recife | novembro 2016 - unicap.br · fome de mundo | wanderlust | novembro 2016 escrever sobre um...

12
Um sentimento que funciona como combustível. Wanderlust é a vontade incansável de explorar novos lugares, o desejo que move as pessoas a destinos em todo o planeta. Os personagens deste especial simbolizam o número cada vez maior de pessoas sem fastio, com FAÇA SEU CHECK-IN RECIFE | NOVEMBRO 2016

Upload: ngodieu

Post on 10-Nov-2018

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Um sentimento que funciona comocombustível. Wanderlust é a vontade

incansável de explorar novos lugares,o desejo que move as pessoas a destinos

em todo o planeta. Os personagens desteespecial simbolizam o número cada vez

maior de pessoas sem fastio, com

FAÇA SEU CHECK-IN

R E C I F E | N O V E M B R O 2 0 1 6

2

FO

ME

DE

MU

ND

O |

WA

ND

ER

LU

ST

| N

OV

EM

BR

O 2

01

6

Escrever sobre um sentimento não é uma tarefa fácil e só percebemos isso quando já estávamos com a mão na massa. A escolha pelo tema veio depois de muito debate, pesquisa e da tentativa de unir em um só projeto o mundo de ideia de nós duas. A escolha, então, deixou evidente a nossa identificação com o sentimento Wanderlust e o gosto de falar sobre viagens em geral. Muito nos questionaram sobre a importância da temática, já que o assunto não entrou no hall dos mais discutidos ao longo do curso. Mas, como o próprio nome diz, esse é um projeto experimental e as pessoas que têm esse sentimento fazem parte da engrenagem que é a sociedade. Acreditamos que muitas pessoas se identificam com o tema e a fome de mundo dos nossos personagens.

Durante as apurações para fazer esse especial, um dos obstáculos encontrados foi o de não encontrar fontes diretamente ligadas ao Wanderlust. Afinal, ainda não existem especialistas com foco nesse assunto, inclusive no Brasil. Para tentar dar uma base mais sólida fomos atrás de profissionais da psicologia, sociologia, história e antropologia com o intuito de entender melhor esse desejo de trilhar incansavelmente novos caminhos.

Conhecer os personagens e sentir o entusiasmo quase palpável deles quando falavam das suas conquistas, caminhos percorridos e planos futuros nos deu a certeza de que poder conhecer e compartilhar experiências com essas pessoas fez valer a pena cada esforço em achá-las. E que ao contrário do que muitos pensam, é possível. É possível ir atrás do que se acredita, do que motiva o ser humano de forma individual e muitas vezes inexplicável. O nosso especial é sobre viver de forma intensa e única, não apenas sobreviver.

A tecnologia foi a grande aliada nesse período. Alguns dos nossos famintos estavam literalmente pelo mundo e o contato com eles não foi das coisas mais fáceis a lidar, pelo contrário. E-mails não respondidos, ligações não atendidas e respostas que nunca chegaram, resultaram em noites em claro e a incansável tentativa de permanecer com o tema. O estresse e o desespero bateram, talvez não fosse mais possível continuar com o especial. No fim das contas, a parceira se fez mais forte que os empecilhos que surgiram, uma sempre segurava a mão da outra. E é por isso que essa é uma nota das duas autoras, Karoline e Mayara.

O trabalho mostrou que o respeito,

a tolerância e o puxão de orelha fazem parte desse período nublado chamado Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). Nosso agradecimento vai principalmente à nossa orientadora Carla Teixeira e ao nosso suporte Flávio Santos, que sempre nos motivaram a ir além do que estava sendo feito.

O período foi de descobertas individuais e conhecimento uma da outra, do que de fato é trabalhar em conjunto. Percebemos que a parceria é uma das coisas mais fortes em todas as esferas da vida. Deu tão certo que escolhemos fazer uma nota só, representando a sintonia e convergência das ideias. Nessa altura do campeonato, os pensamentos se encaixam e soam como uma única melodia.

Agradecemos muito a todos os nossos parentes e amigos que aguentaram os nossos desabafos e angústias e vibraram conosco a cada conquista. Agradecemos a todos que contribuíram direta ou indiretamente para que contar cada uma dessas histórias fosse possível. Que ganhemos o mundo, “sem fastio, com fome de tudo”.

