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1 RELIGIÃO E CULTURA NO ALTO RIO NEGRO: UMA ANÁLISE DA FESTA DE SANTO NA COMUNIDADE INDÍGENA DE SÃO JOAQUIM AMAZONAS/BRASIL 11 Leticia Alves da Silva 2 Marilene Alves da Silva RESUMO A “festa de santo” é uma das festividades religiosas celebrada na maiori a das comunidades indígenas da Amazônia brasileira, constitui um espaço simbólico que ajuda a manter as relações de identidade do lugar. A manutenção e o fortalecimento da identidade cultural possibilitada pela festa é um dos motivos que Melo (2009) destaca como sendo, em sua maioria, o que mantêm os moradores de um determinado lugar interessados em continuarem vivendo ali. Entretanto, existem comunidades que são ocupadas sazonalmente, especialmente para realização das “festas de santo”. Podemos perceber esta situação na comunidade indígena de São Joaquim, localizada no Alto rio Negro, que é densamente ocupada somente nos dias da festa do Santo padroeiro. Desta forma, o presente estudo almeja evidenciar a importância da festa de Santo como um dos elementos de produção da identidade e reforço do sentimento de pertencimento do lugar. Pois ao longo dos anos, a festa de São Joaquim vem se tornando um evento de grande importância cultural e religiosa no Alto rio Negro. Nesse sentido, o estudo propõe demonstrar a importância das festividades religiosas na manutenção e fortalecimento da identidade indígena na Amazônia brasileira e em especial no Alto rio Negro. Desse modo, a metodologia pautou-se no levantamento e revisão bibliográfica; Pesquisa documental dos aspectos histórico-culturais das comunidades indígenas do Alto rio Negro e festividades religiosas realizadas por elas e em especial da comunidade de São Joaquim. A Pesquisa de campo adotou a observação direta a partir de visitas a comunidade nos períodos festivos e comuns. Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com os grupos étnicos que pertencem e frequentam a referida comunidade. PALAVRAS-CHAVE: Festa de santo. Identidade. Alto rio Negro. São Joaquim. Cultura. INTRODUÇÃO Entre as diversas manifestações culturais na Amazônia as festas religiosas imprimem na paisagem os mais diversos significados, diferenciando e qualificando os lugares com características singulares que só existem durante o período da festa. De acordo com Priore (1994,p.13): (...) as festas nasceram das formas de culto externo, tributado geralmente a uma divindade protetora das plantações, realizado em determinados tempos e locais. Mas, com o advento do cristianismo, tais solenidades se modificaram quando a 1 ;2 Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas IF-AM

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RELIGIÃO E CULTURA NO ALTO RIO NEGRO: UMA ANÁLISE DA FESTA DE

SANTO NA COMUNIDADE INDÍGENA DE SÃO JOAQUIM – AMAZONAS/BRASIL

11Leticia Alves da Silva

2Marilene Alves da Silva

RESUMO

A “festa de santo” é uma das festividades religiosas celebrada na maioria das comunidades

indígenas da Amazônia brasileira, constitui um espaço simbólico que ajuda a manter as

relações de identidade do lugar. A manutenção e o fortalecimento da identidade cultural

possibilitada pela festa é um dos motivos que Melo (2009) destaca como sendo, em sua

maioria, o que mantêm os moradores de um determinado lugar interessados em continuarem

vivendo ali. Entretanto, existem comunidades que são ocupadas sazonalmente, especialmente

para realização das “festas de santo”. Podemos perceber esta situação na comunidade indígena

de São Joaquim, localizada no Alto rio Negro, que é densamente ocupada somente nos dias da

festa do Santo padroeiro. Desta forma, o presente estudo almeja evidenciar a importância da

festa de Santo como um dos elementos de produção da identidade e reforço do sentimento de

pertencimento do lugar. Pois ao longo dos anos, a festa de São Joaquim vem se tornando um

evento de grande importância cultural e religiosa no Alto rio Negro. Nesse sentido, o estudo

propõe demonstrar a importância das festividades religiosas na manutenção e fortalecimento

da identidade indígena na Amazônia brasileira e em especial no Alto rio Negro. Desse modo,

a metodologia pautou-se no levantamento e revisão bibliográfica; Pesquisa documental dos

aspectos histórico-culturais das comunidades indígenas do Alto rio Negro e festividades

religiosas realizadas por elas e em especial da comunidade de São Joaquim. A Pesquisa de

campo adotou a observação direta a partir de visitas a comunidade nos períodos festivos e

comuns. Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com os grupos étnicos que pertencem

e frequentam a referida comunidade.

PALAVRAS-CHAVE: Festa de santo. Identidade. Alto rio Negro. São Joaquim. Cultura.

INTRODUÇÃO

Entre as diversas manifestações culturais na Amazônia as festas religiosas imprimem

na paisagem os mais diversos significados, diferenciando e qualificando os lugares com

características singulares que só existem durante o período da festa.

De acordo com Priore (1994,p.13):

(...) as festas nasceram das formas de culto externo, tributado geralmente a uma

divindade protetora das plantações, realizado em determinados tempos e locais.

Mas, com o advento do cristianismo, tais solenidades se modificaram quando a

1 ;2 Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas – IF-AM

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Igreja determinou dias que fossem dedicados ao culto divino, considerando-os dias

de festa, os quais formavam em seu conjunto o ano eclesiástico.

Nesse contexto, as festas religiosas geralmente configuram-se como eventos

conectados ao sacramentalismo cristão que remetem ao universo mental de determinado

grupo, influenciando no espaço, na cultura e no modo de vida dos participantes.

