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1 XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E NORDESTE e PRÉ- ALAS BRASIL. 04 a 07 de setembro de 2012, UFPI, Teresina-PI. Trabalho de campo e as interfaces entre as Ciências Sociais e outros saberes Relações sociais com gatos e cães: desafios da pesquisa na sociologia animal Maria Helena Costa Carvalho de Araújo Lima Universidade Federal de Pernambuco [email protected]

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XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E NORDESTE e PRÉ-

ALAS BRASIL. 04 a 07 de setembro de 2012, UFPI, Teresina-PI.

Trabalho de campo e as interfaces entre as Ciências Sociais e outros saberes

Relações sociais com gatos e cães: desafios da pesquisa na

sociologia animal

Maria Helena Costa Carvalho de Araújo Lima

Universidade Federal de Pernambuco

[email protected]

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RESUMO

Esta pesquisa busca compreender processos de mudança na hierarquia simbólica que traça distâncias entre humanos, gatos e cães. A partir de entrevistas, pode-se acessar concepções de vários grupos sobre esses animais e significações atribuídas de acordo com as trajetórias biográficas dos entrevistados. O método, porém, volta-se para as interpretações humanas – o que poderia reforçar a concepção antropocêntrica de que o mundo social resulta apenas das interpretações e da agência dos humanos. Faz-se necessário, então, considerar as propriedades agênticas dos animais não-humanos e, para tanto, a realização de etnografias sobre interações interespécies é indispensável. Neste artigo, apresento pesquisas anteriores sobre interações com animais não-humanos e trato dos desafios da investigação de relações sociais com seres não dotados de fala e com formas distintas de expressão e interação. Palavras-chave: Metodologia qualitativa. Sociologia animal. Etnografia.

Entrevista.

1. INTRODUÇÃO

Este trabalho está inserido em minha pesquisa de doutorado, que está

sendo realizada junto ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE

e tem como objetivo estudar relações entre animais humanos e animais não-

humanos e processos pelos quais essas relações assumem a forma de

aumento ou redução das distâncias na hierarquia simbólica dos seres. Ao fazê-

lo, acredito ser possível contribuir para o desenvolvimento da sociologia animal,

que se configura como um campo de estudos relevante não apenas pelas

conseqüências práticas, como também por relacionar-se a duas questões

fundantes da sociologia: estratificação e mudança social. Como a sociologia

animal ainda é pouco conhecida no Brasil, ainda surgem como desafios a

legitimação de objetos de estudo inseridos nesse campo e a construção de

desenhos de pesquisa capazes de lidar com tais objetos. É com a intenção de

contribuir para o enfrentamento desses desafios que apresento, neste artigo, o

passo a passo da construção metodológica da pesquisa em questão.

2. RELAÇÕES SOCIAIS COM CÃES E GATOS: QUESTÕES E OBJETIVOS

É possível afirmar sem receio que, para a imensa maioria das pessoas,

todos os humanos estão numa posição inquestionavelmente superior a gatos e

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cães. Alguns elementos parecem fundamentais na estratificação simbólica dos

seres vivos que separa animais não-humanos, de um lado, e animais humanos,

de outro: 1- afetividade: o nível de envolvimento afetivo, em geral maior em

relação aos humanos próximos que aos animais não-humanos próximos (na

convivência em casa, por exemplo); 2- obrigação: o elevado senso de

responsabilidade (moral e legal) em relação aos outros humanos (em especial

aos parentes); 3-empatia: a identificação com animais humanos de uma

maneira geral, que torna mais difícil causar e assistir ao sofrimento de outro

humano que ao sofrimento de um animal não-humano; 4- expectativas:

diferenças entre aquilo que se espera em relação aos animais humanos e não-

humanos norteiam sua maior ou menor valorização; 5- atribuição de

sentimentos/consciência: o reconhecimento de que humanos têm consciência

do que vivenciam, sentem alegria e sentem dor, sofrimento e estresse não

ocorre (ou não no mesmo nível) em relação a animais não-humanos.

É sabido, porém, que todas as hierarquias simbólicas que guiam nossas

formas de compreeder o mundo são estabelecidas por processos sócio-

culturais e, portanto, passíveis de modificação. Essa percepção é mais

facilmente alcançada quando se pensa nas hierarquias simbólicas entre grupos

humanos, estabelecidas, questionadas, reproduzidas e/ou modificadas ao

longo da história. A posição de inferioridade inquestionável ocupada pelos

animais não-humanos já foi ocupada por negros, mulheres e judeus e, de

forma semelhante, tal posição justificou (e para alguns ainda justifica)

exploração, humilhação, violência (física e psicológica) e assassinatos.

De fato, a classificação dos animais – o sistema cognitivo que impomos a todas as criaturas – exerce influência considerável na posição deles em relação a direitos. Diferentes sociedades categorizam animais de várias maneiras, subnotificando o fato de que as classificações são sistemas artificalmente criados, não intrínsecos aos próprios animais (LAWRENCE, 1994:183)1.

Vale ressaltar que uma hierarquia simbólica não é um modelo mental

claro nem estático, não sendo possível criar uma escala concreta de seres,

tampouco uma definição exata de distâncias entre eles. A hierarquia não pode

1 Tradução minha

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ser diretamente observada, mas pode ser percebida através de suas

conseqüências no mundo social, ou seja, das diferentes formas como gatos,

cães e humanos são tratados, referidos, tomados como foco de preocupação,

etc. Além disso, essas hierarquias não são produtos intencionais do

pensamento, ainda que possam ser percebidas por ele e submetidas à

reflexão. Antes disso, porém, nossas maneiras de perceber animais não-

humanos são antecedidas por formas de entrar em contato com eles na vida

cotidiana, em atividades nas quais nosso grau de atenção é reduzido. A disputa

diária pelas coxas de galinha na mesa de almoço é certamente mais marcante

na localização de “galinha” em nosso esquema cognitivo que as poucas

histórias sobre galinhas (quase sempre antropomorfizadas) que ouvimos e o

raro ou inexistente contato com o animal vivo. Como qualquer ideologia, o

especismo2 é reproduzido e/ou posto em questão nas práticas sociais.

