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REGINA GLÓRIA ANDRADE PIONEIRAS BRASILEIRAS DO CINEMA DE MULHER Só raramente um psicanalista se sente impelido a pesquisar o tema da estética, mesmo quando por estética se entende não simplesmente a teoria da beleza, mas as teorias do sentir. SIGMUND FREUD APRESENTAÇÃO O cinema de mulher tem ocupado o lugar de exceção na cinematografia mundial. As pesquisas realizadas nas universidades americanas e européias buscam um enfoque social e político para explicar esta atividade rara. Associadas aos estudos feministas os pesquisadores têm abordado a questão da direção, roteiro e misse en scéne realizado por mulheres como possuidor de uma linguagem própria do feminino além da linguagem característica do cinema. Nesses estudos são significativos os trabalhos de Françoise Audé sobre a condição de modelo do cinema de mulher e os de Laura Mulvey que interpreta a partir do referencial da psicanálise o papel da imagem da mulher A partir desta caracterização de um cinema de minoria. estaremos lidando não só com a qualidade excepcional desta categoria de filmes como também com a raridade de seus estudos e divulgação. Este artigo é resultado de uma pesquisa sobre o cinema de mulher no Brasil. Foram investigadas as cineastas mulheres que fizeram cinema de longa metragem entre 1946 - 1974, dentre elas Gilda de Abreu, Carla Civelli e Maria Basaglia . Algumas especificidades ocorrem com este tipo de atividade quando as mulheres a desempenham. Por um lado o registro realizado por pesquisas aponta um cinema único, especial e original , mas por outro lado raro , sem público e sem distribuição eficiente.

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REGINA GLÓRIA ANDRADE

PIONEIRAS BRASILEIRAS DO CINEMA DE MULHER

Só raramente um psicanalista se sente impelido a

pesquisar o tema da estética, mesmo quando por

estética se entende não simplesmente a teoria da

beleza, mas as teorias do sentir.

SIGMUND FREUD

APRESENTAÇÃO

O cinema de mulher tem ocupado o lugar de exceção na cinematografia

mundial. As pesquisas realizadas nas universidades americanas e

européias buscam um enfoque social e político para explicar esta

atividade rara. Associadas aos estudos feministas os pesquisadores têm

abordado a questão da direção, roteiro e misse en scéne realizado por

mulheres como possuidor de uma linguagem própria do feminino além

da linguagem característica do cinema. Nesses estudos são

significativos os trabalhos de Françoise Audé sobre a condição de

modelo do cinema de mulher e os de Laura Mulvey que interpreta a

partir do referencial da psicanálise o papel da imagem da mulher

A partir desta caracterização de um cinema de minoria. estaremos

lidando não só com a qualidade excepcional desta categoria de filmes

como também com a raridade de seus estudos e divulgação. Este artigo é

resultado de uma pesquisa sobre o cinema de mulher no Brasil. Foram

investigadas as cineastas mulheres que fizeram cinema de longa

metragem entre 1946 - 1974, dentre elas Gilda de Abreu, Carla Civelli e

Maria Basaglia . Algumas especificidades ocorrem com este tipo de

atividade quando as mulheres a desempenham. Por um lado o registro

realizado por pesquisas aponta um cinema único, especial e original ,

mas por outro lado raro , sem público e sem distribuição eficiente.

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No Brasil, não foi diferente do resto do mundo. A primeira diretora no

Brasil foi Cleo de Verberena , que em l930 dirigiu O mistério do

Domino Negro Para este investimento , conta a lenda, vendeu jóias e

propriedades e só produziu este trabalho. Segue Carmem Santos , atriz

do filme Limite de Mauro Peixoto que em l938 começou o trabalho do

filme Inconfidência Mineira que só veio as telas em l948.

Uma característica muito comum entre as diretoras mulher, no Brasil e

mesmo em outros países e´um processo que se parece a uma ascensão

onde primeiro se torna necessário ser atriz para depois dirigir um filme.

Mas tarde ainda na década de 40 surge a portuguesa CARMEM

SANTOS que levou dez anos realizando o filme a A inconfidência

Mineira cujos fragmentos encontram-se no Museu de Arte Moderna do

Rio de Janeiro. Casada com o empresário J.J.Seabra , que não gostava da

atividade da esposa, teve todos os seus filmes, literalmente queimados.

Melhor sorte tiveram GILDA DE ABREU (1945-1975) e CARLA

CIVELLI – (1959). Este trabalho discute a linguagem destas duas

cineastas e retoma alguns dados de suas biografias.

A PIONEIRA GILDA DE ABREU (1)

Gilda de Abreu dirigiu três filmes de longa metragem; O Ébrio em

l946, Pinguinho de Gente , l947 e Coração Materno l951. Escreveu

roteiros para os filmes Chico Viola não morreu , l955 e Mestiça , l973 e

dirigiu o curta metragem Canção de Amor , l977. Em relação as

mulheres cineastas brasileiras Gilda ocupa um lugar de destaque. Mas

não resta dúvida que o trabalho mas importante de Gilda de Abreu foi

seu primeiro filme O Ébrio, por um lado porque surgiu num momento

de intervalo do cinema brasileiro e por outro, porque aborda o tema do

alcoolismo associado ao adultério e a religião.

