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Universidade de Lisboa Faculdade de Ciências Secção Autónoma de História e Filosofia das Ciências Doutoramento em História e Filosofia das Ciências Uma investigação sobre as implicações epistemológicas e ontológicas desta questão. O que é um objecto quântico? João Luís Cordovil 2011

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Universidade de Lisboa Faculdade de Ciências

Secção Autónoma de História e Filosofia das Ciências

Doutoramento em História e Filosofia das Ciências

Uma investigação sobre as implicações epistemológicas e ontológicas desta questão.

O que é um objecto quântico?

João Luís Cordovil

2011

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Universidade de Lisboa Faculdade de Ciências

Secção Autónoma de História e Filosofia das Ciências

Doutoramento em História e Filosofia das Ciências orientado pelos professores doutores Olga Maria Pombo Martins e José

Nunes Ramalho Croca

Uma investigação sobre as implicações epistemológicas e ontológicas desta questão.

O que é um objecto quântico?

João Luís Cordovil

2011

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PREFÁCIO

A presente Tese, apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor em História e Filosofia das Ciências, é o resultado de um trabalho de investigação iniciado em 2006, sob a orientação da Professora Doutora Olga Maria Pombo Martins e do Professor Doutor José Nunes Ramalho Croca.

À Professora Doutora Olga Maria Pombo Martins gostaria de deixar um agradecimento especial. Em primeiro lugar, agradeço-lhe por todo o seu o trabalho de acompanhamento das diversas fases da minha investigação, pelos seus atentos e agudos conselhos, sugestões e pistas, pela sua dedicada prática de comunhão de saberes, bem como pela sua generosidade, exigência e disponibilidade. Em segundo lugar, agradeço-lhe o imenso trabalho que tem desenvolvido no Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa. Trabalho onde radicam as condições materiais desta dissertação. Em terceiro lugar, agradeço-lhe ter-me dado a ver o que é a Filosofia. Por fim, agradeço-lhe ter-me apresentado ao Professor Doutor José Nunes Ramalho Croca.

Ao Professor Doutor José Nunes Ramalho Croca agradeço-lhe por todo o seu o trabalho de acompanhamento das diversas fases da minha investigação, agradeço-lhe a sua generosidade, paciência e disponibilidade, agradeço-lhe a sua vontade de partilhar saberes e as ideias que tão corajosamente defende. Agradeço-lhe, igualmente, o trabalho que tem desenvolvido no Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa, que tem permitido a existência de um grupo dedicado à Filosofia da Física.

Ao Doutor Gil Costa Santos agradeço-lhe os inúmeros diálogos que tivemos, bem como o seu trabalho de revisão e melhoramento deste texto.

Em todo o caso, devo sublinhar que tudo quanto se escreve e defende no texto deste trabalho é, evidentemente, da minha exclusiva responsabilidade.

À ‘Fundação para a Ciência e a Tecnologia’ agradeço a atribuição de uma bolsa de investigação

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(SFRH/BD/21790/2005), sem a qual teria sido impossível levar a cabo este trabalho de investigação.

A todos, agradeço.

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Ao meu Pai

À Sara

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Índice

Introdução ..................................................... 1

1.Sobre a questão da Natureza dos Objectos Quânticos .......... 3

2.A Constituição da Mecânica Quântica ......................... 13

2.1. O Princípio da Correspondência ........................... 19

2.2.A hipótese de De Broglie .................................. 43

2.3.Doutrina da Indispensabilidade dos conceitos clássicos ... 48

2.4. As duas partículas puras da Física Clássica .............. 84

2.5.A Pentadoxia .............................................. 92

2.6.O Princípio da Correspondência: nível conceptual ......... 100

2.7. O “Princípio” da complementaridade ...................... 103

2.8.Os postulados da Mecânica Quântica ....................... 132

2.8.1,Léxico: Função de onda, Observáveis e Operadores ... 137

2.8.2.A Mecânica Quântica como uma generalização racional das teorias clássicas da Física .......................... 141

2.9.O Problema da Medição .................................... 156

2.9.1. O Problema da Completude .......................... 158

2.9.2.O Problema da Caracterização ....................... 163

2.10. Conclusão .............................................. 168

3. O que é um Objecto Físico ................................. 179

3.1. O conceito de objecto físico em Descartes ............... 181

3.1.1. Movimento ......................................... 207

3.1.2 conclusão .......................................... 216

3.2. O conceito de objecto físico em Newton .................. 218

3.2.1. Corpo ............................................. 219

3.2.2. Quantidade de Movimento ........................... 224

3.2.3. Os três tipos de força ............................ 227

3.2.4. Os conceitos de espaço, tempo, lugar e movimento .. 234

3.2.5. o conceito de tempo ............................... 235

3.2.6. o conceito de espaço ............................ 240

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3.2.7. o conceito de movimento ........................... 244

3.2.8. conclusão ......................................... 249

3.3. O conceito de objecto físico em Kant .................... 254

3.3.1. Foronomia ......................................... 267

3.3.2. Dinâmica .......................................... 271

3.3.3. Mecânica .......................................... 276

3.3.4. Fenomenologia ..................................... 278

3.3.5. Conclusão ......................................... 279

3.4. Conclusão geral do capítulo ............................. 284

4. Elementos para uma concepção dinâmica e relacional de objecto físico ....................................................... 293

4.1. Objectos Físicos: entre as mónadas e os corpos .......... 295

4.2. Objectos Físicos como nós de relações ................... 314

5. Conclusão ................................................. 325

Bibliografia ................................................. 331

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Introdução

O trabalho que aqui se apresenta pode-se afirmar que é

constituído por três partes: uma reconstrutiva, outra

descritiva, uma terceira interpretativa (ou especulativa).

Estas três partes não são, naturalmente, estanques. A

reconstrução do pensamento de um autor passa, também, pela

descrição e interpretação desse pensamento. A descrição

igualmente não é realizável sem a interpretação e sem ser,

em certo grau, uma reconstrução. E o mesmo se aplicará à

interpretação. Portanto, esta partição é mais tónica do que

categórica. (Como talvez seja o caso para todas as

partições.)

Na primeira parte, faz-se uma reconstrução do

pensamento de Bohr sobre a constituição da Mecânica

Quântica. Nesta tentar-se-á mostrar, através do movimento

interior ao pensamento de Bohr, a forma como a Mecânica

Quântica se constituiu como uma solução de compromisso da

tensão entre o que em termos deleuzianos pode ser designado

por uma imagem-pensamento sobre os objectos físicos e a

descoberta do domínio quântico. Ou seja, do confronto entre

um conjunto de pressupostos ontológicos implícitos onde a

Física sempre se fundou e a descoberta dos objectos

quânticos. A solução de Bohr, sobre a qual se edificou a

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Mecânica Quântica, foi a de generalizar as teorias

clássicas da Física, num exercício de ilusionista, que

permitiu ocultar o problema da natureza dos objectos

quânticos. Problema que, como se tentará mostrar, ficou na

raiz das chamadas implicações filosóficas da Mecânica

Quântica.

Na segunda parte, far-se-á uma descrição dos

principais conceitos de objecto físico, em particular

aqueles que presidiram à constituição da Física. Ou seja,

os conceitos de objecto físico em Descartes, Newton e Kant.

Em particular, mostrar-se-á que, embora a Física seja a

ciência do movimento, não decorre do conceito de objecto

físico que este se movimente. Algo que se torna

problemático quando se tenta pensar os objectos quânticos.

Por fim, na última parte, a partir de uma

interpretação de alguns elementos da metafísica de Leibniz

e de Deleuze, ensaiar-se-ão os primeiros passos para uma

concepção de objecto quântico.

Antes do mais, será feita uma apresentação da questão

“O que é um Objecto Quântico?”, determinando-se o seu lugar

no que se tem designado por Filosofia da Mecânica Quântica.

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1. Sobre a questão da Natureza dos objectos

quânticos.

O que é um objecto quântico?

A questão surge-nos, sem demora ou dificuldade, logo que

entramos do labiríntico domínio quântico. Domínio pleno de

becos sem saída, de lugares a que sempre se parece

retornar, de percursos tortuosos e desorientadores, mas que

para o qual, a meu ver, na literatura, seja esta filosófica

ou não, existem apenas três vias de acesso: a via formal, a

via historicista e a via conceptual.

A via formal passa pela apresentação dos postulados, do

formalismo e do elegante aparato matemático da Mecânica

Quântica. Esta é a via que encontramos, principalmente, na

literatura filosófica de inspiração analítica1. Esta será a

via mais rápida e, actualmente, mais comum de entrada nos

chamados problemas da medição e da não-localidade.

1 Veja-se, a exemplo, o livro de Pierter E. Vermass (1999), A philosopher’s understanding of quantum mechanics, Cambridge: Cambridge University Press, ou o capítulo de Michael Dickson (2007), “Non-relativistic Quantum Mechanics”, presente no livro Philosophy of Physics Part A, Amesterdam: Elsevier, pp. 275-415.

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A via historicista, por seu turno, passa,

principalmente, pela narrativa do desenvolvimento da Física

das primeiras três décadas do século XX. Sendo que, em

muitos casos, recua até à Física do século XVII, fazendo-

nos recordar o velho debate sobre a natureza da luz para o

relacionar com a fundação da Mecânica Quântica. Esta é a

via que é percorrida, principalmente, na literatura

filosófica de inspiração francesa2.

Por fim, a via conceptual. Esta passa por fazer

confrontar quem a percorre com uma experiência de

pensamento. Usualmente, é escolhida, para esse efeito, a

chamada experiência de dupla fenda.3 Esta via é aquela se

encontra, principalmente, na literatura filosófica que, à

falta de melhor, designarei por empirista4.

2 Desde o livro de Bachelard, G. (1951), L’activité rationaliste de la physique contemporaine Paris: Presses Universitaires de France ao livro de Omnès, R. (1999), Understanding Quantum Mechanics, Princeton: Princeton University Press (cuja edição francesa surgiu um ano mais tarde: Comprendre la mécanique quantique, EdP Sciences (2000)), ou do mesmo Omnès. R. (2006), Les indispensables de la mécanique quantique, Paris: Odile Jacob.

3 Experiência que, como tantas vezes ocorre com as experiências de pensamento, já foi realizada em laboratório, tendo obtido os resultados esperados. Cf., por exemplo, Arndt, Markus; Nairz, Olaf e Zeilinger, Anton (2003), Quantum interference experiments with large molecules Am. J. Phys. 71 (4), October 2003, pp. 319-325.

4 Por exemplo, o livro de Osvaldo Pessoa Jr. (2003), Conceitos de Física Quântica, São Paulo: Livraria da Física, o texto do filósofo americano Richard F. Kitchener (1988), The World view of contemporary physics: does it need a new metaphysics?, ou mesmo os primeiros capítulos do volume III das Lectures on physics de Richard Feynman

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Estas três vias, embora distintas, encaminham-nos no

sentido de uma mesma conclusão. A saber: um objecto

quântico é uma entidade com propriedades tanto das ondas,

como das partículas. Uma entidade sobre a qual, no já

distante ano de 1928, Lord Eddington afirmava:

“Podemos dificilmente descrever tal entidade como uma onda ou

como uma partícula; talvez como compromisso seja melhor chamá-la

de “ondícula””5.

Este compromisso proposto por Eddington, no entanto, não

teve, nem tem tido, qualquer eco na Filosofia da Física

Quântica. Porquê? A que se deve esta ausência? Ou como

coloca, embora com ironia, o filósofo Norueguês Arne Naess:

porque não aceitamos esta generosa oferta de Eddington?6

A resposta é-nos dada por Margenau. Em explícita recusa

às “ondiculas”, este afirma:

(1964) que embora seja um livro de Física é referenciando repetidamente em textos filosóficos. 5 “We can scarcely describe such an entity as a wave or as a particle; perhaps as a compromise we had better call it a "wavicle". Eddington, A. (1928), The Nature of Physical World, New York: The MacMillan Company, p. 201. (tradução nossa) 6 Cf. Arne Naess (2005), The Selected Works of Arne Naess, Dordrecht: Springer, p.62.

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“Para clarificar o problema fazemos notar para começar que,

obviamente, as propriedades das ondas e das partículas são

incompatíveis; adicioná-las como se elas fossem meramente

diferentes não faz sentido. É apropriado dizer que um certo

animal é um cavalo e uma besta de carga, mas não que é um cavalo

e uma vaca.”7

Está implícito nestas palavras de Margenau que afirmar

que uma entidade possui o conjunto de propriedades de X,

não é outra coisa que afirmar que essa entidade é X. Ou

dito de outra forma, afirmar que uma entidade possui, por

exemplo, as propriedades das ondas, é afirmar que essa

entidade é uma onda. De igual modo, dizer que de uma

entidade possui o conjunto de propriedades das partículas,

é dizer que essa entidade é uma partícula. E, por

consequência, o mesmo sucederá com as entidades que

declaramos possuírem as propriedades das vacas, dos cavalos

ou das bestas de carga, onde diremos de cada uma delas, e

respectivamente, que é uma vaca, que é um cavalo ou que é

uma besta de carga.

7 “To clarify the problem we note to begin with that the obvious properties of waves and particles are incompatible; adding them together as though they are merely different does not make sense. It is proper to say that certain animal is a horse and a beast of burden, but not a horse and a cow”, Margenau, Henry (1977), The Nature of Physical Reality, p. 321. (tradução nossa)

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Por outro lado, uma entidade poderá ser um cavalo e uma

besta de carga - como, de forma implícita, indica Margenau

- na medida em que as propriedades dos cavalos e das bestas

de carga, embora diferentes, são compatíveis. Nomeadamente,

esta entidade, que possui as propriedades tanto dos cavalos

como das bestas de carga, será um cavalo de carga. Tal como

aqueles cavalos que cartam com os turistas pelas curvas da

Serra de Sintra.

Contudo, no caso das vacas e dos cavalos, as suas

propriedades são incompatíveis e não meramente diferentes.

Como tal, uma entidade a que possuísse as propriedades dos

cavalos e das vacas – a que, e fazendo uso da mesmo lógica

de geração de neologismos de Eddington, poderíamos designar

por “vacalo”8 – tratar-se-ia de uma entidade com uma dupla

natureza. Seria vaca e cavalo. E poder-se-á afirmar o mesmo

das partículas e das ondas do que anteriormente afirmámos

das vacas e cavalos. Assim, tal como os “vacalos” aqui

congeminados, também as tais “ondículas” de que nos fala

Eddington seriam entidades com uma dupla natureza. Seriam

ondas e partículas. Ou seja, das palavras de Margenau

compreende-se que aceitar a “ondícula” seria aceitar que

8 Poderíamos imaginar, inspirados, por ventura, em As Viagens de Marco Polo, uma criatura metade vaca e metade cavalo. Por exemplo, com uma nobre cabeça de equídeo e uma vulgar traseira de bovino. Contudo, neste caso, teríamos um animal cuja cabeça identificaríamos com as dos cavalo e uma traseira que identificaríamos com as das vacas, mas não teríamos um animal que identificássemos integralmente tanto com os cavalos, como com as vacas. Tal criatura está, de resto, fora do alcance da imaginação.

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uma entidade que fosse dupla na sua essência. Seria aceitar

uma identidade que fosse dupla. Ora, esta duplicidade

intrínseca ao termo “ondículas” contradiz a grande coluna

vertebral da lógica desde os Gregos. Portanto, aceitar as

“ondículas” seria tropeçar na lógica mais basilar e tombar,

de cabeça, de encontro ao mais robusto dos paradoxos.

É, pois, inteligível que na literatura sobre o domínio

quântico muito rareie o termo “ondícula”. Esta literatura,

ao invés de “ondícula” tem preferido fazer uso da expressão

“dualismo onda-partícula”. No entanto, esta preferência não

é, a meu ver, nem inocente, nem inócua. Ela revela um

deslocamento ontológico subtil mas decisivo. Um

deslocamento que se denuncia em afirmações como a seguinte,

do punho de Nikolic:

“Em livros introdutórios à Mecânica Quântica, […] o estranho

carácter conceptual da Mecânica Quântica é muitas vezes

verbalizado em termos da dualidade onda-particula. De acordo com

esta dualidade, os objectos microscópicos fundamentais, como os

electrões e os fotões, não são nem puras partículas, nem puras

ondas, mas tanto ondas como partículas. Ou mais precisamente, em

algumas condições eles comportam-se como ondas enquanto que em

outras condições eles comportam-se como partículas”9

9 “In introductory textbooks on QM,[…] a conceptually strange character of QM is often verbalized in terms of wave-particle duality. According

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9

Na primeira parte desta citação Nikolic afirma-nos,

equivocamente, que, de acordo com o chamado dualismo onda-

partícula, os “objectos microscópicos fundamentais” são

entidades com uma natureza dupla, são “tanto ondas como

partículas”. Isto seria, no entanto, ir precisamente ao

encontro do que Eddington justamente proponha designar por

“ondículas” e do doloroso paradoxo que lhe está inerente.

Não haveria, então, qualquer diferença de significado entre

a expressão “dualismo onda-partícula” e o termo “ondícula”.

Porém, na segunda parte desta mesma citação, Nikolic emenda

a mão, e esclarece que, afinal, de acordo com o dualismo

onda-partícula, os ditos “objectos microscópicos

fundamentais”, cuja natureza agora não qualifica, são

entidades que se comportam ora à maneira das ondas, ora à

maneira das partículas.

Da primeira parte desta citação para a sua segunda,

verificamos um resvalamento do nível ontológico para um

nível que poderíamos considerar comportamental. Se na

primeira parte da citação, era suposto que os “objectos to this duality, fundamental microscopic objects such as electrons and photons are neither pure particles nor pure waves, but both waves and particles. Or more precisely, in some conditions they behave as waves, while in other conditions they behave as particles fundamental microscopic objects such as electrons and photons are neither pure particles nor pure waves, but both waves and particles. Or more precisely, in some conditions they behave as waves, while in other conditions they behave as particles.”, Nikolic, H. (2007), “Quantum Mechanics: Myths and Facts” in Foundations of Physics,37, p. 1567. (tradução nossa)

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microscópicos fundamentais” tinham uma identidade dupla

(partículas e ondas), o que fica suposto na segunda parte é

que estes objectos têm uma única identidade susceptível de

um duplo comportamento.

Esta citação de Nikolic é exemplar pois, tal como nesta,

toda a literatura sobre o domínio quântico, por uma via ou

outra, inicialmente nos encaminha no sentido da conclusão

que um objecto quântico é uma entidade que possui as

propriedades das ondas e das partículas, que um objecto

quântico é uma ondícula. Porém, no momento seguinte, esta

mesma literatura desvia-se de tal dolorosíssima conclusão e

assume, somente, que um objecto quântico é uma entidade

que, de algum modo, ora se comporta como se fosse uma onda,

ora se comporta como se fosse uma onda. Os objectos

quânticos são então apresentados, qual Dr. Jekyll e Mr.

Hyde, como entidades físicas acometida por dupla

personalidade, por uma dupla natureza, no caso, um dualismo

onda-partícula.

Em suma, embora todos os caminhos da literatura nos

encaminham no sentido das paradoxais “ondículas”,

subitamente (e subtilmente) somos desviados em direcção à

ambígua expressão “dualismo onda-partícula” e sua

consequente indeterminação ontológica: um objecto quântico

não é nem onda, nem partícula e, muito menos, “ondícula”.

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Eis que nos surge a questão: então, do que falamos

quando falamos de objectos quânticos? Afinal, o que é um

objecto quântico?

Trata-se, pois, de uma questão antiga e que já terá sido

por mais de mil vezes repetida. Contudo, trata-se

igualmente de uma questão sem bibliografia. O que será

compreensível pois, se ao seguir por qualquer uma das três

vias em que se divide a literatura sobre o domínio

quântico, chegamos a um lugar onde nos perguntamos pela

natureza dos objectos quânticos, perguntamos porque a

literatura dá-nos a sensação que julgamos já saber a

resposta. Uma resposta que, pela sua natureza paradoxal,

não conseguimos comportar, aceitar ou compreender. De certo

modo, seguindo a literatura, a resposta antecederia a

questão. Troca-se a resposta paradoxal pelo paradoxo de uma

questão, não retórica, que é antecedida pela sua resposta.

E de paradoxo em paradoxo chegamos à conclusão que a

questão da natureza dos objectos quânticos, embora seja uma

questão de natureza filosófica (pois perguntamos pelo

conceito) esta é, igualmente, uma questão esquecida pela

literatura filosófica. Literatura esta onde todas a suas

vias se têm focado, principalmente, no chamado problema da

medição10.

10 Isto mesmo é explicitamente afirmado por autores como Frank Arntzenius, Guido Bacciagaluppi, Chuang Liu, Brigitte Falkenburg,

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Mas, se o problema da natureza dos objectos quânticos

ficou em aberto, como se pôde constituir uma teoria como a

Mecânica Quântica? Por outro lado, não será o problema da

medição fruto da forma como se constituiu a Mecânica

Quântica e, por consequência, do tal problema da natureza

dos objectos quânticos? E, por fim, não nos levará a actual

literatura filosófica, por algum encantamento com a

Mecânica Quântica, por maus caminhos, ou melhor, para um

lugar equivocado? Para um lugar afastado de um outro a

partir do qual se possa pensar a estranha natureza dos

objectos quânticos?

Comecemos pela primeira destas questões: como se pôde

constituir a Mecânica Quântica deixando em aberto o

problema da natureza dos objectos quânticos?

Steven French, Tim Maudlin, entre outros, no curioso Foundations and Philosophy of Physics editado John Symonns e Juan Ferrer, que ainda aguarda publicação e que me foi facultado por John Symonns, a quem agradeço.

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2. A constituição da Mecânica Quântica.

A Mecânica Quântica constitui uma generalização racional

das teorias clássicas da Física. Esta é, a meu ver, a sua

essência. E esta é, igualmente, quanto a mim, a pedra

angular do pensamento de Bohr sobre a Mecânica Quântica11.

11 Assim parece ser, igualmente, a tese defendida por Peter e Alisa Bokulish no seu artigo, publicado em 2005, intitulado “Niels Bohr’s Generalization of Classical Mechanics” (in Foundations of Physics, Volume 35, Number 3, Springer, pp. 347-371). Digo que parece pois, embora todo o artigo se desenvolva no sentido de argumentar em favor de que, para Bohr, a Mecânica Quântica é uma generalização racional da Física Clássica, estes autores propõem-se mostrar “ the central role played by his [Bohr] thesis that quantum theory is a rational generalization of classical mechanics” (p. 347 - abstract). A diferença reside no facto de “Física Clássica” e “Mecânica Clássica” não serem sinónimos. O Electromagnetismo faz parte, igualmente, da chamada Física Clássica. Esta distinção pode parecer de menor importância, mas não o é. É uma distinção importante, em primeiro lugar, pela confusão que gera. Confusão que surge quando, no dito artigo, os mencionados autores não só não comentam esta distinção entre Física e Mecânica, como são corrigidos pela própria citação de Bohr que apresentam logo na segunda página, onde Bohr se refere, explicitamente, ao Electromagnetismo. A confusão criada pelos autores do referido artigo cresce quando dão como exemplo de conceito de Mecânica Clássica, na quinta página, o “electric field value”. Muito dificilmente um conceito da Mecânica. E, duvidosamente um conceito. Pois trata-se de um “valor”, uma quantidade, do campo eléctrico. A diferença entre “Física Clássica” e “Mecânica clássica” é importante, em segundo lugar, pois, como se tentará aqui mostrar, a Mecânica Quântica é fruto de uma generalização tanto dos conceitos do Electromagnetismo, como da Mecânica Clássica. Logo, ao não se cuidar da distinção entre Mecânica Clássica e Electromagnetismo Clássico percebe-se mal a constituição da Mecânica Quântica. Estas falhas de rigor são particularmente graves e estranhas. Não só porque surgem numa revista como a Foundations of Physics, mas, igualmente, pelo facto de Alisa Bokulish ser uma reputada Filosofa da Física, sendo inclusive a responsável pela entrada dedicada ao princípio da correspondência na stanford encyclopedia of philosophy. Portanto, embora semelhantes, a tese que aqui distingue-se da de Alisa e Perter Bokulish por eu defender que a essência do pensamento de Bohr passa

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São duas teses que, porventura, podem causar alguma

surpresa a quem esteja familiarizado (mesmo que seja

distantemente) com a literatura filosófica, científica ou

histórica, dedicada à Mecânica dos quantas.

No caso da primeira tese, a surpresa virá porque é

comum enfatizar-se o carácter revolucionário da Mecânica

Quântica. Tão profundamente revolucionário que teria levado

à definitiva cisão da Física entre aquela que é Clássica, e

que contém, desde a Mecânica de Newton até às relatividades

de Einstein, passando pelo Electromagnetismo de Maxwell e a

Termodinâmica, e a outra que é Moderna. Que, em boa

verdade, até se poderia denominar por Física Quântica. Pois

a Física Moderna é constituída, na sua essência, pela

Mecânica Quântica e a sua descendente directa, a

Electrodinâmica Quântica. É como se existissem duas eras na

Física: antes da Mecânica Quântica; depois da Mecânica

Quântica.

A minha segunda tese – a que se refere à pedra angular

do pensamento de Bohr sobre a Mecânica Quântica – poderá

surpreender, por sua vez, porque é comum, mesmo na

literatura filosófica, atribuir-se esse estatuto ao que se

por este considerar a Mecânica Quântica como uma generalização racional das teorias clássicas da Física e não apenas da Mecânica Clássica.

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15

designa, frequentemente, e talvez de forma imprópria12, por

princípio da complementaridade. No entanto, a meu ver, o

chamado princípio da complementaridade não será tanto o

pilar mas o pináculo do pensamento de Bohr sobre a Mecânica

Quântica, não aquilo que funda mas aquilo que fecha. Por

ocupar esse lugar de culminante a complementaridade será

mais visível e, talvez por isso, mais comentada. Contudo -

e prosseguindo com a metáfora arquitectónica – a meu ver, o

pensamento de Bohr sobre a Física Quântica conclui-se com a

complementaridade, mas tem o seu suporte e coesão

precisamente na tese de que a Mecânica Quântica é uma

generalização racional das teorias físicas clássicas.

Esta tese de Bohr percorre todo o seu trabalho sobre a

Mecânica Quântica. Encontramo-la, nas suas primeiras

aproximações, em textos ao longo na década de 2013. Em

particular, no próprio texto onde, pela primeira vez, surge

a tal “complementaridade”14. Ela, contudo, surge-nos com

maior frequência e de modo um pouco mais claro em textos do

12 Digo “talvez de forma imprópria”, pois Bohr nunca fez uso dessa expressão ao longo da sua obra. O físico dinamarquês fala apenas em “complementaridade”. Isto mesmo é realçado por Henry Folse em Folse, Henry (1985), The Philosophy of Niels Bohr: The Framework of Complementarity, Amsterdam: North-Holland, p. 18. 13 Conferir por exemplo, Bohr, Niels (1922), “The fundamental postulates of the quantum theory” in Niels Bohr Collected Works, Vol. 3: The Correspondence Principle (1918–1923), Nielsen, J. R. ed., Amsterdam : North-Holland, 1976, p. 356 ou Bohr, Niels (1923), idem, p. 588. 14 Conferir Bohr, N. (1928), “The Quantum Postulate and the Recent Development of Atomic Theory” in Nature, Volume 121, Issue 3050, p. 584.

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16

final de vida de Bohr. Num desses textos, publicado em

1958, quatro anos antes da sua morte, o físico dinamarquês,

ao rever o processo que foi iniciando com descoberta do

quantum de acção por parte de Planck, afirma:

“O problema com que os físicos foram confrontados [perante a

descoberta de Planck] foi, como tal, o de desenvolverem uma

generalização racional da física clássica que permitisse a

incorporação harmónica do quantum de acção. Depois de uma

exploração preliminar da evidência experimental […] esta difícil

tarefa foi finalmente realizada.”15

A difícil tarefa realizada pelos físicos a que Bohr aqui

faz menção concretizou-se na Mecânica Quântica. É à

narração do processo de constituição desta teoria que ele

dedica esta parte do seu texto aqui citado. Assim, embora

Bohr não o diga, aqui, explicitamente, das palavras da

citação anterior conclui-se com naturalidade que, segundo o

físico dinamarquês, a Mecânica Quântica foi constituída

como uma generalização racional da física clássica. A

15 “The problem with which physicists were confronted was therefore to develop a rational generalization of classical physics, which would permit the harmonious incorporation of the quantum of action. After a preliminary exploration of the experimental evidence […] this difficult task was eventually accomplished”. Bohr, Niels (1958), “Quantum Physics and Philosophy” in Niels Bohr Collected Works, Vol. 7: Foundations of quantum physics II (1933-1958), Kalckar, J. ed., North-Holland: Amsterdam, 1996, p. 389. (Tradução minha)

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17

questão parece então ser: o que quer dizer Bohr com

“generalização racional da física clássica”?

Ele não nos oferece uma resposta directa e clara. Tal é,

de resto, característico em Bohr. É o seu “estilo”, como

dirão alguns16. Contudo, julgo ser possível entende-lo

começando por atender, em primeiro lugar, ao que o próprio

afirma na seguinte passagem de um outro texto :

“Na procura de uma formulação de tal generalização [racional]

o nosso único guia foi apenas o chamado argumento da

correspondência.”17

O que aqui Bohr chama de “argumento da correspondência”

é, na verdade, aquilo que o próprio usualmente designava -

e é assim, de resto, que é conhecido na literatura em geral

- por princípio da correspondência. Princípio de que foi

autor e acerca do qual, no tal célebre texto onde pela

primeira vez surge a “complementaridade”, havia confessado:

16 Conferir, por exemplo, Bokulish, Alisa (2010), "Bohr's Correspondence Principle" in The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2010 Edition),Zalta, E.N.(ed.),(URL=http://plato.stanford.edu/archives/win2010/entries/bohr-correspondence/), p.15. 17 “In the search for the formulation of such a generalization, our only guide has just been the so-called correspondence argument”. Bohr, Niels (1939), “The causality problem in Atomic Physics” in Niels Bohr Collected Works, Vol. 7: Foundations of Quantum Physics II (1933–1958), Kalckar, J. ed., Amsterdam: North-Holland, 1996, p. 305. (Tradução minha)

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18

“O propósito de olhar a teoria quântica como uma

generalização racional das teorias clássicas levou[-me] à

formulação do chamado princípio da correspondência.”18

Nas duas citações anteriores Bohr revela que a tese de

que a Mecânica Quântica é uma generalização racional da

Física clássica não é fruto nem de uma análise sobre o

processo histórico de que levou à constituição desta

teoria, nem de uma interpretação acerca dessa. Trata-se do

seu programa enquanto fundador da Mecânica Quântica. Foi

com o “propósito de olhar para a Mecânica Quântica como uma

generalização da Física clássica” que incorporasse o

quantum de acção “de” Planck, que Bohr criou e desenvolveu,

durante a gestação da teoria quântica actual, o princípio

da correspondência. E foi fazendo uso deste princípio,

tendo-o como “único guia”, como ferramenta privilegiada,

que procurou a tal generalização racional da Física

Clássica. Isto é, foi, pelo menos em parte, fazendo uso do

princípio da correspondência que Bohr procurou constituir a

Mecânica Quântica. Poder-se-á dizer que ele mesmo o

confessa, reforçando a nossa certeza do papel instrumental,

mas decisivo, que o princípio de correspondência

desempenhou na construção da Mecânica Quântica. Mas o que 18 “The aim of regarding the quantum theory as a rational generalisation of the classical theories led to the formulation of the so-called correspondence principle.” Bohr, N. (1928), “The Quantum Postulate and the Recent Development of Atomic Theory” in Nature, Volume 121, Issue 3050, p. 584. (Tradução minha)

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afirma este instrumento da vontade de Bohr? Como se

constituiu a Mecânica Quântica a partir deste princípio? De

que modo o princípio da correspondência permite entender

que a Mecânica Quântica seja uma generalização racional da

Física Clássica?

2.1. O Princípio da Correspondência

O princípio da correspondência (“Korrespondenzprinzip”19)

tem a sua origem no contexto daquilo que se designa por

Teoria Quântica do Átomo ou Teoria Quântica Antiga (em

contraponto ao que seria, posteriormente, a nova teoria

quântica, isto é, a Mecânica Quântica). A Teoria Quântica

Antiga foi proposta por Bohr em 1913. Esta tinha como ponto

de partida o modelo atómico de Rutherford. Modelo que é

usualmente designado por modelo planetário do átomo. Pois,

à imagem dos sistemas planetários, o átomo seria formado

por um corpo central - o núcleo - de carga total positiva,

onde estaria concentrada a maioria da massa do átomo, em

redor do qual orbitavam corpos de menor massa e de carga

negativa – os electrões. Haveria assim uma analogia simples

e - talvez por isso - encantadora entre o mundo à escala do

19 Conferir, por exemplo, a obra Niels Bohr Collected Works, Vol. 3: The Correspondence Principle (1918–1923), Nielsen, J. Rud ed., Amsterdam: North-Holland, 1976, p.315.

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ínfimo e o mundo à escala do astronómico, entre a escala

dos electrões e a escala dos planetas. Um à imagem de

outro, como se se espelhassem na figura, embora distintas

na escala.

A analogia imagética de Rutherford era certamente

sedutora. Pois trazia consigo a sensação de

inteligibilidade fácil que todas as coisas cujas feições

reconhecemos sempre transportam consigo. E o seu modelo

tinha igualmente a virtude de estar de acordo com os

resultados recentes – à época, entenda-se - das

experiências atómicas com radiação alfa. Contudo, como não

há “bela sem senão”, e tal como qualquer livro de história

da Física Moderna ensinará, o modelo de Rutherford tinha,

entre outros, o defeito fatal de ser incapaz de explicar a

estabilidade da matéria. Segundo o Electromagnetismo um

corpo electricamente carregado, como é o caso do electrão,

ao mover-se emite energia sob a forma de radiação

electromagnética. Por consequência, se os electrões dentro

do átomo estão em movimento, como o modelo de Rutherford

declarava, e se aceita o Electromagnetismo, isso

significava que os electrões intra-atómicos iriam perder,

progressivamente, energia. Por conseguinte, os electrões

dentro de um átomo, acabariam por perfazer orbitas cada vez

mais fechadas, cada vez mais próximas, numa espiral

vertiginosa que os levariam, rápida e inevitavelmente, a

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colidir com o núcleo. A estabilidade dos átomos e, como

tal, de toda a matéria supostamente constituída por estes,

seria um incómodo mistério. Pelo menos, para quem quisesse

estar com o modelo de Rutherford.

Ora, era precisamente este o mistério que Bohr – que se

encontrava em Manchester a trabalhar com Rutherford - se

propunha solucionar. Com esse fim, na segunda metade de

1913, publicou, em três partes, o artigo “Sobre a

constituição dos átomos e das moléculas”20. Deste tríptico,

que curiosamente, pela intimidade que denota entre a

Ciência fundamental e Filosofia, foi publicado no

“Philosophical Magazine”21, constam os fundamentos da

chamada Teoria Quântica Antiga. Esta assentava

principalmente, como o próprio Bohr explicaria alguns anos

mais tarde, nos seguintes postulados:

“I. Um sistema atómico pode existir, de forma permanente,

apenas numa série de estados correspondentes a uma série

descontínua de valores de energia. E, por consequência,

qualquer alteração de energia do sistema, incluindo a emissão

e a absorção de radiação electromagnética, deve ter lugar

20 Conferir Bohr, N. (1913), “On the Constitution of Atoms and Molecules” in Niels Bohr Collected Works, Vol. 2: Work in Atomic Physics (1912-1917), Hoyer, Ulrish ed., Amsterdam: North-Holland, 1981, pp. 159-240. 21 A mesma revista onde entre, 1861 e 1862, Maxwell havia publicado “On Physical Lines of Force” trabalho seminal do Electromagnetismo.

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como uma transição completa entre esses dois estados. Estes

estados serão designados por “estados estacionários” do

sistema.

II. A radiação absorvida ou emitida durante a transição entre

dois estados estacionários […] possui uma frequência ν, que é

dada pela relação E' — E" = h ν, onde h é a constante de

Planck e onde E' e E" são os valores da energia dos dois

estados considerados.” 22

Bohr aceita, como propunha Rutherford, que os electrões

no átomo se movimentam ao redor do núcleo em órbitas

circulares e periódicas23. São, como tal, órbitas descritas

pela Mecânica Clássica. Contudo, em contradição com

22 I. That an atomic system can, and can only, exist permanently in a certain series of states corresponding to a discontinuous series of values for its energy, and that consequently any change of the energy of the system, including emission and absorption of electromagnetic radiation, must take place by a complete transition between two such states. These states will be denoted as the "stationary states" of the system.

II. That the radiation absorbed or emitted during a transition between two stationary states […] possesses a frequency ν, given by the relation

E' — E" = h ν

where h is Planck's constant and where E' and E" are the values of the energy in the two states under consideration.”, Bohr, N. (1918), “On the Quantum Theory of Line-Spectra” in Vol. 3: The Correspondence Principle (1918–1923), Nielsen, J. Rud ed., Amsterdam: North-Holland, 1976, p.71. (Tradução minha)

23 Conferir Bohr, N. (1913), “On the Constitution of Atoms and Molecules” in Niels Bohr Collected Works, Vol. 2: Work in Atomic Physics (1912-1917), Hoyer, Ulrish ed., Amsterdam: North-Holland, 1981, p.162.

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Rutherford (e com a Mecânica Clássica) Bohr propõe, através

do primeiro postulado, que os electrões não podem descrever

trajectórias arbitrárias ao redor do núcleo, como é o caso

dos corpos celestes do sistema solar. Apenas podem

descrever orbitas indexadas a um determinado estado

estacionário de energia. Isto é, os electrões distribuem-se

ao redor do núcleo atómico não em órbitas à imagem das

órbitas planetárias, que a Mecânica Clássica descreve como

um basculante jogo de equilíbrio entre as forças centrífuga

e de atracção gravítica, mas em órbitas fixas – também

chamadas de orbitais - relativas a uma série de estados

discretos de energia24: Os ditos “estados estacionários”.

Por consequência, num átomo não existem análogos nem aos

cometas, nem aos satélites.

Formalmente, a sucessão destas órbitas, desses estados

discretos de energia, é-nos dada pela série de números

naturais25, simbolizando-se por “n” o nível de um

determinado estado estacionário. O estado estacionário de

menor energia, também dito de fundamental, corresponde ao

24 Cada estado estacionário de energia pode, no contexto da Teoria Quântica Antiga, ser de igual forma descrita como um jogo entre Forças: a de atracção electromagnética e a centrípeta. Esta foi, aliás, a aproximação inicial de Bohr ao problema do átomo. Contudo, será um jogo onde o resultado é sempre um aborrecido empate para cada desses estados estacionários. Resultado identicamente estranho para as teorias físicas clássicas e, em particular, para a Mecânica Celeste. 25 Considera-se aqui que o “zero” não é um número natural. Terá sido uma opção de Bohr em conformidade com o que é tradicional em Física Clássica. Que, à margem do debate sobre a natureza do “zero”, tem considerado que o “um” é o primeiro dos naturais.

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primeiro nível de energia e é representado por n=1. O

seguinte estado estacionário de energia, o segundo nível de

energia, é representado por n = 2 e assim por diante.

Por outro lado, e tal como se afirma no

Electromagnetismo, Bohr assume que a diminuição da energia

de um electrão tem como efeito a emissão de radiação de

equivalente valor quantitativo de energia. É uma

consequência do princípio da conservação da energia que

Bohr, aqui, assume por completo. Contudo, dado que, pelo

primeiro postulado, as órbitas atómicas são caracterizadas

pela quantidade de energia que lhe é correspondente, essa

emissão de radiação não pode ser causada pelo movimento dos

electrões em redor do núcleo. Assim, e agora em contradição

com o Electromagnetismo, Bohr propõe, no segundo postulado,

que a emissão (e a absorção) de radiação é causada apenas

pela transição electrónica entre estados estacionários de

energia. Dado que estes estados, por força do primeiro

postulado, são numericamente discretos, então o espectro da

radiação de um átomo é, necessariamente, descontínuo. Esta

consequência dos dois postulados contradiz o

Electromagnetismo, pois, segundo esta teoria, o movimento

do electrão seria a única causa da emissão da radiação e

esta apresentar-se-ia num espectro contínuo. Ou seja,

decorre desta teoria de Bohr que o espectro de um átomo não

é como um arco-íris, como seria de esperar pelo

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Electromagnetismo, mas um conjunto de riscas separadas,

cada uma de sua “cor”, cada uma referente a um determinado

estado estacionário de energia. Mas o mais extraordinário é

que isto implica que um electrão, ao transitar de um estado

de energia para outro, de uma órbita para outra, fá-lo sem

passar por lugares intermédios. Um electrão, segundo a

Teoria Quântica Antiga, realizava uma espécie de salto – um

salto quântico, como ficou celebrizado, principalmente na

literatura científica – entre dois estados de energia.

Salto, tanto maior (ou menor) quanto a diferença de energia

da radiação emitida ou absorvida correspondente. Fica,

entretanto, por explicar a existência e distribuição

discreta dos tais estados estacionários. São postulados de

forma quase Ad-Hoc.

A primeira teoria quântica de Bohr, por muito bizarras

que fossem as suas consequências, tinha o mérito de

oferecer uma explicação tanto para estabilidade da matéria,

como para a sequência das descobertas sobre o espectro

atómico realizadas, principalmente, no início do século XX.

Ou seja, resolvia, em parte, os mistérios que o modelo

atómico de Rutherford havia libertado.

O preço a pagar pela resolução desses mistérios

pareceria ser um afastamento radical em relação à Física

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Clássica. Porém, a teoria de Bohr era, na realidade, e tal

como escreve Andrade e Silva:

“[…] um fascinante monstro híbrido. Descreve os átomos como

minúsculos sistemas solares em que os electrões giram em torno

de núcleos segundo as leis da Mecânica de Newton. Mas, de todos

os movimentos classicamente possíveis, apenas retém um número

muito pequeno, ou seja, aqueles que respeitam a regra dos

quanta.”26

Como diz Andrade e Silva, a primeira teoria quântica de

Bohr era um “fascinante monstro híbrido”. Por um lado,

tinha sucesso onde os modelos “mais” clássicos do átomo

falhavam. Por outro, era o produto de um processo a que, de

modo pitoresco, pode ser descrito como “uma no cravo, outra

na ferradura”. Bohr, ora respeitava o fundamental das

teorias físicas clássicas, ora as transgredia.

Nomeadamente, através da imposição – via postulado - da

quantificação das órbitas. Tudo isto já na tentativa

habilidosa e esforçada de conseguir, de algum modo,

incorporar no modelo atómico de Rutherford a chamada

hipótese de Planck, ou postulado quântico de acção. Segundo

esta, e fazendo uso de palavras do próprio Bohr, “a energia

26 Andrade e Silva, João e Lochak, G. (1969), Quanta, grains et champs (tradução do francês por Manuel Pina, “Quanta, Grãos e Campos”), Lisboa: Instituto de novas profissões, pp.71-73.

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radiada por um sistema atómico não sucede de uma forma

contínua, tal como é assumido pelo electromagnetismo, mas,

pelo contrário, sucede em emissões distintamente

separadas”27. Em suma, do ponto vista formal, a proposta de

Bohr compunha-se, como o próprio físico dinamarquês

reconhece, “na introdução nas leis [do movimento do

electrão] de uma quantidade estranha ao electromagnetismo

clássico, i.e. a constante de Planck ou, como é frequente

ser chamada, o quantum de acção elementar”28. E, por esta

razão, o modelo atómico de Bohr é, geralmente, classificado

como semi-clássico29.

Importa salientar que o valor numérico da constante de

Planck é mínimo30. Como tal, o quantum de acção elementar

só é quantitativamente significativo quando estão

envolvidas energias igualmente mínimas. Este é o caso das

energias correspondentes às transições entre os primeiros

estados estacionários. Contudo, este não é o caso para as

27 “the energy radiation from an atomic system does not take place in the continuous way assumed in ordinary electrodynamics, but that it, on the contrary, takes place in distinctly separated emissions”, Bohr, N. (1913), “On the Constitution of Atoms and Molecules” in Niels Bohr Collected Works, Vol. 2: Work in Atomic Physics (1912-1917), Hoyer, Ulrish ed., Amsterdam: North-Holland, 1981p.164 (Tradução minha)

28 “to introduce in the laws in question a quantity foreign to the classical electrodynamics, i. e. Planck's constant, or as it often is called the elementary quantum of action.”, idem, p. 162 (Tradução minha).

29 Conferir, por exemplo, Cushing, James T. (1998), Philosophical Concepts in Physics, Cambridge: Cambridge University Press, p. 278. 30 Actualmente, considera-se para a constante de Planck o valor h=6.62606896(33)×10−34 J.s

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transições electrónicas nos estados estacionários de valor

“n” mais elevado. Deste modo, por um lado, não fará sentido

introduzir directamente o postulado da quantificação das

órbitas num sistema planetário, numa tentativa desesperada

de manter a analogia entre planetas e electrões. Através da

Teoria Quântica Antiga, tal não possível. Ela é apenas uma

Física dos átomos, uma Física Atómica.

Por outro lado, a progressiva perda de significância

quantitativa do quantum de acção elementar leva a que, à

medida que se percorrem os estados estacionários a

diferença de energia entre estes será progressivamente

menor. Como tal, por consequência do segundo postulado,

onde se afirma que a frequência31 é directamente

proporcional à diferença de energia, a diferença entre os

valores da frequência será, de igual forma,

progressivamente menor. Ou seja, o espectro, que é

marcadamente discreto nos primeiros níveis, vai tomando,

progressivamente, a figura de um espectro contínuo. Isto é,

aproxima-se, pouco a pouco, do tipo de espectro, dito de

“espectro clássico”, que é previsto pela Física Clássica.

31 Por comodidade de escrita, irá preferir-se aqui o termo “frequência” ao mais correcto “frequência temporal”. Assim, na falta de outro aviso, ao ler-se o primeiro deverá entender-se o segundo.

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Neste sentido, na sucessão dos estados estacionários,

estatisticamente32, verifica-se uma aproximação

assimptótica nas previsões do valor da frequência, entre a

Teoria Quântica Antiga e o Electromagnetismo. Ou, dito de

outro modo, no limite dos estados estacionários de elevado

valor de “n”, isto é, no chamado limite clássico, existe,

estatisticamente, uma correspondência numérica entre a

frequência da radiação emitida num “salto quântico” e a

frequência resultante33 do movimento periódico do electrão

no estado estacionário de “partida”. Esta é, de resto, a

noção vulgar34 do princípio da correspondência.

Contudo, como salienta Darrigol35, uma correspondência

semelhante entre físicas clássica e quântica pode ser

encontrada relativamente a outra grandeza física: a

intensidade. Neste caso a correspondência ocorre,

igualmente, no limite dos grandes números quânticos. Porém,

aqui a correspondência é entre o valor da probabilidade de

32 De acordo com o postulado quântico, a emissão de radiação electromagnética é feita em quantidade discretas - fotão a fotão. Já no caso da “radiação clássica” a emissão é feita por uma quantidade contínua. Logo, a aproximação assimptótica não é relativa a uma emissão individual, mas relativa ao um conjunto de emissões. 33 Note-se que segundo a electrodinâmica clássica, um electrão com um movimento circular e constante radia uma onda electromagnética com uma frequência temporal idêntica à frequência do movimento do electrão. 34 Conferir Bokulish, Alisa (2009), Three Puzzles about Bohr’s Correspondence Principle, (artigo disponível em: http://philsci-archive.pitt.edu/4826) p.1. 35 Conferir Darrigol, Olivier (2009), “A simplified genesis of quantum mechanics” in Studies in History and Philosophy of Modern Physics, 40, p. 115.

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transição entre dois estados estacionários e a amplitude da

radiação.36

Na procura de um enunciado geral, que englobe estes dois

tipos de correspondência entre físicas clássicas e

quântica, e à falta de um que nos fosse concedido pelo

próprio Bohr, poder-se-ia dizer que o princípio da

correspondência afirma que, na zona onde o quantum de acção

é, quantitativamente, pouco significativo, isto é, no

limite clássico, a teoria quântica e as teorias clássicas

aproximam-se - qual Aquiles da tartaruga -

assimptoticamente nas suas previsões numéricas. Este é o

sentido do enunciado do princípio da correspondência que é

normal encontrar na literatura filosófica e que aparece,

por exemplo, em Murdoch, no seu Niels Bohr’s Philosophy of

Physics37.

Entendido deste modo, o princípio da correspondência

ofereceria uma referência, à imagem de um farol fiel,

resistente e luminoso, para a construção de uma qualquer

teoria quântica. Em particular, em conformidade com este

36 No Electromagnetismo assume-se que a radiação tem uma natureza ondulatória. Por conseguinte, a sua intensidade é determinada pela amplitude. Já no caso das teorias quânticas, a intensidade de uma linha espectral é determinada pela quantidade de fotões emitidas por uma frequência em particular. Assim, quanto mais provável for uma transição quântica de uma radiação em particular, mais fotões serão emitidos, ou seja, maior será a intensidade.

37 Conferir Murdoch, Dugald (1987), Niels Bohr’s Philosophy of Physics, Cambridge: Cambridge University press, p. 39.

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entendimento do princípio da correspondência, as leis e as

equações de uma qualquer física quântica deveriam ser

construídas de tal forma que, no limite clássico, existisse

uma correspondência numérica aproximada entre as que são

quânticas e as que são clássicas. Isto mesmo é salientado

pelo físico Max Born:

“A ideia directriz (princípio da correspondência de Bohr)

pode descrever-se nas suas linhas gerais do seguinte modo.

Submetidas ao julgamento da experiência, as leis da física

clássica provaram brilhantemente em todos processos dinâmicos,

macroscópicos e microscópicos, incluindo o movimento dos átomos

considerados como um todo (teoria cinética da matéria). Deve,

portanto, estabelecer-se como postulado incondicionalmente

necessário que a nova mecânica, suposta ainda desconhecida,

deverá […] chegar aos mesmos resultados que a mecânica

clássica.”38

Assim entendido, poder-se-ia dizer que o princípio de

correspondência seria tão-somente um produto do que se pode

designar por “bom senso” dos físicos. Dado que a Física

Clássica tantas e tão repetidas vezes se mostrou válida,

então, seria apenas de “bom senso” que a nova Mecânica, a

38 Born, Max (1969), Atomic Physics (tradução do inglês de Egídio Namorado, “Física Atómica“), Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian (1986), p.114.

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Mecânica Quântica, ou qualquer outra teoria quântica, no

limite dos grandes números quânticos chegasse,

aproximadamente, aos mesmos resultados da frequência e da

intensidade que a Física Clássica. Neste sentido, o

princípio de correspondência seria um princípio de

continuidade entre teorias, “incondicionalmente necessário”

por força do “bom senso”.

No entanto, esta necessária aproximação numérica entre

as teorias quântica e clássica, é a meu ver, e tal como

defende Alisa Bokulish, num texto de 2010, uma consequência

do princípio da correspondência e não uma enunciação deste.

Segundo Bokulish, o próprio Bohr, numa conversa com

Rosenfeld – um dos seus discípulos mais próximos –, terá

explicitamente rejeitado o entendimento do referido

princípio que surgiu na citação de Born:

“Léon Rosenfeld recorda a frustração de Bohr com o

continuado mau entendimento do seu princípio. Quando Rosenfeld

sugeriu a Bohr que o princípio da correspondência era sobre o

acordo assimptótico entre as previsões quânticas e clássicas,

Bohr enfaticamente protestou e respondeu: "[esse] não é o

argumento de correspondência. A exigência de que a teoria

quântica deve sobrepor-se à descrição clássica para baixos modos

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de frequência não é de todo um princípio. É um requisito óbvio

para a teoria.”39

O pretenso enunciado do princípio da correspondência que

aparece na citação de Born, e que é tão popular,

especialmente entre os físicos, é claramente rejeitado por

Bohr. Não pelo seu conteúdo, mas por se tratar, a seu ver,

de um “requisito óbvio” da teoria e, como tal, nem sequer

precisar de ser explicitado sob a forma de um “princípio”.

Assim, igualmente para Bohr, a correspondência numérica

entre as teorias quântica e clássicas, no tal limite dos

grandes números quânticos, será uma mera questão de

aplicação do “bom senso”. Este sim, quase se poderia

designar por princípio pelo seu carácter de regra do

pensamento em geral. Ou seja, Bohr recusa o entendimento de

Born do princípio da correspondência por considerar que

esse entendimento é uma consequência óbvia de um princípio

de bom senso do pensamento aplicado à Física.

39 “Léon Rosenfeld recounts Bohr's frustration at the continued misunderstanding of his principle. When Rosenfeld off-handedly suggested to Bohr that the correspondence principle was about the asymptotic agreement of quantum and classical predictions, Bohr emphatically protested and replied, “It is not the correspondence argument. The requirement that the quantum theory should go over to the classical description for low modes of frequency, is not at all a principle. It is an obvious requirement for the theory”, Bokulich, Alisa (2010), "Bohr's Correspondence Principle" in The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2010 Edition), Edward N. Zalta (ed.),URL=http://plato.stanford.edu/archives/win2010/entries/bohr-correspondence/, pp 36-37.(Tradução minha)

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Por outro lado, inferimos nesta posição de Bohr uma

indicação segundo a qual o princípio da correspondência tem

um outro sentido. Um sentido supostamente mais amplo e

profundo. Este, creio eu, pode ser encontrado, logo na

primeira vez que o físico dinamarquês dedica uma secção

explicitamente ao princípio da correspondência. Afirma

Bohr:

“Consideremos mais cuidadosamente esta relação entre os

espectros expectáveis com base na teoria quântica e a teoria

ordinária da radiação [isto é, o electromagnetismo]. As

frequências das linhas espectrais calculadas pelos dois métodos

concordam completamente na região onde os estados estacionários

estão pouco separados uns dos outros. […] Esta correspondência

entre as frequências determinadas pelos dois métodos deve ter um

significado mais profundo e nós somos conduzidos antecipar que

se aplicará também às intensidades. […] Esta relação peculiar

sugere uma lei geral para a ocorrência das transições entre

estados estacionários.”40

40 “Let us now consider somewhat more closely this relation between the spectra one would expect on the basis of the quantum theory, and on the ordinary theory of radiation. The frequencies of the spectral lines calculated according to both methods agree completely in the region where the stationary states deviate only little from one another[…] This correspondence between the frequencies determined by the two methods must have a deeper significance and we are led to anticipate that it will also apply to the intensities.[…]This peculiar relation suggests a general law for the occurrence of transitions between stationary states.” Bohr, N. (1920), “Essays II: On the Series

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Nesta longa citação, onde, no tal estilo por vezes pouco

cuidado com a precisão das palavras, as teorias quântica e

electromagnética são apresentadas como “métodos”,

encontramos os dois tipos já referidos de correspondência

entre as físicas quântica e clássica: de frequência e de

intensidade. No entanto, a frase final, que o próprio Bohr

colocou em itálico, revela que estas correspondências

numéricas entre teorias sugerem uma lei geral. No caso, uma

lei geral para a ocorrência das transições quânticas. Esta

aparece-nos na seguinte passagem de um texto posterior:

“A demonstração do acordo assimptótico entre o espectro e o

movimento deu origem à formulação do "princípio da

correspondência", de acordo com o qual a possibilidade de cada

processo de transição relacionada com emissão de radiação é

condicionada pela presença de um componente harmónico

correspondente no movimento do átomo.”41

Spectra of Elements” in Niels Bohr Collected Works, Vol. 3: The Correspondence Principle (1918–1923), Nielsen, J. Rud ed., Amsterdam: North-Holland, 1976, pp. 249–250. (Tradução minha)

41 “The demonstration of the asymptotic agreement between spectrum and motion gave rise to the formulation of the "correspondence principle", according to which the possibility of every transition process connected with emission of radiation is conditioned by the presence of a corresponding harmonic component in the motion of the atom.”, Bohr, N. (1925), “Atomic Theory and Mechanics” in Nature, Volume 116, Issue 2927, p. 848. (Tradução minha)

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Aqui, o princípio de correspondência surge, não como uma

mera aproximação numérica, mas como uma condição. É

condição de possibilidade de uma transição entre estados

estacionários, estados estes que correspondam a um

componente harmónico do movimento do electrão num estado

estacionário do átomo. Entende-se que Bohr se refira a esta

correspondência como uma “lei” geral da teoria quântica.

