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(RE)PENSANDO A LEI Nº 11.340/2006 SOB A LUZ DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE: quem é Maria? Filipe Martins, Caren Cidreira e Mariana Sampaio 1 Resumo Este artigo tem por finalidade contribuir para o alargamento do complexo debate acerca da violência de gênero e a possibilidade de aplicação da Lei “Maria da Penha” aos que possuem o gênero feminino. Inicialmente versa sobre o conceito de gênero e a (in)diferença ao conceito de sexo a partir dos entendimentos de Judith Butler. Logo após, busca-se o alcance da aplicação da Lei 11.340/2006 no combate a violência de gênero. E, por fim, evidenciar e (re)pensar seletividade das vítimas protegidas pela referida lei, em razão da sua heteronormatividade. Palavras-Chave: Conceito de gênero. Heteronormatividade. Lei “Maria da Penha”. Abstract This article has the purpose of contribute to widen the complex debate about gender-based violence and the possibility to apply “Maria da Penha” Law to people who has feminine gender. At the beginning this article handles about the gender’s concept and its (dis)similarity to sex’s concept through Judith Butler’s thoughts. Right after we investigate about the reach of Law 11.340/2006’ s application to the combat against gender-based violence. And at last this article intends to show and (re)think about the selectivity of protected victims by the mentioned law because of its heteronormativity. Keywords: Gender’s concept. Heteronormativity. “Maria da Penha” Law. 1 Formação Superior. Estudantes de Graduação. Unidade de Ensino Superior Dom Bosco UNDB. E-mail: [email protected]; [email protected]; [email protected]

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(RE)PENSANDO A LEI Nº 11.340/2006 SOB A LUZ DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE: quem é Maria?

Filipe Martins, Caren Cidreira e Mariana Sampaio1

Resumo Este artigo tem por finalidade contribuir para o alargamento do

complexo debate acerca da violência de gênero e a

possibilidade de aplicação da Lei “Maria da Penha” aos que

possuem o gênero feminino. Inicialmente versa sobre o

conceito de gênero e a (in)diferença ao conceito de sexo a

partir dos entendimentos de Judith Butler. Logo após, busca-se

o alcance da aplicação da Lei 11.340/2006 no combate a

violência de gênero. E, por fim, evidenciar e (re)pensar

seletividade das vítimas protegidas pela referida lei, em razão

da sua heteronormatividade.

Palavras-Chave: Conceito de gênero. Heteronormatividade.

Lei “Maria da Penha”.

Abstract This article has the purpose of contribute to widen the complex

debate about gender-based violence and the possibility to apply

“Maria da Penha” Law to people who has feminine gender. At

the beginning this article handles about the gender’s concept

and its (dis)similarity to sex’s concept through Judith Butler’s

thoughts. Right after we investigate about the reach of Law

11.340/2006’ s application to the combat against gender-based

violence. And at last this article intends to show and (re)think

about the selectivity of protected victims by the mentioned law

because of its heteronormativity.

Keywords: Gender’s concept. Heteronormativity. “Maria da

Penha” Law.

1 Formação Superior. Estudantes de Graduação. Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB. E-mail:

[email protected]; [email protected]; [email protected]

1. INTRODUÇÃO

A violência contra a mulher é um fenômeno secular, fruto de relações

historicamente desiguais em consequência da sociedade patriarcal que se formou no

decorrer das gerações, desigualdades presentes em nossa sociedade que não se limitam ao

gênero, mas a raça, sexualidade, classe, dentre outros fatores que moldam a coletividade

nos dias contemporâneos. Dentre tantas formas de violência em razão das desigualdades,

destaca-se no presente artigo a violência de gênero, em regra entre homem (sujeito ativo) e

mulher (sujeito passivo) de tal relação, todavia, não se limitando a tal problemática, que

consequentemente, engessaria toda a discussão que envolve o gênero e os seus

desdobramentos.

Violência de gênero é um conceito amplo, que não se limita a mulheres, trata-se

de um mal que atinge crianças, adolescentes, adultos de ambos os sexos, sexualidades e

gêneros. É fato que nos moldes da sociedade patriarcal que se vive, o homem detém o

poder de determinar as condutas sociais que são toleradas pela sociedade. No entanto,

percebe-se que tal doutrinação, muitas vezes, ocorre por mulheres a outras mulheres, ou

por vezes, tem como vítimas da violência os homens. E, neste contexto apresentado surge

em 2006 a Lei nº 11.340/2006, também chamada de “Lei Maria da Penha”.

