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RELAÇÕES DE ENSINO, PRÁTICA PEDAGÓGICA E A PERSPECTIVA HISTÓRICO-CULTURAL A perspectiva histórico-cultural nos inspira buscar sempre o ensino promissor, a educação humana dos homens, considerando que as características tipicamente humanas, as funções superiores, se originam nas relações sociais estabelecidas entre sujeitos, especialmente nas situações de aprendizagem escolar. Deste modo, no conjunto dos trabalhos, dois enfocam o ensino inclusivo e um o trabalho com o ensino da música, tendo em comum a prática pedagógica como foco das discussões, com o intuito de captar e construir nestas práticas o ensino promissor que nos fala Vigotski, que objetiva compartilhar com todos os sujeitos os conhecimentos historicamente produzidos pelos homens. Além disso, há também uma preocupação em destacar a educação do corpo e a educação estética, como parte do trabalho pedagógico no processo de transformação das condições sociais dos alunos, sejam quais forem suas peculiaridades. Campos de conhecimento muitas vezes negligenciados nas relações de ensino em favor de uma prática que privilegia resultados acadêmicos e não os processos de aprendizagem, o treino de competências e habilidades, em detrimento do compartilhamento e apropriação pelos alunos, dos conhecimentos escolares que promovam aprendizagens significativas. Ainda é importante destacar que são poucas as pesquisas fundamentadas na perspectiva histórico-cultural e que focalizam a educação física escolar, bem como o ensino de música, destacando suas especificidades e possibilidades de acesso ao conhecimento e participação efetiva nas práticas sociais, considerando sujeitos diversos. Palavras-chave: Perspectiva Histórico-Cultural. Práticas Pedagógicas. Ensino Promissor XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 12080 ISSN 2177-336X

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RELAÇÕES DE ENSINO, PRÁTICA PEDAGÓGICA E A PERSPECTIVA

HISTÓRICO-CULTURAL

A perspectiva histórico-cultural nos inspira buscar sempre o ensino promissor, a

educação humana dos homens, considerando que as características tipicamente

humanas, as funções superiores, se originam nas relações sociais estabelecidas entre

sujeitos, especialmente nas situações de aprendizagem escolar. Deste modo, no conjunto

dos trabalhos, dois enfocam o ensino inclusivo e um o trabalho com o ensino da música,

tendo em comum a prática pedagógica como foco das discussões, com o intuito de

captar e construir nestas práticas o ensino promissor que nos fala Vigotski, que objetiva

compartilhar com todos os sujeitos os conhecimentos historicamente produzidos pelos

homens. Além disso, há também uma preocupação em destacar a educação do corpo e a

educação estética, como parte do trabalho pedagógico no processo de transformação das

condições sociais dos alunos, sejam quais forem suas peculiaridades. Campos de

conhecimento muitas vezes negligenciados nas relações de ensino em favor de uma

prática que privilegia resultados acadêmicos e não os processos de aprendizagem, o

treino de competências e habilidades, em detrimento do compartilhamento e

apropriação pelos alunos, dos conhecimentos escolares que promovam aprendizagens

significativas. Ainda é importante destacar que são poucas as pesquisas fundamentadas

na perspectiva histórico-cultural e que focalizam a educação física escolar, bem como o

ensino de música, destacando suas especificidades e possibilidades de acesso ao

conhecimento e participação efetiva nas práticas sociais, considerando sujeitos diversos.

Palavras-chave: Perspectiva Histórico-Cultural. Práticas Pedagógicas. Ensino Promissor

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

12080ISSN 2177-336X

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A ELABORAÇÃO CONCEITUAL NO ENSINO FUNDAMENTAL: O

PROFESSOR E SEU ALUNO COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL

Glaucia Uliana Pinto - UNIMEP

Luísa Miranda Jorge - UNIMEP

Maria Inês Bacellar Monteiro- UNIMEP

Resumo

No presente estudo buscamos compreender como uma professora do ensino

fundamental II cria condições necessárias para a participação de seu aluno com

deficiência intelectual em suas aulas de português. Apresentamos um episódio referente

às aulas de Português ministradas para o 7º ano, frequentada por André. Para a

discussão nos apoiamos nos fundamentamos dos estudos sobre elaboração conceitual e

sobre deficiência realizados por Vigotski e autores contemporâneos da perspectiva

histórico-cultural, considerando que o trabalho do professor deve possibilitar

compreensões cada vez mais elaboradas para a apropriação de sentidos, pois, o

movimento do pensamento, necessário para o aprendizado de conteúdos cada vez mais

complexos, não surge no interior dos sujeitos, mas, na interação verbal, na construção

de saberes compartilhados com os alunos. No estudo realizado analisamos uma aula em

que a professora passou para a classe uma atividade do livro didático, na qual os alunos

deveriam interpretar um poema. Constatamos que os objetivos pedagógicos estavam

voltados para a decodificação de palavras e a realização das atividades propostas no

livro, ou seja, esperava-se que os alunos respondessem adequadamente as perguntas, em

detrimento da construção dialógica dos sentidos do texto. O trabalho do professor é

marcado por ações instrucionais, que privilegiam os resultados da aprendizagem e pela

desvalorização e pouca reflexão sobre seus processos. Apontamos a necessidade de

mais atenção às dificuldades do aluno e incentivo da professora para sua participação na

atividade.

Palavras-chave: Perspectiva Histórico-Cultural. Elaboração Conceitual. Deficiência

O estudo aqui apresentado tem por objetivo analisar como uma professora do ensino

fundamental II estabelece ações pedagógicas para a participação de um aluno com

deficiência intelectual em suas aulas de português no que se refere às possibilidades de

elaboração de conceitos. Como atende às peculiaridades deste aluno no contexto de uma

sala de aula inclusiva diante da exigência de cumprir com os conteúdos escolares

previstos para o 7o ano.

Os estudos sobre a elaboração conceitual, realizados por Vigotski e seus colaboradores

apontam que esse processo se inicia na infância, mas as funções intelectuais que

formam a base psicológica deste processo se desenvolvem somente na adolescência. A

palavra é que irá conduzir as operações mentais, controlar e solucionar problemas.

Neste sentido, para o autor, é com a ajuda das palavras que a criança formará os

conceitos. O autor afirma que:

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O conceito é impossível sem palavras, o pensamento em conceitos é

impossível fora do pensamento verbal; em todo esse processo, o

momento central, que tem todos os fundamentos para ser considerado

causa decorrente do amadurecimento dos conceitos, é o emprego

específico da palavra, o emprego funcional do signo como meio de

formação de conceitos (VIGOTSKI, 2001, p. 170).

O processo de desenvolvimento dos conceitos exige, portanto, o desenvolvimento das

funções psicológicas superiores que se reorganizaram de forma complexa para constituir

um novo conceito nas relações dialógicas estabelecidas na escola. O autor utiliza o

termo “função psicológica superior” para se referir a “combinação entre instrumento e

signo na atividade psicológica” (VIGOTSKI, 1991, p. 63), em que se busca uma

compreensão do papel do signo como tendo uma função mediadora.

Vigotski (1991) define os conceitos como sendo cotidianos e científicos. Os conceitos

cotidianos originam-se durante situações informais de aprendizagem, ou seja, formam-

se na prática de costumes do grupo social, já os conceitos científicos necessitam da

intervenção deliberada do adulto para serem elaborados e desenvolvem-se durante o

processo de assimilação do conhecimento historicamente construído, organizado e

sistematizado nos conteúdos escolares.

Por meio da reflexão sobre o processo de desenvolvimento e aprendizagem sob uma

ótica psicológica, Vigotski (1991, 1995, 2009) traz contribuições para diversas áreas de

conhecimento, entre elas a pedagogia. Martins (2013, p.117) destaca o importante papel

da escola em transmitir os “conhecimentos clássicos, historicamente sistematizados e

preservados pela prática social da humanidade.” Entretanto, vários autores

contemporâneos analisam justamente o contrário “o fracasso escolar” que se refere

justamente à dificuldade em ensinar esses conceitos na escola.

Vigotski (1995) também traça uma reflexão específica sobre as pessoas com

deficiências e suas possibilidades de desenvolvimento. Para o autor, as leis gerais do

desenvolvimento são iguais para todas as pessoas, porém há peculiaridades na

organização sociopsicológica. Assim a criança com deficiência necessita de caminhos e

recursos alternativos. Os caminhos indiretos tornam-se essenciais para o

desenvolvimento de qualquer criança quando o caminho direto, a adaptação, não se faz

presente para a resolução de um problema. Ou seja, “a estrutura das formas complexas

de comportamento da criança consiste numa estrutura de caminhos indiretos, pois

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auxilia quando a operação psicológica da criança revela-se impossível pelo caminho

direto” (VIGOTSKI, 2001, p.864).

Considerando a avaliação de professores de que alunos com deficiência intelectual têm

muita dificuldade na elaboração de conceitos na escola e a necessidade de apontar

possibilidades para o ensino de alunos com deficiência intelectual, apresentamos aqui

parte de um estudo realizado, em que pudemos identificar indícios de ações concretas

que podem promover o acesso ao conhecimento e o desenvolvimento de alunos com

deficiência intelectual.

No cotidiano da sala de aula

A escola focalizada localiza-se em uma cidade do interior de São Paulo. É uma

instituição estadual de ensino que atende crianças e adolescentes do ensino fundamental

II (5º ao 9º ano) e médio (1º, 2º e 3º anos). É definida como referência no atendimento

de crianças e adolescentes com surdez e com deficiência intelectual. Existe uma sala de

recursos que atende tais alunos no período oposto ao horário das aulas.

Durante um ano foram realizadas observações em sala de aula e encontros com um

grupo de 15 professores que se dispuseram a participar e discutir sobre possibilidades de

atuação com alunos com deficiência. A escola tem ao todo 52 professores. Todos foram

convidados a participar. Além disso, também foram realizadas conversas com os

professores fora dos momentos dos encontros a fim de planejar atividades específicas a

serem realizadas para participação dos alunos com deficiência das atividades previstas

para a turma.

Os encontros com os professores têm como objetivo fazê-los refletir sobre a prática a

partir de discussões teóricas sobre desenvolvimento e aprendizagem e o processo de

formação de conceitos científicos. Os professores, bem como os pesquisadores trazem

alguns relatos das aulas para discussão e reflexão no grupo.

