relato de um amor

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A "Tragdia da Lagoa" foi um desastre vel ocorrido Janeiro. no dia 3 de setembro Nele morreram, instantaneamente,

de automcinco jo-

de ~006 no Rio de

vens amigos que voltavam de uma festa. Ana Clara, de

17 anos, estava entre eles.Como superar o insupervel?, era a pergunta que se e faziam os pais de Ana Clara, Vitoria e Gabriel. Como coneber que aquela menina, rotegido desde o primeiro a loucura. da Lagoa" ganhou as pginas dos jornais e a combinao "filhinhos e os que eles haviam dia de nascida, acalentado estivesse agora

sem vida, em plena manh de um domingo? A dor e o sofri mento beiravam A "Tragdia noticirios obre o acidente indisciplinados,

da tev. No era raro ouvir as pessoas comentando quase sempre fatal que podecomo em tantas de atirar a primeira outras pe-

'a t-Io causado. E mais: talvez fossem jovens sem orientao, de papai", tentao ezes se vem. A irresistvel

deumamor'?~~;r&~~~,

Relato~

dra ... , mesmo diante de tamanha livro, uma homenagem a dor insuportvel tes de Cabriel,

comoo e perplexidade.

Gabriel F. Padilla, pai de Ana Clara, resolveu fazer, com este vida de sua filha, uma forma de enfrentar de vez. e, ao mesmo tempo, eleganno~Ov

"B~~

.LVl.' ~

J:;... ~ovvk-

e no enlouquecer

Atravs das palavras emocionadas vamos conhecer Surpresa: banco do carona. a segunda

de perto quem era a menina sem limites, rebelde,

dos quatro filhos do casal, cujos seus desconhecendo

E~~~~~_~~~~~~~~~~J

Ana Clara no era uma adolescente amigos e seus passos. Ao contrrio. o que vemos uma menina ela, que aprendia por seus sonhos vel e generosa no entanto, assistindo

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pais, de alguma forma, fossem negligentes,

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Hoje me pergunto

o que levou Ana Clara a me escrever para mim e Vitoria e tinha, para

essa carta. Tudo o que deixou por escrito, de forma to clara e sincera, ela verbalizava constantemente em nossas conversas constantes. A ligao com seus irmos era muito forte. Sua presena era sempre marcante, com eles, um esprito solidrio. Nessa carta, ela dizia claramente ser uma pessoa muito feliz. Suas palavras so carinhosas, maduras e expressam uma viso sonhadora da vida, cheia de que plantamos esperana. Todo amor, carinho e auto-estima esto transparentes Aps sua morte, achamos

~

O condutor de Verona ~

ali. um belo tributo nossa famlia. nas suas coisas um rascunho

dessa carta. Depois, o mesmo rascunho passado a limpo. Nesse rascunho passado a limpo, havia algumas anotaes a lpis que deram o toque final na carta que recebi. Foi algo pensado e caprichado. Exigiu tempo e dedicao. Diante da minha tristeza e saudade, me sinto um privilegiado. Quantos pais receberam de seus filhos uma carta semelhante? Ana Clara tinha muitos amigos, vivia em harmonia com sua famlia e tinha adorao pelos pais e irmos. Quem sabe ela no intuiu de alguma forma que seria bom nos deixar por escrito esse testamento de admirao e amor? No vejo outra explicao. Guardo essa carta e seus rascunhos, protegidos numa pasta, com zelo e carinho. um tesouro que ela nos deixou. Consigo at imagin-Ia me falando cada uma de suas palavras.

Ele

no era da famliaMontecchio, nem ela, uma Capuambos eram Rocha, por parte de suas relativamente comum. Mas, entre ns, apelidados de Romeu e Iulieta. No da

leto. Por coincidncia mes. Um sobrenome eram carinhosamente

antiga Verona, mas dos tempos atuais. Ana Clara conheceu o futuro namorado atravs de um amigo comum, no incio de abril. Cinco meses antes da tragdia. Em 26 de maio, Vitoria e as amigas mais prximas de nossa filha promoveram uma festa surpresa para comemorar os 17 anos de "Iulieta" Uma animada festa na casa dos "Capuleto" Ana Clara foi recebida com uma chuva de confetes ao abrir a porta do elevador. Estava linda, feliz e seu sorriso a denunciava. Seus olhos tinham um brilho nico, radiante. Dezenas de amigos festejando a graa de sua juventude e a cobrindo de carinho. Para quem amava pessoas, a festa j bastava. Para ns, seus pais e irmos, foi uma exaltao sua vida e ao seu futuro.

80

Mas foi seu ltimo aniversrio. Nessa festa, minha filha e "Romeu", que no precisou entrar escondido como um Montecchio comearam na casa de um Capuleto, a "ficar". Namorar, duas ou trs semanas depois. nossa casa,

mente e passaram a sair juntos, com ele ao volante. Por diversas vezes, Ana Clara e eu conversamos falava sobre minhas preocupaes. estilo; sexo, ela saberia o momento cidade, Vitoria e eu tentvamos rando. Nossa grande inquietao que nos levou a determinar sobre o assunto. Eu lhe adequado; a violncia da noite o Mesmo namoDrogas, no faziam o seu

Tempos modernos. Quando o jovem "ficante" passou a freqentar nos causou boa impresso. Extrovertido ser simptico e conquistar a Ana Clara de cala. Ou de bermuda.

minimizar, buscando-a

aonde quer que fosse depois dos programas.

e educado, procurava Demonstrava ter boa

era o carro do namorado,

a todos. Vitoria dizia que ele era

regras claras para nossa filha quan-

to a situaes que ela deveria evitar. Certa vez, Ana Clara no voltou de carro com ele de um churrasco num lugar distante, preferindo pegar carona com o que pai de uma amiga. Fiquei aliviado, porque ela demonstrou a. Eu lhe disse ento uma frase que me marcou. Filha, se for preciso, perca o namorado, mas no sua do em vida. Tome conta de voc. De outra feita, Vitoria levou Ana Clara at a portaria prdio, onde o namorado uidado na direo e no correr, pois ela estava entregando suas mos um dos nossos quatro bens mais preciosos. Mas, meu Deus, por que tinha de ser assim? Tantos cuidad s, tantos alertas ... Foi tudo em vo. A tragdia foi consumada. Infelizmente as inconseqncias podem ser terrveis, principalmente da juventude, to comuns, porque aos 17, 18, 19 anos a esperava. Pediu a ele para tomar

ndole e formao. Do contrrio, no teramos aprovado o namoro. Quando decidiram namorar, "Romeu" fez questo de falar conosco, diferentemente mal podia se aproximar so encabulado, do personagem de Shakespeare, que da casa dos Capuleto. Fez um discur-

se lembrava de nossas conversas e sabia cuidar de sua seguran-

disse que gostava muito de nossa filha e que

queria faz-Ia feliz. Pediu a nossa aprovao. Para descontrair, me lembro de ter feito graa com ele. Foi uma verso atualizada da famosa cena do balco, nos jardins da casa de Iulieta. Ana Clara nos contou depois sobre a insistncia entre os dois e ele certamente dele em fazer isso, algo pouco comum nessa gerao. Era visvel a paixo j sabia que ela era uma pessoa quase diespecial, cercada de carinho, ateno e cuidados. Mas, durante os quatro meses de convivncia

ria, percebi uma grande diferena entre eles. Ana Clara era um ano e oito meses mais nova, mas as meninas amadurecem mais cedo que os meninos. Falamos certa vez sobre isso. Mas eu achava vlido seu relacionamento com ele pela descoberta e nico namorado. recentedo amor, como aprendizado para a vida. Na verdade, "Romeu" foi seu primeiro

difcil acreditar que no somos eternos. tanta vida, tanta fora, tanto ainda por fazer ... Os jovens pensam no futuro, so-

nham, fazem planos. Mas preciso cuidar da vida no present .\'1'11

um mnimo de prudncia, perdem-se vidas de forma tia.111

Com 18 anos, tinha tirado a carteira de habilitao82

l'crdas que mutilam seus pais.

Procuro no guardar mgoa nem sentir raiva. Nada trar minha filha de volta. Apontar culpados no adianta. Respeito a memria dela, pois os dois estavam apaixonados. Personificavam a imagem dos jovens amantes de Verona. As cartas trocadas entre eles, que depois achamos nas coisas de minha filha, e as flores que ele lhe deu quando fizeram um ms de namoro foram provas do amor que os unia. Nas duas semanas antes do desastre, Manuela, Letcia e colegas do colgio, por coincidncia, fez inclusive uma apresentao dos e engraados, mas criativos. No sbado, aps Ana Clara sair para o teatro com a tia, eu e as gmeas assistimos ao filme do cineasta Franco Zeffirelli sobre a histria de Romeu e Iulieta. Figurinos bem cuidados, cenrios perfeitos, uma bela trilha sonora. Eu ajudava as meninas a entender o filme, com poticos e expressivos dilogos, numa linguagem de poca. Ia traduzindo" tria, para que elas compreendessem s duas horas da madrugada melhor. fomos dormir, aps ver a e contando a hisensaiavam para encenar a histria de Romeu e Iulieta. Era um trabalho escolar. O grupo para ns, l em casa. Encabula-

cho e cobertos com o mesmo plstico preto. Juntos, lado a lado. Como Romeu e Iulieta. s margens da Lagoa, assim como em frente ao Palcio de Verona, a vida imita a arte, no mesmo trgico fim dos jovens apaixonados.

cena final em que Romeu e Iulieta esto mortos, juntos, lado a lado. Haviam sido levados, pelos amigos, frente do palcio do prncipe de Verona. Este, dominado deu publicamente os Montecchio venas familiares produziram desastre, desesperado pela emoo, repreene os Capuleto, cujas desa-

a tragdia dos jovens amantes.