A lei Maria da Penha busca intensificar o combate à violência de gênero, e, por

conseguinte, os debates acerca do tema. É notório os benefícios trazidos pela referida lei, e

os avanços alcançados através da mesma, pelas discussões, e do maior rigor do Estado ao

punir os agressores.

Por outro lado, questiona-se o alcance da lei, a partir das discussões existentes

sobre sexo, gênero, e sexualidade, pois, o que ainda se percebe é a heteronomartividade da

lei Maria da Penha, visto que sua aplicação ainda se limita, em muitos casos, a mulheres

que estão dentro de determinados padrões, ditos aceitos pela nossa sociedade patriarcal,

então, questiona-se, a partir do estudo da lei 11.340, quem é Maria?

2. DESENVOLVIMENTO

2.1 Surgimento da Lei Maria da Penha

A Lei nº 11.340 de 2006, conhecida popularmente como “Lei Maria da Penha”,

ganhou tal nome devido à conturbada vida de Maria da Penha Maia Fernandes, que sofreu

diversas agressões pelo seu próprio marido, como ter ficado paraplégica por ter sido

baleada por ele. Por tal motivo, Maria da Penha travou uma árdua batalha a fim de que seu

agressor pudesse ser condenado pelos atos praticados contra ela. O processo contou com

vários problemas, como alegação de irregularidades pela defesa, o que acaba postergando

o sofrimento de Maria da Penha, enquanto seu marido continuava solto (CFEMEA, 2009).

Quando finalmente a Justiça brasileira condenou seu marido por dupla tentativa

de homicídio, este graças a sucessivos recursos de apelação conseguiu ficar em liberdade.

Assim, restou a Maria da Penha com ajuda do Centro pela Justiça e o Direito Internacional

(CEJIL), entidade não governamental aliada a OEA, pleiteou uma denuncia contra o Brasil a

respeito do caso e esta foi acatada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da

Organização dos Estados Americanos (MARANHÃO, 2010), e assim esta condenou o

Brasil, bem determinou que este deveria adotar medidas para coibir a violência domestica

contra as mulheres no país.

Deste modo, o governo brasileiro sancionou a Lei 11.340 no ano de 2006,

dando-lhe o nome de Lei Maria da Penha, que trouxe inovação ao ordenamento jurídico

brasileiro, uma vez que criou mecanismos para evitar a violência doméstica e familiar, bem

como proteger a mulher que é vítima desse tipo de violência, algo que até então não existia,

de modo que promove uma ruptura aos valores sociais que naturalizavam a violência

doméstica contra a mulher, moldados pela ideia de supremacia masculina e subordinação

feminina, justificados por equivocados pressupostos biológicos que entendem a mulher

como inferior, frágil, com menos força física e também racional, e por sua natureza

doméstica, deve ser dominada, pois requer que alguém a proteja, e para tal às vezes

precisa de correções, sendo passiva de violência, e estas ideias errôneas acabam por

ensejar a violência no dia a dia de tantas mulheres no Brasil (CUNHA, 2014).

2.2 A (in)diferença entre sexo e gênero

A dualidade sexo/gênero parte da ideia de que o sexo é algo natural e o gênero

é o que é socialmente construído para que a pessoa seja, e isto é o cerne da

problematização de Judith Butler. Simone de Beauvoir (1980, p. 277) inicia os estudos sobre

gênero, ao passo que questiona a falta de justificativas na história sobre a diferenciação

entre “fêmea” e “mulher”, e ainda o peso dessas definições sobre os papéis cheios de

imposições já definidas a cumprir. Tratar o sujeito com termos já instalados faz-se entender

que o ser humano se constitui biologicamente e culturalmente por tais somente, e definir

alguém como fêmea refere-se ao sexo, que é sua constituição biológica, e o que define

alguém como mulher é o gênero, sua constituição cultural. Esta regra define os sujeitos em

sociedade e os condena a estar eternamente condenados com a condição que nasceram,

bem como as atribuições ou características, como um processo imutável e assim “o gênero

não deve ser meramente concebido como a inscrição cultural de significado num sexo

previamente dado”, […] tem de designar também o aparato mesmo de produção mediante o

qual os próprios sexos são estabelecidos” (BUTLER, 2010, p. 25).

