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Redes e ciberativismo: notas para uma análise do centro de mídia independente Maria Eugenia Cavalcanti Rigitano * Índice 1 Sociedade, movimentos sociais e cida- dãos em rede 1 2 O ciberativismo 3 3 Centro de Mídia Independente e Inter- net 6 4 Conclusão 8 5 Referências 9 1 Sociedade, movimentos sociais e cidadãos em rede Muito tem se discutido sobre as transforma- ções na morfologia da sociedade, podendo caracterizá-la como uma sociedade em rede. A partir disso se torna possível pensar nas conseqüências dessa conceituação para cam- pos e processos que constituem a sociedade, como a economia, política, cultura, etc. Como afirma Castells: “Redes constituem a nova morfologia social de nossas socieda- des, e a difusão da lógica de redes modifica * Mestre em Comunicação e Cultura Contemporâ- neas (Facom-UFBA) e professora dos cursos de co- municação da Faculdade de Tecnologia e Ciências (FTC) e União Metropolitana de Educação e Cultura (UNIME), Salvador, Bahia, Brasil. Este trabalho foi apresentado no I Seminário Interno do Grupo de Pes- quisa em Cibercidades, FACOM-UFBA. Outubro de 2003. de forma substancial a operação e os resul- tados dos processos produtivos e de experi- ência, poder e cultura” (1999, p.497). Desta forma, é passível de ser dito que a lógica de redes também acarreta conseqüências com relação à estrutura dos movimentos sociais e das demais ações coletivas. Seguindo essa tendência, diversos autores têm se preocupado com as modificações na estrutura e operação das lutas sociais a par- tir do conceito de redes (GOHN; MELUCCI; TOURAINE; SCHERER-WARREN). En- quanto os anos 80 foram caracterizados pe- los movimentos sociais de base (grassroots), a partir dos anos 90 as Ongs e as redes de movimentos sociais (networks) passam a ocupar um papel central na análise das lutas sociais. Processos, como a globalização, modifi- caram o ambiente das lutas sociais, carac- terizado pelo referencial de oposição “mo- vimentos sociais X Estado”; já que mui- tos problemas e reivindicações ultrapassam as fronteiras locais (SCHERER-WARREN, 1998, p.17). Além disso, a globalização tam- bém promove um “alongamento” das rela- ções sociais (GIDDENS, 1991, p.69), prin- cipalmente a partir das novas tecnologias de comunicação; fato que possibilita uma atua-

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Redes e ciberativismo: notas para uma análise docentro de mídia independente

Maria Eugenia Cavalcanti Rigitano∗

Índice

1 Sociedade, movimentos sociais e cida-dãos em rede 1

2 O ciberativismo 33 Centro de Mídia Independente e Inter-

net 64 Conclusão 85 Referências 9

1 Sociedade, movimentos sociaise cidadãos em rede

Muito tem se discutido sobre as transforma-ções na morfologia da sociedade, podendocaracterizá-la como uma sociedade em rede.A partir disso se torna possível pensar nasconseqüências dessa conceituação para cam-pos e processos que constituem a sociedade,como a economia, política, cultura, etc.

Como afirma Castells: “Redes constituema nova morfologia social de nossas socieda-des, e a difusão da lógica de redes modifica

∗Mestre em Comunicação e Cultura Contemporâ-neas (Facom-UFBA) e professora dos cursos de co-municação da Faculdade de Tecnologia e Ciências(FTC) e União Metropolitana de Educação e Cultura(UNIME), Salvador, Bahia, Brasil. Este trabalho foiapresentado no I Seminário Interno do Grupo de Pes-quisa em Cibercidades, FACOM-UFBA. Outubro de2003.

de forma substancial a operação e os resul-tados dos processos produtivos e de experi-ência, poder e cultura” (1999, p.497). Destaforma, é passível de ser dito que a lógica deredes também acarreta conseqüências comrelação à estrutura dos movimentos sociaise das demais ações coletivas.

Seguindo essa tendência, diversos autorestêm se preocupado com as modificações naestrutura e operação das lutas sociais a par-tir do conceito de redes (GOHN; MELUCCI;TOURAINE; SCHERER-WARREN). En-quanto os anos 80 foram caracterizados pe-los movimentos sociais de base (grassroots),a partir dos anos 90 as Ongs e as redesde movimentos sociais (networks) passam aocupar um papel central na análise das lutassociais.

