relato de um certo oriente - milton hatoum

90
8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 1/90  Este livro foi digitalizado e corrigido, em 13 de setembro de 2005, por Raimundo do Vale Lucas, com a intenço de dar aos cegos a oportunidade de apreciarem mais uma manifestaço do pensamento !umano"" #REL$%& 'E () *ER%& &R+E%E )+L%& -$%&() REL$%& 'E () *ER%& &R+E%E  reimpresso *ompan!ia 'as Letras #'ados de *atalogaço na .ublicaço /*+. li ntarnaclona 1 /*mara raill silei ra do Livro, ., ra sil -atoum, )ilton" o .aulo 4 *ompan !ia das Letras, 16" + 657819:7037: 67026 *''769 35 ;ndices para cat<logo sistem<tico4 *op=rig!t >)ilton -atoum *apa4 Ettore ottini ?oto da capa4 -ilton Ribeiro Reviso de originais4 @osA $ntBnio $rantes Reviso de provas4 %elma 'omingues da ilva 'enise antos 11 Editora c!Carcz Ltda" Rua %upi, 522 01233 D o .aulo D . %elefone4 /011 62971622 ?a4 /011 62975523 F memGria de ada e ?adei, aos meus pais e a Rita #" !all memor= restore %!e steps and t!e s!ore, %!e face and t!e meeting placeH I" -" $uden #Juando abri os ol!os, vi o vulto de uma mul!er e o de uma criança" $s duas figuras estavam inertes diante de mim, e a claridade indecisa da man! nublada devolvia os dois corpos ao sono e ao cansaço de uma noite mal dormida" em perceber, tin!a me afastado do lugar escol!ido para dormir e ingressado numa espAcie de gruta vegetal, entre o globo de luz e o caramanc!o Kue d< acesso aos fundos da casa" 'eitada na grama, com o corpo encol!ido por causa do sereno, sentia na pele a roupa mida

Upload: marianaolsson

Post on 03-Jun-2018

317 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

Page 1: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 1/90

  Este livro foi digitalizado e corrigido, em 13 de setembro de 2005, porRaimundo do Vale Lucas, com aintenço de dar aos cegos a oportunidade de apreciarem mais umamanifestaço do pensamento !umano""

#REL$%& 'E () *ER%& &R+E%E

)+L%& -$%&()REL$%& 'E () *ER%& &R+E%E reimpresso*ompan!ia 'as Letras#'adosde *atalogaçona.ublicaço /*+. lintarnaclona1/*mara raillsileira do Livro, ., rasil-atoum, )ilton"o.aulo 4 *ompan!iadas Letras, 16"+ 657819:7037:67026*''76935;ndices para cat<logo sistem<tico4*op=rig!t >)ilton -atoum*apa4 Ettore ottini?oto da capa4 -ilton RibeiroReviso de originais4 @osA $ntBnio $rantesReviso de provas4%elma 'omingues da ilva'enise antos11Editora c!Carcz Ltda"Rua %upi, 52201233 D o .aulo D .%elefone4 /011 62971622?a4 /011 62975523F memGria de ada e ?adei,aos meus paise a Rita#"!all memor= restore%!e steps and t!e s!ore,%!e face and t!e meeting placeHI" -" $uden

#Juando abri os ol!os, vi o vulto de uma mul!er e o de uma criança" $s duasfiguras estavam inertes diante de mim, e a claridade indecisa da man! nubladadevolviaos dois corpos ao sono e ao cansaço de uma noite mal dormida" em perceber,tin!a me afastado do lugar escol!ido para dormir e ingressado numa espAcie degruta vegetal,entre o globo de luz e o caramanc!o Kue d< acesso aos fundos da casa" 'eitada

na grama, com o corpo encol!ido por causa do sereno, sentia na pele a roupamida

Page 2: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 2/90

e tin!a as mos repousadas nas p<ginas tambAm midas de um caderno aberto, onderabiscara, meio sonolenta, algumas impressMes do vBo noturno" Lembro Kueadormeceraobservando o perfil da casa fec!ada e Kuase deserta, tentando visualizar os doisleMes de pedra entre as mangueiras perfiladas no outro lado da rua"$ mul!er se aproimou de mim e, sem dizer uma palavra, afastou com o pA uma

boneca de pano Kue estava entre o alforNe e o meu rostoH depois continuouimGvel, como ol!ar perdido na escurido da gruta, enKuanto a criança apan!ava o corpo depano e, correndo em ziguezague, alcançava o interior da casa" Eu procuravarecon!ecero rosto daKuela mul!er" %alvez em algum lugar da infncia tivesse convivido comela, mas no encontrei nen!um traço familiar, nen!um sinal Kue acenasse aopassado"'isse7l!e Kuem eu era, Kuando tin!a c!egado, e perguntei o nome dela"#D ou fil!a de $nast<cia e uma das afil!adas de Emilie D respondeu"*om um gesto, pediu para eu entrar" @< !avia arrumado um Kuarto para mim epreparado o cafA da man!" $ atmosfera da casa estava impregnada de um aromaforte Kuelogo me fez recon!ecer a cor, a consistOncia, a forma e o sabor das frutas Kuearranc<vamos das <rvores Kue circundavam o p<tio da outra casa" $ntes de entrarnacopa, decidi dar uma ol!ada nos aposentos do andar tArreo" 'uas salas cont;guasse isolavam do resto da casa" $lAm de sombrias, estavam entul!adas de mGveis epoltronas,decoradas com tapetes de Pas!er e de +sfa!an, elefantes indianos Kue emitiam obril!o da porcelana polida, e bas orientais com relevos de drago nas cincofaces"$ nica parede onde no !avia reproduçMes de ideogramas c!ineses e pagodesaKuarelados estava coberta por um espel!o Kue reproduzia todos os obNetos,criando umaperspectiva caGtica de volumes espanados e lustrados todos os dias, como seaKuele ambiente descon!ecesse a permanOncia ou atA mesmo a passagem de alguAm" $fac!adade NanelMes de vidro estava vedada por cortinas de veludo vermel!oH apenas umfeie de luz brotava de um peKueno retngulo de vidro mal vedado, Kue permitia aincidOnciada claridade" aKuele canto da parede, um pedaço de papel me c!amou a atenço".arecia o rabisco de uma criança fiado na parede, a pouco mais de um metro doc!oHde longe, o Kuadrado colorido perdia7se entre vasos de cristal da o!emia econsolos recapeados de Bni" $o observ<7lo de perto, notei Kue as duas manc!asde coreseram formadas por mil estrias, como minsculos afluentes de duas faias de <guade distintos matizesH uma figura franzina, composta de poucos traços, remavanumacanoa Kue bem podia estar dentro ou fora dQ<gua" +ncerto tambAm parecia o seurumo, porKue nada no desen!o dava sentido ao movimento da canoa" E o continenteouo !orizonte pareciam estar fora do Kuadrado do papel"10?iKuei intrigada com esse desen!o Kue tanto destoava da decoraço suntuosa Kue ocercavaH ao contempl<7lo, algo lateNou na min!a memGria, algo Kue te remete aumaviagem, a um salto Kue atravessa anos, dAcadas" .erguntei F empregada Kuem odesen!araH ela no soube dizer e atA ignorava a eistOncia do Kuadrado de papelna salaonde todas as man!s ela entrava para fazer a limpeza" .assei ento a indagar7

l!e sobre a vida da cidade, se a criança era sua fil!a ou enteada, mas aobombardeio

Page 3: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 3/90

de perguntas ela soltava um grun!ido e confinava7se novamente no seu mutismoancestral" Juis saber Kuando nossa me tin!a viaNado, mas no toKuei no assunto"$penasdisse Kue ia sair para visitar Emilie" .ela primeira vez a mul!er me encarou comum ol!ar sereno e demoradoH e enfim pronunciou as frases mais longas da brevetemporada

Kue passei na cidade" D Leva um pouco de mel do interior para ela, A o Kue mais gosta D disse enKuantodava corda no relGgio de parede"

 D Emilie N< est< acordada D perguntei" D 'izem Kue tua avG !< muito tempo no dormeH ela son!a dia e noite contigo, comteu irmo e com os peies Kue vai comprar de man!zin!a no mercadoH a essa !oraN< deve estar de volta para conversar com os animais"$ conversa com os animais, os son!os de Emilie, o passeio ao mercado na !ora Kueo sol revela tantos matizes do verde e ilumina a lmina escura do rio" a faladamul!er Kue permanecera diante de mim, !avia uma parte da vida passada, uminferno de lembranças, um mundo paralisado F espera de movimento" imv, comcerteza EmilieN< l!e !avia contado algo a nosso respeito" $ mul!er sabia Kue Aramos irmos eKue Emilie nos !avia adotado" %alvez N< soubesse da eistOncia dos Kuatro fil!osdeEmilie4 -aSim e amara 'elia, Kue passaram a ser nossos tios, e os outros dois,inomin<veis, fil!os ferozes de Emilie, Kue tin!am o demBnio tatuado no corpo eumal;ngua de fogo"11#

@< eram Kuase sete !oras Kuando resolvi sair de casa" Retirei do alforNe ocaderno, o gravador e as cartas Kue me enviaste da Espan!a e coloKuei tudo sobreuma mesin!ade Bni, ao lado do desen!o afiado na sala" .or distraço ou !<bito, deiei nopulso o relGgio" unca imaginei Kue naKuele dia iria consult<7lo mil vezes,muitasinutilmente, outras para Kue o tempo voasse ou desse um salto inesperado" L<fora, a claridade ainda era tOnue, e, ao ol!ar para a vegetaço est<tica doNardim,a mul!er opinou4 TG mais tarde A Kue vai c!overT"?oi nesse instante Kue a coisa aconteceu com uma preciso incr;velH mal possoafirmar se !ouve um intervalo de um <timo entre as pancadas do relGgio da copa eotrinado do telefone" &s dois sons surgiram ao mesmo tempo, e pareciam pertencerF mesma fonte sonora" $ coincidOncia de sons durou alguns segundosH no momentoemKue o telefone emudeceu, a criança arremessou a cabeça da boneca de encontro Fs!astes do relGgio, provocando uma seKUOncia de acordes graves e desordenados,comoos sons de um piano desafinado" $s duas !astes ainda se c!ocavam Kuando ouvi altima pancada do sino da igreNa" G ento corri para atender o telefone, masnadaescutei, seno ru;dos e interferOncias"$ntes de sair para reencontrar Emilie, imaginei como estarias em arcelona,entre a agrada ?am;lia e o )editerrneo, talvez sentado em algum banco da praçado 'iamante,Kuem sabe se tambAm pensando em mim, na min!a passagem pelo espaço da nossainfncia4 cidade imagin<ria, fundada numa man! de 15:"""12%u ainda engatin!avas naKuele natal de 5: e ora=a ngela era a min!a

compan!eira" Juase sempre c!oramingavas Kuando ela aparecia, Kuerendo brincarcontigo e te

Page 4: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 4/90

acariciarH A verdade Kue o ol!ar dela, de espanto, e os gestos bruscos eram demeter medo a KualKuer um" Lembro Kue era reNeitada pelas crianças da vizin!ançaeela mesma percebia isso porKue resignava7se a brincar com os bic!os e faziadiabruras com eles, montando nas ovel!as e torcendo7l!es as orel!as ou enodandoo rabo

dos macacos" Ela malinava com uma fria Kue realmente amedrontava, mas depoisria e aKuietava e nos ol!ava com aKueles ol!os grados e escuros, como se algumprod;giofosse acontecer apGs aKuele ol!ar4 o som de uma palavra, mesmo mal articulada,ou de uma s;laba soprada pela impaciOncia ou revolta" unca aconteceu um dessesprod;giosou peKuenos milagres, mas na vAspera daKuele natal, $nast<cia ocorro entroucorrendo na copa, gritando Ta menina N< A letradaQQ e Kuase todos acorreram aoKuintal4os trOs fil!os de Emilie, os vizin!os e as amigas dela, o irmo Em;lio, e Ffrente de todos amara 'elia, Kue freKUentava as novenas e lia os Nornais decabo a rabocom a esperança de encontrar uma descoberta da medicina Kue devolvesse F fil!aos dois sentidos Kue l!e faltavam" Emilie c!egou depois, e todos se afastaramparaKue ela visse ora=a ngela sentada entre os taN<s brancos e com um giz verme713#l!o F mo esKuerda rabiscando no casco da tartaruga <lua a ltima letra de umnome to familiar"

 D ?oi o mel!or presente de natal D eclamou Emilie, apGs soletrar seu prGprionome, com os ol!os fios na carapaça do KuelBnio" amara 'elia ficou radiantenaKuelemomento porKue os irmos pela primeira vez recon!eceram em ora=a um ser !umano,no um monstro")uitos anos depois da morte da fil!a, numa conversa Kue tivemos antes de eudeiar )anaus, tia amara me disse Kue se arrependeu de ter sido feliz naKueleinstante"

 D $inda era ingOnua D desabafou ela" D .ensava Kue meus irmos !aviam meperdoado por ter tido uma fil!a, mas tudo no passou de uma encenaço paraconKuistar asimpatia de min!a meH Emilie pensou Kue eles tivessem Kuebrado o gelo comigo,mas sG me cumprimentavam na frente delaH baNulavam a coitada e fingiam respeitarmeupai porKue precisavam da c!ave da casa e de uns trocados para farrearH disseisso a min!a me e sabes o Kue me respondeu %ua fil!a nasceu surda e muda e tuest<sficando insens;velH teus irmos te adoram, Fs vezes so incompreens;veis contigoporKue ainda so meninos4 a adolescOncia A a idade da rebeldia"

 D im, eram adolescentes e c;nicos D continuou tia amara" D o dia em Kue min!afil!a faleceu tiveram a aud<cia de encomendar flores de organdi su;ço F )adameVerdade"$c!o Kue pressentiam a morte de orain!a porKue logo depois do acidente acabecin!a esfacelada estava coberta de flores de tecido" unca me senti to!umil!ada".assaram seis anos sem falar comigo, sem fazer um mimo na menina, e de repenteenfeitam sua cabeça sem vida com flores Kue valem uma fortunaWo sei se tu te lembras de ora=a $ngela, do seu sofrimento e da sua morteatroz" Ela engatin!ava para brincar contigo, e vocOs catavam os sapotis crivadosde dentadasde1:morcegos" Juantas vezes tu te acordaste assustado com os cac!os negrospendurados no teto do Kuarto, e no dia seguinte eu te mostrava o rombo na tela

dos NanelMes,

Page 5: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 5/90

por onde transitavam os morcegos atA Kue a claridade os levasse F caverna escurada copa do Nambeiro para sorver o soro dasfrutas"Estavas ausente naKuela man!" Emilie te levara ao mercado, os tios dormiam eamara 'elia madrugava na .arisiense com vovB" %udo aconteceu de uma formar<pida e

inesperada, como se o golpe fulminante da fatalidade perseguisse o corpo deora=a $ngela" Est<vamos sentadas no Nardim da frente, sozin!as, F cata dasfrutas mordiscadaspelos morcegos" a verdade era eu Kue Nuntava as frutas, col!ia as papoulas e asflores do Nambeiro, e Nogava tudo dentro de uma cestaH Fs vezes, ora=a meaNudavae era curiosa a sua maneira de col!er os Nambos e as papoulas umedecidos pelosereno" .ermanecia um tempo a mirar a polpa desse coraço de veludo Kue A oNamboHas papoulas, as orKu;deas e as flores ela c!eirava demoradamente e mais tardeintu; Kue o odor e o ol!ar compensavam de certa forma a ausOncia dos doissentidos"&utras vezes, como naKuela man!, ela brincava com a boneca de panoconfeccionada por Emilie" Lembro7me perfeitamente do rosto da bonecaH tin!a osol!os negros esalientes, umas boc!ec!as de anNo, e se prestasses atenço aos detal!es, veriasKue apenas as orel!as e a boca estavam sem relevo, pespontadas por uma lin!avermel!a4artiman!a das mos de Emilie" ora=a nunca largava a bonecaH enfeitava7l!e acabeça com as papoulas Kue col!ia, oferecia7l!e pedaços de frutas, dirigia7l!eos mesmosgestos com a mo, com o rosto, passava7l!e <gua de colBnia no corpo, acariciava7l!e os cabelos de pal!a ou arrancava7os num momento de fria, montava com ela nodorso das ovel!as e deitavam Nuntas, abraçadas" ?oram dias de ealtaço, dedescobertas" ora=a, Kue parecia uma sonmbula assustada, começou a abstrairHdesen!avaformas estran!as, geral715#mente sinuosas, na superf;cie de pano Kue cobria a mesa da salaH reproduziaformas idOnticas nas paredes, nos mosaicos rugosos Kue circundavam a fonte, e nacarapaçade <lua onde o nome de Emilie ainda no se apagara" %ia amara, numa das poucasalusMes F fil!a, contou Kue numa noite flagrou7a diante do espel!o veneziano doKuarto, a pintar os l<bios e os pBmulos da bonecaH uma ol!ava para a outra, e oespel!o contribu;a para abstra;7las do mundo"

 D Juando a vi assim, to compenetrada, dei meia volta, andando na ponta dos pAs,para no distra;7la" ?oi a primeira e nica vez, depois de cinco anos, KueesKuecia surdez de ora=a D, confidenciou com uma voz amargurada Kue podia eprimirtambAm a agonia de Emilie"empre estran!ei o silOncio de amara 'elia, o desinteresse em Kuerer saber comotudo tin!a acontecido" Eu, pasmada, ol!ando para a rua, e aKuele baKue surdo Kueparecia flutuar no vapor emanente das pedras cinzentas" .rocurava ora=a ao meuredor, por detr<s dos troncos, da fol!agem Kue lambia a terra, fingindoencontr<7la,aceitando absurdamente a !ipGtese de Kue ela teria ido ao p<tio ver os animais,ban!ar7se na fonte, pular a cerca do galin!eiro e gesticular furiosamente diantedo poleiro para Kue, em pnico, as aves passassem do sono F debandada caGtica,soltando as asas, ciscando a terra e o ar, debatendo7se, encurraladas entre acercaintranspon;vel e a figura lnguida Kue com seus ecessos de contorçMes seKuer asameaçavaH mas essa encenaço matinal, presenciada com espanto e comiseraço portodos nGs, talvez fosse uma festa para ora=a, uma maneira de ser escutada ou

percebida sem ter acesso F palavra, um parOntese no seu cotidiano /o galin!eiro,o

Page 6: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 6/90

Kuintal, os animais para escapar aos ol!ares, aos sussurros de constataço4 elano fala, no ouve, o seu corpo se reduz a um turbil!o de gestos no centro deumespet<culo visto com ol!os complacentes" a mesa, F !ora das refeiçMes, tu eora=a eram servidos pelas mos de Emilie, sempre em movi789

mento4 descascando frutas, separando os alimentos para cada um de vocOs, mas tuN< podias negar ou aceitar a comida com poucas palavras, com monoss;labos,enKuantoora=a resignava7se a afastar o prato, negacear com a cabeça ou curv<7la emdireço ao prato, Fs vezes ol!ando para ti, para tua boca, talvez pensando4TJuando mefaltou a palavraT, ou pensando4 TEm Kue momento descobri Kue no podia falarT,talvez veada porKue tu, com a tua pouca idade, N< eras capaz de construirfrasesmal acabadas, fracionadas, desconeas, A verdade, mas com um movimento dos teusl<bios, alguAm reagia, alguAm movia os l<bios, o mundo ao teu redor eistia"'a rua, do porto do Juartel, da praça, das casas vizin!as, vi muitas pessoascorrendo na direço do impacto, e, entre elas, Emilie te segurando com a mo,Kuerendoencontrar7me com os ol!osH fiKuei um minuto acuada sob a copa do Nambeiro, atAdecidir correr sem ol!ar para tr<s e subir as escadas F procura de alguAm" L< emcimatudo parecia sereno e al!eio ao Kue acontecia l< foraH percorri o corredor Kuedava para os Kuartos e estanKuei diante de tio -aSim, Kue dormia na rede" &uvi asuarespiraço compassada, tive pruridos ou receio de despert<7lo, divisei napenumbra a enorme pil!a de livros, os mesmos de sempre, lidos e relidos tantasvezes poreleH naKuele pilar de papel tu te sentavas, enKuanto tio -aSim fol!eava um doslivros, mostrando uma gravura Kue ilustrava um crime iminente, uma cena de amor,amorte de um protagonista cuNo nome complicado tu soletravas com um guturaltatibitatiH ao escutar os teus arremedos de nomes eslavos, -aSim zombava detodos e atAdele mesmo, ao afirmar Kue a pronncia correta dos nomes dessas personagens sGpodia vir da boca de uma criança de dois anos ou da de ora=a" 'os trOs tios eraonico Kue costumava fazer macaKuices com a gente, passear de mos dadas comora=a, sempre Fs escondidas, porKue receava Kue tia amara descobrisse e l!eNogassena cara a mesma frase repe718#tida desde Kue a fil!a nascera4 Ten!um de vocOs A digno de tocar na min!afil!aT" )as ele no se intimidava com a advertOncia da irm, mesmo sabendo Kueesta tin!asuas razMes para proibir KualKuer contato da fil!a com os irmos" )as tia amaraN< desconfiava Kue nos meses Kue precederam o natal de 5:, ora=a iniciara suascamin!adas pela cidade, acompan!ada pelo tio -aSim" a !ora do almoço, Kuandotodos estavam presentes, amara e -aSim dividiam o embaraço, caladosH as caretasdeora=a imitando o bic!o preguiça a escalar uma <rvoreH o corpo est<tico imitandoa imobilidade das sentinelas de bronze plantadas diante do Kuartel, os gestosKueela fazia com as mos e os braços evocando os irmos sicilianos a dialogar comum cac!orro, nada parecia escapar Fs suas andanças, como se o ol!ar fossesuficientepara interpretar ou reproduzir o mundo" .ouco a pouco nos acostumamos F suaverso do Kue se passava nas ruas da cidadeH com gestos espal!afatosos, ora=a

trazia

Page 7: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 7/90

para dentro de casa uma diversidade de episGdios4 caricaturas de pessoasesdrulas, primeiro os irmos gOmeos a narrar uma !istGria sem fim ao cac!orro,semprena mesma !ora da man! e no mesmo banco da praça sombreado por uma ac<ciaH elaimitava ambos ao mesmo tempo, alternando os gestos r<pidos com uma sbitaepresso

de interesse e incompreenso, os ol!os meio arregalados, as mos apoiando7se noc!oH primeiro os irmos gOmeos com o cac!orro, depois vin!am os tiKuesrepetitivosde duas mos entrec!ocando7se enKuanto o dorso balançava7se" %odos, F eceçodos dois tios, riam dessas imitaçMes Kue se prolongavam atA a !ora da sestaH eu,entreo riso e a perpleidade, no entendia por Kue depois do riso Emilie fec!ava acara4 sinal de desagrado aos passeios de ora=a" %ia amara fingia indiferença,masno fundo andava preocupada com essa encenaço, embora no proibisse as sa;dasespor<dicas da fil!a com tio -aSim" .ior seria vO7la crescer nos limites dacasa, rasteandofrutas e papoulas, e Kueimando as mos ao escavar os formigueiros"26

 D 'ei graças a 'eus Kuando vi min!a fil!a grudada com a boneca, passeando e sedivertindo com um brinKuedo Kue atrai KualKuer menina" )as depois do acidentepasseia desprezar todas as bonecas do mundo D disse tia amara, no dia em Kue fuivisit<7la para conversar sobre a min!a viagem"Ela ainda morava e trabal!ava na .arisiense, e era to destra nas artiman!as docomArcio Kue nosso avB atribuiul!e para sempre uma tarefa arriscada e temida atArnesmo por ele4 sondar o gosto da freguesia e selecionar os pedidos dasmercadorias" Ela ia raramente ao sobrado, e alAm das atividades na .arisiense, asua vidaera um mistArio para todos nGs" Ele comentava vagamente Kue a fil!a viaNavaalgumas vezes ao ano, sem Kue ninguAm soubesse o destino e a razo dessasviagens" $sua ausOncia era to breve e imprevis;vel Kue nosso avB apenas notificavadurante o almoço4

 D amara N< est< de volta"E um dia, depois de pronunciar a frase lacBnica, um dos fil!os dele acrescentou4

 D 'e volta da moradia clandestina"""essa Apoca nosso avB no tin!a ;mpeto para contestar esse ou aKuele, e muitomenos para repreender os dois fil!os Kue outrora ele insultara de Navardos,ameaçando7oscom um cinturo" 'esde o nascimento de ora=a $ngela ele tentara apazigu<7los,mas depois de v<rias tentativas Kue no deram em nada, conformou7se em dizer Kueodestino dos fil!os N< no l!e interessava" *om a idade avançada de um patriarcacansado da vida, passava !oras Nogando gamo e contando !istGrias para ti, eagiucom uma sinceridade espantosa ao enaltecer a fil!a Kue tin!a, a" ponto deconfundir as opiniMes de Emilie Kuanto ao estado mental do marido4

 D o entendo mais nada D balbuciava" D o sei onde começa a lucidez e ondetermina o devaneio do meu marido"a verdade, ao elogiar a fil!a ele se mostrava mais lcido Kue nunca" $ sua famade !omem sisudo, austero e1#man;aco se diluiu com o tempo, e dos coment<rios apressados sobre a suapersonalidade, restou a verdade unnime de Kue ele era antes de mais nada umapessoa generosaKue cultuava a solido" ?oi ele Kue me aNudou a sair da cidade para ir estudarfora, e alAm disso nunca se contrariou com a nossa presença na casa, desde o dia

em

Page 8: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 8/90

Kue Emilie nos aconc!egou ao colo, atA o momento da separaço" 'esfrutamos osmesmos prazeres e as mesmas regalias dos fil!os, e com eles padecemos astempestadesde cGlera e mau !umor de um pai desesperado e de uma me aflita" ada e ninguAmnos eclu;a da fam;lia, mas no momento conveniente ele fez Kuesto de esclarecerKuem Aramos e de onde v;n!amos, contando tudo com poucas palavras Kue nada

tin!am de comiseraço e de drama"& pouco Kue ficamos Nuntas, tia amara lamentou a ausOncia de -aSim, seu irmo"*om uma ponta de ressentimento, dizia4 TL< se vo Kuase dez anos Kue ele foiemborae nunca me escreveu uma lin!aT" &s acontecimentos passados N< no a fustigavamtantoH por isso, talvez os evocasse com naturalidade, sem nen!um sinal derancor"Revelava no rosto uma epresso af<vel, mas o corpo ainda mostrava as mesmasmarcas do luto4 um vestido de mal!a, todo preto, uma touca de renda preta Kuemoldavaos cabelos negros, e um colar de pArolas negras Kue pertencera F Emilie".reservava o mesmo Neito recatado e arredio a todos, e no perdera aKuela maniade ficarde perfil e ol!ar de viAs enKuanto falava" Volta e meia lembrava a fil!a4

 D (m diabin!o lindo, com cabelos claros e cac!eados, e um corpin!o esbelto, degazela" $cordo de man! ansiosa para contemplar a fotografia dela, como Kuemapressaos passos para col!er uma rosa" Emilie sim, Fs vezes vem F .arisiense e entrano meu Kuarto para c!orar" unca sei por Kuem c!ora ou o Kue mais a entristece4aausOncia de -aSim a morte do irmo ou de ora=a a idiotice dos dois fil!os20)e ol!ou com o rosto virado para o lado e disse4

 D abes Kue nunca precisei deles, mas Emilie""" como podia viver sem elainguAm podia viver longe de Emilie, nem refutar suas manias" $ boneca, poreemplo, escapou ilesa do acidente e continuou guardada entre as coisas deEmilie, Kueproibiu a fil!a de Kueimar o brinKuedo" ?oi tio -aSim Kue fisgou a boneca dasmos das crianças, logo apGs o acidente" Eu o despertei balançando a rede, e comosusto os Gculos fiados na sua testa ca;ram no c!o" Estava grogue de sono ecustou para desgrudar as pestanas" $c!o Kue ele ainda saboreava as imagens de umson!osingular, pois sorriu para mim e suspirou TKue lindaT, e voltou a fec!ar osol!osH ento c!acoal!ei a rede com força, e enKuanto atirava as begBnias, asflores eos caroços de frutas no rosto dele, soletrei no sei o Kue e apontei para a rua4o lugar do desastre" Ele deu um salto, ol!ou para mim e eu mergul!ei na rede efiKueipensando no claro aberto no meio da rua, preocupada contigo, te procurando, massG !avia energado Emilie debruçada sobre um volume coberto por um lençolmanc!adode vermel!o" -avia tambAm peies e legumes e frutas espal!adas sobre as pedrascinzentas, e os soldados ameaçavam com cassetetes a meninada Kue tentava fisgarascompras da cesta de Emilie, espal!adas no c!o, bem Nunto ao corpo da primaHalguns curumins saltavam por cima da manc!a de sangue, Kuerendo c!amar a atençodos!omens armados, vestidos de brim ou caKui, uma tonalidade da cor da pele dascrianças"ob a luz intensa do sol todos pareciam de bronze, apenas destoavam o florido dasaia de Emilie e a manc!a vermel!a Kue ainda se alastrava ao longo do lençoltransformado

Page 9: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 9/90

em casulo, a cabeça tal um gorro gren<, ou um vermel!o mais intenso, maisconcentrado, como se a cor tivesse eplodido ali, numa das etremidades docorpo" ?oi umadas imagens mais dolorosas da min!a infnciaH talvez por isso ten!a insistido emevoc<7la em duas ou trOs cartas Kue te escreviH21

#na tua resposta me c!amavas de privilegiada, porKue esses eventos !aviamacontecido Kuando eu N< podia, bem ou mal, fi<7los na memGria" uma das cartasKue meenviaste, escreveste algo assim4 T$ vida começa verdadeiramente com a memGria, enaKuela man! ensolarada e fat;dica, tu te lembras perfeitamente das Kuatropulseirasde ouro no braço direito de Emilie e do seu vestido bordado com floresH KueprivilAgio, o de poder recordar tudo isso, e eu vestido de marin!eiro, noparticipavaseKuer do estarrecimento, da tristeza dos outros, lembro apenas Kue ora=aeistia, era bem mais alta do Kue eu, lembro7me vagamente de suas mos tocandomeu rostoe de seu apego aos animaisH seu desaparecimento, se no me passou despercebido,foi um enigmaH ou, como Emilie me diria nos anos seguintes4 a tua primaviaNou"""oube, por ti, Kue eu Kuase testemun!ara sua morteH v testemun!a, onde euestava naKuela man!T .assaste o dia falando dos peies e dos animais Kuetin!as vistono mercado, sem entender o alvoroço, a consternaço Kue reinava na casa" Vestiasuma camisolin!a de cambraia de (n!o, daKuelas em Kue Emilie bordava duas cabeçasde cavalo, ou mel!or, bordava o contorno da cabeça e a crina, e o Kue sobravapertencia ao tecido transparente, elegia F tua pele" %u aparecias aos outrosvestidoassim4 a camisola bordada caindo atA o Noel!o, e calçavas um par de botas desoldado e uma meia branca de algodo Kue terminava tambAm no Noel!o, com asiniciaisdo teu nome bordadas com letras gGticas" Era uma incongruOncia Kue te cobria dacabeça aos pAs4 botas, bordados, meias compridas, etravagncias de Emilie, Kueteacomodava numa cadeira alta, tuas pernas no ar, e sentias uma espAcie devertigem porKue ol!avas para o c!o como se fosse um abismo e l< no altopermanecias imGvel4estatueta ou brinKuedo para os adultos Kue te contemplavam, eaminando tuasboc!ec!as, o teu perfil, o pouco do teu corpo Kue era vis;vel naKuele tronocuidadosamentecolocado sob a parreira do p<tio menor, o teto vegetal22Kue te protegia do sol" +ncomodava7me um pouco te ver assim, rodeado de mul!erescom os rostos empoados, m<scaras ridentes F luz do dia, Kuerendo te devorar,cadagesto teu provocando um alarido, uma convulso, todas empun!ando leKues edisputando um espaço ao teu lado para areNar o peKueno ;dolo de Emilie"Emilie se regoziNava durante essa sesso de idolatria, fazia gosto observar suapostura de me7do7mundo, estendida sobre ti tal uma redoma radiante a inflarperpetuamente,e confesso Kue era Kuase uma !umil!aço para as outras crianças presenciar essascenas de devoço, de OtaseH afinal, Kuem no gostaria de estar ali em cima,santorecAm7nascido, suspenso por lufadas e bafos oriundos de bocas e leKues de coreseuberantes" ?lutuavas, sem saber, em um nic!o de nardos" E mais tarde, Kuandocompletastedois anos, aKuele pedestal foi abolido, N< podias fiar7te no solo e andarsozin!o, mas continuavas cercado por uma mural!a de mul!eres, ealando odores

to estran!os

Page 10: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 10/90

Kuanto seus nomes4 )enta!a, -indiA, XasmineH sentias falta de ora=a $ngelarasteNando contigo, as duas cabeças roçando o solo F caça de savas, fareNando atril!aKuase infind<vel das formigas de fogo, escol!endo ao acaso uma fileira emmovimento Kue sumia ao pA do tronco de uma <rvoreH ali vocOs estacavam e nosentido oposto

seguiam a lin!a negra e sinuosa ao lado do canteiro Kue desembocava no Kuintaldos fundos, lim;trofe ao p<tio da fonteH encontravam finalmente os orif;cios porondeelas iam e vin!am4 !abitaçMes subterrneas, labirintos invis;veis, mont;culosmGveis, crescendo, sumindo aKui e ali ressurgindo" VocOs N< sabiam Kue osrelevos deterra e os ol!os encastrados na terra Kueimavam como o fogoH para ti, erammontan!as e pupilas perigosas, mas ora=a se divertia ao desafi<7las com osdedos, comas mos, com o rostoH certa vez ela c!egou a esfregar o rosto numa dessasprotuberncias ;gneas, e logo saiu em disparada em direço F fonteH do seu rostopareciamcuspir labaredas, e toda a agonia da voz ine723#istente concentrava7se nas ç&ntorçMes das faces, nos ol!os espremidos, nasmos tateanY as bordas da enorme conc!a de pedra F procura de algo, de umliKuido paraaliviar sua dor dos Norros dQ<gua da boca de pedra dos anNosH padecias com aausOncia de ora=a e, solit<rio entre castelos e cavernas de fogo, desprotegidodY &mbrado corpo dela, c!oravas aos cntaros, no sem Yntes mirac a fonte, o rostoinc!ado de ora=a, o riso Kue urgia entre os filetes de <gua e os cac!os decabelos"Era coYo se !ouvesse uma inverso de supl;cio e de dor, alguAm c!orando por umaausOncia, outro rindo ao constatar a razo cZo c!oro" %u silenciavas Kuando elavoltavada fonte com as rYaos em cuia despeNando <gua no teu corpo, te atraindo para Ysmosaicos do p<tio, para a fonte, te conduzindo F pedra n[arrom e abaulada Kuefingiadormir um sono secularH aKuYa escultura estran!a, Fs vezes aman!ecia perto dafonte Y confundia7se com a matAria espessa e rugosa da prGpria fYnteH n(m outromomentodo dia era intil procur<7la, e KuaYtas ve\es fucei o Kuintal, o corredorlateral e os p<tios sen] KualKuer resultadoH ficava frustrada por no encontraro e sconderiNode um bic!o tao lento, mas essa lentido, Kue o acompan!a durante mais de umsAculo de vida e^iue nos pareYe um desafio ou uma afronta, taz parte da prGpriamatAriacYo animalH me assustava ao descobri7lo assim sem Kuerer, c amuflado sob ummonte de tol!as no c!oH sem mais nem m enos a coisa se revelava antes pelomovimentoKue pelo conVaste de teturas, F diferença de outros animais desprovida de umacarapaça, como se estivessem inevitavelmente ^Yp&stos ao tempo, ao eterior, aomundo"$travAs da veneYiana eu espiava vocOs dois Nuntos do reloNo negro, aKueler=ic!o com !astes douradas Kue atravessara Kuase um sAculo inteiro competindocom Emilieo ciclo repetitivo dos diasH YKuele relGgio de parede, o mais silencioso detodos os KueY *&n!eci, era um dos obNetos Kue mais fascinava ora=a" EYapermanecia !orasdiante dele os seus ol!os cravados no r7novimento pendular da !aste dou72:rada, no ponteiro de minutos, esperando o salto regular e tambAm calado da

flec!a negra" -oNe fico pensando no tempo Kue ela dedicava a esse di<logo surdocom o

Page 11: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 11/90

tempo, indiferente Fs badaladas Kuando as duas flec!as coincidiamH basta dizerKue ao meio7dia as pancadas graves e intensas me do;am os ouvidos, e eu medistanciavada fonte sonora" inguAm, ali<s, suportava as pancadas Kue surgiam bruscamente,como trovMes" 'esde peKuena, via ora=a impass;vel diante do obNeto negro aanunciar

o meio7diaH no in;cio imaginei Kue podia ser apenas uma brincadeira, mas ela nodesviava o ol!ar nem Kuando Emilie se aproimava do relGgio ao meiodia, todos osdiasH imersa na atmosfera Kue era sG reverberaço, ela abria a tampa de cristal,procurava algo em algum recanto da caia, e apalpando suas paredes internasretiravauma c!ave, e ento sua mo se perdia nas v;sceras met<licas, procurando oorif;cio, a fenda Kue se aNustaria F c!ave, ali, bem no mago da m<Kuina"'os obNetos eistentes no interior da casa, o reloNo era o nico cultuado porora=a ngela" %io -aSim, Kue vivia contando !istGrias esKuisitas sobre esterelGgio,disse Kue ele foi parar na parede da sala depois de meses de negociaço entreEmilie e o marsel!Os Kue vendeu a .arisiense F fam;lia, l< pelos anos 30" $transaçoKuase gorou por causa da intransigOncia de ambos, e parece Kue vovB c!egou aNogar na cara de Emilie Kue tudo poderia ir por <guas abaio por causa de umrelGgio"

 D *orremos o risco de ter Kue voltar F nossa terra abanando as mos D disse ovel!o"

 D o faz mal D replicou Emilie D, no L;bano ten!o o relGgio Kue Kuero e alAmdisso no =ou precisar gagueNar nem consultar dicion<rios para falar o Kue meder natel!a"$o fim de Kuatro meses de propostas e contrapropostas, ficou acertado Kue noapenas o relGgio, mas tambAm os espel!os e lustres venezianos, as cadeiras art7decBe um Nogo25#de tal!eres de prata com cabo de marfim ficariam em posse de EmilieH esta, noNogo paciente e obstinado do toma7l<d<7c<, ofertou ao marsel!Os duas peças detecidoimportado de L=on e um papagaio dotado de forte sotaKue do )idi e capaz depronunciar T)arseilleT, TLa ?ranceT e To=ez le bien venuT" eparar7se dopapagaio foipenoso para Emilie, porKue l!e fora presenteado por -indiA *onceiço Kue durantemuito tempo amestrou o aracanga na arte de bem falar" 'a sua moradia suspensa,constru;dano meio do p<tio dos fundos da .arisiense, ele rezava uma $ve7)aria, citava umvers;culo do 'euteronBmio e no in;cio da noite e nas man!s ensolaradas aspalmasde Emilie ritmavam a canço predileta das duas amigas4 Taladi aladiT" $oanoitecer, os fregueses e visitantes mais distra;dos pensavam tratar7se de umatransmissoradiofBnica em ondas curtas, de uma novena ou missa realizada no outro lado dooceano" .arece Kue vovB os corrigia, dizendo7l!es TaKui no $mazonas os Kuerepetemas palavras dos apGstolos so cobertos de penas coloridas e cagam na cabeça dos;mpiosT" Emilie sabia Kue Laure, ao emitir cnticos com vozes de brinKuedo dedarcorda, irritava o marido a ponto de mantO7lo sempre afastado do p<tio" oentanto, ela sG começou a desencantar7se com a ave Kuando esta embirrou com umadas empregadasKue serviu F fam;lia, antes da c!egada definitiva de $nast<cia ocorro" Era umanegra Grf Kue Emilie escol!era entre a enurrada de meninas abandonadas nas

salas

Page 12: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 12/90

da Legio rasileira de $ssistOnciaH estava to faminta e triste Kue !aviaesKuecido seu nome e sobrenome e sG se comunicava atravAs de gestos e suspiros"Laure,no primeiro contato com a novata, antipatizou com ela4 recusava7se a bicar asbananas e os mamMes, a ingerir a tapioca com leite servida pela domAstica einterrompia

uma canço ou uma reza ao notar a presença da menina no p<tio" Emilie tolerouessa birra por algum tempo, mas dispensou a empregada no dia em Kue Laureaman!eceucom o bico coberto por uma pasta Kue era a297Z#fcimistura de uma baba gosmenta com sal" 'esde ento, a ave silenciou" os meses denegociaço com o marsel!Os, -indiA levou o papagaio de volta F sua casa,empen!ou7searduamente para Kue ele recuperasse a voz e logrou ensinar7l!e algumas frases emfrancOs" & marsel!Os ficou to impressionado com a desenvoltura fonAtica da aveKue, temendo a sua fuga, aparou7l!e as penas, construiu7l!e uma gaiola de barnbue, contrariando o seo do animal, rebatizou7a com o nome de trabon" &sfrancesese clientes do restaurante Q QLa Ville de .arisT, situado na rua do ol, ficaramsurpresos ao ver uma gaiola Kuase do taman!o de uma Naula, pendendo sob o eiodoventilador de teto4 a gaiola oscilava e girava como um mobile gigantescoflutuando F deriva no meio do pA direito de oito metros" G Kuando as pal!etasdo ventiladorparavam de girar A Kue era poss;vel energar trabon, encol!ido, as penaseriçadas e a cabeça enfiada no corpo" Livre das raNadas de vento, a averecobrava sua formaoriginal4 o calor l!e devolvia a plum<ria furta7cor e o Neito sobranceiro, e umavoz grasnenta repetia a ltima frase aprendida4 T @e vais F )arseille, pas toiT(ns riam sem compreender, outros se entristeciam porKue o porto para ondetrabon se destinava era7l!es imposs;vel e sG aguçava a nostalgia do )ididistante" Emilie,por sua vez, enfureceu7se ao saber Kue o marsel!Os epun!a Laure ao vendavalartificial para Kue o animal se aclimatasse, desde N<, Fs lufadas de vento friodo invernoeuropeu" (m dia resolveu ir atA o restaurante, mas estacou diante da porta aover a colBnia francesa concentrada debaio da gaiola e ol!ando para cima,enKuantoum cego acompan!ava no acordeo a marsel!esa, entre garrafas de vin!o tinto ec!ampan!a" Voltou para casa indignada e desabafou4

