reforma agrária questão de consciência 1960

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  • 8/7/2019 Reforma Agrria Questo de Conscincia 1960

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    Reforma Agrria Questo de Conscincia

    AVISO PRELIMINAR

    Reforma Agrria e reforma agrria

    De pouco tempo a esta parte, vem sendo cada vez mais freqente entre ns, no s emdiscursos e conferncias, como em entrevistas, artigos, livros, relatrios oficiais e projetos delei, a expresso reforma agrria. No difcil, entretanto, notar que esta designaogenrica tem servido de rtulo a sugestes ou projetos muito diversos em seus objetivos e no

    esprito que os anima.Assim, pode-se falar de uma reforma agrria sadia, que constitua autntico progresso,

    em harmonia com nossa tradio crist. Mas tambm se pode falar de uma reforma agrriarevolucionria, esquerdista e mals, posta em desacordo com esta tradio. Este ltimo tipode reforma agrria importa em golpear a fundo ou at em eliminar a propriedade privada. Poristo mesmo ele deve ser tido como hostil tambm famlia. Com efeito, como veremos,

    propriedade e famlia so instituies correlatas e fundadas nos mesmos princpios.Para evitar possveis confuses, fica declarado que neste livro a reforma agrria

    revolucionria, esquerdista e mals sempre mencionada com iniciais maisculas e entreaspas: Reforma Agrria.

    As crticas feitas Reforma Agrria no se referem, pois, de modo algum, a medidasque promovam um autntico progresso da vida do campo ou da produo agropecuria; seriaessa uma reforma agrria sadia.

    Parte I

    Aspectos religiosos e sociais

    Introduo

    A crise brasileira e os problemas do campo

    Nota-se, no momento, a concomitncia de vrias crises no Brasil: de produo, detransporte, de finanas etc. Na realidade, estas crises se interpenetram em suas causas, em seuprocesso e em seus efeitos, de maneira a constiturem globalmente uma s crise econmica efinanceira, que poderamos resumidamente chamar a crise brasileira.

    Como natural, esta crise se insere em um quadro mais vasto, que no constitui objetoimediato do presente estudo.

    A necessidade de dar remdio a essa crise, que contrasta dolorosamente com o grandesurto de progresso por que passamos em tantos terrenos, tem suscitado nos mais variados ambientespolticos, intelectuais e sociais, considervel nmero de estudos, comentrios e projetos. De modoespecial, as atenes tm-se voltado para os problemas do campo, e um pouco por toda parte se falaem reforma agrria.

    Atmosfera de confuso no estudo da reforma agrria

    A um observador, ainda que de perspiccia apenas mediana, no pode passar despercebidaa atmosfera de confuso em que vm sendo tratados vrios dos aspectos da atual crise brasileira. Eessa confuso parece chegar ao seu auge no que concerne reforma agrria.

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    Sob este rtulo, as melhores e as piores sugestes, as mais sensatas como as maisextravagantes, vm sendo apresentadas com igual desembarao e acolhidas com igual interesse.Dir-se-ia mesmo que a ateno pblica se volta de preferncia para as solues arrojadas eespetaculares. As horas difceis so habitualmente favorveis aos inventores de panacias.

    Em meio a essa confuso, porm, h uma nota que merece ateno muito particular. a

    freqncia com que aflora um preconceito passional, que segundo uma expresso colhida em mescola se poderia chamar um verdadeiro complexo contra o proprietrio rural e contra o mesmodireito de propriedade.

    Com efeito, o papel da propriedade rural, grande e mdia, no conjunto da economianacional, focalizado, cada vez mais freqentemente, como o de um privilgio pessoal em oposiopermanente aos interesses dos trabalhadores e do Pas. De onde no se falar o mais das vezes deuma e outra e especialmente da primeira seno para estudar ou propor meios de cerce-las.Origina-se assim, em muitos espritos, o desejo mais ou menos consciente de aboli-las, mediantepequena indenizao, qui. E da para o socialismo, por vezes at em suas formas maisexacerbadas, no vai seno um passo, o passo fcil e rpido que se d ao passar logicamente daspremissas para a concluso.

    Transformao ideolgica profunda e despercebida

    Os debates sobre a reforma agrria vo, desse modo, induzindo lenta e quasedespercebidamente muitas pessoas a aceitarem uma mentalidade esquerdista, ou a resvalaremmesmo para a adoo explicita de programas socialistas e revolucionrios que, h um ou dois anosatrs, teriam rejeitado categoricamente.

    Decorre da o perigo de uma dupla calamidade, ideolgica e prtica.Esta afirmao pode surpreender alguns leitores. Nada, entretanto, de mais verdadeiro.

    Mostr-lo-emos detidamente mais adiante1. De passagem, lembremos apenas haver o grande PapaPio XI escrito que socialismo e Catolicismo so termos contraditrios2. E o pranteado PontficePio XII escreveu, em mensagem ao Katholikentag de Viena, que a Igreja v na luta contra osocialismo, isto , na proteo do indivduo e da famlia frente corrente que ameaa arrastar auma socializao total em cujo fim se tornaria pavorosa realidade a imagem terrificante do Leviat3,um de seus maiores deveres na atual fase das controvrsias sociais. Assim, so as prprias basesideolgicas da civilizao crist que vo fenecendo na alma brasileira medida que o espritosocialista avana.

    O complexo contra o proprietrio rural e o direito de propriedade tende forosamente apassar da ordem ideolgica para a ordem prtica. Estamos, pois, expostos ao risco de umalegislao aprovada num ambiente de irreflexo e aodamento. A ocasio propcia para que ainstituio da propriedade, em lugar de ser protegida e complementada com o necessrio para a

    plena realizao de sua funo social, seja de tal maneira golpeada e cerceada no que tem deessencial, que decaia para um estado de anemia e de raquitismo irremedivel. Isto ser, por certo,uma catstrofe para toda uma classe proba e operosa: a dos proprietrios rurais. Mas constituirtambm uma catstrofe para a classe dos trabalhadores agrcolas e para toda a economia nacional,de cuja conservao e progresso a propriedade privada , pela ordem natural das coisas, fundamentoimprescindvel.

    Como adiante veremos4, uma Reforma Agrria que levasse essas tendncias a essesprincpios socialistas s suas conseqncias naturais e lgicas lanaria o Brasil no bratro de umadas mais graves crises de conscincia de sua histria.

    1

    Cfr. Parte I, Ttulo II, Captulos II e III.2 Encclica Quadragesimo Anno, de 15 de maio de 1931. Editora Vozes Ltda., Petrpolis, pg. 14.3 Pio XII, Radiomensagem ao Katholikentag de Viena, de 14 de setembro de 1952 Discorsi e

    Radiomessagi, vol. XIV, pg. 314.4 Parte I, Seco III.

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    Prevenir tal perigo no , pois, lutar apenas pelos direitos de uma classe respeitvel, mastambm favorecer os trabalhadores rurais, defender a civilizao crist e preservar o futuroeconmico e religioso do Pas.

    Por esta razo, o direito e o dever de intervir neste problema no tocam somente aosagricultores. Diretamente interessados, eles talvez at se sintam menos vontade para o fazer do

    que outros.

    Os autores

    Os autores deste trabalho no so agricultores e no dependem da lavoura para suasubsistncia. Isto confere s consideraes que se seguem uma insuspeio que deve ser tomada emconta pelo leitor. Move-os to somente o desejo de contribuir, dentro de suas possibilidades, paraconservar o Brasil nas vias da civilizao crist.

    Ligados entre si h muitos anos por relaes de estudo e amizade, vm eles acompanhandodesde os primrdios o movimento de opinio em favor da Reforma Agrria.

    Apreensivos ante a perspectiva sempre mais prxima dessa to profunda transformao

    social e econmica, deliberaram conjugar seus esforos para a elaborao de um trabalho queconsiderasse em seus vrios aspectos a Reforma Agrria.

    Toda a matria contida na Parte I ficou a cargo dos Bispos de Campos e de Jacarezinho edo Prof. Plinio Corra de Oliveira. Da matria econmica que constitui o principal contedo daParte II se incumbiu o economista Luiz Mendona de Freitas.

    Objetivos deste trabalho

    Evidentemente, os autores no se propem, s por si, a cortar o passo campanha que orase faz contra o proprietrio rural e contra o instituto da propriedade privada no campo. No istoempreendimento proporcionado s foras de um mero trabalho intelectual.

    O presente livro visa a ser apenas uma contribuio para este grande objetivo, destinada apreparar, na medida de suas possibilidades, condies para uma sadia reao do bom-senso e daconscincia crist.

    Temos em mira alertar para o perigo da Reforma Agrria os setores da opinionaturalmente mais indicados para entrar na lia, isto , as elites do Pas, uma vez que, enquanto elasno o fizerem, nada de til se poder esperar.

    A quem ele se dirige

    Este trabalho se dirige, pois, aos membros das profisses liberais, aos eclesisticos, aos

    polticos, aos militares, e notadamente aos agricultores, engenheiros agrnomos, economistas, bemcomo, de modo geral, a todos os homens de cultura e de ao nos quais a F e o amor nossacivilizao mantm vivaz a convico da legitimidade e benemerncia da propriedade privada, e aosquais incumbe, a ttulos diversos, a defesa dos fundamentos da nacionalidade.

    Delimitao do presente trabalho

    O tema de que trataremos muito limitado. No pretendemos fazer um estudo completo denossa histria rural, nem de nossos problemas agrcolas presentes, e nem sequer oferecer um projetocabal de sadia reforma agrria. Desejamos simplesmente, convm repeti-lo, apontar o perigo quecorre, a pretexto de reforma agrria, o instituto bsico da propriedade privada, e conclamar para a

    ao contra tais riscos os elementos vlidos.A Reforma Agrria, se nos afigura medida to contrria ordem natural das coisas, queos argumentos contra ela poderiam proporcionar matria, no para um, mas para vrios volumes.

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    Assim, no pretendemos dar neste livro um panorama global de todas as objees que sepodem levantar fundadamente contra a Reforma Agrria.

    Nossas consideraes so formuladas do ponto de vista catlico, que num pas como onosso se pode pressupor aceito pela grande maioria dos leitores. A isto, como claro, nos levamnossas convices. O conhecimento deste ponto interessa tambm aos no catlicos, pois na ordem

    concreta dos fatos, se a reao da conscincia crist no for a base da luta em favor da propriedadeprivada, essa luta no ter viabilidade, nem superior sentido moral aos olhos do povo brasileiro.Tratando o assunto sob esse ponto de vista, estamos certos de prestar um til contributo

    para a orientao no s dos catlicos, como de modo geral de todas as mentalidades abertas idiade que a Igreja tem uma palavra a dizer sobre o assunto, e cnscias de todo o alto significado queessa palavra intrinsecamente religiosa tem no plano da histria, da cultura e da vida doOcidente.

