regime totalitário na concepção de hannah arendt

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REGIME TOTALITÁRIO NA CONCEPÇÃO DE HANNAH ARENDT Wesley Santos Souza 1 O Totalitarismo no Contexto da Era Moderna Dentre todas as experiências da Era Moderna, a mais asquerosa foi a dos movimentos totalitários, que durante a Segunda Grande Guerra Mundial, dizimou milhares de pessoas, na sua maioria judeus e deficientes físicos, ou pessoas indiferentes às ideologias do terror. Esta nova lei imposta, não só ao povo judeu, mas também à humanidade é de maneira inóspita, a desagregação de todos os compromissos do homem com a vida. Esse tirocínio estará marcado na história como a mais cruel forma de deterioração da vida. A condição do homem na modernidade junto à vontade de criar e governar uma nova humanidade fez, por meio do terror, com que indivíduos ferissem de todos os modos, com suas ideologias, a composição da vida enquanto algo dado e de direito de todos. No totalitarismo, o terror é a essência da barbárie. Hannah Arendt 2 pensa o totalitarismo a partir de sua especificidade, que é basicamente sua ideia de domínio, definido como a “dominação permanente de todos os indivíduos em toda e qualquer esfera da vida”. 3 O totalitarismo, enquanto uma forma de governo burocrática e de intimidação estende sua ingerência à vida interior de todos os seus governados, tirando deles a liberdade e a privacidade. Desta maneira Arendt esclarece que A diferença fundamental entre as ditaduras modernas e as tiranias do passado está no uso do terror não como meio de extermínio e amedrontamento dos oponentes, mas como instrumento corriqueiro para governar as massas perfeitamente obedientes 4 1 Acadêmico do Curso de Filosofia da Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES. 2 Hannah Arendt nasceu Linden, perto de Hannover, Alemanha, em 1906. É filha de Paul Arendt e Martha Cohn. Estudou nas universidades de Marburg e Freiburg, e obteve seu doutorado em filosofia na universidade de Heidelberg, sob a orientação de Karl Jaspers. Em 1933 fugiu para Paris e em 1941, por decorrência da deflagração da Segunda Guerra Mundial, se estabeleceu nos Estados Unidos, onde faleceu em dezembro de 1975. Professora visitante em várias universidades, Arendt fez sua carreira acadêmica em New School For Social Research de Nova York. É autora, entre outros livros, de A condição Humana, Entre o Passado e o Futuro, Homens em Tempos Sombrios, Eichmann em Jerusalém e Responsabilidade e Julgamento. Foi uma intelectual que se colocou a serviço das idéias contrárias aos regimes totalitários que pontuaram a história do século XX. 3 ARENDT, 1989, p. 375. 4 ARENDT, 1989, p. 26.

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Page 1: Regime totalitário na concepção de hannah arendt

REGIME TOTALITÁRIO NA CONCEPÇÃO DE HANNAH ARENDT

Wesley Santos Souza1

O Totalitarismo no Contexto da Era Moderna

Dentre todas as experiências da Era Moderna, a mais asquerosa foi a dos

movimentos totalitários, que durante a Segunda Grande Guerra Mundial, dizimou

milhares de pessoas, na sua maioria judeus e deficientes físicos, ou pessoas indiferentes

às ideologias do terror. Esta nova lei imposta, não só ao povo judeu, mas também à

humanidade é de maneira inóspita, a desagregação de todos os compromissos do

homem com a vida. Esse tirocínio estará marcado na história como a mais cruel forma

de deterioração da vida.

A condição do homem na modernidade junto à vontade de criar e governar uma nova

humanidade fez, por meio do terror, com que indivíduos ferissem de todos os modos,

com suas ideologias, a composição da vida enquanto algo dado e de direito de todos.

No totalitarismo, o terror é a essência da barbárie. Hannah Arendt2 pensa o totalitarismo

a partir de sua especificidade, que é basicamente sua ideia de domínio, definido como a

“dominação permanente de todos os indivíduos em toda e qualquer esfera da vida”. 3

O totalitarismo, enquanto uma forma de governo burocrática e de intimidação estende

sua ingerência à vida interior de todos os seus governados, tirando deles a liberdade e a

privacidade.

