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ISSN: 1517-5081 Cadernos de Ciências Humanas - Especiaria. v. 9, n.16, jul./dez., 2006, p. 241-522.

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ISSN: 1517-5081

Cadernos de Ciências Humanas - Especiaria. v. 9, n.16, jul./dez., 2006, p. 241-522.

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Direitos desta edição reservados àEDITUS - Editora da UESC

Universidade Estadual de Santa CruzRodovia Ilhéus-Itabuna, km 16 - 45662-000 - Ilhéus, Bahia, Brasil

Tel.: (73) 3680-5028 - Fax: (73) 3689-1126www.uesc.br/editora

Governo do Estado da BahiaJaques Wagner - Governador

Secretaria de EducaçãoAdeum Hilário Sauer - Secretário

Universidade Estadual de Santa CruzJoaquim Bastos - Reitor

Lourice Lessa - Vice-Reitora

Editus - Editora da UESCMaria Luiza Nora - Diretora

Projeto Gráfico e CapaAdriano Lemos

Imagem da CapaThe Astronomer, 1668 (50x45cm)

Óleo sobre tela de Johannes Vermeer

EQUIPE EDITUS

DIRETOR DE POLÍTICA EDITORAL: Jorge Moreno; REVISÃO: Maria Luiza Nora eAline Nascimento; COORDENADOR DE DIAGRAMAÇÃO: Adriano Lemos;

DESIGN GRÁFICO: Alencar Júnior.

Indexador: Sumários de Revistas Brasileiras

Cadernos de Ciências Humanas - Especiaria / UniversidadeEstadual de Santa Cruz. - V.9, n.16 (jul/dez. 2006). -Ilhéus : Editus, 2006.n. p.

Semestral

ISSN 15175081

1.Ciências sociais - Periódicos. I. Universidade Estadual de Santa Cruz.

CDD - 301

C122

Ficha catalográfica : Elisabete Passos dos Santos CRB5/533

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Comitê Científico

Ana Claudia Cruz da SilvaFlavio Gonçalves dos Santos

Jorge MorenoLaila Brichta

Maria Elizabete Souza CoutoMarisa Carneiro de O. F. Donatelli

Mônica de Moura Pires

Paulo Tadeu da Silva

Sócrates Moquete

Conselho Editorial

Adriana Rossi (Universidade Nacional de Rosário)

Ana Clara Torres Ribeiro (IPPUR/UFRJ)

Andre Moises Gaio (UFJF)

Antonio Carvalho Campos (UFV)

Carlos Alberto de Oliveira (UESC)

Edivaldo Boaventura (UFBA)

Edmilson Menezes (UFS)

Eduardo Paes Machado (ISC/UFBA)

Elaine Behring (UERJ)

Fernando Ribeiro de Moraes Barros (UESC)

Gentil Corazza (UFRGS)

Gey Espinheira (UFBA)

Jeferson Bacelar (UFBA)

João Reis (UFBA)

José Carlos Rodrigues (PUC-RJ)

José Vicente Tavares (UFRGS)

Marc Dufumier (Institut National Agronomique

de Paris - GRIGNON - INA - PG)

Marcio Goldman (Museu Nacional/UFRJ)

Marcos Bretas (UFRJ)

Michel Misse (IFCS/UFRJ)

Mione Salles (UERJ)

Moema Maria Badaró Cartibani Midlej (UESC)

Pablo Rubén Mariconda (USP)

Paulo Cesar Pontes Fraga (UESC)

Pedro Cezar Dutra Fonseca (UFRGS)

Raimunda Silva D'Alencar (UESC)

Roberto Guedes (UFRRJ)

Roberto Romano da Silva (UNICAMP)

Sergio Adorno (USP)

Susana de Mattos Viegas (Universidade de LISBOA)

EditorPaulo Cesar Pontes Fraga

Secretário Executivo da RevistaGenebaldo Pinto Ribeiro

BolsistaCassandra Caneiro

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Objetivo e política editorial

A revista Especiaria – Cadernos de Ciências Humanas está vol-tada para as grandes áreas de ciências humanas e sociais aplicadas,com periodicidade semestral. A revista é composta de quatro se-ções, a saber: artigos sobre o tema proposto para o dossiê; artigos;resenhas; e traduções. Poderão ser publicados artigos de colabora-dores nacionais e internacionais.

O envio espontâneo de qualquer colaboração implica automa-ticamente a cessão integral dos direitos autorais aos Cadernos deCiências Humanas. A revista não se obriga a devolver os originaisdas colaborações enviadas, mesmo quando não aprovada pelo cor-po de pareceristas.

Cada autor receberá três exemplares da Revista pela cessão dosdireitos autorais.

A identificação do(s) autor(es) deverá ser feita em separado,com: nome do autor, titulação, endereço, telefone e e-mail e/ou faxdos autores, para encaminhamento de correspondência.

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Editorial

Este número dá seqüência à nova fase da revista Especiaria -Cadernos de Ciências Humanas, periódico semestral voltado paraas Ciências Humanas, que encampa a proposta de destacar, em cadanúmero, uma temática específica.

Nessa nova proposta, coube-nos a gratificante tarefa de orga-nizar um número dedicado à Filosofia, de forma a compor um dossiêcentrado em História e Filosofia da Ciência, formado por dez arti-gos, uma seção que contempla outras áreas da Filosofia, compostapor três artigos, uma outra voltada para a tradução e, por fim, umaresenha.

O dossiê é composto, em sua maior parte, por trabalhos queforam apresentados no II Seminário de História e Filosofia da Ci-ência e no IV Encontro da Rede Paranaense de Pesquisa em Histó-ria e Filosofia da Ciência, realizados em abril de 2006, na Universi-dade Estadual de Santa Cruz. Esses dois eventos possibilitaram aaglutinação das pesquisas desenvolvidas nos estados de São Pau-lo, Paraná e Bahia, de forma a consolidar a cooperação em pesqui-sa iniciada em encontros anteriores, tais como o Seminário de His-tória e Filosofia da Ciência (2004) e III Encontro Paranaense de Pes-quisa em História e Filosofia da Ciência (2005).

O artigo Relações entre fato e valor, de Hugh Lacey, discute aimbricação entre fato e valor, inserindo-se nos debates atuais sobreas relações entre ética e pesquisa científica. O artigo de Pablo RubénMariconda, Galileu e a ciência moderna, apresenta uma análise doalcance científico da obra de Galileu Galilei, mostrando em que me-dida o autor deve ser tomado como o fundador da física clássica edo método experimental. Os dois artigos seguintes apresentam umestudo sobre a obra de Galileu. O artigo de Júlio Vasconcelos, Aquinta jornada do Discorsi de Galileu: nova base para a teoria das pro-porções, constitui um estudo sobre uma alternativa de sistematiza-

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ção axiomática, proposta por Galileu e seu discípulo Torricelli, dateoria das proporções dos livros V e VI dos Elementos de Euclides.O artigo Galileu e as cartas sobre as manchas solares: a experiência teles-cópica contra a inalterabilidade celeste, de Marcelo Moschetti, tem emvista a discussão de um aspecto de grande importância na ciênciagalileana: a utilização das observações telescópicas como instru-mento para a derrubada da tese aristotélica sobre a inalterabilidadedo mundo supra-lunar. O artigo A mecânica do olho: algumas conside-rações sobre L’Optique et la catoptrique de Mersenne, de Paulo Ta-deu da Silva, apresenta um estudo inicial sobre uma das últimasobras de Marin Mersenne, particularmente dedicada aos seus estu-dos ópticos. Eduardo Salles de Oliveira Barra discute, em seu arti-go Newton conta os infinitesimais: a metafísica e o método das fluxões, asmotivações metafísicas no método de fluxões de Newton. O artigoO infinito na filosofia leibniziana, de Patrícia Coradim Sita, desenvol-ve uma discussão referente ao vínculo possível entre os conceitosde contínuo e de infinito e a fundamentação metafísica leibiniziana.Modelos causais em história da ciência, de Osvaldo Pessoa Jr., consti-tui um estudo sobre as histórias contrafactuais e os resultados quepoderiam ser obtidos por meio da aplicação de um “modelo cau-sal” probabilista à História da Ciência. O artigo de Aurino RibeiroFilho e Dionicarlos Soares de Vasconcelos, intitulado Aspectos mate-máticos em sistemas não lineares na mecânica quântica e na mecânicaclássica modernas, apresenta uma discussão em torno damatematização que envolve alguns sistemas não lineares nas Me-cânicas Quântica e Clássica. Encerrando o dossiê temático, temos oartigo de Marcos Rodrigues da Silva, Realismo e anti-realismo na cons-trução do modelo da dupla-hélice, texto no qual o autor apresenta umaanálise do realismo e do anti-realismo, tendo em vista um estudode caso, a saber: a construção do modelo da dupla-hélice.

A segunda seção do presente número apresenta textos que de-senvolvem questões concernentes à estética: dois estudos sobre Kante um sobre o conceito de trágico. Fernando R. de Moraes Barros

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apresenta, em A filosofia de Kant enquanto propedêutica a toda teoriaestético-musical futura, um estudo sobre as relações entre a filosofiade Kant e a estética musical. O artigo de Marcos Alberto de Olivei-ra, O problema da possibilidade dos juízos reflexionantes estéticos no qua-dro da filosofia kantiana da Razão Pura, oferece uma análise do pro-blema da possibilidade dos juízos de gosto no contexto da filosofiada razão pura. Por fim, o artigo de Roberto Sávio Rosa, Imprecaçõescotidianas: sobre a neurastenia do trágico, investiga o possível cruza-mento de interrogações em torno do trágico na era da comunica-ção de massa.

Retomando a temática do dossiê, a terceira seção apresenta atradução de Marisa Carneiro de Oliveira Franco Donatelli de umcapítulo do texto Os sete livros da fisiologia, do médico francêsdo século XVI, Jean-François Fernel, cuja obra teve grande impor-tância no desenvolvimento do pensamento médico na época mo-derna.

Para finalizar este número, a seção voltada para a resenha tam-bém contempla a área de Filosofia da Ciência, com um texto deMaurício de Carvalho Ramos, intitulado Filosofia, ciência e transgenia,sobre o livro A controvérsia sobre os transgênicos: questões éti-cas e científicas, de Hugh Lacey, concernente à discussão sobreciência e valor acerca do uso dos transgênicos.

Marisa Carneiro de Oliveira Franco DonatelliPaulo Tadeu da Silva

Organizadores deste número

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Sumário

Dossiê: HISTÓRIA E FISOLOFIA DA CIÊNCIA

Relações entre fato e valorHugh Lacey .....................................................................251

Galileu e a ciência modernaPablo Rubén Mariconda ...................................................267

A quinta jornada dos Discorsi de Galileo: nova basepara a Teoria das ProporçõesJúlio Vasconcelos ...........................................................293

Galileu e as cartas sobre as manchas solares:a experiênciatelescópica contra a inalterabilidade celesteMarcelo Moschetti ...........................................................313

A mecânica do olho: algumas considerações sobre L’Optiqueet la catoptrique de MersennePaulo Tadeu da Silva .......................................................341

Newton contra os infinitesimais: a metafísica e o métododas fluxõesEduardo Salles de Oliveira Barra .....................................355

O infinito na filosofia leibnizianaPatricia Coradim Sita ......................................................371

Modelos causais em história da ciênciaOsvaldo Pessoa Jr. ..........................................................383

Aspectos matemáticos em sistemas não lineares na mecânicaquântica e mecânica clássica modernasAurino Ribeiro Filho e Dionicarlos S. de Vasconcelos .......397

Realismo e anti-realismo na construção do modelo dadupla-hélice (parte II)Marcos Rodrigues da Silva ..............................................411

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ARTIGOS

A filosofia de Kant enquanto propedêutica a todateoria estético-musical futuraFernando R. de Moraes Barros ........................................431

O problema da possibilidade dos juízos reflexionantes estéticos noquadro da filosofia kantiana da razão puraMarcos Alberto de Oliveira ..............................................441

Imprecações cotidianas: sobre a neurastenia do trágico

Roberto Sávio Rosa .........................................................467

TRADUÇÃO

A importância de Fernel na medicina desenvolvida naprimeira metade do século XVIIMarisa C. de O. F. Donatelli .............................................490

Os sete livros da fisiologiaJean Fernel .....................................................................499

RESENHA

Filosofia, ciências e transgeniaMaurício de Carvalho Ramos ...........................................511

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Relações entre fato e valor

Hugh Lacey

PhD em História e Filosofia da Ciência pela Universidade deIndiana (USA), Professor Titular do Departamento de Filosofia

do Swarthmore College. E-mail: [email protected]

1

Resumo. A idéia de que existe umadicotomia entre fato e valor tem va-rias fontes – metafísicas,epistemológicas e lógicas – que sãointroduzidas sistematicamente. Estaidéia é criticada, principalmente, apartir dos argumentos de HilaryPutnam que defende, em vez de umadicotomia, a existência de umaimbricação de fatos e valores. Nesteartigo são apresentados cinco aspec-tos desta imbricação e introduzidosargumentos em favor deles.

Palavras-chave: Estratégias materi-alistas – valores cognitivos – termoséticos estritos – ciência livre de valo-res – neutralidade.

Abstract. The idea that there exists adichotomy between fact and valuehas several sources – metaphysical,epistemological and logical – whichare introduced systematically. Then,this idea is criticized principallydrawing upon arguments of HilaryPutnam that maintain that, ratherthan a dichotomy, there exists anentanglement of facts and values.Five aspects of the entanglement arepresented, and arguments for themintroduced.

Keywords: Materialist strategies -cognitive values - thick ethical terms- value free science - neutrality.

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LACEY, Hugh

Cadernos de Ciências Humanas - Especiaria.v. 9, n.16, jul./dez.,2006, p. 251-266.

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A idéia de que entre fato e valor existe não só uma distinção, mastambém uma separação profunda, um abismo insuperável, ou umadicotomia, originou-se no século XVII, especialmente nos escritos deGalileu, Bacon e Descartes (MARICONDA, 2006; MARICONDA;LACEY, 2001). Fez parte essencial das suas interpretações filosóficasda natureza e estatuto epistêmico da metodologia e teoria científica,que – durante séculos – desenvolveram-se na idéia ou no ideal, sus-tentado amplamente pela tradição da ciência moderna, segundo aqual a ciência é livre de valores1 (LACEY, 1998; 2006a; no prelo-2).Ainda hoje, freqüentemente, afirma-se que esta dicotomia é necessá-ria para defender o ideal da ciência livre de valores, incluindo o seucomponente mais fundamental, imparcialidade, de acordo com a quala aceitabilidade de uma teoria científica (ou a avaliação dela comoportadora de conhecimento bem confirmado) é baseada unicamenteem dados empíricos e critérios cognitivos apropriados – de modoque os valores éticos e sociais não desempenham nenhum papel le-gítimo na avaliação da aceitabilidade.

1

A idéia da dicotomia tem várias fontes – metafísicas,epistemológicas e lógicas – que introduzirei sistematicamente.2

A metafísica materialista constitui uma fonte. De acordo com ela,os fatos correspondem ao ‘mundo tal qual realmente é’, i.e., à tota-lidade das estruturas (e os seus componentes) subjacentes aos fe-nômenos e estados de coisas do mundo, aos seus processos e assuas interações, geralmente não-observáveis, e às leis (tipicamenteformuladas matematicamente) que as governam. Nesse âmbito, ospoderes gerativos das estruturas, processos, interações e leis sãosuficientes para explicar todos os fenômenos e estados de coisasnuma maneira que os dissociam de qualquer lugar que eles têm emrelação à experiência humana, à organização social e ecológica, e avalores éticos e sociais.

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Relações entre fato e valor

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Nesta visão, os fatos são os fatos brutos [bare facts], os fatos des-providos de vinculação, não só de valores e fins, mas também dequalidades sensoriais, e mesmo de observadores e conhecedoreshumanos. Desde que, no auto-entendimento da tradição da ciênciamoderna, a ciência investiga apenas os fatos do mundo, segue-seque as suas teorias devem conter hipóteses sobre quais são os fatosbrutos, e nada mais. Então, as teorias devem se restringir a repre-sentar fenômenos em termos da sua geração (ou possibilidade degeração), da sua estrutura, processo, interação e lei natural,dissociada dos contextos ecológico, humano e social – i.e., as teori-as científicas devem ser formuladas utilizando categorias disponí-veis dentro das estratégias materialistas (LACEY, 1998; 2006a: Intro-dução; a sair-2: cap.1). Os fatos brutos, uma vez conhecidos, seriamformulados em teorias confirmadas no curso de pesquisa empre-endida sob estratégias materialistas, e, em princípio, o mundo (talqual realmente é) seria completamente descritível com as categori-as empregadas por estas estratégias, ou por aquelas já disponíveisou aquelas que seriam desenvolvidas no futuro. Portanto, as cate-gorias, utilizadas para enunciar os fatos brutos e disponíveis sobestratégias materialistas, não têm implicações ou conotaçõesvalorativas; por exemplo, elas são tipicamente quantitativas, do tipousado caracteristicamente em teorias físicas, tais como: força, mas-sa, velocidade etc. Assim, por exemplo, a partir da lei da gravitaçãode Newton, não se segue nenhum juízo de valor; e não faz nenhumsentido perguntar se a lei é boa ou má, ou se devemos agir de acor-do com ela. A lei de Newton – se realmente enunciar um fato –enuncia um fato bruto; fiel ao modo como os objetos do mundorealmente são, não há nenhum juízo de valor entre as suas pressu-posições ou implicações.3

É dito que os fatos brutos, quer conhecidos quer não, são obje-tivos; eles correspondem ao mundo tal qual realmente é. Por outrolado, os metafísicos materialistas e seus aliados empiristas argu-mentam, freqüentemente, que juízos de valor não têm ‘valor de

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verdade’; de modo diferente dos enunciados, eles não são nem ver-dadeiros nem falsos, ou (segundo o empirismo lógico) carecem de‘significado cognitivo’. Em vez disso, eles necessariamente refle-tem perspectivas pessoais e funcionam como expressões de prefe-rências subjetivas, ou desejos ou utilidades subjetivas, talvez combase nas emoções. Desta maneira, a dicotomia entre fato e valorfica reforçada pela dicotomia entre objetivo e subjetivo. A ciênciainteressa-se por fatos; ela é objetiva. A ética, e outras dimensões devalor, interessa-se por preferências; ela é subjetiva. A eficácia deobjetos tecnológicos, baseada em teorias científicas bem confirma-das, situa-se ao lado dos fatos. A legitimidade das suasimplementações práticas, porém, depende de juízos éticos que nãopoderiam ser derivados logicamente dos fatos brutos que expli-cam a eficácia da tecnologia e as possibilidades materiais que ostornam disponíveis.

A segunda fonte das dicotomias entre fato e valor, e entre obje-tivo e subjetivo, é epistemológica. A epistemologia empirista identifi-ca os fatos – fatos confirmados – com o que é bem suportado pordados empíricos (os fatos observados); portanto, muitos fatos confir-mados são enunciados em teorias científicas bem confirmadas4 . Paraesta posição filosófica, fatos confirmados são baseados, não na cor-respondência com estados de coisas do mundo, mas na inter-sub-jetividade, i.e., em replicabilidade e consenso, que atravessam pers-pectivas valorativas e normas culturais. Objetividade fica re-inter-pretada como inter-subjetividade; mas juízos de valor não são consi-derados inter-subjetivos. Na prática, dentro das tradições científica eempirista, as duas noções de fato tendem a fundir-se e, em ambas asfontes, juízos de valor são considerados subjetivos, em contraste comos resultados científicos que são considerados objetivos.

Finalmente, a lógica fornece uma terceira fonte da dicotomiaentre fato e valor. Para muitos filósofos, esta é a fonte principal e,na tradição da filosofia analítica, certamente a mais discutida. Édito que Hume demonstrou que existe um abismo lógico insuperá-

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vel entre fato e valor, porque enunciados factuais (aqueles que enun-ciam fatos) não têm implicações dedutivas a respeito de juízos devalor; ou, na formulação mais conhecida, ‘dever’ não é dedutiva-mente implicado por ‘ser’, ou ‘é bom’ por ‘é’. A marca de um fato,no argumento humeano, é lingüístico: o papel do ‘é’ e de verbosgramaticamente relacionados, e a ausência de termos tais como‘bom’ e ‘dever’.

Menos discutida é a tese complementar de Bacon sobre ainvalidade de inferir ‘é’ de ‘dever ser’ ou ‘seria bom se fosse’, ou deque serviriam os seus próprios interesses. Por exemplo, poderiaservir ao interesse de legitimar a implementação de uma novatecnologia, que ela não dá origem a riscos sérios para a saúde hu-mana; mas este interesse não tem nenhuma relevância para deter-minar quais sejam os fatos a respeito dos riscos.5

2

Muitas críticas têm sido feitas à idéia de que existe umadicotomia entre fato e valor, por exemplo, das perspectivas dopragmatismo e da teoria crítica. Em vez de uma dicotomia, opragmatista Hilary Putnam argumenta que existe uma imbricação[‘entanglement’] (PUTNAM, 2002).6 Concordo! Passo, agora, a dis-cutir alguns aspectos da imbricação entre fato e valor.7

1. Fatos confirmados: parcialmente constituídos por juízosde valor cognitivo

Muitos fatos significantes são articulados e confirmados emteorias científicas, p. ex., fatos acerca das estruturas moleculares deácidos. Quer uma teoria seja bem confirmada, quer não – e, portan-to, quer as propostas articuladas nela representem fatos confirma-dos, quer não – depende da satisfação de critérios, exigindo-se quecertas relações sustentem-se entre a teoria e os fatos observados

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relevantes e disponíveis. Entre filósofos da ciência, permanece con-testado, exatamente, quais são estas relações; e isto se reflete nascontrovérsias acerca da indução e de inferências feitas à luz da su-posta estrutura hipotético-dedutiva das teorias científicas.

Sem dúvida, todavia, as teorias não são conseqüências deduti-vas dos fatos observados; i.e., não podemos ‘provar’ as propostasteóricas por meio da dedução de enunciados dos fatos observados.Os critérios que precisam ser satisfeitos são aqueles necessários paraavaliar o conhecimento e entendimento científico proposto em teo-rias. À luz da tarefa de avaliar o conteúdo cognitivo (conhecimentoe entendimento) das teorias, i.e., o seu valor cognitivo, estes critéri-os têm sido chamados, por muitos filósofos da ciência, de valorescognitivos.8 A listagem deles, embora sujeita à controvérsia, incluiadequação empírica, poder explicativo e consistência. Valorescognitivos, embora distintos dos outros tipos de valores – de acor-do com meus argumentos (LACEY, 2003; 2006b), mas contra aque-les de outros filósofos (p. ex., LONGINO, 1990) –, são uma espéciede valores em geral com as mesmas características formais de valo-res éticos e sociais (LACEY, 1999: caps. 2–3; 2003).

Juízos de valor cognitivo voltam-se para a adequação da mani-festação dos valores cognitivos numa teoria à luz dos fatos obser-vados disponíveis. Aceitar, corretamente, que uma proposta (arti-culada numa teoria) enuncia um fato confirmado é equivalente asustentar o juízo de valor cognitivo, que os valores cognitivos sãomanifestados na teoria em grau suficientemente alto e que não pre-cisamos empreender mais pesquisa com o fim de testar, mais rigo-rosamente, a proposta. Longe de ser um abismo insuperável entrefato e valor, fatos confirmados são constituídos, parcialmente, porjuízos de valor cognitivo. Por causa disso, o contraste, ‘fato–objeti-vo / valor–subjetivo’ está posto em dúvida: se os fatos confirma-dos forem objetivos, será difícil negar que (alguns) juízos de valorcognitivo também são objetivos.

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2. Fatos: pressuposições e suporte racional para valores

O argumento de Hume, por si mesmo, não mostra que enunci-ados factuais não poderiam fornecer suporte racional para juízosde valor. Caso contrário, proibiria que fatos observados pudessemfornecer suporte de evidência para fatos confirmados quando umateoria está aceita. Isso porque, como disse acima, a aceitação deuma teoria não é baseada em sua dedução de fatos observados. Mesmoassim, a sua aceitabilidade envolve inferências baseadas em fatosobservados; relações dedutivas não são especialmente importantespara analisar os modos como fatos observados podem fornecersuporte de evidência (racional) para fatos confirmados (expressa-dos numa teoria). Por que, então, insistir que, na ausência de rela-ções dedutivas, fatos não possam fornecer suporte racional parajuízos de valor?

Considere o enunciado: ‘A legislação recentemente decretadaé a causa principal do aumento atual de fome e mortalidade infan-til.’ Isso é um enunciado factual, porque tem as marcas lingüísticasrelevantes e porque, a partir de investigação empírica, poderia serconfirmado (i.e., poderia tornar-se um fato confirmado) ou não confir-mado. Ao mesmo tempo, se esse enunciado for confirmado, supor-taria o juízo de valor ético de que a legislação deve ser mudada.Isso porque, ceteris paribus (i.e., ao menos que existiam outros fato-res que devam ser levados em consideração), se for aceito que oenunciado sobre as causas da fome enuncia um fato confirmado,não faria nenhum sentido negar que a legislação deve ser mudada.Evidentemente, o movimento de inferência do fato confirmado,ceteris paribus, ao juízo de valor não é uma implicação dedutiva; àsvezes é chamado uma implicatura [implicature]. É difícil negar a va-lidade de implicaturas deste tipo.9 A existência delas não refuta oargumento de Hume, mas questiona a importância dele.

Ligado a isso, reciprocamente, o valor ético da legislação pres-supõe que a implementação dela não gera, causalmente, conseqü-

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ências eticamente não-desejáveis tais como o aumento de fome; ojuízo de valor ético pressupõe um enunciado factual, i.e., um enun-ciado que poderia ser confirmado ou não confirmadoempiricamente.10

3. Algumas sentenças funcionam tanto para produzir enun-ciados factuais quanto juízos de valor

O argumento da seção anterior ilustra, também, que não háuma separação nítida entre os predicados usados em enunciadosfactuais e juízos de valor. Quando afirmamos que a legislação cau-sa fome, poderíamos estar usando a sentença para enunciar umfato ou, alternativamente, para fazer um juízo de valor, i.e., desa-provação da legislação. A forma lógica e lingüística da sentençapermite o seu uso em um ou outro dos papéis, exemplificando, dessemodo, que os predicados usados nos discursos factuais e éticos sesobrepõem. Aqueles predicados que podem ser usados simultane-amente para servir a ambos os fins - factuais (descritivos) evalorativos, têm sido chamados termos éticos estritos [thick ethicalterms], termos tais como ‘honestidade’, injusto’ – e também ‘fome’e ‘mortalidade infantil’ – em contraste aos termos éticos tênues [thinethical terms], tais como ‘bom’ e ‘dever’.11

A afirmação de que a legislação causa fome envolve, simul-taneamente, descrição e (ceteris paribus) crítica ética. O uso de ter-mos éticos estritos, no discurso factual, não cria um obstáculo paraobter resultados que sejam bem confirmados à luz dos valorescognitivos e os dados empíricos disponíveis – e quando tais resul-tados ficam bem confirmados, a avaliação ética fica mais forte. Te-orias que contêm tais resultados não são neutras: eles fornecemsuporte para avaliações éticas particulares.12 Certo, os valores éti-cos dos pesquisadores podem explicar porque eles participam napesquisa relevante e empregam os termos éticos estritos como ca-tegorias chaves.Valores éticos podem influenciar quais são os fatos

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que um cientista investiga e, a partir da investigação, confirma; maseles não são relevantes para avaliar quer os fatos estejam bem con-firmados, quer não o estejam. O emprego de termos éticos estritosnão é per se um obstáculo para obter resultados bem confirmadosde acordo com a imparcialidade.

4. Avaliação científica, em certas condições, pode (e preci-sa) envolver não só considerações empíricas, mas tambéma sustentação de juízos de valor

Avaliação empírica nunca fornece certeza. Em princípio, mes-mo os enunciados bem confirmados podem ser não confirmados àluz de mais investigação empírica. No caso de teorias e hipótesesaceitas de acordo com imparcialidade, isso refere-se só a uma pos-sibilidade lógica, porque há boa razão para crer que a sua nãoconfirmação é muito improvável. No contexto de aplicação, porém,freqüentemente, decisões não podem ser informadas pelo conheci-mento científico que está aceito de acordo com imparcialidade, prin-cipalmente porque elas requerem juízos acerca da legitimidade éti-ca de uma aplicação, que dependem de hipóteses (p. ex., sobre ris-cos) que, pelo menos, hoje em dia, por causa das urgências do con-texto de aplicação, não podem ser aceitas de acordo com imparcia-lidade.13 Quando uma hipótese (não aceita de acordo com imparciali-dade) é aplicada ou utilizada para informar decisões práticas, é ne-cessário fazer a avaliação de que ela está suficientemente bem confir-mada pelos dados empíricos disponíveis, de tal forma que, nas considera-ções pertinentes à legitimidade da aplicação, não seja necessário levar emconta: (1) que poderia ser não confirmada por mais investigação, e (2)que, se fosse falsa, a aplicação poderia dar origem a algumas conseqüênci-as com valor ético negativo (um juízo de valor ético). Nesta avaliação,existem papéis não só para os valores cognitivos, mas também paraos valores éticos, e é impossível separar os dois papéis, porque ospadrões de confirmação que precisam ser satisfeitos, dependem (em

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parte) de juízos sobre a importância ética destas conseqüências,juízos que, freqüentemente, variam com a perspectiva de valoressustentada.14

O caso dos transgênicos fornece uma boa ilustração.15 Para le-gitimar as implementações da tecnologia transgênica, é preciso acei-tar (entre outras) a hipótese segundo a qual ‘não há riscos sériospara o meio ambiente nas plantações dos transgênicos’. Esta hipó-tese (hoje em dia) não é aceita de acordo com a imparcialidade,porque a aceitação dela está baseada em poucas pesquisas empíricasrelevantes. Segue-se que a confiante aceitação dessa hipótese estáimplicada no juízo de valor de que os riscos potenciais não são eti-camente sérios – um juízo feito facilmente por aqueles que susten-tam o valor de lucro para as empresas agrícolas e agro-químicas,mas que é rejeitado por outros que sustentam, por exemplo, os va-lores da integridade ecológica e proteção da biodiversidade. Issonão significa que a investigação empírica não seja relevante para aavaliação cognitiva desta hipótese, mas apenas que, atualmente, osdados empíricos disponíveis não são suficientes, no contexto dopapel dos valores cognitivos, para resolver a questão, de modo queesteja de acordo com imparcialidade. Então, sua aceitação ou rejei-ção está implicada em juízos de valor ético.

Freqüentemente, no contexto da aplicação dos resultados cien-tíficos e da formação de políticas públicas para ciência, a autorida-de da ciência é cooptada para apoiar hipóteses (enunciados factuais,potencialmente fatos confirmados), tais como sobre riscos, que –de fato – não estão aceitas hoje em dia sem a contribuição do com-promisso com certos valores éticos. Poderia haver boas razões paraaceitar tais hipóteses, especialmente perante as urgências da apli-cação, mas a autoridade da ciência limita-se apenas a propostasaceitas de acordo com imparcialidade.

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5. A trajetória da ciência moderna – e o corpo dos fatos con-firmados nas ciências – contribui para a incorporação am-pla da valorização do controle nas instituições predomi-nantes modernas

Uma vez que existem fatos confirmados – que, também, sãofatos que fornecem informação para guiar seguramente a ação hu-mana– que empregam termos éticos estritos, nem todos os fatosconfirmados são fatos brutos. Isso desafia a perspectiva metafísicade que o mundo ‘realmente é’ como seria representado na totalida-de dos fatos brutos; e, também, enfatizo que o enunciado, “o mun-do ‘realmente é’ deste modo”, não é nem fato bruto nem fato con-firmado. Cientistas podem escolher voltar sua atenção apenas paraos fatos brutos, e assim adotar só as estratégias materialistas. Em-bora isso não forneça a única abordagem metodológica frutífera,16

dentro da qual podemos investigar e confirmar conhecimentofactual (fatos confirmados), a pesquisa empreendida dentro delaproduziu, durante os últimos quatro séculos, uma quantidade enor-me de conhecimentos de importância social e tecnológica inesti-mável. Além disso, em virtude do fato de que as suas categoriassão escolhidas deliberadamente para descrever os fatos sem o usodos termos éticos estritos – uma vez que estas estratégias requeremdissociacão dos contextos humanos e valorativos dos fenômenos erequerem atenção fixada só nos fatos brutos – o conhecimento con-firmado sob estratégias materialistas é neutro, no sentido (o segun-do sentido da nota 13) de que não há nenhum juízo de valor emsuas implicações lógicas (talvez, possamos dizer que há umadicotomia entre fatos brutos e juízos de valor ético).

Ao mesmo tempo, a contribuição do conhecimento científico(obtido sob estratégias materialistas) ao aumento da capacidadehumana para exercer controle sobre a natureza tem sido muito va-lorizada, ao longo da tradição da ciência moderna. Em outras pu-blicações, argumentei que esta abordagem da pesquisa científica,

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que se volta apenas para os fatos brutos, atingiu hegemonia quasetotal na ciência moderna, por causa das suas vinculações dialéticascom a sustentação de alto valor ético a um conjunto de valores –que chamo ‘a valorização moderna do controle’ – que inclui o valorde aumentar a capacidade humana para controlar objetos naturais,bem como o exercício desta capacidade sempre em mais domíniosda vida.17 Os fatos brutos são especialmente pertinentes para in-formar os projetos de controle tecnológico; e, algumas vezes, osresultados da ciência moderna (p. ex. os resultados da biologiamolecular que informam os desenvolvimentos da tecnologiatransgênica) não têm muita aplicação em contextos nos quais ou-tros valores são sustentados em lugar da valorização moderna decontrole: p. ex. onde estão sustentados, juntamente e em equilíbrio,os valores de produtividade agrícola, sustentabilidade ecológica,proteção da biodiversidade e fortalecimento dos produtores locaise os seus valores culturais – estes valores estão vinculados,dialeticamente, com a prática da agroecologia (LACEY, 2006a: caps.1.3; 5; 6).

Portanto, embora os resultados obtidos em pesquisa empreen-dida sob as estratégias materialistas sejam neutros no primeiro sen-tido da nota 13 (eles não têm juízos éticos entre as suas implicaçõeslógicas), geralmente não há razão para crer que eles (mesmo consi-derados como uma totalidade) sejam neutros no terceiro sentido,uma vez que eles não podem ser empregados em aplicação paraservir eqüitativamente a todas as perspectivas de valor ético. Te-mos uma grande quantidade de conhecimento dos fatos brutos,em parte por causa do fato de que a valorização moderna de controleestá sustentada amplamente na sociedade moderna, e contribui paraformar a estrutura e os interesses primários das instituições cientí-ficas. Não é a natureza do mundo que nos leva a prestar atenção,primariamente, nos fatos brutos, mas uma escolha altamente con-dicionada por valores éticos e socais. E, inversamente, a disponibi-lidade do conhecimento de fatos brutos contribui para a incorpora-

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ção, sempre mais ampla, nas instituições predominantes modernasda valorização moderna de controle.

Não há, então, nenhuma objeção (baseada em consideraçõesmetodológicas gerais) à participação em pesquisa com a finalidadede obter resultados que poderiam informar os seus projetos etica-mente preferidos. Quaisquer que sejam os fatos confirmados obti-dos, eles refletem esses valores; mas a avaliação segundo a qualeles são fatos confirmados, depende só dos fatos observados e dosvalores cognitivos. A sustentação da valorização moderna de con-trole explica que, dentro dos fatos confirmados descobertos nas ci-ências, os fatos brutos constituem a maior parte, e também explicaa ausência de interesse em obter conhecimento de outros tipos defatos confirmados. Mas a valorização não faz parte da evidência edos argumentos para reivindicar, por exemplo, que a lei dagravitação enuncia um fato bruto.

O ideal de imparcialidade permanece sem desafio. Os valoreséticos não se sobrepõem aos valores cognitivos, e, assim, compro-missos baseados na ética (ou na ideologia, religião, política, ou ne-gócios) tornam-se irrelevantes para a avaliação do conhecimentocientífico. A ciência não necessita da dicotomia entre fato e valorpara manter o ideal da imparcialidade: uma análise nuançada dasua imbricação é suficiente.

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Recebido em: maio de 2006Aprovado em: junho de 2006

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NOTAS

1 Na minha análise, a tese de que a ciência é livre de valores envolve três idéias: imparcialida-de, neutralidade e autonomia (ver LACEY, no prelo-2: cap.1, para formulações e nuançasimportantes).

2 Para as fontes históricas, ver MARICONDA (2006).3 Alexandre Koyré escreveu que a dicotomia, utilizada para racionalizar o caráter matemáti-

co e experimental da ciência moderna, deu origem à “rejeição pelo pensamento científicode todas as considerações baseadas em considerações valorativas, tais como perfeição, har-monia, significado e fins; e, finalmente, à desvalorização completa do ser, ao divórcio domundo do valor do mundo dos fatos” (KOYRÉ, 1957).

4 Parece haver dois conceitos de ‘fato’ de uso comum. No primeiro uso, um fato corresponde,verdadeiramente, a um estado de coisas no mundo; no segundo, um fato é uma verdadeconhecida. Para a metafísica materialista, todos os fatos (primeiro sentido) são fatos brutos.Um fato bruto não seria, necessariamente, conhecido; presumivelmente, muitos fatos bru-tos não são conhecidos e, talvez, poucos sejam conhecidos, porque é possível que as estra-tégias materialistas, já disponíveis, não permitam a identificação verdadeira da ordemsubjacente do mundo. Sem compromisso com a metafísica materialista, não há razão geralpara crer que todos os fatos conhecidos são fatos brutos, mesmo que os fatos brutos, queinformam a eficácia de objetos tecnológicos, sejam fatos confirmados exemplares.

5 Imparcialidade é resíduo da tese de Bacon, e a tese de Hume expressa um sentido de neu-tralidade.

6 Pablo Mariconda sugeriu o termo ‘imbricação’ para traduzir a palavra ‘entanglement’, usadapor Putnam.

7 Discutirei mais aspectos da imbricação em trabalhos em preparação. Quase toda minhadiscussão dos aspectos 1–3, abaixo, é baseada em Putnam (2002).

8 Para uma discussão detalhada de valores cognitivos e os contribuintes ao desenvolvimen-to desta idéia, ver LACEY (1998: cap. 3; 1999: cap. 3). A idéia de imparcialidade, introduzidano início do artigo, pode ser reformulada facilmente usando a noção de valores cognitivos.

9 O termo ‘implicatura’ foi introduzido, mais ou menos há quarenta anos, pelo filósofo inglês,Paul Grice, para referir às inferências não-dedutivas, que (pelo menos na linguagem comun)são normalmente consideradas legítimas. A inferência no texto, de uma afirmação fatual aum juizo de valor, é uma implicatura exemplar. A natureza de implicaturas, e o papel dascláusulas ‘ceteris paribus’, não é bem entendida. Precisamos de mais investigação e discus-são deste assunto. Para discussões de alguns aspectos do papel de ‘ceteris paribus’ eminferências de fato a valor, ver LACEY (1998: cap. 8), e BHASKAR (1986).

10 Para discussão dos pressupostos factuais da sustentação de uma perspectiva de valores,ver LACEY (1998: caps. 2 e 8).

11 Pablo Mariconda sugeriu as traduções dos dois termos. Putnam (2002) atribui a distinçãoentre os dois tipos de termos éticos a Williams (1985).

12 Em Lacey (2006: 12–14), identifico cinco sentidos de ‘neutro’. Neste artigo, faço referência atrês deles: (1) um resultado é neutro, se não tiver juízos de valor entre as suas conseqüênci-as lógicas; (2) um resultado é neutro, se não tiver implicaturas no domínio de juízos devalor; e (3) os resultados científicos, considerados como uma totalidade, são aplicáveis eqüi-tativamente para todas as perspectivas éticas atualmente viáveis. No texto aqui, estou usando‘neutro’ no segundo sentido. A carência de neutralidade, neste sentido, não proíbe que os

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resultados científicos possam ser neutros em outros sentidos. Para uma outra perspectivasobre ‘neutralidade’, ver Oliveira (2003).

13 Para a distinção entre eficácia e legitimidade de uma aplicação, e os problemas especiaisno estabelecimento de determinações de legitimidade por causa da carência de conheci-mento relevante que esteja de acordo com a imparcialidade, ver LACEY (2006a: caps.1.4; 4; 5).

14 Neste parágrafo, explico uma idéia introduzida por RUDNER (1953). Para mais detalhes, verLACEY (2006a: cap. 4.6; 2006b; a sair-1: cap. 3.2).

15 Este parágrafo sumaria argumentos apresentados em detalhe e com nuanças em LACEY(2006a: cap. 4), em que eu também apresento evidências a favor de todas as afirmaçõescontroversas enunciadas aqui.

16 Em outras publicações, usei o exemplo de ‘estratégias agroecólogicas’ para ilustrar que po-demos empreender pesquisa frutífera sob estratégias que não podem ser reduzidas às es-tratégias materialistas (p. ex., LACEY 2006a: cap. 2). Existem muitos outros exemplos nasciências humanas.

17 Para uma lista sumária dos valores que constituem a valorização moderna de controle, e osseus pressupostos factuais, ver LACEY (2006: 19–26). Isto é um exemplo da minha opiniãogeral de que a sustentação de uma perspectiva de valores tem pressupostos factuais (verNota 11).

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Galileu e a ciência moderna

Pablo Rubén Mariconda

Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo, Professor Titular deTeoria do Conhecimento e Filosofia da Ciência, Departamento de Filosofia,

Universidade de São Paulo, Brasil. E-mail: [email protected]

Resumo. Neste artigo, faço uma avalia-ção positiva do alcance científico da obrade Galileu, mostrando a presença nelade quatro características fundamentaisda modernidade científica: centralidadeda ação prática e instrumental; conflu-ência e união da ciência e da técnica;matematização e mecanização da natu-reza; liberdade de pensamento ancora-da no método. Essas quatro característi-cas, que se encontram na obra deGalileu, permitem concluir que a ima-gem comum do Galileu fundador da fí-sica clássica e do método experimentalé bastante adequada e tem verossimi-lhança histórica.

Palavras-chave: Galileu - Física clássica- método experimental - matematizaçãoda natureza – mecanicismo - ciênciamoderna.

Abstract. In this article I make apositive evaluation of the scientificscope of Galileo’s work by showingthe presence in it of four fundamen-tal characteristics of scientificmodernity: centrality of practicaland instrumental action; confluenceand union of science and technics;mathematization and mecanizationof nature; freedom of thoughtanchored in method. These fourcharacteristics, which we can find inGalileo’s work, leads to theconclusion that the common imageof Galileo founding classical physicsand experimental method is indeedquite adequate and has historicaltruthfulness.

KEYWORDS: Galileo - Classicalphysics - experimental method -mathematization of nature –mecanicism - modern science.

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1. GALILEU E A REVOLUÇÃO CIENTÍFICA DO SÉCULO XVII

A obra de Galileu Galilei (1564-1642) está intimamente ligadaà revolução científica do século XVII, talvez uma das mais profun-das revoluções sofridas pelo espírito humano, que implicou umamudança intelectual radical, cujo produto e expressão mais genuí-na foi o nascimento da ciência moderna.

Dentro desse quadro, Galileu é universalmente considerado ofundador da física clássica, que passará a ser desenvolvida na di-reção de uma teoria físico-matemática dos fenômenos naturais. Suascontribuições substantivas para essa nova ciência, a saber, a desco-berta da lei de queda dos corpos, a formulação da teoria do movi-mento uniformemente acelerado e a descoberta da trajetória para-bólica dos projéteis, justificam plenamente o veredito. A contribui-ção de Galileu constitui-se, sem dúvida, na elaboração da primeirateoria cinemática que consegue descrever matematicamente o mo-vimento dos corpos físicos (cf. GALILEI, 1988 [1638], Terceira eQuarta Jornadas). A constituição da cinemática será fundamentalpara o entendimento mais profundo do movimento e de seu papelnos eventos naturais, em suma, para o desenvolvimento e a conso-lidação da dinâmica. E Galileu não deixou de dar passos importan-tes nessa direção, com suas discussões sobre a extrusão causadapela rotação terrestre (cf. GALILEI, 2004 [1632], p. 214-44;MARICONDA; VASCONCELOS, 2006, Cap. 6) ou com seu princí-pio único da teoria do movimento que contém implícita a idéia deconservação de energia (cf. GALILEI, 1988 [1638], p. 167-9;MARICONDA; VASCONCELOS, 2006, Cap. 7) ou ainda com suateoria dinâmica das marés (cf. GALILEI, 2004 [1632], Quarta Jorna-da; MARICONDA; VASCONCELOS, 2006, Cap. 6; MARICONDA,1999).

Também é comum considerar Galileu um dos fundadores dométodo experimental, apesar da imensa oposição levantada porKoyré em sua influente e sedutora interpretação de um Galileu pla-

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tônico, operando matematicamente a priori (cf. KOYRÉ, 1978a;1978b)1 . Deste ponto de vista, não são apenas as realizações estrita-mente científicas que contam como contribuições de Galileu à pos-teridade, mas também sua maneira de conceber a ciência física, ométodo científico e, principalmente, a maneira pela qual chegouaos resultados científicos. Em resumo, o que caracteriza a atitudecientífica galileana - e também a atitude científica moderna - é aprocura, na natureza, de regularidades matematicamenteexpressáveis, as chamadas leis da natureza, e o método de certifi-car-se de sua verdade através da realização de experimentos. Oprincipal exemplo apresentado nesse sentido é a própria lei de que-da dos corpos que Galileu confirma por meio da realização de ex-perimentos com o plano inclinado (cf. GALILEI, 1988 [1638], p. 175-6; MARICONDA; VASCONCELOS, 2006, Cap. 2).

Com o intuito de avaliar essas duas afirmações sobre o alcanceda obra de Galileu, apresento, a seguir, algumas considerações nosentido de contextualizar historicamente as atribuições de funda-ção da física clássica e do método experimental, de modo a revelaro alcance intelectual e sócio-institucional da atividade científica dogrande pisano.

2. A ATITUDE ATIVA E OS INSTRUMENTOS CIENTÍFICOS

É comum caracterizar a revolução científica do século XVII comouma transformação completa da atitude fundamental do espíritohumano. Essa transformação está expressa na oposição entre umaatitude ativa e uma atitude contemplativa: o homem moderno pro-cura dominar a natureza, tornar-se “dono e senhor da natureza”,enquanto o homem medieval visa apenas contemplá-la. Emboranão se deva tomar tal caracterização em sentido absoluto, pois po-deria conduzir, de um lado, a minimizar as realizações técnicas daIdade Média e, de outro, a maximizar a influência da técnica no

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desenvolvimento científico dos séculos XVI e XVII, não deixa de serverdade que a filosofia, a ética e a religião modernas enfatizam aação, a praxis, muito mais do que o faziam o pensamento antigo emedieval.

A tendência a uma atitude ativa está particularmenteexemplificada em Galileu por seu interesse no desenvolvimento deinstrumentos científicos. Logo no início de sua carreira científica,no biênio 1586/87, esse interesse está presente na invenção da ba-lança hidrostática (GALILEI, 1929; 1986). Trata-se, na verdade, deum instrumento destinado a resolver o problema prático de medi-ção de uma grandeza física: o peso específico dos materiais, tal comodefinido pelo divino Arquimedes em seu tratado Dos corpos flutu-antes2 . Essa preocupação com o aspecto prático da ciência mante-ve-se durante os treze anos seguintes; primeiro, numa direção emi-nentemente técnica com o compasso geométrico-militar e, a partirde 1609, em uma direção claramente científica com o telescópio.

Detenhamo-nos um pouco nesses dois instrumentos. O primei-ro é, sem dúvida, notável e característico da mentalidade ativa.Galileu inventou um compasso, que é também uma régua de cál-culo que permite cômputos rápidos e variados de distâncias, deprofundidades, de altitudes, de espessuras de muralhas e resistên-cia de vigas, muros de arrimo e sustentação etc. O compasso, fabri-cado na oficina de Galileu em Pádua, era vendido, juntamente comum manual (para uso do instrumento) intitulado Le operazioni delcompasso geometrico et militare (GALILEI, 1932 [1606]), publicado emFlorença. Vender um instrumento com o respectivo manual de usoé certamente uma novidade, principalmente porque reflete umaatitude ativa e interessada na utilidade.

Quanto ao segundo instrumento, embora definitivamenteGalileu não tenha sido o inventor do telescópio, foi, entretanto, oprimeiro a aperfeiçoá-lo e utilizá-lo em observações astronômicassistemáticas e contínuas, dando assim a um aparelho que desperta-va muita curiosidade na época e cujo valor militar foi imediata-

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mente reconhecido (o próprio Galileu o venderá por essa utilidadeà Sereníssima República de Veneza) uma aplicabilidade científicade inestimável valor para a astronomia e para a ciência em geral(cf. MARICONDA; VASCONCELOS, p. 71-4). É verdade que Galileunão enfrentou os problemas teóricos levantados pelo uso do teles-cópio; em particular, não se interessou pela teoria óptica que expli-cava o funcionamento do telescópio, embora essa teoria já se en-contrasse, em parte, nas obras do italiano Giovanni Battista DellaPorta, Magia naturalis de 1589 e De refractione de 1593,3 e, de modocompleto, nas obras de Johannes Kepler, Ad Vitelionem paralipomena,de 1604, na qual apresenta uma explicação exata da propriedadedas lentes, e Diottrica, de 1611, na qual Kepler expõe a teoria com-pleta do telescópio. Mas essa falta de interesse na teoria óptica nãoretira de Galileu todo o mérito, pois a necessidade de entender ofuncionamento de um instrumento e a importância da teoria queexplica a confiabilidade desse instrumento, nascem do uso efetivoe da utilidade demonstrada do instrumento. Galileu foi, certamen-te, quem mostrou a indiscutível utilidade científica do telescópio,realizando suas famosas observações astronômicas, anunciadas noSidereus nuncius, de 1610 (GALILEI, 1930 [1610]; 1987 [1610]). Galileurealizou durante mais de vinte anos, do final de 1609 até a publica-ção do Diálogo, em 1632, vários conjuntos de observações telescópi-cas sistemáticas e contínuas, por exemplo, sobre as fases de Vênus,sobre os satélites de Júpiter, sobre os anéis de Saturno, sobre asmanchas solares etc. Dentre esses conjuntos, as observações maisextraordinárias são aquelas sobre as manchas solares (cf.CLAVELIN, 1996, Cap. 4; MARICONDA, 2000, p. 83-5), acerca dasquais Galileu publicaria, em 1613, o Istoria e dimostrazioni intornoalle macchie solari, obra na qual recolhe suas três cartas em respostaàs visões tradicionalistas do jesuíta Scheiner (GALILEI, 1932 [1613]).

É inegável que a prática da observação telescópica contribuiupara abrir as portas ao conhecimento do sistema solar e do univer-so e, em outro plano, para o desenvolvimento de uma atitude de

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observação controlada e sistemática realizada por meio de e atra-vés de aparelhos, de aparatos instrumentais, desenhados especifi-camente para fins científicos. Com efeito, a pesquisa telescópica deGalileu não influiu apenas no domínio do macrocosmo, onde reco-nhecidamente abriu a possibilidade de uma nova cosmologia, masdesencadeou o início da pesquisa microscópica tanto na direção doaperfeiçoamento do aparelho, o microscópio, como no desenvolvi-mento do conhecimento observacional sobre o microcosmo. Nãose trata, evidentemente, de dizer que Galileu tenha contribuído di-retamente para a microscopia, mas basicamente de assinalar o nas-cimento de um novo estilo científico que combina matemática eexperiência ou, como no caso de Galileu, geometria e experimen-tos, ou numa formulação mais clara, opera com experiênciasconstruídas pela razão (cf. MARICONDA; VASCONCELOS, p. 42-52, p. 66-74).

Galileu investigou também os fenômenos térmicos, inventan-do um aparelho para a medida da temperatura. Contudo, não sepode dizer que tenha inventado o termômetro, pois seu aparelhoapresentava muitos defeitos: o nível do líquido no tubo em quedevia ser feita a leitura da temperatura dependia, na verdade, nãoapenas da temperatura procurada, mas também da pressão atmos-férica externa. Apesar disso, a tentativa de Galileu é consideradacomo o embrião a partir do qual Torricelli, um dos últimos discípu-los de Galileu, chegou à invenção do barômetro (cf. DIJKSTERHUIS,1986, p. 359-64). Mesmo no final de sua vida, Galileu procurou cons-truir, sem êxito, um relógio de pêndulo que fornecesse uma medi-da exata do tempo. Essas tentativas, apesar de mal sucedidas, mos-tram claramente a consciência que Galileu tinha da importância,para a física clássica, dos instrumentos de medida, isto é, de apare-lhos técnicos, de artefatos que permitissem observações e medi-ções cada vez mais precisas. Pouco tempo depois, ChristianHuygens resolveria o problema técnico (mecânico) de compensarcom um novo impulso a perda de movimento do pêndulo em vir-

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tude da resistência do meio construindo o primeiro relógio de pên-dulo (cf. DIJKSTERHUIS, 1986, p. 368-79).

Podemos concluir, portanto, que o empenho de Galileu na des-coberta, aperfeiçoamento e uso de instrumentos de medida e deobservação – que é uma marca característica (1) da aplicação dométodo experimental ao estudo dos fenômenos naturais e (2) daíntima relação entre ciência e técnica – esteve presente em toda suacarreira científica, e justifica, em grande parte, a afirmação de queele é um dos fundadores do método experimental.

3. A UNIÃO ENTRE CIÊNCIA E TÉCNICA

Há outro aspecto de extrema relevância ligado à mudança deatitude característica da revolução científica dos séculos XVI e XVII.A atitude contemplativa estava assentada, em grande medida, nadistinção estrita operada pelos gregos e mantida pelos medievaisentre episteme (ciência) e techne (técnica). Segundo essa distinção,à episteme correspondia o mais elevado grau de conhecimento cer-to, necessário e demonstrável, ou seja, ciência apodítica ou ciênciaem sentido estrito, enquanto à techne correspondia o conhecimen-to prático, o saber fazer, as artes e as técnicas em geral.4

Por outro lado, essa separação entre ciência e técnica estavaassociada a uma hierarquia valorativa, segundo a qual o primeirotipo de atividade era considerado nitidamente superior ao segun-do. A completa independência entre os dois tipos de atividade aca-baria por tornar a ciência uma atividade basicamente teórica, isen-ta de preocupação e interesse com as conseqüências práticas e téc-nicas. Concebida desse modo, a ciência acabou por ser confundidacom uma atividade que envolvia extensas controvérsias teóricassobre a interpretação de textos tradicionais, principalmente dos tex-tos aristotélicos. É nessa linha que se fixou, afinal de contas, desdeo início da fundação das universidades, no século XII, a importância

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do auctor e a idéia da autoridade com seu sentido originário de queexistem certos autores, as autoridades, que se sobressaem e predo-minam sobre os outros.

É natural que essa valoração da contemplação e a conseqüenteseparação entre a ciência e a prática estivessem profundamenteenraizadas na organização institucional do conhecimento nos sé-culos XVI e XVII. De um lado, havia a tradição científica e filosóficaque a Igreja mantinha e ensinava nas universidades; de outro lado,o ensino técnico que era desenvolvido independentemente da tra-dição das universidades, primeiro, durante a Idade Média, nas es-colas de artesãos e, depois, nas famosas escolas de artistas e nosarsenais do Renascimento e da primeira modernidade.

Na organização educacional universitária, a física aristotélicaconstituía a introdução sistemática à enciclopédia científica tradi-cional, pois considerava-se que era a única que podia oferecer aoconteúdo científico, em si mesmo fragmentário, unidade e coerên-cia teórica. Por outro lado, a física aristotélica repousa sobre ametafísica, isto é, sobre o sistema de conceitos e de relações univer-sais no qual a infinita variedade e a aparente acidentalidade da exis-tência deixam transparecer uma profunda unidade teleológica deum cosmo (universo) bem ordenado, ou seja, a unidade do cosmo ételeológica porque a “ordem perfeita” do cosmo é uma finalidadeque guia de modo determinado o curso dos acontecimentos natu-rais. A doutrina aristotélica, garantida pela autoridade dos séculos,consagrada por sua união à teologia católica e devido a sua conclu-siva organicidade de princípios, permanecia como o fundamentosólido de toda educação teórica nas universidades, como o critérioindiscutível de verdade para o mundo dos doutos, e seu autor,Aristóteles, como a autoridade inconteste nas ciências (cf.MARICONDA, 2000).

Pode-se então entender que durante a polêmica sobre a com-patibilidade de Copérnico com a Bíblia, ocorrida entre 1613-1616(primeiro processo) e do qual resultou a condenação de Copérnico

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(cf. GALILEI, 1932 [1613-1616]; NASCIMENTO, 1988;MARICONDA, 2000), a crítica de Galileu à autoridade e à tradição,em particular a de Aristóteles, fosse também uma luta institucionalque acabaria colocando contra ele os filósofos das universidades etoda a estrutura universitária tradicional. Como professor de ma-temática na universidade, Galileu estava obrigado a ensinar a geo-metria de Euclides e a astronomia de Ptolomeu; como físico, deviaser filósofo natural, ou seja, estava limitado à exegese e interpreta-ção filosóficas da física aristotélica. Em outros termos: não havialugar no currículo universitário da primeira metade do século XVII

para as investigações mecânicas, consideradas, do ponto de vistada distinção acima, como investigações eminentemente técnicas, enão científicas, possuidoras, portanto, de um valor secundário (cf.GALILEI, 2004 [1632]; MARICONDA, 2000).

Mas há um sentido claro em que a ciência de Galileu difere dasimples techne em sentido aristotélico. A ciência de Galileu - a ci-ência moderna - não separa mais episteme e techne, ciência e téc-nica, mas é antes uma ciência útil, no sentido não apenas de terconseqüências práticas, isto é, de incluir um tratamento matemáti-co de muitos problemas físicos de caráter prático, mas também depoder ser controlada, testada e avaliada por essas conseqüênciaspráticas.

Para apreciar a dimensão técnica da obra científica de Galileué preciso considerar o desenvolvimento de seu trabalho científicono período paduano (1597-1610) e anterior, portanto, à descobertado telescópio e à longa fase dedicada à astronomia e à defesa domovimento da Terra. Percebe-se, então, que a ciência de Galileu éciência útil desde o início, muito antes do copernicanismo ocupartotalmente a agenda científica de Galileu. Com efeito, logo no iní-cio de sua carreira, Galileu desenvolveu pesquisas mecânicas emduas direções: (1) atenção para aspectos da estática no sentido deuma teoria da resistência dos materiais; (2) estudos dos elementose composição das máquinas. Essas direções de pesquisa estão cla-

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ramente presentes nos dois tratados militares – Breve instruzioneall’architettura militare (GALILEI, 1932a); e Trattato di fortificazione(GALILEI, 1932b) –, cujo objetivo indisfarçável é mostrar aaplicabilidade técnica da nova ciência, e no pequeno tratado ma-nuscrito intitulado Le mecaniche (GALILEI, 1932c), que alcançougrande difusão, chegando a ser publicado em tradução francesapor Mersenne, em 1634.

Ora, o que acontece aqui é o nascimento de uma concepção deciência que está aliada a uma nova concepção da racionalidade ci-entífica para a qual há uma estreita relação entre o trabalho cientí-fico e o trabalho técnico.5 Grande parte das transformações que seproduziram na mentalidade científica, em particular, na física doséculo XVII, originou-se das sempre novas exigências e das questõescada vez mais precisas levantadas pelos técnicos. O que os técnicosprocuram é saber com exatidão como se comportam certos fenô-menos particulares, de modo que possamos saber como agir quan-do nos confrontamos com esses fenômenos. É por isso que, para ostécnicos, como para Galileu, as discussões dos físicos aristotélicosacerca das causas dos fenômenos naturais e as especulações dosfilósofos das universidades acerca da essência última da Naturezaparecerão desprovidas de interesse e significação.

Essa aliança entre a ciência e a técnica, que tem em Galileu umde seus primeiros defensores, conduziu obviamente a uma radicaltransformação da problemática científica, a uma caracterização in-teiramente nova das próprias pesquisas científicas e de seus objeti-vos, a um novo estilo de sistematização e exposição. Contudo, nãose deve pensar que essa transformação consistiu em afastar da ci-ência todas as argumentações teóricas. Foram afastadas apenasaquelas investigações teóricas que, por sua generalidade, por seucaráter excessivamente abstrato e especulativo, fogem a qualquerpossibilidade de controle, mantendo-se apenas com base na autori-dade conferida pela tradição. Na nova concepção de ciência, serãodeixadas de lado as especulações desprovidas de relação com a

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experiência, abrindo espaço para aquelas considerações teóricas (1)que podem conduzir à formulação de leis naturais, ao estabeleci-mento de previsões, à estipulação de regras práticas visando à açãoe (2) que podem ser controladas pela experiência e pelas conseqü-ências práticas. Isso significa que a ciência, ao enfrentar os proble-mas levantados pela técnica, não realiza apenas uma função práti-ca, mas preenche também uma função teórica de justificação racio-nal de certas práticas técnicas, de certos modos especializados defazer. Dito de outro modo, as reflexões e os raciocínios práticos dostécnicos viriam a ser justificados pelas especulações da ciência na-tural nascente. Cada vez mais a especulação científica se funda-mentaria nas próprias atividades práticas, abrindo assim a possibi-lidade de que as teorias científicas fossem julgadas não só pelo seuvalor teórico, mas também pelo aporte que fornecem à solução deproblemas técnicos.