Saraiva e Silva (2006) ressaltam que desde a chegada dos portugueses na costa

brasileira e posterior entrada no interior do país com o intuito de conquista, exploração e

dominação do território; já existiam registros de festividades religiosas e de devoção aos

santos.

Os registros históricos e etnográficos sobre festas na Amazônia fazem referência a um

universo relativamente amplo, muitas delas relacionadas ao calendário festivo da igreja

católica, enquanto datas alusivas aos santos católicos (BRAGA, 2007).

O Alto rio Negro está localizado no noroeste do Estado do Amazonas, faz fronteira

com a Colômbia e Venezuela abrangendo os municípios de São Gabriel da Cachoeira e um

trecho do município de Santa Isabel, ambas as cidades estão localizadas na margem esquerda

do rio Negro. A referida região é habitada tradicionalmente há pelo menos 3.000 anos por 22

grupos étnicos: Desana, Tukano, Pira-tapuia, Arapaso, Wanano, Kubeu, Tuyuka, Miriti-

tapuia, Makuna, Bará, Suriano, Yurutí, Karapanã, Tariana, Baniwa-Kuripako, Warekena,

Baré, Hupda, Yuhupde, Nadêb, Dou e Yanomami (CABALZAR; RICARDO, 2006). Cujas

etnias são falantes de vários idiomas pertencentes a quatro troncos lingüísticos: tukano

oriental, Aruak, Maku e Yanomami, traço marcante na organização social, política e religiosa

na região, configurando-se como um sistema cultural.

Nesse sentido, as festas de santo são recorrentes por todo o Alto Rio Negro e em sua

maioria se utilizam de símbolos e significados da cultura indígena dessa região.

Por esta via, o presente estudo elencou como foco principal de pesquisa, a tradicional

festa religiosa do glorioso São Joaquim, que faz parte do calendário cultural do município de

São Gabriel da Cachoeira, realizado anualmente, no mês de agosto, na comunidade indígena

de mesmo nome. Festa esta, que com o passar dos anos, vem crescendo em quantidade de

participantes, importância cultural e religiosa para o município, em especial para a cidade de

São Gabriel da Cachoeira. Isto posto, o presente trabalho propõe demonstrar a importância

das festividades religiosas na manutenção e fortalecimento da identidade indígena na

Amazônia brasileira e em especial no Alto Rio Negro.

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A realização da pesquisa justificou-se pelo fato da comunidade de São Joaquim

apresentar uma característica peculiar que se distingue de outras comunidades, pois sua

população não reside continuamente na comunidade exceto no período da festa de Santo, que

atrai não só as populações indígenas das comunidades, sítios adjacentes, distritos, mas

também muitas pessoas provenientes da cidade de São Gabriel da Cachoeira. Entretanto, a

comunidade de São Joaquim, que passa boa parte do ano desabitada se transforma nos

períodos da festa de Santo, o que nos suscitou uma análise sobre a relação histórico-cultural

que as populações indígenas possuem com determinados territórios, bem como os fatores que

contribuem na (re)afirmação, manutenção e fortalecimento das relações de identidade do

lugar.

Desse modo, a metodologia pautou-se no levantamento e revisão bibliográfica;

Pesquisa documental dos aspectos histórico-culturais das comunidades indígenas do Alto rio

Negro e festividades religiosas realizadas por elas e em especial da comunidade de São

Joaquim. A Pesquisa de campo adotou a observação direta a partir de visitas a comunidade

nos períodos festivos e comuns. Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com os grupos

étnicos que pertencem e frequentam a referida comunidade.

ASPECTO HISTÓRICO DA FESTA DE SANTO

No Brasil colonial, os jesuítas foram os pioneiros em detectar de que forma o

espetáculo audiovisual podia tornar-se pastoral e catequético (PRIORE, 2000. p. 30-31).

Desta forma, a vinda de missões jesuítas que datam do século XVII para a Amazônia e

o contato com os indígenas, com suas crenças e suas devoções, somado a fenômenos que mais

tarde vieram a contribuir para o atual formato da religiosidade praticada na região, colaboram

para originar uma forma de catolicismo que dá ênfase ao culto dos santos, às festas de santos

e grupos organizados para realizar tais eventos (Saraiva e Silva, 2002 ).

Isto posto, as festas de santo, segundo Figueiredo (2009, p.216) são “reminiscências

das antigas festas do Sahiré”, criadas e difundidas na região Amazônica pelos jesuítas, na

primeira metade do século XVIII.

Nunes Pereira (1989) registra o Saíré no Alto Rio Negro, no Tapajós e em outras

partes da Amazônia. Trata-se de um cortejo em alusão a Arca de Noé, enquanto

triunfo eucarístico das trevas e das agruras do inverno. A Saraipora é representada

por uma pessoa de idade que tem a missão de levar adiante o semi-círculo que

simboliza a arca. Acompanham o cortejo em procissão duas meninas que seguram as

fitas do Sairé, o Espanta Cão, grupo de tocadores, com caixas, rabeca, violão, e

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demais acompanhantes. O destino é a beira do rio, para apanhar dois mastros que

serão fixados na praça, o mastro dos homens e das mulheres. Os mastros são fixados

em dia anterior a derrubada. Segue-se à derrubada o oferecimento de tarubá, bebida

de mandioca fermentada, aos presentes, o quebra-macaxeira, espécie de “roubo

ritual” ou donativos compulsoriamente requisitados aos comerciantes de barracas

localizadas na praça. A última parte do ritual é a dança da Desfeiteira, entremeada

com quadras de versos que concitam à assistência a participar da brincadeira,

quando é possível dizer com ironia certas verdades a um político local ou desafeto

qualquer, sempre com muito humor, que faz com que muitos versadores aceitem as

provocações ou do outro. (BRAGA, 2007, P.6-7)

Lima (1999) enfatiza que a maior parte das comunidades amazônicas tem em seu

calendário festivo a celebração de um ou mais santos, sendo a festa do Santo padroeiro o mais

festejado pela comunidade, pois é atribuída ao padroeiro a função de guardião da comunidade.