Em termos culturais o Brasil sofria influencia dos Estados Unidos.

Havia um interesse pelo cinema nunca antes experimentado. A

produção nacional era muito mal recebida pela critica que não só exigia

super produções como as americanas como também comparava os

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filmes entre si e consequentemente rebaixava qualquer produção

nacional.

Alheia ao sonho de Hollywood , e ainda impregnada pelo sucesso de

Bonequinha de Seda, (1933) onde foi atriz principal, Gilda propôs um

filme diferente iluminado por idéias românticas sobre o amor e sua

paixão pelo Brasil. Na época surgiam alguns protestos feministas que

revelavam a submissão em que viviam as mulheres.

GILDA DE ABREU nasceu em Paris, em l904, quando seu pai, médico,

completava seus estudos e sua mãe, aprimorava sua voz. Nicia Silva

Abreu foi a primeira cantora lírica brasileira a interpretar a Opera

Rigoletto no exterior e por causa disto batizou sua única filha de Gilda ,

nome da personagem principal da peça. Em l914 com o inicio da

Primeira Guerra Mundial a família voltou para o Brasil e se instalou no

Rio de Janeiro Gilda na ocasião já era uma garota de 10 anos. Deste

tempo ela se lembrava pouco, exceto dos grandes espetáculos que

assistiu. Guardou entretanto um leve sotaque e a pronuncia gutural do R

Por mais que trabalhasse sua dicção, percebia-se uma influencia antiga

de quem um dia dominou outra língua , que não o português.

Sua educação foi severa., internada em colégios na cidade de

Petropolis. Sua mãe porém não descuidou um minuto de sua educação e

ela própria ensinou-lhe os segredos do canto. Os saraus freqüentes na

cidade do Rio de Janeiro neste tempo dos anos 20 se concentravam na

casa dos Abreu , durante os períodos de férias escolares, nos meses de

verão para que Gilda pudesse aproveitar os espetáculos familiares. Nesta

época a cidade do Rio de Janeiro foi chamada por Araujo Porto Alegre ,

um cronista da ocasião de a cidade dos pianos

Rara era a casa onde não havia este

instrumento, tocado mais ou menos com

perfeição pelas moças e complemento

indispensável para uma educação esmerada

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As amigas de Gilda e antigas alunas de D. Nícia lembram

que além dos saraus das serenetas que a família oferecia os artistas

famosos de passagem pelo Rio de Janeiro eram recebidos por um grupo

seleto da sociedade carioca onde apresentavam seus repertórios inéditos.

Durante estas reuniões serviam-se bebidas importadas e deliciosos

quitutes brasileiros preparados por D. Júlia avó de Gilda..

Aos l4 anos , numa de sua vindas de Petropolis ao Rio,

Gilda conheceu Vicente Celestino que estava ensaiando uma opereta

com sua mãe. Como Gilda era considerada como uma criança não pode

nem entrar na sala para assistir ao ensaio mas a forte imagem desta cena

permaneceu para o resto de sua vida. Suas fantasias , fieis ao impacto

deste fragmento amoroso em torno da arte e da musica definiram o curso

de sua escolha. Quando já adulta, casada com Vicente, lembra-se de

bons momentos ao lado dos dois.

Em l926, aos 22 anos formou-se em canto lírico no

Conservatório de Música do Rio de Janeiro recebendo medalha de ouro

pelo seu brilhantismo. Em l928 subia ao palco do Teatro João Caetano

para ao lado do tenor Antonio Carrion e do barítono Ettore Miravalle,

interpretar Lucia de Lammermmoor de Donizetti. Gilda não permaneceu

muito tempo na opera clássica, logo descobriu peças mais ligeiras.

Enfrentou certa oposição familiar à sua inclinação laica para aspectos

mais populares do canto e da representação. Nesse momento encenou

uma revista nacional Ondas sonoras de Bastos Tigre.

Casaram-se , numa cerimonia religiosa e simples em casa dela e a noite

quando contracenavam a opereta Casa Branca da Serra de Freire Junior.

realizaram uma celebração no palco com o publico. A partir daí Vicente

Celestino e mais dois irmãos fundaram a Companhia Celestino e

excursionaram por todo o Brasil. Ao mesmo tempo, Vicente escrevia

músicas populares e Gilda de Abreu 2romances.Suas músicas ,

repertório dos cancioneiros populares são cantadas até hoje no Brasil em

recém gravações do artista Caetano Veloso. Coração Materno, Porta

Aberta, O Ebrio, dentre muitas , exaltam o sofrimento, a melancolia e a

tristeza. Os romances de Gilda eram leitura obrigatória para as jovens

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dos anos 50 e 60 no Brasil. Recomendados pelas religiosas recebiam o

apoio das famílias. Quase todos são de influencia brasileirismo , cujos

personagens são índios , negros , senhores colonizados, . Neles são

descritas em longas cenas , a natureza do Brasil.. Em Mestiça ,Alma de

Palhaço, Sorri e o mundo será teu onde é freqüente os desencontros de

amor. Senhoritas mal interpretadas por senhores de vida irregular,

senhoras traiçoeiras, se misturam com artistas incompreendidos, cegos,

paralíticos e anciões a beira da morte. Em todos há mensagens espirituais

e um código de moral vitoriana onde os perversos são castigados, e os

bons beneficiados com a graça divina ou dos homens. Os heróis são

sempre caracterizados como bons ou maus.