Dois exemplos marcantes dessa relação entre a teoria e a práti-ca, característica da união entre ciência e técnica, encontram-se jus-tamente na grande obra final de Galileu, Discorsi e dimostrazionimatematiche intorno a due nuove scienze (GALILEI, 1933 [1638]; 1988[1638]), que retoma as direções iniciais da pesquisa mecânica dan-do-lhe agora uma cinemática física (uma descrição matemática domovimento dos corpos físicos). Assim, tanto a Segunda Jornada,na qual Galileu apresenta a primeira nova ciência que trata da re-sistência dos materiais, como na Quarta Jornada, na qual desenvol-ve uma parte importante da segunda nova ciência, a saber, a teoriado movimento dos projéteis, é evidente a união entre a teoria e aprática. A primeira nova ciência é notável nesse aspecto. Nela,Galileu introduz considerações sobre o “efeito-escala”, que se mos-tram básicas para esse tipo de estudo abrindo a possibilidade dostestes de laboratório com protótipos menores que os originais. Épossível. a partir do conhecimento fornecido pela ciência da resis-tência dos materiais, projetar grandes estruturas com cálculo pré-vio dos esforços e pontos de ruptura, do tipo de material a ser uti-

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lizado em vista do esforço exigido etc. O aporte prático da primei-ra nova ciência de Galileu é, portanto, decisivo. Galileu está nãoapenas fundando uma nova ciência, uma nova teoria sobre a resis-tência dos materiais, mas definindo os contornos de um novo tipode atividade profissional, a engenharia civil. Não é menor o aporteprático da teoria do movimento dos projéteis da Quarta Jornada,da qual Galileu tinha razão em se orgulhar, pois a teoria dos projé-teis desenvolvida nela permite informar a prática dos artilheirosque podem, a partir de então, produzir “tiros científicos”, isto é,planejar de antemão o uso da artilharia (cf. MARICONDA; VAS-CONCELOS, p. 239-42).

A introdução nas práticas científicas do método experimentalfavoreceu a consolidação dessa união entre a ciência e a técnica,pois gerou um ciclo entre a teoria, o instrumento e o experimento;ciclo que pode ser esquematicamente representado como segue:

Esse ciclo, que está claramente presente na obra de Galileu,revelou-se especialmente apropriado para promover a união entreciência e técnica, a qual permitiu, a longo termo, que a ciênciapermeasse todo o mundo no qual vivemos, fazendo com que nossacivilização seja essencialmente uma civilização técnico-científica.

4. MATEMATIZAÇÃO DA NATUREZA E MECANIZAÇÃODO MUNDO

Um terceiro aspecto de impacto significativo sobre o conjuntoorganizado da cultura e que é, ao mesmo tempo, a expressão cabalda profunda modificação nas concepções de natureza, de ciência e

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da capacidade humana (realizada por autores como Copérnico,Kepler, Galileu, Descartes) é esses autores terem promovido demodo estreitamente vinculado a matematização e a mecanizaçãoda natureza.

Convém, neste ponto, deter-se mais sobre o alcance da trans-formação suscitada pela simples idéia do movimento da Terra paraaprofundar a compreensão do vínculo entre a matematização danatureza e a concepção de Copérnico de que a Terra é um planetaque, como todos os demais, gira em torno do Sol. Dois aspectos sãoresponsáveis pela fascinação e também pela reação e resistênciaproduzidas pelo sistema heliocêntrico de Copérnico. O primeirodiz respeito ao elemento nevrálgico e essencial da história do pen-samento sobre o qual age a chamada revolução copernicana. O se-gundo refere-se a uma espécie de forma pura, como que invariante,que permite caracterizar o copernicanismo como um tipo específi-co de postura científica e filosófica.

Com efeito, até Copérnico, pode-se dizer que as próprias cate-gorias do pensamento estão organizadas em torno da afirmação denossa posição central no Universo, de modo que a concepçãogeocêntrica faz parte do núcleo da concepção antropocêntrica dacultura. Percebemos, por razões ligadas, em parte, à estrutura denossa percepção, em parte a nossa evolução antropológica, que aTerra está imóvel no centro do lugar de nossa percepção, ou seja, aimobilidade da Terra assenta-se sobre um conceito de observadorou de sujeito perceptivo ligado ao seu lugar central que se confun-de com aquilo que sua percepção lhe informa. Há, portanto, umaunidade entre o geocentrismo e a fenomenologia do sensível es-pontaneamente praticada por nós. No universo ptolomaico, o lu-gar central do observador terrestre imóvel é a lei daquilo que é. Aorganização do real fenomênico é o efeito da percepção de um ob-servador e depende de seu lugar, mas sua auto-percepção perma-nece imediata. Isto significa que, embora também aqui haja, de cer-to modo, uma aparência constituída, ela, entretanto, constitui-se a

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partir do próprio ser e de suas categorias. Em suma, a aparência,para Aristóteles, é constituída a partir de categorias que são comouma sintaxe do próprio ser das coisas e não dependem da maneirapela qual podemos conhecer essas coisas. Entende-se, assim, que atese copernicana do movimento da Terra, ao descentralizar o ob-servador e colocá-lo em movimento, terá um impacto de funda-mental importância sobre o conjunto especificamente organizadoda cultura, opondo-se diretamente ao conjunto do saber, da ciên-cia, da religião e da opinião comum. No plano científico, comCopérnico, o movimento do observador passa a ter uma funçãoradical ou primitiva, de modo que “salvar as aparências” quer di-zer agora restaurar sob as aparências os princípios da física que asexplicam e que, portanto, tornam possíveis essas aparências. Emsuma, na astronomia de Copérnico existe uma pretensão de expli-cação que invade o terreno que a tradição havia reservado à filoso-fia natural (cf. MARICONDA, 2000, p. 92-6; MARICONDA; VAS-CONCELOS, Cap. 3).

Essa pretensão de explicação consiste basicamente em afirmarque o conjunto de observações astronômicas deve ser explicado emtermos das leis, da ordem, da estrutura e da interação subjacentesaos fenômenos relatados por essas observações, que são assim to-madas como efeitos aparentes de causas subjacentes inobserváveis(cf. MARICONDA; LACEY, 2001). Ela se encontra claramente pre-sente nos dois grandes copernicanos, Kepler e Galileu. No caso desteúltimo, pode-se apreciar esse aspecto na explicação das marés de-senvolvida na Quarta Jornada do Diálogo sobre os dois máximos siste-mas, segundo a qual as marés são causadas pela combinação doduplo movimento de rotação e translação da Terra, sendo assim oefeito visível de causas inobserváveis para o observador terrestre(GALILEI, 2004 [1632]; MARICONDA, 1999; MARICONDA; VAS-CONCELOS, 2006, p. 166-83).

Do ponto de vista do desenvolvimento da mecânica, todos osautores importantes do século XVII, tais como Kepler, Galileu, Des-

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cartes, Mersenne, perceberam a necessidade de unificar a astrono-mia heliocêntrica de Copérnico com as concepções mecânicas danova ciência. Para todos esses autores, a adesão ao sistemacopernicano se insere no quadro intelectual da crítica moderna, fei-ta em nome da razão, à astronomia e à cosmologia tradicionais,que separavam essencialmente Céu e Terra, atribuindo aos corposcelestes os movimentos circulares considerados perfeitos (comple-tos) e às coisas terrestres os movimentos retilíneos consideradosimperfeitos (incompletos). Além disso, a concepção tradicional se-parava a astronomia, entendida como simples hipótese e descriçãomatemática dos movimentos observados dos corpos celestes, e afísica (filosofia natural), entendida como o estudo das causas eessências das mudanças e transformações que vemos acontecer anossa volta. Com a adesão ao copernicanismo, Galileu e Kepler sãolevados a criticar essa visão tradicional de que o universo está com-posto por duas regiões heterogêneas (essencialmente diferentes) e,de certo modo, a superá-la dando um importante passo na direçãoda homogeneização do universo, isto é, da concepção de que todasas regiões do universo estão sujeitas às mesmas leis (GALILEI, 2004[1632], Primeira Jornada; MARICONDA, 2005).

Quando se compara a pesquisa astronômica, de Kepler, com apesquisa mecânica, de Galileu, pode-se perceber uma profundasemelhança entre elas: ambas revelam um claro direcionamentometódico na procura por regularidades matemáticamenteformuláveis observadas nos fenômenos naturais. A procura por leisda natureza, por regularidades existentes entre os fenômenos na-turais observados é a marca da ciência moderna. A formulação des-sas leis, isto é, de enunciados precisos e verificáveis pela experiên-cia, expressos em linguagem matemática, acerca das relações uni-versais que existem entre os fenomênos particulares, passa a serum dos objetivos centrais da pesquisa científica.

Assim, tanto o programa mecânico de Galileu como o progra-ma astronômico de Kepler se inserem no quadro da constituição

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de uma ciência física que procura formular as leis universais e ma-temáticas do movimento, visando à unificação da astronomia, ou ateoria dos movimentos planetários, com a mecânica, ou a teoriados movimentos locais ou terrestres, e lançando as bases sobre asquais Newton construirá a dinâmica, ou seja, a explicação de porque os corpos se movem do modo como vemos que se movem(GALILEI, 2005 [1624]; MARICONDA, 2005).

Mas há outra dimensão do programa mecânico de Galileu queconvém ressaltar justamente porque corresponde às repercussõesdas novas ciências de Galileu para além do campo estritamentecientífico em direção à visão moderna da natureza concebida comoum mecanismo regido por leis matemáticas. Adentramos, agora,no núcleo da concepção mecanicista que dá sustentação àmatematização da natureza. Com efeito, esses dois processos –matematização e mecanização da natureza – estão interligados emGalileu, como se depreende do estabelecimento, em Il saggiatori,das condições epistemológicas efetivas para a aplicação da mate-mática à experiência com a formulação da distinção entre qualida-des primárias – forma, figura, número, movimento e contato – equalidades secundárias – cor, odor, sabor, som (GALILEI, 1933[1623], p. 347-52; 1973 [1623], p 217-20). Estas últimas qualidades,segundo Galileu, não residem no corpo observado, mas no obser-vador; como só possuem uma existência assegurada pela subjetivi-dade perceptiva, são apenas “nomes” para sentimentos ou afecçõessentidas pelo sujeito da percepção. Por outro lado, as qualidadesprimárias que não podem ser eliminadas, pois participam necessa-riamente do conceito de corpo físico, existem nele como elementoracional passível de tratamento matemático.

A distinção entre qualidades primárias e secundárias, inaugu-rada por Galileu, propõe, de modo claro, a eliminação das qualida-des subjetivas e reduz a natureza a termos quantitativos, isto é,passíveis de tratamento matemático e de determinação experimen-tal. A redução drástica do variegado feixe de qualidades sensíveis

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àquelas que podem receber tratamento matemático é representa-tiva não só da assimilação do espaço físico qualitativamente dife-renciado ao espaço geométrico homogêneo, assimilação que ex-pressa emblematicamente a perspectiva da matematização danatureza, mas se constitui, sobretudo, como a circunscrição dabase ontológica indispensável para proceder à mecanização daconcepção da natureza e do mundo (cf. MARICONDA; VASCON-CELOS, 2006, p. 108-14).

5. A AUTONOMIA DA CIÊNCIA E A UNIVERSALIDADE DOMÉTODO CIENTÍFICO

Há, finalmente, uma quarta consideração historicamente im-portante que também se liga à firme adesão de Galileu aoheliocentrismo e que diz respeito ao que é conhecido como o casoGalileu, isto é, aos episódios de condenação de Copérnico, em 1616(GALILEI, 1932 [1613-1616]; NASCIMENTO, 1988; MARICONDA,2000) e de Galileu, em 1633, pela Inquisição romana (FAVARO, 1938;PAGANI; LUCIANI, 1994). Neste aspecto, a defesa galileana dacosmologia copernicana adquire um maior alcance cultural queultrapassa as fronteiras do campo científico, adquirindo uma di-mensão intelectual efetiva.

Vista sob este ângulo, o principal significado da adesão galileanaao copernicanismo está na sua rejeição explícita do critério de au-toridade – seja da autoridade de Aristóteles, seja da autoridade dasSagradas Escrituras – como critério de verdade nas questões cientí-ficas e sua conseqüente defesa da liberdade de pesquisa científica.6

Essa defesa da liberdade de pesquisa científica, que pode serresumida na afirmação de Galileu de que a verdade das concep-ções científicas – em particular, a verdade da teoria de Copérnico –deve ser decidida por experiências sensíveis e demonstrações ne-cessárias, corresponde, em grande medida, a um programa políti-

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co-cultural que, partindo de uma cuidadosa separação dos domí-nios da teologia e da ciência, tinha um duplo objetivo (GEYMONAT,1984). Em primeiro lugar, procurava afastar a objeção de que o sis-tema copernicano – principalmente no que diz respeito a suas tesesda centralidade do Sol e da mobilidade da Terra – era contrário àsSagradas Escrituras, a qual o colocava, do ponto de vista da ortodo-xia teológica (estabelecida pelo Concílio de Trento), sob a gravesuspeita de heresia. E, em segundo lugar, tinha a clara intenção deevitar que a Igreja se opusesse ao progresso da nova ciência ali-nhando-se com seus opositores tradicionalistas, que impediam adifusão das novas idéias nas universidades, obstruindo assim a or-ganização comunitária e a institucionalização das novas discipli-nas científicas. Digamos que Galileu pretendia que é possível serum bom católico e, ao mesmo tempo, ser copernicano. É possívelacreditar em Deus, seguir a Bíblia e, mesmo assim, provar que aTerra se move.

A resposta de Galileu ao problema da suposta incompatibili-dade entre a teoria de Copérnico e a Bíblia consiste, pois, em consi-derar primeiramente que, nos assuntos naturais, não pode ser atri-buída às Escrituras uma autoridade superior àquela da próprianatureza (GALILEI, 1932 [1613-1616], p. 283; 1988, p. 19). Como,além disso, a ciência matemática da natureza possui um métodoindependente (autônomo) de aferir a verdade e de chegar a deci-sões racionais nas polêmicas acerca de questões naturais, ela nãoprecisa apoiar-se em nenhuma autoridade exterior a sua própriaesfera de competência. A autonomia da ciência está, assim, assen-tada numa tese de suficiência do método científico para aferir averdade das teorias naturais mediante um escrutíneo crítico basea-do em “experiências sensíveis” e “demonstrações necessárias”, es-tas últimas identificadas por Galileu com o raciocínio demonstrati-vo matemático (cf. GALILEI, 2003; MARICONDA, 2003, p. 70-3).

Este é o lugar para lembrar que os pronunciamentosmetodológicos de Galileu coincidem em reiterar que o método ci-

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entífico consiste numa combinação peculiar de experiência comraciocínio matemático. Em geral, entretanto, eles não vão além daafirmação de que o método científico está composto por experiên-cias sensíveis e demonstrações necessárias. No Diálogo sobre os doismáximos sistemas do mundo, por exemplo, o papel das experiênciassensíveis está articulado em torno do que Galileu considera como oprincípio empirista de Aristóteles, segundo o qual “a experiênciasensível deve ser anteposta a qualquer discurso fabricado pelo en-genho humano” (GALILEI, 2004 [1632], p. 113, p. 131-2, nota 39).Esse mesmo tipo de consideração reaparece, muitos anos mais tar-de, em uma carta de 1640, na qual o aspecto crítico do princípioempirista, tal como interpretado por Galileu, é ressaltado, pois “an-tepor a experiência a qualquer discurso” é um preceito “há muitotempo anteposto ao valor e à força da autoridade de todos os ho-mens do mundo, à qual V. Sa. mesma admite que não só não deve-mos ceder à autoridade dos outros, mas devemos negá-la a nós mes-mos, toda vez que encontramos que o sentido nos mostra o contrá-rio” (GALILEI, 2003, p. 76). Fica evidente que a parte do métodoreferente às experiências sensíveis, expressa pelo princípio de “ante-por a experiência a todo discurso”, serve de antídoto para o recursoà autoridade. É o escrutíneo crítico pela experiência que torna o mé-todo científico livre de toda e qualquer autoridade, até mesmo da-quela do autor do discurso (cf. MARICONDA, 2003, p. 71-3).

Convém, entretanto, ter claro que Galileu não reivindica qual-quer inovação no método da ciência, ou antes, nunca reivindicaanterioridade ou precedência em questões metodológicas. As ques-tões de precedência em que Galileu se envolveu são todas propria-mente científicas: ou observacionais ou de conteúdo conceitual deteses teóricas que envolvem a análise matemática da experiência,como, por exemplo, a determinação da trajetória parabólica dosprojéteis. Nesse sentido, Galileu não pretende reformar o Organon,como o faz Francis Bacon, nem dar ao método um domínio próprioe um tratamento sistemático, propondo-o como propedêutica ao

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conhecimento científico, como o fará Descartes. O que Galileu faz éreivindicar a suficiência do método científico para decidir acercadas questões naturais, para as quais se pode usar a experiência, odiscurso e o intelecto, em suma, para as quais se pode empregar arazão natural (GALILEI, 1932 [1613-1616], p. 284; 1988, p. 20).

Por fim, dado que a natureza prevalece sobre a Escritura, poisnem tudo que está escrito nesta última “está ligado a obrigaçõestão severas como cada efeito da natureza” (GALILEI, 1932 [1613-1616], p. 283; 1988, p. 19), e dado que a ciência emprega um métodoautônomo para aferir a verdade das concepções naturais, que é tam-bém o único método acessível à capacidade humana, as conclusõesnaturais devem não só prevalecer sobre a letra da Escritura, mastambém servir de base para a determinação de seu verdadeiro senti-do. Ou seja, como diz Galileu: “[...] é ofício dos sábios expositoresafadigar-se para encontrar os verdadeiros sentidos das passagenssacras concordantes com aquelas conclusões naturais das quais pri-meiramente o sentido manifesto ou as demonstrações necessáriastornaram-nos certos e seguros” (GALILEI, 1932 [1613-1616], p. 283;1988, p. 19-20). Desse modo, Galileu associa à suficiência do métodocientífico a afirmação da universalidade do juízo científico.

A polêmica teológico-cosmológica, desenvolvida entre 1613 e1616, transcende claramente o nível interno do campo científicopara apresentar aspectos externos de cunho intelectual e político.Nesse sentido, a defesa do copernicanismo não é apenas uma ques-tão de preferência teórica, a ser julgada com base em padrões estri-tamente científicos, pelo sistema copernicano em detrimento do sis-tema ptolomaico ou do sistema de Tycho Brahe, mas é fundamen-talmente uma polêmica que envolve a transformação mesma dospadrões de juízo científico e uma nova circunscrição do campo ci-entífico. Ambos os aspectos conduzem inevitavelmente a uma atu-ação no domínio mais amplo da cultura e da organizaçãoinstitucional das disciplinas e “carreiras profissionais” nas univer-sidades da época. Assim, Galileu defende não só que a ciência pos-

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sui um método suficiente que torna os seus juízos independentes(livres) do princípio da autoridade teológica, mas também afirmaincisivamente, como é de se esperar no caso da defesa de autono-mia de um campo ou disciplina científicos, a universalidade do seujuízo, pois os intérpretes da Bíblia devem procurar adequar seuscomentários às verdades estabelecidas pela ciência ou ainda abs-ter-se de produzir juízos sobre assuntos que podem vir a ser con-traditos pelo conhecimento obtido pela razão natural.

Após um penoso julgamento, Galileu foi obrigado, pelaInquisição Romana, em 1633, a abjurar sua defesa do sistemacopernicano, vitimado não só pela intriga de seus opositores, masprincipalmente pela firme disposição da Contra-reforma em man-ter a ortodoxia teológica católica contra, de um lado, as igrejas nas-cidas com a Reforma e, de outro, contra toda forma suspeita deheterodoxia das forças progressistas e leigas da nova ciência. A con-denação de Galileu significou obviamente a falência da parte polí-tico-institucional do ambicioso programa galileano, mas não reti-rou dele seu profundo alcance cultural, que se expressa na claraconsciência da independência dos padrões de julgamento das rea-lizações científicas com relação aos padrões teológicos impostospelas instituições eclesiásticas e com relação aos padrões valorativosbaseados na autoridade de Aristóteles e defendidos pela tradiçãodas universidades.

Cabe, portanto, a Galileu também o mérito de ter percebidocom admirável clareza que a independência dos padrões científi-cos de julgamento e a conseqüente liberdade de pesquisa científicaeram fundamentais para a formação de comunidades científicas epara o processo de institucionalização através dos quais a nova ci-ência se consolidaria nos Estados Modernos durante os séculos XVII

e XVIII. A ciência moderna nasce e prospera sobre as ruínas doautoritarismo e só passará a integrar os currículos universitáriosno século XVIII, principalmente depois da Revolução Francesa.

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6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

As quatro características, que se mostrou estarem presentes naobra de Galileu, revelam que a imagem comum do pisano comofundador da física clássica e do método experimental é bastanteadequada, exceto por atribuir ao indivíduo mais do que ele podeefetivamente fazer, porque, com efeito, a criação da física clássica ea invenção do método experimental são processos histórico-sociaisque dependem do concurso dos humanos. São, nesse sentido, cole-tivos, pois dependem, para efetivar-se, de colaboração e organiza-ção. Ainda assim, Galileu, como homem de sua época, é daquelaestirpe de indivíduos que personifica um certo ethos, um certo con-junto de práticas e procedimentos, conjunto esse, em seu caso,definidor de um estilo científico característico da primeiramodernidade (cf. MARICONDA; VASCONCELOS, 2006, p. 210-6).É inegável que, com Galileu, nasce uma nova figura no cenário in-telectual e cultural, a figura do cientista (cf. MARICONDA, 1989;MARICONDA; VASCONCELOS, 2006, 14-19); ou, melhor dito,nasce, nos séculos XVI e XVII, uma nova atividade intelectual, a ci-entífica, da qual Galileu é, sem dúvida, um dos mais expressivosrepresentantes.

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NOTAS

1 É suficiente, neste ponto, alertar que não será apresentada uma discussão detalhada das dife-renças entre minha posição e a de Koyré. De qualquer modo, minha posição está mais próxi-ma das de Clavelin (1996) e Geymonat (1984), no sentido de que, como eles, atribuo à experi-ência um papel bem mais central do que aquele que Koyré está disposto a atribuir, além deque vejo a atividade científica de Galileu como um amálgama de matemática e experiência,em uma perspectiva de análise convergente com a perspectiva de Dijksterhuis (1986).

2 Cabe comentar que, apesar da profunda admiração de Galileu por Arquimedes (287-212a.C.) e da poderosa influência que o siracusano exerceu no início da carreira de Galileu, énotável a diferença de exposição entre Galileu e Arquimedes. Com efeito, o estudo queArquimedes realiza das condições de equilíbrio (isto é, de flutuação) de corpos sólidosimersos em líquidos, em Dos corpos flutuantes, e de equilíbrio de corpos sólidos postos noplano inclinado, em Do equilíbrio dos planos, nunca faz menção a qualquer das inumeráveisconseqüências práticas que decorrem de princípios mecânicos como os da balança, da ala-vanca e do plano inclinado (cf. ARQUIMEDES, 1974a; 1974b). Ao contrário, Galileu trabalhasempre com as conseqüências práticas em primeiro plano, como, por exemplo, quandopropõe o experimento do pêndulo para dar plausibilidade física ao princípio do movimen-to, segundo o qual corpos que caem da mesma altura caem com a mesma velocidade inde-pendentemente das diferenças de peso existentes entre eles (cf. GALILEI, 1988 [1638], p.167-9; MARICONDA; VASCONCELOS, p. 240-2).

Recebido em: abril de 2006Aprovado em: junho de 2006

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3 Essas obras constituíam, na verdade, catálogos de fenômenos ópticos considerados comoefeitos de poderes e qualidades naturais ocultos. É fácil entender que Galileu não tivesseinteresse por essa direção de pesquisa mais mágica e, no caso de Della Porta, até mesmo nosentido de ilusionismo.

4 São várias as passagens em que Aristóteles trata da classificação das ciências. As mais im-portantes são as seguintes: Tópicos, VI, 6, 145a15; VIII, 1, 157a10; Ética nicômaca, I, 2, 1104a1-8;VI, 2, 1139a27-8; Metafísica, VI, 1, 1025b25; 1026a10-3; Física, II, 2 e De anima, I, 1, 403b12-17.Todas essas obras e passagens podem ser consultadas em Barnes, 1991.

5 Trata-se, com efeito, do nascimento da razão instrumental, que é um longo processo cultu-ral e não pode ser atribuído a um só autor. Para o nascimento da razão instrumental contri-buíram muitos autores: Francis Bacon, René Descartes, Marin Mersenne etc., além de, obvi-amente, Galileu Galilei.

6 Para uma análise circunstanciada dos dois processos inquisitoriais, ver Mariconda, 2000.Com relação ao processo de 1613-1616, pode-se consultar Mariconda e Vasconcelos, Cap. 4.Para uma discussão detalhada da questão da liberdade da pesquisa científica em Galileu,ver Mariconda e Lacey, 2001.

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A quinta jornada dos Discorsi de Galileo:nova base para a Teoria das Proporções

Júlio Vasconcelos

Doutor em Filosofia; professor da Universidade Estadual deFeira de Santana. E-mail: [email protected]

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Abstract. After being condemned in1633 due to his defense ofCopernican astronomy, GalileoGalilei decided to reorganize hisstudies on motion and on strengthof materials, and in 1638 had thempublished in the Discorsi eDimostrazioni Matematiche intorno adue Nuove Scienze. This masterpiecewas composed in four chapters orgiornate, and after its printing, Galileoand Torricelli worked together inorder to add a Giornata Quintadedicated to a new axiomaticapproach to the theory of proportionsinside Euclid’s Elements, the onlylegitimate mathematical tool in thefirst decades of the 17th century. Thepaper bellow aims to present ananalysis of this giornata, so as toprovide contemporary readers withits definitions, axioms andmathematical structure.

Key-words: Galileo – Torricelli –Discorsi – Proportions – Euclid.

Resumo. Após a condenação de1633, Galileo retoma seus estudos so-bre o movimento e sobre a resistên-cia dos materiais, redige e faz publi-car os Discorsi e DimostrazioniMatematiche intorno a due NuoveScienze, em 1638. A seguir, desejosode tornar mais acessíveis aos de suaépoca os fundamentos da teoria ma-temática que embasava suas duas“novas ciências”, associa-se ao discí-pulo Torricelli para compor uma al-ternativa de sistematizaçãoaxiomática para a teoria das propor-ções dos livros V e VI dos Elementosde Euclides. Essa alternativa se encon-tra sob o título “Sopra le definizionidelle proporzioni d’Euclide” no vo-lume VIII das Opere de Galileo e umavez que se destinava a complemen-tar as quatro jornadas dos Discorsi, éconhecida como sendo a “Quinta Jor-nada” daquela obra. O texto a seguirtraz uma análise dessa giornata tardia,com vistas a explicitar para o leitorcontemporâneo a estrutura demons-trativa do sistema axiomático propos-to por Galileo e Torricelli para a teo-ria das proporções.

Palavras-chave: Galileo – Torriccelli– Discorsi – Proporções – Euclides.

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INTRODUÇÃO

A teoria das proporções que se encontra nos livros V e VI dosElementos é considerada o ponto alto da geometria euclidiana efoi, até o surgimento da moderna Álgebra e do Cálculo Diferenciale Integral, o principal instrumento matemático à disposição dosfilósofos da Natureza. As “duas novas ciências” de Galileo Galilei,como todos os desenvolvimentos significativos da ciência física atéNewton, nela se apóiam e dela retiram as principais ferramentasde demonstração.

Na primeira metade do século XVII, a geometria euclidianaera sinônimo de matemática, e dos contemporâneos de Galileo seesperava que conhecessem pelo menos os principais resultados dasdemonstrações euclidianas. Entretanto, se o conteúdo da maioriados livros dos Elementos não oferecia grande dificuldade de com-preensão, o mesmo não se podia dizer dos livros V e VI.

A admiração dos especialistas e os apuros dos estudantes co-muns tinham origem no mesmo aspecto básico da teoria das pro-porções: a de ser desenhada, estruturada, para grandezascomensuráveis e incomensuráveis1 . Atribui-se geralmente a Eudoxoa criação desta teoria que, entre outros méritos, teve o de tirar amatemática grega do estado de crise em que a descoberta dos inco-mensuráveis, pelos pitagóricos, a atirou. Ora, é justamente a neces-sidade de evitar as armadilhas da incomensurabilidade o motivo –parecem pensar Eudoxo e Euclides – pelo qual as definições e de-monstrações devem se afastar das intuições mais simples que so-mente às proporções entre comensuráveis se ajustam.

Galileo sabia dessas dificuldades e o desejo de tornar mais aces-síveis aos de sua época os fundamentos da teoria matemática queembasava suas duas “novas ciências” deve ter sido a forçamotivadora para, juntamente com seu discípulo Torricelli, dedicardias de sua velhice à redação de uma alternativa de sistematizaçãoaxiomática para a teoria das proporções.

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A quinta jornada dos discorsi de Galileo: nova base para a Teoria das Proporções

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Essa alternativa se encontra sob o título “Sopra le definizionidelle proporzioni d’Euclide” no volume VIII das Opere de Galileoe uma vez que se destinava a complementar as quatro jornadas dosDiscorsi e Dimostrazioni Matematiche intorno a due Nuove Scienze,o tratado físico-matemático que Galileo fez publicar em 1638, é co-nhecida como sendo a “Quinta Jornada” daquela obra. Foi publicadapela primeira vez em 1674 numa coletânea organizada por VincenzoViviani, quando Galileo e Torricelli já não eram mais vivos, há cer-ca de trinta anos.

A leitura atenta dessa jornada mostra ser uma injustiça o es-quecimento a que os historiadores da matemática a relegaram. Comefeito, não é fácil encontrar Galileo e Torricelli citados como críti-cos e reformadores da teoria das proporções, e a estatura científicadesses grandes homens torna ainda menos compreensível estaomissão.

A análise que se apresentará a seguir pretende evidenciar queo sistema axiomático proposto por Galileo e Torricelli para a teoriadas proporções pode não ser dito inferior ao de Euclides pois, sepeca por certa prolixidade, como se verá, por outro lado é maispedagógico, de mais fácil compreensão, sem desprezo para com oideal de rigor formal irrepreensível.

AS DEFINIÇÕES E5-DEF5 E E5-DEF7 DOS ELEMENTOS

Entre as mais importantes definições do livro V dos Elementosestão seguramente as de números 5 e 7, aqui abreviadas respecti-vamente E5-Def5 e E5-Def7, que afirmam (EUCLIDES, 1956, v. II,p. 122/123):

E5-Def5 - Magnitudes são ditas estar na mesma razão, a pri-meira com a segunda e a terceira com a quarta, quando sequaisquer equimúltiplos forem tomados da primeira e daterceira, e quaisquer equimúltiplos o forem da segunda e da

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VASCONCELOS, Júlio

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quarta, os primeiros eqüimúltiplos conjuntamente excedemou igualam ou são menores que os últimos equimúltiplosrespectivamente tomados na ordem correspondente.

E5-Def7 - Quando, dos equimúltiplos, o múltiplo da primei-ra magnitude exceder o múltiplo da segunda, mas o múlti-plo da terceira não exceder o múltiplo da quarta, então a pri-meira é dita ter uma razão maior para com a segunda do quea terceira tem com a quarta.

Simbolicamente podemos expressar a definição E5-Def5 doseguinte modo: tem-se A : B :: C : D (leia-se: “A está para B assimcomo C está para D”) quando para quaisquer inteiros m, n

I - se (sempre) quando m.A > n.B se tiver m.C > n.DII - se (sempre) quando m.A = n.B se tiver m.C = n.DIII - se (sempre) quando m.A < n.B se tiver m.C < n.D

Se expressarmos as três condições acima através do símbolo“> = <”, num esforço de esquematizar o “conjuntamente excedemou igualam ou são menores” euclidiano, podemos assim escrever adefinição E5-Def5:

se m.A > = < n.B e m.C > = < n.D então A : B :: C : D

Esta implicação, entretanto, não esgota o significado da defini-ção: embora o enunciado euclidiano sugira somente o sentidoesquematizado acima, o acompanhamento das demonstrações dosElementos permite verificar que Euclides também emprega a defi-nição no sentido inverso, isto é:

Se A : B :: C : D então m.A > = < n.B e m.C > = < n.D

Nas linhas da análise que se seguem, esta implicação inversaserá abreviada E5-Def5i, reservando-se a abreviação E5-Def5 para

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o sentido explícito na definição euclidiana.A definição E5-Def7, por sua vez, pode ser assim abreviada,

usando-se “≤” para o “não exceder” euclidiano:

se houver pelo menos um par de inteiros m, n tais quem.A > n.B e m.C ≤ n.D então A : B > C : D.

À implicação inversa de E5-Def7 daremos a abreviação E5-Def7i.

De Morgan, no século XIX, propôs uma ilustração para elucidara idéia expressa pelas definições, imaginando colunas separadaspor uma distância C e, em frente a estas, uma grade cujas hastesestão separadas por uma distância H (EUCLIDES, 1956, v. II, p.122/123). Se H e C forem incomensuráveis, as colunas e as hastesnunca coincidirão, mesmo se seu número for aumentado adinfinitum. Não deve haver coincidência também num modelo re-duzido em que h e c são as distâncias correspondentes. E, se noesquema normal, a haste de número, por exemplo, 10.000 está en-tre as colunas 4674 e 4675, no esquema reduzido o mesmo ocorre .Isto é, se 10.000H > 4674C então tem-se também 10.000h > 4674c.

Se tal reciprocidade porventura não ocorrer, isto é, se houvervalores m e n tais que m.H > n.C e não m.h > n.c, então o modeloreduzido está fora de proporção, de modo que a razão H/C é dife-rente da razão h/c.

Com essa ilustração, De Morgan quer deixar claro que a com-preensão das definições E5-Def5 e E5-Def7 não envolve, mesmo paraos temíveis incomensuráveis, nada além de uma concepção primiti-va, “um dos mais comuns atos da mente” de qualquer principiante.

Não é só De Morgan que se impacienta com os críticos daque-las definições. Ainda no início do século XX, em 1901, Max Simonressalta que a definição de Euclides é análoga à definição deWeierstrass para números (reais) iguais. E é notável, diz Heath, quehaja “uma exata correspondência, quase coincidência, entre a defi-

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nição de Euclides para razões iguais e a moderna teoria dos irraci-onais devida a Dedekind” (EUCLIDES, 1956, v. II, p. 124/126).

Embora seja possível denunciar nas palavras de Heath e Simonum excesso de entusiasmo e um aparente desejo de reduzir os mé-ritos dos avanços de Dedekind e Weierstrass, as opiniões dessesespecialistas indicam que só dificilmente se pode fazer críticas aorigor formal e à simplicidade da teoria euclidiana das proporções.

AS DEFINIÇÕES ALTERNATIVAS DE GALILEO E TORRICELLIE SUA NOVA NOÇÃO COMUM

Galileo e Torricelli são cautelosos e não criticam as definiçõesda teoria euclidiana das proporções através da boca de Salviati, opersonagem que, no diálogo que atravessa os Discorsi, representaa postura do homem da ciência. Pelo contrário, fazem-no pronun-ciar um longo elogio à capacidade de Euclides de escolher as defi-nições mais fáceis, simples e inteligíveis dentre as diversas possí-veis para cada termo. Mas deixam que a voz respeitada, emboraleiga, de Sagredo – o personagem que representa o homem culto eaberto às novas concepções – lamente a dificuldade de compreen-são da definição E5-Def5, mesmo “tendo o leitor já concebido nointelecto que coisa é a razão (proporzione) entre duas grandezas”(GALILEI, 1933, v. VIII, p. 351).2

Como vimos, a réplica de De Morgan seria a de tentar mostrara Sagredo a simplicidade inerente à definição. Mas a solução dadapor Galileo e Torricelli, através das palavras de Salviati, é a de pro-por definições que julgam mais simples, uma “estrada mais fácil”inspirada pelo estudo das espirais de Arquimedes (GALILEI, 1933,v. VIII, p. 350).

A confiança na simplicidade do esquema é tal que Salviati es-colhe Simplício, o personagem aristotélico quase ignorante em ge-ometria, como interlocutor:

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SALV - ... Então nós diremos serem quatro grandezas pro-porcionais entre si, isto é, ter a primeira com a segunda amesma razão que tem a terceira com a quarta, quando a pri-meira for igual à segunda e a terceira também igual à quarta;ou quando a primeira for tantas vezes múltipla da segunda,quantas vezes precisamente a terceira é da quarta. Encontra-rá o Sr. Simplício alguma dúvida em entender isso?

SIMP - Certamente, não.

SALV - Mas uma vez que nem sempre ocorrer que entre asquatro grandezas se encontre a igualdade ou a multiplicidadeprecisa, seguiremos adiante e perguntarei ao Sr. Simplício:entendeis que as quatro grandezas então são proporcionaisquando a primeira contenha, por exemplo, três vezes e meiaa segunda e ainda a terceira contenha três vezes e meia aquarta?

SIMP - Entendo muito bem até aqui, e admito que as quatrograndezas são proporcionais não só no caso exemplificadopor V. Sa., mas ainda segundo qualquer outra denominaçãode multiplicidade que se queira, ou de número e quantidadeque contém um inteiro e alguma parte do mesmo(superparziente) ou partes singulares do mesmo(superparticolare).

SALV - Para reunir então, agora mais brevemente e com maioruniversalidade, tudo o que foi dito e exemplificado até aqui,diremos que:

Então nós entendemos quatro grandezas serem proporcio-nais entre si quando o excesso da primeira sobre a segunda(qualquer que esta seja) for similar ao excesso da terceira sobrea quarta (GALILEI, 1933, v.l VIII, p. 352).

A definição se aplica também, diz Salviati, quando a segunda ea quarta forem maiores, bastando para isso inverter os termos. Note-se que a enunciação final aplica-se também a incomensuráveis,embora os exemplos citados sejam de grandezas comensuráveis.

Entretanto, Salviati não esclarece em que consiste o “excessosimilar” quando se trata de grandezas incomensuráveis. Isso en-

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fraquece o caráter geral da definição, mas não impede sua aplica-ção efetiva em demonstrações, como veremos a seguir. Ressalte-se,por outro lado, seu papel pedagógico que, de certo modo, buscacolocar o conceito de proporcionalidade entre as concepções pri-mitivas, fazendo-o um “ato comum da mente” (mesmo a deSimplício, pouco treinado no raciocínio matemático), como tam-bém o fará De Morgan.

Conscientes, porém, da insuficiência desta definição, quedoravante será aqui abreviada por DEF-0, Galileo e Torricelli apre-sentam as definições que intitularemos DEF-1 e DEF-2:

SALV - Estabelecida esta definição, acrescentarei ainda emqual outro modo se entende serem proporcionais quatro gran-dezas entre si; e é este. Quando a primeira para ter com asegunda a mesma razão que a terceira (tem) com a quarta,não é nem maior nem menor, por um ponto que seja, daqui-lo que deveria ser, então se entende ter a primeira com a se-gunda a mesma razão que tem a terceira com a quarta. Apro-veitando a oportunidade definirei ainda a razão maior, e di-rei assim:

Mas quando a primeira grandeza for um tanto maior queaquela que deveria ser para ter com a segunda a mesma ra-zão que a terceira tem com a quarta, então quero queconvencionemos dizer que a primeira tem razão maior coma segunda que aquela que tem a terceira com a quarta(GALILEI, 1933, v. VIII, p. 353).

Estranhas definições! A primeira, especialmente, parece nadadefinir ... entretanto, vê-se, a seguir, que constituem ferramentaslegítimas de demonstração das primeiras proposições do sistemade Torricelli e Galileo.

Mas não é o momento de se passar às demonstrações, poisSalviati ainda quer apresentar a Simplício um axioma (assioma), umanoção comum:

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SALV - Agora, dizei-me, Sr. Simplício: se nós supusermosque as quatro grandezas A, B, C, D são proporcionais, isto é,que a primeira A tem com a segunda B a mesma razão que aterceira C tem para a quarta D, vós entendereis também queduas da primeira terão para com a segunda a mesma razãoque duas da terceira para a quarta?

SIMP - Eu o entendo assaz bem; pois que enquanto uma pri-meira tem com a segunda a mesma razão que a terceira paraa quarta, eu não teria como imaginar uma razão pela qualduas da primeira com a segunda devessem ter razão diversada que tem duas da terceira com a quarta (GALILEI, 1933, v.VIII, p. 354)3 .

Uma noção comum é tal que, como diz Simplício, é impossí-vel, em sã consciência, imaginar alternativa a ela. Poderíamos ex-pressar esse axioma em notação abreviada da seguinte maneira:

se A : B :: C : D então 2.A : B :: 2.C : D

AS DEMONSTRAÇÕES

Não é difícil para Salviati, fazendo uso do axioma acima, con-vencer Simplício da validade dos sucessivos passos listados a seguir:

a) se A : B :: C : D então n.A : B :: n.C : D sendo n ou “quatro oudez ou cem” ou qualquer multiplicidade;

b) se A : B :: C : D então A : m.B :: C : m.D;

c) se A : B :: C : D então n.A : m.B :: n.C : m.D.

Este último passo, a primeira proposição demonstrada da quin-ta jornada (doravante abreviada PROP-I), tem enunciado idênticoao da quarta proposição do livro V de Euclides. Note-se que ela

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aqui é conseqüência exclusiva da aplicação recorrente do axioma.E Galileo e Torricelli pretendem que a implicação inversa E5-Def5i– de Euclides – seja corolário de sua PROP-I, isto é, querem que seaceite perfeitamente compreensível que o passo seguinte é:

d) se A : B :: C : D então m.A > = < n.B e m.C > = < n.D

A tarefa de tornar d) aceitável é de Sagredo, que assim discorrelogo após a demonstração de PROP-I, abreviada em c):

SAGR - Confesso que quanto a isso estou inteiramente satis-feito; e agora entendo muito bem a necessidade pela qual osigualmente múltiplos das quatro grandezas proporcionaiseternamente se conciliam em serem ou maiores ou menoresou iguais, etc... Uma vez que, tomados os igualmente múlti-plos da primeira e da terceira e os igualmente múltiplos dasegunda e da quarta, V. Sa. me demonstra que o múltiplo daprimeira para com o múltiplo da segunda guarda a mesmaproporção que o múltiplo da terceira tem em relação ao múl-tiplo da quarta, vejo manifestamente que quando o múltiploda primeira for maior que o múltiplo da segunda, então omúltiplo da terceira deverá necessariamente (para obedecera proporção) ser maior que o múltiplo da quarta; quando,pois, for menor, ou igual, também o múltiplo da terceira de-ver ser menor, ou igual, ao múltiplo da quarta (GALILEI,1933, v. VIII, p. 355/356).

O que Sagredo está fazendo aqui é recorrer ao que de maissimples propõe a DEF-0, a saber, que se houver excesso, ou igual-dade, ou falta da primeira grandeza sobre a segunda, o mesmo ocor-rerá com a terceira em relação à quarta. Não há necessidade deusar o caráter “similar” das possíveis dessemelhanças para o usoefetivo da definição. Assim, aquela deficiência que denunciávamos,a do significado de “similaridade” para grandezas incomensurá-veis, não prejudica a legitimidade do uso da definição.

A seguir, Salviati demonstra a segunda proposição (PROP-II),

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equivalente à implicação inversa E5-Def7i dos Elementos (a figuraé de Galileo e Torricelli):

SALV - ... Ponham-se as quatro grandezas dadas AB, C, D, Ee seja a primeira AB um tanto maior que aquilo que deveriaser para ter com a segunda C aquela mesma razão que tem aterceira D com a quarta E: mostrarei que, tomados em certaparticular maneira os igualmente múltiplos da primeira e daterceira e tomados outros igualmente múltiplos da segundae da quarta, aquele da primeira se mostrará maior que aque-le da segunda, mas aquele da terceira não será analogamentemaior que aquele da quarta, pelo contrário, o demonstrareimenor.

Entenda-se então ser retirado da primeira grandeza ABaquele excesso que a faz maior do que deveria ser a fim deque fosse precisamente proporcional e seja FB tal excesso;restarão agora portanto as quatro grandezas proporcionais,isto é, a remanescente AF terá com a C a mesma razão quetem D com E.

Multiplique-se FB tantas vezes até que ela seja maior do queC e seja este múltiplo o assinalado HI; tome-se então HL porsua vez múltiplo da AF e também M da D, precisamente omesmo número de vezes que HI for tomada de FB. Feito isso,não há dúvida alguma que tantas vezes será múltipla a com-posta LI da composta AB, quantas vezes a HI é de FB ou a Mé de D.

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Tome-se agora a N múltipla da C com tal lei, que a própria Nseja aproximadamente maior que a LH; e por fim, quanto formúltipla a N da C, do mesmo modo ponha-se a O múltiplada E.

Agora, sendo a múltipla N proximamente maior que a LH,se nós da N entendermos ser retirada uma das suas grande-zas componentes (que será igual à C), restará um resíduonão maior do que LH. Se então restituirmos à própria N agrandeza igual à C (que entendemos ter sido retirada) e àLH, que é não menor que o dito resíduo, ajuntarmos a HI,que por sua vez é maior que a acrescentada a N, a toda LIserá maior do que a N.

Eis então um caso no qual o múltiplo da primeira supera omúltiplo da segunda. Mas tendo sido as quatro grandezasAF, C, D, E, feitas proporcionais por nós, e tendo-se tomadoos igualmente múltiplos LH e M da primeira e da terceira, eN e O da segunda e da quarta, serão esses (pelas coisas jáestabelecidas acima) sempre concordes no ser maiores oumenores ou iguais; entretanto, sendo o múltiplo LH da pri-meira menor que o múltiplo N da segunda, pela nossa cons-trução, será também necessariamente o múltiplo M da ter-ceira menor que o múltiplo O da quarta.

Assim está, por conseqüência, provado que enquanto a pri-meira grandeza for um tanto maior do que deveria ser parater com a segunda a mesma razão que tem a terceira com aquarta, então será possível tomar em um certo modo os igual-mente múltiplos da primeira e da terceira e outros igualmentemúltiplos da segunda e da quarta, e demonstrar que o múl-tiplo da primeira excede o múltiplo da segunda, mas o múl-tiplo da terceira não excede o da quarta (GALILEI, 1933, v.VIII, p. 356/357).

A demonstração acima pode ser esquematizada como segue:

Hipóteses - Sejam AB, C, D, E; AB é maior do que deveria serpara que se tivesse AB : C :: D : E

Tese - existem “m”, “n” inteiros tais que m.(AB) > n.C e m.D ≤ n.EDemonstração

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1. Retire-se o excesso FB de AB restando AF;2. pela DEF-I, se AF não é nem maior nem menor do que de-

veria ser para a proporcionalidade então AF : C :: D : E;3. tome-se “m” tal que m.(FB) > C;4. construam-se (HI) = m.(FB),

M = m.D,(LH) = m.(AF);

5. então LI = LH + HI = m.(AF + FB) = m.(AB);6. tome-se “n” tal que n.C > (LH) ³ (n - 1).C;7. construam-se N = n.C e O = n.E;8. como (LH) ³ (n - 1).C ou, de outro modo

(LH) ³ n.C - C ou, de outro modo(LH) ³ N - C

e como (HI) > Centão (LH) + (HI) > N - C + C ou, de outro modo (LI) > N;

9. como n.C > (LH) ou, de outro modon.C > m.(AF) ou, invertendom.(AF) < n.C

e como AF : C :: D : E,então, pelo corolário d) anterior, m.D < n.Eou, de outro modo M < O;

10.temos então LI > N e M < O ou, de outro modom.(AB) > n .C e m.D < n.E, c.q.d.

O recurso notável de que se utiliza a demonstração acima éaquele, no passo 9, feito ao corolário d) ; podemos assim dizer quea proposição deriva daquele corolário. Note-se que uma inspeçãodas hipóteses esquematizadas acima desta PROP-II deixa evidenteque ela não equivale à implicação inversa da definição E5-Def7 deEuclides a não ser que se tenha estabelecido a definição DEF-2 dosistema axiomático alternativo de Galileo e Torricelli.

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Estabelecidas as implicações inversas das definições E5-Def5 eE5-Def7 dos Elementos, torna-se fácil demonstrar as proposiçõesPROP-III e PROP-IV, respectivamente equivalentes a essas defini-ções. A seguir estão os esquemas das demonstrações apresentadasna “Giornata Quinta” dos Discorsi:

PROP-III

Hipóteses - Sejam as grandezas A, B, C, D tais que para quais-quer inteiros m, n, se tem m.A > = < n.B e m.C > = < n.D

Tese - A : B :: C : DDemonstração1. Suponha-se que não se tem A : B :: C : D, suponha-se, por

exemplo, A : B > C : D2. Então, pela proposição PROP-II, há m, n tais que

m.A > n.B e m.C ≤ n.D3. Mas isso contraria a hipótese, portanto A : B é não maior

que C : D4. Analogamente, demonstra-se que C : D é não maior que A : B5. Portanto A : B :: C : D c.q.d.

PROP-IV

Hipóteses - Sejam as grandezas A, B, C, D e inteiros m, n taisque mA > nB e mC ≤ nD

Tese - A : B > C : DDemonstração1. Suponha-se A : B :: C : D2. Então, pelo corolário d) da proposição PROP-I, teríamosm.A > = < n.B e m.C > = < n.D para quaisquer inteiros m, n3. Mas isso contraria a hipótese, portanto A: B não é igual a C : D4. Suponha-se então A : B < C : D5. Então há um E < C tal que A : B :: E : D

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6. E como mA > nB, por hipótese, então, pelo corolário d) daPROP-I, mE > nD

7. Mas C > E, portanto m.C > m.E e também m.C > n.D8. Mas isso contraria a hipótese, portanto A : B não é menor

que C : D9. Portanto A : B > C : D c.q.d.Observe-se que o passo 5 se beneficia da conversa do enuncia-

do na definição DEF-2, pois sendo C : D > A : B então C é maior doque deveria ser, um certo E, para que a proporção fosse exata.

Aqui termina a reordenação proposta por Galileo e Torricellipara as bases axiomáticas da teoria euclidiana das proporções. Afim de facilitar a apreensão desta estrutura alternativa, dela se apre-senta a seguir um quadro esquemático.

RAZÃO COMPOSTA

A missão pedagógica da ‘Giornata Quinta’ ainda não acabou:resta esclarecer o significado da composição de razões. Há umadefinição da razão composta em algumas edições dos Elementos;ela é citada por Galileo e Torricelli, com as seguintes palavras: “En-tão uma razão se diz compor-se de mais razões, quando as quanti-dades das ditas razões multiplicadas juntas produzem alguma ra-zão” (GALILEI, 1933, v. VIII, p. 359).

Esta é a mesma definição cuja autenticidade estudiosos comoHeath põem em dúvida (EUCLIDES, v. II, p. 189/190). E Torricelli e

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Galileo, profundos conhecedores dos Elementos, também duvidamque ela seja de autoria de Euclides: já que nem este nem ‘nenhumoutro autor antigo dela se serve no modo pelo qual está colocadano livro’, pela voz de Sagredo levantam a suspeita de que ela tenhasido ‘adicionada por outros, ou pelo menos alterada de tal modoque hoje em dia não se reconheça mais’ (GALILEI, 1933, v.VIII, p.359).

Mas, de fato, não há necessidade dela, já que, como Salviati vaiexplicar a Simplício, dadas duas grandezas A, B e uma outra C,todas do mesmo tipo, simplesmente se chama a razão entre os ex-tremos A, B de composta das razões intermediárias entre A,C e en-tre C,B. Simplício insiste em entender porque ‘composta’ e Salviatirebate:

Mas aqui, por fim, não cabem contemplações nem demons-trações, na medida em que se trata de uma simples imposi-ção de nome. Se a V.Sa. não agrada o vocábulo ‘composta’,podemos chamá-la incomposta, ou misturada (impastata),ou confusa, ou de qualquer modo que mais agrade a V.Sa;somente devemos nos por de acordo quanto a isto, já quequando tivermos três grandezas do mesmo gênero e eu citara razão incomposta, ou misturada ou confusa, estarei que-rendo entender a razão que têm (entre si) os extremos da-quelas grandezas e não outra coisa (GALILEI, 1933, v. VIII,p. 361).

Galileo e Torricelli percebem que Euclides estrutura a demons-tração de E6-23 de modo a não precisar nada além desse “nome”:

SAGR.- Tudo isso entendo muito bem; anteriormente, maisde uma vez, já observei o artifício de Euclides na proposiçãoem que demonstra que os paralelogramos eqüiângulos têma razão composta das razões dos lados. Ele se encontra, na-quele caso, com as duas razões componentes possuindo qua-tro termos, que são os quatro lados dos paralelogramos; en-tretanto ordena que aquelas duas razões se coloquem em trêstermos somente, de maneira que uma daquelas razões seja

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entre o primeiro termo e o segundo, a outra seja entre o se-gundo e o terceiro; depois, na demonstração, não faz nada anão ser mostrar que um paralelogramo está para o outro comoo primeiro termo está para o terceiro, isto é, na razão com-posta de duas razões, daquela que tem o primeiro termo como segundo e da outra que tem o segundo com o terceiro, asquais são aquelas duas razões que inicialmente ele tinha se-parado nos quatro lados dos paralelogramos (GALILEI, 1933,v. VIII, p. 361).

O perspicaz artifício de Euclides, assim, evita a necessidade dese referir a produtos de razões, bastando usar a definição que Salviatiinsiste com Simplício ser só uma imposição de nome. E esta podeser ampliada:

i) A:D é composta de A:B, B:C e C:D.ii) A:E é composta de A:B, B:C, C:D e D:E.iii) e assim por diante.

Quando as razões intermediárias são todas iguais, tem-se aschamadas razões duplicadas, triplicadas etc...:

a) se A:B = B:C então A:C é composta de duas razões iguais e éassim chamada razão duplicada.

b) analogamente se A:B = B:C = C:D então A:D é composta detrês razões iguais e é chamada razão triplicada.

Galileo e Torricelli ainda não estão satisfeitos, pois resta explicara definição espúria; e já que todos os retângulos são paralelogramosequiangulares, eles a podem converter num corolário da vigésimaterceira proposição do Livro VI dos Elementos (a figura é deles pró-prios, Galileo e Torricelli):

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Cadernos de Ciências Humanas - Especiaria.v. 9, n.16, jul./dez., 2006, p. 293-312.

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SALV.- [...] Tomem-se duas razões, uma das quais seja nostermos A,B, a outra nos termos C,D. Diz a definição vulgarque a razão composta destas duas razões se terá se multipli-carmos entre si as quantidades destas razões. Eu concordocom o Sr. Simplício ser esta uma proposta difícil de entendere carente de prova; entretanto com pouca fadiga nós a de-monstraremos assim. Se os quatro termos das duas razõesnão fossem linhas, mas outras grandezas, imaginemos queeles sejam postos em (isto é, substituídos convenientementepor) linhas retas. Faça-se depois dos dois antecedentes A,Cum retângulo, bem como dos dois conseqüentes B,D um ou-tro retângulo: é claro , pela 23 do sexto de Euclides que oretângulo feito das (linhas) A,C com o retângulo feito das(linhas) B,D ter aquela razão que é composta das duas ra-zões A para com B e C para com D, as quais são aquelas duasque tomamos no princípio a fim de encontrar a razão queresultava de sua composição, fosse essa qual fosse. Sendoportanto a razão composta das razões de A para com B e deC para com D aquela que tem o retângulo AC para o retãnguloBD, pela supracitada proposição 23 de sexto, eu pergunto aoSr. Simplício como fizemos para encontrar aqueles dois ter-mos, nos quais consiste a razão buscada por nós.

SIMP.- Eu não creio que tenha sido feita outra coisa, se nãoformar dois retângulos com aquelas quatro linhas postas aprincípio; um, a saber, com os antecedentes A,C e o outrocom os conseqüentes B,D.

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A quinta jornada dos discorsi de Galileo: nova base para a Teoria das Proporções

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SALV.- Mas a formação dos retângulos nas linhas da geome-tria corresponde precisamente à multiplicação dos númerosna aritmética, como sabe qualquer matemático mesmo prin-cipiante; e as coisas que nós multiplicamos foram as linhasA,C e as linhas B,D, isto é, os termos homólogos das razõespostas. Eis portanto como, multiplicando juntas as quanti-dades ou valores das razões simples dadas, se produz a quan-tidade ou o valor da razão a qual, a seguir, se chama com-posta daquelas” (GALILEI, 1933, v. VIII, p. 362).

Encerra-se com estas palavras a jornada. É pena que os estudio-sos dos Elementos não lancem os olhos sobre este opúsculo, pequenoem extensão, mas profundo em suas análises e comentários relativos àteoria euclidiana das proporções; afinal, não se pode nunca fechar osouvidos às palavras de matemáticos da estatura de Galileo e Torricelli.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

EUCLIDES. The Thirteen Books of the Elements. New York: Dover, 1956.

GALILEI, Galileo. Opere. Firenze: G. Barbera, 1933.

VASCONCELOS, Júlio. Uma Análise da teoria dos projéteis dos Discorsi deGalileo. Dissertação (Mestrado em Filosofia). FFLCH-USP, São Paulo, 1992.

NOTAS

1 São, por exemplo, incomensuráveis, isto é, não têm uma medida comum da qual sejammúltiplos ou partes alíquotas (frações próprias), o lado do quadrado e sua diagonal.

2 Galileo e Torricelli usam geralmente a palavra “proporzione” no sentido de “razão entre duasgrandezas”, e não como o leitor do século XX está acostumado a empregar, no sentido de“igualdade entre razões”

3 Embora hoje utilizemos o termo ‘axioma’ como um equivalente de ‘postulado’, é convenien-te relembrar que na matemática de Euclides um axioma é uma noção comum, isto é, algocompartilhado por todas as ciências.

Recebido em: abril de 2006Aprovado em: junho de 2006

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Mestre em Filosofia pela UNICAMP, Professor do Depto. de Filosofia daUniversidade Estadual do Centro-Oeste. E-mail: [email protected].

Galileu e as cartas sobre as manchassolares:a experiência telescópica contra

a inalterabilidade celeste

Marcelo Moschetti

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Abstract. The first series of celestialobservations performed by Galileousing the telescope was published inthe Sidereus nuncius in 1610. In thatwork, he deals with the irregularityof the moon’s relief, with Jupiter’ssatellites and the possibility ofobserving stars that couldn’t be seenwith naked eye. Another series ofobservations, mainly related to thesunspots, which constitutes thegreatest empirical evidence forchanges in the world beyond themoon, is found in three letters sent toMarco Welser and published underthe name Istoria e dimostrazioni intornoalle macchie solari in 1613. In the work,discussing with Christoph Scheiner,the author presents, besides the issuementioned in the title and othertelescopical observations, some cluesto his more general phisical,cosmological and epistemologicalconceptions, as, for example,conservation of motion, arrangementand behavior of the celestial bodiesand the need for mathematics in thestudy of nature, providing a firstpresentation of some main ideas inthe galilean project.

Keywords: Solar spots – Cosmology– Astronomy - Philosophy of nature– Galileo.

Resumo. O primeiro grupo de ob-servações celestes feitas por Galileucom o auxílio do telescópio foi publi-cado no Sidereus nuncius em 1610.Nessa obra, ele trata da irregularida-de do relevo lunar, dos satélites deJúpiter e da possibilidade de obser-var estrelas invisíveis a olho nu. Ou-tro grupo de observações referentes,principalmente, às manchas solares,que constitui a maior evidênciaempírica de alterações no mundo su-pra-lunar, está contido em três cartasde Galileu a Marco Welser, publicadascom o nome de Istoria e dimostrazioniintorno alle macchie solari em 1613. Naobra, em polêmica com ChristophScheiner, o autor apresenta, além doassunto descrito no título e de outrasobservações telescópicas, alguns in-dícios de suas concepções físicas,cosmológicas e epistemológicas maisgerais, como, por exemplo, a conser-vação do movimento, a disposição eo comportamento dos astros e a ne-cessidade da matemática no estudoda natureza, proporcionando umaprimeira apresentação de algumasidéias centrais do projeto galileano.

Palavras-chave: Manchas solares –Cosmologia – Astronomia - Filoso-fia da natureza – Galileu.

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MOSCHETTI, Marcelo

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INTRODUÇÃO

Desde a divulgação do modelo heliocêntrico de NicolauCopérnico, sua aceitação como a descrição verdadeira do universoimplicava o abandono do conjunto da física aristotélica. Entre osprincípios mais fundamentais da cosmologia aristotélica estavam:a idéia de que no céu não existe qualquer tipo de mudança além doeterno movimento circular; e a localização da Terra, onde as mu-danças acontecem, no centro do cosmo. Segundo Copérnico, a Ter-ra se move através do céu com todas as alterações que nela verifi-camos cotidianamente. Dessa maneira, não era possível defenderCopérnico e, ao mesmo tempo, manter a distinção entre a Terraalterável e o céu inalterável. Por isso, não é espantoso que oscopernicanos recebessem com satisfação qualquer evidência quecausasse problema a tais princípios. Entre essas evidências contrá-rias destacam-se as manchas solares, devido principalmente à pos-sibilidade de se fazer essas observações a qualquer momento, sema necessidade de aguardar o surgimento de algo inusitado como oscometas e as “novas” de 1572 e 1604. Os cometas e as “novas” cer-tamente estavam entre as evidências que levaram Tycho, Kepler eo próprio Galileu a recusar a inalterabilidade celeste. Ainda assim,sua ocorrência eventual e sua aparente independência de outroseventos astronômicos levaram a interpretações dúbias por partedos astrônomos. Tycho, por exemplo, os considerava “milagres” e“portentos miraculosos”, ou seja, eventos que ocorrem à margemdas leis naturais, fruto da onipotência divina e com sentido de men-sagem aos homens. A posição dúbia de Tycho pode ser expressaem seus próprios termos: “deveria antes ser considerado um por-tento miraculoso que tal nascimento ocorra nos céus, que são com-postos do mais sutil, mais translúcido dos elementos” (BRAHE,1979, p. 133). Essa passagem tampouco indica Tycho como um de-fensor da inalterabilidade celeste. No mesmo texto ele diz que “essemilagre [a nova de 1572] tornou necessário para nós o abandono

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da opinião de Aristóteles e a aceitação de outra: que algo novotambém pode surgir nos céus” (BRAHE, 1979, p. 133). Diante dessadificuldade, algo de ocorrência cotidiana como as manchas sola-res significava um tipo de evidência muito mais confiável e per-suasivo.