Mayara Ezequiel Karoline Gomes

NOTA DAS AUTORAS

EXPEDIENTE

Texto, ferramentas interativas, fotos, vídeo e áudioKaroline Gomes e Mayara Ezequiel

Fotos (acervo pessoal)Raphaella Aretakis | Vitor CarraraVictor Hugo | Fábio Campos

Orientação e revisão de textoCarla Teixeira

Design e WebdesignerFlávio Santos

CONTATO

Email: [email protected]: Fome de MundoInstagram: @fomedemundo_

Karoline [email protected] [email protected]

3

FO

ME

DE

MU

ND

O |

WA

ND

ER

LU

ST

| N

OV

EM

BR

O 2

01

6

Lagoa AzulJaboatão dos Guararapes, Pernambuco

CONTEÚDO ADICIONALwww.unicap.br/webjornalismo/fomedemundo

3O SENTIMENTOO desejo do novo é algo intrínseco e que funciona como um combustível. Wanderlust é a palavra que representa esse sentimento. 6SEM MUROS

É como se cada lugar que eu fosse, tivesse um pouquinho de mim.

11QUEM FICAPara quem fica, não há um conceito singular e linear que explique este comportamento.

4

FO

ME

DE

MU

ND

O |

WA

ND

ER

LU

ST

| N

OV

EM

BR

O 2

01

6

Viajar é um desejo comum entre as pessoas. Conhecer novos lugares, novas pessoas e outros costumes são alguns dos motivos apontados para o deslocamento. Mas existe quem não se contente apenas com uma viagem de férias ou em um feriado. O desejo do novo é algo intrínseco e que funciona como um combustível. Wanderlust é a palavra que representa esse sentimento. É de origem alemã e, apesar de não ter tradução exata para o português, explica a identificação com a sensação de liberdade em conhecer mais e mais lugares.

O deslocamento faz parte da rotina do ser humano desde o período Paleolítico, que durou de 4 milhões a.C. até 12 mil a.C. Estudos feitos pelo inglês John Lubbock apontam que o período foi marcado pelo nomadismo, levando ao povoamento do planeta. Desde então, o indivíduo passou a se locomover para conquistar novos lugares. O fato pode ser observado em todos os períodos da história, desde as eras primitivas, passando pelo descobrimento de países por meio da navegação, até os dias atuais.

O comportamento de se deslocar do ser humano pode ser compreendido como resultado de diversas questões. Observando pelo viés histórico, o homem trilhava caminhos em busca da própria sobrevivência, mudando de um lugar para o outro para achar melhores condições de vida. Segundo a antropóloga e historiadora Zuleica Dantas, 50, o surgimento e aprimoramento da agricultura foram umas das causas que permitiram a mudança no comportamento das populações nômades para se tornarem sedentárias, ou seja, fixas.

A busca pelo novo também é alvo de estudo entre os sociólogos. Zygmund Bauman, em seu livro “Globalização: as consequências humanas” dedicou um capítulo para falar sobre essa locomoção das pessoas na pós-modernidade.

Os viajantes são caracterizados de duas formas: o turista e o vagabundo. De acordo com Bauman, diante da grande exposição que a globalização nos oferta, ficar parado é considerado como “morrer aos poucos”. É vendido que conhecer novos lugares é, além de um desejo, uma maneira de mostrar a hierarquia social.

Para Bauman, o turista é o homem que explora novos locais porque quer e porque pode. É o que almoça em Madrid e dorme em Paris. As viagens são constantes por causa de uma condição financeira que permite isso. Por outro lado, o vagabundo tem a mobilidade como escape, para fugir do local. Ele sai em busca de novos lugares não porque tem o desejo, mas porque as condições não são favoráveis para sua permanência. O turista é empurrado pelo desejo e o vagabundo pela globalização.

A análise de Bauman reflete que existem dois tipos de viajantes. Mas quem coloca essa vontade em prática garante que há caminhos para encontrar o equilíbrio entre as condições do indivíduo e o desejo de ir.

A viagem pode ser realizada por diferentes motivos. Alguns largam tudo e vão para o mundo, outros se deslocam para trabalhar, por exemplo, e há ainda aqueles que preferem escapar da rotina por apenas alguns instantes. Jost Krippendorf, no livro “Sociologia do Turismo”, diz que só é possível suportar o cotidiano, ou a rotina, se for possível ter momentos de escape. A possibilidade de sair e viajar, passa, então, a ter grande importância. Segundo Krippendorf, a existência é uma tela cinzenta e o lazer, principalmente as viagens, devem atrair cor para ela. A periodicidade das viagens pode funcionar como uma espécie de gradação no sentimento de Wanderlust, diferente na vida de cada um, adaptado a cada realidade, mas sempre presente.

