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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Instituto de Artes AMANDA GONSALES DE ARAUJO Romaria, um percurso para o interior: vivência a partir do eixo Co-Habitar com a Fonte do método Bailarino-Pesquisador- Intérprete (BPI) Campinas 2017

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

Instituto de Artes

AMANDA GONSALES DE ARAUJO

Romaria, um percurso para o interior: vivência a partir do eixo Co-Habitar com a Fonte do método Bailarino-Pesquisador-

Intérprete (BPI)

Campinas

2017

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AMANDA GONSALES DE ARAUJO

Romaria, um percurso para o interior: vivência a partir do eixo

Co-Habitar com a Fonte do método Bailarino-Pesquisador-

Intérprete (BPI)

Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da Universidade

Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para

a obtenção do título de Mestra em Artes da Cena na Área de

Concentração: Teatro, Dança e Performance.

ORIENTADORA: PROFª DRª LARISSA SATO TURTELLI

COORIENTADORA: PROFª DRª GRAZIELA ESTELA FONSECA RODRIGUES

Este exemplar corresponde à versão final da dissertação

defendida pela aluna Amanda Gonsales de Araujo, e orientada

pela Profª Drª Larissa Sato Turtelli.

Campinas

2017

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À minha mãe Fátima Gonsales e minha avó Luzia Rossi, que

apresentaram-me as nuances entre a rudeza e a delicadeza

que os caipiras carregam nas mãos.

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Agradecimentos

À Profª Drª Larissa Sato Turtelli pela orientação feita com dedicação e

esmero, conduzindo-me a um contato cada vez mais profundo comigo mesma, a fim

de potencializar-me enquanto artista da cena.

À Profª Drª Graziela Rodrigues pela co-orientação repleta de reflexões e

ensinamentos preciosos sobre o método BPI, e pelos apontamentos assertivos no

decorrer do meu processo, desvelando-me mais do que eu podia ver.

Ao Núcleo de Pesquisa BPI que me possibilitou a troca de experiências e

conhecimentos acerca desse método, atuando nesse percurso interno de deixar-me

afetar e reconhecer-me no outro.

À Natália Vasconcellos Alleoni e Yasmin Berzin pelos momentos de reflexões

e elucidações a respeito do meu processo no método, auxiliando-me a passar pelos

momentos difíceis de encontro comigo e encorajando-me sempre para as travessias.

Ao Glauco Barsalini que me brindou com seu vasto e profundo conhecimento

a respeito da cultura caipira, e que me auxiliou através do seu entusiasmo e paixão

por esse povo a adentrar essas porteiras.

À Maria Silvia Ianni Barsalini que com seu olhar delicado e poético penetrou

estas páginas, e colaborou para refinar este texto que traduz aquilo que corre por

dentro de mim.

Ao Tarcísio Barsalini que atravessou comigo vales e montes todos os dias

durante essa pesquisa, acompanhando as conquistas, os medos e as dificuldades

em seguir, emprestando-me com carinho seus ouvidos e olhos atentos, sem os quais

seria muito mais difícil prosseguir.

Ao meu pai Luiz e meu irmão Fernando, por todo o apoio sempre concedido

para seguir nos caminhos da arte, e por serem minha base onde sempre posso me

encontrar.

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Aos meus avós paternos, Diva e Mauro (em memória), que seguem comigo

sendo minha fonte de inspiração, ao fazerem-me perceber minhas raízes.

Ao meu avô materno Manoel, a quem me falta palavras para descrever o

tamanho da importância que teve nesse trabalho, pois esteve presente em todos os

campos, não fisicamente, mas na memória e no reconhecimento, lembrando-me

sempre de onde vim.

As mulheres da minha vida, minha mãe, Fátima, e minha avó materna, Luzia,

mulheres fincadas na terra que me ensinaram o valor das pequenas coisas e a

singeleza dos pequenos gestos. Carrego-as comigo, pois fazem-me lembrar da força

e da suavidade que são necessárias para levar a vida, vida nem sempre fácil para

elas, que cresceram a olhar por entre as frestas dos pés de café o sol nascer e se

despedir.

A toda a minha família que me permite lembrar quem sou.

Por fim, aos caipiras com quem entrei em contato nessa pesquisa, em

especial a Marisa, a Fátima e a Giovana na colheita de café em Jaú- SP, ao

Mosquito na Folia de Reis em Três Pontas - MG, a Dona Antônia na Encomendação

das almas em São Tiago - MG e a Dona Mariquinha em seu sítio em Bofete – SP,

que me receberam em seus espaços e me fizeram sentir, por um momento, como se

fosse parte dele. A todo carinho, afeto, cuidado e confiança demonstrado, meus

sinceros agradecimentos. Por me fazerem lembrar quem sou e me permitirem entrar

em contato com a essência e a singeleza de ser caipira.

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Resumo

Esta pesquisa debruça-se sobre o método Bailarino-Pesquisador-Intérprete (BPI)

tendo como enfoque o eixo Co-habitar com a Fonte. O método BPI estrutura-se

fundamentalmente em três eixos: o Inventário no Corpo, o Co-habitar com a Fonte e

a Estruturação da Personagem, que visam o desenvolvimento artístico mas que

acabam por elaborar também questões pessoais do intérprete, pois o processo se

dá como uma “escavação” interna, quando o pesquisador entra em contato consigo

em profundidade para poder se expressar com mais inteireza. Para esta pesquisa o

eixo Co-habitar com a Fonte foi de extrema importância, pois ao entrar em contato

com a cultura caipira do interior de São Paulo e Minas Gerais, através de pesquisas

de campo que abarcavam o trabalho, o cotidiano, as festas e a relação com o

sagrado, os conflitos, rejeições e identificações da intérprete passaram a acontecer,

propiciando que um olhar interno fosse ativado a partir do contato com o outro. Essa

vivência possibilitou que a intérprete transpassasse o que estava em sua superfície,

para tocar em conteúdos que até então estavam soterrados, ocasionando assim

uma ampliação de suas possibilidades expressivas, pois pôde desvelar mais sobre

si. Este trabalho foi desenvolvido por uma cantora que encontrou no método BPI a

possiblidade de desenvolver-se em termos corporais e expressivos, a fim de

alcançar uma presença cênica potente e experienciar uma voz que de fato nascesse

do corpo.

Palavras chave: Bailarino-Pesquisador-Intérprete; dança – Brasil; caipira – cultura;

dança – pesquisa; voz.

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Abstract

This research focuses on the Dancer-Researcher-Performer method (BPI),

experienced by a singer who had as an intention to get in touch with a corporal and

expressive work, focusing on the axis co-inhabit with the source. The BPI method is

fundamentally structured in three axes: body inventory, cohabiting with the source

and the character structuring, which aim at artistic development but which end up

stumbling on the interpreter's personal issues, as the process develops as an internal

"dig", where the researcher contacts herself in depth to be able to express her art

more fully. In order to do so, the co-inhabitant with the source axis was extremely

important, because when it came into contact with the countryside culture from São

Paulo's interior and Minas Gerais, through field surveys that included work, daily life,

parties and the relationship with the sacred, some conflicts, rejections and

identifications began to happen, allowing an inner look to be activated from the

contact with the other. This experience made it possible for the interpreter to cross

what was on the surface, to touch contents that had been buried until then, thus

causing an amplification of its expressive possibilities, since it could reveal more

about itself. This work was developed by a singer who found in the BPI method the

possibility of developing in body and expressive terms in order to achieve a powerful

stage presence and to experience a voice that was actually born from the body

works.

Keywords: Dancer-Researcher-Interpreter; dance – Brazil; countryside – culture;

dance – research; voice.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 13

ASPECTOS DA CULTURA CAIPIRA ..................................................................... 24

A cultura caipira: sua terra, seus sons e suas crenças ................................. 24

Um campo de risco ........................................................................................ 28

Imaginário acerca do caipira .......................................................................... 29

Em mim o caipira ........................................................................................... 39

METODOLOGIA, MATERIAIS E PROCEDIMENTOS ............................................ 44

O Inventário no Corpo ................................................................................... 44

O Co-Habitar com a Fonte ............................................................................. 45

A Estruturação da Personagem ..................................................................... 47

As ferramentas do método BPI ...................................................................... 50

A Estrutura Física e sua Anatomia Simbólica ................................................ 52

As pesquisas e os Diários de Campo ............................................................ 55

Comitê de ética .............................................................................................. 56

Laboratórios Dirigidos e Diário de Dojo ......................................................... 57

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PESQUISAS DE CAMPO ....................................................................................... 58

Colheita de café na Fazenda São Marcelo – Jaú, SP .................................. 59

Procissão no dia de Nossa Senhora Aparecida em Pedra Bela - SP .......... 68

Dona Mariquinha – Bofete, SP ..................................................................... 71

Folia de reis – Três Pontas, MG .................................................................. 75

Encomendação das almas – São Tiago, MG .............................................. 82

Síntese dos campos .................................................................................... 87

O caipira: uma ponte para mim mesma ....................................................... 89

O PERCURSO PARA O INTERIOR ...................................................................... 91

Os laboratórios ............................................................................................. 91

Questões do inventário ................................................................................ 97

IEOA É SEU NOME ............................................................................................... 101

VOZ ....................................................................................................................... 112

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 116

REFERÊNCIAS ..................................................................................................... 120

ANEXOS ............................................................................................................... 124

Anexo 1 – Termos fornecidos pelo Comitê de Ética utilizados nas pesquisas

de campo ............................................................................................................... 124

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Anexo 2 – Fotos do Dojo ............................................................................. 129

Anexo 3 – Partituras musicais ..................................................................... 134

Anexo 4 – Fotos da apresentação .............................................................. 136

Anexo 5 – Link para vídeo da apresentação artística realizada na defesa .141

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Os espelhos foram quebrados e seus cristais espalhados ao vento –

encontre você mesmo seu cristal! Não há sinais nem informações das trilhas

a serem seguidas, nestas veredas. A salvação está nas descobertas

pessoais, em geral custosas e muito sofridas, mas inevitáveis. (Prefácio de

Fausto Fuser em RODRIGUES, 1997, p.14).

INTRODUÇÃO

Há de se contar o percurso. O percurso que reflete a minha busca artística:

potencializar-me como artista da cena. Durante esse processo entrecruzei música,

teatro e dança, a fim de ampliar meu contato, a partir de diferentes abordagens, com

duas ferramentas essenciais para o meu fazer: a voz e o corpo. Apesar de estarem

completamente conectados, percebia que minha formação como cantora havia me

dado poucos recursos para acessar, de fato, minha corporalidade. Chegar à voz sem

passar pela corporalidade, percebendo de que maneira poderia me conduzir, se

opor, auxiliar, desafiar ou potencializar meu canto, era algo que me intrigava, pois

sentia que não alcançaria uma presença e uma visceralidade em minha performance

sem “passar pelo corpo”.

Você não pode separar o uso de sua voz do resto de você mesmo. O

impulso de comunicar vocalmente vem do uso de todo o organismo, não

apenas dos órgãos vocais. E toda vez que seu uso mecânico é afetado, sua

voz também é afetada, que é a expressão de você mesmo. (MCCALLION,

1988, p. 3).

Assim, decidi voltar-me para o trabalho corporal, a fim de sentir meus ossos,

meus músculos e minha pele, experimentando as possibilidades do meu corpo

através da Dança para que, se a voz emergisse, ela viesse de modo inteiro, unindo

então voz e corpo para alcançar uma presença potente por meio de um processo

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criativo, desenvolvido através do Método Bailarino-Pesquisador-Intérprete (BPI) que

explanarei adiante.

O corpo no método BPI é visto em sua potência de articular significados,

transitando entre lugares íntimos, fronteiriços e apartados; proporcionando

deslocamentos e estabelecendo interligações com uma coletividade

humana. Esse corpo é o ponto de partida para a construção do saber no

método. Em seu movimento criativo ele mergulha em si mesmo, vive o

encontro, a cumplicidade, o conflito, o vazio, a efervescência, transforma-se

e gesta uma nova vida. O refinamento propiciado por esta arte do

movimento ultrapassa os muros dos conhecimentos da própria arte,

ampliando o trânsito dos saberes entre as áreas. Quando se percorre a

senda desse refinamento do movimento entra-se nos domínios da memória

e da emoção. (RODRIGUES, et al. 2016, p.572).

Antes de adentrar-me no conteúdo desta pesquisa, traçarei aqui um pouco do

meu trajeto. Meu percurso acadêmico teve início na graduação em Música Popular -

modalidade Voz, na Unicamp, onde fui orientada durante três Iniciações Científicas

patrocinadas pelo PIBIC/CNPq – de 2012 a 2015 - pela Profª Drª Regina Machado

que ministra a disciplina de Voz, além de algumas disciplinas teóricas na graduação

e na Pós-Graduação em Música Popular. Durante a graduação, apesar da disciplina

de Voz abordar, de certa maneira, conteúdos expressivos relacionados ao canto,

sentia necessidade em desmembrar cada vez mais meu fazer, olhando também para

aspectos textuais e corporais do canto, além dos musicais que a graduação me

oferecia. Dessa maneira, intui que deveria aventurar-me em outras áreas, e as Artes

da Cena me apontaram um caminho, no qual me aprofundei através de cursos e

disciplinas, dentro e fora da Unicamp1.

1 Os cursos realizados relacionados ao tema em questão foram: "Canto e dança ­ O impulso

na voz e no corpo" com Renata Rosa no LUME em 2010; "Atitude da voz falada, na voz cantada" com

Marcelo Onofri no FEIA no mesmo ano; Oficina de “Técnica de Alexander aplicada ao canto” com

Izabel Padovani no Feia em 2011; “Curso livre de Teatro no Barracão Teatro” coordenado pelo ator

Eduardo Brasil em 2013; "Da energia a ação" curso com Naomi Silman no Lume em 2014; Curso com

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Recordo-me que a minha primeira vivência dentro das Artes da Cena foi um

curso de curta-duração com a cantora Renata Rosa, em 2010, na sede do Lume

Teatro – Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da Unicamp. O curso

intitulava-se “Canto e Dança - o impulso na voz e no corpo”, e ali buscávamos

encontrar uma relação orgânica entre voz e movimento. A partir dessa experiência

algo descortinou-se para mim, pois ao trabalhar o canto atrelado ao movimento,

novas possibilidades vocais - tanto em sonoridades, quanto em sentidos – se

abriram, e passei a querer despertar cada vez mais esse corpo e essa voz, a fim de

extrair deles potencialidades expressivas até então intocadas. A partir dessa

experiência, o fazer vocal já não se restringia apenas ao aparelho fonador: tinha se

ampliado, ganhado pernas, tronco e braços.

Então, iniciei a busca por vivenciar tal tríade - voz, corpo e presença -

acreditando que, para tocar fundo nisso, deveria tocar-me de fato, tanto em aspectos

vocais e corporais, quanto em conteúdos emocionais. Como se escavasse a mim

mesma, perpassando a superfície e descobrindo outras camadas que me

revelassem novos corpos e vozes, mais inteiros e potentes, para depois de um longo

processo - como um iniciado2 - poder ser. Assim, voltei-me para estudos do texto, da

Thomas Adams, da “Escola do desvendar da voz” e Oficina "Intersecções poéticas entre o movimento

e a voz", ministrada por Lineker Oliveira, na Oficina Cultural Oswald de Andrade no mesmo ano. As

disciplinas realizadas no Departamento de Artes Corporais da Unicamp durante a graduação foram:

“Expressão Corporal II” ministrada pela Profª Drª Mariana Baruco em 2010; “Expressão Vocal –

Interpretação II” ministrada pela Profª Drª Sara Lopes em 2012; “Princípios da Ação Cênica”

ministrada pelo Profº Drº Mario Santana em 2014. No intercâmbio que realizei na Universidade de

Évora em Portugal cursei as seguintes disciplinas referentes a corpo e voz: “Laboratório de Voz”

ministrada pelo Profº João Grosso e pela Profª Drª Paula Dória e “Treino Corporal do Actor III”

ministrada pela Profª Drª Beatriz Cantinho, ambos em 2013. Além disso, participei do "Intercâmbio

cultural Agita ­ video­dança, performance e produção cultural", produzido pela Casa de Harina, em

Portugal e Espanha durante esse período. Por seis meses, em 2012, tive aulas de Técnica Alexander

aplicada ao canto com a cantora Izabel Padovani.

2 “Iniciático quer dizer <<do início>>. Iniciar-se é passar por um conjunto de ritos que levam o

fiel de volta aos começos do mundo, às origens do ser. O saber iniciático é o saber das origens, que

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ação, da voz e do corpo, encontrados nas Artes da Cena, e das mais diversas

possibilidades sonoras e interpretativas na Música. Via-me então, nesse entremeio,

estando de fato no meio e esticando-me ao máximo para poder tocar em cada

extremidade, imbuindo-me em líquidos, cores e texturas que cada linguagem poderia

me proporcionar. Mas, sem tirar os pés do meio, pois o não pertencer me fazia livre,

e o não saber era a minha maior sabedoria.

No ano seguinte, em 2011, a professora Regina Machado trouxe ao Instituto

de Artes a cantora Izabel Padovani, para ministrar um workshop sobre seu trabalho

envolvendo canto e Técnica Alexander3. Interessei-me por tal abordagem, e por

sugestão da professora passei a ter aulas particulares com a Izabel no ano seguinte.

As aulas aconteciam semanalmente, eram individuais e tinham duração de uma

hora; frequentei-as por um período de seis meses. A cada encontro, algumas

tensões cristalizadas iam se desfazendo, e o cantar acontecia com mais facilidade.

As tensões desfeitas liberavam um espaço interno para a passagem do ar,

ampliando os espaços de ressonância, propiciando assim uma voz com mais

harmônicos e projeção. Dessa maneira, ao conquistar maior “naturalidade” ao

cantar, meu corpo estaria mais livre para expressar-se. Após esse contato, realizei

minha primeira Iniciação Científica, intitulada “Investigações sobre a eficácia da

Técnica Alexander na prática do canto”. Nessa pesquisa, desenvolvida de agosto de

2011 a julho de 2012, entrevistava alunos e professores da área para perceber se a

aplicação da Técnica influenciava a prática dos cantores e como isso acontecia.

não se assimila apenas, mas se vive. Tamanha é a transformação do iniciado, que recebe novo

nome: tornou-se outro. A iniciação, o recomeço é, portanto, metamorfose: o outro que substitui o

neófito, quem é, de onde vem, o que quer dizer?” (AUGRAS, 1983, p. 17).

3 Tal Técnica, desenvolvida pelo ator Frederick Matthias Alexander - de origem australiana, -

nasceu devido a uma rouquidão crônica que o acometia, e que a medicina tradicional não pôde

solucionar. Em busca de cura, Alexander deu início a uma análise minuciosa de seus padrões

posturais frente a um espelho, identificando assim tensões que interferiam em seus mecanismos

vocais e respiratórios, causando-lhe a rouquidão. A fim de inibir tais tensões e melhorar o uso e

funcionamento de seu próprio corpo, estruturou alguns princípios que resultariam em sua Técnica.

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Como disse anteriormente, durante a graduação segui fazendo cursos

relacionados a corpo e voz dentro e fora da Unicamp, aplicando cada vez mais

esses conhecimentos em meu fazer artístico e nas aulas que lecionava. Na

graduação, fui PAD da professora Regina Machado, trabalhando aspectos

expressivos e interpretativos com alunos de monitoria em Canto Popular. Em 2012,

iniciei parceria com a bailarina Natália Alleoni (mestranda em Artes da Cena na

ocasião), o músico Fábio Evangelista, o bailarino Tutu Morasi e a atriz Leny Góes.

Realizamos apresentações de cunho interdisciplinar e gravamos um longa-

metragem em Dança, vinculado ao mestrado da bailarina. O longa-metragem

intitulou-se “A rosa”, e foi premiado pela “VII Mostra Internacional de Videodança de

São Carlos” e “São Carlos Videodance Festival”.

No início de 2013, iniciei o curso livre de teatro no Barracão Teatro em Barão

Geraldo, Campinas, coordenado pelo ator Eduardo Brasil. Em agosto desse mesmo

ano apresentei o espetáculo “Há na memória um rio”, que contava com a

participação dos músicos Alberto Ferreira e Theron Fuhrmann, a bailarina Natália

Alleoni e a direção cênica de Bernardo Berro. O ator João Paulo Lorenzon, indicado

ao Prêmio Shell de melhor ator em 2012 com a peça “Eu vi o sol brilhar em toda a

sua glória”, e a direção do filme “Elena” da diretora Petra Costa, cederam-me trechos

de seus roteiros para compor o espetáculo. Dessa maneira, colocamos os textos

entre as canções, interpretados por mim e por João Paulo. Nessa apresentação,

entrecruzei diversas linguagens artísticas – música, teatro e dança – e tratei de

temas humanos, como as perdas, os encontros e desencontros da vida,

comparando-a as águas do rio, que correm e nunca voltam a passar pelo mesmo

lugar. Quais as memórias que ficam? O que realmente guardamos conosco? Eram

as questões que queríamos provocar.

No segundo semestre desse mesmo ano, fui selecionada com uma bolsa do

Ministério da Cultura para realizar um intercâmbio na Universidade de Évora, em

Portugal. Durante um período de seis meses, frequentava disciplinas na Música, no

Teatro e na Dança, dando continuidade às minhas buscas interdisciplinares. Porém,

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mais do que isso, vivi - sem saber até então – o início de um processo criativo.

Propiciada talvez pelo inverno e pela solidão, experienciei ali uma profunda conexão

interna e externa, estando atenta a tudo o que me rodeava: os sons, as músicas, a

arquitetura, os cheiros, os sabores, as lendas, a história, as estações. Ia registrando

minhas sensações através de fotografias, gravações de voz e anotações em um

caderno, que estava sempre comigo. Ao refletir sobre o processo de imersão (em

mim mesma) que estava vivendo, passei a associá-lo a um processo arqueológico,

pois foi ao “escavar-me”, isto é, ao tocar em lugares submersos e até então

desconhecidos, que pude encontrar fragmentos meus. Em vias de finalizar o

intercâmbio, deparei-me com os materiais acumulados: eles eram tão potentes, que

pude perceber que por detrás de minhas experiências individuais havia um coletivo.

No fundo, eu estava tocando em questões da humanidade, e queria levá-las ao

público através de um processo criativo. Foi assim que encontrei a dissertação de

mestrado de Stela Maris Sanmartin – “Arqueologia da criação artística, vestígios de

uma gênese: o trabalho artístico em seu movimento”, (2005), que retrata processos

criativos dentro das artes plásticas. Aí o pontapé foi dado. Voltei ao Brasil e comecei

a estruturar essa experiência para torná-la arte.

Ao regressar, juntei-me à atriz, Leny Góes, que me auxiliou a encontrar os

pilares temáticos de que trataríamos no espetáculo, a partir dos materiais reunidos

por mim. Assim, delineamos uma narrativa tratando sobre o encontro consigo e,

consequentemente, a identificação das grades que nos cercam, nossas prisões.

Para falar das prisões, remontei ao período da Inquisição da igreja católica, quando

aqueles que não seguiam os dogmas eram submetidos à tortura e à execução, fato

que aconteceu em diversos lugares da Europa, inclusive em Évora, Portugal, e tratei

também sobre o Mito do Amor Romântico, outra prisão tão presente em diversas

histórias medievais, época que decidi abarcar. Com relação ao encontro consigo,

citei o reconhecimento e acolhimento das nossas próprias sombras, dito por Carl

Gustav Jung, psiquiatra e psicoterapeuta e, por fim, o conhecimento foi citado como

chave para ultrapassar as grades que nos cercam, sejam elas religiosas ou políticas.

A partir disso, selecionei canções e textos que comporiam o ensaio aberto,

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contemplando um repertório irlandês, português e brasileiro, e textos da literatura

estrangeira. O cenário, composto por fogueira e tochas à volta, foi montado em uma

praça na cidade de Campinas – SP, e a instrumentação contou com um trio de

cordas: violoncelo, violino e violão, que somaram a essa atmosfera arcaica. Tal

apresentação foi intitulada “Sombras de Alguém”.

Durante o processo, tive uma prática constante de laboratórios corporais, que

abordavam os textos e as canções, a fim de trazer a eles uma potencialidade

expressiva que partisse do corpo. Tais laboratórios foram dirigidos por uma outra

atriz, Ana Piu, portuguesa. No primeiro semestre de 2014, estruturei esse ensaio

aberto apresentado em agosto desse mesmo ano e, em paralelo a isso, finalizei

minha segunda iniciação científica, “Voz e corporalidade, práticas investigativas

sobre a influência corporal na prática do canto”, interrompida, temporariamente,

durante o intercâmbio. Nela, descrevi como foi o processo dos laboratórios e fiz um

levantamento dos estudos interpretativos com os quais entrei em contato em

Portugal e no departamento de Artes Corporais da Unicamp, no semestre em

questão.

