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ESTUDOS CONSTITUCIONAIS 211 REGIME JURÍDICO DO PETRÓLEO E GÁS NATURAL NO BRASIL: LINHAS GERAIS 1 Fernando Bertoletti Bastos Jean Carlo Jacichen Luz Sumário 1 - Introdução: delimitação do objeto e propósito do estudo; 2 - Regime jurídico do petróleo e gás natural no Brasil; 2.1 - Retrospectiva histórica; 2.2 - O advento da Constituição de 1988, da EC nº 9/95 e da Lei nº 9.478/1997; 2.2.1 - O julgamento da ADI nº 3.273; 2.3 - A descoberta do pré-sal e o advento de um novo marco regulatório; 2.3.1 - A Lei nº 12.276/2010 e o regime de cessão onerosa; 2.3.2 - As Leis nº 12.304 e 12.351/2010 e o regime de partilha de produção. 1. Introdução: delimitação do objeto e propósito do estudo O presente estudo tem por objeto o regime jurídico do petróleo e gás natural no Brasil. Seus autores não irão se aventurar a explicar o processo geológico de formação desse combustível fóssil e sua caracterização como recurso natural não-renovável. Nem irão se preocupar em descrever o percurso histórico por meio do qual ele se tornou uma das principais e mais rentáveis fontes de energia do planeta. Tampouco irão tentar desvendar a complexa dinâmica geopolítica existente entre os maiores países produtores e consumidores de petróleo do mundo e suas empresas. A respeito desses interessantes temas há extensa literatura especializada à disposição dos leitores ávidos por compreender melhor esses processos. O enfoque deste trabalho é única e exclusivamente jurídico, quer isso dizer que seus autores estão tão-somente preocupados em analisar como as normas jurídicas vigentes disciplinam as atividades do setor petróleo e gás natural no país. Claro que nem todos os aspectos jurídicos relacionados ao tema poderão ser abordados nesse estudo, pois isso certamente o tornaria excessivamente extenso. Não se abordará, por exemplo, a questão dos royalties e dos tributos incidentes sobre o setor. Essas 1 Resultados das pesquisas desenvolvidas no grupo de estudos “Regime jurídico do petróleo e gás natural no Brasil”, sob orientação do professor Flávio Pansieri.

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ESTUDOS CONSTITUCIONAIS 211

REGIME JURÍDICO DO PETRÓLEO E GÁS NATURAL NO BRASIL: LINHAS GERAIS1

Fernando Bertoletti BastosJean Carlo Jacichen Luz

Sumário

1 - Introdução: delimitação do objeto e propósito do estudo; 2 - Regime jurídico do petróleo e gás natural no Brasil; 2.1 - Retrospectiva histórica; 2.2 - O advento da Constituição de 1988, da EC nº 9/95 e da Lei nº 9.478/1997; 2.2.1 - O julgamento da ADI nº 3.273; 2.3 - A descoberta do pré-sal e o advento de um novo marco regulatório; 2.3.1 - A Lei nº 12.276/2010 e o regime de cessão onerosa; 2.3.2 - As Leis nº 12.304 e 12.351/2010 e o regime de partilha de produção.

1. Introdução: delimitação do objeto e propósito do estudo

O presente estudo tem por objeto o regime jurídico do petróleo e gás natural no Brasil. Seus autores não irão se aventurar a explicar o processo geológico de formação desse combustível fóssil e sua caracterização como recurso natural não-renovável. Nem irão se preocupar em descrever o percurso histórico por meio do qual ele se tornou uma das principais e mais rentáveis fontes de energia do planeta. Tampouco irão tentar desvendar a complexa dinâmica geopolítica existente entre os maiores países produtores e consumidores de petróleo do mundo e suas empresas. A respeito desses interessantes temas há extensa literatura especializada à disposição dos leitores ávidos por compreender melhor esses processos.

O enfoque deste trabalho é única e exclusivamente jurídico, quer isso dizer que seus autores estão tão-somente preocupados em analisar como as normas jurídicas vigentes disciplinam as atividades do setor petróleo e gás natural no país. Claro que nem todos os aspectos jurídicos relacionados ao tema poderão ser abordados nesse estudo, pois isso certamente o tornaria excessivamente extenso. Não se abordará, por exemplo, a questão dos royalties e dos tributos incidentes sobre o setor. Essas

1 Resultados das pesquisas desenvolvidas no grupo de estudos “Regime jurídico do petróleo e gás natural no Brasil”, sob orientação do professor Flávio Pansieri.

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temáticas, dada sua importância e complexidade, somente poderiam ser enfrentadas em outro trabalho. O propósito desse estudo é de apenas apresentar um panorama geral do regime jurídico a que estão submetidos o petróleo e o gás natural sob a égide da Constituição de 1988 e da legislação infraconstitucional.

Ressalte-se finalmente que, dado o estágio inicial das pesquisas desenvolvidas por seus autores, seu propósito é nitidamente expositivo-descritivo e não propriamente crítico-propositivo. Assim, não se espere encontrar aqui a identificação de deficiências e imperfeições da disciplina constitucional e infraconstitucional do petróleo e gás natural no Brasil, nem propostas para sua correção ou aperfeiçoamento.

2. Regime jurídico do petróleo e gás natural no Brasil

2.1 Retrospectiva histórica

Em interessante pesquisa a respeito do regime jurídico dos recursos minerais e do petróleo no Brasil, Gilberto Bercovici (2011) examina a legislação editada no país sobre o tema e mostra como “[o] controle do Estado sobre estes recursos esteve, historicamente, vinculado à própria afirmação da soberania estatal, desde os tempos da colonização portuguesa. A relação do petróleo e dos recursos minerais com a soberania econômica, portanto, é umbilical” (p. 10). Durante o período colonial, adotava-se no país o sistema regaliano ou dominial de propriedade do subsolo, distinta da do solo, pelo qual as minas pertenciam à Coroa portuguesa; sistema esse que foi mantido após a independência, com a diferença de que, com o advento da Constituição monárquica de 1824, os antigos bens da Coroa portuguesa passaram para a nação brasileira. No período monárquico, constam as primeiras autorizações ou concessões envolvendo petróleo, porém há que se ressaltar que essas estavam voltadas mais à exploração de minérios do que exatamente de petróleo (BERCOVICI, 2011, pp. 56, 65 e 67). Com a queda da monarquia, a Constituição republicana de 1891, em seu artigo 72, §17, substituiu o sistema anterior pelo da acessão, pelo qual o proprietário do solo era também proprietário do subsolo. Com isso, havia minas de propriedade da União, dos Estados-membros e de propriedade particular (BERCOVICI, 2011, p. 69). Na Primeira República, foi instituído, por meio do Decreto nº 6.323/1907, o Serviço Geológico e Mineralógico do Brasil (SGMB), cujas carências dificultaram a exploração de minérios no país, não obstante as tentativas pontuais de realizar perfurações, sobretudo no Estado de São Paulo, para a exploração de petróleo (BERCOVICI, 2011, p. 80).