O SENTIMENTO WANDERLUST“Eu sinto a necessidade de sair e explorar novos lugares. Muita gente pensa que é impossível viajar por causa do dinheiro. Mas existem diferentes modos de conseguir descontos em hospedagem, passagem, alimentos e outros” Victor Hugo

O desejo por se deslocar pode ser explicado pela ciência? Leia mais em Gene Wanderlust

5

FO

ME

DE

MU

ND

O |

WA

ND

ER

LU

ST

| N

OV

EM

BR

O 2

01

6

Pedagogo por formação, recepcionista de hotel por ocasião e, por realização, descobridor do mundo. Se tem um assunto que faz os olhos de Rodrigo Lima, 23, brilharem é o gosto por viagens. O trabalho na área de turismo, que muitas vezes ocupa também os finais de semana, implica na necessidade do jovem se programar com antecedência para não deixar a oportunidade de trilhar novos caminhos nas folgas. “Minha escala é trabalhar cinco dias corridos e folgar um. A folga pode cair em qualquer dia da semana. No começo do mês eu faço uma lista com todos os meus dias livres e me programo. Como meus amigos e família estão trabalhando ou na faculdade quando eu estou livre, vou sozinho mesmo. Não deixo de ir por não ter companhia”, comenta.

As visitas a lugares mais próximos mostram que o sentimento Wanderlust está sempre presente e independe da distância percorrida. Não é preciso ir para o outro lado do mundo para conseguir fugir do dia a dia ou para viver uma nova experiência. Como uma espécie de gradação ou nível, a busca por novos caminhos é adaptada de acordo com as possibilidades e é carregada o tempo todo estampada na pele de Rodrigo, literalmente, em uma tatuagem dos continentes e de um bússola.

A escolha de partir para o mundo não é sempre bem vista pelos familiares. Para alimentar o desejo de conhecer novos lugares, Rodrigo se candidatou e passou em duas avaliações, nas quais iria trabalhar fora do Cabo de Santo Agostinho, cidade em que reside. Uma opção era um hotel em Fernando de Noronha e, a outra, ser funcionário de um cruzeiro que navegaria pela costa brasileira e Europa. “Meus pais acharam loucura, insanidade, que eu estaria perdendo tempo. Deixei essas duas oportunidades passar por causa deles. Eles não aceitaram, mas não vou mais acatar isso”, diz.

A não aceitação do comportamento de quem se desloca é tratada no livro “Jung e o tarô, uma jornada arquetípica”, de Sallie Nichols. A figura do vagabundo, associada ao arcano do louco, aparece na obra caminhando a pé, de barba e mochila, estendendo um polegar, como se estivesse pedindo uma carona. Segundo a autora, o personagem do vagabundo representa um aspecto inconsciente de nós mesmos e, por isso, não podemos deixar de reagir emocionalmente a ele, seja de modo positivo ou negativo.

O comportamento do viajante às vezes desperta uma reação negativa, de rejeição, justamente em quem não aceita que o outro pode viver dessa maneira. Para Sallie, a atitude

pode se transformar em uma reflexão sobre porque o comportamento do vagabundo incomoda tanto. O livro aponta que existe uma outra reação possível, a de empatia. De forma figurativa, a empatia poderia ser representada por alguém dando carona ao vagabundo em sua caminhada pelas estradas, por lembrar que já passou por uma fase parecida ou por identificar no viajante um desejo não vivido.

Deixando de lado a opinião contrária dos pais, Rodrigo conta, em relação aos planos futuros, que não quer continuar com a mesma rotina. “Ano que vem pretendo pedir demissão e vou procurar emprego em Noronha. Quero passar um ano e meio lá pra juntar dinheiro e morar na Europa”, projeta. Em 2015, o pedagogo morou por dois meses em Dublin, na Irlanda, e planeja retornar para conhecer mais países vizinhos.

“É uma frase clichê, mas a vida é muito mais que pagar contas. Nascer, ter uma rotina e viver basicamente nisso... Eu não nasci pra isso. Acho que a vida é feita de experiências e passa muito rápido. Se não aproveitar, você pode perceber isso quando estiver impossibilitado ou quando não puder fazer mais por algum motivo”, reflete Rodrigo.

RODRIGO LIMA NA AVENTURA DO RAPEL NA LAGOA AZUL

VÍDEO | O sentimento Wanderlust na pele

6

FO

ME

DE

MU

ND

O |

WA

ND

ER

LU

ST

| N

OV

EM

BR

O 2

01

6

Com a frase “Habitante de um lar sem muros” tatuada no braço, antes mesmo de falar uma palavra sequer, Victor Hugo Soares, 22, estudante e empreendedor, transmite uma mensagem visível e clara sobre si mesmo. O desejo de conhecer o mundo, viver novas experiências em vários lugares e, consequentemente, a identificação com o sentimento Wanderlust são intrínsecos a ele e se tornam ainda mais evidentes quando Victor começa a contar sobre os próprios desejos.