Depois do período de criação, estruturação e apresentação do ensaio aberto,

dei continuidade ao processo criativo que se desdobrou no espetáculo “UM OLHAR

de lua ATRAVESSADO de nuvens”, apresentado um ano depois. Nele, incluí

trechos de obras da escritora Hilda Hilst, natural de Jaú, cidade onde nasci, e dei

continuidade à temática das prisões, dentre elas o amor romântico, o medo do novo,

e o bombardeio de informações e deveres a que nos impele a sociedade. Além

disso, associei a vida a uma viagem de trem, reforçando a ideia de que somos feitos

de encontros e despedidas e que, no final, teremos apenas a nós mesmos. Tal

espetáculo contou com outra equipe e um diretor do Departamento de Artes Cênicas

do Instituto de Artes da Unicamp, Profº Drº Mário Santana. Além disso, modificamos

o repertório e os textos com relação ao ensaio aberto, agora composto por canções

de Lenine, Belchior, Caetano Veloso e Milton Nascimento; porém, a temática se

manteve. Foi apresentado como recital de formatura de minha graduação em Música

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Popular e no Festival Hilda Hilst, na cidade de Jaú – SP. Foi esse o conteúdo da

minha terceira e última Iniciação Científica, “O processo arqueológico do intérprete-

criador”, descrevendo um processo criativo de dois anos e que resultou em um

ensaio aberto e em um espetáculo.

Analisando todo o meu percurso, minhas experiências e a maneira como

estava conduzindo os espetáculos produzidos, percebi que esse tipo de processo

criativo provindo das minhas vivências para então encontrar eco em questões

humanas, abrangendo diversas linguagens artísticas, e me colocando num lugar

para além do canto - somando a ele ações e falas a fim de potencializar o

espetáculo, direcionava-me mais ao Departamento de Artes Corporais do que à

Música, no que tange à Pós-Graduação. Então, soube do Método BPI e interessei-

me por conhecê-lo melhor. Após uma conversa com a orientadora dessa pesquisa,

Profª Drª Larissa Turtelli, iniciei meu contato com o Método numa disciplina de

Tópicos especiais em dança, ministrada por ela no segundo semestre de 2014. Após

isso, cursei Dança do Brasil I no semestre seguinte, ministrada pela Profª Drª Larissa

Turtelli com a PED Nara Cálipo. Conhecendo um pouco mais sobre o Método, tanto

em aspectos teóricos, quanto em aspectos práticos, fui me interessando pela sua

complexidade e assertividade, com relação aos processos que norteia. Propus-me,

então, a vivenciá-lo, ingressando no Mestrado em Artes da Cena, sendo orientada

pela Profª Drª Larissa Turtelli e Coorientada pela Profª Drª Graziela Rodrigues.

Dessa maneira, o trabalho corporal constante fez-se essencial, principalmente no

meu caso, vinda de uma área que não aborda esse tipo de fazer. Porém, mais do

que isso, vivenciar o método fez-me perceber que a entrega é o seu maior desafio,

pois o intérprete deve se colocar despido diante de si durante todo o processo,

estando atento às suas sensações e emoções, caso contrário o processo não

acontece. Além disso, estar com o outro em uma pesquisa de campo da maneira

como nos propõe o método, sendo esse um dos seus eixos, coloca-nos ainda mais

diante de nós mesmos, pois ao lidar com o outro, percebemos facetas nossas até

então desconhecidas, ou até mesmo rejeitadas. Dessa maneira, o processo dentro

do Método BPI possibilita que alcancemos um contato minucioso e profundo

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conosco mesmos, perfurando camadas da pele, órgãos e vísceras, atingindo o miolo

do corpo, escavando a superfície para, quem sabe ali, naquele miolo, encontrarmos

a nossa potencialidade expressiva que o método propicia entrar em contato.

Descreverei como isso acontece, no capítulo em que tratarei sobre a metodologia,

mais adiante.

Após ingressar no Mestrado, cursei, no segundo semestre de 2015, as

disciplinas Dança do Brasil II e IV, ministradas respectivamente pelas professoras

doutoras Larissa Turtelli e Graziela Rodrigues, com o auxílio das PEDs Mariana

Floriano e Nara Cálipo. Nesse mesmo semestre fiz a preparação vocal de um grupo

de bailarinos da graduação em Dança na Unicamp, para o espetáculo de TCC

“Depois daquele canto”, dirigido dentro do método BPI por Graziela Rodrigues e

Larissa Turtelli, tendo como assistente de direção Elisa Costa. No espetáculo

atuaram: Carolina Constantino, Igor Manoel, Isadora Buonanni, Juliana Pedroso e

Yasmin Berzin. Como parte do processo foram feitas pesquisas de campo em

terreiros de candomblé de Cachoeira, na Bahia. Tal experiência permitiu-me

compreender um pouco mais sobre a relação corpo-voz num espetáculo dentro

dessa linha de pesquisa.

No primeiro semestre de 2016, cursei as disciplinas de Dança do Brasil III e V,

ministradas respectivamente pelas professoras doutoras Larissa Turtelli e Graziela

Rodrigues, auxiliada pela PED Elisa Costa. Além disso, cursei a disciplina intensiva

de Pós-Graduação em Artes da Cena intitulada Tópicos especiais em atuação,

ministrada pelas professoras doutoras Graziela Rodrigues e Larissa Turtelli,

essencial para o progresso desta pesquisa.

Já no segundo semestre de 2016, atuei como PED na disciplina Dança do

Brasil VI, ministrada pelo Profª Drª Larissa Turtelli. Nessa disciplina trabalhei com os

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alunos aspectos vocais, dentre eles: respiração, apoio vocal4, ressonância5,

projeção, paisagens sonoras e as canções que cada uma escolhia. Nessas

dinâmicas, a cada aula aprendíamos uma canção, e depois a condução da Profª

Larissa ia unindo a voz cantada com o fluxo de movimento. Foi muito interessante

perceber o reflexo que os movimentos tinham na voz e vice e versa, tanto no meu

fazer quanto no dos alunos.

No início de 2017 cursei a disciplina intensiva, Laboratório de Criação II

Arquiteturas do corpo no Método BPI (Bailarino-Pesquisador-Intérprete), ministrada

pelas professoras doutoras Graziela Rodrigues e Larissa Turtelli, de grande impacto

para o desenvolvimento da pesquisa, que citarei mais adiante.

Aproximei-me do método BPI por conta de seu processo criativo, pois o

mergulho em si mesmo que ele propõe, dialoga com uma necessidade pessoal de

entrar em contato comigo mesma a fim de poder criar. Além disso, ter uma direção

tão presente como acontece no método, e um trabalho corporal que acredito ser de

extrema importância para um cantor, também me chamavam a atenção.

Poder experienciar essa voz que brota do corpo, caso ela apareça, tendo em

vista a imprevisibilidade do material criativo dentro do método, me atrai, pois creio

que, ao nascer de estímulos corporais, a voz pode apresentar-se de uma outra

maneira, quebrando, quiçá, com alguns padrões vocais e apresentando-me novas

possibilidades, engaioladas nas couraças do meu corpo. Viver a materialidade do

corpo, no máximo do seu tônus e das suas possibilidades para, então, retornar ao

4 “O appoggio é, então, uma coordenação complexa de todos os músculos do canto, que tem

sua raiz no equilíbrio entre a pressão aérea e a fonação controlada.” (STARK, 2003, apud MARIZ,

2013, p. 114).

5 “Aquilo que dá ao som vocal a sua sonoridade, a sua penetração, a sua cor, e o seu poder

emotivo são as vibrações do ar que impomos nas cavidades internas do nosso rosto, ou caixas de

ressonância da voz.” (VILLELA, 1961, apud MARIZ, 2013, p. 57).

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imaterial da voz e vê-la de um outro lugar, encontrando nela sua materialidade,

rasgada na garganta e partindo das vísceras.

Assim, o objetivo dessa pesquisa foi realizar um trabalho artístico no método

BPI, dentro do eixo Co-habitar com a Fonte, a partir da pesquisa de campo feita com

a cultura caipira do interior do Estado de São Paulo e Minas Gerais, a qual

possibilitou uma apreensão sensível dos corpos, paisagens e contextos vivenciados,

e despertou em meu corpo conteúdos trabalhados nos Laboratórios Dirigidos. O

intuito foi estabelecer um processo criativo, e proporcionar ao âmbito musical um

olhar sobre o fazer vocal que emergisse do corpo e de suas memórias.

Especialmente em relação à voz, um trabalho que busca apenas o total

controle sobre a fonação, que se pauta em modelos que suprimem nossas

forças pulsionais e atribui valores subordinados a uma estética do belo e do

feio, não deixa de tanger a repressão, a submissão e a tortura. A voz “está

sempre amparada no desejo, e nos revela as nuanças emocionais do outro”

(HAOULI, 2005, apud OLIVEIRA, 2013, p. 34). Esterilizar essas nuances em

busca de uma “fonação perfeita” é esterilizar o desejo, e a meu ver não há

como se criar o novo sem dar vazão à força do desejo. (OLIVEIRA, 2013,

p.34)

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ASPECTOS DA CULTURA CAIPIRA

A cultura caipira: sua terra, seus sons e suas crenças

Ao adentrar nesse universo, irei me referir aos caipiras dos séculos XIX e XX,

sem considerar os escritos sobre tal cultura referentes ao século XVIII.

Entre os anos do fim do século passado e, sobretudo, os do começo deste,

alguns estudiosos da cultura paulista descobriram que o estado tinha como

tipos o “caipira” e o “caiçara”, que é um caipira do litoral. Foi então que ele

deixou de ser “uma gente” miserável de cultura invisível e se tornou o

agente da cultura popular do estado. Visível, ele emergiu a objeto de

estudo. Tinha virtudes, falava, usava um dialeto que era, na verdade, o

porão da fala de todos. De índios e jesuítas teria aprendido cantos e

danças. Criou as suas. Era enfim uma cultura a que alguns pesquisadores

deram o nome de “cultura caipira”. (BRANDÃO, 1983, p.24).

Resultante da mistura entre colonizador e colonizado, o caipira se fez,

amalgamando traços indígenas e portugueses evidenciados em seus cantos,

danças, comidas e costumes. Dos índios, herdou parte da alimentação elaborada

com mandioca, milho e feijão, técnicas de caça e pesca, o costume de se deitar em

redes e andar descalço. Segundo Antônio Cândido (1987), o caipira baseia-se em

uma economia de subsistência contentando-se com o necessário, não perseguindo

o acúmulo de capital e isentando-se de grandes ambições, o que lhe confere a fama

de vadio e preguiçoso, por valorizar suas horas de descanso.

A vida rural caipira, assim ordenada, equilibra satisfatoriamente quadras de

trabalho continuado e de lazer, permitindo atender às carências frugais e até

manter os enfermos, débeis, insanos e dependentes improdutivos.

Condiciona, também, o caipira a um horizonte culturalmente limitado de

aspirações, que o faz parecer desambicioso e imprevidente, ocioso e vadio.

Na verdade, exprime sua integração numa economia mais autárquica do

que mercantil que, além de garantir sua independência, atende à sua

mentalidade, que valoriza mais as alternâncias de trabalho intenso e de

lazer, na forma tradicional, do que um padrão de vida mais alto através do

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engajamento em sistemas de trabalho rigidamente disciplinado. (RIBEIRO,

1995, p.385)

Majoritariamente até a década de 1950, o caipira era aquele que morava

afastado da cidade e vivia daquilo que produzia, estabelecendo uma relação de

cuidado com a natureza, pois dependia dela para sobreviver, segundo Glauco

Barsalini (2002). Os trabalhos domésticos e os cuidados com as crianças ficavam

por conta da mulher, e os trabalhos na roça e na caça por conta dos homens,

conforme Darcy Ribeiro (1995). Plantavam, colhiam, pescavam, cuidavam das

criações e, no tempo livre, interagiam com o meio e a comunidade, através da

religião, da música e das festas.

Assim, a casa rústica, o quintal e a periferia próxima – o bairro, a vizinhança

– acabam não sendo apenas os lugares do trabalho familiar, mas

igualmente os espaços de quase toda a vida social e simbólica do caipira

paulista. Ali as pessoas convivem entre parentes, “compadres” e vizinhos.

Ali praticam em família ou “no bairro” quase toda a vida religiosa: a pequena

reza de terço que reúne à volta de um oratório caseiro as pessoas da

família, os parentes e vizinhos de residência próxima; as festas familiares de

devoção coletiva, que obrigam à reunião de grupos maiores para a

“devoção” ou o “cumprimento de um voto válido”, com comida, reza, canto e

dança (RIBEIRO, 1995, p.74)

Já as práticas religiosas estiveram sempre ligadas ao catolicismo instituído

por Roma e trazido pelo português. Porém, para além das participações em rituais

da igreja o caipira foi construindo sua própria religiosidade, feita de romarias,

promessas, encomendas, benzimentos e folias que não dependiam

necessariamente da figura de um sacerdote.

Tal religiosidade popular, até hoje, aproxima os fiéis de Cristo e dos Santos,

pois os tira do altar, onde estão os sacerdotes, e os coloca no meio do povo.

Carregam cruzes nas costas, beijam-nas e dançam com suas bandeiras, trazendo-

as para perto de si. Assim, potencializam sua relação e aproximação com o sagrado,

o que possibilita ao morador do bairro presidir uma folia ou uma encomenda, sem ter

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qualquer título ou formação religiosa, conquistando sua legitimidade através da

comunidade. A partir disso, as funções vão se distribuindo entre os moradores,

aproximando-os do fazer ritualístico e reforçando a vida em comunidade: “A

religiosidade rural se marca essencialmente pela festa, através da revigoração do

sagrado. A festividade religiosa tem um caráter social que garante e reforça a

identidade do grupo.” (GOMES e PEREIRA, 1992, p. 87).

Assim, enquanto aos sacerdotes restaram a confissão e os sacramentos,

rituais que ocorriam com pouca frequência e apenas por ocasião das visitas

dos padres às capelas, as rezas, as bênçãos, as encomendas, as cantorias,

as promessas, as folias, etc., rituais cotidianos no meio da população mais

simples, passaram a ser conduzidas e controladas por leigos. A

popularidade dos “rezadores leigos” concorria a dos sacerdotes, gerando

alguns embates e provocando desentendimentos entre os representantes

oficiais e os especialistas populares, emergidos do ritualismo cotidiano.

Estes davam mais credibilidade aos cultos, consolidavam-se com os

representantes do lugar para os efeitos da liturgia e dos rituais sagrados,

isto é, de acordo com o que lembra Carlos Rodrigues Brandão, constituíam-

se “os milagreiros da roça”. (MARCHI, SAENGER, CORRÊA, p. 35, 2002).

Tal autonomia mantém a fé do povo viva, pois se modifica ao atravessar

gerações, não se limitando apenas a doutrinas. A apropriação que caracteriza esses

fazeres está sempre num limiar entre manter certos traços que caracterizam a

tradição, e agregar a ela novos elementos. Dessa maneira, a cultura vai se

amalgamando, pois é nesse construir e desconstruir que ela vai se enchendo de

significados simbólicos e afetivos, pois foi feita por mãos destituídas de poderes,

perante a Instituição Católica, mas repletas de fé.

Somada às práticas católicas, a cultura caipira mantém um imaginário de

lendas, seres sobrenaturais, simpatias e maus agouros. Lobisomem, saci-pererê,

mula-sem-cabeça, gato preto, espelhos cobertos em dias de tempestade, mau

olhado, olho gordo e simpatias para afastar doenças e más intenções. Dividindo-se

entre benzedeiras e sacerdotes, uma crença não abala a outra; pelo contrário, torna

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ainda mais rica a cultura desse povo, que reza a Deus e benze com as ervas do

quintal.

Compreenderemos esse estado de coisas se considerarmos a estreita

ligação das suas representações religiosas com a vida agrícola, a caça, a

pesca e a coleta, e de ambas com a literatura oral. Basta focalizar, neste

sentido, o mecanismo das promessas e dos esconjuros, através do qual

veremos uma religião eminentemente propiciatória, ligada a práticas de

magia simpática, para obter êxito na colheita e na caça, para afastar ou

curar males- numa mistura estreita de reza, mezinha, talismã, onde a erva

do campo se associa ao pelo de bicho e à jaculatória, onde o bentinho se

prende ao mesmo fio que o dente de quati ou a unha de gato. (PERES,

2010, p.16)

Resultado de tantas misturas, assim também é a música caipira, composta

por aspectos vindos do português, do negro e do índio. A viola, instrumento

característico dentro dessa linguagem, originária de Portugal, provavelmente foi

influenciada pelos instrumentos árabes; porém, tempos depois de ter chegado ao

Brasil, passou a misturar-se com o violão.

Embora pareça provável que o instrumento tivesse chegado anteriormente,

noticias certas sobre violas de arame só aparecem de fato nas cartas dos

jesuítas, que chegaram ao Brasil com Tomé de Souza em 1549. Foram eles

que introduziram aqui, de modo sistemático, as violas e os demais

instrumentos europeus. (...) O instrumento tinha, então, três cordas duplas e

a prima simples. No século seguinte, iria ganhar mais uma ordem de cordas

e, na segunda metade dos anos de setecentos, ainda mais outra. (...) As

informações sobre a introdução da viola no Brasil nos levam a crer que esta

se deu não só pelos jesuítas, a elite intelectual da colônia, como também

pelos colonos portugueses. Do ponto de vista social, a viola já se

apresentava como o elemento por meio do qual as classes dominantes da

colônia difundiam a cultura musical moderna do Ocidente às classes

subalternas do Brasil. (TABORDA, 2011, p. 43).

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Já os aspectos rítmicos, foram descendentes dos negros escravos e, as

letras, inspiradas no cancioneiro ibérico, com aspectos de canções medievais ou

indígenas, quando tratam de temas sobre a natureza.

Era, de qualquer modo, gente desgarrada, sem família, que vinha aqui para

roer sua saudade, sua memória, sua melancolia. Já de origem humilde em

sua terra (...), aqui eles perdiam de vez o pequeno contato que

eventualmente tivessem com o livro, a palavra escrita, a forma erudita de se

expressar. Já que o índio também não escrevia, essa acabaria por ser uma

das marcas da música caipira: a expressão oral, a informação boca a boca

que passa de um a outro. (...) A música caipira, portanto, se apoia no

inconsciente coletivo apenas verbalizado. Não por coincidência, alguns dos

maiores criadores desse gênero são gente simples, humilde, semi-

alfabetizada (...) Nossa moda de raízes é branca nas formas e rimas, e

africana, indígena e portuguesa no pensamento e afeto. Com uma alegria

que não esconde certa tristeza, o cantar caipira possui um fundo nostálgico,

como se alguma coisa se tivesse perdido ao longo do tempo. (...) São as

marcas do exílio: o português degredado e saudoso; o indígena humilhado e

desterrado em sua terra; o africano de pele escura, amargurado pela

escravidão. (...) Moda bem tocada é aquela que desperta em nós uma

saudade que a gente nem sabe do quê. (RIBEIRO, 2006, p. 19).

Um campo de risco

Na década de 1960, segundo Ribeiro (1995), o caipira vê-se diante de um

dilema: a porção de terra onde vive e planta, de que necessita para sobreviver, é

tomada por colonos italianos, espanhóis, poloneses e alemães. Assim, tem que

decidir entre tornar-se empregado dos novos donos daquela terra, submetendo-se a

um modo de vida que privilegia uma carga de trabalho à qual não está acostumado,

ou embrenhar-se em terras mais longínquas para tentar, de alguma maneira, manter

seu modo de vida. Ainda assim, conforme afirma Cândido (1987), aqueles que se

tornam assalariados resistem a integrar-se a um sistema de trabalho tão rígido, e

aqueles que se afastam tentam formar novos núcleos de convívio para manter suas

tradições.

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Aos poucos, o caipira vai se integrando à cidade e deixando sua economia de

subsistência. Cândido (1987) coloca que ele passa a ter que adquirir quase tudo que

consome, adaptando-se assim às relações comerciais. Dessa maneira, percebe que

o padrão de vida que levava no campo, atendendo as necessidades básicas, é

considerado padrão de miséria perante a cidade, segundo Ribeiro (1995).

A terra, por isso, é necessária à perpetuação de sua cultura. Perder a terra

significa perder o meio fundamental que permite a construção da cultura

caipira. Sem a terra, o caipira vai desaparecendo. Em seu lugar surge o

assalariado do campo, ou mesmo o da cidade, cuja cultura sofrerá radicais

transformações. (BARSALINI, 2002, p.106).

Mantendo as tradições que lhes são permitidas, o caipira perpetua suas

relações em comunidade, seja nos bairros ou em família. A fé, a maneira de contar

histórias, o linguajar - que lhe são próprios -, e as horas passadas na cozinha ao

redor da mesa demonstram esse lugar como um espaço de afetos, “uma cultura

caipira que vai da mesa ao mito – o que se come e o que se conta enquanto come”

(BRANDÃO, 1983, p.75).

A cozinha é o espaço da convivência afetiva e do aconchego que aguçam

as lembranças. Generosas e fartas, muitas cozinhas ainda usam o fogão a

lenha com um fogo que nunca se apaga, um café sempre escoando e uma

fumaça suspensa no ar. Pela cozinha passam os cantos, um fragmento de

dança e muitas histórias que já pareciam perdidas no tempo. Neste espaço

singular da casa luta-se contra o esquecimento e a amargura aproveitando-

se o movimento ritualístico do preparo do alimento. O tempo da festividade

é longo e a cozinha não pode parar. (RODRIGUES, 1997, p. 98).

Imaginário acerca do caipira

Ao adentrar-me em tal cultura, tanto em pesquisas de campo no interior de

São Paulo e Minas Gerais, como através de livros e filmes, muitos pontos de vista e

imaginários sobre a figura do caipira me tomaram. Por exemplo, os personagens

como o Jeca Tatu – a destacar o lado preguiçoso desse povo sem levar em conta o

traumatismo cultural vivido, segundo Ribeiro (1995) – ou o Jeca de Mazzaroppi,

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representante de um independente que dificilmente se curva a um poder senhorial,

segundo Barsalini (2002), alimentam em nós diversas facetas sobre a mesma figura,

(re) construindo o nosso olhar perante ela. Em campo, deparei-me com inúmeros

caipiras, colocando-me questões como a identificação e a rejeição com relação ao

universo pesquisado, ambas de extrema importância para esse processo. “Os

relacionamentos entre as pessoas são demarcados pela proximidade física e pela

relação emocional. Não importa se a emoção é de ódio ou de amor, ambas

possibilitam a aproximação das pessoas.” (RODRIGUES, 2003, p.24)

Eles, com seus olhares profundos, sorrisos largos, gestos amistosos,

passos tranquilos, humor inteligente, silêncios esplendidos, almas de

príncipes. Vidas simples, afazeres da lida diária. Nos sons das vozes, violas,

rabecas, confissões inesperadas, a sonoridade de uma substancia própria

(...) A figura de um homem essencial, arraigado a uma experiência de vida

cheia de uma radicalidade, indo a fundo, sem medir esforços, à disposição,

sorridente de sua escolha, revela-se na música, na fé, na lida da terra, na

dignidade de cada um, no respeito a si e ao próximo. (MARCHI, SAENGER,

CORRÊA, 2002, p.20).

Quais são os caipiras que residem em nosso imaginário? O senhor bondoso

sempre pronto a ajudar o próximo, a figura “pitando” de cócoras no meio do mato, a

senhora que habita o interior da casa, silenciosa e desconfiada, o contador de

histórias ou o homem que lida com os bichos e planta aquilo que come. Serão, de

fato, esses os caipiras com os quais nos deparamos hoje? Aquele que vive afastado

da cidade e leva uma vida simples pode ser o que permeia nosso imaginário, mas a

verdade é que nos deparamos com diversos caipiras. Esse termo, caipira, nos

sugere os seguintes aspectos:

Habitante do campo ou da roça, particularmente os de pouca instrução e de

convívio e modos rústicos e canhestros (sin.) (...) (FERREIRA, Aurélio

Buarque de Holanda, Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa,

apud BRANDÃO, 1983, p.9).

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Homem ou mulher que não mora em povoação, que não tem instrução ou

trato social, que não sabe vestir-se ou apresentar-se em público (...)

Habitante do interior, canhestro e tímido, desajeitado, mas sonso...

(CASCUDO, Luís da Câmara, Dicionário do Folclore Brasileiro, apud

BRANDÃO, 1983, p.10).

Ao buscar referências sobre tal figura, deparei-me com discursos semelhantes

e opostos que polemizam nossa visão sobre o caipira. Em razão disso, explanarei

aqui algumas delas. Primeiramente apresentarei a figura corajosa, independente e

valente, perpetuada por alguns escritores; em sequência, aquele homem que

assusta pela sua aparência, modos e violência, retratado por outros; e, por fim, a

figura dócil, amorosa e afetiva que carregamos conosco.

