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Nonada: Letras em Revista E-ISSN: 2176-9893 [email protected] Laureate International Universities Brasil Basílio, Raquel A teoria do valor linguístico revisitada Nonada: Letras em Revista, vol. 1, núm. 20, mayo-septiembre, 2013, pp. 55-80 Laureate International Universities Porto Alegre, Brasil Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=512451670004 Como citar este artigo Número completo Mais artigos Home da revista no Redalyc Sistema de Informação Científica Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

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Nonada: Letras em Revista

E-ISSN: 2176-9893

[email protected]

Laureate International Universities

Brasil

Basílio, Raquel

A teoria do valor linguístico revisitada

Nonada: Letras em Revista, vol. 1, núm. 20, mayo-septiembre, 2013, pp. 55-80

Laureate International Universities

Porto Alegre, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=512451670004

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Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal

Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

A teoria do valor linguístico revisitadaLa théorie de la valeur linguistique revisité

Raquel Basílio

RESUMOEste artigo é parte da tese de doutoramento Língua e Sujeito: um percurso entre Saussure e Lacan (2010), cuja temática considera a teoria do valor como lugar privilegiado da influência que o sujeito sofre/causa nos movimentos sistêmicos. A partir do exame documental das fontes publicadas, conclui-se que é na tensão sistêmica que é possível perceber o esboço de uma gramática do sentido.

PALAVRAS-CHAVEsujeito; sistema; valor.

RÉSUMÉCet article fait partie de la thèse de doctorat « Langue et Sujet: un parcours entre Saussure et Lacan » (2010), dont la thématique considère la théorie de la valeur comme le lieu privilégié de l’influence que le sujet souffre/cause dans les mouvements systémiques. A partir de l’examen des sources documentaires publiées, on conclut que c’est dans la tension systémique, qu’il est possible des’apercevoir les ébauches d’une grammaire du sens.

MOTS-CLÉSSujet; système; valeur.

Ferdinand de Saussure (...). Essa figura assu-me agora os seus traços autênticos, aparece-nos na sua verdadeira grandeza. Não há um só lin-guista hoje que não lhe deva algo. Não há uma

só teoria geral que não mencione o seu nome.Émile Benveniste

Como Benveniste, afirmamos que todos os diversos modos de se

atuar no campo da linguística, de algum modo, devem algo a Saussure.

Seja para lhe refutar a palavra ou para apoiar suas ideias - esboçadas

na edição de 1916 -, parte-se desse ponto em comum: O Curso de

Linguística Geral (CLG). Desse modo, podemos dizer, sem reservas,

56 Nonada • 20 • 2013

que as teorias do campo da linguagem se desenvolvem desde o século

passado a partir ou por meio de um diálogo constante com Saussure,

ou mais precisamente, com o Curso de Linguística Geral (1916). Al-

gumas vezes uma conversa amena, outras vezes um debate furioso,

mas sempre esse diálogo está implícito ou explícito nas teses e teorias

da linguagem.

Durante este longo diálogo, que se arrasta por quase um século,

alguns pontos da teoria parecem se perder em meio às diferentes leitu-

ras feitas da edição de 1916. Por exemplo, a ideia de uma exclusão do

sentido vigora em praticamente todos os diálogos feitos. Desse modo,

discutir uma semântica a partir da reflexão saussuriana pode causar

um estranhamento nos leitores acostumados a ouvir sobre exclusões

comuns à teoria de Ferdinand de Saussure.

Hoje, como já disse Émile Benveniste, vemos Saussure de um

ponto de vista diferente do de seus contemporâneos que leram o

Mémoire sur le système primitif des voyelles dans les langues indo-

-européennes e estavam mergulhados nas questões que motivaram a

reflexão saussuriana como, por exemplo, o embate entre os linguistas

comparativistas que vinham de uma respeitada tradição e os jovens

neogramáticos que discutiam a necessidade de um novo ponto de

vista para os estudos da linguagem.

Grande parte de nós lemos apenas as notas preparatórias para os

três cursos ministrados em Genebra poucos anos antes da morte de

Saussure em 1913 em uma edição feita por seus alunos. Desse modo,

a pergunta crucial ainda seria a mesma feita por Benveniste (1963,

p. 34): “O que foi que Saussure trouxe à linguística do seu tempo, e

em que agiu sobre a nossa?” A resposta, talvez, só nos seja acessível

a partir da (re)construção de um referencial teórico-metodológico

para descrição e análise crítica dos escritos deixados por Saussure e

dos diversos textos dos seus comentadores, objetivo maior de nossa

pesquisa. Por hora nos delimitaremos a esboçar comentários sobre

A teoria do valor linguístico revisitada

57Nonada • 20 • 2013

a teoria do valor e alguns desdobramentos desta para a questão da

semântica saussuriana.

INTRODUZINDO A QUESTÃO

A construção de um referencial teórico-metodológico para descri-

ção e análise crítica dos escritos deixados por Saussure é de natureza

comparativa e lexicológica. Dedicamos nossos esforços ao trabalho de

demarcar as relações que se estabelecem nos textos saussuriano dos

termos linguagem, língua, fala (discurso e faculdade de linguagem) e

determinar o valor de cada um dos termos em comparação sistêmica.

Exemplificaremos o método ao tratar do problema do sentido e da

significação, objeto deste trabalho, que, dentro do sistema conceitual

saussuriano se constitui como uma questão de enorme complexidade,

pois subjazem questões mais amplas, como, por exemplo, sobre a

natureza da língua e da linguagem e o tipo de relação que as unidades

da língua estabelecem, a natureza da fala como jogo de linguagem e

o estatuto do discurso a partir da conceituação da fala em relação à

linguagem, ou melhor, como “jogos de linguagem” (ARRIVÈ, 2010,

p. 115-132), bem como a relação língua e sujeito falante no sistema

linguístico.

