refletindo sobre representaÇÕes e prÁticas...

12
PROGRAMA DE INCENTIVO À CRIATIVIDADE E À INCLUSÃO: REFLETINDO SOBRE REPRESENTAÇÕES E PRÁTICAS SOCIAIS Kátia Regina Xavier da Silva; Colégio Pedro II/ Universidade do Estado do Rio de Janeiro [email protected] Ana Patrícia da Silva; Universidade do Estado do Rio de Janeiro, [email protected] Resumo: O presente trabalho visa problematizar duas metáforas surgidas no contexto das interações realizadas durante a pesquisa Criatividade e Inclusão na Formação de Professores: representações e práticas sociais: a metáfora dos ingredientes, através da qual acredita-se que existe uma receita para a inclusão e a metáfora do professor-ator, que expressa a visão de que o professor não deve se envolver emocionalmente diante dos processos de exclusão, em virtude das exigências da profissão. A pesquisa caracterizou-se como uma pesquisa-ação que teve como foco a preparação professores, em fase de formação inicial, para o trabalho com problemas que vêm sendo apontados como causadores de processos de exclusão na escola brasileira. Os resultados da pesquisa indicam elementos importantes para se pensar como as diferentes formas de promoção da inclusão podem se transformar em processos explícitos de exclusão ou se travestir em mecanismos sutis de inclusão perversa. Palavras-chave: Inclusão, criatividade, formação de professores. Introdução O presente artigo constitui um recorte da Tese de Doutorado intitulada Criatividade e Inclusão na Formação de Professores: Representações e Práticas Sociais, que teve como objeto o Programa de Incentivo à Criatividade e à Inclusão na Formação de Professores (PICI). O PICI é um plano de ação que tem por objetivo o desenvolvimento do processo criativo e das habilidades de solução de problemas relativos à dialética inclusão/exclusão, através de um conjunto de estratégias que visam incentivar a aproximação crítica entre a teoria e a prática no campo educacional, durante o processo de formação inicial de professores.

Upload: others

Post on 23-Aug-2021

7 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: REFLETINDO SOBRE REPRESENTAÇÕES E PRÁTICAS ...editorarealize.com.br/editora/anais/ceduce/2015/TRABALHO...foram: a técnica dos seis chapéus do pensamento (DE BONO, 2008); a tempestade

PROGRAMA DE INCENTIVO À CRIATIVIDADE E À INCLUSÃO: REFLETINDO SOBRE REPRESENTAÇÕES E PRÁTICAS SOCIAIS

Kátia Regina Xavier da Silva;

Colégio Pedro II/ Universidade do Estado do Rio de Janeiro [email protected]

Ana Patrícia da Silva;

Universidade do Estado do Rio de Janeiro, [email protected]

Resumo: O presente trabalho visa problematizar duas metáforas surgidas no contexto das interações realizadas durante a pesquisa Criatividade e Inclusão na Formação de Professores: representações e práticas sociais: a metáfora dos ingredientes, através da qual acredita-se que existe uma receita para a inclusão e a metáfora do professor-ator, que expressa a visão de que o professor não deve se envolver emocionalmente diante dos processos de exclusão, em virtude das exigências da profissão. A pesquisa caracterizou-se como uma pesquisa-ação que teve como foco a preparação professores, em fase de formação inicial, para o trabalho com problemas que vêm sendo apontados como causadores de processos de exclusão na escola brasileira. Os resultados da pesquisa indicam elementos importantes para se pensar como as diferentes formas de promoção da inclusão podem se transformar em processos explícitos de exclusão ou se travestir em mecanismos sutis de inclusão perversa.

Palavras-chave: Inclusão, criatividade, formação de professores.

Introdução

O presente artigo constitui um recorte da Tese de Doutorado intitulada Criatividade e

Inclusão na Formação de Professores: Representações e Práticas Sociais, que teve como

objeto o Programa de Incentivo à Criatividade e à Inclusão na Formação de Professores

(PICI). O PICI é um plano de ação que tem por objetivo o desenvolvimento do processo

criativo e das habilidades de solução de problemas relativos à dialética inclusão/exclusão,

através de um conjunto de estratégias que visam incentivar a aproximação crítica entre a

teoria e a prática no campo educacional, durante o processo de formação inicial de

professores.

