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2019 Marcus Abraham Reflexões Sobre Finanças Públicas e Direito Financeiro Prefácio Ministro do TCU Bruno Dantas

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Page 1: Reflexões Sobre Finanças Públicas e Direito Financeiro · Ocorre que esta prática das pedaladas fiscais já foi objeto de análise recente pelo Plenário do TCU no Acórdão nº

2019

Marcus Abraham

Reflexões Sobre Finanças Públicas

e Direito Financeiro

PrefácioMinistro do TCU Bruno Dantas

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Para entender as pedaladas fiscais

Publicado em 06/08/2015

Hoje, oferecemos ao leitor uma visão jurídica das pedaladas fis-cais à luz do Direito Financeiro, por uma abordagem didática, sem viés político ou ideológico, objetivando esclarecer e permitir o acom-panhamento consciente e crítico da apreciação da matéria pelo TCU e Congresso Nacional, o que acontecerá em breve.

Preliminarmente, devemos ter em mente que estamos tratando de regras eminentemente jurídicas, estabelecidas na Lei de Responsa-bilidade Fiscal (LC nº 101/2000), norma cogente e imperativa como qualquer outra lei do nosso país, e não de uma boa prática contábil ou recomendação de ordem econômica.

Ademais, apesar de as “pedaladas fiscais” estarem hoje em dia sendo questionadas apenas em relação ao Governo Federal, as regras jurídicas supostamente violadas são aplicáveis aos três níveis da fede-ração: União, Estados/DF e Municípios.

E, como qualquer tema jurídico, a aplicação das normas aos fa-tos não é incontroversa e nem se opera de maneira simples e objetiva, já que não estamos no campo de uma ciência exata, razão pela qual devemos respeitar as opiniões eventualmente divergentes.

No linguajar das finanças públicas, “pedalar” nada mais é do que a expressão usada para fazer referência a atrasos de pagamento.

Figurativamente, a expressão “pedalada fiscal” também nos lembra o jargão futebolístico para indicar o drible criativo dado em uma regra do Direito Financeiro, visando à obtenção de um benefí-cio fiscal para o governo. Aliás, reza a lenda urbana em Brasília que

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um dos mentores da prática, um Ex-Secretário do Tesouro Nacional, que tinha o hábito de ir trabalhar de bicicleta, mudou o seu meio de transporte para não ser mais visto pedalando.

A manobra das pedaladas consistia na postergação mensal do repasse, para certos bancos públicos, de recursos financeiros desti-nados ao atendimento de programas sociais e previdenciários (bolsa família, abonos, pensões, aposentadorias etc.), gerando para o Gover-no, como benefício, um temporário aumento no superávit primário das contas públicas e uma aparente maior capacidade de cumprimen-to das metas fiscais, diante de um real desequilíbrio fiscal e das sérias dificuldades financeiras que o país atravessa.

Fato é que, no Brasil, assim como em qualquer nação do mun-do, o Estado depende de recursos financeiros para pagar as suas des-pesas. E, quanto mais despesas tiver, mais dinheiro será necessário. Assim, se gastar além do que arrecada, terá déficit nas suas contas; se arrecadar mais do que gasta, terá superávit; e se mantiver as receitas e despesas no mesmo nível, teremos o sonhado equilíbrio fiscal.

No início do século XX, o Estado e sua máquina administrativa eram menores e menos atuantes, oferecendo ao cidadão apenas ser-viços públicos básicos, tais como policiamento, justiça, exército para defesa das fronteiras e, em uma medida mínima, escolas e hospitais públicos. Para tanto, arrecadava-se pouco, algo em torno de 10% da renda nacional (PIB). Após as duas grandes guerras mundiais e até os dias atuais, os Estados mudaram o seu perfil e adotaram uma postura mais atuante e provedora. Ao passarem a gastar mais, tiveram que arrecadar mais tributos, hoje em torno de 30% a 55% do PIB, depen-dendo do país (p.ex., Estados Unidos, Inglaterra, França, Alemanha etc.). No Brasil, a carga fiscal está na ordem de 36% do PIB.