Há registros históricos da observação a olho nu de manchas noSol. Tais registros não são abundantes, já que só manchas extrema-mente grandes podem ser vistas sem o telescópio e a ocorrência demanchas com tal magnitude é raríssima. Entretanto, é necessárioressaltar que para que uma observação das manchas solares tives-se a relevância que teve a de Galileu, ela deveria estar presente nocontexto da negação da cosmologia aristotélica, e ainda, para serconclusiva, dependeria de um programa de observações cuidado-so como o galileano, de modo a descartar outras possibilidades. Oocidente medieval interpretou as manchas como a passagem deMercúrio ou Vênus sobre o disco solar (cf.VAN HELDEN, 1996, p.359). Por isso, essas primeiras observações não tiveram quaisquerimplicações cosmológicas, pois a passagem de tais planetas diantedo Sol, de qualquer modo, não implicava em nenhuma conclusãoextraordinária. Kepler, em 1609, na obra Phaenomenon singulare seumercurius in sole, divulgou sua observação de manchas sobre o dis-co solar através de um dispositivo de câmera escura, e interpretouo fenômeno como sendo o trânsito de Mercúrio.1

Em julho de 1610, em seguida à publicação do Sidereus nuncius– no qual apresentou suas primeiras observações telescópicas daLua, dos satélites de Júpiter e de estrelas que não podiam ser vistasa olho nu – Galileu apontou sua luneta para o Sol e observou asreferidas manchas. Tomadas isoladamente, elas surgiam, desapa-reciam, mudavam de forma, juntavam-se e separavam-se, de ma-neira desordenada. Concomitantemente, as mesmas moviam-se emconjunto, regular e continuamente, de um lado para outro do discosolar. Na mesma época, um holandês chamado J. Fabricius (1577-1615) também observou o fenômeno, assim como o padre jesuíta

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Christoph Scheiner (1575-1650).2 O holandês, que publicou suasobservações em 1611, concluiu que as manchas eram contíguas aocorpo solar e que seu movimento conjunto evidenciava a rotaçãodo astro sobre si mesmo como Galileu concluiria (cf. DAME, 1966,p. 316). Scheiner, por outro lado, não “viu” o mesmo que Galileu eFabricius, e publicou, em janeiro de 1612, três cartas enviadas aMarco Welser, nas quais descrevia suas observações.3 Welser escre-veu a Galileu informando sobre a publicação de Scheiner e pedin-do seu parecer (cf. EN, XI, p. 257).4 Seguiu-se a polêmica entreGalileu e Scheiner mediada por Welser, o destinatário das cartas deambos os autores sobre o tema, que incluiu três cartas de Galileu eoutras três cartas de Scheiner a Welser, também publicadas (emsetembro de 1612).

Galileu já havia mencionado as manchas e suas primeiras im-pressões sobre elas no Discurso acerca das coisas que estão sobre a águae que nela se movem (1612) quando, em 1613, publicou suas três car-tas a Welser com o nome de Istoria e dimostrazioni intorno alle macchiesolari em duas versões: uma delas incluía as duas publicações ante-riores de Scheiner.Este último defendia que as manchas eram for-madas pela agregação de inúmeros planetas que orbitavam o Sol e,devido à sua interposição entre o Sol e o observador terrestre, asuperfície solar nos aparecia manchada. Movimentos de corposcelestes ao redor de diversos centros não eram problema paraScheiner, como mostra sua opinião sobre as manchas solares e tam-bém sobre as luas de Júpiter. Ele não estava entre os que criticavamo copernicanismo pelo fato de a maioria dos astros circundar o Sol,enquanto o movimento da Lua seria ao redor da Terra. Deve-senotar também que sua hipótese o afastava daqueles que questiona-vam a validade das observações telescópicas. Para ele, o telescópioera mesmo um “sentido mais apurado”. É interessante notar, comVan Helden, que Scheiner “teve muito trabalho em demonstrar queas manchas solares não eram produto do olho, do telescópio ou doar [...] [enquanto] Galileu tomou isso como garantido” (VAN

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HELDEN, 1966, p. 373). Não era evidente, para muitos, nos primei-ros anos de observação telescópica, que o instrumento fosse perfei-tamente confiável na observação dos corpos celestes, daí o empe-nho do jesuíta em defender essa opinião.5 A observação de VanHelden sobre Galileu tomar a validade do telescópio como garanti-da implica somente que, nas cartas galileanas sobre as manchassolares, o tema não é discutido, enquanto Scheiner põe isso em ques-tão (e, de qualquer maneira, conclui que o instrumento é confiável).Embora tenha havido uma desconfiança inicial a respeito daconfiabilidade do instrumento por parte de muitos, os registrosdessa desconfiança não se estendem pelos anos seguintes.

A principal discordância entre Scheiner e Galileu era sobre ainalterabilidade do céu. O jesuíta dizia que as observações atravésdo telescópio não comprovavam nenhuma alteração no céu. Se-gundo ele, as manchas eram formadas pela agregação de inúmerosplanetas, todos circundando o Sol. O distanciamento dos mesmose as diferenças entre suas velocidades de revolução seriam respon-sáveis pela dissolução, pelo movimento e pelas variações na figuradas manchas. Não estariam surgindo e desaparecendo corpos nocéu, sendo as aparentes alterações observadas nas manchas a con-seqüência da interposição de planetinhas pequenos demais paraque fossem observados isoladamente. A posição de Scheiner erauma curiosa e contraditória mistura das teses de Tycho Brahe comos elementos principais da cosmologia tradicional.6 Vale lembrarque, para Tycho, estava comprovada a existência de geração ecorrupção no céu desde suas observações da nova de 1572, enquantoScheiner se desdobrou para manter a inalterabilidade celeste. Estaaceitação da astronomia tychônica, ao lado de princípioscosmológicos negados pelo próprio Tycho, levou Galileu a compa-rar Scheiner aos astrônomos ptolomaicos, que explicavam a astro-nomia e a cosmologia com modelos diversos e incompatíveis

Na primeira carta, Galileu comenta pontualmente as teses deScheiner, propondo algumas hipóteses sem considerá-las demons-

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tradas. Essas hipóteses seriam confirmadas na segunda carta. Em-bora incapaz de demonstrar a natureza das manchas, o autor apre-senta sua contestação das teses tradicionalistas do adversário. Mes-mo assim, sugere que, das coisas que se conhecia, as mais seme-lhantes às manchas solares eram as nuvens. Na segunda carta,Galileu oferece diversos argumentos, assim como desenhos que ilus-travam suas cuidadosas observações e demonstrações geométri-cas, considerando certa a localização (principal motivo da contro-vérsia) das manchas na superfície solar. De fato, isso era necessáriopara contestar a tese de que se tratava de planetas. As duas primei-ras cartas constituem uma certa unidade independente. Galileu jáhavia concluído a segunda carta quando foi comunicado sobre asegunda publicação de Scheiner. Em resposta, a última carta deGalileu apresenta mais argumentos e demonstrações, discorrendotambém sobre outras observações telescópicas, como Saturno,Vênus e os satélites de Júpiter. Para a compreensão do pensamentode Galileu (o que, para muitos pesquisadores, equivale à compre-ensão da própria ciência), essas cartas são um momento privilegia-do, pois, além de as manchas solares oferecerem um excelente ar-gumento contra a cosmologia aristotélica, particularmente quantoà distinção entre céu e Terra, muitos outros temas galileanos im-portantes são abordados. Visto que se trata de compreender o pen-samento galileano, as cartas de Galileu são analisadas e as referên-cias a Scheiner são todas indiretas, ou seja, é ao Scheiner interpreta-do por Galileu, ao qual o astrônomo de Florença responde, que merefiro. Por isso, a análise das cartas de Scheiner não faz parte dopresente estudo.

1. PRIMEIRA CARTA

Galileu introduz a controvérsia na primeira carta, de 4 de maiode 1612, destacando os (poucos) pontos em comum entre ele eScheiner. Ambos concordam com a confiabilidade das observações

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telescópicas, e também que as manchas não se encontram abaixoda esfera lunar. A concordância não ia além; e o restante da carta éa contestação das teses do jesuíta, a começar pela direção do movi-mento das manchas. Para Scheiner, elas se moviam de leste paraoeste. De fato, quando observadas com o telescópio, é este o movi-mento que se vê. Galileu notou, entretanto, que elas só são obser-vadas quando passam sobre a face do Sol que está voltada para nós.Assim, a afirmação de Scheiner estaria correta, desde que as man-chas apenas passassem sobre o disco solar, e não estivessem circun-dando o astro. Mas ambos concordam que elas dão a volta ao Sol namesma direção que os movimentos dos planetas, e, segundo Galileu,deve-se considerar a direção do movimento quando elas passam aci-ma do Sol,7 como se faz com os planetas. Por isso, seu movimentodeve ser considerado de oeste para leste. Lembremos que, de acordocom a linguagem da época, derivada da cosmologia tradicional, aspalavras acima e abaixo eram equivalentes a: mais próximo do cen-tro da Terra e mais distante do centro da mesma.

Scheiner defendeu também que as manchas observadas no Soleram mais escuras que aquelas vistas na Lua. Ora, as manchas daLua, como Galileu já havia demonstrado no Sidereus nuncius, nãoeram formadas pela presença de qualquer corpo em sua superfície,mas apenas pela iluminação de sua superfície irregular. Dessa ma-neira, interessava ao jesuíta defender que elas eram diferentes dasvistas no Sol, para reforçar sua conclusão de que as manchas sola-res seriam agregações de planetas, coisa completamente diversa emais densa que simples sombras. Para Galileu, elas não eram damesma natureza das observadas na Lua, mas também não poderi-am ser mais escuras; pois a luz do Sol impede a visão da Lua, dosplanetas e das estrelas fixas, e não o faz com as manchas. Para queelas não fossem ofuscadas pela luz solar, elas deveriam ser maisclaras que as da Lua, pois quando esta surge durante o dia apenassuas partes mais iluminadas são vistas, enquanto as manchas escu-ras desaparecem. Segundo o sábio italiano, as manchas observadas

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diante do disco solar apenas pareciam mais escuras, e isto seriadevido ao contraste com o corpo intensamente luminoso do astro.Além disso, não é necessário que as manchas solares sejam de ma-téria densa e opaca como os planetas para obscurecer partes doSol, pois a obscuridade de uma nuvem é suficiente para ocultar obrilho do disco solar.

Aproveitando para sugerir sua conclusão - de que as manchasse assemelhavam a nuvens - e para marcar sua posição de que osplanetas eram feitos de matéria opaca, e não cristalina, como acre-ditavam os defensores da tradição, Galileu contestou Scheiner atra-vés do princípio segundo o qual os corpos mais escuros são vistoscom maior dificuldade que os corpos mais claros, diante de ilumi-nação intensa, sugerindo que a aparente obscuridade das manchasseria causada pelo contraste com o Sol.

O jesuíta acreditava que, da observação dos trânsitos de Vênuse Mercúrio sobre o disco solar, seria possível obter um argumento amais em defesa da suposta existência de outros planetas ainda maispróximos do Sol, formando as manchas solares por agregação.

Como já se poderia esperar, Galileu não deixou de contestarferozmente as conclusões finais apresentadas por Scheiner. Esteúltimo defendeu que havia determinado o lugar, o movimento e asubstância das manchas. Para ele, as manchas estariam próximasdo Sol, mas não junto a ele, porque, como demoram cerca de quin-ze dias para passar sobre o disco solar, se estivessem contíguas aele as mesmas deveriam voltar a aparecer depois de mais quinzedias, o que não se observava. O argumento foi facilmente rebatidopor Galileu, pois não é plausível esperar que as manchas, não per-manentes, que surgem e desaparecem continuamente, provem al-guma coisa com seu retorno depois de quinze dias. Sendo assim,mesmo que Galileu concedesse que as manchas eram provisoria-mente formadas pela agregação de planetas, como pretendiaScheiner, não se poderia extrair tal conclusão. Só se poderia resol-ver essa questão a partir do retorno das manchas, se elas fossem

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permanentes. O jesuíta defendia, para manter a inalterabilidade doSol - e, por conseqüência, do céu – que a saída era considerá-lasmúltiplos planetas e, portanto, não poderia localizar as manchasna superfície do mesmo.

Scheiner já havia proposto que as órbitas de Vênus e Mercúrioseriam “acima” ou “abaixo” do Sol. Depois, situou as mesmas órbi-tas ao redor do Sol, colocando as manchas entre as esferas da Lua edo Sol. Essa visão contraditória, que confundia o modelo tradicio-nal e o modelo misto de Brahe, comum entre os jesuítas do iníciodo século XVII, rendeu, nesta primeira carta de Galileu, uma dis-cussão sobre a realidade das hipóteses astronômicas, que culminacom sua distinção entre astrônomo puro e astrônomo filósofo. Paraele, o primeiro pretende “salvar de qualquer maneira as aparênci-as”, enquanto o segundo trata de

investigar como problema máximo, e digno de admiração, averdadeira constituição do universo, porque tal constituiçãoé, e é de um único modo, verdadeira, real, e impossível deser diferente e, pela sua grandeza e nobreza, digna de priori-dade sobre qualquer outra sábia questão dos engenhosespeculativos (EN., V, p. 102).

Entretanto, voltando ao problema central da localização dasmanchas, Scheiner situou suas manchas-planetas na esfera do Sol,alegando que não poderiam estar nas esferas de Vênus e de Mercú-rio porque, nesse caso, seriam carregadas por elas, e não apresen-tariam o movimento próprio observado. Diante disso, não é difícilperceber que o problema, para o jesuíta, se colocava em termosnitidamente aristotélicos: se as manchas eram planetas, deveriamestar em alguma esfera. Galileu, mantendo ironicamente os mes-mos termos tradicionalistas, como se não tivesse acabado de seposicionar contra a existência das esferas, explicitou a clara contra-dição dessa proposta, pois o mesmo argumento que deveria mos-trar que as manchas não estão nas esferas de Vênus e Mercúrio,

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também impediria que estivessem na esfera do Sol. Galileu o rever-teu contra Scheiner - se estivessem na esfera do astro, acompanhan-do seu movimento ao redor da Terra, também não apresentariammovimento próprio; é mais plausível, segundo o argumento acimadescrito, que estivessem sobre a superfície do Sol, acompanhandoa rotação deste sobre seu próprio eixo.

Além disso, se as manchas fossem planetas girando ao redor doSol, apresentariam fases, como a Lua e Vênus, e sua velocidade, aoatravessar o disco solar, deveria ser constante, o que não se observa.Na verdade Galileu já havia observado alguns fenômenos que de-nunciavam a contigüidade das manchas ao Sol (descritos através dedesenhos), como uma mancha, próxima da borda do disco solar, di-vidindo-se em duas ao se aproximar do centro e voltando a pareceruma só após se afastar do centro (Fig.1). Tudo indica que eram duasmanchas o tempo todo, mas pareciam ser uma por estarem sobreuma superfície esférica, e apresentarem-se ao observador terrestrepraticamente sobrepostas. Para Galileu, tais questões seriamesclarecidas após a observação de uma mancha desde o momentoem que ela surge de um lado do Sol até o momento em que ela desa-parece do outro lado, verificando sua forma, a variação de sua velo-cidade e sua relação com outras manchas. Ou seja, mais observaçõespossibilitariam resolver o problema de sua localização. Veremos, porocasião da segunda carta, que essas observações constituíram umprograma cuidadosamente planejado e executado.

Fig. 1 (Ed. Naz., V, p.107)

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Quanto à pretensão do jesuíta de haver descoberto algo sobrea essência das manchas, Galileu foi bem menos otimista. O primei-ro disse que não poderiam ser cometas ou nuvens, mas que eramestrelas (a palavra latina stella designava tanto estrelas fixas quan-to estrelas errantes – planetas, o que é o caso) girando ao redor doSol. O segundo não foi tão longe: disse que se a Terra fosse umcorpo luminoso, como o Sol, então as nuvens terrestres, vistas delonge, pareceriam exatamente como as manchas no Sol. Outras coi-sas causariam o mesmo efeito, como vapores, exalações ou fumaça.Mas Galileu não acreditava poder conhecer com absoluta certeza anatureza das manchas. Vale esclarecer que, para ele, apenas asafecções das coisas poderiam ser conhecidas, como seu tamanhoou sua figura, sendo a essência impossível de captar.

Mesmo abrindo mão do conhecimento da essência das man-chas, o italiano era capaz de dizer o que elas não eram: planetas ouestrelas. Não podiam ser estrelas fixas porque não eram fixas. Es-trelas errantes (planetas) também não poderiam ser, pois a figuradestas é sempre esférica, e planetas são corpos opacos, mais densosque a substância celeste, e sua face voltada para o Sol se ilumina,enquanto na oposta se produz uma sombra profunda, como com-provam as observações telescópicas de Vênus. As manchas, alémde não apresentarem essas características, passam sobre o disco solarsurgindo, desaparecendo, mudando de figura, coisas impossíveispara um planeta.

Scheiner ainda tentou fazer uma analogia com as luas de Júpiterou com os “filhos” de Saturno,8 a qual fracassou devido à falta defamiliaridade com o problema das luas jupiterianas. Ele acreditavaque os quatro satélites de Júpiter estariam se movendo em conjun-to, em uma única esfera, de maneira semelhante à das manchassolares. O que ele não havia notado é que os satélites circundamJúpiter com períodos diferentes, e descrevem círculos de tamanhosdiferentes, o que invalida a analogia.

Reconhecendo nas teses de seu adversário uma tentativa de

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adaptar o fenômeno à cosmologia dominante, em detrimento dotestemunho da natureza, Galileu descreveu a atitude epistemológicade Scheiner da seguinte maneira: para ele, “é melhor errar univer-salmente [com o conjunto] do que ser particular discorrendocorretamente[sobre as partes]” (EN, V, p. 95). De fato, é isso que sevê no argumento de Scheiner que pretende demonstrar que as man-chas não estão no corpo do Sol. Para manter a inalterabilidade (equi-vocada) do Sol e de todo o céu, o jesuíta empenhou-se em separaras manchas da superfície solar. Para Scheiner, as manchas (que sur-giam, desapareciam, se agregavam e desagregavam) não poderi-am estar no Sol por ser este “lucidíssimo e puríssimo”. Ora, isso épressupor de antemão o que se queria demonstrar. Através da clás-sica “petição de princípio”, Galileu mostrou a circularidade do ar-gumento de seu adversário: este supunha que as manchas, provasde alteração, não estavam no Sol por ser o mesmo inalterável, paradisso concluir que não há alteração no astro.

A disputa sobre a possibilidade de se conhecer a essência dasmanchas solares evidencia uma das mais importantes diferençasentre Galileu e seus opositores tradicionalistas: enquanto Scheinerpretende descrever a essência das manchas, Galileu não acreditaque ela seja acessível para nós. Para ele, apenas afecções – lugar,figura, movimento, grandeza, opacidade, mutabilidade, produção,dissolução – podem ser observadas e conhecidas. Entre as afecções,aquelas quantificáveis (futuramente chamadas por outros filósofosde “qualidades secundárias”) são as que realmente permitem oconhecimento da natureza. Além disso, como pretender conhecer aessência das coisas celestes se isso não se conseguia nem com asterrestres? Diz Galileu:

[...] não poderia crer que fosse digno de qualquer censura ofilósofo que confessasse não saber, e não ser capaz de saber,qual seja a matéria das manchas solares” (EN, V, 106).

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Limitando o conhecimento humano a afecções de naturezageométrica, Galileu abre mão da pretensão de conhecer a essênciadas coisas. Por outro lado, limitar o conhecimento àquilo que é ge-ométrico significa um passo fundamental na negação de uma teo-ria física qualitativa em favor de uma teoria quantitativa da natu-reza. Essa afirmação mais epistemológica é abundantementeexemplificada nos escritos galileanos, e as cartas ora estudadas nãosão uma exceção.

No fim da primeira carta, Galileu anuncia um novo método deobservação do Sol, desenvolvido por seu discípulo BenedettoCastelli (1578-1643), que permitia observações muito mais precisase impedia que se ferissem os olhos na observação. Esse método sóserá descrito na segunda carta e consiste na projeção do disco solar,através do telescópio, em uma folha, na qual bastava que se dese-nhasse por cima da imagem projetada, invertendo a posição, paraque se conseguissem as imagens do Sol. Isso foi de fundamentalimportância nas observações das manchas, pois permitia a obser-vação do fenômeno por um longo período, além da obtenção deum desenho muito mais fiel das manchas solares.

No mês seguinte ao envio da primeira carta, Galileu já se de-monstrava convicto, enviando a Matteo Barberini (1568-1644), fu-turo papa Urbano VIII, alguns desenhos de suas observações e aafirmação categórica de suas conclusões, a saber, a contigüidadedas manchas ao corpo solar, a rotação do Sol sobre si mesmo, asemelhança do fenômeno com as nuvens e, finalmente, o “juízofinal” da filosofia peripatética: “com a mutabilidade, corrupção egeração até da mais excelente substância do céu, tal doutrina mos-tra a corrupção e a mutação, mas não sem esperança de regenerar-se in melius” (EN, XI, p. 311). Pouco depois, escreve a Paolo Gualdo(1553-1621) que as manchas solares e suas outras descobertas nãoeram fenômenos passageiros como as novas de 1572 e 1604 ou oscometas, mas evidências muito mais definitivas: poderiam sempreser observadas (EN, XI, p. 326-7).

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2. SEGUNDA CARTA

Com um tom vitorioso, a segunda carta a Welser, de 14 deagosto de 1612, apresenta principalmente as observações deGalileu, com demonstrações geométricas da contigüidade dasmanchas ao corpo solar baseadas em desenhos feitos com o méto-do de Castelli. Tais desenhos são numerosos e minuciosos, feitosem dias consecutivos à mesma hora e com o cuidado de registrarinclusive quando a observação não foi possível, devido àinterposição de nuvens. Scheiner também havia feito desenhos,tecnicamente muito inferiores aos de Galileu, somando-se a isso ocuidado de Galileu com a parte gráfica, no momento da publica-ção (cf. Van Helden, 1996, p. 378-9). Van Helden nota acertada-mente a importância das imagens nas obras de Galileu que des-crevem suas observações telescópicas. No caso das manchas sola-res, isso é ainda mais evidente, pois temos outra descrição pictó-rica do fenômeno, a de Scheiner. Os desenhos deste último, dequalidade inferior, estão mais próximos das representaçõesesquemáticas do céu feitas anteriormente.

Os reduzidos desenhos de Scheiner (Fig. 2) facilitavam a inter-pretação das manchas como satélites solares, e apresentavam umaclara deficiência metodológica. A direção da faixa que elas ocupa-vam sobre o disco solar mostra que não houve, da parte do jesuíta,a preocupação de observar o fenômeno no mesmo horário, diaria-mente, como fez Galileu, e nem ao menos de reproduzir as repre-sentações no mesmo sentido, o que facilitaria a visualização do fe-nômeno (Fig. 3).9 Assim, Galileu procede segundo um método maisadequado e, além disso, faz desenhos muito mais próximos do queo telescópio mostra.

Marco Welser pretendia publicar as cartas de Galileu com otamanho dos desenhos reduzido, provavelmente devido às dificul-dades técnicas da impressão de figuras, mas os editores italianosperceberam a importância de reproduzi-los com o mesmo tama-

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Fig. 2 (Ed. Naz., V, p. 32)

Fig. 3 (Ed. Naz., XI, p. 288)

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nho com o qual Galileu os ha-via feito (de página inteira), echegaram a submeter a fideli-dade da impressão dos dese-nhos originais à supervisão dopintor Cigoli (Fig. 4).10

A segunda carta trata fun-damentalmente da localizaçãodas manchas em relação ao cor-po do Sol, apresentando taisdesenhos e demonstrações ge- Fig. 4 (Ed. Naz., V, p.158)

ométricas introduzidos com ilustrações das conclusões de Galileu,a saber:

- as manchas estão contíguas ao Sol ou separadas dele por umadistância imperceptível;

- não são estrelas nem nada permanente, mas alteram-se continua-mente, sendo umas mais duradouras e outras menos;

- sua figura é bastante irregular; elas unem-se e se separam ao acaso;- apresentam um único movimento universal e uniforme em linhas

paralelas;- o Sol é perfeitamente esférico;- o astro gira sobre si mesmo em aproximadamente um mês lunar,

de oeste para leste, como os planetas.

Galileu ressaltou ainda um fato que o intrigou, mas não foiresolvido por ele. As manchas se concentram em uma faixa entre28° ou 29° ao norte e ao sul do equador solar. Exceto por esse fato,todas as outras conclusões são, na verdade, confirmações do queele próprio já havia concluído na primeira carta. Ainda assim, nãodeixam de ter importância fundamental. Na primeira carta, o au-tor havia declarado a necessidade de realizar mais observações, demodo a apresentar conclusões melhor fundamentadas. Lembremos

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de sua afirmação sobre não poder ainda confirmar suas conjecturas,mas estar em condição de contestar as de Scheiner. Mesmo que asteses do autor já estivessem todas presentes na primeira carta, faz-se necessária uma análise da segunda carta, uma vez que o objetodeste artigo é a argumentação anti-aristotélica de Galileu. A mes-ma também mostra o que Galileu pôde conhecer a partir da refle-xão geométrica sobre as afecções quantificáveis observadas nasmanchas solares.

Como já foi dito, trata-se de saber se as manchas eram planetasou não. Assim, a questão de maior destaque era a sua localização,algo que o raciocínio geométrico a partir das observações é capazde resolver:

[...] determinamos no globo do Sol os pólos, os círculos, ocomprimento e a largura, conforme os encontramos na esfe-ra celeste. Por isso, então, se o Sol girar ao redor de si mes-mo, e possuir superfície esférica, os dois pontos estáveis se-rão chamados pólos, e todos os outros pontos de sua super-fície descreverão trajetórias circulares paralelas entre si, mai-ores ou menores segundo a maior ou menor distância dospólos [...] (EN, V, 118).

Após considerar as conseqüências geométricas da hipótese doSol como uma esfera em rotação, as imagens obtidas das manchaspodem ser melhor compreendidas. O objetivo de Galileu era pro-var que elas estavam contíguas ao corpo do Sol. Por isso, descre-veu, com a ajuda de numerosos e detalhados desenhos, o que viu:

- no centro do disco solar as manchas se mostram mais largas, eestreitam-se gradualmente ao aproximarem-se da periferia;

- a velocidade com que a maioria das manchas atravessa o discosolar é variável, mas de variação regular (mais rápidas no centroque na periferia);

- o espaço entre duas manchas situadas no mesmo paralelo aumen-ta próximo ao centro e diminui ao afastar-se dele.

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Essas três características das imagens reproduzidas nos dese-nhos mostram algumas coisas: que o Sol é perfeitamente esférico,que as manchas o circundam com movimento regular e, principal-mente, que estão contíguas ao Sol, ou separadas dele por uma dis-tância imperceptível. É um problema de perspectiva: se elas fos-sem planetas, ou seja, estivessem separadas do Sol, girando ao seuredor, passariam sobre ele com velocidade uniforme, com distân-cia regular entre uma e outra, e seu tamanho não apresentaria essavariação tão regular, ou seja, mais largas ao passar pelo centro emais estreitas na periferia.

A exposição das observações é acompanhada da prova geomé-trica de sua contigüidade ao Sol. Inicialmente Galileu considera osraios solares paralelos, dada a grande distância entre a Terra e oSol. Depois considera duas manchas situadas no mesmo paralelo,destacando, nas observações registradas, a distância real entre asmanchas e a distância aparente, observada da Terra. Claramente sevê que, no centro do disco solar a distância aparente entre as man-chas é a distância real. Nas outras posições, as duas (a distânciareal e a aparente) são diferentes. Com base nessa demonstração, oautor calcula o que seria observado se a distância entre as manchase o Sol fosse a centésima parte do diâmetro do Sol, mostrando queessa distância, de acordo com suas observações, deveria ser muitomenor que a centésima parte do diâmetro do Sol. Outra observa-ção que fortalece essa tese é a da distância permanente entre duasmanchas situadas no mesmo meridiano.

Quanto ao que seriam as manchas, Galileu retomou os dese-nhos para ressaltar a irregularidade das mutações observadas, e ofato de que as maiores são mais duradouras. Tudo levava a crerque as mais duradouras reapareceriam após passarem por trás doSol, embora Galileu não declarasse isso provado. Segundo ele, écerto que as manchas são de matéria tênue como as nuvens, e estãono Sol ou muito próximas dele, todas em uma mesma esfera. Masse elas estivessem em uma esfera tão próxima do Sol, porque o

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mesmo não seria carregado por ela também, se se diz que as esfe-ras carregam os planetas? E ainda, se a substância das manchas étênue como a das nuvens, como atestam sua irregularidade e suasconstantes alterações, elas também não poderiam comunicar seumovimento ao Sol, e nem apresentariam um movimento constantee regular. Galileu optou por abolir a idéia das esferas, e viu o pró-prio Sol em movimento. Colocando as manchas no próprio Sol, pôdecontestar a inalterabilidade do céu (se, como dizia Aristóteles, océu fosse inalterável, tais fenômenos não se verificariam).

Ao fim da carta, Galileu investe contra Aristóteles, que dava tantovalor à experiência sensível, que exigia uma prova da alteração no céu.Agora, Galileu podia dar seu grito de vitória. Não eram mais estrelasnovas e cometas, em regiões supostamente menos nobres do céu:

[...] finalmente descobri naquela parte do céu, meritoriamentea mais pura, [...] na face do próprio Sol, produzir-se continu-amente, e dissolver-se em pouco tempo, uma quantidadeinumerável de matéria escura e densa[...] (EN, V, p. 140).

A segunda carta apresenta as justificativas de Galileu para agrande evidência empírica obtida por ele sobre a alterabilidade doSol a partir de um programa de observações cuidadosamente pla-nejado e executado, bem como a articulação das conclusões comalgumas das principais teses galileanas. Dessa maneira, o golpe doautor atinge não só as teses de Scheiner, mas principalmente o cos-mo hierárquico da tradição. Com isso, para Galileu, a questão teriasido considerada resolvida ao final da segunda carta. Foi necessá-ria uma terceira, diante de um novo pronunciamento do jesuíta,que Welser enviara a Galileu pedindo-lhe mais uma vez o parecer.Scheiner apresentava, nessa carta, objeções à primeira carta deGalileu (o jesuíta não sabia italiano, e só se havia traduzido até en-tão a primeira carta), e comentários sobre as outras observaçõestelescópicas de Galileu.

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3. TERCEIRA CARTA

Em sua resposta de 1º de dezembro de 1612, Galileu inicia lem-brando a pretensão de Scheiner de conhecer a essência das man-chas solares, e fazendo mais um dos “manifestos epistemológicos”que estão dispersos por toda a obra galileana e que apresentamconsiderável beleza literária e poder de persuasão:

[...] ou queremos tentar através da especulação penetrar aessência verdadeira e intrínseca das substâncias naturais, ounos contentamos com o conhecimento de algumas de suasafecções. Buscar a essência, tenho-na como uma empresa nãomenos impossível e não menos vã nas próximas substânciaselementares que nas remotíssimas e celestes. E a mim pareçoignorar igualmente as substâncias da Terra e da Lua, as nu-vens elementares e as manchas do Sol. [...] E se, questionan-do eu qual seja a substância das nuvens, for-me dito que éum vapor úmido, novamente desejarei saber o que é vapor;será porventura ensinado a mim que o vapor é água, atenu-ada em virtude do calor, e nele transformada; mas eu, igual-mente duvidoso do que seja a água, buscando-o, finalmentecompreenderei ser o corpo fluido que escorre pelos riachos eque continuamente manejamos e tratamos: mas tal notíciasobre a água é somente mais próxima e dependente de maissentidos, mas não mais intrínseca que aquela que eu antestinha a respeito das nuvens[...] (EN, V, 187).

Galileu afirma não ser capaz de conhecer a essência das coisas,mas apenas “algumas de suas afecções, como o lugar, o movimen-to, a figura, a magnitude, a opacidade, a mutabilidade, a produçãoe a dissolução” (EN, V, p. 188). Mais adiante, contesta o princípiode autoridade, tão utilizado por Scheiner, em particular nesse novopronunciamento. Scheiner procede “como se este grande livro domundo não tivesse sido escrito pela natureza para ser lido por ou-tro senão Aristóteles” (EN, V, p. 190). Essa referência ao livro danatureza está presente, por exemplo, no sexto parágrafo de OEnsaiador (1623), e também em outros textos galileanos cronologi-

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camente mais próximos da data de publicação das cartas: as tam-bém conhecidas cartas de Galileu a Benedetto Castelli e a Cristinade Lorena a respeito da controvérsia religiosa de 1615 e 1616. Apósisso, Galileu comenta que Cigoli e outros pintores ririam deArcimboldo, se este lhes dissesse que a única maneira de se repre-sentar a natureza seria através de flores, frutas e instrumentos agrí-colas (cf. EN., V, p. 190-1). A crítica não estava dirigida apenas aScheiner, mas também à ciência tradicional como um todo, poisseria absurdo supor que um único intérprete – Aristóteles – fosseautorizado a falar sobre a natureza.

O argumento principal do novo pronunciamento de Scheineré uma observação, segundo a qual o tempo com que as manchasatravessam o Sol é desigual, sendo que as mais afastadas do equa-dor solar atravessariam mais rapidamente o Sol. Galileu não levaem conta esse argumento de Scheiner, atribuindo o equívoco a umafalha nas observações.

A novidade na terceira carta é a resposta de Galileu aos co-mentários de Scheiner sobre as outras descobertas telescópicas. Adiscussão das semelhanças e diferenças entre a Terra e a Lua, quese encontra na primeira jornada do Diálogo, aparece nessa carta emsua versão preliminar. Scheiner e Galileu concordam que o relevoda Lua é irregular e que as suposições sobre habitantes na Lua sãoabsurdas. A diferença básica entre suas posições era quanto à ma-téria da Lua. Para o jesuíta, não poderia haver devir na Lua, por-que ela era composta de éter, o elemento imutável, inalterável etc.Para Galileu, ao contrário, estava demonstrado que havia devir noscorpos celestes, e justamente no mais nobre deles, o Sol; por outrolado, não havia motivo para supor que as coisas existentes na Luafossem inteiramente semelhantes às nossas.

A grande evidência de semelhança entre a Terra e a Lua dizrespeito à reflexão recíproca da luz. Para Scheiner, a Lua era umcorpo transparente, e a Terra opaca, áspera e incapaz de refletir aluz. A opinião de Scheiner era compartilhada pela maior parte do

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meio científico do início do século XVII, e estava relacionada com oque se acreditava ser a substância celeste: lucidíssima e perfeitíssima.Para Galileu, se a superfície da Lua fosse polida como um espelho,ela seria, na maior parte, invisível para nós. Por outro lado, compa-rando a iluminação da Lua, pelo Sol, durante o dia, com uma nu-vem ou uma parede iluminada, descobre-se que o astro se iluminacomo os últimos. Além disso, Galileu diz que é mais fácil ler umlivro sob a luz refletida em uma parede que sob a luz refletida naLua. O reflexo da luz do Sol na Terra, conforme visto da Lua, deveser muito mais potente que o da Lua cheia visto da Terra. Por isso,a iluminação secundária da Lua não se deve, como pretendia Scheiner,à refração dos raios solares nela, mas à reflexão da luz do Sol naTerra. Para que a Lua fosse translúcida, como pretendia Scheiner,sua matéria deveria deixar passar muito mais luz que a das nuvens,pois estas são capazes de obscurecer completamente o Sol, e isto comos raios solares percorrendo uma distância muito menor que o diâ-metro do astro. Ora, se a Lua fosse assim tão transparente, ela nãopoderia refletir a luz do Sol como faz, mas permaneceria sempre comuma iluminação bastante fraca e constante e o limite entre a parteiluminada e a parte escura do astro não poderia ser determinado.Como exemplo disso Galileu apresenta uma garrafa com líquidodentro. Se a matéria lunar fosse tão transparente, a ponto de permi-tir que a luz do Sol atravessasse todo o seu diâmetro, certamente asmontanhas de sua superfície seriam invisíveis. Se o jesuíta estivessecerto, outros fenômenos também seriam observados, como o centroda Lua mais escuro que a periferia, na Lua nova, pois os raios lumi-nosos percorreriam uma distância maior dentro da matéria lunar.Após estes argumentos, o autor conclui que

a opacidade e a aspereza da Lua, assim como a reflexão daluz do Sol na Terra, hipóteses verdadeiras e sensíveis, satis-fazem com admirável facilidade e de maneira plena a todosos problemas particulares (EN, V, p. 225).

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Galileu acreditava ter resolvido a questão, com esses argumen-tos. O conteúdo do Diálogo mostra que a persuasão dos defensoresda tradição exigiria ainda muitos outros argumentos e evidências.Levemos em conta que a pureza do satélite terrestre estava, de al-guma maneira, ligada à imagem da Virgem Maria Imaculada,11 oque dificultava ainda mais a aceitação da idéia de que sua matériafosse corruptível como a terrestre. Clavelin nota que, além dahomogeneidade do cosmo garantida diante da observação de mu-danças no Sol, uma outra identidade particular, a da identidade daTerra com os planetas (e satélites) na opacidade e na capacidade derefletir a luz, habilita Galileu a extrair de fenômenos terrestres con-clusões aplicáveis também ao céu (cf. CLAVELIN, 1968, p. 209).

Prometendo uma discussão mais detalhada para outra ocasião,Galileu passa a tratar da flexibilidade que a palavra stella12 ganhouno discurso de Scheiner. Para acomodar a definição de astro (stella)às manchas solares, ele tem que assumir que a forma desses astrosé inconstante e irregular, de modo que elas surjam e desapareçam.Como evidência disso, Scheiner sugere que assim se comportam ossatélites de Júpiter, argumentando que os astros parecem ter umafigura circular constante devido à distância que se encontram denós. Esse argumento é refutado por Galileu com referência ao te-lescópio. Através deste, tanto astros fixos como errantes (planetas)são vistos mais próximos, e mantêm suas aparências perfeitamentecirculares. As luas de Júpiter, como a observação criteriosa de Galileuhavia demonstrado, possuem uma forma permanente, e seu movi-mento é bastante regular. O fato, alegado pelo jesuíta, de elas àsvezes desaparecerem, é explicado pelo ocultamento de umas pelasoutras e por Júpiter.

Esses esclarecimentos ofereceram a Galileu uma excelente in-trodução para a apresentação de um de seus grandes feitos: a de-terminação dos períodos dos satélites de Júpiter (o que garantiu,definitivamente, sua prioridade sobre a descoberta), acompanha-da da descrição, por meio de um esquema extremamente funcio-

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nal, muito semelhante ao queé utilizado ainda hoje, das ór-bitas dos satélites (Fig. 5). Oequívoco de Scheiner foi inter-pretado por Galileu como sen-do devido a falhas nas obser-vações, à falta de um métodopara medir as distâncias comprecisão e à confusão entre asluas, que levou o jesuíta a fa-lar em cinco luas. O sábio deFlorença havia desenvolvidoadaptações no telescópio, cha-madas de “micrômetro” ou“jovilábio”, que lhe permitiammedir precisamente distânciasangulares mínimas entre os

Fig. 5 (Ed. Naz., V, p.241)

corpos celestes, visando, principalmente, a determinar o períododos astros “Mediceus” (cf. SHEA, 1996, p. 518-2).

Essa discussão leva Galileu a citar até as acepções da palavrastella13 não vinculadas a esse contexto. A palavra era aplicada tam-bém a coisas que, para Galileu, não estavam na região celeste, como“estrelas cadentes” e cometas.14 Até os olhos da mulher amadapoderiam ser chamados de astros. Com a intenção de precisar aaplicação do nome “astro” às manchas, Galileu cita, uma a uma, asdiferenças principais entre as manchas e os astros, pois Scheinerinsistia que elas eram astros. Estes possuem figura, grandeza e for-ma constantes; são permanentes; e estão divididos em duas cate-gorias: alguns são imóveis e outros móveis, com movimento pró-prio. Os imóveis estão sempre iluminados. Os móveis estão situa-dos a diversas distâncias do Sol; são visíveis longe do Sol; são dematéria densa e opaca. Já as manchas são de infinitas figuras, todasirregulares; sua grandeza e sua forma são constantemente altera-

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das; duram pouco tempo; são sempre escuras; possuem um movi-mento comum a todas, regular no conjunto, mas infinitamente ir-regular para cada uma; estão contíguas ao Sol ou imperceptivel-mente separadas dele; só são visíveis no Sol, e sua matéria é tênuecomo névoa ou fumaça.

Após garantir que as manchas solares não são astros, Galileusugere que poderiam ser a fumaça de algo em combustão, o queexplica de maneira bastante satisfatória o modo como surgem, de-saparecem, crescem ou diminuem, unem-se e separam-se.

Galileu encontra ainda outra incompatibilidade entre as tesesde Scheiner e os princípios aristotélicos que este pretendia defen-der. Para que as manchas fossem astros, como pretendia o jesuíta,deveriam ser muito numerosas, e dificilmente manter-se-iam jun-tas pelo tempo que uma mancha é observada no disco solar. Seri-am também incompatíveis com as definições aristotélicas.Aristóteles dividiu os astros em fixos (estrelas fixas) e errantes (pla-netas), os primeiros com um único movimento comum a todos (odiurno) e as distâncias entre si inalteráveis, e os segundos commovimento próprio. Por motivos óbvios, não se poderia conside-rar as manchas astros fixos, ao passo que seu movimento em con-junto as impede de ser astros errantes, pelo menos no sentido tra-dicional. Se mesmo assim se pretender que as manchas são deze-nas ou centenas de pequenos astros, estar-se-á atribuindo a estre-las movimentos tumultuados, disformes e irregulares, o que nãopode ser concebido dentro do sistema aristotélico. Não parece ra-zoável que haja tantos astros próximos à superfície solar, se entre oSol e Saturno há tão poucos.

Segue-se uma breve discussão sobre a nobreza da permanên-cia. Galileu atribui o amor pela incorruptibilidade ao temor quesentimos da morte. O texto continua dizendo que a corrupção édiferente da aniquilação. Como o ovo que se corrompe para darlugar ao pinto, a corrupção nada mais é, para Galileu, que muta-ção. É inverossímil que a Terra deixe de existir por causa da

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corrupção de suas partes. Se a Terra não deixa de existir devido aodevir em sua superfície, o mesmo deve ser aplicado aos corpos ce-lestes. Assim, a totalidade do planeta se mantém, enquanto apenassuas partes estão sujeitas ao devir.

Um dos principais objetivos das cartas é romper, com base naobservação do Sol, com o cosmo aristotélico. O astro mostrou-seum objeto privilegiado em tal projeto, pois, sendo “lucidíssimo epuríssimo” aos olhos da tradição, a evidência de mudança em suaspartes tornou menos importante a observação de outras evidênci-as em astros menos nobres. Ao mostrar que as manchas estavamno Sol, dadas as suas características visíveis, e que sofriam váriostipos de mudança previstos pela física aristotélica apenas para assubstâncias sublunares, Galileu fez do telescópio a grande armacontra o cosmo de Aristóteles, criando condições mais favoráveispara o estabelecimento de uma nova cosmologia.

CONCLUSÃO

As cartas sobre as manchas solares são a apresentação mais ela-borada dos resultados das observações telescópicas de Galileu em seuconjunto. Mas, principalmente, pode-se encontrar nas cartas que sãoobjeto deste trabalho a articulação dessas observações com o restantedo projeto galileano: a discussão cosmológica, a conservação do movi-mento e a necessidade da matemática na compreensão da natureza,que aqui aparece na forma da interpretação das imagens telescópicasem termos geométricos, de acordo com as leis da perspectiva. Alémdisso, as cartas são representativas de um elemento característico doestilo galileano, a saber, o caráter polêmico que comparece nas princi-pais obras que se seguiram às cartas, de O Ensaiador, de 1623, até oDiálogo (1632) e Discorsi (1638). Sem ter esgotado o tema, este trabalhoevidencia a importância das cartas no contexto da compreensão daciência de Galileu e, conseqüentemente, da revolução científica da qualGalileu foi um dos principais protagonistas.

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Galileu e as cartas sobre as manchas solares:a experiência telescópica contra a inalterabilidade celeste

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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NOTAS1 Segundo B. Dame, Giordano Bruno conhecia as manchas do Sol e delas se utilizava contra o

dualismo cosmológico tradicional, como mais tarde Galileu faria. Bruno teria, inclusive, de-duzido dos movimentos das manchas a rotação do astro sobre si mesmo (DAME, 1966, 313).

2 Um inglês chamado Thomas Harriot também havia observado o Sol através de um telescó-pio em 1610, sem, contudo, notar a existência de manchas. O que Harriot notou foi a dificul-dade em se observar o astro diretamente, e a necessidade de se escolher um momentopropício para fazê-lo (como o nascer do Sol, ou o crepúsculo, e a ocorrência de névoa). VerVAN HELDEN, 1996, 368-369.

3 Tais cartas foram assinadas com o pseudônimo Apelles latens post tabulam, Apele oculto

Recebido em: junho de 2006Aprovado em: julho de 2006

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MOSCHETTI, Marcelo

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atrás da tábua (pintura). Apele foi um dos mais importantes pintores da Antigüidade, e se-gundo os registros de Plínio, o velho tinha o hábito de se ocultar atrás da pintura para ouvira opinião do público.

4 As referências às Opere (Edizione Nazionale) de Galileu estão padronizadas aqui na forma“EN., volume, página”.

5 Quanto à referência ao ar, era sabido que um fenômeno como este poderia ser produzidona atmosfera terrestre. Como veremos, Galileu interpretou os cometas dessa maneira.

6 Embora Scheiner rompesse com alguns princípios tradicionais, não é incorreto classificá-locomo um defensor da tradição. O próprio padre Grassi, com quem Galileu polemizaria futu-ramente, defendia muitas das idéias de Tycho Brahe. Embora o modelo defendido por cadaum desses tradicionalistas pudesse ser mais (Grassi) ou menos (Scheiner) coerente, talveznão seja exagero dizer que, entre os astrônomos que se utilizavam do telescópio, já nãohavia quem defendesse tão integralmente a tradição.

7 Sobre a face solar que não está voltada para a Terra.8 Galileu, ao observar Saturno pela primeira vez através do telescópio, interpretara erronea-

mente as imagens telescópicas do planeta como se ele fosse acompanhado de dois satélites.9 Cigoli (1559-1613), em correspondência com Galileu anterior à primeira carta deste a Welser

(em março de 1612), enviara-lhe observações em desenhos nos quais incorria no mesmoerro - de não levar em conta a mudança na posição em que observamos o Sol ao longo dodia (Ed. Naz., XI, 286-289). A correspondência de Galileu com o pintor se inicia antes dapublicação do Sidereus Nuncius.

10 Por uma questão de economia de espaço, não convém reproduzir todos os desenhos doSol feitos por Galileu. Também não seria apropriado contrariar o autor e reproduzi-los to-dos em tamanho menor. Assim, apresento apenas como exemplo a reprodução de um des-ses trinta e oito desenhos.

11 Ver REEVES, 1997. Um dos assuntos principais do trabalho de Reeves é a questão da perfei-ção da Lua, e a relação das descobertas galileanas com as representações artísticas do as-tro. Ver, particularmente, as pinturas representando a Virgem de Cigoli (Immacolata, 1610-1612), Pacheco (Immaculada con Miguel Cid, 1619) e Velásquez (Immaculada, 1619). Os doisúltimos representaram a Lua perfeitamente esférica e transparente, abaixo de Maria, en-quanto Cigoli reproduziu o astro na mesma posição, mas opaco e “maculado”, isto é, com ascrateras observadas por seu amigo de Florença. A imagem de Maria Imaculada sobre a Luae circundada por estrelas é recorrente e inspirada em Apocalipse 12. Além disso, a autoraapresenta três outras obras de Cigoli nas quais a lua bastante estreita, logo após a conjun-ção, é representada. Nota-se que, na mais antiga (Adoração dos pastores, 1599), o astro nãoapresenta a iluminação secundária, ao passo que nas outras duas (Adoração dos pastores,1602 e Deposição, 1607) essa iluminação é bem evidente.

12 A palavra stella será traduzida neste caso por ‘astro’, e não por estrela. Dessa maneira é pos-sível evitar possíveis equívocos quando a palavra estiver se referindo a planetas ou satéli-tes, pois a intenção de Galileu é justamente marcar a diferença entre stellae fixas e errantes(fundamental no seu rompimento com o dualismo cosmológico da tradição, pois lhe inte-ressava provar que toda a matéria, celeste e terrestre, era sujeita ao devir, e isto em geral;todavia esse argumento era fortalecido pela identidade maior existente entre a Terra e osastros errantes, principalmente a Lua).

13 Este procedimento (de precisar cada acepção de uma palavra) é bastante comum na obrade Aristóteles e dos escolásticos, o que sugere - embora tal procedimento seja relevante enecessário neste momento - uma sutil ironia da parte de Galileu.

14 A tese sobre os cometas serem fenômenos atmosféricos ressurge na controvérsia posteri-or com o também jesuíta Horácio Grassi, ainda que, na ocasião, Galileu também não ostenha observado.

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Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo, Professor Adjunto doDepartamento de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual

de Santa Cruz. E-mail: [email protected]

A mecânica do olho:algumas considerações sobre L’Optique

et la catoptrique de Mersenne*

Paulo Tadeu da Silva

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Abstract. This article presents somepreliminary considerations aboutone of the last workmanships ofMarin Mersenne (1588-1648), intitledL’Optique et la catoptrique (1651).Published after the death of itsauthor, this workmanship representsone of his last steps to thedevelopment of a research programthat seems to have beginning in 1627.The analysis presents here iscircumscribed, in its bigger part, tothe aspects of the two firstpropositions of the “Traité de l’oeil”,in which the author explains theanatomy of the eye and thefunctioning of the vision.Mersenne’s studies about these twosubjects shows its filiation with themechanical project that marks thenatural philosophy developed in theseventeenth century.

Keywords: mechanical philosophy –optics – natural philosophy.

Resumo. Este artigo apresenta algu-mas considerações preliminares so-bre uma das últimas obras de MarinMersenne (1588-1648), intituladaL’Optique et la catoptrique (1651).Publicada após a morte de seu au-tor, essa obra representa um de seusúltimos passos no desenvolvimentode um programa de pesquisa queparece ter início em 1627. A análiseaqui apresentada está circunscrita,em sua maior parte, aos aspectospresentes nas duas primeiras propo-sições do “Traité de l’oeil”, nas quaiso autor explica a anatomia do olho eo funcionamento da visão. Os estu-dos de Mersenne sobre esses doisassuntos mostram sua filiação aoprojeto mecanicista que marca a fi-losofia natural desenvolvida no sé-culo XVII.

Palavras-chave: filosofia mecânica –óptica – filosofia natural.

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1. ALGUMAS HIPÓTESES HISTÓRICAS

Em 1651, três anos após a morte de Mersenne, é publicada umade suas últimas obras: L’Optique et la catoptrique. Com uma estrutu-ra análoga a outros tratados escritos por Mersenne, como o Traitéde l’harmonie universelle (1627) e o Harmonie Universelle (1636),L´Optique apresenta uma série de proposições dedicadas ao estudoda luz e do olho. O primeiro livro, composto de trinta e uma propo-sições, encontra-se dividido em dois grandes blocos. O primeirodeles compreendendo as proposições de I até XXIII, é dedicado ànatureza da luz e suas propriedades. O segundo bloco, quecorresponde às proposições XXIV até XXXI, concentra-se no estu-do da estrutura do olho e seu funcionamento. No segundo livro,composto de dezesseis proposições, Mersenne apresenta um estu-do sobre a reflexão da luz e os espelhos.

Ao longo de sua trajetória intelectual, Mersenne dedicou-se adiversos assuntos relacionados com a teologia, a filosofia, a mate-mática e as ciências naturais. Entretanto, é a partir de 1624 que po-demos notar a crescente preocupação do autor com questões emi-nentemente científicas. De fato, é precisamente na segunda décadado século XVII que Mersenne publica três textos fundamentalmen-te vinculados a questões de ordem epistemológica ou estritamentecientífica: La Vérité des Sciences contre les Sceptiques ou Pyrrhoniens(1625), Synopsis Mathematica (1626) e o Traité de L’Harmonie Universelle(1627). É justamente na última dessas obras que encontramos doiselementos aos quais vale a pena aludir, antes de iniciar a análiseque será aqui apresentada.

No prefácio ao leitor, depois de declarar sua completa surpre-sa em verificar que a ciência da música tenha permanecido tão im-perfeita até aquele momento, Mersenne afirma:

A Geometria, a Álgebra, a Astronomia, a Perspectiva, aCatóptrica, a Dióptrica e as Mecânicas alcançaram uma gran-

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de perfeição no século em que estamos; mas a Música temsido de tal forma abandonada, que não parece ser mais ma-nejada senão para o lucro, ou para a volúpia, sem conside-rar-se seu principal uso, que é o de encaminhar à virtude ede regrar os costumes. Ora, eu desejo tirá-la e isentá-la dessaignomínia, e conduzi-la a tal ponto que o Músico possa ser-vir-se dos sons como os Mestres da Óptica servem-se dascores e da luz; que ela possa acalmar as paixões mais furio-sas de seus ouvintes, e conduzi-los à virtude; e que ele co-nheça quais sons é preciso utilizar para produzir todo tipode efeito sobre toda sorte de corpos [...] (MERSENNE, 2003[1627], p. 17).

A passagem transcrita acima nos mostra o desejo de Mersennede elevar a música ao mesmo nível de desenvolvimento das de-mais ciências. Tal objetivo certamente parece ter sido atingido nosestudos desenvolvidos pelo autor desde a publicação da obra emquestão até a publicação, em 1636, do tratado Harmonie Universelle.A música e a acústica foram, durante todo esse período, as ciênciasque receberam por parte de Mersenne intensa atenção e dedicação.Suas investigações sobre a música e a acústica indicam, sem som-bra de dúvida, o envolvimento do autor com a construção de umaciência suficientemente segura e comprometida com os principaisfundamentos do mecanicismo. Contudo, é precisamente no trata-do de 1627 que encontramos um dos primeiros indícios do interes-se de Mersenne por outra ciência fortemente investigada por seuscontemporâneos, à qual o autor se refere nessa mesma passagem, asaber: a óptica.

A intenção inicial de Mersenne ao redigir o Traité de l’ harmonieuniverselle consistia na apresentação de dezesseis livros, em suagrande maioria relacionados com a harmonia, seja do ponto de vis-ta estritamente musical seja numa perspectiva intimamente relaci-onada com a acústica. O projeto inicial não é, todavia, concluídonesse momento. Desse conjunto inicial de livros, Mersenne publicaapenas os dois primeiros. Alguns dos outros livros farão parte dotratado de 1636, sendo que uma parte do terceiro livro parece

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corresponder justamente ao texto sobre a óptica publicado em 1651.Tal suspeita está apoiada naquilo que encontramos no sumário daobra de 1627. Nele lê-se o que segue:

O terceiro revela a natureza e os efeitos de todos os tipos desons, e mostra como eles atravessam o meio circundante atéo ouvido; como se faz o eco, e que comparação há entre ossons retos, refletidos e rompidos, com o raio do Sol, ou o doolho; onde eu tratarei de tudo aquilo que pertence à Óptica,à Catóptrica e à Dióptrica (MERSENNE, 2003 [1627], p. 23).

O estudo dos aspectos relacionados com a natureza do som eseus efeitos será objeto do primeiro livro do Harmonie Universelle,enquanto os estudos sobre a natureza da luz e o funcionamento doolho receberão um tratamento especial no texto publicado em 1651.É interessante notar a presença de um projeto de investigação cien-tífica, claramente vinculado à acústica e à óptica, ao qual Mersenneparece ter se dedicado quase que exclusivamente durante vinte eum anos, isto é, de 1627 até 1648, ano da morte do autor. Se essahipótese está correta, L’Optique et la catoptrique corresponde à últi-ma parte desse programa de pesquisa. Feitas essas brevíssimas con-siderações iniciais, passemos ao exame do “Traité de l’oeil”, objetoda presente exposição.1

2. A ESTRUTURA E O FUNCIONAMENTO DO OLHO

Antes da exposição das oito proposições que compõem o “Traitéde l’oeil”, Mersenne apresenta uma pequena introdução. Seu obje-tivo consiste em advertir o leitor sobre um problema que ele nãopretende discutir. Mersenne afirma que não pretende explicar deque modo a alma conhece os movimentos do nervo óptico que com-põe a retina, no qual os raios visuais têm seu término. Eximindo-sede um exame mais profundo sobre as diferentes hipóteses

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explicativas concernentes à conexão entre a alma e o corpo (maisespecificamente entre a alma e o olho) e a existência de três almasdiferentes no homem (a vegetativa, a espiritual e a intelectual),Mersenne afirma:

[...] é suficiente pensar aqui que há em nós um poder internoque julga a presença ou a ausência da luz, das cores e dosoutros objetos, por meio dos sentidos que Deus nos deu, en-tre os quais parece que o olho seja o mais excelente, tanto emvirtude da grande diversidade de objetos que ele nos fazperceber quanto pelo artifício maravilhoso que aparece emsua construção, como nós veremos na proposição seguinte(MERSENNE, 1651, p. 57).

Ao invés de envolver-se com qualquer uma das hipótesesindicadas anteriormente, Mersenne concebe uma solução mais sim-ples e isenta de qualquer consideração mais profunda sobre a natu-reza e o funcionamento da alma em sua conjunção com o corpo. Amera suposição desse poder interno é suficiente para os objetivosdo autor, uma vez que o mesmo é responsável pela interação entreo sujeito que vê e o objeto que é visto.

Feita a advertência inicial, Mersenne dedica-se às oito proposi-ções que compõem o “Traité de l’oeil”, as quais podem ser dividi-das em três grandes blocos. No primeiro, Mersenne trata da estru-tura do olho e da natureza da visão. O segundo bloco é dedicadoaos erros e ilusões da visão. Finalmente, o terceiro bloco apresentaalgumas considerações acerca dos ângulos sob os quais vemos osobjetos.

As proposições que compõem o primeiro bloco têm os seguin-tes enunciados:

Prop. XXIV: Explicar a figura, as partes e os usos do olho.Prop.XXV: Explicar como as imagens dos objetos se formam

no olho e como os raios entram, e por que se vê os objetos correta-mente, ainda que ele sejam invertidos no fundo do olho.

Prop. XVI: Determinar se os raios dos dois olhos que se imagi-

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na se estendem até os objetos, se encontram em um mesmo pontoou se seus eixos permanecem sempre paralelos desde os olhos atéo objeto.

O segundo bloco é composto pelas seguintes proposições:Prop. XXVII: Determinar se o Sol pode produzir a sombra de

um corpo oposto mais larga, quando o olho vê o Sol maior.Prop. XXVIII: Explicar os erros pelos quais o espírito pode ser

enganado pelas diferentes aberturas da pupila do olho, e quandose pode dizer que se vê o objeto em sua própria grandeza.

Prop. XXIX: Explicar por que cada objeto não aparece duplicadoaos dois olhos, uma vez que eles recebem duas imagens diferentes.

O terceiro bloco apresenta as duas últimas proposições do“Traité de l’oeil”. Elas são as seguintes:

Prop. XXX: Explicar qual é o maior ou o menor ângulo sob oqual o olho pode ver os objetos.

Prop. XXXI: Explicar sob quais ângulos o olho vê os objetospróximos e distantes, e mostrar que os ângulos não seguem a razãodas distâncias; e por que os objetos que estão no alto parecem abai-xar, aqueles que estão embaixo parecem elevar-se, aqueles à esquer-da aproximar-se do lado direito e aqueles que estão à direita ir paraa esquerda.

Dados os limites do presente trabalho, minha análise estarácircunscrita ao exame de alguns aspectos fundamentais presentesnas duas primeiras proposições do “Traité de l’oeil”, nas quaisMersenne apresenta a anatomia e o funcionamento do olho. Passe-mos, portanto, à primeira delas.

Conforme apontado anteriormente, essa proposição objetivaexplicar a figura, as partes e os usos do olho. A exposição deMersenne está apoiada na figura reproduzida abaixo, a partir daqual são indicadas e explicadas todas as partes que compõem aestrutura do olho. Como veremos, tal estrutura é formada por umasérie de membranas sobrepostas, cuja articulação permite a capta-ção das imagens dos objetos.