PRIMEIRO FILME DE MULHER : O ÈBRIO –

Principal filme de Gilda de Abreu.

SINOPSE.

Assim que o enredo do filme conta a história de um homem pobre , filho

de um grande fazendeiro arruinado. Os parentes lhe fecham as portas e

é acolhido pela igreja onde ajuda o padre nos trabalhos paroquiais.

Inicialmente revela-se um grande cantor num programa de rádio, fica

rico forma-se em medicina e casa-se com uma enfermeira. Neste

momento seus parentes se aproximam e a esposa é seduzida por um

primo Guilberto ( Vicente Celestino ). Ele só percebe a trama quando a

esposa foge. Desesperado deixa a casa, assiste um acidente fatal, troca

sua identidade e entrega-se ao alcoolismo. Vaga pela cidade e pelas

tavernas sempre cantando musicas até que um dia encontra a ex. esposa

na miséria. Ela lhe pede perdão mas não há reconciliação.

Era um primeiro momento de liberação feminina dentro do casamento

chamado de deprimente escravidão A imagem dupla da tragédia

motivada pelo adultério e pelo álcool apaga os efeitos malignos deste

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ultimo. Percebe-se claramente o artificio da cumplicidade entre o amor e

a morte que Rougemont assinalou quando disse que o amor feliz não

tem história (3) O Ébrio é a expressão dos mal entendidos causados

pela ambição e pela rivalidade entre as mulheres.

Num primeiro momento parece que o homem é o mais prejudicado na

trama da história. Porem a observação mais acurada apresenta piores

prejuízos as mulheres. Marieta tem todo seu dinheiro roubado pelo

amante que foge para os Estados Unidos e Lola é punida com a solidão.

Em relação à técnica de filmagem, mesmo para a época , o filme

apresenta uma linguagem bastante primária. As cenas são diretas e as

filmagens não apresentam perspectivas das imagens. Influenciada pela

cenografia do teatro, as cenas do filme procuram a expressão realista

guardando ao máximo um caráter verossímil. Cada cena e´cercada por

minúcias e detalhes delicados e cuidadosos. O figurino apesar de simples

obedece ao rigor dos detalhes que se apagam sobre a fita preto e branco.

•E natural que tenha havido certo desconforto por parte de Gilda porque

os papeis da mulher na sociedade eram predeterminados aos de mãe de

família e de esposa., de forma que seu trabalho como cineasta criou

uma inovação no campo do cinema. .Um dos atores Co- adjuvante deste

filme Anselmo Duarte, nos contou em entrevista , que freqüentemente

Gilda chorava durante as filmagens: ou porque os atores não

representavam as cenas como ela desejava , ou porque os técnicos não

faziam o que ela queria que fosse feito (4).

Assim como o casal que excursionou por lugares desconhecidos do país ,

O Ébrio teve o mesmo destino. Foram feitas na época 500 copias e

distribuídas em todo território nacional.. O que surpreende é que o

alcoolismo tal como é apresentado no filme , um mal incurável no estado

exagerado do etilismo, era pouco freqüente no Brasil. e não se registra

outro filme brasileiro com o mesmo tema. . Pode-se pensar que o

exagero do caso apresentado , tenha servido como um exemplo

preventivo a uma sociedade ainda sem parâmetros pré- definidos. Por

outro lado o álcool associado a punição do insucesso da vida , retira

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qualquer idéia associativa entre o álcool o prazer, a festa, a

convivialidade.

Esta ambivalência do uso e do abuso do álcool foi remarcada pelo

pesquisador Michel Mafffesoli no seu livro A Sombra de Dionisios a

propósito das imagens contraditórias sobre o Deus grego do álcool e das

festas.

Gilda de Abreu foi enterrada numa tarde fria do mês de junho na Capela

Real Grandeza, Cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro, em l979.

O mesmo lenço de gaze azul que em l968 cobriu o rosto de Vicente

Celestino, o maior cantor popular do Brasil nos anos 30 e 40, cobria

agora o de sua esposa Gilda de Abreu. Sobre seu corpo, apenas um tule

lilás. O rosto maquiado. Nas mãos, um ramo com quatro orquídeas, duas

brancas e duas rochas. Em torno delas , um terço cor de rosa de

madrepérola. Cerca de oitenta pessoas estavam presentes.

As manchetes dos principais jornais do país noticiavam o seu

falecimento. O Brasil perdia uma das artistas mais importantes da

primeira metade do século. Cantora lírica, atriz de teatro, de cinema,

romancista, diretora de filmes de longa e de curta metragem, Gilda foi

como disse a imprensa ‘ uma artista completa’ .

