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RELIGIÃO E CULTURA NO ALTO RIO NEGRO: UMA ANÁLISE DA FESTA DE
SANTO NA COMUNIDADE INDÍGENA DE SÃO JOAQUIM – AMAZONAS/BRASIL
11Leticia Alves da Silva
2Marilene Alves da Silva
RESUMO
A “festa de santo” é uma das festividades religiosas celebrada na maioria das comunidades
indígenas da Amazônia brasileira, constitui um espaço simbólico que ajuda a manter as
relações de identidade do lugar. A manutenção e o fortalecimento da identidade cultural
possibilitada pela festa é um dos motivos que Melo (2009) destaca como sendo, em sua
maioria, o que mantêm os moradores de um determinado lugar interessados em continuarem
vivendo ali. Entretanto, existem comunidades que são ocupadas sazonalmente, especialmente
para realização das “festas de santo”. Podemos perceber esta situação na comunidade indígena
de São Joaquim, localizada no Alto rio Negro, que é densamente ocupada somente nos dias da
festa do Santo padroeiro. Desta forma, o presente estudo almeja evidenciar a importância da
festa de Santo como um dos elementos de produção da identidade e reforço do sentimento de
pertencimento do lugar. Pois ao longo dos anos, a festa de São Joaquim vem se tornando um
evento de grande importância cultural e religiosa no Alto rio Negro. Nesse sentido, o estudo
propõe demonstrar a importância das festividades religiosas na manutenção e fortalecimento
da identidade indígena na Amazônia brasileira e em especial no Alto rio Negro. Desse modo,
a metodologia pautou-se no levantamento e revisão bibliográfica; Pesquisa documental dos
aspectos histórico-culturais das comunidades indígenas do Alto rio Negro e festividades
religiosas realizadas por elas e em especial da comunidade de São Joaquim. A Pesquisa de
campo adotou a observação direta a partir de visitas a comunidade nos períodos festivos e
comuns. Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com os grupos étnicos que pertencem
e frequentam a referida comunidade.
PALAVRAS-CHAVE: Festa de santo. Identidade. Alto rio Negro. São Joaquim. Cultura.
INTRODUÇÃO
Entre as diversas manifestações culturais na Amazônia as festas religiosas imprimem
na paisagem os mais diversos significados, diferenciando e qualificando os lugares com
características singulares que só existem durante o período da festa.
De acordo com Priore (1994,p.13):
(...) as festas nasceram das formas de culto externo, tributado geralmente a uma
divindade protetora das plantações, realizado em determinados tempos e locais.
Mas, com o advento do cristianismo, tais solenidades se modificaram quando a
1 ;2 Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas – IF-AM
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Igreja determinou dias que fossem dedicados ao culto divino, considerando-os dias
de festa, os quais formavam em seu conjunto o ano eclesiástico.
Nesse contexto, as festas religiosas geralmente configuram-se como eventos
conectados ao sacramentalismo cristão que remetem ao universo mental de determinado
grupo, influenciando no espaço, na cultura e no modo de vida dos participantes.
Saraiva e Silva (2006) ressaltam que desde a chegada dos portugueses na costa
brasileira e posterior entrada no interior do país com o intuito de conquista, exploração e
dominação do território; já existiam registros de festividades religiosas e de devoção aos
santos.
Os registros históricos e etnográficos sobre festas na Amazônia fazem referência a um
universo relativamente amplo, muitas delas relacionadas ao calendário festivo da igreja
católica, enquanto datas alusivas aos santos católicos (BRAGA, 2007).
O Alto rio Negro está localizado no noroeste do Estado do Amazonas, faz fronteira
com a Colômbia e Venezuela abrangendo os municípios de São Gabriel da Cachoeira e um
trecho do município de Santa Isabel, ambas as cidades estão localizadas na margem esquerda
do rio Negro. A referida região é habitada tradicionalmente há pelo menos 3.000 anos por 22
grupos étnicos: Desana, Tukano, Pira-tapuia, Arapaso, Wanano, Kubeu, Tuyuka, Miriti-
tapuia, Makuna, Bará, Suriano, Yurutí, Karapanã, Tariana, Baniwa-Kuripako, Warekena,
Baré, Hupda, Yuhupde, Nadêb, Dou e Yanomami (CABALZAR; RICARDO, 2006). Cujas
etnias são falantes de vários idiomas pertencentes a quatro troncos lingüísticos: tukano
oriental, Aruak, Maku e Yanomami, traço marcante na organização social, política e religiosa
na região, configurando-se como um sistema cultural.
Nesse sentido, as festas de santo são recorrentes por todo o Alto Rio Negro e em sua
maioria se utilizam de símbolos e significados da cultura indígena dessa região.
Por esta via, o presente estudo elencou como foco principal de pesquisa, a tradicional
festa religiosa do glorioso São Joaquim, que faz parte do calendário cultural do município de
São Gabriel da Cachoeira, realizado anualmente, no mês de agosto, na comunidade indígena
de mesmo nome. Festa esta, que com o passar dos anos, vem crescendo em quantidade de
participantes, importância cultural e religiosa para o município, em especial para a cidade de
São Gabriel da Cachoeira. Isto posto, o presente trabalho propõe demonstrar a importância
das festividades religiosas na manutenção e fortalecimento da identidade indígena na
Amazônia brasileira e em especial no Alto Rio Negro.
