Kant é mais rica
que a de Newton, sendo que, de certa forma, inclui esta
última como um seu caso particular (quando se considera
apenas o movimento como translação).
3.3.2. Dinâmica
A dinâmica é a teoria da matéria móvel submetido à
categoria da qualidade. Nesta, Kant defende que uma matéria
movível é algo que preenche um espaço. Contrapõe-se assim,
em Kant, a noção de corpo como algo que “enche” à noção
newtoniana de corpo como coisa que “ocupa” o espaço. Noção
que seria inaceitável para Kant, pois dizer que um corpo
“ocupa” o espaço faz remeter, implicitamente, para um
espaço que é prévio, no mundo físico, aos corpos. Concepção
essa que é rejeitada por Kant ao ter do espaço, não como
algo do mundo, mas como forma da intuição. Assim, em Kant,
o espaço é prévio aos corpos, não no mundo, mas no sujeito
que o experiencia.
Por “encher” um espaço Kant entende “resistir a todo
móvel que se esforça, graças ao seu movimento, por penetrar
272
num certo espaço”.265 Dito de outro modo, um corpo material
“enche” um espaço no sentido que resiste a ser sobreposto
por um outro. Neste sentido, Kant é levado a especular
sobre a existência de algo na constituição da matéria que a
faz reagir a uma acção exterior, a essa acção de penetração
ou sobreposição. Pois, se “encher” tem o sentido de uma
resistência da matéria à ser sobreposta por outra, isso
deve-se, segundo Kant não há simples existência passiva da
matéria, que seria a atribuição newtoniana da propriedade
de impenetrabilidade à matéria, mas esta ser algo que
estabelece uma reacção a acção que lhe é imposta. Ou seja,
a matéria, submetida à sua determinação qualitativa de
causa-efeito, leva Kant a concluir que esta – a matéria -
“enche” em virtude de ser constituída do resultado de duas
forças motrizes266.
Em primeiro lugar, por uma força repulsiva, que é
exercida sobre o que é exterior ao corpo, que apenas se
encontra na superfície de contacto e, como tal, é a
responsável, segundo Kant pela solidez, impenetrabilidade e
ocupação do espaço (e, por consequência, igualmente pela
figura do corpo).
265 “[To fill a space is] to resist every movable that strives through its motion to penetrate into a certain space.”, idem, p. 33 (tradução minha)
266 Conferir idem, p. 34.
273
Porém, se apenas existisse essa força repulsiva, então
as partes constituintes de um corpo material repelar-se-iam
mutuamente e estes dissipar-se-iam. Assim, em segundo
lugar, do mesmo modo que existe uma força repulsiva, terá
que existir uma força atractiva que mantém a coesão: a
gravidade.
No entanto, se a matéria é uma força contrária a uma
invasão do que lhe é exterior, nem todos os corpos
manifestam a mesma a força repulsiva. Nos fluidos é menos
presente que nos sólidos, em virtude das suas partes
apresentarem forças distintas. Ou seja, desta concepção de
matéria como algo que possui uma força repulsiva à
sobreposição e uma força atractiva que permite a sua
coesão, poder-se-ia afirmar que a matéria é constituída por
partes elementares, por pontos onde emanariam as forças.
Haveria aqui lugar para uma espécie de atomismo. Porém,
Kant não é um atomista.
Segundo Kant, “o conceito de uma substância significa
o último sujeito da existência, isto é, o que não pertence,
por seu turno, à existência de uma outra coisa meramente
como um predicado”267. Portanto, substância surge aqui, tal
como em Descartes e em Espinosa, como o que existe
267 “The concept of a substance means the ultimate subject of existence, that is, that which does not itself belong in turn to the existence of another merely as a predicate” idem, pp. 39-40. (tradução minha)
274
independente de outra coisa qualquer, como o que existe sem
ser meramente predicado de outra coisa e, por consequência,
como o que só pode ser concebido como sujeito de
predicação.
Ora, dado que o espaço não é, para Kant, algo
existente mas tão-só uma condição do sujeito transcendental
da percepção do que lhe é exterior, então o espaço não é
substância e, por consequência, “matéria é o sujeito de
tudo o que, no espaço, se pode incluir na existência das
coisas”268. Ou seja, apenas a matéria é uma substância.
Assim, se a matéria é uma substância que é constituída
por partes, logo, segundo Kant, todas as partes da matéria
são igualmente substâncias. Mais precisamente, substâncias
materiais. Como tal, qualquer divisão da matéria resulta em
partes que são igualmente matéria. Isto significa que, para
Kant, a matéria é divisível até ao infinito e cada uma das
suas partes é, por seu turno, matéria269.
Porém, dado que a espacialidade não é uma propriedade
intrínseca da matéria, mas uma imposição do sujeito, então
Kant ao defender que a matéria é divisível até ao infinito
fá-lo sem ter que aceitar a existência real de substâncias
268 “[…] matter is the subject of everything that may be counted in space as belonging to the existence of things”, idem, p. 40. (tradução minha)
269 Conferir Idem, ibidem.
275
corpóreas simples, isto é, sem ter que aceder ao atomismo.
Ou seja, em Kant, o todo não é precedido pelas partes que o
compõem, mas o inverso: o todo é primeiro em relação as
partes. Tal como num corpo geométrico, para Kant, o corpo
físico pode ser dividido infinitamente, mas isso não
implica que o corpo, como um todo, tenha que ser concebido
como constituído, efectivamente, por partes simples (do
mesmo modo que um quadrado é decomponível em triângulos
sucessivamente mais pequenos, mas tal não implica que
tomemos um quadrado como uma adição de triângulos ou, mais
radicalmente, por pontos).
Contudo, esta redução da matéria a simples forças
motrizes270, que são responsáveis de encher pela figura e
pela coesão dos corpos, parece ter que ser suportada, como
assinala Eric Watkins271, pela tese de que todo o espaço é
preenchido, de algum modo, por forças. Forças de
intensidade diferentes pois são diferentes os corpos na sua
coesão. Mas se os corpos são divisíveis até ao infinito,
então o espaço é divisível em forças cada vez menores.
Divisibilidade esta que poderá ser levada até ao limite de
uma matéria tão subtil que quase não é existente: o éter.
270 Conferir Idem, p. 63.
271 Conferir Watkins, Eric (2009), ”Kant philosophy of science” in http://plato.stanford.edu/archives/spr2009/entries/kant-science,p. 12.
276
Como assinala Friedman272, Kant durante o seu período
Critico deixa a hipótese do éter em aberto, precisamente
como coisa vaga e implícita, mas será absolutamente central
no Opus Postumum (onde rejeitará a redução da matéria a
forças motrizes individuais e, na extensão, renunciará aos
“Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza”).
3.3.3. Mecânica
A Mecânica é a teoria da matéria móvel submetida à
categoria de relação. Como tal, tem como seu objecto a
explicação de como um corpo, isto é, “uma matéria
compreendida entre limites determinados”273, enquanto móvel,
comunica o seu movimento a outros corpos. Portanto, é o
lugar que se relaciona mais proximamente com as leis do
movimento de Newton e, portanto, com a constituição de uma
teoria física concreta. Deste modo, este é o lugar de
articulação das determinações da matéria móvel já obtidas
com as duas caracterizações fundamentais dos corpos na
Mecânica newtoniana: quantidade de matéria e quantidade de
movimento.
272 Conferir, Friedman, Michael (1994), Kant and the Exact Sciences, Cambridge: Harvard University Press, p. 222.
273 “[…] a matter between determinate boundaries”,[MFNS], p. 74 (tradução minha)
277
Por quantidade de matéria Kant entende “o agregado dos
móveis num espaço determinado”274. O que será, de certa
forma, equivalente à definição de Newton de quantidade de
matéria, na medida em que Kant acrescenta que a uma dada
quantidade de matéria de um corpo chama-se “massa” quando
todas as suas partes se movem em conjunto. No fundo, tanto
em Kant como em Newton, quantidade de matéria é a
quantidade de substância do móvel.
Contudo, dado que a matéria é infinitamente divisível,
a quantidade de matéria não pode ser estimada como o
somatório de um conjunto de partículas materiais, como em
Newton e, por conseguinte, igualmente não poderá ser
definida através do volume. Portanto, a única forma de
estimar a quantidade de matéria é através da quantidade de
movimento a uma velocidade dada275.
Por quantidade de movimento Kant entende exactamente o
mesmo que Newton. Isto é, o produto da quantidade de
matéria de um corpo pela sua velocidade.276
274 “[The quantity of matter is] the aggregate of the movable in a determinate space”, idem, p. 76 (tradução minha)
275 Conferir idem, p. 77
276 Conferir idem, ibid.
278
3.3.4. Fenomenologia
Por fim, a fenomenologia é a teoria da matéria móvel
submetida à categoria da modalidade. Mais precisamente, de
como o movimento pode ser objecto de experiência em termos
da possibilidade, actualidade e necessidade. Em que o
movimento rectilíneo é meramente possível; o movimento
circular é um predicado real da matéria e todo o movimento
de um corpo pelo qual ele exerce uma acção motriz sobre um
outro corpo é necessário um movimento igual e contrário
deste último corpo.