Nosso ponto de partida está fixado na coleção de documentos histo-

ricamente ligados à personalidade de Saussure. Trata-se de um arquivo

aberto que continuamente recebe textos de vários autores: os textos

manuscritos de Saussure; o texto que compõe o Curso de Linguística

Geral editado por Bally e Sechehaye; lembranças de amigos; cartas para

Saussure e outras escritas por Saussure; o diário do pai de Saussure;

documentos de trabalhos identificados como pertencentes a alunos

de Saussure, como folhas e notas sobre a entonação da Lituânia, -

uma das disciplinas por ele ministrada -; documentos relacionados à

pesquisa dos anagramas e das lendas germânicas; textos publicados

Raquel Basílio

58 Nonada • 20 • 2013

em vida pelo professor, anotações pessoais, entre tantos outros.

O segundo passo relaciona-se com o tratamento dado aos docu-

mentos. Apesar de alguns autores conferirem graus de autenticidade

a estes documentos (KYHENG, 2010; BRONCKART, 2011, BOUQUET,

2011), partimos, em nossa pesquisa, do ponto de vista que o material

citado deve ser lido de forma integral. Levando-se em consideração

a diversidade dos documentos, a delimitação de um dado corpus de

estudo deve ser realizada em decorrência direta do objeto de análise,

podendo conter diversos textos de diferentes naturezas, respeitando e

observando as peculiaridades de cada documento no desenvolvimento

do trabalho interpretativo.

A natureza fragmentária de tais documentos nos impõe a necessida-

de de compreender o impressionante trabalho empírico anterior sobre

a comparação de diversas línguas distribuídas no espaço e no tempo.

Esse trabalho realizado por F. de Saussure evidencia a importância de

reler a reflexão do professor como fruto de uma constante pesquisa

sobre a permanência das mudanças que atingem tanto as palavras

como os conceitos que elas veiculam e a relação de significação entre

essas duas entidades.

Por causa da limitação física deste artigo delimitamos como nosso

corpus de análise apenas dois fragmentos que tratam especificamen-

te do valor linguístico. Na edição de 1916 delimitamos os seguintes

capítulos: As unidades concretas da língua; Identidades, realidades,

valores; O valor linguístico; Relações sintagmáticas e relações asso-

ciativas; Mecanismo da língua e O papel das entidades abstratas em

gramática. Também compõem o corpus as notas das aulas 23, 27, 30

de junho e 4 de julho de 1911, organizadas e publicadas por Bouquet

e Engler (2002).

Em algumas ocasiões recorreremos a outros documentos que não

fazem parte desse corpus para elucidar questões que estão em torno

do nosso problema: o sentido e a significação dentro do sistema con-

A teoria do valor linguístico revisitada

59Nonada • 20 • 2013

ceitual saussuriano. Para tornar mais claro o fato sistêmico recorre-

mos a um traço constante na meditação saussuriana, a repetição. A

repetição observada na pesquisa com os anagramas, com as lendas

germânicas e nas suas considerações sobre uma linguística geral se

constitui efeito da natureza sistêmica do objeto e da incompletude da

reflexão saussuriana. Desse modo, aquele que tem como objeto de

pesquisa a reflexão saussuriana, por vezes, vê-se obrigado a recorrer

à repetição como método “porque o lugar que o ponto de doutrina

estudado assume no sistema é diferente” (ARRIVÈ, 2010, p. 15).

A partir desse pequeno corpus delimitado tentaremos reconstruir o

percurso enunciativo de Saussure sobre o valor linguístico e termos

ligados a este conceito norteador, tendo como fim a verificação da

hipótese inicial de que a semântica saussuriana tem como núcleo a

teoria do valor e que a produção de valores no eixo sincrônico e no

eixo diacrônico são movimentos sistêmicos próprios da semântica

saussuriana (CHOI, 2002; ARRIVÈ, 2010). Por meio da reconstituição

do percurso enunciativo desses documentos citados, visamos com-

preender a importância dos conceitos desenvolvidos para os estudos

relativos à natureza da linguagem.

A CARACTERÍSTICA SOCIAL DO SISTEMA

Para Saussure, “colocar-se primeiramente no terreno da língua”

(SAUSSURE, 1996, p. 16, grifo do autor) era uma prioridade que tinha

como característica primária sua dimensão social. Por esta razão, para

desenvolvermos um diálogo com a reflexão saussuriana precisamos

partir da característica social da língua.

Ao escolher a língua como objeto da Linguística, Saussure inaugurou

um corte epistemológico nos estudos da linguagem que permitiu ou

viabilizou o projeto de tornar a Linguística uma Ciência. Este gesto

inaugural deu início à Linguística Moderna, como a conhecemos

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hoje. Dosse (2007), ao redesenhar as construções do Estruturalismo

na Europa, frisa a importância desse gesto saussuriano, em especial o

da valorização do ponto de vista sincrônico nos estudos linguísticos.

A língua, objeto da Linguística em detrimento da linguagem, é defi-

nida, nos termos saussurianos como uma generalização do específico.

Isso implica uma não homogeneidade da língua. De que ponto de

vista se pode afirmar a heterogeneidade do objeto? Do ponto de vista

da gênese de objeto, pois tanto do ponto de vista do mecanismo do

sistema – daquilo que conserva a identidade sistêmica – quanto do

ponto de vista da sua natureza – a arbitrariedade de seus signos – a

língua, objeto científico, é homogênea.