Desta maneira Arendt esclarece que

A diferença fundamental entre as ditaduras modernas e as tiranias do passado

está no uso do terror não como meio de extermínio e amedrontamento dos

oponentes, mas como instrumento corriqueiro para governar as massas

perfeitamente obedientes4

1 Acadêmico do Curso de Filosofia da Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES.

2 Hannah Arendt nasceu Linden, perto de Hannover, Alemanha, em 1906. É filha de Paul Arendt e

Martha Cohn. Estudou nas universidades de Marburg e Freiburg, e obteve seu doutorado em filosofia na

universidade de Heidelberg, sob a orientação de Karl Jaspers. Em 1933 fugiu para Paris e em 1941, por

decorrência da deflagração da Segunda Guerra Mundial, se estabeleceu nos Estados Unidos, onde faleceu

em dezembro de 1975. Professora visitante em várias universidades, Arendt fez sua carreira acadêmica

em New School For Social Research de Nova York. É autora, entre outros livros, de A condição Humana,

Entre o Passado e o Futuro, Homens em Tempos Sombrios, Eichmann em Jerusalém e Responsabilidade

e Julgamento. Foi uma intelectual que se colocou a serviço das idéias contrárias aos regimes totalitários

que pontuaram a história do século XX. 3 ARENDT, 1989, p. 375.

4 ARENDT, 1989, p. 26.

Page 2: Regime totalitário na concepção de hannah arendt

Porém, o novo do totalitarismo e o que o difere dos antigos regimes autoritários é que

este está calcado no terror e na intromissão da vida privada, e de forma radical tende a

destruir os próprios grupos e as instituições que formam o tecido das relações privadas

do homem, principalmente a família, fazendo com que o homem se torne estranho ao

mundo privando-o de seu próprio eu.

Arendt distingue assim, o regime totalitário da ditadura e da tirania

A distinção decisiva entre o domínio totalitário, baseado no terror, e as

tiranias e ditaduras, impostas pela violência, é que o primeiro volta-se não

apenas contra os seus inimigos, mas também contra os amigos e

correligionários, pois teme todo poder, até mesmo o poder dos inimigos. O

clímax do terror é alcançado quando o estado policial começa a devorar os

seus próprios filhos, quando o carrasco de ontem torna-se a vítima de hoje. É

este o momento quando o poder desaparece inteiramente.5

O espanto que aqueles que estiveram sujeitos aos domínios nazistas não pode ser

relatado em palavras, tamanha a brutalidade desenvolvida pelos regimes totalitários com

a finalidade de levar a cabo os seus planos de destruição de tudo o que era indiferente às

suas ideologias.

Para Souki

O conceito de novidade é um dos pontos mais expressivos de toda obra de

Hannah Arendt, e a compreensão profunda das implicações disso faz

reconhecer a pertinência do conceito de banalidade do mal, no quadro da

filosofia contemporânea.6

Na filosofia de Arendt este ideal de novidade é destacado, principalmente no que tange

à capacidade do homem moderno, de ser um iniciador de novos processos. Sendo que,

esta foi uma das esperanças da modernidade, que diante da possibilidade de alcançar

novos patamares na história, e com a introdução da tecnologia em diversos campos da

sociedade, trazia consigo a esperança de que os ideais de fraternidade e solidariedade

viessem a ser reconstruídos e respeitados, no entanto, os processos históricos são

criados e constantemente interrompidos.

Arendt observa que

No advento dos regimes totalitários que estudou, foi a existência de pessoas

como desempregados, marginais, refugiados, que são percebidos como

5 ARENDT, 1985, p 30.

6 SOUKI, 1998, p 39.

Page 3: Regime totalitário na concepção de hannah arendt

supérfluos. “ A tentativa totalitária de tornar supérfluos o homens reflete a

sensação da superfluidade das massas modernas numa terra superpovoada.”

Neste sentido é apenas na perspectiva de um bom senso tradicional que “ o

mundo dos agonizantes, no qual os homens aprendem que são supérfluos

através de um modo de vida em que o castigo nada tem a ver com o crime,

em que a exploração é praticada sem lucro e em que o trabalho é realizado

sem proveito” pode ser visto como: “ lugar onde a insensatez é diariamente

renovada”.7

A era moderna quando proclamava a liberdade e a ação como direito exclusivo do ser

humano, buscava garantir ao homem o encontro de sua subjetividade por meio da

técnica, e mais ainda apontava para ele uma direção para seguir os seus objetivos. Nesta

perspectiva o regime total provoca um impasse por meio de sua ideologia invertida,

vitimando pessoas inocentes, caracterizando-se, assim, como uma afronta e uma

inversão completa dos direitos humanos.