Um dos planos de Victor é passar cada virada de ano em um estado diferente do Brasil. A motivação é dada pela importância com que ele enxerga a realização dos rituais de ano novo. O jovem acredita que a maneira como ele passa o revéillon interfere bastante em como será o ano seguinte. Então, após uma viagem realizada para o Amazonas, em 2014, ele decidiu juntar a vontade de conhecer o Brasil e atender o Wanderlust que carrega, com a importância de fazer a passagem de ano de uma maneira singular durante 27 anos, número referente à quantidade de capitais do país.

O projeto já teve início. A virada de 2014 para 2015 foi vivida no Rio Grande do Norte e abriu portas para um 2015 com muitas realizações. Victor entrou numa nova área do mercado, saiu de jornalismo e começou administração, conseguiu um emprego nesta área e abriu a Predicto, uma empresa de realidade virtual. No ano seguinte, o destino escolhido foi a Paraíba e também trouxe para ele boas recordações, além de um 2016 baseado em muitas reflexões espirituais. “Vou dar uma volta no Brasil e irei fechar o ciclo em Recife”, revela.

A ida ao Amazonas não apenas trouxe a ideia para um novo projeto mas também deixou lembranças que Victor carrega por onde vai. E é relatando uma das experiências que o estudante deixa ainda mais evidente o sentimento de Wanderlust que faz parte dele.

Na família, Victor já se considera conhecido como “bandoleiro e desapegado” desde os quatro anos de idade, quando fez sua primeira viagem sem os pais. E, embora seja muito ligado a mãe, a proximidade e o apego a ela não fizeram com que a vontade de ir para o mundo fosse deixada de lado. Mesmo não sendo questionado pelo projeto e pela alma desprendida, ele percebe que muitos estranham o fato de ele não passar o ano novo com a família, por exemplo. A mãe, Mussilvana Alves, servidora pública, 53, se acostumou. “Acho que mainha entende porque na juventude ela também era muito parecida comigo. Tem uma alma desprendida”, comenta Victor.

Acostumado com viagens, Victor desmistifica a ideia de que para viajar é preciso ter muito dinheiro. Quando o assunto é hospedagem, por exemplo, ele procura por opções alternativas que auxiliam na redução dos gastos. “Mesmo sem ter um destino na cabeça, procuro juntar todo mês uma quantidade de dinheiro que eu possa gastar viajando. É uma questão de prioridade”, conclui. Talvez essa seja a diferença entre uma pessoa que gosta de viajar e quem tenha o sentimento Wanderlust. Atender esse chamado é quase uma obrigação inconsciente, não apenas uma opção.

HABITANTE DE UM LAR SEM MUROS

“É como se cada lugar que eu fosse, tivesse um pouquinho de mim. Viajar é uma forma de se desligar um pouco. O que me motiva mesmo é a sensação de

liberdade. Se fico muito tempo parado, acabo ficando sufocado, preciso sair um pouco nem que seja para fazer um pedal longo, de 80 km”.

Victor Hugo Soares

Saiba mais sobre Hospedagem Alternativa

6

7

FO

ME

DE

MU

ND

O |

WA

ND

ER

LU

ST

| N

OV

EM

BR

O 2

01

6

Com 16 anos ele navegou, em um caiaque inflável, 100 quilômetros do Rio São Francisco junto a um amigo apenas dois anos mais velho. Na bagagem, apenas uma barraca de camping e comida. Na alma, a vontade de se aventurar entre os estados de Pernambuco e Bahia, sem rumo certo, parando o barco em qualquer lugar apenas quando anoitecia, tempo de montar o acampamento e passar a noite. Foram sete dias que mudaram, indelevelmente, a forma como o designer de artefatos digitais, Fábio Campos, 49, enxerga a vida.

Hoje, 33 anos após a primeira aventura no Rio São Francisco, Fábio acumula viagens em países como Islândia, Chile, Argentina, Holanda, Inglaterra, Panamá e Ilhas Malvinas, que abriram caminho para o autoconhecimento e reflexões sobre os padrões de felicidade estabelecidos pela sociedade. “A sociedade visa alimentar-se dela própria. É a busca pela sobrevivência, não pela felicidade. A gente cria dificuldades para justificar não fazer isso. Quando você tem essa crença acha um equilíbrio e consegue administrar as coisas. As dificuldades que nós construímos, a gente consegue desconstruir. A sociedade cria regras para coibir comportamentos que não são socialmente aceitos”, diz.

