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REFLEXÕES SOBRE PAISAGEM: O CAMPO E A CIDADE NA ÓTICA DO TRABALHO (PRECARIZADO) Betânia Silva Leite de Jesus 1 Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia [email protected] Sócrates Menezes 2 Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia- UESB [email protected] GT7: Trabalho, flexibilização e precarização. RESUMO O presente texto tem como objetivo refletir sobre a paisagem a partir da mobilidade do trabalho e, em especial, a partir da mobilidade campo-cidade. Busca-se entender a paisagem para além das abordagens tradicionalmente postas pela Geografia, que tende a conceber a paisagem como aparência ocultadora de essências, ou como síntese formais da relação entre forma e conteúdo. Pretendeu-se pautar pela dialética do trabalho e conferir à paisagem também o movimento da contradição dialética interna ao seu conteúdo. Neste sentido, a paisagem foi posta ao lado do processo de desrealização do trabalho, e também dos espaços de vivência e reprodução do proletariado clássico e atual, afim de demonstrar como a categoria pode ser concebida diante do fluxo e da dinâmica histórica, em especial diante do movimento de precarização do trabalho no campo e na cidade. PALAVRAS-CHAVE: Paisagem, Mobilidade do trabalho, Precarização do Trabalho, Relação Campo Cidade. 1 Estudante do curso de graduação em Geografia da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia UESB. Membro do Grupo de Pesquisa Estado Capital e Políticas de Re-Ordenamento Territoriais (CNPQ). Membro do grupo de Estudos Crise Crítica, ligado ao Laboratório de Estudos Agrários e Urbanos (LEAU). Integrante de Iniciação científica e orientanda do Prof. Sócrates Menezes. 2 Professor Dr. Adjunto da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia -UESB. Membro do Grupo de Pesquisa Estado Capital e Políticas de Re-Ordenamento Territoriais (CNPQ). Coordenador do Laboratório de Estudos Agrários e Urbanos (LEAU). Coordenador do Grupo de Etudos Crise e Crítica.

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REFLEXÕES SOBRE PAISAGEM: O CAMPO E A CIDADE NA ÓTICA DO

TRABALHO (PRECARIZADO)

Betânia Silva Leite de Jesus1

Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

[email protected]

Sócrates Menezes2

Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia- UESB

[email protected]

GT7: Trabalho, flexibilização e precarização.

RESUMO

O presente texto tem como objetivo refletir sobre a paisagem a partir da mobilidade do

trabalho e, em especial, a partir da mobilidade campo-cidade. Busca-se entender a paisagem

para além das abordagens tradicionalmente postas pela Geografia, que tende a conceber a

paisagem como aparência ocultadora de essências, ou como síntese formais da relação entre

forma e conteúdo. Pretendeu-se pautar pela dialética do trabalho e conferir à paisagem

também o movimento da contradição dialética interna ao seu conteúdo. Neste sentido, a

paisagem foi posta ao lado do processo de desrealização do trabalho, e também dos espaços

de vivência e reprodução do proletariado clássico e atual, afim de demonstrar como a

categoria pode ser concebida diante do fluxo e da dinâmica histórica, em especial diante do

movimento de precarização do trabalho no campo e na cidade.

PALAVRAS-CHAVE: Paisagem, Mobilidade do trabalho, Precarização do Trabalho,

Relação Campo Cidade.

1 Estudante do curso de graduação em Geografia da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia –

UESB. Membro do Grupo de Pesquisa Estado Capital e Políticas de Re-Ordenamento Territoriais

(CNPQ). Membro do grupo de Estudos Crise Crítica, ligado ao Laboratório de Estudos Agrários e

Urbanos (LEAU). Integrante de Iniciação científica e orientanda do Prof. Sócrates Menezes. 2 Professor Dr. Adjunto da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia -UESB. Membro do Grupo de

Pesquisa Estado Capital e Políticas de Re-Ordenamento Territoriais (CNPQ). Coordenador do

Laboratório de Estudos Agrários e Urbanos (LEAU). Coordenador do Grupo de Etudos Crise e

Crítica.

