regimes de sentido e interação na construção do corpo ... · do corpo na mídia semanal,...

12
estudos semióticos issn 1980-4016 semestral vol. 7, n o 1 p. 85–96 junho de 2011 www.fflch.usp.br/dl/semiotica/es Regimes de sentido e interação na construção do corpo na mídia semanal Simone Bueno da Silva * Resumo: O artigo propõe analisar a produção de sentido nas formas de presentificação do corpo na mídia de informação semanal, tratando o universo de discurso midiático como lócus de interação social. Para isso, fundamenta-se nos estudos da semiótica discursiva desenvolvida por Algirdas Julien Greimas e seus colaboradores, detendo-se mais especificamente na sociossemiótica de Eric Landowski, na semiótica plástica de Jean-Marie Floch e nas pesquisas sobre moda e identidade, de Ana Cláudia de Oliveira. Toma como objeto de estudo as capas das principais representações do segmento de informação semanal no mercado editorial brasileiro – as revistas Veja, da editora Abril, Época, da editora Globo e Istoé, da editora Três – veiculadas no período compreendido entre 2000 e 2006. A observação das reiterações temáticas e figurativas, guiadas por elementos invariantes e variantes, conduziu-nos à percepção de duas grandes isotopias – saúde e esteticidade – em torno das quais se organizam as construções discursivas analisadas. A partir daí, observamos a construção de simulacros de corporeidades que se referem a um modo de presença predominantemente subjetivo e um modo de presença predominantemente objetivo. Baseados nesses regimes de presença, propomos uma tipologia dos modos de encenação do corpo relacionada aos diferentes regimes de sentido e interação. A análise dos mecanismos de enunciação em correlação com os regimes de sentido e interação levou-nos à observação da maneira como essa mídia opera na comunicação de informações sobre o corpo promovendo valores subjacentes às construções identitárias do sujeito da atualidade. Palavras-chave: corpo, construção identitária, regimes de sentido e interação, semiótica discursiva, mídia impressa 1. O corpo em foco Tomando a noção de “corpo” como entidade, indissocia- velmente, objetiva e subjetiva, condenada a se perfazer ao longo de sua narrativa biográfica e existencial, este trabalho centra-se nos modos de presentificação do corpo na mídia revista de informação semanal, desta- cando aquelas de maior tiragem e circulação no cenário nacional – as revistas Veja, Época e Istoé, veiculadas no limiar do século XXI, entre os anos 2000-2006 1 . Centrado nas relações comunicacionais, tratadas pela sua sintaxe interacional, nosso trabalho será orientado pelos estudos da sociossemiótica de Eric Landowski, bem como pelas pesquisas em torno do universo de discurso da moda e construção identitária de Ana Claudia de Oliveira e a semiótica plástica de Jean-Marie Floch, visando observar de que maneira as imagens de corporeidades, presentificadas nas capas da mídia semanal, comunicam regimes corporais do sujeito da atualidade. Nessa perspectiva, importa veri- ficar como essas imagens, apresentadas como “coisas a serem vistas”, (Landowski, 2002, p. 128) operam na orientação do olhar bem como do sentir do sujeito enunciatário, a partir de experiências corporais par- tilhadas no social; em outras palavras, trata-se de buscar analisar como se processam os modos de in- teração entre enunciador e enunciatário do discurso midiático e como atuam na formação de regimes de sentido que deixam entrever modos de presença do sujeito contemporâneo. O encontro do leitor com o objeto “capa de revista” será tratado como uma relação comunicativa em que o fazer dos efeitos de sentido é pautado por uma semió- tica da interação, na qual as figuras estampadas nas capas, nas corporeidades dadas a ver, ocupam, figura- tivamente, o lugar de um Outro, atualizando relações de identificação e alteridade envolvidas na construção da percepção corporal e identitária do sujeito enuncia- tário. A aposta de entrever construções identitárias nas configurações corpóreas a partir das capas e matérias centrais do segmento mídia de informação semanal * Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Endereço para correspondência: [email protected] . 1 Segundo dados do IVC (Instituto Verificador de Circulação), maio de 2010.

Upload: doantuyen

Post on 13-Nov-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Regimes de sentido e interação na construção do corpo ... · do corpo na mídia semanal, verificamos a reiteração do tema “saúde” operando como um traço invariante, aparecendo

estudos semióticos

issn 1980-4016

semestral

vol. 7, no 1

p. 85 –96junho de 2011

www.fflch.usp.br/dl/semiotica/es

Regimes de sentido e interação na construção do corpo na mídia semanal

Simone Bueno da Silva∗

Resumo: O artigo propõe analisar a produção de sentido nas formas de presentificação do corpo na mídiade informação semanal, tratando o universo de discurso midiático como lócus de interação social. Paraisso, fundamenta-se nos estudos da semiótica discursiva desenvolvida por Algirdas Julien Greimas e seuscolaboradores, detendo-se mais especificamente na sociossemiótica de Eric Landowski, na semiótica plástica deJean-Marie Floch e nas pesquisas sobre moda e identidade, de Ana Cláudia de Oliveira. Toma como objetode estudo as capas das principais representações do segmento de informação semanal no mercado editorialbrasileiro – as revistas Veja, da editora Abril, Época, da editora Globo e Istoé, da editora Três – veiculadas noperíodo compreendido entre 2000 e 2006. A observação das reiterações temáticas e figurativas, guiadas porelementos invariantes e variantes, conduziu-nos à percepção de duas grandes isotopias – saúde e esteticidade –em torno das quais se organizam as construções discursivas analisadas. A partir daí, observamos a construçãode simulacros de corporeidades que se referem a um modo de presença predominantemente subjetivo e ummodo de presença predominantemente objetivo. Baseados nesses regimes de presença, propomos uma tipologiados modos de encenação do corpo relacionada aos diferentes regimes de sentido e interação. A análise dosmecanismos de enunciação em correlação com os regimes de sentido e interação levou-nos à observação damaneira como essa mídia opera na comunicação de informações sobre o corpo promovendo valores subjacentesàs construções identitárias do sujeito da atualidade.

Palavras-chave: corpo, construção identitária, regimes de sentido e interação, semiótica discursiva, mídiaimpressa

1. O corpo em foco

Tomando a noção de “corpo” como entidade, indissocia-velmente, objetiva e subjetiva, condenada a se perfazerao longo de sua narrativa biográfica e existencial, estetrabalho centra-se nos modos de presentificação docorpo na mídia revista de informação semanal, desta-cando aquelas de maior tiragem e circulação no cenárionacional – as revistas Veja, Época e Istoé, veiculadasno limiar do século XXI, entre os anos 2000-20061.