Ainda que a referida lei tenha sido criada para proteger a mulher, nos dias atuais

não se pode mais ignorar a realidade social, e esta possui novos conceitos de família,

independentemente do sexo dos parceiros, visto que se trata da junção de pessoas em que

exista afeto.O poder judiciário lotado de demandas acaba por pressionar aos outros poderes

medidas no âmbito homossexual quanto ao que se refere juridicamente, as quais o poder

legislativo e executivo se mantem inerte, permanecendo a ideia da heteronormatividade, ao

qual se entende como a reprodução de práticas e códigos heterossexuais, sustentada pelo

casamento monogâmico, amor romântico, fidelidade conjugal, constituição de família

(esquema pai-mãe-filho (a) (s) (FOSTER, 2001, p. 19).

Deste modo, a homossexualidade é frente oposição à hierarquia heterossexual,

e esta última é legitimada através da opressão, da violência, esmagando a

homossexualidade enquanto possibilidade de manifestação legítima da sexualidade

humana, o que deve ser combatido veementemente.

Com as críticas à heteronormatividade, teóricos e teóricas queer sugerem que é fundamental uma mudança efetiva que desestabilize e destrua a lógica binária de gênero e seus efeitos controladores: a exclusão, a hierarquia, a classificação, a dominação, a segregação. Para empreender tal mudança, a teoria queer tem como construto metodológico a desconstrução e a contestação como métodos de análise e crítica sociocultural (BORBA, 2009).

A lei está inserida através da teoria de gênero, à qual se acrescem todos os

direitos humanos assegurados de um modo geral. Trata-se, assim, de se atentar para as

particularidades das mulheres, do sexo feminino e, de aquém, procura gerar igualdade

real, e não apenas formal em relação aos homens, e a Lei Maria da Penha é tentativa

primária para tal. A sua aplicação cabe então não a mulher entendia de forma restrita, mas

englobando todos que assim se compreendem, logo que “descabe deixar à margem da

proteção legal aqueles que se reconhecem como mulher” (DIAS, 2012, p. 61-62), bem como

os que assim não se reconhecem também, vez que:

No momento em que é afirmado que está sob o abrigo da lei a mulher, sem se distinguir sua orientação sexual, alcançam-se tanto lésbicas como travestis, transexuais e transgêneros que mantêm relação íntima de afeto em ambiente familiar ou de convívio. Em todos esses relacionamentos, as situações de violência contra o gênero feminino justificam especial proteção (DIAS, s.d.).

Nesse mesmo sentido, Luiz Flávio Gomes (2010) aduz que “as medidas

protetivas da lei Maria da Penha podem (e devem) ser aplicados em favor de qualquer

pessoa (desde que comprovado que a violência teve ocorrência dentro de um contexto

doméstico, familiar ou de relacionamento íntimo)”, ou seja, nada importa se esta vítima é

transexual, homossexual.O judiciário brasileiro não protege de forma ampla gêneros, mas

foca na proteção dos entes, seja mulher ou homem, compreendidos estes de forma

restrita, como somente o sexo de nascimento somente, e assim transexuais não são

incluídos, sendo então marginalizados, não possuem essa proteção que deveria ser para

todos.

A discussão sobre papéis socialmente instruídos e designados a homens e

mulheres, bem como o entendimento das influências e consequências que esse sistema

de submissão feminina e dominação masculina chamado patriarcalismo, e tal expressão

advém da palavra família, e esta foi criada pelos romanos para designar um novo

organismosocial, cujo chefe mantinha sob seu poder a mulher, os filhos e certo número de

escravos, como pátrio poder romano e o direito de vida e morte sobre todos eles”

(ENGELS, 2000, p. 61). Baseia-se em concepções arcaicas de família, bem como gênero,

sexo e sexualidade, em que todos deveriam ser submissos ao homem da casa, o pai, a

figura paterna que é detentora do poder sobre toda a família, e sua ruptura requer estudos

acerca de conceitos de gênero.

A transsexualidade é uma inadequação do gênero compreendido pela pessoa

com seu sexo biológico, ou seja, a exemplo, uma pessoa nasceu com órgão reprodutor

feminino, logo se entende que esta seja mulher, mas tal pessoa nunca se percebeu como

tal, mas se sente como sendo do sexo masculino. Assim, “transexuais sentem que seu

corpo não está adequado à forma como pensam e se sentem, e querem corrigir isso

adequando seu corpo ao seu estado psíquico. Isso pode se dar de várias formas, desde

tratamentos hormonais até procedimentos cirúrgicos.” (JESUS, 2012, p. 09) e Berenice

Bento (2008, p. 18) afirma que “a transexualidade é uma experiência identitárias,

caracterizada pelo conflito com as normas de gênero”.