Pois, por um lado, essa correspondência aplica-se a todos

estados estacionários e não apenas aos do limite clássico.

Sendo, neste sentido, universal para os estados

estacionários de energia dos átomos. Por outro lado, essa

correspondência consiste na imposição de uma condição de

possibilidade das transições entre estados quânticos: uma

transição entre estados estacionários de energia, ou

transição quântica, é possível se e só se existir um

harmónico correspondente do movimento do electrão. Atente-

se que o movimento a que aqui se faz referência é o

movimento circular e periódico do electrão em redor do

núcleo. Estamos ainda dentro da imagem do átomo como um

minúsculo sistema solar.

Claro está que o enunciado anterior do princípio da

correspondência pode parecer de interesse meramente formal

e, por essa razão, ser muito específico da Física.

Estaríamos, afinal, longe da promessa de ter uma lei geral

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de profundo significado. Contudo, em boa verdade, este

enunciado leva-nos num caminho, um pouco árido – talvez -,

mas onde, no final, julgo que se cumpre a promessa. Quando

Bohr descobriu esta relação de correspondência entre as

transições quânticas permissíveis e os harmónicos do

movimento do electrão, ele descobriu algo fundamental sobre

a teoria quântica.

Por um lado, é preciso notar que, em física, diz-se

“harmónico” o que é múltiplo inteiro de uma determinada

frequência. Esta última é denominada “frequência

fundamental”. Neste caso concreto, a frequência fundamental

será a frequência do movimento do electrão no estado

estacionário inicial. Ou seja, a quantidade de revoluções

por unidade de tempo do electrão em redor do núcleo.

Uma série particular de harmónicas facilmente

compreensível é, por exemplo, a das oitavas42. Onde dizer

primeira, segunda, terceira e quarta oitavas é o mesmo que

dizer segunda, quarta, oitava e décima sexta harmónicas, em

relação a uma determinada nota inicial. Ou seja, existe uma

42 Diz-se “oitava” a nota cuja frequência dista o dobro (oitava acima) ou a metade (oitava abaixo) em relação a uma outra. A título de exemplo, o dó de segunda tem uma frequência aproximada de 130,5 Hz. Logo, é uma oitava abaixo em relação ao Dó de 3, que tem uma frequência aproximada de 261,o Hz, e é uma oitava acima relativamente ao Dó de 1, a frequência fundamental desta série, que tem uma frequência aproximada de 62,25 Hz. Note-se que a frequência que é tripla da frequência fundamental é dita de terceiro harmónico do Dó de primeira, mas, no entanto, não é uma oitava mas uma quinta acima deste.

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correspondência entre a diferença de frequências de notas

que distam uma oitava e uma sequência particular de

harmónicas da nota inicial. Assim sendo, as primeiras – as

oitavas - podem ser descritas, na totalidade, a partir das

segundas.

De forma similar, o princípio da correspondência, ao

enunciar-se como condição de que as transições quânticas só

podem ocorrer para harmónicos correspondentes do movimento

do electrão num determinado estado estacionário, leva a que

as primeiras – as transições quânticas - podem ser,

formalmente, descritas a partir das segundas – dos

harmónicos. Ou seja, Bohr determina que a Teoria Quântica

Antiga pode ser, em certa medida, descrita e desenvolvida

fazendo-se o uso das propriedades dos harmónicos43. Mas

como?

O princípio da correspondência impõe que uma “transição

relacionada com emissão de radiação” está condicionada pela

existência de “um componente harmónico correspondente no

movimento”. Isto significa, literalmente, que, neste caso,

um electrão só pode transitar para um estado estacionário

de tal forma que se multiplique, por um inteiro, a

frequência do seu movimento. Isto é, que a duplique,

triplique, quadruplique, etc. Seria o caso, análogo, da 43Em particular, através do desenvolvimento desta correspondência são estabelecidas as regras de selecção de transições quânticas que estão na génese da Química actual.

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Terra, por exemplo, só poder transitar para uma órbita

planetária quando um ano fosse de 182 dias, 91 dias, 45

dias, etc. Estranho caso seria para um corpo como a Terra.

Contudo, caso normal será para uma onda periódica, como é

caso, idealmente, das ondas electromagnéticas44. Pois, esta

relação de condição entre transições de estados e

harmónicos lhes é característica. Quer isto dizer, e tal

como enfatiza Pringe ao longo da sua tese doutoral45, o

princípio da correspondência implica uma analogia formal

entre a frequência do movimento e a frequência da radiação

electromagnética. Mais especificamente, o referido

princípio pressupõe, formalmente, uma analogia entre as

transições de estados estacionários e as mudanças na

frequência de uma radiação electromagnética. Ou dito ainda

de outro modo, é como se, formalmente, um electrão, no que

respeita as alterações do seu estado de movimento, fosse

uma onda electromagnética.

Estamos perante uma analogia fundamental. Em primeiro

lugar, porque justifica e possibilita que a Teoria Quântica

Antiga possa ser desenvolvida fazendo uso das propriedades

dos harmónicos. Em segundo lugar, e mais importante,

porque, a partir desta analogia formal entre os dois tipos

referidos de frequência, é possível estabelecer uma

44 Conferir, a seguir, neste capítulo, página 87 e seguintes. 45 Conferir Pringe, Hernán (2007), Critique of the Quantum Power of Judgment, Berlin: De Gruyter.

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correspondência formal entre a Teoria Quântica Antiga e o

Electromagnetismo.

Assim, por um lado, podemos afirmar que estamos, para

já, perante dois níveis do princípio da correspondência. O

que por si só é uma conclusão interessante. Pois, se a

literatura filosófica mais especializada no pensamento

Bohriano se tem dedicado a debater qual dos anteriores é

“o” princípio da correspondência46, a meu ver, a melhor

forma de compreender o pensamento de Bohr é entender que

existem vários níveis do referido princípio.

O primeiro nível será o nível numérico, que consiste

numa correspondência das previsões quantitativas da

frequência e da intensidade, no limite clássico, entre a

Teoria Quântica Antiga e o Electromagnetismo.

O segundo nível será o nível formal, que, por sua vez,

consiste numa correspondência entre os formalismos da

Teoria Quântica Antiga e do Electromagnetismo. Note-se que

através desta correspondência formal são deduzíveis as

correspondências numéricas. Pois, no limite clássico, a

frequência do movimento de um estado estacionário inicial é

numericamente equivalente à frequência da emissão entre

46 Conferir Bokulich, Alisa (2010), "Bohr's Correspondence Principle" in The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2010 Edition), Edward N. Zalta (ed.),URL=http://plato.stanford.edu/archives/win2010/entries/bohr-correspondence

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estados estacionários próximos. Por essa razão, porque um

implica o outro, julgo que estamos perante dois níveis do

referido princípio e não duas (ou três) formulações

distintas. Note-se ainda que estas correspondências não

implicam que a Teoria Quântica Antiga seja deduzível do

Electromagnetismo. Sendo o inverso igualmente verdadeiro.

Não existe uma continuidade directa entre a Teoria Quântica

Antiga e qualquer uma das teorias físicas clássicas (ao

contrário do que sucede entre as Mecânicas Relativista e

Clássica), de tal modo que se possa transitar

despreocupadamente de uma para outra. A separar estas

teorias encontra-se a introdução do postulado quântico no

modelo atómico e a sua consequência: os estados

estacionários de energia, ou os estados quânticos. Porém,

se o postulado quântico as separa, como uma regra

gramatical separa duas linguagens, o princípio da

correspondência liga-as, como um tradutor. Em particular, o

princípio da correspondência permite que Teoria Quântica

Antiga seja entendida como resultante de uma revisão do

formalismo do Electromagnetismo de tal modo que incorpore o

postulado quântico. Revisão que, pela sua natureza formal,

só poderá ser realizada unicamente pela razão. Portanto, em

certa medida, pode-se tomar a Teoria Quântica Antiga como

uma generalização racional do Electromagnetismo clássico. A

este propósito afirma Bohr:

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42

“Embora o processo de radiação não possa ser descrito com

base na teoria ordinária da electrodinâmica […] existe, no

entanto, uma correspondência de longo alcance entre os vários

tipos de possíveis transições entre os estados estacionários por

um lado e os vários componentes harmónicos do movimento, por

outro. Esta correspondência é de tal natureza que a teoria

actual dos espectros [teoria quântica antiga] pode ser num certo

sentido considerada como uma generalização racional da teoria

ordinária da radiação [isto é, o Electromagnetismo].47

Como é salientado por Darrigol48, Bohr usa a expressão

“num certo sentido”, pois a generalização é apenas de

natureza formal. É uma correspondência entre teorias

assente – recorde-se – na base de numa analogia

inteiramente formal entre a frequência da radiação

electromagnética e a frequência do movimento orbital do

47 “Although the process of radiation can not be described in the basis of the ordinary theory of electrodynamics […]there is found, nevertheless, to exist a far-reaching correspondence between the various types of possible transitions between the stationary states on the one hand and the various harmonic components of the motion on the other hand. This correspondence is of such a nature, that the present theory of spectra is in a certain sense to be regarded as a rational generalization of the ordinary theory of radiation.” Bohr, N. (1920), “Essays II: On the Series Spectra of Elements” in Niels Bohr Collected Works, Vol. 3: The Correspondence Principle (1918–1923), J. Rud Nielsen, ed. (North-Holland, Amsterdam, 1976), pp. 245–246. (Tradução minha)

48 Conferir Darrigol, Olivier (1992), From c-Numbers to q-Numbers, Berkeley: University of California Press, p. 138.

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electrão. Não é a este nível, a meu ver, que Bohr considera

que a Mecânica Quântica é uma generalização racional das

teorias clássicas da Física. Entretanto, insinua-se já aqui

o terceiro nível, e o mais fundamental, do princípio da

correspondência: o nível conceptual. Porém, para o

descobrir há que recuar e realizar um outro movimento.

2.2. A hipótese de De Broglie: a descoberta do domínio

quântico.

É bem conhecido o teorema matemático segundo o qual a

série de harmónicos de um movimento periódico não é outra

coisa senão a sequência de termos do chamado

desenvolvimento de Fourier da posição. Isto é, cada um dos

harmónicos do movimento (e a frequência fundamental), tal

como toda a onda periódica, é uma onda plana sinusoidal.

Significa isto que é às ondas planas sinusoidais que Bohr,

no contexto da teoria quântica, se refere quando se refere,

formalmente, às ondas. Por consequência, um electrão intra-

atómico, no seu movimento, pode ser tomado, formalmente,

como se de uma onda plana sinusoidal (que também pode ser

designada por “onda de Fourier”) em propagação se tratasse.

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Pode não parecer, mas esta conclusão é da maior

importância. Para já, por duas razões: em primeiro lugar,

por ser este o fundamento do nível formal do princípio da

correspondência. Formalmente, tanto a radiação, como os

electrões, no seu movimento são ondas sinusoidais em

propagação. E, por consequência, electrões e radiação são

formalmente idênticos. Em segundo lugar, porque significa

que estamos, de certa forma, muito próximos da proposta,

absolutamente decisiva, de De Broglie, de 192449. Segundo

esta proposta, no caso particular de um átomo, o movimento

de um electrão num estado estacionário é caracterizado por

ser ondulatório. Mais especificamente, por ser uma onda

estacionária. Este é o tipo de onda igualmente

característico, por exemplo, da oscilação de uma corda em

tensão. Assim, a proposta de De Broglie permite-se

identificar os estados estacionários com ondas

estacionárias. E, deste modo, podemos dizer que um átomo

quantificado é um pouco como um instrumento de cordas. Uma

ancestral harpa, por exemplo. Se esta é construída por um

conjunto de cordas vibrantes distribuídas segundo a antiga

lei pitagórica de que as frequências possíveis de uma corda

vibrante são múltiplos inteiros (harmónicos) de uma

49 Conferir o discurso de De Broglie de aceitação do prémio Nobel. De Broglie, L. (1929), The wave nature of the electron in "Louis de Broglie - Nobel Lecture". Nobelprize.org. 27 Sep 2011: http://www.nobelprize.org/nobel_prizes/physics/laureates/1929/broglie-lecture.pdf, p. 247.

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frequência fundamental, de forma análoga, o átomo “de” De

Broglie é constituído por um conjunto de estados

estacionários distribuídos segundo a mesma lei. E se um é

caracterizado por um número discreto de cordas, cada uma

com a sua frequência bem determinada, o outro é

caracterizado por um número discreto de estados

estacionários, cada um com a sua frequência bem

determinada. Poder-se-ia dizer então que a quantificação do

átomo é análoga à quantificação das vibrações de uma corda

musical. É precisamente a partir desta analogia que Mário

Bunge chega mesmo a afirmar, curiosamente, que “o primeiro

a descobrir os quanta não foi Planck em 1900, mas Pitágoras

no século VI a.C.”50. Estamos, porém, ainda à volta de uma

analogia formal. Uma analogia que, contudo, se suporta em

algo mais significativo. A saber: segundo De Broglie, e

esta é a essência da sua proposta, da sua hipótese, os

electrões, tal como os fotões, são caracterizados por uma

cinemática ondulatória e uma dinâmica corpuscular. Ou dito

de outro modo, os electrões, tal como os fotões, tal como

todos objectos quânticos: propagam-se como ondas; interagem

como corpos.

Este é um momento decisivo. Em primeiro lugar, porque a

proposta de De Broglie permite explicar a existência e a

50 Conferir Bunge, Mário (2002), “Twenty Five Centuries of Quantum Physics” (trad. do inglês por Florbela Meireles, “Vinte e cinco séculos de Física Quântica”) in Gazeta de Física, vol. 25, 3, Julho de 2002, p.1.

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distribuição dos estados estacionários. Os estados

estacionários não têm que ser tomados como uma mera, embora

habilidosa, imposição ad-hoc. Nem tão pouco o movimento dos

electrões “obedecem” às regras das ondas electromagnéticas

pela particularidade de fazerem parte de um sistema atómico

e lhes serem, formalmente, análogos. Todos os electrões

são, quanto ao seu movimento, tidas como ondas. Assim, a

proposta De Broglie permitia explicar o que era postulado

na Teoria Quântica Antiga. E, como tal, esta proposta

encontra-se na origem da transição da Teoria Quântica

Antiga para a Teoria Quântica Nova. Isto é, para a Mecânica

Quântica. Uma transição que implica que a teoria quântica

deixa de ser apenas uma teoria do átomo e dos seus

constituintes, ou seja, deixa de ser apenas uma

microfísica. A proposta de De Broglie não se cinge ao

domínio atómico, mas refere-se a todo o domínio físico. E

como assinala, por exemplo, Leblond “macroscópico não é

sinónimo de clássico”51.

Este é igualmente um momento decisivo, pois a proposta

de De Broglie consiste na atribuição, embora por analogia

conceptual, de uma dupla natureza aos objectos quânticos: a

das ondas na sua propagação; a dos corpos na sua

interacção. Emprego o termo “dupla analogia” pois diz-se

51 Conferir Lévy-Leblond, Jean-Marc (2003), “On the Nature of Quantons” in Science & Education 12, p. 499.

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que os objectos quânticos, quanto à sua cinemática, são

como se fossem ondas. E quanto à dinâmica, são como se

fossem corpos materiais. Contudo, De Broglie não se

aventura a afirmar que, de facto, os objectos quânticos têm

a natureza das ondas e dos corpos.

Quer isto dizer que estamos de regresso à questão

original: “O que é um objecto quântico?”. O que não será

surpreendente, dado que havíamos dito que esta é a questão

que se encontra logo que se entra no labiríntico domínio

quântico. E, por consequência, encontra-se na génese da

Mecânica Quântica. Por esta via, regressamos igualmente à

questão lançada no final do capítulo anterior: “como se

pôde constituir a Mecânica Quântica deixando em aberto o

problema da natureza dos objectos quânticos?”

Por outro lado, no caminho que fizemos no sentido de

responder a estas questões, outras se juntaram. A saber: O

que quer dizer que a Mecânica Quântica é uma generalização

racional da Física Clássica?; o que entende Bohr por

generalização racional?; de que modo o princípio da

correspondência foi o instrumento para a construção da

Mecânica Quântica a partir das teorias físicas clássicas?;

o que se entende por “nível conceptual do princípio da

correspondência?”; de que modo este nível se relaciona com

os outros dois?; por que razão a Mecânica Quântica se

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constituiu evitando responder à questão da natureza dos

objectos quânticos?

Para responder a estas questões pensamos ser preciso

tomar em atenção uma outra tese de Bohr sobre a Mecânica

Quântica. Esta tese, que a meu ver, é a basilar do

pensamento bohriano e, como tal, é mais fundamental que as

anteriores, é comummente designada na literatura de

relativa à Filosofia da Mecânica Quântica por “doutrina da

indispensabilidade dos conceitos clássicos”.

2.3. Doutrina da indispensabilidade dos conceitos

clássicos.

Não será totalmente pacifico o que Bohr entende como

“conceitos clássicos”. A meu ver, e aqui sigo o

entendimento geral dos exegetas dos escritos de Bohr ( como

Folse, Murdoch, Pringe, etc.), Bohr refere-se ao que se

considera serem os conceitos que constituem o léxico mais

fundamental da Física Clássica. Conceitos como “onda”,

“corpo”, “posição”, “momentum”, “campo”, “energia”,

“carga”, “massa” “frequência”, etc. No entanto, Don Howard

no seu artigo “What makes a Classical Concept Classical”,

de 1994, assumidamente opõe-se a esse entendimento. Don

Howard defende que, por “clássico”, Bohr quer dizer “uma

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descrição em termos do que os físicos chamam de

misturas”52. Isto é, “um dispositivo formal que nos permite

proceder como se os sistemas físicos estivessem num estado

intrínseco bem definido”53.

O argumento de Howard não me parece porém convincente.

Pois, neste artigo, ao invés de expor uma análise dos

conceitos a que Bohr se refere quando se refere a conceitos

clássicos, Howard acaba por se centrar numa distinção, da

autoria do próprio, entre “descrições clássicas” e

“descrições quânticas” dos sistemas físicos. A distinguir

estas descrições estaria o facto, na terminologia de

Howard, de a primeira consistir nas tais “misturas” e a

segunda consistir na utilização de “termos puros”. Contudo,

em qualquer dos tipos de descrição, nada se afirma sobre se

os conceitos físicos usados são os mesmos ou não. Ou seja,

parece haver apenas uma distinção no tipo de descrição

(“puros” e “misturas”) em que os conceitos são utilizados

para descrever um determinado sistema físico, e não tanto

uma distinção entre os conceitos utilizados. Isto é, para

Howard, o mesmo conceito, o momento linear, por exemplo,

pode tomar o estatuto de clássico ou quântico conforme o

tipo de descrição do sistema. Porém, o argumento de Howard,

52 Conferir Howard, D. (1994), “What makes a classical concept classical? Towards a reconstruction of Niels Bohr’s philosophy of physics,” in Niels Bohr and Contemporary Philosophy (Boston Studies in the Philosophy of Science, Vol. 153), J. Faye and H. Folse, eds., Dordrecht: Kluwer, p. 203. 53 Idem, ibidem.

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50

não só parece ser apenas de cariz nominalista, como acaba

por reforçar a tese que aqui se pretenderá defender que é

justamente pela insistência, por parte de Bohr, de se fazer

uso dos conceitos clássicos que, mesmo num sistema

quântico, os conceitos usados são, na sua essência, os

mesmos das teorias clássicas da Física.

Por outro lado, a seguinte afirmação do físico

dinamarquês parece dar aval à tese, que compartilho, de que

Bohr por “conceitos clássicos” refere-se aos conceitos que

pertencem à linguagem das teorias físicas clássicas:

“A interpretação, sem ambiguidades, de qualquer medição deve

ser essencialmente estabelecida em termos das teorias físicas

clássicas. E, neste sentido, deveremos dizer que a linguagem de

Newton e Maxwell será a linguagem dos físicos para todo o

sempre”54

Não parece haver margem para dúvidas que por “linguagem

de Newton e Maxwell” Bohr se refere à linguagem que é

constituída pelos conceitos da Mecânica Clássica e do

Electromagnetismo. Ou seja, ao que podemos denominar,

54 “We must, in fact, realize that the unambiguous interpretation of any measurement must be essentially framed in I terms of the classical physical theories, and we may say that in this sense the language of Newton and Maxwell will remain the language of physicists for all time.”, N. Bohr (1931), “Maxwell and modern theoretical physics” in Niels Bohr Collected Works, Vol. 6: Foundations of Quantum Physics I(1926–1932), J. Kalckar, ed. (North-Holland, Amsterdam, 1985), p. 360. (Tradução minha)

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51

genericamente, por “conceitos da Física Clássica”. No

entanto, é impossível não notar como Bohr é categórico

quando afirma: “a linguagem de Newton e Maxwell será a

linguagem dos físicos para todo o sempre”. Não se trata,

certamente, de uma profecia. E assim sendo, em que se funda

esta certeza? Qual a razão pela qual para essa linguagem

será “para todo sempre”? Creio que Bohr adianta uma razão

na primeira parte da passagem citada. A saber: “a

interpretação de qualquer medição deve ser essencialmente

estabelecida em termos das teorias físicas clássicas”. Este

é, aliás, o sentido mais comum pelo qual se julgam os

conceitos clássicos como indispensáveis para Bohr.

Mas, o que quer dizer Bohr com “interpretação de

qualquer medição”? Uma medição, qualquer que ela seja,

consiste numa interacção entre dois sistemas físicos. O

sistema que é objecto da medição e o sistema que é agente

da medição, ou seja, o instrumento de medida. Como

consequência dessa interacção produz-se uma alteração do

estado físico do sistema que é agente da medição. Isto é,

produz-se um resultado da medida. Seja esse resultado

percebido como uma variação da posição de um ponteiro (como

no caso de uma antiga balança de pratos), seja esse

resultado percebido como uma variação dos dígitos presentes

num ecrã (como no caso de uma balança digital). Em qualquer

dos casos, uma medição passa, necessariamente, pela

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percepção, por parte de um sujeito, da alteração do estado

– o resultado da medição - de um sistema físico

macroscópico – o instrumento de medida. Daí que uma medição

é seja sempre uma relação a três: o objecto da medida; o

instrumento da medida e o sujeito que percebe o resultado

da medida. Digo que “percebe”, pois não basta a percepção,

por parte do sujeito, de uma alteração do estado físico do

sistema medidor. É necessário que o sujeito estabeleça a

relação entre essa percepção e a alteração do estado físico

do objecto da medição. Sem se estabelecer essa relação

entre o objecto da medição, o instrumento de medida e o

sujeito não existe medição pois faltará um dos seus

elementos.

Note-se que, neste caso, o instrumento de medida é o

objecto da percepção directa do sujeito. E, como tal,

trata-se então, necessariamente, de um sistema físico

macroscópico. Daqui Bohr irá inferir que os instrumentos de

medida, porque são também eles sistemas físicos

macroscópicos, então são objecto das teorias físicas

clássicas. A meu ver, esta é uma das razões que Bohr

apresenta para defender a tese que a interpretação das

medições deve necessariamente ser estabelecida em termos

clássicos.

Logicamente, assim entendido, o argumento de Bohr é

circular e de cariz totalmente instrumentalista. Por um

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53

lado, fica por justificar por que razão os objectos físicos

macroscópicos devem ser descritos para todo sempre pelas

teorias de Newton e Maxwell. Por que não poderá surgir uma

outra teoria, uma teoria não clássica, que descreva as

alterações de estado físico do instrumento de medida? Ou

mesmo, por que não podem esses estados do instrumento de

medida serem descritos pela Mecânica Quântica? Ao

considerar, sem apresentar justificação, que os objectos

macroscópicos são objectos exclusivos das teorias

clássicas, e dado que os aparelhos de medida são, em última

instância, objectos macroscópicos, Bohr, é conduzido à

conclusão de que a interpretação de qualquer medição deve

ser entendida em termos clássicos. Ou seja, conclui

simplesmente a sua própria hipótese de partida.

Por outro lado, o argumento de Bohr fixa-se apenas nas

variações de estado do agente de medida e, como tal,

suspende a referência à relação causal entre a alteração

dos estados do sistema agente da medida e do sistema que é

objecto da medida. Alteração de estado à qual é feita

corresponder a um valor quantitativo de uma grandeza física

determinada do objecto da medida. O que é a própria

essência do acto de medir.

No entanto, creio que a tese bohriana da

indispensabilidade dos conceitos clássicos pode ser

encontrada num outro sentido. Um sentido que é mais subtil,

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mas mais profundo. E que, estranhamente, tem sido muitas

vezes subestimado, senão mesmo esquecido. Descobrimo-lo na

seguinte passagem:

“De acordo com a visão deste autor [Bohr], será um engano

acreditar que as dificuldades da teoria atómica [ou seja, da

Mecânica Quântica] podem ser contornadas por uma eventual

substituição dos conceitos da física clássica por novas formas

conceptuais […] Não me parece crível que os conceitos das

teorias clássicas sejam, alguma vez, supérfluos para a descrição

da experiência física. O reconhecimento da indivisibilidade do

quantum de acção e a determinação da sua magnitude depende, não

apenas da análise das medições serem baseadas em conceitos

clássicos, mas do facto de que somente uma aplicação desses

conceitos tornam possível relacionar o simbolismo da teoria

quântica com os resultados da experiência”55

Nesta citação é possível constatar que Bohr, num

primeiro momento, enfatiza que os conceitos clássicos são 55 “to the view of the author, it would be a misconception to believe that the difficulties of the atomic theory may be evaded by eventually replacing the concepts of classical physics by new conceptual forms. […] No more is it likely that the fundamental concepts of the classical theories will ever become superfluous for the description of physical experience. The recognition of the indivisibility of the quantum of action, and the determination of its magnitude, not only depend on an analysis of measurements based on classical concepts, but it continues to be the application of these concepts alone that makes it possible to relate the symbolism of the quantum theory to the data of experience.”, Bohr, Niels (1929), “Introductory survey to the Atomic Theory and the Description of Nature” in Niels Bohr Collected Works, Vol. 6: Foundations of Quantum Physics I(1926–1932), J. Kalckar, ed. (North-Holland, Amsterdam, 1985), p. 294. (Tradução minha)

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55

essenciais para a interpretação das medições. É o sentido

da doutrina da indispensabilidade dos conceitos clássicos

que já nos havia surgido. Contudo, num segundo momento,

Bohr assinala que os conceitos clássicos são igualmente

necessários pois “somente uma aplicação desses conceitos

tornam possível relacionar o simbolismo da teoria quântica

com os resultados da experiência”. Ou seja, os conceitos

clássicos da física são essenciais para dar conteúdo

semântico ao formalismo da Mecânica Quântica. Assim, poder-

se-ia afirmar que, segundo Bohr, sem os conceitos clássicos

uma teoria quântica, qualquer que ela fosse, careceria

sempre de sentido.

Bohr reforça a posição anterior num artigo, que é pouco

discutido, onde desenvolve uma narrativa contrafactual da

historia da Física. Nesta, ele convida-nos a imaginar uma

história da física em que a Mecânica Quântica fosse

descoberta antes da Mecânica Clássica e do

Electromagnetismo:

“Imagine por um momento que as recentes descobertas

experimentais de difracção de electrões e efeitos fotónicos, que

cabem tão bem na mecânica quântica, fossem feitas antes do

trabalho de Faraday e Maxwell. Naturalmente, tal situação é

impensável, uma vez que a interpretação das experiências em

causa baseia-se essencialmente nos conceitos criados por esse

trabalho. Mas permitamo-nos, no entanto, ter uma visão de tal

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fantasia e perguntemo-nos, em seguida, qual seria o estado da

ciência. Eu julgo que não seria dizer muito afirmar que

estaríamos mais longe de uma visão consistente das propriedades

da matéria e da luz do que Newton e Huygens estavam.”56

Ao considerar hipoteticamente que a Mecânica Quântica

poderia ter sido descoberta antes das teorias físicas

clássicas, Bohr imediatamente considera que isso seria

impossível. Impossível, pois – argumenta - a interpretação

das experiências que levou à descoberta da teoria quântica

requer o uso de conceitos clássicos, no caso apresentado,

dos conceitos do Electromagnetismo. Reconhece-se aqui o

primeiro sentido da doutrina de Bohr da indispensabilidade

dos conceitos clássicos. Bohr, no entanto, prescinde dessa

objecção e continua com a narrativa contrafactual para

chamar a atenção para o segundo sentido em que os conceitos

clássicos são, para ele, indispensáveis. E chega à

conclusão que a Mecânica Quântica por si só fornece uma

descrição menos adequada da luz e da matéria do que faz a

56 “Let us imagine for a moment that the recent experimental discoveries of electron diffraction and photonic effects, which fall in so well with the quantum mechanical symbolism, were made before the work of Faraday and Maxwell. Of course, such a situation is unthinkable, since the interpretation of the experiments in question is essentially based on the concepts created by this work. But let us, nevertheless, take such a fanciful view and ask ourselves what the state of science would then be. I think it is not too much to say that we should be farther away from a consistent view of the properties of matter and light than Kewton and Huygens were.”, Bohr, N. (1931), “Maxwell and modern theoretical physics” in Niels Bohr Collected Works, Vol. 6: Foundations of Quantum Physics I(1926–1932), J. Kalckar, ed., Amsterdam: North-Holland, 1985, p. 360. (Tradução minha)

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57

Física Clássica. É uma conclusão surpreendente se julgarmos

(ou se julgássemos) a Mecânica Quântica como uma teoria

conceptualmente autónoma que superou as teorias clássicas

e, como tal, que poderíamos falar da primeira sem, mesmo

implicitamente, necessitar das segundas. Aqui, a tese de

Bohr é que a Mecânica Quântica sem a Física Clássica e os

seus conceitos seria uma teoria incompleta. Incompleta, não

no sentido do chamado debate EPR57 e do seu desenvolvimento

posterior – as relações de Bell - que tanta tinta têm feito

correr na literatura filosófica contemporânea sobre a

Mecânica Quântica. Isto é, incompleta porque existiria

algum elemento da realidade física que a Mecânica Quântica

deixa fora da sua descrição. Neste sentido, para Bohr, a

Mecânica Quântica é uma teoria completa. Sem dúvida.

Bastará recordar algum dos momentos da célebre

controvérsia58 que Bohr manteve durante cerca de trinta

anos com Einstein. A Mecânica Quântica é incompleta para

Bohr no sentido em que o significado do seu formalismo

depende dos conceitos da Física Clássica. No sentido em

que, sem os conceitos da Física Clássica, uma teoria

quântica, qualquer que ela seja, nada mais seria que uma

57 Refere-se aqui, obviamente, o debate que se gerou a partir da publicação, em 1935, do artigo “Is Quantum Mechanics complete?” de Einstein, Poldoski e Rose e da réplica de Bohr com um artigo homónimo, nesse mesmo ano de 1935. 58 Conferir O relato que o próprio Bohr faz dessa controvérsia em: Bohr, N. (1949), “Discussion with Einstein on Epistemological Problems in Atomic Physics” in Atomic Physics and Human Knowledge, New York: Kessinger Publishing.

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58

muda construção matemática. Um corpo matemático carente de

significado físico. Como um monstro de Frankenstein,

imponente, eventualmente poderoso, mas sem alma. Ou seja,

uma teoria quântica, qualquer que ela seja, enquanto teoria

física, não é possível sem os conceitos clássicos que lhe

dão sentido, que a vivificam.

É precisamente nesta tese de Bohr sobre o estatuto dos

conceitos clássicos que, segundo Heisenberg, reside a

essência da chamada “Interpretação de Copenhaga”. Ela pode

ser enunciada de um modo lapidar:

“Os conceitos da física clássica formam a linguagem pela qual

descrevemos os arranjos experimentais e registamos os

resultados. Não podemos, nem devemos, mudar esses conceitos por

nenhuns outros […] não podemos, nem devemos, tentar melhorá-

los”59

É porque Heisenberg se assume aqui como porta-voz do

físico dinamarquês, que o seu tom adquire uma dimensão

inabitualmente peremptória: “não podemos, nem devemos,

mudar os conceitos” clássicos. Nem sequer “tentar melhorá-

los”. Estamos perante um quase imperativo ético. Um

mandamento: “não devemos”. Mas, por outro lado, trata-se de

59 “The concepts of classical physics form the language by which we describe the arrangement of our experiments and state the results. We cannot and should not replace these concepts by any others […] we cannot and should not try to improve them.” Heisenberg, Werner (1958), Physics and Philosophy, London: Penguin Books, p. 14. (Tradução minha)

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uma condição prévia e imutável à da experiência, pois “não

podemos mudá-los por nenhuns outros”, nem tão pouco

“podemos melhorá-los”. Neste sentido, poder-se-ia dizer que

os conceitos clássicos da Física surgem com a força de um a

priori, de uma exigência transcendental. Pois esses

conceitos clássicos seriam prévios à experiência e,

simultaneamente, condição de possibilidade de descrição e

interpretação dos resultados desta. Algo que é, aliás, e

sem surpresa, muitas vezes assinalado por Heisenberg60.

Estamos perante um ponto de grande significado na exegese

dos textos de Bohr. Na verdade, é precisamente neste

sentido, isto é, tomando Bohr como um paladino do dito

carácter apriorístico dos conceitos clássicos, que diversos

filósofos da física como Pringe61, Falkenburg62, Bitbol63,

Petitot64, Honner65, Von Weizsäcker66, entre outros,

tentaram, e continuam a tentar, desenvolver ou encontrar

uma fundação transcendental para a Mecânica Quântica.

60 Conferir, por exemplo, Heisenberg, Wener (1959),” A descoberta de Planck e os problemas filosóficos da física atómica” in Discussione sulla física moderna (tradução para Português por Gita Guinsburg “Problemas da Física Moderna”), São Paulo: Perspectiva, p. 18. 61 Conferir Pringe, Hernán (2007), Critique of the Quantum Power of Judgment, Berlin: De Gruyter. 62 Conferir Falkenburg, Briggitte (2007), Particle Metaphysics: A critical Account of Subatomic Reality, Berlin: Springer. 63 Conferir Bitbol, M. (1998), “Some Steps Towards a Transcendental Deduction of Quantum Mechanics” in Philosophia naturalis, 35, pp. 253-280. 64Conferir Petitot, J. (1991). La philosophie transcendantale et le problème de l’objectivité. Paris: Osiris. 65 Conferir Honner, John (1987), The description of Nature: Niels Bohr and the Philosophy of Quantum Physics, Oxford: Clarendon press. 66Conferir Von Weizäcker, C. (1952), The world view of physics, Chicago: Chicago University Press.

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Grande parte da literatura filosófica contemporânea sobre a

teoria quântica moderna navega nesse mar. Logicamente, de

um modo ou de outro, todos os filósofos da física referidos

tomam Bohr como um kantiano. Alguns, como Hooker67,

Honner68, Pringe69, Catherine Chevalley70 e Steen Brock71, e

recorrendo às palavras de Patrícia Kauark-Leite, “tentam

mesmo estabelecer um paralelo próximo entre o pensamento de

Kant e Bohr”72. Porém, e esta é uma dificuldade

consistente, Bohr nunca se reconheceu como membro de tal

família filosófica. Aliás, curiosamente, Bohr nunca se

refere a Kant em nenhum dos seus textos sobre Física

Quântica. Será uma estranha ausência pois Bohr era

conhecedor das obras do gigante filosófico de Königsberg.

Afinal, Christian Bohr, pai de Niels Bohr, leccionava Kant

na Universidade de Copenhaga. E é bem conhecida a

existência de uma proximidade pessoal e intelectual entre

Bohr e o neo-kantiano Harald HØffding73. Mas, a meu ver,

67 Conferir Hooker, C. A. (1972). “The nature of quantum mechanical reality”, in Paradigms and Paradoxes, Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, pp. 135-172. 68 Conferir nota de rodapé nº 65. 69 Conferir nota de rodapé nº 61. 70 Conferir Chevalley, C. (1991), “Glossaire”, in N. Bohr, Physique atomique e connaissance humaine. Paris: Gallimard, pp. 345-567. 71 Conferir Brock, S. (2003) Niels Bohr’s Philosophy of Quantum Physics, Berlin: Logos Verlag. 72 Conferir Patrícia Kauark-Leite (2010), “Transcendental Philosophy and Quantum Physics” in Revista Internacional de Filosofia, Campinas, v. 33, n. 1, jan.-jun de 2010, P.245. 73 Conferir, por exemplo, Faye, J. (1991), Niels Bohr: His Heritage and Legacy. An Antirealism View of Quantum Mechanics, Dordrecht: Kluwer; Moreira, Rui (2011), Contribuição para o estudo das origens do princípio da complementaridade, no prelo.

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mais importante do que saber a razão da referida ausência,

interessa perguntar, novamente, pela razão da sua presença:

por que defende Bohr que os conceitos clássicos têm este

carácter que podemos classificar de apriorístico? por que

razão – regressando um pouco atrás - a linguagem dos

físicos será sempre a de Newton e de Maxwell? Ou, como diz

Schrödinger em carta dirigida a Bohr em 13 de Outubro de

1935:

“Devem existir razões claras e definidas que o levem [a

Bohr], repetidamente, a declarar que devemos interpretar as

observações em termos clássicos, de acordo com a sua própria

natureza. Sempre que você o afirma, fá-lo de forma tão clara e

definitiva, no indicativo, sem quaisquer reservas como

“provavelmente”, ou “pode ser”, ou “devemos estar preparados

para”, como se fosse a máxima certeza do mundo. Isso deve

pertencer à sua mais firme convicção – e eu não consigo entender

em que se baseia”74

74 […] there must be clear and definite reasons which cause you repeatedly to declare that we must interpret observations in classical terms, according to their very nature. Whenever you say that, you state it so definitely and clearly, in the indicative, without any reservations like “probably”, or “it might be”, or “we must be prepared for”, as if this were the uttermost certainty in the world. It must be among your firmest convictions - and I cannot understand what it is based upon” Carta de Schrödinger a Bohr datada de 13 de Outubro de 1935 in Niels Bohr Collected Works, Vol. 7: Foundations of Quantum Physics II (1933–1958), J. Kalckar, ed., Amsterdam: Elsevier (1996), p. 508. (Tradução minha)

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A resposta directa de Bohr à questão de Schrödinger,

como assinalam75 os filósofos australianos Schlosshauer e

Camilleri, foi evasiva. Contudo, creio que podemos

encontrar a razão da certeza de Bohr e, indirectamente, da

perplexidade de Schrödinger, em passagens como a seguinte:

“[…] apenas com o auxílio das ideias clássicas é possível

atribuir um significado não ambíguo aos resultados da

observação.”76

Nesta passagem Bohr refere-se a “resultados da

observação” ao invés de “resultados da medição” ou

“resultados da experiência”. Trata-se, a meu ver de uma das

flutuações terminológicas habituais nos textos de Bohr e

até – creio que se poderá dizer – típicas em muitos físicos

embora estranhas aos olhos de um filósofo. Flutuação que é

compreensível se atendermos que, em Física, todas as

experiências e todas observações são medições77. E, como

75 Conferir Schlosshauer, Maximilian e Camilleri, Kristian (2008) The quantum-to-classical transition: Bohr’s doctrine of classical concepts, emergent classicality, and decoherence, pp. 25-26 (artigo on-line, em http://arxiv.org/abs/0804.1609v1). 76 “[…] only with the help of classical ideas is it possible to ascribe an unambiguous meaning to the results of observation.”, Bohr, N. (1929), “Introduction Survey to “Atomic Theory and the description of Nature”” in Niels Bohr Collected Works, Vol. 6: Foundations of Quantum Physics I(1926–1932), J. Kalckar, ed., Amsterdam: North-Holland, 1985, p. 295. (Tradução minha) 77 Segundo Max Jammer o filósofo inglês Norman Campbell terá leva ao extremo esta posição ao defender que a Física seria definível como a ciência da medição. Conferir Jammer, Max (1974), The Philosophy of Quantum Mechanics, New York: John Wiley & Sons, p. 471.

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tal, “observação” e “experiência” podem ser aceitavelmente

tomados como sinónimos de “medição”. Por esta razão é,

usual, em Física, por um lado, referir-se o sujeito da

medição como “observador” e, por outro lado, vaguear-se

livremente entre os termos “observação”, “medição” e

“experiência” como se de sinónimos se tratasse.

Por outro lado, na passagem anterior encontramos o termo

“ideias clássicas” ao invés de “conceitos clássicos”. Será

tentador afirmar que também estamos perante mais uma

flutuação terminológica. Julgo, no entanto, que talvez

assim não seja. Mas, se esse não é o caso, então a que

ideias clássicas se refere Bohr? E que relação têm estas

com os conceitos clássicos? Em particular quando são usuais

as passagens nas quais Bohr afirma:

“[…] toda a experiência deve ser, em última análise, expressa

em conceitos clássicos”78

Creio pois ser legitimo afirmar que, segundo Bohr, tanto

a descrição física dos instrumentos, como a interpretação

dos resultados das experiências (ou medições, ou

observações), deve fazer uso dos termos clássicos. Já antes

havíamos encontrado, de certo modo, esta tese quando Bohr

dizia que “a interpretação, sem ambiguidades, de qualquer

78 “[…] all experience must ultimately be expressed in terms of classical concepts”, idem, p. 210. (Tradução minha)

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medição deve ser essencialmente estabelecida em termos das

teorias físicas clássicas.”79. Contudo, nesta última, tal

como quando nos diz que “apenas com o auxílio das ideias

clássicas é possível atribuir um significado não ambíguo

aos resultados da observação”80, surge-nos a expressão

“não ambíguo”. E esta é, a meu ver, precisamente a chave

mestra (ou a palavra-chave) do pensamento Bohriano sobre a

Física dos Quanta. Em particular, permite-nos aceder ao

fundamento da doutrina da indispensabilidade dos conceitos

clássicos. Encontramos esta expressão, novamente, numa

passagem de Bohr onde este procura ser mais esclarecedor

relativamente à referida doutrina dos conceitos clássicos:

“[…] É decisivo reconhecer que, por mais que o fenómeno

transcenda o domínio das explicações da Física Clássica, a

descrição deve, evidentemente, ser expressa em termos clássicos.

O argumento é simplesmente que pela palavra “experimento”

referimo-nos a uma situação onde podemos dizer a outros o que

fizemos e o que aprendemos e, como tal, o relato do arranjo

experimental e dos resultados da observação deve ser expresso

numa linguagem não ambígua com a aplicação adequada da

terminologia da física clássica”81

79 Conferir página 50. 80 Conferir página 62. 81 […] “It is decisive to recognize that, however far the phenomena transcend the scope of classical physical explanation, the account of all evidence must be expressed in classical terms. The argument is simply that by the word “experiment” we refer to a situation where we can tell others what we have done and what we have learned and that,

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Na primeira parte desta citação surge-nos, colocada em

itálico pelo próprio Bohr, de forma muito clara, a doutrina

da indispensabilidade dos conceitos clássicos: “a descrição

deve, evidentemente, ser expressa em termos clássicos”.

Porém, para além do simples enunciar da referida doutrina,

Bohr acrescenta aqui que esta se aplica “por mais que o

fenómeno transcenda o domínio das explicações da Física

Clássica”. Em particular, aplica-se ao domínio quântico.

Mas, mais importante que isso, enfatiza que os conceitos

clássicos são condição geral de descrição de um fenómeno82

físico qualquer. Ou seja, reencontramos aqui o alegado

carácter apriorístico destes conceitos.

Portanto, a primeira parte da citação anterior leva-nos

apenas a reencontrar alguns dos elementos essenciais da

referida doutrina. Mas o mesmo já não poderá ser dito em

relação à segunda parte. Nesta, Bohr acrescenta algo.

Nomeadamente que quando nos referimos a uma experiência

referimo-nos a “uma situação onde podemos dizer a outros o

therefore, the account of the experimental arrangement and of the results of the observations must be expressed in unambiguous language with suitable application of the terminology of classical physics” Bohr, N. (1949), “Discussions with Einstein on epistemological problems in atomic physics” in Atomic Physics and Human Knowledge, New York: Kessinger Publishing, p.39. (Tradução minha) 82 O termo “fenómeno” surge aqui, e daqui em diante, tal como é habitual no contexto da Física, não significando “o que aparece aos sentidos” ou o “objecto da percepção”, mas como “evento”. Por exemplo, a levitação magnética diz-se um fenómeno quântico macroscópico. Não porque observamos um corpo suspenso no ar, mas porque é uma situação física pela Mecânica Quântica

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que fizemos e o que aprendemos”. Isto é, Bohr assinala que

a marca mais fundamental de uma experiência científica não

será tanto o confronto entre a teoria e a natureza, mas a

comunicabilidade do que foi realizado e dos seus

resultados. Não é surpreendente que assim seja. Afinal, a

Ciência é uma empresa necessariamente colectiva. Não só

dentro de uma geração, mas entre gerações.83 E, como tal,

só se efectiva quando é posto em comum o que foi

desenvolvido por um indivíduo ou um grupo de investigação.

A Ciência não é labor de eremitas abnegados. E é isto mesmo

que entendo que Bohr pretende aqui realçar: a

comunicabilidade é uma condição essencial à Ciência. Por

consequência, as experiências e os seus resultados têm de

ser expressos numa linguagem não ambígua. Requisito que,

para Bohr, dentro da Física, só pode ser cumprido com o

recurso aos conceitos clássicos desta ciência84. Só aí, no

83 Conferir, Pombo, Olga (2006), Unidade da Ciência: Programas, Figuras e Metáforas, Lisboa: Edições Duarte Reis, p.139. 84 Contrariamente a este entendimento do pensamento de Bohr, David Favrholdt (Conferir Favrhodt, David (1993), “Niels Bohr’s views concerning language” in Semiotica, Volume 94, Issue 1-2, pp. 5–34) argumenta que o uso necessário dos conceitos clássicos justifica-se com o facto destes, implicitamente, estabelecerem-se através de uma distinção entre o sujeito e o objecto. Entre quem diz e o que é dito. Seria este o sentido de uma comunicabilidade não ambígua. Por consequência, defende Favrholdt, “a solitary physicist on a desert island may communicate with himself by writing down experimental results to be read later, etc. The decisive point is not the situation of communication, but unambiguity. Therefore, we might as well write 'unambiguous thinking' where Bohr writes 'unambiguous communication' or 'description'” (p. 10 do referido artigo). A meu ver este argumento está errado por três razões. Em primeiro lugar, a estrutura sujeito-predicado não é garante de não ambiguidade do que é dito. Em segundo lugar, Favrholdt escamoteia o facto de Bohr, como surge na citação a

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recurso aos conceitos clássicos, a linguagem da Física,

como vimos, ganha sentido. Só esse sentido pode fundar a

sua objectividade. E só essa objectividade pode garantir a

não ambiguidade da comunicação entre pares. Neste sentido,

assinala Howard:

“Bohr via a doutrina dos conceitos clássicos como uma

consequência directa da sua doutrina da objectividade que,

afirma que o uso dos conceitos clássicos é condição necessária

para uma comunicabilidade não ambígua.”85

Não deixa de ser surpreendente que o pensamento de Bohr

se alicerce numa tese sobre a objectividade. Ele que tantas

e repetidas vezes é acusado de ter introduzido o

subjectivismo na Física. Nomeadamente, por ser confundido

como afim com a solução de Von Neumann para o chamado

problema da medição86. Mas compreende-se a razão pela qual

que esta nota se refere, entender por experiência “uma situação onde podemos dizer a outros”. Se é a “outros”, então não fará sentido algum defender que a comunicabilidade é para si mesmo (salvo caso de esquizofrenia…). Terceira e última razão, esta interpretação de Favrholdt é contrária à própria “doutrina da indispensabilidade dos conceitos clássicos”. Pois, da relação sujeito-predicato nada obriga a um recurso necessário dos conceitos da Física Clássica. 85 “Bohr regarded the doctrine of classical concepts as a direct consequence of his doctrine of objectivity, holding that the use of classical concepts is a necessary condition for unambiguous communicability.” Howard, D. (1994), “What makes a classical concept classical? Towards a reconstruction of Niels Bohr’s philosophy of physics,” in Niels Bohr and Contemporary Philosophy (Boston Studies in the Philosophy of Science, Vol. 153), J. Faye and H. Folse, eds., Dordrecht: Kluwer, p. 207. 86 Voltaremos a este assunto, mais tarde, neste capítulo. Conferir página 138 e seguintes.

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Bohr, neste aspecto, tem sido tantas vezes mal

compreendido. Para Bohr, a objectividade não passa

directamente pela relação sujeito-objecto. Ela supõe a

relação comunicativa entre sujeitos. Para ser mais preciso,

as condições de possibilidade da comunicabilidade não

ambígua da experiência. Só que, para essa comunicabilidade

não ambígua “o uso dos conceitos clássicos é condição

necessária”. Assim, como indicava Howard, Bohr “via a

doutrina dos conceitos clássicos como uma consequência

directa da sua doutrina da objectividade”. O que Howard não

explica é porquê? Por que razão exige Bohr este caminho

indirecto? Por que razão não funda Bohr a objectividade

directamente na comunicabilidade entre sujeitos? Por que

exige esse caminho mais longo que obriga á intervenção

mediadora dos conceitos clássicos?

A nosso ver, a razão deve ser procurada no facto de só

os conceitos clássicos, como atrás procuramos mostrar,

atribuírem sentido às teorias físicas. Ou seja, a nosso

ver, a objectividade possível tem o seu fundamento na

abertura semântica dos conceitos clássicos ao mundo que

eles descrevem. É porque os conceitos clássicos abrem a

teoria ao mundo que só eles conferem objectividade à

teoria, que eles constituem a condição necessária de uma

comunicação não ambígua. Aí se funda também a

comunicabilidade que faz da ciência algo mais do que uma

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congeminação solitária, isto é, algo que a ergue ao

estatuto de património colectivo.

Mas, regressemos uma vez mais à questão fulcral que tem

vindo a percorrer estas páginas e à qual falta ainda dar

uma resposta: onde se funda este pretenso estatuto

privilegiado dos conceitos da física clássica? Por que

razão os conceitos clássicos são os que não sofrem de

ambiguidade e, como tal, segundo o físico dinamarquês, são

aqueles de que os físicos terão sempre de fazer uso? Onde

se funda, em última análise, a doutrina bohriana dos

conceitos clássicos? A resposta não é directa. Apenas

tortuosamente alcançável.

Em primeiro lugar, tal como David Favrholdt assinala na

sua introdução geral ao décimo volume das obras completas

de Bohr:

“[…] Ele [Bohr] repetidamente faz-nos recordar do facto de

que a física clássica é um refinamento do uso descritivo da

linguagem comum, isto é, que os conceitos fundamentais da física

clássica são desenvolvidos a partir dos conceitos que fazemos

uso na nossa descrição quotidiana do que nos rodeia.”87

87 “[…] He [Bohr] often reminds us of the fact that classical physics is a refinement of the descriptive use of ordinary language, i.e. that the fundamental concepts of classical physics are developed from the concepts we use in our everyday description of our surroundings.” Favrholdt, David (1999), “General Introduction” in Niels Bohr Collect

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Para Bohr, a linguagem da Física Clássica está, sempre

esteve e sempre estará contida na linguagem que utilizamos

quotidianamente. Ela existe em termos que usamos

quotidianamente para dizer o que hoje dizemos com

“rapidez”, “peso”, “calor”, “localização”, entre outros.

Termos existentes nas línguas naturais desde tempos muito

anteriores a Maxwell ou a Newton. Termos que, segundo Bohr,

são o material, em estado impuro, a partir do qual se

constitui o léxico fundamental das teorias físicas

clássicas. E, como tal, a linguagem da Física Clássica não

é tanto uma linguagem nova, com conceitos que ela mesmo

teria gerado, mas o resultado de um refinamento da

linguagem vulgar.

A chave aqui é – claro está – a palavra “refinamento”.

Palavra que, como assinala Favrholdt, surge repetidamente

nos textos de Bohr nas passagens em que se refere à génese

da linguagem da Física Clássica. Mas Favrholdt não

esclarece as seguintes questões fundamentais: Para Bohr, de

onde provêm esses termos impuros que estão presentes nas

línguas naturais? E o que quer ele dizer com “refinamento”

da linguagem comum?

A resposta à primeira destas questões surge-nos numa

brevíssima passagem da conclusão de um texto de Bohr 1928:

Works, Volume 10: Complementarity Beyond Physics (1928-1962), David Favrholdt ed. Amesterdam: Elsevier, 1999, p. XXXVII (Tradução minha).

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“[…] cada palavra da linguagem refere-se à nossa percepção

comum”88

Se habitualmente Bohr se move na penumbra, aqui coloca-

se numa posição clara. Todos os termos da linguagem natural

têm como referente algo que é dado na nossa percepção

comum. Mais precisamente, da nossa percepção comum do mundo

físico. É Estamos na presença de uma tese marcadamente

empirista. Poderíamos, até, imaginar Bohr a dizer com Hume

que “todos os materiais do pensamento são derivados da

sensibilidade”89. E, como tal, nada com sentido pode ser

dito sobre o mundo físico que não remeta, em última

análise, para uma percepção recordada deste. Claro está que

a tese de Bohr de uma relação necessária entre as palavras

e os elementos da percepção comum do mundo físico é

dificilmente sustentável. Bastará que nos recordemos de

termos como “nada” ou “infinito”. Que percepção temos nós

do “infinito”? Ou do “nada”? Bohr poderia replicar dizendo-

nos que não temos a percepção do infinito, que chegamos a

este por um processo de idealização, mas que, na base dessa

idealização, está uma percepção, necessariamente finita, do 88 “[…] every word in the language refers to our ordinary perception.” Bohr, N. (1928), Bohr, N. (1928), “The Quantum Postulate and the Recent Development of Atomic Theory” in Nature, Volume 121, Issue 3050, p. 590. (Tradução minha) 89 Hume, David (1748), Essays Concerning the Human Understanding ( trad. port. De Artur Morão “Investigações Sobre o Entendimento Humano”, Lisboa: Edições 70 (1989)), p. 25.

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mundo físico. Mais difícil seria o termo “nada”. Pois,

logicamente, entendendo-se “nada” como referindo-se ao que

é uma ausência de percepção, então, é seria por um lado

contraditório falar-se da percepção do “nada” e, por outro,

difícil seria entender o “nada” como idealização a partir

de uma percepção, inexistente e, em rigor, impossível. O

facto é que Bohr, tanto neste caso como em geral, raramente

se confronta com as dificuldades que podem ser colocadas às

suas teses. Tal como nunca tematiza ou sistematiza o seu

pensamento sobre a Física Quântica. Em defesa de Bohr

poder-se-á dizer, simplesmente, que não o faz porque não é

um filósofo. É um físico a pensar sobre a Física. E os

físicos, tipicamente, pensam a física de forma “pré-

critica”,fazendo uso do seu bem conhecido pensamento

axiomático-dedutivo, partindo de um lugar pretensamente

seguro a partir do qual se vai deduzindo sucessivamente as

suas implicações. Talvez por isso, a Bohr baste que seja

evidente – e será isso que é importante aqui focar – que,

por mais distintas que as línguas naturais sejam nas suas

ortografias, nas suas regras de sintaxe e nos seus léxicos,

elas são todas atravessadas transversalmente por um

movimento de abertura ao mundo que nelas se diz e por elas

apenas se pode conhecer e pensar. Sem o saber, Bohr está a

ressuscitar a antiga tese leibniziana (ou se quiser ir

ainda mais longe, cratiliana) segundo a qual as línguas

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naturais estão, desde a sua origem, marcadas por uma

irrecusável abertura ao mundo, ou, como diz Olga Pombo a

propósito de Leibniz, por “imperceptíveis laços que as unem

ao mundo por elas visado”90. Ora, é justamente porque, como

Leibniz, Bohr pensa as línguas naturais como a sede do

sentido que ele pode defender que a física não pode

dispensar os conceitos da física clássica, porque eles nada

mais são do que um “refinamento” dos termos da linguagem

natural, termos esses que, pelo seu lado, se referem sempre

ao mundo através da percepção em que se fundam, ou, por

outras palavras, porque “[…] cada palavra da linguagem

refere-se à nossa percepção comum”91. Em última análise,

porque a Física tem necessariamente que trabalhar com

termos que fazem parte da nossa descrição quotidiana do que

nos rodeia, como “rapidez”, “peso”, “calor”, “localização”,

entre outros.