INTRODUÇÃO

O presente estudo tem como objetivo estabelecer a relação entre a categoria paisagem e

a mobilidade/precarização do trabalho campo-cidade. Busca-se compreender como que a

constituição da paisagem do campo e da cidade está relacionada com as formas de produção

(e apropriação desigual) do espaço produzido pelo trabalho. O urbano e o rural, enquanto

conteúdo da cidade e o campo, respectivamente, serão buscados a partir da ótica da

mobilidade do trabalho em seu processo de precarização, ou seja, com espaços carregados de

conteúdos referenciados pela relação entre o processo de trabalho e o processo de valorização

(MARX, 1983).

Neste sentido, o presente texto se refere ao debate estabelecido no seio da geografia

(mas não só nela) entre as categorias paisagem e trabalho, na especificidade temática que

envolve a mobilidade campo-cidade no processo de produção do espaço diante do processo de

precarização.

Se, por um lado, a paisagem é para a Geografia, ora entendida como a aparência onde

se escondem conteúdos espaciais (SOUZA, 2015), ora entendida como a expressão formal de

um conteúdo histórico e espacialmente constituído, ora como a relação entre formas e funções

(SANTOS, 1988), por outro lado, a processualidade inerente à produção do espaço, e por

extensão a da paisagem, não tem ganhado relevo nas reflexões sobre essa categoria. Poder-se-

ia admitir que a inserção da processualidade se dá apenas formalmente, como categoria, que

se somaria e induziria ao movimento demais categorias como forma, função e estrutura (como

amplamente utilizados nos termos de Milton Santos).

Como será demonstrado, o elemento que falta à reflexão que tradicionalmente se faz à

paisagem é o trabalho em sua dialética de afirmação e negação no processo de valorização do

capital. A dialética do trabalho introduz um tipo de processualidade que põe a contradição

como o motor das relações em movimento dialético, podendo assim melhor definir categorias

espaciais, sobretudo a paisagem (MENEZES, 2016). Para tanto, será tomado a relação campo-

cidade como processo de constituição da paisagem a ser analisada. Campo e cidade, paisagens

clássicas da divisão do trabalho na sociedade capitalista, por seu turno, será aqui entendida a

partir da mobilidade do trabalho no movimento de precarização observado atualmente, e

corresponderá à materialização do processo de valorização, pela constituição da divisão do

trabalho, do trabalho abstrato e da intensificação da mais-valia, como exposto nos termos de J.

P. Gaudemar: “o conceito de mobilidade do trabalho participa na determinação específica da

economia capitalista no seio das determinações gerais de toda a economia mercantil” (1977;

p. 195-196).

O que aqui torna central a divisão do trabalho e a relação campo-cidade é exatamente a

sua importância categorialmente histórica, pois como assinala Marx e Engels, “a maior

divisão entre trabalho material e espiritual é a separação cidade e campo” (2007; p. 52). No

entanto, é importante destacar que a “separação” em questão não pode ser tomada pelo

sentido dicotômico do termo. Ela envolve uma relação dialética que revela necessariamente

contradições, especialmente àquelas que se referem Henri Lefebvre (2001); no entendimento

do campo como a constante e simultânea negação do urbano, como o atraso, mas também

como par dialético negativo, indissociável e contraditório. Isso significa que, por outro lado, a

cidade, enquanto o espaço do urbano, avançado, “espaços ordenados e luminosos”

(LEFEBVRE, 2001; p. 37), se situa cada vez mais diante do que se põe como seu oposto, ou

seja, o próprio campo.

Neste sentido a mobilidade do trabalho campo-cidade ganha assim sua justificativa

diante dos objetivos de identificação da paisagem como instrumento da análise aqui proposta,

qual seja: o vivido, percebido e concebido (ainda nos termos lefebvrianos) da cidade diante do

trabalhador emigrante do campo. Vice e versa: o vivido, o percebido e concebido do campo

pelo trabalhador imigrante. Nesse vai e vem da mobilidade do trabalho, nos tempos da

precarização como predominância, os espaços apresentam distintas lógicas e experiências que

os põem em confronto com seu oposto contraditório e complementar. A paisagem será aqui,

então, apresentada como a síntese desse confronto do espaço consigo mesmo, observado de

seu oposto-contraditório.

O TRABALHO E SEU PAPEL NA PRODUÇÃO DA CIDADE E DO URBANO.