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A realização da pesquisa justificou-se pelo fato da comunidade de São Joaquim
apresentar uma característica peculiar que se distingue de outras comunidades, pois sua
população não reside continuamente na comunidade exceto no período da festa de Santo, que
atrai não só as populações indígenas das comunidades, sítios adjacentes, distritos, mas
também muitas pessoas provenientes da cidade de São Gabriel da Cachoeira. Entretanto, a
comunidade de São Joaquim, que passa boa parte do ano desabitada se transforma nos
períodos da festa de Santo, o que nos suscitou uma análise sobre a relação histórico-cultural
que as populações indígenas possuem com determinados territórios, bem como os fatores que
contribuem na (re)afirmação, manutenção e fortalecimento das relações de identidade do
lugar.
Desse modo, a metodologia pautou-se no levantamento e revisão bibliográfica;
Pesquisa documental dos aspectos histórico-culturais das comunidades indígenas do Alto rio
Negro e festividades religiosas realizadas por elas e em especial da comunidade de São
Joaquim. A Pesquisa de campo adotou a observação direta a partir de visitas a comunidade
nos períodos festivos e comuns. Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com os grupos
étnicos que pertencem e frequentam a referida comunidade.
ASPECTO HISTÓRICO DA FESTA DE SANTO
No Brasil colonial, os jesuítas foram os pioneiros em detectar de que forma o
espetáculo audiovisual podia tornar-se pastoral e catequético (PRIORE, 2000. p. 30-31).
Desta forma, a vinda de missões jesuítas que datam do século XVII para a Amazônia e
o contato com os indígenas, com suas crenças e suas devoções, somado a fenômenos que mais
tarde vieram a contribuir para o atual formato da religiosidade praticada na região, colaboram
para originar uma forma de catolicismo que dá ênfase ao culto dos santos, às festas de santos
e grupos organizados para realizar tais eventos (Saraiva e Silva, 2002 ).
Isto posto, as festas de santo, segundo Figueiredo (2009, p.216) são “reminiscências
das antigas festas do Sahiré”, criadas e difundidas na região Amazônica pelos jesuítas, na
primeira metade do século XVIII.
Nunes Pereira (1989) registra o Saíré no Alto Rio Negro, no Tapajós e em outras
partes da Amazônia. Trata-se de um cortejo em alusão a Arca de Noé, enquanto
triunfo eucarístico das trevas e das agruras do inverno. A Saraipora é representada
por uma pessoa de idade que tem a missão de levar adiante o semi-círculo que
simboliza a arca. Acompanham o cortejo em procissão duas meninas que seguram as
fitas do Sairé, o Espanta Cão, grupo de tocadores, com caixas, rabeca, violão, e
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demais acompanhantes. O destino é a beira do rio, para apanhar dois mastros que
serão fixados na praça, o mastro dos homens e das mulheres. Os mastros são fixados
em dia anterior a derrubada. Segue-se à derrubada o oferecimento de tarubá, bebida
de mandioca fermentada, aos presentes, o quebra-macaxeira, espécie de “roubo
ritual” ou donativos compulsoriamente requisitados aos comerciantes de barracas
localizadas na praça. A última parte do ritual é a dança da Desfeiteira, entremeada
com quadras de versos que concitam à assistência a participar da brincadeira,
quando é possível dizer com ironia certas verdades a um político local ou desafeto
qualquer, sempre com muito humor, que faz com que muitos versadores aceitem as
provocações ou do outro. (BRAGA, 2007, P.6-7)
Lima (1999) enfatiza que a maior parte das comunidades amazônicas tem em seu
calendário festivo a celebração de um ou mais santos, sendo a festa do Santo padroeiro o mais
festejado pela comunidade, pois é atribuída ao padroeiro a função de guardião da comunidade.
A autora comenta também, que as festas de Santo são celebradas com um ritual tradicional, e
que por constituir um foco comum de devoção, o santo padroeiro confere à comunidade sua
identidade metafísica.
A festa de santo realizado no Alto Rio Negro é descrito por Andrello (2004) como
uma forma de catolicismo popular que florescera na região desde as missões carmelitas do
século XVIII. Assume em seu desenvolvimento uma fusão de pequenos ritos profanos, de
sacralização do santo homenageado e de ritos de oferenda como o Dabokuri (OLIVEIRA,
1995).
Por esta via, além de fortalecer a identidade do lugar, a festa de santo possibilita
incorporar as concepções cosmológicas indígenas e rituais tradicionais, como por exemplo,
crenças em seres assustadores, agressivos e causadores de doenças nos homens; e rituais
como o Dabukuri – realizado por meio de trocas efetuadas entre grupos afins do Alto Rio
Negro, as trocas costumam ser, em sua maioria, de alimentos como frutas ou outro produto
que os grupos têm em abundância.