A autora comenta também, que as festas de Santo são celebradas com um ritual tradicional, e

que por constituir um foco comum de devoção, o santo padroeiro confere à comunidade sua

identidade metafísica.

A festa de santo realizado no Alto Rio Negro é descrito por Andrello (2004) como

uma forma de catolicismo popular que florescera na região desde as missões carmelitas do

século XVIII. Assume em seu desenvolvimento uma fusão de pequenos ritos profanos, de

sacralização do santo homenageado e de ritos de oferenda como o Dabokuri (OLIVEIRA,

1995).

Por esta via, além de fortalecer a identidade do lugar, a festa de santo possibilita

incorporar as concepções cosmológicas indígenas e rituais tradicionais, como por exemplo,

crenças em seres assustadores, agressivos e causadores de doenças nos homens; e rituais

como o Dabukuri – realizado por meio de trocas efetuadas entre grupos afins do Alto Rio

Negro, as trocas costumam ser, em sua maioria, de alimentos como frutas ou outro produto

que os grupos têm em abundância.

O termo dabukuri é de uso corrente nos segmentos da população tradicional do alto

rio Negro, significando uma grande festa cerimonial de encontro entre grupos

indígenas, quando são oferecidos frutos silvestres, peixes, bebidas fermentadas etc.

sempre com muita música e dança. Ocorre tanto nos povoados indígenas quanto na

sede do município. Por extensão, pode haver uma forma de dabukuri também para

recepcionar convidados de fora, ou incorporado em eventos, como as festas de

santo, conforme será melhor referido adiante. (BARROS, 2007, p. 31)

De acordo com Melo (2009, p.138-139) as festas de Santo realizadas nas comunidades

indígenas, são momentos onde:

[...] os santos são homenageados publicamente e é nessa ocasião em que serão

requisitados novamente para interceder em problemas do cotidiano humano. No

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contexto, tornam-se um símbolo que une as pessoas e as mobiliza, permitindo que

elas reativem os vínculos sociais e vivenciem um tipo de sociabilidade ideal:

comunitário e fundamentado em valores como o parentesco, a comensalidade e a

intimidade. Afinal, fazer festa e estar junto de parentes e amigos configura o que os

índios entendem por “viver bem”.

Portanto, é no tempo das festividades religiosas que muitas comunidades se

transformam, pois é o momento de receber parentes e amigos e vivenciar intensamente uma

rede de solidariedade e cooperação que uni as pessoas, expressa nas atividades coletivas. É

nesse momento de comunhão que é restabelecido e fortalecido a identidade do lugar.

Nessa perspectiva, Araujo e Haesbaert (2007) evidenciam que as festas desempenham

um importante papel na relação entre o homem e o meio, pois estas manifestações sempre

refletiram o modo como os grupos sociais vivem, percebem e concebem seu ambiente,

valorizam mais ou menos certos lugares.

Assim, é inerente ressaltar que a festa torna-se um instrumento que possibilita a

construção de laços afetivos e socioculturais com determinado território, a partir da

apropriação da espacialidade territorial por um grupo social, possibilitando a construção de

uma identidade que se forma diante de uma perspectiva histórica comum aos membros de

determinada comunidade.

Frente ao exposto, FRAXE, (2007, p. 59) ressalta que:

(...) A festa representa a afirmação do modo de vida que se cristaliza pouco a pouco

no cotidiano de um lugar marcado por uma temporalidade, constitui um mecanismo

de demarcar território, pois possibilita a igualdade e ao mesmo tempo a diferença

entre as pessoas, por outro lado, ela se torna a forma mais concreta de apropriação

dos espaços pelas populações locais, que inventam e reinventam suas práticas

culturais e as tornam acontecimentos históricos, na medida em que essas práticas

traduzem de diferentes maneiras a fisionomia cultural e social local.

Dito posto, as festas de santo que ocorrem nas comunidades mais afastadas da cidade

de São Gabriel da Cachoeira são tidas pelos indígenas de São Gabriel da Cachoeira, como as

verdadeiras e originais, com um período de duração mais extenso, de até quinze dias

(BARROS, 2007).

CARACTERIZAÇÃO DA COMUNIDADE DE SÃO JOAQUIM

A comunidade de São Joaquim está localizada na Terra indígena do Médio rio Negro

I, na foz do rio Uaupés, margem direita do rio Negro, distante da cidade de São Gabriel da

Cachoeira 120 km. A área da comunidade mede 2.000 m de frente e m de 1.500 m de fundo.

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A origem da comunidade remonta a fundação de um aldeamento religioso na boca do

rio Waupés feito pelos missionários carmelitas em 1700 (Silva apud Figueiredo, 2009, p.

213) com a denominação de São Joaquim da Foz e posteriormente denominado em 1789,

como São Joaquim do Coané (Silva, 1977, pág.23).

A história das Missões do Caiarý-Uaupés mostra contínuos altos e baixos. As

primeiras tentativas da missão eram, como parece, na segunda metade do século 18.