O homem primitivo, dada suas precárias e limitadas condições de apropriação da

natureza, não se fixava em um único habitat. Sua condição nômade é equivalente à disposição

dos meios necessários à satisfação de suas carências. O lento e gradual desenvolvimento das

capacidades de trabalho e produção possibilitaram esse homem a se estabelecer em locais

mais ou menos determinados para práticas ainda “cerimoniais”, ou não produtivas. Para

Sposito, essas primitivas ligações de sociabilidade são fundamentais para os estudos sobre a

cidade porque “[...] o surgimento das cidades havia sido lançado, pois os homens, embora não

tivessem ainda moradia fixa, já se relacionavam com um lugar, um ponto do espaço que era

ao mesmo tempo de encontro e de prática cerimonial. (SPOSITO, 1989, P. 7)

No entanto, entendendo a cidade como produto da complexificação das possibilidades

com que o homem medeia com a natureza as condições de salvaguardar suas necessidades,

logo como produto da divisão do trabalho e do aumento da produtividade deste trabalho, a

gênese da cidade não poderia ter outro fundamento senão sua própria cisão com a relação

campo-cidade. Em outros termos: a cidade, como espaço e categoria autônoma e específica,

ou seja, como espaço da sociabilidade especificamente humana, apresenta como o que

emerge, resulta, de uma relação também específica: da relação campo-cidade como expressão

da divisão do trabalho (MARX; ENGELS, 2007).

Se, por um lado, o trabalho foi se desenvolvendo a partir de atividades ainda muito

atreladas à mediação primária homem-meio (agricultura e criação/domesticação de animais);

por outro lado o trabalho também se desenvolve a partir de atividades especificamente

humanas: a troca, depois o comércio. Ainda que trabalho “material e espiritual” sejam

complementários (e jamais deixariam de ser, conforme o desenvolvimento da história se

processa), a dialética que encerra sua contradição no plano espacial campo-cidade também se

expressa de forma contraditória, com a cidade se apresentado como que Lefebvre, ao observar

a “urbe” grega, define o lugar que “dispõe-se o cosmos, espaços ordenados e luminosos,

hierarquia de lugares” (2001; p. 37).

Ainda conforme Lefebvre, a cidade como espaço não-natural, inteiramente “subjetivo”,

“espiritual”, não material, do não-trabalho, oposta e cindida não apenas ao campo e ao espaço

dos escravos, mas da própria relação campo-cidade, esboça apenas uma pretensão, uma

potência. Afinal, a materialidade própria da produção do trabalho, antes restrita ao campo, se

torna por sua vez, com a industrialização, a condição decisiva da cidade moderna e do

conceito moderno de urbano. Seja pela contemplação e aproximação com cosmos nos tempos

gregos, seja como encontro para “celebração” entre os homens primitivos, seja como espaço

de reprodução do proletariado industrial, seja como lugar da sociabilidade contemporânea, o

elemento comum que decide a cidade é a relação que ela estabelece com o processo de

trabalho, ora de forma identitária, ora de forma negativa ou positiva. Essa é a contradição

preponderante.

Se, como coloca Marx e Engels, a gênese da cidade se dá com o desenvolvimento da

divisão do trabalho, isso leva paulatinamente a sociedade a desenvolver o processo de

produção até a constituição da divisão do trabalho também por classes sociais (afinal, a

aproximação com o cosmos possibilitada pela a polis grega era relativa à aristocracia), pela

geração e acúmulo de riqueza para os detentores do poder político, militar e social. Nesse

processo começa a se estabelecer uma divisão do trabalho que se especializa na constituição

do espaço urbano, e de tudo aquilo que não é urbano. Com a comercialização dos produtos

agrícolas se estabelece na cidade a centralização do poder e a organização do espaço de

acordo com os interesses das classes detentoras dos meios de produção. Spósito, ainda

trazendo uma visão linear, também ressalta que através do aumento da produção e, em

consequência, também do comércio, foram sendo constituídas novas cidades e, com isso, a

divisão do trabalho ia se desenvolvendo, conforme fosse se especializando e ampliando, até à

industrialização e sua crescente necessidade de mão de obra concentrada e disposta na cidade.