Centrado nas relações comunicacionais, tratadaspela sua sintaxe interacional, nosso trabalho seráorientado pelos estudos da sociossemiótica de EricLandowski, bem como pelas pesquisas em torno douniverso de discurso da moda e construção identitáriade Ana Claudia de Oliveira e a semiótica plástica deJean-Marie Floch, visando observar de que maneira asimagens de corporeidades, presentificadas nas capasda mídia semanal, comunicam regimes corporais dosujeito da atualidade. Nessa perspectiva, importa veri-ficar como essas imagens, apresentadas como “coisas

a serem vistas”, (Landowski, 2002, p. 128) operamna orientação do olhar bem como do sentir do sujeitoenunciatário, a partir de experiências corporais par-tilhadas no social; em outras palavras, trata-se debuscar analisar como se processam os modos de in-teração entre enunciador e enunciatário do discursomidiático e como atuam na formação de regimes desentido que deixam entrever modos de presença dosujeito contemporâneo.

O encontro do leitor com o objeto “capa de revista”será tratado como uma relação comunicativa em que ofazer dos efeitos de sentido é pautado por uma semió-tica da interação, na qual as figuras estampadas nascapas, nas corporeidades dadas a ver, ocupam, figura-tivamente, o lugar de um Outro, atualizando relaçõesde identificação e alteridade envolvidas na construçãoda percepção corporal e identitária do sujeito enuncia-tário.

A aposta de entrever construções identitárias nasconfigurações corpóreas a partir das capas e matériascentrais do segmento mídia de informação semanal

∗ Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Endereço para correspondência: 〈 [email protected] 〉.1 Segundo dados do IVC (Instituto Verificador de Circulação), maio de 2010.

Page 2: Regimes de sentido e interação na construção do corpo ... · do corpo na mídia semanal, verificamos a reiteração do tema “saúde” operando como um traço invariante, aparecendo

Simone Bueno da Silva

aproximou-nos dos modos de presentificação do corponas chamadas “matérias frias”, delimitando nosso ob-jeto. Isso porque tais matérias, além de não apresen-tarem uma ancoragem temporal específica, podendoser retomadas em qualquer época, costumam falar aoleitor em uma perspectiva mais individual, tratandode assuntos ligados a comportamentos, saúde, beleza,religião, crenças etc., ligados mais diretamente a hábi-tos, estilos e formas de vida que envolvem um modode presentificação corpórea marcado por construçõessubjetivas. Assim, pode-se dizer que o corpo tomadocomo invólucro de subjetividade aparece sobremaneiradestacado nessas matérias.

2. Saúde e estética na ordem dodia

Ocupando-nos especialmente das matérias frias, obser-vamos recorrências de alguns elementos invariantesque apontam para uma constância temática e figu-rativa na construção de simulacros de corporeidadesedificados.

Assim, em meio as mais diversas figuratividadesque perpassam a complexidade das representaçõesdo corpo na mídia semanal, verificamos a reiteraçãodo tema “saúde” operando como um traço invariante,aparecendo de forma sobremodalizada na quase totali-dade das capas analisadas, de modo a configurar-secomo uma grande isotopia temática, em torno da qualse organiza boa parte dos arranjos discursivos.

Na mesma condição, uma segunda temática sobre-determinante chama a atenção. Também em relaçãode sobremodalização discursiva, o tema da esteticidadecorpórea frequenta com pontualidade o conjunto dosenunciados analisados, perpassando, igualmente, adiversidade de configurações do corpo, constituindoo que consideramos uma segunda isotopia temática.Dessa forma, pode-se dizer que duas grandes isotopiastemáticas, seguidas de diferentes investimentos figura-tivos, orientam as construções discursivas analisadas:a reiteração de traços semânticos ligados à condiçãosalutar do corpo, em termos de desempenho físico,psíquico, intelectual, e a esteticidade, em relação àforma e aparência desse corpo, apontam para a pos-sibilidade de uma leitura da construção do corpo namídia destacada centrada na saúde e esteticidade.

A partir daí, buscaremos observar de que maneiratal reiteração temática poderá nos conduzir a uma sig-nificação maior, ou seja, o que a reiteração de corposda saúde e esteticidade, tratados como uma constantena mídia tratada, pode nos dizer em termos de signifi-cação sobre o corpo. De que maneira tais construçõesdiscursivas apontam para a construção de regimes de

sentido e interação que dizem respeito aos modos dosujeito ser e estar no espaço social?

3. Corpos encenadosPartindo da reiteração discursiva dos corpos da saúdee da beleza, observamos a existência de quatro tiposde simulacros de corporeidades, correspondentes adiferentes modos de encenação do corpo, que sugeremmaneiras distintas do sujeito relacionar-se com o seucorpo. Nesses modos de encenação, observamos al-gumas constantes que indicam ora a predominânciade elementos atrelados a um modo de presença maissubjetivo, ora a um modo de presença mais objetivo.

Admitindo com Oliveira (2005, p. 7) a existência deinterações entre a linguagem do corpo e a linguagem damoda, buscamos, a partir dessa constatação, referên-cias em seus estudos sobre moda, corpo e construçãoidentitária, mais especificamente, em seu trabalho “Se-miótica e Moda: por um estudo da identidade” 2. Nessetrabalho, em que estabelecem relações entre modos depresença do sujeito e modos de construção identitária,tendo por base os estudos da moda, a semioticista pro-põe uma tipologia dos modos do vestir-se em relaçãocom regimes de presença do sujeito no mundo, defi-nindo como posições de um diagrama o vestir-se parasi – tomado como “subjetal” vs o vestir-se pela roupa– tomado como “objetal”; completando as posições doquadrado semiótico, o vestir-se com fins práticos –denominado “pragmático” vs o vestir-se com fins sim-bólicos – denominado “simbólico”. Entendendo taisrelações dentro de um quadro de proximidade entresistema corporal e vestimentar, no que diz respeito apossibilidades diferentes do sujeito construir a imagemde si, passaremos a adotar tais terminologias e suasimplicações, buscando aplicar o modelo proposto porOliveira em relação aos modos de apresentação corpó-rea destacados na mídia em questão. A observação dereiterações discursivas possibilitou-nos a seleção deuma amostra exemplar das três publicações analisa-das.

