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Vem, De Trecho em Trecho O período de gestação de O Trecheiro A ideia de um jornal de rua, de fato, surgiu alguns anos antes de sua materialização. Era parte mais ampla de um projeto de comunicação com, para e a serviço da população de rua. A administração do prefeito Jânio Quadros (1985 a 1988) foi um período terrível para as pessoas em situação de rua na cidade de São Paulo. Por meio das chamadas “Operações Limpeza” no centro de São Paulo, o prefeito enviava sistematicamente carros-pipas com jatos de água para limpar ou afastar a população do centro da cidade. Os barracos de madeira e papelão, na maioria das vezes, eram destruídos e incendiados. A, então, recém- criada Guarda Municipal foi motivo de muitas contendas e confrontos policiais. Por outro lado, a indignação tomava conta de indivíduos, comunidades e organizações e fazia suscitar iniciativas de solidariedade e proximidade para com a população de rua. A truculência do poder público colocava em evidência a visão desfocada como grande Arlindo Dias IMPRESSO 20 anos de comunicação da rua Rede Rua de Comunicação - Rua Sampaio Moreira, 110 – Casa 9 – Brás – 03008–010 São Paulo SP – Fone - 3227-8683 - 3311-6642 - [email protected] Ano XX Agosto 2011 - Nº 200 - Edição Comemorativa Nesta edição comemorativa dos 20 anos, agradecemos aos leitores e colaboradores à Paulus Editora e aos que lutam pela dignidade e respeito das pessoas em situação de rua Entra na roda da cidadania parte dos meios de comunicação tratava o tema. Na ocasião, Alderon Costa, um dos fundadores do jornal e atual editor tinha o hábito frequente de ir às ruas, circular pela cidade, dialogar com as pessoas e documentar por meio de fotos e vídeos a realidade vivida por essa população. Uma das primeiras produções foi um slide (hoje powerpoint) de conscientização que intercalava imagens e o conhecido poema de Manuel Bandeira intitulado “O Bicho”. Vi ontem um bicho na imundície do pátio catando comida entre os detritos. Quando achava alguma coisa, não examinava nem cheirava: engolia com voracidade. O bicho não era um cão, não era um gato, não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem. A eleição de 1988 trouxe novos ventos para a cidade. Pela primeira vez uma mulher assumia a direção da segunda maior cidade da America Latina, tornando-se a primeira e pioneira em termos de projeção internacional. Luiza Erundina de Souza (1989-1992), migrante nordestina, assumia o poder com grande sensibilidade social e aberta a projetos de cidadania para a população de rua. Para a Supervisão Regional Sé/ Lapa da Secretaria do Bem- Estar Social foi convocada Cleisa Moreno Maffei Rosa que, de modo inteligente soube articular poder público, ONGs e movimentos sociais. De uma parceria entre poder público e ONG ligada à Igreja Católica nascia o Centro de Documentação e Comunicação dos Marginalizados (CDCM), projeto de comunicação a serviço da população de rua de São Paulo. Os primeiros dias de trabalho geraram um pequeno folheto batizado com o nome de O Trecheiro. Hoje, mais maduro e com uma fisionomia diferenciada ele entra em sua fase adulta. É apenas o começo de uma história a ser contada. Parabéns ao O Trecheiro! Há, ainda, muito trecho a percorrer! Fotos: Alderon Costa/Rede Rua Foto: Arquivo/Rede Rua

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Vem,

De Trecho em Trecho O período de gestação de O Trecheiro

A ideia de um jornal de rua, de fato, surgiu alguns anos antes de sua materialização. Era parte mais ampla de um projeto de comunicação com, para e a serviço da população de rua.

A administração do prefeito Jânio Quadros (1985 a 1988) foi um período terrível para as pessoas em situação de rua na cidade de São Paulo. Por meio das chamadas “Operações Limpeza” no centro de São Paulo, o prefeito enviava sistematicamente carros-pipas com jatos de água para limpar ou afastar a população do centro da cidade. Os barracos de madeira e papelão, na maioria das vezes, eram destruídos e incendiados. A, então, recém-criada Guarda Municipal foi motivo de muitas contendas e confrontos policiais.

Por outro lado, a indignação tomava conta de indivíduos, comunidades e organizações e fazia suscitar iniciativas de solidariedade e proximidade para com a população de rua.

A truculência do poder público colocava em evidência a visão desfocada como grande

Arlindo Dias

Impresso

20 anos de comunicação da rua

Rede Rua de Comunicação - Rua Sampaio Moreira, 110 – Casa 9 – Brás – 03008–010 São Paulo SP – Fone - 3227-8683 - 3311-6642 - [email protected]

Ano XX Agosto 2011 - Nº 200 - Edição Comemorativa

Nesta edição comemorativa dos 20 anos, agradecemos aos leitores e colaboradores à

Paulus Editora e aos que lutam pela dignidade e respeito das pessoas em situação de rua

Entra na roda da cidadania

parte dos meios de comunicação tratava o tema.Na ocasião, Alderon Costa, um dos fundadores do jornal e atual editor tinha o hábito frequente de ir às ruas, circular pela cidade, dialogar com as pessoas e documentar por meio de fotos e vídeos a realidade vivida por essa população.

Uma das primeiras produções foi um slide (hoje powerpoint) de conscientização que intercalava imagens e o conhecido poema de Manuel Bandeira intitulado “O Bicho”.

Vi ontem um bicho na imundície do pátio catando comida entre os detritos. Quando achava alguma coisa, não examinava nem cheirava: engolia com voracidade. O bicho não era um cão, não era um gato, não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem.

A eleição de 1988 trouxe novos ventos para a cidade. Pela primeira vez uma mulher assumia a direção da segunda maior cidade da America Latina, tornando-se a primeira e pioneira em termos de projeção internacional. Luiza Erundina de Souza (1989-1992), migrante nordestina, assumia o poder com

grande sensibilidade social e aberta a projetos de cidadania para a população de rua. Para a Supervisão Regional Sé/Lapa da Secretaria do Bem-Estar Social foi convocada Cleisa Moreno Maffei Rosa que, de modo inteligente soube articular poder público, ONGs e movimentos sociais.

De uma parceria entre poder público e ONG ligada à Igreja Católica nascia o Centro de Documentação e Comunicação dos Marginalizados (CDCM), projeto de comunicação a serviço da população de rua de São Paulo.

Os primeiros dias de trabalho geraram um pequeno folheto batizado com o nome de O Trecheiro. Hoje, mais maduro e com uma fisionomia diferenciada ele entra em sua fase adulta. É apenas o começo de uma história a ser contada. Parabéns ao O Trecheiro! Há, ainda, muito trecho a percorrer!

Fotos: Alderon Costa/Rede Rua

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o Trecheiro Notícias do Povo da Rua

Rua Sampaio Moreira,110 - Casa 9 - Brás - 03008-010 - São Paulo - SP - Fone: (11) 3227-8683 3311-6642 - Fax: 3313-5735 - www.rederua.org.br - E-mail: [email protected]

REDE RUA DE COMUNICAÇÃO

Conselho editorial:Arlindo Dias editorAlderon CostaMTB: 049861/0157

equipe de redação: Alderon CostaCleisa RosaDavi AmorimMaria Carolina FerroRenata Bessi

revisão: Cleisa Rosa

FotograFia: Alderon Costa diagramação: Fabiano Viana

ApoioArgemiro Almeida

Andreza do Carmo Karina C. AragãoVagner CarvalhoJoão M. de Oliveira

impressão: Forma Certa5 mil exemplares

O Trecheiro pag 02 Agosto de 2011

Um sonho se concretizou As pessoas que estão em situação de rua pensam, sentem,

falam, sonham e escrevem, contrariamente ao que a sociedade pensa a respeito delas: “não-gente”, excluídas, decaídas, supérfluas, pessoas que devem ser retiradas da frente ou mesmo exterminadas.

Na realidade, a concentração de renda, o desemprego, a violência, a fome, a mortalidade infantil, a miséria são resultados do desenvolvimento econômico que leva grupos sociais a se incluírem na sociedade dessa forma perversa.

Preconceitos, discriminações, desconhecimento afastam grupos sociais diferentes e quebrar barreiras, estabelecer diálogos, abrir debate sempre estiveram presentes dentre as diversas inquietações do jornal no sentido de fazer valer o protagonismo das pessoas em situação de rua. Oficinas de redação nos serviços, convites pessoais, cursos e outras tentativas foram feitas.

No entanto, após o massacre de agosto de 2004, nasceu a seção “Direto da Rua” como expressão do sonho do jornal O Trecheiro de possibilitar que as pessoas que estão ou estiveram em situação de rua pudessem se expressar diretamente com o leitor sem intermediários.

O primeiro a escrever foi o Sebastião Nicomedes Oliveira que contribuiu de abril de 2005 a dezembro de 2008. O espaço foi consolidado e outros puderam dar continuidade.

Agradecemos a todos os companheiros que contribuíram diretamente escrevendo nesta seção: Átila Robson Pinheiro (SP), Ednaldo Novaes (em memória), Jonas Ferreira Bahia (SP), Maciel Silva (RJ), MNPR Paraná, Salvador d´Acolá (SP), Samuel Rodrigues (MG), Sebastião Nicomedes Oliveira e Tula Pilar Ferreira (SP).

O Trecheiro faz parte da nossa caminhada. O durante e o pós-rua.Para mim é uma satisfação

tremenda fazer parte da família Rede

Rua e do jornal onde tivemos o prazer

de assinar as primeiras temporadas da

coluna DIRETO DA RUA. São tantas

emoçõessssssssssss. Sebastião Nicomedes Oliveira, o Tião

O jornal O Trecheiro contribui para contar a minha trajetória e agrega informações de vários movimentos sociais na mesma luta social, a busca por direitos, as discriminações sofridas, as políticas públicas intersecretariais e transversais para a população de rua nos três níveis de poder. Espero que ainda... possamos ler no jornal O Trecheiro, notícias sobre a diminuição da violência contra a população

de rua por parte de agentes da segurança pública que, impunemente, seguem violando direitos e destruindo vidas.Átila Robson Pinheiro

Meus sinceros agradecimentos pela edição de julho de 2006, com

uma linda foto minha feita pelo Alderon, na capa, por ocasião da

viagem à África do Sul para participar da Homeless World Cup

na cidade do Cabo. Foi difícil por ser uma mulher em meio a nove

homens e a maioria de nós em situação de vulnerabilidade social.

Vivências me ensinaram que em momentos difíceis nunca devemos

virar as costas nem para os outros, nem para os problemas. É

preciso saber resolver e tomar atitudes que beneficiam o grupo.