Menos de cinco horas depois, eu estaria na Lagoa, local do com o triste destino de minha filha. Jaj haviam mais esquecerei a cena que vi, a cena que viram todos que l estavam. Os corpos de Ana Clara e do namorado14

sido retirados dos destroos do carro. Estavam estendidos no

~

A passageira do destino ~

Os pais de Manoela saram de uma festa na casa de amigos s trs horas da madrugada de domingo. Viram trs ligaes no atendidas da filha e ligaram para ela imediatamente. Estava numa boate na Lagoa com um grupo de amigos, comemorando o aniversrio de um deles. No havia conseguido avisar antes sobre sua ida festa, pois eles no atenderam o celular. O pai lhe disse para no demorar, e perguntou como voltaria. Manoela levaria Ana Clara e Ioana para dormirem em sua casa e as trs amigas combinaram que pediriam um txi. Alguns poucos pais nos revezvamos para levar nossas filhas aos programas noturnos e busc-Ias depois. Elas gostavam de dormir quase sempre uma na casa da outra, na certa para continuar conversando sobre o que haviam feito. Adoravam confraternizar e estar juntas. Ana Clara, sbado noite, foi ao teatro com uma tia e U 111 casal de primos assistir ao musical Cats. Vitoria estava em ao

Paulo e eu, naquele final de semana, fiquei em casa, por conta dos nossos quatro filhos. J havia dito minha filha para no combinar nada para depois do teatro, pois estava com infeco na garganta e tomando antibitico. Precisava descansar. Na hora de sair, me pediu para ir dormir na casa de urna amiga. S queriam conversar e ver um filme, ela me disse. No tive como negar. Mas Ana Clara j havia combinado amiga: sua casa seria o local de encontro com a com o namorado,

Acidentes de automvel

sempre me preocuparam

muito

e at hoje as estatsticas sobre o assunto me estarrecem. Viajei muito a trabalho por mais de vinte anos. Conheci vrias cida, des, das grandes at as muito miserveis, de norte a sul do pas. Viajava de avio, geralmente calidades pelo caminho. O trecho entre Cuiab, no Mato Grosso, at Porto Velho, em Rondnia, fiz urna dzia de vezes. So quase dois mil quilmetros, incluindo os desvios, por estradas ruins e traioeiras. Em vrias dessas viagens, muitas vezes presenciei alguns com mortes, nas estradas. Noutras acidentes terrveis que aconteceram tnhamos vezes com colegas de trabalho imprudncia viajvamos. A maioria dos que dirigem se julgam timos motoristas dizem para ficarmos tranqilos e com eles ao volante. Alegam desastres, fiquei sabendo de algumas at as capitais, e de l percorria longos trajetos de carro, fazendo meu servio em diversas lo-

para juntos irem a uma festa que ela tanto queria. A mesma festa a que iriam as inseparveis amigas Manoela e [oana. Transgresso tpica da idade, minha filha me enganou. Mas quem, quando jovem, nunca mentiu para os pais? Principalmente uma jovem to apaixonada. Seguindo orientao de seus pais, Manoela pediu um txi de urna cooperativa conhecida. Mas, cinco minutos depois, o registro em seu celular. No aps a pedido foi cancelado, conforme

em algum local por que por no aceitar a dos carros em que

passado. Corno passageiro, me desentendi e motoristas e a velocidade na conduo

sei o que as levou a mudar de idia. Minha filha tinha ordens expressas de nunca voltar de carro com o namorado meia-noite. Principalmente varam ao acidente. De madrugada pelo receio dos motivos que lea cidade mais perigosa

ter experincia e afirmam que nada vai acontecer. Como se um passado sem acidentes fosse garantia de um futuro igual. Alguns tm a falsa idia de que quem bateu e morreu foi porque "bobeou". Os que morreram na direo talvez pensassem dessa imprudentes contiem risco as vidas daqueles que logo sua mesma forma. E assim, muitos condutores nuam se expondo e colocando Quando viajam corno passageiros em seus carros. meu filho fez 18 anos, providenciamos arteira de motorista.III

tambm, ruas vazias, assaltos, blitz, e quem mais velho e experiente sabe lidar melhor com essas situaes. Mas, como Ana Clara j havia se recusado a voltar com o namorado pelo menos uma vez antes, acredito que tenha optado por ceder. Certamente queria evitar uma briga e avaliou que o percurso era pequeno, e talvez esse tenha sido seu maior equvoco. Desconhecia que mais da metade dos acidentes urbanos de automvel acontece a menos de dez quilmetros de casa. Foi na trgica iluso de que nada de mal poderia lhe acontecer. Embarcou ento no carro preto como passageira do destino.88

Queria v-Ia ao volante e no no banco

li carona. Sempre o alertei para os perigos da direo e nocansava de recortar dos jornais e lhe mostrar notcias sobre89

acidentes de automveis com jovens. Permanecia atento ao seu comportamento na direo, assegurado tambm pelo fato de ele no beber. Meus planos para sua irm eram os mesmos. No sbado, vspera do acidente, eu e minhas trs filhas fomos almoar juntos num restaurante. L pelas tantas, Ana Clara me perguntou se lhe emprestaria o carro para sair noite quando fizesse 18 anos. Disse-lhe que sem dvida alguma, pois ansiava tambm v-Ia, o mais breve possvel, como motorista. Queria tir-Ia do banco do carona. Faltava menos de um ano para ISSO. Mas, tragicamente, o destino chegou antes. Segundo especialistas, em anlises divulgadas pela imprensa, o carro estava a mais de 11Okm/h, apesar de, em toda a volta da Lagoa, o limite ser de 70km/h. Chegou a uma curva aberta para a direita e, naquela velocidade, o carro foi "empurrado" para fora, o que obrigou o motorista a fazer uma correo brusca de trajetria. Com isso, a roda traseira do lado esquerdo bateu com fora no meio-fio e se quebrou, soltando do eixo, e o carro "decolou". Em seguida, foi capotando sem voltar ao cho e parou cerca de oitenta metros frente, ao se chocar com violncia contra uma rvore. O carro percorreu menos de dois quilmetros do local estacionado at a rvore. Um trecho muito pequeno em que um somatrio de erros foi fatal. Ana Clara usava o cinto de segurana. Com toda a certeza. Para ela, assim como para nossa famlia, usar cinto sempre foi a regra. Procedimento automtico ao entrar no carro. Um ato quase instintivo. No local do acidente, pude constatar o cinto do lado do carona distendido e para fora do carro. SeAna Clara no o tivesse usado, ele estaria recolhido na coluna lateral do automvel. Ela teria sido projetada para fora ou batido o rosto90

no painel ou no pra-brisa, que estava estilhaado. Teria ferido seu rosto que, no entanto, estava absolutamente perfeito. No tinha sequer um arranho. Porm, li nos jornais que os cinco jovens estavam sem cinto de segurana, e isso me incomodou muito. Fiquei semanas me cobrando confirmar as evidncias que descrevi, e isso somente poderia ser feito com o depoimento daqueles que a atenderam logo aps o acidente, ainda dentro do carro. Um encontro muito doloroso, mas que era preciso. No dia 23 de dezembro, no final da manh, voltando de carro da oficina, parei no sinal em frente ao Grupamento de Bombeiro que chegou primeiro ao local no dia do acidente. Estacionei o carro bem prximo e entrei no quartel, por onde vrios soldados transitavam. Um deles, um moreno baixo, me abordou e lhe perguntei pelo oficial do dia. Ele me questionou sobre o assunto a ser tratado e, antes que eu lhe respondesse, apareceu um outro soldado e interpelou seu colega. - sobre o acidente da Lagoa. Em seguida, virando-se para mim, e sem eu lhe dizer uma s palavra, me falou: - Eu sei quem o senhor. o pai da moa que estava no banco do carona. - Diante do meu silncio, ele continuou: - Quando atendi sua filha, ela j tinha falecido e fui eu quem a retirou do carro. Ela era a nica que estava de cinto de segurana, pois eu o destravei. Ao dizer isso, me olhou por mais alguns instantes, virou-se e seguiu seu caminho. O que me levou naquele dia quele local? No sa de casa com essa inteno. Era um sbado, e o soldado que falou comigo poderia estar de folga ou em outro local do quartel em