Page 2: REFLETINDO SOBRE REPRESENTAÇÕES E PRÁTICAS ...editorarealize.com.br/editora/anais/ceduce/2015/TRABALHO...foram: a técnica dos seis chapéus do pensamento (DE BONO, 2008); a tempestade

A formação de professores para a inclusão em Educação ainda não é uma realidade

no ensino superior brasileiro. Embora as políticas educacionais apontem para a necessidade de

democratizar o acesso ao saber, cabe reconhecer a impossibilidade de transformar a escola e o

sistema educacional da noite para o dia. Além da reorganização dos sistemas educacionais, no

que concerne à elaboração de políticas de largo alcance que incidam diretamente na melhoria

das condições de trabalho nas escolas, defendemos neste artigo que a formação inicial de

professores constitui uma importante demanda para construção de uma escola mais inclusiva.

Nessa perspectiva Pimenta, Fusari, Almeida e Franco (2013) entendem que “as formas de

concretização do processo de ensino variam no tempo e no espaço, criam-se e recriam-se

produzindo modelos e estruturas que caracterizam cada momento histórico” (p.144). Para os

referidos teóricos, o processo de ensino é uma prática social complexa, realizada “por seres

humanos entre seres humanos”, ou seja, é um processo que se transforma de acordo com o

momento sócio-histórico e com os contextos: ”institucionais, culturais, espaciais” (p.144).

As práticas que incentivam a expressão da criatividade do futuro professor na

formação inicial podem colaborar para o reconhecimento e desenvolvimento de características

necessárias à atuação orientada para a inclusão. Assim sendo, entendemos a criatividade como

componente do ensino e da formação de professores embora constitua um tema polêmico, seja

por sua amplitude, seja pela ambiguidade que permeia a origem de seus debates.

Silva C. (2001) destaca a incipiência de tais estudos no contexto brasileiro e

contextualiza historicamente o tema, assinalando que grande parte dos estudos desenvolvidos

na área da psicologia da criatividade foram – e ainda são – realizados nos EUA. A autora

argumenta que as teorias que embasam o conceito de criatividade desde a década de 50 –

período em que situa o despertar do interesse dos pesquisadores pelo tema, incentivados que

foram pela Guerra Fria e pelas inovações tecnológicas dela precedentes – sugerem dois

direcionamentos: o primeiro ligado aos processos cognitivos que promovem a criatividade e o

segundo ligado aos aspectos sociais que interferem no surgimento, desenvolvimento e difusão

da criatividade e dos produtos criativos. No primeiro grupo de teorias existe uma preocupação

notória com os aspectos individuais que caracterizam a criatividade e no segundo grupo

tende-se a priorizar os fatores ambientais que incentivam ou cerceiam a criatividade.

A relação entre a criatividade e a sociedade nas produções científicas desenvolvidas

no campo da psicologia da criatividade baseia-se em três paradigmas bem delimitados: o

primeiro, representado pelas teorias cognitivas, define a criatividade como sendo uma

Page 3: REFLETINDO SOBRE REPRESENTAÇÕES E PRÁTICAS ...editorarealize.com.br/editora/anais/ceduce/2015/TRABALHO...foram: a técnica dos seis chapéus do pensamento (DE BONO, 2008); a tempestade

característica inerente ao indivíduo; essa visão vai sendo aos poucos modificada por

paradigmas que defendem a influência dos fatores sociais no desenvolvimento da criatividade

e, posteriormente, por paradigmas que defendem a influência recíproca de fatores individuais

e ambientais (SILVA C. 2001). Dentre as teorias referentes à abordagem sistêmica da

criatividade podemos citar: a Psicologia Social de Amabile, o modelo sistêmico de

Csikszentmihalyi e o modelo sistêmico de Woodman e Schoenfeldt (LUBART, 2007).

Silva C. (2001) defende que, em contraponto às abordagens norte-americanas, o

referencial soviético “se diferencia dos demais por não reduzir os aspectos sociais a variáveis

situacionais” (p.53) e que tal abordagem representa “um caminho com grandes possibilidades

para uma melhor compreensão da criatividade” (p.53). Dentre os autores soviéticos destaca

Vygotsky, que “considera ser a criatividade mais uma regra do que uma exceção, não

constituindo privilégio apenas de cientistas” (p.55). De uma forma geral, o tema é profícuo e a

tentativa de abordá-lo na instituição universitária abre grandes possibilidades de pensarmos

pares como teoria/prática; indivíduo/sociedade; tradição/inovação, entre tantos outros.