2.3 Violência de gênero

Violência pode ser definida como o uso da força física, psicológica ou intelectual

para obrigar alguém a fazer algo contra sua vontade, bem como impedir a manifestação de

desejo e vontade de outrem. Trata-se de meio utilizado para manter a outra pessoa sob seu

domínio (TELES; MELO, 2003, p. 15), bem como pode é ruptura de qualquer forma de

integridade da vítima, seja de forma física, psíquica, sexual ou moral (SAFFIOTI, 2004, p.

17). Sendo isto uma clara violação de direitos, o que deve amplamente combatido. Ao que

se refere à violência de gênero, esta refere-se à algo enraizado na cultura, logo que trata da

relação de poder, dominação do homem sobre a mulher, em que esta é totalmente

submissa, vez que esta cultura foi consolidada ao longo da história e reforçada pelo

patriarcado (TELES; MELO, 2003, p. 18).

A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra

a Mulher, comumente conhecida como Convenção Belém do Pará, define violência contra a

mulher como “qualquer ato de violência baseada na diferença de gênero, que resulte em

sofrimento edanos físicos, sexuais e psicológicos da mulher; inclusive ameaças de tais atos,

coerção eprivação da liberdade, seja na vida pública ou privada” (SOARES, 2005, p. 14).

Para tal, resta claro que o homem assim é o agressor, dominador e

repreendedor, e a mulher, o indivíduo do sexo feminino, é o principal alvo dessa violência.

Isto é não é apenas um fato da sociedade moderna, mas algo que já acontece há muito

tempo, uma vez que as diferenças entre homens e mulheres têm sido ordenadamente

transformadas em justificativas para as desigualdades em detrimento do gênero feminino, e

assim se tem a violência contra mulher, na esfera familiar e doméstica, a forma mais severa

de apresentação dessa ideia autoritária de subordinação feminina. Assim, a violência contra

a mulher é aquela praticada pelo homem contra pessoa do sexo feminino, apenas por uma

condição específica: ser mulher.

A violência pode ocorrer de forma física, sexual, psicológica, patrimonial ou

moral, como estão enumeradas no art. 7º, incisos I a V da Lei 11. 340/2006, e pode ocorrer

em qualquer lugar do mundo, bem como nas mais diversas classes sociais, raças, gerações,

etnias, grupos sociais, relações, uma vez que se trata de um problema social, não podendo

assim ser entendido como resultado de problemas financeiros, dependências químicas ou

outros fatores como muito se entendia. A Lei busca proteger e garantir os direitos dessas

mulheres vítimas de violência, desde que no âmbito doméstico, familiar,e

independentemente de orientação sexual, mas referindo-se ao gênero feminino, e ao usar o

termo “mulher”, refere-se aquela que possui em seu registro civil o sexo feminino. Refere-se

refere-se a “mulher” especificadamente, seja em casos heterossexuais, mas também as

mulheres em relações homoafetivas, mas deixa de incluir pessoas que não nasceram

mulher, como os transexuais por exemplo.

A violência de gênero surge a partir da ideia na qual homens e mulheres não

possuem direitos iguais, sendo o primeiro sujeito de direitos enquanto o ultimo apenas

objeto na relação. Essa violência pode ser compreendida como uma violência física, moral,

mental, intelectual ou social, tais espécies foram trazidas pela lei 11.340/06, conforme

estabelece o art. 2º da referida lei:

Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e

facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social (grifo nosso).

Primeiramente, chama a atenção a necessidade de o legislador ressaltar que “a

mulher goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana”, traduzindo

perfeitamente os reflexos da sociedade patriarcal vigente. Ou seja, é necessária uma lei

para afirmar que a mulher é sujeito de direitos iguais aos homens, vale lembrar que a

Constituição da República de 1988 já trazia essa ideia 18 anos antes da lei 11.340/06,

estabelecendo em seu art. 5º, I que:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; (grifo nosso).

