recensão ferry

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INTRODUÇÃO No que diz respeito à evolução filosófica dos conceitos de individualismo, sujeito e subjectividade absolutamente indissociáveis do de gosto –, Ferry acentua quatro momentos sucessivos: um primeiro, com Platão, «o mais moderno dos Antigos», em que o Belo é associado a uma ideia de medida, harmonia e proporção; um segundo, com a ruptura com um mundo conhecido e objectivo, em que é através do cógito que Descartes encontra um modo de superar o momento da dúvida e da tábua rasa de todo o conhecimento; um terceiro, em que a intersubjectividade, observada como síntese do entendimento e sensibilidade, remete para que o Belo seja único para o sujeito (embora comunicável), sendo o mundo de cada indivíduo um microcosmos dentro de um macrocosmos comum a todos; e, ainda, a absoluta ruptura com o mundo, no sentido do Universal, da existência de Deus, ou um Mundo único para todos os indivíduos: já não existirem factos, apenas interpretações que, ausentes de algo em comum, se tornaram incomunicáveis. O BELO E A SUBJECTIVIDADE DA ARTE Iniciemos a viagem pela Filosofia – que culminou num reconhecimento da Estética como disciplina individual – abordando a Antiguidade, com Platão – que, saliente-se, não é um teórico da arte como os que, na verdade, só surgirão no século XVII. Ferry começa por referir que, para os Antigos, o «Belo nunca se define pura e simplesmente pelo prazer subjectivo que proporciona»1, pois pertencia a um macrocosmos, exterior ao indivíduo, a uma categoria universal, onde reinaria um critério objectivo ; ao Belo associavam-se valores como ideias abstractas, cores e sons puros, harmonia, ordem e proporção. Somente no século XVII, a partir de Descartes, se observa, pela primeira vez, um ponto de viragem – o sujeito deixa de, em primeira instância, pertencer a um conjunto, para se tornar, antes de mais, num indivíduo. No seu Discurso do Método, Descartes propõe um mecanismo de três momentos para entender o processo de apreensão de conhecimento: a dúvida e a tábua rasa do conhecimento (ou tradições), a tentativa de sair da dúvida e a procura de um alicerce para reconstruir o edifício do conhecimento, e o derradeiro momento do método de reconstrução daquele edifício – o cógito: «Penso, logo existo!». Ao colocar a questão na primeira pessoa, restringe, sem se aperceber, a problemática à existência de um sujeito – e com a introdução do eu, hoje compreendemos que somente o indivíduo pode ter consciência de si próprio. É esta consciência que irá introduzir um zeitgeist, iniciador do modernismo no contexto filosófico, que apresentará repercussões em

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Recensão critica A Revolução do Gosto

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INTRODUONo que diz respeito evoluo filosfica dos conceitos de individualismo, sujeito e subjectividade absolutamente indissociveis do de gosto , Ferry acentua quatro momentos sucessivos: um primeiro, com Plato, o mais moderno dos Antigos, em que o Belo associado a uma ideia de medida, harmonia e proporo; um segundo, com a ruptura com um mundo conhecido e objectivo, em que atravs do cgito que Descartes encontra um modo de superar o momento da dvida e da tbua rasa de todo o conhecimento; um terceiro, em que a intersubjectividade, observada como sntese do entendimento e sensibilidade, remete para que o Belo seja nico para o sujeito (embora comunicvel), sendo o mundo de cada indivduo um microcosmos dentro de um macrocosmos comum a todos; e, ainda, a absoluta ruptura com o mundo, no sentido do Universal, da existncia de Deus, ou um Mundo nico para todos os indivduos: j no existirem factos, apenas interpretaes que, ausentes de algo em comum, se tornaram incomunicveis.