 D *om tantos galos soltos por a;, decidiram fazer de um papagaio o s;mbolo da.<tria" G falta transformar a min!a bic!in!a numa arara tricolor".ara meu avB, para todos nGs, a aKuisiço eigente do21fimnaT#relGgio foi um mistArio durante muito tempo" e algo !avia de an<logo entre)anaus e %r;poli, no era eatamente a vida portu<ria, a profuso de feiras emercados,o grito dos mascates e peieiros, ou a tez morena das pessoasH na verdade, asdiferenças, mais Kue as semel!anças, saltavam aos ol!os dos Kue aKuidesembarcavam,mesmo porKue mudar de porto Kuase sempre pressupMe uma mudança na vida4 apaisagem ocenica, as montan!as cobertas de neve, o sal mar;timo, outrostemplos, e sobretudoo nome de 'eus evocado em outro idioma" )as uma analogia reinava sobre todas asdiferenças4 em )anaus como em %r;poli no era o relGgio Kue impulsionava osprimeiros

Page 13: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 13/90

movimentos do dia nem determinava o seu fim4 a claridade solar, o canto dosp<ssaros, o vozerio das pessoas Kue penetrava no recinto mais afastado da rua,tudo issoinaugurava o diaH o silOncio anunciava a noite" Emilie acompan!ava o percursosolar, indiferente Fs !oras do relGgio, Fs badaladas dos sinos da ossa en!orados

RemAdios e ao toKue de clarim Kue l!e c!egava aos ouvidos trOs vezes ao dia"'esagradava7l!e a idAia de Kue alguAm soprasse uma cometa em intervalos de seis!oras,o som espraiando7se sobre os tel!ados de uma cidade cuNos moradores acordavamcom o canto dos galos4 a man! ensolarada despontava, inesperada, brusca, aomeio docanto" .or isso, nosso avB estran!ou Kue Emilie se empen!asse tanto na aKuisiçodo relGgioH ela fez Kuesto de trazO7lo ao sobrado logo Kue este foi inauguradoHos espel!os e a mob;lia vieram mais tarde, Kuando a .arisiense se tornou apenasum lugar de trabal!o"Eu tambAm sempre fui <vida de desvendar o motivo do interesse de Emilie pelorelGgio" abia Kue entre os tios, apenas -aSim era uma fonte de segredos" omomentoem Kue ele desembarcou, Emilie N< tin!a epirado" *!egou no in;cio da noite deseta7feira, depois de mais de dez !oras de um vBo complicado e c!eio deescalas"%razia na bagagem uma Kuantidade eorbitante de iguarias orientais e uma caiado26indispens<vel tabaco persa para nutrir o v;cio dos levantinos mais vel!os, KuesG fumavam o narguilA com o tabaco oriundo de %eer" *!egou tambAm com um poucodeesperança, pois tio Em;lio, discreto e comedido, evitou falar a verdade aosobrin!o" $visou por telefone Kue Emilie estava mais triste e saudosa Kue idosa,e imploroua presença dele antes do pBr7do7sol daKuela seta7feira" %io -aSim concordou seminsistir em falar com Emilie, sabendo Kue a me andava meio surda, e sG escutavaa voz de duas ou trOs pessoas alAm de -indiA *onceiço, e assim mesmo eranecess<rio falar aos berros, bem devagar e em <rabe" Juando voltamos docemitArio no in;cioda noite, nGs o encontramos sozin!o no Nardim deserto do casaro fec!ado" Eleobservava o interior da sala em desordem atravAs do trançado de fasKuias,inconformadoem no poder entrar, desconsolado com o pressentimento funesto Kue se tornoureal ao perceber a aproimaço dos carros enfileirados e a vestimenta escura dasmul!eresKue desciam para cumpriment<7lo" otei seu Neito embaraçado, as mos abertas Kuepenteavam os cabelos acinzentados, os movimentos apressados para recompor ocorpoe aNeitar o paletG de (n!o, e a epresso indecisa do rosto, porKue a saudaçoKue teria sido efusiva e calorosa por tanto tempo de ausOncia, no passou de umapertode mo ou de um abraço de pOsames" ?ormaram um c;rculo ao redor de tio -aSim, euns sentavam nas maletas para c!orar e outros procuravam na sala desarrumada eaclaradapor uma nica lmpada os resKu;cios de uma vida inteira, adiando a dif;cildeciso de entrar na sala Kue ainda recendia a flores e a cera derretida" .orfim, tio-aSim começou a falar, ele tambAm N< contaminado pela dor sbita, e l< fora euescutava sua voz a intervalos, uma voz Kue indagava e respondia ao mesmo tempo,semoutra preocupaço a no ser manter a voz no ar para Kue os amigos e o irmo deEmilie no lamentassem a cada segundo o desastre ocorrido no in;cio da man!"

%ioEm;lio aproveitou uma pausa para anunciar a min!a presença, e me c!a7

Page 14: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 14/90

2#mou com tanta veemOncia Kue parecia denunciar o meu Neito esKuivo, deobservador a passiva" .or um momento o luto cedeu lugar F efusoH eu e tio -aSimnos abraçamos,e enKuanto durou o abraço ele pragueNou, dizendo Kue moramos tanto tempo no sul,em estados vizin!os, e eu sG o visitara uma nica vez, sabe 'eus !< Kuanto

tempo"& peso do corpo e da idade tornara7o um pouco corcunda, mas mantin!a a mesmaelegncia de outrora e adKuirira a gentileza descompromissada de um solteirosolit<rioe bonac!o" .ediu para Kue abrissem a porta, pois Kueria distribuir os presentese sentar um pouco na poltrona Kue ele recon!eceu ser a mesma de outros tempos"-indiA,Kue con!ecia a casa como a palma da mo, acendeu as luzes e desapareceu nocorredor alegando Kue ia preparar um cafAH tio -aSim resolveu abrir as malaspara dissimularo mal7estar, porKue tudo naKuele espaço e nas pessoas Kue o ocupavam aindaestava coberto pela sombra espessa de Emilie" 'epois de abrir as duas malas, eleofereceuos pacotes coloridos atA para os descon!ecidos, empil!ando sobre o tapete persaas lembranças dos amigos ausentes Kue ele mesmo distribuiria Kuando osencontrasse"$penas uma sacola permaneceu lacrada, e logo entendi Kue ela nunca seria aberta"$lgumas pessoas sorriam e agradeciam ao desembrul!ar os pacotes, e o Kue se viaera um obNeto perfeitamente adeKuado ao gosto e ao corpo a Kue se destinavaHmesmo assim o entusiasmo foi pouco, e ento tio -aSim começou a perguntar sobrea vidade cada um, mas na fala reticente de todos, o Kue sobressa;a era um !alo demorte" ada mais !avia a fazer, seno entregar7se sem pena e receio F dor Kueele dissimulavacom esforçoH compartil!ou com os outros o luto e a saudade, sG Kue de umamaneira eagerada, Kuase feroz, a ponto de deiar -indiA *onceiço tremendo dacabeça aospAs, e por pouco a mul!er corpulenta no veio abaio com a bandeNa repleta de;caras de cafA" ?iKuei to surpresa com a reaço de tio -aSim, Kue no notara ac!egadade amigos de Emilie, atra;dos pela cla730ridade, pelas portas escancaradas e pela voz de um fil!o Kue magnetiza a atençodos outros ao evocar sua me4

 D Lembram como fazia Emilie D disse tio -aSim, sorvendo o ltimo gole de cafA" D Ela pedia para Kue todos emborcassem a ;cara na bandeNa, e depois eaminava ofundo de porcelana para decifrar no emaran!ado de lin!as negras do l;KuidoresseKuido o destino de cada um"$ conversa se estenderia por toda a noite, porKue as pessoas no conseguiamouvir as !istGrias sem emitir uma opinio ou recordar algoH alguAm N< começara aabriras caias de bombons e doces para acompan!ar a prGima rodada de cafAH depoisviriam os sucos e aguardentes, e Kuem sabe uma refeiço improvisada no meio damadrugada"%udo isso me remetia F Emilie, me deiava ansiosa em con!ecer sua vida numaApoca anterior ao nosso conv;vio" $proveitei o vozerio e o c!oro para sair demansin!oda sala, e abandonar a casa sem falar com ninguAm" $ntes de atravessar o porto,percebi Kue alguAm me seguia de perto, e era tio -aSim Kue se apressava para sedespedir de mim"

 D %ens not;cias de amara 'elia D perguntou" D en!uma D disse" D ei apenas o Kue tio Em;lio me informou4 Kue ela abandonoua .arisiense e ninguAm sabe por onde anda"

Juis saber Kuanto tempo ele ia ficar em )anaus" *om um ar preocupado, ol!ando aoseu redor, como se Kuisesse evitar a aproimaço de um intruso, respondeu4

Page 15: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 15/90

 D & tempo necess<rio para rever min!a irm" 'isse7l!e, ento, Kue gostaria deconversar com ele,longe do tumulto, longe de todos" )encionei o relGgio negro, e tantas outrascoisas Kue me deiaram intrigadaH ele prometeu Kue se encontraria comigo tologo recobrassea serenidade e o fBlego"

 D .osso passar o resto da min!a vida falando do passado D disse, com uma vozmais descansada"31#& encontro aconteceu na noite do domingo, sob a parreira do p<tio peKueno, bemdebaio das Nanelas dos Kuartos onde !av;amos morado" a man! da segunda7feiratio-aSim continuava falando, e sG interrompia a fala para rever os animais e daruma volta no p<tio da fonte, onde mol!ava o rosto e os cabelosH depois retornavacommais vigor, com a cabeça formigando de cenas e di<logos, como alguAm Kue acabade encontrar a c!ave da memGria"322; ^^live a mesma curiosidade na adolescOncia, ou atA antes4 desde sempre" .ergunteiv<rias vezes F min!a me por Kue o relGgio e, depois de muitas evasivas, ela mepediuKue repetisse a frase Kue eu pronunciava ao ol!ar para a lua c!eia" 'evia teruns trOs anos Kuando apontava para o cAu escuro e dizia TA a luz da noiteT" ?oia eplicaçoobl;Kua Kue Emilie encontrou na min!a infncia para no falar de si" $nosdepois, ao arrancar algumas palavras de -indiA *onceiço A Kue a coisa ficoumais ou menosclara" Ela me contou uma passagem obscura da vida de Emilie" )in!a me e osirmos Em;lio e Emir tin!am ficado em %r;poli sob a tutela de parentes, enKuanto?adeie amira, os meus avGs, aventuravam7se em busca de uma terra Kue seria o$mazonas" Emilie no suportou a separaço dos pais"a man! da despedida, em eirute, ela se desgarrou dos irmos e confinou7se noconvento ae Ebrin, do Kual sua me N< l!e !avia falado" &s irmos andaram portodoo )onte L;bano F sua procura e, ao fim de duas semanas, escutaram um rumor deKue a fil!a de ?adei ingressara no noviciado de Ebrin" ?oi Emir Kuem armou omaiorescndalo ao saber Kue sua irm aspirava F vida do claustro4 ele irrompeu noconvento sem a menor reverOncia ao ambiente austero, gritando o nome de Emilie eeigindo,com o dedo em riste, a sua presença na sala da +rm uperioraH viu, enfim, airm33#entrar no recinto, toda vestida de branco e o rosto delimitado por um plissadode organdiH essa viso, mais Kue a fuga, talvez o ten!a levado a tomar a atitudeKue tomou4 sacou do bolso um revGlver e encostou o cano nas tOmporas ameaçandosuicidar7se caso ela no abandonasse o convento" Emilie aNoel!ou7se a seus pAs ea+rm uperiora intercedeu4 Kue partisse com o irmo, 'eus a receberia emKualKuer lugar do mundo se a sua vocaço fosse servir ao en!or"?oi um golpe terr;vel na vida de Emilie" Ela concordou em deiar o conventonaKuele dia, mas suplicou Kue a deiassem rezar o resto da man! e tocar aomeio7diao sino anunciando o fim das oraçMes" ?oi a Vice7uperiora, +rm Virginie oulad,Kuem atribuiu F Emilie a tarefa de puar doze vezes a corda do sino pendurado noteto do corredor cont;guo ao claustro" Essa atribuiço fora fruto do fasc;nio de

Emilie por um relGgio negro Kue maculava uma das paredes brancas da sala daVice7uperiora"

Page 16: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 16/90

$o entrar pela primeira vez nesse aposento, eatamente ao meio7dia, Emilie teriaficado boKuiaberta e et<tica ao escutar o som das doze pancadas, antes mesmo deouvir a voz da religiosa" -indiA *onceiço me repetiu v<rias vezes Kue a amigacerrava os ol!os ao evocar aKuele momento di<fano da sua vida"Ela falava de um som grave e !armBnico Kue parecia vir de algum lugar situadoentre o cAu e a terra para em seguida epandir7se na atmosfera como o calor da

caridadeKue emana do Eterno e de seu Verbo" E comparava a sucesso de sons Fs mil vozessecretas das badaladas de um sino Kue acalmam as noites de agonia e despertam osfiAis para conduzilos ao pA do altar, onde o arrependimento, a inocOncia e ainfelicidade so evocadas atravAs do silOncio e da meditaço" %alvez por issoEmilieparava de viver cada vez Kue o eco Kuase impercept;vel das badaladas da igreNados RemAdios pairava e desmanc!ava7se como uma nuvem sobre o p<tio onde elapoliaos anNos de pedra apGs etrair7l!es o limo e os carunc!os acumulados natemporada de c!uvas torrenciais"3:Ela interrompia as atividades, deiava de dar ordens F $nast<cia e passava acontemplar o cAu, pensando encontrar entre as nuvens aplastadas contra o fundoazuladoe bril!ante a caia negra com uma tampa de cristal, os nmeros dourados emalgarismos romanos, os ponteiros superpostos e o pOndulo met<lico"+sso foi tudo o Kue -indiA me contou a respeito do relGgio e da permanOncia demin!a me no convento de Ebrin, !< mais de meio sAculo" em largar o cabo donarguilA,abanando7se com um leKue descomunal feito de fios trançados e enfeitados compenas de p<ssaros, ela sG parava de matraKuear para tomar fBlego e enugar osuor dorosto com a ponta da saia, sem se importunar em mostrar a fol!agem de panostransparentes Kue separava a pele do algodo florido da tnica Kue nunca tirava"o entanto,esse gesto aparentemente despudorado, alAm de parecer natural F -indiA, permitiacriar uma intimidade Kuase familiar entre ela e as TcriançasT da casa" Emboraestivessebeirando os 16 anos, meu corpo franzino aliado ao meu temperamento t;mido erecatado acentuavam ainda mais a diferença de idade Kue !avia entre nGs"$banando7secom um movimento da mo Kue acabava contaminando o corpo todo, eu sentia norosto a corrente intermitente de ar morno e fumaça, e seguia sua voz sempestaneNar,e Kuase sem c!ances de intrometer7me no fio sinuoso da conversa de Kue sG elaparticipava" a verdade, estava premida por uma vontade to grande de falar, Kuenumminuto de monGlogo era capaz de mesclar o mau !umor de ontem ao episGdioocorrido Fs vAsperas de um natal remoto, Kuando ainda mor<vamos na .arisiense"%odos se reuniam na copa do casaro rosado, com a eceço de meu pai, Kue seil!ava no Kuarto ou ia passear na *idade ?lutuante, onde ele entrava naspalafitas paraconversar com os compadres con!ecidos, com os caboclos recAmc!egados dointerior, e depois camin!ava atA o porto para visitar armazAns e navios"35#$ntes do aman!ecer Emilie me acordava para col!ermos as flores do NardimHdepois tir<vamos amara da rede e ;amos de bonde ao bairro dos franceses paracomprarbuKuOs de Nasmim7porcelana e cansarinas rGseas" *om lin!a amarela e agul!a demadeira faz;amos colares e adornos para serem oferecidos aos convivas, e em cadataçade porcelana Emilie arrumava uma pAtala branca e espal!ava Nasmins7domato no

assoal!o da alcova" $s mul!eres da vizin!ança aNudavam na cozin!a, preparando eesticando

Page 17: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 17/90

a massa dos pastAis e fol!eados" Eram finos lençGis de trigo estendidos por todaa casa, panos translcidos Kue formavam cavernas de sombra onde brinc<vamos deadivin!ara sil!ueta do outro ou de colar o rosto nas superf;cies Kue se moldavam F peleou cobriam a cabeça como uma m<scara ou um capuz" %io Em;lio fazia as compras,matava

e destrinc!ava os carneiros, torcia o pescoço das aves e passava7l!es a lminano gogG para Kue o sangue esguic!asse com abundncia, como eigia meupai" G umavez A Kue utilizaram outra pr<tica para matar os animais" *onsistia em embriagaras aves e torcer7l!es o pescoço para Kue vissem o mundo N< embaçado girar comoumpio" $s aves morriam lentamente, Abrias, os ol!os dois pontos de brasa e opescoço mulambento como um barbante" TEsse mart;rio sG pode ser obra decristoT, proferiameu pai, sabendo Kue -indiA N< fizera isso em outras casas e Kue era uma pr<ticabastante difundida na cidade"a vAspera daKuele natal, -indiA apareceu em casa com um garrafo de cac!aça eela mesma embebedou os doze frangos e Kuatro perus, enrolou um fio de tucum nopescoçode cada ave e convocou a vizin!ança para assistir ao !olocausto" unca me saiuda cabeça a viso das aves saltitando em c;rculo com os cangotes bambos,sufocadaspelo movimento de cada salto Kue estrangulava a vizin!a" -indiA batia palmas egargal!ava, despreocupada em mostrar a gengiva crivada, e indiferente Fs nuvensdemoscas Kue empastavam as mec!as de cabelo Kue ca;am atA o meio das costas"39aKuela tarde presenciei tudo de longe, com curiosidade e um certo receio"-indiA tratava KualKuer criança como se fosse seu fil!o, despeNando umaenurrada de beiNos,abraços e palavras carin!osas nas peKuenas v;timas Kue moravam nos arredores desua casa" )as essa entrega parecia a manifestaço de um sadismo reKuintado, poiso carin!o eagerado Kue receb;amos de uma mul!er como -indiA, davanos umaincBmoda sensaço f;sica, sem a transcendOncia e a naturalidade do gestomaterno, Kue,para ser caloroso e sensual, no necessita de ecessos nem de grandesencenaçMes" %alvez por isso, Kuando criança, eu me sentia sufocado e acuado napresença de-indiA, no tanto pela feira e desleio do seu corpo, e sim pela maneira Kue meseguia, ou mel!or, me perseguia, com os dois braços abertos e agitados, Kue parao taman!o de uma criança pareciam um par de tent<culos, enormes e ameaçadores"Ela anunciava a sua visita batendo palmas estrondosas, gritando Emilie com umavozpastosa Kue vin!a da gengiva e ecoava nos aposentos da .arisiense" Eu e amarasa;amos em disparada rumo ao lugar mais recBndito da casa, onde permanec;amosencasuladosnuma rede, escutando as vibraçMes de um vozeiro a rondar o nosso esconderiNo")as !avia algo mais forte e repulsivo no corpo dela4 o c!eiro, o odor de azedumeKueflutuava ao redor daKuela mul!er como uma aura de fAtidos perfumes" a infncia!< odores inesKuec;veis" 'urante esses anos de ausOncia, no sei se seria capazderecompor na memGria o corpo inteiro de -indiA, mas o bafo Kue se despregavadela, mesmo F distncia, me perseguiu como a golfada de um vento eterno vindo demuitolonge" )eu pai dizia Kue era um c!eiro mais enNoativo Kue o do gato maracaN<"*om uma ponta de ironia, ele me segredava4 se esta mul!er entrar no mato,Naguatirica

no cio vai lamber as pernas dela"

Page 18: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 18/90

& fato A Kue desde aKuele natal meu pai e -indiA se estran!aram" $tA !oNe nosei como ele descobriu Kue as galin!as e os perus tin!am ingerido cac!aça antesdeserem es738#trangulados" -indiA, Kue tambAm era inclemente com ele, me disse durante a

conversa4 D %eu pai tem o olfato mais aguçado Kue um co" entiu o c!eiro da aguardente l<no Kuintal, onde o aroma do Nasmim branco A muito forte"$o vO7lo entrar, altivo mas com o rosto sisudo, sem cumprimentar ninguAm,desconfiamos Kue aKuela noite, normalmente propensa F festa e F comilança,estava ameaçadapor um fio fr<gil e tenso Kue bem podia romper7se na culminncia de risos,brincadeiras, galanteios, danças e elogios F culin<ria euberante e F decoraçoda sala4um cen<rio colorido e cambiante como um caleidoscGpio"um dos cantos da sala o pin!eiro Kue imitava o cedro estava repleto dependurical!os e caias transparentes com presentes embrul!ados em papel de sedaHnas prateleirasdas vitrinas e cristaleiras !avia bandeNas de doces, bombons, frutas secas ev<rios tipos de tortas de frutas da regio" & teto da sala estava coberto debalMesfurta7cores, e por toda a casa se espal!avam bolas de sumama enroladas em papelcrepom, Kue encerravam caiin!as com caramelos e c!ocolates rec!eados decastan!a"Eram tantos obNetos coloridos Kue reluziam dentro e fora das vitrinas Kue afesta de natal lembrava os preparativos carnavalescosH sG faltavam as m<scaras efantasiaspara a ceia religiosa tornar7se uma festa paga"$ntes de meia7noite, a vitrola tocava cançMes portuguesas e orientais ritmadascom palmas, e os vizin!os estrangeiros, vestidos a car<ter, vin!am cumprimentarEmiliee assistir Fs fil!as de )enta!a dançarem apGs a ceia" %eria sido uma noitedesastrosa, no fosse por Emilie e uma visita inesperada")eu pai permaneceu no Kuarto durante o crepsculo e uma parte da noiteH todossentimos Kue no silOncio do !omem Kue se confinara !avia uma revolta calada Kueetravasavaa circunspecço" Emilie continuou absorvida por afazeres diversos, emborasoubesse Kue as pessoas ao seu redor36se moviam com preocupaço, pressentindo transtorno iminente"

 D $consel!ei tua me a ir falar com ele, mas ela no A de adular ninguAm D disse-indiA" D .erguntai o Kue tin!a contrariado o marido dela"

 D 'eve ser uma das proibiçMes do Livro D ironizou Emilie D, mas !oNe Kuem dita oKue pode e no pode sou eu, no um analfabeto guerreiro Kue se diz .rofeta e+luminado"$ casa N< fervil!ava de gente Kuando ouvimos os passos no assoal!o e o estalidoseco de uma porta fec!ada com violOncia" %odas as vozes calaram, mas uma moprevidenteaumentou o som da vitrolaH mesmo assim, ninguAm, salvo Emilie, conservou um arde espontaneidadenos gestos, porKue ali todos estavam petrificados, como num" retratode fam;lia" Ele atravessou as duas salas e o espaço da loNa com a mesma altiveze cumprimentou com a cabeça as pessoas Kue no energava" &s Kue pensaramestender7l!ea mo aliviaram7se porKue carregava uma troua de tral!as como se fosseatravessar um deserto" Levava o narguilA com incrustaçMes de madrepArola, umpote de vidrocom sementes secas de Nerimum, um embrul!o com po e zatar, e o r<dio .!ilco

!olandOs, oito faias, Kue captava as ondas do ocidente e oriente, sintonizandoestaçMes

Page 19: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 19/90

do *airo e de eirute Kue o colocavam a par das ltimas not;cias, transmitiamprogramas musicais e a voz possante de um muezitn Kue eu ouvi, anos depois, nagravaçoKue ele me dera de presente"%odos estavam cabisbaios, e atA nossa vizin!a, tia $rminda /min!ota rison!a Kueenfrentava os rnomentos mais dif;ceis da vida com um sorriso eterno Kue dividia

o seu rosto, fec!ou a cara, escondendo os dentes grados e salientes" Eu estavabem Nuntin!o de amara e apertava sua mo mol!ada, mas ac!o Kue nGs doissu<vamosfrio" -indiA recordou Kue meu pai seria capaz de fulmin<7la com um ol!ar, masno ol!ou para ninguAm enKuanto camin!ava"$ntes Kue ele desaparecesse sozin!o na noite,Ernilie começou Y3#bater palmas, a tagarelar, e me separou de amara para dançar comigo, e entodançamos e rimos sem a sombra do meu pai na casa iluminada" E, como um retratoKuese anima ou um grupo de esculturas Kue se move, as outras pessoas nosacompan!aram na dança e $rminda tornou a sorrir enKuanto -indiA arrumava o vasode Nasmim namesa e tirava do forno os fol!eados e as esfi!as"

 D +ndiKuei o lugar de cada um na mesa, sem saber se alguAm ia assistir F missado galo D continuou -indiA, fumando com ansiedade, tragando e arfando ao mesmotempo,e a mo Kue segurava o leKue tremelicava como as" asas de um beiNa7flor")in!a me interrompeu a dança e me acompan!ou F mesa, insistindo para Kue asvisitas ficassem para a ceia" )uitas ficaram" em a menor cerimBnia, com o gestomaisnatural do mundo, ela me colocou na cabeceira, o lugar cativo do meu pai, eavisou a todos Kue ia trocar a blusa empapada de suor e voltava num minuto" $sua ausOnciafoi breve, mas, ao reaparecer na sala, a pele do seu rosto N< no lembrava omarfim ban!ado de luz, de afago ecessivo, sem limite" $s pessoas começaram acoc!ic!are -indiA foi ao encontro da amiga, para tentar evitar o embaraço"

 D 'iz Kue sentiu umas pontadas na cabeça Kuando entrou no Kuarto D disse -indiA,ressabiada" D %ua me Kueria desconversar, pois logo se afastou de mim paraservirsuco de frutas F criançada, e se alguAm elogiava um prato ela ditava a receitacom uma voz atrapal!ada, no te lembrasLembro Kue ela no saiu de perto de mim enKuanto eu comia a contragosto" Eladava a comida na boca de amara, vigiava meu apetite, beliscava um salgadin!o,sem deiarde perguntar F $rminda se tin!a not;cias dos parentes portugueses, e F dona araenemou Kuando a sinagoga seria inaugurada e se em Rabat con!eciam o tabule e aesfi!a com picadin!o de carneiro, e a todos os convivas, com um ol!ar:0aceso e abrangente, se N< sabiam Kue 'orner estava de voltaF cidade"

 D -< uns seis ou sete anos morou em )anaus D disse Emilie" D 'epois fez umalonga viagem pela selva e andou pelo sul revendo uns parentes"

 D aKuele tempo eras solteira D observou Esmeralda" D olteira, feliz e infeliz D acrescentou Emilie, procurando com os ol!os umamoldura oval na parede branca da sala" D Esse alemo con!ecia meu marido e eraamigodo Emirzin!o"Emilie ofegava, e sua voz nervosa e trOmula atraiu o interesse de todos pelaconversa" )as ao silOncio Kue se seguiu, todos ol!aram para a moldura oval KueenKuadrava

Page 20: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 20/90

a fotografia de um !omem Novem cuNo ol!ar arregalado e sem rumo obrigava oobservador a desviar os ol!os da moldura e procurar em vo outro obNeto fiadona parededa sala, pois na superf;cie branca no !avia nada alAm da fotografia"

 D &utro dia encontrei 'orner na porta do *afA .olar D disfarçou Esmeralda" D?azia festa com os amigos Kue deiou aKui, e Kueria saber se con!eciam algum

nubenteou o aniversariante da semana" .arece Kue desta vez veio paraficar"$rminda o considerava generoso e douto, mas c!eio de manias, pois colecionavatudo e se interessava por tudo, Kue nem o *omendador" $lAm disso, adorava fazersurpresas"Ela remeeu na bolsa, tirou uma fotografia, e ento vimos o seu rostosorridente, p<lido e meio assustado no vo da Nanela, entre vasos com!ortOnsias"

 D Ele me pegou de supeto D disse $rminda, segurando a fotografia"Emilie se arrependeu de no o ter convidado4 o coitado no tin!a fam;lia aKui, eia passar o natal sozin!o" )al terminara de dizer Kue os estrangeiros so semprebem7vindos, ouvimos as palmas, o boa7noite e o feliz7natal para todos" $scrianças riram ao divisarem a figura alta avançar com passos:1#desaNeitados entre as vitrinas e se aproimar da sala sem a menor cerimBnia" orosto despelado !avia manc!as vermel!as, e no pun!o da mo esKuerda enroscava7sea alça de uma caia Kue ele segurava com a firmeza e a avidez de um gavio Kueagarra uma presa" T%o cedo no morresT, eclamou $rminda com um sotaKueperfeitodo )in!o" & visitante cumprimentou um por um, curvando o corpo para beiNar a modas mul!eres e espanando com os dedos os cabelos das crianças" $cercando7se de$rminda,colocou Nunto ao rosto dela a fotografia Kue ela ainda segurava, desenrolou aalça do pun!o e com um gesto felino retirou da caia o flas! e a cmara" &uvimosodisparo e logo mergul!amos na cegueira estonteante do lampeNo Kue esbranKueceutudo ao nosso redor" Juando as pessoas e os obNetos reapareceram, as duas$rmindasainda sorriam, imp<vidas e assustadas" a semana seguinte, o rapaz mostrou afotografia do rosto da mul!er ao lado da fotografia do rosto da mul!er, e entodissipamosuma dvida antiga4 a de Kue aKuele sorriso no era um sorriso e sim um cacoeteadKuirido na infncia, como revelara nossa vizin!a Esmeralda F -indiA *onceiço"o apenas a fam;lia poveira, mas todos os vizin!os Kuiseram saber o Kueacontecera na noite de natal" @< desconfiavam Kue meu pai no tin!a dormido emcasa e continuavasumido sem ter deiado vest;gio" $ visita inesperada do fotGgrafo no meio danoite serviu de consolo F Emilie e evitou um constrangimento maior"

 D em essa distraço D observou -indiA D, tua me no teria parado de falar ecomer, sempre grudada em ti, epelindo palavras e devorando alimentos para noesmorecere desmoronar de uma vez, como ocorreu na man! seguinte" ?ui bem cedin!o na.arisiense e encontrei o mesmo rebuliço da vAspera"(m batal!o de formigas de fogo, atra;do pelo mel dos fol!eados, dos farelos edas migal!as, invadira as vitrinasH na mesa e nos pratos espal!ava7se umamiGrdiade ossos, ca7:2roços e cascas de frutas, e nas travessas de porcelana cresciam c!umaços demoscas" $ paisagem campestre bordada na toal!a /um caçador F beira de um cGrregoprocurandoum p<ssaro de branca plumagem e um pavo cuNa cauda em leKue filtrava a luz

solar estava manc!ada de nGdoas de gordura e respingos de diferentes bebidas".or ser

Page 21: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 21/90

o nico dia de folga de $nast<cia, Kue sa;a de man!zin!a para visitar unsparentes e sG retornava F noitin!a, era Emilie Kue se empen!ava na arrumaço elimpeza,para Kue no fim da tarde a .arisiense voltasse a ser moradia e loNa, e no umespaço caGtico Kue confunde tanto o freguOs Kuanto o visitante"

 D $nast<cia estava de sa;da e no Kuis me dizer por Kue a casa estava uma

balbrdia D disse -indiA" D )e confidenciou Kue em plena madrugada a patroaandava meioatarantada pela casa, Fs vezes parava diante da porta do Kuarto das crianças edepois de passar um tempo provocando no ban!eiro, pediu cola, palito e tesoura Fempregada"Estava com as mos bambas e com o rosto inc!ado, e antes de se trancar no Kuartosoprou uma palavrin!a no ouvido de $nast<cia" +nsisti e atA implorei para ela mecontar o recado de Emilie, mas sabes o Kue me respondeu Tem morta, comadre" $patroa disse Kue era segredo"QQ 'epois me ol!ou com um ar de abnegaço eresponsabilidadee concluiu4 T@< =ou indo porKue as !oras voam" $ sen!ora pode entrar no Kuarto,dona Emilie N< est< de pAQQ" a verdade, tua me no tin!a dormido4 estavasentadano c!o, e logo Kue me viu deu uma palmadin!a no tapete e disse com uma vozrouca4 Q QLevei as crianças para a casa de Esmeralda, onde vo passar o dia"$gora sentae trata de me aNudar, pois trabal!o no faltaT" & Kuarto estava um pandemBnio"""

 D lamentou-indiA"Ela parou de falar, escondeu o rosto com o leKue e recostou7se na cadeira".ermaneceu calada por um momento4 para reavivar a memGria tomar fBlego amainaro rancorKue l!e trazia a lembrança daKuele dia E, sem afastar o le7:3#Kue do rosto, passou a enumerar com uma voz carregada de ira e veame os santosde gesso pulverizados, os de madeira Kuebrados barbaramente, a ossa en!ora da*onceiço espatifada e o )enino @esus destroçado" )as as iluminuras raras epreciosas Kue Emilie adKuirira na pen;nsula ibArica foram poupadas, bem como ooratGriode caoba e a imagem de ossa en!ora do L;banoH ambos continuavam intactos,al!eios F fria do meu pai durante o crepsculo e uma parte da noite" & Kuartopareciater sido assolado por um cataclisma, um furaco ou um nico grito vindo do %odo7.oderoso" -indiA revelou novamente o rosto e me ol!ou como se eu fosse um eco,umareverberaço do descontrole paterno, como se o tempo tivesse dado uma guinadapara tr<s e naKuele instante ela estivesse compartil!ando as lamrias com Emilieeeu andasse sumido apGs ter profanado o espaço do Kuarto" Entretanto, eu noabrira a boca, apenas ruminava" $ min!a reaço ao Kue ela me contava repousavano meurosto e no meu ol!ar, Kue epressavam surpresa, interesse, dor ou comiseraço".or Kue ela falava tanto nisso o para acusar meu pai, o destruidor dasrel;KuiasKue nutriam o diaa7dia das duas amigas, e sim para redimir7se da atitudeepiatGria Kue desafiara a palavra do .rofeta" +maginei7as sentadas no tapetecuNo desen!olembra o da .orta do epulcro, com suas ros<ceas e !Alices, com seus c;rculos,Kuadrados e tringulos, e um delicado motivo floral, geomAtrico, dentro de um!e<gonoinscrito num c;rculo" Elas no sabiam /talvez sG meu pai soubesse Kue naKueletapete onde catavam fragmentos de gesso e estil!aços de madeira para reconstruiras

Page 22: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 22/90

est<tuas dos santos, a geometria dos desen!os simbolizava a criaço, o sol e alua, a progresso cGsmica no tempo e no espaço, o ciclo das revoluçMes do tempoterrestre,e a eternidade" E Kue bem no centro do tapete, num meio c;rculo desbotado pelocontato ass;duo de um corpo agac!ado para orar, !avia uma caia ou um cofre Kueencerra

o Livro da Revelaço, representado por um peKueno Kuadrado amarelo"::EnKuanto -indiA contava como as duas colavam lascas e retocavam com pigmentos decaroços e cascas de frutas a manta e as mec!as de cabelos das estatuetas, ecatavamcom ol!os de lince as lascas de gesso espal!adas no tapete, eu pensava, com umriso contido, no Kue acontecera nos dias Kue sucederam aKuela noite natalina"$tAento, a religio no causara graves desavenças entre meus pais" Ele encaravacom naturalidade e compreenso o fervor religioso de Emilie" %olerava as festascrists,mas se al!eava com um desdAm perfeito das preces elaboradas por Emilie, faziavista grossa Fs imagens e est<tuas de santos, e afastava7se do Kuartin!o decosturaonde as duas mul!eres cortavam e picotavam retngulos de papel vegetal paraconfeccionar santin!os coloridos Kue seriam doados Fs Grfs internas do colAgioossaen!ora $uiliadora durante a primeira comun!o"& dia todo foi dedicado F restauraço dos obNetos sagrados" o fim da tarde, asestatuetas com manc!as de tinta e marcas de fissura voltaram aos pedestais demadeirae aos nic!os"

 D @< estava eausta D prosseguiu -indiA D, mas tua me, como alguAm Kue vive ummomento de cegueira ou embriaguez, ainda teve força para arrumar a sala, fumigaras vitrinas e as partes midas da casa, e fazer um arranNo de flores paraenfeitar uma mesin!a coberta por uma toal!a verde" ?ez Kuase tudo sozin!a e na!ora emKue Esmeralda troue vocOs dois eu N< no me agUentava em pA4 cambaleava, tontade dor de cabeça por ter forçado a vista e passado Kuase dez !oras sentada noc!o")e despedi de Emilie, e l< fora recon!eci de longe o andar do teu pai" Levavadebaio do braço o r<dio e o narguilAH atr<s dele vin!a $nast<cia carregando atrouae os embrul!os" $ empregada se encontrou casualmente com ele teus pais brigaramdurante a noite o soube o Kue aconteceu, pois Emilie no me contou nada etampoucoinsisti em tocar no assunto" )as no natal do ano seguinte, com muita discriçotua me pediu para Kue eu:5#deiasse a matança das aves aos cuidados do teu tio Em;lio, esse anNoacautelado Kue ao pressentir o desastre se ausentou da comemoraço natalina"-indiA nunca soube Kue $nast<cia servira de mediadora na desavença entre meuspais, ou Kue Emilie a incumbira de encontrar a todo custo o marido e trazO7lo devoltaantes do Nantar" 'urante o tormento da madrugada ela no esKuecera de separarpara ele uma travessa de comida e uma bandeNa de doces, frutas secas e umacumbucac!eia de compota de goiaba" Ela coc!ic!ava F empregada Kue o rancor de um !omemapaionado se amaina com carin!o e Kuitutes"

 D o duas armas poderosas para acalmar o gOnio de co do meu marido Dsentenciava"oube depois Kue $nast<cia passara o dia em busca do meu pai, atA encontr<7lo na*idade ?lutuante, conversando com amigos do interior" 'ormira na casa de um

compadre

Page 23: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 23/90

Kue con!eceu no rio .urus4 uma palafita pintada de rosa e verde, cercada porlatas de Kuerosene entul!adas de taN<s, açucenas e flores do mato" Estavasentado nomeio de uma roda de !omens curiosos para ouvir no r<dio a voz estran!a de umacanço Kue causava um estardal!aço de risos"

 D Juando me viu ficou logo de pA e perguntou por tua me D me disse $nast<cia"

 D Eo Kue respondeste D Jue desde ontem ela estava esperando ele para o NantarH Kue o tapete do Kuartobril!ava como o sol da man!"&s dois entraram Nuntos na .arisiense" $nast<cia camin!ou depressa para acozin!a, mas Emilie interpelou7a e ordenou4