Segundo Mauricio Tiomno Tolmasquim e Helder Queiroz Pinto Junior, “[o] processo de construção institucional moderna do setor petróleo no Brasil é indissociável dos Governos de Getúlio Vargas (1930-1945 e 1951-1954). As mudanças trazidas pela revolução de trinta representaram o início da intervenção do governo federal na economia brasileira, especialmente no que concerne ao aproveitamento econômico dos recursos naturais” (TOLMASQUIM & PINTO JUNIOR, 2011, p. 243). Como ressalta Bercovici, o nacionalismo econômico se projeta naquele momento como alternativa

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que busca uma maior independência econômica do país, com base no controle estatal sobre os recursos naturais. A condição de país essencialmente exportador de matérias-primas era encarada como uma vulnerabilidade e o Estado passa a ser reestruturado para equacionar essa questão (BERCOVICI, 2011, p. 91). O SGMB foi, então, transformado no Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) em 1934. O Decreto nº 24.642/1934, mais conhecido como Código de Minas de 1934, ao dispor em seu artigo 4º que a jazida é coisa distinta e não integrante do solo em que está encravada, diferenciou a propriedade do solo da do subsolo. Determinou, ainda, em seu artigo 5º, que as “jazidas conhecidas”, uma vez cumpridas as formalidades estabelecidas em seu artigo 10, continuariam pertencendo aos proprietários do solo onde se encontrassem ou a quem fosse a título legítimo; já as “jazidas desconhecidas”, uma vez descobertas, seriam incorporadas ao patrimônio nacional. A Constituição de 1934 também distinguiu, em seu artigo 118, a propriedade do solo e a do subsolo para efeito de exploração ou aproveitamento industrial, porém determinou, no artigo seguinte, que a exploração das minas e jazidas, ainda que de propriedade privada, dependiam de autorização ou concessão federal, na forma da lei (BERCOVICI, 2011, pp. 92-94).

Com a instauração do Estado Novo, a Constituição de 1937, no §1º de seu artigo 143, restringiu a exploração das minas e jazidas a brasileiros ou empresas constituídas por acionistas brasileiros. Nesse mesmo sentido, o Decreto-Lei nº 1.985/1940, mais conhecido como Código de Minas de 1940, em seu artigo 6º, restringiu o direito de pesquisar ou lavrar a brasileiros, pessoas naturais ou jurídicas, constituídas estas por sócios ou acionistas brasileiros (BERCOVICI, 2011, pp. 109-110). O Decreto-Lei nº 366/1938 introduziu, no Código de Minas de 1934, o título VIII, cujos artigos 96 a 118 tratavam especificamente sobre petróleo e gás natural. Os artigos 97 e 96 estabeleciam, respectivamente, que as jazidas de petróleo e gás natural existentes no território nacional pertenciam, em caráter imprescritível, aos Estados-membros ou à União, e que a lei não reconhecia o domínio privado de particulares sobre elas. Já o Decreto-Lei nº 395/1938 declarou, em seu artigo 1º, de utilidade pública o abastecimento nacional de petróleo. De acordo com seu artigo 2º, o governo federal tinha competência exclusiva para atuar no setor, instituindo-se, por força de seu artigo 4º, o Conselho Nacional do Petróleo (CNP), subordinado diretamente ao Presidente da República. O Decreto-Lei nº 3.236/1941, mais conhecido como Código do Petróleo, determinou, em seu artigo 5º, que a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural continuariam sendo reguladas pelas disposições gerais do Código de Minas de 1940 – em tudo quanto não fosse nele expressamente modificado. Estabeleceu, em seu artigo 1º, que as jazidas de petróleo e gás natural existentes no território nacional pertenciam, em caráter imprescritível, à União (BERCOVICI, 2011, pp. 119-122). Ainda em relação a esse período, merece destaque a descoberta, feita na região de Lobato no Estado da Bahia, no dia 21 de janeiro de 1939, do primeiro poço de petróleo do Brasil, contrariando o laudo do geólogo estrangeiro que indicava a impossibilidade de existência de petróleo naquela região (BERCOVICI, 2011, pp. 100-101).

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A Constituição de 1946, no §1º de seu artigo 153, permitiu que as autorizações ou concessões para exploração dos recursos minerais fossem conferidas exclusivamente a brasileiros ou a “sociedades organizadas no país”, o que provocou uma controvérsia em torno da constitucionalidade do artigo 6º do Código de Minas de 1940, que proibia a participação de estrangeiros, inclusive como sócios ou acionistas nas sociedades de mineração, controvérsia essa que acabou sendo acolhida pelo STF em uma decisão que data de 1963 (BERCOVICI, 2011, pp. 136-138). Diante disso, o Presidente Dutra encaminhou, ao Congresso Nacional, um projeto de lei que ficou conhecido como Estatuto do Petróleo, com a proposta abrir o setor ao capital privado, tanto nacional como estrangeiro, a qual passou a contar com a oposição de diferentes setores da sociedade civil, que saíram em defesa do monopólio estatal sobre o petróleo, dando início à campanha “O Petróleo é nosso!” (BERCOVICI, 2011, pp. 144 e 146).

Para Bercovici, com o retorno de Getúlio Vargas ao poder em 1951, agora eleito pelo povo, o nacionalismo sai novamente fortalecido (BERCOVICI, 2011, p. 148). Esse encaminhou, ao Congresso Nacional, o Projeto de Lei nº 1.516/1951, com a proposta de criação da sociedade por ações “Petróleo Brasileiro S.A. (Petrobras)”. O projeto gerou calorosos debates em torno de inúmeros aspectos relacionados a essa nova entidade, inclusive acerca de sua natureza jurídica como sociedade de economia mista. Foi necessário prever expressamente o monopólio estatal sobre as atividades de pesquisa, lavra, refinação e transporte do petróleo, para poder levar adiante a tramitação do projeto. Em 3 de outubro de 1953, o Presidente Vargas sancionou a Lei nº 2.004/1953 que, a um só tempo, instituiu o monopólio estatal do petróleo no Brasil e autorizou a criação da Petrobras, cujas atividades somente se iniciariam em 10 de maio de 1954 (BERCOVICI, 2011, pp. 158 e 161). Os três incisos de seu artigo 1º definiram as atividades que constituíam monopólio da União: (I) a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e outros hidrocarbonetos fluídos e gases raros, existentes no território nacional; (II) a refinação do petróleo nacional ou estrangeiro; e (III) o transporte marítimo do petróleo bruto de origem nacional ou de derivados de petróleo produzidos no país, bem como o transporte, por meio de condutos, de petróleo bruto e seus derivados, assim como de gases raros de qualquer origem. Seu artigo 2º, por sua vez, estabeleceu que a União exerceria seu monopólio por meio do CNP, como órgão de orientação e fiscalização, e da Petrobras e das suas subsidiárias, constituídas na forma da referida lei, como órgãos de execução.