Processos, como a globalização, modifi-caram o ambiente das lutas sociais, carac-terizado pelo referencial de oposição “mo-vimentos sociais X Estado”; já que mui-tos problemas e reivindicações ultrapassamas fronteiras locais (SCHERER-WARREN,1998, p.17). Além disso, a globalização tam-bém promove um“alongamento” das rela-ções sociais (GIDDENS, 1991, p.69), prin-cipalmente a partir das novas tecnologias decomunicação; fato que possibilita uma atua-

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ção mais ampliada de movimentos com ca-ráter reivindicativo.

Segundo Castells (2001), enquanto as lu-tas sociais modernas eram marcadas por mo-vimentos que mantinham a sua hierarquiacondizente com os valores verticais da indus-trialização, as lutas contemporâneas apre-sentam movimentos sociais com uma estru-tura cada vez mais horizontal e em rede.

Assim sendo, a constituição de redes deOngs e movimentos sociais tem como ob-jetivo articular ações e intercambiar infor-mações entre atores e entidades do mesmocampo de atuação ou entre ramificações deuma mesma entidade, com o intuito de pro-moverem pressões mais amplas (MORAES,2001; SCHERER-WARREN, 1996). Caberessaltar que, embora essas redes possam seformar em torno de objetivos estritamente lo-cais e específicos, em sua maior parte estãoligadas a causas transnacionais, como edu-cação, saúde, direitos humanos, questões degênero, defesa de minorias étnicas e preser-vação do meio ambiente.

Essa conceituação de Ongs e movimentossociais em rede refere-se, em princípio, àsredes de relações sociais constituídas por de-terminadas entidades e/ou indivíduos e nãoàs redes físicas. Porém, seu crescimentocoincide com a popularização de redes decomunicação como a Internet (DEIBERT,2000).

Desta forma, as redes de ongs, de movi-mentos sociais, ou como propõem outros au-tores “redes de cidadãos” (DEIBERT, 2000),estão se utilizando cada vez mais da In-ternet como ferramenta para as lutas soci-ais contemporâneas (ANTOUN, 2002; AR-QUILLA, RONFELDT, 2001; DEIBERT,2000; GOHN, 2003; MORAES, 2001;SOUZA, 2002; dentre outros).

Com relação aos prós e contras dessaapropriação social da técnica, as opiniõesestão divididas. Como demonstra Deibert(2000), a posição otimista sustentada porteóricos de influência Gramsciana (COX,1999) e Liberal (FALK, 1992; 1995), acre-dita que as redes de cidadãos constituem umapotencial expressão de participação genuina-mente democrática, nas arenas até então mo-nopolizadas pelo Estado e por corporaçõestransnacionais; sendo que a Internet é consi-derada essencial para que essas redes se de-senvolvam (p.256)

Por outro lado, há teóricos que susten-tam o argumento de que, longe de se tor-narem uma expressão da democracia, essasredes de cidadãos baseadas na Internet con-duzem a uma ruína democrática em escalaglobal; pelo fato de permitirem que muitosinteresses diferentes ou, até mesmo contradi-tórios, sejam discutidos em nível internacio-nal sem nunca se alcançar nenhuma meta -mas causando um enorme “engarrafamento”de idéias, posições e visões de mundo – nemsempre positivas (RIEFF, CLOUGHapudDEIBERT, 2000, p.256).

Além disso, existem outros autores quedefendem que as verdadeiras ações coleti-vas estão baseadas em relações face-a-face,sendo que a partir da Internet não é possívelobterem sucesso (TARROW, 2002).

Para além dessas questões, é possível serdito que a Internet se constitui uma ferra-menta imprescindível para as lutas sociaiscontemporâneas, já que facilita as atividades(em termos de tempo e custo), pode unir emobilizar pessoas e entidades de diferenteslocalidades em prol de uma causa local outransnacional, bem como quebrar o monopó-lio da emissão e divulgar informações “alter-nativas” sobre qualquer assunto. Sendo as-

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sim, indivíduos, movimentos e organizaçõesfundam, a partir do uso da Internet, o cha-mado ciberativismo, ativismo digital ou ati-vismo on-line.

2 O ciberativismo

Entende-se por ciberativismo a utilização daInternet por movimentos politicamente mo-tivados (VEGH, 2003, p.71), com o intuitode alcançar suas tradicionais metas ou lutarcontra injustiças que ocorrem na própria rede(GURAK, LOGIE, 2003; MCCAUGHEY,AYERS, 2003).