Porém, ainda não era suficiente para fechar a conta, e buscou--se outra forma complementar de financiamento: o crédito públi-co. E, como todo empréstimo, ele precisa ser pago (e devidamente remunerado). Para as nações com economias mais sólidas, o custo financeiro é menor. Já para países com probabilidade maior de ina-dimplência, o mercado exige uma remuneração com taxa de juros maior para compensar o risco: é o caso do Brasil. Ter uma boa saúde financeira possibilita ao país manter o seu “grau de investimento” e a confiança do mercado, atrair o capital de investidores e reduzir os custos da dívida.

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21 PARA ENTENDER AS PEDALADAS FISCAIS

Apesar de a dívida pública brasileira não ser das maiores (em torno dos 2,5 trilhões de reais), seu custo de manutenção é muito alto, gerando um gasto anual de mais de 40% do orçamento público fede-ral apenas com juros e amortização (cerca de 1,2 trilhões de reais).

Para termos uma ideia desta dimensão financeira, basta dizer que o gasto federal com educação e saúde gira, respectivamente, em torno de 3,5% e 4,5% do orçamento. Portanto, o custo da dívida pú-blica é quase dez vezes maior do que com saúde ou educação. Redu-zindo-a, parcela deste gasto poderá ser redirecionada ao atendimento dos serviços públicos fundamentais e dos direitos sociais, tais como educação, saúde, segurança, previdência, assistência social etc.

Por isso, a legislação brasileira, em especial a Lei de Respon-sabilidade Fiscal (LRF), preocupou-se em estabelecer limites para a dívida pública e fixar metas fiscais de superávit para reduzir parte da dívida pública. Portanto, o tão propagado superávit primário nada mais é do que a economia feita para pagar juros e demais encargos da dívida pública.

Muito em breve, o Tribunal de Contas da União (TCU) irá apre-ciar e opinar tecnicamente sobre a regularidade das contas do Go-verno Federal do ano de 2014, para que, com base no seu parecer, o Congresso Nacional julgue tais contas.

A Constituição estabelece, nos artigos 70 e 71, que a fiscaliza-ção financeira e orçamentária da União será exercida pelo Congresso Nacional, com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete fiscalizar e julgar contas de administradores públicos e de todos aqueles que utilizem dinheiro público e, neste caso específico, apreciar as contas prestadas anualmente pelo Governo da República, mediante parecer prévio.

A aprovação ou a rejeição das contas pelo Congresso Nacional (art. 49, IX, CF), como toda votação que prescinde de fundamenta-ção, será um ato de natureza política, não estando vinculado – mas tão somente subsidiado – pela manifestação técnica do TCU, espe-cialmente quanto ao respeito e adequação às normas da Constituição, às leis do país e, no caso das pedaladas, às regras da Lei de Responsa-bilidade Fiscal.

Neste sentido, constaram do Relatório Prévio do TCU (Acórdão nº 1464/2015, no Processo nº TC 005.335/2015-9), diversas supostas

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infrações às leis financeiras, com destaque para indícios de 13 (treze) possíveis irregularidades fiscais, objeto de pedido de esclarecimentos ao governo e que, infelizmente, vão além das “pedaladas fiscais”, atin-gindo os pilares de sustentação da LRF: planejamento, transparência e gestão fiscal responsável.

Em relação às pedaladas, destaca-se a possível violação ao artigo 36 da LRF, que proíbe operação de crédito entre uma instituição fi-nanceira estatal e o ente da Federação que a controle, na qualidade de beneficiário do empréstimo. Tal infração seria originária dos adianta-mentos concedidos para a União pela Caixa Econômica Federal para cobertura dos programas Bolsa Família, Seguro Desemprego e Abo-no Salarial de 2013/2014, dos adiantamentos concedidos pelo BN-DES para a cobertura do Programa de Sustentação do Investimento de 2010/2014, e dos adiantamentos concedidos pelo FGTS para as despesas do Programa Minha Casa, Minha Vida de 2010/2014 (item 2.3.6 do Relatório do TCU). Assim, enquanto as instituições finan-ceiras efetuavam os pagamentos em dia aos beneficiários sem ter re-cebido o repasse da União, esta, por sua vez, não contabilizava como dívida o adiantamento, não afetando as estatísticas oficiais do resul-tado primário.