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Figura 1

MERSENNE, 1651, p. 57

A primeira dessas membranas, denominada de córnea, é repre-sentada pelas linhas DCB. Trata-se de uma membrana transparenteatravés da qual os raios luminosos atingem o fundo do olho, locali-zado no ponto N, passando pela pupila (IH) e também pelo cristali-no (QRST). Ao explicar a natureza dessa primeira membrana,Mersenne aborda as outras estruturas envolvidas na passagem dosraios luminosos: a pupila e o cristalino. É precisamente esse conjuntoque determina a imagem projetada no fundo do olho, isto é, na reti-na. A córnea, a pupila e o cristalino funcionam basicamente comoum conjunto mecânico de lentes que permitem a visão dos objetos;sem ele seria impossível obter as imagens presentes na retina.

Observando a mesma figura, notamos três outras membranasjustapostas. A mais externa delas (representada pelas linhas BA eDE) corresponde à esclerótica. A intermediária (indicada na figurapelas linhas HGF e IKL) é denominada de úvea, uma vez que, comoadverte o autor, é bastante parecida com a pele de um grão de uva.

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Finalmente, a mais interna (correspondente à linha QPNOR) é de-nominada de cavidade interna do olho, preenchida pelo humorvítreo. É nela que encontramos a retina (PNO), local onde se for-mam as imagens. O autor indica ainda uma das partes que com-põem a úvea, denominada de coróide (GF e KL). SegundoMersenne, tal denominação se deve a sua semelhança com o córion(a vesícula coriônica) que abriga o embrião (de acordo com a des-crição presente no texto, a coróide é “salpicada de pequenas vei-as”). A íris (VXY) e os processos ciliares (DQ e RB) não parecemser claramente percebidos como partes componentes da úvea,embora o autor os identifique e denomine corretamente. Final-mente, o ponto M corresponde ao nervo ótico que faz a ligaçãoentre o olho e o cérebro.

Segundo Mersenne, é preciso imaginar cada membrana comouma esfera côncava e oca para abrigar, como uma bolsa, humores elicores (cf. MERSENNE, 1651, p. 58). De acordo com o autor, o olhocontém três humores. O primeiro deles, denominado aquoso, pre-enche a cavidade entre a córnea e o cristalino. O segundocorresponde ao próprio cristalino, sendo semelhante à água conge-lada (mas não tão duro quanto ela), imitando cera amolecida. Oterceiro é o humor vítreo, referido anteriormente.

A exposição de Mersenne ao longo da primeira proposição ébastante descritiva, uma vez que o objetivo central do autor con-siste em apresentar a anatomia do olho. Em raríssimos momentosencontramos alguma passagem vinculada a algum tipo de expli-cação sobre as causas que determinam o funcionamento dessaspartes. Há, entretanto, dois momentos para os quais convém cha-mar a atenção.

No primeiro deles, ao tratar da pupila, Mersenne afirma quetal abertura é responsável tanto pela quantidade de luz que incidesobre o olho quanto pela transmissão das imagens dos objetossegundo seus diferentes tamanhos. Segundo ele, o estreitamentoou alargamento dessa abertura se faz “naturalmente e sem esco-

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lha ou liberdade”. Desse modo, seu funcionamento é inteiramen-te mecânico. Tal conclusão, em princípio, não parece causar qual-quer surpresa. Entretanto, é preciso levar em conta que o proble-ma da visão não se esgota na mera descrição das partes que com-põem o olho. Pelo contrário, é preciso determinar como as ima-gens se formam nele e em que medida estaríamos autorizados aconcluir que vemos um determinado objeto. Mersenne parece teralguma consciência desses dois problemas, ainda que não tenhauma solução completa para ambos, notadamente para o segundodeles. A solução dessas questões provavelmente dependeria deuma teoria sobre a natureza e a ação da alma. Ora, como vimos,Mersenne contenta-se simplesmente em afirmar que há em nósum poder interno capaz de julgar a presença ou a ausência da luz,das cores e dos objetos. Todavia, ele não nos explica como tal po-der funciona. Na segunda proposição do tratado, aquela que ex-plica como se formam as imagens dos objetos no olho, Mersenneretoma essas questões. Em breve veremos o que encontramos aí;por enquanto vejamos uma última passagem da primeira propo-sição do “Traité de l’oeil”.

Ao tratar da relação entre o nervo ótico (responsável pela liga-ção entre o olho e o cérebro) e toda a estrutura ocular, Mersenneafirma: “[...] de sorte que eu acredito que as imagens dos objetos,ou os movimentos que produzem a luz, vão até a coróide, que lheserve como o estanho, ou a tinta do espelho, até a dita retina”(MERSENNE, 1651, p. 59). Ora, fiel à sua definição de luz comouma espécie de movimento de uma matéria extremamente sutil(cf. MERSENNE, 1651, p. 1), Mersenne indica agora que a imagemproduzida na retina é, na verdade, resultado desse mesmo movi-mento. A imagem é, portanto, resultado de matéria e movimento.Posto isso, passemos à segunda proposição do tratado.

De modo análogo à proposição anterior, Mersenne apóia suaexposição na figura reproduzida a seguir.

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Figura 2

MERSENNE, 1651, p. 61

A exposição inicial de Mersenne é bastante simples. Ela consis-te em mostrar que a interação entre o olho e o objeto produz umaimagem invertida do segundo na retina do observador. A explica-ção não pressupõe evidentemente todos os raios de luz da vela aquirepresentada. Como adverte o autor, basta considerar apenas ospontos A, B e C. Como é possível observar na figura acima, taispontos encontram-se invertidos na imagem produzida na retina. Afim de explicar tal efeito, Mersenne faz referência ao experimentopor meio do qual é possível verificar o que ele afirma:

[...] como é fácil de experimentar com um olho de boi total-mente fresco, cuja esclerótica e coróide são de tal modo cor-tadas que, no lugar da dita coróide, coloca-se um papel lu-brificado através do qual se vê a vela como ela aparece emCBA [...] (MERSENNE, 1651, p. 61).

É a experiência, portanto, que permite a Mersenne determinarcom segurança o fenômeno que pretende explicar. A natureza desua exposição é, mais uma vez, bastante descritiva e não pareceenvolver maiores problemas. A dificuldade aparece justamentequando o autor transita da mera recepção da imagem na retina paraa percepção do objeto pelo sujeito que vê. É precisamente nesse

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momento que o autor necessita considerar novamente a ação daalma. O assunto é discutido em dois momentos. No primeiro deles,depois de indicar brevemente duas opiniões sobre a visão (umaque considera a visão como resultado dos raios que o olho projetasobre o objeto e outra que explica a visão como o efeito dos raiosluminosos emitidos pelos objetos sobre o olho), Mersenne diz quenão é possível afirmar que vemos um objeto quando a imaginaçãoestá ocupada com outras coisas. Desse modo, ainda que a imagemde um dado objeto esteja presente na retina, só é possível afirmarque o vemos se, de fato, a imaginação tem sua atenção voltada parao mesmo. Como o autor indica algumas linhas adiante (cf.MERSENNE, 1651, p. 62), é preciso que a alma acomode sua aten-ção aos objetos que são vistos. Se for assim, então como entender aoperação da alma no ato da visão?

A resposta de Mersenne é claramente hipotética. Levando emconta a dificuldade de explicar como a alma sente os movimentosque abalam o nervo que compõe a retina, o autor considera três hi-póteses. Nas duas primeiras ele supõe que a alma está localizada emalguma extremidade do dito nervo, operando tal como uma aranhaque percebe qualquer movimento em sua teia ou como o primeiromotor que conhece instantaneamente o movimento de qualquer partedo mundo. Na segunda hipótese a alma é comparada à onipresençade Deus: nesse caso, a alma estaria presente em todas as partes daretina. Não obstante tais suposições, Mersenne adverte que não co-nhecemos de que maneira a alma opera (cf. MERSENNE, 1651, p.63) e, portanto, não podemos explicar de modo seguro e definitivo ofuncionamento da alma no ato da visão.

Assim sendo, ainda que o autor indique alguma saída para oproblema em questão, não se trata de uma resposta definitiva nemtampouco dotada da mesma segurança que podemos notar em suadescrição sobre a anatomia do olho e seu funcionamento. A expli-cação da relação entre a imagem projetada na retina e a percepçãodo objeto que a produz não é, para Mersenne, algo que possa ser

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SILVA, Paulo Tadeu da

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resolvido facilmente. Encontramos, nesse momento, a exemplo doque ocorre em outras ocasiões de suas obras, a insegurança quemarca o abandono do campo estritamente fenomênico ouobservacional. É precisamente nesse contexto que o autor reconhe-ce os limites do conhecimento humano.

Tendo em vista os aspectos analisados, gostaria de indicar, ain-da que de modo bastante provisório, algumas rápidas conclusões.

Em primeiro lugar, a exposição sobre a anatomia do olho e oprocesso de formação da imagem na retina obedece a dois precei-tos do mecanicismo. A fim de dar conta de tais aspectos Mersennerecorre aos conceitos de matéria e movimento mostrando em quesentido eles se articulam. Além disso, o autor utiliza, ainda que demodo muito simples, uma linguagem geométrica por meio da qualele descreve a trajetória e os efeitos concernentes aos raios de luzque incidem sobre a retina.

Em segundo lugar, é possível notar também o recurso à experi-ência. É exatamente a observação que permite a determinação detodas as partes que compõem o olho, bem como a explicação dainversão das imagens dos objetos na retina. Como foi visto, esserecurso encontra-se, em alguns momentos, aliado ao uso de analo-gias com outras estruturas materiais. É o caso, por exemplo, doaspecto da úvea e da coróide.

Finalmente, resta ainda o problema relativo ao processo da sen-sação, tendo em vista o modo segundo o qual vemos os diversosobjetos. É interessante notar, nesse momento, um aspecto discuti-do por Lenoble em seu livro Mersenne ou la naissance du mécanisme.Considerando o papel e a natureza da sensação em Mersenne,Lenoble afirma: “[...] a sensação não nasce de um registro passivodo objeto, mas de uma reação dos sentidos. Seus estudos de acústi-ca e de óptica o fortalecem nesta opinião” (LENOBLE, 1943, p. 317).Ora, se assentíssemos à interpretação de Lenoble, provavelmenteestaríamos inclinados a afirmar que é justamente aquele poder in-terno (o qual nos possibilita julgar a presença ou ausência de um

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A Mecânica do olho: algumas considerações sobre L’Optique et la catoptrique de Mersenne

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objeto) que permite a reação dos sentidos frente aos objetos domundo exterior. Por outro lado, parece importante lembrar que olhoe objeto partilham de uma mesma natureza mecânica. Como vi-mos, a abertura da pupila se dá, como diz Mersenne, sem qualquerescolha ou liberdade. Entende-se, desse modo, que tal efeito ocorremecanicamente. Nessa perspectiva, ainda poderíamos sustentar aafirmação sugerida a partir da leitura de Lenoble? A reação dossentidos deve ser atribuída ao poder interno ou, a exemplo do queacontece com o olho, deve ser atribuída a uma operação meramen-te mecânica ou natural? Esse é certamente um problema que nãopode ser resolvido com as duas proposições aqui analisadas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LENOBLE, Robert; Mersenne ou la naissance du mécanisme. Paris :Libraire Philosophique J. Vrin, 1943. 629 p.

MERSENNE, Marin; L’optique et la catoptrique. Paris: F. Langlois, Ediçãofac-similar, 1651. 134 p.

MERSENNE, Marin; Traité de l’harmonie universelle. Paris: Fayard, 2003[1627]. 450 p.

MERSENNE, Marin; Harmonie Universelle. 3 v. Paris : CNRS, 1975 [1636].228 p., 442 p., 412 p.

NOTAS* O presente artigo corresponde, com pequenos ajustes, ao trabalho apresentado no II Semi-

nário de História e Filosofia da Ciência/IV Encontro da Rede Paranaense de Pesquisa emHistória e Filosofia da Ciência, realizado na Universidade Estadual de Santa Cruz.

1 Convém chamar a atenção para o caráter preliminar do presente artigo. Não se trata aindade um trabalho inteiramente amadurecido, mas de algumas observações iniciais a partirdas quais será desenvolvida uma investigação mais detida sobre a óptica em Mersenne.

Recebido em: junho de 2006Aprovado em: julho de 2006

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Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo, professor do Departa-mento de Filosofia da Universidade Federal do Paraná. E-mail: [email protected]

Newton contra os infinitesimais: ametafísica e o método das fluxões*

Eduardo Salles de Oliveira Barra

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Abstract: The mathematization ofnature, that characterized thebeginning of modern science throughout the first decades of theseventeenth-century, was stronglyinspired by the mathematical realismof Galileo and Descartes. On the otherhand, in the next century there is apredominance of anti-realisttendencies regarding the philosophiesof mathematics, largely motivated bythe metaphysical criticism of theCartesian mechanicism. Moreover it isalso reasonable to attribute thepredominance of this mathematicalanti-realism to the reform of themathematical practices thatprogressively incorporatedinfinitesimals methods and refined thecomprehension of the mathematicalcontinuum. However the same doesnot apply to Newtonian method offluxes, which preserved importantshares of the metaphysical motivationsof the earliest modern attempts tomathematize nature.

Key-words: mathematization ofnature - mathematical realism -infinitesimal calculus - Isaac Newton.

Resumo: A matematização da natu-reza, que caracterizou o início da ci-ência moderna durante as primeirasdécadas do séc. XVII, foi fortementeinspirada no realismo matemático deGalileu e de Descartes. Emcontrapartida, no século seguinte, háum predomínio de tendências anti-realistas entre as filosofias da mate-mática, em grande parte motivadaspelas críticas metafísicas aomecanicismo cartesiano. Mas, alémdisso, é razoável também atribuir opredomínio desse anti-realismo ma-temático à reforma das próprias prá-ticas matemáticas, que incorporaramprogressivamente métodosinfinitesimais e refinaram a compre-ensão do contínuo matemático. Con-tudo, isso não se verifica no caso dométodo das fluxões newtoniano, quepreservou parcelas importantes dasmotivações metafísicas das primei-ras tentativas modernas de empre-ender a matematização da natureza.

Palavras-chave: matematização danatureza - realismo matemático - cál-culo infinitesimal - Isaac Newton.

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A ciência moderna surgiu com a certeza de que “o mundo estáescrito em linguagem matemática, e seus caracteres são triângulos,círculos e outras figuras geométricas” (GALILEU, Il Saggiatore, 1623,apud BLAY, 1998, p. 1). A máxima de Galileu, que orientou sua re-volucionária reformulação da ciência mecânica, encontrou sólidafundamentação metafísica na identidade entre matéria e extensãosustentada por Descartes. Mas, ao contrário do que normalmentese costuma supor, e apesar de inspirar e promover todas as maisimportantes conquistas científicas que se seguiram à era de Galileue Descartes, a certeza sobre a aplicabilidade da matemática aos pro-blemas da ciência da natureza declinou fortemente nas primeirasdécadas do séc. XVIII. A razão mais aparente para esse declínio foi,provavelmente, a crescente vaga de críticas metafísicas aomecanicismo, ao qual o uso generalizado das matemáticas na ciên-cia da natureza passara a ser freqüentemente associado. As váriastentativas de formular alternativas ao sistema metafísico cartesianotiveram que se confrontar com o mesmo problema: como tornar in-teligível o sucesso explicativo obtido pela aplicação da matemáticaaos problemas da ciência da natureza? Se o mundo e, conseqüente-mente, a matéria fossem algo mais que simplesmente extensão geo-metricamente definida, ele ainda assim poderia ser considerado sus-cetível de uma genuína descrição em linguagem matemática?

Foram muitos os modos como alguns dos filósofos do séc. XVIIIrecusaram-se a dar o seu assentimento aos pressupostos metafísicose epistemológicos do mecanicismo herdado do século anterior. Noentanto, todos esses tiveram que enfrentar a dificuldade de articu-lar uma explicação alternativa para o fato da aplicabilidade damatemática ao mundo. Isso parecia ser possível apenas se envol-vesse uma restrição problemática do estatuto cognitivo e ontológicoda matemática, que comprometeria ora o seu caráter apriorístico e,conseqüentemente, a necessidade que se confere às suas conclu-sões, ora a aptidão representativa das propriedades e relações atri-buídas aos objetos matemáticos. De uma forma ou de outra, o fun-

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damental é que alguns dos principais protagonistas dos debatesfilosóficos durante o séc. XVIII – particularmente, aqueles que sepretenderam como herdeiros da tradição metodológica eespeculativa inaugurada pela revolução científica do século anteri-or – promoveram o abandono da antiga convicção galilaico-cartesiana de que a real natureza das coisas pudesse ser descrita ecompreendida mediante princípios e raciocínios matemáticos. Éjustamente isso que se verifica, por exemplo, nas filosofias deBerkeley e Hume (a matemática é ontologicamente vácua), deLeibniz (a matemática é uma mera idealização de relações ou pro-priedades fenomênicas) e de Kant (a matemática contém apenas osesquemas transcendentais do nosso modo de representarempiricamente os aspectos quantitativos dos objetos). Todas elasparecem conformar-se às interpretações formalistas ou instrumen-talistas da matemática, que restringem seus objetivos cognitivos àconstrução de sistemas coerentes de proposições, desprovidos dequaisquer nexos de identidade entre os presumidos referentes deseus conceitos ou princípios (de facto, meros instrumentosnotacionais ou axiomáticos de um sistema abstrato não-interpreta-do) e os aspectos substantivos e objetivos do mundo real.

À primeira vista, a crítica metafísica ao mecanicismo cartesianoparece responder satisfatoriamente à pergunta pelas razões quelevaram a um abandono tão radical de uma parte substantiva dolegado especulativo de Galileu e de Descartes. Contudo, uma se-gunda razão pode ser cogitada para tal abandono e, ao menos paraum importante comentador, ela teria exercido um papel ainda maisdecisivo que as razões de ordem metafísica. Trata-se das mudançasimpostas aos próprios métodos matemáticos empregados pelos ci-entistas ativos com a incorporação do cálculo infinitesimal às suasinvestigações da natureza.

O comentador a que me refiro é Michel Blay (1988), para quema emergência do cálculo infinitesimal – sobretudo com os trabalhosde Newton e Leibniz – acarretou revisões dramáticas nas antigas

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crenças mecanicistas sobre a identidade ontológica entre as entida-des matemáticas e os objetos naturais ou, ao menos, sobre a trans-parência dos mecanismos naturais para uma mente apta a domi-nar apenas os métodos construtivos, geométricos e mecânicos ins-pirados no modelo geométrico euclidiano. Dessa forma, osurgimento do cálculo infinitesimal decretou o abandono dos mé-todos construtivos, geométricos e mecânicos inspirados no modelogeométrico euclidiano, em favor de métodos algébricos, sujeitos aum procedimento regular e uniforme. Mas não apenas isso, pois,em vista dos propósitos iniciais da matematização da natureza, asinvestigações sobre indivisíveis e a composição do contínuo acar-retam um compromisso, seja com a introdução do infinito no mundoseja com a presença de um infinito intramundano, sem os quais aque-les propósitos pareciam não poder ser integralmente realizados. E,dadas as dificuldades de conceber um infinito real intrínseco aomundo, não restou alternativa que não fosse “a renúncia de todas aspretensões com respeito a propósitos ontológicos fundacionistas” ea conseqüente redução do antigo projeto de matematização da natu-reza a um mero “discurso bem-construído”. Assim, por “não falarmais sobre a realidade das coisas e se desprender delas”, os procedi-mentos algébricos e algoritmos requeridos pelo cálculo infinitesimal“não eram mais do que métodos, técnicas, meros auxiliares do cálcu-lo e da investigação, cujo reflexo direto não se poderia mais preten-der encontrar na realidade” (BLAY, 1998, p. 10).

Em princípio, poder-se-ia perguntar se interpretações como ade Blay apreendem com precisão as mudanças desencadeadas nafilosofia do séc. XVIII pelo impacto dos primeiros prodígios descri-tivos e explicativos dos novos métodos infinitesimais. Dito de ou-tro modo: o problema da aplicabilidade da matemática ao mundo,ainda que esvaziado dos seus apelos ao fundacionismo e ao realis-mo matemático, deixou de oferecer material às reflexões filosóficasno campo da ontologia e da epistemologia, reduzindo-se a umaquestão pragmática da investigação dos eventos naturais? Mas um

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passo preliminar a essa questão deve ser avaliar em que medida aspróprias práticas matemáticas, reestruturadas pelas investigaçõesmodernas sobre o contínuo e o infinito matemáticos, decretaram oabandono liminar dos métodos construtivos, geométricos e mecâni-cos inspirados no modelo geométrico euclidiano, em favor de méto-dos algébricos e algoritmos, incompatíveis com as pretensões típicasdo realismo matemático dos fundadores da ciência moderna.

Meu objetivo aqui é mostrar que isso de fato não se verificanum dos casos paradigmáticos do desenvolvimento e emprego dosmétodos infinitesimais levado a cabo ainda sob a inspiração do pro-grama de matematização da natureza suportado pelas crençasmetafísicas de Galileu e Descartes. Refiro-me ao método das fluxõesde Newton, sobretudo à sua apresentação como “método das pri-meiras e últimas razões” na seção inicial dos Philosophiae naturalisprincipia mathematica (1687) e às suas aplicações ao longo dessamesma obra.1 Considero que a interpretação de Blay, de que osmétodos da matemática infinitesimal nada mais eram que procedi-mentos heurísticos, expedientes úteis, sem reflexo direto na natu-reza das coisas reais, não se sustenta no caso do método das fluxõesnewtoniano, desde que se tome a sério a centralidade da noção detempo absoluto na sua fundamentação e operacionalização. Pre-tendo mostrar por que, embora a interpretação de Blay seja cabívelaos desenvolvimentos futuros ou diversos do cálculo infinitesimal(sobretudo na sua vertente leibniziana), ela não apreende um as-pecto central da sua origem newtoniana. Se a interpretação alter-nativa que irei apresentar a seguir estiver correta, será possíveladicionalmente mostrar que uma parcela importante dos desen-volvimentos dos novos métodos infinitesimais ao final do séculoXVII pode ser acomodada à “geometria dos Antigos” e produziresquemas realistas destinados à matematização da natureza nãomuito distantes, em espírito, do programa preconizado por Galileue Descartes. Senão, vejamos.

Numa parcela expressiva dos teoremas dos Principia, algum

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tipo de raciocínio envolvendo “razões primeiras e últimas” entremagnitudes finitas que crescem ou decrescem infinitamente (ininfinitum) é direta ou indiretamente requerido. A justificação dessamaneira de proceder é apresentada no Lema 1 da Seção 1: “As quan-tidades, assim como as razões das quantidades, que tendem cons-tantemente (constanter) à igualdade, num tempo finito qualquer, eque antes do final desse tempo aproximam-se mutuamente maisque por qualquer diferença dada, tornam-se ultimamente (ultimo)iguais” (NEWTON, 1999, p. 433). Isso permite que, ao pressupor ofluxo contínuo dessas quantidades “num tempo finito qualquer”,Newton possa também presumir um incremento último dessas quan-tidades ou das suas razões em meio às suas infinitas etapas de apro-ximação à igualdade, sem estar obrigado a percorrer toda a série,com base apenas num certo número de situações finitas.

Os Lemas seguintes da Seção 1 dividem-se em dois grupos dis-tintos, se notarmos que ora a continuidade ora a discrição do tem-po será pressuposta em cada um deles. Nos Lemas 2, 3, 4 e 5, quetratam da aproximação a áreas curvilíneas por intermédio de figu-ras retilíneas, a situação última é alcançada mediante operaçõessucessivas de subtração (áreas evanescentes) ou acréscimo (áreasnascentes) de porções retilíneas de áreas inscritas ou circunscritas.Nos demais Lemas da Seção 1, Lemas 6 a 11, que tratam das propri-edades locais de curvas evanescentes mediante suas relações comretas ou áreas descritas em torno delas, são requeridos processoscontínuos que conduzam essas grandezas a suas situações finais,identificadas sob a forma das suas relações com uma configuraçãofinita semelhante. O tempo intervém em cada um desses dois gru-pos de Lemas de uma maneira bastante diferente. No primeiro gru-po, “sob a forma de um processo, de uma sucessão discreta de atosque o matemático efetua (ou poderá efetuar) sobre o objeto; umadécoupage de superfícies”. Ao passo que no segundo grupo, “o tem-po é aquele que ritma o movimento próprio do objeto estudado e éum tempo contínuo: tudo é função do deslocamento de um ponto da

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curva na direção de um outro ponto” (DE GANDT, 1986, p. 203-204).Ora, estaria Newton, desse modo, sugerindo que as mesmas

grandezas fossem consideradas sob um duplo caráter, ora comograndezas contínuas ora como grandezas discretas? Possivelmen-te não, se levarmos seriamente em consideração o papel decisivoque o movimento desempenha na gênese dessas grandezas. Semesse elemento cinemático encarado como inerente à ontologia dasgrandezas submetidas ao tratamento infinitesimal, não haveria sen-tido falar de seus estados “nascentes” ou “evanescentes”. Isso ficapatente também em outro célebre tratado, o De quadratura curvarum(1704),2 no qual Newton apresenta o que se poderia propriamenteconsiderar o seu “método das fluxões”, num estilo muito seme-lhante ao enfoque algébrico e analítico característico da versãoleibniziana do cálculo infinitesimal – mas não totalmente identifi-cado com esse tipo de tratamento, por força justamente das convic-ções de Newton sobre a superioridade do enfoque geométrico esintético, conforme veremos adiante. Inicialmente, nesse tratado,Newton sustenta que “não considera as Quantidades Matemáticascomo compostas de Partes extremamente pequenas, mas como gera-das por um movimento contínuo”. A seguir, após definir “fluxões”como as velocidades dos movimentos ou dos aumentos pelos quaisas quantidades são geradas e “fluentes” como as próprias quanti-dades geradas, Newton acrescenta: “As fluxões são aproximada-mente como os aumentos dos fluentes gerados em partes iguais,mas infinitamente pequenas, do Tempo; ou, para dizer mais exata-mente, estão na razão primeira dos aumentos nascentes. Mas asfluxões podem ser representadas pelas linhas proporcionais a elas”(WHITESIDE, 1964, vol. 1, p. 141). Portanto, embora os fluentes (e,entre eles, o tempo) não devam ser tomados como agregados departes “extremamente pequenas”, Newton admite que – emboraapenas “aproximadamente” (very nearly) – o tempo, em particular,possa ser concebido como composto de suas partes iguais “infini-tamente pequenas”. Trata-se de uma condição necessária para que

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as quantidades geradas pelo movimento (contínuo ou acelerado),isto é, todos os fluentes tenham uma velocidade instantânea.

Portanto, mesmo que Newton não suponha infinitésimos deáreas nem de quaisquer outros segmentos geométricos, o mesmonão se pode dizer com respeito ao próprio tempo, visto que, alémde uma fluxão contínua, também é concebido como um agregadode acréscimos “infinitamente pequenos”. Dessa última forma, noDe Quadratura, o tempo surge na notação de Newton como o acrés-cimo infinitesimal o. As fluxões de fluentes como x são representa-das por

x&

. Portanto, o momento ou acréscimo da fluxão x no inter-valo o será como o produto xo. Na maioria das vezes, Newton con-sidera que a velocidade de crescimento de x é constante e igual a 1,isto é, x=1. Desse modo, o acréscimo mínimo pode ser escrito comoo em lugar de xo, o que significa que a fluxão de x poderá ser toma-da como um substituto do próprio tempo. O emprego desse expe-diente deve-se ao fato de o próprio tempo escapar a toda represen-tação ou medida física. Nesse caso, deve-se encontrar determina-dos movimentos, que funcionarão como “relógios”, em virtude denossa decisão de encará-los como uniformes.

Mas Newton adverte que esses acréscimos “primeiros” ou de-créscimos “últimos” dos fluentes, que se podem representar pelaslinhas proporcionais a eles, sejam concebidos como quantidades“nascentes” ou “evanescentes” e não como genuínos indivisíveisou infinitésimos. Isso certamente diz respeito à distância queNewton pretende manter entre o seu cálculo das primeiras e últi-mas razões e o enfoque algébrico ou analítico do cálculoinfinitesimal, que acarretariam a suposição de indivisíveis e, con-seqüentemente, a caracterização das grandezas finitas como agre-gados de partes infinitamente pequenas. As suas restrições a taissuposições estão também registradas no Escólio ao final da Seção 1dos Principia: “se às vezes eu considerar as quantidades como sen-do compostas a partir de partículas, ou se empregar lineolas curvasem lugar de linhas retas, não quero entender nunca que se trata de

.

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indivisíveis, mas de divisíveis evanescentes...” Uma geometriacinemática e fluxional não contrairia o ônus de justificar a suposi-ção de indivisíveis para quantidades presumidamente contínuas(linhas, superfícies, trajetórias etc.). Basta conceber o contínuo combase no fato de que essas quantidades são geradas no tempo, que,por sua própria natureza, flui uniforme e constantemente em todaa sua extensão. Ao lado disso, Newton julga ser plenamenteadmissível que, em qualquer instante do tempo, todos os fluentespossuem uma taxa finita de crescimento ou diminuição. É funda-mental, porém, que tais acréscimos ou decréscimos não sejam com-preendidos como quantidades últimas, isto é, o último estágio de umprocedimento contínuo de divisão de uma grandeza dada, mascomo limites de quantidades ou de razões entre quantidades quediminuem infinitamente: “aquelas razões últimas com as quais asquantidades se evanescem, na realidade, não são as razões de quanti-dades últimas, mas limites aos quais as razões das quantidades quedecrescem sem limite aproximam-se sempre; dos quais podem seaproximar mais do que por qualquer diferença dada, mas jamais oultrapassar ou atingir antes que diminuam in infinitum” (NEWTON,1999, p. 441; itálicos meus).

A noção de limite é, assim, imprescindível para os objetivos deNewton. A fim de que quantidades últimas ou mínimas não fos-sem tomadas como indivisíveis de determinada magnitude (aindaque infinitesimal), seria necessário encará-las como limites que asrazões entre magnitudes distintas (tais como entre áreas retilínease curvilíneas, ou entre curvas e cordas), ao diminuírem continua-mente, alcançam antes de tornarem-se iguais. Assim compreendi-do, o limite newtoniano não deve ser encarado como uma primiti-va versão “intuitiva” da teoria dos limites de Cauchy, que a partirdo séc. XIX oferecerá o padrão para a definição de continuidade,convergência, derivada e integral. Enquanto o modelo de Cauchysão séries numéricas e, portanto, algébricas, o modelo de Newtontem como objetos as quantidades geométricas geradas por um flu-

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xo contínuo e, portanto, é inexoravelmente geométrico. E isso nãopor simples carência de alternativas viáveis, pois muito provavel-mente Newton desenvolveu o conceito de limite movido, entreoutros, por seu declarado interesse em enfatizar os vínculos de con-tinuidade entre o seu método das razões primeiras e últimas e atradição dos geômetras antigos.

Convém aqui fazer uma breve digressão histórica a respeitodessa última observação. Diferentemente do que se observa no pe-ríodo de elaboração dos Principia, Newton dedicara uma parte con-siderável de seus estudos anteriores ao tratamento algébrico (ana-lítico) das séries e dos infinitesimais. Desde 1665, quando demons-trara que os problemas das áreas e das tangentes são problemasinversos, Newton escreveu alguns tratados aplicandoirrestritamente séries e algoritmos baseados em quantidadesinfinitesimais. Esse procedimento tornara-se corrente entre seuscontemporâneos com o advento da “nova análise”, inspirado nostrabalhos de Fermat, Descartes e Wallis – os mesmos que iriam,exemplarmente, influenciar Leibniz na criação do seu cálculo dife-rencial. Todavia, o pensamento de Newton mudou radicalmenteapós os primeiros anos da década de 1670. Ele abandonou o cálculodas fluxões em favor da geometria das fluxões, banindo qualquersuposição acerca de quantidades infinitesimais. A súbita mudançacoincide com uma renovada atenção à “geometria dos Antigos”,uma tradição ainda cultivada por alguns poucos, mas expressivos,matemáticos durante o séc. XVII (entre eles, Galileu, Hobbes, Barrowe Huygens) e revigorada por Newton, após dedicar-se, naqueleperíodo, ao estudo dos tratados de Pappus e Apolônio. Essa re-construção dos pensamentos de Newton durante os anos que ante-cederam a publicação dos Principia foi recentemente proposta porNiccolò Guicciardini. Esse comentador sugere que, entre as moti-vações para esse redirecionamento no pensamento de Newton,havia um forte sentimento anticartesiano, que o levou a contrapor-se à pretensão de Descartes sobre a superioridade dos seus métodos

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analíticos em comparação com a “geometria dos Antigos”. Isso, en-tre outras razões, explicaria por que Newton se recusa a representarobjetos geométricos por meio de equações e rejeita os infinitesimaisem favor dos limites. E essas posições serão reforçadas entre 1715 e1717, em decorrência das famosas disputas com Leibniz sobre a pri-oridade da invenção do cálculo infinitesimal. “Os valores que Newtonpromove entre os seus discípulos (continuidade com a tradição dosgeômetras do passado, interesse no caráter representacional dos sím-bolos matemáticos e a suspeição em relação às técnicas algébricas)conflitavam nitidamente com os valores entusiasticamente adotadospela escola leibniziana” (GUICCIARDINI, 2004, p. 467; ver também1999, p. 27-34).

Podemos agora retornar à questão levantada acima acerca daplausibilidade da interpretação de Blay sobre o caráter instrumen-tal e heurístico dos procedimentos matemáticos requeridos para otratamento de grandezas de ordem infinitesimal no caso do cálculofluxional newtoniano. Num determinado sentido, a interpretaçãode Blay encontra forte apoio no fato de que o limite newtoniano seapresenta mais propriamente como um recurso matemático, quepermite abstrair as considerações físicas do tempo, particularmentea sua continuidade. E mesmo o tempo contínuo é ele próprio mate-mático, visto ser impossível obter qualquer evidência acerca deuniformidades e continuidades estritas em quaisquer movimentosque possamos distinguir no mundo físico.

Contudo, ambas as conseqüências das pretensões de Newtonnão anulam qualquer outra pretensão adicional de ordem ontológicanem são suficientes para reduzir o caráter matemático do tempo aum mero expediente heurístico. Pelo contrário: a natureza mate-mática do tempo eleva-o a um domínio de entidades hiperfísicas,assim como rebaixa seus virtuais correlatos físicos e empíricos àcondição de precárias medidas relativas e aparências da duração.Afinal, o tempo matemático é ele mesmo o tempo absoluto. A esserespeito, Newton não deixa qualquer margem para dúvidas: ou

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bem temos o tempo absoluto, verdadeiro e matemático, ou bemtemos o tempo relativo, aparente e vulgar. Ou toma-se o tempocomo faz o vulgo (tais como a hora, o dia, o mês e o ano) ou comoconvém à matemática e à filosofia, isto é, a partir da sua próprianatureza e sem qualquer relação às coisas externas, como aqueleque “flui uniformemente” – correlato ao espaço absoluto, que “per-manece sempre homogêneo e imóvel” (NEWTON, 1999, p. 408).As extensões dos predicados “matemático” e “verdadeiro” aquicoincidem e, por isso mesmo, talvez nenhum outro princípio mate-mático de Newton seja também tão explicitamente um princípio dasua filosofia natural quanto o espaço e o tempo absolutos.

A associação do esquema cinemático do cálculo newtoniano àrealidade (absoluta) do tempo impõe certas restrições à suspeiçãode Blay sobre a incompatibilidade entre as investigações modernassobre o contínuo e o infinito matemáticos e os tradicionais métodosgeométricos e construtivos. Contudo, volto a insistir que, muitoprovavelmente, Blay está correto em sua interpretação no que dizrespeito aos desenvolvimentos futuros da análise do contínuo, con-duzidos sobretudo sob a incisiva inspiração anti-realista da tradi-ção de Leibniz e de seus seguidores, de modo independente damiríade de “intuições” geométricas e cinemáticas indispensáveisao método newtoniano das fluxões (cf. BLAY, 1998, p. 62). Não hápor que negar que após Euler os métodos matemáticos dos Princi-pia passaram a pertencer a um passado distante e obsoleto (cf.GUICCIARDINI, 1999, p. 6). Contudo, esse olhar retrospectivo nãodeve degradar as “intuições” newtonianas a meros expedientesprovisórios e precários. Por tudo que se viu acima, é recomendávelprecaver-se contra possíveis generalizações da interpretação pro-posta por Blay, que promovam a uniformização das orientaçõesmetodológicas das investigações modernas sobre o contínuo e aoinfinito matemáticos. Pois, nem todos os experts modernos engajadosnessas investigações endossaram as virtudes dos métodos analíti-cos, assim como nem todos os seus resultados mostraram-se irre-

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mediavelmente refratários aos tradicionais métodos sintéticos, cons-trutivos e geométricos.

Com base na interpretação de Richard Arthur (1995) – na qualminhas considerações neste trabalho foram extensivamente inspi-radas –, uma generalização apressada da perspectiva adotada porBlay deveria ser encarada como mais uma das reiteradas tentativashistoriográficas de “sanitizar” a prática matemática e científica deNewton, desprovendo-a de sua “monstruosa” e “inútil” metafísica– um reflexo tardio das críticas de Mach às noções newtonianas deespaço e tempo absolutos. Na contracorrente de tais tentativas,Arthur sustenta que a estrutura temporal é indispensável à com-preensão que Newton possuía de seu próprio método das fluxões eque, para tanto, Newton não precisava abrir mão dos compromis-sos com a geometria euclidiana, seus métodos mecânicos e cons-trutivos. Newton aprendera com seu professor, Isaac Barrow, queos paradoxos do contínuo (gerados, por exemplo, pelas tentativasde encarar linhas como compostos de pontos ou áreas como com-postos de linhas) podem ser evitados encarando todas as quantida-des como geradas no tempo e, portanto, como resultados de movi-mentos contínuos. Desse modo, como já havia antecipado acima, acontinuidade é construída por Newton a partir de uma caracterís-tica trivial de todas as quantidades geradas no tempo, qual seja, ofato de “em qualquer instante do tempo, cada ponto ou linha temuma velocidade finita instantânea bem definida” (ARTHUR, 1995,p. 341). Ao lado disso, Newton manteve intactos preceitos geraisdos métodos geométricos euclidianos, tais como as exigências dehomogeneidade e finitude das quantidades relacionadas por meiode razões à maneira da teoria das proporções de Eudoxo. Para quan-tidades assim relacionadas, pode-se assumir que os limites dos seusacréscimos ou decréscimos existem, “visto que isso não se distin-gue da suposição (modulo a ontologia de Newton) de que qualquerfluente tem uma taxa finita de geração ou fluxão em qualquer ins-tante” (ARTHUR, 1995, p. 343). Portanto, a noção “geométrica” de

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limite, ao articular a dupla identidade do tempo (finitamente contí-nuo, mas infinitamente discreto), oferece uma base metodológica econceitual para a transição de situações finitas às infinitesimais.

Em suma, Newton promoveu um robusto programa dematematização da natureza na contracorrente das práticas basea-das nos cálculos e nos algoritmos da “nova análise”. Em virtudedisso, o programa newtoniano significou a revitalização dos ideaisrealistas típicos de Galileu e de Descartes. Contudo, se a interpreta-ção proposta acima estiver correta, os significados das práticas deGalileu e de Descartes podem ser agora claramente distinguidos.Por um lado, o programa newtoniano corroborou não apenas o es-pírito, mas quase que integralmente a letra da máxima de Galileu,ao pressupor que a natureza esteja escrita em caracteres geométri-cos. Talvez fosse essa linguagem, de fato, a única ajustada aos pro-pósitos de estabelecer os princípios matemáticos da filosofia natu-ral. A “nova análise” cartesiana, em contrapartida, ao introduzir alinguagem das equações para representar curvas e retas geométri-cas e promover o nominalismo notacional (isto é, o uso de notaçõessem correspondentes entre as magnitudes geométricas), anunciarao caminho pelo qual se desenvolveriam as práticas matemáticasque, no séc. XVIII, confrontariam a metafísica da matematizaçãoda natureza. As discussões acima podem, além disso, sugerir umamaior diversidade de atitudes entre aqueles que renegaram ou quepromoveram o legado cartesiano no início do séc. XVIII. Enquantocoube à tradição leibniziana promover a prática matemáticacartesiana, coube à tradição newtoniana – malgrado sua insistenteretórica anticartesiana – promover sua metafísica da matematizaçãoda natureza. Suspeito que essa diversidade de atitudes deveria serlevada em consideração para uma melhor compreensão da ênfaseanti-realista característica das filosofias da matemática – sobretu-do, as de Berkeley, Hume e Kant – que se seguiram ao século deGalileu, Descartes, Leibniz e Newton.

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Newton contra os infinitesimais: a metafísica e o método das fluxões

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BLAY, Michel. Reasoning with the Infinite. Chicago: University of ChicagoPress, 1993.

COHEN, I. Bernard. Introduction to Newton’s Principia. Cambridge, Mass.:Harvard University Press, 1971.

DE GANDT, François. Le style mathématique des Principia de Newton.Revue d’Histoire des Sciences, v. 39, p. 195-222, 1986.

GUICCIARDINI, Niccolò. Reading the Principia: The Debate on Newton’sMathemetical Methods for Natural Philosophy from 1687 to 1736.Cambridge: Cambridge University Press, 1999.

______. Newton and the publication of his mathematical manuscripts.Studies in History and Philosophy of Science, v. 35, n. 3, p. 1-18, 2004.

NEWTON, Isaac. The Principia: Mathematical Principles of NaturalPhilosophy. Trad. I. B. Cohen e A. Whitman. Berkeley: University ofCalifornia Press, 1999 [1687].

WHITESIDE, Derek T. (ed.). The Mathematical Works of Isaac Newton.New York, London: Johnson Reprint Corporation, 2 v., 1964.

NOTAS* Versões anteriores deste artigo foram anteriormente apresentadas como comunicações

no II Seminário de História e Filosofia da Ciência (Ilhéus) e no V Encontro da Associação deFilosofia e História da Ciência do Cone Sul (Florianópolis), durante o ano de 2006. Nestaversão final, incorporei diversas sugestões recebidas durante aqueles eventos, de Júlio Cel-so Ribeiro de Vasconcelos, Aurino Ribeiro Filho e Antonio Augusto Videira. Incorporei aindaoutras excelentes sugestões do parecerista indicado pelos editores desta publicação. Agra-deço a todos pelas inestimáveis contribuições, isentando-os obviamente da responsabili-dade pelas posições por mim sustentadas nesta versão final.

1 Ver Newton (1999). Daqui por diante, essa obra será referida apenas como Principia.2 O De Quadratura Curvarum, um tratado sobre as quadraturas (ou a “integração”) das seções

de áreas curvilíneas, foi escrito por volta de 1690 para servir como um apêndice matemáti-

Recebido em: maio de 2006Aprovado em: junho de 2006

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co que Newton tencionava acrescentar às Seções IV e V na segunda edição dos Principia.Contudo, ele foi publicado somente em 1704 como o segundo dos dois apêndices mate-máticos (“Two Treatises of the Species and Magnitudes of Curvilinear Figures”) incorpora-dos à edição inglesa da Opticks (1704) (cf. Whiteside, 1964, vol. 1, p. xvii; Cohen, 1971:345-346). As citações a seguir foram retiradas da tradução para o inglês, aparentemente autori-zada por Newton, publicada por John Harris em seu Lexicon technicum (1710) e reproduzidaem Whiteside, 1964, vol. 1, pp. 139-160.

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Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de MesquitaFilho, professora do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Univer-

sidade Estadual de Maringá. E-mail: [email protected].

O infinito na filosofia leibniziana*

Patricia Coradim Sita

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Abstract: Certain peculiarities ofLeibniz philosophy, such as theconciliation of the unity with themultiplicity, of the continuum withthe discrete, of the real with the ide-al also were considered in theconception’s introduction of actualinfinite in the world; this contextadmitted the use of approaches notonly of ontological and cosmologicaltype, but of gnoseological one, aswell. This paper discuss how theconcepts of continuum and infinitycan be important to the base of theleibnizian metaphysics.

Key-words: Leibniz – Metaphysics– Infinite – Continuum.

Resumo: Pretendemos, neste traba-lho, apontar de que modo os concei-tos de contínuo e infinito podem serúteis para o fundamento dametafísica leibniziana. Algumasespecificidades da filosofia deLeibniz, tais como a conciliação daunidade com a multiplicidade, docontínuo com o discreto, do real como ideal, foram determinantes para aintrodução da concepção de infinitoatual no mundo, o que permitiu abor-dagens de ordem ontológica,cosmológica, e também gnosiológica.O próprio mundo leibniziano se cons-trói por alternâncias de concepçõesrealistas e idealistas, com a generali-zação da lei de continuidade trans-posta dos limites da física para oâmbito dos organismos. Considera-mos que a inter-relação entre essesconceitos contém a resposta deLeibniz a um dos grandes problemasmetafísicos do século XVII, que podeser formulado nos seguintes termos:como conciliar o universo infinitocom a criação e pré-ciência divina?

Palavras-chave: Leibniz – metafísica– infinito – contínuo.

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Em uma carta enviada a Foucher, Leibniz afirma que nada, anão ser a geometria, pode fornecer uma solução para o labirinto dacomposição do contínuo, dos máximos e dos mínimos, dos infini-tos, e ninguém chegará a uma metafísica verdadeiramente sólidasem passar por este labirinto (ROBINET, 1955). Essa tese revela amultiplicidade de temas abordados no universo leibniziano e ilus-tra sua tendência de reuni-los, todos, através de mútuas implica-ções. Neste texto, investigamos se o infinito pode ser consideradocomo o elemento central dessa multiplicidade, uma chave comumpara os vários planos da filosofia leibniziana.

Nos Ensaios de Teodicéia, Leibniz aponta o infinito como umdos supostos labirintos da filosofia. Ele constata que a liberdade éum problema comum a todos os homens, e que, para resolvê-lo, éfundamental uma compreensão do contínuo e dos indivisíveis, cons-tituintes do infinito. Na mesma obra ele afirma que suas medita-ções fundamentais estão baseadas na unidade e no infinito. Primei-ramente motivado pela dúvida acerca da infinitude dos números,que ele procura negar, o filósofo parte para a investigação da possi-bilidade de uma explicação lógico-matemática do universo. Ao jáconhecido infinitamente grande, derivado do contar, do acréscimoque é sempre possível, soma-se, no século XVII, o infinitamentepequeno: uma grandeza que pode ser indefinidamente subdividi-da. Essa noção está relacionada com o conceito de continuum e seráutilizada por Leibniz e Newton no cálculo dos infinitesimais. Ape-sar da longa trajetória das discussões sobre o infinito na história dafilosofia, ainda havia, naquele momento, a dificuldade de entendê-lo ontologicamente, devido aos inúmeros paradoxos que tornavamsua compreensão praticamente impossível.

A despeito das dificuldades inerentes ao infinito, no sistemaleibniziano a matemática partilha com a metafísica e a física suasdificuldades e soluções. Segundo Russell (1968), porém, existe umaseparação entre o Leibniz epistemólogo – que se interessa pelascondições gerais da verdade, pela natureza das proposições – e o

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Leibniz metafísico – que se interessa pela origem e pelas causas donosso conhecimento e do mundo. Mas considerando que aepistemologia leibniziana trata da lógica do ser, através da análisedas proposições necessárias e contingentes, de princípios como oda razão suficiente, de leis como a da continuidade e da não-con-tradição, podemos, concordando com Belaval (1993, p. 49), dizerque sua investigação é, pois, ontológica, de modo que não há comoprecisar a distinção entre os dois Leibniz, à medida em que suasanálises são intercambiáveis. A hipótese fundamental da nossa in-vestigação é que a relação estabelecida entre os conceitos de contí-nuo e infinito e a metafísica leibniziana é a origem de um sistemaque não pode ser dissociado. Não devem ser tomados isoladamen-te, como faz Russell, nem submetidos a uma teologia, como sugereBurbage. Entendemos que a inter-relação entre esses conceitos con-tém a resposta de Leibniz a um problema fundamental: como con-ciliar a ordem da natureza captada através da matemática à neces-sidade de uma cosmologia?

Ainda que não haja uma epistemologia leibniziana sistemati-zada, as investigações de caráter epistemológico são condição ne-cessária para a construção da sua metafísica: tanto se aplica a Deus,quanto à matéria.

Segundo Burbage (1993, cap. 2), podemos distinguir vários ‘lu-gares’, vários modos de infinito em Leibniz. Mas qual é a naturezado infinito? É possível que tenhamos clareza sobre ele, dadas suasdiferentes manifestações? Vamos apontar quatro aspectos relevan-tes que aparecem em algumas das suas obras, seguindo a nomen-clatura sugerida por Burbage. São eles (1) Deus, como o infinita-mente perfeito; (2) o universo, como o infinitamente contínuo; (3)os infinitos mundos possíveis e (4) o infinito existente em ato. Comose relacionam esses diferentes aspectos de infinito é uma questãoque ainda está por ser respondida.

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1. DEUS, O INFINITAMENTE PERFEITO

Sem a infinitude, a perfeição não poderia nem ser, nem ser con-cebida. Os termos infinito e perfeição remetem um ao outro, numarelação de quase identidade, quando a perfeição, implicando a abo-lição dos limites, é nada mais que o infinito. Se esta não chega a seruma tese original (o argumento ontológico - não pode faltar exis-tência a um ser perfeito - e a infinitude como um dos atributos deDeus, foram investigados por Descartes), tem o diferencial de obe-decer a um outro critério: o da não contradição. Leibniz se dirigediretamente a Descartes e a sua tese de que não podemos pensarem algo sem, antes, ter uma idéia disso:

Como, diria ele (Descartes), pode-se falar de Deus sem pensarNele, e pensar em Deus sem ter a idéia de Deus? Poder-se-ia,sem dúvida, posto que às vezes pensamos em coisas impossí-veis, e inclusive se fazem demonstrações a respeito. Por exem-plo, o Sr. Descartes considera que a quadratura do círculo éimpossível, mas não se deixa de pensar nela, nem de extrairconseqüências do que aconteceria se pudesse ser efetuada.

Carta à princesa Elisabeth, 1678.

Para Leibniz, não é suficiente que tenhamos uma idéia de per-feição infinita. Podemos também ter uma idéia do maior dos núme-ros. Mas, estritamente, pensar o último ou o maior número é impos-sível, pois implica uma contradição.1 Ainda assim nós o pensamos epretendemos demonstrar. O argumento ontológico só pode ser vali-dado se, previamente, se aceita o princípio da não-contradição.

O Deus perfeito (ou infinito) da Monadologia é fruto de uma exi-gência da razão: apenas Ele pode construir um mundo a partir dasinfinitas possibilidades. Sem a razão última de Deus, o universo nãopoderia escapar da contingência que inviabiliza sua realização. O en-cadeamento de razões particulares aparece como ameaça ao sistemaleibniziano, já que sem a razão suficiente esses particulares estariamfadados a uma contingência que não pode ser responsável pelo que

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há. Essa contingência derivada das razões particulares não permiteque se conceba o ordenamento a que tudo deve estar submetido.

Haver um Deus perfeito significa haver um Deus infinito, ilimita-do. Não há espaço para uma discussão sobre provas da existência deDeus. A razão última das coisas encontra-se na substância necessária esuficiente, Deus. O mundo tem que estar guiado por uma razão supe-rior, responsável por encerrar em si toda a série de particularidadessem desmantelar a causa final; uma razão superior que encerra a sériede razões particulares e salva o mundo das contingências.

Identificar Deus como o infinito faz do infinito uma realidademisteriosa, inconcebível e inacessível aos que são, por natureza, limi-tados. Como a razão poderia nos ajudar a entender um termo, umaidéia que, por si mesma, está além da nossa capacidade natural?

2. O UNIVERSO, INFINITAMENTE CONTÍNUO

Mas o infinito não é privilégio de Deus. Isso também é dito arespeito das substâncias ou mônadas, que “tendem confusamentepara o infinito, para o todo” (Monadologia, §40). Mas ele continua,no mesmo parágrafo: “os graus das percepções distintas limitam edistinguem [as mônadas]”. O ponto de oposição das suas realida-des – o infinito e o finito, o ilimitado e o limitado – é que as substân-cias individuais são consideradas seres finitos, mas são, elas mes-mas, à sua maneira, infinitas. Por simples e singulares (já que dis-tintas) que sejam, as mônadas exprimem o universo inteiro e, nocaso das racionais, exprimem inclusive a Deus. Elas refletem todoo universo a partir do seu ponto de vista. Universo este que tem aordem como determinante da sua existência. Leibniz defende aonipresença da ordem no universo: a desordem é apenas aparente,“visto nada se poder fazer fora da ordem” (1979a, §7). O filósofodistingue espaço físico e geométrico, numa tentativa de conseguircompreender a acomodação prática do aparente paradoxo resul-

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tante das suas reflexão – qual seja, a composição do universo a par-tir de substâncias simples, indivisíveis, mônadas pontuais, e a ne-cessidade de explicar um universo contínuo, pleno, num espaçoigualmente contínuo.

O “contínuo” indica a idéia de algo ininterrupto, indiferenciado,ilimitado. O universo leibniziano é pleno e não substancial. Segun-do o autor, a natureza não dá saltos, não deixa vazios na ordem quecostuma seguir. Mas sua cosmologia, entretanto, assume a idéia deque o universo uno e pleno foi criado para acomodar substânciassimples, múltiplas na sua quantidade. As mônadas são definidas apartir da contraposição com o composto.

Leibniz ainda questiona: se concedemos que cada entidade realé ou uma unidade simples ou uma multiplicidade, e que umamultiplicidade necessariamente é um agregado de unidades, emque posição devemos classificar uma quantidade contínua geomé-trica como uma linha? Ele a considera uma forma de repetição e,como algo divisível em partes que se repetem, não pode se tratarde uma verdadeira unidade. É, pois, uma multiplicidade, um agre-gado de unidades. Unidades (geométricas, neste caso) são pontos,mas Leibniz sabe que pontos não são mais do que extremidades dealgo extenso, e que nenhuma quantidade contínua pode ser consti-tuída por pontos. Logo, uma quantidade contínua (como uma li-nha) não é nem unidade nem agregado de unidades: não são enti-dades reais, têm um caráter puramente ideal. Ele, o caráter, libertao contínuo da exigência de ser simples ou composto pelo simples,ainda que seja algo inteligível. Espaço e tempo são, como quanti-dades contínuas, ideais e, qualquer coisa real deve ser discreta, com-posta de substâncias simples – as mônadas. De acordo com Leibniz,o princípio da continuidade permitiu que a geometria e os resulta-dos retirados do cálculo infinitesimal fossem aplicáveis à física, umavez que as quantidades que só diferem por infinitésimos seriamconsideradas iguais, já que o infinitesimal não tem, para ele, qual-quer existência objetiva.

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3. OS INFINITOS MUNDOS POSSÍVEIS

O infinito caracteriza o contingente assim como o ser caracteri-za o real. O possível permite a Leibniz garantir a liberdade semperder de vista a teleologia. Aquilo que escapa à finalidade é possí-vel, ainda que nunca realizado. A possibilidade é suficiente parapermitir as escolhas humana e divina bem como indicar a sustenta-ção da estrutura do universo: a lógica.

A passagem do possível ao real não obedece a uma necessida-de no sentido estrito, como uma identidade, mas a uma determina-ção para o melhor. Esta tese corresponde a uma reinterpretação dacriação divina, fruto do cálculo, um modelo resultante de combina-ções que compreende infinitas possibilidades.

A tese dos mundos possíveis também utiliza a noção de gran-deza aplicada ao infinito. Ela é, neste caso, segundo Burbage,aprofundada pela distinção de duas maneiras de se fazer referên-cia ao infinito: extensionalmente ou intensionalmente.

A extensão corresponde ao infinito simples, objetivo (ainda quesem perder de vista as possibilidades,visto que não trata da reali-dade). Há uma infinidade de possibilidades coerentes de modos dedizer o mundo. A intensão implica na reflexão, o exame refletidodas possibilidades, determinado para o melhor.

O aumento do vocabulário, a criação do “infinitamente infini-to”, marca a oposição entre o infinito do primeiro tipo e o infinitorefletido através de um sistema combinatório. A combinatória per-mite abranger um maior número de possibilidades e compreendero infinito. Longe de indicar um limite para o conhecimento, a qua-lificação de “infinitamente infinito” marca o momento em que acombinatória transforma o infinito em objeto de conhecimento, emque ele deixa de conter mistérios inalcançáveis para os homens epassa a ser objeto de um cálculo.

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4. O INFINITO EXISTENTE EM ATO

A continuidade do infinito atual deve ser pensada como umarealidade em si mesma, inimaginável e, portanto, metafísica, em quenão há nem extensão e nem movimento, mas uma ação extratemporal,simultânea e ininterrupta dos estados de todas as mônadas em suasnoções completas que, sendo independentes, não se separam umasdas outras, de forma que constituem, por assim dizer, uma cadeiaininterrupta de ser, no entendimento de um Deus contínuo.

O infinito em ato é compreendido, desde que saibamos diferenci-ar o infinito, ele próprio, metafísico, dos números infinitos. Leibniz, aodissociar os números do próprio infinito, responde às críticas contrári-as a um infinito em ato, negando a existência dos números infinitos,contraditórios, segundo o filósofo. “Não existe número infinito”, dizele. E completa: “o verdadeiro infinito, a rigor, não se encontra senãono absoluto, que é anterior a qualquer composição, e não é formadopela adição das partes” (LEIBNIZ, 1996, Livro II, Cap. XVII, §1).

Nos atuais, o simples é anterior ao composto. No que se refereà substância, o agregado é logicamente subseqüente às substânciasindividuais que o compõem. Já quanto aos números, espaço e tem-po, o todo finito é logicamente anterior às partes nas quais pode serdividido. Ou seja, o espaço, tempo e os números, puramente ide-ais, são contínuos. E apenas eles, já que o contínuo implica partesindeterminadas, enquanto no atual tudo é determinado. Diz Russell:

A noção de todo só pode ser aplicada àquilo que é substanci-almente indivisível. O que é real sobre um agregado é unica-mente a realidade de seus constituintes tomados cada um porsua vez [...]. Um é o único número que pode ser aplicadoàquilo que é real pois qualquer outro número implica par-tes, e os agregados, tais como as relações, não são seres reais(são idéias) (1968, p. 115).

Se o espaço pudesse ser dividido uma única vez, seria neces-sário postular que ele é composto por partes, que, por sua vez,

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deveriam ser simples.Toda metafísica leibniziana depende da aceitação da caracteri-

zação das mônadas independentes. Podemos dizer que o conceitode ponto geométrico como um conceito metafísico é que propor-cionou a chave para que a metafísica penetrasse na física. É o passoatravés do qual a metafísica se insinua na experiência humana dotempo e espaço. Ciente desse paradoxo, Leibniz se esforçou em se-parar as esferas do conhecimento, de modo que pudéssemos acei-tar visões aparentemente contraditórias de mundo desde que seaceitasse que são visões de esferas distintas de análise.

O problema evidente aqui é que o universo contínuo não aceita,realmente, a divisão em partes. Se se consegue a divisão em unidadessimples, em pontos, então desaparece o contínuo, visto que sua inter-rupção pela parte implica contradição. Se se encontra o limite entreum e outro, então não é possível defender a continuidade entre eles.

Os corpos são sempre divisíveis, mas seus elementos compo-nentes não. O que pode ser dividido em várias partes é um agrega-do (das várias partes). Este agregado se mostra uno para a mente.Ele não tem qualquer realidade senão aquela que lhe é conferidapor seus constituintes. Ao mesmo tempo em que o pensamento nãoconsegue distinguir as partes componentes do corpo, e o toma comouno, ele não consegue perceber a continuidade deste corpo com atotalidade dos seres, e a toma como algo discreto.

Mas como determinar o contínuo? Ele não pode ser determi-nado por um número finito: a afirmação de um número qualquersignificaria a determinação da menor parte, e o contínuo não temuma menor parte. Tampouco pode ser determinado por um núme-ro infinito, visto que, para Leibniz, não há número infinito existen-te em ato. Sua noção seria, portanto, contraditória. A saída encon-trada pelo autor foi defender que o contínuo é sempre ideal, comoo espaço e o tempo, em oposição a quaisquer outras coisas, semprereais, pertencentes ao discreto, como as substâncias simples. O prin-cípio da continuidade foi definido como um princípio geométrico,

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em oposição ao mundo real dos simples se reunindo em corposcompostos. Isso significa que temos a sensação de que o universo édiscreto, ou seja, nós é que compomos o universo discreto atravésda imaginação, um universo formado por corpos que contêm ex-tremidades, limites, mas que, se concebido intelectualmente, des-prende-se dele um todo contínuo.

A conhecida tese leibniziana da impossibilidade do vazio éjustificada pela continuidade. Se houvesse uma separação, aindaque mínima, entre o fim de uma coisa e o começo de outra, o espa-ço referente a essa separação deveria estar vazio. Mas afirmar umvazio, um hiato entre as substâncias seria o mesmo que afirmar ovazio no espaço. E o vazio no espaço é recusado pelo princípio darazão suficiente aliado ao princípio do melhor. A idéia do contínuoé, pois, geradora da impossibilidade de se conceber espaço e tem-po absolutos. Eles não podem ser compostos de partes, já que nãosão corpos (esses sim, compostos pelas substâncias simples) e nempodem ser independentes desses corpos e, conseqüentemente, dassubstâncias simples, senão seriam Deus.

