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RELATÓRIO TÉCNICO-CIENTÍFICO SOBRE OS REMANESCENTES DA COMUNIDADE DE QUILOMBO DE PRAIA GRANDE/IPORANGA-SP MAIO/2002

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RELATÓRIO TÉCNICO-CIENTÍFICOSOBRE OS REMANESCENTES DA COMUNIDADE DE QUILOMBO DE PRAIA GRANDE/IPORANGA-SP

MAIO/2002

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ITESP/R.T.C. – Quilombo Praia Grande (Scalli, 2002).

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 03

2. A ATUALIZAÇÃO DO CONCEITO DE QUILOMBO: O PRIMADO DA IDENTIDADE E DO TERRITÓRIO NAS DEFINIÇÕES TEÓRICAS .............................................................06

3. VALE DO RIBEIRA DE IGUAPE............................................................................................133.1 Histórico do Vale do Ribeira.......................................................................................................14 3.2 Iporanga: características do município e a história da ocupação................................................17

4. A COMUNIDADE DE PRAIA GRANDE................................................................................ 234.1. De quilombo a bairro rural negro: histórico da ocupação do território .....................................334.2. Modo de vida..............................................................................................................................45

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................................57

6. BIBLIOGRAFIA.........................................................................................................................60

7. ANEXO.........................................................................................................................................64I. Memorial Descritivo e Planta da área para reconhecimento...................................................65

II. Croqui de uso e ocupação do solo da área da comunidade de Praia Grande...........................66III. Genealogia da Comunidade de Praia Grande(1800 a 1995)....................................................67IV. Mapa histórico da Comunidade de Praia Grande(1880 a 1930)....................... .....................68V. Documentos da comunidade de compra e venda de terras e impostos....................................69

VI. Massa de população de Iporanga(1812 e 1826).......................................................................70VII. Registros do Livro de Terras de Iporanga(1855).....................................................................71

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1. INTRODUÇÃO

Este Relatório Técnico-Científico1 é resultado de um trabalho de pesquisa

antropológica que objetivou verificar se o grupo populacional denominado

Comunidade de Praia Grande, situado no município de Iporanga, Estado de São

Paulo, se constitui como remanescente de comunidade de quilombo a fim de

adjudicar-lhe o direito previsto no artigo nº. 68 do Ato das Disposições Transitórias

da Constituição Federal de 1988, sob o enunciado: “Aos remanescentes das

comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade

definitiva, devendo o Estado emitir-lhe os títulos respectivos”. Esta verificação segue os

requisitos e critérios estabelecidos pelo Grupo de Trabalho e pelo Grupo Gestor,

em obediência ao referido artigo 68, bem como aos artigos 215 e 216 da

Constituição Federal e, ainda à legislação estadual: lei número 9757/97 e os

decretos 41.774/97 e 42.839/98.

A comunidade de Praia Grande ocupa as terras que reivindica pelo menos

desde 1863. Essas terras foram ocupadas por escravos fugidos dos garimpos de

Iporanga, que logo após o fim da escravidão, compraram essas terras, constituíram

família e organizaram um modo de vida camponês.

Os moradores da Comunidade de Praia Grande sofreram um processo de

titulação em 1969, pela PPI (Procuradoria do Patrimônio Imobiliário), que poderia 1 A criação desta categoria de investigação denominada Relatório Técnico Científico, bem como os parâmetros que norteiam, são resultantes dos esforços do Grupo de Trabalho criado pelo Governo do Estado de São Paulo por meio do decreto nº 40.723, de 21 de março de 1996, que tinha por objetivo fazer proposições visando a plena aplicabilidade dos dispositivos constitucionais conferentes do direito de propriedade aos remanescentes das comunidades de quilombos em território paulista. O Grupo foi composto por representantes da Secretaria da Justiça e Defesa da Cidadania, Instituto de Terras do Estado de São Paulo “José Gomes da Silva”, Secretaria do Meio Ambiente, Procuradoria Geral do Estado, Secretaria de Governo e Gestão Estratégica, Secretaria de Cultura, Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico, Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra no Estado de São Paulo, Subcomissão do Negro da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil –Secção São Paulo e Fórum Estadual de Entidades Negras. Os trabalhos deste Grupo levaram à criação: a) do Programa de Cooperação Técnica e de ação conjunta para identificação, discriminação e legitimação de terras devolutas do Estado ocupadas por remanescentes de comunidades de quilombos visando sua regularização fundiária, implantando medidas sócio-econômicas, ambientais e culturais e b) de um Grupo Gestor para implementação do Programa. O Programa e o Grupo Gestor forma criados por meio do decreto nº 41.774 de 13 de maio de 1997.

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ter ajudado a comunidade a regularizar a situação das terras que ocupam, como

normalmente ocorre com esse tipo de processo. Em Praia Grande, aconteceu

justamente o contrário, eles perderem boa parte do seu território ou em alguns

casos não receberam o título das terras onde residem. Essa Comunidade também

se vê ameaçada pela construção da Hidrelétrica do Funil que irá inundar a maior

parte do seu território. Esses fatores os levaram a lutar pela terra onde moram e a

solicitar junto ao ITESP o seu reconhecimento enquanto comunidade remanescente

de quilombo.

O presente relatório buscou analisar dados obtidos tanto da pesquisa direta

com a comunidade quanto de fontes secundárias levantadas por pesquisa

documental, a fim de retratar os aspectos etnológicos que possibilitaram a

reconstrução da história da comunidade e o resgate de sua origem étnica e da sua

identidade grupal, esta última fundamentada tanto pelas redes de sociabilidade

calcadas no parentesco e nas relações de trabalho e simbólicas que o grupo

mantém com a área que ocupa. Assim a reconstrução interpretativa do modo de

vida da comunidade nos possibilitou compreender como eles constroem

coletivamente sua vida sobre uma base geográfica, física e social formadora de

uma territorialidade negra. “Dentro dela elaboram-se formar específicas de ser e existir

enquanto camponês e negro” (GUSMÃO,1992:117).

Foi de grande importância para a elaboração desse relatório o Laudo

Antropológico sobre as comunidades de Ivaporunduva, São Pedro, Pilões, Maria

Rosa, Pedro Cubas, André Lopes, Nhunguara e Sapatu, realizado em 1998 pela

equipe de antropólogos do Ministério Público Federal – Adolfo Neves de Oliveira

Júnior, Deborah Stucchi, Miriam de Fátima Chagas e Sheila dos Santos Brasileiro,

publicado no caderno número 3 da Fundação ITESP. Lembramos que todos os

trechos extraídos do referido laudo para transcrição ou apenas como base de

dados mais genérica na leitura deste trabalho apresentam-se seguidos da

abreviatura LA-MPF, bem como da respectiva referência de página.

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Colaboraram na elaboração deste relatório Rose Leine Bertaco Giacomini e

Helena Maria Cesar Gonçalez.

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2. A ATUALIZAÇÃO DO CONCEITO DE QUILOMBO: O

PRIMADO DA IDENTIDADE E DO TERRITÓRIO NAS

DEFINIÇÕES TEÓRICAS *

O reconhecimento, por parte do Estado, da existência de comunidades

negras rurais como uma categoria social carente de demarcação e regularização

das terras que ocupam longevamente e às quais se convencionou denominar

comunidades remanescentes de quilombos, traz à tona a necessidade de

redimensionar o próprio conceito de quilombo, a fim de abarcar a gama variada de

situações de ocupação de terras por grupos negros e ultrapassar a binômia fuga-

resistência, instaurado no pensamento corrente quando se trata de caracterizar os

quilombos.

Em 1740, reportando-se ao rei de Portugal, o Conselho Ultramarino valeu-se

da seguinte definição de quilombo: “toda habitação de negros fugidos, que passem de

cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados e nem se achem

pilões nele”. Esta caracterização descritiva perpetuou-se como definição clássica do

conceito em questão e influenciou uma geração de estudiosos da temática

quilombola até meados dos anos 70, como Artur Ramos (1953), Edson Carneiro

(1957) e Clóvis Moura (1959). O traço marcadamente comum entre esses autores é

atribuir aos quilombos um tempo histórico passado, cristalizando sua existência no

período em que vigorou a escravidão no Brasil, além de caracterizarem-nos

exclusivamente como expressão da negação do sistema escravista, aparecendo

como espaços de resistência e de isolamento da população negra.

Embora o trabalho destes autores seja importante e legítimo, ele não abarca,

porém, a diversidade das relações entre escravos e sociedade escravocrata e nem as

diferentes formas pelas quais os grupos negros apropriaram-se da terra. Flávio dos

*Este capítulo foi elaborado por Alessandra Schmitt e Maria Cecília Manzoli Turatti que gentilmente autorizaram sua utilização neste relatório.

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Santos Gomes (1995:36), explicita tal diversidade ao forjar o conceito de “campo

negro”: “uma complexa rede social permeada por aspectos multifacetados que envolveu ,

em determinadas regiões do Brasil, inúmeros movimentos sociais e práticas econômicas com

interesses diversos” .

No entanto, foi a produção científica ainda atada a exegeses restritivas e

pouco plásticas que subsidiou a luta política em torno das reivindicações da

população rural negra que, sofrendo expropriações incessantes, se colocava como

um segmento específico no palco dos movimentos sociais. Desta forma, a

denominação quilombo se impôs no contexto da elaboração da constituição de

19882.

Esta visão reduzida que se tinha das comunidades rurais negras refletia, na

verdade, a “invisibilidade” produzida pela história oficial, cuja ideologia,

propositadamente, ignora os efeitos da escravidão na sociedade brasileira

(GUSMÃO:1996) e, especialmente, os efeitos da inexistência de uma política

governamental que regularizasse as posses de terras de grupos e/ou famílias

negras após a abolição, extremamente comuns à época, conforme comprovam os

estudos de CARDOSO (1987).

Ao fazer a crítica do conceito de quilombo estabelecido pelo Conselho

Ultramarino, ALMEIDA (1999:14-15) mostra que aquela definição constitui-se

basicamente de cinco elementos: 1) a fuga; 2) uma quantidade mínima de fugidos;

3) o isolamento geográfico, em locais de difícil acesso e mais próximos de uma

“natureza selvagem” que da chamada civilização; 4) moradia habitual, referida no

termo “rancho”; 5) autoconsumo e capacidade de reprodução, simbolizados na

imagem do pilão de arroz. Para ele, com os instrumentos da observação

etnográfica “se pode reinterpretar criticamente o conceito e asseverar que a situação de

quilombo existe onde há autonomia, existe onde há uma produção autônoma que não passa

pelo grande proprietário ou pelo senhor de escravos como mediador efetivo, embora

2 Sobre o fortalecimento da organização política dos grupos negros e a incorporação da questão quilombola ao seu rol de reivindicações, v. Flávio dos Santos Gomes (1996:105).

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simbolicamente tal mediação possa ser estrategicamente mantida numa reapropriação do

mito do” bom senhor “, tal como se detecta hoje em algumas situações de aforamento” .

O autor exemplifica situações que contrariam esses cinco elementos da

definição, como o caso do quilombo Frechal, no Maranhão, localizado a cem

metros da casa grande, ou casos onde o quilombo esteve na própria senzala,

representado por formas de produção autônoma dos escravos que poderiam

ocorrer – e de fato ocorriam –, sobretudo em épocas de decadência de ciclos

econômicos, fossem agrícolas ou de mineração. Diversos trabalhos mais recentes a

respeito de comunidades negras com origem mais diretamente relacionada à

escravidão têm demonstrado que a economia interna desses grupos está longe de

representar um aspecto isolado em relação às economias regionais da Colônia, do

Império e da República.

Não obstante esta integração das formas mais ou menos autônomas de

atividades produtivas empreendidas pelos escravos à economia geral, é preciso

ressaltar que o trabalho livre sobre a terra não garantiu, de forma alguma, o acesso

dos ex-cativos a ela no momento posterior à Abolição. Ao contrário, a exclusão do

segmento populacional negro em relação à propriedade da terra foi

peremptoriamente estabelecida por meio de uma série de atos do poder legislativo

ao longo do tempo. Ainda durante a escravidão, a Lei de Terras de 1850, veio

substituir o direito à terra calcado na posse por um direito auferido via registros

cartoriais que comprovassem o domínio de uma dada porção de terra. O direito

legítimo adquirido através da posse efetiva é uma noção do “direito costumeiro”3,

que até hoje regeu a relação do campesinato tradicional com a terra, incluindo os

grupos camponeses negros.

Como já foi assinalados por outros autores·, os grupos que hoje são

considerados remanescentes de comunidades de quilombos se constituíram a

partir de uma grande diversidade de processos, que incluem as fugas com

ocupação de terras livres e geralmente isoladas, mas também as heranças, doações,

3 Conceito explicitado por Margarida Maria Moura (1988).

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recebimento de terras como pagamento de serviços prestados ao Estado, simples

permanência nas terras que ocupavam e cultivavam no interior das grandes

propriedades, bem como a compra de terras, tanto durante a vigência do sistema

escravocrata quanto após a sua extinção.