Em minha pesquisa, busco traçar os processos básicos de reprodução

de hierarquias simbólicas dos seres para, então, deter-me na tentativa de

compreender alguns processos de mudança nesse tipo de estratificação. Parto

da ideia de que a escala hierárquica dos seres é formada por considerações de

afetividade, obrigação, empatia, expectativas e atribuição de

sentimentos/consciência (fatores que deverão ser acrescidos pelas

informações obtidas na pesquisa). Em minha hipótese, tanto o estabelecimento

quando a modificação dos cinco elementos constituintes das hierarquias

simbólicas de seres ocorre fundamentalmente a partir de três processos

correlatos, mas analiticamente separáveis: 1 - Contato com sentidos

culturalmente difusos (escola, vestuário, meios de comunicação, produltos

culturais, propaganda de produtos, etc); 2- Interações com animais humanos

(compartilhamento de práticas sociais envolvendo animais não-humanos,

compartilhamento de sentidos sobre espécies não-humanas e confronto de

concepções a partir em situações práticas); 3 - Interações com animais não-

humanos.

Essa construção, na qual cada elemento tem influência recíproca, nunca

está fechada, pois há permanentemente a possibilidade de uma mudança em

2 Conceito cunhado por Richard Ryder e difundido por Singer (2008), o termo especismo

refere-se ao preconceito com base na espécie

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um ou mais desses processos interferir nos demais. É possível, por exemplo,

que travar relações afetivas e desenvolver empatia levem alguém a perceber

um animal como senciente e que essa mudança possa gerar um sentido

diferenciado de obrigação em relação ao animal e/ou modificar expectativas em

relação à espécie. Por outro lado, também será possível perceber que uma

mudança nem sempre vai gerar reposicionamentos maiores na hierarquia

simbólica. A afeição, por exemplo, não é condição suficiente para a geração de

empatia ou reconhecimento de obrigações em relação a um animal, tampouco

aos demais membros da mesma espécie. Daí que uma gata querida pode ser

abandonada quando adoece ou fica prenhe; um cachorro querido pode ser

espancado ou confinado quando desobedece a uma ordem. Enquanto isso, um

parente querido tem chances muito menores de ser castigado da mesma

maneira em tais situações. Diante de tal complexidade, minha pretensão não é

identificar causas últimas ou prever mudanças, e sim observar processos em

curso e derivar deles chaves explicativas que revelem algumas formas

assumidas por tal processo. Assim, posso contribuir para a compreensão de

uma mudança mais geral que já está em curso e para o apontamento de

mecanismos práticos a partir dos quais esse processo ocorre e nos quais

esbarra e freqüentemente se transforma em exceção. O reconhecimento de

que animais “de produção” sentem dor e medo, por exemplo, moificou um

elemento da hierarquia, mas não a posição desses seres - apenas gerou uma

preocupação com a qualidade da carne vendida (VERGUEIRO, 2009).

O objetivo da pesquisa aqui apresentada é investigar processos

sociais de reprodução e mudança das hierarquias simbólicas de seres

que norteiam as relações humanas com gatos e cães. Contudo, diante da

escassez de pesquisas empíricas a respeito das relações sociais interespécies,

não parece seguro tratar de uma hierarquia simbólica dos seres e de seus

elementos constituintes sem antes realizar um levantamento de dados a partir

do qual seja possível verificar se a proposta é coerente. Portanto, antes de

buscar explicações sobre mudanças nessas hierarquias simbólicas, é preciso

caracterizar essas hierarquias de forma consistente, saindo do exercício de

abstração. Esse “retrato” ainda não vai explicar como as hierarquias são

reproduzidas ou modificadas, mas vai demonstrar a existência e a

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complexidade dessa estratificação e indicar alguns tipos de mudança no que

tange à relação humana com cães e gatos. Vejo-me, então, diante de cinco

objetivos específicos, divididos em duas fases de pesquisa:

1 – Fase exploratória: identificando hierarquias (objetivos específicos 1 e 2)

o Traçar um panorama empírico das hierarquias simbólicas dos seres,

realizando detalhamentos de diferentes tipos de relações com cães e

com gatos na Região Metropolitana do Recife.

o Identificar tipos de processo de reprodução e de mudança na posição de

cães e de gatos nas hierarquias simbólicas dos seres.