O termo dabukuri é de uso corrente nos segmentos da população tradicional do alto
rio Negro, significando uma grande festa cerimonial de encontro entre grupos
indígenas, quando são oferecidos frutos silvestres, peixes, bebidas fermentadas etc.
sempre com muita música e dança. Ocorre tanto nos povoados indígenas quanto na
sede do município. Por extensão, pode haver uma forma de dabukuri também para
recepcionar convidados de fora, ou incorporado em eventos, como as festas de
santo, conforme será melhor referido adiante. (BARROS, 2007, p. 31)
De acordo com Melo (2009, p.138-139) as festas de Santo realizadas nas comunidades
indígenas, são momentos onde:
[...] os santos são homenageados publicamente e é nessa ocasião em que serão
requisitados novamente para interceder em problemas do cotidiano humano. No
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contexto, tornam-se um símbolo que une as pessoas e as mobiliza, permitindo que
elas reativem os vínculos sociais e vivenciem um tipo de sociabilidade ideal:
comunitário e fundamentado em valores como o parentesco, a comensalidade e a
intimidade. Afinal, fazer festa e estar junto de parentes e amigos configura o que os
índios entendem por “viver bem”.
Portanto, é no tempo das festividades religiosas que muitas comunidades se
transformam, pois é o momento de receber parentes e amigos e vivenciar intensamente uma
rede de solidariedade e cooperação que uni as pessoas, expressa nas atividades coletivas. É
nesse momento de comunhão que é restabelecido e fortalecido a identidade do lugar.
Nessa perspectiva, Araujo e Haesbaert (2007) evidenciam que as festas desempenham
um importante papel na relação entre o homem e o meio, pois estas manifestações sempre
refletiram o modo como os grupos sociais vivem, percebem e concebem seu ambiente,
valorizam mais ou menos certos lugares.
Assim, é inerente ressaltar que a festa torna-se um instrumento que possibilita a
construção de laços afetivos e socioculturais com determinado território, a partir da
apropriação da espacialidade territorial por um grupo social, possibilitando a construção de
uma identidade que se forma diante de uma perspectiva histórica comum aos membros de
determinada comunidade.
Frente ao exposto, FRAXE, (2007, p. 59) ressalta que:
(...) A festa representa a afirmação do modo de vida que se cristaliza pouco a pouco
no cotidiano de um lugar marcado por uma temporalidade, constitui um mecanismo
de demarcar território, pois possibilita a igualdade e ao mesmo tempo a diferença
entre as pessoas, por outro lado, ela se torna a forma mais concreta de apropriação
dos espaços pelas populações locais, que inventam e reinventam suas práticas
culturais e as tornam acontecimentos históricos, na medida em que essas práticas
traduzem de diferentes maneiras a fisionomia cultural e social local.
Dito posto, as festas de santo que ocorrem nas comunidades mais afastadas da cidade
de São Gabriel da Cachoeira são tidas pelos indígenas de São Gabriel da Cachoeira, como as
verdadeiras e originais, com um período de duração mais extenso, de até quinze dias
(BARROS, 2007).
CARACTERIZAÇÃO DA COMUNIDADE DE SÃO JOAQUIM
A comunidade de São Joaquim está localizada na Terra indígena do Médio rio Negro
I, na foz do rio Uaupés, margem direita do rio Negro, distante da cidade de São Gabriel da
Cachoeira 120 km. A área da comunidade mede 2.000 m de frente e m de 1.500 m de fundo.
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A origem da comunidade remonta a fundação de um aldeamento religioso na boca do
rio Waupés feito pelos missionários carmelitas em 1700 (Silva apud Figueiredo, 2009, p.
213) com a denominação de São Joaquim da Foz e posteriormente denominado em 1789,
como São Joaquim do Coané (Silva, 1977, pág.23).
A história das Missões do Caiarý-Uaupés mostra contínuos altos e baixos. As
primeiras tentativas da missão eram, como parece, na segunda metade do século 18.
Já naquele tempo os missionários da Ordem dos Carmelitas neste rio fundaram São
Joaquim e São Jerônimo, o Ipanoré de hoje, ao mesmo tempo com São Felipe e São
Marcelino no rio Negro [...] (KOCH-GRÜNBERG, 2005, p.374).
Não obstante, SANTOS (2012), também assinala que desde 1768, a comunidade São
Joaquim era um núcleo colonial da capitania do Rio Negro, pertencendo a categoria de
aldeamento, com a denominação de São Joaquim de Caoné (p. 200).
Knobloch (1972), destaca a presença de índios aldeados pertencentes as etnias
Coenamas e Uaupés residindo em São Joaquim nos meados do século XVIII. Em outro
momento, o autor ressalta a viagem do carmelita Frei Gregório José Maria de Bene à São
Joaquim em maio de 1852, onde o missionário registrou a presença de outras etnias indígenas
citadas por ele como sendo os Cainatari, Macu, Piratapuia, Cubeo, Tucano, Iarauassu,
Baniwa, Itatiana, Arapaço, Carapana, Tabaiana, Itariana, deçana e Cocuane (Knobloch, 1972,
pág. 16-17).
Posteriormente, verifica-se a passagem de viajantes que adentraram a comunidade de
São Joaquim no século XX, como do etnólogo alemão Theodor Koch-Grünberg (1995), o
Terras Indígenas do Alto e Médio rio Negro (Fonte: AZEVEDO, 2006).