A partir da incorporação da Internet, osativistas expandem suas atividades tradicio-nais e/ou desenvolvem outras. A utilizaçãoda rede por parte desses grupos visa, den-tre outras coisas, poder difundir informaçõese reivindicações sem mediação, com o ob-jetivo de buscar apoio e mobilização parauma causa; criar espaços de discussão e trocade informação; organizar e mobilizar indiví-duos para ações e protestos on-line e off-line.

As estratégias de utilização da Internetpara o ciberativismo objetivam aprimorar aatuação de grupos, ampliando as técnicas tra-dicionais de apoio. A rede pode ser usadacomo um canal de comunicação adicional oupara coordenar ações off-line de forma maiseficiente. Além disso, a Internet permite acriação de organizações on-line, permitindoque grupos tenham sua base de atuação narede; o que possibilita ações on-line, comoocupações “virtuais” e a invasão de sites porhackers(VEGH, 2003, p.72).

Sandor Vegh (2003), propõe três catego-rias de classificação do ativismo on-line. Apartir da direção de suas iniciativas, organi-zações e indivíduos podem ser incluídos emuma categoria específica ou, até mesmo, de-

senvolver ações que envolvem as três formasde classificação.

Na primeira categoria, que versa sobreconscientização e apoio, o autor afirma quea internet pode funcionar como uma fontealternativa de informação. Indivíduos e or-ganizações podem difundir informações eeventos não relatados ou relatados de formaimprópria pela mídia de massa (p.72-73)

A partir da obtenção de informações, atra-vés de visitas a sites, inscrição em listas dediscussão ou participação de fóruns, pessoasde diferentes localidades podem entrar emcontato com realidades até então desconhe-cidas, se sensibilizar, apoiar causas e até semobilizar em prol de alguma organização,participando de ações e protestos on-line eoff-line. (VEGH, 2003, p.73)

Como exemplo, é possível citar as campa-nhas promovidas pela Anistia Internacionalpara receber e difundir, em âmbito mundial,denúncias e informações sobre direitos hu-manos. A atuação se dá por meio de sites emcerca de 150 países ligados por um portal1 eatravés de uma lista de discussão. No Brasil,ainda com relação aos direitos humanos, aRede Telemática de Direitos Humanos2 atuafornecendo informações, discussões a partirde listas e fóruns e realizando campanhas.

A maioria das organizações ativistas quepodem ser classificadas nessa categoria deconscientização e apoio, tem como objetivoproteger e reivindicar os direitos de segmen-tos marginalizados, como minorias étnicase mulheres, por exemplo. Sua atuação émuito importante na divulgação de informa-ções provenientes de localidades com regi-mes antidemocráticos.

1http://www.amnesty.org2http://www.dhnet.org.br

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Um exemplo é a Associação Revolucio-nária de Mulheres do Afeganistão (RAWA),que publica, na Internet, vídeos mostrandoatrocidades cometidas por fundamentalistasislâmicos. A confecção de vídeos retratandotorturas e abusos de poder, para serem vei-culados pela Internet, tem sido uma práticautilizada por diversas organizações ativistas(SCHEERES, 2003).

A segunda categoria de formas de ati-vismo on-line inclui a organização e mobi-lização, a partir da Internet, para uma deter-minada ação. Existem três formas de mobili-zação partindo do uso da rede (VEGH, 2003,p.74):

1) A rede pode ser usada para convidarpessoas para uma ação off-line, a partirdo envio de e-mails e sites com data, lo-cal e horário de uma determinada mobi-lização (p.74).

Como exemplo é possível citar as mobili-zações on-line para os protestos off-line “an-tiglobalização”, que ocorreram em cidadescomo Seattle, Washington, Praga, Gênova,dentre outras. A partir de listas de e-mailse discussão e da construção de sites especí-ficos para cada protesto3, foi possível obterinformações que possibilitavam a participa-ção em manifestações e eventos, tais comocalendário dos acontecimentos, palestras, fó-runs, mostra de artes e debates, como che-gar aos países e cidades dos protestos, aco-modações, serviço de advogados (caso o ati-vista tivesse algum problema com a políciadurante a manifestação), além de dicas para

3 exemplos de sites construídos para os protes-tos: http://www.a16.org (protesto de Washington);http://www.s26.org (protesto de Praga).

se proteger de gás lacrimogêneo e sprays depimenta.