Parabenizo o O Trecheiro pelos cuidados com nossos irmãos

em situação de rua, denunciando maus-tratos e preconceitos.

Agradeço por publicar meus textos, fotos em momentos de luta e

participação que fizeram melhorar minha vida. Carinhosamente.

Tula Pular Ferreira

A comemoração dos 20 anos só foi possível pela dedicação e empenho de cada um desses colaboradores que todos os meses em mutirão produziram notícias do povo da rua.

Adolar Acácio Brun, Alderon Pereira da Costa, Ana Rosa Carrara, Ana Silvia Puppim, Analu Braggio, Andreza do Carmo, Anselmo R. Ribeiro, Antonio Natário, Argemiro F. de Almeida, Arlindo Pereira Dias, Carlos H. F. Carvalho, Carlos L. Barbosa, Cesar Edgardo P. Moreno, Cleisa Moreno Maffei Rosa, Cloves Reis da Costa, Daniela Santos Reis, Davi Amorim, Denise Katchuian do Gnini, Dirk Kramer, Dominic Wimmer, Edna Martins, Erika Ceconi, Fabiano Silva Viana, Fábio Pires, Fernanda Pompeu, Flaviano Feitosa, Gilma Beltrão, Gilmar F. Dutra, Glaucia das Neves, Itamar R. Paulino, João Carlos Gomes, João Marinho de Oliveira, Joelma Couto, José Luiz P. Silva, Karina C. Aragão, Kátia Regina de O. Mattos, Kenia Rezende, Laudecir da Silva, Luciney Martins, Lurdes Sánchez, Marcelo Farias, Maria Amélia C. F. da Costa, Maria Carolina Ferro, Maria de Lourdes da Maia, Maria Isabel da Silva, Merabi Sant’Ana, Moisés Moraes, Nelson Augusto Tyski, Nilsa Alves Pereira,Nilton Viana, Osmar G. Koxne, Ralf Voss, Regina Reinart, Renata Bessi, Ronaldo Lima Brandão, Rose Barboza, Sandoval Luiz, Sandra Stalinski, Simon Neumann, Simone Santos, Stephan Neumann, Tegmar de Morais, Thomas Haunold, Vagner P. Carvalho, Valéria Cristina Gomes.

Ainda sou um Trecheiro!

Direto de Lisboa Você nem imaginam qual foi a minha emoção ao perceber que O Trecheiro vai completar 20 anos e chega ao seu número 200. Para mim, foi uma honra e orgulho ter trabalhado com equipe como a da Rede Rua. Com vocês e com o povo da rua aprendi muito. Muito mesmo, nem imaginam quanto! Fiz muitos amigos que para sempre ficarão no meu coração “no lado esquerdo do peito”...

António Gomes, o ToUm diagramador voluntário

Transversalidades que se compreendem

Participantes do PEC*Movidos para contribuir com o jornal nos seus 20 anos, os coletivos que participam do Ponto

de Encontro e Cultura (PEC) fizeram um bate-papo e livremente expressaram algumas opiniões sobre o O Trecheiro

- Informação, responsabilidade, alternativa, caminhando junto dos excluídos, seriedade, interesse, rua, desenvolvimento social.

- Que a esperança é a última que morre para o morador de rua – um homem não morre porque deixa de existir, ele só deixa de existir porque deixa de sonhar, meu grande sonho é ser um DJ.

- Tenho algumas semelhanças com o Salvador d’ Acolá, invisível, inaudível, indignado com o sistema assistencialista!

- Produzir mais espaços de participação de outros coletivos, divulgando ações e facilitando o acesso das pessoas.

- Tinha que ser assim... é assim que sempre será, tudo acabou pra mim, se eu pudesse no tempo voltar.... a rua é assim, a nossa história não tem fim, é contada assim...

O Trecheiro conta a história de muita gente. Há várias histórias, inclusive o Antônio Araújo (ex-catador da Coopamare) lembrou da questão ambiental, dentre vários temas que o jornal aborda. “Lembro-me que há muito tempo atrás vi a foto da minha carroça no jornal! Foi um passo para divulgar a questão do catador de papel, num momento em que não era visível, que está no trabalho, no pensamento ecológico! O catador é um agente ambiental”, lembrou Antonio Araújo.

Pegando o exemplo de um ex-catador, devemos nos autoreciclar, as pessoas em situação de rua não são manchas na paisagem urbana, como são comumente vistos! O PEC comemora com o jornal O Trecheiro a possibilidade de sonhar e agir para a transformação social de nossa sociedade, que ela seja justa e solidária. Somos parceiros na busca de dignidade para todos nós!

* Antônio Araújo, Átila Pinheiro, Debora Galvani, Eduardo Snoopy, Sidney Cardoso e Valter Machado

Direto da Rua

Redação

Apoio

Fotos: Arquivo/Rede Rua

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Violência contra a População de Rua

Pelo menos 130 pessoas em situação de rua foram assassinadas entre 2004 e 2010 no Brasil

Pesquisar a violência contra população de rua no Brasil coloca grandes dificuldades. Dados policiais são considerados secretos e arquivos do Judiciário não estão disponíveis para cidadãos comuns. Para compreender a que tipo de violência a população de rua está submetida em seu dia a dia, fizemos um levantamento das notícias, entre 2004 e 2010, da Folha de S. Paulo e do O Estado de S. Paulo, dois dos maiores jornais em circulação no País.

Foram 74 notícias publicadas sobre agressões contra moradores de rua no período (Gráfico 1). As ocorrências veiculadas relatam 67 homicídios, 29 tentativas de homicídio, 10 espancamentos, 3 vítimas de afogamento, 1 atropelamento e 1 vítima de violência policial, somando 111 ataques (Gráfico 2). Do total de agredidos, 94 são homens, 9 são mulheres e 8 pessoas não foram identificadas por sexo.

A identificação das vítimas em relação à raça ou cor não foi possível pois 98% das notícias não apresentam esta informação.

A maioria das notícias não esclarece a motivação do crime, apenas 41% delas explica a razão da violência, dentre as quais se destaca a negligência do poder público (Gráfico 3). O estado com maior número de ocorrências é São Paulo, o que pode ser explicado pelo fato dos dois jornais pesquisados serem da capital paulista. Rio de Janeiro e Minas Gerais também apresentam índices altos, com 8 casos cada um (Gráfico 4). Quanto ao local de violência, 70% dos casos ocorreram na rua.

O Trecheiro buscou aprofundar a investigação sobre violência contra a população de rua entrevistando pessoas que trabalham no sistema judiciário e estão envolvidas com a questão.

Dra. Michael Mary Nolan trabalha no Condepe, desde os anos 1980 e, atualmente, é a advogada de acusação do Massacre da Praça da Sé e do Massacre do Viaduto Vila Galvão.

Em entrevista realizada no dia 5 de agosto, dra. Nolan conta sua experiência de trabalho no Centro e as transformações que vivenciou: “A população de rua é menos compreendida agora. Antes, com a população de rua, não tinha tanto problema de droga, tinha de bebida. Tinha gente que fazia ‘o trecho’, de onde vem o nome do jornal, mas tinha também gente que morava anos num bairro, na rua e era conhecido de todo mundo, fazia serviços para todo mundo. Esse tipo de relação mudou”. Entre os fatores de mudança, dra. Nolan fala sobre o aumento da quantidade de pessoas em situação de rua, a maior presença de drogas e as campanhas preconceituosas veiculadas pela mídia, que retratam moradores de rua como violentos. Além disso, a polícia paralela (segurança privada) na tentativa de mostrar serviço age para limpar a área, aumentando a truculência contra a população de rua”.

Tratando da dificuldade em compreender a violência enfrentada por essa população, dra. Nolan diz que os massacres são graves e devem ser denunciados, mas a agressão enfrentada pelo povo da rua é cotidiana: “Tem muitos crimes que passam despercebidos porque ninguém vê, ninguém mexe. A grande questão é a falta de políticas públicas para essa população. Aqui a política pública é a Prefeitura limpar ruas e jogar água nas pessoas”. Dra. Nolan afirma que há até hoje um problema estatístico no Brasil e o número

de pessoas em situação de rua está subcontabilizado: “Sequer somos capazes de identificar quem é o povo da rua”. De acordo com a advogada, a falta de índices confiáveis e a carência de albergues expressam uma gestão pública deficiente, mais interessada em garantir a segurança individual do que em promover os direitos humanos.

Na gestão pública voltada para a segurança, os moradores de rua são vistos como problema, como fonte de insegurança. Dra. Nolan salienta que a perda do senso de comunidade nos faz precisar de segurança policial: “O povo não conhece a vizinhança, não sabe mais quem é estranho. Porque você não precisa ter

medo da grande maioria do povo da rua”.

Moradora da Praça da Sé, dra. Nolan afirma que prefere chegar em casa quando tem gente dormindo na rua, porque sabe que são conhecidos. A sensação permanente de medo entre a população é que sustenta o grande investimento governamental em segurança e as políticas de limpeza que desconsideram os direitos da população de rua. “A insegurança do povo cria disciplina. Se nós estamos preocupados em nos defender, em ter segurança, a gente não está usando essa energia para criar alternativas para a situação que nós estamos vivendo, nem podemos ser criativos para uma alternativa de paz”. Segundo a advogada, o dinheiro gasto em segurança seria melhor empregado nas áreas de educação e saúde ou em centros de atendimento para a população de rua.

A advogada não tem grandes expectativas sobre trabalho com moradores e moradoras de rua, mas tem fé na continuidade diária das tentativas: “Eu acho que se nós nos preocuparmos com resultados, nós vamos desanimar rapidamente. A única coisa que a gente pode fazer é o nosso trabalho constantemente. Lançar ideias”. Uma das maneiras para garantir o respeito aos direitos da população de rua é a articulação de movimentos sociais coletivos. Dra. Nolan

afirma que, quando começou no Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, apenas a OAF trabalhava junto com a população de rua do centro de São Paulo. Desde então, diversos outras entidades foram criadas, como o Movimento de Moradia do Centro, o Movimento Nacional da População de Rua, o Movimento Nacional de Catadores e a recém-criada Ouvidoria Comunitária da População em Situação de Rua. Todas essas instituições trabalham para diminuir a violência contra o povo da rua. Como mensagem final para os leitores e leitoras do O Trecheiro, dra. Nolan fala da importância da mobilização na comunidade da rua ao redor das novas iniciativas: “Acho que nós realmente podemos começar a fazer alguma diferença com a Ouvidoria Comunitária da População em Situação de Rua. Se o

povo de rua realmente abraça essa Ouvidoria, a gente vai conseguir dados para fundamentar a necessidade de mudanças para a população de rua”.