A proibição do art. 36 da LRF não é em vão e se justifica por razões de transparência, de controle e de gestão fiscal responsável. Afinal, quem não se recorda da crise dos bancos públicos estaduais que o país viveu na década de 1990, jogando-se pelo ralo bilhões de reais com programas de reestruturação do sistema financeiro, como o PROER?

Ocorre que esta prática das pedaladas fiscais já foi objeto de análise recente pelo Plenário do TCU no Acórdão nº 825/2015, em que o Ministro Relator José Múcio Monteiro chegou a equipará-la a um “cheque especial” da União na CEF, expressando, ao final, a sua perplexidade ao dizer que: “ainda não compreendo como é que dezenas de bilhões de reais em passivos da União tornaram-se imper-ceptíveis ou indiferentes aos olhos do Banco Central”. Pelos cálculos do TCU, as manobras fizeram com que não fossem contabilizados R$ 40,2 bilhões na Dívida Líquida do Setor Público no ano passado.

Além das pedaladas, o Relatório Prévio do TCU aponta outras possíveis violações à LRF, como a falta de contingenciamento em gas-tos discricionários de mais de 28 bilhões de reais, diante da queda

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da arrecadação; a omissão nas estatísticas da Dívida Pública de 2014 das dívidas da União com o BB, BNDES e FGTS; a ausência do rol de prioridades no Projeto da LDO de 2014; distorções nas informações relacionadas a indicadores e metas do PPA 2012/2015; o pagamento pela União de dívida contratual junto ao FGTS sem autorização orça-mentária em 2014; os gastos superiores ao autorizado no orçamento de estatais como Telebrás e Furnas; a utilização da execução orça-mentária de 2014 para influenciar a apreciação do Projeto de Lei PLN 36/2014 que reduzia a meta de superávit primário; etc.

Por sua vez, o Procurador Júlio Marcelo Oliveira, do Ministério Público de Contas junto ao TCU, em sua dura manifestação, desta-ca que “foram praticadas graves e intencionais violações à lei de Res-ponsabilidade Fiscal com o objetivo de expandir gastos públicos, sem sustentação orçamentário-financeira, com a agravante de terem sido cometidas em ano eleitoral, a indicar uma incidência em condutas que a LRF veio justamente combater”.

Já o Ministro da Advocacia-Geral da União, Luís Inácio Adams, nos esclarecimentos prestados ao TCU, afirma que não houve des-cumprimento da lei e que a prática das “pedaladas fiscais” não se equipararia a uma operação de crédito vedada pela LRF, já que estaria amparada por um contrato de prestação de serviços para o pagamen-to de benefícios com compensação pelos atrasos, com ganhos para as próprias instituições financeiras.

Argumenta ainda o Ministro Adams que o TCU não conside-rou irregulares essas operações em anos anteriores, configurando um padrão jurisprudencial da Corte de Contas, cuja eventual mudança de entendimento deverá respeitar o Princípio da Segurança Jurídica e ter efeitos apenas prospectivos, citando o Acórdão nº 992/2014 do próprio TCU, onde foi dito que: “não seria razoável classificar como operações de crédito meros atrasos de curtíssimo prazo no repasse de re-cursos do Tesouro, previstos e em condições estipuladas contratualmen-te, como no caso dos programas sociais pagos por intermédio da CEF”.

De fato, todos os questionamentos são preocupantes. Porém, independentemente de como eles e as pedaladas fiscais serão con-siderados pelo TCU e pelo Congresso Nacional, acredito que o mais importante é percebermos que o tema está sendo objeto de amplo debate crítico e construtivo e, sobretudo, que temos instituições aten-tas e republicanas, como o TCU e Ministério Público de Contas, que

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buscam a aplicação e respeito da legislação financeira, bem como a própria AGU, que, ao justificar as práticas, manifesta, com transpa-rência e lealdade, o compromisso de corrigir eventuais irregularida-des fiscais.