Esta determinação modal do movimento dos corpos
assenta na relação destes com o espaço absoluto. Como foi
salientado anteriormente, por um lado, a partir de um
espaço relativo, aquele a que temos acesso empírico, só
podemos afirmar que um corpo está em repouso ou em
movimento relativamente a esse espaço. E, por conseguinte,
o mesmo corpo ser considerado em movimento num dado espaço
relativo e em repouso num outro. Por outro lado, o espaço
absoluto não é um objecto da experiência. O espaço absoluto
em Kant não é em nada dado, nem em parte, como em Newton, à
intuição. Daqui somos então levados a concluir que não
existe nenhum corpo em movimento absoluto ou em repouso
absoluto. No entanto, é condição da determinação do
279
movimento (ou do repouso) de um corpo este ter como
referente algo considerado imóvel, até para a própria noção
que todos os movimentos são relativos. Assim, segundo Kant,
o espaço absoluto é uma “regra para considerar em si todo o
movimento como puramente relativo”277. Ou seja, o espaço
absoluto é uma ideia da razão. Ideia essa que nos permite
tornar válidas as leis do movimento.
3.3.5. Conclusão
Tal como em Descartes, para Kant é da natureza dos
objectos dos sentidos externos, ou corpos, serem extensos.
Contudo, a extensão (e a figura) é parte da natureza dos
objectos físicos em sentido formal. Como algo é conhecido a
priori, pois é uma determinação da intuição pura do sentido
externo, isto é, do espaço.
Por outro lado, em Kant, tal como o era em Newton, a
materialidade é a natureza dos objectos físicos em sentido
material (permita-se o pleonasmo). Pois a matéria é aquilo
a que no fenómeno corresponde à sensação278.
277 Conferir idem, p. 98.
278 Conferir, [CRP], B35.
280
Poder-se-á assim dizer que existe no conceito de
objecto físico em Kant uma tentativa de conciliação dos
conceitos de objecto físico de Descartes e de Newton. Que
é, no fundo, uma tentativa de conciliação entre o
racionalismo de Descartes e o empirismo de Newton. Uma
tentativa de conciliação que se efectua no conceito de
corpo entendendo-o:
- por um lado, como puro objecto geométrico, como
objecto da razão (isto é, quanto à sua forma); e
- por outro lado, enquanto coisa que activa os
sentidos, enquanto objecto empírico (isto é, quanto à sua
materialidade).
Contudo, essa conciliação faz-se, em primeiro lugar,
tendo o espaço como uma forma subjectiva da intuição
(contra Descartes e Newton, onde o espaço é algo dos
objectos). Só assim, Kant assegura que o mundo físico pode
ser objecto da matemática, como era propósito de Descartes
e esperança postulada de Newton. Em segundo lugar, essa
conciliação faz-se pela concepção de matéria de Kant (que é
herdada de Leibniz, tal como o espírito conciliador) onde
esta é o produto de forças antagónicas. Forças que
explicam, por um lado, a extensão dos corpos em Descartes.
Por outro, que explicam a impenetrabilidade e dureza dos
corpos em Newton.
281
Mas existe ainda um terceiro plano de conciliação
entre Newton e Descartes fruto, igualmente, do conceito de
matéria de Kant. Pois ao conceber a matéria com uma
substância que possui forças motrizes, Kant, por um lado,
estabelece a gravidade uma força fundamental dos corpos,
isto é, estabelece como existente um força que actua à
distância. Algo que Descartes rejeita e Newton aceita mas
hesita, isto é, nunca o assume. E, por lado, ao atribuir
aos corpos uma força fundamental de repulsão (a que
preenche o espaço), Kant rejeita o atomismo onde assenta o
sistema newtoniano e aceita, como Descartes, que a matéria
é infinitamente divisível.
Portanto, se aqui se afirmou que era intenção de Kant
dar fundamento à Física de Newton, isto não significa que
era intenção de Kant fazer uma estrita defesa dessa Física.
O problema de Kant era o de determinar os princípios
metafísicos que permitem uma teoria sobre a natureza
corpórea tomar com propriedade a denominação de ciência.
Isto é, conhecimento efectivo dessa natureza. O seu ponto
de partida, como não poderia deixar de ser, é de conceber a
Natureza física como o conjunto dos fenómenos. Onde, a
matéria, enquanto algo móvel, é o elemento que é dado à
sensibilidade e, como tal, é o que é objecto das
determinações do sujeito transcendental. Ou seja, o
282
propósito de Kant era o de submeter o conceito de matéria
móvel as categorias e delas fazer brotar dedutivamente, os
princípios a que os objectos de experiência possíveis da
Física, os corpos enquanto matéria móvel, estariam
necessariamente submetidos. Em princípios, portanto, que
precederiam e legitimariam, não somente a Física de Newton
mas uma qualquer Física particular neles fundada. Os
princípios metafísicos de Kant seriam os a priori de
qualquer ciência da Natureza.
Contudo, ao ser uma metafísica especifica dos corpos
onde, na sua base residem conceitos empíricos como matéria
e movimento, esta pode-se revelar incorrecta sem, contudo,
atentar necessariamente contra o edifício da Critica da
Razão Pura. Isto é, dado que os conceitos de movimento e de
matéria, em particular, enquanto substância que possui duas
forças activas e opostas, são atribuídos aos objectos
físicos a partir da experiência que temos deles, então não
pode haver garantia alguma que uma ciência fundada em tais
conceitos traduza um conhecimento efectivo sobre a Natureza
corpórea. Isso mesmo é reconhecido por Kant quando afirma,
na seguinte passagem, o carácter não universal de alguns
dos princípios metafísicos da Física:
283
“[...] encontram-se aí [na ciência geral da natureza]
também muitas coisas que não são absolutamente puras e
independentes das fontes da experiência: como o conceito de
movimento, de impenetrabilidade (onde se funda o conceito
empírico de matéria), de inércia, etc., que a impedem de a
chamar uma ciência inteiramente pura da Natureza [...] Mas,
entre os princípios dessa Física geral, há alguns que possuem
realmente a universalidade que exigimos, como a proposição: que
a substância permanece e persiste, que tudo o que acontece tem
uma causa segundo leis constantes, etc. Estas são
verdadeiramente leis universais da Natureza, que existem
absolutamente a priori”279.
Deste modo, existem dois tipos de princípios
metafísicos da Natureza: Aqueles que, no entender de Kant,
são absolutamente universais, apriorísticos e, por
conseguinte, seguros pois têm a sua sede nos conceitos
puros do entendimento; e os outros que são – digamos assim
– semi-puros e, como tal, passíveis de serem revistos. Este
é caso de todos os que se referem aos conceitos empíricos
em geral. E, em particular, será o caso dos que se referem
aos conceitos de matéria e de movimento.
279 Kant (1783), Prolegomena zu einer jeden künftigen Metaphysik (trad. port. de Artur Mourão, “Prolegómenos a toda a Metafísica Futura”), Lisboa: Edições 70 (1982), § 15, p. 67
284
Por conseguinte, a Física de Newton, fundada, já não
na débil experiência, mas na sólida estrutura do sujeito
transcendental, tal como era o propósito dos “Princípios
Metafísicos da Ciência da Natureza”, pode ser considerada
um conhecimento possível, mas não necessário. Aliás, a meu
ver, uma vez concebida a matéria como substância que possui
forças e aberta a possibilidade do éter (que, como já se
disse, irá ser central no Opus Postumum) podemos ver Kant
mais próximo do que viria a ser, cerca de meio século mais
tarde, o Electromagnetismo do que a Mecânica de Newton.
Pois, é precisamente no Electromagnetismo que a matéria é
concebida como resultante de duas forças opostas, uma
atractiva e outra repulsiva, presentes numa substância
infinitamente subtil e que preenche todo o espaço: o campo
electromagnético.
2.4. Conclusão geral do capítulo.
A análise do conceito de objecto físico que é
realizada neste capítulo é, a meu ver, atravessada por dois
aspectos:
285
1) Por objecto físico concebe-se sempre como o que tem
a natureza corpórea, ou seja, que é um corpo.
2) Embora a Física se constitua sempre como uma teoria
do movimento, de qualquer um dos conceitos de corpo
não decorre, necessariamente, que estes se
movimentem.
Embora distintos, creio que estes dois aspectos estão
relacionados. Relação que, a meu ver, se pode expressar nos
seguintes termos: pensar os corpos é pensar a partir do
fixo, do localizado e, portanto, é pensar numa entidade em
que o movimento é apenas possível; pensar as ondas é pensar
em algo que necessariamente se move.
A experiência que temos do mundo físico é, em primeira
instância, o da existência de coisas que nos são exterior e
que se nos opõem activando os nossos sentidos. Atribuímos,
apropriadamente, a designação de “objecto físico” a essas
coisas, suportados na própria etimologia da palavra
“objecto”. A partir desta reacção dos nossos sentidos à
presença de algo que nos é exterior, temos a percepção de
cadeiras, mesas, pedras, bolas de bilhar, cordas de
violino, das nossas próprias mãos, etc. E chamamos-lhes
corpos a esses objectos físicos.
286
Podemos, então, a meu ver, dizer que um corpo é um
todo espacialmente finito. Na forma desenhada da sua
finitude espacial encontra a sua figura. Mas um todo de
quê? Descartes dirá que é apenas um todo de extensão, como
um quadrado ou uma outra figura geométrica qualquer. Se um
corpo é um todo espacialmente finito, será impossível
discordar com Descartes que os corpos têm extensão, são um
todo extenso com figura. Mas dizemos vulgarmente que esse
todo não é somente extensão, mas é um todo de massa. Um
corpo é uma massa com uma determinada figura280, é isto
mesmo que afirma Kant (e Newton, certamente concordaria).
Por sua vez, dizemos que um corpo se movimenta quando,
por exemplo, percepcionamos, o que julgamos ser o mesmo
corpo, percorrendo uma sucessão de locais. O corpo é então
aqui entendido como um todo extenso que se move. Mas tal
não acrescenta nada ao conceito de corpo, pois da concepção
de um todo (de matéria) finito, nada obsta a que esse todo
se movimente. Os corpos, quer os concebamos como simples
extensão, matéria ou resultado de duas forças, concebemo-
los sempre a partir da sua ausência de movimento. Como se o
movimento fosse, para os objectos físicos, apenas uma
propriedade acidental.