Ainda assim, em virtude do protesto deSeattle foi criado um site com o objetivode fazer uma cobertura independente dasmanifestações, o Independent Media Center(Indymedia)4 . Além de utilizar a Internetpara organizar manifestações e mobilizar in-divíduos e organizações para a participaçãoem protestos off-line, os ativistas “criaram asua própria mídia” na Internet5.

2) É possível usar a Internet para umaação que normalmente acontece off-line,mas que pode ser mais eficiente se exe-cutada on-line, como mobilizar pessoaspara contatar um representante do con-gresso via e-mail6 (VEGH, 2003, p.74-75).

3) A Internet também pode ser usada paraorganizar e mobilizar pessoas para umaação que só pode ser efetuada on-line,como a coordenação de uma campanhamassiva de envio despamscom objetivode saturar um servidor7.

4http://www.indymedia.org5 Vale ressaltar que a atuação do Indymedia será

discutida de forma mais específica no tópico seguintedo texto.

6 Sobre essa questão, o autor afirma que sua efici-ência reside no mínimo tempo requerido para com-pilar e/ou enviar as mensagens. Afirma ainda que“Wheter the resulting considerably larger number ofelectronic messages makes the same impact on thelegislator as hand-written letters is another question”(p.75). José Eisenberg acredita que esse tipo de açãonão possui impacto, já que os e-mails, assim como ascartas escritas à mão, na maior parte das vezes não sãolidas ou são lidas e respondidas de forma superficialpor assessores. (2001, p.10).

7 Segundo o autor, esse último tipo de açõesde organização/mobilização, muitas vezes, entra

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Um outro exemplo desse tipo de iniciativasão as campanhas on-line de ajuda com cli-ques, que tem como objetivo arrecadar fun-dos para projetos assistenciais. A partir deum clique em determinado banner de umanunciante ou do tempo de permanência dointernauta no site, empresas credenciadas fa-zem doações. No The Hunger Site8 , a cadaclique, patrocinadores e anunciantes doamalimentos, por intermédio da ONU, a paísesque sofrem com o problema da fome. NoBrasil, clicando nos banners do Doe Grátis9

, empresas fazem doações em dinheiro paraprojetos ligados à educação.

Ainda com relação às ações on-line, épossível citar mobilizações on-line por fa-tores que ocorrem por causa da emergên-cia da própria Internet. Um exemplo foramos protestos contra a tentativa do Yahoo dese apropriar de espaços do GeoCities, cons-truídos por cidadãos. Para tanto, iniciaramuma campanha via Web com a criação de umsite10 , banners e slogans (GURAK, LOGIE,2003).

A terceira, e última, categoria para clas-sificação de formas de ativismo digital, se-gundo Vegh, é formada pelas iniciativas deação/reação; mais conhecidas por “hackti-vismo”, ou ativismo “hacker” (VEGH, 2003,p.75). O chamado “hacktivismo” envolve di-versos tipos de atos, como apoio on-line, in-vasão e/ou congestionamento de sites e, atémesmo cibercrimes ou ciberterrorismo.

Esse tipo de iniciativa visa executar açõesdiretas (pela Internet) pró-ativas ou reativas.No caso do Movimento Zapatista, em Chia-

na terceira categoria de formas de ciberativismo:ação/reação. (VEGH, 2003, p.75)

8http://www.hungersite.com9http://www.doegratis.com.br

10http://come.to/boycottyahoo/

pas (México), além da ajuda de grupos emdiferentes países para difundir informações,o movimento contou com o apoio de gru-pos como o Electronic Disturbance Theatre(EDT)11. O EDT coordenou ações contra en-tidades anti-zapatistas, contra os Governosdo México e EUA e contra instituições finan-ceiras na Cidade do México. O objetivo eraencher os servidores de mensagens e deixaras páginas lentas ou fora do ar (VEGH, 2003,p.76).

Esse tipo de ação também foi utilizadopor grupos “antiglobalização”. Os ativis-tas criaram falsos sites da Organização Mun-dial do Comércio12, confundindo participan-tes da conferência da Organização, em Seat-tle. Além disso, ao mesmo tempo em que osprotestos ocorriam nas ruas, o site da OMCera atacado (VEGH, p.77).

