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REFLEXÕES SOBRE AS PRODUÇÕES DE LIVROS RELIGIOSOS E A CENSURA INQUISITORIAL NAS OBRAS DE NICOLAU DIAS (PORTUGAL SÉCULO XVI) André Rocha Cordeiro (DHI/PPH/LERR-UEM) Resumo. A comunicação a ser apresentada tem por objetivo refletir sobre as estratégias de combate às heresias impulsionadas pela Igreja Católica, por meio da censura à produção de livros religiosos, na Europa do século XVI. Parte-se da análise das licenças e privilégios concedidos ao frade dominicano e mestre em teologia Nicolau Dias (1525? 1596), para a publicação/impressão de suas obras, especialmente: Livro do Rosário de Nossa Senhora (1573), Tratado da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo (1580) e Vida da Sereníssima Princesa Dona Joana (1585). O referido período é considerado pela historiografia como de intensos conflitos religiosos, na qual historicamente a Igreja Católica Apostólica Romana sofre a sua maior ruptura e perde sua hegemonia no campo religioso europeu. Assim, observa-se que a produção de livro é uma das ferramentas de difusão dos ideais reformistas da instituição. Esta mesma ferramenta também é elemento de preocupação da Igreja que empreende ações de revisão aos livros com a finalidade de eliminar os erros e subversões que possivelmente existiriam. A partir de Roger Chartier (2000) e de Maria Clara de Almeida Lucas (1984) busca-se compreender a dinâmica que rege a produção livresca no século XVI, realizando considerações acerca da “prática de leitura” e da “cultura escrita” (CHARTIER, 2000). Auxiliam-nos, também, como aportes teórico-metodológicos as reflexões de Pierre Bourdieu (1998) e de Michel de Certeau (2006) acerca da “linguagem autorizada”. Palavras-chave: Nicolau Dias, censura inquisitorial, livros religiosos, cultura escrita. Financiamento: CAPES (coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). Introdução: Historicamente o período quinhentista europeu é marcado pelas contendas religiosas das reformas, na qual questões acerca da “ credulidade”, conforme defende Lucien Febvre (2009), são discutidas, revistas e postas em questionamento. Em uma sociedade na qual as religiosidades e as crenças

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REFLEXÕES SOBRE AS PRODUÇÕES DE LIVROS RELIGIOSOS E A

CENSURA INQUISITORIAL NAS OBRAS DE NICOLAU DIAS

(PORTUGAL – SÉCULO XVI)

André Rocha Cordeiro

(DHI/PPH/LERR-UEM)

Resumo. A comunicação a ser apresentada tem por objetivo refletir sobre as estratégias de combate às heresias impulsionadas pela Igreja Católica, por meio da censura à produção de livros religiosos, na Europa do século XVI. Parte-se da análise das licenças e privilégios concedidos ao frade dominicano e mestre em teologia Nicolau Dias (1525? – 1596), para a publicação/impressão de suas obras, especialmente: Livro do Rosário de Nossa Senhora (1573), Tratado da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo (1580) e Vida da Sereníssima Princesa Dona Joana (1585). O referido período é considerado pela historiografia como de intensos conflitos religiosos, na qual historicamente a Igreja Católica Apostólica Romana sofre a sua maior ruptura e perde sua hegemonia no campo religioso europeu. Assim, observa-se que a produção de livro é uma das ferramentas de difusão dos ideais reformistas da instituição. Esta mesma ferramenta também é elemento de preocupação da Igreja que empreende ações de revisão aos livros com a finalidade de eliminar os erros e subversões que possivelmente existiriam. A partir de Roger Chartier (2000) e de Maria Clara de Almeida Lucas (1984) busca-se compreender a dinâmica que rege a produção livresca no século XVI, realizando considerações acerca da “prática de leitura” e da “cultura escrita” (CHARTIER, 2000). Auxiliam-nos, também, como aportes teórico-metodológicos as reflexões de Pierre Bourdieu (1998) e de Michel de Certeau (2006) acerca da “linguagem autorizada”. Palavras-chave: Nicolau Dias, censura inquisitorial, livros religiosos, cultura escrita. Financiamento: CAPES (coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior).