... o

que no me veria. Ele veio at mim, deu seu recado e depois se retirou. Sem que eu tivesse lhe perguntado ctico que eu possa ser, coincidncias minha filha provocou esse encontro nada. Por mais tm limite. Acredito que e me deu esse presente

cuidar? Creio que sim. Mas naquele momento era tarde demais ... Assistiu, em rpidos segundos, ao seu filme de 17 anos. Noite longa, volta curta. Nada mais h a descrever. Depois da tragdia, questiono muito por que eu, to precavido, preocupado e que alertava exausto meus filhos sobre at o final dos tempos, se possvel essa questo vital, tinha sido uma vtima daquilo que mais temia. Eu poderia permanecer fosse, em busca de uma resposta objetiva para essa pergunta. Mas seria uma procura em vo. Na verdade, para tudo o que ocorre em nossa vida, seja algo de bom ou de ruim, a pergunta "por que eu?" tem como resposta "por que no eu?". Nosso destino percorre caminhos gostaramos. No sou ateu nem agnstico. Sou catlico e estudei o antigo ginasial e cientfico em colgio de padres. Mas no posso aceitar alguns preceitos dessa religio. Tambm no sou esprita, mas j li e conversei com quem conhece essa doutrina, que algum vago alento me traz. Enfim, apenas acredito que alguma razo existe na regncia dos fatos que acontecem a todos ns, e que aqui estamos somente de passagem. Conhecemos muito pouco sobre nosso crebro e a dimentivesse a so de seu alcance. Existem muitas questes ainda sem respostas, e uma delas seria 'que talvez meu subconsciente premonio de que, um dia, uma fatalidade como essa acontetortuosos e nos reserva surpresas ao longo de nossas vidas. Decerto no somente aquelas de que

de Natal. Sossegou meu esprito. No consigo imaginar outra explicao diante do que aconteceu. A fatalidade foi completa porque a violenta coliso final foi na lateral do carro, do lado do motorista. O cinto de segurana e o airbag no protegeram Ana Clara. Desde o acidente, percorri muitas vezes o mesmo trajeto do carro, pois meu caminho para vrios lugares. Calculo que o curto trecho percorrido at o incio da capotagem no tenha durado mais do que trs minutos. Dizem que uma pessoa ao se deparar com a morte acidental rev em segundos toda a sua vida como num filme. Certa vez, quando fazia o mesmo percurso, pensei como foram os seus ltimos minutos de vida. Sei que foi puro exerccio de imaginao, mas bem prximo da realidade, feito por quem a conhecia muito bem. Ana Clara entrou no carro consciente de uma possvel opo pelo txi, colocou o cinto de segurana, mas devia estar incomodada voltar com o namorado. chas rapidamente pela desobedincia de Sentiu o p pisando fundo e as marEstava

se sucederam no cmbio automtico.

feliz, tinha celebrado a vida com os amigos na festa. Mas, enquanto a velocidade aumentava final de madrugada, ao limite. O controle se foi. Pensou em mim? Lembrou do quanto eu lhe falei sobre acidentes de automvel com jovens? Das notcias no jornal que eu sempre lhe mostrava? Das muitas vezes que lhe pedi para se92

na pista livre e deserta de um

o medo se fez presente. A direo chegou

.eria em minha vida. No exatamente comigo, apesar do quant j me expus por anos nas estradas do pas. Mas uma tragdia

m algum muito amado e to precioso para mim. Ento, por puro instinto, que um impulso instantneo e alheio razo,93

tentei muito e desesperadamente

mudar o curso do destino. na direo,

Fracassei. Que outra explicao teria para minha obstinao em lidar com essa questo sobre a imprudncia sofrimento, conscientiza poucas pessoas? que apesar de provocar tantos desastres, tantas mortes e tanto

~

A rvore ~

Uma

rvore smbolo de vida. aquela que assiste.im-

passvel, s geraes se sucederem. Sua placidez nos transmite paz e nos traz segurana. rvores nos do sombra, abrigo e lrutos, e esto sempre prontas a nos servir com o embalo de

uma rede ou um balano de criana.Para mim, tambm trazem boas lembranas do meu tempo

I garoto. Quando tinha meus oito anos ("Oh, que saudadesIlIl' t

nho, da aurora da minha vida, da minha infncia querios anos no trazem mais!"), eu morava numa casa. Era corrimo de pedra, depois de um porto, que da coberto que minha me

11, queI

qu na, mas no muito, e bem acolhedora. Tinha uma escada ,10m

[uda levava a uma varanda espaosa.Nos fundos, tinha um quintalIVIII

I ara estender roupas, protegidas('U

da chuva. Nesse mesum coelho e l era Mais ao fundo,

quintal, eu e meus irmos crivamos

I94

pendurava uma gaiola de passarinho.

numa rea elevada e descoberta, meu pai cultivava uma pequena horta que gostava de cuidar. Essa casa ficava numa rua residencial bastante arborizada de um bairro chamado Bom Pastor, na cidade de Juiz de Fora, Minas Gerais. No sei se essa casa ainda existe. Naquele tempo, na dcada de 1960, brincadeira de criana era na rua, como ainda hoje para a meninada que mora em casa no subrbio ou em cidades pequenas. Eu vivia subindo em rvores com meus amigos e irmos. Era exmio em passar de uma outra sem precisar voltar ao cho. Ficava horas encarapitado nelas e perdia a noo do tempo. Contra a vontade de minha me, me lembro at de ter almoado acomodado numa delas. Via a todos do alto. Muitos anos depois, quando resolvi no mais seguir a carreira de piloto de aviao comercial, optei por fazer arquitetura. Meu primeiro ano foi numa faculdade que fica numa estrada que liga Barra do Pira a Vassouras, no Rio de Janeiro. O campus era um pouco rido e as construes ao redor tinham dois andares. Mas, como me lembro bem disso, havia uma rvore enorme e frondosa, de copa bem fechada. Daquelas que parece s se ver em filme. Em sua base, havia um banco contnuo de madeira circundando todo o tronco, que era largo e com razes profundas. A sombra era farta. Sob essa rvore, eu e meus amigos conversvamos sobre nossosprojetos de vida e debatamos at de que maneira iramos mudar o mundo ...Tambm estudvamos, alguns namoravam, outros descansavam depois do almoo. Quando estvamos no campus, a bela rvore nos atraa com seu magnetismo. Era nosso ponto de encontro. Tenho fotos dessa rvore e at Vitoria a conheceu anos mais tarde, quando ainda ramos namorados.

No ano seguinte, por comodidade e j pensando num estgio profissional, me transferi para uma universidade no Rio de Janeiro, onde me formei arquiteto em setembro de 1981. Meu primeiro grande projeto foi um condomnio de lazer com cinco casas de campo. Meu pai, meu tio, organizador do grupo, e mais trs amigos compraram um terreno em Corras, na serra do Rio de Janeiro, para construir suas casas. Um belo terreno, no qual havia muitas rvores frutferas, algumas frondosas. Resolvi ento catalog-Ias e, localizando-as na planta do terreno, classifiquei-as por tipo e altura estimada. Desenhei a posio das casas, no alinhadas, preservando a maioria das rvores, num projeto com um caminho sinuoso para os carros. O condomnio j comearia a existir com muita sombra e frutos. Para minha decepo, o projeto no foi aproveitado. Um dia, no comeo das obras, fui ao local e vi que um trator tinha arrasado quase todas as rvores e aplainado o terreno em dois nveis. A construo do condomnio foi feita com as casas alinhadas e sobraram apenas algumas poucas rvores. Fiquei frustrado ao ver as jabuticabeiras, os abacateiros, as mangueiras, entre outras, todas derrubadas. Primeiro revs de um jovem arquiteto. O condomnio ficou pronto meses antes de o Joo Gabriel nascer. Na casa de meus pais, que das cinco a do meio, meus filhos passaram a infncia e a pr-adolescncia, centenas de finais de semana e parte de muitas frias escolares. Tinham a companhia das crianas vizinhas e de amiguinhos que quase sempre levvamos. Todos os quatro irmos aproveitaram muito essa fase de suas vidas.11/

Afinal, rvores sempre me trouxeram delas. No como das vezes anteriores. Quando

boas recordaes. com uma

O fcus foi o agente de passagem desses jovens amigos para um outro plano de vida. Juntos, eles ascenderam depositadas pelo tronco a da rvore e subiram ao cu, acima de sua copa. Que as flores ali sejam um alerta, com fora para preservar vida de muitos jovens.

Mas agora o destino me trouxe um novo encontro

cheguei ao local do desastre em que minha fimal pude crer no que vi. Um de Ana Clara. "Ento, vi Havia deixado um rastro de at sua parada total ao bater

lha teve sua vida interrompida, um carro preto irreconhecvel. pedaos no caminho percorrido

grande fcus foi o algoz involuntrio

numa rvore grande de tronco rgido." Eu mal podia olh-Ia e, no entanto, minha filha jazia inerte junto a suas razes. Seu corpo, protegido do sol, era velado pela sombra do fcus, que diante do meu desespero. que descrevi passaram em meu insensvel permaneceu pensamento

Todas as boas lembranas

e, desde ento, tenho feito um grande esforo do destino como

para no culpar esse fcus. Na verdade, seu tronco resistente e inflexvel estava apenas no caminho do condutor final dos cinco amigos. Hoje, o fcus permanece sempre esteve. Continua imponente e impassvel assistindo passagem do tempo e

no parece ter se abalado com o que causou. Apenas carrega uma ferida em sua base, as marcas da coliso. Aps o desastre, com assdua freqncia, a rvore tem recebido muitas flores sobre suas razes mostra, numa saudosa homenagem aos jovens amigos. Um triste calvrio para seus pais e familiares. O fcus est quase sempre florido com ramalhetes, buqus e vasos de flores ao seu redor. Recentemente, trs belas orqudeas foram plantadas meia altura de seu tronco. Lembram cada uma das trs meninas. A rvore fica ainda mais florida no dia trs de cada ms, quando se completam meses do desastre. Tornou-se um marco da tragdia.989

~

As escolhas de uma vida ~

, , Ns

somosa soma das nossasdecises."