Na próxima edição, O Trecheiro continua com o tema da Violência e conversa com dr. Eduardo Valério do

polícia paralela (segurança privada) na tentativa de mostrar serviço age para limpar a área,

aumentando a truculência contra a população de rua ‘

Lennita Ruggi e Rose Barboza*

Advogada do povo da rua defende novas iniciativas

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* Lennita Ruggi é socióloga e professora de Sociologia da Educação na Universidade Federal do Paraná. Rose Barboza é psicóloga e pesquisadora sobre violência contra a população de rua no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra em Portugal

O Trecheiro pag 03 Agosto de 2011

Catador queimado na Rua Pires Ramos, no Brás 7 de maio de 2011

Fotos: Alderon Costa/Rede Rua

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Apesar das dificuldades a organização é possível

Maria Carolina Ferro

O Trecheiro pag 04 Agosto de 2011

De acordo com a Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua (MDS/2008), a grande maioria (95,5%) das pessoas nessa situação não participa de qualquer movimento social ou atividade de associativismo. A maioria (61,6%) não exerce nem o direito básico de cidadania que é o voto.

Diante dessa realidade, nos perguntamos: como pessoas heterogêneas, em vulnerabilidade extrema e baixa tradição de participação em organizações políticas conseguiram se unir, formar uma identidade coletiva e criar o Movimento Nacional da População de Rua (MNPR)?

“Vou ser sincero para você: são poucas pessoas que acreditam na organização da população de rua”, alerta Anderson Lopes Miranda (MNPR-SP).

Novamente nos indagamos: como pessoas em situação de rua conseguiram formar um movimento nacional, sair da posição de “necessitadas” e superar assim o estigma de serem “apolíticas” e incapazes de se organizar?

A complexidade da resposta exige uma reconstrução histórica, ainda que breve. O massacre de moradores de rua ocorrido, em 2004, na Praça da Sé em São Paulo foi o ponto de inflexão determinante para o início do processo de

articulação e organização das pessoas em situação de rua no âmbito nacional. O massacre foi fator de indignação que, por sua vez, favoreceu a união em várias cidades brasileiras. Esse triste episódio fez com que as experiências existentes de organização, por exemplo, em Belo Horizonte, São Paulo e Porto Alegre se unissem para lutar contra a violência e impunidade.

Em 2004, imbuídos no sentimento de dor e revolta, ocorreu durante o III Festival Lixo e Cidadania, a “1ª. Reunião dos Moradores de Rua” em que se afirmou: “Queremos unir todo o povo da rua do Brasil no movimento da população de rua”. Nessa reunião são lançados alguns princípios e objetivos desse futuro movimento social que nasce, efetivamente, durante o IV Festival Lixo e Cidadania em 2005. Dessa forma, a rua ganha voz própria com a criação do Movimento Nacional da População de Rua!

“No IV Festival Lixo e Cidadania tinham quinze estados, ou seja, quinze moradores de rua que vieram com suas delegações de catadores. Daí falamos: ̀ Quinze estados, a hora é agora´! Vamos criar o movimento nacional, vamos proclamar e oficializar esse movimento!”, contou Sebastião Nicomedes.

O MNPR é um movimento

social composto de pessoas que vivem em situação de rua ou com trajetória de rua e que lutam pela conquista dos direitos que a elas são negados. Historicamente, a luta por direitos sociais é a luta dos “sem direitos” que se organizaram e continuam se organizando para, por meio da força coletiva, avançar.

Nesse sentido, a organização da população de rua é fundamental para pressionar o poder público e conquistar leis, decretos e políticas públicas, ou seja, para que as condições de vida dessas pessoas melhorem e para que elas sejam tratadas dignamente pelo Estado brasileiro.

O surgimento do MNPR é prova disso, pois ele foi determinante para a construção da primeira política pública nacional de defesa e promoção dos direitos das pessoas em situação de rua: a “Política Nacional para a População em Situação de Rua”. Tal política, decretada pelo então presidente Lula em dezembro de 2009, foi construída de forma participativa entre Governo Federal e sociedade civil e o MNPR foi um dos protagonistas nesse processo.

Ademais, o MNPR, ao lado de outros atores sociais, foi imprescindível para politizar a problemática da rua e buscar superar a visão retrógada de que a população de rua precisa apenas de albergues e ações de assistência social. O movimento tem defendido que as pessoas em situação de rua

Construção depolíticas públicas

tenham políticas intersetoriais capazes de gerar alternativas para a situação em que se encontram. Nessa direção, o MNPR vem lutando por políticas públicas que ofereçam às pessoas que vivem nas ruas, dignidade e oportunidades de saída nas áreas de trabalho, saúde, moradia, assistência, educação, direitos humanos, entre outras.

Nesse sentido, o diálogo do MNPR com governos municipais, estaduais e federal e sua participação em espaços de incidência política como o Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) tem gerado frutos positivos em termos de leis e políticas em diversas áreas governamentais.

Hoje em dia o MNPR está presente em sete estados e em diversos municípios, e continua se expandindo.

Desafios sabemos que o movimento tem muitos, como qualquer movimento social da população em situação de rua, devido em parte às precariedades inerentes à própria situação em que seus membros se encontram.

De acordo com Anderson Lopes Miranda (MNPR-SP), algumas particularidades da população em situação de rua levam a um desafio maior para sua organização política. “Se os resultados da organização não aparecem rapidamente, as pessoas desacreditam e desistem, pois suas demandas são urgentes e querem respostas imediatas. Além disso, muitas pessoas têm resistência a se reconhecerem como “de rua”. Elas dizem: ´Esses mendigos´! e não se identificam com os companheiros em situação de rua”, afirma Anderson.

A organização nacional da população em situação de rua é um processo recente em terras brasileiras, sendo uma construção com avanços e limites. No entanto, a organização política desse setor populacional significou romper com o conhecimento construído acadêmica e socialmente e caminhar no sentido do “improvável”, com todas as dificuldades e esperanças que isso implica.

Conquistas •Pesquisa nacional de contagem da população em situação de rua realizada entre 2007 e 2008 pelo MDS.•Decreto Presidencial de 2009 que instituiu a Política Nacional para a População em Situação de Rua (Decreto nº. 7.053).•Projeto de Capacitação e Fortalecimento Institucional da População em Situação de Rua, parceria entre MDS, Unesco e Instituto Pólis em 2009/2010.•Centro Nacional de Defesa dos Direitos Humanos vinculado à população de rua e catadores.•Disque 100, para denúncias de violações dos direitos das pessoas em situação de rua.•Estruturação do MNPR em várias cidades e estados brasileiros e fortalecimento de sua capacidade de mobilização.•Desenvolvimento de material para formação política (Cartilha “Conhecer para lutar”) e folder para divulgação do MNPR.

Desafios•Dificuldade dos gestores municipais de assinarem o Termo de Adesão à Política Nacional.•Morosidade e/ou resistência de alguns governos municipais na implementação de políticas públicas.•Efetividade da intersetorialidade das políticas públicas •Garantia da contagem nacional da população de rua e inclusão dessa população no próximo censo pelo IBGE. •O programa “Brasil sem Miséria” com atendimento com base em dados do IBGE e população de rua não entrou na contagem oficial.•Megaeventos (Copa do Mundo e Olimpíadas) precisam ser discutidos, pois afetarão diretamente a população de rua.•Política de internação compulsória dos dependentes químicos que está se expandindo como política de diferentes municípios.•Recursos para a descentralização do Centro de Defesa de Direitos Humanos da População de Rua e de Catadores de Materiais Recicláveis (CNDDH).•Novo projeto de formação e fortalecimento do movimento.•Capacitação das lideranças nacionais nas diversas áreas das políticas públicas.•Formação política das bases e lideranças.•Criação de mecanismo de capitação de recursos para as ações cotidianas do movimento como o fortalecimento das bases.

Fotos: Alderon Costa/Rede Rua

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O Trecheiro pag 05 Agosto de 2011

“Foi catando que euencontrei O Trecheiro”

Encontrava-me em uma coleta em Poá, um dia qualquer de trabalho, não me lembro bem. Nessa época eu era catador de rua, vendia material nos ferros-velhos. Ao descarregar meu material, encontrei o jornal O Trecheiro. Comecei a ler e vi uma reportagem sobre a Coopamare, a primeira cooperativa de catadores do Brasil. Isso já faz mais de 16 anos.

Nessa época, eu já sentava com os outros companheiros catadores de Poá para ver como se juntar para melhorar a situação e eu mostrei para eles o jornal. Então, fomos à Coopamare para conhecer.

Para vir de Poá até São Paulo era bem difícil naquela época, não tínhamos grana, então tínhamos que varar a estação de trem. Para comer tinha o mesão que ficava ali no Largo do Paissandu, comíamos ali com a população de rua quando dava para comer. Na época, os trens não chegavam à Luz e ao Metrô, então, descíamos no Brás e íamos na caminhada até à Coopamare e na volta, da Coopamare ao Brás cortando a cidade a pé.

Foi aí que começou o meu processo de luta e toda essa pegada de militância social, pois foi na Coopamare que eu fiz a primeira formação de catadores.

Não sei dizer de onde, quem ou como aconteceu para esse jornal chegar na minha mão, só sei que foi um impulso para alavancar o processo de organização. Depois que conhecemos a Coopamare é que tivemos a idéia de montar a Cooperativa de Reciclagem Unidos pelo Meio Ambiente (Cruma) que, hoje, tem seus 16 anos de atividade.

Como eu ia imaginar que um dia eu ia pegar um jornal no meio do lixo e isso iria contribuir com o processo de organização. É uma roda muito louca do destino. A gente pegar um jornal, fazer

qualquer coisa, perceber que é um jornal diferente, um jornal da militância com foco na população excluída!

Esse jornal faz parte da minha história de catador e também da história do Movimento Nacional dos Catadores, pois sempre deu visibilidade às nossas lutas, à nossa militância. Como disse padre Júlio Lancellotti: O Trecheiro é um arquivo histórico dos catadores, dos moradores de rua, do movimento de moradia, enfim, do pessoal da luta do povo.

*Coordenação Nacional do MNCR

Davi Amorim

Organizações sociais e ambientalistas promoveram o primeiro Grito contra a Incineração do Lixo, no dia 21 de julho, em São Bernardo do Campo (SP) que reuniu cerca de 300 pessoas no centro da cidade. O ato teve o objetivo de protocolar uma ação popular contra o projeto do incinerador no antigo lixão do Alvarenga, divisa de São Bernardo com Diadema, uma área de mananciais em processo de recuperação onde há diversas nascentes de água.