 D Leve o Nantar das crianças ao Kuarto"$ frase nos advertiu Kue o resto da noite passar;amos no aposento ondedorm;amos" amara no se desgrudava de mim, e ol!ou de esguel!a para meu pai,Kue contornouas:9vitrinas e passou como um descon!ecido a poucos metros da porta do nosso Kuarto")esmo assim, demos boa7noite ao mesmo tempo, com uma voz mirrada Kue mal saiu danossa boca" Emilie respondeu beiNando nossos ol!os" Estava perfumada como nunca,e ao afagar meus cabelos notei Kue usava o anel de safira, to comentado nasconversassobre as NGias do &rienteH os cabelos, presos na nuca por um coKue, deiavamreluzir a testa lisa e amendoada, Kue recendia a mbar" Lembro Kue no conseguicomera sobra da ceia natalina, e durante boa parte da noite vigiei com as orel!as empA os movimentos do outro lado da parede" %emia Kue meu pai, transformado num$ntarferoz e indom<vel, agredisse a mul!er Kue me beiNara, Kue me beiNaria todas asnoites, no instante Kue precede o sono" ?oi uma noite tensa e longu;ssima"Esperavaa KualKuer momento um revide, algum tipo de vingança, um ru;do arrasador de Kuemdemole um muro espesso e sGlido" $dormeci com essa sensaço incBmoda, a min!amoentrelaçada na de amara, Kue sempre se deitava com um laçarote de renda presoaos cabelos"a man! seguinte, ao passar pela loNa, antes de sair para a escola, reparei Kuemeu pai guardava sigilosamente duas est<tuas de santo no arm<rio das grinaldasparanoivas" aKuele momento, no liguei coisa com coisa e atA pensei Kue ele fizeraisso a pedido de Emilie, para evitar os fungos e o cupim Kue nos meses de c!uvacorroemos obNetos de madeira e mudam a cor do gesso" 'e volta da escola, ao meiodia, acasa estava de cabeça para o ar, e todos se empen!avam na busca das est<tuas"-aviaum regoziNo no rosto do meu pai ao"notar a afliço de Emilie, siia fisionomiaincontida, e a voz gral!ada seguida d_ pun!adas na mesa e nas paredes" Espremiaosl<bios, bufava sem parar de vociferar, perguntava F $nast<cia se algum estran!o!avia entrado no Kuarto ou se por acaso ela no levara os santos para limpar"Espereia !ora da sesta para revelar F min!a me o altar profano das est<tuas" Ela Kuaseno acreditou no Kue viu" $lAm:8#de cobrir7me de beiNos, decidiu regalar7me uma mesada de vinte rAis, para Kueeu pudesse comprar cones de cascal!o e outras guloseimas da rua" o outro dia oepisGdiose repetiu, e assim durante uma semana4 de man!, Kuando Emilie ia ao mercado,meu pai apoderava7se dos santos e antes do fim da tarde eu os devolvia F min!a

me,

Page 24: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 24/90

Kue acabou aceitando a brincadeira com !umor, mas sem deiar de maKuinar umrevide" Ela esperou com paciOncia o mOs de Nun!o, e na man! do vigAsimo sAtimodia asportas da .arisiense foram trancadas com ferrol!o e cadeado" $ casa e a loNa setornaram um c<rcere sem luz onde meu pai procurava encontrar Fs cegas os KuatroanNos

da `lorificaço e as vinte e oito casas lunares onde !abitam o alfabeto e o!omem na sua plenitude" Embora tivesse trancado a casa toda, isolando7a domundo, eleno fez o escndalo esperado, nem eortou ninguAm a procurar o obNetoetraviado" a verdade, sG ele e $nast<cia estavam il!ados, porKue eu e amarat;n!amos idoF escolaH min!a me, ao voltar do mercado, deparara com as portas trancafiadas eem vo martelava a mozin!a de ferro Kue servia de aldraba" Logo Kue me viu,boKuiabertoe passivo diante da fac!ada cega, me enlaçou com os braços e disse com umsorriso de triunfo4

 D Esses dias de NeNum deiam teu pai desmiolado, Kuerido"em entender a frase, imaginava Kue alguma coisa estran!a ocorria na .arisiense".ara mim, aKuela seta7feira era como outra KualKuer, no !avia motivos paraficarmosfora da casa, diante de cinco portas lacradas, vendo min!a me rison!a estalar amozin!a de ferro contra a madeira maciça" Ela nos conduziu F calçada sombreadapor uma castan!eira, abriu um açafate de pal!a e ofereceu7nos frutas" 'a min!asacola retirou um caderno e um l<pis, e começou a escrever, movendovagarosamentea mo no sentido do percurso solar, semeando entre as pautas negras umacaligrafia dançante, enigm<tica como os !ierGglifos" Escreveu trOs li7:6n!as, arrancou a fol!a do caderno, dobrou7a e pediu para Kue eu a enfiassedebaio da porta" .oucos minutos depois, no vo da porta central Kue se abriu,apareceu$nast<cia ocorro negaceando com a cabeça e fazendo c;rculos com o indicadorNunto F orel!a direitaH o polegar da outra mo apontava para o interior da.arisiense,e esses dois movimentos sincrBnicos de um corpo franzino emoldurado pelo voescuro da porta nos deram um acesso de riso Kue sG cessou Kuando imergimos naescuridoe escutamos uma voz grav;ssima e melodiosa"

 D sinal de Kue N< encontrou""" D disse Emilie, bruscamente" G ento soubemosKue ela !avia escondido o Livro, e Kue meu pai tin!a vedado a casa para Kue oespaçoentrevado impedisse todo ser !umano de energar algo antes do reaparecimento doLivro"EnKuanto eu aNudava as mul!eres a abrir portas e Nanelas, a voz no cessou derastrear o espaço" &s Kue passavam na calçada paravam para ouvir e davam umaol!adapara o interior N< clareado, sem descobrir a origem do vozeiro" &l!avam paranGs com alarde, como se indagassem4 Kuem A o ventr;loKuo de Kual parede oucavernavem essa voz Vin!a do Kuarto aberto, onde um corpo febril !< dias em NeNumvociferava as preces do ltimo dia" 'esde ento, cresceu em mim um fasc;nio, umacuriosidadedesmesurada pelas trOs lin!as rabiscadas por Emilie e pela voz de meu pai" @<estava me !abituando FKuela fala estran!a, mas por algum tempo pensei tratar7sedeuma linguagem sG falada pelos mais idososH ou seNa, pensava Kue os adultos nofalavam como as crianças" $os poucos me dei conta de Kue eles gesticulavam maisao

Page 25: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 25/90

falar naKuele idioma, e %iouve casos em Kue intu; idAias atravAs dos gestos"uma noite em Kue bisbil!otava a conversa, perguntei se conversavam sobre o novovizin!o"Responderam Kue falavam de mim, da min!a curiosidade, do fato de eu Kuerer vagarentre vozes Kue escutava sem compreender" essa noite, ao me acompan!ar atA oKuarto,

mi7:#n!a me sussurrou Kue no prGimo s<bado começar;amos a estudar Nuntos oTalifebataT" entada na cama, me confidenciou Kue sua avG l!e ensinara a ler eescrever,antes mesmo de freKUentar a escola" .ara comentar a aprendizagem da l;ngua7me,me contou sucintamente como falecera alma, min!a bisavG, aos 105 anos de idade"em relutncia ou assombro, acreditei piamente nas palavras Kue me acenderam osol!os, enKuanto transparecia o abismo celeste no vo da Nanela, pois daKueleprecip;ciosem fim seres alados e iluminados deiaram sua moradia para flutuar Nunto aoleito da morte"

 D o mais de vinte anNos e surgiram entre as criancin!as D, l!e dissera almaantes de fec!ar os ol!os" E de tanto ela repetir a !istGria de alma e dosanNos,acabei son!ando com alma e os anNos"o dia seguinte, a !istGria e o son!o pulsavam no meu pensamento como as <guasde dois rios tempestuosos Kue se misturam para originar um terceiro" Eu medeiavaarrastar por essatorrente indBmita, pensando tambAm no desen!o da caligrafia Kuelembrava as marcas das asas de um p<ssaro Kue rola num espel!o de areia, na vozaustera do meu pai, mais ldica do Kue lgubre, voz polida e pL<cida Kue tenteiimitar assim Kue aprendi o alfabeto e antes mesmo de pronunciar uma nicapalavrana l;ngua Kue, embora familiar, soava como a mais estrangeira das l;nguasestrangeiras"Esperei o s<bado, ansioso para Kue evaporassem as !oras e os minutos, redobrandoa atenço Kuando meu pai deiava escapar uma frase no outro idioma" o s<bado aomeiodia, antes de sentar F mesa para almoçar, da min!a boca Norraram as palavrasKue ele acabara de falar, Kue sempre falava antes de cada refeiço" amaralançouum ol!ar incrAdulo para mim e soltou uma gargal!ada, logo engasgada pelosilOncio dos pais" Ele me ol!ou, e aKuele ol!ar, Kue durou o tempo de umespasmo, fulguravacomo o ol!ar de um recAmnascido ofuscado pelo impacto da primeira eploso deluz"50$s primeiras liçMes foram passeios para desvendar os recantos desabitados da.arisiense, os Kuartos e cub;culos iluminados parcialmente por clarabGias4 ocorpo mortoda arKuitetura" entia medo ao entrar naKueles lugares, e no entendia por Kue ocontato inicial com um idioma inaugurava7se com a visita a espaços recBnditos"'epoisde abrir as portas e acender a luz de cada Kuarto, ela apontava para um obNeto esoletrava uma palavra Kue parecia estalar no fundo de sua gargantaH as s;labas,de in;cio embaral!adas, logo eram lapidadas para Kue eu as repetisse v<riasvezes" en!um obNeto escapava dessa perKuiriço nominativa Kue inclu;amercadorias eobNetos pessoais4 cadin!os de porcelana, almofadas bordadas com arabescos,peKuenos recipientes de cristal contendo cnfora e benNoim, alcovas, lustresformadosde esferas leitosas de vidro, leKues da Espan!a, tecidos, e uma coleço defrascos de perfume Kue do alm;scar ao mbar formava uma caravana de odores Kue

eu aspirava

Page 26: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 26/90

enKuanto repetia a palavra correta para nome<7los" o fim da peregrinaço aosKuartos e Fs vitrinas da loNa, sent<vamos na mesa da sala, e ela escrevia cadapalavra,indicando as letras iniciais, centrais e finais do alfabeto" Eu copiava tudo,esforçando7me para escrever da direita para a esKuerda, desen!ando inmerasvezes cada

letra, preenc!endo fol!as e fol!as de papel almaço pautado" o fim da tarde,corria para mostrar ao meu pai as anotaçMes, Kue ele corrigia, enKuanto Emiliedesapareciano Kuarto cont;guo ao seu, onde sG ela entrava" Ela ensinava sem KualKuermAtodo, ordem ou seKUOncia" $o longo dessa aprendizagem abalroada eu iavislumbrando, talvezintuitivamente, o !alo do TalifebataT, atA desvendar a espin!a dorsal do novoidioma4 as letras lunares e solares, as sutilezas da gram<tica e da fonAtica Kueluziamem cada obNeto eposto nas vitrinas ou fisgado da penumbra dos Kuartos" .asseicinco ou seis anos eercitando esse Nogo especular entre pronncia e ortografia,distinguindoe peneirando sons, domando o movimento da mo51#para represent<7los no papel, como se a ponta do l<pis fosse um cinzel sulcandocom esmero uma lmina de m<rmore Kue aos poucos se povoava de minsculos serescontorcidose espiralados Kue aspiravam F forma dos caracGis, das goivas e cimitarras, de umseio solit<rio Kue a l;ngua ao contato com o dorso dos dentes e aNudada por umespasmofazia Norrar dos l<bios entreabertos um peie ?en;cio"'esde peKueno convivi com um idioma na escola e nas ruas da cidade, e com umoutro na .arisiense" E Fs vezes tin!a a impresso de viver vidas distintas"abia Kuetin!a sido eleito o interlocutor nmero um entre os fil!os de Emilie4 por tervindo ao mundo antes Kue os outros por encontrarme ainda muito prGimo Fs suaslembranças,ao seu mundo ancestral onde tudo ou Kuase tudo girava ao redor de %r;poli, dasmontan!as, dos cedros, das figueiras e parreiras, dos carneiros, @unie! e Ebrin)asisso no me sacudia o pensamento, me intrigava antes sua camin!ada solit<riaKuando nos desped;amos apGs as liçMes" em deiar vest;gios, ela desaparecianaKueleaposento Kue sempre me interessou pelo simples fato de ter sido um espaçoinviol<vel, inacess;vel atA mesmo ao meu pai, Kue fazia vista grossa sempre KueEmilieentrava e sa;a do esconderiNo carregada de badulaKues, de papAis repletos depalavras e epressMes Kue !av;amos mastigado durante a tarde dos s<bados" GKuandomudamos para a casa nova /o sobrado, o santu<rio de segredos desmoronou" )udarde casa traz revelaçMes, deia mistArios, e na passagem de um espaço a outro,algose desvenda e atA mesmo o contedo de um pergamin!o secreto pode tornar7sepblico" &s obNetos do esconderiNo da .arisiense ela arrumou no ba lacrado Kuecarregousozin!a, camin!ando ao longo dos dois KuarteirMes Kue separam as duas casas" Eua seguia de longe" as pausas Kue ela fazia para recobrar forças, me escondiaatr<sdo tronco de uma mangueira" Ela nunca me52perdoaria se me energasse pertin!o dela, vigiando seus passos, cuidando paraKue ela no tropeçasse e tombasse com o seu mundo guardado no ba" $o entrar nacasa

nova, fiKuei matutando4 onde min!a me teria enfron!ado o volume pesado, repletode pertences inacess;veis, de antigos segredos

Page 27: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 27/90

uma man! em Kue Emilie se ausentara para ir ao mercado, comecei a vascul!ar oKuarto dos pais" Kuela Apoca eu devia ter menos de vinte anos e lembro Kue acasaera realmente imensa" ramos ento Kuatro irmos, e o amplo espaço do sobradoacomodou a fam;lia, Kue, bem ou mal, foi acol!endo os peKueninos Kue c!egaramnum intervalo

de seis anos4 tu, o teu irmo e ora=a $ngela" $li no Kuarto dos pais, revireitudo de cabeça para baio, remeendo nos lugares onde a gente sempre pensaencontraruma c!ave4 nas frestas das Nanelas, dentro dos mGveis, debaio dos tacos soltos,dos travesseiros e do colc!o onde eles dormiriam Nuntos algumas dAcadas" ?oiumabusca meticulosa Kue durou v<rias man!s daKuele mOs de agosto" -oNe, parece aman! do sAculo passado" $ busca sG tornou7se frut;fera Kuando, beirando aimpaciOncia,comecei a c!acoal!ar e entornar alguns obNetos, como o pedaço de cedro do L;banoformado pela secço de um cone" $ parte abaulada estava coberta pela casca da<rvoree a inclinada seria totalmente lisa se no eistisse um minsculo cedro emrelevo, pouco maior Kue um ol!o !umano" )ais tarde compreendi por Kue Emilieprolongavasua sesta imersa na rede e sempre com o ol!ar nost<lgico no console onderepousava o pedaço de madeiraH descobri ento Kue a <rvore em miniatura eravaabertura deum obNeto Kue eu Nulgava inteiramente maciço" o coraço do cedro, tal uma fendana madeira, um par de c!aves se incrustava" (ma das c!aves abriu o arm<riomastodonte,e as portas abertas revelaram7me, pela primeira vez, o mundo ;ntimo de Emilie"Lembro muito bem Kue fiKuei encabulado e fascinado diante  53#$ leitura da caligrafia minscula foi um trabal!o maçante para mim" Escrita em<rabe cl<ssico, e sempre assinada por V"", a correspondOncia atravessava anos eanos, Fs vezes interrompida em intervalos de meses" essas zonas de silOncio, euperdia o fio da meada e enfrentava dificuldades com a escrita, saltando frasesinteirase vituperando contra os voc<bulos, como um leitor encurralado por signosindecifr<veis" $ descontinuidade da correspondOncia e a incompreenso de tantasfrases mepermitiam apenas tatear zonas opacas de um monGlogo, ou nem isso4 uma meia voz,uma escrita embaçada, Kue produzia um leitor !esitante" $s passagens maisobscurasdas cartas foram decifradas com o au;lio da intuiço4 um recurso poss;vel parasair do impasse da leitura pontil!ada de titubeios, sem o au;lio de umdicion<rio,embora fol!easse a torto e a direito os cadernos de anotaçMes Kue Emilieguardara Nunto Fs cartasH entre as anotaçMes, cons;atei Kue !avia v<riasreferOncias aosnossos encontros dos s<bados, e espantou7me saber Kue o vocabul<rio compiladoera vasto" Encontrei tambAm algumas oraçMes em francOs, e eram tantas as $ve7)ariasKue imaginei Emilie escrevendo ladain!as Kuando no podia rezar nas noites dedesespero" Juantas vezes eu a surpreendi entoando cnticos, com a palma das mosrepousadasno peito e os ol!os saltando de uma b;blia F outraH creio Kue por isso no l!efoi dif;cil aprender os salmos em portuguOs, embora ela contra;sse o rostoKuandoa travessia de um idioma ao outro soava estran!a e infiel, como se alguns salmose par<bolas esbarrassem em pedras, tornando7se prolios ou sem sentido" Esteassunto

Page 28: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 28/90

deve ter sido relevante para Emilie porKue V"" o mencionou em diversas cartas etranscreveu uma passagem da b;blia em francOs, pedindo F amiga a traduçoportuguesa"a visita Kue fiz ao tmulo de Emir, pude ler a mesma citaço nos dois idiomas"$s letras estavam gravadas na l<pide, sob a fotografia de um corpo Novem"& nome de Emir Kuase nunca era mencionado nas !oras

59das refeiçMes ou nas conversas animadas por baforadas denarguilA, goles de <raKue e lances de gamo" &s fil!os de Emi7lie Aramos proibidos de participar destas reuniMes Kue vara7vam a noite e terminavam no p<tio da fonte, aclarado poruma luz azulada" Era um momento em Kue os assuntos, N<peneirados, esgotados e fartos de serem repetidos, davam lu7gar a confidOncias e lamrias, abafadas Fs vezes pela lingua7gem dos p<ssaros, e entremeadas por eclamaçMes e vozesKue pronunciavam o nome de 'eus" Era como se a man! D como uma intrusa Kue silencia as vozes calorosas da noite D dispersasse o ambiente festivo, arrefecendo os gestos dosmais ealtados, c!amando7os ao of;cio Kue se inicia com aaurora" )as, em algumas reuniMes de setas7feiras, o pre7nncio da man! no os dispersava" Eu acordava com berrosdilacerantes, gemidos terr;veis, ru;dos de trote e uma alga7zarra de alim<rias Kue assistiam F agonia dos carneiros Kuepossu;am nomes e eram alimentados pelas mos de Emilie"*orria atA o Kuarto dos pais e, atravAs das frestas dos NanelMes,via o sangue esguic!ar do pescoço do animal, cobrir7l!e osol!os ainda abertos, penetrar7l!e nos pOlos alvos e cac!ea7dos" aKuele corpo agonizante, alastrava7se uma cor inde7cisa Kue lembrava uma manc!a crepuscular no meio do p<tioeposto F man! nascente" Esperava7se o sangue escorrer atAa ltima gota, para ento cortar, esKuarteNar e destrinc!ar oanimal" *om as mos, Emilie arrancava7l!e as v;sceras, ar7rumando sobre uma placa de cedro o Kue seria aproveitado,e atirando aos animais as partes reNeitadas pelo !omem" EenKuanto um vGrtice se formava ao seu redor D aves, Kua7drpedes e s;mios disputando as entran!as do carneiro D elalavava e limpava o f;gado, e o temperava com sal, pimenta doreino e !ortel" &s tabuleiros de gamo eram retirados damesa e algum Nogador lembrava Kue o prGimo lance de da7dos l!e pertencia"Emilie aNudava $nast<cia ocorro a trazer os pes demassa fol!eada, dobrados como se fossem lenços de seda, e58

#uma cesta com figos da ;ndia, genipapos, birib<s, abacais e melanciasH e numacumbuca de barro cozido, entre papoulas col!idas do Nardim, !avia cac!os depitomba,rAstias de maracuN< do mato e outras frutas azed;ssimas, Kue em contato com al;ngua provocavam calafrios no corpo e crispaçMes no rosto" )as o rosto de$nast<ciaocorro se crispava por outra razo4 depois de arrumar a mesa, ela se refugiavanuma das alfurNas da casa, para no presenciar a cena da comilança" o centro deum p<tio iluminado pelo sol eKuatorial, !omens e mul!eres repetiam o !<bitogastronBmico milenar de comer com as mos o f;gado cru de carneiro" o era a umritualb<rbaro ou ao sacrif;cio de um animal Kue eu assistia do Kuarto dos pais, massim a uma novidade assombrosa, a uma festa eGtica Kue tanto contrastava com oritmo

!abitual da casa"

Page 29: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 29/90

-avia etravagncia e prazer nos gestos para saciar a bulimia" a entregadeliberada Fs carnes do animal, contrariando a assepsia do dia7a7dia, as moslevavam Fboca um pedaço de f;gado fresco, e o po circulava de mo em mo, despedaçadopor dedos lambuzados de azeite e z<tar" -avia Kuem cantasse a ltima canço namoda

no *airo, Kuem recitasse um poema m;stico ou uma f<bula de $ttar, ou evocasse o*anto da Rosa, do *ravo, da $nOmona e conclu;a, ao citar o canto do @asmim, Kueodesespero A um erro" Elogiavam7se os temperos, os doces de semolina com nozes emel, e a compota de pAtalas de rosa, Kue todos aspiravam demoradamente antes deprovar"$lguns, temendo no ser convidados para o Nantar do s<bado D Kuando seriapreparado o pernil de carneiro assado com tmaras D esperavam ansiosos o momentoda despedida,para Kue meu pai citasse a frase em Kue 'eus permitia abrir7l!es as portas dacasa para a ceia de aman!"Essas reuniMes continuaram na casa nova, mas foi na .arisiense Kue me depareicom sua eistOncia" $ conversa era eclusivamente em <rabe, salvo oscumprimentos deal756gum transeunte con!ecido, ou a visita de um ou outro vizin!o, alguns delesestrangeiros, como a fam;lia do poveiro $mArico, os enemou, do )arrocos, e`ustav 'orner,o rapaz de -amburgoH todos amic;ssimos de Emilie, e o ltimo, alAm de amigo,tornou7se meu confidente"?oi atravAs de 'orner Kue con!eci a primeira biblioteca da min!a vida" Eraformada por oito paredes de livros, Kue felizmente sG con!eci anos mais tarde,pois casocontr<rio teria me inibido para sempre o !<bito da leitura Kue ento adKuiria"ua voz era to grave Kuanto seu nome, e falava um portuguOs rebuscado, KuasesemsotaKue e Kue deiava um nativo desconcertado, a ponto de sG no o confundir comum amazonense por causa do aspecto f;sico4 era mais alto e mais loiro Kue todosos alemes da cidade, e se vestia de um modo bastante peculiar para a ApocaHtraNava uma bermuda Kue ia atA os Noel!os, uma camisa branca sem colarin!o, ecalçavasapatos de cromo, sem cadarço e sem meia" $tada num cinturo de couro, pendia desua cintura uma caia pretaH os Kue a viam de longe pensavam tratar7se de umcoldreoucantil, e ficavam impressionados com a sua destreza ao sacar da caia a-asselblad e correr atr<s de uma cena nas ruas, dentro das casas e igreNas, noporto, naspraças e no meio do rio" .ossu;a, alAm disso, uma memGria inveN<vel4 todo umpassado convivido com as pessoas da cidade e do seu pa;s pulsava atravAs da falacaudalosade uma voz troante, açoitando o silOncio do Kuarteiro inteiro" )as a memGriaera tambAm evocada por meio de imagensH ele se dizia um perseguidor implac<velde Tinstantesfulgurantes da natureza !umana e de paisagens singulares da natureza amazBnicaQQ" -< tempos ele se dedicava F elaboraço de um Tacervo de surpresas da vidaT4retratosde um solit<rio, de um mendigo, de um pescador, de ;ndios Kue moravam pertodaKui, de p<ssaros, flores e multidMes"%u e teu irmo con!eceram 'orner" o sei se naKuele tempo foste aluna dele, massabes o Kuanto era distra;do" s5#

Page 30: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 30/90

vezes pensava Kue a sua distraço era uma maneira de se esKuivar das pessoas eda realidade Kue o cercavamH tudo o Kue ele energava era enKuadrado no visor dacmeraHdizia7l!e, troçando, Kue as lentes da -assel, dos Gculos e as pupilas azuladasdos seus ol!os formavam um nico sistema Gtico" Ele nunca se irritava com essascomparaçMes

um tanto aberrantesH respondia7me Kue ao ol!ar para a -assel via seu prGpriorosto" E em certas noites calorentas, ao regressar de uma camin!ada pela cidadedeserta,deparava7se com o seu outro rosto iluminado e embutido num cubo de vidro, onde a-assel repousava durante a noite, madrugando no morno de uma lmpada, calor7artif;ciopara afugentar fungos, preservar a nitidez da lente, e para Kue o ol!ar atravAsdo visor fosse l;mpido4 triunfo da transparOncia"'orner fotografou Emir no centro do coreto da praça da .ol;cia" ?oi a ltimafoto de Emir, um pouco antes de sua camin!ada solit<ria Kue terminaria no caisdo portoe no fundo do rio" $ !istGria desse retrato me contou o prGprio 'orner, anosdepois, com palavras medidas para no revelar um fato atroz Kue eu N< !aviaintu;doao ler as cartas de Virginie oulad" $ foto contava o Kue 'orner no me pBdedizer4 o rosto tenso de um corpo Kue camin!ava em c;rculo ou sem rurnoH uma dasmosde Emir desaparecia no bolso da calça, e a outra mo acariciava uma orKu;dea torara Kue 'orner nem atinou ao desespero do amigo"um dos nossos ltimos encontros, 'orner relembrou aKuela man!, e me mostroualguns cadernos com anotaçMes Kue transcreviam conversas com meu pai"QQ

90aKuela Apoca eu gan!ava a vida com uma -asselblad e sabia maneNar uma filmadora.at!A" ?otografava 'eus e o mundo nesta cidade corro;da pela solido edecadOncia")uitas pessoas Kueriam ser fotografadas, como se o tempo, suspenso, tivessecriado um peKueno mundo de fantasmagoria, um mundo de imagens, desencantado,abrigandofam;lias inteiras Kue passavam diante da cmera, reunidas nos Nardins doscasarMes ou no convAs dos transatlnticos Kue atracavam no porto de )anaus"a man! em Kue avistei Emir no coreto da praça, eu me encamin!ava para amoradia de uma dessas fam;lias Kue no in;cio do sAculo eram capazes de alterar o!umore o destino de Kuase toda a populaço urbana e interiorana, porKue controlavam anavegaço fluvial e o comArcio de alimentos" Eu devia fazer um <lbum de retratosdessa fam;lia e, ainda de man!, revelar e ampliar os filmes Kue documentavamuma das min!as viagens Fs cac!oeiras do rio ranco, onde coletei amostras deflorespreciosas, mas no to raras Kuanto a orKu;dea Kue Emir ostentava na moesKuerda" )e impressionou a cor da orKu;dea, de um vermel!o ecessivo, roeado,Kuase viol<ceo"&bservava a flor entre os dedos de Emir, e talvez por isso ten!a me escapado suaepresso estran!a, o ol!ar de Kuem no recon!ece mais ninguAm" Lembro Kue oconvideipara almoçar no restaurante francOsH ele apenas91#emitiu um som apagado, palavras enigm<ticas7Kue eu interpretei como uma recusaao conviteH mas percebi Kue ele Kueria se desvencil!ar de mim e do mundo todo,Kuea orKu;dea a brotar de sua mo era o motivo maior de sua eistOncia" EnKuantofazia as fotos da fam;lia $!ler, eu pensava nas conversas Kue tivera com Emir,ele

Page 31: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 31/90

falava uma algaravia, era dif;cil compreendO7loH me sentia diante de um narradororal do norte da frica, ele tin!a esse dom de narrar e convencer com a voz ointerlocutor,com a voz, no eatamente com as palavras, porKue muitas frases eramincompreens;veis" %ambAm no entendia o passeante solit<rio Kue de man!zin!adeiava o !otel

?en;cia, acordava um catraieiro na beira do mercado, e na canoa os dois remavamatA a outra margem do igarapA dos EducandosH depois ele continuava a pA,alcançavao centro da cidade, e eu o seguia pelas ruas estreitas, alin!adas por sobradosem ru;nas" o, Emir no era como os outros imigrantes, no se embren!ava nointeriorenfrentando as feras e padecendo as febres, no se entregava ao vaivAmincessante entre )anaus e a teia de rios, no !avia nele a san!a e adeterminaço dos Kuedesembarcam Novens e pobres para no fim de uma vida atormentada ostentarem umimpArio" Emir se esKuivava de tudo, ele tin!a um ol!ar meio perdido, de alguAmKueconversa contigo, te ol!a no rosto, mas A o ol!ar de uma pessoa ausente" $lAmdisso, aKueles passeios me intrigavam, camin!ar pelas ruas das pensMes baratas,do!otel dos ViaNantes, camin!ar sem parar, sem ver ninguAm, apenas desafiar osilOncio do fim da madrugada ou se assustar com um grito, uma gargal!ada ou umfac!ode luz Kue de repente eplode na Nanela de um Kuarto" $ vida de Emir parecia sereduzir a esses passeios matinais4 depois da travessia do igarapA, a camin!adaatAa praça 'om .edro ++, a rua dos grandes armazAns, a viso dos mastros, dasKuil!as e das altas c!aminAs, o apito grave do -ildebrand, Kue traziapassageiros de Liverpool,LeiMes e das il!as da )adeira, talvez Emir soubesse o destino do navio4 ovaXorS, Los $n792seles, alguma cidade portu<ria do outro !emisfArio, nostalgia do alAm7mar" $fam;lia $!ler passava pelo visor da cmera, todos se abraçavam em volta de umaest<tuaencardida, mas eu relembrava o rosto de Emir, a orKu;dea eKuilibrada entre osdedos, o anel Kue um dia ele me mostrou com orgul!o, era um regalo4 memGria deum amorem )arsel!a"o laboratGrio no consegui fazer muita coisa, no energava as imagens dascac!oeiras, dos ;ndios, das plantas raras" (m sentimento esKuisito tomava contade mim,como se eu estivesse impressionado por um press<gio, um ind;cio de umacontecimento adverso" a; com a cmera a tiracolo, e N< começava a c!uviscarKuando c!egueino restaurante francOs" .ercebi um zum7zum inusitado dos transeuntes aglomeradossob as marKuises, depois ouvi o fragor das sinetas dos bombeiros cortando osilOnciodo meio7dia" -avia um peKueno tumulto no restaurante, sentei na nica mesadesocupada e logo sa;, estabanado, sem saber se andava apressado ou se corria,mas umaintuiço me conduziu ao lugar onde encontrara Emir" & c!uvisco e a !ora da sestacontribu;am para Kue a praça estivesse deserta" )e lembrei, ento, Kue ao ladodassentinelas de bronze fincadas na calçada do Kuartel estava o par de sentinelas!umanas, como se fossem sombras t;midas e amiudadas dos gigantes de metal"-esiteialguns segundos antes de perguntar a um dos !omens se, por acaso, tin!a avistado

EmirH eu temia perder tempo, mas mesmo assim, atravessei a praça e fiz apergunta,

Page 32: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 32/90

Kuase gritando" .erdi trOs minutos entre a travessia da praça e o breve di<logocom a sentinela" $o ouvir a resposta do soldado, parecia Kue tudo estavadecidido4um rapaz vestido de branco conversava com uma flor, saiu do coreto andandodevagar e desapareceu"& soldado apontou a direço Kue ele seguira, e, Kuando avistei o porto, uma

parte do cais flutuante estava apin!ado de gente" )esmo de longe foi poss;veldivisaros mergul!adores4 duas figuras negras, como se pairassem na atmosfera93#embaçada pelo c!uvisco" $ not;cia se espal!ou como uma epidemia e as versMescomentadas eram tantas e to desencontradas Kue Emilie c!orou e riu v<riasvezes" +ssoporKue os dois vigias da *apitania dos .ortos emitiam opiniMes divergentes arespeito do !omem tragado pelas <guas do egro" en!um dos dois o viuultrapassar oporto principalH alegavam Kue ele bem poderia ter rodeado o edif;cio da$lfndega e alcançado o trapic!e sem ser visto" (m dos vigias afirmou, resoluto,Kue umrapaz vestido de branco se encontrava perto da beira do atracadouro"

 D o movia uma pal!a e estava to Nuntin!o da <gua Kue parecia uma est<tua dem<rmore flutuando no rio D disse no meio de uma roda de curiosos" )as o outrocontestouessa afirmaço, admitiu Kue ambos estavam eaustos e famintos, com o estBmago emalvoroço e os ol!os Kuase fec!ados"

 D uma !ora ingrata D lamentou7se o !omem" D $inda mais com este c!uvisco e osol raladoH o ol!ar no se decide por nada"Eu contemplava o espel!o dQ<gua, Kuebradiço por agul!adas do c!uvisco, Kuandoouvi a ltima frase do vigia4 o ol!ar no se decide por nada" .ercebi, ento,Kue esKueceraa -asselblad no restaurante, e a apreenso do esKuecimento se mesclou F certezade Kue Emir no seria encontrado com vida" $tA aKuele instante eu me esforçavaparaacreditar nos rumores, e tin!a os ouvidos aguçados para no deiar escapar cadaverso Kue tentava reconstruir o itiner<rio do meu amigo" &bservava, comindiferença,as imersMes sucessivas dos !omens7rs, pois a c!ispa de esperança se dissipouKuando me dei conta da ausOncia da cmera" $tA Emilie e o teu tio Em;lio notaramomeu assombro" enti no rosto um vazio, como se tivessem vendado meus ol!os, umasensaço de inconsciOncia do corpo, algo parecido a uma vertigem seguida de umacegueirasbita" 'epois escutei Emilie dizer9:alguma coisa com esforçoH ela repetia To KuO o KuO aondeT e as palavrassoavam como marteladas ou advertOncias formadas de repetiçMes4 a mesma entonaçode voze as mesmas palavras Kue fatalmente iriam eplodir em estil!aços de sons" emol!ar para ninguAm, com as mos coladas nos ouvidos e a cabeça Nogada para tr<s,eladesatou a falar e de repente o anel !umano Kue cercava os dois vigias se desfeze os ol!ares se concentraram nela" &s curiosos Kue tagarelavam passaram asussurrare calaram de vez, pois Emilie soltou um berro incompreens;vel a todos, eceto aoirmo, Kue tentou imobiliz<7la com os braçosH mas o gesto desencadeou uma sAriede contorsMes e os corpos pareciam lutar contra algo eterior a eles".ermaneceram assim por alguns segundos" 'epois Emilie curvou o corpo para conteros movimentos,e estacou na posiço de um caramuNo, Kuase deitada na plataforma met<lica"

Page 33: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 33/90

& primeiro apito reverberou, fraco, Kuase impercept;velH os Kue estavam Nunto deEmilie no o escutaram por causados gemidos" &l!ei para a beira do cais erepareinos !omens7rs4 os rostos vis;veis atravAs do vidro da m<scara negra, o braçoapontando para o !orizonteH e, ento, aKuele som Kue soara suavemente, como osom de

uma flauta, parecia vir de uma sil!ueta esbranKuiçada, sem contorno definido,Kuase colada F lin!a da selva, mergul!ando de vez em Kuando nos raios solares,sumindonas brumas do c!uvisco e reaparecendo como um corpo luminoso, alvo, talvezest<tico, ou se movendo to lentamente Kue era imposs;vel saber, se vin!a emnossa direçoou se distanciava do porto" Vista de longe, envolta de luz e <gua, a sil!ueta seassemel!ava a um Kuadro vivo, uma pintura ligeiramente mGvel4 o !orizonteaKu<tico,brumoso e ensolarado ao mesmo tempo, e a cintilaço de uma lmina branca eencurvada, como um arco de luz entre o cAu e a <gua"$Kuela apariço no !orizonte passara despercebida para Kuem estava ao meu redor"Emilie e o irmo permaneciam95#encasulados, um corpo encobrindo o outro, a cada instante se ouvia um murmriorompendo o silOncio, enKuanto as pessoas ol!avam perpleas para os dois corposKuefaziam esKuecer o afogado, a busca, o motivo de estarmos ali" Eu N< me afastavado cais, camin!ando sobre a passarela flutuante, Kuando escutei o apito, maisn;tido,como se o som, estran!o F sil!ueta branca, tivesse sa;do das brumas4 um assobiodo espaço"o percurso entre o porto e o restaurante tive Kue evitar algumas pessoas Kue N<sabiam da not;cia" assim a vida na prov;ncia4 um amigo teu desaparece, e logouma atmosfera mGrbida toma conta da cidadeH surgem, primeiro, as indagaçMesindiscretasH depois, as insinuaçMes perversas e delirantes sobre a vida dav;tima, Kuandoainda no acreditamos na perda do amigo, e o nosso sentimento oscila entre aesperança da sobrevivOncia e a nostalgia Kue N< se configura, atA se tornar umacomunicaçosecreta, uma conversa silenciosa com o passado" o sem um certo arrependimento,eu pensava4 por Kue no levara Emir para a casa dos $!ler por Kue fotograf<7locom a orKu;dea na mo e dei<7lo vagar, atordoado, a um passo do desastreaKuelas imagens de Emir, ainda vivas na min!a memGria, estavam registradas nofilme dacmera Kue eu esKuecera no La Ville de .aris" & dono do restaurante tin!aguardado a -asselblad e me esperava ansioso" *om uma cara de espanto e uma vozde matracaele disparou uma c!uva de perguntas, embaral!ando v<rias !ipGteses, mencionandoum naufr<gio, uma eploso, cenas de um desastre" Ele falava e perguntava aomesmotempo, mas tudo ficou no ar porKue desatei a responder na min!a l;ngua materna"G percebi Kue falava em alemo Kuando o marsel!Os me pegou pelo braço e berrou4o sen!or est< falando sozin!o" Ele tin!a razoH pela primeira vez falava namin!a l;ngua comigo mesmo" (m procedimento similar sG aconteceria nas noitesseguintes,em son!os esparsos e tem;veis" (m susto me despertava no meio da noite, umanoite99ue passaria em claro, atazanado, fustigado no pela fuga de imagens, mas pordi<logos indecifr<veis, perdidos para semre os son!os, eu e Emir aparec;amos Fbeirado cais, cuNo limite era a espessa cortina do c!uvisco num momento do dia

marcado pelo silOncio" & Kue diz;amos um ao outro no delineava eatamente umaconversa

Page 34: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 34/90

e sim um am<lgama de enigmas, de vozes refrat<rias, pois recorr;amos F nossal;ngua materna, Kue para o outro nada mais era seno sons sem sentido, palavrasKuepassam por um prisma invis;vel, melodia pura tragada pelo vento morno, sonslançados na atmosfera e engolfados pela bruma4 o c!uvisco incessante, nosson!os" E nessa

tentativa desesperada de compreender o outro, como compreender a si mesmo aangstia da incompreenso me despertava em sobressaltos, e o resto da noite searrastava,pesada e lenta, enKuanto eu precipitava frases do son!o para recompor di<logos,rememorar sons" $o fim de duas semanas do desaparecimento de Emir, os son!osrarearame o ltimo coincidiu com a not;cia de Kue !aviam encontrado o corpo dele nofundo de um igarapA onde !< pouco tempo os namorados passeavam em peKuenasembarcaçMesou canoas cobertas com um toldo branco para arrefecer o calor" Juem encontrou ocorpo foi Lobato, um ;ndio Kue teu pai con!ecera antes de se casar com Emilie"%eupai no era esKuivo aos da terra, mas sempre foi imbu;do de uma indiferençaglacial para com todos, inclusive os fil!os, como tu deves saber" +nteressava7l!e conferirmercadorias, lustrar vitrinas e sobretudo orar em alguma caverna de -ira, nosconfins da casa ou da loNa" Ele se encontrou com Emilie pela primeira vez no diaemKue o corpo de Emir foi localizado" $o circular a not;cia, Emilie refutou comopBde a idAia de Kue o cad<ver era o do irmo" 'urante dois dias ela Kuestionoucomrelutncia o parecer de um mAdico7legista, indignada com o mAtodo utilizado paraidentificar o corpo"