A gente o que a gente escolhe ser, o destino pouco tem a ver com isso. Desde pequenos aprendemos que, ao jazer uma opo, estamos descartando outra. No momento em que se escolhe ser mdico, se est abrindo mo de ser piloto de avio. No amor, a mesma coisa: namora-se um, outro, e mais outro, at que chega um momento em que preciso decidir entre viver sem laos e viver com laos... Escolha: todas as alternativas so vlidas, mas h um preo a pagar por elas. Por isso to importante o autoconhecimento. Nossas escolhas no podem ser apenas intuitivas, elas tm que refletir o que a gente . A estrada longa e o tempo curto. No deixe de jazer nada que queira, mas tenha responsabilidade e maturidade para arcar com as conseqncias dessas aes. Suas escolhas tm 50% de chance de dar certo, mas tambm 50% de chance de dar errado. A escolha sua ...

Aos jovens exigido tomar uma srie de decises sobre suas vidas, numa fase em que lhes falta maturidade suficiente para isso, pois passam por intensas mudanas fsicas e emocionais. O conceito claro e definido da morte, e que nos faz temIa, somente se concretiza no crebro no decorrer dos 20 aos 25 anos. Antes dessa idade, abstrato. Os jovens no acham que algo de ruim possa lhes acontecer, ainda no tm o controle dos impulsos que distinguem o certo do errado e tampouco o senso de responsabilidade pleno, que nos faz ter condies de avaliar as conseqncias de nossos atos. Minha filha foi mais do que alertada, eu diria exausto, sobre os perigos a que esto sujeitos os jovens quanto mistura de bebida alcolica, alta velocidade e direo imprudente. A paixo a deixou cega e a fez avaliar de forma no-isenta os riscos inerentes quela direo. Ela entrou naquele carro para morrer. A escolha que ela fez, assim como fizeram suas amigas, estava no percentual de 50% de chances de dar errado. Um percentual muito sinistro. Faltou vivncia e prudncia para que fizessem a escolha certa. So coisas da vida que causam a morte. Os jovens so contestadores e preferem no ouvir ou ler algo que lhes diz respeito diretamente. Mas os que prestam ateno aos perigos a que a inexperincia os expe tm boas chances de ver seus netos crescerem. Tero tambm a chance de se preparar para realizar seus sonhos e planos. No h pretenso, vidncia, nem garantia disso. Mas a probabilidade grande. Vai depender dos prprios envolvidos. Os jovens. Por mais que seus pais os alertem, e Deus sabe o quanto os pais desses cinco amigos assim fizeram, da porta de casa para fora o livre-arbtrio deles. Portanto, sua sobrevivncia depende

da sua conscientizao. Aquele que mais e melhor pode preservar sua vida est diante de voc na frente de um espelho. Os dados estatsticos mostram que centenas de jovens morrem a cada ms em acidentes de automvel em todas as vias urbanas e estradas do pas. Mais da metade dos feridos, que tm a sorte de escapar com vida, ficam com leses permanentes. A OMS, Organizao Mundial da Sade, considera isso uma epidemia. Para mim, uma carnificina. So nmeros assombrosos que mostram e provam que os jovens bebem, correm, matam e morrem. E muito! A maior causa de mortes entre os jovens da nossa classe social so os acidentes de trnsito. Rapazes na direo so responsveis por quase a totalidade dos acidentes causados por motoristas entre 18 e 25 anos. Alguns so verdadeiros camicases no volante. Parecem sempre prontos para se arrebentarem na prxima esquina. Algumas companhias de seguro fazem restries a segurar um carro cujo principal condutor um rapaz nessa faixa etria. Ou ento cobram um valor mais alto, pois a probabilidade de acidentes grande. pura e simplesmente estatstica. Nada mais. Os altos nmeros de colises com mortos e feridos falam por si e resguardam as seguradoras dos prejuzos de um sinistro anunciado. J quando h uma moa na direo de um carro, o risco pequeno. Novamente as estatsticas falam por si: as mulheres na direo so mais prudentes. Pena que, na maioria das vezes, elas e alguns rapazes so caronas, conduzidos por um motorista que dirige como quer e bem "entende': Afinal, o seu carro. Condeno essa hegemonia em nossa sociedade, dos rapazes sempre ao volante. Acredito que muitos acidentes el(ll

muitas mortes teriam sido evitados se mais moas estivessem na direo. Reitero que os caronas so passageiros do destino. Como Ana Clara, Ioana, Manoela, Felipe e milhares de outros jovens que tiveram o mesmo trgico destino. Infelizmente vou repetir: milhares de jovens! "Nada mais difcil e cansativo do que tentar demonstrar o bvio": quem dirige no pode beber. Se beber, no pode diri -' giroAlta velocidade inversamente proporcional ao tempo de reao do motorista ou a sua capacidade de controle do carro. Experincia algo que somente se adquire com o tempo. O somatrio das situaes vividas ou observadas que nos permite antecipar o perigo e nos proteger. Assim como nos desastres de avio, um acidente de carro ocorre por uma srie de erros com pesos distintos: excesso de velocidade, imprudncia, impercia e inexperincia na direentre os o, teor alcolico acima do tolervel, cansao ao fim de longas noitadas de festa e desateno pela descontrao ocupantes do carro. Quem dirige precisa estar atento direo e ao entorno do carro, tentando antecipar eventuais perigos. a direo defensiva. Vou parar por aqui. Eu me tornaria enfadonho maior que o livre-arbtrio como amadurecimento compreenso, no mergulhar, tesca. ~ e repetitivo. Tenho conscincia de que o drama pessoal que vivo no dos jovens. Inmeros outros dados do crebro, impulsos, capacidade de

minha filha, para minha tristeza. S me resta torcer muito desejar que outros jovens evitem esse mesmo destino e no faam parte dessa estatstica cruel. Em ltima instncia, preciso acreditar que os jovens podem sim, ao exercer sua livre escolha, procurar se preservar, evitando tragdias como essa.

No deixe de fazer nada que queira, mas tenha responsabilidade e maturidade para arcar com as conseqncias dessas aes. Suas escolhas tm 50% de chance de dar certo, mas tambm 50% de chance de dar errado. A escolha sua ...

vontade e mais um sem-fim de condicionantes, aqui neste livro, numa cruzada talvez quixo-

inclusive a omisso do Estado na parte que lhe cabe, me fazem

J; c3104

Porm, os cinco jovens amigos, assim como os outros milhares a que me referi acima, viraram estatstica. Inclusive10'.

~

o salto pequeno

~

Aansco.

primeira ordenha, das duas dirias, estava apenas coe muitas vacas ainda permaneciam no pasto. Ouestavam sendo tocadas em fila a cavalo de cor acinzentada

meando,

tras, em passos vagarosos,

caminho do curral. Iam num ritmo lento, sem pressa. O galo j havia cantado e um imponente bufava depois de uma corrida matinal. Parecia ter acordado Alguns pees e suas famlias se dirigiam para a igreja numa longa caminhada. gramado principal Saam de onde nem se ouvia o sino tocar. embora o belo pelo orvalho da ainda estivesse tomado Era dia de missa. E assim o dia ia comeando, noite. Na casa-grande, sete horas da manh. Era domingo e o dono da fazenda estava dormindo. pertou em seu quarto, deixou o telefone tocar, imaginou Desqu

ainda em silncio, o telefone tocou s

fosse engano. O telefone tocou outra vez. Ento, o dono da fa-

zenda se levantou da cama na certeza de que a ligao era para ele. quela hora, temeu por m notcia. E era. O fazendeiro, meu cunhado e amigo fraterno, foi a primeira e nica pessoa para quem liguei do local do acidente. Nem mesmo o fiz para Vitoria. Como eu poderia ligar para ela, que estava em So Paulo, e lhe dizer que nossa filha havia morrido, vtima de um desastre de automvel? No tive tamanha coragem. J na estrada, vindo ao meu encontro, ele tomou as primeiras providncias de apoio minha famlia, por quem sempre teve carinho e ateno especial. Vitoria e eu somente vela~os e choramos nossa filha. No tivemos que nos ocupar com nenhuma providncia legal. O fazendeiro conhecia Vitoria desde os cinco anos de idade e sempre a tratou como uma filha mais velha. Com nossos filhos, a deferncia paternal. Ana Clara tinha por ele especial predileo, visivelmente recproca. Sei que lhe dei um fardo pesado, cuidar do funeral de uma "filha". Mas minha escolha no poderia ser outra. Sua fazenda, que se pode ver no fundo de um cenrio de montanhas, fica a cinco quilmetros de Passa Trs, prxima do municpio de Pira. Seu primeiro dono, Francisco Gonalves de Moraes, herdara uma fortuna e, apesar de ter perdido muitos bens, ainda era o maior proprietrio de terras de toda a regio do Vale do Paraba. O tambm comendador da Ordem de Cristo, senhor feudal e homem muito severo, era um marambaia, martimo que prefere viver em terra em vez de embarcado. Seu principal negcio eram os escravos trazidos da frica em navios negreiros. Sua fazenda era o maior entrepos08