No entanto, a história se procede por saltos, muitas vezes contraditórios. Como aponta

Lefebvre, a cidade urbana moderna não pode ser a mera consequência do desenvolvimento do

trabalho e da concentração dos meios de produção. É algo novo: uma nova pretensão de

gênese, por isso, uma nova potência, relativa às formas também inteiramente novas com que o

“trabalho livre” (assalariado) reconfigura a predominância da mediação homem-natureza.

Assim que é a cidade urbana, potência da cidade, como pretensa realização do trabalho

moderno, e não apenas seu produto. A cidade urbana é, portanto, a própria condição do

trabalho envolvido na contradição entre o valor de troca e o valor de uso: “no sistema urbano

que procuramos analisar se exerce a ação desses conflitos específicos: entre valor de uso e

valor de troca” (LEFEBVRE, 2001; p. 14).

O TRABALHO NOS MEANDROS DA PAISAGEM

Entendido a cidade e o urbano como o encontro da potência do trabalho, este cindido

por contradições internas no processo de valorização do capital e historicamente específico, a

paisagem especialmente urbana não poderia deixar de ter sua lógica fundante calcada na

contradição campo-cidade. Ou seja, a paisagem urbana surge da cisão dialética entre campo e

cidade para ressignificar a própria cidade como o espaço da produção e relegar ao campo o

espaço do atraso. Tido como referência a emergência da contradição entre novo x velho,

avançado x atrasado, moderno x primitivo, a paisagem não poderia deixar de ter agora como

referência autoreveladora sua própria oposição: paisagem do campo se revelando na negação

do urbano; paisagem da cidade se revelando na negação do rural.

Tais referenciais, no entanto, são ainda caros à Geografia. Esta, por sua vez, como

tradicionalmente se observa, busca entender a paisagem a partir de seus elementos internos,

como o cultural, o econômico, o social e o natural. Tal internalização de elementos

definidores da paisagem tendem a privilegiar os aspectos cristalizados no espaço negando,

assim, o conflito entre processo de trabalho e processo de valorização inerente às formas

espaciais constituídas especialmente na paisagem urbana, mas também a rural.

A paisagem é entendida, do ponto de vista geográfico, como tudo o que é visível, o que

se pode enxergar, sentir. É colocada como a “primeira instancia” da análise espacial.

Categoria que privilegia a forma apenas para esconder algum conteúdo. Aparece muito mais

como uma “falsa categoria”, porque antes de explicar esconde os processos espaciais a serem

revelados como, por exemplo, observa Souza: “A paisagem é uma forma, uma aparência. O

conteúdo „por trás‟ da paisagem pode estar em consonância ou em contradição com essa

forma e com o que ela, por habito ou ideologia, nos „sugere‟” (2015; p. 46).

De acordo com Souza, a forma da paisagem pode trazer uma distorção do que realmente

ela é. A verdade sobre a paisagem, ou o conteúdo que a define, parece não pertencer a própria

categoria. Ainda como expressa Souza, a sociedade se perde na forma da paisagem, passando

despercebido do que está oculto.

Para Santos (1988) o espaço e a paisagem são resultados da transformação da sociedade

e o seu meio de produção adquirido ao longo dos tempos. Milton Santos traz na sua

perspectiva a paisagem como aquela composta por dois elementos: a natureza e a sociedade,

conferindo à forma a dinâmica do tempo do modo de produção. Com isso, Santos (2008)

afirma a paisagem como:

A paisagem nada tem de fixo, de imóvel. Cada vez que a sociedade passa

por um processo de mudança, a economia, as relações sociais e políticas

também mudam, em ritmos e intensidades variados. A mesma coisa acontece

em relação ao espaço e à paisagem que se transforma para se adaptar às

novas necessidades da sociedade. (SANTOS, 2008, p. 54)

O autor então mostra que a paisagem é um resultado de acumulação, um processo que

passa pelo tempo e espaço, assim sendo através de um mosaico. Mas, ainda sem superar a

formalização da forma, induz a paisagem como uma sucessão de formas que mudam com a

mudança social retirando da internalidade conceitual da paisagem seu próprio movimento

contraditório. Essa paisagem deduz o conjunto que o acompanha como a forma e a função:

tem aspectos “visíveis”, relativos à estrutura da forma, e “invisível”, relativos a relação da

sociedade com a própria paisagem (relativos ao processo e sua função).