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naturalista inglês Alfred Russel Wallace (1979) e o antropólogo Eduardo Galvão (1979), onde
ambos assinalam características proeminentes com relação ao aspecto socioespacial, cultural e
com relação a ausência de moradores na referida comunidade.
Galvão (1979, pág. 183) descreve a comunidade de São Joaquim quando da sua
estadia por essa região:
(...) Ao forasteiro, o sítio de São Joaquim apresenta-se como um povoado
abandonado. Três ruas de casas mais ou menos bem cuidadas, uma igreja a cujo lado
ergue-se uma grande ramada de danças e um cemitério. Porém sem um único
habitante permanente.(...) (GALVÃO, 1979, pág. 183).
Por outro lado Koch-Grünberg (1995) ressalta pormenores da comunidade de São
Joaquim:
Al llegar a São Joaquim, en la desembocadura del Cayarí-Uaupés, presenciamos la
misma imagen que habíamos visto un año antes. Repicar las campanas, disparos de
fusil, estallidos de cohetes, música de tambores e flautas, procesiones con imágenes
de santos, banderas y estandartes; pero también olor de cachaça; en resumen, una
celebración de indios que en un tiempo vivieron en una misión pero que hace ya
mucho perdieron la disciplina que los inculcaron los sacerdotes (...)En São Joaquim
sólo se encuentra gente en la época de fiestas religiosas, es decir en los meses de
junio, julio y agosto; el resto del año cada uno vive con su respectiva familia en
sitios distintos. Cuando Schmidt había pasado por aquí en marzo, había encontrado
todo desierto y las casas parcialmente derruidas o invadidas por la hierba y la
maleza. Pero cuando se acercan las fiestas, el pueblo se arregla y se limpia (Koch-
Grünberg, 1995, p. 354)
Atualmente a comunidade de São Joaquim tem em sua organização espacial o salão de
festas, capela, cemitério e 82 casas que foram construídas pelos devotos para hospedarem
suas famílias, fiéis e convidados durante a festa de São Joaquim, ficando abandonadas durante
a maior parte do ano (ver figuras 1, 2, 3 e 4).
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Figura 2: Vista panorâmica da comunidade São Joaquim – rio Waupés. Fonte: Leticia Alves da Silva, (6 de dezembro de 2013).
Figura 3: cemitério da comunidade São Joaquim. Fonte: Leticia Alves da Silva, (11 de agosto de 2013).
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Embora não haja moradores na comunidade de São Joaquim desde o abandono de
vários aldeamentos pelas ordens religiosas no final do século XIX (SILVA & SILVA, 2010),
há registros de ocupação efêmera no século XX por parte da família Miranda, indígenas da
etnia Baré.
Desta forma, na década de 30 até 60, a família do já falecido Sr. Antônio Miranda,
residiu em São Joaquim, de acordo com o relato feito pela sua neta, Sra. Adelina Miranda
Velasques:
A minha mãe, Jardelina Miranda, mais conhecida como dona Jadi, se orgulhava em
dizer que ela havia nascido e se criado na comunidade de São Joaquim, ela nasceu
em 1935, ela morava com meus avós, onde está agora o centro comunitário, mamãe
falava que todo ano participava da festa do glorioso São Joaquim. Depois de algum
tempo, a família da mamãe passou a morar na comunidade de Sororoca e depois
disso fomos para a Colômbia, onde voltamos em 1984 para morar em São Gabriel
da Cachoeira. (Adelina Miranda Velasques, entrevista realizada em 08 de maio de
2013).
A explicação que os moradores mais antigos apresentam sobre a ausência de
habitantes na comunidade São Joaquim perpassam em sua maioria devido o abandono do
aldeamento de São Joaquim pelas missões religiosas e consequente pulverização dos
Figura 4: centro comunitário da comunidade São Joaquim. Fonte: Leticia Alves da Silva, (10 de agosto de 2012).
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indígenas aldeados, que se dispersaram pelo rio Negro e Waupés fundando diversas
comunidades circunvizinhas como: Comunidade de Tacira Ponta, Cutipuru, Umiri (Ilha das
Flores), Bauari, Sororoca, Monte Cristo, Tatu, Ilha do Açai, Cabeçudo-poço, Carapanã,
Jandiá, Tamanduá, Itapinima, Cunuri Ponta, Sarapó, São Gregório, Yawawirá e Trovão.
Ainda que a comunidade de São Joaquim passe boa parte do ano sem ter um cotidiano
vivenciado pelos membros comunitários, a festa de Santo é uma oportunidade de tornar a
comunidade “viva” e principalmente restabelecer os laços de identidade com o lugar, além de
reforçar o sentimento de pertencimento, revelando formas particulares de apropriação e de
produção do espaço.
O CULTO A SÃO JOAQUIM AO LONGO DA HISTÓRIA
No Brasil, a difusão do culto a São Joaquim, é creditada a congregação Carmelita que
introduziu nas missões implantadas entre os séculos XVII e XVIII, sobretudo para catequizar
os indígenas:
Entre os santos/as patronos/as das aldeias a metade é composta por santos
carmelitas, se a estes adicionamos São Joaquim, Santa Ana e São José, porque são
considerados como padroeiros da Ordem e no passado foram muito venerados pelos
carmelitas. Assim dá para se ter uma idéia do quanto os missionários do Carmo
transmitiram as suas devoções aos índios (SANTIN, 2013).