to de distribuio para toda aquela regio. Chegou a negociar milhares de escravos. Num recanto da fazenda, no muito distante da sede, passa um riacho que abastece os pastos e o curraL Em certo ponto, o curso da gua cai abruptamente, mas de uma altura no muito grande. Forma uma cachoeira de pequeno salto. Fazenda do Salto Pequeno. Assim sempre foi conhecida aquela propriedade centenria. Para os antigos escravos, que para l eram levados, era um grande salto numa viagem transocenica para uma vida sem liberdade nos cafezais. Aps a Lei urea, a fazenda perdeu suas tulhas, como eram conhecidos os celeiros, o engenho de cana-de-acar e as senzalas. Mas a bela casa-grande resistiu aos abolicionistas. Hoje, no mais ecoa em seus pores a agonia das correntes que aprisionavam corpos, almas e esperanas. Menos de um sculo depois que a princesa Isabel assinou tardiamente a famosa lei, o fazendeiro comprou a Fazenda do Salto Pequeno. Os cafezais j no mais dominavam suas terras montanhosas. A cultura teve seu fim com a abolio da escravatura. O gado leiteiro tomou seu lugar e, hoje, a ordenha mecnica. Progresso. A fazenda, desde ento, se tornou um aconchegante e confortvellocal de encontros de famlia e de amigos. Um livro de capa de couro, com lombada folheada a ouro, registra em suas pginas as impresses de centenas de convidados que por l j passaram. Ana Clara conheceu a fazenda com um ms de vida e l esteve mais de uma centena de vezes. Temos muitas fotos e filmes de nossos quatro filhos l. Quando convidados -. sempre fomos muito e continuamos a ser -, a alegria era geral. Ana Clara, mais que depressa, era a primeira a fazer a mala.I()\)

-

Pai, posso levar uma amiga? Pode, filha. de rio levar ningum. Jogava bola

ro a cavalgar. Vem as vacas no pasto, e daqui a pouco vo ordenh-Ias no curral e ver bezerros nascerem. Aprendem a amar e a conhecer a natureza. o ciclo da vida que se repete. Voltamos fazenda quando se completaram a cavalgar, gostava de dois meses da de morte de Ana Clara. Foi a primeira vez que estivemos l sem ela. Foi muito doloroso. Em cada canto h uma lembrana dente e alegre. A vida vale por esses bons momentos. Vitoria e eu. reservamos espalhamos e a amar a sempre um punhado sua passagem, sempre delicada no trato com as pessoas, sorriQue bom que ela aproveitou bastante esse lugar que tanto a seduzia. de suas cinzas e as no gramado principal. O mesmo em que ela deu

Joo no se importava com os filhos da peozada.

Ana Clara deu seus primeiros passos no gramado principal em frente sede. Na fazenda aprendeu ficar vendo as vacas no curral, chegou at a ordenhar e viu bezerros nascerem. Pescvamos muito num lago, que ficava atrs da casa-grande. Joo sempre a assustava com as minhocas e ela corria para se proteger no colo da me. Bons tempos de filhos pequenos. Sob nossos olhos, sob nossa guarda ... L tambm natureza. Ana Clara aprendeu a conhecer Sentia-se "a" pezinha, com suas botinhas

seus primeiros passos e que agora a acolher em seu descanso. A Fazenda do Salto Pequeno foi uma das suas melhores lembranas no pequeno salto de sua vida.

cheias de lama e mais o que as vacas deixavam pelo caminho ... noite, depois do banho, a me sempre rastreava seu corpinho to clarinho em busca de carrapatos. Eram fceis de achar. Ela s no gostava da lambida dos cachorros e procurava refgio entre nossas pernas. Aproveitava muito cada momento. Levou muitas amiguinhas fazendeiro lhe presenteou durante a infncia e, mais tarde, a galera da adolescncia. Quando Ana Clara fez 15 anos, o tio com um convite para quatro dias no Salto Pequeno, com os amigos que quisesse convidar. Ela levou vinte. Como eu j havia dito, para ela, menos de cinco era "solido" ... Ele alugou um micronibus, extras e mantimentos. providenciou camas No deixou faltar nada. Foi uma farra

das grandes e a garotada mal tinha tempo para dormir. Mas o tempo passa, a vida nos reserva "surpresas" e, hoje, tudo so apenas lembranas de bons tempos. Novas geraes se sucedem e os netos do fazendeiro do seus primeiros passos no mesmo gramado. Hoje, andam de charrete, mas aprende110 III

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Semente de mostarda ~

Certa

vez,quando Buda discursava,uma mulher em deo filho nos braos. um no mato, pisara numa serpente e logo ento lhe implorou

sespero correu ao seu encontro carregando A criana, brincando ficou plida e silenciosa. A mulher

remdio para curar o filho que, no entanto, j estava morto. Buda ficou em silncio por algum tempo e disse mulher que curaria seu filho com uma simples semente de mostarda. Mas esta deveria ser colhida de uma casa onde a morte nunca tivesse entrado. Ela foi para a aldeia com a certeza de que teria o filho so novamente. Visitou vrias casas, at mesmo em outras aldeias. Sementes de mostarda em todas havia, mas no havia nenhuma que no tivesse sido visitada pela morte. Como somos comuns no luto ... Como somos nicos em nosso luto ... Ningum escapa da dor da morte e do sofrimento da perda. Por que em minha casa no haveria um luto?

Dizem que o tempo o senhor das.feridas da alma, da solido do desespero, da amargura do esprito e da angstia da ausncia. um blsamo para os coraes, mesmo para aqueles mortalmente atingidos. Dizem tambm que o tempo transforma dor e sofrimento em saudades e recordaes. Mas no sei que medida de tempo considerar. O tempo da minha existncia? Ou de qual existncia seria? A de quem ainda jovem e tem (tem? ..) toda uma vida pela frente, ou de quem est na maturidade da vida? Apenas sei agora que o tempo passa de forma diferente. No passa mais como antes, e quanto mais distante do instante da perda, maior a solido. Em algum momento frente, estarei s. Somos comuns no luto, mas somos nicos em nosso luto. Oito meses de ausncia e a contnua ocorrncia de mais desastres levando mais vidas jovens. Jovens que, de alguma forma, viveram a tragdia da Lagoa. Uma tragdia que se tornou emblemtica. Chocou toda a cidade e correu por todo o pas. Eles no poderiam ter ido embora assim. Mutilando seus pais. Mas foram. Do mesmo jeito. J fui missa de stimo dia de um rapaz que morreu ao volante sozinho. Seus pais haviam nos procurado, chocados com a morte de minha filha. Uma passagem de basto simblica da dor. Somos comuns no luto. Enviei flores para a me de um outro rapaz que tambm morreu ao volante, preso s ferragens, numa madrugada, a menos de trezentos metros de minha casa. Se eu estivesse acordado, daria para ouvir o barulho da coliso. Somos comuns no luto. Tantos outros mais que partiram. Apenas li nos jornais e agora sei que muitas famlias choram dor semelhante. Porm, somos nicos em nosso luto.114

Levaram minha vida num simples telefonema s seis horas de uma manh de domingo. Um domingo to comum como tantos outros. Um simples telefonema pode acabar com o que conhecamos at ento e no h como reaverISSO.

Chegamos a este mundo no singular, absolutamente ss. Mas somente quando decidimos casar e ter filhos que abandonamos nossa singularidade e desejamos nos dividir em outros seres. O telefone naquela manh de domingo me acordou para uma outra vida, e no sei viv-Ia. Como se vive um plural incompleto? Daqui pra frente, o que vou responder quando algum me perguntar quantos filhos eu tenho? -Quatro ... Eu tenho quatro filhos ... Sempre terei. Mas sei que essa resposta no trar minha filha de volta. Ainda no posso conceber o fato de ter recebido em minhas mos sua certido de bito. Que papel esse? Recebi-o junto com a sua certido de nascimento, ainda novinha. Ou quando minha carteira do plano de sade foi atualizada, com a retirada de seu nome da relao de dependentes. Apagaram seu registro. Foi um golpe que senti. uma anomalia do ciclo da vida, mas to comum ... Sou apenas ... mais um. Um marceneiro esteve em minha casa no sbado, vspera daquele dia, colocando um gaveteiro novo no armrio do quarto dela. Gavetas em madeira envernizada, com trilhos deslizantes. Bem bacana. _ Gostei, pai, super dez!" (imitando sotaque paulista). Amanh voc me ajuda a arrumar meu armrio, pois tenho roupas que no quero mais.