Enfim, a Lei de Responsabilidade Fiscal, ao estabelecer um códi-go de conduta aos gestores públicos, nestes seus 15 anos de vigência, demonstra tratar-se de importante instrumento de fortalecimento dos valores do Estado Democrático de Direito. O seu cumprimento precisa ser exigido por todos para que possa realizar o seu desígnio: oferecer ao cidadão brasileiro e aos governos os mecanismos neces-sários para o desenvolvimento econômico e social, com a criação de uma sociedade mais digna e justa.

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O controle de constitucionalidade das

leis orçamentárias

Publicado em 01/02/2017

Por muitos anos, o Supremo Tribunal Federal entendeu que o controle concentrado e abstrato de constitucionalidade de leis e atos normativos realizado por meio da Ação Direta de Inconstitucionali-dade – prevista no artigo 102, I, “a” da Constituição Federal – depen-deria das características de abstração e generalidade da norma ques-tionada. Assim, a Corte Suprema somente conhecia da ADI proposta em relação a lei, ainda que pleno o seu caráter formal, se esta também detivesse um caráter material de ato normativo genérico e abstrato.

Neste sentido, em relação às leis orçamentárias, o STF não ad-mitia seu controle concentrado e abstrato de constitucionalidade por meio de ADI, por entender que constituíam meras peças administra-tivas de caráter concreto, desprovidas de normatividade, abstração, generalidade e impessoalidade. Afirmava, por exemplo, que a lei de diretrizes orçamentárias, que tem objeto determinado e destinatários certos, assim sem generalidade abstrata, é lei de efeitos concretos, que não está sujeita à fiscalização jurisdicional no controle concentrado (ADI 2.484-MC, Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento 19/12/2001, DJde 14/11/2003); e que os atos de legislação orçamentária – sejam os de conformação original de orçamento anual, sejam os de alteração dela, no curso do exercício – são exemplos paradigmáticos de leis formais, isto é, de atos administrativos de autorização, por definição, de efeitos concretos e limitados, o que os subtrairia da esfera objetiva de controle abstrato de constitucionalidade pelo STF (ADI 1.716, DJde 23/03/1998).

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Esta forma de pensar do STF, no sentido de que, devido a seu conteúdo político e não normativo (como a destinação de recursos ou a vinculação de verbas a programas de governo), não seria cabível o questionamento das leis orçamentárias através de ADI, tinha como um de seus fundamentos a velha premissa – a nosso ver equivocada – de que as leis orçamentárias teriam natureza de lei formal e não de lei material, razão pela qual não se poderia adentrar na análise de seu conteúdo.

Porém, a partir do julgamento da ADI 2.925-DF (em 19/12/2003), iniciou-se um processo de revisão jurisprudencial, momento em que o STF passou a admitir ADI em face de leis orçamentárias, superando o seu posicionamento tradicional – que ainda ecoava neste julgado através do voto da relatora originária Ministra Ellen Gracie – que en-tendia “estar-se diante de ato formalmente legal, de efeito concreto, portador de normas individuais de autorização”. Não obstante, o Mi-nistro Marco Aurélio (em seu voto vencedor), colocando a semente da mudança de entendimento na Corte sobre o tema, afirmou que mostrava-se adequado o controle concentrado de constitucionalida-de quando a lei orçamentária revela contornos abstratos e autôno-mos, abandonando o campo da eficácia concreta.

Neste importante julgado, além do Ministro Gilmar Mendes, que reconhecia a substancialidade do dispositivo da lei orçamentária im-pugnada, o Ministro Cezar Peluzo asseverou que, como se tratava de norma típica de competência, guardava todas as características de nor-ma geral e abstrata, razão por que conheceu do mérito da ação. Por sua vez, o Ministro Carlos Ayres Britto, depois de afirmar que a lei orça-mentária seria para a Administração Pública, logo abaixo da Constitui-ção, a lei mais importante de nosso ordenamento jurídico, pugnou que: “(...) acho que têm esses caracteres, sim, da lei em sentido material, ou seja, lei genérica, impessoal e abstrata. (...) A abstratividade, diz a teoria toda do Direito, implica uma renovação, não digo perene, porque, aqui, está limitada por um ano, mas a renovação duradoura entre a hipótese de incidência da norma e a sua consequência”. Finalmente, o Ministro Mauricio Corrêa considerou presente a abstração da norma que afas-taria a jurisprudência então vigente da Corte de ausência de controle abstrato de constitucionalidade de leis orçamentárias.