    Pio XI indica nestas palavras o fundamento da interveno dos Papas em matria social, e o mbito dessainterveno: ... julgar das questes sociais e econmicas dever e direito da Nossa suprema autoridade (Cfr. RerumNovarum, 24-25). No foi, certo, confiada Igreja a misso de encaminhar os homens conquista da felicidadetransitria e caduca, mas da eterna; antes a Igreja cr no dever intrometer-se sem motivos nos negcios terrenos( Enc. Ubi Arcano). O que no pode renunciar ao ofcio, de que Deus A investiu, de interpor a sua autoridade, no

    em assuntos tcnicos, para os quais lhe faltam competncia e meios, mas em tudo que se refere moral. Dentro destecampo, o depsito da verdade que Deus Nos confiou e o gravssimo encargo de divulgar a lei moral, interpret-la e urgiro seu cumprimento oportuna e importunamente, sujeitam e subordinam ao Nosso juzo a ordem social e as mesmasquestes econmicas5

    Algumas observaes

    Antes de passarmos ao corpo do trabalho, convm registrar algumas observaes.Na Parte I, falaremos habitualmente do agricultor, da agricultura e da propriedade agrcola.

    Mas tudo que dissermos deles, no plano doutrinrio, tambm se aplica exatamente ao criador, pecuria e propriedade pecuria. to somente por brevidade de expresso que evitamos

    mencionar sempre uns e outros.Igualmente, todas as referencias feitas ao trabalhador agrcola valem para o trabalhadorbraal que serve nas atividades pecurias.

    Existe no Brasil um Partido Socialista, de expresso eleitoral alis pequena. O presentetrabalho no o tem principalmente em vista. E isso porque sua importncia concreta na investidasocialista atual pequena. O socialismo como doutrina exerce sua mais perigosa influncia atravsdos elementos socializantes colocados nos mais diversos partidos polticos ou no mago dasinstituies que por natureza seriam anti-socialistas. A linguagem desses elementos conservadorana aparncia; suas mximas que so socialistas, e o efeito de sua argumentao preparahabitualmente os espritos para o socialismo. para a ao desses elementos que, sobretudo,queremos alertar nossos leitores.

    Consentir em que o alvo deste trabalho se cingisse ao Partido Socialista Brasileiro cujoprograma e cuja atuao comportam, de resto, todas as consideraes aqui feitas a respeito dosocialismo como doutrina seria diminuir as verdadeiras perspectivas do assunto.

    Uma vez que a investida do esprito socialista, aqui apontada, se desenvolve num momentoem que a presso internacional do comunismo chega a seu clmax e sua atuao em nosso Pas vainum crescendo evidente, lcito perguntar que relao h entre tal investida e os planos dedominao mundial do marxismo.

    Entre o socialismo e o comunismo no existe nenhuma distino doutrinria essencial econsistente. A palavra socialismo, de fato, empregada s vezes para designar um conjunto detendncias, e de aspiraes de reforma, que, sem visarem a realizar inteiramente o programacomunista, entretanto querem aplic-lo gradualmente, e sem derramamento de sangue, neste ounaquele setor da estrutura econmica e social. Neste sentido, o socialismo uma preparao para o

    5 Encclica Quadragesimo anno, de 15 de maio de 1931. Editora Vozes Ltda., Petrpolis, pg. 17.

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    comunismo, uma realizao paulatina deste. Voltaremos ao assunto6. Lembremos aqui, apenas, esumariamente, que tudo quanto debilita as instituies que o comunismo deseja suprimir , emltima anlise, uma contribuio para a vitria deste. E, pois, a Reforma Agrria, que lana emestado agnico ou pr-agnico a propriedade rural e a elite social que nela se apoia, s podefavorecer os desgnios dos comunistas.

    As minorias organizadas lucram muito quando a confuso e a diviso se estabelecem nasfileiras da maioria. O caos em que o problema da Reforma Agrria vai sendo tratado, asdissenses a que cada vez mais esta ltima poder ir dando ocasio, constituem precioso caldo decultura para as idias comunistas.

    A lei no tem um papel ilimitado na soluo dos problemas sociais, quer da cidade, quer docampo. Estes se resolvem sobretudo com o concurso da Religio e da moral, bem como de praxes ecostumes probos, nascidos da vida quotidiana. Assim, no s pela lei, mas principalmente pela fcrist, pela moral, e por sbias medidas consuetudinrias, que se obter a soluo verdadeira denossos problemas do campo7 .

    As crises sociais, se tm todas um aspecto ideolgico muito importante, no se podemreduzir, entretanto, a meros termos de doutrina. Esta verdade vale tambm para a Reforma

    Agrria no Brasil.Isto no obstante, legtimo e necessrio destacar para analis-los os problemas

    doutrinrios do emaranhado de questes que, como outras crises sociais, tambm a ReformaAgrria encerra.

    No seno este o nosso objetivo.Em princpio, a igualdade das glebas rurais pode referir-se rea, ou capacidade de

    produo. Quer a Reforma Agrria vise estabelecer uma, quer outra, no nos parece acertada.Contudo, ela particularmente inaceitvel quando tem por objetivo a igualdade de rea. Ora, paraesta ltima forma de igualdade que tende grande parte dos projetos, como, por exemplo, o dereviso agrria do Governo do Estado de So Paulo.

    Precisamente em razo das brumas que envolvem o assunto, parece-nos importanteesclarecer que os autores do presente trabalho, combatendo embora a Reforma Agrria, nocontestam que h muito por fazer em nossa vida rural, quer em favor do trabalhador braal, quer doagricultor. Assim, repetimo-lo8 , se por reforma agrria se entende uma legislao que, semexorbitar das funes do Estado e sem atacar o princpio da propriedade privada, visa amelhorar a situao do trabalhador rural e do agricultor, s aplausos lhe temos a dar. Nonos opomos seno a uma reforma agrria de sentido igualitrio e socializante, que altere nossaestrutura agrria injustamente, de maneira a abalar o instituto da propriedade, no qualvemos, como j dissemos, a base e a condio de toda economia sadia.

    Embora escape ao mbito restrito deste livro, querem os autores indicar alguns pontos quepoderiam enriquecer de contedo cristo um projeto de sadia reforma agrria9:

    1. Fixao, por lei, das condies muito excepcionais em que a desapropriao deimveis rurais, mediante justa indenizao, pode ser feita.2. Crdito fcil para os proprietrios de grandes reas que as desejem colonizar. Crdito

    fcil tambm para financiamento da compra de glebas.3. Crdito fcil para o equipamento das propriedades.4. Assistncia tcnica aos agricultores. Fomento da agricultura, sem dirigismo.5. Concesso de terras devolutas aos pequenos agricultores, sempre que por este meio

    possam elas ser convenientemente exploradas.

    6 Cfr. Parte I, Seco I, Ttulo II.7

    Cfr. Proposio 7.8 Cfr. Aviso Preliminar.9 Cfr. D. Geraldo de Proena Sigaud, S.V.D., Reforma Agrria in Digesto Econmico, So Paulo,

    junho de 1953, pgs. 32-38; reproduzido na revista Verbum, da Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro,tomo X, fasc. 3, 1953.

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    6. Fomento de formas de contrato de trabalho que possibilitem um aproveitamentointenso da terra e ao mesmo tempo beneficiem o assalariado, permitindo-lhe umasituao econmica mais favorvel e a constituio paulatina de um patrimnio. Porexemplo: a parceria, as empreitadas.

    7. Crdito especial para a melhoria das moradias dos colonos e medidas congneres.

    Excederia os limites deste trabalho analisar quais dessas medidas so praticveis edesejveis na atual conjuntura. Foram elas lembradas a ttulo meramente exemplificativo.No que diz respeito mais particularmente situao dos trabalhadores rurais, os objetivos

    de uma sadia reforma agrria podem encontrar-se no discurso dirigido por Pio XII, em 11 de abrilde 1956, aos participantes do X Congresso da Confederao Nacional dos Cultivadores Diretos daItlia10.

    O mesmo Pontfice condenara, em outra oportunidade, a opinio dos que desejam umaestrutura agrria em que s haja pequenas propriedades, afirmando que, embora tenham estas umpapel importantssimo na vida rural, o reconhecimento disto no importa em negar a utilidade efreqentemente a necessidade de propriedades agrcolas mais vastas11.

    Isto posto, o fomento criterioso da pequena propriedade feitas as ressalvas relativas aos

    direitos dos proprietrios e outras medidas favorveis ao trabalhador braal, enumeradas peloPapa, embora com vistas especialmente para a Itlia, merecem toda a ateno dos estudiosos.

    Diz Pio XII: No Nos compete definir as providncias particulares que a sociedade deve adotar para cumprira obrigao de prestar auxlio classe rural; no obstante, afigura-se-Nos que os objetivos colimados pela vossaConfederao coincidem com os deveres da prpria sociedade para convosco. Tais so, por exemplo: difundir apropriedade agrcola e o seu desenvolvimento produtivo; colocar os agricultores no proprietrios em condies desalrios, de contratos e de rendimento capazes de lhes favorecer a estabilidade nas terras por eles cultivadas e de lhesfacilitar a aquisio da plena propriedade (salvo sempre a considerao devida produtividade, aos direitos dosproprietrios e, sobretudo, aos seus investimentos); incentiv-los, mediante auxlios concretos, a melhorar as culturas eo patrimnio zootcnico, de modo que com isso se favorea quer o seu rendimento, quer a prosperidade nacional;promover, alm disto, em favor deles, as formas de assistncia e de seguros comuns aos demais trabalhadores (pormadministradas segundo as condies especiais do agricultor); facilitar a preparao tcnica, especialmente dos jovens,

    de acordo com os mtodos racionais e modernos em contnuo progresso; e finalmente esforar-se para que sejaremovida essa diferena demasiado gritante entre o rendimento agrcola e o industrial, causadora do abandono doscampos, com tanto dano para a economia num pas como o vosso, fundado em boa parte na produo agrcola. A estesencargos da sociedade em proveito vosso juntem-se os que derivam das particulares condies de vossos campos, aindano suficientemente providos, aqui e acol, de habitaes, estradas, escolas, gua encanada, energia eltrica,ambulatrios mdicos12.

    Estas medidas, e outras congneres, do bem uma idia do que poderia ser uma reformaagrria justa, ou, segundo a expresso de Pio XII, uma reforma agrria feita de modo feliz 13.

    impossvel transcrever este texto sem realar tanto o ardente desejo de beneficiar otrabalhador agrcola, quanto o admirvel comedimento de linguagem que o caracterizam.Enunciando um programa rural revestido de importantes aspectos tcnicos, o Pontfice salienta quese trata de assunto sobretudo temporal, e por isto suas palavras tomam um tom algum tanto

    condicional: afigura-se-Nos... Quanto pequena propriedade, ele no aconselha que seja imposta,mas simplesmente difundida. No que diz respeito to desejvel fixao do trabalhador ao solo,louva que as condies de salrios, de contratos e de rendimento a favoream, o que bemdiverso de a imporem. E em seguida ainda ressalva o Papa a considerao devida produtividade,aos direitos dos proprietrios e, sobretudo, aos seus investimentos. Belo exemplo da maternalsabedoria da Igreja, para a qual os problemas econmico-sociais no se resolvem por um dirigismo

    10 A . A . S., Vol. XLVIII, n. 6, pgs. 278-279.11 Discurso de 2 de julho de 1951, ao I Congresso Internacional Sobre os Problemas da Vida Rural

    Discorsi e Radiomessaggi, Vol. XIII, pgs. 199-200.12 Discurso de 11 de abril de 1956, aos participantes do X Congresso da Confederao Nacional dosCultivadores Diretos da Itlia A . A. S., Vol XLVIII, n. 6, pgs. 278-279.