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O aventureiro

O caipira é um obscuro e é um forte!

(PIRES, 1921, p. 05)

“Caipiras negaceando” (1888) obra de Almeida Júnior6

6 Foi um pintor e desenhista nascido em Itu - SP em 1850, precursor em retratar temáticas

regionais e o homem em seu cotidiano, trazendo para as telas muitas imagens sobre a cultura caipira.

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Para falar do caipira como figura destemida, aventureira e corajosa, utilizamos

citações de Cornélio Pires, autor do livro “Conversas ao pé do fogo”, Antonio

Cândido em “Os parceiros do rio bonito - estudo sobre o caipira paulista e a

transformação dos seus meios de vida”, e Lia Marchi, Juliana Saenger e Roberto

Corrêa, autores do livro “Tocadores – homem, terra, música e cordas”. Pires faz

descrição detalhada dos diversos tipos de caipira: o branco, o negro, o mulato e o

caboclo; Cândido faz uma abordagem sociológica e histórica do caipira e Marchi,

Saenger e Corrêa, utilizam-se de uma linguagem mais poética para descrever as

pesquisas de campo que fizeram, em busca das raízes culturais da música de

tradição oral brasileira.

Com linguagens diferentes, abordam características semelhantes desse povo.

Ei-lo tangendo suas “tropas” cargueiras, empoeiradas ou cobertas de lama,

pelos caminhos tortuosos e esburacados, furando matas virgens, galgando

montanhas ásperas, vadeando rios revoltos e pestíferos, afrontando

pantanaes e “atoledos”, atravessando campos e campos, vencendo

dezenas de léguas a pé ou arcado e molengão sobre o burro (p.4)

manteúdo, ao monótono “Belém-belém” do sino pendurado ao pescoço da

madrinha ruana! (...) É duro e constante na luta! conforto? deixá-los aos da

cidade... (PIRES, 1921, p.05)

Cândido cita o que alguns escritores relataram sobre o caipira:

Spix e Martius acharam que o paulista era aventureiro, “melancólico e de

gênio um tanto forte”; Hércules Florence assinala que “os habitantes de São

Paulo, como em geral os de toda a província, são tidos entre os brasileiros

por valentes e rancorosos”; todos, porém, reputam-no hospitaleiro e franco.

(CÂNDIDO, 1987, p.42)

Enfim, encontramo-nos com Marchi, Saenger e Corrêa, que nos enchem de

imagens ao falar desses homens e de suas sagas de maneira poética.

No olho do homem um deserto desafiador, feito para ser atravessado,

vencido, revelando histórias escondidas, abrindo espaço para sagas de

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famílias inteiras, levadas no vento do cerrado e nas marés do litoral. (...) A

história de um lugar que é sozinho, de tão sozinho ganhou vida, virou gente,

cheio de contos e canções perdidas, de vontades, de poderes, de amores,

conflitos, canudos, farrapos, queimadas, carvão, raios, enchentes,

tempestades. Um grito que ecoa pelo tempo. A memória de uma história de

desbravamento. (MARCHI, SAENGER, CORRÊA 2002, p. 73)

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Meio homem, meio bicho

“Peregrino” (1894) obra de Almeida Júnior

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Em busca de outras imagens sobre o caipira, encontramos uma referência

que os retrata como bichos, demônios malfazejos e feios. Tais citações estão na

obra de Carlos Rodrigues Brandão, autor do livro “Os caipiras de São Paulo”, que

cita a viagem feita pelo francês Auguste de Saint-Hilaire ao Brasil, no livro “Viagem à

Província de São Paulo”.

Estes últimos, quando percorrem a cidade, usam calças de tecido de

algodão e um grande chapéu cinzento, sempre envolvidos no indispensável

poncho, por mais forte que seja o calor. Denotam os seus traços alguns dos

caracteres da raça americana; seu andar é pesado, e têm o ar simplório e

acanhado. Pelos mesmos têm os habitantes da cidade pouquíssima

consideração, designando-os pela alcunha injuriosa de caipiras, palavra

derivada possivelmente do termo curupira, pelo qual os antigos habitantes

do país designavam demônios malfazejos existentes nas florestas...

(Viagem à Província de São Paulo), (BRANDÃO, 1983, p.11).

Feios, sujos, violentos e miseráveis, foram alguns dos adjetivos que

sintetizaram a figura do caipira para Saint-Hilaire, quando veio ao Brasil, em 1816.

Os moradores das mesmas, provavelmente oriundos das raças africana,

americana e caucásica misturadas entre si, eram de feio aspecto e

excessivamente imundos, pela lividez da pele e pela extrema magreza

demonstravam servir-se de alimentação pouco substancial ou insuficiente;

muitos dentre eles eram desfigurados por enorme papo. As mulheres tinham

os cabelos desgrenhados e o rosto e o peito cobertos de sujeira; as crianças

pareciam enfermas e eram tristes e apáticas; os homens eram abobados e

estúpidos. Parece que esses infelizes tinham muita preguiça para o

trabalho, só cultivando o estritamente necessário à satisfação das próprias

necessidades, e a seca do ano anterior levou ao cúmulo a sua miséria.

Quase por toda a parte me pediam esmola; desde que me encontrava no

Brasil, não presenciara em parte alguma tamanha pobreza. (Viagem à

Província de São Paulo), (BRANDÃO, 1983, p.16).

Eu ouvia, desde que atravessei a fronteira de São Paulo, falar-se,

comumente, em matar, como em qualquer outra parte se falaria em dar

bengaladas. Chumbo na cabeça, faca no coração, eram as doces palavras

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que, constantemente, feriam meus ouvidos. Os antigos paulistas faziam tão

pouco caso da própria vida, como da de seus semelhantes. (Viagem à

Província de São Paulo), (BRANDÃO, 1983, p.18)

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Dócil e amoroso

“Cozinha caipira” (1895) obra de Almeida Júnior

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Por fim, encontramos as referências que tratam do caipira como o homem

singelo, pacato e acolhedor, em Pires e Marchi, Saenger e Correa.

Docil e amoroso é todo camponez; sincero e affectivo é o caipira. (PIRES,

1921, p.07)

Nascidos fora das cidades, criados em plena natureza, infelizmente tolhidos

pelo analfabetismo, agem mais pelo coração que pela cabeça. Tímidos e

desconfiados ao entrar em contacto com os habitantes da cidade, no seu

meio são expansivos e alegres, folgazões e francos; mais francos e

folgazões que nós outros, os da cidade. De rara intelligencia – não vae nisto

exagero – são, incontestavelmente, mais argutos, mais finos que os

camponeses estrangeiros. Comprehendem e aprehendem com maior

facilidade; facto, aliás, observado por estrangeiros que com elles têm tido

occasião de privar. (PIRES, 1921, p.06).

O silêncio e a solidão também embalam esse nosso imaginário.

Neste cenário silencioso, que ganha o nome de interior, um homem que

sabe de onde vem, que se orgulha de suas raízes e se encontra nelas, que

tem a capacidade de continuar permanecendo o mesmo de antes,

comprometido com sua história. O homem e o deserto, encontram-se em

sua solidão. A capacidade de ouvir o silêncio, interrompido pelo canto da

inhuma, pelas águas do rio e da chuva, pelas marés, pela poeira que viaja

com o vento, pelo som da viola, instaurou neles uma dimensão de

universalidade assustadoramente explicável, essencialmente humana e

desejável. (MARCHI, SAENGER, CORRÊA, 2002, p.73)

No silêncio, nas lonjuras, nos pequenos sons, na aridez do chão (...)

floresceu um homem monumental, dono de si, amoroso dos seus, capaz de

fazer o chão dar frutos, respeitoso de suas crenças, criador de sua música,

alegre de sua vida. (MARCHI, SAENGER e CORRÊA, 2002, p.74)

Em mim o caipira

Nascida e criada em Jaú, no interior do estado de São Paulo, minha infância e

adolescência foram repletas de cozinhas, modas de viola – ouvidas no radinho de

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pilha - e idas à igreja. Ao selecionar um tema para minha pesquisa de campo, o

caipira estabeleceu-se, pois havia uma necessidade de entrar em contato com as

minhas raízes para, assim, perscrutar-me mais fundo. Além disso, o campo

escolhido dialogava com Portugal, pois várias manifestações atreladas à cultura

caipira têm origem nas terras lusitanas, fato não conjecturado no momento da

escolha, mas repleto de sentido, pois havia regressado recentemente de um

intercâmbio nesse país que, além de ter me propiciado o despertar de um intenso

período de auto conhecimento, também foi o disparador de um processo criativo.

Assim, voltava-me para as minhas origens e olhava para o colonizador e para o

colonizado, ambos existentes em mim.

Deste modo apresentam-se as origens dessa festividade e desse ritual,

ambos atrelados a Portugal, a começar pela Folia de Reis.

As folias do Espírito Santo, conquanto pareçam ter tido uma origem pagã no

druidismo, ou na superstição grega, todavia elas foram introduzidas em

Portugal e nas Ilhas dos Açores com a maior devoção e piedade. Antes de

estabelecidos entre nós os impérios do Espírito Santo, tínhamos as folias

denominadas do Bispo Inocente; as quais também foram solenizadas na

França, e eram anualmente com esplendor festejadas em São Martinho de

Tours. E posto que condenadas no ano de 1260, todavia ainda no século

XVII as tivemos com grande pompa na Catedral de Lisboa. (Arquivo dos

Açores, p. 183, apud DPH-IPPLAP, 2012 p. 21).

Paralelamente aos rituais religiosos ocorriam as festas nas ruas. Em

Portugal, a Folia era uma dança popular e profana, nos séculos XVI e XVII e

foi descrita como uma “dança de homens vestidos à portuguesa, com guizos

nos dedos e gaitas e pandeiros, girando e pulando à roda de um tambor”.

(CASSIANO, 1998, p.47)

Por fim, as origens da Encomendação das Almas.

Não se dispõe ainda da data certa de sua entrada no país, via Portugal. As

notícias mais remotas que se tem divulgado, datam do começo do século

XIX, mas é plausível que a tenham introduzido antes. As formas mais

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primitivas, em voga naquela centúria, traziam consigo homens penitentes,

que se auto-flagelam. A auto-flagelação é feita com o chicote chamado

“disciplina”, feito de couro cru ou fio de linho ou algodão trançado, tendo no

extremo cacos de vidro, pregos, lâminas metálicas cortantes. Ao término do

ritual estão enxangües. O sangue escorrido é uma purificação, obtida pelo

ato extremado. (PASSARELLI, 2007, p.02).

A fé católica foi algo muito presente em minha história, pois por muitos anos

fiz parte do “Caminho Neocatecumenal”, um itinerário de formação cristã que

frequentava em minha cidade, da infância à adolescência. A rigidez da doutrina

gerava frequentemente um sentimento de culpa, que era reforçado ao sermos

lembrados de que somos pecadores, desde o dia em que “Eva comeu a maçã”. Com

isso, esse aspecto do catolicismo ligado às penitências e aos sacrifícios, ressoam

muito em mim, e estão atrelados, de alguma forma, à cultura caipira, que feita de

lenha, fogo, terra, canto, reza, velas, santos, mato, entre outras coisas, permeia meu

imaginário e minhas memórias. Sendo assim, nesse momento aproximo-me de suas

cozinhas, suas porteiras, sua terra e seus altares, para desvendar e (re) encontrar

em mim seus afetos e significados.

A fim de entrar nesse universo, recorro às raízes, meus ancestrais.

Entrecortado por choros e com a gagueira acentuada por conta da idade, seu

Manoel, mais conhecido como seu Mané, meu avô, deixa escapar a mim algumas de

suas histórias vividas nos tempos da roça.

Tem tanta coisa pra contar... uma vez tava andando de cavalo na fazenda,

era meia-noite, vi um cachorrão grande, não sei o que era... era lobisomem.

Depois sumiu. Tinha medo, tinha. Essas coisas só acontece à noite, de dia

não. Ainda mais que era tempo da quaresma... coisa ruim. E quando estava

andando no meio do cafezal, à noite também, um clarão desceu do céu e

iluminou um pedaço do caminho. O cavalo parou, não queria ir. Tivemos

que esperar a luz sumir. Vi também uma bola de fogo uma vez no alto de

um morro. Tava sempre sozinho...mas agora não vou falar não.

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Com a audição e fala já debilitadas por conta de dois derrames, seu Mané

parece ainda estar a cavalgar. Estar ao seu lado é como revisitar um desconhecido,

do qual estranhamente sinto saudades. Através do seu olhar longínquo posso tocar

a mata e sentir o cheiro da noite, aquelas noites de solidão que ele guarda consigo,

como um segredo. Nesse momento subo com ele no cavalo e divido a nostalgia. Às

vezes, um fumo e um gole de pinga para acalentar a passagem das horas. De um

jeito manso, próprio daqueles que sabem o valor do silêncio, seu Mané prefere calar-

se para evitar que as águas lhe molhem o rosto, deixando assim que eu mesma

cavalgue para onde minha imaginação alcançar.

Sem puxar conversa, apenas observa a movimentação em sua pequena

casa. Minha avó Luzia cuida de suas necessidades básicas e não deixa faltar-lhe o

café e o pão. Diferente dele, não lhe falta conversa. Porém, as histórias são bem

diversas: ela conta sobre o trabalho na roça, sobre as horas que passava debaixo do

sol com os filhos no cafezal, sobre às vezes em que ia de charrete até a cidade

visitar os pais e sobre os botijões de gás e bacias com roupa já carregados na

cabeça. Com isso, enquanto meu avô cavalga à luz do luar, minha avó está fincada

no chão, carregando sua enxada.

Filhos de italianos e espanhóis levam os anos que lhes restam de maneiras

distintas, porém ambos carregam, no olhar e no peso das mãos, porções de terra e

de histórias. Foi com eles que aprendi a simplicidade e a humildade diante da vida, e

é neles que minha base está plantada. Longe de grandes ambições financeiras e

sociais, criaram os três filhos na roça, com o suor do próprio rosto. Suor de verdade,

gerado pela enxada, pelo trabalho com a terra, com os animais, de sol a sol, todos

os dias. Assim passaram aos filhos e netos firmeza e coragem para encarar a vida,

misturada a uma doçura de quem, no fundo, não leva a vida tão a sério assim.

Sussurrando os segredos de sua alma, ouvindo da terra os segredos de sua

lida. E o segredo é não contar o segredo. (...) Esse homem – em sua

humanidade encantadora, preservada por um lugar onde o tempo é outro,

regido por sua terra, por sua solidão, por sua música, por seus amores, tem

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dentro de si a perfeita convivência entre a rudeza e a delicadeza. (MARCHI,

SAENGER e CORRÊA, p. 74, 2002).

Assim, o meu imaginário sobre a cultura caipira até as pesquisas de campo

abrangia o fogão a lenha, a moda de viola, as cozinhas, os benzimentos, o mato, a

terra, as plantações, a noite, o cavalgar, seres como lobisomem e curupira, o céu

imensamente estrelado, as velas, as romarias, as ladainhas e os véus. A partir disso

fui a campo, e ali me deparei com inúmeros caipiras, condizentes e opostos a esse

imaginário. Histórias de morte, violência e solidão, e atos generosos, afetivos,

sensíveis e simples me tomaram, mexendo profundamente comigo, indo da rudeza à

delicadeza, do material ao espiritual e da solidão ao afeto. Descreverei mais sobre

minha relação com o caipira mais adiante, quando dissertarei sobre o meu processo

dentro do método BPI.

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METODOLOGIA, MATERIAIS E PROCEDIMENTOS

Metodologia

Para o desenvolvimento desta pesquisa foi utilizado como método, o

Bailarino-Pesquisador-Intérprete (BPI), criado pela Profª Drª Graziela Rodrigues, pois

em suma, ele proporciona uma “escavação” interna àquele que o vivencia,

colocando-o em contato com aspectos profundos de si mesmo encontrados em seu

corpo, e através da relação com o outro, tendo como intuito alcançar um material

artístico expressivo que nasça no mais íntimo do intérprete, já transformado pelo

campo, e transborde para quem assiste a ele.

Todo esse processo proporcionado pelo BPI trouxe um amadurecimento da

intérprete-criadora, tanto como artista como em todos os outros âmbitos, pois

acolhendo e conhecendo a si mesma, algo que o método proporciona, pode

expressar-se com mais inteireza.

Tal método foi criado na década de 1980, e desde aí muitos o vivenciaram,

dentro e fora da Universidade. As principais publicações para compreender o

método são o livro e a tese de Graziela Rodrigues (1997 e 2003 respectivamente).

No entanto, atualmente somam-se a essas referências inúmeras outras, totalizando

mais de 100 publicações sobre o assunto. Estruturado basicamente em três eixos, o

Inventário no Corpo, o Co-habitar com a Fonte e a Estruturação da Personagem,

estes entrecruzam-se o tempo todo, conduzindo o processo do artista (Rodrigues,

2003). Dão suporte ao desenvolvimento dos eixos cinco ferramentas: Técnica de

Dança, Técnica dos Sentidos, Laboratórios Dirigidos, Pesquisas de campo e

Registros (Rodrigues, 2010). Assim sendo, descreverei os três eixos a seguir.

O Inventário no Corpo

É a primeira etapa a ser vivenciada dentro do método, não se excluindo a

possibilidade de revisitá-la em outros momentos. Nesse eixo, o intérprete entra em

contato com a sua história, suas memórias e consequentemente com o meio em que

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está inserido, percebendo como todos eles estão inscritos em seu corpo. Um roteiro

para pesquisa com os próprios familiares e para reflexões pessoais auxilia-o nesse

contato com a história familiar. Assim, reflete sobre sua descendência, as religiões e

festividades em sua família e as próprias lembranças sobre suas terras, seus

caminhos, suas trilhas, suas estradas e seu terreiro. Além disso, reflete também

sobre o significado da Dança em sua vida e o que o moveu a isso. Na parte prática,

as atividades corporais, que têm como princípio a Técnica de Dança organizada por

Rodrigues (1997) que será descrita adiante, acontecem continuadamente,

preparando o intérprete para vivenciar a Técnica dos Sentidos que o colocará em

contato com seus conteúdos internos através de imagens, movimentos, sensações e

emoções impregnadas em seu corpo. Assim, o intérprete ganha consciência daquilo

que está nele e pode perpassar conteúdos que, de alguma forma, impedem o fluxo

desses sentidos e limitam sua expressividade, possibilitando expandir seu discurso

artístico para conteúdos que dialogam com a sociedade.

Observa-se que após a realização do Inventário no Corpo há um maior

desprendimento do corpo para articular o movimento que lhe faz sentido,

como também aumentam as condições de elaboração de movimentos com

valor artístico. (RODRIGUES, 2003, p.96)

O Co-habitar com a Fonte

A relação interpessoal é o que nos propõe esse eixo. Nessa etapa, o

intérprete seleciona um local onde queira realizar a pesquisa de campo, estando ela

circunscrita a algum segmento social ou manifestação cultural brasileira à margem

da sociedade dominante, e que por esse motivo contém em si traços de resistência

cultural. A escolha desse campo possibilita ao intérprete conviver com uma realidade

distinta da sua, propiciando que ele expanda sua visão sobre o outro, através de

uma possível quebra de preconceitos, máscaras e tabus, além de ampliar sua

percepção sobre si, pois ao deparar-se com outra realidade, identificações e

rejeições vem à tona, fazendo emergir conteúdos muitas vezes desconhecidos.

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O Co-habitar com a Fonte possibilita uma rica interação entre corpos. Paul

Schilder (1994), coloca que as relações entre as pessoas são relações entre

imagens corporais. O pesquisador ao estabelecer uma fina sintonia no

contato com o outro poderá sintonizar-se consigo mesmo e se conhecer.

(RODRIGUES, 2003, p.105).

O Co-habitar com a Fonte foi o principal eixo desta pesquisa, em que a

recepção do pesquisado no corpo, apreendendo sinestesicamente a paisagem, o

ambiente, os cheiros, as cores, as expressões, os sons e as histórias de cada

campo encheram meu corpo, possibilitando-me entrar em contato com conteúdos

profundos que estavam adormecidos, conduzindo-me a perceber que “Não há como

chegar aos recônditos da arte sem levar a si mesmo” (Rodrigues, 2003, p.13).

A escolha do campo é feita por afinidade e por desejo, e inconscientemente o

campo escolhido dialoga com questões do intérprete que necessitavam vir à tona no

momento. “A escolha do intérprete pelo campo tem ligação com questões ainda não

conscientes de seu interior e, ao mesmo tempo, com uma identificação cultural deste

com esse campo.” (Rodrigues, et al. 2016, p. 559). Após ter estabelecido um contato

mais profundo consigo mesmo, propiciado pelo Inventário no Corpo, o pesquisador

pode ir a campo para apreender física e emocionalmente as sutilezas de cada lugar

e de cada pessoa ali encontrada, expandindo e “destampando” seu corpo, a partir

daquilo que encontra no outro.

Quando cada um de nós está buscando sintonizar com outra pessoa, somos

também nós mesmos de forma mais plena, presentes e conectados a este

outro. A sintonia é um sentir cinestésico e emocional do outro – conhecer

seu ritmo e experiências, por estar metaforicamente falando, na sua pele.

(ERSKINE, 1997, p.1, apud RODRIGUES, 2003).

Para tornar esse corpo receptivo, centrado e presente, a fim de receber o

outro no corpo, os Laboratórios Dirigidos caminham nesse sentido, preparando o

corpo do bailarino através da Estrutura Física e Anatomia simbólica do método, que

descreverei a seguir, sabendo que Co-habitar, de fato, se dá quando o pesquisador,

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por um momento, sente-se parte do lugar que está pesquisando, absorvendo

imagens de corpos que se mesclarão ao seu.

Segundo Rodrigues (2003), a preparação do corpo do intérprete para ir à

pesquisa de campo acontece por meio de diversos exercícios e reflexões, dentre

eles aqueles que visam: a ampliação dos referenciais, quando o bailarino necessita

ampliar sua percepção sobre o que é dança e exercitar a observação dos seus

sentimentos em relação aquilo que vê; a ampliação do olhar para o outro,

conquistada a partir de uma fina percepção do próprio corpo, em que o

enraizamento e a expansão auxiliam nesse aspecto, além de um estado de

presença oposto a um corpo relaxado; e, por fim, ter a minúcia necessária para

poder ler o movimento do outro, baseando-se na Estrutura Física e Anatomia

Simbólica como referência a essa leitura. A cada dia de pesquisa de campo, a

experiência é registrada em Diário.

A Estruturação da Personagem

Após ter vivido todo o processo, o bailarino “Incorpora” uma personagem,

criada a partir do entrelaçamento de aspectos do intérprete, suas memórias e o

campo vivenciado. Isso se dá por meio dos Laboratórios Dirigidos, em que o diretor -

figura indispensável para a realização desse processo - está junto do intérprete,

orientando-o e questionando-o a fim de colocá-lo em profundo contato consigo,

propiciando que brote daquele corpo uma expressividade potente.

Rodrigues (2003) explana o termo “incorporação” na visão de Melanie Klein,

segundo Hinshelwood (1992, p.357) a fim de explicitar os sentidos atribuídos ao

termo que também é utilizado no método.

O termo "incorporação• refere-se à fantasia da absorção corporal de um

objeto que é subsequentemente sentido como fisicamente presente dentro

do corpo, ocupando espaço e sendo ativo Iá. E a experiência que o sujeito

tem de um mecanismo de defesa que é objetivamente descrito como

introjeção. (HINSHELWOOD, 1992 apud RODRIGUES, 2003, p.123).

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Além disso, considera-se seu sentido nos cultos afro-brasileiros, onde

Rodrigues (2003, p. 123) descreve que:

Esse fenômeno da incorporação nos ritos afro-brasileiros é quando o santo

ou entidade é recebido pela pessoa iniciada. Ora, o interesse nas pesquisas

de campo sobre este fenômeno foi devido à riqueza que o corpo em transe

expressava e principalmente ao fato do próprio crente dizer que se tratava

de um processo em que noventa por cento dependia da pessoa e apenas

dez por cento era atribuído ao "santo".

Dessa maneira, o momento da Incorporação da personagem no método

sintetiza esse cruzamento de imagens corporais que não passam pela nossa via

cognitiva e que expressam fragmentos de nós mesmos, muitas vezes

desconhecidos.

O termo Incorporação é utilizado no método BPI para representar o

momento dentro do processo em que a pessoa alcança uma integração das

suas sensações, emoções e imagens, vindas até então desconectadas. É

um fechamento de gestalten, de onde emanam novos conteúdos bem

delineados, constituindo a personagem (Rodrigues, 2003, p.124).

Durante todo esse processo, a imagem corporal do intérprete, da qual fala

Schilder7 (1994), é descontruída e reconstruída inúmeras vezes, devido à vivência

nas pesquisas de campo em que apreendemos o outro no próprio corpo, e as

modelagens que emergem durante o processo.