Além disso, é importante entender que a “violência contra a mulher” não

representa o oposto da “violência contra o homem”, e tampouco que a violência contra a

mulher tem somente como sujeito ativo o homem. À violência contra a mulher não se limita

a agressão, mas remete a relações seculares, patriarcais de gênero e a desigualdade que

há em razão de identidade, sexualidade e sexo.

2.4 Heteronormatividade e violência de gênero sob a perspectiva da Lei “Maria da

Penha”

A heteronormatividade pode ser entendida como uma violência a todos

aqueles que não observam as regras da sexualidade “normal”, ou seja, a todos aqueles que

não são heterossexuais. O termo “hetero” tem origem grega, que significa “diferente”,

enquanto “norma” vem do latim “esquadro”, trata-se de um preceito, conjunto de regras.

Dessa forma, entende-se heteronormatividade a imposição de um conjunto de

regras, normas que devem se enquadrar aos ideais heterossexuais, erroneamente

chamados de “normais” na sociedade, e ir contra tal discurso, ideologia, resulta na

marginalização, opressão e discriminação, tanto dos “anormais” que não se enquadram no

ideal de sexualidade imposto, quanto aos que são simpatizantes a causa (LIMA, 2015).

Dentro da ideia de heteronormatividade trabalhada neste capítulo, busca-se a

análise da lei 11.340/2006. É indiscutível, inegável os reflexos positivos da lei “Maria da

Penha”, a partir da positivações e consequências da violência contra a mulher foi possível

destacar mais o assunto, oportunizar debates acadêmicos e sociais e acordar a sociedade

para algo iminente que com o passar dos séculos se tornou banal.

Ainda não é possível (e nunca será) a diminuição de práticas delitivas através da

punição, e com a lei 11.340/2006 isto não seria diferente, em que os relatórios do IPEA

(Instituto de Pesquisa e Economia Aplicada) mostra que em 10 anosda lei, verificou-se

apenas uma queda de 10% de homicídios em decorrência da violência de gênero contra a

mulher. Em outras palavras, percebe-se que a lei “Maria da Penha” é muito faz eficaz em

uma perspectiva socioeducativa, por fomentar os debates acerca do tema, do que sob uma

perspectiva punitivista e repressora, onde os dados mostram sua eficácia mínima, quase

inexistente.

Feitas as ressalvas quanto a importância da lei em questão, é necessária uma

reflexão acerca da mesma, que em vários momentos revela padrões heternomartivos,

reproduzidos pelos operadores do direito. Partido para o texto normativo da lei, sua

introdução traz uma boa síntese da Lei Maria da Penha:

Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos

termos do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. (grifo

nosso)

Durante todo o texto da referida lei uma coisa fica muito clara: Trata-se de

violência contra a mulher; o problema é que em nenhum momento a lei diz o que é mulher.

Segundo Simone Beauvoir “ninguém nasce mulher, torna-se”, enquanto isso Judith Butler

defende que o que define o sexo feminino e masculino não é como nascimentos, o corpo e o

sexo são historicizados, e, portanto, o que define homens e mulheres são o seu gênero,

este socialmente construído (OLIVEIRA, 2010).

A partir do surgimento da lei em questão, popularmente chamada de Lei Maria

da Penha intensificaram-se os debates acerca da caracterização do gênero feminino, dentre

as ideias defendidas uma está eivada de heteronomartividade, a mesma afirma que “mulher”

é quem possui o sexo natural feminino, possui o gênero feminino e é heterossexual. A

segunda corrente fundamenta de forma contrária a primeira, afirma que o sexo é natural,

mas o gênero é socialmente construído, sendo assim, quando a legislação visa a proteção

da “mulher” refere-se à do gênero feminino, surgindo então a celebre frase de Simone

Beauvoir “ninguém nasce mulher, torna-se mulher”. A terceira corrente surge a partir das

fundamentações de Judith Butler mas que ao invés de construir o conceito de sexo e

gênero, propõe a desconstrução dos conceitos existentes e defende que o gênero nunca

derivou do sexo, e ao mesmo tempo os mesmos nunca foram distintos, pelo contrário, o

sexo natural que deriva do gênero socialmente construído, o primeiro é compreendido

através do segundo (BUTLER, 2015).

Após a Constituição Federal de 1988, a partir da nova concepção de Estado

democrático de direito, abriu-se o leque de garantias e direitos fundamentais, individuais e

sociais. Dentre os princípios radiados pela Constituição, encontra-se o da isonomia ou

igualdade, que busca a paridade entre homens e mulheres, tanto formal (todos são iguais

perante a lei) quanto material (tratar os iguais de forma igual e os desiguais de forma

desigual na medida de suas desigualdades).