A origem do objeto “a língua” é para Saussure heterogênea. Assim,

podemos afirmar que a definição da língua objeto como uma generali-

zação das línguas, implica um objeto heterogêneo e uma dificuldade de

apreensão do objeto plural. No texto referente à primeira conferência

na Universidade de Genebra, de novembro de 1891, vemos a defini-

ção saussuriana do objeto, a língua: “O estudo geral da linguagem se

alimenta incessantemente, por conseguinte, de observações de todo

o tipo que terão sido feitas no campo particular de tal e tal língua”

(Saussure, 2002, p. 129). Esta ideia de que a língua é o objeto de es-

tudo oriundo das observações feitas em todas as línguas é perceptível

também na nota para o terceiro curso. Quando Saussure fala de como

dividiu seus cursos, ele diz:

Como foi indicado, dividimos o curso em três partes e os títulos das duas primeiras diferem apenas por um singular e um plural: 1º parte: As línguas, 2º parte: A língua. Essa é a diferen-ça básica a indicar, rigorosamente, quase sem equívoco, o que deve ser a diferença de conteúdo entre as duas partes. [...] As línguas, esse é o objeto concreto que se oferece, na superfície do globo, ao linguista. A língua, é esse o título que se pode dar ao que o linguista souber tirar de suas observações sobre o conjunto das línguas, através do tempo e através do espaço (Saussure, 2002, p. 264-265).

A teoria do valor linguístico revisitada

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Teóricos como Johannes Fehr (2000) e, antes dele, Tullio de Mauro

(1995) em notas à edição italiana do Curso de Linguística Geral, afir-

mam que Saussure parte das línguas existentes em lugares concretos,

isto é, da diversidade geográfica, para construir seu objeto teórico: “a

língua” como uma generalização do que há nas línguas. Assim, esse

objeto é constituído a partir da pluralidade das línguas existentes “na

superfície do globo”. Consequentemente, “a língua” saussuriana não

é uma ordem estável e fechada, ela é pensada como um conjunto em

equilíbrio frágil, oscilante, exposto às variações constantes, como

um sistema que não é mais do que momentâneo. Partir das línguas

existentes – o francês, o inglês, o alemão, etc. – é definir “a língua”

por meio da pluralidade existente das línguas. Fazendo isso, Saussure

rompe com a tradição de partir de uma língua única, a língua-mãe,

origem da diversidade, e passa a constituir seu objeto – “a língua” – a

partir “das línguas”.

Também podemos observar, nas palavras de Saussure, que a língua

como objeto de estudo do linguista é constituída de “observações so-

bre o conjunto das línguas, através do tempo e do espaço” (Saussure,

2002, p. 265). Além das diversas línguas existentes em diferentes es-

paços geográficos, o professor sublinha a importância das diferenças

da língua através do tempo. A necessidade de se observar o tempo

em sua relação com a língua é tão importante para a constituição do

objeto língua quanto a diversidade das línguas existentes nos espaços

geográficos. Assim, “a língua” deveria ser observada numa perspectiva

sincrônica das línguas existentes – o que implica levar em consideração

a fala –, e numa perspectiva diacrônica da língua através do tempo,

como veremos ao observar as analogias.

Sobre o fato social como característica primária da língua Saussure

diz: “Elemento tácito, que cria todo o resto; que a língua circula entre

os homens, que ela é social” (Saussure, 2002, p. 86, grifo do autor).

Em outra passagem da edição de 1916 podemos ler: “O signo escapa

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sempre, em certa medida, à vontade individual ou social, estando

nisso o seu caráter essencial; é, porém, o que menos aparece à pri-

meira vista” (Saussure, 1996, p. 25). Nessas citações observamos que

o caráter social da língua é um elemento tácito que cria todo o resto.

Esse “todo o resto” refere-se a todos os outros elementos da língua, já

que é sobre eles que o professor escreve nessa passagem. Importante

é que Saussure nos define o que é social para a sua reflexão: “a língua

circula entre os homens”.

O sistema linguístico é social, ou seja, é compartilhado, ao mesmo

tempo, por muitos indivíduos. Porém estes não criam o sistema e

nada podem modificar no sistema. Os indivíduos são destituídos de

poder, por não terem consciência da língua, e por isso não podem

dominá-la, mas, ao contrário, se acham inseridos em uma tradição

por receberem a língua como uma herança das gerações anteriores a

eles mesmos. Isso quer dizer que o indivíduo não pode provocar uma

revolução repentina na língua, nem tem o poder de criar um sistema

de língua sozinho, pois o signo sempre escapa à vontade social e à

vontade individual, ao mesmo tempo.

Esta noção de língua social permite pensar a arbitrariedade como

um dos pilares do sistema linguístico. O falante em sua dimensão

social e individual, ao mesmo tempo, não tem domínio total sobre

a língua, pois a união entre um significante e um significado não é

natural, ou dependente de uma razão, mas ela é imotivada. Mas, ao

mesmo tempo, esta união é flexível, ou seja, ela não tem a rigidez

que o vínculo natural talvez implicasse. Por ser imotivada ela pode

ser modificada e assim escapar ao domínio social da língua.

A característica imotivada do signo abre caminho para a noção de

sistema ao dar sustentação à teoria do valor linguístico. Sobre isso

Saussure escreve: “Por sua vez, a arbitrariedade do signo nos faz

compreender melhor por que o fato social pode, por si só, criar um

sistema linguístico. A coletividade se faz necessária para estabelecer

A teoria do valor linguístico revisitada

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os valores cuja única razão de ser está no uso e no consenso geral: o

indivíduo, por si só, é incapaz de fixar um que seja” (Saussure [1916]

1996, p. 132). Assim, chegamos à ideia de valor, ponto fundamental

da noção de sistema que se funda no caráter social da língua como

oriunda do princípio da arbitrariedade dos signos linguísticos.

A LÍNGUA COMO SISTEMA DE VALORES

A noção de sistema é o ponto central da reflexão saussuriana. Esta

noção se inicia e culmina na teoria do valor linguístico. Podemos

dizer que quando falamos de valor estamos falando dos movimentos

do sistema, ou melhor, da identidade sistêmica. Saussure nos diz que

“o sistema nunca é mais que momentâneo” (SAUSURE [1916] 1996,

p. 104), então, como ele pode manter uma identidade que o faça ser

reconhecido pelos falantes?