    13 Discurso de 2 de julho de 1951, ao I Congresso Internacional Sobre os Problemas da Vida Rural Discorsi e Radiomessaggi, Vol. XIII, pgs. 199-200.

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    legislativo ou administrativo autoritrio que impe solues uniformes para todos os casos edespido de contato com a realidade viva.

    Seco I

    A investida do socialismo contra a propriedade rural

    Ttulo I

    A Reforma Agrria e nossa realidade rural

    Captulo I

    Aspectos positivos de nossa realidade rural

    Popularidade do fazendeiro na tradio brasileira

    At h bem pouco tempo, o fazendeiro era objeto da considerao e da estima indiscutidade todas as camadas sociais do Pas. Sua figura, como ela se delineou nas primeiras dcadas destesculo, bem conhecida de todos.

    Senhor de terras adquiridas pelo trabalho rduo e honrado ou por uma legtima sucessohereditria, no se contentava em tirar delas, preguiosamente, o estrito necessrio para suasubsistncia e a dos seus. Pelo contrrio, movido por um nobre anseio de crescente bem-estar eascenso cultural, aspirava ele ao pleno aproveitamento da fonte de riqueza que tinha em mos.Para isto, franqueava suas terras largamente s famlias de trabalhadores braais que, vindos detodos os quadrantes do Brasil e das mais variadas regies do mundo, procuravam no campo ascondies de uma existncia honesta e segura. Dedicado de sol a sol direo da faina rural, oproprietrio, associado assim aos trabalhadores braais na tarefa de tirar do solo recursos de que ume outros iam viver, era verdadeiramente o pater, o patro de cujos bens e de cuja atuao todosrecebiam alimento, teto, roupa e meios de poupana, na medida da situao e da cooperao de cadaqual.

    E, como as relaes de trabalho, quando bem entendidas, no ficam s em seu mbito maisrestrito, mas naturalmente criam compreenso, estima e mtuo apoio nas vrias necessidades davida, a harmonia entre o fazendeiro e o colono criava, freqentemente, o hbito de este se

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    aconselhar com aquele, recebendo proteo e amparo nos mais diversos assuntos; como, de outrolado, gerava no trabalhador uma dedicao por vezes herica a seu patro. este um dos maistpicos e luminosos elementos de nossa tradio em matria de relaes de trabalho.

    A ntida conscincia, na opinio pblica, dessa ntima e profunda conjugao de esforos ede interesses, manteve-se por muito tempo em nosso Pas e, merc de Deus, ainda em larga medida

    existe. Era e um dos melhores ttulos do fazendeiro estima geral.A histria de nossas velhas estirpes de proprietrios rurais vem de muito antes da pocacujo quadro h pouco traamos. a histria de uma ascenso. Nascida espontaneamente dasprofundezas da ordem natural das coisas, a propriedade agrcola deu origem entre ns a uma elitesocial que foi, de incio, composta de desbravadores valentes e dinmicos, a que sucederamgeraes de agricultores fixados em suas glebas e postos em luta constante com a natureza bravia doserto. Aos poucos, a rudeza da terra se foi atenuando, uma tradio agrcola sempre mais completafoi estabelecendo os mtodos de trabalho, os sistemas de plantio e a rotina judiciosa e eficiente dasatividades rurais. O agricultor ia, com isto, ficando menos absorvido pelas suas funes. Ao mesmotempo, as cidades se iam multiplicando e as comunicaes com o Velho Mundo se iam tornandomais seguras e rpidas. Firme na base econmica que seu trabalho e o de seus maiores lhe haviam

    formado, o fazendeiro sentia em si a conscincia de que a simples posse de um patrimnio no bastapara criar uma elite digna desse nome. Da tradio luso-brasileira, marcada a fundo pela influnciacrist, herdara ele valores de alma inestimveis, que cumpria polir e acrescer no convvio com oscentros urbanos do Brasil e do exterior.

    Da o aparecimento do agricultor meio citadino, no esprito e nas maneiras. Morava ele debom grado, durante certa parte do ano, na cidade, e no raro freqentava a Corte e viajava para aEuropa. Mas dedicava gostosamente a outra parte do ano vida rural, no contato efetivo e naturalcom os homens e as coisas do campo.

    Sem perder suas razes na terra, essa elite crescia assim, gradualmente, em instruo,cultura e distino de maneiras. Por esta forma ela se capacitava para fiel embora a seu cunhoagrcola fornecer Nao grande nmero de intelectuais, de comerciantes, de industriais, deestadistas, de homens e de damas de sociedade, que tanto valor e tanto realce deram nossa vidapoltica, cultural e social.

    Enquanto o fazendeiro, assim transformado, ampliava seu raio de ao em benefcio doPas, por isto mesmo que no deixara de ser fazendeiro continuava contribuindo para nossoprogresso agrcola. A rea plantada, o nmero de famlias vivendo do trabalho na lavoura, o volumeda produo e da exportao iam crescendo. E graas s riquezas assim acumuladas, firmava-se noexterior o nosso crdito, e as importaes, sem perturbarem nossa balana comercial, iam pari

    passu avultando. Por esta forma o Brasil, outrora atrasado e sem recursos, se ia apetrechando eadornando com todos os produtos do mundo civilizado.

    A lavoura era, por esta forma, a base da prosperidade nacional. O impulso que ela deu ao

    Pas se tornou notrio ao mundo inteiro. Da veio a reputao de terra da fartura que o Brasilcomeou a ter j desde os fins do sculo XIX. ramos, com os Estados Unidos e a Argentina, aCana para a qual afluam, cheias de esperana e de dinamismo, as multides da Europa, do OrientePrximo e do Extremo Oriente.

    O princpio bsico da popularidade do fazendeiro era uma natural afinidade deinteresses

    Na geral considerao de que ento se cercava o agricultor e com ele o criador, que sobtodos os aspectos lhe era igual no se objetivava principalmente o magnata que, senhor de umafortuna estvel e honrada, podia dispensar favores. Via-se nele, sobretudo, o proprietrio legtimo e

    benemrito que conscientemente, ao promover seu prprio bem-estar, favorecia, por uma profundae natural entrosagem de interesses, o bem-estar dos trabalhadores, o progresso do principal fator dedesenvolvimento de todos os setores econmicos do Pas, e a ascenso de nosso nvel geral decultura e civilizao.

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    Desgaste e renovao de quadros

    Este entrosamento vivo entre o interesse do patro e o do trabalhador, entre o progresso dainiciativa privada e o de toda a Nao, era especialmente palpvel pelo processo de conservao e

    renovao da elite. Punha esta todo o empenho em se manter e em progredir, mas no obstava a queem suas fileiras certos elementos, que se houvessem desgastado e corrompido, decassem,desaparecendo rpida ou paulatinamente num merecido anonimato; nem a que elementos novos eestuantes de vitalidade sassem das fileiras do salariado para terem acesso condio deproprietrios, pequenos, mdios ou grandes. Com isto se lhes abria caminho para a promoocultural e social, mais acentuada, ou menos, que, com a ajuda do tempo, da normalmentedecorreria. Esta possibilidade de acesso do trabalhador rural empreendedor e econmico condiode proprietrio contribuiu, em larga medida, para preparar dois fatos dos mais marcantes em nossahistria econmica recente: o loteamento de zonas novas, feito tantas vezes por grandesproprietrios desbravadores, e paralelamente o fracionamento orgnico e espontneo de grandespropriedades em zonas j antigas e densamente povoadas, onde as convenincias do tipo de cultura

    induziam a esta transformao.

    Tradio e progresso

    Nossa elite rural tradicional revelou, tambm neste ponto, um senso profundo dasrealidades e prestou autntico servio ao Pas. No aceitou a falsa anttese tradio-progresso. Noquis constituir-se como casta hermeticamente fechada e ligada s ao passado. Porm no quistampouco renunciar sua prpria continuidade, ao seu esprito e s suas tradies.

    E assim, se bem que a nossa melhor elite de plantadores e criadores fosse, de modo geral, acontinuao histrica das elites do passado, um processo natural legtimo vinha fazendo umadecantao, deixando desaparecer o que perecera e substituindo por outros os elementos mortos.Estes traziam em si as condies de vitalidade necessrias para dar origem a novas famliasdesejosas de se incorporarem na elite existente, e constituindo, pois, novas fontes de tradiofecunda e dinmica.

    Cunho essencialmente familiar e hereditrio

    Mencionamos a famlia, a famlia crist, evidentemente, oriunda do Sacramento doMatrimnio, abenoada por Deus e reconhecida pelo Estado. Ela era o esteio de toda esta ordem decoisas, o quadro em que o homem vivia, prosperava e acumulava riquezas espirituais e materiais, e

    no qual, por fim, exalava o ltimo suspiro implorando a misericrdia de Deus. Constitua a famliaum verdadeiro escrnio em que o agricultor, ao morrer, deixava seus bens espirituais e materiaispara a posteridade.

    A instituio da famlia funde em si, harmonicamente, a tradio e o progresso14.

    14 O verdadeiro significado da tradio, a sua importncia numa concepo crist da vida, Pio XII os ps emrelevo com palavras dirigidas Nobreza e ao Patriciado Romano em 19 de janeiro de 1944. Citamo-las por causa da suaoportunidade numa poca em que o papel da tradio to pouco compreendido: A tradio coisa muito diferente dosimples apego a um passado desaparecido, justamente o contrrio de uma reao que desconfie de todo so progresso.O prprio vocbulo, etimologicamente, sinnimo de caminho e marcha para a frente; sinonmia, e no identidade.Com efeito, enquanto o progresso indica somente o fato de caminhar para a frente, passo aps passo, procurando com oolhar um incerto porvir, a tradio indica tambm um caminho para a frente, mas um caminho contnuo, que se

    desenvolve ao mesmo tempo tranqilo e vivaz, de acordo com as leis da vida, escapando angustiosa alternativa sijeunesse savait, si vieilesse pouvait.... por fora da tradio, a juventude, iluminada e guiada pela experincia dos ancios, avana com passo

    mais seguro, e a velhice transmite e consigna confiantemente o arado a mos mais vigorosas, que continuam o sulco jiniciado. Como indica com seu nome, a tradio um dom que passa de gerao em gerao; a tocha que o corredor a

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    Pois nela que o legado do passado no se estiola, mas assumido pelas geraes novasque o perpetuam e o acrescem com sua prpria contribuio. Foi o cunho familiar dessa elite quelhe assegurou a caracterstica a um tempo tradicional e dinmica.

    Influncia vivificadora e organizadora do pensamento cristo

    Subjacente a esta ordem de coisas estava uma verdadeira filosofia crist, vivificada portoda uma tradio catlica dez vezes secular, herdada da terra lusa. Dessa tradio no fizemosseno esboar aqui alguns grandiosos e harmnicos lineamentos:

    1. Legitimidade da propriedade privada. Dignidade natural e sobrenatural dotrabalhador. Harmonia fundamental entre os interesses deste e do proprietrio rural.