No entanto, estes termos, no contexto da sua utilização

quotidiana, sofrem de ambiguidades. Por um lado, dizemos,

por exemplo, que “o ar está pesado” ou que “esta caixa é

pesada”, sem distinguir o sentido do termo “pesado” em

90 Pombo, Olga (1997), Leibniz e o Problema de uma Língua Universal, Lisboa: Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, p. 255. 91 “[…] every word in the language refers to our ordinary perception.” Bohr, N. (1928), Bohr, N. (1928), “The Quantum Postulate and the Recent Development of Atomic Theory” in Nature, Volume 121, Issue 3050, p. 590. (Tradução minha)

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ambas situações92. Por outro lado, dizer “esta caixa é

muito pesada” tem significado apenas relativamente ao

sujeito que profere a frase e para o momento considerado.

Mais tarde, a mesmo pessoa pode considerar que é “leve” o

que antes dizia ser “pesado”. Ou, para um outro, a tal

caixa, no momento inicial, pode ser “pouco pesada”. No

primeiro caso, o termo “pesado” é ambíguo pois pode ser

entendido em diferentes sentidos. No segundo caso, a frase

será vaga de sentido, pois refere-se à qualificação de uma

sensação particular e momentânea. Quando se diz “muito”,

logo se pode perguntar: Mas quanto é “muito”? E neste

sentido, a frase será vaga, imprecisa.

Em qualquer destes casos não pode existir, para Bohr,

comunicabilidade efectiva. Pois, em ambas as situações não

existe objectividade no que é dito. Como recorda o físico

dinamarquês:

“Por objectividade entendemos uma descrição por meio de uma

linguagem comum a todos a partir da qual as pessoas podem

comunicar umas com outras no domínio relevante”93

92 Para um físico as duas situações são claramente distinguíveis. No primeiro caso é feita referência o termo “pesado” refere-se à pressão do ar. No segundo caso é refere-se ao peso gravítico da caixa. 93 "By objectivity we understand a description by means of a language common to all in which people may communicate with each other in the relevant field." Bohr, Niels (1953) citado de Favrholdt, David (1999), “General Introduction” in Niels Bohr Collect Works, Volume 10: Complementarity Beyond Physics (1928-1962), David Favrholdt ed. Amesterdam: Elsevier, 1999, p. XXXVII (Tradução minha).

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Bem entendido, a doutrina da objectividade de Bohr é,

como será claro, uma doutrina da inter-subjectividade. Que

se realiza em dois planos. Por um lado, no plano da

comunhão entre sujeitos da percepção do mundo físico. Por

outro lado, na partilha de uma linguagem comum, isto é, de

uma linguagem vulgar, natural, aberta ao mundo, a partir da

qual a física pode, por um processo de “refinamento”,

construir a linguagem da física.

Entende-se, pois, que para Bohr a linguagem da Física

Clássica seja o produto refinado da linguagem vulgar, no

sentido em que teria sido purificada das ambiguidades que

caracterizam aquela. Tornando-se assim a ambígua

referenciação ao mundo físico que se verifica nas línguas

vulgares, numa referenciação unívoca a esse mundo. E, na

medida em que os conceitos da Física Clássica são o produto

acabado desse refinamento, dessa operação de conquista da

univocidade, apenas eles possibilitam que um físico na sua

comunicação com os seus pares seja perfeitamente

compreendido. Isto é, apenas os termos da linguagem vulgar

(enquanto sede do sentido) depois de sujeitos a uma

operação de refinamento que permite apurar a sua

univocidade, garante a comunicabilidade. E apenas essa

comunicabilidade garante a objectividade. Não se pode pois

dizer que, para Bohr, a objectividade repousa unicamente na

comunicabilidade, entendida esta enquanto inter-

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subjectividade. A objectividade em Bohr tem uma dupla raiz.

Ela funda-se na comunhão de sentido que une os falantes de

uma mesma língua vulgar (porque ela se refere sempre ao

mesmo mundo) e no refinamento que permite o acesso à

fixação unívoca do significado.

Assim, será característica essencial dos conceitos

clássicos da Física, e sua condição de objectividade,

possuírem uma dupla faceta. Por um lado, terem como

referente elementos relativos à percepção comum do mundo.

Portanto, ser sempre possível ilustrá-los, isto é, produzir

uma imagem que lhes dê sentido. Ou seja, é ser sempre

possível tornar presente (por via da imaginação, como diria

Kant) uma situação física concreta correspondente ao seu

campo referencial. Seja recorrendo à memória, seja

imaginando-se essa situação física. Por outro lado, é

também condição da objectividade desses conceitos clássicos

da Fisica o facto de terem conquistado a sua univocidade,

isto é, de terem conseguido a fixação do seu sentido. Terá

sido esse o trabalho realizado, entre outros, por Newton e

Maxwell.

Desta forma, quando um físico utiliza o termo “momento

angular” na sua comunicação inter-pares, segundo Bohr,

todos sabem exactamente o que está a ser dito. Sabem-no,

por um lado, porque dominam a linguagem refinada da Física

Clássica. Sabem-no, por outro lado, porque o conceito de

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“momento angular” pode ser ilustrado imaginando-se (ou

recordando-se) uma situação física concreta a que o

conceito se refere, isto é, como diria Kant, porque ao

conceito podemos fazer corresponder uma imagem, ou melhor

uma regra de produção de imagens94. No caso presente, por

“momento angular” entende-se a quantidade de movimento de

um corpo em rotação. Algo que podemos ilustrar imaginando

uma roda de bicicleta em movimento. Quanto maior a

tendência de uma roda de bicicleta manter-se em movimento,

maior o momento angular.

Logicamente, o mesmo poderia ser dito para qualquer

outro conceito da física clássica.

Resta acrescentar que esta tese bohriana de uma conexão

referencial necessária entre os conceitos da Física e os

elementos concretos do mundo físico que comummente

percepcionamos pressupõe a existência desse mundo físico.

Existência que será prévia à linguagem e, como tal,

independente desta. Neste sentido, acompanho Popper quando

este afirma:

“[…] Bohr era, basicamente, um realista. Mas a teoria

quântica foi para ele, desde o início, um enigma”95

94 É justamente essa a função da imaginação em Kant. Ela produz a imagem correspondente ao conceito, ou melhor, a regra de construção dessas imagens. 95 “[…] Bohr was, basically, a realist. But quantum theory had been, from the very start, a riddle for him.” Popper, Karl (1982), Quantum Theory and the Schism in Physics, London: Routledge, p. 9.

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Será ainda cedo para classificar o tipo de realismo que

o pensamento de Bohr sobre a Mecânica Quântica envolve96.

Mas talvez seja desde já possível afirmar que “Bohr era,

basicamente, um realista”. Como serão, de um modo ou de

outro, a generalidade dos cientistas antes e depois de

Bohr. Porém, o facto de ser realista não impede, pelo

contrario potencia, que, tal como a generalidade dos

grandes físicos da sua época (ou mesmo desde a sua época),

Bohr seja um homem confrontado com um enigma. O mesmo que

se faz eco neste trabalho: qual a natureza dos objectos

quânticos97.

Toda a linguagem em Física, em particular da que é dita

clássica, radica nos conceitos de “onda” e “corpo”. Pois, é

presumido que os objectos físicos assim se distinguem na

sua natureza: ondas e corpos. Falar em “momentum”, “massa”,

“impenetrabilidade”, “amplitude”, “fase” ou “difracção” (só

para dar alguns exemplos de termos fundamentais que

constituem a linguagem da física clássica) é falar nas

propriedades ora dos corpos, ora das ondas. Neste sentido,

afirma Bohr:

96 Conferir página 153 deste capítulo. 97 Conferir, por exemplo, Murdoch, Dugald (1987), Niels Bohr’s Philosophy of Physics, Cambridge: Cambridge University press, p. 46.

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“Não deve ser esquecido que apenas as ideias clássicas de

partículas materiais e ondas electromagnéticas têm um campo de

aplicação sem ambiguidades”98

Esta frase leva-nos ao âmago do pensamento de Bohr sobre

a Física. Mais, leva-nos até mesmo ao âmago da própria

Física. Contudo, para o alcançar, há que fazer, uma vez

mais, uma pequena, mas capital, digressão.

2.4. As duas partículas puras da Física Clássica.

É transversal a quase todos os estudos críticos sobre a

Mecânica Quântica, a dificuldade em distinguir de forma

muito clara e precisa os termos “corpúsculo” e “partícula”.

A consequência dessa tão instintiva indistinção leva a que

se imagine ou se julgue as partículas quânticas, como os

electrões, como se fossem pequenos corpos, como se fossem

esferas diminutas. Porém, como aqui já se mostrou o domínio

quântico – e essa é a sua condição de acesso – não é uma

espécie de Liliput. Gostaria, portanto, de contribuir para

98 “It must not be forgotten that only the classical ideas of material particles and electromagnetic waves have a field of unambiguous application”, Bohr, N. (1931), “Maxwell and modern theoretical physics” in Niels Bohr Collected Works, Vol. 6: Foundations of Quantum Physics I (1926–1932), J. Kalckar, ed., Amsterdam: North-Holland, 1985, p. 359. (Tradução minha)

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a clarificação entre os termos “corpúsculos” e

“partículas”.

Por “corpúsculo” julgo que se deve entender “um pequeno

corpo”. Claro está que o termo “pequeno” é relativo e, por

consequência, o termo “corpúsculo” também o será. A Terra

enquanto corpo material é um corpúsculo em comparação com o

Sol. Mas uma bola de futebol será um corpúsculo em

comparação com a Terra. No entanto, reconhecendo embora a

relatividade que afecta este termo, parece legitimo afirmar

que uma molécula, um átomo ou um núcleo, a terem uma

natureza corpórea, são corpúsculos tendo os humanos como

referencial.

Por seu turno, o termo “partícula” remete para a noção

de “parte mínima”, sem que, necessariamente, se refira a

entidades com propriedades corpóreas. Ou seja, é possível

conceber partes mínimas de entidades não corpóreas. Por

exemplo, uma onda é, em geral, decomponível linearmente em

outras. Isto é, uma onda é, em geral, decomponível em duas

ou mais ondas que adicionadas por sobreposição entre si

resultam na primeira. Destas últimas direi que são partes

da primeira e, na medida em que essas partes de ondas são

por sua vez decomponíveis em partes cada vez menores.

Assim, uma onda, tal como um corpo, em geral, é passível de

ser decomposto num conjunto de partes mínimas, ou seja num

conjunto de partículas. Mas já não poderíamos dizer que uma

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onda é composta por um conjunto de corpúsculos. Nesta

assimetria percebe-se a diferença entre corpúsculo e

partícula. De uma onda eu posso dizer que ela tem

partículas. Mas não posso dizer que ela tem corpúsculos.

Isto mostra que o conceito de corpúsculo esta

necessariamente ligado ao conceito de parte de um corpo.

Pelo contrario o conceito de partícula não obriga a

referência ao corpo. Um corpo pode ter partículas mas uma

onda jamais poderá ter corpúsculos. Portanto, enquanto o

termo “corpúsculo” nos remete necessariamente para a

natureza dos objectos físicos, o termo “partícula” remete

unicamente para a relação mereológica entre um todo e as

suas partes. Por consequência, posso dizer que uma onda

pode ter partículas sem que isso constitua uma contradição.

E, deste modo, não é verdadeira a oposição entre

“partícula” e “onda” que é tão vulgar encontrar na

literatura, em geral, sobre a Mecânica Quântica. A

oposição, de facto, far-se-á entre “corpo” e “onda”. Ou, em

particular, no caso de corpos pequenos, entre “corpúsculo”

e “onda”. Algo que só é cuidado em alguma da literatura

filosófica de inspiração francesa sobre a Mecânica

Quântica99. Serve esta distinção principalmente para tornar

99 Por exemplo, Bachelard ao longo da sua obra refere-se sempre a corpúsculos. O mesmo sucede, embora com flutuações em D'Espagnat (conferir D’Espagnat (2006), On physics and philosophy, Princeton: Princeton University Press.) Porém, nenhum dos dois estabelece a distinção entre corpúsculos e partículas.

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claro que as ondas, tal como nos corpos admitem partes

sucessivamente mais simples. Ou seja, a relação mereológica

linear que atribuímos aos corpos, quando se afirma que um

corpo é o compósito aditivo de corpúsculos, tem o seu

paralelo nas ondas. Por outro lado, desta relação

mereológica é permitido pensar num processo de decomposição

sucessivo dos corpos ou das ondas, em partes cada vez mais

simples. Sucessão levada ad infinitum até se alcançar a

mais simples das partes de cada um deles. Isto é, aquela

que não pode ser decomponível, mesmo em pensamento. Algo a

que designarei por “partícula pura”, visto ser a parte sem

partes, uma entidade somente obtenível por um processo

mental pensável, isto é, uma entidade ideal ou uma ideia.

No caso dos corpos, essa partícula pura é a ideia de corpo

pontual. No caso das ondas, essa partícula pura é a ideia

de onda plana sinusoidal. Pois, como Fourier mostrou,

qualquer onda é decomponível em ondas planas sinusoidais.

Por fim, a meu ver, as teorias físicas são definíveis

como a procura de uma resposta precisa a um conjunto

determinado de questões fundamentais. A Mecânica Clássica

pode ser definida como a procura da resposta precisa a duas

questões dirigidas, obviamente, aos objectos físicos: onde

está?; para onde vai? (ou, de onde vem?) Na tal linguagem

vulgar que usamos descuidadamente para descrever o que nos

rodeia poderíamos dizer que perguntar “onde está” é

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procurar saber a localização. E, perguntar “para onde vai é

procurar saber o movimento. Porém, “localização” e

“movimento” só nos permitem responder às questões

características da Mecânica de forma ambígua. Posso dizer

que um livro, por exemplo “A Crítica da Faculdade do

Juízo”, está na segunda prateleira entre a “A Crítica da

Razão Pura” e o “Opus Postumum” e assim dizer a sua

localização. Contudo, não estou a dizer precisamente onde

está. As páginas respeitantes à introdução não estarão,

precisamente, na mesma localização que as páginas que

constituem a conclusão. Isto é, por terem espessura, não

estarei em condições de dizer precisamente a distância

entre dois destes livros. A distância entre capas será

diferente da distância entre contracapas.

Poderei igualmente dizer que retirarei um desses livros

na direcção do cimo da única mesa da sala e assim dizer o

seu movimento desde a estante. Porém, não estarei a dizer

precisamente “para onde vai”. E, em particular, não estarei

em condições de dizer quanto tempo levará o livro no seu

percurso entre a estante e o cima da mesa.

Dizer precisamente “onde está” é dizer a posição. Dizer

precisamente “para onde vai” (ou “de onde veio”) é dizer o

momentum. Se a Mecânica se caracteriza pela procura da

resposta às referidas questões, então um sistema físico –

constituído por um objecto físico, por exemplo - para a

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Mecânica Clássica, fica completamente definido sabendo-se-

lhe a posição e o momentum. O que é, de resto, um teorema

bem conhecido e que aqui é reencontrado, não pela via

formal, como é tradicional, mas por uma via que se poderá

considerar conceptual.

Por outro lado, é relativamente a pedras, livros ou

bolas que dizemos que estão e vão. Quer dizer, não as

pedras, os livros ou as bolas mas unicamente corpos

indiferenciados, abstractos, isentos de qualidades, de

diferenciações internas. Significa isto que a Mecânica tem,

como seu objecto privilegiado, os corpos. E, por essa via,

não admirará que a grande metáfora da Mecânica Clássica

seja o jogo de bilhar. No qual saber “onde” e “para onde” é

tudo o que um jogador tem a considerar. É como se todas as

bolas do bilhar fossem iguais, equivalentes. Corpos

inertes, como se fossem meros pontos matemáticos

suficientemente inchados para se deixarem tocar pelo

exterior. É por isso que, a partir deste jogo, quase os

todos os conceitos da Mecânica Clássica podem ser

ilustrados.

Pois, como bem sabem os jogadores de bilhar, mesmo a

bola tem que ser pensada na sua relação à posição. Se há

pintas brancas no pano verde do campo de jogo para indicar

a posição em que as bolas de bilhar devem colocadas, é

porque se pretende assinalar a bola, na sua posição, tem

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que ser reduzida à condição de ponto. O jogo de bilhar pode

prolongar ainda o seu estatuto de metáfora se pensarmos que

o jogador tem como objectivo central a previsão precisa do

movimento das bolas de bilhar na sua quantidade e sentido.

Mas para esse movimento, de quantidade e sentido preciso,

não há na língua natural uma palavra especifica. Pelo

contrario o físico, depois de reduzir as pedras, os livros

e as bolas ao conceito de corpo e depois de reduzir esta a

um ponto material, possui ainda um termo técnico que

identifica com precisão o movimento e o sentido desse ponto

material: o momentum. Ou seja, a Mecânica constitui-se pala

redução dos seres concretos do mundo natural aos corpos

abstractos e indiferenciados e destes àquilo que, aqui,

proponho designar por “partícula pura dos corpos”. O que

em Newton surge como “partícula material” ou “massa

pontual”100. Por outras palavras, a mecânica faz-se pela

redução dos objectos na sua concretude (pedras, livros,

etc.) a entidades abstracta e inertes, isto é, a corpos.

Mas, o movimento dessa redução, a sua tendência por assim

dizer inercial, vai prolongar-se até que do corpo fiquemos

apenas com o ponto.

Por sua vez, a meu ver, o Electromagnetismo Clássico

pode ser definido pela procura da resposta precisa a uma

única questão: qual a flutuação do campo electromagnético?

100 Conferir, capítulo III, página 225.

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Existe aqui uma assimetria na quantidade e no tipo de

questões fundamentais entre o Electromagnetismo e a

Mecânica Clássica. É uma assimetria relevante. Que, para

já, importa somente aqui indicar, sem ainda a explorar ou

desenvolver. A esta assimetria voltaremos no próximo

capítulo. No entretanto, importa para já assinalar que a

questão fundamental do Electromagnetismo pode ser

desdobrada em duas: ao longo de um determinado tempo,

quantas vezes a flutuação do campo electromagnético perfaz

um ciclo, ou seja, realiza uma oscilação completa?; Qual a

magnitude dessa oscilação?

Perguntar pela quantidade de ciclos ao longo do tempo

será procurar saber o ritmo da oscilação. Ou a sua

frequência, mas esta entendida de forma vaga. E perguntar

pela magnitude da oscilação será procurar saber o seu

tamanho. No entanto, “ritmo da oscilação” e “tamanho da

oscilação” são termos ambíguos. De uma corda a vibrar, isto

é, a oscilar entre dois “pontos” fixos, posso dizer que

pulsa com um ritmo maior ou menor. A corda do mais grave de

um violoncelo oscila menos vezes, num mesmo tempo, do que a

corda do mais agudo de um violino. Porém, não poderei dizer

precisamente o quão um oscila mais do que o outro. Por

outro lado, posso dizer que uma oscilação é grande ou

pequena de tamanho, tendo-me como referencial. Mas com o

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termo “tamanho” não estou a dizer precisamente a magnitude

da oscilação.

Dizer precisamente “a quantidade de oscilações completas

num certo tempo” é dizer-lhe a “frequência temporal”. Isto

é, a quantidade de ciclos por unidade de tempo. Dizer

precisamente a “magnitude da oscilação” é dizer-lhe a

“amplitude”. Isto é, a distância entre o eixo da oscilação

e o seu ponto mais elevado. Portanto, o electromagnetismo

tem como objecto as ondas, pois é relativamente a estas que

perguntamos pelo seu ciclo oscilatório e pela sua

magnitude. E não admirará que a grande metáfora do

Electromagnetismo seja a flutuação da superfície de um

líquido. As águas ordeiras de um lago, por exemplo. O campo

electromagnético é, justamente, pensado na literatura

científica a partir da analogia com a superfície de um

líquido. Porém, só se pode dizer precisamente qual o ciclo

de algo se esse ciclo se repetir constante e eternamente. E

da mesma forma só se pode dizer precisamente a frequência e

a amplitude de uma onda se esta for uma onda plana

sinusoidal. Ou seja, também o electromagnetismo opera uma

redução semelhante àquela que, como vimos, a mecânica leva

a cabo na passagem do objecto concreto ao corpo e deste ao

ponto. Para o electromagnetismo, é necessário passar das

ondas em geral para a ideia de uma partícula pura das

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ondas, que em Electromagnetismo toma a designação “onda

electromagnética”.

Ou seja, podemos pois dizer que o corpo pontual (ou

partícula material) e a onda plana sinusoidal (ou onda

electromagnética) são os arquétipos, respectivamente, dos

corpos e das ondas.

É certo que a palavra arquétipo remete para uma relação

entre algo mais rico (o arquétipo) e algo mais pobre (a

sombra, a coisa, a materialidade). Ora, neste caso, é o

corpo (mais rico) que é reduzido à partícula material (

mais pobre)e a onda (mais rica) que é reduzida à onda plana

sinusoidal (mais pobre). Neste sentido seriam os corpos e

as ondas os arquétipos e não o contrario. No entanto, ao

inverter esta ordem platónica que a palavra arquétipo

transporta nas suas entranhas, pretendo chamar a atenção

para o encontro da Física com a matemática que neste

particular se opera. É porque quer matematizar o mundo que

a Física o reduz. Num primeiro passo, a corpos e ondas. E,

num segundo passo, reduz estes corpos e estas ondas a

partículas puras (tanto de corpos como de ondas). Só assim,

com esta dupla redução, tem-se julgado que a Física está em

condições de poder matematizar o mundo. Surpreendentemente,

seria possível inverter os termos desta relação. Poderíamos

dizer que é porque a Física reduz os seres do mundo a

corpos e ondas e estes a partículas puras, que se coloca em

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condições de iniciar a grande operação de matematização do

real. No primeiro caso, o motor do desenvolvimento da

física é a vontade de matematizar. É essa vontade que está

na origem da redução do concreto ao matemático. No segundo

caso, é porque já foi operada essa redução, porque o mundo

deixou de ser povoado por objectos coloridos, espessos,

preenchidos de qualidades que eu posso olha-los como puros

arquétipos.

Em qualquer dos casos, quando Bohr afirma que “apenas as

ideias clássicas de partículas materiais e ondas

electromagnéticas têm um campo de aplicação sem

ambiguidades”101, afirma-o, justamente, porque apenas

relativamente a estas se pode responder, precisamente, às

questões que caracterizam tanto a Mecânica, como o

Electromagnetismo. Só de um corpo pontual se poderá dizer

que possui uma posição precisa. Só de uma onda plana

sinusoidal se poderá dizer que possui uma frequência

temporal precisa. Isto é, só um corpo pontual e uma onda

harmónica plana possuem um valor numérico bem determinado

nas suas propriedades.

Recapitulemos. Para Bohr, como vimos, existe um Mundo

físico que comummente percepcionamos. Mundo físico a que

nos referimos quando falamos em “localização”, “movimento”,

“ritmo da oscilação”, “tamanho da oscilação”, etc. Termos

101 Conferir página 79, neste mesmo capítulo.

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que são transversais às línguas naturais e é com os quais

verbalizamos a percepção do Mundo físico. Isto é, são os

termos com os quais dizemos as propriedades dos corpos e

das ondas. Contudo, como também vimos, os termos da

linguagem natural são ambíguos. E, em particular, não

permitem responder com precisão às questões que

caracterizam a Mecânica e o Electromagnetismo.

Neste sentido, a linguagem dos físicos resulta,

essencialmente, da transformação de termos como

“localização”, “movimento”, “ritmo da oscilação” ou

“tamanho da oscilação”, em termos que se referem

quantitativamente à “localização”, ao “movimento”, ao

“ritmo” e ao “tamanho”. Respectivamente, “posição”,

“momentum”, “frequência temporal” e “amplitude”. Esta

transformação é, como vimos, aquilo a que Bohr designa por

refinamento. Tornar um discurso que se refere às

propriedades, portanto, qualificativo, num discurso

referente à quantificação, ao quantitativo. E neste sentido

poder-se-ia afirmar que a linguagem da Física Clássica

obriga a passar da linguagem natural à linguagem

matemática. Enquanto esta (a linguagem natural) se refere à

realidade física que comummente experienciamos, aquela (a

linguagem da física) referir-se-ia unicamente à depuração

quantitativa dessa realidade.

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Como consequência desta transformação, os conceitos

clássicos são representáveis por símbolos de valor numérico

variável. Ou simplesmente, por uma variável. Portanto, a

univocidade dos conceitos clássicos é assegurada pelo facto

de elas serem susceptíveis de tradução em formalismos

matemáticos e sistemas de equações.

Assim, os físicos sabem precisamente do que estão a

falar quando falam em “momento angular” porque existe uma

fórmula matemática que o define. No entanto, a

objectividade dos conceitos clássicos não se esgota na sua

univocidade, isto é, na sua possibilidade de tradução em

linguagem matemática. Essa objectividade, como também

vimos, está fundada na abertura ao mundo que caracteriza a

linguagem natural. Como vimos, é aí que os conceitos

clássicos encontram o seu sentido. Portanto, quando Bohr

afirma que “apenas as ideias clássicas de partículas

materiais e ondas electromagnéticas têm um campo de

aplicação sem ambiguidades” ele não está a referir-se ao

problema da objectividade dos termos da Física Clássica,

mas à sua univocidade. O que Bohr está a dizer é que toda a

linguagem da Física, ao querer-se (ao exigir-se) objectiva,

tem como referente, necessariamente, o representante ideal

dos corpos e das ondas: o corpo pontual e a onda plana

sinusoidal. Em, particular, as partículas materiais e as

ondas electromagnéticas. Na verdade, apenas estes

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arquétipos garantem a univocidade dos conceitos clássicos.

Pois, a univocidade dos conceitos clássicos é assegurada

pelo facto das propriedades quantitativas serem traduzíveis

em símbolos matemáticos.

Por fim, se Bohr afirma que a linguagem de Newton e de

Maxwell será sempre a dos físicos, será porque julga que o

mundo físico, necessariamente, só pode ser descrito em

função ou das propriedades dos corpos, ou das propriedades

e das ondas. Pois, a Mecânica Clássica é a Física dos

objectos físicos com propriedades corpóreas. E, por outro

lado, o Electromagnetismo Clássico é a Física dos objectos

físicos com propriedades ondulatórias.

2.5. A Pentadoxia.

Do que acabamos de ver no paragrafo anterior resulta

que, a nosso ver, é legitimo afirmar que o pensamento de

Bohr sobre a Mecânica Quântica se funda em cinco

pressupostos. Pressupostos que Bohr não explicita nem

submete à critica, isto é, extraídos daquilo que o senso

comum julga serem os objectos físicos. Neles se suporta o

edifício da Mecânica Quântica e a generalidade das leituras

filosóficas que sobre ela tem sido propostas e que. em

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geral, são designadas por "Filosofia da Mecânica Quântica".

Cinco pressupostos a que designarei por pentadoxia.

1) Os objectos físicos distinguem-se, quanto à sua

natureza, em ondas e corpos.

2) Todos os objectos físicos são detentores de

propriedades. E neste sentido, diz-se que são

substanciais.

3) Qualquer objecto físico é decomponível em partes

homeómeras, isto é, em partes cuja natureza é

idêntica ao todo de que são partes.

4) Todas propriedades quantitativas dos objectos físicos

têm, intrinsecamente, um valor bem determinado.

5) Quanto à sua modalidade, os objectos físicos,

enquanto possíveis, são idênticos aos objectos

físicos enquanto actuais. E, nessa actualização os

objectos físicos não alteram a sua natureza.

Estamos perante um conjunto de pressupostos que tem sido

admitidos como óbvios, isto é, que não tem sido objecto de

discussão critica, nem do lado dos produtores da mecânica

quântica, nem do lado daqueles que procuram pensar os

adquiridos da mecânica quântica. Percorrendo-se as páginas

da literatura filosófica sobre a Mecânica Quântica não

encontramos quem duvide que os objectos físicos são

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distinguíveis quanto à sua natureza em ondas e corpos102.

Pelo contrário, esta distinção é sempre tomada como ponto

seguro de partida. Ao dizer-se, como se disse no capítulo

anterior, que todas vias existentes na literatura

filosófica sobre a mecânica quântica se reportam

directamente ao labiríntico dualismo onda-corpúsculo, isto

é, o dão como condição de acesso ao próprio domínio

quântico, é porque, precisamente, todas essas vias

pressupõem que os objectos físicos se distinguem, quanto à

sua natureza, em ondas e corpos. O que é deveras

surpreendente. Como se explica uma aceitação tão acrítica e

tácita que os objectos físicos não possam ser concebidos

senão como ondas ou como corpúsculos? Por que não se

encontra uma procura por uma concepção de objectos físicos?

De forma igualmente surpreendente, todos os

especialistas desta área parecem saber o que é um corpo e

o que é uma onda. Dois conceitos que nunca se encontram

analisados, embora constantemente evocados.

É igualmente assumido103 que a distinção entre onda e

corpo reside numa clara distinção entre as propriedades

destes dois tipos de objectos físicos. É defendido, amiúde,

que os corpos são entidades que possuem a propriedade da

102 Conferir, por exemplo, Epperson, Michael (2004), Quantum Mechanics and the Philosophy of Alfred Whitehead, Nova Iorque: Fordham University Press, p. IX. 103 Conferir, por exemplo, Aerts, Diederik (1998), “The Entity and Modern Physics” in Interpreting Bodies (Ed. Elena Castellani), Princeton: Princeton University Press, p.226.

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localização enquanto as ondas são entidades que possuem a

propriedade de interferência à distância, seja com outras

ondas, seja consigo mesmo. Em resumo, esta presumível e

clara diferença entre corpo e onda nunca é tematizada. Ela

é apresentada como se todos soubessem claramente em que

consiste.

De forma ainda mais radical, é presumido que ondas e

corpos são entidades detentoras de propriedades, isto é,

que são substâncias. Sendo que, por substancia é

invariavelmente suposto aquilo que subjaz às qualidades,

aquilo que as suporta, o suporte metafísico das

qualidades104. Trata-se de uma identificação demasiado

rápida que passa ao lado, e aparentemente ignora, que o

conceito de substância é um dos mais antigos e trabalhados

conceitos da filosofia. Como explicar este esquecimento?

Como compreender este quase recalcamento? Duas razões

podem, a meu ver, ser apresentadas. Uma tem a ver com a

História da Física, nomeadamente com a forma como Newton

incorporou o conceito de substância na Física, como se verá

no próximo capítulo. Uma segunda ordem de razões tem a ver

com o facto de o conceito de substância como suporte de

propriedades ser aquele que mais frontalmente é desafiado

pela mecânica quântica. Pois, como foi visto no capítulo

104 Conferir, por exemplo, Falkenburg, Brigitte (2007), Particle Metaphysics, Berlim: Springer, p. 120, p.331.

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anterior, a dupla natureza dos objectos quânticos desafia

esse conceito de substância.

Assume-se, igualmente, que o todo é decomponível em

partes cuja sua natureza é a igual à natureza do todo de

que essas partes são parte. E como tal, numa aproximação

quase inevitável às teses atomistas, podemos pensar num

processo de decomposição continuada até que cheguemos à

ideia de uma parte sem partes. Isto é, a parte simples ou o

que designei por partícula pura. Nesta ordem de ideias,

havendo duas espécies de objectos físicos, haverá duas

espécies de partículas puras ou arquétipos: nos corpos, a

partícula material ou corpo pontual; nas ondas, a onda

plana sinusoidal.

Mas, ao dizer-se que a parte tem a mesma natureza do

todo, então temos que admitir que as propriedades são as

mesmas tanto para o todo como para a parte. E neste

sentido, o todo surge como um mero agregado de partes.

Assim, é porque se assume que a parte é da mesma natureza

do todo, que podemos dizer a velocidade do todo indicando a

velocidade da parte. Deste modo, o todo pode ser

representado pela parte. Em particular, pela partícula pura

uma vez que só estas podem dar resposta, sem ambiguidades,

às questões que caracterizam cada uma das teorias físicas.

Ainda por outro lado, ao caracterizar-se a Física como a

procura de resposta precisa a questões como “onde está?”,

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assume-se105 que esta questão terá uma resposta. Isto é,

que, intrinsecamente, num dado momento, um objecto físico

terá uma posição e um momentum ou uma frequência e uma

amplitude bem determinadas. Ou seja, que a cada instante,

os objectos físicos possuem valores bem determinados nas

suas propriedades quantitativas.

Por fim, quanto à modalidade, na extensão de se aceitar

que a cada instante os objectos físicos são completamente

determinados nos valores das suas propriedades

quantitativas aceita-se que as propriedades manifestadas

num acto de medição existem, antes desta, em potência no

objecto. E, como tal, caracterizando-se os corpos e as

ondas pelas propriedades que são detentores, assume-se que

na actualização de uma dessas propriedades não existe

alteração da natureza. O corpo actualizado é idêntico, isto

é, tem a mesma natureza, do corpo enquanto possibilidade.

Em conclusão, os conceitos clássicos da Física e, como

tal, a própria Física desde Newton, radicam nestes cinco

postulados extraídos de um “senso comum” sobre a natureza

dos objectos físicos. Senso comum que, como vimos,

encontramos com espanto e choque na textura onde se suporta

grande parte da literatura filosófica sobre a Mecânica

Quântica. Especialmente quando esta se centra, como

105 Conferir, por exemplo, Rae, Alastair (2004), Quantum Physics: illusion or reality?, (2ed) , Cambride: Cambridge University Press, p. 106.

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veremos, no chamado problema da medição106 e nos decorrentes

debates sobre as interpretações, o realismo ou a violação

das relações de Bell. Senso comum que em Bohr é

transcendentalizado. Pois, como já vimos, ao entender-se

por experiência o que é comunicável, e ter como a condição

prévia da comunicabilidade a utilização dos conceitos

clássicos, então este senso comum torna-se a própria

condição de possibilidade da experiência em geral. Por esta

via creio que o pensamento de Bohr sobre a Mecânica

Quântica deve ser classificado de “transcendentalista”.

Contudo, e como bem ressalva Kauark-Leite107, Bohr não é um

kantiano. Afinal, embora os conceitos clássicos da física

possuam um carácter apriorístico, não são puros. Pois, na

sua génese, são extraídos da experiência. De uma

experiência comum do mundo físico. Uma experiência que

Newton e Maxwell conceptualizaram na construção das suas

teorias, fixando-lhes uma semântica unívoca.

Considerando que todo pensamento de Bohr sobre a

Mecânica Quântica é suportado, no seu mais fundamental, na

pentadoxia dos objectos físicos da Física desde Newton,

percebe-se agora que a doutrina dos conceitos clássicos não

é nada mais que a expressão dessa ontologia implícita. E

por via desta última os conceitos clássicos da física são

106 Conferir, neste capítulo, página 156. 107 Conferir Patrícia Kauark-Leite (2010), “Transcendental Philosophy and Quantum Physics” in Revista Internacional de Filosofia, Campinas, v. 33, n. 1, jan.-jun de 2010, P.249.

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os únicos objectivos. São os únicos que podemos conhecer de

forma clara e distinta. Para Bohr, os físicos só sabem

precisamente do que estão a falar quando falam em posição,

velocidade, momentum, massa, frequência temporal, amplitude

e todos aqueles que se derivam destes. E, consequentemente,

alicerçando-se na pentadoxia dos objectos físico, para Bohr

é inescapável concluir que a linguagem dos físicos será

sempre a linguagem da Física Clássica.

No entanto, podemo-nos perguntar: E o que sucede com

conceitos da Física Quântica como, por exemplo, “spin”? A

realidade é que, segundo Bohr, não sabemos exactamente do

que estamos a falar quando falamos de “spin”. O mais

compreensível que podemos dizer é que se trata de algo

análogo ao momento angular. Isto é, é que se refere à

quantidade de movimento de algo a rodar sobre si mesmo.

Como um pião. Ou uma bola. Seriamos assim tentados a

imaginar que um electrão seria esférico e sentir que

estamos a compreender o que dizemos por “spin”. Apenas para

sermos desiludidos quando constatamos que, segundo a

Mecânica Quântica, os valores possíveis do spin para um

electrão seriam ½ ou – ½. Isto é, que o electrão dá uma

volta completa sobre si mesmo quando roda 180º. Uma frase

sem sentido. Neste sentido, quando falamos de “spin” Bohr

dir-nos-á que não sabemos realmente do que falamos. Apenas

podemos estabelecer uma analogia com algo que sabemos o que

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é, como o “momento angular”. Ou seja, o conceito quântico

de spin, como todos conceitos da Mecânica Quântica são

generalizações de conceitos da Física Clássica. No conceito

de presente, do conceito de “momento angular”. Esta é a

função do nível conceptual do princípio da correspondência.

Esta é a via pela qual a Mecânica Quântica constitui uma

generalização da Física Clássica. E, por esta razão, o

princípio da correspondência tem um carácter instrumental.

Poderemos agora fazer o caminho inverso e observar o

princípio da correspondência em toda a sua extensão.

2.6. Princípio da correspondência: nível conceptual

Como já aqui foi visto, se é possível estabelecer uma

correspondência geral entre a Mecânica Quântica e as

Teorias Físicas Clássicas, é-o, principalmente, pelos

conceitos de onda e corpo. O conceito de onda no caso da

correspondência entre a Mecânica Quântica e o

Electromagnetismo. O conceito de corpo no caso da

correspondência entre a Mecânica Quântica e a Mecânica

Clássica. Portanto, por um lado, podemos tomar a

correspondência formal como resultante da existência de uma

correspondência conceptual a que esse formalismo se refere.

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101

Por outro, podemos entender que o princípio da

correspondência estabelece uma correspondência entre

linguagem da Física Quântica e a linguagem da Física

Clássica. Correspondência esta que atinge apenas todo o seu

alcance no contexto da Mecânica Quântica.

A doutrina da indispensabilidade dos conceitos clássicos

revela-nos que, mais do que uma referência numérica lá no

limite onde a constante de Planck pode ser “ignorada”, e

mais do que uma analogia parcial entre formalismos, o

princípio da correspondência estabelece como condição, a

priori, que uma qualquer teoria física, e a Mecânica

Quântica em particular, tem de ser constituída de modo a

que os seus conceitos tenham correspondência com os

conceitos da Física Clássica. Pois, só através destes

últimos o formalismo de uma teoria física poderá adquirir

significado. Só através destes haverá objectividade. Esta

mesma leitura do princípio é nos dada por Bohr na seguinte

afirmação:

“[…] a necessidade de fazer um uso extensivo […] dos

conceitos clássicos, dos quais depende, em última análise, a

interpretação de toda a experiência, deu origem à formulação do

chamado princípio da correspondência, que expressa os nossos

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102

esforços de utilizar todos os conceitos clássicos dando-lhes uma

adequada reinterpretação quantum-teórica” 108

Ou dito na forma que surge com mais frequência nas suas

obras:

“O princípio da correspondência expressa a tendência de se

fazer uso, durante o desenvolvimento sistemático da teoria

quântica, de todas as características das teorias clássicas numa

transcrição racional apropriada ao contraste fundamental entre o

postulado quântico e as teorias clássicas”.109

Através desde entendimento do princípio da

correspondência, a que poderemos chamar de nível conceptual

do Princípio da Correspondência, Bohr recusa que a Mecânica

Quântica possa ser aplicada ao domínio das teorias

clássicas ou mesmo que as possa vir a substituir. Pelo

108 “[…] the necessity of making an extensive use, nevertheless, of the classical concepts, upon which depends ultimately the interpretation of all experience, gave rise to the formulation of the so-called correspondence principle which expresses our endeavours to utilize all the classical concepts by giving them a suitable quantum-theoretical re-interpretation.” Bohr, N. (1929), “Introductory Survey to ”The Atomic Theory and the description of Nature” in Niels Bohr Collected Works, Vol. 6: Foundations of Quantum Physics I (1926–1932), J. Kalckar, ed., Amsterdam: North-Holland, 1985, p. 286. (Tradução minha) 109 “The correspondence principle expresses the tendency to utilise in the systematic development of the quantum theory every feature of the classical theories in a rational transcription appropriate to the fundamental contrast between the postulates and the classical theories.”, Bohr, N. (1925), “Atomic Theory and Mechanics” in Niels Bohr Collected Works, Vol. 5: The Emergence of of Quantum Mechanics (Mainly 1924–1926), Stolzenburg, Klaus ed., Amsterdam: North-Holland, 1984, p. 277. (Tradução minha)

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103

contrário, o que defende é que a Mecânica Quântica deve ser

entendida como uma teoria que se afasta o mínimo possível

das teorias físicas clássicas. Ou melhor, que a Mecânica

Quântica é, de algum modo, uma generalização das teorias

clássicas da física. Como se defende aqui, que a Mecânica

Quântica é uma generalização racional das teorias

clássicas.

Mas se as teorias físicas clássicas se constroem no

suposto implícito que os objectos físicos são ondas ou

corpos, como continuar a ser “clássico” se os objectos

quânticos não são nem ondas, nem corpos? É este o dilema

que consumiu Bohr durante os anos de 1926 a 1928. E é com o

propósito de lhe dar resposta que Bohr propõe o seu

“princípio” da complementaridade.

2.7. O “Princípio” da Complementaridade.

O chamado “princípio” da Complementaridade encontra-se

estabelecido, nas suas linhas directoras, no já mencionado

artigo de Niels Bohr crismado de “The Quantum Postulate and

the Recent Development of Atomic Theory”, de Abril de 1928.

No final do primeiro parágrafo desse artigo, Bohr afirma

sobre a constituição da teoria quântica:

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“[…] a sua essência pode ser expressa no chamado postulado

quântico que atribui a qualquer processo atómico uma

descontinuidade essencial […] completamente estranha às teorias

clássicas e simbolizada pelo quantum de acção de Planck”110.

Importa recordar que o chamado postulado quântico (ou

hipótese quântica de Planck) encontra-se na génese da

Teoria Quântica Antiga. Consistindo na postulação, por

parte de Planck, que a energia radiada por um sistema

atómico não sucede de forma contínua mas em emissões

descontínuas111. Postulado a partir do qual (e do modelo

atómico de Rutherford) Bohr concebeu o modelo quântico do

atómico. Inaugurando-se, assim, a Teoria Quântica Antiga.

Por sua vez, é uma consequência do postulado quântico

que, ao nível atómico, qualquer interacção entre dois

sistemas não pode ser minimizada de um modo contínuo até um

valor tão arbitrariamente pequeno quanto se pretenda. Mesmo

que os tomemos como sistemas físicos ideais. Isto é, como

parcelas do mundo físico isoladas e constituídas por

110 “[…] its essence may be expressed in the so-called quantum postulate, which attributes to any atomic process an essential discontinuity […] completely foreign to the classical theories and symbolized by Planck’s quantum of action”, Bohr, N. (1928), “ The Quantum Postulate and the Recent Development of Atomic Theory” in Nature, Volume 121, Issue 3050, p. 580. (tradução minha) 111 Conferir página 30 deste mesmo capítulo.

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partículas puras. Pois, afirma Bohr, pelo dito postulado é

atribuído a “qualquer processo atómico uma descontinuidade

essencial”. As interacções entre sistemas atómicos podem

apenas ser minimizadas de um modo descontínuo, por unidades

discretas, degrau-a-degrau, quanta por quanta, até ao valor

limite de um quantum. Ou seja, até ao valor do quantum de

acção de Planck. E nunca menos que este. Valor que, como já

foi aqui referido, embora seja quantitativamente mínimo é

tremendamente significativo à escala das interacções

atómicas e subatómicas.

Por outro lado, é preciso ter presente dois aspectos.

Em primeiro lugar, qualquer observação de um fenómeno

atómico só é possível por intermédio de um instrumento. A

que Bohr, neste artigo, designa por “agente de observação”.

Mas que em, rigor, deveria designar por “instrumento de

medição”. Pois o termo “observação” pode, erroneamente,

entendido como se referido a algo visualizável. A

distinguir ambas está a distinção entre “ver” (visualizar)

e “ver que” (observar)112. Os “fenómenos” atómicos, pela sua

intrínseca pequenez estarão para além do nosso limite

óptico. Seja da sensibilidade visual directa. Seja,

construindo-se um hipotético (e idílico) microscópico

112 Distinção que é trazida do trabalho de Ribeiro, Cláudia (2009), Electrões inobserváveis e estrelas invisíveis, Lisboa: Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa – colecção Thesis, p. 112.

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óptico que servisse como um fiel ampliador da nossa

acutilância visual. Não há como visualizamos um fenómeno

atómico. São-nos invisíveis. Tal como nos são inodoros,

insonsos, inaudíveis e intangíveis. Podemos, no entanto,

medir os fenómenos através de um instrumento de medida.

Como, por exemplo, um microscópio de varrimento de

electrões. E dos resultados da medição dizer que

observamos. Isto é, dar uma interpretação aos resultados da

medida. Portanto, observação de um fenómeno atómico

corresponde, na verdade, a uma medição (ou um conjunto de

medições) de um sistema atómico. Se existisse um gato à

escala atómica – um nano-gato, por exemplo – ele só por nós

seria observado se se medissem as posições das suas partes

e lhe traçássemos a figura, como fazem as crianças com os

desenhos de unir os pontos. Não nunca o veríamos. Em suma,

Bohr não está a entender por “observação” o que é

visualizável, mas o que é mensurável. E, por isso, em

rigor, por “agente de observação” deveremos entender de um

“instrumento de medida”.

Em segundo lugar, qualquer medição consiste na

coincidência, tanto espacial como temporal (espácio-

temporal, em terminologia importada da Relatividade de

Einstein), entre o sistema medidor – o instrumento – e o

objecto de medida. Então, somos facilmente conduzidos a

concluir, com Bohr, que:

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“o postulado quântico implica que qualquer observação de

um fenómeno atómico envolve uma interacção com o agente de

observação que não pode ser negligenciada”113.

Em razão do postulado quântico, não é possível, mesmo

idealmente, tomar uma medição (ou, como lhe chama Bohr, uma

observação) de um fenómeno atómico como um acto passivo e

neutral. E, como tal, não é possível uma medição em que o

estado físico do sistema objecto da medida seja

imperturbado pela presença do instrumento de medida. Medir

é perturbar. É claro que se poderá dizer tal sempre foi

sabido. Um termómetro colocado numa sala irá trocar calor

com esta. Um amperímetro irá absorver parte da energia do

circuito eléctrico. Uma régua colocada junto a folha de

papel irá atrai-la graviticamente. Em qualquer dos casos, o

valor medido não corresponderá exactamente ao valor antes

da medida. Contudo, em qualquer dos casos a perturbação é

de um valor tão diminuto, muito menor que a própria escala

dos instrumentos de medida, que não é numericamente

significativa. Por outro lado, a história da Física desde

Newton foi acompanhada pelo desenvolvendo uma teoria de

erros de medida. Isto é, um corpo teórico que permitia

113“[…] the quantum postulate implies that any observation of atomic phenomena will involve an interaction with the agency of observation not to be neglected”, Idem, ibidem. (tradução minha)

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explicar e prever os erros afectos à medição por

imperfeições, desvios às condições instrumentais ideais da

medição. Como tal, classicamente é concebível engendrar uma

diminuição contínua da interacção entre o sistema medidor e

o sistema medido. Em limite, podemos idealizar um acto de

medida em que essa interacção seja nula. E, deste modo,

afirmar que o resultado da medida corresponde ao valor

quantitativo da propriedade do sistema físico objecto da

medição. Nestas condições ideais, uma situação física onde

o termómetro indicasse, a exemplo, -273,15 K, esta seria a

temperatura do sistema medido.

Portanto, do postulado quântico resulta, segundo Bohr,

que medir é sempre perturbar. Não é idealizável uma medição

em que o sistema medido seja indiferente à presença do

sistema medidor. Daqui seguiria que, à escala atómica, o

resultado de uma medida não reflecte o valor quantitativo

da propriedade do sistema físico objecto da medição. O

resultado de uma medida reflecte, necessariamente, a

interacção entre sistema medido e sistema medidor. Assim,

não é concebível um termómetro que meça objectivamente a

temperatura, um amperímetro que meça a corrente eléctrica

ou uma régua meça o tamanho de um sistema atómico. E, por

conseguinte, esvaziar-se-ia de algum sentido expressões,

como por exemplo, “a temperatura do átomo é de”. Ou “a

dimensão do átomo é”.

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Do postulado quântico resulta uma subjectividade

inevitável associada ao acto de medir. E, como tal, de

observar. Subjectividade inevitável que leva Bohr ao

seguinte raciocínio:

“Por um lado, a definição de um estado de um sistema

físico, como é ordinariamente entendido requer a eliminação de

todas as perturbações exteriores. Mas, neste caso, de acordo com

o postulado quântico, qualquer observação será impossível e,

acima de tudo, os conceitos de espaço e tempo perderão o seu

sentido imediato. Por outro lado, se permitirmos que existam

interacções com os apropriados agentes de medida, isto de forma

a ser possível a observação, então uma definição não ambígua do

estado do sistema não é, naturalmente, possível, e não pode

haver qualquer causalidade no sentido ordinário da palavra”114.

A definição do estado de um sistema físico, segundo a

Mecânica Clássica, é completamente estabelecido pela

atribuição de um valor bem determinado às propriedades

posição e momentum. É responder precisamente às questões

114 “On one hand, the definition of the state of a physical system, as ordinarily understood, claims the elimination of all external disturbances. But in that case, according to the quantum postulate, any observation will be impossible, and, above all, the concepts of space and time lose their immediate sense. On the other hand, if in order to make observation possible we permit certain interactions with suitable agencies of measurement, not belonging to the system, an unambiguous definition of the state of the system is naturally no longer possible, and there can be no question of causality in the ordinary sense of the word.”, Idem, ibidem (tradução minha)

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110

“onde está?”, “para onde vai?”. Porém, somente será

possível falar de valores bem determinados destas

propriedades se se tomar como isolado o sistema físico

considerado. Isto é, se se considerar o sistema ausente de

interacções físicas com o que lhe é exterior. Atribuir um

valor bem determinado à velocidade de uma bola de bilhar

implica que, para além de representável por um corpo

pontual, não está a ser golpeada nem a exaustar-se em

atrito. Pois se assim fosse, a posição e o momentum não se

conservariam no sistema considerado e, por consequência,

não lhes poderíamos atribuir valores bem determinados. Como

tal, a definição de um sistema físico “requer a eliminação

de todas as perturbações exteriores”. Contudo, pelo

postulado quântico a observação de um sistema atómico

qualquer envolve uma interacção de valor não nulo com o

instrumento de medida, então de um sistema atómico isolado

“qualquer observação será impossível”. Um sistema atómico

isolado é como uma caixa negra. Um território sempre por

cartografar. Uma resposta sempre adiada as questões que

caracterizam as teorias físicas clássicas.

Por outro lado, se se pretende responder a estas

questões, então, necessariamente, ter-se-ão permitir

interacções entre o sistema objecto da medição e o sistema

agente da medição. Porém, por consequência do postulado

quântico, essa interacção, mesmo idealmente, não terá um

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valor nulo. A medição alterará o valor numérico da

propriedade medida. E, como tal, “uma definição não ambígua

do estado do sistema não é, naturalmente, possível”. Ao

medir o sistema atómico – um electrão, por exemplo -

podermos responder à questão “onde está?”. Mas,

simultaneamente, introduzimos uma perturbação tal que nos

impossibilitará de responder precisamente, para esse

sistema, à questão “para onde vai?”. Assim, por

consequência da perturbação intrínseca ao acto de medir,

não será possível definir a evolução causal do sistema. Ou

nas palavras de Bohr, “não pode haver qualquer causalidade

no sentido ordinário da palavra”. Daqui, conclui:

“a própria natureza da teoria quântica força-nos a

considerar a co-ordenação espácio-temporal e a asserção da

causalidade, união que caracteriza as teorias clássicas, como

aspectos complementares mas exclusivos da descrição […]”115.

Esta passagem assinala a primeira vez em que surge o

termo “complementaridade” nos trabalhos publicados de Bohr.

E constitui, igualmente, o enunciado do primeiro tipo

115 “The very nature of the quantum theory thus forces us to regard the space-time co-ordination and the claim of causality, the union of which characterizes the classical theories as complementary but exclusive features of the description, symbolizing the idealization of observation and definition respectively” Idem, ibidem (Tradução minha)

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complementaridade: a que podemos designar por

“espaciotemporal-causal”.

De seguida, Bohr enfrenta-se com o problema da

natureza dos objectos quânticos. Tanto para o caso da

radiação luminosa como para o caso dos constituintes

atómicos da matéria.

No caso da radiação luminosa, Bohr relembra que a sua

propagação é adequadamente descrita pela teoria

electromagnética de Maxwell. Teoria onde – recorde-se - se

concebe a luz como uma flutuação de um meio contínuo: o

campo electromagnético. Ou seja, onde se toma a luz como

uma entidade com uma natureza ondulatória. Contudo, a

conservação da energia e de momentum durante as interacções

entre a luz e a matéria, como no caso do efeito

fotoeléctrico, por exemplo, é adequadamente descrita, tal

como mostrou Einstein116, concebendo a luz como uma entidade

constituída não por uma ondas, mas por corpos de dimensões

físicas ínfimas, por corpúsculos de luz. Ou seja, por

fotões. Assim, por um lado, somos levados a dizer que a luz

tem uma natureza ondulatória no que concerne à sua

propagação. E, por outro lado, com a mesma confiança,

dizemos que a luz tem uma natureza corpórea (ou

116 Conferir Einstein, Albert (1905, "On a Heuristic Viewpoint Concerning the Production and Transformation of Light" in Annalen der Physik 17: 132–148.

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corpuscular) no que respeita à alteração do estado físico

por consequência da sua interacção com a matéria.

O caso da natureza dos constituintes atómicos da

matéria, segundo Bohr, é análogo ao da radiação

electromagnética. Por um lado, na propagação diz-se que um

electrão é uma onda. Por outro lado, no que diz respeito à

interacção, seja com a luz, ou seja com outros

constituintes atómicos, somos levado a dizer que um

electrão tem a natureza dos corpúsculos.

Portanto, tanto para a luz, como para os constituintes

mínimos da matéria, somos conduzidos a dizer que se

propagam como uma onda e, no entanto, interagem como

corpúsculos. Tanto a luz, como as fracções atómicas da

matéria, somos seduzidos a dizer que possuem uma dupla e

contraditória natureza. Ora corpúsculo, ora onda. O que

constitui o já conhecido paradoxo da natureza dos objectos

quânticos. Reaparece, uma vez mais a questão: o que é um

objecto quântico? Aparentemente, tão insolúvel como

inevitável. Mas agora é o momento em que Bohr enfrenta

directamente. É um dos momentos decisivos da constituição

da Mecânica Quântica. Diz-nos o físico dinamarquês:

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114

“[…] nós não estamos a lidar com imagens contraditórias

mas complementares, que apenas juntas oferecem uma generalização

natural dos modos clássicos de descrição”117.

A terminologia de Bohr derrapa uma vez mais. Como

sempre parece suceder em momentos decisivos. Agora surge-

nos o termo “imagem”. No entanto, creio que por “imagem”

Bohr está simplesmente a entender uma representação visual

dos conceitos de onda e de corpo. A sua ilustração. Como

tal, se este esclarecimento permite controlar a derrapagem,

penso que é entendível das palavras de Bohr que devemos

considerar as ondas e os corpos não como entidades com

naturezas contraditórias, mas como entidades com naturezas

complementares. Tal como se nos dissesse que não devemos

considerar a luz e a sombra, a vida e a morte, o cheio e o

vazio não como contraditórios, mas como complementares.

Algo que, de algum modo, nos faz recordar o Tao Te Ching

(ou Dao De Jing) de Lao Tzu. Quando neste se insiste na

complementaridade dos opostos Yin e Yang. Onde um evoca

sempre o outro. O sábio procura não marcar a oposição, mas

o estado de equilíbrio, de harmonização, entre eles. Talvez

tenha sido esta proximidade que tenha levado Bohr a

117 “We are not dealing with contradictory but complementary pictures of the phenomena, which only together offer a natural generalization of the classical mode of description” Idem, ibidem. (tradução minha)

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escolher o tão conhecido diagrama T’ai-chi T’u como seu

brasão de armas.