A ação pede a suspensão imediata do edital de licitação do incinerador que é chamado pela administração municipal de “Usina Verde”. Foram distribuídos materiais impressos esclarecendo a população sobre os danos causados com uma eventual implantação de incinerador de lixo na cidade.

“Nós catadores de São Bernardo estamos sendo perseguidos pela Prefeitura por que somos contrários ao incinerador. Tiraram os

“Grito contra a incineração do lixo”

Catadores sofrem com lobby de grandes empresas

Foram 30 anos de degradação ambiental na área do antigo lixão do bairro do Alvarenga, em São Bernardo do Campo, local onde prefeituras do Grande ABC despejaram seu lixo sem qualquer tratamento por muito tempo. Uma área de mananciais onde ainda existem dezenas de nascentes de água que sofrem hoje com a contaminação do solo.

Atualmente, os moradores reivindicam que a área seja recuperada e lutam arduamente contra o projeto de implantação de usina de incineração de lixo e termoelétrica no mesmo local onde o lixo já tem um impacto ambiental imenso. “Querem implantar a usina a 300 metros da Represa Billings e sabemos que qualquer tipo de incineração emite gases poluentes, substancias que podem causar até câncer”, disse Francisco Barbosa, presidente da União de Moradores do Alvarenga, que luta pela recuperação ambiental da região.

Além da preocupação com a saúde dos moradores, Francisco luta pela melhoria na infraestrutura do bairro. Revela que já existiam levantamento e projetos para o bairro que foram inclusive aprovados no orçamento participativo, mas que nunca saíram do papel.

“Um exemplo é a estrada que deveria ter começado em março e nada. A Prefeitura não recebe ninguém que é da periferia. Tínhamos projetos criados ao longo de 15 anos pelas lideranças como o “Bairro Ecológico”, não sei por que essa administração deixou tudo de lado”, lamenta Francisco.

Os moradores da região não são os únicos que sofrem as mazelas do antigo lixão, também os trabalhadores que sobreviviam da coleta de recicláveis despejados no lixão, ainda hoje, têm dificuldades depois de seu fechamento. “Fomos expulsos da área como cachorros pelo Prefeito do PT. Hoje em dia está todo mundo desempregado e espalhado pelo mundo”, relata Helder Machado da Silva, catador de materiais recicláveis do lixão do Alvarenga que juntamente com outras 30 famílias foram expulsos da área sem que fossem oferecidos local para moradia e alternativa de trabalho. “Fomos presos 11 vezes e humilhados pela polícia por tentarmos

trabalhar e morar na área. Isso não é coisa que se faça com um ser humano. Trabalhamos 35 anos no lixão e agora vem dizer que nós degradávamos o local”, declara indignado o catador.

O prefeito de São Bernardo do Campo, Luiz Marinho (PT) quer a todo custo implantar o

incinerador no antigo lixão do Alvarenga. A construção será realizada por meio de uma parceria-público-privada (PPP) e queimará o lixo de todos os municípios do ABC e já foi aprovado pelo Consórcio de Municípios da região. O projeto é de interesse de um grupo econômico muito poderoso que domina a gestão de água e esgoto, de empresa de plásticos instalada no Pólo Petroquímico de Mauá e dono de uma das maiores construtoras da América Latina, o grupo Odebrecht.

O Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR) é radicalmente contra a implantação de incineradores de lixo, pois, além de prejudicar a

saúde humana de maneira perigosa, a queima de resíduos retira postos de trabalho dos catadores e de outros trabalhadores da cadeia produtiva de reciclagem, assim como inviabiliza a diminuição de recursos naturais não-renováveis que são retirados do meio ambiente.

Por serem contrários à implantação do incinerador de lixo, os catadores ligados ao MNCR na cidade têm sofrido dura retaliação. “Tínhamos três caminhões para fazer a coleta e a Prefeitura retirou dois deles, só não tirou o último porque foi doado pelo Governo

Federal diretamente para a Associação. Os caminhões estão parados no pátio da Prefeitura com os motoristas dormindo dentro. Com isso nossa renda caiu 60%, pois não temos como fazer coleta nas empresas”, explica Francisca de Araújo, representante do MNCR na região. Ela e a catadora Maria Mônica da Silva entraram na Justiça contra a implantação do incinerador por meio de uma Ação Popular Ambiental. O objetivo é suspender imediatamente o edital de contratação do incinerador. “É assustador”, comenta Francisca sobre os interesses que envolvem a questão.

nossos caminhões de coleta, os funcionários da Prefeitura têm ido nas associações humilhar os catadores. Tiraram todo o nosso apoio. Estamos sofrendo, gente”, denunciou Francisca de Araújo, catadora de São Bernardo.

Davi Amorim

Roberto Laureano da Rocha

Da esquerda para direita: Maria Mônica da Silva (MNCR), Virgílio A. de

Farias (Advogado), Francisca de Araújo com Ação Popular Ambiental

que exige suspenção do edital para a construção do incinerador

Isso não é coisa que se faça com um ser humano. Trabalhamos 35 anos no lixão e agora vem dizer que nós degradávamos o local”“

Fotos: Alderon Costa/Rede Rua

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Acampamento exige respeito e políticas públicas para a rua

Movimento Nacional da População de Rua organiza acampamento no centro de São Paulo para fazer memória do massacre de 2004 e reivindicar soluções definitivas para pessoas em situação de rua

Com o grito de “respeito à população de rua” cerca de 200 pessoas foram às ruas de São Paulo, como fizeram em outras cidades para lembrar os sete anos do massacre de agosto de 2004, quando quinze moradores de rua foram atacados no centro de São Paulo e sete morreram. Até hoje esse crime continua impune. Desde 2010, o dia 19 de agosto passou a ser o Dia Nacional de Luta do Povo da Rua.

Em São Paulo, a mobilização começou no dia 18 de agosto, nas escadarias da Sé, onde aconteceu uma celebração. As pessoas foram convidadas a acender uma luz com o povo da rua, “para que cada um de nós seja sinal de esperança quando lembrarmos do massacre de 2004. Esse crime até hoje continua impune e a violência está presente na vida do povo da rua”, declarou padre Júlio Lancellotti. Para ele, a impunidade existe não porque são pessoas em situação de rua, mas sim por conta dos mandantes e do que está por trás desse massacre. “A impunidade está ligada à posição que ocupam os mandantes do massacre”, concluiu padre Júlio.

A proposta do ato, segundo Anderson Lopes Miranda (MNPR-SP), “é romper o preconceito e lutar contra a violência”. Da mesma forma, Átila Robson Pinheiro (MNPR-SP) reforça: “Estamos lutando todo dia para que cesse a violência contra a população de rua e que o poder público implemente políticas adequadas para esta população”.

Para dra. Michael Nolan, advogada que acompanha o processo do massacre, não existe nenhuma novidade no andamento do processo, que continua parado no Tribunal Superior de Justiça, com a ministra Laurita Vaz. “Esperemos que esse processo não fique igual ao do Carandiru, que no próximo 2 de outubro fará 19 anos e, até hoje, ninguém foi processado por este massacre”, afirmou Michael.

Ao término da celebração todos foram convidados a seguir em caminhada para o Vale do Anhangabaú, próximo da sede da Prefeitura. Com a cruz na frente, velas e cartazes com as frases: “Estamos de luto pela chacina dos moradores de rua no centro de São Paulo” e “Somos um povo que quer viver”, as pessoas caminharam até ao Vale, onde foram montadas dez barracas e um altar com os nomes dos companheiros de rua assassinados em 2004.

Segundo Anderson Lopes Miranda, coordenador do MNPR em São Paulo, o objetivo do acampamento é passar a noite e a manhã do dia 19 e, em seguida, realizar ato político para chamar a atenção da situação de violência e desrespeito a que está submetida essa população.

Para Jessé Augusto Rufino,

desempregado em situação de rua, a ideia de dormir no acampamento é boa e dá a sensação de segurança porque estamos em grupo. “Quando não tem esse pessoal junto há hostilidade por parte da guarda municipal, que sempre pelas quatro horas da manhã, passa acordando, ameaçando e lavando os locais onde dormimos”, denuncia Jessé.

Quarenta pessoas,

aproximadamente, dormiram dentro e fora das barracas. Mesmo juntas, a GCM apareceu mais de quatro vezes no local, sem contar a infinidade de carros da polícia metropolitana que circulava pelo local.

Logo pela manhã, todos foram convidados a tomar café e preparar o espaço para o ato que teve início com iniciativa espontânea de um grupo que gritava “respeito, respeito, respeito”. Para José Alamiro Andrade Silva, frei franciscano, a maioria que se manifestava era composta de jovens e reafirmou que todos precisam de respeito. “O que adianta ter políticas públicas se não há respeito, toda a criação precisa de respeito”, reclamou frei Alamiro.

Anderson Lopes fez referência ao massacre e disse que estava na hora da Prefeitura ter políticas

de moradia, trabalho e saúde. Para Jessé Augusto Rufino,

“não é porque estamos na rua que a vida acabou, o que pesa mais é exatamente a moradia, para outros a capacidade profissional, mas a moradia é a mais importante”. Para ele, o massacre não pode ser esquecido.

O senador Suplicy, presente ao ato comentou que, com a parceria do governo federal e estadual, o

“Brasil sem Miséria” começa uma nova etapa. Lembrou, também, que a “Renda Básica da Cidadania” já é lei, é um direito universal para todos que têm o direito de participar da riqueza do País.

Várias pessoas ainda usaram o microfone para denunciar a violência sofrida, principalmente das polícias.

Pedro Silvério da Silva, 25 anos, preso e agora mora na rua, contou como seus documentos foram danificados pela limpeza urbana. “Saí sem eira e nem beira. Até minha conta da Caixa Econômica sumiu. Eu estava com os documentos no bolso e passou a limpeza urbana e a GCM que jogaram água e danificaram os meus documentos”. Para ele essas ações são desumanas. “A gente tem que ser tratada como gente, pois somos de carne e osso como todos eles”, defendeu Pedro.

“A nossa presença aqui é para dizer que chega de indiferença. O povo quer viver aqui, no espaço público e na cidade de São Paulo que é tão rica, mas desigual”, argumentou padre José Aécio Cordeiro da Silva, da Brasilândia, zona oeste de São Paulo.

Para Maria Nazareth Cupertino, coordenadora do albergue Pousada Esperança e membro da

coordenação do Fórum de Assistência Social (FAS), o grande problema da população de rua é a invisibilidade. “Ainda precisamos ser reconhecidos como vítimas da violência policial, vítimas do Estado que não disponibiliza políticas públicas de qualidade, vítimas porque apanhamos, somos maltratados”, lembrou Nazareth.