Defender o vazio geraria, segundo o autor, uma contradiçãoentre as perfeições de Deus, porque, neste caso, se pretenderia in-ferir de uma forma particular de conhecimento uma lei da nature-za. Esta contradição é apenas aparente por conta da inerente limi-tação do conhecimento humano. Segundo Leibniz, o problema éque queremos que o mundo e até Deus se comportem como ditanosso precário conhecimento sem, entretanto, notar que é impossí-vel penetrar no entendimento divino.2 Através de uma redução aoabsurdo, Leibniz procura enfrentar a física de seu tempo e recusara existência do vazio na natureza.

Em sua correspondência com Clarke, Leibniz afirma que é im-possível supor um Deus que admita a existência do vazio na natu-reza porque, neste caso, teríamos ao menos uma lei natural criadacomo um decreto excepcional da Vontade divina e não estabelecidapor sua Sabedoria. Deus, que possui suprema e infinita sabedoria,

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O infinito na filosofia leibniziana

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tem seu intelecto completamente independente da sua vontade. Ora,se Deus agisse segundo sua vontade, mas contrariamente a sua sa-bedoria, ou estaríamos frente a uma contradição nas ações divinas,o que nos levaria a questionar seu estatuto,3 ou estaríamos supon-do a possibilidade de Deus atuar sem ordem, ferindo seu princípio.

Para Leibniz, a vontade sem motivo é uma ficção contrária àperfeição de Deus. O princípio da razão suficiente traz em si mes-mo a coincidência entre os estados do mundo e as razões que osdeterminam, mesmo porque cada possibilidade de ser é demons-trada e determinada pelo princípio da identidade dos indiscerníveis.As leis naturais regem cada fenômeno e por isso são necessárias,ainda que em nenhum momento elas sejam o substituto da açãodivina. De acordo com Leibniz, é possível encontrar a razão de cadaser e saber como se cumpre necessariamente sua natureza, porqueexiste necessariamente uma correspondência entre aquilo que éexistente e as razões suficientes de Deus, donde todo existente éderivado. Deste modo, podemos até admitir conceitualmente, inte-lectualmente, o vazio. Mas não podemos encontrar a razão parasua existência de fato, nem segundo as leis naturais, nem segundoas leis divinas.

Uma filosofia contrária ao vazio, como a de Leibniz, exige quea criação se dê fora do tempo. As substâncias, embora individuais efechadas em si mesmas, não deixam de manter relações intrínsecascom Deus, de quem dependem continuamente, uma dependênciareal. Com outras substâncias, porém, suas relações só podem sedar mediante uma possibilidade que, como tal, é ideal. O infinitoora se manifesta na estrutura do real, ora na estrutura do ideal,como elemento que permite a passagem entre as duas esferas, quecontribui para o esclarecimento do projeto leibniziano de reuniãoentre o mundo físico e o metafísico.

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SITA, Patricia Coradim

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NOTAS* Parte do presente artigo foi discutida no II Seminário de História e Filosofia da Ciência/IV

Encontro da Rede Paranaense de Pesquisa em História e Filosofia da Ciência.1 Sobre pensar e ter idéias do impossível e de Deus: Carta para Elisabeth, 1678.2 Mas é possível, salienta o autor, desvendar os princípios que movem a ação de Deus. Essa é

uma das funções atribuídas à ciência (LEIBNIZ, 1979a, p.129).3 “Um Deus que operasse por meio de uma vontade dessas seria um Deus só de nome”

(LEIBNIZ, 1979b, Quarta carta, §18).

Recebido em: maio de 2006Aprovado em: junho de 2006

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Doutor em História e Filosofia da Ciência pela Universidade de Indiana(USA), Professor doutor do departamento de Filosofia, FFLCH, Universida-

de de São Paulo. E-mail: [email protected]. Financiamento: Fapesp.

Modelos causais em história da ciência

Osvaldo Pessoa Jr.

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Abstract. The investigation of amethod for postulatingcounterfactual histories of science hasled to the development of a theory ofscience based on units of knowledge,called “advances”. These are passedfrom scientist to scientist, and may beseen as “causing” the appearance ofother advances. The description of anepisode in the history of science fromthis perspective leads to aprobabilistic “causal model”. As anexample, we look at the beginning ofthe science of magnetism,“explaining” – in terms of a singlecausal model – why the fieldadvanced in China but not in Europe(the difference is due to different pri-or probabilities of certain culturalmanifestations). One describes thegeneral aspects of the method ofcomputation of global probabilitiesof a network (from the probabilitiesof each individual causal connection)and its limitations.

Key-words: philosophy of science,history of ancient science, causalmodel, probability.

Resumo. A investigação de um mé-todo para postular históriascontrafactuais da ciência levou aodesenvolvimento de uma teoria daciência baseada em unidades de co-nhecimento, chamadas “avanços”.Estes são passados de cientista paracientista, e podem ser vistos como“causando” o surgimento de outrosavanços. A descrição de um episó-dio da história da ciência sob essaperspectiva leva a um “modelo cau-sal” probabilista. Como exemplo,olhamos para o nascimento da ciên-cia do magnetismo, “explicando” –em termos de um único modelo cau-sal – porque o campo avançou naChina, mas não na Europa (a dife-rença seria devido a diferentes pro-babilidades iniciais atribuídas a cer-tas manifestações culturais). Descre-vem-se os aspectos gerais do méto-do de cálculo das probabilidades glo-bais de uma rede (a partir das pro-babilidades de cada conexão causalindividual) e suas limitações.

Palavras-chave: filosofia da ciência,história da ciência antiga, modelocausal, probabilidade.

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1. INTRODUÇÃO

Historiadores da ciência ocasionalmente tecem comentários so-bre o que poderia ter acontecido se um certo evento fortuito tivessesido diferente. Por exemplo, se Sadi Carnot não tivesse tido uma morteprematura, e tivesse publicado seu cálculo de 1826 do equivalentemecânico do calor, então o princípio de conservação de energia po-deria ter sido antecipado em mais ou menos vinte anos. Esse tipo deafirmação é “contrafactual”, pois se refere a uma situação possívelque acabou não se tornando fato. Os seres humanos têm uma exce-lente habilidade para imaginar cenários contrafactuais (o que certa-mente tem sua origem na vantagem seletiva que esta capacidadelhes propiciou na evolução biológica). Será que esta habilidade depostular histórias contrafactuais poderia ser assentada em bases maisfirmes, por meio de alguma metodologia?

Este projeto se iniciou com um exame das histórias possíveisque levariam ao nascimento da física quântica, a partir da situaçãoda ciência em torno de 1800 (PESSOA, 2000). Argumentou-se quehaveria quatro caminhos mais prováveis, além de outras possibili-dades mais remotas.

Uma das motivações para esse tipo de estudo é a conexão ínti-ma que existe entre a postulação de histórias contrafactuais e a decausas históricas. Por exemplo, se dissermos que a descoberta dapilha voltaica em 1800 foi uma causa necessária para a descobertada lei eletrodinâmica de Ampère, isto implica a afirmaçãocontrafactual de que se a pilha não tivesse sido descoberta antes de1820, Ampère não teria feito sua descoberta.

Esta ligação entre causas e contrafactuais pode ser usada paratentar superar a resistência que os historiadores têm em aceitar apostulação de histórias contrafactuais. Para fazer isso, pode-se des-crever a história da ciência em termos de “modelos causais”, de talforma que toda informação sobre histórias contrafactuais ficariacontida na descrição das causas.

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Modelos causais têm recebido muita atenção nas últimas déca-das (ver PEARL, 2000). O problema tratado pelos pesquisadoresdesta área é o de como inferir relações causais a partir de uma cole-ção de dados experimentais, que fornecem diretamente apenas “cor-relações”. A estratégia consiste na escolha de experimentos de “in-tervenção”, que revelariam as causas envolvidas (e explicariam ascorrelações). No uso de modelos causais na história da ciência, nãoé possível inferir as relações causais a partir dos dados, já que ahistória acontece apenas uma vez, ou, no máximo, duas ou três, nocaso de descobertas independentes. Além disso, não se pode, obvi-amente, intervir na história da ciência. Assim, aproveitaremos des-ses estudos apenas a notação e a análise de certas estruturas que seformam nas redes de conexões causais.

2. AVANÇOS: UNIDADES DE CONHECIMENTO

Um dos desdobramentos do estudo de histórias contrafactuaisfoi o desenvolvimento de uma teoria da ciência baseada na noçãode “avanço”, que são unidades de conhecimento passadas de umcientista para outro. Há avanços teóricos, como idéias, formula-ções de problemas, leis, explicações, reconhecimento de semelhan-ças e distinções, derivações teóricas, comparação teoria-dados etc.Há também avanços experimentais, como a aquisição de dados,desenvolvimento de técnicas experimentais etc. Pode-se tambémincluir conhecimento tácito, motivações, valores e o uso de regrasmetodológicas. Cada cientista assimila um conjunto de avanços,seleciona alguns, rejeita outros, combina dois ou mais avanços etc.Qualquer coisa que o cientista faça, que seja anunciada para outroscientistas, e que contribua para a mudança de um campo científicoé caracterizada como um avanço. Além das unidades de conheci-mento propriamente científicas, há de se levar em conta tambémmanifestações culturais mais gerais que possam desempenhar um

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papel causal na ciência, especialmente na ciência nascente, comoveremos adiante.

No presente contexto, a palavra “avanço” não deve ser entendidanecessariamente como um passo na direção certa, como é sugeridopela definição usual do termo; ela pode se aplicar também a passos nadireção “errada”. Sinônimos que poderiam ser mais adequados são“realização”, “contribuição” ou “novidade” (ver PESSOA, 2004).

3. RELAÇÕES CAUSAIS ENTRE AVANÇOS

Quando é feito um avanço, ele pode influenciar o surgimento deoutros avanços, tanto para o cientista que o obteve quanto para ou-tros cientistas. Olhando para este processo do ponto de vista de um“cientista da ciência”, pode-se observar que um avanço geralmentecontribui como uma causa para o surgimento de outro avanço.

Pode acontecer que as condições para o surgimento de um avan-ço já estejam dadas, mas mesmo assim o avanço não ocorre. Alémdisso, em geral não conhecemos todos os fatores que estão em jogo.Isso sugere que expressemos a relação entre causas e efeitos demaneira probabilista. Dado um certo conjunto de avanços {A,B,E},haveria uma certa probabilidade de o avanço F ocorrer dentro deum certo intervalo de tempo de referência T. Exprimimos esta pro-babilidade usando a seguinte notação: pT (F/A,B,E). Uma causa “fra-ca” seria um avanço cuja presença aumentaria levemente a proba-bilidade acima.

Pode também ocorrer que a existência de um avanço contribuade maneira negativa para o aparecimento de outro, diminuindo aprobabilidade inicial. Um exemplo tomado da história da astrono-mia seria a influência negativa que a noção grega de “perfeição daesfera celeste” teve sobre a observação de manchas solares. NoOcidente, esta observação só foi feita por Galileo, mas ela já tinhasido feita pelos chineses no século I d.C.

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4. EXEMPLO DE UM MODELO CAUSAL

Daremos agora um exemplo de atribuição de probabilidadesem um modelo causal, usando duas histórias factuais, mas inde-pendentes, do início da ciência do magnetismo, na China e na Eu-ropa. A diferença marcante entre essas duas histórias possíveis foia descoberta da bússola (ou da propriedade diretiva da magnetita)na China, mas não na Europa. O modelo causal consiste de umdiagrama único, contendo avanços ligados por relações causais, quedá conta das diferentes histórias (ver Fig. 1). De acordo com a pre-sente reconstrução, baseada em Needham (1962), a diferença entreas duas histórias é devido, principalmente, à forte presença de téc-nicas de adivinhação na China. Apesar de tais manifestações cultu-rais associadas com a magnetita estarem presentes (em menor grau)também na Europa, por exemplo, na ilha de Samotrácia, simplifi-camos a situação, considerando que as probabilidades iniciais dastécnicas de adivinhação B e E na Europa seriam nulas, enquanto naChina seriam 1. Vale notar também que há evidências fortes de queos primeiros a descobrirem a propriedade diretiva do minério mag-nético tenham sido o povo meso-americano dos olmecas, antes de1000 a.C. (CARLSON, 1975).

Figura 1: Modelo causal simplificado para o nascimento da ciência do magnetismo

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O caminho que levou à primeira bússola magnética, na formade uma colher de magnetita (F), iniciou-se com a descoberta e ex-ploração do “efeito magnetita” (A) (a atração mútua da magnetitae a atração entre o ferro e a magnetita), que se deram tanto na Chi-na quanto na Europa. Porém, na China havia uma técnica de adivi-nhação feita com uma agulha de ferro untada posta a boiar na água(B), e que levou a uma variação envolvendo uma agulha demagnetita flutuante (C). Com tal arranjo prático, a descoberta deque a agulha de magnetita se alinha na direção norte-sul (D) tor-nou-se altamente provável, e de fato ocorreu na China em torno doinício da Era Cristã, mas não no Ocidente. Depois desta descober-ta, o passo era pequeno até o desenvolvimento da bússola rudi-mentar (F).

Na Fig. 1, algumas relações causais são representadas por pro-babilidades precisas, e outras por valores imprecisos. Estes últimossão frutos de uma estimativa grosseira, ao passo que os primeirossão calculados de uma maneira a ser explicada adiante. Todos re-presentam a probabilidade de ocorrência de um efeito em um in-tervalo de tempo de referência T = 400 anos.

Alguns avanços, como D, são representados com duas setaschegando e eles: isso exprime uma disjunção de caminhos causais,ou seja, o efeito pode surgir ou a partir de um caminho, ou a partirde outro. Uma conjunção de causas é representada por setas queapontam para o símbolo “&”. A sucessão de duas relações causais,como A→D e D→F, é chamada de composição de causas, que resultana relação global A→F.

A probabilidade de um evento F, dado um conjunto de causascomo A, B e E, foram expressas para um intervalo de tempo dereferência T.. Qual seria a expressão para pt(F/A,B,E) se o intervalode tempo t escolhido fosse diferente do tempo de referência?

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5. PROBABILIDADE COMO UMA FUNÇÃO DO TEMPO

Para tratar esse problema, mudaremos a notação, e escrevere-mos pY/X(t) para a probabilidade de ocorrência de um avanço gené-rico Y, até o tempo t depois da ocorrência de um avanço X. Comose deve exprimir pY/X(t) em função do tempo t?

É bastante intuitivo que esta probabilidade pY/X(t) deve crescermonotonicamente com t (isto é, ela nunca diminui com t). Outrarestrição óbvia em pY/X(t) é que ela nunca pode ser maior do que 1.

Uma maneira simples de exprimir o tempo para que um even-to específico ocorra é por meio de uma distribuição exponencial: f(t)= x·e–xt, usada, por exemplo, na física para descrever o decaimentoradioativo. Fazendo a integral temporal desta função, obtém-se aseguinte função de probabilidade cumulativa:

pY/X(t) = 1 – e–xt

Neste artigo, faremos a suposição de que, na história da ciên-cia, a probabilidade de que um efeito siga uma causa seja dada poresta lei. Dessa forma, conhecendo a constante de decaimento x,podemos calcular qual será a probabilidade de que um efeito ocor-ra depois de qualquer intervalo de tempo T, simplesmente calcu-lando pY/X(T). Tal suposição, é claro, é criticável, e na seção 9 discu-tiremos seus problemas.

De modo inverso, se estipularmos uma certa probabilidade pY/

X para um tempo de referência T, então a constante de decaimentoé dada por:

(1)

( )XYpT

x /1ln1−

−=

(2)

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6. ESTIMATIVA DA FUNÇÃO DE PROBABILIDADE

Levando em conta a história da ciência, como associar proba-bilidades para o aparecimento de um avanço Y? Primeiro, deve-seavaliar que causas contribuíram para sua ocorrência, e construirum modelo causal qualitativo para o avanço Y. No caso mais sim-ples, tomemos a situação em que um único avanço X é suficientepara a produção de Y. Tal situação poderia se referir ao desenvolvi-mento de um instrumento científico, como o microscópio compos-to (X), que levou à descoberta de estruturas celulares em todos ostecidos vegetais (Y).

Vamos supor que, de fato, 6 anos se passaram entre as ocorrên-cias de X e Y. Chamaremos isso de o intervalo de tempo empírico t doprocesso causal X→Y. Qualquer que seja a distribuição de proba-bilidade do processo subjacente, a melhor estimativa é que t

corresponda ao tempo médio T das ocorrências do evento nos mun-dos possíveis. Para a função de probabilidade cumulativaexponencial, a média é simplesmente o inverso da constante de

decaimento: T = 1/x (Ross, 1997, p. 236). Assim, igualando a mé-

dia T e o intervalo de tempo empírico t, pode-se estimar pY/X(t), deacordo com a eq.(1), fazendo:

x = 1 / t

Tal resultado é independente de qualquer hipótese relativa aointervalo de tempo de referência T de uma situação histórica. Noexemplo precedente, para t = 6 anos, encontra-se x = 0,167 anos–1.No entanto, se quisermos exprimir probabilidades, temos que fixarum intervalo de tempo de referência. Para a física européia do séc.XIX, podemos supor que tal intervalo de referência fosse 10 anos.Assim, usando a eq.(1), obtém-se pY/X(10 anos) = 0,81.

(3)

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7. COMPOSIÇÃO, DISJUNÇÃO E CONJUNÇÃO DE CAUSAS

Dado que X causa Y com uma certa probabilidade pY/A(T), eque Y causa Z com probabilidade pZ/Y(T), qual seria a probabilidadepZ/A(T) associada com a composição de causas?

Supõe-se a eq.(1) e uma equação análoga para o segundo pro-cesso: pZ/Y(t) = 1 – e–yt. Sem entrar nos detalhes matemáticos (verPessoa, 2006), o resultado pZ/X(t) para a composição (ou“convolução”) dessas duas causas é:

pZ/X(t) = [x·pZ/Y(t) – y·pY/X(t)] / (x–y)

Isso pode ser generalizado para a composição de qualquernúmero de causas. Na matemática, este resultado é chamado dedistribuição “hipo-exponential” (Ross, 1997, pp. 246-8), ao passoque na física é conhecida como equações de Bateman (Evans, 1955,cap. 15).

O caso da disjunção ocorre quando um certo avanço pode sur-gir de maneira independente por mais de um caminho causal. Porexemplo, podemos ter as seguintes relações causais independen-tes: X→Z, com probabilidade pZ/X(t), e Y®Z, com pZ/Y(t). Qual seriaentão a probabilidade da disjunção de possibilidades pZ/X&Y(t), dadoque ambos X e Y estão presentes em um certo instante inicial?

O problema é análogo à probabilidade de jogar dois dados eobter pelo menos uma face “seis”. Há uma probabilidade de 1/6 deobter um “seis” com o primeiro dado, e 1/6 para o segundo, masdepois de somar as probabilidades, devemos subtrair 1/36 porque ajogada de dois “seis” foi contada duas vezes: o resultado é 11/36.

A probabilidade no caso da disjunção de caminhos causais, emque cada causa é suficiente para produzir o efeito, com probabili-dades pZ/X(t) e pZ/Y(t), é portanto:

pZ/X&Y(t) = pZ/X(t) + pZ/Y(t) – pZ/X(t)·pZ/Y(t)

(4)

(5)

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O caso em que duas causas são suficientes, apenas em conjun-ção, para a produção de um efeito, não pode ser relacionada às pro-babilidades dos termos individuais, já que cada um, por si só, éinsuficiente (probabilidade 0). Neste caso, então, a probabilidadeconjunta pZ/X&Y(t) = 1 – e–zt precisa ser dada.

No caso em que os termos X e Y, que compõem a conjunção, nãosão dados com certeza, mas têm probabilidades pX e pY de ocorre-rem, a probabilidade conjunta original pZ/X&Y(t) deve ser multiplica-da pela probabilidade de que ambos, X e Y, ocorram, que é pX · pY .

Outras situações mais complicadas podem ser resolvidas porintegração (ver Pessoa, 2006).

8. EXEMPLO DE COMPUTAÇÃO DE PROBABILIDADES

Os resultados mencionados acima podem ser usados para cal-cular a probabilidade global pT(F) associada à Fig. 1, para o caso daChina e da Europa. O tempo de referência é tomado como sendo T= 400 anos. Retornamos para a notação usada na seção 4.

Na Figura 1, as probabilidades com três algarismos significati-vos foram calculadas a partir do intervalo de tempo empírico t en-tre as descobertas que de fato ocorreram na China. O avanço Acorresponde ao registro do efeito magnetita feito por Pu Wei em220 a.C., enquanto que o avanço C corresponde ao relato da agulhade magnetita flutuante feito por Liu An em 120 a.C. (NEEDHAM,1962, p. 232, 281). Com esses dados, usam-se as eqs. (2) e (3), comτC/A = 100 anos, para calcular a probabilidade 0,982. Esta, porém,corresponde à disjunção dos caminhos A&B e A (ou seja, A&¬B).Aplicando a eq.(5), obtém-se p(C/A&B) = 0,980, conforme expressona Figura 1.

A mesma análise se aplica à ocorrência dos avanços D e F. Noprimeiro caso, supomos que a propriedade diretiva da magnetitafoi descoberta no ano 0 da Era Cristã, de forma que o intervalo

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Modelos Causais em História da Ciência

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empírico é de 120 anos entre as ocorrências de C e D na China. Ocaso final envolve um intervalo de tempo empírico de 83 anos en-tre a ocorrência estimada de D e a descrição de Wang Chung dabússola rudimentar, a colher de magnetita usada em um tabuleirode adivinhação, em 83 d.C. (NEEDHAM, 1962, p. 233, 237, 261-2).

Para calcular a probabilidade global para a invenção da bússo-la rudimentar na China, aplicam-se as regras expostas anteriormen-te, supondo as seguintes probabilidades iniciais: pChi(A) = pChi(B) =pChi(E) = 1. O resultado obtido para a probabilidade de a bússolasurgir na China em 400 anos é pChi(F) = 0,76.

No caso da Europa, supomos pEur(A) = 1 e pEur(B) = pEur(E) = 0. Ocálculo da probabilidade global fornece pEur(F) = 0,02, uma proba-bilidade estimada bastante pequena para que a bússola fosse de-senvolvida na Europa depois de 400 anos da descoberta das pro-priedades da magnetita.

9. DISCUSSÃO

Dessa maneira, um modelo causal único “explica” dois cami-nhos independentes da ciência. É claro que o exemplo é completa-mente ad hoc (ou seja, foi construído artificialmente para explicaralgo que já sabíamos), mas ele resume a interpretação de Needhamde porque a ciência do magnetismo se desenvolveu de maneirastão diferentes nesses dois mundos possíveis (e factuais). Modeloscausais são uma maneira de codificar a informação obtida com es-forço pelos historiadores da ciência. O uso de números não refletequalquer suposição filosófica de que tais números realmente exis-tam na realidade da história da ciência; trata-se apenas de umamaneira de codificar a informação histórica para que computado-res possam nos auxiliar na compreensão da evolução da ciência.

Uma objeção ao uso de funções de distribuição exponencial,na modelagem do surgimento de avanços, é que, na realidade, a

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PESSOA Jr., Osvaldo

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ocorrência de qualquer avanço é o resultado de complicadas cadei-as de eventos causais, cada qual seguindo uma distribuiçãoexponencial. Assim, a distribuição resultante não poderia serexponencial, e talvez uma função de distribuição semelhante aocaso hipo-exponencial (mencionada na seção 7) fosse mais adequa-da (ver PESSOA, 2006). É plausível supor que certos tipos de avan-ços sigam aproximadamente uma distribuição exponencial, comodescobertas que surgem da exploração cega de novos territórios.Mas outros tipos de avanços, como a solução de um quebra-cabeçaenvolvendo muitos ingredientes, requereriam passos intermediá-rios, o que certamente não seria bem modelado pela funçãoexponencial.

De um ponto de vista metafísico, pode-se defender que exis-tam conexões causais elementares, que não surjam da composiçãode elos causais menores. Elas seriam reconhecidas justamente porseguirem uma distribuição exponencial, como no caso dodecaimento radioativo. A posição metafísica realista, de que todasas conexões causais surgem da composição de elos causaisexponenciais elementares ou “atômicos”, pode ser chamada deatomismo causal.

A justificativa para o uso de funções exponenciais é sua simpli-cidade (especialmente adequada para integração) e nossa ignorân-cia das cadeias subjacentes de processos causais. Mesmo assim, oformalismo resultante é bastante complicado para ser aplicado emgrandes redes causais. Na prática, seria interessante que se desen-volvessem métodos aproximados.

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Aspectos matemáticos em sistemasnão lineares na mecânica quântica e

mecânica clássica modernas

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Abstract: In this work we present abrief account about somemathematical approaches involvingnonlinear systems in quantum andclassical mechanics.

Keys-words: quantum mechanics –classical mechanics – nonlinearsystems.

Resumo. Este trabalho apresentauma breve discussão em torno damatematização que envolve algunssistemas não lineares que surgemnas Mecânicas Quântica e Clássica.

Palavras chaves: mecânica quântica– mecânica clássica – sistemas nãolineares.

Aurino Ribeiro Filho

PhD in Theoretical Physics (University of Essex-UK), Prof. Adjunto IV doDFES/IF/Universidade Federal da Bahia, Salvador, Bahia ([email protected]).

Dionicarlos Soares de Vasconcelos

Doutor em Física (CBPF-RJ), Prof. Adjunto IV do DFES/IF/UniversidadeFederal da Bahia, Salvador, Bahia ([email protected]).

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RIBEIRO FILHO, Aurino; VASCONCELOS, Dionicarlos Soares de

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INTRODUÇÃO

A utilização da Matemática como uma possível linguagem,adequada para expressar as leis da natureza, surgiu com grandeênfase no século XVII, com Galilei. Apesar de seu inqüestionávelêxito em atingir tal objetivo, distintos autores têm buscado esclare-cer o papel de -tal matematização. Giles (1984, p. 15) enfatiza quenesta linha de raciocínio (ou crença): “temos uma representaçãocorreta da natureza quando o modelo expresso pela linguagem sim-bólica da Matemática se mostra de acordo com os fatos públicos,comprovados pela experimentação”. Com referência ao menciona-do período da história, Paty (1995, p. 234) relembra que, àquelaépoca, a Matemática era “concebida como um conhecimento quepermitia uma leitura direta da natureza, da qual, precisamente, eraa língua”. É importante salientar que Galilei se reportava, basica-mente, à Geometria como sendo essa “língua”. Para o célebre físicoe filósofo italiano, o mais interessante “era apenas ordens de gran-deza” envolvidas no acordo numérico com os fatos experimentais.Segundo Paty (1995), com o desenvolvimento da Física-Matemáti-ca surgiria a substituição dessa “tradução matemática” da nature-za por uma “elaboração explícita de conceitos físicos pensadosmatematicamente: sendo a matematização concebida como inerenteaos conceitos, constitutiva desses, que serve para construí-los”

Vale ressaltar que a bem sucedida interação entre as duas ciên-cias (Matemática e Física) não tem sido alvo de suaves referências,por parte de alguns atores históricos. Paty (1995, p. 235) relembraas palavras escritas por René Descartes (1641, 1647) sobre a Mate-mática, enfatizando que tal ciência “só trata de coisas muito sim-ples e muito gerais, sem se preocupar muito se elas estão ou não nanatureza”. No mesmo livro encontramos a frase do matemático epensador francês Henri Poincaré sobre o mesmo tema: “o que ela(Matemática) ganhou em rigor, perdeu em objetividade. Foi dis-tanciando-se da realidade que ela adquiriu essa pureza perfeita”.

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Apesar de tais asserções, é importante ratificarmos que há distin-tas maneiras de se trabalhar, matematicamente, os diferentes siste-mas físicos, desde o modelo fenomenológico, interligado fortementea dados empíricos, até o estágio mais sofisticado em que se formu-la a axiomatização da teoria. Esses estudos visam enfatizar o rigorno raciocínio matemático aplicado à Física. Infelizmente, tendo emvista as diferentes correntes do pensamento matemático (logicismo,intuicionismo e formalismo), o mencionado rigor não se livra, comfacilidade, de uma notória desconfiança (GILES, 1984).

No presente trabalho discutimos alguns aspectos matemáticosinterligados aos denominados sistemas não lineares, que se apre-sentam na natureza, em particular aqueles estudados de maneiraintensa, nas últimas décadas, por físicos e matemáticos. Tais siste-mas, em vista de suas peculiaridades intrínsecas, têm despertadoum misto de curiosidade e estranheza. Estas características induzi-ram, durante um certo período, à crença sobre a impossibilidadeprática de se efetivar a busca em torno de um melhor entendimen-to sobre a física subjacente aos citados sistemas.

Historicamente, é importante relembrar o papel desempenha-do pelo método matemático de “perturbações” aplicado a algunssistemas não lineares. Durante décadas foi o mesmo o principalinstrumento analítico disponível (a físicos ou matemáticos) a fimde estudar as distintas propriedades físicas (e matemáticas) de taissistemas.

Apesar de sua (quase) respeitabilidade, o método de perturba-ções apresentava limitações e dificuldades que induziram distintospesquisadores a apresentar resultados nem sempre muitoesclarecedores do problema tratado. Com o fito de ratificar o ex-posto acima, é interessante relembrar os problemas enfrentados porDelaunay (1816-1872)1 no célebre trabalho em torno do estudo datrajetória da Lua, empreendido em meados do século XIX (1842),em que o citado autor, ao utilizar uma aproximação (no método deperturbações) de sétima ordem, a fim de equacionar o trajeto lunar,

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fê-lo através de uma equação final, cuja expressão necessitou decento e setenta páginas impressas para a sua completa leitura.Hagedorn (1984, p. 2), ao relembrar tão hercúleo trabalho desen-volvido pelo físico e astrônomo francês, diria: “Graças a Deus aque-les são tempos passados! Hoje, os métodos analíticos de aproxima-ção têm um significado diferente do daquele tempo, anterior aoscomputadores eletrônicos”. Esta frase, em síntese, explicita, demaneira razoável, as expectativas (e vicissitudes) que envolviamalguns estudiosos, em torno da Física dos sistemas não lineares, atéo final do século XIX. Somente com o surgimento dos trabalhos(precursores) de Henri Poincaré, e de outros pesquisadores, emMecânica neo-qualitativa (a chamada Mecânica Clássica moderna)e na Matemática (não linear), é que uma nova série de trabalhosseminais viria justificar a respeitabilidade desta (antiga) área daFísica.

2. SÓLITONS E A NÃO LINEARIDADE

A descoberta de ondas solitárias2 pelo físico e engenheiro esco-cês John Russell, e a sua matematização posterior empreendidapelos matemáticos holandeses Korteweg e de Vries marcaria,irreversivelmente, os estudos não lineares na Hidrodinâmica clás-sica (Russell, 1844; Novikov, 1994, Korteweg e De Vries, 1895). Fermi,Pasta e Ulam (1955) estudaram osciladores não lineares e mostra-ram que as não linearidades introduzidas no sistema não implica-vam, necessariamente, na equipartição da energia do sistema cita-do. Perring e Skyrme (1962) obtiveram, numericamente, soluçõessolitônicas da equação de seno-Gordon (ou equação do pêndulomatemático),

∂2Ψ/∂x2 - ∂2Ψ/∂t2 = senΨ

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as quais mantêm, antes e após uma colisão, a mesma forma e velo-cidades. Zabusky e Kruskal (1965), estudando a equação deKorteweg-de Vries (ou KdV),3 introduziram a denominação“sóliton” para essas soluções solitárias que se apresentam estáveisapós colisões (TORRIANI, 1986; PERRING; SKYRME, 1962).

3. MECÂNICA QUÂNTICA, MECÂNICA CLÁSSICA E ANÃO LINEARIDADE

A partir dos anos setenta, do século XX, surgiram inúmerosestudos em torno de propriedades das ondas solitárias não linea-res (a exemplo de sólitons), em distintos sistemas físicos, na Físicada Matéria Condensada, implicando no aparecimento de diferen-tes métodos matemáticos a fim de solucionar as principais equa-ções. Dentre esses métodos estava o método do espalhamento in-verso, através do qual muitas equações da Física-Matemática nãolinear obtiveram soluções analíticas, tornando possível um grandeavanço em diferentes ramos do conhecimento, a exemplo daquelesligados à Biologia, à Química, às Engenharias, à Geologia, além dedistintas áreas da Física, a exemplo de: Óptica não linear,Cosmologia e Gravitação, Teoria da Relatividade Geral, MecânicaClássica, Mecânica Quântica, dentre outras. Nos casos particularesda Mecânica Clássica Moderna (MCM) e da Mecânica Quântica emSistemas não Lineares (MQNL), novas questões básicas surgiriame viriam demonstrar a necessidade de intensos estudos em tornoda não linearidade intrínseca a alguns fenômenos estudados nes-tas disciplinas. Na presente discussão em torno de aspectos mate-máticos da Física não Linear, na atualidade, enfatizamos o estudode alguns tópicos das duas mencionadas áreas da Física (MCM eMQNL). É importante ressaltarmos que não tentaremos abordarmuitas questões, mas algumas que consideramos fundamentais eque demonstram a influência da matematização de fenômenos da

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natureza e as possíveis generalizações advindas da abordagem nãolinear e que estenderam, ou quase completaram, o entendimentode certos aspectos teóricos discutidos dentro dos limites da Física(denominada) linear.

Foi sempre muito enfatizado o caráter simplificador que en-volve o estudo de modelos para os chamados sistemas dinâmicoslineares, aqueles que apresentam “uma razão constante entre a sa-ída e a entrada, ou entre a resposta e a excitação” a partir de objetosanalíticos e numéricos da denominada Matemática linear (SPEYER,1995, p. 244). Além de uma notória simplicidade, tais modelos sãopossuidores de um certo aspecto estético que envolve as distintasteorias abordadas. Apesar de tais características, graças ao desen-volvimento científico-tecnológico, surgiu nas últimas décadas abusca de extensões não lineares em diferentes tópicos das MCM eMQNL, respectivamente, que se tornaram necessárias e fundamen-tais ao pleno conhecimento de certas propriedades intrínsecas asistemas estudados nas citadas áreas da Física.

No que concerne aos diferentes cálculos envolvendo os siste-mas não lineares na Física (e por extensão na Química, na Biologiae nas Engenharias), os mesmos, ao contrário dos sistemas lineares,nem sempre se apresentam com simplicidade, fato este que talvezexplique a notória lentidão, nos resultados obtidos, por parte dacomunidade dos físicos, em torno de tais formulações de modelosmatemáticos. Felizmente, como diria Hagedorn (1984, p. 2), para adeterminação de condições iniciais e de outros parâmetros mate-máticos, as equações diferenciais ordinárias podem ser integradas,por via numérica, “com velocidade consideravelmente maior e comexatidão apenas possível há poucas décadas”. Ainda com referên-cia ao mencionado acima, vale enfatizar que uma das motivaçõesconcernentes à presente discussão advém do trabalho apresentadopor Bagchi (1980), em palestra proferida em Lecce (Itália), numEncontro internacional realizado entre 23 e 29 de junho de 1979,cujo tema era “Nonlinear Evolution Equations and Dynamical Systems”,

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em homenagem ao centenário de nascimento do físico AlbertEinstein. Naquele evento, o citado autor salientou que, apesar dealguns cientistas, àquela época, acreditarem que a Física era gover-nada, essencialmente, por equações matemáticas não lineares e quequaisquer medições implicavam uma interação não linear, inúme-ros físicos continuavam preocupados com o formalismo linear daMecânica Quântica.

Werner Heisenberg (1967), um dos pais da chamada MecânicaQuântica moderna (ou Mecânica das matrizes), durante os seusúltimos anos de vida, discutiu e publicou em torno da naturezadeste ramo da Física. Para o citado autor, a teoria quântica, na suaforma convencional, é linear, pois apesar de as equações envolven-do os operadores serem não lineares, a linearidade pode ser carac-terizada ao se resolver a equação de Schrödinger

ih/2π (∂Ψ/∂t) = HΨ

em que h é a constante de Planck, H é o operador Hamiltoniano e Yé a função de onda do sistema físico. Esta equação pode ser soluci-onada através de certas transformações matriciais. Para Heisenberg,a linearidade, na teoria quântica, apresenta uma razão mais pro-funda (quase filosófica) e não está conectada com alguma aproxi-mação. De acordo com o mesmo autor, a teoria quântica não tratacom fatos e sim com possibilidades, de tal maneira que o quadradoda norma do vetor de estado, ⎥⎪Ψ⎥⎪2, descreve o caráterprobabilístico do movimento em torno da partícula, enquanto oprincípio da Superposição (linear) da função de onda é essencial àcitada teoria. Seguindo os seus passos, outros físicos, a exemplo deWeinberg (1984), Jones (1984) e outros continuaram a discutir apossibilidade de se estudar sistemas não lineares através da FísicaQuântica.

Nesta discussão tentamos relembrar algumas questõesintroduzidas por alguns dos autores citados, e que à época em que

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foram postas, ainda não se tinha atingido o estágio atual de desen-volvimento de métodos matemáticos, nem se contava ainda comas evidências experimentais obtidas nos últimos anos. Por outrolado, é possível observar-se, nos tempos modernos, o surgimentode generalizações e novos dispositivos teóricos, a exemplo do prin-cípio da Incerteza generalizado, método de Hirota, transformaçãode Backlund (na MCM), transformação de Fourier não linear, prin-cípio da superposição não linear (na MQNR), que têm demonstra-do o impacto de novos métodos matemáticos aplicados aos fenô-menos da natureza (XIAO-FENG; YUAN-PING, 2003). É interes-sante constatar que a MCM inclui fortemente os estudos da Dinâ-mica não linear e a Teoria do caos, os quais influenciaram nosurgimento de diferentes métodos de solução das equações dife-renciais ordinárias e parciais. A partir dos citados tópicos, é possí-vel verificar a necessidade de estudo da Geometria Diferencial, daGeometria Tensorial e da Topologia como áreas de interesse, alémda Análise Matemática ordinária. No que concerne à MQNL, deve-mos destacar, nesta discussão, algumas questões básicasintroduzidas por outros autores (HIROTA, 1971; CROCA, 2003)sobre a necessidade de se construir uma teoria quântica para siste-mas não lineares. Alguns experimentos em materiaissupercondutores, superfluidos (hélio líquido), ferromagnéticos eoutros indicam a presença de fenômenos quânticos não linearesincluindo alguns efeitos quânticos ditos macroscópicos,4 além desólitons, os quais necessitam, para a sua análise, do uso da teoriade sólidos quânticos e da teoria de sistemas não lineares. Com talpreocupação, eles discutem quais os fundamentos basilares para ateoria; o que influencia a dualidade onda-corpúsculo de partículasna teoria; bem como as relações que interligam a teoria quânticalinear à teoria quântica ligada aos sistemas não lineares, dentreoutros. É importante relembrar o trabalho do príncipe Louis deBroglie (1960) que, através de seu livro “Nonlinear Wave Mechanics:a Causal Interpretation”, introduziu o conceito de não linearidade na

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Mecânica Quântica ortodoxa (linear). Apesar de seu interesse his-tórico, é importante enfatizarmos que o citado autor enfrentou di-ficuldades a fim de superar alguns problemas da teoria quânticaem sistemas não lineares, visto que o seu tratamento matemáticoera fortemente ligado à teoria quântica estabelecida. Em decorrên-cia deste fato, a discussão aqui apresentada se concentra em tornode uma metodologia mais recente, introduzida por Xian-Feng eYuan-Ping (2005), a fim de estudar a MQNL.

Esses autores consideram a MQNL como uma resultante ine-vitável ao desenvolvimento da Mecânica Quântica Linear (MQL),em que os efeitos quânticos microscópicos são adequadamente es-tudados. Para eles, a MQNL é uma teoria completa e inteira, vistoque a mesma discute as propriedades e os estados das partículasmicroscópicas, em distintos sistemas e sob várias condições, ondese inclui a dualidade onda-corpúsculo, a qual apesar de confirma-da experimentalmente não obteve, segundo esses autores, uma ex-plicação sem controvérsia através da MQL. Essa mesma extensãonão linear da MQL consegue apresentar as leis universais de movi-mento de corpúsculos na natureza, a exemplo das leis de conserva-ção da energia, de momentum e de massa, o que assegura uma boadescrição de tais partículas microscópicas. Na versão linear, a teo-ria quântica, via Escola ortodoxa de Copenhague, pode ser estuda-da a partir de alguns postulados (RIBEIRO FILHO, 2002), ou seja:

[#i] O estado quântico de um sistema físico em três dimensõesé descrito por uma função de onda (função psi), complexa, Ψ(x,y,z,t),a qual é denominada de amplitude de probabilidade. Ela é a solu-ção da equação Schrödinger dependente do tempo e contém todasas informações sobre o estado do sistema em qualquer instante detempo.

[#ii] Cada variável dinâmica é representada na MecânicaQuântica por um operador linear hermitiano.

[#iii] Ao realizar-se um grande número de medidas de umavariável dinâmica num sistema, que é preparado para estar num

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estado quântico Ψ antes de cada medida, o que se constata é que osresultados de cada medida individual serão em geral diferentes,mas a média (valor esperado ou valor médio ou esperança mate-mática) de todos os valores observados é dado por uma grandezarepresentada através do símbolo < D >Ψ que representa o valor es-perado de uma grandeza D.

[#iv] Em todo estado descrito pela função de onda Ψ, a espe-rança matemática ou valor esperado da observável O é dado pelaexpressão <O> = ∫Ψ* O Ψ dr / ∫Ψ* Ψ dr.

[#v] Para todo sistema físico existe um operador linearhermitiano H chamado operador Hamiltoniano, o qual tem as se-guintes propriedades: (*i) Este operador corresponde à observávelEnergia total do sistema. Portanto, H possui um conjunto comple-to de autofunções Ψi ( ou autovetores) e um conjunto de autovalores(ou valores próprios) Ei, tal que HΨi = Ei Ψi ; (*ii). O operador Hdetermina a evolução temporal da função de onda do sistema me-diante a equação diferencial parcial de primeira ordem no tempo ede segunda ordem nas coordenadas espaciais denominada equa-ção de Schrödinger.

Na extensão não linear introduzida pelos citados autores chi-neses (Xiao-Feng e Yuan-Ping, 2005) são apresentados apenas doisprincípios básicos para a MQNL : [#a] As partículas microscópicasem um sistema quântico não linear são descritas por uma funçãode onda

Ψ(r,t) = Ψ(r,t) exp[iθ (r,t)]

em que a amplitude (Ψ) e a fase (θ) são funções do espaço e dotempo; [#b] A função de onda Ψ(r,t) satisfaz à equação deSchrödinger não linear, isto é,

i(h/2π)∂Ψ/∂t = -(h2/8π2m) ∇2Ψ ± b|Ψ|2Ψ + V(r,t)Ψ + A(Ψ)

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em que V é um campo potencial externo, A é uma função de Ψ e b éum coeficiente indicador da intensidade da interação não linear. Es-tas são as duas únicas hipóteses básicas para a MQNL, as quais po-dem ser estendidas ao caso de inclusão de fenômenos relativísticos(em que a Ψ(r,t) satisfaz à equação de Klein-Gordon não linear e, pordecorrência, à equação de seno-Gordon não linear e à equação docampo-Ψ4). Apesar da economia de princípios, as equações dinâmi-cas deste approach não linear são generalizações das conhecidas equa-ções de Schrödinger e de Klein-Gordon lineares.

A partir desses princípios, segundo Xiao-Feng e Yuan-Ping(2005), a MQNL se distingue da MQL nos seguintes aspectos: a Ψ(r,t)representa um sóliton ou onda solitária que, em geral, é não linear enão dispersiva. O conceito de operador permanece na teoria nãolinear, entretanto o mesmo é agora não linear. O quadrado absolu-to da função de onda |Ψ(r,t)|2 = |Ψ(r,t)|2 = ρ(r,t) está ligado à den-sidade de massa da partícula microscópica em cada ponto do espa-ço, e não ao conceito de probabilidade que, neste caso, não éenfatizado. Apesar da similaridade na forma da função de ondanas duas teorias (MQL e MQNL), no caso não linear surge o signi-ficado que Ψ(r,t) denota o envelope da partícula, enquantoexp[iθ(r,t)] é uma carrier wave de Ψ(r,t).

4. CONCLUSÃO

As equações dinâmicas na MQNL são utilizadas no estudo demovimento de elétrons em sistemas supercondutores, em átomosde hélio em estado de superfluidez, dentre outros. Tais êxitos im-plicaram em outros cálculos, em vista da teoria comportar novosobjetos analíticos, a exemplo de: o denominado princípio desuperposição não linear, a teoria de transformadas de Fourier nãolineares, além de métodos de quantização e de perturbação quepodem ser aplicados a sistemas não lineares, os quais não discuti-

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remos aqui. De fato, alguns dos pilares da MQL ortodoxa tiveramde ser abandonados neste tratamento da MQNL. Apesar de taisdificuldades, é importante verificar que estes novos caminhos tri-lhados na busca da matematização de fenômenos da natureza têmexpandido cada vez mais os horizontes da Física. Tais avanços teó-ricos, na MCM, quando se estuda alguns sistemas caóticos, impli-cou na possibilidade de se definir um possível “princípio de incer-teza generalizado” que, em síntese, enfatiza o fato de nenhumavariável física poder ser medida precisamente, cujas implicaçõesnão discutiremos no presente trabalho.

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Aspectos matemáticos em sistemas não lineares na mecânica quântica e mecânica clássica modernas

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NOTAS1 DELAUNAY, Charles-Eugène, matemático e astrônomo francês, nasceu em Lusigny-sur-Barse,

em 09/04/1816 e faleceu próximo a Cherbourg em 05/08/1872. Estudou na Sorbonne (Pa-ris) entre 1841 e 1848, sob a orientação de Jean-Baptiste Biot, e foi professor na ÉcolePolytechnique a partir de 1850 e, mais tarde, na École de Mines, na capital francesa. Ele éautor dos dois volumes do La Théorie du Mouvement de la Lune publicados em 1860 e 1867,

Recebido em: abril de 2006Aprovado em: junho de 2006

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resultante da pesquisa durante vinte anos em torno da teoria do movimento lunar.2 A teoria de sólitons (ondas solitárias) estuda a propagação de ondas não lineares em meios

contínuos.3 A equação diferencial parcial não linear de Korteweg-de Vries (KdV), expressa por ∂υ/∂t + α

∂u/∂x +∂3u/∂x3 = 0, apresenta soluções tipo ondas solitárias, em que a é uma constante realnão nula, e os outros termos são derivadas temporal e espaciais. A solução desta equaçãoenvolve funções hiperbólicas (do tipo sech2) ou funções elípticas jacobianas (do tipo cn2)também denominadas de ondas cnoidais.

4 Os efeitos quânticos macroscópicos resultam do movimento coletivo de sistemas de mui-tas partículas sob certas condições, a exemplo de temperatura extremamente baixa, altapressão e alta densidade.

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Realismo e anti-realismo na construçãodo modelo da dupla-hélice (parte II)*

Marcos Rodrigues da Silva

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Abstract: From a study case (thebuilding of double-helix model), Iwill examine realist and anti-realistapproaches in order to understandthe cognitive meaning of science.

Key-words: realism - empiricaladequacy - double-helix.

Resumo: Este artigo investiga, a par-tir de um estudo de caso (a constru-ção do modelo da dupla-hélice),abordagens realista e anti-realistapara a compreensão do significadocognitivo da ciência.

Palavras-chave: realismo - adequa-ção empírica - dupla-hélice.

Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo, professor da Universi-dade Estadual de Londrina (UEL). E-mail: [email protected]. Esta pesquisa

é financiada pela Fundação Araucária, no interior da Rede Paranaense dePesquisa em História e Filosofia da Ciência.

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INTRODUÇÃO

Proposto em 1953 por James Watson e Francis Crick, omodelo da dupla-hélice fornecia, entre outras coisas, umadescrição1 da constituição molecular do ácido desoxirribonucleico(DNA); de acordo com este modelo, a constituição da molécula deDNA é a seguinte: duas fitas entrecruzadas - estas fitas são cadeiasde fosfato (ácido fosfórico) e de açúcar (desoxirribose); as fitas sãoligadas entre si por bases (adenina, timina, citosina e guanina)nitrogenadas, as quais são ligadas entre si por pontes de hidrogênio;quando um ácido fosfórico, uma desoxirribose e uma base se reú-nem temos então um nucleotídio; e a molécula de DNA nada mais édo que um conjunto de nucleotídios. Inegavelmente o modelo dadupla-hélice foi uma ferramenta científica que se mostrou capaz deorientar a pesquisa científica em vários campos da biologia e da bio-química; então podemos afirmar, utilizando a terminologia familiarda filosofia da ciência, que o modelo revelou-se bem sucedido; e istopor sua vez significa, inicialmente, que o modelo foi bem sucedidoempiricamente (ou seja: forneceu instâncias experimentais que apon-tavam sua eficiência no trato com a experiência relevante) e em se-guida bem sucedido teoricamente (ou seja: em função do modelo, vá-rios conhecimentos dispersos foram reunidos de modo a se obteruma ampla teoria que articulava estes conhecimentos).

Uma vez estabelecido e aceito o modelo de Watson e Crick,podemos questionar por que tal modelo se disseminou pela comu-nidade científica de modo a se legitimar como a melhor alternativapara a explicação de certos fenômenos. Na busca por um certo tipode respostas a essa questão, os filósofos da ciência dividem-se emduas grandes tradições: realista e anti-realista; deste modo poderí-amos perguntar: o modelo em espiral da dupla-hélice recebeu aaceitação da comunidade científica pelo fato de que “corta o mun-do em suas juntas” ou pelo fato de que é “empiricamente adequa-do”? Ou ainda: a molécula de DNA se comporta exatamente da

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Realismo e anti-realismo na construção do modelo da dupla-hélice (parte II)

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forma como é descrita pela biologia molecular ou ela não passa deuma boa compreensão das coisas? Por fim: a dupla-hélice é umadescoberta (de um aspecto da natureza) ou é uma construção (queexplica admiravelmente bem o funcionamento de alguns aspectosdos organismos)? Responder a essas três questões (que na verdadesão paráfrases de uma única questão) a partir dos primeirosdisjuntos é se comprometer com alguma forma de realismo científi-co; já respondê-las a partir dos segundos disjuntos remeteria a al-guma forma de anti-realismo.

Inicialmente é preciso que se estabeleça o que mobiliza as per-guntas acima; pois poderia alguém se perguntar: mas o que há detão misterioso na aceitação do sucesso da dupla-hélice? Afinal decontas as evidências empíricas obtida através dos experimentos comdifração de raio-x realizados por Maurice Wilkins e sua assistenteRosalind Franklin eram uma confirmação inequívoca de que o DNAse comportava exatamente como propuseram Watson e Crick, con-firmação esta inclusive chancelada pelos próprios Wilkins e Franklinem seu envio simultâneo de artigos – para o mesmo número daNature no qual havia sido publicado o artigo de Watson e Crick –que confirmavam a hipótese da dupla-hélice. Além disso, mesmoque nos desloquemos do âmbito estrito da confirmação evidencialda estrutura molecular do DNA para o ambiente mais amplo dadiscussão acerca do papel do DNA para a hereditariedade, nãoparece que estamos a lidar com uma discussão muito complexa,uma vez que a dupla-hélice contém um mecanismo que aponta paraa duplicação do DNA, mecanismo este perfeitamente compreensí-vel do ponto de vista empírico. Portanto, ao menos inicialmente,não há boas razões para nos impressionarmos com as perguntasfilosóficas do parágrafo anterior.

O problema com esta forma de ver as coisas é que i) se estátomando a representação da molécula de DNA como unidade deinvestigação; e, ao procedermos deste modo, ignoramos alguns as-pectos fundamentais da própria molécula, como por exemplo o

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indefectível fato científico de que ela se encontra em profunda rela-ção funcional com outras moléculas associadas, como proteínas eRNA; como se não bastasse, ii) ela acabou por se revelar funda-mental para explicar a ocorrência de um processo absolutamentedecisivo para a genética: o processo de transmissão de caractereshereditários; e, para explicar este processo, a dupla-hélice era umahipótese que dependia menos de uma descrição de processos quí-mico-físicos familiares do que dependia de ser aceita como tendoaquela forma específica, a de ser uma escada contorcida com doiscorrimões e seus degraus etc – forma esta que sabemos que não eradada diretamente pela experiência; portanto, a partir de (i) e (ii) asperguntas pelas razões da aceitação do modelo da dupla-hélice –perguntas estas cujas respostas separam realistas e anti-realistas –podem agora ser estabelecidas com certa legitimidade. Mas, antesde adentrarmos no campo específico da discussão acerca das ra-zões da aceitação do modelo, farei uma rápida (e esquemática) apre-sentação do realismo e do anti-realismo.

Estabelecida uma teoria como bem sucedida, o realista desejaconferir-lhe um significado epistemológico; para tanto ele atribuiàs entidades inobserváveis uma dimensão ontológica: tais entida-des realmente devem existir para que o mundo se comporte da for-ma como a teoria prevê que se comporta; assim, se o DNA é descri-to como uma dupla-hélice, então se segue que na realidade ele devese comportar desta forma. Além disso, explicar certos fenômenos apartir do modelo da dupla-hélice é fornecer um atestado de garan-tia epistemológica: os cientistas possuem todas as credenciaisepistêmicas para crer na verdade da explicação fornecida ao fenô-meno em pauta, bem como todas as credenciais epistêmicas parainferir a existência de entidades inobserváveis. Porém, para um anti-realista, o sucesso instrumental de uma explicação científica nãonos autoriza a extrair desse sucesso alguma forma de dividendoepistemológico; de fato o que obtivemos foi o que se costuma cha-mar de “adequação empírica” do modelo, o que significa que as

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evidências não foram violadas (ou contraditas). Em todo caso, oque o anti-realista quer enfatizar é que desta adequação empíricanão se segue nenhuma garantia epistemológica e por isso nãoestamos aptos a crer na verdade da teoria que abriga o modelo eportanto não estamos igualmente aptos a inferir a existência deentidades e aspectos inobserváveis do modelo.

Desta apresentação sumária das duas escolas podemos, numprimeiro momento, concluir que o problema parece girar em tornoda inferência de entidades e processos inobserváveis que estão pre-sentes nas melhores teorias científicas disponíveis; e assim um es-quema realista nos autoriza a inferir a existência de uma dupla-hélice, ao passo que um anti-realista não o faria. Na perspectivadeste artigo, o problema todo com este modo de ver as coisas é quea discussão acaba por se reduzir a uma pugna entre crentes eagnósticos, pugna esta por vezes totalmente dissociada tanto i) daspróprias formulações realista e anti-realista quanto ii) das questõesoriginais que conduziram os cientistas à postulação de entidadesinobserváveis (tais como a dupla-hélice). No que segue deste arti-go discutirei respectivamente os dois aspectos desta dissociação.

1. REALISMO, ANTI-REALISMO E A EXPLICAÇÃO DOSUCESSO CIENTÍFICO2

Uma das acusações anti-realistas mais comumente dirigidasao realismo é a de que esta filosofia se compromete excessivamentecom exigências epistemológicas e ontológicas desnecessárias no quedizem respeito à explicação do sucesso instrumental da ciência. Paraeste artigo importa menos saber se este compromisso é excessivodo que importa saber de que forma é articulado; para isso apresen-to resumidamente um argumento amiúde utilizado pelos realistas:o argumento da inferência da melhor explicação (IBE – Inference toThe Best Explanation)3 . De acordo com IBE, os cientistas, diante de

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teorias rivais4 , possuem meios adequados para proceder a uma es-colha da melhor dentre elas (em sendo a melhor delas good enoughpara uma tal escolha, como lembra Lipton (1991, p. 58; 1993, p.92)). Para um realista, nesta escolha, além de todos os critérios en-volvidos (como poder explicativo, simplicidade, elegância, coerên-cia etc), há ainda a crença na verdade da teoria eleita, e uma teoriaé aceita como verdadeira porque explica melhor (e suficientementebem) do que outras teorias rivais um determinado conjunto de fe-nômenos. Em seguida à escolha, obtém-se autorização para inferirque as entidades descritas pela teoria eleita efetivamente existem;e portanto o êxito do método científico suscita a crença na verdade(cf. BOYD, 1990, p. 362).

Gostaria de enfatizar aqui o procedimento realista (baseadoem IBE, e apenas em IBE): i) detecção de um fenômeno; ii) constru-ção de alternativas teóricas para a explicação do fenômeno detec-tado; iii) escolha de uma destas alternativas teóricas; iv) inferênciada existência das entidades descritas pela teoria eleita. Ou seja: tor-na-se claro que o realista não está assumindo uma duplicataontológica de forma gratuita; ao invés, sua inferência às entidadesé a conclusão de um complexo argumento cujas premissas não fa-ziam referência à existência de entidades. Então tenha-se claro quequando um realista científico enfatiza a importância da explicaçãocientífica ele não o faz apelando em primeiro lugar à crença dos cien-tistas na existência de entidades (cf. PSILLOS, 1999, p. 57); ao invésdisso, o processo se inicia por meio da aceitação de uma teoria que,pelo fato de explicar de forma notável diversos fenômenos, sugere emgrande medida que seus usuários tenham boas razões para crer emsua verdade e, portanto, tenham também boas razões para inferir aexistência de entidades inobserváveis; em termos claros: a constru-ção teórica (e a crença teórica) precede(m) a inferência a entidadesinobserváveis (cf. DEVITT, 1997, p. 67), com o que seria bastanteinjusta uma crítica às teorias realistas da explicação científica quenão levasse em conta o itinerário acima.

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Por outro lado, o anti-realismo igualmente nem sempre é com-preendido por seus rivais, pois se argumenta (argumento que procu-rarei mostrar que não parece ser definitivo) que suas consideraçõesacerca da ciência não nos autorizam a inferir, mesmo com o aval deteorias bem sucedidas, aspectos inobserváveis presentes nestas teori-as. Via de regra os anti-realistas são acusados de defender algo comoapenas a “adequação empírica”, como virtude máxima das teorias, como que estaríamos fadados a jamais conhecer aspectos inobserváveisdescritos pelas teorias científicas. O problema todo, para os anti-rea-listas, é que inegavelmente o conceito de “adequação empírica”, dis-seminado pela obra anti-realista de van Fraassen (1980), remete inici-almente a uma forma de compreensão da ciência que exclui quase queautomaticamente qualquer referência a inobserváveis: é observávelque o DNA seja constituído por grandes quantidades de fósforo, mase quanto à sua forma helicoidal sugerida pelo modelo da dupla-héli-ce? Assim, de início, somos tentados a considerar que “adequaçãoempírica” significa “correspondência com os fatos”. Ora, é exatamen-te isto que será negado por van Fraassen (cf. BUENO, 1999, p. 76).

Para van Fraassen a adequação empirica de uma teoria signifi-ca, em linhas gerais, que os fenômenos foram reunidos e explica-dos numa ampla estrutura teórica (1980, p. 56); deste modo, afir-mar que o DNA é uma dupla-hélice é simultaneamente afirmar queoutros elementos importantes do problema em questão foram reu-nidos num ampla estrutura explicativa, a saber, no programa depesquisa em genética molecular; e esta ampla estrutura explicativacontém observáveis (como DNA, RNA e cromossomo) einobserváveis (como dupla-hélice e gene)5 . Mesmo porque, paravan Fraassen, as teorias científicas possuem diversas virtudes de-sejáveis, e apenas uma destas virtudes é sua relação com o mundoobservável; uma outra é sua consistência e outra ainda (que nosinteressa aqui) é sua virtude pragmática; e, pragmaticamente, acei-tamos uma teoria que contém dupla-hélice e genes, sejam estesinobserváveis ou observáveis6 .

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Uma conclusão desta seção é que o estabelecimento das posi-ções realista e anti-realista a partir de posições ingênuas acaba porser um obstáculo à compreensão do debate7 . Deste modo nem osrealistas são filósofos ingênuos nem os anti-realistas são intoleran-tes com os inobserváveis8 .

2. ENTIDADES CIENTÍFICAS E SUA ASSIMILAÇÃOCONCEITUAL

Já vimos que uma apresentação do realismo e do anti-realismoadequada para uma compreensão do significado cognitivo da ci-ência deve levar em conta i) que o realismo não se comprometecom uma entidade inobservável sem que haja simultaneamente ocompromisso como uma teoria e ii) que o anti-realismo não é umafilosofia da ciência que admite apenas a crença em aspectosobserváveis da realidade. Aqui, a princípio, parece haver uma con-cordância no que diz respeito ao deslocamento do problema da as-similação da entidade para o problema da aceitação da teoria9 ; e,se o debate pode ser direcionado para o ângulo deste problema, en-tão parece razoável explorarmos alguns momentos da construçãodo modelo da dupla-hélice10 ; ou seja: tentarei focar alguns aspec-tos da construção do modelo que, de um modo ou de outro, sefizeram presentes tanto no trabalho de Watson e Crick quanto nasinvestigações de outros pesquisadores. Estes aspectos assumem aquia forma de conhecimentos prévios que foram aceitos por Watson eCrick e que se revelaram fundamentais para o modelo.

2.1 As relações de Chargaff

A construção do modelo do DNA recolheu, das contribuiçõesde Erwin Chargaff, uma série de considerações decisivas para oproblema do emparelhamento das bases nitrogenadas que com-

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põem a cadeia dos ácidos nucléicos. De acordo com ele, para cadaadenina haveria uma timina, e para cada guanina haveria umacitosina (AT=1, CG=1). Experimentalmente as relações de Chargaffdescreviam um estado de coisas; em outros termos: a relação eraverdadeira.

