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RELATÓRIO ANTROPOLÓGICO DE IDENTIFICAÇÃO ÉTNICA DO GRUPO KALANCÓ (AL) – Contrato de consultoria n. 22/2002/FUNAI – Ugo Maia Andrade Universidade de São Paulo

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RELATÓRIO ANTROPOLÓGICODE IDENTIFICAÇÃO ÉTNICA DO GRUPO KALANCÓ (AL)

– Contrato de consultoria n. 22/2002/FUNAI –

Ugo Maia AndradeUniversidade de São Paulo

São PauloAbril de 2003

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Relatório Antropológico de Identificação Étnica Kalancó

RELATÓRIO ANTROPOLÓGICODE IDENTIFICAÇÃO ÉTNICA DO GRUPO KALANCÓ (AL)

Ugo Maia AndradeUniversidade de São Paulo

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Relatório Antropológico de Identificação Étnica Kalancó

“[...] que o caboclo é o mesmo índio. É o mesmo.É porque nós não conhecia que era índio,

mas é o caboclo mesmo que é índio”.

- José Antônio Alexandre dos Santos, 65, Sítio Januária.16/05/2002.

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Relatório Antropológico de Identificação Étnica Kalancó

ÍNDICE

APRESENTAÇÃO ........................................................................................................................ 5

INTRODUÇÃO i- Sobre os Procedimentos Metodológicos ................................................................................ 10ii - A Forma do Contato e o Desenvolvimento das Atividades ................................................... 12iii - Balizas Teóricas e Conceituais ............................................................................................ 14

PARTE I — HISTÓRIA E REDE DE RELAÇÕES1.1. Dados Gerais sobre os Kalancó ......................................................................................... 181.2. A presença dos Kalancó na Imprensa Alagoana ................................................................ 201.3. Circuitos de Comunicação Interétnica ................................................................................ 261.4. O Aldeamento de Brejo dos Padres e os Ciclos Migratórios .............................................. 31

PARTE II — MEMÓRIAS, GENEALOGIAS E CATEGORIAS DE IDENTIDADE2.1. A Fixação dos Caboclos de Brejo dos Padres nas Proximidades de Água Branca ..................................................................................... 38

2.2. Estigmas e Categorias de Identidade ................................................................................. 52

PARTE III — O SISTEMA RITUAL E OS ENCANTADOS3.1. Mundo Encantado Kalancó ................................................................................................. 653.2. Dar e Receber: Processos Propiciatórios de Cura ............................................................. 743.3. As Variantes Rituais dos Praiás .......................................................................................... 793.4. As Viagens de (Re)Conexão com o Brejo dos Padres ....................................................... 88

FINAL ......................................................................................................................................... 93

BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................................... 97

ANEXOS I. Levantamento Genealógico por Unidade Doméstica (UD) ................................................... 102II. Tabelas e Gráficos ............................................................................................................... 166III. Fotografias .......................................................................................................................... 171

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Relatório Antropológico de Identificação Étnica Kalancó — Apresentação

APRESENTAÇÃO

Em agosto de 1998 deu entrada na sede da Administração Executiva Regional da FUNAI em Alagoas (AER Maceió) um pedido de lideranças dos grupos de identidade indígena autodenominados Kalancó e Karuazú reclamando o envio de um antropólogo às suas áreas a fim de proceder aos trabalhos técnicos necessários de identificação étnica (processo n. 0736/1998). Este seria o início de uma série de engajamentos que viria, por fim, culminar na instituição do contrato de consultoria n. 22/2002 que estabeleceu minha contratação para a realização dos referidos trabalhos junto aos Kalancó e aos Karuazú. O documento firmado com a FUNAI estipulava como objeto final a apresentação de “dois relatórios circunstanciados de identificação étnica, sendo um do grupo Karuazú e outro dos Kalancó” (clausula 1a) e estabelecia como função dos relatórios “subsidiar a FUNAI nas decisões oficiais quanto aos pleitos de reconhecimento de identidade daqueles povos, formalizados no processo n. 0736/1998/FUNAI, de conformidade com a proposta de trabalho apresentada pelo antropólogo, que passa a fazer parte integrante deste instrumento” (id.).

A execução dos serviços contratados ficou dividida em duas etapas que deveriam finalizar em produtos distintos; um relatório sobre material bibliográfico disponível sobre os Kalancó e Karuazú (denominado “produto A”, entregue em setembro de 2002) – elaborado em cima do conjunto que me foi enviado pela CGEP/FUNAI antes da firmação do contrato de consultoria – e dois pareceres finais (denominados “produto B”) que deveriam ser produzidos com base “na análise contida no Produto A e do trabalho de campo decorrente de viagens às áreas habitadas pelos Karuazú e pelos Kalancó para entrevistas, censos demográficos, reuniões, registros de alguns rituais, etc. (cláusula 2a; subitem II.1.2).

O presente Relatório Antropológico de Identificação Étnica trata do grupo autodenominado Kalancó que habita uma área no município de Água Branca1, porção Oeste do sertão de Alagoas, próximo à divisa com os estados da Bahia e Pernambuco (figura 1). Este grupo é formado por cerca de 60 famílias – embora este número não deva ser tratado como um universo fechado e definitivo – que mantém estreitas relações entre si baseadas, sobretudo, no parentesco. A natureza deste trabalho está vinculada à demanda administrativa à qual aludi anteriormente e às suas específicas condições de produção, discutidas no bloco seguinte. Embora as discussões sobre a produção de trabalhos técnicos antropológicos estejam bastante avançadas no âmbito da ABA (Associação Brasileira de Antropologia) – que vem promovendo, inclusive, vários circuitos de diálogo com os agentes jurídicos e administrativos solicitantes de tais produtos através de iniciativas do Grupo de Trabalho sobre Laudos Antropológicos – cabe

1 A cidade de Água Branca fica a 303 km de Maceió, em região serrana, e seu município tem cerca de 19.200 habitantes. É uma das cidades mais antigas do estado de Alagoas, embora tenha recebido o título apenas em 1919, com o primeiro núcleo de povoamento local formado em 1769 (informações retiradas do site http://www.coisasdealagoas.com.br/alagoas/m_aguabranca.htm )

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Aldeia de Brejo dos Padres Água Branca

Figura 1 – Mapa do estado de Alagoas. Coletado em http://www.guianet.com.br/al/mapaal.htm e modificado.

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Tacaratú

Relatório Antropológico de Identificação Étnica Kalancó — Apresentação

notar algumas balizas que orientam este relatório e que são produtos dessas discussões. Refiro-me, sobretudo, à Carta de Ponta de Canas (ABA, 2000), um potente instrumento, não normativo, originado da Oficina sobre Laudos Antropológicos promovida pela ABA na UFSC em novembro de 2000, que fornece sólidos parâmetros para a produção de trabalhos técnicos antropológicos e cujas recomendações centrais dirigidas aos autores podem ser assim resumidas:

a) compreender o fundamento e objetivos da demanda; b) definir com clareza os procedimentos metodológicos e suporte teórico que orientam a produção do documento, atuando conforme os cânones da antropologia e c) proceder à exposição argumentativa com objetividade, atentando para os objetivos do documento, recorrendo à demonstração etnográfica da forma mais pertinente a tais fins.

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Relatório Antropológico de Identificação Étnica Kalancó — Apresentação

Seguem-se ainda importantes considerações sobre a extensão do conhecimento antropológico e a natureza de trabalhos de teor técnico constituídos nos limites da disciplina:

“O saber antropológico se define pelo diálogo, pela tradução e explicitação de categorias e discursividades nativas, sendo capaz de relacionar as categorias étnicas juridicamente formalizadas com as categorias e circuitos de relações próprios aos grupos sociais e aos contextos culturais investigados [...] Os assim chamados relatórios de identificação étnica não tem caráter de atestado, devendo ser elaborados como diagnoses das situações sociais investigadas, que orientem e balizem as intervenções governamentais na aplicação dos direitos constitucionais” (ABA, 2000: 3-5).

A essas considerações somam-se outras anteriores, notadamente as presentes em Oliveira (1998) que foram formuladas com o duplo objetivo de apresentar algumas das armadilhas presentes na produção de laudos antropológicos (e no diálogo entre a antropologia e o direito) e sistematizar posturas e procedimentos capazes de produzirem trabalhos antropológicos que sejam, ao mesmo tempo, produtos de um conhecimento aplicado, conforme a natureza da demanda que o gerou, e fruto de uma vigilância metodológica rigorosa. Tal questão põe à mesa o problema da diferença entre a exatidão de resposta exigida por uma perícia e a natureza eminentemente interpretativa do conhecimento antropológico, resultando não na impossibilidade da constituição de laudos formalizados nos cânones da antropologia, mas na necessidade de discussão de seu caráter, suas possibilidades e extensão:

“[...] os laudos periciais (judiciais ou administrativos) constituem um gênero narrativo bem diverso das teses, monografias, ensaios e comunicações, por serem dirigidos para um público e finalidades distintas, por terem canais de financiamento próprios, regras particulares de execução do inquérito, meios de avaliação distintos e sobretudo visarem produzir efeitos práticos sobre os fenômenos que estudam. Isso não os esvazia como produtores de conhecimento, nem os desloca para o domínio da experiência, ligando-os ao habitus e ao receituário do indigenismo. A sua consecução continua a exigir uma formação integral em Antropologia, algo que equipe os seus praticantes com os instrumentos mínimos de navegação. E que possa vir a qualificar melhor o tipo de conhecimento que os laudos podem produzir, definindo suas particularidades e seus limites face a outras modalidades de conhecimento. Mas sem enclausurar-se em uma dimensão exclusivamente técnica e pretendendo também – pela complexidade das questões (metodológicas, éticas e políticas) que traz – contribuir para os debates atuais da Antropologia”. (ib.: 294-295).

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Relatório Antropológico de Identificação Étnica Kalancó — Apresentação

As atividades implementadas para a formação deste relatório enquanto um trabalho técnico em antropologia suscitado por uma demanda específica e modulado por pilares disciplinares foram, pois, inspiradas nas formulações sugestivas presentes tanto na Carta de Ponta de Canas (ABA, 2000) quanto em Oliveira (1998), considerações estas que formam entre si um continuum e uma síntese do debate sobre o tema, hoje já bem instalado na antropologia brasileira. A ênfase empregada é na etnografia e no levantamento das memórias sobre as trajetórias das famílias kalancó, haja vista que trata-se de um grupo que mantém estreita conexão com a aldeia de Brejo dos Padres (PE), de onde vieram muitos de seus ascendentes em tempos anteriores. Diante do fato sui generes desta aloctonia parcial da identidade Kalancó, ou o fato deste ser um grupo que desenvolve suas categorias de identidade indígena tendo um território extra local como forte referência, a consulta às fontes primárias que pudessem revelar certos processos históricos da ocupação regional (geralmente disponíveis em arquivos de cartórios, arquivos públicos estaduais, bibliotecas municipais etc) não pareceu ser um instrumento atraente de pesquisa capaz de permitir o mapeamento dos fluxos locais de pessoas oriundas da aldeia de Brejo dos Padres, atividade que, ao prometer algum resultado promissor, deve ser levada a cabo com o intuito não de corroborar, ou não, as memórias sobre este tema, mas preencher alguns hiatos possíveis. O confronto entre formas diferentes de discursividades que são produzidas em contextos igualmente diversos de enunciação e tendo por trás horizontes de interesses e doutrinários muitas vezes conflitantes parece algo absolutamente inócuo como instrumento de trabalho de uma pesquisa antropológica.2 Ademais, se as fontes sobre a história do município de Água Branca poderem revelar na região hoje ocupada pelos Kalancó a presença de ameríndios supostamente autóctones, este dado não apresenta importância significativa diante do fato de as famílias kalancó ligarem-se ao universo sócio-cultural e cosmológico dos índios Pankararú de Brejo dos Padres, sem, no entanto, se confundirem com eles. É o reconhecimento desta herança, portanto, que é reivindicado e não uma continuidade genealógica ou cultural com grupos ameríndios locais de outrora.

Este trabalho é, pois, uma etnografia sobre o grupo de identidade indígena Kalancó circunstanciada por objetivos precisos, pela natureza do fenômeno social estudado e pelas condições imperativas de seu desenvolvimento no campo etnográfico e fora dele. É, sobretudo, produto de atividades de pesquisa de campo desenvolvida entre os dias 07 e 20/05/2002 e compõe-se de um texto que traz os argumentos e análises que sustentam as conclusões apresentadas; de um censo elaborado com as famílias kalancó, tomando as residências como

2 Tentei abordar este confronto inútil anteriormente: “[...] tanto as narrativas quanto os documentos escritos são discursos diferentemente transmitidos e materializados e não há justificativa para se aplicar a um ou a outro (embora notadamente isto ocorra com os documentos escritos) uma objetividade que lhe permita uma maior confiabilidade, pois o que está realmente em jogo não é o conteúdo de verdade e sim um poder maior de enunciar-se como verdade. É devido a uma forma de transmissão de conhecimento que tornou-se hegemônica entre nós que pensamos poder aplicar aos conteúdos transmitidos nos e pelos documentos escritos um maior grau de verdade porque confundidos com factualidade e, pretensamente, livres dos manejos ideológicos que toda transmissão encerra”. (Andrade, 2002: 73).

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Relatório Antropológico de Identificação Étnica Kalancó — Apresentação

unidade sociológica de referência; diagramas de parentesco correspondendo a estas unidades; fotografias de conteúdo etnográfico relevante e alguns gráficos e tabelas de teor etário e econômico. Seus vetores, de ordem metodológica e teórica (apresentados mais detalhadamente no bloco a seguir), foram direcionados a uma investigação de caráter antropológica que pudesse apontar os elementos sociais de identidade presentes entre os Kalancó e suas formas específicas de interação social, conectando-se os dados etnográficos com os fragmentos de memória sobre as trajetórias das famílias e observando-se o campo social – formado tanto por agentes quanto por agências de apoio – em que eles ocorrem.

Durante minha estada em Maceió, no período que antecedeu o início das atividades de campo, contei com a valiosa cooperação de Luís Sávio Almeida – professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Alagoas e conhecedor dos índios de Alagoas – que me recebeu em sua casa para uma conversa sobre os Kalancó e Karuazú. Com esse encontro pude antever algumas situações que encontraria em campo e melhor me preparar para elas. Registro também há de se fazer do apoio que recebi da AER da FUNAI em Maceió, na figura de seu então administrador, Tiago Malta, assim como de José Heleno de Souza, à época encarregado do SAS desta AER e hoje seu atual administrador.

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Relatório Antropológico de Identificação Étnica Kalancó — Introdução

INTRODUÇÃO

i - Sobre os procedimentos metodológicos

Aproveitando as pistas apontadas na proposta de trabalho apresentada à CGEP/FUNAI antes do início efetivo dos trabalhos de que trata este relatório, os procedimentos metodológicos contemplados durante a pesquisa de campo seguiram o padrão de atividades de um levantamento etnográfico, associados aos objetivos que o trabalho deveria cumprir e que foram formalmente anunciados no contrato de consultoria. Esses procedimentos adotados, conhecidos e reconhecidos pelos antropólogos em situações etnográficas diversas, foram:

a) Reconhecimento dos contextos e agentes a fim de selecionar informantes prioritários conforme o domínio de assuntos políticos, rituais, ou segundo classe etária, disponibilidade e disposição. As escolham não bloquearam, entretanto, a participação ativa de informantes “não prioritários”, haja vista que o contato se deu também de maneira particularizada com as famílias kalancó;3

b) Levantamento de genealogias nas Unidades Domésticas (UD’s), simultaneamente à coleta de alguns dados econômicos e etários e à realização de algumas entrevistas dirigidas sobre as trajetórias dos parentes ascendentes, local de origem, vínculos com a aldeia de Brejo dos Padres, histórico de viagens e deslocamentos etc.;

c) Realização de entrevistas abertas e dirigidas,4 fora das atividades do levantamento censitário, sobre atributos e atividades dos encantados, sistema ritual, contextos políticos de apoio, relação das famílias com o aldeamento de Brejo dos Padres etc;5

d) Observação e registro fotográfico de situações rituais e do cotidiano;

e) Mapeamento da rede de atores, principalmente indígenas, que vêm mantendo relações de reciprocidade com os Kalancó e levantamento da natureza destas afinidades;

3 Foram 58 UD’s levantadas. A contagem prévia de famílias kalancó que me foi apresentada pelo cacique Paulo da Silva aproxima-se deste número, sugerindo que seu levantamento tomou a mesma unidade referencial que aquela que eu mesmo escolhera depois para fazer o censo do grupo.4 A diferença entre entrevista aberta e dirigida é que a primeira normalmente conduz à história de vida do informante, enquanto a segunda é temática, focando assuntos determinados.5 Para os Kalancó, os encantos ou encantados e, ainda, encantinhos, são seres não humanos que mantém contato freqüente com os homens através de pessoas ritualmente aptas (como os Mestres) durante sessões especiais. Desassemelham-se dos espíritos ou de qualquer noção de força viltal liberta do corpo após a morte como formulad o pela cosmologia judaico-cristã e suas derivadas, sendo referidos a pessoas do passado que assumiram capacidades extra humanas (polimorfia, invisibilidade, proximidade com os santos, imortalidade, capacidade de cura etc) devido a uma dedicação ritual extraordinária. Em ocasiões vindouras, sobretudo na segunda parte deste relatório, este será um tema melhor trabalhado.

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Relatório Antropológico de Identificação Étnica Kalancó — Introdução

Paralelamente a essas atividades, mantive um diário de campo atualizado ao final de cada dia de trabalho com anotações e análises das situações que iam se desenvolvendo, além de cruzar os dados genealógicos obtidos a fim de recompor as famílias extensas que estavam por trás das UD’s. O trabalho pós-campo foi direcionado para leitura bibliográfica específica que incluía material diverso sobre os Pankararú, o aldeamento de Brejo dos Padres e teoria antropológica; transcrição de todas as fitas cassete e MD’s contendo as entrevistas e registros de algumas linhas6 de toré, totalizando cerca de 30 horas de gravação; preparação dos diagramas de parentesco por UD e dos gráficos econômicos e etário.

O propósito dos diagramas de parentesco é representar de forma sintética e específica o que eu escutava muito durante as entrevista: “aqui tudo é parente”. A primeira vista uma afirmação prosaica, mas que revelava um sentido fundamental para as famílias Kalancó; que eles são uma comunidade de parentes, de iguais, portanto, que compartilham história e destinos. Além disso, com os diagramas é possível destacar as formas de casamento por geração e as famílias mais presentes nos intercâmbios matrimoniais. Deve-se ter em conta, entretanto, que esta é uma representação parcial destas relações, haja vista que para os parentes da 2a geração ascendente (os avós) em diante as informações começam a rarear. Isto quer dizer que, ao levantar as genealogias do casal de uma UD, as dificuldades em mapear as relações de parentesco entre seus consangüíneos lineares aumentavam conforme a evolução da geração ascendente e, portanto, a distância cronológica entre eles e esses parentes. Como resultado, era muito mais fácil obter o parentesco entre os pais do casal do que entre seus bisavós, sobretudo quando se tratavam de casais jovens. Optei por não unir os diagramas das UD’s a fim de compor um único porque isto poderia tornar confuso o excesso de simbologias de consangüinidade e afinidade, delegando pouca funcionalidade aos diagramas. Ao invés disso mantive-os separados por UD indicando, quando possível e em notas de rodapé, as pessoas que fazem a ligação entre um diagrama e outro de UD’s diferentes.

Há duas considerações importantes sobre as UD’s. Elas não devem ser confundidas com famílias, haja vista que esta noção encontra melhor sentido para os Kalancó naquilo que chamamos de “família extensa”, ou seja, a união de núcleos residenciais ligados por vínculos de consangüinidade e afinidade. Também há sérios riscos em considerá-las unidades econômicas, já que pode haver a colaboração entre elas nesse sentido7 e às vezes pouca autonomia de uma UD frente à outra. Sua definição parte do critério da co-residência, já que foram classificados como membros de uma UD aquelas pessoas que habitavam a mesma casa, independente dos vínculos entre si.8 A escolha de grupos co-residentes como unidade referencial para a elaboração do censo foi assumida por permitir o contato direto com “chefes 6 As linhas são como toadas curtas, também chamadas de tonantes, que acompanham a coreografia das danças do toré e do praiá. Observei que na maioria delas, há 3 estrofes que se repetem por 3 ou 4 vezes. 7 Isto ocorre tanto através da plantação “de meia”, quanto do provimento parcial de uma UD por outra, notadamente quando há UD’s formadas por casais muito jovens que recebem algum auxílio de seus pais.8 Normalmente a co-residência entre os Kalancó une sob o mesmo teto um casal e seus filhos solteiros e economicamente dependentes, salvo a permanência de netos com avós ou de parentes colaterais mais velhos, como tios e tias.

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Relatório Antropológico de Identificação Étnica Kalancó — Introdução

de família”, oportunidade em que os nomes de ascendentes de pessoas de UD’s diferentes podiam ser também confirmados ou completados, já que normalmente os mais novos só conheciam os nomes dos parentes lineares até a 3a geração ascendente (avôs e avós).

Os contatos mais curtos, porém particularizados, com as famílias kalancó serviram sobretudo para a coleta dos dados quantitativos e genealógicos, além de permitirem a recomposição de trajetórias das pessoas e alguns de seus parentes ascendentes. Foram através das entrevistas mais longas, e em contextos de maior informalidade, com aqueles informantes considerados prioritários que obtive a maioria dos dados qualitativos, sobretudo os referentes aos encantos, às atividades do praiá, às formas de conexão com o Brejo dos Padres e aos modos como as famílias kalancó vêm apreendendo e categorizando aquilo que se coloca através de um novo referencial: o seu etnônimo. Adiante discuto como isto, a adoção do referencial coletivo, é fator circunstancial e histórico que deriva de modos anteriores e menos formalizados de representação de diferença, como “caboclo” e “comedores de calango”, quase sempre alocados em um campo intersocial muito mais tenso que o presente. Esta atual falta de conflito com regionais e a ausência de um movimento contestatório que se oponha ao coletivo kalancó enquanto uma comunidade de herança ameríndia tornou desnecessário estender as entrevistas para não-índios, embora alguns poucos deles possam ser encontrados nas áreas de ocupação de famílias auto-identificadas Kalancó.

ii - A forma do contato e do desenvolvimento das atividades

Após uma reunião inicial com o grupo para apresentar-me, expor meu trabalho e resolver quaisquer dúvidas sobre ele, foi acertado que o terreiro de toré e praiá da Januária, localizado na propriedade de Sr. José Antônio dos Santos, seria o local onde as pessoas inicialmente deveriam me encontrar. Decorrido um tempo, esses encontros foram transferidos para o Lajedo do Couro, pequena localidade kalancó distante cerca de 2 km e onde eu estava alojado, devido à facilidade de acesso de famílias que vinham de mais longe e aproveitavam os transportes em dias de feira pela região. As coletas foram completadas quase inteiramente em uma semana e não transcorreram de maneira intermitente, havendo intercalação com as outras atividades de pesquisa. Esta opção pelo contato parcialmente estacionário família por família se deu por certos motivos. Primeiro, meu tempo total em campo deveria ser dividido com as atividades similares que seriam desenvolvidas junto aos Karuazú – distantes apenas 30 km dos Kalancó e com o dobro de famílias.

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Relatório Antropológico de Identificação Étnica Kalancó — Introdução

É preciso guardar que o trabalho com os Kalancó ocorreu dentro de uma programação que incluía atividades etnográficas em dois grupos com demandas e histórias parecidas. Não havia, portanto, tempo e orçamento previstos exclusivamente para a pesquisa com os Kalancó. Segundo, há uma enorme dificuldade de transporte na região, embora a área de concentração das famílias não seja tão extensa e várias distâncias possam ser vencidas a pé. Era o que eu fazia quando me deslocava até os sítios Quixabeira e Batatal, por exemplo, para ter com as famílias. Meus deslocamentos eram quase sempre acompanhados pelo Sr. Antônio Francisco e seu filho Paulo, simultaneamente pajé e cacique, e por algumas outras pessoas, com papéis de liderança ou não. Evitar o imobilismo e circular a pé pela área era fundamental para compreender certas nuances acopladas à história Kalancó, dispersas em fragmentos obtidos junto às pessoas, mas também em locais com topônimos que revelavam uma história, antigas residências, serras e roçados. Circular pela área não era apenas romper distâncias físicas, mas também no tempo ao criar espaços onde memórias anexadas a lugares podiam aparecer.

Se por um lado a coleta quantitativa ampla entre as famílias permitia a necessária economia de tempo para dedicar-me às outras atividades de pesquisa com os Kalancó, sua inconveniência era ajudar a produzir uma identidade difusa para mim, muito menos associada a de alguém que, por interesse da agência indigenista oficial, estava lá para estuda-los e ver como agem enquanto um coletivo específico e mais ligada, talvez, a um tipo especial de “cadastrador” que obtinha dados familiares para incluí-los posteriormente em mais um projeto de assistência governamental, além daqueles que já são por eles experimentados enquanto famílias de baixa renda. Este é um fato normal nestas circunstâncias – haja vista que eu precisava ser classificado e o seria mediante as experiências anteriores das pessoas com quem lidava9 – e que não trouxe prejuízos ao desenvolvimento da pesquisa, mas que, certamente, obscureceu alguns objetivos do trabalho que eram melhor compreendidos pelas lideranças dada sua vivência política de diálogo com a FUNAI e com outros agentes externos.

Passo a um cronograma sintético das atividades realizadas de pesquisa de campo:

05/05/2002 – Chegada em Maceió e contato com a AER da Funai e antropólogos ligados aos índios de Alagoas.

06/05/2002 – Conversa com o prof. Sávio Almeida (Depto de Ciências Sociais da UFAL) e com o Administrador local da FUNAI.

07/05/2002 – Partida para a área Kalancó em veículo da AER-Maceió. Instalação no sítio Lajedo do Couro.

08/05/2002 – Reunião coletiva e início dos trabalhos no sítio Januária.10/05/2002 – Ida aos sítios Quixabeira e Batatal para coletas genealógicas e

entrevistas.11/05/2002 – Presença no toré realizado no terreiro do Lajedo do Couro.

9 É claro que esta classificação decorre também do fato de não ter sido feita ainda, de forma sistemática, nenhuma pesquisa acadêmica entre os Kalancó, o que não tornou familiar a eles a figura do antropólogo ou do pesquisador de campo.

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Relatório Antropológico de Identificação Étnica Kalancó — Introdução

16/05/2002 – Presença em representação de praiás no terreiro do Lajedo do Couro. À noite, mesa de toré10 na casa de Edmilson da Silva, na mesma localidade, e encontro com lideranças Koiupanká.11

18/05/2002 – Encontro com o ex-cacique Geripankó,12 Sr. Genésio Miranda, em sua propriedade. À noite, toré com apresentação de praiás katokinn13 em Pariconha, cidade próxima à Água Branca e onde residem famílias Katokinn. Conversas com lideranças deste grupo e dos Karuazú.

20/05/2002 – Finalização dos trabalhos com os Kalancó. Partida para o povoado do Tanque, localidade habitada por famílias autodenominadas karuazú.

07/06/2002 – Encontro com o cacique pankararú de Brejo dos Padres, Sr. João Binga, em sua aldeia e entrevista com alguns índios pankararú.

iii - Balizas teóricas e conceituais

Umas das questões recorrentes dentro da etnologia dos grupos indígenas do Nordeste brasileiro tem sido a natureza de suas identidades culturais e dos processos sociais aí presentes. Identidade compreendida não como uma coisa que subsiste em si mesma, mas que só existe efetivamente através de categorias sociais que as manifesta. O expediente teórico normalmente empregado pelos antropólogos que estudam estes grupos tem sido entende-los através da noção barthiana de grupo étnico14 que permite a contraposição às formulações substancialistas ao focalizar os processos históricos de mudança em contextos específicos de interação social.15 Com esta análise formalista, Barth (1969) atribui à interação social o local próprio de constituição e permanência dos grupos étnicos que utilizam os elementos da cultura para manter suas fronteiras simbólicas face às outras unidades com as quais interagem. Este recurso teórico permitiu avanços significativos em vários domínios da antropologia, particularmente nos estudos de comunidades de identidade indígena consideradas 10 Uma mesa de toré kalancó é basicamente uma sessão especial de cura onde se oferece garapa (mistura de água com açúcar) aos encantos que se fazem presentes, por meio dos Mestres que os incorpora, para consultas ou pronunciamentos. Este assunto é tratado na parte III.11 Os Koiupanká são um outro grupo de herança pankararú que no ano passado apresentou à FUNAI demanda por reconhecimento étnico. Ocupam uma região próxima à cidade de Água Branca, no município de Inhapi (AL), e são unidos a famílias kalancó pelo parentesco.12 Grupo localizado próximo à cidade de Pariconha (AL) e que vem prestando significativo auxílio aos Kalancó, reafirmando assim seus vínculos de sangue com eles.13 Como os Koiupanká e Geripankó, e também os Karuazú, os Katokinn são filiados à matriz cultural pankararú. Reclamam o reconhecimento oficial de sua condição étnica e, pelo que pude observar de um rápido contato com suas lideranças, estão agrupados numa porção da periferia da cidade de Pariconha.14 A noção de grupo étnico foi competentemente contestada por Mahmood & Armstrong (1992). Basicamente o argumento das autoras é que os indivíduos representam e selecionam diferentemente os critérios de pertença que os conectam a um mesmo grupo étnico, não havendo, portanto, traços culturais comuns compartilhados por igual. Esta questão é bem resolvida quando pensamos um grupo social sob os aspectos que apresento neste bloco e dos quais me utilizo para desenvolver as análises deste relatório.15 Justiça se faça a Max Weber, para quem a solidariedade étnica só se forma a partir da ostentação das diferenças subjetivamente significativas e objetivamente manifestas, ações estas de teor político e privilegiadamente despertadas no âmbito das comunidades políticas (Weber, 1994 [1972]).

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“emergentes”, “novas” ou “ressurgidas”.16 Considera-las mediante a noção barthiana de grupo étnico implica a necessidade de compreender a natureza das práticas sociais pelas quais esses grupos constituem simbolicamente suas fronteiras e as mantém ao longo do tempo em diferentes contextos de interação. Acredito, como recomenda Oliveira (1998), que um laudo antropológico deva também voltar-se para estes objetivos, buscando mapear, ao longo do tempo, as homologias das práticas exclusivas de interação e de categorias de diferenciação e identidade de um dado grupo.

Em se tratando de grupos étnicos de identidade indígena cabe explicitar também como suas práticas sociais são produzidas tendo-se um determinado universo ameríndio como referência e que fornece os elementos culturais, subjacentes a estas práticas, responsáveis pela comunicação das diferenças face à sociedade nacional e outras unidades sociais com as quais interagem mais imediatamente. Mas, se por um lado Barth informa precisamente o que deve ser procurado nos fenômenos sociais em que fronteiras simbólicas são objetivadas pela cultura, não devemos considerar os grupos em si como as unidades referenciais desta busca, já que “grupo” – ou “comunidade”, “sociedade” – não tem extensão empírica e às vezes é tão somente uma comodidade teórica para lidarmos com certas realidades sociais. Este é um problema que se põe no desenvolvimento da etnografia, do trabalho de campo de um antropólogo junto a um grupo étnico, pois quase sempre as unidades significativas para as relações travadas dentro de um coletivo são as famílias, as linhagens e as casas. Salvo, talvez, em condições em que há instituições políticas bem formalizadas e supra familiares.