Para além dessas questões, a análise dautilização da Internet pelos grupos que cons-tituem o movimento “antiglobalização” ébastante rica como exemplo do ciberati-vismo. A rede é utilizada de diversas formas- como para divulgar informações, organizare mobilizar indivíduos para eventos on-linee off-line, bem como desenvolver iniciativasde “hacktivismo”. Como já foi abordado emoutro trecho do texto, a partir dos protestosde Seattle, os ativistas puderam contar com oIndymedia, oferecendo uma versão dos pro-testos diferente da oferecida pelas mídias demassa; a versão sob a ótica dos próprios par-ticipantes das manifestações. Com o pas-sar do tempo o site se transformou em um

11 O Electronic Disturbance Theatre é um grupo deativistas e artistas que praticam a chamada “desobedi-ência civil eletrônica”.

12 O verdadeiro site é o http://www.wtoseattle.orge o site criado pelos ativistas foi ohttp://www.seattlewto.org

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grande portal, ampliando a sua atuação tantocom relação aos países como aos objetivos eassuntos divulgados.

Desta forma, o Indymedia e, mais especi-ficamente o Centro de Mídia Independente(ramificação brasileira da organização), seconstitui em um exemplo interessante paraa análise do ciberativismo no Brasil. A par-tir das categorias de classificação do cibera-tivismo, bem como das diversas formas deapropriação da Internet pelos ativistas digi-tais, é possível examinar como o CMI utilizaa Internet, sua forma de organização, estru-tura e funcionamento a partir da rede.

3 Centro de Mídia Independentee Internet

Formado por meio de uma iniciativa de ati-vistas e jornalistas a partir dos protestos “an-tiglobalização” de Seattle, em novembro de1999, o Indymedia “é uma rede internaci-onal de produtores independentes de mídiaque busca ser uma fonte alternativa para for-necimento de informações, desvinculada dequalquer interesse corporativo.”13

Conforme outras manifestações “antiglo-balização” foram sendo realizadas, ramifica-ções da organização se formaram e criaramseus próprios sites. Hoje existem cerca de100 ramificações em quase 40 países; todasseguindo os mesmos princípios, política edi-torial, e a mesma forma de organização (ho-rizontal e não-hierárquica).

A ramificação brasileira da organização, oCentro de Mídia Independente, surgiu em ja-neiro de 2001. A iniciativa partiu de ativis-tas que participaram da organização (em SãoPaulo) do protesto contra a reunião do Fundo

13http://www.midiaindependente.org

Monetário Internacional (FMI), que aconte-ceu em 26 de setembro de 2000, em Praga –através da troca de informações por uma listade discussão. Atualmente, no Brasil, existemcoletivos do CMI em São Paulo, Belo Ho-rizonte, Brasília, Caxias do Sul, Fortaleza,Goiânia, Porto Alegre, Rio de Janeiro e Sal-vador. Além disso, há coletivos em formaçãoem Campinas, Cuiabá, Curitiba, Recife, RioGrande, São José dos Campos, Vitória e noABC paulista. Os coletivos são ligados peloportal do CMI, mas alguns, como São Pauloe Fortaleza, possuem suas próprias páginas.

Para que seja possível proferir a análisedo CMI como uma organização de ativismodigital, é pertinente voltar às categorias declassificação do ciberativismo propostas porSandor Vegh.

O propósito do CMI é se constituir comouma fonte alternativa de informações às or-ganizações de mídia corporativa14. Sendoassim, sua razão de ser baseia-se na catego-ria de conscientização / apoio, que englobadifusão de informações (por parte de indi-víduos e organizações independentes) sobrequestões não abordadas, relatadas insufici-entemente, ou de maneira imprópria pelosmeios de comunicação de massa (VEGH,2003, p.72).

Um estudo publicado naColumbia Jour-nalism Reviewque examinou 200 notíciasdas 10 maiores organizações de mídia e jor-nais americanos sobre os protestos de Praga,Quebec, Suécia e Gênova, concluiu que es-ses meios disseminam uma imagem negativados eventos (HYDE, 2002, p.5). Os pro-testos são classificados como “um circo” ou

14 A maioria dos estudos sobre o Indymedia ver-sam sobre o seu papel como “mídia alternativa” (AN-TOUN, 2001; HYDE, 2002; KIDD, 2003; dentre ou-tros)

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“um evento esportivo”, ignorando as reivin-dicações econômicas e políticas que são o in-tuito das manifestações.