Ressalta Souki que

A terrificante originalidade do totalitarismo não se refere a uma nova “idéia”

que apareceu no mundo, mas a atos de ruptura com toda a nossa tradição.

Esses atos, literalmente, pulverizam nossas categorias políticas e nossos

critérios de julgamento moral.8

A novidade do fenômeno totalitário põem por terra as categorias de pensamento político

e moral, demonstrando a incapacidade destes na promoção da vida, destruindo todas as

maneiras de aperfeiçoamento intelectual das massas, de maneira que elas sejam

sufocadas e dizimadas pelos regimes totalitários.

Sobre isto, Castoriadis diz

Está implícito na análise de Arendt o pressuposto de que nós enfrentamos

aqui algo que não apenas transcende as “teorias sobre a história” herdadas,

mas transcende qualquer “teoria”. Na verdade, o totalitarismo é, a esse

respeito, o exemplo monstruosamente privilegiado e extremo daquilo que é

verdade para toda a história e para todos os tipos de sociedade. 9

É neste confronto com o novo e com o espanto frente às atrocidades e perplexidades que

Arendt tenta compreender o fenômeno totalitário e suas manifestações, que desafiam a

todos os critérios de julgamento.

7 LAFER, 1988, p. 112 e 113

8 SOUKI. 1998, p 44.

9 CASTORIADIS, citado por Souki. 1998, p.44.

Page 4: Regime totalitário na concepção de hannah arendt

Na concepção de Souza: “A questão é ainda mais ampla, já que o totalitarismo é, ao

mesmo tempo, causa e conseqüência da inadequação entre a tradição intelectual do

ocidente e a novidade que ele representa; da ruptura entre o conhecimento e

realidade.” 10

Expandido para além das fronteiras da tolerância, o totalitarismo transformou pessoas

em animais, sujeitos a uma inumanidade sem precedentes, homens e mulheres e até

crianças, despojados de seus diretos, subordinados a penosos trabalhos, cujo salário para

a maior parte deles era apenas o prolongamento da vida.

O totalitarismo é um tipo distinto de dominação, sob uma aparência moderna. É uma

forma de ascendência que não se contenta com o superficialismo atroz, mas invade

todos os campos da perversidade, em prol da conquista de uma raça que obedeça aos

requisitos estéticos, políticos e culturais da minoria dominante, e que emprega sobre as

massas a barbárie e a falência ética.

Para Arendt, o totalitarismo está apoiado em dois pilares: ideologia e terror. Enquanto a

ilegalidade é a essência do governo tirânico, o terror é a própria essência do domínio

totalitário.

Os Campos de Concentração

A conotação do terror ganha força diante da crueldade dos campos de

concentração, que eram verdadeiros laboratórios, nos quais se verifica a dupla crença de

que tudo é possível e que tudo é permitido. Consentido, não no significado das

liberdades individuais, mas, ao contrário, do ponto de vista dos detentores do poder.

Enfatiza Lafer que

O internato do campo de concentração, vê-se separado por um abismo

intransponível do mundo dos vivos. Ingressa no mundo dos mortos-vivos.

Não tem preço algum porque sempre pode ser substituído. Ninguém sabe a

quem ele pertence, porque nunca é visto e, do ponto de vista da sociedade, é

absolutamente supérfluo, embora em épocas de intensa falta de mão-de-obra

tivessem os internatos nos campos sido utilizados, durante a guerra, na URSS

e na Alemanha, para o trabalho.11

O objetivo do totalitarismo é o de transformar por meio da desagregação e violência a

natureza humana, tornando-a uma raça pura, conforme os parâmetros ideológicos dos

comandos totalitários, principalmente em relação ao povo semita. Junto ao extermínio

10

SOUZA, 2007, p. 246. 11

LAFER, 1988, p. 107.