A criatividade é definida neste artigo com base na abordagem múltipla, proposta por

Sternberg & Lubart (1995) e denominada Teoria do Investimento da Criatividade. De acordo

com esta abordagem, a realização de produções criativas depende de quatro fatores:

cognitivos (relacionados a aspectos específicos da inteligência e conhecimento), conativos

(ligados a estilos cognitivos, de personalidade e motivação), emocionais (relacionados a

sentimentos, afetos, desejos) e ambientais (que dizem respeito às condições materiais de

realização), estando o potencial criativo presente nas diversas áreas do conhecimento como a

arte, literatura, Ciência, comércio e outras (LUBART, 2007). O ambiente social é essencial na

avaliação da criatividade e a interação de seus componentes pode incentivar ou limitar a sua

expressão.

Pimenta, Fusari, Almeida e Franco (2013) “reafirmam que o ensino, como prática

social, significa a interpretação desse objeto como um fenômeno complexo que requer uma

abordagem dialética multifuncional” (144). Defende-se aqui, neste sentido, que a discussão

sobre a inclusão em Educação se torna mais profícua quando levamos em consideração as

Representações Sociais (RS) dos diferentes grupos sobre esse objeto. Sendo a representação

social um tipo de pensar que organiza e orienta as práticas sociais, a maneira como se

representa a inclusão em Educação pode interferir na forma como o sujeito a realiza – ou não.

Para Abric (2000), “a identificação da ‘visão de mundo’ que os indivíduos ou os grupos têm e

Page 4: REFLETINDO SOBRE REPRESENTAÇÕES E PRÁTICAS ...editorarealize.com.br/editora/anais/ceduce/2015/TRABALHO...foram: a técnica dos seis chapéus do pensamento (DE BONO, 2008); a tempestade

utilizam para agir e para tomar posição, é indispensável para compreender a dinâmica das

interações sociais e clarificar os determinantes das práticas sociais” (p.27). Wagner (2000) se

refere ao termo representação social como “um conteúdo mental estruturado – isto é,

cognitivo, avaliativo, afetivo e simbólico – sobre um fenômeno social relevante, que toma a

forma de imagens ou metáforas, e que é conscientemente compartilhado com outros membros

do grupo social” (p.3-4). Segundo o autor, o grupo social cria, difunde e transforma

publicamente o conhecimento partilhado através de discursos e práticas cotidianas.

No PICI, tanto a criatividade como a inclusão são entendidos como processos. O

termo incentivo tem um duplo sentido neste Programa: o sentido de estímulo e de valorização.

Deste modo, vale a pena esclarecer que ao elaborar um Programa de Incentivo à Criatividade

e à Inclusão pretendeu-se, sobretudo, oferecer possibilidades de “despertar” o potencial

criativo inerente a todo e qualquer ser humano e, de igual forma, valorizar as diferentes

expressões da criatividade dos participantes, mesmo que essas expressões não representassem

uma “novidade radical” quando se considera o grupo como um todo ou o contexto geral mais

amplo como parâmetros de comparação.

Institucionalmente, o PICI caracterizou-se como um Curso de Extensão Universitária

e teve a duração total de 60h (sessenta horas), distribuídas em 02 (dois) encontros semanais

com a duração de 01h (uma hora), realizados numa instituição de ensino superior da rede

privada na baixada fluminense. O PICI foi organizado com base no ciclo de resolução de

problemas proposto por Sternberg (2000), um processo que mobiliza “trabalho mental para

superar obstáculos que obstaculizam a resposta a uma questão” (p.336). Essas etapas incluem:

identificação do problema; definição do problema; formulação de estratégias; organização das

informações; alocação de recursos; monitorização e avaliação da solução. Cotidianamente, as

etapas podem ser alteradas em sua sequência ou repetidas, conforme a necessidade.

O presente artigo visa problematizar, sob o ponto de vista da dialética

inclusão/exclusão (SAWAIA, 2002a, 2002b), duas metáforas surgidas no contexto das

interações realizadas a partir das atividades desenvolvidas no PICI, a saber: a metáfora dos

ingredientes, através da qual acredita-se que existe uma “receita” para a inclusão e a metáfora

do professor-ator, que expressa a visão de que o professor não deve se envolver

emocionalmente diante dos processos de exclusão, em virtude das exigências da profissão.

Metodologia

Page 5: REFLETINDO SOBRE REPRESENTAÇÕES E PRÁTICAS ...editorarealize.com.br/editora/anais/ceduce/2015/TRABALHO...foram: a técnica dos seis chapéus do pensamento (DE BONO, 2008); a tempestade

A pesquisa caracterizou-se como uma pesquisa-ação, na perspectiva de Barbier

(2004) sendo classificada como aplicada, com caráter de intervenção, com vistas à preparação

dos futuros professores para o trabalho com problemas que vêm sendo apontados como

causadores de processos de exclusão na escola brasileira. A referida preparação se deu através

do Programa de Incentivo à Criatividade e à Inclusão em Educação (PICI), uma proposta de

enriquecimento curricular que tem como meta desenvolver o processo criativo dos futuros

profissionais da educação através do exercício de habilidades consideradas primordiais à

solução de problemas relativos à dialética inclusão/exclusão: (1) a disposição para se colocar

no lugar do Outro, (2) a disposição para o diálogo e (3) a disposição para articular teoria e

prática.