O BELO E A SUBJECTIVIDADE DA ARTEIniciemos a viagem pela Filosofia que culminou num reconhecimento da Esttica como disciplina individual abordando a Antiguidade, com Plato que, saliente-se, no um terico da arte como os que, na verdade, s surgiro no sculo XVII. Ferry comea por referir que, para os Antigos, o Belo nunca se define pura e simplesmente pelo prazer subjectivo que proporciona1, pois pertencia a um macrocosmos, exterior ao indivduo, a uma categoria universal, onde reinaria um critrio objectivo; ao Belo associavam-se valores como ideias abstractas, cores e sons puros, harmonia, ordem e proporo. Somente no sculo XVII, a partir de Descartes, se observa, pela primeira vez, um ponto de viragem o sujeito deixa de, em primeira instncia, pertencer a um conjunto, para se tornar, antes de mais, num indivduo. No seu Discurso do Mtodo, Descartes prope um mecanismo de trs momentos para entender o processo de apreenso de conhecimento: a dvida e a tbua rasa do conhecimento (ou tradies), a tentativa de sair da dvida e a procura de um alicerce para reconstruir o edifcio doconhecimento, e o derradeiro momento do mtodo de reconstruo daquele edifcio o cgito: Penso, logo existo!. Ao colocar a questo na primeira pessoa, restringe, sem se aperceber, a problemtica existncia de um sujeito e com a introduo do eu, hoje compreendemos que somente o indivduo pode ter conscincia de si prprio. esta conscincia que ir introduzir um zeitgeist, iniciador do modernismo no contexto filosfico, que apresentar repercusses em todas as reas, em particular na esttica, em que a harmonia deixar de ser pensada como relexo de algo exterior ao homem. Porm, na esttica moderna, e com Kant (sculo XVIII), observa-se uma sntese do sensvel e do entendimento, ao mesmo tempo que se reconhece o sujeito neste caso, cada indivduo ou microcosmos encontra uma Universalidade em Deus, no Belo, no Uno, que permitia, ainda, que todos os sujeitos reconhecessem um gnio criativo, atravs de critrios comuns a todos os sujeitos (intersubjectividade). No que respeita esttica moderna, Ferry encontra, quer no cartesianismo, quer no subjectivismo radical dos empiristas, quer na teoria de Kant, ideologias comuns, que se reflectem na tentativa de conciliao da viso subjectivista do belo, fundada nas faculdades humanas (razo, sentimento e imaginao), e a viso de que a obra de arte no deixa de ser inseparvel de uma certa forma de objectividade (exigncia de critrios). E apesar de ter proposto a possibilidade de comunicao entre sujeitos (extrapolada para o conceito do Belo), Kant abre caminho para a ideia Nietszchiana da interpretao, atravs dos conceitos de nmeno e fenmeno (o primeiro a coisa em si e o segundo a forma como o indivduo a apreende). Por conseguinte, com Nietzsche que se observa uma completa ruptura com o mundo como era conhecido at ento: assinala-se a morte de Deus. J nenhuma viso pode ser considerada correcta ou incorrecta; os elementos que permitiam definir a Verdade, o Belo, o Bem, o Uno, Deus, o Sujeito Absoluto, tornam-se obsoletos. Deste modo, culminou-se num ponto sem retorno: cada indivduo uma mnada microcsmica, que no possui qualquer macrocosmos que a sustenha, irreversivelmente aberta impossbilidade de existncia de critrios universais (nomeadamente, para o Belo).

() a morte de Deus significa a do sujeito absoluto, ao mesmo tempo que designa o advento dosujeito fragmentado, radicalmente aberto alteridade do inconsciente, para sempre incapaz, portanto, de voltar a fechar-se sobre si prprio na iluso de qualquer transparncia de si.2

Ser na poca Contempornea, bem caracterizada por este individualismo absoluto introduzido por Nietzsche, Ferry entende como nas palavras de Heidegger que se forma uma monadologia sem Deus, uma fragmentao do sujeito que somente a arte deste tempo poderia conceber to perfeitamente. Neste contexto, prope, como defensor de uma filosofia ateia, a retraco e obsolescncia do mundo na presente cultura democrtica (contrariando uma Weltanschauung especfica, no momento actual), que apesar de possuir ainda as cincias exactas como ltimo reduto da objectividade (culminar da metafsica da subjectividade), a histria (sensu lato) , cada vez mais, uma disciplina auto-reflexiva, e a arte muda, definitivamente, de paradigma em relao ao passado, a favor da extrema subjectivizao:

O que caracteriza a arte contempornea no certamente o facto de as obras manifestarem menostalento que as do passado. Simplesmente, a ambio da arte talvez tenha mudado: () j no se tratahoje () de utilizar a arte como um instrumento de conhecimento de uma realidade estranha a si prprios.Muito pelo contrrio, () a obra definida pelo prprio artista como extenso de si prprio ()3

O BELO E A SUBJECTIVIDADE DA ARTEO nascimento do gosto, independentemente da sua origem, mas irrepreensivelmente uma marca do sculo XVII, , como bem coloca Ferry, uma ruptura na histria da subjectividade.

E , com efeito, tambm a partir da representao de tal faculdade [que permite distinguir o belo do feiopela aesthsis] que entramos definitivamente no universo da esttica moderna ().4

Remetendo novamente para os trs momentos cartesianos, constri, a partir de Descartes, o incio do advento da modernidade filosfica: a tbua rasa s tradies e preconceitos herdados, seguida da apreenso do sujeito por si prprio como nico princpio absolutamente certo e, por fim, o construtivismo radical. Todavia, esta quebra com a tradio, a qual fundava a validada dos valores, inaugura uma nova questo, consequente do momento cartesiano:

() como possvel fundar na imanncia radical dos valores subjectividade, a sua transcendncia,tanto para ns prprios como para outrem[?]5