Em resumo, a questão é que a busca pela construção teórica da sistematicidade e estruturação dos grupos estudados não deve abstrair a ampla heterogeneidade e agência dos indivíduos concretos em suas relações de interação dentro dos grupos. Este é um problema pensado posteriormente pelo próprio Barth (1992) que recomenda “pensar uma sociedade como um contexto de ações e resultados de ações, mas não como uma coisa” (ib.: 31).17

Desse contexto de ações e seus resultados decorrem as agências individuais que produzem significados diversos que em situações propícias convergem e produzem a organicidade no grupo, e não o contrário, já que “o reconhecimento da realidade social e das múltiplas vozes apenas invalida qualquer explicação da sociedade como um cenário compartilhado de idéias representadas por uma população” (ib.: 32).18

É também assumindo uma posição contrária a transformação do social em uma realidade holística e orgânica que Wolf (1988) – para quem a noção de sociedade como totalidade é uma invenção histórica da Europa moderna – alerta para a necessidade de

16 Considero todos esses termos pouco operacionais – embora alguns deles estejam bastante presentes nos discursos de lideranças indígenas – porque terminam por resubstancializar a cultura. As distinções entre eles e seus significados são trabalhados em Pérez (2001).17 “[...] we need to think of society as the context of actions and results of actions but not as a thing”18 “The recognition of social positioning and multiple voices simply invalidates any account of society as a shared set of ideas enacted by a population”

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focalizar a transformação e a heterogeneidade no estudo dos grupos sociais como elementos que lhes são constituintes, insistindo que “precisamos pensar no problema por caminhos flexíveis e abertos, relacionalmente – através de relações geradas, construídas, expandidas, revogadas; em termos de cruzamentos e sobreposições, melhor que nos termos de entidades contínuas, delimitadas e homogêneas que perduram sem mudanças ou dúvidas” (ib.: 757).19

Posição homóloga é a de Marilyn Strathern (1998) que desenvolve a noção de “sociality” como expressão de relações sociais intrínsecas aos indivíduos vistos como pessoas que produzem relacionamentos e ao mesmo tempo estão envolvidos numa matriz de relações com outros, postura assumida por Cristina Toren (1998) ao anunciar que os indivíduos são sociais e que os significados que eles produzem não são arbitrários porque são gerados na relação social e sempre tendo por referência significados que outros produziram ou estão produzindo. Como indiquei antes no meu trabalho com os Tumbalalá (Andrade, 2002), penso que o que é efetivo é o social (as micro relações cotidianas entre pessoas concretas) e não a sociedade; esta é uma potência contextualmente realizável que depende de ações coordenadas e da convergência de significados alcançada em determinados momentos em face de situações limites ou de densidade, como ensina Barth (1992). Considerar o problema por esta ótica implica a necessidade de atenção para duas coisas; a) os elementos simbólicos referentes à origem presentes no meio de dado grupo étnico são normalmente compartilhados, mas não os significados que lhes são atribuídos pelas pessoas – compreendidas aqui no sentido de Strathern (1998), acima exposto – que convergem apenas nos contextos especiais em que a organicidade flutuante é produzida e b) estas variações não refletem uma incoerência ou contradição, já que elas decorrem das diferenças entre os indivíduos e famílias que compõem um mesmo grupo e que carregam suas próprias experiências, trajetórias, idiossincrasias e biografias. Desta maneira, é imprescindível se pensar em um modelo de grupo étnico que, partindo das premissas formuladas por Barth (1969), possa vislumbrar as fronteiras sociais como linhas difusas e flexíveis, assim como seus conteúdos – a cultura como parte de fluxos globais onde identidades e comunidades são reconfiguradas em um mundo que tornou-se transnacional (Assayag, 1998) e produzidas a partir de fragmentos diversos de contextos (Marcus, 1998).

Acredito que esse escopo teórico – corroborado pelos dados etnográficos levantados e capaz de ilumina-los – pode ser utilizado como ferramenta central para se pensar os Kalancó, considerando sua condição de um grupo étnico de identidade indígena composto por famílias

19 “We need, in contrast, to think about phenomena in flexive and open-ended ways, relationally – in terms of relations engendered, constructed, expanded, abrogate; in terms of intersects and overlaps, rather than in terms of solid, bounded, homogeneous entities that perdure without question and whitout changes”

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que possuem repertórios não idênticos de memórias e significados sobre suas relações históricas com o aldeamento de Brejo dos Padres. Com esse instrumental creio ser possível compreender os elementos históricos e sociais mais relevantes que possam elucidar o modo de reprodução da organização e das categorias de classificação dos Kalancó em vistas a formação de uma comunidade exclusiva.

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Relatório Antropológico de Identificação Étnica Kalancó — Parte I

PARTE I

HISTÓRIA E REDE DE RELAÇÕES

Nesta primeira parte do relatório apresento de forma mais substantiva informações gerais sobre os Kalancó decorrentes do trabalho etnográfico e de fontes jornalísticas de Alagoas. As primeiras são, sobretudo, uma rápida caracterização das condições sócio-culturais e materiais de vida das famílias kalancó e as últimas focalizam o processo de formação do grupo pela imprensa escrita alagoana, com algumas interferências críticas de minha parte. Na seqüência, abordo a rede regional de comunicação interétnica na qual os Kalancó vêm se fazendo presentes através de suas lideranças e a importância desses diálogos políticos no curso da etnogênese do grupo, finalizando com uma abordagem histórica dos fluxos migratórios do aldeamento pankararú de Brejo dos Padres a fim de introduzir o assunto no bloco seguinte.

1.1. DADOS GERAIS SOBRE OS KALANCÓ

Algumas informações sobre os Kalancó foram já preliminarmente apresentadas, mas compete sistematiza-las e acrescentar outras. O grupo de identidade indígena que autodenomina-se Kalancó reivindica ligações históricas e genealógicas com famílias de índios que deixaram, no final do século XIX até os anos 30/40 do passado, o aldeamento pankararú de Brejo dos Padres (PE) para se fixarem na região da cidade de Água Branca.20 É constituído por 313 pessoas distribuídas em 58 famílias (contagem com base nas UD’s levantadas durante o trabalho de campo em maio de 2002). Este é um número que poderá crescer num futuro próximo, já que algumas famílias ficaram de fora do censo por residem em localidades muito distantes e de acesso difícil, em cidades da região ou ainda em outros estados. Há ainda aquelas pessoas que fazem parte de UD’s levantadas, mas estão fora das áreas de habitação kalancó trabalhando ou estudando em cidade outras, desviando-se do princípio da co-residência que norteou o levantamento. Além disso, em uma identidade em processo, como é a dos Kalancó, os critérios de pertença étnica geralmente não estão bem formalizados, assim como há grande possibilidade de variação no tempo de disposição por parte das pessoas em

20 O fluxo de caboclos de Brejo dos Padres que veio a formar os Kalancó chegou aos locais atuais há 3 ou 4 gerações atrás, conforme notícias que obtive durante os trabalhos de campo. Cruzando essas informações com aquelas colhidas entre os Karuazú, Geripankó e Pankararú, e com as que foram disponibilizadas por Arruti (1996), acredito que o período total de migração de Brejo dos Padres para a divisa Sudoeste de Alagoas (que compreende basicamente as áreas dos municípios de Água Branca, Pariconha e Mata Grande) ocorreu entre 1877 (quando do loteamento da aldeia de Brejo dos Padres) e os anos 40 do último século. O fim do período crítico migratório deve ter coincidido com a implantação do posto indígena local pelo SPI e com o relativo progresso nas condições de vida dos índios que lá ficaram.

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adota-los e se auto-incluírem na classificação étnica. Isto determina a necessidade de considerar a população kalancó aberta e fluida e os resultados do censo de forma relativa.

O levantamento não interferiu nos critérios de pertença ao grupo – notadamente baseados no parentesco – de modo que incluí nas atividades de levantamento genealógico e entrevistas todas as famílias que eram reconhecidas como kalancó e que se dispunham a participar dos trabalhos. Os sítios de maior concentração dessas famílias são a Januária, Lajedo do Couro, Santa Cruz do Deserto, Batatal e Quixabeira, havendo ainda algumas residências na Gangorra, Craibeiras, Moxotó, Gregório, Cacimba do Cercado, Serra do Sobrado, Oleria e Caldeirão, a maioria deles localizada na região rural da cidade de Água Branca.

Nas localidades próximas à Januária, Gangorra e Lajedo do Couro, há duas escolas municipais e um posto médico, aparentemente inoperante. Não havia energia elétrica em quase toda área à época de minha presença e muito poucos telefones públicos. A estrutura de distribuição de água encanada – ainda bastante irregular – é recente e foi construída pela prefeitura de Água Branca que também mantém alguns reservatórios e pelo menos um chafariz público, entre os sítios da Januária e do Lajedo do Couro. O atendimento de saúde já estava sendo efetuado pela FUNASA através de um acordo com a AER/FUNAI-Maceió que mantém na área um veículo Toyota com motorista para transportar enfermos até os postos de atendimento, geralmente hospitais em Delmiro Golveia (AL), Paulo Afonso (BA) ou Maceió. Também foi a partir de iniciativa da FUNASA que foram construídas algumas casas de alvenaria, com banheiro anexo e 2 quartos, nos últimos 3 ou 4 anos, principalmente na localidade de Lajedo do Couro.

Os Kalancó, assim como a maioria de seus vizinhos não-índios, sobrevivem da agricultura familiar dirigida, sobretudo, ao plantio do milho, mandioca, feijão e à criação doméstica de caprinos e ovinos, além de galinhas, patos e alguns bovinos. O número de aposentadorias rurais é relativamente baixo (22%), o que pode ser associado à diminuta presença de pessoas aptas a receberem o benefício, já que apenas 3,2% da população total tem mais de 60 anos de idade (ver gráficos 2 e 3). As UD’s possuem em média 5 pessoas, sendo que 3 participam de alguma forma da renda cujo valor alcança regularmente o salário mínimo quando há, ao menos, um(a) aposentado(a) em casa (gráficos 1 e 4). No plano da organização política, não há qualquer evidência de faccionalismo ou rupturas internas desta natureza e a causa étnica dos Kalancó vem sendo amparada e apoiada por uma extensa rede formada por agentes indígenas, notadamente lideranças dos Pankararú, Geripankó, Xucurú-Kariri, Karapotó e Karuazú, e organizações indigenistas, tal qual o CIMI (Conselho Indigenista Missionário) e a APOINME (Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo).

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1.2. A PRESENÇA DOS KALANCÓ NA IMPRENSA ALAGOANA21

Não há uma literatura especializada sobre os Kalancó, seja de cunho antropológico ou leigo. Isto decorre do fato deste ser um grupo de presença recente no cenário regional e nacional e ter sido lançado logo após a opção pelo etnônimo que sustentam hoje. Este foi o evento que lhes deu visibilidade durante os primeiros tempos de sua aparição formal como um grupo étnico – substancializado na posse de um referencial específico – de identidade indígena, momento precedido por amplos diálogos com lideranças indígenas do estado alagoano e entidades indigenistas que formam sua rede de apoio. As informações disponíveis sobre este momento dos Kalancó são basicamente da imprensa escrita do estado; duas dessas matérias jornalísticas, sendo uma de capa, são eloqüentes e foram publicadas pelo periódico de Maceió “O Jornal” entre os dias 28 e 29/07/1998. A do dia 28/07/1998, que trás como chamada “Kalancós (sic.): uma tribo se revela”, anuncia a “revelação” dos Kalancó para a sociedade em geral com a execução de uma grande festa que contou com a participação de outros índios do estado, políticos locais, imprensa, vizinhos não-índios e membros da comunidade da Universidade Federal de Alagoas. A nota de capa ainda acentua a origem Pankararú desses índios e o seu empenho político em serem incluídos na lista dos grupos indígenas assistidos pelo Governo Federal através da FUNAI.

Nas páginas 4 e 5 da mesma edição n. 1161 de “O Jornal” a matéria reproduz o tom espetacular e emotivo com o qual o texto é apresentado na capa. “Kalancós (sic.): uma tribo nordestina vem à luz. Os índios ‘encantados’ que viviam escondidos no sertão alagoano assumem sua condição numa festa emocionante”, é o título do texto no interior do jornal. Primeiramente, é preciso situar que a linguagem jornalística não tem apenas a informação como alvo e é necessário adequar o conteúdo tratado a um formato capaz de chamar a atenção do leitor para a matéria. A própria escolha por títulos pouco diretos, de efeito e dúbios em sentido, tem por função atrair o leitor para o texto e não, necessariamente, informa-lo sobre o que este trata. Portanto o tom espetacular dado a uma notícia provavelmente incomum num periódico de grande circulação no estado. Além disto, a chamada e toda a matéria é guiada por estereótipos que comumente alimentam o imaginário nacional de forma em geral para o “ser” índio: primitividade, tradição, proximidade e harmonia com a natureza, prática de costumes exóticos, forte ligação com o passado etc. Ou seja, a matéria, embora parta de um fato (a festa em que os Kalancó se apresentam à sociedade regional como índios), é composta e modelada

21 As informações deste item constam no relatório “Análise crítica de material bibliográfico diverso sobre os grupos étnicos Kalancó e Karuazú (AL)” entregue à CGEP em setembro de 2002 (“Produto A”) conforme o contrato de consultoria que prevê a posterior incorporação de seu conteúdo a este relatório de identificação étnica (cláusula 2 a; subitem II.1.2). Mais informações sobre os Kalancó na imprensa escrita regional podem ser vistas nos sites http://www2.uol.com.br/JC/_1998/2809/rg2709b.htm (Jornal do Comércio, Recife. 27/09/1998) e http://www.gazetamercantilne.om.br/jornal/12592.htm (Gazeta Mercantil. 29/06/2001).

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por elementos prontos e difundidos no senso comum sobre a alteridade indígena e seu universo, assumindo uma postura que reifica todos estes elementos.

O tratamento dado aos Kalancó no subtítulo da matéria – “índios encantados” – faz parte de uma série de argumentos seguintes que pretendem demonstrar como, apesar de serem desconhecidos numa região largamente ocupada e integrada ao resto do estado, além de ser zona de divisa interestadual, esses índios conseguiram permanecer “invisíveis”, resultado de um esforço para ocultar sua herança histórica:

“Quando os pesquisadores imaginam ter o mapeamento e o registro de todas as nações indígenas do Nordeste, nesses anos de preparativos das comemorações dos 500 anos do descobrimento do Brasil, O JORNAL localizou a uma tribo praticamente desconhecida no Nordeste: os Kalancós” (p. 4, caderno A. Reportagem do dia 28/07/1998).

Ao apostar que os kalancó enquanto tais sempre estiveram instalados próximo à cidade de Água Branca e optaram pelo ocultamento de sua identidade – fazendo-se passar por regionais – como uma estratégia necessária à sua sobrevivência física, a matéria essencializa um fenômeno (a identidade) que é, por si, uma construção social circunstanciada e extremamente dinâmica, evocando para isso a presença dos “rituais sagrados” como prova de que eles sempre foram o que se vê que são no momento de sua “revelação” e a presença inconteste da autoconsciência coletiva desta diferença.

Um dos marcos da memória da diferença constantemente apontado pela reportagem é a perseguição promovida pelos regionais contra as famílias saídas da aldeia de Brejo dos Padres e que, após vagarem à procura de melhores paragens, se instalaram numa área que, em função de suas características físicas e acesso difícil, servia como um bom “esconderijo contra o medo”. Enfatizando os aspectos fisiográficos da região habitada pelas atuais famílias Kalancó que corroborariam a escolha do lugar pelo fato de ser um bom esconderijo, O Jornal esquece de mencionar que esta área, ao pé de serras, constitui-se numa exceção regional em termos de média precipitação pluviométrica, condição percebida pela vegetação que não se reduz à caatinga hiperxerófila de seu entorno formado pelas paragens planas, abertas e mais vulneráveis às secas sazonais.

A crença arraigada na continuidade cultural dos Kalancó é manifesta com freqüência pela reportagem quando se refere às “estratégias” adotadas pela comunidade a fim de esconder sua condição e poder continuar exercendo, de forma discreta, suas práticas rituais sem a importunação dos regionais contrários:

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“Para viverem em paz, as lideranças das 38 famílias adotaram a tática do silêncio e, assim, fugiram da perseguição branca. Eles impuseram uma mudança radical de comportamento. Primeiro: cada criança que nascia era batizada com nomes perecidos com os das pessoas da cidade e sempre com sobrenome de ‘Silva’; os rituais dos ancestrais pankararús ficaram restritos ao circulo limitado dos mais velhos. As crianças e adolescentes não participavam, até porque os rituais eram feitos numa área bem distante de suas moradias [...] Outro fato interessante foi a mudança da organização social: os Kalancós deixaram de viver em moradias próximas umas das outras e em forma de círculo. Um irmão de sangue morava distante do outro. Diante de pessoas estranhas, escondiam sempre a sua identidade cultural” (p. 5, caderno A. Reportagem do dia 28/07/1998).

Percebe-se que a todo o momento a reportagem age como se uma identidade kalancó estivesse outrora sempre presente e atuante, apesar de não poder ser objetivada em função das graves e constantes ameaças dos não-índios vizinhos. Nunca se fala, ou se cogita, que “identidade” é um processo e não uma coisa que se tem como um dado biológico. O que comumente ocorre em outras comunidades de identidade indígena do Nordeste brasileiro é a transformação da auto-imagem do “caboclo” em “índio”, passando por uma série de aprendizagens acerca de categorias genericamente representadas no imaginário nacional – “aldeia”, “tribo”, “cacique” etc. – e que foram impostas no passado através da relação tutelar com o Estado Brasileiro (Oliveira, 2001: 28). Porque, antes de serem classificadores étnicos distintos, “índio” e “caboclo” representam um continuum passível de ser recuperado mediante uma ação de reestruturação da história e das origens de um dado coletivo social comumente ligado por relações de parentesco.

Populações que sempre carregaram a marca e o estigma dos caboclos – uma alteridade mista e ao mesmo tempo homogênea inventada pela administração colonial – foram instruídas e aprenderam, ao longo de gerações e por diversos meios práticos, a se ver como tais e não como “índios”, outra classificação cuja distância com os “caboclos” aumenta conforme se avança na mistura e na homogeneização étnica. Restabelecer o continuum entre os dois e operar a passagem de um a outro representa adotar uma ação coordenada que envolve tanto o coletivo quanto os agentes externos, ação que também é aprendizagem. Ao tratar a cultura como uma substância que é simplesmente transmita no tempo e manifesta nos contextos apropriados por seus portadores, a reportagem de “O Jornal” perde de vista tudo isso. Novamente deve-se guardar que a função de um periódico não especializado voltado para um público amplo não é informar por informar, mas criar uma empatia entre a matéria – apresentada na chamada – e o leitor, atividade que envolve, inclusive o uso dos significados presentes no imaginário geral para o assunto abordado.

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Portanto, a “revelação” dos Kalancó como índios durante uma solenidade planejada que contou com uma audiência ampla e mista representa um fenômeno social muito mais complexo e criativo que a continuidade cultural com um passado posta, finalmente, em prática em um momento oportuno. Como processo social, este evento é cercado tanto por motivações internas, pertinentes às famílias que hoje compõem a comunidade kalancó, quanto externas – a rede de apoio composta por agentes e agências indígenas e não indígenas – circunstanciadas a um campo político preciso e atual. E é aí que as políticas de identidade, as ações coordenadas a fim de restabelecer o continuum “caboclo–índio”, são fomentadas e dirigidas como linguagem de ação interna e externa:

“[...] o cacique gerimpancó, Sebastião dos Santos, comentou emocionado com a equipe de O Jornal: ‘Os kalancós estão voltando. Eles precisam agora voltar à tribo Pankararus e se apresentar, se mostrar com seus nomes. De nossa parte não há mais dúvida. Os kalancós estão vivos e essas crianças agora têm uma identidade. São índios brasileiros do Nordeste, são as mais novas descobertas dos descendentes dos Pankararus que viviam escondidos deles mesmos’” (p. 5, caderno A. Reportagem do dia 28/07/1998).

O fato de uma liderança indígena regional entender este fenômeno como um retorno – o que efetivamente é, no plano do continuum – informa que a atitude dos Kalancó está conectada a outras experiências históricas, inclusive a dos Geripankó. Em especial, o aldeamento de Brejo dos Padres (PE), situado à cerca de 50 km da área ocupada hoje pelas famílias kalancó, foi cenário de diversos fluxos de emigração/imigração de famílias caboclas desde sua extinção oficial no final do século XIX. Quase sempre se saía de Brejo dos Padres em função do esbulho das terras indígenas e dos rigores do clima. Certamente as famílias que fizeram o trajeto desta aldeia até a área vizinha entre os municípios alagoanos de Pariconha e Água Branca, guardaram a memória da saída e da chegada, além de conservarem os laços com o local de origem mediante visitas regulares ou esporádicas a parentes que lá ficaram ou para participar dos ciclos das festas religiosas. Considerando os freqüentes fluxos de saída de caboclos de Brejo dos Padres e a preferência lógica por locais próximos e menos hostis à sobrevivência, é provável que parentes oriundos desta aldeia tenham se espalhado por áreas contíguas que hoje constituem moradas de famílias que formam distintas comunidades de identidade indígena. Ou seja, para além do apelo emocional da reportagem que atribui aos povos indígenas da região o reconhecimento mútuo como “irmãos”, há laços genealógicos efetivos entre suas famílias por partilharem, muitas delas, uma mesma origem etno-geográfica. Por isso um índio Geripankó narra suas próprias experiências para falar dos Kalancó:

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[...] Genésio Miranda (ex-cacique Geripankó) está certo que a tentativa (dos Kalancó) de viver como branco para fugir da perseguição e do preconceito não deu certo. ‘Nós perdemos a nossa língua de origem, esquecemos alguns costumes mais tradicionais, hábitos alimentares e não conseguimos aprender o português’, garante Genésio”. (p. 5, caderno A. Reportagem do dia 28/07/1998).

E é com base numa parentela extensa capaz de agrupar famílias dispersas sob várias denominações étnicas que os Kalancó vêm obtendo grande apoio de lideranças indígenas de Alagoas, fato noticiado pela reportagem:

“Os Kalancó vivem perto da tribo Gerimpancós – também descendente dos Pankararús –, localizada no município de Pariconha. Foram os ‘guerreiros’, os pajés e lideranças Gerimpancós que passaram os últimos anos tentando convencer os Kalancós a assumirem publicamente a sua identidade cultural. O anonimato, provocado pelo medo, começou a ser discutido entre as nações indígenas de Alagoas, que representam oito mil índios [...] José índio é um dos membros do Conselho da Tribo Karapotó que também quer que os Kalancós reassumam as suas origens: ‘Era uma coisa absurda: eles – kalancós – viviam com medo, por isso escondiam para seus filhos a origem indígena. Mas a identidade deles está estampada na pele e no dia-a-dia da comunidade” (p. 5, caderno A. Reportagem do dia 28/07/1998).

A matéria do dia seguinte apresentada no mesmo periódico é bem menor e voltada para a repercussão que o evento noticiado no dia anterior – a “revelação” dos Kalancó para a sociedade regional e alagoana – teve nos escritórios da Funai em Maceió, Recife e Brasília. Trata-se de uma seqüência jornalística que estende ao próprio órgão indigenista a surpresa que os Kalancó produziram entre vários segmentos da sociedade civil do estado, desde pesquisadores da Universidade Federal de Alagoas até os moradores do entorno da área por eles habitada:

“A mais nova descoberta de uma tribo indígena no semi-árido nordestino – os Kalancós, que viviam escondidos numa área rural de difícil acesso do alto sertão alagoano e foram encontrados pelas equipes de pesquisadores da Ufal (Universidade Federal de Alagoas) e do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), testemunhada pelo O JORNAL e publicada ontem com exclusividade – surpreendeu antropólogos e técnicos da Fundação Nacional do Índio (Funai) de Brasília, Recife e Alagoas” (Reportagem do dia 29/07/1998).

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Relatório Antropológico de Identificação Étnica Kalancó — Parte I

Além de surpreender a própria FUNAI com seu aparecimento na cena indígena alagoana, os Kalancó são apresentados nesta matéria como tendo sido “encontrados pelas equipes de pesquisadores da Ufal e do Conselho Indigenista Missionário”, o que vem acompanhado da sugestão de que eles já vinham sendo, de algum modo, procurados, pois sua existência era uma suspeita. Como na reportagem do dia anterior, o grupo é tratado como se já existisse enquanto tal (os “Kalancó”) desde há muito tempo, permanecendo escondido de todos e deles mesmos por uma necessidade estratégica. E isto é reforçado com argumentos de servidores da FUNAI de Maceió que consideram os Kalancó “uma lenda”:

“A existência dos Kalancó foi um assunto que dominou os corredores da Funai em Alagoas. Todos os servidores da autarquia federal ficaram impressionados com as vestimentas e rituais. Alguns índios que trabalham na Funai confirmaram que também estavam na aldeia do sítio Gangorra e puderam constatar que o grupo de índios ‘encantados’, que imaginavam ser lenda, sempre existiu de verdade” (Reportagem do dia 29/07/1998).

As reações de espanto e admiração propostas pela matéria por parte daqueles que tiveram notícia da “revelação” dos Kalancó seguem um padrão de surpresa retratado pela imprensa de modo em geral (tanto escrita quanto televisiva) quando se “descobre” grupos de “índios isolados” em recônditos menos acessíveis na região Norte do país. Em função do fato de os Kalancó serem conhecidos fisicamente e até interagirem a tempo com seus vizinhos não-índios – o que a própria discriminação por eles sofrida comprova – a matéria os trata não como se eles vivessem isolados, mas desconhecidos culturalmente de um público mais amplo. E novamente a reificação da cultura como um dado pronto ou um patrimônio previamente catalogado pelos sujeitos.

De maneira geral, as duas matérias publicadas pelo periódico alagoano “O Jornal” nos dias 28 e 29/07/1998 trazem em conjunto várias das representações que o imaginário nacional reserva para as comunidades indígenas que vivem no Brasil. Colocados contrapostos num eixo onde de um lado está a assimilação plena – física e cultural – e do outro a resistência e a preservação da cultura, os Kalancó são apresentados nas matérias como um exemplo heróico de um grupo indígena que resistiu às pressões externas contrárias adotando estrategicamente uma camuflagem cultural que lhes permitiu preservar a consciência de sua diferença fazendo-se passar, por muito tempo, por iguais aos regionais não-índios para depois retomarem sua identidade verdadeira. Observe-se que a matéria concebe um transito estratégico e calculado entre identidades: de “índios” a “regionais não-índios” e, por fim, o retorno de “regionais não-índios” a “índios” no momento apropriado. Por isso eles puderam estar escondidos e ao mesmo tempo interagindo com seus vizinhos regionais.

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Relatório Antropológico de Identificação Étnica Kalancó — Parte I

Não se fala na passagem de “caboclo” a “índio” como um recurso de política de identidade porque a idéia da mestiçagem cultural e física é constrangedora e de difícil assimilação para a opinião geral quando se trata de classificar a alteridade indígena, cercada de purismo cultural, “mistério” e “magia”. E novamente a matéria sobre os Kalancó mostra que procura a empatia com o leitor e utiliza para tal os significados que podem atingir um público amplo e leigo porque já estão presentes nele como parte de um imaginário geral sobre o assunto.

1.3. CIRCUITOS DE COMUNICAÇÃO INTERÉTNICA

Vimos que foi com o auxílio formal de uma rede regional de comunicação interétnica que a etnogênese kalancó começou a se tornar manifesta. A autorização para isto veio das relações de parentesco entre as famílias da Januária e alguns grupos indígenas de Alagoas, como Geripankó e Karuazú, mas decisivo mesmo foi o aval que veio de Brejo dos Padres para que os caboclos da Gangorra (como eram conhecidos pelos Geripankó) pudessem utilizar um dos referenciais históricos que compõem o nome verdadeiro dos Pankararú (Pancarú Geritacó Cacalancó Umã Canabrava Tatuxi de Fulo) cuja presença na memória dos mais velhos é uma forma de lembrar que o grupo é uma unidade social heterogênea, fruto de desterritorializações, fusões e reclassificações operadas por agentes coloniais (Arruti, 1996). Essa licença de lideranças pankararú era o que faltava para que seus parentes da Gangorra – agora com um identificador coletivo (Kalancó, uma ligeira modificação de “Cacalancó”)22 – pudessem ser caracterizados como uma “ponta de rama” dos Pankararú e sua etnogênese um processo de “enxamamento”, formação de uma identidade outra filiada historicamente à aldeia de Brejo dos Padres (ib.). Retomo estes aspectos mais um pouco no item seguinte. Entretanto, para que o aval se concretizasse houve a mediação de agentes indígenas da rede de apoio que intercederam, inclusive, sugerindo a escolha do categorial que viraria etnônimo e que fora retirado dentre os nomes pankararú que estavam ainda disponíveis. Com a escolha do etnônimo veio ainda o apoio para a “busca dos direitos” e a criação de um diálogo com a AER da FUNAI em Maceió que pôde lançar os Kalancó no âmbito do movimento indígena regional:

Como foi que o senhor ouviu falar nos Kalancó?22 “Cacalangó” seria o nome de um rio conhecido pelos Pankararú e que fica no município de Tacaratú, próximo a Brejo dos Padres (Pinto, 1958: 37).

