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Redes colaborativas e empoderamento feminino: a força das conexões digitais como ferramenta para a educação e trabalho para meninas e mulheres Maíra Medeiros, abril de 2015. Introdução Ao manter o olhar para algumas sociedades ocidentais, como a americana e a maioria das do oeste europeu – e que muitas vezes moldam a visão de outras sociedades ocidentais em desenvolvimento, como a brasileira – poderia-se dizer, superficialmente, que algumas questões relacionadas ao gênero, como a participação na educação (incluindo-se aí primária, secundária e universitária) e no ambiente de trabalho estariam praticamente superadas, excetuando-se problemas como igualdade salarial ou participação em determinadas carreiras acadêmicas, tais como ciência e engenharia, para citar apenas algumas. No entanto, ao observar algumas sociedades orientais, principalmente as com presença majoritária em sua população da crença muçulmana e de países concentrados no Oriente Médio e no norte da África, pode-se verificar que o acesso à educação e ao trabalho remunerado por meninas e mulheres adultas ainda é bastante restrito, quando não proibido – seja por questões culturais, seja por normas legislativas e políticas. Ainda assim, mesmo em regiões sub-desenvolvidas e com acesso precário à recursos como energia elétrica ou mesmo água, já se podem observar movimentos, lideranças e organizações não-governamentais que, por meio de ferramentas tecnológicas, como computadores e dispositivos móveis (tablets e celulares), e conexões via internet, estão liderando mudanças significativas em ambientes inóspitos, ao propiciar possibilidades de educação a distância, empoderamento por meio de trabalho remunerado, e arrecadação de recursos ao redor do globo. Além disso, o alcance da divulgação de tais iniciativas ganha um potencial muito mais poderoso com a rapidez e a distribuição das redes sociais e das mídias digitais. Este artigo se propõe a apresentar os principais meios, propiciados pelo acesso e uso da internet por movimentos organizados, pelos quais são possibilitados o acesso à educação e ao trabalho por mulheres, ou mesmo a ampliação da divulgação das questões de exploração e de cerceamento de direitos femininos relacionados à educação e ao trabalho. Para exemplificar, apresentam-se dois estudos de caso: o Fundo Malala, liderado por Malala Yousafzai, laureada pelo Prêmio Nobel da Paz em 2014, cujo principal objetivo é incentivar meninas de todo o mundo a ir à escola; e as iniciativas lideradas por Khalida Brohi, cujo projeto nasce com o objetivo de proteger mulheres paquistanesas do costume de assassinato por honra, e que migra para uma iniciativa de empoderamento por meio do trabalho remunerado. Palavras-chave: empoderamento feminino, educação, conexão digital, internet, compartilhamento. Acesso à internet, dispositivos móveis e computadores em regiões remotas e sub- desenvolvidas Antes de apresentar os meios digitais disponíveis para a conexão nas regiões e comunidades mencionadas, é importante mencionar a disponibilidade dos recursos necessários para satisfazer com qualidade e velocidade necessárias para os trabalhos desenvolvidos pelos movimentos e comunidades.

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Page 1: Redes colaborativas e empoderamento feminino: a força das conexões digitais como ferramenta para a educação e trabalho para meninas e mulheres

Redes colaborativas e empoderamento feminino: a força das conexões digitais como

ferramenta para a educação e trabalho para meninas e mulheres

Maíra Medeiros, abril de 2015.

Introdução

Ao manter o olhar para algumas sociedades ocidentais, como a americana e a maioria das do

oeste europeu – e que muitas vezes moldam a visão de outras sociedades ocidentais em

desenvolvimento, como a brasileira – poderia-se dizer, superficialmente, que algumas questões

relacionadas ao gênero, como a participação na educação (incluindo-se aí primária, secundária

e universitária) e no ambiente de trabalho estariam praticamente superadas, excetuando-se

problemas como igualdade salarial ou participação em determinadas carreiras acadêmicas, tais

como ciência e engenharia, para citar apenas algumas.