 D &s mAdicos daKui mal conseguem diagnosticar os vivos, como podem identificaruma pessoa, eaminando a98#arcada dent<ria de um esKueleto D indagava Emilie, inconformada, antes mesmode ver o corpo"a verdade, o inconformismo da tua me era descabido e Kuase absurdo, pois aaltura e os despoNos do cad<ver evidenciavam certos traços inconfund;veis doirmo dela"ada disso a convenceu, ainda mais Kuando leu na imprensa a opinio de umNornalista4 o corpo podia ser mais um dos tantos combatentes Kue tombaram nasangrentaescaramuça de110, entre forças do governo e feder alistas"T$ cada ano, nessa Apoca de vazante, bGia um cad<ver Kue acende o nimo daopinio pblicaT, lia7se no @ornal do *omArcio" $ publicaço desse artigofantasioso N<começava a fomentar dvidas Kuando teu pai apareceu com uma prova irrefut<velKue dissipou todas as especulaçMes em torno da identidade da v;tima e, de certomodo,selou o destino afetivo de Emilie" Lembro perfeitamente a epresso sisudagravada no rosto dele, o corpo alto, magro, um pouco corcunda, e as mosespalmadas eimensas" Ele entrou na casa onde Emilie morava com o outro irmo, apresentou7seem <rabe e em portuguOs, e no Kuis sentar porKue estava com pressa" Eu e asoutrasvisitas deiamos os dois F vontade" *reio Kue ninguAm imaginava o Kue ele iadizer" Ele retirou da algibeira uma caiin!a, colocou7a na palma da mo direitae aofereceu F Emilie" E no instante mesmo em Kue abriu a boca para falar, Emiliecobriu o rosto com as mos e balbuciou umas palavras Kue no entendi, como

tambAm no

Page 35: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 35/90

entendi as poucas palavras pronunciadas por teu pai, com uma voz grave Kue eleconservaria atA a morte"*asaram poucos meses apGs o enterro de Emir" eria intil dizer Kue teu pai noacompan!ou o fAretro, como no o faria alguns anos depois, com a morte dos teusavGs,acontecida longe daKui, F beira7mar" essa Apoca eu me ausentara da cidade, mas

soube Kue ambos deiaram este mundo Kuando ainda eras diNç!utaN deves terestran!ado,pois ficaste algumas semanas sem Emilie" %eu pai se recusou a96viaNar para Recife, a fim de no deiar a .arisiense na mo de estran!os, maspermitiu Kue a esposa embarcasse num transatlntico para ir visitar o tmulo dospais,Kue tin!am falecido no mesmo dia" Em;lio foi Nunto com ela" Em )anaus, um semprefazia compan!ia ao outro nas idas ao cemitArio e F igreNa" unca me perguntaramse eu era religioso, mas talvez condenassem secretamente este estrangeiro Kuevivia no mato entre os ;ndios, Kue nunca entrara numa igreNa, e no entanto podiarezaruma $ve7)aria em n!engatu"Emilie e o marido praticavam a religio com fervor" $ntes do casamento !aviamfeito um pacto para respeitar a religio do outro, cabendo aos fil!os optarempor umadas duas ou por nen!uma"

 D asta ol!ar para o templo Kue abriga os fiAis de cada religio para se ter umaidAia de como uma difere da outra D disse teu pai, ao eplicar a <rvoregenealGgicada fam;lia do .rofeta, numa das nossas conversas de fim de tarde na .arisiense"?oi dif;cil arranc<7lo do mutismo, pois sempre fora fiel a uma vida reclusa, atAmesmo nas reuniMes noturnas com os patr;cios e vizin!os l< no p<tio dos fundos,onde todos tagarelavam, enKuanto teu pai, absorto, talvez pensasse na imensainfelicidadedos Kue no conseguem ficar sozin!os" $nfitrio mudo, asceta mesmo cercado porpessoas, ele teria preferido se evadir no Kuarto, compactuar com o silOncio dasparedesbrancas, e, com o livro em pun!o, acompan!ar a deposiço de um sulto Kuereinava numa cidade andaluz, seguir seus passos atravAs dos sete aposentos de umcasteloindevass<vel, atA tocar na parede do ltimo aposento, onde estava lavrado odestino sinistro do invasor"Entregava7se a essas leituras Kuase sempre sozin!o, embora tolerasse a presençade alguAm Kue se avizin!ava dele nos momentos em Kue a loNa estava desertaH assuasmos repousadas nas p<ginas de um livro refletiam na lmina de cristal davitrina" %al um intruso discreto, eu fingia admirar os tecidos Kue ele mesmo!avia escol!idonas viagens Kue9#empreendia aos portos do litoral sulino" Juem o visse ali, atr<s do balcomaciço, com o ol!ar concentrado nas p<ginas de um livro espesso, bem podia suporKueentre aKuele !omem e as vitrinas eistia um abismo" E um abismo tambAm oseparava dos descon!ecidosH com estes, ele se portava de uma maneira silenciosaou lacBnica"*omigo, era mais indulgente, talvez por eu con!ecer Emilie e ter sido amigo deEmir, ou presenciar, de longe, a sua solido"(m dia em Kue o encontrei zanzando entre as vitrinas, tive a impresso de Kuealgo l!e agitava a solidoH mesmo assim, me cumprimentou com um sorriso, aomesmo tempoem Kue desenrolava com as duas mos um mapa cartogr<fico da bacia amazBnica"

+ndaguei7l!e, sem mais nem menos, se andava em busca do .ara;so, de algumpara;so terrestre"

Page 36: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 36/90

 D o A uma pergunta Kue se faz a um simples sirgueiro D contestou com aplacidez de sempreH e, camin!ando atA o balco, acrescentou4 D & para;so nestemundo seencontra no dorso dos alazes, nas p<ginas de alguns livros e entre os seios deuma mul!er"$proveitei sua disposiço para uma conversa /pois no poucas vezes ele

sentenciou Kue o silOncio A mais belo e consistente Kue muitas palavras, etentei sondaralgo do seu passado" .or um momento ele calou, sem deiar de percorrer com osdedos a Kuase infinita mal!a de rios, Kue trai o rigor dos cartGgrafos e incitaos!omens F aventura" a etremidade ocidental do mapa traçou um c;rculo imagin<riocom o indicador, e, ao começar a falar, tudo parecia to bem concatenado earticuladoKue falava para ser escrito" $ mania Kue cultivei aKui, de anotar o Kue ouvia,me permitiu enc!er alguns cadernos com transcriçMes da fala dos outros" (mdessescadernos encerra, com poucas distorçMes, o Kue foi dito por teu pai noentardecer de um dia de 12"

80$" viagem terminou num lugar Kue seria eagero c!amar de cidade" .or convençoou comodidade, seus !abitantes teimavam em situ<7lo no rasilH ali, nos confinsda$mazBnia, trOs ou Kuatro pa;ses ainda insistem em nomear fronteira um !orizonteinfinito de <rvoresH naKuele lugar nebuloso e descon!ecido para Kuase todos osbrasileiros,um tio meu, -anna, combateu pelo raso da Repblica rasileiraH alcançou apatente de coronel das ?orças $rmadas, embora no )onte L;bano se dedicasse Fcriaçode carneiros e ao comArcio de frutas nas cidades litorneas do sulH nuncasoubemos o porKuO de sua vinda ao rasil, mas Kuando l;amos suas cartas, Kuedemoravammeses para c!egar Fs nossas mos, fic<vamos estarrecidos e maravil!ados"Relatavam epidemias devastadoras, crueldades eecutadas com reKuinte por !omensKue veneravama lua, inmeras batal!as tingidas com as cores do crepsculo, !omens Kuedegustavam a carne de seus semel!antes como se saboreassem rabo de carneiro,pal<cios comNardins esplOndidos, dotados de paredes inclinadas e rasgadas por NanelasKgi=ais Kue apontavam para o poente, onde repousa a lua de ramad" RelatavamtambAm osperigos Kue !aviam enfrentado4 rios de superf;cie to vasta Kue pareciam umespel!o infinitoH a pele furta7cor de um certo rAptil Kue o despertou com o seubril!ointenso Kuando cerrava as p<lpebras na !ora sagrada da sestaH e a aço de um81#veneno Kue os nativos no usavam para fins belicosos, mas Kue ao penetrar napele de alguAm, fazia7l!e adormecer, originando pesadelos terr;veis, Kue eram asomados momentos mais infelizes da vida de um !omem".assados onze anos, talvez em 11:, -anna enviou7nos dois retratos seus, coladosna frente e no verso de um papelcarto retangularH dentro do envelope !aviaapenasum bil!ete em Kue se lia4 Tentre as duas fol!as de carto !< um outro retratoHmas este sG dever< ser visto Kuando o prGimo parente desembarcar aKuiT" $o lerobil!ete, meu pai, dirigindo7se a mim, sentenciou4 c!egou a tua vez de enfrentaro oceano e alcançar o descon!ecido, no outro lado da terra"

Page 37: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 37/90

Eu sabia o nome do lugar onde -anna morava, sabia Kue ali todos con!eciam todose Kue os inimigos mais ferren!os se esbarravam de vez em Kuando" $ viagem foilonga4mais de trOs mil mil!as navegadas durante v<rias semanasH em certas noites, eu eos poucos aventureiros Kue me acompan!avam parec;amos os nicos sobreviventes deuma cat<strofe" *!egamos, enfim, na cidade de -anna, numa noite de intenso

calor" @< no sabia !< Kuanto tempo viaN<vamos e nada, a no ser a voz docomandante daembarcaço, anunciou Kue t;n!amos atracado F beira de um porto" 'a proa ou deKualKuer ponto do barco, nen!uma luz artificial era vis;vel para alguAm Kuemirasseo !orizonteH mas bastava alçar um pouco a cabeça para Kue o ol!ar deparasse comuma festa de astros Kue se proNetavam na superf;cie do rio,alongando7se por uma infind<vellin!a imagin<ria ao longo do barcoH a escurido nos indicava ser ali a fronteiraentre a terra e a <gua"$nsioso, esperei o aman!ecer4 a natureza, aKui, alAm de misteriosa A Kuasesempre pontual" s cinco e meia tudo ainda era silencioso naKuele mundoinvis;velH empoucos minutos a claridade surgiu como uma sbita revelaço, mesclada aosdiversos matizes do vermel!o, tal um tapete esten782dido no !orizonte, de onde brotavam mir;ades de asas ;aiscantes4 lminas depArolas e rubisH durante esse breve intervalo de tOnue luminosidade, vi uma<rvore imensaepandir suas ra;zes e copa na direço das nuvens e das <guas, e me sentireconfortado ao imaginar ser aKuela a <rvore do sAtimocAu"$o meu redor todos ainda dormiam, de modo Kue presenciei sozin!o aKueleaman!ecer, Kue nunca mais se repetiria com a mesma intensidade" *ompreendi, como passardo tempo, Kue a viso de uma paisagem singular pode alterar o destino de um!omem e torn<7lo menos estran!o F terra em Kue ele pisa pela primeira vez"$ntes das seis, tudo N< era vis;vel4 o sol parecia um ol!o solit<rio e bril!anteperdido na abGbada azuladaH e de uma manc!a escura alastrada diante do barco,nasceua cidade" o era maior Kue muitas aldeias encravadas nas montan!as do meu pa;s,mas o fato de estar situada num terreno plano acentuava a repetiço dos casebresde madeira e eagerava a imponOncia das construçMes de pedra4 a igreNa, opres;dio, um ou outro sobrado distante do rioH A intil afirmar Kue no !aviapal<ciosHestes, faziam parte das invençMes de -anna, o mais imaginoso entre os irmos domeu paiH l< na nossa aldeia, o rabo descomunal de um carneiro servia7l!e deest;mulopara Kue contasse um mundo de !istGriasH os mais vel!os o escutavam com atençoe o patriarca de %arazubna, cego e surdo, intervin!a com uma palavra ou um gestonos momentos de !esitaço, Kuando algo escapa F fala"'esci do barco por uma t<bua estreita e camin!ei entre as pessoas Kue esperavamavidamente por not;cias, parentes e encomendasH todos estavam descalços,boKuiabertose talvez tristes" $lguns no conseguiam dissimular a epresso dos famintos".rocurei -anna com os ol!os, mas todas as pessoas perto de mim diferiam muitodeleHum rapaz alto e corpulento, recostado na parede de uma casa vermel!a, atraiu meuol!ar" +ndaguei7l!e, em portuguOs sofr;vel, se8385#con!ecia o !omem estampado no retrato Kue repousava na palma de min!a mo"

 D meu pai D respondeu com uma voz grave, fitando7me os ol!os e al!eio ao

retrato" .erguntei por -anna, apGs beiNar seu rostoH ele apenas apontou para o!orizonte,

Page 38: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 38/90

de onde vin!a o fulgor da man!H em seguida, pBs7se a camin!ar pela nica rua dacidade, e ento percebi Kue seria prudente acompan!<7loH aos poucos, reparei Kuea rua alin!ava duas fileiras de casas de madeira, todas desertasH e conclu; Kuetodos os seus moradores se apin!avam no atracadouroH ao pisar no solo aindamol!ado,imaginei Kue, antes do aman!ecer /talvez no momento em Kue orava, tivesse

c!uviscado, porKue, alAm do solo enc!arcado, as roupas estendidas e a fol!agemdas <rvoresestavam umedecidas" $travessamos a rua /e a cidade apGs camin!armos trezentosmetrosH e, por uma fr<gil ponte de madeira, cruzamos o igarapA, limite entre opovoadoe a floresta"unca imaginei Kue -anna morasse no mato, tal um asceta entre os cedrosmilenares das montan!asW )as a solido, pensei, no deve ser a mesma em lugaresdistintosHali, reinava uma escurido Kuase noturna e a atmosfera tornavase espessaenKuanto avanç<vamos por um camin!o tortuoso e estreito" ?oi ento Kue comecei adesconfiardaKuele rapaz Kue se dizia fil!o de -anna e senti raiva de mim por teracreditado nas suas palavrasH pensei numa cilada e, como todo !omem diante deuma ameaça,senti medoH eaminei a possibilidade de retornar pelo mesmo camin!o, ou entofalar alguma coisa, mas durante um momento de !esitaço a paisagem mudoubruscamentee um fac!o de luz nos revelou o fim do camin!o" (ma espAcie de clareira pareciaconstituir uma interrupço daKuele mundo sombrio" +neplicavelmente fitei osdoisretratos de -anna, eaminando cada lado do carto" $s duas imagens, Kue antespareciam rigorosamente idOnticas, agora diferiam em algoH conNeturei Kue a causadessadiferença fosse alguma alteraço Ku;mica durante8:a ampliaço" .ensei4 duas ampliaçMes de uma mesma c!apa revelam sempre duasimagens distintas" Virava o carto nervosamente, Kuerendo comparar os doisretratos4a claridade tornava7os ainda mais distintos, ressaltando certas diferenças4 acurva das sobrancel!as, a saliOncia dos pBmulos, a tetura dos cabelos" & corpodorapaz, camin!ando na direço da luz, desviou min!a atenço" ?ui ao seu encontro,atA alcançar a superf;cie desmaiada4 uma fenda imensa de terra batida, Kue nosaliNavada floresta"em Kue ele me apontasse, soube localizar o tmulo de -anna4 era o nicodesprovido de cruz e de imagens de santos" G ento me lembrei de verificar oretrato entreas duas fol!as de carto" Era um outro retrato de -anna, ainda Novem, antes departirH mas parecia tambAm o retrato do seu fil!o" o procurei saber como eKuandomorrera" $pGs ter vivido alguns anos naKuele lugar, foi poss;vel presumir umacausa4 as febres proliferavam tanto Kuanto as facadas Kue rasgavam o ventre dos!omensHe isso eplicava por Kue o cemitArio era mais vasto Kue a cidade" %ampouco meinteressei pela identidade ou destino da me do rapazH soube, atravAs de umcon!ecido,Kue era a mul!er mais vistosa do lugar, e Kue -anna, antes de aprender oportuguOs, foi capaz de pronunciar o nome da mul!er e algumas palavrasH rain!a,pArola,marfim, estrela e lua" & uso desses substantivos talvez substitu;ssem seu nome eprescindiam do verbo enamorar7se" .ensei Kue o cime pudesse ter sido a causa do

seu fimH mas, de KualKuer forma, o seu fil!o, ao encontrar uma mul!er, vingariao pai"

Page 39: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 39/90

)orei alguns anos no povoado, con!eci os rios mais adustos"e logo aprendi Kue ocomArcio, alAm das Kuatro operaçMes elementares, eige mal;cia, destemor e odescaso/seno o desrespeito a certos preceitos do $lcoro"%er vindo a )anaus foi meu ltimo impulso aventureiroH decidi fiar7me nessacidade porKue, ao ver de longe a cpula do teatro, recordei7me de uma mesKuita

Kue Namais85#tin!a visto, mas Kue constava nas !istGrias dos livros da infncia e nadescriço de um !adNi da min!a terra")uito antes do desaparecimento de Emir soube Kue me casaria com EmilieH oslevantinos da cidade eram numerosos e Kuase todos !abitavam no mesmo bairro,prGimo aoporto" $ beira de um rio ou a orla mar;tima os aproimam, e em KualKuer lugar domundo as <guas Kue eles vOem ou pisam so tambAm as <guas do )editerrneo" &ssolteirosfalavam de Emilie com efuso e esperançaH os mais vel!os recordavam a Nuventude,resignados e pacientes" $final, tin!am vivido muitas dAcadas" Emilie era a nicafil!a e, de tanto ouvir falar dela, enamorei7me"T5

?oi assim Kue teu pai resumiu sua vinda ao rasil, numa tarde em Kue o procureipara puar assunto" *uriosa era a maneira como se dirigia a mim4 sempre ol!andoparao Livro aberto" ?ol!eava7o vez ou outra, esfregando os dedos nas fol!as de papele esse conv;vio inKuieto das mos com o teto sagrado parecia animar sua voz" $soutras passagens de sua vida tambAm foram testemun!adas pelo livroH alguma vezfoi eloKUente, sem deiar de ser !umilde, ao comentar v<rias suratas4 a da$ran!a,a dos Ventos 'isseminadores, a das Vias da $scenso e a do +nevit<vel Evento" (mdia encontrei7o sozin!o na .arisiense" Estava sentado atr<s do balco maciço e aausOncia do Livro me pareceu uma advertOncia ou uma indisposiço para evocarmosconversas passadas" )al esperou Kue o cumprimentasse e me indagou por ondeandavamas fotografias de Emir" *reio Kue essa pergunta lateNava na sua mente !< muitotempo e eu sempre disfarçava Kuando o assunto rondava aKuela man! do coretoHdesconfioKue Emilie l!e pediu para Kue me cobrasse as fotosH ela mesma tentara resgat<7las de mim, mas eu sempre inventava uma desculpa ou mudava de assunto e a coisaficavapor isso mesmo" Em;lio, teu tio, mandou buscar de %rieste a moldura oval dotaman!o de um rosto !umanoH da +t<lia vieram tambAm o m<rmore N< lapidado e ocristalligeiramente cBncavo4 este fazia parte da moldura e protegeria a8988#foto das intempAries e do limoH foi to bem fiado F moldura Kue atA !oNe nocriou fungosH est< apenas um pouco embaçado, mas isso A atribu;do ao tempo e aum eventualsuspiro de indignaço dos Kue, mesmo mortos, no se deiam observarpassivamente" G Kuando teu pai tocou no assunto A Kue providenciei asfotografias sem pestaneNarHa pergunta dele soou como uma sentença e, alAm disso, !avia a insistOncia deEmilie" Ela passou meses batendo na mesma tecla4 Kue o tmulo do irmopermanecia inacabadosG por min!a causa" %ive Kue ceder, como normalmente faz;amos Kuando EmilieperseveravaH mas no recorri F pr<tica de fotGgrafo, abandonada por um bomtempo" %eria

Page 40: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 40/90

sido doloroso ver Emir emergir lentamente da Ku;mica, a orKu;dea na mo bemprGima F lapela, como um coraço escuro surgindo de dentro do corpo" ?oi umamigo dacolBnia alem Kue fez a ampliaço do rosto, no taman!o natural, como deseNavaEmilie" ?ez v<rias cGpias, algumas com bastante contrasteH as sobrancel!aspareciam

dois arcos negros, espessos e cont;nuosH e os cabelos, Kuase azulados e bempenteados, no dissimulavam o desespero marcado pelo ol!ar e pelos sulcoscinzentos Kuel!e riscavam a testa".edi Kue fizesse outras cGpias com menos contraste, mas !< sempre um estigma,uma marca inetirp<vel da angstia Kue atA mesmo a fotografia perpetua"+maginei, numdesses momentos em Kue a morbidez se interpMe entre a nostalgia e o esforço paraKue o irrevers;vel se torne poss;vel, imaginei como seria a epresso de Emir aocontemplar o seu prGprio rosto multiplicado por uma sArie de ampliaçMes e Kualele escol!eria para satisfazer o deseNo de EmilieH esta, ao eaminar as trezeampliaçMes,deteve o ol!ar nas Kue definiam todos os contornos e detal!es do rosto do irmo"Ela permaneceu alguns minutos silenciosa e serena, embebida pelas imagens,talvezpensando Tpor Kue esse ol!ar, esse rosto contra;do, essa febre intensa Kue oNogo de luz e sombra deia transparecerT" 'eiei7a sozin!a com os retratos, ao86notar Kue suas mos pousavam nos ol!os de Emir ou encobriam uma parte do rosto,como se ela Kuisesse mir<7lo por partes para desvendar alguma coisa Kue nosescapaao fitarmos o todo" Emilie me pediu as treze ampliaçMes" Eigiu tambAm uma docorpo do irmo para colocar na moldura encomendada de %rieste" Ela no sabia Kueeutin!a feito uma trAgua F profisso de fotGgrafo, sG retomada ao voltar de umademorada viagem ao interior do $mazonas" .ouco tempo depois mandei Fs favas olaboratGrioe o material fotogr<fico" a verdade, troKuei tudo por uma biblioteca com obrasraras editadas nos sAculos passados, Kue pertencera a alguns Nuristas famosos dacidade" Essa biblioteca cresceu com os livros Kue adKuiri dos alemes Kuefugiram de )anaus na Apoca da guerra" ?oram anos dif;ceis para os membros dacolBniaH muitostingiram os cabelos de preto e foram para o mato, onde adoeceram e morreramH ossobreviventes Kue regressaram F cidade depois da guerra encontraram suas mansMesneocl<ssicas destru;das e saKueadas, e sG conseguiram abrigo nas missMesreligiosas e em alguns consulados europeus" Juando a agOncia consular alem foireativada,mandaram buscar livros de todas as literaturas e foi ento Kue tive acesso Fsobras orientais, em traduçMes leg;veis" & conv;vio com teu pai me instigou a ler$smil e uma noites, na traduço de -enning" $ leitura cuidadosa e morosa desselivro tornou nossa amizade mais ;ntimaH por muito tempo acreditei no Kue ele mecontava,mas aos poucos constatei Kue !avia uma certa aluso FKuele livro, e Kue osepisGdios de sua vida eram transcriçMes adulteradas de algumas noites, como se avoz danarradora ecoasse na fala do meu amigo" o in;cio de nossa amizade ele semostrara circunspecto e reservado, mas ao concluir a leitura da milAsima noiteele se tornaraum e;mio falador" s vezes, a leitura de um livro desvela uma pessoa" )as ocurioso A Kue ele sempre deiava uma ponta de incerteza ou descrAdito no Kuecontava,sem nunca perder a entonaço e o fervor dos Kue contam com

8

Page 41: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 41/90

#convicço" &s fatos e incidentes ocorridos na fam;lia de Emilie e na vida dacidade tambAm participavam das versMes confidenciadas por teu pai aos visitantessolit<riosda .arisiense" & Kue me fez pensar nisso foi a coincidOncia entre certaspassagens da vida de outras pessoas, Kue mescladas a tetos orientais eleincorporava F

sua prGpria vida" Era como se inventasse uma verdade duvidosa Kue pertencia aele e a outros" ?iKuei surpreso com essas coincidOncias, mas, afinal, o tempoacababorrando as diferenças entre uma vida e um livro" E, alAm disso, o Kuesurpreende um !omem !oNe dever< surpreender, algum dia, toda a !umanidade".ensando tambAmna fotografia de Emir, cogitei Kue aKuela imagem protegida por uma lmina decristal pode evocar um morto de )anaus e os do mundo inteiro"QQ$pGs a morte de Emir, 'orner partiu para uma viagem de anos" Eu o con!eci nonatal de 135, e desde ento fiKuei maravil!ado com os <lbuns de fotografias edesen!osKue ele no cansava de mostrar Fs crianças e ao meu pai" Era um colossal arKuivode imagens, com rotas de viagens e mapas minuciosos traçados com paciOncia eesmero"empre Kue recebia elogios e est;mulos, observava com !umildade4 T-< errosclamorosos nesta ilustraço de aventuras, mas creio Kue todo viaNante Kueprocura o descon!ecidoconvive com a !ipGtese feliz de cometer enganosT" $nos mais tarde ele tentou semOito ser professor de !istGria da filosofia no curso de direito, embora suapaiosecreta fosse a botnica" o foram poucos os dias da min!a adolescOncia Kuepassei na casa dele" 'orner tin!a o prazer insaci<vel de revelar todos osdocumentosKue acumulara ao longo da vida" *erta vez ele ficou desconcertado por eu nomostrar entusiasmo em freKUentar os cursos de alemo Kue ele dava aos fil!os enetosde seus conterrneos" otando meu desinteresse, ironizava4 Tem tudo est<perdidoH Kuando eu voltar das duas $leman!as teu entusiasmo ter< duplicadoQQ" $oviaNarpara a Europa, por volta de 55, pensei Kue ele nunca mais pisaria em )anaus" averdade, fui eu Kue me eilei para sempre" $ sua viagem coincidiu com a min!aparao sul" 'e Leipzig e de *olBnia me escreveu cartas copiosas Kue6061#nunca deiei de reler" Em cada releitura me espantava com uma revelaço, com umcoment<rio sutil sobre a sua permanOncia no $mazonas" Eram observaçMes feitascoma acuidade de um cr;tico, com o ol!ar de Kuem Kuer energar com uma lupa o KueN< foi visto a ol!o nu" .ara mim, a *attle=a Eldorado era apenas duas palavrasKueencerravam um certo mistArioH para 'orner era uma orKu;dea preciosa Kue originououtras de um colorido variad;ssimo como a plendens, a &rnata, a *rocata e a`lebelands"$o mencionar essas catlAias, ele precisava o taman!o de sApalas e pAtalas, e meenveredava a uma nomenclatura ecOntrica citando bulbos claviformes, fol!ascrassocori<cease flores arom<ticas cuNas cores oscilavam entre o rosa7p<lido e o rosa7viol<ceo"?alava tambAm de outras catlAias, como a c!illeriana e a &dorat;ssima, e, cadavez Kue visit<vamos o seu orKuid<rio sombreado por um pergolado de angelim7pedra, ele apontava para uma placa de madeira onde se lia4 em Kue instante 'euscriouas orKu;deas

Page 42: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 42/90

Lembro tambAm de suas eaustivas incursMes F floresta, onde ele permaneciasemanas e meses, e ao retornar afirmava ser )anaus uma perverso urbana" Q Q$cidade ea floresta so dois cen<rios, duas mentiras separadas pelo rioT, dizia" .aramim, Kue nasci e cresci aKui, a natureza sempre foi impenetr<vel e !ostil"%entava compensar

essa impotOncia diante dela contemplando7a !oras a fio, esperando Kue o ol!ardecifrasse enigmas, ou Kue, sem transpor a mural!a verde, eSse mostrasse maisindulgente,como uma miragem perpAtua e inalcanç<vel" )ais do Kue o rio, uma impossibilidadeKue vin!a de no sei onde detin!a7me ao pensar na travessia, na outra margem"'ornerrelutava em aceitar meu temor F floresta, e observava Kue o morador de )anaussem v;nculo com o rio e com a floresta A um !Gspede de uma priso singular4aberta,mas unicamente para ela mesma" Tair dessa cidadeT, dizia 'orner, Tsignificasair de um espaço, mas sobretudo de um tempo" @< imaginaste o privilA762eio de alguAm Kue ao deiar o porto de sua cidade pode conviver com outrotempo T$os Kue l!e perguntavam se realmente !avia mudado de profisso, respondia4T$penas alterei o rumo do ol!arH antes, fiava um ol!o num fragmento do mundoeteriore acionava um boto" $gora A o ol!ar da refleo Kue me interessaT" ei /e creioKue todos aKui sabem Kue ele passou a vida anotando suas impressMes acerca davidaamazBnica" & comportamento Atico de seus !abitantes e tudo o Kue diz respeito Fidentidade e ao conv;vio entre brancos, caboclos e ;ndios eram seus temasprediletos"uma das cartas Kue me enviou de *olBnia escreveu algumas p<ginas intituladas T&ol!ar e o tempo no $mazonasT" $firmava Kue o gesto lento e o ol!ar perdido edescentradodas pessoas buscam o silOncio, e so formas de resistir ao tempo, ou mel!or, deser fora do tempo" Ele procurava contestar um senso comum bastante difundidoaKuino norte4 o de Kue as pessoas so al!eias a tudo, e Kue N< nascem lerdas etristes e passivasH seus argumentos apoiavam7se na sua vivOncia intensa naregio, naQ Qperegrinaço cGsmica de -umboldtQQ, e tambAm na leitura de filGsofos Kuetateiam o Kue ele nomeava Q Qo delicado territGrio do <lterT" Era uma cartarepleta decitaçMes e per;frases4 procedimento generoso para tentar cativar a atenço dodestinat<rio, Kue respondia com dvidas e !esitaçMes")as nem nas nossas conversas nem na correspondOncia Kue mantivemos ele replicouas min!as insinuaçMes a respeito da morte de Emir" %alvez por respeitar o pactocomEmilie, N< Kue um suic;dio pode abalar v<rias geraçMes de uma fam;lia" emprepensei Kue os assuntos nebulosos eram decifrados por ela, e ninguAm ousavapronunciaruma s;laba sem o seu assentimentoH todos os nossos fracassos e nossas fraKuezas,Kuando no podiam ser evitados ou premeditados, ficavam restritos ao espaçofec!adoda .arisiense ou da casa nova" o apenas por amor ao irmo ela fez tudo paraconseguir a fotografia feita por 'orner" .orKue os ind;cios do es763#tran!o comportamento de Emir estavam estampados na nica imagem do seu rostonaKuela man! Kue findava" Emilie Kueria a foto para si, receosa de Kue aalucinaçodo irmo fosse contemplada pelos ol!os da cidade" $inda !oNe lembro do negativo

9 por 6, enrolado numa fol!a de papel de seda, Kue encontrei dentro de sua veste

Page 43: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 43/90

branca cuidadosamente arrumada no fundo do ba forrado de veludo negroH no seionde ela o escondeu depois Kue o relGgio saiu do arm<rio" &ntem mesmo visitei oKuartode EmilieH no arm<rio aberto vi o ba no mesmo canto, com a tampa aberta, evazioH tampouco sei em Kue Apoca ela retirou os obNetos dali e onde os guardou"%alvez,

prevendo Kue fosse morrer, ten!a se desvencil!ado de tudo, cuidando para nodeiar vest;gios"'as leituras das cartas de V"" induzi Kue Emir estava enfezado com Emilie desdea simulaço do suic;dio no conventoH e o esboço de uma carta Kue Emilie noenviouelucida de certa forma essa desavença e talvez o destino tr<gico do irmo"a viagem de eirute para o rasil, o navio fez uma escala em )arsel!a" (mafrase de Emilie, Kue bem ou mal traduzi e nunca mais esKueci, dizia mais oumenos assim4T(m porto A um lugar perigoso para os Novens porKue Kuase sempre so v;timas deum v;rus fatal, o do amorT" a mesma carta abundavam epressMes como Tmul!er davidaT,Ttorpe deseNoT e TtentaçMes do capetaT" prov<vel Kue Emir deseNasse ficar em)arsel!a, ou vir com alguAm para o rasil, pois durante os Kuatro dias depermanOnciano porto ele andou sumido" Emilie, preocupada, aconsel!ou o outro irmo aprevenir a pol;cia francesa" Encontraram7no prGimo F estaço de trem econduziram7no Fforça de volta ao navio" um dos bolsos da calça, alAm de duas passagens detrem, !avia uma parte do din!eiro Kue Emilie trazia no ba, no meio das roupas,pulseirase NGias" Juando desembarcaram em Recife, os pais de Emilie, meus avGs,estran!aram a atitude de EmirH este, mal falou com eles, e durante o tempo6:Kue viveu em )anaus sG se comunicava com a irm na presença dos pais" Lembro7metambAm de -indiA ter contado Kue nos seus momentos de Q QtonturaQQ Emircostumavapronunciar uma frasezin!a em francOs" en!uma referOncia a esta frase encontreina correspondOncia" o dia do enterro, tentei sondar algo a esse respeito com-indiA,mas esta seKuer conseguiu abrir os ol!os4 entre as suas pestanas !avia umamembrana de l<grimas, e tudo o Kue me pBde dizer foi4

 D Estou arrasada, fil!o, me sinto um trapo"""$s dezenas de fotos de Emir serviram para Emilie colocar em pr<tica uma promessacumprida F risca durante boa parte de sua vidaH tu deves ter reparado Kue,infalivelmente,a cada man! do anivers<rio da morte de Emir tua avG camin!ava atA a )atriz e,aNoel!ada, com o corpo voltado para o rio, orava os responsos de anto $ntBnioHdepoisseguia atA o cais e pedia a um catraieiro para Kue a conduzisse F boca doigarapA do Educandos, onde Nogava na <gua um vaso com flores e um retrato doirmoH essegesto, repetido a cada ano, despertou uma certa curiosidade nos moradores da*idade ?lutuante" $lguns passaram a freKUentar o sobrado para pedir consel!os FEmiliee, eventualmente, esmolas e favores" )uito antes de eu viaNar /e dizem Kue antesda morte de Emir ela N< distribu;a alimentos aos fil!os da lavadeira $nast<ciaocorro" Eu procurava ver nesse gesto uma atitude generosa e espontnea da partede EmilieH talvez eistisse alguma espontaneidade, mas Kuanto F generosidade"""devo dizer Kue as lavadeiras e empregadas da casa no recebiam um tosto paratrabal!ar, procedimento corriKueiro aKui no norte" )as a generosidade revela7seouse esconde no trato com o &utro, na aceitaço ou recusa do &utro" Emilie sempre

resmungava porKue $nast<cia comia Tcomo uma antaQQ e abusava da paciOncia delanos

Page 44: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 44/90

fins de semana em Kue a lavadeira c!egava acompan!ada por um sAKuito deafil!ados e sobrin!os" $os mais encorpados, com mais de seis anos, EmiliearranNava uma ocupaçoKualKuer4 limpar as Nanelas,6#os lustres e espel!os venezianos, dar de comer aos animais, tosKuear e escovar

o pOlo dos carneiros e catar as fol!as Kue cobriam o Kuintal" Eu presenciavatudocalado, mo;do de dor na consciOncia, ao perceber Kue os fmulos no comiam amesma comida da fam;lia, e escondiam7se nas ed;culas ao lado do galin!eiro, nas!orasda refeiço" $ !umil!aço os transtornava atA Kuando levavam a col!er de lato Fboca" $lAm disso, meus irmos abusavam como podiam das empregadas, Kue Fs vezesentravam num dia e sa;am no outro, marcadas pela violOncia f;sica e moral" $nica Kue durou foi $nast<cia ocorro, porKue suportava tudo e fisicamente erapoucoatraente" Juantas vezes ela ouvia, resignada, as agressMes de uns e de outros,sG pelo fato de reclamar, entre mur" mrios, Kue no tin!a paciOncia paraprepararo cafA da man! cada vez Kue alguAm acordava, N< no meio do dia" Vozes r;spidas,inNrias e bofetadas tambAm participavam deste teatro cruel no interior dosobrado"Lembro de uma cena Kue me deiou constrangido e apressou a min!a deciso departir, e assim venerar Emilie de longe"Estava lendo no Kuarto Kuando escutei um alvoroço na escada4 gritos, c!oro,convulsMes" *orri para ver o Kue acontecia, e vi um dos meus irmos arrastandouma dasnossas e7empregadas com um bebO entre os braços" Emilie surgiu de no sei onde,apartando um do outro, e tentando acalm<los" Ela acompan!ou a mul!er atA oportoe, ao despedir7se dela, coc!ic!ou algo no seu ouvido" $ mul!er levou a criança F.arisiense e contou coisas a meu pai" ?oi uma das poucas vezes Kue o vi cego deGdio, os ol!os incendiados de fria" Eu estava de pA, ao lado da Nanela da copa,ol!ando ora para a gravura de um livro de viagens, ora para uma abGbada defol!ascinzentas movimentando7se no Kuintal, Kuando o pai irrompeu na casaH fiKueiestatelado ao divisar seu corpo alto e um pouco curvado surgir no vo da portaHlevavaenroscado no pun!o o cinturo, tal uma serpente negra e delOadaH a sua maneirade subir a escada era inconfund;vel4 davapassadas espaçosas, calcando o pA no degrau, e a mo esKuerda roçava o corrimo4o atrito da pele com a madeira emitia, em breves intervalos, ru;dos agudos, umaespAcie de silvadoH escutei com temor o corre7corre, o salve7se7Kuempuder, eescutei tambAm, pela primeira vez nos seus acessos de fria, uma frase emportuguOsHgritou, entre pontapAs e murros na porta, Kue um fil!o seu no pode escarrarcomo um animal dentro do corpo de uma mul!er" 'epois ele desceu e entrou nacozin!aF procura de EmilieH o livro tremia em min!as mos, e a gravura a bico de penano era mais Kue uma teia informe de finos rabiscosH procurei <lua no Kuintal,masno a vi" %ambAm no tive ;mpeto de me afastar dali4 o medo deiara7me sem açoe sozin!o diante de um pai encolerizado" & bate7boca com Emilie foi tempestuosoebreve4 Kue no era a primeira mul!er Kue aparecia na .arisiense com um fil!o nocolo, dizendo7l!e Testa criança A seu neto, fil!o do seu fil!oTH Kue noatravessaraoceanos para nutrir os frutos de prazeres fortuitos de seres parasitasH KuenaKuela casa os !omens confundiam seo com instinto e, o Kue era grav;ssimo,

!aviam esKuecidoo nome de 'eus"

Page 45: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 45/90

 D 'eus D contra7atacou Emilie" D %u ac!as Kue as caboclas ol!am para o cAu epensam em 'eus o umas sirigaitas, umas espevitadas Kue se esfregam no matocom KualKuerum e correm aKui para mendigar leite e uns trocados"& vel!o interrompeu subitamente a discusso e saiu sisudo, decepcionado antescom Emilie Kue com meus irmos" Era intil censur<7los ou repreendO7los" Emilie

colocava7sesempre ao lado delesH eram pArolas Kue flutuavam entre o cAu e a terra, semprevis;veis e reluzentes aos seus ol!os, e ao alcance de suas mos"Essa conivOncia de Emilie com os fil!os me revoltava, e fazia com Kue Fs vezesme distanciasse dela, mesmo sabendo Kue eu tambAm era idolatrado" %ornava7me umfil!oarredio, por no ser um estraga7albarda, por no ser v;tima ou6968#agressor, por rec!açar a estupidez, a brutalidade no trato com os outros" omeu ;ntimo, creio Kue deiei a fam;lia e a cidade tambAm por no suportar aconvivOnciaestpida com os serviçais" Lembro 'orner dizer Kue o privilAgio aKui no norteno decorre apenas da posse de riKuezas"

 D $Kui reina uma forma estran!a de escravido D opinava 'orner" D $ !umil!aço ea ameaça so o açoiteH a comida e a integraço ilusGria F fam;lia do sen!or soas correntes e golil!as"-avia alguma verdade nesta sentença" Eu notava um esforço da parte de Emiliepara manter acesa a c!ama de uma relaço cordial com $nast<cia ocorro" s vezesbordavame costuravam Nuntas, na salaH e ambas conversavam sobre um passado e lugardistantes, e essas conversas atra;am min!a atenço" .ermanecia !oras ao lado dasduasmul!eres, magnetizado pelo desen!o dourado gravado no corpo v;treo do narguilA,nas contas de cor carmesim Kue formavam volutas ou caracGis semi7imersos nol;Kuidonacarado, e no bico de madeira Kue terminava num orif;cio delicado, como sefossem l<bios preparados para um beiNo" )irando e admirando aKuele obNetoadormecidodurante o dia, escutava as vozes, de variada entonaço, a evocar temas todistintos Kue as aproimavam" $nast<cia impressionava7se com a parreira sobre op<tiopeKueno, o tel!ado de fol!as, suspenso, de onde brotavam cac!os de uvasminsculas, Kuase brancas e transparentes, e Kue nunca cresciamH ela faziacareta Kuandodegustava as frutin!as azedas, sem entender a origem dos cac!os enormes degradas moscatAis Kue entupiam a geladeira, o pomar das del;cias, Nunto com asmaçs,peras e figos Kue meu pai trazia do sul, bem como as caias de ra!a comamOndoas, os saKuin!os de misSi, as latas de tmaras e de TtambacT, o tabacopersa para onarguilA" $s frutas e guloseimas eram proibidas Fs empregadas, e, cada vez Kuena min!a presença Emilie flagrava $nast<cia engolindo Fs pressas uma tmara comcaroço,ou mastigando um bombom degoma, eu me interpun!a entre ambas e mentia F min!a me, dizendo7l!e4 fui eu Kuel!e ofereci o Kue sobrou da caia de tmaras Kue comiH assim, evitava umescndalo,uma puniço ou uma advertOncia, alAm de deiar Emilie reconfortada, radiante dealegria, pois para fazO7la feliz bastava Kue um fil!o devorasse Kuantidadesimensasde alimentos, como se o conceito de felicidade estivesse muito prGimo ao ato demastigar e ingerir sem fim"