As atividades para o desenvolvimento da criatividade foram organizadas em dois

grupos. O Grupo I foi denominado atividades de análise e visou a definição dos conceitos

utilizados (inclusão, exclusão, formação continuada, entre outros), a justificativa das

definições escolhidas e a articulação entre as definições escolhidas e a dialética

inclusão/exclusão. A análise pautou-se em três perguntas centrais: O quê? Para quê/por quê?

Como/de que forma? No primeiro grupo de atividades, buscou-se definir o conceito de

inclusão de acordo com as RS do grupo de participantes; identificar características de

criatividade dos participantes, a partir de sua própria percepção e identificar problemas da

prática pedagógica. O Grupo II foi chamado de redefinição de problemas e busca por

soluções.

As estratégias para fomentar a redefinição dos problemas e a busca por soluções

foram: a técnica dos seis chapéus do pensamento (DE BONO, 2008); a tempestade de ideias,

também conhecida como Brainstorming, de Alex Osborn; a organização de esquemas visuais

de pensamento, estratégia inspirada na técnica do Mapa Mental de Tony Buzan e nos Mapas

Conceituais de Joseph D. Novak; a interpretação lúdica de papéis – estratégia inspirada na

técnica do Sociodrama, um procedimento dramático específico desenvolvido por J. L.

Moreno. Durante os encontros do PICI as narrativas dos participantes foram registradas em

vídeo e posteriormente analisadas com base na técnica de análise do conteúdo de Bardin

(1977).

Resultados e Discussão

Page 6: REFLETINDO SOBRE REPRESENTAÇÕES E PRÁTICAS ...editorarealize.com.br/editora/anais/ceduce/2015/TRABALHO...foram: a técnica dos seis chapéus do pensamento (DE BONO, 2008); a tempestade

As discussões realizadas nos primeiros seis encontros do PICI trouxeram à tona

algumas analogias e metáforas que ilustram RS da inclusão e do “professor inclusivo”, na

visão dos participantes. A primeira delas foi a metáfora dos ingredientes para a inclusão.

No primeiro encontro do PICI foi solicitado aos participantes que escolhessem e

hierarquizassem termos considerados “indispensáveis para a inclusão”. Dos termos eleitos

pelo grupo destaca-se: professor, dignidade, acesso, direito, igualdade, conscientização,

respeito e inclusão. Em seguida, os participantes deveriam analisar as palavras escolhidas e

discutir, em grupos, sua importância no contexto da dialética inclusão/exclusão. Ao final

deveriam escolher, consensualmente, um participante para apresentar um discurso

argumentativo com as conclusões a respeito do assunto, a fim de convencer uma plateia

imaginária de educadores sobre a importância das palavras eleitas para a concretização dos

ideais de inclusão em Educação. Ao final das apresentações o grupo foi incentivado avaliar a

experiência. Por mais que você tente... o A. foi por uma linha de raciocínio. Sendo que ele falou palavras que o F. usou sendo que sinônimas (...) eu acho que toda essa parte citada, respeito, acesso... eu acho que tudo isso aí, se pudesse fazer uma massa de bolo e pegar tudo isso aí colocar numa batedeira, fazer uma massa e... não tem como você tirar o fermento, tirar a farinha... (L.)

São todos ingredientes. (G.R)

Argumentou-se, a partir das avaliações realizadas, que os participantes utilizaram

palavras diferentes que pareciam se encaminhar para os mesmos argumentos: o professor é o

principal responsável do processo de inclusão. Com base na metáfora utilizada por G.R. foi

proposto ao grupo que refletisse sobre a questão que parecia emergir: o papel do professor é

misturar esses ingredientes para produzir a inclusão? O professor é quem faz o bolo?Eu imaginei que o professor é o resultado, nesse caso, é o que sai do forno, assado (...) na minha visão, o professor tem que ter todos esses ingredientes. O que adianta o professor pensar em inclusão sem pensar em respeitar o outro? Sem ter a consciência? Sem ter a visão de acesso? (L.)