Apresentamos aqui um episódio referente às aulas de português ministradas para o 7o

ano, frequentada por um aluno que, segundo os professores, apresenta dificuldade de

aprendizagem: André.

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André é diagnosticado como deficiente intelectual e também é acompanhado na sala de

recursos. Entrou nesta escola em 2015, mas já era acompanhado pela mesma professora

da sala de recursos desde 2014 em outra escola que estudou.

O aluno não está alfabetizado e esta é uma das dificuldades demonstradas nos encontros

“como possibilitar o desenvolvimento dos conhecimentos científicos quando o aluno

chega à escola no 6º ano analfabeto”?

André geralmente não participa das aulas e sempre é orientado verbalmente pela

professora para que faça as atividades, mas não são feitas intervenções com ele para

auxiliá-lo. Nos momentos de orientação para a turma o aluno dificilmente presta a

atenção. Quando se senta em dupla a ajuda que recebe é a possibilidade de copiar as

respostas do colega. Após o início desta pesquisa e das reflexões realizadas nos ATPCs

sobre possibilidades de ensino para os alunos com deficiência, vemos que os

professores estão buscando novos caminhos para que André e outros alunos que

também têm dificuldades participem mais das aulas. Conforme relato de algumas

professoras em nossos encontros, elas têm procurado explicar mais para os alunos sobre

o que fazer e realizado oralmente a atividade antes de pedir para escreverem.

Em relação às análises dos processos intersubjetivos nas relações de ensino e

aprendizagem, nos apoiamos na abordagem microgenética, que privilegia a

compreensão dos processos de constituição dos sujeitos nas atividades das quais

participa, constituindo-se intrasubjetivamente pelo compartilhamento e construção de

sentidos nas relações dialógicas, base para formas superiores de desenvolvimento

cognitivo.

Episódio – Interpretação de poema

Laura, a professora de português, passou para a classe uma atividade do livro didático

utilizado pela professora da sala de aula. Deveriam interpretar o poema Toada de

ternura de Thiago de Mello, em "Faz escuro mas eu canto" de 1965.

Meu companheiro menino,

perante o azul do teu dia,

trago sagradas primícias

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de um reino que vai se erguer

de claridão e alegria.

É um reino que estava perto,

de repente ficou longe:

não faz mal, vamos andando

porque lá é o nosso lugar.

Vamos remando, Leonardo,

porque é preciso chegar.

Teu reino ferindo a noite,

vai construindo a manhã.

Na proa do teu navio

chegaremos pelo mar.

Talvez cheguemos por terra,

na poeira do caminhão,

um doce rastro varando

as fomes da escuridão.

Não faz mal se vais dormindo,

porque teu sono é canção.

Vamos andando, Leonardo.

Tu vais de estrela na mão,

tu vais levando o pendão.

Tu vais plantando ternuras

na madrugada do chão.

Meu companheiro menino,

neste reino serás homem,

como o teu pai sabe ser.

Mas leva contigo a infância,

como uma rosa de flama

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ardendo no coração:

porque é da infância, Leonardo,

que o mundo tem precisão.

André consegue identificar sozinho o número da página indicado pela professora

(página 70) e ao encontrar a página indicada pergunta se é para copiar, a professora

responde que não.

Antes de iniciar o trabalho com o poema uma aluna é convidada a ler o enunciado do

livro didático. A professora inicia então a atividade explicando os significados de

algumas palavras para os alunos de acordo com os textos do livro didático.

Laura: Na página 70, lá em cima, está escrito assim. “A palavra no momento da ternura. Pela palavra se

comunica, pela palavra se forma, pela palavra se olha, se chama pelo outro. Pela palavra se brinca, se cria,

se inventa um mundo novo. Pela palavra me descubro, pela palavra me entendo, pela palavra eu sou, sou

o poeta.” Então as palavras elas tem um valor né? As palavras elas tem um peso. Quando alguém

comunica alguma coisa pra gente. Se eu chegar aqui e comunicar num tom sorrindo eu passo uma

imagem pra vocês. Se eu chegar aqui e pronunciar uma palavra e falar num tom agressivo vocês já vão

perceber que eu já não estou tão simpática. A minha fala é que estou brava. Então dependendo de como

pronunciamos as palavras, dependendo de como a gente se comunica, o que a gente fala, as palavras elas

refletem alguma coisa em quem está ouvindo.

Aluno: E como você está agora? (O aluno faz essa pergunta, porque no início da aula Laura chamou a

atenção dos alunos quanto à organização da sala).

Laura: Agora estou normal já, porque eu quero dar a minha aula aqui e ensinar vocês. Uma palavra

associada a alguma coisa legal transmite algo bom para quem está ouvindo. Uma palavra pesada, uma

palavra, vamos dizer assim, quando alguém ofende uma pessoa usando palavras no sentido assim, eu

quero falar mesmo uma forma que eu posso agredir aquela pessoa. O que acontece, a palavra ela tem, ela

deixa uma marca. Se eu chego aqui e falo “Nossa que alunos bonitos! Nossa que alunos educados! Nossa

que alunos estudiosos!” Se eu chego aqui e falo de forma estúpida, a palavra vai causar uma reação em

vocês. Dependendo do que falamos as palavras adquirem novos valores. Esse poema aqui ele chama-se

“Toada de ternura, para Leonardo o menino meu amigo.” Eu vou ler uma vez com vocês, depois eu vou

pedir para alguém tentar ler também, cada um lê uma estrofe do poema. Está bom? Vamos lá então!

Durante a leitura do poema e da explicação da professora André deitou-se em cima do

livro. Cada aluno lia um verso do poema a pedido da professora. A professora não pede

para André ler. Nesse momento, dois alunos ficam fazendo comentários sobre André em

voz alta. “Dona o André quer ler”, “Como você quer ler se não sabe, burro”. A

professora faz uma intervenção e os dois alunos acabam jogando uma borracha em

André, momento em que a professora solicita que se retirem da sala por não respeitar o

colega.

Laura discute o significado de algumas palavras contidas no texto. Chamou a atenção

para as palavras: primícias, toada, flama, pendão, precisão, varando.

Laura: Precisão aqui é no sentido de necessidade. Antes de eu continuar a leitura com vocês eu vou pedir

pra alguém ler. Vocês viram que tem palavras diferentes, palavras novas aí, né? Tem alguma palavra que

vocês não entenderam?

Aluno: Primícias.

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Laura: Está aqui no vocabulário primícias, vamos ler juntos? “Primícias: primeiras coisas de uma série,

começos, prelúdios.” Primícias ou prelúdios é a mesma coisa. É o início de algo né? Primeiras coisas de

uma série que vão acontecendo, que vão se sucedendo. Tem mais palavras aí que eu acho que vocês

tenham dúvidas.

Aluno: Toada.

Laura: “Toada: canto ou cantiga.” Tem a ver com melodia tá? “Toada: canto ou cantiga.”

Aluno: Flama.

Laura: Flama é chama. Flama é chama.

Aluno: Pendão.

L: E pendão. O que é pendão?

(Ninguém responde.)

Laura: Bandeira, estandarte ou símbolo que vai na frente de tropas. Então acho que essas aí são as que

causariam dúvidas para vocês. E precisão, todo mundo sabe o que é precisão?

(Ninguém responde.)

Laura: Necessidade. Aqui na nossa região não é muito comum, as pessoas usam a palavra necessitado.

Ele está necessitado de alimentos. Ai ele está necessitado de comprar remédios. É nesse sentido. Mas tem

uma região, mais a região de Minas, Belo Horizonte. Eu já ouvi bastante ex-alunos, que já estudaram aqui

e já saíram, eles falam assim. “Ai eu estou com precisão de tomar água. Ah eu estou com precisão de sair

um pouco da sala de aula.” Então é necessidade tá? Essa palavra não está no vocabulário, mas eu já estou

afirmando para vocês que é isso. Acho que no mais são essas né? Tem mais alguma que talvez vocês não

conheçam? Não?

(Ninguém responde novamente)

Laura: O que seria varando? “Um doce rastro varando”. Está na quarta estrofe aqui. Aqui embaixo. (Vira

o livro e aponta o local em que aparece a palavra para os alunos) Varando. Última estrofe da primeira

coluna. “Talvez cheguemos por terra, na poeira do caminhão, um doce rastro varando as fomes da

escuridão. Não faz mal se vais dormindo (...)” Oi? (Um aluno responde, mas não dá para entender o que

ele diz). Atravessando, cruzando. Atravessando, cruzando.

Aluno: Eu estou varado de fome dona.

Laura: Isso. “Eu estou varado de fome.” tem uma expressão assim.

Aluno: Não, não é exemplo. Eu estou com fome mesmo.

Laura: Você está mesmo? De verdade? Daqui a pouco é o intervalo...

A professora chama a atenção também para a ilustração do poema para ajudar a pensar nos sentidos do

texto. Enquanto a professora explica André conversa com alguns colegas e parece não prestar atenção no

que Laura está falando.

Laura: Vocês olharam no desenhinho aqui? (O desenho de um menino em um barco velejando.) Ele fala

uma parte aqui ó! Ele diz assim “Na proa do teu navio”. Vocês viram no desenho, na proa do teu navio. O

que seria proa?

Aluno: Essa parte aqui. (Aponta para o desenho).

Laura: A parte da frente daqui do navio ó! (Aponta para o livro). Esse é o Leonardo. Xi! Xi! (Pede

silêncio.) O poeta descreve a aventura do menino. Quando ele diz assim ó. É Thiago de Melo, o nome do

autor desse poema. É, ele diz assim “Mas leva contigo a infância, como uma rosa de flama, ardendo no

coração.” Olha a bandeira dele aqui que é a flama. Ele diz “Porque é da infância Leonardo, que o mundo

tem precisão.” Então o mundo precisa de que?

Aluno: De nós?

(Mais dois alunos tentam participar, mas não dá para entender o que eles falam).

Laura: Das crianças não é? A infância é a fase (...). O mundo tem necessidade da infância, das crianças.

Por quê? Por que será?

(Ninguém responde.)

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Laura: Por que será que ele fala isso? Precisam das crianças, precisam que nasçam as crianças, precisam

que elas cresçam, se tornem adultos e dá contribuição para a humanidade. É nesse sentido aí que eles

falam.

Durante a atividade Laura pediu para André sentar-se ao lado da pesquisadora que

observava a aula e pediu para que ela o ajudasse a interpretar o poema. A cada questão

feita para a classe voltava-se para André e pedia para que ele encontrasse a resposta

para a pergunta no poema. A pesquisadora ajudava-o na leitura do poema e lembrava-o

várias vezes qual tinha sido a pergunta da professora.