2 – Fase de aprofundamento: identificando reprodução e mudança nas

hierarquias (objetivos específicos 3, 4 e 5)

o Identificar no desencadeamento das mudanças observadas, fatores

relevantes no nível dos sentidos culturalmente difusos (legislação, mídia,

políticas públicas)

o Identificar no desencadeamento das mudanças observadas, fatores

relevantes no nível das interações com animais humanos e não-

humanos (trajetórias pessoais, conhecimento sobre as espécies, tipos

de interações cotidianas e experiências emocionais positivas e/ou

negativas com animais não-humanos)

o Analisar elementos persistentes de hierarquização entre espécies

3. FERRAMENTAS DE PESQUISA E ESCLARECIMENTOS

Para garantir a construção de dados sobre os três processos

constituintes das hierarquias simbólicas nesta pesquisa, lançarei mão de uma

conjunção de métodos que possibilitem construir dado tanto no nível dos

sentidos culturalmente difusos (com pesquisa documental em jornais e consulta

à legislação de defesa animal em Pernambuco e no Brasil) quanto no nível das

interações (com entrevistas e etnografias). A princípio, seria possível pensar

em traçar o panorama das hierarquias a partir de pesquisa documental, posto

que este é um método recorrente para a investigação de processos

macrossociais. Nessa perspectiva, as hierarquias seriam identificadas a partir

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do processamento de uma grande massa de documentos e a investigação dos

processos práticos de reprodução e mudança seriam realizados através de

entrevistas e etnografias, que permitem maior aproximação em relação ao

campo. O desenho resumido da pesquisa então seria:

Fase da pesquisa Objetivo(s) Método(s)

1ª fase: panorama das hierarquias

Identificar sentidos culturalmente difusos sobre relação humana com animais não-humanos

Pesquisa documental

2ª fase: investigação dos processos de reprodução e mudança

Analisar processos de reprodução e mudança nas hierarquias simbólicas dos seres

Entrevistas e etnografias

Imagem 1: desenho preliminar da pesquisa

Alguns problemas se colocam em relação e este desenho inicial.

Primeiramente, não é possível resumir as hierarquias simbólicas dos seres aos

sentidos culturalmente difusos sobre animais não-humanos, visto que essas

hierarquias são constituídas e atualizadas na prática social. Além disso,

também não é possíbel resumir os sentidos culturalmente difusos ao que

aparece nos documentos, pois estes não representam todos os âmbitos sociais

nos quais sentidos são compartilhados. Se os sentidos sociais são

permanentenente constituídos no nível macro e no microssocial, não é possível

compreendê-los apartando esses dois níveis. Vale sublinhar, então, o alerta de

Guba & Lincoln (1994:106), de que tendências gerais não são suficientes para

explicar casos particulares. Para construir o panorama das hierarquias

articulando suas expressões nos sentidos culturalmente difusos e nas

interações sociais. É preciso trabalhar conjuntamente os dados resultantes da

pesquisa documental, das etnografia e das entrevistas.

Sobre esse ponto, vale ressaltar que todo texto, seja ele oral ou escrito,

traz informações sobre a sociedade na qual foi produzido e sobre a prática

social de sua produção e expressão (FAIRCLOUGH, 2010). Dessa maneira,

toda entrevista e toda etnografia oferecem informações sobre as interações

práticas com animais humanos e com animais não-humanos e também sobre

os sentidos culturalmente difusos a respeito destes – o que reforça a

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produtividade de sua utilização também para investigar os sentidos difusos

sobre gatos e cães.

Quanto à segunda fase da pesquisa, trabalhá-la apenas a partir das

etnografias e entrevistas também seria limitador. Por compreender um corte

temporal no qual várias mudanças legislativas e políticas ocorreram (2002 a

2012), a pesquisa documental também serve para apontar tendências gerais

de mudança – a exemplo da inclusão de determinados assuntos, mudanças de

terminologia, propagação de demandas e de grupos até então ausentes na

grande mídia, etc. Dessa forma, esse corpus pode ser utilizado nas duas fases

da pesquisa. A limitação desse método, então, não diz respeito à fase da

pesquisa (traçar hierarquias ou observar processos de reprodução e mudança),

e sim ao tipo de dado construído. Os documentos poderão apenas apontar

algumas direções de mudanças macrossociais, não poderão explicá-las.

tampouco apontar que processos ocorrem no nível das interações (que não

podem ser tomadas como meros reflexos da mídia ou das leis). As etnografias

e entrevistas cumprem justamente o papel de explicar como algumas

concepções são mais comumente arraigadas que outras e como ocorrem

diferenças entre grupos sociais. As etnografias ajudam a observar momentos

espontâneos de interação, enquanto as entrevistam possibilitam um

aprofundamento das interpretações que as pessoas fazem sobre os animais

não-humanos e suas relações conosco.

Percebo, então, que todas as ferramentas (pesquisa documental,

entrevistas e etnografias) geram dados para todas as fases da pesquisa,

modificando-se apenas o olhar da analista sobre o material a partir das

questões investigadas. Dessa maneira, cheguei ao desenho de pesquisa

sumarizado no anexo 1. Na primeira fase da pesquisa, traço um panorama das

hierarquias simbólicas dos seres que, além de dar suporte à discussão teórica

sobre o tema, fornecerá as categorias a serem consideradas na pesquisa (tipos

de relações sociais com cães e/ou gatos e casos de mudança a serem

acompanhados). Nesse ponto, será preciso um esforço para analisar

conjuntamente dados gerados na pesquisa documental, na etnografia e nas

entrevistas narrativas. Essa linha será dada pela Análise de Discurso Crítica

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(FAIRCLOUGH, 2010). Dessa maneira, a segunda fase da pesquisa será um

aprofundamento dos dados construídos até então, analisando-os sob uma ótica

processual. Pelo fato de meu interesse estar mais voltado para os processos

de reprodução e mudança nas relações práticas com gatos e cães (no nível

microssocial) que para processos macrossociais (como as mudanças

legislativas e tendências na grande mídia), a segunda fase da pesquisa dará

mais ênfase às etnografias e às entrevistas. Assim, volto-me a partir daqui para

a importância desses dois métodos, as formas de utilização de cada um seus

limites para tratar do problema aqui proposto.