Em outras palavras, poderíamos dizer que o sistema, ou “a lín-

gua”, é volátil e sua volatilidade se deve ao fato de existirem apenas

movimentos sistêmicos, não um sistema que possa ser definido por

características que lhe sejam anteriores aos valores gerados pelo fato

sistêmico.

É evidente que a característica arbitrária leva o sistema a ter valores

momentâneos já que eles só existem em relação aos outros valores.

Novamente, os valores são definidos num a posteriori, na relação que

estabelecem com outros valores gerados pelos mecanismos do siste-

ma. Um valor define-se pela oposição que ele toma diante de todo o

sistema, pela ordem da negatividade.

Saussure, ao apresentar os mecanismos do sistema, as relações

associativas e sintagmáticas, nos diz que cada uma delas produz certa

ordem de valores: “As relações e as diferenças entre termos linguísti-

cos se desenvolvem em duas esferas distintas, cada uma das quais é

geradora de certa ordem de valores” (Saussure [1916] 1996, p. 142).

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S. Bouquet (2000), ao comentar a teoria saussuriana, aponta para a

teoria do valor como uma teoria semântica, e é nessa perspectiva que

olhamos para o valor linguístico. O ponto de encontro entre a diferença

e a semelhança gera o sentido, ou o que Bouquet (idem) denominou

de fato semântico; sem esse nó não há sentido algum. As relações

associativas e sintagmáticas ocorrem ao mesmo tempo produzindo o

fato semântico. Em relação ao valor da palavra, no CLG podemos ler:

Seu valor não estará então fixado, enquanto nos limitarmos a comprovar que pode ser “trocada” por este ou aquele conceito, isto é, que tem esta ou aquela significação; falta ainda compará-la com os valores semelhantes, com as palavras que se lhe podem opor. Seu conteúdo só é ver-dadeiramente determinado pelo concurso do que existe fora dela. Fazendo parte de um sistema, está revestida não só de uma significação como também, e sobretudo, de um valor, e isso é coisa muito diferente (Saussure [1916] 1996, p. 134).

O valor, desse modo, é diferente de significação. Implica algo que

pode ser trocado, ou seja, que é semelhante e comparado a algo dife-

rente - ao mesmo tempo. Esse método de investigação dos valores da

língua repousa na premissa de que o valor não pode ser confundido

com significação. Enquanto a significação é a contraparte do signi-

ficante e junto com este constitui o signo linguístico, o valor estaria

revestindo o signo de sentido outro, a mais que aquele já conferido

pela significação em sua união arbitrária com o significante.

A significação pode ser dita como idêntica, mas os diversos em-

pregos de uma mesma palavra mostram que seus efeitos na frase

promovem valores distintos. Saussure (1996, p. 134-135) nos mostra

que no interior de uma mesma língua, “todas as palavras que expri-

mem ideias vizinhas se limitam reciprocamente: sinônimos como

recear, temer, ter medo só tem valor próprio pela oposição; se recear

não existisse, todo seu conteúdo iria para os termos concorrentes”.

Nesse caso, o que faz um significante ser bem empregado numa frase

A teoria do valor linguístico revisitada

65Nonada • 20 • 2013

e não em outra não tem relação com a gramaticalidade, mas com a

produção de sentido apenas.

Ao construir uma teoria do valor, Saussure estava especialmente

preocupado com a questão da delimitação das unidades da língua

e da delimitação do que conserva nas línguas uma identidade da

“a língua”. A delimitação de unidades de sentido estaria fortemente

relacionada à questão da identidade da língua e por sua vez dos

movimentos promovidos pelos mecanismos sistêmicos e sua geração

contínua de valores.

A apresentação da teoria do valor linguístico no Curso de Linguística

Geral (1916) está dividida em alguns capítulos. Podemos ler algo sobre

o valor já no capítulo A Linguística estática e a Linguística evolutiva.

Nesse capítulo, lemos pela primeira vez no CLG a frase: “a língua

constitui um sistema de valores puros” (Saussure [1916] 1996, p. 95).

Também lemos sobre o valor linguístico no capítulo intitulado As

unidades concretas da língua, assim como nos capítulos seguintes:

Identidades, realidades, valores, O valor linguístico, Relações sintag-

máticas e relações associativas, Mecanismo da língua e O papel das

entidades abstratas em gramática.

A complexidade da teoria do valor como ponto fundamental do

sistema implica uma séria dificuldade em apresentá-la de forma clara

e exata. Talvez por esta razão possamos observar uma fragmentação

da teoria do valor em vários capítulos da edição de 1916.

O primeiro obstáculo para o entendimento da teoria do valor

estaria na compreensão dos mecanismos da língua como dois eixos

que movem o sistema produzindo valores. Esses dois eixos movem-

-se sincronicamente e diacronicamente produzindo certa “ordem de

valores” em cada um dos eixos de tempo em que se movimentam

simultaneamente.

Desse modo, o valor linguístico pode ser observado a partir de dois

pontos de vista. Primeiro o ponto de vista da sincronia: do caráter

Raquel Basílio

66 Nonada • 20 • 2013

duplo do valor, ou seja, das relações associativas e sintagmáticas.

Depois o ponto de vista diacrônico do valor, que concerne às criações

analógicas que sobrevivem na tensão entre a sincronia e a diacronia.

Em ambos, estaremos tratando do valor como lugar do sentido no

sistema linguístico.

A PERSPECTIVA SINCRÔNICA

A metáfora do jogo de xadrez ilustra bem como os valores do sis-

tema linguístico são gerados a partir de um ponto de vista sincrônico

da língua. Primeiramente, a arbitrariedade que funda os valores é

ilustrada na metáfora do jogo de xadrez. Saussure compara a língua ao

jogo, em que os objetos não valem por sua materialidade, mas obtém

seu valor pela relação que estabelecem com os outros elementos do

jogo. Isso fica claro no texto de 1916:

Suponhamos que, no decorrer de uma partida, essa peça venha a ser destruída ou extraviada: pode-se substituí-la por outra equivalente? De-certo: não somente um cavalo, mas uma figura desprovida de qualquer parecença com ele será declarada idêntica, contanto que se lhe atribua o mesmo valor. Vê-se, pois, que nos sistemas semiológicos, como a língua, nos quais os ele-mentos se mantêm reciprocamente em equilíbrio de acordo com regras determinadas, a noção de identidade se confunde com a de valor, e reciprocamente (Saussure [1916] 1996, p. 128).