280 Conferir [MFNS], p. 76.
287
Por outro lado, se o corpo é um todo extenso, então é
composto por partes e então estas poderão estar em
movimento. Ou seja, pode existir movimento num todo
extenso. A este designamos por onda. Portanto, quanto ao
movimento, podemos distinguir corpo e onda do seguinte
modo: Corpo é um todo móvel; onda é um movimento num todo.
Deste modo, conceber os objectos físicos como ondas
passa necessariamente por ter o movimento como propriedade
fundamental. Uma onda do mar não é concebível como algo que
está em repouso, apenas poderá ser como algo que se mantém
estável. Pois se existem ondas estacionárias, estas são o
resultado da sobreposição persistente de duas ou mais
ondas, como um processo cujo resultado se mantém idêntico
no tempo, mas que é um processo, que não é algo que está em
repouso. Não existem ondas em repouso. E, como tal, não é
possível conceber os objectos físicos como ondas sem
considerar que esses objectos têm movimento.
Parece existir aqui, no entanto, uma certa precedência
dos corpos em relação às ondas. Pois, ao dizer-se que uma
onda é um movimento num todo, então esse todo precede, como
condição, a onda. Uma onda do mar é um movimento no mar.
Uma onda sonora é um movimento, por exemplo, no ar ou num
metal. Por conseguinte, se esse todo extenso é um corpo,
então, de certo modo, podemos dizer que, enquanto um corpo
288
pode ser concebido sem as ondas, o inverso não será
totalmente verdade. A não ser, claro está, quando o extenso
que é suporte da onda, for infinitamente extenso, portanto
sem figura. É caso, por exemplo, da onda electromagnética,
que é movimento num “campo” de extensão infinita. Porém,
nesse caso, o campo electromagnético não é concebível nem
como corpo, nem como onda. Na verdade, parece que sobre
qualquer plenum infinito, como é o campo electromagnético,
tomando-o como objecto físico se poderia colocar, de certa
forma, a mesma questão sobre a sua natureza que se coloca
relativamente aos objectos quânticos.
Por outro lado, se a nossa experiência comum do mundo
físico é feita de percepções discretas, como se fossem
flashes, imagens isoladas ou fotografias, então os objectos
físicos são percepcionados, antes do mais, como entidades
sem movimento. O movimento será, então, uma operação de
síntese de várias percepções individuais. Neste sentido, os
corpos individuais, enquanto um todo extenso, como entidade
que pode ser concebida sem o movimento, são o nosso objecto
de experiência privilegiado281.
A reforçar esta tese evoca-se aqui que, tal como
assinalam, entre outros, De Broglie e Brigitte 281 Este ponto, por não ser totalmente claro, careceria de uma análise mais detalhada. Em particular, a tese que o objecto da nossa percepção externa é o corpo. No entanto, isto significaria mergulhar num problema imenso que é o problema da percepção. O que forçaria a um desvio significativo no âmbito deste trabalho.
289
Falkenburg282, todas medições são, antes do mais, medições
da posição (ou seja, da quantidade de localização, como se
disse no capítulo anterior). O que significa que todas as
medições se referem aos corpos. Todas as medições são, em
última análise, repostas à pergunta “onde está?”,
naturalmente relativas a um determinado corpo. Se uma
balança mede a massa de um corpo, mede-o a partir da
comparação de duas posições. E o mesmo sucede para a
medição da velocidade. Ou quando se mede o momentum ou a
energia ou mesmo a frequência ou o comprimento de uma onda.
A única propriedade que é directamente medida é a posição.
Todas as outras são-no apenas de forma indirecta. Poder-se-
á, então, afirmar, surpreendentemente, que a Física é
caracterizada apenas por uma questão. Questão esta, no
entanto, dirigida aos objectos físicos, que se vai
desdobrando nos seus tempos verbais. A saber: Onde está?
Onde estava? Onde estará?
Portanto, os corpos individuais são o nosso objecto de
experiência privilegiado. Não admirará pois que em
Descartes, Newton e Kant, “objecto físico” e “corpo” sejam
quase sinónimos. Ou melhor, a partir da experiência dos
corpos, cada um deles concebe os objectos físicos.
Descartes por eliminação de tudo aquilo que não faz parte
282 Conferir Falkenburg, Brigitte (2007), Particle Metaphysics, Berlim: Springer, p. 93.
290
necessariamente dos corpos. Newton tomando por seguro que a
experiência ensina como os objectos físicos são de facto.
Kant tomando por seguro que a experiência ensina como os
objectos físicos são enquanto fenómeno.
Porém, a lição da descoberta do domínio quântico era a
seguinte: os objectos quânticos movem-se como ondas,
interagem como corpos. Quando interpelados por um acto de
medida os objectos quânticos aparecem sempre como um
corpúsculo. Porém, vagueiam entre duas medições como se
fossem ondas. O objecto quântico tem sempre uma dupla face.
Quanto melhor conhecemos a sua posição, pior conhecemos o
seu momento. Por muito que o reconheçamos como corpúsculo,
nunca o deixamos de reconhecer como onda. E vice-versa. O
objecto quântico resiste e revolta-se às nossas enraizadas
categorias para os objectos físicos. Ele não é onda, nem é
corpúsculo.
Deste modo, sendo que os objectos quânticos não são
corpos, mas são objectos físicos então, nenhum dos
conceitos de objecto físico, de Descartes, Newton ou Kant
suporta o embate com o domínio quântico. Voltamos,
novamente, à questão inicial da natureza dos objectos
quânticos. Mas agora com dois elementos adicionais. Em
primeiro lugar, dirigimos a questão aos objectos físicos em
geral e não apenas aos quânticos. Em segundo lugar, todas
291
as medições em Física são medições de posição. Assim,
podemos pensar que o objecto físico revelado por uma
medição apresentará, necessariamente, uma natureza
corpórea, mesmo que essa não seja a sua natureza. Isto é,
podemos pensar que, na sua essência, um acto de medição, ou
um acto de percepção, é um acto de fragmentação e de
metamorfose da realidade física. Ou seja, que os objectos
físicos devem ser concebidos, por um lado, como entidades
em que o movimento é parte da sua essência, é um seu
princípio interno e não um acidente. E, por outro lado,
como entidades que, num acto de medida ou de percepção, se
apresentam incompletos, parciais, perspectivados.
292
293
4. Elementos para uma concepção dinamista e
relacional de objecto físico.
No parágrafo oitavo dos “Princípios da Natureza e da
Graça”, Leibniz afirma:
“[…]a matéria é em si mesma indiferente ao movimento e ao
repouso, e perante um tal ou outro movimento não podemos
encontrar a razão do movimento, e menos ainda de um tal
movimento determinado. E ainda que o movimento presente, que
está na matéria, venha do precedente, e este de um outro
precedente, continuamos a não avançar, ainda que avancemos tanto
quanto quisermos: porque permanece de pé sempre a mesma
pergunta.”283
Os corpos movem-se. É isso que a nossa experiência do
mundo físico nos indica. Não haveria experiência do mundo
físico se não houvesse movimento, não só porque os nossos
283 “[…] la materia es en si misma indiferente al movimiento y al reposo, y ante tal o cual movimiento no podemos encontrar la razón del movimiento y menos aún de tal movimiento determinado. Y aunque el movimiento presente, que está en la materia, proviene del precedente, y éste incluso de otro precedente, no hemos avanzado más aunque vayamos tan lejos como queramos: pues siempre queda en pie la misma pregunta. Leibniz, G. W. (1714), Principes de la nature et de la grâce fondés en raison (“Principios de la Naturaleza y de la Gracia Fundados en Razon” in Escritos Filosóficos de Leibniz, Madrid: Mínimo Tránsito, p.685. (2003)) parágrafo 8 (tradução minha).
294
mecanismos sensoriais não poderiam existir ou, pelo menos,
funcionar, mas igualmente porque o mundo físico nos
apareceria indiferenciado, homogéneo, morto. Os corpos
movem-se e a física constitui-se como teoria explicativa do
movimento dos objectos físicos. Porém, como se mostrou no
capítulo anterior, conceber os corpos como extensão ou como
matéria é conceber um objecto físico onde a razão do seu
movimento não está inscrita. Como afirma Leibniz na
passagem anterior, da matéria “não poderíamos achar nela a
razão do seu movimento”. E mesmo que seja construída uma
física tão poderosa como a newtoniana, que nos explica como
os movimentos se sucedem, falha a razão porque existe
movimento no mundo físico. Assim, será claro em Leibniz que
a razão do movimento não pode provir da nossa experiência
do mundo físico, como o defenderam Descartes, Newton e
Kant. Pelo contrário, a razão terá que ser encontrada na
metafísica e depois deduzida para os corpos. Como afirmou
Deleuze, “Em lugar da indução física cartesiana, Leibniz
substitui-a por uma dedução moral do corpo”284. Moral que
advém do imperativo “Eu tenho que ter um corpo”285. Deste
modo, como é imperativo em Leibniz, tem que existir uma
razão para os corpos se moverem, para que as coisas sejam
284 Conferir Deleuze, Gilles (1988), Le pli: Leibniz et le baroque (tradução para inglês de Tom Conley, “The Fold: Leibniz and the baroque”, Londres: Continuum (2006), p.97. 285 Idem, ibidem.
295
assim e não de outro modo qualquer. Razão que não se
encontra nos corpos, mas nas mónadas.