Page 5: Regime totalitário na concepção de hannah arendt

de milhares de pessoas, se junta às memórias das vítimas inocentes e de grupos

humanos inteiros resumidos em sujeitos desolados e derrotados pela opressão

Na compreensão de Arendt

Os campos de concentração não são apenas destinados ao extermínio de

pessoas e à degradação de seres humanos: servem também à horrível

experiência que consiste em eliminar, em condições cientificamente

controladas, à própria espontaneidade enquanto expressão do comportamento

humano, e em transformar a personalidade humana em simples coisa, em

alguma coisa que nem mesmo os animais possuem12

Desta maneira, percebe-se entre outros fatores, que os campos de concentração tinham

um objetivo fundamental: a destruição da pessoa jurídica e moral do indivíduo, morta a

pessoa não restava mais a consciência contrária às idéias totalitárias, estes indivíduos

eclipsados e renegados eram experimentos vivos de mortos-vivos.

Evidência Souki que

O outro aspecto a ser ressaltado sobre os campos de concentração, e que se

situa no quadro das características essenciais do totalitarismo, é o da

atmosfera de irrealidade e seu equivalente clima de ficção e a fluidificação da

consciência. Convém lembrar que os campos são não apenas a sociedade

mais totalitária já realizada, mas também o modelo social perfeito para o

domínio total. Os campos constituem a verdadeira instituição central do

poder organizacional totalitário. Da mesma forma como a estabilidade do

regime totalitário depende do isolamento do mundo fictício criado pelo

movimento em relação ao mundo exterior, também a experiência dos campos

de concentração depende de seu fechamento ao mundo de todos os homens, o

mundo dos vivos em geral.13

Essa atmosfera de aturdimento psíquico e irrealidade, criada pela aparente ausência de

propósitos, é a verdadeira cortina de ferro que esconde, dos olhos do mundo, todas as

barbáries cometidas dentro dos campos de concentração.

Nesta mesma perspectiva destaca Lafer que

Os campos de concentração em síntese não é uma instituição criada em nome

da produtividade, não tem função econômica e não é útil do ponto de vista

12

ARENDT, 1989, p. 506. 13

SOUKI. 1998, p. 56.

Page 6: Regime totalitário na concepção de hannah arendt

prático. Daí a aparência de desatinada irrealidade, aos olhos do mundo do

bom senso, dos campos de concentração.14

É esta uma característica da era moderna que com suas propagandas, engendram na

mentalidade da sociedade, realidades inexistentes, criando e disseminando uma ideia

superficial de que tudo vai bem, mas a realidade é outra e as coisas vão mal, pelo menos

para a maioria subjugada ao terror e às atrocidades dos que se acham melhores e

diferentes dos demais.

Destaca Lafer que

O totalitarismo concorre poderosamente, através da propaganda e da

ideologia instrumentalizada pelo terror, ao prender as pessoas ao mundo das

aparências ao agudizar, através da atomização do indivíduo na massa, o estar

sozinho da desolação.15

Segundo Arendt: “A igualdade de condições, embora constitua o requisito básico da

justiça, é uma das incertas especulações da humanidade moderna”.16

e isso fica

evidente diante da calamidade e da indiferença provocados por sentimentos

“Semitofóbico”. 17

Mais do que qualquer tipo de verdade moral é a desumanização e a descrença que

provocam uma crueldade que termina por levar à aceitação do extermínio como solução

perfeitamente normal.

A realidade totalitária é marcada pela existência camuflada de indivíduos desarticulados

de seu mundo, de suas crenças e até mesmo de sua humanidade; são seres

condicionados a aceitar, não importa o que, e eles terminam por não reagir a nada, nem

à vida nem à morte lhes importa mais, de forma que desempenham tarefas absurdas com

uma resignação absoluta.

Explicita Arendt que

A experiência dos campos de concentração demonstra que os seres humanos

podem transformar-se em espécimes do animal humano, e que a „natureza‟

do homem só é „humana‟ na medida em que dá ao homem a possibilidade de

tornar-se algo eminentemente não natural, isto é, um homem.18

14

LAFER, 1988, p. 107 15

LAFER, 1988, p. 239 16

ARENDT, 1989, p. 76. 17

Relativo à semitofobia, que é uma aversão ou intolerância aos judeus. 18

ARENDT, 1989, p 57.

Page 7: Regime totalitário na concepção de hannah arendt

Os campos minavam a personalidade dos prisioneiros e transformavam estes em cães,

sujeitos às piores humilhações, mas tão sofridos e dependentes ao regime já estavam,

que poucos eram os atos de resistência individual ou coletiva que surgia entre eles.