André lia pausadamente, com dificuldade para decodificar as palavras. Não se recusou a

ler, mas a dificuldade para decifrar as letras e sílabas prejudicava a compreensão do

texto lido. Foi a primeira vez que a pesquisadora o viu lendo. Em outras situações

observadas só havia sido proposto para ele a cópia das respostas da atividade. Então,

para auxiliá-lo, a pesquisadora leu novamente a questão que se referia à expressão “meu

companheiro menino” e o que revelava sobre os sentimentos do autor em relação ao

personagem. Em seguida, convidou André a ler novamente e iniciou a explicação:

Pesquisadora: Como ele tratava o menino? A Laura explicou essa questão. Quer ver eu vou ler de novo.

(Lê algumas estrofes do texto novamente). Ele chama o menino, Leonardo, de meu companheiro menino.

Então o que ele era? O poeta e o menino? Eles eram o que?

André: Amigos.

Pesquisadora: Amigos. Então os sentimentos que eles tinham, qual que era esse sentimento? Amigos é um

sentimento de? Quando você é amigo de uma pessoa qual é o sentimento que você tem por ele?

André: É amigo meu não?

Pesquisadora: Isso. Então o sentimento é de amizade.

André respondeu sem maiores dificuldades, mas, não menciona o conceito explicitado

pela professora, “amizade”. A professora já havia explicado a questão e indicado

oralmente a resposta correta e o aluno escreveu “Amizd”. A pesquisadora leu para ele o

que tinha escrito em voz alta e explicou que estavam faltando duas vogais. A

pesquisadora precisou falar quais eram as vogais para que André conseguisse corrigir

sua escrita.

Possibilidades e desafios para a elaboração de conceitos na escola

As argumentações de Vigotski (2001) a respeito do papel desempenhado pela

aprendizagem dos conceitos para o desenvolvimento das funções superiores é

justamente a possibilidade de, a partir de conceitos mais simples, como, por exemplo,

“amigo”, apropriar-se de conceitos mais complexos como o de “amizade”, o que não

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prescindi de um trabalho deliberado do professor que possibilite compreensões cada vez

mais elaboradas, buscando que os alunos se expressem e compartilhando com eles o que

sabe sobre os sentidos possíveis das palavras. Segundo o autor, é esse o movimento que

o pensamento faz, intermediado pelos conceitos científicos, que precisam ser elaborados

dialogicamente entre professor e alunos – considerando seus usos em contextos

específicos de interlocução. O que nos leva a questionar, principalmente, o modo como

a escola/professor centra seus esforços na execução de tarefas em detrimento de

compartilhar com os alunos os sentidos do texto pela apropriação dos conceitos,

movimentos fundamentais para que os alunos se apropriem dos sentidos das palavras de

modo cada vez mais complexo e que os reflexos destas compreensões sejam a base para

ações intelectuais deliberadas, cada vez mais complexas. No caso deste episódio,

quando a professora expõe sobre os significados dos conceitos presentes no texto, suas

ações se voltam exclusivamente à compreensão do conceito em si e não do enunciado

da poesia (Está aqui no vocabulário primícias...; precisão aqui é no sentido de

necessidade...), além disso, mesmo que haja participação dos alunos, eles não

participam oralmente da construção dos seus sentidos – ações imprescindíveis para

compreensão e internalização destes conceitos pelos alunos. O sentido é dado pela

professora ou de forma dicionarizada ou de acordo com suas vivências e exemplos

cotidianos, deixando de abordar os sentidos possíveis e mais complexos do texto (por

exemplo, quando menciona que precisão é um termo usado por pessoas que moram em

Minas Gerais). Até quando faz uso da ilustração, é de modo descritivo e simplificado,

apenas fazendo menção a palavra “navio” presente no texto, com o desenho de um

navio que está na ilustração. Não há novamente, compreensão dos sentidos pelos

enunciados do poema de modo que os alunos possam se apropriar dos sentidos do texto

(Vocês olharam no desenhinho aqui? O desenho de um menino em um barco velejando.

Ele fala uma parte aqui ó! Ele diz assim “Na proa do teu navio”. Vocês viram no

desenho, na proa do teu navio. O que seria proa?). Levar os alunos a identificar a

palavra “proa”, não necessariamente os ajuda na interpretação da poesia. Não são estes

os sentidos em questão. A professora elege palavras e conceitos, desvencilhados dos

sentidos do texto.

Ações que nos fazem inferir que os objetivos pedagógicos estão voltados para a

decodificação de palavras e a realização das atividades propostas no livro didático, ou

seja, que os alunos respondam adequadamente as perguntas, em detrimento da

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construção dialógica dos sentidos do texto. Apenas ao final da atividade, quando a

professora considera que estão esgotados os significados que os alunos possam

apresentar dúvidas, é que ela se reporta ao texto (“Porque é da infância de Leonardo,

que o mundo tem precisão”).

Assim, podemos apontar o quanto o trabalho do professor vem sendo marcado por

ações instrucionais, que privilegiam os resultados da aprendizagem e pela

desvalorização e pouco reflexão sobre seus processos. Há uma preocupação proclamada

em desenvolver “habilidades”, entretanto, o trabalho de desenvolver nos alunos

processos mentais cada vez mais complexos, por exemplo, interpretando um poema,

não é preocupação central do ensino.

Questionamos então o quanto os modos de conduzir a atividade não colaboram com a

aprendizagem nos termos de Vigotski (2001), não conduzem os alunos a construir

sentidos perante um texto escrito, para que se traduza em desenvolvimento intelectual.

O que se exige dos alunos é a execução de tarefas, muitas vezes sem qualquer reflexão,

mesmo porque, familiarizarem-se com as exigências da escola de modo automático,

muitas vezes copiando as respostas que o professor passa na lousa ou menciona

oralmente, não são movimentos que exijam dos alunos ações reflexivas e conscientes.

Não é de se estranhar, depois, os baixos desempenhos nas avaliações internas e externas

à escola. No caso deste episódio, o recurso escolhido pela professora é ler a pergunta

para a sala e indicar a resposta oralmente, assumindo, mais uma vez, o compromisso

apenas com a execução da tarefa que precisa dar conta. Mais uma vez, afirmamos, que

suas mediações envolvem muito mais vivências cotidianas (acontecimentos da sala de

aula quando está brava com os alunos, precisão de tomar água, precisão de sair da sala),

do que ações pedagógicas que levem a um domínio de saberes mais elaborados, como

aqueles que seriam construídos se suas ações estivessem voltadas à compreensão da

poesia. Os objetivos pedagógicos voltados exclusivamente para as questões

instrucionais, não favorecem aprendizagens e desenvolvimento dos alunos em relação

ao domínio cada vez mais complexo de operações mentais possibilitadas pela

compreensão de conceitos mais elaborados, considerando principalmente André, que se

encontra muito aquém das exigências de um 7º ano e ainda enfrente o estigma dos

colegas perante suas dificuldades. O movimento do pensamento, necessário para o

aprendizado de conteúdos cada vez mais complexos, não surge no interior dos sujeitos,

mas, na interação verbal, na construção de saberes compartilhados com os alunos.

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Por outro lado, o episódio também ilustra que André deseja e tem possibilidade de

participar da atividade. Aquilo que já aprendeu e consegue fazer por conta própria,

como identificar a página, o motiva para fazê-lo; também se mostra disposto a ler,

mesmo com suas dificuldades. Lê o poema com ajuda da pesquisadora e demonstra

compreensão do que ela explica para ele (quando responde “amigo” ao sentimento

explicitado pela pesquisadora no enunciado em questão) e copia a resposta dada pela

professora na atividade do livro, indicando que o incentivo do outro se torna

fundamental perante suas dificuldades de realização e compreensão do que é proposto,

mas não impossibilidade. O professor precisa estar aberto a essas possibilidades dos

alunos que estão com dificuldades, mediando a atividade para que a apropriação de

saberes se refinem.

Consideramos que é preciso mais atenção as dificuldades do aluno e incentivo da

professora para a participação na atividade. André não é convidado a ler, obviamente

por suas dificuldades, mas também não é repreendido quando conversa com os colegas

durante as instruções da professora. É exatamente por conta de suas dificuldades, que o

professor precisa estar atento. O que nos parece é que o professor, por conta das baixas

expectativas em relação ao aprendiz, acaba considerando de modo muito natural sua não

participação, quando deveria fazer o oposto, exigir e incentivar.

Considerações finais

Nestas considerações ressaltamos que a escola atual ainda não superou o treino de

habilidades, o ensino instrucional, que empobrece as relações de ensino e limita as

possibilidades de desenvolvimento do educando, principalmente quando pensamos nas

crianças com peculiaridades no desenvolvimento, em detrimento de proporcionar

aprendizagem escolar e o domínio cada vez mais complexo do pensamento abstrato por

intermédio dos conceitos científicos. Nesse aspecto, as palavras de Vigotski (1995, p.

36) se fazem atuais:

Precisamente porque el ninõ mentalmente retrasado depende tanto em su

experiência de las impresiones concretas y desarrolla ta poco, por su própria

cuenta, el pensamento abstracto, la escuela debe librarlo del excesso del

método visual-directo, que sirve de obstáculo al desarrollo del pensamiento

abstracto, y educar estos procesos. Dicho de outro modo, la escuela no sólo

debe adaptarse a las insuficiências de esse ninõ, sino también luchar contra

ellas, superarlas

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

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Afirmação que implica, impreterivelmente, aprendizagem social e escolar, de um ensino

propositivo e que se baseie nas possibilidades de desenvolvimento e que não se aplique

meios empobrecidos e simplificados de ensino. Ao contrário, a escola se encontra

perante a tarefa de desenvolver propostas de trabalho que responda e impulsione as

peculiaridades de desenvolvimento dos todos os educandos, que seja diversa e criativa,

que considere, principalmente, o trabalho de construção de sentidos como importante

instrumento pedagógico.

Referências Bibliográficas

MARTINS, L. M. O papel da educação escolar na formação de conceitos. In: Ana

Carolina Galvão Marsiglia (Org.). O desenvolvimento do psiquismo e a educação

escolar: contribuições à luz da psicologia histórico-cultural e da pedagogia

histórico-crítica. Campinas, SP: Autores Associados, 2013.