Expandimos e contraímos o modelo postural do corpo; retiramos e

adicionamos partes; reconstruímo-lo; misturamos os detalhes; criamos

novos detalhes; fazemos isso com o nosso corpo e com sua própria

expressão. Fazemos experiências constantes com ele. Quando a

experimentação através dos movimentos não é suficiente, acrescentamos a

influencia do aparelho vestibular e de intoxicante da imagem. Quando,

mesmo assim, o corpo não é suficiente para expressar as mudanças lúdicas

7 Psiquiatra, neurologista e formado também em psicanálise e filosofia.

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e destrutivas que ocorrem nele, acrescentamos roupas, máscaras, jóias,

que por sua vez também expandem, contraem, desfiguram ou enfatizam a

imagem corporal e partes dela. (SCHILDER, 1994, p.183 apud

RODRIGUES, 2003, p.121).

A história de vida da pessoa irá determinar a estrutura da imagem corporal,

principalmente no início do seu desenvolvimento. As primeiras experiências

são fundamentais na estruturação da imagem corporal. As ações e atitudes

das pessoas que a cuidaram, os toques (qualidade e intenções dos

mesmos) e as palavras, inscrevem uma história no seu corpo. O próprio

interesse destas pessoas em relação aos seus próprios corpos terão surtido

influência na formação da pessoa. As doenças que ela teve também

provocarão ações em seu próprio corpo. As experiências e as atividades

vividas por cada pessoa farão o traçado específico da sua imagem corporal.

Uma estruturação que nunca cessa, continuando sempre por toda a sua

vida. (RODRIGUES, 2003, p.21)

Dançar com a personagem traz uma força e um sentido ao corpo, pois ela

nucleia e ao mesmo tempo amplia os conteúdos mobilizados no intérprete.

Acompanhados por rejeição ou identificação do intérprete, os conteúdos dessa

personagem vão sendo desenvolvidos e, com o trabalho contínuo, aquele passa

gradualmente a assumir o que rejeitou de si mesmo. Dessa maneira, o intérprete

vive o processo, reconhecendo a si mesmo e ao outro, para chegar a uma

expressão artística que nasça de suas vísceras e que brote do corpo, tamanha a

força, a originalidade e a precisão ao dizer, sobre o mundo, a partir de si.

A personagem preenche os espaços do corpo, amplia-os com seus

sentidos, havendo assim espaço para me moldar e me transformar, como

um barro que se modela. A pele é sensível à paisagem que penetra, a

respiração se altera, a sensibilidade do corpo se amplia, ela ganha corpo e

não se cristaliza numa forma, pois cada dia se apresenta de uma maneira. É

viva e orgânica. (Resposta de questionário em RODRIGUES, 2003, p.139)

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As ferramentas do método BPI

Para vivenciar os eixos descritos anteriormente, são utilizadas cinco

ferramentas dentro do método, discriminadas a seguir (ver Rodrigues, 2010).

- A Técnica de dança do BPI

Tal técnica foi estruturada a partir do estudo e decodificação da organização

dos corpos das pessoas que fazem parte de culturas de resistência, sendo elas

integrantes de segmentos sociais ou manifestações culturais brasileiras, em que

foram feitas diversas pesquisas de campo por Rodrigues. A partir disso,

organizaram-se a Estrutura Física e a Anatomia Simbólica, descritas mais adiante

neste texto, trabalhadas pelos intérpretes em processo no método BPI, além de

serem utilizadas como base para análise dos corpos das pessoas das pesquisas de

campo.

-A Técnica dos Sentidos

A Técnica dos Sentidos é um circuito de imagens, sensações, emoções e

movimentos, através do qual o intérprete explora e elabora no corpo conteúdos

internos que fazem parte da dinâmica das suas imagens corporais, modelando-os e

aceitando-os como parte de si mesmo, no decorrer do processo. A todo momento

componentes desse circuito se entrecruzam, podendo aparecer de maneira conjunta

ou isolada durante a prática dos Laboratórios Dirigidos, através de um movimento

que clareia uma imagem, uma imagem que causa emoção, ou uma emoção que traz

uma sensação. Assim, o intérprete vai aos poucos cavando mais fundo e

descobrindo um pouco mais sobre o que trafega no seu corpo. A Técnica dos

sentidos vai possibilitando maior compreensão sobre aquilo que brota do corpo do

intérprete, fazendo com que seu produto artístico possa nascer das vísceras, e se

desenvolver ao nível da consciência.

Essa técnica é trabalhada nos três eixos do BPI, possibilitando ao intérprete

um profundo contato consigo mesmo, ao perceber seus conteúdos internos, ao estar

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em relação com o outro nas pesquisas de campo, e ao elaborar criativamente as

relações entre esses conteúdos nos laboratórios dirigidos.

-Os Laboratórios Dirigidos

Os laboratórios dirigidos são conduzidos pelo diretor, a fim de propiciar que

diferentes conteúdos possam emergir do corpo do intérprete, estando eles ligados

ao Inventário no Corpo, à experiência do Co-habitar com a Fonte e ao processo da

Estruturação da personagem. Os laboratórios são feitos em espaços individuais

circunscritos, aos quais se nomeia Dojo um círculo traçado em volta do bailarino,

para demarcar o espaço onde entrará em contato com seus conteúdos internos. O

intuito é que, no final do processo, possam construir juntos, diretor e intérprete, o

trabalho artístico que sintetizará todo esse trajeto.

Os estudos de imagem corporal consideram ao redor do corpo uma

extensão do corpo por ser uma esfera de sensibilidade especial. Segundo

Paul Schilder, do ponto de vista psicológico, os arredores do corpo são

animados por ele. Em dança, este espaço significa um espaço pessoal que,

segundo Laban, é chamado kinesfera. Em tradições orientais este espaço

em torno do corpo é chamado de dôjo, espaço este que o guerreiro deve

cuidar para que não seja invadido pelo inimigo por ser parte do seu corpo.

(RODRIGUES e MULLER, 2006, p. 136, apud NAGAI, 2012, p. 26).

- As Pesquisas de Campo

Este é o momento em que o intérprete vai para fora, para depois retornar de

modo mais profundo a si mesmo. Durante os três eixos ocorrem as pesquisas de

campo, porém alteram-se os seus ambientes. No eixo O Inventário no Corpo, ela

acontece em locais que dizem respeito à memória do intérprete, no Co-habitar com a

Fonte ocorre de maneira mais intensa, pois o intérprete necessita sair de seu lugar

comum e abrir-se para relações, e no terceiro eixo, a Estruturação da Personagem,

se realiza em locais que estejam em função daquilo que foi incorporado.

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-Os Registros

Os registros são feitos através de diários de campo e de laboratórios, em que

o intérprete descreve minuciosamente tudo aquilo que foi vivenciado. Os registros

audiovisuais das pesquisas de campo são esporádicos, já que se prioriza a relação

pessoal, e os dos laboratórios acontecem com maior constância no final do

processo. O diretor também faz registros, a fim de auxiliar o intérprete a traçar o

mapa de consciência sobre o seu trajeto. (Rodrigues, 2010).

A Estrutura Física e sua Anatomia Simbólica

A Estrutura Física e a Anatomia Simbólica compõem a ferramenta da Técnica

de Dança do método BPI. Aqui as descreveremos sinteticamente, com base em

Rodrigues (1997). A autora enfatiza que a Estrutura Física - vista nos corpos em

campo e posteriormente sintetizada para o trabalho nesse método - caminha para o

recebimento do campo simbólico, assim como o recebimento do campo simbólico

caminha para essa Estrutura Física. Um dos aspectos fundamentais para que tal

conexão se dê, é que ao trabalhar um profundo “enraizamento” do corpo através do

contato dos pés com o solo, o bailarino refina a percepção sobre si mesmo e sobre o

outro, pois tal organização auxilia na percepção da imagem corporal, segundo Paul

Schilder (1994), e prepara o corpo para a Técnica dos Sentidos.

Esse corpo aberto, receptivo e repleto de sentidos, acionado por tal Estrutura,

se organiza pelo conceito de corpo-mastro, definido por Rodrigues (1997), em que a

parte inferior do corpo, sua base, os pés, interligam-se profundamente com o solo,

como se tivessem raízes. Eles recebem e devolvem energia à terra, e a musculatura

em espiral das pernas respeita os espaços de articulação. A bacia responde à

gravidade, e o cóccix, em direção ao chão, proporciona a sensação de uma terceira

base. A parte de cima do corpo interliga-se ao céu: tronco, braços e esterno, que

centraliza o emocional. O corpo traz em si mesmo o mastro festivo observado

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nessas manifestações, em que as energias correm do céu para a terra, vivificando o

corpo. O cruzamento de energias e consciência da integração das partes opostas do

corpo, direita superior com esquerda inferior, por exemplo, empresta uma unidade e

concentração de força ao centro deste.

O corpo-mastro recebe a força do céu e da terra, encontra seu eixo e o

flexibiliza. Estando aberto aos aspectos simbólicos, os processa e expurga através

da explosão do movimento, conduzido através de cada parte do corpo. (Rodrigues

1997).

-Partes inferiores

Ligados à terra, os pés experimentam diversos apoios em relação ao solo,

mastigam, afundam e amassam, rotacionam e flexionam-se em diversos sentidos,

direções e com diferentes esforços. Os principais apoios são os dedos, metatarso,

calcâneo, dorso e bordas, sendo eles pequenos, médios ou grandes, utilizam

esforços mínimos, medianos ou máximos, sutilizando, deixando as raízes soltas ou

enraizando no solo, respectivamente.

-Os joelhos

Os joelhos flexionados possibilitam maior liberdade de movimento aos pés, e

influenciam a posição da bacia e da estrutura corporal como um todo. A quebra de

joelhos, a projeção à frente, e o pôr-se de joelhos estão presentes. Muitas vezes a

ação dos joelhos simboliza uma saudação ou o recebimento do sagrado, segundo

Rodrigues (1997).

-A pelve

A sensação de ter um prolongamento que nasce do cóccix em direção ao solo

é uma constante nessa prática. Tal sensação concede maior tração para o solo e

uma verticalidade do tronco, fazendo com que as cristas ilíacas se elevem.

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Na movimentação da pelve através do cóccix, muitas vezes é desenhado o

símbolo do infinito; assim, a bacia expande-se internamente e as articulações coxo-

femurais ganham espaço. Dessa maneira, segundo Rodrigues (1997), a pelve está

sustentada, ganhando densidade e volume, quando o movimento é realizado com

maior força de tração e adquirindo velocidade e agilidade quando esta força diminui.

O tronco permanece atuante, mesmo nos momentos em que não apresenta tanta

mobilidade.

-Partes superiores

A relação com o solo, buscada através da base, empresta maior mobilidade

ao tronco que se interliga ao céu. A coluna vertebral alonga-se e adquire variadas

posturas destacando-se as: vertical, perpendicular, abaulada e horizontal. No que diz

respeito a alguns de seus sentidos significativos, Rodrigues (1997) destaca que a

verticalidade está relacionada à ação de fincar o mastro; a postura perpendicular

oferece maior agilidade e indica certa reverência ao sagrado, quando acentuada; a

abaulada geralmente aparece quando se faz uma relação com a ancestralidade,

ganhando densidade e um ritmo mais lento; já a postura horizontal aparece, por

exemplo, em folguedos nos quais existem personagens animais.

-O tronco

Segundo Rodrigues (1997), dentre suas várias dinâmicas, as escápulas

movem-se frequentemente alternando-se e participando das torções, as quais

acentuam a força de tração para o centro do corpo. Os ombros variam entre

alternâncias, suspensões e quedas. Os braços se estendem até as pontas dos

dedos das mãos, a partir do osso esterno, que centraliza o estandarte da Anatomia

Simbólica. Os cotovelos pontuam o espaço, abrem ou protegem a parte anterior do

tronco.

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-Mãos

As mãos exploram variadas possibilidades de movimentos, assim como os

pés. Segundo Rodrigues (1997), muitas vezes as mãos materializam o imaginário

através de seus movimentos, denotam aspectos simbólicos ligados a arquétipos e

agem na expressão do que está armazenado no corpo. Assim, seus gestuais são os

mais diversos: transformam-se em armas, empurram, abrem caminho, interligam céu

e terra. Nas manifestações e rituais pesquisados por Rodrigues, as mãos são

sempre muito presentes; elas falam, assim como os pés.

-Cabeça

De acordo com Rodrigues (1997), os devotos e filhos de santo dizem que o

Santo reside na cabeça, e é ali também que estão nossas forças mentais,

relacionadas às nossas sensações físicas e de movimentos. A cabeça direciona-se

para o alto, para baixo, rotaciona-se, pontua-se e pende para as laterais, denotando

diferentes sentidos. O olhar direciona a cabeça para dentro, para fora, para o alto ou

para o solo, de acordo com cada intenção.

Materiais e procedimentos

As pesquisas e os Diários de Campo

As pesquisas de campo foram realizadas entre agosto de 2015 a junho de

2016, abrangendo rituais e manifestações religiosas, o cotidiano e o trabalho na

cultura caipira, variando o tempo de permanência em cada uma delas. Foram feitos

registros fotográficos, audiovisuais e nos diários de campo em todas elas, a seguir:

-Colheita de café na fazenda São Marcelo em agosto de 2015, em Jaú, SP;

-Festa do Folclore em agosto de 2015, em Santo Antônio da Posse, SP;

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-Terço de São Gonçalo em setembro de 2015, próximo a Santo Antônio da Posse,

SP;

-Revelando SP8 em setembro de 2015, em Valinhos, SP;

-Procissão no dia de Nossa Senhora Aparecida em outubro de 2015, em Pedra Bela,

SP;

-Sítio da dona Mariquinha em novembro de 2015, em Bofete, SP;

-Folia de Reis em janeiro de 2016, em Três Pontas, MG;

-Encomendação das almas em março de 2016, em São Tiago, MG;

-Romaria à Pirapora em março de 2016, em Pirapora, SP;

Comitê de ética

Para ser possível citar nomes de pessoas e locais envolvidos nessa pesquisa,

recorreu-se ao Comitê de Ética e realizaram-se os procedimentos necessários. Cada

participante e/ou instituição envolvida assinou um Termo de Consentimento Livre e

Esclarecido e uma Autorização de Coleta de Dados – o modelo encontra-se em

anexo - fornecidos pelo Comitê, o que permite citá-los neste trabalho.

8 Festival que ocorre algumas vezes por ano em diversas cidades do interior de São Paulo,

afim de disseminar a cultura, arte e culinária paulista.

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Laboratórios Dirigidos e Diário de Dojo

Os Laboratório Dirigidos tiveram início nas aulas de Dança do Brasil a partir

de agosto de 2015, e se aprofundaram na disciplina intensiva da Pós-graduação

cursada em fevereiro de 2016. Desde abril de 2016, quando a etapa da Pesquisa de

Campo foi encerrada, os laboratórios passaram a ocorrer também de forma

individualizada, duas vezes por semana, sendo que toda experiência foi registrada

detalhadamente no diário de Dojo.

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PESQUISAS DE CAMPO

Por um ano realizei pesquisas de campo, em lugares relacionados à cultura

caipira, deparando-me com minhas identificações e rejeições a respeito desse

universo. Para isso, o eixo empregado nessa etapa foi o Co-habitar com a Fonte,

descrito no capítulo anterior. Sendo assim, dissertarei aqui sobre as experiências

vividas em campo, em que pessoas até então desconhecidas, me receberam como

se eu “fosse de casa”, com muito afeto e generosidade. Em que a desconfiança e o

receio existiram no início, de ambas as partes, porém tudo foi se dissolvendo e

abrindo espaço para o acolhimento, permitindo-me misturar-me àquele ambiente, às

suas paisagens e costumes, para que pudesse sentir-me parte dali, mesmo que por

alguns momentos, e de fato coabitar.

Um percurso para o interior, parte do título desta pesquisa, faz alusão a dois

interiores com os quais entrei em contato: o interior geográfico, onde vive o caipira, e

o meu interior - fato que este trabalho me propiciou. As histórias contadas sobre as

colheitas de café na roça, de que participavam minha avó e minha mãe; sobre as

procissões feitas na estrada de terra da fazenda onde moravam; sobre o pouco com

que viviam, comprando apenas aquilo que não produziam, escovando os dentes

com sabão e fazendo bonecas de espiga de milho; e por fim, a vida em comunidade

que tinham, onde se reuniam para bailes e rezas entre os colonos, compõem a

minha história, e mesmo não as tendo vivido fazem parte de mim. Porém, para além

disso, questões pessoais e até então intocadas vieram à tona nesse processo, as

quais descreverei com acuidade mais adiante.

Aqui explanarei os aspectos mais marcantes dos campos pesquisados,

destacando as principais paisagens, as personagens, as sensações e os

sentimentos pelos quais fui arrebatada, chegando a uma síntese de todos eles no

final, abordando apenas os campos que tiveram maior repercussão em meu corpo.

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Colheita de café na Fazenda São Marcelo – Jaú, SP

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Essa pesquisa de campo foi realizada na Fazenda São Marcelo em Jaú,

minha cidade natal, localizada no interior de São Paulo. Frequentei o cafezal durante

alguns dias, esporadicamente, e posteriormente em três dias inteiros e consecutivos,

acompanhando a rotina dos lavradores e participando dela.

As paisagens e seus sons

Recordo-me claramente do momento em que cheguei à fazenda, e avistei os

lavradores como que infiltrados na plantação. Ao longe podia ver os bonés e um

pano, que lhes cobria a cabeça. Todos ali usavam blusas e calças compridas para

evitar o sol. Ao olhar para o horizonte, uma imensidão de arbustos verdes que

parecia não ter fim.

A plantação se dividia em fileiras, e cada casal se alocava em alguma delas

durante o dia. A maioria deles residia na fazenda, enquanto outros caminhavam

horas para chegar até ali. As casas da colônia eram simples, sem forro e sem piso,

dispostas ao redor de uma represa e precedidas por uma porteira. Na casa que

visitei, por exemplo, bem simples, toda cercada por bambus, havia um terreiro onde

eram criadas as galinhas e de onde podíamos avistar a represa, à sua frente.

A plantação de café à beira da estrada emprestava uma contraposição

gritante entre esses dois mundos, em que o silêncio do cafezal fazia sobressair o

barulho da rodovia, e o seu ritmo mais lento ironizava a euforia dos automóveis. Na

colheita, o som resumia-se ao rastelar das folhas secas no chão e ao peneirar dos

grãos, entrecortado por pouca conversa, para guardar o fôlego para o trabalho,

diziam eles. Ali também não havia música, o que insistia era o som do vento que os

automóveis cortavam na estrada, e um ou outro cantarolar e brincadeira que brotava

por entre as fileiras.

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A cronologia

O tempo ali parecia passar de modo diferente. Não sei se pelas memórias

longínquas que carrego comigo, ou se pela maneira como aquelas pessoas levam a

vida. Apesar da pressa de cada casal em reunir muitos sacos de café - o que

resultaria em um salário melhor no final do mês - o ritmo ali era mais lento,

espaçado. Não havia informações que cortassem aquele fluxo, apenas a mesma

atividade durante 10 horas: bater nos pés de café, rastelar as folhas secas que

caíssem deles, separar os grãos em montes, peneirá-los e ensacá-los.

Chegávamos ali um pouco antes das 7 h da manhã, e logo às 8 h alguns

abriam suas marmitas para almoçar. Por volta das 12 h almoçávamos novamente e

voltávamos ao trabalho que ia até as 17 h. Por vezes, no meio da tarde ocorria uma

pausa para uma xícara de café. Pude compreender as palavras de Cândido ao falar

um pouco sobre a rotina desses homens.

O despertar é geralmente às 5 horas, seguido de pequena ablução,

consistindo num pouco de água pelos olhos. Segue a primeira refeição e a

ração de milho às criações. Parte-se então para o local de trabalho,

raramente encostado à casa, quase sempre distante 200 a 1.000 metros (e

mais). A faina encetada vai até o pôr do sol, resultando uma jornada de 12

horas no verão, de 10 no inverno, interrompida pela altura das 8 h 30 m por

meia hora, para almoço, e cerca de uma hora pelo meio-dia, para merenda

e repouso. Chegando em casa, o trabalhador dá milho às criações, lava as

mãos, o rosto, os pés e janta, das 19 h em diante. Às 22 h ninguém mais

está desperto, e a maioria já se deitou pouco depois das 20. (CÂNDIDO,

p.123, 1987)

Os carros passando na estrada e nós, do outro lado da pista, tendo que

estender uma rede no chão para almoçar, salientavam ainda mais a “modernização”

e uma sensação de termos parado no tempo. O que via por entre as fileiras eram

homens e mulheres cansados, tentando vencer o tempo ao colherem mais grãos de

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café para aumentar o orçamento no final do mês, e comentando entre eles o desejo

do relógio marcar 17 h, hora de ir para casa.

Personagens, sensações e sentimentos

Trabalhavam ali alguns casais, jovens e idosos. Havia também uma menina,

de cerca de cinco anos, que acompanhava a avó na colheita. Aos poucos fui me

aproximando de cada um e, consequentemente, de suas histórias. Alguns buscavam

ali uma renda extra, outros sobreviviam daquilo há muitos anos, e poucos faziam

aquilo desde criança. Enquanto alguns diziam gostar do trabalho na roça, outros não

viam a hora de nunca mais voltar.

As mulheres ainda chegavam em casa e cuidavam dos afazeres domésticos e

dos filhos, enquanto os homens descansavam. Aos finais de semana iam à cidade

visitar os parentes, ir ao mercado, à missa, e comprar roupas. Alguns saíam muito

pouco, lembro-me que uma delas me disse: “não saio daqui pra nada não, não vejo

nada, só mato”.

Muitas histórias trágicas de morte, violência e sofrimento, eram contadas a

mim, por vítimas e ex-presidiários. Diferentes sensações se misturavam em mim,

medo, tristeza, raiva, indignação e impotência por não poder aliviar tanto sofrimento.

Já nos primeiros dias aproximei-me de Fátima, uma senhora de estatura baixa

e aproximadamente 60 anos, que aparentava ter mais idade por conta da pele,

marcada pelo trabalho ao sol. Seu corpo franzino e miúdo reforçava a impressão que

tive dela, uma senhora com ares de menina, dotada de uma inocência que lhe

permitia falar sobre qualquer assunto, sem se preocupar com o que os outros iriam

pensar. O tempo todo me dizia que quase não saía da fazenda e que não sabia de

nada, enquanto eu tentava convencê-la do contrário.

Tinha a sensação de que ela ocupava pouco espaço com o corpo, com o

quadril um tanto rígido e uma curvatura na coluna que a tornava um pouco corcunda.

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Seu tônus era mediano. Sempre que parava para conversar mantinha a mão

apoiada na cintura com a palma virada para fora, algo recorrente nos corpos que

observei. A desconfiança também era algo muito presente naquelas pessoas, ela,

particularmente, me olhava sempre de baixo para cima, como se me analisasse e

tentasse me desvendar. Aos poucos fui conquistando sua confiança e mostrando

que queria apenas conviver com ela. Tinha um olhar penetrante quando me

encarava e muito distante quando olhava ao longe, parecia se passarem séculos em

seus olhos.

Ao contrário do corpo, a voz era muito expansiva, com um timbre metálico

que cortava o espaço. Tinha um jeito de falar um tanto cantado, devido às

finalizações de frases com melodias ascendentes, que conferia certa vivacidade à

conversa. Sua maneira de falar era bem “caipira”, como costumam classificar, pois

acentuava o “r” e usava as conjugações verbais no singular, quase aniquilando o uso

do “s”, como “nói fala, nói come”.

Sentia-me muito acolhida perto dela, era como se me protegesse e me

ensinasse, de alguma maneira, o que eu precisava fazer para poder fazer parte

daquele lugar por alguns dias. Quando me via chegar ao cafezal, logo gritava para

todos que a amiga dela estava chegando. Ali ensinou-me a rastelar e a peneirar o

café, não se preocupando se isso iria tomar o seu tempo de trabalho, pois quando

me viu tentando trabalhar falou: “a menina tá com vontade de colher”, e

pacientemente me ajudou. Enquanto rastelava as folhas secas no chão eu, imbuída

de silêncio e certa solidão, associava essa ação a perpassar a superfície, a algo que

sentia estar fazendo ali, pois o contato com tal campo me provocava sensações e

sentimentos, e me desvendava conteúdos internos até então desconhecidos, como

por exemplo, o medo do afeto e do contato.