Numa abordagem realista, as relações de Chargaff expressamum conhecimento de fundo verdadeiro para Watson e Crick; logo,como este conhecimento foi aceito, estamos credenciados a crer naverdade da explicação fornecida pelo modelo; assim, mesmo umanti-realista deveria conceder que “poderíamos justificar a versão[anti-realista]11 da hipótese Watson-Crick utilizando um conheci-mento de fundo realista para justificar nossa regra de decisão” (cf.GIERE, 1999, p. 195). Deste modo o conhecimento de fundo utiliza-do por Watson e Crick foi assumido (por meio daquilo que Gieredenomina “regra de decisão”) como verdadeiro, e por isso “AT=1,CG=1” é uma fórmula que corresponde à realidade. Além disso,considerando que o modelo da Watson e Crick dependia em gran-de parte da consistência empírica da fórmula, o realista parece terrazão em sustentar que, não fosse esse conhecimento de fundo ver-dadeiro, o modelo sequer poderia funcionar; as relações entre (AT)e (CG) não podem ser uma construção, mas sim um fato; e, se elasestão na base do modelo da dupla-hélice, este também pode serconsiderado verdadeiro e passível de crença em sua verdade.

Por outro lado é possível encontrar pistas de uma interpreta-ção anti-realista da construção do modelo tanto nas declarações dopróprio Watson quanto em alguns momentos da “construção” dofato AT=1 / CG=1 por parte de Chargaff. Para Watson (1997, p.102), no interior da construção do modelo da dupla hélice o fato deesta relação expressar uma verdade tinha um significado bastantereduzido pois o que importava ao modelo era o fato de a relação seajustar perfeitamente ao que ele e Crick estavam a preparar (cf.Watson 1997, p. 102). Ainda de acordo com ele, a proporção de “um-para-um” entre (AT) e (CG) não era, no sentido mais forte do ter-

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mo, um fato empírico, pois os experimentos apenas revelavam umagrande “similaridade”12 no número de adenina para timina e decitosina para guanina; ou seja, a proporção não revelava uma ocor-rência empírica exata, mas uma interpretação possível que, no inte-rior do modelo de Watson e Crick, se mostrou empiricamente ade-quada. Contudo ela não se revelou empiricamente adequada porespelhar a realidade, mas sim pelo fato de que foi inserida no mode-lo e não o comprometeu no momento de checar a proficuidadeempírica do próprio modelo. Além disso, como registra Olby, o pró-prio Chargaff, nas suas pesquisas, estava tentando mostrar que opareamento não era um fato, e que as regularidades descobertas (porvolta de 1948) revelavam-se mais um “embaraço do que algo agra-dável” (OLBY 1974, p. 214). Neste caso, claramente o significado dasdescobertas empíricas de Chargaff revela, ao invés de uma contínuaescalada rumo à dupla-hélice, um caminho tortuoso marcado peladescontinuidade entre o observável e a construção teórica.

2.2 As evidências empíricas para a forma helicoidaldo DNA

Conforme já vimos, antes da divulgação do modelo, MauriceWilkins e Rosalind Franklin produziram inúmeras fotografias emraio-x da molécula de DNA; não obstante a posse destes registrosobservacionais, estes pesquisadores não conseguiram interpretar oque estava dado na experiência (cf. GIERE, 1999, p. 192). Ora, maso que exatamente Wilkins e Franklin não “enxergaram”? Será queeles não enxergaram que o que viam na fotografia poderia ser retra-tado como uma hélice em espiral? A questão aqui é bastante com-plexa e merece consideração, pois creio que, neste caso, a questãodiz menos respeito a “enxergar algo” do que propriamente a “inte-grar algo” a respeito do que se pode perceber (enxergar) numa es-trutura mais ampla, senão vejamos.

A sentença “o DNA é constituído por grandes quantidades de

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fósforo” é do tipo que se pode denominar “sentença de observação”(cf. CARNAP, 1995, p. 226), uma vez que se refere a um aspectoobservável do DNA, aspecto este revelado por meio de técnicascitológicas e bioquímicas desde as pesquisas pioneiras de FriedrichMiescher por volta de 1860. Além desta sentença, podemos inferirempiricamente uma série de outras que são reveladoras acerca daconstituição do DNA; contudo não é possível, empiricamente, in-ferirmos a forma helicoidal desta célebre molécula, uma vez que elaé uma hipótese apresentada como explicação para certos fenôme-nos – e isto, conforme veremos a partir de agora, é um ponto extre-mamente relevante para o debate realismo/anti-realismo.

Acima afirmei que a forma helicoidal do DNA não é umaconstatação empírica obtida pelas chapas de raio-x de Wilkins eFranklin; porém suponhamos que seja (e o quanto isto seria cons-trangedor para a reputação destes grandes físicos é um ônus quedeve ser arcado por aqueles que pensam que as chapas revelamconclusivamente, do ponto de vista empírico, a forma helicoidal).Por meio desta suposição, a sentença “o DNA possui a formamolecular de uma dupla-hélice” deveria contar como uma senten-ça de observação; o problema é que, mesmo que se assuma comoverdadeira esta suposição, considerar a sentença “o DNA possui aforma molecular de uma dupla-hélice” significa simultaneamenteocultar o contexto científico a partir do qual emerge tal sentença,senão vejamos.

Desde o século XIX o DNA era considerado uma entidadeobservável; contudo, deslocado para o problema mais amplo da genética(ou seja: deslocado para o contexto científico antes mencionado),esta mesma entidade precisou ser formatada numa estruturamolecular que, a despeito de possuir todos os seus elementos comodisponíveis à experimentação, não era em si mesma observável emtodos os seus aspectos. Naturalmente se poderia construir, a partir daestrutura molecular da dupla-hélice, uma série de sentenças deobservação tais como: “o fosfato está ligado a um açúcar”; “o açú-

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car está ligado a uma timina”; “a timina, no DNA, aparece em quan-tidade quase igual à de adenina”. Porém a soma destas sentençasocultaria um aspecto fundamental da molécula: sua forma helicoi-dal, forma esta que é de absoluta importância para o problema geralde transmissão da informação genética; ou seja: mesmo que alguémpudesse traduzir o modelo da dupla-hélice numa série de senten-ças de observação, tal tradução (mesmo que correta) não faria justi-ça ao contexto científico a partir do qual emergiu a dupla-hélice, oque me conduz a uma consideração que considero fundamentalpara o debate realismo/anti-realismo.

Ao menos por IBE, o realista, ao manter a verdade da sentença“o DNA possui a forma molecular de uma dupla-hélice”, não o fazem função de uma aposta ontológica, mas sim pela força explicativado modelo. O anti-realista, por sua vez, não gostaria de se compro-meter com uma entidade inobservável como uma dupla-hélice; noentanto, sua renitência em assumir o compromisso se deve menosao fato de que “o DNA possui a forma molecular de uma dupla-hélice” não possui verificação empírica direta do que se deve à suaconcepção de que entidades como o DNA, sem relação com outrasentidades associadas e portanto sem relação com o problema para o qual opróprio DNA e estas outras entidades associadas estão a resolver, nadasignificam isoladamente; portanto, seja por meio de IBE, seja pormeio da aposta numa detecção empírica direta, o anti-realista nãocompreende a vantagem de estabelecer a existência, no caso, dadupla-hélice. Para o anti-realista, afirmar que o DNA é representa-do (seja por meio de IBE, seja por meio de uma detecção empíricadireta) por uma dupla-hélice significa considerá-lo uma unidadeautônoma para a investigação científica – e é isto que deve ser con-testado e não o fato que ela pode ser inferida por IBE.

Deste modo podemos entender por que seria insuficiente aWilkins e Franklin “enxergar” uma dupla-hélice e registrá-la emseus protocolos de observação; pois de nada adiantaria propor umadupla-hélice como representação do DNA sem simultaneamente pro-

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por funções para outros componentes genéticos a ele associados, o que defato foi feito por Watson e Crick. Assim, mesmo que “o DNA é umadupla-hélice” seja uma sentença de observação, tratá-la deste modotalvez não seja o melhor caminho para compreendermos como funcio-nam a construção e o desenvolvimento do conhecimento científico, pois,para os envolvidos na construção do modelo, e também para Wilkins eFranklin13 , esta sentença, no contexto da investigação científica, nãoera uma sentença de observação. O termo “DNA” não se encontrailhado na pesquisa científica – ao invés, é parte integrante de umagrande família de termos que mantêm uma vibrante relação entresi14 . Após descobrir (para usar o vocabulário realista) ou construir(para usar o vocabulário anti-realista) a dupla-hélice, há muito tra-balho a ser feito e uma rede conceitual a ser tecida. Aquele que“enxerga” ou “descobre” não terminou o trabalho.

2.3 O RNA e o modelo da dupla-hélice

Mesmo que em 1953 já houvesse uma boa quantidade de evi-dências de que o DNA seria o agente diretamente responsável pelahereditariedade, seu modelo não poderia ser aplicado ao ácido as-sociado RNA, pois não haveria como utilizar o conhecimento defundo verdadeiro oferecido por Chargaff, já que as basesnitrogenadas do RNA eram diferentes (ao menos em um aspecto)das bases do DNA. No caso do modelo de Watson e Crick haviaum “programa de pesquisa”15 em curso; neste programa o funda-mental era a construção do modelo da dupla hélice; e, para este mo-delo (ou seja, neste contexto16 ), a apropriação do conhecimento pré-vio foi feita com base na suposição de que seria, nos termos dospróprios cientistas, praticamente “impossível” construí-lo a partirdo RNA (cf. WATSON; CRICK, 1953, p. 737). Ou seja: não foi o casode se dizer que “a natureza é de um certo modo”, mas que, dado omodelo pretendido, alguns conhecimentos prévios se ajustam a eleou não. Além disso não era totalmente descabido se pensar que o

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RNA fosse o agente hereditário mais importante, embora esta hi-pótese já estivesse em declínio desde 1944, com os resultados dotrabalho experimental de Avery e seus colaboradores17 . Em todocaso, seria legítimo que algum bioquímico sugerisse uma possívelsentença de observação “o modelo da dupla-hélice de Watson eCrick não é na verdade um modelo para o DNA, mas para o RNA”e em seguida tentasse verificá-la? Bem, poderíamos pensar que talsentença fosse testável, porém de um modo não muito diferente doenunciado “Júpiter estará presente na Praça da Sé às 15 horas dodia 30 de novembro de 2006”; pois, assim como nenhum de nós sedará ao trabalho, neste dia, de inventariar a Praça da Sé para ates-tar a presença de Júpiter, nenhum bioquímico – tendo como referên-cia o modelo de Watson e Crick – proferiria tal sentença sobre o RNA,dadas as diferenças das constituições moleculares do DNA e doRNA18 .

CONCLUSÃO

É impossível sonegar ao leitor a informação de que o que foiaqui argumentado tem lá sua cota de débito com a filosofia de Quine,sobretudo com seu conceito de “simplicidade” (QUINE, 1960) – eeste significando uma virtude decisiva para a formulação de teori-as. Para Quine, um cientista que resolvesse adotar uma posturaaustera de restrição ontológica a inobserváveis, no máximo obteriauma combinação de teorias “mal-conectadas” que estipulam ter-mos de observação (cf. QUINE, 1960, p. 21); porém, quão restritossão os termos de observação? Mesmo quando descrevemos umobservável – e portanto quando descrevemos um objeto familiaraos sentidos – o fazemos numa linguagem pública (cf. QUINE, 1960,p. 1); ou seja: quando postulamos uma dupla-hélice descrevemosaquilo que não contradiz nossos sentidos (o que é bem diferente dedizer que descrevemos exatamente aquilo que os nossos sentidos

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nos permitem perceber); porém, ao postular a dupla-hélice, estamosnos referindo ao que denominamos de “molécula”, termo cujo usoautomaticamente nos fez adotar um vocabulário teórico e sofisti-cado, pois utilizamos um termo que não denota algo cuja analogiacom os objetos observáveis seja direta (cf. QUINE, 1976, p. 249). Epor que não nos restringimos aos sentidos? Porque é mais simplesconceitualizar toda a cadeia química presente na dupla-hélice comouma molécula ao invés de caracterizá-la como uma soma infindávelde sensações. Assim o que experenciamos são nossas sensações,mas discursamos sobre objetos; e portanto o próprio discurso so-bre objetos observáveis já é uma extrapolação da evidência sensori-al (cf. QUINE, 1960, p. 10). Deste modo, mesmo que considerásse-mos a dupla-hélice um observável, nos afastaríamos (pelas razõesde Quine) consideravelmente dos nossos sentidos, distância estadecorrente da busca pela simplicidade; e, se a simplicidade é umbom guia para a construção de teorias, então tanto o velho DNAobservável dos tempos de Miescher quanto a inobservável dupla-hélice - caso sejam (e foram) instrumentos adequados para que sealcance uma boa teoria – são entidades assimiláveis a despeito desuas diferenças no vocabulário metacientífico tradicional, bem comoa despeito de nossas “predileções” por objetos próximos de nossaexperiência (cf. QUINE, 1960, p. 233-234). Portanto o velho DNAobservável e sua dupla-hélice inobservável são aceitos – seja porrealistas (ao menos por meio de IBE), seja por anti-realistas - nãopor imposição ontológica (aceitação esta que não é nem a de realis-tas nem a de anti-realistas), mas por imposição de teorias que ne-cessitam destas entidades. Contudo, a despeito de considerar tantorealistas (ao menos por meio de IBE) quanto anti-realistas comodescomprometidos com a aceitação ontológica prima facie, descon-fio que os anti-realistas parecem mais preparados para explicar aassimilação (seja de observáveis, seja de inobserváveis) a partir danecessidade das teorias. Mas isto não passa de uma suposição.

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Recebido em: maio de 2006Aprovado em: junho de 2006

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NOTAS

* A primeira parte deste trabalho foi apresentada no 10° Seminário Nacional de História daCiência e da Tecnologia, na UFMG, Belo Horizonte, em 19 de Outubro de 2005. O texto podeser conferido em Silva (2005a). Este estudo de caso, aplicado em discussões acerca do ensi-no de ciências, pode ser conferido em Silva (2004a; 2004c; 2004e). Este artigo foi apresenta-do no IV Encontro da Rede Paranaense de Pesquisa em História e Filosofia da Ciência e IISeminário de História e Filosofia da Ciência, ocorridos em Ilhéus, em abril de 2006. Agrade-ço a Vanessa Carvalho pelos comentários a este texto. Agradeço a colaboração decisiva deOsvaldo Pessoa Jr. para a continuidade desta pesquisa, bem como sua leitura do artigo.Agradeço, por fim, ao parecerista indicado pelos editores desta publicação, cujos comentá-rios ao texto foram desafiadores e propulsores de uma alteração bastante significativa naforma de exposição deste artigo.

1 Uma explicação interessante da hipótese de Watson e Crick pode ser conferida em Calladinee Draw (1992).

2 As apresentações respectivas do realismo e do anti-realismo são evidentementeesquemáticas, e foram extraídas de Silva (2003a, 2004b, 2005b).

3 Uma influente formulação (e até onde se saiba nunca abandonada) de IBE encontra-se emHarman (1965, p. 89): “Ao se construir [a inferência da melhor explicação] se infere, do fatode que uma certa hipótese explicaria a evidência, a verdade desta hipótese. Em geral, exis-tem diversas hipóteses que poderiam explicar a evidência, de modo que deve-se ser capazde rejeitar tais hipóteses alternativas antes de se estar seguro em fazer a inferência. Assimse infere, da premissa de que uma dada hipótese forneceria uma explicação “melhor” paraa evidência do que quaisquer outras hipóteses, a conclusão de que esta determinada hipó-tese é verdadeira”.

4 É importante registrar que a inferência da melhor explicação pressupõe a existência dehipóteses que rivalizam entre si no oferecimento de uma explicação para um determinadoconjunto de fenômenos.

5 Que fique claro, pelos exemplos, que dna e a dupla-hélice do dna não podem ser completa-mente confundidos. O dna da citologia do século XIX será considerado uma entidadeobservável, ao passo que sua representação molecular por meio do modelo da dupla-héli-ce será considerada inobservável. Os limites das conseqüências desta distinção serão ex-postos na seção 2 deste artigo, sobretudo em 2.2.

6 Uma versão historiográfica de uma posição pragmática como a de van Fraassen pode serconferida em Laudan (1977, cap. 3).

7 Este trabalho de tentativa de formatação do debate pode ser conferida em Silva (2003a).8 Infelizmente os limites deste trabalho me impedem de desenvolver de modo mais profun-

do esta discussão.9 Não quero, ao menos neste momento, adentrar ao domínio da discussão acerca da distin-

ção entre realismo de entidades e realismo de teorias, tal como figura em Ian Hacking eNancy Cartwright. Esta discussão aparece em Silva (2003a; 2005b).

10 O enfoque, para este debate, no aspecto da construção das teorias é sugerido claramentepor Giere (1999) e.van Fraassen (1980).

11 No original ele utiliza, ao invés do termo “anti-realismo”, o termo “empirismo”. Contudo, consi-derando que o objetivo da discussão é exatamente o mesmo de meu artigo, e considerandoigualmente que por vezes os termos podem ser considerados intercambiáveis, então nãovejo maiores problemas nesta substituição. Para críticas à identificação entre empirismo eanti-realismo (sem referência ao uso feito por Giere) recomendo a leitura de Chibeni (1997).(A propósito, uma das razões pelas quais prefiro atualmente utilizar o termo “anti-realismo” aoinvés de “empirismo” se deve à interlocução com o professor Sílvio Chibeni).

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12 Isto é percebido pelo exame de uma das tabelas publicadas pelo próprio Chargaff (1953).13 Esta forma antropocêntrica e individualista de compreensão é sugerida por Quine (1995, p. 44).14 Sobre este ponto é interessante a discussão acerca das interligações entre sentenças, como

aparece em Quine (1960).15 Uso o termo entre aspas pelo fato de que, na verdade, Watson e Crick trabalharam a maior

parte do tempo na clandestinidade; esta clandestinidade foi o resultado de uma imposiçãodo diretor do Laboratório Cavendish (no qual trabalhavam), Sir Lawrence Bragg. Bragg fica-ra irritado com uma demonstração anterior fracassada de um modelo (uma tripla-hélice)apresentado por Watson e Crick a Wilkins e Franklin.

16 O termo “contexto” está sendo usado em sentido realmente técnico, e aponta para a teoriada explicação de van Fraassen (1980, cap.5). Uma outra elegante formulação anti-realistaque inegavelmente considera o contexto como fundamental para uma explicação científi-ca se encontra em Berkeley, em seu De Motu. Para uma esquemática apresentação anti-fenomenalista do De Motu, ver Silva (2003c); já para uma discussão a respeito das relaçõesentre Berkeley e Hume – relações estas que de modo indireto dizem respeito a alguns pro-blemas de recepção do empirismo no debate realismo/anti-realismo – ver Silva (2004d).

17 Apresentei algumas considerações a respeito destes experimentos em Silva (2003b).18 O açúcar do dna é a desoxirribose, ao passo que o açúcar do rna é a ribose. Watson e Crick

afirmaram que, devido a esta razão, seu modelo não podia ser construído para o rna (Watsone Crick 1953, p. 737).

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A filosofia de Kant enquanto propedêuticaa toda teoria estético-musical futura

Fernando R. de Moraes Barros

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Abstract: The present article aims atcharacterizing Kant’s philosophy –specially as it is formulated in theCritic of Judgment – as a kind ofpropaedeutics to the music-aesthetical theory – despite thetheoretical-speculative position thatmusic ends up assuming in this verycontext. To accomplish this task,we’ll take into account somereflections on the aesthetic judgmentas well as Kant’s hierarchicaldivision of arts; finally, we hope toindicate the possible consequenceswhich we are impelled to withinKant’s aesthetical considerations –for instance, the definition of musicas an innovative and fruitful “signlanguage”.

Key-words: aesthetic judgment –game of sensations – music – signlanguage.

Resumo: O propósito geral que aquise persegue é o de tentar caracteri-zar a filosofia de Kant – tal como estaganha forma e conteúdo, em especi-al, na Crítica do juízo – enquanto umaespécie de propedêutica à teoria es-tético-musical – malgrado o estatutoteórico-especulativo que a músicatermina por adquirir em tal contex-to. Para tanto, cumpre passar em re-vista certas considerações acerca dojuízo-de-gosto para, a partir da divi-são das belas artes criada pelo céle-bre filósofo alemão, indicar as pos-síveis conseqüências a que suas pon-derações podem impelir-nos – como,por exemplo, a definição da arte dossons enquanto uma inovadora e fru-tífera “linguagem de sinais”.

Palavras-chave: juízo-de-gosto –jogo das sensações – música – lingua-gem de sinais.

Doutor em Filosofia e Professor Adjunto no Departamento de Filosofia eCiências Humanas da Universidade Estadual de Santa Cruz. E-mail:

[email protected]

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BARROS, Fernando R. de Moraes

Que não exista, no pensamento de Kant, uma teoria da arteacabada, bem como um discurso unívoco sobre o âmbito que habi-tualmente designa a atividade musical, eis algo que nenhum intér-prete estaria disposto a negar. Nem por isso o célebre filósofo deKönigsberg deixou de refletir sobre questões relativas à arte de modogeral. Em seus escritos, não são raros os momentos em que se de-tém, por exemplo, no exame das relações entre o gênio e as belasartes e também aqueles em que procura indicar os próprios limitesda sensibilidade. Nenhuma forma artística, porém, recebe um tra-tamento contínuo e exaustivo. Embora atento a tal ordem de ques-tões, Kant não se pretende crítico de arte e tampouco espera anali-sar a operosidade que comanda o fazer artístico propriamente dito.Ao contrário, em sua obra, a arte vem à baila intimamente vincula-da à questão acerca da atividade do juízo, sendo que é justamenteisso que irá constituir a chave para a compreensão do veredictocontido na apreciação kantiana da música: esta, no entender dofilósofo alemão, não se deixa apreender, sem problemas, sob a for-ma de um juízo estético. Por que, então, tomar a filosofia de Kantcomo propedêutica a uma teoria da arte, e, sobretudo, da arte dossons? O propósito geral do texto que se segue consiste precisamen-te em tentar fornecer uma resposta factível a essa impertinente per-gunta.

Se no período de redação d’A crítica da razão pura o objeto daestética era a intuição sensível - designando uma parte relevanteda teoria do conhecimento, porquanto se referia à recepção domúltiplo dado na percepção -, outra será sua determinação no con-texto atinente à elaboração d’A crítica do juízo. Desta feita, tal objetoconsistirá na maneira como o sensível passa a ser efetivamente pro-dutivo na elaboração e instituição do juízo-de-gosto. Que tal juízoapresenta inúmeras curiosidades, eis algo que salta aos olhos dequem lê o texto de Kant. Em linhas gerais, isso se deve ao fato deque, tal como os juízos-de-conhecimento - que se fiam na aplicaçãode conceitos objetivos sobre as intuições -, subjaz ao juízo-de-gosto

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A filosofia de Kant enquanto propedêutica a toda teoria estético-musical futura

uma exigência de validade universal. Não é por meio dessa aplica-ção, porém, que reputamos belos os objetos que se nos apresentam.À diferença das apreciações teóricas, é a um sentimento que o juízo-de-gosto deve sua condição de possibilidade. Trata-se, em realida-de, de uma curiosa espécie de satisfação, cuja exposição conceitualtem lugar, de modo lapidar, no parágrafo 2 da “Analítica do belo”:

Interesse é denominada a satisfação que vinculamos com arepresentação da existência de um objeto [...]. Mas, se a ques-tão é se algo é belo, não se quer saber se, para nós ou paraquem quer que seja, importa algo a existência da coisa, ousequer se pode importar; mas sim como a julgamos na meraconsideração (intuição ou reflexão). Se alguém me perguntase acho belo o palácio que vejo diante de mim, posso, porcerto, dizer: não gosto de coisas como essa, que são feitasmeramente para embasbacar, ou, como aquele ‘sachem’iroquês, que nada em Paris lhe apraz mais do que os restau-rantes [...]. Tudo isso podem conceder-me e aprovar; só quedisso não se trata agora. Querem apenas saber se a mera re-presentação do objeto, em mim, é acompanhada de satisfa-ção, por mais indiferente que eu possa ser quanto à existên-cia do objeto dessa representação [...]. É preciso não ter amínima preocupação pela existência da coisa e, a esse res-peito, ser inteiramente indiferente, para fazer papel de juizem assuntos de gosto (KANT, 1984, § 2, p. 210).

Vigora aqui a idéia segundo a qual os objetos considerados belosaprazem por si próprios, passando ao largo de conceitos objetivos,bem como das sensações ocasionadas por aquilo que há de bom eagradável. Todavia, enganar-se-ia quem pressentisse, em tal passa-gem, apenas uma simples tentativa de obter acesso, por assim di-zer, ao belo “nu”, à estrutura ontológica da “beleza”, uma vez queo espírito se livrasse de todos os condicionamentos subjetivos aosquais se acha fatalmente submetido. Outro é o motivo pelo qualKant quer conduzir-nos à esfera do desinteresse. A exigência dedesinteresse concorre precisamente para que o sentimento de pra-zer possa ser imputado a todos. Algo que se assegura por meio da

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introdução e da afirmação de uma noção específica de finalidade.A esse propósito, lê-se: “Um juízo-de-gosto, sobre o qual atrativo eemoção não têm nenhuma influência [...] e que portanto tem mera-mente a finalidade da forma como fundamento-de-determinação,é um juízo-de-gosto puro” (Id., ibidem, § 13, p. 224).

Doravante, belo passa a ser considerado algo no qual tudo oque é particular se enquadra “finalisticamente” no todo, mas semque, com isso, o todo ainda possua um fim ulterior. Reflexiva, afaculdade estética de julgar não prevê um universal que lhe servis-se de suporte. Subjetivo, seu fundamento-de-determinação nãopode ser um princípio conceitualmente determinado – converten-do-se o próprio sujeito, a título de uma preciosa ficção heurística,na condição mesma de possibilidade de tal princípio. Pergunta-se,porém: como pode uma satisfação arvorar-se em validez univer-sal? Kant, de sua parte, julga poder tornar patente essa tênue pos-sibilidade mediante o aceite de que, na satisfação desinteressada àbase do juízo-de-gosto, encontra-se em ação uma operação intelec-tual que, em seu conjunto, não pode mais subsistir nem no âmbitoprático da razão nem em sua instância teórica, enquadrando-se,pois, nas hostes de uma complementaridade subjetiva propiciadapor um novo aprofundamento crítico. Trata-se, em realidade, deum concerto cognitivo. Guardando autonomia com relação ao en-tendimento - apesar de com ele concordar -, o juízo-de-gosto irásugerir, então, uma comunhão vivificante e potencializadora entreas faculdades da imaginação e do entendimento, sendo que é justa-mente o tomar-consciência-de-si desse acordo que, segundo Kant,pode dar-nos a chave para a compreensão da suposta universali-dade contida no juízo-de-gosto. É nessa direção que o filósofo ale-mão escreve:

A comunicabilidade universal subjetiva do modo-de-repre-sentação em um juízo-de-gosto [...] não pode ser outra coisaque o estado-da-mente no livre jogo da imaginação e do en-tendimento (na medida em que concordam entre si, como é

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requerido para um conhecimento em geral), na medida emque temos consciência de que esta proporção subjetiva apro-priada para o conhecimento em geral tem de valer igualmentepara todos e, conseqüentemente, ser universalmente comu-nicável (Id., ibidem, § 9, p. 220).

Desde já, “belo” não será nenhum predicado objetivo, mas ir-remediavelmente relativo. Exortando-nos a um nível superior deauto-reflexão, a referência estética deve-se, agora, a umainfranqueável realização criativa, à representação estética do obje-to no sujeito. Vejamos por que a música irá, aqui, obstaculizar talrealização, bem como por que Kant, malgrado ele mesmo, pode serlegitimamente considerado o precursor de toda teoria estético-musical futura.

Fazendo coro com a estética filosófica setecentista, Kant em-preende uma divisão das diferentes artes conforme seus respecti-vos gêneros. Ao fazê-lo, no entanto, ele não deixa de explicitar, aomesmo tempo, o expediente metodológico de que se serviu. Trata-se, de acordo com suas palavras, de uma “analogia da arte com omodo de expressão de que os homens se servem no falar, para, tãoperfeitamente quanto possível, comunicarem-se entre si, isto é, nãomeramente segundo seus conceitos, mas também segundo sensa-ções” (KANT, 1984b, § 51, p. 256). E tampouco deixa de confessar,numa concisa, mas relevante observação, que tal esboço de divisãoestá longe de ser algo conclusivo, permanecendo à parte, aliás, dopróprio sistema da filosofia transcendental. Ad hoc, ele é tão-só umadentre as muitas tentativas que ainda “se podem e devem fazer”(Id., ibidem, p. 256). Assim é que, dando cumprimento a tal plano,Kant irá, de seu lado, distinguir três traços principais no interior dalinguagem humana: a palavra (articulação), o gesto (movimento) eo som (modulação). Hauridos dessa divisão tripartite, os correlatosartísticos de tais modos de expressão são, logo após, agrupados emtorno dos seguintes núcleos: as artes elocutivas (eloqüência e artepoética), as artes figurativas (plástica [escultura e arquitetura] e

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pintura) e a assim chamada “arte do belo jogo das sensações (que sãoengendradas do exterior)” (Id., ibidem, p. 259). Não se deterá aí,porém, a classificação. Sobre o belo jogo das sensações recairá ain-da uma última subdivisão, que vem à luz sob a forma de uma ines-perada disjunção entre o jogo artístico atinente à audição e à visão,ou, como se lê, entre “música e arte das cores” (Id., ibidem, p. 259).

Caudatária de uma significação notadamente ampla da sensi-bilidade artística, a caracterização da arte dos sons e das cores en-quanto “jogo das sensações” cederá terreno, no entanto, a uma sus-peita. Empreende-se a pergunta pela possibilidade mesma de amúsica, bem como a arte das cores, ter algo a ver com as belas ar-tes, ou, melhor dizendo, com obras cuja beleza é por nós experi-mentada sob a égide do livre jogo das faculdades de conhecimentona qualidade de uma satisfação desinteressada. Irremediavelmen-te submetidas à força arrebatadora do interesse e das inclinações,as sensações parecem estar como que destinadas, de antemão, aocasionar sentimentos agradáveis ou desagradáveis - e, portanto,nos quais apenas juízos de validade individual se deixariam fun-damentar. Ora, o caminho entrevisto por Kant para tentar solucio-nar a questão está longe de ser unívoco. Tanto é assim que ele iráconfessar: “Não se pode dizer com certeza: se uma cor ou um tom(som) são meramente sensações agradáveis, ou em si já um belojogo de sensações e, como tal, trazem consigo uma satisfação face àforma no julgamento estético” (Id., ibidem, p. 260). À primeira vistaincontornável, essa dificuldade irá, não por acaso, impelir a análisekantiana a uma outra conseqüência. Bifronte, a arte dos sons impli-cará a adoção de um duplo ponto de vista sobre o jogo operadopelas sensações.

Concebidas única e exclusivamente enquanto efeitos sobre osistema receptivo do ouvinte, as sensações sonoras adquirem umsentido ligado ao indelineável âmbito dos sentimentos deagradabilidade ou descontentamento. Mas, se por aí não fazemossenão nos abandonarmos aos “estremecimentos sobre a parte elás-

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tica de nosso corpo” (Id., ibidem, p. 260), talvez nos fosse facultadauma saída por meio da adoção de uma outra perspectiva em facedas mesmas sensações. Tomadas enquanto intuições na forma dotempo e do espaço e, a ser assim, enquanto portadoras de uma es-trutura formal, as impressões atinentes à música quiçá pudessemfornecer - a título de vibrações do ar proporcionalmente apreendi-das - suficientes pontos de referência para a realização de um efeti-vo jogo artístico das sensações. Implicando atinar com as relaçõesespácio-temporais estabelecidas nas progressões harmônicas, bemcomo nos arcos melódicos – ou, como nos diz Kant, com “a divisãodo tempo” (Id., ibidem, p. 260) -, tal disposição pressuporia uma ati-vidade cognitiva por parte das faculdades do conhecimento, tor-nando exeqüível, nesse trilho, uma apreciação estética mediante afaculdade do juízo. Nas diferentes tensões da escala de cores ou desons, deparam-se, agora, outras considerações. Desta feita, dirá ofilósofo alemão, “poderíamos ver-nos obrigados a considerar assensações de ambos [das cores e dos sons] não como mera impres-são sensível, mas como o efeito de um julgamento da forma no jogode muitas sensações” (Id., ibidem, p. 260).

Contudo, e apesar dessa dupla referência, Kant parece nãomudar radicalmente de atitude diante da arte dos sons. Passa en-tão a considerar uma hierarquia das belas artes conforme o critérioda cultura que proporciona ao intelecto, tomando como fundamento“a ampliação das faculdades que no Juízo têm de reunir-se para oconhecimento” (Id., ibidem, p. 263). Em tal ordenação, a música –devido à sua atávica falta de conteúdos conceitualmente descritíveis– termina por ocupar um lugar inferior a todas as demais artes. Enão só. À música é imputada, nesse contexto, uma determinadaausência de “civilidade”, que vem à tona sob a forma do seguintecomentário: “Além disso, prende-se à música uma certa falta deurbanidade, pois ela, principalmente conforme a índole de seusinstrumentos, amplia sua influência além do que se lhe pede (à vi-zinhança), a assim como que se impõe, portanto faz dano à liberda-

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de de outros, fora da sociedade musical; o que as artes que falamaos olhos não fazem, na medida em que basta desviar os olhos, senão se quer aceitar sua impressão” (Id., ibidem, p. 264).

A julgar pelo pano de fundo formado pela distinção entre sen-timentos de prazer e desprazer, bem como pela exigência de umasatisfação desinteressada apta a ser universalmente comungada,não é de admirar que a avaliação kantiana acerca da música sejaambivalente. Assegurar à música o status de bela arte faz todo sen-tido, desde que se sublinhe, em sua operosidade artística, os mo-mentos estruturais e formais das sensações. Em contrapartida, con-ceber a arte dos sons enquanto uma mera expressão irrefletida deafetos tem razão de ser, na medida em que se procura caracterizá-la apenas como uma vivência singular de sentimentos aprazíveis.Enquanto fonte de deleite, porém, a arte dos sons estaria longe deimprimir, aqui, o selo de sua grandeza. É o que basta para Kantcomparar o resultado da música sobre o ouvinte com o efeito deum lenço perfumado que, ao ser retirado do bolso, “serve todos emtorno de si e a seu lado contra a vontade destes, e os obriga, sequiserem respirar, ao mesmo tempo a fruir” (Id., ibidem, p. 264).

Com tais apontamentos diante dos olhos é forçoso, agora, in-dagar: por que tomar a filosofia de Kant enquanto propedêutica atoda teoria estético-musical futura? Certo é que o próprio filósofoalemão não pretende tomar sobre os ombros a tarefa de fundamen-tar a ordenação por ele estabelecida entre os diferentes gêneros ar-tísticos, denegando-lhe, tal como foi indicado, justificações teórico-especulativas ulteriores. Nesse sentido, lê-se ainda: “O leitor nãojulgará este esboço de uma divisão possível das belas-artes comouma teoria visada” (Id., ibidem, p. 256). Em nosso entender, a im-portância da estética kantiana para uma ponderação filosófica so-bre a música não está propriamente lá onde ela se propõe a discor-rer acerca da arte dos sons – algo que se faz de um modo extrema-mente conciso, diga-se de passagem -, mas, em linhas gerais, nasua teoria do juízo-de-gosto. Ao determinar uma operação reflexi-

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va de cunho eminentemente cognitivo – mediada, portanto, nãoapenas pelo sentimento – como sendo constitutiva da experiênciaestética, Kant termina por descerrar e pavimentar o caminho rumoa uma teoria da música cuja condição de sustentabilidade reside nacompreensão mesma da arte sonora enquanto linguagem de sinais.Pode-se dizer, se não for afirmar mais do que o necessário, que areflexão sobre a forma da finalidade sem fim ínsita a um objetointuitivamente representado deixa-se interpretar legitimamenteenquanto reflexão sobre signos de uma linguagem livre da tiraniada significação – isto é, isenta da habitual função representativa àbase das palavras, e, por isso mesmo, detentora de uma capacida-de quase infinita de explicitação.

Inseparável de seu próprio conteúdo, a forma do signo musi-cal cuidaria, já, de sua significação, sem ter de recobrir “coisas” ou“objetos” por meio de designações conceituais, o que a obrigaria alevar consigo os artigos de fé presentes na concepção essencialistada linguagem, pressupondo substâncias, agentes, pacientes, pro-priedades, causas, efeitos etc. E, em verdade, as próprias dificulda-des reveladas por Kant apontariam para o fato de que a músicacarece de uma esfera de racionalidade própria, bem como de umléxico condizente com sua originalidade. A título de mera sonori-dade, a música destaca-se dos gestos vocálicos e consonantais quedão origem à palavra articulada, emancipando-se, pois, do fundosonoro que se acha atrelado às posições do órgão da linguagem. Seno texto que perfazem os cânticos melódicos os ditos significantespermanecem, em rigor, atarraxados a determinados significados, acrua teia de relações sonoras percebida pelo ouvinte formaria, an-teriormente às imagens acústicas usadas para formação do signolingüístico, um campo liberto dos limites do significado, sendo quea credencial que irá tornar o simbolismo musical mais estimável éprecisamente o fato de a música poder ser descrita como uma es-trutura dinâmica sem um fundo semântico plenamente codificado.Donde também se compreende que uma teoria geral do simbolis-

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mo sonoro não deve, em princípio, empreender a pergunta pelobelo musical a partir de instâncias extra-musicais, mas localizandoo conteúdo da música em “idéias” que são, já de si, musicais. Li-vres formas em movimento, os conteúdos de tais idéias talvez sóservissem para mostrar que, em matéria de música, tudo só podeser um jogo. E quiçá não apenas nessa matéria, mas também coisasdo espírito. Afinal, como diz Kant, “sem jogo quase ninguém podeentreter-se” (Id., ibidem, p. 265).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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FRICKE, Christel. Kant. In: Musik in der deutschen Philosophie: EineEinführung. Stuttgart: Metzler, 2003, p. 21-38.

HÖFFE, Otfried. Immanuel Kant. Munique: Beck, 2004.

KANT, Immanuel. Analítica do belo. Trad. de Rubens Rodrigues TorresFilhos. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1984.

______. Da arte do gênio. Trad. de Rubens Rodrigues Torres Filhos. In: OsPensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1984b.

Recebido em: abril de 2006Aprovado em: junho de 2006

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O problema da possibilidade dos juízosreflexionantes estéticos no quadro da

filosofia kantiana da razão pura

Marcos Alberto de Oliveira

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Abstract. The present paper seeks toexamine the kantian problem of thepossibility of the aestheticjudgement, starting from the widestcontext of the philosophy of the purereason. Of this point of view, we willanalyze the nature of that problemand will expose the procedures usedby Kant to solve it, in order to callthe attention for, on a side, thearchitectural unit between criticsystem and doctrinal system, ofother, for the fact of thetranscendental approach of thebeautiful, in agreement with a criticof the capacity of judging, notproducing any metaphysics.

Key-words: critic – metaphysics -aesthetic judgement - capacity ofjudging.

Resumo. O presente trabalho se pro-põe a examinar o problema, tipica-mente kantiano, da possibilidadedos juízos de gosto, situando-o nocontexto mais amplo da filosofia darazão pura. Com isso, pretende-seanalisar a natureza desse problemae expor os passos seguidos por Kantpara solucioná-lo, a fim de ressaltar,de um lado, a unidade arquitetônicaentre sistema de crítica e sistemadoutrinal, de outro, o fato de a abor-dagem transcendental do belo, a par-tir de uma crítica da faculdade dejulgar, não fundar nenhumametafísica.

Palavras-chave. crítica – metafísica -juízo de gosto - teleologia - faculda-de de julgar.

Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas, ProfessorAssistente do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas da Universi-

dade Estadual de Santa Cruz. E-mail: [email protected]

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1. INTRODUÇÃO

Como bem se sabe, as três principais obras de Kant trazem emseus títulos o termo “crítica”. O filósofo alemão concebe a críticaem estreita correlação com a metafísica como duas partes distintas,mas complementares, da filosofia da razão pura, isto é, do conheci-mento racional que só pode ser obtido a partir da análise de concei-tos dados a priori (em oposição ao conhecimento matemático, quetambém é um conhecimento racional, não obstante só possa serobtido com a construção de conceitos na intuição sensível pura).

A metafísica é, segundo ele, o sistema desse conhecimento ra-cional que, como doutrina, é produzido pela razão pura e que “con-siste de juízos sintéticos a priori, teóricos e práticos, todos elesdeterminantes, os primeiros das formas intuitivas e os segundosdas ações” (LOPARIC, 1992, p. 60).

A crítica, sendo uma investigação preliminar acerca da possi-bilidade dessa espécie de conhecimento racional, delineia, verificae até mesmo promove a idéia daquele sistema; nesse sentido, elatambém pode ser dita uma teoria dos limites do conhecimento ob-jetivo e, a fortiori, de nossa capacidade cognitiva. Isto porque, se-gundo Kant,

a crítica das faculdades de conhecimento, em vista do queestas podem realizar a priori, não tem propriamente esferaalguma no que toca aos objetos, porque ela não é uma dou-trina, senão que se propõe investigar tão só, segundo o esta-do de nossas faculdades, se uma doutrina é possível por meiodelas e como o seja. Seu campo se estende sobre todas aspretensões das mesmas para mantê-las nos limites de sualegitimidade (KANT, 1790: B XX, grifos nossos).

Uma vez que juízos sintéticos a priori são enunciados por pro-posições que, referindo conceitos a objetos (portanto, estabelecen-do uma síntese entre o conceito do sujeito e o conceito do predicado),já encerram a presunção lógica de que tal referência possui valida-

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de universal e necessária (algo que só pode ser pensado a priori), acrítica também pode ser entendida como uma investigação da pos-sibilidade desses juízos.

Com efeito, a “Crítica da razão pura” se propõe a examinar asnossas faculdades de conhecimento, tendo em vista a questão dapossibilidade dos juízos teóricos, isto é, dos juízos sintéticos (a priorie a posteriori) que, no domínio da natureza, pretendem serdeterminantes dos objetos de nossas representações, exprimindo,assim, as leis (isto é, regras universais e necessárias) a que eles es-tão submetidos.

Paralelamente, a “Crítica da razão prática” se debruça sobrenossa faculdade de desejar, tratando da questão da possibilidadedos juízos morais, isto é, dos juízos sintéticos a priori que propõemregras práticas para a determinação de ações livres, exprimindo,assim, as leis segundo as quais somente estas ações podem ser rea-lizadas por aquela faculdade.

Ora, é exatamente essa pretensão de validade universal e ne-cessária, própria dos juízos sintéticos a priori, que suscita o empre-endimento crítico de Kant. A tarefa aqui é suficientemente clara: afilosofia da razão pura tem que esclarecer tal pretensão a partir deprincípios constitutivos sem os quais seria impossível o emprego,seja teórica seja prático, de nossas faculdades cognitivas, no senti-do de decidir se, e sob que condições, a liberdade e a natureza po-dem ser determinadas a priori, isto é, de verificar a possibilidade,respectivamente, de uma metafísica dos costumes e de umametafísica da natureza como ciências.

Segundo Kant, as nossas faculdades cognitivas superiores (istoé, de conhecer objetos a partir de conceitos) são três: a razão(Vernunft), o entendimento (Verstand) e a faculdade de julgar(Urteilskraft)1 . Ao passo que a razão só possui princípiosconstitutivos para o uso prático, isto é, para legislar sobre a liber-dade2 , o entendimento possui princípios constitutivos apenas parao uso teórico, tendo a natureza (compreendida como o conjunto de

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todos os objetos da experiência) como uma esfera própria sobre aqual pode exercer plenamente sua atividade legisladora. Ora, oentendimento, enquanto tem por objeto a natureza, é a nossa facul-dade superior de conhecer, ao passo que a razão, empregada paraa determinação de ações, ou seja, em seu uso prático, é a nossafaculdade superior de desejar. Ambas, porém, só podem determi-nar os objetos de suas respectivas esferas julgando. O entendimen-to julga os objetos da natureza imediatamente, na medida em queestes são dados em intuições sensíveis e determinados por concei-tos. A razão julga as ações a partir de suas respectivas máximas,submetendo estas ao critério da universalização, na medida em quea vontade pode ser determinada pelo imperativo categórico (que,como único princípio constitutivo da razão, impõe aquele critério)a realizar máximas universalizáveis, vale dizer, a praticar as açõespor elas prescritas motivadas pelo sentimento de respeito (moral) àpura idéia do dever. De modo que ambas as faculdades, entendi-mento e razão, se confundem com a faculdade de julgardeterminante.

Ora, estudar as condições de possibilidade dos juízos sintéti-cos determinantes, práticos ou teóricos, perfaz apenas uma parteda crítica. A outra, apresentada na “Crítica da faculdade de jul-gar”, se volta para os juízos reflexionantes3 , mediante os quaissomente é possível, por assim dizer, se dar conta daqueles aspectoscontingentes que vicejam nos domínios da natureza e da liberda-de, estorvando as legislações do entendimento e da razão, que, nãoobstante, são compelidos – em virtude de sua própria constituiçãointerna – a avançar indefinidamente na determinação completa dosobjetos e ações4 .

Se a faculdade de julgar não encerra uma esfera própria (Gebiet;ditio), tal como ocorre com a razão e o entendimento, possui, contu-do, um território (Boden; territorium), em relação ao qual somenteela se constitui numa faculdade autônoma da alma, dirigida essen-cialmente à reflexão sobre os aspectos particulares e contingentes

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da experiência. Isso significa dizer que o juízo reflexionante, embo-ra só possa ser exercido sobre objetos de percepção, e por isso ésempre sintético, envolve como tal uma pretensão lógica de vali-dade universal e necessária, sendo, pois, a priori. De fato, todo juízoreflexionante pressupõe a natureza como um sistema teleológico,conceito por meio do qual ela “é representada como se [als ob] al-gum entendimento encerrasse em si o fundamento da unidade damultiplicidade das suas leis empíricas” (KANT, Op. cit.: B XXVIII).Todavia,

este conceito transcendental de uma finalidade da naturezanão é um conceito da natureza, nem um conceito da liberda-de, porque nada acrescenta ao objeto (à natureza), mas ape-nas representa a única maneira de como nós temos de proce-der, na reflexão sobre os objetos da natureza, em vista deuma experiência completamente concatenada; por conse-guinte, representa um princípio subjetivo (máxima) da fa-culdade de julgar (KANT, Op. cit.: B XXXIV).

Assim sendo, a faculdade de julgar carece também de um exa-me crítico, cujo problema básico pode ser formulado da seguintemaneira: como são possíveis juízos reflexionantes acerca da natu-reza, isto é, juízos sintéticos a priori que, pressupondo que a nature-za, na relação com as nossas faculdades cognitivas, procedefinalisticamente, mantêm a pretensão de validade universal e ne-cessária subjetiva, isto é, validade para a própria faculdade de jul-gar como tal?

O território sobre o qual somente pode a faculdade de julgarlegislar a priori é o sentimento, isto é, a capacidade de prazer edesprazer perante a representação de objetos. Em vista desse terri-tório, ela se constitui na faculdade superior de sentir de acordo como princípio da finalidade formal (subjetiva) da natureza, princípioem virtude do qual somente um objeto de percepção pode ser jul-gado esteticamente pela “concordância de sua forma [...] antes detodo conceito com as faculdades de conhecer” (KANT, Op. cit. B

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XLVIII). Trata-se, pois, da faculdade de julgar reflexionante estéti-ca, na qual a finalidade da natureza repousa sobre uma “base me-ramente subjetiva”, isto é, pela qual um dado objeto da experiênciaé julgado em função do prazer que sua forma desperta quando re-fletimos sobre ela.

Mas o conceito de uma finalidade da natureza, referido “a umdeterminado conhecimento do objeto” para julgá-lo “como fim danatureza”, isto é, para julgá-lo “(logicamente) segundo conceitos”,perfaz também um princípio regulativo da faculdade de julgarreflexionante, denominada, neste caso, teleológica, a qual é a “fa-culdade de julgar a finalidade real (objetiva) da natureza medianteo entendimento e a razão, princípio esse que, pressuposto pelas“máximas da faculdade de julgar, que são colocadas a priori à baseda investigação da natureza” (KANT, Op. cit., B XXX), tais como alex parcimoniae e a lex continui in natura, nos ensina apenas comodevemos julgar coisas que só podem ser compreendidas como fins(por exemplo, a estrutura interna dos seres organizados), isto é,coisas que são ininteligíveis como produtos de um mecanismo cego.

Como “à necessidade de que haja fins objetivos da natureza,isto é, coisas que só são possíveis como fins naturais, não se podedar fundamento algum a priori” e como “a faculdade de julgar, semencerrar em si para isso princípio algum a priori, contém a regrapara, nos casos que se apresentem (certos produtos), fazer uso, parapropósitos da razão, do conceito dos fins” (KANT, Op. cit., B LI),uma crítica da faculdade de julgar reflexionante teleológica, namedida em que esta “pertence à parte teórica da filosofia”, “deveconstituir uma parte especial da crítica” (KANT, Op. cit., B LII), daqual a outra parte, tendo “lugar somente na crítica do sujeito quejulga e das faculdades de conhecer do mesmo” (KANT, Ibidem), sedebruça sobre a faculdade de julgar reflexionante estética, na me-dida em que esta é “uma faculdade particular de julgar coisas se-gundo uma regra, mas não segundo conceitos” (KANT, Ibidem).

Neste último caso, a tarefa básica de uma crítica da faculdade

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de julgar é, a partir da análise e exposição do princípio da finalida-de formal (subjetiva) da natureza, deduzir todas as condições quetornam possível o juízo reflexionante estético, isto é, aquelas con-dições sob as quais somente se justifica a pretensão desse juízo àvalidade universal e necessária, mas fundada apenas no sentimen-to do sujeito que julga. Tarefa, diz Kant, que se impõe pelo fatomesmo de que

aquele que na mera reflexão sobre a forma de um objeto, semrelação alguma com um conceito, experimenta prazer, pre-tende com razão, ainda que este juízo seja juízo empírico eindividual, obter a aprovação de cada um, porque a base desteprazer se encontra na condição universal, ainda que subjeti-va, dos juízos reflexionantes, que é, a saber: a concordânciafinal de um objeto (seja produto da natureza ou da arte) coma relação das faculdades de conhecer entre si, exigidas parao conhecimento empírico (a imaginação e o entendimento)(KANT, Op. cit., B XLVI-XLVII ).

E esta, prossegue Kant,

é a causa pela qual os juízos de gosto são submetidos tam-bém a uma crítica segundo sua possibilidade, pois essa pos-sibilidade pressupõe um princípio a priori, embora este prin-cípio não seja nem um princípio de conhecimento para oentendimento nem um prático para a vontade e, portanto,não é a priori determinante (KANT, Op. cit., B XLVII).

Por conta disso, Kant reconhece que uma crítica da faculdadede julgar não torna possível um sistema doutrinal (tal como umacrítica do emprego teórico do entendimento puro e uma crítica doemprego prático da razão pura estabeleceram as bases de, respec-tivamente, uma metafísica da natureza e uma metafísica dos costu-mes), mas se esgota no exame das condições subjetivas do uso denossas faculdades de conhecimento em geral.

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2. A FACULDADE DE JULGAR REFLEXIONANTE E APASSAGEM DO CONHECIMENTO TEÓRICO À MORALIDADE

Ora, isso significa dizer que, se, como doutrina, a metafísica danatureza e a metafísica dos costumes se apresentam como um sis-tema de juízos sintéticos a priori determinantes, respectivamente,para a legislação do entendimento sobre a nossa experiênciacognitiva e para a legislação da razão sobre a nossa experiênciaprática, domínios que parecem incomunicáveis entre si, uma críti-ca da faculdade de julgar tem como papel apenas favorecer a ativi-dade legisladora daquelas duas faculdades em suas respectivas es-feras, algo para o qual é indispensável que haja um trânsito possí-vel entre elas, de modo que o mundo inteligível possa exercer in-fluência sobre o mundo sensível, e este, sem prejuízo de sua con-formidade a leis da natureza, concorde com “a possibilidade dosfins, segundo leis da liberdade, que nele se tem de realizar” (KANT,1790: Introd., B XIX), já que, por força da lei moral em nós e doobjeto necessário de uma vontade a ela submetida, isto é, da idéiade um bem supremo (a felicidade sob condição da moralidade),somos obrigados a postular a existência de Deus e a imortalidadeda alma.

De acordo com Kant, entre o entendimento – que, como facul-dade de conhecimento, possui princípios constitutivos a priori queformalmente impõem à natureza sensível a conformidade a leis – ea razão – faculdade que, segundo seu princípio formal constitutivo,a lei moral, determina imediatamente a faculdade de desejar e lheimpõe um fim final a ser realizado pela causalidade da liberdade –encontra-se a faculdade de julgar, que, tendo como território a ca-pacidade de sentir dor e prazer, impõe à natureza sensível a con-formidade a fins. Ora, como o prazer é algo essencialmente ligadoà consecução de um propósito (Absicht) e como um fim “é o objetode um conceito, enquanto este é considerado como a causa daque-le (a base real de sua possibilidade)” (KANT, Op. Cit. # 10), é de se

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supor que, se o conceito em questão for a representação da nature-za como um sistema teleológico, o fato de conseguirmos “unir duasou mais leis empíricas e heterogêneas da natureza sob um princí-pio que compreende a ambos” (KANT, Op. cit. # VI) provocará emnós um sentimento de prazer, sentimento que, neste caso, repousasobre um fundamento a priori. Inversamente, nos frustraríamos se,na investigação da natureza, tropeçássemos numa multiplicidadede leis empíricas tão heterogêneas a ponto de ficar inviabilizada asua ordenação sistemática e, conseqüentemente, obstruído o usológico da faculdade de julgar reflexionante (o de trazer amultiplicidade à unidade na subordinação de leis empíricas parti-culares a outras mais gerais). Esse sentimento de prazer5 é um que,embora não seja um elemento de conhecimento, vem unido comuma representação como um “efeito de algum conhecimento”(KANT, Op. cit. # VII), isto é, como efeito da consciência de queuma ordem contingente se conforma à espontaneidade (autono-mia) das nossas faculdades cognitivas e, portanto, à legislação doentendimento através do conceito de natureza. A representação aquié referida, pela faculdade de julgar, “somente ao sujeito e o prazernão pode expressar mais que a acomodação daquela [representa-ção] com as faculdades de conhecer, que está em jogo no juízoreflexionante (KANT, Op. cit. #VII, colchetes nossos).

Portanto, o principio a priori da faculdade de julgar permite otrânsito não só, no uso lógico, do entendimento à razão, mas tam-bém de nossa faculdade superior de conhecer à nossa faculdadesuperior de desejar. Vejamos como isso se dá.

O entendimento, que, como faculdade de conhecimento teóri-co, traz consigo princípios constitutivos válidos a priori só em rela-ção aos fenômenos – esfera para a qual ele, como legislador, exige aconformidade total a leis –, já indica um substrato supra-sensíveldos mesmos como algo indeterminado e em si mesmo incognoscível.Para assegurar a estrutura formal da experiência e seus objetos, oentendimento não precisa nada mais do que compor dados sensí-

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veis em intuições (puras e empíricas) e subsumir estas sob os con-ceitos puros (categorias) – que representam a unidade da sínteseintuitiva subjacente àquela composição – por meio da faculdadede julgar determinante. Contudo, deixa indeterminados os elemen-tos particulares que perfazem a matéria dessa experiência e resis-tem à sua ação legisladora.

Ora, para garantir a determinabilidade completa dos fenôme-nos, o entendimento tem que lançar mão da faculdade de julgarreflexionante e seu princípio a priori, que, para o uso lógico dessafaculdade, deve “fundar a unidade de todos os princípios empíricossob princípios igualmente empíricos, mas mais altos, e assim a pos-sibilidade de subordinação sistemática de uns aos outros” (KANT,Op. cit.: # IV). Com efeito, ao impor a priori à natureza sensível aconformidade a fins mediante esse princípio, a faculdade de julgarreflexionante também proporciona àquele substrato supra-sensí-vel “a determinabilidade por meio da faculdade intelectual” (Op.cit., #IX).

E já que o entendimento não pode fornecer a determinaçãodesse substrato (porque o uso legítimo de seus princípiosconstitutivos se restringe aos fenômenos), cabe à razão determiná-lo mediante um princípio constitutivo válido a priori apenas para aesfera prática, isto é, através da lei moral, na medida em que esta,enquanto lei da causalidade da liberdade, impõe um fim final, queé no mundo o mais alto bem possível pela liberdade. De fato, ohomem como ser moral (dotado de uma vontade boa em si mesma,isto é, pura) é o fim final da criação e, nessa condição supra-sensí-vel, tem faculdade da liberdade e a lei de sua causalidade para sepropor o bem mais alto que lhe pode advir em virtude da purezade sua vontade: a felicidade sob a condição da moralidade.

Como pudemos ver, a compatibilidade entre a completa deter-minação moral do mundo supra-sensível e a completa determina-ção teórica do mundo sensível só é possível pela mediação da fa-culdade de julgar reflexionante e seu princípio da finalidade for-

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mal (subjetiva). A natureza sensível deve, pois, se conformar nãosó a leis, mas também a fins, o que serve aos propósitos tanto doentendimento, como faculdade superior de conhecer, quanto darazão, como faculdade de desejar superior. Isso também permite ainfluência do supra-sensível, determinado pelo conceito prático deliberdade, sobre a natureza sensível. Em suma, o princípio da fina-lidade formal da faculdade de julgar reflexionante fornece “um fun-damento para a unidade do supra-sensível, que jaz à base da natu-reza, com o que o conceito de liberdade encerra de prático (KANT,Op. cit.: final do # II), isto é, com a liberdade no sentido prático epositivo de uma “razão que determina imediatamente a vontade”(KANT, 1788: A 83) ou, de maneira equivalente, da “própria legis-lação da razão prática pura” (KANT, Op. cit. A 59).

Em virtude desse trânsito, possível mediante a faculdade dejulgar, entre o teórico e o prático, a natureza sensível (domínio dosfenômenos e do conhecimento possível) é aquela a que está inteira-mente submetida a faculdade de desejar, cujos objetos, portanto,têm que necessariamente preceder e ser a causa de suas determi-nações. Ao contrário, a natureza supra-sensível é aquela que se sub-mete integralmente à faculdade de desejar, a qual pode ser ditasuperior porque, determinada pela lei moral, é causa dos objetosrepresentados. Dito isso, fica patente que no conceito de uma cau-salidade mediante a liberdade (no sentido prático positivo) já estácontida a possibilidade de o supra-sensível exercer influência so-bre o sensível no sujeito, ou seja, de essa causalidade produzir efei-tos sensíveis (tais como o sentimento moral e as ações livres deledecorrentes), desde que, alerta Kant, “a palavra causa, empregadapara o supra-sensível, signifique somente o fundamento para deter-minar a causalidade das coisas naturais a um efeito conforme suaspróprias leis naturais” (KANT, 1790. Introd., # IX). Isso quer dizerque o conceito de uma causalidade segundo leis da liberdade temuma significação diferente do de uma causalidade segundo leisnaturais: esta é uma relação, matematicamente determinável, entre

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dois estados de uma substância phaenomenon (relação na qual o es-tado anterior deve ser buscado, segundo uma regra do entendi-mento e no âmbito da experiência possível, como uma causa de umestado posterior dado efetivamente à percepção, o efeito); já aque-la indica apenas a própria atividade (teoricamente incognoscível)da substância em virtude da qual esta substância, em si mesmapermanente, muda de estado, o que, representado numa perspecti-va moral como o supra-sensível em nós, se traduz pela atividadesintética da razão prática pura, mas que, em relação à nossa facul-dade de julgar, não é senão o fundamento em geral, e em si mesmoindeterminável, da finalidade subjetiva da natureza.

3. A ESPECIFICIDADE DO PROBLEMA DA POSSIBILIDADEDO JUÍZO DE GOSTO NA CRÍTICA DA FACULDADE DEJULGAR

Conforme vimos, a faculdade de julgar só é autônoma enquantofaculdade de julgar reflexionante estética. Como tal, ela é uma fa-culdade superior de sentir, porque opera de acordo com um princí-pio constitutivo válido a priori só em relação ao sentimento de pra-zer e dor, ao lado de uma faculdade superior de desejar, a razão, euma faculdade superior de conhecer, o entendimento.6

O juízo reflexionante estético é um tipo de juízo sintético a priori.É sintético porque atribui um predicado (a beleza) a um objeto depercepção, predicado esse que, não estando contido no conceitodesse objeto, pressupõe uma síntese (ligação). De fato, os juízos degosto “passam por cima do conceito e até da intuição do objeto, eacrescentam a esta, como predicado, algo que nem sequer é conhe-cimento, a saber, um sentimento de prazer (ou dor)” (KANT, Op.cit., B 148). É a priori, porque, como tal, encerra a presunção lógicade validade universal e necessária, mas condicionada ao sentimentodo sujeito (universalidade e necessidade subjetivas) , o que se tra-

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duz na “aprovação exigida de cada um, ou querem ser tidos portais”, e isto, diz Kant, “está igualmente encerrado já nas expressõesde sua pretensão” (KANT, Op. cit., B 149).