Mas seja qual tenha sido a influência orientalista no

pensamento de Bohr, importa regressar à citação anterior. E

podemos interpretar esta entendendo que Bohr nos diz que

“onda” e “corpo” embora mutuamente excludentes, por serem

contrários, ambos são necessários, de forma complementar, à

descrição completa dos sistemas quânticos. Em particular,

dos sistemas atómicos. Temos assim o segundo tipo de

complementaridade: a complementaridade onda-corpúsculo.

Não é claro ao logo deste artigo de Bohr de 1928, tal

como nunca ficou claro ao longo da sua obra, se existe uma

interligação intrínseca entre estes dois tipos de

complementaridade. Uma articulação fundamental. Ou mesmo se

estes são apenas dois casos particulares da aplicação de um

princípio comum: o tal princípio de complementaridade.

Termo este, no entanto, que, como já aqui se afirmou118,

Bohr nunca terá utilizado. Na realidade, como assinala,

entre outros, Max Jammer119, Bohr nunca oferece uma

definição clara do que seja a “complementaridade”. Segundo

este autor o mais próximo que Bohr esteve de nos conceder

118 Conferir Folse, Henry J. (1985), The Philosophy of Niels Bohr, New York: Elsevier S.P., p. 18. 119 Conferir Jammer, Max (1974), The Philosophy of Quantum Mechanics, New York: John Wiley & Sons, p.95.

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uma definição de “complementaridade” terá surgido em 1929,

quando declara:

“A indivisibilidade do quantum de acção [isto é, o

postulado quântico] […] força-nos a adoptar um novo tipo de

descrição designado por complementaridade, no sentido que

qualquer aplicação dos conceitos clássicos pressupõe o uso

simultâneo de outros conceitos clássicos que, numa conexão

diferente, são igualmente necessários para a elucidação do

fenómeno”120.

Na realidade, a afirmação “qualquer aplicação dos

conceitos clássicos pressupõe o uso simultâneo de outros

conceitos clássicos” para uma elucidação do fenómeno,

acrescenta pouco ou nada em relação ao que já

característico na Física Clássica. Em Mecânica Clássica,

recordemos, a exemplo, a elucidação de um fenómeno requer a

utilização simultânea e conjunta dos conceitos de posição e

momentum. Neste sentido estas palavras de Bohr não serão,

por si só, especialmente esclarecedoras. No entanto, Bohr

acrescenta “numa conexão diferente”. E deste modo, embora

120 “The indivisibility of the quantum action […] force us to adopt a new mode of description designed as complementary in the sense that any given application of classic concepts precludes de simultaneous use of other classic concepts which in a different connection are equally necessary for the elucidation of the phenomena” Idem, ibidem (Tradução minha).

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de forma pouco segura, poder-se-á entender que a

complementaridade é para Bohr “um novo tipo descrição”,

cuja tipologia particular caracteriza-se pelo uso de

simultâneo de conceitos clássicos que se contradizem com

vista à “elucidação do fenómeno”.

Por outro lado, da citação anterior é notório que Bohr

percebe a complementaridade como consequência do postulado

quântico. Como algo que é forçado por este. E, por essa

via, seria forçado, para Bohr, pela própria essência da

teoria quântica. Pois, recordemos, para o físico

dinamarquês, a essência da teoria quântica encontra a sua

expressão no postulado quântico. Logo, a complementaridade

deve ser tida não como uma interpretação da Mecânica

Quântica, nomeadamente do seu formalismo, mas como condição

da constituição desta. Como condição de possibilidade de

constituição de qualquer teoria quântica, poderia avisar-

nos Bohr. Porém, a meu ver, a complementaridade não é uma

consequência inescapável do postulado quântico, e muito

menos uma condição de possibilidade de teorias quânticas em

geral. A complementaridade é consequência da perseverança

da pentadoxia sobre os objectos físicos e da sua face

visível, a doutrina dos conceitos clássicos, perante a

aparente a questão da natureza dos objectos quânticos. É-o,

antes de mais, porque todo o argumento da complementaridade

pressupõe, de forma implícita, a tese que não podemos

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descrever os fenómenos físicos senão através dos conceitos

da física clássica. E, vemo-lo em passagens, como na

citação anterior, em que se afirma à guisa de definição de

complementaridade que “qualquer aplicação dos conceitos

clássicos pressupõe o uso simultâneo de outros conceitos

clássicos”.

Na verdade, as teses centrais do artigo de 1928 - e

talvez do próprio pensamento Bohriano - encontram-se

expostas logo nas duas primeiras linhas do primeiro

parágrafo. Linhas sobre as quais não se têm escrito

suficientes páginas de filosofia. Afirma-se:

“A teoria quântica é caracterizada pelo reconhecimento

de um limite fundamental das ideias da física clássica quando

aplicadas aos fenómenos quânticos. Esta situação assim criada é

de uma natureza peculiar, dado que a nossa interpretação das

experiências reside essencialmente em conceitos clássicos.”121

Desta citação de Bohr, em primeiro lugar, é

reconhecível a referida doutrina quando nos afirma “a nossa

interpretação das experiências reside essencialmente em

121 “The quantum theory is characterized by the acknowledgment of fundamental limitation in the classical physical ideas when applied to atomic phenomena. The situation thus created is of a peculiar nature, since our interpretation of the experimental material rests essentially upon the classical concepts”, idem, p. 580.

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conceitos clássicos”. E encontramo-la presente nos dois

tipos de complementaridade. No primeiro tipo – a

complementaridade espaciotemporal-causal – de forma um

pouco arrevesada. Pois, sem o justificar, Bohr refere-se

tanto ao espaço-tempo, como à causalidade, como conceitos

clássico da física. E, nesta medida, no primeiro tipo de

complementaridade é pressuposto que a representação

espácio-temporal e causalidade sejam conceitos necessários

para a descrição dos fenómenos físicos.

Encontramos, igualmente, a presença da doutrina dos

conceitos clássicos no caso do segundo tipo de

complementaridade. Pois esta ao fazer-se a partir da

oposição entre os conceitos de onda e de corpúsculo, faz-se

pressupondo que essas são as duas únicas concepções

possíveis dos objectos físicos.

Seja num caso ou noutro, os conceitos clássicos são

apresentados, no quadro da complementaridade, como

condições necessárias à descrição dos fenómenos físicos em

geral, e por conseguinte, dos fenómenos atómicos em

particular. Deste modo, uma correspondência necessária

entre o modo de descrição dos fenómenos macroscópicos e

atómicos, entre os conceitos de física clássica e os

conceitos de física atómica. Assim, encontramos igualmente

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a presença, em ambos tipos de complementaridade, do

princípio da correspondência.

No entanto, da doutrina dos conceitos clássicos e a

aplicação do princípio da correspondência não decorre, por

si só, a complementaridade. Pois, por um lado, se a

natureza de todos objectos físicos fosse inteiramente

corpórea, toda Física seria, em última análise, Mecânica.

E, como tal, toda situação física poderia ser explicada

através da ideia de corpo pontual, dos conceitos clássicos

da Mecânica e ilustrada através de um jogo de bilhar. Em

particular, uma física do átomo seria nada mais que uma

generalização da Mecânica para o domínio do ínfimo. Tal

como a Mecânica celeste é uma generalização da Mecânica

para o domínio do astronómico. Existindo uma consequente

correspondência entre os conceitos de uma e de outra. Esse

era o projecto de Heisenberg, que pretendia construir uma

teoria atómica unicamente corpuscular. O que o conduziu à

Mecânica Matricial122. Esta, porém, nunca conseguiu dar

conta da propagação de um sistema quântico. E, por

consequência, de aspectos como a difracção da luz, para se

dar um exemplo.

Por outro lado, se a natureza de todos objectos físicos

fosse inteiramente ondulatória, toda a Física seria algo

122 Conferir, por exemplo, Cushing, James T. (1998), Philosophical Concepts in Physics, Cambridge: Cambridge University Press, p. 284.

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121

semelhante ao Electromagnetismo. E, como tal, quase toda

situação física poderia ser explicada através dos conceitos

clássicos do Electromagnetismo e ilustrada através da

flutuação de águas de um lago. Em particular, uma física do

átomo seria nada mais que uma generalização do

Electromagnetismo. Esse era o projecto de Schrödinger, que

pretendia construir uma teoria atómica unicamente

ondulatória123. O que o conduziu, depois de entrar em

contacto com o trabalho de De Broglie, à Mecânica

Ondulatória. E que está na origem da actual interpretação

estocástica da Mecânica Quântica. Esta, porém, nunca

conseguiu dar conta satisfatoriamente, por exemplo, da

interacção, ao nível atómico, entre a radiação e a matéria.

A verdade é que Bohr sempre rejeitou tanto o projecto

de Heisenberg, como o de Schrödinger. E se o encontramos na

citação anterior a defender o uso necessário dos conceitos

clássicos, encontramo-lo, igualmente, logo na primeira

frase, a afirmar que a característica das teorias quântica

é “o reconhecimento de um limite fundamental das ideias

clássicas”. Nomeadamente, das ideias de partícula material

e onda electromagnética. Um limite que é sinalizado pelo

postulado quântico. Um limite que tem, no entanto, a sua

razão na questão da natureza dos objectos quânticos. O

123 Conferir, Schrödinger, Erwin (?), “What is an Elementary Particle?” in Interpreting Bodies, Elena Castellani ed. (1998), Princeton: Princeton University Press, pp 197-210.

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122

postulado quântico é, na verdade, uma desta consequência

desta. Um seu corolário. É claro que será estranho dizer

que um postulado é um corolário. No entanto, essa transição

é apenas fruto da própria evolução histórica da teoria

quântica. É um anacronismo de Bohr. O postulado quântico

surge, recorde-se, no contexto da teoria quântica antiga.

Onde era realmente a postulação que a radiação

electromagnética interagia com a matéria por quantidades

discretas. Porém, na mesma medida que a transição entre a

Teoria Quântica Antiga e a Mecânica Quântica se dá por

razão da hipótese de De Broglie, o postulado quântico de

Planck é integrado na nova teoria quântica como um

corolário. Pois, dado que o problema da natureza dupla dos

objectos quânticos consiste – recorde-se – no facto que

estes propagarem-se como ondas e interagirem como

corpúsculos, então será um corolário do referido dualismo

dizer que a interacção entre sistemas atómicos, que são

sistemas quânticos particulares, se realiza de forma

descontínua, isto é, corpuscularmente. E, em particular,

que qualquer processo atómico envolve uma descontinuidade

essencial. O que nada mais é justamente a definição que

Bohr no artigo de 1928 dá de “postulado quântico”.

Como tal, a meu ver, Bohr compreende bem que é a

própria natureza dos objectos quântica a impor um limite à

aplicação das ideias clássicas. E, por consequência,

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limitar, igualmente, a aplicabilidade dos conceitos

clássicos. Limite que é expresso no postulado quântico. E

que como tal, no seu entender, é forçosamente uma

característica de uma qualquer teoria quântica. Pois não

existindo tal limite a teoria atómica, por exemplo, seria

naturalmente incorporada numa generalização de uma das

teorias clássicas. Compreende-se então o dilema de Bohr, o

mesmo que se encontra na génese da constituição da Mecânica

Quântica: como dar conta da natureza quântica sem deixar de

ser fiel à concepção clássica dos objectos físicos? Ou como

será a formulação mais próxima de a de Bohr: “como integrar

o postulado quântico nas teorias clássicas?”. E do segundo

tipo de complementaridade compreende-se a solução de Bohr:

os conceitos de corpo e de onda, quando aplicados ao

domínio quântico, não devem tomados como contraditórios

entre si, mas complementares. E, por consequência, o mesmo

ocorrerá para os conceitos que se reportam ora aos corpos,

ora as ondas.

Creio ser, neste momento, entendível o movimento de

Bohr. Movimento derradeiro e decisivo para a constituição

da Mecânica Quântica. Como o que não tem solução

solucionado está, e perante a persistente e aparente

irresolubilidade da questão da natureza dos objectos

quânticos, Bohr decide evitá-la. Retira-se estrategicamente

do campo da ontológica e coloca-se no domínio da

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124

epistemologia. Pois ao afirmar que a complementaridade

consiste na aplicação conjugada dos conceitos de corpo e

onda, Bohr, no fundo, esquiva-se de enfrentar a

perturbadora natureza dos objectos quânticos, de responder

à questão “o que é?”, focalizando-se na questão “como

descrever os fenómenos quânticos fazendo uso dos conceitos

clássicos?”. Como se dissesse que, por vezes, a coisa

quântica deve ser descrita como ondulatória e

conjugadamente, nas outras vezes, deve ser descrita como

corpuscular, sem nunca se dizer que “coisa” é essa. A

complementaridade é o acordo possível no desacordo

insanável entre a pentadoxia e a questão da natureza dos

objectos quânticos. Contudo, não é uma resposta a esta

última. É uma forma hábil de a evitar. De lhe fugir. De a

ignorar. Se os objectos quânticos fossem ornitorrincos e

Bohr não um físico mas um biólogo, a sua reacção perante a

célebre aparição do ornitorrinco seria defender que não

importa se este animal é um Mamífero ou é um Réptil. Nem,

muito menos, ousar-se repensar as categorias de Mamífero ou

de Réptil. A reacção de Bohr seria, julgo, afirmar que

devemo-nos salvar do tormentoso paradoxo que esse animal

nos oferece dizendo apenas que nuns aspectos pode ser

descrito como Mamífero, e noutros como Réptil. Tomemos

Mamífero e Réptil não como contrários, mas como

complementares.

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Este ardiloso desviar da nossa atenção da ontologia

para a epistemologia, da questão da natureza dos objectos

quânticos, para a questão de como descrever os fenómenos

quânticos, é um gesto de ilusionista que parece fazer

desaparecer o obstáculo principal, mas que, contudo, não é

realizado sem gravíssimas consequências. Aliás, a meu ver,

é a raiz de todas maleitas filosóficas da Mecânica

Quântica.

Um conjunto de implicações mais directas encontra-se

expresso no primeiro tipo de complementaridade:

complementaridade espácio-temporal/causal. Ao descreverem-

se os fenómenos quânticos fazendo uso conjugado dos

conceitos de corpo e onda, por um lado, e dado a

incapacidade de qualquer um destes conceitos agarrar a

natureza dos objectos quânticos, resulta que a descrição é

sempre incompleta. Quanto melhor os descrevemos na sua

propagação, fazendo uso do conceito de onda, pior os

descrevemos na sua interacção como corpúsculos. Ou seja,

quanto melhor sabemos onde está, pior sabemos para onde

vai, ou de onde veio. E o inverso. O que é justamente o que

Heisenberg nos diz nas suas relações de incerteza: quanto

melhor sabemos o momentum (e, por consequência, a

velocidade), pior sabemos a posição; quanto melhor sabemos

a posição, pior sabemos o momentum. O que, no fundo, é o

que é dito por Bohr no primeiro tipo de complementaridade.

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Se sabemos a espaciotemporalidade do objecto quântico,

deixamos de saber a sua evolução causal. E vice-versa.

Estas relações de incerteza, que estão contidas no

primeiro tipo de complementaridade, têm três implicações.

Em primeiro lugar, se os conceitos clássicos da física

forem entendidos com um estatuto de conceitos a priori,

significa isto que, em termos kantianos, existirá uma

complementaridade entre a sensibilidade (algo que aparece

no espaço-tempo) e o entendimento (categoria da

causalidade). E, por conseguinte, os fenómenos quânticos

seriam epistemologicamente indetermináveis. Seriam objectos

de conhecimento de experiência eternamente incompletos. Ou

para se ser fiel a Kant, nem objecto124 seriam, pois,

justamente, não seriam algo que aparece aos sentidos e é

determinável pelo entendimento. Apenas seriam, ou aparição

de algo aos sentidos, ou pura especulação da razão.

Portanto, o primeiro tipo de complementaridade assinala o

limite inultrapassável da capacidade de conhecimento.

Limite esse que é expresso, matematicamente, nas relações

de Heisenberg. Este seria então o âmago do primeiro tipo de

complementaridade: Assinalar que a própria natureza dos

objectos quânticos marca o limite da capacidade legisladora

do sujeito transcendental. A complementaridade é como uma

124 No capítulo seguinte analisámos o conceito de objecto físico em Kant.

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placa que indica o fim do mundo conhecível. E, por

conseguinte, daqui decorreria que a Mecânica Quântica seria

a última teoria da Física. É a tese, como refere Popper, do

“fim do percurso”125 da Física.

Em segundo lugar, da nossa limitação transcendental na

descrição dos fenómenos quânticos decorre que não é

possível determinar o resultado de uma medida a não ser

probabilisticamente.

Em terceiro lugar percebe-se a conexão entre os dois

tipos de complementaridade. A primeira, que até aqui

chamámos de espácio-temporal/causal, a que, como salienta

Murdoch126, também poderíamos ter chamado de

cinemática/dinâmica, pois estabelece-se entre a evolução no

espaço-tempo e a interacção física, é uma complementaridade

epistemológica. Enquanto a segunda é uma complementaridade

ontológica. São tipos de complementaridades distinto na

justa distinção que existe entre esses campos filosóficos.

Compreende-se assim que Bohr nunca os tenha formulado como

um “princípio” geral e uno. Ou que um pode ser reduzido a

outro. A relação entre os dois tipos de complementaridade é

a relação entre epistemologia e a ontologia. E, como tal, a

meu ver, a complementaridade espácio-temporal/causal não é

125 Conferir Popper, Karl (1982), Quantum Theory and the Schism in Physics (tradução do Inglês por Nuno Ferreira da Fonseca, “A Teoria dos Quanta e o Cisma na Física”), Lisboa: Dom Quixote, p. 27. 126 Conferir Murdoch, Dugald (1987), Niels Bohr’s Philosophy of Physics, Cambridge: Cambridge University press, pp. 58-60.

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derivável da complementaridade onda/corpúsculo, mas é

consequente.

Por outro lado, do já referido deslocamento da

ontologia para a epistemologia resulta que a Mecânica

Quântica constitui-se como uma teoria carente de ontologia.

Mário Bunge, um dos poucos a compreender bem a importância

e gravidade da questão da natureza dos objectos quânticos,

defende que a Mecânica Quântica é uma teoria à procura do

seu referente127. Aponta, justamente, para esta ausência

como o coração da debilidade filosófica da Mecânica

Quântica. E para suprir esta carência avança com distinção

entre objectos físicos clássicos, a que designa por

classões e objectos quânticos, a que designa por

quantões128. A Física Clássica referia-se aos primeiros. A

Mecânica Quântica aos segundos. Os objectos clássicos

teriam como propriedades a posição e o momentum. Os

objectos quânticos teriam como propriedades a quasição e o

quasimomentum. A meu ver, se Bunge acerta na questão, não

alcança a solução. Não posso compartilhar da sua proposta

pois esta consiste, no fundo, na postulação Ad-Hoc de

entidades – os quantões – detentoras das bizarras

propriedades quânticas da dispersão de posição – quasição –

e dispersão de momentum – quasimomentum – sem que Bunge

127 Conferir Bunge, Mario (1982), Filosofia de la Fisica, Barcelona: Ariel, pp. 110. 128 Conferir, idem, pp 118-121.

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diga o que são os quantões (ou objectos quânticos). Ou,

para se ser mais preciso e justo, o que é isso de uma

entidade com uma dispersão de posições e momentum? Por

outro lado, a proposta de Bunge levanta outros problemas

como a relação entre quantões e classões ou o que sucede

numa medição.

Não compartilho do optimismo reservado de Bunge quando

ainda julga tratar-se de um problema da interpretação do

formalismo e não da teoria em si. De tratar-se saber a quem

a Mecânica Quântica se refere. A meu ver a situação é mais

grave e fundamental. Digo que a Mecânica Quântica carece de

ontologia e julgo que sempre assim será pois essa é a sua

essência. E afirmo-o pois o seu processo de constituição

passa, justamente, por não se referir aos objectos

quânticos, mas apenas aos resultados de medições. É fá-lo

porque a sua ontologia de partida é incompatível com a

natureza das entidades à qual uma genuína Mecânica dos

Quanta dever-se-ia referir. Na Mecânica Quântica não há um

objecto que se concebe, mas apenas um sujeito que organiza

a sua experiência sensível de acordo com um conjunto de

categorias inamovíveis. A Mecânica Quântica coloca-se quase

totalmente do lado do sujeito, pois o objecto é tido como

incognoscível.

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Neste sentido, a Mecânica Quântica uma teoria que,

contrariamente a todas teorias científicas, não explica,

não descreve, não nos dá a ver o que se passa. A Mecânica

Quântica é, a meu ver e como a seguir pretendo ilustrar

através da análise dos seus postulados, uma pura máquina de

previsão de resultado de medições. Como se tratasse de um

modelo teórico de previsão probabilística de resultados de

uma roleta ou das cartas de um baralho. Ela prevê, mas não

explica. Ela capacita-nos para antecipar o conjunto de

resultados possíveis de uma medição, mas não nos oferece

uma cosmovisão ou mundivisão do domínio dos quanta. Por

esta razão e se, como afirma Popper, “toda a ciência é

cosmologia”129 poder-se-ia até dizer, de forma muito

cautelosa, mas, igualmente, num assumo de grande

atrevimento, que é duvidoso que a Mecânica Quântica seja

uma teoria científica. Deixemos, no entanto, em aberto tão

herética questão que não é, de momento, a nossa.

O problema da Mecânica Quântica é, tal como Popper bem

intuiu, fundamentalmente, um problema de compreensão130. Não

do seu formalismo e como trabalhá-lo. O que tem sido

realizado com inegável sucesso. Mas no sentido que a teoria

quântica nova constitui-se negligenciando, ou melhor,

recusando a possibilidade de uma compreensão do domínio 129 Conferir Popper, Karl (1982), Quantum Theory and the Schism in Physics (tradução do Inglês por Nuno Ferreira da Fonseca, “A Teoria dos Quanta e o Cisma na Física”), Lisboa: Dom Quixote, p. 23. 130 Idem, ibidem.

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sobre o qual versa. Recusa fundada na sua incondicional

impossibilidade de se responder, ou sequer dar sentido, à

questão: o que é um objecto quântico? E, como tal – e sem

surpresa - toda tentativa ou cedência à tentação de

ontologizar esta teoria só nos leva a enganos e múltiplas

confusões.

É deste movimento de malabarista entre os pressupostos

ontológicos que estão na raiz dos conceitos clássicos, a

indispensabilidade destes e da sua incapacidade de dar

conta da natureza dos objectos quânticos, que se que se

constitui a Mecânica Quântica.

Assim, de uma análise aos postulados da Mecânica

Quântica, revelar-se-ão dois aspectos fundamentais:

Em primeiro lugar, que a Mecânica Quântica é, na sua

essência, uma generalização racional das teorias clássicas.

Isto é, uma extensão dos seus formalismos. Como veremos a

seguir os objectos quânticos são descritos formalmente na

sua propagação como ondas. Isto é, são tomados por ondas de

Fourier, sem no entanto que isso corresponda a uma entidade

que ondule. Os objectos quânticos são descritos formalmente

na sua interacção como corpos (ou corpúsculos). Isto é, são

tomados por partículas pontuais, sem no entanto que isso

corresponda a uma entidade corpórea. A uni-los encontra-se

o chamado “delta de Dirac”, que permite, formalmente,

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considerar as partículas pontuais como uma sobreposição

infinita de ondas de Fourier. Uma espécie de instrumento

formal da complementaridade.

Em segundo lugar, que é esta incompreensão sobre a

natureza da Mecânica Quântica, isto é, do não

reconhecimento que esta é uma generalização racional das

teorias clássicas e, por consequência, que é uma teoria que

não tem como referentes os tais objectos quânticos, é, a

meu ver, a razão de ser das labirínticas complicações em

que se perde parte da Filosofia da Mecânica Quântica.

2.8. Os postulados da Mecânica Quântica.

A Mecânica Quântica, que tantas e tantas vezes, e

pelos mais insuspeitos autores, é também designada por

Física Quântica, como se a Física e Mecânica fossem

claramente sinónimos131, pode ser apresentada a partir de um

conjunto de postulados. Tal é, de resto, comum a todas

teorias em Física. E tal como é comum a todas teorias em

Física os postulados da Mecânica Quântica são expressos

131 Se fossem sinónimos então o Electromagnetismo e o Electrodinâmica Quântica teriam de ser reduzíveis à Mecânica, o que está longe de ser claro que assim o seja.

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133

segundo um determinado formalismo matemático. Porém, no

caso particular da Mecânica Quântica, os seus postulados

conhecem diversas formulações. Como a Mecânica Matricial de

Heisenberg, ou a Mecânica Ondulatória de Schrödinger. Estes

formalismos, no entanto, tal como Dirac demonstrou e é bem

conhecido, são matematicamente equivalentes entre si132. O

formalismo mais presente tanto na literatura filosófica,

como na literatura científica, que se dedicam à Mecânica

Quântica é aquele que foi proposto por Von Neumann, em

1932, na sua célebre obra Mathematical Foundations of

Quantum Mechanics. Esta formulação fundamental da Mecânica

Quântica surge-nos, por exemplo, no sempre referenciado The

Philosophy of Quantum Mechanics de Max Jammer:

“Axioma I. A cada sistema corresponde um espaço de Hilbert

H cujos vectores (vectores de estado, funções de onda) descrevem

completamente os estados do sistema.

Axioma II. A cada observável P corresponde unicamente um

operador auto-adjunto A de acção em H.

Axioma III. Para um sistema no estado φ, a probabilidade

probA(λ1,λ2|φ) que o resultado de uma medição do observável P,

representado por A, se encontre entre λ1 e λ2, é dada por ║(Eλ2 -

Eλ1)φ║2, onde Eλ é a resolução da identidade pertencente a A.

132 Conferir Dirac, P.A.M (1935), The Principles of Quantum Mechanics, London: Clarendon Press.

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Axioma IV. O desenvolvimento temporal do vector de estado

φ é determinado pela equação Hφ=iℏ𝜕φ/𝜕t (equação de Schrödinger)

onde o hamiltoneano H é o operador evolução e ℏ é a constante de

Planck dividida por 2π.

Axioma V. Se a medição de um observável P, representado por

A tiver um resultado dentro do intervalo entre λ1 e λ2, então o

estado do sistema imediatamente após uma medição é uma função

própria de (Eλ2 - Eλ1)“133

Trata-se, como é bem patente, de um formalismo de uma

apreciável sofisticação (e elegância) matemática. De

assinalável valor para o labor do físico. Mas, no entanto,

não é a mais adequada expressão dos postulados da Mecânica

Quântica para o labor filosófico. Não o é, em primeiro

133 “Axiom I. To every system corresponds a Hilbert space H whose vectors (state vectors, wave functions) completely describe the states of the system.

Axiom II. To every observable P corresponds uniquely a self-adjoint operator A action in H.

Axiom III. For a system in state φ, the probability probA(λ1,λ2|φ) that the result of a measurement of the observable P, represented by A, lies between λ1 and λ2 is given by ║(Eλ2 - Eλ1)φ║2, where Eλ is the resolution of the identity belonging to A.

Axiom IV. The time development of the state vector φ is determined by the equation Hφ=iℏ𝜕φ/𝜕t (Schrödinger equation), where the Hamiltonian H is the evolution operator and ℏ is Planck’s constant divided by 2π.

Axiom V. If the measurement of the observable P, represented by A, yields a result between λ1 and λ2, then the state of the system immediately after the measurement is an eigenfunction of (Eλ2 - Eλ1), Jammer, Max (1974), The Philosophy of Quantum Mechanics, New York: John Wiley & sons, p. 5. (Tradução minha).

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lugar, porque o labor filosófico não se faz pelo uso de

formalismos matemáticos sofisticados, como é caso do

formalismo de Von Neumann. O labor filosófico faz-se pelo

uso das palavras e a sofisticação dos conceitos. Porque

preferem, então, os filósofos o formalismo de Von Neumann?

Talvez porque seja esse o da preferência dos físicos. O que

pode ser encontrado com mais facilidade nos manuais de

física. Ou talvez porque o filósofo que prefere o

formalismo de Von Neumann é de inspiração analítica e

estará em desacordo que o seu labor não se faça

acentuadamente pelo formalismo. Ou ainda porque talvez o

filosofo creia que os postulados quânticos não se podem

apresentar senão de forma matemático-formal. Como veremos,

já de seguida, tal não é o caso.

Em segundo lugar, digo que o formalismo de Von Neumann

não é o mais indicado para o labor filosófico pois trata-

se, na realidade, de um meta-formalismo. Isto é, de um

formalismo construído, deliberadamente, para englobar os

formalismo de Heisenberg e Schrödinger numa unidade. Tal é

explicitamente assumido pelo próprio Von Neumann no

Mathematical Foundations of Quantum Mechanics134. Esta

operação de unificação formal, que muito útil é para o

134 Conferir Neumann, J. Von (1932), Mathematische Grundlagen der Quantenmechanik. Berlin: Springer (Tradução em inglês de Robert T. Beyer, “Mathematical Foundations of Quantum Mechanics”, Princeton: Princeton University Press, 1955), p. 351

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físico, a meu ver, afasta o filósofo da questão fundamental

da Mecânica Quântica. Obscurece-a, pois a tão decisiva

relação entre a constituição da Mecânica Quântica e o

problema da natureza dos objectos quânticos fica como por

detrás de um pano, como uma sombra chinesa. Passamos a ver

coelhos onde há dedos. Assim, os postulados da Mecânica

Quântica que a seguir apresento, apresento-os de forma,

quase totalmente, discursiva e baseando-me na formulação

rigorosa, clara e inspirados que surge na Introdução à

Física Moderna de Andrade e Silva135.

Posto isto, a meu ver a Mecânica Quântica pode ser

enunciada, no seu essencial, a partir dos cinco postulados

que se seguem:

Primeiro Postulado da Mecânica Quântica: o estado de

um sistema quântico136, para um dado instante, é

completamente definido por uma função de onda Ψ(q1,q2,q3,t).

135 Conferir Andrade e Silva, J. (1997), Introdução à Física Moderna, Lisboa: Associação dos Estudantes da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, pp. 113-117. 136 Note-se que, em sentido estrito, os sistemas quânticos distinguem-se dos sistemas físicos clássicos apenas de forma nominal. Isto é, a distinção entre sistemas clássicos e quânticos reside unicamente no facto dos primeiros serem constituídos por objectos físicos clássicos e os segundos por objectos quânticos. Por seu turno, os sistemas físicos, sejam eles clássicos, sejam eles quânticos, podem ser individuais, quando constituídos por um único objecto, ou compostos, quando constituídos dois ou mais objectos.

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Segundo postulado da Mecânica Quântica: A cada

observável O corresponde um operador linear Ô. Os

resultados possíveis de uma medida de um observável O são

os valores próprios do operador linear correspondente.

Terceiro postulado da Mecânica Quântica: a

decomposição espectral da função de onda permite calcular a

probabilidade respectiva de cada um dos resultados

possíveis de uma medição.

Quarto postulado da Mecânica Quântica: a evolução da

função de onda é, em geral, descrita pela equação de

Schrödinger.

Onde H é o operador Hamiltoniano.

Quinto postulado da Mecânica Quântica: Quando se

efectua uma medição sobre o sistema a que a função de onda

transforma-se, imediatamente, numa das funções próprias do

observável correspondente à medição.

2.8.1. Léxico: Função de Onda, Observáveis e

Operadores.

A compreensão destes postulados exigem, como é fácil

de entender, passa por uma compreensão do seu léxico. Em

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particular dos termos “função de onda”, “observáveis” e

“operadores”.

Uma função de onda é, tal o próprio nome assim o

indica, uma função matemática em a projecção das suas

soluções no espaço desenha a figura de uma onda. No caso da

Mecânica Quântica a função de onda tem, em geral, a forma

de uma onda harmónica plana. Uma onda de extensão infinita

e de frequência temporal constante. À função de onda Ψ

atribui-se igualmente a designação de “função de estado” do

sistema, pois, segundo o primeiro postulado, a função

define, por completo, o estado de um sistema quântico num

instante determinado.

Em Mecânica Quântica designam-se de “observáveis” as

propriedades dos objectos quânticos que se podem medir. O

que se justifica pois – recorde-se - em Mecânica Quântica,

os termos “medição” e “observação” são usados,

frequentemente, como sinónimos. Sucedendo o mesmo com os

termos “aparelho de medida”, “instrumento de medida” e

“agente de observação”. Por outro lado, considera-se que

dos sistemas quânticos só são mensuráveis as propriedades

físicas que possam sofrer alterações, na sua quantidade,

por razão de um processo físico. Este tipo de propriedades

toma, em Física, a designação de “grandezas físicas

dinâmicas”. Assim, pode-se igualmente definir por

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“observáveis” como as grandezas físicas dinâmicas dos

objectos quânticos. Este não é o caso, por exemplo, do

tempo, da massa ou da carga, que não se alteram na sua

quantidade por razão de um processo de medição. Mas este é

o caso, por exemplo, da posição, da velocidade, do momentum

ou da energia. E, deste modo, posição, velocidade, momentum

e energia são ditos de observáveis dos sistemas quânticos.

Por fim, por operador linear entende-se, em geral, um

objecto matemático que quando aplicado a uma função opera

uma transformação de tal forma que a adição do conjunto de

resultados dessa transformação é igual à função sobre a

qual se aplicou o operador. No caso particular da Mecânica

Quântica, os operadores lineares são aplicados à função de

onda que define um dado sistema quântico produzindo uma

decomposição linear em outras funções chamadas de “funções

próprias do operador”. Por sua vez, cada uma dessas funções

próprias define, por completo, um dos estados possíveis de

ser obtido numa medição do observável correspondente ao

operador em questão. Ou seja, define o resultado de uma

medição. Ao valor quantitativo associado a uma função

própria, ou seja, aquilo que é o resultado numa medição

designa-se por “valor próprio do operador”. Ao conjunto dos

valores próprios atribui-se o nome de ”espectro do

operador”.

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Fazendo uso de uma analogia, um operador linear em

Mecânica Quântica actua como se de um prisma se tratasse.

Tal como um prisma decompõe linearmente, isto é, em que a

composição das partes é aditivamente equivalente ao todo,

a luz emitida pelo Sol nas cores possíveis de serem

observadas, um operador decompõe linearmente a função de

onda nas funções próprias desse operador. Ou seja, nos

estados possíveis de serem observados da propriedade

dinâmica considerada.

Tal como se considera que a luz do Sol é composta pela

sobreposição linear de todas cores possíveis, considera-se

que a função-de-onda é composta pela sobreposição linear do

conjunto completo das funções próprias de um dado operador.

E, finalmente, tal como o que se observa da luz operada

pelo prisma são as cores, e ao conjunto destas se designa

por “espectro”, o que se observa de um sistema quântico são

os valores próprios de um dado operador, e o conjunto

destes constitui o “espectro do operador”.

Por último, é preciso esclarecer o termo “corresponde”

que surge no segundo postulado. De acordo com este diz-se

que a cada observável corresponde um operador. Significa

isto que em Mecânica Quântica, uma grandeza física dinâmica

é representada matematicamente por um operador. Portanto, e

de forma literal, o observável “momentum” é representado

matematicamente pelo operador “momentum”, o observável

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“posição” é representado matematicamente pelo operador

“posição”, o observável “energia” representado pelo

operador “energia”, e assim por diante. De forma que cada

observável seja representado matematicamente por um

operador linear correspondente.

Clarificado o léxico, creio que agora é possível –

finalmente – esclarecer de que forma a Mecânica Quântica é,

na sua essência, uma generalização racional das teorias

clássicas da Física.

2.8.2. A Mecânica Quântica como generalização racional

das teorias clássicas da Física.

Da leitura dos postulados da Mecânica Quântica dois

aspectos fundamentais, a meu ver, surgem de imediato:

1) O tema central da Mecânica Quântica é a medição.

2) A linguagem dos primeiros quatro postulados é uma

linguagem relativa a ondas, enquanto o quinto é

relativo a corpos.

Comecemos pelo primeiro ponto. A Mecânica Quântica

distingue-se radicalmente de todas as outras teorias

físicas ao dedicar-se exclusivamente à medição. Não, é

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claro, porque a medição não tenha sido sempre um aspecto

importante em Física. Já aqui o assinalámos anteriormente.

Mas, ao contrário de qualquer outra teoria em Física, em

Mecânica Quântica a medição é, não só incorporada na

própria constituição da teoria, como é o seu tema central.

A medição, na Mecânica Quântica, não tem o estatuto de

simples concretização das previsões de uma teoria. Algo de

que sempre sucedeu nas teorias físicas clássicas e por essa

razão jamais mereceu ser referida nos seus postulados,

jamais mereceu honras de constar na sua construção

axiomática das teorias físicas. A medição sempre se pode

delicadamente ignorar em Física Clássica. Seja porque o

próprio aparelho de medida pode ser objecto de descrição

das teorias físicas clássicas. Seja porque as teorias

físicas aos serem fundadas na pentadoxia sobre os objectos

físicos pressupõem que, idealmente, isto é, num limite onde

a interacção entre sistema medidor e medido praticamente

nulo, um processo onde a intervenção do aparelho de medida

é irrelevante.

A relevância da medição da Mecânica Quântica é

particularmente notória no segundo postulado desta teoria,

quando se afirma que a cada observável corresponde um

operador linear. Pois isto significa que cada grandeza

física dinâmica é formalmente representada, não por uma

variável, como em todas outras teorias físicas, mas, em

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geral, por uma função diferencial. Isto é, por um objecto

matemático que é aplicada à função de estado (ou função de

onda) decompondo-a linearmente em funções próprias do

observável a que corresponde. Funções matemáticas estas que

representam, um resultado possível da medição. Ou seja, e

dito de uma forma mais clara, um operador é, no contexto da

Mecânica Quântica, um objecto matemático que representa

formalmente a acção (ou operação) de medição de uma

determinada grandeza física. Portanto, no segundo

postulado, ao estabelecer-se que a cada observável

corresponde um operador, inscreve-se na lei fundamental da

Mecânica Quântica que esta refere-se, não às propriedades

do sistema, que seriam representadas formalmente por uma

variável, mas refere-se aos resultados da operação da

medida das propriedades. A Mecânica Quântica não se refere,

por exemplo, à posição de um objecto quântico mas à medição

da posição dessa entidade. Este é, quanto a mim, um dos

pontos crucial: a Mecânica Quântica não se refere às

propriedades características dos objectos físicos, mas à

operação de medição das propriedades que se enquadram na

categoria de grandezas físicas. A Mecânica Quântica não tem

como referente as propriedades como a posição, o momentum

ou a energia (e, portanto, dentro de uma perspectiva

substancialista, não se refere a entidade que possua essas

propriedades) mas à operação de medição da posição, do

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momentum ou da energia. E, neste sentido, a Mecânica

Quântica constitui-se por uma alteração das questões que

caracterizam a Mecânica. Se esta última se pergunta “onde

está?” e “para onde vai?”, a Mecânica Quântica pergunta

“quais são os resultados possíveis da medição da posição?”

e “quais são os resultados possíveis da medição do

momentum?”.

Portanto, a meu ver, a Mecânica Quântica nada afirma

sobre um estado de um sistema físico antes da medida.

Apenas prevê o conjunto de resultados possíveis e suas

probabilidades respectivas de uma medição. A Mecânica

Quântica é, pois, como uma teoria estatística dos

resultados de uma roleta. E tal como numa roleta nos

podemos perguntar pela probabilidade de sair um dado

número, de sair uma dada cor, de sair um número par (ou

impar), na Mecânica Quântica podemos perguntar pela

probabilidade de um determinado resultado da posição, do

momentum, da energia, etc. O terceiro postulado enuncia

justamente a forma de encontrar a probabilidade de cada

resultado da medição a partir da função de estado.

Por outro lado, a distribuição de resultados e as suas

probabilidades respectivas são dependentes do contexto

experimental. Se a roleta em causa for do tipo americana e

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não do tipo europeia137, ou se bloquearmos o número 13 já

depois do lançamento da esfera da sorte, por exemplo, isso

implica uma modificação dos resultados possíveis e das suas

probabilidades respectivas. A equação de Schrödinger serve,

justamente, dar conta das variações que decorrem da

inclusão de elementos que modifiquem as condições iniciais

do sistema. Ou seja, da evolução das previsões dos

resultados de medida em função da evolução das condições do

sistema.

No entanto, contrariamente a uma roleta, a estatística

segundo a qual se constitui a Mecânica Quântica é

ondulatória. É particularmente claro, em especial, quando

se acede ao domínio quântico por via da chamada

“experiência da dupla fenda” que o coração da Mecânica

Quântica habita na frase “distribuição estatística

ondulatória de resultados”. Como tal, é sem surpresa que se

constata que ao longo dos quatro postulados iniciais – os

que se referem à probabilidade e estatística de resultados

da medição - é clara a presença de termos que se referem

às ondas. Logo no primeiro postulado, pois neste se define

a função de estado de um sistema quântico como uma função

de onda. Função de onda que, pelo segundo postulado, é

decomposta linearmente por um operador em funções próprias,

137 As roletas distinguem-se na sua tipologia em americanas e europeias pela inclusão de mais um número – o 00 – nas primeiras em relação as primeiras.

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tal como a luz é decomposta linearmente por um prisma em

cores. E, desta forma, tal como a luz pode ser entendida

como o composto linear de todas as cores observáveis, a o

estado do sistema quântico num dado instante, pode ser

entendida como o composto de uma sobreposição linear de

estados possíveis de serem resultados de uma medida. Por

sua vez, no terceiro postulado é estabelecida a relação

entre a probabilidade de cada um desses resultados

possíveis de uma medição e a amplitude da função de onda

que os descreve. E, por fim, a equação que dá conta da

evolução – a equação de Schrödinger - da expectativa dos

resultados de uma medida sobre o sistema físico é uma

equação típica de ondas.

Ondas e probabilidades dos resultados possíveis de uma

medição cruzam-se nos primeiros postulados. Corpo e

resultado da medida cruzam-se no quinto e último postulado.

Pois se a estatística é ondulatória, cada resultado

individual é a fixação de valor determinado para a posição,

para o momentum, para energia, etc. Ou seja, para as

propriedades corpusculares.

Esta é a forma extremamente habilidosa, trama subtil

de equilíbrio delicado, urdida principalmente por esse

génio dinamarquês, obstinado mas polido, que se constituiu

a Mecânica Quântica.

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Por um lado, a Mecânica Quântica constitui-se

aceitando a imposição da Natureza física que os objectos

quânticos se propagam como ondas e interagem como corpos.

Não haveria uma teoria quântica se não houvesse anuência à

imposição da Natureza física. Não haveria uma teoria

quântica sem uma certa dose de realismo. Sem algo da

própria Natureza física a decepcionar a nossa concepção

clássica.

No entanto, por outro lado, trata-se de uma aceitação

condicionada pela pentadoxia dos objectos físicos. Isto é,

sem prescindir que os objectos físicos só podem ser

concebidos tal qual o são nas teorias clássicas da física.

Ou seja, sem prescindir que os objectos físicos se

distinguem exclusivamente em ondas ou corpos; que são

substanciais; que as suas partes têm a mesma natureza do

seu todo; que as suas propriedades quantitativas possuem

valores bem determinados; que a actualização sucede sem

alteração de natureza do que é actualizado. E, por

extensão, sem prescindir do primado dos conceitos

clássicos. Porém, afirmar que não se admite outra concepção

de objectos físicos senão a da pentadoxia, não significa

que uma teoria física os tenha que incluir integralmente.

Pode incluir esses elementos de um modo formal e ser-se

ausente nas referências ontológicas. É o caso da Mecânica

Quântica.

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Assim, encontramos a presença dos elementos da

pentadoxia dos objectos físicos quando encontramos,

implicitamente, as partículas puras dos corpos e das ondas

ao longo dos postulados. Pois quando há pouco se afirmou

que a Mecânica Quântica transforma, por exemplo, a questão

“onde está?” para “quais os resultados possíveis (e

respectivas probabilidades) de uma medição da posição?”,

implica que a Mecânica Quântica refere-se às partículas

pura dos corpos, isto é aos corpos pontuais, pois são as

entidades que possuem uma posição bem determinada. Porém,

os corpos pontuais surgem aqui não como representações

ideais dos corpos, como arquétipos deste, mas como os

únicos elementos aos quais a teoria quântica nova se

refere. Numa autonomização absoluta do representante face

ao representado.

Por sua vez, ao identificar-se a função de onda como

as funções de estado isto implica que as ondas a que se

refere a Mecânica Quântica são infinitamente extensas e de

frequência temporal (e por consequência, de energia) bem

determinada. Isto é, a Mecânica Quântica refere-se

formalmente às partículas puras das ondas – as ondas

sinusoidais planas ou ondas de Fourier.

Se a Mecânica é a Física dos corpos e o

Electromagnetismo é a Física das ondas, a Mecânica Quântica

é a Física das partículas puras dos corpos e das ondas. Ou

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seja, na Mecânica Quântica a referência as ondas se cingem

à estatística dos resultados, não a qualquer entidade

física que possuam propriedades ondulatórias. E a

referência aos corpos cinge-se à verificação de um valor

bem determinado nas medições. Deste modo, a Mecânica

Quântica integra a imposição da natureza dos objectos

quânticos por um lado, a constituir-se com uma estrutura

dual. Isto é, tendo a parte cinemática dos postulados

referentes a ondas; e a parte dinâmica referente a corpos.

Por outro lado, a imposição da natureza dos objectos

quânticos é integrada considerando-a apenas de maneira

formal. A Mecânica Quântica constitui-se não como uma

teoria que se refere aos objectos quânticos, pois estes

são, pela sua natureza, incompatíveis com a Física

Clássica. A Mecânica Quântica constitui-se como uma teoria

que se refere somente aos resultados de uma medição. Pois

este é a única forma de trazer o domínio quântico para o

domínio clássico. De certa forma, de integrar o quântico no

clássico.

É, portanto, notório que o propósito de Bohr sempre

foi o de conciliar as teorias clássicas com a bizarra

natureza quântica num todo consistente. Ou mais

precisamente, e como o próprio afirmou (que aqui se

recorda) “O problema com que os físicos foram confrontados

[perante a descoberta de Planck] foi, como tal, o de

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desenvolverem uma generalização racional da física clássica

que permitisse a incorporação harmónica do quantum de

acção.”138

Ao assinalar que a Mecânica Quântica é uma

generalização racional da física clássica, Bohr está a

afirmar que a Mecânica Quântica foi constituída, não

através da introdução de novos conceitos ou de uma nova

linguagem em relação à Física clássica, mas através de uma

revisão racional dos conceitos e modos de descrição já

presentes na Física Clássica. Num equilíbrio difícil entre

manter-se o mais próximo da Física Clássica e querer

estende-la de forma a incorporar o postulado quântico. E

esta é esta, a meu ver, a essência da Mecânica Quântica:

não tanto uma profunda revolução, mas uma resposta, quase

desesperada, do “espírito” da Física Clássica que se

caracteriza pela pentadoxia dos objectos físicos, por via

da razão, à perturbação causada pela descoberta do domínio

quântico. Assim, se as teorias clássicas têm como elementos

fundamentais do seu formalismo as variáveis posição,

momentum, energia, etc., que representam propriedades

quantitativas, a Mecânica Quântica tem como elementos

formais fundamentais os operadores posição, o operador

momentum, o operador energia, etc., elementos que actos de

medida das propriedades quantitativas. As segundas – os

138 Conferir nota de rodapé º 5 deste capítulo.

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operadores - são uma construção puramente formal das

primeiras – as variáveis. Construção formal que integra,

como é claro, o valor do quantum de acção. Deste modo, os

conceitos clássicos são integrados na mecânica quântica por

via de uma generalização racional.

Neste sentido a Mecânica Quântica é, na sua essência,

a meu ver e estando aqui em acordo com Bohr, uma

generalização racional das teorias clássicas da Física.

Porém, a Mecânica Quântica ao constituir-se como uma

generalização racional das teorias clássicas perde contacto

com as entidades que deveria descrever. A Mecânica Quântica

não tem como referentes os objectos quânticos, mas um dado

conjunto de medições que são realizadas. A Mecânica

Quântica constitui-se por recusa de se enfrentar com a

questão da natureza dos objectos quânticos. Recusa que, por

sua vez, leva ao vazio de sentido de questões como: “o que

existia antes da medida?”. Aceitar a Mecânica Quântica e,

no entanto, colocar a questão sobre o que nos diz esta do

que existe, realmente, antes da medida, é o mesmo que

aceitar o Big Bang e procurar resposta na Teoria do Big

Bang à questão “o que existia antes do Big Bang?”. Ambas

teorias constituem-se fora do âmbito dessas questões.

No entanto, boa parte da literatura filosófica sobre

a Mecânica Quântica conhece a sua motivação numa certa

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tentação de ter um discurso ontológico sobre esta teoria

quântica. Esta tentação de ontologizar concretiza-se na

atribuição à função de onda do estatuto de função de estado

do sistema antes da medida. Ou seja, como se a função de

onda de um sistema representasse, efectivamente, de algum

modo, o estado do sistema antes da medição e não fosse

relativo apenas e só à expectativa de resultados. A

diferença será subtil mas creio que pode ser elucidada

regressando ao exemplo da roleta. Imagine-se que esta é

viciada de tal forma que a distribuição de ocorrência dos

números (resultados de uma roleta) – lançamento a

lançamento – configurasse não o perfil estatístico

corpuscular, que seria uma recta, mas um perfil estatístico

ondulatório. Isto é, uma curva (uma normal, por exemplo). O

perfil estatístico de tão demoníaca roleta poderia ser,

formalmente, tomado como o resultado da sobreposição linear

de um conjunto de ondas, cada uma relativa a cada número de

sair em sorte. Ou seja, nesta roleta cada resultado

possível é descrito, formalmente, por uma onda. Contudo,

trata-se de um sistema mecânico plenamente clássico, de uma

esfera e um conjunto de “caixas” pintadas com um número. E,

como tal, a função de estado deste sistema é uma função de

onda. Porém, esta função traduz somente a expectativa de

resultados e de, nenhum modo, representa o sistema físico

antes da medição.

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Essa cedência à tentação de ontologizar a Mecânica

Quântica nunca a encontramos em Bohr. Nem poderíamos

encontrar, a meu ver. Pois para ele será bem claro que a

Mecânica Quântica não se refere ao domínio quântico, mas ao

resultado das medições. E, como tal, não fará sentido algum

falar-se do estado do sistema quântico antes da medida. É

em Von Neumann que encontramos, em certa medida, o início

deste movimento de cedência à tentação, este cair num

discurso ontologizante, ainda que insípido, sobre a função

de onda. Encontramo-lo exactamente na mesma obra, de 1932 e

que já foi aqui referida, onde tratou de axiomatizar a

Mecânica Quântica. Assinala-se Von Neumann, como muitos

outros o farão posteriormente, que conforme os quatros

primeiros postulados, um sistema quântico antes de uma

medição é, em geral, composto por uma sobreposição linear

de estados possíveis de uma medição. Cada um destes

definidos por uma função própria do operador correspondente

à medição. Ou seja, como se esses estados possíveis de uma

medida existissem, de algum modo, em sobreposição. A tão

famosa “sobreposição quântica”. E deste modo afirma-se que

antes da medida, relativamente, por exemplo, à sua energia,

um sistema quântico encontra-se num estado de sobreposição

dos estados de energia possíveis de virem a ser medidos.

De seguida acrescenta-se que a equação de Schrödinger

permite determinar completamente o estado do sistema, num

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instante qualquer, a partir do conhecimento da função de

onda num instante qualquer anterior. Ou seja, que é uma

equação determinista. O que tem duas consequências. Por um

lado significa que considerando-se apenas os quatro

primeiros postulados, a Mecânica Quântica é uma teoria

determinista. E, por outro lado, dado que se considera que

o sistema evolui de forma determinística, então, essa

sobreposição linear de estados possíveis permanece

perfeitamente definida enquanto sobreposição ao longo do

tempo. (O que, em boa verdade, não é surpreendente. Por um

lado, pois essa “evolução do estado do sistema” trata-se

tão somente uma evolução da expectativa dos resultados de

uma dada medição. Como a expectativa dos resultados de uma

roleta. Expectativas esta que também evoluem de formal

determinista. Por outro lado, trabalha-se com uma

estatística ondulatória e, como tal, pode-se representar a

função de onda como o produto de um sobreposição linear de

outras ondas).

No entanto, de uma medição não resulta uma

sobreposição de estados, mas apenas um estado particular

bem determinado. Por exemplo, da medição de um electrão

resulta um valor determinado para a sua posição, para o seu

momentum, para a sua energia, etc. Nunca se observa um

electrão, simultaneamente, em duas ou mais localizações, ou

com duas ou mais energias, por exemplo.

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Assim, no último capítulo da referida obra de Von

Neumann, este assinala existência dos dois tipos de

evolução dos sistemas quânticos139: Uma evolução continua,

determinista, linear e reversível, que decorre ao longo do

tempo e antes de ser efectuada uma medição no sistema; e

uma outra evolução, esta descontínua, indeterminista, não-

linear e irreversível, que ocorre quando uma medição sobre

esse sistema é efectuada.

Interpretando-se a função de onda como se referisse a

algo antes da medida, coloca-se, logicamente, a questão:

como relacionar o que existe antes da medida com o que

resulta da medida? Como relacionar os dois regimes da

evolução dos sistemas quânticos?

Para dar conta desta transição entre regimes de

evolução dos sistemas quânticos que Von Neumann propõe o

quinto e último postulado da Mecânica Quântica, onde se

promove que no instante em que se realiza a medição há uma

transformação, um colapso, da função de onda numa das

funções próprias do sistema. Este postulado ficaria

celebrizado com a designação de “postulado do colapso da

função de onda”. Como é por demais conhecido, a celebridade

é deste postulado decorre do facto de ser a partir deste

que resulta o emaranhado de problemas que têm ocupado

139 Conferir Neumann, J. Von (1932), Mathematische Grundlagen der Quantenmechanik. Berlin: Springer (Tradução em inglês de Robert T. Beyer, “Mathematical Foundations of Quantum Mechanics”, Princeton: Princeton University Press, 1955), p. 351.

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grande parte da literatura filosófica da Mecânica

Quântica140. Emaranhado este a que se tem dado a designação

geral de “problema da medição”.

2.9.O Problema da Medição

O chamado "problema da medição" surge, segundo a

literatura filosófica especializada141, como já aqui foi

visto, da oposição entre a evolução determinista descrita

pelos primeiros quatro postulados e a evolução

indeterminista descrita pelo postulado do colapso. Mais

propriamente, o problema geral da medição pode ser

enunciado a partir da seguinte questão: como, por

consequência de uma medição, um sistema que se encontra em

"sobreposição quântica" se transforma, por acção de uma

medição, num sistema em que os seus estados não se

sobrepõem?

140 Conferir Primeiro capítulo deste trabalho, página 9. 141 Conferir Busch, Paul e Lahti, Pekka (2009), “Measurement Theory” in Greenberger, Daniel; Hentschel, Klaus e Weinert, Friedel, Compendium of Quantum Physics, Berlim: Springer-Verlag, p. 375.

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Segundo Osvaldo Pessoa Jr.142, o problema geral da

medição pode, por sua vez, ser decomposto em dois outros

problemas:

i) Problema da "caracterização": se o postulado do

colapso se aplica sempre quando é realizada uma medição

sobre um sistema quântico, então o que caracteriza uma

medição?

ii) Problema da "completude": poderia o processo de

medição que está na origem do postulado do colapso ser

explicado pela própria Mecânica Quântica e, por

conseguinte, esta ser completa sem necessitar do quinto

postulado?

Embora distintos, estes dois problemas não são

independentes. Pois se houver uma resposta positiva para o

problema da completude então o problema da caracterização

também terá sido resolvido, porque o quinto postulado

desapareceria. Analisemos separadamente ambos, começando

pelo segundo (visto que é a condição do primeiro).

142 Pessoa Jr., Osvaldo (1992), “O problema da medição em mecânica quântica: Um exame atualizado” in Cadernos de História e Filosofia da Ciência (série 3) 2(2), jul-dez 1992, p. 183.