3.1 ETNOGRAFIAS E POSIÇÃO NO CAMPO

As diferentes modalidades de pesquisa participante (observação

participante, participação observante e etnografia) são ricas para a

compreensão das lógicas internas de grupos, especialmente daquilo que não é

comentado nas entrevistas por parecer óbvio demais para os membros - o

“tomado como garantido” de que tanto falta Garfinkel (1994, 2006). Sendo

assim, a realização de etnografias facilitará a análise de lógicas cotidianas não

questionadas nas relações humanas com animais não-humanos. Por ser

ovolactovegetariana há cerca de nove anos e participar de um grupo de

proteção de animais de companhia há três anos, estou constantemente

colocada em situações nas quais esses pressupostos tornam-se visíveis, como

momentos em que sou questionada sobre minha dieta, indagada sobre

assuntos relacionados à proteção ou procurada por tutores que querem “dar

destino” a algum animal. Além disso, por ser conhecida como mãe de gatos e

protetora de animais, sou freqüentemente inserida em conversas sobre os mais

diversos aspectos da convivência com gatos e cães. Todos esses momentos

são interessantes sob o ponto de vista desta pesquisa.

Por não incluir necessariamente gravações ou filmagens (ou incluí-las de

forma clandestina), esta etnografia pode ser realizada a qualquer momento,

gerando registros de interações espontâneas, nas quais os constrangimentos

presentes dizem respeito à posição dos membros e à relação entre eles. Os

questionamentos que recebo eu meu cotidiano dificilmente seriam realizados

em uma entrevista, dado o grau de monitoramento dos atores nos momentos

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em atentam para o fato de estarem sendo observados e analisados. Além

desses diálogos, a etnografia me permite, ainda, registrar interações

espontâneas em várias situações nas quais animais humanos e não-humanos

sejam colocados frente a frente em situações não-planejadas ou nas quais os

animais não-humanos sejam o centro de uma conversa.

Um dos momentos interessantes para a realização dessas etnografias

são os eventos de adoção mensais realizados pelo Adote um Vira-Lata, projeto

de extensão da UFPE, do qual faço parte. Realizados no Parque de

Exposições do Cordeiro (Recife) desde novembro de 2011, esses eventos têm

atraído um público bastante heterogêneo e em número considerável3. Para

esses registros, meu envolvimento pessoal favorece o trabalho na medida em

que acompanho praticamente todos os visitantes interessados na adoção de

gatos e, ao final do dia, guardo lembranças bastante claras de cada diálogo.

Por outro lado, a imersão limita a possibilidade de realizar anotações ao longo

do dia e me impede de observar o que se passa nas outras áreas do evento

(adoção de cães, preenchimento de termos de responsabilidade, conversas

entre protetores, etc). Para reduzir essas lacunas, é possível filmar os eventos,

o que me ajudará a fazer as anotações e possibilitará a realização de análise

gestual dos visitantes e dos protetores.

3.2 AUTOETNOGRAFIA COMO ALTERNATIVA

Por já estar inserida em um grupo de proteção de gatos e cães, a

primeira ideia que surgiu foi realizar uma observação participante que me

permitiria analisar as interações dessas pessoas com animais humanos e não-

humanos e compreender a criação de laços afetivos e a construção do mundo

simbólico dos protetores. Entretanto, alguns problemas se colocaram a esse

plano: primeiramente o risco de, pela minha imersão nos planejamentos e nos

conflitos internos ao mundo da proteção, esta etnografia se voltar mais para as

relações dos animais humanos entre si que para as relações com os animais

não-humanos. Em segundo lugar, esse método poderia trazer informações

3 Pela média de 50 adoções mensais (entre cães e gatos) e pela grande quantidade de

pessoas que comparecem em família ou que visitam o local e não realizam adoções, pode-se calcular que circulam em cada evento cerca de 250 pessoas (excluídos os protetores).

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ricas sobre os protetores, mas, ao mesmo tempo, isso tiraria o foco das outras

relações sociais sobre as quais pretendo realizar etnografia, como é o caso dos

tutores de cães e/ou gatos que não estão envolvidos nesse tipo de ativismo.

Por fim, há um problema ético envolvido, pois, mesmo que utilize nomes

fictícios, as pessoas citadas em tal trabalho reconheceriam prontamente umas

às outras, o que potencialmente geraria conflitos comigo e entre elas, devido às

situações e discussões relatadas. Sobre este problema ético, vale ressaltar

que, como eu costumo tomar parte da maioria desses conflitos internos, minha

observação certamente terminaria excessivamente direcionada.

Diante dos inconvenientes apresentados e também como forma de

ampliar o espectro da etnografia para além do mundo da proteção, parece-me

mais interessante realizar autoetnografias centradas no meu próprio cotidiano

em relação a animais não-humanos e com os outros tutores e protetores.

Aproximo-me, então, do que Jaccoud & Mayer (2008:262) caracterizam como

“modelo da impregnação” e, ao assumir minha própria experiência como

central, relatarei continuamente no diário de campo meus próprios

comportamentos, interações e questões, maximizando a orientação de inserir-

me como sujeito de observação em tais relatos (JACCOUD & MAYER,

2008:274). Nas etnografias tradicionais, inspiradas em Malinovski, preconiza-se

uma imersão no campo e observação participante, mas, no momento da

redação final, “a experiência pessoal do antropólogo é obliterada pelo uso do

tempo presente e da terceira pessoa, impessoal e distanciada do objeto”

(VERSIANI, 2005:81). Questionando esse modelo, teóricos como Clifford

defendem a escrita de etnografias que não neguem a experiência pessoal do

pesquisador e nas quais o “contexto performativo imediato” da interação entre

etnógrafos e etnografados seja ressaltado como pressuposto básico para a

construção da etnografia. Entre os vários sentidos atribuídos ao termo

autoetnografia, esta pesquisa se enquadra na orientação das “etnografias

nativas”, nesse caso por se tratar de etnografias escritas por uma pesquisadora

nativa na cultura estudada (REED-DANAHAY apud VERSIANI, 2005)4. Essa

4 O termo vem sendo usado na antropologia desde a década de 1970, remetendo, entre outros

sentidos, a estudos feitos por um antropólogo sobre seu próprio povo ou cultura, a inscrições culturais auto-referentes feitas por não-antropólogos, e a autobiografias que situam a narrativa

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orientação levanta questões de natureza metodológica, relativas à

representatividade de tais relatos e à capacidade de conectar experiências

pessoais ao contexto social mais amplo.