4.1. Objectos Físicos: entre as mónadas e os corpos.
A monadologia, trabalho da chamada fase de maturidade
de Leibniz (ou, como coloca Ezequiel de Olaso, “de maior
maturidade”286), tem como entidade ontológica fundamental a
mónada. Logo no primeiro parágrafo, Leibniz define-a como
uma substância simples. Mas o que entende aqui, Leibniz,
por substância e por simples? Por simples, esclarece o
próprio, significa o que é “sem partes”287. Por conseguinte,
mónada será a substância que não é composta por nada mais,
a substância que não tem algo no seu interior, a que não é
divisível.
Por sua vez, havendo outras coisas no mundo que não as
mónadas, e sendo estas as substâncias simples, então, como
nos diz Leibniz, essas outras coisas são compostos de
286 Conferir Olaso, Ezequiel de (1980), “Prólogo” in Escritos Filosóficos de Leibniz, Madrid: Mínimo Tránsito, p.17. 287 Conferir Leibniz, G.W. (1714) Principes de la Philosophie ou Monadologie, parágrafo 1, (edição Robinet, 1954, p.69).[Monadologia-Ed.Robinet]
296
mónadas. Ou mais precisamente, são agregados de mónadas288.
Porém, daqui resultam dois problemas.
Em primeiro lugar, se os objectos físicos de que temos
experiência empírica directa – os corpos – apresentam-se-
nos como extensos, como podem eles resultar da composição
de mónadas, que são entidades, de sua natureza, sem
extensão?
Por outro lado, por que razão Leibniz afirma na
monadologia que as mónadas são substâncias simples e, no
entanto, não afirma que os agregados de mónadas são
substâncias compostas (tal como o faz nos “Princípios da
Natureza e da Graça”289)? Ou seja, por que razão,
aparentemente, as mónadas são substâncias e no entanto os
corpos, por exemplo, já não o são? O que entende Leibniz
por substância?
No célebre parágrafo VIII dos “Discursos de
Metafísica”, Leibniz começa por considerar o conceito
aristotélico de substância:
288 Conferir idem, parágrafo 2. 289 Conferir Idem, parágrafo 1
297
“[…] quando se atribuem múltiplos predicados a um mesmo
sujeito e esse sujeito não é atribuído a nenhum outro, ele é
chamado de substância individual”290
Contudo, Leibniz, no comentário que logo se segue, vê
a referida concepção de substância como insuficiente por
esta ser, no seu entender, meramente nominalista. Por sua
vez, Leibniz considera que:
“[…] a natureza de uma substância individual ou de um ser
completo é ter uma noção tão acabada que seja suficiente para
compreender e deduzir a partir dela todos os predicados do
sujeito a qual tal noção é atribuída.”291
Ou seja, Leibniz entende por substância individual o
mesmo que entende por um ser completo. O que significa que,
no seu entender, uma substância, ou um ser completo, é o
que contem em si, virtualmente, todas as predicações da
qual é sujeito. Isto é, não só de todas predicações de que
é sujeito num dado estado, mas de todas as predicações de
290 Leibniz, G. W. (1686), Discours de métaphysique (tradução para Português de Adelino Cardoso “Discurso de Metafísica”, Lisboa: Colibri, p. 44 (1995)), parágrafo VIII. 291 Idem, ibidem.
298
que foi, é e será sujeito – em suma, de todo o decorrer dos
seus estados particulares.
Assim, em primeiro lugar, Leibniz entende a
substância, tal como Aristóteles, como uma substância
individual que é sujeito de predicação.
Em segundo lugar, Leibniz entende a substância não
como uma matéria inerte, como algo onde o movimento é
apenas um atributo possível ou como o que subsiste na
mudança. Pelo contrário, em Leibniz, uma substância é um
sujeito de predicação de uma série de estados. Estados que
têm de se suceder sem interrupção, pois uma interrupção na
decorrência de estados seria uma ausência de predicação e,
como tal, não poderia ser substância (seria um não-ser, um
ser sem predicado algum). A substância, como Leibniz afirma
logo na abertura dos “Princípios da natureza e da graça”, é
um “ser capaz de acção”292. Porém, esta capacidade não é uma
mera potência para a acção, mas uma força efectiva. Isto é,
em Leibniz as substâncias individuais são concebidas como
entidades que têm em si um princípio interno de mudança,
princípio este que as força a transitarem permanentemente
entre estados diferentes. A substância encontra-se em
perpétua transição de estados.
292 Conferir, Leibniz, G. W. (1714), Principes de la nature et de la grâce fondés en raison (“Principios de la Naturaleza y de la Gracia Fundados en Razon” in Escritos Filosóficos de Leibniz, Madrid: Mínimo Tránsito, p.685. (2003)) parágrafo 1.
299
Assim, entender a mónada como uma substância simples,
é entender que ela não tem constituição interna, que ela
não tem nada no seu interior, nem sequer vazio, pois não é
oca como uma caixa de ressonância, mas que, ao invés,
contém virtualmente todos os predicados do qual foi, é e
será sujeito. As mónadas não são o que subjaz à mudança ou
o que tem ou toma formas extensas, pois esses conceitos
fariam dela algo passivo ou, pelo menos, algo em que a
mudança não é necessária. As mónadas, enquanto seres que
contém, virtualmente, toda a sequência dos seus estados,
que se sucedem por razão de um princípio interno, são a
unidade de uma série interminável de estados. Unidade de um
fluxo espontâneo de estados.
Mas, se a mónada, enquanto substância singular, é, por
sua natureza, uma entidade em mudança contínua de estados,
sendo cada um desses estados fugaz e efémero, em que
consiste cada um desses estados? Isto é, são estados de
quê? Segundo Leibniz, cada estado passageiro “não é mais do
que a chamada percepção”293. Isto é, “a representação de uma
multiplicidade na unidade”294. A unidade é, claro está, a
percepção individual da mónada, o seu estado actual, a sua
percepção actual do múltiplo. Mas que multiplicidade é
representada em cada mónada?
293 Conferir [Monadologia-Ed.Robinet], parágrafo 14 (p. 77). 294 Idem, Ibidem.
300
Segundo o Leibniz dos “Princípios da natureza e da
graça”, as percepções das mónadas são representações do
composto295. E o que é este composto que é representado?
Daquilo que se afirmou anteriormente, os compostos (ou os
agregados) de mónadas são os corpos. Portanto, numa
primeira aproximação, o múltiplo que é representado na
mónada, aquilo em que consiste a sua percepção, é o
múltiplo do mundo corpóreo, do universo. Em cada percepção
individual, que é uma unidade, habita, como representação
transitória, o múltiplo do mundo corpóreo.
Por seu turno, numa segunda aproximação, dado que cada
corpo é um composto de mónadas, então, o múltiplo que é
percebido como corpo é, na sua essência, o conjunto de
todas as outras mónadas. Isto é, cada mónada percepciona
todas as outras por intermédio dos corpos. A percepção de
cada mónada é a percepção de todas as outras. Ou seja, tal
como tão celebremente afirma Leibniz, “cada substância
simples [tem] relações que exprimem todas as outras e […],
por conseguinte, [é] um espelho vivo perpétuo do
universo”296. Cada mónada é, por sua natureza, uma imagem,
um ponto de vista, uma perspectiva singular do universo.
Havendo múltiplas mónadas, existem múltiplas perspectivas
295 Conferir Leibniz, G. W. (1714), Principes de la nature et de la grâce fondés en raison (“Principios de la Naturaleza y de la Gracia Fundados en Razon” in Escritos Filosóficos de Leibniz, Madrid: Mínimo Tránsito, p.685. (2003)) parágrafo 1. 296 Conferir [Monadologia-Ed.Robinet], parágrafo 56 (p. 105).
301
do universo. Cada mónada é uma unidade singular do
múltiplo. O universo é a unidade das múltiplas mónadas.
As mónadas não são, no entanto, representações fixas
do múltiplo. A mónada não é uma pintura, mas é
cinematográfica. Isto é, e como já foi referido
anteriormente, as substâncias simples transitam
incessantemente de percepção em percepção, num fluxo
permanente, em virtude de um princípio que terá se ser
interno. Este princípio interno que, sob sua acção, leva à
transição de estados perceptivos de cada mónada particular,
Leibniz designa por apetência297.
Temos então as duas qualidades ou “acções internas das
substâncias simples”298 das mónadas: a percepção e a
apetência. São estas duas qualidades que as fazem serem
entes e as tornam discerníveis entre si. Isenta de
qualidade uma mónada seria indistinguível de outra. A
diferença entre mónadas, a sua discernibilidade, radica na
percepção particular, na perspectiva singular que cada uma
tem em si, em cada transição, da multiplicidade do mundo.
Duas mónadas que representam identicamente o mundo, não
seriam duas, mas uma. Portanto, o que as distingue não é
algo que lhes é interior, mas a sua relação representativa
do que lhes é exterior.
297 Conferir Idem, parágrafo 15 (p. 77). 298 Conferir Idem, parágrafo 17 (p. 79).
302
As acções internas das mónadas, por estas serem
substâncias simples, isto é, sem partes, não resultam de
quaisquer mecanismos internos. Pois sendo sem partes, a
mónada em nada poderá ser influída por algo exterior. As
percepções não são impressões numa superfície à maneira de
fotografias ou de selos, nem as transições de estados de
percepção resultam de reacções, isto é, de acções em
resposta a impressões externas efectuadas sobre si. Não
tendo partes, não seria concebível que tivessem um interior
que respondesse a uma acção exterior. Dado que essas acções
internas não resultam de quaisquer mecanismos internos, as
mónadas não podem ser tomadas como entidades físicas, em
particular como corpos. As mónadas são autómatos
incorpóreos299.