Introdução:

Historicamente o período quinhentista europeu é marcado pelas

contendas religiosas das reformas, na qual questões acerca da “credulidade”,

conforme defende Lucien Febvre (2009), são discutidas, revistas e postas em

questionamento. Em uma sociedade na qual as religiosidades e as crenças

integravam a “utilizagem mental”, transpassavam as ações cotidianas e

ordinárias, bem como eram oferecedoras de significâncias, observa-se que a

salvação das almas era um dos objetivos do homem. Na perspectiva de

satisfazer esses anseios, instituições e indivíduos disputam o monopólio de

capital simbólico, detidamente religioso.

Dentre as formas de satisfazer as necessidades dos fieis as instituições

religiosas verificam na produção de livros uma possibilidade e ferramenta de

difusão dos ideais. Esta mesma ferramenta também é elemento de preocupação

da Igreja que empreende ações de revisão aos livros com a finalidade de eliminar

os erros e subversões que possivelmente existiriam, por meio da censura

inquisitorial.

Desenvolvimento:

No que concerne ao referido período, o historiador francês Jean

Delumeau (1967), partindo de uma análise dos sentimentos, declara que no

século XVI verifica-se, na sociedade europeia, um forte sentimento de angustia

dos fiéis. Fato este, que segundo o historiador, percebido pelo intenso fluxo de

indivíduos que buscavam em associações religiosas inserir seus nomes na

tentativa de conseguir refúgio e proteção aos males da vida e pos-mortem.

Dentre as associações, Delumeau (1967) destaca as irmandades e confrarias

leigas.

Os levantes religiosos promovidos pelos reformadores – luteranos,

calvinistas e anglicanos – acarretaram na quebra hegemônica existente, desde

a Idade Média, da Igreja Católica Apostólica Romana. Importante salientar que

na busca por experimentar novas realidades, e que lhe possibilitassem a

salvação da alma, o homem quinhentista poderia ter nas novas igrejas que

emergiam esta possibilidade de bens de salvação. Desse modo, constata-se que

se por um lado as Igrejas Protestantes apresentavam novas perspectivas de

salvação e capital simbólico à cristandade, por outro lado a instituição católica

opera ações reformistas e impeditivas respaldando-se enquanto uma instituição

detentora de história e de bens de salvação. (MULLET, 1985; DELUMEAU,

1989)

De acordo com Pierre Bourdieu (2007) as instituições religiosas, na

medida em que se institui enquanto detentora de um monopólio, e buscam sua

permanência, ao sentirem-se ameaçadas por novas concorrentes promovem

ações de combate. Nas palavras do referido autor:

Na medida em que consegue impor o reconhecimento de seu monopólio (extra ecclesiam nulla salus) e também porque pretende perpetuar-se, a Igreja tende a impedir de maneira mais ou menos rigorosa a entrada no mercado de novas empresas de salvação (por exemplo, através do ascetismo, da contemplação e da orgia). (BOURDIEU, 2007: 58)

Partindo dessa premissa, proposta por Bourdieu (2007), e em

consonância com o contexto histórico do século XVI, pensado enquanto um

período de forte expressão de religiosidades, pode-se verificar que ações

reformistas da Igreja se enquadram, também, enquanto formas de combate e

disputa pelo capital simbólico do campo religioso Europeu. Conforme já

afirmamos, os movimentos reformistas acarretam no rompimento da hegemonia

católica no continente europeu, desse modo, a Igreja se propõe a operar ações

que buscassem impedir essas novas empresas de bens de salvação.

Importante salientar que, partimos do conceito de “Reforma Católica”,

proposto por Delumeau (1967) e Castellote (1997), para a análise do século XVI.

Lançar o olhar a partir da referida perspectiva é compreender que as ações

reformistas, da Igreja, não se ativeram apenas enquanto uma resposta aos

reformadores, mas antes se expressaram enquanto uma necessidade da própria

instituição, que demonstrava sinais antes mesmo de Lutero, Calvino e/ou

Zwinglio.

Sobre o referido conceito é de suma importância destacar que os debates

historiográficos acerca do mesmo são de longa data. Segundo G. Battelli (1996),

no verbete “contrarreforma”, inicialmente o conceito foi visto a partir da ótica

protestante, de modo que o movimento reformista, promovido pela Igreja, se

enquadraria enquanto apenas uma resposta ao levante luterano. Esta

perspectiva, utilizada entre os pensadores protestantes alemães do século XVIII,

partia da premissa de uma certa passividade do papado diante das adversidades

do período histórico, e que só ocorreram na medida que Lutero realiza seus

questionamentos. Dentre os pensadores que defendiam esta perspectiva de

análise histórica para os acontecimentos de cunho religioso do século XVI

destaca-se o historiador alemão Leopold von Ranke (17995 – 1880).