Na avaliação de padre Júlio Lancellotti, que passou a noite no acampamento, os dois atos “foram bons na medida em que mobilizaram pessoas e teve reconhecimento político com a presença do senador Suplicy. A tranquilidade, a confraternização, a música, o lanche dividido, a vida partilhada, poder ver o céu estrelado, a polícia perturbando, a beleza do acampamento, enfim tudo aconteceu, mas foi bom”, resumiu padre Júlio.

Para o alemão e pesquisador, Tobias Topfer, o que chamou a atenção foi a rapidez da mobilização. “Acompanhei reunião de preparação e pensei que a idéia era legal, mas fiquei na dúvida se eles iriam conseguir. Fiquei impressionado com esta roda de barracas”, conclui Tobias.

Sandro Ricardo Ruiz, coordenador da Casa de Convivência São Martinho de Lima, disse que “foi interessante a proposta de dormir na rua e saímos daqui com mais esperança e muita vontade de lutar”.

““Estamos lutando todo dia para que cesse a violência contra a população

de rua e que o poder público implemente políticas adequadas para

esta população”

Alderon Costa

O Trecheiro pag 06 Agosto de 2011

Fotos: Alderon Costa/Rede Rua

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O Trecheiro pag 07 Agosto de 2011

Acampamento exige respeito e políticas públicas para a rua

No meio do caminho, uma senhora gritava de dor, por conta do frio, atrás de uma banca de jornal na Praça da Sé. Alertados, os guardas municipais da praça explicaram que já haviam chamado a Central de Atendimento Permanente e de Emergência (CAPE), responsável pelo atendimento às pessoas em situação de rua e pela central de vagas de acolhimento para adultos, crianças e adolescentes na cidade de São Paulo.

Segundo, um dos guardas, na base já havia essa lista (foto acima) com 38 nomes de pessoas que estavam esperando para serem encaminhadas para vaga de albergue. No entanto, os coordenadores do programa orientaram os guardas a não fazerem lista e nem ligarem, mas sim orientar as pessoas a se dirigirem para a tenda próxima à base. Ainda segundo o guarda municipal, o problema é que este serviço fecha às 23 horas e a CAPE, normalmente, só busca as pessoas depois desse horário.

O jeito é dormirna rua

O Trecheiro e OCAS´ recebem prêmios internacionaisO Trecheiro Categoria Mídia Externa

Indicada pela revista OCAS´, a reportagem vencedora – “Escondidos para não morrer”–, de Alderon Costa foi publicada em dezembro do ano passado no jornal O Trecheiro. O texto fala sobre a violência em Maceió (AL), onde 31 pessoas em situação de rua foram assassinadas em 2010, número que representa 10% da população de rua daquela cidade.

Ao entregar o prêmio, o conselheiro Alistair Watson, da Câmara Municipal de Glasgow, declarou: “Este texto comovente captura a interconexão entre pessoas em

situação de rua, viciados em drogas e o sistema judiciário. Ao fazer crítica ao sistema que falhou com elas, este artigo presta homenagens às vidas de pessoas em situação de rua que, de outra forma, desapareceriam sem reconhecimento. Uma mulher diz, no artigo: ‘Vemos com muita tristeza e amargura vidas sendo tiradas de uma forma tão brutal, pelo simples ‘crime’ de estarem em situação de rua, como se isso pudesse ser crime. Temos medo de que essas mortes caiam no esquecimento ou que não sejam devidamente esclarecidas e apuradas’. Esta corajosa reportagem analisa o andamento das investigações desses crimes e termina chamando os leitores à ação”.

Revista OCAS´ Categoria Melhor Artigo de Vendedor

A OCAS´ também ficou entre os cinco finalistas em outras duas categorias: melhor reportagem e melhor design.

O texto vencedor “Antes que o frio doa” foi escrito por Sebastião Nicomedes e mostra a realidade de quem já precisou dormir nas ruas geladas de uma grande cidade. Seu relato cru fala das dores, da fome, da gripe e também da morte de alguns colegas (“frio dói de verdade; dói o corpo, dói a alma”).

Esta é a segunda participação da OCAS´ na premiação. Em 2009, a revista foi a vencedora na categoria Melhor Design e ficou entre as finalistas de Melhor Fotografia e Melhor Capa.

Os prêmios são formas de celebrar a qualidade e o impacto dos jornais e revistas de rua como mídia independente.

* Jornalista e editora da revista OCAS´

Rosi Rico

Kely Cristina Perez:“Sou moradora de rua há dois meses com muito orgulho, porque morador de rua também

é gente. Tem muito morador de rua que veio buscar uma oportunidade, mas o governo não oferece. Se você for vender água num farol, a polícia leva, mas se tiver vendendo um baseado a polícia ainda é capaz de fumar com você. Quem está na rua está sujeito à bala, está sujeito à facada, está sujeito à fome, mas têm anjos, como vocês”.

Orlando Oliveira dos Santos: “Estava dormindo na praça, estou doente, tive traumatismo no crânio, minha cabeça é

toda parafusada, estava o maior frio, chegaram os guardas me chutando, se chutassem minha cabeça me matavam. Eles me julgaram como vagabundo, mas sou um profissional, sou motorista e estou correndo atrás de minha aposentadoria. Não tive culpa de estar na rua doente. As pessoas na rua sofrem não só necessidades, mas também preconceito, discriminação, sofrimento. É uma angústia para quem mora na rua. Nem sempre é o que eles pensam quem a gente é”!

Alexandre Santos Moreira:“Eu vim aqui para falar o que eu penso. O governo liberou uma verba de mixaria de R$

70,00 e isso não é o suficiente, isso é muito pouco. Não é isso que nós queremos, nós não queremos R$ 70,00, a gente só quer emprego e respeito”.

Depoimentos

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O Trecheiro pag 08 Agosto de 2011

Em tempo de barbárie,

a fragilização das políticas sociais e a luta pela vida!Em um contexto internacional

de aprofundamento da crise do capital, a conjuntura do País é marcada pela retomada da inflação, desemprego elevado, avanço do conservadorismo, criminalização da pobreza e dos movimentos sociais, ao mesmo tempo em que se presencia o desmantelamento das políticas públicas e a responsabilização do indivíduo pela sua própria proteção.

As políticas públicas estão cada vez mais direcionadas para o atendimento dos interesses de mercado, que exige uma massa de desempregados disponível e oportunidades renovadas para grandes investimentos.

Nesse sentido, a proximidade dos megaeventos – Copa do Mundo em 2014 e Olimpíadas em 2016 – mobiliza os grandes investidores e influencia a destinação do fundo público, que fica sob responsabilidade dos governos e é formado pelos impostos pagos por todos os cidadãos e cidadãs. Esses investidores têm tornado os governos reféns de seus interesses exigindo, por um lado, a “higienização” dos grandes centros urbanos, o que vem ocorrendo por meio de medidas que conduzem à internação e/ou ao abrigamento compulsórios da população em situação de rua sob a alegação do uso de álcool e outras drogas. Além disso, veem-se crimes de ódio, principalmente homofóbicos, sem proteção pública, o extermínio lento e

“natural” pela fome e ausências de políticas de proteção social acessíveis.

Por outro lado, esses investidores também exigem a ampliação da capacidade de consumo de massa, o que justifica o fortalecimento dos programas assistencialistas de cunho ideológicos e políticos como os que compõem o “Brasil sem miséria”, destinado aos que possuem renda familiar per capita no valor de até R$ 70,00 (setenta reais). Esses programas oferecem bolsas em valores reduzidos, para assegurar um consumo mínimo do que é indispensável para a sobrevivência biológica (alimentos, remédios, vestuário, etc.) sem, contudo, apresentarem medidas efetivas que apontem para a real superação da condição de pobreza dos segmentos alcançados pelos programas. Diga-se de passagem, não há nenhuma ação efetiva no programa “Brasil sem Miséria” com destinação específica para população em situação de rua.

Restrição de direitos

Seguindo a mesma lógica, de “políticas pobres para pobres” e, para mascarar a precarização exorbitante do trabalho e a gigantesca explosão da informalidade, foi criado o Programa “Microempreendedor” que institui uma previdência social diferenciada para os mais pobres que possuem menor capacidade contributiva e nega

a condição de trabalhador desse contribuinte.

Dentro dessa lógica restritiva de direitos, a previdência social sofre contrarreformas constantes, por meio do esvaziamento de serviços, não implementação de preceitos legais e normativos que ampliam direitos e da retomada de normas conservadoras com novas roupagens.

A saúde vem sofrendo crescente privatização, o que restringe as possibilidades de acesso aos serviços de saúde por aqueles que não podem pagar por eles.

Essas e outras medidas indicam que, no âmbito da seguridade social – saúde, previdência e assistência social –, espinha dorsal da proteção social no Brasil, há uma forte tendência de centralidade da assistência social, com o propósito de reforçar suas funções políticas e ideológicas, sem ampliar a sua capacidade de atendimento material às necessidades dos usuários. O acesso ao Benefício de Prestação Continuada (BPC), por exemplo, fica cada dia mais limitado. A proposta da população em situação de rua

de reduzir a idade de acesso a esse benefício, por esse grupo populacional, para 50 anos, sequer foi analisada pelo governo federal.

Reação da sociedade

Diante disso, percebe-se que a barbárie se estabelece e as políticas de proteção social se desestruturam. Todavia, há sinais de resistência. Os trabalhadores reagem em todos os lugares do País por meio de greves, mobilizações públicas, jornadas de lutas conjuntas, campanhas salariais, entre outras.

Nesse contexto, a população em situação de rua também tem reagido. O seminário e passeata realizados no Rio de Janeiro em 28 de julho de 2011, com a presença de mais de 60 pessoas em situação de rua e mais de 300 militantes e apoiadores das lutas do Movimento Nacional

de População de Rua (MNPR) é um exemplo de resistência. O objetivo central dessas duas ações foi o de acumular forças para combater as medidas conservadoras de abrigamento compulsório impostas pelo governo da cidade do Rio de Janeiro e, também, exigir políticas públicas acessíveis a todos.

Outros exemplos foram as vigílias pela vida realizadas em Salvador e em São Paulo, neste mês de organizadas pelo MNPR para o Dia Nacional de Luta da População de Rua.

Isso nos faz acreditar que, apesar das profundas adversidades da conjuntura, a luta pela vida com dignidade, pelo direito de permanecer e usufruir os benefícios das cidades, por justiça, liberdade e igualdade de condições está viva! É, portanto, nosso dever, fortalecer essa luta!