Uma vez sendo entidade sem partes, seria tentador
imaginar as mónadas ao jeito de partículas materiais, de
partículas corpóreas puras (como aqui se designou no
segundo capítulo), corpúsculos mínimos ou simplesmente como
pontos. Contudo, tal como nos avisa Leibniz300, logicamente,
onde não há partes não há extensão, nem figura, nem
divisibilidade alguma possível. Deste modo, por um lado,
uma mónada não poderia ser algo material, pois isso
significaria que era composto de matéria. Seria um pedaço,
299 Conferir Idem, parágrafo 18 (p. 81). 300 Conferir Idem, parágrafo 3 (p. 69).
303
por muito mínimo que fosse, um átomo de matéria. Ora, a
mónada não é composta por nada, não tem interioridade. Por
outro lado, uma mónada não pode ser nem um átomo no sentido
que Demócrito dá a esta palavra, nem pode ser um corpúsculo
à maneira de Descartes, pois dado que estes têm extensão
será sempre possível pensar numa sua divisão, o que seria
contrário à natureza simples das mónadas.
Não obstante, poderá dizer-se, como nos diz Leibniz,
que as mónadas são “os verdadeiros átomos da natureza e,
numa palavra, os elementos das coisas”301. Átomos, não no
sentido de elemento imutável no mundo, mas no sentido de
elemento indivisível das coisas, de entidades primeiras de
tudo, de unidades singulares de uma série de estados que já
estão contidas em si, como virtual. E a realidade das
mónadas esgota-se nesse fluxo espontâneo de estados. A
mónada é a unidade atómica do real. Neste sentido, poder-
se-ia representar a mónada como um ponto. Um ponto, não
como a unidade última de algo espacial, ou do próprio
espaço. Isto é, não entendendo a mónada como o elemento
último, o que resta, de uma decomposição ad infinitum do
espaço, pois tal implicaria dizer que o espaço seria
anterior à mónada. Tal seria contraditório com o conceito
de mónada como elemento primeiro, primordial relativamente
a todas as outras coisas. Porém, se o espaço for a
301 Conferir Idem, ibidem.
304
consequência do preenchimento das mónadas, então seria
possível imaginar as mónadas como pontos a partir dos quais
o espaço é composto. A mónada a ser um ponto, não é um
ponto material, nem um ponto matemático: é um ponto
metafísico.
Por outro lado, sendo entidades perceptivas e, como
tal, incorpóreas, as mónadas podem ser consideradas como
espíritos ou almas. Porém, Leibniz reserva esta atribuição,
apenas “àquelas, cuja percepção é mais distinta e
acompanhada de memória”302. Em particular, aos humanos.
Assim, em cada um de nós habita uma multidão de mónadas. Em
cada pedaço de nós, pois a cada pedaço corpóreo corresponde
a sua mónada. Conjunto que é regido, no entanto, por uma em
particular. Como um maestro dirige a sua orquestra. Mas
mais que a questão das hierarquias entre mónadas, o
importante a salientar é que se em nós (no que de nós é
consciência que percepciona) habita ou reside uma mónada,
então em Leibniz, ao contrário do que se sucede em
Descartes, Newton e Kant, o sujeito está no mundo. O
sujeito de percepção é parte do mundo que percebe, pois
tanto o que tem percepções, como o que é percepcionado tem
apenas uma natureza: as mónadas. A ciência em Leibniz não
passa por um sujeito ausente, que vê o mundo da
arquibancada ou do camarote. Um sujeito distante e ausente.
302 Conferir Idem, parágrafo 20 (p. 81).
305
Um sujeito transcendente que vai cartografando o mundo à
medida que o descobre. O sujeito de Leibniz, tal como um
explorador, vê o mundo de uma certa perspectiva. Está corpo
a corpo com ele. Vê para o mundo de uma das múltiplas que
este oferece para ser visto. Assim, se o sujeito tem do
mundo uma certa perspectiva, isso não significa que se caia
numa espécie de relativismo. No entanto, torna a ciência
numa empresa muito mais vasta, pois ao contrario de Newton,
por exemplo, onde se pretende olhar o mundo num plano, num
ponto neutro, como partes de um mapa, a Ciência de Leibniz
passa pelo projecto interminável da aquisição de todas as
perspectivas. Por trabalhar, não ao nível do plano, mas do
pleno. Por procurar a harmonização de várias teorias, cada
uma a ver o mundo segundo um ponto de vista que lhe é
próprio. Assim, o sujeito, como está no mundo, é parte do
mundo, tem-se a si mesmo como objecto mais próximo. Ele é
sujeito do sujeito ou, tal como colocou Whitehead, é um
super-jecto.
Porém, se cada uma das mónadas é apenas um reflexo do
todo, um autómato incorpóreo e, como tal, não se encontra
em interacção com nada, como podem as mónadas representar
esse todo? Como aqui já se disse, cada mónada está
associada a um corpo. Assim:
306
“[cada corpo] expressa todo o universo pela conexão de
toda a matéria no pleno, a alma representa também todo o
universo ao representar esse corpo a que pertence de maneira
particular”303.
Existe um duplo plano: o dos corpos e o das mónadas.
Os corpos expressam o universo. As almas representam
perceptivamente o corpo a que estão associadas. E é por que
os corpos expressam o universo, que as almas representam,
indirectamente, o universo. Os corpos sem mónadas não
existiriam, pois são compostos de mónadas. As mónadas sem
corpos também não existiriam, pois não teriam percepções, o
universo não se exprimiria em nada. Quase que se poderia
dizer, recordando Bohr, que os corpos e as mónadas são
complementares.
Todas as mónadas estão em inter-relação, em inter-
ligação, mas não em inter-acção. Isto é, existe um vínculo
invisível, imponderável, implícito entre elas. Como numa
dança bem ensaiada, as mónadas estão perfeitamente
coordenadas sem que, no entanto, exista qualquer tipo de
contacto ou de interacção entre elas. Cada uma delas
transita de percepção em percepção por via de uma
303“et comme ce corps exprime tout l’univers par la connexion de toute la matière dans le plein, l’Ame represente aussi tout l’univers en représentant ce corps, qui lui appartient d’une manière particulière.“, idem, parágrafo 62 (p.109).
307
coreografia que as abarca a todas. Cada substância simples
está em mudança por si mesma, mas muda em função de uma
organização incorruptível que as percorre a todas. Assim,
cada mudança só é possível em função de todas as outras. As
mónadas vivem em regime de compossibilidade ou de
cumplicidade. Neste sentido, as mónadas são como unidades
de biografias particulares. São livros, como afirma
Deleuze304. São livros auto-biográficos. É essa biografia
particular, o seu conjunto de percepções que se sucedem, a
perspectiva singular do universo que faz com que cada
mónada seja distinta das demais a cada transição de estado.
Pois a percepção da mónada é a expressão singular da
transição de estados da multiplicidade. E a biografia do
mundo será o conjunto das suas biografias. Porém, a
biografia de cada uma contém, virtualmente, a biografia da
totalidade.
Mas, por sua vez, se toda a existência está preenchida
de mónadas (pois não pode haver algo existente que não seja
composto por mónadas) e a estas está associado um pedaço
corpóreo, então o espaço físico é um plenamente preenchido.
Isto é, tudo é pleno. Por conseguinte, tal como em
Descartes, a matéria é divisível em partes mais pequenas e
estas em outras ainda mais pequenas, numa sucessão infinda.
304 Conferir Deleuze, Gilles (1988), Le pli: Leibniz et le baroque (tradução para inglês de Tom Conley, “The Fold: Leibniz and the baroque”, Londres: Continuum (2006), p. 35.
308
Divisão que não é meramente racional, como no caso do
espaço matemático. Isto é, uma divisão que se pode pensar a
partir de um todo. Em que o todo precede as partes. Pelo
contrário, cada corpo é, em actual, dividido em infinitas
partes. Por sua vez, também como em Descartes, todas as
partes da matéria estão ligadas entre si, pois num plenum o
movimento de um corpo particular faz efeito nos que lhe são
contíguos e esses em outros, numa propagação que podermos
conceber como ondulatória. Por conseguinte, o movimento de
um corpo é uma consequência directa do movimento de todo o
universo. O estado actual de um corpo individual é
resultante, reflexo, expressão do decurso evolutivo dos
estados do universo. A multiplicidade é expressa em cada
corpo. E o estudo exaustivo, uma determinação completa de
um corpo individual passaria pela conquista de todo o
múltiplo que ele contém. Isto é, teria que passar pela
determinação de todos os outros corpos. O que significa que
a percepção do estado actual de um dado corpo, ao contrário
do que sucede em Descartes, Kant, Newton e, por extensão,
da metafísica implícita da Física, não o determina por
completo, mas apenas parcelarmente.
Por outro lado, se tudo é composto de mónadas ou por
mónadas, que são a substância simples, então, logicamente,
não pode existir nada que não pertença às mónadas. Ou seja,
não pode existir tal coisa, como Newton, por exemplo
309
concebe, como um espaço vazio. Um espaço como substância
que precede todos os corpos. O espaço, para Leibniz, é uma
ordem da coexistência das mónadas305. O espaço é da ordem
das coisas, da sua relação e não um plano onde estas podem
ser depositadas, ordenadas e urdidas as suas relações.
Igualmente, o tempo é da ordem das coisas. Assim, tanto o
espaço, como o tempo, são, para Leibniz, não coisas, mas
fenómenos bem fundados. Fenómenos, porque são apenas
aparência. Bem fundados, pois fundam-se na relação - que é
o tecido do real – entre as mónadas.