Os campos tronaram-se laboratórios experimentais para se estudar os meios mais

eficazes de se fazer o terror, onde imperava uma total desestruturação da condição da

humanidade, de forma que homens aplicavam o terror a outros homens, excluindo assim

todos os vínculos de igualdade, sem culpa ou ressentimento como se estes fossem

destituídos de qualquer posição ou proximidade com a vida humana.

Na concepção de Arendt:

É pelo fato de a igualdade exigir que eu reconheça que todo e qualquer

individuo é igual a mim que os conflitos entre os grupos diferentes, que por

motivos próprios relutam em reconhecer no outro essa igualdade básica,

assumem formas tão terrivelmente cruéis.19

O totalitarismo tinha uma eficácia técnica que colaborou dramaticamente para levar o

preconceito anti-semita às últimas consequências. Ademais, pode se caracterizar todo

este procedimento com o termo banalidade do mal, sendo que a banalidade do mal, da

qual Arendt fala quando analisa o comportamento burocrático do comandante do campo

de concentração em Auschwitz, “Eichmann20

”, somente aproxima-se do nosso

entendimento quando observamos os procedimentos técnicos, regidos pela eficácia da

produção moderna, e desvinculados, na consciência dos protagonistas da matança, do

terror e da sua finalidade, que era a transformação radical da raça humana em uma raça

pura.

A realidade do governo totalitário era incomum e banal. Nele o cotidiano era marcado

pela novidade violenta e ameaçadora, sendo que a única frequência era a brutalidade

estúpida e covarde imposta a pessoas indefesas, como idosos e crianças, através da qual

muitos eram massacrados em praças públicas.

19

ARENDT, 1989, p 77. 20

O alemão Adolf Eichmann era um criminoso nazista da II Guerra Mundial que foi capturado em

Buenos Aires, na Argentina, em 1960, e levado a Jerusalém por um comendo militar para julgamento em

um tribunal de Israel, onde foi condenado por crime contra o povo judeu. Na concepção de Arendt, que

em 1961 se ofereceu ao jornal americano The New Yorker para fazer a cobertura do julgamento em

Jerusalém, à singularidade de Eichmann consistia em sua trivialidade, pois não se tratava de um herói,

nem de um fanático, nem de um doente, nem de um grande perverso, nem de um paranóico ou de um

personagem. Para ela Eichmann era fundamentalmente insignificante, mas que possuía vontade. Arendt

trabalhava fatos e traz a banalidade do mal ao nível do cotidiano, ou seja, o que caracterizava o sujeito era

um vazio de pensamento, que não quer dizer se tolo, mas que o predispôs a tornar-se o grande criminoso

que acabou sendo.

Page 8: Regime totalitário na concepção de hannah arendt

Tudo isso revela que a própria banalidade do mal que na concepção de Arendt consiste

no mal político, passa a aceitar o inaceitável, transformando-o em algo normal e legal.

Semelhante a isso Duarte destaca que: “Tipologias que designam aquelas cuja mera

existência implica discordância para com a ideologia totalitária, merecendo ser

sistematicamente exterminados, independentemente do que pensem, falem ou façam”. 21

Uma Sociedade Sem Classes

As causas do totalitarismo foram diversas, sendo que a “política imperialista”22

transformou-se em um dos pilares deste movimento. Uma vez que na concepção de

Arendt: “A força sem coibição só pode gerar mais força, e a violência administrativa

em benefício da força – e não em benefício da lei – torna-se um dos princípios

destrutivos que só é detido quando nada mais resta a violar”.23

Além destes, outro fator que permitiu o surgimento do totalitarismo foi a secularização,

este é um fator característico da modernidade, que tentou pulverizar da sociedade

moderna as marcas firmes da religiosidade. Sendo que: “A afirmação das leis

defendidas por nazistas e comunistas teve como base”, 24

como evidencia Lefort:“A

erosão que havia sofrido anteriormente à fé numa verdade acima dos homens, à fé

numa lei transcendente, quer fosse definida como direito natural ou emanasse dos

mandamentos de Deus”.25

A era moderna reforçou a subjetividade humana, forçando os homens a uma vida em

que tudo é dinâmico e rápido, e todo tipo de ação comunitária é tido como perda de

tempo. E isso corroborou para a propagação dos ideais totalitários, nos quais os

governos do terror encontraram no individualismo exacerbado o terreno fértil, para a

acomodação de suas leis. Sendo que totalitarismo viu na organização de classes um

perigo, e para isso eles tiveram que buscar nos formadores de opiniões os inimigos que

poderiam destruir toda a sua organização.