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Os Kalancó é o seguinte: a primeira vez que eu passei ali, não tinha nome de Kalancó, era Gangorra. Ai eu passei e vi lá as casinhas dele... O senhor tinha ido visitar parentes lá?Não, eu fui lá em Mata Grande, ia pra Mata Grande na casa de um filho de um finado Davi, que morava lá, por nome Jaú [...] Nessa hora eu sai daqui a meia noite e quando o dia amanheceu eu ia chegando em Mata Grande. Passei na Gangorra. Mas o nome era Gangorra e então tinha outro local lá, a Januária [...] Aí quando passou a Kalancó foi quando os meninos (Antônio Francisco e seu filho, Paulo, cacique kalancó), procuraram, vieram aí e procuraram que nome botavam. Porque a aldeia... como o “Licuri” dos caboclos (local onde está a aldeia geripankó), mas aldeia tem de ter o nome da tribo. Como a gente tem a descendência dos Pankararú, eu sugeri, porque Pankararú é Pankararú-Geripankó. Eu fui lá pedir permissão às lideranças de lá se nós tinha direito a um nome, porque Pankararú tinha, parece, que 4 ou 5 nomes: Brejo dos Padres, Pankararú, Geripankó, Kalancó e Cana Brava. Aí deram o apoio, disseram: - “Ah, pode botar. Qual é o nome que você quer?” Eu disse: “Geripankó”. - “Pode botar”. Quando foi pra surgir os meninos lá eu falei: - “Tonho, que nome vocês vão botar?” - “Rapaz, eu não sei...” Eu disse: - “Olha vocês têm o direito, como a descendência nossa é Pankararú, vocês têm direito. Kalancó”. Aí botaram Kalancó. Tá registrado.Quando o senhor andou lá dessa vez, pra ir pra Mata Grande, o senhor sabia que tinha parentes por ali?Sabia, já sabia. Não tinha conhecimento, não conhecia ninguém. Nem eles me conheciam nem eu conhecia eles. Mas meu avô tinha conhecimento com os avôs deles, com o velho Chico Gino...O senhor sabia que tinha primos...Sim, sabia, mas não tinha conhecimento, aproximação nenhuma. Mas meu avô conhecia muito o velho Chico Gino. Muitas vezes iam pro Brejo, que eles faziam as obrigações deles lá também. Passava no Licuri, chamava meu avô e iam. Foi o tempo em que eles morreram, os velhos morreram, e ficou os mais novos que é as mães deles (referindo-se a Antônio Francisco e Paulo, presentes à ocasião da entrevista) [...] Aí essas ramas não teve contato, mas os mais velhos tinha. De Chico Gino pra trás era tudo uma irmandade. Não tinha separação. Eles vinham pra festa aí, que nem essa Maria Gino mesmo (Maria Antônia da Conceição - UD n. 02), ela não perdia uma noite de São João nem de São Pedro aqui no Licuri mais as meninas do velho Davi [...] Esse mais velhos a gente tinha conhecimento, mas esses meninos não. Ficaram pra lá e também ficaram lá arrecantado e a gente também ficou cá arrecantado e aí... Os nossos antepassados, nossos avôs, nossos pais tinha contato uns com os outros, mas nós não tinha. Hoje é que a gente tá se

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conhecendo e estamos reconhecidos e estamos considerando como irmãos. Mas antigamente, de nossos avôs pra cá, nós não tinha aproximação nenhuma.O senhor ouviu falar dos Kalancó, que o povo lá da Gangorra e da Januária estava se movimentando para buscar os direitos junto à FUNAI como? Como foi que o senhor ouviu falar nessa história? Foi quando seu Antônio procurou o senhor?Foi. Eles vieram, vieram aí, observaram nossa diversão, nossas festas e tal, vieram diversas vezes aí. Mas não procuravam nada. Aí, quando foi depois, Antônio chegou e disse: - “Rapaz, nós também queria fazer...”. Eu disse: - “Não, então o caminho é este, vocês se organizar, se unir, juntar todo mundo e fazer um levantamento de quantas famílias tem, aí vocês procuram o [costume] de vocês”.Isto está com pouco tempo, não é?Tá com 4 anos. Aí o senhor deu as primeiras instruções de como fazia, onde tinha de procurar...É. Eu já conhecia das bocadas de como era e disse: - “Vocês têm de procurar a FUNAI, a DR da FUNAI, depois tem de vir um antropólogo fazer um levantamento de vocês...” como justamente tá vindo. E por aí vai começando. Daqui a pouco vai ter de fazer um levantamento da área ocupada por eles [...]

Sr. Genésio Miranda, ex-cacique Geripankó, 73. Aldeia Geripankó, 18/05/2002.

A reaproximação entre os dois conjuntos de parentes se deu mediante visitas ocasionais que o pajé kalancó, Antônio Francisco dos Santos (UD. n. 52), fazia à aldeia do Ouricuri em ocasiões de festas rituais – Menino no Rancho, Corrida do Umbu, praiá e toré. Concorreu também para isto a proximidade física entre os dois locais, o “Licuri” e a Gangorra, e o conhecimento que se tinha dos laços efetivos e próximos de parentesco, embora não há notícias de trocas matrimoniais recentes entre eles. O restabelecimento do contato não se deu apenas entre “parentes”, mas entre duas “pontas de rama” pankararú e foi sob o auspício deste emblema comum que se orientaram as relações futuras entre as partes focalizadas no levantamento da aldeia kalancó por meio do aprendizado dos caminhos que levavam às tradições e aos direitos. Ao menos o primeiro desses caminhos já era percorrido pelas famílias do sítio Januária que costumavam retornar periodicamente ao Brejo dos Padres para rever os parentes deixados lá ou participar do calendário local de festas, as novenas e os rituais ligados ao complexo dos encantados. Faltava um liame para estas experiências familiares das visitas que fosse efetivo em produzir emblemas de identidade a partir dos laços reais de parentesco e da origem compartilhada; o desafio era compatibilizar uma diáspora, que fez com que os caboclos deixassem o Brejo dos Padres e se estabelecessem naquelas terras da Januária, com a herança pankararú ligada àquela aldeia. Dito de outra maneira, a dificuldade era lidar

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com a produção de uma identidade translocal, já que não podiam ser mais Pankararú e ao mesmo tempo pertenciam a este universo sócio-cosmológico:

Hoje não é aceita esta posição (de os Kalancó serem Pankararú) porque nós não convive nem no estado (PE). Já tive conversando com o cacique de lá dos Pankararú ... Ele está lá à disposição em apoiar na hora que formos à Brasília e já passou mesmo a responsabilidade do apoio a seu Genésio, que é cacique dos Geripankó (na verdade, ex-cacique). Então ele atribuiu a tarefa do apoio a senhor Genésio, que é próximo, é reconhecido já há vinte anos e o que seu Genésio resolver com nós aqui ele apóia baseado na palavra de seu Genésio [...] Agora, como Pankararú não tem como, porque a gente já ocupa há tantos tempos até outro estado (AL) [...] A gente não pode, mesmo sendo descendente de lá, ser Pankararú. Se nós ocupássemos pelo menos o estado de Pernambuco... mas aqui a gente já sobrevive em outra localidade [...]

Antônio Francisco (UD n. 52). Lajedo do Couro, 08/05/2002.

A solução passava pelas categorias de territorialidade que foram desenvolvidas ao longo de quatro gerações e que, não confrontando a origem sócio-cosmológica pankararú nem os vínculos com a aldeia de Brejo dos Padres, permitiam o desenvolvimento de uma topofilia através do depósito de fragmentos de memória em topônimos ou estabelecendo-se uma cumplicidade com o lugar de onde eles tiravam o sustento durante os anos mais drásticos de secas e privações. Não me alongo mais aqui sobre isso, porque melhor abordo este assunto nos itens 2.1 e 2.2., mas é relevante ter em conta que a corruptela do categorial pankararú adotado (Cacalancó) é hoje associada a uma dieta alimentar exclusiva outrora adotada pelos caboclos da Januária em tempos difíceis e que tinha o calango da caatinga como item principal. Este recurso foi um importante elemento de diferenciação frente aos vizinhos não-índios que, diante da atitude transgressora de comer um animal rastejante, produziam a imagem dos caboclos a partir de estigmas como “índios podres” ou “comedores de calango”, sinais que depois vieram a ser transformados em emblemas de identidade com a reversão dos valores negativos a eles agregados.

A presença de uma rede regional de apoio e comunicação interétnica na etnogênese kalancó se consolidou com a formalização do grupo enquanto um coletivo objetivado pelo etnônimo, mas não inaugurou as trocas simbólicas entre esses agentes e os kalancó; o que se produziu foi o acesso a um espaço amplo de visibilidade (o movimento indígena organizado no âmbito regional e nacional), interconectado com outros espaços globais de articulação indigenista que vêm permitindo a vários grupos brasileiros redefinirem seus projetos étnicos em fóruns transnacionais que cuidam de assuntos pertinentes ao desenvolvimentismo e diretos

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humanos (Kearney, 1995: 560). É o que se vê quando lideranças indígenas do Brasil recorrem, por exemplo, à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA para apresentarem queixas sobre violação dos direitos básicos em áreas indígenas.23 Embora este não seja um dado decisivo para se entender as etnogêneses indígenas no Nordeste, é preciso estar atento para a realidade de que as identidades locais se processam em múltiplos espaços em intersecção onde estão presentes vários atores:

Quem mais de fora, além do jornal A Gazeta e o CIMI, já veio aqui, pra ver o praiá e o toré?Manoel - Veio um bocado de gente...De índio quem é que veio de fora, de outras aldeias?De fora veio Karapotó, veio de Colégio (aldeia de Porto Real do colégio), veio de Palmeiras (Xukurú-Kariri de Palmeiras dos Índios), veio de Geripankó, Pankararú também, os karuazú, Katokinn. Veio de muitas aldeias.Dançaram também o praiá?Dançaram.

Manoel dos Santos (UD n. 08). Sítio Januária, 11/05/2002.

Além das relações de parentesco que por si só serviriam para justificar o apoio político de agentes indígenas aos Kalancó, as experiências comuns do passado com populações vizinhas inamistosas pelas quais esses grupos passaram embasam uma ampla comunidade de solidariedade que provém de auxílio, conselhos e ensinamentos aqueles que ainda trilham o caminho do “levantamento da aldeia”:

Era difícil fazer um toré, um ritual?Quando eu me entendi de gente, em 39, em 36, eu já comecei a me entender, já não existia mais o roupão (vestimenta de croá) aí que eles dançavam. Mas meu avô disse onde estava guardado, naquela pedrona que tem o cruzeiro na beira da estrada, as roupas estavam dentro de uma loca. Eles dançavam assim... Mas foi quando entrou esse negócio dos militares, aí entrou negócio de Comarca e botaram destacamento em Pariconha. O primeiro delegado, ainda me lembro como hoje, ele chamava Manoel Lopes. Quando esse Manoel Lopes chegou disse: - “Não quero

23 Uma manchete sobre isto podia ser vista no site do Instituto Sócio Ambiental (ISA) em fevereiro deste ano: “Instância da Organização dos Estados Americanos receberá de representantes brasileiros, na terça-feira (25/02), documento detalhando as violações a direitos humanos na Terra Indígena (TI) Raposa/Serra do Sol (RR) e nas TI ’s dos Cinta Larga (MT e RO). Evento acontece durante a reunião especial do Grupo de Trabalho responsável pelo Projeto de Declaração Americana sobre Direitos dos Povos Indígenas [...] O grupo dos representantes indígenas brasileiros conta com a presença de Paulo Pankararu, advogado do Warã Instituto Indígena Brasileiro; de Azelene Kaingang, presidente do Warã Instituto Indígena Brasileiro; de Sebastião Manchineri, coordenador-geral da Coordenação das Organizações Indígenas da Cuenca Amazônia (Coica); de Vilmar Guarani, da Coordenação Geral da Defesa dos Direitos Indígenas (CGDDI); e de Joênia Wapichana, advogada do Conselho Indígena de Roraima (CIR)”.

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nem saber de ver de cantar esse negócio de toré de caboclo aqui”. Vinha com aquela mesma ignorância, que era pra acabar com os índios, não é? Aí ele chegou, sabia que tinha os índios aí e botou pra acabar. Agora, que eu descobri onde os índios brincavam, onde era o terreiro da tradição deles era lá na grota do Pajeú, onde tinha os dois juazeiros de João Benedito. Eu agora descobri que lá tem uma pedra que chama Pedra do Ouro e era lá onde era o terreiro deles e tinha o terreiro ali na ponta do Pedrão [...]Seu avô dançava o praiá, deixou de dançar...Ele não deixou, ele ia pra Pankararú.Ele deixou de dançar aqui?Aqui não podia dançar não. Ali em Pariconha tinha um terreiro, na ponta da rua onde está os Katokinn hoje, ali era um terreiro antigo. Não dançavam um praiá, mas dançavam o toré, nunca deixaram de dançar os toré deles ali. Que ali, os primeiros habitantes dali foram os índios. Pariconha era dos índios, até hoje tem a história que Pariconha era nome de área indígena [...] Toda vida houve, ainda alcancei meu avô e aquela irmã dele que era a [velha] Miranda iam dançar toré lá mais o velho Thomás, o velho Germano [...] E o terreiro mestre mesmo era lá em João Benedito.

Sr. Genésio Miranda, ex-cacique Geripankó, 73. Aldeia Geripankó, 18/05/2002.

1.4. O ALDEAMENTO DE BREJO DOS PADRES E OS CICLOS MIGRATÓRIOS

Interessa aqui fazer uma caracterização rápida dos Pankararú e do aldeamento de Brejo dos Padres enquanto matriz sócio-cosmológica dos Kalancó, não havendo necessidade de abordagens menos superficiais haja vista que há, pelo menos, quatro dissertações de mestrado que abordam diversos aspectos envolvendo os Pankararú, escritas nos últimos vinte anos (Martins, 1983; Ribeiro, 1992; Araújo, 1994 e Arruti, 1996), além de inúmeros artigos, documentos históricos e comunicações sobre eles. Não há, pois, o intuito de acrescentar nada a este longo elenco de informações e o objetivo é tão somente situar alguns contextos históricos que incentivaram a formação e a disseminação desse grupo para além de seus limites espaciais e étnicos.

Os Pankararú de Brejo dos Padres e das aldeias vizinhas localizadas entre os municípios pernambucanos de Tacaratú e Petrolândia são, segundo Hohenthal Jr. (1952: 35),

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os mesmos Brancararú que foram aldeados, junto com os Porcá ou Procá, nas missões das ilhas de Sorobabel, Acará e Vargem24 – porção do sub-médio a baixo São Francisco, todas elas subordinadas à missão de Rodelas (Faria, 1965: 272-273) – em meados no século XVIII e teriam sido anteriormente deslocados da aldeia de Curral dos Bois, hoje município de Nova Glória, BA. Há ainda especulações que remontam sua origem à ilha de Pancarauí (Pancarauhy), próxima à cidade baiana de Juazeiro, de onde teriam saído no começo do século XVIII em direção ao sertão de Rodelas (Pinto, 1958: 35). Lingüisticamente este grupo foi classificado como pertencente à família Cariri e depois como falantes de uma língua isolada (Lowie, 1946: 561). Em termos sociológicos, a classificação não é menos complicada, mas Pinto (1958: 51) se diz – com base na crença nos encantados e na cachoeira de Paulo Afonso como sua morada e na prática do flagelo com urtiga manifestada pelos Pankararú – “ inclinado a incluir os amerabas do Brejo dos Padres no grupo dos Cariri”, concluindo que ao menos há entre esses remanescentes indígenas grupos que tiveram contato prolongado com os Cariri das ilhas do sub-médio São Francisco, posição, aliás, bastante ponderada, haja vista que os Procá e os Pankararú estavam relativamente próximos dos Dzubukuá Cariri que habitavam as ilhas do médio São Francisco (Dantas et al, 1992: 432). É sabido que, como quase a totalidade dos aldeamentos indígenas históricos do Nordeste brasileiro, a aldeia de Brejo dos Padres abrigou vários grupos étnicos diferentes que foram deslocados de múltiplos lugares, sobretudo Serra Negra (PE), Rodelas (BA/PE), Águas Belas (PE), Porto Real do Colégio (AL) e Ararobá (PE) (Pierson, 1972: 316). Tal estimativa de composição étnica é bastante escorregadia, posto que os grupos eram classificações precárias, às vezes provisórias, que não tinham rigor quanto aos critérios definidores (língua, elementos culturais), podendo um grupo desaparecer de uma aldeia e reaparecer em outra nos relatos produzidos pelos missionários. Estevão Pinto vai além das evidências utilizadas por Donald Pierson (que, por sua vez, está apoiado em registros etnográficos de Carlos Estevão) e sugere que populações bem mais distantes podem ter entrado em contato com os Pankararú, como Timbira, Cayapó, Xavante, Camacã, Tarairiú, grupos Tupi e outros do tronco Gê (Pinto, 1958: 49), sem, entretanto, dizer quais aspectos – lingüísticos, arqueológicos ou sociológicos – guiam seus argumentos.

Não há certeza quanto às datas de fundação das aldeias das Missões de Acará e Vargem nem quanto aos grupos que as habitavam conjuntamente com os Brancararú, com exceção para os Procá, que são sempre citados. Quanto à missão de Nossa Sra. do Ó, na Ilha de Sorobabel, Willek (1966: 203) afirma que foi fundada em 1702 e extinta em 1761, mas não dá detalhes de sua composição étnica. Por sua vez, Hohenthal Jr (1960: 55) informa que por volta de 1702 são identificados definitivamente os “Porús” e “Pancararús” nesta missão – que passam a constar nos relatórios dos padres Jesuítas – estando ausentes ambos os grupos dos balanços anteriores a esta data. Certo é que os Jesuítas estiveram no comando das aldeias de 24 A ilha da Vargem era chamada antes de Ilha da Assunção e ficava eqüidistante seis léguas das missões insulares de Acará (abaixo) e Pambú (acima) (Regni, 1988: 226). As três ilhas que abrigavam as missões dos Brancararú – Sorobabel, Vargem e Acará – estavam dentro da prelazia do Bispado de Pernambuco, mas pertenciam ao sertão da Bahia (Faria, 1965: 273)

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Sorobabel e Acará até 1696 quando foram expulsos pelos potentados da Casa da Torre devido aos atritos constantes que os padres tinham com esses por causa das terras das missões. O móvel da expulsão teria sido a demarcação da légua quadrada nas duas aldeias citadas, ordenada pelo Governador Geral Luís de Lencastro em cumprimento a ordens régias, que os Jesuítas insistiram em fazer a muito contra gosto da Casa da Torre que, contrariada, patrocinou uma revolta local que terminaria na expulsão dos padres Jesuítas dessas aldeias e de todas as outras do São Francisco (Leite, 1945: 299; Bandeira, 2000: 195-196).

Com a expulsão dos Jesuítas assumiram a administração de suas aldeia os Carmelitas Descalços e os Capuchinhos franceses e italianos, estes últimos, ao que parece, ficando mais tempos nas missões dos Brancararú (Faria, 1965: 278). Ao ano de 1746 as aldeias do São Francisco pertencentes ao Bispado de Pernambuco eram as seguintes: “N. Sra. do Ó (Ilha de Sorobabel, nação de Tapuios, Porcáz e Brancararuz); N. Sra. do Belém (Ilha de Acará, idem); Beato Serafim (Ilha da Vargem, idem); N. Sra. da Conceição (Ilha do Pambú, Tapuios Cariris); São Francisco (Ilha de Aracapá, idem); São Félix do Cavalo (Ilha do Cavalo, idem); Santo Antônio (Ilha do Irapuá, idem); N. Sra. da Piedade (Ilha do Inhamum, idem); N. Sra. do Pilar (Ilha do Coripoz, Tapuios Coripós) e N. Sra. dos Remédios (Ilha do Pontal, Tapuios Tamaquiúz)”. (Anônimo, 1749: 421). As aldeias de Missão Nova do São Francisco do Brejo, na ribeira do Paiú, e das ilhas de Sorobabel, Axará, Vargem e do Pambú, foram reduzidas antes de 1760 à ilha da Assunção – em frente à cidade de Cabrobó (PE), atual território dos índios Truká – pelo Sargento Mor de Artilharia da Província de Pernambuco Jerônimo Mendes da Paz:25

“Os P.e Fr. José de Monticeli e Fr. Baptista de Caramanico por occasião de poderem inspirar nos índios e moradores máximas sideciosas e de desobediência, e perturbar-me na execução das ordens que se me cometem, se passarão á parte da Bahia e se meterão, um em uma caza de uns pretos na Itaburana, outro entre as fazendas do Ibó, e varge, e ambos nas vizinhanças da povoação da Assunção para onde reduzi os índios de Sorobabé, Axará, e Pambú, e os silvestres Oés, Xocos e Pipipans donde tem como bloqueado esta povoação, e aos índios que passam por uma e outra parte dam os seos conselhos todos encaminhados a perturbarem-me na execução das ordens que me cometeo o Ex.mo Snr. General de Pernambuco, e de facto dezertarão”26

Parece que esta redução resultou na extinção das aldeias que foram transferidas para a da Ilha da Assunção, se não de todas, ao menos de algumas delas. Vê-se no trecho transcrito que várias etnias em diferentes estágios de contato com agentes coloniais foram colocadas

25 Biblioteca Nacional/Divisão de Manuscritos, ms I-12,3,35, fls. 62-63.26 Parallelos dos Missionários Capuxinhos e Jesuítas do Bispado e Capitania de Pernambuco ou relação abreviada em que se mostra a semelhança das práticas e máximas dos Missionários Jesuítas com as dos Padres Capuxinhos na administração das Missões que tinha no Bispado e Governo de Pernambuco, pelo Sarg.to Gerônymo Mendes da Paz. In: Anais da Biblioteca Nacional, vol. 31, p. 453.

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juntas e forçadas à convivência. Posteriormente, algumas delas foram relocadas para outras aldeias, fugiram para áreas de refúgio ou declinaram populacionalmente até serem dadas por extintas. A aldeia de Brejo dos Padres foi criada para abrigar um mosaico de etnias que já conheciam as rotinas de desterritorialização, como os Brancararú, ou eram nômades, sem experiências de missões indígenas.27 O ano provável de sua fundação é 1802 e pouco mais de meio século depois a aldeia contava com 580 índios e duas léguas quadradas de extensão, declinando abruptamente a população para a metade em apenas 6 anos após um período longo de seca que teria afugentado algumas famílias (Hohenthal Jr., 1960: 55). Em 1875 a aldeia de Brejo dos Padres é declarada extinta por autoridades da Província de Pernambuco (ib.: id) e poucos anos depois começa o processo de loteamento e repartição de lotes das terras de Brejo dos Padres entre colonos, ex-escravos a alguns índios que lá permaneceram:

“Segundo relatos fornecidos pelos Pankararu, no momento da extinção de seu aldeamento, suas terras foram repartidas em lotes distribuídos não só entre os índios, mas também entre ‘jagunços’ - clientela política dos fazendeiros locais - e, o mais importante, entre os ex-escravos que estavam sendo libertados durante aqueles mesmos anos e ameaçavam se dispersar pelo território nacional. Essas informações são confirmadas pelas listas de emancipações financiadas pelo governo imperial: no ano de 1876 eram apresentadas as primeiras listas das Juntas Classificatórias, responsáveis por indicar o número de escravos que seriam emancipados nos anos seguintes, com dinheiro público, em cada município. Para Pernambuco o fundo de emancipação destinou a quantia de 226.659$055, sobre o cálculo de 2$441 por escravo a ser libertado, o que resultava na libertação de 92.855 pessoas, distribuídas por 26 municípios, tendo cabido a Tacaratu - onde se localizava o aldeamento de Brejo dos Padres - 1.406 emancipações(DOC.:6). Segundo a memória Pankararu, parte desses ex-escravos teriam sido fixados em lotes familiares, nas terras do seu aldeamento, extinto no ano de 1877” (Arruti, 1996: 32).

Com o advento da instituição da “linhas” – denominação que os Pankararú dão ao momento de divisão e loteamento das terras de sua aldeia – muitos índios sentiram-se constrangidos a procurar novas terras, já que, ou não foram contemplados com lotes, ou receberam glebas imprestáveis para a produção agrícola e a criação de animais. Tem-se, então, início uma nova fase de desterritorialização que impeliu os caboclos de Brejo dos 27 A localização e composição pluriétnica dos aldeamentos não eram por acaso e atendiam a demandas desenvolvimentistas ou de segurança regionais: “O aldeamento do Brejo dos Padres constituiu-se, assim, como fruto da estratégia de desterritorialização e reterritorialização que levou ora à repartição, ora à concentração de diferentes grupos étnicos num mesmo espaço restrito. Estes estavam geralmente bastante próximos a uma promissora povoação, no caso Tacaratu, à qual poderia servir como reserva de mão-de-obra. Assim, o aldeamento do Brejo dos Padres poderia ser progressivamente ‘misturado’, para transformar-se, num futuro próximo, ele também, numa próspera povoação, como qualquer outra” (Arruti, 1996: 24).

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Padres para além dos limites de seu território tradicional e de sua identidade, possibilitando o surgimento posterior de novos grupos conectados à matriz sócio-cosmológica dos Pankararú e formados em diáspora, como os Geripankó (AL), Pankararé (BA), Kantaruré (BA) e Pankarú (BA). Tais unidades sociais viraram uma realidade porque, de uma certa forma, estão previstas como processos de descompactação da amalgama étnica que formou os Pankararú. Isto está referido na guarda pela memória coletiva do verdadeiro nome composto do grupo que abrigaria as principais etnias reduzidas em Brejo dos Padres – “Pancarú Geritacó Cacalancó Umã Tatuxi de Fulô” – uma estratégia de conservar as diferenças históricas dentro de uma mesma unidade étnica criada através de sucessivos processos coloniais de deslocamentos e relocações (ib.: 33-34). Com as diásporas os caboclos carregavam consigo um status de pureza étnica em relação àqueles que permaneceram no Brejo e “braiaram” (misturaram) com os negros, pois a doação dos lotes a ex-escravos cumpria este propósito deliberado de mistura que visava a “desindianização” desta população (ib.: 37).

Com as fugas cíclicas de Brejo dos Padres em função do esbulho das terras ou das estiagens prolongadas, as populações pankararú agrupadas fora da aldeia começaram a desenvolver novas categorias de identidade paralelamente a manutenção das trocas simbólicas e matrimoniais que mantinham com os parentes de Brejo dos Padres, o que permitiu o surgimento de novas identidades filiadas a uma matriz sócio-cosmológica pankararú. Este processo social do desdobro é o que se entende pelo “enxamamento” do grupo ou a emergência das “pontas de rama”:

“Temos então introduzida a outra metáfora: o ‘enxame’, que dá mobilidade ao par de metáforas de parentesco tronco/pontas. A noção de enxame está carregada de uma idéia de movimento, expansão e fracionamento para a constituição de novas unidades e por isso traduz mais adequadamente o aspecto territorial do fenômeno das emergências. Segundo os Pankararu, cada um dos seus sobrenomes permite que do grupo se solte um ‘enxame’, para constituir um novo grupo, uma nova ponta de rama. Se no passado, diferentes grupos puderam ser reunidos num mesmo território como estratégia de sobrevivência, porque não pensar que hoje, também como estratégia de sobrevivência, um grupo possa dar origem a outros, multiplicando os territórios indígenas?” (ib.: 35-36).

A mobilidade dos Pankararú constitui um elemento recorrente, quase estrutural, que historicamente vem produzindo tipos distintos de “enxamamentos” relacionado às causa dos movimentos e aos seus resultados. Assim, destacam-se as viagens temporárias e ocasionais visando à participação em circuitos rituais regionais ou a “busca pelos direitos” formalizada nas peregrinações políticas aos centros de decisão; as diásporas antigas que produziram a formação de outras identidades conectadas à matriz pankararú, mas com território distinto e

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próprio, e os deslocamentos mais recentes que não produziram desdobros étnicos, motivados pela busca por empregos e escolarização ou em função de projetos hidroelétricos, constituindo o aglomerado pankararú na favela de Parque Real, na cidade de São Paulo, um exemplo eloqüente deste último tipo de deslocamento (ib.: 176). A mobilidade está na raiz da formação dos próprios Pankararú que são um produto histórico de vários deslocamentos para o Brejo dos Padres e se reproduz como uma forma de expansão de fronteiras guiada por imperativos maiores ecológicos ou econômicos:

[...] Esse negócio de espalhar caboclo pra todo canto é disso aí (a violência dirigida aos índios), mas a maior parte é de Serra Negra.Muitos vieram pra cá, não foi?É, muitos vieram pra cá. E os que não podiam abandonaram-se no mundo, chegavam numa aldeinha, ficavam e foi assim até hoje. Aí o Brejo estava muito arrochado (difícil). Do Brejo mesmo tem gente morando em Petrolândia, porque achou que não dava pra trabalhar. Mas aqui ainda cabe muita gente. É que o Governo ainda não indenizou tudo, não é? Começou, mas tá com dois anos que parou e não indenizou mais nenhuma pessoa. Mas aqui ainda tem terra que dá pra muito índio trabalhar [...]

Sr. João Binga, 90, cacique Pankararú de Brejo dos Padres. Caldeirão (aldeia de Brejo dos Padres), 07/06/2002.

***O senhor lembra da seca de 32?Lembro.Aqui ficou muito ruim?Ficou, mas ruim assim, porque o senhor não achava um dinheirinho pra ganhar. Mas de ter as coisas, tinha. Mas pra arranjar 20 ou 30 mil réis, ah, Nossa Senhora... Mas eu nunca vi uma seca, na minha idade nunca assisti uma seca, em canto nenhum.E essa de 32?Ah, eu cai fora. Em 32, sabe onde eu passei um ano e seis meses? Na usina [Licuri] do Major Tenório. Eu não vi a seca.Em Alagoas?Sim. Eu rapazinho novo, esperava nada. Sai daqui mais seis cabras, quando chegou em Palmeiras (Palmeira dos Índios - AL), eles acharam serviço [...] de botar terra pra riba da rua, arrastar de uma estrada. Chegava assim no calçamento pra subir pra ir despejar lá em cima. De carroça de mão. A tostão a carroça.

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O senhor viu muito caboclo sair daqui do Brejo nesse período de 32?Ah, saiu foi muito. Olhe, fora tem caboclo que se ajuntar nessa aldeia não cabe. Aqui é aldeia de muito caboclo. Tem cabra que já se acabou por lá, tem filhos e família que não vem aqui.Tá tudo espalhado.Tudo espalhado. O que tem é esses daqui, assim mesmo... Hoje, de São Paulo, vem um ônibus cheio de caboclo, que vem pra festa de [Santo Antônio] [...]Os caboclos do Brejo continuam se espalhando?Agora os caboclos aqui, se o senhor chega num canto, vê que é civilizado.E continuam se espalhando?Ah, de forma que vão e voltam, vão e voltam. Tem os que vão ficando lá. Olhe, em São Paulo, tem família daqui do Brejo. Parente dessa mulher (sua esposa), tem tanto sobrinho, e meu, tanto. Agora, eu nunca cheguei pra ficar não.

Sr. Agostinho Grande, 91. Aldeia de Brejo dos Padres, 07/06/2002.

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PARTE II

MEMÓRIAS, GENEALOGIAS E CATEGORIAS DE IDENTIDADE

No que segue abordo o processo de ocupação das atuais áreas kalancó por famílias vindas da aldeia pankararú de Brejo dos Padres em distintas levas entre o final do século XIX e meados do século seguinte. Discuto também neste bloco as relações genealógicas entre essas famílias e algumas das que hoje constituem o grupo Geripankó e as relações que elas estabeleceram com os regionais não-índios locais, assim como as formas de representação da alteridade provenientes desse encontro e a formação posterior de categorias de identidade que viriam a sustentar uma etnogênese kalancó.

2.1. A FIXAÇÃO DOS CABOCLOS DE BREJO DOS PADRES NAS PROXIMIDADES DE ÁGUA BRANCA

Com o loteamento das terras indígenas e a instituição das linhas demarcatórias no Brejo dos Padres, restou às famílias que rejeitaram o exílio nas serras a opção de procurar novas áreas onde pudessem se instalar. É difícil estabelecer que tipo de estrutura de apoio (se é que havia algo parecido com isso) essas primeiras famílias encontraram nas proximidades da cidade de Água Branca, já que possivelmente não havia índios no local28 ou parentes com quem pudessem se associar. Provavelmente, boa parte das terras ao largo de Água Branca era reserva de pasto para o gado vacum de propriedade dos potentados locais, situadas em porções extensas de caatinga fechada.29 Esta é uma área que, em função da presença de longas cadeias de serras, dispõe de um micro clima ameno e precipitações pluviais mais regulares, o que torna a terra mais receptiva ao desenvolvimento de lavouras em relação às porções mais distantes das serras. Provavelmente as experiências com o seu próprio ambiente informaram aos caboclos de Brejo dos Padres que as novas terras encontradas seriam boas,

28 Na rala bibliografia sobre a região de Água Branca que consultei não havia referências precisas a populações indígenas autóctones. Parece que esta área não foi alvo de reduções regulares, já que não consta nas listas de missões da Província de Pernambuco, sob a qual esteve submetida administrativamente, mas uma definição a este respeito dependeria de pesquisas em arquivos mais sistemáticas. Como anunciei antes na introdução, se houve ou não populações indígenas autóctones – ou anteriores – nestas porções, isto é de muito pouca relevância para se entender os Kalancó, já que sua herança genealógica e cultural é manifestamente translocal, conectada ao aldeamento de Brejo dos Padres. O processo posterior de territorialização dessas famílias que vieram de Pernambuco se deu simultaneamente ao desenvolvimento de representações sobre sua diferença até chegar a uma identidade indígena exclusiva local.29 Veja o site http://www.coisasdealagoas.com.br/alagoas/m_aguabranca.htm

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acrescentando o fato de não estarem ocupadas (o que não quer dizer que ninguém antes as tenha reivindicado), motivo suficiente para suspenderem a busca por locais de fixação.