Sobre esse ponto, Tolmasquim e Pinto Junior chamam a atenção para o fato de que: “Na maior parte dos casos internacionais, a nacionalização da indústria do

petróleo ocorreu em um ambiente já caracterizado pela abundância de petróleo, onde o governo e a sociedade, não sem razão, se sentiam espoliados de suas riquezas naturais (o petróleo) pelas grandes empresas internacionais, as quais, em geral, se identificavam com os governos dos antigos países colonizadores. No caso brasileiro, o contexto era de escassez de petróleo, e o ‘ente colonizador e espoliador’ não estava presente. Assim, a racionalidade da nacionalização parece muito mais justificada pelo princípio da indústria nascente (construção da grande empresa nacional do petróleo para enfrentar os desafios necessários

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e fazer frente à ameaça potencial do capital estrangeiro) e pela percepção do caráter estratégico do petróleo para a industrialização do país (a grande aspiração sociopolítica nacional) do que por motivação anti-imperialista. Afinal, não havia nem ‘espoliação’, nem o ‘ente colonizador’, no contexto brasileiro.” (TOLMASQUIM & PINTO JUNIOR, 2011, p. 248)

Segundo Bercovici, com o golpe de 1964, há uma mudança na orientação da legislação sobre recursos minerais no Brasil (BERCOVICI, 2011, p. 178). A Constituição de 1967 conservou, em seu artigo 161, a distinção entre a propriedade do solo e a do subsolo, bem como a expressão “sociedades organizadas no país”, o que permitiu a participação de empresas estrangeiras na mineração. Por outro lado, ao dispor, em seu artigo 162, que a pesquisa e a lavra de petróleo em território nacional constituem monopólio da União, nos termos da lei, o monopólio estatal sobre o petróleo passou a ter status constitucional (BERCOVICI, 2011, p. 181). Em relação ao período do regime militar, dois fatos merecem destaque. O primeiro deles é a expansão das fronteiras exploratórias nacionais pela Petrobras; e o segundo é a adoção, no governo Geisel, dos chamados “contratos de risco”. Com efeito, sem obter sucesso nas tentativas de descobrir grandes jazidas terrestres de petróleo no Brasil, os técnicos da Petrobras propuseram em 1967 a transferência progressiva da pesquisa para a plataforma continental. Com a descoberta da Bacia de Campos, no Estado do Rio de Janeiro, em 1973, a Petrobras teve que desenvolver toda uma tecnologia própria para explorar petróleo em águas profundas (BERCOVICI, 2011, pp. 196-197). Em relação aos “contratos de risco”, o governo alegou que, nessa modalidade contratual, o contratado assumiria os riscos e custos da pesquisa e desenvolvimento dos campos e somente seria reembolsado na hipótese de descoberta de jazidas, ao passo que a Petrobras manteria a propriedade sobre o petróleo e quaisquer outros recursos encontrados, sendo que, ao término do contrato, ela retomaria o controle da produção (BERCOVICI, 2011, pp. 200-201). Esses contratos foram permitidos de 1975 a 1988, quando foram vetados pela Constituição de 1988, mas não teriam alcançado um resultado relevante (TOLMASQUIM & PINTO JUNIOR, 2011, p. 252).

2.2 O advento da Constituição de 1988, da EC nº 9/95 e da Lei nº 9.478/1997

A Constituição de 1988 estabelece, em seu artigo 176, caput, que as jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União. Nesse mesmo sentido, dispõe, em seu artigo 20, IX, que os recursos minerais, inclusive os do subsolo, são bens da União. Na parte final do artigo 176, caput, é garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra. O §1º do artigo 176, em sua redação original, dispunha que a pesquisa e a lavra de recursos minerais somente poderiam ser efetuadas mediante autorização ou concessão da União, no interesse nacional, por brasileiros ou por empresa brasileira de capital nacional, na forma da lei, o que excluía as empresas de capital estrangeiro. Como se verá adiante, esse dispositivo, porém, será posteriormente alterado por uma emenda

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constitucional (EC). O §2º do artigo 176, por sua vez, assegura ao proprietário do solo participação nos resultados da lavra, na forma e no valor que dispuser a lei. Ressalte-se, ainda, que o artigo 22, XII, dispõe que é competência privativa da União legislar sobre jazidas, minas, outros recursos minerais e metalurgia.

Para Bercovici, “[v]isando assegurar esta soberania energética, a constitucionalização do monopólio do petróleo foi mantida e ampliada pela Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988.” (BERCOVICI, 2011, p. 235). O artigo 177 da Constituição de 1988 arrola, em seus incisos I a IV, as atividades relacionadas ao setor petrolífero que constituem monopólio da União: (I) a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos; (II) a refinação do petróleo nacional ou estrangeiro; (III) a importação e exportação dos produtos e derivados básicos resultantes das atividades anteriores; e (IV) o transporte marítimo do petróleo bruto de origem nacional ou de derivados básicos de petróleo produzidos no país, bem como o transporte, por meio de conduto, de petróleo bruto, seus derivados e gás natural de qualquer origem. Na Constituinte, chegou-se a se cogitar a inclusão no monopólio da atividade de distribuição dos derivados do petróleo, proposta essa que, no entanto, não prevaleceu (BERCOVICI, 2011, p. 235).

Em sua redação original, o §1º do artigo 177 estabelecia que o monopólio previsto nesse artigo incluía os riscos e resultados decorrentes das atividades nele mencionadas, sendo vedado à União ceder ou conceder qualquer tipo de participação, em espécie ou em valor, na exploração de jazidas de petróleo ou gás natural, ressalvado o disposto no §1º do artigo 20. Como já foi mencionado, a Constituição de 1988 vetou a celebração dos chamados “contratos de risco”, porém, no parágrafo único do artigo 45 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), ressalvou da vedação estabelecida no §1º do artigo 177 aqueles feitos com a Petrobras para pesquisa de petróleo que estivessem em vigor na data da promulgação da Constituição. Como se verá adiante, o §1º do artigo 177 será inteiramente alterado por uma EC.

Ressalte-se, por fim, que os artigos 20, IX, e 176, caput, da Constituição de 1988 definem os recursos minerais como bens da União. Não obstante, em seu artigo 25, §2º, dispõe ser da competência dos Estados-membros explorar diretamente, ou mediante concessão, os serviços locais de gás canalizado, na forma da lei. Além disso, o §1º do artigo 20 assegura, também nos termos da lei, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, bem como a órgãos da Administração Direta da União, participação no resultado da exploração de petróleo ou gás natural e demais recursos minerais no respectivo território, plataforma continental, mar territorial ou zona econômica exclusiva, ou compensação financeira por sua exploração.

A década de 1990 sinaliza uma nova mudança na orientação do papel do Estado na economia, com reformas que tiveram reflexos, inclusive, sobre a política de recursos minerais, de petróleo e gás natural. O CNP foi extinto e substituído pelo Departamento Nacional de Combustíveis (DNC) no ano de 1990 (BERCOVICI, 2011, p.

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244). No governo Fernando Henrique Cardoso (FHC), a EC nº 6/95 revoga o artigo 171 da Constituição, que estabelecia distinção entre empresa brasileira e empresa brasileira de capital nacional. Com isso, altera-se a redação do inciso IX do artigo 170, substituindo a expressão “empresas brasileiras de capital nacional” por “empresas constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País”. O mesmo se deu em relação ao §1º do artigo 176, que restringia a pesquisa e a lavra de recursos minerais à empresa brasileira de capital nacional, excluindo as empresas de capital estrangeiro. Bercovici observa que, com a nova redação dada pela emenda, essas últimas também passaram a poder realizar essas atividades, desde que constituam uma filial sob as leis brasileiras e com sede e administração no país (BERCOVICI, 2011, p. 248).