    2. Harmonia fundamental entre os interesses do proprietrio rural e do Pas.3. Propriedade hereditria, que no deve existir s com o seu titular, mas sobreviver na

    famlia legtima, clula do organismo social dentro da qual e para a qual o homemvive.

    4. Preponderncia do fator famlia na estrutura social, e consequentemente harmonia

    entre tradio e progresso.5. Juntamente com a continuidade da estrutura familiar atravs das geraes, existncia

    de um duplo processo, de decantao dos elementos desgastados e de assimilaopaulatina de elementos novos, aptos a se inserirem nos quadros da elite e a lheassimilarem o esprito.

    Em outros termos, essa tradio comporta como pressupostos:A legitimidade de uma diferena de classes no plano econmico e social;A possibilidade de cada um ter uma existncia digna e plenamente humana, nas condies

    que lhe so prprias;A necessidade, para o bem do Pas, de que, dessa diferenciao comedida e harmnica,

    decorra uma cooperao ntima.Em uma palavra, nisto que se funda a paz social.E foi nesta paz social que o Brasil alcanou, como j dissemos, a merecida reputao de

    um dos pases de maior fartura no mundo.

    Captulo II

    Sombras no quadro

    Claro que a descrio feita no captulo anterior corresponde to somente as linhas gerais

    do que foi por muito tempo, e em larga medida ainda , nossa estrutura agrria. Ao longo dos anos econdicionada por circunstncias locais bastante numerosas, conheceu ela muitas variaes. O queno impede e este o ponto importante que em suas grandes linhas, e sobretudo em seu esprito,ela se tenha constitudo assim.

    Aspectos gerais harmnicos. Pormenores contraditrios

    No seria talvez necessrio acrescentar que, sempre que se descreve uma estrutura em seuesprito e em suas linhas gerais, existe o risco de se omitir ou subestimar o que nela est emcontradio com esse esprito ou essas linhas.

    cada revezamento confia s mos de outro, sem que a corrida pare ou arrefea sua velocidade. Tradio e progressoreciprocamente se completam com tanta harmonia que, assim como a tradio sem o progresso se contrariaria a simesma, assim tambm o progresso sem a tradio seria um empreendimento temerrio, um salto no escuro. (Discorsi e Radiomessaggi, vol. V, pgs. 179-180).

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    Como vimos na Introduo15, no entra nos quadros deste trabalho dar toda uma visopanormica de nosso passado agrcola, ou de nossa situao presente, mas mencionar apenas onecessrio para o estudo do problema muito circunscrito de que tratamos. pois a ttulo de meraexemplificao que lembramos se ter a realidade, em vrios lugares, afastado dos princpios emmedida maior ou menor.

    Em certas regies, a proteo do trabalhador rural contra o alcoolismo, o jogo, aprostituio, a prtica das unies ilegtimas, foi insuficiente ou nula, e com isto ficaramprejudicadas sua fibra moral, sua vida familiar, sua capacidade de trabalho e seu esprito depoupana. Em casos no raros, poderiam ter sido dispensados ao homem do campo salrios maiselevados, habitaes mais confortveis e salubres, instruo adequada, e condies de vida maisconvenientes. A propaganda nociva, sob todos os pontos de vista, do espiritismo e das superstiesde toda ordem poderia ter sido obviada ou pelo menos contrabalanada. Em muitos lugares, umamelhor assistncia mdica dos poderes pblicos e da iniciativa privada poderia ter favorecido asade do trabalhador rural. So, como dissemos, meros exemplos, que tanto poderiam ser tirados dopassado como do presente. Outros poderiam aduzir-se.

    A decadncia religiosa na vida do campo produziu devastaes morais sensveis, no

    mundo dos trabalhadores rurais. No raras vezes, para exemplificar, poderiam estes ter atenuado ouremediado sua pobreza evitando a indolncia, o esbanjamento inconsiderado com a aquisio deobjetos suprfluos, com os vcios do lcool e do jogo, que absorviam boa parte de seu j pequenosalrio.

    Tais defeitos resultaram, em boa parte, de todo um estado de esprito, de que o agricultorfoi muitas e muitas vezes participante, porm do qual ele no era o foco. Esse estado de espritoestava radicado to profundamente em todo o corpo social, que dele participavam, via de regra, asautoridades pblicas e os prprios trabalhadores rurais.

    Era ele uma conseqncia do liberalismo, que deixava cada homem entregue a si. Nem oEstado nem o patro deveriam transpor o crculo de ferro de suas funes especficas. Vivesse, pois,cada qual como lhe aprouvesse. Assim, se pela indolncia, pela inapetncia de conforto e instruo,algum no queria progredir... pois que estacionasse. A ningum seria lcito intervir em seusdireitos de micro-soberano de sua esfera privada, para lhe dar ordens ou sequer conselhos. De onde,por vezes, nos prprios beneficirios certa reao de brio ofendido, diante de iniciativas quetendiam a favorec-los em nome da justia ou da caridade.

    A sede de prazeres, caracterstica do neopaganismo, no poupou nenhuma classe social.Assim, penetrou tambm entre os agricultores, criando neles, freqentemente, a propenso a fazergastos sunturios no decurso de suas viagens ao exterior, a manter uma representao social pordemais onerosa nos grandes centros, a construir sedes de fazenda excessivamente luxuosas, acomprar automveis numerosos etc. Tudo isso acompanhado, por vezes, de gastos ainda maiorescom o jogo e com negcios arrojados.

    Da mesma raiz nasce naturalmente a avareza no essencial, isto , nos gastos para conservaras terras, remunerar dignamente os trabalhadores e promover ativa e dedicadamente a melhoriaespiritual e material das condies de vida destes.

    Os extremos se tocam. Com alguma freqncia, estes mesmos resultados nocivos soproduzidos, no pelas despesas excessivas, mas pelo exagerado desejo de acumular riquezas sobreriquezas. Este desejo originou-se, por vezes, da infiltrao da mentalidade capitalista tomada aquiem seu mau sentido uma palavra que tambm comporta um sentido bom no campo. Abstraindo detodos os demais aspectos da vida, o fazendeiro-capitalista s via como fim desta seu trabalho eseu prprio enriquecimento, de onde considerar o empregado como mquina da qual se deve tirar omximo dando-lhe o mnimo. Casos houve em que seu anseio de auferir desde logo o maior lucrolevou-o a comprometer o futuro da propriedade, recusando terra o trato devido.

    Uma certa incapacidade dos agricultores para se organizarem e imporem aos poderespblicos o respeito a seus direitos pode tambm ser considerada um defeito sensvel de nosso meio

    15 Cfr. Pgs. X e Y

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    agrcola de ento. Esse defeito tende, alis, a diminuir em face das circunstncias, menosrapidamente embora do que fora de desejar.

    As sombras do quadro e suas causas permanecem na realidade presente

    Na medida em que ainda existe nossa velha e benemrita estrutura rural, com elasobrevivem as sombras do quadro, bem como as respectivas causas. Elas se agravaram pelo fato deque alguns fenmenos nocivos, ainda muito incipientes ou qui inexistentes no comeo do sculo,tomaram de l para c um vulto inquietante. Mencionemos alguns.

    Um deles do qual, apesar de sua importncia, pouco se fala a desruralizao dosproprietrios agrcolas. Muitos deles, embora vivam no campo, tomam ali a mentalidade, as atitudese os hbitos citadinos exilados. Seu convvio com os trabalhadores o menor possvel. O casal e osfilhos vivem em funo da cidade prxima, onde encontram as diverses que mais apreciam ecompreendem.

    Agricultores h que habitam nas capitais, indo fazenda com suas famlias somente nasfrias, que deixam transcorrer no convvio exclusivo com amigos que levam consigo, sem tomar um

    contato vivo e pessoal com os trabalhadores rurais. Outros, por fim, passam anos sem fazer na suapropriedade seno as rapidssimas estadas indispensveis para tomar algumas providncias e darcertas diretrizes.

    Pensaro talvez vrios desses agricultores que, dando com largueza assistncia material aseus colonos, cumprem cabalmente seu dever. Sua generosidade de se louvar, porm no basta.Sua situao de fazendeiros pede que eles dem algo de mais valioso aos seus empregados, isto ,faam o dom de si, de sua presena, de sua afabilidade, de seu convvio.

    No queremos dizer insistimos que seja esta a regra geral. Mas, em todo caso, os fatosque descrevemos so bastante numerosos para que seja justo e i ndispensvel analis-los aqui.

    A ausncia do campo decorre de um estado de esprito que leva o homem a viver s para asdiverses, considerando montona e insuportvel a existncia calma, digna, sem prazeresexcitantes, que ali se leva.

    Essa vida, dedicada agricultura e to propcia pratica da virtude, a Igreja a favorececom empenho.

    Pio XII, por exemplo, a elogia com estas palavras:Hoje, como no passado, o campo tem algo a dar, que ultrapassa o nvel dos bens materiais: ele continua

    sendo sempre uma das mais preciosas reservas de energias fsicas e espirituais. Da decorrem a estima e o interesse comque a Igreja sempre considerou a agricultura omnium artium... innocentissima, como a chama Santo Agostinho (Dehaeresibus, 46; P. L. 42, 37); da a solicitude com que, particularmente hoje em dia, Ela se dirige populao rural, que,em virtude de seu contato mais direito com o mistrio da natureza, ou do isolamento maior imposto por seu prpriotrabalho, conservou em geral mais vivo sentimento religioso e assim ficou at nossos dias a detentora da mais puratradio crist (Discurso de 11-IV-1956, aos Cultivadores Diretos)16.

    E o Santo Padre Joo XXIII, falando sobre o mesmo assunto, exclama:Amai a terra, me generosa e austera, que encerra em seu seio os tesouros da Providncia! Amai-a porque,

    especialmente em nossos dias, em que se difunde uma perigosa mentalidade que arma ciladas aos valores mais sagradosdo homem, encontrais nela o quadro sereno onde se desenvolver vossa personalidade perfeita. Amai-a porque, aocontato dela e por vosso nobre trabalho, vossa alma pode mais facilmente aperfeioar-se e elevar-se a Deus 17.

    Sempre mais, o proprietrio vai sendo, no campo, o grande ausente. Com isto, vai eleperdendo a conscincia de sua misso de lder natural em suas terras, esquecido de que lhe competevelar pelos seus trabalhadores, promovendo-lhes a melhoria das condies de existncia. Comoevitar que a estes parea, numa apreciao unilateral e portanto injusta mas cujo lado errado elesno alcanam facilmente que o fazendeiro elemento suprfluo na marcha dos trabalhos agrcolase portanto pode e deve ser visto apenas como um parasita a ser extirpado?

    16 Carta de 18 de setembro de 1957, ao Emmo. Cardeal Siri, por ocasio da XXX Semana Social dosCatlicos da Itlia - A.A.S., vol. XLIX, n. 14, pgs. 831-832.

    17 Discurso ao XIII Congresso da Confederao Nacional Italiana dos Cultivadores Osservatore Romano,edio hebdomadria em lngua francesa, de 8 de maio de 1959.

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    De outro lado, se o agricultor no concorre com sua presena para estabelecer com seusempregados contatos vivos, de alma a alma, embora condicionados s convenincias da hierarquiasocial, como querer que estes lhe tenham estima e dedicao? Ora, no h vnculo de subordinaoque se mantenha duravelmente, sem gerar amargor e at revolta, se se fixa em termos meramentefuncionais e econmicos.