VYGOTSKY, L. S. A Formação Social da Mente. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

VYGOTSKI, L. S. Obras Completas: Fundamentos de Defectologia. Cuba: Pueblo Y

Educación, 1995.

VIGOTSKI, L. S. A Construção do Pensamento e da Linguagem. São Paulo: Martins

Fontes, 2001.

VIGOTSKI, L. S. Imaginação e criação na infância: ensaio psicológico: livro para

professores; apresentação e comentários Ana Luiza Smolka; trad. Zoia Prestes. São

Paulo: Ática, 2009.

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12092ISSN 2177-336X

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INCLUSÃO E EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR: ALGUMAS REFLEXÕES

Rodrigo Barbuio - CUML

Evani Andreatta Amaral Camargo- CUML

Ana Paula de Freitas – USF

Resumo

No Brasil, as ideias sobre os direitos inclusivos têm indicado que sujeitos com

deficiência têm o direito e devem estar inseridos na rede regular de ensino. Em relação à

disciplina de Educação Física, os estudos apresentam resultados controversos em

relação aos aspectos de inclusão, com poucos deles fundamentados na perspectiva

histórico-cultural. Deste modo, realizamos entre os anos de 2013 e 2015, uma pesquisa

no contexto de um programa de mestrado em Educação, nesta perspectiva. Assim,

pretendemos neste texto discutir aspectos da inclusão escolar de uma aluna em condição

de deficiência intelectual (Ana Laura), focalizando as práticas pedagógicas no contexto

da diversidade. Para isso, efetuamos uma proposta de intervenção pedagógica, buscando

realizar práticas de ensino que oportunizasse a participação da referida aluna durante as

aulas de Educação Física. No presente trabalho, apresentamos resultados decorrentes

dessa proposta. O estudo foi realizado em uma escola de Ensino Fundamental e Médio

da rede pública estadual de ensino do estado de São Paulo, durante o ano de 2014. A

aluna, uma adolescente de treze anos, estava matriculada no 7º ano do ensino

fundamental. Em consonância com o referencial teórico assumido no estudo, a

construção de dados foi feita mediante observações da aluna nas aulas de Educação

Física, focalizando a interação entre o pesquisador e Ana Laura. Como resultados,

verificamos que para que ocorra a inclusão e a possibilidade de uma participação efetiva

escolar de alunos com deficiência nas aulas de Educação Física é necessário que sejam

dadas oportunidades concretas de ensino, através de ações pedagógicas diferenciadas,

que levem em conta as individualidades do aluno, seus princípios sociais e culturais.

Desse modo, com um planejamento pedagógico e a atuação intencional do professor,

torna-se possível a realização de um trabalho de inclusão escolar, que vise o acesso ao

conhecimento esperado na disciplina de Educação Física.

Palavras-chave: Inclusão. Educação Física. Práticas Pedagógicas

Introdução

No Brasil, as ideias sobre os direitos inclusivos se intensificaram a partir da

Constituição Federal de 1988, sendo esta considerada a lei suprema do país, trazendo

indicativos de que sujeitos com deficiência têm o direito e devem estar inseridos na rede

regular de ensino, conforme apontou Kassar (2011):

[...] a política educacional passa, a partir de 1988, a ser uma política pública

de caráter universal e isso gera mudanças no sistema de ensino. No mesmo

período em que se consolida o sistema de proteção social, estabelecido pela

Constituição Federal de 1988, inicia-se a disseminação de uma proposta de

Educação Escolar Inclusiva (p. 46-47).

Com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL,

1996), a Educação Especial passa a ser uma modalidade de ensino, garantindo que os

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

12093ISSN 2177-336X

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alunos com necessidades educacionais especiais sejam matriculados na rede regular de

ensino. Desde a promulgação da LDB 9394/1996 (BRASIL, 1996), a inclusão de alunos

com deficiência na rede regular de ensino tornou-se motivo de discussões e inquietações

no meio educacional, por parte dos pais desses alunos, pelos professores e responsáveis

pela escola. Diversos estudos vêm sistematicamente apontando os entraves e os desafios

para que os alunos com deficiência tenham, para além do acesso à escola, garantia de

aprendizagem dos conteúdos escolares (FERREIRA; FERREIRA, 2004; DAINÊZ,

2009; FREITAS; MONTEIRO, 2010; SILVEIRA; ENUMO; ROSA, 2012). Tais

trabalhos constatam que, embora os alunos com deficiência estejam matriculados na

escola regular, não estão tendo acesso ao conhecimento escolar. No que diz respeito às

práticas pedagógicas, os estudos mostram que os professores se sentem despreparados

para lidar com este público e acabam realizando práticas descontextualizadas ou

simplificadas, que nem sempre contribuem para a aprendizagem.

Em relação à disciplina de Educação Física, estudos abordam a questão da

acessibilidade (estruturas físicas inadequadas e falta de material específico) como um

entrave para a inclusão de alunos com deficiência (MAZZARINO; FALKENBACH;

RISSI, 2011; PALMA; LEHNHARD, 2012; ANDRADE, 2014). Por outro lado,

encontramos algumas pesquisas que relatam experiências favoráveis, principalmente em

relação aos aspectos de convivência, autoestima e autonomia dos alunos com

necessidades educacionais especiais (KARAGIANNIS; STAINBACK; STAINBACK,

1999; GORGATTI, 2003).

Notamos que são poucos os estudos sobre Educação Física e Inclusão Escolar que se

fundamentam na perspectiva histórico-cultural do desenvolvimento humano e que

abordam aspectos da prática pedagógica para alunos com deficiência. Deste modo,

realizamos entre os anos de 2013 e 2015, uma pesquisa no contexto de um programa de

mestrado em Educação, fundamentados na teoria histórico-cultural, em que tivemos

como objetivo geral compreender as possibilidades de participação de uma aluna em

“condição” de deficiência intelectual nas aulas de Educação Física de uma escola

pública.

Assim, pretendemos neste texto discutir aspectos da inclusão escolar dessa aluna,

focalizando especialmente as práticas pedagógicas no contexto da diversidade no

Ensino Fundamental. Efetuamos uma proposta de intervenção pedagógica, buscando

realizar práticas de ensino que oportunizasse a participação da referida aluna durante as

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

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aulas de Educação Física. No presente trabalho, apresentamos resultados decorrentes

dessa proposta.

A perspectiva histórico-cultural e as implicações para a prática pedagógica

Vigotski (1995, 2000), principal teórico da perspectiva histórico-cultural do

desenvolvimento humano, buscou compreender a origem e o desenvolvimento das

funções psíquicas superiores, tais como: atenção dirigida; memória volitiva; linguagem.

O autor, tendo como base os princípios do materialismo histórico e dialético (MARX;

ENGELS, 2007), compreendia que “as origens das formas superiores de

comportamento consciente deveriam ser achadas nas relações sociais que o indivíduo

estabelece com o mundo exterior” (VIGOTSKI, 1988, p. 25).

Para Vigotski (1995, 2000), o ser humano se constitui em duas funções, sendo elas,

naturais e culturais. Pino (2000, 2005), ao problematizar essa ideia, explica que os

fatores biológico e cultural andam juntos em um movimento dialético, os mecanismos

biológicos são de origem genética, já as funções culturais se originam nas/das práticas

sociais. Vigotski considera que o homem não sofre apenas influências do meio, mas

também intervém nele, possibilitando outras condições e, agindo dessa maneira,

transforma a si próprio, desenvolvendo novas funções mentais. Desse modo, esse

pensamento é concebido nessa teoria como um movimento dialético, em que o cultural e

o biológico se entrelaçam em um processo de transformação. Assim, ao estarmos

inseridos no meio social desde que nascemos, vivenciamos e apreendemos significados

culturais diferentes, proporcionados pelo outro.

Cabe ainda esclarecer que a relação entre o fator biológico/social no sujeito com

deficiência intelectual pode ser mais acentuada, deste modo, é necessário que se tenha

uma participação mais ativa do grupo social, ou seja, do outro, para com esse sujeito.

Portanto, na tese de Vigotski (2000), o social e o cultural são dois aspectos base de todo

desenvolvimento humano, que é caracterizado como um processo de transformação de

um ser biológico para um sujeito sociocultural. Para o autor, funções da natureza da

espécie não são desconsideradas na formação humana, mas sim redimensionadas na

medida em que o indivíduo estabelece relações sociais, por meio da mediação de signos

culturais criados no social, significando e internalizando os mesmos. Ressaltamos que a

linguagem é considerada o signo por excelência nessa teoria. Por meio dela,

o homem se comunica e vai se constituindo em suas interações. Ela permite a

categorização do mundo, a possibilidade de abstração e a generalização dos

objetos, enfim, o funcionamento psíquico superior, pois o homem pode agir e

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12095ISSN 2177-336X

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pensar sobre os objetos sem que eles estejam presentes e relacionar-se com o

mundo através da mediação dos significados construídos pelo grupo social do

qual ele faz parte. (FREITAS, 2001, p. 16).

Vigotski (1995) buscou compreender as relações entre aprendizagem e

desenvolvimento. Para o autor, desenvolvimento e aprendizagem não são aspectos

coincidentes, mas interdependentes. O desenvolvimento é suscitado e impulsionado pela

aprendizagem, e esta depende das condições sociais. A aprendizagem ocorre na relação

do sujeito com o meio social em práticas necessariamente envoltas em mediação

semiótica.

Desse modo, quando nos referimos às possibilidades de aprendizagem de alunos com

deficiência, o processo não é diferente, isto é, deve ser compreendido a partir da

situação social de desenvolvimento.

Com base nos pressupostos de Vigotski (1997) sobre os sujeitos com deficiência,

compreendemos que as condições orgânicas (biológicas) não definem as possibilidades

de aprendizagem destes sujeitos. Por sua vez, a depender das oportunidades oferecidas

pelo meio social, as pessoas com deficiência poderão desenvolver as funções

psicológicas superiores.

Para Vigotski (1997), portanto, o aluno com deficiência deve ser considerado um

indivíduo com possibilidades de aprendizagem, desde que sejam proporcionadas a ele

condições adequadas. Desse modo, Vigotski (1997) reitera a tese da natureza social do

desenvolvimento para todos os sujeitos. Explica que, no caso de crianças com

deficiência, deve-se buscar os meios e estímulos auxiliares para que ela possa se

desenvolver. Afirma que “[...] el niño cuyo desarrollo está complicado por el defecto no

es simplemente um niño menos desarrollado que sus coetâneos normales, sino

desarrollado de outro modo.” (VIGOTSKI, 1997, p.12).