Page 46: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 46/90

$ lavadeira me agradecia perfumando min!as roupasH depois de esfreg<7las eenagu<7las, ela salpicava seiva de alfazema nas camisas, lenços e meias, e,Kuando eupun!a as mos nos bolsos das calças, encontrava as ervas de c!eiro4 o benNoim ea canela" (m odor de mistura de essOncias me acompan!ava nos passeios pelacidade

e desprendia7se do guarda7roupa aberto durante a noite, como se ali, fumegandoem algum canto escuro, eistisse um incenso invis;vel"& odor no estava ausente da conversa entre as duas mul!eres" & aroma das frutasdo TsulT vaporava, se colocadas ao lado do cupuaçu ou da graviola, frutas Kue,segundoEmilie, ealavam um odor durante o dia, e um outro, mais intenso, mais doce,durante a noite" To frutas para saciar o olfato, no a fomeT, proferia Emilie"TGos figos da min!a infncia me deiavam estonteada desse Neito"QQ & aroma dosfigos era a ponta de um novelo de !istGrias narradas por min!a me" Ela falavadas proezasdos !omens das aldeias, Kue no crepsculo do outono remeiam com as mos asfol!as amontoadas nos camin!os Kue seriam cobertos pela neve, e com o indicador!irsutoda mo direita procuravam os escorpiMes para instig<7los, sem temer o aguil!oda cauda Kue penetrava no figo oferecido pela outra mo" Ela evocava tambAm ospasseiosentre as ru;nas romanas, os templos religiosos erigidos em sAculos distintos, asbrincadeiras no lombo dos animais e as camin!adas atravAs de etensas cavernasKuerasgavam as montan!as de neve, atA alcançar os conventos debruçados sobreabismos" T)as tin!a um outro cami76#n!o, ao ar livreT, dizia, emocionada" Era uma escada constru;da pela natureza4pedras arredondadas pela neve escalonam as montan!as e te conduzem Kuase sempreaum convento ou monastArio" L< do alto, a terra, os rios e o mar azuladodesaparecem4 a paisagem do mundo se restringe F floresta de cedros negros e aorio sagradoKue nasce ao pA das montan!as" $lAm dos muros Kue circundam os edif;ciossuntuosos e solenes, uma outra paisagem surge como um milagre4 cGrregos ao meiode bosKues,videiras, oliveiras e figueiras Kue se alastram no muito longe do claustro, daigreNa e das celas onde os solit<rios, nutridos pela religio, alçam o vBo rumoaocAu como as asas de uma montan!a"+mpass;vel, com o ol!ar vidrado no rosto de Emilie, $nast<cia aproveitava umapausa da voz da patroa, empinava o corpo e indagava4 como A o mar o Kue A umaru;naonde fica albeS s vezes Emilie franzia a testa e me cutucava, Kuerendo Kue euelucidasse certas dvidas" curioso, pois sem se dar conta, tua avG deiavaescaparfrases inteiras em <rabe, e A prov<vel Kue nesses momentos ela estivesse muitolonge de mim, de $nast<cia, do sobrado e de )anaus" Eu deiava de contemplar osarabescosdo narguilA para ponderar sobre isso e aKuilo, e tentava dar outro rumo aoassunto, uma reviravolta no tempo e no espaço, passar do )editerrneo ao$mazonas, daneve ao mormaço, da montan!a F plan;cie" E, antes Kue $nast<cia começasse afalar, Emilie largava as agul!as e os panos, e ordenava a mul!er a preparar umcafA comborra e servi7lo em ;caras de porcelana c!inesa, to peKuenas Kue o primeirogole parecia o ltimo" $lguma coisa imprecisa ou misteriosa na fala de $nast<cia

!ipnotizava

Page 47: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 47/90

min!a me" Emilie, ao contr<rio de meu pai, de 'orner e dos nossos vizin!os, notin!a vivido no interior do $mazonas" Ela, como eu, Namais atravessara o rio")anausera o seu mundo vis;vel" & outro, lateNava na sua memGria" +mantada por uma vozmelodiosa, Kuase encantada,0

Emilie maravil!ava7se com a descriço da trepadeira Kue espanta a inveNa, dasfol!as mal!adas de um taN< Kue reproduz a fortuna de um !omem, das receitas decurandeirosKue vOem em certas ervas da floresta o enigma das doenças mais tem;veis, com asinfusMes de coloraço sangU;nea aconsel!adas para aliviar trinta e seis dores docorpo !umano" TE eistem ervas Kue no curam nadaT, revelava a lavadeira, Tmasassan!am a mente da gente" asta tomar um gole do l;Kuido fervendo para Kue ocristoson!e uma nica noite muitas vidas diferentes"Esse relato poderia ser de duvidosa veracidade para outras pessoas, no paraEmilie" o Nardim tu ainda encontras os taN<s e as trepadeiras, separadas dasplantasornamentais" Emilie plantou as mudas naKuele tempo e, aconsel!ada por $nast<cia,preparou um adubo com estAreo de galin!a e carvo em pG para ser misturado Fterra,de sete em sete dias durante sete meses" & resultado A a espessa mural!averdemusgo Kue cerca a fonte, e o matagal de taN<s vizin!o ao galin!eiro" LembroKue alieistiam nin!os de cobra, e muitos galin<ceos pereceram, v;timas dos of;dios"Emilie deu pouca importncia ao fato" T.refiro conviver com cobras a ter Kuesuportaruma ponta de inveNa desse ou daKueleT, costumava dizer"$nast<cia falava !oras a fio, sempre gesticulando, tentando imitar com os dedos,com as mos, com o corpo, o movimento de um animal, o bote de um felino, a formade um peie no ar F procura de alimentos, o vBo melindroso de uma ave" -oNe, aopensar naKuele turbil!o de palavras Kue povoavam tardes inteiras, constato Kue$nast<cia,atravAs da voz Kue evocava vivOncia e imaginaço, procurava um repouso, umatrAgua ao <rduo trabal!o a Kue se dedicava" $o contar !istGrias, sua vida paravapararespirarH e aKuela voz trazia para dentro do sobrado, para dentro de mim e deEmilie, visMes de um mundo misterioso4 no eatamente o da floresta, mas o doimagin<riode uma mul!er Kue falava1#para se poupar, Kue inventava para tentar escapar ao esforço f;sico, como se afala permitisse a suspenso momentnea do mart;rio" Emilie deiava7a falar, masporvezes seu rosto interrogava o significado de um termo KualKuer de origemind;gena, ou de uma epresso no utilizada na cidade, e Kue pertencia F vida dalavadeira,a um tempo remot;ssimo, a um lugar esKuecido F margem de um rio, e Kuedescon!ec;amos" aKueles momentos de dvida ou incompreenso, de nada adiantavao ol!ar perpleode Emilie voltado para mimH permanec;amos, os trOs, calados, resignados asuportar o peso do silOncio, atribu;do aos TtruKues da l;ngua brasileiraT, comoproferiamin!a me" $Kuele silOncio insinuava tanta coisa, e nos incomodava tanto""" *omose para revelar algo fosse necess<rio silenciar" .ara Emilie, talvez fossemmomentosde impasse, de aguda impaciOncia diante da permanOncia da dvida" )as era$nast<cia Kuem rompia o silOncio4 o nome de um p<ssaro, atA ento misterioso einvis;vel,

Page 48: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 48/90

ela passava a descrevO7lo com mincias4 as rOmiges vermel!as, o corpo azulado,Kuase negro, e o bico entreaberto a emitir um canto Kue ela imitava como poucosKuetOm o dom de imitar a melodia da natureza" $ descriço surtia o efeito de umdicion<rio aberto na p<gina luminosa, de onde se fisga a palavra7c!aveH e, comoo sentido

a surgir da forma, o p<ssaro emergia da redoma escura de uma <rvore e lentamentedelineava7se diante de nossos ol!os" pena no teres con!ecido Lobato aturidade, tio da lavadeira" ?oi ele Kueencontrou e resgatou o corpo de EmirH desde ento, tornou7se amigo da fam;lia ede 'orner,Kue o apelidou de T.r;ncipe da )agia rancaT" Era de baia estatura ,atarracado, e apesar dos 60 anos, tin!a um corpo ainda sGlido, da cor do betume,e a fama deremar um dia inteiro contra a correnteza" unca con!eci um !omem to silencioso,mas no seu ol!ar podiam ser lidas todas as respostas,2N< lapidadas, Fs perguntas Kue l!e eram dirigidas" 'a sua vida pouco sab;amos, e$nast<cia ocorro emudecia toda vez Kue l!e pediam informaçMes a respeito dotio"'orner, no sei como, descobriu Kue Lobato falava sem embaraço o n!engatu, e Kueem tempos passados tin!a sido um orador famoso, desses Kue ao abrir a boca faz omundo F sua volta prestar atenço" Logo Kue c!egou em )anaus era con!ecido por%acum, seu verdadeiro nome, e era famoso por ser um grande vidente" a cidadeeleera procurado sempre Kue uma criança se desgarrava dos pais e se perdia nosmeandros, becos e nas ruelas dos bairros mais pobres invadidos pelas <guas dosigarapAs"&s moradores das vilas e munic;pios vizin!os recorriam ao !omem para buscar eencontrar os desaparecidos nos rios e na floresta" o se sabia, nunca se soube,oprocedimento Kue usava para detectar o rastro dos etraviados" abe7se apenasKue passava a noite em claro e de man!zin!a apontava com os dois braços parauma determinadadireço ou lugar, de onde surgia o desgarrado" 'orner descobriu tambAm Kue ele!avia morado algum tempo em *aiena, na compan!ia de uma crioula abastada, e porpoucono acompan!ou a mul!er Kuando esta decidiu ir de vez para a metrGpole"'orner tin!a dessas coisas4 arrancava da pedra uma voz, se Kuisesse" )asconfesso Kue todas as vezes Kue vi Lobato no pronunciou uma sG palavra4 o seuol!ar demoravamenos Kue um aperto de mo e certamente aproimava mais duas pessoas Kue ocontato entre os dedos" Emilie tratava7o com um respeito Kue aspirava FveneraçoH raramenteaparecia em casa, mas bastava pisar na soleira da porta para Kue toda avizin!ança se inteirasse de Kue na fam;lia !avia um enfermo" %razia nas costasuma sacolade couro, surrada e sem cor, onde guardava ervas e plantas medicinais" Era ummestre na cura de dores reum<ticas, inc!açMes, gripes, eGlicas e um leKue dedoençasbenignasH para tanto, misturava algumas ervas com mel de abel!a e azeite doce, emassa73#geava os membros inc!ados e reum<ticos do corpo com uma pasta Kue consistia namistura de cascas piladas de v<rias <rvores, gotas de arnica e uma pitada desebode -olanda" &s componentes e a medida eata de tais preparos foram revelados por'orner, a pedido de -ector 'orado" Lembro Kue, ao retornar da Europa, o mAdicosentenciou

com !umildade4 T%ive de ir a Londres para constatar e aceitar Kue a terapOuticade muitas enfermidades daKui se deve F profunda compreenso de plantas regionais

Page 49: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 49/90

por parte dos moradores da florestaT" Eu e 'orner, amigos ;ntimos de -ector,pens<vamos Kue a presença do curandeiro nas !oras de sofrimento iria ferir osbriosde um mAdico diplomado na (niversidade da a!ia, com curso de especializaço naLondon c!ool of %ropical )edicine" .ara nossa surpresa, o mAdico procurouaproimar7se

de Lobato antes mesmo de reclamar do calor, e de padecer diante da diferençaabissal eistente entre Londres e )anaus" o in;cio, o m<imo Kue conseguiu foiespiaratravAs das fol!agens uma demorada sesso de massagem na perna reum<tica deEmilie" *om uma paciOncia de @G, o mAdico acompan!ou a distncia o preparo dosb<lsamos,atA se familiarizar com as fumigaçMes e con!ecer as propriedades do malvarisco,do craNiru e de certas papoulas e ra;zes do mato" $o fim de algumas poucassemanas,N< no se assustava em saber Kue dentro de uma cuia fervia um l;Kuido Kue TfediaFs maravil!asT, e bastava inalar o vapor para Kue um mortal eperimentasse asensaçodo infinito" 'orner ouvia calado as descobertas e sensaçMes do mAdico" 'epois, asGs comigo, comentava, no sem um sorriso irBnico, Kue os da terra percebemalgumasevidOncias com uma certa demora"$ amizade de Emilie com Lobato foi louvada por uns e tripudiada por outros" %udeves lembrar o atroz sofrimento do seu $mArico, genro do *omendador, nossosvizin!osde lin!agem lusitanaH desde Kue aprendeu a andar tomava diariamente uma inNeçode insulina" Emilie no se conformavacom essa terapOutica Tb<rbaraT e aconsel!ou Esmeralda a procurar Lobato" ?oi umaafronta para os mAdicos daKui" Juando Esmeralda levou o ;ndio F presença domarido,o dr" Ra=ol, referindo7se F Emilie, sentenciou aos seus pacientes4 TG umanBmade imigrante pode se fiar nas c!arlatanices de um curandeiro" e a crençafor difundida,daKui a pouco vo acreditar Kue um c!< de pau7dQarco A capaz de curar o cncerT"$ doença citada tin!a um alvo certo, pois a mul!er de !alom enemou, vizin!a eamiga da fam;lia, Kuis recorrer a Lobato, mas o !omem con!ecia suas limitaçMes"o Kue toca F doença de $mArico, pudemos assistir a uma dessas curas Kue sG sonarradasnos tetos sagrados" $ verdade A Kue, apGs alguns meses de tratamento, nossovizin!o se sentiu to disposto Kue dispensou para sempre as inNeçMes e proferiuumafrase comovente4

 D o desperto mais com a sensaço de Kue meus dias esto contados"Lembro Kue ficou to entusiasmado com a vida Kue desenfurnou do poro o violinoespan!olH desde ento, as madrugadas tornaram7se ainda mais silenciosas com ossolosde .aganini, como se o violinista tocasse para ealtar o silOncio" oube Kueviveu muitos anos aos cuidados da medicina de Lobato" (ns diziam Kue a doençaera tratadacom um etrato alcoGlico de sementes de paric<7rana e sapupira do campo" )asEmilie Nurava Kue, alAm desse etrato, a terapOutica consistia numa infusopreparadacom fol!as e cascas da raiz e do caule da Nacareba, da graviola e doaraticumanso" Lobato nunca afirmou ou desmentiu nada" E, para surpresa de todos,recusou umsal<rio vital;cio do poveiro, mas aceitou um mosaico com uma imagem de o@oaKuim, oriundo de $lcobaça"Emilie padeceu um pouco com as not;cias difamatGrias propagadas por mAdicos epacientes" 'e boca em boca espal!avam Kue o curandeiro N< tin!a envenenado e

cegadouns enfermos miser<veis, derramando7l!es nos ol!os inflamados

Page 50: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 50/90

:5#um l;Kuido vermel!o etra;do dos gal!os de uma palmeiraH falavam tambAm derituais diabGlicos para atrair o esp;rito do )al e penetrar nas entran!as dav;tima"E no faltou Kuem vituperasse contra os mAtodos empregados para abortar e sarar

doenças venAreas4 infusMes fAtidas, massagens obscenas no ventre e nos relevosdocorpo" esses casos, diziam Kue as mul!eres ficavam estAreis e os !omens,impotentes" o entanto, o Kue mais irritava as pessoas era a vida errante deLobato, aineistOncia de uma moradia fia" *ercado de urubus, viam7no ingressar nacarcaça de um barco meio soterrado no mar de deNetos F beira de um igarapAHoutros NuravamKue ele freKUentava sGrdidas palafitas, cuNas paredes estavam cobertas deimagens de santos estran!os, com ol!ares no se sabe se de embriaguez ouloucuraH num recantoprGimo ao casebre, um c;rculo de pontos luminosos brotava do breu da noite eaclarava garrafas de cac!aça e galin!as mortas entre mont;culos de medal!asprofanas"Esses atributos infames, vitupArios dirigidos a um !omem pacato e Kuaseinvis;vel, eram lancetadas dirigidas tambAm contra uma tradiço ainda viva, Kuepulsava nocoraço dos bairros da periferia, no interior de !abitaçMes suspensas, açoitadaspelas c!uvas")ais Kue as inNrias contra Lobato, surpreendeu7nos saber o parentesco entre o.r;ncipe da )agia ranca e $nast<cia ocorro" 'urante anos pensamos Kue nuncatin!amse encontrado antes, mas a verdade A Kue Lobato aconsel!ara a sobrin!a aprocurar um emprego no sobradoH por alguma razo ele sabia Kue Emilie precisavade uma lavadeirae Kue iria com a cara de $nast<cia" &s dois sG conversavam com o ol!ar, eimagin<vamos Kue o interesse de ambos por plantas medicinais fosse apenas umacoincidOnciabanal" $ revelaço do parentesco, para nossa surpresa, alterou a relaço deEmilie com a lavadeira" $nast<cia ficou mais ;ntima dos freKUentadores da casa,e logroua proteço de EmilieH as tardes de Gcio multiplicaram7se e as tarefas domAsticaspassaram a sermais amenas" $ lavadeira começou a viver como uma serviçal Kue impMe respeito, eno mais como escrava" )as essa regalia sbita foi efOmera" )eus irmos, nosfreKUentesdeslizes Kue adulteravam este novo relacionamento, eram dardeNados pelo ol!arsevero de EmilieH eles nunca suportaram de bom grado Kue uma ;ndia passasse acomerna mesa da sala, usando os mesmos tal!eres e pratos, e comprimindo com os l<bioso mesmo cristal dos copos e a mesma porcelana das ;caras de cafA" (ma espAciedeasco e repulsa tingia7l!es o rosto, N< no comiam com a mesma saciedade erecusavam7se a elogiar os pastAis de picadin!o de carneiro, os fol!eados de natae tmara,e o arroz com amOndoas, dourado, ealando um c!eiro de cebola tostada" $Kuelamul!er, sentada e muda, com o rosto rastreado de rugas, era capaz de tirar osabore o odor dos alimentos e de suprimir a voz e o gesto como se o seu silOncio ou asua presença Kue era sG silOncio impedisse o outro de viver" em Kue alguAm l!edissesse algo, $nast<cia se esKuivou dessa intimidade Kue causava repugnncianos meus irmos, afliço em Emilie e uma discGrdia generalizada na !ora das

refeiçMes,

Page 51: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 51/90

um dos raros momentos em Kue a fam;lia !asteava a bandeira da paz" $ comidapreparada por Emilie nos unia, e as amenidades do dia /um roubo, alguAm Kuec!egava oupartia, um matrimBnio, alguAm Kue enviuvava garantiam uma trAgua, e nos faziamesKuecer os rancores" *om o rabo do ol!o eu observava meu pai, e Fs vezes, semenerg<7lo,

pressentia Kue seu ol!ar divagador em algum momento conflu;a para o rosto damul!er Nulgada e discriminada pelos outros" +maginavameu pai sempre a sGs com 'eus"'orner discordava" 'izia4 T um eagero, nGs nunca estamos sozin!os com 'eusTHadvertia7me Kue os enemou liam o %almude a Kuatro ou seis ol!os" Eu replicava,dizendoKue na leitura das uratas no !avia ol!os solid<rios aos do meu pai, pois doseu confinamento sG compartil!ava o Livro4 as palavras estavam impressas na suasolido"8#.assamos a conviver com a lavadeira de uma maneira meio indefinida, amorfaHlonge da mesa ela se revelava menos intrusa, menos ;ntima" Ressurgiram oapetite, asvozes, os elogios Fs mos divinas de Emilie, e os coment<rios do dia foramreavivados" 'iscorr;amos sobre o duelo entre dois !omens na rua deserta numatarde dedomingo4 um confronto aguardado !< muito tempo pela cidade, ansiosa para Kue amorte de um no fosse apenas uma anedota, mas um evento perdur<vel Kueparticipasseda vida de todos" a verdade, a morte em )anaus sG passava despercebida seisenta de agonia e crueldadeH a outra assumia um car<ter memor<vel, impregnava7se no tempo,resistia ao esKuecimento, como se o desaparecimento tr<gico de alguAm dissesserespeito a todos" $ssim ocorreu com o duelo entre Pasen e $nuar onato, e Kueculminoucom a morte de ambosH morreram abraçados, diante da )atriz, como dois irmos Kuese reencontram para con!ecer a morte" )emor<vel tambAm a morte de elmo,enforcadoe pendurado na <rvore mais alta e frondosa da Estrada de ?lores, e em seguidaesKuarteNado por todos Kue o odiavam, e Kue eram muitos" e algo atroz noocorressedurante um ano, as gentes apelavam para a memGria4 !istGrias eram recontadas comnovos detal!es, as v;timas reviviam os supl;cios lembrados por vozes ealtantesKue disputavam a lembrança de uma cena" $ vida no era to pacata" %u fostetestemun!a do Kue aconteceu com ora=a $ngela, e acompan!aste a vida atormentada/emboraFs vezes dissimulada de Emilie, Kuando ela evocava a morte do irmo" )aispassava o tempo e min!a me parecia mais perto de Emir, mais inconformada com odesaparecimentodele" %ranscorridos mais de vinte anos daKuela man! do coreto, Emilie ainda sededicava a uma pr<tica filantrGpica Kue, no in;cio, no incomodou meu pai"$final,o $lcoro no a aconsel!a numa das urataso sei como isso continuou, mas enKuanto morava aKui ela se empen!ava para Kuenada faltasse aos moradores6da *idad ?lutuante" a vAspera do dia das oferendas reinava na casa um clima defesta" estran!o pensar na ealtaço de um dia Kue comemora todos os dias Kueprecedemo da morte de alguAm" Emilie despertava mais cedo e pendurava nos gal!os dosNambeiros as ampolas de vidro repletas de nActar de genipapo, para Kue os beiNa7floresali bebericassem" .areciam passarin!os de cristal mamando no seio da natureza,

degustando o l;Kuido amarelo, da cor da aurora" &s vasos e os canteiros eramregados,

Page 52: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 52/90

e os NarrMes de porcelana se avultavam com as begBnias e tulipas cultivadas nosNardins dos franceses" %udo era to diferente do desleio de !oNe4 a pedra dafonteparecia pulsar de to alva e porosa, e o cristal dos espel!os era to polido Kuedevolvia aos !omens algo mais Kue a repetiço dos gestos" 'a faina da casaparticipavam

as empregadas com seus fil!os, alAm dos afil!ados de Emilie" -indiA, )enta!a eXasmine aNudavam no preparo dos Kuitutes, uma miscelnea culin<ria de pratosorientaise amazBnicos" $s guloseimas eram cuidadosamente arrumadas em cestas de pal!a Kuecobriam as laNotas da copa e cozin!a e tornavam os corredores intransit<veis" ofim do dia ela inspecionava todos os recantos da casa, dava as ltimas ordensaos meninos, pois sempre restavam teias de aran!a e casas de cupim nos ngulos ebatentesde madeira dos aposentos desabitados, nGdoas no tabuado, e bolor de umidade nasparedes internas" Juando a via despedir7se para rezar e dormir, ela demonstravaumcansaço to grande Kue c!egava a alterar sua idade, como se todos os segundosvividos naKuele dia pulsassem em cada poro do corpo" )as na man! seguinteEmilie seiluminavaH vestia um tailleur negro e usava o colar de pArolas contornando odecote, mas em contato com a pele" & rosto liso como o marfim era envolto peloscabelosondulados, e por detr<s da orel!a brotava a flor de Nambo, de um vermel!o vivoKue repetia o vermel!o dos l<bios" $o despontar assim, no vo da escada, meu paiestremecia,mordendo os beiços, talvez ressentido ou enciumado,#em todo caso irreKuieto e certamente fascinado com aKuela viso matinal, Kueera a verso mais pura da beleza" Ele no estran!ava a sua atitude, pois Emilieseembelezava para reverenciar um defunto, mas o fato A Kue, naKuele dia do ano, onegro Kue l!e cobria o corpo era, mais Kue luto, luo" $dKuiria uma posturaesguia,colocava o anel de safira na mo esKuerda e, para surpresa de todos, pintava osc;lios de pretoH as suas un!as, cobertas por um esmalte transparente, reluziamHeuma bolsa preta e escamada era o nico obNeto Kue levava, alAm de um vaso comflores e o retrato de Emir" $o voltar da )atriz e do porto, l< pelo meio7dia,uma filaindiana, Kue ia da porta do sobrado e terminava Kuase dentro do coreto da praça,esperava7a sob o sol escaldante" $ cada ano Kue passava, os curumins e mendigosengrossavam essa fila, e os doentes Kue l!e mostravam as c!agas e os membroscarcomidos ela encamin!ava a -ector 'orado" )uitos desses agraciados l!eofereciam presentesKue eles preferiam c!amar de Q Qlembrancin!as para a me de todosQQ" EramobNetos, animais e plantas origin<rios dos Kuatro cantos da $mazBnia4 p<ssaros erApteisvivos e empal!ados, o precioso rouinol do rio egro, mudas de trepadeiras,samambaias e palmeiras, peiin!os fosforescentes, piran!as embalsamadas, e atAmesmoa rAplica fiel de um remo sagrado Kue conta a !istGria de uma tribo ind;genaHela pendurou o remo na parede da sala, bem ao lado de um pedaço de cedro doL;banoHambos tambAm sumiram, no sei como" & Kuarto dos fundos, vizin!o Fs ed;culas,onde tu e teu irmo brincavam de esconde7esconde, foi constru;do para abrigar osobNetosacumulados durante tanto tempo" o tanKue ao lado da fonte ainda nadam dezenasde peiin!os e me impressionou ver como os NacarAs cresceram, porKue outrora no

!avia

Page 53: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 53/90

o cubo de arame onde agora esto confinados" %ambAm no eistia a gaiolagigantesca, esse edif;cio transparente e sonoro, pois ela fazia Kuesto deconservar osp<ssaros nas gaiolas de madeira"unca l!e passou pela cabeça doar um desses seres animados a Kuem Kuer Kuefosse" *om um sorriso, negava os insistentes pedidos das +rmandades dos bairros

mais miser<veispara Kue alguns obNetos e animais fossem rifados e o din!eiro revertido naaKuisiço de roupas, alimentos e medicamentos" s religiosas de o Vicente de.aula eladizia, Kuase se desculpando4 TEssas lembrancin!as so para mim rel;KuiasT"inguAm se atrevia a contestar essa sentença de Emilie, sobretudo Kuando elapassou ainventariar cada obNeto recebido"(m dos afil!ados de $nast<cia ocorro foi designado para fazer esse trabal!o deamanuense" a man! das oferendas ele ficava ao lado de Emilie enKuanto l!ebeiNavama mo esKuerda e recebiam comida F base de farin!a de trigo integral" Epeditoocorro anotava o nome da pessoa e a origem da lembrançaH o papelzin!o eracoladono obNeto, e durante meses Epedito se ocupava em colar etiKuetas e classificaros presentes, Nuntando7os em fam;lias de animais e ainda especificando o tipo damadeira /uma arraia de angelim, um tucano de pau7brasil, uma anta de itaba, edas plumas de p<ssaros e sementes de frutas Kue ornavam os colares e brincos"ofoi por outro motivo Kue Epedito conseguiu mais tarde um emprego no correio, naseço destinada F triagem de correspondOncia por setores da cidade, pois suaeperiOnciade anos na tarefa de anotar e classificar dotara7o de uma !abilidadeimpressionante no manuseio de papAis escritos e circulatGrios" .ara ficar em pazcom as +rmandadesreligiosas, Emilie doava as frutas Kue recebia aos montes" *om o tempo, meu paipassou a ironizar essa festa de benevolOncias, e dizia4 T.raticam umafilantropiacuriosa4 tiram dos pobres para dar aos pobresT" & vel!o N< no escondia suairritaço naKuele dia agitado do ano" Recusava7se a permanecer na casa alegandofaltade sossego para fazer a sesta, e, no ;ntimo, talvez deseNasse Kue aKuelesp<ssaros milagrosos atirassem pedras na multido de cristos" Emilie vingava7se100101#dessas c!acotas incursionando ao depGsito da .arisiense, de onde retiravaretal!os de algodo e peças de c!ito para doar Fs +rmandades" Eu mesmo fuicmplicedessas incursMes Kue consistiam em roubar o Kue nos pertencia" $o notar a min!asurpresa e o meu temor, ela se Nustificava dizendo Kue apreciava a loNa e ostecidosporKue os bens materiais l!e permitiam assistir aos necessitados desse mundo")as esse ato caridoso, festeNado com as pompas de Kuem comemora o dia de umaanta.adroeira, começou a ofuscar7se desde a morte tr<gica de ora=a $ngela" EmilieN< no podia mais suportar ou fingir desprezar esse tipo de artiman!a implac<veldafatalidade Kue abala um cristo ou um crente KualKuer, e Kue se manifestaatravAs de um paradoo ineplic<vel4 a devoço fervorosa A minada por umamaldiço, porum evento atroz e irrepar<vel como a perda de um ente Kuerido, e atA mesmo agenerosidade e a caridade cultivadas !< dAcadas so ameaçadas por esse evento,como

Page 54: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 54/90

se a regio mais obscura do cAu despeNasse sobre a casa devota um castigoimprevis;vel, absurdo, mas inevit<vel, fazendo do servo do en!or uma sombrafr<gil e impotenteperseguida pelo 'emBnio" .or isso, Emilie, mais Kue meu pai, andava meiodesanimada e passiva diante da vida, sobretudo nos nossos ltimos anos deconv;vio" .arecia

vegetar num tempo sem tempo, e alegava aos amigos Kue a rotina do dia7a7dia, tofastidiosa Kuanto a inatividade de um paral;tico ou de uma pessoa mutilada,ensombreciaa prGpria vida"Eu no procurava as causas do seu desnimo" %eria sido uma busca imposs;vel,pois viv;amos entregues a um apego mtuo, e KualKuer sintoma de abalo e delassidoKue tomava conta de um logo contaminava o outro" Essa contaminaço de angstias,a min!a idolatria por Emilie, a sua intromisso na min!a vida, tudo se acentuavapelo fato de eu compreender Kuando ela falava na sua l;ngua" .orKue, aoconversar comigo, min!a me no traduzia, no tateava as palavras, no demoravana escol!ade um verbo, no resvalava na sin7102tae" E eu sentia isso4 c!eia de prazer, soberana, despreendida de tudo, elapodia eleger os camin!os por onde passa o afeto4 o ol!ar, o gesto e a fala"Juando l!ecomuniKuei diante dos outros irmos a min!a deciso de ir embora daKui, elaepressou sua surpresa com uma torrente verbal Kue sG nGs dois entendemos".ercebi Kuealguma perverso !avia na sua atitude" +ndefesos, atordoados, Kuem sabe nosodiando, meus irmos foram eclu;dos, banidos do p<tio" E eu pensava4 ensinou amim ea nen!um outro, para sermos confidentes, para ficarmos sozin!os na !ora daseparaço" Ela no falava para proibir, condenar ou censurar, mas para Kue eusentissecom toda a intensidade, como uma eploso detonada sG dentro de mim, a dor daseparaço" aKuele in;cio de tarde, contrariandoo !<bito sagrado da sesta, ela nocedeu ao sono" Esperou os dois fil!os subirem para o Kuarto e, a sGs comigo,entregou7se de vez F cantilena da despedida" s vezes emudecia, debruçava7sesobre meucorpo, com a ponta dos dedos contornava meus ol!osH alisava7me as sobrancel!as eos pBmulos, cerrava meus ol!os triscando a pele do dorso da mo nos meus c;lios,e Nuntando os cinco dedos da mo Kue me acariciava, repousava7os no seu coraço"'epois se afastava lentamente, sem desviar os ol!os de mim" Eu aspirava o ardensodo mormaço impregnado por um bafo de alm;scar e, Kuase esvanecido, entregava7meF dolorosa sensaço de uma saudade antecipada, imaginando7me a bordo de um navioKue no mais retornaria a essas <guas" (ma nica vez levantou7se para ir Fcozin!a" $o voltar, com uma Narra de suco de frutas e uma bandeNa com pistac!e,amOndoas,gergelim e figos, no pudemos esconder nosso embaraço ao perceber Kue ambost;n!amos os ol!os avermel!ados e a voz alterada pela emoço"?oi uma tarde inteira de promessas e confidencias entremeadas de c!amegos erisos" )as, Kuando riamos, era a vida mesma Kue parecia interromper seu curso,porKueera um riso convulsivo, engrolado, Kuase nefasto" &s pedidos103#Kue l!e fiz foram cumpridos F risca" Ela convenceu meu pai de Kue eu deviacontinuar meus estudos no outro lado do pa;s, e Kue para isso era necess<rioenviar7meuma mesada cuNa Kuantia ela mesma estipulou" unca me escreveu uma lin!a, mas

troc<vamos fotos por correspondOncia, sabendo ser essa a nica maneira depreservar

Page 55: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 55/90

uma idolatria F distncia" $ ltima frase Kue me disse no finzin!o daKuela tarde/antes Kue a casa mergul!asse na az<fama do crepsculo com a c!egada de parentese amigos Kue participavam do Nantar e da Nogatina ao redor do narguilA foi4T`uardo dentro de mim teus ol!osT" Enviou7me fotografias durante Kuase vinte ecincoanos, e atravAs das fotos eu tentava decifrar os enigmas e as apreensMes de sua

vida, e a metamorfose do seu corpo" oube da morte do meu pai ao receber umafotografiaem Kue ela estava sentada na cadeira de balanço ao lado da poltrona coberta porum lençol branco, onde meu pai costumava sentar7se ao lado dela nas man!s dosdomingose feriados" o dedo da mo esKuerda vi dois anAis de ouro, e os ol!os negrosbril!avam por tr<s do vAu de tule Kue escondia a metade do rosto" ?oi apenltima fotografiaenviada por ela, !< uns oito anos" .ouco tempo depois da morte do meu pai,recebi as duas ltimas, no mesmo envelopeH numa delas, via7se no primeiro planoo seurosto ainda sem rugas, com a cabeça envolta por uma mantil!a de fios prateadosHtalvez por causa da intensidade do flas! ou da profuso de c!amas das velas ec;riosKue ondulavam em volta de seu corpo, a mantil!a e as mec!as de cabelos seespal!avam sobre a testa e escorriam nos ombros como fol!as de cardofosforescentes" Eraum rosto suavemente maKuilado, e na sua epresso conviviam a serenidadeimplac<vel e a postura soberana dos rostos esculturais das santas embutidas emnic!os comtampa de cristal, perfilados nas laterais da nave da igreNa cuNas portas seabrem para o porto e so iluminadas pelo sol da man!" & rosto de min!a me e osdassantas, os c;rios, as c!amas e os nic!os, tudo aparecia com um esmero assom710:broso de detal!es" 'atada de 5 de Nun!o, a nica foto colorida Kue me foienviada veio emoldurada num retngulo de papel c!oeller de tetura marmGrea, elevavano ngulo inferior direito a marca dQ<gua do laboratGrio fotogr<fico dos irmosPa!n"$ outra fotografia, to diferente daKuela, enKuadrava Emilie no centro do p<tiocercado por um Nardim de 'el;cias" Juase tudo naKuela imagem me remetia F tardeN<remota em Kue l!e anunciei min!a deciso de partir" +dentifiKuei o mesmo vestidode seda pura com florMes negros bordados F mo, Kue se aNustava ao seu corpoaindaesbelto, e tambAm ao luto Kue l!e impun!a a morte recente do marido" entada namesma cadeira de vime, ladeada por uma cadeira idOntica em cuNo espaldar merecosteipara sentir a fragrncia do alm;scar, eu contemplava aKuela imagem como Kuemcontempla o <lbum de uma vida, constru;da de p<ginas transparentes, tecidasduranteum son!o" $o ol!ar para a foto, era imposs;vel no ouvir a voz de Emilie e nomaterializar seu corpo no centro do p<tio, diante da fonte, onde fios de <guacristalinaesguic!am da boca dos Kuatro anNos de pedra, como as arestas l;Kuidas de umapirmide invis;vel, oca e aArea" e eu no tivesse ol!ado para aKuelafotografia, poderiaabstrair todas as outras, fec!ar os ol!os a todos os retratos enviados para mimao longo de tantos anos, ou simplesmente recordar atravAs das imagens algofugidio,Kue escapa da realidade e contraria uma verdade, uma evidOncia" .orKue era arevelaço de um momento real e de uma situaço palp<vel o Kue mais me

impressionava

Page 56: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 56/90

na fotografia" entia7me ali, Nuntin!o de Emilie, ocupando a outra cadeira devime, atento ao seu ol!ar, F sua voz Kue no me interrogava, Kue aparentava norelutarKue eu fosse embora para sempre" $ voz e a imagem me fazem recordar um mundo dedesilusMes, onde um rosto sombrio se cobre com um vAu espesso enunciando umamorte

Kue N< iniciara" Ela falava para desvelar este vAu tecido !< muito tempo, e Kuepouco a pou7105#co foi se alastrando na sua vida" E o rosto na fotografia parecia revelar asdecepçMes, os tropeços e o sofrimento desde o momento em Kue Emilie descobriu orelevono ventre da fil!a, antes Kue amara 'elia o descobrisse" egou durante trOs ouKuatro meses, sem acreditar no outro corpo epandindo7se no seu corpo, atA o diaem Kue no pBde mais sair de casa, atA a man! em Kue acordou sem poder sair doKuarto" Viveu cinco meses confinada, solit<ria, prGima demais FKuele alguAminvis;vel,F outra vida ainda fl<cida, duplamente escondida" G Emilie entrava no Kuartopara visit<la, como se aKuele espaço vedado fosse um lugar perigoso, o antro docont<gio,e da proliferaço da peste" E, na noite em Kue nasceu ora=a, a casa todapermaneceu al!eia aos gemidos, ao movimento das amigas Kue Emilie convocara paraauili<7lano maneNo de bacia e parc!es, entre vozes Kue rezavam" 'urante semanas e meses,ninguAm passou diante da porta do Kuarto, e o peKueno mundo da reclusocontinuoua eistir, vigiado, lgubre, a vida crescendo em segredo, em surdina4 um aKu<rioopaco e sem luz dentro da casa, onde nen!um ru;do ou gemido, nen!umaetravagnciade sons denunciasse a presença dos dois corpos, como se me e fil!a tivessemrenunciado a tudo, F espera da absolviço e do recon!ecimento"Emilie era a nica pessoa Kue l!es permitia sobreviver" 'emorou Kuase um anopara Kue os irmos aceitassem a compan!ia velada de ambas, e Fs vezesesKuec;amos porcompleto a eistOncia dos dois seres al!eios ao nosso conv;vio" Essa distncia,essa invisibilidade acabaram por tornarse um !<bitoH e a porta do Kuarto, semprefec!ada, era uma vedaço Kue bem podia encerrar entul!os ou obNetos em desuso")as Emilie sabia Kue um dia, por força do !<bito, da insistOncia em convivermoscomalgo recBndito, nGs passar;amos a ser tolerantes" E, numa man!, lembro Kue fuio primeiro a ver a criança engatin!ando no p<tio, perplea, p<lida, tateando umespaçodescon!ecido, estran!ando a pai7109sagem, os ngulos e o contorno da fonte, e abismada com a presença de tantosanimais" Ela parava diante de ti, tocava o teu rosto, os teus cabelos, e ol!avaparaEmilie e para min!a irm, como se l!es perguntasse de onde !avias surgido" %utin!as Kuatro anos, e devias ter perguntado a mesma coisa, como realmente ofizestedias depois, dirigindo7se F amara 'elia, indagando7l!e por Kue ela tin!a idoembora, e se !avia not;cias daKuela mul!er Kue morava fora e sG vin!a te visitarumavez na vida e outra na morte" Encontrar uma resposta ou uma mentira causou certoembaraço F amara, e antes Kue esta falasse, Emilie te suspendeu e te aconc!egouao colo e no teu ouvido soprou umas palavrasH tu ol!aste a criança comcuriosidade, riste, e Kuando Emilie te soltou tu correste e pegaste na mo deora=a" Vi vocOsduas rumando ao encontro dos animais, das g<rgulas, dos embrec!ados e da

alm<cega, atA sumirem entre os taN<s brancos e as avencas" E ali, durante asman!s, vocOs