O primeiro desses lugares onde se estabeleceram caboclos oriundos de Brejo dos Padres foi o atual sítio Januária. O local reserva importância significativa para os Kalancó por ter uma história que sintetiza alguns eventos que seriam a matéria para a constituição dos sentimentos de territorialidade e identidade.30 Para entender a emergência dessas duas representações e as relações entre ambas cabe compreender a breve história de Januária. Esta índia teria chegado de Brejo dos Padres ainda pequena ou jovem, acompanhada dos pais, e sua família foi uma das primeiras a chegar e fixar residência por estas paragens. Por isso ela é um parente comum para muito dos Kalancó e prima da mãe de Antônio Francisco (UD n. 52), um dos mais competentes ritualmente e desempenhando a função de pajé.

Os primeiros caboclos que chegaram de Brejo dos Padres e se estabeleceram nas terras que hoje formam o sítio Januária foram João Benedito, Severo e Antônia da Conceição, esta esposa de um membro da família dos Higino.31 Embora não seja a primeira mulher a chegar do Brejo, a figura de Januária está cercada por dois momentos fundamentais para a história kalancó. O primeiro refere-se à ocupação de um lugar que era então uma ameaçadora caatinga que precisava ser “desbravada” com a expulsão das feras, do gado semi-selvagem e da macambira.32 Esta domesticação de um ambiente inóspito e socialmente árido e sua transformação em território culturalmente efetivo – lugar de relações e de reprodução cultural e física – é também o momento embrionário de uma identidade exclusiva, conectada aos Pankararú, mas diferente em parte daquela que haviam deixado no Brejo dos Padres e que tornava Januária e sua família aptos a procederem a domesticação da caatinga e a fundação

30 Seguindo as pistas de Cardoso de Oliveira (2000), que investiga os processos de identidade e nacionalidade em Andorra e na Catalunha, a história, composta por factualidades mitificadas, o parentesco, representado pela noção de “sangue” e a terra são os principais elementos simbólicos de identidade em jogo. 31 Os Higinos, ou Ginos, aparecem em boa parte das genealogias das famílias Kalancó, conforme se nota observando-se os diagramas de parentesco das UD’s. Ao que parece, trata-se de uma antiga linhagem composta por irmãos que descendem de um patriarca que tinha Higino ou Gino em seu nome e que foi incorporado pelos descendentes como sobrenome de família.32 Espécie de planta de porte pequeno muito comum na caatinga.

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AntônioFrancisco(pajé)

Isabel

Antônia daConceição

JoãoBenedito

Januária

Francisco Higino

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de um território. É o fato de serem caboclos,33 adaptados às condições hostis impostas pelo ambiente da caatinga e habituados aos feitos difíceis e perigosos que permitiu a transformação destas condições e a criação de um lugar social onde antes havia apenas matas incólumes.

O segundo momento de feitio de um primeiro território kalancó é a transformação do nome do sítio, passado de Gangorra34 a Januária em função do nome da primeira pessoa a se instalar em definitivo nessas paragens e a deixar descendentes nascidos no lugar, além de um terreiro de toré (foto 18). Essas duas ações possuem uma densidade simbólica significativa e foram vitais para a reprodução física e cultural daqueles que hoje constituem os Kalancó. Por muito tempo o sítio vinha sendo assim chamado e conhecido até que, nos anos 70, a prefeitura de Água Branca resolveu alterar o nome da localidade que já havia sido transformado informalmente:

Ela (Da. Januária) veio de fora e morava aqui. Aí adoeceu. Adoeceu e o pessoal ficou naquele costume. - “Vamos visitar Januária, vamos visitar Januária”. O nome daquela pessoa, viu? [...] Foi o tempo que Deus a levou e aí ficou, esse lugar nosso aqui por Januária.Em homenagem a ela?É, o nome da mulher. Porque se acostumaram a chamar Januária. Por causa da mulher. É por isso que tem o nome de Januária.

José Antônio Alexandre (UD n. 01). Sítio Januária, 10/05/2002.

É por volta do último quartel do século XIX que chega às terras da Gangorra a família de Januária vinda de Brejo dos Padres junto com uma leva de índios que foram ficando em outros lugares próximos. As primeiras rotas de migração partiam do Brejo, mas talvez não tivessem pontos determinados a serem alcançados, o que se entende pelas condições desconhecidas e ainda inóspitas que eram enfrentadas pelas famílias que freqüentemente se fragmentavam e se espalhavam no meio do caminho, formando um estágio embrionário dos posteriores “enxames” Pankararú (Arruti, 1996). Essas populações viriam a constituir concentrações exclusivas e com identidades próprias, conforme foi visto no item 1.4. A

33 Utilizo a expressão “caboclo” como parte do continuum histórico “caboclo-índio” que tem permitido aos índios do Nordeste brasileiro reverter o forte sinal negativo das perdas culturais que a expressão carregou até um passado próximo. Acredito que assim ela passe a denotar o índio sob um certo contexto histórico e regional.34 Ao que consta, apenas parte do sítio Gangorra teve seu nome alterado, justamente a porção habitada originalmente pela família de Da. Januária. O restante do terreno conserva seu nome original ainda hoje. Sobre o nome Gangorra, o pajé Antônio Francisco deu uma explicação na ocasião em que estávamos com o Sr. Genésio Miranda: “O nome Gangorra, ali, foi através do círculo que fizeram para pagar criação braba. Os proprietários ali fizeram um círculo no bebedouro, o bebedouro era solto e nem tinha cercado em canto nenhum, a criação sobrevivia era no campo mesmo... Cercaram a fonte, pra quando querer pegar um animal aí esperava na bebida. Quando o animal entrava pra beber aí [tomava uma forquilha]. Aí não tratavam aquilo nem por um curral nem por um cercado. Era por gangorra. Aí ficou o nome de fonte da gangorra por isso e ali tomou aquele sítio todinho através disso [...]”

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permissão histórica para o movimento dos “enxames” decorre da própria invenção dos Pankararú enquanto uma unidade social pela administração colonial; sob o manto de dois processos de homogeneização étnica aos quais foram submetidos os índios alocados na aldeia de Brejo dos Padres (tornados primeiramente “caboclos” e depois “Pankararú”), sobreveio, entretanto, a manutenção da memória de sua natureza composta como forma de conservar as identidades particulares que foram reduzidas oficialmente a um só identificador. A estratégia, como vimos antes, consistia em guardar, paralelamente à designação oficial (Pankararú) e para o uso interno, o verdadeiro nome-composto do grupo referente às principais etnias que o compunham, já que tratavam-se de vários grupos num só com origens históricas distintas: “Pancarú Geritacó Cacalancó Umã Canabrava Tatuxi de Fulo” (ib.: 33). Os “enxames” são, então, um tipo de processo reversível da mistura num plano lógico, permitindo que, num futuro, cada um dos elementos formadores do composto étnico venha a aperfeiçoar unidades sociais distintas, mas visceralmente ligadas à matriz sócio-cosmológica de Brejo dos Padres.

O expediente oficial das reduções que criou o composto Pankararú e todos os outros que são os grupos indígenas do Nordeste que foram historicamente aldeados, era absolutamente comum porque permitia classificar pessoas, atribuindo-lhes rótulos, e distribui-las espacialmente conforme os interesses dos representantes coloniais e do Estado. Daí se percebe que os processos sociais contemporâneos de etnogênese são, em boa parte, uma conseqüência histórica e resposta às ações de etnificação – a formação de unidades étnicas – levadas adiante pelos poderes oficiais no passado (Boccara, 2001)35. Ao lado dos Kalancó, outro exemplo eloqüente de etnogênese a partir de fluxos de famílias oriundas de Brejo dos Padres são os Geripankó. A consolidação destes dois grupos enquanto unidades étnicas distintas derivadas da mesma matriz genealógica e cultural – os Pankararú – se deu historicamente a partir de momentos conexos. A interseção entre as histórias dos dois conjuntos étnicos ocorre não só por conta do parentesco que cerca suas relações, mas também em função dos movimentos migratórios que levaram famílias de caboclos de Brejo dos Padres para recônditos além da divisa interestadual:

[...] Os índios começaram a sair do Brejo desde a época da Guerra do Paraguai?Sr. Genésio Miranda – Foi, foi isso aí.Isso já há bastante tempo, não é?

35 É possível dizer que este processo não cessou com uma era pós-colonialista, haja vista que os Estados nacionais continuam a produzir suas alteridades excluídas, dentre elas os grupos indígenas: “Não há garantias de que o Estado nacional não produza ele mesmo as identidades regionais. De fato, muito da tradição da ‘Invenção da Tradição’ consiste em convencer exatamente de tais condições. Assim como os Governos coloniais criaram identidades regionais na África, os Estados nacionais criaram em casa as minorias” (Friedman, 1999: 6) “There is no guarantee that the nation state did not itself generate regional identites. In fact much of the “Invention of Tradition” tradition, consists in arguing precisely in such terms. Just as colonial governments created regional and state-to-be identites in Africa, so did nations states create regional minories at home”

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Sr. Genésio Miranda – Já tá com muito tempo. Meu bisavô saiu de Pankararú com 16 anos de idade, 16 pra 17 anos, na revolta. Eles saiam correndo do Manoel Cavalcante. Manoel Cavalcante veio da Europa, veio pelos portugueses, mandado pelo Pedro Álvares Cabral. Veio para acabar com os índios! E o que é que ele fez? Abriram todas as penitenciárias de Portugal e botaram todos os [detentos] pra cá. O Cavalcante quando entrou era matar os índios e ficar com as índias para os bandidos. Era isso. Meu bisavô, Zé Carapina, quando viu o pai dele amarrado no pé de uma mangueira e os bandidos já pegando as mulheres e forçando elas aí ele correu, que sabia que era homem e ia morrer também, porque era jovem, mas era macho. No que ele pegasse de macho era pra matar, agora fêmea era pra ficar pra serventia. Aí ele correu. Quando ele chegou no pé da ladeira, subindo para descambar pra cá (local da aldeia Geripankó) encontrou uma prima dele por nome Isabel, uma menina de 16 a 17 anos e falou: - “Prima, vamos correr que nossos pais já ficaram lá no final da vida, já ficaram amarrados pra morrer e sabemos que perdemos nossos pais”. Aí ela correu mais ele. Chegaram aqui encontraram uma fazenda, falaram com o fazendeiro e foi como Zé Carapina ocupou esta área de terra, através do fazendeiro por nome Major Marques. Aí o Major Marques abriu o espaço pra ele daqui até perto da serra aí se localizou lá por muitos tempos, muitos tempos. Foi ao conhecimento do Barão de Água Branca e o Barão mandou chamar ele lá e deu um documento escrito com os limites. Um documento histórico com todos os limites desta área de terra que o Major Marques cedeu pra Zé Carapina. Aí ele se apoiou aqui, mandou chamar os primos, e é que existem essas famílias hoje de Gomes, Caipira, Gabão [...] Aí ele se localizou, chamou os primos e hoje existe aí umas trezentas e tantas famílias (na aldeia Geripankó).O senhor acha que a história dos Kalancó é parecida com a história dos Geripankó?Sr. Genésio Miranda – Não tem diferença nenhuma, que na mesma carreira que correu Zé Carapina correu Chico Higino. Não é isso? (voltando-se para Antônio Francisco)Antônio Francisco – É os troncos velhos. O meu bisavô, no caso, meu bisavô era Gino...Sr. Genésio Miranda – Chico, Francisco já era filho de Gino. É justamente. Mas isso foi na mesma carreira que o velho Zé Carapina veio.Aí, Zé Carapina veio pra cá...Sr. Genésio Miranda – Zé Carapina ficou aqui e Gino, que é o bisavô dele... que ali era tudo terra desertada, não é?Eram parentes, o Zé Carapina e Gino?

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Sr. Genésio Miranda – Era, ali tudo era parente. O índio não tem esse pra não ser parente um do outro.Eram irmãos?Sr. Genésio Miranda – Não eram irmãos, eram primos. Primo segundo, terceiro, tudo assim. Por quê? Lembro bem que João Pucena era sobrinho de Zé Carapina, João Pucena. João Benedito era sobrinho de Zé Carapina, já era primo de meu avô, minha avó e é tudo assim família. Manoel Caipira era também sobrinho de Zé Carapina. Já era primo de minha avó e meu avô. Era tudo uma família só.Esses ficaram por aqui mesmo?Sr. Genésio Miranda – Ficaram. A família Caipira, a família Gabão, a família Pucena ainda tem também, só não tem a família Benedito nem a Gonçalves.Antônio Francisco – A família Benedito tem uma neta do João lá com a gente, no caso, o conhecimento que a gente tem é que ela sendo filha do velho de meu sogro, que é Maria. Ela é neta de João Benedito. Maria de Amélia. Amélia sendo filha de João Benedito [...]Benedito era parente da esposa do senhor?Antônio Francisco – O João Benedito era irmão de minha avó. Da Antônia [...]Então é um tronco só, não é seu Genésio?É, um tronco só [...]36

Sr. Genésio Miranda, 73, (ex-cacique Geripankó) e Antônio Francisco (UD n. 52). Aldeia Geripankó, 18/05/2002.

A dispersão dos caboclos do Brejo dos Padres que foram parar nas bandas do sertão alagoano não é relatada diretamente por Sr. Genésio Miranda como conseqüência da falta de terras gerada pelo loteamento do Brejo, mas a partir de episódios deflagrados pela Guerra do Paraguai e por perseguições terríveis provocadas por militares portugueses que tinham por tarefa “acabar com os índios”. A narrativa segue traçando um quadro dramático em que os índios do Brejo eram assassinados, as índias violentadas e as crianças, órfãs, tinham de fugir para sobreviverem a toda essa violência. Assim foram gerados núcleos povoados por famílias exiladas de Brejo dos Padres ao largo das serras de Água Branca e de Pariconha, lugares atuais de habitação dos Kalancó, Geripankó, Katokinn e Karuazú. Estas populações não se desenvolveram a partir de uma ou duas linhagens genealógicas pankararú, mas foram geridas

36 Relato para o mesmo episódio aparece em Arruti (1996: 34): “As famílias que saíram de Pankararu, para vir pra cá, foi numa revolta que houve, um Cavalcanti invadiu Pankararu e amarravam os índios nas árvores e batiam para eles correrem. E os índios que não agüentavam muito cacete correram cedo. Os índios corriam com medo... [...]... Desses aqui mesmo, quando chegou Cavalcanti lá em Pankararu, bateu neles e tomou tudo que eles tinham. Então, o Zé Carapina saiu desgostoso, bolando pelo mundo, chegava num pé de pau ficava. Quando chegaram aqui era tudo mata. (Maria do Carmo Santos, Geripancó. Transcrito em BRITO,1993)”. Esta narrativa foi extraída de “BRITO, Fátima Campelo. 1993 Relatório sobre o reconhecimento dos ‘Kantaruré’ ou ‘Caboclos da Batida’ do municipio de Glória (BA). S/l”.

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pela combinação matrimonial de várias delas porque o número de caboclos jogados para fora do Brejo era tão significativo quanto à violência que subjaz ao processo da diáspora:

“Estas dispersões, que produzirão em momentos seguintes novas cristalizações, estão intimamente associadas à memória da violência: ao contrário do que afirma a documentação disponível, segundo a qual teriam sido estabelecidas 96 famílias indígenas nos lotes demarcados com o fim do aldeamento, contemplando todas que ali existiam, a memória Pankararu fala de uma pequena minoria de famílias que teria ficado nas ‘linhas’, e de uma grande maioria ‘corrida’ para as serras que envolvem o Brejo ou ainda para mais longe, ‘bolando no mundo’. É na expulsão dessas famílias que uma outra comunidade Pankararu tem origem. Parte daqueles que foram ‘bolando no mundo’ acabaram por encontrar assento numa localidade que passaram a designar por Ouricuri, localizada no município de Pariconha (AL) e que cerca de 100 anos depois seria identificada segundo um dos sobrenomes Pankararu: os Geripancó” (Arruti, 1996: 34).

No relato de Sr. Genésio Miranda o esbulho das terras do Brejo aparece de forma indireta como motivo da diáspora; antes, é toda uma seqüência de violências policiais contra os caboclos que os afugentam e os empurram para terras novas. Mas quando entendemos melhor quem é a personagem chave de sua narrativa, Manoel Cavalcante, emerge com toda clareza das entrelinhas da memória o evento inenarrável da agressão produzida pela instituição das “linhas” de divisão que repartiram o aldeamento de Brejo dos Padres em lotes distribuídos entre ex-escravos, brancos e alguns índios e provocaram a diáspora dos caboclos mais “apurados” – como vimos no item 1.4.

O orquestrador da repartição do Brejo e instituição da “linhas” foi Francisco Antônio Cavalcante, político que localmente liderava o Partido Conservador cuja influência e domínio, na década de 1870, atingia toda a região (Albuquerque apud Arruti, 1996: 36):37

“[...]... Ele encarrerava o pessoal do Ouricurí. Quer dizer que ele vinha informado com o pessoal de Tacaratu, e vinham pra encarrerá os índios. Esse Antônio José Fez engenho aqui e junto com o Cavalcante eles lotearam essas terras, fizeram sessenta e dois lotes, que o pessoal chamava 'os linheiros'. Então esse Cavalcante chegou aqui se engraçando das índias, batendo nos índios, e o pessoal correram

37 O operador técnico da produção da “linhas” teria sido um engenheiro contratado pelo Governo e que teria toda autonomia sobre seu trabalho, mas o que marca a memória Pankararú é a figura de Cavalcante como o mandante da execução do loteamento e aquele que definia a posição e o tamanho das glebas e as pessoas que as receberiam (Arruti, 1996: 38).

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pro Ouricuri. O pessoal mais velho foi embora e adepois os filhos foram voltando, uns voltaram e outros ficaram lá, aquele pessoal mais velho que ficaram envergonhado de tê apanhado..., porque você no lugar da sua convivência e o sujeito chegá e batê..., aí eles se desterraram e ficaram pra lá. Aí eles ficaram dominando, pegavam os índios e baixavam a peia que era pra eles gritá: “Arco de reis! Arco de reis!” e a peia comendo. E aí foi o tempo que veio o SPI e acabô todo o impasse. aí foram vê que índio tinha dono, porque antes a polícia entrava aqui, batia em índio, como o Cavalcante que fazia descarrerá os índios pra ser dono das índias... Aí foram fazendo isso e ficô os índios tudo amedrontado. O meu pai falava..., tinham medo aqui também do Bem-Querê, do Caxeado, que era aquele... [tenta lembrar por alguns segundos] o Zé Maria ou Zé Barro, que também era de Tacaratu e judiava dos índios. (Antônio Moreno)” (Arruti, 1996: 36).

As ações perfeitamente idênticas dos algozes dos índios do Brejo que aparecem nas duas narrativas, na de Sr. Genésio Miranda e na de um índio pankararú, sugerem tratar-se da mesma pessoa. Entretanto, houve um índio chamado Manoel de Brito Cavalcante Arcoverde que foi nomeado por D. Pedro II – em 1878, após ter servido na Guerra do Paraguai com alguns dos seus – Comandante Geral das Aldeias do Império do Brasil, supostamente um Xucurú da extinta aldeia de Cimbres (PE) (Hohenthal Jr.: 1954: 101). É eloqüente que na narrativa de Sr. Genésio, passada a ele e aos demais Geripankó pelos parentes que viveram os episódios narrados, “Cavalcante” seja o termo de ligação entre dois momentos históricos distintos com densidades simbólicas elevadas. A unificação das experiências com estes dois Cavalcantes e a produção de um só personagem-síntese, permite a composição de uma narrativa feita de imagens fragmentadas, mas conexas pela violência, para explicar o processo dramático da diáspora dos parentes a partir da combinação de uma matéria que Lévi-Strauss (1986) chamou de eventos-tipo. É a agressão sofrida pelos índios – e dentre elas o esbulho de suas terras, umas das piores – que é transformada em imagens significativas com poder de sintetizar e explicar o passado, coordenando as estruturas pelas quais ele é interpretado. Daí a Guerra do Paraguai misturada à figura de Pedro Álvares Cabral como o mandante de um personagem que viveu no fim do século XIX, Manoel (Francisco Antônio) Cavalcante, já que é com a chegada do primeiro europeu em terras brasileiras que se inicia um novo tipo de vida para suas populações marcada pelas perseguições, abusos e conflitos. Assim como Dom Pedro II e a Princesa Isabel ocupam lugar positivo no imaginário geral dos índios do Nordeste, pois a eles são associados feitos de doação de terras e reconhecimento de direitos fundiários dessas populações, Pedro Álvares Cabral está passivo de virar personagem-síntese das mazelas sofridas por essas populações, já que é ele que funda o crucial e definitivo ciclo histórico de contato e relações entre índios e brancos.

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O processo de repartição não cessava, entretanto, após a saída das áreas pankararú e se repetia dentro dos segmentos familiares. Não é possível, entretanto, com as informações disponíveis, discorrer sobre até que ponto estas segmentações pós Brejo dos Padres caracterizavam uma dinâmica faccional trazida de lá ou era promovida pelas novas circunstâncias e este assunto ficará aqui suspenso. Cabe, pois, perceber que o movimento migratório dos Pankararú não foi apenas dispersivo, mas tem o seu contrário complementar nas re-aglutinações formadas a partir do encontro de famílias caboclas em terras novas. Isto devido às condições apropriadas, relações de parentesco entre as famílias e oferta de terras nos sítios recém alcançados do extremo Oeste alagoano:

Quando seu bisavô chegou aqui esta terra não tinha dono?Sr. Genésio Miranda – Não tinha não.Era só caatinga?Sr. Genésio Miranda – Era. Quem olhava essa terra era o Major Marques. Porque ele criava dentro dessa propriedade todinha, daqui até a divisa era ele que administrava. Ele criava solto gado, bode, ovelha, era solto mesmo.Roça não tinha nenhuma?Sr. Genésio Miranda – Não tinha nenhuma. Primeira roça foi essa que Zé Carapina fez, ali onde tá aquela igrejinha ali hoje (no centro do povoado de Ouricuri dos Caboclos, aldeia Geripankó). Era boi, só tinha criatório. Ele fez a roça, cercou de madeira e morava dentro da roça. Por isso que o Major chegou e queria que ele derrubasse a cerca que era pro gado comer a lavoura. Aí ele não aceitou. O Barão (de Água Branca) foi e passou o documento [...]O Barão de Água Branca deu essas terras aos índios?Sr. Genésio Miranda – Deu pra Zé Carapina, deu essas terras pra Zé Carapina. Só existia ele.Essas terras eram do Barão?Sr. Genésio Miranda – As terras... ele passou um documento segurando as terras pra Zé Carapina, entendeu? Porque não tinha dono, mas que tem o documento histórico passado pelo Barão...O Barão era a autoridade.Sr. Genésio Miranda – Era a autoridade, era quem administrava essa área toda. Aí limitou essa área de terra e disse: - “Aqui, agora essa área de terra é de Zé Carapina. Olhe aqui o documento, Carapina, leve e guarde”. Aí quando ele se viu com o documento da posse de terra, foi aí que ele chamou Manoel Caipira, João Pucena, Vicente Gabão, João Cari, que vivia tudo rodando sem ter um apoio. E aí quando ele se viu com essa área de terra todinha... Bem aqui morou um filho de João Pucena, chamado Zé Pucena, casou até aqui também, tem filho dele aqui [...]

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Veio mais gente do Brejo depois que o Barão deu a terra ao Carapina?Sr. Genésio Miranda – Pois é isso que estou dizendo, tudo era do Brejo, mas que andava tudo debandado. Na violência do Cavalcante eles ficaram tudo jogado, rodando que nem cigano...Eles já tinham saído do Brejo. Eu digo, veio mais gente do Brejo depois que o Barão deu essas terras ao Carapina?Sr. Genésio Miranda – Não, depois não saiu mais não.Eram esses que estavam espalhados, então.Sr. Genésio Miranda – É, esses estavam espalhados aí o Zé Carapina juntou. Essas seis famílias. Juntou e ficou aí. Dessas seis famílias hoje tem um total de umas mil e tantas pessoas aqui. José Miranda (avô de Sr. Genésio) casou com a filha de Zé Carapina, por nome Ana, era minha avó. O velho Zé Gomes, que era irmão do velho Davi... O velho Davi era avô de sua mulher, não era? (perguntando ao pajé Antônio Francisco)Antônio Francisco – É.Sr. Genésio Miranda – Pois é, já era avô de sua mulher e era irmão do velho Zé Gomes, o velho Davi, morava aí também, mas o velho Davi era muito violento, gostava de umas cachaças, aí um dia tentou de querer matar o velho Quintino. Então o velho Zé Gomes, irmão dele, disse: - “Compadre Davi, desapareça daqui”. O velho Quintino e Zé Gomes eram casados com duas irmãs e eram primos. Zé Gomes era casado com Maria e o velho Quintino casado com Ana. Aí o velho Zé Gomes não deu o direito do velho Davi ficar, que ele era muito violento quando ele bebia...Aí o velho Davi foi pra lá.Sr. Genésio Miranda – Aí o velho Davi foi pra lá pra Gangorra. Lá não se deu mais o velho Chico Gino... Você sabe da história? Antônio Francisco – Soube assim: que depois foi pro Inhapi e veio morrer cá na casa de meu avô.Sr. Genésio Miranda – Aí eu me lembro que quando foi um dia ele chegou aí correndo.Ainda saiu da Gangorra e foi lá pro Inhapi?Sr. Genésio Miranda – Foi. Que ele era violento, quando bebia bagunçava. Eu soube que ele teve uma briga com seu avô, não foi? Isso eu sei dessa história. Teve uma briga mais ele e andaram se matando e para não morrer ele correu para aí, quando chegou aí o velho Zé Gomes disse: - “Não, aqui eu não quero não, porque compadre Quintino não gosta de você”.Ele voltou pra cá de novo?

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Sr. Genésio Miranda – Ele voltou, chegou aí o velho Zé Gomes, irmão, não aceitou, disse: - “Não, aqui você não fica não. Não fica não porque você é muito violento e compadre Quintino é meu co-cunhado e nós se damos muito e você aqui mais nós não se dá não. Desapareça”. Ele correu para o Inhapi. Lá na Serra dos Grudes ele arranjou aquela propriedade. Ai pra lá ficou e veio morrer, parece...Antônio Francisco – Morreu na casa de meu avô.Então quer dizer que tem Koiupanká que é parente dele, do velho Davi?Antônio Francisco – Tem meio mundo de Gomes lá. Meus cunhados, filhos do finado Davi, tem meio mundo lá no Inhapi.Sr. Genésio Miranda – Porque, na verdade, os Koiupanká, que hoje está sendo as lideranças lá, são tudo Pankararú também, é família Pankararú, a descendência deles vem de Pankararú [...]Antônio Francisco – Tem muitos que estão lá (junto aos Koiupanká), nasceram em Pankararú e foram pra lá, independente do histórico, que é dessas famílias dos Grande e dos Machado [...]

Sr. Genésio Miranda, 73, (ex-cacique Geripankó) e Antônio Francisco (UD n. 52). Aldeia Geripankó, 18/05/2002.

Neste diálogo com Sr. Genésio Miranda e o pajé dos Kalancó há notícias sobre como os caboclos do Brejo, saindo na mesma leva, se dispersaram e se reagruparam em três áreas diferentes onde hoje habitam famílias de herança pankararú que constituem os grupos Geripankó, Kalancó e Koiupanká. Há, de certa forma, uma repetição da segmentação que ocorreu em Brejo dos Padres e que os impeliu a procura de terras novas. Mas, se a saída do Brejo foi motivada, basicamente, pela instituição das linhas que loteou o aldeamento e pelas extremas dificuldades provocadas por secas intermitentes – sem falar na tensão dramática subjacente a tudo isso e sintetizada na imagem eloqüente da “Guerra do Paraguai” evocada pelo Sr. Genésio Miranda – desta vez a fragmentação ocorre por questões particulares de desavenças que não devem ser ignoradas como elementos pontuais ou incapazes de incentivar novas migrações de índios ou famílias inteiras para outros lugares após terem saído do aldeamento pernambucano.

Isto quer dizer que a chegada dos caboclos do Brejo nas novas terras não afastava em definitivo os problemas dos quais eles tinham fugido. Sobretudo no que se refere às relações interétnicas. Se houve certa facilidade na obtenção de lotes por parte daqueles que chegaram na região que posteriormente viria a compor terras do povoado de Ouricuri dos Caboclos (ou Licuri dos Caboclos), hoje localizado dentro da aldeia Geripankó, e mesmo para os caboclos da Januária, manter a diferença cultural era fonte de atritos e motivos para encalços, assunto tratado no item seguinte. Mas é preciso também compreender a imposição da convivência por

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imperativos econômicos. Para uma fração da população regional ressentida pela falta de trabalhadores rurais, a presença dos caboclos do Brejo poderia ser a solução, ainda que estes adquirissem pequenos lotes de terra. Isto, provavelmente, não seria suficiente para caracteriza-los como um perigo, pois a obtenção desses sítios, seja pela compra, doação, ou ocupação, serviria para fixa-los no local e garantir uma reserva de mão de obra para os donos de terra e de gado:38

[...] Quer dizer que os caboclos todos plantavam de meia, não tinha terra...Não tinha não, era tudo de meia, como ainda é hoje.E o pai de seu sogro foi o primeiro a comprar terra aqui (na Januária)? O primeiro dos caboclos a ter um pedacinho de terra?Bom, este terreno aqui era do pai do finado meu sogro. Aí, da irmandade, o mais velho tinha um taco de terra e documentou a terra dele com essa daqui de herança do pai dele [...]Entendo. O senhor disse que ele já comprou de um branco. Ele foi o primeiro dos caboclos a ter um pedaço de terra, ou antes dele outros caboclos por aqui já tinham comprado seu pedacinho de terra?Não senhor, eles todos têm, mas veio do finado Francisco. O primeiro foi ele quem comprou porque era o cabeça velho, pai da família [...]E no Lajedo do Couro? De quem eram as terras no Lajedo do Couro?Era do finado Zé Menino. O pai de Pedro Cego (Pedro José da Silva, UD n. 36).E antes, ele comprou a terra de algum branco ou já herdou do pai dele?Aí eu não sei porque não vi, mas diz que ele comprou, que foi um branco que vendeu mesmo.