No seu amanh, tambm combinamos de estudar um pouco tarde. No seu amanh, teria uma pizza noite em casa. Nos reuniramos, ns seis, para contar nossas vidas, Vitoria voltando de So Paulo, cheia de novidades. No seu amanh, tinha planos para infinitos amanhs, como s a juventude sabe to bem sonhar. Porm, levaram minha vida num telefonema s seis horas de uma manh de domingo. Um domingo ensolarado de fim de inverno, dia de lazer. Comum como tantos outros. No sbado noite, Ana Clara me deu tchau e saiu para o teatro com a tia e os primos. Voltou menos de dez minutos depois. - Sou bem sua filha, pai. Sempre esqueo algo quando saio: o antibitico. Queria bem me dizer: "Sou sua filha, pai, e sempre serei:' Queria bem me ver pela ltima vez... Eu no sabia que seria. Ela tambm no sabia. No sabia? A morte, mesmo quando acidental, parece dar alguns sinais. Semanas antes, numa noite, tive um pesadelo em que me desesperava de joelhos e com as mos na cabea. Lembro do pavor em meu rosto. Acordei assustado, pois o sonho me pareceu muito real, apesar de difuso e sem pistas. Na vspera, quando a convidei para almoar comigo e com suas irms, para minha surpresa ela aceitou, em vez de querer, como sempre, ir praia. Nosso ltimo almoo. Ela me perguntou se, quando fizesse 18 anos, eu lhe emprestaria o carro para sair noite. Por que justamente aquela pergunta a menos de 15 horas de sua partida? Queria saber como seria, se fizesse 18 anos? Ou uma splica morte em sua espreita, para que lhe desse mais uns meses at alcanar a idade que a pudesse salvar?116

noite, ela me deu seu ltimo sorriso. Me olhou com bri-

lho nos olhos e saiu com pressa de viver. Estava cheirosa, bem vestida e de sandlias novas. Estava muito linda a minha filha. Muito feliz. Mas eu no sabia que estava me despedindo da vida da minha bela princesa. Era a ltima vez que a veria, pulsando de paixo. De madrugada, eu estava vendo a cena final de Romeu e Iulieta em Verona, a menos de quatro horas de seu encontro com a rvore. Mais um aviso? Pode ter sido. Mas no domingo, no final da tarde, no me devolveram suas roupas, nem suas sandlias. No me devolveram seu sorriso, seu brilho, nem seu cheiro. No me devolveram sua juventude. Apenas me entregaram seu corpo. No pulsava mais de paixo. Era um domingo to comum ... Final de inverno, prenncio de primavera. Igual a tantos outros.

11/

~

Sentimentos de perda ~

-

Vamos,

princesa,com Joo e papai caminhar at

aquelas pedras no final da praia? - Vo com papai, crianas. Mame vai ficar aqui na barraca tomando sol. - V as pedras, filha? pertinho ... Caminhvamos de mos dadas junto ao refluxo das ondas quando vimos tatus. Um monte deles. Ariscos, afloravam da areia umedecida quando a gua voltava para o mar. Larguei ento a mozinha de Ana Clara e nos abaixamos, eu e Joo, para catar alguns. Dez segundos, no mais do que isso, e ela sumiu. Ao me levantar, sua ausncia me desesperou. Senti o corao disparar. Olhava para todos os lados, e a procurei at no mar. Chamava seu nome, cego pelo medo. Nada via. Perdi minha filha de 4 anos. Perdi minha filha de 17 anos ...

Uma angstia terrvel se abateu sobre mim. Pobre Joo Gabriel, de 8 anos. Foi a primeira vez que viu o desespero de seus pais. Pobre Joo Gabriel, de 21 anos. Ficou desesperado ao ver e reconhecer o corpo da irm. Nessa hora, em meus pensamentos, mil destinos para minha filha que havia sumido. Um enorme sentimento de perda. Um vazio no peito. Achei que jamais voltaria a v-Ia. Tantos pais perdem filhos pequenos. A agonia de no saber onde. A culpa de no ter evitado. Eu seria s mais um. Quem j perdeu um filho sabe. Mas voltei a v-Ia! Nunca mais a verei... Trinta minutos depois (ou teriam se passado trinta anos?), Ana Clara foi localizada pelos guarda-vidas a uns trezentos metros em sentido oposto. Voltou para buscar seu baldinho para recolher os tatus. No achou a barraca e seguiu adiante. Como andou minha princesinha! No contive a emoo do reencontro. No houve um reencontro ... Sentadinha na areia, sem noo do que se passara, apenas observou minha angstia. - Por que voc est chorando, papai? Aqui tambm tem tatu. Olha quantos!. .. Se voc me ama (meu pai), no chore. Se voc conhecesse o mistrio insondvel do cu onde me encontro ... Se voc pudesse ver e sentir o que vejo e sinto nesses horizontes sem fim e nessa luz que tudo alcana e penetra, vocjamais choraria por mim ... Conservo ainda todo o meu afeto por voc e uma ternura que jamais lhe pude, em verdade, revelar. Ns nos amamos120

ternamente em vida, (e agora) vivo na serena expectativa de sua chegada, um dia, entre ns. Se voc verdadeiramente me ama (meu pai), no chore mais por mim. Eu estou em paz. Gabriela Bastos Loureiro, a Gabi, filha de uma prima-irm de Vitoria, teve sua vida interrompida aos 15 anos, numa manh de sbado de um dia de agosto. Atropelada por um carro na mesma pista no bairro da Lagoa. Gabriela e Ana Clara no foram contemporneas. Fui ao seu velrio, ao enterro, missa de stimo dia e acompanhei o drama de seus pais. Confesso no ter tido a menor condio de avaliar a dimenso da perda de uma filha. Mesmo j sendo pai do pequeno Joo. Quem nunca perdeu um filho no imagina a devastao que toma conta de ns. Descobri a morte aos 12 anos, quando tinha a mesma idade de minhas gmeas. Uma tia muito querida, irm de minha me. Gostava dela e de dormir em sua casa para brincar com meu primo. Me lembro que era carinhosa comigo, tinha trinta e poucos anos e deixou trs filhos pequenos. Meu pai preferiu me poupar dos funerais. Quando era namorado de Vitoria, conheci e convivi com seu pai por cinco meses. Tnhamos muito em comum. Seu jeito caseiro, seu prazer e sua facilidade com trabalhos manuais, principalmente marcenaria. Estvamos iniciando um bom relacionamento. Foi a primeira pessoa que vi morta num caixo, e a primeira vez que fui a um cemitrio. Tinha 28 anos e senti muito por Vitoria. Minha me faleceu aos 66 anos, jovem para os dias de hoje, e um ms antes dos meus quarenta. Foi professora de escola121

pblica do antigo primrio.

Escritora, durante anos publicou

das. A perda de um emprego pode gerar insegurana, instabilidade financeira, baixa auto-estima, mas pode ser tambm uma porta que se abre para novas experincias. Ao longo de nossa vida, muitas dores, com certeza, chegaro para cada um de ns. A seu tempo. Mas a morte inesperada e brutal de minha filha adolescente, to jovem e vivendo sob minha tutela, algo indescritvel. meus planos de vida. Cremar o corpo de minha filha, voltar para casa e ver sua vida interrompida em cada canto um enorme calvrio. Lembrar de nossas muitas conversas no sof, ver seu lugar na mesa de refeies, sua cama ainda desfeita e seu tnis fora do lugar. Descobrir, em sua mesa de estudos, cadernos e livros no meio de um dever de casa. Lembretes para a prxima prova. Sua gaveta com seu dirio de adolescente, cheio de anotaes feitas com canetas coloridas. Suas roupas no armrio com seu cheiro e seus objetos prediletos. Enfim, o que fazer com sua escova de dentes? ... No banheiro das crianas havia um porta-escovas tes, com quatro lugares individuais. trei no banheiro, peguei o porta-escovas de denUm para cada filho. Ene fui at as gmeas Subverteu completamente

quase trinta livros infantis. Ela me alfabetizou em casa aos seis anos. Vitoria aprendeu a ler e a escrever com seus livros didticos. E meus filhos leram todos os seus livros de histria. Joo "a ajudou" a escrever dois ou trs em suas tardes com a av. Dos cinco irmos, fui o filho mais ligado a ela e havia uma estreita identidade entre ns. Herdei de minha me o gosto comigo e paciente perda sentifortemente por uma que fui. Foi a primeira por escrever. Sempre foi muito carinhosa com a criana irrequieta

da pra valer. A tristeza e a saudade se apossaram de mim, mesmo tendo sido uma morte anunciada doena prolongada. Sinto muito

a sua falta e tenho pena

de ela no ter conhecido minhas filhas caulas. Foi poupada de estar presente na morte da neta, mas me ajudaria muito nesse momento. Mas nada, em absoluto, se iguala morte de minha filha. Ela me precedeu na seqncia lgica e esperada entre pais e filhos. Eu me desesperei ao limite da sanidade e um enorme fosso se abriu sob meus ps, me levando a uma queda vertiginosa e sombria. Perdi meu rumo, perdi meu prumo, perdi meu brilho. Morreu parte de mim. No h como se medir a intensidade da dor e do sofrimento de uma pessoa. um sentimento pessoal e intransfervel. a solido do luto. Mas no creio que exista dor maior que a sentida pela morte de um filho. Nenhum pai deveria passar por isso. A perda dos pais mais velhos ou dos avs a ordem natural da vida, sabemos disso e de certa forma estamos preparados. Um casamento desfeito deve ser algo doloroso e certamente de se encontraz frustraes e mgoas. Mas h a possibilidade122

para saber qual era a escova de dentes da Ana Clara. Imediatamente Manuela me perguntou apreensiva, por qu. Diante de sua carinha Ento, delicadaO silndas mos e com os olhino soube o que lhe responder. o recolocou

mente, ela me tomou o porta-escovas nhos marejados

de volta no banheiro.

cio se fez entre ns e senti que ela ainda tinha a esperana de que sua irm voltasse. De algum lugar. Apenas a abracei e respeitei sua vontade. Cada um tem seu tempo. A morte faz parte da vida e todos ns sabemos que, um dia, chegar nossa vez. Mas nenhum pai est preparado ou consiI' \

trar um novo amor, refazer uma vida a dois, cicatrizar as feri-

dera a possibilidade concreta de perder um filho. Essa perda nos remete tambm a uma busca, na verdade infrutfera, da aceitao daquilo que para ns, pais, inaceitvel. A morte de Ana Clara me fez reavaliar meus conceitos sobre a vida, questionar e valorizar o que de fato importa e acrescenta algo nossa existncia. Meu presente e meu futuro me reservam uma amargura por sua ausncia e sei que no voltarei a ser o que era em meu passado. Sua partida um divisor de guas em minha vida. Mas talvez a dor e o sofrimento extremo por uma perda sem igual nos faam crescer e evoluir. - Princesa, vou largar sua mozinha para catar tatu. Mas fique aqui, pertinho do papai e do Joo. No se afaste de ns. No queria t-Ia perdido. - Filha, se for preciso, perca seu namorado, mas no sua vida. Tome conta de voc. Por que a perdi? ...