No entanto, ao observar algumas sociedades orientais, principalmente as com presença

majoritária em sua população da crença muçulmana e de países concentrados no Oriente Médio

e no norte da África, pode-se verificar que o acesso à educação e ao trabalho remunerado por

meninas e mulheres adultas ainda é bastante restrito, quando não proibido – seja por questões

culturais, seja por normas legislativas e políticas.

Ainda assim, mesmo em regiões sub-desenvolvidas e com acesso precário à recursos como

energia elétrica ou mesmo água, já se podem observar movimentos, lideranças e organizações

não-governamentais que, por meio de ferramentas tecnológicas, como computadores e

dispositivos móveis (tablets e celulares), e conexões via internet, estão liderando mudanças

significativas em ambientes inóspitos, ao propiciar possibilidades de educação a distância,

empoderamento por meio de trabalho remunerado, e arrecadação de recursos ao redor do

globo. Além disso, o alcance da divulgação de tais iniciativas ganha um potencial muito mais

poderoso com a rapidez e a distribuição das redes sociais e das mídias digitais.

Este artigo se propõe a apresentar os principais meios, propiciados pelo acesso e uso da internet

por movimentos organizados, pelos quais são possibilitados o acesso à educação e ao trabalho

por mulheres, ou mesmo a ampliação da divulgação das questões de exploração e de

cerceamento de direitos femininos relacionados à educação e ao trabalho.

Para exemplificar, apresentam-se dois estudos de caso: o Fundo Malala, liderado por Malala

Yousafzai, laureada pelo Prêmio Nobel da Paz em 2014, cujo principal objetivo é incentivar

meninas de todo o mundo a ir à escola; e as iniciativas lideradas por Khalida Brohi, cujo projeto

nasce com o objetivo de proteger mulheres paquistanesas do costume de assassinato por honra,

e que migra para uma iniciativa de empoderamento por meio do trabalho remunerado.

Palavras-chave: empoderamento feminino, educação, conexão digital, internet,

compartilhamento.

Acesso à internet, dispositivos móveis e computadores em regiões remotas e sub-

desenvolvidas

Antes de apresentar os meios digitais disponíveis para a conexão nas regiões e comunidades

mencionadas, é importante mencionar a disponibilidade dos recursos necessários para

satisfazer com qualidade e velocidade necessárias para os trabalhos desenvolvidos pelos

movimentos e comunidades.

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RIBEIRO, MERLI e SILVA (2012) expõem a extensão do problema da acessibilidade digital:

O acesso equitativo e qualitativo à Internet se tornou hoje um

horizonte a ser alcançado por repercutir diretamente na circulação

da informação, do conhecimento e da cultura. Não por acaso, a

universalização da banda larga tem sido objeto de leis, de programas

governamentais e uma preocupação amplamente reconhecida por

organismos multilaterais.1

Entre os recursos imprescindíveis para a conexão digital, podemos citar: energia (sendo ela

elétrica, solar, ou quaisquer outras que forneçam combustível para o carregamento de baterias

para o funcionamento dos dispositivos digitais, como computadores, notebooks, tablets e

celulares); acesso aos dispositivos, seja por sua disponibilização a preços acessíveis para o nível

de renda destas populações, seja por locação ou ainda doação e disponibilização de centros

gratuitos para acesso aos dispositivos; e acesso à internet – o que pode significar problemas de

acesso à áreas remotas (questões geográficas), falta de investimento nestas regiões pelas

empresas provedoras de serviços, devido à baixa atratividade de mercado, e ainda questões

culturais, religiosas e políticas, que podem coibir o acesso ou mesmo proibi-lo inteiramente.

Segundo dados do Facebook2, apenas 2,7 bilhões de pessoas em todo o mundo estão

conectadas à internet – ou 1/3 de toda a população global. Ou seja: 2/3 da população de todo o

mundo ainda não tem acesso à internet. Ainda segundo dados do Facebook, a taxa de adesão à

internet cresce globalmente em 9% ao ano – índice considerado baixo, considerando-se o

volume de investimentos em tecnologia, e o número de pessoas ainda sem acesso.