Porém, o que sucede no caso dos corpos? Tal como se
afirmou no início, Leibniz parece hesitar em considerar os
corpos como substâncias. Embora nos “Princípios da Natureza
e da Graça”, Leibniz afirme que os corpos são substâncias
compostas, na monadologia parece indicar que apenas as
mónadas são verdadeiramente substâncias. Nesta última obra,
os corpos são simples agregados de mónadas. Por outro lado,
se os corpos nos aparecem aos sentidos como extensos e se a
extensão é apenas um fenómeno bem fundado, então os corpos,
tal qual nos aparecem, são igualmente um fenómeno bem
fundado. O mesmo sucederá com o movimento, se o pensarmos,
como é usual, como o quociente entre o espaço percorrido e
o tempo decorrido por um corpo, pois também o tempo é da
305 Leibniz, G.W. (1714), Carta a Rémond, Julho de 1714, não enviada in Princípios da natureza e da graça/Monadologia (trad. Port. de Miguel Serras Pereira), Lisboa: Fim de Século, p.68. (2001).
310
ordem da relação das coisas e não uma coisa em si. Assim, a
verdadeira natureza dos corpos não nos é revelada através
da percepção directa. E, como tal, toda a Física que se
constitua a partir de uma concepção de corpo tal como ele
nos aparece aos sentidos (extenso, móvel, etc.) será uma
ciência de fenómenos bem fundados, mas não uma ciência da
natureza tal como ela é.
Diz-nos então, Leibniz, “a alma segue as suas próprias
leis, e o corpo também as suas”306. As almas agem por
apetências, os corpos por movimentos. A Física de Leibniz
não é regida directamente pela percepção e pela apetência.
A Física de Leibniz é regida por duas forças: a viva e a
morta. A primeira é elástica, no sentido que é uma força
que é dirigida para fora mas tem a sua fonte no interior,
como uma mola que se estende, que se atira para fora. Força
que se esgota em si, mas é transmitida. Força que é,
também, de reacção.
Por outro lado, a força plástica, a força morta é a
força acumulativa. Que se dirige para dentro, que se
conforma com o exterior. Mas que é, tão-somente, o que
potencia a força viva. Existem assim duas forças: uma
interior, outra exterior; uma acumulativa, outra expansiva;
uma activa, outra passiva. Todos os corpos são deformáveis,
306 Conferir [Monadologia, edição Robinet] Parágrafo 78 (p. 121)
311
elásticos, fluidos na medida suficiente de não perderem a
sua consistência. Encontramos em Leibniz uma física que
rejeita tanto os átomos materiais de Newton, por serem
indeformáveis, como os corpúsculos que tendem para o
imponderável, para o inconsistente. A física de Leibniz
rejeita tanto a idealização de um corpo absolutamente
rígido de Newton, como rejeita a idealização de um fluido
imenso que preenche todos os espaços. No fundo, olhando da
física actual para a física proposta por Leibniz, este
rejeita as idealizações que estão na base tanto da Mecânica
Clássica, como do Electromagnetísmo. Leibniz rejeitaria as
partículas puras, tanto dos corpos como das ondas. Porém,
se tudo é pleno em Leibniz, o movimento local propaga-se
por todo o espaço. Todos os corpos sentem, de alguma forma,
o movimento de um corpo particular. A acção particular
propaga-se isotropicamente, como se fosse uma onda. Porém,
uma percepção é um singular. É a percepção de um corpo.
Isto é, a física de Leibniz já inclui, de certo modo, um
dualismo onda-corpúsculo. Dualismo este que se pode pensar,
justamente, como no domínio quântico: na propagação é como
uma onda; na interacção é como um corpo. Mas o corpo é
aqui pensado, na sua essência, como um centro de força e a
onda como a propagação dessa força. Mas, neste caso,
voltaríamos, aparentemente, à concepção que nos surgiu em
Kant, onde o mundo poderia ser totalmente estático. O que
312
não faz sentido em Leibniz, pois nas substâncias simples
existe um princípio interno de transição, de mudança. Tudo
está em movimento, por razão das mónadas.
Porém, regressamos ao problema que deixámos em aberto
no início: Em que consiste exactamente a ligação entre as
mónadas e os corpos?
Leibniz diz-nos que os reinos das almas e dos corpos,
embora completamente separados, são harmónicos entre si.
Numa harmonia pré-estabelecida que permite a transição de
percepções e corresponda a um movimento nos corpos. Os
corpos encontram a sede ou a razão do seu movimento nas
mónadas. Aqui, por movimento, penso que se pode entender o
mesmo que em Kant. Isto é, uma modificação das condições
exteriores. Porém, em que consiste precisamente esta
correspondência entre almas e corpos? Como mostra Daniel
Garber no seu clarificador livro “Lebniz: Body, Substance,
Monad”, esta questão da ligação entre os corpos e as
mónadas irá perseguir Leibniz na fase final da sua vida.
Aliás, Garber é ainda mais enfático ao afirmar que a
questão da ligação entre mónadas e corpos torna-se quase
uma obsessão de Leibniz307. Como mostra Garber, e como é
característico em Leibniz, este tentará várias formas
diferentes, todas elas inconclusivas, de resolver o
307 Garber, Daniel (2009), Leibniz: Body, Substance, Monad, Oxford: Oxford University press, p. 373.
313
problema. Leibniz terá mesmo, por um momento, posto mesmo
em causa as mónadas. Em resumo, quer tudo isto dizer que,
segundo Garber:
“O trabalho de Leibniz nestes anos [os de maturidade] sobre
os corpos não fazem uma imagem completamente coerente”308.
Não é fácil compreender exactamente como as mónadas, e
as suas qualidades, constituem os corpos; como os corpos
são agregados ou compósitos de mónadas; ou como as acções
das mónadas se ligam com os corpos. E, em particular, não é
fácil perceber como a Metafísica de Leibniz poderá fundar
uma Física que se quer, na sua essência, dinamista e
relacional.
Como será óbvio, não caberia aqui, nem a mim, sequer
ensaiar um movimento qualquer de tentativa de solução do
problema. Contudo, poder-se-á tentar fazer uso da
monadologia como inspiração e, de certo modo, reinterpretar
alguns dos seus aspectos fundamentais de modo a gizar um
conceito de objecto físico com três aspectos que se podem
encontrar em Leibniz: a inter-relação plena entre os
objectos físicos; a sua essência dinâmica; a
discernibilidade dos objectos físicos. 308 Conferir Idem, p. 382.
314
4.2. Os objectos físicos como nós de relações.
Deleuze, no seu livro sobre Leibniz, fala-nos em dobra
para descrever as variadas sucessões paralelas mas
interligadas em Leibniz. O plano das mónadas e o plano dos
corpos. O plano do contínuo do movimento e o plano do
discreto da percepção. O plano da função e o plano da
derivada. O plano da transição do virtual para o actual (ou
seja, da actualização) da mónadas e o plano da transição do
possível para o real (ou seja, da realização) dos corpos.
Séries paralelas, mas harmónicas. Como duas faces de uma
folha que se vai dobrando.
Por outro lado, a dobra também surge em Deleuze como a
figuração da mónada. Podemos ver, perfeitamente, a
sequência de transições de estado de uma mónada como um
desdobrar, como se fosse uma explicação. Podemos sentir
como cada mónada contém, virtualmente, implicada em si,
dobrada no seu interior, a sua sequência de actualizações.
Podemos olhar para a mónada como uma espécie de origami que
se reinventa a cada momento. Podemos perceber a
actualização harmónica do conjunto das mónadas como uma
complicação, como uma cumplicidade. A dobra é, sem dúvida,
uma imagem frutuosa das mónadas.
315
Porém, no caso presente, sugiro que interpretemos as
mónadas segundo a figura, não da dobra mas dos “nós”. Isto
é, como entrelaçamentos, como zonas de interligações.
Os nós são constituídos são organizações ou estruturas
particulares dos fios. Assim, um nó existe em função do que
lhe é exterior. Um nó pode surgir por um enrolamento, tal
como pode ser desenrolado, desatado e desaparecer. Contudo,
um nó é uma estrutura autónoma dos fios.
Mas os nós de que aqui falamos não são constituídos
por apenas um fio que se envolve consigo mesmo. Isso seria,
digamos, um laço. O nó de que aqui se fala, é um nó de
múltiplos fios, como um nó rodoviário, com múltiplas
estradas, constituído por múltiplos caminhos que se
encontram. Os nós podem ser vistos como uma confluência.
Por isso, os nós podem ser igualmente figurados como
remoinhos, furacões ou vórtices.
Estes nós são nós de relações. São relações que se
estabilizam num particular. Assim, os nós são entidades
essencialmente relacionais. Fazendo uso de uma latitude
particular da língua portuguesa, poderíamos dizer que um nó
só o é relativamente a um nós. Todo o complexo de nós está
literalmente inter-ligado, sem que contudo signifique que
se trate de um todo indiferenciado. Pois, cada nó é
distinto de todos os demais pelo novelo particular de
316
relações que instancia. Em cada nó existe um desenrolar de
si que lhe é próprio, mas que é igualmente consequente do
desenrolar (ou desfiar) do todo relacional de que faz
parte. Cada um de nós vive num enredo que é o seu, numa
primeira instância, e que é parte da bibliografia da vida,
numa segunda.