Somente no final do século XIX é que se verifica mudanças na forma de

lançar o olhar para os acontecimentos religiosos do século XVI. De acordo com

Battelli (1996), Wilhelm Maurenbrecher (1838 – 1892), historiador protestante,

realizando análises das ações reformistas espanholas percebeu que existiam

ações católicas anteriores ao levante de Lutero, de modo que se configuravam

como autônomas diante da reforma protestante. Posteriormente, estudiosos

católicos pautaram seus pensamentos nessa análise, como, por exemplo, o

historiador alemão Ludwig von Pastor (1854 – 1928). Já no século XX, outros

historiadores partiram dessa categoria analítica para pensar o período

quinhentista europeu, como os historiadores Hubert Jedin (1900 – 1980) e Delio

Cantimori (1904-1966). (BATTELLI, 1996)

Conforme já se afirmou, parte-se da categoria analítica de “Reforma

Católica” para pensar as ações religiosas da Igreja no século XVI. Contribuí nas

reflexões aqui tecidas a abordagem de Jean Delumeau (1967) sobre o uso da

terminologia “Reforma, reformados e Contrarreforma”. Segundo o referido

historiador, o termo “reforma” já era utilizado desde a Idade Média e se vinculava

a uma transformação purificadora interna, e quase individualista, da Igreja. Esta

ação teria por intenção promover um renovar no mundo cristão e,

consequentemente, traria mudanças nas ideias de santidade e pobreza que

estes homens esperavam da Igreja. O termo “reformados”, segundo o Delumeau

(1967), é utilizado para vincular dissidentes do período quinhentista, com

exceção dos luteranos. Por fim “contrarreforma” é uma categoria analítica,

acerca das contendas religiosas, do século XVI e XVII, que prioriza as ações

antiprotestantes por parte do Catolicismo.

Por sua vez Salvador Castellotte (1997), abordando as categorias

analíticas de “Reforma e Contrarreforma”, declara que, “Reforma tem um sentido

positivo, enquanto que Contrarreforma carrega um determinado traço negativo:

não tem criatividade, se limita a uma ˂˂reação˃˃, deixando iniciativa à

˂˂ação˃˃”.1 (CASTELLOTE, 1997: 75)

Desse modo, compreendendo que as ações reformistas se fizeram em

vários âmbitos, na pesquisa e perspectiva que aqui se oferece, busca-se dar

ênfase a produção de livros e documentos escritos. Geoffrey Elton (1982) pensa

o século XVI enquanto um período de “guerra da escrita”, uma vez que é por

meio das produções e publicações de livros que os ideais reformistas são

difundidos, discursos são disseminados. Em consonância com Elton, Gilmont

(2001: 377) parte da premissa de que o período quinhentista pode ser pensando

enquanto o da “guerra dos panfletos”, uma vez que os livros impressos ganham

maior importância neste cenário que se construía.

[…] útil será el recordar que la eclosión de la Reforma coincidió con una revolución en los medios de comunicación. El descubrimiento de Gutenberg modificó las condiciones del movimiento de las ideas, acelerando la circulación de los textos y reduciendo el coste de cada copia. Pero no conviene magnificar el impacto inmediato del invento en una sociedad todavía analfabeta en gran medida. (GILMONT, 2001: 376)

De acordo com Jean-François Gilmont (2001) em um contexto em que a

ideia de salvação pela palavra é posta à mesa, a impressa se torna um forte

instrumento a ser utilizado pelas instituições religiosas. Cresce a necessidade de

livros uteis a vida dos cristãos, como: bíblias, catecismos, saltérios e livros de

cunho litúrgico.

Dentre os livros produzidos e publicados neste período destaca-se as

obras do frade português Nicolau Dias. O dominicano nasceu na década de

1 “Reforma tiene un sentido positivo, mientras que Contrarreforma conlleva un determinado rasco negativo: no hay creatividad, se limita a una ˂˂reaccíon˃˃, dejando la iniciativa a la ˂ ˂accíon˃˃” (CASTELLOTE, 1997: 95).

15202 – uma vez as datações não são consensuais – e faleceu no convento de

São Domingos, na cidade de Lisboa, Portugal, na data de 06 de fevereiro de

1596. (ROLO, 1982; MARGERIE, 1995; MARQUES, 2000).