3.1. Corpo subjetal

Nessa categoria são encenados corpos que apresentamuma tendência em acentuar elementos da dimensãoestésica, propensos a atualizar valores da esfera dosubjetivo, reservando uma posição de segundo planoà dimensão estética. O corpo do sujeito do enunci-ado é tratado em uma relação reflexiva, atualizandoelementos proprioceptivos3 comumente atrelados aouniverso subjetal. Nessa perspectiva, sujeito e corpose apresentam em relação de continuidade, na qual osujeito experimenta um encontro consigo. Os actantesdo enunciado são presentificados sentindo e experi-

2 Ver nas Referências Bibliográficas: Oliveira, 2005.3 Na teoria semiótica, proprioceptividade é um termo utilizado para referir-se à percepção que o sujeito tem de seu próprio corpo. Cf.

Greimas, Algirdas. Julien, Courtés, Joseph. Dicionário de semiótica, Trad. Alceu Dias Lima et al. São Paulo, Cultrix, p. 357.

86

Page 3: Regimes de sentido e interação na construção do corpo ... · do corpo na mídia semanal, verificamos a reiteração do tema “saúde” operando como um traço invariante, aparecendo

estudos semióticos, vol. 7, no 1

mentando as sensações e os limites do próprio corpo.Nesses simulacros de corporeidades, o destinatáriotem a possibilidade de obter informações relaciona-das ao modo de lidar com as vicissitudes do corpoem suas alegrias, tristezas, dores, desejos, prazeres,expectativas etc. Tem-se, dessa maneira, um corpocom tendência a perfazer-se por e para si mesmo, ouseja, ancorado em formas de realização e desfruto daspossibilidades da existência corporal. O sujeito enunci-

atário, no seu fazer transformador, é seduzido a entrarem conjunção com as formas de bem-estar no corpo,num fazer para si, alicerçado pela esfera individual,subjetiva. Há uma predominância do corpo natural,que abre espaço para a exploração das singularidadesindividuais, da ordem do ser, reservando ao pareceruma posição marginal. Em outras palavras, o corpoque se descobre, se alegra, adoece, envelhece, deprime,engorda e tende à mortalidade.

(a) Veja, 08/03/2000 (b) Época, 03/01/2005 (c) Istoé, 22/11/2000

Figuras 1

3.2. Corpo objetal

Nessa categoria destacam-se os simulacros de corposidealizados segundo um modelo de corporeidade quese inscreve na perspectiva do parecer para o outro.Em oposição ao corpo subjetal, no qual se acentuaa dimensão estésica, atrelada a um sentir no e emrelação ao corpo, ressalta-se a perspectiva da estéticacorporal, com vista a um modo de presença que acen-tua a dimensão cosmética, de que fala Landowski4.Nesses simulacros, ganham relevância os modos deconstituição corpórea que se orientam mediante umconformar-se a uma estética corporal proclamada nosocial. Assim, o sujeito remodela seu corpo buscandoreconfigurar sua aparência, segundo um modelo decorporeidade idealizado, tomando por base o predomí-nio do parecer, em oposição às relações do si consigo,do corpo subjetal, em que predominavam o universodo ser. Trata-se do corpo refeito pela cirurgia plástica,

pela prótese de silicone, por intervenções tecnológicas,de superfície ou invasivas, que, muitas vezes, obrigamo sujeito a redimensionar suas relações com o espaçocircundante. Nessa perspectiva, a dimensão orgânicado corpo é apagada, ganhando a cena enunciativa umcorpo ideado, calculado, padronizado. Corpos que seapresentam sem pêlos, livres de fluídos, suor, dor, fa-diga, sensações, e, no limite, sem órgãos, mostrandouma predominância do construído sobre o dado. Umcorpo que não adoece, não envelhece, não se deprime,não engorda e tende à imortalidade.

4 Landowski, Eric. Flagrantes delitos e retratos. Galáxia – Revista transdisciplinar de comunicação, semiótica, cultura. São Paulo, Educ,n. 8, p. 30-71, outubro de 2004.

87

Page 4: Regimes de sentido e interação na construção do corpo ... · do corpo na mídia semanal, verificamos a reiteração do tema “saúde” operando como um traço invariante, aparecendo

Simone Bueno da Silva

(d) Veja, 07/01/2004 (e) Época, 09/04/2001 (f) Istoé, 20/09/2000

Figuras 2

3.3. Corpo pragmáticoNessa categoria são apresentados simulacros de corpo-reidades que colocam em primeiro plano a dimensãopragmática da existência corporal. Em posição desub-contrariedade ao corpo objetal, das encenaçõesque se alicerçam na dimensão cosmética, esses mo-dos de presença corporal enfatizam a praticidade efuncionalidade do corpo, solicitada na performanceque mobiliza as competências do corpo para cumprirfunções práticas. Nessa perspectiva, o sujeito e seucorpo se encontram numa relação funcional, marcadapelo uso que ele é chamado a fazer de suas habilidades

físicas, intelectuais e orgânicas no cumprimento detarefas do cotidiano. O traço funcional predomina emrelação ao traço eidético e os movimentos conclamadospodem ser entendidos como uma extensão do sujeito.Assim, o corpo é tomado da perspectiva da ação ori-entado por um propósito. São encenados corpos damobilidade requerida para os movimentos do corpo,das competências intelectuais, do fazer reprodutor etc.O corpo que assume a sua constituição orgânica esuas manifestações: suor, fadiga, tensão, necessida-des e vontades, não se preocupando com a dimensãoestética, a qual é reservada uma posição marginal.

(g) Veja, 2001 (h) Época, 20/09/2004 (i) Istoé, 12/06/2002

Figuras 3

88

Page 5: Regimes de sentido e interação na construção do corpo ... · do corpo na mídia semanal, verificamos a reiteração do tema “saúde” operando como um traço invariante, aparecendo

estudos semióticos, vol. 7, no 1

Nessa categoria inscrevem-se os simulacros de cor-pos que desfilam no meio imagético, desempenhandoum papel social e obtendo posição de destaque e visi-bilidade, sobretudo, em relação à sua imagem e apa-rência. Nesses arranjos discursivos, os sujeitos doenunciado exibem corpos em conformidade com sím-bolos da aparência, euforizados no social. Verifica-se,então, a projeção de imagens de corporeidades queseguem e incorporam as tendências ou os ditamesda moda, apresentando uma disposição volitiva em

manter ou amoldar o corpo de acordo com aspectosconvencionais, sendo modalizadas pelo querer ser vistode acordo com os valores eleitos pelo social. Nessestermos, a estética corporal passa a exercer o papel designo de inserção social e meio de obter uma posiçãode visibilidade ou status social. A aparência e imagemcorporal são indicadoras da constituição do sujeitoe impulsionadora de sua aceitabilidade. O corpo seconforma à superficialidade da aparência, buscandofazer parte de um sistema axiológico.