O antopólogo pode, certamente, observar comportamentos, testemunhar interações entre pessoas ou descrever práticas específicas; porém, ele permanece tanto tempo no exterior da realidade apreendida que ele não colhe, paralelamente, os comentários, glosas e interpretações que os próprios atores sociais elaboram em relação a seus comportamentos e práitcas. Como o sentido nunca é espontaneamente legível na superfície de uma realidade que continua, portanto, muda, ou melhor, que extrapola um excesso de sentido, o antropólogo não pode revelar a ambiqüidade que acompanha toda ação humana, senão pondo-se à escuta do discurso dos próprios atores sociais (BIBEAU & PERREAULT apud JACCOUD & MAYER, 2008:284).

Tendo este desafio em vista, meu diario de campo deverá, servir como

elo entre as minhas experiências e as experiências de outros tutores e

protetores, bem como elemento para reflexão sobre o contexto em que tais

vivências ocorrem. Para isso, farei registros sobre os dilemas e os conflitos

morais em que me percebo colocada, as relações travadas com os gatos e

cães com os quais convivo, com os animais que cuido em lar temporário, com

os humanos que acompanham esse processo (familiares, amigos e protetores)

e com os que buscam adoção de tais animais (tanto os que adotam quanto os

que desistem ou são por mim descartados).

3.3 ENTREVISTAS

A vivência pessoal de um método participante possibilita fazer

descrições detalhadas como nenhum outro método faria, mas é preciso atentar

para o fato de que sempre haverá uma carga de impressões pessoais que nem

sempre estarão claras para que faz a observação e, portanto, podem resultar

em uma visão limitada pela posição ocupada pelo observador (JACCOUD &

MAYER, 2008:285). Para equilibrar a importância da autoetnografia e a

necessidade de abarcar muitas perspectivas de forma compreensiva, combiná-

la com entrevistas parece promissor.

da vida na narrativa do contexto social. Em comum a todas essas compreensões está o fato de serem sempre consideradas como formas de narrativas do self que o localizam em um contexto social (VERSIANI, 2005).

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Uma boa investigação de qualquer fenômeno social nos traz uma Babel de vozes diferentes. Se quisermos fazer o trabalho de rerpesentação com exatidão, teremos de ouvir e relatar todas essas vozes (...) Cada pessoa e grupo sabe uma coisa melhor que todos os demais: o que eles mesmos pensam, fizeram e farão (...) Se não incorporarmos o que pessoas de todos os tipos sabem em nossa descrição de uma organização, deixaremos muitos aspectos importantes de fora da análise e compreenderemos muitas coisas de modo errado (BECKER, 2009:204).

A opção pelas entrevistas é, antes de qualquer coisa, um

reconhecimento de que nenhum pesquisador é capaz de alcançar sozinho uma

visão ampla o suficiente para explicar uma situação social ou mesmo o

funcionamento de um grupo. Existem várias formas de buscar uma diversidade

de perspectivas, mas a entrevista é possivelmente o método que permite uma

maior abertura para descoberta de dimensões novas não imaginadas, para a

compreensão empática dos outros e para a construção de textos capazes de

trazer esclarecimentos para os próprios membros da pesquisa sobre as

posturas uns dos outros (POUPART, 2008)5. Reconhecer que os atores

sempre sabem o que pensam melhor que todos os outros, vale ressaltar, não é

acreditar que eles sempre compreendam melhor que todos os outros os

porquês de pensarem de tal maneira ou como suas concepções e ações se

relacionam e/ou se contradizem. Justamente porque a maior parte de nossas

ações rotineiras é feita de forma pouco refletida, é natural que muito daquilo

que baseia nosso cotidiano seja também pouco refletido e/ou assumido como

desinteressante - daí a importância de um método participante, como ressaltam

Becker & Geer (1957). Não se trata de uma incapacidade do entrevistado para

entender sua própria vida, e sim de pressupostos inquestionados e ações

irrefletidas que todas as pessoas têm. Não à toa, grande parte do trabalho

sociológico consiste justamente em descrever e analisar esses aspectos pouco

refletidos das ações sociais (desde as estruturas sociais e sua interferência nas

relações entre os seres até a organização das ações rotineiras).

5 Entre outros métodos que possibilitam a ampliação da visão do pesquisador, pode-se citar a

realização de pré-testes antes de formular um questionário, a observação atenta das formas como os atores sociais falam sobre o que fazem, a leitura de documentos produzidos por indivíduos com posturas distintas sobre um mesmo tema, etc.

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4. ALGUMAS QUESTÕES TEÓRICAS

Minha proposta teórica inicial, sobre as hierarquias simbólicas dos seres,

parte de uma reflexão baseada no interacionismo simbólico e na

fenomenologia, ressaltando a centralidade dos pressupostos não-examinados

guiando a ação humana. Como vários direcionamentos desta pesquisa derivam

de tais perspectivas, é preciso fazer apontamentos sobre esta construção

teórico-metodológica.