Dentro de uma visão ampliada, que considera as diversas origens e histórias

destes grupos, uma denominação também possível para estes agrupamentos

identificados como remanescentes de quilombo seria a de “terras de preto”, ou

“território negro”, tal como é utilizada por vários autores4, que enfatizam a sua

condição de coletividades camponesa, definida pelo compartilhamento de um

território e de uma identidade.

A promulgação da constituição e a necessidade de regulamentação do

Artigo 68 provocaram discussões de cunho técnico e acadêmico5 que levaram à

revisão dos conceitos clássicos que dominavam a historiografia sobre a escravidão,

instaurando a relativização e adequação dos critérios para se conceituar quilombo,

de modo que a maioria dos grupos que hoje, efetivamente, reivindicam a titulação

de suas terras, pudesse ser contemplada por esta categoria, uma vez demonstrada,

por meio de estudos científicos, a existência de uma identidade social e étnica por

eles compartilhada, bem como a antigüidade da ocupação de suas terras e, ainda,

suas “práticas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida

característicos num determinado lugar” 6.

Desta forma, o conceito de quilombo que norteia o trabalho desenvolvido

pela Fundação ITESP é aquele que foi produzido pela Associação Brasileira de

Antropologia (ABA) e ratificado pelo Grupo de Trabalho (vide nota de rodapé 1):

“toda a comunidade negra rural que agrupe descendentes de escravos vivendo da cultura de

subsistência e onde as manifestações culturais têm forte vínculo com o passado”.

4 Ver Almeida (1997/1998), Gusmão (1996.), Andrade, (1988) e Acevedo Marin (1995).5 Especialmente no III Encontro Nacional sobre Sítios Históricos e Monumentos Negros (Goiânia: 1992); na Reunião do Grupo de Trabalho sobre Comunidades Negras Rurais, da Associação Brasileira de Antropologia (Rio de Janeiro, outubro de 1994), e na reunião técnica “Reconhecimento de Terras Quilombolas Incidentes em Domínios Particulares e Áreas de Proteção Ambiental” (São Paulo, abril de 1997).6 Cfe. João Pacheco de Oliveira e Eliane Cantarino O’Dwyer. ABA, 1994.

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Assim, em consonância com o moderno conceito antropológico aqui

disposto, a condição de remanescente de quilombo é também definida de forma

ampla e enfatiza os elementos identidade e território. Com efeito, o termo em

questão indica: “a situação presente dos segmentos negros em diferentes regiões e

contextos e é utilizado para designar um legado, uma herança cultural e material que lhe

confere uma referência presencial no sentimento de ser e pertencer a um lugar específico”7.

Ainda segundo a Associação Brasileira de Antropologia “o termo não se refere a

resíduos ou resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou de comprovação biológica.

Também não se trata de grupos isolados ou de uma população estritamente homogênea. Da

mesma forma nem sempre foram constituídos a partir de movimentos insurrecionais ou

rebelados, mas, sobretudo, consistem em grupos que desenvolveram práticas de resistência

na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos num determinado lugar

”8 .

Este sentimento de pertença a um grupo e a uma terra é uma forma de

expressão da identidade étnica e da territorialidade, construídas sempre em

relação aos outros grupos com os quais se confrontam e se relacionam. Estes dois

conceitos são fundamentais e estão sempre inter-relacionados no caso das

comunidades negras rurais, pois “a presença e o interesse de brancos e negros sobre um

mesmo espaço físico e social revela, no dizer de Bandeira, aspectos encobertos das relações

raciais” (GUSMÃO,1996:14). Estes aspectos encobertos aos quais a autora se refere

são a submissão e a dependência dos grupos negros em relação à sociedade

inclusiva, na qual foram um dia escravo.

A identidade étnica é um processo de identificação de grupos em situações

de oposição a outros grupos. Frente a esta constatação, OLIVEIRA (1976) elaborou

a noção de identidade contrastiva para embasar as análises que têm como centro

interpretativo à identidade étnica de um grupo social. As situações de oposição

levam os grupos a elaborar os seus critérios de pertencimento e de exclusão.

Quando o confronto se estabelece entre um grupo minoritário e os brancos, 7 Garcia, José Milton, publicado em Quilombos em São Paulo: tradições, direitos e lutas, org. Tânia Andrade (1997:47).8 Documento da ABA, 1994.

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temos uma situação de submissão e dominação, de hierarquia de status, a qual o

autor denominou “fricção interétnica”. São justamente estas relações interétnicas

que se estabelece no convívio/confronto das comunidades negras com a sociedade

abrangente.

Ademais, esta submissão é sustentada por representações sociais que

justificam a inferioridade estrutural do grupo minoritário, as quais podemos

identificar como sendo racistas. É um racismo recalcado, escondido atrás de “um

sistema de valores que [...] tanto inibe manifestações negativas na avaliação ‘do outro’ racial

como estimula a apologia da igualdade e da harmonia racial entre nós” (BORGES

PEREIRA, 1996:76). A ocultação do racismo na sociedade brasileira foi estimulada

pelo discurso da democracia racial, da qual Gilberto Freyre é um grande expoente,

na década de 30, e que só começou a ser contestado na década de 50 por Florestan

Fernandes e Oracy Nogueira.

Em tal situação de desigualdade, os grupos minoritários reforçam suas

particularidades culturais e suas relações coletivas como forma de ajustar-se às

pressões sofridas, e é neste contexto social que constroem sua relação com a terra,

tornando-a um território impregnado de significações relacionadas à resistência

cultural. Não é qualquer terra, mas a terra na qual mantiveram alguma autonomia

cultural, social e, conseqüentemente, a auto-estima. Siglia Zambrotti DÓRIA (1985)

salienta que a identidade de grupos rurais negros se constrói sempre numa

correlação profunda com o seu território e é precisamente esta relação que cria e

informa o seu direito a terra.

A maior parte destes grupos que hoje vem reivindicar seu direito

constitucional o faz como um último recurso na longa batalha para manterem-se

em suas terras, as quais são alvo de interesse de membros da sociedade

envolvente, em geral grandes proprietários e grileiros, cuja característica essencial

é tratar a terra apenas como mercadoria. José de Souza MARTINS (1991:43-60)

explicita as características dessa relação dos homens com a terra, mediada pelo

capital, em que esta passa a ser “terra de negócio” em oposição à “terra de

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trabalho”. Em conseqüência da cobiça que esta lógica de mercado despertou, os

camponeses foram pressionados com expedientes espúrios, tais como o auxílio do

aparato judicial e violência física direta, que agiram no sentido de negar-lhes o

direito de obter o registro legal de suas posses, invariavelmente muito mais antigas

do que o tempo mínimo requerido pela legislação para a sua transformação em

propriedades.

Portanto, não se deve imaginar que estes grupos camponeses negros tenham

resistido em suas terras até os dias de hoje porque ficaram isolados, à margem da

sociedade. Pelo contrário, sempre se relacionaram intensa e assimetricamente com

a sociedade brasileira, resistindo a várias formas de violência para permanecer em

seus territórios ou, ao menos, em parte deles9.

Finalmente, devemos salientar que é devido às considerações teóricas e às

constatações históricas aqui apresentadas que estudiosos das comunidades negras

rurais - e, particularmente, da legislação pertinente à questão quilombola – têm

buscado rediscutir e recaracterizar o conceito de quilombo. Tal intento, ainda em

curso, tende a aprimorar-se quanto mais os organismos responsáveis pela

identificação, reconhecimento e auxílio às comunidades quilombolas ampliem e

otimizem suas atividades, gerando mais dados que contribuam para o desvendar

científico das lacunas referentes a esta temática que marcam a historiografia

nacional.

9 Muitas das comunidades rurais negras já pré-identificadas no Estado de São Paulo mantêm uma pequena parcela de seus territórios, estando o restante ocupado por fazendeiros ou posseiros, alguns destes últimos com o consentimento dos próprios grupos quilombola; os primeiros, entretanto, invariavelmente chegaram às terras em questão valendo-se da ingenuidade das comunidades ou mesmo da coerção física para apoderar-se dos territórios negros.

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3. O VALE DO RIBEIRA DE IGUAPE

O Vale do Ribeira abrange parte da Bacia do rio Ribeira de Iguape, que

nasce no Estado do Paraná e deságua no Oceano Atlântico, estando o trecho mais

longo do seu curso dentro do Estado de São Paulo. Ocupa parte da Serra de

Paranapiacaba, Serraria do Ribeira área de Morraria Costeira e parte da Baixada

Litorânea (Secretaria do Meio Ambiente, 1996:15).

A região apresenta um dos mais baixos índices de desenvolvimento do

Estado de São Paulo, sendo a menos urbanizada, com uma população de 323.174

habitantes, tem uma das menores taxas de crescimento populacional do Estado.

Segundo HOGAN, CARMO, ALVES E RODRIGUES (2001) “razões históricas,

dificuldades de acesso e condições naturais adversas às atividades econômicas garantiram

até hoje um relativo isolamento do Vale e a preservação dos recursos naturais” (pg. 02). A

maior parte da sua população vive em áreas rurais desenvolvendo atividades

agrícolas de subsistência e extrativistas, como a agricultura (banana e chá),

mineração e o extrativismo vegetal (palmito).

Grande parte da região constitui-se de unidades de conservação, entre as

quais se incluem áreas de proteção ambiental (APAS), estações ecológicas e

parques estaduais que restringem o uso econômico a atividades limitadas. Isso

acaba gerando uma série de conflitos entre as populações que vivem da agricultura

e da extração de produtos da floresta, com as agências governamentais ambientais.

Um outro foco de conflito é a relação entre:

“ONGs e agências governamentais ambientais, de um lado, e esforços desenvolvimentistas locais, de outro, continuam a dificultar tanto a criação de emprego na região, quanto à regulamentação da conservação das áreas protegidas. A situação reproduz, no Estado de São Paulo, o típico confronto Norte-Sul em torno da questão do desenvolvimento sustentável” (HOGAN,CARMO, ALVES E RODRIGUES, 2001:03).

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Outro foco de embates na região é a construção de barragens. “Seja como

hidrelétrica destinada a fornecer energia, seja como reservatório para o abastecimento de

água para a RMSP, ou seja como obras de controle de enchentes, as barragens provocam

polêmica entre as populações locais e os ambientalistas” (HOGAN, CARMO, ALVES E

RODRIGUES,2001:03). As comunidades tradicionais da região, como

Remanescentes de Quilombo, que organizaram toda sua cultura entrelaçada ao

meio ambiente e o espaço geográfico que ocuparam ao longo de séculos se vêem

ameaçados por essas barragens, tendo em alguns casos 97% do seu território

atingido (Campanili:2001). Essa população tem se organizado em movimentos

como MOAB (Movimento dos Ameaçados por Barragens) e MAB10 (Movimento

dos Atingidos por Barragens) que os levou a lutar pela regularização de suas terras

e acionar o governo para que cumprisse o Art. 68 da Constituição Federal.

3.1 Histórico do Vale do Ribeira

As primeiras referências da ocupação humana no Vale remontam do

período pré-colombiano, sendo essas populações compostas por ameríndios. “A

Região do Vale do Ribeira, apesar de ser atualmente a menos povoada do Estado, foi uma

das primeiras do Brasil a ser ocupada” (BRAGA, 1999:43). Os espanhóis antes dos

portugueses estiveram na região e fundaram Cananéia. O início da ocupação

portuguesa no Vale do Ribeira data de 1531, com a expedição de Martins Afonso

de Souza que teve como objetivo ocupar o território defendendo-o das invasões

estrangeiras e buscar ouro e prata.

A região atrai várias pessoas do Velho Mundo com os objetivos mais

diversos. Inicialmente são desenvolvidas lavouras de subsistência e a pesca. Nos

primeiros tempos os portugueses estabelecerem relações de troca com as

comunidades indígenas na região sul e sudeste da capitania. A falta de mão-de-

10 Apesar deles não terem sido atingidos, até o momento por barragens, eles participam desse movimento pois podem vir a ser atingidos.

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obra fez com que os índios fossem usados como mão-de-obra escrava. Muitos

índios fugiram para as regiões de difícil acesso como ao longo do rio Pardo por ser

protegido por serras, cachoeiras, subidas penosas e demoradas. A presença

indígena se tornou referência para as comunidades do Vale, principalmente, as

populações negras que se apropriaram dos conhecimentos indígenas sobre relevo,

técnicas de pesca e agricultura itinerante.

Na primeira fase de ocupação o povoamento ficou restrito ao litoral tendo

maior destaque para os povoamentos de Cananéia e Iguape. De Cananéia partem

as primeiras expedições em busca de ouro e prata, porém era Iguape que detinha o

domínio da navegação do Ribeira devido à facilidade de comunicação com o

interior. Tornando-se centro de concentração de moradores e distribuição de

riquezas.

Na primeira metade do século XVII, foram encontradas minas de ouro em

Iguape, zona do médio Ribeira.