Em revistas brasileiras de grande circula-ção como a Veja, também é possível identi-ficar essa imagem negativa dos protestos. Amaioria dos títulos das matérias relacionadasàs manifestações do movimento “antigloba-lização” enfoca a violência e a banalidadedos protestos15.

Durante os protestos de Seattle, que ser-viram como impulso para a criação da orga-nização, os ativistas puderam publicar infor-mações e notícias sobre os acontecimentossob sua ótica. Por meio do site foi possí-vel acompanhar a violência policial contraos manifestantes; fato que não foi relatadopelas mídias de massa. A partir desta inici-ativa, a difusão de informações sobre a óticade manifestantes vem sendo uma constantena atuação do CMI.

Um outro exemplo, desse tipo de ação,foi a cobertura das manifestações estudantispela redução da passagem dos ônibus, ocor-ridas este ano em Salvador. Por intermédiodo site brasileiro foi possível acompanhar in-formações e notícias segundo a ótica dos ma-nifestantes e dos ativistas do coletivo local.

Para obter informações e/ou apoiar a or-ganização - além de visitar o site do CMI- a partir de instruções na própria página,

15 Como exemplo é possível citar os seguintes títu-los:

“Revolução versão 99”.Reportagem sobre os pro-testos de Seattle; Veja 15/02/1999. (vale ressaltar quea letra “A” da palavra revolução é o símbolo do movi-mento anarquista).

“A grande fogueira das bobagens”.Reportagemsobre os protestos de Praga; Veja 4/10/2000.

“Acabou em torta e bate boca”.Reportagem sobreo segundo Fórum Social Mundial em Porto Alegre;Veja 13/02/2002.

indivíduos e organizações podem participarde um chat e fazer parte de listas de discus-são nacionais ou locais, de assuntos geraisou específicos como as listas de tradução eas listas dos grupos de trabalho (áudio, au-xílio técnico, fotografia, impressos e vídeo).Na página também são encontradas informa-ções de como fazer doações e como ser vo-luntário do Centro de Mídia Independente.Para publicar textos, notícias, e disponibili-zar arquivos de áudio e vídeo, o internautaconta com um link (“publique”) que oferecetodas as coordenadas para que a ação sejaefetuada. Vale ressaltar que os textos devemobedecer à política editorial16 e ao regime decopyleft17.

Em se tratando da segunda categoria pro-posta por Vegh, a utilização da Internet paraorganização / mobilização, é possível encon-trar exemplos na atuação interna e externa doCMI.

No que diz respeito à mobilização paraações off-line - o site divulga informações enotícias sobre protestos e outras ações off-line - como as manifestações “antiglobaliza-ção” e as passeatas do Dia de Democratiza-ção da Mídia (17/10). No site também háum link para um calendário internacional deprotestos.

A mobilização para ações que normal-mente ocorrem off-line, mas que podemser mais eficientes se efetuadas on-line,tem como exemplo a publicação de notíciascomo uma relacionada à proibição, por partedo Reitor da Puc-SP, da realização de festas

16http://www.midiaindependente.org/pt/blue/static/policy.shtml

17 Termo criado como oposição ao sistema de co-pright. Pelo copyleft as informações podem ser livre-mente veiculadas e distribuídas, desde que a fonte e oautor sejam citados.

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por estudantes da universidade18. A notíciavinha acompanhada de um modelo de cartaa favor dos estudantes, que deveria ser enca-minhada para o e-mail da reitoria19

Já a organização e mobilização para açõesque só podem ocorrer on-line, é exempli-ficada pela atuação intraorganizacional doCMI. Embora alguns coletivos promovamreuniões presenciais, a maioria das decisõesdo CMI é tomada a partir da Internet, princi-palmente em nível mundial.

A partir das listas e do chat, os membrosdo coletivo selecionam o material que seráexposto na página e discutem outros assun-tos pertinentes a atuação da organização. Osencontros globais acontecem em canais doIRC, de 2 em 2 meses. As discussões, pro-postas e pautas das reuniões têm traduçãosimultânea, pelo menos para inglês e espa-nhol20.