(j) Veja, 27/11/2002 (k) Época, 01/11/2002 (l) Istoé, 05/12/2001

Figuras 4

O exercício de sistematização das análises possi-bilitou o encaminhamento de uma proposta de clas-sificação tipológica dos modos de presença do corpona mídia em questão, pautado em efeitos de sentidogerados a partir dos modos de relacionamento dos su-jeitos do enunciado com seus modos de presentificaçãocorpóreas.

Como ponto de partida, destacamos os simulacrosde corporeidades que apresentam uma tendência ematualizar, predominantemente, traços da ordem dosubjetivo. O corpo subjetal, (Figuras 1 a, 1 b, 1 c),como propusemos denominá-lo a partir dos estudos deOliveira, é um corpo em que o sujeito se apresenta emrelação com o sentir o próprio corpo, descobrindo-oatravés de um encontro consigo mesmo, no experimen-tar sensações e limites, em um percurso narrativo deafloramento de estados de alma. Trata-se de um modode percepção corporal em que o sujeito é induzido adescobrir-se por si mesmo e para si mesmo, em umarelação dialógica estésico-somática. Nessa perspectiva,

são destacadas eventuais particularidades do sujeito,escolhas individuais e circunstanciais, apontando paraum modo de presença, eminentemente, subjetivo.

Em relação de contrariedade a esse modo de pre-sença, temos o corpo objetal (Figuras 2 d, 2 e, 2 f).Nessa forma de constituição corpórea, a dimensão es-tética do corpo se coloca em primeiro plano, reservandouma posição margeada ao plano subjetivo. Trata-se deum corpo que se constitui na relação para o outro, cen-tralizando seu programa narrativo na busca de umaplástica corporal admirada pelo outro. É o corpo que seorienta pela perspectiva “cosmética”, de que fala Lan-dowski, lançando mão de artifícios embelezadores queagem na superfície de sua aparência, figurativizadosna cirurgia plástica, lipoescultura, próteses de siliconee intervenções estéticas de toda ordem. No limite desseproceder, o corpo passa por um verdadeiro processode desmaterialização, passando a ganhar uma novaformatação. Assim, a dimensão estética subordina adimensão estésica.

89

Page 6: Regimes de sentido e interação na construção do corpo ... · do corpo na mídia semanal, verificamos a reiteração do tema “saúde” operando como um traço invariante, aparecendo

Simone Bueno da Silva

Em posição de subcontariedade ao corpo objetal,destacamos o modo de presença do corpo pragmático(Figuras 3 g, 3 h, 3 i), centrado em um fazer funcional,que aciona as competências e habilidades do corpo emrelação à performance solicitada para as tarefas do dia-a-dia. O programa narrativo proposto ao sujeito dessecorpo é atrelado à manutenção, desenvolvimento ouaprimoramento das capacidades do corpo em cumpriras funções às quais está destinado. O fazer funcio-nal se coloca como uma extensão do corpo do sujeito,que não está preocupado com a dimensão estética,com o mundo do “parecer”, estabelecendo com o corpouma relação voltada para fins práticos. Nesse caso,a dimensão pragmática, na qual se inscreve o fazerfuncional do corpo, predomina sobre o plano estético.

O corpo simbólico (Figuras 4 j, 4 k, 4 l) se apresentacomo outro pólo do eixo subcontrário. Nesse modo de

presença, as formas corporais do sujeito do enunciado,conformada aos símbolos da aparência, surgem atrela-das à posição de visibilidade e signo de inserção social.Nesse caso, o sujeito rearranja ou mantém a estéticacorporal de acordo com os ditames da tendência, co-locando em segundo plano os elementos da dimensãosubjetiva. Ao optar por essa forma de constituiçãocorporal, mantendo ou amoldando o corpo de acordocom um modelo de aparência, o sujeito coloca em se-gundo plano os traços da dimensão subjetiva em favorde uma constituição corpórea emblemática. No nívelnarrativo, o fazer transformador do sujeito resulta naobtenção de status ou posição social de visibilidadeatravés do investimento na imagem e aparência.

Balizado pelas oposições de base “ser vs parecer”,no nível fundamental, na diagramação geral, temos asseguintes articulações:

Corpo pragmático(funcional)

“corpo do fazerfuncional”

Corpo simbólico(simbólico)

“corpo comfunção social”

Corpo subjetal(estésico)

“corpo dadescoberta de si”

Corpo objetal(cosmético)

“corporemodelado”

A partir daí importa verificar como esses modelos decorporeidades adquirem sentido nas relações comuni-cativas que estabelecem com o enunciatário.

4. Corpos em interação

Ao que tudo indica, o corpo dado a ver nas capasde revista em uma multiplicidade de olhares, poses,gestualidades, vestimentas, expressões e sensações

90

Page 7: Regimes de sentido e interação na construção do corpo ... · do corpo na mídia semanal, verificamos a reiteração do tema “saúde” operando como um traço invariante, aparecendo

estudos semióticos, vol. 7, no 1

diversas não se deixa apreender senão em uma rela-ção de interação. Nesse processo, ao lado da relaçãointersubjetiva, mediante a qual o sujeito constrói suaidentidade actancial no plano da alteridade, mobili-zando uma competência cognitiva, um outro modo depresença parece concorrer na apreensão e construçãodo sentido, dessa vez, atualizando elementos de umarelação intersomática, da ordem sensível. A busca dapercepção dessa forma de fazer sentido, que se desen-volve simultânea ou entrelaçadamente com a primeira,coloca nosso estudo em diálogo com as pesquisas dasemiótica da interação de Eric Landowski.

Centrado na emergência da significação na dinâmicados discursos e das práticas sociais, o semioticistaelabora uma semiótica da experiência, em que a pro-dução do sentido se faz em situação e em ato, com ena interação, abrindo caminhos para a edificação deuma semiótica sensível. Nesse percurso investigativo,além dos procedimentos de manipulação e programa-ção que integram o regime de junção, fundados naexpectativa inteligível, o autor propõe que se considerea construção do sentido por meio dos procedimentosde ajustamento e acidente, que integram o que eledenomina de “regime de união”, orientado por umaexpectativa sensível.

O regime de sentido da programação é marcadopela continuidade e não pressupõe a transformaçãodo sujeito. Ao contrário, prevê um comportamentoregular para este, mediante o estabelecimento de umprograma narrativo que preserva sua identidade pormeio da repetição de um mesmo papel temático

O regime de manipulação é guiado por uma relaçãode intencionalidade, que prevê a transformação dosujeito de estado mediante a conjunção ou disjunçãocom o objeto de valor. Na manipulação, é a posse doobjeto de valor que provoca a transformação do sujeito,considerado um sujeito de volição.