Já naquele tempo os missionários da Ordem dos Carmelitas neste rio fundaram São

Joaquim e São Jerônimo, o Ipanoré de hoje, ao mesmo tempo com São Felipe e São

Marcelino no rio Negro [...] (KOCH-GRÜNBERG, 2005, p.374).

Não obstante, SANTOS (2012), também assinala que desde 1768, a comunidade São

Joaquim era um núcleo colonial da capitania do Rio Negro, pertencendo a categoria de

aldeamento, com a denominação de São Joaquim de Caoné (p. 200).

Knobloch (1972), destaca a presença de índios aldeados pertencentes as etnias

Coenamas e Uaupés residindo em São Joaquim nos meados do século XVIII. Em outro

momento, o autor ressalta a viagem do carmelita Frei Gregório José Maria de Bene à São

Joaquim em maio de 1852, onde o missionário registrou a presença de outras etnias indígenas

citadas por ele como sendo os Cainatari, Macu, Piratapuia, Cubeo, Tucano, Iarauassu,

Baniwa, Itatiana, Arapaço, Carapana, Tabaiana, Itariana, deçana e Cocuane (Knobloch, 1972,

pág. 16-17).

Posteriormente, verifica-se a passagem de viajantes que adentraram a comunidade de

São Joaquim no século XX, como do etnólogo alemão Theodor Koch-Grünberg (1995), o

Terras Indígenas do Alto e Médio rio Negro (Fonte: AZEVEDO, 2006).

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naturalista inglês Alfred Russel Wallace (1979) e o antropólogo Eduardo Galvão (1979), onde

ambos assinalam características proeminentes com relação ao aspecto socioespacial, cultural e

com relação a ausência de moradores na referida comunidade.

Galvão (1979, pág. 183) descreve a comunidade de São Joaquim quando da sua

estadia por essa região:

(...) Ao forasteiro, o sítio de São Joaquim apresenta-se como um povoado

abandonado. Três ruas de casas mais ou menos bem cuidadas, uma igreja a cujo lado

ergue-se uma grande ramada de danças e um cemitério. Porém sem um único

habitante permanente.(...) (GALVÃO, 1979, pág. 183).

Por outro lado Koch-Grünberg (1995) ressalta pormenores da comunidade de São

Joaquim:

Al llegar a São Joaquim, en la desembocadura del Cayarí-Uaupés, presenciamos la

misma imagen que habíamos visto un año antes. Repicar las campanas, disparos de

fusil, estallidos de cohetes, música de tambores e flautas, procesiones con imágenes

de santos, banderas y estandartes; pero también olor de cachaça; en resumen, una

celebración de indios que en un tiempo vivieron en una misión pero que hace ya

mucho perdieron la disciplina que los inculcaron los sacerdotes (...)En São Joaquim

sólo se encuentra gente en la época de fiestas religiosas, es decir en los meses de

junio, julio y agosto; el resto del año cada uno vive con su respectiva familia en

sitios distintos. Cuando Schmidt había pasado por aquí en marzo, había encontrado

todo desierto y las casas parcialmente derruidas o invadidas por la hierba y la

maleza. Pero cuando se acercan las fiestas, el pueblo se arregla y se limpia (Koch-

Grünberg, 1995, p. 354)

Atualmente a comunidade de São Joaquim tem em sua organização espacial o salão de

festas, capela, cemitério e 82 casas que foram construídas pelos devotos para hospedarem

suas famílias, fiéis e convidados durante a festa de São Joaquim, ficando abandonadas durante

a maior parte do ano (ver figuras 1, 2, 3 e 4).

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Figura 2: Vista panorâmica da comunidade São Joaquim – rio Waupés. Fonte: Leticia Alves da Silva, (6 de dezembro de 2013).

Figura 3: cemitério da comunidade São Joaquim. Fonte: Leticia Alves da Silva, (11 de agosto de 2013).

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Embora não haja moradores na comunidade de São Joaquim desde o abandono de

vários aldeamentos pelas ordens religiosas no final do século XIX (SILVA & SILVA, 2010),

há registros de ocupação efêmera no século XX por parte da família Miranda, indígenas da

etnia Baré.

Desta forma, na década de 30 até 60, a família do já falecido Sr. Antônio Miranda,

residiu em São Joaquim, de acordo com o relato feito pela sua neta, Sra. Adelina Miranda

Velasques:

A minha mãe, Jardelina Miranda, mais conhecida como dona Jadi, se orgulhava em

dizer que ela havia nascido e se criado na comunidade de São Joaquim, ela nasceu

em 1935, ela morava com meus avós, onde está agora o centro comunitário, mamãe

falava que todo ano participava da festa do glorioso São Joaquim. Depois de algum

tempo, a família da mamãe passou a morar na comunidade de Sororoca e depois

disso fomos para a Colômbia, onde voltamos em 1984 para morar em São Gabriel

da Cachoeira. (Adelina Miranda Velasques, entrevista realizada em 08 de maio de

2013).

A explicação que os moradores mais antigos apresentam sobre a ausência de

habitantes na comunidade São Joaquim perpassam em sua maioria devido o abandono do

aldeamento de São Joaquim pelas missões religiosas e consequente pulverização dos

Figura 4: centro comunitário da comunidade São Joaquim. Fonte: Leticia Alves da Silva, (10 de agosto de 2012).