Na tentativa de compreender a metáfora utilizada pelo grupo, foi solicitado que

descrevessem a imagem que estavam tentando produzir, a partir de outra pergunta: vocês

estão me dizendo que professor é o resultado de todos esses ingredientes?Eu achei interessante essa coisa do professor como bolo. Existem bolos e bolos. Pode ter bolo bom e bolo ruim. (...) Qual é a diferença dos dois? É a preparação, é a formação. O profissional de Educação Física, ele na faculdade tem acesso a todos esses deveres que é o respeito, formar cidadãos

Page 7: REFLETINDO SOBRE REPRESENTAÇÕES E PRÁTICAS ...editorarealize.com.br/editora/anais/ceduce/2015/TRABALHO...foram: a técnica dos seis chapéus do pensamento (DE BONO, 2008); a tempestade

com valores... mas tem aqueles que querem, que desejam isso e outros que não. Levam assim, à toa, não estudam, não querem... e faz-se um bolo ruim. (S.S.).

As representações expressas pelo grupo nesse primeiro encontro parecem confirmar

elementos presentes no provável núcleo central e sistema periférico das RS da inclusão

(SILVA K., 2008), trazendo à tona a discussão a respeito de algumas virtudes necessárias ao

professor para que a inclusão seja feita, entre elas a consciência, a dignidade, o respeito, o

esforço e a vontade. Além disso, traduzem, também, a crença de que a escola é a redentora da

sociedade (SAVIANI, 2006) e que o professor é o principal ator da inclusão. Esse debate pôs

em questão o papel da formação do professor para o desenvolvimento dessas virtudes: se o

professor deve apresentar virtudes específicas (ingredientes) para promover a inclusão dos

alunos, de onde vêm essas virtudes? São elas inerentes ao próprio sujeito? São resultantes da

formação acadêmica? Dependem da vontade do sujeito para desenvolvê-las?

Considerando a crença expressa por A., de que “O professor, ele vai ser o topo da

torre. Ele tem que ter a consciência da capacitação, da inclusão, do respeito, do acesso...”, e

que em breve todos ali se tornariam professores formados, o grupo foi incentivado a refletir

sobre as próprias virtudes e se estas eram condizentes com o protótipo de “profissional

inclusivo” que aos poucos estava sendo delineado.

No segundo encontro, após um breve resgate das discussões realizadas no encontro

anterior, foi pedido aos participantes que, individualmente, fizessem a sua apresentação

através de um exercício a ser apresentado posteriormente para o grupo. Após a realização

desta tarefa, todos apresentaram suas produções: desenhos, poemas, músicas e textos. Quatro

participantes utilizaram desenhos para expressar suas características de personalidade e

descrever seu estilo de vida.

L. desenhou uma tenda de circo com quatro palhaços, fazendo menção à leveza, à

alegria e a simplicidade desse profissional e, ao mesmo tempo, à ingratidão sofrida por ele,

por ter que esconder os seus verdadeiros sentimentos, em virtude das exigências da profissão:

“porque independente de como ele esteja ele [o palhaço] está sempre sorrindo. Ele está

sempre tentando fazer com que as outras pessoas se sintam bem” (L.). A. desenhou “um rio

no seu curso” aparentemente calmo em cima e demonstrando uma visível “confusão” no seu

interior. Embaixo da “confusão” do rio, A. desenhou o que chamou de “um soldado

israelense”, fazendo referência “a determinação que ele se dispõe a fazer aquilo que foi

Page 8: REFLETINDO SOBRE REPRESENTAÇÕES E PRÁTICAS ...editorarealize.com.br/editora/anais/ceduce/2015/TRABALHO...foram: a técnica dos seis chapéus do pensamento (DE BONO, 2008); a tempestade

determinado para ele. Se for preciso ele morre, mas ele faz o que foi determinado para ele. E

eu tomo isso para a minha vida. Eu acredito nos meus ideais e vou até o fim dela acreditando

neles” (A.).

R. desenhou um campo de futebol, duas equipes – Flamengo e São Paulo – e no

banco de reservas colocou o próprio nome e o nome de L. R. compara sua trajetória de vida à

trajetória de superação do técnico da equipe do Flamengo: “acham que o Técnico não sabe

nada... mas o cara que chegou e estudou, lutou pra caramba pra ganhar o São Paulo e ficar em

primeiro lugar... é o que eu penso da minha vida” (R.). F. desenhou uma pessoa dormindo em

uma cama e ilustrou seu desenho com a frase: “Sou um cara tranquilo, decidido e

preguiçoso”. F. afirma: “costumo lutar por tudo aquilo que eu quero, apesar de saber que tudo

aquilo pode dar errado, mas mesmo assim eu insisto. Sou persistente. (...) eu sempre aprendi

que é errando que se aprende. (...) Eu sou engraçado, preguiçoso, durmo um pouco...” (F.).