José Antônio Alexandre (UD n. 01).Sítio Januária, 11/05/2002.

Embora o processo de transmissão fundiária entre os Kalancó não tenha sido sistematicamente mapeado durante os trabalhos de campo – o que serviria como um apêndice às memórias sobre a ocupação local – acredito que o quadro inicial era de pequenas e médias propriedades adquiridas por compra por algumas famílias vindas do Brejo e que posteriormente foram sendo repartidas entre membros das gerações seguintes daquelas famílias e alguns pedaços vendidos para vizinhos. Isto responderia pelo fato de haver hoje – como alegam – escassez de terras para plantar e ao mesmo tempo poucos casos de presença de não-índios, sendo que estes não se caracterizam por propriedades rurais substancialmente maiores do que aquelas que os próprios Kalancó possuem. A exceção pode ser a Januária:38 É sabido que os índios do sertão do Nordeste eram notórios vaqueiros e esta deve ter sido uma das funções desempenhadas quando os que saíram de Brejo dos Padres chegavam nas novas terras de Alagoas. Principalmente porque não haviam lavouras desenvolvidas próximo à Água Branca, salvo as de mandioca para a produção de farinha. Para uma descrição acurada do “uso” dos caboclos na atividade pecuária no sertão do Nordeste veja a obra de Lins (1983).

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O caso é o seguinte: na Januária mesmo, a pequena área que a gente considera como área histórica já era pouca mesmo. Não é essa área toda. Então, essa pouca terra, hoje ainda mais pouca ficou, porque parentes, como primos e primas, que já são casados com pessoas particulares (não pertencentes à comunidade kalancó) [...] Na terra da união (coletiva), cada um, às vezes por qualquer uma coisa e abandona a aldeia, ele não vende a posse da terra que ele ocupa, mas no caso de um pé de fruta, ele já vende aquele pé de fruta para um parente ali, já ficou pra outro. Ele não vai trazer uma pessoa branca pra colocar ali. No caso nosso aqui é o seguinte: é que o pessoal – no caso da falta de um recurso para comprar uma tarefa de terra de um parente meu que às vezes não queria ficar ali, queria mudar pra outro lote, pra um lugar mais espaçoso, por ter condições – eu como não tinha recurso ele pegava e colocava uma pessoa particular, que nada ali lhe pertencia de família.Isto aconteceu muito aqui?Aconteceu bastante, porque hoje 70% da pequena área que tem da gente (no sítio Januária), 70% ou mais mesmo, [talvez] esteja nas mãos de particulares.São quantos os particulares?Lá mesmo (na Januária), só tem dois.E a quantidade de terra que eles têm é grande?Na base da metade ou mais [...]

Antônio Francisco (UD n. 52). Lajedo do Couro, 09/05/2002.

A carência atual de terras entre os Kalancó parece decorrer fundamentalmente da combinação do crescimento populacional ao longo do tempo e da venda de lotes domésticos a vizinhos externos à comunidade, mas sem aparecer no presente um quadro claro de tensão fundiária com estas pessoas. A questão agrava-se porque as propriedades originais das primeiras famílias kalancó não eram grandes, foram divididas ao longo de 3 gerações e ainda fragmentadas pela venda a não-índios, daí a alegada falta de terra para o cultivo. Pode-se pensar, portanto, numa generalização do exemplo dado na narrativa de José Antônio Alexandre sobre a divisão da propriedade de seu sogro na Januária, adicionando-se a venda ocasional desses fragmentos a pessoas “de fora”. O fato mais significativo disto é que, como a maioria das famílias atuais está ligada entre si por afinidade ou consangüinidade, a distribuição geracional dos lotes alcança quase a totalidade dos Kalancó de hoje, configurando uma cena fundiária em que há um lote pequeno (quase sempre insuficiente) para cada UD (ou mais de uma), geralmente adquirido por herança e às vezes comprado. Numa observação preliminar, a pressão exercida por propriedades rurais de pessoas consideradas externas aos Kalancó é

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menor que o desconforto atual de ter algumas delas como vizinhos, em função de episódios que trariam prejuízos à história do grupo:

Tinha dois umbuzeiros que hoje eu sinto muita falta deles aqui, além das terrinhas ser pouca [...] aí do lado de lá desta cerca, aí tinha dois umbuzeiros que fazia assim no modo de uma [latada] (espécie de terreno limpo sob a sombra das duas árvores). Eram dois umbuzeiros grandes e eles ligavam as galhas assim, ficava um sombrio grande e tinha até um meio [desviado] que era chamado de umbu laranja, porque os umbus dele era bem grande, como limão mesmo, bem grande. E tinha outro encostado que era doce como mel. Nessa localidade (embaixo dos umbuzeiros) era que eles praticavam os costumes (referindo-se aos antigos Mestres que realizavam rituais ligados ao complexo dos encantados). Hoje eu sinto muita falta, como acabo de dizer, porque passou outras pessoas que não pertencem a nós e foi a primeira das coisas que ele fez aí foi destruir, derrubar e queimar os umbuzeiros.Quem derrubou?Uma pessoa que comprou um pedacinho de terra aqui dentro. Porque aqui passou... através de gente indígena casar com branco, essas pessoas que eram minhas primas e que tinham sua partilha aqui, quando [?] morreu, aí pegou, os próprios daqui não tinham condições de comprar, pegou e hoje tá nas mãos de brancos. Uma das coisas primeiras que ele fez foi [deteriorar] esta localidade, que era respeitosa. É porque nós não tinha recurso pra comprar esse pedaço de chão [...]

Antônio Francisco (UD n. 52). Sítio Januária, 08/05/2002.

Não obstante o acesso à terra encontrado pelos caboclos do Brejo na Gangorra e adjacências (ao menos para alguns), a intolerância em relação à sua diferença cultural se mantinha por parte dos regionais. Aos não-índios interessava, pois, assimila-los dentro do sistema regional de produção como força de trabalho, mas não integra-los socialmente, já que eram diferentes e submetidos a uma série de estigmas de diferenciação que lhes eram imputados. Para as famílias que vieram a constituir os Kalancó, este quadro seria revertido muito posteriormente, quando as condições para que eles resolvessem pela condição de índios – e não de trabalhadores rurais – existiam, tanto em termos legais quanto operacionais, considerando a atuação de uma rede de atores indígenas e não indígenas, ligadas a unidades indigenistas, de apoio. Antes disso, uma seqüência de repreensões em relações às manifestações de diferença foram dirigidas a essas pessoas pelos seus vizinhos que

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freqüentemente atacavam os desempenhos rituais públicos no terreiro da Gangorra, atual sítio Januária.

2.2. ESTIGMAS E CATEGORIAS DE IDENTIDADE

Foi a partir das diferenças manifestadas no plano ritual que começaram de forma mais incisiva as tensões com os vizinhos não-índios. Mas é preciso guardar que a presença dos caboclos vindos de Brejo dos Padres já se fazia sentir a partir de hábitos que serviam de motivos para a produção de atributos de negação a eles dirigidos. Estes hábitos eram sobretudo alimentares e incluíam na dieta das famílias ameríndias uma série de animais e plantas considerados tabus pelos não-índios, seja pela sua qualidade de alimento exclusivo de animais domésticos, como a macambira que alimenta o gado em circunstâncias desfavoráveis, ou pela sua impureza, tais como cobras, lagartos e outros bichos da caatinga. A adoção de um cardápio incomum era motivada pelas extremas privações pelas quais passavam as famílias vindas do Brejo em momentos de seca – embora o normal fosse ter o cotidiano preenchido por sérias dificuldades – mas a disposição em desafiar a fome com uma dieta alternativa repleta de tabus alimentares para os regionais espelhava um atributo facilmente essencializado, primeiro pelos vizinhos, depois pelos próprios Kalancó; a imagem do caboclo como um ser rústico e próximo à natureza. Essas representações sobre o caboclo, entretanto, apresentam sentidos e efeitos simbólicos divergentes, mas altamente conexos, que manifestam um combate emblemático pelo poder de definição e classificação da alteridade e do si mesmo, onde a criação dos estigmas, dos atributos de negação, das acusações e censuras pelos regionais tem por objetivo a produção simbólica de divisões sociais.39

Assim é que os ameríndios da Januária e dos sítios vizinhos eram classificados e categorizados pelos regionais não-índios a partir de atributos imputados que tinham efeitos altamente estigmatizantes que, por sua vez, justificavam a continuidade do estigma, da segregação social e da divisão simbólica. Ao inventarem aqueles caboclos a partir de estimas, os regionais criam não só fronteiras, mas também distâncias em relação a eles. Sem dúvida, as

39 “As lutas a respeito da identidade étnica ou regional, quer dizer, a respeito de propriedades (estigmas ou emblemas) ligada à origem a través do lugar de origem e dos sinais duradouros que lhes são correlativos, como o sotaque, são um caso particular das lutas das classificações, lutas pelo monopólio de fazer ver e fazer crer, de dar a conhecer e de fazer reconhecer, de impor a definição legítima das divisões do mundo social e, por este meio, de fazer e de desfazer os grupos. Com efeito, o que nelas está em jogo é o poder de impor uma visão do mundo social através dos princípios de di-visão que, quando se impõe ao conjunto do grupo, realizam o sentido e o consenso sobre o sentido e, em particular sobre a identidade e a unidade do grupo, que fazem a realidade da unidade e da identidade do grupo” (Bourdieu, 1998[1989]: 113).

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classificações estavam amparadas empiricamente e valiam-se de comportamentos, costumes e condutas adotados pelos caboclos, mas é a transformação, pelos regionais não-índios, destes elementos objetivos em arma simbólica que lhes permite impor um modelo de representação para a alteridade cabocla. O primeiro suporte para estas representações impositivas eram as práticas rituais referentes ao sistema de prestações para com os encantos e as modalidades de diversão fundamentadas na dança do toré:

Quer dizer, seu Zé, que tinha época que não dava pra fazer um toré direito, que o povo falava... Chamavam os caboclos de quê?José Antônio – Chamavam “xangozeiro”, "cabaré", “magote de cachorro latindo” e diziam que vinham quebrar nós no pau. É Deus que nunca vieram não. Brincamos foi muitos anos [...] Antigamente era sufoco.Quem ameaçava vocês?José Antônio – A vizinhança, homem, ao redor [...]Tinha um toré também aqui, mais adiante, num lugar aqui pra baixo, que era de Da. Santina também, um terreiro que tinha embaixo de um umbuzeiro...José Antônio – Sim, era mesmo.Como chama o lugar?José Antônio – Riachão. Meu genro (Edmilson da Silva - UD n. 18) aprendeu a cultura com esta cabocla velha, aí ficou por Mestre. Aprendeu, ela morreu, aprendeu as linhas dele e ficou por Mestre [...] Aí ela saía daqui, nós ia dançar lá no Riachão, no terreiro da casa dele, que ele morava lá. Ele fez uma casinha para espiar os bichos, ficou mais perto, aí passou uns tempos lá [...]O povo dançava o toré com medo?Maria Luciana – Era o terreiro de lá era bem dentro... a casa ficava aqui, o terreiro ficava assim, dentro da caatinga. E o povo tudo dançando lá!Dentro da caatinga? Era escondido?José Antônio – Era, o terreiro era escondido.Maria Luciana – Escondido assim, da casa pra cima assim.José Antônio – Escondido assim, vamos supor uma base de trinta braças, embaixo do umbuzeiro.E ao redor tinha mata?José Antônio – Era mata toda, como ainda hoje ainda é.

José Antônio Alexandre e sua esposa (UD n. 01), sítio Januária. 11/05/2002.

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Era como se fosse uma coisa debaixo do chão mesmo para não estourar no conhecimento deles (os vizinhos contrários). Tinha muita perseguição, sobre essa posição (práticas rituais).

Antônio Francisco (UD n. 52). Sítio Januária, 08/05/2002.

***Claudino – Na época eles não faziam o toré assim, com medo. Eles brincavam escondidos. Debaixo dos paus (das árvores), assim...Isaura Maria – Antes eles brincavam no croá40 escondidos.Claudino – Aí tinha um pessoal rico aí que ficava maltratando, chamando os caboclos de seboso, chamava de macumbeiro [...]Isaura Maria – Aqui pra sair pra fora, ninguém podia sair, porque ninguém tinha documento registrado.Claudino – Mas ainda hoje tem o pessoal que não... sabe?Isaura Maria – Mas agora não tem importância, porque eles vão é brincar (dançar o toré) é no meio da rua, em Água Branca.Claudino – Eles brincam em todo canto, eu digo é o povo, quando não reconhecia, chamavam os caboclos de seboso.Quem chamava assim?Isaura Maria – Qualquer um desses pessoal que morava do lado de lá dessas serras...Gente de mais distante?Claudino – É, que mora aí no lugar chamado Olho d’Água.Isaura Maria – Chegavam aqui e faziam mangação, não prestava fazer mangação.

Isaura Maria Santana (UD n. 29) e seu genro, Sebastião Claudino (UD n. 11).Sítio Januária, 14/05/2002.

O segundo elemento que servia de sustentação aos estigmas dirigidos aos caboclos pelos vizinhos não-índios eram, conforme comentei, hábitos alimentares considerados por eles repugnantes e transgressores:

40 “Brincar no croá” é dançar o toré com a presença dos praiás que utilizam uma vestimenta ritual longa, feita da fibra do croá ou caroá (neoglaziovia variegata), planta comum na caatinga da família das bromélias. Sobre os praiás kalancó veja a parte III.

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Relatório Antropológico de Identificação Étnica Kalancó — Parte II

E era nessa época (de perseguições ao toré) que o povo comia calango, comia répteis?José Antônio – É, já vem desde o nascimento ...Maria Luciana – Já vem de nascimento que come calango, come maçarico.Come o quê? O que é isso?José Antônio – É um bichinho, uma cacinha que tem deste tamanho (como uma codorna). Não é preá não?José Antônio – Não, preá é outro. É um que chama “souim”, agora bota o apelido de maçarico.Por quê, ele tem um bico fino?José Antônio – É porque a cintura dele é bem assim...Maria Luciana – Bem fininhaJosé Antônio – Bem fininha. Aí o cabra mata ele pra comer e quando ele cai no chão o cabra quebra as perninhas dele ai incha, fica carnudo, o cabra aí vai comer esse maçarico.Maria Luciana – E é um pirãozinho gostoso! [...]O povo (os não-índios) falava que os caboclos eram índios podres e sebosos porque comiam calango?José Antônio – É sim. Porque comia essas coisinhas tudo que existe do mato. Nós, pai de família, eu mais meu sogro, saía daqui, ia pro mato ver macambira, xique-xique, pra trazer do mato pra dar de comer a nossos filhos. Tudo fraco. Se nós tivesse trabalhando, nós tinha de parar e caçar esses alimentos do mato pra dar de comer aos filhinhos.Só os caboclos comiam calango e esses alimentos?José Antônio – Só, só caboclo mesmo, outro não comia, não senhor. Só come a gente e não come hoje em dia porque acabou-se tudo.E o povo dizia o que?José Antônio - Era porco, seboso, nojento, dizia assim, porque comíamos essas coisas [...] O calango era de que tamanho?José Antônio – O calango maiorzinho que tinha era deste tamanhinho (15 cm). E outros aqui assim (10cm). Matava aquela ruminha, quando acabar pegava e tratava, quando acabar salgava e assava e o cabra, - “venha”!. E depois ia beber água.Mas aí tinha de comer um monte desses para encher a barriga, não é?

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José Antônio – É, quando pegava muito era, quando tinha pouquinho repartia pra quatro, cinco ou seis, depende das pessoas que tivessem. Aí assava, cada qual comia seu taquinho e pronto.

José Antônio Alexandre e sua esposa (UD n. 01), sítio Januária. 11/05/2002.

A narrativa demonstra uma tensão entre os imperativos circunstanciais que levavam a adoção da dieta incomum e o gosto por esses alimentos do mato, já que eram comidos “desde o nascimento”. Sempre se recorreu aos calangos, macambira e maçaricos porque as privações pelas quais estas populações passavam não eram sazonais; elas se agravavam, sem dúvida, em períodos de estiagem, mas faziam parte do cotidiano de pessoas que tinham vindo de situações de plena expropriação fundiária e, mesmo depois possuindo algum pedaço de terra – ao chegarem as primeiras famílias de ascendentes dos Kalancó – a conduta alimentar foi incorporada ao habitus41 caboclo e possivelmente assumida também como prática de diferenciação. É a partir desse ciclo de experiências vividas, transmitidas e reproduzidas que se cria um dos elementos de uma natureza cabocla, ou seja, a resistência e adaptabilidade ao ambiente da caatinga. Experiências essas que demonstram habilidades de exploração de recursos em determinados ecossistemas, mas que também estão profundamente associadas a contextos de tensão interétnica. Resta perceber que as categorizações pejorativas alimentares dirigidas pelos regionais não-índios (“caboclos podres”, “sebosos”, “nojentos”) foram posteriormente neutralizadas e transformadas em atributos positivos de identidade ao se modificar os valores que estavam a elas agregados. Não se trata, pois, de negar a dieta (como diz Sr. José Antônio referindo-se aos animais do mato: “Só come a gente e não come hoje em dia porque acabou-se tudo”), mas de reverter os seus sinais, tornando-os positivos e passíveis de transformar um estigma em emblema de identidade. Na voz de Bourdieu (1998[1989]):

“[...] a luta coletiva pela subversão das relações de forças simbólicas – que tem em vista não a supressão das características estigmatizadas, mas a destruição da tábua dos valores que as constitui como estigmas – que procura impor senão novos princípios de di-visão, pelo menos uma inversão dos sinais atribuídos às classes produzidas segundo os antigos princípios, é um esforço pela autonomia, entendida como poder de definir os princípios de definição do mundo social em conformidade com os seus próprios interesses” (ib.: 124-125). A operação que permite transformar os sinais dos estigmas externamente imputados e

alterar o quadro de forças atuantes em um determinado meio social é, sobremaneira, política e representa o princípio das etnogêneses, presente tanto na proposta de Sider (1994) – para quem é a retomada da autonomia histórica que os sujeitos buscam com as etnogêneses – 41 No sentido de Bourdieu (1998[1989]), de conhecimento adquirido por agentes em ação e que passam a compor estruturas estruturantes que promovem a atualização da história.

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quanto em Barth (1969)42 ao formular a cultura como um dos meios instrumentais através do qual os grupos se redefinem frente a outras forças sociais. Averiguando as etnogêneses que vêm ocorrendo entre grupos de identidade indígena do Nordeste brasileiro ao longo de 20 anos, vê-se que são determinados elementos culturais – de significados tornados eloqüentes, sobretudo aqueles do campo mágico-ritual – que organizam as interações entre as pessoas e comunicam as diferenças simbólicas simultaneamente à produção das distâncias e fronteiras sociais. Entretanto, não se pode permitir acreditar que a diferenciação se esgota nos emblemas imediatamente objetivados e postos a comunicar; os processos de identidade incluem, como foi mostrado, condutas, comportamentos e valores com poder de unir pessoas dentro de uma mesma comunidade moral, porque partilham e praticam valores que lhes diferenciam e permitem um sentimento de orgulho.43 A transformação do atributo acusatório de comedores de calango e transgressores de tabus alimentares, posteriormente eficaz como signo de identidade coletiva, valeu-se da adoção de valores positivos para estas práticas alimentares que passaram a refletir uma moralidade cabocla ligada à honestidade e ao respeito à propriedade alheia. Isto porque os caboclos, mesmo pressionados pela fome e privações extremas provocadas pelas longas estiagens – notadamente a que aconteceu em 1932 – recorriam aos calangos, macambira e xique xique para sobreviverem, mas não atacavam o gado criado solto na caatinga que pertencia aos seus vizinhos ricos de Água Branca nem pilhavam suas fazendas ou roças.

Não importa a motivação concreta que teria levado a tal abnegação diante de um drama tão potente. O imperativo da adoção de uma dieta transgressora – que, absolutamente, não era estranha aos caboclos, mas acionada somente em momentos limites – produziu posteriormente uma dupla diferenciação; prática e moral. A primeira, como dito antes, traduzida pela melhor adaptabilidade, resistência e aproveitamento de recursos naturais do ecossistema da caatinga, o que sugere um conhecimento excepcional deste habitat por pessoas e grupos humanos que são próprios dele. A segunda é tomada como expressão da natureza dessas pessoas que, diferentemente de seus ancestrais “brabos”, ou os índios anteriores ao “amansamento”, são tratáveis e de índole pacífica, sobressaindo-se a honestidade e a vocação para o trabalho. Ao mesmo tempo que buscam a contiguidade com o tempo dos ancestrais e com estes (Gow, 1993) – principalmente através do campo ritual – marcam sua diferença a partir de uma nova modalidade de ser índio, incorporando as experiências com os processos históricos de 42 Mas não devemos exagerar e dizer que este é um autor meramente instrumentalista. Em várias ocasiões, como em Barth (1991), há críticas ao que ele chama de “uso excessivo da cultura” com o intuito de atender a certas demandas políticas de lideranças étnicas. Este alerta também está presente em Hannerz (2001) ao referir-se aos movimentos multiculturalistas: “Como movimiento general, el multiculturalismo podría plantearse usar la cultura como medio de resistencia, en una lucha desde abajo a arriba, contra las estructuras dominantes en expansión. Podemos sinpatizar com esto y, sin embargo, preocuparmos de que en situaciones de competencia y desigualdad crecientes, el discurso sobre la cultura tambiém funcione en sentido inverso. Las ideas de fronteras de cultura/cultura se convierten entonces en un instrumento de exclusión y de diabolización, sustitutos del recismo, o al menos en un lingueje administrativo torpe utilizado por los organismos del Estado para identificar a determinadas problaciones minoritarias com el fin de adoptar medidas especiales” (ib.: 5). 43 Embora não se trate de um compartilhamento homogêneo de um elenco de valores. Temos que considerar as diferenças idiossincráticas entre os sujeitos informadas por suas trajetórias, o que inviabiliza a caracterização de um ethos Kalancó como um ordenador moral.

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desterritorialização, redução e “amansamento” pelos quais estas populações passaram. Diferença que é nutrida por imagens-síntese das quais se produz a alteridade cabocla como o outro e desdobro do “índio do brabio” pego “a dente de cachorro” no mato ou do índio nômade habitante das serras e que permite a fundação de uma moralidade composta por fragmentos de valores que se opõem tanto aos modos de agir dos ancestrais “brabos” – no que diz respeito principalmente à sua ingenuidade e aspereza – quanto às formas de agressão dos vizinhos não índios. Deste modo, a moralidade cabocla kalancó (surgida como uma poderosa categoria de identidade) é a medida que permite a transformação, sem rupturas, em relação aos ancestrais e ao passado e a diferenciação moral face aos vizinhos não-índios.

Importa destacar que este estatuto moral – assim como as práticas alimentares transgressoras e outros elementos mais difusos ligados diretamente à origem no aldeamento pankararú de Brejo dos Padres – permitiu a visualização pelos Kalancó do continuum caboclo-índio referido no item 1.2 da parte I deste relatório. Foi a partir da transformação dos estigmas em categorias de identidade que os Kalancó passaram a se perceber como caboclos e ameríndios simultaneamente, e não somente “caboclos” enquanto o resultado último de perdas culturais irreversíveis, imagem comum entre a população regional e no imaginário oficial da colônia e do império. Mas tal processo de reversão operado enquanto etnogênese não é uma seqüência de ações programáticas visando, objetivamente, a construção de elementos sociais de contraste, nem mesmo um resultado automático da própria estigmatização da qual eles foram alvo. Só foi possível aos Kalancó realizar essa dupla passagem – dos estigmas aos emblemas de identidade e do caboclo culturalmente esvaziado ao índio ou “caboclo-índio” – e criar uma nova forma de auto-percepção porque a matéria prima para isso existia previamente nos repertórios domésticos de memórias sobre os vínculos com o aldeamento de Brejo dos Padres. Essa massa de memórias se expressou ao longo do tempo através da criação de topônimos com grande importância simbólica (como é o caso do sítio Januária); das cantigas cantadas enquanto laboravam; das constantes visitas ao Brejo dos Padres para visitar parentes, presenciar as festas religiosas locais ou para a realização ritual e culto aos encantados.

O que temos aí enquanto processo social situado em um contexto de diáspora indígena e tensão interétnica é que as categorias de uma identidade kalancó que mescla elementos extra e intra locais começaram a emergir no momento em que os repertórios domésticos de memórias puderam convergir para formar, então, algo como uma “comunidade de identidade indígena”, empresa que foi realizada dentro do circuito de apoio de agentes indígenas regionais (como lideranças dos Geripankó, Pankararú, Xucurú-Kariri etc) e entidades indigenistas, principalmente o CIMI.44 Essa convergência de massas fluidas, não unívocas e com poucos contornos – como é a própria cultura – é o ponto em que se forma um coletivo Kalancó mais amplo como um contexto de ações e resultado de ações (Barth, 1992), coletivo este organizado

44 Uma abordagem mais particularizada desses repertórios familiares é feita na parte III.

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com base, sobretudo, no parentesco que é o seu liame efetivo. Para a formalização deste momento, insisto que foi fundamental a suspensão de rupturas que permitiu uma nova modalidade de auto-percepção:

[...] Antigamente, que no tempo que... toda vida foi índio, existia os caboclo, eram os índios, mas que nós não tinha experiência que ninguém indicava por índio e sim sendo, né? Mas nós só tratava por caboclo.

José Antônio Alexandre (UD n. 01). Sítio Januária, 16/05/2002.

Entretanto, é preciso entender as motivações para um reordenamento da história kalancó. Esta etapa, como disse, foi possível com a convergência de repertórios domésticos de memórias acerca do universo indígena pankararú e dos laços afetivos e efetivos com o aldeamento de Brejo dos Padres. Tal empresa se deu sob o auspício de uma rede regional de comunicação interétnica e a partir da iniciativa de lideranças kalancó que buscaram ressaltar sua herança cultural com os Pankararú mediante a introdução de modalidades rituais então não praticadas nas suas áreas. Estes dois marcos importantes na etnogênese kalancó – a presença de uma rede regional indígena de apoio e a adoção de práticas culturais de Brejo dos Padres que não eram estranhas, mas estavam ausentes entre eles – são os mesmos expedientes que se vê nas etnogêneses indígenas do Nordeste brasileiro, haja vista o aprendizado do toré por vários grupos (como os Atikum, Kiriri e Kambiwá), através de sua participação em circuitos indígenas de reciprocidades política e ritual, que lhes permitiram dar um curso ao desenvolvimento de uma nova frente de contato para eles; o diálogo com a agência indigenista oficial. Mais do que simplesmente adotar novas práticas culturais, a atitude é vista como um re-aprendizado, um re-ligare com uma modalidade esquecida, mas guardada por outros grupos indígenas com os quais se mantêm relações históricas e muitas vezes intercâmbios matrimoniais (Reesink, 2000). Foi assim que os Kalancó viriam a adotar o praiá e a mesa de toré, conforme eram realizados pelos Pankararú:

[...] Que ele (o pajé Antônio Francisco) viva lá e cá. Ele é filho natural daqui, mas lá ele tem os tios em Brejo dos Padres, os tios, as tias tudo dentro da área da aldeia. Aí ele vivia lá e lá ele viu o modelo dos trabalhos da cultura, o que precisava, aí ele trouxe de lá pra cá, mas ele viu foi lá [...] Que nossa cultura era só dançar o toré, mas não tinha o praiá. Só era o toré mesmo de nossa cultura. Agora, é por isso que

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eu digo que esse vestuário (a vestimenta de croá dos praiás) quem trouxe, eu tô achando que sim, que foi Antônio Francisco [...]E a respeito dos encantados, o senhor ouviu falar neles a primeira vez quando? O senhor era, rapaz?Vi sim, agora que o respeito é claro. Nossa cultura de índio, nós tem e tem que considerar e respeitar, nós concordar, na união.O senhor ouvia sua mãe, sua avó falarem nos encantados?Meus avôs eu não ouvi não, mas minha mãe era velhinha, meu pai, embora que meu pai não tinha cultura, ele gostava só de apreciar...A mãe do senhor morreu com que idade?Noventa e três.E ela já falava nos encantados?Ela pegou uma amizade tão grande nessa cultura de encantado, que era velhinha, mas quando passada 15 dias sem ver um toré [...] "Meu filho, chama Edmilson pra dar uma doçura aos caboclinhos" [...] aí eu digo: - "Minha mãe quer ver o toré", que sempre era o toré sem vestuário, aí eu convidava Edmilson, meu, genro, lá do Lajedo (Lajedo do Couro): - "Edmilson, mãe disse que é pra receber uma doçura lá". Ele vinha, ela era velhinha, só era Edmilson puxar pelas linhas aí ela vinha de lá pra cá, sentava bem de pertinho. Quando terminava o toré, voltava pra dentro, pra cama, satisfeita. Não dançava nem um toré, não tinha costume, mas tomou uma amizade que fazia gosto com essa cultura dos encantilhos [...]Qual foi o Mestre mais antigo que o senhor lembra que já teve aqui na aldeia kalancó?[...] Era “Mestre Véia”. Era uma Mestre, Santina. Aí pela cultura dela, nós tudinho se acostumamos.Ela pegou a cultura de outro Mestre?Eu não sei se ela tinha cultura de outro, não senhor [...]A família de dona Santina veio do Brejo?Aí quem sabe é Antônio e outros, porque esses aí sabem de todo o começo. Agora eu não porque nesse tempo de caboclo não tive explicação nenhuma, de gente nenhuma. Nós brincava aí e era tudo caboclo, mas não tinha essa explicação como tem de índio hoje. O cabra não se lembra de nada porque ela nunca foi passada.

José Antônio Alexandre (UD n. 01). Sítio Januária, 15/05/2002.Custou algum tempo até que a introdução de práticas culturais de Brejo dos Padres

entre os caboclos da Januária tivesse o efeito de transformá-los em Kalancó. Acredito que não houve dificuldades na assimilação dos rituais dos Pankararú do praiá e da mesa de toré, já que, além de presentes na memória dos mais velhos, as visitas às suas aldeias eram

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freqüentes e sabia-se bem o que lá se fazia.45 Somado a isto havia o fato de já existirem rituais propiciatórios de culto aos encantados voltados a cura de doenças, ocasiões em que a garapa era então ofertada pela Mestra Santina Maria, da Januária. A adoção de formas culturais pelos Kalancó como um re-ligare com sua matriz cosmológica pankararú não produziu uma relação imediata de causa e feito que culminou em sua etnogênese; este processo social foi maturado dentro da rede regional indígena de comunicação interétnica, da qual os próprios Pankararú fazem parte, e implicou na necessidade de transformar os elementos de auto-percepção que, então, estavam bastante fixados entre as famílias da Januária e dos sítios anexos. Foi a partir da conjugação de várias ações, e não apenas de uma delas, que vinham se desenvolvendo em contextos conexos, que tornou-se possível para os Kalancó se associarem a uma alteridade indígena específica:

E nessa era que ele trouxe a mesa, o toré, o praiá a comunidade aqui já estava querendo buscar os direitos de índio?Nada, homem, não senhor. Nós não sabia o que era índio não, só sabia que era caboclo. Só conhecia pelos caboclo. Mas de índio nem cabeça velha, nem avô, nem bisavô, nem bisavó nunca tiveram [assunto] de índio não, só caboclo, caboclo. Nós sabia o que era índio, homem? Sabia não senhor, não tinha informação nenhuma. É verdade.E as pessoas daqui, da Januária, sabiam que tinham parte com os índios? Sabia não, a parte que eles tinham era só a parte dos caboclo. Não falava em índio não. Ninguém, ninguém, ninguém. Existia, como era e é. Mas que nós não sabia o que era índio não.Para o senhor qual é a diferença entre o caboclo e o índio?É a mesma coisa, que o caboclo é o mesmo índio. É o mesmo. É porque nós não conhecia que era índio, mas é os caboclo mesmo que é índio. Assim, os homens que nem o senhor diz que é o mesmo, que a cultura dos caboclo é os índio.Nessa época ninguém sabia disso?Sabia não, não senhor. De índio, não senhor.Achavam que caboclo era uma coisa e índio era outra?É, é sim senhor. Pensava que nossa cultura era nossos caboclinhos, mas se nós não ouvia falar em índio? Nossa cultura mesmo, se for [índio] como é, é os caboclinhos, que é o mesmo que índio. Mas agora pra nós a diferença que tá é que agora nós temos essa cultura em todo canto que nós estiver, nos quatro canto de Alagoas. E antigamente, quando era pra nós dançar nosso toré no tempo de caboclo era escondido. Nós só ia pegar, dançar nosso torezinho, de meia noite em

45 No bloco seguinte discuto essas viagens e a importância que elas tiveram na formação das categorias de identidade dos Kalancó.