Nesse mesmo ano, foi proposta a flexibilização do monopólio da União sobre o petróleo e gás natural. Tolmasquim e Pinto Junior observam que, à época, “[m]uitos entendiam que a Petrobras já havia executado seu papel (o princípio da indústria nascente não mais se aplicava) e que já poderia competir em condições de igualdade com outras empresas petrolíferas. Argumentava-se ainda que a diversidade de interpretações geológicas e a atração de capitais estrangeiros para o Brasil contribuiriam para alcançar a autossuficiência e que uma estrutura mais competitiva poderia beneficiar o desenvolvimento da Petrobras [...]” (TOLMASQUIM & PINTO JUNIOR, 2011, p. 253). Com a aprovação da EC nº 9/95, o monopólio estatal sobre o petróleo e gás natural foi mantido, porém, flexibilizado, permitindo que a União contratasse com empresas estatais ou privadas a realização das atividades de petróleo e gás natural sob monopólio estatal. Alexandre de Moraes ressalta que a EC nº 9/95 trouxe uma nova concepção de monopólio, que deixou de ser o monopólio do exercício da atividade e passou a ser o monopólio de escolha do Poder Público (MORAES, 2000, pp. 222-223).

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A EC nº 9/95 alterou a redação do §1º e incluiu o §2º no artigo 171. Assim, onde antes se dizia que o monopólio previsto no artigo 177 incluía os riscos e resultados decorrentes das atividades nele mencionadas, sendo vedado à União ceder ou conceder qualquer tipo de participação na exploração de jazidas de petróleo ou gás natural, passou-se a dizer que a União poderá contratar com empresas estatais ou privadas a realização das atividades previstas nos incisos I a IV do artigo 177, observadas as condições estabelecidas em lei. Na sequência, foi inserido o §2º que estabelece que a lei a que se refere o parágrafo anterior disporá sobre a garantia do fornecimento dos derivados de petróleo em todo o território nacional, as condições de contratação e a estrutura e atribuições do órgão regulador do monopólio da União.

Alterações promovidas pela EC nº 9/95 nos §§1º a 3º do artigo 177 da Constituição de 1988

Antes da EC nº 9/95 Depois da EC nº 9/95§ 1º O monopólio previsto neste artigo inclui os riscos e resultados decorrentes das atividades nele mencionadas, sendo vedado à União ceder ou conceder qualquer tipo de participação, em espécie ou em valor, na exploração de jazidas de petróleo ou gás natural, ressalvado o disposto no art. 20, § 1º

§ 1º A União poderá contratar com empresas estatais ou privadas a realização das atividades previstas nos incisos I a IV deste artigo observadas as condições estabelecidas em lei.

§ 2º A lei disporá sobre o transporte e a utilização de materiais radioativos no território nacional.

§ 2º A lei a que se refere o § 1º disporá sobre:

I - a garantia do fornecimento dos deriva-dos de petróleo em todo o território nacio-nal;

II - as condições de contratação;

III - a estrutura e atribuições do órgão re-gulador do monopólio da União§ 3º A lei disporá sobre o transporte e a utilização de materiais radioativos no território nacional.

Nesse contexto, foi encaminhado ao Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 2.142/1996, no qual se propunha basicamente a abertura da indústria do petróleo. Com a aprovação da Lei nº 9.478/1997, também chamada de Lei do Petróleo, a Petrobras deixa de atuar como executora do monopólio estatal sobre o petróleo, para tornar-se uma empresa concessionária (TOLMASQUIM & PINTO JUNIOR, 2011, p. 273). Além disso, foram criados: o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), vinculado à Presidência da República e presidido pelo Ministro de Estado de Minas e Energia,

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com a função de propor ao Presidente da República políticas nacionais e medidas específicas na área energética; e a Agência Nacional do Petróleo, renomeada pela Lei nº 11.097/2005 para Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), autarquia especial vinculada ao Ministério de Minas e Energia, com funções de regulação, contratação e fiscalização das atividades do setor. Cabe a essa última, entre outras incumbências relacionadas ao longo dos incisos do artigo 8º da lei, implementar, em sua esfera de atribuições, a política nacional de petróleo, gás natural e biocombustíveis, contida na política energética nacional. Ressalte-se que, nesse momento, o DNC é incorporado à ANP, conforme disposto no artigo 9º da lei. Alexandre Santos de Aragão comenta que: “A Lei do Petróleo, [...] a exemplo das demais leis instituidoras de agências reguladoras, integra a categoria das leis quadro (lois-cadre) ou standartizadas, próprias das matérias de particular complexidade técnica e dos setores suscetíveis a constantes mudanças econômicas e tecnológicas.” (ARAGÃO, 2006, p. 4).

O artigo 1º da lei define os objetivos da política energética nacional, dentre os quais destacam-se: (I) a preservação do interesse nacional; (II) a promoção do desenvolvimento, a ampliação do mercado de trabalho e a valorização dos recursos energéticos; (III) a proteção dos interesses do consumidor, quanto a preço, qualidade e oferta dos produtos; (IV) a proteção do meio ambiente e a conservação de energia; (V) a garantia do fornecimento dos derivados de petróleo em todo o território nacional; (VI) o incremento, em bases econômicas, da utilização do gás natural; (IX) a promoção da livre concorrência; (X) a atração de investimentos na produção de energia; e (XI) a ampliação da competitividade do país no mercado internacional. Alexandre Santos de Aragão observa que a Lei do Petróleo estabelece muitos fins, porém poucos meios, cabendo à ANP buscar, de forma permanente e dinâmica, os meios aptos para alcançar os objetivos fixados de forma genérica pelo legislador (ARAGÃO, 2005, p. 314). Nelson Jobim ressalta que, a partir do momento em que o Estado decide se afastar da exploração direta desses serviços e passa a admitir o ingresso da atividade privada nessa área, surge a necessidade de se fixar em lei os objetivos a serem atendidos no mercado por esses setores estratégicos para o desenvolvimento nacional e de instituir uma agência autônoma e independente, apta a definir os meios por meio dos quais tais fins serão alcançados (JOBIM, 2005, pp. 396-398 e 400-401).

O artigo 3º estabelece que pertencem à União os depósitos de petróleo, gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos existentes no território nacional, nele compreendidos a parte terrestre, o mar territorial, a plataforma continental e a zona econômica exclusiva. O artigo 5º, em sua redação original, dispunha que as atividades que constituem monopólio estatal serão reguladas e fiscalizadas pela União e poderão ser exercidas, mediante concessão ou autorização, por empresas constituídas sob as leis brasileiras, com sede e administração no País. Nesse mesmo sentido, o artigo 23 da lei, também em sua redação original, estabelecia que as atividades de exploração, desenvolvimento e produção de petróleo e gás natural seriam exercidas mediante contratos de concessão, precedidos de licitação, na forma estabelecida na lei. Como se verá mais adiante, esses dois últimos dispositivos serão posteriormente alterados pelas leis aprovadas após

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a descoberta do pré-sal e que estabelecem o novo marco regulatório do petróleo no Brasil. Além disso, o artigo 26, caput, dispõe que a concessão implica, para o concessionário, a obrigação de explorar, por sua conta e risco e, em caso de êxito, produzir petróleo ou gás natural em determinado bloco, conferindo-lhe a propriedade desses bens, após extraídos, com os encargos relativos ao pagamento dos tributos incidentes e das participações legais ou contratuais correspondentes. Como se verá em seguida, esse dispositivo gerou muita polêmica em torno de sua compatibilidade com o regime constitucional do petróleo e gás natural. Ressalte-se, por fim, que a Lei nº 9.478/1997, em seu artigo 83, revoga expressamente a Lei nº 2.004/1953.