Ao desviar pela histria da poltica, Ferry prova, uma vez mais, pela estrutura ternria de Descartes, que o sujeito, se encontra ento no centro da sociedade Moderna. Mas, para este caso, encontra uma soluo. Se o sujeito poltico legitima o poder assente no Homem e se nele que se baseia a reconstruo do edifcio social, o individualismo alarga-se esfera do colectivo, ao suportar a transcendncia na relao entre as vontades individuais.O pensamento defendido por Ferry surge bem definido pelas suas palavras: a quebra com o passado marcada por Descartes, que embora no tenha compreendido o peso da introduo do sujeito, que ele prprio realiza, abre o caminho para uma sociedade democrtica.A esttica emerge do gosto, j no sculo XVIII, e, portanto, da prpria essncia da subjectividade. E o que inicialmente Ferry apresenta como uma questo, ainda sem resposta, agora ser uma trindade de questes, decisivas para a inteligncia da cultura moderna.

TRS PROBLEMAS FUNDAMENTAISOs trs problemas fundamentais da esttica, expostos por Ferry, advm do facto do objecto desta disciplina ter adquirido autonomia, mutao que expresso concentrada da que ocorre em todos os domnios, com a inaugurao da poca Moderna.A irracionalidade do belo assume-se pelo corte entre o homem e Deus o corte do sensvel relativamente ao inteligvel, ou racional. Se, at Kant: () a sensibilidade humana apresentada como tendo uma estrutura especfica que o ponto de vista de Deus no pode relativizar totalmente6, com Nietzsche que se corta com as ambies da metafsica, eliminando-se toda a referncia a Deus:

() Nietzsche consagra o mundo sensvel, o mundo propriamente humano, no seu estatuto de s enico mundo (fragmentado numa infinidade de perspectivas).6

assim que Ferry coloca esta problemtica da esttica ao nvel do sujeito, visto que () a subjectividade j no se reduz, portanto, s faculdades inteligveis ()7.O nascimento da crtica surge, igualmente, da ruptura com a tradio, ou por outras palavras, como bem apresenta Serraller8 e resume Ferry, da necessidade ou tentativa de encontrar critrios. A par desta, encontra-se a histria para Ferry, muito melhor entendida por Hegel do que por Kant , porque se admite a evoluo, e a conscincia da temporalidade enraza-se. A originalidade (contra a norma) deixa de ser, por excelncia, um no valor, sendo que ela prpria compreende em si, a subjectividade.A comunicao a ltima questo colocada por Ferry. O relativismo o incio da problemtica da esttica: o que anteriormente era solucionado pela tradio e depois pela intersubjectividade, atinge com o niilismo um abalo irreversvel. Assim, parece insustentvel ao senso comum definir critrios para o belo. A procura destes critrios foi caracterstica da esttica moderna e o problema central da psmodernidade.Apesar do autor considerar que, curiosamente, h mais consenso sobre as grandes obras de arte, do que sobre algumas cincias exactas, isso acontece, de facto, porque sobre aquelas a prpria histria o rene. No obstante, quando nos colocamos perante obras do nosso tempo, o consenso e a reunio de critrios surge, novamente, como uma problemtica.

CONCLUSESEm todo o seu texto, Ferry apresenta-nos uma concepo da esttica e da arte ligada ao sujeito, que se completa pela concepo ligada temporalidade, que j Baudelaire expunha9. A histria da esttica como a histria da subjectividade, dividida em cinco momentos, clara no que respeita a esta posio. A pr-histria da esttica, associada ao perodo dos sculos XVII e XVIII, j se apresenta com a ideia do individualismo (o sujeito como mnada), mas ainda a comunicao atravs de um terceiro termo (intermedirio) e a este modelo, Baumgarten vai contrapr-se, colocando na sensibilidade o peso da conquista da expresso da beleza. O momento kantiano desembaraa as primeiras estticas da sua rstia de platonismo, uma inverso sem precedentes que dar a autonomia sensibilidade, finita e humana, que j no necessita do satlite divino (substituindo-o pela intersubjectividade). Mas se, no momento hegeliano, se nega a autonomia do sujeito para a dar histria (de uma comunidade, conjuntode sujeitos ), Ferry afirma que s na historicidade introduzida, este ponto se cruza com a histria da esttica. , por fim, com o momento nietzschiano, que inaugura o individualismo, o sujeito fragmentado associado morte de Deus, a morte do intermedirio. Chegamos ao subjectivismo total. O real multiplicidade, fractura, diferena, que s a arte pode apreender adequadamente. Ainda que nos apresente um ltimo momento, a ps-modernidade, depois de Nietzsche, Ferry talvez erre ao considerar que aps os anos 80 do sculo XX (para ns, actualidade) se voltaria a perder a noo da inovao. O que observamos hoje, em clarividncia, , pelo contrrio, um mundo rizomtico, que cresce para fora dos seus limites e, cada vez mais, se enche de gnios, de inovaes e da problemtica do consenso sobre as obras de arte.