Era difícil peneirar. Para isso precisava juntar as pernas, flexionar os joelhos e

apoiar a peneira na coxa, balançando e jogando o café para cima até sair toda a

sujeira. Aos poucos fui me sentindo mais à vontade com tal tarefa, a ponto de poder

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liberar a Fátima para tomar um café no meio da tarde. Até chegar nesse ponto,

algumas pessoas ali faziam piadas do meu mau jeito, e isso me incomodava. A

facilidade com que Fátima rastelava e amontoava as folhas em fileiras era muito

bonito de ver, pois imprimia pouca força ao movimento, deixando os braços leves e

tornando o rastelo como uma extensão do seu próprio corpo. Tinha as mãos

calejadas por conta do trabalho, e ao ver as minhas disse-me que pareciam de

papel. Lembro-me que me senti envergonhada por isso, e ela prontamente me falou

que era assim, cada um sabia fazer uma coisa.

Em um dado momento perdi-a de vista no meio do cafezal, e ao encontrá-la,

prontamente me falou: “mas você sempre dá um jeito de me encontrar né?”, achei

engraçado. Passados alguns dias a vi fumando depois do almoço, lembro-me que

nesse instante Fátima deixou de estar no lugar entre menina e mulher e virou uma

senhora para mim. Era curioso, pois me fazia entrar em contato com uma

ancestralidade que eu desconhecia conscientemente, mas com a qual sentia

profunda empatia, talvez, memórias da minha família.

Outra senhora no campo que me chamou muito a atenção foi a Dalgisa.

Avisou-me prontamente para chamá-la de Marisa, pois todos a chamavam assim

desde pequena. Marisa e Fátima foram meus focos nessa pesquisa de campo,

mulheres das quais me aproximei e com as quais me relacionei. Marisa veio da

Bahia, era negra, forte, parecia ter um corpo expandido, com um tônus um pouco

alto e os pés fincados na terra, os quais mantinha descalços. Quando parava para

conversar ou descansar, apoiava uma das mãos na cintura e deslocava o eixo um

pouco para o lado, mas ao rastelar as folhas secas do chão e ao bater nos pés de

café - com um pedaço de madeira -mantinha o tronco ereto. Praticamente não a via

sair muito do seu eixo, conservando a postura perpendicular ao chão sem o uso de

torções, para rastelar. Seu corpo era como um escudo, uma espada fincada na terra,

aliada a uma expressão facial, quase sempre fechada, desconfiada. Dizia-me que

não confiava em ninguém, e expressava isso através de um olhar de canto e seu:

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“uhum”, expressão que fazia ao concordar com algo. O olhar me parecia um tanto

opaco, sem brilho, talvez justificado pelas histórias difíceis.

Ao vir da Bahia, para ajudar a filha grávida, teve que encarar a morte do neto,

anos depois, vítima de assassinato. Marisa me contava essa história enquanto

almoçávamos, embaixo do pé de café, e à medida em que seu choro lhe permitisse

contar. A comida já não descia mais, me sentia completamente impotente, faltavam-

me palavras para colocar-me diante de tamanha crueldade e frieza. Depois disso,

disse-me que havia perdido completamente a confiança no ser humano, pois sentia

medo, de qualquer um.

Marisa parecia dançar com a peneira. Seu corpo fremia balançando-a para os

lados, seguido de um impulso que lançava o café para cima. Tal movimentação

exigia força, principalmente nos braços, e ao mesmo tempo leveza para poder lançar

o café. Para isso havia um percurso: com um pedaço de madeira, batia nos pés de

café, depois rastelava as folhas que caíam deles, fazia montes, peneirava, limpava e

por fim ensacava os grãos. Era muito cansativo para mim fazer o trabalho delas,

doía tudo, pernas, escápulas, ombros, me sentia fraca, incapaz de fazer o que

aquelas mulheres faziam. Após o almoço deitava um pouco e tentava descansar. O

sol era escaldante, e eu tinha de decidir entre queimar-me, ou sentir calor ao usar

aquelas blusas de manga longa. Era difícil comer ali, em meio a tanta poeira. Já

havia engolido tanta terra que parecia impossível engolir qualquer outra coisa, sentia

como se tivesse muita terra dentro de mim. Era preciso ultrapassar meus limites para

conseguir fazer o mesmo trabalho que elas ali, e aquilo fazia-me mais forte. Eram

como mulheres de ferro.

Ao demonstrar-me afeto, Marisa dizia que me protegeria, caso houvesse

necessidade, e por vezes dividia a comida comigo. Ao chegar à fazenda no segundo

dia, ela me recebeu com um abraço tão apertado que me deixou sem ação. No

último dia, levou-me para conhecer sua casa e mostrou-me fotos da família, sentia

como se ela estivesse tirando um pouco da sua armadura, feita pelo tempo, e se

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abrindo um pouco para mim. Eu, ao contrário dela, permanecia ainda um tanto

desconfiada, mas recebia meio sem jeito, o afeto que ela me dava.

Além dessas duas mulheres, foi significativo nessa pesquisa o contato

estabelecido com uma criança que passou bastante tempo comigo. Sentia-me muito

bem ao cuidar dela, tanto que em um momento ela me chamou de mãe e perguntou

se eu a levaria comigo. Via nela um pouco da minha mãe, que também frequentara a

colheita quando pequena. Brincamos por entre os pés de café e no meio da tarde a

vi pegando bolachas e frutas que estavam na minha bolsa, ela tinha muita fome, e

era muito triste ver aquilo. Além da comida, também se interessava pelos objetos

diferentes que eu carregava, um chapéu, óculos de sol e um caderno. De repente,

quando notei, ela estava usando tudo, brincando com os óculos, rabiscando o

caderno e passando o protetor. Por um instante sentia-me como colonizadora, ao

ver seu deslumbramento com relação a tais coisas. A menina também carregava

consigo histórias bastante sérias de violência e muitos medos, de polícia e

ambulância quando passavam na estrada, por exemplo. Quando foram busca-la

para ir à casa, segurou em minha roupa e insistiu que queria ficar comigo. Sentia-me

na obrigação de protegê-la, mas ao mesmo tempo era incapaz de fazer muita coisa

por ela.

Em diversos momentos me sentia estranha ali, como se fosse um bicho. Ao

chegar as pessoas me olhavam, espiavam por entre os pés de café e queriam saber

o que estava fazendo ali. No final do dia, quando os homens iam buscar os sacos de

café também era estranho, me olhavam dos pés a cabeça e comentavam entre si,

fazendo com que me sentisse acuada perto deles, ao mesmo tempo em que sentia

raiva. Era um misto de sensações. Às vezes me perguntava porque estava ali,

enquanto também percebia que sentiria falta daquelas pessoas e daquela paisagem.

Realmente, a vida deles não é nada fácil, mas há uma simplicidade nesse ambiente

que me alimentou, pois ali valorizam-se as pequenas coisas, que em geral são as

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essenciais. Além disso, essa experiência me fez olhar para mim mesma e aos

poucos perceber como lidava com tudo aquilo.

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Procissão no dia de Nossa Senhora Aparecida em Pedra Bela – SP

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Essa pesquisa de campo foi realizada em uma procissão no dia de Nossa

Senhora Aparecida em Pedra Bela, interior de SP.

As paisagens e seus sons

A procissão saiu bem cedo, com destino à capela no alto de uma pedra da

cidade. O caminho era repleto de ladeiras e o sol estava bem forte. Havia um cheiro

de rosas que nos acompanhava, provindo do andor em que levavam a santa.

Quando este se aproximou do alto da pedra, vi que muitos já estavam à espera dela,

recebendo-a com um grito de Viva à Nossa Senhora que me arrebatou. Era muito

bonito ver as pessoas esperando esse encontro. Ao chegar à capela, os fiéis

aproximaram-se de Nossa Senhora para beijá-la e deram início ao canto “Viva a

mãe de Deus e nossa”, que se caracteriza pelo seu modo menor e remete aos

cantos gregorianos, devido ao andamento lento, rítmica dilatada e conteúdo do texto

de caráter sacro. Recordo-me que nesse momento, uma memória de infância me

tomou, pois essa canção era a abertura de um programa de rádio matinal que me

despertava todos os dias. Nessa hora, fui para mais perto de casa.

Personagens, sensações e sentimentos

Um grupo pequeno de moradores fazia o percurso em silêncio, e quatro

homens carregavam o andor nos ombros, com a imagem da santa. Encontrar esse

cenário me desapontou. Um grupo pequeno e em silêncio era exatamente o oposto

daquilo que eu esperava: muitas pessoas cantando e rezando. Uma paisagem

simples, com pessoas simples, nada grandiloquente, em que o encontro real com o

caipira ia na contramão daquele do meu imaginário, em idealizar algo na direção do

que foi descrito por Peres.

Passos que alavancam o moinho do tempo em busca de um lugar. Veredas

de instantes onde a fé de muitos é construída na fusão de corpos e

espíritos. Devotos romeiros, sertanejos, homens, mulheres e crianças,

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personagens com chapéus e lenços ao vento trazendo consigo pés

calejados e dispostos a seguir. Lábios que sussurram preces e que se

abrem para cânticos de louvor. Olhares que descansam e inundam a face

em gratidão por graças alcançadas. (PERES, p.57, 2010).

O grupo seguia seu destino, ora cantando, ora rezando o terço, ou em

silêncio. O que ficava forte para mim era a sensação de estar só mesmo em grupo, e

parecia-me que para aquelas pessoas também, pois a peregrinação acontecia

individualmente, a cada ladeira vencida.

Aos poucos fui percebendo quanta fé existia nelas. Era realmente algo

emocionante. Havia ali homens, mulheres e crianças, de variadas idades. Me

chamou a atenção naquele primeiro momento um senhor, com calça, camisa social

de manga longa e que com um lenço limpava o suor do rosto. Parecia que o sol

escaldante não lhe afetava, apesar do suor, o que importava era estar muito bem

vestido para ir ao encontro de Nossa Senhora.

Depois de visitar a capela, na volta, encontrei uma mulher descendo as

escadarias. Ela descia os degraus com muita dificuldade, segurando com firmeza no

corrimão, pois visivelmente tinha alguma deficiência nas pernas. Aquele esforço e

determinação chamaram minha atenção e parei para falar com ela. Quando lhe

perguntei se era difícil estar ali, ela me disse: “É a fé. Se eu pudesse subiria tudo

isso aqui de joelhos”. Aquilo me surpreendeu.

Sempre que refletia sobre a penitência e as promessas, algo recorrente no

catolicismo, indagava-me sobre sua valia. Porém, naquele contexto, não havia

espaço para esse tipo de racionalização, pois a força daqueles corpos e daquelas

vozes era tão grande, que ultrapassava qualquer filosofia, restando-me apenas parar

e sentir o sagrado, que movia aquelas pessoas ali.

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Dona Mariquinha – Bofete, SP

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Após algumas buscas e vivências em pesquisas de campo, persistia em mim

o desejo de conhecer alguém que ainda conservasse certos traços do caipira que

permeavam meu imaginário. A vida baseada na economia de subsistência e o

contato com a natureza eram alguns deles. Nessa busca, cheguei até Dona

Mariquinha, moradora de um sítio em Bofete no interior de SP e que ainda preserva

alguns desses traços, somado a um certo isolamento, que também me cativou.

A sociedade caipira tradicional elaborou técnicas que permitiram estabilizar

as relações do grupo com o meio (embora em nível que reputaríamos hoje

precário), mediante o conhecimento satisfatório dos recursos naturais, a sua

exploração sistemática e o estabelecimento de uma dieta compatível com o

mínimo vital – tudo relacionado a uma vida social de tipo fechado, com base

na economia de subsistência. (CÂNDIDO,p.36, 1987)

As paisagens e seus sons

Após um pedaço de estrada de terra cheguei à casa de Dona Mariquinha. Ao

lado direito, logo na entrada, uma capela, e ao esquerdo a casa, com as janelas e

portas abertas. O sítio era bem grande, a casa cercada por quilômetros de mata,

algumas criações de animais e outras casinhas menores. Adentro sua casa. Nela

havia muitos quartos, mas atualmente ela morava praticamente sozinha. O chão era

de barro e as paredes de tábua e alvenaria. Na cozinha havia algumas estantes,

repletas de imagens de santos e velas, e ela me dizia ser devota de todos eles.

Visivelmente a cozinha era o lugar na casa pelo qual ela tinha especial apreço.

Passava o dia ali preparando e servindo suas refeições, todas feitas no fogão à

lenha. O curioso era que ela adorava cozinhar, mas pouco comia de seus quitutes.

Quando cheguei à cozinha já me aguardavam na mesa, pão, queijo, leite,

café e doces, tudo provindo da fazenda, pois ainda faz quase tudo o que come,

açúcar, arroz, feijão, pão, farinha, milho, queijo, farofa, café, enfim, muitas coisas.

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Gosta tanto de cozinhar que tem um cômodo apenas para armazenar panelas, de

variados tamanhos, além de talheres e pratos.

Em volta da sua casa, as outras, mais pequeninas, permanecem ali

desabitadas, pois foram construídas pelo seu marido quando ainda morava mais

gente ali. Criações de porcos e galinhas também ocupam o sítio, além de muitos

instrumentos que usa para preparar os próprios alimentos, e que exigem muita força

e habilidades, características que Dona Mariquinha tem de sobra.

Já a capela na frente da casa guarda a memória do marido, que faleceu ali

quando foi atear fogo no terreno e não resistiu à fumaça causada pelo incêndio.

A cronologia

Estar ali era como estar em um tempo muito remoto. Afinal, é raro

encontrarmos pessoas que ainda vivem assim, afastadas da cidade e consumindo,

na maior parte das vezes, apenas o que produzem. O ritmo era lento e dilatado, ali

era realmente possível ver o dia passar.

Dona Mariquinha não sai de casa e nem vai à cidade, não gosta, prefere ficar

ali recebendo quem aparece e cuidando dos afazeres diários. Essa senhora abriu-

me uma fenda no tempo.

Personagens, sensações e sentimentos

Quando cheguei, deparei-me com uma senhora de estatura baixa, magra,

costas bem abauladas e pele enrugada. Usava um lenço na cabeça e caminhava o

tempo todo de um lado para o outro, com os braços ligeiramente flexionados que

mantinham um certo balanço, para frente e para trás. Tinha os dedos longos e um

pouco tortos, algo que me chamou a atenção. Olhava pouco nos olhos das pessoas,

pois mantinha-os quase sempre distantes, focados na próxima tarefa que iria fazer.

Quando não, olhava de canto, analisando a situação. Tinha o quadril rígido, o eixo

deslocado um pouco para frente e o andar um tanto endurecido, de passadas curtas

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que quase não descolavam do chão. Estava sempre empenhada em fazer alguma

coisa, cuidar da panela no fogão, do café que estava a preparar, das suas criações,

quase não parava.

Sua postura, seus dedos longos e seu jeito de ser um tanto solitário, pois não

conversava muito, me chamaram a atenção. Havia algo de enigmático ali, parecia

que ela guardava consigo tantas histórias, tanta sabedoria, e as deixava escondidas,

vazando apenas através dos seus gestos. Era muito sincera e direta, dava respostas

curtas e às vezes deixava por responder, o que me intrigava ainda mais.

No fim do dia, seu filho começou a dedilhar a viola e ela mais do que

depressa foi com ele cantar. Nessa hora a emoção me tomou, pois tem algo de

nostálgico e melancólico que o som da viola guarda e que mexe comigo. Enquanto

ela cantava ia gesticulando o conteúdo da letra, o que trazia uma simplicidade e uma

singeleza, fazendo-me viajar por entre as minhas paisagens e memórias, todas

relacionadas às minhas raízes.

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Folia de reis - Três Pontas, MG

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Dentre as manifestações religiosas da cultura caipira, a Folia de Reis foi uma

das que me despertou curiosidade. Em Três Pontas, MG, acompanhei por três dias

a Folia da Família Dias, que existe desde 1870. Tal manifestação ocorre geralmente

entre o Natal e o Dia de Reis, nessa companhia, o percurso durou seis dias, de

primeiro a seis de janeiro.

Eles caminhavam o dia todo, de manhã até a noite, fazendo apenas duas

paradas, no almoço e no jantar, com o grupo todo reunido na casa de algum

morador ou Folião.

A Folia de Reis é uma manifestação popular que simboliza os Reis Magos

indo ao encontro do Menino Jesus. Os foliões visitam os moradores da região

levando a benção divina materializada pela bandeira, que carregam e que vai à

frente do grupo, além de arrecadarem ofertas para a festa do dia de Reis. Nas casas

a Folia canta os versos tradicionais e também versos novos e improvisados,

compatíveis com cada morador e situação. À frente vão os Palhaços, também

chamados de Marungos ou Bastiões, vestidos com roupas coloridas, máscaras e

utilizando bastões. Eles vão durante todo o caminho gritando bordões, dançando e

fazendo saltos e acrobacias quando alguém pede o “Corta Jaca”. O tempo todo a

música dá o tom ao ritual, tocada por diversos instrumentos e com abertura de

vozes. O ritual finaliza no encontro com o Menino Jesus que acontece no último dia,

na festa de encerramento.

Em Portugal, o termo folia já existia no século XVI (...) e denominava uma

dança viva ao som de pandeiro e canto, representando os próprios Reis que

vão adorar o Menino Jesus. Sua origem está no drama sacro encenado nas

igrejas no Natal, durante a Idade Média. Com o tempo, esses dramas

deixam de ser apresentados em latim e libertam-se da música litúrgica. Há

também um deslocamento da ênfase do Officium Pastorum – o nascimento

e a chegada dos pastores à manjedoura – para o Officium Stellae, que

compreende o anúncio aos Reis, a viagem seguindo a estrela, o encontro

com Herodes, a adoração do menino (Rios, 2006, p. 66; Moreyra, 1983,

apud PERES, 2010, p. 27).

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As paisagens e seus sons

Três Pontas é uma cidade localizada no sul de Minas Gerais, com pouco mais

de 50 mil habitantes. A Folia restringia seu trajeto a alguns bairros, visitando

diversas casas durante o dia, começando o percurso às 12 h e indo

aproximadamente até às 21 h. No caminho, adentrávamos todo tipo de casa,

algumas mais simples sem acabamento, sem portões, com paredes coloridas,

presépios grandes e enfeitados, e diversas fotos de familiares nas paredes.

As músicas da Folia de Reis de Três Pontas caracterizavam-se pelo seu

modo maior, andamento lento e rítmica dilatada. A instrumentação era composta por

violão, viola, pandeiro, caixa, cavaquinho, sanfona e sete vozes. Com relação ao

canto, havia sempre perguntas e respostas, com algum dos Foliões cantando uma

estrofe e o coro repetindo a frase final. Em seguida, o coro entrava repetindo a

estrofe toda com abertura de vozes, composta por oitavas e terças.

As personagens, sensações e sentimentos

Lembro-me que ao encontrar a Folia, a primeira coisa que notei foi que a

maioria deles era homens, havia apenas duas mulheres. Isso me incomodava um

pouco, sentia-me um tanto acuada com os olhares, não sabia o quanto podia me

abrir. A maioria era mais velha, com mais de 40 anos. Como eu era a “estrangeira”

ali, ficavam comentando sobre mim e se entreolhando, observando minha reação,

novamente me sentia como um bicho, bicho acuado. Quando se aproximavam e

encostavam em mim, fossem homens ou mulheres, me incomodava muito, sentia-

me invadida. Embora eu tivesse essas sensações e sentimentos, não houve em

nenhum momento por parte deles nenhuma atitude desrespeitosa.

Ao começar o trajeto observei os Palhaços, dançando e gritando bordões no

meio da rua. Isso me chamou a atenção, pois todos paravam para olhá-los, me

perguntava se não tinham vergonha, medo do ridículo.

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A primeira parada que fizemos nesse primeiro dia foi no convento das

Carmelitas, que eu até então desconhecia. Ao chegar em frente a ele vi uma grade e

uma cortina dourada, quando uma mulher falou: “Façam barulho para as

Carmelitas!”. Aí, as cortinas se abriram. Recordo-me como isso me tomou. Encontrar

ali, aquelas mulheres, jovens e idosas, todas cobertas, sem nenhuma vaidade,

silenciosas, me causou espanto e identificação. Por alguns minutos tive o privilégio

de vivenciar uma cena que me marcou, repleta de oposições, de um lado os

homens, foliões, dançando, cantando, suados, com partes dos corpos à mostra,

rindo, tocando instrumentos; e do outro, as mulheres, caladas, cobertas,

endurecidas, observando a festa, sem se mexer, sem cantar, sem interagir, e

cheirando a talco. Quando me aproximei da cela para conversar com elas,

seguraram em minhas mãos, sedentas pelo contato, e olharam em meus olhos.

Enclausuradas nelas mesmas, e repletas de mistérios debaixo de suas túnicas.

Saindo dali, voltamos ao percurso da Folia.

Comecei a notar que o que me chamava a atenção na manifestação, não

eram as músicas nem o ritual, propriamente dito, mas aquilo que escapava dele. Os

foliões descansando nas sarjetas, os que recebiam a Folia em casa, os que ficavam

conversando do lado de fora da casa, enfim, aquilo que não estava com o foco da

atenção.

Um morador de rua fisgou minha atenção durante todo o trajeto. Com as

orelhas grandes, estatura baixa, um saco de estopa que carregava nas costas,

roupa de frio – independente do calor que fazia -, dentes sujos e um modo de falar

que ninguém compreendia, acompanhou a Folia durante os três dias em que estive

lá. Comia com a gente, dançava, cantava e também quis participar do rito,

segurando a bandeira e pedindo para que cantassem a ele. E cantaram. Foi muito

bonito ver sua alegria e perceber que ele já não estava tão sozinho, como devia

sentir-se normalmente, tinha mais gente partilhando da sua solidão.

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Andávamos o dia todo e os foliões nunca reclamavam, passavam o dia

visitando cada casa que pedisse, cantando e tocando, sempre com um sorriso no

rosto. Pareciam estar indo ao encontro de alguém muito especial.

Uma das visitas que me marcou, foi quando passamos em uma casa bem

simples, com os tijolos à mostra, e nos cômodos do fundo encontramos uma

senhora deitada em uma maca, com uma mulher ao seu lado. Foi muito tocante a

reação dessa senhora quando viu a Folia entrar. Ela ficou tão feliz, que se

emocionou e começou a dançar deitada, com as partes do corpo que conseguia

movimentar. Nesse caso, as mãos, os pés e a cabeça. Balançava-as para um lado e

para o outro, animada. Aquilo emocionou a todos. No final, disseram-me que aquela

senhora sempre esperava a Folia passar, todos os anos, o que justificava sua boa

oferta, mesmo considerando as condições simples em que vivia.

A generosidade daquelas pessoas era algo encantador. Os moradores, os

foliões, todos, doavam e partilhavam o pouco que tinham, e emocionavam-se ao

deparar-se com os menos afortunados, como o morador de rua ou a senhora

debilitada na cama. Ofereciam comida, levavam alegria e fé, e paravam para

perceber o outro. Sempre perguntavam se eu estava bem, se voltaria no dia

seguinte ou se tinha comido. Acolheram-me mesmo sabendo muito pouco sobre

mim. Entre eles, há trocas de elogios, piadas e histórias de vida contadas na mesa

do almoço, fatos cotidianos, destituídos de grandes ambições.

Suas vestimentas transpareciam muita simplicidade. Bonés com logomarcas

de empresas, blusas e calças um tanto desbotadas, pés rachados e unhas sujas. A

eles isso parecia não importar, em nenhum momento os via reclamando. As

refeições, todas elas, eram compartilhadas com quem se juntasse à Folia.

Algo muito forte que vivi, relacionado a essa generosidade, foi com o

Mosquito, apelido de um dos cantores da Folia. Mosquito já havia sido palhaço de

circo, cantor de dupla sertaneja e adorava contar suas histórias. De estatura

mediana, usava uma camisa de botão sempre aberta, bigode, alguns colares de

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santo pendurados no pescoço e um cigarro atrás da orelha, mesmo sem ser

fumante. Dificilmente saía de uma postura ereta, o que conferia a ele um tronco mais

rígido, isento de muitas torções ou deslocamentos. Seus braços pouco se

movimentavam, ao andar, permaneciam estendidos ao longo do tronco, com um

ligeiro balanço. A bacia era um pouco projetada para a frente e o olhar sempre

distante. Sua voz, um pouco metalizada, era dotada de uma sonoridade mais aguda,

característica recorrente nas vozes das pessoas com quem convivi em campo.

Entre conversas, no último dia, Mosquito falou-me que havia passado a noite

pensando no que me daria de presente. Eu um tanto envergonhada com a situação

falei que lhes daria algo para não esquecerem de mim, e ele prontamente me

respondeu: “nunca esqueceremos de você, de qualquer jeito”, o que me marcou

profundamente. Então, entregou-me um embrulho, e dentro dele havia um colar com

a foto de um padre que seria beatificado na cidade. Disse-me que eu devia repassar

o presente a alguém de quem gostasse, como forma de carinho. Não entendi sua

proposta, pois me parecia estranho ganhar o presente e passá-lo adiante, quando

Mosquito me falou que eles costumam levar presentes aos amigos como forma de

carinho, e que eu deveria fazer o mesmo.