2.2.1 O julgamento da ADI nº 3.273

Anos mais tarde, a constitucionalidade de alguns dispositivos da Lei do Petróleo foi contestada perante o Supremo Tribunal Federal (STF). A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 3.273 foi proposta em 9 de agosto de 2004 pelo Governador do Estado do Paraná, com pedido de natureza cautelar para que fosse determinada a suspensão da sexta rodada de licitações das áreas produtoras de petróleo e gás natural, marcada para os dias 17 e 18 do mesmo mês. O processo foi distribuído ao Min. Carlos Ayres Britto que, valendo-se do disposto no inciso V do artigo 21 do Regimento Interno do STF2, proferiu no dia 16 decisão monocrática concedendo em parte a medida cautelar pleiteada pelo autor, a qual estaria sujeita a referendo do Plenário do STF. No dia seguinte, data em que teria início aquela rodada de licitações, o Presidente da República impetrou o mandado de segurança nº 25024 contra a medida cautelar concedida pelo relator da ADI. Naquele mesmo dia, o Min. Nelson Jobim, então Presidente do STF, proferiu decisão também monocrática suspendendo os efeitos da medida cautelar concedida na ADI. O processo foi, então, distribuído ao Min. Eros Grau, que, no dia seguinte, manteve a liminar concedida pelo Min. Nelson Jobim, por seus próprios fundamentos.

O julgamento da ADI somente foi concluído no dia 16 de março do ano seguinte. Por maioria, a ADI foi julgada improcedente, vencidos os Min. Carlos Ayres Britto, Marco Aurélio de Mello e Joaquim Barbosa, os quais julgavam (ainda que com fundamentos distintos) parcialmente procedente a ação. O Min. Eros Grau foi, então, designado para redigir o acórdão. Os Ministros do STF que participaram do julgamento da ADI dividiram-se claramente em dois blocos: de um lado, o do Min. Relator Carlos Ayres Britto, acompanhado unicamente pelo Min. Marco Aurélio, pela inconstitucionalidade dos dispositivos impugnados; e, de outro, o do Min. Eros Grau,

2 Em regra, as medidas cautelares requeridas em ações diretas de inconstitucionalidade somente podem ser concedidas por decisão da maioria absoluta dos membros do Tribunal e após ouvidos os órgãos ou autoridades dos quais emanou a lei ou ato normativo impugnado. O artigo 10, caput, da Lei nº 9.868/99 excetua apenas o período de recesso. O artigo 21 do Regimento Interno do STF, no entanto, autoriza o relator, em caso de urgência e ad referendum do Plenário ou da Turma, a adotar as medidas cautelares necessárias à proteção de direito suscetível de gravo dano de incerta reparação, ou ainda destinadas a garantir a eficácia da ulterior decisão da causa.

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acompanhado pelos Min. Carlos Velloso, Joaquim Barbosa (que, no fundo, dissentiu apenas em relação à constitucionalidade do §3º do artigo 26 da referida lei), Cezar Peluso, Gilmar Mendes, Ellen Gracie, Sepúlveda Pertence e Nelson Jobim, pela sua constitucionalidade.

O autor da ADI impugnou especificamente diversos dispositivos da Lei nº 9.478/97: o caput e o §3º do artigo 26; os incisos I e III do artigo 28; o inciso I e parágrafo único do artigo 37; o inciso II e parágrafo único do artigo 43; o parágrafo único do artigo 51; e, por fim, o artigo 603. Ele fundamentou sua pretensão, ao argumento de que a medida cautelar “resguardaria a República Federativa do Brasil de uma situação extremamente difícil de ser revertida num futuro próximo, ao profligar do regime da Lei combatida a transferência de titularidade da matriz energética, prevista no art. 26, caput, bem como o inexorável escoamento das reservas para o exterior, em decorrência da breve auto-suficiência do mercado interno aliada à obrigação de produção sem ressalvas aos concessionários.” (STF, 2007, pp. 108-109). Observa-se, portanto, que preocupava o autor basicamente o entendimento de que o dispositivo de lei em questão confere ao concessionário a propriedade do produto da exploração do petróleo ou gás natural e com a ideia de que esse pudesse vir a exportar a produção excedente, uma vez satisfeita uma necessidade circunstancial e provisória do mercado interno por esses combustíveis.

Em seu voto, o Min. Carlos Ayres Britto destacou que a Constituição de 1988 operou uma verdadeira “indiferenciação de jure” ao tratar, sob a mesma categoria “recursos minerais”, tanto dos recursos minerais propriamente ditos (que seriam substâncias inorgânicas) como dos hidrocarbonetos fluidos e gasosos (que seriam substâncias orgânicas). Isto é, na Constituição, o gênero “recursos minerais” compreenderia as espécies: recursos minerais propriamente ditos e hidrocarbonetos fluidos ou gasosos. Assim, petróleo e gás natural seriam “recursos minerais lato sensu”. Essa seria, a seu ver, a inteligência da redação dada aos artigos 20, IX, 22,

3 O caput do artigo 26 confere ao concessionário a propriedade do petróleo e gás natural extraídos e o §3º estabelece hipótese de aprovação tácita dos planos e projetos de desenvolvimento e produção do concessionário caso o prazo previsto no parágrafo anterior decorra sem que haja manifestação da ANP. Os incisos I e III do artigo 28 preveem, como hipóteses de extinção da concessão, o vencimento do prazo contratual e os motivos de rescisão previstos no contrato, respectivamente. O inciso I do artigo 37 determina que a minuta do contrato de concessão que acompanha o edital de licitação deverá indicar o prazo estimado para a duração da fase de exploração, seu parágrafo único dispõe que esse prazo será estimado pela ANP, em função do nível de informações disponíveis, das características e da localização de cada bloco. O inciso II do artigo 43 determina que o contrato de concessão contenha como cláusula essencial o prazo de duração da fase de exploração e as condições para sua prorrogação, seu parágrafo único que dispõe que as condições contratuais para prorrogação do prazo de exploração serão estabelecidas de modo a assegurar a devolução do percentual do bloco, a critério da ANP, e o aumento do valor do pagamento pela ocupação da área. O parágrafo único do artigo 51 estabelece que o valor do pagamento pela ocupação ou retenção da área será aumentado em percentual a ser estabelecido pela ANP, sempre que houver prorrogação do prazo de exploração. O artigo 60 que dispõe que qualquer empresa ou consórcio de empresas que atender ao disposto no artigo 5º poderá receber autorização da ANP para exercer a atividade de importação e exportação de petróleo e seus derivados, de gás natural e condensado.