O totalitarismo baseia-se em uma organização governamental e sistemática da vida dos

homens prescindindo-os do discurso da ação e de todas as formas de organização

voluntária ou involuntária em qualquer tipo de classe, considerando-os como animais

controláveis e descartáveis.

21

DUARTE, 2000, p. 251. 22

É a política de expansão e domínio territorial, cultural e econômico de um nação sobre outra, ou sobre

um ou varias regiões geográficas. 23

ARENDT, 1989, p.176. 24

SOUZA, 2007, p. 248. 25

LEFORT. 1999, p. 29.

Page 9: Regime totalitário na concepção de hannah arendt

O regime totalitário instigou a organização burocrática de massas, apoiando-se no

emprego do terror e da ideologia. Lafer ressalta que: “o fenômeno totalitário revelou

não existirem limites à deformação da natureza humana e provou com o genocídio, que

tudo é possível”.26

Diante do quadro de desordem moral e da brutalidade imposta às massas, os

movimentos totalitários governam massas humanas em que os indivíduos estão

totalmente desmotivados, isolados e desmoralizados, é uma sociedade atomizada e

despreparada, relegada aos mandis e desmandes.

É de maneira silenciosa, um meio de condicionar as massas a um comportamento único

de passividade e de obediência a tudo o que a ela estava sendo imposto, de forma que os

que são subjugados não tenham sequer o direito de pensar sobre as condições reais e

desumanas nas quais se encontravam.

Na visão de Souza

O processo de atomização que marcou o século XX é visto por Arendt como

o fator básico para o surgimento e consolidação do totalitarismo, ao gerar as

multidões desorientadas e compostas por indivíduos isolados e

desmoralizados que seria a base do sistema, fornecendo seus adeptos, seus

soldados e seus carrascos.27

Os movimentos totalitários caracterizam se desta maneira, na concepção de Arendt

Pela atomização e isolamento social de seus membros e pela exigência de

lealdade absoluta deles requerida: “essa exigência é feita pelos líderes dos

movimentos totalitários mesmo antes de tomarem o poder e decorre da

alegação, já contida em sua ideologia, de que a organização abrangerá, no

devido tempo, toda a raça humana”.28

Transformando a em uma sociedade dócil às posições tomadas pelos seus governos

totalitários, de destituição das classes favorecendo em grande proporção o surgimento

de indivíduos intolerantes e individualistas que buscam um sentido para a sua

existência, que se perderam com as transformações modernas.

Escreve Melo que

Reverter as consequências da própria modernidade que gerou: “ destruição da

esfera pública força o homem solitário de massa a ir em busca de um

26

LAFER, C. 2003, p. 37. 27

SOUZA, 2007, p. 249. 28

ARENDT, 1989, p. 373.

Page 10: Regime totalitário na concepção de hannah arendt

universo de garantias, de certezas; onde a existência de um sistema

consistente e absolutamente coerente não permita a presença do acaso”.29

A destruição da esfera pública é um dos fatores chave para o isolamento de cidadãos

inocentes, marcados pela exclusão, e alienação daqueles que não lhe dão o direito a

liberdade. Segundo Wagner tal isolamento é visto por Arendt como “o resultado da

ocupação do espaço público pela atividade do labor, atividade que, anteriormente

havia se localizado sempre na esfera privada.” 30

O processo de desagregação social surgido com o totalitarismo é descrito por Young-

bruhel como uma deterioração das classes, fazendo com que os indivíduos se vissem em

meio a um clima de terror de maneira que não havia mais em quem buscar esperanças.

Segundo Young-bruhel: “Primeiro os indivíduos ficavam isolados em suas classes e

então, à medida que as próprias classes se deterioravam a partir de dentro, tornavam-

se atomizadas e desumanas.” 31

A nova sociedade totalitária é anti-semita, cria desigualdades e marginalização,

resultando em novas práticas sociais de isolamento e fechamento dos indivíduos, de

modo que os valores fraternos dão lugar à hostilidade e à desconfiança de todos contra

todos, criando assim uma ressonância de amplas dimensões, na sociedade marcada pelo

estigma da intolerância e da desolação.