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diante. Só chamavam de macumbeiro, com a licença da palavra, cabaré, era só pelo que tratava nós.Nessa era o toré era dançado aonde?Era ali no terreiro da Mestre velha.

José Antônio Alexandre (UD n. 01). Sítio Januária, 16/05/2002.

O diálogo com José Antônio é bastante eloqüente. Mostra que eles sabiam que eram diferentes, assim como os regionais também, mas não se classificavam como índios. Nem eles nem seus antepassados. Certamente porque já no Brejo dos Padres eram incentivados a se pensarem enquanto caboclo e não índios, classificações com estatutos jurídicos diversos, já que desde o período mais tenro da colonização, aos índios eram reconhecidos direitos territoriais, o que não valia para os caboclos ou as populações misturadas que muitas vezes eram decretadas pelos administradores de aldeias como já “confundidas com a população vizinha”. Foi o que teria justificado oficialmente a extinção do aldeamento de Brejo dos Padres no século XIX e o loteamento de suas terras. Toda a estigmatização sofrida dentro dos aldeamentos e carregada nas diásporas só funcionaria se, e apenas, fosse também uma auto-atribuição de identidade, o que se nota com clareza no diálogo anterior. Durante muito tempo eles passam a se pensar da maneira como os regionais e a administração pública os pensavam e até mesmo produzem distâncias intransponíveis entre eles e os “índios” (compreendidos na forma geral e homogênea) que são figuras do passado (os parentes que estão fora da memória) ou então alteridades distintas.

Voltamos às disputas simbólicas através das classificações que, longe de serem apenas nomeações, produzem efetivamente realidades sociais. Não obstante as formas pejorativas e acusatórias dirigidas pelos regionais em função da quebra de tabus alimentares pelas famílias que vieram de Brejo dos Padres (chamadas de “índios podres”, “caboclos sebosos” etc.) a matriz mais ampla e importante é o categorial caboclo,46 que tem sua origem provável nos expedientes oficiais de nomeação e classificação das populações indígenas do Nordeste brasileiro. Tal classificação serviu fundamentalmente para alocar estas pessoas em espaços físicos e simbólicos e determinar a pertinência administrativa da aplicação de certos estatutos jurídicos que versavam, principalmente, sobre o direito à terra e que autorizava, conforme o estatuto atribuído a uma população, os processos de desterritorialização e extinção de aldeias.46 O termo caboclo fora originalmente criado para assinalar populações de índios que habitavam o litoral e falavam a língua geral. Era um referente dirigido a certos grupos e não a outros, possuindo um sentido de negação tão forte que foi preciso um decreto real (do século XVIII) para impedir que ele obstasse os matrimônios interétnicos entre portugueses e índios no interior da colônia: “[...] prohibo que os ditos meus vassallos casados com indias, ou seus descendentes sejão tratados com o nome de Caboucolos, ou outro semelhante, que possa ser injurioso; e as pessoas de qualquer condicção, ou qualidade, que praticarem o contrário, sendolhes assim legitimamente provado perante os Ouvidores das Comarcas, em que assistirem, serão por sentença destes, sem apellação nem agravo, mandados sahir da dita comarca dentro de hum mez [...]” (Loreto Coutto apud Ferrari, 1956: 304). Para um exame mais detido das variâncias simbólicas do termo caboclo no sistema regional de relações interétnicas do Nordeste veja o artigo de Reesink (1983).

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Classificar, nomear e relocar populações autóctones foram procedimentos oficiais administrativos que não estiveram confinados ao Nordeste, e nem mesmo ao Brasil pré republicano, mas ocorreram largamente alhures nos Estados coloniais. Tais expedientes operavam sempre uma dupla classificação (ainda que uma delas fosse residual), pois ao categorizar determinados grupos mediante a identificação de certas qualidades que supostamente lhes eram próprias, se reificava as unidades sociais alternas, classificadas mediante a identificação de qualidades opostas. É o caso, por exemplo, dos “grupos indígenas assimilados” X as “sociedades tradicionais”, ambas categorias coloniais com grande poder essencializador, pois atribui aos primeiros a marca pesada da aculturação e aos últimos a brava resistência ou o isolamento que teriam lhes permitido se reproduzirem socialmente enquanto tais. Ambos, entretanto, devem ser vistos como produtos coloniais, posto que “as ‘nações’ (indígenas) e as divisões ‘étnicas’ consideradas como précolombianas são na verdade construções coloniais, entidades mestiças que, por uma parte, não estavam ali eternamente e que, por outra, foram objetos de um processo sistemático de etnificação”47 (Boccara, 2001: 9-10).

Uma outra modalidade de classificação oficial de grupos sociais decorre diretamente de políticas públicas que provocam o reordenamento de suas relações com o Estado, criando e recriando unidades étnicas, como o que se deu através da instituição das “rancherias” por órgãos oficiais do Estado norte-americano durante o período de 1906 a 1928. Tais procedimentos oficiais definiriam posteriormente a formação das “tribos desconhecidas” (acknowledged tribes) do estado da Califórnia, mediante sua exclusão histórica do espaço físico das rancherias:

“A aquisição das ‘rancherias’ e o estabelecimento de um novo contexto de relações entre o governo e os grupos nativos californianos que as receberam criou um outro grupo de povos tratados mais ou menos oficialmente como desconhecidos – aumentando o número precedente de povos reconhecidos ligados às antigas reservas. Mas o processo pelo qual as ‘rancherias’ foram criadas simultaneamente especificou os povos que se transformaram em tribos desconhecidas”48 (Field, 1999: 197).

O que se vê neste exemplo distante é a dupla classificação das unidades étnicas; os grupos que foram oficialmente categorizados como índígenas foram aqueles que passaram pelo processo de reordenamento de relações com o Estado norte americano através do 47 “las ‘naciones’ (indígenas) y las divisiones ‘étnicas’ consideradas como precolombianas son en realidad construcciones coloniales, entidades mestizas que, por una parte, no estaban allí eternamente y que, por outra, fueron el objeto de un processo sistemático de etnificación”48 “The purchase of rancherias and the establishment of a new set of relationships between the government and the particular native Californian groups who received them created another group of peoples treated as more or less officially acknowledged – augmenting the previous list of recognized peoples connected to the olde reservations. But the process by which the rancherias were created simultaneously specified the peoples that became unacknowledged tribes”

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confinamento nas rancherias, ou seja, foram sujeitos de uma inclusão física (territorial) e jurídica. Do outro lado, as atuais “tribos desconhecidas” da Califórnia derivam das populações que ficaram fora do alcance do aparato assistencial do Estado norte-americano.49

Retornando aos Kalancó à luz desses exemplos, o que vemos é que tanto o categórico caboclo quanto o novo ajuste que é ser “índio Kalancó”50 são, em parte, definições promovidas por agências históricas oficiais que produzem as classificações étnicas; mas é preciso estar atento para o fato das categorias de identidade não serem elementos de mão única, impostos externamente, pois elas são formadas nos contextos de interações, estejam neles presentes regionais não índios, grupos indígenas aparentados ou representações do Estado brasileiro. Portanto, se as classificações étnicas são produtos arbitrários, o mesmo não deve ser dito das formas de relações interétnicas historicamente estruturadas (que fazem com que “caboclo” e “índio” sejam o mesmo para os Kalancó hoje) e de onde se deve esperar alguma continuidade no tempo.

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49 Este exemplo pode servir como metáfora para a realidade do indigenismo brasileiro que opõe os grupos indígenas reconhecidos e assistidos pelo Estado brasileiro aos grupos “emergentes” ou “remanescentes” que reclamam o acesso à tutela.50 Penso aqui nas definições propostas pelo antigo SPI e ainda em voga subliminarmente para que se reconheça um grupo indígena no Nordeste brasileiro, figurando entre elas o toré como expressão maior de indianidade (Grünewald, 1999).

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Relatório Antropológico de Identificação Étnica Kalancó — Parte III

PARTE III

O SISTEMA RITUAL E OS ENCANTADOS

Nesta terceira parte há uma exposição das atividades rituais conectadas ao culto aos encantados e de propriedades terapêuticas, com descrição do toré, praiá e da mesa de toré. Essas práticas são importantes para se compreender um lastro fundamental para a identidade kalancó que é o universo mágico dos encantos. As viagens provisórias e ocasionais ao Brejo dos Padres, para visitar parentes ou participar da vida ritual pankararú, são também focalizadas como movimentos importantes na definição de uma identidade exclusiva conectada a este campo sócio-cosmológico.

3.1. MUNDO ENCANTADO KALANCÓ

Todo o sistema ritual dos Kalancó se condensa em prestações para com os encantados, ou encantos, que recebem oferendas em troca de curas de enfermidades ou soluções para situações difíceis. Mencionei esses seres, em nota de rodapé na Introdução, como sendo entidades diferentes dos espíritos de pessoas que morreram e tal contraste parece ser uma das qualidades principais que os definem, já que é difícil dizer o que é um encantado sem recorrer a este recurso, o que também é feito pelos Kalancó. Mas pode-se ir mais além. Os encantados são entidades amplamente difundidas nas cosmologias indígenas e afro-indígenas do Nordeste e de porções da região amazônica. No Nordeste indígena, o universo dos encantados é extremamente rico e variado, havendo repertórios comuns desses seres que passam por adaptações e ajustes locais a fim de determinar as variações de significados conforme o grupo ou a rede de trocas rituais. A tendência que se vê hoje é de uma crescente circulação de encantados entre aldeias diferentes, haja vista a ampliação dos circuitos regionais de trocas políticas e de conhecimentos rituais a partir da criação de uma agenda mais regular de assembléias e encontros indígenas entre lideranças dos grupos do Nordeste. Isto faz com que haja repertórios de encantos que são como propriedades rituais de determinadas aldeias, grupos ou mesmo facções ao lado de um amplo conjunto desses seres compartilhado por diversos grupos e sem origem definida.51

51 O estudo de redes de comunicação interétnica no Nordeste indígena pode ser auxiliado pelo mapeamento dos encantos que aparecem nos terreiros de toré e praiá de um conjunto de grupos, haja vista que as permutas de seres sobrenaturais são homólogas ao intercâmbio social entre estas unidades, já que as cosmologias são um produto das interações interétnicas e a elas estão abertas. Isto permite pensarmos os encantados como bons marcadores de diálogos interétnicos e adotá-los, quando possível, como rastreadores históricos de redes regionais de comunicação e trocas simbólicas, estratégia que demanda um esforço etnográfico grande, com o acompanhamento sistemático e a longo prazo de sessões de toré, praiá e mesa de toré, o que, obviamente, não foi possível realizar durante o período de 14 dias em que se desenvolveu meu trabalho de campo com os Kalancó.

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Relatório Antropológico de Identificação Étnica Kalancó — Parte III

Os encantados dos Kalancó são provenientes de lugares desconhecidos ou de aldeias distintas como Brejo dos Padres, Palmeira dos Índios (Xucurú-Kariri) e Águas Belas, PE (Fulni-ô). Alguns de seus nomes são Mestre Luís, Cravo Branco, Andorinha, Beija Flor, Umburana, Sereno, Manoel Brabo, Sultão das Matas, Moderno, Cabeceiro, Juazeiro Verde, Fita Vermelha e Jardim, havendo hierarquia de poderes entre eles em função, principalmente, de competências diferentes para promoverem curas de doenças físicas ou sobrenaturais (agressões provocadas por trabalhos associados às práticas afro-brasileiras – os “xangôs”, “feitiços” ou “mocô”).

As relações entre os encantados e os humanos no Nordeste são um tanto tensas, já que além de promoverem curas e prestarem aconselhamentos de diversas ordens utilizam seus vários poderes para castigar e amedrontar aqueles que estão em dívidas rituais, mudando de forma para atender seus intuitos. Geralmente esses seres apresentam uma ampla variedade de humores e há aqueles notórios pelos perigos que representam, seja quando chegam através do transe de um Mestre, nas aparições por visões ou materialização ou por meio de visitas oníricas a determinadas pessoas. As formas de contatos extra-rituais com os encantos variam de grupo para grupo, mas é certo que eles se mantém próximos aos humanos, habitando por vezes locais conhecidos dentro da aldeia (como é para os Kaimbé, os Kiriri e os Tumbalalá na Bahia) e participando da vida doméstica das pessoas. Mas, uma das invariantes dos encantados é o fato de serem produtos de processos mais ou menos controlados de “encantamento” e não frutos do acaso da morte (daí a diferença com os espíritos).52 Para os Kalancó tal natureza aparece na explicação de como os encantos se formaram o onde eles habitam:

Graciano Gomes – O encanto vive no espaço. O encanto é do espaço. Ele não vive aqui com a gente que aqui não tem o espaço. O espaço é onde eles vivem, onde trabalha. Agora que nós recebe. Vamos supor: eu posso chamar o encanto e o encanto ele pode vir. Eu posso receber ele, posso falar uma coisa outra coisa qualquer. Mas, quer dizer que naquele momento eu recebo aquele encanto eu posso conversar com ele e se ele sair daqui e disser ao senhor de onde ele é o senhor fica sabendo. E se ele não disser, o senhor recebe, mas não vai saber, mais

52 Entre os Tuxá da Bahia a diferença entre encantados – ou gentios, caboquinhos – e espíritos de pessoas mortas parece ser proveniente dos lugares que ambos ocupam no universo mítico desse grupo, já que os encantados são os índios que “participavam do ‘centro da jurema’ mas que já morreram [...] vivem no ‘reino encantado’ e baixam nos cavalos (aparelhos?) durante os trabalhos” (Sampaio-Silva, 1997: 64-65). Ao mesmo tempo afirmam categoricamente que eles são vivos e não são espíritos de mortos, pois são o “reino encantado”, e que são índios de outras aldeias que igualmente realizam trabalhos no centro da jurema (ib.: 65). Arruti (1996) bem observa que, como ao encantados são “índios que descobriram o segredo de se encantar”, eles constituem uma comunidade aberta que pode ser ampliada com novos encantamentos (ib.: 105).

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ou menos, de onde é que ele é [...] Se ele disser ao senhor “sou de tal canto” o senhor fica sabendo, se não disser o senhor não sabe [...]O senhor falou que os encantos moram no espaço. Eles não moram também em um lugar assim como num morro, numa grutinha...Isaura Maria – Eles podem estar lá na grutinha, não é? Agora, ninguém sabe. Podem estar lá na grutinha, podem estar no morro, agora ninguém sabe. O senhor vai aqui caminhando eles vão com o senhor e alguém sabe? [...] Quem sabe o senhor tá conversando e não tem um aí nessas folhinhas espiando o senhor?Pode ser. Alguém vê os encantos?Graciano Gomes – É difícil, é poucos.Isaura Maria – Minha mãe conversava com eles.Graciano Gomes – Ela conversava, mas hoje em dia é difícil.Isaura Maria – Minha mãe conversava com eles, agora esses aí não (os Mestres atuais), mas minha mãe conversava.Ela via, dizia como eram?Isaura Maria – Dizia. Ela conversava mais eles assim, na beira da fogueira, a gente tudo dormindo, a fogueira de noite de São João e ela conversando com eles aí. Eles ensinavam abelha a ela (onde encontrar mel), ensinava [?]. Ensinava tudo bem cedo, ela dizia a painho onde tirar no lugar onde eles ensinou. Eu alcancei dela dizer que conversava mais três.Quem eram, dona Isaura?Isaura Maria – Compadre Sereno, Cravo Branco e Beija Flor. Ela dizia: - "Chegaram tudinho aí, minha filha, de noite e conversei tanto com eles aí". Com umas espadinhas assim.Com espadas?Isaura Maria – Sim. As espadinhas assim escoradas e conversando mais ela.Qual era a aparência deles?Isaura Maria – Eu não posso dizer, né? Ela disse que era que nem uns menininhos assim, que nem uma menina dessa daí (referindo-se a uma garota de uns oito anos).Pequenininhos?Isaura Maria – Sim, pequenininhos assim. Ela disse que eles são bem miudinhos. Não é tão homão, não. É assim miudinho [...] Ela conversava mais eles, eles ensinava uruçu (colméia de abelha) e tudo [...] Aí diziam a ela: - "Só não sei se tem mel porque eu estive lá montado em cima do pau agora. Só não sei se tem mel porque eu não andei dentro do oco". Diziam a ela.Então, eles são como uns meninos?

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Isaura Maria – É, como uns meninos. Agora que eles são encantados. Eles se desencantavam para conversar mais ela.Desencantavam?Isaura Maria – Sim, desencantavam só ela.Desencantavam como?Isaura Maria – Eles desencantavam, que eles são encantados. A coisa encantada anda encantada.Quando está encantada não vê, é invisível?Isaura Maria – Pois é, invisível, aí o senhor não vê.Quando desencanta aí o Mestre consegue ver?Isaura Maria – Às vezes eles vinham trazer um remédio na casa de minha mãe, eles ensinaram um remédio pra eu e vieram trazer, eu me deitei no colo de mãe espiando pra um santo. Eles disseram: - “Hora fulano eu venho trazer um remédio". E eu fiquei assim deitada no colo de mãe com o olho lá no santo. Eu digo: - "Hoje eu vejo qual é esse que vem botar este remédio ali naquele santo". Aí fiquei lá. Aí, eu não sei o que foi que mãe fez e virou minha cabeça assim e disse: - “Espera aí, minha filha, vira a cabeça assim", que ela tava catando piolhos e disse: - "Vira a cabeça assim". Aí tirei a vista de lá e passa uma beijinha flor, "priiii". Aí bateu a asinha assim depressa. "Oh, mãe, aqui passou uma beijinha flor". Quando eu olhei pra lá, olha o remédio que tinha lá. Amarrado com uma palha de licurizeiro. Olha, passou por cima d'eu e eu não vi! Uma beijinha flor. Passou, botou lá quando acabar deu um piado e seguiu. Quando eu olhei tava lá.A senhora chegou a ver o passarinho?Isaura Maria – Vi o passarinho eu vi, a beijinha flor eu vi. Mas não vi quando botaram o remédio lá. Eu vi quando ela vinha saindo.Aí, quando ele (o encanto) desencanta a pessoa pode ver.Isaura Maria – ÉMas não é qualquer um que pode ver.Isaura Maria – Não é qualquer um. Agora o senhor veja nem nós veja. Só via ela. Só via ela.O Mestre é que consegue ver?Isaura Maria – Só ela quem via.Graciano Gomes – É difícil um pra ver isso, é difícil. Só aquele que nasce com aquela...Isaura Maria – O dela foi de nascença. Foi meu Padre Cícero que deu a ela.E o Mestre, quando é forte, consegue se encantar?Graciano Gomes – Não, os daqui não.Nenhum Mestre daqui se encanta?

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Graciano Gomes – NãoIsaura Maria – O Mestre não pode se encantar. Ele (o encanto) diz mesmo assim quando chega, que só queriam achar um aparelho que brincasse com eles três dias e três noites, sem comer e sem beber, pra desencantar eles. Agora, o cabra consiga isso, passar três noites e três dias sem comer e sem beber, só dançando direto pra desencantar eles. Que eles foram encantados num terreiro. Esses que são encantados eles foram encantados num terreiro. Eles tavam brincando no croá; dançaram, dançaram até... quando foram caçar eles, os aparelhos que estavam com os croá (a vestimenta ritual), foram caçar no terreiro só tava os croá. Eles se encantaram e deixaram só o croá.Quer dizer que os encantos eram os Mestres que se encantaram?Isaura Maria – Era, pois é.E aí depois ficaram com essa aparência de menino?Isaura Maria – Foi. Precisou de um trabalho eles estão com a gente.Isso há quanto tempo atrás, muito tempo atrás?Graciano Gomes – Muito tempo, ninguém alcançou.Isaura Maria – Quando eu alcancei de gente era mãe brincando...Eram aqueles caboclos velhos...Graciano Gomes – É, os índios antigos. Que quando nós alcançamos já foi esses índios vivo. Agora, negócio de espírito não é índio. Espírito é outra coisa dessas... coisa ruim, de cabra que morre. Diz eles, porque isso aí eu não conheço. Tem um mau elemento, morre e fica aí o espírito bagunçando.Isaura Maria – O mau elemento é aquele que morre e Deus não salva, fica aí no mundo, atentando.Graciano Gomes – Que esses que trabalha com xangô (candomblé), chama de um e de outro...Isaura Maria – Eles quando baixa na pessoa diz. Chegou uma vez um numa dona e perguntaram, chegou aqui mesmo, que foram fazer o trabalho com ele, o que é que ele andou fazendo que não tinha o que fazer, que andava preocupando o juízo do próximo, que tava no seu canto quieto. O que foi que tinha feito de tão ruim no mundo que tinha ficado aqui atormentando os cristãos. Ele falou que tinha ficado penando, andava assim, por que tinha cortado a orelha de um bicho, de um jegue. Disse que cortou a orelha de um jegue e quando morreu ficou penando. Nosso senhor não quis salvar ele por isso.O encanto é diferente, quer dizer que o encanto não é o espírito de um índio do passado, é um índio que virou encanto?Isaura Maria – Virou encanto, ele não é morto, ele é encantado.Virou encanto no trabalho, não é?

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Isaura Maria – É, virou encanto no trabalho.No tempo antigo, ainda dos índios do brabio?Graciano Gomes – É, nesse tempo antigo [...]

Graciano Gomes (UD. n. 02) e Isaura Maria Santana (UD. n. 29), sítio Januária. 09/05/2002.

Este diálogo foi realizado com filhos de uma famosa Mestra de toré, Da. Santina, uma das pessoas ritualmente mais habilitadas que já existiram entre as famílias da Januária e sítios vinhos. Os dois atuais Mestres kalancó, o pajé Antônio Francisco (UD. n. 52) e Edmilson da Silva (UD n. 18) são, respectivamente, sobrinho e neto de Da. Santina e são como seus substitutos rituais, embora muita coisa tenha sido também aprendida com Mestres pankararú de Brejo dos Padres e acrescida ao repertório legado por ela. Ainda que não tenham licença formal para abrir um trabalho de mesa de toré ou conduzir uma apresentação de praiás em um terreiro, Isaura Maria e Graciano Gomes são grandes conhecedores dos processos terapêuticos que envolvem os encantados e teoricamente acumulam os conhecimentos necessários para a realização dos rituais propiciatórios. O fato de não terem sido eles os herdeiros rituais de sua mãe indica que a transmissão desses conhecimentos não necessita de ritos iniciáticos e nem mesmo da manifestação de dons; antes, é a aplicação e a desenvoltura para esses assuntos que habilitam uma pessoa a ser um Mestre, observando-se também a proximidade genealógica com Mestres antigos (sem pensarmos, contudo, em linhagens de oficiantes rituais) e o livre arbítrio para declinar à herança, como aconteceu com uma outra filha de Da. Santina que, sendo Mestra de toré no tempo em que sua mãe era viva, depois de casada foi instigada pelo marido – um “particular”, ou pessoa de fora da comunidade kalancó – a abandonar as práticas rituais voltadas aos encantados.

No trecho transcrito há alguns elementos capitais para a compreensão do sistema dos encantados e que participam como ingredientes importantes de uma identidade kalancó. Citando alguns teríamos: a) os encantados são Mestres antigos que se encantaram e, assim, são um tipo especial de parentes distantes dos atuais Kalancó; b) eles são vivos, encantados, e não mortos como os espíritos que são associados a uma modalidade ritual antitética que são os cultos afro-brasileiros (ou “xangôs”); c) os processos de encantamento/desencantamento dependem tanto dos encantos quanto dos Mestres que os recebem e d) ver um encanto é um dom legado a um Mestre por uma autoridade ritual superior.

Todos estes aspectos enunciam que a interface entre as naturezas do humano e do sobrenatural é tênue, não havendo hierarquias de planos cosmológicos ou mundos visíveis e sim algo como cooperação e complementaridade, apesar da tensão que é lidar com o sobre-humano. Penso que a introdução da linguagem do parentesco nas relações que os Kalancó mantêm com esses seres pode responder pela cooperação e tensão, algo homólogo aos

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sentimentos que cercam as relações de afinidade entre pessoas, embora se pretenda uma contigüidade linear com os encantados que outrora foram Mestres que se encantaram. Importa também considerar que, enquanto entidades vivas, encantadas, os encantos diferenciam-se dos espíritos de pessoas que realmente morreram e que são próprios de cultos ligados às formas de candomblé, algumas delas muito comuns no sertão do Nordeste e mesclando elementos provenientes das matrizes culturais afro-brasileira e indígena regional. Em linhas gerais, a oposição dos sistemas de cultos indígenas feita pelos índios do Nordeste às práticas de origem afro-brasileira é dirigida por forças valorativas situadas no plano polar do bem e do mal:

Isaura Maria – Esses caboclos aí, esses caboclos da gente, eles diziam à gente que não era pra nós nunca, mas nunca era pra assistir o xangô, que disse que era da lei de Satanás.Quem dizia, os encantados?Os encantados que diziam a nós, os de minha mãe. - “Olhe, meus filhos, vocês nunca assistam uma mesa de xangô, porque o xangô não é de Deus, é de Satanás”. Tem encantado em xangô?Claudino – Tem não, encantado não tem não. Tem espírito ruim...Isaura Maria – Tem é espírito mal, pra chegar e botar feitiço [...] Os encatilhos da gente eles são da parte de Deus, eles não são desta lei. Aí eles não querem que nós assista isso (sessão de candomblé). Porque eles são da parte de Deus. O Mestre Luis dizia na minha mãe que esses outros encantados dela, esses outros que eu dei o nome ao senhor (Cravo Branco, Jardim e Sereno), esses outros conversava com Nosso Senhor, mas ia até na porta. Pra conversar com Nosso Senhor era eles por fora e Ele por dentro. E o Mestre Luís ele conversa com Nosso Senhor no céu mais Ele.

Isaura Maria Santana (UD n. 29) e seu genro Sebastião Claudino (UD n. 11). Januária, 14/05/2002.

Tal antítese é, possivelmente, derivada do impacto ideológico que o catolicismo teve e tem nos sistemas de crença dos índios do Nordeste e dada a prolongada experiência destes povos com a cosmologia cristã e o seu caráter hegemônico frente às outras religiões não européias consideradas pagãs ou de teologia inferior, a caracterização destas doutrinas (sobretudo as afro-brasileiras) como práticas voltadas para o mal reforça e reproduz a crença

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na positividade dos valores levantados pela cosmologia cristã e que chega até os grupos indígenas do Nordeste por meio do catolicismo popular.53

No primeiro trecho anteriormente transcrito, isto parece ser corroborado pelo fato de ter sido Pe. Cícero – um ícone do catolicismo popular em todo o sertão do Nordeste – quem deu a Da. Santina o poder de ver os encantados, delegação possível apenas para um oficiante superior cuja autoridade está respaldada por um sistema simbólico de valores, efeitos e disposições do qual ele é parte, sistema este homólogo ao complexo ritual dos encantados. Ou seja, é o paralelismo, e não a fusão, entre o catolicismo popular e o complexo ritual voltado para os encantos que autoriza as permutas e certas homologias entre santos católicos e os encantados, permissão que aparece como uma das invariantes das variações apresentadas de sistemas mágico-religiosos entre os índios do Nordeste brasileiro. Tal paralelismo produz uma hierarquia geral das forças do sagrado e do sobrenatural que atuam no sistema de crenças dos Kalancó, divisão esta que, aparentemente não estando inscrita em nenhuma forma narrativa sistematizada – como um mito ou uma parábola – é fixada e vivida no e pelo próprio rito de comunicação com os encantados e de promoção de curas:

A senhora acha que os encantados têm a mesma força de um santo?É, porque eles quando estão trabalhando chamam pelos santos. Mas são coisas diferentes, santo é uma coisa e encantados são outra, não é?Encantados é outra coisa, mas eles quando estão cantando eles chamam pela força dos santos.O Mestre Luis é aquele que tem contato direto com Nosso Senhor. Ele tem a mesma força de um Santo?Quer dizer que eles são assim: mais ou menos ele dizia que conversava com Nosso Senhor e se o senhor adoecesse ou eu ou uma pessoa qualquer, ele chegava e conversava com Nosso Senhor e perguntava se aquela pessoa tinha cura. Quer dizer que o senhor adoece ou outro e a doença não tem cura, aí ele vai e conversa com Nosso Senhor e Ele diz que não tem. Fazia o signo de Salomão no chão e se acendesse a luzinha dentro a doença não tinha cura.Então, quem dizia se tinha cura ou não era Nosso Senhor e ele (o encanto Mestre Luiz) transmitia...É verdade.

Isaura Maria Santana (UD n. 29). Sítio Januária, 14/05/2002.