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XII, 176 e 177 da Constituição. Mas, para conhecer o regime jurídico do petróleo e gás natural sob a égide da Constituição de 1988, não bastaria conhecer apenas o regime jurídico aplicável aos recursos minerais em geral, porque a Constituição contém ainda normas específicas para a segunda espécie. “[A] Lei Republicana, num primeiro instante, dispõe sobre o gênero ‘recursos minerais’ e desse gênero não exclui os hidrocarbonetos fluidos e gasosos. Já num segundo e imediato momento é que passa a disciplinar os específicos temas do petróleo e do gás natural ‘e outros hidrocarbonetos fluidos’ (caput do art. 177).” (STF, 2004, p. 124). Por isso, “[...] o cânone hermenêutico a observar só pode ser este: aplica-se toda a parte geral dos dispositivos da Constituição, mas somente naquilo que não conflitar com sua parte especial. Elementar regra de eliminação de antinomia normativa, figurante do nunca destemido brocado latino lex speciali derrogat generali.” (STF, 2007, p. 127).

Em nota de rodapé, o Ministro Carlos Ayres Britto explicita ainda mais seu raciocínio: “Se o caput do art. 176 da Constituição não monopoliza a pesquisa e a lavra das jazidas de recursos minerais lato sensu (como de fato não monopoliza), teria mesmo lógica assegurar a transferência do respectivo produto para o concessionário (como realmente assegura). Bem ao contrário, se essa mesma Constituição, já no inciso I do art. 177 e no inciso III do §1º desse mesmo artigo, monopoliza até as atividades de pesquisa e lavra ‘das jazidas de ‘petróleo e gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos’, é porque não admite o puro e simples transpasse dominial do respectivo produto.” (STF, 2007, pp. 128-129). Em sua leitura, o monopólio que emerge da inteligência do artigo 177, combinado com os artigos 176 e 20, todos da Constituição, consiste na unititularidade tanto da atividade como do domínio. Isto é, a União seria proprietária exclusiva das jazidas de petróleo, gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos, como também seria a única titular das atividades elencadas nos incisos do artigo 177. Com isso, a propriedade do produto da lavra do petróleo e gás natural permaneceria em mãos da União (STF, 2007, p. 155).

O voto do Ministro Carlos Ayres Britto foi acompanhado pelo Min. Marco Aurélio, para quem o regime de monopólio seria oposto ao de concessão, no qual há transferência de propriedade do produto da lavra ao concessionário. Ele sustenta que, por pertencer à União, o petróleo seria um bem público com destinação específica: “Pode-se afirmar, sem contestação, com um mínimo de honestidade intelectual, que o petróleo é um bem público que possui destinação específica. A propriedade desse minério, garantida pelo regime do monopólio, visa exatamente a proteger o interesse coletivo e a soberania nacional. Essa é a destinação pública a que a propriedade do petróleo está sujeita.” (STF, 2007, p. 197). E condena veementemente a postura que denomina entreguismo: “Imperdoável é a visão míope da subserviência, pouco importando a quadra; imperdoável, gerando frustração ímpar, decepção inigualável, é o entreguismo, a alienação, se possível falar-se em alienação, considerado o caráter imensurável das vantagens que poderão advir dos contratos autorizados na lei; desses contratos que revelam equação perniciosa – 90% para o explorador (da jazida) e 10% para a nação brasileira (porcentagem digna de uma gorjeta), embora seja esta a detentora do monopólio. Estranho e triste o monopólio

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assegurado constitucionalmente, antes os termos da lei, porque despojado do predicado da titularidade.” (STF, 2007, p. 204).

Inicialmente, o Min. Eros Grau procurou desfazer, em seu voto, a confusão conceitual entre propriedade do bem e monopólio da atividade. “[M]onopólio pressupõe, em princípio, apenas um agente apto a desenvolver as atividades econômicas a ele correspondentes.” (STF, 2007, p. 211). Valendo-se das lições de Fábio Konder Comparato, esclarece que o monopólio diz respeito a uma atividade empresarial e nada tem a ver com domínio e propriedade. Assim, “[o] conceito de monopólio não se presta a explicitar características da propriedade, de modo que não cabe aludirmos a monopólio da propriedade.” (STF, 2007, p. 216). A Constituição, em seu artigo 177, enumera, assim, as atividades que constituem monopólio da União e, em seu artigo 20, os bens que são de sua propriedade exclusiva: “Atividades e bens, uma coisa distinta da outra.” (STF, 2007, p. 216). Valendo-se outra vez dos ensinamentos de Comparato, afirma que o monopólio de uma atividade não pressupõe a propriedade dos bens de produção. “[...] a propriedade do resultado da atividade – vale dizer, propriedade dos produtos ou serviços da atividade – também não pode ser tida como abrangida pelo monopólio do desenvolvimento de determinadas atividades econômicas.” (STF, 2007, p. 218). Seria, assim, a seu ver, perfeitamente possível que a propriedade do resultado da lavra das jazidas de petróleo, gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos seja atribuída a terceiros pela União, sem qualquer ofensa ao monopólio estabelecido no artigo 177 da Constituição.

No mais, o Min. Eros Grau observou que “[a] ADI, em verdade, investe contra a EC 9/95; está prenhe de antipatia em relação a ela.” (STF, 2007, p. 211). Na sua leitura, que foi acompanhada pela maioria dos Ministros do STF e consolidada no acórdão, “[a] EC 9/95 permite que a União transfira ao ‘concessionário’ os riscos e resultados da atividade e a propriedade do produto da exploração de jazidas de petróleo e de gás natural, observadas as normas legais.” (STF, 2007, p. 223). Isso porque, com a EC nº 9/95, foi extirpada do §1º do artigo 177 a disposição que vedava à União ceder ou conceder qualquer tipo de participação na exploração de jazidas de petróleo e gás natural. No lugar, permitiu-se que a União contratasse empresas estatais ou privadas para a realização das atividades descritas nos incisos do art. 177 como de monopólio da União, observadas as condições estabelecidas em lei. Daí porque o Min. Eros Grau ter iniciado seu voto justamente com a afirmação de que “[a] Lei n. 9.478/97 é a lei a que faz referência o §1º do artigo 177 da Constituição do Brasil, na redação a ele atribuída pela EC 9/95.” (STF, 2007, p. 208).

Em síntese: o Min. Eros Grau argumenta que o autor, na realidade, não se insurge contra a Lei nº 9.478/97, mas contra a flexibilização do regime de monopólio da União efetuada pela EC nº 9/95, que eliminou a disposição que impedia a União de ceder ou conceder qualquer tipo de participação na exploração de jazidas de petróleo e gás natural e que permitiu que a União contratasse empresas estatais e privadas para a exploração do petróleo. Esse argumento foi contestado pelo Min. Carlos Ayres Britto, que disse: “[...] se a Emenda nº 9 quisesse transferir a propriedade de um bem

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tão estratégico quanto o petróleo, diria expressamente.” (STF, 2007, p. 274). No que foi rebatido pelo Min. Sepúlveda Pertence: “O constituinte de 95 não pensava como nós, Ministro, os do ‘petróleo é nosso’. Ele deixou uma ampla liberdade à lei para abrir a empresas privadas de capital nacional ou não, desde que organizadas e sediadas no País, a prospecção e o refino do petróleo nacional. A reversão – queiram ou não – é uma decisão constitucional inequívoca.” (STF, 2007, p. 274).