Ainda sobre dados de acesso à internet, o gráfico abaixo apresenta o índice de penetração da

internet em alguns países em desenvolvimento:

Figura 1. Usuários de internet em países emergentes. Fonte: UIT, acessado em

http://www.caminhosdabandalarga.org.br/2012/11/capitulo-7/, em 22/04/2015.

Ao avaliarmos o poder que o acesso digital traz a sociedades restringidas deste direito, é

consideravelmente importante avaliar a problemática criada a partir destas restrições: a

chamada “exclusão digital”, associada à crescente importância das Tecnologias de Informação e

Comunicação (TIC’s) no desenvolvimento econômico dos países, torna ainda mais iminente o

risco de marginalização dos grupos excluídos das práticas educativas. Assim, um novo prisma da

1 RIBEIRO, MERLI e SILVA (2012). Exclusão digital no Brasil e em países emergentes: um panorama da primeira década do século XXI. Acessado em http://www.caminhosdabandalarga.org.br/2012/11/capitulo-7/, em 22/04/2015. 2 https://newsroom.fb.com/news/2013/08/technology-leaders-launch-partnership-to-make-internet-access-available-to-all/, acessado em 22/04/2015. Technology Leaders Launch Partnership to Make Internet Access Available to All. Datado de 21/08/2013.

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exclusão social é desenvolvido, gerado a partir da incapacidade de participar da sociedade da

informação – o que significa exclusão do acesso às tecnologias e aos meios de aprendizado para

desenvolver as habilidades necessárias ao uso das novas ferramentas digitais. (RIBEIRO, MERLI

e SILVA, 2012 e CLARO, 2011).

Entre as iniciativas desenvolvidas que buscam minimizar o problema do acesso digital, podem-

se citar duas, lideradas pelos principais atores do mercado da internet hoje: Facebook, entre as

redes sociais, e Google, entre as ferramentas de busca.

A iniciativa internet.org, liderada pelo Facebook, tem como objetivo tornar o acesso à internet

possível aos 2/3 da população global que ainda não estão conectadas. O projeto tem a parceria

de empresas de tecnologia como Ericsson, MediaTek, Nokia, Opera, Qualcomm e Samsung, que

juntas unirão esforços para desenvolver práticas, compartilhar conhecimentos e mobilizar a

indústria e governos para tornar o mundo mais digital. A iniciativa conta ainda com organizações

não-governamentais, acadêmicos e pesquisadores. Os três principais desafios desta iniciativa

são: tornar o acesso à internet economicamente mais acessível, usar os dados de maneira mais

eficiente, e dar suporte para o desenvolvimento de novos negócios que tenham como foco

tornar dispositivos e acesso mais acessíveis. Ou seja, em resumo, teríamos a redução de custos

e de dados, e a facilitação de novos negócios sustentáveis.3

Um dos projetos já em teste desta iniciativa é um drone solar, que foi construído para facilitar o

acesso à Internet em áreas remotas. O protótipo, batizado de "Aquila", foi realizado no Reino

Unido. Segundo Mark Zuckerberg, CEO e fundador do Facebook, "dispositivos como este

ajudarão a conectar o mundo todo, pois atendem a um custo acessível 10% da população

mundial que vive em comunidades isoladas, sem infraestrutura de Internet existente”. O objetivo

é manter-se em cima de uma área por vários meses, e transmitir o serviço de Internet.4

A iniciativa do Google, batizada de Loon, é semelhante, pois trata de oferecer acesso digital para

áreas remotas, mas a partir de balões. Segundo o site do projeto, o Loon é uma rede de balões

que viaja pelo espaço, para conectar pessoas em áreas rurais e remotas, ajudar a preencher

falhas de cobertura e ajudar a recuperar a conexão com a Internet em áreas que passaram por

desastres. A tecnologia do sistema funciona assim:

Os balões do Projeto Loon flutuam na estratosfera, a uma altura duas

vezes maior que a de aeronaves e fenômenos meteorológicos. Há

várias camadas de vento na estratosfera, cada uma com variações

em direção e velocidade. Os balões Loon vão para onde são

necessários, subindo ou descendo por uma camada de vento que

sopre na direção desejada. Cada balão pode fornecer conectividade

a uma área de aproximadamente 40 km de diâmetro no solo, usando

uma tecnologia de comunicação sem fio chamada LTE. Por meio de

parceria com empresas de telecomunicações que compartilham o

espectro da rede celular, permitimos que as pessoas se conectem à

rede do balão diretamente dos seus smartphones e outros

dispositivos com suporte à LTE. Os balões retransmitem o tráfego

3 https://newsroom.fb.com/news/2013/08/technology-leaders-launch-partnership-to-make-internet-access-available-to-all/,

acessado em 22/04/2015. Technology Leaders Launch Partnership to Make Internet Access Available to All. Datado de 21/08/2013. 4http://www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/tecnologia/2015/03/27/interna_tecnologia,568386/facebook-faz-primeiro-teste-com-drone-para-prover-internet.shtml, acessado em 22/04/2015. Facebook faz primeiro teste com drone para prover Internet. 27/03/2015.

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sem fio dos telefones celulares e outros dispositivos de volta para a

Internet global usando links de alta velocidade.5

O Projeto Loon testou sua mais nova tecnologia de rádio LTE em uma escola rural brasileira, Linoca

Gayoso, que nunca tinha tido acesso à Internet antes.

Figuras 2, 3 e 4. Balões do Projeto Loon. Fonte: http://www.google.com/loon/where/, acessado em 22/04/2015.

Para entender a importância do acesso digital para o crescimento e desenvolvimento das

economias, podemos mencionar um estudo realizado pela consultoria Deloitte, intitulado “O

Valor da Conectividade (Value of Connectivity, em seu título original), divulgado em fevereiro de

2014. Este documento traz dados que indicam que, com a expansão do acesso à internet em

países em desenvolvimento a níveis vistos hoje em economias desenvolvidas, seria possível

incrementar a economia destes locais em 25%, gerando US$ 2,2 trilhões no PIB, e mais de 140

milhões de novos empregos, e tirando 160 milhões de pessoas da pobreza. Isso se deve

principalmente ao acesso a informações de nutrição, saúde e prevenção de doenças, e a

ferramentas básicas de saúde, serviços financeiros e educacionais.6

Figura 5. Impactos econômicos da extensão da penetração da internet por região. Fonte: http://internet.org/press/value-of-connectivity, acessado em 22/04/2015.

5 http://www.google.com/loon/, acessado em 22/04/2015. O que é o projeto Loon? 6 http://internet.org/press/value-of-connectivity, acessado em 22/04/2015. Value of Connectivity, 23/02/2014.

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Economia da informação e compartilhamento: ambientes de abundância de conhecimento e

distribuição ampliada (redes distribuídas) – peer to peer

“(...) O Homo communicans é um ser sem interior e sem corpo, que

vive em uma sociedade sem segredo; um ser totalmente voltado para

o social, que só existe através da troca e da informação, em uma

sociedade tornada transparente graças às novas “máquinas de

comunicação”. (BRETON, 1995).

Em sociedades onde há o cerceamento e restrições de acesso à informação e ao conhecimento

– no todo ou em partes, no caso de proibições direcionadas exclusivamente ao gênero feminino

– o papel da comunicação, e essencialmente da capacidade de distribuição destas comunicações

a regiões remotas, a custos consideravelmente reduzidos, quando comparados a formatos

tradicionais, como o impresso, torna-se fundamental para o empoderamento e educação de

camadas da população que, de outra forma, se manteriam isoladas e empobrecidas.