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2.9.1. O problema da Completude

Na literatura sobre os fundamentos da Mecânica

Quântica existem, em geral, três tipos de resolução do

problema da completude.

O primeiro tipo de resolução do referido problema foi

proposto pelo próprio Von Neumann. Este faz uso da hipótese

segundo a qual o aparelho macroscópico de medida poderia

ser descrito como um sistema quântico143. Objecto quântico

medido e aparelho de medida formariam assim um sistema

quântico composto. Contudo, tal não resolveria o problema

da completude, pois o estado deste sistema é um estado em

sobreposição. O sistema teria, por sua vez, que ser medido

por outro aparelho de medida e, como tal, retornar-se-ia à

situação inicial. Logo, desta forma, entrar-se-ia numa

cadeia infinita de aparelhos de medida que se medem,

sucessivamente, uns aos outros. E, como tal, nunca haveria

um valor da medição. O acto de medição nunca se concluiria.

Como mais à frente144 se verá, Von Neumann tenta responder a

esta objecção a partir da sua resposta ao problema da

caracterização.

Um outro tipo de proposta de resolução do problema da

completude da Mecânica Quântica encontramos a sua génese da

143 Conferir Jammer, Max (1974), The Philosophy of Quantum Mechanics: The Interpretations of Quantum Mechanics in Historical Perspective. New York: Wiley-Interscience, p. 475. 144 Conferir página 163.

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já referida145 tese de Schrödinger de considerar que os

objectos quânticos têm uma natureza totalmente ondulatória,

isto é, são ondas, que são representadas pela função de

onda. E, como tal, no acto de medição não haveria um

colapso abrupto da função de onda mas o produto da

interacção física entre a matéria do aparelho de medida e

objecto quântico. Exactamente que processo é este é matéria

para o problema da caracterização de uma medição. Por essa

razão, mais frente voltaremos a esta tese.

Por fim, o terceiro tipo de teses em defesa da

completude da Mecânica Quântica sem o quinto postulado é

designado por Pessoa Júnior de criptodeterminista146.

Criptodeterminista já que os sistemas quânticos possuiriam

continuamente um valor bem determinado das suas

propriedades. Os sistemas quânticos cumpririam com a

pentadoxia sobre os objectos quânticos e, como tal, seriam

ontologicamente bem determinados. Contudo, seriam

epistemologicamente indeterminados. Isto é, existiria uma

impossibilidade de prever deterministamente os resultados

de medições individuais. Essa indeterminação seria fruto do

conhecimento necessariamente limitado a respeito do estado

inicial dos sistemas considerados.

145 Conferir página 121. 146 Conferir Pessoa Jr., Osvaldo (1992), “O problema da medição em

mecânica quântica: Um exame atualizado” in Cadernos de História e

Filosofia da Ciência (série 3) 2(2), jul-dez 1992, p. 184.

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Uma das formulações do criptodeterminismo passa por

defender que indeterminismo da evolução de um sistema

quântico no momento da medição dever-se-á a uma limitação

do conhecimento do estado físico do observador. E, como

tal, dado que o estado do observador antes da medição não é

conhecido de maneira exacta seria impossível prever

deterministicamente os resultados da interacção entre os

sistemas objecto da medida, aparelho da medida e

observador. Tal como não sabemos prever de forma

determinada o resultado de uma colisão entre duas bolas

bilhar (ou entre duas ondas) se desconhecermos, por

exemplo, a força com que impulsionamos uma delas. E deste

modo, no acto de medida não haveria um misterioso colapso

da função de onda, mas tão-somente a revelação do valor da

propriedade objecto da medida. Tal como se poderia medir a

velocidade de cada uma das bolas de bilhar depois da

colisão e assim saber, a posteriori, o resultado da

colisão. Contudo, esta tese conhece diversos problemas. Por

um lado, teria no perfil estatístico ondulatório da medição

um mistério insondável. E, por essa razão, a atribuição de

função de estado à função de onda seria completamente

injustificada. Por outro lado, implicaria que o observador,

enquanto sistema físico era, simultaneamente, sistema

quântico observado e agente de observação. Seria,

simultaneamente, parte do sistema medido e parte do sistema

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161

medidor. O que seria, por um lado, inconsistente com a

definição de estado de um sistema físico, que é parte

fundadora da Mecânica Quântica, no sentido que esta se

constitui a partir da complementaridade de Bohr. Ou seja,

seria incoerente com a própria Mecânica Quântica. Por outro

lado, levar-nos-ia novamente para o caso de sistemas que se

medem uns a outros numa cadeia infinita.

Existe, no entanto, um outro conjunto de propostas do

tipo criptodeterminista. Estas, no entanto, defendem que a

Mecânica Quântica não é uma teoria completa. Este tipo de

cripodeterminismo consiste na tese de que o indeterminismo

do acto de medida, que na axiomática da Mecânica Quântica –

recorde-se - aparece na transição abrupta entre os

primeiros quatro postulados e o quinto postulado,

reflectiria apenas uma insuficiência da Mecânica Quântica.

Isto é, haveria pelo menos uma variável que não estaria a

ser considerada. Este conjunto de teses é conhecida por

“tese das variáveis escondidas” e foi avançada, em

diferentes formulações e em diferentes momentos, por

Einstein147, De Broglie148, Popper149, Bohm150, entre outros.

147 Conferir Bohr, N. (1949), “Discussions with Einstein on epistemological problems in atomic physics” in Atomic Physics and Human Knowledge, New York: Kessinger Publishing. 148 Conferir De Broglie, L. e Andrade e Silva, J.L. (1971), La Réinterprétation de la Mécanique Ondulatoire, Paris: Gauthier-Villards. 149 Conferir Popper, Karl (1982), Quantum Theory and the Schism in Physics, London: Routledge.

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162

Estas teses implicam que a função de onda não definiria,

por completo, o estado de um sistema quântico. Ou seja,

estas teses apontam para irresolubilidade do problema da

completude dentro do contexto da Mecânica Quântica, por

razão da incompletude desta. Como tal, apontam para teorias

quânticas alternativas à Mecânica Quântica. Esta é a origem

da linhagem das teorias quântica de De Broglie: a teoria de

De Broglie (ou teoria da dupla solução); a teoria De

Broglie-Bohm (ou Mecânica Bohmiana) e a teoria De Broglie-

Croca. Quanto a estas será preciso ter claro dois aspectos.

Em primeiro lugar, a família de teorias de De Broglie não

formam um grupo de interpretações sobre a Mecânica

Quântica. São teorias quânticas alternativas à Mecânica

Quântica. Em segundo lugar, é preciso ter claro que as

teorias de De Broglie, de De Broglie-Bohm e de De Broglie-

Croca, como veremos mais tarde151, têm justamente como

essência o apelo a um novo conceito de objecto físico. Algo

no entanto que só surge no contexto da última e é a razão

pela qual, a meu ver, as duas primeiras são inconsistentes.

Encontramos em Von Neumann uma recusa clara das teses

de “variáveis escondidas”. Recusa que surge,

simultaneamente, com a proposta de um teorema que,

pretensamente, demonstra que qualquer “tese de variáveis

150 Conferir Bohm, David (1980), Wholeness and the Implicate Order, London: Routledge. 151 Conferir capítulo V, página 329.

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163

escondidas” é inválida152 para a Mecânica Quântica. Teorema,

designado por “no-go” e que até aos meados dos anos 50 do

século XX dominou o panorama dos fundamentos de Mecânica

Quântica. Isto, até ao advento da teoria de De Broglie-

Bohm.

Em conclusão, em relação ao problema da completude

existem na literatura sobre os fundamentos da Mecânica

Quântica dois caminhos opostos: por um lado, a família de

teorias de De Broglie defendem que o quinto postulado

assinala incompletude da Mecânica Quântica; por outro lado,

outros – como Von Neumann e Schrödinger - remetem a

resolução do problema da completude para o contexto do

problema da caracterização.

2.9.2 O problema da Caracterização

Na já aqui referida obra de Von Neumann de 1932, este

assinala153 que uma característica fundamental de uma

medição é a existência de um acto perceptivo de um sujeito.

Uma medição é uma relação a três, como aqui já foi

afirmado. Porém, esta não fica completamente caracterizada

considerando-se apenas a interacção física entre o objecto

152 Conferir Neumann, J. Von (1932), Mathematische Grundlagen der Quantenmechanik. Berlin: Springer (Tradução em inglês de Robert T. Beyer, “Mathematical Foundations of Quantum Mechanics”, Princeton: Princeton University Press, 1955), pp. 439. 153 Conferir Idem, pp. 419-420

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de medida e o aparelho de medida. Para se completar é

preciso que exista um sujeito que tome consciência do

resultado da medida. Isto é, da alteração de estado físico

do aparelho de medida. Neste sentido, Von Neumann defende

que a transformação irreversível do estado do sistema

medido seria devida ao conhecimento que o observador tem do

seu próprio estado, permitindo que ele corte a cadeia de

aparelhos de medida que se medem sucessivamente. Ou seja,

em última análise, seria a consciência do sujeito da

medição que levaria ao colapso da função de onda154.

Esta tese de Von Neumann seria mais tarde radicalizada

por Wigner, levando esta a afirmar que “o Universo não

existia ‘realmente’ antes da vida inteligente” 155.

Esta espécie de subjectivismo ontológico que emana de

Von Neumann e Wigner atravessa toda a literatura filosófica

sobre a Mecânica Quântica. Em particular, surge quando se

analisa a celebre experiência de pensamento que Schrödinger

apresentou, num conjunto de artigos publicados156 em 1935,

e que ficou conhecido como o "paradoxo do gato". Paradoxo

que configura a formulação mais famosa do problema da

154 Conferir Jammer, Max (1974), The Philosophy of Quantum Mechanics: The Interpretations of Quantum Mechanics in Historical Perspective. New York: Wiley-Interscience, pp. 481-482. 155 Citado de Schomers, W. (1987), “Evolution of Quantum Theory” in Quantum Theory and pictures of reality, Schomers (ed), Berlim: Springer, p. 35. 156Shrödinger, Erwin (1935), "Die gegenwärtige Situation in der Quantenmechanik" in Naturwissenschaften 23: pp.807-812; 823-828; 844-849.

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caracterização e, simultaneamente, a primeira reacção

contra a tese de Von Neumann. Aqui se apresenta:

Considere-se que um gato é fechado dentro de uma

câmara de aço. Dentro desta encontra-se uma substância

radioactiva que tem uma probabilidade 1/2 de fazer accionar

um detector dentro de um certo intervalo de tempo. Ligado a

este detector há um "dispositivo assassino" que funciona de

tal maneira que se o detector for disparado, o gato será

morto. Por outro lado, se nenhuma radiação for detectada no

intervalo de tempo considerado o gato permanece vivo. A

Mecânica Quântica descreve o estado do átomo radioactivo

como uma sobreposição de estados de emissão e de não-

emissão. Qual será, então, o estado do sistema como um todo

ao final do intervalo de tempo aqui considerado?

De acordo com a interpretação de Von Neumann, seria

uma sobreposição de estados - gato vivo e gato morto - até

que uma observação fosse efectuada por um observador.

Momento no qual dar-se-ia um colapso do estado ou para gato

vivo ou para gato morto. Pois, todas as medições levam à

percepção de um estado singular. Ou seja, seria a

consciência do observador que faria o sistema colapsar e,

por consequência, matar ou salvar o pobre animal. Esta

solução leva à tão famigerada conclusão que os objectos

quânticos são ontologicamente determinados pelo acto de

observação. Conclusão que é absurda para Schrödinger e por

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essa razão terá crismado de “paradoxo” a experiência de

pensamento descrita. Em alternativa, o físico austríaco

propôs que num acto de medição, de algum modo, houvesse um

processo físico que levasse a uma compressão das ondas. A

proposta de Schrödinger era essencialmente isso: “uma

proposta”. Porém, é a proposta que está na origem da actual

tese da decoerência157. Onde, justamente, uma medição de um

sistema quântico é caracterizado por um processo físico de

interacção rápidas mas contínua entre o objecto de medida,

o aparelho e o “ambiente” de tal modo que o estado em

sobreposição quântica é transformada num estado clássico.

Contudo, esta tese passa necessariamente pela introdução do

tal parâmetro “ambiente”. Ou seja, por uma variável que é

exterior à Mecânica Quântica. E, por essa razão, a meu ver,

embora pretenda ser fiel à Mecânica Quântica acaba por se

aproximar da família das teorias de variáveis escondidas.

A meu ver do “paradoxo” do gato de Schrödinger

resultam uma de três hipóteses relativamente ao problema da

medição:

Primeira hipótese. Aceitar o colapso da função de onda

por acção de uma consciência proposta por Von Neumann e

Wigner e a sua consequente subjectividade ontológica. O que

157 Conferir, por exemplo, do filósofo francês Ómnes, Roland (1990), Understanding Quantum Mechanics, Princeton: Princeton Univesity press, pp. 224-234.

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me parece ser conduzir a um claro absurdo, pois a Mecânica

Quântica surge, justamente, para dar conta de uma realidade

que não é conceptualizável pelas teorias clássicas. E como

tal, como poderia haver necessidade de responder a uma

realidade estranha e simultaneamente ela ser

ontologicamente dependente das nossas consciências? Por

outro lado, esta tese de Von Neumann e Wigner conduzem a um

sem número de paradoxos. Por exemplo, se estiverem dois

observadores a observar simultaneamente uma medição, qual

deles é o responsável pelo colapso?

Segunda hipótese. Aceitar que a Mecânica Quântica não

é uma teoria completa, tal como defendem os proponentes das

teorias das variáveis ocultas. E, assim sendo, não fará

sentido ter da função de onda dentro da Mecânica Quântica

como uma função que descreve o estado do sistema antes da

medida.

Terceira hipótese. Aceitar que a Mecânica Quântica

necessita do quinto postulado, tentando no entanto

interpretar o seu formalismo e, em particular, o estatuto

ontológico da função de onda, sem cair no subjectivismo

ontológico da tese de Von Neumann. Ou seja, entramos no

campo prolífero das interpretações da Mecânica Quântica.

Existe um leque enorme de opções. Porém, em comum a todas

percorre o problema da medição sempre insatisfatoriamente

resolvido. Em comum a todas atravessam os problemas que

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decorrer de cair na tentação de considerar que a função de

onda se refere ao estado do sistema quântico antes da

medida. Aliás, o panorama dos fundamentos de Mecânica

Quântica da das últimas décadas tem sido, em parte,

dominado pelo aparecimento de um conjunto de teoremas “no-

go”, estes já não sobre a tese das variáveis escondidas,

mas sobre a irresolubilidade do problema da medição158. O

que é, a meu ver, indicativo que a Mecânica Quântica

constitui uma generalização racional das teorias clássicas

da Física e como tal não têm como referente o domínio

quântico mas o resultado de medições sobre este.

2.10. Conclusão

Quatro teses fundamentais percorrem este capítulo:

1) Tanto a Mecânica Quântica, como grande parte da

literatura filosófica sobre esta, pressupõem

158 Conferir, por exemplo, Brown, H. (1986) “The Insolubility Proof of the Quantum Measurement Problem”, Foundations of Physics 16, pp. 857-870; Fine, A. (1970) “Insolubility of the Quantum Measurement Problem”, Physical Review D2, pp. 2783-2787 ou Busch, P. e Shimony, Abe (1996), “Insolubility of the Quantum Measurement Problem for Unsharp Observables”, Studies in History and Philosophy of Science Part B 27 (4), pp. 397-404.

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implicitamente um conjunto de cinco teses sobre os

objectos físicos - a pentadoxia.

2) As teorias físicas são caracterizáveis por uma questão

ou um conjunto de questões determinadas.

3) O domínio quântico não é conceptualizável pela

pentadoxia.

4) A Mecânica Quântica é uma generalização racional das

teorias físicas clássicas.

Tanto a maioria da literatura filosófica sobre a

Mecânica Quântica, como esta teoria, assenta,

implicitamente, num conjunto de aparentes certezas acerca

dos objectos físicos: Que os objectos físicos se dividem em

corpos e ondas; que os objectos físicos são divisíveis em

partes cuja natureza é igual ao do todo de que são partes;

que os objectos físicos possuem propriedades; que as

propriedades quantitativas têm um valor bem determinado;

que os objectos físicos se actualizam sem modificação das

suas propriedades. Este conjunto de cinco aparentes

certezas são extraídas de uma opinião geral sobre a

natureza dos objectos físicos e por isso designei-as de

pentadoxia. Opiniões, pois elas entranham-se em nós com tal

facilidade, fruto da sua tão suposta evidência, que são, em

geral, aceites de um modo acrítico. Por isso, só as

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encontramos implícitas, mesmo na literatura filosófica

dedica à Mecânica Quântica. São como um senso comum a

partir do qual podemos começar a pensar com segurança.

Afinal, quem, mesmo dentro do contexto da Filosofia da

Física, duvida que a matéria se divide em sólidos e

fluidos? Ou seja, que se dividem em corpos e ondas? Que da

divisão de uma maçã resultam duas partes de maçã e que

estas também maçã são? Que os livros, a água ou o fumo têm

cor, forma, cheiro, etc.? Ou seja, que são portadores de

propriedades? Que automóveis, tal como todos os objectos

físicos que nos rodeiam, têm um valor bem determinado da

altura, do peso ou da velocidade? Que uma nota de cinco

euros é, conceptualmente, idêntica esteja ela possivelmente

ou actualmente na minha mão?

Seguros nesta pentadoxia sobre os objectos físicos

fundam-se as teorias clássicas da Física. A Mecânica como

física dos corpos. O Electromagnetismo como física das

ondulações do campo electromagnético. E se dos corpos

perguntamos pela sua localização e pelo seu movimento, ou

seja, perguntamos “Onde?” e “Para onde?”, então estas

questões são a impressão digital da Mecânica. E se das

ondas perguntamos pelo seu ciclo e pela sua magnitude,

estas questões são a impressão digital do

Electromagnetismo. Porém, a Física, em geral, caracteriza-

se, igualmente, pela procura de uma resposta precisa, de

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uma resposta quantitativa, de uma fixação momentânea do

estado da coisa física. Assim, a Mecânica procura saber a

quantificação da localização, isto é, a posição e procura

saber a quantidade de movimento, isto é, o momentum. Por

sua vez, o Electromagnetismo procura saber a quantificação

do ciclo, isto é, a frequência temporal e procura saber a

quantificação da magnitude da oscilação, isto é, a

amplitude.

Estas duas teses – as duas primeiras teses do conjunto

de quatro que percorrem este capítulo - encontram a sua

síntese nas partículas puras dos corpos e das ondas. Pois,

por um lado, a pentadoxia leva-nos até essas entidades como

arquétipos dos corpos e das ondas. Por outro lado, apenas

relativamente às partículas puras podemos falar de

“posição”, “momentum”, “frequência temporal”, etc. Ou seja,

é primeiramente a estes arquétipos, aos representantes

ideais dos objectos físicos, que se referem os conceitos

clássicos. Por outro lado, só chegamos às partículas puras

de ondas e corpos, partindo da pentadoxia. E, assim,

podemos dizer que aquelas – as partículas puras de corpos e

ondas - são a expressão maior desta – a pentadoxia.

Aceitando as duas teses anteriores, Bohr considera a

linguagem da física clássica como um refinamento da

linguagem comum que se refere ao mundo físico. Refinamento

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pois, por um lado, a linguagem da Física toma como ponto de

partida essa linguagem comum. Aquela que se refere ao mundo

físico que comummente experienciamos com termos como

“localização”, “movimento”, “ritmo”, etc. Ou seja, aquela

que se refere ao mundo físico que se divide em corpos e

ondas. Porém, ao contrário da linguagem natural, a

linguagem da Física pretende ter como referente, não os

corpos e as ondas, mas os representantes arquétipos destes.

E, a partir desse deslocamento transformar a linguagem

comum, que se referem as qualidades, como “movimento”, numa

linguagem que se refere à quantificação dessas qualidades,

como “quantidade de movimento ou momentum”. Ou seja,

transformar o discurso ambíguo sobre o mundo físico num

discurso matemático, formal, objectivo. Neste sentido, Bohr

defende que a linguagem da Física clássica é a única que

garante a comunicabilidade efectiva entre Físicos. Pois é

aquela que é objectiva e constrói-se a partir dessa divisão

entre corpos e ondas. Não havendo outras naturezas dos

objectos físicos, não haverá outras Físicas que não a

Clássica. E, como tal, Bohr defende a indispensabilidade

dos conceitos clássicos. Outorgando-lhes quase um estatuto

de um a priori transcendental, pois convocam em si as

condições de possibilidade de se conceber um objecto

físico. Na realidade, trata-se, a meu ver, de uma

transcendentalização da pentadoxia dos objectos físicos.

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Deste modo, a doutrina dos conceitos clássicos de Bohr

implica que qualquer teoria física é uma generalização das

teorias clássicas. Em particular, uma qualquer teoria

atómica deveria resultar de uma generalização natural das

teorias físicas. Isto é, um caso particular destas. Como o

é, por exemplo, a Termodinâmica relativamente à Mecânica.

Contudo, algo da realidade do mundo quântico invalida todos

os modelos clássicos do átomo, como o de Rutherford. Algo

da natureza dos objectos quânticos escapa aos conceitos

clássicos. Escapa à pentadoxia dos objectos físicos. Algo

da realidade do domínio quântico não se deixa enformar.

Bohr compreendeu esta insubmissão da realidade do

domínio quântico como ninguém, ao compreender que os

objectos quânticos não se deixam conceber como ondas ou

corpos. Se não houvesse essa realidade, aqui compreendida,

tal como propõe Brigitte Falkenburg, como a capacidade de

algo contrariar as nossas expectativas159, de nos desiludir,

não haveria Mecânica Quântica. E, neste sentido, Bohr é,

sem dúvida, um realista. Realismo que será difícil de

classificar, mas que o permite ter bem clara a tensão entre

essa “realidade quântica” e a doutrina dos conceitos

clássicos. E na medida que esta última nada mais é que a

expressão da pentadoxia, foi intenção do físico dinamarquês

159 Falkenburg, Brigitte (2007), Particle Metaphysics, Berlim: Springer, p. 19.

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encontrar uma forma de integrar harmoniosamente a estranha

natureza dos objectos quânticos na concepção clássica do

mundo físico.

Esta integração realiza-se começando por se

estabelecer, como princípio orientador da própria

constituição da Mecânica Quântica, que esta deve ter,

logicamente, uma relação de correspondência com as teorias

clássicas da Física. Uma correspondência, em primeiro

lugar, entre previsões numéricas no limite onde a natureza

quântica perde significado físico prático. Ou seja, no tal

limite dos grandes números quânticos. Uma correspondência,

em segundo lugar, entre os formalismos. E, em terceiro

lugar, uma correspondência entre conceitos.

Por fim, o culminar da incorporação consistente e

harmoniosa da estranha natureza quântica nas teorias

clássicas, reside na determinação da aplicabilidade dos

conceitos clássicos.

A tese fundadora da Teoria Quântica Nova foi a de De

Broglie que consiste na afirmação que objectos quânticos se

propagam como ondas e interagem como corpos. Para De

Broglie tal tese implicava que, de algum modo, teríamos que

encontrar um conceito apropriado para os objectos

quânticos. Em De Broglie existe uma abertura para a

questão: “o que é um objecto quântico?”. Em Bohr existe uma

renúncia total a tal tipo de questão ontológica. De De

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Broglie, Bohr retira a lição que nenhum conceito clássico

não pode ser aplicado a todas etapas necessárias à

descrição completa de uma determinada situação experimental

relativa a um sistema quântico. Da doutrina dos conceitos

clássicos é claro que os objectos quânticos só podem ser

concebidos exclusivamente como ondas ou corpos. Mas se

fossem ondas ou corpos não haveria necessidade de uma

teoria quântica. Bohr foge do labirinto a que a tese de De

Broglie nos conduz, retirando deste apenas a ilação que os

conceitos clássicos devem ser aplicados formalmente e de um

modo complementar. Aos objectos quânticos continuam a ser

aplicados os conceitos de ondas e de corpos. Porém, não se

referem à natureza destes, mas ao padrão de resultados de

uma medição sobre estes. A onda não se refere à natureza

dos objectos quânticos, mas à estatística de resultados de

medida. E neste movimento, a posição é substituída pelo

operador posição. O momentum é substituída pelo operador

momentum. A energia é substituída pelo operador energia. A

Mecânica Quântica não é uma teoria que se refere ao estado

físico dos objectos quânticos, mas apenas e só ao cálculo

probabilístico de uma medição sobre eles. A Mecânica

Quântica constitui-se, assim, como, essencialmente, uma

generalização racional das teorias clássicas da Física.

Compreende-se pois que não seja aplicável aos objectos

quânticos, dentro do contexto da Mecânica Quântica, o

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conceito de trajectória. Pois isso significaria uma

assumpção ontológica sobre essas entidades quânticas. Sobre

uma sucessão de posições. Nem tão pouco lhes será aplicável

o conceito de energia, ou momentum, ou massa, ou qualquer

outro. Se se refere, por exemplo, à posição dos objectos

quânticos é apenas por enorme simplicidade. Na realidade,

no contexto da Mecânica Quântica, deveríamos apenas falar

em medições de posição e suas probabilidades. Neste

sentido, todo discurso ontologizante sobre a função de

onda, sobre o cair na tentação de perguntar “o que havia

antes da medição?” querendo ser fiel à Mecânica Quântica, é

uma pura quimera. E, por consequência, parte do debate

sobre as implicações da Mecânica Quântica são, a meu ver,

sem sentido.

Por outro lado, se se fala em propriedades dos

objectos quânticos como o spin é apenas por não se ter

presente que essas supostas propriedades são puras

construções formais a partir de propriedades dos objectos

clássicos, tal como o spin é do momentum angular.

E se a Física de Partículas se faz falando em

electrões, neutrinos, protões ou outros objectos quânticos,

imaginadas como corpúsculos que se movem, no anel

subterrâneo do CERN, a alta velocidade, quase como se

fossem bolas de bilhar lançadas dentro um tubo gigante, é

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apenas como assinala Brigitte Falkenburg160, porque a Física

de Partículas se constitui a partir de um conjunto de

conceitos operacionais de partícula. Portanto, em

habilidosas transgressões à Mecânica Quântica. O mesmo

poderia ser dito, a meu ver, da Electrodinâmica Quântica,

com o seu conceito operacional de “campo nulo flutuante”,

ou da Química Quântica, com o conceito operacional de

“distribuição de electrões”. Em todas elas, em todas as

linhas de investigação da Física Quântica da segunda metade

do século XX, sente-se a vontade de ontologização na

referência ao domínio quântico. O mesmo que a Mecânica

Quântica se recusa fazer qualquer referência ontológica,

pois os objectos quânticos não podem ser concebidos sem

ferir as entranhadas convicções sobre a natureza dos

objectos físicos que percorre toda a Física. Assim, a

questão não é verdadeiramente “o que é um objecto

quântico?”. Pois essa questão já manifesta a nossa

estranheza em relação à sua natureza. Já, de certo modo,

manifesta a nossa vontade de tornar clássico o quântico. Já

nos conduz pelo caminho trilhado por Bohr que só nos leva a

uma Mecânica Quântica, rica na produção de previsões de

resultados, mas ontologicamente vazia. A questão que o

domínio quântico levanta, a meu ver, não é pois “o que é um

objecto quântico?” mas: “o que é um objecto físico?”.

160 Idem, p. 221.

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179

3. O que é um objecto físico?

Num artigo que, ainda se pode considerar como recente,

o norteamericano Ned Markosian assinala:

“Apesar da sua óbvia importância nas discussões

filosóficas, o conceito de objecto físico tem recebido,

surpreendentemente, pouca atenção. Em particular, a questão “O

que é um objecto físico?”, isto é, “qual é a análise correcta do

conceito de objecto físico?” tem sido praticamente ignorada pela

maioria dos filósofos.”161

O conceito de objecto físico é, necessariamente, de

vital importância para a Filosofia da Física. Para qualquer

Física. Não fora esta, justamente, a ciência que tem por

objecto os objectos físicos. Contudo, aceitando o que

assinala Markosian, estranhamente, a análise deste conceito

tem estado muito pouco presente na Filosofia contemporânea.

161 “Despite its obvious importance in philosophical discussions, the concept of a physical object has received surprisingly little attention. In particular, the question What are physical objects?, i.e., What is the correct analysis of the concept of a physical object?, has been all but ignored by most philosophers.” Markosian, Ned (2000), “What are Physical Objects?”, in Philosophy and Phenomenological Research, 61, pp. 375-376. (tradução minha)

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E se assim é para a Filosofia em geral, é-o, logicamente,

para a Filosofia da Física. O que será, particularmente

surpreendente, pois não só é um conceito fundamental, por

definição da própria Filosofia da Física, como se afirmou

no inicio deste parágrafo, mas porque, como pretendeu

mostrar o capítulo anterior deste trabalho, a questão “o

que é um objecto físico?” é crucial para a Filosofia da

Mecânica Quântica. Porém, se o conceito de objecto físico

tem estado arredado da literatura filosófica actual, ele

foi manifestamente um dos epicentros da ontologia dos

séculos XVI e XVII – época do início tanto da Filosofia

Moderna, como da Física Clássica. Por isso, a meu ver,

qualquer investigação sobre o conceito de objecto físico,

que se pretende relacionar com a Física actual, terá que

começar por essa época. Mais especificamente, por

Descartes. Tanto mais que Markosian, no referido artigo,

defende uma concepção de objecto físico muito aproximada da

apresentada por Descartes.

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181

3.1. O Conceito de Objecto Físico em Descartes

Dentro da bibliografia de Descartes, é nos “Princípios

de Filosofia” que encontramos uma especial e desenvolvida

atenção à Metafísica da Física. Atenção essa que tem o seu

foco no conceito de objecto físico e como a partir deste se

ergue a própria Física. Nos “Princípios de Filosofia”, tal

como nas “Meditações”, Descartes apresenta uma ontologia

constituída por três substâncias. Substâncias que se

distinguem em dois tipos, cada um dos quais correspondente

um sentido ligeiramente diferente do conceito de

substância. Isto mesmo é assinalado por Descartes no título

do parágrafo 51 da primeira parte dos “Princípio de

Filosofia”, onde se pode ler “O que é a substância: um nome

que não se pode atribuir a Deus e às criaturas no mesmo

sentido”. O primeiro desses sentidos do conceito de

substância pode ser encontrado, no referido parágrafo dos

“Princípios de Filosofia”, na bem conhecida afirmação de

Descartes:

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182

“Quando concebemos a substância, concebemos uma coisa que

existe de tal maneira que só tem necessidade de si própria para

existir.”162

A substância surge aqui como o que existe

independentemente de qualquer outra coisa. O que quer dizer

que, por um lado, o que é substância subsiste enquanto

existente, isto é, mantém-se como existente, pela sua

própria natureza. E, por outro lado, significa que o que é

substância tem em si mesma, na sua natureza, a razão da

génese da sua existência.

Porém, como salienta logo o próprio Descartes, “só

Deus é assim”163. Só Deus necessita apenas de si mesmo para

permanecer como existente e só Ele tem a razão da sua

existência completamente fundada na sua natureza. Pois, em

primeiro lugar, Descartes assinala que de Deus temos a

ideia de um “Ser omnisciente, todo-poderoso e extremamente

perfeito, isto é, um Ser todo perfeito”164. Ou seja, de Deus

temos a ideia de um Ser infinitamente poderoso. Ora, 162 “Lorsque nous concevons la substance, nous concevons seulement une chose qui existe en telle façon qu’elle n’a besoin que de soi-même pour exister.” Descartes, René (1644), “Les Principes de la Philosophie” in Oeuvres Philosophiques de Descartes, Tome III, Paris: Garnier Frères (1973), p. 121 ( Parte I, Parágrafo 51) (tradução minha a partir da tradução para português de João Gama, “Princípios de Filosofia”, Lisboa: Edições 70 (2006)), p.45).

163 “[…] il n’y a que Dieu qui soit tel” Idem, ibidem.

164 “[…] d’un être tout-connaissant, sout-puissant et extrêmement parfait” Idem, (Parte I, parágrafo 14) p. 32.

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naturalmente a existência de tal Ser não pode depender da

existência de outra coisa qualquer, pois seria uma

contradição um Ser ser infinitamente poderoso e depender de

outra entidade qualquer. E sendo o único Ser infinitamente

poderoso, só Deus pode ter em si mesmo a razão da sua

existência. Como tal, “só pelo facto de se aperceber de que

a existência necessária e eterna está compreendida na ideia

de um Ser perfeito”165, então esse Ser só “pode ser

concebido como tendo existência necessária”166. O que

significa, segundo Descartes, por um lado, e não

mergulhando nas profundezas do chamado “argumento

ontológico”, que se temos em nós essa ideia de um Ser

perfeito então é porque ele existe. E, por outro lado,

significa, igualmente, que somente Deus existe

necessariamente pela sua própria essência. Só Deus existe

independentemente de qualquer outra coisa. Só Deus será,

então, substância.

Porém, se só Deus cumpre com a condição de substância

então isto significará que tudo é Deus? Se assim fosse ser-

se-ia levado a dizer que, verdadeiramente, existe apenas

uma única substância – a de Deus. Dir-se-ia, então, que

165 “[…] de cela Seul qu’elle aperçoit que l’existence nécessaire et éternelle est comprise dans l’idée qu’elle a d’un être tout parfait, elle doit conclure que cet être tout parfait est ou existe”, Idem, ibidem.

166 “[…] parce qu’elle ne peut être conçue qu’avec une existence nécessaire.” Idem, p. 100 (Parte I, Parágrafo 14) (p. 33)

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Descartes é, no fundo, um monista. E, como tal, todas as

coisas, os objectos físicos em particular, seriam algo como

partes, manifestações ou modos particulares de Deus. Esta

conclusão colocaria Descartes muito próximo de Espinosa

(ou, do ponto de vista cronológico, colocaria Espinosa

muito próximo de Descartes). Pois, justamente, para

Espinosa, da conclusão que apenas Deus corresponde com o

conceito de substância como algo que existe apenas si

mesmo, resulta que “afora Deus, não pode ser dada nem

concebida nenhuma substância”167. Tudo o que existe é, de

algum modo, Deus. Distinguindo, então, o filósofo holandês,

a Natureza em duas: a Natureza naturante, que é “[…] o que

existe por si e é concebido por si […], isto é, Deus,

enquanto é considerado como causa livre; e a Natureza

naturada que é o conjunto de “[…] todos os modos dos

atributos de Deus, enquanto são considerados como coisas

que existem em Deus e não podem existir nem ser concebidas

sem Deus”168. Em Espinosa a Natureza é uma substância única.

E, em particular, os objectos físicos, que no caso são

apenas os corpos, são entendidos como “[…] um modo que

167 Espinosa, Bento de (1677), Ethica, (tradução portuguesa de Joaquim de Carvalho, Joaquim Ferrreira Gomes e António Simões, Ética, Lisboa: Relógio d’Água (1992), p. 121.

168 Idem, pp.150-151.

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exprime, de maneira certa e determinada, a essência de

Deus”169.

Porém, para Descartes, contrariamente a Espinosa, da

consideração que a substância é única, no sentido que só

Deus depende de si mesmo para existir, não resulta que

todas as coisas não são outra coisa que modos ou

manifestações de Deus. Não resulta que as coisas não possam

ser concebidas sem Deus. Em Descartes Deus não está em

todas coisas. Deus é o criador de todas coisas.

Porém, se tudo foi criado por Deus isto não significa

que todas coisas criadas tenham o mesmo estatuto quanto à

sua existência:

“[…] entre as coisas criadas algumas são de tal natureza

que não podem existir sem outras, distinguimo-las daquelas que

só têm necessidade do concurso ordinário de Deus, chamando

substâncias a estas e qualidades ou atributos das substâncias

àquelas.”170

Se Deus é a única coisa cuja existência decorre

unicamente da sua natureza, e por isso é única coisa que

169 Idem, p.197.

170 Idem, ibidem.

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cumpre integralmente com a definição de Descartes de

substância, outras coisas há cuja existência depende

unicamente de Deus, coisas que para existirem “só têm

necessidade do concurso ordinário de Deus”. Como tal estas

são, na sua existência, completamente independentes de

todas outras criadas por Deus. E neste sentido, Descartes

considera-as igualmente como substâncias, embora num

sentido ligeiramente diferente relativamente a Deus.

Por seu turno, se estas substâncias apenas necessitam

de Deus para existirem, então todas as outras coisas

dependem destas para existirem. Não serão substâncias, pois

não dependem unicamente de Deus para existirem, mas são

“qualidades ou atributos” das substâncias. Sendo mais

específico, afirma Descartes:

“A principal distinção que observo entre as coisas

criadas é que umas são intelectuais, isto é, substâncias

inteligentes, ou então propriedades que pertencem a tais

substâncias; as outras são corpórea, isto é, corpos ou

propriedades que pertencem ao corpo.”171

171 “Et la principale distinction que je remarque entre toutes les choses créés est que les unes sont intellectuelles, c’est-à-dire sont des substances intelligentes, ou bien des propriétés qui appartiennent au corps.” Descartes, René (1644), “Les Principes de la Philosophie” in Oeuvres Philosophiques de Descartes, Tome III, Paris: Garnier Frères (1973), p. 119 ( Parte I, parágrafo 48) tradução minha a partir da tradução para português de João Gama, “Princípios de Filosofia”, Lisboa: Edições 70 (2006)), p.44)

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Nesta passagem, Descartes esclarece que as substâncias

criadas se dividem entre aquelas que são substâncias

intelectuais (a que Descartes igualmente designa por

substâncias pensantes ou almas) e as que são substâncias

corpórea ou corpos. O que significa, em primeiro lugar, que

existem para Descartes três substâncias. A de Deus, que

existe independente de tudo, e as que a foram criadas por

Deus e cuja existência depende unicamente Dele: a

substância corpórea e a substância que pensa.

Em segundo lugar, dentro das coisas criadas, para além

das substâncias, existem as propriedades que pertencem à

substância que pensa e as propriedades que pertencem as

substâncias corporais. O que, segundo Rodriguez-Pereya172,

actual professor de Metafísica na Universidade de Oxford,

constitui um segundo conceito de substância em Descartes:

Substância é uma entidade detentora de propriedades. Mas

será que estamos perante, não de um segundo conceito de

substância, mas de um corolário do conceito de substância?

Isto é, será que da afirmação que a substância é uma

entidade detentora de propriedades decorre da concepção da

172 Conferir Rodriguez-Pereya, Gonzalo (2008), “Descarte’s Substance dualism and His Independence Concept of Substance” in .Journal of the History of Philosophy, vol. 46, no. 1, p. 69.

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substância como o que existe independente de qualquer outra

coisa?

Se se afirma que algo, chamemos-lhe “A”, não é

substância pois a sua existência depende directamente de

outra coisa, chamemos-lhe “B”, logo se coloca a questão: e

“B”, a sua existência depende exclusivamente de Deus ou

depende de outra coisa ainda, a que podemos chamar de “C”?

Se depende exclusivamente de Deus, “B” é substância e “A”

uma sua propriedade. Mas se a existência de “B” depende de

“C”, então, por um lado, conclui-se que “B” não é

substância e, por outro lado, regressamos à questão

anterior, mas agora dirigida a “C”: a existência de “C”

depende exclusivamente de Deus ou depende de outra coisa

ainda, a que podemos chamar de “D”? E, eventualmente,

depois de realizado o mesmo movimento, regressamos à

questão anterior, mas agora relativo a um “D”, do qual

dependeria a existência de “C”, e um “E” relativamente à

existência de “D”, e assim sucessivamente num encadeamento

de existências dependentes. Por conseguinte, a interrogação

sobre se existem dois ou mais conceitos de substância no

“Princípios de Filosofia” de Descartes transforma-se na

seguinte questão: uma qualquer cadeia de existências

dependentes sucessivamente termina, necessariamente, numa

substância?

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Se sim, então, em última instância, todas as coisas

criadas ou são substâncias, pois dependem apenas de Deus

para existirem, ou são coisas que dependem, directa ou

indirectamente, das substâncias criadas para existirem. E

neste sentido, tudo o que existe ou é substância, ou é,

necessariamente, uma propriedade destas. E, por

conseguinte, o conceito de substância como portador de

propriedades é um corolário do conceito de substância

enquanto coisa que existe independentemente de qualquer

outra coisa que não seja a substância de Deus. Portanto,

não estaríamos perante dois conceitos de substância, como

afirma Rodriguez-Pereya, mas de apenas um.

Creio, aliás, que esta seja a interpretação mais fiel

a Descartes. Pois a hierarquia das substâncias e das suas

propriedades seria como uma árvore: uma folha de uma árvore

depende do ramo onde se encontra para existir; o ramo

depende do tronco da árvore para existir; e o tronco

depende da raiz a qual funda a existência da árvore, pois

não há árvores sem raízes. Em sentido metafórico, e não se

lhe exigindo demasiado, Deus seria a raiz e o mundo criado

a árvore, pois se uma árvore só existe se existir uma raiz,

uma raiz existe sem necessidade de árvore. No tronco

estariam as substâncias e partir deste as suas

propriedades, como ramificações e folhagens.

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Porém, regressemos à questão anterior, ainda deixada

em aberto, de saber se existem nos “Princípios de

Filosofia” dois conceitos distintos de substância. E, em

especial, regressemos à questão: uma qualquer cadeia de

existência dependentes sucessivamente termina numa

substância? Seria possível responder negativamente a esta

questão? Sim, seria. Pois é possível conceber que uma

entidade “A” depende na sua existência de uma entidade “B”

que, por sua vez, depende de uma entidade “C” que, por fim,

depende de “A”. Portanto, nesta caso de circularidade de

dependências, nem “A”, nem “B”, nem, ainda, “C”,

individualmente consideradas, são substâncias no sentido de

algo que existe independente de qualquer coisa. Mas seriam

substâncias no sentido que são detentoras de propriedades.

Porém, neste caso, “A”,”B” e “C” teriam um estranho

estatuto. Pois, ao se afirmar que pela sua relação mútua de

dependências, “A” seria propriedade de “B”, “B” seria

propriedade de “C” e “C” seria propriedade de “A”, seria

afirmar que, neste sentido, “A”, “B” e “C” seriam, por um

lado, substâncias no sentido que seria portadores de

propriedades, mas por outro lado seriam propriedades. O que

constituiria uma contradição. Contradição que se supera se

entender que, neste caso, nem “A”, nem “B”, nem “C”,

individualmente considerados, são substâncias, mas

propriedades co-dependentes. Contraponhamos à imagem da

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árvore, a imagem do rizoma ou do coral. A este assunto

voltaremos no próximo capítulo. Porém, importa aqui

assinalar que esta possibilidade de existirem propriedades

sem substância é explicitamente rejeitada por Descartes,

como se verá, mais à frente, quando se referir a natureza

da distinção entre “extensão” e “substância extensa”.

Rejeitando-se esta última possibilidade, conclui-se que do

conceito de substância como portador de propriedades é

corolário do conceito de substância como o que tem em si

mesmo a razão da sua existência. E, portanto, não creio que

estejamos perante, nos “Princípios de Filosofia”, de dois

conceitos de substância

Regressando agora à passagem onde Descartes afirma que

as coisas criadas se distinguem em duas categorias: as

substâncias - a pensante e a corpórea - as propriedades que

pertencem a estas, perguntemos: se Descartes afirma que só

existem duas substâncias entre as coisas criadas, em que se

distinguem a substância corpórea e a pensante? Como podemos

saber que são estas as únicas substâncias criadas? E se

estas substâncias são apenas possíveis na sua existência,

pois só Deus existe necessariamente, como sabemos que

existem realmente as substâncias corpóreas e pensante? A

resposta a estas questões pode ser encontrada a partir da

seguinte passagem de Descartes:

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“[…] [para cada uma das substâncias criadas] há um atributo

que constitui a sua natureza e a sua essência e do qual todos os

outros atributos dependem. A saber, a extensão em comprimento,

largura e altura constitui a natureza da substância corporal, e

o pensamento constitui a natureza da substância que pensa. Com

efeito, tudo quanto pode ser atribuído ao corpo pressupõe a

extensão e não passa de dependência do que é extenso.

Igualmente, todas as propriedades que encontramos na coisa

pensante são diferentes maneiras de pensar.”173

Nesta passagem Descartes afirma que as substâncias

criadas distinguem-se entre si por possuírem um atributo

que lhes é essencial. Da substância que pensa, o seu

atributo principal é o pensamento. Da substância corpórea o

seu atributo principal é a extensão.

Assim, por um lado, em função do pensamento e da

extensão, sabemos, respectivamente, que tanto a substância

pensante, como a substância corpórea realmente existem,

173 “[…] il y en toutefois un en chacune qui constitue sa nature et son essence, et de qui tout les autres dépendent. A savoir, l’étendue en longueur, largeur et profondeur, constitue la nature de la substance qui pensé. Car tout ce que d’ailleurs on peut attribuer au corps présuppose de l’étendue, et n’est qu’une dépendance de ce qui est éstendu; de même, tout les propriétés que nous trouvons en la chose qui pensé ne sont que des façons différentes de penser“ Descartes, René (1644), “Les Principes de la Philosophie” in Oeuvres Philosophiques de Descartes, Tome III, Paris: Garnier Frères (1973), p. 123 ( Parte I, Parágrafo 53) (tradução minha a partir da tradução para português de João Gama, “Princípios de Filosofia”, Lisboa: Edições 70 (2006)), p.46).

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pois, segundo Descartes “[…] logo que encontramos algum

atributo podemos concluir que é o atributo de alguma

substância, e que tal substância existe”174. Não há em

Descartes a possibilidade de atributos ou propriedades sem

existir um sujeito, isto é, uma substância, que as possua.

Por outro lado, a distinção entre substâncias opera-se

ao nível da distinção entre atributos principais.

Distinguimos os atributos principais, a extensão e o

pensamento, segundo Descartes, pois concebemos clara e

distintamente extensão sem o pensamento e pensamento sem

extensão. Ou seja, em tudo o que concebemos e podemos

conceber sobre a extensão em nada precisamos do pensamento

enquanto entidade (pois, naturalmente, só através do

pensamento podemos conceber algo. Porém, aqui entende-se

pensamento enquanto faculdade de conceber e não como

entidade ou substância). Sendo o contrário igualmente

verdadeiro. Para concebermos os corpos apenas necessitamos

da extensão e, como tal, esse é o atributo – único - que

lhes essencial, é esse atributo que constitui a sua

natureza. Argumenta Descartes que podemos verificar que só

concebemos clara e distintamente os corpos pela extensão,

corpos como o que é extenso recorrendo um exemplo a que

hoje se chamaria de “experiência de pensamento” e que é

174 “lorsqu’on en rencontre quelqu’un [attribut], on a raison de conclure qu’il est l’attribut de quelque substance, et que cette substance existe.“, Idem, p. 123 (Parte I, Parágrafo 52) (p. 46)

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semelhante ao famoso exemplo da vela, apresentado nas

“Meditações”, mas que nos “Princípios de Filosofia”, é

revisitado na seguinte passagem:

“Tomemos por exemplo uma pedra e retiremos-lhes tudo o que

sabemos que não pertence à natureza do corpo. Primeiramente

retiramos-lhe a dureza, e nem por isso deixará de ser corpo;

depois a cor, já que alguma vezes temos visto pedras tão

transparentes que não têm cor; tiremos o peso, porque também o

fogo, ainda que muito ténue, nem por isso deixa de ser um corpo;

tiremos-lhe o frio, o calor e todas as qualidades deste género,

pois não pensamos estejam todas as outras qualidades deste

género, pois não pensamos que estejam na pedra ou que a pedra

mude de natureza porque umas vezes nos parece quente e outras

fria. Depois de assim termos examinado esta pedra descobrimos

que a verdadeira ideia que nos faz conceber que é um corpo que

consiste unicamente em nos apercebemos distintamente de que é

uma substância extensa em comprimento, largura e altura”175

175 “Nous prenons pour exemple une pierre et en ôtons tout ce que nous saurons ne point appartenir à la nature du corps. Otons-en donc premièrement la dureté, parce que, si on réduisait cette pierre en poudre, elle n’aurait plus de dureté, et ne laisserait pas pour cela d’être un corps; ôtons-en aussi la couleur, parce que nous avons pu voir quelquefois des pierres si transparentes qu’elles n’avaient point de couleur; ôtons-en la pesanteur, parce que nous voyons que le feu, quoiqu’il soit très léger, ne laisse pas d’être un corps; ôtons-en le froid, la chaleur, et toutes les autres qualités de ce genre, parce que nous ne pensons point qu’elles soient dans la pierre, ou bien que cette pierre change de nature parce qu’elle nous semble tantôt chaude et tantôt froid. Après avoir ainsi examine cette pierre, nous trouverons que la véritable idée que nous en avons consiste en cela seul que nous apercevons distinctement qu’elle est une substance étendue en longueur, largeur et profondeur”, Idem, pp. 156-157 (Parte II, Parágrafo 11)(p.64).

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Defende então Descartes que o que conhecemos dos

corpos através das impressões sensíveis, conhecemo-lo

apenas de uma forma confusa e indistinta. Confusa, pois das

impressões sensíveis temos a sensação de cor, cheiro,

dureza, calor, etc. Sensações que associamos aos corpos e

somos levados a dizer, por exemplo, que um dado corpo é

azul ou que é quente. Porém, segundo Descartes “conhecemos

clara e distintamente a dor, a cor e outras sensações

quando as consideramos simplesmente como pensamentos”176. Ou

seja, só sabemos, por exemplo, o que é a cor quando a

tomamos como algo da substância pensante e, por

consequência, como algo completamente distinto da

substância corpórea. Portanto, todas essas coisas que as

nossas impressões sensíveis nos oferecerem como cor,

cheiro, dureza ou calor só confusamente os poderemos

associar aos corpos, pois são elementos não destes mas do

pensamento. Por essa razão, os corpos não mudam a sua

natureza consoante a sua cor, cheiro, dureza ou calor.

Retirando do conjunto de atributos do corpo tudo aquilo que

é da sensação, apenas resta a extensão. Mas se retirarmos a

extensão não há corpo. Podemos conceber uma pedra incolor,

176 “[…] nous connaissons clairement et distinctement la douleur, la couleur et les autres sentiments, lorsque nous les considérons simplement comme des pensées », Idem, p. 136 (Parte I, Parágrafo 68) (p. 53).

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inodora, sem peso, mas não podemos conceber, segundo

Descartes, de forma alguma, um corpo sem extensão.

Chegamos, então, à conclusão que a ideia que temos dos

corpos é a ideia de uma coisa extensa, de uma res extensa.

Pois ao se eliminar sucessivamente todos as propriedades

que atribuímos aos corpos, alcançamos a única da qual não

se pode prescindir na concepção de corpo: a extensão em

comprimento, largura e altura.

Assim, para Descartes, só concebemos clara e

distintamente uma substância pensante pelo pensamento.

Pois, se por um lado, não é inteligível uma substância

pensante sem pensamento, por outro lado apenas precisamos

do pensamento para conceber a substância que pensa. Da

mesma forma, só concebemos clara e distintamente uma

substância corpórea pela extensão. Pois, por um lado, não é

inteligível um corpo sem extensão, por outro lado, apenas

precisamos da extensão para conceber o corpo.

Por seu turno, dado que todas as coisas que conhecemos

são referentes ou ao pensamento ou à extensão e sendo estes

os atributos que constituem, distinta e respectivamente, a

essência da substância que pensa e da substância corpórea,

então sabemos que não existirem outras substâncias criadas

para além da Alma e do Corpo. Havendo dois atributos

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principais sabemos que existem apenas duas substâncias

criadas.

Regressando aos corpos como conceito, não será

surpreendente que extensão possua um estatuto essencial

relativamente à sua natureza. É de senso comum que os

corpos têm volume e têm uma localização. Aliás, ao

argumentar por eliminação, isto é, ao tentar mostrar que a

essência dos corpos é extensão nas três dimensões do espaço

físico por recurso à eliminação de todos os outros

presumidos atributos, Descartes remete para o senso comum

sobre os corpos, onde, naturalmente, se inclui a noção que

os corpos têm comprimento, largura e altura (aliás, na sua

argumentação Descartes pressupõe que é, igualmente, de

senso comum o que seja comprimento, largura e altura). Na

caracterização dos corpos, o que é fulcral e particular,

tal como assinala Garber177, em Descartes é a afirmação que

a natureza dos corpos seja exclusivamente a extensão. Ou

seja, que um conjunto de propriedades que vulgarmente

atribuímos aos corpos, como a temperatura, o peso, a cor,

nem quaisquer outras que julguemos, não pertencem realmente

a estes. Afirma, pois Descartes:

177 Garber, Daniel (1992), Descartes’ Metaphysical Physics, Chicago: University of Chicago Press, p. 77.

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198

“[…] a natureza do corpo em geral não consiste em ser uma

coisa dura, pesada ou colorida, ou que afecta os sentidos de

qualquer outra maneira, mas que é apenas uma substância extensa

em comprimento, largura e altura”178

Os corpos conhecemos confusamente através dos

sentidos, ao misturar a sua extensão com cores, cheiros,

propriedades tácteis, etc. Os corpos conhecemos clara e

distintamente como extensão e apenas como extensão. Por

essa razão é tão fundamental em Descartes a separação

radical e completa entre a substância pensante e corpórea.

Pois, permite estabelecer uma radical separação entre o

sujeito que conhece o mundo físico - o sujeito que pensa -

e o objecto desse conhecimento - o corpo. Permitindo que

aquilo que seja determinado para os corpos seja objectivo,

isto é, que pertence somente ao objecto.

Por outro lado, como coisa puramente extensa, os

corpos, os objectos físicos, na sua natureza e propriedades

são afins com os objectos geométricos. Como tal, a partir

da sua concepção de corpo, Descartes pode fundar

178 “[…] la nature de la matière, ou du corps pris en général, ne consiste point en ce qu’il est une chose dure, ou pesante, ou colorée, ou qui touche nos sens de quelque autre façon, mais seulement en ce qu’il est une substance étendue en longueur, largeur et profondeur.” Descartes, René (1644), “Les Principes de la Philosophie” in Oeuvres Philosophiques de Descartes, Tome III, Paris: Garnier Frères (1973), p. 149 (Parte II, Parágrafo 4) (tradução minha a partir da tradução para português de João Gama, “Princípios de Filosofia”, Lisboa: Edições 70 (2006)), p.60).

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199

solidamente na matemática uma ciência dos objectos físicos,

isto é, uma Física. Porém, a Física que Descartes pode

fundar é uma Física geométrica, uma Física das proporções e

não uma Física das quantidades, uma Física com uma álgebra

funcional. E, como tal, não é a Física como a reconhecemos,

que se inicia com Newton.

Porém, se todo o corpo é, pela sua essência, extenso,

então, poderá haver extensão sem corpo? Para Descartes, nos

“Princípios de Filosofia”, não. Pois, tal como já foi aqui

referido, Descartes não considera a possibilidade da

existência de uma propriedade que não seja senão uma

propriedade de uma substância determinada. A cor existe na

medida que é uma propriedade da substância pensante. A

extensão existe na medida que é uma propriedade da

substância corpórea. Descartes é muito claro quando afirma:

“[…] só distinguimos pensamento e extensão do que pensa e é

extenso como as dependências da própria coisa de que dependem, e

conhecemo-las tão clara e distintamente como a sua substância

desde de que não pensemos que subsistem por si próprias, mas que

são somente as maneiras ou dependências daquelas substâncias”179

179 “[…] nous ne distinguons la pensé et l’étendue de ce qui pensé et ce qui est étendu que comme les dépendances d’une chose, de la chose même dont elles dépendent; nous les connaissons aussi clairement et aussi distinctement que leurs substances, pourvu que nous ne pensions point qu’elles subsistent d’elles-mêmes, mais qu’elles sont seulement

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Se distinguimos “extensão” da substância que é

extensa, fazemo-lo apenas por via do pensamento, pois não

corresponde a uma distinção real. Pois se fosse uma

distinção real, então teríamos que considerar que

“extensão” subsistiria si mesma, o que não é aceitável para

Descartes, pois equivaleria a afirmar que a “extensão” era

uma substância.