Um valor é determinado pela presença ou pela ausência de outros

valores do sistema linguístico, a relatividade se impõe nos dois eixos:

um da ausência de valores – as relações associativas – e um da pre-

sença simultânea de valores – as relações sintagmáticas. Ao mesmo

tempo em que o signo só existe pelos valores, os valores só existem

pela presença ou ausência percebida dos signos.

Semelhante ao jogo, tudo que temos na língua é momentâneo como

uma jogada que deve levar em consideração as posições das peças

A teoria do valor linguístico revisitada

67Nonada • 20 • 2013

no momento do lance e pode esquecer-se dos lances anteriores com

suas posições e jogadas. Podemos ler:

Primeiramente, uma posição de jogo corres-ponde de perto a um estado da língua. O valor respectivo das peças depende da sua posição no tabuleiro, do mesmo modo que na língua cada termo tem seu valor pela oposição aos outros termos. Em segundo lugar, o sistema nunca é mais que momentâneo; varia de uma posição para a outra. É bem verdade que os valores dependem também, e sobretudo, de uma convenção imutável: a regra do jogo, que existe antes do início da partida e persiste após cada lance. Essa regra, admitida de uma vez por todas, existe também em matéria de língua; são os princípios constantes da Semiologia (Saussure [1916] 1996, p. 104).

O valor oriundo do fato sintagmático está baseado nas oposições,

enquanto o valor oriundo das relações associativas está baseado

em semelhanças. A primeira lição que a metáfora do jogo de xadrez

nos ensina é a de prevalência da arbitrariedade como fundadora da

possibilidade de se gerar novos valores por meio dos dois princípios

da teoria do valor. No texto de 1916, estes princípios são declarados

da seguinte forma:

Todos os valores parecem estar regidos por esse princípio paradoxal. Eles são sempre constituí-dos: 1° por uma coisa dessemelhante, suscetível de ser trocada por outra cujo valor resta deter-minar; 2° por coisas semelhantes que se podem comparar com aquela cujo valor está em causa (Saussure [1916] 1996, p. 134, grifos do autor).

O primeiro princípio declara as diferenças formadoras do sintagma,

enquanto o segundo princípio declara as semelhanças formadoras

das relações associativas. O primeiro está no singular, o que nos faz

lembrar que há um limite para o sintagma, não importa a sua exten-

são, ele é um sintagma e, por isso, é limitado em relação às inúmeras

possibilidades existentes nas associações. Continuando o texto de

Raquel Basílio

68 Nonada • 20 • 2013

1916, lemos a seguinte definição do termo sintagma:

Tais combinações, que se apoiam na extensão, podem ser chamadas sintagmas. O sintagma se compõe sempre de duas ou mais unidades consecutivas (por exemplo: re-ler, contra todos; a vida humana; Deus é bom; se fizer bom tempo, sairemos etc.). Colocado num sintagma, um termo só adquire seu valor porque se opõe ao que o precede ou ao que o segue, ou a ambos (Saussure [1916] 1996, p. 142, grifos do autor).

Ao contrário, as relações psíquicas de semelhanças, relações as-

sociativas, não se baseiam na extensão, é impossível determinar uma

extensão para elas, pois estão sempre em ausência. Por isso, o segundo

princípio está apropriadamente no plural. A edição de 1916 nos diz:

“Enquanto um sintagma suscita em seguida a ideia de uma ordem de

sucessão e de um número determinado de elementos, os termos de

uma família associativa não se apresentam em número definido nem

numa ordem determinada” (Saussure [1916] 1996, p. 146).

Enquanto a diferença está no espaço de um sintagma, semelhante

a uma linha horizontal, ou seja, na linearidade que o tempo impõe

aos significantes, a existência desta “linha” implica a existência das

relações associativas, ou melhor, denunciam a sua existência. Em

cada unidade do sintagma, podemos encontrar uma coordenação

associativa.

A metáfora do jogo aplicada ao entendimento das relações sintag-

máticas e das relações associativas nos explica que os valores gerados

são de ordem gramatical, mas não uma gramática normativa ou uma

gramática baseada apenas nas formas. Podemos ilustrar da seguinte

forma: cada peça no tabuleiro tem uma posição específica no jogo. Essa

posição é sempre dependente e decorrente da posição das demais peças

existentes que constituem o jogo. A posição de cada peça é sempre

relativa e momentânea, definida não pelo tabuleiro, mas pela ordem

em que as demais peças se encontram. Assim, no sistema da língua,

A teoria do valor linguístico revisitada

69Nonada • 20 • 2013

cada signo tem uma posição/relação específica dentro das regras que

estruturam a língua e definem seu funcionamento, as regras do jogo.

Tomando nossa língua materna como exemplo, pode-se dizer que

o artigo é distribuído relacionando-se com o substantivo, isso ocorre

porque o artigo tem, na língua, a função de determinar o substantivo.

Aparentemente simples, mas um sintagma assim construído e em

relação com as associações que o sustentam e o suscitam, ao mesmo

tempo, permite que uma significação seja revestida de novo valor a

cada “jogada” em que relações de signos se movimentam na geração

de sentido.