Breton (1995) reforça a questão da transparência como item fundamental na nova sociedade

de comunicação: “(...) não há mais um nível onde agiria o indivíduo e um nível que seria o da

sociedade: um e outro se encontram fundidos em um laço social moderno unitário. É a

transparência que permite essa fusão: graças à comunicação, o homem é transparente à

sociedade, e a sociedade é transparente ao homem. Os modernos meios de comunicação

fundarão sua política de expansão sobre o tema: nada, nenhuma parte, deve permanecer em

segredo.”. Assim, com a transparência considerada como termo máximo, é possível que “(...) a

sociedade se autorregule, graças à retroação e ao caráter aberto das vias de comunicação” e

ainda que “pequenas comunidades de vida possuem as capacidades reguladoras mais

importantes” (BRETON, 1995). Então, torna-se possível a realização de iniciativas nascidas a

partir do uso de um ou de poucos computadores em áreas remotas ou miseráveis, e que sejam

locais, autorreguladas, sem hierarquias verticalizadas – e que ilustram na prática o poder desta

nova sociedade onde a comunicação é o verdadeiro valor.

Considerando então valores tais como transparência e autorregulação, podemos analisar

porque as iniciativas comunitárias que tem acesso a conexões digitais conseguem obter níveis

de sucesso e permanência consideravelmente mais altos do que iniciativas similares sem tais

conexões. Fica evidente que a comunicação transparente e sem barreiras permite que os

projetos possam espalhar e compartilhar suas mensagens a um número imensamente maior de

pessoas e regiões, a custos praticamente zero. A eliminação de barreiras geográficas, aliada ao

empoderamento trazido pela autorregulação das iniciativas, permite que praticamente

quaisquer projetos possam ter graduações consideráveis de êxito, desde que seus membros

tenham engajamento e dedicação à causa, eliminando-se barreiras de filtros, censura ou ainda

de custos proibitivos.

Entre os elementos importantes a serem considerados para o sucesso de tais iniciativas,

devemos considerar o ambiente nos quais estão inseridas, regradas basicamente em um cenário

de economia da informação, que conta, entre outras características, com alguns elementos

fundamentais: um ambiente de abundância da informação (uma vez conectado, o indivíduo tem

acesso a um volume de dados que permitem pesquisas, trocas de informações, buscas,

verificação de dúvidas, comparações com situações similares em outras regiões do mundo, etc);

a possibilidade do compartilhamento – peer to peer – o que permite processos produtivos entre

pares e colaboração voluntária; processos de reprodução a custos reduzidos; abertura para

novas possibilidades de leis de direitos autorais que permitam ampliação da acessibilidade dos

dados a custos reduzidos ou zero; financiamento coletivo (permitindo que a captação de

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recursos para projetos seja mais efetiva e tenha maior alcance); a democratização das

ferramentas de comunicação; e, principalmente, a ampliação do acesso à informação e seu

compartilhamento.

Quando mencionamos a importância da conexão digital para o empoderamento de

comunidades, esse valor da web reside, essencialmente, em sua capacidade de proporcionar

acesso imediato à informação (SHAPIRO e VARIAN, 1999). Este é o valor essencial para as

populações que mencionamos no início do artigo: mulheres e meninas, isoladas ou proibidas de

irem à escola ou de realizarem trabalho remunerado, permanecem presas a um sistema onde a

ignorância e a falta de informação prevalecem. Segundo dados do Fundo Malala7, há hoje

aproximadamente 62 milhões de meninas fora da escola, sendo que, entre as que estudam, a

média de permanência nos bancos escolares é de apenas 3 anos. O acesso à informação e à

educação, possíveis a distância e a custos relativamente menores via internet, permitiriam a

ampliação da educação de comunidades com acesso restrito a este direito.

Figura 6. Média em anos de permanência na escola por país. Fonte: http://community.malala.org/12-years-free-

education-1026865390.html, com dados da Unesco. Acessado em 23/04/2015.

Além do acesso, outro elemento importante para estas populações é a democratização das

ferramentas de produção e da distribuição. Segundo Chris Anderson8, “o melhor exemplo disso

é o computador pessoal, que pôs todas as coisas, desde máquinas de impressão até os estúdios

de produção de filmes e músicas, nas mãos de todos”. Com um computador pessoal, ou ainda

um dispositivo móvel (como um celular ou tablet), todos podem ser produtores; com conexão à

Internet, todos podem ser distribuidores – sem ter a necessidade da intermediação de empresas

produtoras e distribuidoras, barateando o processo e permitindo o acesso aos conteúdos a um

maior número de pessoas.