Deve-se então entender que os nós são os relata das
relações que os constituem. Porém, os relata não antecedem
as relações. Do mesmo modo que não existem nós sem fios,
não existem relata sem relações. Porém, poderão existir
relações puras, sem estarem instanciadas num relata? Sim,
serão as figuras que habitam no Caos de que nos fala
Deleuze. O que é o Caos? Deleuze defino-o como “um vazio
que não é um nada, mas um virtual, que contem todas as
partículas possíveis e adquirindo todas as formas possíveis
que surgem para de imediato desaparecerem, sem consistência
nem referência, sem consequência. É uma velocidade infinita
de nascimento e desvanecimento”309. É o lugar de todas essas
relações que circulam, como puros fluxos, etéreos, fátuos,
inconsistentes. São como uma multiplicidade de matérias
primas aristotélicas. Todas em potência de forma. Uma como
a outra, incognoscível na sua existência enquanto ser do
309 Deleuze, Gilles (1991), Qu’est-ce que la Philosophie? (Trad. port. de Margarida Barahona e António Guerreiro, “O que é a Filosofia?”, Lisboa: editorial presença), p. 105. (1992)
317
Caos. Isto é, uma é incognoscível pois é pura relação sem
relata, outra é incognoscível pois é matéria prima sem
forma. O Caos é um virtual, pois está preenchido de
entidades em pura potência de actualização. Assim, os nós,
entendidos como confluências de relações, são constituídos
pelo desfiar da transição virtual-actual. Portanto, neste
caso, os relata, isto é, os nós de relações, são epicentros
de actualizações em processo. Ora, diz-nos Deleuze, “como
Leibniz mostrou, a força é um virtual em curso de se
actualizar”310. Logo, os relata são novelos de relações, são
centros de força, não estáveis, como uma carga eléctrica,
mas meta-estáveis, em flutuações de intensidade. Deste
modo, em cada uma das ligações entre nós tem a sua tensão
oscilatória. Isto é uma vibração. Como as cordas de uma
guitarra, que também são fios em tensão que ligam dois nós.
A sua vibração tem uma intensidade, uma frequência que lhe
é particular naquele estado. O seu estado é definido a
partir da intensidade da relações que lhe estão enredadas.
Deste modo, todas as relações são activas, mas
instáveis. As relações procuram estabelecer-se num nó, num
relatum. Porém, nenhum nó é estático, mas é um
estacionário, um meta-equilibrio. Poder-se-á dizer que os
nós, como os corpos em Leibniz e em Kant, são centros de
310 Deleuze, Gilles (1995), Dialogues (trad. Port. de José Gabriel Cunha, “Diálogos”, Lisboa: relógio d’agua (2004), p. 180.
318
força. Porém, são forças variáveis pois existem em
flutuações de intensidade, em contínuas compressões e
distensões. Os nós são uma espécie de sistema de
osciladores que se inter-ligam a outros sistemas de
osciladores. Talvez seja essa a imagem física mais próxima.
Os nós não são substâncias se se entender por
substância o que existe por si, o que não pode ser
decomposto, o que subsiste à mudança, ou o que possui
propriedades. Poder-se-á dizer que são organismos e neste
sentido que são substâncias individuais. Não admirará que
em Bio-matemática, o ADN seja justamente considerado uma
molécula em nó, um Knotene.
Essa multidão de nós construi uma trama, um tecido,
que embora seja uma rede ou uma floresta de rizomas, pela
sua densidade pode ser tomado como um contínuo com
rugosidades. Aquilo a que se pode designar por meio ou
plano. O meio é necessariamente um sistema complexo, pois é
constituído por essa trama múltipla de relações. O caso
mais radical de meio é o próprio Caos, mas não é o único.
No Electromagnetismo esse meio é identificado com o campo
electromagnético. No caso da Mecânica celeste esse meio é
identificado com o espaço-tempo. No caso do domínio
quântico esse meio será o meio sub-quântico. Em todos os
casos repete-se a estrutura, como uma espécie de fractal.
319
Os objectos físicos são nós de relações, singularidades num
contínuo. As massas são deformações do espaço-tempo. As
cargas são centros de força do campo electromagnético. Os
objectos quânticos são vórtices do meio sub-quântico. As
massas são nós, constituídos por outros nós (as cargas
eléctricas) e estas são constituídas por outros nós ainda.
Um nó, esquecida a sua estrutura, pode ser visto como um
ponto. Neste caso, um ponto oscilante num meio. Compreende-
se assim que se possa confundir o nó com um ponto material,
que se possa confundir com a partícula pura dos corpos. E
se possam confundir as suas oscilações, num meio, como uma
onda harmónica. Porém, cada nó é, por sua natureza, uma
estrutura ontologicamente autónoma. Portanto, dentro de
cada nó existe um outro mundo de nós. Tal como em Leibniz,
em cada peixe existe um lago cheio de peixes. A progressão
é infinita, mas em sentido horizontal e não em sentido
vertical. Isto é, não que a matéria seja divisível ao
infinito e em que cada parte seja igual ao todo. Pelo
contrário, cada nó é divisível em outros nós de relações.
Porém, o novo plano ontológico estrutura-se de outra forma.
São outras relações. São outros nós. Quer isto dizer que
cada plano é emergente relativamente ao seu antecedente.
Mas o que queremos dizer por emergente?
Encontramos em Paul Humphreys a seguinte definição de
emergência:
320
“Emergência é, em sentido lato, a visão que existem coisas
do mundo – objectos, propriedades, leis, talvez outras coisas –
que são manifestadas como resultado da existência de outras
entidades, usualmente mais básicas, mas que, contudo, não podem
ser completamente reduzidas a essas entidades”311
O ponto aqui é a expressão “ser completamente
reduzidas”. A forma tradicional de o pensar é a partir da
relação mereológica do todo e das suas partes. Assim,
afirma-se que existe emergência quando existem entidades
(todos) que não podem ser completamente reduzidas às suas
partes constituintes. Isto é, não resultam da simples
combinação das suas partes. Como, por exemplo, as peças de
lego ou de um puzzle. O que pode ser expresso num aforismo
clássico: “o todo não é igual à soma das suas partes”. O
emergentismo opõe-se, como é claro, ao atomismo. Pois
precisamente neste último, concebe-se que tudo é
constituído por uma combinação de um conjunto de entidades
imutáveis e últimas. E a Física revela-se claramente
atomista quando concebe um corpo apenas como o compósito de 311 “Emergence is, broadly speaking, the view that there are features of the world – objects, properties, laws, perhaps other things – that are manifested as a result of the existence of other, usually more basic, entities but that cannot be completely reduced to those other entities” Paul Humphreys (2006), “Emergence”, in The Encyclopedia of Philosophy (2th Ed) (Donald Borchert (ed.), Nova Iorque: MacMillan, vol. 3, p. 190. (pp. 190-194).
321
corpúsculos e uma onda apenas como o sobreposto de ondas.
Como já aqui se mostrou, em limite, este atomismo que se
encontra no tutano da Física, leva-nos às partículas puras
dos corpos e das ondas.
Mas como pode um todo ser diferente da soma das partes
que o compõem? Justamente, porque não existindo tal
elemento atómico, como afirma Gil Santos, “a identidade de
um objecto é a sua organização própria”312. Assim, essa
organização própria que confere identidade a um objecto, ou
nó, como aqui o designámos, possui propriedades distintas
das partes que o compõem e uma autonomia causal que é sua.
Um ser animal não é um mero agregado de órgãos. É autónomo
em relação a estes. Diria Deleuze, “é um corpo sem órgãos”.
Cada objecto é um nó de relações que lhe são únicas.
Poderá o atomista argumentar que essa emergência é
aparente, pois são o resultado das nossas limitadas
capacidades de explicar, calcular, dar conta das múltiplas
relações das partes. Diz-se que um sistema é complexo
precisamente para dizer que existem tantas relações que não
é possível explicar completamente o todo em função das suas
partes, o que não significa que, em limite, o todo seja
ontologicamente autónomo em relação às suas partes. Talvez
312Santos, Gil C. (2010), “Emergência: Da Mereologia à Organização”, in Estudios de Lógica, Lenguaje y Epistemologia (David Duque, Emilio Parejo e Ignácio Antón ed.), Sevilha: Fénix, p.348.
322
uma célula seja, em limite, totalmente explicável a partir
das suas moléculas. Neste caso, onde a emergência é fruto
de uma incapacidade de conhecer todas as relações que
formam a entidade emergente, tratar-se-á de uma emergência
epistémica.
Contudo, o caso será diferente se nesse todo que
emerge existe uma alteração da natureza das partes. Ou
seja, a transição de entre planos de relações ou o que
designámos por meio é realizada por uma transformação das
relações que caracterizam um relatum. Neste caso, dir-se-á
que existe uma emergência ontológica. Como são exemplos, na
Física, os quarks para os protões; os protões para as bolas
de bilhar; das bolas de bilhar para alguns objectos
celestes. Em cada meio instanciam-se nós de relações
distintos. Mas em cada caso é um plenum de inter-ligações
entre relata em agitação, mas meta-estáveis.
Poderíamos seguir por um desses fios que fazem a ponte
entre dois nós, num caminho aparentemente linear. Isto é,
isolando uma relação particular entre dois relata. A
distância, a velocidade, o peso, a extensão, etc. E essa
relação, tomada como isolada de todas as outras, poderia
ser considerada como linear. Isto é, onde a relação manter-
se-ia sob o regime de uma constante de proporcionalidade.