“Durante o `ciclo do ouro`, o povoamento, que anteriormente limitava-se ao litoral, avançou para o interior, subindo o curso do Ribeira, onde foram formados os primeiros núcleos coloniais da retroterra, dos quais o mais importante foi o de Xiririca (atual Eldorado). Muito embora a mineração tenha trazido alguma riqueza para a região, seus efeitos desenvolvimentistas restringiram-se a Iguape. Os núcleos do interior pouco se desenvolveu e mesmo Xiririca, na principal zona garimpeira, só foi elevado à categoria de município no século seguinte, já na fase decadente da mineração” ( Braga, 1999:45).

Nesse período por conta da mineração, entra a mão-de-obra negra em São

Paulo a maior concentração de escravos era em Iguape, porém eles foram levados

a outras localidades situadas Ribeira acima. Segundo Carril (1995), os negros

vinham de algumas regiões da África como Angola, Moçambiqui e Guiné, sendo

considerados, uma mercadoria lucrativa. Sua maior concentração foi em Iguape

porém eles foram levados para outras localidades como Iporanga, Apiaí e

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Ivaporunduva, onde havia grande concentração de minas auríferas. Isso levou a

um fluxo de pessoas para essa localidade tendo como conseqüência o surgimento

de vários arraiais, como Ivaporunduva, Iporanga, Apiaí, Paranapanema e Xiririca.

A exploração de ouro entrou em decadência com a descoberta de novas

áreas de mineração em Minas Gerais. Porém a atividade mineradora perdurou até

as primeiras décadas do século XIX.

No final do século XVII, se registra uma expansão da agricultura, tendo

como principais produtos: arroz, madeira e cana. No século seguinte até meados

do século XIX, a agricultura comercial, especialmente o arroz, apresentou uma

expansão significativa tendo como base a mão-de-obra escrava e voltada para o

mercado europeu e latino americano. Esse período foi o de maior prosperidade

para o Vale.

“em 1836 a região concentrava 100 dos 109 engenhos de beneficiamento de arroz instalados na província e em 1852 já eram 107 os engenhos instalados na região. Outra medida do crescimento econômico da região era a quantidade de escravos que, em 1836, representavam 28,9% da população total, um índice superior à média da Província, que era de 26,6% de população escrava” ( MULLER, 1980:36).

Porém, o crescimento econômico trazido pela rizicultura ficou limitado a

região de Iguape e Cananéia com exceção de Iporanga onde se plantou algum

arroz. O restante do Vale mergulhou em um período de estagnação econômica,

que durou até a década de 30.

Na segunda metade do século XIX a rizicultura escravista entrou num

processo de crise devido: encarecimento da mão-de-obra escrava11; procura de

brancos para o café; abertura do mercado para o arroz de outras regiões do país

(Minas Gerais e Rio de Janeiro). A baixada ficou a margem da rede ferroviária

implantada no Brasil e bem como a imigração estrangeira que se voltou para o

abastecimento da cafeicultura.

11" Em 1850, com a proibição do tráfico de escravos ocorre a transferência de escravos dentro da própria província das regiões menos dinâmicas para as mais dinâmicas economicamente” (LA-MPF,1998:65).

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A população refluiu para a economia de subsistência a “caipirização” da

vida regional (MULLER,1980). Para BRANDÃO (1998):

“Os habitantes do Vale, tanto nativos como imigrantes, marginalizando-se, passando a viver nas fímbrias mercantis do grande tecido econômico-social nucleado no capital-café. Criaram uma sociabilidade de sobreviventes que respirou através de um sistema de trocas que mais se parecia ao escambo. A esta pobreza organizada, produto residual da cafeicultura, designamos vida caipira” (pg.04).

3.2. IPORANGA* : características do município e a história da

ocupação

O Município de Iporanga localiza-se no alto Ribeira, tendo como limítrofes

os municípios de Apiaí, Guapiara, Capão Bonito, Eldorado Paulista, Barra do

Turvo e o Estado do Paraná.

* Vocábulo da língua Tupi ou Nheenhatu. Iporanga: água ou rio bonito.

Vista da cidade de Iporanga/SP

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A base do releve é o calcário na parte alta e os filitos e xistos na parte baixa.

As falhas geológicas contribuem para esculpir o relevo, pois além de originar

depressões topográficas condicionaram vales de muitos rios. O relevo é acidentado

onde predominam colinas e morrotes que dificilmente ultrapassam os 120 metros

de altura12. O município possuí uma área territorial de 1160 km com uma

população de 4.564 habitantes (CENSO 2000). A agricultura é a principal atividade

econômica do município, se destacando a produção de banana e em menor escala

de feijão, arroz e milho.

O solo de Iporanga é rico em ouro, prata, chumbo, estanho, ferro, pedra de

chisto, a calcárea, a pederneira, o cristal de rocha, o calcáreo branco, o

tasguatingua, o barro de olaria, etc. Sendo que o chumbo já vem sendo explorado

desde 1880. Sua mineração ilegal as margens do rio Ribeira de Iguape trouxe

problemas de contaminação para a população ribeirinha que se alimenta dos

peixes e se banham nos rios, atualmente as crianças são as mais atingidas13.

A região possui uma das maiores concentrações de cavernas do Brasil e um

dos principais remanescentes florestais de Mata Atlântica do Estado de São Paulo.

Esses fatos levaram a implantação de diversas unidades de conservação no

município como: área piloto da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica14, as Áreas

de Proteção Ambiental APA da Serra do Mar (1984), Parque Estadual de

Jacupiranga (1969), Parques estaduais Turísticos do Alto Ribeira – PETAR (1958). O

PETAR somente foi implantado, em 1983, levando a um crescimento do turismo

espeleológico e recentemente o de esportes radicais. Porém apenas o bairro da

Serra em Iporanga e o município de Apiaí foram efetivamente beneficiados.

Como a principal atividade econômica do município é a agricultura e o

extrativismo o tombamento provocou um descontentamento de boa parte da

12 Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo. Atlas das unidades de conservação do Estado de São Paulo, 15.13 Um dos argumentos contra as barragens é justamente o risco de com a inundação das margens esses pontos de mineração podem ser um foco de disseminação do chumbo pela região.14 Foi recentemente reconhecido pela UNESCO.

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população. E jogou para a ilegalidade a principal forma de sobrevivência da maior

parte dos moradores dos bairros rurais (Figueiredo, 2000).

Iporanga é um dos municípios que tem a maior quantidade de

Comunidades de Quilombos identificas entre elas a comunidade de Quilombo de

Praia Grande. A história desta comunidade e do próprio município de Iporanga

está ligada ao ciclo do ouro paulista.

Durante o século XVI, circulavam histórias em Iguape e Cananéia sobre a

existência de ouro na região de Eldorado e Iporanga que “que jorrava livremente e

abundante no leito de seus rios” da região. Essas histórias seduzem os aventureiros

que fazem uma expedição para encontrar o “Eldorado”. Em 1576, um grupo de

pessoas chefiadas por Garcia Rodrigues Paes, sobrinho do bandeirante Fernão Dias

Paes, Nuno Mendes Torres, Antonio Lino de Alvarenga e José de Moura Rolim

sobem o rio Ribeira de Iguape em busca de ouro. Eles chegam no dia 12 de junho,

véspera de Santo Antonio, a uma várzea localizada a oito quilômetros da foz do

Ribeirão de Iporanga. Resolvem se fixar neste local iniciando os preparativos para

a criação de um garimpo, assim, nascia o “Garimpo de Santo Antonio”. O garimpo

cresceu com a chegada de novos faiscadores que formaram um arraial que crescia

e prosperava. Esse novo povoado crescia em habitações e casas de comércio com o

dinheiro vindo dos garimpeiros da região. O trabalho nos garimpos era realizado

pelos escravos que escavavam o leito dos rios a procura de ouro, chegando a

alterar o seu curso como na foto abaixo do Ribeirão de Iporanga.

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O trabalho dos escravos nos garimpos deixou marcar que podem ser

percebidas por nós hoje. Como a formação de amontoados de pedras deixados às

margens do Ribeirão de Iporanga. Muitos escravos garimpavam clandestinamente

e “escondiam o produto de seu trabalho em garrafas e gomos de bambu, visando

possivelmente a compra de sua liberdade junto a seus senhores.” (FIGUEIREDO,2001:02)

Nos livros de casamento e batismo da Igreja de Iporanga e no cartório da cidade

existem vários registros de escravos “libertos”15 e cartas de alforria que

provavelmente foram compradas dessa forma.

A partir de 1730, devido às dificuldades para se atingir o rio Ribeira pelo

ribeirão de Iporanga surgi um novo núcleo de habitações próximo ao rio Ribeira.

Esse novo povoado crescia em habitações e casas de comércio com o dinheiro

vindo da região.

“Em meados de 1776, inicio-se a arruamento mais planejado do povoado que surgia naturalmente. Algumas famílias que não vieram com o intuito de explorar o ouro e sim para cultivar de terra, deslocaram-se tanto rio abaixo, como rio acima, onde se estabeleceram plantando arroz, milho, mandioca e principalmente cana de açúcar, proporcionado com isso, o surgimento de futuras pequenas indústrias de rapadura aguardente e farinhas, que seriam vendidas nos povoados vizinhos, ao mesmo tempo, construíam-se

15 Termo que aparece nos livros de registro de batismo e casamento da Igreja de Iporanga depois do nome de ex-escravos.

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grandes sobrados e ricas vivendas emprestando ao povoado um aspecto senhorial.”

Com o declínio do ciclo do ouro e as dificuldades de acesso ao antigo arraial

dão início a um movimento para a construção de uma nova capela no novo arraial,

sendo liderado pelo Padre Bernardo de Moura Prado e o Capitão José de Moura

Rolim. O padre Bernardo consegue que Dona Escolástica Maria Carneiro doe um

terreno para a construção da Capela e a população faz um mutirão plantando arroz

para a levantar o dinheiro necessário. Assim se iniciam as obras de construção da

Capela que terminam em 1821.

Iporanga crescia com o surgimento de novas indústrias de aguardente,

rapadura e beneficiamento de cereais intensificando seu intercâmbio comercial

com as povoações vizinhas. Seu porto se tornou:

Igreja Matriz de Nossa Senhora de Sant´Anna de Iporanga

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“uma importante via de acesso, único porto fluvial de onde se poderia partir em demanda, ao litoral, permitindo o intercâmbio comercial das regiões vizinhas com o Planalto, através do transporte de tropa até Iporanga e daí por intermédio de frotas de embarcações (canoas) que desciam e subiam o Ribeira, transportando as mercadorias transacionadas. Fazendo intercâmbio comercial entre cidades importantes como Itapeva (antiga Faxina), Itararé, Ibiúna, Itapetininga, Sorocaba e outras, através de tropas de muares.”(FIGUEIREDO,2001:2).

Em 1830, o povoado foi elevado a categoria de Freguesia de Sant’ Anna de

Iporanga. Sendo, em 1873, elevado a Vila, com o nome de “Villa de Sant’Anna de

Iporanga”. No mesmo ano passou a Cidade de Iporanga.

A libertação dos escravos, em 1888, levou a diminuição da mão de obra na

região de Iporanga, pois boa parte da população local era composta por escravos.

“Os escravos, livres do julgo de seus senhores, internavam-se pelo sertão adentro

estabelecendo-se por sua própria conta e iniciando-se no ramo da agricultura

doméstica”(FIGUEIREDO,2001:02). Eles procuraram se instalar em locais já

ocupados por populações negras que fugiram durante a escravidão, dando origem

à formação de diversos povoados, entre eles, Nhunguara, Bombas, São Pedro, Poço

Grande, Praia Grande.

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4. A Comunidade de Praia Grande

A comunidade de Praia grande era composta pelos bairros de Praia Grande

e João Surrá sendo que este último também foi apontado pela Igreja como

comunidade de quilombos. Segundo os moradores de Praia Grande eles eram

“uma coisa só” mas resolveram dividir a comunidade respeitando a organização

política do país já que João Surra encontra-se no estado do Paraná e Praia Grande

no estado de São Paulo. Porém, existem relações de parentesco, tradições e laços

econômicos que unem as duas comunidades. Segundo os moradores de Praia

Grande, quando resolveram organizar sua associação de quilombos decidiram

formar duas associações uma em Praia Grande e outra em João Surra. Neste

relatório utilizarei o termo “Praia Grande/João Surra” para contar a história do

bairro Praia Grande pois a história dos dois bairros esta profundamente

relacionada. Alguns membros da Comunidade de João Surra plantam nas terras de

Praia Grande devido a um acordo feito entre as duas comunidades.

Chegada à Comunidade de Praia Grande

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Essas pessoas a assistiram as reuniões que fizemos com a Comunidade de Praia

Grande para conhecer melhor o nosso trabalho1.