Desta forma, compreendemos que o processo de aprendizagem para os alunos com

deficiência não pode ficar limitado às práticas pedagógicas tradicionais. No caso da

disciplina de Educação Física, foco deste estudo, esta ideia não é diferente e,

consideramos que o professor desta disciplina deve buscar meios diferenciados para o

aluno participar das aulas e se desenvolver.

Para Vigotski (1997), independente do tipo de deficiência, o indivíduo tenderá para a

formação de uma compensação. O autor ressalta e explica o conceito de compensação

tendo como base o desenvolvimento humano como um processo sociocultural.

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Dainêz (2009), ao discutir o conceito de compensação, considera ser importante que a

sociedade se organize de uma maneira em que se desenvolva um olhar prospectivo para

o indivíduo com deficiência, levando em consideração as possibilidades de

desenvolvimento de cada criança, não evidenciando os limites causados pela

deficiência, mas sim, potencializando as perspectivas do que é possível ser superado.

Ainda ressalta que a compensação não pode ser pensada apenas no plano sensorial e

orgânico, mas, sobretudo, deve-se considerar os aspectos históricos, sociais e culturais

da vida humana, pois nos referimos a uma compensação que ocorre através da

linguagem; uma compensação dialética, realizada por meio da mediação social, de

modo a constituir a subjetividade do deficiente frente às condições concretas de vida.

No âmbito das práticas pedagógicas da Educação Física, compreendemos que a

abordagem crítico-superadora vai ao encontro das discussões da perspectiva histórico-

cultural na compreensão do sujeito escolar. Essa abordagem ressalta a Educação Física

de modo denominado de cultura corporal, que se contextualiza tendo como base os fatos

e o resgate histórico (COLETIVO DE AUTORES, 2012), tematizando formas de

atividades expressivas corporais como: jogo, esporte, dança e ginástica. Nesta

perspectiva, a Educação Física tem responsabilidade no processo de transformação das

condições sociais dos alunos.

Como já mencionamos, ainda são poucos as pesquisas fundamentadas na perspectiva

histórico-cultural e que focalizam a Educação Física Escolar. Trazemos aqui o estudo de

Andrade (2014), que buscou compreender os meios de participação e desenvolvimento

de alunos com deficiência e de seus professores nas aulas de Educação Física, avaliando

também como acontecem as relações sociais nesse contexto. A partir da observação de

dois alunos com deficiência (um com deficiência física, outro com deficiência visual),

tanto no espaço da sala de aula (aulas teóricas), como nas aulas práticas realizadas na

quadra, o autor evidenciou a participação efetiva dos alunos, ressaltando que os

docentes foram responsáveis por promover condições efetivas para que os alunos com

deficiência participassem das aulas regulares junto com os demais colegas. Destaca a

qualidade da mediação dos professores analisados, que, por meio de palavras e gestos,

possibilitam que esses jovens se envolvam com as práticas desenvolvidas.

Notamos, portanto, que as práticas pedagógicas realizadas nas aulas de Educação Física

para alunos com deficiência vão ocorrendo de maneira controversa. Neste sentido,

retomamos o objetivo deste texto que é discutir aspectos da inclusão escolar de uma

aluna em condição de deficiência intelectual, focalizando especialmente as práticas

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pedagógicas no contexto da diversidade no Ensino Fundamental, nas aulas de Educação

Física.

Aspectos Metodológicos

Este estudo foi realizado em uma escola de Ensino Fundamental e Médio da rede

pública estadual de ensino do estado de São Paulo, em uma cidade do interior, durante o

ano de 2014. Selecionamos para participar da pesquisa uma aluna, aqui denominada de

Ana Laura, matriculada no 7º ano do ensino fundamental, uma adolescente de treze

anos.

A escolha dessa aluna como foco para este estudou foi feita levando-se em consideração

a indicação da diretora que afirmou se tratar de uma aluna com deficiência intelectual.

Embora não tivéssemos tido acesso ao laudo que comprovasse a deficiência, essa aluna

era vista pela diretora e pelos professores como um “caso de inclusão”. Conforme

explicou Amaral (1995), há uma construção social da deficiência que se dá por meio de

estigmas e preconceitos sociais constituídos nas relações sociais, uma vez que a

sociedade em determinados contextos histórico-sociais determina o que é ideal, o que é

esperado, o que está dentro da norma. Assim, embora não haja um diagnóstico de

deficiência intelectual, consideramos que a aluna era compreendida como tal no

contexto escolar. Além disso, nos foi relatado que Ana Laura era uma aluna assídua à

escola, o que viabilizaria nosso levantamento de dados.

A aluna ingressou no ensino básico dentro das expectativas idade/série, e assim segue

os estudos sem nenhum tipo de reprovação. Reside em um bairro um pouco afastado da

escola, percorre o trajeto em um ônibus escolar, sem precisar do auxílio de outras

pessoas. Ana Laura, a princípio, é uma adolescente tímida, um pouco introspectiva, que

sofre algumas dificuldades por conta de seu sobrepeso. Não podemos afirmar qual o

grau de obesidade de Ana Laura, mas é visível seu sobrepeso e as dificuldades

decorrentes disso. Ainda no aspecto físico, podemos notar que tem dificuldade em se

locomover, ao se levantar quando está sentada ou deitada. É possível ainda observarmos

um cansaço cardiorrespiratório, até mesmo em apenas conversar com ela. Há também

momentos de irritação e nervosismo. Acreditamos que essas limitações físicas possam

ser um dos empecilhos encontrados pela aluna e por seus pares para que aconteça uma

interação entre os mesmos.

Em consonância com o referencial teórico assumido no estudo, a construção de dados

foi feita mediante observações da aluna nas aulas de Educação Física, focalizando sua

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relação com a professora de Educação Física, pares e pesquisador durante as atividades.

Todos os dados foram registrados em diário de campo. Para este texto priorizamos os

dados que focalizam a interação entre o pesquisador e Ana Laura.

Após observações que realizamos no primeiro semestre letivo, constatamos que a aluna

não participava das aulas de Educação Física, permanecendo a maior parte do tempo,

sentada na arquibancada da quadra. Diante disso, no segundo semestre, propusemos

para a professora planejarmos algumas atividades para serem realizadas, visando a

participação da aluna. Deste modo, elaboramos uma proposta, usando como base as

atividades pedagógicas no Caderno do Professor, material que faz parte do currículo

unificado da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo (SÃO PAULO, 2013).

Após a leitura de todo o material registrado no diário de campo e orientado pelos

princípios metodológicos da perspectiva histórico-cultural, identificamos alguns modos

de participação mais recorrentes. E, assim, focalizamos aqui os modos de interação

entre a aluna e o pesquisador, como possibilidade para se pensar práticas pedagógicas

para alunos no contexto da diversidade escolar.

Modos de interação entre a aluna e o pesquisador: possibilidades para a prática

pedagógica

Episódio

Apresentamos, aqui, dois momentos da proposta de intervenção realizada, ocorridos em

dias diferentes.

Momento 1

A atividade proposta pelo pesquisador era realizar exercícios básicos de

alongamento para membros superiores e inferiores, como extensão e flexão

da musculatura. Foram dados oito exercícios de alongamento, quatro para

membros superiores e quatro para membros inferiores e cada movimento

tinha duração de trinta segundos. O pesquisador posicionou a turma em

círculo, explicando e demonstrando como eram realizados cada movimento,

sempre corrigindo os movimentos dos alunos, explicando qual musculatura

estavam trabalhando e o porquê da importância em se realizar alongamentos

antes de iniciar qualquer atividade física. O pesquisador observava que Ana

Laura estava o tempo todo o olhando e prestando bastante atenção no que ele

dizia.

Os alunos realizaram os exercícios de alongamento de uma forma bastante

entusiasmada e todos muito motivados. Ana Laura ainda estava um pouco

tímida, um pouco introspectiva e insegura ao realizar os exercícios.

O pesquisador ressaltou um exercício que exigia um equilíbrio dos alunos,

em que tinham que ficar em pé, apoiando-se apenas em umas das pernas e

realizando a flexão da outra. Neste momento, o pesquisador aconselhou-os

que se apoiassem no amigo ao lado, para assim terem maior equilíbrio e

realizarem o exercício da maneira correta. Observou que Ana Laura estava

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tendo dificuldades em se equilibrar e mesmo assim não se apoiou em nenhum

colega, da mesma maneira que nenhum outro se aproximou dela para se

apoiar. Então, o pesquisador se aproximou de Ana Laura e apoiou-se em seu

ombro para realizar o exercício, ela sorriu e automaticamente se apoiou no

ombro do pesquisador, conseguindo realizar o exercício de forma correta.

Diálogo realizado:

Pesquisador: (R): Ana Laura, estou me desequilibrando, irei me apoiar em

seu ombro.

Ana Laura: Tá. (Sorrindo).

Pesquisador: (R): Está vendo como é mais fácil assim, apoiando em outra

pessoa.

Ana Laura: Verdade, professor. (Extraído do diário de campo, 26/08/2014).

Momento 2

A atividade em questão era a mesma da aula anterior, basicamente realizar

exercícios de alongamento para membros superiores e inferiores, como

extensão e flexão da musculatura; alongamentos feitos antes de iniciar

qualquer atividade física.

O momento que vale ressaltar ocorreu no exercício de alongamento, já

realizado na aula anterior, em que Ana Laura havia demonstrado dificuldade

para se equilibrar em apenas uma das pernas.

Porém, dessa vez, Ana Laura nem ao menos esperou o pesquisador dizer para

se apoiar no colega ao lado para obter maior equilíbrio. Ana Laura,

automaticamente, se apoiou na colega que estava ao lado e, em contrapartida,

a colega se apoiou nela. (Extraído do diário de campo, 02/09/2014.

Neste episódio, inicialmente, podemos destacar que Ana Laura apresenta dificuldade em

realizar a atividade, mas uma dificuldade que não a impede, visto que alguns colegas

também não realizaram tudo o que foi proposto. O pesquisador, ao identificar que os

alunos não estavam conseguindo fazer o movimento, propõe a eles que se apoiem uns

nos outros, para assim conseguirem maior equilíbrio. Porém, a orientação verbal não é

suficiente para Ana Laura, que precisa de outro caminho, ou seja, do gesto. Desta

forma, argumentamos a importância do professor, que deve estar atento para que o

aluno compreenda e possa participar das atividades propostas, principalmente aquele

que apresenta alguma dificuldade.