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Carta Ana Clara ~

Rio de Janeiro, 26/05/2007

QUerida

Ana Clara,

Parabns, filha, hoje o dia do seu aniversrio. Dezoito anos, princesa, que felicidade! Receba essas flores escolhidas com muito carinho, especialmente para esse seu dia. Ontem, estava relendo aquela carta que voc colocou de surpresa na minha mochila, a caminho do trabalho, e transcrevo um trecho muito legal que voc escreveu: "Cara, 18, 19, 20 anos devem ser as melhores idades de nossa vida, idade de curtir muito, curtir afaculdade, os amigos, namorados, viajar muito, amadurecer, ganhar experincia de vida, trabalhar e levar essafase da vida como uma das melhores." Bom saber que voc pensa assim. Fico muito feliz. Sempre gostei do seu otimismo, de sua esperana, dos seus sonhos e dos seus planos. Compartilho de todos eles, sempre os incen124

tivarei e a ajudarei a realiz-los. Voc sabe que sou seu maior f. Conte comigo. Nossa casa est preparada, filha. Traga sua galera para comemorar. Eu, sua me e seus irmos queremos muita alegria hoje na repblica. Muitas beijocas com amor, Papai.Muitos meses se passaram desde que voc nos deixou. Sinto imensamente no poder abra-Ia, entregar-lhe essas flores e esse carto de aniversrio. Essa data era muito esperada por mim. Aos 18 anos, voc estaria iniciando Conforme planejamos, rista, exatamente as aulas de direo. voc passaria para o banco do motoresponsveis,

J meu sonho com voc foi diferente. Era uma manh de domingo e estvamos todos ns seis no meu quarto. Sua me em seus afazeres, e vocs quatro, refestelados na cama de casal, como sempre gostaram de fazer. No via o rosto de seus irmos, estavam de lado numa ocupao qualquer. Voc estava sentada no centro da cama e me olhava com uma carinha como a me dizer em sua linguagem adolescente: - Foi mal, pai, foi mal... No lhe disse nada, apenas a abracei o quanto pude. No se desculpe, filha, no estou "bravo" com voc. Naquela noite dormi tranqilo, pensando em paz quanto a isso. Outro dia estava revendo aquele DVD do seu vo de asadelta. o seu filme mais recente. Os outros so de voc pequenina e um pouco maior, j na pr-adolescncia. Mas sua carinha em todos a mesma. Sempre auto confiante nas suas aes, com seu jeito calmo. Aquele vo foi seu presente de 16 anos, lembra? Naquele sbado, amanheceu um dia lindo sem uma nuvem no cu de um belssimo azul. O tempo se abriu e a Pedra da Gvea a convidava a realizar seu desejo. Eu me espantei quando fui acordIa. Sempre lenta e preguiosa, nesse dia voc no titubeou nem um minuto e foi logo se arrumar. Decidida. L no alto do morro, j equipada para o vo e aguardando sua vez na rampa de decolagem, sua fisionomia era um pouco apreensiva. Mas tranqila. sempre, de braos abertos Meia dzia de passos com o buscando127

que voc estava na casa de

uma amiga, mas sua paixo adolescente falou mais alto. Fique

como fiz com seu irmo. Vocs no gostam na direo e...

de beber, sempre usaram cinto, so tranqilos, sempre conversamos tanto sobre prudncia No importa mais, agora tarde ...

H algumas noites, sonhei com voc. O que me acontece pouco. Acho que porque, como estou sempre escrevendo este livro, nos fazemos companhia. ao entardecer, abrindo Sua me me conta que sonha muito com voc. No ltimo sonho, ela estava num ptio a porta do carro, num local familiar. e aguou a vista tentando Avistou uma moa se aproximando

distinguir qual das suas irms estava vindo. Voc percebeu e lhe disse: Sou eu, me. forte e longamente. Sua me disse Segundo os Apenas se abraaram espritas, voc a procurou, um sonho muito real.26

que voc estava muito bonita, feliz e sorridente.

experiente piloto e l se foi voc, nas asas da liberdade. Como para a vida, corajosa, Quando seus caminhos e suas descobertas. vi que, aprovei-

e sua me de fato sentiu que esse foi

tando uma corrente de vento, voc subiu ao cu, guiada pelo piloto, me senti "dando linha pipa". Como sempre conversvamos, quando voc me pedia mais autonomia passos. Fiquei muito orgulhoso de seu vo e emocionado para seus com sua

Voc como um vento leve, uma brisa que aquece. Posso senti-Ia me envolvendo, mas no posso v-Ia nem toc-Ia. E como eu gostaria, filha. Tenho receio do que ser de mim depois que eu concluir este livro. Sim, princesa, eu sei que tenho seus irmos. Eles so maravilhosos e queridos e eu os amo da mesma forma e intensidade com que sempre amei voc. Eles me ajudam a vencer o dia, me trazem felicidade e sei que me daro ainda muitas alegrias. Mas um filho no substitui o outro. Eu queria voc tambm aqui comigo. Mas eu preciso deix -Ia ir. A morte no tem volta. No posso negar aos seus irmos um pai dedicado por completo, como sempre fui com todos vocs. Eu estou imensamente partindo triste. Voc me foi tirada em vida, antes de mim, e nada poder me consolar. No h

alegria em todo o trajeto. Foi um belo pouso na areia da praia, seguido de um "ufa!" de sua me ... Ainda naquele dia, voc j me pedia um salto de para-quedas Clara, eu precisava respirar ... aos 18 anos. Caramba, Ana

Lembra como voc estava me "cantando" para deixar voc fazer uma tatuagem? Sua me no queria, mas voc dizia que seria uma bem delicada, na nuca, do jeito que voc gostava, e j estava conseguindo homenagem, Copiei a assinatura orgulhosa. convenc-Ia. Pois bem, fiz uma em sua de um caderno seu. Sei que voc ficaria no meu antebrao esquerdo. Do lado do corao.

como superar a perda de um filho. Apenas tenho que aprender a viver dessa forma. Mas eu sou feliz. E voc sabe disso. Feliz porque a tive, mesmo que somente por to poucos 17

AnA CLArAm'h~cl etetf\4

anos. Feliz porque aproveitei muito sua companhia

em sua to

Princ.t$c

curta passagem pela minha vida. Feliz porque voc sempre fez com que eu me sentisse um pai querido e muito amado. Feliz porque tenho seus trs irmos e sua me. Feliz porque a tive ... Porm, o que eu mais queria nessa vida era no ter tido motivo para escrever este livro. Euo escrevi para voc, em sua homenagem. Procurei enaltecer sua vida e seu amor por ela. Um tributo do meu imenso amor por voc. Filha, eu no tenho uma convico religiosa que me d a certeza de que voltaremos a nos reencontrar um dia. Seu irmo a tem, e eu o admiro por isso. Gostaria muito de ter essa f. Talvez me ajudasse a viver com a sua ausncia e a frustra de no poder ver e participar das realizaes dos seus sonhos'111)

Filha, eu ainda teria tanto para lhe escrever e lhe dizer, apesar do muito que sempre conversamos ... Nunca nos faltou assunto e tenho certeza de que voc se foi sabendo tudo o que sinto. O quanto eu sinto. Agora estou chegando ao final deste livro que me ajudou muito na minha dor e a no sucumbir por completo. Como tenho estado muito tomado por escrev-lo, desde sua partida, sempre senti sua presena constante junto de mim. Suas lembranas inspiradoras.128

to recentes e sua ajuda me foram

planos de vida. Mas onde quer que voc se encontre, seja como esprito, luz, energia, sempre penso muito em voc. E rezo para que descanse em paz. Saudades, minha princesa, muitas saudades. Beijos com amor, Papai.