A PERSPECTIVA DIACRÔNICA

Ao descrever o funcionamento das analogias no sistema linguístico,

Saussure falava “a respeito da organização gramatical” (Saussure,

2002, p. 266) e, ao mesmo tempo, de valores observados do ponto de

vista diacrônico. As formações analógicas estão, segundo o professor,

presentes em todas as línguas. Para ele, “uma língua qualquer num

momento qualquer, nada mais é do que um vasto enredamento de for-

mações analógicas” (Saussure, 2002, p. 140). Dessa forma, a analogia

não é um fato único ou excepcional de uma língua, mas constitui “a

substância mais clara da linguagem” (Saussure, 2002, p.141).

Saussure nos dá vários exemplos de processos analógicos, um deles

é do nominativo latino honor. Segundo o professor,

a princípio se disse honõs: honõsem, depois, por rotacismo do s, honõs : honõrem. O radical tinha, desde então, uma forma dupla; tal dualidade foi eliminada pela nova forma honor, criada sobre o modelo de orator: oratorem etc (Saussure [1916] 1996, p. 187, grifos do autor).

Ou seja, honor, criado a partir da relação com orator, serviu de

modelo para a nova forma, honõrem. Podemos perceber, também neste

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70 Nonada • 20 • 2013

exemplo, que a analogia não substitui o termo anterior, pois temos

dois termos diferentes que coexistem por um tempo, até que uma das

formas desapareça. O quadro presente na edição de 1916 é o seguinte:

Percebemos, desse modo, que o processo analógico, neste exemplo,

unificou um grupo de signos antes separados. “A analogia se exerce

em favor da regularidade e tende a unificar os processos de formação

e flexão” (Saussure [1916] 1996, p. 188). A natureza da analogia é

exemplificada no texto de 1916:

Todo fato analógico é um drama de três persona-gens: 1º o tipo transmitido, legítimo, hereditário (por exemplo, honõs); 2º o concorrente (honor); 3º uma personagem coletiva, constituída pelas formas que criaram esse concorrente (honõrem, õrõtor, õrõtõrem etc.). Considera-se, habitual-mente honor com uma modificação, um “me-taplasmo” de honõs; é desta última palavra que teria tirado a maior parte de sua substância. Ora, a única forma que nada teve a ver com a gera-ção de honor foi precisamente honõs! (Saussure [1916] 1996, p. 189).

Uma mudança implica uma substituição. Segundo Saussure, a ana-

logia não é uma mudança, mas uma criação. Uma nova forma é feita

à imagem de outras formas já existentes. Ele nos diz que as formas

analógicas constituem “um princípio das criações da língua” (Saussure

[1916] 1996, p. 191), um princípio de criações de ordem gramatical:

tudo é gramatical na analogia [...] Em resumo, a analogia, considerada em si mesma, não passa de um aspecto do fenômeno de interpretação, uma manifestação da atividade geral que distin-gue as unidades para utilizá-las em seguida. Eis porque dizemos que é inteiramente gramatical e sincrônica (Saussure [1916] 1996, p. 192-193).

A analogia é resultado do sistema, é resultado das relações sintagmá-

ticas e associativas que promovem uma nova forma. É necessário que

se comparem as formas para que seja criada uma nova, à semelhança

de outra já existente. O que se cria é um novo valor, que está numa

A teoria do valor linguístico revisitada

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relação de semelhança e diferença com as formas que lhe emprestaram

a matéria e estão num estado anterior da língua. Por isso, o professor

nos diz que ela é, ao mesmo tempo, sincrônica e diacrônica, ou seja,

a forma analógica é revestida de um valor diacrônico e de um valor

sincrônico ao mesmo tempo. Como a analogia faz isso?

É na fala que se acha o germe de todas as modi-ficações: cada uma delas é lançada, a princípio, por certo número de indivíduos, antes de entrar em uso. [...] Como se efetuou essa substituição de war por was? Algumas pessoas, influenciadas por waren, criaram war por analogia; era um fato da fala; esta forma, frequentemente repetida e aceita pela comunidade, tornou-se um fato de língua (Saussure [1916] 1996, p. 115, grifos do autor).

Da forma descrita na citação acima, a analogia assume um papel

no processo de transformação ou de evolução de uma língua: “Cada

vez que uma criação se instala definitivamente e elimina sua con-

corrente, existe verdadeiramente algo criado e algo abandonado, e

nesse sentido a analogia ocupa um lugar preponderante na teoria da

evolução” (Saussure [1916] 1996, p. 197).

Um aspecto importante é que, segundo a citação, o “nascimento”

da analogia ocorre na fala, no uso efetivo que os falantes fazem cons-

tantemente da sua língua materna.

Entendemos que ao perceber a língua como um sistema em cons-

tante estado de retomada e perda de equilíbrio, tomando, por vezes,

nova posição, ou seja, se reorganizando dia após dia, podemos afirmar

que a língua é um sistema em perpétuo desequilíbrio e em perpétuo

estado de reorganização. Falar da analogia é falar daquilo que se

sustenta na tensão entre a sincronia e a diacronia, e faz perceber que

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72 Nonada • 20 • 2013

a separação entre os dois eixos é artificial, levando-nos a acreditar

numa intensa dialética presente na reflexão saussuriana.

As criações analógicas, num movimento de substituição metafórica,

permitem observar e descobrir um sentido para ordem gramatical. Ape-

sar de que para os sujeitos que as originam não há uma premeditação.

A tensão em que o sistema sobrevive, entre equilíbrio e desequilíbrio

constante, permite falar sobre as mudanças e sobre o que permanece

imutável. Esse ponto de vista permite também, a partir das criações

de analogia, explicada à luz das relações associativas e sintagmáticas,

percebermos a relação sujeito falante e língua na teoria do valor como

teoria do sentido, inclusive quando tratamos dos valores de um ponto

de vista diacrônico.

Para descrever o mecanismo da analogia no movimento do sistema

de língua, apoiamo-nos, primeiramente, na edição de Bally e Sechehaye

datada de 1916. Optamos por essa edição pela simples razão de ter

sido essa a que fundou todos os diálogos subsequentes entre Saussure

e a Linguística, porém não podemos deixar de perceber a questão das

formas do sentido que o professor discute ao desenvolver sua teoria do

valor linguístico, tanto nas notas de aula escritas pelo próprio Saussure

para os três cursos ministrados em Genebra, quanto em outras notas

esparsas datadas provavelmente de antes de 1900, quando ele ainda

residia na França.