Com um espírito aventureiro e ligado à natureza, Fábio procura fazer viagens para desfrutar de experiências

radicais. Escaladas, trilhas, corridas e rafting – descida em corredeiras usando botes infláveis – são maneiras encontradas por ele para entender seus limites. “Depois da primeira escalada eu doei todo o equipamento porque pensei que nunca mais ia fazer isso na minha vida. Mas, depois de um tempo, você vai digerindo e percebe como foi importante para se conectar à sua essência. É um processo natural, não é racional. Depois você tem vontade de repetir”, descreve.

A psicologia explica que todo ser humano está em busca de um objeto perdido que varia para cada pessoa. No caso de Fábio, a procura é pelo autoconhecimento. O desejo funciona como uma espécie de combustível “A busca pelo objeto perdido é saudável quando leva a pessoa a um processo criativo e de renovação. É o que move o ser humano. O que nos move é o desejo de ir em busca de algo, é o movimento que nos leva a algum lugar”, explica Maria do Carmo, psicóloga.

Para o designer, a procura por satisfazer esse anseio está relacionada com o sentimento Wanderlust . “Acho que é um sentido de você vivenciar outras realidades, saindo da zona de conforto prescrita na sociedade do seu dia a dia. Depois da primeira viagem, lá atrás aos 16, eu pude notar como isso era importante para mim. Não dá pra medir quando começa ou termina, é uma coisa que está dentro de você e não é planejada. As coisas vão acontecendo

e você vai se identificando. Eu tenho dificuldades em racionalizar isso, noto que faz parte de mim”, diz.

O modelo de felicidade que a sociedade exige, segundo o designer, é ter uma vida confortável e estável. Por isso, procurar o novo é considerado por ele como o fio da navalha, é estar sempre numa linha muito tênue entre manter um convívio social aceito e atender seus desejos. Mesmo sabendo que muitas coisas que ele faz, como ficar dez dias desconectado em um retiro de meditação, é um comportamento que algumas pessoas não entendem, Fábio afirma que seguir o lugar comum é fugir da sua essência.

Duas dificuldades apontadas por Fábio para fazer suas viagens são tempo e recurso, mas isso não o impede de ir além. “É uma questão de prioridade. Eu sempre trabalhei muito e isso nunca me atrapalhou. Você tem que acreditar que é possível

fazer isso”, diz o designer, que no último mês de setembro participou de uma corrida no gelo de 250km, na Islândia. O percurso foi finalizado em seis dias. O resultado foi de muita dor física, cansaço, mas o prêmio de ser o único brasileiro a ter completado a prova. Ele acredita que qualquer pessoa que tem o sentimento de desbravar o mundo pode conseguir realizar vários tipos de atividades se encarar isso como prioridade.

O ganho a cada ida é pessoal. Autodescoberta e aproximação com a própria essência são pagamentos que se sobrepoem ao esforço, tempo longe da família e desgaste físico. Cada um, segundo Fábio, se encontra em uma determinada área e a dele é relacionada à natureza, aos esportes radicais e à meditação. Assim, cada vez que vai, ele se aperfeiçoa como ser humano e volta com mais plenitude de alma, para a rotina e para os que o esperam.

UMA VIAGEM PARA DENTRO DE SI

Fotos: acervo pessoal

Trecho do trajeto da Ultra Maratona Fire and Ice, de 250 km, percorrida na

Islândia em 2016 (foto: acervo pessoal)

8

FO

ME

DE

MU

ND

O |

WA

ND

ER

LU

ST

| N

OV

EM

BR

O 2

01

6

“O desejo de locomoção é inerente e não opcional, afinal de contas, não conheci outra forma de viver. Hoje, com 32 anos, acumulo 16 endereços fixos pelo mundo”, diz Raphaella Aretakis, publicitária. Acostumada com viagens desde a infância, conheceu todo o litoral do Nordeste e morou em Fortaleza, Maceió e Pernambuco (Recife, Olinda, Jaboatão e Camaragibe), graças às inúmeras viagens realizadas com a família. O pai, Sérgio Aretakis, administrador de empresas, sempre programava para tirar as férias do trabalho junto com as férias escolares dos filhos, Raphaella e Raphael, e a esposa Edimilza. Sem muito planejamento para a viagem,

muitas vezes o que estava definido era apenas o destino.

Hoje, as viagens com o pai, mãe e irmão não são mais frequentes, mas o gosto pelo deslocamento permanece e pode ser considerado como um legado da família Aretakis. “Atualmente, a minha motivação de viajar é entrar em contato com o diferente. Saber conviver com as diferenças é primordial nos dias de hoje, principalmente por não morar há quase dez anos onde nasci. Viajo para buscar respostas aos meus constantes questionamentos, para encontrar origens”, comenta a publicitária.