Três participantes optaram pela poesia e pela música para falar de si mesmos. C.

escreveu uma autoanálise e se descreveu como “um todo que possui subdivisões”, afirmando

que “dentro de nós existem várias faces escondidas” (c.). S.F. afirma ver-se como um “ator

respeitando a vida, compreendendo os meus semelhantes” (S.F.). S.S. utilizou uma música de

origem religiosa para declarar como se sente hoje, após ter vivido um processo de depressão:

“hoje me considero o homem mais feliz do mundo e busco cada dia pesquisar e conhecer,

para que eu possa me tornar um grande educador como foi Jesus!” (S.S.).

O debate que se seguiu à apresentação das produções foi incentivado pelas seguintes

questões: (1) Como vocês se sentiram fazendo esta atividade? (2) que relações vocês

estabelecem entre as características pessoais apresentadas e o que falamos sobre o protótipo

ou o perfil de professor orientado para a inclusão? (3). De que forma relacionam os resultados

desta atividade com o que discutimos no encontro passado? (4) quais as características

pessoais que vocês acham que contribuem para a inclusão e quais as que vocês acham que

limitam a possibilidade de fazer inclusão?

Um dos participantes, L., enfatizou que a atividade permitiu ao grupo “conhecer o

seu outro lado, a questão dos dois lados da moeda”. Conhecer o outro lado da moeda pode

significar, neste sentido, refletir a respeito das características pessoais e dos valores a elas

atribuídos e, também, identificar o que está oculto – para si e para os outros – e o porquê está

oculto. Pode significar, também, o exercício de desvendar que papéis estão representando,

quais os que gostariam de representar e que juízos de valor atribuem a esses papéis. As

Page 9: REFLETINDO SOBRE REPRESENTAÇÕES E PRÁTICAS ...editorarealize.com.br/editora/anais/ceduce/2015/TRABALHO...foram: a técnica dos seis chapéus do pensamento (DE BONO, 2008); a tempestade

problematizações a respeito das três primeiras questões propostas trouxeram à tona reflexões

sobre: (1) a importância do conhecimento de si e do reconhecimento dos valores que regem as

próprias ações e (2) a dificuldade de reconhecer as próprias características pessoais,

superações e limitações, e de expressá-las a outras pessoas.

Se, por um lado, conhecer a si mesmo é algo que causa prazer e facilita “lidar com a

diferença”, conforme afirma C., por outro, o autoconhecimento também é visto como um

processo que causa medo, oferece dificuldades e promove complicações. Quando

questionados a respeito das características pessoais que contribuem e/ou que limitam a

possibilidade de fazer inclusão, a determinação, amor, superação, persistência, ludicidade,

envolvimento emocional e a união foram consideradas virtudes que contribuem para a

inclusão e identificadas pelos participantes como características que lhes são peculiares.

Dentre essas virtudes, o envolvimento emocional foi visto por alguns participantes como algo

que limita a inclusão.(...) o que literalmente me limita é o meu emocional, gente! Eu sou muito chorona, eu sou muito abalada emocionalmente (...) você acaba vendo muitos tipos de limitação do aluno e tem determinados momentos que você desaba (C.)

(...) ver muita dificuldade (...) se você tiver com algum problema (...) dificuldade até mesmo física (...) eu tenho dificuldade de separar o que é teudo que é meu (...) Eu vou me envolvendo, assim, e eu fico pensando e aí eu acho que isso não é legal. (G.R.)

S.F., ao falar sobre as suas percepções em relação a atividade proposta, trouxe sua

experiência de vida para ilustrar a dor de reconhecer que não satisfazia às expectativas de sua

família no que se referia à condição social e compartilhar o prazer da busca por uma nova

condição, através da formação acadêmica. Mais do que isso, possibilitou ao grupo

compreender que todos desejam e sofrem, sendo a intensidade e a direção do desejo e do

sofrimento reconhecidas, percebidas e sentidas de forma diferente pelos sujeitos. A expressão

dessas emoções e sentimentos faz parte da dialética inclusão/exclusão e é na relação entre os

sujeitos que se pode tentar compreender – ou pelo menos conhecer – como os diferentes

sujeitos reconhecem a sua condição e como se sentem diante dela. De acordo com Sawaia

(2002b),[...] perguntar por sofrimento e por felicidade no estudo da exclusão (...) epistemologicamente, significa colocar no centro das reflexões sobre exclusão, a ideia de humanidade e como temática o sujeito e a maneira como se relaciona com o social (família, trabalho, lazer e sociedade), de forma