Por sua vez, se a extensão só pode ser considerada

como propriedade da substância corpórea, então não pode

haver extensão sem corpo. Mais concretamente, toda a

extensão, isto é, todo o espaço físico, está

necessariamente preenchido por corpo. Ou seja, do conceito

de corpo de Descartes resulta que o mundo físico é um

plenum.

Uma das consequências imediatas do plenum do espaço

físico é, claro está, a não existência de vazio em

Descartes. Como assinala o próprio:

“Quanto ao vazio, no sentido em que os filósofos tomam esta

palavra, isto é, como um espaço onde não há nenhuma substância,

é evidente que tal espaço não existe no universo, porque a

les façons ou dépendances de quelques substances.” Idem, pp. 133-134 (Parte I, Parágrafo 64) (p.51).

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extensão do espaço ou do lugar interior não é diferente da do

corpo”180.

Porém, se a natureza da “extensão do espaço ou lugar

interior não é diferente da do corpo” como podemos

distinguir, pois todo o espaço é corpo, como podemos

distinguir os vários corpos no espaço? Afinal, é da

percepção sensível comum que os corpos são vários no espaço

e não apenas um, isto é, que são finitos, que Descartes

chega à conclusão que a natureza dos corpos é a pura

extensão. Se percebemos o espaço físico como um plenum, não

poderíamos chegar, por eliminação, como faz Descartes no

exemplo da pedra à qual vamos retirando sucessivamente

atribuições, à noção de largura, altura e comprimento e,

como tal, que os corpos são coisa extensa. Se falamos numa

pedra que tem uma largura, uma altura e um comprimento, é

porque é finita e o que a rodeia é-lhe, de alguma forma,

distinto. Mas se o espaço é um plenum essa distinção não

pode ser relativamente à natureza do que o rodeia, como

seria o caso do vazio. E, como tal, só pode residir na

diferença na composição das partes do corpo – no caso, a

180 “Pour ce qui est du vide, au sens que les philosophes prennent ce mot, à savoir, pour un espace où il n’y a point de substance, est évident qu’il n’y a point d’espace en l’univers qui soit tel, parce que l’extension de l’espace ou du lieu intérieur n’est point différente de l’extension du corps.” idem, p. 161 (Parte II, Parágrafo 16) (p.66).

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pedra – e o que o rodeia. O que imediatamente rodeia um

corpo particular, a sua superfície, é designado por

Descartes de lugar exterior desse corpo particular. E,

logicamente, a figura dessa superfície, que é o

consideramos ser a figura do corpo é apenas um modo da

extensão. Desta forma, a diferença entre um corpo

particular e o que o rodeia, que também é corpo, reside na

diferença entre as partes que constituem esse corpo

particular e as que o rodeia. Mais especificamente:

“[…] só há uma matéria em todo o universo e só a conhecemos

porque é extensa. Todas as propriedades que nela apercebemos

distintamente apenas se referem ao facto de poder ser dividida e

movimentada segundo as suas partes.”181

Desta passagem assinala-se, em primeiro lugar, que

surge o termo “matéria”. Esta matéria não é outra coisa que

a substância corpórea entendida como plenum. Isto é, com a

totalidade da extensão. E por isso, “[…] a Terra e os céus

são feitos de uma mesma matéria, […] cuja natureza consiste

181 “Il n’y a donc qu’une même matière en tout l’univers, et nous la connaissons par cela Seul qu’elle est étendue; pour ce que toutes les propriétés que apercevons distinctement en elle, se rapportent à ce qu’elle peut être divisée et mue selon ses parties”, Idem, p. 168 (Parte II, Parágrafo 23) (p.69).

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unicamente em ser coisa extensa”182. Ao identificar a

matéria com o plenum da substância do mundo físico, ou

seja, o espaço, Descartes, por um lado, afasta-se de

Aristóteles quando no filósofo grego o mundo físico é tido

como constituído por cinco matérias (água, ar, fogo, terra

e éter), havendo apenas uma matéria. Por outro lado, a

identificação da matéria com o plenum permite que se

distinga quando estamos a falar de um corpo particular do

conjunto total de corpos que constitui a plenitude do mundo

físico.

Em segundo lugar, na passagem anterior, Descartes

assinala que dado que a natureza dos corpos é a extensão,

então estes são divisíveis em partes. E, como tal, embora

toda a matéria seja constituída por partes, os corpos ou

objectos físicos particulares distinguem-se entre si pelas

diferenças entre essas partes que os constituem. A saber:

nos seus tamanhos e nos seus movimentos.

Relativamente ao tamanho, nessas partes em que os

corpos se podem dividir há umas tão pequenas que nos

escapam à visão e assim temos a falsa percepção de um vazio

e, por contraste de um corpo particular, como uma pedra

182 “[…] la Terre et les cieux sont faits que d’une même matière […], dont la nature consiste en cela seul qu’elle est une chose étendue”, Idem, p. 167 (Parte II, Parágrafo 22) (p.68).

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rodeada de ar. Isso mesmo é referido explicitamente por

Descartes quando afirma que:

“[…] considero que em cada corpo há muitas partículas que

são tão pequenas que não podem ser sentidas”183

Significa isto, por um lado, que um corpo como o ar de

uma sala é constituída, essencialmente, por partículas tão

pequenas que não podem ser sentidas. Não as vendo somos

levados a concluir erradamente que não existem e falamos em

vazio quando esse vazio está cheio. Até, numericamente,

mais cheio que uma pedra. Mas por outro lado Descartes

afirma que não só os fluidos, como o ar, são constituídos

por partículas corpóreas ou corpúsculos tão pequenos que

não podem ser sentidos. Todos os corpos o são. Afinal, se

estes são extensos, então podem ser divididos em partes,

progressivamente, cada vez mais pequenas. Porém:

“Por mais pequenas que as suas partes sejam, todavia, e

porque é necessário que sejam extensas, pensamos que não há

sequer uma de entre elas que não possa dividir-se em duas ou

183 “[…] je considère plusieurs parties en chaque corps qui sont petites qu’elles ne peuvent être senties“, Idem, p. 516 (Parte IV, Parágrafo 201) (p.272).

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noutras ainda mais pequenas; donde se segue que são

divisíveis.”184

Por mais pequenos que sejam os corpúsculo a cada

divisão, não é pensável uma qualquer sequência de divisões

até se alcançar uma parte tão ínfima do corpo que seja

última e absolutamente simples. Isto é, algo como um átomo,

entendido no sentido do que denominei no capítulo anterior

de partícula pura dos corpos. Pois considerar que um átomo,

no sentido de um corpo sem divisibilidade, seria considerar

um corpo sem partes. Logo, seria, igualmente, considerar um

corpo sem extensão. O que constituiria uma contradição com

a própria concepção do corpo como extenso. Descartes

afirma-se assim, claramente, contrário ao atomismo, no

sentido que este defende a existência de corpúsculos

indivisíveis e imutáveis na sua extensão e figura. Contudo,

para Descartes, tal como para os atomistas, tudo no mundo

físico é apenas composto por corpúsculos. Corpúsculos que,

para Descartes, como já foi referido, são concebidos, não

184 “D’autant que, si petites qu’on suppose ces parties, néanmoins, parce qu’il faut qu’elles soient étendues, nous concevons qu’il n’y en a pas une entre elles qui ne puisse être encore divisée en deux ou plus grand nombre d’autres plus petites, d’où il suit qu’elle est divisible.” Idem, p.166 (Parte II, Parágrafo 20) (p.68).

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como entidades infinitamente pequenos, mas como entidades

incontáveis e de extensão indefinida185.

Mas regressando um pouco atrás, segundo Descartes os

corpos individuais distinguem-se não só pela dimensão das

suas partes, mas igualmente pelo movimento destas. É assim

que Descartes, entre os parágrafos 54 e 63 da segunda

partes dos “Princípios de Filosofia”, estabelece a

diferença entre sólidos e líquidos. Em que, resumidamente,

neste últimos as suas partes, para além de serem mais

pequenas, movem-se mais facilmente e, por isso, oferecem

menos resistência à divisão.

Mas mais importante que a distinção entre sólidos e

líquidos, interessa assinalar que, em Descartes, do mesmo

modo que da nossa experiência do mundo extraímos a noção

que os corpos têm figura, extraímos a noção que os corpos

se movem. O movimento, tal como a figura, não é algo que

decorre necessariamente da concepção de corpo como coisa

extensa. Um corpo poderia ser sem fim definido e, como tal,

ser sem contorno e, pois está, sem figura. E os corpos

poderiam ser eternamente estáticos. Figura e movimento são

para Descartes modos de ser extenso. Isto é, não fazem

parte da sua natureza, mas são maneiras diferentes da

extensão existir. São, em linguagem escolástica, acidentes,

185 Conferir, Idem p.181 (Parte II, Parágrafo 34) (p. 74)

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neste caso, da extensão. Mas, o que é o movimento em

Descartes? Como conceber movimento num plenum? E se não é

parte da sua natureza, por que se movimentam os corpos?

3.1.1 Movimento.

O conceito de “movimento” é apresentado por Descartes

nos “Princípios de Filosofia” em dois tempos. Primeiro,

Descartes apresenta o conceito de senso comum de

“movimento”, a que apelidada de impróprio. Depois, em

oposição a este, Descartes apresenta o seu conceito de

movimento. O primeiro, o impróprio:

“[…] o movimento, de acordo com o senso comum, é a acção

pela qual um corpo passa de um local para outro”186

Este é o conceito de movimento como de mudança de

lugar. É o conceito de movimento que nos parece mais

intuitivo e por isso Descartes designa-o de “senso comum”.

Descartes, rejeita-o. Pois, como o próprio logo assinala,

186 ”[…] le mouvement, selon qu’on le prend d’ordinaire, n’est autre chose que l’action par laquelle un corps passe d’un lieu en un autre.” Idem, p.169 (Parte II, Parágrafo 24).

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este senso comum sobre o movimento leva-nos a cair numa

imensa dificuldade. Afirma Descartes, segundo o conceito de

senso comum sobre o movimento:

“[…] uma vez que se pode afirmar que uma coisa muda e não

muda de lugar ao mesmo tempo, também podemos dizer que se move e

não se move ao mesmo tempo. Por exemplo, quem está sentado na

popa de um barco impelido pelo vento crê que se move quando se

fixa apenas na margem donde partiu e a considera imóvel; e não

crê que mover-se quando se fixa somente no barco em que se

encontra, porque não muda de localização relativamente às suas

partes.”187

Claramente a questão aqui é o que se designa,

geralmente, por relatividade de Galileu, onde a definição

do estado de movimento de um objecto físico particular é

relativo a um referencial arbitrário. No caso, o movimento

de um passageiro num barco relativo à popa do barco que o

transporta ou à margem donde partiu. E, por consequência,

desta relatividade do estado movimento de um objecto físico

187 ”[…] qu’une même chose en même temps change de lieu et n’en change point, de même nous pouvons dire qu’e même temps elle se meut et ne se meut point. Car celui, par exemple, qui est assis à la poupe d’un vaisseau que ce vent fait aller, croit se mouvoir, quand il ne prend garde qu’au rivage duquel il est parti et le considère comme immobile, et ne croit pas se mouvoir, quand il ne prend garde qu’au vaisseau sur lequel il est, parce qu’il ne change point de situation au regard de ses parties.”, idem, ibidem.

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particular em relação a um referencial arbitrário, existe

uma indeterminação sobre o estado de movimento verdadeiro,

pois podemos dizer, simultaneamente, tal como salienta

Descartes, que um mesmo corpo está em repouso e em

movimento. O que só nos pode levar a concluir que o

movimento não é algo, de facto, das coisas extensas. Seria,

talvez uma atribuição do pensamento. O movimento seria

talvez uma sensação. O que para Descartes é inaceitável,

entre outras razões, pois contradiz a noção de movimento

como modo da extensão, isto é, como modo de ser extenso. E,

por conseguinte, levaria à contradição com o próprio

conceito de corpo como pura extensão, avançado por

Descartes.

Contrariamente a esta concepção de senso de comum do

movimento, Descartes considera que propriamente dito:

“[…] o movimento é translação de uma parte da matéria ou de

um corpo da proximidade daqueles que lhe são imediatamente

contíguos – e que consideramos em repouso – para a proximidade

de outros”188

188 “[…] [mouvement] est le transport d’une partie de la matière, ou d’un corps, du voisinage de ceux qui le touchent immédiatement, et que nous considérons comme en repos, dans le voisinage de quelques autres.“ Idem, p. 169 (Parte II, Parágrafo 25) (p.69).

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Descartes procura resolver o problema do relativismo

do movimento, fixando como referência do movimento a

vizinhança contígua do corpo que se move. Assim, Descartes

assegura que de um corpo podermos dizer apenas que está em

translação com a sua vizinhança contígua ou em repouso em

relação a esta, mas nunca, simultaneamente, em ambos

estados de movimento.

Contudo, o conceito de movimento cartesiano é, por si,

um mar de problemas. Em primeiro lugar, pois este conceito

de movimento é ainda relativista. Afinal, o estado de

movimento de um corpo particular é relativo a uma

vizinhança que arbitrariamente se afirma encontrar-se em

repouso. Ou seja, na verdade, o movimento, em Descartes,

aparece apenas como uma diferença relativa entre dois

corpos: a vizinhança e o corpo que se diz em movimento. Aos

corpos não lhes é atribuída propriedades características do

movimento como a celeridade, a velocidade ou a aceleração.

Dentro do conceito de movimento de Descartes, poder-se-ia

até dizer que não é o corpo que se move e que não é a sua

vizinhança contígua que se encontra em repouso, mas o

inverso.

O segundo problema com o conceito de movimento em

Descartes é que, como assinala Garber189, nos conduz a uma

189 Garber, Daniel (1992), Descartes’ Metaphysical Physics, Chicago: University of Chicago Press, p. 178.

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circularidade. Pois, na sequência da apresentação do seu

conceito de movimento, Descartes afirma sobre os corpos:

“Por corpo ou parte da matéria entendo aquilo que é

transportado conjuntamente, ainda que seja composto de várias

partes que [com a sua acção] desencadeiam outros movimentos”190

Ora, ao conceber corpo com o “o que é transportado

conjuntamente”, quando antes, concebeu movimento como a

“translação de um corpo”, Descartes entra numa

circularidade entre “corpo” e “movimento”. Pois, se

“movimento” é concebido em função de “corpo” (como uma

translação deste), já “corpo” em concebido em função do que

é transportado, ou seja, do que é transladado, isto é, do

que se movimenta. Esta circularidade pode ser, em certa

medida, rompida atendendo que este conceito de corpo em

função do movimento é naturalmente consistente com o

conceito de corpo como coisa extensa, dado que a afirmação

“composto de várias partes” implica dizer que é extenso.

190 “Par un corps, ou bien par une partie de la matière, j’entends tout ce qui est transporté ensemble, quoiqu’il soit peut-être composé de plusieurs parties qui emploient cependant leur agitation à faire d’autres mouvements.“ Descartes, René (1644), “Les Principes de la Philosophie” in Oeuvres Philosophiques de Descartes, Tome III, Paris: Garnier Frères (1973), p. 170 (Parte II, Parágrafo 25) (tradução minha a partir da tradução para português de João Gama, “Princípios de Filosofia”, Lisboa: Edições 70 (2006)), p.170).Idem, p. 170.

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Note-se que o inverso não é necessariamente verdadeiro,

pois ser extenso não significa necessariamente ser composto

de várias partes, como é exemplo o conceito de átomo de

Demócrito. Daqui resulta igualmente claro – se dúvidas

houvesse – que o conceito de corpo como o que é extenso, em

Descartes, é primeiro, é primordial, relativamente a este

conceito de corpo como “o que é transportado

conjuntamente”. E, como tal, “corpo” é, em Descartes,

claramente concebido independentemente de “movimento”. Como

aqui já se disse, o Universo físico de Descartes poderia

ser eternamente estático. Porém, dizer que um corpo é coisa

extensão não nos faz o entender o que é o movimento, isto

é, não nos faz sair da circularidade relativamente à

definição de “movimento”. Pois, ao se afirmar que movimento

é “translação de um corpo”, ou seja, é a translação de uma

coisa extensa então movimento é definido em função da

translação. Mas o que será a translação senão um movimento?

O terceiro problema com o conceito de “movimento” de

Descartes decorre de ser um movimento num plenum. Um corpo

que se movimenta num espaço plenamente preenchido tem como

consequência que o movimento seja, necessariamente local,

tal como Descartes pretendia, porém implica, igualmente,

que não pode existir um movimento sem contacto. E, por

conseguinte, qualquer movimento de um corpo leva ao

“desencadear de outros movimentos”. Contudo, isto só poderá

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levar à conclusão que quando um corpo se move, só o pode

fazer em função de todos os corpos que o rodeiam. Descartes

tenta resolver este problema indicando que “tem de haver

necessariamente um círculo de matéria ou de corpos que se

movem em conjunto ao mesmo tempo; e de tal maneira que

quando um corpo deixa o seu lugar para que outro o

preencha, vai ocupar o do outro e assim sucessivamente até

ao último que nesse instante ocupa o lugar deixado pelo

primeiro. E facilmente verificamos que isto é um círculo

perfeito”191. O centro deste circulo será, logicamente,

comum a todos corpúsculos que estão em movimento. O que

levará Descartes ao conceito de turbilhão ou vórtice.

Porém, como é fácil de verificar imaginando três rodas

dentadas, embora os seus dentes se disponham de modo a que

se movam circularmente, fazendo mover as outras que lhe são

contíguas, se estas três rodas estiverem simultaneamente

interconectadas não há possibilidade de existir movimento

algum. É condição de possibilidade de movimento deste pleno

de corpúsculos contíguos a existência uma harmonia

necessária entre todos as partículas corpóreas, ou

corpúsculos, que compõem o plenum. Harmonia que em

191 “[…] qu’il y ait toujours tout un cercle de matière ou anneau de corps qui se meuvent ensemble en même temps ; en sorte que, quand un corps quitte sa place à quelqu’autre qui le chasse, il entre en celle d’un autre, et cet autre en celle d’un autre, et ainsi de suite jusques au dernier, qui occupe au même instant le lieu délaissé par le premier. Nous concevons cela sans peine en un cercle parfait.“ Idem, pp. 179-180 (Parte II, Parágrafo 33) (p.73).

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Descartes não é justificada. Terá sido pré-estabelecida por

Deus no momento da criação da substância extensa? Descartes

não nos responde reconhecendo, aliás, não saber como se

compunha o universo no momento da criação192. Mesmo que Deus

tivesse composto harmonicamente as partes físicas do

Universo no acto de criação, teria ainda que calcular o

desgaste ao longo do tempo de cada corpo. Isto é, a

decomposição por fricção das partes em contacto de que nos

fala Descartes no parágrafo 50, na terceira parte dos

“Princípios de Filosofia”. Decomposição por fricção que

leva a que os corpúsculos tendam a ser redondos e evoluírem

para uma extensão cada vez menor.

Por outro lado, dado que o conceito de corpo não

decorre a necessidade destes se moverem, então a quantidade

de movimento total não poderá diminuir ou aumentar ao longo

do tempo. Pois uma variação da quantidade de movimento

significaria que os corpos teriam absorvido ou doado

movimento, o que contradiz a sua natureza, segundo

Descartes. Mas se os corpos se movem, e o movimento não é

consequência da sua natureza, então algo, isto é, Deus no

momento da criação, não só distribuiu os corpúsculos de

modo a que os movimentos individuais fossem compatíveis no

plenum de que fazem parte, como deu o impulso inicial que

192 Conferir p. 250 (Parte III, Parágrafo 47) (p.111).

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fez o mundo físico mover-se. Deus é o criador da matéria e

a primeira causa do movimento193.

Outro problema com o conceito de movimento de

Descartes decorre dos corpos serem concebidos como o

simples agregado de corpúsculos individuais. Isto é, os

corpúsculos que compõem um corpo não estão ligados entre

si194. Nada os une pois se alguma coisa houvesse teria ser

substância extensa e, como tal, corpuscular. Então, por um

lado, o movimento do corpo é a coincidência do movimento,

digamos, empático, das suas partes. Por outro lado, um

corpo é consistente na medida que as suas partes

constituintes estão em relativo repouso umas com outras.

Porém, como assinala Edward Slowik195,não havendo nada que

force os constituintes dos corpos a estarem unidos, como

explicar que uma colisão não leve à desintegração de um

corpo?

193 Conferir Idem, p. 182 (Parte II, Parágrafo 36) (p.75).

194 Conferir Idem, p. 206 (Parte II, Parágrafo 55) (p.85).

195 Conferir Slowik, Edward (2009), “Descartes’ Physics” in Standford Encyclopedia of Philosophy, (http://plato.standford.edu/archives/fall2009/entries/descartes-physics), p. 11.

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3.1.2. Conclusão

O conceito de objecto físico, ou corpo, surge em

Descartes, como um produto do seu método de dúvida

metódica. Duvidemos de tudo que julgamos saber sobre os

corpos, como que estes têm cor, peso, dureza, etc, até que

cheguemos ao único atributo que não podemos negar ao corpos

sob pena de não os podermos conceber. Esse atributo é a

extensão. Assim, conclui Descartes, que a única coisa que

não podemos duvidar sobre os corpos é que estes são coisa

extensa. Ou dito de outro modo, os corpos têm como natureza

ou propriedade essencial, a extensão.

Concebendo os objectos físicos apenas como coisa

extensa, Descartes permite que estes sejam representados

fielmente como objectos geométricos. Assim, pode-se

edificar uma ciência dos corpos, uma Física escrita em

linguagem matemática, liberta das amarras da subjectividade

inerente à atribuição aos corpos daquilo que é da sensação,

isto é, do pensamento. Concebendo os objectos físicos como

coisa extensa e apenas como coisa extensa, todos os

fenómenos físicos e suas leis poderiam ser deduzidos do

mesmo modo e com a mesma segurança como se deduzem os

teoremas da geometria a partir dos seus postulados. Isto é,

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fazendo apenas uso recto da razão. A Física seria uma pura

teoria da razão.

Porém, o universo físico em Descartes, concebido

apenas como uma espécie de tangram, não encontra em si, na

sua natureza, nenhuma razão para existir movimento. Tudo do

mundo físico, em Descartes, poderia ser estático. É preciso

então assumir que Deus para além de criar os corpos deu-

lhes movimento. As três leis de movimento que Descartes

deduz, e que serviram de inspiração a Newton, são,

essencialmente, leis da tendência da conservação do

movimento, isto é, são, essencialmente, leis de inércia.

Contudo, como aqui se pretendeu mostrar, a concepção

cartesiana de objecto físico torna-se dificilmente

consistente (ou mesmo compatível) com a atribuição aos

corpos do movimento como algo que lhes é próprio. E, por

outro lado, através de Descartes mostra-se a inconsistência

de uma Mecânica fundada num conceito de corpo como coisa

extensa.

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3.2. O conceito de objecto físico em Newton.

Como é sabido, o Philosophiae Naturalis Principia

Mathematica, ou como é usualmente tratado, Principia,

constitui tanto a magnus opus de Newton, como o livro

fundador da Física tal como hoje ainda a reconhecemos.

Publicada quatro décadas depois dos “Princípios de

Filosofia” de Descartes, os Principia tomam-lhe,

possivelmente, a sua inspiração tanto no título, como na

concepção mecanicista e matemática da realidade física.

Pois, tanto numa obra, como na outra, a Terra, o Mundo em

geral, são descritos, de certo modo, como fossem “apenas

uma máquina onde só há que considerar as figuras e os

movimentos das respectivas partículas”196.

Os Principia podem ser divididos, a meu ver, em

quatro partes principais: “Definições e Axiomática”, o

“Movimento dos Corpos” (Livros I e II), o “Sistema do

Mundo” (Livro III) e o “Escólio Geral”. A parte que

interessa aqui focar é a primeira, pois é onde se encontra

196 Conferir Descartes, René (1644), “Les Principes de la Philosophie” in Oeuvres Philosophiques de Descartes, Tome III, Paris: Garnier Frères (1973), p. 503 (Parte IV, Parágrafo 188) (tradução minha a partir da tradução para português de João Gama, “Princípios de Filosofia”) Lisboa: Edições 70 (2006)), p.265. Não o será assim estritamente em Newton, pois, como se verá, a figura corresponde à delimitação espacial da matéria que constitui um corpo. Portanto, claramente, tanto em Newton como Descartes, o mundo físico é como uma máquina. Contudo, no caso do físico inglês, é uma máquina onde há considerar, para além da figura e movimento, a quantidade de matéria.

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exposta a ontologia sobre o mundo físico (ou o conjunto de

assumpções ontológicas) de Newton. Uma ontologia que é

constituída por três elementos fundamentais: Corpo, Espaço

e Tempo.

3.2.1. Corpo

O início da primeira das partes referidas dos

Principia é composta por oito definições, cada uma

acompanhada por um comentário. Estas definições constituem

os pilares da Física Newtoniana, numa estrutura claramente

inspirada nos Elementos de Euclides. Isto é, numa estrutura

axiomática-dedutiva. E dado que o tópico de estudo da

Filosofia Natural, aquela em que Newton quer estabelecer os

princípios matemáticos, são os objectos físicos, então não

será surpreendente que a primeira dessas definições

(Definição I) se refira, justamente, aos corpos.

No comentário à Definição I, Newton afirma que por

“corpo” ou “massa” deveremos entender o mesmo que

entendemos por “quantidade de matéria”. Logicamente

entendido estabelece-se aqui um mero jogo de equivalências

entre estes três termos. O que em pouco esclarece sobre

exactamente o que é um “corpo” ou “massa”. Contudo,

percebe-se logo aqui que para Newton, um corpo é uma certa

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quantidade. Um compósito de uma quantidade de matéria. Mas

o que é “quantidade de matéria”? Pois, é justamente sobre

esta última que Newton dedica a Definição I. Nesta, Newton

afirma entender por “quantidade de matéria” simplesmente o

produto da densidade pelo volume. Trata-se, numa primeira

leitura, de uma definição insatisfatória, tal como

assinalaram, entre outros, Mach197 e James Cushing198.

Insatisfatória pois Newton ao definir “quantidade de

matéria” em função da densidade apenas nos conduz a uma

questão: então, o que é “densidade”? Questão que nos

Principia fica no vazio, pois Newton nunca lhe dá resposta.

Assim, a insatisfação relativamente à definição de

“quantidade de matéria” encontra aqui parte da sua

justificação, pois se esta nos conduz à questão sobre a

“densidade” e esta fica por responder, então ficamos sem

saber o que isso da “quantidade de matéria”. Pior, se por

“densidade” se entender, como é usual em Física, o

quociente entre a massa e o volume de um corpo, então a

Definição I é circular. Se para fugir desta circularidade

devemos entender o termo “densidade” com outro sentido,

Newton nunca o indica expressamente.

197 Conferir Mach, Ernst (1901), Die Mechanik in ihrer Entwickelung historisch-kritisch dargesiellt (trad. ingle. de Thomas J. McCormack, “The Science of Mechanics: a Critical and Historical Account of its Development “) La Salle: Open Court Publishing Co. (1960), p.194)

198 Conferir Cushing, James T. (1998), Philosophical Concepts in Physics, Cambridge: Cambridge University Press, p. 98.

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Porém, julgo que sendo justos com Newton podemos

entender tanto a razão porque este não nos dá outra

indicação sobre o que é densidade e constatar que a sua

definição de quantidade de matéria não é nem circular, nem

vazia.

Ao afirmar que por “quantidade de matéria” entende o

produto entre a densidade e o volume, Newton evoca, para a

compreensão da definição de “quantidade de matéria”, por um

lado, um senso comum sobre o que é o “volume” e, por outro

lado, remete para uma certa experiência comum da densidade.

Experiência, por exemplo, de um tão típico nevoeiro inglês,

onde quanto mais partículas de água houver suspensas no ar,

mais denso é. Experiência de uma cidade, que quanto mais

habitantes tem dentro do seu espaço, maior será a sua

densidade populacional. Experiência, portanto, de que uma

coisa mais densa é aquela que tem maior quantidade de

elementos num determinado volume. Assim, ao definir corpo

ou quantidade de matéria através da densidade, Newton evita

a circularidade pois no fundo faz simplesmente apelo à

experiência comum do mundo. Em particular, à experiência da

densidade. Mas igualmente importante, esta definição de

corpo remete, implicitamente, para a existência de unidade

de matéria. Pois se um corpo (ou “quantidade de matéria”) é

definido através da densidade, então essa definição toma

como implícito um conjunto de elementos que preenchem esse

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volume. Portanto, a “densidade” deve ser aqui entendida,

como afirma Cohen como a “medida do grau de concentração de

um número de partículas fundamentais que compõem toda a

matéria”199. Deste modo, a matéria ou um corpo material pode

ser definido como o composto da adição de um conjunto de

elementos materiais discretos ou partículas materiais. Ou

seja, na primeira definição dos Principia Newton, por um

lado, faz apelo à nossa experiência comum do mundo físico,

mas por outro lado, introduz implicitamente uma concepção

atomista desse mundo. Portanto, logo na primeira definição

ficam bem marcados dois traços fundamentais do pensamento

de Newton: o empirismo e o atomismo.

Da Definição I dos Principia resulta, então, que

Newton concebe o corpo como o agregado de uma certa

quantidade de elementos últimos da matéria, isto é: átomos.

E, como tal, quanto mais átomos houver, para o mesmo

volume, maior a quantidade de matéria. Portanto, para

Newton, um corpo é isto mesmo: uma certa quantidade de

átomos que ocupam um dado volume. E ao definir corpo como a

adição de partes, isto é, de partículas materiais, Newton

estabelece estas entidades como referentes de tudo quanto

vai tratar nos Principia. Ou seja, a meu ver, os Principia,

e por consequência a Mecânica Clássica, constitui-se, na

199 Cohen, Bernard (2002), “Newton Concepts of force and mass” in The Cambridge Companion to Newton, Cohen, Bernard e Smith, George E. (ed.), Cambridge: Cambridge University Press, p. 59.

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sua essência, como a Física das partículas materiais. Ou

mais especificamente, dado que estas partículas se tratam

de átomos materiais, poderia até ser dito que a Física de

Newton é, na sua essência ontológica, uma Física Atómica.

Que, no entanto, se concretiza como Física dos corpos, isto

é, dos compostos das partículas materiais, dado que, por um

lado, é a esses que temos acesso empírico e, por outro

lado, por que, para Newton, a natureza e a qualidade dos

corpos é igual à natureza e à qualidade das partículas

materiais. E, portanto, as leis físicas dos átomos

materiais serão as mesmas que para os corpos compostos, em

particular, dos macroscópicos.

Ainda no comentário à Definição I, Newton assinala

que a quantidade de matéria pode ser sempre determinada

através de experiências com pêndulos, pois é proporcional

ao peso. A essência desta relação entre peso e massa será

esclarecida posteriormente nos Principia. Esta pequena

indicação é relevante pois significa o afastamento de

Newton relativamente à concepção Galilaica de corpo, onde

neste o corpo é concebido como o que tem peso. Como Newton

irá mostrar nos Principia, “peso” decorre da acção de uma

força sobre um corpo material, mas não é parte da essência

destes corpos. Se só existisse uma partícula material no

Universo, não haveria “peso”, apenas matéria.

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Por fim, ao assinalar que cada corpo é, na sua

natureza, o agregado aditivo de um conjunto discreto de

unidades últimas de matéria, os átomos, Newton colocando-se

em clara oposição a Descartes. Pois, ao contrário deste,

Newton rejeita que a natureza dos corpos seja a sua

extensão e, por conseguinte, que o espaço seja um plenum

material. Ao ter o atomismo como fundamento ontológico, a

Mecânica de Newton, a Mecânica Clássica, está, de certo

forma, nas antípodas da Mecânica de Descartes.

Assim, embora a Definição I dos Principia nos pareça,

num primeiro olhar, circular e insatisfatória, creio que um

olhar mais atento percebe nela o núcleo da caracterização

ontológica dos objectos físicos e desta a anunciação de

tudo o resto que se seguirá nos Principia.

3.2.2. Quantidade de Movimento

A segunda definição (Definição II) que nos surge nos

Principia refere-se à “quantidade de movimento”. Esta é

estabelecida como o produto do valor da velocidade pelo

valor da quantidade de matéria. Aqui, como em diversas

ocasiões ao longo dos Principia, tal como salienta Bernard

Cohen, por “movimento” deve-se entender o mesmo que

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“quantidade de movimento”, algo que, por sua vez, é

actualmente designado por “momentum”200. Ou seja, e esse é

aspecto fundamental, Newton estabelece que a linguagem da

Mecânica se faz quantitativamente e não qualitativamente.

Isto é, ao transformar o termo “movimento” em “momentum”,

Newton faz-nos mover de uma descrição qualitativa sobre o

mundo físico, onde dizemos que as coisas se movem mais ou

menos, para uma linguagem, que doravante será a da Física,

em que a descrição do mundo se faz apenas pela quantidade.

No caso do movimento, pela sua quantidade ou seja, o

momentum. Assim, Newton ao estabelecer como fundamental uma

quantidade na caracterização do movimento, faz pressupor

que os corpos possuem valores bem determinados do

movimento. E, deste modo, completa o movimento iniciado na

primeira definição afastando-se de uma concepção geométrica

do movimento, ou seja, da concepção de Descartes. Movimento

em Newton não é um modo de ser extenso. Movimento é, como a

seguir se verá, uma quantidade de progresso no espaço e no

tempo de um corpo.

Por sua vez, no comentário que acompanha a Definição

II, Newton acrescenta que “o movimento do todo é a soma dos

200 Cohen, I. Bernard (1999), “A guide to Newton’s Principia” in Cohen, I. Bernard e Whitman, Anne, The Principia. Mathematical Principles of Natural Philosophy, A New Translation, Berkeley and Los Angeles: University of California Press (1999), p. 96

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movimentos da totalidade das partes”201. Deste comentário de

Newton decorre, então, que a soma do momentum de todas as

quantidades de matéria é igual ao momentum da quantidade

total de matéria. Logo, se a quantidade total de matéria

for invariável, invariável será igualmente o momentum

total. Ou seja, na sequência da concepção atomista da

Definição I, Newton estabelece que o momentum de um todo é

equivalente à adição linear dos momentum das suas partes,

ou mais precisamente, das partículas materiais que

constituem o corpo. Portanto, por um lado, se o todo é

igual à soma das partes, no caso, no que respeita à

quantidade de matéria e, por outro lado, se cada uma das

partes que constitui esse todo, isto é, o corpo, pode

possuir um momentum distinto, então, só se poderá falar em

momentum de um corpo se o reduzirmos a uma unidade mínima,

isto é, àquilo a que designei, no capítulo anterior, por

partículas puras dos corpos. Estabelece-se aqui, uma vez

mais, um diferença radical com Descartes. Pois ao conceber-

se um corpo como aquilo que é extenso, seria um absurdo

aceitar que, mesmo formalmente, esse corpo pudesse ser

reduzido a algo pontual.

201 “The motion of the whole is the sum of the motions of all the parts” Newton, Isaac (1726), Philosophiae Naturalis Principia Mathematica (trad. ingle. de Cohen, I. Bernard e Whitman, Anne, “The Principia. Mathematical Principles of Natural Philosophy, A New Translation”) [Principia - ed. Cohen], Berkeley and Los Angeles: University of California Press (1999), p. 404

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Apesar destas clivagens com Descartes, tanto neste

último como em Newton, o movimento não é parte da natureza

dos corpos. Tudo poderia estar em repouso no universo

Newtoniano, pois os objectos físicos são apenas quanta

material. Porém, os objectos físicos movem-se. Têm, na

linguagem estabelecida por Newton, momentum. Assim, há

agora que explicar o movimento. O que em Newton é feito

através do conceito de força. Não será, então,

surpreendente que Newton depois de ter definido “momentum”

e “corpo”, necessite agora de definir “força”. Logo, as

seis definições restantes, do grupo de oito que constituem

a primeira parte dos Principia referem-se à caracterização

de diferentes tipos de forças. Estas podem ser

categorizadas em três tipos: a inerente, a aplicada e a

centrifuga.

3.2.3. Os três tipos de Força

A primeira tipo de força (Definição III) reporta-se à

“força inerente”202 (vis incita) da matéria. Esta é definida

202 Usualmente o termo “vis insita” é traduzido por “inate force”. Este é o caso, por exemplo, da tradução em língua inglesa realizada por Andrew Motte, que foi publicada em 1729. Este não é, contudo, o caso da tradução, também para língua inglesa, de Bernard Cohen, publicada em 1999, e que aqui serve de referência. Nesta última, o termo “vis insita” é traduzido por “inherent force” (cf. Newton, Isaac (1726),

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como “[…] um poder de resistência pelo qual cada corpo, por

quanto de si depender, preservar o seu estado de repouso ou

de movimento rectilíneo e uniforme”203. Esta capacidade, que

é “sempre proporcional à quantidade de matéria”204, ou seja,

à massa, é designada, por Newton, por “força de inércia”205.

Quanto maior a quantidade de matéria, maior a tendência de

um corpo manter o seu estado de repouso ou de movimento.

Assim, a força de inércia é uma força intrínseca, própria,

inerente aos corpos e que nestes se encontra latente

enquanto uma outra força não lhes for aplicada. A força de

inércia é, tal como assinala o próprio Newton no seu

comentário à Definição III, responsável tanto por um corpo

ser impelido quando não lhe é aplicada qualquer força, como

é responsável pela resistência que este oferece a uma força

que lhe seja aplicada. É devido à força da inércia que

corpo algum altera, por si só, o seu estado de movimento

(rectilíneo ou não) ou de repouso. Não é, no entanto,

justificado por Newton por que razão os corpos mantém o seu

Philosophiae Naturalis Principia Mathematica (trad. ingle. de Cohen, I. Bernard e Whitman, Anne, “The Principia. Mathematical Principles of Natural Philosophy, A New Translation”), Berkeley and Los Angeles: University of California Press (1999), p. 404) 203 “[…] a power of resisting, by which every body, as much as in it lies, endeavors to persevere in its present stale, whether it be of rest, or of moving uniformly forward in a right line.”, Idem, p.404 204 “This force is ever proportional to the body”, Idem, ibidem.

205 No comentário a esta definição, Newton escreve: “Because of the inercia of matter, every body is only with difficult put out of its state either of resting or of moving. Consequently, inherent force may also be called by the very significant name of force of inercia” (cf Idem, p. 404.

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estado de movimento na ausência de uma acção exterior. Isto

é, não é apresentada nenhuma razão que explique porque é

que todos os corpos possuem inércia, nem que explique em

que se funda a existência dessa força intrínseca nos

corpos, cuja natureza é a materialidade. Numa palavra, em

Newton fica por explicar a relação conceptual entre matéria

e inércia.

Por seu turno, a força que, ao actuar sobre um corpo,

é responsável por modificar o estado de repouso ou de

movimento rectilíneo e uniforme deste, é chamada “força

aplicada” (vis impressa) e é assim definida na Definição IV

dos Principia. Contrariamente ao caso da força de inércia,

a força aplicada não permanece nos corpos se a acção

termina. Ela tem um carácter efémero. A força aplicada não

é algo próprio dos corpos, mas é uma acção exterior

exercida sobre estes, que “são de diversas fontes, como a

percussão, a pressão e a força centrípeta”206.

A força centrípeta é, precisamente, o assunto da

Definição V. Por força centrípeta Newton entende: “[a

força] pela qual os corpos são puxados ou impelidos, ou de

206 “Impressed forces are of different origins as from percussion, from pressure, from centripetal force”, Newton, Isaac (1726), Philosophiae Naturalis Principia Mathematica (trad. ingle. de Cohen, I. Bernard e Whitman, Anne, “The Principia. Mathematical Principles of Natural Philosophy, A New Translation”), Berkeley and Los Angeles: University of California Press (1999), p.405.

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qualquer outro modo tendem, em direcção a um ponto como

centro”207.

As três definições finais (Definições VI, VII e VIII)

dizem respeito às quantidades absoluta, acelerativa e

motriz da força centrípeta. É notório que, embora no

comentário à Definição IV a força centrípeta surja apenas

como uma das fontes de força aplicada, em igualdade com a

pressão ou a percussão, tal como assinala Max Jammer,

“parece que Newton olhava para a força centrípeta como uma

força de maior importância que todas as outras”208.

Descobre-se, no entanto, a razão desta atenção particular

quando se repara na abertura ao comentário à Definição V,

onde Newton declara que “[Uma força] deste tipo é a

gravidade”209. Tal como esta passagem, boa parte do conteúdo

dos comentários às Definições V, VI, VII e VIII, são

dedicados à gravidade. Assim, embora Newton não o

explicite, este conjunto de definições conotados com a

força centrípeta referem-se, fundamentalmente, à gravidade.

São caracterizações da gravidade. E terá sido este o motivo

pelo qual Newton deu, nos Principia, destaque acrescido à

207 “A centripetal force is that by which bodies are drawn or impelled, or any way tend, towards a point as to a centre.” Idem, ibidem. 208 Jammer, Max (1957), Concepts of Force, New York: Dover (1999), p. 122

209 “Of this sort is gravity“, Newton, Isaac (1726), Philosophiae Naturalis Principia Mathematica (trad. ingle. de Cohen, I. Bernard e Whitman, Anne, “The Principia. Mathematical Principles of Natural Philosophy, A New Translation”), Berkeley and Los Angeles: University of California Press (1999)

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força centrípeta, em detrimento de outros tipos de força.

Pois, um dos temas centrais dos Principia é a relação entre

o peso e a massa. Ou melhor, a distinção entre peso e

massa. Distinção que lhe permite fugir à subjectividade

inerente à concepção de corpo como aquilo que é pesado,

como faz Galileu. Isto porque, enquanto o peso varia com a

altitude e como tal não poderá ser exclusivamente atribuído

ao corpo, a quantidade de matéria é invariável. A

quantidade de matéria de um determinado corpo é a que é em

função apenas do corpo considerado.

Por outro lado, no comentário a esta Definição, Newton

afirma existir uma relação de proporcionalidade entre a

massa de um corpo e o seu peso. Proporcionalidade esta que

é, alegadamente, provada através de experiências descritas

na proposição 6 do Livro III dos Principia. Ou seja, para a

qual é dada uma prova empírica. Mas qual é a essência desta

relação? O que distingue “peso” de “massa”? No comentário à

Definição V, Newton afirma que a gravidade (ou força

gravítica) é uma força centrípeta. Em particular, como

acrescenta na introdução à secção 11 dos Principia, a

gravidade é a força centrípeta que resulta da atracção

mútua entre dois corpos, quaisquer que estes sejam. A

gravidade é, para Newton, tanto a força pela qual os

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objectos celestes são mantidos na sua orbita210, como é a

força pela qual os corpos tendem para o centro da terra211.

A gravidade é, portanto, uma força universal a todos

corpos, cuja quantidade, a quantidade de atracção entre

corpos, designada por “peso”212. O peso é, como tal, é uma

relação entre massas, entre corpos, mas não parte da sua

essência. Dois corpos, independentemente da distância a que

se encontram, atraem-se de forma gravítica, ou dito por

outras palavras, causam peso um no outro. Assim, a massa

está associada à gravidade e, neste sentido, é designada

por “massa gravítica”. Contudo, na Definição III, Newton já

havia relacionado a “massa” com uma força - a força de

inércia. O termo “massa” aparece, deste modo, associada a

duas forças distintas: “massa gravítica” e “massa

inercial”. Respectivamente, a força com que os corpos se

atraem e a força com que um corpo tende a manter o seu

estado de movimento. Mas se na massa, ou quantidade de

matéria, residem, de algum modo, as forças de inércia e

gravítica, Newton não o esclarece. Ou seja, ele nunca

clarifica de que modo a “massa” tem tanto esse poder

atractivo sobre outras massas, como tem esse poder de

manutenção do seu estado de movimento, nem, por fim,

210 Conferir Idem, p. 806.

211 Conferir Idem, p. 405.

212 Conferir Idem, p. 407, (comentário à Definição VIII).

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esclarece qual a relação entre esses dois “poderes” da

massa. Algo que será o assunto principal da relatividade de

Einstein.

Em segundo lugar, Newton não esclarece, precisamente,

o que entende por “força”. Procura, apenas associar certos

efeitos sensíveis relacionados com o movimento dos corpos à

existência de uma grandeza que designa por “força”. A força

é simplesmente identificada ora como causa dos diferentes

estados de movimento (repouso, movimento uniforme,

movimento não uniforme), ora como razão da coesão da

matéria, onde ao contrário de Descartes, os constituintes

dos corpos possuem uma propriedade – a gravidade – que os

força a manterem-se próximos.

Poderíamos ler no segundo axioma, ou segunda lei do

movimento, uma definição formal de força. Nesta bem

conhecida lei, Newton relaciona a força aplicada com a

variação temporal do momentum. Isto é, Newton apresenta a

relação entre “força” e “momentum”, identificando a “força”

como a variação, ao longo do tempo, do momentum de um corpo

ou de um conjunto de corpos. Deste modo, desta lei do

movimento(ou axioma, como designa Newton), poderemos dizer

que “força” em Newton é apenas a medida da variação da

quantidade de movimento de um corpo. E, em verdade, do

ponto vista formal, por meio deste axioma, poder-se-ia

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constituir toda a Física apresentada por Newton nos

Principia dispensando o conceito de força, substituindo-o

pelo conceito de momentum. O que significa, como já o

havíamos referido no capítulo anterior, que em Mecânica o

estado de um sistema é completamente caracterizado através

da sua posição e do seu momentum. Contudo, se a natureza

dos corpos é apenas o de serem uma certa quantidade de

matéria, então não resulta do conceito de corpo o facto

deles se moverem.

3.2.4. Os conceitos de “Espaço”, “tempo”, “lugar” e

“movimento”: o escólio da primeira parte dos Principia

Ao corpo de definições segue-se um escólio dedicado

aos conceitos de “espaço”, “tempo”, “lugar” e “movimento”.

Curiosamente, Newton não se propõe definir estes conceitos,

pois, segundo afirma estes “já [são] do conhecimento de

todos”213. Ou seja, dado que entende que estes conceitos são

do conhecimento de todos, Newton remete, por um lado, para

um certo senso comum e, por outro lado, indica que não vai

introduzir novos elementos terminológicos. No fundo, esta é

a grande diferença entre a parte das definições e o escólio

213 Conferir Idem, p. 408.

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que lhes segue: enquanto na primeira parte Newton introduz

um conjunto de termos novos, como “quantidade de matéria”,

“momentum” e “força gravítica”, na segunda parte, vai fazer

alusão a termos que são da linguagem natural, mas à qual

vai dar o significado que é mais conveniente aos Principia

e que, doravante, constituirá a linguagem da Física. Assim,

Newton anuncia que o propósito deste escólio não é definir

mas esclarecer as noções de “Espaço”, “Tempo”, “Lugar” e

“Movimento”, pois “noto que estas são popularmente

concebidas apenas em relação aos objectos da percepção

sensível. E daí resultarem de certos preconceitos”214. No

sentido de eliminar estes “preconceitos”, Newton considera

“conveniente distinguir estas quantidades em absoluto e

relativo, verdadeiro e aparente, matemático e comum”215.

3.2.5. O conceito de tempo

A primeira destas “quantidades” é o tempo. A cerca

deste, Newton afirma:

214 “I must observe, that the vulgar conceive those quantities under no other notions but from the relation they bear to sensible objects. And thence arise certain prejudices”, Idem, ibidem 215 “it will be convenient to distinguish them into absolute and relative, true and apparent, mathematical and common.” Idem, ibidem.

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“Tempo absoluto, verdadeiro e matemático, por si mesmo e da

sua própria natureza, sem referência com qualquer coisa externa,

flui uniformemente e por outro nome é chamado de duração. Tempo

relativo, aparente e comum é alguma medida sensível e externa

(precisa ou imprecisa) que é obtida através do movimento; tal

medida – por exemplo, uma hora, um dia, um mês, um ano – é

comummente usada ao invés do tempo verdadeiro”216.

Na primeira frase desta passagem encontramos o

conceito de “tempo” caracterizado como uma substância, no

sentido que é algo que existe independente de qualquer

outra coisa, que existe “por si mesmo e da sua própria

natureza, sem referência com qualquer coisa externa”.

Encontramos aqui o segundo elemento da ontologia de Newton,

depois dos corpos materiais, o tempo. O tempo a que Newton

designa por “tempo absoluto” é o tempo verdadeiro, é o

tempo que existe enquanto substância, que existe fora do

domínio das existências das coisas materiais, isto é, dos

corpos. Tempo que Newton caracteriza de matemático. Ou

seja, cuja sua natureza – do tempo – é a passagem,

sucessiva, perfeitamente ritmada, de instante a instante.

216 “Absolute, true and mathematical time, in and of itself and of its own nature, without reference to anything external, flows uniformly and by another name is called duration. Relative, apparent, and common time is any sensible and external measure (precise or imprecise) of duration by means of motion; such measure – for example, an hour, a day, a moth, a year – is commonly used instead of true time.”, Idem, p. 408.

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Por este ser o tempo verdadeiro, aquele que é por si mesmo,

poderemos denominá-lo ontológico.

Em contraponto, existe um outro tempo, relacionado com

este, mas que é apenas uma sua sombra, é aquele que

percebemos, que medimos, que é da nossa experiência comum.

O tempo a que Newton denomina por “tempo relativo”.

Este tempo relativo é, para Newton um tempo que é

medido através da periodicidade de um certo movimento.

Quando falamos em anos, meses, dias, horas, minutos,

segundos, etc, falamos em unidades de medida de um certo

movimento. Um ano é a medida de tempo do movimento de

translação da Terra em redor do Sol. Um mês é a medida de

tempo do movimento de translação da Lua em redor da Terra.

Um dia é a medida do tempo da rotação da Terra. Uma hora,

um minuto ou um segundo, é a medida do tempo do movimento

do mecanismo de um relógio. Contudo, nenhum destes

movimentos é uniforme. Os dias não são todos iguais, como

não são iguais todos os minutos, todos os meses, todos os

anos ou todos os segundos. Dois intervalos de tempo,

tomados neste sentido, não são necessariamente iguais.

Assim, não é possível determinar, de forma objectiva, nem a

duração de, por exemplo, a velocidade de uma esfera a rolar

num plano inclinado, nem o tempo em que cada corpo se

encontra. E, em particular, através de um mecanismo de

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medição do tempo não é possível afirmar que dois corpos

compartilham o mesmo tempo ou que se encontram no mesmo

tempo, isto é, que são simultâneos.

Porém, assinala Newton:

“Tempo absoluto, em astronomia, é distinguido do tempo

relativo, pela equação do tempo aparente. Porque os dias

naturais são de fato desiguais, apesar de serem comummente

considerados como iguais e usados como uma medida do tempo. Os

astrónomos corrigem essa desigualdade, para que possam medir os

movimentos celestes por um tempo mais verdadeiro. É possível que

não exista um como movimento uniforme de onde o tempo possa ter

uma medida exacta. Todos os movimentos podem ser acelerados e

retardados, mas o fluxo do tempo absoluto não é passível de

mudanças. A duração ou perseverança da existência das coisas é a

mesma, sejam os movimentos rápidos ou lentos ou nulos; portanto,

a duração é justamente distinguida das suas medidas sensíveis

[…]”217

217 “In astronomy, absolute time is distinguished from relative time by the equation of common time. For natural days, which are commonly considered equal for the purpose of measuring time, are actually unequal. Astronomers correct this inequality in order to measure celestial motion on the basis of truer time. It is possible that there is no uniform motion by which time may have a exact measure. All motion can be accelerated and retarded, but the flow of absolute time cannot be changed. The duration or perseverance of the existence of things is the same, whether their motions are rapid or slow or null; accordingly, duration is rightly distinguished from its sensible measures […]” Idem, p. 410.

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Se todos os tempos medidos são relativos a um

movimento escolhido para servir de referência, o tempo

passa e o homem envelhece qualquer que seja o relógio que o

acompanhe. O tempo, em verdade, para Newton, não é

referente a movimento algum. Como afirma o próprio, “a

duração ou a perseverança da existência das coisas é a

mesma, quer os seus movimentos sejam rápidos ou lentos ou

nulos”. O tempo verdadeiro, absoluto, matemático, flui por

si mesmo, de forma uniforme, constante e imperturbável.

Apenas referente a si mesmo, a sua medida é absoluta e

objectiva. O “fluxo do tempo verdadeiro não é passível de

mudanças”. Logo, a verdadeira duração dos eventos é dada

pelo lapso de tempo absoluto e não pelos procedimentos de

medição. Dado que flui de forma uniforme, as partes do

tempo absoluto são iguais e ordenadas de maneira imutável,

formando uma série. Por sua vez, os eventos são ordenados

objectivamente no tempo em virtude dos lugares no tempo

absoluto em que eles ocorrem. O tempo ao que os conceitos

da Física, como momentum ou força, são relativos é o tempo

verdadeiro. O tempo da prática da Física é o tempo

relativo. E por isso, é ao tempo verdadeiro que se referem

as leis Físicas.

Portanto, a simultaneidade, a duração e, por

consequência, o movimento, existem verdadeiramente para um

tempo absoluto. Substância que, pela sua própria natureza,

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marca permanentemente os compassos, sem hesitações ou

enganos, de todas as coisas. O tempo verdadeiro não é algo

dos corpos, da mente ou eventualmente do espaço (como será,

de certa forma, para Einstein). É uma coisa em si mesma, à

qual temos acesso por via da comparação de um movimento que

se repete. Numa espécie de sombra do tempo verdadeiro. E,

logicamente, é para este tempo – o verdadeiro - que são

válidas as leis do movimento, que é válida a Física de

Newton.

3.2.6. O conceito de espaço

Sobre o espaço, escreve Newton:

“Espaço absoluto, na sua própria natureza, sem referência a

nada que lhe seja exterior, permanece sempre homogéneo e

inamovível”218.

Da mesma forma que relativamente ao tempo, o espaço é

caracterizado como uma coisa que existe por si, como

qualquer coisa “sem referência a nada que lhe seja

218 “Absolute space, in its own nature, without regard to anything external, remains always similar and immovable.” Idem, pp. 408-9.

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exterior”. Ou seja, o espaço aparece, em Newton, igualmente

como uma substância. Completando-se assim a trindade das

substâncias da Física de Newton (e, de certo modo, da

Física desde Newton): partículas materiais, tempo e espaço.

Se o espaço absoluto é homogéneo, imutável e

indiferenciado, então:

“[…] partes do espaço não podem ser vistas, ou

distinguidas umas das outras através dos nossos sentidos,

portanto em seu proveito usamos as suas medidas sensíveis. Como

tal, definimos todos lugares com base nas posições e distâncias

das coisas a um corpo qualquer considerado como imóvel, e então,

com respeito a tais lugares, estimamos todos os movimentos,

considerando os corpos como que transferidos de um daqueles

lugares para outros. E assim, em vez de espaço e movimento

absolutos, usamos os relativos […]”219.

A nossa relação imediata com o espaço tem como

referente o nosso próprio corpo. Tendo-nos como referência,

determinamos os lugares, os movimentos e as distâncias, em

219 “[…] these parts of space cannot be seen and cannot be distinguished from one another by our senses, we use sensible measures in their stead. For we define all places on the basis of the positions and distances of things form some body that we regard as immovable, and then we reckon all motions with respect to these places, insofar as we conceive of bodies as being changed in position with respect to them. Thus, instead of absolute places and motions we use relative ones […]” Idem, p. 410.

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qualquer medida sensível (pés, passos, polegadas, etc), a

que se encontram outros corpos. Assim, o nosso corpo

define, segundo Newton, um espaço relativo. Poderíamos, no

entanto, tomar como referência outro corpo qualquer e cada

corpo define um espaço relativo distinto. Estes espaços,

contudo, são móveis e cada uma dessas medidas é relativa ao

corpo que é tomada como origem. Como tal, qualquer medida

espacial referida a estes espaços é temporária e

subjectiva. Ou seja, através da escolha de um referencial

arbitrário, não é possível indicar objectivamente a

distância entre dois corpos ou o estado de movimento de um

corpo. Para um determinado referencial um corpo poderá

estar em movimento acelerado e para outro estar em repouso.