A SOMBRA DE UMA ESTRELA - CARLA CIVELLI

Nos arquivos públicos de cinema do Rio de Janeiro, no Museu de

Arte Moderna, as referências sobre Carla Civelli são poucas. Seu único

filme, É um caso de polícia, realizado em 1959, cujo roteiro e

argumento é de Dias Gomes, tem uma só cópia na Cinemateca de São

Paulo. Este filme reveste-se de importância, sobretudo porque somente

em 1974, a cinematografia feminina terá outro título, no Brasil, O nome

da Rosa, de Vanja Orico. Carla Civelli começou como montadora e

continuista.

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Carla Civelli nasceu a 2 de fevereiro de 1920 em Milão, Itália. É irmã

de Mario civelli, nascido em Roma em 1922, que imigra para o Brasil e

vai ter um papel importante no cinema em São Paulo. Entre quatorze e

quinze anos de idade, por volta de 1936, Mário Civelli abandona os

estudos e participa de algumas filmagens em Roma, o que foi um

escândalo para a tradicional família burguesa. Por interferência do avô,

recebe permissão para trabalhar em cinema. Carla muito unida ao irmão

mais moço, aproveitou a autorização e entra para o cinema, também.

Carla formou-se no Sacre-Coeur de Roma, conhecido colégio

tradicional religioso, estudou música e harpa, chegando a ser concertista

por volta de seus dezoito anos. Assim como o irmão, sempre foi

irrequieta, indócil buscando uma vida autônoma e independente da

família.

Segundo o depoimento de Mário Civelli, seu avô, patriarca italiano do

princípio do século, autorizou os netos a um vôo para a vanguarda

mundial. Um fato que pesou em sua decisão foi que os irmãos Civelli

foram trabalhar com o famoso Mario Serandei, conhecido pelo apelido

de "padre", porque andava de terno preto, sua cor preferida. Enquanto

Mário trabalhava em filmagens, cuidando da fotografia, inclusive em

filmes de Visconti, Carla ficou nos estúdios trabalhando como

montadora de grandes filmes italianos da época.

Às vésperas da guerra, a Itália está dilacerada entre os movimentos

fascistas. O pai de Carla e Mário, General Civelli, fazia parte do grupo

dos conservadores que apoiam o Partido Nacional Fascista, e chega a

ser um dez do Grande Conselho de Milão.

Foi a partir da radicalização do governo, quando ficou evidente o

funcionamento de verdadeira e foi abolida a liberdade de imprensa, que

o General Civelli, revoltado, demite-se do Conselho dos Grandes. Em

exílio voluntário, o General morreu, três anos depois.

Neste conturbado período italiano, os irmãos Civelli, foram trabalhar

junto às tropas aliadas na 5ª Armada Americana. Ingressaram no

Psychology-Work Departement, no setor de filmagens de eventos da

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guerra. O diretor desta seção era Marcello Pagliero, conhecido cineasta,

ator principal do filme Roma cidade aberta, famoso por sua

participação não só neste como em vários outros filmes italianos de fins

da década de trinta. Mário trabalhou como assistente de produção e

Carla, como assistente de montagem e continuísta.

O trabalho os envolveu nos horrores da guerra. Percorreram campos

de batalha e hospitais e a tarefa resumiu-se mais a um trabalho de

correspondente de guerra do que propriamente de cineastas. Filmaram

cadáveres empilhados, verdadeiros depósitos de horrores. Mário relata

que eles ficaram horas a fio esperando que os ratos viessem comer os

cadáveres para fazer as filmagens documentais da guerra. Os lugares

eram fétidos, escuros, sem iluminação natural, de difícil acesso.

Terminada a guerra, Carla continuou trabalhando em Roma com

Marcello Pagliero e Mário Serandei, com quem se iniciou na arte da

montagem. O trabalho era rotineiro e pouco motivador. Nesta ocasião,

Mário foi convidado para trabalhar como assistente de direção de Dino

de Laurentis, para um filme que seria realizado no Brasil. Aceitou o

convite, mudou-se para São Paulo por volta de 1946.

Os irmãos continuaram se correspondendo. Numa dessas cartas

Carla perguntou a Mário porque ele não a convidava para vir morar no

Brasil. Mário ficou feliz com o desejo da irmã, e em 1947 Carla chegou

a São Paulo.

Apesar de Carla ter trabalhado como montadora de filmes

italianos durante a década de 30, consulta feita à Cinemateca de Roma

mostrou que seu nome não consta de nenhum registro.

VIVÊNCIAS NO BRASIL

Por ocasião da chegada de Carla ao Brasil, Mário que havia

assumido a direção das filmagens de Dino de Laurentis, aproveitou a

aportunidade para contrata-la e os dois passaram a trabalhar juntos. Ele

foi para o interior de São Paulo e deixou a responsabilidade para Carla.

Mais ou menos na mesma ocasião chegou a São Paulo a companhia

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Piccolo Teatro di Milano, cujo diretor era Ruggero Jacobbi. Os dois se

apaixonaram e se casaram um ano depois. Carla era prática e resolvia

todos os assuntos de Ruggero. Ele, porém, era mulherengo, estava

sempre ligado a outras mulheres. Este era um ponto constante de conflito

entre os dois. Foi a partir da relação com Ruggero que Carla passou a

trabalhar em teatro. Ela trabalhava fazendo roteiros, escrevendo peças,

controlando a direção: uma espécie de assistente de teatro.