Como a filosofia transcendental é uma teoria das condições depossibilidade de juízos sintéticos a priori, a questão aqui é como sepode justificar essa pretensão de universalidade e necessidade sub-jetivas, isto é, se, e sob que condições, é possível o juízo de gosto.Nas palavras do próprio Kant:

Como é possível um juízo que só pelo próprio sentimento deprazer em um objeto, independentemente do conceito domesmo, julga esse prazer como ligado à representação domesmo objeto em todo outro sujeito a priori, isto é, sem ne-cessitar esperar a aprovação estranha? (KANT, Op. cit, B 148).

Como se vê, o problema consiste em especificar as condições(que só podem ser deduzidas de um princípio a priori constitutivoda própria faculdade de julgar, na medida em que nela somente sepode encontrar a fonte daquela pretensão) sob as quais somente sepode julgar um objeto belo e, por conseguinte, se arrogar “ter odireito (berechtigt zu sein)” (KANT, Op. cit., B152) de “exigir de cadaum como necessária essa satisfação”, a saber, “um prazer unidoimediatamente com o simples juízo antes de todo conceito” (KANT,Op. cit., B 150).

4. A FORMA ESTÉTICA DO JUÍZO DE GOSTO

Esse sentido do juízo de gosto foi descoberto por Kant a partirde uma análise da sua forma estética comparada com a forma lógi-ca dos juízos de conhecimento. Eis uma apresentação sucinta dessasintaxe do juízo de gosto.

Do ponto de vista da qualidade, um juízo de conhecimentopode ser afirmativo (S é P), negativo (S não é P) e infinito (S é não-

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P). Superficialmente, um juízo de gosto possui essas três formaslógicas do juízo de conhecimento, pois, como é evidente, quem jul-ga esteticamente um objeto pode fazê-lo de três maneiras diferen-tes: “este objeto é belo”, “este objeto não é belo” ou “este objeto éfeio (não-belo)”.

Porém, a qualidade estética do juízo de gosto se caracterizapelo fato de ele ser um juízo tal cuja base de determinação é mera-mente subjetiva, ou seja, que esteticamente as representações intui-tivas do objeto tido por belo são referidas, não a este objeto paradeterminá-lo a partir de conceitos, com vistas ao conhecimento, masao sentimento do sujeito com vistas à contemplação desse objeto,mantida por uma satisfação desinteressada do sujeito.

Desinteresse, aqui, significa tanto o fato de quem julga esteti-camente não apreender o objeto de contemplação por meio de con-ceitos do entendimento e, portanto, sem visá-lo cognitivamente,quanto ao fato de ele se desprender de seu interesse volitivo pelaexistência, ou mesmo utilidade, do objeto que lhe causa prazer, demodo que a satisfação em tela difere substancialmente daquela quese dá perante o que é meramente agradável, útil ou em si mesmobom, que sempre está unida ao interesse, seja este moral ou patoló-gico.

Nesse sentido, Kant define o gosto (Geschmack) como “a facul-dade de julgar um objeto ou uma representação mediante uma sa-tisfação ou descontentamento sem interesse algum, satisfação cujoobjeto chama-se belo” (KANT, Op. cit. B 16).

Do ponto de vista da quantidade, um juízo de conhecimentopode ser universal (Todo S é P), particular (Algum S é P) ou singu-lar (Este S é P).

Um juízo de gosto, porém, é sempre singular, pois só podemossentir prazer e, portanto, julgar esteticamente o objeto de uma per-cepção atual, mas não uma classe ou um grupo de objetos, por exem-plo, uma flor em geral (tal como representada abstratamente emseu conceito) ou um grupo de flores, a não ser que, neste último

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caso, essas flores perfaçam uma totalidade que possa ser efetiva-mente percebida e apreendida na unidade da intuição.

Contudo, a satisfação ocasionada pela percepção de um objetobelo é tida, pelo sujeito que reflete sobre a forma dessa percepção,como universal, isto é, válida para todos os demais sujeitos queconsiderem essa mesma forma. Conforme Kant, “não é o prazer,mas a validade universal desse prazer, o que se percebe no espíritocomo unido com o mero juízo de um objeto, e o que é representadoem um juízo de gosto” (KANT, Op. cit., B 150). Isso quer dizer quequem julga esteticamente não diz que este objeto é universalmentebelo, mas sim que quando está diante de um objeto belo este pro-voca uma satisfação desvinculada do seu próprio interesse, isto é,que vale não só para ele, mas também para todos aqueles que jul-guem tal objeto belo. A universalidade estética, pois, não é idênticaà universalidade lógica, que diz respeito à esfera ou extensão deum conceito, referindo-se, antes, à satisfação do sujeito que vemintrinsecamente unida com o juízo de gosto sem que este envolva asubsunção do objeto sob qualquer conceito. Por exemplo, no juízo“este pássaro é belo”, se se trata aqui de um puro juízo de gosto,está subtendido: “Em todo x que refletir sobre a forma da represen-tação empírica deste objeto, sob a condição particular da corretasubsunção da mesma7 , será desperta a consciência da finalidadeformal subjetiva do objeto representado, isto é, satisfação perantesua forma”. A universalidade estética é, portanto, uma universali-dade subjetiva e relacional oculta sob a forma lógica de um juízosingular.

Daí que, do ponto de vista da quantidade estética do juízo degosto, Kant define o belo como “o que, sem conceito, apraz univer-salmente” (KANT, 1790: B 32).

Do ponto de vista da relação, um juízo de conhecimento podeser categórico (S é P, no qual P é afirmado, ou negado, simpliciter deS, ou seja, a relação sujeito-predicado), hipotético (Se S é P1, entãoS é P2, no qual P2 é afirmado, ou negado de S, sob a condição de

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que P1 também seja afirmado, ou negado, de S, ou seja, a relaçãoantecedente-consequente) e disjuntivo (Ou S é P1 ou S é P2, que secompõe de dois juízos que perfazem uma oposição lógica, isto é,as esferas de P1 e P2 se excluem mutuamente e, não obstante, pre-enchem a esfera do conhecimento possível (P) sobre S).

À primeira vista, o juízo estético “x é belo” parece ser categóri-co. No entanto, já que a beleza não é um predicado pelo qual umobjeto pode ser determinado, isto é, o conceito de sua perfeição oude qualquer propriedade objetiva, o juízo “x é belo”, segundo a suaforma estética, exprime uma relação entre a forma do objeto perce-bido e um estado subjetivo de quem o percebe e o julga belo. Issoquer dizer que, em virtude mesmo de sua qualidade (marcada porum sentimento desinteressado do sujeito) e sua quantidade (a pe-culiar pretensão de universalidade inscrita no sentido de um juízosingular) estéticas, um juízo como “x é belo” significa o mesmoque: “ se estiver diante de x e refletir sobre a forma de x, x me cau-sará um prazer desinteressado e, por conseguinte, me levará acontemplá-lo”.

De acordo com Kant, esse traço relacional e hipotético do juízode gosto se deve ao fato de ele expressar apenas que sentimos comoprazer a finalidade formal do objeto em relação às nossas faculda-des cognitivas, relação essa que, enquanto repousa sobre um fun-damento a priori, não só independe do encanto e da emoção, pró-prios do que é meramente agradável, mas também (se for um juízode gosto puro e o objeto for corretamente subsumido sob aquelefundamento) não envolve qualquer conceito determinado e, por-tanto, nenhuma regra objetiva.

Assim, em vista da relação estética do juízo de gosto, Kant de-fine a beleza como “a forma da conformidade a fim de um objetoenquanto é nele percebida sem a representação de um fim” (KANT,1790: B 61).

Por último, a modalidade dos juízos lógicos

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diz respeito apenas ao valor da cópula com referência ao pen-samento em geral. Juízos problemáticos são aqueles em que seadmite a afirmação ou a negação como meramente possível(arbitrária), juízos assertóricos como aqueles em que se a con-sidera efetiva (verdadeira) e juízos apodíticos aqueles em quese a considera como necessária (KANT, 1787: B 100).

Numa nota de pé de página a esta passagem, Kant acrescentaque isso ocorre “como se o pensamento fosse, no primeiro caso,uma função do entendimento, no segundo da capacidade de julgar eno terceiro da razão”.

A partir daí podemos ver claramente que um juizo puro degosto não é problemático e não assinala a beleza como algo mera-mente possível, porque, não envolvendo conceito algum, não podeser uma função exclusiva e própria do entendimento apreender obelo. Também não é assertórico, porque não se esgota num juízosingular, mediante o qual a faculdade de julgar determinaria que obelo é algo dado como uma propriedade efetiva do objeto percebi-do, juízo esse que, referindo a beleza à própria constituição desseobjeto, teria de ser considerado verdadeiro. A modalidade estéticado juízo de gosto é, portanto, a necessidade, com a ressalva de queesse juízo não é apodítico, tal como, por exemplo, um juízo de co-nhecimento submetido à demonstração, pois a necessidade que eleencerra não é nem prática nem teórica, que podem ser determina-das pela razão.

Por conta disso, a necessidade estética não se refere a uma re-lação causal física, determinável a priori por um princípio puro doentendimento enquanto este dá a regra para que, regulativamente,se busque a conexão no tempo de percepções efetivas com outrasempiricamente possíveis, nem assinala uma relação causal da li-berdade, determinável a priori pelo imperativo categórico, que nosobriga a submeter nossa vontade a máximas universalizáveis e aagir motivados pela pura idéia do dever, mas sim uma necessidadesentida e condicionada.

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Ora, o fato de a pretensão do juízo de gosto à necessidade sercondicionada, implica, como condição particular, que esse juízo écorreto (isto é, que a representação do objeto julgado belo sejasubsumida apenas sob um sentimento desinteressado de prazer,decorrente do jogo livre entre imaginação e entendimento) e, comocondição geral, que ele cai sob a regra segundo a qual há uma ne-cessária satisfação para todos que o enunciem, regra essa que dizhaver um princípio subjetivo a priori (o sentido comum, do qualfalaremos mais a frente) que determina o que apraz ou não, dadaaquela pretensão de necessidade.

Em outros termos, falar de necessidade estética é o mesmo quedizer que não se pode provar um juízo de gosto, mas apenas mos-trar que há uma regra por detrás desse juízo segundo a qual al-guém que efetivamente contempla um objeto belo deve sentir pra-zer desinteressado por ele. Tomando o nosso exemplo de juízo degosto, “este pássaro é belo” significa o mesmo que: “Para todo x, sex refletir sobre a forma da representação empírica deste pássaro ese subsumir corretamente essa forma, então x necessariamente sen-tirá prazer por ela, isto é, tomará consciência da sua finalidade emrelação às suas próprias faculdades de conhecimento”.

Do ponto de vista da modalidade, portanto, o belo é, segundoKant, “o que, sem conceito, é conhecido como objeto de uma neces-sária satisfação” (KANT, 1790: B 68).

5. A DEDUÇÃO DOS JUÍZOS PUROS DE GOSTO

A tarefa até aqui consistiu apenas em expor aquelas caracterís-ticas que estão contidas no sentido do juízo de gosto: que tal juízose apresenta sob a forma lógica de um juízo singular e se determinapor um sentimento desinteressado do sujeito; que envolve a pre-tensão à universalidade no que diz respeito a esse sentimento, istoé, que o sentimento perante um objeto belo é o mesmo em cada

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sujeito; que assinala uma finalidade formal do objeto em relação àsfaculdades cognitivas do sujeito; por fim, que a consciência dessafinalidade é sentida pelo sujeito e é uma condição necessária dacontemplação estética. Ela faz parte da “ Analítica do juízo estéti-co”, mais precisamente da “Analítica do belo”, que, como pude-mos ver, é uma teoria das pretensões que estão contidas no sentidodo juízo de gosto ou, se se quiser, uma exposição metafísica do con-ceito de belo, que é um conceito dado a priori.

Cabe agora à “Dedução dos juízos estéticos puros”, como par-te integrante da Analítica, justificar essas pretensões e, desse modo,assegurar a realidade subjetiva daquele conceito, mostrando que oprincipio a priori da faculdade de julgar reflexionante é um princí-pio constitutivo de nossa experiência estética.

Antes de apresentar a dedução dos juízos estéticos, faremosuma breve comparação entre o significado da dedução na “Críticada faculdade de julgar” e a dedução tal como conduzida por Kantna “Crítica da razão pura”. Em primeiro lugar, nesta obra a dedu-ção é de longe mais complexa que a da terceira crítica. Ali, a dedu-ção transcendental é acompanhada de uma dedução metafísica. Pordedução, Kant entende, de um modo geral, a dedução de um con-ceito dado a priori, a qual concerne à prova do que de direito (quidiuris), ou seja, da faculdade de adjudicar uma pretensa significaçãoobjetiva a este conceito (KANT, 1787: B 116).

Ela é metafísica se apenas busca determinar certos conceitospuros como predicados de possíveis juízos sintéticos a priori , oumelhor, como encerrando uma função (unidade da ação) de orde-nar a priori diversas representações sob uma representação comum.Daí que a dedução metafísica desses conceitos nada mais é que aprova de que eles encerram uma possível unidade sintética a prioricomo uma função do entendimento e, portanto, a prova de queprocedimentos sintéticos intuitivos e discursivos são condiçõesuniversais que fazem parte da constituição de nosso aparelhocognitivo, na medida em que tais conceitos (no caso, as categorias e

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os conceitos de tempo e espaço) exprimem essas condições.Já a dedução transcendental justifica o uso das categorias e dos

conceitos de tempo e espaço, assegurando o direito de referirmos apriori estes conceitos a objetos e, por conseguinte, de o juízo resul-tante pressupor-lhes uma significação objetiva. Em outros termos,a dedução transcendental dá uma explicação de como aqueles con-ceitos podem referir-se a priori a objetos, justificando-os como prin-cípios a partir dos quais se pode compreender a possibilidade doconhecimento sintético a priori no domínio apenas dos fenômenos.

Ora, no que diz respeito à dedução dos juízos estéticos, Kantnão distingue entre o transcendental e o metafísico. Creio que issose deve ao fato de que aí o problema nada tem a ver com a possibi-lidade de conhecimento objetivo, pois o conceito de belo não é umconceito de objeto, como as categorias, nem o juízo estético, umjuízo determinante, como os juízos sintéticos a priori teóricos. Deresto, a dedução dos juízos estéticos pode ser tida portranscendental, na medida em que tais juízos são sintéticos a priorie, nessa condição, mantenham a pretensão de universalidade e ne-cessidade tendo por base exclusivamente um sentimento desinte-ressado do sujeito e a relação da finalidade formal do objeto com asfaculdades cognitivas desse sujeito.

Assim como a dedução da primeira crítica, que assegura a rea-lidade objetiva dos conceitos puros do entendimento mostrandoque, mediante a aplicação destes conceitos sob as condições a prioriem que objetos podem ser dados em concordância com os mesmos(esquematismo transcendental), obtém-se um sistema metafísico dejuízos determinantes a priori da estrutura da experiência e seus ob-jetos (princípios puros do entendimento), também a dedução daterceira crítica visa a assegurar a realidade, não objetiva mas subje-tiva, do conceito de belo, mostrando, em primeiro lugar, que o sen-tido de universalidade e necessidade dos juízos de gosto é justifica-do por um principio a priori, em segundo, provando que sem esteprincípio nenhuma experiência estética (o sentimento de prazer ou

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O problema da possibilidade dos juízos reflexionantes estéticos no quadro da filosofia kantiana da razão pura

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desprazer desinteressado perante a forma de um objeto), e portan-to nenhum acordo intersubjetivo sobre o belo, é possível. A dife-rença básica entre as duas deduções é que esta última não conduz,como já salientamos acima, a qualquer sistema doutrinal e, portan-to, não proporciona nenhum conhecimento metafísico acerca dobelo, reduzindo-se a uma mera crítica do uso estético de nossa fa-culdade de julgar reflexionante (cfe. KANT, 1790: A 142/ B 144).

Ora, tal dedução diz respeito às condições subjetivas da facul-dade de julgar em geral e, particularmente, dos juízos de gosto.Ela, porém, não incide diretamente sobre os juízos de gosto – nosentido de que lhes forneceria uma prova –, mas sobre o princípiomediante o qual somente se pode legitimar a pretensão desses juízosà necessidade e à universalidade. Porque não se pode demonstrar,a priori ou empiricamente, que o juízo “A é belo” é verdadeiro, istoé, que o objeto que julgamos esteticamente seja em si belo, masapenas mostrar, via análise, que, se não se referir apenas à finalida-de formal do objeto com relação às faculdade cognitivas do sujeito,enfim, se não mantiver a pretensão à universalidade e necessidadesubjetivas, tal juízo não é um juízo puro de gosto. A exposição dosentido dos juízos de gosto funciona, pois, como uma propedêuticaa sua dedução, a qual se refere, não às condições particulares, masàs condições universais sob as quais somente é possível a reflexãoestética, ou melhor, ao princípio a partir do qual se pode justificaraquela pretensão (pouco importa se tenho uma explicação ou algu-ma razão para dizer que tal objeto é belo: mesmo que seja teorica-mente incorreto, meu juízo é sempre estético quando julgo combase no sentimento de prazer diante da finalidade formal do obje-to, caso em que estou autorizado a exigir a anuência de cada umque se ponha a refletir sobre a forma desse objeto).

A dedução dos juízos de gosto consiste exatamente nisto. Paraque juízos em geral sejam possíveis deve-se pressupor que dadossensíveis, isto é, o múltiplo da intuição, se coadunem com conceitos,e isso significa uma finalidade formal do objeto em relação à harmo-

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nia entre nossas faculdades de conhecimento (o entendimento e a ima-ginação). Assim, dizer que esta forma bela é um exemplar da harmo-nia entre entendimento e imaginação é o mesmo que dizer que, se nãohouvesse harmonia, ou afinação, (Stimmmung) entre estas faculdades,nenhum conhecimento seria possível, de sorte que a finalidade formal(sem fim) no belo pode ser entendida como um princípio de determi-nação, ou, se se quiser, vivificação (Erlebung), das faculdades cognitivasdo sujeito com vistas ao conhecimento em geral (isto é, em relação aum fim qualquer, mas não a um fim específico que possa ser represen-tado por um conceito do entendimento).

De fato, o principio transcendental da finalidade formal nanatureza é um principio a priori da faculdade de julgar reflexionanteque, no uso lógico da mesma, requer fundamentalmente a concor-dância da multiplicidade sensível com a unidade, seja a das nossasoperações e faculdades cognitivas seja a dos conceitos. Tal princí-pio, embora apenas regulativo para a reflexão teórica, é constitutivopara a reflexão estética, cujo processo se conduz da seguinte ma-neira: diante de um objeto efetivamente percebido, reflito sobre aforma8 da representação empírica deste objeto; essa reflexão9 meleva a constatar que aquela forma encerra uma finalidade (a con-formidade a fins) que, uma vez que dela tomo consciência, põe emjogo livre minhas faculdades de conhecimento, isto é, a finalidadeformal manifesta a afinação ou harmonia entre a imaginação e oentendimento, o que significa que só posso ter consciência dessafinalidade formal do objeto percebido pelo fato de aquele jogo livrede minhas faculdades cognitivas provocar em mim um sentimentode prazer, o qual se impõe na afirmação de meu juízo de gosto e,portanto, no momento em que tomo algo como belo. Isso quer di-zer também que a finalidade formal no objeto belo não pode serexpressa em conceitos, mas apenas sentida como efeito do jogo li-vre, isto desinteressado, de nossas faculdades cognitivas.

Assim, o princípio da finalidade formal do objeto é, para o usoestético de nossa faculdade de julgar reflexionante, um princípio

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da afinação entre imaginação e entendimento por ocasião da refle-xão sobre a da forma da representação empírica de um objeto, prin-cípio esse constitutivo de nossa faculdade superior de sentir, namedida em que a pretensão (ínsita nos juízos de gosto puros) àuniversalidade e necessidade só pode ser justificada sob o pressu-posto de um sentido comum (Gemeinsinn), atribuível a todos os se-res humanos. Pois o prazer perante o belo e, portanto, a nossa pró-pria experiência estética nada mais são que a consciência da finali-dade formal do objeto enquanto efeito sensível do jogo livre denossas faculdades de conhecimento, isto é, consciência da causali-dade (por meio desse jogo livre) da forma de um objeto com rela-ção ao estado de contemplação do sujeito para conservá-lo nesteestado. O sentido comum, pois, confere realidade subjetiva àqueleprincípio de afinação entre imaginação e entendimento e, por con-seguinte, dá a regra para o juízo estético.

Por conta disso, uma crítica da faculdade de julgar estética en-quanto faculdade autônoma da alma, isto é, como faculdade desentir superior, não assenta bases para um sistema de metafísica,isto é, um sistema objetivamente válido de juízos sintéticos a priori,tal como ocorre com a crítica de nossas faculdades de conhecer eagir superiores, pois se limita a simplesmente legitimar aquelascaracterísticas estéticas sem as quais é impossível como tal um juízode gosto, esclarecendo, a partir somente do exame das condiçõessubjetivas do uso em geral de nossa faculdade de julgar, como numjuízo que exige “universalidade subjetiva, isto é, aprovação de to-dos”, “a satisfação de cada qual possa ser declarada regra para to-dos os demais” (KANT, Op. cit., B 134-135). Assim, diz Kant,

não há nem uma ciência do belo, senão uma crítica, nem umaciência bela, senão só arte bela, pois no que se refere à pri-meira, deveria determinar-se cientificamente, isto é, com ba-ses de demonstração, se há que ter algo por belo ou não; ojuízo sobre beleza, se pertencesse à ciência, não seria juízoalgum de gosto” (KANT, Op. cit., B 176-177).

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Concluindo, a “facilidade” que, segundo Kant, uma dedução dosjuízos de gosto envolve deve-se exclusivamente ao fato de que comela se alcança apenas a determinação das condições transcendentaissem as quais não é possível um enunciado significativo sobre o belo e,com isso, a justificação de “que temos o direito [berechtigt sind] de su-por universalmente em todo homem as mesmas condições subjetivasda faculdade de julgar que encontramos em nós, e apenas enquantonós temos subsumido corretamente o objeto dado sob essas condi-ções” (KANT, Op. cit.: # 38, B 152). Isso porque a nossa experiênciaestética constituída como um sentido comum pelo jogo livre da imagi-nação e do entendimento (sentido esse que só se manifesta por oca-sião da reflexão sobre a forma da representação empírica de um obje-to, exercida de acordo com o princípio transcendental da faculdade dejulgar reflexionante10 ) é o único domínio no qual pode haver um acor-do intersubjetivo sobre o belo e em vista do qual somente “o prazer oufinalidade subjetiva da representação, para a relação das faculdadesde conhecimento no juízo em geral de um objeto sensível, poderá serexigido com direito a cada um” (KANT, Op. cit. B 151).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

KANT, Immanuel. Kritik der reinen Vernunft (B). Band 3 und 4, Darmstadt:Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1787.

______. Kritik der praktischen Vernunft. Band 6, Darmstadt:Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1788.

______. Kritik der Urteilskraft. Band 8, Darmstadt: WissenschaftlicheBuchgesellschaft, 1790.

______. Logik Jaesche. Band 5, Darmstadt: WissenschaftlicheBuchgesellschaft, 1800.

LOPARIC, Zeljko. A finitude da razão: observações sobre o logocentrismokantiano. In ROHDEN, V. (org.) 200 anos da Crítica da faculdade do juízo.Porto Alegre: Instituto Goethe, 1992. p. 50-64.

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O problema da possibilidade dos juízos reflexionantes estéticos no quadro da filosofia kantiana da razão pura

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OLIVEIRA, Marcos Alberto de. Razão problematizante e investigaçãocientífica na metafísica kantiana da naturezas. 217 f., Dissertação (Mestradoem Filosofia) – Faculdade de Filosofia do Instituto de Filosofia e CiênciasHumanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1995, 2000.

NOTAS1 A sensibilidade (Sinnlichkeit), enquanto capacidade de intuir objetos, é a nossa faculdade

inferior de conhecimento, sendo a imaginação (Einbildungskraft) o próprio entendimento,na medida em que suas operações podem afetar a sensibilidade, ocasião em que se produ-zem intuições puras de objetos.

2 A razão também comporta um emprego teórico, mas, neste caso, só possui princípiosregulativos para o conhecimento da natureza, ocasião em que ela julga, pela interposiçãode um termo médio (silogisticamente), a partir de idéias, isto é, da representação de obje-tos incondicionados, a fim de trazer a multiplicidade de leis do entendimento à unidade deum sistema.

3 Juízo reflexionante é aquele que vai “do particular para o geral” (KANT, 1800: # 81), isto é, dareflexão sobre dados intuitivos para abastecer o entendimento com conceitos empíricos e,assim, organizar a diversidade de leis particulares e contingentes na unidade sistemáticada experiência, cuja estrutura formal é determinada por leis universais e necessárias, isto é,pelos princípios puros do entendimento. Inversamente, juízo determinante é aquele que “vai do geral para o particular” (KANT, Ibidem) para determinar objetos, descendo de concei-tos mais gerais até conceitos subordinados e, em último instância, intuições.

4 Assim, diz Kant, “a crítica da razão pura [vale frisar, de todas as nossas faculdades cognitivassuperiores], que deve, antes de empreender cada sistema, e em relação à possibilidade dosmesmos, estabelecer tudo aquilo, consta ainda de três partes: a crítica do entendimentopuro, a da faculdade de julgar pura e a da razão pura, as quais são chamadas puras porquesão legisladoras a priori” (KANT, 1790: IV, BXXV).

5 Na esfera prática, o sentimento de elevação (em decorrência do respeito à lei moral) é umprazer que também é um efeito da consciência da autonomia de nossas faculdades, nocaso, a vontade (liberdade prática em sentido positivo), isto é, a consciência da determina-ção da faculdade de desejar pela mera representação da lei moral.

6 Como faculdades de conhecimento, o entendimento e a razão possuem princípios a priori,respectivamente, constitutivos e regulativos somente em relação aos fenômenos e consis-tem na própria faculdade de julgar determinante, ao passo que a reflexionante lógica sereduz ao uso do entendimento na busca de conceitos empíricos, a partir da reflexão sobreobjetos dados à percepção, para posteriormente determiná-los por meio de regras.

7 O que se pode chamar de “correta subsunção da representação intuitiva de um objeto” nãoé a subsunção sob um conceito, que é um procedimento estritamente lógico, mas asubsunção “sob uma relação, que se pode sentir, da imaginação e do entendimento, acor-des, reciprocamente, na forma do objeto representado”, que é uma subsunção estética que“pode facilmente errar” (KANT, 1790: B 152).

Recebido em: maio de 2006Aprovado em: junho de 2006

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8 Esta não é nem a forma geométrica, uma “intuição pura”, nem forma no sentido aristotélicode uma determinação conceitual da essência do objeto, mas sim a mera articulação doselementos que constituem a matéria da percepção, ou seja, a estrutura e as múltiplas rela-ções entre as partes e o todo do objeto intuído. Isso explica por que, do ponto de vistaestético, a forma do objeto nunca é pronta e acabada, resultando antes da atividade daimaginação, que se dirige à articulação das partes do objeto no todo de uma intuiçãoempírica e às múltiplas relações que formalmente estão presentes nesta, bem como porque para a reflexão não interessam as propriedades empíricas do objeto, mas sim a suafinalidade, que é uma qualidade puramente relacional. Portanto, nem intuição pura nemsensação desvinculada da forma intuitiva, mas sim o jogo (Spiel) ou estrutura (Gestalt) doobjeto empírico. Assim, uma forma é bela não porque encerra uma perfeição matemáticaou manifeste a essência de um objeto, mas sim porque põe em movimento o processo decomparação entre imaginação e entendimento em vista dessa forma, compatibilizando,dessa maneira, a liberdade e a legalidade que, respectivamente, caracterizam estas facul-dades e são condições subjetivas da possibilidade do conhecimento em geral.

9 Na reflexão estética, comparo a imaginação com o entendimento, verificando se a formaapreendida na intuição empírica cai sob um conceito, não para determiná-la (isto é, semvisar nenhum conceito determinado), mas para ver se ela é conceitualizável. A reflexãoestética exige da imaginação, cuja peculiaridade é ser livre e desregrada, gerar formas semconceitos, mas suficientemente inteligíveis para serem apreendidas nos objetos percebi-dos. Essa liberdade da imaginação estimula o entendimento a encontrar regras para suasformas, cuja multiplicidade intuitiva, extrapolando nossa capacidade de compreensão eresistindo à determinação conceitual, faz com que o entendimento seja levado indefinida-mente à busca de conceitos. Por sua vez, o entendimento, procurando exercer sua legali-dade sobre o sensível mediante a produção de conceitos, estimula a imaginação a fazernovas composições sem regras.

10 Vale lembrar aqui que esse princípio, no uso lógico da faculdade de julgar reflexionante,também está à base da relação de nossas faculdades de conhecimento com o conheci-mento em geral e, portanto, da própria possibilidade de os homens comunicarem entre sisuas representações e juízos.

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Imprecações cotidianas: sobre aneurastenia do trágico

Roberto Sávio Rosa

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Resumée. L’essai suggère examinerun croisement d’interrogationsautour du tragique dans l’âge de lacommunication de masse.

Mots clé: tragique – discours –existence - mort

Resumo. O ensaio sugere experi-mentar um cruzamento de interro-gações em torno do trágico na era dacomunicação de massa.

Palavras-chave: trágico - discurso -existência - morte

Mestre em Filosofia pela Universidade Federal da Paraíba, ProfessorAssistente do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas da

Universidade Estadual de Santa Cruz. E-mail: sá[email protected]

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ROSA, Roberto Sávio

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Ah, medo tenho não é de ver morte, mas de ver nascimento.João Guimarães Rosa

1. QUE COISA OUSAMOS PROFERIR COM “PENSAR”, “DIZER”E “CONCEBER” O TRÁGICO?

Pode parecer estranho propor uma discussão sobre o trágico,ao conceber, como premissa, que a discussão abarcará a impossibi-lidade. Entretanto, se nos permitirmos uma acuidade distanciadadas formas consumadas do palimpsesto, descobriremos que podeestar contida, nesta impossibilidade, a metodologia empregada paraafrontar a questão. Pode parecer, inclusive, heresia, mas estamossintonizados com a idéia de que, em todo escrito, encontra-se umdesejo latente de leitura. Quem escreve quer ser lido! Nos escritosreferentes ao trágico, o que predomina é o falar por analogia. Nasfalas, aquele que fala, porta estranhamento e fascínio. O fascinanteda fala atrai e, em sua atração, trai a confiança na fala. A suspeita,suscitada e proliferada pelo modo de falar fascinante, indica a difi-culdade exigida em abordagens de assunto tão vertiginoso. O trá-gico não permite a fala específica, a palavra exata (discurso), masfalas, palavras, discursos que, atraentes e fascinantes, geram sus-peita e desconfiança.

Modos de falar determinam a região do falante, revelam o seudialeto. Um dialeto é considerado instrumento seguro nas falas daregião, mas se encontra, a ela, circunscrito. Modos de falar teoréticossão dialetos elaborados que encontram e determinam horizontes.Recorrer a dialetos significa avançar sobre as especificidades de cadaregião e, com essas, ampliar horizontes. Entendemos dialeto as ex-pressões correntes e determinantes das regiões que visitaremos soba ótica histórica, filológica, mitológica e filosófica. Acreditamos que,em conjunto, regiões e dialetos erigem possibilidades interpretativassobre a questão do trágico. Entretanto, crenças são apenas crenças…!

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Imprecações cotidianas: sobre a neurastenia do trágico

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Do promontório do dialeto histórico, as abordagens ereferimentos ampliam o trabalho de datar, seja o nascimento seja amorte da tragédia e dos trágicos, combinando exegese política adados biográficos; com a lente inclinada do dialeto filológico, semultiplicam as noções de sentença, interpostas no sentido e no sig-nificado dos nomes das personagens componentes das peças trági-cas, chamando em auxílio às declinações verbais e morfológicas.Um trágico concebido como necessidade; albergados pelo manto dodialeto mitológico encontramos um universo tão rico e variado dedivindades que, praticamente seria impossível fugir ao aspecto trá-gico da vida (neste momento, concebido como ação de represáliadesencadeada por qualquer deus, pelo fato de não receber o reco-nhecimento devido). A falta de cuidado com as divindades seráconsiderada a promotora dos infortúnios. O que importa evidenci-ar, neste momento, é que, independente do ponto de vista escolhi-do (regiões, dialetos), os discursos e falas sobre o trágico tendem àuniformidade. Uniformidade no sentido de acreditar viável aexteriorização elaborada de algo tão incômodo.

Mas é de modo diverso que encontramos análisesinterpretativas do trágico (filosofia do trágico). Consagraremos aestas inclinações e perspectivas um acanhado comentário, com he-sitação e precaução, visto que estamos cientes dos limites que nosoprimem. Principiamos esclarecendo o sentido das expressões queutilizaremos em nosso discurso. Adestrados, acreditamos que orecurso permite aproximar o leitor dos propósitos do expositor, mas,sinceramente, continuamos mergulhados no manancial cético a res-peito da sua eficácia. Toda vez que realizamos uma atividade teóri-ca, estabelecemos relações formais com os procedimentos (projeta-mos, supomos, objetivamos e determinamos a finalidade, o seu porquê (?)). Empreender significa instaurar e iniciar um caminho, umpercurso, composto de indicações significativas que auxiliem nacompreensão do argumento desenvolvido. Indícios ou signos, porsi só, não concedem a prerrogativa da revelação de algo inacessí-

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vel, muito menos de alguma verdade que não veio à tona!Em nossa obstinação discursiva e, sobretudo, em nossa inca-

pacidade de alcançá-las (a revelação e a verdade discursiva) pro-duzimos novos amontoados de signos-indícios (discursos) que aca-bam sofrendo o vaticínio dos discursos precedentes e “continua-mos imersos no acontecer da ignorância” (SCHULLER, 2001, p. 13).A produção insaciável de discursos pode significar, inclusive, que,de algum modo, transpiramos e exalamos a insuficiência das nos-sas exposições, originada no confronto estabelecido com os segre-dos que afrontamos. O império discursivo catártico seria fundantee responsável pela propagação da crença que, no dito, se encontraincluído e superado o descrito: “falar, calar, idêntico sofrer” (ES-QUILO, 1997, p. 149).

Quando cunhamos e proferimos expressões como pensar o trá-gico, corroboramos, também, sem intenção, a tendência positiva deo trágico ser, desde sempre, um acontecimento evidente, dado. Tra-tamos o argumento com inspiração e dedicação idêntica aos técni-cos de laboratórios que manipulam experimentos, costumeiramente,demonstrando evidência e intimidade. Tal proximidade com a ma-nipulação assemelha-se às fábulas. Exteriorizar digressões sobre oassunto não caracteriza nem dispõe elementos que ajudem na com-preensão e apropriação do trágico como próximo, como passívelde convívio, somente insinua que tais digressões exigem necessi-dade de referimento. Em outras palavras: podemos considerar-nosatentos e sensíveis para auscultar os murmúrios do imperscrutável?Somos capazes de realizar análises sem paradigmas? Para tanto,necessitaríamos educar o ouvido! Tal expressão, enigmática e alu-siva, promove tanto a cisão como a imprecisão da tarefa que se estápor realizar!

Não obstante, uma atenção acurada, os indícios, inerentes àsvicissitudes mundanas, indicam uma banalização extrema do ar-gumento tratado, delegando ao espanto o lugar comum. Nada maiscongrega o peso da impossibilidade manifesta em situações limi-

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Imprecações cotidianas: sobre a neurastenia do trágico

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tes, nem mesmo, o anúncio da morte de Deus, de Nietzsche. Comonão haver Deus? Sem Deus há temor, medo. Com Deus existindo,tudo tem esperança: o mundo se resolve. Sem Deus é tudo contra oacaso. Sem Deus não temos permissão de coisa alguma! Não sepode justificar tudo discursivamente!

Em uma época batizada como pós-moderna, caracterizada pelacuriosidade latente do supérfluo, que pretere o conteúdo em fun-ção da velocidade, o trágico perde força. Perdendo força, ganha emnostalgia. São ecos do passado que ressurgem como mensagenscifradas na comunicação de massa. O trágico começa a receber, demodo irônico, mutação valorativa a partir de acontecimentos quepotencializam as características do sofrimento, tais como:

a) Perdas irreparáveis (um pouco cínica e vaga esta caracterís-tica, em função do crescimento de ações movidas contra oLeviatã, a fim de exigir restituição financeira por tais perdas(ir)reparáveis!);

b) Envolvimento com morte (em geral de humanos, visto que,dificilmente encontramos comoção de massa pela morte di-ária de milhares de aves, suínos e bovinos que nos permi-tem alimentação e sustento; ou ainda, para fazer coro com oeco-lobby, pela morte de milhares de árvores abatidas…);

c) Ações imprevistas de ordem natural (aqui, o termo assume osignificado de acontecimento que escapa ao pré-visível, comose houvesse capacidade para tanto (!/?)), manifestações emsituações excepcionais e, em geral, catastróficas (maremoto,tempestades, tufões, avalanches, deslizamentos etc…).

Em momentos de tensão como este nos vem em auxílio o binó-culo do promontório histórico, que está mais para fardo do quepluma. Não podemos sustentar seguramente que aprendemos edesenvolvemos a arte de auscultar os rumorosos lamentos doimperscrutável! Assim, uma questão problemática restará sem

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resposta, visto que a experiência e a sensibilidade aos murmúrios doimperscrutável, bem como a exteriorização desta experiência (a con-solidação da tragédia como gênero literário, portanto, referimento atoda tradição recorrente) ter sido manifesta. A honra e o mérito des-sa auscultação privilegiada são gregos, constituindo-se, quer queira-mos ou não, como paradigma a toda análise do trágico.

Pensar o trágico nestas condições, a partir de um referimento,significa pensar um evento irreproduzível? Se considerarmos oacontecimento (nascimento do gênero literário) como a consolida-ção eficiente e completa da mensagem que insinua o nosso lugarno mundo, sim! Porém, se visualizarmos o trágico como condiçãohumana, não! Fala-se tanto de acontecimento quanto de condição,mas convém dizer que acontecimento é este. Trata-se de compre-ender que não podemos, simplesmente, exercitar a leitura das pe-ças trágicas e transportar ipsis litteris, aos nossos eventos, o mesmosenso atribuído quando do surgimento das mesmas. Reside aquiuma impossibilidade

Dizer que os argumentos desenvolvidos nas peças trágicas, taiscomo o matricídio, o parricídio, o incesto, são temas recorrentesdas crônicas cotidianas e dos telejornais, não pré-supõe, nem mes-mo concede, esclarecimento ao dito. Dizer que nas peças trágicassão apresentadas as premissas dos códigos de conduta da socieda-de moderna, como disse Nietzsche em seu Agone Omerico, poderáfazer sentido se consentirmos valor a determinado argumento, asaber, que o intercalar dos eventos não ocorre de modo aleatório, eque a soma progressiva e linear dos mesmos constitui aquilo quecaracterizamos e conhecemos como história. Para a enunciação dejuízos abissais necessita-se de argumentos plausíveis. Neste pontopreferimos a suspensão!

Nosso propósito, quando evidenciamos alguns traçosdiscursivos sobre o trágico, não reside, ao menos por enquanto, naanálise meticulosa dos mesmos, mas se dedica a constatar que, in-dependente da força de qualquer discurso, todos, sem exceção, cor-

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roboram o esplendor do olhar da Górgona. O trágico (com) porta amorte nos olhos! Sobre o trágico os discursos nunca são os discur-sos! O nosso falatório prossegue em tentativas frustradas deenclausurar nas malhas da sintaxe o que sempre revelou hostilida-de ao fato de ser confinado. Se nos fosse concedida a possibilidadede flagrar o coração do indizível, seria permitido proferir a últimapalavra, sentenciando, assim, todo o falar. O trágico é extremamentediverso da imagem de desolação e compaixão replicada pelos massmedia. Aquilo que encanta nos olhos da Górgona é o não visto (onão poder ver, fixar, sustentar com os olhos); o que encanta no trá-gico é o ausente. O trágico faz ver, mas não é visto. Falamos doinefável? Mas como concebê-lo?

Por concepção indicamos seja a capacidade de formular, ima-ginar e projetar, seja aquela de compreender partindo de uma de-terminada geração interna. Neste sentido o trágico não seria vistocomo um produto humano, mas como condição humana, comoapreensão de determinada situação, na qual sempre estamos. Sob oponto de vista do produto concebido, encontramos a tragédia que,como forma literária (estética) foi e é capaz de transmitir com pre-cisão a situação na qual sempre estamos. Sob o ponto de vista dacompreensão de uma determinada experiência, isto é, da condiçãohumana e do nosso lugar no mundo, o trágico não pode ser con-cebido. Somente podem ser concebidos os discursos representati-vos que fazemos para recuperar esta experiência. Discursos sãointerpretações e “toda e qualquer interpretação do trágico é insu-ficiente” (JASPERS, 2000, p. 28).

2. PODE-SE FALAR DE UMA REALIDADE TRÁGICA?

Todo palavrear é impreciso, mas toda palavra atrai. Todopalavrear pode ser preciso, mas toda palavra trai! Raramente, o dis-curso não deforma a precisão da fala. Atos de fala parturejam difi-

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culdades interpretativas. Discursos, independente da abrangênciaque suscitam e exprimem, sofrem a impostação do limite. Discur-sos partilham os lampejos da luminosidade esclarecedora com asminúcias sombrias da obtusidade. Mas que dizer, então, dos dis-cursos que tendem a expressões conflitantes em filosofia? Geral-mente, em dicionários filosóficos, o conceito de realismo surge vin-culado à consideração do mundo externo como existente em si, in-dependente da atividade cognoscitiva. A realidade pode ser consi-derada como tudo o que existe, o mundo, não exclusivamenteconceitual ou lingüístico.

A definição não deve ser tomada destituída de seu contexto eassume relevância quando, na história da metafísica, se faz neces-sário estabelecer conceitualmente a natureza dos universais, herançado medievo. É tema corrente que a definição de realidade encontrasentido na discussão filosófica acerca do conhecimento. O conheci-mento, aqui referido, é diverso daquele indagado com relação aotrágico. Sabedoria trágica e conhecimento filosófico diferem, des-toam! Sabedoria e conhecimento amaldiçoam, a seu modo, estemundo. Discursos trágicos são dúbios, discursos filosóficos são dis-tintos! Discursos trágicos proferem sentenças emotivas, enigmáti-cas, promovem excessos, ultrapassam limites; discursos filosóficosproferem sentenças frias, racionais, exigem disciplina, esclarecem!

Isto que é considerado entorno e indicado como realidade en-contra ressonância e significado no perceptivo. Percepções, media-das por sensações, exibem caráter prospectivo. Perspectiva é expo-sição e ilustração a partir de um determinado olhar, de um deter-minado panorama e abrange possibilidades. O conjunto - já sob ainfluência do prospectivo sobre o qual se debruça o olhar capricho-so - assume destaque e relevo na sujeição. O que se encontra sujei-tado adquire interesse (teorético) a partir da percepção de um tipo,especificamente, do tipo humano. Neste sentido, é possível afir-mar que a realidade é individual e temporária? Que a realidade é oque parece a cada um na medida em que a ele interessa? Que cada

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um é o juiz de suas próprias impressões? Mesmo carecendo de pro-fundidade, a exposição principiada objetiva atribuir à realidadecaracterísticas antropomórficas. A tese remonta a Protágoras e rece-be tratamento diferenciado na interpretação heideggeriana. ParaHeidegger, na expressão sofisticada, se faz presente a obtusidade,principalmente, pelo fato de Protágoras ser traduzido e interpreta-do sob a influência do pensamento moderno, o que promove a suainserção na história da metafísica. Como procedimento, no sentidode desfazer o mal-estar da interpretação, propõe conveniente, umatradução em sintonia com o pensamento grego, não se furtando deafirmar que, em toda tradução, já está contida uma interpretação,perspectiva.

A interpretação heideggeriana sugere que a realidade mencio-nada no dito de Protágoras não corresponde ao modo concebidopela tese Cartesiana moderna. Em Protágoras, a realidade deve serconcebida como presença e sua verdade essencial como(des)encobrimento, diferente, portanto, do modo de conceber a rea-lidade a partir de um “eu” que, enquanto sujeito, representa obje-tos. O homem de Protágoras é, “respectivamente, a medida da pre-sença e da revelação mediante a moderação e limitação ao abertomais próximo, sem negar o oculto mais distante, sem apropriar-se(de algo que não lhe pertence) de uma decisão sobre o seu ser pre-sente ou faltante” (HEIDEGGER, 2003, p. 160). Com isso, a possibi-lidade de considerar-se homem e, em decorrência, padrão de julga-mento, somente é possível, segundo Heidegger, fundamentado napresença daquilo que, presente, se (des)cobre; a realidade é presen-ça; se diz verdadeiro aquilo que se mostra como (des)coberto e, seconsidera medida, padrão de julgamento, ao que modera o proces-so de (des)encobrimento.

A interpretação instiga a (re)visitar os pensadores originários!Originário vem a ser considerado o laborar destituído de fórmulas,um principiar intrigante e irrequieto que arranca o véu nebulosodo dado e projeta luminosidade no crescente desejo pelo investiga-

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do. Originário não deve ser considerado a manifestação do pensa-do e intuído, mas sim o passo dado na sua direção! Neste sentidonão é intenção, neste momento, travar discussão sobre a eficácia ouineficácia da interpretação, haja vista não considerar excessivasquestões advindas e suscitadas pelos defensores da perspectivainterpretante. Também não é intenção inserir teses epistemológicasfundamentadas num ceticismo perspectivista, ou relativista. Razões,onde quer que estejam, permitem crer e pensar que, sem a perspec-tiva antropomórfica desapareceria, inclusive, a totalidade das ques-tões afrontadas. Todo discurso sobre a realidade, a respeito do efe-tivo circundante, que se pauta sobre o que é percebido e mediadopelas sensações, engendrando possibilidades, ausenta! Discursosproferidos insinuam retórica. Se considerada a capacidade retórica(tékne) imbricada em cada discurso, pode-se, inclusive, identificara realidade enquanto artefato persuasivo. O real estaria em jogo!

Uma vez manifestado o gosto pelo verdadeiro no falso, é pos-sível falar de uma realidade trágica? Se a incumbência de instituirsentido e significado ao mundo circundante revela-se atributo ex-clusivo do perspectivar humano, então é lícito falar de realidadetrágica. Mensurar, mediante perspectiva própria, não significa de-dicar ao mensurado um valor imprescindível, nem mesmo reco-nhecer sua grandeza e importância. Mensurar, mediante perspecti-va própria, significa, antes de tudo, decretar um valor exacerbadotanto à perspectiva quanto ao que mensura! O excesso de valoratribuído ao mensurador do mundo circundante, supostamente,lhe delega funções que excedem suas forças prescrevendo um con-flito insolúvel, portanto, trágico.

Realidade trágica é considerada a atribulação de papéis im-prescindíveis à existência! É saber-se inserido e inserção no emara-nhado circunstancial escorregadio que escapa, que se pode captare apreender somente em lampejos e traços, perspectivas: realidadetrágica é tudo certo, tudo incerto! Realidade trágica é saber que orecurso fundamental recorrente, em cada modo de estar e atuar no

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perspectivo, reside no primado. A primazia permite ao homem aciência daquilo que ele próprio é; o privilégio humano, apocalíptico,é conviver com a ciência da finitude; tudo principia terminado. So-mente o homem, ciente da sua finitude, conhece a si mesmo! Dessemodo, como contemporizar e harmonizar finitude a projetos co-envoltos pela realidade artefática do possível? Deve-se atribuir va-lor a esta mesma realidade? Em um colóquio com Daniel Diné so-bre o “irrevogável”, respondendo a esta e a outras questões,Jankélévitch, examina o paradoxo. Quando devotamos intensida-de na realização de um projeto, desprendemos energia. Isto nosaproxima cada vez mais da morte. O homem deseja duplamente:deseja tanto a intensidade da vida quanto a imortalidade, o quechega a ser impensável e, até mesmo, absurdo.

No conflitante jogo do blasfemar valorativo (interpretante)acrescentam-se caracteres à realidade que alterna as perspectivasagradáveis da ambrosia com as perspectivas amargas do rícino. “Omundo é um cárcere perpétuo. O diabo que o carregue!” Caracteri-zar a realidade circundante como um conjunto harmonicamenteconstituído (agradável) tende a fazer sentido (a determinadas in-terpretações – sistemas -perspectivas) quando, neste conjunto, nãose encontram incluídos os atributos improferíveis e inomináveisda sua contradição. Simetria e contrariedade são incompatíveis?Discursos nada mais são do que tentativas de reconciliação. For-mulada por Platão, a definição de unidade orgânica permaneceinalterada na tradição estética, subjugada à artimanha metafísicado princípio único. Até então foi possível considerar harmônicotudo aquilo que tende para a simetria, tanto na forma quanto nosom, nas cores, nas... (?)! Entretanto, é importante recordar que tam-bém a noção de simetria é perspectiva discursiva!

A harmonia desejada, decorrente do perspectivar simétrico, fazsua estréia mundana não como condição já sempre presente, mascomo situação obtida a partir da luta, da imposição reguladora, daidéia de ordem contraposta à idéia de caos. Considera-se harmoni-

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oso o mundo ordenado, regulado, luminoso, normatizado, a saber,conhecido! Considera-se caótico o mundo disperso, disforme, cin-za, desconhecido! Harmonizar compreende a inserção do quesitodo mensurável e conhecido trafegando no sentido da exclusão, poisveta a co-habitação com acontecimentos indissociáveis. Salvo me-lhor juízo, a manifestação contida na presença de eventos irrecon-ciliáveis decreta o falimento da empáfia ordenadora calando o des-tempero da soberba. Erros e acertos comungam da equivalência! Nestesentido, por que preterir algo em função do seu igual? Discursostrágicos proferidos sobre a realidade apresentam constituiçãoabrangente. Em seu proferimento, os incompatíveis se tornam com-plementares, visto que a dissonância é tida como a mais profundaforma de consonância! Detalhes discursivos! Discursos trágicos tam-bém harmonizam o mundo!

Com a dificuldade manifesta, a queda parece inevitável! O quedestoa é a retumbante sonoridade trágica, segundo a qual, oinsucesso é gerador de aprendizagem! Trágico, neste sentido, é avitória na derrota! Ao projetar e valorar o que está por vir, travestem-se os temores com máscaras do sucedido. Medo do que pode haversempre e ainda não há! O perspectivar humano, ao despertar paraforças excedentes, permite a inclusão de acontecimentos que apa-recem destituídos de mensurabilidade e prognóstico instaurandoum distanciamento próximo, justificado na impossibilidade de es-tabelecer relações e influenciar suas vontades. Proximidade, poisse encontra aquém da solução; distância, pois ultrapassa, em mui-to, os limites da crença. Determinada configuração visualiza a rea-lidade trágica dissociada e isenta de toda reconciliação discursiva(não se pode estabelecer um tratado ético com o Etna (que habitacada instante) determinando o período e a potência das suas erup-ções, independentemente do acúmulo de informações produzidaspelos vulcanólogos!); tanto ao homem que se basta, quanto ao ho-mem ciente da falta, discursos serão sempre insuficientes. Tudo temseus mistérios! O viver é diverso do compreender. Inadequação e

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imprecisão são atributos estéticos da máscara que empunhamos. Avida disfarça! A vida inventa!

Sob a perspectiva da interação, o homem sente que o seumodo de estar e de se relacionar com a realidade é diverso do detodos os demais e se pergunta: por que somos tal como somos? Nomundo circundante o homem faria parte de uma exceção? Se ado-tarmos esta linha de raciocínio estaremos, novamente, em sintoniacom interpretações que visualizam a realidade enquanto um con-junto de regras, com princípio, meio e fim, afastando o trágico doseu horizonte (trágico entendido aqui como aquilo que pode suce-der). Mas, se permitirmos chamar em nosso auxílio o raciocínio deMontaigne, a abordagem da compossibilidade da regra (realidadeordenada) e da exceção (trágico) se torna clara:

1) Uma lei, se lei existe, não deve conhecer nenhuma exce-ção: senão ela seria lei imaginária.2) Ora, todas as leis recenseadas até agora apresentam exce-ções: todas sem nenhuma exceção.3) Segue-se daí que nenhuma lei existe.4) Logo, tudo o que existe, não estando submetido a nenhu-ma lei se não de ordem imaginária, tem um caráter excepci-onal: o reino do que existe é reino de exceção.

O trágico não pode ser considerado a intromissão abusiva daexceção no reino da regra. Em uma suposta realidade regulada,estabelecida sobre limites, deveria ser considerado trágico o núme-ro limitado de portas. O trágico, neste sentido, recebe a força dadesignação de qualquer coisa que se encontra aquém e além dapossibilidade, mas que, ao mesmo tempo, faz parte e reforça estapossibilidade! Realidade trágica pode ser dita e considerada a cons-ciência da própria e de qualquer condição. Realidade trágica é sa-ber-se imerso num conflito insolúvel destituído de significado! Épartilhar da consciência constante de uma morte possível! É convi-ver consciente “do inteiro vir-a-ser, com a destruição universal detudo isto que nasce” (JASPERS, 2003, p. 13) e ponderar sobre toda

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proposta de cuidado correspondente a esta sabedoria. Realidadetrágica é condividir as facetas de um mundo perspectivado! É sa-ber que já se encontra sentenciado o dia do (des)existir! É admitirciência de que a vida da gente vai em erros, como um relato sem pénem cabeça, mas que uma tal vida é possível! É manifestar, aosgritos, que, apesar da consciência do decreto, a espera silenciosa érecusada e, com os riscos inventados do discurso, afrontamos, for-jamos veredas. Discurso é ferramenta, utensílio! É instrumento queauxilia na lida com o estorvo. É aquilo que instaura e permite arelação entre o homem e sua condição.

Discursos são falas para purgar aflitos, para aliviar a idéia dagente de perturbações desconformes. Geralmente, discursos pri-mam por difundir e ampliar poderes. Discursos tanto podem pos-suir poder explicativo e organizativo quanto terapêutico. Discur-sos religiosos (“especialistas” em questões de gênese, de princípio)trabalham no sentido de comentar e interpretar a dificuldade e aobscuridade da condição humana. Na exposição de razões e moti-vos, indicam, como causa para tamanho desconforto, a consciênciatraumática do rompimento primordial transfigurado na afrontacometida ao Deus supremo, especificamente, na quebra de confi-ança estabelecida entre homem e Deus. Com o discurso religioso,fundante de gênese, advém a duplicidade limítrofe que torna fati-gante todo existir: traição e culpa! Devido à mácula ignominiosa datraição, recaiu sobre o humano a culpa abjeta tornando-o sujeito aotormento, à angústia, à fadiga, ao castigo. Discursos religiosos es-tabelecem a culpa como horizonte. Horizonte é palavrahermenêutica com característica própria e não deve ser tomadacomo metáfora de princípio, mas sim como alargamento de com-preensão. Como hermenêutica, ela recai no espaço reflexivo de con-fronto e de aproximação com a experiência histórica. O culpadoaceita de modo incondicional as penalidades e todo sofrimento emvida, projetando a superação na finitude.

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No entanto, não é com ilhas do fim do mundo nem com ma-ravilhas de áleas de palmares inexistentes que se cura aerrância nostálgica das almas que se sentem exiladas dos jar-dins paradisíacos do nonato (MELO; SOUZA, 2001, p. 128).

Discursos religiosos terminam por transferir o desenlace daação mundana para um plano superior (Al di là - Dio ex macchina).Discursos religiosos promovem a justificação!

Não é de modo diverso que atuam os que professam o discur-so que, em vista de senso e finalidade (telos), coordenam, em con-junto, os diversos elementos incompatíveis. Albergados na meia-água da esperança - (leia-se tèkne) -, na crença do homem que sebasta, promovem a venda da realidade subjugada, passível de bemestar, em que a dissonância seja remediável a partir do rigorosotrabalho dedicado ao conhecimento e aos frutos desse decorrente:os instrumentos.

Para as anomalias sistêmicas in natura fabricam-se mecanis-mos e ferramentas que adentram a cena, geralmente, após osurgimento do evento supra-referido: é próprio da decepção suce-der a esperança! Para as contradições residentes na máquina corpóreaprofetizam a reparação e a substituição das peças (recall). Prosse-gue latente e inarredável o culto ao ressuscitador de mortos! Deve-se agradecer e atentar para esse fanatismo, pois consegue, em fun-ção da quantidade de fármacos que disponibiliza e da propagandaque pulveriza, imprimir longevidade às belas carcaças! No ludibri-ar cotidiano, sofremos, cada vez mais, a esperança de não morrer!Tudo é permitido em função do prazo de validade das mesmas. Opreceito quantitativo pretere o qualitativo. Discurso sólido é dis-curso medicinal. Aos medi-cínicos, atuantes neste inchado tempodo desespero, poder e primazia, devoção e culto.

Um tempo do desespero que dura um instantezinho enorme,que não credita mais tanta força ao argumento da culpa, irremedi-ável e infinita, prévia à morte e que mete em obra o projeto de con-ferir ao existir fático um valor, mesmo que ele não tenha. Uma ilu-

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são elaborada que, independente da maior descoberta dos últimos tem-pos da última semana (tèkne), sobrevive ciente do ceifar cotidiano,geralmente, no papel de trigo e não no de foice! Não obstante o usoda palavra ilusão, faz-se necessário abrir um parêntese para mani-festar posição contrária à institucionalização da guerra fratricidaentre ilusão e verdade. É mais do que evidente a capacidade tera-pêutica do ilusório. Verdade é ilusão fundamentada! Aquele quefala a verdade mente pouco!

Resta ainda a análise do discurso terapêutico. Este poderá serconfundido, num primeiro momento, com os discursos que já rece-beram tratamento anterior, visto que todos apresentam, em grausdiferenciados, alguma terapia específica:

a) Terapêutica sutil da promessa além mundo (mesmo repro-duzindo o gesto radical de Édipo, é impossível não ver a prolifera-ção, cada vez maior, de credos e cruzes que tomam as cidades compromessas que vão desde a retirada de encostos ao gozo eterno dafelicidade); Para não ver coisas assim, jogo meus olhos fora! (ROSA,1978, p. 434).

b) Terapêutica pragmática na invenção e fabricação de instru-mentos que permitem a pré-visão dos eventos (como não atentarpara o interesse demonstrado no anúncio dos vates contemporâne-os - os homens do tempo!).

c) Terapêutica estética empregada na substituição e reposiçãode peças obsoletas (como esquecer o ventriloquismo midiático dopré-núncio das super-colas, que possibilitam aderência privilegiadaàs dentaduras?) Estética do trágico! Com ou sem cola o fato é porta-dor de evidência: em idade avançada perdemos os dentes, e tal per-da sinaliza a chegada inconfundível da velhice e, com ela, o inverno.

Fala-se de terapêutico, porque ainda prevalece a estúpida ecomplacente dicotomia de traição e culpa. Porque, também aqui,se fala através do olhar da necessidade, da condição que requercuidado e avizinhamento (proximidade). Não é permitido falar deoutro modo. Ainda não é possível falar através do olhar que exige

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superação e erradicação dessa propriedade. O humano é aquilo queé. O tipo humano está ciente, querendo ou não, gostando ou não,daquilo que è. Dizer humano significa dizer próprio do homem ehomem é coisa que treme! O saber inflexível exige a tarefa inflexível:agüentar o existir. Avassaladora, tal consciência, ao mesmo tempoem que estimula, amedronta. “Cada hora, de cada dia, a gente apren-de uma qualidade nova de medo” (ROSA, 1988, p. 72). Se de algummodo é imputada à tarefa de agüentar o existir, então não se devemais considerá-lo como força ou fragilidade, mas simplesmente comoexigência condicional, como realidade! Realidade que não está noprincípio nem no fim, mas que se dispõe no meio da travessia.

3. PODE-SE FALAR DE UMA CONSCIÊNCIA TRÁGICA?

O envolvimento com questões dessa envergadura exige umcuidado redobrado. Para situar a questão, convém estabelecer con-dições discursivas e interpretativas que propiciem o destaque e aproximidade exigida entre a consciência e a realidade trágica, vistoque são muitos os pontos de convergência e entrelaçamento entreas mesmas: trama que rende e gera confusão. Para navegar no uni-verso da consciência trágica faz-se necessário um meio (uma tèkne),considerado aqui como modo apto à obtenção de determinado fim,e que se encontra contido na idéia genérica de arte. A escolha dodiscurso requer ilustração. Ilustração pode significar a introduçãode imagens em um texto com finalidade explicativa. Especificamen-te, consoante a consciência trágica, trata-se de inserir imagensconceituais que permitirão, por analogia, principiar e desenvolverum percurso discursivo.

Considera-se discurso o fato de discorrer, expor, raciocinar, ar-gumentar sobre algo. Todo discurso, ao dizer e no dizer, indica.Tudo aquilo que é dito ou tudo aquilo que é indicado, no discurso,não é, na completude, verdadeiro. Discurso nenhum promove ex-

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posição sem prejuízo da idéia, ao mesmo tempo em que engana odiscurso que oferece pronto o objeto da investigação (SCHULLER,2001, p. 32). Em altas idéias, toda navegação é deficiente! Entre opensamento e o ato (discursivo) dá-se um abissal hi-ato! O mesmose pode dizer da realidade e da consciência trágica: entre elas resi-de um abismo. Acreditar que a consciência trágica seja a mola pro-pulsora do salto que permite ultrapassar o abismo, ou seja, quepermite a liberação da realidade trágica, não significa acreditar queestá encerrado (superado) o processo de relação e apreensão destamesma realidade. A consciência trágica, uma vez atingida, não setorna patrimônio pleno, sempre presente, de uma cultura. Assim,se a realidade trágica é fatum, a consciência trágica não é!