O Bairro de Praia Grande está subdividido em localidades que foram

nomeadas pelos moradores a partir de características geográficas. Estando

subdividido desta forma (ver mapa histórico):

- Aberta

- Martinho

- Praia Grande

- Bofe de Paca

- Poço Grande

- Amoras

Essas nomeações são muito antigas aparecendo no livro de registros de terras

de 1855 e continuam sendo usadas até os dias de hoje. O nome Praia Grande se

deve as praias de areia fina que se formam ao longo do rio Ribeira de Iguape

dentre as quais a de Praia Grande é uma das maiores.

1 Os moradores de João Surrá pediram ao ITESP para que fosse feito o trabalho de reconhecimento desta comunidade com Remanescente de Comunidade de Quilombos chegando a figurar o nome desta nas nossas listas de comunidade a serem trabalhadas. Porém, como ela se encontra no estado do Paraná não podemos realizar tal tarefa.

Vista da principal praia do bairro de Praia Grande

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Os depoimentos recolhidos em Praia Grande, mapas antigos, registro de

terras e da paróquia de Iporanga nos possibilitaram reconstruir a trajetória deste

quilombo, evidenciando que o território em questão vem sendo ocupado por esta

comunidade, aproximadamente, desde 1863. O subdelegado de Iporanga, João

Paulo Dias, noticiava a presidência da província, em ofício de 28 de setembro de

1863, a existência de negros aquilombados nas proximidades do rio Pardo,

solicitando providências conforme transcrição integral do documento apresentado

no LA-MPF(1998) :

"Por informações dadas por alguns moradores do Rio Pardo do Disctricto desta freguezia que, nos sertões de mesmo rio distante d’ esta vinte e cinco léguas mais ou menos, sertões que divisam com o da Província do Paraná, se achão aquilombados alguns escravos fugidos do Norte desta Província he de necessidade destrui-los pois que do contrario torna-se mais perigoso e graves prejuízos, consta mais que para ali tem se dirigido alguns criminosos que talvez estejão reunidos, e como esta subdelegacia querendo ver se pode batel-os e não podendo o fazer algum dispêndio não so pela distancia como pelo perigo da viagem do Rio por ser caudaloso, embora os donos dos escravos tenhão de pagar as despezas, não se pode fazer por já ter acontecido com captura de alguns escravos nesta, os donos leval-os para mandarem pagar e nunca mais se lebrão que he devido a não se poder conserva-los na cadeia desta Freguezia por não offerecer segurança e ia por mais de huma vez tenho representado para remediar-se com esse melhoramento urgente que ate hoje tem sido esquecido.Tenho de fazer lembrar a Vossa Excelência que com gente do lugar não pode fazer diligencia de tal natureza por ser perigoso e mesmo alguns avisão aos que se pretende capturar; Vossa Excelência a ter de mandar alguns permanentes para esse fim, antes que dessa sião para esta tenha Vossa Excelência a bondade de participar-se para desta dar os detalhes a fim de chegarem aqui desconhecidos. Aproveito a occsião para fazer sciente a Vossa Excelência que os permanentes que estão em Apiahy não devem por la ser muito conhecido.Tenho mais a levar ao conhecimento de Vossa Excelência que já faz mezes que levei ao conhecimento do Senhor Doutor Chefe da Polícia esta mesma participação porem pelo silincio que tem havido julgo ter levado descaminho bem como outro mais officios

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que ao mesmo tenho dirigido. Deos guarde Vossa Excelência por muitos annos. Subdelegado de Policia de Iporanga, 28 de Setembro de 1863 “ (pg: 98-99).

Esta carta é importante para compreender o processo de formação do Bairro

de Praia Grande. A descrição da região corresponde a atualmente aos bairros de

Praia Grande (SP) e João Surrá (PR). Segundo os relatos de moradores, as

primeiras famílias que ocuparem a região eram de escravos fugidos que vieram em

parte dos garimpos de Iporanga e outra parte fugida do norte da província de São

Paulo para Iguape e depois seguia para Iporanga.

Segundo os moradores de Praia Grande as duas primeiras famílias a

chegarem na região são os Corimbas e os Mouras. Os Corimbas são todos os

membros das famílias de sobrenome Pereira de Souza e os Mouras são as famílias

de sobrenome Moura de Almeida e Pereira da Silva. Os moradores de Praia

Grande contam que essas denominações surgiram com a liberdade dos escravos

quando uma parte deles escolheram o nome do patrão como sobrenome e outro

grupo não aceitou esse sobrenome. Srº Benedito Celestino de Moura2 relata como

isso aconteceu.

(Patrícia) - É porque antigamente vocês recebiam o sobrenome do patrão?(Benedito) - É isso aí! Então ele não aceitava aquilo lá de Moura, mas esse lado meu, que eu sou Moura, né. Me enterro até o cabelo, por causa disso. Então correram todos esse tempo, quando houve a libertação todo mundo fugiu, um foi pro lado, um vai pra outro, se esconde. Faze uma (....) feito uma coloninha, esconder naquela parte.(Patrícia) - E ficaram?(Benedito) - E firaram, né. Mas não tinha, aquela nação não tinha nome. É a mesma coisa que você cria um porco, aquilo é porco, se cria galinha, aquilo é galinha. Então quando fizeram aquela coisa não punhava nome. ‘Vamo punha um nome no porco, ha vamo punha Joaquim não sei que lá’. Essa nação de Moura, minha nação, ficaram sem, mas só que não punharam nome assim e dava outro nome e ficava. Então esse lado, desse homem o Joaquim de Moura, esse homem foi que formou Iporanga, sabe disso.

2 Conhecido em Praia Grande como Mourinha.

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(Patrícia) - Ha, Ha(Benedito) - Então ele pegou e todo mundo falou “há nosso patrão é tão bom pra nós e nenhum de nós saí com a assinatura.” “ Há eu não, com a assinatura desse cabra, eu é?! Eu ponho o nome do cãomas não ponho o nome desse cara”(...) “ Mas ele era tão bom pra nós”. Por que se a gente gosta de uma pessoa, aí né, ponha lá não sei que de Moura, outro lá a avó é não sei que de Moura. A donde que ficou aquela Mouraiada.

Os Mouras vieram de Iporanga eram escravos do Capitão José de Moura

Rolim3. O termo nação utilizado pelo Srº Benedito para se referir, a agrupamentos

de escravos, é citado em relatos de moradores de outras Comunidades de

Quilombo, como Ivaporonduva. Segundo MIRALES (1998) os quilombos “foram

espaços construídos junto aos processos de resistência e que levaram à formação de núcleos,

que são chamados pela população local de nação. O que define cada nação é a diferenciação

dos grupos sociais originais internos as comunidade, que são identificados pelas famílias ”

(pg. 16). Na África a família é extensiva englobando uma vasta rede de relações de

parentesco sobre um determinado território que inclui os mortos (ancestral mítico

ou não). O nome de uma família é capaz de a localizar não só dentro do clã como

no espaço físico que ocupa. Sendo assim, a família de Benedito Celestino de Moura

não tinha nome, enquanto outras tinham, como é ocaso da família Corimba.

Segundo Srº Benedito uma parte de sua nação fugiu da fazenda do Capitão

Moura:

(Patrícia) - Fugiam então?(Benedito) - Fugiam. Pois é!(Patrícia) - Então antes da libertação eles fugiam?(Benedito) - Antes da libertação eles fugiram, né. Por que eles estão saindo já, porque estava a libertação. Eles estavam sabendo, então quem não tinha medo ia saindo.(Patrícia) - Então eles iam saindo, fugindo?(Benedito) – Então, quando eles pegavam, ô panhava mesmo!(Patrícia) - Hã...

3 O capitão José de Moura Rolim possuía várias extensões de terra em Iporanga, sendo que a família foi uma das fundadoras da cidade de Iporanga. Em anexos temos a massa de população do Arquivo do Estado de São Paulo onde se encontra a lista de escravos do capitão José de Moura Rolim Nesta lista figura o nome de um escravo denominado Braz, sendo que esse mesmo escravo aparece com designação “ liberto” na frete do seu nome nos arquivos da Igreja. Tudo

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(Benedito) - Panhava que vou te falar. Então foi bom que eles ficaram assim. Quando houve a libertação todo mundo ficou reclamando porque o Capitão Moura nunca fez aquilo, né.

Mesmo antes da libertação muitos escravos fugiram para a região de Praia

Grande/João Surra reforçando a tese4 de que o quilombo existente na região pode

explicar a origem da comunidade. Esse é o caso de Belinda Moura de Almeida

irmã do avô de Benedito Celestino de Moura. Uma jovem que por volta de 1865 a

1870, vivia vagando pela região de Praia Grande, tudo indica fugida da fazenda do

Capitão Joaquim de Moura5. O seu neto Pedro Pereira da Silva6 conta como seu

avô a encontrou: “ ela veio de Iporanga, vivia na fazenda lá. Era moça pequena, nova e

conheceu o Joaquim. Ele não queria ir pra Guerra porque eles estavam pegando pessoas no

Bairro de Praia Grande pra ir pra a Guerra do Paraguai. Então, ele casou com a avó, pra

não ir pra Guerra”. Assim seu avô teria casado com sua avó, que era uma escrava

fugida das fazendas do Capitão Joaquim de Moura, para se livrar da Guerra do

Paraguai. O processo de recrutamento militar era violento se intensificando com a

Guerra do Paraguai (1865 a 1870). Segundo SOUZA (1996), muitos homens

solteiros procuravam no casamento uma forma de escapar da Guerra do Paraguai,

pois os casados, por lei estavam livres do recrutamento.

“Os estratagemas para fugir ao voluntarismo e, em alguns casos, o descaro com que os desertores o faziam, atormentavam o governo imperial. Em dado momento, o ministro Nabuco de Araújo alertou o presidente da província do Rio de Janeiro que os casamentos realizados posteriormente à data de convocação seriam considerados atos de má-fé, visto que os casados estavam isentos por lei”(pg. 61).

4 Essa tese foi apresenta no Laudo do Ministério Público. “O quilombo existente no Rio Pardo pode ser uma importante indicação também para a compreensão do processo de formação das comunidades situadas acima de Pilões e Maria Rosa, como João Surra, Cangume, Bombas, Claudia e Praia Grande, que não foram contemplados pelo presente trabalho, embora situem-se no mesmo continuum histórico, econômico e social representado pelo Vale do Ribeira.” (pg.102)5 Pelos documentos da Paróquia de Iporanga ela era escrava do Capitão Joaquim de Moura6 Conhecido em Praia Grande com Pedro Moura

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O Marido de Belinda era branco descendente de espanhóis conhecido como

Joaquim Fogaça, sendo que, seu nome de batismo era Joaquim Pereira da Silva.

Segundo relato dos moradores ele vivia próximo a uma localidade conhecida como

Amoras do lado do estado do Paraná (ver mapa histórico).

Segundo Benedito Celestino de Moura antes de seus parentes chegarem a

Praia Grande eles viviam em uma faixa de terra próximo a Iporanga que não tinha

dono. Assim ele relata:

(Patrícia) - Ela era o que do seu avô?(Benedito) - Ela parece que sobrinha do meu avô.(Patrícia) - Sobrinha do seu avô, essa Mariquita? Escrava?(Benedito) - É. Morava num sítio.(Patrícia) - O senhor não lembra o nome do dono do sítio?(Benedito) - Não lembro. Lá foi coisa que eles formaram lá, quando eles escaparam formaram aquele negócio lá.(Patrícia) - Há quando eles escaparam !(Benedito) - Quando eles escaparam da escravidão, então fui que pegaram aquela terra. Aí, ficaram lá, morando lá, naquele trechinho, muito tempo lá. Formaram uma Igrejinha de palha de Nossa Senhora do Livramento.(Patrícia) - Em que lugar mais ou menos?(Benedito) – Alí! Lá naquele Ribeirão de Iporanga. Lá tem uma cruz, né. Então é lá.......................................................................

(Patrícia) - Esse pessoal que fugiu e vivam perto do arraial de Santo Antonio também eram Moura? Essa Mariquita também era Moura?(Benedito) - Tudo eram Moura só que ali eles trocaram a assinatura, né, porque não quis ser escravo. Só que a minha descendência essa não quis trocar.

Segue abaixo, fotografia do lugar onde, segundo Benedito Celestino de

Moura, sua família teria vivido antes de chegar a Praia Grande/João Surrá. Nesse

local os moradores de Iporanga se reúnem para rezar pelos mortos. Ninguém sabe

bem ao certo a origem desse costume.