A decisão tomada pelo STF no julgamento da ADI nº 3.273 é duramente criticada por Bercovici, que a considera absolutamente equivocada. Segundo ele, “[o] artigo 26, caput, da Lei nº 9.478/1997 é inconstitucional, pois viola o disposto nos artigos 20, IX e 177 da Constituição” (BERCOVICI, 2011, p. 295). Ele sustenta que a transferência da propriedade do produto da lavra ao concessionário é uma exceção à regra da inalienabilidade dos recursos minerais. Por isso, ela é expressa na própria Constituição. Essa exceção não se coadunaria com o regime jurídico especial que a Constituição confere ao petróleo, gás natural e minérios nucleares. Essa transferência, no caso do petróleo e gás natural, não foi operada pela Constituição, “mas por uma lei ordinária, que ultrapassou seus limites, contrariando a Constituição.” (BERCOVICI, 2011, p. 295). Se, de fato, a EC nº 9/95 e a Lei nº 9.478/1997 tivessem tornado aplicáveis ao petróleo e gás natural as mesmas regras gerais decorrentes do artigo 176, especialmente no que tange à apropriação do produto da lavra pelo concessionário, não restaria mais, a seu ver, nenhuma distinção entre a exploração de minérios e a de petróleo e gás natural. “Com a atribuição da propriedade do produto da lavra do petróleo e gás natural ao concessionário, o controle da atividade petrolífera deixa, concretamente, de ser monopólio da União, o que viola os artigos 20, IX e 177 da Constituição de 1988.” (BERCOVICI, 2011, p. 296).

2.3 A descoberta do pré-sal e o advento de um novo marco regulatório

Em interessante estudo comparado a respeito dos marcos regulatórios do petróleo no mundo, Tolmasquim e Pinto Junior mostram que a descoberta do pré-sal em novembro de 2007 constitui um marco na história da indústria do petróleo e gás natural. Ela estaria entre as maiores descobertas realizadas no mundo nos últimos trinta anos e teria o potencial de colocar o Brasil entre os principais países produtores de petróleo e gás natural do mundo, alterando significativamente sua posição geopolítica na indústria (TOLMASQUIM & PINTO JUNIOR, 2011, pp. 3, 4, 280 e 282). “Pré-sal” é o termo que vem sendo empregado nos últimos anos no Brasil para designar uma imensa província petrolífera (com uma área de cerca de 800 quilômetros de extensão por até 200 quilômetros de largura), que se estende desde o litoral do Estado de Santa Catarina até o do Espírito Santo, abrangendo as bacias do Espírito Santo, de Campos e de Santos. A Resolução nº 6/2007, publicada naquele mesmo mês pelo CNPE, enfatiza que “[os] resultados dos testes de produção obtidos pela Petróleo Brasileiro S.A. – PETROBRAS, em áreas exploratórias sob sua responsabilidade, que apontam para a existência de uma nova e significativa província petrolífera no Brasil, com grandes volumes recuperáveis estimados

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de óleo e gás. Esses volumes, se confirmados, mudarão o patamar das reservas do País, colocando-as entre as maiores do mundo; [...] Os testes indicaram a existência de grandes volumes de óleo leve de alto valor comercial (30 graus API), com grande quantidade de gás natural associado.” (BRASIL, 2007, p. 1).

Nessa resolução, o CNPE determinou, à luz dessas informações e para preservar o interesse nacional, que a ANP excluísse da nona rodada de licitações os blocos situados nas bacias do Espírito Santo, de Campos e de Santos, relacionadas às possíveis acumulações em reservatórios do pré-sal. Ressalte-se, no entanto, que parte da área do pré-sal já estava concedida a diversas empresas, principalmente à Petrobras, razão pela qual o governo optou por manter o regime da concessão para essas áreas, em respeito aos contratos existentes, e adotar um novo regime para os blocos do pré-sal que ainda não tivessem sido licitados (TOLMASQUIM & PINTO JUNIOR, 2011, p. 281). O CNPE determinou, ainda, ao Ministério de Minas e Energia que avaliasse as mudanças necessárias no marco legal, que contemplassem um novo paradigma de exploração e produção de petróleo e gás natural, aberto pela descoberta do pré-sal.

Em cumprimento à determinação do CNPE, foi instituída uma Comissão Interministerial com o propósito de analisar e propor tais mudanças. Na Exposição de Motivos Interministerial nº 38/2009, ressaltou-se que o marco regulatório estabelecido pela Lei nº 9.478/1997 foi definido em um contexto de escassez de petróleo, com o país ainda buscando a autossuficiência. Com a descoberta do pré-sal, surgiu a necessidade de dotar o país de um marco regulatório condizente com um contexto de abundância do petróleo. O regime de concessão, ao conferir ao concessionário a totalidade dos riscos e do produto da lavra, é visto como incompatível com o interesse nacional em relação a uma área cujos dados geológicos indicam baixos riscos exploratórios e altas rentabilidades. Defendeu-se, assim, a adequação do marco regulatório, a fim de propiciar maior participação nos resultados e maior controle da riqueza potencial pela União (TOLMASQUIM & PINTO JUNIOR, 2011, pp. 281-283). Na sequência, foram apresentados os Projetos de Lei nº 5.938, 5.939, 5.940 e 5.941, todos de 2009, dispondo sobre: o regime de partilha de produção; a criação de uma empresa pública para gerir esses contratos de partilha de produção; a criação do Fundo Social (FS); e o regime de cessão onerosa, respectivamente.

2.3.1 A Lei nº 12.276/2010 e o regime de cessão onerosa

O Projeto de Lei nº 5.941/2009 foi o primeiro a ser aprovado, sendo convertido na Lei nº 12.276/2010 que, segundo Marilda Rosado de Sá Ribeiro e Ely Caetano Xavier Junior, institui verdadeira novidade contratual no ramo, não possuindo paralelo no Direito comparado (RIBEIRO & JUNIOR, 2013, p. 4). A despeito das inovações introduzidas pela referida lei, o presente estudo não se prestará à análise crítica de suas nuances e polêmicas, pois isso extrapolaria seu propósito. O que se fará aqui será somente uma referência a alguns dispositivos da referida lei, a fim de ressaltar os principais aspectos do novo regime. O artigo 1º da lei autoriza a União a ceder

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onerosamente à Petrobras, dispensada a licitação, o exercício das atividades definidas no inciso I do artigo 177 da Constituição de 1988 (ou seja, pesquisa e lavra de petróleo, de gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos) em áreas não concedidas localizadas no pré-sal. O artigo 8º estabelece que essa autorização é válida pelo prazo de 12 (doze) meses, contado da data de publicação da lei. De acordo com o artigo 4º, caput, e o §1º do artigo 1º da lei, a Petrobras exercerá essas atividades por sua exclusiva conta e risco e terá a titularidade do petróleo, gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos produzidos nos termos do contrato que formalizar a cessão. O §2º deste último artigo define que a cessão onerosa deverá produzir efeitos até que a Petrobras extraia o número de barris equivalentes de petróleo definido em respectivo contrato de cessão, número esse que não poderá exceder a cinco bilhões de barris equivalentes de petróleo. O §3º, por sua vez, estabelece que o pagamento devido pela Petrobras pela cessão deverá ser efetivado prioritariamente em títulos da dívida pública mobiliária federal, precificados a valor de mercado, ressalvada a parcela de que trata o §4º. Já o artigo 9º autoriza a União a subscrever ações do capital social da Petrobras e a integralizá-las com títulos da dívida pública mobiliária federal.