É importante apontar que, apesar da dificuldade de Ana Laura para realizar a atividade,

ela se mantém atenta à proposta do pesquisador e nisto podemos identificar a atenção

dirigida para o que é significativo para ela. Segundo a perspectiva histórico-cultural, a

atenção dirigida é uma função psíquica superior, constituída na interação com o outro e

é também importante para o processo de aprendizagem escolar.

O papel do pesquisador nessa situação merece ser destacado. Ele explica, incentiva,

realiza gestos e motiva os alunos a realizarem a atividade. Retomamos aqui o conceito

de mediação semiótica (VIGOTSKI, 1997), isto é, a palavra e os gestos do pesquisador

funcionam como signo que possibilita que os alunos realizem a tarefa. Conforme

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apontado por Vigotski (1997), consideramos esse modo de ação do pesquisador como

um caminho possível para a aprendizagem de alunos com deficiência.

No segundo momento deste episódio podemos verificar o posicionamento de Ana Laura

que, ao ter dificuldades em se equilibrar, se apoia automaticamente no ombro de uma

colega que estava ao lado, e a colega faz o mesmo, antes mesmo de o pesquisador

orientar para que realizasse isso, fato esse, oposto ao que havia ocorrido na aula

anterior. Observamos também uma interação entre Ana Laura e os pares, fato que não

ocorria anteriormente.

Notamos nesses dois momentos do episódio como o fator social e a interação com o

outro é condição para a constituição e desenvolvimento do sujeito. Como destaca

Vigotki (2000), o homem é um ser social, seu desenvolvimento e construção ocorrem

através de suas práticas sociais e culturais mediadas pelo outro, essa mediação ocorre

por meio dos signos e instrumentos, assim, o sujeito aprende e se apropria dos saberes e

valores culturais em busca de seu desenvolvimento e aprendizagem.

Ana Laura, que inicialmente “sozinha”, encontrava dificuldade em realizar a atividade,

ao interagir com o pesquisador e seus colegas, encontrou um caminho para efetivar a

ação proposta. Por isso, é fundamental que as atividades sejam planejadas para que a

aprendizagem do aluno se efetive. Nesse momento vimos isso em Ana Laura, ela realiza

a atividade e, assim, podemos inferir que este espaço pode ser efetivo para que a

inclusão possa ocorrer. Por isso, é necessário que a escola e mais precisamente o

professor crie situações educativas por meio de práticas pedagógicas que promovam a

aprendizagem dos alunos com deficiência.

Episódio 2

A atividade proposta pelo pesquisador era uma corrida de revezamento,

apenas adaptada aos espaços da quadra, e os alunos tinham que fazer um

percurso de cinquenta metros e passar o bastão para o próximo colega da

equipe. Cada equipe era composta por 4 alunos, divididos pelo pesquisador;

formando ao todo quatro equipes de quatro alunos. Essa atividade foi um

pouco conflitante, pois para passar o bastão existiam duas linhas de um

metro, demarcadas no chão, feitas pelo pesquisador com giz. Apesar de

explicar aos alunos que a troca do bastão tinha que ser feita dentro dessa

demarcação, o Pesquisador encontrou alguns problemas, alguns alunos se

confundiam na hora de passar o bastão, outros não passavam dentro da

demarcação, inclusive Ana Laura. Ela apresentou uma dificuldade para

lembrar-se de passar o bastão para o colega dentro da área delimitada; por

três vezes não conseguiu passá-lo no momento correto, e isso causou certa

confusão entre Ana Laura e os colegas, que reclamavam que perdiam a prova

porque Ana Laura “errava” na hora de passar o bastão. A aluna se irritou

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muito com os colegas e foi se sentar na arquibancada. Nesse momento, o

pesquisador parou a aula e foi conversar com ela:

Pesquisador: (R): Ana Laura, volta para a quadra.

Ana Laura: Não.

Pesquisador: (R): Vamos, sim.

Ana Laura: Não quero, não consigo lembrar de passar.

Pesquisador: (R): Vamos fazer assim, você vai correr, na hora que você tiver

que passar o bastão eu vou gritar “agora”, daí você passa.

Ana Laura: Tá.

A aluna voltou para a atividade e recomeçaram. No momento em que

chegava a vez de Ana Laura passar o bastão para os colegas, o pesquisador

gritava “agora”. Essa atividade ocorreu por três vezes, e todas bem sucedidas,

e após a intervenção do pesquisador ao “lembrar” Ana Laura o momento de

passar o bastão, o pesquisador não encontrou mais problemas de discordância

entre Ana Laura e os colegas. A aluna, ao fim da atividade, demonstrou estar

muito feliz em realizar a atividade de maneira correta. (Extraído do diário de

campo, 02/09/2014).

Nessa situação pudemos observar que, inicialmente, alguns alunos encontraram

dificuldade em realizar o exercício acima descrito, como também foi o caso de Ana

Laura. Ressaltamos que esta atividade é uma das propostas pelo Caderno do Professor

(SÃO PAULO, 2007).

Observamos também alguma impaciência dos colegas em relação à Ana Laura quando

ela errava. Isso causou um constrangimento na aluna, que pode ter se sentido

inferiorizada em relação aos demais e como consequência abandou a atividade.

Entretanto, Sassaki (1997) e Soler (2003) afirmam que a educação física é uma

educação para todos, sem discriminação, sem exclusão, acabando com aquela tendência

de que sempre os melhores vão participar e os menos “habilidosos” e os “deficientes”

serão excluídos. Mas para que isso se efetive, é necessária a ação do professor, como foi

visto neste episódio.

O que merece ser destacado é o momento em que Ana Laura abandona a atividade e o

pesquisador intervém, criando uma maneira para que ela conseguisse realizar a

atividade, minimizando o conflito entre ela e os demais colegas. Vigotski (1997)

enfatiza a importância do papel do professor no processo de interação e de intervenção,

como representante do grupo social para criar zonas em que a compensação da

dificuldade possa se efetivar.

A partir da intervenção do outro, podemos inferir que houve a possibilidade da

participação de Ana Laura pela mediação social, de extrema importância para formação

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do sujeito. Pelas relações intersubjetivas, a aluna adquire conhecimentos e realizações

que não conseguiria sozinha.

Como vimos na análise do episódio descrito, e apoiados por autores que discutiram em

seus estudos, caminhos, possiblidades e alternativas para alunos com deficiência, supõe-

se que se o Professor criar possibilidades para alunos, os mesmos conseguirão obter e

alcançar um desenvolvimento e aprendizagem.

Considerações finais

Nesse contexto observado, podemos dizer que este estudo nos deu a possibilidade de

refletir sobre a inclusão escolar de alunos com deficiência no âmbito escolar. Para que

ocorra a inclusão e a possibilidade de uma real participação efetiva escolar de alunos

com deficiência nas aulas de Educação Física é necessário que sejam dadas

oportunidades concretas de ensino, através de ações pedagógicas diferenciadas, que

levem em conta as individualidades do aluno, seus princípios sociais e culturais. Desse

modo, consideramos e acreditamos, que, com um planejamento pedagógico e a atuação

intencional do professor, que com atenção e um olhar voltado para todos os alunos,

torna-se possível a realização de um trabalho de inclusão escolar, que vise o acesso ao

conhecimento esperado na disciplina de Educação Física.

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ESPECIFICIDADES DO ENSINO DE MÚSICA NA ESCOLA E SUAS

RELAÇÕES COM O DESENVOLVIMENTO DO EDUCANDO

Vanessa Cristina Medeiros - UNIMEP

Glaucia Uliana Pinto – UNIMEP

Resumo

Para a abordagem histórico-cultural o desenvolvimento das funções tipicamente

humanas são mediadas por relações sociais significativas, melhor dizendo, relações em

que compartilho com o outro, construções de sentidos sobre as experiências

vivenciadas, com condições ricas de desenvolvimento. Nessa perspectiva, contribuem

para este trabalho as proposições de Vigotski sobre atividade criadora e os estudos de

Leontiev em suas discussões sobre as raízes sociais do desenvolvimento humano

quando as atividades sociais compartilhadas possibilitam desenvolvimento cultural.

Desenvolvimento que possibilita a construção da consciência humana concretizada na e

pela atividade, no uso de instrumentos materiais e simbólicos. Assim, o interesse deste

estudo é compreender o fazer artístico na formação dos alunos e como a música

contribui nesse processo, explicitando aqui uma experiência de aprendizagem

intermediada pelo ensino de música proposta pela primeira autora com sua turma de

alunos da educação infantil. O objetivo é discutir como esse ensino pode favorecer a

formação humana dos sujeitos, no que se refere ao desenvolvimento das funções

superiores nos termos de Vigotski. Formação essa que precisa vencer modos de

organização que vem sendo socialmente instituídos, pragmáticos e utilitaristas, partindo

das possibilidades de construção de um sentido maior à mera existência do homem em

suas relações com a cultura. Nas considerações finais, este estudo destaca a importância

da produção de sentidos, da criação, da experiência estética, mediadas pelo ensino de

música, como atividades fundamentais para que se desenvolva o humano do humano,

contribuindo com a discussão e apontando caminhos para uma formação escolar

verdadeiramente promotora de desenvolvimento humano.

Palavras-chave: Perspectiva Histórico-Cultural. Ensino de Música. Funções

Psicológicas Superiores

Entende-se pela abordagem histórico-cultural, que para o desenvolvimento das funções

tipicamente humanas, são necessárias relações sociais significativas, melhor dizendo,

relações em que compartilho com o outro, construções de sentidos sobre as experiências

vivenciadas, com condições ricas de desenvolvimento. Também é típico do humano, ao

individualizar-se na cultura e apropriar-se de seus instrumentos, transformar o que vê,

ressignificar objetos e os próprios sentidos, criar coisas novas. Destacamos também a

importância de “discutir a natureza do social e a maneira como ele se torna constitutivo

de um ser cultural [...]” (PINO, 2000, p. 47) dentro de um processo educacional que

contemple a música como um importante instrumento para formação dos alunos. Ou

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seja, “[...] apontar a fundamental importância do trabalho pedagógico na criação de

condições e na abertura de novas formas de participação das crianças na cultura”

(SLMOLKA, 2009, p. 9). Assim, o interesse deste estudo é compreender o fazer

artístico na formação dos alunos e como a música contribui nesse processo, para isso,

algumas questões são levantadas: para quê ensinar música na escola? Qual a

necessidade desse conhecimento? Como se dão os processos de transformação do ser

humano na e pela atividade musical? Como a experiência estética musical

proporcionada aos alunos cria possibilidades de ressignificação de mundo?