Regressamos à questão da objectividade do movimento que já

havíamos encontrado em Descartes. E, em particular,

regressamos às concepções relativistas de Galileu e

Descartes. Em resposta a estes, no que concerne à

arbitrariedade da escolha do referencial espacial, Newton

afirma:

“[…] em dissertações filosóficas devemo-nos abstrair dos

nossos sentidos e considerar as coisas em si mesmas, distintas

daquelas que são somente as nossas medições sensíveis. Pois é

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possível que não exista um corpo verdadeiramente em repouso ao

qual todos os lugares e movimentos possam ser referidos”220.

Ou seja, os corpos, na caracterização objectiva do seu

movimento, só podem referir-se a um espaço imóvel e

imutável no qual reside o sistema de eixos absoluto. Porém,

tal espaço está para além da nossa percepção. Não porque

não exista, segundo Newton, tal espaço, mas porque estamos

sempre restringidos a uma região muito limitada desse

espaço e, como tal, do que dele temos acesso não

encontramos “um corpo verdadeiramente em repouso ao qual

todos os lugares e movimentos possam ser referidos”.

Podemos no entanto, através de um exercício de abstracção,

pensar o espaço relativo que nos tem como referente como

uma parcela de um espaço absoluto, um espaço que podemos

construir racionalmente como a adição de todos espaços

relativos possíveis. O espaço, enquanto coisa em si mesma

considerada, o espaço verdadeiro não é pois o que medimos

ou que temos noção a partir da nossa experiência do mundo

físico, mas é o todo do qual todos os relativos são parte.

É a esse espaço verdadeiro, absoluto e – acrescenta Newton

220 “[…] but in philosophical disquisitions, we ought to abstract from our senses, and consider things themselves, distinct from what are only sensible measures of them. For it may be that there is no body really at rest, to which the places and motions of others may be referred” Idem, p.411.

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– matemático, que são referentes e válidas as leis do

movimento dos corpos.

3.2.7. O conceito de movimento

No final do Escólio, Newton distingue entre movimento

absoluto e relativo. Afirma Newton:

“Movimento absoluto é a translação de um corpo de um lugar

absoluto para outro; e movimento relativo é a translação de um

lugar relativo para outro.”221.

O movimento relativo ou aparente, aquele que nos lança

dúvidas se é real ou não, distingue-se do movimento

verdadeiro, aquele que é de facto, apenas e só em função do

referencial espacial. Isto é, os primeiros referem-se ao

espaço relativo e os segundos referem-se ao espaço

absoluto. Porém, em ambos os tipos de movimento, movimento

é concebido, simplesmente, como a mudança de lugar de um

corpo. O movimento é função do lugar e sobre este último

afirma Newton: 221 “Absolute motion is the translation of a body from one absolute place into another; and relative motion, the translation from one relative place into another.” Idem, p. 409.

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“Lugar é uma parte do espaço que ocupa um corpo e é, de

acordo com o espaço, ou absoluto ou relativo. Digo, uma parte do

espaço e não a situação, nem a superfície exterior do corpo.

Para sólidos iguais os seus lugares são sempre iguais; mas suas

superfícies, com as suas figuras diferentes, muitas vezes são

desiguais.”222

Desta passagem fica claro que, em razão de existirem,

para Newton, dois tipos de espaço – o relativo e absoluto –

haverá dois tipos de lugares: o relativo e o absoluto.

Porém, seja qual for o tipo, por “lugar” Newton entende a

parte do espaço ocupada por um corpo. Ou mais precisamente,

o volume do espaço que é preenchido por um corpo. Neste

sentido, tal como em Descartes, um corpo tem extensão.

Porém, ao contrário de Descartes, para Newton a extensão

não é a essência dos corpos. Isto é, enquanto para

Descartes um corpo é uma substância extensa, em Newton um

corpo é uma substância material que, uma vez que está no

espaço, pela própria natureza deste, recebe a propriedade

de ser extenso. Portanto, em Newton, por um lado, podemos

pensar um corpo como um pedaço de matéria sem ainda lhe

222 “Place is a part of space which a body takes up, and is according to the space, either absolute or relative. I say, a part of space ; not the situation, nor the external surface of the body. For the places of equal solids are always equal; but their superficies, by reason of their dissimilar figures, are often unequal.” Idem, ibidem.

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atribuir extensão alguma. Por outro lado, podemos ter do

espaço como pura extensão, em nada sendo corpóreo. Isto é,

podemos ter espaço sem matéria, podemos conceber, em

Newton, um espaço vazio.

Deste modo, se Newton concebe o movimento como mudança

de lugar, conceito que, justamente, Descartes havia

considerado de senso comum e impróprio, fá-lo resistindo,

por um lado, a ser derrubada pela crítica de Descartes a

essa concepção de movimento e, por outro lado, evitando

cair nas dificuldades sem fim que o conceito de corpo de

Descartes traz consigo. Resiste à crítica de Descartes ao

conceito de movimento como mudança de lugar, pois se este

objecta que tal concepção nos faz enredar no relativismo,

pois não sabemos se foi o corpo que se moveu ou se foi um

outro que utilizámos, arbitrariamente, como referencial, ao

conceber o espaço e não os corpos como substância extensa,

onde a relação das suas partes é sempre idêntica, Newton

assegura que os movimentos dos corpos se referem a algo

exterior aos corpos que é extenso e imutável, ou seja, que

os movimentos de todos os corpos se referiram a um

referencial absoluto. É para este que o movimento é

concebido como mudança, absoluta e verdadeira, de lugar de

um corpo.

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Por outro lado, ao ter uma concepção atomista, como já

aqui foi visto, Newton é levado a ter o espaço como uma

substância puramente extensa. O que em Descartes

corresponde ao conceito de corpo e, por consequência, leva-

o a considerar que toda a extensão é corpórea, isto é, que

o espaço é um plenum. Porém, em Newton, dado que os corpos

são substância material, o espaço enquanto coisa extensa,

não é um plenum mas um vazio. Isto é, Newton concebe a

existência possível de um espaço sem corpos, um espaço como

substância e não como atributo, e por conseguinte, evita

enredar-se pelo plenum. O espaço não é corpo, mas

recipiente onde se colocam os corpos, numa relação entre

substâncias como uma fosse o interior de uma garrafa vazia

e o outro o líquido que irá ocupar esse espaço.

Por outro lado, ao ter uma concepção atomista, em

Newton, um corpo é um composto de partículas, de

corpúsculos e, como tal, o movimento de um corpo é, na

verdade, o movimento solidário entre as suas partes. Isto

é, o movimento de um corpo é o movimento de um todo em que

as suas partes se movem de forma, mais ou menos, coerente

entre si. Esta solidariedade entre as partes que compõem um

corpo é explicável, em Newton, pela consistência interna

dos corpos, isto é, como o resultado das interacções

gravíticas e das distâncias entre as partes que constituem

esse corpo.

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Por fim, à extensão do espaço que um corpo ocupa

Newton denomina de “lugar”. Dado que esta extensão, em

comprimento, largura e altura, é o volume do corpo, então

poder-se-á afirmar que por “lugar” em Newton pode-se

entender o mesmo que em Descartes se entende por “lugar

interno”. Porém, dado que para Newton os corpos são

compostos por partes materiais, então podemos pensar numa

decomposição sucessiva de um corpo até ao limite de uma

partícula material última. Que será uma partícula pura dos

corpos materiais, ou seja, um corpo material pontual.

Assim, estas partes últimas, estes representantes ideais

dos corpos já não podemos dizer que ocupam um lugar, pois,

como são pontuais, não têm extensão. Mas sendo ainda uma

entidade no espaço e dado que este, além de absoluto e

verdadeiro, é matemático, ou seja, preenchido plenamente de

pontos, então podemos pensar nesse corpo material pontual

como algo que se encontra numa dada posição do espaço.

Estabelece-se assim uma distinção entre a localização

e a posição. Distinção que é pertinente pois, as leis do

movimento, as leis que fundam a Mecânica Clássica, são

referentes a essas entidades últimas, isto é, as partículas

puras dos corpos. Quero com isto dizer que se deve entender

que as leis newtonianas do movimento, a Mecânica Clássica,

não se referem à transição de lugares de um corpo no espaço

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relativo, mas à a variação da posição de uma partícula pura

dos corpos, naturalmente, no espaço absoluto.

3.2.8. Conclusão

No comentário à sua “terceira regra do raciocínio em

Filosofia”, Newton escreve:

“Dado que apenas conhecemos as qualidades dos corpos

através de experiências, nós podemos assumir por universal todas

as que universalmente concordam com as experiências. […] Nós não

sabemos a extensão dos corpos senão pelos nossos sentidos, nem

que esta alcança todos os corpos senão porque percebemos a

extensão em tudo que é sensível, portanto, inscrevemo-la

universalmente em todos os [corpos]. Que a abundância dos corpos

é dura, nós aprendemos pela experiência e como a dureza do todo

resulta da dureza das partes, nós, como tal, justamente

inferimos a dureza das partículas indivisíveis não apenas dos

corpos que sentimos de todos os outros. Que os corpos são

impenetráveis, nós recolhemos não da razão, mas da sensação. Os

corpos com que lidamos são tidos como impenetráveis e daí

concluímos a impenetrabilidade como uma propriedade

universal[…]. A extensão, a dureza, a impenetrabilidade, o

movimento do todo, resulta da extensão, da dureza, da

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impenetrabilidade, do movimento das partes e daí concluímos que

as partículas últimas de todos os corpos serão igualmente

extensas, duras, impenetráveis e móveis […]. E esta é a fundação

de toda Filosofia.”223

Nesta longa passagem ficam bem expostos, pela pena do

próprio Newton, os elementos fundamentais do seu pensamento

sobre os objectos físicos. E sem surpresa reencontramos o

que designámos no capítulo anterior por pentadoxia.

Segundo Newton a experiência que comummente temos do

mundo físico, em que encontramos mesas, pedras, bolas de

bilhar, etc, ensina-nos, pois assim será evidente, que este

– o mundo físico - é constituído por os objectos físicos

que têm extensão, dureza, impenetrabilidade e que são

possibilidade de se moverem. O diverso dessas coisas do

mundo, mesas, pedras, bolas de bilhar, etc, será o diverso

223 “For since the qualities of bodies are only known to us by experiments, we are to hold for universal all such as universally agree with experiments; […] We no other way know the extension of bodies than by our senses, nor do these reach it in all bodies, but because we perceive extension in all that are sensible, therefore, we ascribe it universally to all others also. That abundance of bodies are hard, we learn by experience, and because the hardness of the whole arises from the hardness of the parts, we, therefore, justly infer the hardness of the undivided particles not only of the bodies we feel but of all others. That all bodies are impenetrable, we gather not from reason, but from sensation. The bodies which we handle we find impenetrable, and thence, conclude impenetrability to be an universal property of all bodies whatsoever. […] The extension, hardness, impenetrability, mobility, of the whole, result from the extension, hardness, impenetrability, mobility, . . . of the parts; and thence we conclude the least particles of all bodies to be also all extended, and hard and impenetrable, and moveable […] And this is the foundation of all philosophy”, Idem

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de formas de um mesmo que é a matéria. A matéria será,

então, o que subjaz a todos corpos e, por conseguinte, será

o que possui as propriedades da extensão, da dureza, da

impenetrabilidade, da possibilidade de movimento.

A partir desses elementos empíricos, Newton realiza

duas generalizações de sentido contrário. Uma da parte para

o todo. A outra do todo para a parte.

O primeiro tipo de generalização sucede no caso do

espaço e do tempo. Cada um de nós ocupa, com o nosso corpo,

uma parte do espaço. Mas o espaço da sensação, em

particular o que nos é dado pela visão e pela audição, é

mais amplo que o espaço que é o ocupado pelo nosso corpo. O

espaço do nosso corpo está dentro de outro espaço, o dos

nossos sentidos exteriores. E este por sua vez, bem

sabemos, está dentro de um outro, como uma sala dentro de

um edifício. E este ainda é um espaço no interior de um

outro. E assim sucessivamente, num jogo de caixas chinesas,

que só terá fim se pensarmos que, no limite, todos esses

espaços são interiores de um outro que é absoluto, pois

nenhum espaço lhe será exterior. Esse será então o espaço

verdadeiro, objectivo.

Do mesmo modo, segundo Newton, a duração da nossa vida

sabemo-la precedida pela duração de outras, a dos nossos

pais. Durações de vida, estas últimas, cada uma delas, que

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sabemos, por sua vez, precedidas e antecipadas por outras,

a dos nossos avós e a nossa. A duração medimo-la por

relógios ou outros registos de repetições de um movimento.

Porém este tempo é função do movimento que escolhemos e

recolhemos da experiência, segundo Newton, que será

contestado por Einstein, que o tempo, o verdadeiro tempo,

decorre inexorável e insensível a qualquer movimento

particular. Ou seja, o tempo que temos acesso empírico é

uma parte de um tempo absoluto, isto é, que não é relativo

a qualquer movimento que não seja o seu próprio.

Portanto, da experiência comum que os corpos estão no

espaço e no tempo, portanto, da existência de espaço e

tempo relativos, Newton generaliza-os chegando à ideia de

um espaço e tempo absolutos que são, no entanto, na sua

natureza iguais ao espaço e tempo relativos (o espaço é

ainda extensão; o tempo é ainda um movimento periódico

constante).

A outra generalização, que é do todo para a parte, é

relativa aos corpos. Cada corpo, como é extenso, é

divisível em corpos mais pequenos, em corpúsculos. Porém,

como são ainda corpos, então, segundo Newton, deverão

possuir as mesmas propriedades do todo de que eram parte.

E, como tal, esses corpúsculos são ainda divisíveis em

outros e assim sucessivamente até ao limite de um átomo,

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isto é, de um corpúsculo último, de uma partícula pura,

pois é uma parte sem partes. Contudo, aqui Newton cai,

necessariamente, em contradição. Pois, como Descartes havia

percebido, se todos os corpos têm a propriedade da

extensão, então não é concebível um corpo indivisível (pelo

menos em pensamento).

Encontramos aqui em Newton, todos os elementos do que,

no capítulo anterior, designamos por pentadoxia. Ou seja,

de uma espécie de ontologia quase espontânea, sugerida

directamente pela nossa experiência comum do mundo físico.

Assim, Newton não hesita em afirmar que os objectos físicos

são corpos, isto é, parcelas unitárias e finitas de

matéria. Os objectos físico são substâncias, pois esses

corpos, essas parcelas de matéria, possuem propriedades e é

através destas que os conhecemos. Nos objectos físicos as

suas partes são homeómeras, razão pela qual Newton infere

que os corpúsculos terão necessariamente a mesma natureza

que um corpo. As propriedades quantitativas dos corpos são

bem determinadas, e por isso o corpo pode ser tratado como

algo que possui uma determinada quantidade de movimento,

uma determinada quantidade de matéria, uma determinada

posição. Por fim, um objecto físico é conceptualmente

idêntico enquanto possível e enquanto actual.

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254

3.3. O Conceito de Objecto Físico em Kant

Nas linhas de abertura dos Princípios Metafísicos da

Ciência da Natureza, Kant afirma que a palavra Natureza

pode ser tomada em dois sentidos: formal e material. Por

Natureza, em sentido formal, entende-se o conjunto das

determinações necessárias para constituir o conceito de um

ser particular. Isto é, a sua essência. E, neste sentido,

“utiliza-se esta palavra [Natureza] adjectivamente”224, por

exemplo, quando afirmamos querer saber qual a natureza dos

objectos físicos.

Por Natureza em sentido material Kant entende “como a

soma total de todas as coisas, enquanto estas podem ser

objecto dos nossos sentidos”225. Isto é, o conjunto de todos

os fenómenos possíveis. Identifica-se, assim, a Natureza,

num sentido, como o conjunto de todas as coisas pensáveis

e, num outro sentido, como o conjunto de todos os objectos

da experiência. Pese embora esta diferença, em qualquer um

224 Conferir Kant (1781), Kritik der Reinen Vernunft, (trad. port. de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão, “Crítica da Razão Pura” [CRP], Lisboa: Gulbenkian (2001)), nota de rodapé, B447

225 “[…] but as the sum total of all things, insofar as they can be objects of our senses.” Kant (1786), Metaphysische Anfangsgründe der naturwissenschaft (tradução para inglês de Michael Friedman, “Metaphysical Foundations of Natural Science” [MFNS]), Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p.3. (tradução minha)

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255

dos casos é condição de ser coisa da Natureza a sua

determinabilidade, por pensamento ou por experiência, pelo

sujeito transcendental, numa característica transformação

de um conceito mais comum de Natureza enquanto o conjunto

das coisas em si mesmo consideradas, para um conceito de

Natureza enquanto o conjunto das coisas pelo sujeito

transcendental consideradas.

Por sua vez, dado que os nossos sentidos se dividem,

segundo Kant, em sentido interno e sentidos externos,

existem duas espécies de objectos na Natureza: A alma, que

é o objecto do sentido interno; e os corpos, que são os

objectos dos sentidos externos226. Logicamente, o complexo

dos primeiros – os objectos do sentido interno – constitui

a Natureza Pensante, enquanto o complexo dos objectos dos

sentidos externos constitui a Natureza Corpórea227, ou seja,

a Natureza Física. Assim, em Kant, tal como em Descartes,

existe um dualismo claro das coisas da Natureza. Isto é,

uma distinção fundamental e completa das coisas da Natureza

entre aquelas que são elementos da Natureza Corpórea e as

outras que são elementos da Natureza Pensante.

Distinguindo-se a Natureza em duas partes – a

exterior e a interior – ao sujeito transcendental, e

226 Conferir, [CRP], B400.

227 Idem, B875.

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atendendo a que podem haver tantas ciências da natureza

quantas as coisas especificamente diversas que existem228

então, para Kant, são possíveis, em princípio, duas

Ciências da Natureza: a Ciência da Natureza Pensante e a

Ciência da Natureza Corpórea. Em Kant, a primeira toma o

nome de Psicologia229 e tem como seu objecto as almas, isto

é, o que tem uma natureza pensante. A segunda dessas

possíveis Ciências da Natureza recebe a designação de

Física230 e tem como seu objecto os corpos. Portanto, para

Kant, no seu chamado período critico231 a Física é definida

completamente como a Ciência dos corpos. Mas, um vez aqui

chegados, logo se pergunta, em primeiro lugar, o que é a

Ciência, para Kant? E em segundo lugar: o que é um corpo,

para Kant? Ou, por que será equivalente em Kant: o que é um

objecto físico? Comecemos pela primeira destas duas

questões.

228 “[…] there can be as many different natural sciences as there are specifically different things” [MFNS], P.3. (tradução minha)

229 [CRP], B400.

230 Idem, B875.

231 Faço a ressalva que esta é a definição é validade para o período critico, pois a questão da transição da Metafísica para a Física, que é o assunto central dos Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza, é igualmente o objecto do Opus Postumum. E, em particular, a questão da natureza da Física será um dos aspectos centrais desta última obra, sendo repetida exaustivamente, numa persistente procura de uma outra forma de definir Física. Conferir Immanuel, Kant, Opus Postumum (tradução para inglês de Förster, Eckart e Rosen, Michael “Opus Postumum”), Cambridge: Cambridge University Press (1993).

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Nos “Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza”,

Kant define Ciência como um todo do conhecimento ordenado

segundo princípios232. Princípios esses que sintetizam o

diverso da experiência sensível numa unidade de

conhecimento, de modo a que este todo de conhecimento

constitua um sistema233 e não uma simples colecção de factos

ordenados234, ou um mero agregado de conhecimentos.

Porém, se estes princípios forem meramente empíricos,

isto é, se os princípios que sintetizam o diverso da

experiência sensível derivarem, igualmente, da experiência,

por exemplo, por indução, então estes “não carregam consigo

nenhuma consciência da sua necessidade (não são

apodicticamente certas)”235, pois será impossível demonstrar

a sua validade. Isto é, será impossível demonstrar que

esses princípios seriam inferidos a partir de qualquer de

experiência possível. Por consequência, se uma Ciência for

fundada em princípios meramente empíricos, então as leis da

Natureza que lhe subjazem são apenas leis de experiência e

esse todo do conhecimento será um conhecimento fundado em

leis arbitrárias e indemonstráveis. Será um conhecimento

232 Conferir [MFNS], p. 4.

233 [CRP], B860.

234 O que para Kant constituiria uma doutrina histórica da Natureza. Conferir [MFNS], p.4.

235 “[…] they carry with them no consciousness of their necessity (they are not apodictally certain) [MFNS], ibidem. (tradução minha)

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contingente, incerto e passível de ser revisto. Um

conhecimento, portanto, que só impropriamente poderá ser

considerado genuinamente como saber. Só impropriamente,

para Kant, poderá ser considerada como Ciência da Natureza.

Ciência, propriamente dita, só se pode chamar aquela

cuja certeza é apodíctica236. Só pode chamar-se aquela onde

o conhecimento é necessário e universal. Ou seja, só pode

chamar-se aquela onde “as leis fundamentais da Natureza que

lhe subjazem são conhecida a priori e não são simples leis

de experiência”237. Pois, como Kant já havia mostrado na

Crítica à Razão Pura238, verdadeira universalidade e

rigorosa necessidade só podem ser estabelecidas a priori.

O conhecimento a priori que é totalmente independente

da experiência, recebe, em Kant, o nome de conhecimento

puro. Por conseguinte, “a ciência da natureza deve derivar

a legitimidade desta designação unicamente da sua parte

pura – nomeadamente, aquela que contém os princípios a

priori de todas as restantes explicações da natureza - e só

236 Conferir [MFNS], ibidem.

237 “[…] the fundamental natural laws therein are cognized a priori, and are not merely laws of experience” [MFNS], Ibid. (tradução minha)

238 Conferir [CRP], p.38.

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em virtude desta parte pura uma ciência natural pode ser

ciência em sentido próprio”239.

Portanto, para Kant, o traço fundamental de uma

ciência da natureza é esta legitimar-se, não em leis de

experiência, mas em princípios puros a priori. E, por esta

razão, então “toda a ciência natural propriamente dita

precisa, pois, de uma parte pura, na qual se deve fundar a

certeza apodíctica que a razão nela busca”240.

Por sua vez, essa parte pura, a parte que nada toma da

experiência mas que é condição de possibilidade do

conhecimento empírico, é a Metafísica. Pois é na Metafísica

que o objecto se considera apenas segundo as disposições do

pensar241, sem pedir nada da experiência, portanto,

puramente a priori. Por esse motivo, é apenas na Metafísica

que o objecto de conhecimento, não estando refém de um

qualquer conjunto de experiências particulares, pode ser

pensado e determinado para qualquer experiência possível.

Se toda a genuína Ciência da Natureza se funda e legitima

na parte que contém puros princípios a priori, e se estes

239 “[…] natural science must derivate the legitimacy of this title only from its pure part – namely, that which contains the a priori principles of all other natural explications – and why only in virtue of this pure part is natural science to be proper science” [MFNS], p.4 (tradução minha)

240 “All proper natural science therefore requires a pure part, on which the apodictic certainty that reason seeks therein can be based.” idem, p.5. (tradução minha)

241 Conferir Idem, pp. 9-10.

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apenas podem ser encontrados na Metafísica, isto significa

então que toda a ciência natural genuína pressupõe uma

metafísica da natureza242. Metafísica essa que se divide em

duas partes: transcendental e particular. A parte

transcendental trata “das leis que tornam possível o

conceito de uma natureza em geral, mesmo sem relação a

qualquer objecto determinado da experiência e, como tal,

indeterminado a respeito da natureza disto ou daquilo do

mundo sensível”243. Portanto, sem qualquer relação aos

objecto dos sentidos, mas somente ao modo como poderemos

ter conhecimento destes244. Esta parte também toma a

designação, em Kant, de Ontologia245. Por sua vez, a parte

particular da metafísica da natureza versa somente sobre os

princípios que fundam os conceitos empíricos pertencentes a

uma das Naturezas particulares: à Natureza dos corpos

(Física), ou à Natureza da alma (Psicologia)246.

Em resumo, para Kant, existem três condições de

ciência da natureza, em geral: em primeiro lugar, a

constituição de uma unidade de conhecimento obtido por

242 Conferir idem, p. 5.

243 “[…] treat the laws that make possible the concept of a nature in general, even without relation to any determinate object of experience , and thus undetermined whit respect to the nature of this or that thing in the sensible world” idem, ibidem. (tradução minha)

244 Conferir [CRP], B25.

245 Conferir idem, B873.

246 Conferir [MFNS], p.5.

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sistematização (ou ordenação) de factos; em segundo lugar,

essa sistematização sintáctica tem de ser regulada por

princípios racionais; em terceiro lugar, esses princípios

têm que ser conhecidos a priori com certeza apodíctica.

Por conseguinte, para Kant, só pode tomar

legitimamente a designação de Física, aquela em que os seus

conceitos encontrem o seu fundamento em princípios

metafísicos da Ciência da Natureza Corpórea. E, estes, por

seu turno, por serem princípios que tornam possível uma

ciência da natureza particular, devem encontrar o seu

fundamento nos princípios que tornam possível uma ciência

da natureza em geral, ou seja, em princípios

transcendentais.

Por seu turno, dado que uma teoria racional acerca da

Natureza dos objectos físicos só pode ser considerada

genuinamente como Física se, e só se, for fundada em

princípios puros a priori e, como, a Física tem como seus

os objectos dos sentidos exteriores, isto é, segundo Kant,

os corpos então, importa saber qual a natureza dos corpos.

Dado que se trata de algo que é objecto dos sentidos

exteriores, será necessariamente algo intuído no espaço e,

por conseguinte, de natureza extensa247. Pois ser extenso

decorre da própria condição formal de ser objecto dos

247 Conferir idem, p. 3.

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sentidos exteriores, isto é, da forma da intuição do que é

exterior ao sujeito de conhecimento. Assim, conhecer o

conceito de corpo apenas enquanto possibilidade, isto é,

conhecer a priori, exige que se dê a priori a intuição

correspondente a esse conceito “isto é, que o conceito seja

construído. Ora o conhecimento racional mediante a

construção de conceitos é matemático”248. Portanto, conclui

Kant, que uma teoria da natureza dos corpos, uma Física, só

é possível por meio da Matemática249.

Porém, a possibilidade de coisas naturais determinadas

não pode conhecer-se somente a partir de conceitos, pois “a

partir destes pode, certamente, conhecer-se a possibilidade

do pensamento, mas não do objecto enquanto coisa natural, a

qual pode ser dada (como existente) fora do pensamento”250.

Este existente fora do pensamento é o que no fenómeno

corresponde à sensação, isto é, o que Kant dá o nome de

matéria251. Assim, os corpos são matéria extensa.

Por conseguinte, os princípios metafísicos que fundam

uma Física genuína terão necessariamente de ser os

248 “[…] that is, that the concept be constructed. Now rational cognition through construction of concepts is mathematical. Idem, p.6. (tradução minha)

249 Conferir idem, ibidem.

250 “[…] for from these the possibility of thought can be certainly be cognized, but the possibility of the object as a natural thing that can be given outside the thought (as existing)” Idem, ibidem. (tradução minha)

251 Conferir [CRP], B34.

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princípios metafísicos que estabelecem as condições de

possibilidade da aplicação da matemática ao conceito de

matéria. Isto é, serão os “princípios de construção dos

conceitos que pertencem à possibilidade da matéria em

geral”252.

Importa então saber onde encontrar o fundamento desses

princípios formais. Ora, como toda a “verdadeira Metafísica

é tirada da própria essência da faculdade de pensar e de

nenhum modo ela é inventada na medida que não é tomada de

empréstimo da experiência”253, então será somente através

dos conceitos e dos princípios mais puros do pensamento que

será possível encontrar objectivamente todas as

determinações a priori de qualquer conceito e, em

particular, do conceito de matéria. Por sua vez, dado que

não há – em Kant - conceitos mais puros do entendimento do

que as próprias categorias, então terá de ser a partir

dessas mesmas categorias (grandeza, qualidade, relação e

modalidade) que se poderá obter todas as determinações do

conceito de uma matéria em geral.

252 “[…] principles for the construction of concepts that belong to the possibility of matter in general.”, [MFNS], p. 8. (tradução minha)

253 “All true metaphysics is drawn from the essence of the faculty of thinking itself, and is in no way fictitiously invented on account of not being borrowed from experience”, idem, ibidem. (tradução minha)

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Está então assim traçado o programa de Kant, nas suas

linhas mestras, para os “Princípios Metafísicos da Ciência

da Natureza”. Como afirma Michael Friedman:

“Por um lado, os Principia de Newton representam a

realização dos princípios transcendentais dispostos na primeira

Crítica. Como tal, fornece ao sistema kantiano um “exemplo in

concreto”, que confere “sentido e significado” aos conceitos e

princípios abstractos da filosofia transcendental. […] Por outro

lado, Kant vê a ciência newtoniana como necessitada de uma

análise critica ou metafísica, uma análise que revele as origens

e o sentido dos seus conceitos e princípios.”254

A Física inaugurada pelos Philosophie Naturalis

Principia Mathematica, tal como Newton a constituiu, só

impropriamente pode tomar a designação de Física, pois, tal

como se mostrou anteriormente, é um sistema fundado em

princípios, leis e conceitos extraídos da experiência. O

conceito de corpo como uma substância material com

propriedade de ser extenso, duro, impenetrável, que pode

ter movimento, é retirado da experiência comum do mundo. E,

por sua vez, os conceitos de espaço e tempo verdadeiros,

absolutos e matemáticos surgem como uma generalização

254 Friedman, Michael (1992), Kant and the Exact Sciences, Cambridge: Harvard university press, pp. 136-137.

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racional da experiência comum de espaço e de tempo.

Portanto, a Física de Newton apresentada nos Principia é

fundada simplesmente em elementos retirados a posteriori da

experiência. Como tal não tem em si o carácter necessário

dos seus princípios e leis. Logo, não pode ser considerada

como saber efectivo sobre a Natureza.

Deste modo, Kant propõe-se, através de uma análise

completa do conceito de matéria estabelecer os princípios

metafísicos da Física em geral e que serão, por

consequência os da Mecânica newtoniana, em particular.

Mostrando, por um lado, sob que condições esta última pode

ser legitimada como genuína ciência da Natureza. Isto é,

como conhecimento efectivo e objectivo sobre a Natureza dos

corpos. Por outro lado, ao efectuar nos “Princípios

Metafísicos da Ciência Natural” um transitar da Filosofia

Transcendental para uma Ciência da Natureza particular,

Kant faz da Física de Newton um lugar de concretização, de

exemplificação, da Filosofia Transcendental.

Assim, os “Princípios Metafísicos da Ciência da

Natureza” tem como propósito o de realizar uma análise

completa ao conceito de matéria, aplicando-lhe, uma a uma,

as categorias. Como tal, é claro que o conceito de matéria

é o conceito central desta obra. Porém, o que é matéria?

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Na Crítica da Razão Pura, Kant afirma que a matéria é

o que é extenso, impenetrável e sem vida255. Assim

entendida, o mundo físico, o que é constituído por corpos

materiais, poderia ser estático. Pois, da simples extensão,

impenetrabilidade e ausência de vida, ou seja, do simples

conceito de matéria não decorre que esta se movimente.

Porém, Kant afirma que “a ciência natural é uma doutrina

pura ou aplicada do movimento”256. Ou seja, tal como em

Descartes e Newton, em Kant o movimento, embora não seja

propriedade essencial dos corpos, é a matriz de uma

qualquer Física. Não haveria Física se o mundo físico fosse

totalmente estático. Portanto, o movimento surge como uma

propriedade atribuída aos corpos em função da nossa

experiência do mundo físico, como uma propriedade empírica.

Isso mesmo é salientado por Kant quando afirma que:

“[…] visto que a mobilidade de um objecto no espaço não se

pode conhecer a priori sem o ensinamento da experiência e,

precisamente por esta razão, não a pude incluir, na Crítica da

Razão Pura, entre os puros conceitos do entendimento; e que este

conceito, enquanto empírico, só podia encontrar o seu lugar numa

ciência da natureza que, enquanto metafísica aplicada, se ocupa

255 Conferir [CRP], B876.

256 “[…] natural science […] is either a pure or a applied doctrine of motion” [MFNS], p. 12. (tradução minha)

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de um conceito fornecido pela experiência, embora segundo

princípios a priori.”257

Assim, para estabelecer os Fundamentos Metafísicos da

Ciência da Natureza corpórea não basta submeter o conceito

de matéria às categorias. É preciso acrescentar ao conceito

de matéria, como sua determinação adicional e primeira, o

movimento. Portanto, o conceito de matéria que irá submeter

às categorias é o conceito de uma matéria móvel. E assim,

estabelece: uma Foronomia; uma Dinâmica; uma Mecânica e uma

Fenomenologia.

3.3.1. Foronomia

A Foronomia, ou Cinemática, é a teoria da matéria

móvel enquanto quantidade (ou seja, submetido à categoria

da quantidade). Deste modo, importa aqui tratar a matéria

unicamente enquanto coisa que possui um certo grau de

movimento. Porém, o que é o movimento? Kant define-o assim:

257 “since the mobility of an object in space cannot be cognized a priori, and without instruction through experience, I could not, for precisely this reason, enumerate it under the pure concepts of the understand in the Critique of Pure Reason; and that this concept, as empirical could only find a place in natural science, as applied metaphysics, which concerns itself with a concept given through experience, although in accordance whit a priori principles”, idem, p. 17. (tradução minha)

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“Movimento de uma coisa é a modificação das suas condições

exteriores em relação a um espaço dado”258

Entendida desta forma o movimento é da ordem da

relação entre um corpo, que é sujeito de movimento, e um

determinado espaço. Em particular, dado que o espaço é, em

Kant, uma forma da sensibilidade, o movimento de um corpo é

da ordem da relação desse corpo com o espaço da percepção

de um sujeito de conhecimento. No entanto, na medida que

este é igualmente móvel, o seu espaço de percepção móvel

igualmente o é. A este espaço que é móvel, que é o caso do

espaço da nossa percepção do mundo físico, Kant designa por

espaço relativo. E, por consequência, afirma, então, Kant

que “todo o movimento que é objecto de experiência é

meramente relativo”259. Isto é, da experiência directa não

podemos afirmar a objectividade do movimento de um corpo

que julgamos perceber, mas apenas que este se move em

relação a um outro (ou a nós). Neste sentido, o conceito de

movimento de Kant é, de alguma forma, devedor do conceito

258 “Motion of a thing is the change of its outer relations to a given space” idem, p. 17. (tradução minha)

259 “[…] all motion that is an object of experience is merely relative” idem, p.16. (tradução minha)

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cartesiano de movimento como uma relação de um dado corpo

com o que lhe é vizinho.

Porém, assinala Kant, se o espaço relativo é móvel,

então sê-lo-á relativamente a um outro que lhe é exterior e

alargado. Por sua vez, “este pressupõe um outro e, assim

por diante, até ao infinito”260. Sendo esse espaço último e

infinito, então somente esse não será móvel relativamente a

nenhum outro e, por conseguinte, é o único que permite

julgar objectivamente os movimentos dos corpos, movimentos

que lhe são relativos. Logo, tal como em Newton, é neste

espaço, no espaço absoluto, que “se deve pensar todo o

movimento”261.

No entanto, ao contrário de Newton, este espaço

absoluto não é um objecto de percepção, ele “nada é, pois,

em si, não é um objecto, mas significa somente todo o

espaço relativo que, para mim sempre posso pensar além do

espaço dado”262.

Portanto, ao recusar que o espaço absoluto seja algo

que seja da mesma natureza que o espaço relativo, Kant

afasta-se de Newton, onde o espaço absoluto é uma

substância do qual só temos acesso a uma parte. Mas se se

260 “[…] this latter presupposes […] yet another; and so on to infinity” idem, ibidem. (tradução minha)

261 “[…] that in which all motion must finally be thought”, idem, p.15. (tradução minha)

262 “[…] is thus in itself nothing, and no object at all, but rather signifies only any other relative space, which I can always think beyond the given space”, idem, p.16 (tradução minha)

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afasta de Newton relativamente à natureza do espaço, a

verdade é que o conceito de movimento de Kant é próximo do

(ou pelo menos, compatível com o) conceito de movimento de

Newton, em que se entende movimento como a mudança de lugar

de um corpo. Argumenta Kant que para se determinar a

distância da Terra à Lua – exemplo que elege – “escolhe-se

a linha mais curta desde o centro de uma ao centro da

outra, por conseguinte, apenas um ponto destes corpos é que

constitui o seu lugar”263. Isto é, do facto que só podemos

falar precisamente da distância entre dois corpos se os

reduzirmos a pontos localizados no espaço Kant retira a

ilação que o “lugar de todo o corpo é um ponto”264. Ou seja,

só podemos falar com propriedade da distância entre dois

corpos se estes tiverem uma posição espacial bem

determinada. Neste sentido, conceber movimento como mudança

de lugar (ou seja, posição) corresponde, se esse movimento

for apenas de translação, ao conceito de movimento como a

alteração da relação do corpo móvel com o que lhe é

exterior. Porém, a concepção kantiana permite uma

determinação adicional à concepção newtoniana (e

cartesiana) de movimento: ter a rotação como movimento no

mesmo sentido que o é a translação. Pois, a Terra na sua

263 “[…] chooses the shortest line form the central point of the one to the central point of the other, so that for each of these bodies there is only one point constituting its place”, Idem, pp. 17-18. (tradução minha)

264 “For the place of any body is a point“ idem, p.17 (tradução minha)

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rotação é um corpo que altera a sua relação com o que lhe é

exterior, porém não mudar de lugar e, no entanto, move-se.

Neste sentido, a concepção de movimento de Kant é mais rica

que a de Newton, sendo que, de certa forma, inclui esta

última como um seu caso particular (quando se considera

apenas o movimento como translação).

3.3.2. Dinâmica

A dinâmica é a teoria da matéria móvel submetido à

categoria da qualidade. Nesta, Kant defende que uma matéria

movível é algo que preenche um espaço. Contrapõe-se assim,

em Kant, a noção de corpo como algo que “enche” à noção

newtoniana de corpo como coisa que “ocupa” o espaço. Noção

que seria inaceitável para Kant, pois dizer que um corpo

“ocupa” o espaço faz remeter, implicitamente, para um

espaço que é prévio, no mundo físico, aos corpos. Concepção

essa que é rejeitada por Kant ao ter do espaço, não como

algo do mundo, mas como forma da intuição. Assim, em Kant,

o espaço é prévio aos corpos, não no mundo, mas no sujeito

que o experiencia.

Por “encher” um espaço Kant entende “resistir a todo

móvel que se esforça, graças ao seu movimento, por penetrar

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num certo espaço”.265 Dito de outro modo, um corpo material

“enche” um espaço no sentido que resiste a ser sobreposto

por um outro. Neste sentido, Kant é levado a especular

sobre a existência de algo na constituição da matéria que a

faz reagir a uma acção exterior, a essa acção de penetração

ou sobreposição. Pois, se “encher” tem o sentido de uma

resistência da matéria à ser sobreposta por outra, isso

deve-se, segundo Kant não há simples existência passiva da

matéria, que seria a atribuição newtoniana da propriedade

de impenetrabilidade à matéria, mas esta ser algo que

estabelece uma reacção a acção que lhe é imposta. Ou seja,

a matéria, submetida à sua determinação qualitativa de

causa-efeito, leva Kant a concluir que esta – a matéria -

“enche” em virtude de ser constituída do resultado de duas

forças motrizes266.

Em primeiro lugar, por uma força repulsiva, que é

exercida sobre o que é exterior ao corpo, que apenas se

encontra na superfície de contacto e, como tal, é a

responsável, segundo Kant pela solidez, impenetrabilidade e

ocupação do espaço (e, por consequência, igualmente pela

figura do corpo).

265 “[To fill a space is] to resist every movable that strives through its motion to penetrate into a certain space.”, idem, p. 33 (tradução minha)

266 Conferir idem, p. 34.

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Porém, se apenas existisse essa força repulsiva, então

as partes constituintes de um corpo material repelar-se-iam

mutuamente e estes dissipar-se-iam. Assim, em segundo

lugar, do mesmo modo que existe uma força repulsiva, terá

que existir uma força atractiva que mantém a coesão: a

gravidade.

No entanto, se a matéria é uma força contrária a uma

invasão do que lhe é exterior, nem todos os corpos

manifestam a mesma a força repulsiva. Nos fluidos é menos

presente que nos sólidos, em virtude das suas partes

apresentarem forças distintas. Ou seja, desta concepção de

matéria como algo que possui uma força repulsiva à

sobreposição e uma força atractiva que permite a sua

coesão, poder-se-ia afirmar que a matéria é constituída por

partes elementares, por pontos onde emanariam as forças.

Haveria aqui lugar para uma espécie de atomismo. Porém,

Kant não é um atomista.

Segundo Kant, “o conceito de uma substância significa

o último sujeito da existência, isto é, o que não pertence,

por seu turno, à existência de uma outra coisa meramente

como um predicado”267. Portanto, substância surge aqui, tal

como em Descartes e em Espinosa, como o que existe

267 “The concept of a substance means the ultimate subject of existence, that is, that which does not itself belong in turn to the existence of another merely as a predicate” idem, pp. 39-40. (tradução minha)

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independente de outra coisa qualquer, como o que existe sem

ser meramente predicado de outra coisa e, por consequência,

como o que só pode ser concebido como sujeito de

predicação.

Ora, dado que o espaço não é, para Kant, algo

existente mas tão-só uma condição do sujeito transcendental

da percepção do que lhe é exterior, então o espaço não é

substância e, por consequência, “matéria é o sujeito de

tudo o que, no espaço, se pode incluir na existência das

coisas”268. Ou seja, apenas a matéria é uma substância.

Assim, se a matéria é uma substância que é constituída

por partes, logo, segundo Kant, todas as partes da matéria

são igualmente substâncias. Mais precisamente, substâncias

materiais. Como tal, qualquer divisão da matéria resulta em

partes que são igualmente matéria. Isto significa que, para

Kant, a matéria é divisível até ao infinito e cada uma das

suas partes é, por seu turno, matéria269.

Porém, dado que a espacialidade não é uma propriedade

intrínseca da matéria, mas uma imposição do sujeito, então

Kant ao defender que a matéria é divisível até ao infinito

fá-lo sem ter que aceitar a existência real de substâncias

268 “[…] matter is the subject of everything that may be counted in space as belonging to the existence of things”, idem, p. 40. (tradução minha)

269 Conferir Idem, ibidem.

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corpóreas simples, isto é, sem ter que aceder ao atomismo.

Ou seja, em Kant, o todo não é precedido pelas partes que o

compõem, mas o inverso: o todo é primeiro em relação as

partes. Tal como num corpo geométrico, para Kant, o corpo

físico pode ser dividido infinitamente, mas isso não

implica que o corpo, como um todo, tenha que ser concebido

como constituído, efectivamente, por partes simples (do

mesmo modo que um quadrado é decomponível em triângulos

sucessivamente mais pequenos, mas tal não implica que

tomemos um quadrado como uma adição de triângulos ou, mais

radicalmente, por pontos).

Contudo, esta redução da matéria a simples forças

motrizes270, que são responsáveis de encher pela figura e

pela coesão dos corpos, parece ter que ser suportada, como

assinala Eric Watkins271, pela tese de que todo o espaço é

preenchido, de algum modo, por forças. Forças de

intensidade diferentes pois são diferentes os corpos na sua

coesão. Mas se os corpos são divisíveis até ao infinito,

então o espaço é divisível em forças cada vez menores.

Divisibilidade esta que poderá ser levada até ao limite de

uma matéria tão subtil que quase não é existente: o éter.

270 Conferir Idem, p. 63.

271 Conferir Watkins, Eric (2009), ”Kant philosophy of science” in http://plato.stanford.edu/archives/spr2009/entries/kant-science,p. 12.

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Como assinala Friedman272, Kant durante o seu período

Critico deixa a hipótese do éter em aberto, precisamente

como coisa vaga e implícita, mas será absolutamente central

no Opus Postumum (onde rejeitará a redução da matéria a

forças motrizes individuais e, na extensão, renunciará aos

“Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza”).

3.3.3. Mecânica

A Mecânica é a teoria da matéria móvel submetida à

categoria de relação. Como tal, tem como seu objecto a

explicação de como um corpo, isto é, “uma matéria

compreendida entre limites determinados”273, enquanto móvel,

comunica o seu movimento a outros corpos. Portanto, é o

lugar que se relaciona mais proximamente com as leis do

movimento de Newton e, portanto, com a constituição de uma

teoria física concreta. Deste modo, este é o lugar de

articulação das determinações da matéria móvel já obtidas

com as duas caracterizações fundamentais dos corpos na

Mecânica newtoniana: quantidade de matéria e quantidade de

movimento.

272 Conferir, Friedman, Michael (1994), Kant and the Exact Sciences, Cambridge: Harvard University Press, p. 222.

273 “[…] a matter between determinate boundaries”,[MFNS], p. 74 (tradução minha)

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277

Por quantidade de matéria Kant entende “o agregado dos

móveis num espaço determinado”274. O que será, de certa

forma, equivalente à definição de Newton de quantidade de

matéria, na medida em que Kant acrescenta que a uma dada

quantidade de matéria de um corpo chama-se “massa” quando

todas as suas partes se movem em conjunto. No fundo, tanto

em Kant como em Newton, quantidade de matéria é a

quantidade de substância do móvel.

Contudo, dado que a matéria é infinitamente divisível,

a quantidade de matéria não pode ser estimada como o

somatório de um conjunto de partículas materiais, como em

Newton e, por conseguinte, igualmente não poderá ser

definida através do volume. Portanto, a única forma de

estimar a quantidade de matéria é através da quantidade de

movimento a uma velocidade dada275.

Por quantidade de movimento Kant entende exactamente o

mesmo que Newton. Isto é, o produto da quantidade de

matéria de um corpo pela sua velocidade.276

274 “[The quantity of matter is] the aggregate of the movable in a determinate space”, idem, p. 76 (tradução minha)

275 Conferir idem, p. 77

276 Conferir idem, ibid.

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278

3.3.4. Fenomenologia

Por fim, a fenomenologia é a teoria da matéria móvel

submetida à categoria da modalidade. Mais precisamente, de

como o movimento pode ser objecto de experiência em termos

da possibilidade, actualidade e necessidade. Em que o

movimento rectilíneo é meramente possível; o movimento

circular é um predicado real da matéria e todo o movimento

de um corpo pelo qual ele exerce uma acção motriz sobre um

outro corpo é necessário um movimento igual e contrário

deste último corpo.

Esta determinação modal do movimento dos corpos

assenta na relação destes com o espaço absoluto. Como foi

salientado anteriormente, por um lado, a partir de um

espaço relativo, aquele a que temos acesso empírico, só

podemos afirmar que um corpo está em repouso ou em

movimento relativamente a esse espaço. E, por conseguinte,

o mesmo corpo ser considerado em movimento num dado espaço

relativo e em repouso num outro. Por outro lado, o espaço

absoluto não é um objecto da experiência. O espaço absoluto

em Kant não é em nada dado, nem em parte, como em Newton, à

intuição. Daqui somos então levados a concluir que não

existe nenhum corpo em movimento absoluto ou em repouso

absoluto. No entanto, é condição da determinação do

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279

movimento (ou do repouso) de um corpo este ter como

referente algo considerado imóvel, até para a própria noção

que todos os movimentos são relativos. Assim, segundo Kant,

o espaço absoluto é uma “regra para considerar em si todo o

movimento como puramente relativo”277. Ou seja, o espaço

absoluto é uma ideia da razão. Ideia essa que nos permite

tornar válidas as leis do movimento.

3.3.5. Conclusão

Tal como em Descartes, para Kant é da natureza dos

objectos dos sentidos externos, ou corpos, serem extensos.

Contudo, a extensão (e a figura) é parte da natureza dos

objectos físicos em sentido formal. Como algo é conhecido a

priori, pois é uma determinação da intuição pura do sentido

externo, isto é, do espaço.

Por outro lado, em Kant, tal como o era em Newton, a

materialidade é a natureza dos objectos físicos em sentido

material (permita-se o pleonasmo). Pois a matéria é aquilo

a que no fenómeno corresponde à sensação278.

277 Conferir idem, p. 98.

278 Conferir, [CRP], B35.

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Poder-se-á assim dizer que existe no conceito de

objecto físico em Kant uma tentativa de conciliação dos

conceitos de objecto físico de Descartes e de Newton. Que

é, no fundo, uma tentativa de conciliação entre o

racionalismo de Descartes e o empirismo de Newton. Uma

tentativa de conciliação que se efectua no conceito de

corpo entendendo-o:

- por um lado, como puro objecto geométrico, como

objecto da razão (isto é, quanto à sua forma); e

- por outro lado, enquanto coisa que activa os

sentidos, enquanto objecto empírico (isto é, quanto à sua

materialidade).

Contudo, essa conciliação faz-se, em primeiro lugar,

tendo o espaço como uma forma subjectiva da intuição

(contra Descartes e Newton, onde o espaço é algo dos

objectos). Só assim, Kant assegura que o mundo físico pode

ser objecto da matemática, como era propósito de Descartes

e esperança postulada de Newton. Em segundo lugar, essa

conciliação faz-se pela concepção de matéria de Kant (que é

herdada de Leibniz, tal como o espírito conciliador) onde

esta é o produto de forças antagónicas. Forças que

explicam, por um lado, a extensão dos corpos em Descartes.

Por outro, que explicam a impenetrabilidade e dureza dos

corpos em Newton.

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Mas existe ainda um terceiro plano de conciliação

entre Newton e Descartes fruto, igualmente, do conceito de

matéria de Kant. Pois ao conceber a matéria com uma

substância que possui forças motrizes, Kant, por um lado,

estabelece a gravidade uma força fundamental dos corpos,

isto é, estabelece como existente um força que actua à

distância. Algo que Descartes rejeita e Newton aceita mas

hesita, isto é, nunca o assume. E, por lado, ao atribuir

aos corpos uma força fundamental de repulsão (a que

preenche o espaço), Kant rejeita o atomismo onde assenta o

sistema newtoniano e aceita, como Descartes, que a matéria

é infinitamente divisível.

Portanto, se aqui se afirmou que era intenção de Kant

dar fundamento à Física de Newton, isto não significa que

era intenção de Kant fazer uma estrita defesa dessa Física.

O problema de Kant era o de determinar os princípios

metafísicos que permitem uma teoria sobre a natureza

corpórea tomar com propriedade a denominação de ciência.

Isto é, conhecimento efectivo dessa natureza. O seu ponto

de partida, como não poderia deixar de ser, é de conceber a

Natureza física como o conjunto dos fenómenos. Onde, a

matéria, enquanto algo móvel, é o elemento que é dado à

sensibilidade e, como tal, é o que é objecto das

determinações do sujeito transcendental. Ou seja, o

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propósito de Kant era o de submeter o conceito de matéria

móvel as categorias e delas fazer brotar dedutivamente, os

princípios a que os objectos de experiência possíveis da

Física, os corpos enquanto matéria móvel, estariam

necessariamente submetidos. Em princípios, portanto, que

precederiam e legitimariam, não somente a Física de Newton

mas uma qualquer Física particular neles fundada. Os

princípios metafísicos de Kant seriam os a priori de

qualquer ciência da Natureza.

Contudo, ao ser uma metafísica especifica dos corpos

onde, na sua base residem conceitos empíricos como matéria

e movimento, esta pode-se revelar incorrecta sem, contudo,

atentar necessariamente contra o edifício da Critica da

Razão Pura. Isto é, dado que os conceitos de movimento e de

matéria, em particular, enquanto substância que possui duas

forças activas e opostas, são atribuídos aos objectos

físicos a partir da experiência que temos deles, então não

pode haver garantia alguma que uma ciência fundada em tais

conceitos traduza um conhecimento efectivo sobre a Natureza

corpórea. Isso mesmo é reconhecido por Kant quando afirma,

na seguinte passagem, o carácter não universal de alguns

dos princípios metafísicos da Física:

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“[...] encontram-se aí [na ciência geral da natureza]

também muitas coisas que não são absolutamente puras e

independentes das fontes da experiência: como o conceito de

movimento, de impenetrabilidade (onde se funda o conceito

empírico de matéria), de inércia, etc., que a impedem de a

chamar uma ciência inteiramente pura da Natureza [...] Mas,

entre os princípios dessa Física geral, há alguns que possuem

realmente a universalidade que exigimos, como a proposição: que

a substância permanece e persiste, que tudo o que acontece tem

uma causa segundo leis constantes, etc. Estas são

verdadeiramente leis universais da Natureza, que existem

absolutamente a priori”279.

Deste modo, existem dois tipos de princípios

metafísicos da Natureza: Aqueles que, no entender de Kant,

são absolutamente universais, apriorísticos e, por

conseguinte, seguros pois têm a sua sede nos conceitos

puros do entendimento; e os outros que são – digamos assim

– semi-puros e, como tal, passíveis de serem revistos. Este

é caso de todos os que se referem aos conceitos empíricos

em geral. E, em particular, será o caso dos que se referem

aos conceitos de matéria e de movimento.

279 Kant (1783), Prolegomena zu einer jeden künftigen Metaphysik (trad. port. de Artur Mourão, “Prolegómenos a toda a Metafísica Futura”), Lisboa: Edições 70 (1982), § 15, p. 67

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Por conseguinte, a Física de Newton, fundada, já não

na débil experiência, mas na sólida estrutura do sujeito

transcendental, tal como era o propósito dos “Princípios

Metafísicos da Ciência da Natureza”, pode ser considerada

um conhecimento possível, mas não necessário. Aliás, a meu

ver, uma vez concebida a matéria como substância que possui

forças e aberta a possibilidade do éter (que, como já se

disse, irá ser central no Opus Postumum) podemos ver Kant

mais próximo do que viria a ser, cerca de meio século mais

tarde, o Electromagnetismo do que a Mecânica de Newton.

Pois, é precisamente no Electromagnetismo que a matéria é

concebida como resultante de duas forças opostas, uma

atractiva e outra repulsiva, presentes numa substância

infinitamente subtil e que preenche todo o espaço: o campo

electromagnético.

2.4. Conclusão geral do capítulo.

A análise do conceito de objecto físico que é

realizada neste capítulo é, a meu ver, atravessada por dois

aspectos:

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1) Por objecto físico concebe-se sempre como o que tem

a natureza corpórea, ou seja, que é um corpo.

2) Embora a Física se constitua sempre como uma teoria

do movimento, de qualquer um dos conceitos de corpo

não decorre, necessariamente, que estes se

movimentem.

Embora distintos, creio que estes dois aspectos estão

relacionados. Relação que, a meu ver, se pode expressar nos

seguintes termos: pensar os corpos é pensar a partir do

fixo, do localizado e, portanto, é pensar numa entidade em

que o movimento é apenas possível; pensar as ondas é pensar

em algo que necessariamente se move.

A experiência que temos do mundo físico é, em primeira

instância, o da existência de coisas que nos são exterior e

que se nos opõem activando os nossos sentidos. Atribuímos,

apropriadamente, a designação de “objecto físico” a essas

coisas, suportados na própria etimologia da palavra

“objecto”. A partir desta reacção dos nossos sentidos à

presença de algo que nos é exterior, temos a percepção de

cadeiras, mesas, pedras, bolas de bilhar, cordas de

violino, das nossas próprias mãos, etc. E chamamos-lhes

corpos a esses objectos físicos.

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Podemos, então, a meu ver, dizer que um corpo é um

todo espacialmente finito. Na forma desenhada da sua

finitude espacial encontra a sua figura. Mas um todo de

quê? Descartes dirá que é apenas um todo de extensão, como

um quadrado ou uma outra figura geométrica qualquer. Se um

corpo é um todo espacialmente finito, será impossível

discordar com Descartes que os corpos têm extensão, são um

todo extenso com figura. Mas dizemos vulgarmente que esse

todo não é somente extensão, mas é um todo de massa. Um

corpo é uma massa com uma determinada figura280, é isto

mesmo que afirma Kant (e Newton, certamente concordaria).

Por sua vez, dizemos que um corpo se movimenta quando,

por exemplo, percepcionamos, o que julgamos ser o mesmo

corpo, percorrendo uma sucessão de locais. O corpo é então

aqui entendido como um todo extenso que se move. Mas tal

não acrescenta nada ao conceito de corpo, pois da concepção

de um todo (de matéria) finito, nada obsta a que esse todo

se movimente. Os corpos, quer os concebamos como simples

extensão, matéria ou resultado de duas forças, concebemo-

los sempre a partir da sua ausência de movimento. Como se o

movimento fosse, para os objectos físicos, apenas uma

propriedade acidental.