HERANÇA WANDERLUST

“Acredito que meu pai nem sabia o que era Wanderlust, mas mesmo sem saber me passou essa sede de viver, de conhecer e de me arriscar. E assim sigo até os dias

de hoje. Porque viajar, pra mim, é viver”. Raphaella Aretakis

Foto

s: a

cerv

o pe

ssoa

l

Em 2009, quando passou uma temporada na Alemanha junto com o marido, o fascínio por viajar e conhecer novos lugares fez Raphaella procurar uma maneira de aliar sua paixão com o trabalho. Foi então que criou o blog raphanomundo para contar aos amigos como seria sua vida nova. Embora hospedados na Alemanha, os dois aproveitaram a estadia na Europa e passaram por Paris, Londres, Amsterdam, Praga, Budapeste, Viena e Zurique.

“Os convites para viagens foram surgindo, as pessoas foram confiando no meu julgamento, e eu me vi fazendo esse trabalho em tempo integral”, conta Rapha. Com o crescimento, o mercado publicitário viu o blog como um meio de divulgação de roteiros e serviços, gerando assim, fonte de renda para ela. O blog raphanomundo já conta com dicas e resenhas de lugares de mais de 15 países da Europa, América Central, América do Norte e América do Sul.

A blogueira afirma que seu ofício só existe porque ela viaja, e embora seja um trabalho prazeroso, não é feito apenas de ‘sombra e água fresca’, mas de muita dedicação. Por onde vai, Rapha coleciona momentos e imagens que são postados no seu blog, para que o público acompanhe seu percurso.

Embora feliz com a maneira como vive, para Rapha a pior parte é não acompanhar a vida das pessoas que ficam enquanto ela vai. Mesmo com esse lado negativo nas idas, ela garante que não pretende parar. “Viajar é como o movimento das marés e, às vezes, bate uma seca, mas não poder viajar é uma sensação ruim”, comenta. A saudade causada pela distância da família e amigos fazem parte dela assim como o impulso de ir. Mas o desejo de buscar novos caminhos ainda é maior que o peso de estar ausente.

9

FO

ME

DE

MU

ND

O |

WA

ND

ER

LU

ST

| N

OV

EM

BR

O 2

01

6

Aos 15 anos, Vitor Carrara já era mochileiro. Aos 19, saiu da casa dos pais e começou a estabelecer a própria independência indo morar em Santos, litoral de São Paulo. Hoje, aos 36 anos, é o que chama de generalista – uma pessoa que trabalha com muitas coisas que vão além da formação universitária – no caso de Vitor, Educação Física e especialização em fisiologia. Com a intenção de acompanhar seu comportamento de andarilho, Vitor adapta sua forma de ganhar dinheiro. Para se manter, realiza trabalhos como assessor de corredores à distância, dando dicas e instruindo para que eles tenham melhor desempenho, faz artesanato e tem como principal fonte de renda palestras e cursos que ministra sobre corrida ancestral.

Com sede de se arriscar e se aventurar pelo mundo, Vitor acredita que a decisão de viver assim, sem rotina estabelecida e em um lugar fixo, foi feita aos poucos. “O sentimento que me impulsiona é a vontade de explorar. Não foi uma decisão única, creio que foi um caminho natural que fui percorrendo”, relata. A necessidade de não estar sempre no mesmo lugar foi tão marcante que impulsionou um estilo de

vida bem diferente, mas apoiado pelos parentes.

Essa paixão por viajar não faz parte da rotina da família Carrara, mas devido às constantes viagens realizadas por Vitor, os parentes entenderam que a imersão em diferentes lugares e culturas faz parte da natureza do generalista. Aos 14 anos, por exemplo, uma visita ao tio, no Mato Grosso, com duração prevista para apenas um final de semana, terminou em uma estadia de três meses. Aos 15, pedia carona nas estradas para se locomover e acampava durante semanas, em São Paulo.

Vitor acredita que não existem dificuldades nesse tipo de vida, já que ele está apenas seguindo seu fluxo normal. “Nunca pensei em desistir porque não estou tentando conquistar nada, viver é leve e divertido. Não consigo pensar em nada que poderia me impedir de viajar, a não ser minha própria vontade de parar por mais tempo em algum lugar”, diz.

Foi competidor de triathlon por quinze anos e participou de três competições pelo mundo: na França, Holanda e Itália. Além dos campeonatos internacionais,

Vitor também realizava pelo menos uma viagem por mês no Brasil como competidor. Depois de muitas idas e vindas e de conhecer muitos lugares, ele então descobriu que não era apenas o esporte que trazia realização, mas sim os constantes deslocamentos, que possibilitavam novas descobertas e contato com outras culturas. “Percebi que a melhor parte da minha carreira eram as viagens”, conta.