Com relação à última categoria de classifi-cação das formas de ciberativismo, o “hack-tivismo”, o CMI não desenvolve diretamentenenhuma ação de boicote a páginas ou con-gestionamento de servidores. Como suaprincipal forma de atuação é difundir infor-mações, muitas vezes são difundidas notí-cias sobre atos hacktivistas, sendo que algu-mas com links para páginas relacionadas àsações, o que caracteriza uma iniciativa indi-reta de ativismo hacker.

Durante o ataque militar contra o Iraque,ocorrido neste ano, o site do CMI divul-gou a notícia de um protesto hacker contra

18 “Reitoria da Puc-SP abre sindicância contra 15estudantes”.Notícia publicada no site do CMI Brasil,em 3 de novembro de 2003.

19 Disponível em: http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2003/10/266907.shtml

20http://www.midiaindependente.org/faqs

a guerra21. O objetivo era, através de aces-sos múltiplos, travar os servidores das pági-nas dos governos dos EUA e da Inglaterra.A notícia divulgada apresentava informaçõescomo os horários do “ataque”, como proce-der a depender do tipo de conexão, além defornecer um link para a página da organiza-ção da ação.

4 Conclusão

As formas de organização e atuação dediversos seguimentos sociais têm seguidoa lógica de redes, bem como a própriasociedade pode ser classificada enquantotal. Essa transformação morfológica acarretaconseqüências, dentre outras coisas, às atu-ais ações coletivas.

A apropriação das novas tecnologias,como a Internet, por essas organizações emrede faz surgir uma nova forma de ativismo:o ciberativismo. As possibilidades que sur-gem com essa emergência do ativismo digi-tal são inúmeras. A partir da atuação de in-divíduos e grupos em rede e na Rede, é pos-sível ampliar as reivindicações; difundindoinformações e discussões em busca de apoiopara uma causa; organizando e mobilizandopara ações on-line e off-line; invadindo pági-nas de “inimigos” e congestionando servido-res.

Pelo exemplo na organização e atuaçãodo Centro de Mídia Independente é possí-vel identificar que a Internet se constitui umapeça-chave para o novo ativismo. O CMIé uma das organizações ativistas que se ba-

21 “Ocupação virtual contra a guerra do Iraque”.Notícia publicada em 04/04/2003. Disponível em:http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2003/03/251545.shtml

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seiam na rede e utilizam suas inúmeras pos-sibilidades para esse novo tipo de luta social.

Da mesma forma que as outras ramifica-ções da organização, o CMI difunde infor-mações, abre canais para discussão e apoio,organiza e mobiliza para diversos tipos deações, bem como age indiretamente em proldo hacktivismo.

É pertinente ser dito que a partir do surgi-mento de organizações em rede e de sua uti-lização das novas tecnologias, como a Inter-net, é possível pensar também no surgimentode um novo tipo de conflito: a chamada“Netwar” (ARQUILLA, RONFELDT). Se-gundo os autores, o termo designa a série deconflitos e crimes em que os protagonistas seorganizam em redes e utilizam novas tecno-logias para alcançarem seus objetivos, sejameles “bons” ou “ruins” (ARQUILLA, RON-FELDT, 2001).

O lado bom desse conflito é caracterizadopela atuação dos ciberativistas, enquanto olado ruim é marcado por organizações queusam tecnologias com intuito de cometer cri-mes e atos terroristas.

Ainda assim, cabe ressaltar que esse lado“negativo” também pode ser desenvolvidopor uma possível exploração institucional ecorporativa do ciberativismo. Como exem-plo tem-se o desenvolvimento de um site,pela BBC, que visa promover discussões edemais ações ativistas para os cidadãos deLondres22.

As possibilidades são inúmeras. Mas,como defendem autores como Pierre Levy,a tecnologia não pode ser vista como algobom, ruim ou neutro. Então, cabe ao homem

22 “Poder para o povo, via Web”. In: Wired news,política, 31 de outubro de 2003. Disponível em:http://br.wired.com/politica/0,1154,14387,00.html

direcionar a utilização das tecnologias e con-dicionar o seu futuro.

5 Referências

ANTOUN, Henrique. Jornalismo e ativismona hipermídia: em que se pode reconhe-cer a nova mídia. In:Revista Famecos,Porto Alegre, no16, dezembro de 2001.

ANTOUN, Henrique.A multidão e o futuroda democracia na cibercultura.Textoapresentado no GT Comunicação e So-ciedade Tecnológica, no XI encontro daCOMPÓS, no Rio de Janeiro, 2002.

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