Também em Pierre George, que escreve especificamente sobre a paisagem rural, esta

não poderia ser nada mais do que a cristalização do processo de trabalho no campo na

construção das diferentes formas culturais de apropriação. É em um texto sintomaticamente

intitulado “Do Espaço Agrícola à Paisagem Rural” que pode ser lido:

Não há dúvidas nenhuma que todo grupo de agricultores – essencialmente de

agricultores sedentários – que prepara suas culturas e se instala numa fração

sobre o solo cria uma paisagem rural [...]. Cria-se, porém, de acordo com

suas concepções da apropriação e utilização do espaço, conforme suas

necessidades, e com as técnicas que lhe são próprias. Se bem correspondam

a mesma relação fundamental entre o grupo humano e a terra, se bem

ponham em jogo os mesmos elementos, apropriação, partilha do nível do

trabalho agrícola, organização do espaço cultivado, sistema de cultura,

habitat, as paisagens rurais podem diferir tanto entre si que nos levam a

duvidar da universalidade da noção de paisagem rural (GEORGE, 1979;

p.41).

Ainda que pudesse ser notado em George a relação entre paisagem, produção e trabalho,

por sua vez, tal síntese apenas anuncia uma tentativa de “humanizar” a paisagem conforme a

história vai “desnaturalizando” o espaço.

De qualquer forma, o conceito de Pierre George (e também o de Milton Santos) acerca

das categorias paisagem e trabalho, ainda não estariam suficientemente desenvolvidos em seu

conceito dialético fundamentado em contradições. No entanto, é sintomático refletir como que

a paisagem concebida geograficamente está tradicionalmente destituída do movimento

dialético e contraditório estabelecidos entre os processos de trabalho versus valorização.

Destarte, é preciso considerar que, de fato, a categoria trabalho e todo seu movimento

dialético e contraditório decorrente se inserem na internalidade epistemológica geográfica

apenas na chamada Geografia Crítica. E tal inserção, também é necessário considerar, se

objetivou muito mais em relação ao espaço do que propriamente à paisagem.

Mas, considerando a paisagem como a síntese imediata do processo de produção do

espaço, onde se é possível contrapor a forma diante dos processos vivos de seu conteúdo,

podemos relacionar esse conteúdo vinculando ao processo do trabalho humano apropriando a

natureza. Desta forma o trabalho pode se inserir na relação com a paisagem da mesma forma

que se situa diante da mercadoria: “a mesma objetividade fantasmagórica, uma simples

gelatina de trabalho humano indiferenciado, isto é, do dispêndio de força de trabalho humano,

sem consideração pela forma como foi despendida” (MARX, 1983; p.47).

Se for possível estender a analogia de Marx a um limite ainda mais amplo, podemos

colocar a paisagem, do ponto de vista geográfico e em relação ao trabalho, da mesma forma

que o economista político alemão pôs a mercadoria: como a categoria síntese, não apenas o

ponto de partida, mas como categoria chave para o desvelamento das contradições entre o

processo de trabalho e do processo de valorização do capital. Desta forma, a paisagem como

síntese da contradição entre suas dimensões internas será posta a partir daqui por meio do

trabalho em sua franca mobilidade campo-cidade.

A MOBILIDADE DO TRABALHO E A REVELAÇÃO DA PAISAGEM CAMPO-

CIDADE

Para Gaudemar a mão de obra é vendida para o acumulo do capital enquanto que o

trabalhador não tem opção em defesa no livre mercado, pois tem a necessidade de vender sua

força de trabalho para subsistir. Maior parte desses trabalhadores se veem obrigado a exercer

trabalhos precários com péssimas condições.

A mobilidade da força de trabalho é assim introduzida, em primeiro lugar,

como a condição de exercício da sua liberdade de se deixar sujeito ao

capital, de se tornar a mercadoria cujo consumo criará o valor e assim

produzirá o capital. (GAUDEMAR, 1977; p. 190)

Muitos moradores do campo migram do seu local de moradia em busca de um trabalho.

Além disso, ocorrem muitas migrações para a cidade por muitas das vezes em relação à falta

de serviços que as pessoas do campo necessitam como acesso a saúde, escolas, além de outras

necessidades cada vez mais escassas. A mobilidade do trabalho está associada mais às regiões

“isoladas” e às pequenas cidades, ambas de conteúdo eminentemente rural. Com isso esses

trabalhadores são obrigados a submeter à lógica do capital sendo mal remunerados e em

trabalhos cada vez mais precários.