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indígenas aldeados, que se dispersaram pelo rio Negro e Waupés fundando diversas

comunidades circunvizinhas como: Comunidade de Tacira Ponta, Cutipuru, Umiri (Ilha das

Flores), Bauari, Sororoca, Monte Cristo, Tatu, Ilha do Açai, Cabeçudo-poço, Carapanã,

Jandiá, Tamanduá, Itapinima, Cunuri Ponta, Sarapó, São Gregório, Yawawirá e Trovão.

Ainda que a comunidade de São Joaquim passe boa parte do ano sem ter um cotidiano

vivenciado pelos membros comunitários, a festa de Santo é uma oportunidade de tornar a

comunidade “viva” e principalmente restabelecer os laços de identidade com o lugar, além de

reforçar o sentimento de pertencimento, revelando formas particulares de apropriação e de

produção do espaço.

O CULTO A SÃO JOAQUIM AO LONGO DA HISTÓRIA

No Brasil, a difusão do culto a São Joaquim, é creditada a congregação Carmelita que

introduziu nas missões implantadas entre os séculos XVII e XVIII, sobretudo para catequizar

os indígenas:

Entre os santos/as patronos/as das aldeias a metade é composta por santos

carmelitas, se a estes adicionamos São Joaquim, Santa Ana e São José, porque são

considerados como padroeiros da Ordem e no passado foram muito venerados pelos

carmelitas. Assim dá para se ter uma idéia do quanto os missionários do Carmo

transmitiram as suas devoções aos índios (SANTIN, 2013).

No Alto rio Negro, a festa de São Joaquim, é realizada a mais ou menos 200 anos na

comunidade de mesmo nome, e é considerada “uma das maiores e mais antigas festas de

santo da região”(FIGUEIREDO, 2009, p.213).

Galvão (1979, p.183), também destaca a festa de São Joaquim como umas das festas

mais importantes do Alto rio Negro, quando de sua passagem pela referida região: “Santo

Antônio, São João e São Joaquim são as festas mais importantes do baixo Içana e Uaupés.

Especialmente a última, realizada em agosto, em sítio localizado na boca deste rio”.

A festa de São Joaquim é realizada atualmente do dia 10 a 17 de agosto, com duração

de uma semana. Porém, de acordo com Monteiro (1983. p.275), o evento festivo, nem sempre

ocorreu nestas datas: “Durante os dias dois a dezoito de agosto, comemora-se no alto rio

Uaupés (Estado do Amazonas) a festa profano-religiosa em homenagem a São Joaquim,

padroeiro daquela localidade [...]”.

Desse modo, Melo (2009, p. 42) argumenta que “[...] Estes eventos são transformados

em momentos de encontro, de reativação das redes sociais. Ao festejar, também buscam a

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colaboração dos próprios santos para resolução de seus problemas e “agradecem ritualmente”

quando suas preces são atendidas [...]”.

Além de fortalecer a identidade do lugar, as festividades religiosas transformam a vida

cotidiana da comunidade, é o momento de acolher os parentes e amigos, realizar missas e

procissões, refeições coletivas, bailes, enfim festejar.

O ALTO RIO NEGRO EM FESTA: ASPECTOS RITUAIS E SOCIOCULTURAIS DA

FESTA DE SÃO JOAQUIM

De acordo com Lasmar (2005), compreender os significados de certos lugares

freqüentados ativamente ou periodicamente pelas populações indígenas é um passo

fundamental para o entendimento dos princípios organizadores do universo social dos índios

do Alto Rio Negro.

Nesse sentido, faz-se necessário uma compreensão da própria festa, sobretudo dos

seus entrelaçamentos com a identidade social, percebendo como os grupos sociais vivenciam

e concebem seus ambientes.

De acordo com o Sr. Humberto da Cruz, antigo participante da festa religiosa,

proveniente do sítio Tatu, rio Negro e pertencente a etnia indígena Baré; tradicionalmente, as

famílias que organizam e participam da festa, são oriundas de várias comunidades do Rio

Negro e Waupés tais como: Tacira Ponta, Cabeçudo-Poço, Ilha das Flores (Umiri), Bauari,

Sororoca, Monte Cristo, Tatu, Ilha do Açai, Carapanã, Jandiá, Tamanduá, Cutipuru,

Itapinima, Cunuri Ponta, Sarapó, São Gregório, Yawawirá e Trovão ( rio Waupés). Sendo

assim, grande parte destes comunitários pertence às etnias Baré, Dessano, Cueuano e Tukano.

Muitos deles são descendentes dos indígenas aldeados da época das missões carmelitas.

Assim, vários participantes da festa de São Joaquim afirmam que seus antepassados tinham

uma ligação muito forte com a comunidade, pois é nesse espaço que passaram a conviver com

os freis carmelitas e aprender através da catequese a cultuar São Joaquim e Santo Antônio,

como também assimilar o ensino escolar que incluía o aprendizado da língua portuguesa e

latim, preparo técnico dos ofícios mecânicos e agrícola.

Dessa forma, o Sr. Humberto revelou os nomes das famílias tradicionais imbuídas de

organizar e participar da festa de São Joaquim, destacando que a maioria de seus membros já

são falecidos, e foram enterrados no cemitério da comunidade São Joaquim, restando apenas

seus filhos, primos e netos:

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Antigamente participavam da festa, as famílias do Seu Sérvulo da Silva, do sítio

Cutipuru; Manuel da Cruz, meu pai, do Sítio Tatu; Seu Inocêncio da Cruz, primo do

meu pai; Família do Seu Magêncio dos Santos, moradores do sítio Bauari; família

do seu Ramiro Lizardo, pai da minha esposa, moradores do sítio Carapanã, família

do Sr. Fortunato Melgueiro, do sítio Tamanduá, todos da etnia Baré, ainda

participavam vários moradores da ilha das flores, Ilha do Açai, Trovão, Cucuí,

família do Sr. Florêncio da Costa, da comunidade de Tacira Ponta, que ainda está

vivo e é um dos participantes mais antigos. (Humbero da Cruz , 22 de maio de

2013).