Tanto o regime da programação quanto o da ma-nipulação são fundados em uma economia de troca.O elemento cognitivo é o orientador desses dois regi-mes, correspondendo, na programação, à reiteraçãodo papel temático, inscrito em uma expectativa da or-dem inteligível, e, na manipulação, à mobilização dascompetências cognitivas, segundo as modalizações dopoder e saber que determinam o fazer-querer.

Em relação contrária à programação, o regime desentido do acidente é guiado pelo princípio da descon-tinuidade, da irregularidade, do caótico, em que ocorrea assunção do risco total dos acontecimentos. Nessecaso, o efeito de sentido se dá através do encontro dosujeito com o objeto ou com outro sujeito, em uma re-lação não mediada por objetos de valores. Trata-se deuma relação interactancial na qual o efeito de sentidoé determinado por uma dimensão sensível.

O regime do ajustamento também prevê o encon-tro direto entre os sujeitos. Tal relação, da ordem do

contato, é orientada pelo princípio da reciprocidade,em que um sente o sentir do outro, destacando comoprincípios norteadores o conjunto dos sentidos: tato,olfato, visão, paladar, audição e a própria percepçãocorporal que o sujeito tem do espaço. Na imediatici-dade desse encontro intersomático, o efeito de sentidotende a convergir para ambos.

Partindo da complexidade significante que envolveos modos de presentificação corpórea em nosso ob-jeto, nosso próximo passo será verificar como essesdiferentes regimes de sentido e interação operam nasconstruções discursivas do corpo na mídia semanal.

4.1. Pressupostos de um fazer-fazer efazer-ser

De maneira global, podemos dizer que o regime de sen-tido e interação que atua como elemento orientador dofazer do discurso midiático é o regime da manipulação.

No caso da mídia de informação semanal, não sepode ignorar a questão do fazer informativo que estána base de seu modo de existência e que mobiliza,de início, um fazer-crer, que coloca em jogo a adesãoou não do enunciatário, fundado em um fazer cog-nitivo recíproco de base contratual. O que está emjogo nessa relação não é, fundamentalmente, um dizerverdadeiro, mas um fazer-parecer-verdadeiro, fundadona construção de efeitos de sentido. A questão quese coloca é como o discurso midiático faz parecer ver-dadeiro os simulacros de corporeidades que divulga eque fundamentam seu discurso?

Conforme vimos, tal discurso atua na construçãode simulacros generalizantes de corporeidades, inves-tindo em um padrão de corporeidade que se orientapela perspectiva da saúde e beleza. Entretanto, o mo-delo de corporeidade assinalado bem como os conceitose noções instituídos em torno deles não correspondemnecessariamente a verdades absolutas sobre a saúdeou beleza, mas a estruturas modelares que atuam naredução e neutralização das diferenças, apontandopara a edificação de estereótipos. A reiteração massivadessas imagens tende a nos fazer enxergá-las como ver-dades únicas a serem seguidas, escamoteando outrosmodos de percepção do corpo. Uma vez aceita a pers-pectiva da esquematização, o destinador dos modelosconstruídos passa a jogar com a eficácia do elementosimbólico levando o enunciatário a se enfrentar emseu próprio desejo, num fazer de reconhecimento eidentificação. Conforme Landowski:

[...] não é que a coisa prometida se realizeou não, mas sim o próprio ato de adesão peloqual os sujeitos, identificando-se com os si-mulacros que lhe são propostos, passam aconfiar nos mesmos que, sob a roupagem de‘promessas’, na realidade moldam o desejodeles (1992, p. 157).

91

Page 8: Regimes de sentido e interação na construção do corpo ... · do corpo na mídia semanal, verificamos a reiteração do tema “saúde” operando como um traço invariante, aparecendo

Simone Bueno da Silva

Dessa forma, imagens edificantes em torno de umcorpo idealizado, bem como a atualização simbólicados modos de realização subjetiva e intersubjetiva, po-sitivizados em decorrência da conjunção com o modelopropalado, ganham os contornos de modelos a seremseguidos, amparados por um “destinador construído”(Landowski, 1992, p. 157), o discurso midiático, quese apresenta como conhecedor dos meios de se ob-ter estados de corporeidades desejáveis, orientado naperspectiva da promessa.

A rigor, Veja, Época e Istoé assumem o perfil de des-tinadores da informação construindo suas identidadesmediante a competência de distribuir informação deforma imparcial e objetiva. Invariavelmente, apoiando-se no discurso da ciência e tecnologia, delegando vozesa especialistas, tais publicações assumem, além do ca-ráter jornalístico, uma postura pedagógica, buscando,ao menos em tese, ensinar ao leitor o que ele não sabe,muitas vezes revestindo seus textos de um didatismoexplícito, que se traduz na sintetização e simplificaçãoexcessiva de assuntos considerados pela própria ciên-cia como não tão simples, num esmiuçar de sentidosque parece visar o encurtamento do caminho parainformação, sendo essa uma das características quese destaca nesse gênero de veiculação de informação.Esse modo de existência, amparado na modalidade dosaber, garante a essas publicações, muitas vezes, olugar de figura de autoridade no centro dos debatespúblicos, no cenário nacional, e a consequente posiçãode objeto de valor para o enunciatário. Sob o perfil degeneralidades, tais semanários informativos transmi-tem saberes diversos, comunicam tendências, gostos,estilos de vida aos quais não escapam a divulgaçãode modos de presença corporal, deixando entrever, naatividade de informar, percursos de modalizações dasformas de ser e estar no mundo, ancorados em con-figurações corpóreas que, glamourizadas no espaçomidiático e compartilhadas no espaço social, tendema ser eleitas como desejáveis.

Notar-se-á que os valores de busca postos nos si-mulacros de corpos da perfeição estética e salutar nãoconstituem, em si, um horizonte fixo. Ao contrário,uma vez instaurados, revestem-se de variações diver-sas, assumindo contornos diferenciados. Dessa forma,os padrões de saúde e beleza sofrem frequentes re-modelações que caminham de acordo com as novasdescobertas da ciência, da medicina ou da estética,impulsionando um fazer constante por parte do desti-natário na busca de um ideal de corporeidade. Nessecaso, o enunciatário, inscrito sempre no domínio daprivação do saber em relação às “novas”, torna-se umsujeito de busca constante, assegurada pela renova-ção dos simulacros sempre em construção. Estamosdiante de um percurso de repetição da manipulaçãoque tem como consequência o regime de sentido daprogramação. Com efeito, na mídia destacada, o lei-

tor que se habitua a receber informações a partir deuma leitura semanal, passa a repetir esse ato meca-nicamente, principalmente, se tornar-se assinante darevista, o que é o caso da maior parte do público alvodesses semanários informativos.