No último dia, ao andar pelas ruas encontrei o Mosquito e mais algumas

pessoas sentadas em uma esquina. Parei ali com eles, e logo notei que estavam

relembrando coisas do passado. Um deles, compositor, começou a me contar sobre

suas canções e disse-me que fizera uma delas contando sobre um assassinato

acontecido ali. Um homem que abusava das crianças no cafezal e depois as matava.

Contou toda a história me apontando o local dos crimes, ficava perto dali. Descreveu

com acuidade como eram as torturas, que iam desde enfiar crianças em formigueiro,

a cortar seus genitais, coisas horrendas. Depois disso, mostrou-me sua canção.

Estar ali era como estar na rua de casa. Um lugar ermo que me fez entrar no

universo caipira. O tempo ali parecia congelar, e eu me sentia em casa. Os cheiros,

os cenários, as pessoas, tudo aquilo parecia ir entrando em mim, impregnando meu

corpo, enchendo-me de memórias. Nesse momento posso dizer que Co-Habitei com

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a Fonte, como afirma Rodrigues (2003), pois vivi aquela paisagem como se fosse a

minha.

Eis que havia chegado então o último dia, um dia de festa. Na rua do

Embaixador - Folião que presidia a manifestação – havia sido montada uma

manjedoura, onde crianças representavam as principais figuras do nascimento de

Jesus – Maria, José e o Menino. A rua toda havia sido enfeitada, e com um tapete

vermelho traçaram um caminho de alguns metros, circundado por bandeirinhas e

coberto por três arcos de bambu. Ali, os Foliões fizeram o percurso até a

manjedoura e me convidaram para fazer parte dele. No caminho foram rompendo as

três correntes que ficavam abaixo dos arcos, e a cada corrente rompida eles

comemoravam. Em volta, muitos moradores assistiam a esse momento, marcado

pela música, pela dança e pela alegria dos Foliões. Ao chegar à manjedoura, as

crianças, vestidas de Jesus, Maria, José e os anjos, recebiam os Reis Magos,

simbolizados pelos Foliões. Esse momento foi de muita emoção: todos se

abraçavam e comemoravam mais um ano da Folia de Reis da Família Dias, foi

encerrada com um jantar servido a toda a comunidade.

Despedir-me deles não foi fácil; foram poucos dias de convivência que

pareceram muitos. A conexão estabelecida entre nós foi muito valiosa e nesses dias

pude sentir-me completamente aceita e acolhida, o que me causou certo

estranhamento, pois mesmo sem conhecer-me eles me receberam como se eu

fosse “de casa”. Conviver com essa gente humilde me fez olhar profundamente para

mim, e perceber o valor do afeto, da caridade e de um mundo mais solidário.

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Encomendação das almas, São Tiago – MG

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A Encomendação das almas é um ritual da cultura popular que acontece no

período da quaresma. De origem ibérica, proveniente de Portugal, tal manifestação

ocorre desde a idade média, tendo chegado ao Brasil com os colonizadores. Em

alguns locais o ritual é realizado por um grupo de homens, que se cobrem com

túnicas e capuzes; em outros, as mulheres já participam e todos usam vestes

convencionais. Consta do histórico da Encomendação das Almas, que no percurso

os fiéis se auto-flagelavam, a fim de se livrarem de seus pecados e serem

purificados; por isso, o ritual tem o sentido de encaminhar as almas dos mortos para

o céu e lembrar os vivos de se redimirem dos pecados, segundo Passarelli (2007).

Na maioria dos lugares, o ritual acontece à noite, e tem início nos cemitérios.

O grupo de encomendadores sai pelas ruas da cidade, fazendo pequenas paradas

em esquinas e encruzilhadas, e entoando cânticos e rezas. Às vezes levam velas e

instrumentos, e entoam um canto lúgubre, densificando a aura de mistério que tem o

ritual.

Os moradores que não acompanham o cortejo devem ficar dentro de casa, e

não podem abrir portas nem janelas enquanto a Encomenda passa. Diz-se que, se

isso acontece, as almas adentram tais residências, pois elas estão indo atrás dos

encomendadores. Deve-se manter o silêncio nas ruas, em respeito à tradição, que

persevera há anos.

Em São Tiago, MG, onde acompanhei tal manifestação, o ritual era presidido

por Dona Antônia e seguido por um grupo de adultos, jovens e crianças.

Começamos o trajeto no portão do cemitério, perto das 23 h, onde todos fizeram um

círculo e deram-se as mãos. Ali, uma vela foi acendida e iniciou-se o primeiro canto.

Ao fundo, uma imensidão negra entrecortada por árvores, cruzes e túmulos

compunham o cenário do pai nosso, rezado em coro.

Caminhamos por toda a cidade, fazendo paradas em esquinas e

encruzilhadas, entoando cânticos e rezas ao som das matracas. A procissão ritual

durou cerca de 2 horas e terminou em uma capela. O que me espantou foi que

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apesar de nunca ter participado de um ritual assim, sentia-me completamente parte

daquilo. Parecia que o rito também era meu, e fazia parte de mim, talvez em um

tempo antigo e escuro, composto por aquela paisagem. Vivia o passado, estando no

presente.

A encomendação das almas deixava, pelo seu aparato sinistro e sigiloso, a

maior impressão no espírito do povo. Afirmava-se que o curioso que

conseguisse olhar a procissão, veria apenas um rebanho de ovelhas

brancas, conduzido por um frade sem cabeça. Algumas encomendações

permitiam a flagelação penitencial, e muitos devotos feriam-se cruelmente,

durante a noite, necessitando tratamento de muitos dias. Ainda ouvi as

descrições dos velhos moradores de Natal, que tinham ouvido, tremendo de

medo, as lamentações assombrosas da encomendação (...) assustando a

todos com o sinistro batido das matracas e gemidos dos flagelantes (cf.

CASCUDO in Jangada Brasil, n.7, março de 1999, apud PEREIRA, p.141,

2005).

As paisagens e seus sons

São Tiago é uma cidade pequena, com 11.000 habitantes aproximadamente.

As ruas de pedra e os pedaços de terra precedidos por porteiras, conferiam um ar

ainda mais antigo e ermo ao local. O fato de a procissão acontecer perto da meia-

noite, também permeava o ritual de mistério, algo que ele já tem por si só, por tratar

da vida após a morte. A cada passada, as ruas, as vielas, o silêncio, a noite, as

porteiras, os terrenos inabitados, tudo ia penetrando em mim.

As músicas caracterizavam-se pelos modos maiores e andamento lento, além

do prolongamento de algumas sílabas que percorriam extensos caminhos melódicos

até encontrar repouso na nota fundamental. O canto, um tanto lamentoso,

derramado, e o som das matracas, iam me afogando em sentidos, misto de tristeza,

comoção, mistério e suspense. Ouvir a matraca cortar o silêncio da noite, sem pedir

licença e sem conter seu volume, era muito forte para mim, sentia um arrepio no

corpo todo, como se uma onda me tomasse. E o canto de Dona Antônia

potencializava tudo isso, fazendo valer todos os quilômetros percorridos até ali. Sua

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voz era incisiva, cortante, convocava vivos e mortos, rasgava, se impunha e parecia

sair de dentro das vísceras. Parecia matéria, era tridimensional. Timbre9 claro e

metálico10, com uma pequena rouquidão que o carregava de vida e de história. Seu

canto, todo ornamentado11 e repleto de vibratos12, me remetia a algo ancestral, um

canto com urgência, ritualístico, daqueles que se canta a fim de invocar.

A cronologia

Eu parecia estar em outro momento da história, em outro século. Não me

sentia no ano em que vivemos mas em algum tempo bem mais remoto, quando tais

práticas e paisagens podiam ser mais recorrentes. As velas, as cruzes, as pedras,

aquela cidade, pareciam ter congelado no tempo.

As personagens, sensações e sentimentos

Dona Antônia era a mulher que presidia o rito. Encontrar uma senhora

conduzindo tal manifestação foi realmente marcante para mim. Alguém da idade

dela, aproximadamente 70 anos, com a disposição em manter um ritual daquele

todos os anos, a fim de não perder a tradição ensinada pela avó; era muito bonito.

Ainda sem conhecer ninguém, cheguei e ela me recebeu, apresentando-se

como alguém que presidia a Encomenda. Quando perguntei se conhecia

benzedeiras por ali, pois gostaria de encontrá-las, me disse que eu estava

conversando com uma. Já ali, estabelecemos uma relação.

9 Característica sonora que permite distinguir sons da mesma frequência.

10 Timbre claro é um som com mais ênfase nos harmônicos agudos e o timbre metálico tem

certo brilho e estridência.

11 Variações em torno da melodia principal.

12 Oscilação na frequência do som.

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Cada um que se aproximava para participar da Encomenda, vinha

cumprimentá-la com profundo respeito, demonstrado por manifestações de afeto.

Ela carregava no pescoço muitos terços e colares com imagens de santos, e um

sino que, segundo me disse, através do badalar a lembrava da sua conexão com o

sagrado. Era um pouco corcunda, de estatura mediana e tinha um tônus moderado.

Seu quadril, pouca mobilidade, e o olhar, vazado e sereno, parecia me atravessar.

Dona Antônia era solista nos cânticos e comandava a Encomenda, dando os

sinais de parada, de reza e silêncio. Sua expressão era sempre de felicidade e

satisfação em estar ali. Seguia à frente do grupo, segurando um terço nas mãos e

um livretinho de rezas, mantendo a cabeça sempre baixa. Durante o trajeto era

possível imaginar uma multidão seguindo atrás do ritual, como seria antigamente:

fiéis se auto-flagelando em penitência a Deus.

Devido à minha visita, ela estendeu um pouco a duração do ritual, e no final,

quando encerramos, na capela, deixou-me o convite de visitá-la no dia seguinte em

sua casa.

Não recusando o convite, no dia seguinte fui fazer-lhe uma visita. Ao chegar

lá, vi que ela me esperava na porta. Então mostrou-me primeiro o lado externo da

sua residência, uma casa bem grande, com muitos escritos nas paredes, pelo lado

de fora: versos que ela mesma criara, expondo gratidão e apreço pela família.

Dona Antônia morava sozinha mas a casa era enorme, à espera de que os

filhos viessem visitá-la. Mostrou-me tudo: todos os cômodos, cada detalhe, cada

objeto; tudo guardava um significado, desde a pedra no altar da sala, até a boneca

pendurada no terraço. A cada cômodo, uma descoberta. Ela acumulava muitas

coisas; todas as suas memórias estavam ali, materializadas, e o mais curioso de

tudo era o terraço. Um sino enorme pendurado no teto foi a primeira coisa que me

chamou a atenção ali. Ela me contou que o tocava todos os dias na hora do almoço,

e rezava, usando um microfone para que toda a vizinhança ouvisse. Achei

engraçado e ela me disse que era um hábito de sua mãe, iniciado a pedido de um

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padre, hábito esse que levava adiante. Ao lado do sino, muitas bonecas, ursos de

pelúcia, batinas, quadros, ramos secos; enfim, tudo que fizesse sentido a ela.

Além do terraço, um quarto com instrumentos musicais me chamou a

atenção. Todos os tipos de instrumentos, de populares a eruditos, estavam em cima

da cama e, na parede, várias colagens de santos. Então, Dona Antônia pegou o

violão e cantou, para mim, músicas da Encomenda, ensinando-me. Nesse momento

percebi que estava na mesma postura que ela, tamanha a empatia. Cantamos

juntas, foi bonito.

Logo adiante, em outra sala, as paredes estavam todas repletas de

lembranças e papéis enormes com reflexões dela sobre a vida. Ao lado, havia um

grande altar. Disse-me que espalhava esses papéis pela casa para que as pessoas

refletissem, e começou a lê-los para mim. Depois disso, benzeu-me.

Permaneci ali por algumas horas e não tinha vontade nenhuma de ir embora.

Em pouco tempo estabelecemos uma relação de afeto e eu não queria partir.

Mostrou-me sua padaria e deu-me algumas bolachas e tapetes para trazer de

recordação. Dona Antônia marcou-me através do afeto e, por vezes, me esquecia

que estava ali como pesquisadora; assim, Co-habitamos.

Síntese dos campos

Após ter falado dos campos, farei uma síntese de todos eles, apresentando

de forma sucinta o que me marcou em cada um.

Revisitando o primeiro, a Colheita de café na Fazenda São Marcelo em Jaú –

SP, pude notar que ela marcou-me em alguns aspectos, como: a sensação de me

sentir bicho, objeto de análise e observação, principalmente com relação aos

homens; o medo, presente em alguns momentos, por estar em território

desconhecido; a solidão, nos momentos em que trabalhava com o café ou quando

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observava os trabalhadores; o afeto, com a Fátima, a Marisa e a menina com quem

convivi; a desconfiança, presente em mim e nelas; o cansaço, devido ao trabalho e,

por fim, o impacto ao ouvir histórias tristes e difíceis de morte, envolvendo crianças.

Foi um campo frutífero, pois experienciei sensações opostas, como desconfiança e

confiança, descaso e afeto, e pude experimentar envolver meu corpo no trabalho da

lavoura.

A procissão no dia de Nossa Senhora Aparecida em Pedra Bela – SP,

marcou-me devido à fé que presenciei ali, questionada num primeiro momento, mas

que depois envolveu-me, fazendo-me sentir mais perto de casa; e ao cansaço, por

ter que vencer muitas ladeiras durante a caminhada. Nesse campo, me senti mais

observadora, percebendo tudo de maneira mais distanciada.

Na casa da Dona Mariquinha, em Bofete – SP, entrei em contato com a

simplicidade que aparecia em seu modo de vida, baseada em uma economia de

subsistência. Além disso, a desconfiança, marcada pelo olhar de canto, remeteu-me

à minha família e a um universo já conhecido. Por fim sua independência que lhe

permite, apesar da idade, prover tudo o de que necessita. Ali me senti

completamente à vontade; era estranhamente familiar estar ali.

Na Folia de Reis, em Três Pontas – MG, pude me aproximar, de fato, do

afeto, da simplicidade, do companheirismo, da dedicação, da alegria e do

acolhimento. Também me senti como bicho em alguns momentos, e ouvi histórias de

morte envolvendo crianças, assim como no cafezal. Porém, a troca afetiva foi tão

valiosa, que sobressaiu a essas histórias difíceis. Foi difícil despedir-me daquele

universo, e principalmente do Mosquito, tão acolhedor.

No último campo, a Encomendação das Almas em São Tiago – MG, vivi um

universo que me encanta: a noite, o silêncio, a solidão e os mistérios; tudo somado

ao afeto e à solidariedade, também encontrados ali.

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Assim, pode-se notar a minha identificação com o campo, pois em muitos

momentos, escrevo que me senti “em casa”. Foram recorrentes, a sensação de

sentir-me bicho, principalmente quando o campo envolvia homens; ouvir histórias

trágicas, tristes e de morte; a solidão, mesmo em meio a muita gente; a

desconfiança, minha ou daqueles que eram pesquisados; e o afeto, estabelecido

com as pessoas. Pude vivenciar o trabalho, a procissão, a vida doméstica e as

manifestações dentro da cultura caipira, o que me proporcionou um olhar mais

amplo sobre essas pessoas e o seu universo. Os campos foram o foco do trabalho e

essenciais para essa pesquisa, pois questionaram minha visão sobre o caipira,

desmitificando minha percepção sobre ele e colocando-me em contato com as

minhas identificações e rejeições com relação a esse universo, que revela, por

consequência, conteúdos até então desconhecidos sobre mim mesma.

O caipira: uma ponte para mim mesma

Em todos os campos via muita generosidade, afeto, alegria e em

contrapartida muito trabalho, raiva, histórias difíceis e trágicas de morte e de luta

pela sobrevivência, e o meu sentimento com relação a tudo isso era de uma certa

frustração, pois parecia não encontrar aquilo que buscava. Essa frustração

alimentava o desejo em alterar o meu objeto de pesquisa, pois o sentimento de

rejeição com relação ao campo perdurou por quase todo o processo, sendo

imprescindível nesses momentos o papel da direção, que me auxiliou a identificar as

fugas, evitá-las e dar continuidade ao trabalho.

Tal sentimento de rejeição com relação ao campo ocorria devido a uma

extrema identificação e sensação de espelhamento com esse universo, o que

ocasionou um grande incômodo, pois questões de identidade evidenciaram-se e

inevitavelmente fui entrando cada vez mais em contato comigo mesma, sem saber o

quão profundamente estava mergulhando.

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Não era fácil ver naquelas colhedoras de café minha avó, naquela criança que

brincava na terra minha mãe, ou até mesmo me ver naquelas procissões há uns

anos atrás. Era tudo muito cru, muito nu, era de maneira escancarada a Amanda e

sua história de vida, suas origens. Talvez a Amanda que enterrei, de certo modo, há

uns anos atrás e que esse processo está me fazendo desenterrar. E não dava pra

fugir, não dava pra mudar o campo, não dava pra não sentir esse espelhamento

seguido dessa rejeição, ou muitas vezes um estranho acolhimento por sentir-me “em

casa”. Olhar pra mim mesma e minhas origens, como esse campo me proporcionou,

foi algo extremamente dolorido e ao mesmo tempo profundamente acolhedor.

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O PERCURSO PARA O INTERIOR

Os laboratórios

Paralelamente às pesquisas de campo, ocorriam os laboratórios dirigidos.

Neles, ocupava o meu Dojo e dava fluxo aos sentidos: movimento, emoção,

sensação e paisagem, que iam apresentando meus conteúdos internos relacionados

às pesquisas de campo. Alguns desses conteúdos eram passageiros, outros,

repetiam-se e com o passar do tempo iam se transformando e ganhando forma, até

tornarem-se modelagens, isto é, corpos bem delineados e com conteúdos bastante

intensos, mas que ainda não se tornaram personagem. Pode-se dizer que esses

corpos são como uma “ponte” para a incorporação que virá em seguida, já que

trazem conteúdos que necessitam ser processados. Quando a incorporação da

personagem se dá, o corpo e os conteúdos internos ganham maior definição, pois

ocorre uma nucleação das várias modelagens que se apresentaram até então.

Assim a personagem se instaura e grita seu nome.

Nagai (2008, p.12) explica que "um corpo no BPI representa uma síntese de

conteúdos" e mais adiante complementa "chamamos de corpo, o resultado

de uma modelagem, ou seja, uma postura dinâmica com atributos de

emoção, sentido e gestos bem definidos". (TURTELLI, 2009, p.42).

Dessa maneira, descreverei a seguir as quatro modelagens mais presentes

no início desse processo: a “Velha”, a “Mulher-bicho”, a “Morte” e a “Moça” através

de uma tabela utilizada no BPI, que registra os conteúdos vivenciados através do

fluxo dos sentidos. Assim, é importante ter em vista que paisagens, movimentos,

sensações e sentimentos trafegam pelo corpo do intérprete, não havendo nenhuma

“obrigatoriedade” de que cada modelagem traga consigo todos esses elementos, por

esse motivo algumas células da tabela foram deixadas sem preenchimento. Além

disso, a coluna dos sons foi acrescentada a tabela, já que esse processo foi

vivenciado por uma cantora.

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Corpo Paisagens Movimentos Sensações Sentimentos Sons

Mulher-

bicho

Cemitério

com

túmulos de

terra, como

de

indigentes.

Procurar carne e

mortos na terra;

cheirar as mãos;

aproximar-se da

terra; cavar; comer

carne crua; segurar

coração nas mãos e

comê-lo; tronco

paralelo ao chão e

os braços torcidos

para trás; torções e

oposições de tronco

e braços; corpo

abaulado.

Instinto,

agressividade,

voracidade.

Farejar;

expirações

fortes; sons

entrecortados

que trafegam

entre choro e

riso.

Morte Canavial;

guerra;

brasas de

fogueira no

chão.

Esterno projetado

para a frente;

cheirar as mãos

ensanguentadas;

movimento sinuoso

com a bacia; mão

que chama; dedos

com muito tônus;

segura um punhal

na mão; segura um

coração; tira as

próprias vísceras;

carrega carne crua

nas mãos; carrega

uma serpente atrás

do pescoço;

Ser uma alma

penada; foi

morta, tem o

corpo

machucado,

ensanguenta-

do; ser

imortal; ser

inatingível;

esconder-se a

noite; ser

invisível;

Vingança;

tristeza; força;

impotência;

poder; ironia;

maldade;

sensualidade;

enfrentamento;

ludibriar.

Bufar; sons

entrecortados

que passeiam

entre riso e

lamento; riso

maléfico;

sussurros

com os

dentes

cerrados e

articulação de

língua, como

se falasse em

outro idioma.

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tremores; se auto-

flagela; chicoteia pelo

espaço; cavalga; tem

o corpo abaulado

segurando dois

crânios debaixo dos

braços e olhando por

entre as frestas dele;

movimentos

espiralados de

braços e coluna; tira

pele de cobra do

corpo.

ser meio

bicho;

sexualidade

aflorada;

despertar o

feminino; ser

auto-

suficiente.

Moça Cemitério;

casamento;

Folia de Reis.

Esterno projetado

para frente; braços

abertos; reverenciar

segurando a saia do

vestido; giros; pernas

e pés soltos variando

apoios; saltos;

movimentos

pequenos e ágeis

com os pés; bacia

deslocando para os

lados; segurar um

bastão; segurar um

espelho; pentear-se;

mexer no vestido;

Se arrumar

para algo; ser

morta no altar

pelo seu

marido no dia

do seu

casamento e

sentir o

vestido todo

ensanguenta-

do.

Tristeza;

vaidade;

respeito para

com alguém;

devoção;

alegria; pena;

festividade.

Choro bem

agudo; voz

entrecortada

como um

lamento.

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tirar uma coroa de rei

da cabeça; amarrar

um tecido no corpo e

fazer um vestido-

bandeira; dançar;

acompanhar um

cortejo.

Velha Porta de

igreja; ruas

de pedra à

noite de São

Tiago-MG;

Praça do

Giraldo de

Évora-

Portugal;

Quinta da

Regaleira e

Poço

Iniciático de

Sintra-

Portugal;

cemitério;

campo de

concentração

com aviões;

guerra; casas

Andar lento e

arrastado com uma

raiz muito profunda;

ação de benzer com

sinal da cruz;

proteger-se com uma

espingarda; mostrar

com o braço

estendido um

coração humano em

suas mãos; fremir

nas mãos; pedir

dinheiro e mostrar

moedas; chamar as

pessoas pedindo

dinheiro e arrancar o

coração delas;

carregar cruz nas

costas e a frente do

corpo; caminhar;

Estar em

uma

procissão;

ser expulsa

da própria

terra; estar

sempre

vigiando; não

poder ser

vista; foi

morta e está

fadada a ficar

ali cuidando

dos mortos

no cemitério

sempre; ficar

sempre

dentro de

casa; esperar

visita;

Apatia;

solidão;

mágoa;

tristeza;

impotência;

indiferença.

Sussurros

com os

dentes

cerrados e

articulação

de língua,

como se

falasse em

outro idioma;

vibração de

língua com

som; “sh”

como quem

pede silêncio;

fry14.

14 Região mais grave da extensão vocal que consiste em uma sonoridade “crepitante”.

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no

subterrâneo.

segurar a cruz diante

de si a fim de afastar

algo; colocar a cruz

na cova; tem um véu

de renda preto que

cobre a cabeça;

tronco paralelo ao

chão; enterrar;

amassar pão;

procurar; carregar

lenha nas costas;

procurar corpos dos

mortos enterrados;

carregar criança nas

costas; carregar

menino morto nos

braços; carregar

caixão de criança

indigente nos braços;

carregar homem

morto nos braços; faz

sinal de mallochio13

girando ao seu redor

para espantar mau-

olhado; pedir silêncio

com o indicador

apoiado nos lábios.

proteger-se

quando vê

alguém a

espiando;

estar em uma

guerra e não

ter pra onde

fugir; ser

criança; ter

chifres na

cabeça e nas

costas; ouvir

ao longe um

canto de

procissão;

dedos das

mãos com

muito tônus

como garras;

corpo com

muito tônus;

segurar uma

vela; segurar

um bastão.

13 Gesto feito com as mãos para espantar mau olhado, com o mindinho e o indicador

esticados e os outros dedos dobrados.

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Ao trazer essas modelagens para o corpo, podia notar que as festividades, as

brincadeiras e o sagrado que apontavam na modelagem da “Moça” eram

questionados e barrados por mim. Já as modelagens da “Morte”, da “Velha” e da

“Mulher-bicho” me causavam maior empatia, porém me estagnavam em uma

paisagem e sensação de mortes e destroços, não permitindo que o Fluxo dos

Sentidos acontecesse. O excesso de tônus dessas três modelagens fazia com que

eu me sentisse inteira e com uma presença potente, além de sentir maior

identificação com os conteúdos apresentados por elas, o que dificultava que eu

desse passagem aos outros materiais. Sendo assim, o conflito em tentar entender o

porquê da rejeição atrelada aos conteúdos trazidos pela “Moça”, perdurou por um

bom tempo.