Essa tem sido a estratégia da Física. Como afirma Deleuze,
323
a Ciência opera por funções apenas com a finalidade de
isolar variáveis e de abrandar o Caos313. Porém, esse
abrandamento, que é necessário à Física, se encerra em
arquétipos como os sistemas isolados, o absolutamente
sólido, o infinitamente extenso, o ponto material, a onda
harmónica, na separabilidade completa entre sujeito e
mundo, fecha-se em excesso ao mundo. Protege-se do Caos –
afirma Deleuze - prendendo-se a opiniões fixas314. Porém, na
riqueza da realidade, por um lado, a cada chegada a um nó
existem mil caminhos que se abrem, como jardim que se
bifurca de que nos fala Borges. Não existe um nó de um só
fio, um relatum de uma só relação. Cada relatum reenvia,
num primeiro plano, para o meio onde habita. Num segundo
nível, para o mundo. Os nós são mais intensos, do que
extensos. São centros de força que estabilizam a cada
momento um conjunto de relações. Neste sentido, os nós são
atractores, são as chamadas singularidades dos sistemas
dinâmicos. É precisamente assim, concebendo os relata como
centros de intensidade, como singularidades, que Delanda
desenvolve a sua ontologia em “Intensive Science and
Virtual Philosophy”315. Os graus de liberdade de uma
singularidade de que fala Delanda, são precisamente os fios
313 Conferir Deleuze, Gilles (1991), Qu’est-ce que la Philosophie? (Trad. port. de Margarida Barahona e António Guerreiro, “O que é a Filosofia?”, Lisboa: editorial presença), p. 106. (1992) 314 Idem, p.176. 315 Conferir DeLanda, Manuel (2002), Intensive Science and Virtual Philosophy, Londres: Continuum.
324
que se enredam num nó. Ou seja, todos os processos são, em
última análise, não-lineares. Isto é, entre dois elementos,
as variáveis não variam proporcionalmente. Seja porque o
sistema nunca pode ser considerado como isolado, ou seja,
cada relatum reenvia para outros relata e, como tal, a
relação nunca é a dois. Esta é forma típica das equações
diferenciais não-lineares, onde é introduzido um parâmetro
de “ambiente”. Contudo, neste caso, o não-linear pode ainda
ser revertido num sistema linear de múltiplas variáveis, de
infinitos elementos. Ou seja, a equação não-linear pode ser
linearizável. Contudo, no caso onde a razão da
desproporcionalidade reside não só na inter-ligação entre
relata, mas no facto destes serem centros de força de
intensidade variável, ou seja, no facto destes serem
entidades em processo, então essa linearização já não seria
possível316.
Por fim, segundo Deleuze, uma mónada é uma célula.
Poderíamos afirmar que um neurónio é um nó de terminações
nervosas. Neste sentido, o cérebro é um fractal do mundo.
316 Araújo, João (2010), “Investigating the infinity slope in a nonlinear
Approach” in A new vision on Physis, Lisboa: CFCUL, p.217.
325
5. Conclusão
A questão da natureza dos objectos quânticos, como
aqui se tentou mostrar, resulta do choque entre um certo
conceito de objecto físico, que está na constituição intima
da Física, e o domínio quântico. O choque tornou-se em
enigma com a formulação do dualismo onda-corpúsculo por
parte de De Broglie. E o enigma tornou-se em confronto
entre essa ontologia implícita herdada de Newton e os
indomáveis objectos quânticos. Bohr fez-se comandante dessa
geração de descobridores do quântico e liderou o processo
de resposta. Neste sentido, analisar o pensamento de Bohr é
ter acesso ao sinuoso mas hábil movimento que permitiu
generalizar as teorias físicas clássicas de modo a
integrar, de forma contida, a estranheza quântica, sem
comprometer o conceito clássico de objecto físico. A
Mecânica Quântica constitui-se nas margens, construi-se nos
limites ontológicos das teorias clássicas da Física. Ela é
uma pura teoria das probabilidades. Na crença da
impossibilidade de se conceber os objectos físicos senão
como ou ondas, ou corpos, a Mecânica Quântica estabelece-se
326
apenas como teoria que prevê, estatisticamente, os
resultados de medidas. Ou seja, a Mecânica Quântica coloca-
se apenas do lado do sujeito. Aliás, radicaliza a oposição
sujeito-objecto, deixando a quase nada o estatuto dos
objectos físicos. Bohr chega mesmo a afirmar, numa frase
que é conhecida: “não existe um mundo quântico. Existe
apenas uma descrição física abstracta”317. A leitura desta
frase pode levar pensar que Bohr não atribui realidade ao
mundo quântico. Tal, como se mostrou, não é verdade. Bohr
era um realista. Contudo, Bohr sobre o mundo quântico, faz
as vezes de Colombo sobre o mundo das Américas. Descobridor
de um novo mundo, embora nunca tenha chegado mais longe do
que às primeiras ilhas, recusa obstinadamente que esse
mundo é novo, embora também não parece ser velho.
Como a Mecânica Quântica se coloca do lado do sujeito,
ela ocupa-se apenas do resultado das medições. Por
conseguinte, concede apenas aos objectos quânticos
existência material enquanto corpúsculos e apenas no
momento em que produzem manchas numa chapa fotográfica ou
que causam sinais num detector. Como se fossem simples
aparições desse sub-mundo que é forçado a dar uma resposta
à questão da posição. E é porque todas as medições são,
317 “there is no quantum world. There is only abstract quantum physical description” Bohr, Niels citado de Al-Khalili, Jim (2003), Quantum: A guide for the perplexed, Londres: Weidenfeld & Nicolson, p.153.
327
directamente, de localização, que esse sub-mundo só se pode
revelar sob a forma dos corpos.
Ao colocar-se do lado do sujeito, o movimento dos
objectos quânticos é absolutamente omitido. Por isso a
teoria quântica ortodoxa não atribui, aos objectos,
trajectória ou meio de propagação. As ondas são apenas
ondas de probabilidade. Curvas de probabilidade, se se
quiser. Deste modo, a Mecânica Quântica escapa à questão
da natureza dos objectos quânticos. Contudo, como aqui
também se pretendeu mostrar, a questão regressa sob a forma
do Problema da Medição, do Problema da Violação das
Relações de Bell, do Problema do Realismo, do conjunto de
problemas que muitas vezes são categorizados simplesmente
de implicações filosóficas da Mecânica Quântica. Mas, na
realidade, a meu ver, são apenas implicações de uma teoria
física sem ontologia.
Portanto, o problema que a descoberta que o domínio
quântico levantou (ou fez regressar) é o do conceito de
objecto físico. Mas uma análise a este conceito revela que
já no século XVII, no momento do nascimento da Física se
encontra, de certo modo, o problema que a descoberta do
domínio quântico veio agudizar. Isto é, que os objectos
físicos são concebidos a partir fixo, do movimento enquanto
apenas possível, isto é, como corpos. Ou seja, em grande
328
parte dos conceitos de objecto físico, não decorre do
conceito que estes se movam. No entanto, a Física – a
mecânica, em particular – é uma ciência do movimento.
Assim, de certo modo, sempre houve na Física uma tensão
entre movimento e o conceito de objecto físico. Que no
domínio quântico se reproduz na tensão entre a onda e o
corpo.
Quer isto dizer que a procura de um conceito de
objecto físico que chegue ao domínio quântico passa por uma
concepção eminentemente dinamista dos objectos físicos. E
essa será, por ventura, a conclusão principal desta tese.
Encontramos essa concepção dinamista, já em Aristóteles,
mas igualmente em Leibniz. Mas em Leibniz encontramos
também uma particular concepção de Ciência, uma particular
relação entre sujeito e objecto, uma particular ontologia
bem distinta do que ontologia pobre que prevalece na Física
e que foi extraída, por Newton, do senso comum. Aqui, na
Metafísica da Física, como em outras áreas, sempre existiu
a proposta de Leibniz, mas esta não é a prevalecente.
Talvez pelo seu peso metafísico. Talvez pela dificuldade de
se percorrer os labirintos do pensamento de Leibniz. Onde
os projectos, aparentemente isolados, se enredam e
comunicam. Talvez, no caso concreto da Física, pela sua
dependência a uma teoria das almas. O que, por um lado,
leva a que o conceito de objecto físico não se construa a
329
partir da nossa experiência comum do mundo, mas de uma
especulação metafísica que explique essa experiência comum
do mundo. Por outro, pela enigmática representação nas
almas dos acontecimentos que os corpo instanciam.
Seja como for, a meu ver, a descoberta do domínio
quântico, a questão da natureza dos objectos quânticos,
leva a uma concepção dinamista e relacional de objecto
físico. Uma concepção em que o movimento decorra do próprio
conceito de objecto físico. E, portanto, em que o movimento
seja da ordem da relação dos objectos físicos com o que lhe
é exterior.
A partir de uma leitura de Deleuze enquanto leitor de
Leibniz, tentou-se, especulativamente, lançar pistas para
uma concepção dos objectos como entidades mais da
intensidade do que da extensibilidade. Como entidades
processuais e não como entidades fixas, imutáveis. Como
entidades essencialmente relacionais e nunca isoladas ou
atómicas. E, neste sentido, de uma concepção dos objectos
físicos que incorpore os fenómenos de emergência e não-
linearidade ontológicas.
No fundo, a descoberta do domínio quântico lançou o
desafio de se repensar os fundamentos ontológicos da
própria Física. Encontramos uma via para o fazer em Leibniz
e nas diferentes leituras de Leibniz ou, de certo modo, nas
330
leituras afins com Leibniz. Encontramos na teoria De
Broglie-Croca318 (e é isso, justamente, que a diferencia de
todas as outras teorias quânticas) uma tentativa de
constituir uma Física fundada numa concepção dinamista e
relacional dos objectos físicos. É um desafio gigante, mas,
a meu ver, inevitável.
318 Conferir Croca, J.R. (2003), Towards a nonlinear Quantum Physics, Londres: World Scientific.
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