No Alto rio Negro, a festa de São Joaquim, é realizada a mais ou menos 200 anos na
comunidade de mesmo nome, e é considerada “uma das maiores e mais antigas festas de
santo da região”(FIGUEIREDO, 2009, p.213).
Galvão (1979, p.183), também destaca a festa de São Joaquim como umas das festas
mais importantes do Alto rio Negro, quando de sua passagem pela referida região: “Santo
Antônio, São João e São Joaquim são as festas mais importantes do baixo Içana e Uaupés.
Especialmente a última, realizada em agosto, em sítio localizado na boca deste rio”.
A festa de São Joaquim é realizada atualmente do dia 10 a 17 de agosto, com duração
de uma semana. Porém, de acordo com Monteiro (1983. p.275), o evento festivo, nem sempre
ocorreu nestas datas: “Durante os dias dois a dezoito de agosto, comemora-se no alto rio
Uaupés (Estado do Amazonas) a festa profano-religiosa em homenagem a São Joaquim,
padroeiro daquela localidade [...]”.
Desse modo, Melo (2009, p. 42) argumenta que “[...] Estes eventos são transformados
em momentos de encontro, de reativação das redes sociais. Ao festejar, também buscam a
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colaboração dos próprios santos para resolução de seus problemas e “agradecem ritualmente”
quando suas preces são atendidas [...]”.
Além de fortalecer a identidade do lugar, as festividades religiosas transformam a vida
cotidiana da comunidade, é o momento de acolher os parentes e amigos, realizar missas e
procissões, refeições coletivas, bailes, enfim festejar.
O ALTO RIO NEGRO EM FESTA: ASPECTOS RITUAIS E SOCIOCULTURAIS DA
FESTA DE SÃO JOAQUIM
De acordo com Lasmar (2005), compreender os significados de certos lugares
freqüentados ativamente ou periodicamente pelas populações indígenas é um passo
fundamental para o entendimento dos princípios organizadores do universo social dos índios
do Alto Rio Negro.
Nesse sentido, faz-se necessário uma compreensão da própria festa, sobretudo dos
seus entrelaçamentos com a identidade social, percebendo como os grupos sociais vivenciam
e concebem seus ambientes.
De acordo com o Sr. Humberto da Cruz, antigo participante da festa religiosa,
proveniente do sítio Tatu, rio Negro e pertencente a etnia indígena Baré; tradicionalmente, as
famílias que organizam e participam da festa, são oriundas de várias comunidades do Rio
Negro e Waupés tais como: Tacira Ponta, Cabeçudo-Poço, Ilha das Flores (Umiri), Bauari,
Sororoca, Monte Cristo, Tatu, Ilha do Açai, Carapanã, Jandiá, Tamanduá, Cutipuru,
Itapinima, Cunuri Ponta, Sarapó, São Gregório, Yawawirá e Trovão ( rio Waupés). Sendo
assim, grande parte destes comunitários pertence às etnias Baré, Dessano, Cueuano e Tukano.
Muitos deles são descendentes dos indígenas aldeados da época das missões carmelitas.
Assim, vários participantes da festa de São Joaquim afirmam que seus antepassados tinham
uma ligação muito forte com a comunidade, pois é nesse espaço que passaram a conviver com
os freis carmelitas e aprender através da catequese a cultuar São Joaquim e Santo Antônio,
como também assimilar o ensino escolar que incluía o aprendizado da língua portuguesa e
latim, preparo técnico dos ofícios mecânicos e agrícola.
Dessa forma, o Sr. Humberto revelou os nomes das famílias tradicionais imbuídas de
organizar e participar da festa de São Joaquim, destacando que a maioria de seus membros já
são falecidos, e foram enterrados no cemitério da comunidade São Joaquim, restando apenas
seus filhos, primos e netos:
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Antigamente participavam da festa, as famílias do Seu Sérvulo da Silva, do sítio
Cutipuru; Manuel da Cruz, meu pai, do Sítio Tatu; Seu Inocêncio da Cruz, primo do
meu pai; Família do Seu Magêncio dos Santos, moradores do sítio Bauari; família
do seu Ramiro Lizardo, pai da minha esposa, moradores do sítio Carapanã, família
do Sr. Fortunato Melgueiro, do sítio Tamanduá, todos da etnia Baré, ainda
participavam vários moradores da ilha das flores, Ilha do Açai, Trovão, Cucuí,
família do Sr. Florêncio da Costa, da comunidade de Tacira Ponta, que ainda está
vivo e é um dos participantes mais antigos. (Humbero da Cruz , 22 de maio de
2013).
Outro relato importante sobre os antigos participantes da festa de São Joaquim advém de um
dos tradicionais rezadores da festa, Sr. Raimundo Brazão da Silva, etnia Baré:
Seu João Pedro da Silva, meu pai, foi um grande mestre-sala. Minha mãe Creuza
Brazão participava também, Seu João Caetano, Sesário Velasques, Sesário Salgado
que tinha vários cargos como rezador, gambá, e mestre sala. Ele era bastante
respeitado por isso. Também o Sr. Fortunato Soares, pai da Dona Clara Soares,
esposo da dona Josefa Soares, ele era uma grande liderança da ilha de Umiri, onde a
minha família morava. (Raimundo Brazão da Silva, 29 de maio de 2013.)