Porém, mesmo após a iluminação dos princípios constitucionais sobre o

ordenamento jurídico brasileiro, a violência contra a mulher permaneceu, sem a real

proteção a mulher, tampouco àqueles que possuem o gênero feminino ou as relações

homoafetivas. Diante disso, a lei 11.340/2006 fora criada como resposta a tal violência, e

principalmente como resposta a pressão exterior a de(mora) legislativa do Brasil ao amparo

a esta classe historicamente marginalizada (LIMA, 2015).

A heteronormatividade é uma forma ainda atual, dominante de ideologia, em que

enseja padrões a serem seguidos ao que se refere à sexualidade, em que se reproduz

apenas práticas heterossexuais, ou seja, apenas relações com sexos opostos, casamento

monogâmico, criação da família tradicional com pai, mãe filhos, e qualquer coisa diferente

disto não é aceito, tendo assim uma espécie de compulsoriedade à heterossexualidade,

sendo um imperativo inquestionável pelos membros da sociedade a fim de legitimar práticas

heterossexuais como apenas esta sendo corretas (FOSTER, 2001), o que enseja

recriminação de práticas homossexuais, de modo que a lei então define seus sujeitos

apenas aos que se enquadram nesse padrão hétero, uma vez que o sexo estaria dividido

em apenas duas categorias, bem como as pessoas. Isto fomenta ainda mais a dicotomia

entre mulheres e homens, homossexuais e heterossexuais, sexo frágil e sexo forte, etc. São

estabelecidas assim as desigualdades, através da hierarquização do poder masculino sobre

a mulher, e isto influencia os padrões normativos, já implantado na sociedade, reforçado

pelo senso comum, discursos religiosos ou até mesmo duvidosas teses científicas que

buscam fundamentos biológicos para tal.

Deste modo, a heteronormatividade é baseada nas instituições sociais

existentes na sociedade, influenciado e sendo influenciado pelo modo de vida, cultura,

visões de mundo do que se define como ser humano, e este na sociedade atual é entendido

como heterossexual, “cidadão de bem”, de casamento monogâmico, fiel, frequentador

assíduo da igreja e executor da moral e dos bons costumes, e este é o padrão. O

ordenamento jurídico brasileiro busca proteger apenas este padrão em sua maioria, e este

sistema normativo afeta toda a sociedade, deixando de lado aqueles que não se enquadram

nas características anteriores, e a norma é mecanismo disciplinar do corpo e regulador da

população nesse sentido, visto que a heterossexualidade se legitima através da opressão da

homossexualidade, da supressão desta enquanto possibilidade legítima de manifestação da

sexualidade humana.

A heteronormatividade refere-se à repetição de atos que criam a identidade

humana através de um padrão estabelecido como ideal e único, mas estes são alheios à

realidade, sendo perfomativos segundo Butler, que assim os define que “a essência ou a

identidade que pretendem expressar são fabricações manufaturadas e sustentadas por

signos corpóreos e outros meios discursivos” (BUTLER, 2005, p. 21), e esses atos de

gênero e sexualidade são regulados por normas que estabelecem como homens e mulheres

devem ou não agir, ou seja, o gênero aqui é definido não através do aparelho sexual

biológico, mas através de um discurso que o define e anuncia tal como sexuado.

Assim, pessoas que são se encaixam no padrão heteronormativos jamais podem

ser deixadas de lado, sendo estes também sujeitos de direito que devem ser considerados

como o são, como corpos desviados do padrão e que jamais estarão adequados a este.

Deste modo, a Lei Maria da Penha foi um grande avanço na legislação brasileira, pois

incluiu pela primeira vez a existência de uniões homoafetivas no sistema jurídico brasileiro, e

ao afirmar que esta lei refere-se a toda mulher, independente de orientação sexual, traz

respaldo a estas relações, plenamente reconhecidas como entidades familiares.