*Assistente social, pesquisadora da UnB/CNPq e conselheira do Conselho Federal de Serviço Social

A Igreja no trecho

Os 20 anos de vida do jornal O Trecheiro demonstram a importância desse periódico, portador de Notícias do Povo da Rua. Como se faz um jornal de notícias da rua? Só tem um jeito: ir às ruas, ver de perto a invisível existência da pessoa que ali está.

Foi assim que a primeira edição, em 1991, veio à luz no tempo oportuno, precedido de longo processo de conhecimento e aprendizado da realidade da rua.

O desejo da “vida plena para todos” (Jo 10,10) era e continua sendo a mística que sustentou

e sustenta a prática de quem sai ao encontro daquele irmão e irmã ali naquela calçada, naquele canto. O povo da rua atraiu o coração de religiosos e religiosas de diferentes confissões, motivados por esse sonho de mais vida.

Os anos de 1970 revelaram um crescente interesse e compromisso com a construção da vida na cidade de São Paulo, do ponto de vista dos mais excluído de direitos, misturados e confundidos com o lixo das ruas e dos baixos de viadutos. A Igreja Católica estava lá, na inovadora iniciativa de

irmãs, padres, leigos e leigas, seminaristas e junioristas dispostos a trilhar um novo jeito de fazer missão. Revelava-se o rosto de Jesus desprezado e solitário, escondido no centro da metrópole.

A partir de 1991, O Trecheiro começou a registrar essa história, na linguagem jornalística, pretendendo ser um canal de comunicação para os

moradores de rua e um veículo de provocadora informação para toda a sociedade e para a Igreja. Nesse ano, a 29ª Assembléia da CNBB aprovou o texto das Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil, com o objetivo de evangelizar para formar o Povo de Deus e participar da construção de uma sociedade justa e solidária. (Doc. 45). Os documentos da Igreja apresentavam análise da realidade, situações de pobreza e sofrimento causado pela organização da sociedade excludente, mas ainda não tratavam de modo explícito a situação da rua. Todo esse cenário favoreceu o nascimento do O Trecheiro, elaborado com

olhos abertos para a realidade da rua.

O encanto deste nosso jornal continua sendo a informação dada a partir da experiência e do compromisso com a causa do povo da rua. Ele tanto favorece a comunicação entre os moradores de rua, protagonistas e primeiros destinatários, como possibilita valiosa fonte de informação e desafio para todos, em diferentes setores da sociedade e da Igreja e esta deve estar sempre atenta às necessidades de seus filhos, especialmente do pobre desrespeitado em sua

dignidade de ser humano filho de Deus.

O Trecheiro tem contado com a participação e colaboração de muitas pessoas ligadas à Igreja, ao longo de sua história e assim ajuda a constatar que a Igreja também está no trecho.

Que a celebração do seu 20º aniversário estimule mais gente disposta a se unir e a escrever novas notícias.

* Presidente da Conferência dos Religiosos do Brasil – Regional São Paulo e presidente da Associação Rede Rua

Geni dos Santos Camargo*

“Diga-se de passagem, não há nenhuma ação efetiva no programa “Brasil sem Miséria” com destinação específica para população

em situação de rua.

Lucia Lopes*

Dom Paulo celebra na Comunidade São Martinho de Lima

Fotos: Alderon Costa/Rede Rua

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O Trecheiro pag 09 Agosto de 2011

Saúde da população em situação de rua: um olhar sobre a política e organização da atenção à saúde

O estado de saúde de uma população tem a ver com a estreita e complexa relação entre suas condições de vida e as diferentes formas de inserção social. Estas são determinantes nas situações mais favoráveis, mas também naquelas de vulnerabilidade observadas nos indivíduos e grupos sociais.

Nesse contexto, a população em situação de rua é emblemática por apresentar dinâmicas e processos sociais característicos

e heterogêneos, com diversos perfis e um singular “modo de andar a vida”. Entender esses processos é importante para a elaboração e execução de políticas públicas equânimes destinadas à população em situação de rua, particularmente, para a assistência à saúde, pois o cuidado efetivo deve ter significado para os que a recebem.

Os agentes sociais e públicos assim como a população em situação de rua organizada na cidade de São Paulo têm pautado e contribuído significativamente, nesses últimos dez anos, na conquista de ações e políticas de atenção à saúde no Sistema Único de Saúde (SUS).

A implantação do Programa de Saúde da Família (PSF) de Rua é uma realidade hoje que faz diferença no acesso aos serviços de saúde em áreas com grande concentração de população em situação de rua na cidade de São Paulo.

São inegáveis as experiências de acolhimento, tratamento, recuperação, resgate, entre outras das várias equipes do PSF na assistência aos indivíduos em situação de rua, viabilizando ações intersetoriais e expondo a problemática de saúde e vida desse grupo.

Pesquisas realizadas demonstram que a população em situação de rua reconhece seus direitos, acessam mais os serviços de saúde e, em geral, procuram sempre os mesmos, estabelecendo um padrão de uso contínuo de determinada unidade de saúde.

Por outro lado, o perfil de adoecimento, com grave comprometimento orgânico e/ou mental, exige do setor saúde e da assistência social políticas e programas que possam dar conta dessa complexidade e contribuir para o cuidado efetivo.

Casa de Cuidados, Repúblicas Terapêuticas, Acompanhantes Terapêuticos, Albergues, Rede de Urgência/Emergência entre

outros serviços e equipamentos articulados com ações efetivas intersetoriais, superando o discurso comum “isso é meu, isso é seu”, devem dar efetividade e eficácia às ações das Unidades Básicas de Saúde (UBSs) e com isso viabilizar a proteção social dos indivíduos em situação de rua.

Hoje, faz-se necessário um debate público e organizado –

ausente na agenda pública – com participação ativa de diferentes agentes envolvidos nessa problemática para se pensar os avanços, os retrocessos, os modelos de atenção e as interfaces setoriais visando políticas públicas equânimes.

*Médico-sanitarista do Centro de Saúde-Escola Barra Funda e professor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo

Com um olhar atento no valor da dignidade humana, na Constituição Federal que declara direito à moradia, na adesão do País à Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU que afirma que moradia digna é um direito humano, conclui-se que a realidade habitacional brasileira é absurda, injusta e geradora de desigualdades sociais e, que as leis do Brasil não são cumpridas.

O problema da moradia no País, como outros de natureza social, são resultantes do modelo de desenvolvimento econômico e político, imposto pelas elites dominantes, no qual prevalece interesses por lucros. Por isso, a urbanização e industrialização brasileiras são caracterizadas

“Moradia digna é um direito humano”

pela concentração de renda e rebaixamento dos salários dos trabalhadores. Em consequência, 90,3% das famílias que compõem o déficit habitacional têm renda familiar mensal de até três salários-mínimos.

O Estado brasileiro tem grande responsabilidade em relação ao problema da moradia. Primeiramente, por assumir tardiamente a questão habitacional que é de sua responsabilidade. Depois, os investimentos, nessa área, são muito aquém das necessidades, além dos desvios nas aplicações dos recursos públicos e favorecimentos de setores da construção civil, em prejuízo das necessidades da maioria da população.

A maior parte dos trabalhadores das grandes cidades brasileiras,

pelo baixo salário recebido, pela valorização das áreas urbanizadas e pela falta de oferta pública de habitação de interesse social, foi obrigada a morar em condições precárias, em áreas com riscos de desmoronamento ou enchentes. Esses locais são distantes dos empregos, escolas, hospitais e espaços de lazer e, muitas vezes, em ambientes com grande índice de violências.

No Brasil, os sentidos de urbanidade e cidadania caminharam totalmente descolados do significado da dignidade humana, do respeito e da solidariedade, ficando a realização dos direitos sociais vinculados ao poder aquisitivo das pessoas.

Direito à moradia

A população em situação de rua acumula praticamente todas as violações, não só com relação aos direitos sociais como moradia, saúde, segurança como os direitos civis de transitar e ficar nos locais públicos, mas de permanecer e retornar à sua casa, após um dia de atividades, para um banho relaxante, receber e dar acolhimento familiar, descansar com tranquilidade e ter um sono sereno.

Historicamente, a maioria das análises sobre essa realidade focou o indivíduo nos contextos da desestruturação familiar, das desmotivações pessoais, questões relativas às drogas e outros que sempre favoreceram a culpabilização das pessoas e implementação de políticas públicas assistencialistas. A estigmatização negativa da população em situação de rua e o assistencialismo, no geral, têm apenas contribuído para agravar essa situação.

O fato de morar na rua já é explicitamente um problema

de moradia e vê-se pouco investimento para superação desta grave questão social.

O Decreto Presidencial nº 7.053 de 23 de dezembro de 2009, – que instituiu a Política Nacional para a População em Situação de Rua que visa assegurar o acesso amplo, simplificado e seguro aos serviços e programas que integram as políticas públicas de saúde, educação, previdência, assistência social, moradia, segurança, cultura, esporte, lazer, trabalho e renda –, trouxe avanços de como atender esses direitos sociais com o reconhecimento de que a moradia é uma das necessidades deste segmento.

É fundamental a construção de programa habitacional para a população em situação de rua, inserida nas políticas habitacionais e nas dotações orçamentárias das instâncias municipais, estaduais e federal.

Da mesma forma que outros programas habitacionais como de favela, cortiços, mananciais possuem suas especificidades, o programa habitacional para a população em situação de rua deve ter características próprias que atendam às suas necessidades nos momentos emergenciais e na estruturação da vida. É importante considerar a heterogeneidade

dessa realidade, o que vale dizer da exigência de modalidades diferentes de moradia conforme os perfis.

Os programas habitacionais destinados à população de rua para que sejam efetivos, devem estar focados no direito de morar de forma digna, independente do direito à propriedade que exige financiamento do custo da produção da moradia. Nesse sentido, programas como da locação social ou outros com altos subsídios apresentam as condições para melhores resultados.

Nos últimos anos, em algumas cidades do Brasil, ocorreram diferentes tipos de atendimentos habitacionais para população de rua, mas ainda em números poucos significativos frente à quantidade de pessoas que estão vivendo nas ruas.

A superação da problemática da população em situação de rua passa pelo enfrentamento do problema da moradia, pois a moradia digna é base para organização pessoal e coletiva e para futuras perspectivas de luta.

Moradia é um direito fundamental da população em situação de rua e moradia social deve ser um serviço público como a educação e a saúde. Até agora temos visto boas intenções, mas quase nada de concreto.