Em continuidade aos elementos que permitem a ampliação de acesso à educação e ao trabalho

por meio dos meios digitais, devemos mencionar os processos peer to peer (ou P2P). Segundo

BAUWENS9,

(...) o P2P designa todos os processos que visam aumentar a

participação generalizada de participantes equipotenciais. (...) [os

processos P2P] produzem valor de uso através da cooperação livre

entre produtores que tem acesso a capital distribuído: este é o modo

de produção P2P, um ‘terceiro modo de produção’, diferente da

produção com fins lucrativos e da produção pública efetuada por

companhias detidas pelo estado. O seu produto não reside num valor

7 http://www.malala.org/#main/home/, acessado em 23/04/2015. 8 ANDERSON, Chris. A Cauda Longa. 5 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006, p. 52. 9 BAUWENS, Michel. A Economia Política da Produção entre Pares. Disponível: http://p2pfoundation.net/A_Economia_Pol%C3%ADtica_da_Produ%C3%A7%C3%A3o_entre_Pares

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de troca destinado ao mercado, mas num valor de uso dirigido a uma

comunidade de utilizadores”.

Outro aspecto importante do P2P é que, neste modo de produção, cada indivíduo contribui de

acordo com as suas capacidades e vontades, e retira de acordo com as suas necessidades. Não

há reciprocidade obrigatória associada. Além disso, um fator que contribui radicalmente para o

sucesso de iniciativas comunitárias é o fato de que “os processos P2P ocorrem em redes

distribuídas. As redes distribuídas são redes em que os agentes autônomos podem determinar

livremente o seu comportamento e ligações sem o intermédio obrigatório de centros. (...) as

redes distribuídas não são o mesmo que redes descentralizadas, nas quais os centros são

obrigatórios. O P2P baseia-se num poder distribuído e no acesso distribuído aos recursos

(BAUWENS)10. Assim, fica evidente que a autonomia dos processos e sua dinâmica voluntária

contribuem de maneira essencial para o êxito das iniciativas baseadas em processos P2P.

Devemos ainda mencionar os aspectos relacionados ao financiamento coletivo (ou

crowdfunding). Tendo como base estruturas referenciadas no P2P, projetos que captam

recursos por meio de crowdfunding apresentam maior facilidade de captação, por permitirem a

qualquer pessoa (sendo física ou jurídica) a realizarem a doação, sendo ela de quaisquer valores,

ou valores previamente estipulados (mas, que de maneira geral, apresentam valores mínimos

bastante acessíveis). Segundo a pesquisa “Retrato Financiamento Coletivo Brasil 2013/2014”11,

74% das pessoas que fazem o financiamento coletivo acontecer no Brasil ganham até R$

6.000,00 por mês. Outro dado interessante refere-se à arrecadação: 25% dos realizadores dos

projetos financiados arrecadaram entre R$ 10 a 20 mil, e outros 25% arrecadaram entre R$ 20

a 50 mil. Ou seja: os doadores são pessoas com faixa de renda da classe média, e o valor

arrecadado total é consideravelmente baixo, quando comparado a outros projetos bancados

pela iniciativa privada ou governos. Um dado relevante que é apresentado pela pesquisa é um

dos fatores que são considerados importantes nos projetos financiados: a transparência –

possibilitada de maneira abrangente pelos recursos digitais. 72% das pessoas disseram que a

transparência é fator fundamental para decidir apoiar um projeto, e ainda 64% só apoiam

projetos que apresentem o uso da verba de forma transparente.

Estudos de caso: Fundo Malala e Khalida Brohi

Fundo Malala

Malala Yousafzai é uma ativista educacional paquistanesa, que fundou o Fundo Malala, cujo

objetivo é empoderar meninas por meio de educação secundária de qualidade, a fim de inspirar

mudanças positivas nas suas comunidades. Hoje, o Fundo Malala atua em países como o

Paquistão, Nigéria, Jordânia, Líbano, Serra Leoa e Quênia, além de defender campanhas de

educação femininas ao redor do mundo.