Do ponto de vista da construção identitária, obser-vamos que a renovação do simulacro não destitui aperspectiva de um corpo idealizado a ser perseguidocomo modelo, apenas a recria. Assim, mudam-se osmeios de se chegar ao ideal de corpo da perfeição, essemantido, no plano semântico, intacto, ou seja, a pers-pectiva do corpo modelar é apenas renovada, conformeo regime da programação.

4.2. Fazer-ser e fazer-sentir: o percursoda programação em Veja, Época eIstoé

Entendendo que a divulgação das “novas”, como fazerdo discurso midiático-jornalístico, atua na renovaçãodo simulacro de corporeidade, mantido na perspectivamodelar, podemos falar em um suposto ajustamentoque se daria entre enunciador e enunciatário, esteseduzido a manter uma relação de atualização como ideal de corpo divulgado. Nesse ajustamento, oenunciatário seria motivado a mais que um simplesquerer-saber ou querer-conhecer as novidades sobreas formas corporais aclamadas, mas, sobretudo, a umquerer experimentar ou sentir, na própria pele, o queessas formas lhe oferecem, mediante o que o socialestabelece. Nesse caso, o fazer-saber caminharia juntocom um fazer-sentir, mobilizando uma competênciaestésica do sujeito na apreensão do sentido. Trata-se da acepção de simulacros não apenas da ordemdo visível, mas da ordem da experienciação, ou seja,como o sujeito se relaciona com as formas que lhessão dadas a ver. O que essas formas lhe proporcionamem termos de sentido vivido. Nessa perspectiva, asqualidades do corpo saudável e belo atuariam comocritérios de desejabilidade de um corpo, que, de formade simulacro, é dado a fazer sentido na dimensão docontato, da interação; no sentir o que sente – “o sentirdo outro” – um corpo em conjunção com os padrõesda saúde e estética.

Nesse processo interacional, os simulacros de corpo-reidades, admitidos não mais como simples “corpos depapéis”, mas como uma presença instaurada; nessecaso, um corpo sensível, passível de identificação, pro-move o simulacro de uma presença contagiosa, orien-tando o percurso de produção de sentido para o regimede sentido da união.

Landowski, buscando delinear com rigor científicoos pressupostos desse processamento por união, de-fine um modelo de contágio por impressão como sendouma forma de contágio unilateral que nos parece omodelo desenhado em nosso objeto:

92

Page 9: Regimes de sentido e interação na construção do corpo ... · do corpo na mídia semanal, verificamos a reiteração do tema “saúde” operando como um traço invariante, aparecendo

estudos semióticos, vol. 7, no 1

No caso do contágio por impressão, emboraa interação se desenvolva no plano sensível(portanto, no modo do contágio intersomá-tico), tudo se passa do ponto de vista do re-sultado, como se nos encontrássemos aindasob o regime da junção. Em situações seme-lhantes, a interação acaba com a reprodução,mais ou menos calculada, conforme o caso,de processos predefinidos, nada mais, nadamenos que no quadro da clássica “manipu-lação” esquematizada pela gramática narra-tiva. Essa forma unilateral de contágio tende,desse modo, a fazer o sujeito contaminadopercorrer as etapas de um programa predefi-nido pelo outro – por aquele que o contamina– e que resta apenas, em suma, executar (Lan-dowski, 2005, p. 50).

Perscrutando o caminho da edificação de tendênciase estilos de vida, manifestados na absorção de formascorporais tidas como desejáveis em nosso objeto, ve-mos desvelar um projeto de transformação de estadodo actante enunciatário mediante a conjunção comum objeto previamente definido que ocupa o lugar deum “objeto autônomo”, proveniente de uma instânciaexterior ao sujeito. No caso, um modelo de corpo-reidade pré-estabelecido que é capaz de despertar acompetência estésica do sujeito, porém, resultante deuma intervenção externa. Trata-se de uma forma decontato mediada em que se verifica a coexistência deelementos que “têm significação no universo ideológicoda junção (ou seja, corpos-objeto), e, de outra parte,elementos que fazem sentido imediatamente, na óticada união (isto é, corpos-sujeito)” (Landowski, 2005,p. 27). Vejamos como isso acontece: os simulacrospropalados como simulacros de corpos idealizados, e,portanto, corpos desejáveis, são edificados segundomodelos pré-codificados, fundamentados em critériosestéticos, instituídos por uma instância exterior media-dora, no caso, o discurso midiático. Assim, os critériosque determinam que um modo de presença corporal setorne ou não desejável passam pelo crivo do olhar mi-diático, que, na posição de destinador, dita tendências,impondo para o destinatário um aprendizado sobreas qualidades extrínsecas ao corpo propalado comoideal. Nesse caso, a performance proposta pelo enun-ciador no programa narrativo de entrar em conjunçãocom o corpo ideal passa pela ordem cognitiva, dadapelo saber reconhecer as formas tidas como desejáveis,doada pelo destinador midiático, que se desenvolveparalelamente à performance sensível, atrelada ao pra-zer estésico que o modelo de corporeidade idealizado écapaz de despertar. Notar-se-á que o percurso estésicono qual se desvela um corpo-sujeito que sente o sentirdo outro, presentificado no corpo tido como desejável,contribui sobremaneira para a intensificação do valordo corpo-objeto, corroborando tal estratégia enunci-ativa para a acentuação do poder de sedução dessas

formas estetizadas sobre o enunciatário. Tem-se, en-tão, um fazer cognitivo que acontece em relação decomplementaridade com um fazer sensível, uma vezque os critérios de desejabilidade do corpo idealizadoseguem um julgamento estético, regulado pelas nor-mas socioculturais, em uma operação que requer odistanciamento objetivante do julgamento e interpreta-ção, mobilizando um cálculo de persuasão por partedo enunciador e cálculo interpretativo por parte doenunciatário. Em relação à aprendizagem do modelode corporeidade desejável, o procedimento do discursomidiático não é outro senão a reiteração exaustiva deimagens edificantes que faz com que reconheçamos ounão, no contexto social e cultural, um modelo de cor-poreidade como desejável. Nessa direção, Landowski,pontua:

Nessa estética social do corpo que nos é pro-posta (ou imposta) pelo discurso mediáticoe publicitário sob a forma de modelos de or-dem anatômica, fisionômica, cosmética ouindumentária, os critérios da “desejabilidade”desempenham uma dupla função. Eles con-duzem ao reconhecimento do que outrora sechamava, bastante vulgarmente, de “iscas”de um corpo dado à visão, e eles servem aomesmo tempo de normas de referência para amodelagem dos mesmos corpos, fornecendo abase de toda uma ciência cosmética – de todoum comércio, de toda uma indústria – comcuja ajuda presume-se efetuar a transforma-ção programada do corpo próprio em imagempara o outro, em “corpo-objeto” construído ar-tificialmente (e indefinidamente a reconstruir)em vista de novas avaliações ou reavaliações(Landowski, 2005, p. 28).