Sobre as narrativas anteriores, verifica-se a importância se trazer à tona a memória
histórica que está relacionada ao vínculo afetivo e social que os antigos moradores e seus
descendentes têm com a comunidade São Joaquim, apesar de não residirem cotidianamente,
pois revela que “esses vínculos estão relacionados ao fato dos grupos de moradores terem se
originado em determinado lugar, possuírem uma história construída nele”[...](FRAXE, 2007.p
113).
A preparação da festa de São Joaquin é iniciada tradicionalmente todos os anos, a
partir do mês de janeiro e depois em julho com o início da capina de todo o terreno, realizada
pelas famílias das comunidades adjacentes. E principalmente no mês de junho e julho, são
realizadas na comunidade São Joaquim, a limpeza, consertos diversos, pinturas das casas,
capela, centro comunitário e instalação do motor de água e rede de energia elétrica.
E nas semanas que antecedem o festejo ocorrem reuniões na comunidade de São
Joaquim com os membros nomeados para organizar o evento, tais como: festeiros,
encarregados de organizar a festa; mordomos, incumbidos de auxiliar em todas as atividades
antes e depois da festa de santo; promesseiros, indivíduos pagadores de promessa; juízes de
mastro, são atribuídos a estes a abertura da festa, confecção e levantamento dos quatro
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mastros do santo; mestres-sala, têm o dever de manter a ordem em todos os espaços em que
acontecem a festa; tamborineiros, cargo responsável por recepcionar todos os organizadores
do festejo e determinar as atividades realizadas no decorrer da festa, através do batuque de
tamborinas confeccionadas com couro de viado, onça ou anta; cozinheiras, encarregadas de
fazer e servir a alimentação a todos os participantes do evento; bandeireiros, acompanham os
tamborineiros na “chegada” (recepção dos organizadores da festa de santo), como também na
procissão terrestre e fluvial durante as rezas, esmolas, carauataí e castelinho (símbolo do
barco do santo que leva os pedidos dos fiéis).
O momento que assinala a abertura da festa de São Joaquim é o estouro dos foguetes
feito pela família dona do santo, que originalmente pertence aos Miranda. Os tiros de foguetes
são feitos a partir das 6 horas da manhã. Porém, foi observado que atualmente, devido à
ausência de grande parte dos membros da família Miranda, outras famílias ficam encarregadas
de realizar essas e outras tarefas no transcorrer do evento festivo.
Não obstante, o grupo que realiza o translado dos responsáveis pela festa de São
Joaquim prolonga tal ritual até as 15 horas, ao mesmo tempo em que vários participantes
vindos das comunidades circunvizinhas e principalmente parentes da cidade de São Gabriel
da Cachoeira vão chegando com suas canoas, barcos, lanchas e voadeiras. Por conseguinte, o
transporte se inicia com a ida de uma embarcação contendo o mestre-sala, dois tamborineiros,
dois bandeireiros, uma pessoa responsável em soltar os foguetes e um motorista fluvial. Este
grupo segue até o sítio das famílias organizadoras da festa do santo, e no retorno conforme se
aproximam do porto da comunidade de São Joaquim, soltam foguetes que servem para avisar
às famílias encarregadas da recepção sobre a chegada dos juízes de mastro que antigamente
eram dois componentes e atualmente são quatro.
Portanto, em dias alternados, a família “dona do santo” acompanhada dos bandeireiros
e tamborineiros, e demais pessoas que se encontrarem na referida comunidade se juntam no
porto da comunidade para recepcionar posteriormente os festeiros que eram dois e hoje em
dia são seis indivíduos; mordomos que até o final da década de 80 eram trinta e atualmente
são sessenta participantes e os promesseiros, que no passado eram dois se elevando para mais
de dez. Todos os organizadores da festa do santo são recepcionados com oferecimentos de
vinho, sendo que antigamente eram servidos garapa e aluar (bebidas fermentadas feitas com
frutas), este momento também é conhecido como correrê.
Posteriormente, segue o levantamento dos mastros que ocorre sempre às 17h00min.
Onde os dois primeiros são fixados na frente da capelinha e os últimos próximos ao salão de
festas (centro comunitário). Estes símbolos que demarcam o culto e devoção dos
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comunitários, são enfeitados com bandeirinhas da cor branca fixadas no topo de cada mastro
contendo a imagem de São Joaquim e frutas da região como banana, açaí, côco, cana-de-
açúcar, abacaxi, pupunha entre outras. Desta forma, esse momento é iniciado com uma
procissão acompanhada por todas as pessoas presentes, em que duas imagens de São Joaquim
são carregadas pelos promesseiros que caminham desde a saída da capela, perpassando a
frente desta, transcorrendo a via principal da comunidade, chegando até as proximidades do
centro comunitário e depois retornando à capela. Neste trajeto de ida e volta é realizada
também o correrê de bebidas fermentadas.
Após a colocação dos mastros, todos os comunitários se dirigem ao salão de festas
para tomar café com beijujica e posteriormente às 20h00min, os participantes da festa seguem
até a capela para iniciar as rezas em forma de ladainha, onde os fiéis rezam em latim e
português. Os rezadores mais conhecidos e antigos que comandam as orações são o Sr.