53 Veja, por exemplo, os trabalhos de Souza (1996), Nascimento (1994) e Andrade (2002).

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Vale apresentar de maneira mais detida a história de Da. Santina e seu encontro com Pe. Cícero. Esta importante Mestra teve sua infância repleta de encontros desastrosos com o sobrenatural, com assédios e raptos constantes por parte de espíritos malignos, até que foi salva por Pe. Cícero que a curou e lhe deu a companhia dos encantados:

[...] Porque meu padrinho Cícero foi quem deu esses caboclos a ela (Da. Santina). Essa força encantada foi meu padrinho Cícero que deu a ela [...] Mãe foi pra lá doente, assim mocinha nova com treze anos, pra quinze anos, novinha. Ela foi pra lá doente e quando chegou meu padrinho Cícero rezou nela, já tinha baixado umas coisas ruins nela e até a polícia tinha vindo pra ver se era ela que tava inventando doença. Ela contava aqui, sabe? Minha avó. Disse que se ajuntava polícia e dois policial ela jogava tudo no mato, ela com quinze anos. Jogava tudo no mato [...] Aí levaram ela pra meu padrinho Cícero, meus tios foi quem levaram, que já morreram. Levaram ela, foram de pé, quando chegou ali pegaram ela no caminho e baixaram nela. Pegaram o espírito dela e botaram num buraco fundo, fundo. Ela contava tudo. Pegaram o espírito dela e botaram num buraco fundo, fundo que ela não sabia onde tava não, os bichos maus, que vinha com ela. Ai, tio João ficou aperreado, mais tio Pedro. Aí disse que tomaram ela por [defunta]: - “Compadre, Santina morreu”.Ela chegou a se encontrar com Padre Cícero?Encontrou-se. Aí quando chegaram lá disse que, quando eles chegaram lá tinha uma mulher e a mulher disse: - “Eta que ali vem uma moça com o Cão, uma moça com Satanás”. Ai disse que meu padrinho Cícero disse: - “Minha filha, pelo amor de Deus, não diga uma palavra dessa. Não diga uma palavra dessa que Satanás não pode entrar no corpo de uma moça virgem. Ele não pode colocar no corpo de uma virgem. Ele vem na sobra dela, eles estão na sombra dela. Não é colocar nela que ele não pode, não tem o poder de entrar numa virgem” [...] Era espírito, ruim, espírito mal que encostava nela. Botavam ela dentro da loca de pedra.Ela não era de trabalho (ritual) ainda?Não, não era de trabalho. Ela disse que carregavam ela e botavam dentro de uma loca. E minha avó ficava caçando sem saber onde andava e botavam ela dentro daquela loca.Botavam o espírito dela?Ela mesma, carregavam ela e socavam ela dentro de uma loca. Minha avó ficava caçando e só via ela assim, os olhinhos, e ela lá socada dentro da loca.E ela via os espíritos?Eu não sei, porque ela não me dizia que via. Sei que eles encostavam nela, mas eu acho que não via não.

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Pegavam ela de noite, quando ela estava dormindo ou qualquer hora?De dia, qualquer hora. Quando pensavam que não ela tava doente [...] Aí meu padrinho Cícero, quando ela chegou, disse: - “Tragam ela pra cá”. Ai quando ela chegou lá disse que ele pegou assim e acentou a mão na cabeça dela. Ai disse que rezou na cabeça dela e disse: - “Minha filha, você tá boa de ir pra onde tá Nosso Senhor, enquanto você é virgem”. Aí, disse que tio Pedro disse assim: - “Oh, meu padrinho, nós não queremos que ela vá agora”. Aí ele disse assim: - “Pois é, minha filha, eu vou fazer sua cura”. Disse que ele deu remédio a ela, aí quando ela saiu teve três encantinhos que ele deu.Padre Cícero?Sim, era pra andar na companhia dela. Até quando ela fosse viva era pra andar na companhia dela.Quem eram os encantados?Cravo Branco, Jardim e Sereno [...]

Isaura Maria Santana (UD. n. 29). Sítio Januária, 14/05/2002.

No item a seguir, abordo algumas matrizes rituais existentes entre os Kalancó como decorrentes dos processos de transmissão e desenvolvimento do conhecimento ritual, sobretudo a partir da intensificação da adoção de práticas culturais originárias de Brejo dos Padres na década de oitenta do século passado. As distinções estão radicas nas técnicas e procedimentos rituais voltados para a promoção de curas e não no conjunto dos fundamentos e valores que os sustentam.

3.2. DAR E RECEBER: PROCESSOS PROPICIATÓRIOS DE CURA

A capacidade singular de Da. Santina para se relacionar com os encantados e promover curas não foi proveniente de uma longa aprendizagem junto a um Mestre. Ela se notabiliza pela transmissão extraordinária de um dom por um oficiante que, não pertencendo diretamente ao universo do toré, tem plena autoridade sobre os encantados porque é um mediador superior entre eles e Nosso Senhor e que estava muito próximo das pessoas. Creio que a compreensão deste excepcional paralelismo e interseção entre catolicismo popular e o sistema dos encantados seja importante para se perceber os processos propiciatórios de cura entre os Kalancó.

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Não há tratamento ritual sem a presença dos encantados, seja para resolver doenças físicas ou agressões provocadas por trabalhos opostos vinculados a algum tipo de prática afro-indígena ou afro-brasileira.54 Entre as doenças comuns para as quais se buscava as curas através de compostos medicinais dados pelos encantos estavam diarréia, febre e gripes persistentes, além de ataques de loucura provocados por agressão ritual em que um espírito negativo era enviado para molestar um desafeto de seu emissor. A terapêutica consiste em se oferecer fumo, garapa – o sumo da cana-de-açúcar ou mistura de água com açúcar – e rezas durante as sessões abertas com a finalidade de criar a comunicação com os encantados, mas parece haver uma diferença significativa entre os expedientes adotados hoje em dia pelos Mestres e aqueles praticados por Da. Santina, notadamente no que concerne às técnicas de consulta aos encantados sobre as causas de doenças e possibilidades de cura. Numa sessão organizada por ela, os encantados eram consultados e faziam às vezes de mediadores entre os Mestres e forças superiores do Cristianismo capazes de decidirem sobre a vida e a morte de uma pessoa, como o próprio Nosso Senhor. Nem sempre as sessões continham esta gravidade e o normal era que fossem realizadas para curar doenças rotineiras que atacavam as crianças e provocavam fadigas nos adultos ou, simplesmente, manter os laços com o sobrenatural através da oferta de garapa e fumaça seguida da dança do toré. De um modo ou de outro a presença dos encantados estava garantida porque eles permanecem de prontidão no ambiente assim que começa uma sessão e se manifestam através dos Mestres quando suas linhas (ou tonantes) são cantadas ao som do maracá. Este é o sinal para que eles comparem diante da audiência.55

Conforme a finalidade da reunião, seguiam-se as prescrições de banhos com ervas nativas e a ingestão regular, se preciso, de compostos (as “garrafadas”) elaborados pelos próprios Mestres a partir da combinação de plantas, cascas de árvores ou extratos de plantas. As fórmulas das garrafadas podiam conter vinho branco ou aguardente – ingredientes que os encantados solicitavam ao enfermo para que o Mestre produzisse a mistura – adicionados a um extrato de várias ervas e cascas de árvores obtido por imersão desses itens em água durante alguns dias. Não se utilizava a jurema56 na forma do ajucá durante as sessões de cura, ausência que permanece hoje nos rituais kalancó devido aos perigos de se lidar com as forças que estão encerradas nesta planta. Bastante utilizada nas aldeias indígenas do Nordeste e

54 Entre os Pankararú, os processos terapêuticos para doenças físicas são realizados também por benzedores e rezadeiras que igualmente recorrem aos encantados, principais elementos propiciatórios das curas (Athias, 2002). O mesmo ocorre para os Kalancó, mas os dados etnográficos que recolhi entre eles não são suficientes para cobrir satisfatoriamente esse assunto, não informando sobre as especializações, competências médicas e distinções entre Mestres, rezadores e benzedores, nem sobre a regularidade com que eles são procurados hoje pelas famílias kalancó, motivo pelo qual me limito aos Mestres.55 Para os Tumbalalá do Norte da Bahia, a linha de chegada de um encanto tem de ser diferente da linha cantada para fazê-lo deixar o terreiro ou a mesa de toré. Quando um encanto chega e sai na mesma linha diz-se que isto configura um “ponto” de trabalho de “xangô” ou um sinal de inexperiência do oficiante que não sabe formar as “correntes” do toré ou a seqüência correta de comunicação com os encantados.56 Pithecolobium diversifolium; Mimosa artemisiana. Arbusto de porte médio típico da caatinga e de cuja entrecasca da raiz grupos indígenas da região produzem uma bebida, chamada ajucá ou vinho da jurema, com propriedades psicoativas, sabor bastante amargo e coloração vermelha escura.

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associada fortemente a um simbolismo de alteridade indígena – embora esteja também presente, em outras variedades fitológicas, nos candomblés da região – à jurema se reserva um culto semelhante aquele dirigido aos encantados, o que permite fazer certas equivalências simbólicas entre ambos. A sua falta entre os kalancó pode sugerir que a posição de “ponta de rama” do grupo, ou o fato de ser um desdobro dos Pankararú, é refletida no aprendizado ritual que os Mestres kalancó de hoje precisam completar para dominar todos os “segredos” que cercam o universo indígena Pankararú e o seu próprio, já que, como me disse o pajé Antônio Francisco, entrar neste domínio sem a devida competência para lidar com os perigos que nele estão representa colocar em risco toda a aldeia que fica vulnerável às forças inomináveis e originárias residentes na jurema.

A mesa realizada por Da. Santina se desenvolvia da seguinte maneira, conforme o relato de uma filha sua que participava das atividades rituais de sua mãe.

Botava um paninho, aí botava um dente de alho aqui, outro aqui, aqui e outro aqui...Nas pontas do pano.É, aí botava o fumo no meio da mesa. Às vezes usava aquele alecrim que dá no mato (chamado em alguns lugares de alecrim de caboclo), raspava o pau e quando acabar braiava (misturava) com o fumo, pra ficar cheiroso.Tinha o cachimbo de madeira (chamado lá de poí)?Tinha, mas fazia de barro. Aí fazia aqueles cachimbinhos de barro.O cachimbo também ficava na mesa?Ficava.Quatro também, como o alho?Nesse tempo só era dois cachimbos.Só o dela e de Antônio...Era. Aí ela fumava, dava pra ele e quem estivesse ali cada um dava uma rodada e aí começava a mesa.Tinha o signo de Salomão na mesa?Tinha. Ela já fazia no pano mesmo, já tinha o signo de Salomão [...]E a garapa, ficava à parte?Era, a garapa botava assim no cantinho. Depois que eles (os encantados) chegavam era que tomavam, mas antes ninguém podia mexer não.Tinha Cravo Branco, Sereno, Beija Flor... aí tinha vezes que quando começa um trabalho era com um, aí quando ia começar aquele trabalho meu irmão chamava os dele também [...]

Maria das Dores Conceição (UD n. 57).Lajedo do Couro, 19/05/2002.

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A mesa realizada hoje apresenta algumas variações discretas e acredito que devemos buscar os motivos para elas considerando a conjugação entre conhecimento ritual (cujo conjunto constitui, grosso modo, a tradição médica kalancó) e seus contextos de realização (as cerimônias de mesa de toré ou sessões de cura) para então entendermos as variações como decorrentes e próprias do processo de transmissão cultural (Barth, 1987). Dito de outra forma, um significado cultural relativo aos procedimentos rituais é alvo de processos através do quais se dá a difusão, dinâmica e variação do conhecimento, pois ele (o significado cultural)

“não está embutido na forma de uma expressão apenas e não se torna transparente pelas análises mais sofisticadas desta forma; ele só pode ser interpretado quando está situado numa organização social e numa práxis de comunicação [...] As análises perseguidas aqui têm enfatizado o lugar dos elementos no contexto de situação social, justaposição e práxis mais que o lugar do elemento no contexto de um sistema lógico abstrato” (ib.: 85).57

Seguindo as pistas de Barth, é preciso situar as variações de performance e de significados dos elementos culturais emblemáticos nos rituais propiciatórios kalancó em seus respectivos contextos de comunicação em que a dinâmica do conhecimento é dada, inclusive, pela interação entre os oficiantes e a audiência dos rituais. Desta forma é possível se pensar em cosmologias como um corpus em processo contínuo, um conhecimento vivo, anulando a noção de um conjunto de idéias abstratas guardadas nas representações coletivas (ib.: 84). Tal percepção revela a necessidade de considerar o papel dos oficiantes na transformação e transmissão desse conhecimento (o que também compreendemos como “a tradição”) durante os ritos, levando em conta suas biografias e trajetórias iniciáticas. Vale relembrar, então – de forma breve – os processos de vida que levaram Da. Santina e Antônio Francisco à posição de Mestres, no passado e hoje respectivamente.

Já conhecemos que foi a partir do encontro com Pe. Cícero que Da. Santina se tornou uma Mestra de toré e teve ao seu alcance a comunicação com os encantados e a habilitação para os desempenhos rituais de cura, já que antes ela não era de trabalhos. Tudo isto foi devido ao fato dela estar sendo assediada por espíritos ruins e sua transformação em Mestra de toré se dá mediante a intervenção de um poderoso oficiante que reverte tal situação dando-lhe a companhia de três encantados. Há na história uma sobrecarga de predestinação. Com Antônio Francisco o processo foi sendo maturado a partir de suas inúmeras viagens ao aldeamento de Brejo dos Padres e, possivelmente, com o aprendizado adquirido com os oficiantes da Januária, dentre eles a própria Da. Santina e Mestre Narciso, índio pankararú morador do Brejo dos Padres, parente de pessoas da Januária e dono de um terreiro no Brejo. 57 “Meaning is not embedded in the form of an expression alone, and does not become transparent by the most elegant analysis of that form; it can only be interpreted when it is located in a social organization and a praxis of communication [...] The analyses pursued here have emphasized the place of elements in the context of social situation, juxtaposition, and praxis more than the place of the element in the context of an abstract logical system”.

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Foi a partir da iniciativa do pajé Antônio Francisco, como vimos em diálogos anteriores, que o praiá, o toré e a mesa de toré atuais foram introduzidos entre as famílias da Januária que então conheciam sessões de consulta e cura e o toré, este último mais como uma modalidade de diversão.58

O que é mais antigo aqui, seu Zé, a mesa ou o praiá?É uma coisa só. Porque Antônio Francisco (o pajé) é filho natural daqui, se criou aqui desde nascença, mas ele vivia mais no Brejo do que aqui. Aí ele trouxe o praiá e trouxe a mesa também [...]O praiá chegou aqui nas eras de 80 (1980), a mesa também chegou junto com o praiá nessa era?Foi. Veio os dois juntos.Mas antes disso se fazia o que aqui da cultura indígena?O que nós fazia... era caboclo, mas a gente não sabia o que era cultura não. Estabeleceu essa cultura do reconhecimento de índio pra cá. Mas o que nós conhecia só era, quando precisava, "vamos dar uma garapa59 aos caboclo, pra dançar um toré". Aí, nós levava a doçura e fazia, na casa da Mestre velha (Da. Santina, mãe de Isaura Maria – UD. n. 29).Era sempre lá na casa dela?Era, antigamente só era lá. Quando a gente chamava pra vir pra casa da gente ela vinha também. Aí só era o que nós celebrava. Com oito ou quinze dias "vamos dar uma garapada aos caboclo". Aí nós dava essa garapada e dançava nosso toré. Era o toré, que o toré, como se compreende hoje em dia, no conhecimento, é quando tem praiá e antigamente quando nós brincava era o toré. Aí ficou, mas outra coisa não tinha não senhor. Era a garapada para os caboclos pra nós dançar um toré hoje. Só era caboclo, caboclo, caboclo mesmo mas não tinha indicação nenhuma, é assim, assim e a gente cantava a noite todinha quando era pra nós dançar toré. A palestra era só chamar os "encantiles" e receber a garapa. A outra palestra estabelecia não senhor.Mas chamava os encantados...É, chamava os encantados, aí recebia a garapada e quando acabar ia dançar o toré. Chamava toré, viu? [...]Então, da cultura indígena as pessoas conheciam aqui os encantados e a garapada?

58 É muito provável que as sessões realizadas por Da. Santina fossem um tipo de mesa de toré praticada entre os Pankararú de Brejo dos Padres, com o detalhe especial de haver bordado na toalha sobre a qual se colocavam os itens que compunham a cerimônia (fumo, maracá, cruzeiros, velas e outros apetrechos), ou desenho no chão, o signo de Salomão - o hexagrama ou Estrela de Davi – de onde surgia a luz indicando se havia ou não possibilidade de curar o enfermo consulente.59 Ou “garapada”, “doçura”, uma mistura de açúcar e água, ou água e rapadura. Também é o sumo da cana de açúcar, uma oferenda menos comum atualmente devido à dificuldade com o plantio da cana.

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Era.Porque o toré como tem hoje, o praiá e a mesa foi o senhor Antônio pajé que trouxe lá de Brejo dos Padres?Foi, sim senhor. No tempo que nós tinha aquela mestra velha ali não existia nada disso.

José Antônio Alexandre (UD n. 01). Sítio Januária, 16/05/2002.

Não importa aqui explorar demasiadamente o conteúdo das diferenças entre as sessões de mesa de toré realizadas no passado e hoje, mesmo porque ela não é substantiva e sua utilidade aqui é ser indicativa dos processos de transmissão do conhecimento ritual. É preciso ter em conta que elas, assim como as diferenças de versões para eventos, são interpretações de símbolos e que não são unívocas porque os sujeitos não são cópias uns dos outros e nem as representações coletivas são um conjunto superior de idéias que se impõe e se reproduzem nos indivíduos. O que chamamos de cultura está muito longe da imagem de um grande arquivo de onde o sujeito comum retira das gavetas fichas correspondentes a determinados assuntos, utiliza e em seguida as guarda, ao passo que o sujeito incomum (os grandes oficiantes, ou os “guardiões da cultura”) decora todas elas. Assim, é preciso considerar que todo coletivo é um conjunto heterogêneo, difuso e fluido, organizado segundo contextos de interação social, e as diferenças internas de interpretações são uma propriedade do conjunto e não um contra-senso. Acho que isto fica evidenciado quando olhamos para as histórias de iniciação e desenvolvimento ritual de Da. Santina e Antônio Francisco e vemos como suas experiências de vida repercutem em suas práticas rituais.

3.3. AS VARIANTES RITUAIS DOS PRAIÁS

Um praiá é uma espécie de encantado que se manifesta em um dançarino que traja uma vestimenta ritual feita da fibra do croá (chamada de vestuário). Tornar-se um dançarino ou moço de praiá é um processo interdito às mulheres e exige dedicação e restrições que devem ser observadas sob pena de se perder a posição, como não manter relações sexuais três dias antes das apresentações, se banhar regularmente com ervas aromáticas, não beber em demasia e zelar pelo vestuário em sua casa, defumando-o periodicamente. Atualmente são oito vestuários produzidos pelos próprios moços e pelo pajé, sendo que cada uma delas possui um encantado que é quem verdadeiramente o utiliza para apresentar-se em ocasiões especiais, sobretudo no final do ano e no sábado de Aleluia. Outras apresentações são circunstanciais. Aparentemente está ausente entre os Kalancó todo o processo de transmissão das sementes aos pais de praiás presente entre os Pankararú (Arruti, 1996; Pinto, 1953 e 1958) e os moços

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atuais parece terem sido escolhidos pelo pajé Antônio Francisco quando ele trouxe a novidade de Brejo dos Padres na última década de 80.60 De modo bastante sintético, a transmissão das sementes de praiá formaliza um pedido feito por um encantado a alguém para que um praiá seja levantado em sua intenção através da confecção do vestuário de croá, podendo haver ou não a indicação de seu moço que normalmente é um parente próximo do receptor da semente, um filho ou um sobrinho. Quem recebe a semente torna-se o zelador dela e o “pai” do praiá (“mãe” no caso das mulheres) e adquire certas faculdades especiais, como poder para fazer adivinhações, promover curas ou feitiços (Arruti, 1996: 105). Mas expirado o prazo para a confecção do vestuário, o zelador deve transferir a responsabilidade a alguém qualificado ou sofrerá castigos dos encantados.

Um vestuário é todo feito da fibra do croá e composto de duas partes maiores, um saiote e uma máscara cônica grandes, e os adornos, um penacho na parte superior da máscara; uma rodela de longas penas de peru unidas por um disco e presas atrás e no alto da máscara e um pano retangular de cor – contendo três cruzes bordadas e dispostas triangularmente – preso às costas do dançador, logo abaixo da rodela de penas (fotos 15 e 16).61 Os vestuários recebem também algumas listras de tintas cruzadas que são pintadas diretamente no croá e, juntamente com os tecidos coloridos atrás, são o que diferenciam um dos outros. Embora se conheça quem dentro da comunidade é moço de praiá, há um segredo sobre qual é o seu vestuário, de modo a dificultar a identificação particular de um moço durante uma apresentação no terreiro. Este cuidado faz com que os moços vistam seus vestuários em um local reservado próximo ao terreiro, longe da presença da audiência, normalmente denominado poró e formado por um cercado circular de palha de licurizeiro. Acompanha ainda a performance do praiá uma gaita feita de bambu ou um pedaço de cano e o maracá (instrumento essencial que marca o ritmo da dança) tocados pelo moço que incorpora o praiá dono do vestuário que ele usa.

Presenciei a dança dos praiás no dia 16/05/2002 em um final de tarde no terreiro do Lajedo do Couro, de aproximadamente 400m2, próximo à casa de Mestre Edmilson. Havia 10 praiás (faltavam ainda 2) que dançavam dando rodopios e formando uma longa fila, mantendo uma distância de 6 a 8 metros um do outro. Por vezes a coreografia muda e forma-se um semi círculo de pares de dançadores que, mantendo esta composição, convergem para o pajé Antônio Francisco que fica posicionado em um ponto da lateral do terreiro puxando algumas linhas que são acompanhadas por urros e gritos dos praiás (fotos 1 a 6). Toda a apresentação durou cerca de 45’ e foi seguida da mesa.

60 Não posso ser categórico quanto a isto, pois não abordei o assunto das sementes de praiá com nenhum dos dois Mestres nem conversei diretamente sobre isto com os “moços”. Minhas inferências derivam do fato de elas não terem aparecido durante as entrevistas sobre os processos de formação dos dançadores e de ser a responsabilidade e altivez moral do candidato a moço de praiá o requisito principal para assumir a função. 61 Estes elementos que compõem o vestuário são exatamente os mesmos que Pinto (1953) identificou entre os praiás Pankararú de Brejo dos Padres.

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A oferta de garapa aos encantados é realizada normalmente aos sábados, domingos e terças-feiras. Sexta e quarta são dias inapropriados para esse serviço. Uma sessão de mesa começa com a preparação da garapa por um dos oficiantes mestres, Edmilson da Silva ou o pajé Antônio Francisco. O local onde se realiza a sessão, sempre fechado, não é definido e depende de quem está patrocinando a mesa arcando com as expensas com o açúcar, fumo, velas e biscoitos que serão oferecidos aos encantados e distribuídos à audiência durante o toré. A sessão que assisti, por exemplo, foi patrocinada por José Antônio dos Santos (UD. n. 01) e realizada na casa de seu genro e Mestre, Edmilson da Silva (UD. n. 18) após a apresentação dos praiás no terreiro. A abertura começou por volta de 20:00. Antes a garapa foi “encruzada” com fumaça do guia pelo dono da casa e batizada pelo maracá. Todo o ritual durou por volta de 45’ e não houve consultas aos encantados sobre fórmulas medicinais, já que não havia sido reparado especialmente para aquele fim.

Sobre o chão da sala da casa apinhada de gente se pôs duas túnicas (os panos que vão atrás dos vestuários) cruzadas com 1 guia (ou poí, o cachimbo de barro ou madeira) em cada lado, um dente de alho por vértice da túnica inferior, algum fumo disposto em montículos e um pouco de alfazema nativa numa porção colocada ao centro. Tudo buscando uma certa simetria que era desfeita à medida que a sessão de desenvolvia e os ingredientes eram utilizados. 4 pessoas participaram como oficiantes, inicialmente sentados ao redor das túnicas e adotando um dos maracás colocados sobre elas. Segue-se uma longa rodada de fumo entre estes oficiantes que compartilham os quatro guias simultaneamente e em silêncio, ora defumando seus maracás, ora apenas se concentrando nas tragadas e nas lufadas de fumaça. Este parece ser o primeiro momento do ofertório, ao passo que o fumo também serve para proteger o corpo do oficiante dos espíritos indesejáveis que queiram aparecer durante a sessão a fim de provocar desordem. Tem início, então, a cantoria dos tonantes formados apenas por melodia (sem uma letra propriamente) e em seguida as possessões dos oficiantes, já de pé, entremeadas de assobios e silvos provocados pelos encantados que vão chegando, um de cada vez. Normalmente a presença dos encantos na sessão de mesa é notada pelos sinais do transe e pelas saudações e louvores que eles fazem aos santos, Nossa Senhora e Jesus Cristo, ao mesmo tempo em que prosseguem, em ritmo cada vez mais frenético, a cantoria das linhas e a percussão com os maracás. Na ocasião desta mesa todos os oficiantes, entre eles os dois Mestres kalancó, manifestaram encantados, além de um quinto comparte, uma liderança do grupo vizinho Koiupanká que visitava os parentes e assumiu posição no ritual. Não houve, como eu disse, consultas aos encantados por parte da audiência. Após isto, os elementos sobre as túnicas estendidas no chão deram lugar a cinco pratos de bolachas em formação de cruz, um pouco de fumo, alguns poís e a garapa pronta e encruzada, uma composição na forma de um altar de oferendas aos encantados que participaram da sessão e aos outros que estiveram presentes, mas não se manifestaram (fotos 7 e 8) Encerrada a sessão da mesa e após a oferta ter sido feita aos encantados houve a distribuição das

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bolachas e da garapa, no lado de fora da casa, a todas as pessoas presentes que organizaram uma fila encabeçada pelas crianças menores.

A repartição desses itens ocorre também durante um toré. Chamado de “brincadeira” e “divertimento” pelos kalancó, o toré tem menos autoridade ritual que a mesa, mas não pode ser destacado tão somente como uma atividade lúdica ou de integração social para o grupo, haja vista que a distribuição dos biscoitos e da garapa à audiência que dele participa após a oferenda inicial aos encantados pode ser compreendida como um contra dom dos próprios encantos. O patrocinador do toré, um membro do grupo, provê a festa com os ingredientes necessários; a distribuição é realizada pelos Mestres e seus ajudantes e a licença para faze-lo vem dos encantados que são os verdadeiros “donos” da garapa e dos biscoitos. Ao entrarem no espaço ritual do toré, o que é oferecido à audiência é proveniente dos “donos da casa”, aqueles a quem pertence o domínio do espaço do sobrenatural e cabe aos encantados o fardo simbólico de retribuir o dom recebido na mesa.62 Se a garapa e os biscoitos estão ali para o deleite dos presentes – aqueles que realmente comem e bebem – o efeito simbólico da distribuição deve reforçar vínculos de reciprocidade que começam com a mesa (o trabalho mais forte e direcionado onde não há distribuição das oferendas em seu espaço) e terminam com o toré pela obrigação de retribuição da parte dos encantados. Acredito que há uma complementaridade entre o toré e a mesa que permite pensar em um ciclo de reciprocidade entre os homens e os encantados onde se reforçam as alianças e, ao final, ninguém fica devendo.63

O toré dos Kalancó difere daquele realizado entre alguns grupos do Nordeste brasileiro, não apenas pela ausência da bebida da jurema, mas pela sua coreografia e processos. A reunião inicia por volta das 20:00 e junta mais gente que a sessão de mesa que, embora não seja privativa como um particular dos Tumbalalá, Truká ou Tuxá, exige maior concentração por parte dos Mestres para que a comunicação com os encantados possa ser estabelecida. A coreografia coletiva do toré kalancó é um tanto descoordenada, em parte devido à multidão que se apinha no terreiro para dançar e também por causa das dificuldades em executar a dança. Esta é feita aos pares, com os dançadores dispostos lado a lado e unidos pelos braços executando passos repetitivos de batida do pé direito no chão, seguido do esquerdo, alternando alguns rodopios. Forma-se uma grande espiral com esta composição que a muito custo é mantida por algum tempo, tendo de ser refeita tempos em tempos pelo puxador (que à ocasião em que assisti era o pajé Antônio Francisco) que vai à frente entoando as linhas. Seu canto é repetido pelos demais e apenas ele (o puxador do toré) e algumas poucas pessoas portam o maracá. Ao contrário do praiá, não há para o toré uma vestimenta ritual utilizada pelos

62 Recolhi alguns relatos que corroboram a versão de que o toré era comumente antecedido por um trabalho reservado, talvez tipo uma mesa. Não sei desta regularidade no passado e nem hoje, já que pude observar o toré em duas ocasiões (sendo uma pelo dia, uma demonstração improvisada a meu pedido) e a mesa em uma apenas.63 É instigante a utilização da garapa - uma bebida não fermentada e doce - como oferenda ritual e a tentação de pensa-la como um “pacificador” dos encantados pode corroborar a noção de que se busca o apaziguamento e a reciprocidade com estes seres mediante o dar e receber.

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dançadores, a não ser em ocasiões especiais de apresentações públicas em que homens e mulheres vestem saias feitas da fibra do croá ou da palha do licurizeiro. Os pares são livres, mas segue-se a conveniência da compatibilidade das estaturas dos parceiros, dançando mais comumente criança com criança e adultos com adultos. Além disso, pares formados por mulheres adultas, mulheres jovens e homens jovens são comuns, mas inexistentes entre homens adultos.64

As linhas entoadas possuem estrofes curtas e repetitivas, evocando santos, caboclos, encantados e situações simples. Algumas delas foram registradas durante a apresentação do toré:

1Vamos, vamos meus filhinhosVamos, vamos trabalharSó pra ver se nós alcançaA fulô do Velho Ká

Só pra ver se nós alcançaA fulô do Velho KáHea, heô, hê, hea, heaHea, heô, hê, heohá.(linha de abertura)

2Caboclo firma seu pontoNa pontinha do cipóCaboclo firma seu ponto Na pontinha do cipó

É meia noite na luaÉ meio dia no sol 3Vamos minha genteUma noite não é nadaVamos minha genteUma noite não é nadaE quem chegou pros KalancóFoi no romper da madrugadaOi, vamos ver se nós acabaO resto da empeleitada

64 Esses dados foram registrados do toré realizado em frente à casa de Mestre Edmilson no dia 11/05/2002.

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Hei, hoa, hei, oh, háEhô, ehá, ehô, há, há 4Ah, he, ãháOh, hô, hô, háO caminho desta aldeiaO caminho desta aldeiaEu mandei foi ladrilharFoi com ouro e com platinaPara os encantos andar 5Papagaio verde-amareloQue cantou [no chão da mata]Eh, hô, ãhá, eh, hô, ãháEh, hô, ãhá, eh, hô, há há 6Mas eu vi, eu vi cantarA sereia do marEu vi, eu vi cantarA sereia do mar 7É Deus no céu E os índios na terraÉ Deus no céu E os índios na terra

Vamos ver quem pode maisÉ Deus no céu

Após algum tempo há uma interrupção e a garapa e os biscoitos são servidos para a platéia, observando-se uma fila iniciada por crianças, seguidas pelos jovens e adultos. Como acontece na mesa, a garapa do toré é igualmente “encruzada” com fumaça e batizada com maracá por um dos Mestres antes de começar o folguedo. Após terminar a distribuição retoma-se a dança por algum tempo até que fiquem alguns pares se revezando no terreiro que a essa altura é comandado por algum ajudante do pajé. Tudo dura cerca de 3 horas, mas há várias noticiais de torés que foram terminar próximo ao alvorecer após serem consumidos algumas dezenas de litros de garapa. Já vimos como era difícil se manter um toré antigamente na

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Januária sem que os vizinhos não-índios viessem molestar os caboclos e ameaçá-los para que suspendessem o folguedo. Entretanto, esses constrangimentos freqüentes não impediram que os torés e as sessões reservadas de cura fossem realizados sob sigilo, mesmo porque havia uns poucos vizinhos influentes de Água Branca que apreciavam os festejos dos caboclos e isso certamente podia servir-lhes como uma vantagem contra aqueles que os ameaçavam. Também há o fato de que as ameaças externas ao toré punham em evidência a contraposição aos encantados e a possibilidade de retaliações da parte desses como uma forma de autodefesa ritual dos caboclos, já que essa a principal artilharia simbólica que possuíam.