O campo e a cidade, neste sentido, são espaços de desrealização do sujeito pelo

trabalho. A mobilidade do trabalho imposta pelo capital é também um processo de exclusão.

Do ponto de vista clássico, do campo os trabalhadores são expropriados para a constituição,

na cidade, da massa proletária. Na cidade os trabalhadores são expulsos do “urbano” para as

periferias, ou de volta ao campo. A mobilidade faz a paisagem conforme o trabalho se

desrealiza nela. A paisagem do campo, tomada como atrasada e primitiva, se identifica com a

pauperização das relações camponesas de produção (pelo deslocamento da renda da terra para

a cidade) e pelas expropriações. A paisagem da cidade se constitui como espaço das

contradições entre a desrealização do trabalho concreto, antes supostamente realizada no

campo, para o trabalho abstrato, agora realizado de forma alienada na cidade.

Ainda tomando como referência Lefebvre (2001), é interessante observar como que esse

processo histórico de desenvolveu na França. Como observa o filósofo a urbanização

promovida pela industrialização levou a desurbanização da cidade. Paris, que se constitui

industrializada, assim o faz da periferia para o centro. Os subúrbios, transição entre rural e

urbano, antes utilizados como espaços bucólicos pelas classes dirigente urbanas, passam a ser

também o lugar onde sucumbe o proletariado. O subúrbio se desrealiza diante da cisão entre

os conjuntos residenciais e os paviliões proletários. E a periferia se constitui, assim, como

uma paisagem agora eminentemente urbana no lugar dos antigos e bucólicos subúrbios.

A ordem urbana se decompõe em dois tempos: os paviliõesos conjuntos. [...]

Esta oposição tende a constituir um sistema de significações, ainda urbano

mesmo na desurbanização. Cada setor se define (na e pela consciência dos

habitantes) em relação ao outro, contra o outro. (LEFEBVRE, 2001; p. 27).

A paisagem surge na dinâmica da cisão contraditória que nada mais reflete do que a

cisão de classes sociais dispostas em posições antagônicas frente o trabalho: vendedores e

compradores. Sua dinâmica não está apenas na transformação formal da forma, mas na

processualidade interna e contraditória entre o processo de trabalho e processo de valorização.

Ainda com relação à forma, é interessante observar como que, segundo a demonstração de

Lefebvre sobre Paris, a paisagem é percebida conforme seu lugar oposto de onde se estabelece

o vivido:

Os habitantes não têm consciência de uma ordem interna do seu setor, mas

as pessoas dos conjuntos veem a si mesmas e se percebem como não-

pavilhonistas. E reciprocamente. No interior da oposição, as pessoas dos

grandes conjuntos instalam-se na lógica do habitat e as pessoas dos

pavilhões no imaginário do habitat. Para uns, a organização racional (na

aparência) do espaço. Para outros a presença do sonho, da natureza, da

saúde, afastados da cidade mal e malsã (LEFEBVRE, 2001; p. 27)

Observa-se a paisagem se pondo na dinâmica do movimento. Não há uma “lógica

interna definidora”, a não ser aquela percebida “de fora” da paisagem que se observa, porque

a identidade de si está na contradição estabelecida com o outro que, por sua vez cinde de si

mesma. Ainda no plano da aparência, a mesma paisagem não se põe objetivamente como uma

“forma que esconde conteúdos”, como tradicionalmente é posto pela Geografia, mas como

um processo de desrealização: um sonho ou um retorno à natureza que nunca se realiza,

porque desrealizado está estruturalmente no/pelo urbano.

Obviamente, o exemplo de Paris estudado por Lefebvre se universalizou como lógica

predominante. No Brasil esse foi o modelo de desenvolvimento que estruturou desigualmente

a produção do espaço. Como observa Alexandrina Conceição em sintomático texto intitulado

“Jovens Andarílhos do Círculo Curto do Capital”:

Associada a ideologia desenvolvimentista que se sustentava na

metropolização houve uma forte divulgação do mito da urbanização como

modelo de desenvolvimento. As grandes cidades passaram a ser focos de

concentrações populacionais em guetos, que passaram a reunir centenas e

milhares de humanos, na sua grande maioria migrantes, pequenos produtores

expulsos do campo frente à modernização agrícola (CONCEIÇÂO, 2007; p.