280 Conferir [MFNS], p. 76.

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Por outro lado, se o corpo é um todo extenso, então é

composto por partes e então estas poderão estar em

movimento. Ou seja, pode existir movimento num todo

extenso. A este designamos por onda. Portanto, quanto ao

movimento, podemos distinguir corpo e onda do seguinte

modo: Corpo é um todo móvel; onda é um movimento num todo.

Deste modo, conceber os objectos físicos como ondas

passa necessariamente por ter o movimento como propriedade

fundamental. Uma onda do mar não é concebível como algo que

está em repouso, apenas poderá ser como algo que se mantém

estável. Pois se existem ondas estacionárias, estas são o

resultado da sobreposição persistente de duas ou mais

ondas, como um processo cujo resultado se mantém idêntico

no tempo, mas que é um processo, que não é algo que está em

repouso. Não existem ondas em repouso. E, como tal, não é

possível conceber os objectos físicos como ondas sem

considerar que esses objectos têm movimento.

Parece existir aqui, no entanto, uma certa precedência

dos corpos em relação às ondas. Pois, ao dizer-se que uma

onda é um movimento num todo, então esse todo precede, como

condição, a onda. Uma onda do mar é um movimento no mar.

Uma onda sonora é um movimento, por exemplo, no ar ou num

metal. Por conseguinte, se esse todo extenso é um corpo,

então, de certo modo, podemos dizer que, enquanto um corpo

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pode ser concebido sem as ondas, o inverso não será

totalmente verdade. A não ser, claro está, quando o extenso

que é suporte da onda, for infinitamente extenso, portanto

sem figura. É caso, por exemplo, da onda electromagnética,

que é movimento num “campo” de extensão infinita. Porém,

nesse caso, o campo electromagnético não é concebível nem

como corpo, nem como onda. Na verdade, parece que sobre

qualquer plenum infinito, como é o campo electromagnético,

tomando-o como objecto físico se poderia colocar, de certa

forma, a mesma questão sobre a sua natureza que se coloca

relativamente aos objectos quânticos.

Por outro lado, se a nossa experiência comum do mundo

físico é feita de percepções discretas, como se fossem

flashes, imagens isoladas ou fotografias, então os objectos

físicos são percepcionados, antes do mais, como entidades

sem movimento. O movimento será, então, uma operação de

síntese de várias percepções individuais. Neste sentido, os

corpos individuais, enquanto um todo extenso, como entidade

que pode ser concebida sem o movimento, são o nosso objecto

de experiência privilegiado281.

A reforçar esta tese evoca-se aqui que, tal como

assinalam, entre outros, De Broglie e Brigitte 281 Este ponto, por não ser totalmente claro, careceria de uma análise mais detalhada. Em particular, a tese que o objecto da nossa percepção externa é o corpo. No entanto, isto significaria mergulhar num problema imenso que é o problema da percepção. O que forçaria a um desvio significativo no âmbito deste trabalho.

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Falkenburg282, todas medições são, antes do mais, medições

da posição (ou seja, da quantidade de localização, como se

disse no capítulo anterior). O que significa que todas as

medições se referem aos corpos. Todas as medições são, em

última análise, repostas à pergunta “onde está?”,

naturalmente relativas a um determinado corpo. Se uma

balança mede a massa de um corpo, mede-o a partir da

comparação de duas posições. E o mesmo sucede para a

medição da velocidade. Ou quando se mede o momentum ou a

energia ou mesmo a frequência ou o comprimento de uma onda.

A única propriedade que é directamente medida é a posição.

Todas as outras são-no apenas de forma indirecta. Poder-se-

á, então, afirmar, surpreendentemente, que a Física é

caracterizada apenas por uma questão. Questão esta, no

entanto, dirigida aos objectos físicos, que se vai

desdobrando nos seus tempos verbais. A saber: Onde está?

Onde estava? Onde estará?

Portanto, os corpos individuais são o nosso objecto de

experiência privilegiado. Não admirará pois que em

Descartes, Newton e Kant, “objecto físico” e “corpo” sejam

quase sinónimos. Ou melhor, a partir da experiência dos

corpos, cada um deles concebe os objectos físicos.

Descartes por eliminação de tudo aquilo que não faz parte

282 Conferir Falkenburg, Brigitte (2007), Particle Metaphysics, Berlim: Springer, p. 93.

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necessariamente dos corpos. Newton tomando por seguro que a

experiência ensina como os objectos físicos são de facto.

Kant tomando por seguro que a experiência ensina como os

objectos físicos são enquanto fenómeno.

Porém, a lição da descoberta do domínio quântico era a

seguinte: os objectos quânticos movem-se como ondas,

interagem como corpos. Quando interpelados por um acto de

medida os objectos quânticos aparecem sempre como um

corpúsculo. Porém, vagueiam entre duas medições como se

fossem ondas. O objecto quântico tem sempre uma dupla face.

Quanto melhor conhecemos a sua posição, pior conhecemos o

seu momento. Por muito que o reconheçamos como corpúsculo,

nunca o deixamos de reconhecer como onda. E vice-versa. O

objecto quântico resiste e revolta-se às nossas enraizadas

categorias para os objectos físicos. Ele não é onda, nem é

corpúsculo.

Deste modo, sendo que os objectos quânticos não são

corpos, mas são objectos físicos então, nenhum dos

conceitos de objecto físico, de Descartes, Newton ou Kant

suporta o embate com o domínio quântico. Voltamos,

novamente, à questão inicial da natureza dos objectos

quânticos. Mas agora com dois elementos adicionais. Em

primeiro lugar, dirigimos a questão aos objectos físicos em

geral e não apenas aos quânticos. Em segundo lugar, todas

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as medições em Física são medições de posição. Assim,

podemos pensar que o objecto físico revelado por uma

medição apresentará, necessariamente, uma natureza

corpórea, mesmo que essa não seja a sua natureza. Isto é,

podemos pensar que, na sua essência, um acto de medição, ou

um acto de percepção, é um acto de fragmentação e de

metamorfose da realidade física. Ou seja, que os objectos

físicos devem ser concebidos, por um lado, como entidades

em que o movimento é parte da sua essência, é um seu

princípio interno e não um acidente. E, por outro lado,

como entidades que, num acto de medida ou de percepção, se

apresentam incompletos, parciais, perspectivados.

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4. Elementos para uma concepção dinamista e

relacional de objecto físico.

No parágrafo oitavo dos “Princípios da Natureza e da

Graça”, Leibniz afirma:

“[…]a matéria é em si mesma indiferente ao movimento e ao

repouso, e perante um tal ou outro movimento não podemos

encontrar a razão do movimento, e menos ainda de um tal

movimento determinado. E ainda que o movimento presente, que

está na matéria, venha do precedente, e este de um outro

precedente, continuamos a não avançar, ainda que avancemos tanto

quanto quisermos: porque permanece de pé sempre a mesma

pergunta.”283

Os corpos movem-se. É isso que a nossa experiência do

mundo físico nos indica. Não haveria experiência do mundo

físico se não houvesse movimento, não só porque os nossos

283 “[…] la materia es en si misma indiferente al movimiento y al reposo, y ante tal o cual movimiento no podemos encontrar la razón del movimiento y menos aún de tal movimiento determinado. Y aunque el movimiento presente, que está en la materia, proviene del precedente, y éste incluso de otro precedente, no hemos avanzado más aunque vayamos tan lejos como queramos: pues siempre queda en pie la misma pregunta. Leibniz, G. W. (1714), Principes de la nature et de la grâce fondés en raison (“Principios de la Naturaleza y de la Gracia Fundados en Razon” in Escritos Filosóficos de Leibniz, Madrid: Mínimo Tránsito, p.685. (2003)) parágrafo 8 (tradução minha).

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mecanismos sensoriais não poderiam existir ou, pelo menos,

funcionar, mas igualmente porque o mundo físico nos

apareceria indiferenciado, homogéneo, morto. Os corpos

movem-se e a física constitui-se como teoria explicativa do

movimento dos objectos físicos. Porém, como se mostrou no

capítulo anterior, conceber os corpos como extensão ou como

matéria é conceber um objecto físico onde a razão do seu

movimento não está inscrita. Como afirma Leibniz na

passagem anterior, da matéria “não poderíamos achar nela a

razão do seu movimento”. E mesmo que seja construída uma

física tão poderosa como a newtoniana, que nos explica como

os movimentos se sucedem, falha a razão porque existe

movimento no mundo físico. Assim, será claro em Leibniz que

a razão do movimento não pode provir da nossa experiência

do mundo físico, como o defenderam Descartes, Newton e

Kant. Pelo contrário, a razão terá que ser encontrada na

metafísica e depois deduzida para os corpos. Como afirmou

Deleuze, “Em lugar da indução física cartesiana, Leibniz

substitui-a por uma dedução moral do corpo”284. Moral que

advém do imperativo “Eu tenho que ter um corpo”285. Deste

modo, como é imperativo em Leibniz, tem que existir uma

razão para os corpos se moverem, para que as coisas sejam

284 Conferir Deleuze, Gilles (1988), Le pli: Leibniz et le baroque (tradução para inglês de Tom Conley, “The Fold: Leibniz and the baroque”, Londres: Continuum (2006), p.97. 285 Idem, ibidem.

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assim e não de outro modo qualquer. Razão que não se

encontra nos corpos, mas nas mónadas.

4.1. Objectos Físicos: entre as mónadas e os corpos.

A monadologia, trabalho da chamada fase de maturidade

de Leibniz (ou, como coloca Ezequiel de Olaso, “de maior

maturidade”286), tem como entidade ontológica fundamental a

mónada. Logo no primeiro parágrafo, Leibniz define-a como

uma substância simples. Mas o que entende aqui, Leibniz,

por substância e por simples? Por simples, esclarece o

próprio, significa o que é “sem partes”287. Por conseguinte,

mónada será a substância que não é composta por nada mais,

a substância que não tem algo no seu interior, a que não é

divisível.

Por sua vez, havendo outras coisas no mundo que não as

mónadas, e sendo estas as substâncias simples, então, como

nos diz Leibniz, essas outras coisas são compostos de

286 Conferir Olaso, Ezequiel de (1980), “Prólogo” in Escritos Filosóficos de Leibniz, Madrid: Mínimo Tránsito, p.17. 287 Conferir Leibniz, G.W. (1714) Principes de la Philosophie ou Monadologie, parágrafo 1, (edição Robinet, 1954, p.69).[Monadologia-Ed.Robinet]

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mónadas. Ou mais precisamente, são agregados de mónadas288.

Porém, daqui resultam dois problemas.

Em primeiro lugar, se os objectos físicos de que temos

experiência empírica directa – os corpos – apresentam-se-

nos como extensos, como podem eles resultar da composição

de mónadas, que são entidades, de sua natureza, sem

extensão?

Por outro lado, por que razão Leibniz afirma na

monadologia que as mónadas são substâncias simples e, no

entanto, não afirma que os agregados de mónadas são

substâncias compostas (tal como o faz nos “Princípios da

Natureza e da Graça”289)? Ou seja, por que razão,

aparentemente, as mónadas são substâncias e no entanto os

corpos, por exemplo, já não o são? O que entende Leibniz

por substância?

No célebre parágrafo VIII dos “Discursos de

Metafísica”, Leibniz começa por considerar o conceito

aristotélico de substância:

288 Conferir idem, parágrafo 2. 289 Conferir Idem, parágrafo 1

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“[…] quando se atribuem múltiplos predicados a um mesmo

sujeito e esse sujeito não é atribuído a nenhum outro, ele é

chamado de substância individual”290

Contudo, Leibniz, no comentário que logo se segue, vê

a referida concepção de substância como insuficiente por

esta ser, no seu entender, meramente nominalista. Por sua

vez, Leibniz considera que:

“[…] a natureza de uma substância individual ou de um ser

completo é ter uma noção tão acabada que seja suficiente para

compreender e deduzir a partir dela todos os predicados do

sujeito a qual tal noção é atribuída.”291

Ou seja, Leibniz entende por substância individual o

mesmo que entende por um ser completo. O que significa que,

no seu entender, uma substância, ou um ser completo, é o

que contem em si, virtualmente, todas as predicações da

qual é sujeito. Isto é, não só de todas predicações de que

é sujeito num dado estado, mas de todas as predicações de

290 Leibniz, G. W. (1686), Discours de métaphysique (tradução para Português de Adelino Cardoso “Discurso de Metafísica”, Lisboa: Colibri, p. 44 (1995)), parágrafo VIII. 291 Idem, ibidem.

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que foi, é e será sujeito – em suma, de todo o decorrer dos

seus estados particulares.

Assim, em primeiro lugar, Leibniz entende a

substância, tal como Aristóteles, como uma substância

individual que é sujeito de predicação.

Em segundo lugar, Leibniz entende a substância não

como uma matéria inerte, como algo onde o movimento é

apenas um atributo possível ou como o que subsiste na

mudança. Pelo contrário, em Leibniz, uma substância é um

sujeito de predicação de uma série de estados. Estados que

têm de se suceder sem interrupção, pois uma interrupção na

decorrência de estados seria uma ausência de predicação e,

como tal, não poderia ser substância (seria um não-ser, um

ser sem predicado algum). A substância, como Leibniz afirma

logo na abertura dos “Princípios da natureza e da graça”, é

um “ser capaz de acção”292. Porém, esta capacidade não é uma

mera potência para a acção, mas uma força efectiva. Isto é,

em Leibniz as substâncias individuais são concebidas como

entidades que têm em si um princípio interno de mudança,

princípio este que as força a transitarem permanentemente

entre estados diferentes. A substância encontra-se em

perpétua transição de estados.

292 Conferir, Leibniz, G. W. (1714), Principes de la nature et de la grâce fondés en raison (“Principios de la Naturaleza y de la Gracia Fundados en Razon” in Escritos Filosóficos de Leibniz, Madrid: Mínimo Tránsito, p.685. (2003)) parágrafo 1.

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Assim, entender a mónada como uma substância simples,

é entender que ela não tem constituição interna, que ela

não tem nada no seu interior, nem sequer vazio, pois não é

oca como uma caixa de ressonância, mas que, ao invés,

contém virtualmente todos os predicados do qual foi, é e

será sujeito. As mónadas não são o que subjaz à mudança ou

o que tem ou toma formas extensas, pois esses conceitos

fariam dela algo passivo ou, pelo menos, algo em que a

mudança não é necessária. As mónadas, enquanto seres que

contém, virtualmente, toda a sequência dos seus estados,

que se sucedem por razão de um princípio interno, são a

unidade de uma série interminável de estados. Unidade de um

fluxo espontâneo de estados.

Mas, se a mónada, enquanto substância singular, é, por

sua natureza, uma entidade em mudança contínua de estados,

sendo cada um desses estados fugaz e efémero, em que

consiste cada um desses estados? Isto é, são estados de

quê? Segundo Leibniz, cada estado passageiro “não é mais do

que a chamada percepção”293. Isto é, “a representação de uma

multiplicidade na unidade”294. A unidade é, claro está, a

percepção individual da mónada, o seu estado actual, a sua

percepção actual do múltiplo. Mas que multiplicidade é

representada em cada mónada?

293 Conferir [Monadologia-Ed.Robinet], parágrafo 14 (p. 77). 294 Idem, Ibidem.

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Segundo o Leibniz dos “Princípios da natureza e da

graça”, as percepções das mónadas são representações do

composto295. E o que é este composto que é representado?

Daquilo que se afirmou anteriormente, os compostos (ou os

agregados) de mónadas são os corpos. Portanto, numa

primeira aproximação, o múltiplo que é representado na

mónada, aquilo em que consiste a sua percepção, é o

múltiplo do mundo corpóreo, do universo. Em cada percepção

individual, que é uma unidade, habita, como representação

transitória, o múltiplo do mundo corpóreo.

Por seu turno, numa segunda aproximação, dado que cada

corpo é um composto de mónadas, então, o múltiplo que é

percebido como corpo é, na sua essência, o conjunto de

todas as outras mónadas. Isto é, cada mónada percepciona

todas as outras por intermédio dos corpos. A percepção de

cada mónada é a percepção de todas as outras. Ou seja, tal

como tão celebremente afirma Leibniz, “cada substância

simples [tem] relações que exprimem todas as outras e […],

por conseguinte, [é] um espelho vivo perpétuo do

universo”296. Cada mónada é, por sua natureza, uma imagem,

um ponto de vista, uma perspectiva singular do universo.

Havendo múltiplas mónadas, existem múltiplas perspectivas

295 Conferir Leibniz, G. W. (1714), Principes de la nature et de la grâce fondés en raison (“Principios de la Naturaleza y de la Gracia Fundados en Razon” in Escritos Filosóficos de Leibniz, Madrid: Mínimo Tránsito, p.685. (2003)) parágrafo 1. 296 Conferir [Monadologia-Ed.Robinet], parágrafo 56 (p. 105).

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do universo. Cada mónada é uma unidade singular do

múltiplo. O universo é a unidade das múltiplas mónadas.

As mónadas não são, no entanto, representações fixas

do múltiplo. A mónada não é uma pintura, mas é

cinematográfica. Isto é, e como já foi referido

anteriormente, as substâncias simples transitam

incessantemente de percepção em percepção, num fluxo

permanente, em virtude de um princípio que terá se ser

interno. Este princípio interno que, sob sua acção, leva à

transição de estados perceptivos de cada mónada particular,

Leibniz designa por apetência297.

Temos então as duas qualidades ou “acções internas das

substâncias simples”298 das mónadas: a percepção e a

apetência. São estas duas qualidades que as fazem serem

entes e as tornam discerníveis entre si. Isenta de

qualidade uma mónada seria indistinguível de outra. A

diferença entre mónadas, a sua discernibilidade, radica na

percepção particular, na perspectiva singular que cada uma

tem em si, em cada transição, da multiplicidade do mundo.

Duas mónadas que representam identicamente o mundo, não

seriam duas, mas uma. Portanto, o que as distingue não é

algo que lhes é interior, mas a sua relação representativa

do que lhes é exterior.

297 Conferir Idem, parágrafo 15 (p. 77). 298 Conferir Idem, parágrafo 17 (p. 79).

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As acções internas das mónadas, por estas serem

substâncias simples, isto é, sem partes, não resultam de

quaisquer mecanismos internos. Pois sendo sem partes, a

mónada em nada poderá ser influída por algo exterior. As

percepções não são impressões numa superfície à maneira de

fotografias ou de selos, nem as transições de estados de

percepção resultam de reacções, isto é, de acções em

resposta a impressões externas efectuadas sobre si. Não

tendo partes, não seria concebível que tivessem um interior

que respondesse a uma acção exterior. Dado que essas acções

internas não resultam de quaisquer mecanismos internos, as

mónadas não podem ser tomadas como entidades físicas, em

particular como corpos. As mónadas são autómatos

incorpóreos299.

Uma vez sendo entidade sem partes, seria tentador

imaginar as mónadas ao jeito de partículas materiais, de

partículas corpóreas puras (como aqui se designou no

segundo capítulo), corpúsculos mínimos ou simplesmente como

pontos. Contudo, tal como nos avisa Leibniz300, logicamente,

onde não há partes não há extensão, nem figura, nem

divisibilidade alguma possível. Deste modo, por um lado,

uma mónada não poderia ser algo material, pois isso

significaria que era composto de matéria. Seria um pedaço,

299 Conferir Idem, parágrafo 18 (p. 81). 300 Conferir Idem, parágrafo 3 (p. 69).

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por muito mínimo que fosse, um átomo de matéria. Ora, a

mónada não é composta por nada, não tem interioridade. Por

outro lado, uma mónada não pode ser nem um átomo no sentido

que Demócrito dá a esta palavra, nem pode ser um corpúsculo

à maneira de Descartes, pois dado que estes têm extensão

será sempre possível pensar numa sua divisão, o que seria

contrário à natureza simples das mónadas.

Não obstante, poderá dizer-se, como nos diz Leibniz,

que as mónadas são “os verdadeiros átomos da natureza e,

numa palavra, os elementos das coisas”301. Átomos, não no

sentido de elemento imutável no mundo, mas no sentido de

elemento indivisível das coisas, de entidades primeiras de

tudo, de unidades singulares de uma série de estados que já

estão contidas em si, como virtual. E a realidade das

mónadas esgota-se nesse fluxo espontâneo de estados. A

mónada é a unidade atómica do real. Neste sentido, poder-

se-ia representar a mónada como um ponto. Um ponto, não

como a unidade última de algo espacial, ou do próprio

espaço. Isto é, não entendendo a mónada como o elemento

último, o que resta, de uma decomposição ad infinitum do

espaço, pois tal implicaria dizer que o espaço seria

anterior à mónada. Tal seria contraditório com o conceito

de mónada como elemento primeiro, primordial relativamente

a todas as outras coisas. Porém, se o espaço for a

301 Conferir Idem, ibidem.

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consequência do preenchimento das mónadas, então seria

possível imaginar as mónadas como pontos a partir dos quais

o espaço é composto. A mónada a ser um ponto, não é um

ponto material, nem um ponto matemático: é um ponto

metafísico.

Por outro lado, sendo entidades perceptivas e, como

tal, incorpóreas, as mónadas podem ser consideradas como

espíritos ou almas. Porém, Leibniz reserva esta atribuição,

apenas “àquelas, cuja percepção é mais distinta e

acompanhada de memória”302. Em particular, aos humanos.

Assim, em cada um de nós habita uma multidão de mónadas. Em

cada pedaço de nós, pois a cada pedaço corpóreo corresponde

a sua mónada. Conjunto que é regido, no entanto, por uma em

particular. Como um maestro dirige a sua orquestra. Mas

mais que a questão das hierarquias entre mónadas, o

importante a salientar é que se em nós (no que de nós é

consciência que percepciona) habita ou reside uma mónada,

então em Leibniz, ao contrário do que se sucede em

Descartes, Newton e Kant, o sujeito está no mundo. O

sujeito de percepção é parte do mundo que percebe, pois

tanto o que tem percepções, como o que é percepcionado tem

apenas uma natureza: as mónadas. A ciência em Leibniz não

passa por um sujeito ausente, que vê o mundo da

arquibancada ou do camarote. Um sujeito distante e ausente.

302 Conferir Idem, parágrafo 20 (p. 81).

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Um sujeito transcendente que vai cartografando o mundo à

medida que o descobre. O sujeito de Leibniz, tal como um

explorador, vê o mundo de uma certa perspectiva. Está corpo

a corpo com ele. Vê para o mundo de uma das múltiplas que

este oferece para ser visto. Assim, se o sujeito tem do

mundo uma certa perspectiva, isso não significa que se caia

numa espécie de relativismo. No entanto, torna a ciência

numa empresa muito mais vasta, pois ao contrario de Newton,

por exemplo, onde se pretende olhar o mundo num plano, num

ponto neutro, como partes de um mapa, a Ciência de Leibniz

passa pelo projecto interminável da aquisição de todas as

perspectivas. Por trabalhar, não ao nível do plano, mas do

pleno. Por procurar a harmonização de várias teorias, cada

uma a ver o mundo segundo um ponto de vista que lhe é

próprio. Assim, o sujeito, como está no mundo, é parte do

mundo, tem-se a si mesmo como objecto mais próximo. Ele é

sujeito do sujeito ou, tal como colocou Whitehead, é um

super-jecto.

Porém, se cada uma das mónadas é apenas um reflexo do

todo, um autómato incorpóreo e, como tal, não se encontra

em interacção com nada, como podem as mónadas representar

esse todo? Como aqui já se disse, cada mónada está

associada a um corpo. Assim:

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“[cada corpo] expressa todo o universo pela conexão de

toda a matéria no pleno, a alma representa também todo o

universo ao representar esse corpo a que pertence de maneira

particular”303.

Existe um duplo plano: o dos corpos e o das mónadas.

Os corpos expressam o universo. As almas representam

perceptivamente o corpo a que estão associadas. E é por que

os corpos expressam o universo, que as almas representam,

indirectamente, o universo. Os corpos sem mónadas não

existiriam, pois são compostos de mónadas. As mónadas sem

corpos também não existiriam, pois não teriam percepções, o

universo não se exprimiria em nada. Quase que se poderia

dizer, recordando Bohr, que os corpos e as mónadas são

complementares.

Todas as mónadas estão em inter-relação, em inter-

ligação, mas não em inter-acção. Isto é, existe um vínculo

invisível, imponderável, implícito entre elas. Como numa

dança bem ensaiada, as mónadas estão perfeitamente

coordenadas sem que, no entanto, exista qualquer tipo de

contacto ou de interacção entre elas. Cada uma delas

transita de percepção em percepção por via de uma

303“et comme ce corps exprime tout l’univers par la connexion de toute la matière dans le plein, l’Ame represente aussi tout l’univers en représentant ce corps, qui lui appartient d’une manière particulière.“, idem, parágrafo 62 (p.109).

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coreografia que as abarca a todas. Cada substância simples

está em mudança por si mesma, mas muda em função de uma

organização incorruptível que as percorre a todas. Assim,

cada mudança só é possível em função de todas as outras. As

mónadas vivem em regime de compossibilidade ou de

cumplicidade. Neste sentido, as mónadas são como unidades

de biografias particulares. São livros, como afirma

Deleuze304. São livros auto-biográficos. É essa biografia

particular, o seu conjunto de percepções que se sucedem, a

perspectiva singular do universo que faz com que cada

mónada seja distinta das demais a cada transição de estado.

Pois a percepção da mónada é a expressão singular da

transição de estados da multiplicidade. E a biografia do

mundo será o conjunto das suas biografias. Porém, a

biografia de cada uma contém, virtualmente, a biografia da

totalidade.

Mas, por sua vez, se toda a existência está preenchida

de mónadas (pois não pode haver algo existente que não seja

composto por mónadas) e a estas está associado um pedaço

corpóreo, então o espaço físico é um plenamente preenchido.

Isto é, tudo é pleno. Por conseguinte, tal como em

Descartes, a matéria é divisível em partes mais pequenas e

estas em outras ainda mais pequenas, numa sucessão infinda.

304 Conferir Deleuze, Gilles (1988), Le pli: Leibniz et le baroque (tradução para inglês de Tom Conley, “The Fold: Leibniz and the baroque”, Londres: Continuum (2006), p. 35.

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Divisão que não é meramente racional, como no caso do

espaço matemático. Isto é, uma divisão que se pode pensar a

partir de um todo. Em que o todo precede as partes. Pelo

contrário, cada corpo é, em actual, dividido em infinitas

partes. Por sua vez, também como em Descartes, todas as

partes da matéria estão ligadas entre si, pois num plenum o

movimento de um corpo particular faz efeito nos que lhe são

contíguos e esses em outros, numa propagação que podermos

conceber como ondulatória. Por conseguinte, o movimento de

um corpo é uma consequência directa do movimento de todo o

universo. O estado actual de um corpo individual é

resultante, reflexo, expressão do decurso evolutivo dos

estados do universo. A multiplicidade é expressa em cada

corpo. E o estudo exaustivo, uma determinação completa de

um corpo individual passaria pela conquista de todo o

múltiplo que ele contém. Isto é, teria que passar pela

determinação de todos os outros corpos. O que significa que

a percepção do estado actual de um dado corpo, ao contrário

do que sucede em Descartes, Kant, Newton e, por extensão,

da metafísica implícita da Física, não o determina por

completo, mas apenas parcelarmente.

Por outro lado, se tudo é composto de mónadas ou por

mónadas, que são a substância simples, então, logicamente,

não pode existir nada que não pertença às mónadas. Ou seja,

não pode existir tal coisa, como Newton, por exemplo

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concebe, como um espaço vazio. Um espaço como substância

que precede todos os corpos. O espaço, para Leibniz, é uma

ordem da coexistência das mónadas305. O espaço é da ordem

das coisas, da sua relação e não um plano onde estas podem

ser depositadas, ordenadas e urdidas as suas relações.

Igualmente, o tempo é da ordem das coisas. Assim, tanto o

espaço, como o tempo, são, para Leibniz, não coisas, mas

fenómenos bem fundados. Fenómenos, porque são apenas

aparência. Bem fundados, pois fundam-se na relação - que é

o tecido do real – entre as mónadas.

Porém, o que sucede no caso dos corpos? Tal como se

afirmou no início, Leibniz parece hesitar em considerar os

corpos como substâncias. Embora nos “Princípios da Natureza

e da Graça”, Leibniz afirme que os corpos são substâncias

compostas, na monadologia parece indicar que apenas as

mónadas são verdadeiramente substâncias. Nesta última obra,

os corpos são simples agregados de mónadas. Por outro lado,

se os corpos nos aparecem aos sentidos como extensos e se a

extensão é apenas um fenómeno bem fundado, então os corpos,

tal qual nos aparecem, são igualmente um fenómeno bem

fundado. O mesmo sucederá com o movimento, se o pensarmos,

como é usual, como o quociente entre o espaço percorrido e

o tempo decorrido por um corpo, pois também o tempo é da

305 Leibniz, G.W. (1714), Carta a Rémond, Julho de 1714, não enviada in Princípios da natureza e da graça/Monadologia (trad. Port. de Miguel Serras Pereira), Lisboa: Fim de Século, p.68. (2001).

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ordem da relação das coisas e não uma coisa em si. Assim, a

verdadeira natureza dos corpos não nos é revelada através

da percepção directa. E, como tal, toda a Física que se

constitua a partir de uma concepção de corpo tal como ele

nos aparece aos sentidos (extenso, móvel, etc.) será uma

ciência de fenómenos bem fundados, mas não uma ciência da

natureza tal como ela é.

Diz-nos então, Leibniz, “a alma segue as suas próprias

leis, e o corpo também as suas”306. As almas agem por

apetências, os corpos por movimentos. A Física de Leibniz

não é regida directamente pela percepção e pela apetência.

A Física de Leibniz é regida por duas forças: a viva e a

morta. A primeira é elástica, no sentido que é uma força

que é dirigida para fora mas tem a sua fonte no interior,

como uma mola que se estende, que se atira para fora. Força

que se esgota em si, mas é transmitida. Força que é,

também, de reacção.

Por outro lado, a força plástica, a força morta é a

força acumulativa. Que se dirige para dentro, que se

conforma com o exterior. Mas que é, tão-somente, o que

potencia a força viva. Existem assim duas forças: uma

interior, outra exterior; uma acumulativa, outra expansiva;

uma activa, outra passiva. Todos os corpos são deformáveis,

306 Conferir [Monadologia, edição Robinet] Parágrafo 78 (p. 121)

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elásticos, fluidos na medida suficiente de não perderem a

sua consistência. Encontramos em Leibniz uma física que

rejeita tanto os átomos materiais de Newton, por serem

indeformáveis, como os corpúsculos que tendem para o

imponderável, para o inconsistente. A física de Leibniz

rejeita tanto a idealização de um corpo absolutamente

rígido de Newton, como rejeita a idealização de um fluido

imenso que preenche todos os espaços. No fundo, olhando da

física actual para a física proposta por Leibniz, este

rejeita as idealizações que estão na base tanto da Mecânica

Clássica, como do Electromagnetísmo. Leibniz rejeitaria as

partículas puras, tanto dos corpos como das ondas. Porém,

se tudo é pleno em Leibniz, o movimento local propaga-se

por todo o espaço. Todos os corpos sentem, de alguma forma,

o movimento de um corpo particular. A acção particular

propaga-se isotropicamente, como se fosse uma onda. Porém,

uma percepção é um singular. É a percepção de um corpo.

Isto é, a física de Leibniz já inclui, de certo modo, um

dualismo onda-corpúsculo. Dualismo este que se pode pensar,

justamente, como no domínio quântico: na propagação é como

uma onda; na interacção é como um corpo. Mas o corpo é

aqui pensado, na sua essência, como um centro de força e a

onda como a propagação dessa força. Mas, neste caso,

voltaríamos, aparentemente, à concepção que nos surgiu em

Kant, onde o mundo poderia ser totalmente estático. O que

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não faz sentido em Leibniz, pois nas substâncias simples

existe um princípio interno de transição, de mudança. Tudo

está em movimento, por razão das mónadas.

Porém, regressamos ao problema que deixámos em aberto

no início: Em que consiste exactamente a ligação entre as

mónadas e os corpos?

Leibniz diz-nos que os reinos das almas e dos corpos,

embora completamente separados, são harmónicos entre si.

Numa harmonia pré-estabelecida que permite a transição de

percepções e corresponda a um movimento nos corpos. Os

corpos encontram a sede ou a razão do seu movimento nas

mónadas. Aqui, por movimento, penso que se pode entender o

mesmo que em Kant. Isto é, uma modificação das condições

exteriores. Porém, em que consiste precisamente esta

correspondência entre almas e corpos? Como mostra Daniel

Garber no seu clarificador livro “Lebniz: Body, Substance,

Monad”, esta questão da ligação entre os corpos e as

mónadas irá perseguir Leibniz na fase final da sua vida.

Aliás, Garber é ainda mais enfático ao afirmar que a

questão da ligação entre mónadas e corpos torna-se quase

uma obsessão de Leibniz307. Como mostra Garber, e como é

característico em Leibniz, este tentará várias formas

diferentes, todas elas inconclusivas, de resolver o

307 Garber, Daniel (2009), Leibniz: Body, Substance, Monad, Oxford: Oxford University press, p. 373.

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problema. Leibniz terá mesmo, por um momento, posto mesmo

em causa as mónadas. Em resumo, quer tudo isto dizer que,

segundo Garber:

“O trabalho de Leibniz nestes anos [os de maturidade] sobre

os corpos não fazem uma imagem completamente coerente”308.

Não é fácil compreender exactamente como as mónadas, e

as suas qualidades, constituem os corpos; como os corpos

são agregados ou compósitos de mónadas; ou como as acções

das mónadas se ligam com os corpos. E, em particular, não é

fácil perceber como a Metafísica de Leibniz poderá fundar

uma Física que se quer, na sua essência, dinamista e

relacional.

Como será óbvio, não caberia aqui, nem a mim, sequer

ensaiar um movimento qualquer de tentativa de solução do

problema. Contudo, poder-se-á tentar fazer uso da

monadologia como inspiração e, de certo modo, reinterpretar

alguns dos seus aspectos fundamentais de modo a gizar um

conceito de objecto físico com três aspectos que se podem

encontrar em Leibniz: a inter-relação plena entre os

objectos físicos; a sua essência dinâmica; a

discernibilidade dos objectos físicos. 308 Conferir Idem, p. 382.

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4.2. Os objectos físicos como nós de relações.

Deleuze, no seu livro sobre Leibniz, fala-nos em dobra

para descrever as variadas sucessões paralelas mas

interligadas em Leibniz. O plano das mónadas e o plano dos

corpos. O plano do contínuo do movimento e o plano do

discreto da percepção. O plano da função e o plano da

derivada. O plano da transição do virtual para o actual (ou

seja, da actualização) da mónadas e o plano da transição do

possível para o real (ou seja, da realização) dos corpos.

Séries paralelas, mas harmónicas. Como duas faces de uma

folha que se vai dobrando.

Por outro lado, a dobra também surge em Deleuze como a

figuração da mónada. Podemos ver, perfeitamente, a

sequência de transições de estado de uma mónada como um

desdobrar, como se fosse uma explicação. Podemos sentir

como cada mónada contém, virtualmente, implicada em si,

dobrada no seu interior, a sua sequência de actualizações.

Podemos olhar para a mónada como uma espécie de origami que

se reinventa a cada momento. Podemos perceber a

actualização harmónica do conjunto das mónadas como uma

complicação, como uma cumplicidade. A dobra é, sem dúvida,

uma imagem frutuosa das mónadas.

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Porém, no caso presente, sugiro que interpretemos as

mónadas segundo a figura, não da dobra mas dos “nós”. Isto

é, como entrelaçamentos, como zonas de interligações.

Os nós são constituídos são organizações ou estruturas

particulares dos fios. Assim, um nó existe em função do que

lhe é exterior. Um nó pode surgir por um enrolamento, tal

como pode ser desenrolado, desatado e desaparecer. Contudo,

um nó é uma estrutura autónoma dos fios.

Mas os nós de que aqui falamos não são constituídos

por apenas um fio que se envolve consigo mesmo. Isso seria,

digamos, um laço. O nó de que aqui se fala, é um nó de

múltiplos fios, como um nó rodoviário, com múltiplas

estradas, constituído por múltiplos caminhos que se

encontram. Os nós podem ser vistos como uma confluência.

Por isso, os nós podem ser igualmente figurados como

remoinhos, furacões ou vórtices.

Estes nós são nós de relações. São relações que se

estabilizam num particular. Assim, os nós são entidades

essencialmente relacionais. Fazendo uso de uma latitude

particular da língua portuguesa, poderíamos dizer que um nó

só o é relativamente a um nós. Todo o complexo de nós está

literalmente inter-ligado, sem que contudo signifique que

se trate de um todo indiferenciado. Pois, cada nó é

distinto de todos os demais pelo novelo particular de

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relações que instancia. Em cada nó existe um desenrolar de

si que lhe é próprio, mas que é igualmente consequente do

desenrolar (ou desfiar) do todo relacional de que faz

parte. Cada um de nós vive num enredo que é o seu, numa

primeira instância, e que é parte da bibliografia da vida,

numa segunda.

Deve-se então entender que os nós são os relata das

relações que os constituem. Porém, os relata não antecedem

as relações. Do mesmo modo que não existem nós sem fios,

não existem relata sem relações. Porém, poderão existir

relações puras, sem estarem instanciadas num relata? Sim,

serão as figuras que habitam no Caos de que nos fala

Deleuze. O que é o Caos? Deleuze defino-o como “um vazio

que não é um nada, mas um virtual, que contem todas as

partículas possíveis e adquirindo todas as formas possíveis

que surgem para de imediato desaparecerem, sem consistência

nem referência, sem consequência. É uma velocidade infinita

de nascimento e desvanecimento”309. É o lugar de todas essas

relações que circulam, como puros fluxos, etéreos, fátuos,

inconsistentes. São como uma multiplicidade de matérias

primas aristotélicas. Todas em potência de forma. Uma como

a outra, incognoscível na sua existência enquanto ser do

309 Deleuze, Gilles (1991), Qu’est-ce que la Philosophie? (Trad. port. de Margarida Barahona e António Guerreiro, “O que é a Filosofia?”, Lisboa: editorial presença), p. 105. (1992)

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Caos. Isto é, uma é incognoscível pois é pura relação sem

relata, outra é incognoscível pois é matéria prima sem

forma. O Caos é um virtual, pois está preenchido de

entidades em pura potência de actualização. Assim, os nós,

entendidos como confluências de relações, são constituídos

pelo desfiar da transição virtual-actual. Portanto, neste

caso, os relata, isto é, os nós de relações, são epicentros

de actualizações em processo. Ora, diz-nos Deleuze, “como

Leibniz mostrou, a força é um virtual em curso de se

actualizar”310. Logo, os relata são novelos de relações, são

centros de força, não estáveis, como uma carga eléctrica,

mas meta-estáveis, em flutuações de intensidade. Deste

modo, em cada uma das ligações entre nós tem a sua tensão

oscilatória. Isto é uma vibração. Como as cordas de uma

guitarra, que também são fios em tensão que ligam dois nós.

A sua vibração tem uma intensidade, uma frequência que lhe

é particular naquele estado. O seu estado é definido a

partir da intensidade da relações que lhe estão enredadas.

Deste modo, todas as relações são activas, mas

instáveis. As relações procuram estabelecer-se num nó, num

relatum. Porém, nenhum nó é estático, mas é um

estacionário, um meta-equilibrio. Poder-se-á dizer que os

nós, como os corpos em Leibniz e em Kant, são centros de

310 Deleuze, Gilles (1995), Dialogues (trad. Port. de José Gabriel Cunha, “Diálogos”, Lisboa: relógio d’agua (2004), p. 180.

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força. Porém, são forças variáveis pois existem em

flutuações de intensidade, em contínuas compressões e

distensões. Os nós são uma espécie de sistema de

osciladores que se inter-ligam a outros sistemas de

osciladores. Talvez seja essa a imagem física mais próxima.

Os nós não são substâncias se se entender por

substância o que existe por si, o que não pode ser

decomposto, o que subsiste à mudança, ou o que possui

propriedades. Poder-se-á dizer que são organismos e neste

sentido que são substâncias individuais. Não admirará que

em Bio-matemática, o ADN seja justamente considerado uma

molécula em nó, um Knotene.

Essa multidão de nós construi uma trama, um tecido,

que embora seja uma rede ou uma floresta de rizomas, pela

sua densidade pode ser tomado como um contínuo com

rugosidades. Aquilo a que se pode designar por meio ou

plano. O meio é necessariamente um sistema complexo, pois é

constituído por essa trama múltipla de relações. O caso

mais radical de meio é o próprio Caos, mas não é o único.

No Electromagnetismo esse meio é identificado com o campo

electromagnético. No caso da Mecânica celeste esse meio é

identificado com o espaço-tempo. No caso do domínio

quântico esse meio será o meio sub-quântico. Em todos os

casos repete-se a estrutura, como uma espécie de fractal.

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Os objectos físicos são nós de relações, singularidades num

contínuo. As massas são deformações do espaço-tempo. As

cargas são centros de força do campo electromagnético. Os

objectos quânticos são vórtices do meio sub-quântico. As

massas são nós, constituídos por outros nós (as cargas

eléctricas) e estas são constituídas por outros nós ainda.

Um nó, esquecida a sua estrutura, pode ser visto como um

ponto. Neste caso, um ponto oscilante num meio. Compreende-

se assim que se possa confundir o nó com um ponto material,

que se possa confundir com a partícula pura dos corpos. E

se possam confundir as suas oscilações, num meio, como uma

onda harmónica. Porém, cada nó é, por sua natureza, uma

estrutura ontologicamente autónoma. Portanto, dentro de

cada nó existe um outro mundo de nós. Tal como em Leibniz,

em cada peixe existe um lago cheio de peixes. A progressão

é infinita, mas em sentido horizontal e não em sentido

vertical. Isto é, não que a matéria seja divisível ao

infinito e em que cada parte seja igual ao todo. Pelo

contrário, cada nó é divisível em outros nós de relações.

Porém, o novo plano ontológico estrutura-se de outra forma.

São outras relações. São outros nós. Quer isto dizer que

cada plano é emergente relativamente ao seu antecedente.

Mas o que queremos dizer por emergente?

Encontramos em Paul Humphreys a seguinte definição de

emergência:

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“Emergência é, em sentido lato, a visão que existem coisas

do mundo – objectos, propriedades, leis, talvez outras coisas –

que são manifestadas como resultado da existência de outras

entidades, usualmente mais básicas, mas que, contudo, não podem

ser completamente reduzidas a essas entidades”311

O ponto aqui é a expressão “ser completamente

reduzidas”. A forma tradicional de o pensar é a partir da

relação mereológica do todo e das suas partes. Assim,

afirma-se que existe emergência quando existem entidades

(todos) que não podem ser completamente reduzidas às suas

partes constituintes. Isto é, não resultam da simples

combinação das suas partes. Como, por exemplo, as peças de

lego ou de um puzzle. O que pode ser expresso num aforismo

clássico: “o todo não é igual à soma das suas partes”. O

emergentismo opõe-se, como é claro, ao atomismo. Pois

precisamente neste último, concebe-se que tudo é

constituído por uma combinação de um conjunto de entidades

imutáveis e últimas. E a Física revela-se claramente

atomista quando concebe um corpo apenas como o compósito de 311 “Emergence is, broadly speaking, the view that there are features of the world – objects, properties, laws, perhaps other things – that are manifested as a result of the existence of other, usually more basic, entities but that cannot be completely reduced to those other entities” Paul Humphreys (2006), “Emergence”, in The Encyclopedia of Philosophy (2th Ed) (Donald Borchert (ed.), Nova Iorque: MacMillan, vol. 3, p. 190. (pp. 190-194).

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corpúsculos e uma onda apenas como o sobreposto de ondas.

Como já aqui se mostrou, em limite, este atomismo que se

encontra no tutano da Física, leva-nos às partículas puras

dos corpos e das ondas.

Mas como pode um todo ser diferente da soma das partes

que o compõem? Justamente, porque não existindo tal

elemento atómico, como afirma Gil Santos, “a identidade de

um objecto é a sua organização própria”312. Assim, essa

organização própria que confere identidade a um objecto, ou

nó, como aqui o designámos, possui propriedades distintas

das partes que o compõem e uma autonomia causal que é sua.

Um ser animal não é um mero agregado de órgãos. É autónomo

em relação a estes. Diria Deleuze, “é um corpo sem órgãos”.

Cada objecto é um nó de relações que lhe são únicas.

Poderá o atomista argumentar que essa emergência é

aparente, pois são o resultado das nossas limitadas

capacidades de explicar, calcular, dar conta das múltiplas

relações das partes. Diz-se que um sistema é complexo

precisamente para dizer que existem tantas relações que não

é possível explicar completamente o todo em função das suas

partes, o que não significa que, em limite, o todo seja

ontologicamente autónomo em relação às suas partes. Talvez

312Santos, Gil C. (2010), “Emergência: Da Mereologia à Organização”, in Estudios de Lógica, Lenguaje y Epistemologia (David Duque, Emilio Parejo e Ignácio Antón ed.), Sevilha: Fénix, p.348.

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uma célula seja, em limite, totalmente explicável a partir

das suas moléculas. Neste caso, onde a emergência é fruto

de uma incapacidade de conhecer todas as relações que

formam a entidade emergente, tratar-se-á de uma emergência

epistémica.

Contudo, o caso será diferente se nesse todo que

emerge existe uma alteração da natureza das partes. Ou

seja, a transição de entre planos de relações ou o que

designámos por meio é realizada por uma transformação das

relações que caracterizam um relatum. Neste caso, dir-se-á

que existe uma emergência ontológica. Como são exemplos, na

Física, os quarks para os protões; os protões para as bolas

de bilhar; das bolas de bilhar para alguns objectos

celestes. Em cada meio instanciam-se nós de relações

distintos. Mas em cada caso é um plenum de inter-ligações

entre relata em agitação, mas meta-estáveis.

Poderíamos seguir por um desses fios que fazem a ponte

entre dois nós, num caminho aparentemente linear. Isto é,

isolando uma relação particular entre dois relata. A

distância, a velocidade, o peso, a extensão, etc. E essa

relação, tomada como isolada de todas as outras, poderia

ser considerada como linear. Isto é, onde a relação manter-

se-ia sob o regime de uma constante de proporcionalidade.

Essa tem sido a estratégia da Física. Como afirma Deleuze,

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a Ciência opera por funções apenas com a finalidade de

isolar variáveis e de abrandar o Caos313. Porém, esse

abrandamento, que é necessário à Física, se encerra em

arquétipos como os sistemas isolados, o absolutamente

sólido, o infinitamente extenso, o ponto material, a onda

harmónica, na separabilidade completa entre sujeito e

mundo, fecha-se em excesso ao mundo. Protege-se do Caos –

afirma Deleuze - prendendo-se a opiniões fixas314. Porém, na

riqueza da realidade, por um lado, a cada chegada a um nó

existem mil caminhos que se abrem, como jardim que se

bifurca de que nos fala Borges. Não existe um nó de um só

fio, um relatum de uma só relação. Cada relatum reenvia,

num primeiro plano, para o meio onde habita. Num segundo

nível, para o mundo. Os nós são mais intensos, do que

extensos. São centros de força que estabilizam a cada

momento um conjunto de relações. Neste sentido, os nós são

atractores, são as chamadas singularidades dos sistemas

dinâmicos. É precisamente assim, concebendo os relata como

centros de intensidade, como singularidades, que Delanda

desenvolve a sua ontologia em “Intensive Science and

Virtual Philosophy”315. Os graus de liberdade de uma

singularidade de que fala Delanda, são precisamente os fios

313 Conferir Deleuze, Gilles (1991), Qu’est-ce que la Philosophie? (Trad. port. de Margarida Barahona e António Guerreiro, “O que é a Filosofia?”, Lisboa: editorial presença), p. 106. (1992) 314 Idem, p.176. 315 Conferir DeLanda, Manuel (2002), Intensive Science and Virtual Philosophy, Londres: Continuum.

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que se enredam num nó. Ou seja, todos os processos são, em

última análise, não-lineares. Isto é, entre dois elementos,

as variáveis não variam proporcionalmente. Seja porque o

sistema nunca pode ser considerado como isolado, ou seja,

cada relatum reenvia para outros relata e, como tal, a

relação nunca é a dois. Esta é forma típica das equações

diferenciais não-lineares, onde é introduzido um parâmetro

de “ambiente”. Contudo, neste caso, o não-linear pode ainda

ser revertido num sistema linear de múltiplas variáveis, de

infinitos elementos. Ou seja, a equação não-linear pode ser

linearizável. Contudo, no caso onde a razão da

desproporcionalidade reside não só na inter-ligação entre

relata, mas no facto destes serem centros de força de

intensidade variável, ou seja, no facto destes serem

entidades em processo, então essa linearização já não seria

possível316.

Por fim, segundo Deleuze, uma mónada é uma célula.

Poderíamos afirmar que um neurónio é um nó de terminações

nervosas. Neste sentido, o cérebro é um fractal do mundo.

316 Araújo, João (2010), “Investigating the infinity slope in a nonlinear

Approach” in A new vision on Physis, Lisboa: CFCUL, p.217.

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5. Conclusão

A questão da natureza dos objectos quânticos, como

aqui se tentou mostrar, resulta do choque entre um certo

conceito de objecto físico, que está na constituição intima

da Física, e o domínio quântico. O choque tornou-se em

enigma com a formulação do dualismo onda-corpúsculo por

parte de De Broglie. E o enigma tornou-se em confronto

entre essa ontologia implícita herdada de Newton e os

indomáveis objectos quânticos. Bohr fez-se comandante dessa

geração de descobridores do quântico e liderou o processo

de resposta. Neste sentido, analisar o pensamento de Bohr é

ter acesso ao sinuoso mas hábil movimento que permitiu

generalizar as teorias físicas clássicas de modo a

integrar, de forma contida, a estranheza quântica, sem

comprometer o conceito clássico de objecto físico. A

Mecânica Quântica constitui-se nas margens, construi-se nos

limites ontológicos das teorias clássicas da Física. Ela é

uma pura teoria das probabilidades. Na crença da

impossibilidade de se conceber os objectos físicos senão

como ou ondas, ou corpos, a Mecânica Quântica estabelece-se

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apenas como teoria que prevê, estatisticamente, os

resultados de medidas. Ou seja, a Mecânica Quântica coloca-

se apenas do lado do sujeito. Aliás, radicaliza a oposição

sujeito-objecto, deixando a quase nada o estatuto dos

objectos físicos. Bohr chega mesmo a afirmar, numa frase

que é conhecida: “não existe um mundo quântico. Existe

apenas uma descrição física abstracta”317. A leitura desta

frase pode levar pensar que Bohr não atribui realidade ao

mundo quântico. Tal, como se mostrou, não é verdade. Bohr

era um realista. Contudo, Bohr sobre o mundo quântico, faz

as vezes de Colombo sobre o mundo das Américas. Descobridor

de um novo mundo, embora nunca tenha chegado mais longe do

que às primeiras ilhas, recusa obstinadamente que esse

mundo é novo, embora também não parece ser velho.

Como a Mecânica Quântica se coloca do lado do sujeito,

ela ocupa-se apenas do resultado das medições. Por

conseguinte, concede apenas aos objectos quânticos

existência material enquanto corpúsculos e apenas no

momento em que produzem manchas numa chapa fotográfica ou

que causam sinais num detector. Como se fossem simples

aparições desse sub-mundo que é forçado a dar uma resposta

à questão da posição. E é porque todas as medições são,

317 “there is no quantum world. There is only abstract quantum physical description” Bohr, Niels citado de Al-Khalili, Jim (2003), Quantum: A guide for the perplexed, Londres: Weidenfeld & Nicolson, p.153.

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directamente, de localização, que esse sub-mundo só se pode

revelar sob a forma dos corpos.

Ao colocar-se do lado do sujeito, o movimento dos

objectos quânticos é absolutamente omitido. Por isso a

teoria quântica ortodoxa não atribui, aos objectos,

trajectória ou meio de propagação. As ondas são apenas

ondas de probabilidade. Curvas de probabilidade, se se

quiser. Deste modo, a Mecânica Quântica escapa à questão

da natureza dos objectos quânticos. Contudo, como aqui

também se pretendeu mostrar, a questão regressa sob a forma

do Problema da Medição, do Problema da Violação das

Relações de Bell, do Problema do Realismo, do conjunto de

problemas que muitas vezes são categorizados simplesmente

de implicações filosóficas da Mecânica Quântica. Mas, na

realidade, a meu ver, são apenas implicações de uma teoria

física sem ontologia.

Portanto, o problema que a descoberta que o domínio

quântico levantou (ou fez regressar) é o do conceito de

objecto físico. Mas uma análise a este conceito revela que

já no século XVII, no momento do nascimento da Física se

encontra, de certo modo, o problema que a descoberta do

domínio quântico veio agudizar. Isto é, que os objectos

físicos são concebidos a partir fixo, do movimento enquanto

apenas possível, isto é, como corpos. Ou seja, em grande

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parte dos conceitos de objecto físico, não decorre do

conceito que estes se movam. No entanto, a Física – a

mecânica, em particular – é uma ciência do movimento.

Assim, de certo modo, sempre houve na Física uma tensão

entre movimento e o conceito de objecto físico. Que no

domínio quântico se reproduz na tensão entre a onda e o

corpo.

Quer isto dizer que a procura de um conceito de

objecto físico que chegue ao domínio quântico passa por uma

concepção eminentemente dinamista dos objectos físicos. E

essa será, por ventura, a conclusão principal desta tese.

Encontramos essa concepção dinamista, já em Aristóteles,

mas igualmente em Leibniz. Mas em Leibniz encontramos

também uma particular concepção de Ciência, uma particular

relação entre sujeito e objecto, uma particular ontologia

bem distinta do que ontologia pobre que prevalece na Física

e que foi extraída, por Newton, do senso comum. Aqui, na

Metafísica da Física, como em outras áreas, sempre existiu

a proposta de Leibniz, mas esta não é a prevalecente.

Talvez pelo seu peso metafísico. Talvez pela dificuldade de

se percorrer os labirintos do pensamento de Leibniz. Onde

os projectos, aparentemente isolados, se enredam e

comunicam. Talvez, no caso concreto da Física, pela sua

dependência a uma teoria das almas. O que, por um lado,

leva a que o conceito de objecto físico não se construa a

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partir da nossa experiência comum do mundo, mas de uma

especulação metafísica que explique essa experiência comum

do mundo. Por outro, pela enigmática representação nas

almas dos acontecimentos que os corpo instanciam.

Seja como for, a meu ver, a descoberta do domínio

quântico, a questão da natureza dos objectos quânticos,

leva a uma concepção dinamista e relacional de objecto

físico. Uma concepção em que o movimento decorra do próprio

conceito de objecto físico. E, portanto, em que o movimento

seja da ordem da relação dos objectos físicos com o que lhe

é exterior.

A partir de uma leitura de Deleuze enquanto leitor de

Leibniz, tentou-se, especulativamente, lançar pistas para

uma concepção dos objectos como entidades mais da

intensidade do que da extensibilidade. Como entidades

processuais e não como entidades fixas, imutáveis. Como

entidades essencialmente relacionais e nunca isoladas ou

atómicas. E, neste sentido, de uma concepção dos objectos

físicos que incorpore os fenómenos de emergência e não-

linearidade ontológicas.

No fundo, a descoberta do domínio quântico lançou o

desafio de se repensar os fundamentos ontológicos da

própria Física. Encontramos uma via para o fazer em Leibniz

e nas diferentes leituras de Leibniz ou, de certo modo, nas

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330

leituras afins com Leibniz. Encontramos na teoria De

Broglie-Croca318 (e é isso, justamente, que a diferencia de

todas as outras teorias quânticas) uma tentativa de

constituir uma Física fundada numa concepção dinamista e

relacional dos objectos físicos. É um desafio gigante, mas,

a meu ver, inevitável.

318 Conferir Croca, J.R. (2003), Towards a nonlinear Quantum Physics, Londres: World Scientific.

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