Assim, buscamos explicitar aqui uma experiência de aprendizagem intermediada pelo

ensino de música com o objetivo de discutir como esse ensino pode favorecer a

formação humana dos sujeitos, no que se refere ao desenvolvimento das funções

superiores nos termos de Vigotski (1995). Formação essa que precisa vencer modos de

organização que vem sendo socialmente instituídos, pragmáticos e utilitaristas, partindo

das possibilidades de construção de um sentido maior à mera existência do homem em

suas relações de produção. Mesmo porque, este precisaria ser o papel da escola

enquanto espaço de formação e transformação social (SAVIANI, 2005).

Além de Vigotski (2009, 1999, 1998, 1995), também contribuem para este trabalho, os

estudos de Leontiev (1978, 1998) em suas discussões sobre as raízes sociais do

desenvolvimento humano quando as atividades sociais compartilhadas possibilitam

desenvolvimento cultural. Desenvolvimento que possibilita a construção da consciência

humana concretizada na e pela atividade, no uso de instrumentos materiais e simbólicos.

Trata-se de discussões as quais considera a formação humana partindo das experiências

na cultura, das relações sociais e do trabalho. Do arcabouço teórico disponibilizado por

Marx e, principalmente, pela interpretação feita por ele da consequência última da

organização social capitalista que aliena o trabalho humano, pelo rompimento entre

atividade do trabalho e o motivo do mesmo (rompimento entre trabalho braçal e

intelectual) se estabelecem os pressupostos de uma nova psicologia, a histórico-cultural.

Asbahr (2011) em sua tese de doutorado relata, a esse respeito, que:

Como decorrência do materialismo histórico dialético, Vigotski apropria-se

de uma lógica de conhecimento, a lógica dialética; uma concepção de

homem, baseada na historicidade e na materialidade; e uma concepção de

ciência, preocupada não em descrever a realidade, mas em explicá-la e

transformá-la. (2011, p. 25).

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Ainda para a mesma autora:

Sobre o carácter material do psiquismo humano, tal compreensão advém do

materialismo histórico segundo o qual os modos de produção da vida

material determinam o conjunto da vida social, política e espiritual. Nessa

perspectiva, as relações de produção são a base das relações sociais e

determinam a forma e o conteúdo da relação entre os homens. (idem, p. 26).

Dos pressupostos marxistas de Vigotski e Leontiev, surgem as categorias da consciência

e da atividade, que nos guia para enfatizar a importância da atividade com música no

desenvolvimento cognitivo e afetivo dos alunos. Apesar de Vigotski ter trabalhado com

a ideia de atividade na transformação da psique da criança, é Leontiev quem se

aprofunda nessa discussão. Para ele “Devemos [...] estudar como a estrutura da

consciência do homem se transforma com a estrutura da sua atividade” (LEONTIEV,

1978, p. 92). Ou seja, é pela atividade que os sujeitos produzem conhecimento,

objetivando, no mundo, suas necessidades advindas de suas relações com a cultura.

Para Leontiev (1998, p. 69) “Um ato ou ação é um processo cujo motivo não coincide

com seu objetivo, (isto é, com aquilo para o qual ele se dirige), mas reside na atividade

da qual faz parte.” Dessa forma, não é a ação, em si, que designa a atividade humana, a

ação é um meio pelo qual a atividade se concretiza. Antes, a pessoa, para realizar uma

atividade, deve ter consciência do processo como um todo para que suas ações

coincidam com seu objetivo final, sua necessidade. Ao final do processo a atividade

modifica o psiquismo do sujeito que, por sua vez, concretizou no mundo, suas

intenções, pensamentos, necessidades e mesmo o que imaginou... Construindo, assim,

sentidos para suas ações.

Pensando nesses pressupostos, procuramos neste texto, desvelar elementos teóricos em

suas relações com a prática pedagógica que possam ajudar a pensar nosso objeto de

estudo, o ensino da música e seu papel para o desenvolvimento dos sujeitos. Buscando

esclarecer também os processos de aprendizagem humana que se concretizam por

intermédio de atividades musicais. Dito de outra forma busca-se, por intermédio desta

teorização, caracterizar as especificidades do processo da atividade pedagógica com

música que explicite os modos de desenvolvimento psíquico dos alunos em idade

escolar por intermédio das possibilidades de desenvolvimento humano existentes nessa

atividade. Especificamente no caso da música, pela apropriação dos conhecimentos

historicamente produzidos nesta área como uma das formas de garantir a vivência

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estética dos alunos, pela qual também se condicionam possibilidades de ressignificações

de mundo.

A atividade criadora e seu papel no desenvolvimento

Vigotski define atividade criadora como toda realização humana que cria algo novo, “já

se trate de reflexos de algum objeto do mundo exterior, já de determinadas construções

do cérebro ou de sentimento, que vivem e se manifestam somente no próprio ser

humano” (VIGOTSKI, 1987, p. 07). Processo imprescindível para a transformação da

natureza em cultura e do homem em um ser social que se apropria a seu modo dos

sistemas simbólicos. E para que os sujeitos transformem a si e as suas condições de

existência, a atividade e a criação são processos imbricados e que podem, também, ser

mediados pelo ensino da música, uma vez que ela é veículo para objetivação de

emoções humanas pela atividade artística.

Sartre (1965, p. 81) explica que “a emoção não é um acidente, é um modo de existência

da consciência, uma das formas pela qual ela compreende o seu ser-no-mundo”.

Maheirie (2003, p. 150) comenta da seguinte forma esse processo: “A afetividade,

postura central no sujeito musical, traz uma dimensão que se objetiva no corpo, outra

que implica numa seleção de pensamentos, e uma terceira que se constitui em imagens,

sem as quais não constituiríamos um mundo “mágico””. Ou seja, o mundo das emoções

que por sua vez acaba por influenciar a imaginação na busca por novas objetivações que

se formam não de maneira dicotomizadas, mas dentro de um mesmo processo criativo.

Lembrando que, para Vigotski

[...] a atividade criadora da imaginação depende diretamente da riqueza e da

diversidade da experiência anterior da pessoa, porque essa experiência

constitui o material com que se criam as construções da fantasia. Quanto

mais rica a experiência da pessoa, mais material está disponível para a

imaginação dela. (2009, p. 22).

Nesses termos, podemos compreender que a aprendizagem musical não é uma dádiva

divina, nem uma inspiração a que muitos chamam de dom, no qual apenas alguns meros

indivíduos são eleitos para seu mérito. Atribuir tal conotação para o aprendizado da

música é o mesmo que dizer que a arte está pré-determinada no homem desde seu

embrião, e que o trabalho com música serve unicamente para despertar, ou fazer

desabrochar algo intrínseco. Pelo contrário, afirmamos que essas incorporações não são

disponibilizadas naturalmente aos sujeitos, mas desenvolvidas a partir do ensino e da

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aprendizagem, nesse caso, especificamente por intermédio da música. Esse

desenvolvimento acompanhará o indivíduo por toda a sua existência, se somando e

dando base para novas experiências, transformando a percepção que o indivíduo tem da

realidade. Transformação que também significa refinamento de funções, base para

operações intelectuais cada vez mais complexas, na dependência de tudo que for

oferecido aos sujeitos em termos de aprendizagem. Nas palavras do autor

A conclusão pedagógica que se pode chegar [...] consiste na afirmação da

necessidade de ampliar a experiência da criança, caso se queira criar bases

suficiente sólidas para a sua atividade de criação. Quanto mais a criança viu,

ouviu e vivenciou, mais ela sabe e assimilou; quanto maior a quantidade de

elementos da realidade de que ela dispõe em sua experiência – sendo demais

circunstâncias as mesmas -, mais significativa e produtiva será a atividade de

sua imaginação. (VIGOTSKI, 2009, p. 23).

É sempre a necessidade dos sujeitos de se adaptarem ao meio que o cerca que

impulsiona o desenvolvimento, dentre elas, a de se apropriar da linguagem e dos

sentidos culturalmente compartilhados atribuídos às experiências, condição que o

homem cria, mas, fundamentalmente, precisa ser “criada” nele. Mesmo porque, pela

educação e pelo ensino, a humanidade é desenvolvida nos sujeitos quando podem

desenvolver seus sistemas simbólicos.

Se a vida ao seu redor não o coloca diante de desafios, se as suas reações

comuns e hereditárias estão em equilíbrio com o mundo circundante, então

não haverá base alguma para a emergência da criação. O ser completamente

adaptado ao mundo nada desejaria, não teria nenhum anseio e, é claro, nada

poderia criar. Por isso, na base da criação há sempre uma inadaptação da qual

surgem necessidades, anseios e desejos. (VIGOTSKI, 2009, p.40).

Por esse caminho, o que pode ser desenvolvido na criança ao aprender a tocar um

instrumento, ou ao integrar-se em uma bandinha, por exemplo, é bastante rico quando

se pensa em termos de processos criativos e desenvolvimento. Por intermédio da música

é possível transformar sensações e percepções, refiná-las, para uma função superior,

aquela permeada pela cultura, possibilitando uma ação volitiva, pensada, planejada

mentalmente pelo sujeito. Além disso, há outros ganhos se pensarmos na questão da

integração social ao compartilhar atividades culturais.

Relacionar os escritos de Leontiev (1978) sobre a atividade e de Vigotski (2009) sobre a

atividade criadora, perante os propósitos deste texto, possibilita pensar que uma das

funções sociais que a música pode cumprir na escola é também o desenvolvimento da

atividade criadora enquanto função superior. Se a atividade criadora e a imaginação das

pessoas, processos fundantes das características que constituem o homem humano

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criador das suas próprias condições de existência, dependem de experiências que

garantam material para esse desenvolvimento, a música também pode proporcionar tais

experiências.

Inserida nas atividades das quais participa, a criança retira elementos para reelaborar,

imaginar e criar, conforme afirma Vigotski (2009), de modo a dar continuidade à

constante transformação do homem pelos conhecimentos historicamente construídos.