Page 57: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 57/90

se perdiam, encavernadas atA o meio7dia, !ora em Kue meus irmos acordavam eEmilie ia atr<s de vocOs, para acompan!ar ora=a $ngela ao Kuarto onde min!airm aesperava" G dois anos depois, Kuando tua me veio a )anaus com um bebO no colopara Kue Emilie criasse, tu entendeste" @< antes devias desconfiar, pois do Nogode palavras, do parco fraseado, sG tu participavasH ento c!oravas pensando Kue

fosse desprezo da outra, ou Kue o seu mutismo fosse um fac!o de feitiço para teimobilizar,te encantar, como alguAm diante de algo Kue nunca viu e teme a surpresa do Kueser< visto" )as no era desprezo nem feitiçoH tu descobriste antes dos adultos,perguntandoa todos Q Qpor Kue a criança nunca fala, por Kue no responde Kuando falo comelaT" .areceu absurdo F min!a irm Kue uma criança observasse e constatasse oKue elarelutava em aceitar" .orKue nas tuas perguntas a entonaço era de alguAm Kueafirmava, e a me sentia Kue o segredo de uma TanomaliaT, de um Tdesvio denascençaT,no era mais poss;vel dissimular" Ela proibia o contato da fil!a com as outras108#crianças e com as visitas da casa, e restringia o seu espaço vital aos fundosda casa e ao Kuarto"Lembro Kue nos dois primeiros anos ninguAm, salvo Emilie, podia toc<7la" E umavez, ao tentar aproimar7me dela, um grito repentino, Kuase um descuido,imobilizoume"o era um grito de advertOncia, proibiço ou !ostilidadeH parecia antes umdesabafo, o Kue dilacera, um rugido de vergon!a" $fastei7me da criança e noteiKue elano tirava os ol!os de mim, estran!ando talvez meu recuo, min!a covardia por nol!e ter tocado o rostoH e aKuele par de ol!os, enormes, negros, bem Nuntos, Kuediminu;am ainda mais seu rosto peKueno, aKuele ol!ar Kueria atrair, tatear ooutro, ampliar o contato com o mundo" .arecia um ol!ar fatigado de um corpofustigadopela repetiço, pelo c;rculo fec!ado de monotonias4 o Kuarto, as duas mul!eres,os fundos da casa, as duas criançasH restava7l!e o ol!ar e os movimentos aindaacan!adosdo corpoH o ol!ar tentava resistir a essa monotonia, F vida interrompida no meiodo dia, porKue uma noite precoce a envolvia no in;cio da tarde, Kuando a vida /ool!ar se encerrava entre Kuatro paredes" 'e longe, eu a observava algumasvezes, sozin!a no meio do p<tio" EsKuecida de tudo, deitada sobre o solo deardGsia, elamirava detidamente um dos anNos de pedra" eu ol!ar detin!a7se numa das mosabertas de um corpo tal!ado com esmero, ligeiramente inclinado para frente,eKuilibradona ponta de um pA" 'as Kuatro esculturas idOnticas ela elegera uma sG, e o seufasc;nio concentrava7se ali, na etremidade do corpo tingido de açafro, nosdedosseparados de uma mo espalmada entre a cabeça da criança e a da escultura" 'esdeo dia Kue ela conseguiu ficar de pA, a cabeça passou a roçar a mo da est<tua4osdedos de pedra bem prGimos aos ol!os, ao ol!ar !ipnotizado do corpo plantadosozin!o no Kuadriculado vermel!o do piso" ozin!a, mas sem abandono, ela repetiaaKuietude da pedra, talvez procurando no anonimato da matAria esculpida um nomeKualKuerH no um nome morto, antes um nome106esKuecido ou perdido, incrustado em algum recanto da est<tua" %oda uma man! seesva;a nesse tOnue contato4 o encontro do ol!ar com a mo" Eu presenciava osdoiscorpos sem poder alcanç<7los, pois de algum lugar do p<tio a me os vigiava,

atenta, atA o momento da separaço" &s ol!os se afastavam da mo, e a criança,suspensa,

Page 58: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 58/90

presa aos braços da me, no esperneava nem resistia ao movimento inesperado Kuea seKUestrava do di<logo surdo"?oi uma cena repetida muitas vezesH eu mirava os dois corpos insepar<veis,indagando para mim mesmo por Kue ela escol!era aKuela est<tua entre as outras,esKuecendotudo ao seu redor /o Nardim, os animais, a <gua da fonte, vocOs Kuando se

encontrava ali, as duas sombras paralelas encurtando vagarosamente atA setornarem umamanc!a menor Kue a mo de uma boneca e sumir de vez" Juase sem perceber, como amenina atra;da pela mo da est<tua, ou a mo magnetizada pelo ol!ar da menina,eume deiava levar por esse Nogo de presenças e ausOncias entre a me e a fil!a".assava man!s a observar o movimento no p<tio, e inclusive fotografei ora=angela,uma sG vez, de longe"%ambAm acontecia de eu renunciar ao sono, vigiando momentos da noite, a fim dedesvendar no sei o KuO" as noites das Kuartas e s<bados notava a ausOncia deamara'eliaH ela desaparecia do Kuarto, da casa, como alguAm Kue se oculta, e sGregressava muito tarde" o fundo da noite embreada eu escutava os passos e oru;do met<licoda c!ave destrancando a porta do KuartoH !avia um cuidado esmerado para Kue ospassos e o giro da c!ave na fec!adura fossem impercept;veisH mas no meu Kuarto,cont;guoao dela, era poss;vel captar ou intuir o ru;do ou seu eco" +maginava7a dentro doKuarto, andando de um lado para outro, parada entre a cama e a Nanela, aNoel!adadiante da fil!aH imaginava tantas situaçMes para no escutar, para evitar aescuta" .orKue o c!orocontamina" & ru;do do c!oro sempre transpassa a parede4 anteparofr<gil, vulner<vel F dor do desespero" En710#to compreendi por Kue nas man!s das Kuintas e domingos seu rosto envel!ecia,como se o sono da noite fosse um confronto com uma impossibilidade, com umasituaçoinsolvel ou tr<gica" +maginava7a c!orando aos prantos, e Kue ela se permitia aisso dentro do Kuarto porKue, para a fil!a, a dor do desespero sG podia servis;vel4o rosto contorcido, convulso, os ol!os dilatados ou engolfados pelo rosto, asmos emaran!adas nos cabelosH ou ento o c!oro sem m<scaras, para no alterar orelevodo rosto, e assim deiar ora=a ngela perdida no sono, arrastada por um poucode morte, v;tima do silOncio das noites e dos dias" oube depois Kue as fugasnoturnasde min!a irm terminavam na igreNa e Kue Emilie a aconsel!ara ser devota e castapara o resto da vida"

 D .orKue sG assim tu te eimes de uma culpa Kue pode te corroer da cabeça aospAs D disse min!a me"'epois de um certo tempo min!a irm começou a rezar para Kue a fil!a separecesse com ela" 'esde o nascimento de ora=a $ngela, a me passava !orasmirando os traçosdo bebO, como se o ol!ar insistente fosse capaz de alterar uma fisionomia, decorrigir um traço do rosto e torn<7lo idOntico ao da pessoa Kue dirige o ol!ar"%ambAm!avia essa busca de um mimetismo Kue consiste no conv;vio epidArmico entre duaspessoas4 elas colavam a face dos rostos, como alguAm Kue Nunta duas mos paraorarou meditar"Lembro a primeira vez Kue amara 'elia abriu a boca na min!a presença, paracomparar os cabelos, os ol!os e os l<bios da fil!a aos seus" TE se um dia min!a

fil!a

Page 59: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 59/90

falar, ten!o certeza Kue a voz dela ser< igualzin!a F min!aT, disse ol!ando parao c!o, pensativa" $c!ava Kue era cedo demais para min!a irm traçar afinidadesf;sicas com a fil!a" .orKue o corpo, o rosto e mesmo a voz de amara 'elia aindase moldavam" 'evia ter Kuinze ou dezesseis anos Kuando ficou gr<vida4 era umameninaKue brincava de boneca contigo, trepava nas <rvores para col!er frutas, e fazia

estrepolias Kue animavam a vida da casa" ada disso permaneceu apGs o110nascimento da fil!a" $lAm de uma brusca interrupço da adolescOncia, comecei areparar na me certos traços da fil!a" )in!a irm parava subitamente no meio dop<tioe fiava os ol!os em algoH e essa epresso meditativa e etasiada aproimavamuito uma da outra" G mais tarde A Kue as afinidades f;sicas se evidenciaram"Ento,uma pBde se recon!ecer na outra"?oi nessa Apoca Kue elas sa;ram Nuntas pela primeira e nica vez" .areciamguiadas pelo medo" *amin!aram de mos dadas, esKuivando7se das pessoas, evitandoencararos raros transeuntes Kue se epun!am ao sol ardente do in;cio da tarde" &svizin!os apareceram nas Nanelas e amara 'elia se protegia dos ol!aresinclinando umasombrin!a vermel!a Kue l!e tapava o rosto" s vezes movia os l<bios, curvando acabeça, fingindo conversar, mas as palavras sG c!egavam aos ouvidos da outra pormeio de son!os ou pesadelos" $s duas camin!avam Nuntas demais, e uma encurtavaos passos para seguir os da outraH do terraço da fac!ada eu as vi desaparecer,sobum invGlucro vermel!o Kue as protegia do sol e as tornava acAfalas" $Kuele parde corpos, minguado ainda mais pela distncia, iria epor7se pela primeira vezaosol!os da cidade" ?oi a ltima viso de ora=a ngela, viva" Vestia de branco eas trancas feitas por Emilie escorriam sobre as costas, presas por um laçovermel!o"Reparei tambAm no escaravel!o de madrepArola, enganc!ado na gola de sua blusa deorgandi" o sei de Kuem gan!ara o broc!e, mas este obNeto, como Kuase tudo Kuese l!e apresentava de novo, era contemplado por ela" Juando as duas sa;ram doKuarto, ora=a ngela ol!ava de viAs para o broc!e, o Kueio colado ao ombro, eaKueleol!ar, de ol!os Kuase tangentes, dava a impresso de estar voltado para elamesma" $ssim a vi de frente pela ltima vezH pouco depois, N< na rua, as duasforam seesvanecendo, tril!ando o rumo do nico passeio"a man! seguinte tu irrompeste no meu Kuarto e balançaste a redeH demorei aabrir os ol!os e reparar Kue leva7111#vas na mo direita uma cesta c!eia de flores e ainda no c!oravas nem gritavas,apenas te inKuietavas com o meu sono, essa atonia com o mundo Kuando a gente sedesperta" Eu sempre pensava Kue ao entrar no Kuarto Kuerias ouvir !istGrias efol!ear livros de gravuras, mas sempre te acompan!ava o teu irmo e no tin!asno rostoos ol!os Kue fazem esKuecer um rosto" Ento perguntei por teu irmo e merespondeste Tela, a menina, a primaT" & teu corpo começou a tremer, remeestenervosamenteno fundo da cesta, e dos teus ol!os Norraram flores Kuando os cobriste com asmos" Ento o balbucio, a meia voz, a impossibilidade de pronunciar o nome4 amenina,ela, a prima, sG essas palavras sa;am da tua bocaH saltei da rede e entrei noKuarto vizin!o, Kue estava deserto4 o silOncio entre Kuatro paredes de penumbra"$osair do Kuarto fui atra;do por um ru;do, uma confuso de vozes, buzinas, uma

gral!ada" *orri atA o terraço, vi o claro no meio da rua, e no centro deleEmilie aNoel!ada

Page 60: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 60/90

diante do corpo envolto por um lençol" o !avia mais nada a fazer4 o corposeKuer agonizava, e diante de um corpo sem vida no !< de Kue se lamentar"Envolve7nosuma espAcie de inconformismo e impotOncia, e eu pensava em algo a fazer,percorrer o corredor e acordar meus irmos para dizer F Kueimaroupa, talvez comuma ponta

de rancor, Kue a menina estava no meio da rua, estraçal!ada" ati F porta doKuarto onde dormiam, comuniKuei o sucedido sem esperar KualKuer reaço, porKue,se notin!am sido sens;veis F vida, no o seriam F morte" &u se fossem, no meinteressava" $o passar diante do meu Kuarto notei Kue estavas deitada na rede,acuada, teusol!os fec!ados, as flores espal!adas no assoal!o, e teus braços sumiam dentro dacesta" E Kuando desci encontrei Emilie na guarita do telefone, com o teu irmoaocolo manuseando a boneca de pano" Emilie me ol!ou com uma placidez no rosto, massuas mos tremiam e ela falava muito alto" Repetiu v<rias vezes a mesma frase, eo ol!ar, mais Kue a voz, fez7me saber Kue falava comigo4 Kue enviasse112$nast<cia ocorro F .arisiense para c!amar min!a irm e meu pai" .erguntei seno dev;amos providenciar uma ambulncia e levar a menina ao !ospital"

 D &s daKui morrem em casa, no nos !ospitais D disse com uma voz r;spida" 'epoisme pediu para Kue eu cerrasse as portas da .arisiense e providenciasse uma tarNanegras de cetim, sem Kue meu pai se inteirasse disso"Ele e amara 'elia trabal!avam Nuntos !< algum tempo, e essa concesso foi umdos gestos de clemOncia vindos do meu pai" a .arisiense trocavam poucaspalavras,e Kuando ia visit<7los percebia um KuO de inKuietaço em ambos" Ele me conduziaao peKueno corredor entre as vitrinas e sussurrava TN< cumprimentaste tuairmT,Tas crianças esto em casaT" $ludia certamente ao teu irmo, a ti e F ora=angela, os trOs TnetosT Kue ele tin!a como fil!os"Logo Kue ora=a ngela veio ao mundo, ele afastou7se dela e desprezou7a como sefosse um espectro ou um brinKuedo maldito" *om a presença cada vez mais ass;duadacriança, o espectro tomou forma, e o brinKuedo, mesmo maldito, passou a atrair,a cativar" E uma intimidade discreta cresceu entre os dois" .orKue no muitoantesde morrer, a menina preparava o narguilA e servia pistac!e e amOndoas apGs ocafA" E certa vez interpelou a empregada para retirar7l!e das mos as alparcatasKueela mesma fez Kuesto de levar ao avB" Ele agradecia, um pouco tenso eacabrun!ado, e dizia F Emilie, com cuidado para no ser ouvido4 T$tA Kue ela noA m<" E temos ol!os parecidos aos teusT" *om o passar do tempo permitiu, e atA eigiu, Kueme e fil!a sentassem F mesa para almoçar, e sorria Kuando a menina imitava ascenasvistas l< fora, ao retornar dos nossos passeios" Essa complacOncia do meu paiencolerizava ainda mais meus irmos, Kue eram obrigados a engolir a raiva e adissimularo riso com aKuela epresso apalermada e doentia dos Kue no conseguemetravasar nem a cGlera nem o cBmico" ora=a ngela percebia issoH percebia Kueera uma113#presença indeseN<vel, e esta era sua arma, seu triunfo" .ouco a pouco ela foiocupando o espaço da casa, atraindo os ol!ares, no pelo movimento e sim peloimobilismodo corpo4 plantava se diante de um obNeto /a est<tua da fonte, o relGgio dasala e esKuecia tudo, todos, esKuecida talvez de si mesma" & curioso A Kue

ninguAm conseguia

Page 61: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 61/90

ficar indiferente a isso" s vezes, tin!a a impresso de Kue ela se fiava emalgo para Kue fosse observada com insistOncia" Em algumas pessoas ela despertavarancorHem outras, impaciOncia" Em mim, um certo fasc;nio e uma curiosidade desmesuradaem Kuerer filtrar os traços do seu rosto Kue me levassem a identificar seu pai"em

Emilie conseguiu arrancar da fil!a este segredo, Kue permaneceu inviol<vel comouma caia escura perdida no fundo do mar" Lembro Kue uma parte da adolescOnciadosmeus irmos foi dedicada a essa perKuiriço" *!egaram atA a insinuar Kue oscabelos clareados da menina podiam ser fruto das freKUentes visitas Kue eu eamara 'eliafaz;amos a 'orner" $o tomar con!ecimento disso, ele se afastou da vida dosobrado" uma das cartas Kue me enviou da $leman!a, alude ao fato, dizendo Kuena prov;nciaa calnia A cultuada como uma deusa" T o Kue,!< de mais inventivo na vidaprovincianaT, escreveu 'orner" T$lAm de ser a nica opço para Kue os idiotasresistamao tAdio" .or isso, no seria um disparate afirmar Kue os idiotas tambAminventam"QQ)as a invenço irmanava7se F aço" Eles vascul!aram todos os lupanares do centroda cidade, indo de porta em porta, mostrando a fotografia de amara Fs vel!ascafetinasKue mantin!am bordAis no baio meretr;cio, Kuerendo saber se con!eciam a novata,a tresloucada, a irm erradia Kue tin!a escapulido da casa paterna, e comorespostaouviam gargal!adas estardal!antes, sentiam beliscMes no braço, e, pensando Kueestavam sendo ludibriados, subiam aos Kuartos e sempre com a fotografia nas mosperguntavamFs meninas de doze anos se tin!am visto alguAm parecido, mas11:nen!uma pista, nada, ao menos naKuelas casas do centro" )uitas vezes sa;am Fnoitin!a e sG voltavam na man! do dia seguinte, e entravam no sobrado trançandoaspernas, gritando com Emilie e com a empregada, esKuadrin!ando o Kuarto de amara'elia, pensando encontrar algum vest;gio de uma noite suspeita" %ambAmvascul!aramos bordAis embren!ados na floresta, e um dia, c!egando de man!zin!a com duasmul!eres num cal!ambeKue, começaram a buzinar e a bater palmas na porta da casa,elogo Kue Emilie apareceu no p<tio superior perguntaram aos berros se podiamdormir com as duas mul!eres no Kuarto da irm" Emilie perdeu a compostura"'esceu asescadas e saiu de camisola rendada com a c!inela na mo e partiu para cima dosfil!os e das duas mul!eres, gritando Tsem7vergon!asT, Tbando de arruaceirosT,Kuedormissem no mato com as cadelas" 'epois bateu o porto na cara deles, trancouas portas da casa e subiu a escada resmungando, Kuase afBnica4 Tunca imagineiKuefosse con!ecer o inferno ainda vivaT")eus irmos tin!am ficado atBnitos e desesperados com a sa;da de amara 'elia,Kue decidira morar sozin!a, escondida e longe de todos" G Emilie e meu paisabiamonde ela morava" $lguns dias antes de viaNar, pedi F min!a me Kue me levasse Fpresença de amara, pois Kueria conversar a sGs com ela" Emilie concordou" umdomingoF noite sa;mos os dois e andamos por um camin!o N< con!ecido atA pararmos dianteda .arisiense" o sabia o Kue ;amos fazer na loNa numa noite de domingo4imaginava

Page 62: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 62/90

Kue Emilie Kuisesse pegar alguma coisa para levar F fil!a" Entramos, e, aoacender a luz, lembrei7me da atmosfera Kuieta das tardes dos s<bados4 aluminosidade embaçadaenvolvendo os enormes cubos de cristal e os mesmos obNetos /tecidos, leKues,frascos de perfume arrumados nas prateleiras4 um ambiente Kue te faz recordarfragmentos

de imagens Kue surgem e se dissipam Kuase ao mesmo tempo, numa tarde desfeita empedaços, ou numa nica tarde Kue era todas as tardes da infncia"115#o imaginava Kue amara 'elia morasse naKuele aposento onde Emilie seconfinava apGs nossas conversas" Era um lugar espaçoso, no tanto pela dimenso,mas porencontrar7se Kuase vazio e todas as paredes serem brancas" & pA direito,alt;ssimo, te faz esKuecer a eistOncia de um teto, e d< menos peso, menospresença a umcorpo estirado numa cama peKuena" Ela estava cabisbaia, e ao erguer a cabeça via tristeza Kue se vO nos rostos sem epresso" Logo Kue Emilie saiu, min!a irmse levantou e veio cumprimentar7me" Era como se eu abraçasse e beiNasse alguAmestran!o e tambAm muito ;ntimo, como se a mesma pessoa se desmembrasse na irmdeuma Apoca remota e na me de uma Apoca mais recente" .or alguns minutos nofalamos nada" Ento, aproimei7me de uma mesa onde !avia um caderno aberto, umcalend<rio,e a fotografia em Kue ora=a $ngela posava /ou repousava ao lado da est<tua"Ela notou Kue eu ol!ava para a foto"

 D a nica imagem Kue restou dela D disse, e essa frase foi o prembulo de umaconversa no muito longa" Ela falava com cuidado e melindre" .rimeiro perguntoupor'orner e, Kuando l!e disse Kue pretendia viaNar F $leman!a, Kuis saber o dia dapartida, e se ele ia voltar" 'epois desfiou alguns de seus enganos e desenganos,e disse Kue no mais se importava com a !ostilidade dos irmos"

 D $ perseguiço, os insultos e as ameaças eram formas de me punirH depois virouum passatempo de imbecis D desabafou"a verdade, o Kue mais a atormentara fora a impossibilidade de conversar com afil!a, mas, durante o tempo em Kue viveram enclausuradas no Kuarto, min!a irmnose lamentou nem se condoeu" o segundo ano, Kuando as duas desceram Nuntas para!abitar a casa, a mudez definitiva surgiu como um estigma" $ntes eistia oc!oro,mas o c!oro A a voz de Kuem ainda no fala" 'epois, sG a m;mica, os l<bios emmovimento, o rosto devastado por contorçMes, F espera119da primeira palavra, dos primeiros sons Kue evocasse a vida" os ltimos mesesda vida de ora=a ngela,min!a irm despertava em plena noite, ouvindo vozes, converasHmas ao seu lado via a criança dormindo de bruços, Kuieta" a .arisiensecontinuou a son!ar, sG Kue agora son!ava Kue conversavam Nuntas, e num son!obreve a criançafalava sozin!a enKuanto a me ouvia, incapaz de falar alguma coia

 D into todo meu corpo paralisado D confessou" $gora tento resistir ao sonopara evitar os pesadelos"o ousei fazer perguntas" .restava atenço ao Kue ela dizia, observando7a falarsem tirar os ol!os da fotografiada criança ao lado da est<tua" Lembro Kue fizeraa foto de lorige e a ampliaço 6 por 12 acentuava a distncia,dissolvendo a nitidez dos rostos" $ cor do açafro do rosto de pedratransformara7se num cinzaescuro Kue contrastava com o cinza mais sGbrio do rosto Kuase de perfil deora=a ngela"

Esa imagem, Kue parecia sustentar a voz de min!a irm, era a ltima c!ispa

Page 63: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 63/90

de fogo Kue anima a voz do pecador, afastando7o do medo e da culpa Kue oenvolveu a noite eterna"esse encontro, o Kue mais nos easperava erarn os anos silenciosos, o tempo Kuevivemos aliNados um do outro" ?alar disso era um tabu, embora soubAssemos Kueesselongo desencontro nos marcaria para o resto da vida" abia Kue ela estava F

espera de um coment<rio ou Nulgamento, e eu reagia consultando o relGgio,fingindo estarcom pressa" ?iz, ento, uma refleo Kue me aNudou a calar a nsia de comentarurn assunto Kue me desgostava4 todo este tempo em Kue trocamos poucas palavras ealgunsol!ares, acabou nos aproimando, pois o silOncio tambAm participa docon!ecimento entre duas pessoas" %alvez ela no Kuisesse mais falar nisso, e ofato de ter desviadoos ol!os da fotografia insinuava uma mudança de assunto".assei a observar o Kuarto, e constatei Kue a cama era a mesma em Kue ambasdormiam, Nuntas, no sobrado" & leito era o obNeto comum Fs duas moradias, Fsduas vidas,Fs duas118#Apocas" Ela voltou F cama, sentou7se, e permaneceu Kuieta, esperando um aceno,um sinal vindo de mim" .ela primeira vez nossos ol!os se encontraram, e Kuantospensamentospovoaram esse encontro, Kue no foi breve" .ensava4 Kuem pode desenredar tantaslembranças confusasW .orKue na confluOncia de ol!ares misturavam7se cenas esentimentosdisseminados em Apocas distintas4 os passeios de bonde, os mergul!os na <guagelada dos igarapAs, os segredos de irmos, o medo e o cime Kue se apodera deum aover Kue o outro se prepara para o primeiro baileH e sobretudo os risos decumplicidade nas madrugadas em Kue acord<vamos com rangidos de cama e vozesabafadas decorpos resfolegantes" *om o riso contido, sa;amos do nosso Kuarto na ponta dospAs, atravess<vamos o longo corredor e par<vamos diante da porta do Kuarto dospaisHcomo duas sentinelas, vigi<vamos Fs cegas, mas com uma imaginaço ardente Kuedava piruetas, o Kue acontecia l< dentro do Kuarto" E sem parar de rir /uma dasmostapava a nossa boca e a outra apertava a mo do outro, encost<vamos a cabeça naporta para captar no mais a crepitaço do leito e sim um ciclone de risos eestrondos4um circo em c!amas no coraço da noite" 'ali no arred<vamos o pA enKuantoperdurasse o ;mpeto dos corpos acasalados" & silOncio tardava a c!egar, e Fsvezes noc!egava nunca4 o sono vencia a nossa curiosidade, e regress<vamos ao Kuarto comodois sonmbulos tateando as paredes do corredor, e acord<vamos com as palmas eospassos de um corpo vigoroso Kue parecia ter dormido trOs noites seguidas"Lembro7me de Kue um dia, numa conversa em Kue os adultos citavam a lua7de7mel deEsmeralda e $mArico, Emilie comentou4

 D +sso no eiste, o mel do amor perdura na vel!ice e sG acaba na morte"$tA a vAspera de min!a viagem para o sul ela fez Nus ao coment<rio" .adeceu coma morte de parentes e as agruras116da fam;lia inteira, mas sempre fez das noites uma festa de prazeres Kuecontaminava todos os aposentos das duas casas em Kue morou, sem se preocupar como Kue iriadizer ou pensar o fil!o do Kuarto vizin!o ou a empregada do Kuarto dos fundos,de modo Kue, se o enfado e o esmorecimento deiavam7na sem forças como uma

badana,

Page 64: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 64/90

as noites de amor devolviam7l!e o viço e a gana de viver" E, assim, eu e min!airm descobrimos Kue os pais eram etravagantes no desentendimento e no amor"$ nossa cumplicidade, Kue parecia ser um atributo da noite, vin!a F tona Kuandoa memGria percorria as <guas da infncia" .ensava4 o Kue sobrevivera daKuelaoutrapessoa, ainda criança (m res;duo daKuela Apoca era vis;vel no ol!ar dela, mas o

sorriso e os treNeitos !aviam sumido, e a voz tambAm mudaraH pausada, serena semser austera, a voz perguntou, afirmou4 T%u mandaste fazer as flores de organdi,tu ou os outros4 KuemT" Eu no sabia Kuem l!e enviara a coroa de floresimitandoorKu;deas, finamente bordadas, para cobrir a cabeça de ora=a ngela" )in!a irmpensava nisso" Ela tentava desvendar uma teia de enigmas e eu no podia reiteraro Kue para mim era duvidosoH tampouco me interessava alimentar suspeitas" 'eieia pergunta no ar, atA Kue o silOncio a apagasse" .ercebi Kue ela estava ansiosae inconformada diante da min!a atitude esKuiva" Eu, Kue tin!a ido conversar comela, Kuase no abrira a boca" Enfim, N< disposto a ir embora, perguntei por Kuevieramorar na .arisiense, onde tudo eram sombras do passado"

 D 'o teu passado, no do meu D disse com precipitaço" D %oda min!a vida foiabandonada na outra casa, no Kuarto onde penei durante anos" 'ecidi morar aKuiporKueo silOncio do meu pai A terr;vel, A Kuase um desafio para mim"

 D Ele no conversa contigo no te diz uma palavra D perguntei" D ?ala comigo como se falasse com um espel!o, e passa !oras lendo o Livro em vozbaia" )al escuto a voz11#dele e no compreendo nada do Kue A poss;vel escutar" %en!o a impresso de Kueele lO para me esKuecer"Ela se levantou e acompan!ou7me atA a porta" %in!a os ol!os um pouco midos, ecom a mesma voz serena disse Kue teria preferido ser anarKuizada e esbofeteadaporele"

 D ada me fere mais Kue o silOncio dele D desabafou antes de c!orar, e dando7meo abraço de despedida" @< no era mais um corpo de adolescente Kue meabraçava"QQ120)enos de Kuin!entos metros separavam a casa onde nossa me morava da de Emilie"$o longo dessa breve camin!ada, impressionou7me encontrar certos espaços aindaintactos,petrificados no tempo, como se nada de novo tivesse sido erigido" en!uma paredeou coluna parecia faltar Fs construçMes mais antigasH os leMes de pedra, oNavalie a 'iana de bronze permaneciam nos mesmos lugares da praça, entre as ac<cias eos bancos onde as pessoas sentadas ou deitadas contemplavam as tel!as de vidrodocoreto e os rApteis rumando F beira do lago, atra;dos pela sombra das garças eNaburus Kue dormiam ou fingiam dormir, eKuilibrados por !astes fin;ssimas Kuesumiamna <gua" um dos bancos, a meio camin!o do coreto e das duas gigantescassentinelas de bronze, os irmos sicilianos costumavam palrear um de costas parao outro,atA se levantarem ao mesmo tempo, e, sem interromper a c!arla, camin!avam emsentido contr<rio, escoltados por uma matil!a de ces esKu<lidos" %in!am acabeça bambavoltada para o c!o, calçavam botas de campan!a e vestiam sempre a mesmabombac!a e uma camisa vermel!a sem colarin!o" Juem os seguisse durante aperambulaço, podiaconstatar com um certo assombro Kue eles percorriam camin!os intricados,passando por ruelas desertas, irrompendo em casas em ru;nas Kue rasgavam um

Kuarteiro inteiro,e encontravam7se no fim da rua /e da cidade

Page 65: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 65/90

121#diante de um muro de pedras rosadas onde todas as blasfOmias do mundo estavamescritas a cal e carvo" 'epois, retornando por itiner<rios distintos, c!egavamFpraça no mesmo instante, sentavam no mesmo banco e retomavam uma conversa Kuecomeçara sabe 'eus Kuando" $s costas de um servia de apoio Fs do outro, e os

ces lambiamsuas botas, esgarçando7l!es o pano das calças, enKuanto os soldados riam ec!acotavam ao lado das est<tuas met<licas"ada daKuela Apoca permanecia vivo na praça" im, os monumentos eram os mesmos,mas o banco ocupado pelos irmos gOmeos parecia uma l<pide abandonada" as<rvores,no lago, na ponte e nos camin!os Kue circundam o espel!o dQ<gua, eu sentia faltada sil!ueta dos animais e do seu alarido inconfund;vel"Juando cruzei o porto de ferro da casa de Emilie, tambAm estran!ei a ausOnciados sons confusos e estridentes de s;mios e p<ssaros, e o berreiro das ovel!as"$porta da entrada estava trancada e, atravAs do muro vazado, vi o corredordeserto Kue terminava no patiozin!o coberto pelas fol!as ressecadas da parreirae uma partedo p<tio dos fundos" $ casa toda parecia dormir, e foi em vo Kue bati F porta egritei v<rias vezes por Emilie" Lembrei7me ento das palavras da empregada4Emiliedevia estar voltando do mercado, carregando a cesta repleta de peies e frutas elegumes Kue numa man! distante se espal!aram sobre as pedras cinzentas Kue N<foramcobertas pelo asfalto, deiando incerto o lugar onde o corpo da menina tombara"?iKuei alguns minutos ali perto do Nambeiro, divagando, vencida pela indeciso"oba copa da <rvore, passei a mirar as flores rosadas Kue cobriam os gal!os, asfrutas arroeadas Kue apodreciam na grama, e senti falta do odor do Nasmimbranco, Kueos adultos c!amavam aman, o perfume de um outro tempo, a infncia"'ecidi, ento, perambular pela cidade, dialogar com a ausOncia de tanto tempo, eretornar ao sobrado F !ora do122almoço" $travessei a ponte met<lica sobre o igarapA, e penetrei nas ruelas de umbairro descon!ecido" (m c!eiro acre e muito forte surgiu com as coresespal!afatosasdas fac!adas de madeira, com a voz cantada dos curumins, com os rostosrecortados no vo das Nanelas, como se estivessem no limite do interior com oeterior, eKue esse limite /a moldura empenada e sem cor, nada significasse aos rostos Kuefitavam o vago, al!eios ao curso das !oras e ao transeunte Kue procuravaobservartudo, com cautela e rigor" -avia momentos, no entanto, em Kue me ol!avam cominsistOncia4 sentia um pouco de temor e de estran!eza, e embora um abismo meseparassedaKuele mundo, a estran!eza era mtua, assim como a ameaça e o medo" E eu noKueria ser uma estran!a, tendo nascido e vivido aKui" .rocurava camin!ar semrumo,no !avia ruas paralelas, o traçado era uma geometria confusa, e o rio, sempre orio, era o ponto de referOncia, era a praça e a torre da igreNa Kue aliineistiam".assei toda a man! naKuele mundo descon!ecido, a cidade proibida na nossainfncia, porKue ali !avia duelo entre !omens embriagados, ali as mul!eres eramladrasou prostitutas, ali a lmina afiada do terçado servia para esKuarteNar !omens eanimais" *rescemos ouvindo !istGrias macabras e sGrdidas daKuele bairro

infanticida,

Page 66: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 66/90

povoado de seres do outro mundo, o triste !osp;cio Kue abriga monstros" ?oipreciso distanciarme de tudo e de todos para eorcizar essas Kuimeras,atravessar a pontee alcançar o espaço Kue nos era vedado4 lodo e <gua parada, paredes de madeira,tingidas com as cores do arco7;ris e recortadas por rasgos verticais e!orizontais,

Kue nos permitem observar os recintos4 enames de crianças nuas e suNas,agac!adas sob um cAu sinuoso de redes coloridas, onde entre nuvens de moscas asmul!eresamamentavam os fil!os ou abanavam a brasa do carvo, e sempre o odor dasfrituras, do peie, do alimento fisgado F beira da casa"$pGs ter cruzado o bairro, seguindo uma traNetGria tor7#tuosa, decidi retornar ao centro da cidade por outro camin!o4 Kueria atravessaro igarapA dentro de uma canoa, ver de longe )anaus emergir do egro, lentamentea cidade desprender7se do sol, dilatar7se a cada remada, revelando os primeiroscontornos de uma massa de pedra ainda fl<cida, embaçada" Essa passagem de umapaisagemdifusa a um !orizonte ondulante de ardGsia, interrompido por esparsas torres devidro, pareceu7me to lenta Kuanto a travessia, como se eu tivesse ficado muitotempona canoa" %ive a impresso de Kue remar era um gesto intil4 era permanecerindefinidamente no meio do rio" 'urante a travessia estes dois verbos noinfinitivo anulavama oposiço entre movimento e imobilidade" E F medida Kue me aproimava do porto,pensava no Kue me dizias sempre4 T(ma cidade no A a mesma cidade se vista delonge,da <gua4 no A seKuer cidade4 falta7l!e perspectiva, profundidade, traçado, esobretudo presença !umana, o espaço vivo da cidade" %alvez seNa um plano, umarampa,ou v<rios planos e rampas Kue formam ngulos imprecisos com a superf;cieaKu<ticaQQ"'emorou, na verdade, para atracarmos F beira do cais" & sol, Kuase a pino,golpeava sem clemOncia" ?oi dif;cil abrir os ol!os, mas no era a luminosidadeKue incomodava,e sim tudo o Kue era vis;vel" 'e ol!os abertos, sG ento me dei conta dos Kuasevinte anos passados fora daKui" $ vazante !avia afastado o porto do atracadouro,e a distncia vencida pelo mero camin!ar revelava a imagem do !orror de umacidade Kue !oNe descon!eço4 uma praia de imund;cias, de restos de misAria!umana, alAmdo odor fAtido de purulOncia viva ealando da terra, do lodo, das entran!as daspedras vermel!as e do interior das embarcaçMes" *amin!ava sobre um mar dedeNetos,onde !avia tudo4 casca de frutas, latas, garrafas, carcaças apodrecidas decanoas, e esKueletos de animais" &s urubus, aos montes, buscavam com avidez asossadasKue apareceram durante a vazante, entre obNetos carcomidos Kue foram enterrados!< meses, !< sAculos" $lAm do12:calor, me irritavam as levas de !omens brigando entre si, grun!indo sonsabsurdos Kuerendo imitar alguma frase talvez em inglOsH eram ciceronesandraNosos, cuNoscorpos mutilados e rostos deformados os uniam ao pntano de entul!os, ao pedaçoda cidade Kue se contorcia como uma pessoa em carne viva, devorada pelo fogo".agueio catraieiro e escapei do vozerio, das splicas, dos gritos Kue se confundiamcom a voz estridente de um alto7falante invis;vel anunciando aos viaNantes omovimentodos barcos, as origens e os destinos, e nomeando cidades estran!as com palavrasestran!as, nomes aparentemente sem sentido e Kue a l;ngua pena ao pronunci<7los,

Page 67: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 67/90

mas mesmo assim eistem, no nos mapas, mas na vida das pessoas, pois evocamlugares !abitados" $ praia terminava numa aglomeraço de barracas entul!adas deKuinKuil!arias4um labirinto de madeira Kue se alastrava nas calçadas, nas ruas, na praça" obrecaias de papelo !avia santin!os e escapul<rios, desen!os de um drago verdelanceteado

pelo santo montado no cavalo, arraias e tucanos raiados pela tetura da madeira,sucuriNus em miniatura, tangas, pulseiras, colares e pingentes" o entanto, oKuemais me atraiu foram as m<scaras feitas com casca de <rvore, enrugadas eresseKuidas pelo sol, e finas como a pele !umana" $cuadas no interior dasbarracas, as pessoastalvez no imaginassem Kue seus ancestrais, em Apocas no muito remotas, tin!amcoberto seus rostos com m<scaras semel!antes" 'ilapidados pelo tempo e pelaviolOncia,os rostos e as m<scaras pareciam pertencer aos mesmos corpos" *orposindiferentes a tudo, atA mesmo F curiosidade Kue podiam despertar os grupos deturistas circulandoF procura de uma sombra ou empun!ando obNetivas com lentes possantes, paracaptar uma intimidade ilusGria com a realidade"a parte mais elevada da praça em declive, e bem em frente da porta da igreNa,uma cena rompeu o torpor do meiodia" & !omem surgiu no sei de onde" $o observ<7lode longe, tin!a a aparOncia de um fauno" Era algo to estran!o125#naKuele mar de mormaço Kue decidi dar alguns passos em sua direço" os braçosesticados !orizontalmente, no pescoço e no tGra enroscava7se uma NibGiaH emcadaombro uma arara, e no resto do corpo, atazanados com a presença da cobra,pululavam cac!os de sagUis atados por cordas enlaçadas nos pun!os, nostornozelos e nopescoço do !omem" Juando ele deu o primeiro passo, pareceu Kue o arbusto iadesfol!ar7se4 os s;mios multiplicaram os saltos, a NibGia passou a ondular nosbraços,e as araras abriam e fec!avam as asas" aKuele instante os sinos repicaramanunciando o meio7dia, e os sons graves reverberaram entre alaridos, originandouma !armoniaesKuisita, um turbil!o de dissonncias, uma festa de sons" `ostaria Kueestivesses ao meu lado, observando este trambol!o ambulante Kue parecia eplodirno centroda luminosidade branca, recortando a cortina de mormaço"& arbusto !umano ocupava todo o espaço da praça, atra;a os ol!ares dostranseuntes, paralisava os gestos dos Kue cerravam as portas das loNas, edeiavam estateladosos fiAis Kue sa;am da igreNa fazendo o sinal da cruz enKuanto se Nuntavam aosoutros" (ma enurrada de estudantes da faculdade de 'ireito desceu asescadarias, cruzouo porto e veio Nuntar7se aos turistas Kue N< engatil!avam cmeras, e com ool!os no visor aNoel!avam7se, rasteNavam, e trepavam nas <rvores parasurpreender o arbustodo alto4 talvez, visto de cima, o !omem desaparecesse, ou sua cabeça seconfundisse com as cordas e os animais" Eu me deslocava, me aproimava e medistanciava dele,com o intuito de visualizar o rostoH Kueria descrevO7lo minuciosamente, masdescrever sempre falseia" $lAm disso, o invis;vel no pode ser transcrito e siminventado"Era mais prop;cio a uma imagem pictGrica" Esp<tulas e tintas, massas de corestrabal!adas com movimentos bruscos e incisivos podiam captar algo Kuetransparecia

entre os cac!os de cabelos e uma cortina de lianas Kue terminava no emaran!adode cordasH no resto do