Nicolau Dias formou-se em Estudo Geral no Convento da Ordem dos

Pregadores, da cidade de Lisboa. Neste mesmo espaço religioso realizou a

profissão de seus votos religiosos em 02 de junho de 1541, adentrando, desse

modo, à Ordem dos Pregadores. Neste mesmo ano fez-se padre-mestre em

Teologia (MARQUES, 2010), graduação que, possivelmente, o conduziu ao

tirocínio para jovens dominicanos em formação (ROLO, 1982).

A formação teológica de Nicolau Dias, enquanto um membro da Ordem

de São Domingos, lhe forneceu bases para a produção de livros religiosos. Na

discussão que aqui se propõe, compreende-se que o referido frade dominicano

se enquadra enquanto um “especialista” (BOURDIEU, 2007). Além de ser

detentor de “capital simbólico”, Dias possui sua linguagem reconhecida pela

instituição a qual pertence.

Desse modo, também auxilia em nesta pesquisa a noção de “linguagem

autorizada”, defendidas pelo historiador Michel de Certeau (2006) e pelo

sociólogo Pierre Bourdieu (1998). Ambos partem do pressuposto que as

instituições respaldam práticas linguísticas, de modo que alguns indivíduos, com

formações necessárias, são reconhecidos pelas mesmas, e falam em nome de

um coletivo institucional.

Com sua “linguagem autoriza” Nicolau Dias, tornou-se reconhecido pela

historiografia por suas obras religiosas, especialmente as que resistiram as

intempéries dos tempos, como: Livro do Rosário de Nossa Senhora (1573),

Tratado da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo (1580) e Vida da Sereníssima

Princesa Dona Joana 3 (1585). Outras obras, de cunho religioso, são consideras

2 No que concerna ao ano de nascimento de Nicolau Dias as pesquisas realizadas não deixam claro tal fato. Encontrou-se, até a presente data, apenas dois autores que apresentam datas possíveis para este fato. O primeiro é João Marques (2000) que supõe que Dias nasceu no ano de 1525, porém não aponta a localidade de seu nascimento ou da procedência do referido dominicano. O outro autor, Bertrand de Margerie (1994), afirma que Dias nasceu em Lisboa em 1520. 3 Na Epistola Dedicatória da obra Vida da Sereníssima Princesa Dona Joana (1585), o frade Hyeronimo Correa, capelão e orador, declara que Nicolau Dias compilou e organizou a narrativa

de autoria do referido frade dominicano, todavia não sobreviveram ao tempo.

Raúl Rolo (1982) destaca um tratado sobre o Juízo Final, as Excelências de S.

João Baptista e um relato de sua “Jornada” à Terra Santa. (MARQUES, 2000;

MARGERIE, 1994; ROLO, 1982).

Importante ressaltar que no contexto das reformas religiosas a produção

de livros religiosos se torna uma das ferramentas de difusão dos ideais da

instituição. Entretanto, esta mesma ferramenta, também, é elemento de

preocupação da Igreja que empreende ações de revisão aos livros com a

finalidade de eliminar os erros e subversões que possivelmente existiriam.

Analisando escritos hagiográficos quinhentista, Maria Clara de Almeida Lucas

(1984: 60) declara que o temor as heresias tomam posse destes tipos de

escritos. Este medo do que era, compreendido como, herético acabou por

influenciar na dinâmica da “cultura escrita”, e consequentemente nas “práticas

de leituras”. (CHARTIER, 2000)

Roger Chartier (2000), ao analisar a “cultura escrita” enfatiza questões,

por vezes deixadas de lado pela análise textual, como materialidades

constitutivas dos livros. Segundo o referido historiador, “é fundamental lembrar

que nenhum texto existe fora do suporte que lhe confere legibilidade; qualquer

compreensão de um texto, não importa que tipo, depende das formas com as

quais ele chega até seu leitor” (CHARTIER, 1995: 220).

Além disso, Chartier (2000) declara que os livros também se inserem

numa ótica comercial e de compensação, sendo que através das dedicatórias

das obras, podemos observar uma das trocas estabelecidas e possíveis entre

indivíduos. No caso das obras de Nicolau Dias, observamos que todas partilham

deste “clientelismo”, que se faz por meio das dedicatórias a pessoas importantes

ou que contribuem com a Ordem dos Pregadores, como: o casal “Jorge da Silva

e dona Luisa de Barros”, mencionados nas edições do “Livro do Rosário de

Nossa Senhora”; e D. Ana de Alencastro, que segundo o frade Hyeronimo

crônica hagiográfica de Joana, que estava registrada em um “pergaminho”, guardado no Mosteiro Jesus, de Aveiro, em Portugal. (DIAS, 1585).