Assim, pode-se pensar a atividade musical como uma maneira de tornar concreto no

mundo, elementos da subjetividade humana, tornando objetivo o que imagino, crio,

sinto, percebo, me atenho... Funções que vão se complexificando a partir das atividades

que compartilho na cultura.

Dessa forma, também pela atividade musical posso refinar minhas funções mais

elementares, uma vez que a atividade musical permite movimentos entre o objetivo, o

subjetivo e o criado. Quando se trata de observar, mediar, desenvolver elementos não

necessariamente presentes no mundo concreto, mas que podem se objetivar, a arte é

uma possibilidade, visto que se trata de uma espécie de “técnica social do sentimento”

(VYGOTSKI, 1999, p. 3).

Em outras palavras, trata-se de uma atividade ao qual permite a

transformação/refinamento da linguagem simbólica que a criança constrói/produz/cria

sobre o real concreto. Esse refinamento da linguagem simbólica do sujeito é a base que

determinará seu desenvolvimento e o modo de se relacionar com o mundo.

A música como instrumento de desenvolvimento humano: atividade em sala de

aula.

Pelo aporte teórico que embasa este trabalho, as aulas de música passam a ser

concebidas como possibilidade de desenvolvimento humano, os modos de sua

constituição, a partir das interações nas quais o sujeito está inserido. Sendo assim, é na

relação com o outro e por intermédio das experiências culturais que se criam

possibilidades para que o homem desenvolva-se humano, se comportando e vivendo

como membro de uma sociedade, refletindo os modos de ser de sua cultura.

Por esse caminho, na tentativa de compreender a função social da música na escola, ou

seja, o papel da arte musical na formação dos alunos, uma experiência de sala de aula da

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professora/pesquisadora, primeira autora deste trabalho, com seus alunos da educação

infantil, é trazida para a an. Tal fato não esgota as possibilidades de maiores estudos

acerca desse assunto, pelo contrário, se fazem necessários que outros pesquisadores se

debrucem sobre ele de modo a justificar e a incentivar a permanência deste ensino como

direito do aluno a uma formação integralmente humana.

Deste modo, experiências vivenciadas na escola pela professora/pesquisadora, num

colégio da rede particular de ensino de uma cidade do interior de São Paulo, são pontos

de partidas para reflexões.

Na educação infantil, as atividades musicais são de caráter lúdico, envolvendo

processos que disponibilizam, aos alunos, o conhecimento do próprio corpo, das cores,

dos animais, das relações sociais, da sensibilidade auditiva, das diversidades sonoras

entre outros elementos.

Então, a partir destas práticas pedagógicas, analisamos uma atividade desenvolvida com

os alunos, com idades entre 4 e 5 anos, no intuito de, pelo referencial teórico assumido

aqui, explicitar possíveis processos que engendram aprendizagens e desenvolvimento.

A atividade com o véu

A questão do refinamento das funções mentais superiores ou tipicamente humanas, por

intermédio das atividades compartilhadas na cultura, no caso deste trabalho, as

atividades musicais, pode ser exemplificada na ocasião em que uma cítara (instrumento

de cordas) foi apresentada as crianças para que elas a tocassem, momento em que foi

percebida a dificuldade por parte delas de manuseá-la com delicadeza. Já havia sido

explicado, várias vezes, que aquele instrumento deveria ser tocado de forma delicada e,

no entanto, continuavam a tocar o instrumento de forma ríspida. Em outro momento, ao

invés de passar a cítara, a professora/pesquisadora pegou um tule azul dizendo para as

crianças que aquele tule era uma borboleta azul de faz de conta mágica, portanto, tudo o

que fizessem com aquele tule, aconteceria com uma borboleta de verdade que estava

voando lá fora da sala de aula.

Não podia amassar, do contrário quebraria a asa da borboleta e ela nunca mais poderia

voar. Também não poderia apertar, pois morreria sufocada entre as mãos. As mãos

tinham que estar macias e leves pra poder pegar na “borboleta”.

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Os alunos ficaram encantados e concentrados ao mesmo tempo. Começaram então,

orientados pela professora/pesquisadora, uma massagem nas mãos acompanhada de

uma música. Quando acabaram, um aluno foi convidado a pegar a “borboleta” para que

depois passasse para o aluno seguinte. Enquanto eles manuseavam a “borboleta” a

professora/pesquisadora tocava violão e cantava com eles a música da “Borboleta Azul”

para criar um ambiente tranquilo na aula e ao mesmo tempo fazer menção a “borboleta”

que tinham nas mãos.

Os alunos ficaram com tanto receio de machucar a “borboleta” que manipulavam o véu

com toda a delicadeza que eles podiam, como se o véu fosse, de fato, a própria

borboleta. Ao término da atividade, voltaram a pegar a cítara. Desta vez, bastou dizer

aos alunos que eles tinham que tocar a cítara com a mesma delicadeza que pegaram a

borboleta. Foi nítido o movimento de delicadeza pelos alunos na segunda vez que eles

tocaram a cítara.

Percebe-se então que “[...] o desenvolvimento da criança não é simplesmente um

processo espontâneo, linear e natural: é um trabalho de construção do homem sobre o

homem.” (SMOLKA, 2009, p. 10). Tal conhecimento, como já mencionado, não é

garantido geneticamente, mas, ensinado via processos educativos. Neste caso, a

atividade com o tule possibilitou elaborações, como a questão de “serem delicadas”,

novas posturas e ações vinculadas pelas significações propiciadas na aula. A

incorporação destas significações cumpriu um papel importante no modo como os

alunos passaram a se relacionar, não só com o instrumento musical, mas com o corpo,

emoções e sensações. Os alunos refinaram suas ações e aprenderam a manusear um

novo instrumento, ou seja, pela significação da ação (“delicadeza”) no plano simbólico,

movimentos mais rudimentares, mais espontâneos, foram transformados em

movimentos mais leves e conscientes, necessários ao manuseio do instrumento. Num

primeiro momento, se tratava de um movimento sem significado e reflexão, certamente,

transformado pelos sentidos em circulação, transformando também, o motivo da ação –

a cítara não pode ser tocada com rispidez, do contrário, não se ouve a beleza da

suavidade sonora que esse instrumento pode oferecer - transformando as ações das

crianças em movimentos mais intencionais e planejados, certamente com ganhos em

termos de desenvolvimento das funções superiores. Quando Vigotski faz menção a estes

processos, afirma que:

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Consisten en que el hombre, en la etapa superior de su desarrollo, llega a

dominar su propia conducta, subordina a su poder las propias reacciones. Lo

mismo que subordina las acciones de las fuerzas externas de la naturaleza,

subordina también los procesos de su propia conducta en base de las leyes

naturales de tal comportamiento. Como las leyes naturales del

comportamiento se basan en las leyes del estímulo-reacción, resulta

imposible dominar la reacción mientras no se domine el estímulo. El niño,

por consiguiente, domina su conducta siempre que domine el sistema de los

estímulos que es su llave. (VIGOTSKI, 1995).

Acreditamos que as incorporações desses elementos se estendem para além das aulas de

música, fazendo assim, parte das experiências que constroem o homem como sujeito

singular em sua trajetória de vida.

Aprender a tocar a cítara, como um instrumento que dá suporte ao trabalho pedagógico,

é uma possibilidade de desenvolver conhecimento, dentre outros oferecidos na escola.

Portanto, o trabalho pedagógico com a música proporciona o desenvolvimento de

potencialidades humanas a partir de suas especificidades, transformando as ações dos

sujeitos no mundo.

Lembrando que as experiências culturais e sociais são precursoras do desenvolvimento

dos aspectos humanos, o contrário, a ausência de experiências significativas limita o

desenvolvimento dos sujeitos. O desenvolvimento da imaginação, por exemplo, é tido

como resultado desse processo de experiência.

A atividade desenvolvida com as crianças, com o uso do véu e a mediação pedagógica,

puderam ir além das condições concretas da experiência para poder compreender algo

que é do plano simbólico, que não se pode ver e nem pegar, por exemplo, a

compreensão e a necessidade de ser delicado no manuseio com a cítara para que esse

instrumento produza seus sons.

Vigotski relaciona o desenvolvimento humano com as oportunidades que o sujeito tem

de viver experiências que lhe proporcione a ampliação e transformação de suas funções,

ou seja, experiências que garantam a construção da matéria prima para novas

aprendizagens.

Pela perspectiva histórico-cultural, podemos compreender que uma criança não poderá

desenvolver a sensibilidade musical, se essa não estabelecer um contato que a permita

assimilar elementos próprios dessa atividade que é historicamente construída pelos

homens. Para Leontiev (1978, p. 166), todo o desenvolvimento psíquico dos indivíduos

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é estabelecido pelas “relações particulares, específicas com o mundo que o cerca,

mundo feito de objectos e de fenómenos criados pelas gerações humanas anteriores”.

Por este caminho a arte vem a ser uma prática social que tem por finalidade tornar

objetivo o que se estabelece subjetivamente no ser humano pelas suas experiências na

cultura. Dito de outra maneira, a arte torna-se perceptível pelos campos sensoriais da

visão, da audição, objetivando sensações, emoções e criações por meio das condições

materiais que influenciaram o modo de ser e de compreender o mundo. Trata-se de uma

segunda via explicativa para questões que permeiam a existência do homem,

caminhando paralelamente com outras formas de objetivação humana – ciência,

religião, filosofia.

Todavia, assim como o próprio Vigotski (2009) esclarece, os desejos, os impulsos, não

criam nada, é preciso ainda a experiência na cultura, nas quais as necessidades

expressivas tomam formas materiais. É importante entender que a dimensão individual

subjetiva está totalmente atrelada à dimensão social objetiva, motor que possibilita a

criação.

É essa capacidade que o homem tem de modificar a natureza, e de se autorregular na e

pela atividade que diferencia o homem das outras espécies animais.

Considerações finais

Autores da abordagem histórico-cultural (PINO, 2OO5; SCHLINDWEIN, 2015) têm

enfatizado em seus escritos a importância da produção de sentidos, da criação, da

experiência estética, mediadas pelas experiências na cultura e também pela arte, como

atividades fundamentais para que se desenvolva o humano do humano. São estas

premissas que impulsionaram as reflexões aqui apresentadas, com o intuito de

contribuir com a discussão e apontar caminhos para uma formação escolar

verdadeiramente promotora de desenvolvimento humano e o papel da música nesta

formação.

Referências Bibliográficas

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