Para não fugir à característica dos pioneiros, Ruggero Jacobbi,

não rejeitava trabalho. Sempre dedicado ao teatro, emprestou o seu know

how ao cinema. Chegou a realizar alguns filmes para a Vera Cruz com a

ajuda de Carla. A característica principal de Carla Civelli era a

discreção. Viveu em São Paulo no anonimato. Separa-se de Ruggero,

que muda-se para Porto Alegre como professor de teatro e depois retorna

para a Itália.

Em princípios dos anos cinquenta, Carla trabalhou como

assistente de marcação com as atrizes de teatro Cacilda Becker e Dercy

Gonçalves. Participou também de trabalhos de televisão com elas,

preparando adaptações, iluminações e cenários.

A partir de sua experiência com televisão, Carla recebeu uma

proposta de trabalho para morar no Rio de Janeiro onde conheceu seu

segundo marido, Giussepe Baldacconi. Com o apoio do marido resolveu

fazer seu primeiro e único filme: É um caso de polícia. Baldacconi foi o

responsável pela produção e montagem do filme. Para escrever o roteiro

Carla convidou Dias Gomes. Nesta ocasião, Carla trabalhava como

técnica de dublagens. Foi neste período também que consolidou a

relação com Baldacconi. Passaram a morar juntos, mas não se casaram.

Carla adaptou-se bem ao Brasil pois além de não voltar mais para a

Itália só falava português e não gostava de conversar em italiano como

Mário. No final de 1979 foi hospitalizada no Rio de Janeiro e seu estado

foi piorando pois sofria de leucemia. Carla faleceu no final de 1979.

O FILME DE CARLA CIVELLI

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É um caso de polícia foi o único filme dirigido por Carla Civelli. Este

fato é comum no cinema de mulher. Na Europa, (5) em pesquisa

realizada, verifiquei que inúmeras mulheres fizeram um filme só durante

toda sua vida. São muito poucas as referências ao filme de Carla Civelli.

No trabalho As Musas da Matinê (6) de Elice Munerato e Maria Helena

Dercy de Oliveira encontramos referências sobre o filme de Carla

Civelli e a seguinte sinopse:

SINOPSE:

Belinha ( Glauce Rocha) é uma jovem aficionada por crimes.

Durante um almoço num restaurante da zona sul carioca tem sua

atenção despertada pela conversa de dois desconhecidos. Ambos

discutem sobre a melhor maneira de matar uma mulher, de nome

Suzana. Com o intuito de segui-los, Belinha inventa vários pretextos

para livrar-se da presença do noivo Godofredo ( Sebastião

Vasconcelos).

Quando os dois desconhecidos saem do restaurante, ela os segue no

carro de Godofredo para descobrir aonde vão. De volta à casa,

convence o noivo a fingir que é um dos homens que havia seguido para,

por telefone, demover o outro da idéia de matar Suzana. Godofredo

acredita finalmente na história de Belinha mas tenta dissuadí-la da idéia

de impedir o crime. Mas, Belinha, por conta própria, resolve visitar um

dos desconhecidos. Ao chegar ela é confundida com outra moça.

Quando esta outra moça chega, Belinha descobre que seu nome é

Suzana e relata o plano que visa assasiná-la. Godofredo sai atrás da

noiva, e Vilma,( Mara Di Carlo) irmã de Belinha, preocupada com os

acontecimentos, chama a polícia. Esta invade a casa e leva todos para a

delegacia, onde se esclarece o episódio. Luiz além de ser um grande

escritor, estivera apenas discutindo com um amigo um capítulo de sua

novela de rádio.

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MEMÓRIA FEMININA

O filme apresenta uma apologia do imaginário feminino, pois

além da personagem principal ser uma mulher, há também uma

exaltação de traços característicos da personalidade feminina, como a

curiosidade, a investigação, a fantasia e a imaginação, no sentido

subjetivo do pensamento. Não há registro em artigos da imprensa da

época sobre este trabalho de Carla e só recentemente o Museu de Arte

Moderna do Rio de Janeiro recuperou a única cópia existente nos

arquivos da cinemateca. Esta trama é desenvolvida através de cenas

cômicas, outras insólitas, outras apresentam um lugar comum. Ao redor

da personagem principal do filme Belinha, articulam-se as cenas.

Perseguições, pessoas seguidas, presas e policiais envolvidos em busca

da solução de um crime imaginário.