78-79).

Já em contexto avançado daquele apresentado por Lefebvre observa Conceição as

mudanças nos tempos médios de rotação do capital e suas implicações na mobilidade do

trabalho e das contradições apresentadas na cidade: “Conforme a ONU em 2001, 76% da

população urbana dos países do primeiro mundo era favelada. No quadro mundial 84% vivia

em favelas e apenas 6% tinha condições de qualidade de vida” (CONCEIÇÂO, 2007; p. 79).

Se, por um lado, as condições de subsistência dos trabalhadores têm se intensificado

diante sua desumanidade no espaço urbano inaugurando essa nova paisagem, a favela, como

território da sub-existência do trabalhador, por outro lado, do ponto de vista da mobilidade do

trabalho campo-cidade, e cidade-cidade, nota-se a também intensificação do processo de

desrealização pela precarização do trabalho:

Expulsa do seu local de origem seguindo a trilha do capital, a classe

trabalhadora é também expulsa do urbano nas áreas de valorização do solo.

[...] Distante da relação do poder de demanda a classe pobre produz o espaço

da favela que revela o contraste do urbano a partir de uma paisagem/local

marcada pela materialização dos “barracos da miséria”. [...] O espaço da

pobreza e da miséria está destinado aos migrantes vindos do campo para se

“modernizarem” (CONCEIÇÂO, 2007; p. 79).

Observa-se como a paisagem se coloca, não apenas como resultado do processo de

produção desigual da forma do espaço, mas também como condição para a desrealização do

trabalho e, por conseguinte também do espaço; uma desrealização que só dá a partir das

possibilidades de humanização, obviamente.

Com a maior aceleração das rotações do processo de valorização do capital a

mobilidade do trabalho também se reconfigura. Com tempo também mais veloz, não sendo

mais a cidade a condição de realização da vida, dada a profunda precarização nas favelas,

também o campo não representando mais o lugar para vivência pelas condições clássicas e

moderna apresentadas, o trabalhador, conforme destaca Conceição, torna-se andarilho

constante, sem fixação. Do ponto de vista da paisagem, entendendo ela a partir da

metamorfose do trabalho, observa-se nela a ativação de sua mais intensa definição ainda pelo

processo de desrealização do trabalho.

O retorno ao campo torna-se a possibilidade do reconhecimento na

comunidade. Consumidores de mercadorias que garantem a continuidade da

reprodução do capital apresentam-se no campo fetichizados no sonho da

possibilidade do consumo barato e supérfluo. Quando o dinheiro trazido

termina, procuram retornar quando encontram outras possibilidades de

trabalho (CONCEIÇÂO, 2007; p. 95).

Campo e cidade, nos tempos atuais de intensa mobilidade do trabalho, não podem

mais significar paisagens de vivência, mas de passagens. Cada vez mais, suas contradições e

oposições passam a defini-la conceitualmente, como realização da tendência posta desde

sempre pelo capital.

CONCLUSÃO

O presente artigo parte-se da necessidade de reestabelecer a autocrítica geográfica.

Colocar a paisagem como categoria merecedora de reflexões a partir do trabalho em franca

precarização pode oferecer elementos, sobretudo metodológicos, que possibilitam a reposição

da dialética para a manutenção da crítica como objetivo da análise.

Neste sentido, ainda que a presente leitura necessite de um aporte empírico mais

desenvolvido, dado pelos próprios limites postos pelo estágio inicial da pesquisa que

fundamenta o texto, também pelos limites para a presente publicação, o presente artigo não

deixa de ser uma tentativa de experimentar o conceito e a categoria paisagem contra o rigor e

o critério da dialética e, assim, colher como resultado possibilidades de reconceituação dentro

de uma perspectiva crítica. Se o tempo histórico aponta como tendência a destruição das

formas, da fixidez, enfim de “tudo que é sólido”, como assim aponta a morfologia do trabalho

e a tendência de cisão cada vez mais constante do sujeito do trabalho para com seu espaço

(cada vez menos de vivência, cada vez mais de passagem, cada vez mais “menos humano”), é

preciso desafiar a categoria paisagem frente os desafios dialéticos que se impõe à análise e à

história.

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