2.3.2 As Leis nº 12.304 e 12.351/2010 e o regime de partilha de produção

O segundo projeto de lei aprovado foi o de nº 5.939, convertido na Lei nº 12.304/2010, que autoriza o Poder Executivo a criar a Empresa Brasileira de Administração de Petróleo e Gás Natural S.A., denominada Pré-Sal Petróleo S.A. (PPSA), uma empresa pública vinculada ao Ministério de Minas e Energia. De acordo com o artigo 2º, caput, da lei, a PPSA terá por objeto a gestão dos contratos de partilha de produção celebrados pelo Ministério de Minas e Energia e dos contratos para a comercialização de petróleo, de gás natural e de outros hidrocarbonetos fluidos da União. Seu parágrafo único estabelece que a PPSA não será responsável pela execução, direta ou indireta, das atividades de exploração, desenvolvimento, produção e comercialização de petróleo, de gás natural e de outros hidrocarbonetos fluidos.

Os Projetos de Lei nº 5.938/2009 e 5.940/2009, por sua vez, foram reunidos e convertidos na Lei nº 12.351/2010, que dispõe sobre o novo regime de partilha de produção para as atividades de exploração e produção de petróleo, de gás natural e de outros hidrocarbonetos fluidos em áreas do pré-sal e em áreas estratégicas, bem como cria o Fundo Social e dispõe sobre sua estrutura e fontes de recursos. Ressalte-se que a lei também altera a redação de diversos dispositivos da Lei nº 9.478/1997. O artigo 3º da lei determina que a exploração e a produção de petróleo, gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos na área do pré-sal e em áreas estratégicas serão contratadas pela União sob o regime de partilha de produção, na forma estabelecida na referida lei. O inciso V do artigo 2º da lei define “área estratégica” como região de interesse para o desenvolvimento nacional, delimitada em ato do Poder Executivo, caracterizada pelo baixo risco exploratório e elevado potencial de produção de petróleo, gás natural

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e outros hidrocarbonetos fluidos. Assim como o que foi dito em relação ao regime da cessão onerosa, não se poderá analisar aqui em detalhe todos os aspectos do regime de partilha de produção, mas somente fazer referência aos alguns dispositivos da lei a fim de ressaltar as principais características do novo regime.

O inciso I do artigo 2º define “partilha de produção” como sendo o regime de exploração e produção de petróleo, gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos no qual o contratado exerce, por sua conta e risco, as atividades de exploração, avaliação, desenvolvimento e produção e, em caso de descoberta comercial, adquire o direito à apropriação do custo em óleo, do volume da produção correspondente aos royalties devidos, bem como de parcela do excedente em óleo, na proporção, condições e prazos estabelecidos em contrato. Nos dois incisos seguintes, a lei define o que vem a ser “custo em óleo” e “excedente em óleo”. O primeiro consiste na parcela da produção exigível unicamente em caso de descoberta comercial, correspondente aos custos e aos investimentos realizados pelo contratado na execução das atividades de exploração, avaliação, desenvolvimento, produção e desativação das instalações, sujeita a limites, prazos e condições estabelecidos em contrato. Já o segundo equivale à parcela da produção a ser repartida entre a União e o contratado, segundo critérios definidos em contrato, resultante da diferença entre o volume total da produção e as parcelas relativas ao custo em óleo, aos royalties devidos e, quando exigível, à participação de que trata o artigo 43 da lei.

De acordo com o disposto nos artigos 14 e 12 da lei, a Petrobras poderá participar da licitação ou, por proposta do CNPE ao Presidente da República, visando à preservação do interesse nacional e ao atendimento dos demais objetivos da política energética, ser contratada diretamente sob o regime de partilha de produção. Conforme determinam os artigos 19 e 20, caput, da lei, nos contratos de partilha de produção, a PPSA, a Petrobras e, se for o caso, a empresa vencedora da licitação deverão constituir um consórcio, sendo que, nesse caso, os direitos e as obrigações patrimoniais da Petrobras e dos demais contratados serão proporcionais a sua participação no consórcio. O artigo 4º da lei combinado com a alínea “c”, do inciso III, do artigo 10 da lei dispõem que a Petrobras será a operadora de todos os blocos contratados sob o regime de partilha de produção, sendo-lhe assegurado, a este título, participação mínima não inferior a 30% nos respectivos contratos.

Por força do disposto nos artigos 21 e 5º da lei, a PPSA integrará o consórcio como representante dos interesses da União, a qual não assumirá os riscos das atividades de exploração, avaliação, desenvolvimento e produção decorrentes dos contratos de partilha de produção. O §2º do artigo 8º da lei também deixa claro que a PPSA não assumirá os riscos e não responderá pelos custos e investimentos referentes às atividades de exploração, avaliação, desenvolvimento, produção e desativação das instalações de exploração e produção decorrentes dos referidos contratos. O artigo 6º, caput, da lei estabelece que os custos e os investimentos necessários à execução do contrato de partilha de produção serão integralmente suportados pelo contratado,

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cabendo-lhe, no caso de descoberta comercial, a sua restituição nos termos do inciso II do artigo 2º. Conforme preceituam o artigo 22 e o caput e parágrafo único do artigo 23 da lei, o consórcio será administrado por um comitê operacional, composto por representantes da PPSA e dos demais consorciados, cabendo àquela indicar a metade dos integrantes do comitê operacional, inclusive seu presidente, e aos demais consorciados os outros integrantes.

A Lei nº 12.351/2010 também criou, em seu artigo 47, o Fundo Social (FS) vinculado à Presidência da República, com a finalidade de constituir fonte de recursos para o desenvolvimento social e regional, na forma de programas e projetos nas áreas de combate à pobreza e de desenvolvimento, da educação, cultura, esporte, saúde pública, ciência e tecnologia, meio ambiente e mitigação e adaptação às mudanças climáticas. O artigo 48 da lei dispõe que o FS tem por objetivos: (I) constituir poupança pública de longo prazo com base nas receitas auferidas pela União; (II) oferecer fonte de recursos para o desenvolvimento social e regional; e (III) mitigar as flutuações de renda e de preços na economia nacional, decorrentes das variações na renda gerada pelas atividades de produção e exploração de petróleo e de outros recursos não-renováveis. Os recursos do FS estão previstos no artigo 49 da lei. De acordo com o disposto nos artigos 52 e 50 da lei, a política de investimentos do FS será definida pelo Comitê de Gestão Financeira do Fundo Social (cuja composição é definida por ato do Poder Executivo, assegurada a participação dos Ministros da Fazenda, do Planejamento, Orçamento e Gestão e do Presidente do Banco Central do Brasil) e tem por objetivo buscar a rentabilidade, a segurança e a liquidez de suas aplicações e assegurar sua sustentabilidade econômica e financeira para o cumprimento de suas finalidades.

Page 19: REGIME JURÍDICO DO PETRÓLEO E GÁS NATURAL NO ...abdconst.com.br/grupos_xii/Fernando Bertoletti Bastos.pdfartigos 97 e 96 estabeleciam, respectivamente, que as jazidas de petróleo

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