A partir deste momento, o debate desloca-se da forma para o conteúdo e o Supremo Tribunal Federal passa a analisar com outros

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A corrupção como despesa pública

Publicado em 01/06/2017

A corrupção em altíssimo grau na esfera pública tem sido assun-to que não abandona o noticiário recente. Infelizmente, as notícias não são propriamente novas: a situação assume contornos endêmicos em nosso país desde a colonização. Mas a corrupção não é um fenô-meno brasileiro e acompanha a história das sociedades, seja no setor público ou no privado. A triste realidade da humanidade, mostrada pela história, é a de que, em todos os lugares e culturas, sempre houve quem corrompesse e quem fosse corrompido.

O Brasil já vivenciou e enfrentou diversos casos de corrupção que drenaram dezenas de bilhões de reais dos cofres estatais em de-trimento do interesse público e em benefício de interesses particula-res. Apenas para citar alguns casos relevantes, lembramos: a) Anões do Orçamento (década de 1980); b) Construção do TRT-SP (década de 1990); c) Fraude no INSS (década de 1990); d) Quebra do Banco Marka/FonteCindam (em 1999); e) Máfia dos Precatórios (década de 1990); f) Zelotes (caso do CARF, em 2015) e; g) Lava-Jato (caso da Petrobras e seus desdobramentos, em favor de partidos políticos – de 2015 até hoje).

A corrupção sistêmica e constante em uma nação produz o efei-to maléfico de desviar para terceiros parcela dos recursos públicos que deveriam ser destinados à sociedade, seja pelo superfaturamento e respectiva elevação nos custos de obras, investimentos, aquisição de bens e serviços fundamentais para a população (por exemplo, na compra de medicamentos, de merendas etc.), seja através da não ar-recadação de receitas pela concessão de incentivos fiscais indevidos,

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desprovidos de efetivo interesse público e concedidos em troca de benefícios pessoais, sobretudo os de natureza pecuniária.

Portanto, sob a ótica fiscal, a corrupção adquire natureza de despesa pública de duas formas: a) como custo adicional nos gastos públicos, pelo superfaturamento dos preços contratados; b) como renúncia de receitas públicas, na modalidade de “Tax Expenditure” ou gasto tributário, outorgada a título de incentivos fiscais através de anistias, remissões, subsídios, créditos fiscais, isenções, redução de alíquotas ou base de cálculo.

Diante desse quadro, há quem diga que a corrupção deveria se equiparar a crime hediondo, pois corruptor e corrompido se equi-valem ao ladrão, ao homicida, ao criminoso que dilapida os cofres públicos e atinge mortalmente o coração da moralidade pública ad-ministrativa, pois, com a sua conduta ilícita, fere a um número incal-culável de pessoas que muitas vezes dependem, para a sua sobrevi-vência, dos recursos financeiros que são desviados para seus bolsos e contas no exterior.

Tramita na Câmara dos Deputados proposta da Comissão de Legislação Participativa (PL 6665/16) que aumenta as penas para diversos crimes de corrupção e os transforma em crime hediondos, cuja pena deve ser cumprida inicialmente em regime fechado, sendo insuscetíveis de anistia, graça, indulto e fiança. Dentre as alterações da proposta, o crime de peculato – quando o funcionário público apropria-se de dinheiro ou bem de que tem a posse em razão do car-go, ou o desvia – passará a ser punido com pena de reclusão de 4 a 12 anos e multa (atualmente, a pena mínima é de reclusão de dois anos). E a pena para a corrupção passiva – solicitar ou receber, para si ou outra pessoa, vantagem indevida em razão da função pública – tam-bém passaria a ser punida com reclusão de 4 a 12 anos e multa (hoje a pena prevista é de reclusão de 2 a 12 anos e multa). Ainda, o crime de tráfico de influência – solicitar, exigir, cobrar ou obter vantagem ou promessa de vantagem, para influir em ato praticado por funcionário público no exercício da função – passará a ter pena de reclusão de 4 a 8 anos e multa (a pena atual é de reclusão 2 a 5 anos e multa) e a corrupção ativa – oferecer ou prometer vantagem indevida a funcio-nário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício – passaria a ser punida com reclusão de 4 a 12 anos e multa (a pena mínima atual é de reclusão de dois anos e multa).