Correa, na epistola da “Vida da Sereníssima Princesa Dona Joana” (1585), teria

parentesco com a referida princesa.

Outro aspecto enfatizado por Chartier (2000), para a produção de livros

no século XVI, são as licenças e privilégios concedidos, pela Mesa Real e

Inquisitorial, aos autores e aos impressores de obras religiosas. No caso

português a historiadora Graça de Almeida Rodrigues (1980), observa que no

referido período eram necessárias as “licenças” e os “privilégios” institucionais

para a publicação de livros. Estes documentos conferiam aos textos o “aval de

pureza”, por não possuírem conteúdos que induzissem desvios, como doutrinas

heréticas e/ou que desrespeitassem as “verdades” católicas. (RODRIGUES,

1980)

A partir desta observação, busca-se analisar as licenças e os privilégios

concedidos ao frade dominicano e mestre em teologia Nicolau Dias (1525? –

1596). Cabe destacar, que três títulos de obras, em 8 edições, resistiram até o

século XXI e estão disponibilizadas para acesso público na Biblioteca Nacional

de Portugal, em Lisboa. São obras atribuídas à Nicolau Dias:

OBRAS DE NICOLAU DIAS¹

Obra² Edição Local/Financiamento da

Impressão

Cidade

1 Livro do Rosário de Nossa Senhora 1573 Casa de Francisco Correa Lisboa

2 Livro do Rosário de Nossa Senhora 1576 Casa de André de Burgos Évora

3 Tratado da P. de N. S. Jesus Cristo 1580 Por Antonio Ribeiro Lisboa

4 Livro do Rosário de Nossa Senhora 1582 Casa de António Mariz Coimbra

5 Livro do Rosário de Nossa Senhora 1583 À custa de Afonso Lopez Lisboa

6 Vida da Ser. Princesa D. Joana 1585 Por Antonio Ribeiro Lisboa

7 Vida da Ser. Princesa D. Joana 1594 Casa de Antonio Alvarez Lisboa

8 Vida da Ser. Princesa D. Joana 1674 Oficina de Francisco

Villela

Lisboa

Legenda

¹ Obras que resistiram ao tempo e estão disponíveis na Biblioteca

Nacional de Portugal (BNP), em formato impresso e digital (digitalizados)

² Nomes das obras estão abreviados, devido ao espaçamento da tabela

e da estética da mesma.

Os três títulos, apresentados, tiveram sua primeira edição durante o

século XVI, ou seja, durante o período de vida de Nicolau Dias, sendo que das

edições e reedições elencadas na tabela acima, apenas a de 1674 escapa a

regra. Enfatiza-se, também, que todas as obras, acima mencionadas, foram

revisadas e vistoriadas por qualificadores da Ordem dos Pregadores e da Mesa

Inquisitorial Portuguesa4.

Na edição de 1573, do “Livro do Rosário de Nossa Senhora”, é datada de

27 de maio a licença do provincial da Ordem dos Pregadores, Frei Francisco de

Bobadilha, documento este que expressa que a obra foi examinada, conforme

as constituições, por dois frades especialistas: o prior do mosteiro de São

Domingos de Lisboa, Frei Hieronymo Correa; e o Frei Antônio de São Domingos.

Estes especialistas certificaram “não auer nelle cousa algua que seja contra

nossa sancta Fee catholica, nem cõtra os bõs custumes,antes muyto deuoto, &

proueytoso”. Este mesmo documento aparece na edição de 1582, impressa na

casa de Antonio de Mariz, na cidade de Coimbra; e na edição de 1583, impressa

com em Lisboa, as custas de Afonso Lopez. Todavia, na edição de 1576,

publicada em Évora, na casa de André de Burgos, a licença provincial não

aparece.