Em uma de suas caminhadas, no Chile, Vitor encontrou uma companhia para o percurso. Em julho de 2015, em festival de música alternativa, conheceu Javiera Silva Abalos, sua atual companheira, e hoje percorrem juntos as estradas em busca do novo. Esperando um bebê, o casal está de mudança para Ubatuba, em São Paulo, onde pretende passar pelo menos um ano até o nascimento do filho, que futuramente também será incluído nas viagens.

Os caminhos escolhidos daqui para frente serão baseados também no tempo e limites que uma criança exige. Mas isso não quer dizer que irão deixar o estilo de vida para trás. Pelo contrário, a fome de mundo será compartilhada por mais um integrante.

PROFISSÃO ANDARILHO

Foto

: ace

rvo

pess

oal

10

FO

ME

DE

MU

ND

O |

WA

ND

ER

LU

ST

| N

OV

EM

BR

O 2

01

6

Quando se fala em viajar um dos fatores que mais pesam no bolso é a hospedagem. Muitas pessoas vão atrás de pacotes de viagens ou buscam hotéis e pousadas em sites que comparam os preços. A ideia é boa, mas existem outras formas de economizar e ter uma experiência mais intensa. A maneira como o viajante se hospeda pode dizer muito sobre a sua intenção para o destino. Seja em uma área mais urbana, na natureza ou em algum lugar mais isolado, há espaço para todas as pessoas com fome de mundo.

Uma alternativa que vem ganhando força nos últimos anos no Brasil é o couchsurfing. A proposta é oferecer um serviço de hospitalidade que vai além de apenas receber alguém. O couchsurfing é uma plataforma utilizada em países de todos os continentes e funciona como uma espécie de troca. Qualquer pessoa pode se cadastrar para receber alguém na sua casa ou buscar um lugar cedido por alguém. Para fazer isso, a pessoa interessada deve fazer um cadastro e responder uma série de questionários, que vão de perguntas como onde mora, se aceita animal, se recebe casal ou não, até perguntas como é a ideologia do usuário. Tudo para garantir que os envolvidos, quem recebe e quem se hospeda, tenham uma boa experiência. Cada usuário também recebe uma avaliação da outra pessoa para que futuros interessados tenham um mínimo de segurança.

Quem opta por se hospedar por meio desta alternativa não paga pela hospedagem e quem se propõe a receber também não cobra pelo serviço.

A proposta é a troca de experiências entre hóspede e anfitrião. O inquilino temporário e gratuito pode ajudar na rotina da casa ou comprando mantimentos, mas espontaneamente, não é obrigatório. “Eu recebi o

Simon e o Adrian. Ambos são australianos e amigos de infância, no entanto Simon mora no Canadá e Adrian na Noruega. Eles decidiram fazer um mochilão pela América do Sul durante seis meses. Pesquisaram bem sobre o Brasil ao ponto de decidirem que passariam o carnaval em Pernambuco”, diz Igor Travassos, produtor cultural, que teve apenas um lado da experiência, o acolhimento. Outra plataforma que está chamando a atenção de viajantes é o Airbnb. A proposta do site é disponibilizar lugares como uma espécie de aluguel por temporada. Nesse contexto, o preço baixo é um dos pontos positivos, mas por

causa da grande oferta de imóveis, o valor pode variar muito. São ofertadas casas, apartamentos, quitinetes, coberturas, entre outros, para variados perfis de interessados. O pagamento é por diária e é feito por meio de

cartão de crédito ou por uma conta no PayPal – plataforma de pagamentos online.

Esse tipo de hospedagem consegue proporcionar uma experiência mais intimista por não ser apenas um quarto, mas uma casa completa, o que pode tornar a vivência mais acolhedora. “Inicialmente eu fiquei com medo, falava com o proprietário, mas tinha aquela insegurança sobre o imóvel, se ele estaria lá mesmo. A primeira vez que eu usei foi no Rio de Janeiro, mas o apartamento estava sujo. O ar condicionado e alguns eletrônicos estavam com poeira. Mas já utilizei duas vezes em Natal e uma em João Pessoa e foi maravilhoso. A comunicação com os três donos, a limpeza, tudo

excelente”, comenta Márcia Reis, engenheira, que pretende usar hospedagens alternativas cada vez mais daqui pra frente.