Em situações limites o hábito faz recorrer ao discurso históri-co. Sabemos que o hábito não faz o monge! Discurso histórico sãovelhices de teia armadas de tempo em tempo por aranhas grandes!No carcomido hábito os sinais se alternam. No esfacelado véu fatalque julgo ver tramam-se possibilidades, sentido e significados. A teiapresentificada, outrora imobilizadora de braços, paralisa o agir.Nesse emaranhado de furos e remendos destacam-se epocalidadesque instituíram chaves interpretativas de sua condição e de suarelação com a realidade. São os presságios da consciência trági-ca, sua manifestação e, principalmente, o seu grau decompreensibilidade! Remonta ao épico o lampejo primeiro detais presságios. Na épica, o homem não se sente autor de sua pró-pria decisão. Toda escolha determinante encontra respaldo na rela-ção de subserviência incondicional às forças que regem o mundo,uma vez que a designação daquilo que deve ou não suceder estádistante da possibilidade e vontade humanas.

A difusão da crença pelo mito-religioso ou religião-mitològica,na luta ininterrupta entre demônios que co-habitam e regem a ação,termina favorecendo a instabilidade. Organizativamente os eventossão divididos em regiões; na coexistência entrelaçam-se a região di-vina e a humana. Ações são executadas paralelamente, sendo que

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toda ação tramada e decidida na esfera divina, repercute na esferahumana. A realidade dos homens encontra-se sujeitada e determina-da pelo jogo de forças demoníacas, e o homem, um instrumento en-tre os instrumentos. A realidade é destituída de senso humano, masplena de sentido divino. Na finalidade das ações divinas, alberga-seo sentido da ação humana. Na ação não deliberada do homem estácontida a ação determinante e deliberada do deus.

Este paradigma figurado é pedra fundamental lançada na lon-ga història da consciência trágica, e seu fabro engenhoso é conside-rado Homero. O ofìcio de Homero é fabricar imagens. Mas comoapreender o sentido instaurado na sua criação artesanal? A partirde leitura específica poderíamos compreender o ato homèrico comopòiesis: produção, fabricação e criação. Um produzir que dá for-ma, um fabricar que engendra, uma criação que organiza, ordena eistaura uma nova realidade (NUNES, 2003, p. 20). Criação, emHomero, não deveria ser comprendida no sentido hebraico, ex niihil,de algo fabricado e produzido a partir do nada, mas sim deveria serconsiderada a partir da concepção grega, que é a de fabricar a par-tir da matéria bruta pré-existente. A realidade, como a entendiamos gregos, com suas múltiplas formas particulares, seria um atopoético. A responsabilidade de tal ato é atribuída, segundo o mitoplatônico, à inteligência divina, especificamente, ao Demiurgo, há-bil artífice, moderador que contempla as formas ideais e fabricaréplicas com a matéria bruta. Neste sentido, o artifício demiúrgicoé produção artesanal, e a realidade, enquanto produto é artefato.

Na representação das ações èpicas, Homero instauraria ummundo alijado de vontade e consciência humanas. Um mundo ce-nário, palco de atuação das múltiplas forças que o dominam. Ocombate entre homens compõe a narrativa. Em todo heròi e a cadaevento um modo diverso de agir impulsionado pela diversidadedas forças atuantes. Para os heròis o instante é jogo. No jogo, estáem jogo a vontade do deus. Da vontade divina depende a sua con-dição. No mundo do jogo, que joga, toda ação requer elevação. Regra

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ROSA, Roberto Sávio

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do jogo! Corteja a decadência (o esquecimento, o não recebimentodas honrarias fúnebres pelo valor demonstrado) todo aquele queultrajar a seriedade exigida pela regra.

Cada postura, particularidade, metaforicamente representa umanel da longa corrente educativa sobre a consciência trágica. Aodelegar à singularidade nos combates (aristéia) um lugar privilegi-ado, Homero permite um aprofundamento desta propriedade hu-mana, deste modo de ser específico do humano que do jogo parti-cipa. Cultiva-se, aqui, o terreno arenoso da consciência trágica. Atensão se instaura com a afirmação dos heròis e da sua posturafrente ao instante crucial: o dizer sim ao que lhe cabe, ao seu qui-nhão, à morte. A morte, preocupação latente, não exerceria podersobre os atos da vida.

A epopéia é constituìda de ações afirmativas, incondicionais,determinadas pela ordem superior das forças não vistas, mas ca-paz de conferir o sentimento da vida partilhando sofrimento e an-siedade. No comportamento heróico, o arquétipo da condição trá-gica, constituição figurada, que edifica a situação relacional entrehomem e mundo. Todo evento se faz sentir, subjugado ao poder daforça que o domina. O homem, enquanto instrumento, é títere. Naedificação artesanal homérica, o destino corifeu atua no palco comoprotagonista trágico do inefável seqüestro da morte.

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Imprecações cotidianas: sobre a neurastenia do trágico

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TRADUÇÃO

FERNEL, Jean. Os sete livros da fisiologia.Livro V - Das faculdades da alma, Capítulo VII- Sobre as faculdades externas da sensação,Capítulo VIII - Sobre as faculdades internas

da alma sensitiva

Apresentação, tradução e notas

Marisa C. de O. F. Donatelli

Doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo, Profes-sora adjunta do Departamento de Filosofia e Ciências Huma-

nas da Universidade Estadual de Santa Cruz. E-mail:[email protected]

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A IMPORTÂNCIA DE FERNEL NA MEDICINADESENVOLVIDA NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XVII

Nós abaixo-assinados, doutores da Faculdade de Medicinade Paris, certificamos haver lido a obra de .... sob o título......., e atestamos, além disso, que nela não se encontra nadaque não esteja conforme a verdadeira e pura doutrina deHipócrates. Dessa forma, nós o julgamos digno de ser libe-rado para impressão e publicação (RAYNARD, 1863, p. 349).

Esses termos da autorização dada pelos doutores da Faculda-de de Medicina de Paris para a publicação de livros de fisiologia ede anatomia servem como referência para a compreensão do pen-samento médico que dominara uma boa parte do século XVII.

A menção a Hipócrates está ligada a um Hipócrates modifica-do por comentários e interpretações estabelecidas dentro dos limi-tes determinados pelo método escolástico. Trata-se de umHipócrates adaptado à filosofia e à física de Aristóteles, por meiodos estudos de Galeno, Averrois e Avicena, dentre outros.

Nas faculdades de medicina, as disciplinas ensinadas formamum conjunto que segue um modelo que vem dos séculos anterio-res: botânica, química, física, farmácia, anatomia, fisiologia, pato-logia e filosofia. Na verdade, a medicina se mantém como uma ra-mificação da filosofia, segundo o modelo aristotélico do final doséculo XVI: a medicina é entendida como filosofia natural aplicadaao corpo. Assim, um bom médico deve ser também um bom filóso-fo. Daí a necessidade de o médico formar argumentos firmes nomais puro modelo escolástico: o aristotelismo domina o pensamentocientífico, aí incluída a medicina.

No século XVII, o método de ensino nas faculdades de medici-na limita-se à escolha de uma obra antiga traduzida para o latim.Essa obra é lida pelo professor do alto de sua cátedra, acompanha-da de um comentário, sempre em latim. A anatomia é ensinada da

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A importância de Fernel na medicina desenvolvida na primeira metade do século XVII

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mesma maneira; mas, além do professor, há um demonstrador quetem por função mostrar, nas pranchas, as partes descritas nos li-vros. As sessões de dissecação comportam a leitura de um textolatino, geralmente tradução de Galeno. O professor faz a leitura, eum demonstrador mostra os órgãos sobre os quais a leitura discor-re. Essas sessões se dão em anfiteatros, e aos alunos só resta obser-var e anotar, da melhor forma possível. Além disso, como não sedispunham dos meios necessários para a conservação dos corpos,as sessões precisavam ser rápidas.

Uma parte do curso é voltada para a “Física” ou “FilosofiaNatural”1 . O fio condutor do conteúdo ministrado é Aristóteles:“primeiros princípios, matéria e forma, quatro elementos, geraçãoe corrupção em geral” (ROGER, 1971, p. 15). A partir dessas consi-derações gerais, são abordados tópicos específicos referentes àmatéria, aos seres vivos, ao corpo humano e à alma (Ibid.). No quese refere à explicação das funções dos órgãos, a interpretação do-minante, ao lado da aristotélica, é a que segue Galeno: a presençado órgão é justificada pela função que desempenha no corpo, ouseja, o órgão existe com a finalidade de cumprir determinada fun-ção. Essa inspiração teleológica domina a fisiologia do século XVIIe atinge uma boa parte do século seguinte.

A anatomia e a fisiologia compõem os livros de medicina dares naturales2 . Tais livros compreendiam, quase sempre, três gran-des partes: 1) faculdades naturais da alma (procriação, alimenta-ção e crescimento); 2) faculdades vitais da alma (calor, capacidadecardíaca, respiração); 3) faculdades animais da alma (movimento,sensações, discernimento). Essa estrutura dos livros de medicina –de inspiração aristotélica – é encontrada na obra de Jean FrançoisFernel (1497-1558), que constitui um ponto de referência noensinamento médico do século XVII. Convém observar que noscursos da faculdade de medicina raramente um moderno é esco-lhido como tema. Dentre as exceções, aparece Fernel. Na primeirametade do século XVII, Jean Riolan, filho,3 lança uma crítica à divi-

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são dos assuntos adotada em alguns livros de medicina: fisiologia,patologia e terapêutica. Segundo Riolan, a fisiologia tem como pré-requisito a anatomia e, para sustentar essa informação, ele invocaFernel. Afinal:

Fernel começa sua medicina pela Anatomia, sob a qual eleorganiza as outras partes da Fisiologia: pois os ossos, a carti-lagem, o nervo e outras partes semelhantes são os verdadei-ros e primeiros elementos do homem [...] (RIOLAN, 1629,87-88).

O livro Universa Medicina: Phisiologiae Liber I-VII4 apre-senta uma descrição do corpo humano, passa pela teoria dos ele-mentos, desenvolve uma parte sobre as faculdades e partes da almae, por fim, explica o processo de geração humana. Esse livro deFernel constitui, no século XVII, a base do ensinamento sobre o cor-po humano.

Em Fernel, encontra-se uma amostra de como se dá a disputaentre os ‘aristotélicos’ e os ‘galênicos’, pois ora adota uma interpre-tação aristotélica, ora uma galênica. Essa oscilação, entre essas duasgrandes correntes, é uma constante durante a primeira metade doséculo XVII.

Segundo Fernel, o corpo é formado por partes simples e com-postas, ou seja, no corpo humano há partes que se dividem em par-tes semelhantes entre si e outras que se dividem em partesdessemelhantes5 . As partes têm como base de formação os quatroelementos: fogo, água, ar e terra. A combinação desses elementosengendra as qualidades primárias (quente, frio, seco e úmido) cujamistura produz as qualidades secundárias (fino, grosso, gordo,magro, liso, áspero...). Cada parte do corpo humano possui um tem-peramento que é o resultado da relação harmônica das qualidadesprimárias dos elementos misturados: a predominância de uma qua-lidade sobre as outras define os temperamentos.

O ser vivo é dotado de um calor inato cuja sede se encontra no

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coração e se espalha pelo corpo por meio do espírito, que é “umcorpo celeste, a sede e o liame do calor natural e das faculdades,além de ser o primeiro instrumento de todas as funções” (FERNEL,2001, p. 190). Essa concepção do coração como sede do calor inato éencontrada em Aristóteles6 . Segundo a interpretação aristotélica, oprincípio desse calor está no coração e é responsável pela vida. Naobra de Fernel, Aristóteles é, justamente, mencionado noconcernente a essa questão:

[...] Aristóteles disse muito bem e deixou por escrito, para aposteridade, como uma coisa comum e vulgar, que a vidaconsistia apenas no calor e que sem o calor, nem os animaisnem as plantas vivem. Ele definiu a morte pela extinção docalor natural [...] (FERNEL, 2001, p.285).

Esse calor não é proveniente da mistura dos elementos que com-põem as partes do corpo, mas provém de um “princípio oculto”.

Os três principais órgãos, segundo Fernel, produzem, por meiode três digestões, os espíritos que são os instrumentos das princi-pais faculdades da alma. Na aceitação do processo de formaçãodos espíritos, Fernel se mantém fiel a Galeno, que defende a exis-tência de três sistemas anatômicos cujas funções específicas estãovinculadas a esses três órgãos:i) sistema venoso - fígado, faculdadenatural; ii) sistema arterial – coração, faculdade vital; iii) sistemanervoso – cérebro, faculdade animal. Seguindo essa interpretação,Fernel indica os órgãos responsáveis pela produção dos espíritos:a) o fígado produz o espírito natural – vapor – ligado à procriação,nutrição e crescimento; b) no coração, os espíritos naturais sofremuma transformação, tornando-se mais sutis e passam à categoriade espíritos vitais – ar – que responderão pelas faculdades vitaisligadas ao funcionamento do coração, ao calor e à respiração; c) nocérebro, por fim, os espíritos vitais passam por mais um processode sutilização e chegam à categoria de espíritos animais – éter –vinculados ao movimento, às sensações e ao pensamento. O espíri-

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to vital transforma-se em espírito animal quando o sangue, depoisde ter ido para as regiões periféricas, chega ao cérebro pelascarótidas. Esses espíritos animais seguem os nervos, comandamtoda a atividade psíquica e estão ligados às funções de movimentoe sensação.

Cada faculdade tem seu instrumento: as veias auxiliam a fa-culdade natural de nutrição; as artérias, a faculdade vital, e os ner-vos, a faculdade animal. Todas essas faculdades são faculdades daalma e, assim, em última instância, tanto o trabalho do corpo comosuas funções remetem à alma.

Seguindo a orientação galênica, Fernel afirma que o fígado pro-duz o sangue por meio da destilação do quilo. O alimento, trans-formado em quilo pela digestão, é absorvido pelo intestino, pormeio das veias mesentéricas, e levado ao fígado, que funciona comodepurador: as partes leves são encaminhadas para a vesícula biliar;as partes espessas para o baço e as partes líquidas para os rins. Aque resta toma a cor vermelha e constitui o sangue. Uma parte dosangue fica no fígado, enquanto outra parte é enviada pelas veiaspara as regiões periféricas do corpo com a finalidade de alimentartodas as partes do corpo. Na preparação do sangue pelo fígado,são engendrados os outros humores, além do próprio sangue: nofígado, a bílis; no baço, a bílis negra (atrabilis); e no cérebro, a pituita.Esses quatro humores constituem o sangue das veias.

O movimento do sangue é explicado pela atuação que os ór-gãos exercem sobre ele e pela impulsão das veias. Ele se perde nostecidos ao alimentá-los e se renova pela absorção dos alimentos.Todos os vasos ligados ao ventrículo direito, e que conduzem san-gue, são veias; os que estão ligados ao ventrículo esquerdo são asartérias que contêm sangue espirituoso e ar – mais ar do que san-gue – e estão vinculadas à função respiratória. A artéria pulmonar(denominada, então, veia arteriosa) nutre os pulmões na troca doar que ele envia ao coração. A comunicação entre os dois ventrículosdo coração é estabelecida pela existência de pequenos orifícios que

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possibilitam a mistura entre sangue e ar no ventrículo esquerdo.Esse sangue rarefeito se combina com os espíritos vitais doventrículo esquerdo e é distribuído pelo corpo por meio das artéri-as, no momento da sístole.

No momento da diástole, quando há dilatação do coração, oventrículo direito recebe o sangue das veias, enquanto o ventrículoesquerdo recebe ar dos pulmões. O coração necessita tanto da nu-trição do sangue como do ar e da refrigeração, por causa da inten-sidade do fogo cardíaco. Na sístole, momento de contração do co-ração, a cavidade direita lança sangue nos pulmões e a cavidadeesquerda lança sangue depurado e espíritos vitais para alimentar eaquecer as regiões periféricas do corpo, por meio das artérias. Nãohá, portanto, a idéia de circulação, mas de irrigação: as extremida-des do corpo absorvem o sangue, de acordo com o duplo movi-mento cardíaco.

Essas concepções, aqui apenas esboçadas, ligadas ao funciona-mento do corpo, e que compõem a obra de Fernel, dominam o uni-verso médico durante o século XVII7 . Basta lembrar que suas obrasforam, constantemente, reeditadas no período compreendido en-tre 1554 e 1680 (ROGER, 1960, p. 6).

A Universa Medicina, da qual a Physiologia compõe a primeiraparte, foi publicada em 1542 e teve várias reedições, sendo que asúltimas edições são de 1644, em Leiden, e 1656, em Utrecht. Du-rante o período de 1554 a 1568, todas as obras médicas de Fernelpercorrem a Europa por meio de numerosas reedições e traduções.

Em Fernel, subsiste a antiga tradição aristotélico-galênica, tra-dição que está presente nos livros sobre elementos, temperamen-tos, sobre as faculdades da alma e movimento do coração. Alémdesses aspectos, a concepção de corpo toma por base uma interpre-tação teleológica, segundo o modelo aristotélico: tudo existe nocorpo com uma finalidade específica. Mas essa permanência da tra-dição em sua obra, particularmente em sua Physiologia, deve serafirmada com cautela, pois Fernel não aceita passivamente tudo o

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que os antigos escreveram. Ao contrário, ele toma os textos deAristóteles e de Galeno, por exemplo, como ponto de partida paraa sua explicação e, muitas vezes, discorda da tradição8 . Um exem-plo dessa relação conflitante com a tradição pode ser encontradono trecho da Physiologia, cuja tradução é apresentada aqui. Ao de-fender que as sensações e o movimento são remetidos ao cérebro,Fernel discorda de Aristóteles, para quem o coração seria respon-sável pelas sensações, pelo movimento e pela nutrição, ou seja, pe-las funções vitais (ARISTÓTELES, 1951 [469a-469b]). Grosso modo,pode-se dizer que, na obra de Fernel, Aristóteles está presente naestrutura lógica da apresentação, e Galeno se manifesta na admis-são das faculdades, de que cada órgão é portador, para a explica-ção das funções vitais

Ao longo de todo o livro Physiologia, nota-se a convivência pa-cífica entre explicações fundadas em observação e explicações quetomam por base somente a razão. Dessa forma, encontra-se, porexemplo, toda uma análise das partes do corpo que chega à consi-deração das partes simples, por meio da observação. Logo a seguir,no livro sobre os elementos, Fernel não hesita em deixar de lado aobservação, para formular um discurso fundado somente na ra-zão. Assim, em Fernel, pode-se afirmar que um determinado tipode análise compõe um primeiro momento de seu método: análiseque requer o concurso dos sentidos, da observação, para decom-por um conjunto em suas partes mais simples. O segundo momen-to é caracterizado pela análise da razão (FERNEL, 2001, Préface).

A permanência da obra de Fernel fornece um exemplo de comoa medicina, que chegará à primeira metade do século XVII, se man-tém, em sua maior parte, presa à tradição grega: ela é a fonte dasinformações sobre anatomia e fisiologia.No século XVII, essa tradi-ção é sustentada pelo constante aparecimento, que remonta aoRenascimento, de traduções e comentários à Antigüidade. Apesardessa persistência, dessa forte vinculação à ciência grega, algumasexceções podem ser mencionadas: Vesálio (De humani corporis fabri-

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ca libri septem, 1543), que propõe uma renovação na anatomia, cor-rigindo Galeno nessa área, e Ambroise Paré (Dix livres de la chirurgie,1564), que promove inovações no campo da cirurgia. Mas a grandemaioria dos médicos permanece presa aos ensinamentos baseadosem Aristóteles, Hipócrates e Galeno, bem como aos comentadoresárabes e escolásticos.

O texto de Fernel sobre a fisiologia fornece uma amostra do tipode medicina que foi divulgada no século XVII. Ao tentar conciliarAristóteles e Galeno, impingindo-lhes uma conotação cristianizada,Fernel apresenta-se como uma figura emblemática de seu tempo.Sua obra mostra toda essa variedade de conteúdo e as contradiçõesàs quais ela pode levar. Além disso, é preciso considerar que o termo“fisiologia” é forjado a partir de Fernel. Fisiologia deixa de ser o es-tudo da natureza em geral, designado pelos gregos, e fica limitadoao estudo da natureza do homem, abrangendo a anatomia, os ele-mentos, os temperamentos, as funções dos órgãos, a geração e asfaculdades da alma. Seu livro é intitulado da seguinte forma:Physiologia ou Traité de la nature humaine. Num tratado de fisiologiaque pode ser interpretado como sinônimo de tratado da naturezahumana, a quinta parte, sobre as faculdades da alma e suas partes,parece ser perfeitamente justificável. Essa significação de fisiologiaprevalecerá no primeiro período do século XVII e, junto com ela, aestrutura de divisão dos livros de medicina.

A tradução, aqui apresentada, toma por base o texto publicadopela Fayard. Trata-se de uma publicação da tradução francesa feitapor Charles Saint-Germain, que é lançada em Paris, no ano de 1655,por Jean Guignard le Jeune, sob o título Les sept livres de laphysiologie.

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NOTAS1 Cf. trabalho de K. E. Rothschuh sobre o conceito de fisiologia e os seus diferentes significa-

dos da Antiguidade ao século XIX: Phisiologie: der Wandel ihres Konzepte, Probleme undMethoden vom 16. bis 19. Jahrhundert. Freiburg: Karl Alber, 1968. 407p.

2 Cf. K. E. Rothschuh, Introdução à tradução alemã do tratado L’homme, de René Descartes,1969.

3 Jean Riolan (1577-1657), professor de anatomia e botânica no Collège Royal, o mais impor-tante anatomista francês no século XVII.

4 Aqui, toma-se por base a tradução francesa de 1665, Les sept livres de la physiologie.5 Essa divisão remete a Aristóteles, apesar de Fernel se valer das palavras “simples” e “com-

posta”, no lugar de “homeômeras” e “anomeômeras”. Na verdade, Aristóteles também utilizaesses termos - “simples” e “composto” – quando se refere ao grau de complexidade dessaspartes (ARISTÓTELES, 1956 –[I, 646b]).

6 Parva Naturalia, 469b, 6-20; Parties des animaux, 670a, 23-26/667b, 26-29.7 Não se pode ignorar que, ao lado de Fernel, as inovações promovidas por Vesálio, e o avan-

ço no campo da cirurgia graças a Ambroise Paré formam parte do legado do século XVIpara o campo da medicina no século posterior.

8 La Physiologie, liv. III, chap. VIII; liv. V, chap. VIII.

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Os sete livros da fisiologia

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CAPÍTULO VIISobre as faculdades externas da sensação

Há duas primeiras e principais espécies de faculdades animaisque as plantas não possuem. Elas são dadas, somente, aos animais,daí serem nomeadas faculdades animais. Umas participam da ra-zão e outras dela se afastam, e são dirigidas, somente, pela impetu-osidade dos sentidos.

A alma sensitiva, que domina as faculdades naturais nos bru-tos, e que aí tem o principal comando e administração, é, certamen-te, simples em sua essência e semelhante a ela mesma: ela não é com-posta de diferentes partes, como o corpo; do contrário, ela não seriauna e de um mesmo gênero. No entanto, é por meio dela, apenas,que o animal vê, cheira, olha, saboreia, toca, manuseia, bem como semove, reconhece a diferença entre as coisas, imagina, cochila e selembra. Essas são as funções de uma só e mesma essência. Contudo,ela não se manifesta sempre da mesma forma, mas segundo a dispo-sição diversa dos órgãos e instrumentos do corpo para produzir asações. Assim, ao se mostrar algumas vezes sendo outra, a ação seproduz diversamente. Disso se segue que as ações vinculadas a es-sas funções são de tal forma distintas e estão de tal maneira dividi-das, que cada uma, em particular e separadamente, pode subsistir.Quando uma é movida e excitada, é preciso que, necessariamente,as outras se apresentem imediatamente, ou, quando uma delas de-saparece, todas as outras, igualmente, desaparecem.

Cada parte tem, com boa razão, uma certa faculdade que lhe éprópria e particular. Assim, há tantas faculdades sensitivas, quenós calculamos as diferentes funções: dividiremos, então, todas as

FERNEL, Jean. Os sete livros da fisiologia. Livro V - Das faculda-des da alma, Capítulo VII - Sobre as faculdades externas da sensa-ção, Capítulo VIII - Sobre as faculdades internas da alma sensitiva

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faculdades animais de forma que umas se constituirão como efei-tos da razão e outras da sensação. No que diz respeito àquelas quesão dominantes nos brutos, umas sentem as coisas externas, outrasmovem de um lugar a outro, e outras conhecem. Quanto às quesentem as coisas externas, há cinco: ver, cheirar, ouvir, saborear etocar. Pela faculdade que vê, o animal não ouve, não cheira, nãosaboreia e não toca, e, da mesma forma, não pode ocorrer o contrá-rio, pois há tanta diferença entre essas faculdades quanto há diver-sidade de órgãos ou de instrumentos e de objetos com os quais elasse ocupam.

Tudo o que sentimos é, da mesma forma que os outros corpos,composto de matéria e de forma. O instrumento ou órgão é como amatéria da sensação, e a sensação é como a forma e a espécie. Avisão, que é a faculdade de ver, é como a forma no humor cristalinodo olho, que, estando claro e transparente, é o primeiro órgão davisão. Ela está rodeada por humores e envolvida por túnicas oumembranas, que servem para que a visão seja melhor e mais per-feitamente acabada, pois o olho vê, simplesmente, por meio dohumor cristalino, mas a visão se dá inteira e perfeitamente por meiodo órgão, e sob esse sentido estão, principalmente, as cores queresidem nas extremidades dos corpos. Apenas ele, sobre todos osoutros sentidos, conhece as cores e as discerne em sua totalidade, enenhum outro sentido. Por isso, definimos a faculdade visual comoaquela que, estando dentro do olho, recebe as cores sem matériapor um meio iluminado.

Como vemos que cada sentido é como que separado edissociado, primeiramente, um do outro, e que a cada um é dadasua parte e porção do espírito para exercer sua função e sua tarefa,podemos, seguindo a definição da visão, dar a definição dos ou-tros.

O principal instrumento da audição é um certo ar muito sutilque é colocado dentro do ouvido desde o nascimento. Ele está en-volvido por uma membrana e situado bem ao fundo do ouvido,

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para onde convergem os nervos auditivos que nascem no cérebro.Esses nervos circundam esse ar natural e esse espírito, que é o pri-meiro instrumento da audição, da mesma forma como os nervosóticos circundam, no olho, o humor cristalino. Isso se dá de tal for-ma que há em tudo uma união e sociedade tão grande entre o espí-rito que penetra o nervo e o princípio interno e profundo do senti-do, pois nesse ar reside a faculdade de ouvir, que verdadeiramenterecebe os sons e discerne as diferenças.

O instrumento ou órgão próprio ao olfato não se situa fora docrânio. Isso é evidente e manifesto em todos os animais que respi-ram. Ele está situado dentro das extremidades do cérebro que con-vergem para a parte superior do nariz. Daí, pode-se dizer que es-ses cinco sentidos são chamadas externos, não pelo fato de eles seproduzirem e se manifestaram externamente, mas porque eles ad-quirem o conhecimento das coisas externas por meio de seus pró-prios órgãos. Naquele lugar, é colocada a faculdade do olfato, quepor meio dos condutos das narinas recebe, conjuntamente com oespírito, os odores exalados pelas coisas dotadas de cheiro, que sãosua matéria básica e com a qual ela se acostumou a se ocupar.

Em seguida, a faculdade gustativa ou do paladar reside, prin-cipalmente, nos nervos que nós dissemos estar espalhados na lín-gua, no palato e na região da garganta. Essa faculdade julga ediscerne os sabores por meio e com a ajuda de uma carne esponjo-sa, da qual a língua é feita e guarnecida.

Enfim, a faculdade do tato ou do toque não está encerrada emum órgão ou instrumento próprio e particular, pois uma vez que osentido do tato era muito necessário para a vida do animal, ele sedispersou e se espalhou igualmente por todo o corpo, mas ele resi-de, principalmente, nos nervos que, tendo se tornado muito duros,se espalham por dentro e por fora. Por meio desses nervos, a facul-dade sente e conhece as qualidades táteis de todos os corpos. Taisqualidades não podem ser nomeadas por um só nome, como ocor-re com as cores, os sabores, os odores ou os sons: elas são diferentes

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em muitas contrariedades, das quais as principais e extremas são ocalor e o frio, a umidade e a secura, a flacidez e a dureza, a asperezae a polidez, o peso e a leveza. Além disso, muitos estudiosos esta-beleceram várias diferenças de toque, levando em consideração se-paradamente essas diferenças, como se o número e a quantidadedos sentidos pudessem ser captados pela diversidade das qualida-des contrapostas. É preciso, porém, contar e enumerar as faculda-des da diferença dos órgãos. Ora, só há um órgão do tato, alémdisso, esse sentido é diferente dos outros, uma vez que ele não sen-te inteiramente todos os objetos, porque todos os que ele encontracomo sendo semelhantes ao seu temperamento, ele não os sente,uma vez que não é afetado por eles. Sabe-se que o sentido só podese dar por uma certa paixão, e que os outros sentidos sentem todasas qualidades com as quais se encontram sob eles, sofrendo a pai-xão delas, porque elas são todas dessemelhantes.

É algo comum a todos os sentidos serem tais e semelhantes,por força, àquilo que eles devem receber e sentir, pois o objeto, es-tando fora, toca, move e excita o sentido. Se o sentido é afetadopela coisa que se antepõe a ele, é preciso, necessariamente, que eletenha uma certa semelhança ou dessemelhança, a saber: no iníciodo movimento da semelhança e sobre o fim daquele dadessemelhança. Como isso se dá, será mais amplamente explicadoem seu devido lugar.1 Além disso, é algo comum entre os sentidosque cada um reconheça tanto as coisas que lhes estão sujeitas, comosuas privações, assim como seus maiores excessos, mas por um meioe por uma forma bem diferentes. Ao serem suavemente movidos,eles sentem e recebem seus objetos próprios e convenientes e suaspróprias privações sem nenhuma interrupção e sem ficar exauri-dos e fatigados por nenhum impulso. Mas eles não podem sofrerseu excesso e abundância extrema sem ficar prejudicados e feri-dos. Daí que, ao serem irritados e violentos, muitos estimam nãosenti-los. Por isso, todos os sentidos são diferentes entre si, e suasfaculdades são muito diferentes e separadas, não somente pela na-

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tureza da coisa que é compreendida e sentida, mas também pelopróprio e particular instrumento ou órgão de cada um. O humoraquoso e transparente é adequado a esse uso, pois o olho contémuma grande quantidade de humor, que nasce e provém do cérebro,que é a mais úmida e a mais fria de todas as partes; na audição, oinstrumento é aéreo; no olfato, o instrumento é ígneo, da mesmaforma que o odor é uma certa exalação fumosa e ígnea; ao tato ouao toque foi dado um instrumento ou um órgão inteiramente ter-restre, e no paladar (à medida que é como uma espécie de toque)seu órgão é também terrestre, mas participa também de algumaumidade.

CAPÍTULO VIIISobre as faculdades internas da alma sensitiva

A alma sensitiva tem duas faculdades de conhecer: uma exter-na, que está dispersa tanto nos cinco sentidos como em suas espé-cies; outra, interna. A interna compreende a faculdade comum deconhecer ou o senso comum, a faculdade imaginativa e a faculda-de da memória ou da rememoração. Pelo que já foi dito e ensinadosobre a diferença das partes e das faculdades, é, certamente, evi-dente que todas as virtudes são, com efeito, faculdades e não par-tes de uma mesma alma. É preciso, depois disso, mostrar comoelas são diferentes e como elas procedem de uma mesma essência.

A alma sensitiva e cognitiva é totalmente colocada e posicionadadentro do corpo do cérebro, como dentro de seu castelo ou sua for-taleza e sua sede própria e particular, que é chamado como o pró-prio e o principal órgão do sentido. Ela foi, também, nomeada comoo primeiro sentido, visto que os outros sentidos externos estão to-dos muito próximos dele, nos quais e em todo o corpo se estendemfeixes de nervos, por meio dos quais a alma manifesta suas ações efaculdades, pois como da circunferência se traçam linhas iguais e

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idênticas assim como raios no centro, nos sentidos há certas passa-gens e condutos abertos, pelos quais as imagens retiradas das coi-sas são transportadas e aí afluem como dentro de sua fortaleza eseu refúgio. Esse sentido principal é o árbitro e o avaliador dessasimagens e é também chamado de senso comum e interno.

Somente a visão pode discernir o negro do branco, e apenas afaculdade do tato o quente do frio, mas aquela que distingue o docedo branco e que julga as diferenças existentes nas coisas que estãosujeitas aos vários sentidos, é preciso que seja, necessariamente,uma certa faculdade mais excelente que as outras. Isso, porque nãohá nenhum sentido externo que possa julgar e distinguir o doce dobranco, assim como não há um só e mesmo sentido que os perceba.Da mesma forma como se eu conhecesse uma coisa e vós uma ou-tra separadamente, certamente essas coisas diferentes não serão,de forma nenhuma, conhecidas por nenhum de nós. Uma vez quenão somente os homens, mas também os brutos conhecem a maté-ria sujeita a vários sentidos, é necessário que haja uma certa facul-dade que seja comum e indistinta, que receba suas diferentes ima-gens, que julgue e distinga aquelas que são semelhantes daquelasque são dessemelhantes.

Essa faculdade interna é a que conhece e distingue e aquelaque o senso comum e interno faz parecer como a primeira. Essesentido é também a substância da alma sensitiva e o princípio queconstitui todo o gênero dos animais; mesmo aqueles que estão nomais baixo nível da ordem, a saber, os insetos, são nomeados comosensitivos. Ele, como o rei e o principal de todos, tem sua sede fir-me e estável, e seu domicílio certo, no corpo do cérebro, do qual,como de um lugar elevado, considera as imagens de todas as coisasque lhe são propostas e que lhe são levadas de fora pelos sentidos,seus ministros, seus enviados ou seus mensageiros. Ele constata eobserva todas as ações dos sentidos, e é por esse sentido que nósreconhecemos que pelo olho nós vemos e pelo ouvido nós escuta-mos. Ele cria ou reconhece as diferenças das imagens e julga sobre

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elas. Assim, reconhecemos que esse senso comum e interno é, decerta maneira, único e semelhante aos cinco sentidos externos, quesão derivados dele como de sua fonte. Além disso, reconhecemosque essa primeira faculdade do sentido se propaga do cérebro paradentro dos instrumentos dos sentidos, e que ela se serve de suaajuda e de sua assistência. Se essas coisas se dão diversamente e seacomodam de várias maneiras aos usos de um só e único operador,isso ocorre para que sejam estabelecidos cinco tipos de faculdadesdos cinco sentidos externos, mas haverá uma só e única substânciacom o sentido principal. Assim, a única faculdade do principal sen-tido é aquela que discerne, que conhece e que julga sobre a diferen-ça das coisas externas.

Há uma outra faculdade que é a faculdade de conservação querecebe, retém e conserva as impressões e as imagens dos sentidos,pois quando o sentido externo se volta para a matéria que lhe estásujeita ou para seu objeto, ao mesmo tempo para aí se volta, tam-bém, a faculdade interna e principal do sentimento que recebe eque sente conjuntamente a coisa. Os sentidos, sendo movidos pe-los objetos externos, recebem a imagens e as espécies2 provenientesdeles, que, em seguida, movem a faculdade interna do sentimento,que retém e conserva em si as espécies e as imagens das coisas en-viadas pelos sentidos. As espécies e as imagens dessas coisas, quepertencem ao passado ou foram suprimidas, subsistem por maisum tempo e tornam-se como que gravadas e entalhadas. Isso podeser observado pelo fato desse sentido conhecer e sentir ainda ascoisas retiradas e subtraídas, da mesma forma como aquele para oqual nós lhe demos atenção. Essas espécies e imagens das coisasgravadas e impressas no cérebro são objeto da faculdade imagina-tiva, da mesma forma como as coisas externas dos sentidos, pois ascoisas externas movem os sentidos, e essas qualidades ou imagensinternas movem essa faculdade.

Além dessas duas faculdades, há uma outra que é chamadafantasia, que é a terceira faculdade ou o terceiro sentido interno

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que percebe e recebe as imagens representadas. Assim como há trêscoisas a serem consideradas na sensação - as coisas representadasou o objeto, a faculdade sensitiva e a ação que se dá por seu concur-so - essa faculdade imaginativa também consiste em três coisas: noobjeto, na faculdade imaginativa e na própria ação pela qual a fa-culdade se ocupa e se detém sobre o objeto, que é propriamentechamada de fantasia ou imaginação. Trata-se de um movimento dafaculdade voltado para as imagens e as formas das coisas, das quais,confusas e todas juntas misturadas, ela forma e compõe, muitasvezes, vários fantasmas e quimeras, que não estão no domínio dosensível, tais como, os homens que voam no ar, bois que têm asas.Nisso ela difere da faculdade precedente. O que faz com que ela,dirigindo-se a várias coisas que não são de forma alguma reconhe-cidas pelos sentidos, imite, de certa maneira, a faculdade do racio-cínio, chamada de inteligência por Aristóteles, segundo uma largae ampla denominação. Isso porque algumas vezes, as espécies e asimagens das coisas estão levemente gravadas e impressas no cére-bro, esvaindo-se e desaparecendo imediatamente, ou, estando maisprofundamente situadas, como que escondidas no cérebro, comose fosse um lugar de reserva ou de tesouros, elas persistem e sub-sistem por longo tempo como as paixões e os hábitos. Essa conser-vação das imagens, a respeito da qual já falei anteriormente, é amemória que se encontra fraca e débil nos recém-nascidos e nosvelhos. Nestes últimos, à medida que eles não podem reter e guar-dar as imagens e as espécies das coisas; nos primeiros, porque elesnão as podem admitir e receber. Essa faculdade é confirmada e sus-tentada pela meditação ou pela longa reflexão e consideração, queé uma freqüente repetição e retorno das imagens, enquanto que asimagens são emanadas de outras.

Há um outro tipo de memória, a saber, quando se olha e seconsidera a afecção e a semelhança de uma outra coisa com o co-nhecimento do tempo passado, no qual ocorreu a impressão dela,pois, no momento, só se diz que se relembra. Essa ação de olhar e

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de refletir é a memória, mas, como eu disse, de um outro tipo e deoutra maneira, isto é, enquanto aquela conserva a imagem e estarepresenta a coisa pela apreensão da imagem e da espécie, a pri-meira é uma espécie de afecção e paixão, e a segunda, uma ação.Melhor dizendo, aquela memória é passiva e sofre a ação, e estaoutra é agente, de onde se pode reconhecer que entre os brutos háa memória, o sentimento e o conhecimento do tempo, e, conside-rando sua imagem, eles podem sentir que conheceram, outrora, aspróprias coisas. Além disso, é uma mesma parte da alma que co-nhece o tempo e que se lembra: a alma sensitiva. No entanto, elanão sente, propriamente e por si, o tempo, mas, enquanto conheceo movimento e a afecção que ela recebeu em algum tempo. Pode-se, portanto, defini-la dessa forma: a memória é representação dacoisa ausente pelo olhar ou consideração de sua imagem com oconhecimento do tempo passado. À medida que essa faculdade émovida e excitada pela imagem, a memória se efetiva, enquanto éimagem e um modelo dessa imagem.

Para enumerar e contar, de maneira absoluta, todas as faculda-des e funções internas da alma sensitiva, as imagens das coisas ex-ternas apreendidas pelos sentidos passam pelo sentido primeiro einterno. Por meio deles, o primeiro sentido conhece, distingue ejulga as coisas externas, e por essa função de discernir e de distin-guir essa faculdade se produz e se manifesta. Se a impressão dasimagens se dá de forma mais profunda, então é a memória conser-vadora, da qual se pode reconhecer que ela participa da constitui-ção do cérebro e quão grande é essa participação. Se, ao se detersobre as imagens e as espécies das coisas, o senso comum as olha eas considera separadamente e de forma que ele não note nenhumaoutra coisa externa, diz-se, então, que ele finge. Essa ação do senti-do é a fantasia ou imaginação, que é expressa pela própria faculda-de da fantasia e da recordação. Porém, se ele as considera, não ne-las mesmas, mas como imagens e espécies das coisas externas, en-tão se diz que ele se recorda, e esse ato é a memória, acabada e

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realizada por sua própria faculdade da recordação.Todas essas faculdades estão no primeiro sentido. A fantasia ou

imaginação não é um efeito de uma outra parte da alma ou do cére-bro, e a memória de uma outra parte: elas estão em um mesmo sujei-to e são funções de uma mesma parte da alma. Daí se reconhece queaqueles que se afastaram da antiga e célebre Filosofia colocaram essafaculdade da fantasia na parte anterior do cérebro, e a memória naparte posterior. Ora, todas as duas estão no cérebro, de onde é pro-pagada a principal faculdade da alma sensitiva. Mais adiante falare-mos um pouco mais amplamente a respeito dessas coisas.3

Parece-nos não terem sido suficientemente enumeradas econtabilizadas todas as faculdades da alma sensitiva e que há ou-tras, além das já mencionadas, por meio das quais nós dormimos enos sobrevêm os sonhos ao dormir? Constantemente se atribuemaos animais o sono e os sonhos, como suas próprias funções e ações.Entretanto, para fazê-los, não se lhes atribui nenhuma outra facul-dade, pois o sono e as vigílias são muito diferentes entre si e, verda-deiramente, opostos: as vigílias são um ato e o sono é como suaprivação. Apesar disso, eles são recebidos e subsistem em um mes-mo sujeito. Eles procedem de uma mesma faculdade, e qualquerum que tenha sensibilidade, tem também a vigília e o sono, pois avigília é a excitação e movimento da sensibilidade, e o sono é comosua correia, sua prisão e sua imutabilidade. Mas eles não são o efei-to de um só e particular sentido, mas sim do primeiro sentido ousenso comum, o qual, estando adormecido, é preciso que os outrossentidos permaneçam, também, adormecidos e que eles sejam comoseus ministros e satélites obedientes as suas afecções. Por isso, des-de o primeiro momento em que o primeiro órgão ou instrumentodo sentido, isto é, o cérebro, é formado e torna-se fraco, não poden-do se conter por cansaço ou por longas vigílias, todas as outrasfaculdades ficam, conjuntamente, cansadas e fatigadas. Daí, é pre-ciso que, necessariamente, o sono venha, durante o qual os senti-dos ficam como se estivessem de férias ou de folga, tanto mais que

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suas faculdades não podem durar e subsistir pelo trabalho. Porisso, ele é necessário a todos os animais e lhes foi dado para suasaúde, sua recuperação e seu repouso.

Os sonhos são de natureza semelhante, pois o sonho é essavisão e essa imagem, proveniente dos sentidos e por eles enviada,que é objetivada e representada aos animais durante o sono. Eledeve ser realizado pela mesma parte da alma e pelo mesmo instru-mento do sono. Pela mesma parte pela qual o animal dorme, elesonha: ora, ele dorme e cochila por meio do primeiro sentido ou dosenso comum, portanto ele sonhará por meio dele, não enquantoele é sensitivo, mas enquanto ele forja e forma pela fantasia ou ima-ginação, e é movido e provocado pelas imagens variáveis e erran-tes. A faculdade da fantasia é movida e provocada pelo movimentoe pelo impulso das imagens representadas, principalmente duran-te a noite. Ao dormir, período em que os sentidos estão enfraqueci-dos e como que de férias de suas ações e funções, os menores emais insignificantes vestígios das espécies e das imagens vêm eacorrem em abundância por meio da faculdade imaginativa ou dafantasia, os quais, durante a vigília, com os sentidos detidos pordiferentes ocupações e o espírito sobrecarregado com vivos pensa-mentos, são ofuscados e suprimidos.

NOTAS1 Capítulo X: Qual lugar e qual sede cada faculdade da alma sensitiva possui, qual instrumen-

to para agir e que todas as faculdades não estão em todas as espécies de animal.2 Espécie entendida como uma entidade emanada dos objetos que, ao penetrar em nosso

corpo por meio dos órgãos dos sentidos, produz as percepções sensíveis. Teoria comumaos escolásticos (Cf. AQUINO, Tomás de, Summa theologiae, Ia, q. 17, a.2, resp.).

3 Capítulo X: Qual lugar e qual sede cada faculdade da alma sensitiva possui, qual instrumen-to para agir e que todas as faculdades não estão em todas as espécies de animal.

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RESENHA

Fisolofia, ciências e transgenia

Maurício de Carvalho Ramos

Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo, Profes-sor do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia,

Letras e Ciências Humanas da USP. E-mail:[email protected].

Palavras-chave: Trângenico, valores e autonomia científica

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RAMOS, Maurício de Carvalho

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LACEY, Hugh. A controvérsia sobre os transgênicos: questõeséticas e científicas. Tradução de Pablo Mariconda. Aparecida(SP):Idéias e Letras, 2006, p. 239.

Em A controvérsia sobre os transgênicos: questões éticas e científi-cas, Hugh Lacey oferece uma profunda e detalhada análise de umapolêmica que percorre o mundo e torna-se cada vez mais impor-tante no Brasil: o desenvolvimento crescente de plantaçõestransgênicas. O tema é abordado de modo consistente com umaidéia central da filosofia da ciência, de Lacey, a saber, que o enten-dimento científico adequado depende da elaboração de um conhe-cimento completo (que não deve ser confundido com conhecimen-to absoluto) do objeto. Isso significa que para conhecer apropriada-mente o que é uma semente transgênica não basta reduzi-la às suaspropriedades genéticas e econômicas, mas deve-se recorrer a umapluralidade de estratégias e de teorias que cubra a prodigiosa di-versidade de interesses científicos e culturais que a agricultura re-presenta. Assim, mais do que um estudo de caso, Lacey oferece-nos a solução (ou um razoável avanço em sua direção) de uma con-trovérsia ético-científica por meio de uma argumentação que arti-cula aspectos atuais da filosofia da ciência, da ética, da política, daeconomia e da sociologia. Mas se elogiar a diversidade costumacair bem, é comum recusá-la quando se apresenta a possibilidadede perdas em importantes conquistas cognitivas da ciência. Nadadisso acontece na perspectiva de Lacey: sua defesa da pesquisaconduzida sob um pluralismo de estratégias – no caso em questão,das estratégias materialista e ecológica – não conduz a umrelativismo fácil nem é feita graças a um tratamento superficial dosvários domínios implicados. Trata-se da construção de um modeloque interpreta os impactos de grande alcance da biotecnologia agrí-cola sobre certos elementos críticos do núcleo neoliberal etecnocientífico que moldam a cultura contemporânea.

Um estudo sobre as relações entre ética e ciência aplicável a

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Fisolofia, ciências e transgenia

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RESENHA

problemas sociais concretos pode começar por uma reflexão sim-ples e direta: ‘A ciência parece ser uma coisa boa, mas boa paraquem?’; pensando na mesma direção, agora sobre os transgênicos,podemos indagar: ‘eles também parecem ser coisas boas, pois exi-bem com eficiência propriedades biotecnológicas utilíssimas. Mastais propriedades são boas e úteis para quem?’. A mera formulaçãodesses pensamentos já seria considerada como um inquestionáveldesvio do caminho cientificamente válido, eticamente correto e eco-nomicamente responsável. Mas a notória falta de consenso em tor-no dos transgênicos revela que as posições consideradas como asmelhores – todas alinhadas com o lado favorável – ainda precisamde muitos esclarecimentos. Lacey mostra-nos que um exame racio-nal e imparcial da questão revela o quanto temos a apreender sobrecomo conduzir, se for o caso, a pesquisa e a implementação intensi-va de plantas transgênicas. Nesse sentido, as pessoas capazes depromover transformações profundas em todos os níveis dos orga-nismos vivos devem refletir sobre a adequação dos valores que in-formam suas práticas. Em A controvérsia sobre os transgênicos, en-contramos, a meu ver, um ponto de partida consistente e corretopara tal reflexão.

A controvérsia sobre os transgênicos pode ser resumida comoo enfrentamento entre a “posição-P”, isto é, as plantas transgênicasdevem ser desenvolvidas e utilizadas intensiva e rapidamente naagricultura, e a “posição-C”, para a qual deve-se realizar mais pes-quisa para manter o desenvolvimento com tais características epromover o rápido desenvolvimento de agriculturas alternativascomo a agroecologia. Lacey identifica quatro pares principais deoposição no interior da controvérsia, P1/C1 – P4/C4, e organiza olivro em torno de cada um desses pares. P1/C1 revela a tensão rela-tiva à cientificidade (ou não) da estratégia materialista quando apli-cada à ciência da agronomia; em P2/C2 confrontam-se interpreta-ções opostas sobre os benefícios do uso de transgênicos; P3/C3 ana-lisa os riscos do cultivo e do uso das plantas transgênicas e P4/C4

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são posições opostas quanto à existência de agriculturas alternati-vas à transgênica. Lacey discute minuciosamente o que está portrás de cada uma dessas oposições, considerando as tensões envolvi-das na adoção de tipos opostos de agricultura, de estratégia de pes-quisa científica e de perspectivas de valores. Com isso, produz-se umargumento complexo que necessita de um estudo atento para ser com-preendido, sobretudo por remeter repetidamente o leitor a pontos jádesenvolvidos ou que serão mais à frente tratados no texto.

O argumento de Lacey é constituído primeiramente pela defe-sa da racionalidade e da legitimidade da condução da pesquisa ci-entífica por meio de uma pluralidade de estratégias. Tais estratégi-as são definidas no interior de um modelo que descreve a atividadecientífica em três momentos: a adoção de uma estratégia, a aceita-ção de teorias e a aplicação tecnológica do conhecimento científico.No primeiro momento, a estratégia restringe os tipos de teorias re-levantes e seleciona os dados empíricos com os quais tais teoriasirão operar. Nesse momento são definidas as possibilidades que ainvestigação explorará, quais serão as questões e as explicações re-levantes, quais são os fenômenos que devemos observar, medir eexperimentar ou quais são os procedimentos a empregar. É, por-tanto, a estratégia que define os contornos e as metas das pesquisasque serão empreendidas, o que é feito pela aplicação de valoresnão-cognitivos – aqueles pertencentes aos domínios ético, social,econômico, político, entre outros. O segundo momento, o da acei-tação de teorias, pode ser feito unicamente com base em “dadosempíricos e em critérios cognitivos apropriados – de modo que osvalores e os interesses políticos, morais e sociais (que são distintosdos cognitivos), bem como o caráter e o valor de suas aplicações,não desempenhem nenhum papel apropriado na avaliação”. Se forassim conduzida, a atividade científica pode manifestar o valor daimparcialidade. Aqui também pode ser garantido o valor da autono-mia, representado pela capacidade das instituições científicas legí-timas escolher os métodos e as técnicas adequados para a realiza-

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Fisolofia, ciências e transgenia

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RESENHA

ção de suas escolhas teóricas. No terceiro momento, são desenvol-vidos, com base nas teorias imparcialmente aceitas, técnicas e pro-cedimentos tecnológicos que aplicam o conhecimento obtido se-gundo a estratégia adotada. Neste momento é que a ciência podemanifestar o valor da neutralidade, caso seus produtos tecnológicostornem-se benefícios reais para quaisquer perspectivas de valorpolítico, econômico ou social. Assim, “a imparcialidade, a autono-mia e a neutralidade são valores constitutivos das práticas em ins-tituições científicas”, valores que são amplamente compartilhados.

A partir desse modelo, Lacey defende a pluralidade de estraté-gias na pesquisa científica (tanto nas ciências naturais como nashumanas) mostrando que é somente em seu interior que os trêsvalores acima identificados podem ser mantidos ou crescentementemanifestados pela ciência. Este ponto é fundamental para a solu-ção da controvérsia sobre os transgênicos, pois o autor mostra quea adoção exclusiva da estratégia materialista – a que é reguladahegemonicamente pelo valor de controle do objeto natural e queinforma a produção dos transgênicos – rompe com os valores daatividade científica que podem ser compartilhados para além dasdiferenças internas em cada um dos momentos da pesquisa. Comisso, Lacey pode, então, reivindicar com sólidos fundamentos ummaior desenvolvimento de pesquisas e de políticas agrícolas base-adas em estratégias agroecológicas (opostas à estratégia materia-lista), mesmo que isso implique redução dos recursos financeiros,técnicos, institucionais e intelectuais aplicados na pesquisa com ostransgênicos.

Além do argumento anterior, fundamentado principalmentena filosofia da ciência, Lacey também desenvolve “uma análise danatureza dos valores e dos juízos de valor, que enfatiza que a ade-são a valores tem pressupostos factuais que freqüentemente estãosujeitas à investigação científica”. Em linhas gerais, tal análise in-vestiga a distância maior ou menor que pode existir entre a adoçãodiscursiva de valores e sua incorporação em vidas concretas, cons-

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RAMOS, Maurício de Carvalho

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tituídas por interações amplas entre os humanos e dos humanoscom outros seres, naturais ou culturais. Tal análise articula-se aoproblema dos transgênicos tomando-o como uma típica situaçãona qual se pode reduzir a distância entre os valores adotados e osvalores manifestos através da crítica de visões morais hegemônicasque inibem qualquer aspiração de transformação social. É uma ini-bição dessa natureza, aliada a uma falsa idéia da relação entre aciência e os valores, que tem mantido o lado pró-transgênicos maisvigorosamente aceito e valorizado.

Vejamos um rápido exemplo mais concreto, presente no texto,do que foi até aqui exposto. A legitimidade do desenvolvimento daestratégia de pesquisa que sustenta o incremento dos transgênicosé medida em função da capacidade que a estratégia materialistapossui de promover um dos três valores da ciência amplamentecompartilhados, a saber, a neutralidade. Uma das formulações quetal valor pode receber é a seguinte: “quanto às aplicações natecnologia e em projetos práticos, os resultados científicos podem serusados para servir interesses conectados a alguns (ou muitos) pon-tos de vista políticos”. Contudo, o conhecimento da biotecnologiatransgênica não possui “qualquer papel nos projetos das várias for-mas alternativas de agricultura, como, por exemplo, a agroecologia”.A diversidade de maneiras pelas quais as aplicações tecnológicasatendem perspectivas de valores (sociais, não-cognitivos) deve serconhecida por meio de investigação científica apropriada capaz derevelar factualmente em que medida uma estratégia fomenta a neu-tralidade. Tal pesquisa poderia mostrar que “o corpo atualmenteexistente de resultados científicos serve especialmente bem paraum tipo de projeto político a expensas de seus competidores” ouseja, os programas políticos ligados aos interesses do capital e domercado que são satisfeitos com o desenvolvimento da tecnociência.Se este for esse o caso, “parecerá estranho falar hoje em ciência como,de fato, ‘neutra’”. Podemos ver que, com tal diagnóstico, Lacey podeobter a adesão dos pesquisadores interessados em defender os va-

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lores da ciência ao apresentar outras estruturas éticasinstitucionalizadas nas quais a pesquisa poderia ser feita de modoa aproximar os valores que discursivamente afirmamos daquelesque concretamente praticamos.

Em suma, o esclarecimento ético e epistemológico que encon-tramos em A controvérsia sobre os transgênicos mostra que conduzira ciência por estratégias alternativas à materialista não é um sonhonostálgico de uma vida irremediavelmente perdida, mas uma pos-sibilidade obscurecida por interesses bastante restritos de certasorganizações políticas e sociais historicamente contingentes. Maisdo que isso, penso que tal modelo poderá ser utilizado no encami-nhamento de soluções racionais para questões análogas à dostransgênicos, a saber, aquelas que se opõem à alegada racionalidadeda associação mercado-tecnociência, mas que preservam o valordas conquistas teóricas e práticas da ciência.

Recebido em: maio de 2006Aprovado em: julho de 2006

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NORMAS PARA A APRESENTAÇÃODE TRABALHOS

Os trabalhos devem ser entregues em três vias impressas,digitados em Word for Windows, espaço duplo, papel tamanho A4,com margens de 3cm, fonte Times New Roman, tamanho 12, notasde rodapé deverão ser digitadas em tamanho 10. Os artigos nãodevem ultrapassar 30 laudas (de 20 linhas), ou 6 mil palavras, inclu-indo as ilustrações – gráficos, tabelas, fotografias etc; as resenhasnão devem ultrapassar 5 laudas. As traduções terão uma extensãoflexível, conforme critério do conselho editorial e do comitê cientifico.

As ilustrações devem ser de qualidade, separadas do texto, nu-meradas em algarismos arábicos. Os gráficos devem ser apresenta-dos no programa Excel ou no Word.

Título do trabalho e subtítulo (se houver) devem ser centraliza-dos. Nome do(s) autor(es) alinhado(s) à direita. Indicar, em nota derodapé: titulação, instituição de origem e e-mail para contato do(s)autor(es) e órgão financiador da pesquisa (se houver).

Cada artigo deve ser acompanhado de um resumo em portugu-ês e em língua estrangeira (inglês ou francês), com até 180 pala-vras, e até 5 palavras-chave. As resenhas de livros publicados nosúltimos dois anos a contar da data de publicação da revista devemconter três palavras-chave.

Os trabalhos recebidos serão enviados a pareceristas ad hocque irão se manifestar quanto à sua aceitação.

Os autores, que tiverem seus trabalhos aprovados para publica-ção, encaminharão uma cópia impressa e arquivo em disquete ouCD-ROM, com a seguinte organização:

· Quadros, mapas, tabelas etc. em arquivo separado, com indi-cações claras, ao longo do texto, dos locais em que devem serincluídos.

· As citações de autores, no decorrer do texto, seguem a forma –(Autor, data) ou (Autor, data, página), como nos exemplos:(JAGUARIBE, 1962) ou (JAGUARIBE, 1962, p. 35). Se houvermais de um título do mesmo autor no mesmo ano, eles sãodiferenciados por uma letra após a data: (ADORNO, 1975a),(ADORNO, 1975b) etc.

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· Colocar como notas de rodapé apenas informações complemen-tares e de natureza substantiva, restringindo-se ao mínimo ne-cessário. Elas devem ser digitadas ao final da página, numera-das em algarismos arábicos e em ordem seqüencial.

· As referências devem ser colocadas no final do artigo, em or-dem alfabética, de acordo com as normas da ABNT.

REFERÊNCIAS

Todas as obras referenciadas devem ser alinhadas à esquerda.Os nomes dos autores podem ser abreviados. Recomenda-se

utilizar o mesmo padrão para abreviação de nomes e sobrenomesusados na mesma lista de referência.

Livro: sobrenome do autor (em caixa alta), nome (em caixaalta e baixa). Título. nº da edição, se não for a primeira. Local dapublicação: editora, ano. Número de páginas. Exemplo:

BOGDAN, Robert; BIKLEN, Sari Knopp. Investigação qualita-tiva em educação: uma introdução à teoria e aos métodos.Tradução Maria João Alvarez, Sara Bahia dos Santos e TelmaMourinho Baptista. Porto (Portugal): Porto, 1994. 336 p.

Artigo: sobrenome do autor, seguido do nome (como no item an-terior). Titulo do artigo. Nome do periódico, local da publicação, volu-me, página inicial e final, data ou intervalo da publicação. Exemplo:

REZENDE, Fernando. A imprevidência da previdência. Revistade Economia Política, São Paulo, v. 4, n. 2, p. 51-68, abr./jun. 1984.

Parte de publicação: sobrenome do autor, seguido do nome(como nos itens anteriores). Titulo: subtítulo (se houver). In: sobre-nome do autor, seguido do nome (como nos itens anteriores). Títuloda obra: subtítulo (se houver). Número da edição. Local de publica-ção: editora, data de publicação. Número do volume e, ou localiza-ção da parte referenciada. Exemplo:

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PORTO, Edgard. Desenvolvimento regional na Bahia. In:AVENA, Armando (Org.). Bahia século XXI. Salvador:SEPLANTEC, 2002. p. 97-128.

Teses acadêmicas: sobrenome do autor, seguido do nome(como nos itens anteriores). Título. Ano. Número de folhas. Grauacadêmico a que se refere (titulação) – Faculdade. Instituição emque foi apresentada, local, ano. Exemplo:

LOPES, Roberto Paulo Machado. Universidade pública edesenvolvimento local: uma abordagem a partir dos gastosda Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. 2001. 150 f.Dissertação (Mestrado em Economia) – Faculdade de CiênciasEconômicas, Universidade Federal Da Bahia, Salvador, 1998.

Endereço para envio do trabalho

REVISTA Especiaria – Cadernos de Ciências HumanasUNIVERSIDADE ESTADUAL DE SANTA CRUZ – UESC

Rod. Ilhéus – Itabuna, Km 16 – Torre Administrativa – 3º AndarSalobrinho – Ilhéus – Bahia CEP 45650-000

Maiores informações com o EditorProf. Paulo Cesar Pontes Fraga, Fone (73) 3680-5386

e-mail: [email protected] / [email protected]

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IMPRENSA UNIVERSITÁRIA

COORDENAÇÃO GRÁFICA: Luiz Henrique FariasDESIGNER GRÁFICO: Cristovaldo C. da SilvaIMPRESSÃO: Davi Macedo e André Andrade

ACABAMENTO: Nivaldo LisboaSECRETÁRIO: Adilson Arouca

IMPRESSO NA GRÁFICA DA Universidade Estadual de Santa Cruz - ILHÉUS-BA