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Pelos relatos do Srº Benedito Celestino de Moura, e os registros da paróquia

de Iporanga o escravo Braz teria fugido da fazenda do capitão Moura e se

instalado nesse agrupamento7 de escravo, próximo a Iporanga, antes de mudar

para região de Praia Grande/João Surra. Esse escravo era tataravô do Srº Benedito

Celestino de Moura, sendo escravo do Capitão Moura. Ele figura na lista de

escravos da fazenda do Capitão Joaquim de Moura de 18128. Em 1836, aparece

batizando o filho Antonio ainda como escravo do Capitão. Antonio Moura de

Almeida é o pai da Belinda Moura de Almeida e do Benedito de Moura Rolim

Almeida, este último, avó de Benedito Celestino de Moura. Pelo relatado acima,

podemos entender que existia um quilombo nas proximidades de a Iporanga cerca

de 7 a 8 quilômetros, é de fundamental importância para entender a dinâmica de

ocupação de Praia Grande. Como já foi apontado pelo LA – MPF (1998):

“É forçoso concluir que as comunidades negras contemporâneas do Vale do rio Ribeira do Iguape guardam um vínculo histórico com antigos quilombos estabelecidos na região, uma vez gestadas a partir daquele campo de relações peculiar, contando com a participação de comunidade de escravos fugidos, que se constituiu na condição de possibilidade mesma de sua existência, definindo

7 Eram terras sem dono que os escravos fugidos, libertos ou simplesmente abandonados pelos donos se instalaram próximo à Cidade de Iporanga. Esse agrupamento era provavelmente um quilombo8 Massa de População de Apiaí rol. 1 do Arquivo do Público Estado de São Paulo.

Bica Cunhal Canhambora localizada a uns 7 quilômetros de Iporanga.

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um espaço territorial no qual a apropriação fundiária tradicional negra, em suas várias formas, era tolerada ou pelo menos não passível de repressão, seja por dificuldade material de realização da mesma, seja pelo desinteresse nos territórios apropriados pelas comunidades, seja pelo interesse na comercialização da produção camponesa” (pg.180).

Esse quilombo próximo a Iporanga se instalou em terras devolutas e servia

de abrigo a escravos fugidos inclusive de outras regiões do estado que usavam o

lugar como base para descanso e alimentação, e depois seguiam viagem para

outras localidades como Praia Grande. Apontado no sentido da “formação de um

campo negro de relações sociais incluindo tanto negros em situação não-ilegal quanto

aqueles em situação de ilegalidade, como escravos fugidos e abandonados estes últimos

também sujeitos a apreensão e venda diretamente pelo Estado ”9 (LA –MPF,pg.180).

A existência dessas terras livres ocupadas por negros durante a escravidão

ajuda a explicar como outras famílias chegaram à região, como é o caso dos

Corimbas. Antonio Marmo Pereira de Souza10 afirma que descende dos Corimbas

relatando que seu avô José Cirineu de Souza veio fugido do Norte da província

para Iguape e de lá para Iporanga, ficando escondido nos arredores da cidade.

Nesse meio tempo, aparece uma diligência de Iguape com policiais na sua

perseguição. Ele se embrenhou pela mata margeando o rio Ribeira até chegar na

região de Praia Grande/João Surrá. Nessa fola vieram outros com ele como o

irmão Pedro Pereira de Souza11. Porém, José Cirineu de Souza havia se apaixonado

pela filha do seu patrão e após a libertação dos escravos voltou para buscá-la.

Segundo os relatos de seu neto Antonio Marmo Pereira de Souza sua avó era filha

(Joana Pereira de Souza) de um capitão Mor de Iguape, sendo que, ao morrer

deixou sua herança para a filha que teria comprado ou recebido como herança

9 Este campo negro inicia sua formação ainda no século XVIII, na decadência das lavras garimpeiras, e consolida-se durante o século XIX, na decadência da lavoura comercial de arroz, definindo as características atuais das comunidades atuais das comunidades negras do vale do rio Ribeira do Iguape(LA-MPF,1998).10 Conhecido em Praia Grande como Antonio Corimba.11 Pedro Pereira de Souza também é conhecido em Praia Grande com Pedro da Aberta. Uma referencia ao nome da localidade onde ele morava no Bairro de Praia Grande.

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terras em Praia Grande. Uma parte dessas terras corresponde, atualmente, a uma

área de terras devolutas, que segundo o Srº Antonio apenas uma parte foi titulada

em nome dos membros de sua família, em 1969. Ele entrou com um processo na

Procuradoria do Patrimônio Imobiliário de Apiaí, com o documento de partilha de

seu avô no qual consta que são herdeiros daquelas terras.

Com a libertação dos escravos a família dos Corimbas teve que adotar um

sobrenome. Era comum aos ex-escravos escolherem o sobrenome do patrão, de

uma pessoa ilustre da região ou do padrinho de seus filhos, etc. Depois da

libertação dos escravos, as famílias dos Corimbas adotaram o sobrenome Pereira

de Souza, porém usavam o sobrenome Corimba. Existem registros de casamento e

batismo na paróquia de Iporanga onde figura o nome de Pedro Corimba12 em 1909.

A origem desse nome Corimba tem várias versões, entre elas, a citada por Clotilde

Mariano Pereira uma das moradoras mais antigas de Praia Grande. Ela conta que

seus avós estavam na senzala ou paiol com um grupo de escravos. Um deles estava

contando um “causo” do Pai Corimba que nadava nos rios e andava por essas

matas. O fazendeiro ficou escutando o causo e quando terminou ele começou a

chamar o contador do causo de Pai Corimba. Então aquele grupo que estava

escutando o “causo” ficou conhecido como Corimba. Uma outra versão para o

nome Corimba seria o peixe de nome Corimba que existe atualmente no rio

Ribeira. Porém, pelo levantamento apresentado em um relatório de Carlos Rath de

185513, onde ele levanta toda a fauna e flora da região, ele não relaciona no quadro

de espécies da região esse peixe. Nas pesquisas que fiz sobre a palavra Corimba

encontrei referencia dela como o nome do bairro sede da província de Luanda em

Angola/África. Nos registros de massa de população existem muitas referencias a

escravos vindo da Nação de Luanda, como era conhecida essa ilha. Benedito

Celestino de Moura nos conta como as duas famílias chegaram ao Brasil.

(Benedito) - Quando foi o tempo dos escravos, ôôô sei que lá Alves, foi lá no...como que é o nome?

12 Pedro Corimba é Pedro Pereira de Souza.13 Carlos Rath. Descripão da Região Fluvial da Ribeira de Iguape, 1855-1857.

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(Patrícia) - Alves, Alves quem era o Alves. (Benedito) - Sei que lá de Alves.(Patrícia) - Era uma fazenda de um cara chamado Alves(Benedito) - Não sei, deixa eu lembrar. Ó ... Na África, foi lá que comprou, naquele tempo trazia o pessoal de navio.(Patrícia) - Há, esse Alves foi na África...(Benedito) - É foi na África e comprou os escravos - Se vê, é coisa que deixa meio revoltado a Nação raba, quer dizer rabeira fica até meio revoltado...Então aquela família que veio de lá, daquela parte, lá na África, então veio de lá e trouxeram. Então tinha um tal de Capitão Moura que era um chefe daquela negrada. Era um homem muito beleza né, muito bom e não maltratava os escravos dele. Esse fulano Alves dividiu aquele monte de escravos com ele e trouxe outro tanto pro Capitão Moura. Bom, o Capitão Moura ficou com aquela turma ali, que ficou com ele, também comprava, só que aquele nome naquele tempo. É como o cumprade Messias, família Corimba, família não sei que lá é que aquele não aceitava a descendência dele.

Nesse relato Benedito Celestino de Moura afirma que eles vieram da África.

A nação dele não tinha nome enquanto que a outra nação se chamava Corimba.

Dessa forma o nome Corimba, provavelmente, se refere ao lugarejo14 de Angola de

onde essas populações foram trazidas para o Brasil. Segundo CARRIL (1995), uma

parte dos escravos trazidos para o Brasil vieram de Angola. Luanda era um

importante ponto de comércio da África devido a sua geografia insular a maior

parte dos navios aportava na ilha para realizar suas transações comerciais. Os

escravos eram comprados em Luanda e de lá seguiam para o Brasil.

4.1. De Quilombo à Bairro Rural Negro: histórico da ocupação do

território da Comunidade de Praia Grande

O território ocupado historicamente por esta comunidade localiza-se à

sudoeste da cidade de Iporanga subindo o rio Ribeira de Iguape. Esse bairro à

Nordeste limita-se com Bairro do Funil, ao Norte pelo bairro Descalvado, à

14 Atualmente o bairro sede da província de Luanda na África

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Noroeste o bairro Cotia, a Oeste o bairro Barra do rio Pardo, à Sudeste com o rio

Pardo no estado do Paraná, ao Sul com o bairro João Surra (PR) e a leste com o

bairro Marrecas (PR). Para melhor caracterização da ocupação do território de

Praia Grande foi elaborado um mapa histórico da região15, referente ao final do

século XIX até o começo do século XX16.

As famílias dos Corimbas e os Mouras foram as duas primeiras a chegarem

na região de Praia Grande/João Surra (PR). Por volta de 1863, os escravos que

fugiram das fazendas de mineração da região procuraram se instalar em lugares de

difícil acesso longe das margens dos rios. Após a libertação dos escravos, foram

chegando novas levas de familiares, temendo que a escravidão voltasse

embrenharam-se nas matas fugindo para longe das terras de seus senhores. Assim,

a família Corimba foi ocupando a localidade conhecida como Praia Grande (ver

mapa histórico), próximo do leito do rio Ribeira de Iguape nos lugares conhecidos

como Aberta e Martinho (ver mapa histórico). Antonio Marmo Pereira de Souza

mostrou documentos (ver anexo) da compra e venda da localidade Martinho em

1891, pelos filhos de José Pereira de Souza e Joana Pereira de Souza17. O Srº

Antonio também afirma possuir os documentos de partilha de seus avós José

Pereira de Souza e Joana Pereira de Souza de outras terras localizadas em Praia

Grande18.

Os Mouras atravessaram o rio Pardo e se instalaram em João Surra. Foi por

meio do casamento que os Mouras foram vindo do bairro de João Surra, hoje

pertencente ao estado do Paraná, para Praia Grande/SP. Estabelecendo uma teia 15 Esse mapa foi elaborado por Rose Leine Bertacco Giacomini e Helena Maria Gonçalez a partir dos depoimentos dos moradores mais antigos de Praia Grande e de um mapa da região elaborado por João Pedro Cardoso em 1908,quando chefiou uma expedição no rio Ribeira de Iguape e rio Pardo, onde figuram os nomes dos moradores que ele encontrou no seu caminho.16 Durante esse período ocorreram deslocamentos de famílias de um lugar para outro, por isso, você pode encontrar o mesmo nome em lugares diferentes. Além disso, existem casos de pessoas, por exemplo, que não eram moradoras do local em 1880 e que em 1930 já haviam morrido.17Os doze irmãos são: Benedito Pereira de Souza, José Isaías Pereira, Joaquim Marinho Pereira, Maria Pereira de Souza, Cecília Pereira de Souza,Virginia Pereira de Souza, Benedita Pereira de Souza Emanuel Pereira de Souza (ver anexo). Eles comprara de Angosia de Pontes e Diogo Alves da Motta que herdaram essas terras do sogro, que figura no livro de registro de terras de Iporanga como herdeiros dessas terras18 Ele também nos mostrou o imposto pago por Pedro Pereira de Souza da localidade Aberta e Martinho de 1912, Manuel Francisco Pereira da localidade Praia Grande de 1928 e do Martinho em 1928.

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de relações familiares amarradas pela forma de transmissão da terra por herança.

Segundo Antonio Marmo Pereira de Souza, antigamente, o pai que tinha grande

quantidade de terras doava pedaços de terras a seus filhos conforme eles fossem

casando, independentemente do sexo. Dessa forma, vários membros da família

Moura passaram a morar em Praia Grande com seu marido ou esposa. Como, por

exemplo, o caso de Benedito Celestino de Moura e Manuel Moura de Almeida dois

irmãos que eram de João Surra e casaram com duas moradoras de Praia Grande da

família Corimba. Como em João Surra existe conflito entre a comunidade e os

fazendeiros que estão invadindo as terras que tradicionalmente pertenciam a sua

família, esse conflito foi o principal motivo, pelo qual, tiveram que morar nas terras

da família da esposa. Com o tempo, também, trouxeram a irmã solteira que foi

expulsa das terras da família e que com a autorização da família Corimba pode

permanecer em Praia Grande.

Os casamentos também se deram com pessoas vindos de outros quilombos

situados rio abaixo, principalmente, da Comunidade de Pilões. Como é o caso de

Maria Paula Alves, uma das moradoras mais velhas de Praia Grande, relata que

seu pai veio de um quilombo. O avô era conhecido como Domingos “Coisa Ruim”.

Esse nome se deve ao fato dele ser muito corajoso19.