4.1 FENOMENOLOGIA E ENTREVISTAS

Segundo a fenomenologia, toda interpretação do mundo da vida se

baseia em um estoque de experiências anteriores (vivenciadas pelo próprio

ator ou transmitidas a ele) que funcionam como um “código de referência”. A

cada momento, a cada situação biográfica determinada, alguns objetos

aparecem como relevantes, são percebidos de acordo com o estoque de

conhecimento anterior e organizados em zonas de relevância de acordo com

os problemas dos quais nos ocupamos (SCHUTZ, 1979:74, 110). A criação de

estoques de conhecimento pode ser pensada como resultado de um amplo

espectro de interações sociais. Assim, o aprendizado do especismo ocorre por

vários meios, como o contato com produtos culturais, linguagem e engajamento

em hábitos cotidianos - com destaque para as formas rotinizadas de tratamento

em relação às espécies com as quais se convive. É também assim que

construímos zonas de relevância em que espécies e indivíduos são

posicionados de forma distinta em uma hierarquia simbólica de seres que

permeia nossas relações sociais. Na vida cotidiana, os pressupostos

inquestionados sobre as coisas e pessoas e sobre as relações entre elas

assumem um status de realidade óbvia, auto-explicativa. Seja na vida

cotidiana, seja na ciência, algumas situações podem suscitar o questionamento

de pressupostos, mas não é possível suspender todos eles ao mesmo tempo,

pois não há possibilidade de pensamento sem uma base da qual partir. De

qualquer forma, é no exame desses pressupostos que a fenomenologia aposta

para a compreensão da ação humana6.

6 Ressalte-se as diferenças epistemológicas entre fenomenólogos como Schutz e Heidegger.

Enquanto o primeiro, seguindo Husserl, acredita na possibilidade de acessar as estuturas

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Com o intuito de acessar as zonas de relevância dos entrevistados e

compreender suas formas de relação com animais não-humanos a partir de

suas trajetórias biográficas (consideradas em um contexto social, assim como a

autoetnografia), as entrevistas serão não-dirigidas do tipo narrativas. Nesses

encontros, será pedido que o informante faça relatos detalhados de sua

trajetória em relação a animais de companhia. As intervenções da

pesquisadora serão de incentivo para que os informantes continuem falando e

pedindo detalhes sobre eventos e percepções por eles elencadas nas

narrativas. Com isso, as falas devem ser desenvolvidas de acordo com aquilo

que os próprios informantes julgam importante e utilizando suas próprias

categorias e linguagem (JOVCHELOVITCH & BAUER, 2002; POUPART,

2008:224-226; SCHÜTZE, 2010). Como considero as relações com animais

específicos centrais para a reprodução e a mudança das hierarquias,

estimularei, em todas as entrevistas, memórias sobre animais considerados

marcantes para essas pessoas (de forma positiva ou negativa). O primeiro

encontro será dividindo em duas sessões (com o intervalo de um lanche), de

maneira que na segunda sessão a pesquisadora possa fazer algumas

perguntas mais específicas, pedindo detalhamentos sobre questões levantadas

pelo próprio informante no momento anterior.

A terceira sessão (realizada em outro dia) será uma entrevista semi-

estruturada que deverá servir como complemento para questões específicas

que não tenham sido suficientemente trabalhadas. Somente no último contato

serão feitas questões padronizadas, com o objetivo de mensurar o grau de

conhecimento do tutor sobre gatos e cães7 e sobre as especificidades

percebidas nos indivíduos não-humanos com os quais convive. Um dos pontos

puras da consciência a partir da redução fenomenológica, Heidegger aponta que o mundo é constitutivo da consciência e que a maior parte de nossas relações com as coisas ocorre em atividades práticas, nas quais as coisas se apresentam a partir do contexto de ação, não de reflexões conscientes (ALEXANDER, 1992, SCHUTZ, 1979, SMITH, 2008). 7 No caso dos gatos, serão perguntados os significados atribuídos pelos informantes sobre

roronar, posições de orelhas, movimentos com o rabo, miados e gestos como esfregar-se nas pernas e esfregar o rosto em objetos. Para cães e gatos, será perguntado como demonstram alegria, desconfiança, raiva, carinho e curiosidade, bem como as formas consideradas adequadas de portar-se em relação a esses comportamentos.

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importantes a serem abordados são as nuances da convivência, que só

costumam ser contadas em conversas mais longas8.

Apesar dessas vantagens, é válido ressaltar que todo método tem

limitações, não sendo por acaso que a entrevista esteja combinada a outros

métodos nesta pesquisa. Embora sejam fundamentais em uma pesquisa que

pretenda oferecer um espectro amplo de pontos de vista, as entrevistas não

são o suficiente para explicar a conduta dos atores, posto que esta não deriva

apenas daquilo que eles sabem ou interpretam sobre o mundo. Nesse sentido

residem as maiores vantagens dos métodos participativos, que permitem

observar aquilo que os informantes não querem ou não conseguem falar

(BECKER & GEER, 1957:28-30).

Mudanças no ambiente social e no self inevitavelmente produzem transformações de perspectiva e é característico de tais transformações que as pessoas achem dificícil ou impossível lembrar como eram antes suas ações, perspectivas ou sentimentos. Ao reinterpretar as coisas a partir de uma nova perspectiva ela não poderá dar um relato acurado do passado, pois os conceitos sobre os quais ele pensa mudaram e como eles mudaram suas percepções e memórias. Similarmente, uma pessoa no meio de tal mudança pode achar difícil descrever o que está se passando (BECKER & GEER, 1957:32).