    Como se v, h nesta ausncia sistemtica de tantos proprietrios uma ocasio para gravesomisses do dever, e para a criao, a longo prazo, de um clima pr-revolucionrio entre ostrabalhadores.

    Na Revoluo Francesa, levantaram-se os camponeses de terras em que os senhores nohabitavam. Pelo contrrio, os da herica Vandia lutaram por seus senhores, contra a Revoluo: que esses residiam nas terras de que eram donos. No haver a uma lio da histria?

    No queremos dizer, com isto, que no haja diversas circunstncias que tornem legtimo eat mesmo necessrio a certos proprietrios no morar em sua fazenda. Tambm no dizemos quetodos nela devem permanecer o ano inteiro. Mas que, em regra geral, ali estejam pelo menos otempo necessrio para terem com o trabalhador um contato vivo e autntico, o que nos pareceindispensvel se quisermos evitar que entre uma classe e outra se estabelea um vcuo altamente

    propcio causa da revoluo social.Melhor se compreender talvez a utilidade deste convvio se se considerar que, segundo a

    doutrina da Igreja, o patro e com ele sua esposa e filhos tem uma responsabilidade pelostrabalhadores. Com efeito, os empregados domsticos so, no lugar que lhes prprio, umcomplemento do lar: formam a chamada sociedade heril. Os trabalhadores agrcolas, embora menosproximamente ligados ao lar do patro, devem beneficiar-se desta atmosfera de famlia, inerente auma concepo crist da propriedade.

    Cumpre que os patres lhes conheam as necessidades, as atendam no limite do que forjusto, e ainda completem a ao da justia com as larguezas da caridade. Ora, nada disto pode serfeito devidamente se o fazendeiro e sua famlia esto sempre ausentes do campo.

    O trato afvel de grandes com pequenos, conservando-se embora cada qual na sua posio,constitui preciosa tradio das verdadeiras elites no Ocidente cristo. Pio XII descreve este tratoexmio nos seguintes termos:

    ... as relaes entre classes e categorias desiguais devem permanecer governadas por uma proba e imparcial justia, e ser ao mesmo tempo animadas por respeito e afeio mtua que, embora sem suprimir a disparidade, lhediminuam as distncias e temperem os contrastes. Nas famlias verdadeiramente crists, por acaso no vemos ns osmaiores dentre os patrcios e as patrcias, vigilantes e solcitos em conservar, para com seus empregados e para comtodos os que os cercam, um comportamento consentneo por certo com sua posio, mas escoimado de presuno,propenso cortesia e benevolncia nas palavras e modos que demonstram a nobreza dos coraes; patrcios e patrciasque vem neles homens, irmos, cristos como eles, e a eles unidos em Cristo com os vnculos da caridade, daquelacaridade que mesmo nos palcios ancestrais conforta, sustm, ameniza e dulcifica a vida entre os grandes e os humildes,mxime nas horas de dor e tristeza que nunca faltam aqui? 18.

    E, mais do que s necessidades materiais, devem os patres atender s espirituais, valendo-

    se de sua legtima influncia para, pelo exemplo e pela palavra, inculcarem o amor de Deus e aprtica da virtude.

    Assim, evitar para os trabalhadores as ocasies de contrair vcios, de praticar ms aes,favorecer e at promover atos de piedade, facilitar a ao do Clero, aconselhando todos a que secasem religiosamente, freqentem os Sacramentos, faam batizar seus filhos e os instruam naReligio, eis deveres que so especficos do patro catlico.

    No tocante ao do fazendeiro em favor da formao religiosa dos colonos, no negamosque muitos procederam assim no passado e assim procedem no presente. Da lhes vinha e vem boa parte de sua popularidade. Mas como no lamentar que outros ajam de modo diverso? Se osagricultores que atendem inteiramente a esses deveres e os que os negligenciam tambm

    18 Alocuo de 5 de janeiro de 1942, Nobreza e ao Patriciado Romano Discorsi e Radiomessaggi, vol.III, pgs. 347-348.

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    inteiramente so raros, grande o nmero dos que s em parte os cumprem. E essa neglignciaparcial contribui para que, pouco a pouco, Jesus Cristo v saindo da vida do campo.

    De onde sai Cristo, com Ele sai a ordem. E de onde sai a ordem, ali entra a Revoluo.Di-lo sabiamente Pio XI: ... uma das causas principais do caos em que vivemos reside no fato de graves

    atentados desferidos contra o culto do direito e o respeito autoridade e isto se produziu desde o dia em que o mundose recusou a ver em Deus, Criador e Senhor do mundo, a fonte do direito e da autoridade. Este mal tambm encontrarseu remdio na paz crist, que se confunde com a paz divina e por isto mesmo prescreve o respeito ordem, lei e autoridade

    19.

    Captulo III

    Reforma Agrria, falsa soluo para um problema inexistente

    Considerao equilibrada das falhas e problemas de nossa vida rural

    O consenso geral do Pas reconhecia at h bem pouco que estes e outros senes,merecedores, sem dvida, de remdios, alguns dos quais enrgicos e urgentes, no importavam emnegar as reais benemerncias da classe dos agricultores e do instituto da propriedade rural, nem justificariam uma medida como a reforma drstica da estrutura agrria, pela supresso daspropriedades mdia e grande e a transferncia das respectivas terras para os trabalhadores.

    Esta soluo lhe pareceria, e a justo ttulo, to inadequada e to injusta quanto a de algumque, vista das lacunas freqentes e graves que existem atualmente na vida do lar, resolvesse, noreformar os homens e seus abusos, mas abolir a instituio da famlia ou enfraquec-la.

    Os princpios fundamentais da propriedade privada, como os da famlia, derivam daprpria natureza das coisas, e portanto de Deus, Autor da natureza20.

    Construir uma sociedade com menosprezo desses princpios o mesmo que construir um

    edifcio sem tomar em considerao as leis da Fsica.Por isto mesmo, nas vrias fases de infortnio que teve de enfrentar por exemplo, quandoda grave crise do caf em 1929 o agricultor infeliz, opresso, quase diramos perseguido, continuoucercado da estima e da considerao geral. A ningum ocorreria ver nele a causa, mas sim a vtimada crise por que o Pas passava. que, mais ou menos explcitas, as verdades que h poucoenunciamos, e em que se baseava o prestgio do agricultor, eram aceitas sem contradio.

    O falseamento do problema

    Esta viso ficou clara enquanto os princpios em que se funda a nossa estrutura agrcolatradicional estavam conscientes e vivos no esprito de todos os brasileiros.

    O declnio religioso de que j falamos, e que afetou as cidades e os campos, foi deixandoapagar-se gradualmente aqueles princpios. Poucos so, hoje em dia, entre ns os que os contestam.Mas, fora de no ouvirem falar deles, vo-se esquecendo ora de um, ora de outro, e com isto afirme estrutura ideolgica antiga vai-se reduzindo categoria de algumas convices esparsas,alguns hbitos mentais, algumas velhas simpatias. Ficou assim aberta a porta dos espritos paraaceitar desprevenidamente princpios que contm em si, implcita ou explicitamente, a idia de queo interesse pblico oposto ao interesse particular, e que, em conseqncia, o proprietrio rural no um benemrito, mas um parasita. Descreveremos adiante o processo subtil dessa transformao.

    A partir de uma viso assim transformada, no difcil para o brasileiro mdio tomar umaatitude de antipatia em face de nossa atual estrutura agrria. Pode parecer-lhe muito plausvel que

    19 Encclica Ubi Arcano, de 23 de dezembro de 1922 Editora Vozes Ltda., Petrpolis, pg. 17.20 Cfr. Ttulo II, Captulo II.

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    toda a crise atual decorra dessa estrutura. Fica configurado desse modo um problema ruralinexistente.

    Para esse problema inexistente, parece inteiramente natural uma soluo falsa: a reformaigualitria da estrutura rural, isto , a Reforma Agrria.

    Essa soluo merece a qualificao de falsa sob dois pontos de vista. Em primeiro lugar,

    como bvio, porque imaginar em determinada situao concreta um problema inexistente imporuma soluo falsa, a qual, por sua vez, criar problemas autnticos. Em segundo lugar qualificamosde falsa essa soluo porque ela contrria, como veremos, aos princpios imutveis de toda ordemhumana.

    Ttulo II

    A Reforma Agrria, objetivo genuinamente socialista e

    anticristo

    Captulo I

    O socialismo, falseando o quadro da realidade brasileira, preconiza aReforma Agrria

    Qual a ideologia que vai transformando as mentalidades a respeito do agricultor?

    Como explicar um processo de transformao to profundo, na opinio pblica nacional?Qual o nome, qual o contedo dessa ideologia que se vai lentamente insinuando nos

    espritos, enquanto se vo evolando, sob a ao do olvido, as convices antigas?Importa sobremaneira responder a essas perguntas, para compreender o sentido profundo

    dessa transformao e os fins ltimos a que ela conduz.Trata-se de uma ideologia que se implantou gradualmente em alguns pequenos crculos

    avanados. Favorecida por uma profunda disposio de nosso ambiente, ela se vem infiltrandoparalelamente nos mais variados meios polticos, sociais, tcnicos, e at religiosos. Essa infiltraose opera atravs de um processo curioso que adiante descreveremos21.

    o socialismo em marcha, nas mltiplas variantes: o socialismo ateu e radical, osocialismo laico e moderado, e o socialismo dito catlico. Com efeito, a mentalidade socialistae igualitria tem vrias vezes tentado colorir-se de catlica, com no pequena confuso dosespritos22.

    21 Cfr. Ttulo III, Captulo I.22 Cfr. D. Antnio de Castro Mayer, Carta Pastoral sobre problemas do apostolado moderno Boa

    Imprensa Ltda., Campos 1953 No captulo III deste ttulo trataremos mais detidamente deste ponto.

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    Para se ter certeza de que o alastramento do socialismo que impele os espritos Reforma Agrria, torna-se necessrio fazer uma rpida exposio da doutrina socialista, de suaconcepo do universo, da moral, da sociedade, da economia e do Estado. Tornar-se- assim claroque a Reforma Agrria se ajusta ao socialismo com a exatido com que, num raciocnio bemfeito, a concluso se ajusta s premissas.

    Essa exposio ser objeto do prximo captulo.

    Captulo II

    A doutrina socialista incompatvel com a propriedade e a famlia

    A doutrina socialista

    O socialismo, considerado como doutrina que abrange todos os campos mencionados nocaptulo anterior, pode resumir-se sucintamente em alguns itens principais:

    No universo no h seno matria. Deus, a alma, a vida futura so quimeras.Em conseqncia, estritamente justo que todos os homens procurem, com o auxlio da

    Cincia, a felicidade completa nesta vida. Enquanto no se conseguir este objetivo, necessrioproporcionar a cada qual o maior nmero possvel de prazeres, e evitar quanto possvel todo esforoou sofrimento.