Por sua vez, as edições da “Vida da Sereníssima Princesa Dona Joana”,

de 1585 e 1594; bem como a edição “Tratado da Paixão de Nosso Senhor Jesus

Cristo”, datado de 1580, tiveram enquanto um dos qualificadores o Frei

Bartholomeu Ferreira (o mesmo qualificador da obra “Os lusíadas”, de Luís de

Camões). No caso da edição do “Tratado da Paixão de Nosso Senhor Jesus

Cristo” (1580), o referido frade foi auxiliador pelo Frei Thomas de Sousa na

análise da narrativa constante na obra. Com relação a edição da “Vida da

4 De acordo com Graça Almeida Rodrigues (1980) a censura promovida pela Inquisição funcionou entres os séculos XVI, XVII e primeira metade do XVIII. Essa instituição, posteriormente, foi substituída pela Real Mesa Censória.

Sereníssima Princesa Dona Joana” de 1594 a licença do qualificador, datada de

31 de janeiro, vem acompanhada das assinaturas dos frades Diogo de Sousa e

Marcos Teixeira.

Nas licenças analisadas, é possível observar a recorrência de uma frase,

que afirma “não auer nelle cousa que seja contra nossa Sancta Fee Catholica,

nem contra os bõs custumes”. E cabe aqui recordar que todas as obras que iam

contra a fé católica e aos costumes cristãos eram consideradas heréticos.

Importante salientar que na Idade Média construiu-se a concepção de que

o sujeito herege era alguém manchado pelo pecado e pela falha, sendo que sua

contaminação se operava em “tudo o que ele tocava: bens, ofícios, negócios,

testemunhos, escrita” (RUST, 2012: 142). Essas ideias persistiram até o século

XVI.

Segundo Jean-François Gilmont (2001: 381), neste período, muitos livros

que não possuíam as devidas licenças e que recebiam a classificação de

heréticos, tinham por destino as fogueiras inquisitoriais. Além das fogueiras “as

autoridades católicas começaram a redigir Indices librorum prohibitorum”

(GILMONT, 2001: 381), e nele inseriam os livros que iam “contra a fé católica e

bons costumes”.

Considerações Finais:

Por meio das licenças disponíveis nos livros de Nicolau Dias, observamos

que a Igreja Católica do período quinhentista realiza um movimento de revisão

dos seus próprios documentos e livros, e faz da censura inquisitorial um filtro que

peneira as “verdades católicas” e as “não verdades católicas”, sendo que nem

seus próprios agentes escapam.

Segundo Maria Clara Lucas (1984: 52), a “Igreja viu-se por esse século

XVI face a atentados considerados heréticos que era preciso suprimir”. Desse

modo, pode-se inferir que as licenças de publicação, oferecidas (e analisadas

pelo provincial da ordem, pela mesa geral da Inquisição e pela mesa real) se

expressavam enquanto uma das formas encontradas pela Igreja de combater a

heresia protestante e um documento que confere legibilidade ao livro publicado.

Ao analisar as licenças oferecidas às obras de Nicolau Dias, verifica-se

que além de ser possuidor de uma “linguagem autorizada” (BOURDIEU, 1998;

CERTEAU, 2006), o referido frade é, também, detentor do “aval de pureza”

(RODRIGUES, 1980). Estas duas constatações demonstram que Nicolau Dias,

fala por uma instituição que lhe autoriza duplamente, e lhe confere capital

simbólico para tal fala. Nicolau Dias se enuncia enquanto um defensor das

diretrizes e valores emanados pela Reforma Católica, e suas narrativas buscam

induzir e construir caminhos a serem seguidos pelos fiéis católicos.

Bibliografia:

Fontes:

DIAS, Nicolau. Livro do Rosário de Nossa Senhora. Coimbra: Casa de Antônio

de Mariz, 1582.

DIAS, Nicolau. Livro do Rosário de Nossa Senhora. Évora: Casa de André de

Burgos, 1576.

DIAS, Nicolau. Livro do Rosário de Nossa Senhora. Lisboa: à custa de Afonso

Lopez, 1583.

DIAS, Nicolau. Livro do Rosário de Nossa Senhora. Lisboa: Biblioteca Nacional,

[1573], Ed. 1982.

DIAS, Nicolau. Tratado da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo. Lisboa: por

António Ribeiro, 1580.

DIAS, Nicolau. Vida da Sereníssima Princesa Dona Joana. Lisboa: Casa de

António Alvarez, 1594.

DIAS, Nicolau. Vida da Sereníssima Princesa Dona Joana. Lisboa: Oficina de

Francisco Villela, 1674.

DIAS, Nicolau. Vida da Sereníssima Princesa Dona Joana. Lisboa: por António

Ribeiro, 1585.

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