A TEORIA DO VALOR REVISITADA

Voltemos à pergunta crucial feita por Benveniste (1963, p. 34): “O

que foi que Saussure trouxe à linguística do seu tempo, e em que agiu

sobre a nossa?” Este breve diálogo não apresenta uma resposta pronta,

mas aponta para possíveis desdobramentos. Entre eles, a necessidade

de entender a criação de sentido presente na língua que está além

da significação que compõe, junto com o significante, o signo como

A teoria do valor linguístico revisitada

73Nonada • 20 • 2013

unidade do sistema.

Primeiramente, as criações analógicas - como discutido acima - são

criações de ordem gramatical. Por essa razão Saussure faz questão

de distingui-las das mudanças fonéticas, que para ele seriam mais

caóticas e ligadas inteiramente ao princípio do arbitrário absoluto.

Quando falamos em gramática é importante frisar que estamos nos

referindo ao seu sentido mais amplo, ou seja, à gramática no sentido

de conjunto das formas e dos procedimentos (funcionamento) mais ou

menos restritivos que permitem exprimir a significação. Poderíamos

dizer que a gramática, na teoria saussuriana, está ligada ao conceito

de identidade da língua, daquilo que, por ter certa estabilidade, per-

mite que o sujeito falante identifique-a e/ou identifique-se na língua.

Desse modo, as analogias estão estreitamente ligadas à possibilidade

do arbitrário de se relativizar. O arbitrário relativo é sempre relativo

ao arbitrário absoluto. Nas palavras do autor:

Com efeito, todo o sistema da língua repousa no princípio irracional da arbitrariedade do signo que, aplicado sem restrições, levaria à compli-cação suprema; o espírito logra introduzir um princípio de ordem e de regularidade em certas partes da massa dos signos, e esse é o papel do relativamente motivado. Se o mecanismo da língua fosse inteiramente racional, poderíamos estudá-lo em si mesmo; mas como não passa de uma correção parcial de um sistema natural-mente caótico, adota-se o ponto de vista imposto pela natureza mesma da língua, estudando esse mecanismo como uma limitação do arbitrário (Saussure [1916] 1996, p. 154).

Enquanto o arbitrário absoluto permite gerar divisões na massa

amorfa de sons e de ideias sem limite algum, gerando as mudanças

fonéticas e, ao mesmo tempo originando as unidades da língua, o ar-

bitrário relativo impõe uma mudança de outra ordem. O relativamente

motivado gera valores pela via dos fatos gramaticais da língua e pode

por meio deles ser explicado ou mesmo recriado em seu percurso. Nas

palavras de Saussure, o sujeito logra o arbitrário absoluto e a força

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particularista, ou melhor, e o “espírito de campanário” ([1916] 1996,

p. 238), introduzindo ordem no sistema, “freando” as divisões nas

massas amorfas, conferindo ao sistema um caráter social e a um só

tempo, mutável e imutável. Essa tensão tem origem em duas forças

que organizam os sistemas semiológicos em geral, ou seja, no fugaz

equilíbrio entre o “espírito de campanário” que permite a manuten-

ção e a evolução constante desses sistemas. No sistema linguístico,

essas duas forças se traduzem no princípio do arbitrário absoluto e

no princípio do arbitrário relativo, princípios que estão no centro dos

processos de produção de valores (SAUSSURE, [1916] 1996, p. 132;

DE MAURO, 1995, nota 228).

Segundo o professor genebrino, a analogia, diferentemente das mu-

danças fonéticas, representa “operações inteligentes, em que é possível

descobrir um objetivo e um sentido” (Saussure, 2002, p. 139), é um

“fenômeno de transformação inteligente” (Saussure, 2002, p. 139)

que “supõe análises e combinações, uma atividade inteligente, uma

intenção” (Saussure [1916] 1996, p. 207). Isso significa que, diferen-

temente das transformações fonéticas, é possível apontar, na origem

da analogia, uma lógica advinda das operações do arbitrário relativo.

Tomemos a liberdade de repetir a citação já observada, porém, dessa

vez, ressaltando um segundo aspecto, o da função do sujeito falante

no processo de gerar valores no eixo diacrônico. Leiamos novamente:

É na fala que se acha o germe de todas as modi-ficações: cada uma delas é lançada, a principio por certo número de indivíduos, antes de entrar em uso. [...] Como se efetuou essa substituição de war por was? Algumas pessoas, influenciadas por waren, criaram war por analogia; era um fato da fala; esta forma, frequentemente repetida e aceita pela comunidade, tornou-se um fato de língua (Saussure [1916] 1996, p. 115, grifos do autor).

Nesta citação Saussure coloca a origem das modificações na linea-

ridade sintagmática de um ato de fala que é permeado pela presença

A teoria do valor linguístico revisitada

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inconsciente do sujeito falante, que permite que essa pequena mu-

dança contamine o sistema e se torne um fato de língua, ou seja, que

circule ao ponto de tornar-se social e conduzir a um novo modo de

organização do sistema. Esse novo modo de organização do sistema

da língua está implicado em novos valores, sentidos outros dados

aos mesmos significantes, já usados, “velhos”. Por exemplo, como o

verbo “ir” passou a figurar em contextos que não são propriamente de

lugar, mas também de ideias? Dizemos normalmente “eu irei pensar

nisso hoje”; quando antes não seria apropriado esse uso. Poderíamos

pensar em diversos exemplos dessa ordem.

Primeiramente o que está em questão nas mudanças provocadas

por criações de analogias são os empregos que os falantes fazem ao

“introduzir um princípio de ordem e regularidade” que Saussure cha-

ma de arbitrário relativo que faz emergir efeitos de sentido em cada

emprego das formas linguísticas.