Outro relato importante sobre os antigos participantes da festa de São Joaquim advém de um

dos tradicionais rezadores da festa, Sr. Raimundo Brazão da Silva, etnia Baré:

Seu João Pedro da Silva, meu pai, foi um grande mestre-sala. Minha mãe Creuza

Brazão participava também, Seu João Caetano, Sesário Velasques, Sesário Salgado

que tinha vários cargos como rezador, gambá, e mestre sala. Ele era bastante

respeitado por isso. Também o Sr. Fortunato Soares, pai da Dona Clara Soares,

esposo da dona Josefa Soares, ele era uma grande liderança da ilha de Umiri, onde a

minha família morava. (Raimundo Brazão da Silva, 29 de maio de 2013.)

Sobre as narrativas anteriores, verifica-se a importância se trazer à tona a memória

histórica que está relacionada ao vínculo afetivo e social que os antigos moradores e seus

descendentes têm com a comunidade São Joaquim, apesar de não residirem cotidianamente,

pois revela que “esses vínculos estão relacionados ao fato dos grupos de moradores terem se

originado em determinado lugar, possuírem uma história construída nele”[...](FRAXE, 2007.p

113).

A preparação da festa de São Joaquin é iniciada tradicionalmente todos os anos, a

partir do mês de janeiro e depois em julho com o início da capina de todo o terreno, realizada

pelas famílias das comunidades adjacentes. E principalmente no mês de junho e julho, são

realizadas na comunidade São Joaquim, a limpeza, consertos diversos, pinturas das casas,

capela, centro comunitário e instalação do motor de água e rede de energia elétrica.

E nas semanas que antecedem o festejo ocorrem reuniões na comunidade de São

Joaquim com os membros nomeados para organizar o evento, tais como: festeiros,

encarregados de organizar a festa; mordomos, incumbidos de auxiliar em todas as atividades

antes e depois da festa de santo; promesseiros, indivíduos pagadores de promessa; juízes de

mastro, são atribuídos a estes a abertura da festa, confecção e levantamento dos quatro

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mastros do santo; mestres-sala, têm o dever de manter a ordem em todos os espaços em que

acontecem a festa; tamborineiros, cargo responsável por recepcionar todos os organizadores

do festejo e determinar as atividades realizadas no decorrer da festa, através do batuque de

tamborinas confeccionadas com couro de viado, onça ou anta; cozinheiras, encarregadas de

fazer e servir a alimentação a todos os participantes do evento; bandeireiros, acompanham os

tamborineiros na “chegada” (recepção dos organizadores da festa de santo), como também na

procissão terrestre e fluvial durante as rezas, esmolas, carauataí e castelinho (símbolo do

barco do santo que leva os pedidos dos fiéis).

O momento que assinala a abertura da festa de São Joaquim é o estouro dos foguetes

feito pela família dona do santo, que originalmente pertence aos Miranda. Os tiros de foguetes

são feitos a partir das 6 horas da manhã. Porém, foi observado que atualmente, devido à

ausência de grande parte dos membros da família Miranda, outras famílias ficam encarregadas

de realizar essas e outras tarefas no transcorrer do evento festivo.

Não obstante, o grupo que realiza o translado dos responsáveis pela festa de São

Joaquim prolonga tal ritual até as 15 horas, ao mesmo tempo em que vários participantes

vindos das comunidades circunvizinhas e principalmente parentes da cidade de São Gabriel

da Cachoeira vão chegando com suas canoas, barcos, lanchas e voadeiras. Por conseguinte, o

transporte se inicia com a ida de uma embarcação contendo o mestre-sala, dois tamborineiros,

dois bandeireiros, uma pessoa responsável em soltar os foguetes e um motorista fluvial. Este

grupo segue até o sítio das famílias organizadoras da festa do santo, e no retorno conforme se

aproximam do porto da comunidade de São Joaquim, soltam foguetes que servem para avisar

às famílias encarregadas da recepção sobre a chegada dos juízes de mastro que antigamente

eram dois componentes e atualmente são quatro.

Portanto, em dias alternados, a família “dona do santo” acompanhada dos bandeireiros

e tamborineiros, e demais pessoas que se encontrarem na referida comunidade se juntam no

porto da comunidade para recepcionar posteriormente os festeiros que eram dois e hoje em

dia são seis indivíduos; mordomos que até o final da década de 80 eram trinta e atualmente

são sessenta participantes e os promesseiros, que no passado eram dois se elevando para mais

de dez. Todos os organizadores da festa do santo são recepcionados com oferecimentos de

vinho, sendo que antigamente eram servidos garapa e aluar (bebidas fermentadas feitas com

frutas), este momento também é conhecido como correrê.

Posteriormente, segue o levantamento dos mastros que ocorre sempre às 17h00min.