Além dessa família outras foram chegando à região por meio do casamento:

como os Freitas Pereira, os Pedrozo e os Florindo de Freitas. Uma outra forma de

entrada nessa comunidade muito curiosa foi por meio de adoção informal de

crianças órfãs ou que os pais não tinham condições de criar. Antonio Marmo

19Ela conta uma das façanhas de seu avô: (Patrícia) - Contaram uma história do Domingos Alves que era corajoso que andava de canoa?(Benedito)-Vou contar uma história só que eu me a lembro. O pai dele era Domingos o coisa ruim.(Patrícia) - O pai dele o que?(Benedito) -O pai dele foi o Domingos coisa ruim porque era muito esperto pra faze as coisa. Aí tinha uma cachoeira muito feia demais que ninguém passava, não passava canoa de jeito nenhum. Aí diz que tinha um lenheiro pra baixo daquela cachoeira, aí aquela lenha eles trouxeram tudo em casa. Aí o filho estudou fez uma facha de lenha tocou na cachoeira abaixo, desceu, passou uma corda muito grande foi puxando aquela corda por terra. Ele desceu aquela cachoeira e embarcou na balsa chegou no fundo da casa do pai dele, chegou lá, botou a lenha no fundo e falou assim: “Pai a lenha do senhor tá aqui. Há você (...) coisa ruim. Só mesmo assim pra você tentar cruzar, porque sem o um você não passava nessa cachoeira.”Puseram isso de coisa ruim no Domingos Alves, coisa ruim, coisa ruim.

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Pereira de Souza nos conta que seu pai Manoel Francisco Pereira quando andava

pela região e via uma criança barriguda, de pé no chão e doente ele pedia para mãe

se não queria dar aquela criança para ele criar. Em outros casos, quando os pais

haviam morrido20 sem deixar parentes que pudessem ou quisessem cuidar da

criança. Assim os Guedes, Pontes, Motta, Matos e Ribeiro passaram a ocupar o

território de Praia Grande.

A população do Bairro, com o passar dos anos, foi aumentando. A família

Corimba constrói um engenho de cana e uma olaria na localidade conhecida como

Praia Grande (ver mapa histórico). Cornélio Schimidt, em Exploração do Rio Ribeira

de Iguape, de 190821, relata ter encontrado um lugar próximo à cachoeira de Praia

Grande chamado Curimbá onde passou à noite.

“Depois de atravessar as corredeiras do Travessio cachoeira Grande, a barra do rio Betary, na margem esquerda, a corredeira do Vianna, a do Isidio, a de S. João, a do Mandú, a da Nhanhola, as do Funil de baixo e de cima, a da Praia Grande, chegou ao logar conhecido por Curimbá, onde pousou, em um engenho, propriedade de uns negros dos quaes um d’ elles era alienado” (pg. 02)

Segundo Clotilde Mariano Pereira, a família Corimba tinha uma casa nesse

local onde todos moravam juntos e tinha um engenho que produzia rapaduras e

melaço que eram vendidos em Iporanga. Rio acima em uma localidade conhecida

como Aberta (ver mapa histórico) existia uma olaria de propriedade de Sebastião

Pereira da Silva (família Moura) Manoel Francisco Pereira (família Corimba) e

Pedro Pereira de Souza. No mapa feito por João P. Cardoso de 190822, figura o

nome de Pedro Corimba morando na localidade conhecida como Aberta do lado

do rio Ribeira de Iguape. Pedro Corimba era o nome pelo qual era conhecido Pedro

Pereira de Souza membro da família Corimba. Na próxima página apresentamos

uma cópia do mapa original elaborado por João P. Cardoso e publicado em 1914

no livro Exploração do rio Ribeira de Iguape.

20 A malária dizimou boa parte da população de Praia Grande. Figura na memória coletiva do grupo a lembrança de uma noite em que morreram famílias inteiras devido à malária. 21 Essa é a data da expedição sendo que usei uma publicação de 1914. Esse livro foi escrito por vários pesquisadores e coordenado por João P. Cardoso.22 João P. Cardoso foi coordenador da expedição da qual fez parte Cornélio Schimidt.

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PLANTA DO RIO RIBEIRA DE IGUAPE E SEUS AFLUENTES(1908): Comissão Geográfica e Geológica do Estado de São Paulo. Chefe João P. Cardoso. ESCALA 1:50000.

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Subindo o rio em uma localidade conhecida como Martinho também existia

um cemitério e uma outra olaria. Segundo os moradores de Praia Grande essa

olaria fornecia telhas para Iporanga. O cemitério era muito antigo. Lá eram

enterradas as pessoas que morriam em conflitos com os índios. Posteriormente, ele

foi usado para enterrar crianças que nasciam mortas e em meados de 1940, foi

abandonado. Ali também eram enterrados índios mortos nas batalhas. A presença

indígena era muito forte na região e os conflitos com índios muito comuns. Alguns

moradores de Praia Grande afirmam que sua bisavó era índia, sendo “pega a laço”.

No rio Ribeira de Iguape na sua margem direita encontra-se uma localidade

conhecida como Praia Grande limitando-se à Nordeste pelo Bairro do Funil, ao

Norte pelo bairro Descalvado, à Noroeste o bairro Cotia e a Oeste o bairro Braço do

rio Pardo. Nesse lugar viviam muitas famílias que plantavam arroz, feijão, milho,

mandioca e cana de açúcar além da criação de pequenos animais para consumo

doméstico como galinhas e porcos. No local também existia uma olaria de

propriedade da família Corimba.

Subindo o rio Ribeira até a Barra do rio Pardo, do lado de Praia Grande que

faz divisa com o estado do Paraná existiam inúmeras famílias que se dedicavam à

plantação de arroz, feijão, cana de açúcar, mandioca, frutas como a jaboticaba,

banana e o abacaxi. Eles tinham engenhos e produziam a rapadura e o açúcar

”amarelo” (açúcar mascavo). Schmidt, em 1908, relata a presença de uma

população, no rio Pardo divisa com o Paraná. Segundo ele: “as suas margens são

habitadas por lavradores que tiram vantajosos resultados dos trabalhos (pg. 97).” Esses

lavradores comercializavam com Curitiba por ser mais fácil o acesso.

Para os moradores de Praia Grande o período de 1920 a 1940 foi o auge do

desenvolvimento para a comunidade devido ao crescimento demográfico e a

comercialização de seus produtos na cidade de Iporanga, Apiaí e também no

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estado do Paraná1. Segundo Srº Antonio Marmo Pereira de Souza2, em 1940, Praia

Grande era maior que Iporanga em número de habitantes.

Em 1969, a PPI (Procuradoria do Patrimônio Imobiliárioa) do estado de São

Paulo promoveu a titulação das terras na localidade de Praia Grande. Segundo os

moradores durante o processo ocorreram vários problemas. O Srº Antonio Marmo

Pereira, Clotilde Mariano Pereira e Messias Pereira de Freitas descrevem o

processo de titulação:

(Clotilde) – Nesse terreno aí, desde córrego pra cima até quase a barra do rio Pardo e ali pra cima no córrego da Aberta. Ali tudo era, tudo nós tinha folha de partilha desse terreno(Antonio) – Tudo da Curimbada.(Clotilde) - Da Curimbada tudo. Depois que veio esse negócio de terra cada um vai ser titulado no lugar onde ficava cada um tirava um pouco de terra. Daí um tirava, outro tirava um pouco. Daí aquele que sobrava, porque o compadre Laurindo quando foi tirar o pedaço dele (...) eles não deixaram.(Rose) – Você ficou sem pedaço?(Laurindo) - É!(Antonio) – Quando Benedito Mario que era meu primo, então deram pra ele, sendo que ele mora aqui. Então o topógrafo pra deixar uma dessas áreas livre. Pegou o título de Benedito Mario, que morreu, jogou lá em baixo, porque depois ficar fácil pra depois compra do Benedito Mario. É certo, com certeza, eu não tinha pra quem falar isso mas era comprado. Chega aqui “Ah! Se ficar com mais de dez alqueires você vai pagar um imposto danado”. Amedrontado todo mundo “Ah você não vai poder paga”. Ou então você passava o direito da roça pra o fulano. Por que o topógrafo chamava-se (...) esse camarada, entendeu. Com o propósito de deixar a terra pra esses, pra essa máfia que ta aí até hoje. Área que tem suspeita de ter minério, que está totalmente coberta de mata pra poder tirar título para poder tirar dinheiro no lá banco para outros afins.(Messias) – Mesmo o título da minha mãe. Nós somos três filhos, então no termo nós merecemos, né. Se fosse nessa documentação,

1 Por causa da proximidade física e fácil acesso.2 Ele também conta que em 1932, seu pai Manuel Francisco Pereira escondeu em Praia Grande revolucionários paulistas que lutavam contra Getúlio Vargas. Como não podia levar mantimentos de Iporanga para Praia Grande pois o rio estava sendo vigiado. Tinha que escondê-los no fundo da canoa chegando em um determinado ponto mergulhava no rio e usando um bambu para respirar atravessa o trecho vigiado pelo inimigo. Seu pai chegou a esconder armas dos revolucionários em sua casa que tiveram que ser enterras com sal no fundo da casa em Iporanga para se deteriorarem mais rápido.

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errada, tinha que ter pelo menos oito alqueires de terra cada um. No título da minha mãe não consta nem sete alqueires.(Antonio) – O! seu Benedito Celestino de Moura teve acho que o local o área maior tem. Uma das melhores porque. Dera pra ele exatamente pelo motivo de dar o título pra ele e comprar dele de volta. Graças a Deus ele teve cabeça, entendeu, igual compraram de Benedito Florindo.Deram depois falavam “não tem condição de pagar a terra”. Não foi isso compadre? Apesar que ele ficou também, num momento falaram alguma coisa. (Clotilde) – O fulano, né. Ele alega que ele comprou de Joana Corimba.(Rose) - É fala isso!?(Clotilde) – Fala.(Antonio) – Tá na documentação dele. Ele não tem mas ta lá. Ele comprou uma posse, né. Donde através de cartório, lá, falsificaram um recibo de Joana Corimba.(Rose) – Está que ele morava aqui?(Clotilde) – Hem?(Rose) – Mostrava que ele residia, então, ele tinha direito em ter o título?(Antonio) –Ele tava morando lá. (Rose) – Dizendo que tinha alguma coisa que ele mostrasse que ali era a terra dele.(Antonio) – Ele dizia que tinha comprado de Joana Corimba. Agora pergunta pra ela quem era Joana Corimba?Ela é mais velha do que eu.(Clotilde) – Era minha vó. Nem eu conheci minha vó.

Clotilde Mariano Pereira tem 76 anos. Sua avó Joana Pereira de Souza

nasceu aproximadamente em 1860. Quando Srª Clotilde nasceu sua avó já havia

morrido. Portanto, em 1969, quando foi realizada a titulação em Praia Grande,

Joana Pereira de Souza já estava morta. Durante o processo de titulação a família

Corimba perdeu parte de suas terras, pois diminuíram o terreno que seus avós

haviam comprado e em alguns casos das terras localizadas em frete ao núcleo de

Praia Grande. No título aparece o nome de João Francisco dos Santos e Outros.

Como o Srº Antonio Marmo Pereira de Souza foi a PPI e conversou comum juiz

que, segundo ele, para não criar mas confusão colocou no título de João Francisco

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dos Santos o termo “ e Outros” que quer dizer que os demais moradores de Praia

Grande que foram titulados também têm direitos sobre aquelas terras.

Além dos casos citados acima, existem outros que nos ajudam a entender a

ocupação atual do território de Praia Grande. Algumas pessoas de fora da

comunidade que se diziam amigos das famílias da comunidade levaram os

documentos para registrar o título em nome dos moradores e acabavam

registravam em seu nome ou simplesmente não registrando o título. Outro caso,

foi de pessoas da comunidade que não tinham registro civil e conseguiram o título.

E, logo em seguida, venderem suas terras para grandes fazendeiros da região. Um

outro caso peculiar foi o de Gregório Pereira da Silva que comprou as terras onde

vive atualmente, de Luiz Neves de Ayres de Alencar por meio de um contrato de

compra e venda sem registro em cartório. Luiz Neves de Alencar se comprometeu

em passar o título para o SrºGregório chegando a levar seus documentos com o

pretexto de tirar seu título. Porém, quando Gregório procurou o cartório nada

havia sido feito. O mesmo aconteceu com Antonio Ramalho, irmão de Ana

Ramalho que vive, atualmente, na terra.

Todos esses casos nos ajudam a entender como pessoas que não pertencem à

comunidade de Praia Grande entraram no território e hoje tem título dessas terras.

Após a titulação, nas décadas de 70 e 80, esses grupos de fora da comunidade

começaram a ocupar suas áreas usando membros da comunidade para derrubar a

mata, vender a madeira e fazer um pasto para o gado. Pelas fotos aéreas de 19853,

nota-se que as matas nativas foram destruídas nas áreas que pertencem aos

fazendeiros de fora da comunidade. Fato interessante é que ao percorrer o

território durante o trabalho de campo para elaboração do R.T.C pudemos

perceber que os lugares que os fazendeiros abandonaram a mata se regenerou.