Apesar disso, ainda há muito a ser repensado, uma vez que a lei até pouco

tempo possuía entendimento restrito da palavra “mulher”, em que a definia apenas aquela

do sexo feminino, que nasceu com o órgão reprodutor feminino somente seria a vítima, mas

em função da referência da própria lei em relação à indiferença a orientação sexual da

vítima, há novos entendimentos jurisprudenciais ao reconhecimento da aplicação da lei a

mulheres transexuais, já que a lei refere-se à identidade de gênero do sexo feminino, e

assim o juiz Alberto Fraga, do I Juizado Especial Criminal e de Violência Doméstica e

Familiar Contra a Mulher da comarca de Nilópolis, concedeu a um transexual, pessoa tal

que se identifica com gênero diverso do sexo designado em seu nascimento, o direito de ter

medidas protetivas garantidas pela referida lei, e assim afirmou quanto ao reconhecimento

desta transexual como sujeito passivo legítimo desta:

Com relação ao transexual, tem-se que esse possui uma necessidade íntima de adequação ao gênero com o qual se identifica psicologicamente, tanto física quanto socialmente. Neste sentido, deve se concluir que o transexual deve ser visto como pessoa do gênero feminino, devendo ser dito que o procedimento cirúrgico ou a alteração registral não podem ser determinantes para que o transexual seja considerado pertencente ao gênero com o qual ele já se identifica intimamente.

Erroneamente se entende que o transexual sendo de sexo masculino não

poderia sofrer violência de gênero, mas antes desta definição simplista existe a identidade

do sujeito, o gênero com o qual este se identifica, definido por este e nem sempre está de

acordo com o sexo de nascimento, portanto, refere-se ao sentimento da pessoa em relação

ao seu corpo e suas características, e para tal, o juiz citado anteriormente defendeu que:

Em atenção ao princípio da dignidade da pessoa humana, é imprescindível que a livre escolha do indivíduo, baseada em sua identidade de gênero, seja respeitada e amparada juridicamente a fim de se garantir o pleno desenvolvimento da personalidade humana. Entendimento diverso a esse configuraria verdadeira discriminação, deixando em desamparo o transexual, o que não pode ser chancelado por esse juízo

Observa-se com certa frequência que a doutrina e jurisprudência, em muitos

casos, assumem para si a responsabilidade da melhor interpretação em respeito à

constituição, quando o legislador se faz omisso. Definir o conceito de mulher não é possível,

qualquer definição levaria a um grande reducionismo eivado de equívocos.

Homens e Mulheres não são seres que não possuem essência que os

caracterizam, a sociedade é historicizada de modo que qualquer conceito ou definição dos

mesmos recairia na metafísica. Portanto, busca-se a proteção a mulher, não a sua

conceituação, mulher, segundo a doutrina moderna constitucionalista é aquela que se vê

como tal, afinal, ninguém é mulher, torna-se.

3 CONCLUSÃO

Observou-se durante o presente trabalho a complexidade do tema discutido, ao

ponto que, mesmo após extenso debate, não se pode chegar a uma posição unânime,

principalmente frente ao controvertido poder legislativo, que diverge sobre a definição do

gênero.

Inicialmente, fez-se necessário traçar um panorama geral acerca do discurso do

gênero, e a quem serve a sua construção heteronormativa, ou a desconstrução do mesmo a

partir das fundamentações de Butler. Paralelamente a isso, questiona-se a aplicação da Lei

Maria da Penha para além do sexo natural mulher, tal extensão decorre do gênero, que

socialmente construído ampliar-se-á o leque de amparo maior através desta conceituação,

e, consequentemente, divergem os tribunais quanto à amplitude da aplicação.

Mostrou-se ainda que apesar dos avanços, pouca foi a efetividade da Lei

11.340/2006 em conjunto com o princípio da igualdade, isto porque, apesar da quebra de

conceitos e as mudanças de paradigmas alcançadas através dos movimentos trans a

de(mora) legislativa prejudica gravemente os progressos conquistados pelos grupos LGBTT

frente a uma sociedade e juristas completamente positivistas, presos ao civil law.

Conclui-se que a lei “Maria da Penha” (11.340/2006), sob a luz do princípio da

igualdade previsto da Constituição Federal, deve ser analisada de forma que proteja o maior

numero de vulneráveis possíveis, e tal vulnerabilidade não pode ser avaliada de forma

biológica, faz-se necessário o viés social sob a luz da constitucionalidade da lei, ademais,

expressa o art. 5º da Constituição Federal (BRASIL, 2014, p. 13): Todos são iguais

perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos

estrangeiros residentes no País a inviolabilidade, à igualdade, à segurança e a

propriedade”.(Grifo Nosso).

REFERÊNCIAS

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