~

Reconstruindo ~

130

Durante mesesprocurei uma explicaopara a morte de minha filha. Deus quis assim, foi sua vontade, no questione seus desgnios. Ele escreve certo por linhas tortas, me disseram os catlicos. Ana Clara era um esprito evoludo e veio com a misso de iluminar a vida das pessoas que conviveram com ela e tinha poucos anos para ficar aqui. Agora est num plano mais elevado, me explicaram os espritas. Voc deve se conformar porque todo aquele que nasce tem o direito de morrer, seja jovem ou velho, nscio ou sbio, afirmavam os budistas. Ela estava no lugar errado, na hora errada, na companhia errada, sentenciavam os realistas. Para os cartesianos, foi uma questo de probabilidade e estatstica, e para outros, simplesmente azar. Mas qualquer que seja a explicao, que na verdade no h, pois tudo se resume a uma grande fatalidade, nada muda. No me sinto em condies de enveredar por nenhuma explicao

religiosa. Me conformar com uma vontade divina, seja ela qual for. Me pergunto o porqu de uma perda to sem sentido, no importa por qual tica a veja. Quem tem f consegue at se conformar e aceitar. No desdenho aqueles que pensam assim, deve ser inclusive mais fcil. Porm; traumatizado e inconformado, resisto em aceitar qualquer justificativa para a morte de minha filha. Mas essa a nossa dura realidade. Minha famlia e eu precisamos nos reconstruir. Cada um de ns cinco, em seu ntimo, est tentando refazer sua vida. Todos sabem que a morte de Ana Clara um marco. para sempre. Cada qual ao seu modo, na solido de sua dor e de seu sofrimento, procura aceitar o presente e o futuro sem ela. uma tarefa absolutamente ingrata, mas no temos outra alternativa. Em nossa famlia, sentimos mais facilidade de externar nossos sentimentos por escrito. Temos uma "linha sucessria", que transmite o amor pela palavra e a conscincia de que as palavras podem nos trazer alento na dor. Portanto, com carinho, reservo aqui um espao para os sentimentos de minha filha Manuela, que gosta de escrever como a av, que no conheceu, e como o pai, que acompanhou por todos esses meses.Meu nome Manuela Padilla, tenho 12 anos e eu sou a irm mais nova de Ana Clara. Depois do acidente dela eu fiquei muito triste como todos, mas para mim foi um pouco diferente porque foi a primeira perda de uma pessoa prxima da famlia desde que nasci. Para mim foi inesperado porque eu achava que minha vida era uma maravilha e eu nunca tinha pensado na possibilidade de perder algum to querido e to cedo.132

Eu sempre fiquei pensando como seria a relao entre meus irmos, quando fssemos maiores e morssemos todos sozinhos. Como seria a vida da Ana Clara, mais chamada por mim e pela minha irm gmea Letcia, por Cacaia. Achei que ela teria que ser muito rica, pois ela teria que ter um cozinheiro sete dias por semana, porque ela no sabia cozinhar nada, somente pipoca de microondas. Uma vez, estvamos almoando e a Maria, nossa empregada, havia feito batata frita e a Cacaia tinha visto ela fazendo as batatas e achou que as batatas fritas eram fritadas com gua! E no com leo. Na primeira semana depois do que ocorreu, eu fiquei muito triste, mas o pior era ver meus pais chorando. Principalmente o meu pai, pois ele chorava quase trs vezes ao dia. A minha me no chorava tanto, pois ela tem outro tipo de temperamento.

O temperamento

dela mais cal-

mo, pois ao invs de chorar, ela pensava nela vendo fotos e objetos dela e a tentava se distrair com outras coisas. O meu pai j diferente, ele quando v fotos ou objetos dela, ele no consegue e chora sempre. Um dia desses eu ainda vou me perguntar: - "Ser que um dia eles vo conseguir parar de chorar e voltar vida normal como antes?" Mas acho que j tenho essa resposta pois acho que um dia eles vo parar de chorar continuadamente, mas sempre estaro de choro. pensando nela e sempre tero algum momento

Mas, pela questo de voltar vida normal, isso ser impossvel, pois para voltar a ser como era antes, precisvamos ter ela aqui conosco e isso infelizmente quea amam.1.1.1

impossvel. Mas

de uma coisa eu sei, ela estar sempre no corao de todos

No dia 1 de dezembro foi aniversrio da minha me e0

sei como deve ter sido difcil para ela comemorar essa data sem um de seus filhos presente, como vai ser difcil comemorar todas as outras datas comemorativas do ano, como Natal, Ano-Novo e entre outras coisas como as frias e aniversrios. Sei que ser bem difcil, mas, como temos que passar por isso, pois no h como fugir, teremos que fazer da melhor maneira. Manuela Rocha Padilla

Viver navegar e desfrutar desse presente que a vida. Navegar seguir em frente, em busca de um futuro que nos realize e nos faa felizes. Por tudo isso, logo teremos de iar as velas de nosso barco e retomar nosso caminho. Sempre em frente, pois a vida continua. Embarcaremos agora, cinco de ns, C0111 saudades eternas. Mas sempre estaremos na companhia d quem nos deixou e que agora mora em nossos coraes e est viva em nossas lembranas. Vitoria e eu torcemos muito para que o futuro nos reserv novos passageiros. Nora, genros, netos, sonhamos at com bisnetos. Vida que se renova. Em memria de Ana Clara, temos de celebrar a vida. Lembrar com muitas saudades o tempo qu compartilhamos e ter como lio sua alegria de viver intensamente. Como escreveu a jovem e promissora escritora Manuela: "Sei que ser bem difcil, mas, como temos que passar por isso, pois no h como fugir, teremos que fazer da melhor maneira."

Minha filha tem razo, sempre fui assim, muito emotivo. Dizem que homens no choram. Mas isso nunca me disseram. Tambm no adiantaria me dizer essa tolice. No me envergonho nem escondo minhas lgrimas. No metr, no trabalho, na fila do supermercado, andando na rua, no importa onde, nem na frente de quem. No ligo. No me seguro. No disfaro. No me escondo. Agora ento, desde que perdi minha filha, meu sofrimento com a saudade e as lembranas dela s a mim pertence. nosso momento. Mas estam os nos reconstruindo. Vamos conseguir. No h outra alternativa para aquilo que no podemos mudar. Nossa famlia como se fosse um barco. Um barco que foi violentamente atingido e que levou tragicamente um de ns seis. Mas, apesar de irreversivelmente abalroado, nosso barco forte. Agora, com a ajuda de todos os que nos amam, estamos nos reestruturando e tratando das nossas feridas. Peridas que no entanto no podemos apagar, profundas e muito dolorosas.34

~

Uma grande Vitoria ~

Numa

de minhas muitas viagensa trabalho,eu estava

numa cidade litornea e, na volta para o hotel, entrei numa loja de objetos nuticos. Entre vrias peas, uma me chamou a ateno. Era uma gravura de um veleiro que parecia pequeno e frgil. Mas a visvel segurana e a determinao toda a sua fora. Havia tambm um farol, daqueles que se avista ao longe, da costa, e que no deixa os viajantes se sentirem sozinhos. Sua luz os alcana, mesmo quando distantes de casa. Mas do que mais gostei foi um cais em madeira de lei env rnizada. Parecia tranqilo, feliz e num porto seguro. Assim eu vejo minha mulher. espera do retorno dos viajantes. E quando voc volta para casa, aporta e joga suas amarras, s s n I em atravessar o mar aberto, carregando seus muitos passageiros, mostravam

Maria Vitoria Bastos da Rocha teve trs mes e dois pais. No foi um beb planejado, mas sua chegada foi uma grande alegria para toda a famlia e, futuramente, para mim tambm. O nome escolhido por seus pais diz tudo. Filha caula e tempor, suas irms e seu irmo tm de 15 a 19 anos de diferena em relao a ela. Poderia se acomodar e adiar por mais tempo a vida que levava, pois era paparicada por todos; Mas aos 18 anos comeou a trabalhar na profisso que mais a apaixonava: era professora de crianas. Eu a conheci com essa idade, quando eu tinha 27 anos. Passei a admir-Ia e logo me apaixonei por ela, por tamanha atitude e determinao. Um rosto adolescente, com a boca carnuda mais bonita que j vi. Haja batom ... Casamos dois anos aps nos conhecermos. Toia, como eu a chamo e como conhecida em famlia e pelos amigos, sempre me deu toda a ateno, mesmo com a vida atribulada de afazeres domsticos, trabalho e muitos filhos. Gosto do seu jeito "anti-Amlia', que no guarda minhas roupas, nunca fez minha mala quando eu viajava e no me serve mesa. Mas, na essncia, me tem amor, olha para mim, me faz feliz. Tem um jeito jovial, extrovertida, pequena e magra, e espantava a todos quando descobriam que ela era me de quatro filhos aos 31 anos de idade. Me linda. Soube aproveitar bem a profisso que lhe permitiu se dedicar aos filhos e t-los juntos tambm na escola. Acompanhou o crescimento de todos. Me presente e dedicada, sempre fez questo de fazer os enfeites, os convites e arrumar a mesa das festas dos aniversrios. S quem faz sabe o trabalho que d. Quando Ana Clara fez cinco anos, ela se desdobrou para arru-

mar a festa que a filha tanto queria. As gmeas tinham nascido duas semanas antes. Me guerreira. Enfrentou com enorme coragem e determinao, como descrevi em diversas passagens neste livro, o maior revs de toda a sua vida. A tragdia a dobrou. Mas manteve a fibra, mesmo destruda por dentro. Me forte. Hoje, Toia continua com o mesmo jeito jovial e nem parece que tem um filho com mais de um metro e oitenta de altura. J homem feito. Carrega as marcas da mais dura e amarga experincia que uma me pode ter. Vou me abster d~ el~gi-la ou enaltec-la mais. Sou suspeito. Deixo que a admirao das centenas de crianas que foram seus alunos e o reconhecimento dos pais e o carinho que lhe tm os inmeros jovens da repblica, as colegas de trabalho, os familiares e os amigos falem porSI. .-

Ana Clara, em sua carta para mim, definiu bem sua mae,(...) tenho certeza que ela sabe que eu amo muito ela, que eu tenho mesmo muita sorte porque minha me uma mulher e tanto. linda, guerreira, forte, engraada e eu a admiro muito! (...) desde pequena me espelhava nela e queria ser igual.

certamente com a mesma viso de seus irmos:

Com todo o meu carinho e admirao, essa minha homenagem minha mulher Toia. Minha maior Vitoria.

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