Onde os dois primeiros são fixados na frente da capelinha e os últimos próximos ao salão de

festas (centro comunitário). Estes símbolos que demarcam o culto e devoção dos

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comunitários, são enfeitados com bandeirinhas da cor branca fixadas no topo de cada mastro

contendo a imagem de São Joaquim e frutas da região como banana, açaí, côco, cana-de-

açúcar, abacaxi, pupunha entre outras. Desta forma, esse momento é iniciado com uma

procissão acompanhada por todas as pessoas presentes, em que duas imagens de São Joaquim

são carregadas pelos promesseiros que caminham desde a saída da capela, perpassando a

frente desta, transcorrendo a via principal da comunidade, chegando até as proximidades do

centro comunitário e depois retornando à capela. Neste trajeto de ida e volta é realizada

também o correrê de bebidas fermentadas.

Após a colocação dos mastros, todos os comunitários se dirigem ao salão de festas

para tomar café com beijujica e posteriormente às 20h00min, os participantes da festa seguem

até a capela para iniciar as rezas em forma de ladainha, onde os fiéis rezam em latim e

português. Os rezadores mais conhecidos e antigos que comandam as orações são o Sr.

Rosendo Melgueiro e Raimundo Brazão.

Depois da reza, os comunitários se deslocam até o salão de festas para dançar o

macaquinho, uma espécie de dança indígena, puxada pelo gambá, que é o animador das

apresentações, onde este é auxiliado por dois tamborineiros que cantam músicas em

nheengatú e português e vão formando uma roda em que participam vários homens e

mulheres. Geralmente o baile é entremeado pelo correrê, assim como outros ritos que

perfazem a festa de São Joaquim.

Desta forma, o correrê é um momento em que são servidos bebidas fermentadas como

aluar, garapa e vinho de qualquer fruta da região. Participam dessa rodada de bebidas apenas

os adultos que estão sendo recebidos na “chegada” ou que estão participando da dança do

macaquinho, carauataí, procissão do santo e entrega do barquinho do santo.

Destarte, verifica-se que além da presença de famílias que moram em comunidades

adjacentes há grande participação de pessoas residentes da cidade de São Gabriel da

Cachoeira e Manaus, muitos são parentes das famílias organizadoras da festa, sendo que os

mesmos salientaram a grande alegria em reencontrar e compartilhar a cultura dos seus

antepassados nesse momento festivo. Outros grupos de participantes são os de não-índios

como militares de outros estados da federação, pesquisadores, jornalistas, autônomos,

empresários, comerciantes e funcionários públicos. Há igualmente, muitas visitas de políticos

do município de São Gabriel da Cachoeira, como prefeitos, ex-prefeitos e vereadores.

Conforme as danças indígenas vão finalizando, há o prosseguimento do baile ao estilo

caboclo com apresentações dos cantores de “cuximauara”, que quer dizer em nheengatú

“música antiga”, pois este estilo musical remete as guitarradas do Estado do Pará. E no

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transcorrer do baile, o mestre-sala é atuante para verificar e combater algumas transgressões

que podem ocorrer no salão, como por exemplo se há homens adentrando o salão de festas

sem os trajes adequados (camiseta e calça comprida), desentendimentos ou desrespeito com

os casais dançantes e etc. Pois, segundo o Sr. Otávio Miranda, antigamente qualquer falta de

respeito com o santo ou demais participantes era castigado com a aplicação da vaqueta, “um

tipo de castigo que obriga o transgressor a ficar de joelhos sobre um pau oitavado e rezar

quinze padrenossos completos “(Monteiro, 1983. Pág. 276). Outra função destinada ao mestre

sala era aplicar a pucuareara, ou amarração do braço com a fita vermelha. Assim obrigando a

pessoa a ficar até o final da festa do santo padroeiro (Monteiro, 1983, pág.277).

Sendo assim, o baile dançante da festa de São Joaquim se estende até as seis horas da

manhã e após a esse, todos os participantes da festa se deslocam até a capela para beijar as

fitas do santo. E a partir das 6h30min é realizado o Carauataí, que é um convite diário para o

banho comunitário onde os mestres sala, juízes de mastro, mordomos, tamborineiros e

bandeireiros passam de casa em casa convidando. A hora do almoço, inicia às 11h30min.

Este momento é assinalado geralmente pelo mestre sala que fica responsável por convocar as

famílias e demais participantes da festa, para participar do almoço, merenda e jantar no salão

de festas, onde é servido os pratos regionais como quinhãpira com beiju de massa ou goma

(curada), porco e galinha cozidos, doce de banana, cupuaçu, côco, chibé de farinha de

mandioca ou de açaí, caribé de maçoca, mingau de banana, maçoca, goma, farinha e tapioca.

O auge da festa do santo se dá nos dias 16 e 17 de agosto, dias esses dedicados às

esmolas, descida do barquinho do santo, desfiles dos mascarados, entrega de materiais que

restaram da festa e leitura dos responsáveis pela festa do ano seguinte. Verifica-se no dia 16 a

inserção de oito árvores na rua principal da comunidade São Joaquim contendo em seus

galhos vários doces feitos de côco e banana, como também balas industrializadas; e no

entardecer os festeiros acedem fogueiras em suas bases. As esmolas dadas ao santo vão desde

dinheiro em espécie, comida, produtos da roça e outros objetos de valor.