Além de lugares alugados ou disponibilizados por pessoas que têm um cantinho a mais, os hostels podem ser uma opção mais acessível para quem está programando uma viagem. O nome pode parecer com o de um hotel comum, mas a ideia é, acima de tudo, de compartilhamento. Os interessados podem pagar apenas por uma cama e dividir quarto, banheiro e áreas comuns com outras pessoas. A procura por essa forma de acomodação vem crescendo não apenas entre mochileiros, como era inicialmente, mas com viajantes em geral. “Esse tipo de hospedagem se destaca pela questão do preço e pelo conceito. O foco não é apenas receber clientes, mas a interação entre eles. O hostel está começando a ficar mais popular, mas as pessoas ainda tem um certo medo por estar em um quarto com pessoas desconhecidas. Outras por não gostarem de dividir o banheiro. Mas hoje isso está mudando e a procura está sendo maior, principalmente entre os jovens”, explica Talita Ivo, turismóloga.

Embora a ideia seja de compartilhamento, para conquistar mais pessoas existem hostels que disponibilizam quartos e banheiros individuais. Dessa forma, o cliente pode desfrutar de uma experiência de interação – cozinha e áreas comuns são divididas – e economizar. Num mesmo lugar é possível encontrar diversas opções de acolhimento. Que tal experimentar possibilidades de hospedagem alternativa, se jogar no mundo e atender ao chamado Wanderlust?

HOSPEDAGEM ALTERNATIVA

“A melhor parte é a possibilidade de conhecer outras culturas, outras línguas e aprender mais sobre o costume e a região

a partir do olhar do outro.”Igor Travassos

11

FO

ME

DE

MU

ND

O |

WA

ND

ER

LU

ST

| N

OV

EM

BR

O 2

01

6

O desejo de explorar o mundo é ilustrado através do sentimento Wanderlust e é objeto de estudo encontrado na sociologia do turismo. Vários são os fatores apontados como motivo para viajar como, por exemplo, o autoconhecimento e exposição à sociedade de consumo. Para quem fica, não há um conceito singular e linear que explique este comportamento. Mas alguns indicadores podem ser usados para compreender os motivos impeditivos ao deslocamento.

Gabriela Falcão, socióloga, afirma poderem ser apontadas questões subjetivas e estruturais. “O tripé raça, classe e gênero pode explicar porque algumas pessoas não vão para o mundo. Eu não posso dizer que tem uma explicação única. Na sociologia a gente tende a pensar em fatores mais gerais”, diz. Embora muito tenha mudado quanto à possibilidade e à facilidade para uma pessoa viajar, as três questões indicadas ainda pesam muito na decisão de ir.

As mudanças econômicas e até trabalhistas, como o direito a férias remuneradas, influenciaram no aumento das viagens. Aeroportos e rodovias são locais constantemente lotados, mostrando que o poder aquisitivo da massa aumentou. Mas, ainda assim, a questão financeira continua sendo vista como um fator que impede o indivíduo de viajar.

A socióloga explica que o tripé anda quase sempre de mãos dadas e o recorte de raça deve ser feito também. Principalmente porque, no Brasil, 54% das pessoas são negras e essas representam apenas 17% da população rica. “A riqueza no Brasil tem cor. Seguindo a lógica que para

viajar é preciso dinheiro, quem viaja não é, em sua maioria, a população negra”, comenta. A questão de gênero, com foco na mulher, também é apontada como uma das dificuldades estruturais.

Ainda sobre a junção de mulher e viagem, em 2016, o Ministério do Turismo divulgou uma pesquisa no dia oito de março, Dia Internacional da Mulher, sobre a intenção de viagens da classe feminina. A Sondagem do Consumidor – Intenção de Viagem, mostra que 17% das entrevistadas afirmam que pretendem fazer as próximas viagens sozinhas, número superior aos homens: 13,5% compartilham desse objetivo. Os números representam o maior índice registrado para o mês de fevereiro em quatro anos.

Mesmo com o aumento na intenção de desbravar novos lugares sozinhas, as medidas para ter um mínimo de segurança são percebidas, por exemplo, na escolha da forma de locomoção. O avião é o meio de transporte preferido por 64,6% das viajantes, podendo ser visto como um meio mais seguro também. Logo após vem o carro, com 20,9%, e o ônibus, com 7,2%.

Além de pontos mais práticos, ainda existem questões subjetivas que variam de acordo com o indivíduo. O laço afetivo com família e amigos é um dos fatores que motiva alguém a ficar. Como cada pessoa tem ideias e realizadas distintas, não é possível apontar um único motivo para não viajar. Este e outros questionamentos continuam como objetos de estudo da sociologia porque as viagens são vistas como formas de interação social.

QUEM FICA

Vídeo Por que algumas

pessoas não viajam?

12

FO

ME

DE

MU

ND

O |

WA

ND

ER

LU

ST

| N

OV

EM

BR

O 2

01

6