Rosendo Melgueiro e Raimundo Brazão.
Depois da reza, os comunitários se deslocam até o salão de festas para dançar o
macaquinho, uma espécie de dança indígena, puxada pelo gambá, que é o animador das
apresentações, onde este é auxiliado por dois tamborineiros que cantam músicas em
nheengatú e português e vão formando uma roda em que participam vários homens e
mulheres. Geralmente o baile é entremeado pelo correrê, assim como outros ritos que
perfazem a festa de São Joaquim.
Desta forma, o correrê é um momento em que são servidos bebidas fermentadas como
aluar, garapa e vinho de qualquer fruta da região. Participam dessa rodada de bebidas apenas
os adultos que estão sendo recebidos na “chegada” ou que estão participando da dança do
macaquinho, carauataí, procissão do santo e entrega do barquinho do santo.
Destarte, verifica-se que além da presença de famílias que moram em comunidades
adjacentes há grande participação de pessoas residentes da cidade de São Gabriel da
Cachoeira e Manaus, muitos são parentes das famílias organizadoras da festa, sendo que os
mesmos salientaram a grande alegria em reencontrar e compartilhar a cultura dos seus
antepassados nesse momento festivo. Outros grupos de participantes são os de não-índios
como militares de outros estados da federação, pesquisadores, jornalistas, autônomos,
empresários, comerciantes e funcionários públicos. Há igualmente, muitas visitas de políticos
do município de São Gabriel da Cachoeira, como prefeitos, ex-prefeitos e vereadores.
Conforme as danças indígenas vão finalizando, há o prosseguimento do baile ao estilo
caboclo com apresentações dos cantores de “cuximauara”, que quer dizer em nheengatú
“música antiga”, pois este estilo musical remete as guitarradas do Estado do Pará. E no
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transcorrer do baile, o mestre-sala é atuante para verificar e combater algumas transgressões
que podem ocorrer no salão, como por exemplo se há homens adentrando o salão de festas
sem os trajes adequados (camiseta e calça comprida), desentendimentos ou desrespeito com
os casais dançantes e etc. Pois, segundo o Sr. Otávio Miranda, antigamente qualquer falta de
respeito com o santo ou demais participantes era castigado com a aplicação da vaqueta, “um
tipo de castigo que obriga o transgressor a ficar de joelhos sobre um pau oitavado e rezar
quinze padrenossos completos “(Monteiro, 1983. Pág. 276). Outra função destinada ao mestre
sala era aplicar a pucuareara, ou amarração do braço com a fita vermelha. Assim obrigando a
pessoa a ficar até o final da festa do santo padroeiro (Monteiro, 1983, pág.277).
Sendo assim, o baile dançante da festa de São Joaquim se estende até as seis horas da
manhã e após a esse, todos os participantes da festa se deslocam até a capela para beijar as
fitas do santo. E a partir das 6h30min é realizado o Carauataí, que é um convite diário para o
banho comunitário onde os mestres sala, juízes de mastro, mordomos, tamborineiros e
bandeireiros passam de casa em casa convidando. A hora do almoço, inicia às 11h30min.
Este momento é assinalado geralmente pelo mestre sala que fica responsável por convocar as
famílias e demais participantes da festa, para participar do almoço, merenda e jantar no salão
de festas, onde é servido os pratos regionais como quinhãpira com beiju de massa ou goma
(curada), porco e galinha cozidos, doce de banana, cupuaçu, côco, chibé de farinha de
mandioca ou de açaí, caribé de maçoca, mingau de banana, maçoca, goma, farinha e tapioca.
O auge da festa do santo se dá nos dias 16 e 17 de agosto, dias esses dedicados às
esmolas, descida do barquinho do santo, desfiles dos mascarados, entrega de materiais que
restaram da festa e leitura dos responsáveis pela festa do ano seguinte. Verifica-se no dia 16 a
inserção de oito árvores na rua principal da comunidade São Joaquim contendo em seus
galhos vários doces feitos de côco e banana, como também balas industrializadas; e no
entardecer os festeiros acedem fogueiras em suas bases. As esmolas dadas ao santo vão desde
dinheiro em espécie, comida, produtos da roça e outros objetos de valor.
Ainda ocorre às 20h00min, a soltura do barquinho pelo rio Waupés, que simboliza o
pedido dos fiéis que vão ser levados para Deus por intermédio de São Joaquim, momento esse
que inicia com uma procissão da capela até o porto principal da comunidade, descendo dois
promesseiros carregando a imagem de São Joaquim, um fica na comunidade e o outro
embarca em uma canoa de dois metros em que vão dois bandeireiros, dois tamborineiros, dois
devotos com suas velas, barqueiro, uma pessoa encarregada de soltar os foguetes, um rezador,
um mestre-sala, um motorista e uma pessoa que leva o guarda-chuva para proteger o santo
durante o cortejo que se dirige até as proximidades da comunidade de Monte Cristo, onde a
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correnteza do rio é mais forte, e chegando ao local em meio a escuridão iluminada pelas velas
dos fiéis, a embarcação que carrega o santo é recepcionada por outro grupo que sai duas horas
antes levando os dois barquinhos que são confeccionados com caule de buriti e enfeitados
com foguetes e velas feitas de xincantá (resina vegetal usado pelos indígenas para defumar a
casa e afastar maus espíritos). Desse modo, as duas embarcações prosseguem descendo o rio
até a frente da comunidade de São Joaquim, onde é feito quatro voltas formando uma meia-
lua com o estouro de foguetes de ambas canoas e cânticos utilizando a língua nheengatú.