Ainda ocorre às 20h00min, a soltura do barquinho pelo rio Waupés, que simboliza o

pedido dos fiéis que vão ser levados para Deus por intermédio de São Joaquim, momento esse

que inicia com uma procissão da capela até o porto principal da comunidade, descendo dois

promesseiros carregando a imagem de São Joaquim, um fica na comunidade e o outro

embarca em uma canoa de dois metros em que vão dois bandeireiros, dois tamborineiros, dois

devotos com suas velas, barqueiro, uma pessoa encarregada de soltar os foguetes, um rezador,

um mestre-sala, um motorista e uma pessoa que leva o guarda-chuva para proteger o santo

durante o cortejo que se dirige até as proximidades da comunidade de Monte Cristo, onde a

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correnteza do rio é mais forte, e chegando ao local em meio a escuridão iluminada pelas velas

dos fiéis, a embarcação que carrega o santo é recepcionada por outro grupo que sai duas horas

antes levando os dois barquinhos que são confeccionados com caule de buriti e enfeitados

com foguetes e velas feitas de xincantá (resina vegetal usado pelos indígenas para defumar a

casa e afastar maus espíritos). Desse modo, as duas embarcações prosseguem descendo o rio

até a frente da comunidade de São Joaquim, onde é feito quatro voltas formando uma meia-

lua com o estouro de foguetes de ambas canoas e cânticos utilizando a língua nheengatú.

E finalizadas o cortejo fluvial das canoas, os barquinhos do santo são soltos no meio

do rio e a canoa do santo retorna ao porto comunitário, de onde prossegue até a capelinha para

realização da reza em forma de ladainhas. Ao final das orações, há prosseguimento deste

importante dia com a noite dos mascarados que é realizada no centro comunitário, onde

participam jovens fantasiados com máscaras monstruosas, para assustar crianças e pessoas

distraídas, após a apresentação dos mesmos, ocorre novamente o correrê e dá-se o

prosseguimento da festa dançante ao som do cuximauara.

No dia dezessete de agosto, dia do santo padroeiro há uma imensa leva de pessoas que

transformam o cotidiano festivo do lugar, pois no ano de 2012 foi registrado a presença de

mais de 320 pessoas, parte moradora da cidade de São Gabriel da Cachoeira e distritos de

Taracuá e Cucuí, como também viajantes que passam pela comunidade como os Baniwa,

Hupda e Yohupde que encostam na comunidade para prestigiar a festa de santo.

Em outro momento desse dia festivo, é realizado no salão de baile, a leitura da relação

dos nomes dos festeiros, mordomos, juízes, promesseiros e bandeireiros para o ano seguinte.

E no dia seguinte às 15h00min, os festeiros e demais ajudantes derrubam os mastros e

guardam o santo na capela. Em seguida todos que participaram da festa limpam suas casas,

atividade esta conhecida como “varrição” e aos poucos cada família embarca seus pertences e

singra o rio Waupés e outros o rio Negro rumo a suas comunidade e assim dando-se encerrada

a festa do glorioso São Joaquim, adjetivo dado pelos devotos que assim tratam o santo, pelas

grandes graças alcançadas que vão desde a proposição de casamento, aprovação em concurso,

cura de enfermidades, solução em problemas judiciais ou familiares.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em suma, é nítido observar na festa de São Joaquim, a junção de elementos da cultura

indígena do Alto rio Negro nos primeiros momentos e no decorrer do festejo, que seguem

desde os cânticos que utilizam o nheengatú, correrê, danças, ladainha, levantação do mastro,

refeição, carauataí e recepção que remetem ao dabucuri praticado na região, à prática de se

dividir e realizarem refeições juntos, enfim, vivenciar uma comunhão com todos os parentes,

amigos e demais convidados. Pois no centro urbano de São Gabriel da Cachoeira, de onde

procede grande parte das pessoas que freqüentam a festa, esse modo de vida é quase que

inexistente, pois há grande influência do modo de vida ocidental, que advém desde a inserção

do exército, marinha e aeronáutica, perpassando outras instituições governamentais e não-

governamentais, em que grande parte de seus integrantes não são indígenas.

Isto posto, a manutenção e o fortalecimento da identidade cultural possibilitada pela

festa é um dos motivos que Melo (2009) destaca como sendo, em sua maioria, o que mantêm

os moradores de um determinado lugar interessados em continuarem vivendo ali. Pois “[...]

Há o desejo de reafirmar um modo de vida que configura uma forma de “viver bem”, isto é,

uma vida comunitária, partilhada entre parentes e celebrada principalmente nas “festas de

santo”, já que a cidade impõe ritmos diferentes à vida social [...]” (p. 119).

Nesse sentido, a possibilidade que a festa de São Joaquim apresenta aos devotos e

demais integrantes ao vivenciarem aspectos da cultura indígena do Alto rio Negro e grande

parte deles se intitularem parte daquele território remonta às suas referências simbólicas

construídas historicamente e que condicionam sua identidade como indígena Baré, Tucano ou

Dessano, parte daquela comunidade. Pois, as práticas sociais e culturais vivenciadas durante

a festa de São Joaquim são inerentes para a perpetuação e fortalecimento das tradições desse

povo.

Logo, a festa, o espaço, os atores sociais envolvidos e a representação cultural,

pertencentes a um determinado grupo, faz com que o elo entre o passado e o presente se

mantenham de alguma forma (Angelo & Corner, 2007) .

À vista disso Thompson (1998, p.18) assegura que “as práticas e as normas se

reproduzem ao longo das gerações na atmosfera lentamente diversificada dos costumes”

contribuindo para que “essa cultura transmite com vigor – desempenhos ritualísticos ou

estilizados” importantes veículos de transmissão do modo de vida comungados pelos

antepassados dos participantes da festa de São Joaquim.

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Portanto, o entendimento sobre a devoção ao Santo padroeiro e o vínculo afetivo

proporcionado pela festa, com relação ao território onde se encontra a comunidade de São

Joaquim , faz com que entendamos que a cultura de um povo é fruto da história coletiva, pois

a cultura é uma construção histórica.

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