Segundo os moradores de Praia Grande, várias nascentes de água haviam secado

devido ao desmatamento desordenado. Laurindo Gomes, que já foi Presidente da

Associação de Quilombo de Praia Grande, cita um caso de uma nascente que havia

3 Essas fotos aéreas do Vale do Ribeira foram realizadas pela Fundação ITESP em 1987, folhas n. 05 e 12.

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secado, depois que o fazendeiro desmatou a área para fazer pasto, devido às

restrições das leis ambientais, ele abandonou a área e a mata voltou a crescer, e

com ela a água voltou a brotar. As questões ambientais têm preocupado a

comunidade, aflorando conflitos, porque percebeu-se que muitas pessoas de fora

da comunidade invadem seu território para pescar na época da piracema, matam

pacas para vender sua carne até a caça esportiva dos macacos bugiu existe no

lugar. No território de Praia Grande existe uma fauna e flora diversificada que é

motivo de orgulho para seus moradores que procuram preservá-la contra a ação de

intrusos. Segundo Antonio Marmo Pereira de Souza: “Tinha um pessoal trilhando pra

matar Jacú. Eu fiz um esparramo com eles”. O pai de Antonio Manuel Francisco

Pereira de Souza, antes de morrer, pediu para que ele preservasse a fauna do lugar

e, não deixasse ninguém derrubar a mata. A área situada na margem esquerda do

rio Ribeira de Iguape em frente ao núcleo de Praia Grande foi um dos lugares que

o pai do Srº Antonio pediu para que fosse preservada.

A Comunidade de Praia Grande chama o lugar de “Reserva Florestal” e o

reivindica como pertencente ao território tradicional da comunidade já que muitos

Mata em regeneração da “Reserva Florestal” de Praia Grande

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moradores já falecidos viviam naquele local. Porém, eles não querem que a

cobertura vegetal da área seja destruída utilizando o local como uma reserva

sustentável. Alguns tipos de cipó utilizados pelos moradores para a confecção de

peças de artesanato, de utensílios domésticos e para o trabalho na roça crescem

somente nesse lugar, como o Timbopeva e Embu, Taquara de Lixa e Taquara de

Poça é usada na confecção de peneiras de arroz e feijão, vassouras, cestos para

armazenar e transportar produtos da roça, etc.

A maior parte dessas terras estão nas mãos de dois fazendeiros da região João

Francisco dos Santos e Núcio Roberto Chieffi. Segundo os moradores eles estão

interessados em transformar a área em pasto. Além disso, essa área é rica em

minérios como o chumbo.

Após a titulação alguns membros da comunidade que obtiveram o título

venderam suas terras, mas a maioria das famílias permanece no território de seus

antepassados à aproximadamente 140 anos. Uma parte da comunidade está

situada em terras tituladas de membros da comunidade que residem em São

Paulo. Outro grupo tem título, mas suas casas e plantações estão em terras de

pessoas que não pertencem à comunidade. É o caso de Maria da Paixão e seu neto

Décio Ribeiro. O irmão de Maria da Paixão vendeu metade de suas terras para um

fazendeiro de fora da comunidade, porém a venda não foi firmada no papel. As

terras de Maria da Paixão estão situadas ao lado das terras do irmão (João Pontes

Pacífico). Sua casa está construída na parte das terras que o irmão não tinha

vendido ao fazendeiro. Mas, o fazendeiro questiona isso alegando que é o dono de

todo o lote. Esse fato já levou a alguns conflitos entre Maria da Paixão e o

fazendeiro Geremias de Oliveira Franco que chegou a soltar seu gado nas

plantações de Maria da Paixão. Um outro caso parecido é o de Pedro Pereira da

Silva que tem sua casa construída nas terras, pelos documentos apresentados, de

Silvio Pereira de Souza. Segundo Pedro Pereira da Silva o topógrafo quando mediu

suas terras colocou a divisa em lugar errado. A terras de Silvio Pereira de Souza é

menor do que está registrado no título.

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Os únicos moradores da comunidade que são titulados e moram em suas

terras são Clotilde Mariano Pereira e Carlos Guedes. Uma boa parte das terras

tituladas está nas mãos de fazendeiros que não pertencem à comunidade. Segundo

os moradores essas terras são as melhores para o plantio, porém estão sendo

usadas como pasto para o gado.

No perímetro 40º de Apiaí existe uma faixa de terra devoluta onde residem

algumas famílias da comunidade e dois moradores de João Surrá plantam nessas

terras com autorização da Comunidade de Praia Grande. Além disso, tem uma

fazenda de um posseiro conhecido como “João” que não pertence à comunidade

mas, seu caseiro que reside na área pertence à comunidade de Praia Grande.

Durante os anos 90 a comunidade de Praia Grande começou a viver ameaça

representada pela construção da Usina Hidrelétrica de Tijuco Alto, projetada pela

Companhia Brasileira de Alumínio, do grupo Votorantim que suscitou a

emergência e a visibilidade do segmento negro no campo.

“Uma vez que as barragens determinariam o alagamento de parte de seus territórios. A organização de um movimento social centrado no reconhecimento do caráter peculiar da ocupação territorial negra imemorial do vale tomou contorno contra a construção de barragens no curso do rio Ribeira de Iguape ou em outros que interferissem no curso normal do rio” (LA-MPF, 1998, 112).

O território de Praia Grande será na sua grande maioria inundado pela

barragem da Usina Hidrelétrica do Funil que é a próxima da lista após a

construção da Hidrelétrica do Tijuco Alto. Algumas projeções4 chegam a afirmar

que 97% do território de Praia Grande seria atingido. A luta contra as barragens

apoiada pela Igreja Católica da região tem levado essas populações a discutirem

sua condição de donos da terra e o processo de titulação ocorrido em 1969.

Levando-os a lutar pelo território tradicionalmente ocupado pelos seus

antepassados. 4 Maura Campananili. Tijuco Alto volta a preocupar quilombolas, pg. 02

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4.2. MODO DE VIDA

A comunidade de Praia Grande está situada em uma região de difícil acesso

devido ao relevo acidentado, formado por morrarias sendo que a maior parte do

território está circundado pelos rios Ribeira de Iguape e Pardo. Esses aspectos

geográficos propiciaram a construção de um modo de vida próprio

profundamente relacionado com o território que ocupam. Seus moradores se

enquadram na definição de Rinaldo Arruda (1999) para “populações tradicionais”, ou

seja,

“daquelas que apresentam um modelo de ocupação do espaço e uso dos recursos naturais voltados principalmente para a subsistência, com fraca articulação com o mercado, baseado em uso intensivo da mão de obra familiar, tecnologia de baixo impacto derivada de conhecimentos patrimoniais e, normalmente, de base sustentável” (pg. 80).

A vida da comunidade é marcada pelo trabalho duro na roça, o medo

freqüente das enchentes, a dificuldade de acesso à cidade de Iporanga e a devoção

aos santos da fé católica, como São Gonçalo, São Sebastião e Nossa Senhora de

Aparecida.

Atualmente, o único acesso da comunidade à cidade de Iporanga é realizado

pelo rio em um percurso de cerca de 35km de barco ou canoa . Uma outra opção é

pegar uma carona de carro ou perua escolar da Cidade de Iporanga até o

Descalvado, depois seguir a pé até chegar em frente ao núcleo de Praia Grande e

atravessar o rio de canoa.

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O percurso de canoa, que é o principal meio de transporte da maioria dos

moradores, leva quatro horas para subir o rio e duas para descer. Além disso, o

percurso é perigo devido às corredeiras espalhadas por todo rio Ribeira.

A canoa é o principal meio de transporte da Comunidade

Corredeira do Funil no rio Ribeira de Iguape. Neste local acontecem acidentes freqüentes com embarcações.

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A maioria das famílias da comunidade já perderam um parente que morreu

afogado no rio. Atualmente, a principal reivindicação da comunidade é a

construção de uma estrada da cidade de Iporanga até Praia Grande.

As crianças só podem cursar até o quarto ano do ensino fundamental, em

Praia Grande, depois disso, ou ficam sem estudar ou tem que morar com um

parente em Iporanga para terminar os estudos, somente visitando a família nos

finais de semana e férias escolares deixando de ajudar a família na “lida” na roça.

As pessoas com doenças mais graves são deslocadas com muita dificuldade pelo

rio até Iporanga para receber atendimento de emergência, pois o hospital mais

próximo fica em Pariquera-Açu.

Um outro fato que assusta a comunidade são as enchentes do rio Ribeira

que levou algumas famílias a perderem suas casas.

O bairro possui um agrupamento central onde se encontra a capela de

Nossa Senhora de Aparecida, o Posto de Saúde, a Escola Estadual de 1ª à 4ª séries

Registro de uma enchente no rio Ribeira de Iguape

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do ensino fundamental e um Centro Comunitário onde são realizadas reuniões e

festas, além de quatro famílias que residem no local. O Posto de Saúde não possui

nenhum equipamento para exames, nem médico fixo . Ele funciona com um agente

comunitário que é o encarregado da distribuição de remédios para os moradores

do bairro e transporte de pacientes até a cidade de Iporanga para consultas

médicas. O Posto possui um telefone comunitário que foi instalado pelo PSF

(Programa de Saúde da Família) que funciona precariamente. Sendo sua

manutenção responsabilidade do município.

A Comunidade possui um total de 26 famílias dispersas pelo seu território.

Suas casas são de taipas cobertas com telhas de barro ou sapê não possuindo rede

de água e esgoto.

Vista parcial do núcleo da Comunidade Praia Grande

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A água consumida pelos moradores vem de nascentes situadas no topo dos

morros. Eles não têm luz elétrica mas tem um sistema de luz solar que faz

funcionar uma lâmpada na casa durante algumas horas por dia.

Os moradores de Praia Grande são basicamente agricultores familiares que

produzem para o autoconsumo. O excedente é trocado com os vizinhos e em

alguns casos comercializado em Iporanga. Eles plantam arroz, feijão, mandioca,

cana-de-açúcar, milho, café e frutas como amora, jaboticaba, abacaxi, banana,

mamão, etc. Além, das hortas de quintal onde se cultivam plantas medicinais,

verduras e legumes que são utilizados como complemento para alimentação

familiar. Alguns produtos como a farinha de mandioca, o arroz e feijão são

comercializados em Iporanga, a jaboticaba vendida no Paraná. Eles também, criam

alguns animais para o consumo doméstico como galinha, porcos e algumas cabeças

de gado. Um dos alimentos mais consumidos é o peixe, que até alguns anos atrás

era abundante na região. Um dado importante a destacar é a contaminação desses

peixes por chumbo que se deposita no fundo do rio onde peixes como o corimba5,

cascudo, bagre e lambari se alimentam de plantas do fundo do rio. Esse problema

foi mencionado por um dos moradores de Praia Grande. Em uma conversa com 5 O peixe corimba que existem hoje no rio, segundo os moradores, escaparam de tanques durante as enchentes.

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Antonio Ribeiro nós fizemos um comentário sobre a beleza de Praia Grande e que

ali era o Paraíso. Ele nos respondeu que “para quem é de fora é fácil dizer que aqui é o

paraíso . Que não tem problemas”. E continuou: “eu não conheço São Paulo pra dizer algo

a respeito. Porém, aqui em Praia Grande nos temos problemas sim. O rio está cheio de

chumbo.”

Recentemente a Associação de Quilombos de Praia Grande vem

organizando uma roça comunitária de cana-de-açúcar para fazer melaço para

comercializar em Iporanga. A maioria dos moradores possui moendas de cana-de-

açúcar, construídas artesanalmente bem como farinheiras ou casas de farinha.

Casa de farinha de Praia Grande

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O sistema de plantio é realizado por meio da coivara6 que vem sendo

utilizados a gerações por essas populações. Os moradores de Praia Grande sabem

os locais onde sua família já plantou e que pode ser roçado novamente.Porém, os

plantios das roças obedecem a limites tradicionais de ocupação do território. O que

tem levados alguns moradores de Praia Grande a plantarem em terras que não

foram tituladas em nome de pessoas de fora da Comunidade gerando conflitos

entre os atuais donos e moradores de Praia Grande. Outros são obrigados a

caminhar horas para chegar a um local bom para plantar, pois as terras próximas e

boas para o plantio estão nas mãos de pessoas de fora da comunidade. Ana

Ramalho, moradora de Praia Grande, afirma que o fazendeiro conhecido como

Tiquinho de Peter soltou gado na sua roça de arroz e não pagou o prejuízo. Maria

da Paixão também teve um problema semelhante com um fazendeiro conhecido

como Geremias. 6 A utilização do fogo para preparar do solo para o plantio. “A queima da vegetação posta para secar...nutre a terra de componentes de rápida absorção, ao passo que os troncos deixados para apodrecer lentamente nas roças... abastecem o solo de nutrientes que são absorvidos aos poucos, ao mesmo tempo em que as espécies plantadas crescem” (LA-MPF,1998:130). Após uns três anos as roças são abandonadas com o objetivo de preservar trechos de território durante períodos de tempo necessários à recuperação de seus recursos naturais renováveis.

Moenda de cana-de-açúcar de Praia Grande

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Segundo o relato dos moradores o método de plantio tem mudado muitos

pouco ao longo dos anos. Cada família tem sua roça independente das outras,

porém em época de colheita ou quando alguém quer aumentar sua plantação são

realizadas as reunidas ou mutirão e as trocas de dia. Nas reunidas a comunidade

ou parte dela é convidada para ajudar no roçado e em contrapartida o dono da

roça se responsabiliza pela alimentação, de todos, e em alguns casos pelo baile que

acontece durante a noite. Atualmente, esses bailes não são muitos freqüentes.