Mas o principal ponto desta pesquisa sobre o qual as entrevistas

esclarecem muito pouco é a agência dos animais não-humanos em suas

interações entre si e com os animais humanos. Se nas entrevistas será

possível perceber com detalhes as concepções de variados grupos sobre gatos

e cães e as significações atribuídas a indivíduos não-humanos específicos de

acordo com as trajetórias biográficas dos entrevistados, é importante ressaltar

que tudo isso tem como centro as interpretações humanas, de maneira que a

realização de entrevistas como método único ou central poderia reforçar a

concepção antropocêntrica de que o mundo social é resultado apenas das

interpretações e da agência dos atores humanos. Diferente disso, considero

8 Nessa terceira sessão, semi-estruturada, o objetivo é conseguir descrições detalhadas do

comportamento dos animais não-humanos com os quais se convive, de forma a perceber o quanto são percebidos de forma idividualizada, o que chama atenção do informante (rotina, comportamento e preferências do animal não-humano) e que aspectos são apontados como agradáveis e desagradáveis no convívio.

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fudamental conferir uma boa dose de materialismo a esta pesquisa, no sentido

de perceber que, mais que as cristalizações historicamente constituídas no

mundo social, nossas ações são delimitadas também pelas propriedades

agênticas dos seres à nossa volta (o que inclui as pessoas, as coisas e,

diferentes de ambos, os animais não-humanos).

Os limites da entrevista narrativa, não à toa, coincidem com os limites da

própria fenomenologia, segundo a qual o ordenamento do mundo para a

conciência resulta tão-somente do trabalho ativo da própria consciência, que

estabelece nexo entre coisas e eventos. Ficam, então, excluídos desse

processo todos os seres que apenas são “constituídos”, ou seja, os objetos e

os animais não-humanos. Dando continuidade à abordagem de Husserl,

Schutz declara que os objetos só ganham importância apenas a partir do

momento em que são categorizados pela consciência humana e essa

categorização é definida pelas zonas de relevância dos humanos (em parte

herdada socialmente e em parte resultado do projeto individual de ação). Mais

uma vez, portanto, é ontologicamente negada qualquer capacidade de agência

social aos seres não-humanos.

Para superar essa lacuna, um fenomenólogo que pode ser trabalhado

nessa pesquisa é Merleau-Ponty, cuja abordagem acentua a importância do

corpo na experiência do mundo e de si mesmo no mundo (MERLEAU-PONTY,

1994; SMITH, 2008:15). Essa abordagem é ainda mais interessate quando se

pensa em trabalhos etnográficos com o de Keri Brandt e o de Krzysztof

Konecki, que sue sugerem, respectivamente, a necessidade de tratar da

natureza corporificada da subjetividade e importância da corporalidade como

base para o compartilhamento de uma realidade entre animais de companhia e

seus tutores (IRVINE, 2007:6).

4.2 INTERACIONISMO SIMBÓLICO E SOCIOLOGIA ANIMAL

Apesar de trazer mais elementos práticos que a fenomenologia (já que

se volta para o estudo das interações sociais), o interacionismo simbólico

também faz uma análise excessivamente mentalista dos processos sociais.

Justamente por isso o interacionismo simbólico será assumido sob a

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reinterpretação de Alger & Alger (1997) e de Irvine (2007), que questionam a

caracterização do self em Mead (1992). A capacidade de tomar a si mesmo

como objeto é cognitiva, mas a linguagem não é a única forma de desenvolvê-

la, havendo outros elementos importantes, como o afeto, o convívio social

(intraespécie e interespécie) e a corporalidade. Ao deixar de lado o dualismo

mente/corpo e a caracterização puramente mental do self, torna-se possível (e

até necessário) considerar o amplo espectro de relações sociais baseadas em

contato físico e emoção, ao invés de linguagem. É o caso das interações com

bebês, pessoas com limitações de linguagem e/ou racionalidade e, também,

com animais não-humanos. Esse é um dos principais apontamentos feito por

pesquisadores da interação entre animais humanos e não-humanos.

Para Barber, a consciência, a inteligência, a atenção e as emoções dos

animais não-humanos não costumam ser percebidas ou consideradas na

ciência devido à dominância do paradigma behaviorista-reduciosita-positivista e

ao medo da acusação de estar antropomorfizando os animais (ALGER &

ALGER, 1997:66). Tal postura, porém, quase sempre resulta incoerente, posto

que a vida interna dos humanos também não é diretamente observável e, no

entanto, a maior parte dos sociólogos que se posiciona de maneira cética em

relação ao estudo da vida interna dos outros animais não se questiona sobre

isso quando insere em seus estudos questões como motivação, identidade,

emoções humanas. É interessante perceber como cientistas sociais utilizam a

entrevista como porta de acesso aos mundos simbólicos e comportamentos

dos entrevistados, mesmo sabendo que há um grande descompasso entre

ação, mente e linguagem. O condicionamento da pesquisa qualitativa às

entrevistas parece ter tomado dimensões tão grandes que estudar atores

sociais desprovidos de fala parece impossível ou extremamente complicado.