Com o decorrer do processo, pôde-se perceber que a dificuldade em aderir a

esses conteúdos estava diretamente ligada a um medo de aprofundar, pois as

modelagens da “Morte”, da “Velha” e da “Mulher-bicho” criavam certas barreiras

impossíveis de serem penetradas, nem pela morte, símbolo de transformação.

A morte é a Grande Barca, a Nave Derradeira a informar que a aparente

inercia do morrer é, no fundo, um ato de movimentação. A morte que a

metáfora religiosa percebe é dinâmica e possibilita o contato do homem com

outra experiência tão radical quanto o nascer. (GOMES e PEREIRA, 1992,

p. 223).

Além da dificuldade em deixar-me tocar, pudemos perceber que a

identificação com os conteúdos mais sombrios me remetiam a um universo com o

qual entrei em contato durante o meu intercâmbio em Portugal, e que passou a fazer

parte de uma identidade assumida por mim. Todo esses conteúdos da Folia, das

festas e do sagrado me causavam incômodo, pois remetiam a uma identidade que

eu acreditava ter deixado para trás. O método atuou exatamente nesse ponto, me

fazendo tocar a ferida. A Amanda que fui, a Amanda que queria ser e a Amanda que

sou, fruto de todas essas vivências, antes e depois de atravessar o oceano. Qual é a

minha identidade? Ou melhor, quais são elas? Foram questões que se fizeram

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presentes durante todo o processo, reconfigurando - como se modelasse uma argila

- tudo aquilo que sou, ou que acredito ser.

(...) é um método de transformar a imagem corporal e diminuir a rigidez de

suas formas... Assim, o movimento influencia a imagem corporal e nos leva

de uma mudança da imagem corporal a uma mudança da atitude psíquica.

(RODRIGUES, 2003, p.22)

...no BPI “a pessoa deixa emergir do seu corpo memórias que estavam

inconscientes, caso contrário o Processo não acontece”. (TURTELLI, 2009,

p.20)

Questões do inventário

No eixo Inventário no Corpo o bailarino é conduzido a uma investigação de

seu corpo, a qual envolve um re-avivamento das memórias que o

constituem, um resgate de sua história pessoal, uma redescoberta de suas

origens e uma redescoberta do meio sócio-cultural que o permeia, pois tudo

está inscrito em seu corpo. (TURTELLI, 2009, p.10).

Uma etapa imprescindível dentro do processo é a do Inventário no corpo,

quando é possível desobstruir o corpo ao trazer à tona conteúdos pessoais que

necessitam ser elaborados e que não são tratados como materiais criativos, pois, de

certa maneira, impedem o Fluxo dos Sentidos. Assim, esse eixo atua com as

pesquisas de campo e as modelagens, preparando o corpo para o material criativo

que se apresentará. A fim de elucidar esse ponto da pesquisa, descreverei a seguir

algumas experiências vividas dentro desse eixo.

Uma experiência bem marcante aconteceu durante a disciplina da pós-

graduação AC202 Tópicos especiais em atuação, oferecida no início de 2016 pela

Profª Drª Graziela Rodrigues e pela Profª Drª Larissa Turtelli. Nesse curso, em uma

das dinâmicas em dupla, vivi uma experiência interessante. A indicação do exercício

foi nos levando a modelagens infantis, e começamos a nos relacionar em duplas.

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Interagi com um dos alunos da disciplina, que em um dado momento me puxou por

um dos braços, enquanto eu segurava com o outro no batente da porta. Nesse

instante uma memória de infância invadiu-me: lembrei-me de quando tinha seis anos

e segurei no corrimão da escada da escola com muita força, enquanto a diretora me

puxava pelo braço, pois eu não queria ir para a aula. Minha mãe estava no pé da

escada observando e eu chorava muito. Meu impulso, após essa memória vir à tona

foi o de ir para o meu Dojo, porém, apesar da indicação ser a de convidar o outro

para adentrar o seu espaço impedi que ele entrasse, evitando aprofundar o nível da

relação. Passado um tempo ele entrou em meu espaço, e então começamos a

mexer na terra; pouco a pouco fui me abrindo para o contato, partilhando com ele

objetos que estavam ali. Lembro-me que esse momento me emocionou, pois

percebia o quanto era difícil me abrir e relacionar-me, e o quanto foi importante

quebrar essa barreira e deixar-me afetar pelo outro, já que assim tocávamos em

uma das questões centrais desse processo: o afeto, que necessitava vir à tona.

Nesse mesmo dia, após a dinâmica em dupla, um movimento de deitar-me no

chão de barriga para cima, com as pernas flexionadas e ligeiramente levantadas,

conduziu-me a sensações atreladas ao parto, tanto ao fato de ser parida quanto a

parir, no que diz respeito à dor de nascer e de dar a luz, trazendo questões minhas

acerca da relação mãe e filha, ao fazer-me olhar para esses conteúdos, um tanto

dolorosos, que estavam em meu corpo, mas que eu me recusava a ver. Atrelado a

isso, pude vivenciar na colheita de café um momento entre minha mãe e eu, que

também me auxiliou no processamento desses conteúdos. Foi ao andar pelas fileiras

de café procurando as pessoas que trabalhavam ali que ela me sugeriu: “vamos

correr para encontrá-los?” Eu mais do que depressa aceitei o convite e corremos por

entre as fileiras do cafezal. Ao olhar para o lado, via minha mãe entre as plantações

e me sentia viva, pois era como se voltássemos a ser crianças e os medos e as

hierarquias estivessem sendo diluídas, possibilitando que nos encontrássemos

completamente “despidas” e assim o afeto emergisse. Entrar em contato com esses

sentimentos foi de extrema importância para o processo de “desamarrar” o corpo e

poder aprofundar.

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Por fim, posso dizer que o momento que descreverei a seguir foi crucial para

esse processo, pois me colocou em contato com questões pessoais deixadas de

lado e que ao trazer à consciência possibilitou que desobstruísse meu corpo,

causando até mesmo certo estranhamento ao me colocar nos laboratórios depois

disso, pois a percepção do meu próprio corpo havia mudado.

Após alguns laboratórios em que os conteúdos recorrentes eram de auto-

flagelo, ser algemada, chicoteada, amarrada, enforcada, queimada em uma fogueira

e jogada na água, alguns traumas se processaram. Essas sensações de tortura me

traziam imagens de negros em senzalas e de bruxas na inquisição, ambos símbolos

de resistência e busca pela liberdade, que sofriam ao ter que viver escondidos ou

enclausurados.

Foi através de uma sensação física e uma imagem que me apareceu em Dojo

que determinados conteúdos marcantes da minha vida e que ainda não haviam sido

bem processados começaram a ebulir. O choro e a dor foram inevitáveis, pois era

como se revivesse esses momentos e sentimentos no corpo. Então, após alguns

dias, percebi que a angústia que sentia só se transformaria através do corpo, pois foi

daí que ela nasceu. Coloquei-me novamente em laboratório, e assim os conteúdos

voltaram a se desenrolar.

Dou ênfase para esse momento do método, já que trazer um trauma à tona

não é de fato nem um pouco fácil, pois trazemos à consciência algo obscuro da

nossa história, que temos a chance de olhar novamente, para que através do corpo,

possamos perceber e transpassar vivências difíceis que ficaram gravadas em nossa

musculatura e na nossa pele, o que possibilita realmente que uma outra “dimensão”

de nós mesmos se abra, nos permitindo aprofundar mais e chegar mais perto

daquilo que somos, pois não somos em essência os nossos traumas, eles estão aí,

mas se trazidos para a consciência podemos ir além. Ressalto nesse momento a

importância do papel da diretora, que me auxiliou a identificar e elaborar o que

estava ocorrendo internamente, respeitando meu momento de processar esses

conteúdos para poder prosseguir com a criação.

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Elaborar envolve um saber: saber sair dos pontos que aprisionam”.

Segundo a autora (ibid., p.154) [Rodrigues, 2003] é de fundamental

importância o intérprete ir além das “dores do passado”: “transformando-as,

dando-lhes movimento. Um mover que busca novos significados [...] Saber

modificar-se”. O intérprete não fica preso às suas emoções, ele aprende

como conduzi-las em direção a um movimento de vida. (TURTELLI, 2009,

p.21)

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IEOA É SEU NOME

A personagem é fruto da pesquisa de campo, do co-habitar com a fonte e

do que esta vivência despertou no próprio intérprete. No trabalho de

laboratório, o corpo do bailarino-intérprete passa a assumir um corpo

imaginário, “como se não fosse o dele”, gerando uma liberdade de

expressão e uma permissividade na dança de experimentar a fala e o canto,

sem a preocupação de responder a padrões convencionados.

(RODRIGUES, 1997, p.19).

Com a prática dos laboratórios, chega um determinado momento em que o

corpo sintetiza uma personagem. Ela é resultado de todos os eixos do método, o

Inventário no corpo que viabiliza os processamentos da história pessoal do

intérprete, e o Co-habitar com a Fonte que nos coloca em contato com o outro e

consequentemente com nós mesmos.

O sentido atribuído à Incorporação é o momento – dentro do Processo – em

que a pessoa alcança uma integração das suas sensações, das suas

emoções e das suas imagens, vindas até então soltas e desconectadas.

(RODRIGUES, 2003, p.124)

Até parece que são muitas personagens, porem todas essas imagens fazem

parte de um mesmo eixo. Em alguns momentos essas características se

misturam, outras vezes uma delas se destaca, tornando-se depois

fusionadas. Uma historia vai ser formando. Na fusão dos corpos resulta uma

individualidade que grita o seu próprio nome. (RODRIGUES, 2003, p.128).

Seu nome: IEOA, no início causou-me certo estranhamento por ser

constituído apenas por vogais. Depois, ao pesquisar sobre esse nome, um leque de

significados foi aberto, dentre eles sua relação com o nome Jeová, já que IEOA é a

sua pronúncia vocálica.

Pelo lado consonantal seu nome soa JEHOVAH, e pelo vocal IEHOUAH.

Aqui entra em lugar do J um I e, em lugar do V, um U. O primeiro H substitui

a impronunciável vogal da lua. O segundo H não é mencionado por Rudolf

Steiner no contexto acima. Se pronunciarmos o nome empregando

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consoantes, ele exprimirá como, através do J e do V, o elemento do fogo já

se imiscui na formação do corpo etérico, pois o ser humano aspira

veementemente por seu nascimento. (BAUR, 1992, p.193)

O Tetragrama Sagrado YHVH ou YHWH (mais usado), (הי- aifarg an ,וה

original, o hebraico), refere-se ao nome do Deus de Israel em forma escrita

já transliterada e, pois, latinizada, como de uso corrente na maioria das

culturas atuais. (...) The Grecised Hebrew text “εληιε Ιεωα ρουβα“ é

interpretado como significando ”meus Deus Ieoa é mais poderoso”. – “La

prononciation ‘Jehova’ du tétragramme”, O.T.S. vol. 5, 1948, pp. 57, 58.

[Papiro Grego CXXI ” PISTIS SOPHIA” (do 3º séc.), Biblioteca do Museu

Britânico.]

(https://traducaodonovomundodefendida.wordpress.com/2012/01/01/e-o-

nome-jeova-uma-juncao-da-palavra-adonai-sobreposta-ao-tetragrama/)

Os nomes YaHVeH (vertido em português para Javé), ou YeHoVaH (vertido

em português para Jeová), são transliterações possíveis nas línguas

portuguesas e espanholas, mas alguns eruditos preferem o uso mais

primitivo do nome das quatro consoantes YHVH; já outros eruditos

favorecem o nome Javé (Yahvéh ou JaHWeH). Ainda alguns destes

estudiosos concordam que a pronúncia Jeová (YeHoVaH ou JeHoVáH),

seja correcta, sendo esta última a pronúncia mais popular do Nome de Deus

em vários idiomas.

Esta expressão “Eu sou o que sou” é usada como título para Deus, para

indicar que ele realmente existia. Isso corresponde a “Eu sou aquele que é”,

“Eu sou o existente”. YHVH estaria assim confirmando sua própria

existência. (http://www.universidadedabiblia.com.br/tetragrama-yhvh-o-

nome/).

Além disso, encontramos na Quirofonética15 outros significados para seu

nome.

15 Tal referência foi indicada pela Profª Drª Regina Machado no exame de qualificação dessa

pesquisa.

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Dentre todas as vogais, o I é onde a corrente aérea alcança a maior

velocidade. (p.175) A obra divina do templo do corpo humano prevê que o

ser humano represente uma espécie de coluna ereta. O corpo como figura

ereta: I. (...) “O E consolida o eu no corpo etérico “, diz Rudolf Steiner. O E

junta as metades esquerda e direita do corpo e as encaixa entre si.(BAUR,

1992, p.173)

É de modo comparável a uma abóboda que se forma a cabeça. Tanto em

sua forma como em sua função, a cabeça isola o ser humano das

adjacências. O corpo como figura fechada em si mesma: O. (BAUR, 1992,

p.185)

O A é o fonema mais aberto, mais lento e mais quente.” (BAUR, 1992,

p.169) “O A Abre a porta. (BAUR, 1992, p. 170)

No E e no U exprimem-se a solidez e a obscuridade que a Terra assumiu.

No E soam as rochas firmes e no U as escuras profundezas. (p.193) No

gesto do I o eu se coloca sem sombra na existência, com sua forma mais

luminosa e mais clara. Através do A atuam ele as forças do nascer do sol e,

através do O, as do pôr-do-sol. (BAUR, 1992, p.190)

Sendo assim as vogais representam: “A – a porta aberta; E – os muros

limitantes; I – A coluna ereta; O – O arco da cúpula; U – O comprido salão. (BAUR,

1992, p.185)”, na linha da Quirofonética, criada na Áustria em 1972 pelo Dr. Alfred

Baur, que compara o organismo fonador ao organismo como um todo, atuando

através de recursos da massagem e da fala como fonte curadora.

Ao falar dos conteúdos trazidos por IEOA podemos dizer que três pesquisas

de campo foram essenciais para o desenvolvimento desse trabalho: a Folia de Reis

em Três Pontas – MG, a colheita de café em Jaú – SP e o ritual de Encomenda das

Almas em São Tiago – MG.

A começar pela Folia de Reis, nota-se que ela “abriu as comportas do corpo”,

pois afetou-me num nível que foi para além das identificações, tocando em questões

que estavam inconscientes e que necessitavam vir à tona nesse momento, dentre

elas o deixar-me tocar. Ali, como dito anteriormente na síntese dos campos, foi o

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lugar dos afetos, em que as relações me atravessaram, fazendo-me receber o outro.

A colheita de café fez-me entrar em contato com o passado da minha família que

trabalhava na roça, além de conteúdos como a generosidade, a morte, o abuso

sexual e a pobreza. E por fim, a Encomenda das Almas trouxe todo um universo

simbólico em que mergulhei em Portugal, como os mistérios da vida após a morte e

a ligação com o plano espiritual.

Assim, constata-se que a personagem traz conteúdos relacionados, de certa

maneira, a esses três campos: a festividade e a brincadeira, a dor e o sofrimento e a

morte e seus mistérios.

Por vezes IEOA sai pelas ruas dançando, abrindo os caminhos e querendo

mostrar-se. As paisagens são ruas de pedra e um cortejo a acompanha durante o

dia. Ao seu redor há muitas pessoas, mas a sensação de solidão caminha ao seu

lado, trazendo consigo certa conotação de liberdade.

Ao levar as mãos para o céu sente as fitas de cetim coloridas penduradas por

todo o espaço. Lá no alto vê uma bandeira branca com a figura de uma pomba, o

Divino Espírito Santo. Passeia por entre as fitas e à frente do peito segura bem

aberta sua bandeira, conectando-se com o sagrado. Na caminhada utiliza variados

apoios dos pés de modo bem ágil, intercalado com pequenos saltos. Por vezes

emite alguns glissandos16 descendentes com a vogal I e E, como alguém que

festeja.

Esse universo trazido por ela remete à figura do palhaço da Folia de Reis e às

festividades, devido às brincadeiras, à ironia, à leveza, às movimentações ágeis dos

pés seguidas de pequenos saltos, por carregar consigo uma bandeira, usar um

bastão com fitas coloridas nas mãos e manter o rosto encoberto, ora por um tecido,

ora pintado.

16 Condução de uma nota a outra passando por todos os intervalos entre elas com articulação

ligada.

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É um personagem misterioso, alegre, cínico e dissimulado, sempre usa

máscara. (...) Sua figura faz a transição entre o sagrado e o profano nas

cerimônias, entre o caráter solene e o lúdico das festas. Os palhaços usam

máscaras confeccionadas com diferentes materiais, sempre muito coloridas,

às vezes, com expressões aterradoras, outras cômicas; sabem dançar,

executar acrobacias e promover brincadeiras. (KODAMA, 2009, p. 142,

143).

Em outros momentos, IEOA caminha para o outro extremo, trazendo

conteúdos ligados à morte - o destino comum de todos os homens, à vida após a

morte e o contato com as almas. Por diversas vezes senti como se ela estivesse

enterrada, saindo da própria cova em um cemitério, à noite. É como se ela fosse

uma alma penada, uma guardiã que está ali para cuidar dos que já se foram mas

ainda continuam nesse plano, sendo o elo de ligação entre o mundo físico e

espiritual, pois encaminha as almas para uma outra dimensão. Essa encomendação

das almas se dá através de um canto, um lamento, quando caminhando com o

tronco paralelo ao chão vai levando uma procissão de almas atrás de si.

Nesses momentos a sensação mais presente é a de carregar a dor dessas

pessoas a fim de aliviá-las e encaminhá-las para um outro plano. Porém, não é

sofrido habitar um cemitério, sente como se ali fosse seu lugar, recebe os que

chegam e busca os que estão por vir, entoando um lamento a cada chegada.

Além disso, a temática da morte já surgiu em outros momentos atrelada à

figura de Cristo, pois a personagem levava uma cruz nas costas, era chicoteada e

tinha o corpo todo machucado. IEOA fez esse trajeto com a cruz e a enterrou, sentiu

a dor da morte e depois ressurgiu, tornando-se essa IEOA que vive pairando por aí

como alma penada.

Seu corpo todo machucado, ensanguentado, que carrega espadas nas mãos,

ossos nos braços e crianças mortas são conteúdos recorrentes, que reiteram a

temática da morte.

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A morte relativiza o fruto da criação humana, o que a faz sedutora e

temerosa. Seduz quando encerra uma obra ou devora um corpo, e com isso

abre caminhos para projetos inauguradores: na própria inumação do

cadáver, a morte transforma o homem em húmus que fertiliza a terra e o

imaginário. A morte atemoriza porque abre as portas do desconhecido e

revela o perecimento de todas as coisas, inclusive do Eu que assiste a

tantas mortes. A morte é ambivalente, representando a inauguração e o fim,

e é dinâmica na diversidade de maneiras como ocorre e nos significados

que o homem lhe atribui. A morte são varias representações de um evento

singular. (GOMES e PEREIRA, 1992, p.199)

Escrever a morte representa entender o homem em sua fragilidade. O

discurso fúnebre retém o rio de lágrimas e lamentações atribuindo-lhe um

aspecto estético, reconstitui o corpo dilacerado e deposita flores sobre a

terra fria. ((GOMES e PEREIRA, 1992, p. 222).

Assim IEOA transita entre um corpo machucado que tem muita relação com o

chão, e um corpo que salta, que gira, que quer tocar o céu. Vida e morte. A

personagem passeia pelos extremos, parecendo ter muito conhecimento escondido

debaixo de tantos panos, que cobrem seu rosto e seu corpo, sem revelá-los por

completo.

A fim de potencializar a percepção sobre ela descreverei aqui uma

experiência tida na disciplina intensiva AC111 - Laboratório de criação II ministrada

pelas professoras doutoras Graziela Rodrigues e Larissa Turtelli no início de 2017,

que foi de extrema importância para elucidar conteúdos da personagem.

Em um dos dias da disciplina, por indicação da Profª Drª Graziela Rodrigues,

abri o dojo para os colegas. Foi uma experiência muito importante, pois senti muito o

fluxo dos sentidos. Sentia meu corpo preciso, inteiro, potente. Nesse dia apareceram

duas modelagens, uma delas cantava. Esta era uma mulher mais velha, com

movimentos mais lentos e sinuosos, como o quadril desenhando um oito e os braços

abertos com movimentos espiralados. Estava ajoelhada e usava um véu na cabeça.

Então entoou uma melodia em modo menor. A sensação era de suspensão, sentia-

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me como uma alma, alguém desencarnado. Depois disso senti-me menina, em pé,

com movimentos nos pés muito ágeis e deslocamentos pelo espaço. Dizia que tinha

morrido com 10 anos, e que a morte iria buscar todo mundo. Então sentia uma

energia de vitalidade, de brincadeira.

Apesar desses corpos terem vindo de maneira muito intensa, os conteúdos

ainda pareciam um pouco descolados, uma mulher mais velha que cantava e

parecia levitar, e uma criança, que tem algo de brincadeira e uma relação muito forte

com o solo. Foi então que, dois dias depois, os conteúdos integraram-se. Para isso,

foi necessário trazer a sensação de estar com a personagem no corpo, sem me

preocupar com os conteúdos que ela traria. Comecei por utilizar os diversos apoios

dos pés e a movimentar o quadril em oito. Então, comecei a expandir o corpo,

direcionando cada parte para um lado, pensando em vários vetores, como se cordas

me puxassem para vários lados. Assim, o corpo da brincadeira foi aparecendo. Ela

carregava nos braços um caixão de criança, e a impressão que tinha era como se

sua mãe a carregasse quando ela morreu. Então, a voz começou a surgir, como um

lamento, trazendo a dor da mãe ao enterrar um filho. A partir daí, o corpo foi

contando uma história, que a voz complementava.

“Minha mãe pôs esse vestidinho em mim, nunca tiro ele”, dizia IEOA menina

mexendo no vestido, ao dizer do dia que morreu. Contava que usava o véu para sair

na rua pra não ser vista, e que com o seu bastão ia até os velórios das crianças para

acalmar o coração das mães e assim poder levar as crianças embora, para esse

outro mundo. IEOA mostrou-se como uma guardiã de um mundo entre os mortos e

os vivos, não estando nem encarnada, nem desencarnada completamente, era

como se habitasse uma espécie de “umbral”, para onde vão as crianças que morrem

mas não vão embora. Dizia que se os adultos ficam sofrendo porque uma criança vai

embora ela não consegue descansar, e IEOA ajudava nisso, cantava uma música

alegre, dava movimento e brincava a fim de encaminhar essas crianças. Dizia que

quando uma criança morria, uma música bem triste tocava nesse lugar e ressoava

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no coração da mãe, mesmo sem ouvi-la, cabendo a ela esse lugar entre o mundo

dos vivos e dos mortos.

Nesse dia o cantar estabeleceu-se e recordo-me nitidamente da sensação de

desafogar o peito que isso me trouxe, algo que não havia acontecido até então. Até

então o canto parecia não caber ali, pois atrelava isso a uma certa “ordem”, com

relação às frases melódicas, e IEOA me soava como essa figura que traz a

desordem e quebra os padrões. Porém, nesse dia o canto oscilou entre um lamento

e algo festivo, passeando entre os extremos.

Em um dos últimos laboratórios, a Profª Drª Graziela nos indicou utilizar um

caixão de criança ao invés do caixote de madeira, como estávamos fazendo. Sabia

que tal indicação abriria muitas comportas internas e então o providenciamos.

Nos laboratórios que se seguiram, havia uma dificuldade em me relacionar de

fato com o caixão. O medo de tocar nas minhas memórias referentes a esse

universo impedia um real aprofundamento. Então, por indicação da direção, trabalhei

o caixão como um objeto, manuseando-o e percebendo-o, sem me preocupar com a

personagem, para assim explorar os sentidos que viriam à tona no meu corpo a

partir desse contato.

Com esse procedimento mais um véu foi retirado. Lembranças de pessoas

que já perdi, que já vi serem postas debaixo da terra, saudade e medo da despedida

me tomaram, parecia viver tudo novamente. Não havia encerrado esses ciclos, e ali,

pelo corpo, foi imprescindível encerrar. Iniciei pela morte externa para chegar nas

minhas mortes mais internas. Via-me ali, menina, a seguir os preceitos e dogmas

cristãos. Dentro do caixão, com espanto percebi, estava o menino Jesus. Menino

que tiraram de mim. O meu sentimento nesse momento era como se a própria igreja

tivesse me arrancado a pureza da fé. Sentia também que haviam tirado de mim o

meu próprio corpo. Pois passei por situações em relação à igreja católica nas quais

me foi fortemente incutido que não podia ter libido, não podia ter prazer, que a carne

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era o maior pecado: não podia ter corpo. Não podia ser, não podia existir, não podia

sentir. Não podia ter individualidade.