Page 68: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 68/90

129corpo, Kuase no l!e sobrava espaço para a pele4 a poeira, uma crosta de pGimundo formava uma espAcie de carapaça parda, e a sua roupa, alAm dessa armadurade imund;cias,consistia numa tira de estopa entre as pernas" Em vo procurei em algum recantodo corpo uma cuia, uma lata, ou KualKuer recipiente para receber esmolasH mas

nose tratava de um mendigo, ou ao menos, de um mendigo como os outros da cidade")esmo assim, os turistas insistiam4 apGs um enKuadramento feito de muito perto,tentandoencontrar um ngulo para fiar a marc!a do !omem, lançavam7l!e moedas e cAdulas4o preço para perpetuar a viso do estran!o" )as eram as crianças Kue seapressavamem cat<7las, enKuanto o !omem continuava descendo, de braços abertos,coordenando um duplo movimento4 o do corpo Kue avançava e o dos animais Kue semoviam no corpo"Ele foi se afastando da multido, entre gargal!adas e blasfOmias, servindo deanteparo Fs bolas de papel, aos pedaços de pau e Fs pedras Kue atingiam ossagUis,resvalavam na asa de uma arara ou estancavam no corpo da cobra4 esses impactossucessivos e surdos originavam uma tempestade de sons e uma lufada de grun!idos,comose fossem a nica forma de protesto F c!uva de deNetos Kue alveNava aKuelesanimais aprisionados numa Naula sem grade" $ reaço sonora desencadeava uma novae impetuosasalva de arremessos, alAm de gargal!adas, insultos, ameaças" & !omem diminu;a amarc!a, Fs vezes parava procurando o eKuil;brio, todo ele trOmulo, mas confiantena sua firmeza, na fiaço ao solo inclinado, como se cada passo dos pAsdescalços arrancasse uma raiz do fundo da terra" E o seu relutante eKuil;brioengendravanova saraivada de agressMes a Kue outros aderiam4 soldados, carregadores,vendedores ambulantes, pescadores" E, ento, as lentes das cmeras volteavam,faziam piruetas,ciclopes circulando reluzentes, porKue agora a multido era Kuase to estran!aKuanto o arbusto !umanoH de contemplado passara a perseguido, e depois agredido,castigado,a ponto de me amedrontar, no o !o7128#mem, os animais, os saltos e serpenteios, mas a multido insana, inflamada deGdio, sob o sol" $Kuele estardal!aço andante infiltrava7se nas vielas formadasentreas barracas, meandros mGveis, constru;dos, refeitos, alterados e destru;dos acada !ora com o surgimento de novas tendas fias ou ambulantes4 mul!eres e!omens ecrianças portando caias e tabuleiros, tal um formigueiro alastrando7se napraça" $ multido passou entre as ruelas como uma avalanc!e, e curiosamente nodetin!aou no Kueria deter a marc!a do !omem4 parecia KuerO7lo vivo e em movimento comos animais, esperando Kue o andar se tornasse prec<rio para Kue o conNunto mGvelcambaleasse atA o tropeço e o inevit<vel alvoroço da Kueda4 os animaisdesmembrando7se do corpo, e o corpo sendo desmembrado pelos animais" %alvezfosse este o desafioe o limite da diversoH mas atA onde pude acompan!ar com os ol!os, o !omemcontinuou incGlume, e N< no era mais Kue uma manc!a diminuta Kuando o vi galgaro taludede pedras vermel!as e esvanecer em seguida no lodaçal, N< prGimo aos barcos e F<gua" (ma mural!a !umana logo tomou conta do talude e formou uma nuvem movediçae densa por onde transpareciam recortes de Kuil!as e uma massa esverdeada enegra, meio difusa"

Page 69: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 69/90

o !orizonte despontou subitamente uma manc!a acinzentada, contrastando com almina dQ<guaH em poucos segundos a manc!a escureceu, confundiu7se com asuperf;ciedo rio, e aKuele ponto to distante dava a impresso de antecipar a noite empleno dia, pois regiMes esparsas do !orizonte foram cobertas por blocos denuvens aniladas"

(ma raNada de vento morno formava redemoin!os de poeira e papel, e ameaçava afr<gil arKuitetura das barracas, Kue oscilavam com seus pendurical!os,provocando umcorre7corre de pessoas antes invis;veis, Kue procuravam guardar m<scaras eoutros obNetos epostos ao temporalH as passarelas erguidas sobre o lodaçalcrepitavamcom o alvoroço de pessoas correndo para tentar salvar frutas e verduras do toroKue ia desabar"126Eu teria permanecido mais tempo no cimo da praça, observando o vaivAm daspessoas e a brusca metamorfose do espaço4 tendas e barcos tentando reagir Ffria da natureza,tel!ados e toldos criando novas perspectivas na terra e na <gua" %in!a a vagaimpresso de N< ter presenciado aKuela cena, como alguAm Kue ao despertar Asurpreendidopela lembrança de um son!o N< ocorrido em outra noite" )esmo assim, no merecordava do lugar e da Apoca Kue repetiam o Kue estava vendo" $li, entre o fimda praçae a margem do rio, um mundo de cores e movimento /de cores em movimento !aviatransformado o cais num palco mGvel e gigantesco".ensei Kue fosse a nica espectadora atenta, com o ol!ar cravado ora num barcoperdido entre as nuvens e a <gua, ora numa caravana de carregadores, ora naconfusode Kuil!as coloridas" o sei se percebi ou se simplesmente intu; Kue nodesfrutava sozin!a daKuele cen<rio vivo" %u no imaginas o susto Kue levei aosentir umapessoa estran!;ssima se aproimar, alguAm Kue visivelmente no era turista nemda terra, uma figura vestida de branco, alt;ssima, camin!ando de uma forma meiodesengonçadacomo se procurasse um apoio" .ensei Kue viesse ao meu encontro, mas estacou apoucos passos de mim, sem tirar os ol!os do rioH de vez em Kuando levantava acabeçae a girava em busca de no sei o KuO" Reparei nos cabelos acinzentados, nosdedos alongados das mos ossudas, e sG ento me certifiKuei de Kue era ele" odemoroumuito para Kue me ol!asse com insistOncia, porKue !avia notado min!a ansiedadeHmas no me recon!eceram, aKueles ol!in!os azulados, Kuase colados Fs lentesespessas"*ontinuei fitando seus ol!os e no resisti em guardar sG para mim orecon!ecimento do outro" Recitei, um pouco veada mas em voz alta, os doisversos Kue semprerecitavas ao voltar das aulas, no poro N< distante da adolescOnciaH desdeento, cultivei o prazer em recitar palavras e sons Kue descon!ecia" $o escutarmin!avoz engrolada, o12#rosto dele se iluminou, como se as palavras dilu;ssem a amargura de umafisionomia outrora serena" Ele abriu os braços e disse4 T'u !ier, )Fdc!enWT, eassim permaneceu,de braços abertos, com uma epresso incrAdula, o sorriso e o ol!ar conciliandoemoço e surpresa, sem atinar para as fol!as de papel Kue ca;am de sua pasta eeramlevadas pelo vento" $ c!uva Kue açoitava logo desabaria com seus mil!Mes de

estil!aços dardeNando a cidade, encrespando as <guas do rio".ermanecemos mos indecisos entre

Page 70: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 70/90

a euforia do encontro e a ameaça do temporal, sem saber onde procurar um abrigoHele apontou para um bar pertin!o do cais, T$ ereia do RioT, mas a c!uva N<ofuscaraKuase tudo no !orizonte, engolfando o cais e o porto, e envolvendo a cidade numaatmosfera de mistArio e recluso" 'esatamos a correr sem rumo, e N< sentia aroupa

colada ao corpo Kuando subimos as escadarias e atravessamos a porta da igreNa"&s passos, a <gua Kue escorria da roupa enc!arcada, a respiraço, tudo pareciaecoarnaKuele recinto obscuro, apenas aclarado pela luz dos lustres e de dezenas develas concentradas ao pA de est<tuas, como se aKueles santos pisassem em toc!asoufogueiras" *amin!ando pelo corredor central, observava os poucos ngulosvis;veis daKuele espaço sombrio Kue eu descon!ecia" E a c!uva, ao golpear oeterior dacpula, provocava um rumor furioso e incessante".aramos diante de uma gruta incrustada F direita da nave central, e sentamos numdegrau de m<rmore amarelado, encardido" Era um recanto iluminado por c!umaços develas brancas, enormes, Kue derretiam entre diversos tocos de velas acesas nosei Kuando4 formavam uma paisagem miniaturizada, uma cadeia de mont;culos Kuecercavama base da est<tuaH as c!amas cresciam F medida Kue se aproimavam dos pAs dasanta, e as velas maiores, talvez acesas130naKuela man!, pareciam ainda guardar, na aurAola de fogo Kue lambia o manto degesso, as preces vivas e as splicas mais recentes" $ pouca claridade propiciavauma conversa em voz baia" 'orner falava muito baio, Kuase murmurandoH e sempreKue a c!uva golpeava a cpula com mais intensidade, ele alterava um pouco oregistroda voz, enKuanto arregalava os ol!os e esfregava um lenço no rosto salpicado desuor" s vezes parecia sentir falta de ar, pois respirava erguendo o tGra e acabeça"-avia uma certa agonia nesse gesto Kue servia de pausa Kuando tocava em assuntosmelindrosos" *ontou7me sucintamente, e em pinceladas Kue saltavam anos, algo desua longa permanOncia em )anaus" $ sua discriço aNudou7me a silenciar sobre amin!a vida" $o notar um KuO de curiosidade nos seus ol!os, apressava7me aperguntaralguma coisa, fingindo interesse, pinçando um detal!e Kue !avia escapado" )as aotentar me esKuivar de sua curiosidade, acabava enveredando por tril!asindeseN<veisde sua vida" *onversar era roubar uma crença, violar um segredo do outro" .araKuebrar o silOncio e evitar uma revelaço, recorr;amos ao destino de amigos" Eleenumeroumortos e ausentes4 os vizin!os do )in!o, os irmos italianos, os compatriotasKue eu nem seKuer con!eciaH e se ealtou ao lembrar de tio -aSim" odesconfi<vamosKue naKuele instante ele estaria a camin!o de )anaus" )as a ealtaço duroupouco e a epresso do seu rosto no etravasou o sorriso insistente de outrora"(masombra de desencanto e de al!eamento a tudo transparecia atravAs dos gestosrepetidos4 tirar e colocar os Gculos, passar o lenço no rosto, respirararKueando o ,corpo"Reparei, ento, Kue ele manuseava a pasta de couro, mais parecida com um surroonde se acumulam as rel;Kuias e as adversidades de toda uma vida" 'o amontoadodecadernos e livros retirou uma fol!a branca e um l<pis ?aber" *om um ol!arenviesado vi a sua caligrafia nascer Kuase no centro da fol!a branca e,ondulando, declinarpara a etremidade do papel" Ele transcrevia

131

Page 71: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 71/90

#os versos Kue eu recitara !< pouco" 'epois, passou a rabiscar palavrasesparsas, em portuguOs, e pareceu7me um tanto aleatGria a posiço dessaspalavras na superf;ciebranca4 um cAu diminuto pontil!ado de astros cinzentos, formando uma espessateia de palavras Kue Fs vezes desaparecia, pois o grafite de ponta fin;ssimadesen!ava

letras invis;veis, sulcos sem cor, lin!as dQ<gua" E, de repente, a inclinaço dografite ou o atrito deste com o papel fazia ressurgir volutas pardacentas ouescuras,criando passagens bruscas e inesperadas do invis;vel ao leg;vel"Era curioso observar as ran!uras e os riscos concentrados numa regio delimitadado papel, a metade do retngulo branco sendo devastado por manc!as, como se umafigura caGtica formasse um limite dentro dos limites do retngulo" aKuelaregio as palavras proliferavam como uma eploso de fogos de artif;cio4reordenaço depalavras, inverso e alteraço de frases ou pedaços de frases, atA o momento emKue a mo estancou no ar e o l<pis foi repousado sobre o m<rmore"Ele contemplou demoradamente a fol!a de papel e, antes de me entreg<7la, pediu,com uma ironia Kue fingia !umildade e seriedade, Kue eu buscasse o torn e oritmoadeKuados" EnKuanto lia, tentando captar o percurso pelo Kual ele !aviaencontrado a verso definitiva, acendeu um cigarro e pBs7se a mirar a grutailuminada" ̀ uardeia fol!a de papel e disse Kue nada devia acrescentar ou suprimir, e Kue sentiaalguma coisa estran!a porKue agora, depois de tantos anos, aKueles dois versosN< noeram mais uma diverso de sons, uma brincadeira com um idioma descon!ecidoHsabia Kue de agora em diante, antes de recitar para mim o d;stico, pressentiriao ecoda verso de 'orner, como uma sombra viva e repleta de imagens" %ambAm no mesairia da cabeça a configuraço gr<fica concentrada no meio do retngulo" $imagemKue eu !avia fiado era a de um cometa atravessando diagonalmente o espaçobranco" ?oi o Kue disse a 'orner,132Kue sem desviar os ol!os da est<tua com os pAs em c!amas, opinou4

 D uma imagem poss;vel para evocar uma traduço4 a cauda do cometa seguindo deperto o cometa, e num ponto impreciso da cauda, esta parece Kuerer gravitarsozin!a,desmembrar7se para ser atra;da por outro astro, mas sempre imantada ao corpo aKue pertenceH a cauda e o cometa, o original e a traduço, a etremidade Kuetocaa cabeça do corpo, in;cio e fim de um mesmo percurso"""'esviou os ol!os da est<tua para mim e acrescentou num torn de brincadeira,Kuase rindo4

 D &u de um mesmo dilema"$o acabar a frase permaneceu impass;vel, e o seu rosto recuperou o mesmo armelancGlico, a epresso sombria de alguAm Kue defin!a" )ais uma vez me lembreide ti,das tuas alusMes ao outro 'orner Kue pouco con!eci, te dando liçMes de alemo oufalando sobre fotografia, sobre Leipzig, sobre erlim vista por Pleist, sobre aguerra e os alemes perseguidos e !umil!ados atA mesmo em )anaus" o fim datarde tu me visitavas no conservatGrio e, com a l;ngua formigando de !istGrias,repetiasF professora de piano uma passagem da vida de )a!ler, e pedias para Kue elatocasse $ menina e a )orte de c!ubert, e, antes daKuela sArie de movimentos emrA menor,tu adormecias na poltrona, os l<bios entreabertos, talvez pensando Taman! eleme contar< a vida de uma santa enterrada numa igreNin!a na -ungria, martirizada

F

Page 72: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 72/90

Apoca da ocupaço romana, e cuNo corpo foi descoberto intacto, e no seu rostoainda esboçava o sorriso antes do suspiro finalT" $ vida dos santos, a gOnesedas catedrais,colinas de pedras Kue glorificam o cAu da Europa, e a geografia incerta da$leman!a, tudo isso fazia parte das liçMes proferidas diante de um mapaenrugado, pregado

na parede mida do poro" entia Kue ao ol!ar para mim ele deseNava te energar"a verdade, ele te Kueria sentado ao lado dele, pincelando passagens do passado,comentando os poe7 7133#mas de um escritor alemo Kue, a seu ver, era o mais prGimo da imagem de 'eus"?oi ento Kue comecei a consultar com nervosismo e obstinaço o relGgioH ouvi abadalada solit<ria anunciar a primeira !ora da tarde e assustei7me com adefasagemde sessenta minutosH aKui, o fluo do tempo A to lento Kue a vida pode searrastar sem pressa" )as algo me apressava, alAm da vontade de desvencil!ar7mede 'orner4ficar ali, a sGs com ele, significava dar margem a uma nostalgia sem fim" &sversos, o seu ol!ar melancGlico e, sobretudo, o silOncio no eram maneiras sutisderecorrer a uma presença imposs;vel .orKue parecia Kue tudo o Kue ele dizia, ouKue podederia ter dito, era dirigido para tiH ou se precipitava rumo ao passado"*amin!amos pela passagem lateral, e N< no se escutava mais a crepitaço dac!uva na cpula" 'e repente uma frase de 'orner cortou o silOncio" T*uidado paranopisares nos escravos do en!orT, disse, ol!ando para o c!o e sem parar deandar" *om o ol!ar acostumado F escurido era poss;vel divisar os corpos de Kuemdormeo sono da morte, vultos esparramados no canto das paredes, acuados em nic!os desombra" )eu pensamento se dispersou, desordenado, enKuanto seguia 'orner comoumasonmbula" .ensei na tua repulsa a esta terra, na tua deciso coraNosa e sofridade te ausentar por tanto tempo, como se a distncia aNudasse a esKuecer tudo, aeorcizar o !orror4 estes mulambos escondidos do mundo, destinados a sofrerentre santos e or<culos, testemun!as de uma agonia surda Kue no ameaça nada,nem ninguAm4a misAria Kue A sG espera, o triunfo da passividade e do desespero mudo" .enseitambAm em 'orner, esse morador7asceta de uma cidade il!ada, obstinado em passartodauma vida a proferir liçMes de filosofia para um pblico fantasma, obcecado peloaroma das orKu;deas, das ervas com fol!as carnosas e das flores andrGginas" Eleconvivia!< muito tempo entre os livros e um mundo vegetal, e era capaz de13:nomear de cor trOs mil plantas" o posso saber se a solidoo dilacerava, se alguma morbidez !avia na deciso de fiar7seaKui, escutando a sua prGpria voz, dialogando com o &utroKue A ele mesmo4 cumplicidade especular, perversa e fr<gil"as tuas raras alusMes a 'orner, falavas, no de um ser !u7mano, e sim de uma Tpersonagem misteriosaT, de umTn<ufrago enigm<tico Kue o acaso !avia lançado F confluOn7cia de dois grandes rios, como uma gota de orval!o surgeimperceptivelmente na pele de uma pAtala escura num mo7mento KualKuer da noiteT" %u e a tua mania de fazer domundo e dos !omens uma mentira, de inventariar ilusMes noteu refgio da rua )ontsen=, ou nas sGrdidas entran!as doTarrio *!inoT, no coraço noturno de arcelona, para po7der Nustificar Kue a distncia A um ant;doto contra o real e omundo vis;vel" Eu, ao contr<rio, no podia, nunca pude fu7

gir disso" 'e tanto me enfron!ar na realidade, fui parar ondetu sabes4 entre as Kuatro mural!as do inferno"

Page 73: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 73/90

'espedi7me de 'orner sabendo Kue no iria mais vO7lo"'urante a camin!ada apressada esbarrei em muita gente, osmesmos vendedores de frutas, amigos da infncia, todos Kue7rendo saber o teu paradeiro" & Kue dizer a tantas pessoasJue tuas cartas c!egavam no in;cio de cada estaço euro7pAia *omo contar a essa gente o teu fasc;nio eagerado por

`audi, o poema Kue dedicaste F agrada ?am;lia, o esKuisitosabor da !orc!ata ou aKuele crepsculo em Lloret del )arEra mais f<cil dizer Kue estavas c!egando, ou Kue um diacertamente voltariasH assim, eu escapava de finin!o, ale7gando afazeres urgentes, sem esconder o cansaço e a easpe7raço de Kuem c!ega de muito longe e pressente Kue N< devevoltar" & Kue me deiava irreKuieta, enKuanto andava, eraconsultar continuamente o relGgio, sem saber ao certo oporKuO desse gesto Kue me parecia desnecess<rio, gratuito eKuase !ostil ao movimento do meu corpo"%alvez Kuisesse adiar o encontro com Emilie, afastar7me do sobrado naKuele instante ou suprimir da camin!ada o135

#espaço inconfund;vel da nossa infncia" .or isso, Kuase sem perceber tin!a dadouma volta pelas ruas do centro, Kuando na verdade podia ter encurtado opercurso,atal!ando por uma rua Kue liga a igreNa ao sobrado" *amin!ava apressada, nopara c!egar logo, mas para fugir, como se a pressa fosse um anteparo para evitara multidoapin!ada nas calçadas e na entrada da casa, como uma <rvore deitada"$brindo um claro entre as pessoas, eu a vi surgir e correr na min!a direço,vestida de negro, os cac!os de cabelo caindo atA os ombros" *om os braçosabertos gritavapalavras incompreens;veis, c!orava, e do seu rosto mol!ado saltavam duas esferasem c!amas" & seu gesto desesperado e decidido me fez entender Kue eu no deviaentrarna casa, Kue me afastasse dali, pois tudo estava perdido" -indiA me enlaçou comos braços e despeNou todo o corpo opulento sobre o meuH ficamos assim, de pA,abraçadasno outro lado da rua, e eu escutava entre soluços o disparo ardente do coraçode uma mul!er Kue acabara de perder uma amizade de meio sAculo" o sei te dizercomoconsegui manter7me r;gida, no eatamente tensa, pois meu corpo, mesmopetrificado, reagia ao volume imenso do corpo Kue me cobria" .ermanecemos algumtempo Nuntas,sob o sol, e depois voltei para casa, onde encontrei a empregada com o rostoinc!ado, balbuciando fiapos de frases4 tua me, tua vG"""o centro do Nardim a criança e a boneca se ol!avam, sentadas no banco de umbalanço escuro, esverdeado pela mo do tempo" ubi ao Kuarto e fiKuei pensandono gestode -indiA, Kue no me deiara entrar na casa enlutada" .ara Kue atravessar arua, se alAm do porto reinava o rumor de curiosidade e dor, tantos ol!aresturvos dianteda morte?oi doloroso no ter visto Emilie, aceitar com resignaço a impossibilidade deum encontro, eu Kue adiei tantas vezes essa viagem, presa na armadil!a do dia7a7dia,ao fim de cada ano pensando4 N< A tempo de ir vO7la, de saciar essa nsia, deenfron!ar7me com ela no fundo da rede" os ltimos139anos no tive not;cias dela, mas sabia Kue -indiA seguia passo a passo a vida de

Emilie" Juando o ltimo fil!o deiou o sobrado, ela fez Kuesto de morarsozin!a,

Page 74: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 74/90

e atA pediu F $nast<cia ocorro para aNud<7la a tomar essa deciso" $ lavadeiravoltou para o interior, mas nas festas natalinas retornava F cidade paraparticiparde um almoço Kue reunia a fam;lia" Emilie costumava dizer a -indiA Kue a solidoe a vel!ice se amparam mutuamente antes do fim, e Kue um vel!o solit<riorefugia7se

no passado, Kue A vasto e no poucas vezes gratificante"&s Kuartos da casa permaneciam arrumados, uma colc!a de renda cobria cada leito,as redes em diagonal dividiam o espaço dos aposentos, e os tapetes de Pas!er e+sfa!anenobreciam a sala onde se encontrava o relGgio negro" Emilie nutria uma vagaesperança de Kue algum dia, alguAm vindo de muito longe compartil!asse a suasolido"-indiA me contou Kue a amiga dela pressentia a min!a c!egada, pois falava muitona gente, e, referindo7se a ti, dizia4 T& meu Kuerido teve de cruzar o oceano emorarem outro continente para poder um dia regressarT" Ela tambAm falava sozin!a,conversava em l;ngua estran!a atA com os animais, e ultimamente despertava demadrugadae abria os NanelMes para contemplar um !orizonte irreal formado de aldeiasincrustadas nas montan!as de um pa;s long;nKuo" E uma man!, ao entrar nacozin!a, -indiAviu uma mesa repleta de iguarias Kue Emilie !avia preparado durante a noite" $amiga pensou Kue se tratava de uma festa diurna para reunir fil!os e netos, masEmilieinformou Kue era apenas uma !omenagem aos Kue ficaram no outro lado da terra"Tenti o odor do mar e dos figos, e desconfiei Kue os parentes de l< mec!amavamT,disse"E, Kuando l!e dava na tel!a, Emilie convocava Epedito, o afil!ado de $nast<cia,para desentul!ar as oferendas guardadas nas ed;culas, e passava dias inteirosespanandoos obNetos e acariciando7os com a ponta dos dedosH depois pedia138#ao carteiro para Kue lesse em voz alta o nome e a origem dos remetentes" +ssoporKue atA a seta7feira de sua morte alguns con!ecidos ainda a visitavam, e osKueentraram de man! na casa e souberam Kue ela agonizava, trataram de divulgar anot;cia, Kue se propalou como um temporal"%odos os dias, Fs sete !oras, -indiA ia encontrar7se com a amiga" a man! deseta7feira ela estran!ou, como eu, o silOncio da casa, a passividade dosanimais,as portas trancadas" -indiA sempre levava dentro do corpete o ros<rio de contase as c!aves do sobrado" Ela entrou pelo porto lateral e, antes de c!egar nop<tiodos fundos, teve um pressentimento funesto" T&s animais, fil!a, nem se meeramKuando entrei no p<tioT, disse -indiA" .arecia Kue todos os ol!os eram um sG,unidospor uma melancolia atroz"-indiA gritou ao divisar uma ardGsia do piso mais encarnada Kue as outrasH amanc!a ainda se alastrava, ali bem Nunto ao pA de um dos anNos de pedra" Elac!amoupor Emilie ol!ando para os NanelMes fec!ados do Kuarto Kue dava para o p<tio, esG depois notou dois rastros vermel!os mais ou menos paralelos e encontrou atartaruga<lua ciscando a soleira da porta da copa" Era o nico bic!o Kue parecia estarvivo, tin!a a carapaça manc!ada de pintas encarnadas, eram manc!as e filetesescurosespal!ados no piso da copa e Kue conduziram -indiA atravAs do corredor atA a

guarita do telefone" Emilie estava inerte, N< Kuase sem vida, e o fio dotelefone estava

Page 75: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 75/90

enroscado no pescoço e nos cabelos delaH o auricular sumia na sua mo direita, ea outra mo cobria os seus ol!os"Lembrei7me assustada de Kue, de man!zin!a, antes de sair de casa, !aviaescutado o telefone tocar duas ou trOs vezes" %alvez ten!a sido o ltimo apelode Emilie,a sua maneira de me encontrar e dizer adeus"

136& pnico e a afliço diante da morte, a casa varrida por um vendaval, um tremorde terra no coraço da fam;lia, no se sabe a Kuem recorrer nesta man! Kueparecefora do tempo, nesta casa em ru;nas, Fs avessas, e onde as preces se misturamcom as confissMes de culpa, como se as palavras sagradas tivessem o poder debanira ausOncia, o vazio deiado pela morte" ervosa e abalada, -indiA camin!ou pelacasa gritando todos os nomes de pessoas con!ecidas, subiu a escada cambaleando eabriu as portas dos Kuartos sem atinar Kue Emilie morava sozin!a e Kue sG ela,-indiA, a visitava todas as man!s" 'esceu a escada com a mesma precipitaço, esuasmos trOmulas demoraram para desenroscar o fio do telefone dos cabelos e dopescoço de Emilie" em parar de falar, -indiA arrastou o corpo atA a sala,estendeu7ono sof< e acomodou numa almofada a cabeça ensangUentada" @< tin!a as mos e orosto lambuzados de sangue Kuando 7voltou F guarita e viu a lista de nmeros detelefoneusados com freKUOncia por Emilie" Ela ligou para a casa de -ector 'orado, mas omAdico no atendeu F c!amada, pensando Kue fosse brincadeira de criança ou a vozde uma louca" Ento ela discou para tio Em;lio, Kue logo recon!eceu a voz de-indiA e entendeu o Kue ela falava" a verdade, -indiA comunicarase em <rabe como mAdicoda fam;lia" Estava to nervosa e fora de si Kue começou a balbuciar uma oraço,enKuanto dedil!ava as contas do ros<rio" .ara tio Em;lio a oraço era familiar,mesmoassim ac!ou estran!o ouvi7la de man! cedo e por telefone" ?oi preciso Kue elealterasse a voz para Kue -indiA interrompesse a reza e transmitisse a not;cia"'a;em diante formou7se uma rede de lin!as cruzadas4 o telefone do sobrado tocou semcessar e esKueceram de limpar as manc!as de sangue atA a c!egada de Xasmine,incumbidade receber e fazer ligaçMes"%io Em;lio c!egou antes do mAdico" $compan!avam7no duas freiras da anta *asa de)isericGrdia, Kue prestaram em vo os primeiros socorros" %u deves lembrardessasreli713#giosas Kue Fs vezes apareciam em casa apGs as novenas, e, certa vez, fosterepreendido por Emilie Kuando Kuiseste manusear como um brinKuedo ou uma espadao crucifioKue bril!ava no centro do !<bito negro" Elas Kuiseram lev<7la ao !ospital, mas-ector, ao eaminar a fenda na cabeça dela e tirar7l!e a presso, afundou orostona almofada, ao lado da cabeça de Emilie"

 D ?ez assim para no c!orar na frente dos outros D disse -indiA"& mAdico foi o nico Kue permaneceu Nunto ao corpo" 'epois c!egaram os doisfil!os de Emilie, com suas esposas e fil!os" &s dois !omens passaram diante dosof< comoKuem atravessa lentamente uma ponte, observaram com temor o rosto caladoafundado na almofada, e pela primeira vez no encontraram os dois ol!os acesos ebenevolentesde alguAm Kue eles sempre fingiram odiar" .orKue A neste instante de tenso e

dor Kue um fil!o, ao se deparar com o silOncio da me, começa a envel!ecer" .oralguns

Page 76: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 76/90

segundos eles fiaram o ol!ar no corpo imGvel estendido no sof<, e logo sesepararam da fam;lia para buscar um refgio no Kuintal dos fundos da casa" $li,sozin!os,protegidos por uma cortina vegetal, puderam soluçar e c!orar sem esconder orosto do ol!ar al!eio" .orKue o c!oro no era apenas a reaço a uma vida KuefindavaH

era tambAm a constataço terr;vel e tardia de Kue suas vidas tin!am sido umasucesso de atos med;ocres e veatGrios, e Kue durante toda uma vida tin!amdependidodaKuela mul!er agonizanteH eles, Kue no suportavam presenciar a agonia dealguAm, e Kue sG se prontificavam a visitar Emilie se l!es faltasse um certoconfortomaterial" -indiA tin!a consciOncia disso porKue era uma das poucas, seno anica confidente de Emilie, alAm de con!ecer a intimidade da vida cotidiana dosobrado,muito antes da debandada dos fil!os da amiga")ais tarde, de noitin!a, ao encontrar tio -aSim, entendi o Kuanto l!e !aviaimpressionado o odor do corpo de1:0-indiA, como se ela Kuisesse estampar, atravAs de um c!eiro inconfund;vel, alembrança de uma marca do passado Kue ealava por todos os poros de um corpomonumental"o saberia adNetivar ou comparar aKuele c!eiro formado por uma aurAolainvis;vel, mas insepar<vel do corpo, como o odor de cera derretida impregnado noespaço sombrioda igreNa onde conversara com 'omer4 o odor se alastrando na nave para Kue estase torne !abit<vel atravAs do odor" -< muitos anos ela devia conviver com estec!eiroesKuisito, to arraigado no corpo Kue era capaz de anunciar a sua presença, comoos passos Kue ressoam antes da apariço de alguAm Kue pode surgir aos nossosol!osa KualKuer momento")as no era sG o odor Kue singularizava a presença de -indiA *onceiço na man!do nosso encontro" $lAm do vestido escuro, o timbre da voz, as mos Kuedesfiavamos cabelos cac!eados, os l<bios Kue sumiam na boca, como se esta os engolisse, eos momentos de silOncio tambAm formavam o ritual do luto" $ dor e a tristezatranspareciamnos gestos desalin!ados, como uma reaço intrApida para Kue ela no minguasse oucapitulasse diante da morte da amiga" E eu, Kue me recusei a velar o corpo deEmilie,ouvi de -indiA a narraço de cenas e di<logosH ela gesticulava muito, falava comuma voz meio travada, e Kuando nos ol!os estriavam uns fios vermel!os ela sa;adacadeira e vin!a me abraçar e beiNar" $Kueles ol!os grados ainda ardiam na man!do domingo, e os cabelos amarelados e soltos pareciam imprimir no rosto dela umaafliço bem prGima do desespero"T1:1#8o apenas os amigos, tambAm os curiosos vin!am falar comigo, sabiam Kue eu erauma irm para EmilieH alguns levaram ramal!etes de flores Kue ealavam o aromadeuma morbidez antecipada, pois l< no sof< da sala Emilie ainda respirava, como umcorpo Kue ainda vive, mas F sombra da morte" im, flores brancas e ramagensverdes,telefonemas e mensagens de luto, tudo isso era como levar o tmulo para dentroda casa" (m outro fato tambAm me incomodou4 a presença daKueles doisdesaforados,no falaram comigo, nem seKuer tocaram no corpo de Emilie, era como se uma

est<tua estivesse ali deitada" Lembro Kue na adolescOncia faziam danaçMes comtodo mundo,

Page 77: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 77/90

foram epulsos de todas as escolas da cidade, e muitas vezes castigados pelospadres, uma puniço amarga4 ficar de Noel!o sobre um monte de mil!o, em plenosol domeio7dia, atA aparecer na noite a primeira estrela" Emilie no perdia apaciOncia, tolerava essas diabruras, ao contr<rio do marido dela, Kue certa vezamarrou os

dois na mesa da sala,7onde permaneceram sozin!os, como alim<rias sem dono, atAEmilie convencer o marido a solt<7los" )as nem sempre ela esperava tanto4antecipava7sea KualKuer perdo e ia vO7los na sala ou no Kuarto, os dois amarrados efamintos, e ento era um 'eus nos acuda, porKue parecia Kue ela era a causa detudo4 da revolta,do Gdio, da indisciplina" &s dois tambAm no se dirigiam a mim, tal71:3#vez por eu ser amiga de amara, uma flor rara para o pai, Kue a mimava semperceber, ou sem Kue os outros percebessem" dif;cil saber de onde vem arevolta deum fil!o, essa delinKUOncia precoce, a inveNa, o cime e a violOncia Kue desdecedo tomaram conta desses dois fil!os de Emilie" Eles fizeram um pacto contra airm,sabendo Kue Emilie, desde o nascimento e, sobretudo, desde a morte de ora=angela, l!es !avia implorado para Kue deiassem a fil!a dela em paz e no aperseguissem,como se faz com um criminoso ou com o mais perigoso foragido, Kue estavadestinado a sucumbir numa casa de mortos" %ambAm no atenderam ao pedido do pai,Kue muitosanos antes de morrer reuniu os !omens da casa e pediu ao nico fil!o letradopara traduzir em voz alta um vers;culo da surata das )ul!eres, a fim de Kuetodos entendessemKue na palavra de 'eus, o )isericordios;ssimo, sempre !avia perdo e clemOncia"$dmitiu Kue a fil!a nascera e crescera diante de um espel!o mal polido, mas Kueumamul!er tentada pelo pecado pode arrepender7se meditando sozin!a num Kuartovedado F luz do sol e a todos os ol!ares durante cinco dias e cinco noites" )asnem issoos tornou seKuer tolerantes com a irm" a verdade, passaram a desprezar o paipor ter recorrido a um teto sagrado para perdoar o imperdo<velH durante todoessetempo aperrearam a irm, baniram7na da fam;lia e Nuraram armar um escndalo seela pusesse os pAs na calçada do sobrado ou se assinasse com o sobrenome dafam;lia"E atA recentemente andavam grun!indo como feras famintas em busca de uma pistaKue os levassem ao novo esconderiNo dela" @< sabiam Kue estava na .arisiense,masenKuanto teu avB viveu no ousaram importun<7la, porKue iriam ficar na pendurase pisassem na loNa para ameaçar a irm" & vel!o protegia a fil!a com un!as edentes,e no fim da vida parecia mais preocupado com ela Kue com a esposa" 'iz7Kuelevava flores e plantava mudas de fruteiras no Kuintalzin!o dos fundos, e umdia, antesdo aman!ecer, foi ao mercado para comprar peies, legumes e1::frutas e convidou Emilie a almoçar na .arisiense" Emilie Kuase no acreditou"'isse4 Te no for uma fraKueza da idade, posso Nurar Kue no !< mais !omensinfle;veisna face da terraT" )as !avia pelo menos dois, porKue os dois fil!os sopravampalavras de insulto ao mencionar o nome da irm" E por Kue fizeram isso .orKuena rua,nos clubes, nos bares, por toda parte eram perseguidos por ol!ares ora

reticentes, ora indagadores4 ol!ares Kue procuravam saber as mincias,inconformados com as

Page 78: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 78/90

!istGrias Kue de boca em boca transformam um evento numa trama de suposiçMesdesencontradas" *om a morte do teu avB, tentaram ir mais longe" Enviavambil!etes ameaçadores,telefonavam em plena madrugada insultando7a de fil!a disso e fil!a daKuilo, euma vez pagaram uns moleKues para apedreNar a clarabGia do Kuarto onde eladormia sozin!a"

G no c!egaram ao cmulo de espanc<7la porKue Emilie controlava o caia da.arisiense e guardava o din!eiro no cofre inglOs cuNo segredo sG ela con!ecia" EeraNustamente esse segredo Kue sustentava as fam;lias dos teus tiosH mais ainda,por ser uma Kuesto de vida ou morte, era o segredo do cofre Kue os detin!a nomomentoculminante de fria insana contra amara 'elia" $o ficar sozin!a na casa, sem omarido, sem empregados, sem ninguAm, sozin!a entre os animais, as est<tuas dafonte,plantas e flores, agradecendo com negaceios aos vizin!os condescendentes Kue sepreocupavam em visit<7la todos os dias, e ao *omendador Kue l!e oferecia acompan!iade uma das preceptoras francesas Kue passavam dias e noites num Gcio absoluto,sua maior preocupaço no era o temor F morte solit<ria, e sim o segredo docofre,pois, Kuando morresse, os fil!os tomariam a casa e a .arisiense de assalto, eamara seria Nogada na rua, sem eira nem beira" im, ela me revelou, e creio KuesGa mim, o segredo do cofre camuflado num lugar insuspeito para onde ela ocarregara ao perceber Kue o marido N< estava nas ltimas" ?oi na noite de umdomingo Kueela me puou pelo braço e disse4 TVem comigoT" Le71:5#vava na mo uma lanternaH cautelosas, atravessamos a escurido do p<tio e doKuintal para no despertar os animaisH em frente ao galin!eiro ela tirou umac!aveda alça da lanterna e destrancou a porta" $s galin!as no se meeram, nemciscaram a terra, talvez acostumadas com essas visitas noturnas da tua avGH eladeu unspassos atA o pombal escondido atr<s do ltimo poleiro e ficou de cGcoras,tateando a terra mida Kue fedia a estrume" G ento acendeu a lanterna e focouno c!o,bem ao lado do pombal, onde !avia uma cuia emborcada e cravada no estAreo degalin!a" T$s c!aves esto aKuiQQ, disse Emilie, levantando a cuia" *om uma dasc!avesela abriu a porta de madeira, e o Kue eu vi foi uma caia met<lica, enorme, e naporta verde !avia cinco roletin!as Kue podiam girar ao redor do alfabeto e maisKuatro ao redor de nmeros Kue iam de zero a nove" Ela começou a aNustar o pontovermel!o de cada roleta na letra e no nmero Kue formam o segredo, de modo Kue adisposiço final, lida no sentido !or<rio, era composto pelas letras $)L$, epelos nmeros 1661" 'epois ela girou a c!ave, puou para baio a maçaneta, abriuaporta maciça e iluminou o interior do cofre" To min!as fortunasT, eclamou,enKuanto apalpava uma b;blia, <lbuns de retratos, cartas e papAis avulsos"'entro dasgavetin!as met<licas ela guardava o din!eiro da .arisiense Kue amara l!e trazianos fins de semana" %udo parecia amontoado nos cantos do cofre, mas, na confusoaparente, o foco de luz e a voz de Emilie aclaravam a desordem4 aKui esto os<lbuns da infncia dos meus fil!os, ali as fotografias de *!ipre e )arsel!afeitasdurante anossa viagem ao rasil, e naKuela caiin!a as cartas enviadas por oeurVirginieH em meio Fs p<ginas do Vel!o %estamento ela guardava como rel;Kuias aspAtalas secas de uma orKu;dea Kue um enfermo indigente l!e ofereceu no dia do

desaparecimento de Emir" .ara agradecer essa d<diva de um !omem contaminado eimpuro,