*Membro do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos e pesquisador da Faculdade de Arquitetura (USP) / Fapesp

Nivaldo Carneiro Júnior*

Luiz Kohara*

Alderon Costa/Rede Rua

Fotos: Arquivo/Rede Rua

Dom Paulo celebra na Comunidade São Martinho de Lima

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de luta e cidadania20 O que o jornal O Trecheiro publicou de

significativo nesses 20 anos?Em linhas gerais, destaco

alguns aspectos a partir de breve pesquisa e de minha experiência como colaboradora – integrante da equipe de redação e revisora – do jornal desde 2005.

A história do O Trecheiro começa no final dos anos de 1980, quando pastorais da Arquidiocese de São Paulo e movimentos sociais decidiram pela criação de um centro alternativo de comunicação. Assim surgiu o Centro de Documentação e Comunicação dos Marginalizados (CDCM) em parceria com a Prefeitura de São Paulo para a produção de notícias, vídeos e registro fotográfico da população em situação de rua numa conjuntura política comandada pela então prefeita Luiza Erundina.

Esse Centro nasceu para “ouvir, ver e sentir a realidade vivida, transformá-la em notícia, promover sua veiculação”, colaborar na organização, articulação dos movimentos sociais e possibilitar visibilidade das pessoas em situação de rua. Um dos instrumentos para atingir esses objetivos foi a criação do jornal O Trecheiro em agosto de 1991.

Um pouco antes, no período de março a setembro de 1990, circulou na cidade o Jornal de Rua produzido por padre Arlindo Pereira Dias, quando integrante da Comunidade dos Sofredores de Rua (fundador, do Conselho Editorial e hoje, correspondente internacional do jornal). Esse jornal trazia notícias das atividades desenvolvidas pela Comunidade. Desde então, via-se a presença do “povo da rua ou sofredores de rua” – expressões usadas pela Igreja Católica – em mobilizações por ocasião do 1º de Maio, das festas da Semana Santa e da 12ª Missão com o tema: Estamos na miséria, queremos justiça séria.

O Trecheiro pode ser considerado, ao lado da revista OCAS´- saindo das ruas (SP e RJ) e dos jornais Boca de Rua (RS) e Aurora da Rua (BA), os poucos veículos de comunicação voltados às pessoas em situação de rua no Brasil.

Em seu noticiário, ao longo dos anos, há matérias em torno de temas importantes que foram se fazendo, historicamente, em conjunturas políticas diferentes e com avanços e recuos em relação às conquistas de políticas públicas, ao protagonismo e à participação popular que dependeram da qualidade das ações empreendidas nas três esferas de poder, a saber:

•Mobilizações populares, processos organizativos e articulação entre movimentos

sociais, especialmente aqueles cujas lutas se aproximam na defesa de direitos (MNPR, MNCR, MST e Moradia) e iniciativas ligadas à organização da população de rua em várias cidades brasileiras.

•Violência: massacres, mortes, truculência e violência policial, higienização nas cidades brasileiras, denúncias de impunidade e ações, iniciativas e mobilizações de defesa dos direitos humanos.

Encontro com a prefeita Luiza Erundina na Câmara Municipal - 1º Dia de Luta - 1991

1º Dia de Luta do Povo da Rua no

Brás e nas ruas em direção a Câmara

Municipal de São Paulo,

14 de maio de 1991

Os primeiros dois anos do jornal (1991/1992) correspondem aos últimos anos da administração do PT na cidade de São Paulo (1989-1992). Nesse período, houve uma parceria bastante produtiva entre Prefeitura, ONGs e Universidade tendo como horizonte o protagonismo das pessoas em situação de rua.

O jornal O Trecheiro foi porta-voz das iniciativas e avanços desse período e repercutiu nas edições de 1991 e 1992, como a realização da 13ª Missão com o tema: Entra na roda da rua, vem que a festa é sua, informações sobre o surgimento das Missões (1979), as consequências graves para a população de rua com a crise provocada pelo governo Collor. Além disso, o jornal deu destaque à criação do Centro de Documentação (CDCM), às iniciativas inovadoras, como as Casas de Convivência e campanha de inverno “A Casa acolhe a Rua” que impulsionaram a revisão nos modelos de atendimento vigentes na época como os conhecidos plantões sociais e albergues para a população de rua. A presença da prefeita Luiza Erundina na inauguração da Casa de Convivência do Brás, a primeira construída para essa finalidade e a realização, em 1992, do I Seminário Nacional sobre População de Rua foram também noticiados. Nesse seminário, estiveram presentes

autoridades religiosas, como o bispo Jeoval, da Igreja Metodista e dom Paulo Evaristo Arns: “Vamos ver se conseguimos um tempo melhor, com menos sofrimento, mais alegria e também mais possibilidades de vocês participarem de tudo o que é do Brasil e do mundo”. Dom Paulo, provavelmente, referia-se ao período do, então, prefeito Jânio Quadros, em que desmandos, repressão e violência policial foram ações centrais de seu governo em relação à população de rua. Em publicação sobre esse evento, Luiza Erundina se manifestou: “Com esforço do setor público e da sociedade civil conseguiremos avançar no resgate da cidadania de milhares de pessoas que hoje estão morando nas ruas, como a única forma que lhes sobrou de sobrevivência”.

Os resultados da primeira pesquisa sobre a população de rua na cidade de São Paulo, posteriormente publicada sob o título “População de Rua – quem é, como vive, como é vista” em 1992 foram divulgados. Essa pesquisa trouxe, dentre outras informações, perfis de trabalhadores em situação de desemprego e subemprego que moravam nas ruas e em albergues, informação contrária à visão corrente na sociedade que concebe as pessoas em situação de rua como vagabundos ou desocupados.

Com o objetivo de resgatar a autoestima, gerar renda e dar apoio para a saída das ruas foram criadas as Casas de Convivência. Nesses locais havia ações de cuidados com o corpo, troca de experiências, oficinas e discussão das formas coletivas de trabalho, estabelecimento de vínculos com os educadores, local para correspondência com a família e de referência para a questão do emprego. O horizonte da proposta metodológica era a de que a amizade substitui, com mais eficácia, as regras formais do relacionamento e disciplina institucionais e a forma pela

Casas de Convivência: iniciativa inovadora e exemplar

Reconhecimento da população de rua, início da política pública e avanços

O Trecheiro pag 10 Agosto de 2011

qual a sociedade se organiza gera trabalhadores alijados de seus direitos mais elementares de cidadania e viveram processos de perdas do trabalho, documentos, casa, família, amigos. Nessa perspectiva, foram implantadas sete casas de convivência no período 1989-1992, na região central da cidade e bairros próximos.

Cleisa Rosa

perdi a moradia, perdi o emprego, perdi muita coisa! Fui parar no meio da rua,

dormindo embaixo de pontes, em banco de praças...”

Além desses temas que perpassam sua trajetória, o jornal, desde as primeiras edições registra depoimentos, histórias de vida de pessoas em situação de rua, trajetórias de sofrimento, de perdas, de separação, de abandono, mas também revela histórias de superação, de muito esforço pessoal de saídas da rua e solidariedade encontrada nesse processo.

Como seção Vida no Trecho, ela aparece na edição de julho de 1995 (nº 20) com o título “Trecheiro internacional”, história de um jordaniano que estava no Brasil havia 18 anos. “... perdi a moradia, perdi o emprego, perdi muita coisa! Fui parar no meio da rua, dormindo embaixo de pontes, em banco de praças...”

Fotos: Arquivo Rede Rua

•Políticas públicas: descaso dos governantes; ausência de políticas públicas; mortes por frio; fechamento de serviços; programas sociais; processo de construção da política nacional; conquistas; presença do presidente Lula nas festas de Natal durante seus oito anos de mandato e seus compromissos para avançar a luta social pelos direitos de cidadania.

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O Trecheiro pag 11 Agosto de 2011

20 Retrocesso político com as administrações Maluf e PittaA primeira edição de

1993, fevereiro/março, foi, integralmente, destinada a repercutir a manchete “Metrô ameaça despejar os barracos do Brás sem nenhuma indenização”. Esses moradores contaram com o apoio das igrejas do setor Brás que aproveitaram o período da Semana Santa e fizeram Via-Sacra passando em diversos locais onde nas ruas muitos estavam e lembravam que a Campanha da Fraternidade daquele ano era Onde moras? Muitas histórias de pessoas denunciavam desemprego, discriminação, ausência de serviços públicos como creches e escolas. No editorial é destacado o crescimento do número de pessoas nas ruas e a grave situação econômica do país com desemprego em massa.

Na edição seguinte, movimentos de moradia acampam em frente à Prefeitura para exigir compromissos de campanha. Notícias dão conta de mortes pelo frio; atraso do início da operação inverno; do Dia de Luta do Povo da Rua com o título A miséria fala por si mesma.

Em 1995, muitas matérias diziam respeito à “Operação Limpeza” da Prefeitura de São Paulo, que recolhia pertences das pessoas, obrigando-as a se retirarem, além da violência expressa no depoimento que virou manchete da edição de fevereiro/março de 1995, “A Polícia nos trata na base da pancada”.

“Com o prefeito, estamos todos atrás das grades”, referência à política municipal de fechamento das praças e lugares públicos para “cercear o direito de ir e vir. O povo espera soluções que respeitem um pouco mais o direito à cidadania: trabalho, moradia, saúde e escola”, comenta o jornal à pág. 3, junho, 1995.

Essas edições são emblemáticas para identificar o descaso dos governantes e ausência de políticas de atendimento, mas também discriminação e preconceito de como eram tratados nesse período de administração de Paulo Maluf (1993-1996) sem políticas públicas e repressão violenta nas ruas.

Com o governo de Celso Pitta (1997-2000) observa-

se a expansão dos conhecidos albergues. Ter a população de rua como alvo da atuação institucional é, sem dúvida, relevante, porém são preocupantes as condições de atendimento dos albergues. Durante pesquisa que realizei (1996/1998), depoimentos sobre albergues apareciam espontaneamente e de forma bastante recorrente, tanto sobre as péssimas condições de atendimento (particularmente, as dos banheiros, de alguns

deles; não raro, a água fria nos chuveiros, inclusive no inverno rigoroso) como pela ausência de trabalhos socioeducativos ou atividades que proporcionassem a saída das ruas.

“A política das duas administrações do Partido Popular Brasileiro (PPB) de Paulo Maluf e Celso Pitta sempre foi a de reduzir espaços onde a população de rua se aloja, gradeando praças, tapando baixos dos viadutos e aumentando os

espaços de confinamento da população. Grandes albergues e espaços de convivência aumentaram, sem dúvida, mas isso também significa menor visibilidade da quantidade de pessoas que se encontram nas ruas”. (junho, 1999)

“Maluf e Pitta – oito anos de descaso com o povo da rua”. Esta manchete sintetiza o que representou a administração municipal neste período. (Nov/Dez, 2000, pág. 8).