    Todas as desigualdades, sejam elas de fortuna, de prestgio, de cultura, ou quaisquer outras,so injustas em si mesmas. Em conseqncia, injusta a desigualdade entre as propriedadesgrandes, mdias e pequenas, e sobretudo injusto o regime do salariado, em que um empregador,alegando o direito de propriedade, explora o trabalhador rural, exigindo para si parte do produto dotrabalho, que deveria ser inteiramente deste.

    No atual estgio da evoluo humana, j possvel abolir a propriedade, a hierarquia sociale a famlia (esta ltima uma evidente fonte de desigualdades), e reconhecer que o Estado o nicotitular de todos os direitos. Ao Estado, dirigido pelos operrios e camponeses, competir manter aigualdade plena entre os homens.

    Esta ser a forma mais evoluda da vida social em nossos dias.Tudo evolui constantemente no universo. A propriedade privada uma forma econmica e

    social superada e que vai arrastando a uma crise, e por fim a um colapso, os pases que a ela seaferram. Alm de injusta em si mesma, a propriedade , pois, inimiga do interesse pblico.

    No futuro, acrescentam certos socialistas, a evoluo do universo e do homem ser tal, quenem sequer subsistir o Estado. Ser a anarquia23, que esses utopistas concebem como possvel semdesordem nem confuso.

    suprfluo mostrar quanto esta doutrina diverge da nossa tradio catlica. Limitamo-nosa aduzir, no captulo III deste ttulo, declaraes de vrios Papas sobre o socialismo.Importa aqui acentuar que, aplicada aos problemas do campo, tal doutrina no pode deixar

    de ter como conseqncia a idia de que o proprietrio um ocupante injusto de terras quedeveriam ser distribudas entre todos. A existncia de propriedades desiguais contrria evoluoda humanidade no presente estgio e provoca terrveis crises. e no poderia deixar de ser umacausa muito importante da crise atual.

    O Estado deve, pois, partilhar as terras. Uma indenizao inteiramente proporcionada aovalor delas ser impossvel. Se estiver a seu alcance, ser talvez de boa poltica que o poder pblicod aos atuais proprietrios uma pequena compensao. Mas, a rigor, nem a isto estaria obrigado,pois o direito de propriedade um mito nocivo aos Estados e s sociedades, que a evoluo vai

    varrendo. Cumpre, portanto, que essa indenizao seja to pequena quanto estrategicamentepossvel.

    23 No sentido etimolgico: an = sem, no; arx = governo.

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    Nesta concepo igualitria, sempre que uma elite se forma , ipso facto, defraudadora damaioria. Maioria e elite minoritria so foras necessariamente em luta. o mito pago da luta declasses, tantas vezes condenada pelos Papas e cujo desfecho o esmagamento do escol pela massa,o triunfo da quantidade sobre a qualidade e a runa de todos na escravido do Estado-patro.

    O sistema socialista , assim, o oposto da idia tradicional e crist de uma conjugao

    natural de interesses entre a propriedade, o trabalho e o Estado. Na concepo nova, o proprietriopassa, automaticamente, de benemrito a parasita. Voltaremos mais adiante ao estudo comparativoentre o socialismo e a doutrina catlica.

    Mas, dir um igualitrio ingnuo, pela prpria natureza das coisas a tendncia socialistano acarretar, seno por pouco tempo, a abolio da desigualdade das terras. Com efeito, divididasassim as glebas, essa desigualdade to inqua e nociva logo reaparecer. Uns trabalharo mais, porexemplo, e compraro as glebas de outros menos saudveis ou menos esforados. Acresce que ofilho nico herdar mais do que aquele que tiver dez irmos. Como manter ento essa igualdadesonhada?

    A esta questo raras vezes desce o homem da rua, to atarefado e opresso em nossos dias.E a habilidade dos demagogos cuidadosamente a evita, pois obrigaria a respostas prematuras para

    nosso ambiente atrasado...Mas a conseqncia da partilha compulsria das terras clara. Ou se d ao Estado um

    poder totalitrio para reprimir a prosperidade dos mais capazes e dos mais esforados, ou o regimeestritamente igualitrio no existir. Ademais, ou se suprime no s a herana mas tambm afamlia, ou os pais estaro continuamente tentados a acumular bens clandestinos para favoreceremseus filhos. O grande, o nico, o verdadeiro proprietrio e senhor ser o Estado. Os agricultoressero meros posseiros cujos quinhes ele redistribuir, de tempos em tempos, para manter aigualdade.

    Em holocausto utopia igualitria ser, pois, necessrio imolar as instituies maisnaturais e santas... e isto com enorme prejuzo para o prprio trabalhador. Bem razo tinha Pio XIao observar que a destruio do domnio particular reverteria, no em vantagem, mas em runa daclasse operria24.

    O direito de propriedade nasce da natureza do homem

    Na raiz da oposio entre a tese socialista contrria propriedade privada, e a tese catlicafavorvel a esta ltima, h uma diferena de concepo a respeito da natureza humana.

    Para o socialismo, o homem no seno uma pea da imensa engrenagem que o Estado.A doutrina catlica o v com outros olhos.Todo ser vivo dotado por Deus de um conjunto de necessidades, de rgos e de aptides

    que esto postos entre si numa ntima e natural correlao. Isto , os rgos e as aptides de cada

    ser se destinam diretamente a atender s necessidades dele.O homem se distingue dos outros seres visveis por ter uma alma espiritual dotada deinteligncia e vontade. Pelo princpio de correlao que acabamos de enunciar, a inteligncia serveao homem para conhecer suas necessidades e saber como satisfaz-las. E a vontade lhe serve paraquerer e fazer o necessrio para si. Est, pois, na natureza humana conhecer e escolher o que lheconvm.

    Ora, estas faculdades no seriam teis ao homem se ele no pudesse estabelecer um nexoentre si e aquilo de que precisa. De que adiantaria, por exemplo, ao habitante do litoral saber que nomar h peixes, como estes so pescados, ter vontade firme de enfrentar as ondas e efetuar a pesca,se no lhe fosse lcito formar um nexo com o peixe pescado, de forma a poder traz-lo terra edispor dele, com excluso de qualquer outra pessoa, para sua nutrio? Esse nexo se chama, no

    caso, apropriao. O pescador se torna proprietrio do peixe. Este direito de propriedade resulta

    24 Encclica Quadragesimo Anno, de 15 de maio de 1931 Editora Vozes Ltda., Petrpolis, pg. 18.

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    para ele para qualquer pessoa, pois da sua natureza de ser inteligente e livre. E Deus criou osseres teis aos homens, para que estes se servissem deles habitualmente por apropriao.

    Se lcito ao homem apropriar-se desse modo dos bens que existem, sem dono, nanatureza, e consumi-los, pelo mesmo motivo lhe permitido apropriar-se destes bens, j no para osconsumir, mas para fazer deles instrumentos de trabalho. Assim aquele que se apropria de um

    peixe, no para o comer, mas para us-lo como isca. Esta verdade ainda mais fcil de perceberquando algum toma um objeto inapropriado e sem utilidade, um slex, por exemplo, e, afiando-o,lhe confere uma utilidade que no tinha. Pois esta utilidade nova do slex produto do trabalho, etodo homem, por ser naturalmente dono de si, dono de seu trabalho e do fruto que este produz.

    Mas o homem v que suas necessidades se renovam. Sua natureza, capaz de apreender erecear o perigo de um suprimento instvel, desejosa por si mesma de estabilidade, pede que eledisponha de meios para se garantir contra as incertezas do futuro. pois lcito que ele, alm de serdono de bens e de meios de produo, acumule pela poupana o produto de seu trabalho,prevenindo assim o futuro. E, sendo o caso, se torne tambm dono da fonte de produo. Aapropriao de reservas mveis e de bens imveis assim se justifica inteiramente.

    Notemos, antes de passar adiante, que o fundamento do direito de propriedade, em seus

    vrios aspectos, est, pois, na natureza racional e livre do homem.

    Reforma Agrria e famlia

    Referimo-nos de passagem coliso em perspectiva entre a Reforma Agrria e a famlia.O assunto merece ser um pouco mais analisado.

    Na aparncia, com efeito, nada de comum existe entre estes dois temas, Reforma Agrriae famlia. Se considerarmos a grande cpia de material at aqui publicado pr ou contra a ReformaAgrria (pelo menos na medida em que nos tem sido possvel conhec-la), nada encontraremosque aponte um nexo entre um e outro.

    Contudo, o problema das relaes entre a Reforma Agrria e a instituio da famlia seimpe. De fato, desde os primrdios da Histria a famlia e a propriedade privada existem. E no setrata apenas, entre uma e outra instituio, de uma coexistncia fria e fortuita, mas de uma simbiosentima que vem durando ininterruptamente at nossos dias. Esta simbiose indica, j primeira vista,uma afinidade profunda ligando a propriedade privada e a famlia. Esta afinidade no resultar deum nexo natural indissolvel entre ambas? Se assim , que conseqncias acarretar para a famliao golpe que a Reforma Agrria se prope desferir contra o instituto da propriedade privada?

    Para uma alma genuinamente crist, e impregnada, pois, dos sentimentos de amor evenerao que a instituio da famlia merece, tal pergunta no pode deixar de interessar.

    Como o direito de apropriar-se, a natureza humana gera outrossim o direito de constituirfamlia.No difcil mostrar a correlao entre a propriedade e a famlia. Com efeito, os gastos

    com a manuteno do lar e a educao condigna dos filhos tocam, naturalmente, ao seu chefe.Assim constitui-se em favor daquela, sobre o trabalho deste, um direito natural mais prximo e maisgrave do que os eventuais direitos da sociedade. Tal direito tem por objeto no s o que o homemganha, mas tambm o que ele acumula. Porque o lar acarreta para seu chefe encargos maiores doque os do solteiro, e porque esses encargos dizem respeito a uma sociedade naturalmente estvel,como a famlia, os argumentos que justificam o direito de propriedade tomam tal fora, quandoconsiderados em funo dela, que, enquanto trabalhar, acumular e prosperar pode ser no raro paraum indivduo isolado mais um direito do que um dever, para o chefe de famlia , em geral, antes

    um dever do que um direito. Reciprocamente, quando o homem est em situao de ganhar onecessrio para a manuteno condigna de mais de uma pessoa, ele tende, salvos casos de vocaoespecial, a constituir um lar. Sua condio de proprietrio de recursos maiores do que sua

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    Engano. Os textos pontifcios contra este ltimo so muito numerosos.Antes de transcrever alguns deles cumpre, todavia, fazer uma distino entre os diversos

    sentidos que vem tomando a palavra socialismo.Tem ela hoje em dia aplicaes muito variadas, que vo do rubro carregado do socialismo

    marxista at o rseo muito diludo, quase branco, do socialismo cristo ou socialismo catlico.

    E no raro encontrarmos reivindicando o rtulo socialista para as suas idias, quer comunistasdeclarados, quer esquerdistas bem menos radicais, quer enfim burgueses sem tendncias polticasou sociais definidas, mas de ndole tranqila e de sensibilidade humanitria e naturalista algumtanto colorida de influncia crist.

    A toda esta gama de pessoas, a afirmao de que o socialismo condenado pela Igrejapode causar espcie. Dedicamos, pois, um captulo elucidao das dvidas que eventualmente sepodem a tal respeito apresentar.