Page 79: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 79/90

ela l!e presenteou o Kue estava a seu alcance4 um cordeiro, um pacote defarin!a, uma lata de azeite e dois1:9pombos, e o aconsel!ou a procurar um beato ou um sacerdote do en!or" $s pAtalasestavam amareladas como o retrato de casamento Kue ela retirou de dentro da;blia

com as mos trOmulas, e depois mostrou as NGias da nossa terra, Kue ela sG usavanas festas e recepçMes, e tambAm nos momentos de reconciliaço com o marido"oteiKue ela franziu a testa e ficou cabisbaia, talvez por lembrar Kue o maridoestava padecendo no KuartoH mas nem assim c!orou" .erguntei uma vez se ela noc!oravapara se aliviar das agruras desse mundo, e ela me respondeu Kue sG a morte nostraz al;vio4 Q Q Kuando o corpo e a alma entram de acordo para desfrutar osilOncioda eternidadeT, disse, sem pestaneNar" $li, de cGcoras, Emilie continuava amostrar os obNetos envel!ecidos, e eu N< estava agoniada porKue teu avB gemiasozin!ono Kuarto e N< no recon!ecia mais ninguAm4 tin!a c!egado ao fim da vida comoele sempre Kuis, vivendo consigo mesmo, sem testemun!as e longe de tudo4 doGdio, docime, da esperança e do receio" Emilie percebeu min!a inKuietaço, e logotratou de arrumar os obNetos nos mesmos lugaresH depois fec!ou a porta do cofre,giroutodas as roletas e me pediu7para abri7lo" a terceira tentativa deu certo"Voltamos para dentro da casa, camin!ando com o mesmo cuidado para no assustaros bic!osHna copa, ela me mostrou o esconderiNo da lanterna e da c!ave da porta dogalin!eiro4 um filtro de porcelana, peKueno e em desuso, igual aos Kue osmarin!eiros inglesesvendiam antigamente" 'epois me ofereceu <gua de al!o, e tomou uma Narra inteiraantes de subir para rezar ao lado do marido" unca precisei abrir o cofre,porKueo Kue Emilie mais temia, uma atitude descabelada e abomin<velQ dos fil!os, paraarrasar com amara 'elia, no aconteceu" $conteceu o Kue tua avG menos esperava,e Kue foi mais7uma bordoada na vida dela" 'epois Kue ela perdeu o marido, afil!a tomou conta da .arisiense sem a aNuda de ninguAm, e deu um impulso togrande naloNa Kue no fim de alguns anos Emilie c!egou a caçoar do finado41:8#D `an!amos em cinco anos o Kue deiamos de gan!ar em cinKUentaH a vocaço deleera vociferar no alto de um minarete, em vez de ficar mudo atr<s do balco"em ou mal, as duas continuaram vivendo assim4 Emilie na casa, com os animais,recebendo visitas espor<dicas, e vendo os fil!os uma vez ao mOs, ou nem isso"amara'elia trabal!ando, comendo e dormindo sozin!a na .arisiense, visitando a me umavez por semana, sempre calada, pensando no sei o KuO" $ndava sempre vistosa, eo tempo e o luto a embelezavam ainda mais" a ltima vez Kue a vi estavainteirin!a vestida de negro" ?oi num domingo de man!, na casa de Emilie, onde!avia algunsvizin!os, e todos conversavam ao redor da fonte" Emilie decidiu abrir as gaiolasdos p<ssaros, atA dos mais raros, convencida de Kue esse gesto l!e daria nimoparaviver em paz por mais algum tempo" T'e agora em diante sG Kuero animais livresnesta casaT, disse em voz alta, para Kue todos ouvissem em meio F revoada" )asalgunsp<ssaros permaneceram nas gaiolas abertas, esperando o alpiste, a banana e avisita matinal de um rosto Kue se aproima das varetas met<licas para imitar ocanto

Page 80: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 80/90

dos p<ssaros" Ela no insistiu para Kue voassem, apenas disse4 TEstes N< fazemparte de mim" Voaremos Nuntos, 'eus sabe Kuando e para ondeT" amara tambAmaNudoua me a abrir e limpar as gaiolas, Nogou pedaços de rabanada e restos de comidaaos peies e NacarAs, e passeou entre as fruteiras com uma Narra de nActar deNenipapo,

procurando as flores de vidro e as ampolas de cristal penduradas nos gal!os,entre as fol!agens"aKuela man!, duas coisas destoavam da postura !abitual de amara" $ suaelegncia inveN<vel deiou as visitas boKuiabertas e a tua avG orgul!osa"*alçava um sapatoalto, usava meias de seda transparentes, e na pala do vestido de algodo preto!avia um escaravel!o de madrepArola sombreado pelas abas largas de um c!apAu depal!aitaliano" Emilie ac!ou o traNe um pouco austero para a man! de um1:6domingo, e perguntou se ela iria F missa das dez, na )atriz" amara sorriu eol!ou com aKuele ol!ar enviesado para Emilie" Ento passou a conversar, e essefatotambAm causou estran!eza a todos, porKue na frente dos outros ela no era defalar muito" ?alou com desenvoltura sobre isso e aKuilo, comentando os fatos dacidade,os novos fregueses da .arisiense, Kuem devia e Kuem pagava em diaH falou dasmudas plantadas por seu pai e Kue agora davam frutas e flores, e depoisperguntou a$rminda se Esmeralda vivia bem no Rio de @aneiro, a Xasmine se o marido delaainda teimava em criar bic!os7de7seda neste clima infernal, a )enta!a sepreservavaa mania louca de caçar pombos cinzentos de madrugada para as refeiçMes dos fins7de7semana, e ol!ou para mim Kuerendo saber se eu ainda morava sozin!a nesta casavel!a Kue d< para o Kuintal da casa de Emilie" Respondi Kue era a moradia idealpara uma solteira vel!a e sem fam;lia" E mais uma vez ela sorriu, enKuantoentregavauma sacola fec!ada F tua avG" oube mais tarde Kue na sacola !avia, alAm dedin!eiro, um livro grosso encadernado em couro, uma carta, e outras coisin!asKue Emilieno Kuis me revelar" Ela se arrependeu atA a morte por no ter aberto a sacolano momento em Kue a recebeu" T?oi no instante em Kue os sinos começaram a dardez!oras, e eu no Kueria Kue min!a fil!a perdesse a missa para fazer relatGrio devendasT, disse Emilie" a noite do mesmo dia, ela resolveu levar a sacola aocofre,e fez um estardal!aço to grande Kue vim correndo para ver daKui do alpendre oKue estava acontecendo" Vi Emilie sentada na borda da conc!a de pedra,cabisbaia,com uma mo apoiada na perna de um anNo e a outra afagando a cabeça de umcarneiro" $s luzes do p<tio estavam acesas, iluminando os peies Kue encrespavama <gua,e muitos animais ainda guinc!avam, mas tua avG no dava importncia a isso" oKuis c!am<7la, apenas fiKuei imaginando o motivo de ela estar ali, Kuieta, entreo anNo e o animal" Vez ou outra eu coc!ilava, sentada nesta mesma cadeira, esempre Kue eu1:#abria os ol!os encontrava Emilie na mesma posiçoH a; me lembrei das palavrasdo teu avB, numa madrugada em Kue a conversa tin!a sido interrompida porKueEmilieapontou para $madou %ifac!i, um poeta norte7africano, amigo de 'orner, e Kuevisitava o $mazonas" $madou tin!a passado a noite contando !istGriasetravagantes,

Page 81: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 81/90

c!eias de situaçMes e di<logos obscenos, de amantes sem7vergon!as, de l<bioslibertinos Kue, segundo ele, se moviam no rosto dos !omens e abaio do ventredas mul!eresHe esse cretino ainda tin!a coragem de se proclamar escritor e religiosopraticante" verdade Kue todo mundo ria, e as mul!eres gargal!avam, morrendo deveame,

porKue ele falava com a l;ngua e tambAm com as mos" ?alou tanto e com tantadisposiço Kue no fim da noite se afastou da roda para beber uma Narra derefresco detamarindo e devorar uma panela de lentil!as com carne" @< estava Kuaseaman!ecendo Kuando Emilie esticou o braço na direço da fonte, e ali vimos o!omem, imGvel,todo de branco, como um santo de gesso" ?oi ento Kue teu avB disse4 TJuandoalguAm permanece um bom tempo calado, se no estiver dormindo deve estarpensando noamor ou na morteT"Emilie, com certeza, no dormia" a man! do dia seguinte, soube o Kue tin!aacontecido" Lembrei Kue amara 'elia se despedira sem cerimBnia, com um atA logor<pidocomo um lampeNoH ela desapareceu no corredor lateral deiando atr<s de si umsilOncio de estupefaço e enigma compartil!ado atA pelos animais" aKuelemomento, ac!oKue nGs todas deseN<vamos comentar alguma coisa a seu respeito, mas ficamossilenciosas4 por uma razo descon!ecida, no conseguimos dizer nada" Emiliecontemplavaas poucas gaiolas !abitadas pelos p<ssaros Kue no foram embora, )enta!acomprimia as tOmporas para aliviar a eterna enaKueca, Xasmine, de ol!osfec!ados, aspiravao ar da man!, e o rosto rison!o de $rminda ol!ava para suas mos Kue bordavamas iniciais do *omendador num lenço de cetim" Eu pensava em150amara" 'epois Kue certas coisas acontecem, mesmo os fatos mais inesperados eimprevis;veis a gente lamenta no possuir o dom redentor da clarividOn* ia, ouaomenos uma gota de pressentimento Kue possa impedir uma aço indeseN<vel" $ovisitar Emilie na man!da segunda7feira, vendo7a afobada e tensa, soube Kue era tardedemais para evitar um acontecimento adverso" $lguma coisa na sacola deu aentender Kue amara !aviasumido" Emilie sabia disso desde a noite anterior" V<riosfregueses ass;duos da .arisiense telefonavam Kuerendo bisbil!otar, ut-car,saber por Kue as portas da loNa estavam trancadas 7 guando Emilie entrou na.arisienseencontrou tudo na mais perfeita ordem, e no Kuarto onde a fil!a dormia faltaVamapenas as roupas e a moldura com o retrato de ora=a7 $ loNa foi alugada namesmasemana, e toda a mercadoria vendida ao inKuilino" Ela sG teve o trabal!o decarregar para acasa dela algumas peças de tecido, e duas ou trOs caias de grinaldase vAus de noiva Kue estavam encal!adas no depGsito" tmilie dizia Kue !< certasmercadorias Kue o tempotransfortma em obNetos de estima, e Kue por isso algunsleKues pintados F mo por artistas espan!Gis permaneciam longe das vitrinas,porKue eram leKues iguaizin!os aos Kue o marido l!e presenteara na noite donoivado"'e modo Kue entulrto( o Kuarto de obNetos Kue comemoravam uma passagemparticular de sua vida, e decidiu nunca mais passar em frente da .arisienseenKuanto amara'elia no reaparecesse" )esmo asim, ela no fez menço em procurar a fil!a4

recusou aaNuda de meio mundo, recusou sobretudo a boa vontade do seu tio Em;lio,

Page 82: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 82/90

Kue se ofereceu a percorrer toda a cidade e atA mesmo o pa;s para encontrar asobrin!a" )as Emiliealertou Kue a ltima vez Kue ele sa;ra em busca de alguAm tin!asido um desastre4 se Emir tivesse ficado com aKuela Kueida em )arsel!a, talvezestivesse vivo ainda !oNe" Ela colocouum ponto final no assunto, dizendo Kue seria

perda de tempo)andar pela cidade atr<s da fil!a, porKue amara erateimosa,rfesoluta e orgul!osa"151#D %alvez ela seNa menos infeliz assim, vivendo no anonimato e numa cidadedescon!ecida, sem Kue a gente con!eça o seu destino D disse Emilie"os ltimos anos, ela sofreu como uma penitente, sG para no mencionar nasconversas os desastres da fam;lia" .ara tanto, inventava reformas na casa,capinava oKuintal, podava as parreiras e as <rvores, e restitu;a o bril!o aos espel!os evidros de todos os aposentos" (ma man! encontrei7a sentada perto do tanKue,esfregandocom pal!a de aço a carapaça de <lua e tapando com cera de abel!a as fissuras eburacos provocados pelas colisMes com outros animais e pelas brincadeirasperversasde fil!os, netos e enteadosH depois ela lustrou o casco com uma flanela embebidaem resina de madeira e largou o KuelBnio na prain!a de areia Kue terminava notanKue!abitado por dezenas de fil!otes" em ol!ar para mim, eclamou4 T<lua A meuespel!o vivoT" +nventou tambAm v<rias enfermidades Kue apareciam de man! esumiam antesdo anoitecer, e passou dois anos pragueNando, sentindo7se ameaçada por um calona planta do pA direito, temerosa de Kue uma gangrena a deiasse aleiNada e l!etirassepara sempre o deseNo irresist;vel de camin!ar pela casa desde as cinco da man!atA a !ora do sono" )as desde o ano passado, no sei por Kue cargas dQ<gua, elaseconvenceu de Kue a volta de amara dependia unicamente dos dois fil!os" @< umpouco fora de si, ela Kueria Kue ambos fizessem uma declaraço pblica em KueNuravamuma reconciliaço definitiva com amara 'elia" Eu e Em;lio conseguimos persuadi7la a deiar de lado essa idAia tanta, Kue era um sinal de desespero edescontrole,e no um ato pertinente" )esmo assim, ela tentou tudo para persuadi7los areatarem com a irm" *onversou com ambos, para dizer Kue o rancor corro;a a vidade um!omem, e Kue ela mesma, N< no fim da vida, ainda no conseguira entender o Gdio,e muito menos a sua permanOncia e perdurabilidade" ?izeram pouco das palavras datua avG, e um deles cuspiu F Kueima7roupa uma frase Kue152a deiou transtornada nestes ltimos dias4 T$ sen!ora deu F luz a uma mul!er davidaH a sen!ora devia se odiar, e mais Kue ninguAm entender o GdioT"$ reaço de Emilie, F primeira vista, foi serena, Kuase ap<tica" Escutou afrase, impass;vel, com o ol!ar deitado nos ol!os do fil!o, enKuanto elepermanecia sentadona sala, de costas para o relGgio da parede" Ela no desgrudou o ol!ar de cimadele nem mesmo Kuando, meio pasmado, meio desconcertado, ele se levantou dapoltronae saiu como se fugisse de uma ameaça ou Kuisesse evitar algo Kue o importunavaatA as entran!as" & mais estran!o foi Kue Emilie nem piscou os ol!os, e eu tivemedodaKuele ol!ar Kue parecia no ol!ar para ninguAm nem para nada" E estran!ei maisainda Kuando, ao me aproimar dela, era como se uma sombra roçasse o espel!o da

Page 83: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 83/90

sala, ou como se eu ainda estivesse l< fora, espiando os dois conversarem,amoitada entre as fol!agens do Kuintal" ?oi preciso me sentar diante dela paraKue notassea min!a presençaH e com o ol!ar ainda fio, balbuciou4 TEstou bem, assimsozin!aT"+sso aconteceu na seta7feira, uma semana antes de sua morte" ?oi o ltimo

encontro Kue teve com o fil!o e, talvez, com a vida" $ semana seguinte ela Kuaseno dormiu,mas mesmo assim son!ou muito"

 D & pouco Kue durmo A para son!ar D disse no domingo passado, enKuanto arrumavafotografias e cartas, e remeia sem parar os obNetos mofados dentro de um ba"essesltimos dias conversamos algumas vezes, sentadas no p<tio, onde ela recordava onome de uma planta e acrescentava4 T?oi a $nast<cia Kue plantou, e aKuelatrepadeirafoi presente de uma empregada Kue fugiu de casa com medo dos meus meninosT"'epois falava no teu tio -aSim, Kue ficou !omem sem Kue ela con!ecesse o rostodo !omem,pois sa;ra de )anaus com pouco mais de vinte anos, e desde ento enviara7l!eretratos e cartas, mas tudo isso vale menos Kue uma r<pida troca de ol!ar" )emostravaum retrato de153#-aSim e perguntava4 To A a cara do Emirzin!oT" E meio afobada, meio aflita,ela mesma respondia4 Te parecem como duas pArolas de um mesmo colarT" oreclamavado cansaço, mas eu notava Kue estava com ol!eiras, e Kue os traços delicados dorosto se desmanc!avam" .arecia trabal!ar mais Kue nunca, e durante a madrugadaerampoucas as badaladas dos sinos Kue ela no escutava" +magino Kue as noites emclaro a atordoavam"os trOs ltimos dias, de terça a Kuinta, me contou uma enurrada de son!os emKue sempre participavam Emir e -aSimH depois me pedia para ler as cartas dofil!oausente, enKuanto ela mirava os retratos de ambos no <lbum aberto repousado nocolo" & irmo, morto ainda Novem, era muito parecido ao fil!o Kue foi morar nosulHe ol!ando para as duas fotos Nuntas, a semel!ança c!egava a incomodar4 pareciamsorrir o mesmo sorriso" *omentando os son!os, ela repetia com uma voz crAdula4TJuantasvezes no nos encontramos, os trOs dentro de um barco descendo o rio ao encontrodo marT" E Kuase todos os son!os repetiam um sG, Kue ela tornava a contar,semprecontemplando os retratos e me dizendo, pedindo4 TLeia, -indiA, leia as cartas de-aSimT" a Kuinta7feira encontrei7a bem disposta, andando pra l< e pra c<,rodeandoa fonte, parando para observar os peies, apaziguada, calada, reconciliada comalguma coisa Kue findava" & tilintar das Kuatro pulseiras douradas no antebraçoesKuerdoera o nico ru;do do seu corpo" %udo no sobrado estava impec<vel, e nada, nen!umobNeto, fora do lugar"QQ15:6

$ voz de -indiA cala subitamente, e por algum tempo uma tristeza desponta nool!ar dela" 'o alpendre de sua casa ela contempla a copa do Nambeiro e osNanelMes doKuarto do sobrado, cerrados para sempre" & ol!ar torna ;nfima a distncia entreas duas casas, e, no silOncio do ol!ar, a memGria trabal!a" $ mul!er no

gesticula

Page 84: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 84/90

mais, no se levanta para me abraçar ou beiNar, apenas se entrega ao c!oro Kuasesilencioso Kue tambAm dialoga com a paisagem recortada e ensolarada, onde tudo AtambAm silencioso, mas sem o ol!ar e a memGria" $ casa est< fec!ada e deserta, olimo logo cobrir< a ardGsia do p<tio, um dia as trepadeiras vo tapar asvenezianas,os gradis, as gelosias e todas as frestas por onde o ol!ar contemplou o percurso

solar e percebeu a invaso da noite, precipitada e densa" & ol!ar parecedialogarcom algo semel!ante F noite, com os obNetos abandonados na escurido, com ospassos lentos Kue povoam uma casa, um mundo4 os p<tios, a fonte e o seu entorno,a floraKue une o cAu F terra, os animais Kue descon!ecem a clausura e animam7se aoouvir a voz de Emilie"o fim da man! do domingo, nada mais acontece, o rosto de -indiA continua mudo,a desordem do corpo e da fala parece prGima do fim, talvez ela ainda evoKueestaperda, na solido da vel!ice vive7se de ausOncias, !< tantas verdades para seremesKuecidas e uma fonte de f<bulas Kue po7155#dem tornar7se verdades" s vezes imagino -indiA sozin!a, vagando na fronteiradiminuta, Kuase apagada, Kue separa a morte da noite, e a memGria da morte"+magino7atambAm no silOncio daKuele domingo, com os ol!os fios na paisagem emoldurada4 ametade da <rvore e uma parte da casa4 o plano fec!ado da fac!ada sem sombras,sobo sol Kue divide o dia"o in;cio da tarde de seta7feira, Xasmine me telefonou para contar Kue osparentes e amigos permaneciam reunidos na casaH tio -aSim desembarcaria aKualKuer momento,e com a aNuda dos vizin!os tio Em;lio !avia providenciado tudo para enterrar ocorpo da irm" Essas not;cias soavam como uma intimaço4 eu devia comparecer Fdespedidade Emilie, Fs trOs da tarde serviriam um cafA depois da missa com corpopresente, oficiada pelo arcebispo de )anaus" .referi c!egar no fim de tudo, apGso enfadodo adeus, mas ainda pude observar, na porta da casa, o sAKuito" &s fil!os iam Ffrente do corteNo, e as trOs amigas de Emilie alugaram carros para levar algunsfreKUentadoresda casa, pessoas !umildes Kue ela aNudava como podia, dando7l!es a sobra dasrefeiçMes, roupas vel!as, e prometendo um trabal!in!o na casa de fulano" &usimplesmenteconvidando a tomar um lanc!e aos Kue N< no lembravam o dia Kue tin!am engolidoum pouco de comida" &s delinKUentes e desempregados Kue rondavam a vizin!ançafareNandoas casas desabitadas, ao serem detidos por soldados ou moradores dos arredores,enviavam7l!e bil!etin!os com palavras de splica e arrependimento Kue asensibilizavama ponto de ela mesma se dirigir ao Kuartel para convencer o oficial do dia alibertar os detentos, Kue tambAm eram fil!os de 'eus e no ces raivosos" *omuma raNadaverbal inintelig;vel, e mesmo assim emocionante, ela conseguia livr<7los doc<rcere e, na frente de todos, ral!ava e fazia um sermo como faz com os fil!osrebeldesuma me af<vel nos momentos de cGlera"159&s outros acompan!antes eram parentes do *omendador e de Esmeralda, Kue tin!aido embora de )anaus desde a morte do marido" $s mul!eres das duas fam;liasainda estavamenlutadas, e o vAu de tule preto Kue l!es cobria o rosto parecia aludir F morte

de Emilie e a tantas outras, acontecidas aKui e no alAm7mar, como se a morte deum

Page 85: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 85/90

amigo despertasse uma sucesso intermin<vel de lembranças dos Kue N< conviveramconosco" %alvez por isso, o pesar doloroso Kue nos envolve, no sabemosdiscernirse A fruto da perda de alguAm ocorrida ontem ou !< muito tempo, de modo Kueoutros corpos sem vida reaparecem com intensidade na nossa memGria, ampliando oseu !orizonte

melancGlico"$o longo do traNeto Kue vai da praça ao cemitArio, eu procurava observar o rostodas pessoas" Eram rostos de todas as idades, e alguns, mais vividos, possu;amtraçose epressMes idOnticas, como se o tempo os tivesse igualado" .referi no sair docarro, a fim de permanecer F margem da cerimBnia fnebre" $Kuela tardeetenuanteterminou na casa de Emilie, onde encontramos tio -aSim, sozin!o e imGvel comouma est<tua, perto da copa escura do Nambeiro"G no dia seguinte retornei para visitar o Nazigo" Encontrei $damor .iedade,Kuieto como sempre, tal uma mudez Kue se move na man! de um s<bado sereno, semc!uvaou calor, sem risos e lamrias" Recon!eceu7me logo, pois no dia anterior acenarapara mim, de longeH alguAm l!e !avia dito Kue eu era a prima de ora=a ngela, acriança Kue c!orou a morte da outra criança" *onversamos um pouco F sombrafresca das mangueiras, onde cataste manguitas na terra e brincaste de escalonaros volumesbrancos Kue Kuerem eternizar o Kue N< A pG" $damor falou um pouco de sua vida,toda ela dedicada a escavar a terra para abrigar os mortosH citou os mortosilustresda cidade e os pAs7rapados, enterrados ao lAu, sem Kuerubins ou cantoscelestiais, nen!uma iluso de vida futura" Jueiava7se de uma enaKueca151#eterna, de dores nas costas, do cansaço Kue agora vin!a a galope, do todo7o7dia<rduo, enfadon!o, sem cores, monGtono" & Kue pensava da morte, este !omem Kue N<enterrara mil!ares de mortos ?alou Kue a cidade crescera muito nos ltimosanos, pois trabal!ava Kue nem um co"

 D aKuela Apoca D recordou D, a morte no era to comum, no era um nada4 umenterro era um acontecimento distintoH alguAm nascia com festas, alguAm fec!avaos ol!os,e tudo passava a ser cerimonioso, com elegncia" )in!a compan!ia A essaimensido de m<rmore e pedra entre <rvoresH e os vivos Kue aparecem no falam,c!oram" )eacostumei com essa vida cercada de vizin!os silenciosos""")as no fim da madrugada do s<bado ele foi surpreendido por uma voz grave, nemalta nem baia4 uma alternncia de melodia e lamento, Fs vezes interrompidabruscamente,dando lugar a uma breve Kuietude, a um sopro de silOncio" TEstou !abituado aouvir todo tipo de ladain!aT, disse, Q Qmas aKuela era diferente de todas"QQ Elefoide encontro F voz, atA avistar um vulto ao lado do Nazigo da fam;lia" o foiapenas a estran!eza do canto Kue l!e c!amou atenço, mas tambAm a posiço docorpo4nem de Noel!os, nem deitado, meio agac!ado, com os dois braços estirados para asbandas do sol nascente"

 D ?iKuei na espreita D continuou $damor D, esperando um fiozin!o da man!H a;energuei um rosto Kue logo perdi de vista, pois a cabeça embiocava Kuerendoprocurara terra, mergul!ar no finzin!o da noite, sumir" 'epois A Kue percebi4 aKuelevozeiro no vin!a da boca do teu tio -aSimH Kuem rezava era um obNeto escuro4uma caiapreta sobre o tmulo do teu avB" ?iz o sinal da cruz, como muitos Kue passam aolado deste tmulo e ficam abismados porKue ali no !< uma cruz, nem coroa de

flores,

Page 86: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 86/90

nem imagem de santo, nen!um sinal de morto cristo" E ainda mais vendo aKuelecorpo sem voz murmurar, de costas para os defuntos"""156$damor Kuis saber o porKuO, tantos porKuOs4 o momento da oraço, o corpoagac!ado e solid<rio F terra, e a voz met<lica gutural, Kuerendo ser canto efala e oraço

a um sG tempo"Eu mesma relutei em acreditar Kue um corpo em )anaus estivesse voltado para)eca, como se o espaço da crença fosse Kuase to vasto Kuanto o (niverso4 umcorpo seinclina diante de um templo, de um or<culo, de uma est<tua ou de uma figura, eento todas as geografias desaparecem ou confluem para a pedra negra Kue repousano;ntimo de cada um"Lembro7me de Kue na penltima carta Kuiseste saber Kuando eu ia deiar acl;nica, e Tsem Kuerer ser indiscretoT me fizeste v<rias perguntas, e atAbrincaste4 Q Qose trata de uma inKuisiço epistolarQQ" ei Kue no era uma carta inKuisitGria,mas a tua curiosidade eorbitante Fs vezes me assusta, a ponto de me deiarperpleae desarmada" & Kue aconteceu enKuanto morei na cl;nica $s primeiras semanasvivi imersa na escurido pacata de um sono cont;nuo e sem son!os" Era como se eutivesseos ol!os vendados, ou como se uma cegueira precoce e sbita fosse uma defesa Fvinda de nossa me, Kue c!egou assim Kue foi informada do meu internamento"*reioKue no c!eguei a vO7la, nem seKuer de longe" )as certa noite, ao ol!ar para aporta aberta do Kuarto, divisei um contorno indefinido, uma forma envolta desombras,como se um corpo tivesse escapado da claridade da luz para refugiar7se numaregio obscura situada entre a soleira da porta e os confins do mundo" %alvezfosse ela,porKue escutei a mesma voz Kue nos abandonou !< tanto tempo4 uma voz dirigida FEmilie, sondando de um lugar distante, not;cias da nossa vida" & corpo e a voz,toprGimos de mim, N< no eram mais Kue uma p<lida lembrança de um encontroKuimArico, e esvaneceram por completo Kuando15#emergi do estado de torpor para ingressar no espaço ordenado, assAptico esGbrio, golpeado sem cessar pelo estrApito alucinante das pessoas reconduzidasao sonolet<rgico dos Kue !aviam ingressado recentemente para passar dias e diasaliNados de KualKuer gesto lcido ou criativo, como alguAm Kue dorme no fundo dooceanoe apenas respira ao lado de monstros marin!os e algas venenosas Kue gravitamentre um leito lodoso e uma superf;cie de altura abissal" $lguns dias passeiali, pensando4como tin!a ido parar naKuele lugar, e esperando Kue min!a amiga me revelasse oKue mais temia, mas Kue para mim N< era uma certeza, pois intimamente estavapersuadidade Kue fora internada a mando da nossa me, depois do meu ltimo acesso de friae descontrole, Kuando nada ficou de pA nem inteiro no lugar onde morava" Vim semmuita resistOncia, como um cego ou uma criança perdida Kue so conduzidos aalgum lugar familiar" E ali, a alguns KuilBmetros do centro da cidade, a loucurae asolido me eram familiares" 'a Nanela do Kuarto via o emaran!ado de torrescinzentas Kue sumiam e reapareciam, pensando Kue l< tambAm /onde a multido seespremeem apartamentos ou em moradias constru;das com t<buas e pedaços de carto era o

outro lugar da solido e da loucura" .assava algum tempo a ol!ar o panorama dametrGpole

Page 87: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 87/90

e o p<tio da casa transformada em Tcl;nica de repousoT, onde !avia bancos decimento, camin!os de grama e <rvores" $ntes do fim da tarde sa;a do Kuarto paraobservaras mul!eres Kue vin!am reverenciar o crepsculo ou buscar uma trAgua aodesamparo e F solido" $lgumas contavam as mesmas !istGrias, evocando lembrançasem voz alta,

para Kue o passado no morresse, e a origem de tudo /de uma vida, de um lugar,de um tempo fosse resgatada" Reparava na mul!er de negro Kue tirava a roupa,voltavacorrendo para o Kuarto, ressurgia vestida de negro e prostava7se debaio de uma<rvore, onde permanecia recostada no tronco atA desaparecer, confundida com anoite"-avia as Kue bailavam ao som de uma canço190imagin<ria, e tambAm uma mul!er de ol!os verdes, con!ecida por )aria $res, aela, Kue se aproimava lentamente das Kue no a reNeitavam, e arrancava dealgum lugardo corpo o retrato de um !omem e o mostrava com a devoço de Kuem mostra aimagem de um santo ou de um m<rtir" 'e vez em Kuando escutava gritos Kue vin!amdo outrolado do muro e sG ento soube Kue a casa se estendia alAm daKueles muros4 porKueno era o tempo, nem o espaço nem a noite Kue separavam a ala das mul!eres dados!omens, e sim um muro sGlido, espesso, intranspon;vel" )aria $res, a ela,depois de contemplar o retrato, apontava para o muroH tentara escal<7lo cravandoa pontados dedos nas saliOncias das pedras, e por isso fora punida e isolada das outraspor algum tempo" $ outra ala, no outro lado do edif;cio, nos parecia maisinacess;vele distante Kue a cidade" Era uma construço cuNa planta lembrava uma mariposa4 ocorpo era o volume Kue abrigava os Kuartos, a sua cabeça a administraço, e nasduas asas simAtricas situavam7se os p<tios, os refeitGrios e os Nardins com seuscamin!os de grama e pedra Kue circundavam as <rvores e terminavam nos portMes deferro" s vezes recebia a visita de min!a amiga, para Kuem contava o meu dia7a7dia, a conversa com os mAdicos, e os relatGrios Kue escreviam depois de observarmeusgestos, meu ol!ar, as pessoas a Kuem me dirigia" & minucioso itiner<rio do meucotidiano era rigorosamente inventariado" .ara me divertir, para distorceralgumaverdade, para tornar a representaço algo em suspense, contava son!os Kue notin!a son!ado e passagens fict;cias da min!a vida" G no inventei a respeitodos pais,mas falei muito pouco disso" Eles me escutavam com paciOncia, uma paciOncia friapara eacerbar a ausOncia da emoço" &s encontros aconteciam numa sala deparedesbrancas, ocupada por pessoas vestidas de branco e situada na etremidade dacabeça da mariposa, como um aKu<rio !abitado por peies mortos, Kue tantocontrastavacom o burburin!o do p<tio4 reino da emoço, do estado selvagem do de7191#seNo" );riam me trazia livros, cartas, agul!a, lin!a e not;cias" Ela soube Kuemin!a me ia viaNar pela Europa e passaria por arcelona para te visitar" )in!a!istGriacom ela A a !istGria de um desencontro" ei Kue este assunto melindroso no teatrai muito, TA uma conversa de cristalT, dizias, sempre Kue eu voltava a falarnisso"$ssunto Kue arde, palavras de fogo, conversa do diabo, no ei tambAm Kueconviveste um certo tempo com ela, mas eu, Kue sa; mais cedo de )anaus, sG a viuma nica

Page 88: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 88/90

vez durante a infncia" Emilie nunca me escondeu nada, como se me dissesse4 tuame A uma presença imposs;vel, A o descon!ecido incrustado no outro lado doespel!o")iriam estran!ava o fato de eu no sair dali o Kuanto antesH ela se incomodavaKuando l!e pedia para sentar no p<tio, e estremecia ao ver as duas beatas Kue seacercavam

com os ol!os arregalados e se aNoel!avam F nossa frente, segurando nas mos umterço de contas transparentes" T& Kue te atrai para continuares aKuiT, medizia"Juis responder perguntando o Kue me atra;a l< fora, mas preferi dizer Kue estavapensando numa viagem"& tempo Kue permaneci na cl;nica, ora procurava o p<tio para ficar com asoutras, ora me confinava no Kuarto, cuNa Nanela se abria para dois mundos" 'omundo dadesordem, ofuscado pela atmosfera suNa do movimento vertiginoso da cidade Kue seepande a cada minuto, eu ainda guardava as cicatrizes do desespero e daimpaciOnciapara sobreviver, dilacerada pela <rdua conKuista de prazeres efOmeros, como odelicado relevo de um caracol na areia da praia, logo apagado pelas <guas domar" &outro mundo, vis;vel demais, lateNava a poucos passos da Nanela" $o fim dealgumas semanas, eu N< podia, de ol!os fec!ados, identificar as vozes de cadapessoa,imaginar os gestos das Kue nunca falavam, e entoar as oraçMes das Kue rezavam" &Kuarto era o lugar privilegiado da solido" $li, aprendi a bordar" Retal!ei umlençolesfarrapado para fazer alguns lenços, onde bordei as iniciais dos nomes eapelidos, e teci formas abstratas nos pe7192daços de pano Kue deseNava presentear Fs Kue no tin!am nome ou no eramcon!ecidas atravAs dos nomes4 pessoas Kue nunca me ol!avam, nunca se ol!avam4corpos semfala, eclu;dos do di<logo, e Kue pareciam camin!ar num deserto sem 'eus e semo<sis, deiando atr<s de si um rastro apagado pelo vento, pelo sopro da morte"Emcertos momentos da noite, sobretudo nas !oras de insBnia, arrisKuei v<riasviagens, todas imagin<rias4 viagens da memGria" s vezes, lia e relia com avidezas tuascartas, algumas antigas, datadas ainda de )adri, e em muitas lin!as tulamentavas o meu silOncio ou a min!a demora para escrever7te" essa Apoca,talvez durantea ltima semana Kue fiKuei naKuele lugar, escrevi um relato4 no saberia dizerse conto, novela ou f<bula, apenas palavras e frases Kue no buscavam um gOneroouuma forma liter<ria" Eu mesma procurei um tema Kue norteasse a narrativa, mascada frase evocava um assunto diferente, uma imagem distinta da anterior, e numanicap<gina tudo se mesclava4 fragmentos das tuas cartas e do meu di<rio, a descriçoda min!a c!egada a o .aulo, um son!o antigo resgatado pela memGria, oassassinatode uma freira, o tumulto do centro da cidade, uma tempestade de granitos, umaflor esmigal!ada pela mo de uma criança e a voz de uma mul!er Kue nuncapronuncioumeu nome" .ensei em te enviar uma cGpia, mas sem saber por Kue rasguei ooriginal, e fiz do papel picado uma colagemH entre a tetura de letras epalavras coleios lenços com bordados abstratos4 a mistura do papel com o tecido, das cores como preto da tinta e com o branco do papel, no me desagradou" & desen!o acabadono

Page 89: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 89/90

representa nada, mas Kuem o observa com atenço pode associ<7lo vagamente a umrosto informe" im, um rosto informe ou estil!açado, talvez uma busca imposs;velnestedeseNo sbito de viaNar para )anaus depois de uma longa ausOncia" o deseNavadesembarcar aKui F luz do dia, Kueria evitar as surpresas Kue a claridade impMe,e

regressar Fs cegas, como alguns p<ssaros Kue se refugiam na copa escura de193#uma <rvore solit<ria, ou um corpo Kue foge de uma esfera de fogo, paraingressar no mar tempestuoso da memGria" L< do alto, o viaNante noturno tem asensaço deKue um rio de !istGrias flui na cidade invis;vel" %u sobrevoas a selva escuradurante !oras, e nen!um cisco luminoso desponta Kuando o ol!ar procura l<embaio umsinal de vida" ada anuncia o fim da longa travessia aArea4 bruscamente, como asluzes de um gigantesco transatlntico a flutuar num oceano Kue separa doiscontinentes,uma constelaço terrestre e aKu<tica te adverte Kue a floresta ali muda de nome,Kue o rio antes invis;vel agora torna7se um camin!o iluminado, e tambAm suasmargens,seus afluentes, os braços dos afluentes e atA mesmo a floresta, em pontosesparsos, so pontil!ados de luz" Essa claridade disseminada por toda parte tefaz pensarKue a cidade, o rio e a selva se acendem ao mesmo tempo e so insepar<veisH Kueo avio, ao navegar naKuele espaço Kue se proNeta sobre a lin!a do eKuador,divideduas abGbodas incandescentes" )esmo perdendo altura, variando o ngulo visual esabendo Kue agora N< no so oito ou dez mil metros Kue te separam do solo, nadate faz distinguir as vias de asfalto dos camin!os aKu<ticos e da mata densa4 umpercurso sinuoso de luz pode ser os farGis das embarcaçMes ou dos carros, e osfocosfios e reluzentes concentrados num mesmo lugar podem ser uma rua, um porto, umapraça ou um bairro inteiro Kue emerge da <gua"@< passava das onze Kuando c!eguei na casa Kue descon!ecia" inguAm foi avisadode Kue eu c!egaria aKuela noite, mas eu sabia Kue, na ausOncia da me, aempregadaficaria sozin!a na casa constru;da prGima ao sobrado onde Emilie morava"'irigi7me ao Kuintal, apGs ter atravessado uma espAcie de caramanc!o4 passagementre umvasto Nardim e o fundo da casa" $li, onde se encontravam as ed;culas, tudoestava escuro" (m nico globo de luz aclarava o Nardim" .referi no acordar aempregadae passar a noite ao ar livre, deitada na grama ou sentada nas cadeirasespal!adas19:sob os Nambeiros, ou entre palmeiras mais altas Kue a casa" Levava comigo apenasum alforNe com algumas roupas, um peKueno <lbum com fotos, todas feitas na casade Emilie, a esfera da infncia" o esKueci o meu caderno de di<rio, e, naltima !ora, decidi trazer o gravador, as fitas e todas as tuas cartas" altima, aosaber Kue vin!a a )anaus, pedias para Kue eu anotasse tudo o Kue fosse poss;vel4Te algo inusitado acontecer por l<, disseKue todos os dados, como faria um bomrepGrter, um estudante de anatomia, ou tubb, o dissecador de cet<ceosQQ"& teu press<gio me deu trabal!o" `ravei v<rias fitas, enc!i de anotaçMes umadezena de cadernos, mas fui incapaz de ordenar coisa com coisa" *onfesso Kue astentativasforam inmeras e todas eaustivas, mas ao final de cada passagem, de cadadepoimento, tudo se embaral!ava em desconeas constelaçMes de episGdios, rumoresde todos

Page 90: Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

8/12/2019 Relato de Um Certo Oriente - Milton Hatoum

http://slidepdf.com/reader/full/relato-de-um-certo-oriente-milton-hatoum 90/90

os cantos, fatos med;ocres, datas e dados em abundncia" Juando conseguiaorganizar os episGdios em desordem ou encadear vozes, ento surgia uma lacunaonde !abitavamo esKuecimento e a !esitaço4 um espaço morto Kue minava a seKUOncia de idAias"E isso me aliNava do of;cio necess<rio e talvez imperativo Kue A o de ordenar orelato,

para no dei<7lo suspenso, F deriva, modulado pelo acaso" .ensava /ao ol!arpara a imensido do rio Kue traga a floresta num navegante perdido em seusmeandros,remando em busca de um afluente Kue o conduzisse ao leito maior, ou ao vislumbrede algum porto" entime como esse remador, sempre em movimento, mas perdido nomovimento,aguil!oado pela tenacidade de Kuerer escapar4 movimento Kue conduz a outras<guas ainda mais confusas, correndo por rumos incertos"Juantas vezes recomecei a ordenaço de episGdios, e Kuantas vezes me surpreendiao esbarrar no mesmo in;cio, ou no vaivAm vertiginoso de cap;tulos entrelaçados,formados de p<ginas e p<ginas numeradas de forma caGtica" %ambAm me deparei comum outro problema4 como transcrever195#a fala engrolada de uns e o sotaKue de outros %antas confidencias de v<riaspessoas em to poucos dias ressoavam como um coral de vozes dispersas" Restavaentorecorrer F min!a prGpria voz, Kue planaria como um p<ssaro gigantesco e fr<gilsobre as outras vozes" $ssim, os depoimentos gravados, os incidentes, e tudo oKueera aud;vel e vis;vel passou a ser norteado por uma nica voz, Kue se debatiaentre a !esitaço e os murmrios do passado" E o passado era como um perseguidorinvis;vel,uma mo transparente acenando para mim, gravitando em torno de Apocas e lugaressituados muito longe da min!a breve permanOncia na cidade" .ara te revelar /numacarta Kue seria a compilaço abreviada de uma vida Kue Emilie se foi parasempre, comecei a imaginar com os ol!os da memGria as passagens da infncia, ascantigas,os conv;vios, a fala dos outros, a nossa gargal!ada ao escutar o idioma !;bridoKue Emilie inventava todos os dias"Era como se eu tentasse sussurrar no teu ouvido a melodia de uma cançoseKUestrada, e Kue, pouco a pouco, notas esparsas e frases sincopadas moldavam emodulavama melodia perdida"T199#E%$ &R$ ?&+ *&).&t$ .EL$ ?&R)$ *&).&+E `R?+*$ E) `$R$)&h' E +).RE$.EL$ `R?+*$ E'+%&7R$ +&R'+ E) &??7E% .$R$ $ E'+%&R$*-I$R*\ E) $R+L 'E 11"