Page 10: REFLETINDO SOBRE REPRESENTAÇÕES E PRÁTICAS ...editorarealize.com.br/editora/anais/ceduce/2015/TRABALHO...foram: a técnica dos seis chapéus do pensamento (DE BONO, 2008); a tempestade

que, ao falar de exclusão, fala-se de desejo, temporalidade e de afetividade, ao mesmo tempo que de poder, de economia e de direitos sociais (p.98)

Convém destacar que o sentido da afetividade no debate a respeito da dialética

inclusão/exclusão nada tem a ver com a benevolência, generosidade ou caridade típicas da

ética cristã (CHAUÍ, 1997). A afetividade, neste contexto, deve ser qualificada como uma

questão ético-política (SAWAIA, 2002), na medida em que impregna o sujeito por inteiro em

seu corpo, emoções, relações sociais e históricas. O debate a respeito da dialética

inclusão/exclusão preocupa-se, deste modo, com o sofrimento ético-político que[...] abrange as múltiplas afecções do corpo e da alma que mutilam a vida de diferentes formas. Qualifica-se pela maneira como sou tratada e trato o outro na intersubjetividade, face a face ou anônima, cuja dinâmica, conteúdo e qualidade são determinados pela organização social. Portanto, o sofrimento ético-político retrata a vivência cotidiana das questões sociais dominantes em cada época histórica, especialmente a dor que surge da situação social de ser tratado como inferior, subalterno, sem valor, apêndice inútil da sociedade. Ele revela a tonalidade ética da vivência cotidiana da desigualdade social, da negação imposta socialmente às possibilidades da maioria apropriar-se da produção material, cultural e social de sua época, de se movimentar no espaço público e de expressar desejo e afeto (SAWAIA, 2002b, p.105).

A experiência do encontro que reconhece no Outro a possibilidade de (re)construção

eterna do eu, vivida no segundo dia do PICI, talvez tenha resultado na possibilidade de

constatar que o processo de inclusão exige mais do que uma receita, ou ingredientes que

podem ser listados de forma antecipada. Essa constatação não foi feita, apenas, por intermédio

da razão. Como professores em formação e atores – agentes do ato – da inclusão os

participantes se emocionaram e reconheceram-se humanos, nas suas dores e prazeres, ao

falarem de si para os Outros e ao ouvirem o que os Outros tinham a falar sobre si.

Conclusões

A metáfora dos ingredientes para a inclusão e a metáfora do professo-ator indicam

elementos importantes para se pensar como as diferentes formas de promoção da inclusão

podem se transformar em processos explícitos de exclusão ou se travestir em mecanismos

sutis de inclusão perversa. Um exemplo disso é a falsa ideia de que para se fazer a inclusão

basta acabar com a exclusão, tornando a sociedade um ambiente harmônico e sem conflitos.

Outro exemplo é a crença de que no exercício da prática pedagógica competente basta

“colocar as coisas no seu devido lugar”: razão de um lado, emoção do outro. O conhecimento

Page 11: REFLETINDO SOBRE REPRESENTAÇÕES E PRÁTICAS ...editorarealize.com.br/editora/anais/ceduce/2015/TRABALHO...foram: a técnica dos seis chapéus do pensamento (DE BONO, 2008); a tempestade

científico daria conta, portanto, de informar ao professor “o que fazer para incluir seus

alunos”.

Historicamente, a Ciência e a mídia têm contribuído para definir, classificar e atribuir

valor às pessoas, sob pontos de vistas bastante particulares, em relação a sua condição de

incluídas ou excluídas. Esses pontos de vista corroboram, de certa forma, para a construção da

crença de que existem fórmulas ou receitas de sucesso para resolver os problemas cotidianos

no âmbito da prática pedagógica. É como se, em posse do conhecimento “correto”, os sujeitos

fossem capazes de extinguir a complexidade das relações humanas. Daí a força da ideia de

que basta juntar determinados “ingredientes” para se fazer a inclusão.

O movimento empreendido pelo PICI possibilitou que o grupo participante

aproximasse a teoria da prática, criativamente, em busca do que se chama de práxis (FREIRE,

1998). Possibilitou, também, um primeiro passo em direção ao questionamento sobre de onde

vem o conhecimento para resolver os problemas relativos à dialética inclusão/exclusão. Se, no

contexto geral das RS da inclusão em educação esse conhecimento deve ser técnico,

produzido por especialistas, no PICI, nos empenhamos em desvelar essa visão que oculta

relações de poder e coloca o professor na condição de mero consumidor do conhecimento.