No caminho de aprendizagem do desejável, as len-tes do discurso midiático atuam na perspectiva danormalização. Criando sujeitos “midiaticamente in-formados”, dentro de um padrão rígido de esteticidade,tal discurso corrobora para a obliteração de outrasformas de expressão corporal, sacralizando aquelasque divulgam, em altas e reiteradas doses. Nessa pers-pectiva, vimos desvelar um modelo de contaminaçãoem nosso objeto que se revela apenas como um está-gio dentro do regime da junção, cujo pressuposto égarantir as bases de um fazer manipulador em direçãoà programação. Tal regime revela o modo de existênciapróprio ao discurso midiático que, por definição, operano eixo da continuidade.

A partir dessa percepção é possível compreendercomo esse discurso, operando manobras discursivas,efetua um desvio de elementos que poderiam remeterao regime de sentido do acidente, notadamente, neu-tralizado nesse gênero discursivo, conforme podemosver no diagrama a seguir:

93

Page 10: Regimes de sentido e interação na construção do corpo ... · do corpo na mídia semanal, verificamos a reiteração do tema “saúde” operando como um traço invariante, aparecendo

Simone Bueno da Silva

ManipulaçãoFazer-querer-fazer

as “novas”Novos meios,

novas avaliações ereavaliações do

padrão decorporeidade(relação de

intencionalidade)

AjustamentoFazer-sentir as

“novas”Sentir valores

sensíveisem circulação

(relação dereciprocidade)

ProgramaçãoManutenção docorpo modelar

(relação deunilateralidade)

Acidente(posição vazia)

REGIME DE UNIÃOREGIME DE JUNÇÃO

Partindo do regime de sentido da manipulação, oenunciatário adquire competência cognitiva (segundoum poder-saber) que o impulsiona a querer transfor-mar seu estado corporal. Nesse percurso narrativo,ele adquire informações sobre os meios para entrarem conjunção com um padrão de corpo euforizado eestabelecido como valor. Uma vez aceito tal valor, oenunciatário passa a assumir um papel temático pre-determinado que o manterá sob a expectativa de umdesempenho programado. Trata-se de uma transfor-mação programada que orienta o percurso de sentidodo regime da manipulação para a programação. Nopercurso da manipulação, a transformação do sujeitoocorre mediante a incorporação dos meios, que semprese renovam, de se atingir o corpo modelar, bem comodo caráter apreciativo – “as novas cirurgias”, “dietas”,“estratégias e truques”, como “ficar mais bonita, oumais bonito” etc. Porém, a manutenção do papel te-mático do ser saudável e belo inclui um fazer sensívelque atua na mobilização de uma competência estésicado sujeito, apontando para um fazer sentir os valoressensíveis postos em circulação. Nesse caso, a motiva-ção para sentir também segue os caminhos de umaprogramação cognitiva, que aponta para a dimensãodo inteligível, não sendo esse mais que um estágiodentro do programa manipulatório, guiado pelo regimede junção.

A partir dessa constatação é possível inferir que amídia analisada utiliza a dimensão sensível como umartifício na construção do sentido. Trata-se de umsimulacro de sensibilidade que se realiza apenas de

forma unilateral, pois estamos diante de uma relaçãoem que o sentir o sentir do outro não se faz de formadireta, segundo a “forma mais pura” do regime daunião, como postula Landowski (2005, p. 50), masmediatizada por um enunciador que manipula os mo-dos de presença corporal, cabendo ao enunciatário ainstauração de uma sensibilidade apenas reativa.

Se na “forma mais pura de união” abre-se espaçopara a criação do sentido novo, na forma de contágiounilateral, ao contrário, o que se tem é a repetição demodelos, ou seja, a repetição da manipulação que jogapara a programação. Assim, a cada novo ajustamento,a fórmula da padronização é mantida, favorecendo acristalização do sentido e a emergência de estereoti-pias e consequentes estigmatizações. Tais programasnarrativos conduzem a percursos de dessemantização,estabelecendo o desgaste da significação, a usura, nodizer de Greimas. Isso porque promovem a repetiçãodo mesmo, não permitindo a instauração de novosestados de ser e estar no corpo que só poderiam seralcançados no modelo de união stricto sensu em queo caráter da não repetição aponta para a criação desentido. Nessa perspectiva, assistimos na mídia desta-cada um desfilar de corporeidades, a rigor, distintas,porém marcadas por características da indistinção,contaminadas pelas imagens saudadas pelo discursomidiático: os mesmos contornos faciais, os mesmoscorpos, os mesmos sorrisos, as mesmas maneiras desentir e de se mostrar sentindo. A renovação dos si-mulacros instaura o enunciatário em um percurso defidelização, assumindo um contrato de fidúcia com

94

Page 11: Regimes de sentido e interação na construção do corpo ... · do corpo na mídia semanal, verificamos a reiteração do tema “saúde” operando como um traço invariante, aparecendo

estudos semióticos, vol. 7, no 1

enunciador. Movido pela promessa do conhecimento,o enunciatário se coloca sempre à espera de uma novaedição em que poderá entrar em conjunção com aúltima novidade em matéria de cuidados corporais. Vi-vendo o velho sonho de driblar a ação do tempo sobreo corpo, da “dieta sem fome”, “comer e emagrecer”,“emagrecer sem sofrimento”, ou, mais recentemente:“A lipo sem aspiração: uma máquina que destroi a gor-dura localizada sem necessidade de cirurgia. Não, nãoé sonho” (Veja, 22/11/2006). Tudo sob o aval de publi-cações, guiadas pelo rigor da distância objetivante dodiscurso jornalístico e de reconhecido prestígio social.