E então uma percepção valiosa: o que estava fazendo nesse processo de

criação? Buscava “ganhar corpo”, durante todos esses anos, e para isso, busquei

trabalhar suas diversas possibilidades através das Artes da Cena, mas para me

sentir encarnada de fato faltava virar uma chave, que só foi possível através desse

processo: permitir-me ter carne e osso, e assim existir.

Com isso, o roteiro para a apresentação foi sendo estruturado. IEOA iniciava

seu percurso no cemitério, saindo de dentro da cova. Ali tinha o gesto de empurrar a

terra e os outros caixões e ganhar espaço para sair. Tirava a terra do corpo,

empunhava o seu bastão, e se transformava para sair. Utilizando os variados apoios

dos pés ela ia ocupando o espaço e abrindo o caminho com seu bastão.

Cumprimentava os presentes e benzia os quatro cantos da sala. No centro, girava e

achava seu eixo, firmando o seu lugar. Então abria sua bandeira, símbolo do

sagrado, à frente do peito, repleta de fitas de cetim, e levava para as pessoas

fazerem seus pedidos, interagindo com elas. Após fazerem seus pedidos, a bandeira

ia ganhando vida e IEOA dançava com ela, assim como os palhaços nas Folias de

Reis. Depois, deixava sua bandeira e seguia seu caminho, sendo guiada pelo

bastão. De repente se via só, e começava a sentir os flagelos em seu corpo. Com o

corpo todo machucado seguia, e ia ao encontro da morte. Com um andar lento e

pesado carregava o caixão nas costas, como quem leva sua cruz. Depois, passava a

carrega-lo à frente do corpo, como quem nina uma criança, materializando o ápice

da dor: a mãe que perde seu filho. Entoava um canto, um lamento, que diz: “Oh

almas que estás dormindo, nesse sono tão profundo. Rezemos um pai nosso, as

almas do outro mundo. Sejas pelo amor de Deus, pelo amor de Deus seja.” E assim

enterrava, se revoltava, sentia a dor e via a alma deixando o corpo e indo para uma

outra dimensão, então se despedia.

IEOA sai da terra, se relaciona, festeja, é morta e alguém conduz a sua alma.

As relações, a dor, a perda, o luto, a efemeridade humana, a passagem para um

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outro plano, a vida eterna, a vida, a morte e a festa. IEOA fala dos ciclos, daquilo

que termina e daquilo que renasce.

Objetos

IEOA traz uma forte relação com o sagrado e com o catolicismo. Até um

determinado momento a cruz foi um objeto muito presente nos laboratórios, sendo

carregada nas costas, levada à frente do corpo, fincada no chão ou enterrada,

simbolizando a dor da morte, o sofrimento e a Paixão de Cristo, mas também a

esperança da ressurreição. Já a bandeira, objeto utilizado na Folia de Reis que

simboliza o sagrado, se manteve, sendo carregada aberta a frente do peito, como se

brotasse do esterno.

Além disso, a terra é um elemento central desde o início, pois antes de utilizá-

la havia um movimento de ciscar com os pés, cavar, plantar, e a sensação de estar

dentro de um buraco. Após materializá-la, o corpo reiterou tais conteúdos, trazendo

também as imagens de túmulos, a sensação de enterrar os mortos, de sair da

própria cova, de esconder-se e proteger-se.

Os tecidos foram outro elemento que apareceram diversas vezes nos Dojos e

que quando materializados, encheram o corpo de sentidos. Um pano preto rendado

e um pano branco transparente sobre a cabeça potencializaram os corpos que

estavam se modelando. O primeiro potencializou o corpo da Velha, e o segundo o

corpo da Morte e da IEOA. Somado a isso IEOA usa guizos em seus dedos das

mãos, um vestido longo bege cobrindo todo o corpo e fitas de cetim que lhe cobrem

o rosto e são penduradas em seu bastão com guizos na ponta, que ela utiliza para

abrir os caminhos, dançar, transformar e chicotear. Além disso, outro objeto

importante é o caixão, que a liga com a morte e com uma outra dimensão.

O espaço construído é muito próprio de cada pessoa. A relação da pessoa

com o espaço criado por ela possibilita um fluir de movimento, de onde irá

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surgir a sua dança. As sensações, os significados da pessoa invadem o

espaço e o espaço vem na pessoa. (RODRIGUES, 2003, p.125).

Muitos dos elementos que vão surgindo, vindos internamente, são

solicitados à própria pessoa que os confeccione, e passam a fazer parte do

corpo de sua personagem, auxiliando-a na estruturação da mesma. Porém,

isto não quer dizer que sejam permanentes, assim como nada é

permanente na personagem, não sendo caracterizados como figurinos.

Todavia, podem perfeitamente vir a constituí-lo, numa outra etapa.

(RODRIGUES, 2003, p.130-131)

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VOZ

O trabalho corporal que pude vivenciar durante essa pesquisa foi de extrema

importância para a minha formação como artista da cena, por ser algo que eu ainda

não havia experimentado e no qual ansiava em me aprofundar, a fim de alcançar

uma presença cênica potente, e assim despertar quiçá, a voz.

Ao falar de presença, ressalto que não tivemos como objetivo nos

aprofundarmos nesse assunto tão visitado nas artes cênicas, porém, como essa

necessidade me levou para as artes da cena, deixo aqui minha reflexão sobre a

presença que eu tanto almejava.

Antes de iniciar meu processo no método BPI associava, dentre outras

coisas, a presença a um tônus mais alto. Com o desenrolar do processo fui

percebendo que esse tônus mais alto muitas vezes me enrijecia e paralisava, não

dando fluxo e delineamento aos movimentos, e de certa maneira também me

fechava, pois servia como um escudo. No decorrer do processo minha concepção

sobre presença se alterou, pois fui percebendo que ao tirar essa “casca” eu me fazia

muito mais presente. Fui caminhando na contramão e notando que ao contrário do

que eu imaginava, era necessário tirar, desnudar e abrir para poder estar presente.

Pois que para estar é preciso ser, e para ser é preciso retirar camadas.

Além disso, assimilar a proposta do método BPI, no que diz respeito a deixar

o movimento fluir sem censura não foi simples, pois para isso era necessário evitar o

impulso de querer pré-definir aquilo que seria feito. Com o passar do tempo o corpo

foi ganhando maior autonomia e o processo passou a fluir com mais facilidade, me

proporcionando maior liberdade e fluxo de movimento.

A Técnica de Dança do método BPI propiciou que eu sentisse meu corpo

inteiro, o qual o trabalho com o tônus e as raízes dos pés foram de extrema

importância para sentir-me “encarnada” em meu próprio corpo, algo desconhecido

antes desse processo. Antes do contato com o método era como se não tivesse

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pernas, membros muito frágeis para mim. Então, ao frequentar as aulas diárias de

Dança do Brasil da graduação em Dança, com enfoque no método BPI, pude ir

“ganhando corpo”, conquistando membros e tronco e ocupando assim o meu

espaço.

Como o intuito dessa pesquisa era o trabalho corporal, foi definido que não

haveria uma preocupação com relação à voz aparecer ou não nesse processo, pois

uma das características do método é a imprevisibilidade daquilo que emergirá do

corpo. Assim, a voz se apresentou muito pouco no início do processo, deixando

muitos corpos no silêncio, algo interessante de se perceber, já que a voz é o meu

instrumento de formação.

Na maioria das vezes em que ela se fazia presente, foi através de sussurros

com os dentes cerrados e articulação de língua como se falasse em outro idioma,

um “sh” como quem pede silêncio, expirações fortes que lembravam um bufar,

vibrações de língua com som, sons graves em stacatto17, fry e sons entrecortados

bem agudos, que por vezes remetiam a um riso - trazendo uma conotação de poder

como um riso maléfico da morte – e outras vezes a um choro, como de quem perde

alguém amado. Demarcando esse limiar entre os extremos, ser inatingível ou afetar-

se, materializando o ponto de conflito desse processo: deixar-se tocar.

Ressalto aqui que esse também foi um ponto de conflito no processo, pois a

ausência ou rara presença da voz nos laboratórios causou-me incômodo e

questionamentos, já que me propus a vivenciar um processo na dança mesmo

sendo cantora, experienciando diariamente a sensação de estar pisando em um

“terreno desconhecido”, que aos poucos foi se aproximando de mim, enquanto na

contramão a voz se distanciava, deixando-me apenas com o silêncio.

Mesmo sabendo que nesse processo isso poderia ocorrer, pois o foco do

método estava em trabalhar o corpo, as frustrações advindas pela ausência de voz

17 Nota com duração curta com ênfase no ataque.

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me visitavam, e então, em vias de finalizar essa pesquisa, em um dos laboratórios a

voz e o corpo se uniram. Estava com a personagem incorporada quando a Larissa

falou: “Deixa vir o canto que já está aí. Ele já está”. Tal fala soou como uma

libertação, pois ao perceber isso a voz começou a brotar trazendo consigo uma

melodia, desprovida da minha necessidade em controlar as alturas ou o timbre,

apenas deixando a voz nascer meio trêmula e confusa, e aos poucos ir

estabilizando-se em algumas notas. Então, comecei a girar enquanto cantava, e

assim pude sentir a vibração do som na altura do palato duro18, que resultou em um

som repleto de harmônicos, com ênfase para os agudos. O som era cheio e parecia

ocupar todo o espaço da sala e o próprio corpo. Era como se eu virasse voz e corpo

por alguns instantes, enquanto minha mente dava trégua para eu simplesmente ser

e estar.

Após o laboratório sentia um misto de satisfação, por ter conhecido aquele

novo lugar físico, sonoro e enquanto estado, e ao mesmo tempo certo receio, pois

sentia como se tivesse “perdido o controle”, não enquanto catarse, mas enquanto

deixar de querer direcionar o que meu corpo e minha voz iriam produzir, e deixar-me

ser conduzida pelo movimento e pelo som. Como chegar àquele lugar/estado

novamente? Era uma das questões.

Com o passar do tempo, a voz passou a se fazer mais presente e melodias,

principalmente em modos menores, começaram a surgir, deixando cada vez menos

espaço para o silêncio. Quando não entoava melodias surgiam sons como “ie”, “o”,

“a”, em um glissando descendente. Além disso, foi nítida a ampliação das

possibilidades vocais, no que diz respeito a variações de timbres e ao alcance de

notas localizadas nas regiões de extremo grave e agudo.

18 É o “teto” da boca que separa a cavidade oral da cavidade nasal. A parte óssea anterior é

chamada de palato duro.

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Por vezes a voz se fazia mais presente e o corpo ocupava o segundo plano,

ou vice-versa, trazendo novamente a questão de como integrá-los. Então, em alguns

laboratórios, iniciava o fazer pela voz e deixava brotar o movimento, experimentando

assim esses dois caminhos, da voz que desperta o corpo, e do corpo que desperta a

voz, a fim de integrá-los. Quando isso ocorria, as nuances vocais caminhavam junto

com o corpo, como se a voz também fosse se modelando. Foi interessante perceber

como esse som, que emerge conjuntamente com o corpo em movimento, parece

preencher todos os espaços do corpo. É uma voz que nasce com urgência, é uma

necessidade, como se ela partisse de dentro do corpo imbuída de líquidos e carne,

sem encaixar-se necessariamente em padrões estéticos convencionados, apenas

sendo aquilo que é, conectada com a emoção e por isso, repleta de sentido.

Ao falar sobre essa relação voz e corpo, posso concluir ao final desse trajeto

que o trabalho corporal feito diariamente dentro do método contribuiu imensamente

para essa potencialidade expressiva que queria alcançar como intérprete. Pois, para

conquistar uma presença eu necessitava ter corpo, e pude perceber isso ao começar

a trabalhá-lo, já que fui ganhando tônus, despertando minha musculatura que estava

adormecida, ganhando raiz, base e ocupando o espaço. Nesse sentido, o trabalho

técnico de dança e dos sentidos proposto pelo método BPI, me permitiu conhecer

um corpo “vivo” e apresentou-me os caminhos para chegar até ele. A respeito dessa

presença que eu buscava alcançar, posso dizer que a experienciei através de um

corpo dilatado, que pulsa, e que tem a percepção ampliada, preenchendo o espaço

e comunicando-se com aquele que vê.

Assim, o processo dentro do método BPI contribuiu para meu fazer como

cantora, pois deu-me corpo, fez-me experimentar a voz a partir dele e proporcionou-

me reflexões profundas sobre aspectos da minha história incrustados em meu corpo

e questões de identidade, permitindo-me integrar-me.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Um processo extremamente profundo foi vivido nesses dois anos, pessoal e

artisticamente, o qual me exigiu disciplina, entrega e ao mesmo tempo

desprendimento, no que tange aos conteúdos trazidos pelo corpo.

Até então, nos processos criativos que havia vivenciado, o assunto sobre o

qual eu iria tratar sempre vinha em primeiro plano, surgindo das letras das canções

que trabalhava, ou das temáticas dos espetáculos, esse era o ponto de partida.

Demorei a entender que, no método BPI, o conteúdo era consequência, pois o mais

relevante era o corpo ganhar presença, inteireza, e que isso indicaria o conteúdo

que iríamos tratar, vindo a partir do corpo. Dessa maneira, pude ir percebendo que é

um processo que acontece decididamente de dentro para fora, não há como ocorrer

no sentido contrário, pois se for assim, esbarramos no apego aos materiais dos

quais queremos tratar, que não necessariamente mobilizam o nosso corpo. Com

isso, essa foi uma das minhas dificuldades, pois ao apegar-me aos conteúdos era

difícil deixar o corpo fluir para onde quisesse.

Nesse mesmo sentido, foi interessante perceber como a narrativa, os

conteúdos e até mesmo os objetos que emergiram desse processo criativo,

dialogam com os outros processos que vivi, citados no início desse trabalho. Um

percurso, o encontro com o outro, a dor, a morte e a despedida, temas recorrentes

para mim.

Outro ponto importante foi a dificuldade de deixar-me tocar pelos conteúdos

que estavam se apresentando para mim, em campo e nos laboratórios. Eles traziam

um universo no qual eu não queria me aprofundar, pois assim tocaria em questões

minhas que estavam às escuras e que eu havia decidido deixar para trás. Porém,

com essa atitude, não me reconhecia por inteiro; foi ao deixar aflorar essas questões

na consciência que consegui me integrar, e foi isso que o processo fez, desenterrou

meus mortos e apresentou-me a mim mesma.

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Entender que é um processo também me faz amadurecer como artista, pois

ao tirar o sentido de obrigação em estar sempre pronta, me permiti aprofundar ao

percorrer caminhos necessários para chegar a esse material potente sem seguir

pelo atalho.

Como cantora, o processo contribuiu imensamente em vários aspectos,

dentre eles a presença cênica, tão desejada; a perceber a relação que se faz entre

corpo e voz quando eles realmente estão atuando de maneira conjunta,

possibilitando-me descobrir outras possibilidades vocais e enquanto processo

criativo, me proporcionou viver uma criação com maior profundidade, atingindo

níveis que sem uma direção não teria alcançado.

Ao lidar com a vida e a morte, IEOA passeia pelos extremos, trazendo como

cenário festas e cemitérios e expressando sentimentos de felicidade e de dor, dois

pontos específicos ligados ao meu processo, a ligação com o universo caipira no

que diz respeito a suas crenças e folias, e com um universo mais sombrio, frio e

obscuro, que também está atrelado à cultura caipira e que pude começar a tomar

consciência no período em que vivi em Portugal. Assim a personagem uniu esses

dois polos, integrando a Amanda que se encontrava fragmentada.

É como querer florir sem ter raiz, foi preciso achar minha raiz que estava um

tanto desfeita, voltar e olhar para a Amanda, lá atrás, abraçá-la e levá-la comigo,

ampliando minha noção de identidade sem enrijecê-la.

O processo de aceitação da personagem veio com o tempo, pois no início

IEOA trazia somente conteúdos relacionados à festividade, que me causavam

rejeição e me apresentavam questões sobre a minha própria identidade. Como eu

podia me identificar mais com os conteúdos trazidos pelas modelagens da “Velha” e

da “Morte” se eles não tinham permanecido? Como eu podia aceitar uma

personagem com quem eu acreditava não ter nenhuma identificação? Qual era

minha identidade então se aqueles conteúdos haviam brotado de mim? Eram

perguntas que me rondavam.

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Ao pensar em incorporar uma personagem no início do processo, acreditava

que ela traria à tona conteúdos e temáticas com os quais me identifico, assim,

reiteraria e “fortaleceria” de alguma maneira, aquilo que acredito ser. Porém, tudo

aconteceu às avessas. Se o processo tivesse ocorrido assim, não haveria conflitos e

sem eles, nenhuma transformação; teria saído “ilesa” e acreditando numa identidade

rígida, única e restrita. Sem saber realmente o nível de profundidade a que estava

me propondo mergulhar, vivi de fato o que o BPI me propunha, entrei em contato

com aquilo que acreditava ser e desconstrui a fôrma na qual havia me encaixado,

ampliando assim minha noção de identidade. Se o método me dissesse: “faça da

personagem aquilo com que você se identifica” não teríamos o que apresentar nesse

trabalho. Porém, foi como se me dissessem: “se acredita ser apenas isso, verás que

existe muito mais do que pensa ser”, e então se abriu um universo.

Não é nada fácil desapegar-se da identidade que você quer mostrar ao

mundo para encontrar algo que está mais ao fundo. É preciso deixar as defesas e as

proteções para permitir que o outro conduza você e possa ver você despido, e

principalmente, para que você mesmo consiga se ver por inteiro. Tudo o que IEOA

me trouxe foi uma parcela daquilo que sou, daquilo que me atravessou a partir do

contato com o campo e do que precisava emergir nesse momento. Circunscrever-me

a ela ou àquilo que acredito ser, não se resume à minha identidade como um todo,

mas é uma parcela dela. Temos milhões de facetas desconhecidas, e essa é a

maravilha de se escavar sempre. É preciso fôlego pra descer tantos metros de

profundidade, e principalmente um olhar descolado de si, que nesse caso foi a

direção, que atuou assertivamente a todo o momento e sem a qual não teria sido

possível sair da superfície. Pois é tão difícil quebrar os próprios muros que

colocamos em volta de nós mesmos, que muitas vezes precisamos de alguém que

nos ajude a encontrar a marreta.

Posso dizer que foi um processo intenso, árduo e transformador me perceber

mais do que eu podia ver. Esperava que a personagem reafirmasse quem eu

acreditava ser, mas ela fez muito mais do que isso, apresentou-me fragmentos meus

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e possibilitou-me vivenciar os conteúdos encontrados em campo que ressoaram em

mim; o que me permitiu integrar-me e fez-me experimentar o sentido do seu nome

descrito nas páginas anteriores: “Eu sou o que sou”.

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(https://traducaodonovomundodefendida.wordpress.com/2012/01/01/e-o-nome-

jeova-uma-juncao-da-palavra-adonai-sobreposta-ao-tetragrama/)

(http://www.universidadedabiblia.com.br/tetragrama-yhvh-o-nome/).

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ANEXOS

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Romaria, um percurso para o interior: vivência a partir do eixo Co-Habitar com a

Fonte do método Bailarino-Pesquisador-Intérprete (BPI)

Amanda Gonsales de Araujo

Número do CAAE:

Você está sendo convidado a participar como voluntário de uma pesquisa. Este

documento, chamado Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, visa assegurar

seus direitos como participante e é elaborado em duas vias, uma que deverá ficar

com você e outra com o pesquisador.

Por favor, leia com atenção e calma, aproveitando para esclarecer suas dúvidas. Se

houver perguntas antes ou mesmo depois de assiná-lo, você poderá esclarecê-las

com o pesquisador. Se preferir, pode levar este Termo para casa e consultar seus

familiares ou outras pessoas antes de decidir participar. Não haverá nenhum tipo de

penalização ou prejuízo se você não aceitar participar ou retirar sua autorização em

qualquer momento.

Justificativa e objetivos:

Durante a graduação em Música, a pesquisadora sempre buscou potencializar sua

expressividade através de disciplinas no Teatro e na Dança. Pouco antes de finalizar

sua graduação, soube do método BPI (Bailarino-Pesquisador-Intérprete) e

interessou-se por vivenciá-lo no mestrado. Sendo o Co-Habitar com a Fonte um dos

eixos do método, que consiste em pesquisas de campo, optou por pesquisar a

cultura caipira, universo familiar e instigante para a pesquisadora.

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Dentro das inúmeras possibilidades de vivências dentro da cultura caipira, está a

(....)

O objetivo dessa experiência que compõe a pesquisa de mestrado dentro do

método, está em vivenciar (...) para depois, através de laboratórios dirigidos do

método BPI, notar a repercussão que tais pesquisas de campo tiveram no corpo da

bailarina-pesquisadora-intérprete.

Procedimentos:

Os participantes do estudo serão observados (...). Haverá registro audiovisual da (...)

apenas se consentida a autorização pelos participantes.

Desconfortos e riscos:

Não há riscos previsíveis.

Benefícios:

(...)

Acompanhamento e assistência:

Após a pesquisa de campo, se realizado registro audiovisual, uma cópia do material

filmado será entregue para a comunidade.

Sigilo e privacidade:

Seu nome será citado na pesquisa caso tenha seu consentimento.

Contato:

Em caso de dúvidas sobre a pesquisa, você poderá entrar em contato com a

pesquisadora Amanda Gonsales de Araujo, End. profissional: Rua Elis Regina, 50,

Cidade Universitária, Instituto de Artes, 13083854 - Campinas, SP, e-mail:

[email protected]

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Em caso de denúncias ou reclamações sobre sua participação e sobre questões

éticas do estudo, você poderá entrar em contato com a secretaria do Comitê de

Ética em Pesquisa (CEP) da UNICAMP das 08:30hs às 11:30hs e das 13:00hs as

17:00hs na Rua: Tessália Vieira de Camargo, 126; CEP 13083-887 Campinas – SP;

telefone (19) 3521-8936 ou (19) 3521-7187; e-mail: [email protected].

O Comitê de Ética em Pesquisa (CEP).

O papel do CEP é avaliar e acompanhar os aspectos éticos de todas as pesquisas

envolvendo seres humanos. A Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP),

tem por objetivo desenvolver a regulamentação sobre proteção dos seres humanos

envolvidos nas pesquisas. Desempenha um papel coordenador da rede de Comitês

de Ética em Pesquisa (CEPs) das instituições, além de assumir a função de órgão

consultor na área de ética em pesquisas

Consentimento livre e esclarecido:

Após ter recebido esclarecimentos sobre a natureza da pesquisa, seus objetivos,

métodos, benefícios previstos, potenciais riscos e o incômodo que esta possa

acarretar, aceito participar:

Nome do(a) participante:

________________________________________________________

_______________________________________________________

(Assinatura do participante ou nome e assinatura do seu RESPONSÁVEL LEGAL)

Data:____/_____/______.

Responsabilidade do Pesquisador:

Asseguro ter cumprido as exigências da resolução 466/2012 CNS/MS e

complementares na elaboração do protocolo e na obtenção deste Termo de

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Consentimento Livre e Esclarecido. Asseguro, também, ter explicado e fornecido

uma via deste documento ao participante. Informo que o estudo foi aprovado pelo

CEP perante o qual o projeto foi apresentado e pela CONEP, quando pertinente.

Comprometo-me a utilizar o material e os dados obtidos nesta pesquisa

exclusivamente para as finalidades previstas neste documento ou conforme o

consentimento dado pelo participante.

______________________________________________________

(Assinatura do pesquisador)

Data: ____/_____/______.

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Autorização para Coleta de Dados

Eu, ____________________________________________ responsável pela

_________________________ declaro estar ciente dos requisitos da Resolução

CNS/MS 466/12 e suas complementares e declaro que tenho conhecimento dos

procedimentos/instrumentos aos quais os participantes da presente pesquisa serão

submetidos. Assim autorizo a coleta de dados do projeto de pesquisa intitulado

“Romaria, um percurso para o interior: vivência a partir do eixo Co-Habitar com a

fonte do método Bailarino-Pesquisador-Intérprete (BPI)” sob-responsabilidade da

pesquisadora Amanda Gonsales de Araujo após a aprovação do referido projeto de

pesquisa pelo Comitê de Ética em Pesquisa-Unicamp.

_____________________________

Assinatura e carimbo

Data:

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Fotos da camarinha montada na Disciplina Intensiva de 2016

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Foto da camarinha montada na Disciplina intensiva no início de 2017

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Partitura da música “Viva a mãe de Deus e nossa”.

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Partitura de um canto do ritual de Encomenda das almas de São Tiago – MG.

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Fotos da apresentação realizada na defesa

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Link para vídeo da apresentação artística realizada na defesa

https://www.youtube.com/watch?v=yqDKb6ERiYc&feature=youtu.be