Segundo, do ponto de vista sincrônico, podemos nos perguntar

- como já fez Claudine Normand (2010) – “quais são os valores do

verbo que afetam o uso de uma declaração e a tornam admissível ou

inadmissível para o falante?”, ou de modo mais amplo, quais são os

valores das formas linguísticas que afetam o uso de uma declaração

e a tornam admissível ou inadmissível para o falante? Ou melhor, que

valores estão sendo produzidos quando um sintagma entre em cena?

O sentido de um signo só pode ser definido pela soma total dos

seus empregos e pela sua distribuição e ligações que resultam deste

emprego. É o caso de significantes que possuem dois ou mais signi-

ficados. Em cada emprego um mesmo significante se recobre de um

valor diferente, ou melhor, de um novo sentido que não pode ser

dado de antemão, pois é construído no momento da fala em que o

jogo entre as relações associativas e sintagmáticas é articulado por

um sujeito falante.

Para exemplificar, podemos pensar no uso do verbo “perder”. A

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frase “eu perdi a minha caneta” não tem o mesmo sentido que “eu

perdi minha filha” ou “eu perdi minha esposa”. No entanto, são as

semelhanças e, ao mesmo tempo, as diferenças que condicionam seu

emprego num ou noutro contexto, conferindo-lhe valores distintos.

O jogo semântico se constrói pela criação de analogias, na tensão

existente entre a sincronia e a diacronia. Isso significa que há em jogo

o arbitrário relativo e uma produção única de valores gerados pelo

emprego de formas significativas da língua.

Declarações semanticamente semelhantes não são semanticamente

equivalentes desse ponto de vista. Desse modo, o valor gerado ou

produzido no movimento do sistema estaria ligado ao que podemos

chamar de uma “gramática do sentido” que permite compreender o

fato social da língua como ligado aos empregos que o sujeito falante

faz ao identificar e se identificar na “a língua”.

CONSIDERAÇÕES

Trata-se dO vigor de um pensamento que, à imagemda fênix, não morre, senão para ressurgir mais belo.

(Rudolf Engler, por ocasião da inauguração do Instituto Ferdinand de Saussure)

O esboço de um método de análise semântica é o segundo passo a

ser dado neste caminho em busca de Saussure. A (re)leitura e a (re)

construção do referencial teórico-metodológico dos atuais documentos

saussurianos configuram-se como os primeiros passos necessários.

Ainda vivenciamos um período de análise da reflexão saussuriana,

em que observamos a (re)atualização de conceitos trabalhados por

Saussure, principalmente por colocá-los sob a luz da Semiologia,

o que tem como primeira grande consequência a reintrodução do

ponto de vista sistêmico sempre presente da meditação do professor

e a exclusão do ponto de vista dicotômico, tão presente nas leituras

anteriores à publicação dos manuscritos.

A teoria do valor linguístico revisitada

77Nonada • 20 • 2013

Podemos dizer, também, que este gesto de “retorno” a Saussure

pode contribuir para os estudos semânticos ao apresentar a teoria do

valor como teoria semântica evidenciando a função do sujeito falante

no jogo estabelecido entre o tempo diacrônico e sincrônico em suas

relações de equilíbrio e desiquilíbrio fundadoras dos movimentos

semânticos.

A partir do levantamento realizado, podemos considerar que a

tensão em que o sistema sobrevive, entre equilíbrio e desequilíbrio

constante, permite falar sobre as mudanças e sobre o que permanece

imutável. Esse ponto de vista permite também, a partir das criações

de analogia, explicada à luz das relações associativas e sintagmáticas,

percebermos um lugar para o sujeito na teoria do sentido, inclusive

quando tratamos dos valores de um ponto de vista diacrônico.

Sabemos, entretanto, que toda leitura das reflexões saussurianas

é apenas uma interpretação, algo peculiar a uma obra inacabada e

de um pensamento em constante evolução, sem ponto final. Assim,

não podemos oferecer conclusões finais à discussão, mas uma sen-

sação de conclusão a uma questão que não se esgota nestas páginas.

Por esta razão, faço minhas as palavras de Arrivè: “Ao terminar este

capítulo, indago com uma sombra de perplexidade: Será que traí o

pensamento de Saussure? Isso é infinitamente provável, no mínimo

porque silenciei sobre muitos – e consideráveis – dos seus aspectos”

(ARRIVÈ, 1999, p. 66).

Encontramos algumas lacunas nos escritos deixados por Saussure,

questões deixadas sem aparente resposta, da mesma forma como

encontramos certezas de um sério pesquisador, angustiado com a

complexidade de seu objeto e fascinado por ele, ao mesmo tempo.

Sua atitude paradoxal de paixão e angústia nos contamina e tudo que

podemos dizer é que esta interpretação não pode ser o ponto de vista

mais ou menos adequado para se pensar nas questões deixadas por

ele. Há pontos de vista possíveis, pois “nada nos diz de antemão que

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78 Nonada • 20 • 2013

uma dessas maneiras de considerar o fato seja anterior ou superior

às outras” (SAUSSURE, 1996, p. 15). Porém, a perspectiva sistêmica

se impõe na compreensão da semântica saussuriana.

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RAQUEL BASÍLIO

Professora do Curso de Letras da Universidade Federal da Paraíba, modalidade presencial e a distância. Doutora em Letras pela UFPB (2010) com experiência na área de Linguística, desenvolve trabalhos voltados para a análise conceitual da teoria saussuriana e na cons-trução de um arcabouço teórico-metodológico de investigação do fenômeno da analogia. Atualmente está vinculada ao Projeto Ateliê de Textos Acadêmicos (ATA) PNPD/Capes e ao vinculada ao Grupo de Estudos em Letramentos, Interação e Trabalho (GELIT), grupo de pesquisa cadastrado no CNPq.

E-mail: [email protected]

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