Considerações finaisA partir da coordenação de um jogo de luzes e sombras,estados de realização corporal ganham formas nas ca-pas das revistas, alcançando sua plenitude medianteuma conjugação de cores, cintilações, contrastes, sa-turações que enchem os olhos do leitor. Temos, então,um fazer ver que opera com vistas a um fazer saber,característico da mídia de informação, sobre os estadosde realização corporal, conjugados a um fazer sentir,na medida em que, por meio de simulacros, o leitoré colocado em contato com estados figurados de rea-lização corporal que só ganham existência efetiva naperspectiva da interação, em que os estados corporaisdos sujeitos do enunciado, mais do que ser vistos, sedão a ser sentidos. Tal disposição estésica, ao lado dadisposição cognitiva, constitui uma via privilegiada detransmissão do saber do enunciador sobre os modosde ser e estar no corpo, além de instrumento estra-tégico de sedução, concorrendo sobremaneira para aacentuação dos valores de busca proclamados.

No fazer ser dos sentidos, o discurso midiáticoelege aspectos da cultura corporal a serem valoriza-dos. Nesse caso, pode-se dizer que saúde e estética,de forma isolada ou conjugada, provocariam a estesiada pós-modernidade. Estamos, pois, diante de umaestesia da conformidade, e não da ruptura, uma vezque as imagens edificadas em torno desse ideal decorporeidade atuam na institucionalização de estere-otipias, que operam na perspectiva da redução dosmodos de percepção e relacionamento do sujeito como corpo, num percurso de produção de sentido em quea unilateralidade do fazer do discurso midiático impõeà outra parte da relação comunicativa um modelo decorporeidade axiológico e deôntico.

No percurso de busca do corpo idealizado, dissemi-nado em imagens que cada vez mais contam com osrecursos miraculosos das tecnologias que permitemapagar ou corrigir supostos defeitos e imperfeições,ultrapassando o conceito de reprodução fidedigna darealidade que a fotografia outrora encarnara, o sujeitoenunciatário depara-se com a exposição de imagenscorporais que atingem uma perfeição paroxísmica, pra-ticamente impossível de se obter no plano pragmáticoda existência corporal.

Na medida em que a tão buscada estetização docorpo tem lugar, o sujeito não interrompe a afetaçãosensível que ela lhe faz sentir e é esse estado de como-ção um dos instrumentos que desempenha o papel deelemento propulsor da manutenção do contrato entreenunciador e enunciatário. Assim, o desejo de entrarem conjunção com o corpo ideal é mantido pelo prazerque se supõe existir, de acordo com o que o socialestabelece, no desfrutar um corpo com as qualidadessignificantes proclamadas, em uma relação de aprazi-mento de si e do outro, ao mesmo tempo, aprazendo-secom isso.

O ideal de corporeidade euforizado atua, assim, naeducação de um modo de olhar e sentir em relaçãoao próprio corpo, dentro de uma estética programada,induzida por estados patemizados de realização corpo-ral centrados, sobretudo na elevação da auto-estimae auto-realização, em que está implícita uma espéciede construção ou reforço de um suposto poder pessoalque parece emanar dos estados de realização corpóreapropalados. Trata-se de “simulacros passionais repre-sentáveis” edificados dentro de uma estética da usura,de que nos fala Greimas (2002, p. 82), em Da im-perfeição. Nessa perspectiva, ressalta-se o caráter daiteratividade fortemente marcado, mesmo nas constru-ções discursivas que se referem às últimas novidadesem termos de cuidados e intervenção corporais, conso-lidando narrativas em que a regularidade se estabelecesob a roupagem do novo.

Assim, os simulacros subsistem através das reitera-ções semânticas relacionadas a um padrão corporal,quase sempre inalcançável, que instala a frustraçãocomo estado de alma, ajudando a tornar a busca dosujeito permanente por algo que só existe enquantosimulacro visual, cultuado como espetáculo no e pelodiscurso midiático enquanto corpos de luz: o néon dacontemporaneidade.

Referências

Greimas, Algirdas Julien2002. Da imperfeição. São Paulo: Hacker.

Landowski, Eric1992. A sociedade refletida. São Paulo:Educ/Pontes.

Landowski, Eric2002. Presenças do outro. São Paulo: Perspectiva.

Landowski, Eric2005. Aquém ou além das estratégias, a presençacontagiosa. Documentos de Estudos do Centro dePesquisas Sociossemióticas, Vol. 3, São Paulo.

Oliveira, Ana Claudia2005. Semiótica e moda: por um estudo da identi-dade. Congresso Brasileiro de Moda, Ribeirão Preto,Moura Lacerda.

95

Page 12: Regimes de sentido e interação na construção do corpo ... · do corpo na mídia semanal, verificamos a reiteração do tema “saúde” operando como um traço invariante, aparecendo

Dados para indexação em língua estrangeira

Silva, Simone Bueno daMeaning and Interaction in the Construction of the Body

in the Weekly MediaEstudos Semióticos, vol. 7, n. 1 (2011), p. 85-96

issn 1980-4016

Abstract: This article aims at analyzing the production of meaning in the ways the body is presented in themedia of weekly information, addressing the media discourse as locus of social interaction. For that, it is basedon semiotic studies developed by Algirdas Julien Greimas and his collaborators, more specifically Landowski’ssociosemiotics, Floch’s plastic semiotics, and Oliveira’s studies on fashion discourse and the construction ofidentity. The object of study consists of the covers of the three main Brazilian weekly magazines Veja, Época,and Istoé issued between 2000 and 2006. The thematic and figurative reiterations, guided by invariable andvariable elements, led us to the observation of two main discursive isotopies – health and beauty – around which toorganize the discursive analysis. From there, we observed the construction of body simulacra related to a mode ofpresence which is mainly subjective and another one which is mainly objective. Based on these modes of presence,we propose a typology of body simulacra related to different regimes of meaning and interaction. The analysis ofthe mechanisms of enunciation in correlation with the regimes of meaning and interaction has led us to observethe way the media operates in the communication of information about the body, promoting values underlying theidentity construction of the contemporary subject.

Keywords: body, identity construction, regimes of moral and interation, discourse semiotics, printed media

Como citar este artigo

Silva, Simone Bueno da. Regimes de sentido einteração na construção do corpo na mídia sema-nal. Estudos Semióticos. [on-line] Disponível em:〈 http://www.fflch.usp.br/dl/semiotica/es 〉. Editores Respon-sáveis: Francisco E. S. Merçon e Mariana Luz P. deBarros. Volume 7, Número 1, São Paulo, junho de 2011,p. 85–96. Acesso em “dia/mês/ano”.

Data de recebimento do artigo: 06/12/2010

Data de sua aprovação: 03/04/2011