Durante muito tempo o cinema insistiu em reproduzir cenas fixas. A

cineasta que precede Carla Civelli, Gilda de Abreu, apesar de todo o

sucesso de seu filme O Ébrio, optou por este modelo de cenas fixas

quase que fotográficas tal é a ausência de movimento de câmera. Esta

forma de filmar foi inspirada nos filmes pioneiros que já nas décadas de

40 e de 50 não faziam mais sucesso em Hollywood. Com o avanço da

tecnologia e da imaginação dos cineastas a imagem cinematográfica

adquiriu um movimento próximo da realidade. As câmeras adquiriram

uma condição quase biológica identificada ao olho humano que capta

imagens superpostas e ágeis ao mesmo tempo. Além deste movimento

natural a câmera ousou ir além das possibilidades do olhar, inovando a

transparência e até mesmo a simultaneidade. Um fato importante neste

desenvolvimento foi a construção de personagens. Ganhando forma e

conteúdo, proliferaram a expressão subjetiva, o comportamento

emocional e a problemática psicológica. Este fato aproximou os

personagens do público e os tornou mais semelhantes às pessoas do

mundo cotidiano.

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Assim, a imagem evoluiu da condição puramente intencional para

adquirir um valor próprio, caracterizado pelo perfil psicológico de seus

personagens. A verdade cinematográfica passa então a oferecer a

condição de ficção palpável através da imaginação e da identificação.

Sua condição abstrata, absoluta e tirânica é modificada e elaborada. Este

ponto de deslocamento abre espaço para conceitos psicanalíticos, tais

como o sonho, ou procedimentos, como a interpretação, que passam a

fazer parte do estudo do cinema. Nos estudos do inconsciente e na

natureza da subjetividade do homem está o reforço mais palpável para

as fundamentações teóricas do estudo sobre a arte. Provindo do trabalho

clínico observado através do relato verbal dos pacientes, o inconsciente é

descrito por Freud como um sistema onde as palavras se encontram

num complicado processo associativo no qual se reúnem elementos de

origem visual, acústica e cenestésica.

Dessa forma, faz parte do inconsciente uma sucessão de

inscrições e signos que se formam em dois sentidos: o latente e o

manifesto. Correspondem aos conteúdos latentes os conflitos defensivos,

idéias recalcadas, pulsões e desejos. Este material está sob a garantia de

forças que atuam sobre ele. Ao retorno deste material contido pela

repressão, Freud deu o nome de conteúdo manifesto.

Assim é que os atos do cotidiano são todos provenientes deste jogo de

liberações e de equilíbrio dos recalques. Dentre todos os atos psíquicos,

aqueles considerados como artísticos são os que mais inquietam os

psicanalistas, desde Freud. Nas bases da constituicão do sujeito estão os

elementos de origem visual. O olhar é considerado nos estudos

psicanalíticos ,sobretudo pelo teórico francês Jacques Lacan, em sua

função escópica, dando origem a uma das quatro pulsões do

inconsciente. Todas as pulsões estão referenciadas ao campo do Outro,

conceito inovador que fundamenta as relações familiares (vivência

edípica) estruturantes do sujeito, bem como articula a diferença sexual, o

gozo e propicia a dialética intersubjetiva, onde o contexto sócio-cultural

é valorizado, favorecendo a extensão dos conceitos psicanalíticos.

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O filme de Carla Civelli tenta se aproximar o mais possível de cenas

da realidade, no sentido de que a narrativa provém de dados imaginários

que devem, no decorrer da estória, ser comprovados. O que fica muito

claro é o rompimento de ilusão que Carla Civelli constrói. A

objetividade da câmera interfere sobre os fatos imaginários e modifica a

realidade. Por vezes tem-se a impressão de que a diretora tinha como

objetivo principal a captação de imagens reais. Mas, esta aproximação

exagerada da realidade também a transfigura, afasta e provoca imagens

distorcidas. A conseqüência é que seu filme não pode nunca se

aproximar do documentário por causa dos elementos imaginários

jogados na trama da história e do próprio movimento que o cinema lhe

oferece.

É então esta impossibilidade de objetividade da câmera na apreensão

da realidade que nos oferece a simulação dos fatos. Essa condição

favorece um mundo fictício, um verdadeiro simulacro da realidade.

Nesse sentido é que Baudrillard (7) argumenta que há uma

impossibilidade de se encontrar o absoluto. Isto porque a cena da ilusão

e a cena da realidade se confundem e provocam uma condição

impossível de isolar-se ambas. Ao criticar a sociedade de nosso tempo

Baudrillard destaca um comportamento histérico em busca da produção

e da reprodução da realidade Assim em toda parte o hiperrealismo da

simulação se traduz pela alucinante semelhança do próprio real, o que

anula o charme e a energia das representações.

Porém, o que oferece um caráter único e sincrônico ao filme é a

capacidade da diretora de reproduzir imagens impressas em sua

subjetividade. Neste sentido, a reprodução ocorrida no filme tem valor

de transcrição, operada pela câmera a partir da transmissão das cadeias

significantes do artista e suas condições nas cadeias do real, simbólico e

imaginário.

LINGUAGEM NEO-REALISTA E EXISTENCIALISTA.

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Pode-se dizer que É um caso de polícia gira em torno de uma só

personagem que tem a capacidade de desenvolver toda a história ao

redor de si própria. Sua atuação é tão mobilizante que o espectador, ao

sair do filme, grava o conflito e o drama daquela mulher que quer evitar

um assassinato. Por outro lado, cenas hilárias provocam uma sensação de

bem estar, de comédia e de leveza na trama. Por causa destes traços,

pode-se dizer que o filme é inteligente.