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Gastos públicos na ótica da sociedade e da Constituição

Publicado em 03/04/2018

Sempre nos perguntamos em que são pautadas as escolhas feitas pelos governantes em relação aos gastos que serão realizados com o dinheiro público ao longo de sua gestão.

De fato, parte das suas prioridades acabam sendo antecipadas nas promessas de campanha eleitoral, em regra seguindo os ideais (político, econômico e social) de cada candidato. Uma vez eleitos e no exercício do cargo público – presidente, governador ou prefeito – , suas escolhas passam a ser pautadas também com base nas limitações orçamentárias e nos seus interesses políticos.

Não obstante, devemos nos indagar se a definição da despesa pública a ser prevista no orçamento público e posteriormente exe-cutada pelo governante é de natureza discricionária ou vinculada, e se atende aos anseios da sociedade e aos valores e direitos fixados na Constituição.

Recentemente, foi divulgada uma pesquisa de opinião pública1

acerca das prioridades mais urgentes sob o ponto de vista do cidadão brasileiro. Em primeiro lugar, 49,3% dos ouvidos declararam a sua preocupação em acabar com a corrupção; em segundo lugar, 45,4% disseram que a prioridade deveria ser melhorar a educação; em ter-ceiro lugar, 42% afirmaram como urgente melhorar a saúde pública; em quarto lugar, 29,5% das opiniões preocuparam-se com a melho-ria na segurança pública; na sequência, em percentuais menores, a atenção estava voltada para a geração de empregos, a redução dos

1. Fonte: Instituto Ideia Big Data.

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impostos, o controle da inflação, o aperfeiçoamento da infraestrutura e outros.

Não nos espanta que o combate à corrupção esteja em primeiro lugar de preocupação, uma vez que a sociedade brasileira já compre-ende que o desvio ilegal de recursos públicos drena (para o bolso do corrupto) o dinheiro que deveria estar sendo empregado em todas as demais necessidades públicas, tais como educação, saúde e segu-rança, prioridades estas identificadas nesta pesquisa como majori-tárias. A propósito do tema, já tive oportunidade de expor que, na perspectiva fiscal, a corrupção adquire natureza de despesa pública, sobretudo como custo adicional nos gastos públicos, pelo superfatu-ramento dos preços contratados (pois o empresário incorporará aos custos do contrato com a Administração Pública o valor a ser pago em corrupção).

Mas a manifestação popular exposta na referida pesquisa tam-bém está em linha com o texto constitucional, que cria direitos inú-meros para os cidadãos e, por decorrência, fixa deveres para o Estado, cuja efetivação dependerá de recursos financeiros que estejam previs-tos no orçamento público.

Podemos destacar alguns exemplos dessas previsões constitu-cionais. O texto do art. 6º categoricamente afirma que “são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constitui-ção”; mais adiante, o art. 194 expressamente define que “a seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”; igualmente, o art. 196 prevê que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garan-tido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”; na mesma linha, o art. 204 estabelece que “as ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento da seguridade social”; por sua vez, o art. 205 define que “a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e in-centivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desen-volvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua

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Contas públicas desordenadas: há luz no fim do túnel?

Publicado em 09/08/2018

Que as contas públicas brasileiras vão de mal a pior todos nós já sabemos. Mas o cenário não para de piorar, já que, ano após ano, o déficit fiscal – despesas maiores que receitas – se acumula de maneira crescente.

Estima-se para o corrente ano de 2018 um déficit de cerca de R$ 160 bilhões e, no acumulado dos últimos anos, chega-se à monta de R$ 260 bilhões. Para o próximo ano de 2019, a estimativa é de um déficit de quase R$ 140 bilhões. Já para 2020, o valor negativo calcula-do gira em torno de R$ 110 bilhões e, em 2021, ficará, segundo estu-dos do próprio Governo federal, em R$ 70 bilhões. Tudo isso somado atingirá um “singelo” valor acumulado de aproximadamente R$ 580 bilhões de saldo negativo.