Ao considerar a população apenas do ponto de vista biológico laborante, o governo

totalitário tratou de eliminar qualquer instituição ou vínculo humano que pudesse dar

abrigo à solidariedade, à ação e à diferenciação entre os indivíduos. Destituindo tudo no

qual as pessoas poderiam ser amparadas e respeitadas, como partidas, família, arte,

religiões, sindicatos, justiça e outras formas de organização.

A desconstrução dos valores humanos no período totalitário tem por meio a ação, onde

os homens mostram suas identidades singulares. A modernidade proporcionou ao

homem embarcar em um mundo onde a ação é o fator chave para a estruturação

material da vida. Os campos de concentração excluíram da vida de seus subjugados a

ação enquanto crescimento individual e material, proporcionando apenas o ato de agir

como forma de adiarem o seu fim inevitável.

A ação totalitária restrita aos campos de concentração não era uma ação política, mas

uma ação qualquer que estava em busca de um fim, que foi levado a cabo no genocídio

29

MELO, 2003, p. 13. 30

WAGNER, 2002, p. 152. 31

YOUNG-BRUHEL, 1997, p. 210.

Page 11: Regime totalitário na concepção de hannah arendt

de milhões de judeus, e que é caracterizado por Arendt como um crime contra a

humanidade, perpetrado no corpo do povo judeu.

Ressalta Lafer que

A destruição da personalidade moral se obtém, na análise de Hannah Arendt,

através do anonimato imposto pelo silêncio que cerca os campos de

concentração. O silêncio faz desaparecer a palavra escrita e falada, a dor e a

recordação, até mesmo na memória da família, dos internados. Por isso, os

campos não criam um espaço para o aparecimento nem de heróis nem de

mártires. Além disso, “os campos de concentração, tornando anônima a própria

morte e tornando impossível saber se um prisioneiro está vivo ou morto,

roubaram da morte o significado de desfecho de uma vida realizada. Em certo

sentido, roubaram a própria morte do indivíduo, provando que, doravante, nada –

nem a morte – lhe pertencia e que ele não pertencia a ninguém. A morte apenas

selava o fato de que ele jamais havia existido.32

Se por um lado a modernidade trouxe consigo a glorificação da técnica, e com isso um

nível de conforto material e riquezas jamais vistos, por outro lado, o totalitarismo

descortinou como um monstro, tamanha foi a sua desumanidade, sobrepujando o

interesse coletivo, transformando homens em seres desconexos com o seu tempo,

estagnados pela miséria e pela indiferença daqueles que estavam de fora do contexto

total.

O desenrolar da análise de Arendt, em relação aos regimes totalitários, dá-se no

processo de naturalização da sociedade e na instrumentalização da natureza ocorrido

com a massificação das escolhas e das organizações humanas na era moderna. Em que o

domínio total é mais destruidor que a escravidão e a miséria econômica.

Conclusão

A era moderna legou a humanidade um grande desenvolvimento tecnológico e

industrial, ao mesmo tempo em que favoreceu uma parte dos homens modernos a se

firmarem, por uma ideologia eufórica do ter, e do poder, garantindo para uma minoria

o domínio e o controle de uma maioria, alienada pelos sistemas de ideias politicas e

segregacionista que imperaram em alguns lugares do mundo.

É no contexto da era moderna que surgem os movimentos totalitários que destruíram

milhares de judeus, em campos de concentração, nestes, a vida humana perde

totalmente o seu valor, sendo o homem tratado de forma covarde e inumana.

32

LAFER, 1988, p. 111.

Page 12: Regime totalitário na concepção de hannah arendt

Assim a sociedade pós-moderna na qual estamos é intensamente influenciada pelos

ideais da era moderna; muito do que foi plantado lá, nós hoje colhemos, como por

exemplo, a desagregação social, e todos os tipos de violência contra vida.

No nosso contexto atual, as pessoas moram em condomínios, em apartamentos,

dividindo, as vezes, a mesma parede, mas não se conhecem; cada um se fecha no seu

mundo na medida em que pode; em muitas famílias as crianças crescem sem um

relacionamento íntimo e respeitoso para com os seus pais; é uma sociedade que não

oferece mais nenhuma segurança, onde o perigo se encontra nas ruas e até mesmo nas

escolas.

Refletir o pensamento de Arendt é lançar um olhar para esta sociedade atual e perceber,

nela os grandes dilemas que estão a nos sufocar. O pensamento político e filosófico de

Arendt conserva a pertinência, o caráter original e inusitado que fizeram dela uma

importante figura no cenário do pensamento filosófico e da teoria política

contemporânea.