Segundo Clotilde Mariano Pereira, antigamente, existia mais bailes. Os mais

famosos eram na casa de Isabel Pontes que morava em frente da localidade de

Praia Grande. Segundo ela “Reunida para roçar. Fazia o baile para dançar. O dono da

roça ficava com o serviço quando não tinha baile tinha que pagar.” A troca de dias é a

mais utilizada atualmente quando alguém precisa de ajuda na roça convida

algumas pessoas para “a lida” e se compromete a pagar esse trabalho ajudando os

nas suas roças. Raramente essa ajuda nas roças é paga em dinheiro. A maior parte

dos moradores vivem da lavoura e do salário mínimo das aposentadorias7. O fato

dos moradores de Praia Grande conseguirem sobreviver do que produzem é

motivo de grande orgulho para a comunidade. Segundo o Benedito Celestino de

Moura:

(Benedito) - Eu gosto da minha luta, viu. Então, eu acho que um cabra não quer trabalhar fica aí encolhido, sem trabalhar e tá na boa, né. Ô meu Deus do céu, deixa essa bendita cesta, não dê essa cesta. Dê terra pra plantar.(Rose) - Dê ajuda de outra forma, né.(Benedito) - Dê ajuda e rencomenda, pode rencomenda. Não desmata a cabeceira da água, né. Não desmata as cabeceiras das águas. Deixa as cabeceiras da água na sombra, roça pro um lado roça pra outro e deixa ela assim a beleza, né. E faz o que ele quizer. Eu acho que não é defeito, isso aí. Não é? Não é defeito. E pega essa cesta e deixa lá. Aqueles homens que estão debaixo da ponte que não tem nada disso pra nada, pra vive, de pra lá, né.(Patrícia) - Não tem meios pra plantar.(Benedito) - Não tem meios de sair, né. Não tem modo. Não tem meios de sair, então dê essa cesta. Não pra um cara aqui do mato que tá, agüenta se virá tem de tudo, que é isso? É ou não é?

7 Existe um caso de um casal de Antonio Peniche de Matos e Ana Rosa Miranda Pedrozo de Matos que trabalham para um posseiro de fora da comunidade.

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Assim, eles não vêem com bons olhos os programas de cesta básica providos

pelo governo, sendo considerando uma ofensa. O fato de serem auto-suficientes na

produção de alimentos é reconhecido até por outras comunidades negras do Vale e

pelos moradores de Iporanga que fazem uma certa diferenciação entre os

moradores de Praia Grande e de outras comunidades de quilombo do município.

A maior parte da comunidade é composta por católicos8. Sendo a capela do

bairro consagrada a Nossa Senhora de Aparecida. Onde acontece uma grande festa

no dia 12 de outubro em sua homenagem. Atual capela foi construída em 1981.

Antes dela, existia a “Casa de São Sebastião” (ver localização no mapa histórico) feita

de taipas onde a população do lugar se reunia para rezar. 9 A devoção a São

Sebastião é comum no bairro sendo, esse santo, o protetor dos desamparados. No

dia 20 de janeiro a comunidade comemora o dia de São Sebastião, nas terras de

Nhá Paula, no lugar onde existia uma antiga casa da família que foi levada pela

enchente. O lugar é enfeitado por flores e bandeirinhas de papel, reze-se o terço.

Após a reza tem café com “mistura” (bolo de tipos variados e biju). Também é

grande a devoção a São Gonçalo de Amarantes. Santo português cujo culto foi

permitido pelo Papa Julio III em 1551. Ele é padroeiro dos violeiros, protetor contra

as enchentes, enfermidades e casamenteiro. Em Praia Grande, é comum a

promessa feita para São Gonçalo, paga com a Romaria ou Dança de São Gonçalo

que pode ser realizada no dia que for mais conveniente para o devoto. No

momento de necessidade o devoto pede: “Deus de potência para São Gonçalo me

ajudar”.

A Romaria de São Gonçalo é realizada no maior cômodo da casa onde os

móveis são retirados só ficando o altar que é enfeitado com os materiais mais

8 A Igreja Católica teve e tem um papel importante na luta das comunidades negras do Vale do Ribeira pela terra e Praia Grande não é uma exceção. Ela tem orientado e impulsionado a comunidade de Praia Grande a lutar contra as barragens e os orientando a buscarem seus direito como remanescentes de comunidade de quilombo.9 Neste local também eram administradas aulas de alfabetização para adultos e crianças.

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diversos como bexigas, flores e bandeirinhas de papel de seda e crepom. A

Romaria é tocada por um mestre de cerimônia e um contra mestre. São feitas duas

filas o mestre canta a entoada e puxa sua fila para um lado e o contramestre toca a

viola e puxa sua fila em sentido contrario. Ela é realizada à noite só quando a

promessa é para um defunto que a Romaria tem de ser de dia. As Romarias de São

Gonçalo, terços, bem como, as festas são espaços de socialização para moradores

do bairro de Praia Grande onde os velhos podem contar suas histórias relembrar o

passado, encontros amoroso são possíveis, as mulheres, que são um grupo muito

unido em Praia Grande, trocam experiências.

Os moradores de Praia Grande utilizam no seu dia a dia vários tipos de

remédios caseiros para os mais diferentes males. A Quina que é extraída da casca

de uma árvore local serve para dor de barriga, dor de cabeça, gripe e pressão alta.

Benedito Celestino de Moura nos deu a receita de como utilizar essa planta:

1 colher de mandioca (goma)

1 pitada de sal

Altar enfeitado para a Romaria de São Gonçalo

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Raspa de Quina (1 colher)

Limão

Uma outra planta muito usada é o Tranchai como chá para dor de garganta,

também pode ser usada a ampicilina em folha. Além dessas, temos:

- esmalina : dor de estômago;

- casca de jataí : é vitamina, fortalece o sangue;

- aroeira: para ferida, banho e pó;

- quebra pedra: rim;

- pata de vaca: diabete e coluna;

- sete sangria: pressão alta e afina o sangue;

- espinheira santa: estômago, queimação e calmante;

- pariparol: fígado

- chapel de couro: coluna e dor no corpo;

- cabriúva: chá com ovo e pinga é um fortificante.

Uma prática muito comum é a utilização da banha do lagarto para curar picada

de cobra. Segundo Laurindo Gomes, as pessoas costumam ter a banha do lagarto

em casa, em um vidro. A banha é tirada do lagarto, esquenta-se ao fogo para

derreter e toma-se em seguida, ou passa-se no local da picada de cobra, esse

método é utilizado em animais e seres humanos.

Os casamentos se dão com freqüência com os parentes (entre primos) do Bairro

de João Surra, porém isso não é uma regra. Segundo os moradores de Praia Grande

os casamentos entre primos acontecem devido ao isolamento do bairro em relação

às cidades mais próximas Existem também casamentos com pessoas vindas de

outras comunidades como Pilões ou do município de Barra do Turvo. As relações

de parentesco são importantes para se entender a dinâmica da ocupação do

território. É por meio do casamento ou adoção que muitas pessoas entraram no

território e passaram a fazer parte da comunidade. Uma outra maneira é a

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permissão formal de alguém da comunidade que tenha terras que não estejam

sendo ocupadas.

Em uma conversa com Antonio Marmo Pereira de Souza, fiz algumas

perguntas sobre parentes dele que não estavam morando no território de Praia

Grande. Ele negou que fossem seus parentes, porém diante da minha insistência,

explicou que pode acontecer de ter “desligado o parentesco”. Isso se dá, segundo ele,

quando um parente trapaceia o outro, não presta um favor a um parente, bebe

demais, etc. E ele completa “tem o mesmo sangue, mas às vezes não tem relações”. De

uma forma ou outra as relações de parentesco funcionam como mediadoras do

acesso a terra e da inclusão ou exclusão do grupo. Assim, essa comunidade

construiu um espaço social marcado pela terra e pelo parentesco estabelecendo as

regras e as práticas próprias referentes ao uso da terra bem como ao direito à

mesma.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Durante a elabora deste relatório foram levantadas algumas questões

ligadas à história e aos atuais problemas enfrentados pela Comunidade de Praia

Grande que devem ser encaminhadas para devida providencia, são elas:

- A Comunidade de João Surrá que faz divisa com Praia Grande e tem sua

história profundamente ligada a de Praia Grande tem passados por muitas

dificuldades com os fazendeiros que querem expulsá-los da terra onde vivem.

Recentemente, membros da Igreja Católica que atuam na região entraram em

contato com a Fundação ITESP para que fosse feito o trabalho de reconhecimento

desta Comunidade como Remanescente de Quilombo. Porém, nada pudemos fazer

pois a Comunidade de João Surrá se encontra no estado do Paraná. Dessa foram, se

faz necessário o encaminhamento da questão para a Fundação Palmares para as

dividas providências;

- A Comunidade de Praia Grande sofreu em 1969, um processo de titulação

que os levou a perder parte de seu território ou a não conseguir receber o título das

terras onde residem. Assim se faz necessário uma investigação dos títulos obtidos

em 1969, pelo processo de titulação realizado pela PPI (Procuradoria do

Patrimônio Imobiliário) do Estado de São Paulo. Para que essa comunidade possa

ter assegura a posse efetiva de todo o território historicamente ocupado pela

mesma.

Com base no estudo técnico-científico da Comunidade de Praia Grande

considero que os trabalhos antropológicos não deixam dúvidas sobre a origem

quilombola da mesma. Essa Comunidade ocupa o mesmo território a pelo menos

140 anos. Sua origem remonta à história da mineração na região que corresponde,

atualmente, ao município de Iporanga. Escravos fugitivos ou libertos e seus

descendentes se instalaram em uma localidade próxima a Iporanga, em terras

devolutas ou simplesmente abandonadas pelos seus donos. Posteriormente,

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subiram o rio chegando à Praia Grande. Após a abolição da escravidão compraram

as terras onde residiam. Nesse local, eles desenvolveram um modo de vida próprio

articulado a sociedade mais ampla. Possuindo semelhanças estruturais com as

demais populações rurais da região, que Maria Isaura Pereira de Queiroz (1973)

chama de bairros rurais. Contudo, o que os diferenciam das outras comunidades

de quilombos da região é o fato de serem autosuficiente na produção de alimentos

para o autoconsumo fato de orgulho para a comunidade.

Dessa forma, à posse efetiva da terra é de fundamental importância para a

manutenção de seu modo de vida e a garantia de sua existência ao longo do tempo.

Tal como enunciado pelo Grupo de Trabalho:

“Isto quer dizer que o território, em todo seu perímetro, necessário à reprodução física e cultural de cada grupo étnico/tradicional só pode ser dimensionado à luz da interpretação antropológica e em face da capacidade suporte do meio ambiente circundante tendo em vista a necessidade de garantir a melhoria de qualidade de vida de seus habitantes, através da implementação de projetos econômicos adequados, conservando-se os recursos naturais para as gerações vindouras” (pg. 24).

Atualmente, a maior ameaça enfrentada pela Comunidade de Praia Grande

é a construção da usina hidrelétrica do Funil projetada com uma barragem de 70

metros de altura, formando um reservatório de cerca de 34 Km2 , inundando mais

de 97% do seu território10. Foi o engajamento do grupo na luta contra as barragens

que os impulsionou a buscarem o reconhecimento, assegurado pela lei, como

Comunidade de Quilombos assim a luta contra a barragem nunca foi dissociada da

luta pela terra. Dessa forma, o reconhecimento tornou se um argumento a mais na

luta contra a construção das barragens.

10 Maura Campanili. Tijuco Alto volta a preocupar quilombolas, 2001.

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Concluímos:

- que os membros da comunidade Praia Grande são remanescentes de

comunidade de quilombos, de acordo com as definições que embasam os

critérios oficiais de reconhecimento adotados pelo Estado de São Paulo, e

devem, portanto, gozar dos direitos de tal identificação lhes assegura.

- que se faz urgente à regularização fundiária do território quilombola aqui

demonstrado, de área 1.584,8341 ha.

____________________________________________ PATRICIA SCALLI DOS SANTOS

Antropóloga

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7. ANEXO

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I. Memorial Descritivo e Planta da Área para

Reconhecimento

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II. Croqui de Uso e Ocupação do Solo da Área da Comunidade de Praia Grande

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III. Genealogia da Comunidade de Praia Grande (1800 a 1995)

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IV. Mapa Histórico da Comunidade de Praia Grande (1880 a 1930)

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V. Documentos da Comunidade de Compra e Venda de Terras em Praia Grande (1912, 1917 e 1974)

Imposto de Terras pagos pelos membros da família Pereira de Souza de Praia Grande (1912 e 1928)

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VI. Massa de População de Iporanga (1813 e 1826)

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VII. Registros do Livro de terras de Iporanga (1855)