Aconteceu alguma vez de, no meio da brincadeira, aparecer algum desses (vizinhos) e vir pra querer acabar com o toré?Já, chegou um uma vez e veio chatear. E era uma pessoa quase... só não era ele da família, mas a mulher dele era. Ele veio pra’i (Januária) e a casa de minha mãe era bem ali e tinha o terreiro lá (hoje uma roça). Ele chegou e ela (Maria das Dores - UD n. 57 -irmã de Isaura Maria) tava se arrumando, os outros brincando, Antônio meu irmão, minha mãe tava tudo brincando e ela tava dentro de casa se ajeitando pra sair. Ele chegou e entrou, o nome dela é Dora. Ai disse: - “Dôra, já tá pronta pra nós dançar o samba?” Ai ela olhou pra ele e disse assim: - “Você veio dançar samba ou você veio pra assistir a brincadeira, o toré, ou foi pra assistir samba?”. Ele disse: - “Eu vim pra nós dançar o samba, tô aqui pra nós dançar o samba!”. Ela disse: - “Saia pra fora, que eu saio já pra nós dançar o samba”. Aí ele ficou, foi lá pra fora e ficou dizendo: - “Dora, venha, vamos dançar o samba, Dora”. Aí ela pegou o maracá e saiu e pegou no braço dele e disse: - “Vamos dançar o samba” e saiu dançando mais ele. Os Mestres cantando e ela saiu dançando mais ele aí chegou Manoel Brabo nela. Chegou Manoel Brabo nela e deu uns três esturros aí deu aquele salto assim pra cima, pegado no braço dele e aí afrouxou. Quando afrouxou ele aí caiu e ela aí pulou por cima dele assim, deu um pulo pra cá e outro pulo pra cá e quando acabar saiu dançando e ele se alevantou e seguiu nesse mundo aí [...] Ele seguiu nesse mundo aí, a casa dele era lá pra acolá daquelas casas e a mulher dele tinha ficado em casa. Ela disse que viu passar aquela pessoa só gritando, gritando, nú, ele arrancou a roupa e ficou nú, despido e andando aí dentro da macambira, do quipá, croá, cansanção ...De noite ou de dia?De noite! A noite todinha gritando, arriba e abaixo dentro da caatinga. E eles aqui brincando até perto do dia amanhecer. Aqui quando eles se assuspenderam (terminaram o toré) foi que foram assuspender ele lá também. Mas ele andou a noite todinha.

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Relatório Antropológico de Identificação Étnica Kalancó — Parte III

Isaura Maria Santana (UD. n. 29). Sítio Januária, 14/05/2002.

Os encantados tinham e têm seus ardis e as agressões dirigidas contra eles não passavam incólumes e eram revidadas com roubos transitórios de espíritos ou da razão dos oponentes, mostrando que era através de suas alianças com forças do sobrenatural que os caboclos amenizavam as desventuras de suas relações interétnicas. Tais atitudes sugerem uma reação sistemática por parte dos caboclos às violências que lhes eram dirigidas e uma postura contrária ao imobilismo e à aceitação pacífica da estigmatização, mas não são suficientes para se falar em ações deliberadas de resistência, haja vista que para isto seria necessário supor um escopo ideológico que não estava disponível naquele momento e que só viria a surgir com a emergência dos emblemas de uma identidade kalancó. Há, de fato, uma resistência no plano simbólico e das lutas simbólicas que permite fazer com que o revide às ações de estigmatização fosse transposto para o domínio do sobrenatural, local onde os caboclos poderiam ter alguma vantagem ao acionar suas relações com os encantados.

Além do praiá e da mesa atual introduzidos entre os Kalancó há cerca de 20 anos, recentemente tem havido a realização de uma outra mobilização voltada aos encantados e que nas aldeias Pankararú e Geripankó é conhecida como Menino do Rancho. Trata-se de uma prática que, embora seja cercada pelo divertimento e distribuição de comida e garapa a todos que dela participam, serve como matriz de produção de moços de praiá. Pinto (1958) caracteriza o Menino do Rancho como um ritual de iniciação que produz os interlocutores entre os encantados e os índios, já que os meninos são preparados pela transmissão de conhecimentos guardados por uma sociedade hermética que é aquela constituída pelos praiás:

“O rito do ‘Menino do Rancho’ destina-se a iniciar as crianças nos mistérios da sociedade dos praiás, ou melhor, a torna-los os intermediários entre esses protetores mágicos da aldeia e as demais pessoas do grupo social. Os praiás formam uma espécie de sociedade secreta e, quando se encontram no poró, devem evitar o mais possível o contato das pessoas estranhas. As crianças iniciadas, encarregando-se de fornecer-lhes água, fogo, fumo, etc., estão proibidas de revelar os segredos religiosos, sob pena de serem obrigadas a dormir em catres forrados de cansanção. Para a festa do ‘Menino do Rancho’ constrói-se, antes de tudo, a oca e nela põe-se um menino de cerca de doze anos. O catecúmeno é, então, enfeitado com um capacete de ouricuri, pintando-se-lhe o corpo de tauá-branco; a tiracolor, leva ele um pedaço de tabaco em rolo. Em torno do mesmo, postam-se os guardas e padrinhos, armados de cacetetes. Começa, em seguida, a cerimônia que consiste em uma luta entre os praiás e os padrinhos pela posse da criança; a luta termina com a destruição do rancho e a vitória dos sacerdotes, os

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quais cantando e dançando, conduzem consigo o futuro praiazinho até apresença de outra criança do sexo feminino” (ib.: 41).

Não presenciei nenhum Menino no Rancho entre os Kalancó, apenas coletei dados a respeito, que haviam realizado um seis meses antes. Trata-se de um festejo bastante dispendioso para os padrões locais, pois a audiência – tanto de dentro quanto de fora, de outras aldeias ou cidadezinhas próximas – tem de ser servida de garapa e víveres até acabar a festa (que não raramente dura dois dias) com a captura do menino pelos praiás ou, quando isso não ocorre, com a sua entrega pelos padrinhos cuja função é proteger o menino. Como na mesa, o Menino no Rancho pode ser realizado com o objetivo de propiciar a cura para uma doença que acometa o garoto65, efetuando sua mãe, ou outra pessoa próxima, uma promessa que para ser alcançada exige a preparação do garoto e sua transformação em um “moço” de praiá. Deve-se, para isto, fazer a consulta aos encantados (por meio de um Mestre ou de uma benzedeira) que vão dizer, ou não, se o menino deve “trabalhar” para ficar bom, ou se simplesmente o problema pode ser resolvido com algumas fórmulas medicinais. Mas a motivação para a realização do festejo pode ser apenas o gosto que os pais têm em ter um filho que trabalha para um encantado, relação que pode render algum acúmulo simbólico de prestígio para a família. Além de permitir a produção de moços e a manutenção da comunicação com o sobrenatural, todo o desenvolvimento do cerimonial demonstra uma verdadeira batalha pelo menino entre os padrinhos e os encantados que correm pela caatinga adentro, atropelando o que encontram pela frente e esbarrando nas pessoas que querem lhe impedir, o que produz muita euforia e expectativa. Este duelo, que tem o sabor de uma festividade densa, deve ser explicado a partir de aspectos contidos no mito pankararú sobre a origem do praiá em que uma mãe, vendo seu filho pequenino ameaçado por deuses contrários que pretendiam atingir assim todo o grupo, promete-o aos poderosos encantados que residem na cachoeira de Paulo Afonso (hoje submersa pela construção da hidroelétrica de Itaparica), criando-se a obrigação do ritual de iniciação (Araújo, 1994).

A introdução relativamente recente entre os Kalancó destas variantes do complexo voltado aos encantados (o praiá, a mesa como se faz hoje e o Menino no Rancho) sucedeu uma época em que a matriz ritual de Brejo dos Padres era procurada para o desenvolvimento dos trabalhos mais fortes que não eram realizados pelos caboclos da Januária devido à sua inabilidade com a jurema, ao mesmo tempo em que caboclos do Brejo vinham para a Januária efetuar trabalhos de mesa e participar das oferendas de garapa. Entretanto, creio que este período não se caracteriza por verdadeiras trocas rituais entre os dois núcleos, já que havia uma clara assimetria existente entre eles.

65 Esse foi o primeiro Menino no Rancho organizado pelos Kalancó e destinou-se a uma criança de 5 anos que tinha problemas de saúde. Entretanto, suas funções como aprendiz só começam mesmo aos 12 anos, período em que ele estará apto a ser iniciado no círculo dos praiás.

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Uma liderança, que foi o finado Narciso, que já se separou da gente (faleceu), foi uma liderança respeitosa pankararú e na época ele falava que acompanhava desde criança a mãe dele pra’qui, que era uma mãe de terreiro [...] Então ele ajudou sobre a indicação, mesmo quando a gente levantou a cabeça para levar este serviço pra prática, pra mostrar pra sociedade que a gente existia ele explicava da época que ele era criança, que vinha de pé dos Pankararú pra’qui, chegava aqui praticava os rituais junto com os mais velhos daqui. Agora como? Eles tinham uma posição de não mostrar nem pra criança nem pra [quem não sabia guardar] [...] Eram assim que eram praticados os costumes. E quando acontecia de ter uma defesa que era muito grave as pessoas saíam daqui pra fazer lá, porque era muito pesado. Saia daqui pra fazer essas defesas lá dentro da aldeia dos Pankararú. Mas coisa maneira, fazia aqui mesmo. A posição era esta.

Antônio Francisco (UD n. 52). Sítio Januária, 08/05/2002.

Essas viagens ou visitas recíprocas tinham um móvel religioso amplo, que ia dos trabalhos do toré às novenas e festejos do catolicismo popular hibridizado com o culto aos encantos, mas também eram realizadas para rever parentes ou dar manutenção às propriedades que eventualmente foram deixadas no Brejo. No tópico seguinte abordo mais detidamente tais visitas.

3.4. AS VIAGENS DE (RE)CONEXÃO COM O BREJO DOS PADRES

Vimos que um dos motivos para os deslocamentos temporários até a aldeia de Brejo dos Padres era a realização de rituais mágico-religiosos que exigiam uma maior habilidade e força, notadamente aqueles desenvolvidos com a jurema e que tinham a finalidade de produzir “defesas”, algo como uma cerimônia preventiva. Não tenho detalhes sobre essas práticas, mas tudo leva a crer que tratavam-se de mesas de toré mais elaboradas, dirigidas aos encantos mestres da aldeia de Brejo dos Padres. Além disso, as dificuldades em se realizar o toré ou qualquer outro desempenho ritual por causa da fiscalização dos vizinhos contrários deveria ser motivo suficiente para que o Brejo funcionasse como uma reserva onde o culto aos encantados era posto em dia com menos riscos de intolerância por parte dos regionais. Ademais, a aldeia pankararú pode ser alcançada a pé ou por montaria em menos de um dia, percorrendo-se os atalhos pelo meio das serras que separam os dois locais, e a distância relativamente curta (menos de 50 km, por estas trilhas serranas) são obstava os deslocamentos que quase sempre eram realizados em pequenos comboios familiares.

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As motivações rituais que levariam as pessoas da Januária a percorrerem o caminho para o Brejo dos Padres tinham algum apelo na figura do Mestre Narciso, citado na última narrativa, que, tendo parentes muito próximos entre essas famílias, costumava fazer o caminho contrário e vir do Brejo para este local a fim de fazer toré e sessões privativas de toré que, possivelmente, tinham também a função do ensinamento de segredos rituais, embora não há nenhuma indicação de um contexto de articulação política neste período por parte dos caboclos da Januária que justificasse a busca sistemática do aprendizado ritual com o intuito de auxiliar a busca pelos direitos. Não que essas duas motivações sejam inseparáveis, mas tal combinação constitui um horizonte histórico no Nordeste indígena, conduzindo lideranças do passado a procurarem a “revelação do nome da aldeia” ou do nome da “tribo” por meio de um trabalho ritual e uma comunicação com os encantados co-participada por Mestres de outros grupos, busca que se manifesta como um primeiro passo para apresentarem-se ao órgão tutor na condição de remanescentes indígenas.

De qualquer modo, o empreendimento das viagens dos caboclos da Januária e sítios anexos ao Brejo não visava a busca por condições melhores de sobrevivência, o que justamente havia motivado a saída de lá e a procura por novas terras. Não há notícias de que os retornos definitivos tenham acontecido a ponto de se pensar num cenário mais favorável para o Brejo dos Padres – nas três ou quatro primeiras décadas do século passado – que aquele que havia na época das primeiras diásporas. Se isso fosse real, parece lógico que os caboclos da Januária teriam na aldeia pankararú uma outra alternativa para o enfrentamento das secas prolongadas além daquela de adotar a dieta repreendida pelos regionais e que lhes custava tanta estigmatização. Por outro lado, as visitas esporádicas (que poderiam ser temporadas de meses, e não simplesmente uma “visita”) serviam também para a composição de arranjos matrimonias futuros com os parentes mais distantes geograficamente que aqueles com quem se convivia ou para a realização de pequenas transações comerciais com terras, vendas ou trocas de animais. Vê-se que, além de se viajar para visitar os parentes pankararú que ficaram no Brejo dos Padres ou simplesmente rever o local de origem, as famílias da Januária e os parentes dos sítios vizinhos tinham uma série de outros motivos que justificariam os deslocamentos, incluindo as festas em devoção aos santos padroeiros do Brejo que constituíam um momento bastante atraente para uma viagem.

Não obstante tantos motivos – que provavelmente se combinavam e não atuavam sozinhos – para os retornos temporários, o provimento material ou a procura por empregos, terra ou recursos outros não consta na memória das famílias kalancó como a causa de seus deslocamentos ou dos parentes para a aldeia dos Pankararú e acredito que as motivações devem ser buscadas em um outro plano que não o econômico; é a procura por recursos simbólicos, e não materiais, que aparece como o móvel precípuo das viagens e que lhes permite serem caracterizadas como incursões afetivas que tinham por propósito a participação na vida social do Brejo através das atividades listadas que apresentam certas conexões entre

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si. Isso porque, principalmente a crença nos encantados estimula a reorganização de relações que se desenvolvem fora do âmbito do ritual e penetra espaços do cotidiano ao ser ativada para explicar doenças, acidentes, o rendimento do trabalho ou a sorte e o azar no amor, numa demonstração de que, mesmo entre as “populações caboclas” do sertão do Nordeste – para usar um termo que por si só carrega um forte sentido histórico – com longa data de experiências de desterritorializações e contato com a sociedade regional, não existem espaços exclusivos e refratários entre si onde se possa colocar, de um lado o sobrenatural (e as atividades a ele relacionadas) e, do outro, o econômico, o desempenho das atividades de subsistência, a saúde ou as decisões políticas. Em síntese, a participação nas atividades relacionadas aos encantados disponibiliza o acesso a vários aspectos do cotidiano e do social que, se são obscurecidos na cena formal do rito, transbordam nas crenças. É nesse sentido que podemos compreender como a prosaica atividade de sair da Gangorra (sítio Januária) para “dar garapa aos encantos” no Brejo dos Padres ou participar da oferenda, não era apenas uma forma de desempenho do culto a esses seres, mas uma prática de imersão no universo social pankararú e, por extensão, no dos próprios caboclos da Gangorra:

Eu queria que a senhora me contasse da época em que era menina e morava na Gangorra. A senhora viu lá muito trabalho de caboclo?Maria Antônia – Vi muito e fui muito lá. Minha mãe, era o pai e os irmãos, era tudo de lá, mesmo do centro.Como era o trabalho?Maria Antônia – E eu nunca dancei...Mas viu muito?Maria Antônia – Mas fui muito!Tomou muita garapa?Maria Antônia – Garapa... vós mercê chegava e tinha, parece que era umas oito casa, tudo reunido. Você chegava e tava como esse saco aí (referindo-se a uma saca de 60 kg de feijão) de pote de garapa. Vós mercê só era chegando e dando copo e dançar. Só nunca dancei [...] Ia porque a família de mãe era lá e nós ia tudo. Mãe contava tudo como era e não era.O que ela contava? Ela contava o quê?Maria Antônia – Contava lá como era o trabalho. Nós nascemos cá, não andava lá não. E depois nós fomos e dava muito sustento (garapa) lá [...] Eu nunca dancei, mas de assistir, assisti muito e dava muito sustento...A senhora era assistente do Mestre, dava garapa com fumo?Maria Antônia – Dava, dava garapa, fumo. O que precisava que era pra ir... Comprava logo uma vara e levava. Que lá fuma, não era só duas fumacinhas, não. E tem outra, do objeto (criação) que o senhor tirar pra dar lá, antes deles (os

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encantos) se servir nós não pega, não. Pra nós comer, se eles não bulir eles não arrecebem.Antes do encanto ninguém pode tocar na garapa?Maria Antônia – Não. Só toca quando... eles perderam – que eles lá plantam os pedaço de cana que é pra no tempo eles moer pra fazer a garapa – veio um, o senhor sabe que tem gente que é maluco, não repara como é que vai o negócio, tava moendo a cana, já tinha parece que era 4 potes de garapa. Cada pote como esse saco (de 60kg). O cabra disse: - "Eles não são melhor do que eu. Quero ver se eles não recebem".Tomou a garapa?Maria Antônia – Tomou a garapa e perderam todinha.A garapa não serviu mais? O encanto não quis?Maria Antônia – Não serviu pra eles não, não tomou não [...]A senhora já tomou garapa lá no Brejo?Maria Antônia – Tomei, tomei muita, graças a Deus. Todo ano eu ia. Quando era no dia de sábado de Aleluia nós ia pra lá. Brincava o sábado, domingo, quando ia vir eram quatro horas.A senhora tem parente lá?Maria Antônia – Minha família é toda de lá. A minha mãe era de lá. Os pais dela eram de lá.Aí trouxeram a senhora pra cá? Veio todo mundo pra cá?Maria Antônia – Foi. Aí, foi o tempo que ela casou e veio pra cá. Mas, todo ano tava lá mais o marido. O marido também era de lá. Era tudo de lá. Só não moravam lá. Pai morava cá em baixo (antes de casar) [...]

Maria Antônia da Conceição (UD n. 02). Lajedo do Couro.09/05/2002

Assim como as diásporas do Brejo viraram depois experiências interétnicas compartilhadas – com o surgimento de identidades sociais distintas formadas pelos conjuntos de parentes que deixaram a aldeia pankararú em sucessivos momentos – as visitas de retorno eram também co-participadas, realizadas em comum com parentes que de lá haviam saído e que residiam em localidades diferentes. Já vimos isto numa narrativa de Sr. Genésio Miranda ao se referir às visitas que seu avô fazia ao Brejo a convite do bisavô do pajé Antônio Francisco, Chico Gino, que passava no Licuri para juntos irem “fazer as obrigações” lá na aldeia Pankararú (p. 27), já que se pressupunha que os trabalhos rituais mais sofisticados só poderiam ser realizados na aldeia do “tronco”, onde havia Mestres com competência ritual para tal e encantados mais poderosos. Os deslocamentos também transcorriam, como ainda hoje

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ocorrem, em função de convites que partiam dos parentes pankararú, sobretudo para as ocasiões das novenas ou do calendário festivo associado ao período de maturação do umbu silvestre, época em que se realiza o flechamento, a “puxada” e a corrida do umbu.

Graciano Gomes – Nessa época eles (Maria Antônia e parentes) iam de animal, de pé, eles iam pra lá de pé. Eles caminhavam por dentro dessas serras aí. Depois que ela foi ficando de idade, aí ela andava de animal, depois ela foi ficando mais cansada... Foi tempo em que Narciso era parente da gente, era tio da gente era o dono do terreiro de lá. Agora que eu não conheci. Eles iam pra lá, chamavam nós.Era parente do senhor?Graciano Gomes – Era, chamava tio Narciso. Eu não cheguei a conhecer ele. Era o Mestre de lá. Aí quando ele era vivo, ela caminhava direto pra lá. Depois que ele morreu, parece que... quando morre a alma vai pra outro [mundo], não é? Aí foi ficando mais de idade, foi diminuindo a viagem de ir pra lá. Todo ano eles iam. Nas corridas de umbu eles iam, cansavam de ir pra lá [...]A senhora veio de lá (de Brejo dos Padres) quando? Era menina?Maria Antônia – Eu nasci e me criei aqui na Gangorra. Me criei e quando ia pra lá já estava criada.A senhora tinha quantas irmãs?Maria Antônia – Tinha um rebanho. Dos vivos, que alcancei, tinha 3 homens e sete mulheres, que escapou.. Mas morto tinha mais. Quantos irmãos?Maria Antônia – Irmãos tinha compadre João, finado Pedro, finado José.. eram 3 homens [...] Das sete mulheres só tem eu e comadre Bastiana

Maria Antônia da Conceição e Graciano Gomes (UD n. 02). Lajedo do Couro.09/05/2002

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Relatório Antropológico de Identificação Étnica Kalancó — Final

FINAL

O propósito da elaboração deste Relatório de Identificação Étnica é atender a uma demanda administrativa que, por sua vez, foi gerada pela ação de uma coletividade que assume-se como indígena e solicita do Estado brasileiro o enquadramento jurídico que tal condição prevê dentro das leis constitucionais em vigor. Este texto foi construído tendo por matéria prima principal os dados etnográficos gerados a partir de um trabalho de campo de duas semanas com os Kalancó e seu posterior tratamento dentro das metodologias da pesquisa antropológica, seguindo um escopo teórico que guiou as análises e a construção dos argumentos. Dentro das atividades que levaram a esta produção houve espaço privilegiado para as fontes orais que deram acesso às memórias familiares sobre as relações dos Kalancó com os índios Pankararú e seu aldeamento de Brejo dos Padres, sem entretanto haver prejuízo para a abordagem das formas presentes de articulação e interação entre os membros desta coletividade.

Acredito que qualquer síntese promissora dos argumentos apresentados neste relatório deva passar pelos processos de desenvolvimento das categorias de identidade que fizeram com que, uma população formada por fluxos seguidos de deslocamentos da aldeia de Brejo dos Padres – provocados por forças sociais externas ou pelos rigores do clima – alcançasse um modo peculiar de auto-percepção baseado em formas próprias de interação, no compartilhamento das experiências, na origem comum e nas práticas que espelhavam diferenças em relação às populações vizinhas. Nesse aspecto é relevante que uma parte fundamental do processo de desenvolvimento das categorias de identidade kalancó tenha decorrido dos atributos negativos que lhes eram dirigidos pelos vizinhos em função, principalmente, das atividades relacionadas ao toré (e mais amplamente ao culto dos encantados) e de um comportamento alimentar considerado incomum e transgressor.

A formação de representações sobre si mesmos a partir desses atributos dirigidos aos caboclos da Januária mostra que essas pessoas reconheciam sua própria alteridade e diferença, vindo depois a agregar valores positivos às classificações exteriores que recaíam sobre elas. Essa superação foi crucial porque, como abordei no item 2.2. (p. 52), permitiu a reversão dos estigmas sem anular a diferença que causou a estigmatização. Isto demonstra que os processos de construção de categorias de identidade não são arbitrários nem a-históricos, mas decorrem em contextos de interação social que geram ações e reações às disputas simbólicas aí travadas, explicando porque “o estigma produz a revolta contra o estigma, que começa pela reivindicação pública do estigma, constituído assim em emblema – segundo o pradigma ‘black is beautiful’ – e que termina na institucionalização do grupo produzido (mais ou menos totalmente) pelos efeitos econômicos e sociais da estigmatização” (Bourdieu, 1998[1989]: 125).

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Com isso foi possível a emergência de um novo classificador – “índio Kalancó” – baseado em categorias de identidade que se reportam ao passado dos caboclos da Januária, mas superam as prerrogativas negativas desta alteridade assimiladas conforme os estigmas que lhes forma imputados. Isto demonstra que os atuais Kalancó vêm organizando de modo diverso ao longo do tempo sua auto-percepção e diferença em relação aos “outros” com quem vêm interagindo, mantendo sua unidade e alteridade em meio às modificações dos conteúdos que as sustentam. Acredito que é nisto que está radicado o continuum “caboclo-índio” ao qual me referi ao longo dos itens 1.2. (p. 20) e 2.2. (p. 52), cuja visibilidade para os próprios Kalancó tornou-se possível com a transformação dos estigmas em emblemas de identidade. Assim, sou partidário de Oliveira (1998) no que se refere à crítica sobre as tentativas de recomposição do passado de sociedades indígenas, pois “a única continuidade que em muitos casos é possível encontrar e sustentar é aquela de, recuperando o processo histórico vivido por tal grupo, mostrar como este refabricou constantemente sua unidade e diferença face a outros grupos com os quais esteve em interação” (ib.: 278).

Essas formas de interação estão sustentadas, principalmente, nas estreitas relações de parentesco que unem as famílias kalancó entre si e às famílias componentes de grupos indígenas vizinhos que possuem histórias de formação muito semelhante, associadas aos Pankararú e aos deslocamentos migratórios da aldeia de Brejo dos Padres, como os Geripankó, Karuazú, Katokinn ou Koiupanká. Isso foi determinante na partição dos Kalancó em uma rede regional de comunicação interétnica, integrada também por outras sociedades indígenas de Alagoas, que valeu apoio à sua causa étnica e lançou-os no cenário nacional do movimento indígena. O reconhecimento da legitimidade do apoio fornecido aos Kalancó pelos agentes desta rede sugere que ela não forma apenas uma comunidade política, mas de solidariedade dirigida a parentes, como se percebe do diálogo com o Sr. Genésio Miranda (transcrito integralmente na p. 42):

O senhor acha que a história dos Kalancó é parecida com a história dos Geripankó?Sr. Genésio Miranda – Não tem diferença nenhuma, que na mesma carreira que correu Zé Carapina correu Chico Higino. Não é isso? (voltando-se para Antônio Francisco)Antônio Francisco – É os troncos velhos. O meu bisavô, no caso, meu bisavô era Gino...Sr. Genésio Miranda – Chico, Francisco já era filho de Gino. É justamente. Mas isso foi na mesma carreira que o velho Zé Carapina veio [...]Eram parentes, o Zé Carapina e Gino?Sr. Genésio Miranda – Era, ali tudo era parente. O índio não tem esse pra não ser parente um do outro.

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Não obstante a representação do parentesco étnico – associado a uma origem compartilhada – entre as famílias kalancó, a presença de laços de um parentesco efetivo é significativa e pode ser facilmente observada através dos diagramas apresentados no Anexo junto com o levantamento das Unidades Domésticas. Notadamente, há uma incidência de uniões matrimoniais entre primos diretos, paralelos ou cruzados, e em segundo grau que reproduzem um modelo de casamento preferido pelos seus próprios pais e avós, ocorrendo situações excepcionais em que um conjunto de irmãos e irmãs casa-se com um outro conjunto de irmãos, sendo que seus pais são, às vezes, primos entre si diretos ou em segundo grau (veja diagramas referentes às UD’s ns. 03, 05, 08, 13, 17, 18, 41 e 50). Tal recorrência de um modo de uniões matrimoniais sugere um tipo peculiar de reprodução física do grupo que reflete na sua unidade e confirma a base parental de suas redes de interação e associações.

As representações sobre si formuladas pelos Kalancó são interconectadas e se reportam ao universo sócio-cosmológico dos índios Pankararú. Elas são objetivadas em função da recomposição de fragmentos das memórias das famílias nucleares sobre seus vínculos com o Brejo dos Padres e estão, sobretudo, no topônimo “Januária”, na dieta alimentar extraordinária que incluía o calango, no ofertório da garapa e na terapia médica através dos encantados. Este último elemento é importante porque atesta de forma eloqüente uma prática histórica e distinta voltada para a doença e a saúde que por, ser destoante daquelas associadas à medicina popular adotada pelos vizinhos não-indios, foi objeto de estigmatização que fazia com que os caboclos da Januária fossem chamados de “xangozeiros” ou “macumbeiros” por esses vizinhos, como foi exposto no item 2.2. As práticas médicas auxiliadas pelos encantos condensam os elementos que são hoje vistos como uma prova inegável da herança pankararú que foi adaptada e transformada em emblema da identidade Kalancó, fazendo com que essas práticas sejam vistas como central e doadora de valor na auto-representação do grupo enquanto uma comunidade indígena. É o que se depreende do diálogo abaixo em que se vê a força e representatividade para uma identidade Kalancó da crença nos encantos e em seu poder para curar doenças:

Graciano Gomes – Fazia remédio eles mesmos (os encantados). Dizia assim: - "Eu vou trazer um remédio e você, quando for amanhã, procure que eu vou deixar no santo, na mesinha que aqui não tem. Eu vou trazer de fora". No outro dia você procurava bem cedinho, não tava. Mais tarde, não tava. Quando era umas horas o senhor chegava lá tava aquele remedinho que eles traziam. Tava lá [...] Eles traziam ervas que a gente não conhecia, sabe? De fora.Isaura Maria – Eles mesmos traziam [...] Os de minha mãe traziam e botavam em sua mão [...] quando eles chegavam diziam logo: - "O remédio pra essa doença é isso aqui", aí davam pro senhor, ensinavam como era pra fazer, como é que fazia aquele chá pra dar.Não precisava dizer qual era a doença?Isaura Maria – Não. O senhor tomava um chá, tomava dois, no outro dia estava bonzinho da SilvaEle adivinhava a doença...

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Isaura Maria – Decerto, né? Se ele fazia é porque adivinhava [...] Mestre Luis, se ele viesse tratar da doença de qualquer um e ele chegasse e baixasse nela (em sua mãe) ele fazia um signo Salomão no chão com a maracá assim e quando acabar batia com o cabinho da maracá assim e acentava o ouvido dela assim, em cima. Quando ela levantava, se aquele não melhorasse, não ficasse bom daquilo e fosse pra ele morrer, acendia uma luzinha lá dentro, bem azulzinha [...] E ele dizia que não tinha cura. Podia ir pro doutor que quisesse ir. Que aquela doença ali só quem curava era Deus. Digo porque cansei de ver [...]

Graciano Gomes (UD. n. 02) e Isaura Maria Santana (UD. n. 29). Sítio Januária. 09/05/2002.

Todas estas considerações me conduzem à conclusão inequívoca de que a comunidade Kalancó apresenta práticas de interação que são específicas e está plenamente inserida no cenário mais geral histórico e etnográfico dos índios do Nordeste brasileiro, apresentando elementos comuns a estes grupos, como a manifestação de fortes elementos de identidade ligados afetiva e efetivamente ao passado; o desenvolvimento de redes sociais de articulação interna e a participação em circuitos regionais de comunicação com base, sobretudo, no parentesco entre as famílias que compõem o grupo e as outras de grupos indígenas da região. Não restando dúvidas quanto à legitimidade do pleito e a condição indígena do grupo, penso que seja altamente recomendável a atribuição a esta coletividade dos direitos históricos e constitucionais reservados às sociedades indígenas no Brasil.

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Relatório Antropológico de Identificação Étnica Kalancó –Bibliografia

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Relatório Antropológico de Identificação Étnica Kalancó –Bibliografia

São Paulo, 24 de abril de 2003.

Ugo Maia Andrade

Antropólogo – PPGAS/USP

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