“Com o prefeito, estamos todos atrás das

grades”“ A administração municipal de Paulo Maluf, bem no início da gestão, em 1993, extinguiu o Fórum Coordenador dos Trabalhos existente na área central, coordenado pela Secretaria Municipal de Bem-Estar Social – região Sé/Lapa. Em seguida, organizações não governamentais e o gabinete da então vereadora Aldaíza Sposati retomaram as discussões sobre o atendimento à população de rua, em São Paulo, tendo por base o documento Proposta de Criação de Dotação Orçamentária elaborado em abril de 1992.

O jornal noticiou amplamente essas iniciativas e a luta que resultaram na Lei 12.316/97, pioneira no Brasil, como proposta de política pública. Primeiramente, a proposta de lei sofreu veto do então prefeito Paulo Maluf e transformou-se em lei somente

A conquista da Lei 12.316 pela pressão popular

após a derrubada deste pela Câmara Municipal. Depois sofreu ação de inconstitucionalidade por parte do então prefeito Celso Pitta. Na edição de junho de 1999, o jornal apontou a mudança de posição de Celso Pitta ao retirar veto à “Lei do Povo da Rua”. Nesse momento, Celso Pitta encontrava-se totalmente isolado e abandonado pelas forças políticas que o elegeram e com esse gesto busca apoio e legitimidade no Dia de Luta do Povo da Rua, realizado no dia 21 de maio.

“Mudou o prefeito ou mudaram as circunstâncias”? indaga o jornal.

“Ele se encontra em todos os cantos da cidade e tem presenciado na rua as mais variadas situações: solidariedade de muitas pessoas, desprezo de outros, descaso das autoridades, agressões da polícia, muitas bocas de rango (alimento), mocós (barracos de rua) e a alegria em meio às amarguras da rua. A partir desse número as autoridades que se cuidem pois o nosso amigo, apesar da dureza do viver na rua, comentará com humor os fatos do dia a dia”. Em maio de 1996 (nº.31), o desenhista Osmar G. Koxne inicia sua colaboração com o jornal.

Zé do Trecho entra em ação!

O jornal O Trecheiro registrou em várias edições, na década de 1990, a incorporação de pessoas em situação de rua a um movimento social coletivo e organizado de luta pela terra – o MST. Da Rua para a Terra foi um programa importante revelado no início da década de 1990. Tudo indica que aderir ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra proporcionou às pessoas que moravam nas ruas e em albergues a recuperação da dignidade pessoal, o sentimento de pertencimento à coletividade, a possibilidade de refazer seu projeto de vida.

Da Rua para a Terra

Fotos: Arquivo Rede Rua

Cleisa Rosa

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O Trecheiro pag 12 Agosto de 2011

“Não existe luta sem comunicação”

O jornal O Trecheiro realizou no dia 16 de agosto, na Casa de Oração, no bairro da Luz em São Paulo, o seminário Movimentos Sociais: organização, desafios e perspectivas, como atividade comemorativa aos seus 20 anos, completados em agosto. “Comemoramos 20 anos de luta por direitos, políticas públicas, por vida digna e visibilidade das pessoas em situação de rua. Reservamos este momento para fazer um balanço desta história”, afirma Alderon Costa, editor do jornal.

O encontro reuniu representantes de três movimentos sociais – moradia, população em situação de rua e catadores de material reciclável – para uma avaliação dos últimos 20 anos de luta dos três setores sociais, história esta registrada pelas páginas do jornal. “O Trecheiro é um documento histórico. Daqui a 200 anos vamos saber o que aconteceu nesta cidade pelas páginas deste jornal. O Trecheiro é responsável por garantir em nossa memória a história de lutas que estamos construindo”, avalia padre Júlio Lancellotti, presente no evento.

Para o representante do Movimento Nacional da População de Rua, Anderson Lopes Miranda, O Trecheiro comunica o que ninguém quer comunicar. “Nós somos os excluídos da sociedade e, também, somos excluídos dos grandes veículos de comunicação. Normalmente quando falam sobre nós é para nos tratar como um estorvo à sociedade, não para dizer sobre nossa luta, nossa história. O Trecheiro inverte esta situação, traz o respeito e o protagonismo da população em situação de rua”, afirma Miranda.

Há duas décadas

Padre Júlio lembrou a conjuntura política e social que predominava há duas décadas. “O surgimento da Rede Rua há 20 anos não é uma mera coincidência. Aquele momento houve uma convergência de situações propícias à luta. Houve a criação da Pastoral da Rua e tínhamos dom Evaristo

Arns como arcebispo de São Paulo. Tivemos a primeira prefeita mulher e nordestina em São Paulo, Erundina, cuja administração deu espaço para o fortalecimento de vários movimentos”, avalia.

Comunicar para mobilizarMeios de comunicação são

fundamentais nas mobilizações sociais. Não existe luta sem comunicação, avalia Luiz Kohara do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, que avalia com otimismo os resultados da mobilização das últimas décadas. “Quem poderia imaginar há 20 anos, quando os movimentos estavam se constituindo, que estaríamos agora nesta mesa com toda esta representatividade contando suas lutas e perspectivas. E O Trecheiro sempre respeitou o protagonismo desta população”, disse Kohara.

Coleta seletivaRoberto Rocha, hoje

representante do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), em uma de suas coletas seletivas conheceu por acaso O Trecheiro. “Posso dizer que só estou aqui por causa do jornal”, disse.

Rocha soube pelo jornal que haveria uma formação para catadores na Coopamare. “Fiz o curso e estou aí nesta luta há dez anos. Fui formado por boas mãos. Tive um bom alicerce para fazer uma luta que não é fácil, pois envolve várias forças econômicas. Hoje somos assediados, são muitos interesses e temos que ter boa formação para nos mantermos firmes, para sabermos de onde a gente veio e o que a gente é”, avalia.

Nos últimos nove anos, Rocha afirma que houve abertura por parte do governo federal para assegurar avanços, pelo menos por lei, em pontos fundamentais para os catadores, como foi o caso da aprovação do Plano

Nacional de Resíduos Sólidos, uma reivindicação do MNCR. “Uma das nossas preocupações é que a linha de financiamento é destinada apenas para aqueles que estão organizados. Se a gente não tomar cuidado pode virar um elemento de exclusão, afinal a maioria dos catadores ainda está nas ruas ou nos lixões”, alerta.

Outro ponto que preocupa os catadores é o fim dos lixões que, por lei, está assegurado até 2014. “A questão é o que acontecerá com os catadores que ainda trabalham nestes locais. Queremos saber como será este processo”, indaga.

Rocha alerta ainda para o fato de que ser catador pode estar virando um modismo e que pode desvirtuar o debate que há anos o movimento vem travando com a sociedade e governos. “Um exemplo é o programa Limpa Brasil, cuja propaganda traz atores dizendo ‘sou catador’. Mas de fato não trata o mal pela raiz, não leva em consideração que milhares de pessoas em situação de pobreza vivem do lixo”, critica.

Direito transformado em mercadoriaA moradia digna é um direito

constitucional, mas é também a mercadoria mais cara em todas as sociedades. “É um direito que foi transformado em mercadoria”, resume Kohara.

Graça Xavier, representante da União dos Movimentos de Moradia (UMM), lembra

quando chegou da Bahia em São Paulo na década de 1980. “Casada, com filhos, a opção era comprar comida ou pagar aluguel”, lembra.

Foi quando começou a atuar na Pastoral da Moradia e seguiu adiante pelos movimentos sociais. “Em mais de 20 anos de história, passamos por vários tipos de governo. Não temos uma política de Estado, temos políticas de governo”, disse. Nesse contexto, avalia, os movimentos precisam se organizar e acumular poder de pressão. “Para isso, são fundamentais educação e formação política”.

A representante da UMM denuncia que em São Paulo vem ocorrendo por semana até oito despejos, envolvendo cerca de 150 pessoas cada um deles, seja de favelas ou prédios ocupados. “O contexto desta situação envolve as obras da Copa. As pessoas estão indo para rua. Temos que fazer parcerias com entidades

Renata Bessi

do Brasil”, declara Miranda. Em São Paulo, a população

em situação de rua está sendo engrossada com as ações cotidianas de despejos e com a falta de trabalho. “A rua não é uma questão apenas nossa, ela perpassa outros movimentos. O passo para se cair na rua é muito curto”, avalia ele.

Articular lutasTanto a luta da população em

situação de rua, dos movimentos de moradia, quanto dos catadores é marcada pelo deficit de políticas públicas. “Existem leis, mas pouca efetividade. E os movimentos só poderão combater esta situação com união”, afirma Kohara.

Os movimentos sociais estão divididos em muitas agendas, avalia. “O que precisamos é integrá-las. Os primeiros a serem usurpados sempre são as pessoas em situação de rua, os catadores e as pessoas de moradia de baixa renda. É só avaliar quem são os principais atingidos pelas obras da Copa. Os megaeventos são problema comum a todos eles. Não precisamos criar nada apenas articular as lutas”, diz Kohara.

Internação compulsória

Durante os debates uma das principais preocupações em relação à população em situação de rua foi a questão da internação compulsória, que entrou na agenda nacional. Alguns Estados, como o Rio de Janeiro, já estão levando adiante a prática, mesmo sob fortes críticas do Conselho Federal de Medicina. A coordenação do encontro se propôs a realizar um debate em breve especificamente sobre o assunto.

Ao vivo O encontro teve, em parceria

com o MNCR, transmissão ao vivo pela internet, inclusive com a participação dos internautas nos debates. Foi a primeira transmissão ao vivo no histórico de debates promovidos pela Rede Rua. A TVT também fez a cobertura do evento. A matéria pode ser conferida no www.falarua.org - www.rederua.org.br - www.mncr.org.br

Jornalista do MNCR, Davi Amorim, intermedia

a participação na internet

Fotos: Alderon Costa/Rede Rua

e organizações internacionais e fazer a denúncia”, conclama Graça.

Mobilização na rua

O MNPR surge a partir do Fórum da População de Rua que se reunia, na Casa de Oração em São Paulo, para debater políticas públicas, lembra Miranda. “Em 1991, tivemos o primeiro Dia de Luta, na época da gestão Erundina. Os gestores eram

sensibilizados com a causa e tínhamos apoio. Fomos nos mobilizando e, em 2001, participamos com os catadores da primeira Marcha à Brasília. Os catadores tiveram um papel importante em nossa organização”, afirma.

Em 2004, ocorre o Massacre da Sé. “Foi quando criamos definitivamente o MNPR. A gente precisava se organizar. A partir de então fomos ganhando força e corpo em vários estados