    Textos pontifcios esclarecedores

    O socialismo comeou a tomar uma importncia particular durante o pontificado de Pio IX

    (1846-1878). Comeamos pois com um texto deste Papa.

    Transtorno absoluto de toda a ordem humana... to pouco desconheceis, Venerveis Irmos, que os principais autores desta intriga to abominvel no se

    propem outra coisa seno impelir os povos, agitados j por toda classe de ventos de perversidade, ao transtornoabsoluto de toda a ordem humana das coisas, e entreg-los aos criminosos sistemas do novo socialismo ecomunismo25.

    Leo XIII, seu sucessor (1878-1903), se tornou imortal pela sabedoria com que tratou daquesto social, e pela afeio paterna que manifestou ao operariado, ento em grande parte sujeito auma imerecida pobreza. Chegou-se a dizer que o grande Papa lanara as bases do assim chamadosocialismo cristo. Erro flagrante: nos documentos de Leo XIII o socialismo objeto de

    condenaes incisivas, graves, freqentes. Vejamos algumas:Monstro horrendo... o comunismo, o socialismo, o niilismo, monstros horrendos que so a vergonha da sociedade e que

    ameaam ser-lhe a morte26.

    Runa de todas as instituies... suprimi o temor de Deus e o respeito devido s suas leis; deixai cair em descrdito a autoridade dos

    prncipes; da livre curso e incentivo mania das revolues; largai a brida s paixes populares, quebrai todo freio,salvo o dos castigos, e pela fora das coisas ireis ter a uma subverso universal e runa de todas as instituies: tal ,em verdade, o escopo provado, explcito, que demandam com seus esforos muitas associaes comunistas esocialistas27.

    Seita destruidora da sociedade civil... esta seita de homens que, debaixo de nomes diversos e quase brbaros se chamam socialistas, comunistas

    ou niilistas, e que, espalhados sobre toda a superfcie da terra, e estreitamente ligados entre si por um pacto deiniquidade, j no procuram um abrigo nas trevas dos concilibulos secretos, mas caminham ousadamente luz do dia,e se esforam por levar a cabo o desgnio, que tm formado de h muito, de destruir os alicerces da sociedade civil. a

    25 Pio IX, Encclica Noscitis et Nobiscum, de 8 de dezembro de 1849 Coleccin Completa deEncclicas Pontifcias, Editorial Poblet, Buenos Aires, pg. 121.

    26

    Leo XIII, Encclica Diuturnum Illud, de 29 de junho de 1881 Editora Vozes Ltda., Petrpolis, pg.16.27 Leo XIII, Encclica Humanum Genus, de 20 de abril de 1884 Editora Vozes Ltda., Petrpolis,

    pgs. 20-21.

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    eles, certamente, que se referem as Sagradas Letras quando dizem: Eles mancham a carne, desprezam o poder eblasfemam da majestade (Jud. 8)28.

    Seita pestfera... todos sabem com que gravidade de linguagem, com que firmeza e constncia o Nosso glorioso

    Predecessor Pio IX, de saudosa memria, combateu, quer nas suas Alocues, quer nas suas Encclicas dirigidas aos

    Bispos de todo o mundo, tanto os esforos inquos das seitas, como nomeadamente a peste do socialismo, que jirrompia dos seus antros29.

    Seita demolidora... os socialistas e outras seitas sediciosas que trabalham h tanto tempo para arrasar o Estado at aos seus

    alicerces30.

    Seita abominvel necessrio, ..., que trabalheis para que os filhos da Igreja Catlica no ousem, seja debaixo de que pretexto

    for, filiar-se na seita abominvel (do socialismo), nem favorec-la31.

    Inimigo da sociedade e da Religio

    ... temos necessidade de coraes audaciosos e de foras unidas, numa poca em que a messe de dores quese desenvolve diante de nossos olhos demasiado vasta, e em que se vo acumulando sobre nossas cabeas formidveisperigos de perturbaes ruinosas, em razo principalmente do poder crescente do socialismo. Esses socialistasinsinuam-se habilmente no corao da sociedade. Nas trevas das suas reunies secretas e luz do dia, pela palavra epela pena, impelem a multido revolta; rejeitam a doutrina da Igreja, negligenciam os deveres, s exaltam os direitos,e solicitam as multides de desgraados, de dia para dia mais numerosos, que, por causa das dificuldades da vida, sedeixam prender a teorias enganosas e so arrastados mais facilmente para o erro. Trata-se ao mesmo tempo dasociedade e da Religio. Todos os bons cidados devem ter a peito salvaguardar uma e outra com honra 32.

    Perigo para os bens materiais, a moral e a Religio... era do Nosso dever advertir publicamente os catlicos dos graves erros que se ocultam sob as teorias do

    socialismo, e do grande perigo que da resulta, no somente para os bens exteriores da vida, mas tambm para aintegridade dos costumes e para a Religio 33.

    Germe funesto... a Igreja do Deus vivo, que a coluna e o sustentculo da verdade (1 Tim. 3,15), ensina as doutrinas e

    princpios cuja verdade consiste em assegurar inteiramente a salvao e tranqilidade da sociedade e desarraigarcompletamente o germe funesto do socialismo 34.

    Serpente perigosaOs comunistas, os socialistas e os niilistas so uma peste mortal que se introduz como a serpente por entre

    as articulaes mais ntimas dos membros da sociedade humana, e a coloca num perigo extremo 35.

    Negao das leis humanas e divinasOs socialistas, os comunistas e os niilistas nada deixam intacto ou inteiro do que foi sabiamente estabelecido

    pelas leis divinas e humanas para a segurana e honra da vida

    36

    .

    28 Leo XIII, Encclica Quod Apostolici Muneris, de 28 de dezembro de 1878 Editora Vozes Ltda.,Petrpolis, pgs. 3-4.

    29 Leo XIII, Encclica Quod Apostolici Muneris, de 28 de dezembro de 1878 Editora Vozes Ltda.,Petrpolis, pg. 7.

    30 Leo XIII, Encclica Libertas Praestantissimum, de 20 de junho de 1888 Editora Vozes Ltda.,Petrpolis, pg. 16.

    31 Leo XIII, Encclica Quod Apostolici Muneris, de 28 de dezembro de 1878 Editora Vozes Ltda.,Petrpolis, pg. 14.

    32 Leo XIII, Encclica Graves de Communi, de 18 de janeiro de 1901 Editora Vozes Ltda., Petrpolis,pgs. 15-16.

    33

    Idem, pg. 4.34 Leo XIII, Encclica Quod Apostolici Muneris, de 28 de dezembro de 1878 Editora Vozes Ltda.,Petrpolis, pg. 7.

    35 Idem, pg. 3.36 Idem, pg. 4.

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    O socialismo diverge diametralmente da Religio Catlica... ainda que os socialistas, abusando do prprio Evangelho, a fim de enganarem mais facilmente os espritos

    incautos, tenham adotado o costume de o torcerem em proveito da sua opinio, entretanto a divergncia entre as suasdoutrinas depravadas e a purssima doutrina de Cristo tamanha, que maior no podia ser. Pois que pode haver decomum entre a justia e a iniquidade? Ou que unio entre a luz e as trevas? (2 Cor. 6, 14)37.

    Estes textos no deixam margem a dvida, quanto oposio entre a doutrina socialista,vista em seus princpios filosficos, sociais, econmicos etc., e a doutrina da Igreja. Eles constituema condenao da doutrina socialista considerada em toda a sua extenso38.

    Mas, de Leo XIII a nossos dias a palavra socialismo se foi estendendo paulatinamente,de maneira a abranger sistemas que aceitam algo de afim com o socialismo que chamaramos pleno,mas, sem embargo, so distintos dele por algum lado.

    H, por exemplo, escolas socialistas que procuram confinar-se no campo social eeconmico, abstraindo de quaisquer pressupostos religiosos ou filosficos. Estas escolas cogitam sdos problemas de produo e de consumo, afetando dar a seus adeptos a maior liberdade de opinioquanto ao mais. Na realidade, entretanto, tambm este socialismo incompatvel com a doutrinacatlica. que, aparentando no tomar posio filosfica ou religiosa, ele se mostra, no fundo,

    materialista, pois quer organizar a sociedade e a economia como se no mundo s houvesse matria,e s os problemas da matria tivessem importncia.

    H ainda outras escolas, que tambm se intitulam socialistas, mas que diferem dosocialismo, como este se apresentava ao tempo de Pio IX e de Leo XIII, em dois aspectos:

    1. quanto aos objetivos, no visam a uma socializao completa de todos os campos daexistncia humana, mas apenas de alguns deles, s vezes at bem poucos;

    2. quanto aos mtodos, no desejam transformaes sociais bruscas nem violentas, masgraduais e pacficas.

    Estas escolas ou correntes em confronto com o socialismo radical e pleno, o socialismomarxista por exemplo tm aspecto evidentemente atenuado. Entretanto, tambm elas (entre asquais sobreleva a de Henry George, que pleiteia a socializao da terra e a conservao da iniciativaprivada nos outros setores da economia) so inconciliveis com a doutrina catlica.

    As reformas propostas por esses matizes socialistas umas mais moderadas, outras menos visam, seno abolio total da iniciativa privada e da propriedade particular, pelo menos limitao de uma e de outra em medida incompatvel com a natureza do homem 39.

    Igual censura se pode fazer variante socialista com carter distributista e rtulo cristo,que considera a sociedade como o fim do homem. Conforme essa escola, toda produo queexcedesse das necessidades de cada famlia, em lugar de formar o patrimnio familiar iria para acoletividade. Como se v, para este sistema a famlia, considerada como unidade de produo, visas subsistncia: erro que a impede de amealhar, pois o supervit dessa produo patrimnio dasociedade: este sistema socializa a produo.

    De modo geral, os socialistas ditos catlicos ou cristos aceitam a dissociao entre osfundamentos filosficos do socialismo e os seus aspectos econmicos e sociais. Rejeitam aqueles, eadmitem estes pelo menos em alguma medida. E, fiados em que a vitria de um socialismomoderado no acarrete perseguies para a Religio, anelam pelo advento de uma ordem de coisassocialista e crist. Pelo que anteriormente dissemos, os erros deste sistema j ficaram apontados40.

    Para corroborar os catlicos na rejeio das escolas socialistas moderadas, crists oucatlicas, a Encclica Quadragsimo Anno foi de grande valia. Nela enuncia Pio XI, com toda aclareza, o problema decorrente da pluralidade de sentidos que depois de Leo XIII a palavrasocialismo foi tomando.

    37 Idem, pg. 8.38 Cfr. Resumo no Captulo II deste Ttulo.39 Cfr. Ttulo II, Captulo II.40 Idem.

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    A bifurcao do socialismoHistoriando a evoluo do termo socialismo, escreve o Papa: No menos profunda que a da economia, foi,

    desde o tempo de Leo XIII, a evoluo do socialismo, contra o qual principalmente terou armas o Nosso Predecessor.Ento podia ele dizer-se uno, pois defendia uma doutrina bem definida e reduzida a sistema; depois dividiu-se em duasfaces principais, de tendncias pela maior parte contrrias, e irreconciliveis entre si, conservando, porm, ambas oprincpio fundamental do socialismo primitivo, contrrio F crist 41.