Devido à influência de Mead e à sua ênfase na linguagem, sociólogos

que estudam o self tradicionalmente fizeram-no por meio de narrativas e

descrições de auto-conceitos, mas esses procedimentos só iluminam a

construção do sentido de self (selfhood) no contexto da linguagem, não

havendo possibilidade, com eles, de explicar a construção do sentido de self na

ausência de habilidade verbal. Outros caminhos foram então buscados por

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sociológicos interessados na construção do sentido de self em deficientes

mentais, portadores de Alzheimer, crianças, crianças surdas e cegas, crianças

autistas e animais de companhia. Em todos esses casos, os cuidadores dos

atores sem capacidade de expressão verbal aprenderam a ler indicadores não-

verbais de seus selves a partir de interações frequentes e duradouras (ALGER

& ALGER, 1997:71-72; IRVINE, 2007:11). Para a realização de pesquisas que

considerem essa dimensão agêntica de seres (humanos ou não) sem

linguagem articulada, a realização de etnografias sobre suas interações é a

ferramente mais indicada. Em casos como o de Alger & Alger (1997) sobre a

cultura felina e de David Goode, no estudo sobre crianças cegas, surdas e

mudas, também ganharam importância entrevistas com os cuidadores/tutores

de tais sujeitos. Essa estratégia, porém, não pode ser usada isoladamente,

pois sempre esbarra na impossibilidade de equiparar as interpretações

oferecidas com as situações interpretadas, assim como nos limites da

utilização de dados secundários sobre o comportamento dos sujeitos. Um

exemplo interessante da junção desses dois métodos na sociologia animal é o

de Irvine, que utiliza etnografia e entrevistas para desenvolver um modelo de

sentido de self (selfhood) animal baseado em conceitos usados nos estudos de

experiências subjetivas em crianças, enfatizando os componentes da interação.

4.3 ETNOMETODOLOGIA COMO TRIANGULAÇÃO

Uma possibilidade teórica para reduzir a importância da linguagem na

pesquisa é a etnometodologia, que se volta para a compreensão do

ordenamento dos mundos da vida, com foco na dimensão coletiva e prática das

interações. Garfinkel (2006) busca explicações na situação, e não em seus

participantes, já que, na maior parte do tempo, as pessoas se ajustam às

demandas da situação sem a necessidade de pensar a respeito. Nessa

abordagem, portanto, não é preciso fazer referência a motivações,

representações ou self, como fazem a fenomenologia e o interacionsimo

simbólico. Foi partindo dessa linha que David Goode (2007) realizou

filmografias e análises de suas interações com a sua cadela, Katie. Dessa

maneira, o etnometodólogo percebeu, por exemplo, que a iniciativa de brincar

muitas vezes era tomada por Katie, que, ao se interessar por isso, procurava

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demonstrar sua intenção e envolver o tutor na brincadeira, através de

vocalizações e gestos.

Uma triangulação da análise das autoetnografias com a etnometodologia

pode ser interessante, portanto, para investigar as interações entre animais

humanos e não-humanos evitando um direcionamento pela postura teórica de

que gatos e cães possuem self e, assim, evitar que os debates sobre meu

trabalho se percam nessa questão. Por buscar análises da interação sem

apelar para elementos externos a ela (nem internos aos indivíduos, como

motivações, por exemplo), a etnometodologia possibilita que a existência ou

não de agência dos gatos e cães nas interações analisadas seja assumida a

partir da análise e não de um direcionamento teórico prévio. Acredito que não

seja possível desconsiderar a questão do self, que se mostra importante no

debate e fundamental para colocar em questão dualismos fundantes da

sociologia, que delimitam a disciplina a partir de uma visão antropocêntrica que

exclui da sociedade todos os outros animais. Porém, a utilização da

etnometodologia como triangulação pode trazer outras possibilidades de

considerar a agência de animais não-humanos.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Demonstrações da consciência e da intencionalidade de outras espécies

abundam em estudos de sociologia animal, comportamento animal e etologia

cognitiva, não havendo, portanto, nenhuma justificativa para que a sociologia

continue a complexificar a ação humana e simplificar a ação de todas as

demais espécies que interagem conosco nos mais diversos contextos. Para

que isso seja possível, é importante construir metodologias que combinem

criatividade e rigor científico, possibilitando a investigação desse objeto que

não é tradicionalmente abordado pela disciplina e, ao mesmo tempo

contribuindo para a consolidação desse campo de estudos.

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Anexo1: Tabela de Objetivos e métodos correspondentes

Objetivos específicos

Construção de dados

Recorte Análise de dados

Traçar panorama empírico das relações sociais entre pessoas, cães e gatos

Pesquisa documental

2 jornais pernambucanos e 2 jornais de difusão nacional Análise de legislação de proteção animal

Análise de Conteúdo e Análise de Discurso crítica

Traçar panorama empírico das relações sociais entre pessoas, cães e gatos

Etnografia 1. Diário de campo: autoetnografia

2. Videografia de eventos de adoção

Análise gestual e diário de campo Análise gestual e análise de discurso crítica

Traçar panorama empírico das relações sociais entre pessoas, cães e gatos

Entrevistas Narrativas (sessões 1 e 2)

Informantes selecionados a partir das videografias (diversidade de relações com cães e gatos)

Análise de discurso crítica

Identificar tendências gerais de mudança social nas relações com gatos e/ou cães

Pesquisa documental

2 jornais pernambucanos e 2 jornais de difusão nacional Análise de legislação de proteção animal

Análise de Conteúdo e Análise de Discurso crítica

Identificar situações sociais nas quais as hierarquias sejam submetidas a mudanças

Etnografia 1. Diário de campo: autoetnografia

2. Videografia de eventos de adoção

Análise gestual e diário de campo Análise gestual e análise de discurso

Identificar situações sociais nas quais as hierarquias sejam submetidas a mudanças

Entrevistas Narrativas (sessões 1 e 2) Entrevistas semi-estruturadas (seção 3)

Informantes selecionados a partir das videografias e da etnografia

Análise de discurso crítica