Não basta, portanto, “ter” os ingredientes em mãos, tendo em vista que o “ser” professor,

requer um envolvimento que vai além da técnica. Neste sentido, na visão de Sawaia (2002a),

“a exclusão assume seu caráter dialético em sua relação inseparável com a inclusão. A

exclusão não é uma coisa ou um estado, é um processo que envolve o homem por inteiro e

suas relações com outros” (p.9).

No processo de formação inicial de professores para a inclusão cabe refletir que as

condutas do professor perante os Outros que convivem com ele constituem uma das fontes de

informação sobre suas concepções acerca da dialética inclusão/exclusão. O professor expressa

e representa a si mesmo na interação face-a-face, desempenhando diferentes papéis em que os

scripts nem sempre estão previamente determinados. Não é possível, portanto, separar razão

de emoção, embora o discurso em defesa da racionalidade técnica esteja muito presente no

cotidiano da escola. O produto da criação na prática pedagógica é materializado através da

transformação do aluno naquilo que pode vir a ser. É a transformação do potencial em algo

real e na descoberta de novos potenciais, no sentido Vigotskyano. Desta forma, o ganho

afetivo do professor é indissociável do desempenho cognitivo dos alunos. No contexto da

prática pedagógica criativa e inclusiva, o professor, consciente de seus potenciais e limitações,

Page 12: REFLETINDO SOBRE REPRESENTAÇÕES E PRÁTICAS ...editorarealize.com.br/editora/anais/ceduce/2015/TRABALHO...foram: a técnica dos seis chapéus do pensamento (DE BONO, 2008); a tempestade

percebe que seu trabalho contribuiu, de alguma forma, para a transformação de seus alunos.

Para Freire (2001a) “amar não é um gesto, é um ato e um ato de libertação, que implica a

comunhão dos sujeitos que amam e se amam” (p.272). É neste cenário no qual gostar pode ser

traduzido em amor, que a prática pedagógica criativa e inclusiva acontece, cheia de esperança,

sem perder de vista a humanidade e o rigor.

Referências

ABRIC, J.-C. A abordagem estrutural das representações sociais. In: MOREIRA, A. S. P. (Org.); OLIVEIRA, D. C. (Org.). Estudos interdisciplinares de representação social. Goiânia: AB, 2000. p. 27-38.BARBIER, René. A nova pesquisa-ação e seu questionamento epistemológico. In: BARBIER, René. A pesquisa-ação. Brasília: Liber Livro, 2004, p.37-62.BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977.BERGER, Peter L. & BERGER, Brigitte. O que é uma instituição social? In: FORACCHI, Marialice M. & MARTINS, José de S. Sociologia e sociedade – leituras de introdução à Sociologia. Rio de Janeiro: LTC, 2007, p. 163-168.CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1997.DE BONO, Edward. Os seis chapéus do pensamento. Rio de Janeiro: Sextante, 2008.FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1998.LUBART, Todd. Psicologia da criatividade. Porto Alegre: Artmed, 2007.PIMENTA, FUSARI, ALMEIDA, FRANCO. A construção da didática no GT da didática – análise de seus referenciais. Revista Brasileira de Educação. v.18, n.52, jan.-mar. 2013.SAVIANI, Demerval. Escola e democracia: teorias da educação, curvatura da vara, onze teses sobre a educação política. Campinas: Autores Associados, 2006.SAWAIA, Bader B. Introdução: exclusão ou inclusão perversa? In: SAWAIA, Bader B. (Org.). As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002, p.7-13.SAWAIA, Bader B. O sofrimento ético-político como categoria de análise da dialética exclusão/inclusão In: SAWAIA, Bader B. (Org.). As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002, p.97-117.SILVA, Claudia Jorge. Criação e Sociedade. Tese (Doutorado em Psicologia). Rio de Janeiro: UFRJ/Instituto de Psicologia, 2001.SILVA, Kátia R. X. da: Criatividade e inclusão na formação de professores: Representações e Práticas Sociais. Rio de Janeiro, 2008. Tese (Doutorado em Educação). Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.STERNBERG, Robert J. Psicologia cognitiva. Porto Alegre: Artes Médicas, 2000.STERNBERG, Robert. J. & LUBART, Todd. Defying the crowd: cultivating creativity in a culture of conformity. New York: Free Press, 1995.WAGNER, Wolfgang. Sócio-gênese e características das representações sociais. In: MOREIRA, A. S. P. (Org.); OLIVEIRA, D. C. (Org.). Estudos interdisciplinares de representação social. Goiânia: AB, 2000. p. 03-25.