    O comunismoUma das faces seguiu uma evoluo paralela da economia capitalista, que antes descrevemos, e

    precipitou-se no comunismo, que ensina duas coisas e as procura realizar, no oculta ou solapadamente, mas luz dodia, francamente e por todos os meios, ainda os mais violentos: guerra de classes sem trguas nem quartel e completadestruio da propriedade particular42.

    O socialismo moderadoDepois de vrias consideraes sobre o comunismo, o Pontfice prossegue, falando da faco moderada do

    socialismo: Mais moderada a outra faco, que conservou o nome de socialismo: porque no s professa abster-se daviolncia, mas abranda e limita de algum modo, embora no as suprima de todo, a luta de classes e a extino dapropriedade particular. Dir-se-ia que o socialismo, aterrado com as conseqncias que o comunismo deduziu de seusprprios princpios, tende para as verdades que a tradio crist sempre solenemente ensinou, e delas em certa maneirase aproxima: porquanto inegvel que as suas reivindicaes concordam, s vezes, muitssimo com as reclamaes doscatlicos que trabalham na reforma social.

    Com efeito, a luta de classes, quando livre de inimizades e dio mtuo, transforma-se pouco a pouco numaconcorrncia honesta, fundada no amor da justia, que, se bem no seja aquela bem-aventurada paz social por que todossuspiramos, pode e deve ser o princpio da mtua colaborao. Do mesmo modo, a guerra propriedade particular,afrouxando pouco a pouco, chega a limitar-se, a ponto de j no agredir a posse do necessrio produo dos bens, masaquele despotismo social que a propriedade contra todo o direito se arrogou. E, de fato, tal poder no pertence aosimples proprietrio, mas autoridade pblica. Por este caminho podem os princpios deste socialismo mitigado virpouco a pouco a coincidir com os votos e reclamaes dos que procuram reformar a sociedade segundo os princpioscristos. Estes com razo pretendem que certos gneros de bens sejam reservados ao Estado, quando o poderio quetrazem consigo tal que, sem perigo do mesmo Estado, no pode deixar-se em mos dos particulares.

    To justos desejos e reivindicaes em nada se opem verdade crist, e muito menos so exclusivos do

    socialismo. Por isso, quem s por eles luta no tem razo para se declarar socialista

    43

    .

    Falsa conciliaoMas no se v julgar que os partidos socialistas, no filiados ainda ao comunismo, professem j todos

    terica e praticamente esta moderao. Em geral, no renegam a luta de classes nem a abolio da propriedade, apenasas mitigam. Ora, se os falsos princpios assim se mitigam e obliteram, pergunta-se, ou melhor, perguntam alguns semrazo, se no ser bem que tambm os princpios catlicos se mitiguem e moderem, para sair ao encontro do socialismoe congraar-se com ele a meio caminho. No falta quem se deixe levar da esperana de atrair por este modo ossocialistas. Esperana v! Quem quer ser apstolo entre os socialistas preciso que professe franca e lealmente toda averdade crist, e que de nenhum modo feche os olhos ao erro. Esforcem-se antes, se querem ser verdadeiros arautos doEvangelho, por mostrar aos socialistas que as suas reclamaes, na parte que tem de justas, se defendem muito maisvigorosamente com os princpios da f e se promovem muito mais eficazmente com as foras da caridade 44.

    Uma quimera: o batismo do socialismoE se o socialismo estiver to moderado no tocante luta de classes e propriedade particular, que j nomerea nisto a mnima censura? Ter renunciado por isso sua natureza essencialmente anticrist? Eis uma dvida, quea muitos traz suspensos. Muitssimos catlicos, convencidos de que os princpios cristos no podem jamais abandonar-se nem obliterar-se, volvem os olhos para esta Santa S e suplicam instantemente que definamos se este socialismorepudiou de tal maneira as suas falsas doutrinas, que j se possa abraar e quase batizar, sem prejuzo de nenhumprincpio cristo. Para lhes respondermos, como pede a Nossa paterna solicitude, declaramos: O socialismo, quer seconsidere como doutrina, quer como fato histrico, ou como ao, se verdadeiro socialismo, mesmo depois dese aproximar da verdade e da justia nos pontos sobreditos, no pode conciliar-se com a doutrina catlica, poisconcebe a sociedade de modo completamente avesso verdade crist.

    Com efeito, segundo a doutrina crist, o homem socivel por natureza colocado nesta terra para que,vivendo em sociedade e sob a autoridade ordenada por Deus (Rom. 13,1), cultive e desenvolva plenamente todas as

    41 Encclica Quadragesimo Anno, de 15 de maio de 1931 Editora Vozes Ltda., Petrpolis, pgs. 40-41.42 Idem, pg. 41.43 Idem, pgs. 41-42.44 Idem, pgs. 42-43.

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    suas faculdades, para louvor e glria do Criador, e pelo fiel cumprimento dos deveres de sua profisso ou vocao,qualquer que ela seja, granjeie a felicidade temporal e eterna. Ora, o socialismo, ignorando por completo oudesprezando este fim sublime dos indivduos e da sociedade, opina que o consrcio humano foi institudo s para avantagem material que oferece. E, na verdade, do fato de o trabalho convenientemente organizado ser muito maisprodutivo que os esforos isolados, os socialistas concluem que a atividade econmica deve necessariamente revestiruma forma social. Desta necessidade segue-se, segundo eles, que os homens, no que respeita produo, so obrigados

    a entregar-se e sujeitar-se completamente sociedade. Mas estimam tanto os bens materiais que servem comodidadeda vida, que afirmam deverem pospor-se e mesmo sacrificar-se quaisquer outros bens superiores, e em particular aliberdade, s exigncias de uma produo ativssima. Esta perda da dignidade humana, inevitvel no sistema daproduo socializada, julgam-na bem compensada com a abundncia dos bens que, produzidos socialmente, serodistribudos pelos indivduos, e estes podero livremente aplicar a uma vida mais cmoda e faustosa. Em conseqncia,a sociedade sonhada pelo socialismo no pode existir nem conceber-se sem violncias manifestas; por outra parte, gozade uma liberdade no menos falsa, pois carece de verdadeira autoridade social; esta no pode fundar-se nos interessesmateriais, mas provm somente de Deus, criador e fim ltimo de todas as coisas (Enc. Diuturnum)45.

    Socialismo catlico, uma contradioE se este erro, como todos os mais, encerra algo de verdade, o que os Sumos Pontfices nunca negaram,

    funda-se contudo numa concepo da sociedade humana diametralmente oposta verdadeira doutrina catlica.Socialismo religioso, socialismo catlico so termos contraditrios: ningum pode ser ao mesmo tempo bom catlico e

    verdadeiro socialista46.

    ConseqnciaA conseqncia no poderia ser mais clara. Mesmo o socialismo moderadssimo, e ainda

    que procure ostentar o rtulo catlico, incompatvel com a doutrina da Igreja.Esta conseqncia apresenta um real alcance prtico no tocante Reforma Agrria.

    possvel, com efeito, que ao longo dos obstculos que esta venha a encontrar em seu caminhoalguns projetos apaream mais moderados, mais cautelosos, em uma palavra menos alarmantespara o fazendeiro, se bem que atentatrios, de um ou de outro modo, ao direito de propriedade. Seno houver em nosso ambiente muita clareza de princpios acerca das mltiplas modalidades dosocialismo, e do que h de condenvel tambm no socialismo moderado, poder facilmente

    suceder que algumas sugestes de cunho diluidamente socialista sejam aceitas como incuas e atconciliatrias.

    Titulo III

    Como a campanha pela Reforma Agrria encontra eco num

    povo que no socialista

    Captulo I

    A propaganda socialista sub-reptcia

    A Reforma Agrria, tpica revoluo social e religiosa

    As crises ideolgicas e institucionais tendem por natureza a se alastrarem para todos osterrenos, entre os quais o do vocabulrio. Elas exercem uma presso sobre certas palavras, que voassim perdendo sua clareza e admitindo sentidos cada vez mais vastos e imprecisos. Foi o queaconteceu, por exemplo, com o termo revoluo. O que significa ele hoje em dia? Pode-se dizer

    que a Reforma Agrria uma revoluo?

    45 Idem, pgs. 43-44.46 Idem, pg. 44.

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    A palavra revoluo designa muitas vezes uma ao apoiada na fora e destinada aimpor aos poderes pblicos, ou a uma categoria numerosa de pessoas, ou enfim a todo um povo, aaceitao de uma violao qualquer de direitos. A deposio de um chefe de Estado , neste sentido,uma revoluo. Como o tambm o ato de um governo que, apoiado pela fora, amplia suasatribuies alm dos limites estatudos por lei. Em ambas as hipteses, a circunstncia de ocorrer,

    ou no, derramamento de sangue apenas acessria: a revoluo arquetpica cruenta, mas podehaver revolues incruentas de carter muito mais profundamente revolucionrio do que ela.Uma lei votada e sancionada pelos poderes competentes pode chamar-se revolucionria na

    acepo apontada? Se tal lei atenta contra instituies como, por exemplo, a propriedade ou afamlia, que resultam da prpria ordem natural criada por Deus 47 e se fundam no Declogo, ento sedeve dizer que revolucionria: ela um ato revolucionrio do homem contra Deus.

    Neste sentido, a lei que implantasse a Reforma Agrria constituiria uma revoluo.Revoluo de ndole social e econmica, porque a Reforma Agrria visa a alterar a estrutura dasociedade e da economia. Revoluo de cunho religioso, porque a alterao projetada em simesma contrria lei de Deus e ao ensinamento da Igreja.

    Ora, como bem sabido, as revolues tem como que intuies ou instintos polticos

    finssimos, que as levam a dizer ou calar o que lhes convm, lhes inspiram a escolha de slogansadequados, e de frmulas hbeis para irem revelando por etapas os seus desgnios.

    o que se nota nesta fase incipiente de agitao em prol da Reforma Agrria.A Reforma Agrria encontra diante de si um primeiro problema ttico: se as doutrinas

    socialistas fossem enunciadas explcita e concatenadamente, como um sistema ideolgico, e sesempre se dissesse que so socialistas, elas no seriam aceitas pela maioria dos brasileiros.

    Propaganda eficiente

    Por isto mesmo, o nico modo que h para as disseminar consiste em vel-las ou dilu-lassob um palavreado impreciso, que insinue sem afirmar. E ainda assim, insinuando uma ou outra tesesocialista, cumpre evitar que seja posta em relao com as demais de maneira a se perceber queconstituem um s bloco doutrinrio firme e coeso.

    Esta ttica tem sido usada tambm por outras correntes, como a dos modernistas, acerca dos quais observoucom perspiccia o Papa So Pio X: Com astuciosssimo engano, costumam apresentar suas doutrinas, no coordenadase juntas em um todo, mas dispersas e como que separadas umas das outras, a fim de serem tidas por duvidosas eincertas, ao passo que de fato esto firmes e constantes 48.

    A primeira precauo desse mtodo consiste em silenciar quanto possvel sobre asbenemerncias da agricultura para com o trabalhador rural e o Pas.

    Preparado o terreno, comea ento a ofensiva. Reala-se que o homem do campo vive emcondies infra-humanas. Em lugar de tratar o assunto com os matizes que ele comporta, apontandoas