No caso do cinema, a passividade especular e a sugestionabilidade

onírica facilitam a simbiose entre o espectador e as personagens do

filme. A partir de enigmas somos seduzidos ou rejeitamos as

personagens em busca de respostas a perguntas que vamos

desenvolvendo no decorrer da trama . São questões tais como: quem sou

eu, o que me propõem e de que forma me seduzem estes personagens.

Quando lemos um livro, vemos um filme, há um processo imperceptível

de captura do leitor e do espectador.

Ultimamente, com a invasão do vídeo-cassete, esta observação

ganha uma relatividade para com o tempo do próprio espectador. Dentro

de sua casa é possível desenvolver o ritmo desejado para a apreensão de

um filme. Sem maiores investigações, ouso dizer que se duplica o

processo de identificação com as personagens de um filme. Manejado ao

nosso gosto, com possibilidade de paradas, de retrocesso e de

remanejamentos, o filme passa a ser um produto fácil de ser consumido.

Não fosse assim, não se multiplicariam os investimentos em vídeo-

cassete como se observa nos últimos anos.

O efeito do cinema não é apenas identificatório, mas também

provocador de uma certa alienação, a partir da qual o sujeito, isolado de

si mesmo é capturado pela imagem. Este fenômeno provoca uma sutura

uma pseudo identificação, incidindo no olhar uma dialética entre a

precipitação e o instante de ver. Neste instante, entre uma ação e outra,

ocorre o fascínio. Esta paralisação artificial, ao suspender o gesto, tem

uma função anti-vida, lugar da morte, que é recuperada pela separação

que a imagem provoca. Neste espaço, a personagem cinematográfica

vive. Este fascínio reproduz a vida em cuja sensação de irrealidade e de

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morte o cinema se funda. Impressa na fita de celulóide estão as paixões.

Essas sensações se refletem no fato de que, no cinema, a personagem é

encarnada na pessoa do ator. Seu registro é feito pelas imagens que

captam a voz, daí as restrições às dublagens, os gestos, as expressões e o

corpo do ator. Seu papel - aquilo que ele representa - pode ser

determinado pelo diretor, mas sua pessoa, o que passa para a tela,

expressão de seu carisma, já está pré-determinado. Um fator decisivo

neste encontro é que a personagem expressa pelo ator revela um artista,

um outro com espaço próprio. Daí também a preferência de certos

diretores pela exclusividade de certos atores. A personagem expressa

pelo ator é captada pela câmera, onde as interferências das experiências

de ambos vão favorecer um processo de internalização das imagens

pessoais do ator. Todo este movimento se encontra sob as condições do

tempo em que a personagem é criada e do tempo em que é filmada.

Pode-se dizer que a inquietação de Belinha, personagem do filme É

um Caso de Polícia, frente às injunções do mundo moderno, é ingênua.

Dificilmente hoje alguém concentraria sua atenção sob a suspeita de um

assassinato escutado através de uma conversa de bar. Ao contrário: as

complicações com a polícia, a perda de tempo neste mundo agitado

desencorajaria até mais profissional dos detetives. No mínimo, a trama

levaria o espectador a maiores tensões, como no filme Janela Indiscreta

de Hitchcock.

Também é muito provável que a experiência teatral que Carla obteve

já no Brasil, por volta do início da década de 50 tenha determinado uma

linguagem menos romântica e mais existencialista. Seguramente, as

influências de época, o desejo de se diferenciar das chanchadas também

contribuiu para a criação de uma personagem mais prática do que

sonhadora, mais realista do que romântica. A personalidade de Carla

Civelli, prática, objetiva e pouco sonhadora, atuando como uma projeção

foi também decisiva para a construção de Belinha.

Porém, a tendência mais marcante dessa travessia entre os

anos 40 e 50 foi, sem dúvida, o existencialismo. Representado pelo

filósofo francês Jean-Paul Sartre, esta corrente foi influenciada por

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alguns representantes do pensamento alemão e surgiu com todo o seu

vigor após a 2ª Guerra Mundial. Segundo Sartre, a condição humana não

dependeria da natureza, mas sim da situação histórica. O homem seria

condenado a decidir os rumos de sua vida. A existência de um homem

ganharia sentido na medida em que ele levasse em conta os outros

homens e agisse para a construção de um mundo melhor.

Paralelamente, o existencialismo procurava desvendar o mundo

interior do ser humano, a angústia, a solidão, o sentimento de revolta. As

relações formais e institucionais, como o casamento ou o trabalho fixo e

garantido, eram um desafio para o pensamento do momento,

representado sobretudo por intelectuais e artistas.

Nas décadas de 1940 e de 1950 havia a idéia prevalecente de que a

realização pessoal da mulher estava condicionada ao sucesso no

casamento, à perfeição na maternidade e sobretudo ao atrelamento da

mulher ao projeto do homem; de preferência, o marido. Preconceitos

contra a sexualidade fora do casamento eram reforçados pelo apego à

virgindade cujo valor complicou muitas relações entre os casais. A

virgindade até o casamento era exigida pelos homens e pelas mulheres.