E quando se gasta mais do que se arrecada, o caminho é “tampar o buraco” com operações de crédito (empréstimos públicos). Neste cenário, para custear a dívida bruta do governo geral (União, Esta-dos, Municípios, DF e empresas estatais), que atualmente chega a R$ 5,2 trilhões – ou seja, 77,2% do PIB –, paga-se apenas de juros mais de 40 bilhões de reais por mês. Por sua vez, a dívida pública federal sozinha está em cerca de R$ 3,75 trilhões. Em termos com-parativos com países de igual nível de renda, estudos indicam que o nosso endividamento é considerado o dobro dos demais.

Imagine-se quanto este montante de dinheiro representaria em termos de possibilidades de gastos com saúde, educação e segurança mensalmente caso não fosse direcionado para financiar uma dívida pública. E esta situação não nos parece circunstancial ou momentânea,

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Emenda Constitucional nº 100: a certeza da

impositividade orçamentária

Publicado em 04/07/2019

No final do mês de junho passado foi promulgada a Emenda Constitucional nº 100, que alterou os artigos 165 e 166 da Consti-tuição Federal, para tornar obrigatória a execução da programação orçamentária proveniente de emendas de bancada de parlamentares de Estados ou do Distrito Federal.

Segundo a nova previsão constitucional, a execução obrigatória das emendas de bancadas seguirá as mesmas regras das emendas in-dividuais – as quais já eram impositivas desde a alteração introduzida pela EC nº 86/2015 – e corresponderão a 1,0% (um por cento) da receita corrente líquida (RCL) realizada no exercício anterior. Fica expressamente ressalvado, entretanto, que tais despesas não serão de execução obrigatória nos casos dos impedimentos de ordem técnica. Mas, para o ano de 2020, quando está previsto o início da produção de efeitos da norma, este montante será excepcionalmente de 0,8% (oito décimos percentuais) da RCL.

Não custa recordar que essas “emendas parlamentares” são ru-bricas previstas no Orçamento que o Congresso Nacional direciona para a realização de projetos escolhidos pelos deputados e senadores.

Apesar de o foco da EC nº 100/2019 ser a execução obrigatória das emendas de bancadas estaduais e distrital (e assim está literal-mente ementado no texto publicado no DOU de 27/06/2019, página 1), a partir de uma leitura mais atenta à redação desta emenda cons-titucional, percebemos que um de seus dispositivos – o novo § 10

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Receitas insuficientes, novos impostos e as

revoluções tributárias

Publicado em 01/08/2019

Como sabemos, os desejos e as necessidades humanas são ilimi-tados, mas a possibilidade financeira estatal de atendê-los é restrita. No Brasil, assim como em grande parte das nações do mundo con-temporâneo, a desigualdade econômica e a concentração de riquezas são avassaladoras.

Neste contexto, recentemente, um grupo de bilionários norte-a-mericanos apresentou um manifesto no sentido de serem favoráveis à tributação sobre suas grandes fortunas. Os signatários da carta jus-tificaram a sua louvável motivação em contribuir com mais tributos a partir de uma responsabilidade moral e republicana para com a so-ciedade, como instrumento de redistribuição de riqueza.

Aqui no Brasil, temos a previsão constitucional, no artigo 153, VII, do denominado “imposto sobre grandes fortunas”. Porém, passa-dos mais de 30 anos de vigência da Constituição, até hoje esse impos-to não foi instituído, apesar de alguns projetos de lei complementar tramitarem no Congresso há décadas, a passos de cágado.

De fato, a questão é deveras controvertida. Se, por um lado, a desigualdade econômica em nosso país é imensa, e o nosso atual mo-delo fiscal privilegia os mais ricos, uma vez que o sistema tributário brasileiro é baseado na incidência sobre o consumo de bens e servi-ços, o que acaba por penalizar os mais pobres; por outro lado, a carga tributária sobre as empresas já é excessivamente elevada, e aumentar a cobrança de impostos sobre o patrimônio ou renda daqueles que