A era moderna caracteriza-se para Arendt como a tentativa plausível do homem, de

construir um mundo melhor, levando em conta os ideais políticos de respeito e

favorecimento mútuo na promoção da vida.

A originalidade da perspectiva teórica arendtiana se revela, por exemplo, em sua

avaliação da crise política no mundo contemporâneo, no qual se mostram cada vez mais

exíguas as possibilidades de uma experiência democrática radical.

Para Arendt, o traço marcante da modernidade é o esquecimento das suas determinações

democráticas e tradicionais. Por um lado, isto se dá em função do crescente emprego

dos meios tecnológicos da violência, aspecto elevado ao paroxismo pelos totalitarismos

de esquerda e de direita ao longo do período moderno.

Esta pesquisa discute a condição humana no contexto da era moderna, as diversas

transformações, pelas quais a humanidade passara, e a inversão entre a contemplação e

a vita activa que o homem moderno impõe a si mesmo para sobreviver.

Neste sentido todos os homens são condicionados, até mesmo aqueles que condicionam

o comportamento de outros se tornam condicionados pelo próprio movimento de

condicionar.

Arendt demonstra ao longo de seu pensamento, que as construções humanas e tudo o

que espontaneamente adentra o mundo humano, ou para ele é trazido pelo esforço

humano, torna se parte da condição humana.

Page 13: Regime totalitário na concepção de hannah arendt

Esta pesquisa enfatiza a condição humana na era moderna, onde a partir da filosofia de

Arendt é feita uma análise dos desdobramentos da vida do homem à luz das mais novas

experiências, tendo também, como objeto de estudo o sistema totalitário e as suas

atrocidades, investigados pela pensadora.

É marcante na modernidade a introdução da técnica, como meio de favorecer as

inspirações humanas. Hannah Arendt percebia neste fato a necessidade do homem de

fugir da sua condição humana, e um apequenamento da terra a partir do advento da era

moderna mais precisamente com as grandes navegações, e com a descoberta de

telescópio por parte de Galileu, dando ao homem à oportunidade de sonda a

possibilidade de um dia viver fora da terra.

O mundo moderno é caracterizado por Arendt como um lar feito pelo homem, quer

dizer, um mundo como um artefato humano. A noção de mundo cumpre um papel

importante neste contexto, pois ela envolve as coisas interpostas entre os homens, a

partir das quais, estes, ao mesmo tempo em que conservam lugares distintos,

estabelecem uma relação entre o homem e as coisas interpostas entre ele, mesmo que

esta relação seja uma relação de condição.

Ao longo da pesquisa é evidenciada a grande importância da fabricação na vida do

homem, e tendo destaque o papel do home faber como fazedor de utensílios

condicionantes da vida.

A fabricação é uma das qualidades do homem moderno, que despreza cada vez mais a

sua capacidade de pensar em favor das atividades peculiares e necessárias ao ritmo

imposto pela nova forma de conceber e dar significado a sua existência.

A sobrevivência humana na era moderna estará condicionada a um grande aparato

técnico, que determinará o comportamento do individuo moderno e suas relações

cotidianas, de maneira que como é evidenciado por Arendt, é a máquina que

determinará o comportamento do homem na era moderna.

A ponderação acerca da vida humana na era moderna, feita por esta grande pensadora,

nos transmite uma ampla reflexão, que tem como cunho primordial o amplo

questionamento que perpassa a sua obra de maneira silenciosa, mas que, não deixa de

ser evidenciada: “o que estamos fazendo? 33

Por outro lado, temos a partir das experiências colhidas pela modernidade o mais

eloquente compromisso de refletir sobre as nossas capacidades corrompidas pela

33

ARENDT, 2001, p. 13

Page 14: Regime totalitário na concepção de hannah arendt

introdução da técnica no nosso dia-a-dia, e de que modo elas estão nos tirando a

humanidade.

Através do caminho percorrido, concluímos a grande importância da reflexão do

pensamento arendtiano na nossa contemporaneidade e a pertinência do tema desta

pesquisa, e sua veracidade através dos desdobramentos da história que chegam até nós,

não só, por meio de escritos, mas, enraizados na nossa tradição ocidental, nos legando

uma gama de valores e contra valores que tendem a nos conduzir, a partir das nossas

escolhas, a um reto caminho de virtude e justiça.

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