Malala ficou conhecida mundialmente após ser laureada com o Prêmio Nobel da Paz em 2014,

como reconhecimento à sua luta pela defesa dos direitos pela educação de meninas em seu

país. Ela foi baleada em 2012 por um ativista talibã no rosto no trajeto à escola em sua região

natal, o Vale do Swat, no Paquistão.12

10 BAUWENS, Michel. A Economia Política da Produção entre Pares. Disponível: http://p2pfoundation.net/A_Economia_Pol%C3%ADtica_da_Produ%C3%A7%C3%A3o_entre_Pares 11 http://pesquisa.catarse.me/, acessado em 23/04/2015. 12 Com base em informações retiradas de http://www.malala.org/#main/home/, acessado em 23/04/2015.

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Entre os aspectos importantes a serem considerados neste estudo, é que o Fundo Malala utiliza

intensamente os meios digitais para a divulgação de sua causa, e para captar recursos para seus

projetos. Entre os meios digitais mantidos pelo Fundo estão um site (www.malala.org), onde é

possível conhecer a história de Malala, os objetivos do Fundo, e os projetos apoiados; um blog

(http://community.malala.org/), onde há atualizações periódicas sobre as atividades do Fundo

e de Malala, além de histórias sobre os apoiadores e doadores do Fundo, e mantém contas em

algumas redes sociais, como o Facebook (https://www.facebook.com/MalalaFund), Twitter

(https://twitter.com/MalalaFund), YouTube (https://www.youtube.com/user/MalalaFund) e

Google+ (https://plus.google.com/109709154395371226419/posts). A exploração de todos

estes recursos de comunicação digitais, bem como a atualização constante nas redes sociais com

notícias e projetos defendidos, permitem uma distribuição altamente amplificada das

informações, possibilitando a maior difusão da causa do Fundo, e também uma melhoria

considerável nas capacidades de captação de recursos e de voluntários para os projetos.

Khalida Brohi

Khalida Brohi, paquistanesa, ativista e empreendedora, é fundadora e diretora da Sughar

Empowerment Society. A instituição provê educação, competências e oportunidades de trabalho

para empoderar mulheres de regiões tribais do Paquistão, para que possam ganhar papéis de

liderança em suas casas e comunidades.13

A partir de uma iniciativa nascida a partir do uso de um computador em sua aldeia, Brohi lidera

um projeto que nasce com o objetivo de proteger mulheres paquistanesas do costume de

assassinato por honra, e que migra para um belo projeto de empoderamento.

Pelo Facebook, Brohi iniciou a campanha chamada WAKE UP, "Acorda", contra os crimes de

honra. A campanha se tornou enorme em poucos meses, e a mídia se conectou com a

campanha.

Em 2013, sua instituição lançou a Sughar Hub, em parceria com o site TripAdvisor, que consistia

em uma sala de cimento no meio de uma aldeia, e para onde foram convidadas organizações

para trabalhar lá. Foi criada uma plataforma para que as organizações sem fins lucrativos

pudessem abordar outras questões que a Sughar não aborda, e que fosse um lugar fácil para dar

treinamentos, usar como uma escola agrícola, ou mesmo como um mercado. Até agora, 900

mulheres já foram auxiliadas, em 24 aldeias do Paquistão.

A instituição Sughar dispõe de um site (http://www.sughar.org/), um blog

(http://sugharwomen.blogspot.com.br/ - onde é possível fazer doações on-line), e participa de

algumas redes sociais, como o Facebook (https://www.facebook.com/SugharWomen). Além

disso, Brohi divulga o projeto nos meios digitais, como por exemplo em sua palestra publicada

no TED

(http://www.ted.com/talks/khalida_brohi_how_i_work_to_protect_women_from_honor_killi

ngs/transcript?language=en).

13 Com base em dados acessados em http://www.ted.com/speakers/khalida_brohi, acessado em 23/04/2015.

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