Os abortos eram praticados da maneira mais clandestina possível. Os

métodos contraceptivos clássicos não facilitavam uma vida sexual livre.

Este ideário vigente apenas favorecia a submissão das mulheres e o

poder soberano dos homens. Sem que houvesse maiores reivindicações,

as mulheres conviviam passivamente com todas estas limitações

fortalecendo as posições machistas de seus companheiros. O que

surpreende no filme de Carla Civelli é que, apesar de ser uma mulher

desta época, influenciada por todas as opressões, a personagem Belinha é

capaz de ver atendidos os seus desejos. Pode ser que a questão levantada

por ela, tal como um provável crime, provoque uma situação social tão

mobilizante que os homens se sintam envolvidos pela questão.

Foi por volta de 43 que Carla, junto com seu irmão viveu as primeiras

experiências de cinema. A maioria delas estava voltada para a retratação

da realidade nua e crua. Ao passar horas a fio esperando uma boa cena,

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aquelas que mais chocariam ao mundo, mostrando os horrores da guerra,

seguramente ambos estavam influenciados pelo realismo. Pode-se até

dizer que foram estes comportamentos e estas exigências do cinema

documentário que favoreceram uma linguagem neo-realista que se

observa no trabalho de Carla Civelli.

Parecia, pelo menos no cinema de Gilda de Abreu, que o trabalho

para as mulheres funcionava como um período em que suas vidas não

estavam protegidas por um homem. Outro tipo muito comum de posição

feminina durante estas décadas era a situação das viúvas. Preenchendo o

imaginário masculino de fantasias de desproteção e de desamparo, a

viúva representava o papel mais dependente da mulher. Um dia haviam

tido todo o amparo de homens que as deixaram por causa da morte e não

por causa de problemas emocionais, como é a fantasia masculina comum

dos homens de décadas posteriores acerca das mulheres separadas,

abandonadas ou divorciadas.

Pode-se dizer que o filme É um caso de polícia é um filme simples.

Deve ter realizado o ideal de um dia fazer um filme, apresentar uma

estória, tramar um conto ou simplesmente lidar com a imagem, uma vez

que Carla dedicou sua vida a esta tarefa. Mas também é significativo que

tenha criado uma situação policial, de mistério e de defesa de uma

mulher que imaginariamente seria assassinada por dois homens.

Se a linguagem feminina é provocada pela sedução, condição

essencial da escritura da mulher, Carla Civelli concentra-se num

percurso que comprova esta hipótese. A ressalva sobre sexualidade e

sensualidade é elaborada sob a forma de constantes demandas. Mas se há

mistérios no filme, desvendados no próprio decorrer da história, em sua

vida estes mistérios permanecem. A inexistência de documentação sobre

sua obra, a ausência de fotografias nos faz pensar a respeito. Se, por um

lado, a produção artística da mulher é pouco valorizada, por outro lado a

pregnância narcísica está ausente no trabalho de Carla.

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Os fragmentos reconstituídos pela pesquisa ficam esgotados no baú

desaparecido, na única entrevista concedida por seu irmão Mario Civelli,

no único filme realizado e na ausência do viúvo Giussepe Baldacconi.

NOTAS

(1) Este artigo é o resumo de uma pesquisa patrocinada pelo Conselho

Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico realizada em

l991.( CNPq ).Consta de uma síntese biográfica e do estudo da produção

cinematográfica de Gilda de Abreu para a qual foram reproduzidas 15

fotografias elaboradas através de antigos artigos de jornais e de revistas

dos anos 30, 40 e 50, assim como várias entrevistas concedidas a autora.

(2) Aráujo Porto Alegre , foi um dos maiores cronistas da cidade do Rio

de Janeiro durante os anos 30-50.

(3) Denis ROUGEMONT O amor e o ocidente Rio de Janeiro, Editora

Guanabara, l988, p.20

(4) Entrevista concedida a autora por Anselmo DUARTE ,São Paulo,

l989.Ator de cinema e de teatro conhecido mundialmente como o diretor

do filme Pagador de Promessas, Vencedor do Primeiro Premio de

Cannes em l952. DUARTE estreou no cinema como figurante de O

Ebrio.

(5) Durante o Estágio de Pós Doutorado realizei uma extensa pesquisa

sobre o cinema de mulher na Europa desde 1889 até os anos 60.

(6) As Musas da Matinê realizado por MUNERATO, E. e OLIVEIRA,

M. H. (1982) era, na ocasião a única pesquisa publicada até hoje sobre o

cinema de mulher no Brasil

(7) BAUDRILLARD, J. (1981), p. 41

BIBLIOGRAFIA

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ARQUIVOS CONSULTADOS

- Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro

- Cinemateca de São Paulo

- Fundação do Cinema Brasileiro (Rio de Janeiro)

- Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (Cinemateca)

ENTREVISTAS

CIVELLI, Mário. Entrevista concedida em 18 de outubro de 1990,

São Paulo (gravada)

REVISTAS

NOSSO SÉCULO, Rio de Janeiro (53/54/60/63) 1980-1982.

FREUD, S. (1919), p. 275.