E finalizadas o cortejo fluvial das canoas, os barquinhos do santo são soltos no meio
do rio e a canoa do santo retorna ao porto comunitário, de onde prossegue até a capelinha para
realização da reza em forma de ladainhas. Ao final das orações, há prosseguimento deste
importante dia com a noite dos mascarados que é realizada no centro comunitário, onde
participam jovens fantasiados com máscaras monstruosas, para assustar crianças e pessoas
distraídas, após a apresentação dos mesmos, ocorre novamente o correrê e dá-se o
prosseguimento da festa dançante ao som do cuximauara.
No dia dezessete de agosto, dia do santo padroeiro há uma imensa leva de pessoas que
transformam o cotidiano festivo do lugar, pois no ano de 2012 foi registrado a presença de
mais de 320 pessoas, parte moradora da cidade de São Gabriel da Cachoeira e distritos de
Taracuá e Cucuí, como também viajantes que passam pela comunidade como os Baniwa,
Hupda e Yohupde que encostam na comunidade para prestigiar a festa de santo.
Em outro momento desse dia festivo, é realizado no salão de baile, a leitura da relação
dos nomes dos festeiros, mordomos, juízes, promesseiros e bandeireiros para o ano seguinte.
E no dia seguinte às 15h00min, os festeiros e demais ajudantes derrubam os mastros e
guardam o santo na capela. Em seguida todos que participaram da festa limpam suas casas,
atividade esta conhecida como “varrição” e aos poucos cada família embarca seus pertences e
singra o rio Waupés e outros o rio Negro rumo a suas comunidade e assim dando-se encerrada
a festa do glorioso São Joaquim, adjetivo dado pelos devotos que assim tratam o santo, pelas
grandes graças alcançadas que vão desde a proposição de casamento, aprovação em concurso,
cura de enfermidades, solução em problemas judiciais ou familiares.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em suma, é nítido observar na festa de São Joaquim, a junção de elementos da cultura
indígena do Alto rio Negro nos primeiros momentos e no decorrer do festejo, que seguem
desde os cânticos que utilizam o nheengatú, correrê, danças, ladainha, levantação do mastro,
refeição, carauataí e recepção que remetem ao dabucuri praticado na região, à prática de se
dividir e realizarem refeições juntos, enfim, vivenciar uma comunhão com todos os parentes,
amigos e demais convidados. Pois no centro urbano de São Gabriel da Cachoeira, de onde
procede grande parte das pessoas que freqüentam a festa, esse modo de vida é quase que
inexistente, pois há grande influência do modo de vida ocidental, que advém desde a inserção
do exército, marinha e aeronáutica, perpassando outras instituições governamentais e não-
governamentais, em que grande parte de seus integrantes não são indígenas.
Isto posto, a manutenção e o fortalecimento da identidade cultural possibilitada pela
festa é um dos motivos que Melo (2009) destaca como sendo, em sua maioria, o que mantêm
os moradores de um determinado lugar interessados em continuarem vivendo ali. Pois “[...]
Há o desejo de reafirmar um modo de vida que configura uma forma de “viver bem”, isto é,
uma vida comunitária, partilhada entre parentes e celebrada principalmente nas “festas de
santo”, já que a cidade impõe ritmos diferentes à vida social [...]” (p. 119).
Nesse sentido, a possibilidade que a festa de São Joaquim apresenta aos devotos e
demais integrantes ao vivenciarem aspectos da cultura indígena do Alto rio Negro e grande
parte deles se intitularem parte daquele território remonta às suas referências simbólicas
construídas historicamente e que condicionam sua identidade como indígena Baré, Tucano ou
Dessano, parte daquela comunidade. Pois, as práticas sociais e culturais vivenciadas durante
a festa de São Joaquim são inerentes para a perpetuação e fortalecimento das tradições desse
povo.
Logo, a festa, o espaço, os atores sociais envolvidos e a representação cultural,
pertencentes a um determinado grupo, faz com que o elo entre o passado e o presente se
mantenham de alguma forma (Angelo & Corner, 2007) .
À vista disso Thompson (1998, p.18) assegura que “as práticas e as normas se
reproduzem ao longo das gerações na atmosfera lentamente diversificada dos costumes”
contribuindo para que “essa cultura transmite com vigor – desempenhos ritualísticos ou
estilizados” importantes veículos de transmissão do modo de vida comungados pelos
antepassados dos participantes da festa de São Joaquim.
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Portanto, o entendimento sobre a devoção ao Santo padroeiro e o vínculo afetivo
proporcionado pela festa, com relação ao território onde se encontra a comunidade de São
Joaquim , faz com que entendamos que a cultura de um povo é fruto da história coletiva, pois
a cultura é uma construção histórica.
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